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Impulso_27.

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IMPULSO ISSN 0103-7676 • PIRACICABA/SP • Volume 12 • Número 27 • P 1-194 • 2000

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Universidade Metodista de Piracicaba


Reitor A revista IMPULSO é uma publicação quadrimes-
ALMIR DE SOUZA MAIA tral da Universidade Metodista de Piracicaba –
Unimep (São Paulo, Brasil). Aceitam-se artigos
Vice-reitor Acadêmico acadêmicos, estudos analíticos e resenhas, nas
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GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM
review). Veja as normas para publicação no final da
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CASIMIRO CABRERA PERALTA cles, analytical studies and book reviews on the
CLÁUDIA REGINA CAVAGLIERI humanities, society and culture in general is wel-
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EDITORIAL

Dá o que pensar...

O ano 2000 se reveste de especial significado para a Universida-


de Metodista de Piracicaba. Além de celebrar seu Jubileu de Prata e
preparar-se para a entrada em um novo milênio, a Unimep dá especial
importância à discussão sobre os 500 anos de Brasil. A coincidência
dessas importantes demarcações temporais representa, assim, um mo-
mento propício de iniciativas que contribuam para a memória, a re-
flexão e a crítica do significado histórico, atual e futuro tanto da Uni-
versidade como do cenário maior no qual está inserida, que são a his-
tória e o contexto brasileiro em uma era de globalização. Este é, pois,
o marco plural no qual se insere o tema desta edição da Impulso.
O número 500 não pode ser tomado como um marcador rígido,
pois é facilmente relativizado. Culturas pré-colombianas habitaram
por milênios o que entendemos como território brasileiro; a indepen-
dência do jugo colonial português somente veio em 1822; a abolição
da escravatura e a proclamação da República ocorreram respectiva-
mente em 1888 e 1889 (ou seja, bem recentemente na escala históri-
ca); anos de ditadura foram muitos, e poucos, os presidentes demo-
craticamente eleitos. O Brasil é detentor de um dos mais perversos ín-
dices de desigualdade social do planeta. Qual, então, o significado des-
tes “500 anos”?
Ao dedicar-se a esse tema, a revista participa do processo iniciado
em 1990, com as discussões sobre o significado do “descobrimento”
da América por Cristóvão Colombo. Embora programações oficiais
tenham então insistido no tom celebrativo da efeméride, muitas vozes
críticas se opuseram à idéia de descobrimento, fazendo valer o argu-
mento de que, na realidade, desde 1492 ocorrem uma “conquista” e
um genocídio brutais, com funestos efeitos para o continente inteiro.
Tal crítica gerou discussões e suscitou controvérsias por toda a
América Latina, alcançando também a Unimep. Em 1992 a Pastoral

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Universiária dedicou-se ao tema. Em 1997, o projeto “500 Anos de


Brasil: Descobrimento ou Conquista?” levou à constituição da “Co-
missão 500 Anos”, encarregada de organizar, no âmbito da Universi-
dade, os eventos relativos à data. Posicionando-se diante de várias ini-
ciativas polarizadas pela mera celebração e a crítica radical, a Comissão
optou por buscar um marco referencial que permitisse a pluralidade
de expressões sobre essa temática.
Lançando esse desafio, a Comissão definiu-se, assim, como a ins-
tância de discussão, planejamento e execução de atividades reunidads
sob o marco geral do projeto “Reconstruindo o Brasil”. Esta edição da
Impulso é a resposta da Editora Unimep e da Comissão Editorial desta
revista a tal desafio.
Os diversos ensaios temáticos publicados neste número 27 abor-
dam temas variados, que expressam uma pluralidade de posições. Logo
de início, e por estarmos inseridos no âmbito acadêmico, a questão da
educação torna-se de fundamental relevância. Esse é o tema tratado, de
modo complementar, por Almir de Souza Maia e Hugo Assmann. Se
Maia abre esta edição com uma visão retrospectiva, mostrando como
o Brasil – ao contrário de outros países latino-americanos – colocou a
questão da educação tardiamente nas discussões sobre a sua identidade
e seu projeto nacional, e agora se defronta com grandes desafios, Ass-
mann parte desse pressuposto para enfatizar a necessidade de se sonhar
um novo projeto de modo mais ousado, afirmando que os novos de-
safios constituem também oportunidades que hoje se nos apresentam
para podermos sonhar um Brasil solidário. Por sua vez, Lucy Seki traça
um panorama da multiplicidade das línguas atualmente faladas no Bra-
sil, registrando sua relevância e a reivindicação das comunidades indí-
genas pela integração de suas próprias línguas e culturas nos processos
educacionais.
Questões como estas não se limitam ao território brasileiro, mas
têm implicações profundas nas relações internacionais, como o ex-
pressam tanto Paulo Roberto de Almeida como José Augusto Lindgren
Alves. Ambos partem de suas experiências no âmbito diplomático,
mas extraem distintas conseqüências. Almeida desenvolve uma
periodização da história da diplomacia no Brasil e indica uma progres-
siva maturidade nas relações diplomáticas do Brasil com vários outros
países, revelando, assim, a crescente inserção do País como sério in-
terlocutor na arena internacional. De sua parte, Lindgren trata da
questão do racismo no Brasil, advertindo sobre o risco, em tal análise,
de se tomar de modo acrítico as categorias dos movimentos oriundos
dos Estados Unidos, sem que se leve em conta uma série de questões

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étnicas e culturais muito particulares àquele país. Ambos os autores


nos lembram, portanto, do quanto as visões externas ao Brasil estão
em jogo em políticas internas.
Outra temática importante e que aglutina diferentes ensaios é a
questão da ciência. Também aqui se pode falar de dois pólos, quase
que extremos, e em relação de complementariedade, pois Ubiratan
D’Ambrósio se dedica à matemática, enquanto Ataliba de Castilho se
concentra na lingüística. D’Ambrósio parte de seu projeto de uma
etnomatemática para indicar como várias formas de conhecimento
matemático – astronomia, geometria, navegação etc. – foram articu-
ladas de modo sui generis no mundo ibérico à época do “achamento”
do Brasil, embora culturalmente representassem distintas culturas e es-
colas do saber. Castilho expõe a importância da linguagem oral e o de-
senvolvimento da lingüística aplicada no Brasil, mas questiona a acep-
ção de que a linguagem escrita, definida em moldes formais, seja ne-
cessariamente mais rica do que a linguagem falada ou a invalide.
Três outros artigos poderiam ser aglutinados, se vistos sob um
prisma antropológico. Edvaldo Bortoleto vincula a religião no Brasil
não só ao contexto dos 500 anos, mas ao próprio “descobrimento” do
Novo Mundo, ao tratá-los como fenômeno de “encobrimento do ou-
tro enquanto outro”. Por outro lado, Pierre Sanchis busca identificar
características que marcam o campo religioso no Brasil a partir das lu-
zes que projeta sobre a transferência de hábitat empreendida pelos
portugueses – vindos de uma “terra de raiz” – às costas brasileiras – um
espaço “sem limites”. Tece, assim, um retrato ágil sobre esta experiên-
cia histórica, daquilo que Sanchis chama de “construção aberta e po-
rosa de identidades”. Iolanda Ide, de sua parte, identifica e contrapõe
os vários momentos de violência de gênero em nossos cinco séculos de
história, destacando a que incide sobre a sexualidade das brasileiras em
suas inúmeras experiências de exclusão. E atesta: o desafio de igual-
dade social entres os gêneros masculino e feminino no Brasil ainda
permanece um ideal a ser conquistado.
Por último, mas na realidade trazendo o que talvez seja a questão
fundamental na discussão sobre os 500 anos, alguns artigos articulam
questões sociais especificamente brasileiras, que não podem escapar à
nossa atenção. O texto de Angela Maria Corrêa e José Marcelo de
Castro nos leva, indiretamente, ao próprio significado do termo “Bra-
sil”. Embora tenha sua origem como referência à madeira abundante
nas terras colonizadas pelos portugueses, o nome do País se presta atu-
almente como caracterização de outro fenômeno: “Brazilianization”
(ou “Brasilianisierung”, no alemão) é o termo técnico internacional-

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mente aplicado hoje em dia para identificar os mais altos níveis de de-
sigualdade econômica e social, tema este discutido por Corrêa e Cas-
tro a partir da análise dos mais importantes índices e relatórios eco-
nômicos sobre a realidade brasileira.
As Comunicações desta edição da Impulso trazem textos de au-
tores que têm, indubitavelmente, vasta produção teórica e ação prática
em seus respectivos campos e que aqui apresentam aspectos mais pon-
tuais de seu trabalho. Roberto Kishinami vale-se de sua intensa expe-
riência na organização Greenpeace para expor temas relacionados ao
antagonismo entre natureza e economia, com destaque à questão agrí-
cola. Ivone Gebara, até bem pouco tempo submetida ao silêncio pela
Igreja devido à provocativa articulação que elaborou entre feminismo
e teologia, discute a questão do “discurso sobre o mal”. José Marques
de Melo, reconhecido por suas inúmeras publicações e iniciativas na
promoção da comunicação social no Brasil e na América Latina, reto-
ma a linha de suas mais recentes pesquisas para discorrer sobre a “in-
terseção entre o jornalismo prático e o acadêmico”.
Assim, após passarmos em revisão essa multiplicidade de textos,
não temos como aspirar a uma conclusão unívoca quanto ao signifi-
cado destes “500 anos”. Tampouco poderia ser esta a pretensão da Im-
pulso 27.
Se há algo conclusivo, só pode ser o fato de que, certamente, o
número 500 é um símbolo que nos dá o que pensar.

COMISSÃO EDITORIAL

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Sumário
O DESCOBRIMENTO TARDIO:
as raízes, o nascimento e os atuais
desafios da universidade brasileira
The late discovery: from roots to present
challenges of the Brazilian university
ALMIR DE SOUZA MAIA 9
RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL:
ensaio de síntese sobre os primeiros 500 anos
Brazilian international relations:
Essay of assessment on the first 500 years
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA 21
500 ANOS...
DE PORTUGUESES A BRASILEIROS
Five hundred years... from Portuguese to Brazilians
PIERRE SANCHIS 33
HÁ 500 ANOS, QUE MATEMÁTICA?
500 years ago, which Mathematics?
UBIRATAN D’AMBROSIO 47
SERIA A LÍNGUA FALADA MAIS
POBRE QUE A LÍNGUA ESCRITA?
Could spoken language be poorer than written language?
ATALIBA T. DE CASTILHO 59
TERRA BRASILIS: do paraíso de deus(es)
e de gentes (in)crédulas ou do lugar d’onde
“não existe pecado do lado debaixo do equador”
The land brasilis: the paradise of the god(s) and (in)credulous
people or the place where “there is no sin below the equator”
EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO 73
NO PEITO E NA RAÇA – a americanização
do Brasil e a brasilianização da América
The Americanization of Brazil and the Brazilianization
of America in the Race Question
J.A. LINDGREN ALVES 91
MULHERES: 500 anos de muitas
perdas e alguns ganhos
Women: 500 years of many losses and some gains
IOLANDA TOSHIE IDE 107

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Sumário
BRASIL: cinco séculos de
riqueza, desigualdade e pobreza
BRAZIL: five centuries of wealth,
income inequality and poverty
ANGELA M. C. JORGE CORRÊA &
JOSÉ MARCELO DE CASTRO 127
BRASIL 500 ANOS:
o sonho educativo de um Brasil solidário
500 years of Brazil:
the educational dream of a solidary Brazil
HUGO ASSMANN 143
Línguas Indígenas do Brasil
no limiar do século XXI
Native Languages of Brazil at the Threshold of the XXI Century
LUCY SEKI 157

...............................
Comunicações 171
BRASIL 500 ANOS DEPOIS
Brazil 500 Year Later
ROBERTO KISHINAMI 173
500 ANOS E O DISCURSO
SOBRE O MAL FEMININO
500 Years and the Discourse on Feminine Evil
IVONE GEBARA 181
JORNALISMO NO BRASIL:
olhar e ação da academia
Journalism in Brazil:
The Perspective and Action of the Academy
JOSÉ MARQUES DE MELO 189

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O DESCOBRIMENTO
TARDIO: as raízes, o ALMIR DE SOUZA MAIA
Reitor da Universidade Metodista
nascimento e os atuais de Piracicaba (UNIMEP)
asmaia@unimep.br
desafios da universidade
brasileira
The late discovery: from roots to present
challenges of the Brazilian university
RESUMO O artigo traz uma síntese histórica dos debates e tendências em torno do surgimento da universidade bra-
sileira, bem como a história das primeiras instituições universitárias. Destacam-se o surgimento e a atuação das es-
colas superiores de cunho confessional. Conclui-se o artigo com uma análise da realidade atual do ensino superior
brasileiro, com ênfase nas universidades e nos desafios a serem por elas enfrentados.
Palavras-chave universidade – história – ensino superior – educação confessional.

ABSTRACT The article makes a historic synthesis of the discussions and tendencies concerning the emergence of the
Brazilian university, as well as providing a history of the first universities in Brazil. There is a special focus on the chur-
ch-related institutions of higher education. The article concludes with an analysis of the current reality of Brazilian
higher education with emphasis on the universities and the challenges that face them in the new century.
Keywords university – history – higher education – church-related education.

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INTRODUÇÃO

I
nserir reflexões sobre a história da universidade brasileira no contexto
das celebrações dos 500 anos de descobrimento do Brasil pode parecer
despropositado, dado que a primeira universidade de fato em nosso
país data de 1920. Entretanto, para se falar dos cinco séculos da for-
mação de nosso povo é preciso atentar tanto para as vozes quanto
para os silêncios ao longo de nossa história. Estes simbolizam o que
deixou de ocorrer e que, por vezes, teve conseqüências marcantes na
vida da nação brasileira.
Neste artigo pretende-se, inicialmente, analisar o processo tardio do surgimento da
universidade no País, suas causas e seus efeitos históricos sobre o desenvolvimento da so-
ciedade brasileira. Concluindo, discute-se a atual configuração do sistema universitário
nacional, a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
de dezembro de 1996.
Para se falar dos
cinco séculos da AS RAÍZES DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
formação de nosso Em 1538 é fundada a primeira universidade no continente americano, em São Do-
mingos, coincidentemente o local do descobrimento das Américas por Cristóvão Colombo,
povo é preciso em 1492. Mas essa foi uma universidade de vida breve. Treze anos mais tarde, funda-se a
atentar tanto para Universidade de Lima como um seminário dominicano, São Marcos. No mesmo ano de
as vozes quanto 1551, inaugura-se, no México, a segunda universidade do chamado Novo Mundo, espe-
para os silêncios lhada no modelo das universidades espanholas, sobretudo da Universidade de Salamanca.
Posteriormente surgiram as universidades de São Felipe (Chile), Córdoba (Argentina), en-
ao longo de nossa tre outras.1
história Enquanto isso, no Brasil, o silêncio. Ou melhor, era possível ouvirem-se algumas
vozes no campo da educação, mas sua direção era seguramente outra que não o ensino
universitário. O primeiro estabelecimento de ensino em nosso país, o Colégio dos Meninos
de Jesus,2 em São Vicente, foi fundado em 1550 pelos jesuítas, que ainda criariam outros
16 colégios no Brasil, destinados a estudantes internos e externos, filhos de funcionários
públicos, senhores de engenho, criadores de gado e artesãos. Escolas voltadas a ensinar as
primeiras letras e ao ensino secundário, algumas agregavam o ensino superior em artes e
teologia. O Colégio dos Meninos de Jesus foi modelo para outros em São Paulo, Espírito
Santo, Bahia, Paraíba, Ceará, Maranhão, Pernambuco e Pará.
A experiência educacional jesuítica revelou-se, contudo, uma tentativa de trans-
plantação de uma cultura em vias de extinção. Dita humanística, na verdade fundava-
se em valores e princípios pré-renascentistas. Alguns autores consideram que seu estabe-
1 Referências cronológicas retiradas de CUNHA, 1980, p. 11.
2 MARTINS, 1997, p. 13.

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lecimento e sua difusão foram responsáveis por criar uma situação do ensino superior só viria a se alterar a partir do sé-
atitude mental retrógrada e subserviente à atividade intelec- culo XIX, com a invasão de Portugal pela França, o que cau-
tual nacional.3 sou a transferência da corte para o Brasil e a elevação da co-
Por mais que os padres jesuítas tenham se empenhado lônia a reino. A partir de então, surgem no Brasil instituições
numa obra séria, altamente civilizadora e alicerçada forte- anteriormente exclusivas da Metrópole, como a Biblioteca
mente no elemento ético – enfrentando quase que solitaria- Nacional, imprensa, bancos e fábricas, mas mesmo assim
mente o ambiente moral dissoluto da colônia4 –, o sistema não foram criadas universidades, apesar do registro histórico
por eles montado não teve relação direta com o processo de da existência de várias reivindicações neste sentido.
surgimento do ensino superior em sua forma atual. Paradoxalmente, o príncipe regente inspirou-se na
No período colonial, marcado pela política deliberada França, na época rival de Portugal, para delinear o modelo
de Portugal de buscar a perpetuação de seu poder sobre a co- de educação superior nacional. Criaram-se cátedras com o
lônia, impediu-se o desenvolvimento autônomo da terra bra- objetivo específico da formação profissional, como o Curso
sileira. Proibia-se a criação de universidades em terras bra- de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia (criado na Bahia, em fe-
sileiras, pois temia-se que a existência de uma comunidade vereiro de 1808) e, quando a Corte se mudou da Bahia para
universitária viesse a contribuir para o surgimento e expan- o Rio de Janeiro, a Escola de Cirurgia, as Academias Militares
são de movimentos independentistas. Pode-se levar em con- e a Escola de Belas-Artes. Anísio Teixeira7 considera que as
sideração, ainda, que Portugal não possuía uma forte tradi- escolas profissionais de então eram uma solução substitu-
ção universitária. No século XVI, enquanto a Espanha abriga- tiva ou compensatória. Por sua finalidade, argumenta o
va oito universidades, famosas em toda a Europa, Portugal ti- autor, as escolas profissionais não buscavam o saber pelo sa-
nha apenas a Universidade de Coimbra, relativamente de ber, mas sim uma fatia do conhecimento de aplicação prá-
pequeno porte. tica (funcional). Porém, identifica-se nestes primeiros esta-
Raymundo Faoro5 discute o modelo econômico e cul- belecimentos de educação profissionalizante o desejo incon-
tural dependente, configurado pelo pacto colonial, em virtude fesso de transformarem-se em universidades, vontade esta
do qual o sentido último da produção nacional era a expor- traduzida em certa ambigüidade, com o surgimento de es-
tação, diferentemente do significado que seria exportar em colas não totalmente utilitárias nem perfeitamente clássicas
um contexto multilateral de comércio. Outros elementos refe- ou escolásticas. Havia, em meio à elite imperial, uma resis-
rentes à formação da América colonial portuguesa são discu- tência à universidade enquanto forma ou organização de
tidos por Gilberto Freyre,6 que apresenta a sociedade colonial ensino superior, entretanto, almejava-se a cultura intelectual
como “agrária na estrutura, escravocrata na técnica de explo- que lhe é inerente.
ração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – No final do Império, período de acirrado debate sobre
na sua composição”. Tudo isso subordinado à política de do- a questão do ensino superior, Rui Barbosa,8 como relator da
minação da Metrópole. Comissão de Instrução Pública, apresentou à Câmara dos
No século XVIII, com a Inconfidência Mineira, o País Deputados um precioso texto denominado “Reforma do en-
quase veio a ter sua primeira universidade, pois os inconfi- sino secundário e superior”. Nele, levantou algumas preocu-
dentes planejavam a criação de uma instituição universitária pações relacionadas à educação nacional, como a baixa qua-
em São João del Rei, nos moldes da de Coimbra. Contudo, a lidade do ensino, a falta de profissionalismo dos professores,
a utilização de metodologias ultrapassadas (baseadas na re-
3
4
Ibid., p. 27. tórica e na memorização), a insensibilidade dos poderes pú-
Para uma análise detalhada da trajetória e dos efeitos da educação dos
jesuítas sobre a sociedade brasileira, ver MARTINS, 1997.
5 FAORO, 1973. 7 TEIXEIRA, 1989.
6 FREYRE, 1981. 8 BARBOSA, 1882.

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blicos e a necessidade da instituição de processos de avalia- meira instituição universitária paulista, a Universidade de
ção. Os partidários de Rui Barbosa e defensores de uma edu- São Paulo, criada por particulares, mas que encerrou suas
cação de qualidade enfrentavam, contudo, fortes oposições, atividades por dificuldades de financiamento. Seguiu-se, em
inclusive à proposta de criação de universidades, sob a ale- 1912, a Universidade do Paraná, que igualmente não teve
gação de que estas eram instituições obsoletas.9 continuidade. A breve duração dessas primeiras universida-
Diante do impasse, perdurou no Brasil o modelo de des e a ausência de repercussões maiores oriundas de sua
ensino superior oferecido por estabelecimentos isolados, com existência fazem com que seja questionado o seu direito à
cursos profissionalizantes, particularmente de medicina, di- “primogenitura”.
reito e engenharia, encerrando-se os períodos colonial e im- Duas experiências universitárias de maior vulto iriam
perial sem o registro da existência de uma universidade. Vale se seguir: em 1920, é criada a Universidade do Rio de Janeiro,
registrar que alguns estabelecimentos de ensino superior do com a fusão das escolas públicas de medicina e engenharia
País já se tornavam tradicionais, com realizações científicas e de uma escola particular de direito; em 1927, em Minas Ge-
e produção literária dignas de reconhecimento internacional, rais, arquitetou-se iniciativa semelhante, com a união das fa-
revelando-se grandes nomes em estudos sociológicos, etno- culdades de engenharia, direito, medicina, odontologia e far-
gráficos, antropológicos, geológicos e geográficos. mácia, já existentes em Belo Horizonte.
A Proclamação da República trouxe outra dinâmica Apesar de terem subsistido, a legitimidade do pionei-
ao debate, marcadamente a partir da inspiração positivista dos rismo dessas duas universidades é colocada em dúvida, sob a
republicanos e da atuação do ministro Benjamim Constant alegação de que foram universidades “de ofício”, dada sua
(ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos). A pu- criação via fusão de vários estabelecimentos isolados. O prin-
blicação da Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamen- cipal argumento dos críticos reside no fato de se ter denomi-
tal na República, conhecida como Reforma Rivadávia Corrêa, nado universidade um conjunto de escolas profissionais,
também concorreu para abrir caminho para a concretização não se alcançando assim o verdadeiro espírito universitário.
do ideal universitário.10 Conforme Rossato,11 entre 1889 e 1915 No ano de 1934, contudo, surgiria o mais ambicioso
foram fundados 37 estabelecimentos de ensino superior, entre projeto universitário, a Universidade de São Paulo, desta vez
faculdades e escolas superiores. Em 1892, o deputado Pedro como iniciativa pública estadual. Seu impacto foi tamanho
Américo apresenta, ainda que sem êxito, o primeiro projeto de que levou à remodelação da Universidade do Rio de Janeiro,
criação de Universidade da República. em 1937. Pode-se considerar essas duas instituições o marco
inicial do esforço para firmar genuínos padrões universitári-
A UNIVERSIDADE TARDIA os no Brasil.
As experiências universitárias pioneiras no Brasil tive- No fim do primeiro período presidencial de Getúlio
ram como característica comum a sua efemeridade. A pri- Vargas, em 1943, o Brasil contava com quatro universidades
meira delas de que se tem registro no País foi a Universidade federais e uma estadual, todas públicas. Conforme Rossato,12
de Manaus, criada em 1909, no auge do ciclo da borracha. somente a partir de 1946 começam a surgir as universidades
Dela restou a Faculdade de Direito, que viria a se incorporar particulares. Nesse ano, foram reconhecidas as PUC do Rio de
à Universidade do Amazonas em 1962. Em 1911, surge a pri- Janeiro e a de São Paulo.
Contudo, a universidade nacional não logrou cumprir
9 Para um registro mais detalhado dos debates, ver TEIXEIRA, 1989. com sua ambiciosa missão. Persistiu a tradição da escola su-
10 Para uma visão mais detalhada sobre as transformações sociais, cultu-
rais, políticas e econômicas atravessadas pelo País no período subse-
perior independente e auto-suficiente e a da universidade do
qüente à Proclamação da República, concomitantes e até mesmo tipo confederação de escolas profissionais. A concepção clás-
coadjuvantes ao nascimento das primeiras universidades, ver CUNHA,
1980, pp. 137-177.
11 ROSSATO, 1989. 12 ROSSATO, 1989.

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sica de universidade ultrapassa, certamente, o modelo con- do entre a reforma universitária e a nova LDB foi marcado
federado, por ser instituição criada pela sociedade para os pela departamentalização, com estruturas idênticas vigendo
fins muito específicos de gerar, produzir, preservar e difundir em todas as universidades do País.
o conhecimento com a preocupação de assegurar o caráter Registra-se, portanto, o silêncio de mais de 400 anos,
universal da busca e da manifestação do saber. na história brasileira, sobre a questão universitária, com con-
Na década de 60, havia quase 700 escolas isoladas de seqüências graves sobre a formação da intelectualidade na-
ensino superior, o que acarretava falta de integração neste ní- cional. A elite do País foi moldada no estrangeiro ou em es-
vel de ensino, bem como duplicação de equipamentos e de colas profissionalizantes, carecendo da formação de espírito
corpo docente. Assim, começou-se a esboçar uma reforma crítico, bem como do desenvolvimento da necessária curio-
universitária para melhor aproveitamento dos recursos hu- sidade científica e seus métodos experimentais. Paralela-
manos e materiais existentes e para racionalização dos ser- mente à importação de bens de consumo, que relegava o País
viços de ensino oferecidos pelo sistema universitário, o qual, à condição de produtor de matérias-primas e o alijava do
até então, havia crescido de forma desordenada. processo de industrialização, o Brasil conviveu com a impor-
O regime militar determinara novos rumos para a po- tação “cultural”, geradora de uma elite alienada e incapaz de
lítica educacional brasileira. Para atender às exigências de se voltar para os problemas nacionais, contribuindo para a
um modelo econômico desenvolvimentista, da urbanização perpetuação de uma situação de dependência do País no ce-
crescente e da necessidade de recursos humanos mais qua- nário internacional.
lificados, promoveu a expansão acelerada do sistema de en- Machado de Assis, no conto “Teoria do medalhão”,
sino superior, via sua privatização. retrata com fino humor e ironia a postura intelectual viciada
Em 1968, o governo federal criou um grupo de tra- da elite nacional, no fim do século XIX. No trecho abaixo, ex-
balho com a missão de estudar a “reforma da Universidade traído desse texto, vê-se um pai a aconselhar o seu filho sobre
brasileira, visando sua eficiência, modernização, flexibilida- as supostas virtudes que deveria cultivar:
de administrativa e formação de recursos humanos de alto
– Nenhuma imaginação? (pergunta o filho).
nível para o desenvolvimento do país”.13 O governo militar da
– Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal
época tinha como um de seus intentos estratégicos a expan-
dom é ínfimo.
são do ensino superior, como forma de se obter recursos hu- – Nenhuma filosofia?
manos melhor qualificados. Pretendia, contudo, exercer – Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na
maior controle sobre as instituições de ensino superior, em realidade, nada. ‘Filosofia da História’, por exemplo, é
geral, e as universidades, em particular. uma locução que deves empregar com freqüência,
A reforma universitária consubstanciou-se na Lei mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que
n.º 539/69, complementada pelos Decretos-leis n.ºs 464/69 não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo o que
e 465/69. A universidade foi apontada como forma por ex- possa cheirar a reflexão, originalidade etc. etc.14
celência do ensino superior, admitindo-se a faculdade iso-
Essa visão de comportamento aceitável e socialmente
lada como exceção. Deveria ser polivalente, multifuncional
reconhecido foi também identificada por Sérgio Buarque de
e promover, de modo indissociável, o ensino, a pesquisa e a
Holanda:
extensão. Associada à Lei de Diretrizes e Bases de 1961
(LDB, Lei n.º 4.024/61), esse arcabouço legal definiu o mo- É freqüente, entre os brasileiros que se presumem in-
delo da universidade brasileira, de forma homogênea, igno- telectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mes-
rando peculiaridades regionais ou de outra espécie. O perío- mo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e

13 Decreto 62.937, de 2/jun./68. 14 MACHADO DE ASSIS, 1962.

impulso nº 27 13
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com que sustentam, simultaneamente, as convicções nários predominantemente da Alemanha. Empreenderam


mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se várias iniciativas educacionais, no fim do século XIX e início
possam impor à imaginação por uma roupagem vis- do século XX, as quais, entretanto, não lograram êxito naquela
tosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores.15 oportunidade.
Pode-se alegar que a demora na criação das univer- Concorreram para tanto questões internas às igrejas,
sidades no Brasil deveu-se sobretudo à proibição expressa de sobretudo relacionadas a tensões entre os brasileiros, que
Portugal à sua criação. De fato, o sistema de educação na so- buscavam a autonomia, e às jurisdições norte-americanas,
ciedade portuguesa representava planos conscientes e deter- quanto a questões de políticas governamentais para a edu-
minados da Igreja e do Estado para a formação do caráter cação superior no Brasil.
social desejado. Entretanto, mesmo após a Independência, Os batistas fundaram sua primeira escola, o Collegio
passou-se mais de um século até o efetivo surgimento das Americano Egidio, em 1898, na Bahia. Em 1907, o educador
universidades em nosso país. batista dr. J. W. Shepard já falava no projeto da universidade
O movimento em prol da universidade não vicejou da batista, ideal que se fez presente de forma freqüente em in-
população nem tampouco atraiu as elites nacionais, que formativos internos da Igreja até 1930. Entretanto, o ideal
aceitaram a comodidade das escolas profissionais e da ida universitário batista ainda não se concretizou, apesar de, re-
para o exterior, especialmente para as Universidades de Co- centemente, ter se verificado uma expansão dos cursos su-
imbra, Montpelier e Paris, daqueles que desejassem uma for- periores oferecidos por instituições desta corrente religiosa.
mação mais clássica. Se a escola existente não era valorizada Os adventistas fundaram o Colégio Internacional de
como um bem cultural em si mesma, o que dizer da utopia Curitiba, sua primeira escola, em 1896. Mas a raiz do ensino
universitária? Esta só viria a se concretizar quando as cir- superior adventista seria plantada em 1915, com a fundação
do Instituto Adventista de Ensino em São Paulo, com dois
cunstâncias conjunturais próprias da evolução da sociedade
campi reservados para o ensino superior, um na própria ca-
brasileira, como a urbanização, a industrialização e o cres-
pital paulista, outro na cidade de Engenheiro Coelho, próxi-
cimento e fortalecimento da classe média, tornaram a uni-
ma a Campinas. Este último recebeu, em 2000, o credencia-
versidade algo imprescindível. mento como Centro Universitário e tem como intento a sua
Procurou-se, assim, sintetizar brevemente a trajetória transformação em Universidade.
da universidade brasileira até 1986. Em seguida, faz-se um Os presbiterianos foram, talvez, os que mais aguerri-
registro histórico importante sobre o projeto universitário damente perseguiram o ideal universitário. Em 1869 funda-
confessional. Passa-se, depois, a analisar a universidade atual vam sua primeira escola, o Collegio Internacional de Campi-
e seus desafios, no contexto criado pela LDB, de dezembro de nas, e já no ano seguinte há registros de referências ao ensino
1996. superior e ao projeto de universidade presbiteriana. Em 1887,
funda-se o Curso Superior da Escola Americana, posterior-
A EDUCAÇÃO SUPERIOR mente Mackenzie College, que nasceu claramente direcionado
DE CUNHO CONFESSIONAL para o ensino superior. Novamente, por tensões no relaciona-
As denominações de confissão protestante, que che- mento com a Igreja-mãe norte-americana e, posteriormente,
garam ao País no século XIX, tinham projeto educacional cla- por dificuldades com o governo brasileiro, adiou-se a concre-
ro e já aspiravam ao ideal universitário. Como característica tização da universidade. Mas, em 1952, era credenciada a
comum, há o fato de terem se originado do movimento de Universidade Mackenzie, a primeira universidade confessio-
imigração de norte-americanos ocorrido durante e após a nal de origem protestante no Brasil.
Guerra Civil em seu país, com exceção dos luteranos, origi- A Igreja Metodista também se inclui entre as que ti-
nham um projeto definido de universidade, tendo dado iní-
15 BUARQUE DE HOLANDA, 1982. cio aos primeiros cursos superiores no Instituto Granbery, em

14 impulso nº 27
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Juiz de Fora, a partir de 1904. Desde os seus primeiros con- lei atual, registra-se apenas que as universidades são insti-
cílios, há registros de discussões a respeito da transformação tuições pluridisciplinares de formação de quadros pro-
do Granbery na Universidade Metodista do Brasil. Contudo, fissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e
pelas mesmas razões já expostas, a primeira universidade de domínio e cultivo do saber humano.17 E autoriza-se a
metodista brasileira só viria a ser reconhecida em 1975, a criação das chamadas universidades especializadas por
Universidade Metodista de Piracicaba.16 campo de saber (art. 52).
O projeto universitário católico, por sua vez, é marca- As universidades passam a poder registrar seus diplo-
do por duas vertentes. Conforme exposto inicialmente, os je- mas e a oferecer outras formas de ingresso, além do tradici-
suítas fundaram as primeiras escolas brasileiras, às quais onal vestibular. Os currículos mínimos foram extintos, crian-
agregaram, com o tempo, o ensino superior. Algumas dessas do-se as diretrizes curriculares e buscando-se a valorização
escolas persistiram e se tornaram universidades. É o caso da
dos projetos pedagógicos dos cursos, respeitando-se as pecu-
PUC-RJ, reconhecida em 1946, e da Unisinos, reconhecida em
liaridades de cada região.
1969 e originária do Colégio Nossa Senhora da Conceição,
fundado em 1869 por padres jesuítas espanhóis. Há também Surge a figura do centro universitário, que fica libe-
registros de escolas católicas fundadas por outros ramos, rado da obrigação da pesquisa institucionalizada. Regula-
como a PUC-RS, reconhecida em 1948 e originária de uma mentados pela Portaria do Ministério da Educação n.º 639,
escola fundada pelos irmãos maristas, no século XIX. de 13 de maio de 1997, os centros universitários gozam de
A outra vertente reproduziu o modelo de formação de prerrogativas de autonomia, antes concedidas apenas às uni-
universidades via fusão de escolas isoladas. É o caso da PUC- versidades, como o direito de criar, organizar e extinguir, em
SP, criada, em 1946, a partir da junção da Faculdade de Fi- sua sede, cursos e programas de educação superior. Certa-
losofia e Letras de São Bento com a Faculdade Paulista de mente, o objetivo do legislador, ao definir essa autonomia, foi
Direito; e da PUC-PR, fundada em 1959, a partir da união de possibilitar a expansão do ensino superior, de comprovada
oito escolas superiores isoladas. excelência, com mais flexibilidade e menos amarras buro-
cráticas. Pela legislação, os centros universitários são institui-
A REALIDADE APÓS 500 ANOS ções de ensino superior pluricurriculares, abrangendo uma
A LDB de dezembro de 1996 trouxe mudanças signi- ou mais áreas do conhecimento, que se caracterizam pela
ficativas para a educação brasileira, inclusive para o ensino excelência do ensino oferecido, comprovada pela qualifica-
superior e para as universidades. O ideal no qual se funda- ção de seu corpo docente e experiência acumulada em cur-
menta é o pleno desenvolvimento da pessoa humana e um sos de pós-graduação lato sensu; condições de trabalho
novo projeto para a educação nacional. acadêmico (carreira, capacitação docente); atualização e re-
A lei foi articulada em dois eixos, flexibilidade e ava- novação do acervo bibliográfico, conexão a redes; e disponi-
liação. Flexibilidade para permitir que as instituições se orga- bilidade de recursos de informática.
nizassem da forma mais conveniente para a consecução de Em outra grande mudança, os cursos superiores dei-
seus objetivos. Avaliação com o objetivo de se medir a efetivi- xam de habilitar para o exercício profissional. O diploma pas-
dade do sistema como um todo. sa a ser apenas prova da formação recebida por seu titu-
Em termos de flexibilidade, seguiu-se a linha de des- lar.18
centralizar, desregulamentar e dar maior autonomia para as Os termos avaliar e avaliação aparecem em 13 ar-
universidades, enquanto na lei anterior estas tinham carac- tigos da LDB e são repetidos 23 vezes, sinalizando o outro eixo
terísticas fixas e uniformes em todo o território nacional. Na da lei. O artigo 9.º assegura à União a prerrogativa de avaliar
16Para um registro mais detalhado da vocação universitária protestante e 17 Lei n.º 9.432/96, art. 52.
suas primeiras iniciativas nesta linha, ver SCHULZ, 1999. 18 Lei n.º 9.194/96, art. 48.

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todos os níveis de ensino. As universidades passam a ser obri- DESAFIOS PARA A


gadas a fornecer informações institucionais de caráter inter- UNIVERSIDADE BRASILEIRA
no, como programas, duração, procedimentos de avaliação O período em que vivemos tem sido comumente cha-
de cursos, critérios de seleção, qualificação do corpo docente, mado de Era do Conhecimento, um tempo no qual a edu-
infra-estrutura etc. cação, o conhecimento e a informação terão a desempenhar
Outros pontos da lei demonstram claramente a preo- um papel de crucial importância para a vida humana.
cupação dos legisladores com a qualidade do ensino univer- A globalização e a adoção de inovações tecnológicas e
sitário. Instituiu-se o Exame Nacional de Cursos, a ser apli- organizacionais têm exigido, no âmbito das empresas, a dispo-
cado a todos os formandos. Estabeleceu-se a exigência de ti- nibilidade de recursos humanos mais qualificados e melhor
tulação de mestrado ou doutorado para, no mínimo, um ter- preparados, prontos a intervir em um quadro de atividades e
ço do corpo docente e de atuação da mesma fração do total práticas de complexidade crescente e capazes de reagir rapida-
de professores em regime de tempo integral. A autorização e mente aos câmbios do cotidiano. Todos os campos da existência
o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento humana passam por um processo sem precedentes de trans-
das instituições, passam a ser periódicos e a depender dos formações aceleradas e os governos e sociedades começam a se
resultados do processo regular de avaliação. A Portaria MEC dar conta de que, para lidar com realidades mutantes, preci-
n.º 637 estabeleceu como exigências para o credenciamen- sarão se tornar comunidades aprendentes e adaptativas.
to: a existência de infra-estrutura de pesquisa (pesquisa ins- A inserção do Brasil nesse cenário globalizado exige
titucionalizada); a existência de pós-graduação implantada; de nós reflexão, preocupação e ação. Detentor do décimo
o exercício de atividade efetiva de pesquisa em, pelo menos, maior PIB mundial, o País ainda situa-se entre os piores no
três áreas; a manutenção de fundo de pesquisa próprio, des- tocante aos indicadores sociais e de distribuição de renda. A
tinado ao financiamento de projetos acadêmicos e científicos superação da instabilidade da espiral inflacionária não tem
e tecnológicos da instituição, com recursos equivalentes a, no se traduzido em melhorias na qualidade de vida da maioria
mínimo, 2% do orçamento operacional. da população, existindo ainda 28,7% de miseráveis no País,
Com base nos resultados da avaliação, o governo re- ou seja, pessoas que sobrevivem com renda inferior a US$
servou para si o direito de cancelar o reconhecimento de cur- 1,00 por dia, segundo o critério da ONU.
sos, intervir nas instituições, suspender temporariamente suas A difícil conjuntura social tem gerado desencanto ge-
prerrogativas de autonomia e até mesmo descredenciá-las. neralizado e insegurança, uma vez que as pessoas convivem
Outra das exigências, já sinalizada pela Constituição Federal e com a recessão, o desemprego, a violência, as injustiças e a
confirmada pelo Decreto n.º 2.306/97, é a indissociabilidade impunidade. As famílias são atingidas pela combinação per-
entre as atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. versa de juros altos, queda na renda e desemprego, com con-
seqüente redução no seu poder de compra, comprometi-
Apesar das bem-vindas mudanças introduzidas pela
mento de sua capacidade de pagamento e dificuldades para
LDB, a universidade brasileira ainda está distante de repre-
assumir compromissos para o futuro.
sentar um instrumento decisivo na política de formação de
Por outro lado, cresce a concentração do poder finan-
recursos humanos, bem como de ser um interlocutor pró-
ceiro nas mãos de grandes corporações, nascidas do acele-
ativo na formulação e execução da política nacional de edu-
rado processo de fusões e aquisições, no plano mundial. Essa
cação, cultura, ciência e tecnologia. É preciso que as novas realidade revela-se com uma análise rápida de alguns dados
soluções organizativas e metodológicas para a universidade levantados pela Organização das Nações Unidas:19
estejam associadas ao cumprimento mais eficaz de seu papel
social no forjamento de uma nação. 19 FOLHA DE S.PAULO, 15/fev./00.

16 impulso nº 27
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• as 10 maiores empresas do setor de sementes (as Assim, a partir deste pano que fundo traçado até aqui,
maiores interessadas na questão dos transgênicos) vamos destacar alguns desafios do ensino superior brasileiro.
detêm 32% do faturamento anual de US$ 23 bi- O primeiro deles está relacionado à necessidade da expansão
lhões do setor; desse nível de ensino. Pesquisas mundiais indicam que o seu
• as 10 maiores indústrias farmacêuticas, 35% de um crescimento já tem sido espantoso, com um aumento da or-
faturamento anual de US$ 297 bilhões; dem de sete vezes, em três décadas. No Brasil, a taxa média
• as 10 maiores da área de computação, 70% de US$ de crescimento de estudantes matriculados em cursos de
334 bilhões; graduação tem sido de 7% ao ano, projetando 3 milhões de
• as 10 maiores do setor de pesticidas, 85% de US$ 31 alunos nas universidades em 2004. Em 1999, eles eram 2,3
bilhões; milhões, o que representa um crescimento de 53% em rela-
• as 10 maiores do setor de telecomunicações, 86% ção ao início da década de 90.
de US$ 262 bilhões; Contudo, essa projeção ainda está abaixo da meta es-
• as 20 maiores empresas de comunicação já pos- tabelecida pelo governo federal, em sua versão do Plano Na-
suem renda conjunta anual superior a US$ 1 tri- cional de Educação. Pretende-se prover, até 2005, a oferta de
lhão, valor superior ao PIB da Grã-Bretanha. ensino pós-médio para pelo menos 30% da faixa etária de 19
Paralelamente, cresce também a concentração do co- a 24 anos. Pela projeção populacional do IBGE, seriam neces-
nhecimento científico e tecnológico nos países-sede dessas sárias mais de 6 milhões de vagas. De todo modo, o Brasil é
megacorporações, a partir da existência de recursos abun- um dos países com menor taxa de atendimento, no ensino
dantes para financiamento da pesquisa e do desenvolvimento superior, à população na faixa etária de 18 a 24 anos, 12%, ou
e, conseqüentemente, da inovação tecnológica. seja, bastante inferior aos 40% na Argentina, aos 26% na Ve-
Essa nova configuração do mundo e de nosso país ali- nezuela e aos 21% no Chile. A pressão por ampliação é po-
menta, imediatamente, o debate sobre os novos paradigmas e sitiva e necessária. O percentual da população brasileira entre
as novas exigências quanto à educação, sobretudo no campo 20 e 24 anos que freqüenta o ensino superior, 7,7%, é ainda
da educação superior. O País dispõe hoje de um arcabouço le- muito baixo. Da população como um todo, apenas 8% pos-
gal capaz de imprimir novos rumos à educação brasileira. A suem a formação em nível superior. E o patamar de desen-
legislação por si só, todavia, não assegura que tais modifica- volvimento industrial e tecnológico do País exige um urgente
ções venham a ser incorporadas ao sistema educacional. Para aumento desses percentuais.
que isso aconteça, é necessário que o País seja capaz de forjar A prioridade dada pelo governo federal à educação
um novo pacto em defesa da educação, investindo e aplicando básica, nos últimos anos, é também fator que repercute na
de forma eficaz maiores recursos, bem como exercendo o re- ampliação do ensino superior. Verifica-se, no nível básico,
gime de colaboração em sua plenitude. um crescimento exponencial de matrículas. De 1991 a 2000,
Outro documento sobremodo importante para a edu- registra-se, apenas no ensino médio, crescimento de 132% –
cação nacional é a proposta de Plano Nacional de Educação, de 3.770.230 para 8.774.000 alunos matriculados! O Minis-
em tramitação no Congresso Nacional, e que se orienta por cin- tério da Educação estima que, em 2005, serão mais de 10 mi-
co diretrizes básicas: erradicação do analfabetismo, universali- lhões de alunos matriculados no ensino médio. Ao absorver
zação do atendimento escolar, melhoria da qualidade do ensi- esse contingente de novos alunos, as instituições de ensino
no, formação para o trabalho e promoção humanística, cien- superior devem trabalhar com critérios e normas de seleção
tífica e tecnológica do País. O Plano apresenta três grandes ob- que levem em conta a articulação com o ensino médio.
jetivos: elevação global do nível de escolaridade da população, No contexto da expansão do ensino superior brasileiro,
melhoria geral na qualidade do ensino e redução das desigual- tem-se constatado falta de ordenação do crescimento. Nos úl-
dades sociais e regionais no tocante à educação escolar. timos quatro anos, o Ministério da Educação autorizou a

impulso nº 27 17
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abertura de 117.584 vagas, porém existem graves distorções, destacam-se: a autonomia universitária, a organização do
como a concentração das novas vagas em alguns cursos es- sistema da educação superior, os sistemas de avaliação e de
pecíficos (por exemplo, 27,7% delas foram para o Curso de reconhecimento e de credenciamento de cursos e instituições.
Administração) e a concentração em regiões específicas (a Como pontos básicos, situam-se o papel da universidade na
maioria das vagas foi criada na região Sudeste, já possuidora sociedade, sua identidade, suas relações com o mercado de
de elevados percentuais de matrícula no ensino superior). Um trabalho e demais segmentos sociais, sua contemporaneida-
país de dimensões continentais como o Brasil deve voltar-se de aos novos perfis profissionais requeridos pela sociedade,
para o atendimento às necessidades educacionais do conjunto sua contribuição para o avanço científico e tecnológico.
da população, sem desconsiderar as peculiaridades de cada É certo que a relevância do ensino superior relaciona-
uma das diferentes unidades da federação e do conjunto dos se ao seu alcance, mas também está diretamente vinculada
municípios. Significa afirmar que a política e o planejamento ao mundo do trabalho. Os jovens devem ser preparados de
educacional devem deixar espaço para a diversidade. acordo com os novos perfis demandados, mas também pre-
Essa pressão por ampliação, entretanto, não tem sido cisam receber uma educação humanista e de vocação social,
acompanhada por investimentos públicos na magnitude ne- que lhes permita atuar em contextos multiculturais. Diferen-
cessária para dotar o sistema de ensino superior de uma in- temente da abordagem conteudista, preocupada em dotar os
fra-estrutura adequada, em parte por restrições conjunturais estudantes de um elevado estoque de conhecimento, os do-
e em parte pela própria decisão do governo de priorizar a centes devem procurar desenvolver em seus alunos aptidões
educação básica. Esse quadro de escassez de recursos, aliado dinâmicas, as quais vão permitir que eles lidem com o fluxo
ao crescimento quantitativo e à massificação, requer gestores do conhecimento, aprendendo a aprender. Os egressos de-
criativos e capacitados a lidarem com o imperativo da otimi- vem estar aptos a viver em um mundo de rápidas mudanças
zação dos recursos e da manutenção da qualidade. No setor e ter condições de manter sua empregabilidade e sua versa-
público, há que se resolver questões como o elevado custo per tilidade dentro de um campo de atuação profissional confi-
capita, superior até mesmo ao de países desenvolvidos, e a gurado a partir das necessidades sociais.
capacidade instalada subutilizada. Para o setor privado, ine- Está em curso, e precisa se acelerar, uma mudança no
xiste política de financiamento por parte dos órgãos públicos,
processo de ensino e aprendizagem, que deixa de se centrar
ficando tal financiamento dependente das anuidades. Os es-
no professor, para focalizar o estudante. Em termos pedagó-
tudantes, por sua vez, enfrentam as dificuldades conjunturais
gicos, deve-se valorizar a interdisciplinaridade e o cultivo de
sem poder contar com uma política oficial efetiva de apoio, a
despeito da reformulação do Crédito Educativo Federal (CRE- um espírito empreendedor. Esse processo é facilitado pela in-
DUC) e da criação do Fundo de Investimento no Ensino Su-
corporação de novas tecnologias, que rompem com limites
perior (FIES). Como contraponto, a proposta governamental temporais e espaciais, e novas metodologias, as quais alteram
de estabelecer o Plano Nacional de Educação prevê que, em a antiga verticalidade da relação entre professor e aluno. O
10 anos, os gastos públicos em educação deverão alcançar docente passa a fazer parte do grupo e os estudantes tornam-
7% do PIB. Propõe-se também implementar mecanismos que se co-aprendizes, configurando-se uma relação de contornos
visem à rigorosa manutenção e desenvolvimento do ensino, horizontais, de parceria, na construção do conhecimento.
garantindo-se a alocação de valores por aluno que corres- A análise da pertinência do ensino superior passa
pondam a padrões mínimos de qualidade de ensino, defini- também pela questão da ética. Na verdade, antes de se buscar
dos nacionalmente. o tipo de instituição de ensino superior que se quer construir,
Outro desafio da expansão é que ela se processe de é necessário definir o modelo de sociedade que se busca al-
modo a assegurar a qualidade. Aqui, pois, destaca-se a ne- cançar. O ensino superior tem de estar envolvido com as
cessidade de considerar cuidadosamente as questões centrais grandes questões que permanecem como desafios para toda
de funcionamento da educação superior no País. Entre elas, a humanidade, como a construção da paz, a luta pelo de-

18 impulso nº 27
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senvolvimento sustentável, o respeito à multiculturalidade, a to e consolidação dos demais níveis de ensino e no processo
cooperação internacional e a democracia. de construção da cidadania nacional.
Além de todas as novas competências que o profissio- O nascimento tardio da universidade brasileira teve
nal do futuro precisará dominar, as instituições de ensino su- conseqüências expressivas na formação intelectual da elite
perior precisam dotá-lo com a responsabilidade de agir com brasileira e sobre o próprio processo de desenvolvimento na-
ética e sentimento solidário. As instituições de ensino superior cional. A demora em romper o silêncio neste campo trouxe,
devem reforçar seu papel de serviço extensivo à sociedade, es- também, uma sobrecarga para a universidade brasileira que,
pecialmente as atividades voltadas para a eliminação da po- além de sua renovação para responder às novas demandas
breza, intolerância, violência, analfabetismo, fome, deteriora- sociais e ao ritmo de transformações da sociedade atual, tem
ção do meio ambiente e enfermidades. de se esforçar para se livrar de alguns vícios de origem e re-
Ainda a respeito da educação superior, o Plano Nacio- cuperar o tempo perdido.
nal de Educação apresenta objetivos e metas bastante impor-
Em uma tentativa de síntese dos desafios postos dian-
tantes, como o desenvolvimento da modalidade de educação a
te da universidade brasileira, pode-se dizer que ela precisa
distância, a consolidação e institucionalização de um sistema
gerar sua própria dinâmica. Durante anos tem perdurado,
de avaliação de qualidade, a diversificação da oferta de ensino,
a duplicação do número de pesquisadores qualificados, o in- em alguns meios universitários, uma cultura de desenvolvi-
cremento, a uma taxa anual de 5%, da titulação de mestres e mento descontínuo, gerado por pequenos choques de novi-
doutores no sistema nacional de pós-graduação, o aumento dades, trazidos por reitores ou docentes no retorno de viagens
dos recursos destinados à pesquisa científica e tecnológica, que, internacionais. Essa cultura precisa ser substituída por outra,
em dez anos, deverão ser triplicados. na qual o processo de geração da dinâmica institucional seja
Estes são alguns dos desafios que o País, nos próximos endógeno e autocontrolado, sem desconsiderar a importân-
anos, deve enfrentar na área educacional. E tal esforço não cia de se articular em escala planetária, diante do fenômeno
terá êxito se não ocorrer de forma integrada, associando to- da globalização.
dos os segmentos interessados, especialmente os diferentes As universidades devem refletir sobre sua forma de
níveis existentes no próprio sistema educacional. A sociedade atuação à luz do novo contexto econômico, social, político e
brasileira precisa realizar um esforço conjunto para apresen- cultural, em alguns casos seguindo, em outros se antecipan-
tar soluções efetivas, e em prazo rápido, para os principais di- do, às tendências mundiais. A universidade brasileira deve se
lemas enfrentados pela educação nacional. Destaca-se, de transformar, cada vez mais, no locus propício de discussões
modo especial, a atuação da universidade no desenvolvimen- de vanguarda e que promovam a transformação do Brasil.

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20 impulso nº 27
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RELAÇÕES
INTERNACIONAIS PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
DO BRASIL: Doutor em Ciências Sociais pela
Universidade de Bruxelas.

ensaio de síntese Diplomata, ministro conselheiro


na embaixada do Brasil
em Washington
sobre os primeiros pralmeida@brasilemb.org

500 anos
BRAZILIAN INTERNATIONAL RELATIONS:
essay of assessment on the first 500 years
RESUMO Síntese crítica sobre as tendências fortes das relações internacionais do Brasil, desde a formação da nação
até a atualidade, destacando as grandes linhas e orientações do desenvolvimento brasileiro do ponto de vista da in-
serção internacional do País.
Palavras-chave Brasil – relações internacionais – política externa.
ABSTRACT Critical assessment on the main trends of Brazilian international relations, from the constitution of the
nation to the present, stressing the general features and the pathways of Brazilian development, from the perspective
of the nation’s international insertion.
Keywords Brazil – international relations – foreign policy.

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INTRODUÇÃO

Q
ualquer balanço que se decida empreender sobre as relações
internacionais do Brasil nos primeiros 500 anos de sua exis-
tência enquanto “entidade tipificável” do ponto de vista da
ordem internacional – isto é, um território geograficamente
delimitado, dotado de estruturas de poder reconhecidas como
formalmente legítimas pelos demais Estados participantes
dessa ordem, mesmo que não dispondo de autonomia polí-
tica própria – deve partir de um entendimento preliminar quanto à periodização suscetível
de ser aplicada à sua história. Ora, no caso do Brasil, um certo consenso historiográfico cos-
tuma dividir sua história política em uma primeira fase colonial claramente determinada –
ainda que alguns coloquem seu fim em 1808 e outros, apenas em 1822 –, uma segunda fase
independente, que se desenvolveria a partir da proclamação da autonomia política, ou mais
afirmadamente, a partir das regências, e uma fase dita “nacional”, de contornos menos re-
Um certo consenso conhecíveis, mas que se estenderia da Revolução de 1930 até nossos dias.1 Uma divisão de
historiográfico natureza econômica poderia eventualmente deslocar para frente ou para trás alguns desses
limites de tipo político, mas não alteraria fundamentalmente o caráter algo paradigmático
costuma dividir dessa periodização tão simples quanto desprovida de grandes problemas epistemológicos.
nossa história
política em uma AS GRANDES ETAPAS DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS DO BRASIL
primeira fase Poder-se-ia, portanto, começar esta análise sintética ordenando as fases do relacio-
colonial claramente namento externo do Brasil em três grandes “blocos históricos”, correspondendo cada um (e
determinada, uma de forma sucessiva) aos períodos seguintes:
segunda fase a) colonial, isto é, a partir de 1530-1550, aproximadamente (com a implantação
do sistema de governo geral do Brasil pela Coroa portuguesa, no seguimento da
independente e atribuição das primeiras capitanias hereditárias) até os anos 1808-1822, que as-
uma fase dita sistem ao movimento gradual mas irreversível em direção da independência;
“nacional” nessa fase, as relações internacionais da nação americana em formação são cla-
ramente determinadas pelos interesses metropolitanos;
b) independente, a partir daquela última data, até a Revolução de 1930, que as-
siste, ainda que de maneira algo involuntária, à conclusão do ciclo colonial-ex-
portador da economia brasileira; nessa fase longa de quase um século e meio, os
principiais problemas de relações internacionais do jovem Estado autônomo são
compostos sobretudo pela definição e legitimação externa do território herdado
1 Para uma discussão mais pormenorizada sobre a problemática da periodização nas relações internacio-
nais do Brasil, remeto ao capítulo 2, “A periodização das relações internacionais do Brasil”, de meu livro O
Estudo das Relações Internacionais do Brasil (ALMEIDA, 1999b, pp. 39-75). Esse e outros livros, bem
como artigos diversos sobre a integração e as relações internacionais do Brasil, podem ser conferidos na
web-page: http://pralmeida.tripod.com

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da fase colonial e pela difícil afirmação dos inte- apreendendo a nação independentemente do estreito quadro
resses nacionais numa era de afirmação arrogante mental da metrópole tutelar, ao mesmo tempo em que o mo-
dos imperialismos europeus; vimento autonomista se aproveita politicamente dos impul-
c) nacional, que se estende desde então até os nossos sos resultantes da grave crise do sistema colonial (acelerado
dias, com diferentes subperíodos depois de 1930, a pela “grande desordem” provocada pela hegemonia napole-
começar pelo longo interregno varguista até 1945, ônica no continente europeu) bem como dos avanços propi-
sucedido pela existência tormentosa da República ciados pela ideologia iluminista em ascensão. Contrariamen-
“populista” de 1946, por novo interregno autoritário te, porém, aos demais territórios colonizados da América ibé-
a partir de 1964, este seguido pela fase de redemo- rica, o Brasil emergeria do processo de independência sem
cratização que se inicia em 1985; em termos de re- grandes rupturas socioeconômicas ou mesmo políticas em
lações internacionais, essa fase assiste à lenta cons- relação ao passado português.
trução de elementos autônomos de afirmação in- A era independente, que então tem início, vem intro-
ternacional, claramente vinculados ao esforço in- duzir um fator inédito de legitimação externa para a jovem
dustrializador e à própria reorganização do Estado. nação, que emerge como novo Estado autônomo a partir de
Vejamos, com um pouco mais de detalhe, os princi- um processo de transação – nem sempre dotado de plena le-
pais componentes das relações internacionais em cada uma gitimidade, pois que resultante de um tratado de “aquisição”
dessas grandes etapas. Numa primeira fase, que corresponde do reconhecimento pleno da nova situação soberana – entre
grosso modo aos três séculos da era colonial, a problemática o antigo poder colonial e as potências da época, a começar
dominante na definição da inserção internacional do País é, pela Grã-Bretanha. Com a figura de founding Father de
obviamente, representada pelo status colonial no contexto da José Bonifácio começa a sustentação de um projeto próprio
economia mercantilista portuguesa. Nesse longo período pa- de construção nacional em face dos interesses de poderes he-
rece óbvio, também, que se trata de uma inserção dependente gemônicos externos, processo em parte perturbado pelos for-
da formação social brasileira no sistema da economia mun- tes vínculos externos, no caso portugueses e acima de tudo
dial pré-capitalista de então, com uma absorção passiva das familiares, do primeiro monarca “brasileiro” da dinastia dos
alianças internacionais que se desenham no continente eu- Braganças. A abdicação assume características traumáticas,
ropeu (isto é, o fluxo de “relações exteriores” do Brasil refle- já que coloca em perigo a própria definição da unidade na-
tindo o movimento errático das alianças dinásticas e dos tra- cional, que seria lograda a partir do regime regencial tran-
tados de “amizade e de navegação” concluídos por uma Co- sitório. Este não hesita quanto aos meios mais adequados
roa portuguesa temerosa de seus grandes vizinhos europeus, para obtê-la, ainda que à custa de brutal repressão contra
a Espanha e a França em primeiro lugar). A expansão con- certos movimentos regionais autonomistas, assim como con-
tinental do território brasileiro se faz, nessa conjuntura, se- tra insurreições de caráter propriamente social e mesmo ét-
guindo o ritmo das relações interibéricas (a anulação da li- nico. A era independente, já sob o regime republicano, ainda
nha de Tordesilhas pela obra das entradas e bandeiras), mas assistiu ao acabamento da obra de delimitação das fronteiras
observando mais adiante a dinâmica própria de uma socie- do território pátrio, mas não logrou consolidar uma econo-
dade em formação e em expansão contínua, nas fronteiras mia realmente independente, pois que preservada esta em
abertas ao invulgar empreendimento dos desbravadores do suas funções básicas de fornecedora de alguns poucos pro-
sertão (bem mais interessados em ouro e índios, está claro, do dutos primários a economias mais avançadas.
que em qualquer projeto consciente de “engrandecimento A era nacional, coincidentemente inaugurada numa
pátrio”. fase de grave crise da economia mundial, começa a tarefa de
No período final da “era colonial”, observa-se no afirmação dos interesses externos da nação, em face dos de-
Brasil a lenta estruturação de uma “consciência nacional” safios políticos de um mundo em transição entre o capitalis-

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mo estilo laissez-faire da belle époque, e a fase de intenso interesses comerciais e financeiros britânicos no segundo (o
intervencionismo do Estado na vida econômica, que iria du- que de forma alguma nega autonomia na determinação dos
rar até os anos 80 do século XX pelo menos. O regime var- interesses brasileiros na região platina, por exemplo). Na era
guista, tanto em suas fases provisória e “constitucional” como contemporânea, os novos agentes sociais encontram-se clara-
sob o impacto do fechamento Estado-novista, dá a partida ao mente identificados com um Estado nacional já plenamente
lento processo de elaboração das condições políticas e insti- constituído e consciente de seu papel impulsionador do de-
tucionais, inclusive externas, para a tarefa de modernização senvolvimento econômico do País.
do País. A afirmação dos interesses propriamente nacionais
do Brasil, num mundo crescentemente diferenciado entre RELAÇÕES INTERNACIONAIS
grandes potências e nações de “segunda classe”, passa pelo SEM AUTONOMIA POLÍTICA?
projeto auto-assumido da industrialização básica, uma das A questão inicial de ordem metodológica que se colo-
muitas facetas – com a capacitação tecnológica independen- ca em relação à definição da primeira das eras apontadas é
te – do interminável processo de prosseguimento da obra in- saber se apenas as duas últimas, classificadas como “inde-
contornável do desenvolvimento. De certa forma, a constru- pendente” e “nacional”, podem ser cobertas pela categoria
ção do “Estado varguista” – isto é, modernizador-autoritário “relações internacionais”, ou então, se a fase anterior, apre-
e intervencionista – continua até o período culminante do sentada sob o signo do estatuto “colonial”, também estaria
regime militar inaugurado em 1964 (depois do “breve” in- compreendida nesse conceito. As formações coloniais, como
terregno da República democrática de 1946), mesmo se se sabe, não costumam ter política externa. Simplesmente
muitas das ações políticas empreendidas pelos generais-tec- não dispõem do atributo indispensável para tanto: um Estado
nocratas nos anos 60 e 70 tenham estado especificamente nacional independente, em condições de exercer sua vontade
orientadas ao desmantelamento do populismo varguista que soberana perante os outros atores do sistema internacional.
eles desprezavam. Em todo caso, o regime militar também Elas podem ter, no máximo, relações exteriores, sempre pau-
deu um alto sentido de profissionalização e de “finalidade” tadas e balizadas, é claro, pelo poder hegemônico que detém
(busca de resultados) – ainda que se possa discutir suas es- o controle de seus mecanismos de organização política e ad-
colhas ideológicas – à política externa nacional, constituída ministrativa.
objetivamente como um dos sustentáculos da afirmação do No entanto, as comunidades políticas introduzidas no
“poder nacional”. devir histórico na condição de formações sociais colonizadas
Nessas várias eras e fases sucessivas do relacionamento – ou reduzidas a esse status por ulterior dominação externa
externo do Brasil, os “agentes” sociais e humanos, bem como – dependem, talvez mais do que qualquer outra sociedade,
os principais “vetores” de sua inserção externa, são qualitati- do contexto externo. É no quadro da ordem internacional vi-
vamente diferentes em cada etapa, resultantes de fenômenos gente a cada etapa de seu desenvolvimento histórico-social
complexos de estruturação social, regional e “societal” que que essas formações se afirmam progressivamente enquanto
concorrem, de maneira diferenciada, para compatibilizar (ou nações individualizadas, dotadas de características próprias,
não, segundo a conjuntura histórica) as “relações internacio- social, étnica e historicamente diferentes das demais unida-
nais” do País e o “desenvolvimento histórico-social” da nação. des políticas do sistema internacional.
Nas duas primeiras fases, os agentes do relacionamento “in- A determinação externa é ainda mais importante no
ternacional” da nação – açucarocracia nordestina, fazendei- caso das configurações histórico-culturais chamadas, na ca-
ros de café, grandes comerciantes dos principais portos da racterização antropológico-evolutiva defendida por Darcy
costa atlântica, representantes da Administração – possuem Ribeiro, de “povos novos”.2 Nas formações sociais extra-eu-
alto grau de dependência desses “vetores” externos: o Estado
português no primeiro caso, o poder econômico de fato dos 2 RIBEIRO, 1968, 1970 e 1975.

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ropéias dessa parte do “Novo Mundo” – que, devido a uma de Tordesilhas, para muito depois emergir como entidade
espécie de “pecado original” propriamente ibérico, nunca política – resulta de um primeiro processo de negociações
deixou de ser “periferia” do sistema internacional ao longo de diretas entre Estados que prescindem da intermediação va-
toda a sua história –, as relações externas representam um ticana, exemplo precoce do que se poderia chamar de “di-
elemento constitutivo da própria nacionalidade e determi- plomacia dos descobrimentos”.4
nam, por assim dizer, os contornos básicos de suas identida- O Brasil, não é preciso relembrar, só se constitui como
des nacionais respectivas: povo, território, administração po- Estado independente no alvorecer do século XIX, mas a for-
lítica, organização social e estrutura econômica. Em virtude mação social que lhe dá fundamento se forja gradualmente
de que, nessas configurações sociais, o processo de State- nos três séculos anteriores à conquista de sua autonomia po-
building precedeu historicamente ao de Nation-making,3 lítica. É no passado colonial brasileiro que se constituíram, no
a determinação externa inerente ao status colonial impregna dizer de Caio Prado Jr., “os fundamentos da nacionalidade”,5
todo o itinerário histórico de formação do Estado-nacional emergindo, no mesmo processo, aquilo que o historiador José
independente. Honório Rodrigues chamou de “aspirações nacionais”.6 Es-
Em outros termos, nas formações sociais desta Amé- sas aspirações seriam as seguintes: independência e sobera-
rica “iberizada” – para empregar uma caracterização mais nia, integridade territorial, ocupação efetiva do território,
correta, de cunho histórico-antropológico, e não simples- unidade nacional, equilíbrio nacional em face dos regiona-
mente o conceito habitual de “América ibérica”, de natureza lismos e desenvolvimento econômico e bem-estar. Em ter-
propriamente etnolingüística –, a nação emerge como o pro- mos contemporâneos, se poderia, resumidamente, enfeixar
duto indireto do processo de constituição de estruturas polí- todos esses conceitos ao abrigo da fórmula clássica: “desen-
ticas e administrativas estabelecidas pelas potências tutelares, volvimento com soberania”.
surgindo o “Estado” como resultado imediato das “relações Quando exatamente teria o Brasil deixado de figurar
externas” que afetaram cada um dos territórios incorporados como objeto histórico no quadro de um subsistema imperial
originalmente a suas respectivas esferas hegemônicas. (Portugal) integrado ao moderno sistema de Estados-nacio-
No que se refere ao Brasil, mais especificamente, a nais e passado à condição de agente autônomo de suas pró-
formação da nacionalidade sempre se colocou sob a depen- prias relações internacionais? Os mais otimistas diriam que a
dência direta da ordem internacional – mediata e imediata – passagem se fez por ocasião do movimento de Independência
que presidiu, num longo processo multiforme, à delimitação política e no processo ulterior de afirmação progressiva dos
de seu território, à constituição de suas fronteiras, à estrutu- interesses nacionais específicos do Estado brasileiro vis-à-vis
ração de sua economia, à conformação de seu povo e à lenta as potências hegemônicas da época. Mas como considerar,
então, a persistente dependência econômica do País e seu
emergência de uma consciência nacional autônoma. A cons-
status subordinado no âmbito do sistema internacional, ou
tituição da nação brasileira – que desponta primeiro como
mesmo simplesmente hemisférico?
território indevassado, definido na aparente aposta do acerto
A resposta a essas questões não é provavelmente teó-
3 O conceito de State-building, na literatura especializada de política rica, sendo antes dada pela própria transformação real dos
comparada, está geralmente associado ao processo de unificação política agentes e atores em causa. Contrariamente a certas idéias
nacional e refere-se, mais especificamente, ao desenvolvimento de uma
burocracia centralizada e eficiente, capaz de aumentar significativamente “fora do lugar”, caberia ressaltar que, em relação a sua in-
as capacidades reguladora e extrativa do sistema político em causa. Já a
noção de Nation-making enfatiza os aspectos culturais do desenvolvi-
4 O tema foi desenvolvido no capítulo pertinente, “A diplomacia dos des-
mento histórico e social num determinado país, caracterizando o pro-
cesso pelo qual as pessoas transferem sua devoção e lealdade das cobrimentos: Tordesilhas e a formação do Brasil”, de meu livro Relações
pequenas comunidades e vilas para um sistema político central muito Internacionais e Política Externa do Brasil: dos descobrimentos à glo-
mais amplo, geralmente de tipo impessoal. Para uma teoria sistêmica balização (ALMEIDA, 1998a, pp. 101-120).
dessa problemática, a despeito de uma visão marcadamente estrutural- 5 PRADO Jr., 1979, p. 10.

funcionalista, ver ALMOND & POWELL, 1966. 6 RODRIGUES, 1963.

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serção no sistema internacional da “economia-mundo” ca- terreno em que o legado monárquico não tinha ainda se es-
pitalista, o Brasil não é atrasado em termos absolutos e, in- vanecido, sobretudo nos meios diplomáticos, ocorrendo mes-
dependentemente do caráter mais ou menos “dependente” mo alguns episódios “jacobinos”, no caso das intervenções
de seu sistema econômico interno, ele sempre foi relativa- estrangeiras durante a Revolta da Armada, por exemplo.
mente “moderno” quanto às suas possibilidades de inserção Mas, do ponto de vista econômico, os problemas que
no sistema internacional. Com efeito, diferentemente de cer- passam a atormentar a jovem República eram os mesmos
tos países asiáticos ou mesmo da Europa central e oriental, que tinham angustiado a jovem nação independente: o pro-
nunca existiu, no Brasil, uma sociedade “tradicional”, “ar- blema da mão-de-obra (desta vez como imigração) e os in-
caica” ou, metaforicamente, um ancien régime que devesse vestimentos estrangeiros e os capitais de empréstimo, origem
ser reduzido ou necessariamente eliminado para que pudes- de monumental dívida externa que estaria sempre sendo jo-
sem avançar o sistema capitalista e o processo de moderni- gada para a frente. A questão financeira – com a negociação
zação social. do Funding Loan de 18987 – e o problema da “defesa do
café” (promoção comercial e propaganda no exterior) são os
O BRASIL E A EMERGÊNCIA DA ORDEM grandes assuntos da diplomacia econômica do Brasil nesse
INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA período, cuja inserção na divisão internacional do trabalho
continuaria sendo feita pelo simples lado da exportação pri-
Aceitas as considerações acima, parece claro que o
mária. Tem início, assim, uma diplomacia do café, que con-
que definimos como delimitação cronológica das “relações
tinuaria durante todo o período de afirmação de nossa “vo-
internacionais do Brasil” deve ser entendido numa acepção
cação agrícola”.
bastante larga, englobando inclusive os primórdios do des-
cobrimento e a totalidade do período colonial, estendendo-se
ainda ao contexto internacional em que se situava a potência A ERA DO BARÃO, 1902-1912
tutelar. Nos limites relativamente estreitos deste ensaio cabe- Os elementos relevantes do relacionamento externo
ria, contudo, enfatizar um tratamento mais “moderno” dessa nessa fase são os dos limites territoriais deixados em aberto
ampla problemática, propondo um exame mais acurado da pela nulificação do Tratado de Madri, mediante o trabalho
“matéria-prima” evolutiva das relações internacionais do diplomático de delimitação das fronteiras ainda duvidosas. A
Brasil para o período contemporâneo, isto é, grosso modo a figura proeminente nessa fase é, evidentemente, a do barão
era republicana. do Rio Branco (1902-1912), verdadeiro patrono e elemento
No fim do século XIX, a despeito de transformações ideológico central no processo de formação da moderna di-
econômicas ocorridas durante o Império, o Brasil se inseria plomacia brasileira. Outras questões proeminentes são a do
na divisão internacional do trabalho da mesma forma como equilíbrio no Cone Sul, problema indissociável da política
em seu início: como uma nação dotada de afirmada vocação americana conduzida pela Chancelaria, e a da participação
agrícola para o monocultivo de exportação, ainda que alguns do Brasil nas conferências de paz de Haia. Na vertente eco-
produtos momentâneos – a borracha, por exemplo – vies- nômica destacam-se os empréstimos para estocagem de café
sem a disputar a primazia ao café nessa fase e no começo do e o primeiro exemplo de “currency board” de nossa história
século XX. A República trará poucas modificações a uma es- econômica, com a criação da Caixa de Conversão em 1906.
trutura econômico-social essencialmente conservadora, não
obstante a promissora experiência industrializadora de seus A REPÚBLICA DOS BACHARÉIS,
primeiros anos. O que a República introduz de novo são 1912-1930
princípios alternativos de política externa, como o pan-ame- Essa República de “bacharéis”, que vai atravessar
ricanismo, numa área em que o Império tinha mantido, ou grosso modo todo o primeiro período republicano, tenta in-
sido mantido em, um relativo isolamento das demais repú-
blicas do continente. A afirmação da República se dá num 7 PALAZZO, 1999.

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serir o Brasil no chamado “concerto de nações”, inclusive Jaguaribe8 –, é nessa fase que se passa de uma postura mais
pelo envolvimento na Primeira Guerra e na ulterior experi- ou menos passiva em relação ao sistema internacional do-
ência da Liga das Nações, motivo de uma das grandes frus- minante para uma tentativa de inserção positiva, e portanto
trações na história multilateral da diplomacia brasileira. afirmativa, nos quadros da ordem mundial em construção.
No que se refere às questões relativas à inserção do O subperíodo é dominado pela redefinição de priori-
País no “concerto de nações civilizadas”, parecia evidente que dades políticas e das alianças externas no contexto das crises
o relacionamento político com as potências econômica e mi- da ordem política e econômica internacionais dos anos 1930,
litarmente significativas não poderia se fazer em pé de igual-
com dificuldades para a preservação de escolhas autônomas
dade, como a visão bacharelesca e jurisdicista das elites mo-
em face dos limites objetivos – guerra e bloqueios – à atua-
nárquicas e republicanas pretendeu, inutilmente, alimentar a
ção puramente diplomática. Elementos de destaque no con-
ilusão durante um largo período. Desde as agruras do rela-
cionamento com a Inglaterra vitoriana, passando pela parti- texto externo são constituídos pela crise econômica inaugu-
cipação algo frustrada nas conferências de paz de Haia, até a rada pelo crack da bolsa de Nova York, em 1929, pela questão
experiência humilhante da Liga das Nações, o Brasil se verá da dívida externa – na qual se observa uma moratória de fa-
confrontado a posturas externas que iam do desprezo e da to, seguida de renegociação com os credores bilaterais – e,
soberbia ao que – mais tarde e em outro contexto – se cha- sobretudo, pela política de alianças e de equilíbrio pendular
maria de benign neglect. Cabe destacar, porém, que, mesmo entre imperialismos rivais, entre os quais se destacam os Es-
num contexto cultural ainda fortemente “colonizado” ideo- tados Unidos e a Alemanha nazista.
logicamente, a “República dos bacharéis” não se afastará, Em muitos países europeus e em diversas outras re-
grosso modo, da missão já desenhada pelas elites da “mo- giões do mundo civilizado se travava então uma surda (por
narquia ilustrada” no sentido de buscar, incessantemente, vezes aberta) luta entre doutrinas ideológicas rivais, com des-
afirmar os interesses nacionais no quadro de um sistema in- taque para as correntes fascistas e autoritárias e, em menor
ternacional fortemente discriminatório em relação a “potên- plano, os diversos movimentos de afiliação socialista ou co-
cias menores”, nações anteriormente colonizadas, ou, enfim, munista. No plano interno, não se pode deixar de notar os
formações periféricas de um modo geral. desafios insurrecionais comunista e integralista, respectiva-
mente em 1935 e 1938, que não deixaram de ter conexões in-
CRISE E FECHAMENTO INTERNACIONAL: ternacionais bem marcadas. A guerra civil espanhola, na
1930-1945 qual chegam a combater inclusive voluntários brasileiros –
A “era nacional” introduz, no cenário das relações in- geralmente saídos do movimento aliancista de 19359 –, epi-
ternacionais do Brasil, o que se poderia chamar de “mudan- tomiza essa fase de intensos conflitos ideológicos e de apelos
ça de paradigma”. As alterações na correlação de forças so- dramáticos à solidariedade internacional. No final do perío-
ciais e na própria estrutura decisória do sistema político bra- do, o Brasil define-se pela política de “grande aliança atlân-
sileiro, introduzidas pela Revolução de 1930 (e por seus de-
tica”, confirmada pela participação na Segunda Guerra
senvolvimentos subseqüentes), não poderiam, é claro, deixar
Mundial e pelo alinhamento com as posições norte-ameri-
de afetar a natureza do relacionamento externo do País, em
canas.
escala ainda não experimentada até aquela conjuntura his-
tórica. Apesar de que a diplomacia brasileira continua, por Persiste em filigrana, durante toda essa fase, uma
certo tempo mais, a apoiar-se na tradição bacharelesca e ju- consciência nítida das elites dirigentes em relação ao atraso
risdicista vinda do século XIX e sem embargo de que as pre- material e tecnológico do País, mesmo se essa percepção ain-
ocupações de seus quadros principais ainda estivessem mar- da não tivesse sido conceitualmente definida nos termos da
cadas por uma atitude “essencialmente ornamental e aristo- 8 JAGUARIBE, 1958, pp. 226-227.
crática” – para empregar a terminologia cunhada por Hélio 9 ALMEIDA, 1999c.

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grande divisão entre desenvolvimento e subdesenvolvimento ração das dívidas oficiais bilaterais, a criação de um foro de
que vai mobilizar a agenda internacional no imediato pós- credores que mais adiante evoluirá para a constituição do
guerra e nas décadas seguintes. Em todo caso, grande parte Clube de Paris (1961). Ainda no terreno da diplomacia eco-
das energias da diplomacia varguista, no capítulo das rela- nômica multilateral, essa fase corresponde aos primeiros
ções econômicas externas, será mobilizada em virtude da ne- exercícios negociadores de política comercial no GATT, o
cessidade de se lograr recursos financeiros e materiais para a Acordo Geral de Tarifas e Comércio, quando o Brasil renego-
instalação de uma usina siderúrgica no País, o que será al- cia sua adesão, em 1957, a partir da nova Lei Aduaneira e de
cançado mediante o apoio dos Estados Unidos à construção reclassificação tarifária.
de Volta Redonda. A política regional é marcada por certa ambigüidade
entre o equilíbrio estratégico e o isolamento diplomático, vi-
POLÍTICA EXTERIOR TRADICIONAL: sível sobretudo no relacionamento com o principal parceiro
1945-1960 e rival, a Argentina, mas o quadro evolui, sobretudo a partir
Essa fase tem início pela participação tentativa e par- da era Kubitschek, para a superação da competição e sua
cial do Brasil na construção de uma nova ordem mundial, na substituição pela convivência e pela cooperação. Começa a
conferência de Bretton Woods, em 1944, a partir de quando a ter voga, nessa época, sob a impulsão do economista argen-
reorganização econômica do mundo é enquadrada pela luta tino Raul Prebisch, o chamado “modelo cepalino”, isto é, a
entre os modelos rivais do liberalismo e do socialismo. Tem promoção do desenvolvimento nacional por meio de políticas
continuidade com a afirmação incisiva – já no segundo go- ativas de industrialização, eventualmente mediante a coope-
verno Vargas – dos interesses nacionais no quadro inédito de ração econômica no contexto sul-americano e a promoção
diminuição dramática dos atores relevantes no plano interna- de esquemas de integração. Tais esforços, inclusive por um
cional – em razão da bipolaridade introduzida pela Guerra certo mimetismo em relação ao mercado comum europeu
Fria – e, portanto, de redução simultânea das parcerias eco- recentemente (1957) instituído, resultarão, em 1960, na cria-
nomicamente “rentáveis” nesse quadro de opções obrigató- ção da Associação Latino-Americana de Livre-Comércio
rias. Mas a “opção americana” que então se desenha se faz (ALALC). No plano institucional interno, é também nessa fase
também no contexto da emergência de uma diplomacia do que se completa a profissionalização da carreira diplomática,
“desenvolvimento”, que se afirmará plenamente na fase se- cujo acesso passa a se dar, desde 1946, por vestibular organi-
guinte. Se, por um lado, a doutrina da “segurança nacional” zado pelo Instituto Rio Branco e na qual a ascensão funcional
define o sustentáculo ideológico da Guerra Fria, o pan-ame- confirma mais intensamente o mérito do que o background
ricanismo, por outro, mobiliza os esforços da diplomacia para familiar.
a “exploração” da carta da cooperação com a principal po-
tência hemisférica e ocidental. É nesse quadro de barganhas A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE:
políticas e de interesse econômico bem direcionado que o Bra- 1961-1964
sil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral digna de A prática da política externa independente, em sua
registro, a Operação Pan-Americana, proposta pelo governo primeira modalidade nos conturbados anos Jânio Quadros/
Kubitschek em 1958. João Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador
No plano econômico externo, é nessa fase que tem num continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-
início a negociação dos primeiros acordos de produtos de Oeste. O impacto da revolução cubana e o processo de des-
base – café, cacau, açúcar, entre outros –, com a criação colonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinha-
concomitante das organizações multilaterais setoriais que se mento ao primeiro plano do cenário internacional, ao lado
ocupam desses produtos, ao mesmo tempo em que o Brasil da competição cada vez mais acirrada entre as duas super-
suscita, em 1956, mediante a demanda formal de reestrutu- potências pela preeminência tecnológica e pela influência

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política junto às jovens nações independentes. Não surpreen- nacionalista aplicada por Floriano Peixoto durante a revolta
de, assim, que a diplomacia brasileira comece a repensar da Armada – adere estritamente aos cânones oficiais do
seus fundamentos e a revisar suas linhas de atuação, em es- pan-americanismo, como definidos em Washington: regis-
pecial no que se refere ao tradicional apoio emprestado ao tre-se, numa seqüência de poucos meses, a ruptura de rela-
colonialismo português na África e a recusa do relaciona- ções diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos países
mento econômico-comercial com os países socialistas. A ali- socialistas, assim como a participação de força de interven-
ança preferencial com os Estados Unidos é pensada mais em ção na crise da República Dominicana. A política multilate-
termos de vantagens econômicas a serem barganhadas do ral e as relações bilaterais, de modo geral, passam por uma
que em virtude do xadrez geopolítico da Guerra Fria. Formu- “reversão de expectativas”, para grande frustração de parte
ladores protagônicos dessa nova maneira de pensar foram da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos
políticos relativamente tradicionais, como Afonso Arinos e anos da política externa independente.
San Tiago Dantas, e alguns diplomatas de espírito inovador, No plano econômico externo, a volta à ortodoxia na
como Araújo Castro. gestão da política econômica permite um tratamento mais
É nesse período que, ao lado da tradicional dicotomia benigno da questão da dívida externa, seja no plano bilateral,
Leste-Oeste, se começa a proclamar uma divisão do mundo seja nos foros multilaterais do Clube de Paris ou nas institui-
ainda mais insidiosa, Norte-Sul, entre países avançados e pa- ções financeiras internacionais, como o FMI. É sintomático,
íses subdesenvolvidos. O Brasil foi um dos articuladores mais aliás, que a única assembléia conjunta das organizações de
ativos das propostas desenvolvimentistas que resultaram na Bretton Woods, a realizar-se no Brasil, tenha tido por cenário
criação, em março de 1964, da Conferência das Nações Uni- o Rio de Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando
das sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujos ob- também se negocia a instituição de uma nova liquidez para
jetivos eram nada mais, nada menos do que a revisão com- o sistema financeiro internacional, o Direito Especial de Sa-
pleta da arquitetura do sistema multilateral de comércio e a que do FMI.10
criação de mecanismos – sustentação de produtos de base,
sistema geral de preferências comerciais em favor dos expor- REVISÃO IDEOLÓGICA E BUSCA DE
tadores de matérias-primas, não reciprocidade nas relações AUTONOMIA TECNOLÓGICA:
de comércio – suscetíveis de promover uma inserção mais 1967-1985
ativa dos países em desenvolvimento na economia mundial. A postura de princípio favorável a uma política exte-
Quando a primeira sessão da conferência se realizava, em rior de tipo “tradicional” ou a aceitação indiscutida de regras
Genebra, o golpe militar no Brasil sinalizou, entretanto, um diplomáticas caracterizadas pelo “alinhamento incondicio-
retorno a padrões mais tradicionais de política externa. nal” às teses do principal parceiro ocidental vinham tendo
cada vez menos vigência no Brasil contemporâneo, mesmo
A VOLTA AO ALINHAMENTO, no regime dos militares adeptos da doutrina da segurança
1964-1967 nacional. Basicamente, essas atitudes apenas se manifesta-
O reenquadramento do Brasil no “conflito ideológico ram nos primeiros anos do pós-guerra e no seguimento ime-
global” representa mais uma espécie de “pedágio” a pagar diato do movimento militar de 1964, para serem logo em se-
pelo apoio dado pelos Estados Unidos no momento do golpe guida substituídas por atitudes mais pragmáticas. A atitude
militar contra o regime populista do que propriamente uma “contemplativa” em relação aos EUA – partilhada igualmente
operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. pelos militares e pelas elites, de modo geral, durante a Guerra
Em todo caso, observa-se um curto período de “alinhamento Fria – cede progressivamente lugar a uma diplomacia alta-
político”, durante o qual a nova “diplomacia do marechal”
Castelo Branco – em contraposição àquela resolutamente 10 Ibid.

impulso nº 27 29
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mente profissionalizada, preocupada com a adaptação dos da autonomia nacional –, com a continuidade da abertura
instrumentos de ação a um mundo em rápida mutação, e ins- econômica e da liberalização comercial, no quadro de pro-
trumentalizada essencialmente para o atingimento dos obje- cessos de reconversão e de adaptação aos desafios da globa-
tivos nacionais do desenvolvimento econômico. lização. A diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas,
Tem início, então, a participação plena do Brasil nos que não exclusivamente a de tipo bilateral ou aquelas de or-
esforços de construção de uma “nova ordem econômica in- dem estritamente profissional corporativa: são elas a regio-
ternacional”, com atuação destacada em todos os foros mul- nal, a multilateral (em especial no âmbito da OMC) e a pre-
tilaterais abertos ao engenho e arte de uma diplomacia mais sidencial.
madura e liberta das alianças exclusivas da Guerra Fria. O As mudanças de ordem política, econômica e diplo-
período pode ser caricaturalmente identificado com a “di- mática nas relações internacionais do País, neste período re-
plomacia dos rótulos”, que efetivamente se sucedem entre cente, são tão variadas, e de tal magnitude – tanto as surgidas
1967 e 1985, a saber: 1. “diplomacia da prosperidade” ainda internamente como as induzidas de fora –, que qualquer ten-
no governo Costa e Silva; 2. “Brasil Grande Potência”, no pe- tativa de levantamento das “questões relevantes” nesta fase da
ríodo Médici; 3. “pragmatismo responsável”, sob a presidên- história nacional correria o risco de deixar de fora problemas
cia Geisel; 4. “diplomacia ecumênica”, já no último governo importantes de uma agenda externa crescentemente diversi-
militar desse ciclo, o de Figueiredo.11 ficada e extremamente complexa, seja no âmbito multilateral
A despeito dessas classificações mais ou menos arbi- ou nos diversos planos bilaterais. Mencione-se, por obrigató-
trárias, tratou-se, basicamente, de uma “diplomacia do cres- ria, a questão nem sempre bem colocada da “opção” entre
cimento”, consubstanciada na busca da autonomia tecnoló- uma “política externa tradicional” – por definição “alinhada”
gica, inclusive a nuclear, com uma afirmação marcada da – e uma “política externa independente”, problema dramati-
ação do Estado nos planos interno e externo. Mas observa-se zado por anos de enfrentamento bipolar no cenário geopolí-
também nesse período a confirmação da fragilidade econô- tico global. Superando, contudo, o invólucro “ideológico” da
mica do País, ao não terem sido eliminados os constrangi- postura externa do País nesse período, e mesmo os diversos
mentos de balança de pagamentos que marcaram historica- “rótulos” com os quais se procurou classificar a diplomacia da
mente o processo de desenvolvimento brasileiro: as crises do era “militar”, assume importância primordial, independente-
petróleo, em 1973 e 1979, seguida pela da dívida externa, em mente da postura política particular de cada governo diante os
1982, marcam o começo do declínio do regime militar. desafios do cenário internacional, a questão do desenvolvi-
mento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia bra-
REDEFINIÇÃO DAS PRIORIDADES E sileira contemporânea.
AFIRMAÇÃO DA VOCAÇÃO REGIONAL: A política externa brasileira, desde os anos 50 pelo
1985-2000 menos, foi basicamente uma política econômica externa,
Os elementos mais significativos da postura interna- mesmo se problemas de ordem regional (rivalidade com a
cional do Brasil poderiam ser atualmente caracterizados pe- Argentina), de tipo político-ideológico (desafio insurrecional
los seguintes processos: redefinição das prioridades externas, segundo o modelo “castrista”) ou de cunho social-humanis-
com afirmação da vocação regional – processo de integra- ta (direitos humanos, por exemplo) ocuparam frações signi-
ção subregional no Mercosul e de construção de um espaço ficativas da agenda diplomática em momentos determinados
econômico na América do Sul –, opção por uma maior in- desse período. Sem praticamente nenhum tipo de exceção,
serção internacional e aceitação consciente da interdepen- todas as grandes questões de política interna do País – in-
dência – em contraste com a experiência anterior de busca dustrialização, capital estrangeiro, política energética e de
“segurança nacional” (começando pelo petróleo, passando
11 VIZENTINI, 1998. pelo programa nuclear e chegando à política de informáti-

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ca), modernização tecnológica etc. – são também, e antes de posição de destaque em qualquer estudo que se empreenda,
mais nada, questões de política externa da nação. doravante, sobre as relações internacionais do Brasil.
Finalmente, nem um estudo das relações internacio-
CONCLUSÕES nais do Brasil poderia descurar a perspectiva propriamente
São essas as questões – acrescidas de algumas outras globalizante – e “primariamente” comparatista –, consistin-
que delas derivam: dívida externa, meio ambiente, exporta- do em pensar sua inserção num sistema internacional cujas
ções de artigos militares etc. – que estão no centro das rela- bases de funcionamento estão em processo de transformação
ções internacionais do Brasil contemporâneo e que, como acelerada. Não está ainda totalmente claro que estrutura de
tais, devem conformar o próprio “menu” de um estudo glo- tomada de decisões políticas, em nível mundial, e que con-
bal das relações internacionais do País. Uma outra questão,
formação precisa, em termos de sistema hierarquizado (ain-
mais recente, mas que faz parte igualmente da agenda eco-
da que segundo novos princípios), terá a ordem emergente
nômica “externa” da nação, veio a elas se juntar em forma
atualmente, que passa a substituir o cenário bipolarizado en-
permanente: a política de integração regional, em especial o
terrado ao mesmo tempo em que se cobre de terra o caixão
processo de constituição de um mercado comum no cone sul
do socialismo mundial.
americano.12
Em todo caso, essa “nova ordem” já não mais con-
Ainda que esta última issue diplomática tenha resul-
sistirá, apenas, de duas superpotências, algumas potências
tado, basicamente, de uma opção de public policy cuja na-
tureza foi fundamentalmente política – e mesmo “geopolíti- médias e vários Estados “emergentes”. Os fenômenos de
ca”, no bom sentido da palavra –, isto é, a decisão tomada, ao “globalização” – não apenas restrito à internacionalização
concluir-se o período militar, de encerrar a tradicional pos- dos circuitos produtivos – e de “regionalização” – com a for-
tura de conflito e de concorrência com a Argentina para mação de blocos econômicos e políticos em diversas regiões
substituí-la por uma de cooperação e de integração, essa do planeta – prometem introduzir novas variantes nos mo-
questão representa, igualmente, um capítulo específico, ain- delos até aqui conhecidos de sistema internacional, como re-
da que inédito, da densa agenda brasileira no campo das re- feridos anteriormente: o modelo dos impérios universais, o
lações econômicas internacionais. Ela é uma vertente, pro- das cidades-Estado comerciais e o moderno sistema de Es-
vavelmente a mais importante na atualidade, da já chamada tados. O cenário histórico futuro indica, previsivelmente, que
“diplomacia do desenvolvimento”.13 o estudo das relações internacionais de um País como o Bra-
Assim como a industrialização e a modernização eco- sil terá de trabalhar, durante certo tempo ainda, com os con-
nômica do País foram perseguidas de maneira persistente, ceitos de “Estado periférico” e de “potência média”. Ainda
desde longas décadas, pela sociedade em seu conjunto, a in- assim, o padrão de relacionamento de um Estado desse tipo
tegração regional passa a fazer parte do horizonte histórico com os atores principais do sistema internacional, bem como
futuro da nacionalidade. Num mundo em rápida mutação, o peso específico de nações “periféricas” na estrutura do po-
com cenários geopolíticos e geoeconômicos ainda não total- der mundial, sofrerão mudanças significativas em direção do
mente claros, a opção de política regional adotada pelo Brasil horizonte 2000. Nesse sentido, uma reflexão comparada so-
passa a conformar um dos pontos mais importantes de sua bre as tendências de desenvolvimento dos Estados médios,
agenda internacional. Como tal, essa questão deve figurar em com base nos elementos de análise já disponíveis, poderá
12
contribuir a uma melhor compreensão da agenda diplomá-
ALMEIDA, 1998b.
13 RICUPERO, 1989. tica de um país-continente como o Brasil.

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Referências Bibliográficas
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Sociologia e Política, Curitiba: UFPR, 4 (12): 35-66, 1999c.
________. Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização. Porto Alegre: UFRGS,
1998a.
________. Mercosul: fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTr, 1998b.
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JAGUARIBE, H. O Nacionalismo na Atualidade Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1958.
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________. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
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Ensaios sobre Diplomacia Brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989.
RODRIGUES, J.H. Aspirações Nacionais: interpretação histórico-política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
VIZENTINI, P. A Política Externa do Regime Militar Brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potên-
cia média (1964-1985). Porto Alegre: UFRGS, 1998.
Washington, dez./99

32 impulso nº 27
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500 ANOS... PIERRE SANCHIS

DE PORTUGUESES Professor Emérito da


Universidade Federal

A BRASILEIROS de Minas Gerais.


Doutor em Antropologia
pela Universidade de Paris
FIVE HUNDRED YEARS... psanchis.bhe@terra.com.br

FROM PORTUGUESE TO BRAZILIANS


RESUMO A chegada dos portugueses às costas brasileiras representou para aquele grupo humano uma das trans-
ferências de hábitat mais drásticas que a história conheceu: desde uma terra de raiz até um espaço sem limites, onde
quase impossível tornava-se o enraizamento, mas imperativa, a relação ao “outro”. O artigo pretende sugerir que um
fato social aparentemente tão simples pode ter projetado suas conseqüências sobre a “longa duração” da história bra-
sileira, chegando mesmo a desenhar, quem sabe até os dias de hoje, algumas características do campo religioso no
Brasil.
Palavras-chave Portugal – Brasil – espaço – nomadismo – sincretismo religioso.
ABSTRACT The arrival of the Portuguese on the Brazilian coast represented one of the most radical transferences of
habitat that history has ever known: people who were first so deeply rooted started living in an unlimited space, in
which rooting was nearly impossible and the relationship with “the other” was imperative. The article suggests that
such an apparently simple social fact may well have had long-run consequences in Brazilian history. It may even ac-
count for some very recent features of our religious field.
Key words Portugal – Brazil – space – nomadism – religious syncretism.

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5
00 anos!... Tantos são os aspectos que poderiam ser escolhidos para comen-
tar esta data!... Escolhi um, que parecerá, quem sabe, bastante superficial
num primeiro momento: a relação com o espaço onde vive ajuda um gru-
po humano a se construir em sua particularidade histórica, cultural e so-
cial. No caso, duas relações, comparadas: a dos portugueses com o seu mi-
núsculo Portugal, a dos brasileiros com o seu imenso Brasil. E, mais ainda
do que uma comparação estática, a visão da passagem histórica do pri-
meiro tipo de relação ao segundo: aquela passagem que, precisamente 500 anos atrás,
transformou os portugueses em “brasileiros”.1
Está se tornando cada vez mais comum na ciência social contemporânea (Scheller,
Dumont, Norbert Elias, Giddens etc.) a alusão à problemática do espaço: a relação com o
lugar de sua inserção (o topos) contribui para definir a vida social de um grupo. Velha
problemática da geografia humana, que a história de há muito assumiu (O Mediterrâ-
neo, de Braudel)2 e que parece impor-se atualmente às ciências sociais: é importante o ni-
cho ecológico em que se insere o homem, a dimensão, a extensão, a proporção... e a des-
A relação com o proporção, o equilíbrio ou a desmedida, o definido e o sem fim.
Por sua vez, Michel Foucault atribui qualificações propriamente políticas a essa re-
lugar de sua
ferência ao espaço: “Território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes de tudo
inserção (o topos) uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por um certo tipo de poder”.3 Com
contribui para definir todas as conseqüências que o fato implica.
a vida social de um É nesta perspectiva que quero falar de Portugal e do Brasil.
grupo PORTUGAL, ESPAÇO FEITO DE ALDEIA E DE MAR
De que Portugal falarei? Não do Portugal da grande cultura e dos expoentes his-
tóricos, também não do das cidades importantes e dos fluxos contemporâneos de moder-
nidade, mas daquele, nos interiores, que um contato modesto de pesquisa, há trinta anos,
me deu a conhecer: o aldeão no seu quotidiano e nas suas festas, quem sabe próximo ao
grande número daqueles que, há 500 anos, povoavam as caravelas, mais tarde os paquetes,
daqueles que afinal começaram a fazer o Brasil. Ora, o que minha experiência de campo
me sugere sobre esta problemática da relação ao espaço neste Portugal profundo poderia
ser resumido em dois pontos.
Antes de tudo, o português (do Norte e Centro) que conheci era o homem de sua
aldeia. Encontrei na obra recente sobre Portugal de Miguel de Almeida, um antropólogo
português que visita freqüentemente o Brasil, dois subtítulos significativos no mesmo sen-
tido: “A terra natal como umbigo da história” e “História de vida, história de aldeia”.4 É de
1 Boa parte das idéias deste texto foi desenvolvida em SANCHIS, 1997a e 1997b.
2 BRAUDEL (1949), 1966.
3 FOUCAULT, 1979, p. 156. Herodote, o dialogante de Foucault neste capítulo, insiste: “Entre o discurso geo-
gráfico e o discurso estratégico, pode-se observar uma circulação de noções: a região dos geógrafos é a
mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o mesmo que território vencido (devincere).
O campo remete ao campo de batalha...” (Ibid., p. 158).
4 ALMEIDA, 1995.

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fato ali, neste topos limitado e concreto, que se enraizam – e fundamental, era vivida como autóctone, nascida desta
se particularizam – os dois universais que, em outro plano, terra, identificando-se com ela e com suas raízes históricas.
abrem o português para o mundo: o sentimento de sua pá- E esse passado, que encontrei ainda vivo, também im-
tria, a adesão à sua religião. Português e católico, o aldeão, põe ao historiador a permanente imagem matricial de uma
antes de tudo, é filho de sua terra. São muitas as lembranças aldeia. Sobre ela insistem nos dias de hoje os medievalistas,
das conversas, das trocas e reflexões que me impuseram esta situs de fixação das populações bárbaras, que tornou-se
convicção: “Mandar os nossos rapazes combater no ultra- “paróquia” já na época carolíngia, definitivamente implan-
mar, não!”, diziam-me durante a guerra colonial. “Ainda se tada como estrutura fundamental do catolicismo nos séculos
fosse para defender nossa aldeia...”. Quanto ao catolicismo XI-XIII, e que acaba envolvendo Portugal numa trama geo-
(objeto de minha pesquisa, lá e aqui), sobretudo no Norte ou gráfico-social e demográfica que articula e trança, de um la-
Noroeste – precisamente de onde terão ido os futuros brasi- do, o fio das comunidades locais, com a sua tendência para
leiros –, era um catolicismo visivelmente enraizado numa a organização autônoma muitas vezes apoiada pelo poder
identidade local, mais presente em muitos casos do que real; de outro lado, os fios variados das forças de senhoriali-
o da identidade regional ou nacional. Referências históricas zação, com as relações de dependência, em nível militar, ju-
inscritas na topografia, as narrativas familiares, as genealo- diciário e religioso, que elas conseguem pouco a pouco im-
gias, os patronímicos, que articulavam, através do casamen- plantar. Mas, em todos os casos, é em referência a um espaço
to, esta identidade local a outras de mesmo tipo no interior de determinado (“chão”, domínio, terra, território, denotação
uma rede regional de aldeias, mais do que a uma identidade de um acidente geográfico) que se constrói uma identidade
regional propriamente dita; cristalizações simbólicas de tipo comunitária, com dois pólos: o castelo e, com ele ou contra
emblemático, não exclusivamente, mas o mais das vezes de ele, a paróquia, com sua igreja e seus santuários, que se cons-
natureza religiosa: o vigário, a igreja, os padres aposentados titui em centro, fulcro difusor, emblema e cristalização desta
que, até havia pouco, costumavam voltar a viver em casas de identidade local.
suas linhagens, os santuários de romaria e os caminhos que
levam a eles, santuários e caminhos que, todos, continuavam Mesmo quando os paroquianos perdem o direito de
marcando o mapa imaginário e sentimental da região, o ca- eleger o seu cura, nem por isso a igreja deixa de cons-
lendário, “os trabalhos e os dias” locais, as festividades que os tituir, afinal, um dos principais vínculos da solidarie-
acompanham; o próprio Santo, o “padroeiro”, quase inscrito dade campesina. É nela, pertencente ou não ao se-
nas tábuas genealógicas da comunidade (“O São Bento da- nhor, que todos os habitantes da freguesia se reúnem
para celebrar coletivamente os ritos de passagem, de
qui é primo do de Santo Tirso”; ou ainda: “São Torcato apa-
entrada na vida e na morte, aí que pedem a benção
receu, São Bento não o pode porque ainda tem irmãos vivos”,
divina para os filhos, os animais e as searas, aí que se
“São Bento, não, não conheci; já não é do meu tempo”...); a refugiam quando chegam os cavaleiros para pratica-
Confraria, que recapitula os vivos (presentes ou ausentes por rem violências e abusos.5
emigração) e os mortos – os vivos, aliás, enquanto futuros
mortos (as missas encomendadas com antecedência, que te- Palavras de historiador, referidas à Idade Média. Mas
cem entre si as gerações); as festas, enfim, romarias ou não, pouco deveria mudar o etnógrafo para falar do quase hoje
emblemas, às vezes agressivamente fechados, da comunida- (25, 30 anos atrás...) de muitas aldeias, ou melhor fregue-
de local ou, ao contrário, operadoras da articulação entre a sias (paróquias), no seu quadro geográfico, real e imaginá-
comunidade local e o espaço regional. Uma identidade reli- rio, com seu conjunto de atividades associadas aos ciclos na-
giosa – e mais amplamente social – que se constituía sobre
5 MATTOSO, 1985, p. 294. Aliás, é bom notá-lo, do mesmo historiador
a base ao mesmo tempo do local (topos) e do passado que acaba de coordenar a edição de um livro sobre as mudanças espan-
num processo unitário, ao termo do qual a Igreja, referência tosas do Portugal imediatamente contemporâneo.

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turais e às suas redes próprias de sociabilidade. Um Portugal impossível implantar um novo Portugal. Em terras, apesar
medieval, outro ainda contemporâneo, os dois construídos de infinitas, oceano florestal, era pelo menos pensável.
na base destas redes de identidades locais, topologicamente Aqui se situa a metamorfose. Melhor, talvez, a inver-
de-terminadas, de-limitadas. Como não pensar, então, entre são. Um desenraizado, errante longe de suas referências, mas
estes dois momentos – a Idade Média e uma época recente – encostado ainda no seu imaginário, ao passado de seu torrão
no Entre-Douro-e-Minho do século XVI, celeiro das primei- natal, encontra um horizonte no qual – utopicamente –
ras levas portuguesas que implantarão o Brasil? pode pensar em criar novas raízes. Do seu topos tradicional
É preciso, com efeito, acrescentar a esta primeira ca- à atopia do mar, o português; da utopia da floresta infinita
racterística da relação portuguesa com o espaço uma outra, em direção ao novo topos de outro assentamento, o brasilei-
aparentemente contraditória. Um Portugal inclinado em an- ro. Movimentos arrevesados, que desde há séculos não aca-
fiteatro para o mar, território pequeno, cercado pela Espanha bam de acabar.
e situado na extremidade da Europa, não tendo outra possí-
vel expansão senão o mar. Por isso, o homem da aldeia é BRASIL, ESPAÇO SEM LIMITES
também o do Oceano. “A força atrativa do Atlântico, este Num primeiro momento, imagine-se o espanto que a
grande mar povoado de tempestades e de mistérios, foi a descoberta do espaço brasileiro criou em tais viajantes! Da al-
alma da nação e foi com ele que se escreveu a História de deia e dos santuários familiares para um mundo sem limites,
Portugal”, diz Jorge Dias.6 Num primeiro momento, esta for- no qual a imensidão geográfica implicava, impartida por um
ça atrativa faz acumular no litoral as aglomerações urbanas, Estado e uma Igreja pouco presentes no quotidiano, uma ta-
ao contrário da vizinha Espanha, que implanta no seu centro refa desestruturadora. Pouco mais de um século depois,
a sua capital. Mas esse passo é só primeiro: o mesmo portu- constata Caio Prado Junior,
guês aldeão, preso a um horizonte marcado, balisado pela
história, diferenciado até o detalhe, pouco globalizado e todo (...) no tratado de Madri (1750), já as fronteiras atuais
voltado para o círculo interior, é também atraído pela vora- do Brasil foram quase que definitivamente fixadas,
gem do não marcado, do imensamente aberto, do sem limi- em nome da povoação efetiva: “Cada parte há de ficar
com o que atualmente possui”. Isto já nos mostra, a
tes.
priori, que de fato a colonização portuguesa ocupara
De costas para – e sempre preso à – origem que o esta área imensa que constituiria o nosso país. (...)
sustenta, o nutre por dentro mas o lança rumo ao desconhe- Obra considerável, não há dúvida, daquele punhado
cido; ele precisa, mesmo neste arrancar ativo a si mesmo, da de povoadores capazes de ocupar e defender efetiva-
continuidade do laço que define e identifica.... Um enraiza- mente (...) um território de oito milhões de quilôme-
do, mesmo se viajante, ou então, se ficou, aquele cuja per- tros quadrados (...) mas, ao mesmo tempo, ônus pe-
manência articula-se sempre à referência a uma parte de si noso que pesará sobre a colônia e depois sobre a na-
que se foi. Desde que se conhece por gente, Portugal sonhou ção, provocando como provocou esta disseminação
com os seus que o deixaram – sem deixá-lo, pois o levavam pasmosa e sem paralelo que afasta e isola os indivídu-
consigo. os, cinde o povoamento em núcleos esparsos de con-
tato e comunicações dificeis, muitas vêzes até impos-
E continua até os dias de hoje.
síveis.7
Mas na imensidão não marcada do mar é só possível
traçar caminhos. Impensável nele criar raízes, novas raízes, É uma nova relação com o espaço que assim se ins-
para substituir aquelas que foram arrancadas lá. No mar, era taura. Para durar.
6 DIAS, 1971, p. 15. 7 PRADO Jr., 1969, pp. 36-37.

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Se é dentro do quadro de determinado meio cósmico mente representado como “natureza” (o “índio bravo”), a
socialmente assumido que se elabora uma visão do mundo, religião jogou o papel decisivo.
se estrutura um universo de valores e implanta-se a seguran- Com efeito, a possibilidade de recriar, na nova terra, as
ça afetiva e psicológica dos indivíduos, através de uma rede condições de assentamento e convivência local que haviam
de relações que definem o grupo e o inserem em perspectivas permitido, na Lusitânia, a eflorescência de um determinado
que o ultrapassam, este primeiro contato com o continente catolicismo a partir das sedimentações religiosas anteriores
novo devia funcionar, como o dirá Bastide, “à maneira de (pré-celtas, celtas, romanas) foi rapidamente descartada. Um
uma carga de dinamite que fez essa sociedade [portuguesa] cristianismo “inculturado”, conforme o ideal da pastoral ca-
explodir em pedaços (...). As forças centrífugas predominam tólica contemporânea10 só teria sido possível em conseqüência
sobre as forças de coesão”.8 de uma evangelização topologicamente fixada no próprio “lo-
Logo intervêm as tentativas de reagrupamento. Mar- cal” – um local, aliás, também ele nômade –, onde os indí-
cadas todas por um duplo fator: mobilidade, mistura. genas estruturavam tradicionalmente o seu universo. Mas em
três curtos anos os jesuítas foram levados a renunciar a esse
É nas bandeiras que se delineia o Brasil, vetores de pe-
ideal. Visto que os índios mostravam-se apegados a seus ví-
netração, marcas num mapa imaginário, cotejo do homem cios: matavam, comiam carne humana, tinham várias mu-
com um espaço que lhe é desproporcional – e, ao mesmo lheres. O único meio de convencê-los dos valores da civiliza-
tempo, instrumentos de contacto com a presença humana ção seria educar os seus filhos em colégios (já em 1550!) e
neste espaço. Já que esta natureza tinha dono, por mais que reagrupar os adultos, confundidas as origens e as culturas,
o imaginário social tenha tentado convencer o brasileiro – em aldeamentos cristãos. Nesse tipo transfigurado de fixa-
conforme o escrevia, há poucos anos ainda, uma professora ção “aldeana”, os índios poderiam, pelo menos durante um
primária – de que “quando os portugueses chegaram ao tempo, tocar as suas flautas ou dançar as suas danças, mas
Brasil, não encontraram aqui nada: só tinha mata e índios”... todo esse vocabulário cultural seria compelido a falar uma
A relação com o espaço então torna-se imediatamen- língua que não era a sua.11
te relação com o que era percebido como o lado humano da Para um período posterior e sobretudo para a região
mesma natureza. Relação captadora, mas relação: “O serta- amazônica, Carlos de Araujo Moreira Neto12 descreverá assim
nista e o bandeirante” – descreve Darcy Ribeiro – “domina- a “missão”: “A missão é o centro por excelência de destribali-
vam uma técnica terrível de, com arma de fogo, com cães, zação e de homogeneização deculturativa daqueles ‘restos de
muito cuidado, aprisionarem índios. Havia bandeiras que nações menos bravias’,13 concentrados nos aldeamentos cate-
eram cidades ambulantes, conduziam milhares de pessoas, quéticos. O produto final é o índio privado de sua identidade
iam fazendo roças, se fixando, e depois se deslocando”.9 Até étnica, o tapuio”.14 Estratégia de destribalização, que se inicia
as “cidades” eram nômades..., mas já congregavam vários pela erradicação, a supressão das perspectivas topográficas
“outros” em busca do outro “natural”: rapidamente estes 10 SUESS, 1994.
“milhares de pessoas” não eram mais só portugueses – ou 11 AZEVEDO, 1966, pp. 140-164. Toda uma literatura estuda esse pro-
cesso de desenraizamento cultural e religioso nos aldeamentos indíge-
portugueses sós. Este povo desenraizado tinha assimilado nas. Entre outros: HOORNAERT, 1974 e 1977, e, neste mesmo livro, a
outro povo na mesma condição: o índio “manso”, já destri- contribuição de AZZI, 1979; LACOMBE, 1973, MOREIRA NETO, 1988;
NEVES, 1978; PAIVA, 1982, etc.
balizado e seduzido à força pelo novo sistema de trocas cul- 12 MOREIRA NETO, 1988, p. 23.
13 A citação é de Azevedo (1930): “As aldéias de indios mansos, que eram
turais. Nessa operação de transmutação em “cultura” (o “ín- os centros de onde havia de irradiar a civilização, em todo o extenso Ama-
dio manso”) daquele segmento de humanidade anterior- zonas, eram para mais de 60. Alí se aglomeravam os restos das nações
menos bravias, desaparecendo a olhos vistos, ao contato dos brancos, e
sob a influência fatal da escravidão” (AZEVEDO, 1966, pp. 228-229, in:
8 BASTIDE, 1971, pp. 56-57. MOREIRA NETO, 1988, p. 23).
9 RIBEIRO, 1981, p. 90. 14 MOREIRA NETO, 1988, p. 23.

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ancestrais móveis e amplas e sua substituição por uma nova mais tarde, africanos – objetos e gestos furtivos de encanta-
convivência local, estável mas culturalmente promíscua. Ba- mento e reverência aos poderes telúricos, que por sua vez fas-
seada numa mudança de quadro geográfico, instaura-se a cinavam os rudes portugueses – lembrando-lhes, aliás, mui-
dialética entre a “mistura” e a “pureza” que, desde as primei- tos costumes atávicos do seu próprio universo de “bruxaria”.
ras gerações, desembocará na criação de um produto típico, Assim a rede de proteção mágico-religiosa estendia-se densa,
fator decisivo na flexibilização e relativização das identidades feita de todos os fios entrecruzados que a comunicação entre
que começam então a processar-se: o mameluco. estes grupos,16 perdidos juntos em meio a um cosmos amea-
Nas primeiras bandeiras, é esse mameluco que cons- çador, podia tecer. Provavelmente, até nessa operação, índios e
titui o elemento demograficamente dominante, um desen- mamelucos podiam sub-repticiamente recuperar a primazia,
raizado na própria operação de seu re-enraizar, que acom- “naturais da terra” que eram, e herdeiros dos encantos sus-
panha o pai lusitano perdido em direção a horizontes ima- ceptíveis de domesticá-la.
ginários. E rapidamente vem juntar-se a eles um terceiro Começa-se atualmente a conhecer mais em profundi-
povo de desenraizados, ainda mais radicalmente cortado do dade os resultados desses intercâmbios, universos simbólicos
quadro material e mítico de sua socialização: o negro. De emanados notadamente do grupo social que cristalizava
novo Bastide: “O lugar onde se nasce não é um mero sistema como que por nascença a crescente porosidade das identida-
de acidentes geográficos, montanhas, lagos ou rios, é um des, os mamelucos: as Santidades,17 sem dúvida insurreições
todo social-geográfico onde os mitos locais, a divisão das tri- indígenas contra o cristianismo colonial, mas, rapidamente, e
bos no solo, os locais determinados de reunião das sociedades através de cruzamentos simbólicos e de adesões recíprocas a
secretas etc., constituem um só e mesmo todo”.15 elementos dos respectivos universos religiosos, nova realidade
Gostaria de pensar no duplo processo que se instaura mística, capaz de mobilizar os “negros da Guiné”, atraente
então. Um macroprocesso de procura e captura de mão-de- também para alguns cristãos brancos – não necessariamente
obra, de instrumentalização racional e cruelmente levada a os mais socialmente desprovidos... –, e que a história oficial,
efeito por todos os meios, de genocídio quando convém, de passado o momento da repressão, tendeu a ignorar. Ainda não
etnocídio intencional sempre. Não se trata, pois, de negar ou se mede o seu alcance, pois a documentação a seu respeito,
minimizar esta dimensão impiedosa da história do Brasil; oriunda das instâncias eclesiásticas, tende a privilegiar os ca-
mas de constatar que, no avesso deste macroprocesso e nos sos em que ameaçavam instituir-se de modo permanente.
seus interstícios, insinuou-se outro, quotidiano e feito de mi- Mas, como sempre em situações semelhantes, o “clima” geral
crorrelações, através do qual estas três cepas destocadas em deve ter ultrapassado de muito o quadro dessas instituciona-
algum nível entrelaçavam ramos ou até raízes, nem que seja lizações, incipientes ou consumadas. É mais ainda nessas
simplesmente para juntar, naquelas intermináveis conversas margens indefinidas que devemos perscrutar para ilustrar
noturnas nos acampamentos, os seus jeitos atávicos de con- esse novo processo de construção identitária que vem substi-
jurar os perigos, escapar aos desafios e proteger-se das ame- tuir o processo aldeão tradicionalmente português: não mais o
aças constantes de uma natureza grandiosa e fascinante, mas
difícil de domar. Acompanhavam as bandeiras altares portá- 16 A “idolatria”, diz Gruzinski a propósito do México, “tecia uma rede
densa e coerente, consciente ou não, implícita ou explícita de saberes
teis, santos, capelães, erigiam-se oratórios nos acampamen- nos quais se inscrevia e se desenvolvia a totalidade do quotidiano”; além
tos – e devia reproduzir-se a cena ilustrada por Vitor Meireles dos sistemas intelectuais e estruturas simbólicas, um mundo de “práticas,
de expressões materiais e afetivas de que ela é totalmente indissociável”.
da Primeira Missa, em que um paramentado barroco cele- Para esses antigos mexicanos, tratava-se, segundo o autor, de resistência,
“barreira ao processo de ocidentalização projetado pelo colonialismo”
brava diante de indígenas boquiabertos. Mas estavam tam- (GRUZINSKI, 1988, p. 195). No fenômeno das bandeiras e, mais geral-
bém presentes os símbolos sagrados, os ritos – indígenas e, mente, dos mamelucos, queremos ler também, e pelo menos num
segundo momento, uma modalidade particular desta resistência, pela
fagocitose dos universos simbólicos e a porosidade das identidades.
15 BASTIDE, 1971, p. 120. 17 VAINFAS, 1995.

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crescimento orgânico de uma identidade coesa no plano da tivo. A atitude peregrina tende assim a se concentrar
consciência, cujas alteridades de raiz vão sendo inconscien- mentalmente, como expectativa de peregrinação efe-
temente recapituladas e sucessivamente subsumidas na eflo- tiva ou como rememoração, sobre o locus que ela
rescência única do “mesmo” (o cristão), mas uma construção destaca dentro do espaço quotidiano. E isto inscreve
somatória, em processo nunca acabado, no decorrer do qual no espaço arredor a consciência fisico-psíquica de
um “oriente” de espaço sacral, imaginário espacial do
o “idêntico” aceita tomar emprestado parte do seu ser ao “ou-
caminho através do qual se atingirá a fonte.21
tro” encontrado no espaço aberto de suas erranças. Porosida-
de de identidades desta vez em contato sincrônico.18 No Brasil, sem dúvida o espaço foi visto primeiro
Outra vertente da mesma problemática seria dada pela como um “contínuo” homogêneo – e, aliás, curiosamente
referência ao espaço sagrado. Mais exatamente aos lugares de vazio. Mas pode-se imaginar a saudade desse “oriente do es-
hierofanias – onde reside o sagrado e onde se dá o encontro paço sacral” desencadeada nos portugueses recém-chegados
com ele – que polarizam os espaços sociais, criam suas ver- pela ausência das referências epifânicas constituídas pelas
sões imaginárias, identificam e hierarquizam seus segmentos suas romarias familiares.22 Rapidamente começou a trans-
e os caminhos que os atravessam. Falando desses lugares, o ferência dessa tradição, a fim de permitir que as populações
historiador Antoine Dupront assim se expressa: “É necessária advenientes pudessem reconhecer sua identidade no conti-
no indefinido do espaço físico, vivenciado como homogêneo, nente novo. Mais tarde, por exemplo em Minas, será notável
a existência de lugares de natureza diferente daquela do meio este caráter transferencial de determinadas romarias, mas
ambiente, heterogênea a esta, lugares caraterizados como uns desde o início esse habitus interferiu com a mobilidade pe-
tantos pontos de um alhures determinado, que orientam e fi- regrina das populações tupi, tradição carregada de mitolo-
xam a procura de um estado ‘outro’”.19 gia, que a chegada dos portugueses só fez recrudescer, mudar
Nessas condições, “a experiência peregrina [implica] de sentido topográfico (em direção ao interior das terras) e,
uma potência sacral, que pode acumular-se quando se visi- em parte, de significação mística, carregá-lo de ressentimen-
tam vários lugares santos”. Experiência peregrina que fazia to e resistência.
parte do habitus português, sobretudo daqueles portugueses As primeiras romarias “brasileiras” implantaram-se
do Norte, que serão os futuros brasileiros. Deles também pen- assim em meio luso-indígena, na esteira da memória de São
samos ter mostrado, estudando as suas romarias,20 que se Tomé, feito o herói Sumé.23 Logo multiplicaram-se, acompa-
poderia escrever: nhando as modalidades de povoamento e criando através do
O lugar sagrado torna-se assim, para o mundo pere- sertão, das serras ou, em Minas, à beira dos caminhos de
grino, lugar de fonte ou de eterno recomeçar. Para ele acesso às povoações mineradoras, eixos de circulação e co-
convergem os caminhos da sacralização e nele crista- municação em que os fluxos culturais (e religiosos) continu-
liza a espera de voltas periódicas no imaginário cole- aram a cotejar-se, entrecruzar-se e, em muitos casos, articu-
lar-se sem confundir-se, num único empreendimento ritual.
18 O uso do termo sincretismo pode eventualmente criar problemas. Por
exemplo, VAINFAS (1995, p. 45): “Estaria, de qualquer sorte, de acordo
com Carlos Fausto, para quem chamar tais movimentos ‘simplesmente NOMADISMO E POROSIDADE
de sincréticos’ (...) não nos leva... etc.”; e, em sentido aparentemente con-
trário (p. 68): “Inúmeros casos paraguaios ilustram à exaustão a ocorrên- DAS IDENTIDADES
cia de sincretismos (...). Na parte luso-brasileira, o caso mais notável nesse
domínio de amálgamas e mimetismos...”. Ou ainda, mais explicitamente:
A ocupação dinâmica do território e a relação ao es-
“Foi por defrontar-me com tamanha diversidade de olhares e sensibilida- paço que implica tinham tomado rapidamente duas formas
des que evitei a palavra sincretismo, refugiando-me nos conceitos de cir-
cularidade e hibridismo cultural” (p. 159). Mas tenho a impressão de que
uma análise do “sincretismo” em termos estruturais (SANCHIS, 1994) 21 DUPRONT, 1987, pp. 412-413.
poderia permitir solucionar tais ambigüidades. 22 Sobre a importância das romarias portugueses desde a Idade Média,
19 DUPRONT, 1987, pp. 412-413. cf. MATTOSO, 1985, vol. 1.
20 SANCHIS, 1983. 23 AZZI, 1979.

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distintas.24 O enraizamento também viria na história do Bra- O segundo, o intérprete da casa-grande, teórico da fi-
sil: bandeira e casa-grande opõem-se como duas moda- xação espacial e até de certo enraizamento autocentrado, que
lidades de relacionar-se com um topos, que determinaram implanta miniuniversos e permanentes dinastias.
também na historiografia duas linhas interpretativas opostas Mas é preciso matizar a simples oposição em vários
da realidade nacional,25 exemplarmente representadas por pontos.
Cassiano Ricardo e Gilberto Freyre. O primeiro,26 intérprete Em primeiro lugar, é possível insistir sobre uma su-
de um Brasil “conquistado pedestremente”,27 para quem a cessão cronológica de momentos nessa relação fundamental
bandeira, “fenômeno ‘espacial’ e ‘étnico’”, “geografia em ao espaço no Brasil. Veio primeiro o espaço da aventura ex-
função política”, é que acabou dando ao brasileiro a “alegria pansionista criativa e daquele encontro ocasional/sistemático
do espaço”, “este nosso apego à liberdade física de ir e vir”, de “outra natureza” (“Terra e homem estavam em estado
mobilidade física que identificou-se, nesse começo, e apesar bruto”),32 que é então transformada. É num segundo mo-
de todas as opressões políticas, culturais e religiosas, com essa mento que o assentamento daria à casa-grande, pelo menos
em algumas regiões específicas, o caráter gerador de um
“incrível mobilidade com que o bandeirante caminha no es-
grupo social solidamente fixado a seu espaço, sua terra, sua
paço que vai entre sua cultura de origem e a do selvagem,
casa, os círculos concêntricos que, a partir desta, tornam o
para ser índio à hora que bem entende e voltar a ser branco
cosmos significativo. (Um terceiro momento seria o da im-
quando bem lhe apraz”.28 O “bandeirante”... Que dizer então plantação urbana generalizada, mineira antes de outras, que
do mameluco, “fonte étnica de onde surgiu a marcha para o veio transformar definitivamente a paisagem ecológica do
Oeste”,29 fruto de casamentos e sobretudo de intercurso se- Brasil).
xual entre homens portugueses e mulheres índias, num pri- Em segundo lugar, e ao contrário, essas duas relações
meiro momento, mas também, numa segunda geração, des- ao espaço – a do “território” e a da “propriedade” – coexis-
tes filhos de índia e branco com “as moças brancas das me- tirão genética e dialeticamente no decorrer de toda a história
lhores famílias piratininganas”? Mamelucos, como dirá mais do Brasil. Por um lado, as bandeiras e outros errantes cria-
tarde Vainfas, que “eram homens que viviam em dois mun- ram cidades (pense-se, em Minas, no exemplo de Divinópo-
dos distintos, espelhando sua ambivalência em todos os do- lis), tipo específico de fixação em que o encontro do “outro”
mínios (...). Eram homens dilacerados pelo colonialismo, e (“dos outros”: no caso, bandeirantes paulistas, índios fugindo
sua identidade era fluída com a própria colonização”.30 Da dos aldeamentos, negros quilombolas, aventureiros...) se tor-
mobilidade geográfica para a fluência no espaço identitário, nará sistemático de mil maneiras diferentes. Será também
cultural e religioso...31 caracteristicamente urbano o fenômeno da reinstitucionali-
zação dos cultos afro33 e do seu deslizamento progressivo de
24 Sem contar o assentamento mineiro, diretamente ligado à profundi-
“culto étnico”, a “religião universal”, aberta à participação
dade topológica das “minas”, e que gerará uma identidade religiosa espe-
cífica – até quase os dias de hoje – mais próxima daquela, enraizada, do interétnica e intercultural.34 Mas, por outro lado, nem por se
catolicismo português original. fixar em terras de cultivo delimitadas o agricultor brasileiro
25 AZEVEDO, 1989.
26 RICARDO (1940), 1970. deixará de ser nômade. Sergio Buarque de Holanda, citando
27 Ibid., p. 66. “É algo inverossímil pra nós que os homens da bandeira
tivessem atravessado o Brasil andando a pé...”.
documentos da segunda metade do século XVII,35 escreve:
28 Ibid., p. 111.
29 Ibid., p. 109.
“Dos lavradores de São Paulo dizia, em 1677, d. Luiz Antonio
30 VAINFAS, 1995, p. 158.
31 E político. Visto que não se trata simplesmente de “encontro cultural”, 32 FREYRE, 1983, p. 24.
33 BASTIDE, 1971.
mas de “situação colonial”: “Homens que transitavam com desenvoltura
entre o mundo indígena do sertão e o mundo colonial do litoral. (...) 34 PRANDI, 1992, e SILVA, 1996.

Homens que viviam ora como índios, ora como gendarmes do colonia- 35 Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo
lismo” (VAINFAS, 1995, p. 155). XXIII. São Paulo, 1896, p. 4ss.

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de Souza, seu capitão general, que iam ‘seguindo o mato vir- Em conseqüência de tal processo formador, bem po-
gem, de sorte que os fregueses de Cutia que dista desta cidade deria ter-se plasmado com certa consistência uma estrutura
sete léguas, são já hoje fregueses de Sorocaba que dista da psicossocial específica.38 Buarque de Holanda, por exemplo,
dita Cutia vinte léguas’. E tudo porque, ao modo do gentio só parece afirmá-lo: “A vida íntima do brasileiro não é bastante
sabiam ‘correr trás do mato virgem, mudando e estabelecen- coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar
do o seu domicílio por onde o há’”.36 toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consci-
Em terceiro lugar, e finalmente, um fator estrutural ente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar
atravessa a história do Brasil, que contribui para perpetuar e a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontre em
constantemente para fortalecer esse habitus nômade: a su- seu caminho, assimilando-os freqüentemente sem maiores
cessão de ciclos econômicos, que desloca a ênfase do interesse dificuldades”.39 “No fundo, o ritualismo40 não nos é neces-
e orienta em direção a meios, geográficos e sociais, constan- sário. (...) Normalmente, a reação ao meio em que vivemos
temente “outros”. não é uma reação de defesa”.41
Saint Hilaire, viajando pelo Brasil em princípio do sé- E Buarque de Holanda explicita os resultados desse
culo passado, notará, com a acuidade de sua visão, a traço psicossocial, que ele não julga diretamente ligado a for-
extrema mobilidade da população brasileira. A preo- mas “socioeconômicas”, senão como duas conseqüências
cupação dominante das zonas novas já existia então; paralelas, sem que uma seja a causa da outra: “Outro visi-
emigrava-se, às vezes, por nada, e com simples e va- tante, de meados do século passado, manifesta profundas
gas esperanças de outras perspectivas. Todo mundo dúvidas sobre a possibilidade de se implantarem, algum dia,
imaginava sempre que havia um ponto qualquer em no Brasil, formas mais rigorosas de culto. Conta-se que os
que se estaria melhor que no presente. Pensamento
próprios protestantes logo degeneram aqui, exclama. E
arraigado e universal que nada destruía, nem experi-
acrescenta: ‘É que o clima não favorece a severidade das sei-
ências e fracassos sucessivos. Isto que impressionava o
viajante francês, habituado a um continente em que tas nórdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais
havia séculos o povoamento se estabilizara, é a feição florescerão nos trópicos’”.42 O que equivale a falar, em termos
natural de todo território semi-virgem da presença confessionais, da identidade kantiana autônoma e racional-
humana, onde a maior parte da área aínda está por mente “definida”, a identidade da modernidade. É o que su-
ocupar e onde as formas de atividade mais conveni- blinha também a radicalidade do desafio posto à “tradição
entes para o Homem ainda não foram encontradas; brasileira” pelos últimos desdobramentos da situação no
onde, numa palavra, o individuo não se ajustou bem campo religioso nacional. Mas abordar esse ponto nos levaria
a seu meio, compreendendo-o e o dominando. Os
para outra seara.
deslocamentos correspondem aí a ensaios, tentativas,
novas experiências, à procura incansável do melhor 38 Foucault, a propósito da referência escolar histórico-geográfica ao
sistema de vida. No Brasil, este fato é particularmente espaço (especialmente espaço das nações, fronteiras), fala de uma refe-
rência “tendo com efeito a constituição de uma identidade. Pois minha
sensível pelo caráter que tomara a colonização, apro- hipótese é de que o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se
veitamento aleatório, em cada um de seus momentos abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade,
fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce
(...) de uma conjuntura passageiramente favorável. sobre corpos, multiplicidades, movimentos desejos, forças” (FOUCAULT,
Daí a (...) instabilidade (da população), com seus re- 1979, pp. 161-162).
39 HOLANDA, 1976, p. 112.
flexos no povoamento, determinando nele uma mo- 40 O contexto orienta a interpretação dessa categoria para o sentido de

bilidade superior ainda à normal dos países novos.37 formas rígidas de identidade religiosa, que se traduzem em universos
simbólicos e culturais exclusivos.
41 BUARQUE DE HOLANDA, 1976, p. 112.
36 BUARQUE DE HOLANDA, 1976, p. 40. 42 BUARQUE DE HOLANDA, 1976, p. 112, citando EWBANK (1856, p.
37 PRADO Jr., 1969, pp. 62-63. 239).

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“Eu e o outro”, “Eu é o outro”, tal parecia (parece?), ASSIM O BRASIL, OU O NOVO MUNDO?
com efeito, ser uma das leis fundamentais, e polimorfa, no Mas, para voltar às “origens”, uma objeção ocorre
campo religioso brasileiro. Desde os antigos tupis,43 para imediatamente: “Brasil”, ou “Américas”? Nova Lusitânia ou,
quem o seu ser mais profundo é o do outro, que permanen- simplesmente, Novo Mundo?
temente se procura alcançar,44 até a população brasileira Uma observação fundamental decorre do nosso pre-
atual, da qual provavelmente mais da metade pertence a sente enfoque. Conquistadores do Sul, e pioneiros do Norte
uma religião de “possessão”, fazendo a experiência de uma elaboraram de antemão uma relação diferente com o espaço.
múltipla personalidade,45 enquanto outros – ou os mesmos Escreve Jean Monod:
– não sabem mais dizer, como o expressava recentemente
uma militante católica que descobria as riquezas do can- Essa distinção permite marcar a diferença essencial
domblé: “Qual das duas [religiões] é mais minha?”. entre a atitude dos ingleses na América do Norte e a
De fato, a base morfológica (uma delas) desse fenô- dos espanhóis e dos portugueses na América do Sul.
meno “persistente e de longa duração”, a de intensa transi- Os segundos foram colonos, depois de ter sido con-
tividade espacial, acompanha a história do Brasil até hoje: quistadores. Não é impossível imaginar que os Con-
quistadores pudessem ter sido assimilados insidiosa-
Pelo censo de 1980, cerca de 40 millhões de pessoas mente pelas civilizações cujo sistema político acaba-
estavam vivendo num município diferente daquele vam de desmantelar (...). Em todo o caso, a coloniza-
em que haviam nascido. Estes números elevadíssimos ção, embora mortífera, situava-se desde o início
escondem, entretanto, uma parcela ponderável dos aquém da eventualidade da destruição física e total
fluxos migratórios: eles deixam de registrar aquela das pessoas: a sociedade que lhes roubava as terras
migração de uma propriedade agrícola para outra, na contava com sua força de trabalho para edificar-se. É
mesma municipalidade, aquela freqüentíssima e pri- a situação inversa que prevaleceu na América do Nor-
meira na experiência do migrante, da zona rural para te, onde os colonos entendiam administrar entre si
a zona urbana dentro do mesmo município e não dão uma terra esvaziada de seus primeiros ocupantes. A
conta ainda do fenômeno corrente dos que estão na Espanha prometia um estatuto de ser humano ao sel-
segunda, terceira, quinta, décima ou vigésima mu- vagem disposto a voltar ao caminho da graça divina,
dança.46 os Norte-Americanos nunca pensaram cohabitar
com os índios.48
O estudo do sistemático desenraizar que esse fenôme-
no continua a acarretar e das suas persistentes conseqüências Não entendida como a apologia de um dos modos de
em termos de “porosidade das identidades” – entre outras, dominação colonial diante o outro, mas simplesmente como
religiosas – nos levaria a outro tema. Basta dizer que a pro- o apontar de diferenças, essa observação é significativa. E es-
blemática do “sincretismo” acompanha até nossos dias as da sas diferenças dizem respeito diretamente à representação
miscigenação (cf. as recentes pesquisas na UFMG sobre a utópica – programática, de fato – do espaço. Gusdorf, por
complexa composição genética da parte da população bra- exemplo, mostra que a Inglaterra pensava proibir a instala-
sileira dita “branca”47) e da mestiçagem cultural. Trata-se, ção de seus colonos além de uma linha geográfica, marcan-
aliás, de “problemática” complexa, e não de tranqüila afir- do o “Oeste”, para deixar esse território à disposição exclusiva
mação. dos índios.49 Tentativa, por conseguinte, de “segregação”, ou
“separação”. Os arranjos com os povos indígenas ganharam
43
44
CASTRO, 1986. sempre – pelo menos até o último quartel do século XIX – a
Esse ponto particularmente sublinhado em COMBES, 1986.
45 VELHO, 1982.
46 BEOZZO, 1992, p. 5. 48 MONOD, 1972, p. 387.
47 PENA et al., 2000. 49 GUSDORF, 1978.

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forma de “tratados” entre nações,50 que o esforço missionário Um último cotejo pode, enfim, ser significativo, ao
não parece ter tomado, inicialmente, por alvo. Em contraste qual nos introduz naturalmente o paradoxo implicado nestas
com o intenso entrelaçamento social – e religioso – implan- notas. O cotejo com o nosso atual momento histórico. Tenta-
tado de chofre no espaço compartilhado do Brasil. Sem re- mos aqui seguir a pista de algo como uma modalidade de
tomar os termos gerais da oposição articulada por Moog,51 e construção de identidade – nômade, plural e fluida, nunca
mais ainda por Morse,52 entre uma “descoberta” (“invasão”) encerrada – inscrita na tradição sociocultural do Brasil, em
à maneira protestante e à maneira católica, é certo que, nos continuidade e ruptura com a sua homóloga portuguesa.
séculos XVII e XVII, as comunidades puritanas emigradas na Esse cruzar de caminhos teria algo a ver com a nossa atua-
América do Norte se consideravam como destinadas a im- lidade?
plantar o reino do evangelho “puro” no meio do deserto, en- É preciso imediatamente notar que aquilo aqui des-
contrado tal qual ou criado pelo rechaço dos seus habitantes crito como uma propensão ao nomadismo – que implica a
primitivos, enquanto no Sul tratava-se de um evangelho vo- necessidade (dramática) de construir-se a partir da articu-
cacionado a expandir-se através de um corpo assimilador lação nunca fechada de traços identitários encontrados no
“católico”. “outro”, traços que, ressemantizando-se ao contato da iden-
Isso, para o contraste entre os dois hemisférios. Mas é tidade de que se é portador, por sua vez, contribuem a resse-
preciso acrescentar um outro contraste: enquanto os espa- mantizar a matriz que os acolhe – tende a tornar-se atual-
nhóis encontraram Estados fortes, grupos sociais e étnicos mente clássica nas descrições da identidade (nacional?, re-
implantados localmente “em pedra e cal”, os portugueses se gional?, étnica?, religiosa?) “pós-moderna”. Faz parte da
depararam com pequenos grupos seminômades ou até em pauta contemporânea dos problemas de civilização. Mais
plenas migrações à procura do “Outro”, exatamente num es- ainda: a famosa “bricolagem” em toda parte detectada, além
paço “vazio”, ou melhor, aberto ao infinito. Percebe-se o de objeto de descoberta e análise, colora-se, com cada vez
campo maior, inerente à tal situação de contato, franqueado mais freqüência, de um caráter de programa e até de remé-
à porosidade das culturas, das civilizações, das religiões. dio possível para a ameaça, muito presente, de surgimentos
Qualquer que seja o valor reconhecido às afirmações de novos fundamentalismos e formas renovadas de identida-
de Gilberto Freyre sobre o substrato étnico dos portugueses – des fechadas e de exclusão.
cuja diferença embasaria tais diversidades entre as duas co- Nessa conjuntura pós-moderna, poderia servir de
lonizações ibéricas, e mesmo sem recusá-las de antemão inspiração, à revelia da tradição etnocidária que então se ini-
como um dos fatores possíveis do processo que nos ocupa53 ciava, o tipo de relação ao espaço e de construção flexível de
–, não resta dúvida de que somente se articuladas ao pano de identidades que observamos no processo de pré-modernida-
fundo histórico das considerações, que precedem, essas afir- de desde o início vivido pelo Brasil?
mações abrem pistas plausíveis para a interpretação. Uma resposta univocamente positiva seria simplista.
Aliás, o movimento da história não a permitiria mais: a mo-
50 KEITH, 1972, pp. 23-25. dernidade, a das identidades kantianamente definidas e dos
51 MOOG, 1964.
52 MORSE, 1988. espaços segregados, também está hoje em dia a transtornar
53 AZEVEDO (1989, p. 23ss.) mostra muito bem que, para Freyre, o por-
profundamente as relações sociais no Brasil.
tuguês existe enquanto se cameloniza, ao contato do semita, do afreja,
menos godo que o espanhol. “O menos gótico e o mais semita, o menos E Portugal? Portugal ciclicamente continua se esva-
europeu e o mais africano: em todo caso o menos definitivamente
uma coisa ou outra” (FREYRE, 1983, pp. 55-56; destaque meu). Have-
indo, e/ou se expandindo. Por um lado, os portugueses ima-
ria, pois, um substrato, que faria do “português” um ser pré-ordenado ao ginam levá-lo consigo para aonde vão. Por outro, trazem até
processo “sincrético”. Bem aquém das conseqüências ideológicas e polí-
ticas que se quiseram tirar de afirmações desse tipo, e também negando- ele, quando voltam, os sinais do seu nomadismo em meio ao
lhes o seu caráter generalizante e apodíctico, tais intuições de Gilberto
Freyre merecem, parece-me, receber nova consideração (cf., recente-
“outro”. Mais ainda. Para ele também a história está a tornar
mente, ARAUJO, 1994). caduca a parte ensimesmada do retrato que pintei no início

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deste texto. Numa emissão literária recente da televisão fran- camente escancarada, em numerosos conflitos regionais,
cesa, o coordenador insistia com autoridade sobre o fato de mas que, mais localizado e em outra escala, já conheceu de-
que, “entre todas as nações da Europa, Portugal é hoje sem terminada versão na época das grandes descobertas. Se é
dúvida aquela em que a fermentação cultural é a mais bri- ainda possível, por ocasião dos 500 anos, celebrar o aconte-
lhante e criativa”... Duas modernidades, pois, a brasileira e a cimento que encetou então a sua solução, não pode ser pelo
portuguesa, provavelmente tão contrastadas quanto o foram enaltecer do processo sangrento da expansão de si à custa da
as duas tradições sobre as quais e contra as quais elas vêm se eliminação do outro, mas talvez porque nas dobras – ou no
firmar (uma, indo do enraizamento à universalidade, a ou-
âmago e ao arrepio – deste processo possa ler-se, mais tênue
tra, da “espantosa dispersão” à pronúncia mais clara de uma
mas obstinado, outro tipo de experiência histórica: a de uma
identidade), mas que, em se cruzando novamente, poderiam
trazer, num equilíbrio dinâmico, sua contribuição ao projeto construção aberta e porosa de identidades capazes de, juntas,
maior (e problema candente) do mundo contemporâneo: a se haver com um espaço em constante remodelação. Expe-
superação dos conflitos em toda a parte oriundos da penosa riência de resultados sem dúvida ambíguos. Mas que assim
– e necessária – reformulação das relações dos grupos hu- mesmo pode trazer ao debate contemporâneo sobre as iden-
manos com sua(s) identidade(s), e destas identidades com o tidades sociais uma imagem “diferente”, fruto do processo
seu invólucro co-formador: o espaço. Um problema que es- histórico que – bem ou mal, bem e mal – começou a ser vi-
tamos vendo hoje espalhar-se, de forma difusa ou dramati- vido aqui há 500 anos.

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HÁ 500 ANOS, UBIRATAN D’AMBROSIO


Bacharel e licenciado em

QUE MATEMÁTICA? Matemáticas pela USP. Professor


emérito de Matemática da Unicamp
e presidente da Sociedade Brasileira
500 YEARS AGO, WHICH MATHEMATICS? de História da Matemática
ubi@usp.br

RESUMO O desenvolvimento da matemática, particularmente na Europa durante o período que antecede a época
das grandes navegações, e as influências revolucionárias que esse conhecimento proporcionou às iniciativas de ex-
tensão dos domínios portugueses são aqui apresentados, concluindo-se com a análise da aquisição do conhecimento
entre dominadores e dominados.
Palavras-chave matemática – Brasil – Portugal – conhecimento – descobrimento.
ABSTRACT The development of mathematics, particularly in Europe during the period prior to the great age of na-
vigation, and the revolutionary influences that this knowledge provided for the expansive initiatives of the Portuguese
are presented here, concluding with an analysis of the acquisition of knowledge between dominator and dominated.
Keywords mathematics – Brazil – Portugal – knowledge – discovery.

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Jamais usam pesos e medidas, nem têm números por onde con-
tem mais que até cinco, e, se a conta houver de passar daí, a
fazem pelos dedos das mãos e pés.
FREI VICENTE DO SALVADOR, 1627

INTRODUÇÃO

N
os séculos XV e XVI se desenvolveram em Portugal importantes es-
tudos sobre navegação, culminando com as viagens de Cristóvão
Colombo (1451-1506) pelo hemisfério norte – chega à América
em 1492 –, de Vasco da Gama (ca. 1469-1524) pelo hemisfério
sul – aporta na Índia em 1498 –, de Pedro Álvares Cabral (1467?-
1520?) – alcança o Brasil em 1500 –, e de Fernão de Magalhães
(ca. 1480-1521) – em 1520 encontra a passagem marítima para
o Pacífico. Em 28 anos o planeta se globalizou.
Os navegantes comandantes das expedições tinham um bom nível, geralmente com
Os navegantes
formação universitária. Lembremos que Martim Afonso de Souza, fundador, em 1532, de
comandantes das São Vicente, a primeira cidade brasileira, tinha importantes credenciais acadêmicas. Obras
expedições tinham como as crônicas de viagens de Cristóvão Colombo e de Vasco da Gama são importantes
um bom nível, fontes de informação sobre os conhecimentos náuticos da época.
Os três documentos relatando o descobrimento do Brasil foram escritos por Pero
geralmente com Vaz de Caminha, pelo mestre João Faras e por um piloto anônimo.1 Todos silenciam sobre
formação aquilo encontrado nas novas terras que pudesse ser identificado como matemática. Nem
universitária mesmo falam sobre a organização das aldeias. Na verdade, deve-se atribuir isso ao não re-
conhecimento da especificidade de certas formas de conhecimento, as quais somente mui-
to depois viriam a ser identificadas como matemática.
O conhecimento numérico dos nativos era limitado, segundo relata Nicolas Barré,
em 1556: “Sua linguagem é bastante copiosa em expressões, mas sem números, tanto que
quando querem significar cinco, eles mostram os cinco dedos da mão”.2 Porém uma outra
referência sugere contagem de números maiores, associada ao tempo: “Arosca consentiu
que seu jovem filho (...) viesse para a cristandade, porque prometiam ao pai e ao filho tra-
zê-lo de volta dentro de 20 luas o mais tardar; pois assim significam eles os meses”, con-
forme o relato de Binot Paulmier de Gonneville, em 1504.3
Uma explicação para a ausência de um sistema de numeração reconhecido como
tal é dada por frei Vicente do Salvador (1564?-1636?) na primeira história do Brasil, com-
pletada em 1627:
1 Ver PEREIRA, 1999.
2 RIBEIRO & MOREIRA NETO, 1992, p. 81.
3 Ibid., p. 110.

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Pois hei tratado neste capítulo do contato matrimonial dios peruanos”.6 Curioso notar que Bernabe Cobo vê o siste-
deste gentio, tratarei também dos mais contratos, e ma numérico do Peru associado à contagem do tempo, en-
não serei por isso prolixo ao leitor, porque os livros que quanto frei Vicente do Salvador tem uma percepção essenci-
hão escrito os doutores de Contractibus sem os po- almente mercantilista dos sistemas de numeração.
derem de todo resolver, pelo muito que de novo inven-
O que podemos saber hoje em dia dessas culturas vem
ta cada dia a cobiça humana, não tocam a este gentio;
de estudos da etnomatemática de culturas sobreviventes.7
o qual só usa de uma simples comutação de uma coi-
Obviamente, as pesquisas nos mostram a cultura atual, re-
sa por outra, sem tratarem do excesso ou defeito do
valor, e assim com um pintainho se hão por pagos de sultado de uma dinâmica cultural que praticamente elimi-
uma galinha. nou o conhecimento tradicional, sobretudo no que se refere
Nem jamais usam pesos e medidas, nem têm núme- à matemática.
ros por onde contem mais que até cinco, e, se a conta O conhecimento matemático é o conjunto de técnicas,
houver de passar daí, a fazem pelos dedos das mãos e habilidades, maneiras [ticas] de explicar, de entender, de li-
pés. O que lhes nasce de sua pouca cobiça; posto que dar [matema] com o ambiente cultural e natural [etno],
com isso está serem mui apetitosos de qualquer coisa desenvolvidas pelo homem em sua busca de sobrevivência e
que vêem, mas, tanto que a têm, tornam facilmente de de transcendência. Daí falarmos em etno-matema-tica.8
graça ou por pouco mais que nada.4 Os conquistadores e colonizadores trouxeram a sua et-
nomatemática, gerada em torno do Mediterrâneo, a partir de
Alguns estudos de etnomatemática procuram envere-
tempos pré-históricos, para explicar, entender, lidar com fatos
dar pela história das tradições e permitem fazer algumas su-
e fenômenos naturais dessa região. Essa etnomatemática me-
posições sobre a natureza do conhecimento indígena na épo-
diterrânea é denominada simplesmente matemática. Foi de-
ca da conquista.5 Por exemplo, resquícios de sistemas de nu-
pois desenvolvida por egípcios, babilônios, gregos, romanos,
meração e a riqueza das figuras geométricas que intervêm
árabes e organizada na Idade Média e no Renascimento.
na decoração são indicadores de uma organização de co-
Com essa matemática os europeus criaram um poderoso
nhecimentos sobre quantificação, classificação, ordenação e
instrumento de investigação de fatos e fenômenos (ciência) e um
outras categorias que caracterizam o conhecimento mate-
instrumental para controle e expansão de fatos e de fenômenos
mático.
(tecnologia). Inclusive, com maior intensidade na península
Do século XVI temos relatos bem ricos sobre as con- ibérica, em especial em Portugal, de importantes inovações tec-
quistas espanholas. As crônicas da conquista nos dão muita nológicas para navegação em mares desconhecidos.
informação sobre a matemática nas civilizações asteca, maia
e inca, bem como de outras culturas andinas. Particular- COMO LOGRARAM OS NAVEGANTES
mente interessante é o relato de S.J. Bernabe Cobo (1582?- VIAJAR POR MARES DESCONHECIDOS?
1657), num capítulo intitulado “Del cómputo del tiempo; de
A grande proeza de viajar por todos os mares desco-
los quipos o memoriales y modo de contar que tenían los ín- brindo novas terras, novos povos e novas possibilidades foi re-
4 Frei Vicente do Salvador: História do Brasil 1500-1627, revista por
sultado de um projeto de grande envergadura que se origi-
Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e frei Venâncio Willeke. São Paulo: nou nos primeiros tempos da monarquia portuguesa.9 O
OFM, Edições Melhoramentos, 1965; pp. 89-90.
5 Destaco o livro de Mariana Kawall Leal Ferreira: Madikauku. Os dez
6 BIBLIOTECA DE AUTORES ESPAÑOLES, 1964, p. 141.
dedos das mãos. Matemática e povos indígenas no Brasil, Brasília: MEC/
SEF, 1998. Ver também as dissertações de Samuel Lopez Bello (Educação 7 Talvez a referência mais abrangente seja CLOSS, 1986.
matemática indígena – um estudo etnomatemático dos índios guarani- 8 D’AMBROSIO, 1990.

kaiová do Mato Grosso do Sul. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 9 A obra História dos Descobrimentos Portugueses (Porto: Vertente,
1995) e de Chateaubriand Nunes Amancio (Os kanhgág da Bacia do 1943), de Damião Peres, trata da história das navegações portuguesas,
Tibagi: um estudo etnomatemático em comunidades indígenas. Rio com muita documentação e atenção especial para os pontos controverti-
Claro: IGCEX/UNESP, 1999). dos, como a intencionalidade ou o acaso no descobrimento do Brasil.

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mais importante cronista da época é Duarte Pacheco Pereira Embora meu objetivo aqui não seja analisar essas di-
(ca. 1460-1533). Na sua obra monumental, o Esmeraldo de ferentes matemáticas e suas relações, algumas características
Situs Orbis, ele fala sobre o conhecimento nos descobrimen- de cada uma delas poderão ser notadas no curso deste tra-
tos.10 O autor faz um importante relato sobre o que se sabia balho.
e o que se aprendeu com o encontro de novos povos e novas O fato importante a ser destacado é que esses quatro
culturas, notadamente referindo-se à África. tipos são ramificações de um pensar que remonta a espécies
Quanto conheciam os portugueses para poderem de- anteriores ao Homo sapiens e que respondem aos dois gran-
senhar um projeto tão ambicioso e levá-lo a cabo. As nave- des pulsões que caracterizam as espécies homo, a sobrevi-
gações dependiam fundamentalmente de conhecimentos as- vência e a transcendência.
tronômicos, isto é, matemáticos. Assim, pois, algumas ques- Na busca da sobrevivência, se desenvolveram meios
tões se colocam naturalmente: de lidar com o ambiente mais imediato, que fornece o ar, a
• que conhecimentos matemáticos possuíam os na- água, os alimentos, o outro, e tudo o que é necessário para a
vegantes ibéricos?; sobrevivência do indivíduo e da espécie. São as técnicas e os
• que conhecimentos matemáticos eram de domínio estilos de comportamento individual e coletivo.
das outras nações da Europa? Na busca da transcendência, se desenvolveram a
O panorama do conhecimento matemático na época percepção de passado, presente e futuro, e meios para expli-
era muito diferente do que entendemos, atualmente, por ma- car fatos e fenômenos e o encadeamento de passado, o pre-
temática. Na Idade Média e entrada no Renascimento pode- sente e o futuro. Esses meios são a memória, individual e co-
se distinguir quatro tipos de matemática sendo praticados letiva, os mitos e as artes divinatórias, que permitem penetrar
nas nações européias: o futuro. Na memória e nos mitos estão a história e as tra-
• matemática abstrata, teórica, ligada a fenômenos dições, que incluem as religiões e os sistemas de va-
naturais e questões místicas e religiosas – Tomás de lores. Nas artes divinatórias estão sistemas de explica-
Aquino (ca. 1225-1274), Thomas Bradwardine ções como a astrologia, os oráculos, a lógica do I Ching, a
(?1290-1349), Nicolau Copérnico (1473-1543); numerologia e, em geral, as ciências e as matemáticas, atra-
• matemática mercantil, contábil, comercial, dile- vés das quais procura-se antecipar o que pode acontecer.
tante – Luca Pacioli (1445?-1514), Bastiano da Pi- Analisando a geração, organização intelectual e social e
sa, il Bevilacqua (1483?-1553), Nicoló Tartaglia difusão dessas categorias (técnicas, comportamento, história,
(1500?-1557), Gerolamo Cardano (1501-1576); tradições, religiões, sistemas de valores, sistemas de explicações)
• matemática de arquitetos e artistas – Sebastiano é que se pode entender o conhecimento. Em particular, o co-
Serlio (1475-1554), Albrecht Dürer (1471-1528); nhecimento matemático.
• e matemática das navegações, astronomia, geogra- Os quatro tipos de matemática que distingo na Baixa
fia – Pedro Nunes (1502-1572). Idade Média e no Renascimento são o resultado da evolução,
Cada um desses tipos tinha um estilo próprio, com ao longo de muitos séculos, dessas categorias na região me-
objetivos e métodos muito específicos. Os nomes relacionados diterrânea, evolução essa que se expandiu para a Europa cen-
em colchetes são os mais representativos de cada um desses tral. Obviamente, tais categorias estão intimamente ligadas.
estilos. Suas biografias servem de apoio para a diferenciação Seguindo a proposta historiográfica dos Annales, não pode-
que proponho entre os tipos de matemática praticados na mos desvincular, por exemplo, o desenvolvimento da agricul-
época. As relações entre essas diferentes matemáticas eram tura da religião e dos estudos meteorológicos e astronômicos
raras até meados do século XVI. que estão na base do desenvolvimento da matemática.
Os quatro tipos distinguidos acima, mostrando estilos
10 CARVALHO, 1991. e cultores aparentemente desvinculados, são a resposta a um

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tipo de sociedade que se estabeleceu na época. Com a grada- dre, no século III a.C., estavam totalmente integrados nessa ci-
tiva maior complexidade com que foi se transformando a so- vilização.
ciedade, eventualmente os tipos foram se mesclando. O Império Romano, que se expandia pelo leste euro-
Sob essa visão, não se pode tentar uma comparação peu, possuía uma matemática sobretudo prática, sem as ca-
entre os tipos de matemática praticada pelos conquistadores racterísticas daquela desenvolvida pelos gregos, nem mesmo
e a matemática praticada pelos povos conquistados. As cate- pelos egípcios ou babilônicos. Os sistemas de contagem e as
gorias de análise (técnicas, comportamento, história, tradi- medidas satisfaziam as necessidades do dia-a-dia, da urbani-
ções, religiões, sistemas de valores, sistemas de explicações) zação e da arquitetura monumental. Por mais sofisticada que
são completamente distintas e, portanto, o conhecimento fosse a organização da sociedade romana e mesmo esses sis-
matemático resultante será de outra natureza. Qualquer ten- temas que permitiam sua operacionalidade, eles jamais se in-
tativa de comparação será frustrante. tegraram no importante sistema filosófico do mundo romano.
Tanto Bernabe Cobo quanto frei Vicente do Salvador, ao Quando o Império conquistou os territórios domina-
mencionarem tempo e mercado, mostram grande sensibilida- dos pelos gregos, incorporou o conhecimento matemático
de no entender a natureza do conhecimento. Mas imediata- que interessava ao projeto romano, aproveitando unicamente
mente, como não é de se estranhar, eles partem para reflexões os aspectos práticos dessa matemática. Isso fica evidente no
de natureza comparativa. Ainda hoje em dia se nota essa dis- livro de arquitetura de Vitruvius, a melhor síntese dos conhe-
torção na maneira de analisar a matemática de culturas mar- cimentos técnico-científicos dos romanos.11 A península ibé-
ginais, seja nas populações indígenas, seja nas marginalizadas rica, que era parte do mundo romano, também integrou-se
rurais e urbanas. a essa ciência prática.
O Programa Etnomatemática procura entender o co- Com o advento do cristianismo, a matemática grega
nhecimento matemático das culturas marginais através do foi simplesmente deixada de lado e jamais penetrou nos
exame completo do ciclo do conhecimento, isto é, sua gera- mosteiros. Algumas poucas traduções não tiveram repercus-
ção, organização intelectual e social e difusão. Naturalmente, são. Aos poucos a própria língua grega caiu em desuso. Du-
esse programa se aplica também ao conhecimento matemá- rante a chamada Alta Idade Média, nos primeiros séculos do
tico das culturas dominantes, cuja história e epistemologia cristianismo, continuou a ser desenvolvida uma matemática
são deficientes. prática. A contagem se fazia com ábacos e dedos e os regis-
tros numéricos com o sistema de numeração romana. Essa
DA ANTIGUIDADE À EXPANSÃO DO ISLÃ era a matemática que se praticava na península ibérica
Devemos começar examinando os tempos de Grécia e quando, no século VII, ocorreu a invasão islâmica. Uma fonte
Roma. O conhecimento matemático desenvolvido pelos gre- importante que temos sobre essa época devemos a Santo Isi-
gos era conhecido pelos povos mediterrâneos e foi por eles doro (ca. 560-636), de Sevilha, que escreveu uma síntese do
apreendido, porém com características diferentes. Ao assimi- conhecimento da época no livro Etimologias.
lar o conhecimento matemático eminentemente prático dos Importante notar que, na região que poderíamos de-
egípcios e dos babilônicos, os gregos criaram uma matemá- nominar periferia oriental do Império Romano, instalou-se
tica abstrata, teórica e dedutiva. São óbvias as características em 395 o Império Bizantino, tendo como capital Constanti-
místicas e religiosas de tal matemática, que veio preencher nopla, com forte influência grega e com diferenças funda-
um vazio não resolvido pela rica mitologia grega. Na verda-
de, ela caracterizou a civilização grega. Os ideais de beleza, o 11 Los Diez Libros de Archîtectura de M. Vitruvius Polión. Traducidos del
Latin, y comentados por Don Joseph Ortíz y Sanz, Presbítero, En Madrid
rigor e as dúvidas filosóficas, a organização social e política en la Imprenta Real, año de 1787 (edición facsímil, Barcelona: Editorial
e mesmo as práticas médicas guardam íntima relação com a Alta Fulla, 1987). Um bom estudo sobre Vitruvius e a matemática romana
está no livro de LINTZ, R.G.: História da Matemática, vol. 1. Blumenau:
matemática. Os povos subordinados ao império de Alexan- Editora da FURB, 1999.

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mentais do cristianismo de Roma. Essas diferenças culmina- des de triângulos e hexágonos numa geometria mística, evi-
ram com o grande cisma de 1054, que marcou a recusa dos dência da presença da astrologia nessa cultura, e era neces-
cristãos bizantinos em aceitar a autoridade do bispo de Ro- sária uma astronomia que servisse de suporte a essa astrolo-
ma, chamado papa, sobre todos os cristãos. Surgiu, assim, a gia. Igualmente necessária, uma matemática prática, voltada
Igreja Ortodoxa. à satisfação dos preceitos do Alcorão, particularmente para
A presença cultural grega continuava forte no norte localizações geográficas em um vastíssimo império que tinha
da África, onde a conversão ao cristianismo foi menos intensa como capital espiritual Meca, em direção à qual todos os
e as tradições judaicas se mantiveram presentes. Os povos muçulmanos ainda se voltam nas horas rigorosas de oração.
árabes que habitavam essa região, adotando tradições judai- E também uma nova economia, que se desenvolve a partir de
cas, ofereceram uma grande reação ao cristianismo e propi- um outro modelo de propriedade e herança. Essas necessi-
ciaram a revelação alcoranista, pela qual Maomé fundou o dades de uma matemática prática exigiam habilidades de
islamismo em 622. cálculo, que não faziam parte da matemática dos gregos e
Num rápido processo de conquista, o islamismo es- dos romanos. Foi necessário, portanto, recorrer a conheci-
tendeu-se a toda a periferia do Império Romano e atingiu a mentos matemáticos de outras culturas.
península ibérica, pretendendo chegar a Roma. Em 732, foi A figura mais representativa desse esforço para se criar
detido, entre Poitiers e Tours, no centro-oeste da França, por uma nova escola de matemática foi Abu Abdallah Muham-
Carlos Martelo, reconhecido como o salvador da cristandade mad ibn Musa al-Kwarizmi (ca. 780-ca. 850), contratado por
latina. O islamismo instalou-se em praticamente toda a pe- al-Mamun. Originário de Kwarizmi, na região do Mar Cáspio,
nínsula. No oeste, Constantinopla, a capital bizantina, resistiu esse matemático era certamente possuía familiaridade com a
às invasões islâmicas. Somente em 1453 veio a ser conquis- matemática dos hindus. Além de importantes tabelas astronô-
tada pelos turcos. micas, introduziu os algarismos hoje em dia denominados
A forte tradição cultural dos povos árabes foi um im- indo-arábicos e os algoritmos das operações com esses alga-
portante elemento no sucesso das conquistas islâmicas e no rismos. Também as operações básicas para a resolução de
desenvolvimento de uma civilização que apreendeu muito equações: a redução de termos semelhantes (al-muqabola) e
com a cultura grega. Mas, no momento da conquista, os mu- transposição do sinal de igual com mudança de sinal (al-ja-
çulmanos não praticavam a matemática grega. O grande de- br), e a fórmula de resolução das equações de segundo grau13
senvolvimento científico veio pouco após. foram contribuições importantes desse matemático.
Em 813, Abu al-Abbas al-Mamum (786-833) tor- Enquanto prosperava o Império Islâmico, a Europa
nou-se califa do Império Abássida, uma das divisões que re- experimentava um período de consolidação do regime feudal
sultaram do Império Islâmico após a morte de Maomé. Al- e de intensificação do comércio. A necessidade religiosa de
Mamum destacou-se por seu grande apoio à cultura cientí- acesso aos locais sagrados para o cristianismo, aliada à ne-
fica e à monumental biblioteca Casa da Sabedoria, que seu cessidade de novas rotas para abastecer um comércio emer-
pai Harun al-Rashid havia fundado em Bagdá. Ali estimulou gente na próspera Europa medieval, deram origem a expe-
o enorme desenvolvimento à matemática mística herdada dições de reconquista, que se denominaram cruzadas.
dos gregos. É interessante notar que sob al-Mamun foi ela-
borado o Livro do Tesouro de Alexandre, prontuário de sa- AS CRUZADAS E A IMPORTÂNCIA DOS
beres mágicos, alquímicos e farmacológicos, com fórmulas MONGES-CIENTISTAS
de elixires e venenos.12 Destaca-se, aí, a precisão numérica A partir da primeira cruzada, em 1096, a Europa cris-
das dosagens. A fundamentação teórica recorre a proprieda- tã teve acesso aos elementos básicos da cultura árabe, inclu-
12 ALFONSO-GOLDFARB, 1999. 13 Veja D’AMBROSIO, 1994; pp. 40-47.

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sive interpretações da filosofia grega clássica. Iniciou-se, as- A Lei de Bradwardine nos fala da relação entre força e
sim, uma revitalização das pesquisas nos mosteiros da Euro- resistência à velocidade na produção do movimento. Da escola
pa. Foi necessário criar um outro espaço intelectual, no qual de Merton surgem alguns conceitos fundamentais, como os de
temas aprendidos dos hereges muçulmanos poderiam ser movimento uniforme, aceleração uniforme e o teorema da ve-
discutidos. Surgem desse modo as universidades, as primei- locidade média. Dessa maneira preparava-se o terreno para a
ras das quais são instaladas em Bolonha (ca. 1088) e Paris busca de explicações para o mais fundamental dos fenômenos
(ca. 1170). reconhecidos na época, o movimento.14 Incluídas nessas re-
Conhecia-se, até aí, a aritmética como aparecia no li- flexões estavam as noções de espaço e tempo.
vro de Euclides, parte do quadrivium, mas que se referia a Deve-se destacar os importantes estudos do português
propriedades dos números, algumas místicas. A geometria de Álvaro Tomáz, afirmando que todos os corpos de qualquer
Euclides despertava menor interesse. dimensão e composição material caem com igual velocidade
A síntese de conhecimentos, com estilos e objetivos no vácuo.15
distintos e representando várias tradições, confluiu sobretudo As pesquisas de Álvaro Tomáz seriam retomadas, mais
para os mosteiros. As preocupações tradicionais da filosofia, de cem anos depois, por Galileo Galilei (1564-1642) no seu
procurando explicar fenômenos tão presentes quanto o mo- Discurso sobre Duas Novas Ciências (1638). Teria Galileo
vimento, confundia-se com a teologia. O pensamento da conhecimento dos resultados de Tomáz? Esse é mais um
Idade Média culmina com a obra maior que é a Summa questionamento sobre a originalidade dos resultados enun-
Theologica, de São Tomás de Aquino. A síntese de conheci- ciados por Galileo na sua importante obra.
mentos, que começaram a ser reconhecidos como integran- Igualmente importante foram as investigações sobre o
do um mesmo corpo de idéias, passou a ser conhecida por sistema planetário. Nicolau Copérnico estudou teologia, ma-
uma palavra ainda um tanto indefinida, matemática. Es- temática, medicina e astronomia no Vaticano e, por insistên-
tavam, assim, sendo preparadas as bases para o surgimento cia do papa Clemente VII, escreveu De Revolutionibus or-
de uma ciência que viria a ser posteriormente identificada bium celestium, no qual propôs o sistema heliocêntrico.
como matemática e que somente no século XIX se estabelece-
ria como uma ciência autônoma. UMA MATEMÁTICA DE MERCADORES,
A maior influência para sua modernização veio de ARTESÃOS E AMADORES
Aristóteles. As reflexões sobre movimento, o fenômeno natu- O desenvolvimento de novos conhecimentos matemá-
ral que mais intrigava os filósofos da época, eram intensas. ticos, contudo, não ficou somente no ambiente das universi-
Estudava-se as relações entre espaço e tempo e a aceleração. dades e dos mosteiros. A numeração romana e as operações,
Igualmente havia uma preocupação com ótica. O trabalho que eram feitas com as mãos e com ábacos, se mostravam
dos monges-cientistas, em especial na Inglaterra, entre os inadequadas para o comércio que se intensificava.
quais se destacam Roger Bacon (ca. 1214-1292?), Thomas A expansão do cristianismo pela Europa criou neces-
Bradwardine (1290?-1349) e Guilherme de Ockham (1285- sidades de espaço de culto mais amplos e também de icono-
1349), foi fundamental como preparação para o surgimento grafia e música apropriadas a esses espaços. A representação
da mecânica newtoniana. de Cristo e dos santos feita sob um mesmo plano tinha pouco
A influência das reflexões, equivocadas, de Aristóteles impacto. As produzidas em vários planos, sugerindo o infi-
foi fundamental no desenvolvimento da matemática. Sua nito, condiziam com a impressão causada pelas monumen-
afirmação de que quanto mais pesado o corpo maior sua ve-
locidade de queda passou por contestações. São importantís- 14 Segundo o destacado medievalista Edward Grant (Physical Science in
the Middle Age. New York: John Wiley & Sons Inc., 1971), esta foi a mais
simos os estudos de Thomas Bradwardine e de seus colegas importante contribuição medieval na história da física e do conheci-
no Merton College (William Heytesbury, Richard Swineshead, mento científico em geral.
15 De Álvaro Tomáz sabe-se que publicou em Paris, em 1509, a obra Liber
John Dumbleton et al.). de Triplice Motu. Sabe-se que lecionou em Portugal e em Paris.

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tais catedrais góticas. Surge, assim, uma nova teoria de for- Os mecenas também financiavam algumas formas de
ças, que possibilitou a arquitetura gótica, e também uma atividades intelectuais competitivas. Havia prêmios para criar
nova geometria, a perspectiva. Para preencher os enormes conhecimentos novos, que avançassem o que havia sido re-
espaços possibilitados pela arquitetura gótica, o canto grego- cebido da Antiguidade. Em particular, torneios para resolu-
riano desenvolveu novas formas que culminariam nos enor- ção de problemas matemáticos. Sem outro interesse que os
mes órgãos e na polifonia. Houve um processo evidente de prêmios, foram se desenvolvendo métodos para resolver
matematização dos artesãos e artistas. equações de terceiro e depois de quarto grau. A resolução de
Essas novas formas de arte, que têm intrínseca a elas equações de terceiro grau foi, por um curto período, propul-
uma nova matemática, chegou tardiamente à península ibé- sor de uma grande inovação na matemática. Os métodos de-
rica. senvolvidos por Scipione del Ferro (1465-1526), Nicolò Tar-
As grandes catedrais criaram uma nova organização taglia (ca. 1499-1557) e os organizados pelo médico Gero-
urbana, com o surgimento de um comércio intenso. As novas lamo Cardano (1501-1576) na sua importante obra Ars
profissões urbanas, ligadas ao comércio, praticavam uma Magna (1545) deram origem a uma nova ciência. Aí se en-
aritmética que tinha a ver com operações mercantis, bem contram os métodos para a resolução de equações de terceiro
como uma álgebra associada a problemas práticos de heran- grau e algumas de quarto grau, tratados como casos.
ças e de comércio, distinta da aritmética que investigava pro-
Porém, fazia-se necessário enunciar fórmulas gerais
priedades dos números naturais. Essa nova aritmética bene-
para a resolução dessas equações, com coeficientes quais-
ficiou-se da matemática desenvolvida por al-Kwarizmi no
século IX e difundida na Europa pelos “mestres do ábaco”. quer. Coube a François Viète (1540-1603), com sua Ars
Com os algarismos indo-arábicos surgiu um importante ins- analytique 1591, tal proeza, combinando a efetividade dos
trumento mercantil. Leonardo Fibonacci (ca. 1180-ca. métodos de resolução com o rigor das construções da geo-
1240), de Pisa, publicou em 1202 o Liber Abaci, que se tor- metria clássica. Para isso recorreu a um novo simbolismo.
nou o modelo de inúmeros livros de aritmética publicados na Todas as grandezas são representadas por letras: as variáveis
Idade Média. O interesse pelos novos métodos de calcular se conhecidas (parâmetros), por consoantes e as incógnitas, por
intensificou nos séculos seguintes e houve intensa produção vogais. Viète baseia seu cálculo em duas operações, a logís-
de livros destinados a ensinar a arte de calcular. Interessante tica numeralis, com números, e a logística speciosa, lidan-
lembrar a figura de Bastiano de Pisa, chamado para ensinar do com as letras. E divide o seu método em três etapas: a re-
o ábaco, isto é, cálculo, em Modena, em 1517. Publicou o solução das equações (zeteticque), a demonstração que os
Tratato d’Arismeticha Praticha, possivelmente em 1540 e resultados encontrados são efetivamente soluções (poriftic-
morreu em 1553, vivendo de esmolas. que), e a teoria das equações (exegeticque).17
A prosperidade das cidades européias e uma grande Embora a resolução de equações algébricas, uma
atenção dada à cultura induziram mecenas e cidades a fi- preocupação típica dos círculos europeus no século XVI, pou-
nanciar pintores e escultores, e a fundar academias para es- co tivesse a ver com a ciência que estava preocupando os ci-
tudo e tradução dos autores clássicos. Entre as academias entistas das universidades, ela foi rapidamente assimilada
destaco a de Marsilio Ficino (1433-1499), em Florença, fre- pelo mundo acadêmico. E mostrou-se muito conveniente
qüentada por Amérigo Vespucci, que depois, como agente para o processo de matematização das ciências físicas, levado
dos banqueiros Medici na Espanha, teve importante atuação adiante a partir dos trabalhos de Francis Bacon (1561-1626)
nas viagens de Cristóvão Colombo e no reconhecimento da e de René Descartes (1596-1650).
costa brasileira, em 1501, a serviço do rei d. Manuel I.16
17Um livro que mostra os vários desenvolvimentos da álgebra num estilo
16 Ver D’AMBROSIO, 1996, pp. 15-20. agradável e ao mesmo tempo rigoroso é GARBI, 1997.

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A MATEMÁTICA E AS TÉCNICAS sendo trabalhados pelos intelectuais islâmicos. As obras de


Ao final da Idade Média, muitas áreas de conheci- Euclides e de outros matemáticos gregos foram sendo tradu-
mento, de tradições e sobretudo de motivações distintas co- zidas. Particularmente importante foi a tradução da obra de
meçaram a se relacionar. O desenvolvimento das técnicas Ptolomeu sobre o sistema planetário, denominada Al-Ma-
torna-se impressionante. A Europa medieval foi capaz de gesto (A Maior) pelos árabes, e os tratados de geografia.
apreender e organizar a utilização de importantes inventos Entretanto, a ciência e a matemática árabes eram,
desenvolvidos na China, na Índia e no mundo árabe. Os ára- como a dos romanos, eminentemente voltadas à prática. Essa
bes herdaram e aprimoraram o conhecimento grego e a rá- característica estendeu-se aos califados ibéricos. No fim do
pida expansão islâmica teve como resultado a apreensão da século XIII, Portugal, ao decidir se tornar independente dos
técnica avançada dos povos convertidos. Assim, através dos reinos da Espanha, viu-se forçado a procurar opções comer-
árabes, a Europa medieval recebeu importantes conheci- ciais pelo Atlântico. Assim, definiu-se a vocação portuguesa
mentos de medicina, particularmente ótica oftalmológica, de pela navegação. O conhecimento científico e tecnológico dis-
técnica química, de cosméticos e de culinária. Além de novas ponível era legado pelos romanos, acrescentado, em pequena
condições para apoiar o grande desenvolvimento do comér- escala, pelos árabes. Distante e relativamente isolado, a aqui-
cio e das artes, das navegações e das invenções, criando-se sição dos avanços científicos e filosóficos dos árabes foi re-
assim demanda para um conhecimento mais amplo. duzida.
Na era das grandes navegações, no fim do século XV e Como vimos anteriormente, após as cruzadas, a partir
início do século XVI, a matemática incluía um interesse em de 1095, a cultura muçulmana mais avançada penetrou nos
geometria, desenvolvida com vistas aos estudos astronômicos mosteiros europeus, com preocupações especiais sobre o mo-
e às navegações. Particularmente o estudo de uma geometria vimento, o que marcou o início de reflexões científicas teó-
da esfera, por John de Holywood ou Sacrobosco (ca 1200-ca ricas. Associou-se a isso a introdução do sistema de nume-
1256), foi importantíssimo nas navegações, tendo merecido ração indo-arábico, com a finalidade principal de satisfazer
duas traduções em Portugal, por d. João de Castro e por Pe- as necessidades do comércio que se intensificava.
dro Nunes.18 Mas os algarismos indo-arábicos não foram adotados
Nos séculos XV e XVI se desenvolveram em Portugal es- em Portugal senão a partir de meados do século XV, e mesmo
tudos sobre navegação, que culminaram com as viagens de assim somente em alguns setores. Interessante notar que o
Cristóvão Colombo pelo hemisfério norte, em 1492, de Vasco Esmeraldo de Situ Orbis é uma das primeiras obras a uti-
da Gama, que chegou à Índia em 1498 pelo hemisfério sul, e lizar os algarismos arábicos naquele país.
de Fernão de Magalhães, que encontrou a passagem marítima
Temos, portanto, duas vertentes de conhecimento ci-
para o Pacífico em 1520. O planeta, então, se globalizou. Ob-
entífico e matemático na Europa do fim do século XV. Um co-
servações do céu no hemisfério sul, a descoberta de outros po-
nhecimento praticado na Europa, construindo as bases do
vos e de outras civilizações, e as novas possibilidades econô-
que viria ser a ciência moderna, representado mormente por
micas oferecidas às nações da Europa tiveram conseqüências
Bradwardine e a escola de Merton; e outro praticado em Por-
profundas no conhecimento.
tugal, repousando essencialmente sobre os trabalhos de Pto-
Os conhecimentos matemáticos na península ibérica
lomeu e o Tratado da Esfera, de Sacrobosco.
eram muito diferentes, no conteúdo e nos objetivos. O estilo
da matemática ibérica era outro.
PORTUGAL
Lembremos que o islamismo absorveu muito da cul-
tura grega e, aos poucos, os textos científicos gregos foram Por razões que se pode entender facilmente, Portugal,
ao se firmar como um reino independente, não teve condi-
18 SACROBOSCO, 1991. ções de intercâmbio com a Europa pelas rotas terrestres. A

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busca de rotas marítimas foi fundamental na consolidação Manuel, rei de 1495 a 1521, a ventura de estabelecer o im-
do reino. pério colonial, ficando por isso conhecido como o Venturoso.
A figura mais importante dessa empresa foi o infante Seu sucessor, d. João III, que reinou de 1521 a 1557, agiu no
d. Henrique, chamado “o Navegador”, que planejou e em apogeu e no início do declínio desse império.
grande parte executou o mais importante projeto de expan- Pedro Nunes teve sua vida profissional praticamente
são na história da humanidade.19 Nessa época passou a ser ligada ao reinado desse monarca, seu grande protetor. Sendo
conhecida toda a África, planejou-se a rota para as Índias, filho de judeus, Pedro Nunes somente pôde escapar às repe-
iniciou-se a conquista do Atlântico e logrou-se a circunave- tidas investidas contra os cristãos novos, conduzidas pela
gação do globo terrestre. Santa Inquisição, graças a essa proteção. De 1531 a 1535 foi
Embora o intercâmbio entre Portugal e a Europa fos- chamado a Évora com a importante responsabilidade de ser
se reduzido, o grande centro de pesquisa português que se tutor na corte de d. João III. Nessa época escreveu notas para
formara atraía europeus de várias nações. Destaca-se o ale- um curso de álgebra a ser ministrado aos seus alunos, prín-
mão Martin Behaim, de Nüremberg, possivelmente um dis- cipes e fidalgos, entre os quais João de Castro e Martim Afon-
cípulo de Regiomontanus, que em 1480 havia ido para Por- so de Sousa.
tugal.20 Os métodos da trigonometria foram assim introdu- Pedro Nunes nasceu em 1502, próximo a Lisboa. Em
zidos naquele reino, criando condições para a representação 1525 formou-se em medicina e foi nomeado cosmógrafo real
da Terra como um globo.21 Em 1475 também o jovem ge-
em 1529, assumindo, no mesmo ano, a cátedra de Filosofia
novês Cristóvão Colombo foi para Portugal, onde já estava seu
Moral da Universidade de Lisboa. Em 1531 foi para Évora
irmão, o cartógrafo Bartolomeu Colombo.
como tutor dos príncipes. Em 1544 foi nomeado catedrático
A base das ciências náuticas era a matemática. Sem de Matemática da Universidade de Coimbra, onde lecionou
dúvida, o mais importante matemático da época foi Pedro até sua aposentadoria, em 1562. Em 1547 tornou-se Princi-
Nunes (1502-1572).22 Ele foi uma das figuras mais interes- pal Cosmógrafo Real, cargo que manteve até sua morte, em
santes do Renascimento português. Reconhecido e ao mes- 1572.
mo tempo contestado, Pedro Nunes pode ser considerado o
Durante sua permanência em Évora, talvez em virtu-
grande navegador do século XVI, embora jamais tenha se
de de suas responsabilidades como tutor da corte, Pedro Nu-
aventurado pelos mares. Considerado o mais importante car-
nes dedicou-se a estudos humanísticos, tendo composto po-
tógrafo e matemático do grupo de intelectuais reunidos por
emas em latim e grego, línguas que parecia dominar muito
d. Henrique, no que simbolicamente se chamou Escola de
bem. Após a aposentadoria retomou sua atividade poética.
Sagres, ele deixou importante obra científica e também uma
Também se dedicou a reflexões religiosas e deixou notas so-
considerável obra poética e literária. Embora o infante tenha
bre a ressureição, a anunciação, a multiplicação dos pães e
morrido em 1460, sua obra foi continuada pelo seu sobri-
outros temas do Novo Testamento.
nho-neto, o rei d. João II, que faleceu em 1495. Coube a d.
Não se conhece toda a importante e variada obra ma-
19 Para um importante estudo da grande influência dessa vocação marí- temática de Pedro Nunes. Aqueles conhecidos foram publi-
tima no desenvolvimento das ciências, em particular da matemática, em
Portugal, vejo o estudo de Francisco Gomes Teixeira em http:// cados pela Academia de Ciências de Lisboa por ocasião do
www.mat.uc.pt/~jaimecs/livrogt/1parte.html#Inicio da Cultura.
20 Regiomontanus, ou Johannes Müller (1436-1476), é considerado o cri-
quinto centenário do seu nascimento. A edição foi rapida-
ador da trigonometria moderna. mente esgotada e uma edição crítica de sua obra completa
21 Ao retornar a Nüremberg, em 1492, Behaím apresentou à comuni-
dade a Erdapfel, o primeiro globo terrestre conhecido. Obviamente, ainda está por acontecer. Sabe-se de um Tratado de Geo-
nesse globo não aparece o novo continente.
22 Um importante estudo sobre Pedro Nunes foi feito por MARTYN,
metria dos Triangulos Spheraes, de um Tratado sobre o
1996. Astrolabio, de um Tratado da Proporção ao Livro V de

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Euclides, e de uma tradução do De Architectura, de Vitru- centes dessa ciência. Mas morreu pouco depois e o isolamen-
vius – livros possivelmente perdidos. to, que ele não havia conseguido quebrar, iria marcar a de-
A edição feita pela Academia de Ciências de Lisboa in- cadência científica de Portugal.
clui uma tradução do Tratado da Sphera (1537) e De Cre-
pusculis (1542), que talvez sejam a sua contribuição mate- CONSIDERAÇÕES FINAIS
mática mais original, De Erratis Orontii Finaei (1546), O grande interesse das populações indígenas tem sido,
uma obra de contestação, e o Libro de Álgebra en Arithme- ao longo da história, a aquisição do conhecimento do domi-
tica y Geometria (1567). nador. O dominador se identifica no conquistador, no evan-
O livro foi impresso na Antuérpia e escrito em espa- gelizador, no colonizador, no mercador, no patrão, no agente
nhol. Não é de se estranhar, pois, na segunda metade do sé- do governo, no professor. A busca de instrumentos intelectuais
culo XVI, a Espanha era a grande potência da Europa e Por- que permitam dialogar e eventualmente enfrentar o domina-
tugal começa a entrar no que seriam dois séculos de deca- dor não se limita à aquisição do seu conhecimento, mas even-
dência. Publicar em espanhol era prestigioso. Essa obra, tualmente se manifesta na apreensão do conhecimento do do-
como afirma Pedro Nunes no Prefácio, é uma elaboração das minador no conhecimento do dominado, transformando-o.
lições que ele havia ministrado quando tutor dos príncipes, Contudo, o conhecimento do dominado, mesmo transforma-
em Évora, e em seguida como professor da Universidade de do, não adquire credibilidade, e continua marginal, criando a
Coimbra.
exclusão cultural.
É intrigante o fato de não ter sido publicada como
A recíproca também se dá, isto é, o conhecimento do
uma tradução, embora haja enorme coincidência do seu tex-
dominador também é transformado pelo conhecimento do do-
to com o livro de al-Kwarizmi, e o nome de al-Kwarizmi
minado. Isso se dá nos costumes, na linguagem, nas crenças e
aparecer sem nenhum destaque. Pedro Nunes diz que “o in-
nas religiões, e em inúmeras outras manifestações de conheci-
ventor desta arte foi um matemático mouro, cujo nome era
Gebre e há, em algumas livrarias um pequeno tratado em mento. Alguns elementos do conhecimento do dominado se in-
arábico, que contém os capítulos de quem usamos”. Seria a corporam ao conhecimento do dominador, enriquecendo-o e
álgebra um conhecimento corrente entre os portugueses? sendo aceito. Como evidência dessa dinâmica temos a farma-
A obra também revela algo que talvez tenha tido influên- copéia, a culinária, a linguagem, a música, a própria religião.
cia no rápido declínio da ciência portuguesa a partir de meados Mas por que não temos exemplos na matemática? Não se pro-
do século XVI. Os portugueses insistiam em utilizar o chamado sis- pala que matemática é um empreendimento cultural? A ma-
tema luso-romano e não adotaram o indo-arábico. temática do dominado continua ignorada e não reconhecida,
Mas o mais revelador deste livro de álgebra de Pedro quando não reprimida. A matemática tem sido o elemento
Nunes é o seu Apêndice, no qual ele praticamente se desculpa mais forte de marginalidade e de exclusão.
perante o público ibérico por publicar uma obra que, ao sair, A marginalidade e a exclusão não se aplicam somente
já era obsoleta, pois não incorporava os grandes avanços fei- a nações. O mesmo processo se dá na periferia dos grandes
tos no estudo das equações de terceiro grau por Tartaglia, centros urbanos. Desprover o dominado de seu referencial
Cardano e outros. Isso revela o isolamento dos cientistas por- cultural tem sido, ao longo da história, a estratégia mais efi-
tugueses do resto da Europa. Pedro Nunes faz algumas con- ciente de dominação. Por exemplo, o baixo rendimento das
siderações críticas sobre os resultados dos algebristas italianos populações periféricas nos sistemas escolares, particularmente
e promete um novo livro, incorporando todos os avanços re- em matemática, deveria ser analisado sob esse enfoque.

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SERIA A LÍNGUA ATALIBA T. DE CASTILHO


Professor titular de Filologia e Língua
Portuguesa (USP) e presidente da
FALADA MAIS POBRE Associação de Lingüística e Filologia
da América Latina
QUE A LÍNGUA ataliba@uol.br

ESCRITA?
COULD SPOKEN LANGUAGE BE
POORER THAN WRITTEN LANGUAGE?
RESUMO Após algumas observações sobre os 500 anos da língua portuguesa no Brasil, argumento que a língua fa-
lada é mais complexa do que a língua escrita, contrariamente ao que postula a gramática tradicional.
Palavras-chave história do português brasileiro – língua falada e escrita – gramática – oração – ensino do por-
tuguês como língua materna.
ABSTRACT After some reflections on the 500 years of the Portuguese language in Brazil, I argue that the spoken lan-
guage is more complex than the written one, contrary to traditional grammatical assumptions.
Keywords history of Brazilian Portuguese – spoken and written language – grammar – sentence – teaching Por-
tuguese as mother tongue.

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APRESENTAÇÃO

N
os últimos 500 anos temos falado e escrito a língua portuguesa no
Brasil. Nos três primeiros séculos, apenas 30% dos habitantes fa-
lavam a língua de Portugal, e nem todos a escreviam. Os outros
70% eram aloglotas, ameríndios e africanos. Entre 1 e 6 milhões
de indígenas, não se sabe ao certo, falavam uma das 220 línguas
brasileiras aqui encontradas. Além deles, cerca de 18 milhões de
africanos escravizados e trazidos para cá desde o século XVI fala-
vam uma das muitas línguas da cultura banto e da cultura sudanesa.1
Foi necessário esperar até o século XVIII para que a língua portuguesa efetivamente
se tornasse a língua majoritária do País. Ainda hoje em dia restam 160 línguas indígenas,
faladas por uns 220 mil indivíduos, e raras línguas crioulas de base africana, como é o caso
do dialeto de Helvécia.2
Que língua é essa que falamos, e que escrevemos (tão pouco)? Continua a ser o por-
Foi necessário tuguês europeu? Ou já falamos o “brasileiro”?
esperar até o século Bem, essa é uma discussão que começou no Romantismo, e somente neste século
passou a merecer um tratamento mais científico. De fato, tem-se notado que desde o sé-
xviii para que a culo XIX começaram a aparecer no português do Brasil alguns elementos fonéticos e gra-
língua portuguesa maticais divergentes do uso europeu. Vejamos alguns poucos exemplos.
efetivamente se Pronunciamos todas as vogais anteriores à vogal tônica, como em telefone, en-
tornasse a língua quanto os portugueses as reduziram, dizendo tulfón. Às vezes deixamos cair as vogais ini-
ciais, como em tá, por está, mantidas pelos portugueses em seu modo característico de
majoritária do País atender ao telefone: está? está lá? Também alteramos bastante a gramática. Para ficar só
num caso: no quadro dos pronomes pessoais, mantivemos eu e ele para a primeira e a ter-
ceira pessoas, mas estamos substituindo progressivamente tu por você e nós por a gente.
Vós praticamente desapareceu. O problema é que você e a gente levam o verbo para a ter-
ceira pessoa, e com isso a morfologia verbal reduziu as seis terminações diferentes a apenas
três: eu faço, você / ele / a gente faz, eles fazem, desaparecendo fazes, fazemos e fa-
zeis. Se a morfologia verbal se simplifica, torna-se obrigatório manter o sujeito da oração,
pois ficará difícil saber se em “saía à noite” o sujeito será eu, você, ele, a gente. Com isso,
vai desaparecendo o sujeito elíptico, passamos a ter uma média de 80% de sujeitos preen-
chidos, e diminuímos sensivelmente sua posposição – outra novidade não documentável
em Portugal.
Significaria então que já nasceu a língua brasileira? Algumas dificuldades impe-
dem uma resposta taxativa, pois muitos dos fenômenos diferenciadores são atestados no
português medieval. Indo por aqui, o português do Brasil seria considerado uma conser-
vação do português europeu, e a pergunta então não é se temos uma nova língua por aqui,
1 RODRIGUES, 1986, e CASTILHO, 1998a.
2 BAXTER & LUCCHESI, 1999.

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e sim por que “eles” mudaram a língua por lá... Muito pro- formal que a primeira. Ora, pesquisas sociolingüísticas sobre
vavelmente, o português do Brasil está combinando conser- o português desenvolvidas no Brasil mostram o equívoco de
vadorismos e inovadorismos, seguindo, de todo modo, uma afirmações tão esquemáticas, e apontam para a rica hetero-
direção distinta daquela do português europeu. Em todo ca- geneidade das línguas naturais.
so, trata-se de um quadro complexo que não pode ser carac- A persistência de nossos livros escolares em afirma-
terizado por simplificações do tipo “estamos acabando com a ções em que ninguém mais acredita mostra que o ensino
língua portuguesa”, “foi só mudarem a língua para os tró- fundamental e o ensino médio do português ainda não se be-
picos, e vejam que espantosa degeneração!”, “os portugueses, neficiaram da enorme quantidade de pesquisas sobre a ora-
sim, é que sabem falar direito”. Não poderei aqui elaborar lidade desenvolvidas no Brasil. Também não estão sendo
mais detalhadamente essas idéias sobre a pretensa decadên- consideradas as expressas recomendações a esse respeito,
cia do português no Brasil. Se você não quer ficar repetindo formuladas nos Parâmetros Curriculares Nacionais.
bobagens desse tipo, que lemos todos os dias nos jornais, Neste trabalho, quero chamar sua atenção para os
acompanhe as pesquisas que um grupo de lingüistas vem fa- prejuízos dessa fixação na língua escrita. Menciono os estu-
zendo.3 dos sobre o português falado no Brasil, examino rapidamente
Uma coisa é certa: presentemente a língua falada “é a estrutura da oração nessa modalidade, e concluo com al-
de todos”, e apenas a língua escrita continua pertencendo à gumas reflexões sobre como incorporar a língua falada em
gente escolarizada. Infelizmente, nem tantos quanto os pri- nossas práticas escolares. Tudo isso sem excluir a língua es-
meiros, pois como sabemos ainda hoje há milhões de brasi- crita, é claro! O que estou propondo é um cardápio menos
leiros que não sabem escrever. monótono.
Apesar da “vitória” numérica da língua falada, a lín-
gua escrita continua obviamente a ter sua importância. As PESQUISAS BRASILEIRAS
condições de produção separam essas modalidades. Quando SOBRE O PORTUGUÊS FALADO
falamos estamos em presença do interlocutor, e por isso acer- 1. Premeditando a coisa
tamos o rumo da conversa o tempo todo, o que afeta a seleção Um conjunto de fatores desencadeados nos anos 70 e
dos recursos da língua. Quando escrevemos, a ausência do 80 favoreceram a eclosão do movimento científico de que re-
leitor nos obriga a uma explicitude maior, afinal não pode- sultou a preparação da Gramática do Português Culto Fa-
mos acompanhar por suas reações se estamos sendo claros lado no Brasil, a ser publicada em 2001: a expansão dos
ou não. Também isso afeta os tipos de recursos da língua que cursos pós-graduados de Lingüística, o surgimento dos pro-
movimentamos. Simples, não? Pois é, então por que nossos jetos coletivos de pesquisa e a insistência de vários lingüistas
manuais escolares se fundamentam exclusivamente numa em que passássemos a dispor de gramáticas descritivas que
modalidade, a escrita, deixando de lado a língua falada? Por refletissem o uso brasileiro da língua portuguesa.
que já chegamos à escola falando? Examinemos isso um Em 1969 foi fundada a Associação Brasileira de
pouco mais de perto. Lingüística, e a partir de 1972 passaram a ser implantados
É bem sabido que a gramática tradicional apóia-se na os Programas de Pós-Graduação em Lingüística e Língua
língua escrita, privilegiando nesta modalidade a língua lite- Portuguesa, hoje em número de 52. Este fato novo na vida
rária – não a língua escrita corrente, dos jornais, por exem- universitária brasileira teve diversas conseqüências: o surgi-
plo. Uma observação freqüente nesses textos é que a língua mento da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradu-
escrita é mais complexa e mais formal do que a língua fala- ação em Letras e Lingüística, em 1984, a fundação de de-
da, vista a segunda como uma variante mais pobre e mais in- zenas de revistas especializadas com publicação regular, a
concessão de bolsas a jovens brasileiros, que partiram para o
3 CASTILHO, 1998b, MATTOS & SILVA, 1999, e ALKIMIN, no prelo. exterior em busca de doutorado em áreas ainda não existen-

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tes no Brasil, a organização sistemática de seminários e con- 2. “Descobrindo” a língua falada


gressos, e o estabelecimento de uma política de aquisição de A partir dos anos 60, grupos de pesquisadores afilia-
bibliografia especializada. dos a várias universidades brasileiras se engajaram na tarefa
A instalação da Lingüística entre nós e a profissiona- de documentar, descrever e refletir sobre a língua falada.
lização dos lingüistas brasileiros teve por efeito a busca de Em toda a sua história, a Lingüística sempre esteve
uma temática de interesse para o desenvolvimento da cultura atravessada pela idéia de que a língua falada é a manifesta-
nacional. Os lingüistas sentiram o peso de suas responsabili- ção primordial da linguagem e seu objeto primeiro de estu-
dades sociais e políticas. Sem descurar de sua formação teó- dos. Mas esses belos propósitos só puderam se transformar
rica, eles passaram a buscar assunto para suas pesquisas nas em ações efetivas depois de uma inovação tecnológica, a in-
dezenas de línguas indígenas brasileiras que sobreviveram à venção do gravador portátil. Podia-se, finalmente, pôr em
colonização e na variabilidade do português brasileiro. Daí marcha um programa sistemático de investigação da orali-
para a organização de projetos coletivos de investigação foi dade.
um passo, logo dado pelo Projeto de Estudo da Norma Pela primeira vez a América Latina antecipou-se à
Lingüística Urbana Culta (UFBA, USP, Unicamp, UFPE, UFRJ, Europa e aos Estados Unidos num movimento científico. A
UFRS, a partir de 1970), pelo Projeto Censo Lingüístico do língua falada forneceu a matéria-prima para essa virada.
Rio de Janeiro, hoje Programa de Estudos de Usos Lin- Em 1964, Juan M. Lope Blanch, lingüista espanhol
güísticos (UFRJ, desde 1972), e pelo Projeto de Aquisição da radicado no México, obteve do Programa Interamericano de
Linguagem (Unicamp, a partir de 1975). Já nos anos 90 Lingüística e Ensino de Idiomas (Pilei) a aprovação de seu
surgiram o Projeto Variação Lingüística do Sul do Brasil Proyecto de Estudio Coordinado de la Norma Lingüísti-
(UFPR, UFSC E UFRS, desde 1992), o Programa de História ca Culta de las Principales Ciudades de Iberoamérica y
do Português (UFBA, desde 1991), o Projeto do Atlas Lin- de la Península Ibérica.7 Seu projeto representava uma no-
güístico Brasileiro (UFBA, UFJF, UEL, UFRJ, UFRS, desde 1997), tável mudança de rumo dos estudos dialetológicos: deixava-
entre tantos outros. se de privilegiar o falar residual de pequenas comunidades
Outro fato que assinalou este período foi a crescente rurais, “perdidas en los varicuetos de una sierra”, partindo-
preocupação para que dispuséssemos de bons dicionários e se para a linguagem padrão das grandes metrópoles que iam
de boas gramáticas, mais conformes ao uso brasileiro do por- surgindo, as quais alteraram a proporção “população rural
tuguês. Duas novas gramáticas foram publicadas, assinalan- versus população urbana” na organização demográfica das
do a busca da mudança: em Portugal, a de Mira Mateus et nações latino-americanas. Lope Blanch mostrava, por
al.4 e, no Brasil, a de Cunha e Cintra.5 Coincidência ou não, exemplo, que em vários países da América Latina metade da
no mesmo no de 1985 são publicados no país quatro livros população habitava suas capitais, o que poderia afetar o es-
em que foi avaliada a gramática tradicional, adotada em panhol (ou o português) falados no país, dada a previsível
nossas escolas.6 Mesmo partindo de perspectivas diferen- força de irradiação da variedade da capital.
tes, seus autores confluíam na defesa da preparação de uma Desde o começo, o Proyecto previa a inclusão da
“nova gramática” do português, mais atenta às alterações América portuguesa, além da Espanha e de Portugal. Con-
que se vinham notando na realidade lingüística do país. O vidado a opinar sobre o assunto, o prof. Nélson Rossi, da Uni-
surgimento entre nós dos estudos sobre a língua falada daria versidade Federal da Bahia, e delegado brasileiro no Pilei,
uma importante resposta aos planos desses autores. apresentou um texto ao Simpósio do México.8 Ele pondera ali
que, contrariamente à América espanhola, a execução do
4 MIRA MATEUS et al., 1983.
5 CUNHA & CINTRA, 1985. 7 LOPE BLANCH, 1964/1967, 1986.
6 ILARI, 1985, PERINI, 1985, LUFT, 1985, e BECHARA, 1985. 8 ROSSI, 1968/1969.

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projeto no Brasil não poderia limitar-se à capital do País, e Rio de Janeiro, 1977; XI, Salvador, 1981; XII, Rio de Janeiro,
nem mesmo ao Rio de Janeiro: “arrisco a impressão de que 1984; XIII, Campinas, 1985; XIV, Porto Alegre, 1987.
a cidade do Rio de Janeiro, apesar de sua excepcional signi- Designadas as equipes locais, cuja listagem aparece
ficação como aglomerado urbano e como centro de irradi- em Castilho,13 teve início o trabalho de documentação da fala
ação de padrões culturais, não daria por si só a imagem do de 600 informantes de formação universitária, selecionados
português do Brasil”.9 Ele desenvolve então suas idéias sobre entre pessoas nascidas na cidade, filhas de pais igualmente
o policentrismo cultural brasileiro, e argumenta que desen- nascidos na cidade, divididos por igual em homens e mulhe-
volvendo-se o projeto em cinco capitais, sendo quatro fun- res, distribuídos por três faixas etárias (25-35 anos, 36-55
dadas no século XVI (Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São anos, e de 56 anos em diante).
Paulo) e uma no século XVIII (Porto Alegre), estariam abar-
A fala dos informantes foi gravada em três situações
cados “doze milhões e meio de habitantes aproximadamente,
distintas: diálogo com o documentador (DID), diálogo entre
o que equivale a um sétimo da população atual do país”.10
dois informantes (D2) e aulas e conferências (EF). A equipe
Desconhecendo esses arranjos, conhecendo porém o nacional desistiu de realizar as gravações sigilosas previstas
Proyecto de Lope Blanch, propus sua adaptação a parte do no projeto original. As entrevistas eram tematicamente ori-
País, num texto intitulado “Descrição do Português Culto na entadas, fundamentando-se em cerca de 20 centros de inte-
Área Paulista”.11 Informado por Nélson Rossi das decisões to- resse, abrangidos por mais de 4 mil quesitos.
madas no Pilei, e por ele convidado a integrar o projeto mais
As gravações foram realizadas entre 1970 e 1977, ten-
amplo, aceitei suas ponderações e desisti do plano anterior.
do-se apurado um corpus gigantesco, constante de 1.870 en-
Finalmente, a 11 de janeiro de 1969, aproveitando a
trevistas com 2.356 informantes, totalizando 1.570 horas de
presença de vários professores brasileiros reunidos no III Ins-
gravações. Começou então a árdua tarefa de transcrever par-
tituto Interamericano de Lingüística, promovido pelo Pilei na
te desse corpus, organizando-se o “corpus compartilhado”,
Universidade de São Paulo, juntamente com o II Congresso
um conjunto de 18 entrevistas por cidade, selecionadas de
Internacional da Alfal, o prof. Rossi convocou uma reunião
acordo com os parâmetros sociolingüísticos do projeto, e dis-
de que participaram os futuros coordenadores das equipes do
tribuídas a todas as cidades participantes. Amostras do cor-
Projeto, que viria a ser conhecido entre nós como “Projeto
pus começaram a ser publicados a partir de 1986, em São
NURC”: Albino de Bem Veiga (Porto Alegre), Isaac Nicolau
Paulo,14 Rio de Janeiro,15 Salvador,16 Recife17 e Porto Ale-
Salum e Ataliba T. de Castilho (São Paulo), além do próprio
Rossi, coordenador do Projeto em Salvador. Posteriormente, gre.18 As amostras das três últimas cidades ainda estão in-
seriam indicados Celso Cunha (Rio de Janeiro) e José Brasi- completas.
leiro Vilanova (Recife). Reuni num livrinho editado pelo Em 1988, representantes do Projeto do Português
Conselho Municipal de Cultura de Marília os documentos en- Fundamental (sediado no Centro de Lingüística da Univer-
tão gerados.12 sidade de Lisboa) e do Projeto NURC/Brasil firmaram um
Para discutir a metodologia da pesquisa e seus rumos protocolo de intercâmbio de dados, de tal sorte que atual-
no País, foram realizadas 14 reuniões nacionais do Projeto: I, mente ambas as equipes dispõem de elementos para eventu-
Porto Alegre, 1969; II, Capivari, 1970; III, Recife, 1971; IV, Rio ais comparações entre as modalidades européia e americana
de Janeiro, 1971; V, Salvador, 1972; VI, Porto Alegre, 1973; VII, do português falado culto.
São Paulo, 1974; VIII, Recife, 1974; IX, Rio de Janeiro, 1975; X, 13 Idem, 1990, pp. 147-149.
14 CASTILHO & PRETI, 1986 e 1987, e PRETI & URBANO, 1988.
9 ROSSI, 1968/1969, p. 49. 15 CALLOU, 1992, e CALLOU & LOPES, 1993 e 1994.
10 ROSSI, 1968/1969, p. 49. 16 MOTTA & ROLLEMBERG, 1994.
11 CASTILHO, 1968. 17 SÁ et al., 1996.
12 Idem, 1970. 18 HILGERT, 1997.

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De acordo com a metodologia do Projeto, a análise ção de inventários da língua falada, fenômeno cuja extensão
dos materiais assim recolhidos se faria a partir de um Guia- vem caracterizada por Blanche-Benveniste e Jeanjean.25
Questionário, que forneceria um roteiro básico para a pes- Fora do domínio do espanhol e do português, desen-
quisa, visando a assegurar a comparabilidade dos resultados. volveram-se outros projetos sobre a língua falada. Limito-me
A comissão brasileira adaptou a versão espanhola já publi- a mencionar brevemente apenas os que se fundamentaram
cada desse roteiro.19 Os quesitos compreendiam três setores: em registros magnetofônicos.
Fonética e Fonologia, Morfo-sintaxe e Léxico. A partir de Nos Estados Unidos, os primeiros de que tenho notícia
1978 as análises tiveram início, tendo seguido duas grandes são o estudo sobre o inglês falado em Nova York, de Labov,26
direções: estudos gramaticais e estudos de pragmática da lín- o método para o levantamento da fala de Detroit proposto por
gua falada. Parte desses trabalhos foi publicada em coletâ- Shuy et al.27 e o pioneiro estudo sobre a conversação, de Sa-
neas.20 Muitos textos foram publicados em revistas científicas cks et al.28 Vinte anos depois, as sugestões contidas neste úl-
e anais de congressos, outros são teses, como Menon.21 O es- timo motivaram um ambicioso programa, intitulado Con-
tudo do léxico de São Paulo foi empreendido por Enzo Del versation and Grammar: Ono & Thompson.29 Esse projeto
Carratore, permanecendo inédito. O do Rio de Janeiro foi busca as relações entre as categorias pragmáticas da conver-
concluído e publicado.22 Para a história do Projeto NURC e a sação e as categorias gramaticais da sintaxe, uma hipótese
bibliografia gerada até 1990, ver Castilho.23 lançada entre nós por Dias de Moraes,30 Marcuschi31 e Cas-
tilho.32
As análises gramaticais já em 1981 mostravam que
haveria problemas para a continuação dos trabalhos, na for- Na França, lembre-se a pesquisa sociolingüística do
francês falado em Orleans, de Blanc-Biggs,33 e o fecundo
ma como eles tinham sido concebidos no final dos anos 60
Groupe Aixois de Recherches en Syntaxe, organizado na
pelo projeto congênere do espanhol da América, acolhido pe-
Universidade de Aix-en-Provence.34 Esses trabalhos tiveram
las equipes brasileiras: 1. não tinha havido uma discussão so-
uma forte repercussão em Portugal.35
bre a especificidade do oral, e os instrumentos de análise to-
Na Itália, devem ser lembradas as pesquisas de Sorni-
mavam a língua escrita como ponto de partida; 2. o modelo
colla36 e aquelas ligadas ao Lessico Italiano di Frequenza.37
teórico adotado, que combinava elementos da gramática tra-
3. Batalhando por uma gramática da
dicional com uma sorte de “estruturalismo mitigado”, não língua portuguesa falada no Brasil
dava conta de uma série de fenômenos típicos da modalidade As pesquisas brasileiras sobre a língua falada passa-
falada; 3. novas tendências da indagação lingüística, surgi- ram por uma grande aceleração, depois que apresentei em
das posteriormente à concepção do projeto, mostravam-se 1987 à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
mais sensíveis à modalidade falada, particularmente as apro- em Letras e Lingüística, a convite da profa. Maria Helena
ximações entre a sintaxe e o discurso. Para uma análise des- Moura Neves, um projeto de preparação coletiva de uma
sas e de outras questões, ver Castilho.24
25 BLANCHE-BENVENISTE & JEANJEAN, 1987.
Apesar desses acidentes de percurso, deve-se reconhe- 26 LABOV, 1966.
cer que esse projeto se mostrou plenamente vitorioso em sua 27 SHUY et al., 1966.
28 SACKS et al., 1972.
fase de coleta e organização dos dados. Graças a ele, a Lin- 29 ONO & THOMPSON, 1993.

güística brasileira se manteve atualizada quanto à organiza- 30 DIAS DE MORAES, 1987.


31 MARCUSCHI, 1988.
32 CASTILHO, 1989.
19 CUESTIONARIO, 1971 e 1973. 33 BLANC-BIGGS, 1971.
20 CASTILHO, 1989, PRETI & URBANO, 1990, e PRETI, 1995, 1997 e 1998. 34 BLANCHE-BENVENISTE et al., 1979, BLANCHE-BENVENISTE &
21 MENON, 1994. JEANJEAN, 1987, e BLANCHE-BENVENISTE, 1990a.
22 MARQUES, 1996. 35 NASCIMENTO, 1987.
23 CASTILHO, 1990b. 36 SORNICOLLA, 1981.
24 Idem, 1984 e 1990a. 37 VOGHERA, 1992, e DE MAURO, 1994.

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gramática do português falado, com base nos materiais do ado as atividades, também apoiadas vez e outra pelo Conse-
Projeto NURC/Brasil. O Projeto de Gramática do Português lho Nacional de Pesquisas.
Falado (PGPF) teve início em 1988, tendo esgotado sua agen- A partir de 1990, solicitou-se ao prof. Mílton do Nas-
da em 1998. Uma de suas motivações foi aproveitar os ricos cimento que debatesse os problemas teóricos suscitados pelos
materiais do Projeto NURC, que vinham sendo maiormente trabalhos apresentados, na qualidade de assessor Acadêmico
examinados por pesquisadores em Análise da Conversação, do PGPF. Isso ocorreu sistematicamente a partir do IV Semi-
Análise do Discurso e Lingüística do Texto. nário, resultando daí alguns textos, um dos quais apresenta-
O I Seminário do PGPF debateu o plano inicial, o de do ao Centro de Lingüística da Universidade de Lisboa, em
“preparar uma gramática referencial do português culto fa- 1993, em reunião convocada pelos drs. Maria Fernanda Ba-
lado no Brasil, descrevendo seus níveis fonológico, morfoló- celar do Nascimento e João Malaca Casteleiro.39
gico, sintático e textual”. Reconheceu-se nesse primeiro en-
contro que seria impossível selecionar uma única articulação A ESTRUTURA DA
teórica que desse conta da totalidade dos temas que se espera ORAÇÃO NO PORTUGUÊS FALADO
ver debatidos numa gramática descritiva, numa gramática Se é verdade que o português falado é mais pobre do
de referência como a que se planejava escrever. As primeiras que o português escrito, segue-se, entre outras coisas, que as
discussões cristalizaram esse reconhecimento, tendo-se deci- orações nessas duas modalidades serão complexas na língua
dido dar livre curso à convivência dos contrários no interior escrita e simples na língua falada.
do projeto. Como forma de organização, os 32 pesquisadores Vamos verificar essa afirmação, começando pela lín-
que atuaram no projeto, afiliados a 12 das maiores univer- gua escrita. Como construímos uma oração quando escreve-
sidades brasileiras, distribuíram-se por grupos de trabalho mos?
(GTS), sob a coordenação de um deles, para a realização das Para início de conversa, é reconhecido há muito tem-
tarefas previamente agendadas: 1. Fonética e Fonologia, co- po que uma oração é um verbo que seleciona os termos com
ordenado inicialmente por João Antônio de Moraes, e poste- os quais ele vai organizar essa oração, seja na língua escrita,
riormente por Maria Bernadete M. Abaurre; 2. Morfologias seja na língua falada. Enquanto empreendimento sintático,
Derivacional e Flexional, coordenado por Margarida Basílio conclui-se portanto que para construir uma oração partimos
e Ângela C. S. Rodrigues, respectivamente; 3. Sintaxe das do léxico, escolhemos ali um verbo adequado ao que quere-
Classes de Palavras, coordenado inicialmente por Rodolfo mos expressar, selecionando a seguir os termos projetados
Ilari, e posteriormente por Maria Helena Moura Neves; 4. por esse verbo. Quer dizer que os verbos se distinguem de ou-
Sintaxe das Relações Gramaticais, coordenado inicialmente tras classes porque têm a propriedade de “selecionar” seu
por Fernando Tarallo, e posteriormente por Mary Kato; 5. Or- termo-sujeito e o seu ou os seus termos-complementos. Su-
ganização Textual-Interativa, coordenado por Ingedore G.V. jeito e complementos mantêm com o verbo uma relação sin-
Koch. tática forte, comprovável pela proporcionalidade que pode-
mos estabelecer entre eles e os pronomes, essa classe primi-
Cada GT traçou o perfil teórico que pautaria suas pes-
tiva de que derivam os nomes. Bom, a gramática tradicional
quisas. Os textos discutidos e preparados no interior de cada
ensina que o pronome é uma classe derivada, e o nome uma
GT foram posteriormente submetidos à discussão pela totali-
classe primitiva. Mas que pena, pois é exatamente o contrá-
dade dos pesquisadores, reunidos em seminários plenos. Fo-
rio! Mas deixa pra lá. Além desses termos, podem compare-
ram realizados dez seminários plenos, terminados os quais os
textos debatidos eram reformulados e publicados em uma 38 CASTILHO, 1990b e 1993, ILARI, 1992, CASTILHO & BASÍLIO, 1996,

série própria, editada pela Unicamp38 A Fundação de Ampa- KATO, 1996, KOCH, 1996, NEVES, 1999, e ABAURRE & RODRIGUES, no
prelo.
ro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) tem financi- 39 NASCIMENTO, 1993b.

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cer também os adjuntos, que por não serem pronominalizá- em (1), introduzindo em determinados espaços expressões
veis não exibem essa relação sintática forte. discursivas de monitoramento da fala (olha Francisca /
Tudo isso se passa em nossa mente no momento em como você sabe / tá entendendo? / quer dizer / tá?). Foi
que vamos lançar ao papel um texto, forçosamente constitu- igualmente introduzido o substantivo televisão, por meio do
ído de orações. Mas acontece que escrever é uma atividade qual esse falante esclarece o assunto sobre o qual pretende fa-
solitária. Como já disse antes, o interlocutor não está presente, lar, fornecendo a moldura da proposição. Em sua primeira
não interage conosco enquanto escrevemos, não interfere vi- menção, esse substantivo atua como tópico dessa oração, e
sivelmente nesse ofício. Tais condições de produção têm em sua segunda menção, como seu antitópico.
como resultado um conjunto de orações voltadas para a sin- Observando mais de perto (3) e (4), nota-se que duas
taxe. Qual é o resultado disso? Orações tipologicamente sim- estruturas aí se cruzaram: uma estrutura orientada para a
ples, dotadas de sujeito, verbo, complementos e adjuntos. sintaxe, constituída por sujeito, verbo e complementos, na
Imagine que você está escrevendo um capítulo de sua qual se concentra o núcleo proposicional, e uma estrutura
autobiografia, e vai narrar como conseguiu seu primeiro orientada para o discurso, constituída por expressões de mo-
emprego. No remanso do seu escritório, algumas orações que nitoramento da interlocução e do próprio texto que está sen-
provavelmente escorreriam de sua pena seriam algo como: do produzido. Observe, neste caso, o uso do recurso epilin-
güístico quer dizer.
(1) O Diretor da Folha me chamou e me incumbiu de
escrever sobre televisão.
Por outras palavras, identificamos na oração escrita
uma só estrutura, a estrutura sintática, que poderia ser assim
O que temos em (1)? O velho feijão com arroz de representada:
sempre: sujeito – verbo – complemento. O –-> S V O.
Mas imagine agora que você está conversando com Já na língua falada essa estrutura de base vem per-
alguém, que de repente pergunta: meada por diferentes elementos, que constituem a estrutura
discursiva da oração. Para representar as duas estruturas, Ta-
(2) Como você começou a escrever sobre televisão na
Folha? rallo-Kato et al.40 assim representaram a oração na língua
falada:
Uma resposta provável – dada aliás por uma senhora O –-> [...Tópico (Sujeito... Verbo... Complemento 1...
de 60 anos, numa entrevista recolhida pelo Projeto NURC – é Complemento 2)... Antitópico].
a seguinte: Nesta representação, os termos entre parênteses cons-
(3) olha Francisca... eu... como você sabe... u:ma pes-
tituem a estrutura sintática. O tópico, o antitópico e as reti-
soa um Diretor lá da Folha certa feita me chamou e cências, enfeixados pelos colchetes, constituem a estrutura
me incumbiu de escrever sobre televisão... discursiva. Através das reticências, os autores indicaram os
espaços que podem ser preenchidos por expressões discursi-
Uma variante perfeitamente possível desse enunciado vas de variada ordem, algumas das quais aqui exemplifica-
poderia ser como segue: das.
(4) televisão... bom... olha Francisca... eu... assim... um À primeira vista, a oração na língua falada é uma ver-
Diretor lá da Folha me chamou... tá entendendo? e dadeira bagunça. Mas basta verificar que as expressões dis-
então... quer dizer... me incumbiu de escrever sobre te- cursivas têm uma distribuição previsível, isto é, algumas só
levisão... tá? televisão... podem vir no começo da oração, enquanto outras aparecem
apenas no fim, para concluir que as mesmas regularidades
Em (3) e (4), nota-se que várias vezes o falante aban-
donou a estrutura propriamente sintática da oração, contida 40 TARALLO-KATO et al., 1990.

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identificadas na estrutura sintática são encontradas igual- tivas destes. Por outras palavras, esse bom professor leva a seus
mente na estrutura discursiva. Tanto isso é verdade, que você alunos soluções a problemas que nem um deles formulou! Es-
nunca diria: tranho, não? Depois disso tudo ainda ficamos espantados pelo
fato dos alunos não aprenderem a gramática de jeito nenhum.
(4 a) * tá? tá entendendo? televisão... eu... assim... um Então, tome aulas de reforço, ou tome reprovação!
Diretor lá da Folha me chamou... e então... quer di- Creio que uma razão muito singela está por trás desse
zer... me incumbiu de escrever sobre televisão... bom... malogro. Quero insistir neste ponto: são dadas aos alunos
olha Francisca... respostas a perguntas que eles não formularam. Não haven-
Em suma, enquanto na língua escrita predomina do curiosidade, não há ciência, não há aprendizado.
quase categoricamente uma estrutura – a sintática –, na lín- Por outro lado, nesta época da mídia e da internet, a
gua falada precisamos operar com duas estruturas – a sin- informação corre solta por aí. A escola, classicamente depo-
tática e a discursiva –, dadas as respectivas condições de pro- sitária da informação, ficou livre da tarefa de sua difusão. Po-
de, agora, dedicar-se a uma tarefa mais importante, a da re-
dução. Onde está, então, a pobreza da língua falada?
flexão. Vamos substituir as aulas expositivas pelas aulas-pro-
Estas rápidas observações mostram que a língua falada jetinhos-de-pesquisa. Deixemos de lado as “aulas-revela-
é mais complexa do que a língua escrita. Na escrita, não pre- ção”, instalando em seu lugar as “aulas-indagação”. Que a
cisamos monitorar a interação, podemos voltar atrás e corrigir escola desista de sua vocação para Moisés, desça do monte
o que não saiu bem, e com isso acabamos por produzir uma Sinai, e vá falar com as crianças sobre coisas deste mundo.
linguagem pasteurizada. Por fala, ao contrário, diferentes pro- Em meu livro, indico como as modorrentas aulas de gramá-
cessos constitutivos se cruzam, exigindo um investimento mui- tica podem transformar-se no lugar de descoberta, no lugar
to maior, de que resulta uma linguagem mais complexa. da busca de respostas a questões formuladas a partir da ob-
Muito mais poderia ser dito a respeito das complexi- servação do velho e bom ato de conversar. Da conversação,
dades do oral. O PGPF produziu mais de duas centenas de en- partiremos para o estudo da organização textual. Do texto,
saios, além de diversas dissertações e teses. Na falta de tempo chegaremos à estrutura da oração, que é muito mais o re-
e espaço, convido os interessados à leitura desses trabalhos, e sultado de ações verbais de indivíduos localizados em situa-
à reflexão sobre eles. Sobretudo, peço que desde logo tirem da ções concretas de fala, do que um objeto autônomo, depen-
cabeça esta história da pobreza da língua falada. A riqueza da durado diante de nosso nariz. Só mesmo a escolarização da
língua falada faz dela um grande assunto para a sala de aula. reflexão gramatical produziu essa redução epistemológica,
Por que, então, não se insere a consideração do oral em nos- de que logo resultaram outras reduções, como, por exemplo,
sas práticas escolares? dizer que a língua falada é pobre, e a língua escrita, rica.

LÍNGUA FALADA E ENSINO CONCLUSÕES


Publiquei em 1998 um livrinho intitulado A Língua Neste trabalho, relatei os estudos sobre a língua falada
Falada no Ensino de Português.41 Sustento ali que, antes desenvolvidos no Brasil, comentei uma particularidade da
de mais nada, está na hora de alterar as relações professor/ sintaxe do oral e defendi a incorporação da língua falada em
aluno em sala de aula. nossas salas de aula. É evidente que não estou propondo a
exclusão da língua escrita!
Até aqui, temos considerado bom o professor que cum-
pre programa que ele não preparou, pois lhe foi imposto pela Simplesmente, estou sugerindo que a escola imite a
Secretaria da Educação, dá as provas e avalia os alunos se- vida: primeiro aprendemos a falar, depois aprendemos a es-
gundo parâmetros que podem não coincidir com as expecta- crever. Que nas reflexões escolares sobre nossa língua, acom-
panhemos esse ritmo, deixando de lado uma tola supervalo-
41 CASTILHO, 1998a. rização do escrito sobre o oral.

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72 impulso nº 27
Impulso_27.book Page 73 Wednesday, October 1, 2003 2:30 PM

TERRA BRASILIS:
do paraíso de deus(es)
e de gentes (in)crédulas
ou do lugar d’onde
“não existe pecado
do lado debaixo
do equador” EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO
Professor de Filosofia da UNIMEP,
do Colégio Piracicabano e do Curso
THE LAND BRASILIS: the paradise of the god(s) de Vida Religiosa dos Frades
Capuchinhos em Piraciccaba.
and (in)credulous people or the place where Doutorando em Comunicação e
“there is no sin below the equator” Semiótica pela PUC-SP
ejbortol@unimep.br

RESUMO Este ensaio tem por objetivo pensar a religião no contexto dos 500 anos de Brasil. No entanto, o fenômeno
do “descobrimento” do Brasil não pode ser pensado em separado do “descobrimento” do Novo Mundo, pois são mo-
mentos de um mesmo fenômeno: o “encobrimento” do outro enquanto outro. Conquista e evangelização são por-
tadoras de lógicas eurocêntricas que, em última instância, dizimaram povos e culturas eminentemente complexas e
semioticamente proliferantes. É no contexto global dessa discussão que se quer colocar em questão, então, a religião
no Brasil, sempre conectada com outros fenômenos da cultura e da história.
Palavras-chave descobrimento/encobrimento – eurocentrismo – religião – filosofia – semiótica – América La-
tina – Caribe.
ABSTRACT The objective of this essay is to consider religion within the context of the 500 years of Brazil. However,
the phenomenon of the “discovery” of Brazil cannot be considered separately from the “discovery” of the New World,
since they are aspects of the same phenomenon: the “covering” of the other as other. The conquest and evangelization
brought a Eurocentric logic that, in the end, greatly reduced the eminently complex and semiotically proliferate pe-
oples and cultures. It is within the global context of this discussion that the question of religion in Brazil is placed,
always connected to other phenomena of culture and history.
Keywords discovery/covering – eurocentrism – religion – philosophy – semiotics – Latin America – Caribbean.

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Em nome do Deus de todos os nome – Javé


Obatalá / Olorum / Oió
NASCIMENTO/CASALDÁLIGA/TIERRA

Sê plural como o universo!


FERNANDO PESSOA

Como memorial às 115 milhões de gentes crédulas que sofreram o pri-


meiro holocausto da espécie humana.

EM TORNO DO DESCOBRIMENTO/ENCOBRIMENTO

N
o ano de 1992 comemoraram-se os 500 anos de América. Inú-
meros foram os encontros, debates e simpósios, na ordem do dia
O sentido realizados, tendo por objetivo celebrar “festeiramente” ou refletir
mais criticamente – não só na América e Caribe, como também
destes 500 anos: na Europa, especialmente Espanha e Portugal – o sentido destes
descoberta, invasão, 500 anos: descoberta, invasão, evangelização, encobrimento do
evangelização, outro?1
encobrimento do Oito anos depois, está-se a comemorar os 500 anos de Brasil. Inúmeros, também,
outro? estão sendo os eventos comemorativos da grande façanha histórica. Se bem me recordo,
as comemorações dos 500 anos de América não marcaram tanto, como estão a marcar os
500 anos de Brasil. No entanto, o processo de encobrimento do outro é o mesmo, pois não
podemos nos pensar separadamente do continente. O continente americano foi a primeira
“periferia” da Europa moderna e marcou o “processo originário da constituição da sub-
jetividade moderna”. Como diz Enrique Dussel:
Fomos a primeira “periferia” da Europa moderna; quer dizer, sofremos globalmente des-
de nossa origem um processo constitutivo de “modernização” (embora naquele tempo
não se usasse esta palavra) que depois se aplicará à África e Ásia. Embora nosso continente
já fosse conhecido – como prova o mapa múndi de Henricus Martellus em Roma em
1489 –, só a Espanha, graças à habilidade política do rei Fernando de Aragão e à ousadia
de Colombo, tentou formal e publicamente, com os correspondentes direitos outorgados (e

1 A questão do “encobrimento” aparece tanto em Leopoldo Zea como em Enrique Dussel. Zea afirma: “(...)
Pero hablamos más de encubrimiento que de descubrimiento, ya que tanto España como Europa encontra-
ron en este nuestro Continente lo que querían encontrar; descobrieron lo que querían descubrir. Ahora toca
a la inteligencia de esta región realizar su próprio descubrimiento, partiendo precisamente del encubrimi-
ento que significó la hazaña del encuentro intercontinental, la conquista y colonización del nuevo conti-
nente. Hazaña que España inicia en el siglo XVI y es continuada por la Europa occidental en el siglo XVII,
dándose origen a las dos Américas que vienen enfrentadas en lucha dialéctica para imponer hegemonías o
para librarse de ellas” (1988, pp. 8-9). Já para Dussel, a América “foi a primeira região da Europa a ter a ‘expe-
riência’ originária de constituir o Outro como dominado e sob o controle do conquistador, do domínio do
centro sobre a periferia. A Europa se constitui como ‘centro’ do mundo (em seu sentido planetário). É o
nascimento da Modernidade e a origem de seu ‘Mito’!” (1993, p. 15).

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em franca competição com Portugal), lançar-se ao desponta, embora não tenha mostrado a cabeça por cima do
Atlântico para chegar à Índia. Este processo não é ane- muro do horizonte e somente vêem-se-lhe as pontas dos seus
dótico ou simplesmente histórico: é, além disso, o pro- dedos. Parece-me que vivemos pressionados pelo tempo, pois
cesso originário da constituição da subjetividade mo- se os 500 anos de América e os 500 anos de Brasil nos remetem
derna.2 ao passado, por outro lado o advento do terceiro milênio nos
O “descobrimento” da América e o do Brasil são mo- arremete ao futuro.
mentos de um mesmo fenômeno, portanto. Assim, ao se falar Passado e futuro, assim, nos colocam num presente
de Brasil no momento em que se está a comemorar os 500 anos crucial. Notadamente para nós da Latinoamérica e do Cari-
de “descobrimento”, faz-se necessário um pensamento mais be. Num estado de tensão existencial, de insatisfação daquilo
alargado, pois as realidades no continente latino-americano e que fomos e pouco sabemos e daquilo que seremos – e sobre
caribenho, mais do que díspares, são realidades complemen- o que precariamente ou quase nada sabemos –, três atitudes
tares, mesmo quando falamos de uma América hispânica e de são possíveis. A primeira, a de indiferença. A segunda, a de
uma América lusa. esquivar-se. Já a terceira – em se permanecendo na tensão
Aliás, aqui reside um sério problema. É como se o existencial, na insatisfação, como momento de negatividade
Brasil, à maneira de Portugal, desse as costas para o resto do –, a de se suportar e manter-se no sentido da afirmação: di-
continente, da mesma forma como o faz Portugal com o zer o ser, tanto em relação ao passado como em relação ao
continente europeu. Nós brasileiros não nos sentimos fazen- futuro. Porque, de acordo com José Ortega y Gasset, em seu
do parte do continente latino-americano, grosso modo. O prólogo das Lecciones sobre la Filosofía de la Historia
mesmo sucede com os portugueses em relação à Europa. Universal, de Hegel, “lo que vale más en el hombre es sua
Assim, pensar a questão do fenômeno religioso – bem capacidad de insatisfacción. Si algo divino posee es, precisa-
como outros fenômenos – no Brasil, neste contexto de co- mente, sua divino descontento, espécie de amor sin amado y
memoração dos 500 anos, implica necessariamente pensá-lo como dolor que sentimos en miembros que no tenemos”.3 E
conectado ao contexto da América Latina e do Caribe. Não no dizer também de Hegel: “O Espírito só conquista a sua
podemos mais nos ver separados desse grande e complexo verdade com a condição de encontrar-se a si mesmo na de-
semiótico que já é o nosso continente. Aqui existem, então, vastação absoluta”.4
questões e razões de ordem ontológica, epistemológica, me- Portanto, a terceira atitude parece ser a que deva ser
todológica, cultural, ética, estética, política e, por que não di- escolhida e assumida. Primeiro porque a mais penosa, pois o
zer, revolucionário-subversiva também. assumir a negatividade na sua compreensão aqui acenada
O continente, em sua complexidade cultural, foi en- coloca-nos na radicalidade do nada e, depois, porque a mais
coberto quando para cá acorriam os primeiros europeus em libertadora, pois nos coloca na conquista da verdade, ou da
suas naus e caravelas. Esta tese de Enrique Dussel será assu- meia-verdade. E em função também desta atitude ser ine-
mida por mim ao longo e ao largo deste breve ensaio, que rente à exigência do filosofar, do poetar e do acreditar.
tem por objetivo pensar o fenômeno religioso no Brasil. Outra Filósofos, poetas, teólogos e místicos, por terem vivido
tese, “desconhecida” por nós e pela tradição cultural euro- nesta ambiência radical do nada, “souberam dizer o ser”, o
péia moderna, é a de que estamos no “processo originário da “absoluto”, o “sagrado”, o “tudo”. Não vão ser “o ser e o na-
constituição da subjetividade moderna”, também no dizer de da” que em última instância caracterizarão o pensamento de
Dussel. Heidegger? Não vão ser o “nada e tudo” que irão resumir o
Estamos na antecâmara de um “novo horizonte”. No pensamento ascético de São João da Cruz? Não vão ser o “ser
contínuo e descontínuo da modernidade, o terceiro milênio já 3 ORTEGA y GASSET, 1989, p. 15. Lições (HEGEL, 1989) foi publicado
pelos discípulos de Hegel (1770-1831), após sua morte.
2 DUSSEL, 1993, p. 16. 4 REALE & ANTISERI, 1991, p. 105.

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e não-ser” os pontos-chave da metafísica da alteridade de representa uma das idéias mais dinâmicas do mundo
Enrique Dussel? atual. Uma série de fatores promoveu-a ao primeiro
Como veremos mais adiante, a América Latina e o Ca- plano da expectativa pública: o primeiro, a explosão
ribe, em especial o Brasil, no contexto do continente, é algo de demográfica, se se aceitando essa etiqueta tecnológica
aplicada ao fato de alguém nascer; seu crescimento
difícil apreensão. Somente o difícil é estimulante, diz José Le-
continental é o maior do mundo: 2,9% anual. Atual-
zama Lima em A Expressão Americana.5 Sendo ela difícil, já
mente, conta com mais de 270 milhões de habitantes,
é portadora de complexidade também. “A complexidade é irregularmente distribuídos em 21 milhões de quilô-
uma palavra problema e não uma palavra solução”, afirma metros quadrados. Esta explosão, que se produz no
Morin.6 Portanto, pensar o fenômeno religioso entre tantos contexto econômico chamado subdesenvolvimento,
outros – de per si, fenômenos interligados – no contexto dos ameaça transformar-se, por sua vez, em explosão po-
500 anos é já algo eminentemente difícil e complexo. lítica. Mas o que agora nos interessa especificamente é
que a partir desta cadeia de explosões, ou explosão em
AMÉRICA LATINA E CARIBE: cadeia, a América Latina vai antecipando uma outra: a
TEXTUALIDADES COMPLEXAS cultural.8
E CONTÍGUAS
Dado o objetivo deste trabalho, não tem lugar aqui
Mas, afinal, o que é a América Latina e o Caribe? discutir a América Latina – como o faz César Fernández Mo-
César Fernándes Moreno começa a introdução do li- reno – em seus múltiplos conceitos, como histórico, antro-
vro América Latina em sua Literatura com o seguinte tre- pológico, político e geográfico (ordem geológica). Mas, sim,
cho em epígrafe tirado das Lições de Hegel: reter a idéia de explosão cultural.
Por conseguinte, América é o país do porvir. Em tem- A despeito da explosão cultural que é a América La-
pos futuros se evidenciará sua importância histórica, tina e o Caribe, o próprio conceito de América Latina não
quem sabe na luta entre América do Norte e América abarca sua complexidade nem sua dificuldade. O conceito é
do Sul... É um país de nostalgia para todos os que estão impreciso, portanto.
enfastiados do museu histórico da Velha Europa... Até A origem da idéia de latinoamérica segue um desen-
agora o que aqui acontece não é mais do que eco do volvimento processual nada simples.
Velho Mundo e reflexo de uma vida alheia. Mas como Primeiramente, encontramos o nome de Las Índias
país do porvir, América não nos interessa, pois o filósofo
no século XVI, presente no imaginário de Colombo, “que de-
não faz profecias.7
sejava chegar à Ásia de Marco Polo”. Como também um ou-
Se o filósofo não faz profecias, como afirma Hegel, tro nome para Las Índias no pensamento do historiador e
pois a América como “país do porvir” não lhe interessa, é franciscano do século XVI Gerónimo de Mendieta: El Nuevo
verdade que hoje, um século e meio depois do dito de Hegel, Mundo. E, já na década de 1860, na França de Napoleão III,
a América é totalmente outra. quando o economista político de fama Michel Chevalier
(1806-1879) propunha a construção de um canal interoce-
O que para ele era porvir já é presente para a América; ânico no Panamá, em 1844, tem-se um outro nome que per-
o continente que era para ele natureza, é história já. Ele manece até nossos dias: L’Amérique Latine.9
falava de América do Norte e América do Sul: na do
Dizer a América Latina, para além ou aquém do seu
norte situa-se atualmente a nação mais forte do mun-
do; a do sul, sob o nome atualizado de América Latina, próprio conceito, é dizê-la não só a partir das questões da or-
dem do racial, do lingüístico, do religioso, mas sim enquanto
5 LIMA, 1988, p. 47.
6 MORIN, s/d, p. 8. 8 Ibid., pp. 15-16.
7 MORENO, 1972, p. 15. Cf. também: HEGEL, 1989, p. 177. 9 Cf. PHELAN, 1993, pp. 463-475.

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um complexo sim(b)iótico em (e de) te(n)são. Dizendo tão-somente às questões de ordem econômico-jurídica. Uma
d’outra maneira, a América Latina é mestiça, como afirma linguagem assim parece ser de uma prepotência imbecil,
José Martí em Nuestra América.10 Na mestiçagem há portanto. Fenômenos culturais, como o religioso, também
sim(b)iose de raças e interpenetração mental-neuronal. Real comumente, grosso modo, são tratados dessa maneira, no-
ou metaforicamente, a Europa foi modificada pela América; tadamente em ambientes acadêmicos, nos quais a assepsia
a América foi modificada pela Europa. do conhecimento se faz presente de maneira petulante.
Portanto, falar em 500 anos de América, em 500 anos É sabido que o mundo ocidental é pensado hierarqui-
de Brasil – pois o fenômeno do encobrimento é o mesmo – camente, e não anarquicamente, e, em que pese que já se ti-
é falar de algo extremamente grandioso. Por quê? Porque, nha notícias da América bem antes de ser “descoberta”, ela
como diz Ricardo Vélez Rodrigues, “no dudo en afirmar que nasce, portanto, já moderna. Como já sinalizado, esta é a tese
se trata de um hecho de tamaña magnitud, por cuanto es a central de Dussel em 1492 – O Encobrimento do Outro, em
partir del descubrimiento del Nuevo Mundo que la humani- que dialoga com toda a tradição do pensamento filosófico do
dad pasó a tener conciência de su dimensión planetária”.11 ocidente moderno e pós-moderno, como Edmund O’Gor-
Enrique Dussel, por sua vez, diz que “o descobrimento man, Alberto Caturelli, Richard Rorty, Karl-Otto Apel e Jür-
da América por espanhóis e portugueses significa uma revo- gen Habermas.
lução geopolítica sem precedentes na história mundial”.12 A tese de Dussel passa pelas diveras figuras (gestalt)
Assim, explosão cultural é, no dizer de César Fer- de leituras da América Latina, como “invenção”, “descobri-
nándes Moreno, uma concepção sintética na cultura latino- mento”, “conquista” e “colonização”, revelando os seus con-
americana, formada por culturas autóctones, culturas euro- teúdos teóricos, espaciais e diacrônicos distintos, mostrando
péias descobridoras, cultura africana (através da escravidão) como o Outro não foi descoberto como Outro, mas sim como
e, cultura dos imigrantes do século XIX. o “si-mesmo” e, portanto, afirmando que o Outro foi negado
A América Latina e o Caribe, enquanto um complexo como “encobrimento”. Essa tese de Dussel já teria anterior-
sim(b)iótico em (e de) te(n)são, são territórios de linguagens mente influenciado a obra de Tzvetan Todorov, A Conquista
adquiridas, de linguagens devoradoras e de linguagens nati- da América – a questão do outro.
vas. Outra tese de Dussel é a sinalização de “uma ‘teoria’
Portanto, não podemos ter uma leitura con-clusiva da ou ‘filosofia do diálogo’ – como parte de uma ‘filosofia da li-
América Latina e o Caribe, pois esta seria uma compreensão bertação’ do oprimido, do incomunicado, do excluído, do
fechada. Segundo César Fernándes Moreno, “dentro de um Outro”.14
tal complexo de tensões na América Latina, são quase infi- O pensamento de Enrique Dussel tem a América La-
nitas as possibilidades de ações e reações e, correlativamente, tina e o Caribe como horizonte, o que significa uma ruptura
a tentação intelectual de diluir seus problemas em outros com o pensamento eurocêntrico, que, segundo sua tese, ini-
próximos ou análogos”.13 Devemos ter sim uma leitura plu- cia-se a partir de 1492, quando a Europa-centro traz para
ralista e aberta, portanto. sua órbita econômica, política e cultural as outras três partes
Uma leitura con-clusiva da América Latina e do Ca- do planeta, ou seja, a América, a África e a Ásia. Isso pode ser
ribe é, em última instância, portadora de uma linguagem melhor precisado na evolução do pensamento moderno em
que se fecha com o poder, cuja pretensão é esgotar o real que termos teológico, científico e filosófico na forma de tecer os
ela é. Como, por exemplo, o Mercosul, que fica circunscrito dizeres sobre o Novo Mundo. É o que mais adiante veremos.
Ao introduzir a questão central do outro e da escuta
10
11
MARTÍ, 1992, pp. 480-487. do outro, Dussel já está postulando a questão da ética – fi-
RODRIGUES, 1991, vol. 2, p. 80.
12 DUSSEL, 1985, p. 166.
13 MORENO, 1972, p. 18. 14 DUSSEL, 1985, p. 8.

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losofia primeira do seu discurso filosófico. Nem uma ética mártir José Julián Martí (1853-1895), Ernesto Che Guevara,
eurocêntrica nem helenocêntrica, pois para ele é necessário Fidel Castro Ruz, Leopoldo Zea, Arturo Andres Roig, Gustavo
nos descentrar dos provincianismos ocidentalistas e univer- Gutiérrez, Leonardo Boff, Hugo Assmann, Enrique Dussel,
salistas. Assim, ao colocar a questão da escuta do outro Dus- Pablo Guadarrama Gonzalez, Raúl Fornet-Betancourt, entre
sel está apresentando a questão da exterioridade frente à to- tantos outros.
talidade totalizada, ou seja, à totalização do sistema. Com José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo
Assim, é a experiência do cara a cara na exterioridade Sarduy, a nossa estética neobarroca, vai ser pensada como
que permite destruir o fechamento, a totalização do sistema, contra-texto da latinoamerica e o Caribe. Lezama Lima, au-
superar os limites do sistema para ver o próximo, o outro en- tor de Paradiso, afirmará que, depois de apropriado e trans-
quanto semelhante e não mais idêntico, enquanto o mesmo. formado, o barroco entre nós foi uma arte da contra-con-
Estar cara a cara é se abrir ao infinito. Isso é o que Dussel irá quista: “Repetindo a frase de Weisbach, adaptando-a ao que
chamar de experiência metafísica da alteridade. é americano, podemos dizer que entre nós o barroco foi uma
Mas a experiência metafísica da modernidade foi a da arte da contraconquista”.16
mesmidade, ou seja, o Novo Mundo foi tratado como o mes- A apropriação que Lezama Lima faz do barroco ame-
mo, como o idêntico. No bojo de lógicas fechadas e identitá- ricano é distinta da do barroco europeu, pois, além de ser ori-
rias (como o eurocentrismo, o lingüicentrismo, o etnocen- ginal, sinaliza três aspectos fundamentais: nosso barroco se
trismo, o logocentrismo, o monoculturalismo), deixou-se de apresenta como uma tensão, é portador de um plutonismo e
compreender um Novo Mundo, portador de lógicas abertas, é também portador de um estilo plenário.
em expansão, e proliferantes em signos, formando um ma- Esse barroco vivo, pleno e dinâmico, associado às cul-
nancial de multiplicidade e contigüidade textuais. Ou seja, já turas periféricas, possibilitará a Lezama falar do Señor Bar-
éramos ricos, no “princípio”, em linguagens da oralidade, roco, que fará a arte da contra-conquista: “O primeiro ame-
gestualidade, sonoridade, ritmicidade, visualidade, olfatici- ricano que vai surgindo dominador de seus caudais é o nosso
dade e gustatividade. Já éramos totalmente alfabetizados.15 senhor barroco”.17 Aqui, em nossa estética neobarroca, reside
Essa experiência metafísica moderna da mesmidade empre- o conteúdo subversivo, revolucionário e político dos barrocos
endeu o primeiro grande holocausto da história da espécie americano e caribenho.
humana. O descobrimento como encobrimento do outro Toda essa literatura neobarroca que emerge nas dé-
foi o primeiro grande holocausto, no qual um complexo se- cadas de 60 a 80, e que apresenta o barroco como um “novo
miótico cultural foi todo dizimado, começando pela destrui- cânone” da estética pós-moderna latino-americana e cari-
ção das hierofanias antigas, dos templos, dos sacerdotes, dos benha, está muito próximo da problemática tanto filosófica
deuses, de símbolos, de ritos, de gestos, de textos, de todas as como teológica que também se apresenta neste período, ou
gentes crédulas. seja, o de uma Filosofia da Libertação e uma Teologia da Li-
Esse discurso metafísico da mesmidade da totalidade bertação, discursos e contra-textos proféticos. Assim são as
totalizada do centro começou a receber como contra-texto palavras preliminares de Enrique Dussel, em Filosofía de la
um discurso metafísico da alteridade da periferia enquanto Liberación: “Filosofía de la liberación, filosofía postmoder-
exterioridade, que se principia com Antonio de Montesinos na, popular, feminista, de la juventud, de los oprimidos, de los
(?-1545), a primeira voz profética na América. Essa voz condenados de la tierra, condenados del mundo y de la his-
profética vai ser seguida por Bartolomeu de Las Casas (1474- toria”.18 Tanto a literatura neobarroca, como a filosófica e a
1566), por Josué de Acosta (1539-1600), Bernardino de teológica, como formas elevadas e não estanques de pensa-
Sahagún (?-1590), continuando no herói, santo, apóstolo e 16 LIMA, 1988, p. 80.
17 Ibid., p. 80.
15 Cf. BORTOLETO, 1999, pp. 335-342. 18 DUSSEL, 1985, p. 9.

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mento profético da cultura latino-americana e da caribenha, el uso del cuerpo, y esto es lo mejor que pueden aportar) son
estão a problematizar esse complexo real que é o continente esclavos por naturaleza”.22
latino-americano e Caribe em sua complexidade textual de Na mesma linha de reflexão de Juan Ginés de Sepul-
multiplicidade e contigüidade.19 veda estará também o padre Oviedo, historiador das Índias e
Vejamos como o discurso metafísco da mesmidade inimigo de Bartolomeu de las Casas. Oviedo afirma: “Los que
(da totalidade totalizada do centro) e o discurso metafísico da sobresalen por su prudência y por su ingenio, pero no por sus
alteridade da periferia (enquanto exterioridade) se dialeti- fuerzas corporales, éstos son señores por naturaleza; al con-
zam. Ou, como os dizeres dos respectivos discursos do centro trário, los tardos y torpes de entendimiento, pero corporal-
sobre a América (teológico, científico e filosófico) e como o mente robustos para llevar a cabo las tareas necesarias, éstos
Señor Barroco vão inaugurando seu contra-texto e seus di- son siervos por naturaleza”.23
zeres como arte da contra-conquista. Esse debate em torno e sobre a inferioridade da Amé-
“Un gran debate se desenvuelve desde el descubrimi- rica e a justificação da exploração do novo continente e da
ento de América hasta la Ilustración. Este debate sirve de pró- guerra justa contra a sua população deslocar-se-á do âmbito
logo, por decir así, al sistema de valores que Europa y Estados do pensamento teológico para o âmbito do pensamento filo-
Unidos opondrán luego desde su altura imperial al pueblo de sófico da Ilustração, amparado pelas ciências naturais no sé-
América Latina.”20 Qual debate é este? É o debate iniciado na culo XVIII.
Europa, logo após o descobrimento, pelo dominicano espa- Vejamos, por exemplo, o que diz Buffon no âmbito das
nhol Bartolomeu de Las Casas. Esse frade dominicano, de ciências naturais:
formação tomista e cristã, do movimento da segunda esco-
El salvaje es dócil y pequeño por los órganos de la ge-
lástica hispânica, denunciou os abusos e explorações do co- neración; no tiene pelo ni barba, y ningún ardor para
lonialismo espanhol. Denúncia esta que colocava em questão com su hembra...quitadle el hambre y la sed, y habréis
na metrópole espanhola a natureza e os objetivos últimos da destruido al mismo tiempo el principio activo de todos
conquista. sus movimientos; se quedará estúpidamente descansa-
Protestos advindos dos britânicos, holandeses e fran- do en sus piernas o echado durante días enteros.24
ceses não faltaram ao frade dominicano. O mais violento a
Las Casas vem do próprio clero dividido a respeito de tal Voltaire, por sua vez, fundamentado-se no pensa-
questão. Juan Ginés de Sepulveda (1490-1573), cronista de mento de Hume, sobretudo em sua teoria climática, diz o se-
Carlos I e de Felipe II, denunciará Las Casas em defesa dos ín- guinte:
dios, afirmando em sua obra Demócrates o tratado sobre Hay alguna razón para pensar que todas naciones que
las causas de la guerra justa que a guerra da conquista vivem más allá de los círculos polares o entre los trópi-
das Índias e a guerra contra a população americana eram cos son inferiores al resto de la espécie” cuando afirma
justificadas.21 que “los puebros alejados de los trópicos han sido si-
Dessa maneira Sepulveda reformula a teoria da “es- empre invencibles, y que los pueblos más cercanos a los
cravidão natural”, contida na Política, de Aristóteles. Eis o trópicos han estado sometidos a monarcas.25
que diz o estagirita: “Todos aquellos que difieren de los de- Assim, desde Sepulveda e Oviedo, teólogos católicos do
más tanto como el cuerpo del alma o el animal del hombre século XVI, até os filósofos e naturalistas céticos do século XVIII,
(y tienen esta disposición todos aquellos cuyo rendimiento es
22 RAMOS, 1973, p. 80.
19 Cf. BORTOLETO, 2000, p. 96. 23 Ibid., p. 81.
20 RAMOS, 1973, p. 79. 24 Ibid., p. 82.
21 Cf. Diccionário de Filosofía, con autores y temas latinoamericanos, 25 Ibid., p. 83. Nessa mesma direção seguida por RAMOS (1973), vale
1986, p. 91. também conferir e referenciar a obra de GERBI, 1996.

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passando por De Paw, Bacon, De Maistre, Monstequieu e Bo- neoconservadores, como, por exemplo, Derrida, Foucoult,
din, até culminar no grandioso e, ao mesmo tempo, cínico Deleuze e Bataille.
pensamento de Hegel, não só ocorreu o processo de “enco- Segundo Habermas, em o Discurso:
brimento do Outro”, para usar linguagem dusseliana, mas
encobriu-se toda realidade de complexidade e contigüidade Foi Hegel quem inaugurou o discurso da Modernida-
textual que é a América Latina – nome este bem impreciso, de. Foi Hegel que introduziu o tema da certificação au-
tocrítica da modernidade; foi Hegel quem estabeleceu
como já visto, que não dá conta de abarcar todo o complexo
as regras, pelas quais se torna possível submeter o tema
manancial lingüístico, em termos semióticos, ou seja, as lin- a variações – a dialética do iluminismo. Ao mesmo
guagens: oral, gestual, rítmica, sonora, visual, olfato-degus- tempo que elevou a história contemporânea a um nível
tativa. Nesse sentido, vejamos o que Hegel diz em suas Lec- filosófico, Hegel pôs o eterno em contacto com o tran-
ciones: sitório, o intemporal com o actual e, deste modo, trans-
formou radicalmente o carácter da filosofia. É certo
América se há revelado siempre y sigue re- que Hegel não queria de modo nenhum cortar com a
velándose impotente en lo físico como en lo tradição filosófica; é só a geração seguinte que toma
espiritual. Los indígenas, desde el desembarco de los consciência deste corte.28
europeos, han ido pereciendo al soplo de la actividad
europea. En los animales mismos se advierte igual in- Se foi Hegel quem inaugurou o discurso da moder-
ferioridad que en los hombres. La fauna tiene leones, ti- nidade, é verdade que o “Novo Mundo” do qual Habermas
gres, cocodrilos, etc.; pero estas fieras, aunque poseen fala, um “dos grandes acontecimentos à volta de 1500”, ficou
parecido notable con las formas del viejo mundo, son, excluído deste discurso. Hegel exclui o “Novo Mundo” por
sin embargo, en todos los sentidos más pequeñas, más causa de suas determinações naturais, porque este “Mundo
débiles, más impotentes. Aseguran que los animales
Novo” está cindido em duas partes e mantém uma conexão
comestibles no son en el Nuevo Mundo tan nutritivos
externa, enquanto o “Velho Mundo”, embora dividido em
como los del viejo. Hay en América grandes rabaños de
vacunos; pero la carne de vaca europea es considerada três, suas porções, ao contrário de uma conexão externa,
allá como un bocado exquísito.26 mantêm uma conexão interna, essencial e necessária exigên-
cia da totalidade. O Mar Mediterrâneo é a região natural da
Jürgen Habermas, positivamente e acertadamente, “comunicação trinitária”, ou seja, Europa, África e Ásia. As-
afirma em O Discurso Filosófico da Modernidade que “a sim diz Hegel:
descoberta do ‘Novo Mundo’ bem como o Renascimento e a
Una vez que hemos terminado con el Nuevo Mundo y
Reforma – os três grandes acontecimentos à volta de 1500 –
los sueños que puede suscitar, pasemos al Viejo Mundo.
constituem a transição epocal entre a Idade Moderna e a Ida-
Este es, esencialmente, el teatro de lo que
de Média”.27 Ele desenvolve uma Teoria da Ação Comunica- constituye el objeto de nuestra consideraci-
tiva. Nela há uma teoria da racionalidade, uma teoria da co- ón, de la historia universal. (...) El Viejo Mundo
municação e uma teoria da modernidade. Na Teoria da Ação consta de tres partes; ya el sentido que de la naturaleza
Comunicativa, Habermas mantém uma conexão entre a ra- tenían los antiguos, supo distinguirlas acertadamente.
cionalidade, a modernidade e a sociedade. Com isso ele quer Esta división no es casual, sino que responde a una ne-
criticar o adeus à modernidade realizado pela pós-moderni- cesidad superior y es adecuada al concepto.(...) Las tres
dade e seus autores – que, nesta sua obra, são aqueles que partes del mundo mantienen, pues, entre sí una rela-
rompem com a promessa do Iluminismo –, chamados de ción esencial y constituyen una totalidad. Lo más ca-
racterístico es que se hallan situadas alrededor de un
26 HEGEL, 1989, pp. 170-171 (destaque meu).
27 HABERMAS, 1990, pp. 16-17. 28 Ibid., p. 57.

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mar, que constituye su centro y que es una vía de co- cia à fundação da modernidade em sua conexão com a sub-
municación. Tiene esto gran importancia. El mar Me- jetividade, para ficar excluída, como também deixando de
diterráneo es elemento de unión de estas tres partes del fora dessa conexão Espanha e Portugal, como momentos
mundo, y ello lo convierte en el centro de toda la his- constitutivos da subjetividade moderna. Em 1492 – O Enco-
toria universal. El Mediterráneo, com sus muchos gol-
brimento do Outro, magistralmente Dussel enfrenta tal
fos y bahías, no es un Océano, que empuja hacia lo in-
determinado y con el cual el hombre solo mantiene questão e sinaliza sua posição de uma mundialidade
una relación negativa. El Mediterráneo invita al hom- transmoderna a partir da “razão do Outro”, perante o de-
bre a utilizarlo. El Metiderráneo es el eje de la bate dos modernos (comunicativos) e dos pós-modernos
historia universal. Todos los grandes Esta- (não comunicativos): “Para Habermas, como para Hegel, o
dos de la historia antigua se encuentran en descobrimento da América não é um determinante constitu-
torno de este ombligo de la tierra.29 tivo da Modernidade. Desejamos demonstrar o contrário. A
experiência não só do ‘descobrimento’, mas especialmente da
Se o “Novo Mundo” não faz parte da constituição na-
tural e essencial do “ombligo de la tierra”, tanto Hegel como ‘conquista’ será essencial na constituição do ego” moderno,
Habermas também estão a dizer, em última instância, que o mas não só como subjetividade ‘centro’ e ‘fim’ da história”.32
“Novo Mundo” não faz parte constitutiva do “princípio dos Se o Novo Mundo nasceu “moderno” com a moder-
tempos modernos: a subjetividade”.30 nidade européia e se foi tecido no “processo originário da
No Discurso, Habermas estabelece a conexão entre o constituição da subjetividade moderna”, como demonstrado
princípio de subjetividade e a modernidade: até o momento, pode-se dizer que toda a tradição ocidental
teológico-filosófico-científica, enquanto um sistema de lin-
Na modernidade, portanto, a vida religiosa o Estado e guagens logocêntrico, lingüicêntrico e hierárquico, trans-
a sociedade, bem como a ciência, a moral e a arte plantou-se toda ao Novo Mundo como um sistema de valores
transformaram-se em outras tantas encarnações do
significantes, como por exemplo idiomático-lingüístico, éti-
princípio da subjetividade. A sua estrutura é englobada
co-religioso, político-econômico-jurídico. E nós, além de já
como tal na filosofia, nomeadamente como subjecti-
vidade abstracta no Cogito ergo sum de Descartes, na sermos “alfabetizados” desde o “princípio”, também já tí-
forma da autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se nhamos tudo isto aqui, como dito anteriormente.
da estrutura da auto-relação do sujeito congnoscente
que se debruça sobre si como sobre um objeto para se NOSSA PROTO-HISTÓRIA:
compreender como uma imagem reflectida num es- COISAS DE ÍNDIOS, BRANCOS E NEGROS
pelho, precisamente, ‘numa atitude especulativa’. Desta
E o que aconteceu com a complexa linguagem reli-
abordagem da filosofia da reflexão faz Kant a base das
suas três “Críticas”. Faz da razão o supremo tribunal
giosa já existente aqui no Novo Mundo?
perante o qual tem de apresentar uma justificação tudo Vale dizer que o Novo Mundo pré-colombiano como
aquilo que de uma forma geral reclama qualquer va- um todo era já eminentemente religioso. É a nossa proto-his-
lidade.31 tória.33
A tese dusseliana diverge frontalmente da perspectiva 32 DUSSEL, 1993, p. 23.
33 Cf. DUSSEL, 1985, t. II, p. 45: “Chamo a tudo isso de proto-história.
hegel-habermaseana. A “descoberta” da América, que já é Nossa história só começaria no dia em que o mais ocidental do ocidente,
essencialmente “conquista”, será de fundamental importân- Colombo e a Espanha, e o mais oriental do oriente, que são os índios (os
índios são asiáticos), confrontam-se no que fundamentalmente será o
processo de conquista e evangelização, captada esta como um grande
29 HEGEL, 1989, pp. 177-178 (destaques meus). processo de aculturação. Em 1492 começa a história da América Latina,
30 HABERMAS, 1990, p. 27. que não é nem o pai-Espanha nem a mãe-Índia, mas um filho que não é
31 Ibid., p. 29. Ameríndia nem é Europa, mas algo diferente”.

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O mundo dos maia-astecas, dos incas, dos chibchas e ca como um etnocentrismo e monoculturalismo foram se
os índios da América do Norte e os da América do Sul era impondo sob o domínio dos portugueses:
constituído por um complexo lingüístico religioso, pensado
Outra sorpresa: los portugueses no lograron cierta-
como um sistema vivo e dinâmico relacionado com os ritmos
mente evaluar, durante todo el período de su dominio
dos astros, das águas, da vegetação, dos animais, da existên- sobre Brasil (1500-1822), la complejidad etnológica de
cia humana, formando, assim, um lar cósmico demorada- este país. Nunca sospecharon que Brasil fuese uno de
mente e penosamente construído e criado.34 los países más complejos del mundo en términos de
cultura humana, con casi mil cuatrocientos pueblos
Desde tiempos inmemoriales, América Latina há sido distintos pertenecientes a cuarenta familias lingüísticas,
una tierra de dioses y de ídolos. Pirámides al Sol y a la de las cuales apenas dos troncos lingüísticos – el tupi y
Luna, vestigios de templos y de cuevas sagradas nos re- el macro-jê – fueron de alguna forma estudiados. Sin
cuerdan la riqueza simbólica de civilizaciones del eter- embargo había otras familias lingüísticas como el aru-
no retorno, del tiempo sagrado cuyo calendario estaba ak, el karib, el tukano, aparte de lenguas aisladas o de-
movido por los dioses. Con las conquistas ibéricas, saparecidas como el kariri. El ‘mapa etnohistórico’ ela-
aquellas manifestaciones sagradas, fruto de grandes ci- borado por Curt Nimuendajú en 1944, nos vino a mos-
vilizaciones, han sido sustituidas por el dios de un cris- trar esa complejidad, que no aparece en ningún texto
tianismo que encubrió a las hierofanías antiguas. Tem- portugués sino de forma muy velada. Los portugueses
plos y catedrales cristianos se construyeron en el lugar de manera simple lo cubrían todo bajo el camuflaje de
mismo de los antiguos centros ceremoniales preco- la expresión ‘indio’: ‘En Brasil no hay nada: sólo
lombinos.35 indios’. Ese indio, en el modo de pensar de los colo-
nizadores, era un ser genérico y estereotipado, un sal-
No que diz respeito ao Brasil, sem perder as conexões vaje y un pagano o gentil. El necesitaba de civilización
com a dimensão maior do continente americano, bem como y evangelización.36
com o processo de encobrimento do outro e do originário da
constituição da subjetividade moderna, algo semelhante A complexidade etnológica, portanto, já semiótica, em
aconteceu, e vem ocorrendo mesmo hoje em dia, no que tan- momento algum foi considerada nem avaliada no contexto
ge às nações indígenas ainda existentes e resistentes. O dis- do processo de conquista e evangelização. Como bem diz Gil-
curso metafísico da mesmidade da totalidade totalizada do berto Freire, “com a intrusão européia desorganiza-se entre
centro reduziu o complexo mundo pluricultural e pluriétnico os indígenas da América a vida social e econômica; desfaz-se
debaixo da expressão índio. Eduardo Hoornaert assim indi- o equilíbrio nas relações do homem com o meio físico”.37
Como sinalizado anteriormente, com o processo do
34
35
Cf. DUSSEL, 1985, t. II, pp. 35-39. encobrimento todo um sistema lingüístico-semiótico-cultu-
BASTIAN, 1997, p. 7. O astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Frei-
tas Mourão, no prefácio ao livro Chuen: o novo calendário maia, de ral-ocidental é introduzido nestas bandas de cá. E nós já tí-
Franz Joseph Hochleitner (Juíz de Fora/Campinas: EDUFJF/Pontes, 1994),
assim diz: “Estes documentos, habitualmente denominados Códigos de
nhamos tudo isso também já de modo elevado, porém, com-
Dresden, Paris, e Madri, comprovam que o desenvolvimento dos Maias pletamente distinto do sistema vigoroso e articulado do eu-
em assuntos aritméticos e astronômicos era equivalente ou mesmo
superior ao de outras civilizações ocidentais contemporâneas. Um dos ropeu em forma de império, com uma moral e uma religião,
bons exemplos disto é o fato de terem conhecido o conceito do zero bem como com uma noção de pecado e de culpa. E o pecado
muito antes da sua utilização na Europa” (p. 8). E mais adiante: “A astro-
nomia desenvolveu-se entre os maias por ser um dos elementos funda- e a culpa nós não conhecíamos. Por aqui eles foram intro-
mentais para a prática dos rituais religiosos, na maioria das vezes
realizados durante a noite. Para provar este costume, existe uma gravura
duzidos pelos portugueses, menos ortodoxos que os espa-
no Código de Mendoza na qual aparece um sacerdote tocando algum nhóis, e pelos ingleses puritanos.
instrumento musical enquanto outro observa as estrelas para determinar
a hora do início das cerimônias” (p. 10). Por outro lado, sabe-se que nos
dois eixos civilizatórios americanos, ou seja, os maia-astecas e os incas, a 36 HOORNAERT, 1995, p. 294 (destaque meu).
escrita, por exemplo, já conhecida, era tida como dádiva dos deuses. 37 FREYRE, 1997, p. 89.

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De acordo com Gilberto Freyre, “o ambiente em que reduções, bem como as missões, vão dar início àquilo que se
começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual”. E pode chamar de origem das primeiras cidades no continente
prossegue o autor: latino-americano, no sentido moderno do termo.
O europeu saltava em terra escorregando em índia (...) la reducción puede ser definida como un procesa-
nua; os próprios padres da Companhia precisavam miento de gente, un proceso de producción de ‘gente
descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. nueva’, sin memoria del pasado, o com memoria ‘ne-
Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar gativa’, de rechazo del pasado. En lo fundamental, se
pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se trataba de ‘convertir’ al indio específico – ya hablamos
entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfre- aquí de los 1.400 pueblos que vivían en el actual terri-
gar-se nas pernas desses que supunham deuses. Da- torio brasileño antes del 1500 – en un indio genérico
vam-se ao europeu por um pente ou um caco de es- denominado caboclo, tapuio, caipira, o simplemente
pelho.38 cabra, com toda la carga de rachazo que recaía sobre
esos nombres.43
Longe da mulher legítima, o português vai se dispor
da mulher indígena, a não legítima, e ela, no dizer de Luis da Hegel enfatiza muito bem esse processo de produção
Camara Cascudo, será nossa primeira cozinheira, ou seja, a de “gente nova” que, destituídos de moral, de espírito elevado,
cunhã. Não podemos nos esquecer que “todos os indígenas de civilização e, portanto, de história, precisam ser pedago-
brasileiros conheciam o fogo, sabendo acendê-lo e utilizar gizados quanto às necessidades de se elevarem à atividade do
para preparo de alimentos, aquecimento e defesa, guerreira e ser homem, pois nossos índios seriam apenas natureza e vi-
mágica”.39 veriam num estado natural de selvagens e como incultura-
dos. Assim Hegel ilustra esta realidade do índio:
O Português encontrou no Brasil mulher fácil, abun-
dante, amorosa. Anchieta indignava-se em Piratinin- Los hemos visto en Europa, andar sin espíritu y casi sin
ga, julho de 1554, ‘onde as mulheres andam nuas e capacidad de educación. La inferioridad de estos indi-
não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas viduos se manifiesta en todo, incluso en la estatura.
cometem e importunam os homens, jogando-se com Solo las tribus meridionales de Patagonia son de fuerte
eles nas redes porque têm por honra dormir com os naturaleza; pero se encuentran todavía sumidas en el
Cristãos.40 estado natural del salvajismo y la incultura. Las corpo-
raciones religiosas los han tratado como convenía, im-
José de Anchieta em sua poética assim diz dos rapazes poniéndoles su autoridad eclesiástica y dándoles traba-
que corriam atrás das mulheres: “Aépe kunuminguasú / jos calculados para incitar y satisfacer, a la vez, sus ne-
kuñã oimomosémbae, / tapuipéra potá ñe / ñaimbyára pupé cesidades. Cuando los jesuitas y los sacerdotes católicos
katú / ojekotirúng baé?”.41 quisieron habituar a los indígenas a la cultura y mora-
O processo de aculturação do índio se deu nos alde- lidad europea (es bien sabido que lograron fundar un
amentos ou reduções na América lusa e em missões na Amé- Estado en el Paraguay y claustros en Méjico y Califor-
rica hispânica. Na verdade não passavam de verdadeiros nia), fueron a vivir entre ellos y les impusieron, como a
campos de concentração de índios presos manu militari, menores de edad, las ocupaciones diarias, que ellos eje-
como afirma Eduardo Hoornaert.42 Esses aldeamentos ou cutaban – por perezosos que fueran – por respeto a la
autoridad de los padres. Construyeron almacenes y
38 Ibid., p. 93. educaron a los indígenas en la constumbre de utilizar-
39 CASCUDO, 1983, p. 95.
40 Ibid., p. 172.
los y cuidar previsoramente del provenir. Esta mane-
41 ANCHIETA, 1954, “Na festa do natal”. Versão portuguesa: “E êsses rapa-
zes / que perseguem mulheres, / cobiçam escravas / e pelos matos / se 42 Cf. HOORNAERT, 1995, p. 297.
emboscam?” (p. 764). 43 Ibid., p. 297.

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ra de tratarlos es indudablemente la más A primeira religião de nosso continente, e de forma


hábil y propia para elevarlos; consiste en to- particular de nosso país, foi sendo substituída pela religião da
marlos como a ninõs. Recuerdo haber leído tradição bíblica, mas, como diz Hoornaert, “para la forma-
que, a media noche, un fraile tocaba una ción del cristianismo en Brasil, más importante que las re-
campana para recordar a los indígenas sus ducciones fue el mundo de los ingenios”.47 Foi para o traba-
deberes conyugales. Estos preceptos han lho no engenho e para o plantio da cana-de-açúcar que o
sido muy cuerdamente ajustados primera- negro fez seu ingresso no mundo americano, especialmente
mente hacia el fin de suscitar en los indíge- na América Latina e no Caribe e de forma especial no Brasil,
nas necesidades, que son el incentivo para como mão-de-obra escrava. Isso porque o Brasil foi o maior
la actividad del hombre.44 produtor mundial de açúcar até o século XVII.
Segundo Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da
Com o “processamento de gente nova”, toda uma
América Latina,
complexa cultura vai sendo instaurada. Por exemplo, o tupi
foi dando lugar à língua portuguesa; a religião original usava (...) as colônias espanholas proporcionaram, em pri-
o nome Jurupari para identificar o deus indígena, que foi meiro lugar, metais. Muito cedo descobriram-se, nelas,
sendo substituído por Tupã (trono), significando, na expres- os tesouros e os veios. O açúcar, relegado a um segundo
plano, foi cultivado em São Domingos, depois em Ve-
são do jesuíta Nóbrega, um deus terrível de “meter medo nos
racruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba. En-
índios”; as normas reguladoras das sociedades indígenas fo- tretanto, até meados do século XVII, o Brasil foi o maior
ram trocadas por comportamentos ocidentais e coloniais, produtor mundial de açúcar. Simultaneamente, a co-
através das mãos dos jesuítas.45 Isso equivale a dizer que uma lônia portuguesa da América era o principal mercado
moral foi se impondo, fundamentalmente a moral cristã dos de escravos: a mão-de-obra indígena, muito escassa,
primeiros tempos da modernidade. Outro nome que o índio extinguia-se rapidamente nos trabalhos forçados, e o
açúcar exigia grandes contingentes de mão-de-obra
genérico recebeu, além de caboclo, tapuio, caipira e cabra,
para limpar e preparar os terrenos, plantar, colher e
foi o de bugre, portador já de uma conotação moral-teólo- transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A so-
gica, portanto de homens que portavam já um pecado imun- ciedade colonial brasileira, subproduto do açúcar, flo-
do. Gilberto Freyre assim diz: resceu na Bahia e Pernambuco, até que o descobri-
mento do ouro transferiu seu núcleo central para Mi-
A denominação de bugres dada pelos portugueses aos nas Gerais.48
indígenas do Brasil em geral e a uma tribo de São Pau-
lo em particular talvez exprimisse o horror teológico de O mercado internacional estava a exigir que o Brasil
cristãos mal saídos da Idade Média ao pecado nefando, construísse seu primeiro projeto econômico em torno da
por eles associado sempre ao grande, ao máximo, de cana-de-açúcar. Para isso, então, um intenso tráfico de es-
incredulidade ou heresia. Já para os hebreus o termo cravos negros entre regiões brasileiras, como São Luís, Olin-
gentio implicava idéia de sodomita; para o cristão me- da/Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e a África Ocidental e
dieval o termo bugre ficou impregnado da mesma Moçambique foi desenvolvido.49 No entanto, “jamais sabere-
idéia pegajosa de pecado imundo. Quem fosse herege mos o número exato e as origens certas dos africanos em-
era logo havido por sodomita; como se uma danação barcados para o Brasil, desde a primeira metade do século
arrastasse inevitavelmente à outra.46 XVI”.50 Eduardo Hoornaert diz ser 3,6 milhões o número de

44 HEGEL, 1989, pp. 171-172 (destaque meu). 47 HOORNAERT, 1995, p. 299.


45 Cf. HOORNAERT, 1995, pp. 297-299. 48 GALEANO, 1996, p. 73.
46 FREYRE, 1997, p. 119. 49 Cf. HOORNAERT, 1995, p. 295.

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africanos oficialmente remetidos ao Brasil, sem considerar o A África é nosso horizonte; é lá que temos de nos
contrabando, muito importante, em especial no século XIX.51 olhar e nos escutar, portanto. Mais que o mundo eurocên-
Elias Wolff, citando frei Hermínio Bezerra de Oliveria, afirma trico, é a África o diapasão e a escala do nosso olhar e do nos-
que, “de cada 100 mil negros arrancados das costas africa- so escutar. “No se puede entender a Brasil sin mirar hacia el
nas, apenas 65 mil chegavam às costas brasileiras e destes horizonte africano, de donde nos vino vida e inspira-
cerca de 5 mil morriam de banzo nos primeiros meses” e, ci- ción, aparte de una mano de obra tan importante que sin
tando Júlio J. Chiavenato, que “100 milhões de africanos fo- ella no se hace nada en este país. El jesuita del siglo XVII, An-
ram ‘escravizados e mortos para atender ao sistema escravo- tônio Vieira, afirmaba: ‘El Brasil es el azúcar, y el azúcar es el
crata das Américas (...). Não houve um genocídio maior na negro’, y ‘el Brasil tiene su cuerpo en América y su alma en
história da humanidade, nem em número nem em brutali- Africa’.”54
dade, do que o cometido contra os escravos africanos’”.52 O que dá a garantia de saudabilidade do continente
Os números neste caso contam muito. No século XVI, americano como um todo é o processo de amalgamação da
cerca de 15 milhões de índios foram mortos; no sistema es- presença negra. Pode-se dizer que tal presença está a nos
cravocrata das Américas, algo em torno de 100 milhões de “salvar”. Esta presença está já entranhada em todos os poros
africanos foram escravizados e mortos; no século XX aproxi- da complexa cultura americana em sua totalidade e, de for-
madamente 6 milhões de judeus foram exterminados sob o ma toda particular, no Brasil e no Caribe: na sonoridade, na
gustabilidade, na gestualidade, na oralidade, na ritmicidade,
regime nazista. Com isso quero tão-somente ilustrar que, an-
na cromalidade etc. Gilberto Freyre nos sinaliza isso:
tes do extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Pro-
vincial, cerca de 115 milhões de pessoas, entre índios e afri- Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em
canos, foram vítimas do primeiro grande holocausto e o mai- que se deliciam nossos sentidos, na música, no
or da história da espécie humana no planeta. Aldeamentos e andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em
engenhos foram na verdade os primeiros campos de concen- tudo que é expressão sincera de vida, traze-
tração da história, e a América foi o cenário disto. O desco- mos quase todos a marca da influência negra. Da es-
brimento, como encobrimento do outro, foi o primeiro gran- crava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de
mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolen-
de holocausto da história humana. Nenhuma filosofia, ne-
gando na mão o bolão de comida. Da negra velha que
nhuma teologia, nenhuma teoria científica e cultural podem nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-as-
ficar insensíveis a isto. Nenhum centro de saber, nenhuma sombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-
igreja, nenhum Estado podem ignorar tal realidade. Nenhu- de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou
ma pessoa pode não querer ver tal evento humano de pulsão no amor físico e nos transmitiu, ao ranger
destruidora. da cama-de-vento, a primeira sensação
Estamos aqui diante daquilo que Dussel chama de a completa de homem. Do moleque que foi o nosso
razão dominadora, vitimária e violenta, ou seja, o momento primeiro companheiro de brinquedo.55
irracional do mito sacrificial da modernidade, que se funda- Mas o negro não foi evangelizado nem cristianizado
menta na “falácia eurocêntrica” e “desenvolvimentista”. Esse por processos de catequese, à maneira e semelhança dos ín-
núcleo irracional da razão moderna tem de ser negado, e não dios nos aldeamentos. Muito pelo contrário. Eles foram já, no
o lado emancipador da razão que precisa subsumir.53 dizer de Eduardo Hoornaert, no mundo devocional do enge-
50
nho, cristianizados por “imersão cultural”, isso porque não
CASCUDO, 1983, vol. 1, p. 182.
51 Cf. HOORNAERT, 1995, p. 295.
52 WOLFF, 1999, p. 15. 54 HOORNAERT, 1995, p. 295 (destaque meu).
53 Cf. DUSSEL, 1993, p. 24. 55 FREYRE, 1997, p. 283 (destaques meus).

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havia uma sistemática catequese com catecismos e vocabu- dos bantos, o Ser Supremo corresponde a Zambi. O orixás
lários próprios ao aprendizado da fé, mas tão-somente o uni- correspondem aos ancestrais, que são cultuados. Na ma-
verso devocional que se praticava no engenho, muito distinto cumba se cultua o Preto Velho.
da ortodoxia e burocracia católico românica européia. Daí Vão ser nestas duas grandes matrizes que se origina-
nasceria um cristianismo devocional que subsumiria outras rão as religiões afro-brasileiras. Do eixo dos sudaneses tem-
práticas religiosas vindas de fora, por exemplo o islamismo, se: candomblé, xangô, batuque, casa ou tambor de mina; já
bem como das tradições indígenas. Assim nos diz Gilberto do eixo dos bantos, tem-se: macumba, umbanda e quinban-
Freyre: da. Outros grupos são encontrados, como pajelança, catimbó
e jurema. Em que pese que haja multiplicidade e a diferença
O catolicismo das casas-grandes aqui se enriqueceu de
seja grande entre as tradições religiosas afro-brasileiras, exis-
influências muçulmanas contra as quais tão impotente
tem elementos comuns. Elias Wolff sinaliza os seguintes: idéi-
foi o padre-capelão quanto o padre-mestre contra as
corrupções do português pelos dialetos indígenas e as reencarnacionistas, o monoteísmo, o fenômeno da posses-
africanos. É ponto a que nos havemos de referir com são e o rito de iniciação de um novo membro.58
mais vagar, esse da interpenetração de influências de Mas esses homens crédulos – à maneira da redução
cultura no desenvolvimento do catolicismo brasileiro e genérica de índios – foram vistos tão-somente na perspectiva
da língua nacional. A esta altura apenas queremos sa- do sistema escravocrata, ou seja, “sempre que consideramos
lientar a atuação cultural desenvolvida na formação a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a
brasileira pelo Islamismo, trazido ao Brasil pelos escra- ação do escravo, e não a do negro per si, que apreciamos”.59
vos malês.56
A presença do negro, e conseqüentemente a presença
E, mais adiante, prossegue: da África Mãe, nos complexificou, semioticamente falando. E
no entanto a visão dominante e ainda imperante do negro,
Os negros maometanos no Brasil não perderam, uma bem como da África, passa pela dimensão da inferioridade
vez distribuídos pelas senzalas das casas-grandes colo- cultural e da raça deletérea. O negro foi acusado de introdu-
niais, o contato com a África. Não perderam-no aliás os zir uma moral deletéria pela sua condição de escravo mes-
negros fetichistas das áreas de cultura africana mais mo. O erotismo, a luxúria e a depravação comunicado ao
adiantada. Os Nagô, por exemplo, do reino de Ioruba, brasileiro têm a ver com o defeito da raça africana. Foi ela a
deram-se ao luxo de importar, tanto quanto os mao- responsável por corromper a vida sexual da sociedade brasi-
metanos, objetos de culto religioso e de uso pessoal.
leira. Também foi responsável pela sifilização do Brasil. Não
Noz-de-cola, cauris, pano e sabão-da-costa, azeite-
é o que acontece com a aids hoje em dia, quando se afirma
de-dendê.57
ter sido ela originada no continente africano? Nas palavras de
A presença dos negros africanos no Brasil está ligada Freyre,
a dois grandes grupos étnico-culturais, os bantos e os suda-
Joaquim Nabuco salientou “a ação de doenças africa-
neses. No eixo da tradição sudanesa em termos religiosos en-
nas sobre a constituição física do nosso povo”. Teria sido
contra-se a crença num Ser Supremo, isto é, em Olorum, esta uma das terríveis influências do contágio do Brasil.
que juntamente com Obatalá é responsável pela criação. Um ou outro viria já contaminado. A contaminação
Entre estes e os homens, encontram-se de 400 a 600 orixás, em massa verificou-se nas senzalas coloniais. A “raça
como Exu, Ogum, Oxossi, Ossaim, Xangô, Iansã, Oxum, inferior”, a que se atribui tudo que é handicap no bra-
Omulu-Obaluaê, Iemanhá e Oxalá. Já no eixo da tradição sileiro, adquiriu da “superior” o grande mal venéreo

56 Ibid., 1997, p. 313. 58 Cf. WOLFF, 1999, pp. 16-17.


57 Ibid. 59 FREYRE, 1997, p. 315.

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que desde os primeiros tempos de colonização nos de- não nos esquecermos mais do quão somos devedores e tri-
grada e diminui.60 butários de valores que estão a manter este continente como
um todo eminentemente saudável, para não nos esquecer-
Em Hegel, essa visão encontra sua justificativa filosó-
mos de não vos esquecer, oh! Mãe África, porque nos esque-
fico-teológica à maneira da visão do indígena. O continente
ceríamos a nós mesmos, diferentemente do Velho Mundo,
africano e o negro no pensamento hegeliano encontram a vi-
sempre portador da razão dominadora, vitimária, violenta,
são acabada e definitiva do pensar eurocêntrico. Ainda que
considere a África, como continente, um momento da tríade, da morte, deste mundo, conforme disse Napoleão citado pelo
porque conectada à Europa e à Asia pelo Mar Mediterrâneo próprio Hegel, “Cette vieille Europe m’ennuie”. Portanto, oh!
– ou seja, por fazer parte do “ombligo de la tierra” –, ela não Mama “África / me devolve meu canto... / Meu sofrimento foi
deve ser esquecida nem abandonada tão-somente por fazer tanto / que até deixei de cantar! / Conta, minha mãe preta
parte da soleira da história universal, do umbral da história, bonita, / como se faz essa luta... / Meu povo vai te escutar”.62
residindo aí, ainda segundo Hegel, o que de mais terrível per- Eduardo Hoornaert afirma que “una historia del cris-
tence à natureza humana: o negro, não tendo nenhuma mo- tianismo en Brasil no puede evitar la confrontación con esas
ral, e, sendo indomável, não pode desenvolver-se nem edu- dos realidades básicas: el mundo indígena y el mundo afri-
car-se, e assim sempre tem sido. Hegel, assustadoramente, cano”.63 Pode-se dizer que tal princípio é válido para a com-
desse modo diz: preensão cultural mesma do Brasil. O cristianismo que aqui
se desenvolve e a forma como ele se manifesta não podem ser
De todos estos rasgos resulta que la característica del pensados sem os elementos da expressão religiosa indígena e
negro es ser indomable. Su situación no es susceptible
sem os elementos da expressão africana, embora seja verdade
de desarollo y educación; y tal como hoy los vemos han
sido siempre. Dada la enorme energía de la ar- que bem poucos elementos indígenas tenham influenciado o
bitrariedad sensual, que domina entre cristianismo no Brasil. Diferentemente, por exemplo, do Mé-
ellos, lo moral no tiene ningún poder. El xico, onde os elementos da expressão indígena formam o
que quiera conocer manifestaciones terri- substrato de todo catolicismo cristão, resultando um sincre-
bles de la naturaleza humana, las hallará tismo barroco dinâmico. No Brasil, ao contrário, este sincre-
en África. Lo mismo nos dicen las noticias más an- tismo barroco dinâmico vai se dar muito mais com os ele-
tiguas que poseemos acerca de esta parte del mundo; la mentos da expressão africana. Daí nosso barroquismo latino-
cual no tiene en realidad historia. Por eso abando-
americano e caribenho, muito mais de inspiração indígena
namos África, para no mencionarla ya más.
no México e Peru e muito mais de inspiração africana no
No es una parte del mundo histórico; no presenta un
movimiento ni una evolución, y lo que há acontecido Brasil e no Caribe. Mas vale sempre ressaltar que a ortodoxia
en ella, en su parte septentrional, pertenece al mundo burocrática e romana sempre está a vigiar este sincretismo,
asiático y europeo.61 que não é tolerado. Assim, vale dizer, com Hoornaert, que “la
burocracia romana repercutió en Brasil en todos los campos
No entanto, para não cairmos em tentação, com o po- de la vida eclesial, en la liturgia y en la teología, en la pastoral
eta que canta sua lira e sua mística, podemos invocar a esta y en la espiritualidad”.64 Somente o sul do Brasil escapou
altura a África Mãe para não nos esquecermos mais da dessa influência e desse condicionamento no cristianismo
complexidade cultural vinda das várias etnias indígenas e dos elementos africanos, uma vez que sofreu a influência di-
africanas, para não nos esquecermos mais do primeiro gran- reta dos imigrantes europeus.
de holocausto cometido contra essas gentes crédulas, para
62 TAIGUARA, entre 2/mar./94 e 17/abr./94.
60 Ibid., p. 317. 63 HOORNAERT, 1995, p. 296.
61 HEGEL, 1989, p. 194 (destaques meus). 64 HOORNAERT, 1995, p. 307.

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SINALIZAÇÕES PARA UMA SEMIÓTICA Matéria Vida; Ananda Marga; Igreja da Unificação; a Dou-
DAS RELIGIÕES trina do Santo Daime.66
No entanto, nestes últimos decênios a paisagem reli- Há um outro fenômeno de extremada importância
giosa na América Latina e no Caribe, e de modo especial no que mais do que nunca merece a atenção: o aparecimento
Brasil, vem se modificando e se alterando rapidamente. dos fundamentalismos neopentecostais. Estes fundamenta-
lismos estão conectados no contexto do mercado e de suas ló-
Desde algunos años atrás, se presentan claros indicios
gicas de globalização e exclusão. Com linguagens, cantos,
de que por primera vez desde los tiempos de la Con-
quista, la Iglesia católica romana está perdiendo el con-
simbologias, gestos, danças, leituras bíblicas sem mediações
trol sobre el campo religioso y sobre los dioses. Sus de- analíticas e hermenêuticas teológicas, esses movimentos to-
sesperadas y redobladas cartas pastorales y encíclicas mam as mais diversas geografias, como novos espaços do sa-
condenando duramente a las sectas reflejan esta im- grado, como campo de futebol, emissora de televisão, com os
potencia para contrarrestar una corriente de autono- megacultos e as megamissas, sempre com seus pop stars,
mía religiosa que la sorprende cuando pensaba poder como por exemplo padre Marcelo Rossi, para os carismáticos
celebrar firmemente el quinto centenario de una evan- católicos, e o pastor Marcelo Crivella, para os carismáticos da
gelización totalizadora. El campo religioso se está frag-
Igreja Universal do Reino de Deus.
mentando en decenas de sociedades religiosas rivales,
combatiéndo-se las unas a las otras. Ya no es la antigua Esse fenômeno merece ser estudado com seriedade e
lucha entre dioses paganos y cristianos; es la lucha en- profundidade, pois está conectado, por um lado, à lógica do
tre divinidades cristianizadas que hacen suya la expre- mercado e, por outro, às estruturas psicológicas da grande
sión libertaria de un panteón en expansión sin límites. massa seguidora de tais movimentos. Se a fé e a religião po-
En cierto sentido, se puede afirmar que la iglesia cató- dem libertar, também podem gerar doenças e distúrbios. E o
lica ya no logra regular ni controlar la dinámica reli- nosso tempo está a gerar patologias religiosas entre tantas
giosa creativa de las poblaciones latinoamericanas.65
outras. Por outro lado, não podemos perder a sensibilidade
Atualmente o catolicismo romano não detém mais a quanto a religião ser, num contexto de miséria extrema, o jei-
hegemonia religiosa no País. A diversidade religiosa e novas to de muitas pessoas fazerem a caminhada necessária. “Na
denominações religiosas que vão surgindo a cada dia são ex- América Latina a religião – dizia um antropólogo – não é
tremamente grandes. A título de exemplo, sem entrar nas es- simples muletas. Ela é os pés e boa parte da caminhada dos
pecificidades de cada seguimento religioso, pois não é o ob- pobres.”67
jetivo deste ensaio, valeria nomear tão-somente alguns no- Pensar a religião no contexto dos 500 anos de Brasil,
mes de distintas tradições religiosas no Brasil, a partir da obra quando se está a celebrar o quinto centenário de evangeliza-
Sinais dos Tempos – diversidade religiosa no Brasil: So- ção e do “descobrimento”, não é algo tão simples. Pelo con-
ciedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Proprie- trário. É demasiado complexo, pois não se pode esquecer
dade; as Igrejas Brasileiras; as Igrejas Orientais no Brasil; As- também que evangelização e descobrimento têm a ver com
sembléia de Deus; Congregação Cristã no Brasil; Igreja Pen- conquista e encobrimento do outro, como já ficou demons-
tecostal Deus É Amor; Testemunhas de Jeová; Mórmons; trado ao longo deste ensaio. Pode-se dizer que este tempo é
Umbanda; Candomblé; Jurema; Xangô; Espiritismo; Judaís- fundamentalmente tempo de reflexão (reflectere = voltar
mo; o Islã no Brasil; o Budismo Japonês no Brasil; Seicho- atrás). É tempo de voltar atrás para se poder re-signi-ficar,
no-iê; Instituição Religiosa Perfeita Liberdade; Hare Krishna; semioticamente falando, o sentido e o valor de todos os pro-
Rajneesh; a Astrologia e sua prática na sociedade brasileira;
66 Cf. LANDIM, 1990.
65 BASTIAN, 1997, p. 10. 67 ASSMANN, 1981, p. 80.

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cessos pluriculturais e pluriétnicos que vivemos e estamos a Então, faz-se necessário inaugurarmos uma semió-
viver, e que são infinitos. tica das religiões.
Segundo Oswald de Andrade, em A Marcha das Uto- Uma semiótica das religiões que possa ajudar na com-
pias, preensão das múltiplas e infinitas correlações – misteriosas e
(...) nós brasileiros, campeões da miscigenação tanto sobre as quais muito pouco sabemos, ainda –, no âmbito das
da raça como da cultura, somos a Contra-Reforma, culturas e tradições religiosas, no tempo e no espaço; uma se-
mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, miótica das religiões que possibilite uma visão e escuta mais
bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e me- alargadas das infinitas correlações e conexões das tradições
cânico do Norte. Somos a Caravela que ancorou no pa- religiosas entre si, bem como com outros campos de lingua-
raíso ou na desgraça da selva, somos a Bandeira esta-
cada na fazenda. O que precisamos é nos identificar e
gem, como a filosofia, a teologia, a psicanálise, a ciência, a ar-
consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais te, a política, a ética, a técnica e as linguagens do mundo da
e históricos.68 vida cotidiana; uma semiótica das religiões que possa explici-
tar melhor o sentido e os mecanismos de libertação/opressão
Consolidar e identificar nossos perdidos contornos das estruturas e linguagens religiosas; uma semiótica das re-
psíquicos, morais e históricos, é trabalho de toda uma cultu-
ligiões que, sendo barroca, já seja nosso contra-texto, como
ra. E do lugar da religião, como lugar complexo e rico de sig-
jeito de captar nossa complexidade cultural em semiose pro-
nos, nos dias de hoje pode-se fazer isso, no sentido de buscas
re-signi-ficativas. liferante e infinita; uma semiótica das religiões que já seja ci-
ências da religião, portanto, sem culpa e sem pecado do lado
68 ANDRADE, 1978, p. 153. debaixo do Equador.

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90 impulso nº 27
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NO PEITO E NA RAÇA:
a americanização do
Brasil e a brasilianização
da América
THE AMERICANIZATION OF BRAZIL AND J. A. LINDGREN ALVES
THE BRAZILIANIZATION OF AMERICA IN Diplomata, cônsul geral do Brasil em
THE RACE QUESTION S. Francisco (EUA), ex-diretor geral
do Departamento de Direitos
Humanos do Ministério das Relações
RESUMO Ao se comemorarem os 500 anos do descobrimento do Brasil, é importante reavaliar o que significa ser Exteriores e ex-membro da
brasileiro, assim como aquilo que o brasileiro quer ser. Após longo período de rejeição a nossa herança africana, se- Subcomissão das Nações
Unidas para Prevenção da
guido do mito de que o País seria uma democracia racial, graças ao movimento de consciência negra o Brasil hoje
Discriminação e Proteção às Minorias
reconhece a existência de racismo em nossa sociedade e a discriminação racial como um dos fatores que mantêm lindgrenja@aol.com
os afro-brasileiros em posições de inferioridade e pobreza. Nos Estados Unidos, por outro lado, especialistas dizem
que a questão racial norte-americana se “brasilianizou”. O ensaio descreve características das práticas, êxitos e in-
sucessos norte-americanos com o objetivo de oferecer uma visão daquilo que os brasileiros devem levar em conta ao
reproduzir ou não modelos dos Estados Unidos, a fim de evitar-se uma situação pior do que a atual.
Palavras-chave raça – racismo – discriminação – consciência negra – Brasil – Estados Unidos.
ABSTRACT On the 500th Anniversary of our discovery, it is important to re-evaluate what means “to be Brazilian” and
what the Brazilians want to be. After a long period of denial of our mixed race, followed by the myth that the country
was a racial democracy, thanks to the black counsciousness movement Brazil now acknowledges that racism does
exist in our society and that racial discrimination is a factor that keeps Afro-Brazilians in a position of inferiority and
poverty. In the United States, on the other hand, American experts say that the American racial question has been
“Brazilianized”. By describing characteristics of U.S. practices, achievements and failures, this essay tries to provide a
view of what Brazilians ought to bear in mind when deciding if they should reproduce or not American models, in
order to avoid a situation far worse than the present one.
Keywords race – racism – discrimination – black consciousness – Brazil – United States.

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E
mbora como país o Brasil ainda não tenha sequer 200 anos, o
qüingentésimo aniversário do descobrimento de nossas terras pelos na-
vegadores portugueses é momento oportuno para se proceder a novas
avaliações sobre o que efetivamente significa ser brasileiro. Afinal, antes
e acima do brado de independência pelo príncipe reinol arrebatado
que, depois de imperador nos trópicos, iria tornar-se rei de Portugal, ou
uma proclamação de República a que assistiu “bestializada”1 a grande
maioria da população, foi a presença lusitana na margem sul-americana do Atlântico que
propiciou a construção gradativa de nossa nacionalidade. Mas é igualmente importante
procurar saber o que o brasileiro quer ser.
Após um primeiro período, em que brasileiro na Terra de Santa Cruz era qualifi-
cativo vernáculo para o indivíduo dedicado ao mercadejo da madeira cor de brasa, nos três
séculos em que o Brasil foi colônia o “brasileiro” gentílico se aplicava, por oposição ao “rei-
nol” oriundo da metrópole, aos portugueses nascidos em nossa periferia descontígua da
Ibéria. Os autóctones da América em todas as latitudes, dado o equívoco hemisférico de Co-
Brasileiro na Terra lombo, eram – e ainda são – “índios”, designados ou não por cognome grupal, quando
não chamados por epíteto desairoso como “bugre”. Escravos africanos não passavam de
de Santa Cruz “pretos”, sendo qualificados também como “bugres” ou “boçais”, que se tornavam “ladi-
era qualificativo nos” à medida que falassem português. Seus filhos nascidos na terra não eram “afro-bra-
vernáculo para o sileiros”, mas “crioulos”. “Negro” era o termo genérico para todo elemento “de cor”, que
obtinha relativo embranquecimento taxionômico quando alforriado ou nascido forro.2
indivíduo dedicado Embora sempre sujeita a variações regionais ou episódicas, tal classificação geral, feita pe-
ao mercadejo los segmentos dominantes, não chegou a ser alterada pela elevação oitocentista da colônia
da madeira cor a vice-reino. Nem o Rio de Janeiro fortuitamente transformado em sede monárquica do
Império lusitano transformou ipso facto os “brasileiros” em reinóis.
de brasa Para a construção de uma nacionalidade própria, malgrado a maioria negra de sua
população,3 o Brasil “branco” recém-independente, de origem portuguesa e cultura eu-
ropeizada, paradoxalmente recorreu ao indígena, não-cidadão do novo Estado, como
símbolo da brasilidade. Considerado indômito e já liberto da escravidão, o habitante na-
tural de nossas terras “paradisíacas” deveria inspirar todos os brasileiros do Império na
construção da pátria livre, pela qual se disporiam a morrer. Pastiches tropicais dos cava-
leiros medievos romantizados na Europa, de armaduras metamorfoseadas em tangas pu-
dibundas, tupis, tapuias e quejandos – que nem por isso deixaram de ser expulsos de seus
territórios ancestrais, quando não fisicamente dizimados – ajustavam-se com seus coca-
res, no imaginário imperial, às sobrecasacas dominantes do regime escravagista. O negro
1 No dizer de Aristides Lobo, retomado e amplamente explicitado por CARVALHO, 1987.
2 Em contraste com o preconceito antinegro de portugueses brasileiros e reinóis, ilustrado por infinitos
casos relatados, RODRIGUES (1982, p. 88) registra que, desde alvará de 1773, “eram os pretos libertos hábeis
para todas as honras e cargos públicos”.
3 Num total de 3,8 milhões de habitantes, 1,93 milhão eram negros, 526,5 mil, mulatos e 1,043 milhão, bran-
cos, no período de 1817-1818, segundo cálculos do Visconde de Rio Branco citados por RODRIGUES (1982,
pp. 80-81). E o número de africanos importados só fez aumentar até 1850.

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de pés descalços, que carregava nas costas a economia, não terras coloniais transatlânticas, desde que os primeiros escra-
era propriamente brasileiro, nem, muito menos, cidadão.4 vos africanos foram trazidos à força para trabalhar na lavou-
Com a Proclamação de 1889, ano e meio após a Abo- ra do açúcar. Não obstante a tentativa de caiação realizada
lição, e a extensão da cidadania nacional (limitada pela ren- até então pela política imigratória, a partir da década de 30,
da e excludente das mulheres) em 1891 a todos os grupos o Brasil oficial, precedido nos anos 20 pelo Brasil artístico do
populacionais aculturados, o Brasil descobriu a “raça”. Des- Movimento Modernista, passou aos poucos a declarar assu-
cobriu e apavorou-se. Ao contrário do Império escravocrata, mir-se filho natural e cultural das três “raças” formadoras –
“caucasiano” trigueiro com poucas exceções entre os cida- ou, conforme explicitava Freyre, resultado antropológico de
dãos ativos, a República reconhecia-se constitucionalmente acasalamentos híbridos, por vezes até sacramentados pela
policrômica, mas não gostava do que via. Para “civilizar-se” religião oficial, do varão português com a índia fêmea, dos
– e suplementar a mão-de-obra faltante desde o fim do trá- senhores e sinhozinhos da casa-grande com as negras do-
fico negreiro – recorreu à imigração européia dirigida (ape- mésticas e da senzala. Isso sem falar da massa maior e mais
nas a contragosto abriu as portas à imigração japonesa).5 popular de nossa gente, oriunda da mestiçagem entre afro-
Isso porque, conforme então se entendia como verdade evi- brasileiros forros e foragidos com brancos pobres e a popu-
dente, teorizada por ideólogos ilustres, cultura e civilização lação nativa, nesses casos sem nenhum nexo sociológico en-
somente poderiam ser brancas. Assim o mostrara eterna- tre o sexo e a parceria de esteira, rede e capim.
mente a Europa, e o confirmava no presente sua filha mais Muitos repudiaram e ainda repudiam Gilberto Freyre,
bem sucedida: a “América” – do Norte. pela alegada falta de rigor científico, porque seus excessos
Desde essa época os Estados Unidos começavam a tendiam a valorizar exageradamente a colonização portu-
destronar o velho continente como modelo de progresso, a guesa, porque suas interpretações se prestavam para funda-
ser copiado no projeto modernizante dos governantes naci- mentar o mito de nossa “democracia racial”. Não terão sido,
onais. Foi, portanto, contemporâneo de nossa velha Repúbli- porém, apenas aos cientistas sociais minuciosos, militantes
ca, o início do processo endógeno e exógeno, hoje sabida- antiimperialistas e ativistas da consciência negra que Freyre
mente inexorável, de americanização do Brasil – por mais desagradou. Certamente muitos compatriotas racistas ou
que as reformas urbanas da belle époque brasileira copias- simplesmente alienados, que se consideravam possivelmente
sem a da Paris de Napoleão III. E tudo isso se processava, caucasóides puros, tampouco ficaram satisfeitos.
como sempre, “no peito e na raça”, à revelia dos milhões de Negativo para o movimento negro, positivo para uso
“bestializados”. externo, o fato é que o mito da democracia racial “pegou”, no
Brasil e no exterior. Conhecido como país do samba, das mu-
Somente com Gilberto Freyre o Brasil se reconheceu
latas e do futebol (futebol do negro Pelé e do mulato Garrin-
mulato. Mulata, cabocla, parda, cafusa, curiboca, mestiça
cha, mais que do alourado Zico ou do “italiano” Toninho Ce-
mazombo, enfim, sua população sempre fora, desde que os
rezo), o Brasil é ainda apontado alhures, com freqüência,
primeiros portugueses vieram instalar-se, sem mulheres, nas
como terra de miscigenação, tolerância e igualdade racial.
4 Os pés obrigatoriamente descalços eram a marca visível da escravidão Até por Nelson Mandela.
(ALENCASTRO, 1997b, p. 79). O negro ou mestiço livre tinha cidadania Sabe-se, no presente, e em geral se admite, que nossa
legal equiparada à do branco.
5 Na verdade, o caráter predominantemente “africano” da população já democracia racial era meramente formal. Compreende-se,
preocupava o Império, que, para “embranquecê-la”, deu início à importa-
ção dirigida de mão-de-obra européia, aceitando um primeiro contin-
no Brasil atual, que esse mito prejudicou uma conscientiza-
gente de chineses na década de 1850. A República chegou a proibir por ção mais tempestiva dos fatores discriminatórios que man-
Decreto, em 1890, a entrada de asiáticos e africanos livres, contra a von-
tade dos fazendeiros necessitados de trabalhadores de qualquer origem. têm em posição de inferioridade os cidadãos “de cor”. A
Foi a pressão dos proprietários rurais sobre o governo que levou a Repú-
blica a reverter o veto à imigração asiática em 1892, propiciando a chegada
crença numa ausência de preconceitos malévolos intrínseca
dos primeiros japoneses em 1908 (ALENCASTRO, 1997a, pp. 239-316). a nosso povo, ainda que decorrente das condições de escra-

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vidão de que fez uso a “lascívia” lusitana, ademais de enco- minação Racial, de 1965, assinada sem reservas pelo Brasil
brir o racismo existente, facilita a perpetuidade das condições em 7 de março de 1966, ratificada em 27 de março de 1968
sociais de pobreza e marginalização da maioria de nossos e promulgada internamente pelo Decreto 65.810, de 8 de de-
negros. Ao mesmo tempo em que faz arrefecer as cobranças de zembro de 1969.6
parte dos discriminados, desvanece eventuais sentimentos de Como ensina Joel Rufino dos Santos, a luta organiza-
culpa nas camadas dominantes. Por outro lado, é também ine- da do negro brasileiro contra o racismo teve seus primórdios
gável que em poucos outros lugares, se é que algum há em às véspera da Revolução de 30, quando “semi-intelectuais e
qualquer dos continentes, tanta gente aparentemente branca subproletários” criaram em São Paulo uma “imprensa ne-
voluntária e prazerosamente se declara preta, mulata, cabocla gra”, dando origem à Frente Negra Brasileira. Concomitante
ou “com um pé na África”. A ilusão de uma democracia racial à fase de elaboração da ideologia da democracia racial, a
faz, sem dúvida, confundir uma realidade complexa, na qual o Frente foi extinta em 1937, quando o golpe pôs fim à incipi-
preconceito se pratica, mas não se assume. É difícil, contudo, ente abertura democrática instaurada pela Revolução.7
visualizar quem possa condenar a sério como nefasta a poesia Longamente submergida na “síndrome do embran-
de um Vinicius de Moraes no belíssimo Samba da Bênção ao quecimento” e politicamente sufocada durante o regime mi-
afirmar-se com orgulho “o branco mais preto do Brasil”. litar, que cultivava o mito da inexistência de discriminações,
a incipiente auto-afirmação do negro brasileiro, a partir dos
A ASSERÇÃO DA CONSCIÊNCIA NEGRA anos 60, ainda assim disseminou-se. Vem desse período so-
Ultrapassada a fase histórica em que a esquerda re- bretudo a valorização da personagem histórica de Zumbi,
jeitava o corte racial nas reivindicações sociais como empe- amplamente utilizada pela oposição democrática como sím-
cilho à conscientização classista, a afirmação do negro como bolo de luta pela liberdade, assim como o apoio praticamente
negro na sociedade brasileira é fenômeno recente, de inques- unânime da sociedade nacional à política africana desenvol-
tionável valor. Além de importante para a recuperação da vida pelo Itamaraty nos anos 70 e 80. Somente, porém, com
auto-estima daqueles que são vítimas de preconceitos discri- a redemocratização as reivindicações dos negros puderam
minatórios, assim como para a cobrança legítima dos direitos tornar-se mais audíveis. Como resultado delas, a Constituição
que lhes são devidos no interior da sociedade nacional, tal de 1988 foi bastante explícita: a par das disposições genéricas
afirmação é causa protegida no Direito Constitucional inter- antidiscriminatórias, criminalizou o racismo, protegeu as
no e pelo Direito Internacional. A Declaração Universal dos manifestações das culturas indígenas e afro-brasileiras, de-
Direitos Humanos, de 1948, tem como premissa básica a terminou a proteção legal aos documentos e locais dos anti-
idéia da não-discriminação, afirmando os direitos e liberda- gos quilombos e, nas disposições transitórias, assegurou o re-
des fundamentais de todas as pessoas “sem distinção de conhecimento das terras ocupadas pelos quilombolas rema-
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opi- nescentes.8 Na seqüência de várias iniciativas que levaram ao
nião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional tombamento do sítio histórico da Serra da Barriga onde se si-
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” tuava a Angola Janga de Zumbi, também em 1988 foi cons-
(Art. 2.º). Regulamentada pelo Pacto Internacional de Direi- tituída a Fundação Cultural Palmares, pelo Ministério da
tos Civis e Políticos, que exige dos Estados-partes – entre os Cultura, com o objetivo de “promover a preservação dos va-
quais se inclui o Brasil – a adoção de leis e outras medidas lores culturais, sociais e econômicos, decorrentes da influên-
destinadas a implementar os direitos por ele protegidos sem cia negra na formação da sociedade brasileira”.9 Na historio-
nenhum tipo de discriminação, as práticas do racismo são, 6 LINDGREN ALVES, 1997, p. 95.
além disso, objeto do primeiro grande tratado sobre direitos 7 SANTOS, 1999, pp. 115-117.
8 Artigo 5.º caput, VI e XLII; Art. 215, § 1.º e 2.º; Art. 216, § 5.º; e Art. 68 das
humanos adotado pelas Nações Unidas: a Convenção Inter- Disposições Constitucionais Transitórias.
nacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri- 9 Lei n.º 7.668, de 22/ago./1988, Art. 1.º.

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grafia, desde os anos 70 as pesquisas começaram a demons- Hoje em dia, muito mais do que antes, o movimento
trar claramente o papel ativo do negro em nossa história – negro brasileiro, em suas diversas ramificações, tem carac-
como, por exemplo, sua participação decisiva em quase todas terísticas próprias, inspiradas ou não em conquistas norte-
as rebeliões da colônia e do Império, assim como a chamada americanas. O intercâmbio de experiências com os irmãos do
Revolta dos Ladinos, determinante para a abolição da escra- Norte é freqüente, o respaldo mútuo, natural, e os objetivos,
vatura –, revertendo a visão de submissão escrava e passivi- assemelhados. Tais objetivos têm agora, aparentemente, fun-
dade antes predominante. Mais conseqüentemente ainda, damentos tão comuns que se vem tornando corrente nos Es-
começaram a formar-se na sociedade civil organizações tados Unidos a interpretação de que a questão racial norte-
não-governamentais negras e brancas progressistas para americana se abrasileirou.12
apoio a grupos específicos. Em 1995, num contexto de reco-
nhecimento maior dos direitos humanos, o governo federal QUALIFICAÇÕES NECESSÁRIAS
criou, com sede no Ministério da Justiça, o Grupo de Trabalho A idéia da “brasilianização da América” subentende
Interministerial para a Valorização da População Negra, que que a segregação racial ostensiva foi substituída nos Estados
congrega representantes de diversos órgãos oficiais e do mo- Unidos pela separação de raças pela classe social. Não mais
vimento negro, com o objetivo de estudar e propor medidas permitida no sistema legal, a discriminação se dissimularia
concretas para elevar as condições sociais desse vasto seg- em diversas esferas, com o risco de eternizar-se. Para alguns
mento populacional brasileiro.10 Vem, na mesma linha, apoi- indivíduos de todas as cores, ela estaria sendo estimulada
ando decisivamente as iniciativas da Fundação Cultural Pal- pelo prolongamento indefinido da própria “ação afirmativa”
mares, entre as quais a construção, em Brasília, de um gran- – sistema de preferências legais nas matrículas do ensino pú-
de Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura blico, inclusive universitário, e na contratação de pessoas e
Negra, com inauguração prevista por ocasião do V Centená- serviços pelo Estado, contemplado na Convenção Internaci-
rio do Descobrimento do Brasil. Tal Centro, antiga reivindi- onal sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-
cação dos afro-brasileiros, acadêmicos e educadores, deverá ção Racial como remédio antidiscriminatório de caráter pro-
funcionar como elemento de aglutinação e difusão dessa im- visório (Art. 1.º, § 4.º), que se teria transformado, com o pas-
portante vertente da cultura brasileira.11 sar do tempo, em fator de perpetuação de preconceitos e dis-
Assim como o movimento internacional pelos direitos criminações veladas.13
humanos em geral foi fortemente influenciado, e em certos Que a situação legal do negro norte-americano evo-
aspectos liderado, pelos Estados Unidos, também o movi- luiu para a da igualdade formal em todo o país não resta dú-
mento negro brasileiro foi naturalmente impulsionado pela vida. Que suas principais reivindicações se assemelham às do
luta vitoriosa dos negros norte-americanos pelos direitos ci- negro brasileiro – em patamares tão distintos quanto os res-
vis. Conquanto os objetivos perseguidos fossem na origem pectivos graus de desenvolvimento econômico e riqueza acu-
bastante distintos – os afro-americanos postulando, nos anos 12 A expressão Brazilianization of America tem sido usada com maior
50 e 60, o reconhecimento legal de direitos iguais civis e po- ou menor elaboração na Academia e na literatura especializada. A título
exemplificativo, ver o livro de MARX, A.W, 1998, p. 273, e a introdução à
líticos; os afro-brasileiros reivindicando a observância, pelo pesquisa de BELLAH et al., 1996, p. 24. Sentido especial de alerta lhe é
Estado e pela sociedade, dos direitos iguais já reconhecidos dado por LIND, 1996, pp. 14 e 215-216, que consta ter sido o primeiro a
utilizá-la.
na Lei –, a contaminação de posturas, também aí no sentido 13 Essa é a razão pela qual alguns de seus próprios beneficiários têm-se

Norte-Sul, era esperável, tendo sido particularmente mar- manifestado favoráveis à abolição do sistema. A Califórnia foi o primeiro
Estado norte-americano a abolir a ação afirmativa, em referendo popular
cante nas décadas de 70 e 80. havido em 1998. Conquanto tal abolição não contasse – nem conta agora
– com apoio das minorias em geral (o sistema de preferências se aplicava
em favor de todas as “minorias”, inclusive as mulheres), algumas lideran-
10 Decreto presidencial de 20/nov./1995. ças negras, asiáticas e “hispânicas” postaram-se do lado dos republicanos,
11 PEREIRA, 1998, p. 63. que a postularam e terminaram ganhando.

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mulada dos Estados Unidos e do Brasil – é asserção bastante sete meses antes, a vítima previamente espancada, arrastada
plausível. Para aceitar-se, porém, como verdade a brasiliani- e esfacelada viva por três milhas de estrada, finalmente morta
zação da questão racial norte-americana são necessárias ao chocar-se com canaleta que lhe decepou braço e cabeça.
muitas qualificações, tanto pelos aspectos positivos como pe- Tudo por motivos literalmente epidérmicos. Arrogante ainda
los negativos. depois de preso (e também depois de condenado), o crimi-
Os negros dos Estados Unidos, autodenominados noso branco, de nome majestático e corpo tatuado de herál-
afro-americanos, além de terem atualmente participação dica odiosa, assumira na cadeia postura soberana: fizera
ponderável na vida política e econômica nacional, compõem passar a seus dois cúmplices “arianos” bilhete encorajador,
a população negra de melhor nível médio de vida do planeta. afirmando que haviam feito história e seriam lembrados com
Educada e substancialmente abastada, em virtude do sistema orgulho.
da “ação afirmativa” ora repudiado como anacrônico por Os três assassinos de James Byrd Jr. não entrarão para
alguns de seus beneficiários, a burguesia afro-americana a história como heróis ou mártires, conforme os termos do
não somente corresponde a parcela expressiva do mercado, bilhete. Não entrarão sequer como vilões muito especiais. Fa-
como também influi significativamente na condução do pa- zem parte da história dos Estados Unidos por motivo bem di-
ís. Ocupa cargos importantes dos três ramos do Poder, nos ferente: John William King foi o primeiro branco no Texas
três níveis da Federação, e funções de direção em empresas condenado à pena capital por homicídio de um negro. De
prósperas (quase sempre “étnicas”). seus dois cúmplices, julgados mais tarde também por jura-
Os problemas mais comuns, resultantes de preconcei- dos brancos, um foi igualmente condenado à morte e o outro,
tos, para os contingentes negros norte-americanos são, até à prisão perpétua.
certo ponto, parecidos com aqueles encontrados no Brasil: Para um observador desavisado pode ter surpreendi-
para os agentes brancos ou negros da polícia, a cor do ele- do o registro pela imprensa de que membros da Ku Klux Klan
mento visado é o primeiro critério de suspeição; clubes ricos estiveram presentes às imediações do tribunal de Jasper du-
geralmente rejeitam associados “de cor”; crianças negras rante o julgamento de King. Na mente de quem se encontra
têm mais dificuldades de aprendizado do que as brancas; a geograficamente distante, inclusive o público norte-ameri-
maioria da população abaixo da linha de pobreza é negra, cano das grandes cidades, os rituais de cruzes incendiadas,
“hispânica” ou de outras minorias; a vizinhança urbana in- vestes brancas e capuzes daquela organização racista afigu-
terracial é rara (todos os grupos minoritários tendem a au- ram-se encenações hollywoodianas de um passado esmae-
toconcentrar-se em guetos). cido. Resvalam na consciência como os relatos de antigas
Há, todavia, um tipo de problema que a experiência crueldades contra os escravos do Brasil. Mais surpreendente
histórica do Brasil praticamente desconhece: a cultura do ainda parecerá o registro de que os membros da Ku Klux
ódio racial. Para procurar descrevê-la, a fim de que se apre- Klan de Jasper nas adjacências do local de julgamento inclu-
enda a força de suas manifestações contemporâneas, vale a íam-se entre manifestantes que condenavam o homicídio de
pena fazer um corte “cinematográfico” nesta exposição. O um negro.14
corte nos leva ao Texas, com zoom sobre a pequena cidade de Na realidade, linchamentos como meio de intimida-
Jasper. ção de afro-americanos contra o exercício de direitos huma-
nos no Sul dos Estados Unidos – 4 mil indivíduos linchados
O “REFRÃO QUE NUNCA SE EXTINGUE” entre o fim da Guerra de Secessão e a década de 3015 – são
Quando, em 23 de fevereiro de 1999, o júri declarou
culpado o primeiro dos três envolvidos no assassinato de Ja- 14 Menos surpreendente terá sido a presença de membros armados dos

mes Byrd Jr., o mundo respirou aliviado. O réu, John William “Novos Panteras Negras” para “defender os negros de qualquer eventual
agressão branca”. Cf. FERRAZ, 1999, pp. 40-41.
King, era o motorista da camioneta a que fora acorrentada, 15 STAPLES, 1999.

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coisa do passado. Episódios como esse relatado causam re- centou-se, na época, o anti-sindicalismo e um antibolshevis-
pulsa e indignação generalizadas, que comprovam a grande mo exacerbado que cresceu ao longo da Guerra Fria. Para
evolução da mentalidade sulina. Também muito evoluiu o ela, toda a mobilização afro-americana em defesa de direitos
sistema penal: em contraste com os apenas 49 indiciados e universais não passava de agitação comunista.
quatro encarcerados entre as “dezenas de milhares de lin- Os atos de brutalidade racista começaram a ser seri-
chadores” de 1870 a 1930,16 as detenções e processos de pes- amente investigados e reprimidos nos anos 60, durante o go-
soas de qualquer cor são agora céleres e eficientes. A abolição verno do presidente Lyndon Johnson, a partir do assassinato
das famosas “leis Jim Crow” segregacionistas – por seqüên- no Alabama da ativista branca Viola Liuzzo. Data de 1988 o
cia de decisões da Suprema Corte, iniciadas com a declara- último grande caso judicial envolvendo altas personalidades
ção da inconstitucionalidade da segregação nas escolas pú- da Ku Klux Klan sanguinária. Embora os réus tenham sido
blicas em 1954 – foi o ponto de inflexão do amplo desenvol- absolvidos, esse processo marcou o fim das atividades violen-
vimento societário conquistado pela mobilização nacional tas da sociedade “secreta”, cujos membros desde então se de-
dos negros, de que foi figura dominante o reverendo Martin dicam aberta e diretamente à política.
Luther King Jr. Não mais uma única organização semiclandestina,
Apesar desses avanços incontestes, a Ku Klux Klan mas uma miríade de pequenos grupos, frouxamente interli-
ainda existe. Não mais reputada uma organização terrorista, gados nas United Klans of America e pelos seus knights (ca-
nem voltada, em princípio, para ações de intimidação pela valeiros), a Klan, como é chamada simplificadamente, mo-
força, ela é tolerada com base nas liberdades de expressão e biliza campanhas, apóia e financia candidatos, freqüenta as
reunião da Primeira Emenda à Constituição. páginas de jornais com entrevistas de seus hierarcas es-
drúxulos – “grandes dragões”, “grandes titãs” e “feiticeiros
Fundada no Tennessee, em 1866, como clube social
imperiais” –, que mantêm nas reuniões grupais a mesma in-
de veteranos do ex-exército confederado, a Ku Klux Klan logo
dumentária de roupões brancos e os mesmos ritos de queima
passou a ameaçar os ex-escravos e seus descendentes. Decla-
de cruzes. Membros dos agora diversos clãs concorrem a
rada inconstitucional em 1882 e praticamente dissolvida no
cargos públicos importantes. O mais conhecido nacional-
fim do século XIX, ressurgiu na Georgia em 1915, com o mes-
mente em disputas eleitorais é o “cavaleiro” David Duke, que,
mo nome (que teria sido extraído do grego kyklos, origem
em 1988, chegou a lançar-se candidato à Presidência dos Es-
distante de “círculo”), como um movimento de regresso aos
tados Unidos pelo Partido Popular, de extrema direita. Não
valores tradicionais do Sul agrário, baseados no protestantis-
ganhou, mas foi eleito, em 1989, pelo Partido Republicano,
mo branco fundamentalista, segundo o qual apenas os bran-
deputado estadual na Louisiana, com plataforma de oposi-
cos anglo-saxões são filhos de Deus.17 Atingiu seu apogeu na
ção à “ação afirmativa”. Em 1999 ainda aparecia nos jornais
década de 20 (chegou a ter 4 milhões de afiliados), perdeu como possível candidato a cargo eletivo federal.
influência nos anos 30 com a Grande Depressão e voltou a
Conquanto tenha abdicado das táticas agressivas, a Klan
crescer em número de membros e em agressividade nos anos
continua a promover os valores dos fundamentalistas “brancos
50 e 60 em oposição ao movimento pelos direitos civis.18
anglo-saxões protestantes” (os famosos WASPs), preferencial-
Desde 1920 os objetivos antiintegracionistas da Ku mente separatistas (propugnam a divisão dos Estados Unidos
Klux Klan passaram a visar, além dos negros, os judeus, os em dois ou três países, sendo, neste segundo caso, um bem
católicos e os imigrantes em geral. À motivação racista acres- maior para os brancos, um para os negros e outro para as ou-
16
tras “raças”), divulgando-os sem restrições. Faz proselitismo
Ibid.
17 Esse assunto será retomado e explicitado adiante. entre os jovens, atraindo para suas fileiras grupos skinheads
18 Todos os dados factuais deste trecho, quando não objeto de anotação
específica, foram extraídos do livro de RIDGEWAY, 1995, e da ENCYCLO-
dispersos e desorganizados. Articula-se, para a promoção de
PAEDIA BRITANNICA, 1991. seus objetivos, com outros grupos e partidos “supremacistas”

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domésticos mais ou menos legais. Mantém conexões interna- pectivas comunidades contra o governo federal. Monitoradas
cionais com neonazistas canadenses e europeus. pelo FBI, essas entidades se respaldam legalmente na mesma
Domesticada em sua virulência, com maior ou menor Primeira Emenda constitucional que legitima a existência da
visibilidade de acordo com a época e as políticas dominantes, Ku Klux Klan.20
a Ku Klux Klan organizacionalmente modificada perdura, Quando o diretor Costa Gavras, no final dos anos 80,
portanto, até hoje. Nas palavras de James Ridgeway: “Em retratou, no filme Betrayed, a caçada “esportiva” noturna a
muito da história americana, a Ku Klux Klan tem sido um re- um negro por fazendeiros brancos associados em organiza-
frão que nunca se extingue de todo, um canto de sereia da ção clandestina sem uniforme da Klan, pintou adequada-
supremacia branca periodicamente renovável”.19 mente personagens paradoxais: amorosos, trabalhadores e
Se, por um lado, a Klan sempre foi amplamente co- dedicados à família, mas de um racismo desvairado. Inspi-
nhecida, por outro, menos conhecidos eram, até o atentado raram-no provavelmente as sociedades secretas antigoverna-
de Oklahoma City de 1995 (que destruiu todo um prédio pú- mentais, bastante assemelhadas às milícias, mas exclusiva-
blico, com mais de uma centena de vítimas), os demais gru- mente anglo-saxãs e protestantes, como a Posse Comitatus.
pos paramilitares nela inspirados, espalhados pelo país. Suas Tais associações, multiplicadas até recentemente e engrossa-
denominações variam desde as ostensivamente racistas – das por agricultores falidos do Meio Oeste e do Sul, encara-
Aryan Nations, National Association for the Advancement of vam, e ainda encaram, como autoridade legítima apenas o
White People e White Aryan Resistance – até as esotéricas – xerife comunal. Respaldam-se teologicamente no movimen-
Posse Comitatus e Invisible Empire. As que se tornaram mais to denominado Identidade Cristã, originário da Grã-Breta-
famosas são as chamadas militias, particularizadas pelo nha no século XIX, impulsionado sobretudo pelo anti-semi-
nome do Estado em que atuam: “Milícias de Michigan”, tismo. Segundo sua interpretação “histórica” da Bíblia, os
“Milícias de Montana”, “Milícias da Califórnia” etc. Estas têm anglo-saxões seriam os verdadeiros descendentes das tribos
proliferado sobretudo desde 1993, quando, em Wako, no Te- perdidas de Israel, enquanto todos os demais seriam “povos
xas, o cerco e a posterior ação da polícia contra membros de
de lama”, oriundos de Satanás. Essa vertente do protestantis-
seita milenarista, autoconfinados numa fazenda, culmina-
mo branco fundamentalista, que sempre inspirou a Ku Klux
ram na morte de muitas pessoas, inclusive crianças. Não ne-
Klan, assemelha-se àquela das Igrejas reformadas holande-
cessariamente racistas – algumas ostentam negros entre seus
membros (como, aliás, alguns grupos da Ku Klux Klan já 20 Em palestra pública na sede do prestigioso Commonwealth Club of
têm, paradoxalmente, afiliados hispânicos) –, nem necessa- California, em São Francisco, em 4/dez./97, Jack H. Stuart, “oficial de infor-
mação” das Milícias da Califórnia, deu a seguinte descrição do movi-
riamente aliadas entre si, todas se identificam em pelo menos mento das milícias: “(...) Over recent years, as government grew and
started pushing people around, resistance and rage began to grow.
duas constantes: a ojeriza ao governo da União e a rejeição Then the abuse of federal police in Waco, Texas, and Ruby Ridge, Idaho,
peremptória a qualquer esboço de regulamentação para a frightened the people. And triggered the formation of militias all over
the nation. (...) The Militias of California are composed of men and
posse de armas. O governo é visto como violador da Consti- women of all races, nationalities, and religions. (...) Typically he, or she,
tuição federal e cerceador das liberdades individuais, que im- is a person who feels we are losing our Constitutional Republic. (...) We
are losing our rights and freedoms step by step. We see laws and regula-
põe impostos descabidos, interfere em áreas fora de sua com- tions multiplying exponentially. (...) We see our sovereign nation and
our military being turned over to the United Nations through complex
petência e entrega a soberania nacional à ONU e a outras or- treaties with treasonous provisions that violate our Constitution. (...)
ganizações internacionais. A posse livre de armas de qual- The primary purpose of the Militias of California is to support and
defend the Constitutions of the United States and the State of California
quer tipo, inclusive as de uso militar, é considerada um by providing a credible threat to unconstitutional abuse of government
power. (...) We are not a threat to national security. Quite the contrary,
direito fundamental, sacramentado pela Segunda Emenda à we present a formidable adjunct to State and National troops. We are
Constituição, necessário à proteção do indivíduo e das res- the home guard! (...)”. Texto datilografado, distribuído no evento, uma
mesa-redonda de que participaram, como debatedores, um almirante da
reserva e um advogado ex-agente do FBI que infiltrara o movimento,
19 RIDGEWAY, 1995, p. 52 (minha tradução). ambos opositores das milícias.

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sas, que, com sofisticação maior, deu substrato teológico ao Em paródia real à caçada do filme de Costa Gavras, a
apartheid constitucional da África do Sul.21 jovem morena texana Amy Robinson foi seqüestrada em Fort
Enquanto os grupos da Klan e outros que compõem Worth, em fevereiro de 1998, e assassinada por dois homens
as chamadas “Nações Arianas” (vinculadas ao nazi-fascismo brancos que a utilizaram para a prática de tiro-ao-alvo. De-
alemão passado e contemporâneo) cresceram nos anos 80 e sapontaram-se os assassinos ao sabê-la branca, já depois de
princípios da década de 90, o que tem aumentado atualmen- morta, porque seu plano original teria sido de “sair para ma-
tar alguns negros”. Em outubro do mesmo ano, uma gangue
te é a violência racial das gangues skinhead.22 Mark Poloc,
negra de Buffalo, no Estado de Nova York, espancou até a
porta-voz do Southern Poverty Law Center, atribui tal mu-
morte um indivíduo branco – e homossexual – que andava
dança a causas essencialmente demográficas: as associações em direção a seu carro. Segundo testemunhas, os jovens
organizadas e hierarquizadas atraem particularmente indi- agressores saltavam, com gritos de entusiasmo, para caírem
víduos de meia idade, que delas se dissociam quando a situ- com os pés no rosto da vítima prostrada.
ação econômica melhora. Os skinheads são jovens, muitos Ao relatar esses dois e outros casos equivalentes, o jor-
dos quais adolescentes, com dificuldades para entrar no nalista Bob Herbert observa que, ao contrário do que a mai-
mercado de trabalho sem diploma universitário.23 Às expli- oria dos norte-americanos gostaria de crer, a brutalidade do
cações econômicas acrescentam-se outras “pós-modernas”: assassinato de James Byrd Jr., em Jasper – caso com o qual
o anseio de auto-identificação microcomunitária a todo cus- se inicia esta seção –, não seria uma aberração.25 Tampouco
to e a facilidade de circulação da propaganda por meios ele- parecem aberrações, à luz do ódio racial recíproco ainda cul-
trônicos. tivado por tantas entidades, os motins que destruíram parte
Muito do que foi dito aqui sobre as manifestações de Los Angeles em abril de 1992, em conseqüência da absol-
contemporâneas – não, obviamente, as históricas – do ra- vição, em primeiro julgamento, dos policiais que haviam es-
cismo branco contra os negros pode ser invertido, em escala pancado um ano antes, diante de câmera filmadora, o cida-
e tempo menores, da reação dos afro-americanos contra os dão negro Rodney King.
brancos. A própria interpretação bíblica da “identidade cris- Com efeito, os chamados hate crimes, crimes moti-
tã” teve contrapartida negra entre os muçulmanos da “nação vados pelo ódio racial ou outros preconceitos agressivos,
do Islã” – ou American Muslim Mission, a que pertenceu constituem a única modalidade de delito grave com incidên-
cia crescente nos Estados Unidos de hoje. Juntamente com os
Malcolm X – sob a liderança de Elijah Muhammad. Este
episódios de crimes violentos gratuitamente praticados por
professava que os negros, além de dotados de superioridade
adolescentes em escolas, os hate crimes preocupam seria-
moral e cultural, teriam sido destinados por Alá a assumir a
mente a administração Clinton, que tem proposto medidas
liderança cultural e política da Terra.24 Contra um funda- para contê-los: exigências legais que dificultariam a venda
mentalismo, outro fundamentalismo. de armas, exclusão de certos armamentos do comércio, con-
21
trole da ficha policial de cada comprador etc. As medidas
CORNAVIN, 1979, pp. 25-27 e 29-35.
22 Segundo o Southern Poverty Law Center, entidade do Alabama que ainda se acham em estudos ou em tramitação no Congresso.
monitora em todo o país os grupos que promovem o ódio racial – hate
groups –, as “sociedades secretas” ter-se-iam reduzido em 25% de 1995
A qualificação criminal de um delito como hate crime já é
para 1996, num total de 140, ao passo que as gangues skinheads teriam há tempos agravante penal.
aumentado no mesmo período em 23%, chegando a 37 em 1996
(BROOKE, 1997). Dizer-se, nesse contexto, diante da herança de anta-
23 Ibid.
24 Embora a American Muslim Mission como movimento centralizado gonismo belicoso, persistente nas franjas – às vezes no seio –
tenha sido dissolvida em 1985, um de seus ramos, sob a liderança de da sociedade norte-americana, que a questão racial do país
Louis Farrakhan e com o nome exclusivo de “nação do Islã”, mantém-se
ativo até hoje e tem promovido forte arregimentação na década de 90, de
que foi exemplo a “marcha de 1 milhão” sobre Wahington. 25 HERBERT, 1999.

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se abrasileirou parece precipitado. Falta-nos, no Brasil con- a dos three strikes (“três golpes”) penalizam com períodos
temporâneo, esse ingrediente “cultural”. Casos como o do ín- de 25 anos ou prisão perpétua qualquer tipo de infrator pe-
dio pataxó morto em Brasília, em 1997, incendiado enquanto gado pela terceira vez. Aumentam, por outro lado, a freqüên-
dormia por adolescentes “brancos”, existem, sem dúvida, cia do sentenciamento à pena capital, inclusive de menores.
mas não têm substrato ideológico consistente. O mesmo se Suprimida em 1972 por decisão da Suprema Corte,
pode dizer dos massacres de indígenas na Amazônia – que que a considerou inconstitucional porque aplicada de ma-
nem por isso, ressalte-se bem, deixam de ser massacres. Os neira arbitrária, a pena de morte foi reabilitada nos Estados
esquadrões da morte e grupos de extermínio brasileiros são Unidos em 1976 pela mesma – e máxima – instância. No
tenebrosos, mas não escolhem suas vítimas pela “raça”. O re- julgamento do caso Gregg versus Georgia, entendeu a Su-
cente aparecimento de grupelhos racistas skinheads em prema Corte que a morte como punição judicial não violaria
grandes cidades do Brasil acusa, por sua vez, uma nova mo- a Constituição desde que administrada sem arbitrariedade ou
dalidade de euro-americanização nacional. discriminação.27 Readmitida, assim, no ordenamento do-
méstico, a pena de morte é adotada em 38 dos 50 Estados, as-
O PRETO-E-BRANCO ESMAECIDO sim como pela justiça federal. Dessas 39 jurisdições, a federal
Um dos motivos de justa satisfação regularmente ex- e 15 das estaduais estabelecem a idade mínima de 18 anos
pressa por autoridades federais, estaduais e municipais nor- para os infratores a que tal pena se aplica. O limite reduz-se
te-americanas nos últimos anos tem sido a constante dimi- a 17 anos em quatro Estados e a 16 em outros 20. De 1983 a
nuição do número de homicídios e outros crimes violentos, 1998, o número de adolescentes condenados à morte au-
particularmente nas grandes cidades. Coincidente com a mentou 109%.28
presente fase de expansão da economia nacional, essa retra- Sem pretender retomar a discussão sobre a pena de
ção da criminalidade comum tem, em princípio, tudo a ver morte ou os argumentos que levam as Nações Unidas e a OEA
com a melhoria das condições de vida da população. a desenvolverem insistente campanha para sua erradicação,
Em paralelo à forte redução do desemprego e demais nem proferir julgamento sobre a aplicação da pena capital a
resultados positivos recentes no campo social, outro fator que menores infratores, outros aspectos das práticas da “tolerân-
alegadamente tem contribuído para a redução dos crimes cia zero” devem ser aqui mencionados, porque atinentes ao
nos Estados Unidos é a chamada “tolerância zero” nas prá- tema. O primeiro, bastante óbvio, é de cunho econômico e
ticas policiais e judiciais adotadas. Nas esferas regidas por leis muito argüido: os recursos financeiros destinados a cobrir os
federais, como as da imigração e do narcotráfico, isso se tra- custos sempre crescentes da construção e manutenção de
duz, por exemplo, em novas disposições pelas quais o imi- presídios, ainda que terceirizados, poderiam ser utilizados em
grante que tenha sido incriminado três vezes por qualquer programas sociais para o aprimoramento da situação dos
infração (como dirigir alcoolizado), ou que tenha sido en- desfavorecidos. E estes ainda são maciçamente localizados
volvido uma única vez no tráfico de drogas, é repatriado ina- nas minorias raciais ou étnicas. O segundo fato, muito co-
pelavelmente depois de cumprir pena. A expulsão se dá nhecido, é que o aumento vertiginoso do número de prisio-
quaisquer que sejam a situação legal do estrangeiro e seus neiros se tem concentrado sobretudo entre negros e hispâni-
vínculos familiares no país. A “guerra contra as drogas”, com cos. Ao contrário de 1950, quando os brancos compunham
penas de prisão para as pessoas envolvidas em qualquer de-
26 “Prison population hits 1.8 million”, San Francisco Chronicle, 15/mar./
lito nele enquadrado, inclusive o varejo de maconha, é a 99. Segundo a mesma fonte, a taxa de presidiários por 100 mil habitantes
principal responsável pelo enorme crescimento nacional da teria passado de 313 em 1985 para 668 em 1998. Enquanto isso, segundo
o FBI, o número de crimes violentos por cada 100 mil habitantes ter-se-ia
população carcerária, uma das maiores do mundo, situada reduzido de 757 em 1992 para 610 em 1997. Neste início do ano 2000 já
na casa de 1,8 milhão, segundo dados divulgados do Depar- se fala em dois milhões de presos.
27 NDYAIE, 1998, p. 41.
tamento de Justiça.26 Nas jurisdições estaduais, regras como 28 LA VEGA & BROWN, 1998, p. 738.

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65% e os membros de grupos minoritários apenas 35% da bem promover o desaforamento do caso de Nova York para
população carcerária, atualmente a relação se teria invertido: Albany, no interior do Estado.31
os negros, representando somente 13% da população do país, Denúncias de duplicidade nas atividades de controle
corresponderiam a quase metade de todos os presidiários.29 criminal são constantes: carros dirigidos por negros seriam
Ainda que tais proporções estejam exageradas, padrão apro- três vezes mais visados nas violações de trânsito; viajantes “de
ximado a elas se verifica, se forem acrescentadas as demais cor” ou “hispânicos” são mais revistados nos aeroportos do
minorias, no número de sentenciados à pena de morte: de que os brancos; as prisões de afro-americanos relacionadas a
um total de 3.269 indivíduos que, em fins de 1997, aguarda- drogas ocorrem em proporções elevadíssimas para os pa-
vam execução, 47,05% eram brancos; 40,99% negros; 6,94% drões demográficos (em Columbus, Ohio, os negros consti-
hispânicos; 1,41% indígenas; 0,70% asiáticos. Dos 403 prisi- tuem somente 11% da população e correspondem a 90% dos
oneiros executados desde que a pena de morte foi readmitida, presos).
em 1976, até 1997, apenas seis eram brancos responsabiliza- Para explicar essas e outras distorções por ele menci-
dos pela morte de negros. Tais dados, recolhidos pelo relator onadas a título ilustrativo, o professor David Cole, da Univer-
especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias ou Ar- sidade de Georgetown, afirma que o desequilíbrio repressivo
e judicial nos Estados Unidos é sistêmico, não-acidental. Vin-
bitrárias em setembro/outubro de 1997, associados a outros
cular-se-ia a dois níveis não-escritos de direitos constitucio-
elementos por ele compilados, levaram-no a afirmar em seu
nais existentes na prática: um para os brancos privilegiados
relatório à Comissão dos Direitos Humanos: “A raça, a origem
das classes alta e média, outro para os pobres e as minorias
étnica e a situação econômica parecem determinantes de em geral (sendo ambos os termos virtualmente sinônimos).
quem receberá ou não uma sentença de morte”.30 Em teorização que nos faz recordar atitudes da classe média
Assim como a brutalidade do crime de Jasper em brasileira favoráveis ao extermínio de “bandidos”, manifes-
1998 redespertou a consciência norte-americana para o pro- tadas sobretudo por ocasião do incidente da Casa de Deten-
blema persistente do ódio racial, o fuzilamento, em Nova ção de São Paulo (Carandiru) em 1992, Cole interpreta que
York, em 4 de fevereiro de 1999, de negro inocente e desar- a maioria endossa (sem o dizer) a duplicidade da polícia e da
mado, em ação policial de busca a um estuprador, reacendeu Justiça na aplicação das leis porque são as distorções que lhe
no país o debate sobre os estereótipos discriminatórios da po- permitem desfrutar tão bem da proteção constitucional às li-
lícia. Alvo de 41 disparos, 19 dos quais o atingiram, feitos por berdades dela.32 Contrariamente ao que se poderia imaginar
quatro agentes brancos à espreita de sua casa no Bronx, o à primeira vista, tal teorização não cabe no caso brasileiro,
imigrante Amadou Diallo, que nada tinha a ver com o caso, pelos motivos descritos mais abaixo.
tornou-se, depois de morto, símbolo da visão preconceituosa
das forças de segurança, que tendem a encarar minorias ra- CONCLUSÃO PROVISÓRIA
ciais ou étnicas como celeiros preferenciais do crime. Protes- Se, após assinalar os enormes avanços alcançados pe-
tos de cunho racial desencadeados pelo episódio têm sido tão los negros dos Estados Unidos, o presente texto salientou as-
intensos – mais de mil manifestantes detidos até o início de pectos negativos da questão racial norte-americana, não é
fevereiro de 2000 – que, para o julgamento dos policiais en- porque ela seja pior do que a do Brasil ou do resto do mundo.
volvidos por júri neutro, desapaixonado, a Justiça houve por É por ela exercer influência incomparável à de qualquer ou-
tro modelo. E ter características específicas nem sempre co-
29 Dados do National Center on Institutions and Alternatives, de Arling-
ton, Virginia, publicados na matéria “Number of blacks in jail rising toward 31 Ao se escreverem estas linhas, o assunto tem sido objeto de matérias
1 million – crime policy called substitute for public policy” pelo Boston diárias nos principais jornais norte-americanos. O número de manifestan-
Globe e pelo San Francisco Chronicle, 8/mar./99. tes detidos apareceu no San Francisco Chronicle, em 1.º/fev./99.
30 NDYAIE, 1998, p. 62. 32 COLE, 1999.

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nhecidas ou levadas adequadamente em conta. O brasileiro ção. Corresponde muito mais à “invasão da mentalidade da
precisa saber o que vale a pena ou não reproduzir, com as casa grande nas cidades”, que “conquistou todas as profis-
adaptações necessárias à nossa realidade. sões, sem exclusão das mais humildes”33 (como a dos PMs e
Desconsiderando-se a questão do ódio racial, cultivado policiais civis).
em bolsões delimitados, e mantidas as diferenças entre uma Na esfera material, conforme já assinalado, a situação
sociedade rica minuciosamente construída em torno de leis e dos afro-americanos é, em média, incomparavelmente su-
outra relativamente pobre, menos institucionalizada, não há perior à dos afro-brasileiros, em razão do diferencial de pros-
dúvida de que a questão racial norte-americana tende ao peridade entre as duas economias e em virtude do sistema da
abrasileiramento, tanto por aspectos positivos – abolição da “ação afirmativa” ainda adotado em quase todos os Estados
segregação legal – quanto pelos negativos – discriminações Unidos (que a metáfora da brasilianização pretende comba-
na aplicação do Direito Penal ou como resultado dele ter). Não obstante essa superioridade, as conclusões da
É verdade que, na miséria generalizada em que vive, Newsweek em recente levantamento sobre a afluência dos
o negro brasileiro incriminado em qualquer delito, defendido afro-americanos caberiam perfeitamente na visão da cons-
por advogado dativo sem interesse financeiro na causa, aca- ciência negra brasileira sobre a situação nacional:
ba sendo ainda mais discriminado do que seu irmão do Nor-
Com todo o progresso das últimas décadas, continu-
te. Sofre, também, muito mais, como todos os prisioneiros
amos a falar da América negra como um lugar e um
não-privilegiados do Brasil, pelas condições lamentáveis de povo à parte. Apesar de nosso discurso em favor do
sobrevivência em nossos cárceres sujos, envelhecidos, exí- conceito de igualdade, olhamos com equanimidade e,
guos, abarrotados. Os preconceitos discriminatórios da polí- até, com orgulho, para o perfil estatístico dos ameri-
cia em ambos os países são, porém, assemelhados. E o rigor canos negros que, se fosse dos brancos, causaria hor-
positivista dos respectivos magistrados provoca efeitos pare- ror e consternação.34
cidos. Felizmente o sistema judicial do Brasil não prevê a
pena de morte, nem estipula “tolerância zero” ou a regra dos DE VOLTA AO BRASIL
“três golpes” (embora tudo isso venha sendo discutido no Como visto no início deste texto, para a superação do
País como possíveis meios de dissuasão à criminalidade mito da democracia racial no Brasil foi necessária a asserção
acentuada). da consciência negra. Numa sociedade de contornos raciais
Quanto à duplicidade no tratamento de ricos e pobres, tão fluidos, a “diferença” precisava realmente ser assumida
interpretada por David Cole com enfoque racial sistêmico no como força mobilizadora. Houve, porém, quem chegasse a
caso norte-americano, constitui, lamentavelmente, fenôme- dizer, no País e no exterior, que a situação racial brasileira,
no universal, registrado em todas as sociedades, de origem com discriminações veladas, seria pior do que a dos Estados
anterior à emergência do sistema capitalista. Por isso é tão Unidos da fase segregacionista e da África do Sul no período
resolutamente condenada pelas religiões universalizantes, do apartheid, como se a miscigenação fosse um erro a ser
como o cristianismo e o islamismo, e juridicamente comba- evitado.35
tida pelo princípio da não-discriminação dos instrumentos Depois de se declarar tanto tempo moreno, “marron”,
de direitos humanos. Existe, sem dúvida, no Brasil, com co- “café-com-leite” ou “escuro”, o mulato brasileiro de qual-
notação racial igualmente freqüente. Não tem, contudo, no quer tonalidade se sentiu na obrigação de afirmar-se resolu-
caso brasileiro o caráter regulador, racional e frio visualizado tamente negro. Não porque não se enquadrasse nas “condi-
por Cole, em virtude de nossa “cordialidade”, impulsiva e ir- ções de branquidade” estabelecidas por d. João, quando prín-
racionalista, explicada por Sérgio Buarque de Holanda. A
33 HOLANDA, 1995, p. 87.
duplicidade brasileira na polícia e na Justiça não acarreta 34 COSE et al., 1999, p. 40 (minha tradução).
maior segurança para qualquer segmento de nossa popula- 35 Cf., por exemplo, a arguta observação de VELOSO, 1997, p. 505.

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cipe regente, para as tropas e milícias da Capitania do Rio tas quase sempre sob um viés de exotismo, sejam elas prati-
Grande do Sul: “todos os milicianos serão tirados da classe cadas no Brasil, no Haiti, em Cuba ou na Louisiana. O isla-
dos brancos, e serão reputados como tais aqueles cujos bisa- mismo negro, monoteísta, é aceitável como afirmação racial,
vós não tiverem sido pretos, e cujos pais tenham nascido li- pouco importando a origem branca e árabe de sua doutrina
vres”.36 As “quantificações hereditárias” de branquidade ja- e disseminação. O sincretismo afro-cristão é “politicamente
mais existiram no Brasil independente e, se existissem, des- incorreto”. Pouco ou nada noticiou a imprensa norte-ame-
qualificariam as elites nacionais. Fê-lo porque assim fazia o ricana quando, em novembro de 1999, o terreiro de candom-
movimento da consciência negra norte-americano em rea- blé do Ilê Axé Opô Afonjá foi tombado pelo governo federal
ção aos critérios anglo-saxões, para os quais uma gota de como monumento do Patrimônio Histórico e Artístico Naci-
sangue negro – ou asiático, nativo ou “hispânico” – era su- onal, em gesto de resgate da cultura negra, acorde com a
ficiente para excluir o indivíduo da plena cidadania.37 Fê-lo vontade majoritária dos afro-brasileiros refletida em nossa
também, é verdade, porque era chamado de “preto” ou “cri- Constituição. Em contraste com esse silêncio, os desentendi-
oulo” pelo compatriota “branco” supostamente não-racista mentos entre bispos católicos da Bahia sobre o apoio ou re-
(embora tais rotulações não carregassem, em média, o mes-
jeição a atos de reconhecimento às religiões africanas foram
mo nível de ofensa do nigger norte-americano). Fá-lo agora
matéria destacada no New York Times, com pitadelas de
porque sabe que a solidariedade racial é importante para ele-
sarcasmo.38 Isso é fácil de compreender.
var as condições sociais da vasta parcela não-branca da po-
pulação nacional. Grave será se o fizer tão-somente por ser Não se pretende negar aqui que o Brasil seja um país
“politicamente correto”, sem se dar conta de que os excessos violento. A própria origem da primeira favela carioca – ícone
do “politicamente correto” apenas se coadunam com socie- da violência social e criminal brasileira – recorda um dos
dades fundamentalistas. episódios mais sangrentos de nossa história republicana: a
Para o olhar fundamentalista de qualquer credo, o Guerra de Canudos (1896-1897).39Antes concentrada sobre-
Brasil é difícil de entender. Tente-se explicar a um integrista tudo nas favelas e seus equivalentes de todas as grandes ci-
religioso ou ateu a origem africana da grande festa de révei- dades do País, a violência urbana no Brasil de 500 anos não
llon carioca e logo se observará sua perplexidade. Explique- mais se circunscreve a áreas determinadas (embora ela ain-
se-lhe que seis dias depois de celebrarem o Natal, milhões de da ocorra sobretudo entre os pobres). Como “resposta” aos
brasileiros de todas as cores e crenças vestem-se de branco e incidentes norte-americanos acima descritos poder-se-ia
jogam flores ao mar em homenagem a Iemanjá, como pre- apontar um rosário de episódios de nossa história recente, a
lúdio a gigantesco espetáculo semicívico de fogos de artifício demonstrarem que o brasileiro “cordial” não é necessaria-
(nosso “4 de Julho”) e veja-se até que ponto ele – “ariano” ou mente bonzinho. Os casos do Parque São Lucas, Carandiru,
militante radical da negritude – controlará sua repugnância. Candelária, Vigário Geral, Corumbiara, Eldorado dos Carajás
Para o ativista negro norte-americano, quase tanto quanto e outros, em que morreram muitos negros, evidenciam, ade-
para o orgulhoso WASP, religiões africanas politeístas são vis- mais, que a brutalidade nacional não é exclusividade de
“bandidos”. Poder-se-ia igualmente assinalar que, em con-
36 Artigo 6.º, § 4.º das Instruções para a Carta Régia de 20/jul./1809
(RODRIGUES, 1982, p. 84).
traste com os 6,1 homicídios por 100 mil habitantes dos Es-
37 Intuída pelo Autor, ao longo dos anos, em contactos com ativistas
tados Unidos, o Brasil tem média de 24,1, três vezes maior do
negros de ambos os países, essa interpretação é corroborada por estudi-
osos do assunto, como ZALUAR, 1996, pp. 62-63 e MARX, 1998, p. 272. O
segundo conta, inclusive, que certas correntes do movimento afro-ameri- 38 ROHTER, 2000, p. A3.
cano têm agora chegado a propor a reinstauração de um sistema “Jim 39 Foram os ex-combatentes retornados do sertão baiano, acompanhados
Crow” por elas definido, insistindo na “regra de uma gota de sangue” de suas esposas, que, não tendo alternativa de moradia no Rio de Janeiro,
com o intuito de assegurar a unidade negra em face do abandono dos instalaram-se precariamente no morro da Providência, rebatizado “da
ideais igualitaristas pelo Congresso de maioria republicana MARX, 1998, Favela” como a colina onde haviam ficado estacionados diante do arraial –
p. 247. “favela” pelas favas que lá havia (WISSENBACH, 1998, pp. 96-97).

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que a média mundial de 8,5.40 Não se deve esquecer, por ou- ça, pois a desvalorização e negação do negro é também a ne-
tro lado, que o Brasil nunca teve uma Ku Klux Klan, não con- gação do brasileiro”.43
ta com “milícias supremacistas” e, embora tenha abolido a O Brasil real e mestiço, que já não se oferece como
escravidão mais tarde, nunca teve um sistema “Jim Crow”, modelo de virtude, não sabe, não consegue nem quer falar e
legalizado por um século nos Estados sulistas da “América”.41 agir sempre de maneira “politicamente correta”. Faz, sim,
Tampouco pretende este texto negar o racismo naci- esforços, e precisa fazer mais, para que a linguagem, o ensino
onal e muito menos a situação de miséria em que vive a mai- e os media não perpetuem estereótipos nocivos. A idéia do
or parte de nossa população “de cor” – negra, mulata, ca- “politicamente correto” é boa, mas a obsessão em torno dela
bocla, índia e esbranquiçada. Profundamente sacrificada pe- parece reverberação do segregacionismo anglo-saxão nas
las condições materiais, é ela que compõe também a lista minorias discriminadas. No fundo do peito, com ou sem de-
mais numerosa das vítimas da violência criminal e policial. A mocracia racial, o homem do povo brasileiro, de qualquer
elevação de níveis desse vasto contingente, assim como o re- cor ou tonalidade, continua a chamar de “nega” sua bem-
conhecimento de sua contribuição passada e presente à for- amada, detesta observar-se excessivamente “branquelo”, vi-
mação nacional, é imprescindível não somente por uma bra com falsas louras de tez morena, dá graças ao Deus cris-
questão de eqüidade, ou por motivos de segurança da socie- tão por poder recorrer aos orixás nos terreiros de umbanda e,
dade como um todo. Ela o é para a consolidação de nossa se estiver enamorado/a, casa “na raça” com compatriota de
brasilidade. Como diz Dulce Pereira, presidente da Fundação “outra cor”, por mais que esse matrimônio possa desagradar
Cultural Palmares: “Ao perder a memória negra, o país perde a parentes e ideólogos. Por convicção ou demagogia, quase
sua própria memória, pois o negro brasileiro é antes de tudo todos os brasileiros continuarão a declarar-se, pelo menos
brasileiro”.42 parcialmente, descendentes de africanos ou de índios.
A afirmação do “negro” brasileiro como categoria so- A americanização cultural do Brasil evidentemente
cial, assim como a do “índio”, não precisa ser, portanto, e não prossegue, como, aliás, vem ocorrendo no mundo inteiro,
é, fundamentalista, contrária à miscigenação humana e cul- acelerada pela globalização da economia e das comunica-
tural. Além de saber questionável a própria idéia de raça e ções. Nos anos 50 e 60, na sua melhor vertente, ela propiciou
que não existem raças puras, muito menos no Brasil, a prá- a bossa nova, de início branca e lírica, encaminhando-se aos
tica nacional, conquanto não-endossada por “valores tradi- poucos para o morro, o Nordeste e a consciência social. Nos
cionais” das elites dominantes, sempre foi de mestiçagem e anos 70 e 80 a afro-americanização ajudou o mulato brasi-
sincretismo nas camadas populares. A contrapartida, muito leiro a virar negro, e o negro indeciso a tornar-se rigidamente
mais necessária e urgente, ao não-fundamentalismo do ne- “étnico” (embora a expressão “afro-brasileiro” não se tenha
gro, é óbvia e explicitada por Ana Maria Silva, do grupo tornado obrigatória). Hoje ela ensina o multiculturalismo,
Amma – Psique e Negritude: “Os não-negros que discrimi- mas também induz os jovens negros das periferias metropo-
nam precisam rever sua dificuldade em lidar com a diferen- litanas aos bailes funk violentos e às disputas pelos tênis “Ni-
ke” ou “Reebok”.
40 O Rio de Janeiro acusa 59,4 homicídios e São Paulo, 55,6 por 100 mil A metáfora da brasilianização da América na inter-
habitantes, enquanto Nova York registra apenas 18,40 (cifras e mapa
publicados com matéria de DIMENSTEIN, 1999, tendo por fontes estu- pretação de Michael Lind é mais conseqüente do que na pena
dos das Nações Unidas, Interpol, Secretaria de Segurança Pública do dos demais. Para Lind, a insistência obstinada no multicul-
Estado de São Paulo e Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio
de Janeiro). turalismo não levaria à “balcanização” dos Estados Unidos,
41 Ao contrário do que ocorreu no Sul dos Estados Unidos, já no Império
independente, desde que dispusessem da mesma renda mínima exigida
com todas as raças e minorias em guerra, como é geralmente
de todos os homens maiores de 25 anos, os ex-escravos (e os analfabetos advertido pelos opositores do ensino bilíngüe e da “ação afir-
em geral) podiam legalmente ser eleitores e vereadores (ALENCASTRO,
1997b, p. 21).
42 Apud LOPEZ, 1999, p. 16. 43 Ibid., p. 17.

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mativa”. Uma vez que a América, “como o Brasil”, dispõe de direitos humanos, de responsabilidade do Estado, incorpo-
uma cultura nacional suficientemente unificadora para rasse mais profundamente outro aspecto da cultura norte-
comportar um “sistema informal e impreciso de castas”, a americana, pouco conhecido no Brasil americanizado: o ar-
brasilianização da América levaria, sim, à eternização do sta- raigado sentido de “comunidade”. Ele não se traduz apenas
tus quo, com uma classe branca crescentemente rica e au- no patriotismo que articula minorias díspares com a idéia
toprotegida, utilizando serviços privados de saúde, educação poderosa da “América”. Traduz-se também em práticas, di-
e segurança, enquanto as minorias raciais – negra, hispâni- fundidas entre todos os cidadãos, de trabalho voluntário para
ca, nativa, asiática e de outros matizes –, incomparavelmente a comunidade de identificação ou vizinhança, assim como
mais pobres, digladiar-se-iam entre elas pelos serviços pú- no investimento filantrópico de fundações em atividades de
blicos escassos.44 apoio aos mais carentes.
A interpretação catastrófica de Lind não deixa de ser- Negligenciadas ou estimuladas por sucessivos gover-
vir de alerta às avessas também para os brasileiros. Se o Brasil nos, as organizações não-governamentais brasileiras que vêm
não se brasilianizar num projeto nacional includente, com atuando em apoio às populações necessitadas, inclusive as que
ações governamentais e não-governamentais adaptadas à se orientam pela “raça” e pela cor, têm feito um trabalho ex-
nossa realidade, a rígida americanização econômica e cul- traordinário, ainda pouco percebido. Numa situação mundial
tural pode levar nossa gente, num patamar inferior, com de- em que, queiramos ou não, parece fortalecer-se a noção de
semprego maior e “etnias” indefinidas, àquilo que ele teme “Estado mínimo”, esse trabalho de formiguinhas, que hoje
na América “brasilianizada”. tem no programa Comunidade Solidária e nas agências in-
No período atual, de unificação de mercados e frag- ternacionais significativo respaldo, pode não resolver em de-
mentação identitária, em que poucos crêem no progresso re- finitivo o problema das disparidades, sejam elas raciais ou so-
sultante de embates sociais, seria bom se o brasileiro do sé- ciais. Melhora, não obstante, as condições do público atingido
culo XXI, em paralelo às asserções necessárias à realização dos e contribui, com certeza, para o bem-estar geral.
44 LIND, 1996, p. 216.

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MULHERES: 500 anos IOLANDA TOSHIE IDE


Pedagoga, professora e coordena-

de muitas perdas e dora do Núcleo de Pesquisa e Ação


“Educação e questões de gênero”
Unesp/Campus de Marília
alguns ganhos Membro do Serviço à Mulher
Marginalizada e do Conselho
Municipal dos Direitos da
WOMEN: 500 years of many Mulher de Lins
losses and some gains iolanide@marilia.unesp.br

RESUMO Trata da violência de gênero de que, no Brasil, foram alvo as mulheres, de modo especial as in-
dígenas e negras, nos cinco séculos, a partir da conquista pelos portugueses. Enfoca sobretudo a que in-
cide sobre a sexualidade, especificamente a exploração prostitucional de meninas e adolescentes empo-
brecidas.
Palavras-chave: gênero – prostituição – história – abuso incestuoso – infância – adolescência.
ABSTRACT This article deals with gender violence in Brazil which targeted primarily women, especially native and
Black, in the five centuries since the Portuguese conquest. It focuses primarily on sexuality and more specifically on
the exploitation of impoverished girls and adolescents in prostitution.
Keywords gender – prostitution – history – incestuous abuse – childhood – adolescence

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N
os cinco séculos de conquista, a Ameríndia sofreu um processo de
genocídio e etnocídio que atingiu a maioria dos povos indígenas de
todo o nosso imenso continente. No Brasil não foi diferente, a des-
peito da mansidão, hospitalidade e boa índole dos que aqui viviam.
Em carta endereçada ao rei de Portugal d. Manuel, o Venturoso, em
1.º de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha descreveu os da terra:
“(...) esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligei-
ramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu
bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem
causa”.1
O missivista relata a presença, na praia, de vários índios, às vezes em torno de 450, dos
quais no máximo 10 mulheres. Informa que, embora tenha sido ordenado que dois dos de-
gredados pernoitassem entre os índios, estes não permitiram, forçando-os a retornar ao navio.
Não bastou que os que aqui viviam fossem de boa índole. O projeto colonizador só
estabelece relações colonizador/colonizado que permitem qualquer violação. José Honório
Rodrigues comenta sobre a nau Bretoa, que, em 1511, saiu do Brasil rumo a Lisboa, le-
Ontem, como hoje, vando índios escravizados, conforme relata o Livro da Nau Bretoa: “É o primeiro espécime
são as mulheres de um documento deste tipo nos Quinhentos. É uma viagem comercial e apesar da reco-
as mais atingidas mendação de não trazer gente da terra, levaram para Portugal trinta e tantos índios cativos,
afora cinco mil toros de pau-brasil, animais e pássaros”.2
pela sanha dos Segundo Varnhagen, as “Cartas de Doação” emanadas do reino de Portugal per-
conquistadores mitiam que os donatários escravizassem os índios e, até, os enviassem para vender em Por-
tugal desde que não ultrapassassem trinta e nove.3
Com o objetivo de povoar a terra, a expedição de Martim Afonso de Souza aportou
em terras brasileiras com aproximadamente quatrocentos homens e nem uma mulher.
Fundou São Vicente em 1532.4 Ontem, como hoje, são as mulheres as mais atingidas pela
sanha dos conquistadores. Mulheres indígenas, algumas ainda crianças, foram usadas e
abusadas.
A violência com que os conquistadores devastavam as terras e tentavam escravizar
os nativos, desencadeou uma repulsa que não justificava o oferecimento de mulheres in-
dígenas aos portugueses em nome da hospitalidade, como se divulgara.
O sacrifício da ortodoxia católica em favor do povoamento perdurou por séculos
como prova a devoção a São Gonçalo do Amarante, casamenteiro mor, segundo informa
Gilberto Freyre. Assim também as Ordenações Manuelinas e, mais tarde, as Filipinas re-
velam a larga tolerância em matéria sexual.5 Houve jesuíta que, apavorado com os assaltos
sexuais às índias, recomendou que se enviassem mulheres aos profissionais que trabalha-
1 Carta de Caminha adaptada por Jaime Cortesão.
2 In RODRIGUES, p. 9.
3 Cf. VARNHAGEN, 1962, p. 151.
4 LUÍS, 1980, p. 47.
5 Cf. FREYRE, 1963, pp. 294-305.

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vam na construção do colégio jesuítico da Bahia para que Os povos indígenas não se restringiam ao território
“não andassem em mal estado”. brasileiro. Ao contrário, habitavam extensas terras da Amé-
Foi pela violência que os conquistadores se relaciona- rica. Nas sociedades ameríndias, não ocorria a divisão sexual
ram com os indígenas. A Confederação dos Tamoios foi um de papéis como em nossa sociedade de matriz ibérica. Era
dos mais amplos movimentos de resistência que atestam a freqüente a domesticidade do homem ameríndio. Até mesmo
reação empreendida pelos indígenas. Maiapoké e Ibirapiti a configuração física não era sexualmente tão demarcada à
contaram a Peri: “Eram valentes os tupiniquim. Não só eles, semelhança dos bosquímanos e, como descreve Margareth
mas os tupinambá, Aimoré, Guaná, que reuniram os velhos Mead, dos arapesh e dos mundugumor da Nova Guiné. Entre
na Confederação dos Tamoios. Os velhos têm experiência, os botocudos, viajantes que visitaram o Brasil encontraram
têm tudo. Aimberê, Kunhambebe (...) Hararaí e outros bravos homens-mulheres e mulheres-homens. As indígenas do
Terena participaram da Confederação dos Tamoios”.6 Brasil eram muito criativas e deixaram uma forte herança na
A miscigenação não ocorreu sempre com a aquies- população mameluca. Os banhos diários (os portugueses
cência das mulheres indígenas; significou efetivamente o es- quase não se banhavam) e o asseio pessoal são heranças ad-
tupro indiscriminado: a prole mameluca é a prova mais evi- quiridas pelos/as mamelucos/as via linha materna indígena.
dente. Desde que fosse cristão, ou melhor dizendo, católico, A relação conquistador/conquistado, colonizador/co-
seria bem-vindo para tomar posse da terra e povoá-la: “a sí- lonizado, vencedor/vencido foi responsável pela divisão sexu-
filis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas al dos papéis. O que é pior, propiciou a miscigenação não-
por europeus e negros de várias procedências”.7 democrática, ou melhor, a exploração sexual das índias.
Ainda hoje em dia não é incomum o assalto dos bran-
O intercurso sexual entre o conquistador europeu e a cos às jovens indígenas. O Conselho Indigenista Missionário
mulher índia não foi apenas perturbado pela sífilis e (CIMI) tem denunciado em seus relatórios.
por doenças européias de fácil contágio venéreo: veri-
No intuito de evitar a reação indígena à invasão de
ficou-se – o que depois se tornaria extensivo às rela-
ções dos senhores com suas escravas negras – em cir-
suas terras, muitos expedientes foram utilizados em nome da
cunstâncias desfavoráveis à mulher (...). O furor fe- chamada pacificação dos índios. Não se trata porém de
meeiro do português se terá exercido sobre vítimas acontecimentos de um passado remoto.
nem sempre confraternizantes no gôzo.8 Na região noroeste do Estado de São Paulo, em 20 de
outubro de 1862, ofício endereçado ao brigadeiro José Joa-
Desde o século XVI enorme era a mortalidade infantil quim Machado D’Oliveira trata da incursão de uma bandeira
nas populações indígenas, especialmente devido à sífilis. de 135 homens, no distrito de Bauru, onde viviam os índios.
Como se não bastasse, a sanha dos conquistadores abateu-se A exploração chegou até o Salto de Avanhandava. Três índias
truculentamente sobre os nativos, sem perceber que infligiam foram assassinadas e tomadas duas crianças.
a si mesmos sérias perdas de força de trabalho, tal a cegueira Em 20 de abril de 1876, ofício endereçado a Sebastião
e a brutalidade. “Causa de muito despovoamento foram ain- José Pereira trata da vantagem em se juntar ao aldeamento
da as guerras de repressão ou de castigo levadas a efeito pelos de São João Batista, em que havia 306 índios da tribo gua-
portugueses contra os índios (...), mandando amarrá-los à rani, o aldeamento de Tijuco Preto:
boca de peças de artilharia que, disparando, ‘semeavam a
grandes distâncias os membros dilacerados’”.9 Há na margem esquerda do Tietê e na Serra dos Agu-
dos Índios Selvagens que atacaram as fazendas do
6 ELIAS & HIPOLIO, 1999, p. 15. sertão de Botucatu. Seria conveniente a estrada entre
7 FREYRE, 1963, p. 93.
8 Ibid., p. 112.
Bauru e os campos do Avanhandava na extensão de
9 Ibid., p. 212. 17 léguas, aproximando-se da Serra dos Agudos, pois

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seria o meio de afugentar os selvagens e de atrair a ci- vivência, as mulheres se esforçam para manter a estabilidade
vilização para aproveitar tão férteis terras que aí exis- familiar.
tem.10
A violência contra a mulher é altíssima nesse ambien-
Ainda no início do século XX, próximo a Salto Couti- te. A quantidade de estupros noticiados nos jornais as-
nho, a 40 quilômetros de Bilac, na região noroeste do Estado susta ainda mais por representar uma minoria diante
de São Paulo, o imigrante Sadame Ide ouviu relatos de mas- dos casos noticiados. Os jornais têm páginas diárias e
sacres de índios ao longo da região da ferrovia. Índias eram as emissoras de rádio têm programas exclusivos para
a violência, onde são veiculados velhos preconceitos e
usadas e abusadas antes de serem assassinadas. A resistência
estimulado um humor mórbido dirigido não apenas
indígena foi em vão: os trilhos foram instalados e, quando re- contra os “marginais” agressores mas também contra
movidos pelos índios, reinstalados. Para impedir que a loco- as vítimas.13
motiva passasse, os índios amarravam vários cipós entrela-
çados, de uma árvore a outra, atravessando a ferrovia. Assus- Nessa condição, assim como ocorreu nos séculos XVI a
tavam-se com a força com que a locomotiva conseguia rom- XIX, mulheres, crianças e adolescentes, ainda hoje, são as que
per os cipós.11 Tais episódios de uma história tão recente estão sofrem os maiores impactos e, como sempre, no âmbito da
sendo condenados ao esquecimento, como se essas terras sexualidade:
pertencessem desde toda eternidade aos atuais detentores de
Já foi amplamente noticiado o tráfico de menores
títulos de posse, vários deles fraudulentos. Marina Silva, se- para as áreas de garimpo. A prostituição de meninas é
nadora da República, ao ser indagada em 1999 sobre a situ- grande em toda região. Em Rio Branco, capital do
ação das mulheres na Amazônia, informa que houve um se- Acre, em 30% dos partos feitos na maternidade públi-
gundo “descobrimento”: o da Amazônia. Como no início do ca, as mães têm menos de 16 anos de idade. Nos anos
“povoamento” do Brasil, de eleição, milhares de jovens são esterilizadas por
médicos candidatos ou cabos eleitorais, que recebem o
(...) a fase inicial da colonização foi feita só por ho- voto em troca do “benefício”.14
mens. (...) somente aos poucos foram se formando as
primeiras famílias, com a captura de índias nas aldei- Assim como no início da colonização não foi a agri-
as dizimadas. Elas eram escravizadas e obrigadas a cultura a maior responsável pelo desmatamento e pelo avan-
acasalar-se com seringueiros. Também foram muitos ço nas terras indígenas, assim também, na Amazônia, a de-
os casos de compra de mulheres. Seringueiros que ti- vastação não tem servido para a agricultura: apenas expulsa
nham saldo comercial com seus patrões podiam “en- seus primitivos moradores, às vezes em nome do desenvolvi-
comendar” uma mulher, que seria trazida de Belém mento, mas quase sempre meramente para satisfazer a sa-
ou Manaus com outras mercadorias. É, talvez, a situ- nha de possuir latifúndios cada vez mais extensos.
ação na história do Brasil em que a mulher foi colo- O decreto 1.775 de 1996 abriu brechas para contesta-
cada de maneira mais explícita na condição de obje- ções de áreas indígenas já aprovadas mas não demarcadas.
to.12 Em reação, em maio de 1999, os indígenas entregaram ao
A devastação total de florestas no prazo de vinte anos presidente da República mais de 90 mil assinaturas pedindo
as aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas.
expulsou as famílias de seu ventre. Vivendo em um único cô-
modo em área alagadiça, sem emprego, sem meio de sobre- Na década de 70, uma índia da Aldeia de Parelheiros
(SP) acometida de tuberculose foi internada no Hospital Cle-
10 CAMPOS, 1999, p. 16.
11 Depoimento oral de Sadame Ide. 13 Ibid., p. 3.
12 SILVA, 2000, p. 2. 14 Ibid.

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mente Ferreira, próximo a Lins (SP). Sedada e violentada por dígena de Saúde e pelo CIMI registra a esterilização de 63 ín-
um dos funcionários, engravidou. Foi rejeitada pela aldeia. A dias de seis comunidades pataxó hã-hã-hãe, que, nos últi-
criança que nasceu é quase loira. mos quatro anos, se submeteram a laqueaduras, a maioria
Recentemente, invasores do Parque Indígena de Tu- em idade fértil.
mucumaque incendiaram a casa onde se encontrava uma
índia com seu bebê de colo: foram queimados vivos. Logo a A Procuradoria da República na Bahia recebeu de-
seguir, na madrugada de 2 de novembro, em um conflito núncia de lideranças Pataxó que envolve o deputado
federal e médico Roland Lavigne (PFL-BA) na prá-
com os invasores, foram feridos dois e mortos 11 garimpei-
tica de esterilização em massa, de mulheres Pataxó
ros. Desconhece-se ainda a etnia dos índios.15
Hã-hã-hãe na campanha eleitoral de 1994. Segundo
Os únicos seis remanescentes dos povos juma foram notícia do Jornal “O Globo” desta semana, todas as
ilegalmente transferidos para a terra indígena uru-eu-wau- mulheres em idade reprodutiva da aldeia Bahetá, no
wau, ocasionando a morte de dois idosos. Sabe-se que há in- sul da Bahia, foram submetidas a procedimentos ci-
teresses nas terras dos juma, por onde se pretende fazer pas- rúrgicos de esterilização pelo método da laqueadura
sar o gasoduto Urucu-Porto Velho. A falta de assistência da tubária, pondo o grupo indígena sob risco de extinção.
Funai tem provocado problemas vários, entre os quais o abu- De acordo com a Lei 2.889, de 1956, o ato praticado
so sexual de uma das índias que se encontra grávida.16 contra as índias se constitui em crime de genocídio.18
Foi assim em toda América invadida pelos conquista-
dores europeus. Em seu livro Massacre, lançado em início de No dia 7 de outubro, a Comissão Interamericana de
dezembro de 1998, Silvano Sabatini, amigo do padre João Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
Calleri (morto na expedição de novembro de 1968), afirma (OEA) recebeu a referida denúncia apresentada pelo CIMI, a
que não se trata apenas da morte em uma ação pacificadora, convite do Centro pela Justiça e o Direito Internacional.
mas de um capítulo violento de uma América Ameríndia in- O Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia
vadida.17 se dispôs a ouvir os depoimentos das indígenas envolvidas.
No intuito de “civilizar e evangelizar” as crianças in-
dígenas, os aldeamentos colaboraram com o etnocídio de vá- Ao depor no mesmo processo um dos missionários do
CIMI, que acompanha as comunidades, foi informado
rios povos indígenas. Meninas aldeadas eram enviadas para as
pelo Conselho de Medicina que desde o fim do ano
grandes cidades para servirem como empregadas domésticas.
passado [1998] a entidade convidava as índias mas,
Como era de se esperar, não se adaptavam. Eram então atira- estranhamente, estas não eram informadas pela Fu-
das às ruas, onde se tornavam presas fáceis da prostituição. nai. O órgão indigenista alegou falta de recursos fi-
No movimento do pornoturismo internacional, turis- nanceiros para a locomoção das mulheres. O Conse-
tas estrangeiros em busca de experiências exóticas solicitam lho de Medicina se prontificou a assumir os gastos e
meninas indígenas e/ou mestiças. ainda assim as índias não foram notificadas. Diante
Como se não bastasse, outros expedientes têm sido do descaso, o CIMI tomou iniciativa de informar as li-
utilizados para exterminar os povos indígenas remanescentes deranças indígenas, o que, finalmente conseguiu ga-
através das mulheres. A imprensa registrou a denúncia de es- rantir os depoimentos.19
terilização em massa das índias potiguara na década de 70.
Recentemente, a esterilização de índias pataxó foi de- Logo após, as depoentes foram visitadas e ameaçadas
nunciada à ONU. Levantamento realizado pelo Conselho In- por uma equipe de saúde. Algumas delas passaram a negar
as denúncias.
15 Cf. CIMI, Informe 335, 5/nov./98.
16 Cf. CIMI, Informe 352, 18/mar./99. 18 CIMI, 3/set./98.
17 SABATINI, 1998. 19 CIMI, 13/mai./99.

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Quinhentos anos atrás, viviam no Brasil aproximada- Para as índias e suas descendentes, notadamente as
mente cinco milhões de índios/as e eram faladas cerca de mestiças, a integração subalterna se fez com um agravante:
1.175 línguas. Hoje em dia sobrevivem quase 300 mil índios, a exploração da força de trabalho como domésticas, a men-
assim mesmo ameaçados. Segundo Rodrigues, apenas 180 dicância, o estupro, a exploração da prostituição.
línguas continuam sendo faladas.20 O caso do Brasil é espe-
cialmente trágico. Na Guatemala, Peru, Bolívia, a população MISCIGENAÇÃO NÃO-DEMOCRÁTICA
quase como um todo é bilíngüe: fala castelhano e uma língua A democracia racial, a harmonia entre as raças, foi
indígena. Conforme informação de Eduardo Navarro, pro- muito propalada entre os “brasilianistas”. A declaração de que
fessor de Língua Tupi da Universidade de São Paulo, no Pa- o Brasil é uma verdadeira democracia racial provocou ampla
raguai, 95% da população falam guarani e castelhano, en- polêmica, de modo especial através do artigo “Negros no Bra-
quanto no Brasil somente algumas raras exceções dominam sil”.23 O Fundo das Nações Unidas para a Educação (Unesco)
alguma das 180 línguas indígenas vivas. solicitou um estudo a respeito. A pesquisa empreendida por
Até mesmo o Dia do Índio (19 de abril) foi transfor- Roger Bastide e Florestan Fernandes revelou que no Brasil não
mado, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em Dia reinava nenhuma democracia racial, muito ao contrário.24
das Forças Armadas. O decreto 1.775 de 1996, emanado pelo Grupos de brasileiros/as negros/as recusam-se a fes-
mesmo presidente, a despeito do que determina a Constitui- tejar o 13 de maio, dia da “liberdade outorgada”, para con-
ção de 1988, ao abrir brechas para contestações de terra in- centrarem seus esforços na rememoração do 20 de novem-
dígenas aprovadas, mas ainda não demarcadas, põe em risco bro, dia da “liberdade a se conquistar”, seguindo o exemplo
a sobrevivência de povos indígenas. É de conhecimento geral de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares.
o generalizado suicídio de jovens kaiowa confinados em exí- A mestiça tem sido apresentada como objeto sexual
guos territórios. ardente a ser consumido por turistas nacionais e internacio-
Desde a chegada da esquadra cabralina, a relação dos nais e pelos homens das camadas privilegiadas do Brasil.
brancos com os índios foi conflituosa. Tentara-se capturar Embora sendo exibida como objeto de exportação e cantada
alguns indígenas para enviá-los a Portugal, logo na semana por poetas, continua discriminada socialmente, ocupando
em que os portugueses aqui aportaram. Os donatários con- quase sempre os mais desprestigiados lugares sociais.
tinuaram enviando índios escravizados para Lisboa, com a
Há uma literatura que nega à brasileira negra a iden-
hipócrita restrição de não ultrapassarem trinta e nove.
tidade de ser humano e de mulher: qualifica-a apenas pela
A relação das elites brasileiras com os povos indígenas
sensualidade, como símbolo e objeto sexual. Santos descreve-
segue a mesma matriz: dizimação ou integração subalterna.
a como “irresponsável, viva, vadia, sem qualquer recato e
Em 1532, os portugueses aqui chegados com Martim Afonso
muito incontinenti”.25 Para Azevedo a mulata tem “um odor
de Souza com o intuito de povoar a terra não trouxeram em
sensual de trevos e plantas aromáticas”.26 Almeida descreve
sua esquadra nenhuma mulher. Os assaltos sexuais às índias
Vidinha como “uma rapariga que tinha tanto de bonita como
foram acontecimentos corriqueiros. O padre Manual Fonseca
de movediça e leve”.27 Amado, retrata uma Gabriela sem pu-
ainda as responsabiliza pela licenciosidade dos meninos co-
dor nem responsabilidade28 e Ana Mercedes como “constru-
loniais.21 Para Freyre, “É absurdo responsabilizar-se o negro
ção de dengue e requebro”.29
pelo que não foi obra sua nem do índio mas do sistema social
e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. 23 COELHO, P. O Estado de S.Paulo, 16-17/abr./47.
Não há escravidão sem depravação sexual”.22 24
25
BASTIDE & FERNANDES, 1953.
SANTOS, 1975, p. 50.
26 AZEVEDO, s/d, p. 71.
20 RODRIGUES, 1993, p. 26. 27 ALMEIDA, 1967, p. 168.
21 FREYRE, 1958, 2.º, p. 440. 28 AMADO, 1958, p. 203.
22 Ibid. 29 AMADO, s/d, p. 107.

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Essa mesma literatura omite os movimentos de resis- Estas palavras do Dr. Bernardino Antônio Gomes, ve-
tência como os dos Quilombos: os negros não foram sempre lho médico colonial, (...) “o exemplo familiar de es-
submissos e sem capacidade reativa, como tanto se apregoa. cravos, que quase não conhecem outra lei que os es-
Felipa Aranha chefiou o Quilombo de Alcobaça, no Estado do tímulos da natureza”. Devia o Dr. Bernardino ter sa-
lientado que essa animalidade nos negros, essa falta de
Pará, e Luiza Mahin (mãe do abolicionista Luís Gama) lide-
freio aos instintos, essa desbragada prostituição dentro
rou várias insurreições no Estado da Bahia. de casa, animavam-na os senhores brancos. No inte-
O que os meios de comunicação geralmente nos reve- resse da procriação à grande, uns; para satisfazerem
lam é apenas um lado da realidade: a mulata dengosa e sen- caprichos sensuais, outros. Não era o negro, portanto,
sual, “produto de exportação”. No entanto, cantada, exibida e o libertino; mas o escravo a serviço do interêsse eco-
cobiçada, continua excluída. nômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores. Não
O preconceito contra a população negra era tão agu- era a “raça inferior” a fonte de corrupção, mas o abu-
so de uma raça por outra.34
do que o marquês do Lavradio, 8.º vice-rei, em portaria de 6
de agosto de 1771, rebaixou um índio do posto de capitão- A análise de Freyre sobre as relações de sexo e de raça
mor por ter manchado seu sangue casando-se com uma ne- contrapõe-se às que se fundam no clima e ou apenas nas re-
gra, tornando-se assim indigno do cargo.30 “Esse mesmo lações individuais, enfatizando as causas no regime de eco-
preconceito revelou-se também em Nina Rodrigues que con- nomia patriarcal, mais especificamente no escravismo:
siderou ‘a mulata um tipo anormal de super excitada sexual
e José Veríssimo que escreveu que a mestiça brasileira era ‘um Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por
dissolvente de nossa virilidade física e moral’”.31 si, muito menos como raça, ou sob a ação preponde-
rante do clima, nas relações de sexo e de classe que se
Joaquim Nabuco ainda cita um manifesto escravo- desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil..
crata de fazendeiros no qual se afirma que “a parte mais pro- Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema eco-
dutiva da propriedade escrava é o ventre gerador”.32 nômico que nos dividiu¸ como um deus poderoso,
em senhores e escravos. Dêle se deriva tôda a exage-
Entre êsses escravos os senhores favoreciam a dissolu- rada tendência para o sadismo característica do bra-
ção para “aumentarem o número de crias como sileiro, nascido e criado em casa-grande, principal-
quem promove o acréscimo de um rebanho”. Dentro mente em engenho: e a que insistentemente temos
de semelhante atmosfera moral, criada pelo interesse aludido neste ensaio.35
econômico dos senhores, como esperar que a escravi-
dão – fosse o escravo mouro, negro, índio ou malaio Para Laura de Mello e Souza, professora de História
– atuasse senão no sentido da dissolução, da libidina- Moderna da USP, a intolerância é o legado colonial:
gem, da luxúria? O que se queria era que os ventres
das mulheres gerassem.33 (...) poucos países têm uma elite tão predadora como
a brasileira. Não adianta dizer que são os outros. A elite
O mesmo sistema que engendrou a quebra da coesão somos nós. O Brasil é um país que discrimina o tempo
familiar e a concepção indiscriminada pelos motivos citados todo. Somos responsáveis pelos nossos atos. De fato, é
por Joaquim Nabuco favoreceu a promiscuidade e alimentou um preço muito alto que se pagou pela escravidão: faz
o preconceito. mais de cem anos que ela foi abolida e ainda não con-
seguimos resolver a questão da desigualdade.36
30 Cf. FREYRE, 1963, p. 450.
31 FREYRE, 1958, 2.º, p. 527. 34 FREYRE, 1958, 2.º, p. 445.
32 Ibid., p. 441. 35 FREYRE, 1958, 2.º, p. 528.
33 Ibid. 36 MELLO e SOUZA, 20/mar./00.

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Segundo o historiador Jacob Gorender, autor de O Es- sem usufruir de nenhum provento, eram atiradas à sanha
cravismo Colonial, a unidade nacional foi o que manteve a dos marinheiros que aportavam nas costas do Brasil:
escravidão. O regime de escravidão vigindo em todo o terri-
tório nacional garantiu que os negros que por ventura lo- Às vêzes negrinhas de dez, doze anos já estavam na
rua se oferecendo a marinheiros enormes, grangan-
grassem fugir fossem logo capturados.
zás ruivos que desembarcavam dos veleiros ingleses e
O passado da negra e da mestiça é o da mulher-ob- franceses, com uma fome doida de mulher. E toda
jeto, sempre vítima dos assaltos dos brancos: os senhores essa superexcitação dos gigantes louros, bestiais, des-
brancos sempre ociosos à espreita da mais “apetitosa negri- carregava-se sobre mulequinhas; e além da superex-
nha”, e as senhoras brancas entediadas arquitetando, por ci- citação, a sífilis; as doenças do mundo – das quatro
úme, uma vingança contra as mulheres negras, com se fos- partes do mundo; as podridões internacionais do san-
sem culpadas pela violência animalesca dos machos brancos, gue.39
como descreve Freyre: Engano supor que a exploração sexual de adolescen-
Não são dois nem três, porém muitos os casos de cru- tes seja acontecimento da atualidade. Tudo era permitido ao
eldade dos senhores de engenho contra escravos iner- senhor branco. A preferência por jovens às vezes até se base-
mes. Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos ava em afirmações pseudocientíficas as mais absurdas.
de mucamas bonitas e trazê-los à presença do mari-
O Dr. João Álvares de Azevedo Macedo Júnior regis-
do, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de
trou, em 1869, o estranho costume, vindo, ao que pa-
doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já
rece, dos tempos coloniais; e de que ainda se encon-
de idade que por ciúme ou despeito mandavam ven-
tram traços nas áreas pernambucana e fluminense
der mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos.37
dos velhos engenhos de açúcar. Segundo o Dr. Mace-
do seriam os blenorrágicos que o “bárbaro prejuízo”
A exploração da prostituição de índias, negras e mes-
considerava curados se conseguissem intercurso com
tiças foi atividade recorrente no Brasil da escravidão. Gilberto mulher púbere: “a inoculação dêste vírus em uma
Freyre descreve com pormenores a relação assimétrica e hi- mulher púbere é o meio seguro de o extinguir em
erárquica em que se baseou o regime de economia patriarcal, si”.40
de modo especial o escravista:
Como se não bastasse, o uso sexual das meninas ne-
O que houve no Brasil – cumpre mais uma vez acen- gras e/ou mestiças era justificado com o objetivo de salva-
tuar com relação à negras e mulatas, ainda com mai- guardar as mulheres brancas dos assaltos sexuais dos ma-
or ênfase do que com relação às índias e mamelucas chos brancos por se acreditar que os impulsos sexuais deles
– foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio eram irreprimíveis:
da adiantada. Esta desde o princípio reduziu os indí-
genas ao cativeiro e à prostituição. Entre brancos e Escravas de dez, doze, quinze anos (...) a quem seus
mulheres de côr estabeleceram-se relações de vence- senhores e suas senhoras obrigavam – diz-nos um
dores com vencidos – sempre perigosas para a mo- escrito da época – “a vender seus favores, tirando dês-
ralidade sexual.38 se cínico comércio os meios de subsistência. (...) o
grosso da prostituição, formaram-no as negras, ex-
A indigência em que viviam as meninas negras era tal ploradas pelos brancos. Foram os corpos das negras –
que, já tendo sido usadas sexualmente pelo senhor branco às vezes meninas de dez anos – que constituíram, na

37 FREYRE, 1958, 2.º, p. 593. 39 FREYRE, 1958, 2.º, p. 628.


38 Ibid., p. 594. 40 Ibid., pp. 441-442.

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arquitetura moral do patriarcado brasileiro, o bloco excepcional na vida. Aos filhos de padre, em particular, e aos
formidável que defendeu dos ataques e afoitezas dos ilegítimos, em geral. “Feliz que nem filho de padre”, é co-
Don Juans a virtude das senhoras brancas.41 mum ouvir-se no Brasil”.45
Ainda hoje se fala o mesmo das prostitutas. A institu- O pior é que além do uso dos assaltos sexuais, havia
cionalização desse expediente de “proteção” à integridade da senhores, e até senhoras, que usufruíam da exploração sexu-
mulher branca deixou a triste herança de, ainda hoje, explorar al das negras e/ou mestiças. “La Barbinais afirma que até se-
as meninas das camadas pobres. Não raro os patrões entre- nhoras se aproveitavam de tão nefando comércio. Enfeita-
gavam seus filhos adolescentes para se iniciarem na atividade vam as mulecas de correntes de ouro, pulseiras, anéis e ren-
sexual com as empregadas domésticas, a fim de evitarem das finas, participando depois dos proventos do dia”.46
contrair doenças sexualmente transmissíves com prostitutas No entanto, tem-se notícias de mulheres brancas sen-
e... também para evitar os assaltos sexuais às adolescentes síveis à condição das crianças negras. Muitas delas acolhiam
brancas de seu convívio: “(...) a virtude da senhora branca na casa-grande as crianças mestiças filhas do senhor branco
apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra. com a escrava. Outras acolhiam os órfãos: “Diz-nos Perdigão
(...) muita dessa castidade e dessa pureza manteve-se à custa Malheiro que houve senhoras de tal modo interessadas no
da prostituição da escrava negra; à custa da tão caluniada bem-estar dos escravos que levavam aos próprios seios mu-
mulata; à custa da promiscuidade e da lassidão estimulada lequinhos, filhos de negras falecidas em conseqüência de
nas senzalas pelos próprios senhores brancos”.42 parto, alimentando-os do seu leite de brancas finas”.47
Embora os jesuítas tenham, algumas vezes, se pro- Se, no passado, pensa-se que a virtude das mulheres
nunciado contra os assaltos sexuais às índias, não se tem no- brancas foi garantida à custa da violência sexual contra as
tícia de o mesmo ocorrer com relação às negras. Houve não mulheres negras, hoje em dia a libertação da mulher branca
só omissão, quanto conivência. “Introduzidas as mulheres se tem concretizado à custa da exploração da mulher negra,
africanas no Brasil dentro dessas condições irregulares de sobretudo como empregada doméstica. Os brancos continu-
vida sexual, a seu favor não se levantou nunca, como a favor am impunemente explorando sexualmente as jovens negras,
das mulheres índias, a voz poderosa dos padres da Compa- semeando filhos que condenam ao desamparo, do mesmo
nhia.”43 modo como a mancebia entre senhor e escrava não ameni-
Não era tanto de se estranhar, pois muitos padres vi- zava a condição nem da escrava nem dos filhos gerados.
viam em livre intercurso sexual com as índias, negras e/ou A cumplicidade das mulheres brancas chegava ao ex-
mestiças, desde o século XVI. O padre Nóbrega escandalizara- tremo de colaborarem no lenocínio. O viajante Daniel Kidder
se com a freqüência com que se deparou com filhos de pa- relata que as senhoras brancas cuidavam em “bem-vestir
dres e frades. “Le Gentil La Barbinais acusa (...) de ignorân- suas escravas” para que se prostituíssem e trouxessem lucros
cia, atrevimento, e libertinagem de costumes” Carmelitas, be- aos senhores. Em sua narrativa, não deixa de expressar seu
neditinos, franciscanos, marianos, barbinos italianos, con- preconceito: “Às vezes, o ouro e a pedraria adquiridos para
gregados do Oratório – a todos acusa de safadezas”.44 refulgir nos salões são vistos cintilando pelas ruas, em curioso
Havia um provérbio que corria a solta a respeito da fe- contraste com a pele negra das domésticas”.48
licidade em se ser filho de padre: estudavam, viajavam, usu- De acordo com várias lideranças de comunidades ne-
fruíam de muitos privilégios. “Não é sem razão que a ima- gras, grupos feministas brasileiros calaram-se diante do pre-
ginação popular costuma atribuir aos filhos de padre sorte conceito racial e não denunciaram a dupla discriminação
41 Ibid., p. 628. 45 Ibid., p. 625.
42 FREYRE, 1958, 2.º, p. 629. 46 Ibid., p. 627.
43 Ibid., p. 596. 47 Ibid., p. 630.
44 Ibid., p. 620. 48 KIDDER, 1972, pp. 192-193.

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contra a mulher negra. O que é pior: tantas mulheres ditas coces. O patriarca viúvo casava-se, não raro, com a irmã da
feministas fizeram coro às vozes exploradoras da mulata nas esposa falecida, que, por sua vez, deveria gerar outros tantos
canções, na literatura, nos concursos de “miss café” ou “miss filhos. Alguns chegavam a contrair matrimônio cinco vezes.
pérola negra”, nas escolas de samba (quase sempre dirigidas
por brancos), nas “artes plásticas”... [As jovens brancas] se casavam tôdas antes do tempo;
algumas fìsicamente incapazes de ser mães em tôda
As mulheres negras quase nada esperam das mulhe-
plenitude. Casadas, sucediam-se nelas os partos. Um
res brancas das camadas privilegiadas. Um passado de três
filho atrás do outro. Um doloroso e contínuo esforço
séculos de escravidão e mais um século de indiferença, quan- de multiplicação. Filhos muitas vezes nascidos mortos
do não de preconceito, ensinou-lhes essa dura e amarga li- (...). Mas todos deixando as mães uns mulambos de
ção. Com freqüência, a atual patroa branca não passa de si- gente. (...) eram elas que, apesar de mais moças, iam
nhá-moça que teve sua “virtude” imaculadamente intacta à morrendo; e eles casando com irmãs mais novas ou
custa, pensam, das violências sexuais dos machos brancos primas da primeira mulher. (...) Pois essa multiplica-
contra as mulheres negras. ção de gente se fazia à custa do sacrifício das mulhe-
O aspecto mais perverso é o da exploração das mu- res, verdadeiras mártires em que o esfôrço de gerar,
lheres negras por alguns negros. Não é raro que aliciadores consumindo primeiro a mocidade, logo consumia a
e proxenetas de meninas negras sejam negros: líderes de vida.50
conjuntos musicais, taxistas, proprietários de bares, polici-
Não era de se estranhar, pois, que os índices de mor-
ais... Trata-se da constatação da afirmação de Paulo Freire: o
talidade materna fossem altos e a expectativa de vida das
oprimido hospedando o opressor.
mulheres, mesmo brancas, fosse bem baixa. Para as mulhe-
As mulheres negras não foram todas analfabetas nem res, a vida, mesmo na casa-grande, não era das mais sadias.
apenas passivas vítimas; entre os escravos malês da Bahia, Confinadas no espaço doméstico, submetidas ao poder pa-
várias eram alfabetizadas e participaram de várias insurrei- triarcal, gerando uma prole abundante que não lhes permitia
ções. Atualmente os grupos de mulheres negras estão se im- recuperar-se da gestação e do parto anterior, também as mu-
pondo, a ponto de alguns deles se constituírem nos únicos
lheres brancas, embora tivessem várias escravas a seu serviço,
grupos que monitoram os meios de comunicação social,
sucumbiam sob a tirania do patriarcado.
conseguindo sair-se sempre vencedores em suas demandas.
A discriminação perdura, mas um caminho já foi percorrido Era natural que (...) as catacumbas nas igrejas vives-
e espera-se que, com a solidariedade das mulheres não ne- sem escancaradas à espera de mocinhas que morres-
gras, o preconceito seja enfim superado. sem tuberculosas, de mulheres casadas que definhas-
Também a condição das mulheres brancas era de sem de anemia ou de mães cujo ventre apodrecesse
submissão e violência. No regime patriarcal vigente no Brasil môço de tanto gerar, agredido pelo membro viril do
colonial, as jovens brancas eram submetidas a um paradig- marido patriarcal com uma freqüência que era uma
ma de beleza que as condenava, através dos espartilhos e da das ostentações de poder do macho sobre a fêmea, do
sexo forte sobre o fraco.51
alimentação excessivamente frugal, à palidez e à fragilidade.
O médico barão Tôrres Homem, em 1882, detectou vários No ambiente patriarcal reinava o padrão da dupla
casos de tuberculose entre as mocinhas, devido à precária moralidade. Se, por um lado, o senhor branco agia assaltan-
alimentação.49 Uma vez casadas (aos quinze anos, se não ti- do as meninas negras, as mulheres encontravam-se cons-
vessem noivo já era considerada solteirona), deveriam parir tantemente ameaçadas pelos ciúmes de marido, irmão, pa-
muitos filhos, de modo que ocorriam freqüentes óbitos pre-
50 FREYRE, 1958, pp. 501-502.
49 Cf. FREYRE, 1968, p. 116. 51 Ibid., 1968, p. 120.

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rente e... pelos padres enredeiros. As meninas viviam sob o se tornou exclusivamente o membrum virile. Mão de mu-
jugo da tirania do pai. Através do casamento, logravam sair lher; pés de menino; só o sexo arrogantemente viril”.56
desta para cair na do marido. Houve porém mulheres que fugiram do paradigma
Colégios de religiosas e conventos muitas vezes funci- patriarcal. Dona Brites Coelho governou a imensa capitania
onavam como estabelecimentos de correção para mocinhas Nova Lusitânia. Várias mulheres se destacaram pela bravura
alvo de suspeitas de namoro. Um viajante alemão registrou a e coragem no enfrentamento aos holandeses em Pernambu-
freqüência com que brasileiros confinavam suas esposas em co. A grande maioria, contudo, permaneceu sob o jugo do
conventos a fim de viverem mais à vontade com uma aman- mais truculento dos patriarcalismos que perdura há 500
te.52 anos.
A simples suspeita de intenção de namoro era motivo
para os mais sanguinolentos desfechos: ESCOLARIZAÇÃO
Enquanto na França, entre 1647 e 1651, comerciantes
No Brasil o olho de Frade enredeiro não desapareceu francesas desencadearam movimentos reivindicatórios no
das casas: foi um eclesiástico que avisou D. Verônica Parlamento, com o intuito de retomar o direito ao acesso às
Dias Leite, matrona paulista do século XVII, que a filha escolas, e mulheres das elites iniciam movimentos literários,
estivera por algum tempo à janela. Crime horrendo de artísticos e espirituais, no Brasil as meninas provenientes das
que resultou – conta a tradição – a mãe ter mandado famílias abastadas tinham seus preceptores no domicílio,
matar a filha. Antonio de Oliveira Leitão, patriarca às
mas as meninas das camadas mais pobres não tinham aces-
direitas, (...) tendo visto tremular no fundo do quintal
so ao estudo. As órfãs pobres abandonadas, quando recolhi-
da casa um lenço que a filha tinha lavado para enxu-
das aos conventos, se alfabetizavam com as religiosas. As de-
gar ao sol, maldou logo que era senha de algum Don
Juan a lhe manchar a honra e não teve dúvida – sa-
mais crianças pobres permaneciam analfabetas. Somente a
cou de uma faca de ponta e com ela atravessou o peito partir da terceira década do século XIX a legislação brasileira
da moça.53 O coronel Fernão Bezerra Barbalho (...) permitiu o acesso das meninas à escola pública, até então
deixando-se levar por enredos de um escravo que fu- permitido apenas aos meninos.
gira (...) não teve dúvidas em assassinar a mulher e as Houve autores, como Clarke (1874) e Kelog (1882),
filhas.54 que alegavam que o trabalho intelectual prejudicava a saúde
das mulheres, podendo comprometer a capacidade reprodu-
Freyre escreve que o médico Correia de Azevedo tora.57
(...) parece ter surpreendido os motivos mais íntimos Não foram só as mulheres indígenas e negras a pa-
da excessiva ornamentação do chamado ‘belo sexo’ garem pela patriarcalismo. Só lentamente as várias formas
ou ‘sexo frágil’ dentro de um sistema patriarcal, como de assimetria nas relações de gênero são denunciadas e ga-
o do Brasil, empenhado em fazer do homem senhoril nham visibilidade.
o sexo dominante e de afastar a mulher de preocupa- A legislação impedia que os negros fossem alfabetiza-
ções ou responsabilidades de direção ou de mando.55 dos. A população branca do sexo feminino era impedida de
freqüentar escola. No Brasil, enquanto o crescimento popu-
Por outro lado é a seguinte a descrição de Freyre sobre lacional (representado pela natalidade) sofreu forte queda, a
o senhor de engenho: “No senhor branco o corpo quase que não-alfabetização atinge, às vésperas do terceiro milênio, a
52
taxa de 6,28% na faixa de 12 a 17 anos de idade, incidindo
FREYRE, p. 126.
53 Ibid., 1958, 2.º, p. 588.
54 Ibid., p. 589. 56 Ibid., 1958, 2.º, p. 599.
55 Ibid., 1968, p. 145. 57 MICHEL, 1982, p. 82.

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preferencialmente sobre a população negra, indígena e/ou No Brasil, somente após a greve de quase dois meses,
mestiça.58 que atingiu muitas categorias e quase paralisou São Paulo, é
Ainda hoje, nos cursos de educação de jovens e adul- que se decretaram leis para regulamentar a jornada de tra-
tos, ao ser indagada sobre os motivos da não escolarização, a balho de oito horas diárias, descanso semanal e proteção ao
maioria das mulheres declarara que lhe fora interditado o in- trabalho feminino. A reivindicação de igualdade de salário
gresso na escola sob a alegação de que “menina-mulher não para o mesmo trabalho foi aos poucos conquistada na lei,
precisa de escola”. Essa restrição não ocorreu apenas no Bra- mas nem sempre na prática. Até agosto de 1962, a legislação
sil. Não é de se estranhar, portanto, que dois terços dos não- não permitia que uma mulher assinasse contrato de trabalho
alfabetizados do mundo sejam constituídos por mulheres. sem autorização do marido. Este, se não concordasse, tinha
o direito de rescindir qualquer contrato de sua esposa.
Nas últimas décadas, as mulheres brasileiras têm se
escolarizado em tal velocidade que, em 1997, quase iguala- A exigência de creches nas empresas com mais de 30
empregadas e nas vilas operárias com mais de 100 casas,
ram às taxas de escolarização masculina. Os homens exibem
prevista na CLT, quase não tem sido observada, o que impede
a taxa de 84,1% de alfabetização e 82% de matrícula, en-
os bebês de usufruírem do direito de serem devidamente
quanto as mulheres respectivamente 83,9% e 77%.59 Esta
amamentados por suas mães.
conquista ocorre exatamente no momento em que a escola-
Nas organizações patronais como a Confederação
rização cada vez menos significa mobilidade social ascen-
Nacional da Indústria, Confederação Nacional do Comércio e
dente. São as taxas referentes à educação e à longevidade fe-
a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, assim
minina que melhoram o Índice de Desenvolvimento por Gê-
como nas associações de classe como Conselho Federal de
nero (IDG) no Brasil, classificando-o em 67.º entre 143 países
Medicina, Associação Brasileira de Imprensa e Ordem dos
comparados pelo Programa das Nações Unidas para o De-
Advogados do Brasil, a mulher está ausente nas cúpulas. Nas
senvolvimento (PNUD).60 centrais sindicais há algumas conquistas. Os percentuais de
Nos programas de pós-graduação da Universidade de mulheres nas direções são: 11% na Força Sindical; 12,5% na
Campinas há mais mulheres que homens. Mas mesmo Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Con-
quando as mulheres conquistam maior escolarização, ainda tag); 26% no Comando Geral de Trabalhadores (CGT); e 30%
assim, seus salários são, quase sempre, inferiores aos dos ho- na Central Única de Trabalhadores (CUT).
mens. Somos mais de 50% da população, responsáveis por
2/3 das horas de trabalho mundial, mas detemos apenas 1%
MUNDO DO TRABALHO E RENDA das propriedades e participamos apenas de 10% da renda. No
No século XIX e início do XX, época em que a maioria entanto, o número de mulheres que participam das Ações de
das mulheres era confinada ao chamado espaço privado do Cidadania corresponde a mais que o dobro do de homens.
lar, trabalhadoras que realizaram greves por melhores con- Em 1998, a revista Vej a6 2 estampou em uma de
dições de trabalho foram agredidas e assassinadas. O início suas capas a advertência: “Os homens que se cuidem, as
do século XX é marcado pelas manifestações em prol da volta mulheres estão avançando sobre os melhores cargos”. Como
dos que haviam sido enviados à guerra. Esses acontecimentos se nós, mulheres, não tivéssemos o direito de ocupar senão
culminaram no consenso em torno do dia 8 de março como postos de trabalho sem prestígio. É exatamente nos trabalhos
Dia Internacional da Mulher.61 de nível superior que as mulheres exibem salários mais dis-
criminatórios, isto é, as mulheres recebem em média 10,1 sa-
58
59
IBGE/PNAD, 1998. lários mínimos e os homens 17,3. O que significa que nos
Ibid., 1998.
60 PNUD, 1999.
61 IDE, 11/mar./00, p. 2. 62 Veja 1.535, de 25/fev./98.

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postos em se exige maior grau de escolarização, a discrimi- No Brasil, a grande assimetria nas relações de gênero
nação de gênero é ainda maior. continua na renda. Enquanto os homens têm uma renda
Na economia informal, em que as condições de tra- anual per capita de 9,025 mil dólares, o salário médio anual
balho são mais precárias, a maioria é composta por mulhe- das mulheres é 2,4 menor. Trata-se de um diferencial maior
res. Na chamada população economicamente ativa, recebem do que o da média mundial de 143 países calculada pelo
mais de 5 salários mínimos apenas 9,8% das trabalhadoras, PNUD, em que a renda dos homens é 1,8 vezes maior que a
e 25,5% dos trabalhadores. das mulheres (dados de 1997).
Nos postos de trabalho da administração pública di- Em harmonia com essa assimetria, o Brasil ocupa a
reta, cujos salários estão sendo cada vez mais corroídos, as 70.ª posição entre 102 países, quando se trata de medir a dis-
mulheres são 56%. Já nos serviços industriais de utilidade tribuição do poder entre os gêneros. Nos cargos de direção há
pública, cujos salários são bem superiores, as mulheres cor- 17,3% de mulheres e, no Parlamento, apenas 5,9%.
respondem a apenas 16,5%. No ritmo em que as mulheres alcançavam os postos
políticos, levariam 400 anos para se igualarem aos homens.
São estarrecedores os dados sobre salários por gênero
Por outro lado, no início da primeira epidemia de aids, a pro-
e por cor. As mulheres negras recebem, em média, um quarto
porção era de 28 homens para uma mulher. Foram sufici-
do salário do homem branco.
entes apenas 17 anos para se chegar quase a uma proporção
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) igualitária de incidência de aids entre homens e mulheres. A
revela que cerca de 20% das pessoas do sexo feminino ocu- campanha “Mulheres sem medo do poder” foi deflagrada
padas estão na agropecuária, atividade em que as mulheres após a IV Conferência Mundial da Mulher, ocorrida em Bei-
e as meninas exercem múltiplos trabalhos, como o domésti- jing, em 1995. As chamadas ações afirmativas foram con-
co, o de auxiliar dos homens (pai, marido, irmão, tio, avô), quistadas através da cota mínima de 20% de candidaturas
além de cuidar da horta e da granja. Significa que a produ- para o pleito municipal de 1995, 25% para as eleições esta-
ção e preparação dos alimentos fica por conta das mulheres duais e federais de 1998 e, finalmente, 30% para as eleições
e meninas. No entanto, quando os alimentos são reduzidos, municipais do ano 2000. Na França, a partir do ano 2000, as
são elas as primeiras a serem condenadas à subnutrição e à cotas são de 50%.
fome. É importante lembrar que, nessas condições, geral- Na Dinamarca, as mulheres constituem 48% do Par-
mente nem as mulheres nem as meninas percebem nenhu- lamento e mais de 50% do Executivo. O ano 2000 exibe al-
ma remuneração por essa tripla jornada de trabalho, que não gumas conquistas significativas: na Espanha, a Câmara dos
inclui nem descanso semanal, muito menos, férias anuais. Deputados e o Senado são chefiados por mulheres. No Japão,
Mais de 35% das meninas ocupadas estão no empre- em 1999, na província de Osaka, seu governador foi acusado
go doméstico, cujo quadro não é dos mais auspiciosos: re- de assédio sexual, pagou multa e renunciou. No ano 2000,
muneração baixa, constantes flutuações, riscos de assaltos uma mulher, pela primeira vez na história do Japão, foi eleita
sexuais, pouco prestígio. No mundo do trabalho, em algumas para substituir o governador demissionário em Osaka.
empresas ainda perduram, embora ilegais, algumas discri-
minações. Entre outras: exigência de exames médicos para VIOLÊNCIA DE GÊNERO
admissão em empregos (atestado de esterilidade, atestado de A violência de gênero tornou-se visível somente nas
não-gravidez, exigência de exame Papanicolau); estado civil últimas décadas. Há um tipo de violência implícita, inerente
(casamento como empecilho); faixa etária (preferem-se as às hieráquicas relações de gênero, que assegura aos homens
jovens); assédio sexual (dispensa direta e/ou indireta); e jor- quase todos os direitos e, às mulheres, uma cidadania de se-
nadas de trabalho superiores a oito horas diárias sob pena de gunda categoria. Trata-se da violência institucionalizada
dispensa. configuradas por:

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• menor acesso à escolarização; em 1995 e 1996, 66,3% dos acusados de homicídios contra
• dupla jornada de trabalho; mulheres eram seus parceiros.
• assimétrica distribuição de renda por gênero; Ainda há no mundo 130 milhões de mulheres geni-
• discriminação etária da mulher; talmente mutiladas, em 32 países da África. As conseqüências
• não acesso a certas carreiras e locais de lazer; são previsíveis: hemorragia, infecção, invalidez permanente,
• permanência dos altos índices de mortalidade ma- óbitos.
terna; Algumas crenças ajudam a permanência desse qua-
• menor acesso a financiamento; dro. Pensa-se que a violência doméstica ocorra só nas cama-
• dupla moral; das mais pobres e que ela atinja poucas pessoas. Os dados
• desrespeito com que as mulheres em desvantagem mostram que atinge muitas mulheres, incide em todas as ca-
econômica são tratadas pelos meios de comunica- madas sociais, chegam a ferimentos graves e até a óbitos.
ção social; Mesmo quando a vítima abandona o parceiro agressor, con-
• não divisão do trabalho doméstico entre os gêneros. tinua perseguida e agredida.
Assim como a institucionalizada, a violência explícita Há quem afirme que as mulheres não reagem. A his-
ganhou visibilidade apenas nas últimas décadas, após a I tória revela que as reações foram punidas com rigor. A In-
Conferência Mundial da Mulher (México, 1975). A violência
quisição atingiu mais homens que mulheres. Olympe de
doméstica contra as mulheres foi considerada violação dos
Gouges, militante da Revolução Francesa, escreveu a Decla-
direitos humanos somente em 1993, na Conferência sobre
ração dos Direitos da Cidadã. Ao defender seu reconheci-
Direitos Humanos, ocorrida em Viena.
mento pelo Parlamento, foi condenada à guilhotina em 1793.
No Brasil, os dados das Delegacias de Defesa da Mu-
Mulheres grevistas foram violentamente violentadas e assas-
lher revelam que a violência contra a mulher ocorre em todas
sinadas. As militantes pelo voto feminino (conquistado no
as camadas. Os números são elevados, mas as delegadas e
Brasil somente em 1932) foram agredidas e ridicularizadas.
pesquisadoras são unânimes em afirmar que os casos de-
nunciados constituem apenas a “ponta do iceberg”.Estima- Mesmo hoje as mulheres que ousam abandonar seus
tivas do Banco Mundial fazem crer que um quinto das faltas parceiros agressores têm 75% mais chances de ser assassina-
ao trabalho feminino ocorre devido à violência doméstica. das. Daí a urgência da instalação de casas-abrigo, que, pro-
Nos Estados Unidos, 33% das internações emergenciais de- vavelmente, evitariam outras agressões e óbitos. A ONU tem
vem-se à violência doméstica, que custa, no Chile, 2% do razão quando anuncia a falta de políticas públicas de pre-
Produto Interno Bruto (PIB). Há estudos que revelam que venção e de acolhida a mulheres em situação de risco grave.
41% dos homens espancam suas parceiras. As casas-abrigo no Brasil não chegam a uma dezena.
Bárbara Soares, do Instituto Superior de Estudos da É preciso que os agressores sejam punidos, mas urge
Religião (ISER), informa que, em 1997, foram registradas no a implantação de uma casa abrigo para as mulheres e seus
Rio de Janeiro 220 mil ocorrências de agressões domésticas. filhos em situação de grave risco. No entanto, não basta: é
Lembrando que apenas 10% dos casos são notificados, de- importante promover a mudança de mentalidade através da
duz-se que eles chegam a 2,2 milhões (1,7 mil casos por dia). reeducação de homens e mulheres, através de uma educação
No Brasil, 66% dos homicídios de mulheres de autoria co- sob a perspectiva de gênero para meninos e meninas.
nhecida são intrafamiliares. Isso permite afirmar que a casa Nos Estados Unidos, a general Claudia J. Kennedy de-
é o lugar mais agressivo para a mulher. nunciou, em 1996, ter sido vítima de assédio sexual pelo ge-
No País, somente em 1998 ocorreu uma pesquisa so- neral John Maher. Em março de 2000, às vésperas de uma
bre o assunto, assim mesmo fragmentária. O Movimento Na- promoção, em virtude do assédio cometido em 1966, John
cional pelos Direitos Humanos chegou à conclusão de que, Maher teve dois postos rebaixados e foi forçado a ir para a re-

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serva. Em 1999, dois outros generais foram punidos pelos dos cidadãos/ãs, ao contrário, ficaram à mercê da violência.
mesmos motivos.63 Com freqüência, crianças, não só negras, eram abandonadas
Desde o Código Penal da República (1890), a ascen- nas ruas ou nas portas das igrejas. Quase sempre acabavam
são da mulher brasileira levaria ainda um século. As Orde- recolhidas por aliciadores de plantão, que tratavam de ven-
nações tratavam as questões relativas à honra em razão da dê-las a bom preço para os proxenetas.
importância do ofensor ou da ofendida: padres, militares, Foi instituído um costume de se colocar as crianças
nobres eram tratados com a maior condescendência, inclu- indesejadas numa porta giratória (conhecida como roda
sive na Inquisição. dos expostos) na entrada dos conventos femininos, de modo
O Código Penal Brasileiro de 1830 revela a forte influ- que o/a depositante não fosse identificado/a. As religiosas as
ência do Código Napoleônico de 1810, que fazia distinção en- recolhiam e tratavam de educá-las.
tre a ofensa à dignidade ou ao decoro (injúria) e a atribuição A indiferença dos governantes pelas crianças pobres
a alguém de conduta legalmente considerada crime (a ca- não ocorre apenas hoje em dia. Não havia nenhuma orga-
lúnia). nização do poder público que se incumbisse de proteger as
Com a República, o Código Penal de 1890, no artigo crianças. A mais silenciosa é a violência institucionalizada,
27, § 4.º, dispensava a punição do homem que assassinara configurada em especial pela insuficiência de políticas pú-
sua companheira por perturbação dos sentidos. blicas de saúde, creches, escolas, lazer, assim como pela
Injúria, difamação e calúnia foram claramente sepa- omissão diante da exploração da força de trabalho e, sobre-
rados e identificados pelo Código Penal de 1940. Embora a tudo, pelo abuso sexual.
figura da “legítima defesa da honra” já tenha sido, pois, eli- Apesar do antigo Código do Menor e, atualmente, do
minada por esse Código, até recentemente foi prática recor- Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), adultos têm uti-
rente. lizado a população infanto-juvenil para furtos, roubos, trans-
A grande conquista está consignada na Constituição porte de drogas ilícitas, exploração sexual.
de 1988: vida, privacidade e honra são consideradas inviolá-
Várias são as iniciativas de pesquisa e atendimento aos
veis, subjetiva ou objetivamente. A concretização, porém, dei-
meninos e adolescentes em situação de risco. Mas quase nada
xa a desejar. No Brasil, a impunidade tem garantido a per-
se tem feito para estudar e atender às necessidades específicas
manência dos altos índices de violência de gênero. Ainda há
das meninas e das adolescentes.
um longo caminho a percorrer.
O descompasso nas relações de gênero tem gerado re-
VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA CRIANÇAS sultados igualmente assimétricos: as remunerações do traba-
E ADOLESCENTES lho, as enfermidades, o acesso à alimentação, a não divisão do
trabalho doméstico, o acesso à profissionalização. A visibilida-
As discussões em torno do projeto de Lei do Ventre Li-
vre, em 1870, revelaram a postura das elites relativa às cri- de numérica das meninas nas ruas é um fenômeno mais re-
anças das escravas. O senhor da escrava julgava-se dono do cente. No entanto, já em 1975, o abuso sexual foi identificado
ventre dela e dos filhos nele gestados, que desde tenra idade como um dos três principais motivos da fuga de seus lares, a
eram usados nos serviços. Crianças, tanto negras quanto maior parte dos casos envolvendo menores do sexo feminino.
brancas, assistiam às torturas e execuções dos escravos deso- Enquanto a maioria dos meninos sai de casa motivada por
bedientes. maus-tratos vários e/ou para angariar dinheiro, as meninas o
fazem sobretudo para fugir dos assaltos sexuais.
Herança do escravismo, crianças e adolescentes das
camadas em desvantagem econômica não foram considera- O maior impacto parece incidir na esfera da sexuali-
dade. Trata-se da violação da pessoa no mais profundo e ín-
63 MYERS, 2000. timo de seu ser.

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Em 1977, Weber estudando um grupo de prostitutas relâmpago contra a exploração da prostituição infanto-juve-
de Minneapolis, concluiu que 3/4 delas haviam sido vítimas nil, sem que se materialize em punições exemplares e políti-
de abuso incestuoso.64 Estudos realizados por Gordon, em cas públicas de prevenção e atendimento a essa parcela da
Boston, abrangendo um período de 1889 a 1960, revelou que, população, surge uma campanha contra a violência intrafa-
entre os abusos de crianças, 74,5% são perpetrados pelos pais miliar. Tem-se a impressão de que se quer eximir as autori-
biológicos e 12,7% pelos pais sociais. Com relação a outras vi- dades do cumprimento das legislações e dos acordos firma-
olências, 83,5% são perpetrados pelos pais biológicos e 11,1%, dos em Viena (1993), Cairo (1994) e Beijing (1995), para
pelos pais sociais. Em 5% duram meses, em 17%, várias vezes lembrar apenas as mais recentes convenções assinadas pelo
e apenas em 10% aconteceram uma única vez.65 governo brasileiro.
Não é temerário afirmar, pois, que para as meninas o O abuso incestuoso, assim como o abuso polimorfo,
chamado lar é o lugar mais perigoso. O abuso incestuoso quase sempre caracterizado pelo apelo à sedução, compro-
fragiliza as crianças, expondo-a à sanha das redes organiza- metem o processo de elaboração da identidade dessas crian-
das de exploração sexual infanto-juvenil. Trata-se de ativida- ças. Comportamentos erotizados, evasão escolar e tentativa de
de muito lucrativa, que atrai os homens ávidos por dinheiro suicídio são ocorrências interligadas. As discriminações soli-
e que contam com a certeza da impunidade. dificam o sentimento de culpa pelo abuso.
A CPI da Violência Contra a Mulher (1992)66 obteve Os comportamentos erotizados têm sido usados como
205.219 questionários respondidos sobre os crimes do perío- motivos para as discriminações. Essas crianças são evitadas,
do de janeiro de 91 a agosto de 92. Entre os 3.693 estupros, indesejadas, rechaçadas. Ninguém pode escolher seus pró-
metade ocorreu no espaço doméstico. A idade das pessoas vi- prios genitores, mas é possível superar essa violência. A im-
timizadas merece reflexão: 32,7% delas tinham de sete a 10 punidade tem garantido a permanência desse quadro. A ex-
anos e 28,6%, de 11 a 13 anos de idade, ou seja 61,3% envol- ploração sexual dessas crianças ganha continuidade nas ru-
viam crianças de sete a 13 anos de idade. Não estão incluídos as, nos locais onde se refugiam, nas instituições para aonde
aí os crimes de atentado violento ao pudor nem rapto, que fo- são encaminhadas.
ram contabilizados na categoria outros num total de 51,1% No Relatório da CPI da Prostituição Infantil foram
dos crimes. identificadas até meninos de 12 anos de idade contracenan-
As informações sobre a relação parental com o agres- do com meninas de cinco anos em filmes pornográficos.
sor nos boletins de ocorrência são insuficientes, quando não
omissos. Na legislação nem sequer há uma tipificação do (...) não raro, a prostituição de crianças e adolescentes
abuso incestuoso. está relacionada com a escravização e ao cárcere pri-
Em São Paulo, Cohen e Matsuda67 analisaram 238 vado. (...) O aliciador as encaminha ao explorador, que
casos em que foram explicitadas as relações parentais com os mantém estabelecimentos (casa noturnas, hotéis) ge-
agressores: pai biológico 41,6% e padrasto 20,6%. Já as infor- ralmente especializados em fornecimento de jovens de
tenra idade. Nestes, a jovem é mantida de diversas ma-
mações das diversas Delegacias de Defesa da Mulher revelam
neiras: pura e simplesmente colocada em regime de
a freqüência dos abusos sexuais contra crianças. cárcere, mantida como devedora do explorador que
É necessário atentar para que a violência extrafami- lhe fornece bebida, comida, roupas, medicamentos,
liar não permaneça impune com o argumento de que é pre- preservativos (quando usam, o que é raro) e drogas.68
ciso combater a violência doméstica. Após uma campanha-
O lucro advindo desse tipo de exploração é vultoso. A
64
65
WEBER, 1979. própria CPI, com a quebra do sigilo bancário e fiscal de al-
GORDON, 1993.
66 CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1993.
67 COHEN & MATSUDA. 1993. 68 CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1994, p. 24.

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guns dos acusados, apurou num só depósito 500 mil dólares. Adinaldo Cavalcante, de Caxias, e José Raimundo Sampaio,
Mas a coesão androcêntrica tem garantido a impunidade: de Bacabal. Foi afastado do cargo também o ex-comandante
“as autoridades não se mostram adequadamente preocupa- da Polícia Militar em Caxias, coronel Edmilson Saldanha. Fi-
das com a análise, o controle e o combate à prostituição in- nalmente, parece que a impunidade começa ser quebrada.
fanto-juvenil”.69 Os direitos das mulheres são direitos humanos.71
Após a coleta de dados, houve, durante meses, acir- A chamada prostituição infanto-juvenil não é causa,
radas discussões. A pressão e a cumplicidade de várias auto- mas apenas efeito de uma sociedade que não garante nem
ridades conseguiram que os nomes dos responsáveis não fos- sobrevivência às crianças, muito menos o exercício da cida-
sem citados no relatório final. “Os poderes constituídos, tanto dania. Para as meninas, as díspares relações de gênero têm
em nível estadual quanto municipal, passando pelo Juizado garantido uma violência muito mais cruel: o abuso e a vio-
da Infância e da Juventude, Polícia Militar, Polícia Civil, fo- lência sexuais. O ECA, duramente conquistado, não se mate-
ram senão coniventes, omissos”.70 rializa por falta de vontade política, quando não por interdi-
Autoridades, sobretudo policiais e judiciárias, têm sido ção de autoridades. A matança de Vigário Geral ganhou vi-
omissas, quando não cúmplices e até agentes da exploração. sibilidade nos MCS e repercussão internacional, também a pe-
A CPI nacional foi concluída em junho de 93. Ainda em mar- dofilia na Europa, através dos crimes da pacata Bélgica; mas
ço do ano seguinte, após denúncia de uma senhora, dois de- o abuso sexual de crianças e adolescentes brasileiras parece
sembargadores, um juiz federal e um juiz da capital de São não causar indignação, pelo contrário, provoca reações rai-
Paulo foram encontrados em flagrante uso sexual de quatro vosas por parte de algumas (por que não dizer, várias) au-
meninas num bordel de Rosana (oeste do Estado de São toridades.
Paulo). Urge desmascarar alguns mitos que sustentam a con-
Recentemente, em dezembro de 1999, Nirvana Vian- veniência androcêntrica. Os crimes sexuais contra crianças
na, juíza no município de Porto Calvo, Estado de Alagoas, não são raros, os agressores não são pessoas pobres de aspec-
durante as investigações sobre a exploração sexual de meni- tos sinistros, o impulso sexual masculino não é irreprimível.
nas e adolescentes, foi ameaçada de morte, sendo obrigada a A Campanha Nacional contra a Exploração da Pros-
requerer proteção policial. Estavam envolvidos juiz, promo- tituição infanto-juvenil do governo federal foi pífia. Histori-
tor, ex-prefeito, fazendeiros e padre. camente as campanhas têm sido expedientes para abafar o
No município de Caxias, Estado do Maranhão, quan- clamor popular, quando não para uso demagógico. Têm
do mães de algumas adolescentes recorreram ao Conselho produzido impactos propagandísticos, servindo para a des-
Tutelar, a promotora Lítia Cavalcanti, apesar da omissão dos mobilização dos grupos organizados.
policiais e autoridades, ofereceu as denúncias à Justiça. A Urge que se implantem políticas públicas de preven-
promotora foi ameaçada de morte, assim como os demais ção e de acolhimento da população-alvo. “(...) embora quase
membros do Conselho Tutelar, mas, por duas vezes, recusou- todas as meninas revelassem que os policiais são os principais
se a aceitar a proteção da Secretaria da Segurança Pública, agressores, são a eles que recorrem para buscar proteção
pois seria efetuada por quem estava envolvida na referida (Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança,
rede de exploração: a Polícia Militar. 1993)”.72
A Justiça decretou a prisão do advogado Hélio Coelho É importante que se multipliquem os grupos que se
da Silva, ex-presidente da OAB local. No último dia 4 de no- dedicam a desenvolver ações de solidariedade para com essa
vembro, o Tribunal de Justiça do Maranhão afastou os juízes população. É imprescindível que se ofereçam condições para
69 Ibid., 1994, p. 3. 71 CENTRO MARCOS PASSERINI, 1999.
70 Ibid. 72 NUCEPE/UFCE, mar./93.

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que as pessoas e organizações que já vêm realizando essas as, nos locais onde se refugiam, nas instituições para aonde
ações possam intensificá-las e ampliá-las. são encaminhadas.
A injustiça institucionalizada não será superada sem a Os dados apresentados pela ONU revelam que metade
democratização da riqueza e da renda. Mais: a violência de das mulheres e crianças que vivem nas ruas fugiu da violên-
gênero não é resultado apenas de injustiça socioeconômica. cia intrafamiliar, entre as quais as sexuais. Os aliciadores de
As hierárquicas relações de gênero deverão ser desconstruí- plantão sabem que são crianças e adolescentes fragilizadas,
das. Conforme o acordado na IV Conferência Mundial da portanto, presas fáceis. O lucro advindo desse tipo de explo-
Mulher (China, 1995), os governos se comprometeram a ração é vultoso. A coesão androcêntrica tem garantido a im-
contemplar a perspectiva de gênero em todas as políticas pú- punidade.
blicas. É preciso que se concretizem para que se construam
igualitárias relações de gênero. EDUCAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DE
Se educadores, articulados com outras organizações
GÊNERO
sociais, decidirem investir em uma educação pela cidadania Em 1870, no Brasil, uma questão de gênero, poucas
sob a perspectiva de gênero, certamente desencadearão um vezes explicitada, toma lugar no palco das disputas políticas.
poderoso processo contra a impunidade dos crimes contra as Os debates sobre o projeto da Lei do Ventre Livre consolidam
o primeiro posicionamento de gênero a respeito da proprie-
crianças e adolescentes, de modo especial os sexuais. Mais
dade privada.
ainda: é possível contribuir para que crianças e jovens pos-
O ventre da escrava era considerado propriedade pri-
sam sobreviver, brincar, se alfabetizar, crescer, estudar, ser fe-
vada do senhor que a comprou, assim como os filhos nele
lizes.
gestados. Conforme essa premissa, a Lei do Ventre Livre aten-
Recentemente a violência intrafamiliar e a exploração tava contra o sagrado direito à propriedade privada.
sexual infanto-juvenil têm se tornado presentes nos meios de Herdada do escravismo, essa tradição do pensamento
comunicação social. A visibilidade da questão contribui para do senhor branco impregnou a mentalidade brasileira de tal
alertar e mudar mentalidades. No entanto, constantemente forma que, ainda hoje, o ventre da mulher, sobretudo se é po-
ocorrem desrespeitos às mulheres, que além de sofrerem bre, é objeto de disputas. A concepção, a anticoncepção, o
agressões de seus parceiros ainda são ridicularizadas no rá- aborto, o parto, tudo é regulado pelas indústrias farmacêuti-
dio ou na televisão. cas, pelos Estados, pelas igrejas, pelas instituições médicas,
O abuso incestuoso, assim como o abuso polimorfo, por todos, menos pela própria mulher. Sobre a matriz da
têm sido escamoteados. Quase sempre com características de mentalidade patriarcal escravista construíram-se os papéis
apelo à sedução, as crianças sofrem comprometimento no sexuais, os estereótipos de papéis sexuais.
processo de elaboração de sua identidade. Com freqüência Meninos e meninas se socializam diferentemente des-
perdem o apetite, sofrem perturbações do sono, não conse- de muito cedo, de modo que se instaura uma meia demo-
guem concentrar a atenção, comprometendo a aprendiza- cracia que alija 51% de sua população das instâncias de po-
gem. A evasão e o insucesso escolar são freqüentes. As tenta- der, permitindo-lhe apenas uma cidadania de segunda ca-
tivas de suicídio não são raras. As discriminações solidificam tegoria.
o sentimento de culpa pelo próprio abuso. A preocupação pela configuração da mulher aos “pa-
Algumas passam a assumir comportamentos erotiza- péis naturais” não está presente apenas nas leis escritas, mas
dos, que têm sido usados como motivos para as discrimina- perpassa o cotidiano dos homens, desde o camponês analfa-
ções. Essas crianças são evitadas, indesejadas, rechaçadas. A beto até o universitário.
impunidade tem garantido a permanência desse quadro. A O confinamento ao espaço doméstico foi um expedi-
exploração sexual dessas crianças tem continuidade nas ru- ente de extrema eficácia para que o poder masculino não

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fosse contestado. A saída para o espaço público, mesmo que uma luta com os homens por uma sociedade mais demo-
através de ações filantrópicas, foi suficiente para que a gera- crática, mais agradável para mulheres e homens.
ção seguinte formasse grupos feministas. A capacidade de gerir exíguas rendas familiares, ates-
A partir de 1975, com a I Conferência Mundial da Mu- ta a competência das mulheres em administrar a res pública
lher, os movimentos feministas, os grupos de mulheres e os através de uma intransigente busca da justiça, sem perder a
núcleos de estudos sobre a mulher passam a ganhar visibili- sensibilidade, olhando o mundo com olhos de mulher, como
dade e os mecanismos de dominação sexual denunciados. o lema do Fórum de ONGS da IV Conferência Mundial da Mu-
É preciso desconstruir o aparato constituído por cos- lher em 1995.
tumes, hábitos, acomodações e conveniências que garantem
Nesses 500 anos, assim como a impunidade continua
ao gênero masculino quase todos dos direitos e ao feminino
garantindo a perpetuação da violência de gênero, as mulhe-
a submissão e uma cidadania de segunda categoria.
res continuam alijadas do poder. Conseguiu-se apenas apro-
Milhões de mulheres são mutiladas (são 130 milhões),
var as cotas de 30% para o pleito eleitoral de 2000, o que não
milhões de mulheres ainda hoje desempenham estafantes du-
significa forçosamente que conquistará 30% dos cargos le-
plas jornadas, são alvo de violências variadas, não gozam de
descanso semanal nem de férias anuais, são impedidas de se gislativos e executivos nos municípios. Atualmente as mulhe-
atualizarem como desejariam, têm suas iniciativas silenciadas res são 11% nas Câmaras e 6% nos executivos municipais.
quando não banalizadas, não têm voz nem vez. Entraremos no terceiro milênio com menos de 6% de mu-
Os múltiplos desafios postos pela discriminação de lheres na Câmara dos Deputados e apenas 7% no Senado. As
gênero precisam ser enfrentados. Essas dívidas sociais preci- ações afirmativas poderão elevar, neste fim de milênio, os
sam ser saldadas. As mulheres não estão esperando passiva- percentuais femininos nas eleições locais em que as mulheres
mente. Contra a inércia do Brasil que aprofunda a fratura so- têm conquistado maior êxito eleitoral. Ainda temos um longo
cial há movimentos de resistência e de construção de relações caminho a percorrer até o equilíbrio por gênero nas instân-
mais igualitárias. Nesses 500 anos, é na condição de princi- cias de poder.
pais credoras sociais que as mulheres se apresentam. Gabriel García Marquez diz que o próximo milênio
A mobilização pelos direitos das mulheres objetiva re- promete ser melhor porque carrega a esperança de ser ad-
lações de gênero mais eqüitativas; não é contra os homens. É ministrado por mulheres.

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126 impulso nº 27
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BRASIL: cinco
séculos de riqueza,
desigualdade ANGELA M. C. JORGE CORRÊA

e pobreza Professora da Faculdade de


Ciência e Tecnologia da
Informação e do Curso de Ciências
BRAZIL: five centuries of wealth, Econômicas (UNIMEP)
ajcorrea@unimep.br
income inequality and poverty
JOSÉ MARCELO DE CASTRO
RESUMO O presente texto apresenta uma revisão bibliográfica sobre a histórica situação de desigualdade e pobreza Estudante do Curso de
Ciências Econômicas (UNIMEP)
que caracteriza a evolução econômica brasileira. Confronta a riqueza de uma economia de médio desenvolvimento
bece@imagenet.com.br
humano, classificada como uma das dez maiores economias do mundo pelo valor do PIB, com o elevado grau de
desigualdade de rendimentos que compele milhões de pessoas à condição de pobreza. Busca-se subsidiar com tal le-
vantamento reflexões sobre o desenvolvimento brasileiro, no marco dos 500 anos de descobrimento, que propiciem
ações efetivas de acesso à educação e à informação, para o exercício da cidadania.
Palavras-chave Brasil – desenvolvimento econômico – desigualdade – educação – pobreza – riqueza.

ABSTRACT This paper presents a bibliographic review of the historic situation of income inequality and poverty wi-
thin the evolution of Brazilian economics. It compares the statistics which rank Brazil as a medium human develo-
pment economy with one of the ten largest economies of the world by its GDP, with the elevated degree of income ine-
quality that brings millions of people to situations of poverty. These factors are complimented with some reflections
about Brazilian development in regards to the five hundreds years of discovery. Effective actions for the access to edu-
cation and information are proposed for the exercise of civil and political rights.
Keywords Brazil – economic development – income inequality – education – poverty – wealth.

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INTRODUÇÃO

O
Brasil é um país marcado, no decorrer de seus 500 anos de his-
tória pós-descobrimento, por desigualdade de renda e elevados
índices de pobreza. Entretanto, pelo valor do seu Produto In-
terno Bruto (PIB), o País vem sendo enquadrado entre as dez
maiores economias do mundo, em anos recentes, classifican-
do-se entre a sétima e a décima posição nessa ordenação, pró-
ximo a economias modernas e fortes como a da Espanha e o
Canadá, e mesmo de economias muito grandes como a da China. Por esse agregado eco-
nômico, o Brasil pode ser considerado um país rico e de desenvolvimento humano elevado,
segundo a classificação feita para o ano de 1995 pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNDU).1
Porém, o PIB por habitante indica uma situação não tão favorável, pois, conside-
rando-se o número de pessoas da população brasileira, o PIB per capita é de cerca de 5.928
Indicadores dólares PPC2 no referido ano, valor que coloca o País entre as nações de “renda média alta”.
de qualidade de Nesse mesmo período o valor do PIB per capita para o Canadá é bem superior ao brasileiro,
de 21.916 dólares PPC, sendo de 14.789 dólares para a Espanha, e de apenas 2.935 dólares
vida colocam na China. Em países latinos, como o Chile, a Argentina e o Uruguai, também o patamar
o Brasil em situação é superior ao do Brasil, sendo o PIB por habitante respectivamente de 9.930, 8.498 e 6.854
desfavorável diante dólares PPC.
de muitos países, Adiciona-se a essa situação o fato de que outros indicadores de qualidade de vida
utilizados pelo PNUD, também para o ano de 1995 – como a esperança de vida ao nascer
inclusive perante e a taxa de alfabetização de adultos –, colocam o Brasil em situação desfavorável diante de
seus vizinhos latinos muitos países, inclusive perante seus vizinhos latinos do sul. Enquanto no Brasil a espe-
do sul rança de vida é de 66,6 anos e a taxa de alfabetização de adultos é de 83,3%, os valores des-
ses indicadores para o Chile são respectivamente de 75,1 anos e 95,2%, para a Argentina,
de 72,6 anos e 96,2% e para o Uruguai, de 72,7 anos e 97,3%. Resultados esses que mos-
tram que o País não tem, ao longo de sua história, investido suficientemente na educação
de sua população, apesar da importância desta para o desenvolvimento de qualquer nação.
Observa-se, também segundo classificação do PNUD, que os países de desenvolvi-
mento humano elevado têm, em média, 16.241 dólares PPC como PIB per capita em 1995,
enquanto esse valor é de 3.390 dólares para os de médio desenvolvimento e de apenas 1.362
dólares para aqueles classificados como de baixo desenvolvimento humano. Diante desse
referencial, o PIB por habitante no Brasil não parece ser tão ruim, inclusive em comparação
pontual com o conjunto dos demais valores do PIB per capita, entre os 174 países classi-
ficados pelo PNUD. Entretanto, como medida estatística de posição (média) não é um in-
dicador, neste caso, com boa representatividade da posição central dos dados. Isso porque
1 PNUD, 1998.
2 PPC: PIB real per capita ajustado pela paridade do poder de compra (BANCO MUNDIAL, 1998).

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existe grande dispersão e elevada desigualdade na distribui- utilizada pelo PNUD é centrada no Índice de Desenvolvimento
ção dos rendimentos pessoais, de tal forma que o valor nu- Humano (IDH), que procura exprimir, através de medidas es-
mérico desse índice (por ser uma média) está influenciado tatísticas, o conceito de desenvolvimento que trata do desen-
por rendas muito elevadas recebidas por pequeno percentual volvimento dos recursos humanos com ênfase no incremento
da população. do capital humano, destacando simultaneamente as pessoas
Desse modo, embora o País possua um PIB que o clas- como beneficiários do processo de desenvolvimento. O IDH é
sifica como uma das grandes economias do mundo, o ren- um índice sintético composto por dimensões fundamentais
dimento médio por pessoa é apenas razoável e fortemente da condição humana, criado no início dos anos 90, e publi-
afetado pela elevada desigualdade na distribuição da renda. cado anualmente desde então para o conjunto dos países in-
Fato esse que é ratificado pelo nível de concentração de renda tegrantes do PNUD. As dimensões utilizadas na construção do
absurdamente elevado do País, pois o índice de Gini calcu- IDH são a longevidade, a educação e a renda ou PIB per capita.
lado para o Brasil pelo PNUD, com dados de 1996, é de 0,601, O IDH combina essas três dimensões em uma única medida,
e o quociente entre a renda auferida pelos 20% mais ricos da baseada na média aritmética simples dos indicadores desses
população e os 20% mais pobres é de 32,1, sendo este o maior fatores, sendo uma alternativa à utilização do PIB per capita
quociente apresentado entre os países analisados pelo Rela- como indicador do grau de desenvolvimento dos países.
tório do Desenvolvimento Humano-1999.3 Segundo um dos responsáveis pela metodologia do
Para melhor entendimento sobre esses indicadores, IDH, e prêmio Nobel de Economia de 1998, o indiano Amar-
registra-se que o índice de Gini é uma medida que oscila de tya Sen, o IDH, por estar baseado em três componentes dis-
zero (perfeita igualdade) a 1 (extrema desigualdade) e, se- tintas – indicadores de longevidade, educação e rendimento
gundo a mesma fonte de análise (PNUD), é de 0,315 para o per capita – não se centra exclusivamente na riqueza eco-
Canadá, de 0,325 para a Espanha e de 0,415 na China. Nesses nômica e, dentro dos limites desses componentes, tem alar-
países o quociente entre a renda recebida pelos 20% mais ri- gado substancialmente a atenção empírica que a avaliação
cos da população e os 20% mais pobres é de apenas 5,24 ve- dos processos de desenvolvimento recebe. Admite Sen que o
zes no Canadá, de 5,37 vezes na Espanha e de 8,64 vezes na IDH é um índice imperfeito, e que deve ser visto como um
China, valores bem inferiores ao observados no Brasil, evi- movimento introdutório para se obter o interesse das pessoas
denciando a perversa concentração de renda vigente nesta pelo rico conjunto de informações presente nos Relatórios de
nação. Salienta-se que a gravidade dos valores assumidos Desenvolvimento Humano, publicados pelo PNUD, sendo esta,
por esses indicadores estatísticos supera os patamares numé- na realidade, a grande contribuição do referido estudo, pois
ricos, pois atesta que a opção do modelo de desenvolvimento tais relatórios são ricos de informações sobre uma ampla va-
centrado no princípio da acumulação, poupança e investi- riedade de aspectos sociais, econômicos e políticos que influ-
mento, mesmo que com desigualdade, na fase inicial do pro- enciam a natureza e a qualidade da vida humana.4
cesso de crescimento econômico, não comprovou ser possível O IDH calculado para o Brasil vem melhorando subs-
efetuar a esperada eqüidade em momento posterior do pro- tancialmente no decorrer do tempo. Em 1960 o País ocupava
cesso temporal do desenvolvimento. a 51.ª posição entre os 110 países que compunham o
Ainda segundo o Relatório do Desenvolvimento Hu- ranking do PNUD, estando na época no grupo de países de
mano-1999, o Brasil passa a ser considerado um país de mé- baixo desenvolvimento, com IDH de 0,394. Em 1995 o Brasil
dio desenvolvimento humano, apesar de ter sido classificado, passou a ser qualificado como país de elevado desenvolvi-
pelo relatório de 1998, como de elevado desenvolvimento hu- mento humano – com IDH de 0,809 –, ocupando a 62.ª po-
mano. A metodologia de mensuração de desenvolvimento sição no ranking dos 174 países que compõem atualmente
3 PNUD, 1999. 4 Ibid., p. 23.

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o PNUD e, embora a melhora do IDH decorra do crescimento BREVE RESGATE HISTÓRICO


em todos os seus índices parciais (longevidade, educação e DO DESENVOLVIMENTO
PIB per capita), a renda é a dimensão que tem dado maior ECONÔMICO BRASILEIRO
sustentação para o valor do IDH nacional.5 Mesmo com a al- A desigualdade é um aspecto marcante da história
teração na mensuração da dimensão renda, a partir do Re- econômica do Brasil, caracterizada, em um primeiro mo-
latório do Desenvolvimento Humano-1999 – em que o índi- mento, pela dependência da produção de poucas mercado-
ce de renda brasileiro cai de um patamar superior a 0,900 rias direcionadas exclusivamente para o mercado externo,
para a faixa dos 0,700, e o IDH nacional (de 0,739) coloca o prática esta que levava à concentração populacional e de ri-
Brasil no grupo de países de médio desenvolvimento huma- queza em poucas regiões do País.
no, em 79.º lugar no ranking do PNUD –, a dimensão renda O crescimento econômico concentrado foi a tônica do
continua a ser aquela que maior sustentação fornece para o desenvolvimento econômico no Brasil. Em suas diferentes fa-
valor do IDH do País. ses obedeceu um itinerário guiado pelos ciclos agroexporta-
Registra-se, entretanto, que há controvérsias sobre a dores, que elevava cidades e regiões à condição de esteio da
utilização de índices sintéticos como este, aplicados a con- economia nacional, e assim pode ser sintetizado:
juntos populacionais heterogêneos, para a mensuração de A desigualdade espacial no crescimento e na distribui-
fenômenos sociais, sob a alegação de que, se há grande va- ção de renda tem sido uma característica da econo-
riabilidade nos valores de um dado atributo, o valor médio mia brasileira desde os tempos coloniais e cada um
não representa a tendência central dos dados da forma mais dos ciclos de exportação de produtos primários do
coerente. Adicionalmente, observa-se que, sendo o IDH uma passado beneficiou uma ou outra região específica. O
medida de tendência central, acoberta as condições de po- ciclo da cana-de-açúcar nos séculos XVI e XVII favore-
breza e desigualdade vigentes no Brasil, além de não consi- ceu o Nordeste; o de exportação de ouro dos séculos
XVII e XVIII transportou o dinamismo da economia à
derar as acentuadas desigualdades regionais decorrentes do
área onde hoje se encontra o estado de Minas Gerais e
próprio modelo de desenvolvimento adotado pelo País. às regiões que a abasteciam, no Sudeste brasileiro; a
Não obstante o valor numérico favorável do PIB (total expansão da exportação de café do século XIX favore-
e mesmo per capita), e sendo o Brasil classificado pelo ceu primeiro o interior do Rio de Janeiro e, posterior-
PNUD6 como de médio desenvolvimento, encontra-se o País, mente, o estado de São Paulo.7
ao completar 500 anos de descobrimento, diante de um grave
As disparidades na renda e no desenvolvimento terri-
quadro de injustiça social, associado ao preocupante perfil de
torial perduram no Brasil desde sua ocupação, pois o relativo
sua distribuição da renda vigente, à qual estão relacionados
atraso social e econômico originou-se de uma colonização
os elevados níveis de pobreza de grande parte de sua popu- destituída de objetivos que promovessem o desenvolvimento
lação. das terras ocupadas. Para os povos europeus, a princípio, ocu-
Nesse contexto, e com o intuito de melhor ilustrar a par a América significava assegurar o seu direito de posse.
séria questão da distribuição de renda, pobreza e disparida- Tanto que, conforme Furtado,8 a exploração agrícola extensiva
des regionais do País em anos mais recentes, este texto pro- na região Nordeste foi mera conseqüência da incapacidade de
cura efetuar um breve resgate histórico do desenvolvimento financiamento do Reino português, aliada a uma reduzida
do Brasil, discutindo tais aspectos a partir de pesquisas cien- disponibilidade de indivíduos dispostos a aventurar-se nas no-
tíficas e informações oficiais. vas terras até então desprovidas dos metais preciosos, que fi-
5 CASTRO, 2000. 7 BAER, 1996, p. 284.
6 PNUD, 1999. 8 FURTADO, 1991.

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zeram a Espanha tornar-se uma das nações mais ricas da Eu- e economicamente. Traz novamente à tona a exportação
ropa no século XVI, à custa das pilhagens realizadas no alti- agrícola como esteio da economia, porém com vistas à mo-
plano andino e na meseta mexicana. Reforça essa idéia a afir- dernização e inserção do Brasil como nação na economia
mação de Wood e Carvalho9 de que, enquanto a Espanha mundial. Ademais, a cultura do café exigiu a reestruturação
consolidava a defesa de suas áreas produtoras de metais pre- produtiva, que veio firmar a relação assalariada de trabalho,
ciosos, Portugal precisou utilizar outros meios para consolidar dando consistência ao fluxo de renda interno no País, con-
e explorar os novos territórios americanos, pois não encontrou forme discutido em Furtado.11 Segundo Dean, citado em
de imediato os almejados metais preciosos. Dessa forma, os Wood & Carvalho,12 apesar do sistema de plantation ter co-
primeiros colonizadores estabeleceram-se nas regiões costei- meçado modestamente, com senhores de terra declarando
ras, voltando-se a exploração do pau-brasil, então fonte vali- orgulhosamente que dependiam do mundo externo apenas
osa de produtos para tintura, do qual deriva o nome do País. para compra de pólvora e sal, com a acumulação de capital
E essa exploração de madeiras de lei, no século XVI, apenas ini- a auto-suficiência abriu caminho para a economia de mer-
ciou os muitos ciclos de exportação que vieram a caracterizar cado e à circulação da moeda, de tal forma que os pré-re-
a história econômica do Brasil. quisitos para um sistema industrial logo apareceram. Com o
Contudo, o cultivo da cana-de-açúcar foi implemen- aumento do valor da produção exportada e, dada a expansão
tado com sucesso nas terras brasileiras. A economia açucarei- das áreas de cultivo, com a utilização de mão–de-obra imi-
ra caracterizava-se pela quase que completa inexistência de grante, estabeleciam-se bancos e outras instituições de cré-
fluxo de renda monetária, a força de trabalho (baseada no es- dito, além do sistema ferroviário, que, embora voltado para as
cravismo) dedicava-se ao trabalho nos engenhos e à produ- necessidades de exportação, propiciou a infra-estrutura lu-
ção de alimentos para a própria subsistência. Por outro lado, crativa para a indústria manufatureira doméstica.
parte da renda da produção de açúcar revertia-se em inves- É nessa fase histórica da formação econômica do Bra-
timentos que caracterizavam pagamentos ao exterior (aquisi- sil que a organização socioeconômica migratória, subordina-
ção de escravos, compra de equipamentos e instalações e bens da aos ciclos exportadores, teve seu fim no início de século xx.
de luxo), não proporcionando fluxo de renda interna, e sim A região Sudeste firmou-se, então, como líder da economia
concentração de renda nas mãos dos empresários. brasileira, já que em meados desse século, com o início do
Nas primeiras décadas do século XVIII a descoberta de processo de industrialização, era a região economicamente
ouro, na região norte de Minas Gerais, constituiu a alternativa mais dinâmica do País, aumentando sua participação no PIB
econômica do decadente Reino português, até então depen- nacional e, concomitantemente, transformando-se no prin-
dente exclusivamente do comércio do açúcar brasileiro. Ao cipal beneficiário do desenvolvimento econômico.
mesmo tempo propiciou ao Brasil a expansão populacional e A tendência da região Sudeste firmar-se como líder
um incipiente fluxo de renda interno, através da integração econômico, através da industrialização, pode ser melhor
comercial entre as demais regiões, como as criadoras de gado compreendida com a observação de Hicks, de que, “à medida
de corte, tração e muares para o transporte. Em decorrência, que a indústria e o comércio concentram-se em um deter-
a dinamização da economia constituiu o primeiro passo para minado centro, eles mesmos conferem a esse centro uma
a desconcentração da renda no Brasil, através da intensifica- vantagem para desenvolvimento posterior”.13 Isto é, novas
ção do fluxo de renda.10 indústrias tendem a se instalar na região que esteja já em
O período subseqüente da economia brasileira, ligada processo de desenvolvimento, a princípio mais lucrativas e
ao café, carrega consigo a modernização do Estado, política 11 Ibid.
12 DEAN, 1971, apud WOOD & CARVALHO, 1994, p. 66.
9 WOOD E CARVALHO, 1994. 13 HICKS, J.R. Essays in World Economics. Oxford: Clarendon Press,
10 FURTADO, 1991. 1959, p. 163. Apud BAER, 1996, p. 292.

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com maior disponibilidade de mão-de-obra especializada e Ratifica-se, pelo exposto, que os governos têm a fun-
variedade de bens e serviços, o que realmente se observou no ção de propiciar aos indivíduos o acesso aos frutos do cres-
Brasil. cimento econômico. Portanto, as questões levantadas pelo
A concentração do desenvolvimento no Sul/Sudeste paradigma do desenvolvimento humano (crescimento de
do Brasil agravou o empobrecimento das demais regiões que, para quem e por quem) deveriam nortear as políticas de
brasileiras e os fluxos migratórios internos incharam as ci- desenvolvimento nacionais.
dades, em particular as do Sudeste.14 O Brasil, entretanto, em decorrência da opção do mo-
A caracterização do desenvolvimento econômico do delo de desenvolvimento adotado, veio a constituir um dos
Brasil, como aqui apresentado, tem o propósito de possibilitar exemplos do insucesso das políticas embasadas no paradig-
o questionamento da noção de desenvolvimento, atrelado ao ma da modernização. Corrobora essa afirmação a constata-
crescimento econômico, vigente no Brasil ao longo de sua ção de recente relatório da Comissão Econômica para a Amé-
formação econômica, e a noção de desenvolvimento centra- rica Latina e Caribe (CEPAL), intitulado “Igualdade, Desenvol-
do nos indivíduos. Conforme o PNUD, o crescimento econô- vimento e Cidadania”, de que a América Latina encerra 1999
mico é uma condição necessária para o desenvolvimento hu- com mais pobres do que na década de 80, em decorrência da
mano, da mesma forma o desenvolvimento humano é im- colaboração negativa fundamental de três países que lidera-
prescindível para o crescimento econômico, porém ram a onda neoliberal na região: Argentina, México e Brasil.
A contribuição negativa do Brasil é evidenciada por aspectos
(...) não é uma condição suficiente: a vinculação entre como o fato de que, de 1990 a 1999, e de forma mais acele-
os dois não é automática. Além disso, os frutos do rada nos cinco anos finais desse período, o número de em-
crescimento só poderão ser traduzidos em melhorias pregos na indústria reduziu-se quase à metade (cerca de
de vida se houver, simultaneamente, uma gestão cui-
48%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica
dadosa das políticas públicas. O paradigma do desen-
(IBGE), e, embora os índices de inflação tenham caído, o qua-
volvimento humano também coloca questões do tipo:
crescimento de quê, para quem e por quem?15 se fim da inflação está beneficiando os mais abastados, e não
os mais pobres, nem mesmo a população em geral.17
Dessa forma, os governos têm um papel precípuo no Nesse contexto apresentam-se, em seqüência, os refle-
direcionamento do desenvolvimento, não devendo, assim, re- xos do desenvolvimento econômico brasileiro focado exclusi-
legar os fatores humanos à mera conseqüência de políticas de vamente no crescimento econômico, em detrimento dos fato-
crescimento econômico, como o ocorrido no Brasil, cujo mo- res humanos do desenvolvimento, particularmente nas últi-
delo de desenvolvimento seguido nas décadas de 50 e 60 era mas três décadas do século xx.
endossado pelos adeptos do paradigma da modernização.
Estes utilizavam a argumentação de que: “A melhoria dos pa- BRASIL: RENDA, DESIGUALDADE E
drões de vida dos grupos de baixa renda resultaria do espe- POBREZA NAS ÚLTIMAS DÉCADAS
rado efeito de ‘gotejamento’ do crescimento econômico sobre A renda representa um elemento essencial no estudo
o emprego e salários e da transferência de pessoas emprega- do aumento da desigualdade no Brasil, pois é a partir dela
das em atividades marginais no interior do País, através da que são geradas as desigualdades de oportunidades indivi-
migração, para o emprego produtivo nas cidades”.16 duais e entre os grupos sociais, agravando a situação de po-
breza que caracteriza historicamente o País. Entretanto, a ge-
14 Segundo CANO (1997, p. 125), São Paulo foi a “meca” da migração
interna, absorvendo 2,8 milhões de pessoas entre 1970 e 1980, sendo 50% ração e a reprodução da desigualdade engendradas pela dis-
delas compostas por nordestinos, 22% por mineiros e 18% por paranaen- tribuição da renda brasileira passaram a ser investigadas
ses, correspondendo a um montante de 53% dos emigrantes nacionais.
15 PNUD/IPEA/FJP/IBGE, 1998, p. 36.
16 WOOD & CARVALHO, 1994, p. 22. 17 FREITAS, 2000.

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com mais intensidade apenas a partir da década de 60, com população economicamente ativa com renda positiva – atin-
a publicação dos censos demográficos de 1960 e 1970. ge o patamar de 0,592 no início da década de 80.
Dessa forma, somente após o final dos anos 60 é que Prosseguindo com as observações do estudo de Barros
foram desenvolvidas pesquisas adequadamente fundamenta- et al.,24 os anos 80 são caracterizados por uma taxa de cres-
das sobre a questão da desigualdade de rendimentos pessoais cimento negativa para a renda, em todos os décimos da dis-
e da pobreza no Brasil, como os trabalhos pioneiros de tribuição. A fração de renda apropriada pelos 20% mais ricos
Fishlow,18 Hoffmann e Duarte19 e Langoni.20 Os estudos desde aumentou em dois pontos percentuais (de 63% para 65%),
então desenvolvidos mostram que a desigualdade de rendi- enquanto os 50% mais pobres reduziram sua apropriação na
mentos pessoais apresenta trajetória crescente, aumentando renda em dois pontos percentuais (14%, em 1980, para 12%,
tanto nos anos 60 e 70, que foram, em média, períodos de forte em 1990), evidenciando dessa forma que os anos 80 consis-
tiram uma década de declínio econômico acompanhado de
crescimento da renda, quanto nos anos 80, estes caracteriza-
crescimento no grau de desigualdade de rendimentos. Con-
dos por redução (ou mesmo estagnação) no ritmo do cresci-
firmando essa situação, o estudo feito por Hoffmann, base-
mento econômico do País, e mantêm-se em níveis elevados no
ando-se no rendimento familiar das pessoas economica-
novo cenário econômico neoliberal que caracteriza os anos 90. mente ativas, indica que o índice de Gini em 1989 fecha a dé-
O estudo de Barros et al.,21 acerca da desigualdade de cada atingindo seu valor máximo nos anos 80 (0,617).25
rendimentos, observa que os 20% mais ricos da População Estudos como os de Néri, Considera e Pinto26 permi-
Economicamente Ativa (PEA) brasileira aumentaram sua tem constatar que a situação de desigualdade e pobreza no
fração na apropriação da renda de 54% para 62%, de 1960 a Brasil, nos anos 90, continua grave. Apesar de ter ocorrido re-
1970, enquanto a fração apropriada pelos 50% mais pobres dução nos índices de desigualdade nos primeiros anos dessa
declinou de 18% para 15% nesse mesmo período. década, nos anos seguintes os valores dos indicadores já se
Já na década de 70, segundo esse mesmo estudo, ve- elevam, para só decrescer em 1995/96, paralelamente ao iní-
rifica-se um aumento na renda média de todos os décimos cio do processo de estabilização da economia, período em
da distribuição, que se beneficiaram do crescimento econô- que também se reduz a pobreza. Entretanto, o estudo revela
mico ocorrido no período. Entretanto, há de se destacar o que em 1997 a pobreza volta a crescer e potencializa-se a
crescimento acima da média, da renda dos 10% mais pobres tendência de reconcentração de renda, com o advento dos
(7,2%), e de se salientar que o maior aumento é observado no efeitos da crise asiática sobre o País.
grupo dos 10% mais ricos, de cerca de 7,3%. Nesse período O aumento da desigualdade durante as últimas déca-
nota-se um pequeno aumento da desigualdade, pois os 20% das, agravado pela histórica característica de disparidades de
mais ricos aumentaram sua apropriação da renda de 62% desenvolvimento entre as regiões brasileiras, acaba por revelar
para 63%, e a fração dos 50% mais pobres reduziu-se de 15% um ponto agudo das anomalias sociais: a pobreza. A propor-
para 14%.22 Ratifica esse resultado de aumento de desigual- ção de pobres no Brasil é mais elevada no Norte (43%) e Nor-
dade nos anos 70 o valor do coeficiente de Gini, que – con- deste (46%), sendo de 23% no Sudeste, de 24,5% no Centro-
Oeste e de 20% no Sul. Entre a população rural, a proporção
forme estudo de Hoffmann & Kageyama,23 considerando a
de pobres é de 39%, superior ao respectivo percentual da área
18 FISHLOW, 1972.
urbana, que é de 29% nas regiões urbanas metropolitanas e de
19 HOFFMANN & DUARTE, 1972. 27% nas regiões urbanas não metropolitanas. Neste contexto,
20 LANGONI, 1973.
21 Esse estudo de BARROS et al. (1997) baseia-se na análise da distribui- o Estado mais pobre do País é o Piauí, com quase 60% da po-
ção da renda, dividindo-se a população brasileira economicamente ativa pulação com renda per capita inferior à linha de pobreza, al-
(PEA), com renda positiva em décimos, pelo critério de nível de renda
média.
22 O ano base para cada cálculo desses percentuais é respectivamente 24 BARROS et al., 1997.
1980 e 1970. 25 HOFFMANN, 1998, p. 8.
23 HOFFMANN & KAGEYAMA, 1986. 26 NÉRI, CONSIDERA & PINTO, 1999.

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cançando a proporção de 72% na área rural dessa unidade da Tabela 1. Evolução recente do crescimento e da desigualdade
federação.27 – Brasil: 1989/95 (em %).
Parcela da Parcela da
Ratifica essa situação o estudo sobre pobreza desen- Crescimento
renda dos renda dos
volvido por Romão,28 indicando que a quantificação da po- Anos anual do PIB
50% mais 20% mais
breza, através da incidência de pobreza,29 foi de 41,4% em per capita
pobres ricos
1960, 39,3% em 1970 e 24,4% em 1980,30 o que revela o de- 1989 -1,4 11,8 62,4
créscimo sistemático na incidência de pobreza no País, nes- 1990 -5,9 12,3 62,7
sas décadas, e se explica pelo reflexo do crescimento econô- 1991 -1,3 13,6 60,2
mico auferido nesse período. Porém, no final dos anos 80, 1992 -2,3 12,9 61,3
com a desaceleração do crescimento econômico, o índice 1993 -2,7 12,2 62,2
1994 -4,3 10,4 65,7
volta ao patamar de 1970.
1995 -2,7 11,6 63,3
A década de 90 reservava esperanças de melhora das
Fonte: Pesquisa Mensal de Empregos – IBGE. Extraído de Neri
condições de vida para a população, em vista da iminente glo- & Considera (1996).
balização dos mercados – cunhada nas políticas neoliberais –
cujos principais lastros são a liberalização dos mercados e o li- Conforme Neri & Considera,32 o ganho referente à
vre trânsito de capitais. Pressupunha-se que os benefícios soci- renda per capita reflete a concentração de renda que, em-
ais e econômicos desfrutados pelos países industrializados aca- piricamente, intensifica-se após 1994. Porém, ressaltam esses
bariam sendo desfrutados também por todos os envolvidos na autores que essa década deve ser desdobrada em dois mo-
“onda globalizante”. mentos distintos, o primeiro compreendendo o início do pe-
Entretanto, os dados do relatório do Banco Mundial ríodo até 1993 e, o segundo, a partir de 1994, com a implan-
(Bird, 1998), relatados por Schwartz,31 mostram que no pe- tação do Plano Real.
ríodo de maior adesão ao neoliberalismo aumentaram a po- No início dos anos 90 – ainda segundo esses autores
breza e o protecionismo em escala internacional. A quanti- –, como conseqüência do declínio da renda per capita, a
dade de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia passou pobreza aumenta, pois a parcela da renda auferida pelos 50%
de 1,2 bilhão, em 1987, para 1,5 bilhão, em 1998, e, como mais pobres da população reduz-se continuamente de 1991
proporção, a América Latina está entre as regiões em que a (13,6%) para 1994 (10,4%). Entretanto, em 1993 e 1994 a
pobreza mais cresce. Dos 4,4 bilhões de habitantes que vivem economia volta a crescer, com a renda per capita aumen-
em países mais pobres, cerca de 60% não possuem acesso a tando em média 3,5% ao ano. Concomitantemente, a desi-
condições básicas de saneamento, 25% estão privados de gualdade volta a crescer, com os 20% mais ricos aumentado
condições modernas de habitação e 20% continuam margi- sua participação na renda, passando esta de 62,2% a 65,7%,
nalizados de assistência médica. enquanto os 50% mais pobres diminuíram sua parcela de
No Brasil, ao longo dos anos 90, observa-se a redução participação, de 12,2%, em 1993, para 10,4%, em 1994.33
da desigualdade de rendimentos nos períodos de recessão e, A característica distributiva que teve o Plano Real em
de forma adversa, nos períodos de crescimento econômico, o 1994, a princípio, reduziu a proporção de pobres – conforme
agravamento da desigualdade, conforme exposto na tabela 1. pode ser observado pelos valores apresentados na tabela 2. To-
mando como base setembro de 1990, a proporção de pobres
27
28
PNUD, 1999. aumenta abruptamente de aproximadamente 30% para 38%
ROMÃO, 1991.
29 Incidência de pobreza é adotada no texto como uma estimativa do
percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza, ou seja, é a proporção 32 Esse estudo, feito por NERI & CONSIDERA, 1996, tem como foco de
de pobres. análise a renda familiar per capita com base nas informações da Pesquisa
30 ROMÃO, 1991, p. 115. Mensal de Empregos (PME).
31 SCHWARTZ, 1999. 33 NERI & CONSIDERA, 1996, pp. 52-53.

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em julho de 1994, no conjunto das regiões metropolitanas do A tabela 3 mostra a gradativa redução na participação
País, o que confirma o crescimento da proporção de pobres no na renda dos 40% mais pobres, no Brasil, quando esta passou
início dos anos 90. de 15,8% para 10% entre 1960 e 1988, enquanto o percentual
relativo aos 10% mais ricos cresceu de 34,6% para 46,3%.
Tabela 2. Indicadores de pobreza enquanto insuficiência de ren- Esse movimento de redução da renda auferida pelos 40%
da para o conjunto das seis regiões metropolitanas1 mais pobres e aumento no percentual recebido pelos 10%
do Brasil – 1990-1996. mais ricos, de 1960 a 1988, também está presente em todas as
PROPORÇÃO NÚMERO DE regiões do País, no período, conforme pode-se perceber pelos
PERÍODO
DE POBRES POBRES (MIL) dados da referida tabela.
setembro/1990 29,95 10.982,80 Romão conclui que não foram proporcionados, pelo
julho/1994 38,22 14.782,90
modelo de desenvolvimento econômico adotado, mecanis-
julho/1995 28,24 11.062,00
mos que promovessem a eqüidade regional de renda e do de-
dezembro/1995 27,30 10.774,70
janeiro/1996 28,75 11.327,20
senvolvimento no País, ou que ao menos possibilitassem a re-
Fonte: IBGE (Rocha, 1996).
versão do processo de concentração de renda e diminuição
1 Regiões metropolitanas em que é realizada a Pesquisa da incidência de pobreza. Ele enfatiza: “É necessário, pois,
Mensal de Empregos (PME): Recife, Salvador, Belo Hori- que se tenha convicção de que o atual modelo de desenvol-
zonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
vimento é inapropriado aos requisitos básicos da sociedade e
No período imediatamente posterior, fica clara a me- extremamente excludente na sua essência, sendo inadmissí-
lhora associada aos ganhos de renda da população mais ca- vel que perdure por mais tempo”.36
rente, atribuída à estabilização econômica, pois a proporção Por outro lado, o estudo de Azzoni37 observa que, em-
de pobres reduz-se de cerca de 38% para 28% (de julho a de- bora períodos de rápido crescimento econômico estejam ge-
zembro de 1995), patamar semelhante ao de setembro de ralmente associados a aumentos na desigualdade de renda
1990. Porém, a tendência de queda no número de pobres é per capita estaduais, dois períodos diferem desta tendência:
afetada pela sazonalidade34 e, subseqüentemente, é revertida 1955-1960 e 1975-1980, relacionados a esforços governa-
no início de 1996, aumentando 1,4 pontos percentuais em re- mentais para reduzir a desigualdade regional do Brasil. O
lação a dezembro de 1995. primeiro período coincide com a implementação dos instru-
As características regionais da pobreza são igualmen- mentos de política regional aplicados no País, como por
te analisadas por Romão,35 através da incidência de pobreza, exemplo a Superintendência do Desenvolvimento do Nordes-
revelando que a pobreza também é concentrada, notada- te (SUDENE), e o segundo com os projetos do II Plano Nacio-
mente na região Nordeste. Segundo esse autor, políticas de nal de Desenvolvimento (II PND).
crescimento econômico a altas taxas em curto prazo, mal di- Os créditos devem ser dados à observação de Romão,
mensionadas, contribuíram para o alargamento do fosso en- pois o sucesso efêmero das políticas ressaltadas por Azzoni
tre pobres e ricos, como pode ser observado pela análise da resultaram num processo que pouco diferiu do quadro de
apropriação de renda dos 40% mais pobres (40-) e pelos 10%
concentração de renda e progressão da pobreza apresentados
mais ricos (10+), conforme a tabela 3, nas diferentes regiões
na década de 60. Conforme o Relatório Nacional Brasileiro
do País, desde 1960.
(apresentado em Copenhague, 1995), a região Sudeste, em
34 Conforme ROCHA (1996, p. 23), o retorno ao patamar de julho de 1985, contribuía com 59,4% do PIB nacional; o Sul com
1995 é justificado pela sazonalidade: o nível de empregos se eleva em vir- 17,09%; o Nordeste com 13,83%; o Centro-Oeste com 5,33%
tude do pico de atividade do comércio e serviços devido às festas de fim
de ano, além disso a renda é mais alta neste período em virtude do rece-
bimento do 13.º salário. 36 Ibid., p. 118.
35 ROMÃO, 1991. 37 AZZONI, 1997.

impulso nº 27 135
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e o Norte com 4,35%. Porém, em 1992, o quadro era o se- na, em que essa proporção é de 27%. Observa ainda essa au-
guinte: Sudeste com 56,18% do PIB; Sul com 16,74%; Nor- tora que esse índice varia entre Estados e regiões do País, mas
deste com 15,86%; Centro-Oeste com 5,69%; e Norte com é de cerca de 17% em um Estado rico e desenvolvido como
5,53%. Com base nesses dados, o relatório conclui que o au- São Paulo. Também dados recentes obtidos por Neri e Con-
mento da participação no PIB das regiões Nordeste e Norte – sidera42 ratificam essa tendência histórica, pois mostram que
em detrimento do Sul e do Sudeste – não implicou a dimi- no início de 1996 a proporção de pobres em seis grandes re-
nuição das disparidades sociais, sejam quais forem os indi- giões metropolitanas é de 27%.
cadores utilizados.38
No citado relatório, o Nordeste possui cerca de 59% do EDUCAÇÃO, DESIGUALDADE E POBREZA
total de pessoas que vivem em condição de indigência39 no Embora a desigualdade associada à educação seja
País, o que corresponde a aproximadamente 14,6 milhões de considerada como decorrência de outros fatores geradores de
brasileiros, em 1989, enquanto o Sudeste detém 22,8% desse desigualdade, como a renda e o desenvolvimento econômico
contingente, cerca de 5,6 milhões de pessoas, no mesmo pe- regional, a educação tem uma função relevante no aumento
ríodo. Ressalta-se que esses dados tornam-se mais alarman- da desigualdade, na sua reprodução e perpetuação.
tes quando se considera que a região Nordeste abriga cerca
Desde a década de 60, quando os dados estatísticos re-
de 30% da população brasileira e o Sudeste, 40%.
ferentes à educação da população brasileira passaram a ser
Além do exposto, outros estudos e índices estatísticos estudados com maior acuidade, revelou-se uma curva de-
econômicos dos anos 90 evidenciam que, apesar do registro
crescente na eliminação do analfabetismo no País.43 Confor-
de alguma melhora numérica decorrente dos efeitos iniciais
me a análise dos dados apresentados na tabela 4, a taxa de
do Plano Real, a desigualdade e a pobreza são muito eleva-
analfabetismo declina 7,3% na década de 60; na década de
das. O relatório “Indicadores sociais sobre crianças e adoles-
70 diminui 6,6%; e nos anos 80 reduz-se 5%. Salienta-se, po-
centes”40 afirma que no Brasil cerca de 40% dos menores de
rém, que na década de 80 os analfabetos ainda formavam
14 anos vivem em famílias com renda familiar per capita in-
um contingente de 20,2 milhões de brasileiros, revelando o
ferior a R$ 60 mensais, embora tenha havido, entre 1990 e
caráter heterogêneo da educação no Brasil, em termos regi-
1995, alguma melhora em indicadores como mortalidade
onais e de níveis de renda.
infantil e taxa de escolarização até mesmo nos Estados mais
pobres. Entretanto, observa-se que na região Sudeste a mor- Conforme o Relatório Nacional Brasileiro,44 entre as
talidade infantil é três vezes maior do que na Europa Ociden- regiões, o Sudeste apresenta taxa de analfabetismo das pes-
tal e em regiões mais pobres, como Alagoas, essa relação che- soas a partir de 10 anos de idade de 10,9%, enquanto na re-
ga a ser cerca de 10 vezes superior. gião Nordeste esta taxa chega a ser três vezes maior, atingin-
do 35,9%. Quanto à renda, os diferenciais de níveis de renda
Finalmente, registra-se os estudos realizados por Ro-
são mais acentuados. Na faixa etária entre 10 e 14 anos com
cha,41 que indicam que a proporção de pobres no Brasil, em
renda familiar per capita de mais de dois salários mínimos,
1990, atingiu 34% da população (ou cerca de 41 milhões de
pessoas), sendo mais elevada na área rural, onde 39% da po- as chances destas pessoas serem analfabetas é de 2,6%, en-
pulação se qualificam como pobre, e é menor na área urba- quanto tal probabilidade torna-se 14 vezes maior se a renda
per capita for de até meio salário mínimo.
38 CÚPULA MUNDIAL PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 1995, p. 6.
39 Considera-se indigente o indivíduo cuja renda não permite atender 42 NERI & CONSIDERA, 1997.
nem mesmo às necessidades básicas alimentares. 43 Embora deva-se considerar que, concomitantemente, o crescimento
40 IBGE, 1997, conforme editorial da Folha de S.Paulo, 19/nov./97, cad. 1, populacional neste período também apresentou curva decrescente.
p. 2. 44 CÚPULA MUNDIAL PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 1995, p.
41 ROCHA, 1997. 10.

136 impulso nº 27
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Tabela 3. Brasil e regiões: apropriação de renda pelos 40% mais pobres e pelos 10% mais ricos da população.
Brasil/ 1960 1970 1980 1983 1986 1987 1988
regiões 40– 10+ 40– 10+ 40– 10+ 40– 10+ 40– 10+ 40– 10+ 40– 10+
Brasil 15,8 34,6 13,3 42,3 10,4 46,7 9,9 46,2 9,9 47,3 9,1 48,5 10,0 46,3

CO 14,8 36,4 13,0 44,1 9,1 49,6 9,6 47,0 9,0 49,9 8,8 49,6 8,7 48,4
NO 18,8 30,5 15,9 39,3 11,6 43,2 10,5 42,9 10,5 42,4 9,6 43,7 9,9 44,4
NE 15,9 37,6 13,5 44,9 10,6 49,6 9,3 50,3 10,5 48,3 8,7 51,3 12,5 48,0
SE 12,3 36,3 10,7 42,3 10,0 44,5 9,5 44,3 9,3 46,6 8,7 47,8 9,0 45,5
SUL 17,0 32,1 13,2 40,7 10,7 45,6 10,4 44,3 10,1 45,0 9,5 46,0 10,1 44,2
Fonte: Censos Demográficos de 1960, 1970 e 1980 e PNADs de 1983, 1986, 1987 e 1988.
Conforme Romão (1991).

Dessa forma, a educação constitui um importante in- Observa-se que, embora a taxa de analfabetismo tenha
dicador da desigualdade de rendimentos, não explicitamente se reduzido em todas as regiões nesse período, houve um alar-
como um caráter gerador, mas sim reprodutor e, por conse- gamento dos desníveis entre as regiões a partir da década de
guinte, perpetuador da desigualdade. 80. Castro atribui esse fato ao avanço do processo de univer-
O desequilíbrio regional do sistema educacional brasileiro salização do ensino fundamental (processo que se apresenta
é caracterizado por Castro45 como um fator reprodutor e que en- mais lento em algumas regiões) e, mais recentemente, à mas-
fatiza as desigualdades sociais e econômicas entre as regiões do sificação do ensino médio que, em conjunto, impulsionaram
tal defasagem temporal das taxas de analfabetismo entre as
País, a despeito da melhoria geral dos indicadores educacionais.
regiões.46 O Nordeste, em 1980, apresentava índice de analfa-
Segundo Castro, embora nos últimos anos o País te- betismo de 45,5% da população, cerca de 2,7 vezes maior que
nha centrado esforços em políticas de redução do analfabe- o índice apresentado na região Sudeste (16,8%).
tismo, no ano de 1996 este contingente ainda atingia 15,8 mi-
Em 1996 o Sudeste apresenta índice de 8,7%; ao mesmo
lhões de pessoas, correspondendo em termos relativos a tempo, o Nordeste reduz também seu índice, declinando-o para
14,7% da população. Por outro lado, no período de 1970 a 28,7%; entretanto, a diferença ampliou-se para 3,3 vezes. Parale-
1996 revela-se a concentração regional do analfabetismo, lamente, a região Centro-Oeste apresenta queda significativa no
conforme pode ser constatado pelos dados da tabela 4. período 1980-96, de cerca de 54%; da mesma forma, a região
Tabela 4. Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou Norte reduz a taxa de analfabetismo de 29,3% para 12,4%.
mais – Brasil e regiões: 1970-1996. Considerando aspectos da desigualdade educacional
Brasil e Taxa de Analfabetismo (%) entre regiões e Estados brasileiros, apresenta-se estudo de
regiões 1970 1980 1991 1996 Barros et al.,47 com base na população acima de 15 anos de
Brasil 33,6 25,5 20,1 14,7 idade das Unidades da Federação, sintetizado na figura 1.
Como pode ser observado, à medida que a porcentagem da
Norte 36,0 29,3 24,6 12,4
taxa de analfabetismo declina, a renda domiciliar per capita
Nordeste 54,2 45,5 37,6 28,7
Sudeste 23,6 16,8 12,3 8,7
aumenta, ratificando a relação inversa, já ressaltada anterior-
Sul 24,7 16,3 11,8 8,9 mente, entre a taxa de analfabetismo e rendimentos.
Centro-
35,5 25,3 16,7 11,6 46 CASTRO, 1999.
Oeste 47 Esse estudo realizado por BARROS et al. (1999) analisa os dilemas
Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 1970, 1980, 1991 e entre as políticas de crescimento e de redução da desigualdade no com-
bate a pobreza no Brasil. Com base na estrutura e na evolução recente da
PNAD 1996 (Castro, 1999). desigualdade brasileira, demonstra não só o elevado grau de desigual-
dade do País, mas também a necessidade do desenvolvimento de políti-
cas ativas de distribuição de renda e de melhoria da qualidade dos
45 CASTRO, 1999. serviços educacionais para o combate da pobreza no Brasil.

impulso nº 27 137
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Figura 1. Reflexos do nível de analfabetismo na renda domiciliar per capita da população com mais de 15 anos entre as Unidades
da Federação – Brasil: 1995.
40

Taxa de analfabetismo (%)


35

30
AL
PI
PB
25 MA
PE RN
CE
20 BA
SE

15
PA GO
MT MG PR
ES
10 AM MS SP
RS RJ DF
SC
5

0
50 100 150 200 250 300 350 400
Renda domiciliar per capita*
Fonte: PNAD (1995). Extraído de Barros et al. (1999).
(*) Renda aferida em reais. Siglas dos Estados – MA: Maranhão, PI: Piauí, CE: Ceará, BA: Bahia, SE: Sergipe, PE: Pernambuco, PB: Paraíba,
RN: Rio Grande do Norte, AL: Alagoas, PA: Pará, GO: Goiás, MT: Mato Grosso, AM: Amazonas, MS: Mato Grosso do Sul, MG: Minas
Gerais, ES: Espírito Santo, PR: Paraná, SC: Santa Catarina, RS: Rio Grande do Sul, RJ: Rio de Janeiro, SP: São Paulo, DF: Distrito Federal.
Nota-se a concentração de Estados da região Nordeste, Assim, os reduzidos investimentos em educação têm-
na área da figura 1, em que se situam as maiores taxas de anal- se revelado um dos “pontos de estrangulamento” do desen-
fabetismo e menores rendas domiciliares per capita. Seguido volvimento humano no Brasil, tanto sob o aspecto de cresci-
de um grupo intermediário, composto pelos Estados de Goiás, mento econômico quanto de redução da pobreza.
Pará, Mato Grosso, Amazonas, Minas Gerais, Espírito Santo e A observação da tabela 5 revela o esforço maior da re-
Mato Grosso do Sul; apresentando taxa de analfabetismo entre gião Nordeste no investimento em educação, em relação ao PIB,
15 e 10%, e renda inferior a 200 reais. Ficando por conta de São quando se compara o percentual investido por esta em relação
Paulo, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do às demais regiões do País: seu investimento total é de 5,68%, su-
Sul as maiores rendas e as menores taxas de analfabetismo, perior a porcentagem total dirigida a educação em nível naci-
com destaque para o Distrito Federal, que supera todas as de- onal (de 4,21%). Por outro lado, deve-se destacar que o PIB do
mais Unidades da Federação nos quesitos analisados. Nordeste é bem inferior ao do Sudeste, cerca de 4,3 vezes, o que
Como resgatado anteriormente, o desenvolvimento no em valores absolutos significa um montante menor destinado
Brasil sempre deu preferência a investimentos em capital fí- à educação. Fato que, conforme Castro,49 redunda em gasto in-
suficiente para compensar as desigualdades econômicas. Esse
sico em detrimento aos investimentos em capital humano. É
insucesso é atribuído ao desperdício de recursos e à baixa efi-
inegável, entretanto, que o crescimento econômico brasileiro
ciência do sistema de ensino da região. Essa autora destaca
deve ser atribuído aos investimentos em capital físico de for-
ainda que os recursos direcionados a educação estão no limite,
ma expressiva, quando comparado à contribuição do capital
só podendo se expandir se houver aumento do PIB da região.
humano. Porém, observa-se que
Ou, de outra forma, como ultimamente vem ocorrendo, com
(...) a experiência internacional demonstra que raros recursos do governo federal através de programas de ação su-
foram os países que conseguiram crescer a taxas equi- pletiva como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
valentes as do Brasil nos últimos 50 anos, com inves- Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fun-
timentos similares em capital humano. De fato, o def).50 Entretanto, é importante destacar o esforço da região
crescimento econômico, na grande maioria dos paí-
ses, deu-se em grande parte graças a pesados investi- para a melhora dos indicadores educacionais.
mentos em capital humano.48
49 CASTRO, 1999.
50 Conforme a autora, este fundo – instituído pela Emenda Constitucional
48 BARROS et al., 1999, p. 12. n.º 14/96, estabelece como critério redistributivo dos recursos vinculados ao

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Tabela 5. PIB, Gasto Público na Educação e Percentual de Gastos Públicos na Educação em relação ao PIB: Brasil e Regiões – 1995.
GASTOS EM EDUCAÇÃO EM RELAÇÃO AO PIB (%)
brasil e PIB (R$
Governo
regiões 1.000,00) Total
Federal Estadual Municipal
Brasil 646.191.515 1,05 2,01 1,15 4,21

Norte 32.558.492 1,03 2,75 0,82 4,60


Nordeste 85.277.368 1,46 2,57 1,66 5,68
Sudeste 370.429.183 0,40 1,96 1,09 3,45
Sul 107.595.700 0,78 1,62 1,24 3,64
Centro-
45.373.546 2,27 2,01 0,80 5,07
Oeste
Fonte: IPEA/DISOC. Extraído de Castro (1999).

Destaca-se também a região Centro-Oeste, que tem famílias com rendimento superior a cinqüenta salários mí-
seus valores distorcidos em virtude da injeção, restrita, de re- nimos alcançaram média de 63,6 pontos na mesma prova.51
cursos federais na educação do Distrito Federal, o que justi- Registra-se também, conforme Mercadante,52 que
fica mais uma vez os baixos índices de analfabetismo apre- embora a renda per capita brasileira seja uma das maiores
sentados na figura 1. da América Latina e Caribe, a taxa de analfabetismo do País,
Em adição a esses aspectos constata-se que, de acordo de 19%, é das mais elevadas nesta região, só sendo pior que
com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada a de países como El Salvador (27%), Honduras (27%), Gua-
(IPEA, 1996), os 20% mais ricos da população brasileira pos- temala (45%) e Haiti (45%). Finalizando esse resgate biblio-
suem, em média, pouco mais de oito anos de escolarização, gráfico adiciona-se que, embora esteja ocorrendo alguma
enquanto os 20% mais pobres chegam apenas a cerca de dois redução no nível de analfabetismo do País, cerca de 15% dos
anos de escolaridade. E ainda que, no Brasil, o número mé- trabalhadores são analfabetos e somente cerca de 25% dos
dio de anos de estudo da população é de apenas três anos e que ingressam nas escolas conseguem terminar o segundo
nove meses, só superior, em toda a América Latina e Caribe, grau.53
ao Haiti. Na Argentina, país vizinho do Mercosul, o tempo Pelo exposto infere-se, pois, que a educação é um im-
médio de estudo é de oito anos e sete meses, mais que o dobro portante fator determinante da desigualdade de rendimentos
do verificado entre os brasileiros. Aspecto esse agravado pelas e que a baixa escolaridade de grande parte da população tem
notas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), divulga- sua parcela de explicação na perpetuação da situação histó-
das em dezembro de 1999: elas indicam que quanto maiores rica da situação de pobreza de pessoas, famílias e regiões.
a renda e o grau de cultura da família, melhor o resultado do Além de ressaltar que a escassez de recursos provenientes do
aluno, de tal forma que a diferença de notas é maior entre
subdesenvolvimento regional constitui uma barreira a opor-
alunos ricos e pobres que entre os que estudaram em escola
tunidade de acesso à educação, limitando o desenvolvimento
pública ou privada. Os resultados desse exame evidenciam a
econômico e humano das regiões do País através de sua evo-
prevalência de um fosso entre a educação de ricos e pobres,
lução histórica.
no País, o que é ilustrado, por exemplo, pela nota média dos
estudantes, classificados conforme renda familiar per capi- 51 financiamento do ensino obrigatório, no âmbito de cada Unidade da
ta: os alunos com renda familiar até um salário mínimo ob- Federação, o número de alunos matriculados nas escolas estaduais e muni-
cipais.
tiveram média de 34,8 pontos, em uma escala de zero a cem, 51 BERNARDES & FALCÃO, 1999.
52 MERCADANTE, 1997.
em conhecimentos gerais, enquanto aqueles que vivem em 53 Revista Exame, 17/jul./96.

impulso nº 27 139
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CONSIDERAÇÕES FINAIS • as palavras de Mercadante, quanto a sociedade do


Os dados e resultados apresentados neste texto ratifi- futuro ser uma sociedade do conhecimento e do
cam, uma vez mais, a histórica desigualdade e a pobreza que saber e a exclusão de grande parte da população
caracterizam a evolução econômica brasileira. Se de um lado das escolas e da educação significar o alijamento
o País está entre as dez maiores economias do mundo, e clas- de imensa massa de trabalhadores dos novos pro-
sificado como país de médio desenvolvimento humano, por cessos produtivos e sua condenação à “inemprega-
outro apresenta elevado grau de desigualdade de rendimen- bilidade”;
tos, o que compele milhões de pessoas à condição de pobreza, • os resultados de novos – além dos antigos – estu-
limitando as oportunidades destes a uma vida longa e digna dos econômicos, que indicam estar errada a teoria
e o acesso ao conhecimento. que estabelecia que, se havia desigualdade, haveria
Ao completar 500 anos de descobrimento é preciso re- acumulação, poupança e investimento, e depois
fletir e repensar o desenvolvimento do Brasil, com o intuito de tudo melhoraria. Há, comprovadamente, relações
inserir o País no mundo de modo integrado e qualitativo, in- positivas entre crescimento e igualdade, de modo
corporando à sociedade os pobres, marginalizados e excluí- que não há mais como deixar marginalizado ou
dos. Criando, para tanto, condições de acesso à educação e à esquecido o tema da desigualdade (e de
informação, como forma efetiva de exercício de cidadania, seus principais fatores condicionantes).
considerando, entre outros aspectos: Tal tema, ao contrário, deve ser colocado no centro
• os ensinamentos legados por Paulo Freire, de que a dos debates sobre desenvolvimento e o País precisa
educação é valor fundamental, base para o desen- passar a tratar a questão social de forma concreta
volvimento sustentável e humanizado de um país; e prioritária.

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BRASIL 500 ANOS:


o sonho educativo
de um Brasil solidário
500 YEARS OF BRAZIL:
the educational dream of a solidary Brazil
HUGO ASSMANN
Sociólogo, filósofo e teólogo.
RESUMO Inicialmente o artigo procura lembrar que a nova terra, que os navegadores acharam há 500 anos e que
Professor do Programa de
posteriormente foi chamada Brasil, de fato não correspondia a suas expectativas míticas e comerciais. Por isso foi
Pós-Graduação em Educação
praticamente desconsiderada por Portugal durante cerca de 40 anos. Esse fato é usado como gancho epistemológico (Mestrado e Doutorado) da
para inter-relacionar desejo, sonho e coletivo para criá-lo. Em um segundo momento, o texto enfoca o papel do/a Universidade Metodista de
educador/a nas pré-condições do conhecimento. Não haverá um Brasil solidário sem um grande sonho na criação Piracicaba (UNIMEP)
deste sonho. Ele/ela deve catalisar campos do sentido voltados à esperança e à solidariedade. A terceira parte contém hugo.assmann@merconet.com.br
10 tópicos específicos sobre o tipo de educação necessária para o “des-cobrimento” e a criação de um Brasil apren-
dente e solidário. Um marco teórico complexo apresenta implicações pedagógicas derivadas da inter-relação entre
biociências, sistemas dinâmicos e adaptativos, novas tecnologias, globalização e tendências à exclusão para postular
uma pedagogia voltada simultaneamente para a iniciativa pessoal e a sensibilidade social.
Palavras-chave Brasil 500 anos – epistemologia – educação – campo do sentido – iniciativa – solidariedade.

ABSTRACT The first part of this article reminds us that the new land the navigators found 500 years ago, later called
Brazil, did not, in fact, fit into their mythical and commercial expectations. Therefore, it was practically abandoned
by Portugal for almost 40 years. This fact is used as a kind of epistemological link to interrelate wish, dream and pre-
conditions of knowledge. There will be no solidary Brazil without a huge collective dream to create it. The second part
focuses on the educator’s role in the creation of such a dream. He/she must be a catalyzer of semantic fields of hope
and solidarity. The third part brings 10 specific items about the kind of education needed for the “dis-covering” and
creation of a learning and solidary society in Brazil. A complex theoretical framework presents educational implica-
tions, interlinking life sciences, complex adaptive systems, new technologies, globalization and exclusion-trends in or-
der to postulate a pedagogy for both personal initiative and social sensibility.
Keywords Brazil 500 years – epistemology – education – semantic field – initiative – solidarity.

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OS DESCOBRIDORES GOSTARAM DO BRASIL?


Introdução: um gancho epistemológico

O
enleio dos nossos supostos “500 anos” está refrescando a nossa
(des)memória nacional com lembretes e sonhos variados. A
esta altura já colhemos divertidas releituras históricas e algu-
mas incursões novas em nossa pluriidentidade de brasileiros
fartamente mestiçados. Chavões antigos persistem e a publici-
dade vem criando uns quantos novos. Não me animo a um vôo
panorâmico sobre todas essas paragens. Fico na minha praia
de educador e, por pendor incorrigível, usarei como trampolim alguns poucos lembretes
para saltar diretamente para o sonho de um Brasil ainda por inventar: um Brasilzão tão
grande que, mesmo sem ter de recorrer à nossa conhecida mania de grandeza, nele cai-
bam de fato todos os brasileiros (e quem mais vier para estas bandas).
Este Brasil grande em seu vigor solidário ainda está por descobrir, aliás des-cobrir,
Os achadores porque nossa própria estreiteiza o encobre. Para construí-lo deverão convergir muitas
do Brasil não competências e generosidades, mas o papel da educação será primordial. Por isso vou re-
sumir algumas insinuações sobre a misteriosa relação entre aprender e desejar, entre
souberam localizá-lo mundo do desejo e conhecimento. Mas que tem isso a ver com os “500 anos”? Com nesga
no seu mapa de de humor – ou será toque humor negro? – pode-se armar facilmente um jogo de con-
desejos. Chegaram, trastes. O Brasil “achado” não foi logo amado. Foi adiado e postergado. O Brasil que que-
viram, pisaram remos, jamais o descobriremos a não ser à medida que o desejarmos. Aí está, pois, um for-
midável gancho epistemológico (com perdão da palavra solene).
o chão e não É preciso recordar o lado chocante de um tópico básico dos “500 anos”: os acha-
encontraram o dores do Brasil não souberam localizá-lo no seu mapa de desejos. Chegaram, viram, pi-
que queriam saram o chão e não encontraram o que queriam: especiarias, ouro, prata. Por isso adiaram
e postergaram o Brasil por décadas. Não quero especular sobre o que teria acontecido se
o Brasil real “achado” tivesse coincidido com o mundo dos desejos dos descobridores. Acho
importante, porém, que meditemos sobre o que acontecerá conosco se o Brasil que nós
percebemos hoje em dia tiver, para nós, tão baixo teor de desejabilidade. É tarefa nossa des-
cobrir um Brasil feito de sonhos tão palpáveis e ousados que nenhum novo “descobridor”,
de dentro ou de fora, possa vir a repetir a insultante apreciação, de 500 anos atrás, de que
por aqui não se achou “coisa de proveito”. A educação tem tudo a ver com isso, porque
educar significa algo mais que repassar saberes. Significa construir experiências de co-
nhecimento desejante, no qual os mundos se tornam viáveis porque são mundos desejáveis
e desejados.
Mal Fora “Achado”, o Brasil Logo Foi Adiado
Mas vamos aos lembretes. No início, e por décadas, a decepção dos achadores do
Brasil foi explícita, pelo que nos re-contam os historiadores. De resto, não faltam indícios
de que, em Portugal, já se sabia que por estes lados havia chão firme para pisar, coisa pos-

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sivelmente apurada por Duarte Pacheco em começos de sas e demoradas. As expedições à India, dando a volta pelo
1499 (e por outros antes?).1 Mas não há maiores dúvidas de sul da África, eram bem mais penosas. A relevância, ou não,
que Pedr’Alvares Cabral veio oficializar o achamento. Já o ta- do Brasil dependia sobretudo da sua possível “localização”
manho e a solenidade da sua frota de 13 naus tinham outra no mapa dos mitos construídos como articulação coletiva de
referência: sua expedição à India, a cuja prioridade se man- desejos. Foi neste plano que a nossa desejabilidade se revelou
teve fiel.2 Em minhas não poucas andanças pela América muito pequena.
Latina me deparei, por vários lados, com livros escolares (e Américo Vespúcio – que, ao abordar demoradamente
enciclopédias) em língua espanhola que, em vez de Cabral, vários pontos do nosso litoral, estava sob contrato de Portugal
trazem os espanhóis Vicente Yañez Pinzón e Diego de Lepe
e em nau portuguesa – não disfarçou o tom zombeteiro:
como descobridores do Brasil. Atualmente até livros brasilei-
“Nessa costa não vimos coisa de proveito, exceto uma infini-
ros admitem que eles de fato anteciparam a Cabral em al-
dade de árvores de pau-brasil (...) e já tendo estado na via-
guns meses. (Mal comparando, dá-se algo parecido com a
gem bem dez meses, e visto que nessa terra não encontramos
variação dos nomes de quem teria inventado o avião: ne-
nhum manual escolar norte-americano registra a Santos coisa de metal algum, acordamos nos despedirmos dela”.3
Dumont como o “primeiro”, mas sim aos irmãos Wright). Diante de semelhantes evidências, d. Manoel, rei de Portugal,
Na perspectiva daquilo que se pretende abordar neste não teve dúvidas: arrendou a terra achada a um grupo de
texto, pouco importa a fragilidade ou imprecisão de nomes e cristãos-novos (judeus passados para “cristãos”), liderados
datas. Trata-se de curiosidades históricas secundárias, aliás, por Fernando Noronha, para explorarem o pau-brasil e, por-
ainda – e talvez para sempre – bastante confusas. Se ousa- ventura, acharem alguma outra “coisa de proveito”.4
mos mesclar e ponderar os aspectos confusos e contraditórios Rolaram cerca de 40 anos, depois do achamento do
relacionados com o “achamento” do Brasil, chega-se à con- Brasil, até que um Portugal já consumadamente falido e en-
clusão de que a data precisa de 1500 não tem realmente, para dividado se desse conta dos seus equívocos acerca do comér-
o início da história do Brasil, nenhum peso comparável com cio de especiarias com a Índia e adjacências, e da falácia da
o peso maior do fato de o Brasil ter sido considerado como sua obsessão pelo ouro e a prata, onde quer que fossem en-
coisa que não interessa. contráveis. Na verdade, o Brasil só começa a ser “descoberto”
O que importa frisar, como primeiro aspecto, é a obs- pelos portugueses, quando outros – os franceses – já haviam
tinação de Cabral, Vespúcio etc. numa “barreira cognitiva”, farejado de perto a sua desejabilidade. E não nos deixemos
isto é, havia neles uma pertinaz incapacidade de “conhecer” induzir a engano: a famosa expedição de Martim Afonso de-
e descobrir a terra “achada”, já que ela não coincidia com o morou-se no litoral paulista, em 1531, por meros acidentes
que buscavam. O Brasil “achado” por Cabral e, dois anos de- de percurso.
pois, por Vespúcio (que se apregoou pela Europa afora como
descobridor do Brasil), não era aquilo que eles desejavam. Na verdade, é como se, depois de um hiato de 30 anos,
Por isso viram-no como “sem proveito”. A “situação comu- a história do Brasil só se iniciasse com a chegada da
nicativa” da terra achada não dependia apenas, nem primei- ‘missão colonizadora’ de Martim Afonso de Sousa, em
ramente, das distâncias geográficas e das navegações peno- 1531. Mas também aí persistem os mitos historiográfi-
cos. Afinal, ao contrário do que a maior parte dos textos
1 Cf. “O verdadeiro Cabral”, em IstoÉ de 26/nov./97. O pesquisador portu- afirma, Martim Afonso não veio fundar cidades ou ini-
guês José Manoel Garcia, especializado em história dos descobrimentos,
do Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Letras de Lisboa, teria ciar a colonização do Brasil. Sua principal missão era
afirmado: “Entre os principais historiadores portugueses, não há dúvidas explorar o rio da Prata – considerado a porta de en-
de que Duarte Pacheco chegou ao Brasil antes de Cabral. (...) A viagem
de Cabral continua a ser considerada o descobrimento oficial do Brasil
apenas por uma questão de tradição e de comodidade”. 3 BUENO, 1998b.
2 BUENO, 1998a. 4 Ibid., p. 67.

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trada para as extraordinárias riquezas do Império In- toda a conquista da América, especialmente a dos países la-
ca.5 tino-americanos. Bartolomeu de las Casas foi provavelmente
quem melhor se deu conta desse hiato cognitivo, no qual to-
Visto isso, o que é que estamos celebrando? A memó-
dos os hiatos comunicativos e todas as formas de violência es-
ria do “des-cobrimento” não deveria servir para encobrir a
tiveram, de algum modo, enraizados. Mas, por outro lado,
desconsideração e o descaso inicial dos portugueses em re-
evitemos de cair em teorias monocausais. Os ingredientes do
lação ao Brasil, e isso durante várias décadas. O que aonte-
que sucedeu sempre foram complexos e múltiplos. O toque,
ceu, além desse fato fundamental, foram incursões, mais ou
que estamos dando, serve apenas para des-construir a su-
menos aventureiras, mas não por isso menos brutais, de de-
posta obviedade dos discursos históricos.
gredados, traficantes e náufragos. E mesmo entre eles houve
O mais chocante e quase inacreditável talvez ainda
vários que continuavam buscando outra coisa, organizando
seja aquela total incapacidade da Igreja Católica dos tempos
até mesmo longas incursões na direção da prata e do ouro
coloniais de estourar por dentro a dimensão cognitiva da vi-
dos incas do Peru. Quando a visão do paraíso não tem nexos
olência conquistadora. Pelo visto, os níveis oficiais da Igreja
fortes com aquilo que se defrontra, o encontro fica impedido.
recalcaram inconscientemente qualquer pergunta sobre isso,
As profundas implicações históricas e filosóficas disso foram
ou nem sequer se davam conta desse nível profundo de de-
examinadas, com notável rigor, por Sérgio Buarque de Ho-
sencontro. Intérpretes generosos do fenômeno das Reduções
landa, no texto clássico Visão do Paraíso.6
Jesuíticas suspeitam que alguns jesuítas estavam perto de
Desejo, Conhecimento, Des-cobrimento percebê-lo.
Para o visado neste texto podemos contentar-nos com Só se conhece aquilo que tem nexo com o mundo do
alusões resumidas. O achamento do Brasil esteve acompa- desejável. A lembrança da desconsideração e postergação,
nhado do mais descarado desconhecimento do Brasil. Houve que marcou nossa história sempre de novo adiada, pode aju-
“terra à vista”, depois terra pisada, porque desembarcaram, dar-nos a entender isso melhor. Para nós, enquanto animais
mas logo passamos ao rol de coisa irrelevante. Terra dos pa- simbolizadores e falantes, toda realidade é, antes de mais na-
pagaios e do pau-brasil. Os descobridores não acharam na da, realidade discursiva, feita de linguagens. Com variações
praia os mitos que nutriam seus desejos: as especiarias, o ou- circunstanciais, a porção maior de nossos mundos desejáveis
ro, a prata. O Brasil foi “achado”, mas não (re)conhecido. Os é bordada por linguagens que borbulham desde o imaginá-
mitos que governavam o desejo dos descobridores impedi- rio, e apenas uma parte menor delas obedece a costuras mais
ram que eles conhecessem a nova terra e a sua gente. Esse exatas do nosso intelecto. Isso se aplica também aos festejos,
impedimento epistemológico teve sabidas conseqüências verbais e outros, referidos a datas factualmente bastante frá-
imediatas (Portugal não deu bola ao Brasil durante várias geis. No fundo, o que interessa é o ensejo de ponderarmos até
décadas), e continuou presente, sob variadas formas, ao lon- que ponto a revisitação das realidades discursivamente cons-
go de toda a nossa história até os dias de hoje. truídas de outrora têm interfaces com os desafios que perce-
Portanto, o nosso gancho um tanto enviesado com os bemos, ou não percebemos, atualmente.
“500 anos” tem a ver com o conhecimento. Melhor dito, com Para os seres humanos o real não se reduz nunca a
a relação que sempre existe entre o desejo e o conhecimento. coisas ou objetos. Para nós, o real – o real “mesmo”! (como
O “achamento” do Brasil deu-se dentro de um “campo do enfatizamos dentro da idiossincrasia lingüística típica do
sentido” no qual não havia linguagens adequadas para aqui- nosso português) – é aquilo que pode ser afirmado enquanto
lo que se achou. Esta foi, aliás, uma característica dos “cam- percepção desejante, ou seja, como aquilo que vale a pena.
pos semânticos” aos quais esteve supeditada praticamente Isso se mantém como base constitutiva do “nosso real”, mes-
5 Ibid., p. 9.
mo que coincida apenas em parte com o imediatamente fac-
6 BUARQUE DE HOLANDA, 1969. tível ou viável. Viabilizar implica também criar desejos. O

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mais real é sempre o mais intensamente desejável e desejado. Existir-em-corporeidade implica, portanto, estar
As mais recentes teorias da aprendizagem frisam muito esse imersos em pactos simbólicos (para usar uma expressão de
ponto. Lacan). Não existe comunicação “descorporeizada”, como
movimento comunicativo puramente espiritual de mente a
DES-COBRIR PARA GOSTAR mente. Toda comunicação, mesmo a mais refinadamente re-
(OU: CONTRA O ADIAMENTO DO BRASIL) flexiva – por exemplo, quando se discutem conceitos, distin-
Portanto, nossa questão de fundo tem de ser: como ções, definições – está submetida a condições biofísicas e so-
criar – através da educação e por muitos outros meios – um ciolingüísticas, ou seja, as condições – favoráveis ou adversas
intenso desejo compartido que aponte para um Brasil soli- – de comunicabilidade.
dário para todos? Sob muitos aspectos, ainda hoje em dia vi- Podemos lançar duas hipóteses fascinantes sobre esse
vemos imitando o mau exemplo do primeiro suposto “des- assunto. Uma se apóia naquilo que os intercomunicantes têm
cobrimento”: decepcionados por não acharem de cara o que a ganhar (vitalmente, e enquanto fruição) com seu processo
buscavam, os portugueses nos desconsideraram e adiaram comunicativo. Trata-se da hipótese de que sempre está em
por muitas décadas. E atualmente ainda nós somos um país jogo um possível plus ou ganho enquanto fruição ou gozo. A
que está sendo adiado, já que nele se continua postergando a hipótese da fruição acrescida (vamos chamá-la, com Lacan,
qualidade de vida, e até a simples sobrevivência, de multidões de “plus-gozo”) refere-se apenas a um aspecto do processo
intercomunicativo dos seres desejantes. Fazendo eco ao con-
de brasileiros. Acho que a força de sonhar, que precisamos
ceito de mais-valia (plusvalia) de Marx, Lacan chega a afir-
para não seguir nessa postergação, vai ter de passar funda-
mar que é a busca desse plus-gozo que, de certo modo, de-
mentalmente pela educação. Seremos um país desejado e va-
termina e comanda a estrutura dos significantes. Em outras
lorizado, pelos “de fora” e por nós mesmos, se nos tornarmos
palavras, segundo essa visão lacaniana, a própria materiali-
um Brasil aprendente, para o qual o conhecer esteja imbuído
dade das linguagens – isto é, sua gramática de sons, ima-
de desejos intensos.
gens, grafias – estaria embebida e conformada por uma di-
Nós humanos nos caracterizamos como seres dese- nâmica de plus-gozo.
jantes, já no plano biofísico, mas sobretudo enquanto seres- Esse é apenas um aspecto, porém fundamental. Con-
com-linguagem. Isso significa que nossos desejos se consti- vém pensá-lo juntamente com todos os demais elementos,
tuem, comunicam, realizam ou frustram via símbolos e lin- arbitrários e até calculistas, das linguagens formalizadas. Por
guagens, numa unidade indissolúvel entre os aspectos biofí- isso mesmo convém explicitar, de imediato, uma outra hipó-
sicos e os sociolingüísticos. Embora os possamos distinguir tese complementar, que Lacan explicita mediante seu con-
para efeito de análise, na prática esses aspectos são insepa- ceito de “pactos simbólicos”. Ele supõe como óbvio algo que
ráveis. nem sempre temos presente: toda comunicação ocorre sob a
O termo corporeidade busca abarcar conceitual- égide de acordos, tácitos ou convencionais, acerca de como
mente esta multiplicidade de aspectos do nosso “estar imer- convém comunicar-se. A busca da mais-fruição está condi-
sos” no entre-jogo de necessidades e desejos mediado por cionada pela flexibilidade ou rigidez dos pactos simbólicos.
linguagens. Sempre estamos jogados na água dos desejos e Uma hipótese complementa a outra. Lacan nos recorda que,
paixões, porque tudo o que nos sucede e tudo o que fazemos junto à busca do plus-gozo existe o mal-estar próprio de todo
acontece nessa corporeidade. Não existem processos pura- pacto simbólico.
mente mentais, sem a mediação dessa corporeidade. Nada- A análise do processo comunicativo – por exemplo da
mos, a todo momento, em processos comunicativos de toda relação pedagógica – pode deter-se mais num ou mais nou-
índole – biofísicos, sociolingüísticos, multimidiáticos (imer- tro desses dois aspectos: o lado gostoso ou o lado regrado da
sos nas modernas tecnologias da comunicação). comunicação. A sabedoria pedagógica consiste em saber

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fundi-los. Mas quando prevalece um contexto de pessimismo apenas para sobreviver, mas para sobreviver na alegria. Num
pedagógico, por predominar no ambiente um clima pesado plano profundo de nossa capacidade desejante, vida e alegria
de ter de cumprir com desagradáveis imposições, a inchação são para nós radicalmente inseparáveis.
arbitrária do pacto simbólico, com seu mal-estar próprio Essa é uma temática exigente que aqui apenas pode-
como Lacan ressalta, tende a impedir a mais-fruição, ou seja, mos bordejar, pois nela está em jogo um aspecto básico que
o prazer de estar aprendendo. atravessa toda a cultura ocidental: o da “consciência infeliz”.
Suas raízes filosóficas e religiosas e suas múltiplas manifes-
GOSTAR DO BRASIL tações no chamado “pensamento progressista” exigiriam
ENQUANTO EDUCADOR/A uma análise detida, que é não possível nesta brevidade. Valha
Pano de Fundo: a luta contra a exclusão uma citação: “Todas as culturas produzem algum mal-estar,
passa pela educação mas a nossa é a única que está fundada no mal-estar. Se sen-
De alguns anos para cá, assistimos à intensificação de tir inadequado, sofrer com a distância entre nós e os ideais
linguagens mais animadoras e motivadoras a respeito da culturais é indispensável para o funcionamento social. Sem
educação e acerca da profissão de educador/a. Por décadas esse mal-estar cotidiano, nosso mundo pararia”.7
haviam prevalecido, no Brasil e na América Latina, as lin-
Lutar por um Amplo “Campo do Sentido”:
guagens críticas e denunciatórias sobre o descalabro da edu- educar para um Brasil solidário
cação e do vilipêndio do trabalho educativo. A carreira do- Falar em campo do sentido ou campo semântico sig-
cente havia baixado a uma das menos apetecíveis no merca- nifica entender que nossas linguagens são algo parecido a
do de trabalho. Não poucos acusavam os poderes públicos de casas ou lugares que se podem habitar. Queremos educar
serem culpados de um sucateamento, aparentemente inten- para um Brasil habitável, porque solidário. No panorama
cional, da educação pública. A expansão vertiginosa da edu- educacional, muitas das palavras que mais se usam não se
cação privada era vista por muitos como uma espécie de prestam para morar nelas. Não criam espaços vitais. Não ser-
queima dos credos constitucionais, tantas vezes reiterados, de vem enquanto espaços do conhecimento. Enfim, não for-
que a educação é um direito de todos e um dever do Estado. mam uma ecologia cognitiva (como diriam Edgar Morin e
Que foi que mudou para que surgisse essa efervescên- Pierre Lévy). Com palavras ruins para habitar só se pode criar
cia de linguagens menos negativistas, quando tão pouco mu- ambientes ruins para ter experiências de aprendizagem.
dou no descaso das políticas educacionais públicas? Teria ha- Para os jovens, parte maior da humanidade e deste
vido um desgaste das análises meramente críticas, um can- nosso país, qualquer sobrevida desejável depende em muito
saço crescente e até um início de aberta rejeição no que se re- do acesso à educação. Eles sabem que as novas tecnologias
fere ao torrencial de eternas denúncias e reivindicações, da informação e da comunicação, assim como a globaliza-
carentes de alternativa plausível? Esse é um terreno de quase ção, que é basicamente um projeto político de mundialização
inevitáveis mal-entendidos – mas a quem interessam polê- do mercado, vieram para ficar. Adivinham também que terão
micas estéreis? de conviver com os mecanismos cruelmente competitivos
Creio que não é fantasioso afirmar que, no Brasil, a dessa configuração da economia de mercado e suas tendên-
maioria do povo não se dá bem com o mal-estar que gera o cias excludentes. Não há à vista nenhuma alternativa com-
negativismo centrado na “consciência infeliz”. A “consciên- pletamente distinta. Ajudá-los a preparar-se para atuar num
cia infeliz” não pega no Brasil. Em termos gerais, só a pe- mundo com esse feitio, e manter viva, ao mesmo tempo e a
quena burguesia intelectual se deixa contaminar pelo nega- todo transe, a sensibilidade solidária – eis o que deveria ser a
tivismo eternamente amargurado. Talvez por isso mesmo, e a meta maior da educação nos dias de hoje.
partir desse pendor para o positivo, somos também presa fácil
de visões ingênuas. No Brasil, até os miseráveis lutam não 7 CONTARDO CALLIGARIS. Folha de S.Paulo, 5/nov./00, p. 3/8.

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Creio que ninguém é ingênuo a ponto de acreditar mo azedo de muita literatura acadêmica sobre a educação.
que esse ideal maiúsculo se encarna de maneira espontânea Nesse sentido, creio que se seja um saudável contrapeso. O
e óbvia nas instituições educacionais existentes no Brasil. Por problema que estamos tocando evidentemente não se resolve
outra parte, poucos duvidam da primazia da educação em pela magia de palavras alternativas. Está em jogo muito mais
meio às nossas urgências sociais. As esperanças socialmente que a renovação da linguagem. A mudança deve ocorrer na
possíveis, enquanto politicamente negociáveis em consensos maneira de criar as estruturas de sentido ou campos de sig-
democráticos, requerem embasamentos sólidos e muita nificação, que precisam ter nexos e interfaces com o que os
energia e motivação ética. Penso que, aos poucos, alcança- aprendentes percebem como algo que faz sentido para as
mos a entender que, nessa direção, já não convém desgastar- suas vidas. Precisa haver esse elo entre os campos de signifi-
se em meras denúncias. Estas se revelam estéreis e contra- cação daquilo que se ensina e os campos de sentido da vida
producentes quando não acompanhadas de uma visão es- dos envolvidos (docentes e alunos/as). Precisamos de lingua-
tratégica acerca das melhorias plausivelmente implantáveis, gens pedagógicas que ajudem os aprendentes (professores/as
suposta a articulação da requerida vontade política. e alunos/as) a se sentirem bem no meio dos mais árduos es-
A brevidade não me permitirá explicitar aqui todos os forços de aprender.
alertas críticos necessários em relação a muitos dos conceitos Não se trata, de forma alguma, de “baratear” as exi-
que estarei usando. Quando falamos de tecnologias da co- gências de estudo ou de nivelar por baixo. Na educação, exis-
municação é bom não esquecer que nelas, e nos conceitos tem muitos níveis de campos do sentido. Cada disciplina ou
que tramitam, aparece inseparável o que Lucien Sfez deno- matéria implica campos conceituais, ou seja, em construções
mina “tecnologias do espírito”.8 Nesta nossa conversa nos do conhecimento. Mas esses campos particulares do sentido
ocuparemos de alguns elementos que talvez sirvam como in- de cada assunto só se articulam com as experiências pessoais
gredientes de um cauteloso e prudente otimismo pedagógico. de cada aprendente quando eles são jogados num campo do
No panorama da mundialização do mercado, com a sentido vitalmente envolvente e maior: o das próprias per-
marca do predomínio praticamente descontrolado do capital guntas pessoais e existenciais de cada pessoa. Quando falta
financeiro sobre o capital comprometido com o crescimento este campo semântico maior, ou quando nele faltam as refe-
e a melhoria das condições de vida da população, a educação rências com sabor a vida, então surge inevitavelmente aquela
se transformou em recurso de sobrevivência. Não se vislum- sensação de um grande vazio, mesmo em meio a um acú-
bram, nem no cenário mundial e menos ainda no brasileiro, mulo aparentemente bem estruturado de saberes formais.
potenciais políticos para reverter esse quadro assustador. Com Falar, por exemplo, de “reencantar a educação” –
isso, tornou-se aguda a consciência de que a luta contra a como o tenho feito em livros recentes9 – não deve ser jamais
exclusão e por uma sociedade em que caibam todos passa um discurso irresponsável e superficial, que não saiba dar
fundamentalmente pela educação. Creio ser este o verdadeiro conta de si mesmo, de suas implicações, seus usos e abusos.
pano de fundo sobre o qual vale a pena articular a discussão Existe, sem dúvida, o risco de um marketing esvaziador e ba-
sobre muitos novos desafios para a educação. nalizante dessa linguagem sobre o encanto de educar. Como
demonstram algumas de minhas publicações em anos re-
Um Alerta Contra a Banalização das Linguagens
Motivacionais centes, engajei-me nessa vertente de linguagens afirmativas
Quanto ao conjunto de linguagens mais incentivado- e antipessimistas, mas tento fazê-lo a partir de um diálogo
ras e otimistas que estão surgindo, penso que se trata de um exigente com as ciências da vida (biociências), os estudos so-
fenômeno interessante quando comparado com o negativis- bre o cérebro/mente e os novos espaços do conhecimento
propiciados pelas novas tecnologias da informação e da co-
8 Cf. art. de L. Sfez in: MENEZES MARTINS & MACHADO DA SILVA, 2000;
ver também MARQUES, 1999. 9 Cf. ASSMANN, 1998 e 1999.

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municação. Como alguns vêm entendendo corretamente, no meu entender, a lição maior que temos de aprender das
minha abordagem visa um “sentido sobretudo político” (co- biociências.
mo adverte Pedro Demo10). Mas dado o risco de “sonsas ba- Mas convém prevenir mal-entendidos e confusões. A
nalizações”, insisto neste alerta prévio. linguagem sobre o desejo e a paixão, quando usada neste
As palavras nos enfeitiçam facilmente. Os humanos sentido amplo e aplicada à educação, precisa formar parte de
somos seres simbolizadores. Existimos não apenas porque um “campo semântico” (um campo do sentido) com o qual
nos alimentamos, mas porque estamos imersos em signifi- as pessoas possam também identificar-se em suas vidas con-
cações. Sem isso não sobreviveríamos enquanto animais cretas. Deve ser, por exemplo, uma linguagem não descolada
simbolizadores. Ora, assim como o alimento pode ser pouco da valorização efetiva da carreira profissional do/a professor/
e ruim, ou abundante e bom, também os fluxos comunica- a no que se refere a melhorar as condições salariais, incen-
tivos podem criar bem-estar ou mal-estar. Mas até nessa tivar o aperfeiçoamento, reconhecer os esforços e prover os
questão dos alimentos e fluxos do sentido pode infiltrar-se o meios para uma continuidade profissional que possibilitem
uma opção razoavelmente tranqüila no sentido de “é isto
auto-engano. Minha hipótese de base é que o ser humano
mesmo que eu gosto de fazer”.
vive e se comunica melhor quando consegue romper o com-
As linguagens sobre a motivação, o desejo e a paixão
plô lingüístico das linguagens patogênicas. Aprender tam-
ficam artificiais e se pervertem, sem chances de constituir um
bém significa melhorar nosso sistema imunológico mediante
campo semântico vivenciável, quando são usadas como uma
linguagens saudáveis. Pensar é lutar contra o feitiço de raci-
espécie de chantagem moralista (os direitos dos alunos exi-
onalidades que aprisionam a nossa mente; pensar é curar
gem que vivas “apaixonada/o” por tua nobre missão...) ou,
nossos jeitos de falar sobre a vida e o mundo. pior ainda, como chantagem descaradamente mercadológica
Educar é, fundamentalmente, criar condições para (“ou te apaixonas por teu trabalho ou outros tomarão teu lu-
acessos a experiências de aprendizagem. O fruto da educação gar...”). Cobranças à consciência do dever exigem contextos
não pode resumir-se a alguns saberes formalizados. Hoje em propiciadores da satisfação em cumpri-lo. Isso vale especial-
dia isso evidentemente não basta para a vida de ninguém, e mente quando nos referimos a milhares de profissionais com
a escola nem poderia transmitir todos os saberes requeridos histórias de vida muito diferentes, como no caso do professo-
ao longo da vida. Portanto, não basta a disponibilidade fun- rado. Normas excessivamente rígidas e interpelações agudas à
cional e burocrática da educação (o mero acesso à escola). consciência do dever só funcionam em grupos pequenos e
Para que surjam e se desenvolvam experiências de aprendi- bastante fechados.
zagem, os aprendentes devem ser atingidos por um envolvi- Parece que, entre os seres humanos – especialmente
mento que não seja apenas algo que se lhes oferece como li- na era das sociedades complexas e prevalentemente urbanas
ção a aprender, matéria a ser incutida e absorvida. Requer- – as convergências em comportamentos coletivos funcionam
se uma transação comunicativa de envolvimentos pessoais melhor com doses relativamente altas de satisfação (conten-
no processo de aprendizagem enquanto sinônimo de proces- tamento, entusiasmo e até certa euforia) e doses baixas de co-
sos de vida possível e felicidade possível. Por isso, a escola branças impositivas. As modernas teorias de administração e
deve preocupar-se com criar e recriar as condições para que gerenciamento falam muito de ambientação e clima organi-
docentes e aprendentes se sintam em estado de apaixona- zacional. O contágio motivacional passou a formar parte do
mento por aquilo que irá proporcionar-lhes vida, ou seja, a conceito de liderança. “Dá prazer trabalhar com quem tra-
unidade – em sua própria vida e no convívio com os demais balha com prazer” (repete, com freqüência, Deming, um dos
– entre processos vitais e processos de aprendizagem. Esta é, gurus no assunto). Mas, ao mesmo tempo, costuma-se dei-
xar claro que as fascinações de indivíduos isolados em rela-
10 DEMO, 1999, p. 40. ção a suas tarefas específicas, embora importantes, não bas-

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tam para constituir “organizações aprendentes” (learning Do conceito de sociedade da informação passou-se,
organizations). Para tanto requer-se a disseminação arti- por vezes sem as convenientes cautelas teóricas, ao de kno-
culada de todo um clima no qual, junto à “reengenharia” wledge society e learning society. Em francês prevalece, por
técnica, se vá dando uma re-alocação dos potenciais de efi- ora, societé cognitive. Nas teorias gerenciais avança o dis-
ciência nos recursos humanos no plano das disposições psí- curso sobre learning organisations (organizações apren-
quicas, das motivações e, no plano da renovação das lingua- dentes11). A incrível abundância e variedade de linguagens
gens cotidianas. acerca desse processo tecnológico e, ao mesmo tempo, ideo-
Convém, por isso, enfatizar que a literatura de nível lógico-político é um fenômeno deveras impressionante.
mais sério sobre “organizações aprendentes” não se pauta As Novas Tecnologias Transformam
por propostas de indução de entusiasmos artificiais e sem os Modos de Aprender
base sustentável. As novas teorias gerenciais, embora abor- As novas tecnologias interativas (computador, multi-
dem com muita insistência o tema da satisfação no trabalho, meios, internet etc.) já não são meros instrumentos como o
não desconhecem que as fascinações pelas tarefas, que exi- lápis, o giz, a máquina de escrever. Seu caráter versátil e in-
gem árduo esforço, não são o mais “normal”. A referência terativo as eleva a co-estruturadoras das formas do saber.
básica é que as novas formas de trabalho incluirão, doravan- Tornaram-se máquinas ativamente colaboradoras nos pro-
te, aprendizagem permanente e flexibilidade adaptativa. Isso cessos de aprendizagem. Com isso, a formatação predomi-
implica um investimento permanente de energias humanas. nante dos conhecimentos mudou bastante. Surgem, assim,
Para esse esforço se requerem condições ambientais favorá- novos espaços e novas formas do conhecimento. A paixão de
veis, porque para um problema de tal porte seria ingênuo aprender pode contar, agora, com novas formas de criativi-
apostar apenas nos aspectos facilmente manipuláveis da sen- dade. O prazer de aprender acessos para o aprender. O prazer
sibilidade e da emocionalidade das pessoas. de navegar na versatilidade e interatividade.
É fundamental que se entenda que as novas tecnolo-
APONTAMENTOS PARA SONHAR UM gias da informação e da comunicação rompem, até certo
BRASIL APRENDENTE ponto, com a submissão a espaços pré-configurados e ins-
Sociedade do Conhecimento/ tauram uma versatilidade que não existia na folha de papel,
Sociedade Aprendente na lousa, no giz e no lápis. O jogo criativo tem agora muitas
Conhecimento virou assunto obrigatório. Conheci- novas possibilidades. Isso é óbvio para quem elabora textos
mento passou a ser a nova matéria-prima principal (e a nova no computador com o uso de várias telas, múltiplos arquivos,
forma de “capital”?). Sabemos que o conceito de trabalho recursos gráficos, pesquisa na internet etc. Não é exagerado
mudou muito. Presentemente trabalhar significa basica- dizer que os novos recursos tecnológicos têm um papel ativo
mente estar aplicando e/ou gerando conhecimentos. Portan- e constitutivo da própria morfogênese do conhecimento no
to, a transformação do trabalho tem tudo a ver com o co- que se refere às suas formas de criação, expressão e comu-
nhecimento. A expressão Sociedade do Conhecimento quer nicação. A extraordinária versatilidade dos multimeios os
dar a entender que entramos na era das redes de intercone- transforma em “agentes cooperativos” das formas de apren-
xão entre ecologias cognitivas. Refere-se, pois, ao aspecto dizagem.
cognitivo e educacional da globalização, que, por sua vez, é Redes Telemáticas e Teia da Vida
fundamentalmente a mundialização do mercado. Portanto, As tecnologias informáticas buscam replicar, simular
um fenômeno econômico e político, e não meramente tec- e até produzir processos cognitivos artificiais (inteligência ar-
nológico. Esse é o enredo amplo, e não isento de ambigüida- tificial, vida artificial, robótica). Com isso nos brindam, pela
des, no qual devemos situar a relação entre novas tecnologias
e mudanças profundas na educação. 11 Cf. Peter Senge e outros.

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primeira vez na história evolutiva da nossa espécie, a chance alfabetizados, mas perderam a curiosidade de ler e continuar
de entender melhor a relação intrínseca entre processos vitais aprendendo.
e processos de aprendizagem. Hoje em dia se tornou possível A alfabetização “instrumental” deve estar a serviço da
aprofundar reflexões – filosóficas, éticas, pedagógicas – so- alfabetização vital, isto é, a experiência gostosa de poder
bre as características únicas da teia da vida “natural”, já que aprender e estar aprendendo. Por isso a atividade escolar, em
é possível confrontá-la e compará-la com os produtos mais todos os seus aspectos e participantes, deveria visar, como
avançados da tecnologia. Tanto as semelhanças quanto as di- fruto, experiências de aprendizagem.
ferenças nos possibilitam enxergar, de maneira nova, muitos A alfabetização “instrumental” inclui hoje em dia a
aspectos do agir pedagógico. superação conjunta de vários analfabetismos:
Paradoxalmente, as tecnologias informáticas e as ci- • da lecto-escritura (o sentido clássico do temo) –
ências da vida, dois campos outrora academicamente distan- incluído, aí, o “funcional”;
tes, convergem atualmente, na teoria e na prática, compar-
•analfabetismo em novas tecnologias (info-analfa-
tindo muitos de seus conceitos (emergência, auto-organiza-
betismo –> computer (i)literacy);
ção, sistemas aprendentes, evolução cognitiva, aprender etc.).
A própria tecnologia nos impele a levar a sério, no plano da •analfabetismo sociocultural (ignorar os mecanis-
educação, a lição das biociências de que todos os seres vivos mos que funcionam na sociedade na qual se vive,
são “sistemas aprendentes”. Mantêm-se vivos e crescem em p. ex., mercado);
vitalidade à medida que continuam aprendendo. Existe uma •analfabetismo emocional (–> corporeidade).
unidade básica entre processos vitais e processos cognitivos. [Evocar o tema da “inteligência emocional” e da
As ciências da vida e as ciências computacionais usam o ter- “razão sensível”].
mo cognição para todos os níveis de aprendizagem, desde a Professor/a é alguém que a ajuda a olhar, e não só
ameba até Einstein. Que tal inventar para isso o termo a abrir os olhos. “Mãeêê, me ajuda a olhar!”, gritou a cri-
aprendência (como apprenance, em francês)? ança ao correr pela primeira vez até a praia.
As novas tecnologias já começam a simular aquilo Do Repasse de Informações e Saberes às
que as biociências tardaram em reconhecer: a constância Experiências do Aprender a Aprender
básica de que a vida “se gosta” naturalmente. Só deixa de Presentemente a educação não deve ser mais enten-
querer-se quando sofre bloqueios e é reprimida em sua di- dida como transmissão de conhecimentos e saberes prontos.
nâmica vital. Existe um nexo profundo entre dinâmica da A educação, aliás, nunca foi boa quando foi apenas instru-
vida e dinâmica do prazer. Por isso a prazerosidade é um as- ção, transmissão de saberes. Educar significa criar experiên-
pecto vitalmente importante da aprendizagem. O objetivo da cias de aprendizagem, e não transmitir coisas já prontas, sa-
educação é criar experiências da paixão de aprender, ou seja, beres já supostamente definidos. Ninguém aprende se não
da paixão de viver. Nessa mesma linha, é preciso enfatizar cria junto com aquele que ensina o conhecimento. Aprender
que a dimensão estética do conhecimento é um tema peda- significa construir experiências de aprendizagem. As mu-
gogicamente importante, porque nos leva a entender a danças mais profundas que eu vejo que estão acontecendo
aprendizagem como experiência da beleza. nos dias de hoje na educação têm a ver com este novo con-
Enfrentar Conjuntamente ceito de aprendizagem, que efetivamente muitas escolas ain-
os Vários Analfabetismos da não têm. Muitas escolas continuam pensando que ensinar
Os analfabetos de amanhã não serão os que não sa- é transmitir saberes prontos. O fruto da escola deve ser apren-
bem ler; mas os que não tiverem aprendido a aprender. der a aprender, aprender a acessar formas de aprender.
O pior analfabetismo é a falta de curiosidade de Aprender a fazer experiências de aprendizagem. Aliás, atu-
aprender. Encontram-se em situação análoga os que foram almente é impensável que a escola dê conta de repassar

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(mesmo que já estivessem disponíveis) todos os conhecimen- dades amplas, complexas e urbanizadas o mercado veio para
tos que os/as alunos/as precisarão em suas vidas. ficar.
Chegamos a um tempo pedagógico peculiar, no qual Educação como Forma Destacada
a educação deverá concentrar-se primordialmente na ambi- de Compromisso Social
entação das experiências de aprendizagem. Educação passa Sobre o pano de fundo da sociedade aprendente com
a significar empenho carinhoso na criação de ecologias cog- economia de mercado e formas mutantes de empregabilida-
nitivas – para empregar essa bela expressão cunhada, pelo de, não cabe dúvida que educar é lutar contra a exclusão.
que me consta, por Edgar Morin e profusamente empregada Nesse contexto, educar significa realmente salvar vidas. Por
por Pierre Lévy. Ecologia é o conjunto das circunstâncias isso, ser educador/a é atualmente a mais importante tarefa
propícias a nichos vitais, em que seres vivos possam sobrevi- social emancipatória. Mas, se o/a educador/a não se atualiza,
ver e incrementar-se em mais e melhor vida. Os novos espa- o que se atrasa é a vida de seres humanos concretos. O agir
ços do conhecimento não devem ser encarados, nem única pedagógico é, em nossos dias, o terreno mais desafiador do
nem primordialmente, como reconfigurações tecnológicas, agir social e político, e isso num sentido bastante diferente, e
mas como ecologias cognitivas que propiciem o salto do bom provavelmente mais exigente do ponto de vista ético e huma-
no, que o clássico reclamo do primado do político. Gravemos
ensino – imprescindível – à efetiva experiência de aprendi-
fundo em nossa consciência: hoje em dia educar significa
zagem, com processo personalizado de construção do co-
salvar vidas; educar é engajamento social de avançada. Os
nhecimento.
educadores devem orgulhar-se disso.
Nós estamos em uma época na qual a escola já não
Educar para a Iniciativa e a Solidariedade
consegue passar toda a “matéria” – os “ensinamentos” – que
Os “pais fundadores” ou clássicos da economia de
é necessária para a vida das pessoas. Seria um sonho impos-
mercado (Adam Smith, David Ricardo etc.) elaboraram uma
sível. O volume dos conhecimentos aumenta tanto e tão ra-
visão do ser humano que não é fácil refutar. Ela é uma es-
pidamente que a escola se torna cada vez mais formadora de pécie de acordo faustiano com a coexistência do bem e do
um colchão básico de aptidões (competências cognitivas e mal. O assunto é complexo, mas resumo a provocação bási-
competências sociais, na linguagem do MEC). No mais, a es- ca. Os humanos seríamos, nessa visão, inevitavelmente feixes
cola deve iniciar processos de descoberta e propiciar ensaios de paixões e interesses. Em sociedades amplas e complexas,
do aprender formas de aceder ao conhecimento. a melhor saída seria, por isso, apostar num “pacote antropo-
A Relação entre Educação e lógico” resumível em: apostar no interesse-próprio, na inici-
Empregabilidade se Complicou Muito ativa, na industriosidade (industry: empenho, esforço), na
Em nossos dias a educação já não representa garantia criatividade e no respeito mútuo (respeito aos contratos). O
para o acesso ao emprego, mas é uma condição indispensá- bem comum e, portanto, a solidariedade decorreriam de
vel tanto para o trabalho como para o lazer. Não há mais pre- “mecanismos de mercado” engendrados espontaneamente
visão de pleno emprego no sentido tradicional de trabalho. A pela adoção de semelhante visão da convivência social.
nova empregabilidade está ligada à flexibilidade na capaci- Creio que todos sabemos que há nisso uma série de fa-
dade de aprender. Só mesmo uma visão reacionária, conser- lácias, mas também há um fundo de verdade (ou seja, não
vadora e excludente aborda esse aspecto real do mundo atual somos naturalmente solidários e não costumamos renunciar
sem fazer uma análise crítica da ideologia de abandonar a ser tomados em conta). Sabemos também que a suposta
tudo aos mecanismos do mercado, supondo que eles condu- solidariedade congênita dos mecanismos de mercado é uma
zam automaticamente ao bem comum. O papel das políticas idolatria (sobre isso, aliás, publiquei um livro), porque divi-
públicas é fundamental no que se refere à educação, saúde e niza uma suposta mão oculta providencial. Por outra parte,
todos os direitos humanos básicos. Mas nas hodiernas socie- será que sabemos realmente como juntar, no conceito de ci-

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dadania, a educação para a iniciativa e para a solidariedade? • aprender é um processo emergente que se auto-or-
Dessa tarefa crucial não se escapa com festejos de palavras ganiza;
altissonantes ou arroubos revolucionários. • novos conhecimentos como níveis emergentes;
“Nos han enseñado tantas cosas, pero no nos en- • organizações aprendentes como sistemas dinâmi-
señaron lo que significa tomar la iniciativa” – confiden- cos;
ciava-me um casal cubano (que vive em Cuba). Os apelos à • a escola como organização aprendente;
solidariedade têm – compreensivelmente – pouca ressonân- • ecologia cognitiva; nichos vitais do conhecimento;
cia quando as pessoas, a serem amparadas, não dão mostras • pensamento complexo que não fique preso a cau-
de que aprenderam a tomar iniciativas. Pode parecer estra- salidades lineares.
nho, mas – com exceção de situações emergenciais em que
d) Perceber a relevância social do resgate da sub-
todos devem ajudar (e elas são muitas na situação atual do
jetividade. Quando levado a sério – e não banalizado como
Brasil) – a educação para saber tomar iniciativa faz parte das
em muita literatura de “auto-ajuda” –, bem-vindo seja o re-
condições de possibilidade de uma educação para a solida-
torno dos temas que servem para unir, de maneira nova e de-
riedade. Esta simplesmente não funciona, como constante
safiadora, o resgate da subjetividade com o engajamento so-
social, na qual falta a criatividade e a disposição para tomar
cial irradiante:
iniciativas.
• auto-estima, auto-apreço, autoconfiança;
Resgatar a Alegria do Ser Educador/a
a) Transformar a escola em organização apren- • incentivo à capacidade de tomar iniciativas;
dente. As novas teorias da gestão empresarial falam muito • ensinar a inovar (pedagogia da criatividade);
em clima de aprendizagem. Enxergam a empresa como “or- • despertar aspirações, motivações;
ganização que está aprendendo”. Ora, isto deveria valer mui- • aumentar os níveis de expectativa.
to mais para a escola. A empresa produz bens ou serviços. A Contra a Exclusão: persistir num
escola visa um “produto” diretamente humano: ela visa criar refletido otimismo pedagógico
experiências de aprendizagem. Na escola tudo deveria estar Educar é acreditar na perfectibilidade
voltado para esse objetivo. humana, na capacidade inata de apren-
der e no desejo de saber que anima os
b) Transformar a sala de aula em ecologia cogni- seres humanos; (...) acreditar que os
tiva. Ecologia significa nicho vital. Ecologia cognitiva quer seres humanos nos podemos melhorar
dizer nicho vital para as experiências cognitivas. A sala de uns aos outros através do conheci-
aula deve ser um nicho vital para experiências de aprendi- mento...
zagem. Um espaço de construção do gosto de estar apren- FERNANDO SAVATER
dendo. Aprender a aprender, e aprender vida e mundo. Em El Valor de Educar
nossos dias, estudar significa aprender caminhos e acessos. O Para jogar tudo isso em horizontes motivadores reto-
objetivo da escola é criar: experiências de aprendizagen; não mo o texto da contracapa do meu livro Reencantar a Edu-
mero acúmulo de saberes. Convém meditar sobre que tarefas cação: rumo à sociedade aprendente: a evolução da hu-
a escola já não pode cumprir (nem precisa). manidade chegou a uma fase na qual nenhum poder eco-
c) Conceitos/lembretes. Uma boa teoria vale mais nômico ou político é capaz de controlar ou colonizar intei-
que muitos conceitos isolados. Tente integrar numa teoria ramente a explosão dos espaços do conhecimento. A internet
pedagógica os seguintes conceitos: é apenas um exemplo sinalizador do que se pretende dizer
• unidade entre processos vitais e processos cogniti- com essa hipótese. É por isso que a dinamização dos espaços
vos; do conhecimento pela educação tornou-se uma tarefa social
• a auto-organização do vivo; tão importante.

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Doravante só será possível sonhar com uma sociedade país tão excepcionalmente neotênico. Não se trata de uma
na qual caibam todos se também nossos modos de conhecer brincadeira com palavras um tanto pernósticas. Neotenia é
conduzirem a uma visão do mundo no qual caibam muitos noção científica de espesso conteúdo desafiador. De neotenia
mundos do conhecimento e do comportamento. A educação humana se fala há mais de meio século – e, ultimamente,
se confronta com essa apaixonante tarefa de formar seres com um leque de analogias cada vez mais rico – para aludir
humanos para os quais a criatividade, a ternura e a soli- ao fato de que os membros da nossa espécie coagularam ge-
dariedade sejam ao mesmo tempo desejo e necessidade. neticamente uma série de características juvenis para poder
Reencantar a educação significa, também, vivenciar
ser extremamente flexíveis e aprendentes pela vida afora.
as implicações pedagógicas dos avanços científico-tecnoló-
gicos, o fato de que os processos cognitivos e os processos vi- Nascemos biologicamente prematuros, inacabados e
tais são no fundo a mesma coisa. Trata-se de um encontro carentes, e por isso totalmente dependentes do carinho aco-
desde sempre marcado do viver com o aprender, enquanto lhedor, mas também abertos a mundos por descobrir e a
processo de auto-organização, desde o plano biofísico até as aprendizagens flexíveis. Entre os aspectos fantásticos desse
esferas societais. milagre evolutivo chamado neotenia destacam-se a preser-
O Presente que Devemos ao Brasil dos 500 Anos: vação de características biofísicas juvenis e inacabadas, o
descobrir sua vocação solidária pendor lúdico, a persistente curiosidade e a predisposição ao
Como vimos no início deste artigo, os que “acharam” desenvolvimento permanente de sensibilidades e capacidades
o Brasil há 500 anos tardaram demais em valorizá-lo. Ele comunicativas. Isso quando as ecologias sociais e cognitivas
não correspondia a seus estreitos desejos. Por isso o poster-
são propícias, e não prevalece o apartheid neuronal que bota
garam. Para que nós, hoje, não continuemos a postergá-lo
tudo a perder.
precisamos descobri-lo com a nau de um desejo grande, en-
funada pelo vento forte de uma educação solidária. Só assim Talvez não seja mero alvoroço chauvinista falar de
haverá “terra à vista!”, e des-cobriremos um Brasil intensa- uma neotenia brasileira singular, condensada em nossas
mente desejável, um Brasil solidário onde caibam todos os propensões para afirmar a vida e na dinâmica lúdica de nos-
brasileiros. sa cultura. É na preservação de nossas características juvenis
Se o Brasil decepcionou seus “achadores”, por não lhes e flexíveis que pode enraizar-se o aprendizado de um desejo
parecer de riqueza edênica, nós, sim, devemos vibrar por este solidário que descubra um Brasil solidário.

Referências bibliográficas
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________ (1988). Reencantar a Educação: rumo à sociedade aprendente. 3.ª ed., Petrópolis:Vozes, 1999.
BUARQUE DE HOLANDA, S.Visão do Paraíso – os motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil. 2.ª ed., São
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BUENO, E. A Viagem do Descobrimento – a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998a.
________. Náufragos, Traficantes e Degredados. As primeiras expedições ao Brasil (1500-1531). Rio de Janeiro: Objetiva,
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MARQUES, M.O. A Escola no Computador. Ijuí: Unijuí, 1999.


MENEZES MARTINS, F. & MACHADO DA SILVA, J. (orgs.). Para Navegar no Século XXI – tecnologias do imaginário e cibercul-
tura. 2.ª ed., Porto Alegre: EDIPUCRS/Sulins, 2000.

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Impulso_27.book Page 157 Wednesday, October 1, 2003 2:30 PM

LÍNGUAS INDÍGENAS
DO BRASIL NO LIMIAR
DO SÉCULO XXI
NATIVE LANGUAGES OF BRAZIL AT THE
THRESHOLD OF THE XXI CENTURY
LUCY SEKI
RESUMO O trabalho apresenta um breve panorama das línguas atualmente faladas no Brasil por povos indígenas Doutora (PhD) em Filologia
(Línguas Indígenas Americanas) e
que conseguiram sobreviver aos 500 anos de contato destrutivo com os não-índios. A relevância dessas línguas e de
mestre em Filologia (Língua Russa
seu estudo é discutida, argumentando-se que, em contraste com a importância científica, usualmente enfatizada e e Literatura) pela Universidade
utilizada para fundamentar a necessidade de pesquisas, a importância social via de regra é deixada em segundo pla- Patrice Lumumba (Moscou).
no. De fato, o próprio modo em que geralmente é feita a pesquisa lingüística reproduz a assimetria das relações in- Professsora titular do Dep. de
terétnicas. Na conclusão é apresentada a proposta, que atende às expectativas de representantes indígenas de distintos Lingüística da Unicamp
grupos, de desenvolver um trabalho emancipatório que busca não só a investigação “sobre” as línguas, ou mesmo lseki@obelix.unicamp.br
“para” os falantes, mas antes de tudo “com” os falantes, tendo em vista propiciar a co-participação e um maior grau
de controle sobre as ações relacionadas à língua, incluindo ações educacionais.
Palavras-chave línguas indígenas – diversidade – relevância científica – relevância social – pesquisa emanci-
patória.
ABSTRACT This paper presents a short panorama of the languages currently spoken in Brazil by the native peoples
who were able to survive the 500 years of destructive contact with the non-indians. The relevance and study of these
languages is discussed by arguing that in contrast to the scientific importance that is usually emphasized and used
to justify the need for research, the social aspect is given only secondary importance. In fact, the way in which the lin-
guistic research is generally done reproduces the asymmetry of inter-ethnic relations. The conclusion presents a pro-
posal for the development of a liberating practice that attends to the expectations of native representatives of distinct
groups. The proposal attempts not only to investigate “about” the languages or “for” the speakers, but rather “with”
the speakers, thereby offering the possibility of co-participation and a larger degree of control over the actions related
to the language, including educational actions.
Keywords native languages – diversity – scientific relevance – social relevance – liberating research

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INTRODUÇÃO

A
dmite-se comumente que o povo brasileiro tem em suas raízes o
branco, o negro e o índio, porém, no que respeita à real participação
na história e cultura brasileira, a presença do índio é apagada ao má-
ximo e, quando muito, o elemento indígena é visto como algo gené-
rico. Uma recente manifestação do processo de exclusão sistemática
do índio foi dada durante a celebração dos 500 anos. Um dos resul-
tados do mencionado apagamento é o fato de que, no limiar do século
XXI, ainda é bastante difundida a idéia de que o Brasil é um país monolíngüe e de cultura
única. Entretanto, aos 500 anos de penoso contato, violências e discriminações, sobrevive-
ram mais de duzentos povos indígenas, com suas crenças, costumes, organização social e
visão de mundo próprios, falantes de cerca de 180 distintas línguas. É sobre essas línguas
e a relevância social de seu estudo que o presente trabalho incide.

No limiar do LÍNGUAS INDÍGENAS E O ETNOCENTRISMO


século XXI, ainda é As línguas indígenas americanas, assim como as línguas nativas de outras regiões,
com freqüência receberam os qualificativos de “primitivas” ou “exóticas”. Esse preconceito
bastante difundida está relacionado ao fenômeno comum do etnocentrismo, segundo o qual os indivíduos
a idéia de que o tendem a encarar todas as demais culturas através do prisma de sua própria, considerando
Brasil é um país como anormal, estranho ou exótico tudo aquilo que dela diverge.1 Como apresentado por
Mattoso Câmara:
monolíngüe e de
cultura única Em relação à língua o etnocentrismo ainda é maior, porque a língua se integra no in-
divíduo e fica sendo o meio permanente do seu contacto com o mundo extralingüístico,
com o universo cultural que o envolve, de tal sorte que se cria uma associação íntima en-
tre o símbolo lingüístico e aquilo que ele representa.2
Essa colocação, válida para qualquer língua estrangeira, aplica-se mais intensa-
mente às línguas indígenas, faladas que são por povos de culturas distintas da ocidental.
Acresce que são línguas de tradição oral, o que parece implicar uma diferenciação maior,
dada a importância da língua escrita nessa cultura.
Entretanto, como qualquer outra das cerca de seis mil línguas naturais existentes,
as línguas indígenas são organizadas segundo princípios gerais comuns e constituem ma-
nifestações da capacidade humana da linguagem. Cada uma constitui um sistema com-
plexo, com um conjunto específico de sons, categorias e regras de estruturação, sendo per-
feitamente adequada para cumprir as funções de comunicação, expressão e transmissão.
Cada uma reflete em seu vocabulário “as distinções e equivalências que são de intenção na
cultura da sociedade na qual ela opera”.3 E se as línguas indígenas apresentam proprie-
1 LARAIA, 1986, p. 75.
2 CÂMARA Jr., 1965, p. 84.
3 LYONS, 1979, p. 57.

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dades diferentes de línguas indo-européias, isto implica sim- e de tupinambá, a partir do século XVIII, e ainda de tupi-
plesmente que elas são distintas do ponto de vista tipológico. guarani; 2. focalizam a língua não pelo interesse nela, em si,
enquanto objeto de estudo, mas com a finalidade prática de
LÍNGUAS INDÍGENAS estabelecer um meio de comunicação com os falantes nativos
BRASILEIRAS E SEU ESTUDO4 e de promover sua catequese; 3. a língua é abordada com
A partir da chegada dos portugueses ao Brasil a exis- base no aparato conceptual então disponível – o de descrição
tência de povos indígenas, bem como de suas línguas, tor- das gramáticas clássicas, particularmente a latina.8
nou-se conhecida, mas não completamente. O primeiro con- A ênfase dada ao estudo do tupi no Brasil colônia con-
tato ocorreu com povos tupi que ocupavam na época toda a tinuaria posteriormente através do desenvolvimento de uma
costa brasileira e, com exceção do kariri, a língua falada por “filologia tupi”: o estudo de materiais escritos em tupi, lega-
esses povos foi a única estudada nos primeiros trezentos anos dos em especial por missionários, focalizando também a in-
de colonização. Os materiais lingüísticos existentes foram fluência da língua no português, e o nheengatu, foi em gran-
produzidos sobretudo por missionários jesuítas portugueses, de parte responsável pela idéia, ainda hoje difundida, de que
entre os quais se destacam as figuras do padre José de An- no Brasil havia o tupi, ou tupi-guarani, língua já extinta da
chieta, que já em 1595 publicou uma gramática tupi,5 e a do qual se fala no passado, ficando a existência das demais lín-
padre Luis Figueira, autor de uma gramática sobre a mesma guas apagada.
língua.6 Há também materiais produzidos por não missioná- Informações sobre línguas não tupi começaram a
rios, destacando-se entre eles o francês Jean de Léry,7 que dei- surgir no século XIX, através do trabalho de missionários e de
xou observações sobre aspectos do tupi (o ava-nheeng, lit. estudiosos que estiveram em contato direto com os falantes
“língua de gente”: ava ‘gente’, nhe’eng ‘fala, língua’). nativos, por força de pesquisas voltadas para suas áreas par-
As demais línguas, faladas por povos genericamente ticulares de interesse. Incluem-se aqui viajantes europeus
considerados como constituindo o grupo “tapúya” (tupi: (geógrafos, naturalistas, etnólogos), como von den Steinen,
‘bárbaro, inimigo’), eram denominadas de “travadas”, de di- Wied-Neuwied, Martius, Castelnau, Koch-Grümberg, Mani-
fícil entendimento, em contraste com o tupi jesuítico, o “nhe- zer; brasileiros como Couto de Magalhães, Capistrano de
engatu” (tupi: nhe’eng ‘língua’ + katu ‘bom’) a “língua Abreu, Visconde de Taunay, e missionários como Val Floriana,
boa’. Este último desenvolveu-se como ‘língua geral’ da co- A. Giaconi, Fidelis de Alviano. A. Kruse. Os trabalhos desse pe-
lônia e ainda hoje sobrevive na região do Rio Negro. ríodo tampouco tinham como objetivo central a abordagem
Características principais dos materiais lingüísticos da língua, em si, mas estavam subordinados aos interesses de
dessa época, já apontadas por Câmara Jr., são: 1. referem-se catequese, no caso dos missionários, ou aos interesses espe-
somente à língua tupi, uma generalização de variantes pró- cíficos de cada pesquisador, nos demais casos. Os estudos
ximas, também chamada de brasílica, nos séculos XVI e XVII, consistem, via de regra, de listas lexicais, sendo raras as ten-
4 Nota do editor: utiliza-se neste texto a grafia de nomes de povos indíge-
tativas de descrição de aspectos gramaticais, e as transcrições
nas e de suas línguas tendo por base o acordo com a convenção estabele- eram, com poucas exceções, precárias, impressionísticas. Ao
cida em 1953 pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Embora
nem sempre seguida pela mídia em geral, tal convenção é utilizada rigo- mesmo tempo, nesse período foi dada atenção a outras lín-
rosamente por antropólogos, lingüistas e indigenistas. Basicamente, os
nomes de povos e línguas indígenas são invariáveis ("os kamaiurá" e não
guas, que não o tupi, e os materiais produzidos permitiram
"os kamaiurás", por exemplo); utilizam-se letras como k, w, y, que, análises comparativas que serviram de base para o trabalho
embora não usuais em português, seguem uma tradição de mais de
duzentos anos de grafia de termos em línguas indígenas; e utilizam-se de classificação inicial de nossas línguas e, muitas vezes,
acentos gráficos também de maneira diferente da proposta pelas regras constituem a única informação existente sobre línguas hoje
de acentuação do português.
5 ANCHIETA, 1990.
6 FIGUEIRA, 1687. 8 Ver CÂMARA Jr., 1965, e RODRIGUES, 1998, para detalhes, e também
7 LÉRY, 1980. AYROSA, 1954, para bibliografia.

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extintas. Com relação aos materiais sobre línguas indígenas outros tipos de atividades na vida acadêmica,11 porém a ten-
brasileiras produzidos até a primeira metade do século XX, dência geral foi de afastamento em relação aos lingüistas
cumpre notar que alguns trabalhos, como o de Anchieta, so- brasileiros. No que respeita à documentação de nossas lín-
bre o tupi, o de Steinen, sobre o bakairi, e o de Capistrano, so- guas, houve uma contribuição por parte do SIL. Contudo,
bre o kaxinawá, são reconhecidos como mais elucidativos do embora significativo, o número de trabalhos produzidos até
que muitos produzidos por lingüistas contemporâneos. hoje fica aquém do esperado, considerando-se o período
A preocupação quanto ao estudo científico das lín- abrangido, as excelentes condições de pesquisa disponíveis e
guas indígenas brasileiras aparece nos anos 30, em coloca- o tempo despendido pelos lingüistas do Summer junto às co-
ções como as de José Oiticica,9 nas quais se criticava a orien- munidades falantes das línguas. No que se refere à qualidade,
tação existente e se preconizava a necessidade de proceder à embora a produção seja variável, de modo geral os resultados
documentação sistemática dessas línguas. Contudo, nessa deixam a desejar. Conforme Yonne Leite, o problema incide
época, embora a lingüística estivesse em fase de grande de- sobretudo sobre
senvolvimento no exterior, ainda inexistia no Brasil. O quadro (...) a falta de uma visão de conjunto da língua estu-
institucional de nossas universidades só previa o ensino de dada: os trabalhos abordam aleatoriamente aspectos
línguas clássicas e línguas literárias modernas, dentro de cuja relevância não fica patente de imediato. Assim,
uma orientação profissionalizante que não dava lugar à pes- tem-se ora uma descrição sobre o verbo em Terêna,
quisa. De fato, o processo de implementação da lingüística ora notas sobre os substantivos em Kayabi, uma fonê-
somente ocorreria a partir dos anos 60, e o desenvolvimento, mica Xerente e uma descrição de aspectos do Xavânte.
dentro da disciplina, de um campo dedicado aos estudos de Inexiste o material que os estudiosos de línguas em
línguas indígenas foi retardado por vários fatores,10 entre eles geral e antropólogos tanto almejam: uma gramática
a vinda para o Brasil do Summer Institute of Linguistics (SIL), com terminologia descritiva accessível e dicionários.12
também conhecido como Instituto Lingüístico de Verão, sen- A partir da década de 80 a lingüística indígena expe-
do ainda referido como “Summer”, uma instituição missio- rimentou um grande desenvolvimento, com o crescimento
nária que faz uso do trabalho lingüístico como roupagem e do número de lingüistas brasileiros engajados no estudo de
meio de desenvolver seu trabalho de catequese. nossas línguas e na formação de especialistas, registrando-se
O ingresso do SIL no País ocorreu em fins dos anos 50, um aumento quantitativo e qualitativo na produção resul-
através de um convênio com o Museu Nacional, e recebeu tante do trabalho desses lingüistas. Em grande parte, os es-
apoio no meio antropológico, pois esperava-se que os lin- pecialistas estão também envolvidos em programas de for-
güistas do Summer não só tomariam a si a tarefa de descre- mação de professores indígenas, incluindo, em muitos casos,
ver as línguas indígenas, “salvando-as” para a posteridade, o treinamento em lingüística.13
como também iriam contribuir para a formação de lingüis-
tas brasileiros. De fato, esta última expectativa não se confir- AS LÍNGUAS INDÍGENAS
mou: os lingüistas brasileiros que trabalham com línguas in- BRASILEIRAS E SUA DIVERSIDADE
dígenas receberam formação ou no exterior ou em institui- Atualmente 180 línguas indígenas são faladas no Bra-
ções brasileiras, sob a orientação de brasileiros. Somente no sil. De fato, não há absoluta certeza quanto ao número, o que
início lingüistas do SIL prestaram alguma colaboração, con- se deve às dificuldades inerentes à definição técnica do que
duzindo cursos nas instituições a que o Instituto esteve ligado
– o Museu Nacional e a UnB, e tiveram uma participação em 11
12
LEITE, 1981, p. 61.
Ibid., p. 63.
13 SEKI, 2000, contém um levantamento de instituições brasileiras nas
9 OITICICA, 1933. quais se desenvolve o estudo de línguas indígenas e da produção de não
10 SEKI, 2000. missionários sobre essas línguas.

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seja propriamente uma língua (em relação a dialeto, formas cluindo ainda três línguas isoladas no nível de família: awetí,
antigas e modernas etc.), agravadas pela carência ainda sateré-mawé e puruborá. A família tupi-guarani caracteriza-
existente de informações sobre as línguas e seus falantes. se por grande dispersão geográfica: suas línguas são faladas
Estima-se que, no decorrer dos 500 anos de coloni- em diferentes regiões do Brasil e também em outros países da
zação, cerca de mil línguas se perderam14 devido ao desapa- América do Sul (Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana Francesa,
recimento físico dos falantes, em decorrência de epidemias, Colômbia, Paraguai e Argentina). As demais famílias do tron-
extermínio direto, escravização, redução de territórios, des- co tupi estão todas localizadas em território brasileiro, ao sul
truição das condições de sobrevivência e aculturação forçada, do Rio Amazonas.
entre outros fatores que sempre acompanharam as frentes de No tronco macro-jê, definido com base em evidências
expansão desde o período colonial até nossos dias. Um exem- menos claras, são incluídas cinco famílias genéticas: jê (com
plo atual é o caso de avanço sobre a área Terra do Sol, em 27 línguas e dialetos), bororo (com duas línguas), botocúdo
Roraima, habitada pelos grupos indígenas makuxi, wapixa- (com uma língua), karajá e maxakalí (com três línguas ca-
na, ingarikó e taurepang.15A extensão da perda pode ser cla- da), e ainda quatro línguas: guató, ofayé, rikbaktsá e yatê ou
ramente visualizada através da localização atual de grupos e fulniô. As línguas (e dialetos) filiadas a esse tronco, exclusiva-
línguas indígenas: estão concentrados nas regiões Amazôni- mente brasileiro, são faladas em particular em regiões de
ca e Centro-Oeste, nos Estados do Amazonas, Pará, Rondô- campos e cerrados, desde o sul do Maranhão e do Pará, pas-
nia, Roraima, Acre, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do sando pelos Estados do Centro-Oeste até do Sul do País.
Sul, Goiás e Tocantins e, em menor proporção, em outros Es- A família karib é representada, no Brasil, por 20 lín-
tados, tendo desaparecido na prática totalidade da região guas, distribuídas ao norte do Rio Amazonas, nos Estados do
Leste, de Norte a Sul do País, e mesmo em parte da Amazô- Amapá, Roraima Pará e Amazonas, e ao sul do Rio Amazo-
nia. Para ficar em um exemplo, mencionamos a família lin- nas, ao longo do Rio Xingu. Outras línguas dessa família são
güística botocudo, uma das mais extensas do Brasil, cujos fa- faladas nas Guianas e na Venezuela.
lantes ocupavam no passado toda a região compreendida Dezessete línguas representam a família aruák (ou
entre o Rio Pardo, na Bahia, e o Rio Doce, em Minas Gerais arawák) no Brasil, sendo faladas nas regiões noroeste (Esta-
e Espírito Santo, e que hoje está reduzida a um único grupo, dos do Amapá, Roraima, Acre e Amazonas) e oeste (Mato
o krenak-nakrehé. Grosso e Mato Grosso do Sul). A família inclui outras línguas
O número ainda existente de línguas indígenas bra- faladas fora de território brasileiro.
sileiras representa uma grande diversidade lingüística. Ainda A família pano abrange 13 línguas faladas no Brasil,
que com base em materiais ainda em muito deficitários, foi nos Estados do Acre, Rondônia e Amazonas, ainda muito
possível estabelecer uma classificação genética dessas lín- pouco estudadas, além de outras faladas no Peru e na Bolívia.
guas, agrupando-as em famílias e troncos lingüísticos indi- Outras famílias lingüísticas são: o tucáno, com 11 lín-
cados no quadro 1 (apêndice). guas e vários dialetos; arawá, com sete línguas; makú, com
O tronco tupi, estabelecido bem claramente, é um dos seis línguas; katukína e yanomámi, cada uma com quatro
grandes agrupamentos, ao lado do tronco macro-jê e das fa- línguas; txapakúra e nambikwára, com três línguas cada;
mílias aruák, karíb e páno. É constituído por sete famílias ge- mura, com duas línguas e guaikurú, com uma língua falada
néticas: tupi-guarani (com 33 línguas e dialetos no Brasil), no Brasil.
mondé (com sete línguas), tuparí (com três línguas), juruna, Há ainda 10 línguas indígenas classificadas como iso-
mundurukú e ramarána (cada uma com duas línguas), in- ladas, isto é, como constituindo tipos lingüísticos únicos: ti-
14 RODRIGUES, 1993.
kúna, irantxé/münkü, trumái, máku, aikaná, arikapú, jabutí,
15 ALMEIDA, 2000. kanoê e koaiá ou kwazá.

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Também do ponto de vista tipológico as línguas indí- Passando a diferentes modos de organização grama-
genas brasileiras são diversificadas, no que respeita tanto à tical em relação ao português, várias línguas apresentam, no
organização dos sistemas de sons quanto à estrutura grama- âmbito da primeira pessoa plural, uma distinção entre pri-
tical. meira pessoa inclusiva (‘nós, incluindo o interlocutor’) e pri-
Há línguas com sistemas vocálicos orais de três fone- meira pessoa exclusiva (‘nós, excluindo o interlocutor’). A
mas, como o kulína (arawá); de quatro fonemas, como o distinção é marcada tanto nos pronomes livres, quanto nos
baré (aruak) e o kaxinawá (pano); de cinco, como o yawa- marcadores de pessoa junto ao verbo, como nos seguintes
lapití (aruak), o tapirapé (tupi-guarani); e de seis, como o exemplos do kamaiurá:19
kamaiurá (tupi-guarani). Línguas do tronco macro-jê apre- (3) a. (jene)ja-maraka
sentam, em geral, sistemas de nove vogais orais, como o xe- (nós Incl.) 1.a incl-cantar
rênte e o kaingáng, ou de dez vogais, como o kayapó e o api- ‘(nós, incluindo você) cantamos’
nayé, por exemplo.16 Algumas línguas, como o juruna (fa-
b. (ore) oro -maraka
mília juruna), o mundurukú (família mundurukú), o gavião
e outras da família mondé, todas do tronco tupi, ou o tikúna (nós Excl) 1.a excl-cantar
(isolada) apresentam tons contrastivos. O gavião está entre as ‘(nós, excluindo você) cantamos’
línguas em que também a duração vocálica é contrastiva. Ve-
jam-se os exemplos a seguir, do juruna17 e do gavião;18 o tom É comum nas línguas brasileiras a presença da cate-
alto é indicado por acento agudo e o tom baixo não é mar- goria de posse nos nomes, a qual provê uma classificação dos
cado; vogais longas são representadas por seqüência de vo- itens lexicais em três subclasses semânticas, que se diferen-
gais iguais: ciam pelo comportamento morfológico e sintático de seus
(1) lahú ‘mutum cavalo’ membros: a dos inalienáveis (em geral termos para relações
lahu ‘arraia’ de parentesco e para partes de um todo), dos alienáveis (in-
(2) aka ‘seu (próprio) corpo’ cluem nomes de utensílios domésticos, ferramentas e alguns
aaka ‘matar-se’ tipos de armas) e dos não possuíveis (nomes de pessoas, ani-
mais, plantas, fenômenos da natureza). Os inalienáveis so-
Os sistemas de sons são também diversificados no que mente ocorrem com a indicação do possuidor, diferentemen-
concerne às consoantes. Assim, o kamaiurá (família tupi- te dos alienáveis, que podem dispensar, e dos não possuíveis,
guarani), por exemplo, apresenta uma série de oclusivas sur- que não admitem essa indicação. Esse é o modo em que se
das (labial p, dental t, velar k e oclusiva glotal /) em opo- manifesta formalmente a distinção entre as três classes em
sição a consoantes nasais nos três primeiros pontos de arti- algumas línguas, como o kamaiurá.
culação (m, n, η), estando ausente a série de oclusivas vo- (4) Kamaiurá: i-nami ‘orelha dele’ * nami
zeadas (b, d, g). Já o sistema do kadiwéu (família guaikurú) kˆe ‘facão’ i- kˆe ‘facão dele’
opõe consoantes surdas e vozeadas, abrangendo, além das parana ‘rio’ *i-parana
labiais (p/b), dentais (t/d), palatais (tx/dj) e velares (k/g)
também as uvulares (q/G). O krenák (família botocúdo)
contrasta uma série de consoantes surdas, (p, t∫ , t k), uma 19 Neste trabalho todos os dados do kamaiurá são de SEKI, 1997a e
série de nasais sonoras (m, n, ¯, ˜) e uma série de nasais 1997b. As seguintes abreviaturas são usadas nas glossas dos exemplos:
Admir: ‘admirativo’; Ass: ‘assertivo’; Atest: ‘atestado’; Aud: ‘auditivo’;
surdas (m,• n,• ¯•, N•). Cauc: ‘caucional’; Cert: ‘certeza’; F: ‘foco’; Fem: ‘feminino’; Fut: ‘futuro’;
Ger: ‘gerúndio’; Infer: ‘inferencial’; Interj: ‘interjeição’; Masc: ‘mascu-
lino’; MEst: ‘mudança de estado’; Part: ‘partícula’; Pot: ‘potencial’; Prev:
16 FARGETTI, 1988. ‘previativo’; Prob: “probabilidade’; Rep: ‘reportivo’; Vis: ‘visual’; 1sg: ‘pri-
17 Idem, 1992. meira pessoa do singular’; 1.a excl: ‘primeira. pessoa exclusiva’; 1.a incl:
18 MOORE, 1982. ‘primeira pessoa inclusiva; * indica não aceitabilidade.

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Em outras, como o ikpéng, da família karíb, os nomes (8) Fala feminina Fala masculina
possuíveis são especialmente marcados com sufixos de pos- kuE uE ‘capivara’
se,20 e há outras línguas, como o suyá, da família jê, em que anõna aõna ‘coisa’
a posse alienável é assinalada por prefixo.21 Observe-se em hawçkç hawç ‘canoa’
(5) que no ikpéng empréstimos são marcados para a cate- kawaru awaru ‘cavalo’
goria: kabE abE ‘café’
(5) Ikpéng: g-eng-ru ‘meu olho’
1sg-olho-Gen Já na língua kamaiurá (tupi-guarani) o sexo do fa-
g-amigu-n ‘meu amigo’ lante é indicado por meio de partículas finais de sentença,
1sg-amigo-Gen próprias de cada sexo. Os dados a seguir contêm as partículas
(6) Suyá: i-nã ‘minha mãe’ ka ‘falante masculino’ e kˆ ‘falante feminino’, ambas indi-
cativas de que o falante se dirige a si mesmo:
i-¯ç-) tEwE ‘meu peixe’
(9) a-juka rape ka
1sg-matar Cauc Masc
Muitas línguas indígenas marcam o ‘gênero’ diferen- ‘acho melhor matá-lo’
temente do português, com base não em distinções de sexo,
mas em outros traços, como a forma dos objetos.22 Os exem- (10) a-juka rape kˆ
plos a seguir23 contêm alguns dos classificadores da língua 1sg-matar Cauc Fem
mundurukú (os números indicam os tons): -ba4: ‘braço; ‘acho melhor matá-lo’
objeto longo, roliço e rígido’; -di3: ‘água; coisa líquidas’; -
da2 ‘semente’; -/a2: ‘cabeça; coisa arredondada’. Observe-se Em kamaiurá (e outras línguas indígenas) há recur-
que empréstimos são incluídos em uma determinada classe, sos morfossintáticos usados para marcar a atitude do falante
passando a receber o classificador correspondente: em relação ao conteúdo do que enuncia, permitindo-lhe re-
(7) a2ko3-ba4 ‘banana (fruta)’ forçar ou modular suas asserções e comandos, indicar a fonte
3 2
ka pe -di 3 ‘café (líquido)’ da informação, assumindo ou não a responsabilidade pelo
ka3pe2-da2 ‘café (em grão)’ seu conteúdo e também assinalar o modo de acesso ao co-
3 2 3
ba si a -/a 2 ‘bacia’ nhecimento do que reporta. Considerem-se os seguintes
exemplos com o verbo ir:
(11) a. a -ha ko/ˆt
Outras línguas assinalam a distinção de sexo do fa-
1sg-ir MEst
lante. Este é o caso do karajá (tronco macro-jê), em que os
‘estou indo’ (forma de despedida)
itens lexicais na fala das mulheres geralmente incluem seg-
b. a-ha korin
mentos (consoantes, sílabas) que estão ausentes na fala dos
1sg-ir Fut
homens, como nos exemplos seguintes.24 Incluem-se entre ‘eu irei’
eles empréstimos oriundos do português (‘cavalo’, ‘café’), os c. o/iran a-ha=n
quais sofrem adaptação fonológica e, em alguns casos, ma- amanhã 1sg-ir=Pot
nifestam a mencionada distinção: ‘amanhã irei [tenciono ir]’
20
d. a -ha=ne ko pˆ
PACHECO, 1997, p. 34.
21 SANTOS, 1997. 1sg-ir=Ass Part Masc
22 LYONS, 1979, cap. 7.
23 GONÇALVES, 1987.
‘eu irei [afirmo que]’
24 BORGES, 1997. e. a -ha ete=n

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1sg-ir Cert=Pot cobra Atest 3-morder-Ger Prev Admir/Masc


‘eu irei [com certeza]’ ‘foi cobra que o mordeu [eu vi; a cobra já fugiu]’
f. a-ha nipe=n
1sg-ir Prob=Pot As línguas indígenas brasileiras são também variadas no
‘eu irei [provavelmente]’ que respeita à ordem dos constituintes na sentença. Focalizan-
do-se a sentença transitiva independente e seus constituintes bá-
Nos exemplos a seguir a partícula rak ‘atestado’ in- sicos – o sujeito (S), o verbo (V) e o objeto direto (O), há línguas
dica que o falante se apresenta sendo ele mesmo a fonte da com os padrões SVO, comum em línguas européias, e SOV, carac-
informação, ao passo que a partícula je ‘reportivo’ assinala terístico também para outras línguas do mundo, como o Japo-
que está reportando informação proveniente de outrem: nês e o Turco, por exemplo. Outras línguas apresentam as ordens
(12) a. amonawa tete rak o-ho ko/ˆt OVS, OSV, VOS e VSO, consideradas raras e/ou não atestadas nas lín-
kalapalo somente Atest 3-ir MEst guas do mundo.25 Seguem alguns exemplos:
‘somente o kalapalo foi’ SVO
b. amonawa tete je o-ho ko/ˆt (14) SVO: yanumaka aitxapai teme (Waurá26)
kalapalo somente Rep 3-ir MEst onça comendo anta
‘diz que somente o kalapalo foi’ ‘a onça está comendo a anta’

No conjunto de dados em (14) exemplifica-se o uso SOV


de partículas que permitem ao falante indicar os diferentes SOV: wararuwijawa moi)a o-u/u (Kamaiurá)
modos de acesso ao conhecimento da informação que trans- cachorro cobra 3p.-morder
mite. A partícula (i)nip(e), que também exprime probabili- ‘o cachorro mordeu a cobra’
dade, possibilidade, aparece em (14)a. com valor inferencial,
assinalando que o falante baseia sua asserção em índices OSV
sensoriais observáveis, no momento do enunciado, de eventos OSV: ˆwa ata mapuruka (Apurinã27)
dos quais não teve experiência direta. As partículas po ‘audi- ele nós arrancar
tivo’ e (e)he ‘visual’ indicam respectivamente inferência a ‘nós o arrancamos’
partir de percepção auditiva e visual. Já a partícula heme
‘previativo’ aponta para uma evidência que esteve disponível OVS
anteriormente, mas que está ausente no momento da fala: OVS toto y-ahosˆ-ye kamara (Hixkariana28)
(13) a. amana nipe rak o-kˆt homem 3-pegar-Tempo onça
chuva Infer Atest 3-chover ‘a onça pegou o homem’
‘deve ter chovido’ [inferido através de sinais de
chuva] POR QUE ESTUDAR LÍNGUAS INDÍGENAS?
b. awa te po o-/ut A importância do estudo de línguas indígenas pode
gente Foco Aud 3-vir ser colocada sob dois aspectos fundamentais: o científico e o
‘vem gente [inferido pelo ruído de passos]’ social. Do ponto de vista científico, a relevância das línguas
c. ãããa je=rajˆra te=he=pa indígenas e sua pesquisa fica evidente diante da consideração
Interj. 1sg=filha F=Vis=Admir/Masc
‘ah! é mesmo minha filha [ao olhar o rosto da 25 GREENBERG, 1963.
26 MORI, A.C., comunicação pessoal.
menina]’ 27 FACUNDES, 2000.
d. moi)a rak i-u/u-me heme pa 28 DERBYSHIRE, 1979.

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de que a lingüística busca compreender a natureza da lin- portanto, os lingüistas, enquanto profissionais, não podem
guagem humana, fenômeno que se caracteriza pela unidade ficar à margem da questão relacionada ao futuro da ciên-
na diversidade, manifestando-se em cada língua de forma cia.30 Outros, como Krauss,31 estabelecem um paralelo entre
particular e única. Assim, o estudo das diferentes manifesta- as perdas da diversidade lingüística e de espécies biológicas,
ções é importante para o conhecimento da linguagem hu- do que decorre a necessidade de estudar as línguas indígenas
mana, podendo contribuir seja confirmando hipóteses teóri- enquanto espécies que devem ser preservadas tendo em vista
cas formuladas com base em dados de línguas conhecidas, assegurar a diversidade cultural e intelectual da humanida-
predominantemente indoeuropéias, seja estimulando a in- de. Considere-se ainda a nota incluída em um encarte do In-
trodução de reajustes ou a busca de novas propostas teóricas ternational Journal of American Linguistics (IJAL): “As
que possam explicar fenômenos revelados pelo estudo e não línguas e culturas americanas são mortais. Com sua ajuda o
considerados até então. Nesse sentido, a pesquisa de qualquer IJAL pode ajudar a mantê-las vivas”. O pressuposto é que as
língua é relevante para o desenvolvimento da ciência. As lín- línguas indígenas são fadadas ao desaparecimento e que a
guas indígenas despertam interesse especial não por serem descrição de uma língua é capaz de “preservá-la”. De fato, a
“exóticas”, mas por serem diversificadas e estarem entre as língua é um fenômeno histórico, em constante movimento, e
menos conhecidas da ciência, do que decorre a expectativa uma descrição pode apenas fixar um determinado estágio de
de que possam apresentar propriedades ainda não observa- sua existência. Ao mesmo tempo, por válidas que sejam sob
das em línguas de outras regiões. Isso vem se confirmando o ângulo científico, as mencionadas colocações são discutí-
através de estudos já feitos sobre essas línguas. veis, visto que não contemplam, ou quando muito deixam
Nos últimos anos a importância da diversidade lin- em segundo plano, a questão da relevância do estudo das lín-
güística tem sido abordada no contexto da diversidade em guas do ponto de vista dos interessados diretos que são os fa-
geral, enfatizando-se a compreensão das línguas como parte lantes.
intrínseca da cultura, da sociedade e visão de mundo dos fa- Entretanto, há muitos lingüistas que se preocupam
lantes, bem como o fato de que a perda de línguas tem como não só com a ciência, mas também com o aspecto social da
conseqüência o desaparecimento dos sistemas de conheci- questão, e colocam a necessidade de estudar as línguas mi-
mentos que elas refletem e expressam. Ao mesmo tempo, a noritárias tendo em vista contribuir para auxiliar as comu-
compreensão de que o processo de perda de línguas é deter- nidades que assim o desejarem no sentido de preservar e/ou
minado por fatores de ordem política e social sobre os quais revitalizar suas línguas e sistemas de conhecimentos. Algu-
os lingüistas não têm controle tem servido de base para uma mas medidas sugeridas são a produção de materiais resul-
postura que focaliza a relevância científica do estudo das lín- tantes da investigação lingüística (descrições de boa qualida-
guas indígenas e sua “preservação” enquanto objeto da lin- de, dicionários, coletâneas etc.), a atuação contra fatores que
güística. Uma conseqüência é a postulação de que um gran- levam ao abandono da língua, o desenvolvimento de ativida-
de esforço deve ser feito tendo em vista documentar as lín-
des que propiciem a restauração da auto-estima e de uma
guas ameaçadas.
atitude positiva em relação à língua e à cultura e que contri-
Assim, para Ladefoged a tarefa primordial seria a de buam para o fortalecimento das mesmas bem como para
gravar “para a posteridade as estruturas fonéticas de algu- despertar a consciência crítica, de modo a permitir um me-
mas línguas que não estarão aqui por muito tempo”.29 Se- lhor entendimento e avaliação da sociedade envolvente. A
gundo Robins e Uhlembeck, “a extinção das línguas afeta se- esse respeito, um importante papel tem sido atribuído à ação
riamente a base da Lingüística, da Lingüística Geral assim educacional, envolvendo a elaboração de escrita e a alfabeti-
como dos estudos históricos, comparativos e tipológicos” e,
30 ROBINS & UHLEMBECK, 1991, p. 13.
29 LADEFOGED, 1992. 31 KRAUSS, 1992, p. 4.

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zação em língua materna e que, se não é capaz, por si, de re- Desse modo, a pesquisa lingüística reproduz a assi-
verter o processo de desaparecimento de línguas, pode de- metria das relações interétnicas, ou, de outro modo, constitui
sempenhar um papel fundamental no apoio aos movimentos uma manifestação dessa assimetria. De fato, no decorrer do
de revitalização lingüística e cultural. processo de contatos interétnicos os índios têm sido sistema-
Tem-se em vista aqui não programas de educação bi- ticamente expropriados de seu passado histórico e de sua
lingüe de “transição”, que introduzem o trabalho com a língua identidade cultural específica. Da mesma forma, no decorrer
indígena apenas durante um curto período de tempo, como da pesquisa lingüística, embora esta se dê com falantes de
uma ponte para o ensino do português, mas programas de línguas específicas, tem-se uma situação em que os falantes
educação bilingüe diferenciada, voltados para a auto-afirma- são apagados ao máximo, ficando no geral reduzidos a me-
ção da identidade através da (re)valorização das línguas e cul- ros instrumentos necessários para fornecer dados e intuições
sobre suas línguas, dados estes que é preciso documentar
turas indígenas e que, ao mesmo tempo, buscam propiciar o
com urgência já que os falantes são considerados como não
domínio efetivo do português enquanto instrumento proporci-
tendo possibilidades futuras. Também no que respeita às
onador da troca de experiências com o mundo não indígena e
ações educacionais há o ponto de vista bastante generalizado
da aquisição e manipulação dos conhecimentos desse mundo
(adotado por missionários do SIL e também por alguns lin-
em benefício próprio.
güistas brasileiros) de que a introdução da escrita em língua
Ocorre que tradicionalmente tanto a pesquisa de lín- indígena depende totalmente de um especialista externo que,
guas indígenas quanto o desenvolvimento de ações educaci- tendo feito uma investigação exaustiva da língua, é capaz de
onais são realizados por representantes da sociedade domi- elaborar o sistema de escrita, os materiais didáticos e seus
nante, que detêm o monopólio sobre as técnicas de investi- conteúdos, tomar decisões sobre o currículo etc. Dessa ma-
gação e aos quais cabe definir os aspectos a serem investiga- neira, todo o processo é imposto de fora, ficando os falantes
dos, assim como a forma de apresentação dos resultados, uma vez mais excluídos.
sendo as decisões determinadas por fins acadêmicos ou re- Obviamente, a participação ativa dos falantes no tra-
ligiosos, geralmente alheios aos interesses das comunidades. balho de investigação de suas línguas e na condução do pro-
Em geral os falantes não têm participação ativa na pesquisa, cesso educacional implica a necessidade de apropriação, por
cabendo-lhes apenas produzir enunciados em sua língua parte deles, do conhecimento especializado, tendo em vista
conforme elicitados pelo pesquisador. Ainda assim há casos desenvolver a reflexão sobre suas línguas, a conscientização
em que o pesquisador se queixa de ter de investir doses de sobre o seu funcionamento e sua importância enquanto meio
“bondosa paciência” ao tentar extrair “dados úteis das bocas de identificação, expressão e transmissão.
de falantes nativos freqüentemente indiferentes”.32 Uma vez
finda a pesquisa, cessam as visitas necessárias à coleta de da- CONCLUSÃO
dos, e não raro o pesquisador desaparece. Os resultados de As considerações feitas levam a concluir quanto à ne-
seu trabalho são apresentados em reuniões científicas e/ou cessidade de desenvolver um trabalho emancipatório (de
publicados em forma hermética, o que torna seu uso difícil empowerment), isto é, um trabalho que busca não só a in-
ou impossível a não-lingüistas. No caso de missionários, o vestigação “sobre” as línguas, ou mesmo “para” os falantes,33
conhecimento resultante da pesquisa é usado como instru- mas antes de tudo “com” os falantes, inclusive compartilhan-
mento para impor crenças religiosas, o que vem inevitavel- do com eles o conhecimento lingüístico.
mente acompanhado da desvalorização das crenças e des- A proposta acima delineada e fundamentada vem sen-
truição da cultura indígena. do aplicada e amadurecida em nossa prática tanto de pesqui-
32 EVERETT, 1992, p. 58. 33 CAMERON et al., 1993.

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sa, quanto de assessoria a projetos de formação de professores bilizando no que se refere a reivindicações quanto a progra-
índios, particularmente em Rondônia, com os tuparí, e no mas de educação diferenciada e de formação de professores,
Parque Indígena do Xingu, com distintos povos. Contudo, ela embora de maneira ainda um tanto tímida, têm também rei-
reflete não apenas uma concepção pessoal, mas atende às ex- vindicado uma participação efetiva na condução dos proces-
pectativas de representantes indígenas. Do mesmo modo que sos educacionais, bem como de investigação de suas línguas e
nos últimos anos as comunidades vêm crescentemente se mo- culturas.

APÊNDICE
Línguas Indígenas do Brasil (classificação)34
1. Agrupamentos maiores
TRONCO FAMÍLIA LÍNGUA
TUPI Tupi-guarani Akwáwa; Asuriní do Tocantins (asuriní do trocará, akwáwa) a;
Suruí do Tocantins (mudjetíre); Parakanã; Amanyé;
Anambé; Apiaká; Araweté; Asuriní do Xingu (asuriní do coa-
tiema, awaeté); Avá (canoeiro); Guajá; Guarani; Kaiwá
(kayová); Mbiá (mbüá, mbyá, guarani); Nhandéva (txiripá,
guarani); Kamayurá; Kayabí; Kokáma; L. geral amazônica
(nheengatu, tupi moderno); Omágua (kambéba); Parintin-
tín; Diahói; Júma; Parintintín kaguahív; Tenharín; Tapirapé;
Tenetehára; Guajajára; Tembé; Uruewauwáu; Urubú
(urubú-kaapór); Wayampí (oyampí); Xetá
Arikém Karitiána
Juruna Juruna (yurúna) [yudjá – LS]b; Xipáya
Mondé Aruá; Cinta-Larga; Gavião (ikõrõ, digüt); Mekém; Mondé
(sanamakã, salamãi); Suruí (paiter); Zoró
Mundurukú Kuruáya; Mundurukú
Ramaráma Arara (urukú, karo);Itogapúk (ntogapíd)
Tuparí Makuráp; Tuparí; Wayoró
(Outras
Awetí; Puruborá; Mawé (Sateré)
línguas)
a. Os nomes deslocados à direita referem-se a dialetos.
b. Os termos incluídos entre chaves e seguidos de LS foram acrescentados pela autora.

MACRO-JÊ Jê Akwén (akwë)


Xakriabá (xikriabá); Xavante (a’ wë); Xerente (akwë); Api-
nayé; Kaingang (coroado); Kayapó; Gorotíre; Kararaó;
Kokraimôro; Kubenkrangnotí; Kubenkrankêgn; Mekrang-
notí; Tapayúna; Txukahamãe (mentuktíre); Xikrín (xikrï);
Kren-akarore [Panará – LS]; Suyá; Timbíra; Canela apãni-
ekrá; Canela Ramkókamekrá; Gavião do Pará (Paraká-
teye); Gavião do Maranhão (pukobyé); Krahô; Krëyé
(krenyé); Krikatí (krinkatí); Xokléng (aweikoma)
Bororo Boróro (boóro oriental, orarí); Umutína (Barbados)

34 Fontes: RODRIGUES, 1986, e ERIKSON, 1994.

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Botocudo Krenak – Nakrehé


Karajá Javaé; Karajá; Xambioá
Maxakalí Maxakalí; Pataxó; Pataxó hãhãhãe
(Outras Guató; Ofayé (ofayé-xavánte); Rikbaktsá (erikbaktsá, ari-
línguas) kpaktsá); Yatê (fulniô, karnijó)
Karíb Apalaí (aparaí); Atroarí; Galibí do Oiapoque; Hixkaryána;
Ingarikó (kapong, akawáio); Kaxuyána; Makuxí; Mayon-
góng (makiritáre, yekuána); Taulipáng (taurepã, pemóng);
Tiriyá (tirió); Waimirí; Waiwái; Warikyána; Wayána
(urukuyána); Arára do Pará; Bakairí; Kalapálo; Kuikúro;
Matipú; Nahukwá (nafukwá); Txikão [ikpeng – LS]
Aruak Apurinã (ipurinã); Baníwa do içana; Baré; Kámpa; Manda-
wáka; Mehináku; Palikúr; Paresí (halití); Píro; Manitenéri;
Maxinéri; Salumã (Enawenê-nawê); Tariána (Taliáseri);
Yuruparí-tapúya Íyemi); Teréna (Teréno); Wapixána;
Warekéna (Werekéna); Waurá; Yabaána; Yawalapití

2. Famílias menores
Arawá Banawá-jafí; Dení; Jarawára; Kanamantí; Kulína; Paumarí; Yamamadí
(jamamadí)
Guaikurú Kadiwéu
Katukína Kanamarí; Katawixí (?); Katukína do Biá / Jutaí; Txunhuã-djapá
Makú Bará (Makú-Bará); Guaríba (Waríwa-tapúya); Húpda; Kamã; Nadêb
(Nadëb); Yahúp
Mura Mura; Pirahã
Nambikwára Nambikwára do Norte; Lakondé; Latundê; Mamaindê; Nagarotú;
Tawandê (tagnáni); Nambikwára do Sul; Galera; Kabixí; Mundúka; Nam-
bikwára do Campo; Sabanê
Pano Amawáka; Karipúna; Katukína do Acre (wanináwa); Kaxararí; Kaxináwa
(kaxinawá); Marúbo; Matís; Mayorúna; Nukuíni; Poyanáwa; Xanenáwa;
Xawadáwa; Yamináwa; Yawanáwa
Tucano Barasána (barasáno, bará); Desána (desáno, winá); Jurití (yurití-tapúya,
wahyára); Karapanã (karapanã-tapúya, mehtã); Kubéwa (kubéu,
kubewána, pamíwa); Pirá-tapúya (waíkana); Suriána (surirá); Tucano
(tukána, dahseyé); (Arapáso, koneá); (Mirití, mirití-tapuya, neenoá);
(Tariána); Tuyúka (dohká-poára); Wanána (wanáno, kótiria); Yebá-masã
(yepá-mahsã, yepá-matsó)
Txapakúra Pakaanóva (orowari); Torá; Urupá
Yanomámi Nimám (yanám); Sanumá; Yanomám (Yainomá); Yanomámi

3. Línguas isoladas
Aikaná (aikanã, huarí, maská, tubarão, Koaiá (arara)
kasupá, mundé, corumbiára)
Arikapú Máku
Awaké Mynky (münkü)
Irántxe (iranxé) Trumái
Jabutí [djeoromitxí]* Tukúna (tikúna)
Kanoê (kapixaná)

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BRASIL
500 ANOS DEPOIS
BRAZIL 500 YEAR LATER

A
s comemorações dos cinco séculos de Brasil lusitano-europeu deram
uma medida dos impasses vividos pelo País nesta virada de século e de
milênio. O dilema fundamental do Brasil é posicionar-se num mundo
que, movendo-se aceleradamente para o incremento do comércio in-
ternacional, continua reproduzindo a relação espoliativa com países
que, como o Brasil, apresentam em abundância recursos naturais ne-
cessários à produção industrial contemporânea.
Sem pretender definir um posicionamento para o País, próprios de programas po-
lítico-partidários, alguns dos antigos mitos ainda presentes na relação da sociedade bra-
sileira com a natureza, construídos ao longo de cinco séculos, precisam ser, no meu en-
tender, superados ou abandonados. Neste artigo são enfocados dois deles, definidores da
nossa relação com os ecossistemas naturais.

A NATUREZA É ANTAGÔNICA À ECONOMIA ROBERTO KISHINAMI


A oposição entre as atividades humanas produtivas e a natureza tem origens tão re- Físico (USP), diretor geral do
Greenpeace Brasil, especialista
motas quanto a agricultura primitiva. A rigor, a agricultura contemporânea, mesmo em em planejamento energético
suas formas menos agressivas, representa um esforço sistemático de alteração do ecossis- kishi@br.greenpeace.org
tema natural, em que a diversidade biológica dá lugar às espécies úteis ao consumo hu-
mano. O extrativismo representa uma relação homem/natureza em que os limites naturais
definem o alcance da ação humana: sua população, sua produção de bens e serviços, seu
A agricultura
estilo de vida e seu comportamento cotidiano. Entretanto, quase desnecessário lembrar, a
sociedade humana em escala planetária não teria alcançado o estágio atual – em termos contemporânea,
populacionais, econômicos e globalização cultural – sem que a agricultura tivesse sucesso representa um
na luta contra a natureza. esforço sistemático
No Brasil, os vestígios das sociedades indígenas presentes nos 1500 indicam que
parte destas sociedades praticavam a agricultura, ainda que com rotação das áreas e uso de alteração do
de técnicas de baixo impacto. Os europeus, já no primeiro encontro, como mostra a carta ecossistema
de Pero Vaz de Caminha, não desprezaram o potencial produtivo dessas novas terras. A natural, em que a
ocupação do território e o crescimento da economia coincidiram com a progressiva des-
truição dos ecossistemas naturais aqui existentes, já com o ciclo do açúcar, cujo início si- diversidade
tua-se no século XVII. biológica dá lugar às
Não é preciso entrar em detalhes sobre o grau de destruição dos principais ecos- espécies úteis ao
sistemas que os cinco séculos de europeização e globalização promoveram no meio am-
consumo humano

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biente brasileiro: 97% da Mata Atlântica, 50% do Cerrado e neta estão próximos do esgotamento. Mesmo pertencendo a
15% da Amazônia foram já completamente destruídos. uma espécie terrestre, limitados a uma vida sedentária em
Se no caso da Mata Atlântica e do Cerrado a extinção grandes conglomerados urbanos, com quase nenhuma inte-
da biodiversidade pôde ser justificada por razões econômi- ração direta com o fundo dos oceanos e com um contato vi-
cas, o mesmo não ocorre com a Amazônia. Resumidamente, sual cada vez menor com o céu, o homem foi capaz de, ao
nos dois primeiros ecossistemas a erradicação da cobertura longo dos sucessivos mega-ciclos econômicos (agricultura,
vegetal original deu acesso a solos que, por sua história geo- expansão marítima, revoluções industriais), destruir e colo-
lógica, conferiram suporte a atividades agro-pecuárias con- car em risco florestas, rios, mares, oceanos e atmosfera.
sistentes, com métodos extensivos, radicalizados no período A destruição das florestas no continente europeu –
pós-revolução verde. Isso possibilitou os ciclos econômicos tanto no Norte como no Mediterrâneo – ocorreram antes das
que, desde o período colonial, serviram à acumulação pri- revoluções industriais, como atesta, por exemplo, um texto de
mária do capital nessas terras do Novo Mundo. Platão, lamentando a destruição das florestas na Élida.
No caso da Amazônia, excetuadas as manchas de cer- Ao contrário do que ocorria no passado, em que as
rado e de terra roxa, a predominância é de solos que não dão crises ambientais tiveram alcance limitado a regiões dentro
suporte às mesmas atividades tradicionais nas demais regiões dos continentes, ou mesmo em ecossistemas isolados como
do País. Ao mesmo tempo, o fato da Floresta Amazônica as ilhas, as crises ambientais da atualidade tem alcance pla-
constituir um dos poucos remanescentes de floresta tropical netário. O aquecimento da atmosfera e dos oceanos, causado
contínua no mundo – 35% das florestas tropicais em escala pela intensificação do efeito estufa e gerador de mudanças
planetária – atribui a este ecossistema um custo de oportu- climáticas globais, a poluição dos oceanos por resíduos ur-
nidade insuperável quando consideradas as atividades agro- banos e industriais persistentes, bioacumulativos e extrema-
pecuárias tradicionais. mente perigosos, a contaminação dos solos e rios por toda
As bordas da Floresta Amazônica constituem a área de sorte de resíduos gerados pela atividade humana, são algu-
expansão agrícola da última década. É nesta mancha, que se mas das crises ambientais que, ao lado da destruição dos úl-
estende por mais de 5 mil quilômetros, que, ano a ano, ocorre timos remanescentes de florestas tropicais e temperadas, co-
o maior desmatamento em escala planetária: uma média de locam em risco a própria sobrevivência da nossa espécie.
quase 17 mil quilômetros quadrados de floresta – com tudo Nesse contexto, a preservação dos grandes remanes-
que nela há de vida – a cada ano deixam de existir. O ritmo é centes de floresta – como a Amazônica – tem interesse pla-
assustador: uma área maior que três campos de futebol des- netário. Para os países que já destruíram a sua cobertura ve-
truídos a cada minuto, dia e noite, sete dias por semana. getal original, situação da quase totalidade da Europa, a ma-
Do ponto de vista biológico, essas áreas concentram a nutenção da Amazônia vale um preço alto, o qual estão dis-
maior diversidade de espécies, por representarem áreas de postos a pagar, conforme mostram os vários acordos
transição entre diferentes maciços florestais. De um lado o internacionais elaborados com a participação ativa da União
Cerrado, cuja densidade de espécies por metro quadrado é Européia.
das maiores já estudadas. De outro, a Floresta Amazônica, As questões políticas geradas pelas crises ambientais
que se mostra cada vez mais complexa aos olhos da pesquisa, globais e as tentativas expressas nos acordos ambientais in-
por conter pelo menos vinte diferentes tipos de floresta num ternacionais – por exemplo, convenção da diversidade bio-
único maciço e, ao mesmo tempo, diferentes ecossistemas a lógica, convenção sobre mudanças climáticas, convenções
cada altura das árvores em direção à copa. pela proteção dos oceanos – podem compor uma agenda de
Os limites da natureza mudanças profundas nas relações internacionais. Conceitos
Em todas as partes do planeta observam-se sinais de tradicionais como soberania, autonomia, territorialida-
que os atuais modelos de produção, ocupação e uso do pla- de e fronteiras nacionais – fundamentais na construção

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dos Estados nacionais modernos – deverão incorporar a no- tende alterar o Código Florestal, cuja versão em vigor data de
ção de interdependência, conceito base da globalização mas 1965, para desobrigar proprietários rurais de protegerem
não explicitado em estudos do fenômeno mais recente de ex- beiradas de rios, topos de morro, encostas com inclinação
pansão do comércio internacional e das comunicações ele- maior que 45.º, além de diminuir os índices de reserva legal
trônicas. obrigatórios nos diferentes tipos de ecossistema.
Por ora, os acordos internacionais de maior alcance – Essa mentalidade é herdada dos grandes ciclos eco-
de proteção da diversidade biológica e de contenção das mu- nômicos do passado que, fora da região amazônica, promo-
danças climáticas globais – esbarram em empecilhos práti- veram o desflorestamento e a ocupação das regiões Sul, Su-
cos, como por exemplo: a definição do que promover para deste e Centro- oeste. Assim, quando o governo – através de
substituir as tecnologias produtoras dos danos ambientais e créditos, mas não de política setorial – procura aumentar a
de onde investir os recursos que, todos concordam, têm de ser produção de grãos para acima do patamar de 80 milhões de
gerados e gastos etc. toneladas atuais, a palavra de ordem das lideranças do meio
No caso da proteção das florestas – suporte da diver- rural é expandir a fronteira agrícola em direção à Amazônia.
sidade biológica terrestre –, entre os representantes governa- O engano desse movimento repousa em dois limites.
mentais nem sequer há clareza sobre o tipo de acordo inter- De um lado, a falta de suporte físico do solo da região para
nacional necessário, e ainda menos sobre que tipo de orga- que a expansão resulte em aumento de produção sustentável:
nismo internacional seria responsável pela sua gestão. Essa a vocação da Amazônia não é agricultura ou pecuária. De
situação, ao contrário do que se pode imaginar, é extrema- outro, a impossibilidade de continuar a dispersar recursos
mente favorável a países que, como o Brasil, são os lugares por um vasto país, sem colocar em risco a produção agrícola
onde estão os últimos remanescentes de grande envergadura. já existente, por falta de investimento contínuo em infra-es-
Para essas populações, o fato de terem herdado um trutura de produção agrícola.
meio ambiente sem cobertura vegetal original em seus países Ao mesmo tempo, os recursos genéticos perdidos a
faz com que os remanescentes de floresta em outras partes do cada metro quadrado de floresta original destruída represen-
mundo tenham um valor que vai muito além do simbólico. tam um capital que, com certeza, irá faltar ao País no futuro
É a garantia de que a qualidade de vida que conseguiram à próximo. Adicionalmente, a percepção pública é de que a po-
custa, não só mas também, da depredação do seu meio am- lítica governamental de proteção às florestas não passa de
biente, tenha futuro. Nesse sentido, o valor das florestas ori- medida cosmética, por promover a substituição da floresta
ginais independe do que exatamente nela exista de recursos por plantações e pastos.
genéticos ou de diversidade biológica por explorar. Por todas essas razões, faz-se necessária uma nova
É um dos raros momentos em que países relativa- política agrícola, em que a relação da sociedade com as flo-
mente pobres, como o nosso, encontram chances de impor os restas originais repousasse em novos paradigmas.
seus interesses nacionais, tirando vantagens da necessidade Algumas Propostas para a Agricultura Brasileira
que as populações de nações mais ricas têm da proteção das A análise da agricultura brasileira é objeto de especi-
florestas fora dos seus territórios. Mas, para que isso seja pos- alistas, cuja produção técnica e acadêmica é respeitada in-
sível, é preciso mudar algo na política interna do Brasil. ternacionalmente e, reconheça-se, merece um espaço pró-
Os Limites da Agricultura e da Pecuária prio. Neste artigo, pretende-se levantar alguns dos aspectos a
No Brasil ainda é majoritária a idéia de que a melhor modificar na relação da agricultura com os ecossistemas na-
coisa a fazer com as florestas originais é derrubá-las para dar turais.
lugar às plantações ou à criação de animais, preferencial- Grosso modo, a agricultura brasileira produz 80 mi-
mente extensivas. Por esse motivo a representação política lhões de toneladas anuais de grãos, com uma produtividade
dos agricultores e pecuaristas – a bancada ruralista – pre- média abaixo de duas toneladas por hectare, em condições

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climáticas normais. Assim, a área comprometida com a pro- mudas e tratos culturais, da assistência técnica às
dução de grãos é da ordem de 40 milhões de hectares a cada propriedades rurais;
ano. Se adicionarmos os demais produtos agrícolas com pro- • aumento do valor agregado da produção agrícola e
dução constante (laranja, cana-de-açúcar, plantações exóti- pecuária, pela sua verticalização em escala local ou
cas em reflorestamentos etc.), as produções sazonais carac- regional, com a inclusão das comunidades partici-
terísticas de pequenas propriedades (hortifruti, cebola, alho pantes no processo de produção;
etc.) bem como as criações de pequeno e grande porte • investimento na integração das populações do
(granjas, gado, porco, caprinos etc.), chegamos a números meio rural à rede de comunicações globalizada e
que não ultrapassam os 200 milhões de hectares. Mesmo internacionalizada;
considerando a necessidade de rotação e a impossibilidade de • integração das propriedades dedicadas à agricul-
usar toda área disponível ao mesmo tempo, dados os tratos tura e pecuária à malha local de serviços moder-
culturais diferenciados, temos cerca de 400 a 450 milhões de nos, como por exemplo transporte, hospedagem,
hectares em produção a cada ano. turismo, produção e distribuição local de energia,
De outro lado, se procurarmos a terra sem cobertura sistemas locais de comunicação integrada (TV, in-
vegetal original e apta para a agricultura ou pecuária nas re- ternet, rádio, telefonia móvel) etc.;
giões fora da Amazônia, encontramos cerca de oitocentos • incentivo à recomposição da vegetação nativa em
milhões de hectares disponíveis. Quase um terço da área total áreas de degradadas ou sem vocação agrícola e pe-
destas regiões do País e o dobro do que estaria, numa pers- cuária;
pectiva otimista, em uso pela agricultura e pecuária. • proteção abrangente dos recursos hídricos e da ve-
O que se pode dizer diante de tal quadro? Antes de getação original em margens, várzeas, topos de
mais nada, que existe muita terra subutilizada fora das áreas morro, encostas etc., que compõem as áreas de
de floresta original. proteção permanente;
Se esse simples fato for reconhecido e adotado como • incentivo ao estabelecimento de corredores bioló-
premissa para a definição de uma política agrícola para o gicos, interligando propriedades particulares e áre-
País, abre-se a possibilidade de compatibilizar os interesses as públicas de preservação ou conservação ambi-
nacionais de preservação das florestas e sua diversidade bi- ental;
ológica com as necessidades agrícolas da sociedade brasilei- • revisão do conceito de produtividade agrícola com
ra. Sem entrar em detalhes, os principais componentes de a inclusão dos benefícios e serviços das áreas de co-
uma política agrícola que contribuiria para a proteção das bertura original em sua metodologia de cálculo;
florestas incluiria, sem ordem de prioridade: • incentivo à agricultura familiar, com ênfase em
• foco dos investimentos e incentivos nas regiões com agricultura orgânica.
áreas já desmatadas e com vocação agrícola e pe- Uma política agrícola que contemplasse os aspectos
cuária. Correspondentemente, desincentivo à ex- acima mencionados traria contribuições não só ambientais,
pansão da fronteira agrícola pela conversão de flo- retirando a pressão da agricultura sobre os últimos remanes-
restas nativas; centes de florestas, mas também para a solução de muitos
• investimento público para o aumento da produti- dos problemas sociais e fundiários presentes na área rural do
vidade nas áreas já desflorestadas e com vocação Brasil.
agrícola ou pecuária, através da educação funda- Meio Ambiente e Arcabouço Jurídico
mental e continuada, da introdução ou promoção O primeiro movimento político em direção à globali-
de tecnologias adequadas a cada região, cultura e zação, no mundo contemporâneo, veio do movimento am-
mercado, da pesquisa em melhoria de sementes e bientalista. Embora a afirmação soe pretensiosa, é preciso re-

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cordar que a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvol- formas de vida, existindo mesmo inúmeros casos de paten-
vimento Sustentável em 1972, patrocinada pela ONU na ci- teamento de códigos genéticos.
dade de Estocolmo na Suécia, foi a primeira vez em que se Apesar dessas dificuldades localizadas nessas duas
reconheceu, de um lado, a necessidade de acordos interna- convenções originadas na Rio 92, as convenções internacio-
cionais para a proteção de ecossistemas globais ameaçados nais sobre meio ambiente são hoje um fato jurídico. Elas vão
pelas atividades humanas e, ao mesmo tempo, em que se re- da proteção da camada de ozônio à proteção dos mares e
conheceu a urgência na inclusão dos países em desenvolvi- oceanos contra a poluição provocada por atividades huma-
mento nesses mesmos acordos. nas, passando pela proteção de manguezais e zonas úmidas,
Vinte anos depois, na Rio 92, uma segunda conferên- pela proteção de espécies animais ou vegetais em perigo de
cia consolidou os principais acordos internacionais que vi- extinção, pela proibição do comércio internacional de lixo tó-
sam reverter duas das principais crises ambientais: a conven- xico entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Além
ção quadro sobre mudanças climáticas e a convenção para dessas, há outras ainda em preparação, todas elas envolven-
proteção da diversidade biológica. Ambas as convenções, do países, governos, indústrias, comunidades afetadas e,
passados oito anos desde sua elaboração, esbarram ainda em sempre, grupos de pressão da sociedade civil organizada,
objeções dos Estados Unidos para sua completa implemen- tanto dos países desenvolvidos como em desenvolvimento.
tação. No caso das mudanças climáticas, a principal medida O confronto mais recente entre as convenções inter-
preconizada pelo acordo é a diminuição das emissões dos nacionais sobre meio ambiente e os setores econômicos, cujos
chamados gases – estufa resultantes da queima de combus- interesses têm sido afetados pelas restrições à poluição e à
tíveis fósseis. Em miúdos: há que diminuir o consumo de de- predação dos recursos naturais, manifesta-se nas reuniões da
rivados de petróleo para, inicialmente, estabilizar o clima recém-criada Organização Mundial do Comércio. O con-
planetário. Os Estados Unidos, que, sozinhos, respondem por fronto fundamental está na restrição ao comércio internaci-
um quarto do consumo mundial de derivados de petróleo – onal advinda dos acordos de proteção ambiental. Por exem-
quase que metade dele no setor de transportes –, têm difi- plo, os organismos geneticamente modificados introduzidos
culdade em aceitar que seu estilo de vida, fortemente baseado na agricultura pelos grandes produtores de agroquímicos
no uso individual dos automóveis, precisa mudar. têm gerado restrições por parte de países preocupados com a
No caso da proteção da diversidade biológica, os Es- preservação de seus ecossistemas contra a poluição genética,
tados Unidos nem sequer são signatários do acordo. Funda- que, uma vez ocorrida, seria irreversível. É o caso do Brasil,
mentalmente porque a indústria com interesse na diversida- em que a legislação estabelece restrições ao lançamento de
de biológica entende que essa convenção é um obstáculo ao organismos geneticamente modificados no meio ambiente.
livre acesso a recursos florestais e recursos genéticos em todo No mesmo âmbito da OMC, articulou-se no fim de
o mundo. 1999, na reunião em Seattle, uma tentativa do governo dos Es-
À guisa de esclarecimento, as legislações nacionais tados Unidos e indústrias interessadas na derrubada do que
sobre patentes – cuja história remonta aos primórdios da entendem ser “barreiras não-alfandegárias ao acesso a re-
primeira revolução industrial – apresentam variações quan- cursos florestais”, representadas por acordos internacionais
to à possibilidade de patenteamento de formas de vida e, por e, pasmem, legislações nacionais que protegem as florestas.
decorrência, de recursos genéticos. No Brasil, para se ter uma Em ambos os casos, as reações contra legislações na-
idéia, não se permite o patenteamento de formas de vida, mas cionais e internacionais de proteção do meio ambiente reve-
sim dos métodos que, nos casos de formas modificadas em lam o conflito entre a soberania dos países e o poder de cor-
laboratório, levam à produção de espécies adaptadas para porações multinacionais, que, por sua escolha, apostam no
usos confinados ou mesmo em ambientes abertos. Nos Esta- acesso, manipulação e comercialização de recursos florestais
dos Unidos, em oposição, não há óbices ao patenteamento de e genéticos a sua maior fonte de renda nesta virada de século

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e de milênio. Nesse contexto, os acordos internacionais, sem- selo MRXXX, no qual os últimos caracteres referem-se à linha-
pre estabelecidos com a participação ativa dos governos dos gem em reprodução, mas as letras iniciais significam “Ma-
países afetados e que, pelo ritual jurídico consagrado, passam layan Rubber”.
a vigorar após a ratificação pelos parlamentos dos países sig- O fato é que a seleção de variedades adaptadas para
natários, constituem o principal instrumento da construção cada tipo de ecossistema tem por base a contínua pesquisa
de uma nova ordem jurídica nacional e internacional em que sobre variedades criadas por um único laboratório gerador: a
a interdependência e, conseqüentemente, a necessidade de Floresta Amazônica. Embora as técnicas de manipulação ge-
cooperação promovam a redução das diferenças entre países nética, ou, mais precisamente, molecular, permitam hoje
ricos e pobres. promover a produção de mutantes induzidos por diferentes
Ao contrário do que os defensores do livre acesso a meios, o melhor e mais eficiente laboratório de criação con-
mercados e recursos defendem, as medidas de proteção ao tínua de novas variedades permanece sendo a natureza. As-
meio ambiente são essenciais para a sustentabilidade não só sim, para manterem a eficiência de suas plantações e supri-
da produção agrícola, mas, sobretudo, na integração das po- rem as que implantam-se em outras regiões, os malaios ne-
pulações hoje marginalizadas por todos os continentes aos cessitam continuamente de novas cepas originárias da Flo-
padrões de vida possíveis pelo desenvolvimento da ciência, resta Amazônica. As plantações de Hevea br., como qualquer
técnica e engenho humanos. monocultura, necessitam do chamado melhoramento como
garantia de produção a longo prazo, sem o que não passam
EXEMPLO DE POLÍTICA INTEGRADA DE de atividade efêmera.
PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E A questão aqui é que, embora essa floresta tenha este
DESENVOLVIMENTO HUMANO papel para a indústria da borracha, que representa bilhões de
Para exemplificar o que pode ser uma mudança nos dólares em todo o mundo apenas no setor de pneumáticos,
padrões de relação entre sociedade e ecossistemas naturais, não gera um centavo de benefício para o País e para as co-
expõe-se aqui uma proposta que integra reservas extrativistas munidades extrativistas, que, ao longo do último século, têm
à produção e comercialização de produtos de borracha. sido responsáveis pela identificação e manutenção da varie-
As reservas extrativistas são uma criação recente do dade genética da Hevea br.
movimento social que emergiu na década de 1980, com base A relação da indústria da borracha com as comuni-
em populações que, desde o século passado, haviam sido dades de seringueiros revela um dos piores casos de negli-
transferidas majoritariamente da região Nordeste do País gência tanto das indústrias como dos sucessivos governos
para o interior da Amazônia, como base humana do que fi- brasileiros. Ao invés dos extrativistas terem sido inseridos no
cou conhecido como “ciclo da borracha”. negócio global da borracha com o surgimento das planta-
Resumindo, o ciclo da borracha no Brasil terminou ções, foram colocados em competição com estas últimas.
com a transferência da produção de látex para o Sudeste Asi- Nesse jogo, o resultado óbvio é a miséria do seringueiro ex-
ático, através do primeiro caso de pirataria genética em larga trativista, já que não há como competir, em termos de pro-
escala, realizada por ingleses. Desde então a Malásia figura dução, com as plantações. Aliás, essa é a razão pela qual a es-
como grande produtor de borracha natural, tendo desenvol- pécie humana adotou a agricultura como meio fundamental
vido não apenas plantações mas também um competente de subsistência, dando origem ao que temos de civilização.
sistema de pesquisa, seleção e produção de mudas da Hevea Não fosse enorme a distância entre a produção por planta-
br., fornecendo os espécimes para todas as plantações em ções e a por extrativismo, muito provavelmente continuaría-
qualquer parte do mundo. As plantações existentes por mos coletores-caçadores e isolaríamos do convívio social os
exemplo em São Paulo ou Minas Gerais, sempre que feitas desviantes com idéias de “ganhar o nosso pão com o suor do
com mudas selecionadas e de origem conhecida, trazem o nosso trabalho”.

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Apesar das adversidades, o fato é que os seringalistas cionar variedades, como analisar e correlacionar proprieda-
continuam, tanto em comunidades extrativistas organizadas des da borracha com as propriedades do látex.
em reservas como nos contingentes das periferias dos núcleos A partir do momento em que concretize-se essa reu-
e centros urbanos da Amazônia, mantendo os seus costumes nião entre comunidades (extrativista e técnico-científica)
e conhecimentos tradicionais. Ainda hoje os seringalistas pode-se estabelecer prazos e condições para que as primeiras
mais jovens sabem como estabelecer suas estradas, como dis- variedades sejam testadas em plantações e, a partir daí, ofer-
tinguir seringas de não-seringas e como processar o látex tadas ao mercado de plantações. Nessa direção, ao invés de
para venda às usinas de beneficiamento. Um conhecimento uma competição entre seringueiros e plantações, promove-se
cujo requinte chega a ponto de identificar espécies que não integração com ganhos óbvios para todas as partes envolvidas.
Hevea, mas produtoras de seiva, que, sem análise laborato- Essa reunião é quase que toda ela uma questão naci-
rial, não se distingue do látex, embora resulte em proprieda- onal, bastando a vontade política do governo e a mobilização
des elastoméricas péssimas para a indústria e seus produtos. das partes interessadas para que se concretize. Entretanto, há
Esse conhecimento empírico, mantido quase que por razões de sobra para inscrevê-la no contexto dos tratados in-
teimosia, é uma das riquezas da diversidade amazônica, que, ternacionais. A principal delas é comercial.
caso bem aproveitada, pode mudar a relação do País com os Uma das respostas de setores industriais preocupados
seus recursos naturais e sua economia. com a associação da imagem de seus produtos a danos am-
bientais promovidos por produtos similares é a certificação
CONCLUSÃO independente. Nessa direção inserem-se a certificação de ali-
Na primeira parte deste artigo fiz referência à con- mentos orgânicos e a certificação de produtos madeireiros. É
venção pela proteção da diversidade biológica da qual o Bra- uma tendência que deverá alcançar mais imediatamente os
sil é signatário. Pois bem, um dos mecanismos possíveis nessa produtos cuja origem esteja em ecossistemas sensíveis.
convenção é o estabelecimento de protocolos específicos para No caso do protocolo em questão, o mecanismo bá-
proteção de espécies em perigo. Esse é certamente o caso da sico que movimenta o processo repousa num compromisso a
Hevea br., uma vez que na ausência de uso econômico a ten- ser proposto para a indústria da borracha: consumo de látex
dência atual é o puro e simples corte. de plantações cuja origem seja coberta pelo protocolo. Este,
Um protocolo de proteção da Hevea br. teria como por sua vez, estabelece como plantações certificáveis aquelas
efeito desejável a proteção da floresta, já que a primeira não formadas por variedades originárias das instituições parte da
tem como sobreviver à falta da segunda. Ao mesmo tempo, a reunião comunidades extrativistas/comunidade científica.
Hevea br. permite uma solução de preservação em que, ao Nesse processo excluem-se as variedades existentes
integrar comunidades locais e tradicionais ao processo, esta- provenientes da Malásia? Não creio ser a melhor atitude.
belece uma nova relação da floresta com a economia e, mais Mesmo uma relação de competição comercial é mais saudá-
especificamente, com a economia agrícola. vel que a tentativa de exclusão. Ao final, tanto a Malásia como
O objetivo econômico do protocolo deve ser a produ- o Brasil têm interesses comuns frente à indústria da borra-
ção, para colocação no mercado das plantações, de varieda- cha. Ao negociar com uma indústria que movimenta bilhões
des de Hevea br. adaptadas ao plantio homogêneo em dife- de dólares por ano, e com margem para aumento de preço
rentes ecossistemas. O meio para atingir tal objetivo é a arti- no produto final pela ausência de alternativas, é preciso ter
culação entre o conhecimento empírico das comunidades de em mente que é mais fácil somar para dividir (os ganhos).
seringueiros e a ciência e a técnica existente nos centros de Embora o exemplo esteja calcado na borracha, no lá-
pesquisa nacionais. Grosso modo, o seringueiro sabe como tex e na Hevea br., há um modelo básico que, acredito, po-
identificar os espécimes produtivos, resistentes e de melhor deria governar as relações entre plantações de espécies ori-
qualidade. Os cientistas e técnicos sabem o que e como sele- ginárias nos remanescentes de floresta e comunidades tradi-

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cionais, através de quem nos chegam estas mesmas espécies mente, um mundo novo dentro dos remanescentes de flores-
e seus produtos. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à an- ta. É nosso papel preservá-lo e, sempre que possível, extrair
diroba, copaíba, pupunha e tantos outros. Há, verdadeira- os seus benefícios sem comprometê-lo.

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500 ANOS E O DISCURSO


SOBRE O MAL FEMININO
500 YEARS AND THE DISCOURSE ON FEMININE EVIL

INTRODUÇÃO

A
celebração dos 500 anos de discutível “descoberta” do Brasil, a ce-
lebração de um novo milênio e a celebração do jubileu cristão tor-
naram-se momentos simbólicos que nos convidam à reflexão sobre
o passado e o presente. Este artigo não é propriamente direcionado
às múltiplas celebrações, mas é ocasião para abrir espaços para um
novo tipo de reflexão. Trata-se de uma reflexão que não pode estar
ausente no momento em que revemos os nossos referenciais teóricos
e nossa prática cotidiana em vista da criação de relações humanas mais justas e igualitá-
rias.1 Hoje, as ciências humanas começam a ouvir as vozes silenciadas das mulheres e co-
meçam cada vez mais a questionar a velha universalização masculina de seus discursos.
O presente texto sobre a diversidade de “males” e sofrimentos vividos pelas mulheres quer IVONE GEBARA
ser uma contribuição para esta tarefa urgente. Doutora em Filosofia (PUC-SP)
Nessa linha de reflexão fazemos algumas perguntas: nos tempos de globalização e em Ciências Religiosas
dos mercados e de globalização da cultura existe alguma pertinência de se falar do mal vi- (Universidade Católica de
Louvaine). Escritora das áreas de
vido pelas mulheres?2 Existiria alguma especificidade nesta experiência tão diversa e com- Filosofia e Teologia na perspectiva;
plexa? Existe algum sentido frisar de novo, embora de forma diferente, as denúncias dos feminista e ecológica
últimos 30 anos do movimento feminista? ivone@hotlink.com.br
O mal comum e próprio de uma parte da humanidade ou de toda a humanidade,
se assumirmos uma postura inclusiva, tem direito a um discurso específico ou deveria dis- As ciências
solver-se nas considerações do mal em geral? No tempo das realidades virtuais, das expe-
riências virtuais, cabe ainda falar das muitas dores que os computadores não podem ex- humanas começam a
pressar? Todas estas perguntas nos habitam e, mesmo que estejamos convencidas de não ouvir as vozes
dar respostas totalmente satisfatórias, vale um ensaio de reflexão sobre elas. silenciadas das
Mostrar a especificidade de um discurso sobre o mal significa em primeiro lugar
dizer em grandes linhas o que significa isto que chamamos “mal”. A palavra mal signi- mulheres e começam
fica tudo aquilo que é nocivo, prejudicial, injusto, desfavorável, degradante, pecaminoso cada vez mais a
em relação à vida humana ou às outras formas de vida. Entretanto essa explicitação ge- questionar a velha
nérica só tem consistência se for particularizada a partir dos diferentes seres humanos, a
universalização
1
2
Este texto teve por base artigo publicado na Revista de Cultura Vozes, 1999.
GEBARA, 1999. As idéias principais deste artigo são tiradas deste livro.
masculina de seus
discursos

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partir das culturas e dos diferentes momentos da história. O Nesse sentido, afirmar a diferença dos discursos nos
nocivo ou o prejudicial ou o injusto são marcados pela tem- conduz a uma tomada de consciência de que as dificuldades
poralidade de nossa história, ou seja, eles têm história na his- vividas pelos diversos grupos humanos não são as mesmas
tória humana. Nesse sentido a evolução da história humana diante dos mesmos problemas. Essa diferença não é apenas
comporta também a evolução das percepções e das denún- marcada pela pertença a uma classe social, a um grupo ét-
cias das coisas nefastas à convivência humana. Por exemplo, nico, a uma religião, mas também a um sexo biológico. A se-
a luta contra a escravidão, contra o racismo, contra a exclu- xualidade culturalizada, isto é, o biológico cultural que so-
são das mulheres do direito ao voto são marcas dessa evolu- mos, revela-se hoje em dia como um lugar específico de ve-
ção da consciência humana em relação a alguns comporta- rificação de desigualdades concretas. É particularmente essa
mentos nocivos à convivência humana. Nessa perspectiva, realidade das relações humanas que a mediação das análises
falar do mal específico vivido pelas mulheres significa tornar de gênero tenta explicitar e que torno presente nesta breve re-
clara a diferença na vivência de situações injustas. E a dife- flexão.
rença, nesse caso, passa a ser reveladora das desigualdades, O discurso sobre a desigualdade humana, desigual-
passa a ser denúncia de uma forma a mais de injustiça social. dade produtora de exclusão e destruição, não cessa de cres-
O momento de celebração dos 500 anos do Brasil pa- cer. Cada vez mais tomamos consciência de que certas “ve-
rece ser um tempo propício não só para as denúncias das in- lhas injustiças” são reconhecidas como parte da história hu-
justiças do passado, mas para o anúncio das aspirações por mana. Entretanto, existem outras, tão velhas quanto as pri-
justiça que diferentes grupos têm realizado. Nós mulheres es- meiras, que se mostram hoje em dia à consciência humana
como novidades. Sem dúvida esse processo tem a ver com o
tamos entre esses grupos que aspiram por uma nova ordem
desenvolvimento da história humana marcada pelo conhe-
social mundial e uma nova ordem no relacionamento entre
cimento de nós mesmas e dos outros. É nesse sentido que po-
mulheres e homens. Nessa linha, este texto quer frisar o direito
demos entender que foi preciso chegarmos aos tempos mo-
à diferença nos discursos sobre o mal humano, guardando
dernos para que uma velha forma de desigualdade, a que se
entretanto a relação íntima e a interdependência entre os di-
refere às relações entre homens e mulheres, atingisse um “ní-
ferentes discursos. Essa é a perspectiva e o fio condutor deste
vel científico”. Isso significa que atualmente a desigualdade
artigo. Isso porque se a humanidade guarda seu aspecto de
entre homens e mulheres torna-se objeto de estudo nas uni-
universalidade, esta mesma universalidade é afirmada e vivi- versidades e em diferentes centros de pesquisa científica. Tor-
da em termos de particularidade não apenas segundo os tem- na-se igualmente uma questão política, econômica, social e
pos, os espaços e as culturas, mas sobretudo a partir das mes- religiosa de grande relevância. Basta observarmos a quanti-
mas pessoas que o afirmam. O global, o mundial, o universal dade de publicações e de movimentos organizados em favor
são experimentados na particularidade cotidiana de cada da reivindicação dos direitos das mulheres, da defesa das
existência humana. Um discurso específico sobre a vivência mulheres e da formação feminista, para nos convencermos
feminina do mal se situa em tal perspectiva, isto é, na linha da de que algo novo acontece em nosso mundo e particular-
particularidade em íntima relação com a globalidade. mente no Brasil. Todas essas conquistas são extrema-
mente significativas para quem deseja avaliar os passos
A IMPORTÂNCIA E OS significativos desses 500 anos de história.
LIMITES DA DIFERENÇA Na evolução histórica de todos os grupos humanos é
Hoje, mais do que em outros tempos, se fala da im- preciso lembrar que, ao mesmo tempo que um novo movi-
portância do respeito à diferença. A diferença é resgatada mento irrompe no cenário social, este movimento já traz
como algo fundamental para a própria afirmação da indivi- dentro de si as marcas de seus limites. O mesmo sucede com
dualidade ou da originalidade de cada grupo. os movimentos feministas na sua pluralidade de expressões

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sociais. A novidade de um movimento não o isenta de con- ou a esta ou aquela pessoa. E essas visões hierárquicas e to-
tradições. Por isso, apesar de seus limites, os movimentos fe- talitárias não têm a ver somente com questões relativas às
ministas na sua múltipla e variada expressão estão aí e re- classes sociais, mas igualmente com a relação entre homens
presentam uma força social significativa em diferentes partes e mulheres. Estamos detectando um novo “lugar” do mal,
do mundo. um novo lugar de relações de opressão e dominação, um
O surgimento desse novo campo de ação das mulhe- novo lugar “natural” de construção de relações injustas.
res e de reflexão sobre as relações entre homens e mulheres
dá-se, entre outros motivos, ao trabalho pioneiro dos movi- A FENOMENOLOGIA DO MAL FEMININO
mentos feministas em diversos países. Foram eles que come- No que se refere à especificidade da situação das mu-
çaram a introduzir o que poderíamos chamar de “ciência fe- lheres em relação à questão do mal, uma aproximação mar-
minista” ou, em termos gerais, de crítica ao universalismo da cada pelo método fenomenológico se impõe. O método feno-
ciência masculina considerada simplesmente como “ciên- menológico se caracteriza pela abordagem dos fatos, situa-
cia”. A ciência feminista fez aparecer intenções políticas, an- ções, comportamentos, fenômenos, como aparecem. Tenta
tropologias e ideologias que escondiam a desigualdade e a detectar os “males” vividos, as situações qualificadas como
injustiça e afirmavam o discurso masculino como discurso perniciosas, os diferentes sofrimentos afirmados como males
normativo e quase “palavra universal”. a partir da experiência das mulheres e a partir do discurso
Sabemos o quanto a maioria das culturas integrou essa delas sobre esses males. São elas que sentem no corpo, na pe-
desigualdade e se baseou na não-reciprocidade antropológica le, no cotidiano de suas relações essa “negatividade”, esse
entre os seres humanos para manter estruturas hierárquicas “mal-estar” na própria existência, essa diminuição de vida
excludentes daquelas e daqueles considerados mais fracos ou que elas chamam de “mal” ou sofrimento ou dor. A partir do
inferiores. Tal comportamento é igualmente existente nas re- discurso feminino sobre seus males, seu sofrimento se torna
ligiões patriarcais. Elas mantiveram um discurso sobre a bon- público. Sai de sua ocultação habitual e de seu silêncio. Sai
dade, a caridade e a salvação universais a partir de referenciais de um caráter de indiferenciação para aparecer na sua
fundamentalmente masculinos e de uma masculinidade especificidade cultural e social própria. Mostra assim sua
elitista. Os caminhos de acesso à “salvação” ou a simples bus- densidade particular e sua relação com outros males. Ele
ca de alternativas foram igualmente marcados pelos mesmos passa a ter o direito de ser pensado como um discurso per-
referenciais. A cultura tradicional permitiu o desenvolvi- tinente sobre uma experiência particular marcada pela pró-
mento das diferentes formas de submissão, inclusive das pria situação de gênero. Deixa de ser assimilado de forma
mulheres criando mecanismos de culpabilidade, tanto simplista aos males genéricos que tocam toda a humanidade
social quanto religiosa. como se esses males fossem os mesmos para todas as pessoas.
Hoje as mulheres e muitos outros grupos marginali- O método fenomenológico nos ajuda a refletir sobre o
zados recusam-se, mais do que ontem, às “totalidades” pré- mal não a partir de uma teoria explicativa ou de um mito so-
estabelecidas ou determinadas de forma a priori. Trata-se de bre a origem do mal, nem mesmo a partir da afirmação da
uma questão que toca o conjunto da vida social e, portanto, bondade de Deus e da maldade humana. A partir desse mé-
da produção do saber, do poder, do ter e do valer da huma- todo começa-se a ouvir as narrações de vida, os gritos de so-
nidade. Em outros termos, quero enfatizar o fato da presença frimento, os suspiros de dor, a monotonia da vida cotidiana
de visões hierárquicas e totalitárias na produção e apropria- com sua intensidade própria. A partir daí “o mal” plural tor-
ção do saber, na produção e apropriação do poder, na pro- na-se males concretos, sofrimentos presentes em rostos con-
dução e apropriação do ter ou dos bens produzidos e na pro- cretos e diversos, muitos dos quais acentuados pela própria
dução e apropriação do valer ou da consideração do maior condição feminina numa sociedade na qual elas são o “se-
ou menor valor que damos a este ou aquele comportamento gundo sexo”. Os diferentes males vêm não apenas da condi-

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ção de classe ou da condição étnica, mas da condição mar- teológicas seguem as produções culturais mesmo quan-
cada por uma biologia cultural hierarquizada ou por uma do expressam posturas de “contra-corrente”.
antropologia sexista. Há um entrecruzamento de percepções, A introdução da mediação de gênero nos abre para
de dados e de análises que nos fazem sair das generalizações, uma nova consideração epistemológica, consideração que
às quais nos habituamos. O método fenomenológico convi- toca o conjunto dos conhecimentos humanos. Em grandes
da-nos a voltar de novo às experiências comuns antes de linhas podemos dizer que:
analisá-las, convida-nos a um despojamento teórico para, a) ela nos abre para uma crítica do universalismo das
em primeiro lugar, concentrar nossa atenção na nudez dos ciências humanas. Filosofias, psicologias, teologias
acontecimentos cotidianos e das narrativas que são feitas a referem-se ao humano, mas seu parâmetro para
partir deles. Só depois podemos ousar analisá-los, compre- afirmar o humano é sempre um humano desde o
endê-los melhor para tentar evitar que se apoderem negati- masculino;
vamente de nós. No processo analítico do mal feminino, a b) convida-nos a superar os dualismos excludentes,
mediação de gênero é um instrumental de grande importân- ou seja, os dualismos que, ao se afirmarem, afir-
cia, sobretudo porque nos abre as análises referentes à cons- mam sempre o valor maior de um pólo e o valor
trução dos diferentes papéis sociais. menor de outro. É nesse sentido que podemos dizer
que toda epistemologia é uma ética e que toda ética
A MEDIAÇÃO HERMENÊUTICA DE é igualmente uma epistemologia,
GÊNERO c) leva-nos a valorizar as diferentes perspectivas pre-
Quero lembrar que quando falamos de “gênero” es- sentes em nossa cultura, de forma que certo “rela-
tamos falando do masculino e do feminino na sua relação tivismo” cultural passa a ter um caráter positivo.
social e cultural, na criação e aprendizado de comportamen- Esse “relativismo” se refere às diferentes análises de
tos e em sua reprodução. Dizer “homem” ou “mulher” é já comportamento segundo os papéis que temos na
introduzir uma maneira de existir no mundo, uma maneira sociedade e o lugar social que ocupamos.
própria a cada ser sexuado, fruto da complexa teia de rela- d) a partir de uma perspectiva feminista, ela nos aju-
ções na qual vivemos. Por isso, Pierre Bourdieu falava de da a recuperar o cotidiano como elemento impor-
“habitus” no trabalho de socialização contínua das relações tante na historiografia feminina. O cotidiano aqui
humanas. É esse “hábito” que nos leva a captar o mundo a se refere não aos “grandes” feitos masculinos
partir das divisões dominantes como se elas fossem simples- (guerras e conquistas), mas ao combate da sobre-
mente “naturais”.3 Uma análise de gênero a partir de uma vivência, aos gestos gratuitos que permitem o de-
perspectiva feminista vai enfatizar a percepção da produção sabrochar da vida, se referem igualmente aos
de desigualdade na relação homem/mulher e mostrar a pri- processos educativos e de cuidado com a cria-
mazia do masculino sobre o feminino em nossa sociedade. ção.
Primazia esta que aparece como uma espécie de ideologia e) por fim, a mediação de gênero nos ajuda a criticar
justificadora do tipo de relação existente. Nesse particular é as concepções comuns à sociedade patriarcal da-
bom recordar o papel da teologia cristã na reprodução desse quilo considerado “natural”, da “natureza”. Nessa
“habitus” de primazia masculina. Basta que nos lembremos linha, critica igualmente certas oposições, por vezes
das imagens históricas de Deus e de seus representantes para “mecânicas”, entre natureza e cultura, esta atribuí-
captarmos como as relações de gênero funcionam nas cons- da mais aos homens, aquela, às mulheres.
truções dos sentidos religiosos de nossa vida. As produções A mediação hermenêutica de gênero se constitui, as-
sim, num instrumental de análise de grande importância para
3 BOURDIEU, 1995. a apreensão dos meandros e contradições do mal vivenciado

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pelas mulheres. Constitui-se, igualmente, num caminho que se vive, sobretudo a situação dramática das pessoas que
analítico para entendermos a “diferença” para além das vivem em situações de pobreza ou de marginalidade. Há um
hierarquias que a cultura patriarcal nos impôs. mal de “não poder” ligado à luta pela sobrevivência, à ne-
cessidade de manter à vida, ao quotidiano doméstico. Beti,
ALGUNS ASPECTOS DA FENOMENOLOGIA uma mulher da favela da Rocinha, Rio de Janeiro, expressa
DO MAL FEMININO bem este “mal-estar” cotidiano: “As mulheres das favelas so-
Para se falar do mal vivido pelas mulheres ou para frem todas dos mesmos problemas. Elas lavam roupa. Quan-
abrir possibilidades para que algumas mulheres expressem do têm água, não têm sabão. Quando têm sabão, não têm
sua própria experiência, considerei alguns critérios. O pri- água. Elas saem para trabalhar. Elas têm muitos filhos para
meiro refere-se ao lugar social das mulheres. Privilegiei, na educar (...)”.6 A narração quase monótona desse cotidiano
medida do possível, a experiência das mulheres empobreci- da sobrevivência doméstica continua revelando os golpes, as
das e daquelas cuja luta em favor da liberdade em sua múl- cachaças, as brigas e incompreensões. Esse mal doméstico
tipla expressão são significativas para muitas de nós. Em se- aprisiona as mulheres num processo repetitivo de luta pela
guida, busquei organizar as falas em torno do ter, do poder, sobrevivência e não lhes dá possibilidades de realizar seus so-
do saber e do valer como realidades constitutivas de nossa nhos de autonomia e dignidade. O sofrimento vivido no
vida humana e em torno das quais as experiências de sofri- mundo doméstico é sem glória e sem recompensa. Perma-
mento e dor (de mal) se organizam igualmente.4 nece no anonimato social à semelhança do anonimato das
As Mulheres e o Mal de Não “Ter” lutas pela sobrevivência.
Sabemos que em todas as sociedades humanas cabe à O mal de “não poder” é vivido igualmente por Isabel
mulher a responsabilidade primeira de cuidar e alimentar a Allende,7 escritora chilena, diante do leito de morte de sua fi-
família. Quando se trata de mulheres pobres essa responsa- lha Paula. Isabel escreve para fugir da angústia e da morte
bilidade parece se acentuar. Conseqüentemente o mal de não que expressam bem sua impotência, seu “não poder” diante
ter posses, não ter condições materiais de vida atinge as mu- da morte eminente da filha. Escrevendo para a filha, ela re-
lheres de maneira particular.5 A sociedade patriarcal na qual toma as outras mortes pelas quais ela e o povo chileno pas-
vivemos impõe às mulheres o trabalho doméstico como se saram. Ela as vive como mulher, na maioria das vezes expe-
“por natureza” esse trabalho lhes fosse atribuído. Da condi- rimentando na carne a falta de resposta às suas perguntas.
ção nutriente do corpo feminino, se pensarmos no aleita- Aqui não se trata da mesma situação vivida pelas mulheres
mento, a sociedade lhe atribui como uma “responsabilidade pobres e socialmente marginalizadas, mas de perceber como
natural” de não só guardar a prole mas buscar meios para o peso da responsabilidade feminina em relação ao cuidado
alimentá-la. E se ela não o faz, a culpabilidade pessoal e so- com os enfermos e o sentimento de impotência diante de di-
cial se manifestam de forma impressionante. A culpabiliza- ferentes situações guarda sua marca própria.
ção passa a ser um instrumento social de conservação dessa As Mulheres e a Carência de Valor
situação cultural. Os 500 anos de nossa história ilustram de Todo ser humano precisa não só ter valor a seus olhos,
maneira contundente essa afirmação. mas valer para os outros. Para muitas mulheres, como para
As Mulheres e o Mal de “Não Poder” diferentes grupos de marginalizados, o “valer” é um lugar de
Intimamente ligado ao mal de “não ter” está o mal de crucifixão, pelo simples fato de sentirem que elas não valem.
“não poder”. Trata-se da falta de poder mudar a situação em Trata-se aqui do valor que fundamenta a estrutura constitu-
4 Em meu livro, introduzi aspectos de minha própria experiência do mal
tiva de todos os seres humanos. Quando esta relação valora-
como fidelidade a metodologia feminista de não apenas permitir que
“outras” falem de si, mas partilhar igualmente sua própria experiência. 6 Cf. O’GORMAN FRANCE & MULHERES da ROCINHA e de SANTA
5 Entre outros estudos sobre o peso dos problemas de sobrevivência MARIA, 1984, p. 13.
sobre os ombros femininos, cf. SOLIDARITÉ CANADA SAHEL, 1999. 7 ALLENDE, 1994.

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tiva falta ou quando é reduzida a mercadoria, um mal par- ras. Trata-se da figura de soror Juana Inês de la Cruz, escri-
ticular se produz. E quando essa diminuição valorativa ou tora e religiosa mexicana do século XVII. É de sua vida que me
objetivação é vivenciada por mulheres prostituídas ou do- inspiro para refletir sobre a luta pelo saber de muitas mulhe-
mésticas a problemática se torna ainda mais grave. res. Trata-se de um saber que lhes foi negado a partir de uma
Na sociedade excludente em que vivemos o corpo fe- divisão injusta das tarefas sociais. Hoje, embora nossas con-
minino torna-se “mercadoria”. Obedece às regras do mer- quistas tenham sido muitas, tal negação continua se mos-
cado e este, à lógica de uma antropologia marcada por uma trando de diferentes maneiras.
valoração hierarquizada dos seres humanos. O corpo femi- Maria de Asbaje, depois soror Juana Inês, entra na vida
nino torna-se objeto renovável de prazer, torna-se alvo nas religiosa motivada sobretudo pelo desejo de saber, desejo que
guerras, alvo de vinganças, estupros e depredações. O corpo a alimentava e que ela alimentava desde a mais tenra idade.9
feminino é o corpo da propaganda, do mercado em vis- Entrar num convento naquele tempo era uma maneira de en-
ta de um lucro para o benefício de minorias. frentar o fato de ser “filha natural”, sem dote e sem condições
Toda a questão é saber qual a concepção de corpo fe- sociais, mas com uma sede insaciável de saber.
minino presente nesses comportamentos capazes de destruir Juana Inês goza de uma situação privilegiada duran-
a auto-estima das mulheres e fazer com que elas acreditem te algum tempo, enquanto tem a proteção dos vice-reis da
que seus corpos valem na medida em que servem de gozo ou Espanha, encantados por sua inteligência brilhante. Mas in-
força de trabalho aos outros corpos. A questão hoje é também trigas e invejas não tardam a chegar. Ela deve renunciar ao
denunciar os caminhos de reprodução desses diferentes ma- cultivo de seu saber, ao ensino que ministrava, às peças de te-
les que tornam as mulheres vítimas de situações não escolhi- atro juvenil que dirigia, aos poemas que compunha. As au-
das, devendo assumir responsabilidades pelas conseqüências toridades eclesiásticas responsáveis pela Inquisição na Nova
sociais da violência social expressa na violência mascu- Espanha, em conivência com as autoridades de seu convento
lina. A problemática que levanto é extremamente complexa (mulheres), lhe impõe essa humilhação e esse castigo que a
e apenas assinalo alguns pontos como convite a uma reflexão levarão à morte. Despede-se da vida aos 46 anos, compelida
mais aprofundada.8 a reconhecer publicamente o seu pecado: o de ter entrado no
O Sofrimento das Mulheres em Busca do Saber “santuário” de um saber vedado às mulheres, santuário re-
ou o Mal de Não Saber servado aos homens e controlado por seu poder.
Falar hoje do mal de não saber, quando a escolarida- Juana Inês de la Cruz é expressão da resistência femi-
de feminina torna-se na América Latina maior que a mas- nina, da teimosia de conhecer o que lhe é injustamente ne-
culina, parece pouco apropriado. Entretanto, isso não foi as- gado por um poder que acredita estar executando fielmente
sim no passado e hoje, apesar da escolaridade crescente, a as ordens divinas. Por esta razão é considerada por mui-
discriminação em relação ao saber feminino é significativa, tas teólogas e feministas latino-americanas como a pa-
sobretudo nas Igrejas. As fronteiras do saber religioso sempre trona e inspiradora de suas lutas.
foram fortemente delimitadas e protegidas contra a entrada
das mulheres. A misogenia clerical tem uma história de pro- O Mal na Cor da Pele
dução de gravíssimas injustiças contra as mulheres. Nas Américas as mulheres de descendência africana
sofrem de um mal particular. O mal que lhes advém da cor
Quero nesse particular lembrar uma personagem
paradigmática na América Latina e que precisa ser resga- de sua pele. Esse mal, em parte partilhado com os homens da
tada com mais força também pelas mulheres brasilei- mesma cor, assume expressões diversificadas na vida das
mulheres.
8A questão da vitimização feminina e do mal “feito” pelas mulheres é tra-
balhada em meu livro. 9 PAZ, 1987.

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Trata-se de uma dor, de um sofrimento de um mal É dessa forma que, através do ter, do poder, do saber,
imposto por uma cultura que estabelece uma hierarquia en- do valer e da cor da pele, aparecem relações de desigualdade
tre as pessoas a partir da cor de sua pele. Como se constitui e de injustiça. Essas são marcadas não apenas pela explora-
essa irracionalidade provocadora de tantos males? Por que ção econômica, mas pelas relações sociais e familiares entre
existem cores que associamos ao mal ou à maldade e outras homens e mulheres na maioria das vezes legitimadas pelos
ao bem e à bondade? E por que são as cores dos dominadores sistemas culturais e religiosos.
que se aproximam mais das cores que atribuímos à bondade?
São perguntas sem resposta imediata, mas que nos servem ONDE ENCONTRAR CAMINHOS
para pensar mais um aspecto da imensa variedade de males DE SALVAÇÃO?
que somos capazes de produzir. Falar da experiência do mal vivida pelas mulheres nos
O sofrimento ligado à cor da pele nunca foi conside- convida a falar também das experiências de salvação. O
rado um sofrimento teológico. Isso quer dizer, entre outras mundo das experiências de sofrimento não é um mundo fe-
coisas, que as teologias européias nunca assumiram esse so- chado em si mesmo. Em meio a experiências de sofrimento
frimento como um sofrimento pertinente, como alguma coi- existem experiências de “salvação”, pequenas luzes que res-
sa que merece uma reflexão ética apropriada. Os preconcei- gatam a humanidade, que ajudam a não esquecer os sonhos
tos raciais nunca apareceram como denúncia importante na de amor e a esperança de melhores dias. Não existe nenhu-
ma experiência de mal ou de sofrimento sem uma busca de
maioria dos esforços proféticos cristãos nem como elemento
saídas, sem a procura de soluções mesmo se apenas provi-
fundamental na restauração de relações justas.
sórias. Isso faz parte da condição humana, da realidade
Foi preciso esperar o século XX para ouvir as vozes que “misturada” que somos, dessa mescla de bem e mal que faz
nos vêm das teologias africanas e das populações de origem parte de nossa constituição fundamental. Na busca de “sal-
africana das Américas no seu afã de liberdade, de respeito e vação” deparamos com uma antropologia diferente. Já não
reconhecimento.10 pensamos mais no ser humano como bom por natureza nem
Os movimentos sociais afro-americanos, desde a dé- mau por natureza. Mas o afirmamos como ambivalente,
cada de 60, e os movimentos feministas, um pouco mais tar- como alguém necessariamente vivendo as duas realidades, e
de, denunciam a imposição de categorias masculinas e bran- talvez mais do que duas. Por isso até poderíamos falar de um
cas como critérios de verdade para todos os grupos humanos. ser humano “plurivalente” e multidimensional.
Esses movimentos denunciam a “globalização” da cultura É na consciência da precariedade de nossos caminhos
branca e masculina e toda a ideologia que visa “branquear” e de sua realidade processual a ser sempre renovada ou re-
pessoas de origem africana para simplesmente assimilá-las começada que buscamos os sinais de salvação no cotidiano
aos valores brancos. das mulheres. A salvação deve ser experimentada aqui, ago-
Essas dores são dores de nosso povo e sobretudo das ra, hoje mesmo como um aperitivo sempre renovado de
mulheres negras, que vivem, desde a cor de sua pele e des- salvação. Isso não significa que as mudanças estruturais não
de sua condição feminina, experiências de discrimina- devem estar presentes no horizonte das lutas cotidianas. En-
ção e humilhação. Hoje, um momento novo parece estar tretanto, é preciso resgatar a salvação cotidiana, a alegria co-
surgindo em diferentes partes do mundo. Desde sua his- tidiana, as conquistas cotidianas. É preciso saber que algo di-
tória passada e presente elas estão buscando caminhos de ferente pode nos acontecer, algo que nos sustente na dor ou
saída para terem acesso a iguais oportunidades de vida e de que nos faça esquecer momentaneamente o sofrimento in-
reconhecimento social. tenso que devora nosso ser. A salvação, assim, não pode ser
reduzida a uma bela utopia, a um futuro que dificilmente se
10 WILLIAMS, 1993. alcança. Mas a salvação é em primeiro lugar vivida na sua

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expressão mínima: um copo d’água, uma carta de amor, um rados” femininos pela sociedade patriarcal. Nesse sentido sa-
telefonema esperado, um amigo que chega, uma boa notícia bemos o quanto os gastos sociais em armamentos e obras fa-
inesperada, a conquista provisória de um pedaço de terra, o raônicas comem a maior parte dos orçamentos nacionais. A
sorriso de uma criança. Coisas pequenas, pequenas coisas da indústria da guerra e das inutilidades, indústria masculina, é
vida cotidiana, capazes de levantar as forças e fazer esperar a que recebe maior investimento. Entretanto, a educação e a
de novo. Estas pequenas coisas não excluem as grandes saúde, o nutrir e o cuidar são os valores menos contemplados
conquistas de justiça vividas coletivamente pelos dife- e assistidos. Os novos caminhos de salvação propostos pelos
rentes grupos humanos. diferentes grupos de mulheres passam pela afirmação da
A salvação não é apenas um acontecimento que virá simplicidade da vida, pela afirmação de políticas que permi-
depois dos momentos de sofrimento. Não é a paz depois de tam a todos os seres e à natureza uma convivência menos
uma guerra assassina. A salvação é misturada com a cruz destruidora e portanto mais fraterna, mais sororal e mais
cotidiana e acontece no meio dela. terrenal.
O cotidiano, lugar ao mesmo tempo de cruz e ressur- Neste fim de século somos convidadas(os) a exercer
reição, testemunha a “mistura” que somos em tudo o que vi-
mais nossa imaginação e nossa criatividade, a introduzir no-
vemos. Testemunha a fragilidade das ações de salvação. Não há
vas análises, novas hermenêuticas para repensar o humano e
salvação para sempre, nem perdição para sempre. A salvação
seu desejo de felicidade através de caminhos menos exclu-
pode residir em nós durante um tempo e ir-se embora, e é pre-
dentes e menos destrutivos. A análise do mal feminino, mal
ciso recomeçar a buscá-la de novo, agora, nesse mesmo ins-
tante em que se foi, seguindo o movimento incessante da vida. “regional” e “global”, a partir de outros referenciais se ins-
creve no sonho, sempre renovado das minorias que buscam
A salvação que as mulheres encontram em sua vida
novos caminhos de solidariedade, de ternura e reciprocidade.
tem a ver com a afirmação de sua integridade e autonomia.
Tem a ver com as condições mínimas de sobrevivência Celebrar os 500 anos de Brasil significa escrever nossa
digna para elas e suas famílias. Isso nos situa num cami- história também a partir das relações entre mulheres e homens.
nho alternativo para além dos revanchismos ou do desejo de Significa resgatar o nosso passado resgatando a história da-
vingança em relação aos homens. Trata-se de um combate quelas que não entraram na história oficial, mas que hoje co-
de reconhecimento em nós de nossa maneira própria de viver meçam a dar passos significativos em vista da criação de novas
e de nos relacionarmos. Trata-se igualmente de fazer valer no relações humanas. “O novo céu, a nova terra e a nova huma-
plano público, político, social e cultural os valores “conside- nidade” continuam a ser nosso horizonte de fé e de esperança.

Referências Bibliográficas
ALLENDE, I. Paula.Barcelona: Plaza & Janes, 1994.
Revista de Cultura Vozes, 93 (4), Petrópolis:Vozes, 1999.
BOURDIEU, P. A dominação masculina.Revista de Educação e Realidade, São Paulo, jul./dez.-95.
GEBARA, I. Le mal au féminin. Réflexions théologiques à partir du féminisme. In: L’Harmattan, Paris,1999.
O’GORMAN FRANCE & MULHERES DA ROCINHA E DE SANTA MARIA.Morro Mulher.São Paulo: Paulinas/Fase, 1984.
PAZ, O. Soeur Juana Inés de la Cruz ou Les Pièges de la Foi. Paris: Gallimard, 1987.
SOLIDARITÉ CANADA SAHEL.Le Poids de L’eau: le fardeau des femmes.Montreal,mai./99.
WILLIAMS, D.S.Sisters in Wilderness, the Challenge of Womanist God-Talk. New York: Orbis Books, 1993.

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JORNALISMO NO BRASIL:
olhar e ação da academia
JOURNALISM IN BRAZIL: the perspective
and action of the academy

A
pesquisa sobre os fenômenos jornalísticos no Brasil remonta à se-
gunda metade do século XIX. A preocupação inicial não está cen-
trada nos processos noticiosos, porém nos seus meios de difusão,
mais precisamente na tecnologia de impressão de livros, jornais e
revista.
Embora estabelecida tardiamente em território brasileiro (mais de
três séculos nos separam da inovação gutenbergiana), a imprensa
aqui se desenvolve a partir da chegada da Corte de d. João VI, em 1808. Na verdade, os seus
primeiros momentos são tímidos, porque controlados pela censura real, destinando-se a
reproduzir informações e documentos de governo.
As publicações que experimentam o sabor da liberdade surgem justamente no vazio
jurídico instaurado em Portugal, quando as tropas napoleônicas são expulsas e os revolu-
cionários do Porto derrubam a censura prévia. Os precursores da nossa Independência não JOSÉ MARQUES DE MELO
Titular da Cátedra Unesco de
hesitam em aplicar aquilo que contemporaneamente chamaríamos a “estratégia das bre- Comunicação para o
chas”, ou seja, editam jornais sem pedir licença às autoridades.1 Desenvolvimento Regional
Mas é sem dúvida durante o Segundo Reinado que a imprensa vive seu melhor pe- na Umesp. Professor titular de
Jornalismo na USP e
ríodo de liberdade, garantido pela sabedoria de Pedro II. Em meio a esse ambiente de con- presidente da Lusocom (Federação
ciliação das elites nacionais, os Institutos Históricos começam a resgatar precocemente a Lusófona de Ciências da
trajetória do nosso jornalismo. E despertam polêmicas que conquistariam os corações e Comunicação)
marques@metodista.br
mentes dos nossos intelectuais, ao enaltecer o “pionierismo” dos holandeses na introdução
da imprensa em terras brasileiras, contrastando com o “atraso” dos portugueses, que a
proíbem e reprimem.
Persistia a tese de que a primeira impressora a operar no Brasil fora trazida por Embora estabelecida
Nassau, da qual dava testemunho o folheto Brasilche Gelt-Sack, datado de 1645 e publi- tardiamente em
cado no Recife. Os historiadores pernambucanos deixaram de lado as especulações e fo- território brasileiro, a
ram buscar evidências empíricas.
As pesquisas se concentraram em arquivos brasileiros e holandeses, produzindo re-
imprensa aqui se
sultados que negariam a hipótese dominante. A iniciativa de Nassau não fora consumada, desenvolve a partir
por razões fortuitas, e os impressos supostamente recifenses haviam sido reproduzidos em da chegada da
1 MARQUES DE MELO, 1973.
Corte de d. João VI

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gráficas européias. Dão conta desses fatos, ensaios escritos nalismo deixava de ser simples “ofício”, reproduzindo-se
pelos historiadores José Higino Duarte (1883) e Alfredo de pela legado transmitido no “batente” de geração a geração.
Carvalho (1899). Converte-se em “praxis”, ou melhor, em conhecimento soci-
Depois desses estudos pioneiros sobre a implantação almente utilitário, produto da observação sistemática e da re-
da tipografia, os historiadores tomam gosto e ajudam a re- flexão crítica de produtores qualificados.
constituir uma história da nossa imprensa. São motivados, a No entanto, a imprensa e o jornalismo continuariam a
seguir, por efemérides nacionais, começando pelo duplo cen- despertar o interesse dos pesquisadores das humanidades
tenário: a criação da Imprensa Régia e o lançamento do nos- (história e direito), assim como daqueles pioneiros das ciên-
so primeiro jornal independente, o Correio Braziliense, de cias sociais no Brasil. Gilberto Freyre, por exemplo, recorre à
Hipólito José da Costa. imprensa para elaborar um retrato da sociedade patriarcal
Em 1908, Alfredo de Carvalho publica a monografia brasileira, buscando nos anúncios de jornais elementos susce-
“Gênese e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil”, su- tíveis de interpretação sociológica e antropológica. Seu livro de
plementada por um alentado catálogo dos jornais e revistas, estréia – Casa-Grande & Senzala (1933) – representa uma
que circularam nos últimos cem anos. Trata-se de uma fonte inovação metodológica, ao pesquisar em fontes heterodoxas.
de referência fundamental, que orientaria os passos de outros Ao mesmo tempo, abre picadas para os estudiosos do jorna-
historiadores. Entre eles, Max Fleiuss, autor de um dos pri- lismo, descortinando as metodologias comparativas.4
meiros state of art da pesquisa histórica sobre jornalismo, Todas essas contribuições pioneiras encontrariam
cujo texto aparece em 1922, durante as comemorações do ambiente fértil nas nascentes escolas de jornalismo, incorpo-
centenário do Independência.2 radas à universidade brasileira no final dos anos 40. Tanto
Rigorosamente, tais estudos ainda não enfocam o jor- em São Paulo (Cásper Líbero) quanto no Rio de Janeiro
(UFRJ) se formariam grupos de estudiosos responsáveis pelas
nalismo como objeto definido. Eles tratam da imprensa e dos
primeiras obras que analisam sistematicamente fenômenos
seus produtos, mencionando marginalmente os processos do jornalismo contemporâneo. Pertencem a essa geração
sociopolíticos que dão fisionomia peculiar à comunicação de Carlos Rizzini, Danton Jobim, Pompeu de Souza, Celso Kelly,
atualidades. Marcelo de Ipanema, Freitas Nobre etc.
Quem estabelece essa fronteira é o jovem Barbosa Fora do eixo Rio-São Paulo apareceria, uma década
Lima Sobrinho, quando, em 1923, publica um livro que nas- depois, corrente inovadora, cuja influência se ampliaria para
ce clássico – O problema da imprensa.3 Valendo-se da ex- todo o País. Trata-se da equipe aglutinada em torno de Luiz
periência profissional como jornalista e da metodologia de Beltrão, fundador do Instituto de Ciências da Informação da
análise aprendida no âmbito da ciência jurídica, sem deixar Universidade Católica de Pernambuco e da revista Comuni-
de recorrer também à ciência histórica, ele desenha um perfil cações & Problemas, primeiro periódico acadêmico nacio-
do desenvolvimento do jornalismo na sociedade industrial e nal dedicado às ciências da comunicação.
dos impasses enfrentados no Brasil. Do Recife, Beltrão transfere-se para a Universidade de
Seu “gancho” é o projeto de lei de imprensa do sena- Brasília, onde dirige a Faculdade de Comunicação idealizada
dor paulista Adolfo Gordo, tramitando no Congresso Nacio- por Pompeu de Souza, criando o primeiro núcleo regular de
nal. Em torno desse “problema”, ele constrói uma análise pesquisa em comunicação. As teses de doutorado e mestrado
multidisciplinar do fenômeno jornalístico na sociedade bra- ali defendidas precocemente no final dos anos 60 constituem
sileira. Oferece parâmetros que se revelariam consistentes e os primeiros produtos de uma pesquisa do jornalismo em
lançaria as bases de uma nova disciplina acadêmica. O jor- processo de legitimação acadêmica.5
2 MARQUES DE MELO, 1984. 4 MARQUES DE MELO, 1972.
3 BARBOSA LIMA SOBRINHO, 1988. 5 MARQUES DE MELO, 1974.

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Quase ao mesmo tempo, dois outros movimentos for- formação e reciclagem do corpo docente, cujas conseqüên-
talecem a pesquisa do jornalismo, quer nas empresas, quer cias repercutirão em projetos de pesquisas que esses jovens
nas universidades. doutores começam a desenvolver e a publicar.
De um lado, o Jornal do Brasil cria uma publicação Na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
especializada – Cadernos de Jornalismo – dirigida por Al- ressurge com força a escola que nasceu, em Belo Horizonte,
berto Dines, cuja importância reside na divulgação de pesqui- nos anos 70, com um perfil inovador. Liderada por Lelio Fa-
sas jornalísticas feitas nos Estados Unidos e na Europa, além biano dos Santos ela enfatizou inicialmente o jornalismo co-
de estimular a reflexão crítica dos jornalistas da própria em- munitário. Hoje, aproxima-se criticamente do jornalismo in-
presa, que sistematizam suas experiências e as submetem ao dustrial, experimentando formas de expressão que valorizam
crivo da comunidade profissional. O modelo JB de jornalismo os atores da sociedade civil, mas dialogam com as lideranças
se reproduz em todo o País, disseminado pela referida revista, do empresariado e do governo. Sua mais ousada iniciativa
lida e discutida nas redações dos jornais regionais e também tem sido a edição de páginas semanais produzidas em labo-
pelos jovens que estudam jornalismo na universidade. ratórios didáticos para serem encartadas nos jornais diários
De outro lado, a Universidade de São Paulo cria na da capital mineira.
sua Escola de Comunicações e Artes o primeiro Departamen- Perfil semelhante pode ser atribuído à Faculdade de
to de Jornalismo a ter uma equipe de docentes contratados Comunicação Social da Universidade Católica de Santos, São
em tempo integral. Dessa maneira, podem se dedicar regu- Paulo, que combina os procedimentos hegemônicos no mer-
larmente aos estudos bibliográficos, à pesquisa empírica e à cado com as metodologias peculiares aos movimentos sociais
experimentação em laboratórios. protagonizados nas periferias urbanas. Sua experiência de
jornais-murais criados pelos estudantes e veiculados sema-
Emerge então o primeiro grupo de doutores em jor-
nalmente nos morros da cidade rompeu o isolamento da
nalismo do País, formando equipes de pesquisa e pós-gra-
universidade em relação à comunidade, motivando as novas
duação que formariam a primeira geração de professores ti-
gerações de jornalistas a produzir informações não burocrá-
tulados na própria disciplina. Hoje eles se espalham por qua-
ticas, referenciadas pela cidadania em movimento.
se todas as universidades brasileiras e dão continuidade a es-
Trajetória singular perfilou a Faculdade de Comuni-
tudos cujos paradigmas se originaram na USP. Durante os
cação da Universidade de Brasília. Seu curso de jornalismo
anos 70 e 80, os principais cursos de jornalismo do Brasil to-
fora esboçado por Pompeu de Souza e estruturado por Luiz
mariam o padrão USP como fonte de referência pedagógica e
Beltrão, nos idos de 60, mas definhara nas décadas seguintes,
científica.6
refletindo a crise institucional que se abatera sobre a univer-
Só nos anos 90 surgem espaços alternativos que dis- sidade, durante o regime militar. A ênfase recente no jorna-
putam a hegemonia uspiana.7 Destacam-se a PUC-Famecos lismo político, ancorada na colaboração de jornalistas com-
(Faculdade dos Meios de Comunicação Social), da Pontifícia petentes como Carlos Chagas, permitiu-lhe recuperar o tem-
Universidade do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e a UFSC po perdido. Da mesma forma, a atuação de novas lideranças
(Universidade Federal de Santa Catarina), em Florianópolis. como o diretor Murilo Cesar Ramos e de jovens doutores
A primeira caracteriza-se pela sintonia com as demandas do como Luiz Martins e Lavina Madeira vem dinamizando a
mercado de trabalho, mantendo permanente diálogo com as pesquisa dos fenômenos jornalísticos na pós-graduação, de
empresas midiáticas regionais. A segunda pretende ser um modo a propiciar estudos significativos.
núcleo de vanguarda, mais afinado com as teses do sindica- Igual ressurgimento operou-se na paulistana Facul-
lismo jornalístico. Nos dois casos, tem havido empenho na dade Cásper Líbero. Vivendo das glórias do seu pioneirismo,
6 Idem, 1991.
essa escola trilhou o caminho da decadência, nas décadas de
7 Idem, 1995. 70 e 80, produto das turbulências políticas e das dificuldades

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econômicas enfrentadas pela Fundação a que está vinculada, de pesquisa sobre a estrutura da indústria da comunicação,
mas também do envelhecimento e mediocrização do seu privilegiando as empresas infomativas, os jornalistas e os pes-
corpo docente. Contudo, no último qüinqüênio, o corpo do- quisadores do jornalismo. Sua ênfase está no resgate da me-
cente do curso de jornalismo se rejuvenesceu, incorporando mória institucional e nas histórias de vida dos seus protago-
profissionais do mercado, atuantes e entusiasmados, que nistas.10
agilizaram e reformularam os veículos laboratoriais. Além Mas não se pode deixar de considerar as transforma-
disso, os projetos experimentais dos alunos concluintes pas- ções experimentadas pela própria Universidade de São Pau-
saram a privilegiar objetos concretos, convertendo-se em lo, cujo Departamento de Jornalismo continua a ser o prin-
exercícios ousados e inovadores de novos formatos jornalís- cipal foco dos estudos e reflexões brasileiras sobre a comu-
ticos. Dessa forma, a Cásper Líbero reconquistou prestígio lo- nicação de atualidades, sobretudo a partir dos seus progra-
cal e liderança nacional. mas de mestrado e doutorado. Eles são responsáveis pela
O caso da Universidade Estadual de Campinas é pa- formação de um contingente significativo dos professores dos
radigmático. Cria-se ali um Laboratório de Estudos Avança- cursos de jornalismo que atuam em universidades de todo o
dos em Jornalismo, cuja meta é diagnosticar os fenômenos País.11 Professores-jornalistas, reconhecidos pela profissão e
informativos, formando jornalistas pós-graduados.8 Para legitimados pela academia, como Cremilda Medina, Bernar-
tanto, criou um curso de especialização em Jornalismo Cien- do Kucinski, Laurindo Leal Filho, Manuel Carlos Chaparro,
tífico, subsidiado com recursos do Pronex-CNPq, ensejando entre outros, dão continuidade ao trabalho iniciado pelos
também pesquisas sobre a difusão científica na mídia brasi- fundadores Flávio Galvão, Freitas Nobre, Juarez Bahia, Tho-
leira. Contudo, seu projeto mais arrojado tem sido o Obser- mas Farkas, Gaudencio Torquato etc.
vatório da Imprensa, um laboratório de crítica midiática, di- Outros núcleos, em outras regiões brasileiras, despon-
rigido por Alberto Dines e veiculado pela internet, através do tam como produtores potenciais de novo conhecimento jor-
Universo On Line (UOL), com a finalidade de avaliar as ten- nalístico ou como formadores de novas equipes profissionais,
dências do nosso jornalismo. Ademais de exercitar criativa- academicamente embasadas. O novo século se inicia contabi-
mente o jornalismo investigativo, inovou no campo do jor- lizando 128 cursos de jornalismo em todo o território nacio-
nalismo digital, mobilizando várias universidades para de- nal. Trata-se de uma expansão vertiginosa, se considerarmos
senvolver projetos semelhantes.
que na década de 50 do século XX havia apenas oito institui-
Por sua vez, a Universidade Metodista de São Paulo, ções brasileiras dedicadas ao ensino e à pesquisa jornalística.
em São Bernardo do Campo, ocupa um lugar de destaque
Essa pluralidade de linhas de pesquisa e de opções di-
nesse panorama. Sua marca distintiva tem sido a veiculação
dático-pedagógicas converte a pesquisa brasileira sobre jor-
de um jornal editado semanalmente pelos estudantes e pro-
nalismo em atividade promissora, completando a sua legiti-
fessores do curso de jornalismo para servir à comunidade lo-
cal. Trata-se de um espaço de pesquisa e aprendizagem de mação acadêmica e o seu reconhecimento pelas corporações
linguagens, estratégias e formatos jornalísticos, preservado empresarial e sindical. O lugar onde vem se dando essa con-
ininterruptamente ao longo de duas décadas. Paralelamente, vergência é a reunião anual da Intercom (Sociedade Brasi-
mantém desde 1978, um programa de estudos de pós-gra- leira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação)12 – cujo
duação, inicialmente orientado para estudar os fenômenos GT de Jornalismo acolhe os mais importantes estudos e pes-
do jornalismo não-hegemônico e da mídia alternativa. Co- quisas em desenvolvimento nas universidades.13 A ele junta
nhecido nacionalmente como Grupo Comunicacional de São agora o novo GT de Jornalismo criado no âmbito da Associa-
Bernardo,9 essa equipe instituiu, a partir de 1994, uma linha 10 Idem, 1997a.
11 Idem,1998.
8 MARQUES DE MELO, 1997b. 12 Idem, 1994.
9 Idem, 1999. 13 BOTÃO, 1999.

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ção Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comu- dos fenômenos jornalísticos, seja em plano nacional, seja nos
nicação (Compós). entornos europeu e americano. Os resultados desse diagnós-
Ao completar 20 anos de existência, a Intercom pre- tico, incorporados ao livro 20 anos de Ciências da Comu-
tendeu inventariar a produção científica em cada uma das nicação no Brasil: o papel da Intercom, organizado por
disciplinas que integram o seu universo acadêmico. O debate Maria Immacolata Lopes, constituem um convite à reflexão
que se deu em Santos, em 1997, representou a oportunidade sobre os avanços logrados pelos investigadores brasileiros do
para avaliar o grau de maturidade conquistado pela pesquisa jornalismo e suas pautas de trabalho para o corrente decênio.

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