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Estudos Universitários

Revista de Cultura

Reitor
Amaro Henrique Pessoa Lins

Vice-Reitor
Gilson Edmar Gonçalves e Silva

Comissão Editorial Especial


Agostinho da Silva Rosas
Denis Antônio de Mendonça Bernardes
Dimas Brasileiro Veras
Djanyse Barros de Arruda Mendonça
Maria Eliete Santiago
Solange Coutinho (Presidente)

Produção
Divisão de Apoio Institucional da Pró-Reitoria de Extensão
Miriam Vila Nova Maia
Estudos Universitários, revista de cultura da Universidade Federal de Pernambuco | v. 24/25 | n. 5/6
p. 1 - 78 | Dez 2004/2005

P. ~ anual

De jul. 1962 até ago. 1964 foi publicada sob título Estudos Universitários,
revista da Universidade do Recife.
Diretor: 1962 ~ ago. 1964, João Alfredo Gonçalves da Costa Lima.
Editor: Luís Costa Lima.
Diretores 1966: Murilo Humberto Barros Guimarães e Newton Sucupira.
Editor: César Leal.
Diretores 1997: George Browne Rego e Jarbas Maciel.
Editor: César Leal.

1. Educação Superior - periódicos. I. Título.

378.4(813.4) (05) CDU (2.ed) UFPE


378.813405 CDD (20.ed) BC ~97 ~ 213

Design Gráfico
Bureau de Design da UFPE
Manuela Braga / Solange Coutinho

Coordenação Geral
Jowania Rosas

Impressa nas oficinas gráficas da Editora Universitária - Universidade Federal de Pernambuco -


Av. Acadêmico Hélio Ramos, 20 Cidade Universitária Recife em dezembro de 2009,
sendo Diretora da Editora Universitária Maria José de Matos Luna
Estudos Universitários
Revista de Cultura

Editorial 05
Memória
Dimas Brasileiro Veras
e Djanyse Barros de Arruda Mendonça
Educação popular e reforma universitária:
Paulo Freire e a criação do Serviço de Extensão
Cultural da Universidade do Recife (1962-1964) 11
Entrevista
Luiz Costa Lima Um trabalho rico de possibilidades
Uma certa revista 23 39 Entrevista com JARBAS MACIEL.

Jomard Muniz de Britto Estudos


SINTOMAS & SINTONIAS Jarbas Maciel
de uma GERAÇÃO REVISITADA 27 Musicologia:
45 Oportunidade para a Universidade Brasileira
Marcius Cortez
As oligarquias culturais Sonia Mendes
e os palhaços da burguesia 31 A concepção de Transformação Social
e de Emancipação na Extensão Universitária:
Juracy Andrade 55 em Busca de Novos Rumos
Resgate de um Trabalho Desmantelado
pelo Golpe de 1964 33 Maria Eliete Santiago
CÁTEDRA PAULO FREIRE:
Geraldo Pereira reconhecimento institucional, preservação
A Revista e o Patrono 35 da memória e espaço de produção e socialização
65 da Pedagogia Paulo Freire

Resenhas
Comunicação ou Extensão?
71 por Xavier Uytdenbroek

Golpe na Alma
75 por Marcius Cortez

Do modernismo a bossa nova


77 por Dimas Brasileiro Veras
Editorial

É com grande satisfação que retomamos a publicação da Revista


Estudos Universitários. Conceituado periódico extensionista cujo
surgimento remonta ao início dos anos sessenta, conjuntura na
qual a crítica sociocultural mais geral se entrelaçava de forma ca-
racterística à problematização das mediações socioeconômicas do
Brasil da época.

Gestada no Serviço de Extensão Cultural/SEC, sob a orientação do


Professor Paulo Freire e de sua equipe, como uma revista de cultu-
ra, e motivada pela tomada de consciência da pequena influência
da Universidade na vida cultural do país, a Estudos Universitários
constituiu-se numa via de formação, dialética e historicamente
posicionada, na qual a cultura deveria ser entendida como natur-
eza transformada e significada pelo homem. Seu surgimento revela
o quanto o texto e o contexto são momentos indissociáveis.

Mas por que reanimar um periódico cuja origem remonta a quase


cinquenta anos, em detrimento de um novo conceito, um novo
formato? A resposta é simples: por pertencer à história da UFPE e
pelo fato de sua concepção original manifestar compromisso com
as transformações estruturais de nossa sociedade. Ressaltamos
que não estamos retomando uma publicação qualquer, mas um
periódico adjetivado pelo declarado pacto social que portava em
sua mistura de conhecimentos, interpretações de mundo e de sa-
beres. Fonte de ações e de atividades ideologicamente motivadas.
Em Freire, pensar a cultura era conceber uma ética, uma política,
um projeto de realização do ser humano. Era buscar na realidade
um sentido para a ação. A leitura dos exemplares publicados no
curto espaço de tempo que demarca a passagem de sua equipe
pelo SEC chama atenção para a crença no trabalho acadêmico
perspectivado na construção de um mundo justo.

Nesta edição, Dimas Brasileiro e Djanyse Mendonça situam histori-


camente o movimento da transformação da Universidade do Recife
em Universidade Federal de Pernambuco e, nele, o surgimento do
Serviço de Extensão Cultural (SEC) e da revista Estudos Universi-
tários. Nessa direção, os depoimentos de Luiz Costa Lima, Jomard
Muniz de Britto, Marcius Cortez e Juracy Andrade, membros da
primeira geração da revista, configuram uma verdadeira explosão
de sentimentos atinentes à efervescência político-cultural da
época e das marcas geradas pelo regime autoritário que chega ao
poder em abril de 1964. Somando-se aos mesmos, o texto do Prof.
Geraldo Pereira ressalta a importância da Universidade ao dispor de
um veículo de comunicação (capaz de servir ao pensamento dos
professores e dos pesquisadores da Casa), bem como o legado de
Paulo Freire, patrono da revista. Razão e emoção tecem esses arti-
gos, os quais se encontram publicados na sessão Memória. O leitor
perceberá que não foi sugerido um gênero textual específico aos
autores deste número, o que certamente colaborou com o objetivo
de retomar aspectos da história da revista e da extensão universi-
tária na UFPE. Se por um lado esta política editorial permitiu uma
maior colaboração dos criadores do SEC e da Revista de Cultura da
Universidade do Recife, não podemos omitir que a pluralidade de
vozes e a textura híbrida conferiram uma aparência mais despojada
ao tradicional periódico.

Nesta edição as sessões principais dedicam espaço a memórias,


a entrevistas, a resenhas e à apresentação de estudos atinentes à
contemporaneidade da extensão. A ideia do conselho editorial é
que a revista tenha periodicidade semestral e que incorpore novas
sessões, a exemplo de cartas, opinião, comunicação. Importa tam-
bém ressaltar a consideração ao exercício do pluralismo, posto que
pertença à própria vida acadêmica e constitua uma exigência do
processo de formação, realizado no debate entre diferentes cor-
rentes de pensamento e de ação, com direção social. Portanto,
poderemos aguardar edições subseqüentes com temas transversais
e de interesse da Universidade e da Extensão Universitária.

“Um trabalho rico de possibilidades” intitula a entrevista conce-


dida por Jarbas Maciel, a qual narra aspectos culturais do Recife
e as vivências da vida universitária. Visando articular o exercício
mnemônico com a materialidade da documentação histórica pub-
licamos, na sessão Estudos, o texto Musicologia: Oportunidade
para Universidade Brasileira, de autoria do mesmo autor, origi-
nalmente publicado na primeira edição da Estudos Universitários
(1962). A ideia de reproduzi-lo encontra sentido no desejo de dar
a conhecer a estrutura e a qualidade da produção acadêmica de
então. A concepção de transformação social e de emancipação na
extensão universitária, de autoria de Sonia Mendes, é o segundo
artigo desta sessão. A autora problematiza neste ensaio a atualidade
da política extensionista à luz do Plano Nacional de Extensão, com
o intento de publicizar o que vem se discutindo no campo dessa
importante dimensão da formação universitária. Na seqüência, o
texto CÁTEDRA PAULO FREIRE: reconhecimento institucional,
preservação da memória e espaço de produção e socialização da
Pedagogia Paulo Freire, tece as razões para a criação e as grandes
linhas de organização e funcionamento desse respeitável lugar. Fa-
zendo uso das palavras da própria autora, Prof. Eliete Santiago, “a
Cátedra é uma distinção; um reconhecimento público, coletivo e
institucional a alguém que prestou relevante contribuição social e
que se espera, através dela e com ela, que sejam disseminadas idéias
e práticas que contribuam para a preservação da memória ativa”.

A sessão Resenhas ganha corpo com “Extensão ou comunicação?”1,


“Do modernismo à bossa nova”2 e “Golpe na Alma”3, ge-nerosas
contribuições de Xavier Uytdenbroek, Marcius Cortez e Dimas
Brasileiro, respectivamente.

À guisa de conclusão, vale dizer que a materialização do projeto de


retomada de uma revista de extensão ocorre sob muitas expectati-
vas. Sem sombra de dúvida, a principal delas é a da contribuição à
consolidação de uma cultura extensionista pautada pela realidade
social e articulada de forma indissociável ao ensino e à pesquisa.
Há uma preocupação inerente com a recuperação das memórias e
da história da UFPE, saberes que podem e devem ser operados na
construção de uma universidade pública, gratuita e de qualidade.
A edição deste número só foi possível graças à contribuição de
muitas pessoas. Agradecimentos especiais ao Reitor Amaro Lins,
aos autores dos textos que diligentemente atenderam ao nosso
convite, em especial aos antigos membros da “equipe do profes-
sor Paulo Freire”, sobretudo ao Prof. Jomard Muniz de Britto, aos
membros das equipes da Divisão de Apoio Institucional/DAI e do
Bureau de Design (da PROEXT) e a Dimas Brasileiro pela disponibi-
lização de informações e materiais referentes à pesquisa que vem
desenvolvendo sobre a revista Estudos Universitários e sobre os
seus criadores, mas, principalmente, por toda sua atenção e solici-
tude. Boa leitura.

Solange Coutinho
Pró-Reitora de Extensão da UFPE

1
Escrito por Paulo Freire e publicado no Brasil em 1971 pela editora Paz e Terra.
2
Escrito por Jomard Muniz de Brito e publicado em 1966 pela editora Civilização Brasileira e republicado este
ano pelo Atelier Editorial.
3
Escrito por Marcius Cortez e publicado em 2008 pela Pé de Chinelo Editorial.
Memória
Educação popular e reforma universitária:
Paulo Freire e a criação do Serviço de Extensão
Cultural da Universidade do Recife (1962-1964) 11
Dimas Brasileiro1

Estudos Universitários
Djanyse Mendonça2

A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode


temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão cria-
dora, sob pena de ser uma farsa. Paulo Freire.
Revisitar a origem da Extensão quando de sua passagem pelo
na Universidade Federal de Per- nascente Serviço de Extensão
nambuco/UFPE trouxe à tona Cultural/SEC.
as principais tensões e contra-
dições do quadro político-cul- De imediato, o esforço de tratar
tural que a determinou; atua- do passado no presente remeteu
lizou o ambiente de “batalha à reflexão sobre tempo e história.
das idéias”3 no qual se inseria Santo Agostinho e o seu Confis-
a universidade (ainda Universi- sões vieram à mente: “O presen-
dade do Recife) e no qual sur- te das coisas passadas, presen-
giu a Revista Estudos Universi- te das presentes, presente das
tários, importante iniciativa do futuras”4. Nessa direção, duas
professor Paulo Freire e equipe importantes categorias analíticas

1
Historiador e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE.
Endereço eletrônico: dimasveras@hotmail.com
2
Assistente Social da UFPE e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da mesma universi-
dade. Endereço eletrônico: dbmendonca@uol.com.br
3
Expressão italiana utilizada por Leandro Konder em seu livro O Marxismo Na Batalha Das Idéias. 2ª ed. –
São Paulo: Expressão Popular, 2009.
4
Agostinho, S. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 18ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
se fizeram indispensáveis: histo- rior, bem como no seu aspecto da do século XIX, estas se per-
ricidade e totalidade social, fren- social restrito e aristocrático, as petuaram por toda primeira me-
te à preocupação em considerar reivindicações ganharam grada- tade do século XX, alcançando
o movimento das determinações tivo apoio dos professores mais uma maior expressão política e
e mediações na conjuntura ide- preocupados com a construção social na cidade nos anos 1950.
opolítica de então. e desenvolvimento de espaços Não seria nenhum exagero afir-
especializados de pesquisa nas mar que durante muito tempo a
As informações que seguem unidades de ensino. No Brasil, Faculdade de Direito do Recife
conferem materialidade a esse a criação da Universidade de (FDR) funcionou como a Uni-
esforço. Recuperam o empenho São Paulo, da União Nacional versidade do Norte agrário do
do movimento estudantil (há dos Estudantes e do Estatuto país, onde, segundo as palavras
mais de meio século) na luta por das Universidades Brasileiras, de um distinto sociólogo brasi-
transformações histórico-socie- nos anos 1930, contribuiu para leiro, “cursava a FDR estudantes
tárias de larga envergadura, so- consolidação do debate da re- de todas as áreas: Literatura,
bretudo por uma universidade forma universitária. Os ares de Filosofia, Ciências Sociais e Be-
mais democrática e compro- mudança ganharam impulso las Artes. Havia até alguns que
metida socialmente. Atualiza o com a queda do Estado Novo faziam Direito”5. Isto dava uma
12 ‘espírito’ movente da primei- e se mantiveram em circulação particular efervescência ao Re-
ra geração do SEC cujas ações até o advento do Regime Militar cife, um jovial burburinho dos
Estudos Universitários

exalavam esperança nas coisas de 1964. A partir daí os militares estudantes que para a cidade
futuras. Certamente, uma con- passariam a conduzir em molde rumavam sedentos de vida e dos
cepção positivista poderia con- autoritário aspectos da reforma emblemas de distinção das es-
cluir que tal ‘espírito’ pertenceu do ensino superior exigida pela colas superiores. Foi na FDR (na
a um determinado tempo histó- sociedade civil em anos anterio- época já integrada à Universida-
rico, como se o tempo pudesse res. Como bem afirma e analisa de do Recife) e na nascente Uni-
apenas ser definido pelo que foi Paulo Rosas, as mudanças pro- versidade Rural de Pernambuco
e a história ser entendida como postas pelos militares estavam que em maio de 1961 estourou
sucessão linear de fatos. Ten- alicerçadas em medidas que vi- uma greve estudantil com re-
deria, também, a afirmar que savam garantir a manutenção percussões nunca antes vistas
a política não está associada do Estado ditatorial: no Brasil. Os estudantes insa-
à história, posto que a história
não seja movimento, mudan- “Proteção e fortalecimento do golpe; formação
ça, instabilidade, contingência. de um quadro de profissionais competentes e
Mas esta não é a linha teórico-
aliados ou ‘neutros’; desarticulação e criação de
metodológica que costura os
elementos sócio-históricos pes- obstáculos à rearticulação ou renovação do an-
quisados. Vamos a eles. tigo quadro de profissionais competentes, mas
que se opunha às práticas discricionárias da di-
A luta pela reforma universitária
tadura;” (1992: 61)
na América Latina teve suas pri-
meiras manifestações no inicio Apesar das reivindicações por tisfeitos com a precariedade das
do século XX. Inicialmente pau- reformas da tradicional Escola Instituições de Ensino Superior
tada na insatisfação estudantil de Ciências Sociais e Jurídicas de (IES) já haviam ensaiado várias
quanto aos instrumentos e mé- Olinda-Recife (atual Faculdade sedições estudantis na Escola
todos defasados do ensino supe- de Direito do Recife) serem ain- de Engenharia de Pernambuco,
5
Trecho de uma conversa sobre a Faculdade de Direito do Recife com Heraldo Souto Maior, professor e pesquisador da UFPE e ex-aluno da FDR.
com destaque para a greve de tos de voto aos analfabetos e política e social da realidade
1958, revolta que foi habilmen- aos militares de baixa patente; brasileira, seguindo uma linha
te contornada pela intervenção a reforma tributária, tornando macroanalítica e globalizante
do presidente Juscelino Kubits- a cobrança de impostos propor- de interpretação. Seus intelec-
chek (RAMALHO, 1994). Embo- cional à renda e bens do contri- tuais acreditavam estar redes-
ra o movimento de 1961 tenha buinte; a reforma agrária, de- cobrindo a realidade brasileira,
se iniciado por desavenças dos mocratizando a terra e seu uso, cuja problematização permitiria
estudantes com seus respecti- mas também combatendo a im- extrair as metas para o desen-
vos diretores6, ao ganhar adesão produtividade e o latifúndio; a volvimento nacional. Num en-
das demais escolas e faculdades reforma bancária, subordinan- saio publicado na “sinistra pas-
do país, a greve passou a repre- do os bancos privados ao Banco sagem de março ao 1º de abril”
sentar uma série de questões do Brasil e nacionalizando-os de 1964, Jomard Muniz de Brit-
e reivindicações nacionais por quando possível; e, finalmente, to, professor da UR que acom-
reformas das estruturas basila- a já citada reforma universi- panhou Paulo Freire em Brasília
res do Estado brasileiro. Sendo tária, modernizando o ensino, no Plano Nacional de Alfabeti-
importante ressaltar que a des- democratizando sua freqüência zação, analisa as contribuições
peito do movimento estudantil e investindo a educação supe- do Iseb aos movimentos sociais
estar envolvido no debate maior rior de uma orientação pedagó- dos anos 60: 13
das reformas de base, sua atu- gica popular O conteúdo pro-

Estudos Universitários
ação específica como categoria gramático das reformas de base “O que era ‘projetado’
política se voltava, sobretudo, estava embebido na ideologia
para a reforma universitária, a nacional-desenvolvimentista
pelos intelectuais do
qual previa o fim do regime de daqueles anos, programa polí- ISEB adquiria caráter
cátedra e da magistral persona tico este, que foi instituciona- pragmático e cunho de
do professor catedrático; a de- lizado com a criação em 1955
aplicabilidade através
dicação integral dos professores do Instituo Superior de Estudos
e técnicos da universidade; a Brasileiro, o Iseb. A Escola Su- dos ‘movimentos de
participação dos estudantes na perior de Guerra (ESG) – a Sor- cultura popular’. (...)
gestão universitária; e, princi- bonne brasileira, tal como era Enquanto o ISEB lança-
palmente, a defesa da educação conhecida - representava o viés
pública e ampliação dos recur- mais conservador e autoritário
va o problema da alie-
sos destinados a mesma. da ideologia nacional desenvol- nação cultural e pro-
vimentista. Foi na ESG que foi jetava uma ‘ideologia
As reformas de base representa- traçado o arcabouço da Dou-
para o desenvolvimen-
vam o piso comum, não de todo trina de Segurança Nacional,
coeso, de reivindicações dos se- projeto político totalitarista que to nacional, os MCPs
tores progressistas nacionais. O traçou as diretrizes do golpe de introduziam, de modo
viés reformista era tido como o 19648. Construídas a partir de concreto, o problema
caminho para a pré-revolução debates, conferências e reuni-
brasileira7 e desdobrava nas ões acadêmicas, as pesquisas
da democratização da
seguintes questões: a reforma realizadas pelo Iseb se voltavam cultura. Diálogo entre
eleitoral, estendendo os direi- prioritariamente para análise a cultura dos intelec-
6
No caso da FDR, a palestra com Célia Guevara (mãe de Che Guevara) terminou acentuando a tensão.
7
Tal como Celso Furtado esboçara, em 1962 num artigo com este mesmo nome no primeiro número da revista produzida pelo Serviço de Extensão Cultural da Universidade
do Recife: a Estudos Universitários. Vamireh Chacon escreveria neste mesmo periódico um artigo com o mesmo tema (Rumos da Renovação Brasileiro), tema este que se
faria sempre presente nos números subseqüentes da Estudos Universitários em artigos e estudos de Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Pierre Fuerter, Paulo Freire, Gadiel
Perruci, Nelson Nogueira Saldanha, Jarbas Maciel, Jomard Muniz, Aurenice Cardoso, Paulo Gaspar e Leandro Konder.
8
Sobre a Doutrina de Segurança Nacional consultar Diogo Cunha. Estado de Exceção, Igreja Católica e repressão: o assassinato do Padre Antonio Henrique Pereira da
Silva Neto. Recife: autor e Ed. Universitária da UFPE, 2008.
tuais e as atividades e cipal contribuição do movimen- se dispuseram a levar em con-
to do alunado às lutas sociais sideração as recomendações do
as realizações do povo. pelo desenvolvimento nacional. CFE.
Diálogo e comunicação Atualizar a universidade com
verdadeiros: não uma a realidade brasileira se inse- Desde que Paulo Freire dispu-
ria num quadro maior de luta tara e perdera a Cátedra de Fi-
atitude paternalista ou política justamente porque as losofia e História da Educação,
assistencialista, sim- reformas não passavam apenas na Escola de Belas Artes, para
plesmente ‘doadora’ pela modernização das escolas Maria do Carmo Tavares de Mi-
de algo, conforme o e currículos. Nem mesmo se res- randa, o reitor João Alfredo da
tringia à ampliação da atividade UR já vinha planejando uma
Prof. Paulo Freire, em científica através da pesquisa, alocação que garantisse auto-
artigo para ‘Estudos como fariam os militares. O cer- nomia às pesquisas que aquele
Universitários’, nº 4.” ne das reivindicações estava no vinha desenvolvendo no âmbito
papel social da universidade e da Educação Popular. O reitor
(BRITTO, 1964: 102-
de sua possível democratização. chegou a propor que a Cátedra
103) Na Universidade do Recife, as fosse dividida em Filosofia da
14 pesquisas orientadas por Paulo Educação e História Educação,
Em ensaio mais recente sobre Freire sintetizaram no campo proposta que Freire recusou
Estudos Universitários

a educação superior no Brasil da práxis os apelos para neces- imediatamente, demonstrado


Luiz Antônio Cunha analisa a sidade de se repensar o sistema sua postura ética sempre ressal-
trajetória da universidade brasi- educacional brasileiro. tada pelos amigos mais íntimos.
leira, mostrando as contradições O fim da greve de maio de 1961 Ao que parece, as reivindicações
que envolviam o seu desenvol-
vimento nos anos da repúbli- Reforma que atingisse a própria organização e
ca populista (CUNHA, 2007). o próprio trabalho educacional em outras ins-
Pressionadas pelos embates do tituições ultrapassando os limites mesmos das
nacional-desenvolvimentismo,
as escolas superiores se viram
estritamente pedagógicas. Necessitávamos de
tragadas pelos embates polí- uma educação para decisão, para a responsabi-
ticos sociais de sua época. As lidade social e política. (FREIRE:2007, 96).
reivindicações estudantis no
Recife ganharam uma recente assistiu à vinda dos inspetores do estudantis e os imperativos do
leitura de Ana Maria César (ain- Conselho Federal de Educação CFE contribuíram com a nova
da que demasiadamente sau- (CFE) e ao posterior afastamen- alocação de Freire. Ainda no
dosa e mitológica), que se de- to dos diretores das duas escolas ano de 1961, o reitor, junta-
bruçando no caso da já citada onde havia começado o confli- mente a Paulo Freire e a alguns
greve de maio de 1961 fornece to. O relatório final da comis- intelectuais progressistas da ci-
importantes pistas para uma são, composta por inspetores e dade, redigiu um esboço do que
história de nossa universidade e professores da casa, concluiu ser viria a ser o projeto do Serviço
de seus agentes: visitantes, es- urgente a modernização (nestes de Extensão Cultural da Uni-
tudantes, professores e técnicos anos se falava muito em mora- versidade do Recife (SEC/UR),
(CÉSAR, 2009). Ambos os au- lização) das escolas aglutinadas protoforma do que vem a ser
tores permitem constatar que, sobre o emblema da Universida- hoje a Pró-Reitoria de Extensão.
diretamente ou não, a pauta da de do Recife e da Universidade Assim começava a se consolidar
reforma universitária foi a prin- Rural. Os respectivos reitores a primeira experiência de ex-
tensão universitária no Brasil9. cia sócio-cultural regional in- humanas e da terra. Seguindo
Anos mais tarde, comentando tensificando sua transformação este ritmo, os que faziam os
o episódio da perda da cátedra e articulação dos movimentos setores de luta da Universidade
com Paulo Rosas, Freire avalia- sociais. Da Sudene se benefi- do Recife fortaleceram a con-
ria a experiência com a afirma- ciou o Movimento de Cultura vicção de que tornar o ensino
tiva: “Perdi a Cátedra e ganhei a Popular (MCP), o Movimento superior sofisticado e adequado
vida” (ROSAS, 2003: 63). de Educação de Base (MEB), as às expectativas sociais da época
Ligas Camponesas, o Instituto demandava uma ampla refor-
O SEC foi institucionalmente Joaquim Nabuco e a Univer- ma do corpo físico e do qua-
criado via portaria nº 2, no dia sidade do Recife. A instituição dro profissional das escolas que
8 de fevereiro de 1962. A exten- chegou a reunir nos anos que compunham a universidade,
são cultural emergia alicerçada antecedem à ditadura um corpo direcionando-as para os proble-
no projeto de modernização da técnico de mais de 3.000 fun- mas nacionais via o desenvolvi-
universidade. O planejamento cionários, que foram escolhidos mento regional. Neste sentido,
para o desenvolvimento fazia através de cursos de formação e o SEC nasce sob o signo dos
parte desta inserção intelectu- concursos públicos. Os adeptos seguintes objetivos10:
al na cultura política da época das práticas clientelísticas viram
e foi neste clima que foi criada seus pajens impulsionados pela a) Promover a difusão cultural, 15
alguns anos antes a Superinten- primeira vez a enfrentar uma levando a Universidade a agir

Estudos Universitários
dência do Desenvolvimento do seleção pública antipatrimo- junto ao povo, através dos
Nordeste: a Sudene. O Recife nialista, antipatriarcalista e meios de divulgação a seu
contou com a fortuna de abri- anticordial (idem: 66). A cres- alcance;
gar sua sede e seu ilustre dire- cente demanda científica im- b) Contribuir, por meio de pu-
tor: Celso Furtado. Francisco pulsionou a pesquisa social no blicações, cursos, palestras,
de Oliveira que foi seu assessor Estado, dinamizando as insti- informes de interesse cien-
direto rememora a presença do tuições voltadas para essas fina- tíficos e outras realizações
ilustre economista na cidade: lidades específicas e ampliando culturais para o desenvolvi-
mento da cultura e das men-
“Havia sido estudante no Recife vindo da Pa- talidades regionais;
raíba, e do Recife se foi para freqüentar a Fa- c) Realizar, na Universidade e
fora dela, cursos de extensão
culdade Nacional de Direito da Universidade e seminários visando, sobre-
do Brasil. Seguia os conselhos do pai de que no tudo, ao estudo da realidade
Recife nada de importante voltaria a acontecer. e cultura brasileira e dos pro-
Celso desmentiu essas previsões, pois o Recife blemas da região;
d) Procurar divulgar ampla-
da Sudene foi provavelmente o lugar central do mente os trabalhos e as re-
conflito de classes no Brasil do final dos 1950 e alizações da Universidade do
toda década de 1960;” (2008: 65) Recife, proporcionando um
maior conhecimento de sua
A presença da Sudene acentuou as oportunidades para técnicos natureza e de seus objetivos
de certa forma esta efervescên- e pesquisadores das ciências

9
A extensão universitária começou a ser experimentada na América Latina em 1918 na Argentina, Universidade de Córdoba, pautada na consolidação e integração da
cultura universitária com os problemas maiores do país e seus cidadãos. Apesar de nos anos 1930 o Estatuto da Universidade Brasileira fazer referência a extensão, esta,
sobretudo normativa e doutrinadora, apenas nos anos 1960 se teria um primeiro movimento tentando consolidar as atividades propriamente extensivas. Este primeiro e
curto ensaio foi fruto do amplo debate proposto pelos movimentos sociais em torno da educação popular e da educação de adultos, habilmente incorporado a universidade
pelo hoje tão esquecido reitor João Alfredo e posto sob a liderança de Paulo Freire e sua equipe.
10
Conferir no Boletim do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, nº 1. Recife, mar/abr de 1962
Por estar diretamente subordi- afirma o Prof. Luiz Costa Lima da cidade participando do Tea-
nado à Reitoria, o SEC gozava (secretário executivo da revista), tro de Estudantes de Pernambu-
de uma autonomia de produção nos termos da apresentação da co e do Gráfico Amador. Não há
e expressão semelhante às Esco- primeira edição (julho a setem- registro público de seu envolvi-
las, às Faculdades, aos Institutos bro de 1962)11 mento com o Partido Comunis-
e às Cátedras universitárias, des-
pertado ciúmes e queixas que se “Os que orientarão Estudos Universitários pen-
alastraram da comunidade aca- sam diferente. Para eles, a cultura implica pre-
dêmica aos defensores de uma
viamente em um ato de coragem, em uma bus-
cultura brasileira mais conserva-
dora. Sem dúvidas, a altercação ca de aproximação com a realidade, sendo, em
ganha uma maior intensidade suma, a resultante da aceitação pelo homem dos
quando Gilberto Freyre passa a desafios que lhe endereça a existência carrega-
publicar nos jornais da cidade
da dos problemas próprios à área particular, em
críticas severas ao reitor João
Alfredo e aos jovens professores que lhe dado viver (...).
integrados no SEC. Para o dis-
16 tinto sociólogo, o reitor havia A uma concepção idealista, cômoda e confor-
permitido que “comunistas” ou
mista de cultura propõem uma concepção rea-
Estudos Universitários

“para-comunistas” tomassem a
Rádio Universidade, os proje- lista: a cultura como aventura de risco e não ex-
tos de alfabetização de jovens e pressão de isolamento, como a anti-fuga, como
adultos e o periódico de cultura nomeação de uma vida em que se está inserto.
da UR, a Estudos Universitários.
Isto os leva a saber que uma busca cultural só
Foi amalgamando extensão e
comunismo sob o mesmo signo alcança êxito ao haver conseguido potenciar a
que os militares e seus cúmpli- visualização do homem. Daí então defenderem,
ces tentaram despir a univer- praticamente, que só através de uma preocupa-
sidade de seu papel político e
ção ativa com a atualidade brasileira teremos
social.
condições de formular um pensamento adequa-
A criação da Revista Estudos damente brasileiro: pensamento de quem pas-
Universitários e da Rádio Univer- sando a saber visualizar sua circunstância passe
sidade foram iniciativas de Pau-
a saber transpô-la criadoramente.”12
lo Freire quando estava à frente
do SEC. Com caráter marcada- A Rádio Universidade era diri- ta. A irritação profunda do cria-
mente interdisciplinar, a revista gida por José Laurenio, antigo dor de “Casa Grande & Senzala”
surgiu como instrumento de membro do coletivo de artes se deu em parte devido à aber-
comunicação e extensão que se gráficas da cidade, conhecido tura dada para que o Movimen-
prestava a publicizar um enten- como o Gráfico Amador (TEI- to de Cultura Popular colocasse
dimento contra-hegemônico, XEIRA, 2007). Tendo trabalhado no ar um programa radiofônico
isto é, um ponto de vista não em anos anteriores na BBC de de Cultura Popular e alfabetiza-
idealista, cômodo e conformista Londres, Laurenio dedicou sua ção. Sobre esse canal de dialogo
da cultura brasileira. Conforme juventude a inovação cultural entre o SEC e o MCP escreveria
11
Fragmentos da apresentação escrita pelo Prof. Luiz Costa Lima, na primeira edição da Estudos Universitários. Revista de Cultura da Universidade do Recife. Julho-Setem-
bro 1962. Páginas 5 e 6, respectivamente.
12
Estudos Universitários: Revista de Cultura da Universidade do Recife. Volume 1,. Recife, Universidade do Recife, Imprensa Universitária, jul-set. 1962: 5-6.
um professore visitante, Pier- Como a experiência só nós tivemos muito tra-
re Furter, que integrava o SEC:
“No nível de educação de base,
tinha sucesso porque balho para estabelecer
o SEC sustenta, com o auxilio partia da tomada de um equilíbrio de forças
de uma rádio emissora, o mo- consciência que os al- que eu não permitirei
vimento de cultura popular que fabetizandos faziam da ver posto em risco por
procura penetrar na – terra de
ninguém – dos subúrbios do
sua situação de opri- quem quer que seja”
Recife” (Pierre Furter - Jornal midos, em uma socie- (...).
do Commércio, 18 de novembro dade onde eles eram
de 1962, 2º Caderno, capa). excluídos até do direi- “Foi preciso o golpe mi-
Numa roda de diálogo, orga-
to de votar, as classes litar para que a classe
nizada pelo Prof. Paulo Rosas dominantes logo per- dominante tirasse de
sobre o tema da passagem dos ceberam o risco (...) cena os que ameaça-
anos 50 para os 60 (principal- com milhões de recém- vam as “regras prees-
mente sobre os anos que ante-
cederam ao golpe de Estado de
alfabetizados, munidos tabelecidas” e orga-
de um título de eleitor, nizasse ela mesma as 17
1964), da qual participaram al-
e virando legalmente a condições em que a in-

Estudos Universitários
guns membros da primeira ge-
ração do SEC13, Almeri Bezerra14 mesa, ou seja, votando clusão dos analfabetos
relata
à esquerda! Pode? pudesse ser feita não
“Paulo (Freire) não apenas sem risco, mas,
era de briga, mas, em Não pode! foi o que me sobretudo com vanta-
quantas brigas se viu disse, afável e cortês, o gens. A manipulação
empurrado. Quando se Coronel Governador das massas analfabetas
engajou no Movimento do Ceará, a quem fui não precisava mais do
de Cultura Popular e de- candidamente explicar insuportável e oneroso
pois assumiu a Secreta- o que estava tentando cabresto. O controle dos
ria Executiva do Serviço fazer em Fortaleza: ex- meios de comunicação
de Extensão Universitá- plicar “o método Paulo de massa - rádio e te-
ria (SEC) que ele mes- Freire” a um grupo de levisão - em vertiginosa
mo criou, as ocasiões universitários que que- expansão, garantiria a
não faltaram porque foi riam iniciar uma cam- inclusão dos analfabe-
aí que começou a se es- panha de alfabetiza- tos com direito a voto,
boçar o que seria logo ção de adultos. “Não dentro da ordem esta-
mais a Campanha Na- pode! ” me disse o belecida”.
cional de Alfabetização Governador. E me ex-
de Adultos (...). plicou: “aqui no Ceará
13
O registro desse diálogo pode ser acessado na página do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas. Seção Abrindo os Arquivos.
14
Almeri Bezerra foi professor contemporâneo de Paulo Freire quando lecionava na Escola de Serviço Social de Pernambuco e, posteriormente, no Serviço de Extensão
Cultural/Universidade do Recife.
Os projetos de educação popu- tença. Desde o ano 1962 que produção, no entanto o bairris-
lar representavam a principal a atuação de Luiz Costa Lima, mo não era nenhuma novidade
preocupação de Freire enquanto secretário da revista, vinha in- na província. O próprio Celso
dirigia o SEC. Por educação po- comodando alguns defensores Furtado havia sido vítima algu-
pular se entendia a construção da pernambucanidade e dos mas vezes das hostilidade dos
coletiva de um exercício educa- nordestinados. O Diário de Per- intelectuais regionais como nar-
cional conscientizador que pos- nambuco da época traz alguns ra Francisco de Oliveira:
sibilitasse ao educando se deslo- destes embates entre Costa
car da consciência intransitiva Lima e os defensores da região Certa elite do Recife
para a transitiva ingênua, que, e de sua estética17. O diálogo que gravitava em tor-
trabalhada em novas etapas do com os concretistas paulistas e no do mestre de Api-
sistema educativo, poderia se de outros intelectuais de outras
tornar consciência crítica, re- regiões do país despertou a fú-
pucos, os literatos e
volucionária e transformadora ria dos regionalistas, principal- subs que abundavam
do educando e de sua realidade mente quando foi publicado na na província que tinha
(FREIRE, 2007)15. Os professores Estudos Universitários artigos fama de produzir gran-
e técnicos engajados na forma- de Décio Pignatari, Haroldo e
ção dos alfabetizadores no sis- Augusto de Campos. Nossos be-
des nomes da literatu-
18 ra brasileira (...) tentou
tema Paulo Freire de Educação letrados acreditavam que a Es-
desmoralizar Celso
Estudos Universitários

eram, em sua maioria, jovens tudos Universitários deveria ser


professores e militantes da Ação veículo de publicação exclusiva Furtado no terreno in-
Católica (sobretudo da Juventu- da cidade, sobretudo, da Uni-
de Universitária Católica), braço versidade do Recife e do Insti-
telectual sem sucesso.
progressista da igreja que dispu- tuto Joaquim Nabuco. O jovem Uma vez, convidaram-
tava democraticamente com o professor de Literatura Brasileira no para uma das ter-
Partido Comunista as bases po- não se acanhou diante das crí- túlias em que esban-
líticas estudantis e populares16. ticas feitas à linha editorial que
A forte oposição de Gilberto vinha imprimindo, respondendo
javam cultura literária.
Freyre ao Reitor João Alfredo com exaltação às queixas pú- Esperavam apenas um
e ao serviço de extensão mos- blicas18. Artigos em defesa ou economista, que se
traram que este cometera mais contra a Estudos Universitários mostraria em oposição
do que um ledo engano quanto foram publicados ao longo de
às filiações políticas de seus ad- todo final do ano de 196319. Es-
desconfortável naque-
versários quando os denunciou tava aberto o que popularmente le ambiente. Ficaram
aos militares. Freyre escolhera os começou a se chamar “a crise de queixo caído quan-
seus meios para manutenção de da revista da universidade”20. Há do Celso recitou de cor
sua posição despótica no campo de se lembrar que se tratava de
intelectual e político da cidade. um embate de duas concepções
clássicos da literatura
O caso da revista de cultura da de cultura-política antagônicas portuguesa e espanho-
UR nos explica melhor esta sen- disputando a legitimidade de la. Creio que, depois,
15
Os integrantes do SEC estavam preocupados em construir e sistematizar um segunda etapa do Sistema Paulo Freire, preocupação esta que aparece sintetizada nos artigos
de Paulo Gaspar Uma sugestão para a segunda etapa do Sistema Paulo Freire e de Jarbas Maciel A fundamentação teórica do Sistema Paulo Freire ambos publicados na
revista Estudos Universitários nº 5 e 4 respectivamente.
16
A partir de 1961 a JUC passaria a ter posição majoritária na União Nacional dos Estudantes, quebrando com a predominância nos anos 1950 de militantes do Partido
Comunista e da União Democrática Nacional (UDN). Pouco antes do golpe militar alguns membros da JUC aliados com outros grupos de esquerda da época fundaram
uma nova frente de atuação política chamada Ação Popular. Assim angariavam definitivamente sua autonomia de produção e ação nesta dinâmica de laiscização do grupo
político e seus significados.
17
Conferir a coluna Diário literário do Diário de Pernambuco entre julho e agosto de 1962.
18
Conferir no Jornal do Commércio/JC de 27 de outubro de 1963, p. 02; JC de 1 de novembro de 1963, p. 02; JC de 12 de novembro de 1963.
19
JC – 29 de junho de 1963/ 7 de julho de 1963/ 18 de novembro de 1963/ 8 de dezembro de 1962/ 13 de dezembro de 1963, última página.
20
JC – 13 de dezembro de 1963, última página
não insistiram no uso pois ataques e pres- cabeça” do reitor João Alfredo e
a extinção do Serviço de Exten-
da arapuca da qual o sões só poderão vir de são Cultural: “Não se pretende
passarinho escapou. grupos e indivíduos que lhe sejam cassados direitos
(2008: 76).21 que tradicionalmente políticos; nem que sua mag-

O jovem Costa Lima ainda não conspiraram contra o


nificência seja detida, mesmo
em sua casa; e sim convidado
possuía a astúcia e a posição de desenvolvimento da – apenas isto – a afastar-se do
autoridade política e intelectu- região, quer se ‘eliti- cargo que continua a ocupar”24.
al esbanjada pelo célebre eco-
zando’, quer fugindo Em “ensaio de psicanálise sel-
nomista (o que não poderia ser
afirmado atualmente diante de à realidade, quer ne-
vagem”, o auto-analisando, Jo-
mard Muniz, oferece alguns in-
sua distinta posição como um gando ao povo a par- dícios para compreender como
dos maiores críticos da cultura ticipação na cultura, os jovens intelectuais partici-
e da literatura brasileira), expe-
quer anestesiando-o pantes do Sistema Paulo Freire
riência e distinção que talvez
ajudassem a contornar o caso. com conceitos e ensi-
de Educação refletem hoje os
embates e reveses do passado:
Cedendo a novas provocações, namentos distorcidos
se viu mergulhado em novas e que apenas visavam 19
contendas que agravariam o
“Acontece que, per-
beneficiar a uma classe

Estudos Universitários
problema, resultando no seu n a m b u c a n a m e n t e,
afastamento da secretaria da economicamente for- acompanhamos – an-
Estudos Universitários no fi- te que detém o poder. tes, durante e depois
nal do ano de 1963. O artigo Professores e intelec-
publicado por Gadiel Perruci
do golpe militar de
tuais verdadeiramente 1964 -, em artigos nos
alguns dias antes da demissão
do jovem secretário nos permi- antipopulares no senti- principais jornais da
te sentir o tom que permeou os do de que interpretam província do Recife, sua
embates em torno da revista de ou se voltam para uma
cultura da UR : 22 escrita furiosa contra
realidade falsificada e todo os inevitáveis ou
O público nordestino artificialmente pré-fa- (im)possíveis subversi-
e brasileiro não terá bricada
23
vos que rondavam pe-
o que recear dos ata- O cenário de disjuntivas revela- las Universidades em
ques e das pressões va o horizonte de tensão social torno e bem dentro do
que tendia a se ampliar. Insaci-
que porventura se lan- ável, Freyre passa a publicar se- Sistema Paulo Freire de
cem contra a revista, manalmente artigos “pedindo a Educação de Adultos.
21
Oliveira ainda conta outro caso extremamente curioso sobre as provocações de Freyre e que vale a pena conferir: Gilberto Freyre, que foi o representante do Minis-
tério da Educação e Cultura no Conselho da Sudene durante a gestão Furtado, na mesma época da tentativa de destituí-lo alegou que não recebia havia meses o jeton
que se pagava aos conselheiros. Uma remuneração simbólica, pois os conselheiros tinham sua viagens e hospedagens pagas pelas instituições que representavam, e o
celebre intelectual morava no Recife. Sabe-se, aliás, que o mestre de Apipucos era um conhecido “mão de vaca”. Tendo-lhe sido mostrados os recibos com sua assina-
tura, Gilberto disse não a reconhecer. Se havia má-fé e intenção de desestabilizar Furtado, incluindo-o no rol dos que eram acusados de corrupção no governo Jango,
o renomado sociólogo não contava com o desassombro de Furtado. Em vez de procurar ajeitar-se com Gilberto, na tradição brasileira de compadrio, encomendou ao
Instituto de Criminalística da Polícia de São Paulo investigação sobre os recibos assinados, confrontando-o com outra assinatura de Gilberto Freyre que este reconhecia
como autêntica. O laudo foi taxativo: todas as assinaturas firmadas pela mesma mão. Apresentados os resultados a Freyre, este simplesmente se calou e nunca mais
voltou a falar no assunto. Furtado, elegantemente, arquivou o processo. (2008:75)
22
O mesmo Perruci que outrora elogiara o Freyre inovador das ciências sociais e humanas passava a criticar severamente o Freyre político e futuro ideólogo da ditadura
23
JC – 8 de novembro de 1963 – 2º caderno - capa
24
Mario Cesar Carvalho “Céu & inferno de Gilberto Freyre”, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 12/03/2000; Fonte:http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/freyreceuinferno.
html. Acesso em 18 de outubro de 2009. Ver também Túlio Velho Barreto “O político Freyre, um claro enigma”, Jornal do Commércio 18/07/2007;Fonte: http://www.fundaj.
gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=377&textCode=9063&date=currentDate; Acesso em 18 de outubro de 2009.
Seu apoio irrestrito, in- histórico, Gregório Bezerra, que nir os fragmentos mnemônicos
era seu companheiro de cela. que resistiram as investidas dos
flamado, incondicional militares e a toda produção de
ao golpe nos causava A grande maioria dos integran- esquecimento. As fogueiras da
talvez um misto quen- tes do SEC terminou no xadrez memória não pouparam nada,
te de raiva e repugnân- e muitos impelidos para o exí- nem mesmo os 12 quadros
lio. Da prisão nem mesmo es- pintados por Francisco Bren-
cia, para fazer uso de capou o jovem estudante de nand para ilustrar as situações
um advérbio tão seu – sociologia Marcius Cortez, que existenciais fundamentais na
talvez – e dois adjeti- com apenas 17 anos já integra- apreensão do conceito antro-
vos dos mais serenos e va o SEC (CORTEZ, 2008). Toda pológico de cultura (COELHO,
atividade de pesquisa produzida 2004: 222). Almeri Bezerra,
aliterativos em R, pela pelos membros do Serviço foi que na época era padre e havia
distância memorial que recolhida e destruída. Modo to- sido coordenador da Juventude
nos separa de tais ab- talitário e violento de produzir Universitária Católica do Recife,
surdos e brutais acon- esquecimento e dispersão. Con- acompanhou de perto o sofri-
tra o silêncio das fontes docu- mento de Paulo Freire. O jovem
tecimentos.” (BRITTO, mentais aniquiladas a memória padre fora escolhido por Freire
20 2002: 224 – grifos do tem sido uma importante aliada para vice-diretoria do SEC, as-
autor)
Estudos Universitários

dos pesquisadores. O recente sumindo a liderança do Serviço


esforço de Marcius Cortez em na ausência do primeiro. Sobre
Qual seriam as palavras de re- narrar às memórias do servi- o impacto do golpe recorda:25
memoração do reitor João Al-
fredo? Como conceberia seu
afastamento ainda em 1964? “Entre muitos outros, Paulo foi tirado de cena.
Estas são perguntas para o qual Levaram-no não sei para onde. Contou-me que
ainda não temos respostas. O quase morre do coração em La Paz. Não agüen-
que se sabe é que, após o seu
tou a altitude. Desceu a Cordilheira e foi para
afastamento, foi empossado o
professor da Faculdade de Di- Santiago do Chile, onde o encontraria, (a ele e
reito do Recife, o reitor Murilo Elza e a meninada), trabalhando em um pro-
Magalhães (homenageado este grama de alfabetização de adultos, no Instituto
ano de 2009 por sua atuação
de Reforma Agrária que presidia Jacques Chon-
inovadora e conciliadora em
anos tão difíceis). Sua primeira chol. Saíra do topo da Cordilheira, mas dela não
ação como reitor foi atravessar se livrara. Em cima faltara-lhe o ar; em baixo,
a rua que separa a FDR e a sede quando menos esperava, sentiu que lhe faltava
do 4º exercito para visitar os
o chão sob os pés. “Meu amigo, acho que tudo
professores que se encontravam
encarcerados. Do outro lado do pode me faltar na vida; daria um jeito. Mas o
rio Capibaribe, na casa de de- chão, isso não! Quero sair dessa terra”.
tenção (prisão em modelo pa-
nóptico depois transformada em ço de extensão da UR no livro Não demorou a chegar a vez de
Casa da Cultura), Jomard Muniz “Golpe na Alma” (idem) já nasce Almeri Bezerra deixar o país:
ensinava francês ao comunista consagrado justamente por reu-
25
A entrevista completa do Prof. Almeri encontra-se na página do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisa conforme indicado na nota de rodapé nº 8,deste artigo.
“Os generais Justino Alves e Muricy, juntamen- REFERÊNCIAS
te com o coronel Ibiapina, sentindo que não ti- BIBLIOGRÁFICAS
nham mais condições de garantir a minha vida Agostinho, S. Confissões. Trad.
(foram eles que o disseram), solicitaram a Dom J. Oliveira Santos e A. Ambrósio
Helder que os poupasse mandado-me embora de Pina. 18ª Ed. Petrópolis: Vo-
para bem longe. O que Dom Helder recusou, zes, 2002.
os meus amigos aconselharam: ‘vai-te, rapaz, Boletim do Serviço de Extensão
que nós também não poderemos garantir a tua Cultural da Universidade do Re-
vida!’.” (BEZERRA, 2006: 11). cife, nº 1. Recife: Imprensa Uni-
versitária, mar/abr de 1962.
Fechadas as portas do SEC e dis- Preocupados em atender aos
persados seus agentes, o desfe- propósitos e limites do presente BRITTO, Jomard Muniz de.
cho na universidade não foi de artigo, buscamos tão-somente Contradições do homem brasi-
todo alheio. Alguns meses após trazer uma contribuição preli- leiro. Rio de Janeiro: Ed. Tempo
o golpe a Universidade do Re- minar à recuperação da ambi- Brasileiro, 1964.
cife organiza entre seus profes- ência circundante do surgimen- 21
sores, com a ilustre participação to da extensão da UFPE28. _______________________.

Estudos Universitários
de Gilberto Freyre, O Simpósio Atentados poéticos. Recife: Ed.
sobre a problemática Universi- Encarar o passado foi bem isso Bagaço, 2002.
tária. Neste longo exercício de que a escrita deste texto fa-
avaliação escolar não se pode voreceu quase cinqüenta anos CESAR, Ana Maria. A faculdade
dizer que em nenhum momen- depois. Fica no ar o desejo de sitiada. Recife: CEPE, 2009.
to o SEC é mencionado, pois conhecer, de pesquisar a his-
este é lembrado como serviço tória da Extensão a partir de COELHO, Fernando Vasconce-
supérfluo e o seu financiamen- então. Saber como se deu seu los. Direita, volver: o golpe de
to mencionado como gastos ir- caminhar, considerando a tri- 1964 em Pernambuco. Recife:
responsáveis, desviando a “uni- lha muito estreita na qual teve Bagaço, 2004.
versidade de suas finalidades que andar por um tempo que
essenciais”. Em sua fala, Freyre se prolongou por várias décadas CORTEZ, Marcius. O Golpe na
convoca os catedráticos a resistir e que, além de deixar dolorosas Alma. São Paulo: Pé-de-chinelo
ao argumento da chamada “de- e profundas marcas, amesqui- Editorial, 2008.
mocratização dos diálogos”26. nhou importantes iniciativas.
A nova direção da UR deveria Levantar o que ficou (ou se re- CUNHA, Luiz Antônio. A Univer-
partir de questões estritamente cuperou) das idéias primeiras. sidade crítica: o ensino superior
regionais e “de uma orientação Conferir o quanto a “verdade da na república populista. 3ª ed.
que talvez possa ser acusada práxis cedeu lugar à estreiteza São Paulo: Ed. UNESP, 2007.
de elitista, isto é, de um tanto do pragma”29 ...
aristocraticamente valorizadora Estudos Universitários: Revis-
das elites, dentro dos sistemas ta de Cultura da Universidade
universitários”27. do Recife. Volume 1,2,3,4 e 5.
*** Recife, Universidade do Recife,
26
O Simpósio sobre a problemática Universitária, 1965: 122.
27
Idem: 138.
28
Sendo oportuno lembrar que Dimas Brasileiro, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, encontra-se dissertando sobre a Estudos Universitários.
Quiçá desta iniciativa decorra um livro.
29
Conferir em Konder (2009:83).
Imprensa Universitária, 1962-
1963.

FREIRE, Paulo. Educação com


prática da liberdade. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 2007. 30ª
edição.

kONDER, Leandro. O marxismo


na batalha das idéias. 2ª Ed.
São Paulo: Expressão Popular,
2009.

OLIVEIRA, Francisco. Noiva da


revolução; Elegia para uma re(li)
gião: Sudene, Nordeste. Plane-
jamento e conflitos de classes.
22 São Paulo: Boitempo, 2008.
Estudos Universitários

RAMALHO, Walter Alves. Olha


a Ripa: fragmentos da Escola
de Engenharia de Pernambu-
co. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 1994.

ROSAS, Paulo. Para compreen-


der a educação superior brasi-
leira. Rio de Janeiro: Paz e Ter-
ra, 1992.

___________. Papéis avulsos


sobre Paulo Freire, 1. Recife:
Centro Paulo Freire de – Estu-
dos e Pesquisas: Ed. Universitá-
ria da UFPE, 2003.

Simpósio sobre o problema uni-


versitário. Recife: Imprensa Uni-
versitária, 1965.

TEIXEIRA, Flavio Weinstein. O


movimento e a Linha: presença
do Teatro do estudante e d’O
Gráfico amador no Recife (1946
– 1964). Recife: Ed. Universitá-
ria da UFPE, 2007.
Uma certa revista Luiz Costa Lima1
23

Estudos Universitários
"cuando montar quisimos en pelo una quimera"
(Antonio Machado, "Una España joven")
Pedir-se a um homem comum da revista Estudos Universitá-
que pense e, publicamente, for- rios. Seu surgimento fazia par-
mule uma experiência pela qual te de um ambicioso projeto de
passou há 47 anos não é uma reforma universitária concebi-
iniciativa ordinária. Mas é bem do pelo Reitor da Universidade
isso que Dimas Veras solicita de Federal de Pernambuco (então
mim. mais modestamente chamada
de Federal do Recife), o médico
Há 47 anos, mais precisamen- e professor João Alfredo Gon-
te, apontando para os meses de çalves da Costa Lima – apesar
julho a setembro de 1962, era do sobrenome, não tínhamos
publicado o primeiro número nenhum parentesco. Por inicia-

1
Professor titular da PUC (RJ), integrado ao programa de História Social da Cultura.
Autor de mais de 15 livros sobre teoria da literatura, literatura comparada e literatura brasileira, dos quais o mais
recente se chama O Controle do imaginário e a afirmação do romance (Dom Quixote, As Relações Perigosas, Moll
Flanders, Tristram Shandy); três dos seus livros foram traduzidos para o inglês e um para o alemão.
Professor da University of Minnesota (1984 – 1986); visiting professor de várias universidades (Stanford, Johns
Hopkins, Montreal, Paris VIII, Pontificia Universidad de Chile (Santiago). Universidad Iberoamericana (Ciudad de
México) e pesquisador do Zentrum für literarische Forschung (Berlim)
Recebeu prêmio concedido ao investigador estrangeiro do ano de 1992 pela Alexander Von Humboldt-Stiftung
(Bonn) (Alexander Von Humboldt-Stiftung Preis für Geisteswissenschaft). Endereço eletrônico:
costalim@visualnet.com.br
tiva sua, eram criados o Serviço Universidade. Em sua compa- não de amargura. Mas não risco
de Extensão cultural (SEC), uma nhia, ajudando-os no que po- a frase que acabei de escrever
Rádio Universitária e a revista dia eu ficava, muitas vezes até pois recordo do que me dizia,
Estudos Universitários. A Rádio de madrugada, quando a revista em voz baixa, um amigo, em
e a revista seriam subordinadas estava para sair. De um deles, me uma das prisões em que, meses
ao SEC, confiado à direção de lembro com particular carinho, depois do golpe, nos encontra-
Paulo Freire; enquanto a Rádio “seo” Valdemar, encadernador mos,: “Lula, por sorte não ga-
era dirigida por José Laurênio de meus livros. Ser secretário e nhamos”. Atônito, se não indig-
de Melo, que já trazia a expe- pau-para-toda-obra não chega- nado, não precisei pedir-lhe que
riência de, durante anos, haver va a parecer trabalhoso. Eu era se explicasse. No mesmo tom de
sido o encarregado pela BBC de jovem, recém-tornado da Eu- voz, acrescentava: “Se tivésse-
Londres, para a seção brasilei- ropa, amigo e vizinho de Paulo mos ganho, não saberíamos o
ra; a mim cabia o posto de se- Freire, impaciente em contribuir quê fazer”.
cretário executivo da revista. A por um Brasil menos familista,
Estudos universitários contava menos patriarcal e autoritário. Dolorosamente, tantos anos
com um Conselho Universitário, passados, reitero o que ouvia,
formado por 12 catedráticos da Ao pensar nesses termos, dói a e, recorrendo a uma passagem
24 Universidade, e uma Comissão saudade dos tantos amigos que de uma espécie de declaração
de Redação, constituída por “a indesejada das gentes” já le- de princípios que, a partir de
Estudos Universitários

mais 3. Não exagero em dizer vou: Paulo, José Laurênio, Se- seu terceiro número, Estudos
que, salvo alguns que conhecia bastião, João Alexandre Barbo- Universitários incluía, procuro
desde antes, nunca um dos 15 sa, Gastão de Holanda, Orlando refletir sobre a cena: “Cultura
quebrou uma palha pela revis- da Costa Ferreira; com alguma é (…) inserção e não fuga, fru-
ta. De todos, guardo com ex- tristeza, embora sem saudade to não só da inteligência, mas
tremo afeto o nome de Rui da daqueles que o golpe de 1964 também da coragem individual”.
Costa Antunes, que havia sido fez com que, de um dia para Toda a ênfase se apoiava nos
meu professor de Penal, na Fa- o outro, mudassem de barco. nomes ‘inserção’ e ‘coragem in-
culdade de Direito do Recife, o A falta que aqueles provocam dividual’. Implicitamente, a de-
único que, como adiante rela- é acompanhada por incômoda claração entendia que inserção
tarei, me defenderia, na última pergunta: que teria sucedido se, era a nossa. Mas já sabíamos
reunião de que participei, na em lugar de derrotados, tivés- que havia outras, algumas que
sala do Reitor, em fins de 1963. semos vencido? Retrospectiva- também se consideravam de es-
Durante o tempo em que fui se- mente, se revejo a cara alegre querda, que seriam igualmente
cretário – de julho de 1962 até, e entusiasta daqueles que, com perseguidas e cuja história pas-
aproximadamente, novembro frequência, se reuniam para o sada as mostrava ligadas a uma
de 1963 – meus colaboradores café no SEC e o otimismo esfu- inserção exclusivista e esma-
eram os amigos que estavam ziante de Paulo, por outro lado, gadora das alternativas. O que
e/ou prestigiavam o SEC – Se- como se o próprio tempo hou- aqui digo não tem nenhuma
bastião Uchoa Leite, Marcius vesse se encarregado de dar- novidade para quem tenha al-
Cortez, Paulo Menezes, Gastão lhes um outro rosto ou, pelo guma experiência política. Mas
de Holanda, Orlando da Costa menos, até então o escondes- era isso precisamente que não
Ferreira, Jomard Muniz de Bri- sem, vejo marcas e rugas de um tínhamos. Supúnhamos – ou
to, Juracy Andrade, mais alguns espírito contrafeito. É por certo melhor, eu supunha – que a co-
que talvez hoje não gostassem estranho combinar a imagem ragem individual era o bastan-
de ter seus nomes aqui arrola- de uma vitória que não houve te. Como era possível que fosse
dos – e os velhos tipógrafos da com sinais de contrariedade, se tão ingênuo? Mas não tenho o
direito de criticar o jovem que sucedera e não só se publica- passagem capital, eu fazia uma
então era – embora intelectu- ra, entre o número anterior e o brincadeira que reconheço de
almente já tenha mandado meu presente. Aproveito a referên- extrema maldade. Se ainda se
voluntarismo pro lixo, nas horas cia para retomar o andamento tratasse de um astro do cinema,
de transe volto a me comportar rememorativo. Foi por conta era o que mais ou menos dizia,
como se a coragem individual dessa seção que a revista não ainda se explicava a manifesta-
fosse suficiente para dominar esperou pela chegada do golpe, ção de narcisismo etc etc. Até
situações adversas. sendo seu secretário demitido e parece que era eu próprio que
sua publicação provisoriamen- procurava um estopim. A verda-
Antes de continuar esse breve te suspensa entre novembro e de é que em poucos dias a ba-
relato rememorativo, gosta- dezembro de 1963. (Como o talha estava iniciada. Por maior
ria de chamar a atenção para número 5 cobria o trimestre de que fosse o apoio que sempre
o que, havendo sido publicado julho a setembro, haver a con- recebera da Reitoria, terá sido
naqueles cinco números, ultra- fusão estourado entre novem- dela que veio a ordem de o
passou os 47 anos e permanece bro e dezembro parece mostrar número 5 ser recolhido, a pá-
uma leitura digna, se não mes- que sua publicação saíra com gina que continha o comentá-
mo de qualidade. Destaco, no uns dois meses de atraso, pois rio expurgada e eu convocado
número de abertura, o poema o acidente que a seguir relato para comparecer a uma reunião 25
“Teoria do ócio”, de Sebastião sucedeu poucos dias depois de de emergência. (Foram muito

Estudos Universitários
Uchoa Leite, ali editado pela a revista estar em circulação). A poucos os números inteiros que
primeira vez e, no número 2, o razão do acidente não foi outra escaparam da censura. A pró-
ensaio “A Serpente e a lira” de senão a imprudência de quem pria cópia da coleção dos cin-
Orlando da Costa Ferreira. Com aqui escreve. Relato-o sintetica- co números que Dimas Veras
esse título valeryano, Orlando mente. teve a gentileza de me enviar
introduzia uma reflexão sobre não contém a folha censurada).
a menos metafórica das letras, Para quem conheça os artigos Das pessoas que participaram
a letra como unidade mínima que Gilberto Freire publicava, da reunião, lembro-me apenas
da tipografia, objeto de devo- alguns meses antes do golpe, do próprio Reitor, de Rui Antu-
ção de toda sua vida. No mes- no Diário de Pernambuco, não nes e da professora de filosofia
mo número 2, ainda ressalta o estranhará que eles tenham de- Maria do Carmo Miranda. Lem-
“Poésie et société” de um suíço, cididamente contribuído para bro-me de meu ex-mestre de
Pierre Furter, que esteve no Re- que o Recife letrado se dividisse Direito Penal, mesmo porque só
cife, depois por todo o país, du- entre os partidários do soció- nele encontrei apoio. Em troca,
rante alguns anos. Lamentavel- logo de Apipucos e os “comu- a professora Maria do Carmo
mente, os erros gráficos foram nistas” do SEC. Mesmo pessoas mostrava toda sua indignação
tantos que certas frases, para que eram amigas de Paulo Frei- de conservadora “enragée” con-
serem bem compreendidas, te- re e vieram a apoiá-lo quando tra o desrespeito ao mais ilus-
riam de ser restauradas. Destaco começou a ser perseguido pelos tre intelectual da terra. Diga-se
por fim a seção de “resenhas”, golpistas vitoriosos, então ain- de passagem: minha desastrada
introduzida a partir do número da se pronunciavam a favor de manifestação de coragem (de
4 (abril – junho, 1963). Já não Gilberto Freire. Pois bem, diante coragem ou simples bravata?)
sei por que a seção se chamava de um artigo seu em que acu- não teria tido a consequência
de resenhas, pois recordo que a sava os “comunistas” infiltrados que teve se eu tivesse ouvido a
intenção, desde seu início, era nos jornais de escolherem fo- recomendação sensata de Se-
fazer daquele espaço uma pa- tografias em que ele aparecia bastião: “olha bem, Luiz, isso
norâmica do que de importante “feio”, depois de transcrever a vai dar confusão”. Mas não o
ouvi. Por maior que fosse o em- É pena, mas, na verdade, com
penho de Rui Antunes e, posso a vida não aprendemos senão a
imaginar, a simpatia do Reitor, guardar um terreno maior para
minha demissão era inevitável. a defesa.

Quando, na noite de 31 de mar- Agradeço a Dimas Veras e aos


ço de 1964, iniciou-se o golpe e, que o autorizaram a fazer-me
no dia seguinte, já estava vito- este convite. Ainda sentir-se
rioso, eu conhecia um prelúdio embargado pela recordação de
do que iria me suceder. Na ver- acontecimentos tão remotos,
dade, a primeira dose golpista se prova que, independente de
resumiu a afastar-me da revista. nossa vontade, permanecemos
Durante três meses ainda, pude presos à terra distante.
frequentar o SEC e continuar a
colaborar com a formação dos Rio de Janeiro, outubro, 2009
que seriam professores no pro-
grama de alfabetização nacio-
26 nal. Tenho retrospectivamente
ao menos a satisfação de saber
Estudos Universitários

que a formação que dávamos a


eles nada tinha de semelhante
com a mediocrização horizon-
tal hoje oferecida pelo chama-
do ensino à distância. Muito
menos, ao contrário do que se
murmurava na cidade, não se
tratava de doutrinar ninguém.
Como doutrinar se nenhum de
nós era membro do P.C., nem
tínhamos qualquer simpatia
pelo stalinismo?! Mas o fato é
que, entre novembro e dezem-
bro de 1963, estava encerrada a
tentativa de fazer da revista da
Universidade um instrumento
paralelo à sua Rádio visando à
melhoria do universo intelectual
do recifense e das cidades vizi-
nhas, ao qual se acrescentasse
uma dimensão efetivamente
crítica. Digo por fim: não me
arrependo absolutamente do
que fiz e aqui relatei. Apenas, se
tivesse a oportunidade de repe-
tir alguma coisa do feito, o faria
entre suspeitoso e desconfiado.
SINTOMAS & SINTONIAS de
uma GERAÇÃO REVISITADA 27
Jomard Muniz de Britto1

Estudos Universitários
Esboçamos uma leitura trans- Reler 1962 em 2009 é um risco,
versal entre gerações que prefe- talvez ameaçado por risos me-
riram dizer não aos que culti- lancólicos. Sem medo de cativar
vam o memorialismo enquanto o cosmopolitismo na província
transação de oportunidades. Ou entre teorias e práticas, múlti-
mais grave: trama de oportunis- plos letramentos e escrituras.
mos na fogueira de vaidades. Sem temer exercícios de cali-
Pelo vazio das novidades. Além grafia entre os links da internet.
e aquém da rima pobre de todas Que nos percam do desespero
as idades. Qual o lugar do con- as concreções contundentes de
temporâneo? Sebastião Uchoa Leite:

Para que serves senão indagar


a essência da poesia ou a essência da pulha
se são a mesma coisa?
Como distinguir no tempo as ficções do ser?
1
Jomard Muniz de Brito integrou a Equipe inicial do Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos na Universi-
dade do Recife, atual UFPE. É professor aposentado do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística e
professor titular emérito da Universidade Federal da Paraíba. É autor de textos e produtos audiovisuais.
Ócios e práxis experimentando sintonia, pensadores tais como mente em um órgão como este,
conflitos, mitologias, reverbe- Maritain e o jovem Marx, Ga- cujos colaboradores não estão
rações didáticas e redes popfi- briel Marcel e talvez Heidegger, previamente unidos. Não apre-
losofantes. Faíscas do tempo. Mounier e Álvaro Vieira Pinto... ciamos as contradições; expon-
Fulgurações entre ser e nada, “pelo direito de pensar livre- do-as, porém, ao julgamento
como escapar dos desempenhos mente, condições necessárias à público possibilitaremos a sua
memorialistas? formação de futuros e autênti- diminuição e o seu posterior
cos líderes”. Não apenas sonhos ultrapasse”.
Na capa em preto e verde-oliva, de um Reitor, mas possivelmen-
signos de um projeto constru- te utopias da democratização Dos tempos de esperança aos
tivo de Orlando da Costa Fer- cultural pelas vertentes de Karl desejos de autosuperação:
reira: ESTUDOS universitários Mannheim. Ou nas veredas do quantos possíveis deslocamen-
– Revista de Cultura da Univer- radicalmente nosso Paulo Frei- tos, traumas, trânsitos de ou
sidade do Recife (atual UFPE) re. Expectativas de mudança, para uma sociedade aberta?
– I Julho-Setembro-1962. Para
não ocultar a dominância grá- Abril e maio são teus ensaios prediletos
fica dos ESTUDOS, reunindo entre a paixão dialética e a razão pura.
28 no mesmo exemplar ensaios e
resenhas, em tripartida confi- reformas de base, planejamen- 1962 nos remeteria a 1922 atra-
Estudos Universitários

guração: rigor argumentativo, tos. A SUDENE intercalando vés do Prefácio de uma Tradu-
sedução escritural e dispositi- Universidades e Movimentos de ção. Texto de autoavaliação de
vos analíticos. 1962 em 2009. Cultura Popular. sua obra germinal da juventu-
O verde-oliva da capa sugerin- de à maturidade – Social Life
do uma exclamação do progra- Mas o texto seguinte, autoria in Brasil in the Middle of the
mador visual Anacleto Eloi que do Secretário-Executivo, Prof. 19th century – Gilberto Freyre
nos cedeu sua coleção. Sem es- Luiz Costa Lima, se posiciona veio demarcar sem fronteiras
quecer o único poema editado, em termos de um realismo crí- seu lugar na História Universal
Teoria do Ócio, por Sebastião tico ao contextualizar: “O Bra- da Cultura. Das culturas. Das
Uchoa Leite: sil de hoje se apresenta como instituições de pesquisa. Das
Fundações de meta-universida-
Para que serves senão finalidade inútil des. “É o que o autor hoje ve-
florescimento estético ou metafísico sem memória? rifica com maior alegria, ao ler
trabalho escrito em idade ainda
Com Apresentação do Reitor uma vasta estrutura em trans- tão verde: não o turva nenhum
João Alfredo Gonçalves da Cos- formação. (...) “a presença em cientificismo, embora só o pu-
ta Lima situando... “a vivência choque de duas mentalidades. desse, talvez, ter realizado quem
da Universidade como um dos Uma, ardilosa ou ingenuamen- juntasse à sensibilidade ao pas-
meios de formar o homem inte- te conservadora, outra crítica sado da sua própria gente for-
gralmente, permitindo-lhe sen- ou sentimentalmente aderida à mação rigorosamente científica
tir as perplexidades do comple- transformação nacional”. Com em universidades estrangeiras”.
xo do ser”. parágrafo adiante, decisiva-
mente empenhado: “A luta por O melhor hermeneuta de si
Tempos de esperança quando a uma cultura brasileira desalie- mesmo e de sua obra enciclo-
experiência de vida podia aglu- nada, autenticamente situada, pédica, Gilberto Freyre jamais
tinar no mesmo período ima- não pode deixar de conter fla- seria cúmplice de qualquer for-
ginário, enquanto sintoma em grantes contradições, notada- ma de esquecimento: “Ao mes-
mo tempo, certo modo como em 1964. A seu modo, acima e consciência mais clara da res-
que impressionista, de tentativa abaixo dos ideologismos? Ou ponsabilidade”.
de reconstituição do passado apenas dos idioletos?
mais íntimo e até mais sexual Celso Furtado, brasileiro de Essa pré-revolução brasileira
do brasileiro – modo tornado
possível pela atitude empática Existe, é certo, uma paixão inútil:
do autor com relação aos fatos Os ardentes amam a feiúra
e, principalmente, ao elemento mas outros só podem amar a crueldade.
humano, uns e outro evocados
mais com alguma saudade dos competência universitária in- enfrentava não apenas os sons
antepassados do que com siste- ternacional, além das literatu- dançantes da bossa nova, dos
mática repugnância pelo antigo ras e filosofemas, investe sua frevos e cirandas, mas sobre-
só por ser antigo – já está pre- criticidade em Reflexões Sobre tudo os impasses da ética na
sente no agora intitulado Vida A Pré-revolução Brasileira. política, do planejamento para
Social no Brasil nos meados do Então ficamos sabendo que o desenvolvimento em conjun-
século XIX”. “o desenvolvimento de que to, da educação como prática
tanto nos orgulhamos, ocor- da liberdade, da Universidade
Empatia. Gestaltismo. Inter- rido nos últimos decênios, em abrindo horizontes d’O Gráfico 29
penetrações. Tempo tríbio. Stº nada beneficiou três quartas Amador ao Movimento de Cul-

Estudos Universitários
Antônio de Apipucos no mapa partes da população do país”. tura Popular.
mundi: dos regionalismos ao Entre 1962 e nossa contempo-
além do apenas moderno. raneidade, o que fazer se “os Enquanto Claudio Souto funda-
menta e apresenta a viabilidade
Coração do ser pulsando em movimento, de Um Projeto de Lei Agrária
só em pensar permanece imóvel: para o Estado de Pernambuco
o espírito cria imobilidade. através de “princípios jurídicos
básicos”, em texto mais inquie-
A água não se recorda de si mesma, tador Vamireh Chacon expõe
reflete sem memória, não há tempo a radicalidade de suas indaga-
mas ato puro, eterno presente. ções:

Para melhor confirmar a onipre- grandes contratos de obras “Por que nunca se fa-
sença de Gilberto e seu legítimo públicas passaram a ser fonte lou tanto em ‘reformas de
reconhecimento pela Revista corrente da acumulação rápi- base’, no Brasil, e elas não
em questão, o estudo de Gadiel da de fortunas dentro e fora vêm? Esta pergunta com
Perruci – Uma Europa Nova – do Governo”? Enquanto Celso frequência morde o sub-
está impecável na perspectiva de afirma, continuamos indagan- consciente de muita gente,
superação de todos OS ISMOS, do por ele mesmo: “em outras ou mesmo explode em os-
do “cidadão de uma pátria cha- palavras: a nossa impotência tensivas impaciências. Por
mada Trópico”. Entre os ismos em face do impasse mundial que???”
sem aspas não apenas imagis- tem como reverso uma maior
mos, impressionismos, mas so- margem de liberdade no que Entre os dois intelectuais parti-
bretudo capitalismos e comu- respeita à determinação dos cipantes, Claudio e Vamireh, tão
nismos. Tempos conturbados próprios objetivos. E como soe acesos por nossas contradições,
em 1962. Gilberto teve coragem acontecer, essa margem maior surge a figura que continua até
para suportar o civil-militarismo da liberdade traz consigo uma hoje paradigmática em busca de
nossa fundamental democrati- de todas as barras, cortes, exí- das privacidades. Para evitar o
zação: Paulo Freire. lios e autoexílios, sofrimentos e eterno retorno do apocalipse em
oportunismos. Nação Brasil. Na- 2012 nas telas e nos sem teto,
Tempos de criticidade ritmando ção Pernambuco, assim prefere por que NÃO rememorar mais
com amorosidade. Da Revista o discurso oficioso. Da nação um fragmento recortado do belo
que tentamos resenhar alguns sempiternamente cruel em suas e amargo poema-testamento de
textos – ESTUDOS Universitá- apartações e desigualdades. época do Sebastião Uchoa Lei-
rios, 1962 – Paulo Freire es- te?
creveu O Professor Universi- Interações, interpenetrações mais Talvez nos reste apostar na es-
tário Como Educador. Diálogo
e criticidade são suas palavras Assobiamos uma fuga de Bach
geradoras, tais como seriam, se- e sorrimos ante a lembrança do futuro
gundo a pedagoga-psicanalista
Dulce Campos, as situações-li-
porque sorrimos ante a idéia da morte.
mite da compreensão antropo- Bela é a fúria da máquina
lógica do Sistema Paulo Freire que intenta apanhar-nos em nosso destino.
de Educação de Adultos. ...
30
Impossível resenhar, como tal- do que perigosas entre política e perança dos micropoderes. O
Estudos Universitários

vez desejássemos, toda a plu- marketing. Jornalismo e Publici- resto é mar? Recife, outubro/
ralidade temática do número dade. Artes e Mercadorias. Du- novembro de 2009.
inaugural da Revista ESTUDOS alidades intransigentes. Globali-
Universitários da Universidade zação do politicamente correto.
do Recife, atual UFPE, lançado Anarquismos no liquidificador.
em 1962 e que agora ressurge Cosmopolitismo dos pobres e
ou se reinventa. Nossa percep- das classes médias carecendo dos
ção seletiva não foi capaz de fundos de incentivo governa-
encarar, reler e fruir do caráter mental. Paródias em nova tipo-
pluralista, polêmico e instau- logia das culturas chapa branca.
rador entre altas culturas e as Inventores auto-proclamados.
mediações interdependentes Mestres e diluidores embalados
no e do meio acadêmico para pelos orçamentos participativos.
o INTEIRO AMBIENTE, segun- Literaturas abaladas pela inter-
do expressão do pensador Fábio net. Fundamentalismos revisi-
Coelho, de nossas contradições tando seitas, dogmas, profecias.
transformadoras e sobretudo Depressionismos entre a física,
das múltiplas contra-dicções as populares religiosidades, as
de linguagem. Mas o NÃO da academias e a carnavália do Blo-
abertura desse texto, por uma co do Nada. A extensão audiovi-
imprecisa dialética da negati- sual da psicanálise esquecendo e
vidade, em nossos maneirismos recordando o mal estar das civi-
existentivos, continua sempre lizações e sifilizações. O mais ba-
atento, alerta e frágil, mas sem nal de nossa psicopatologia da
medo de temer a sorte... vida cotidiana continua sendo o
hibridismo perverso que devas-
Geração revisitada? 1962/2009 sa a coisa pública em benefício
As oligarquias culturais
e os palhaços da burguesia Marcius Cortez1 (escritor)

31
Estudos Universitários foi uma da publicação, gente que acen-
revista que não ficou botando dia velas para verdades extrema-

Estudos Universitários
banca. O objetivo dos seus edi- mente subjetivas e ingênuas.
tores era fazer uma boa revista
de cultura e nada mais do que Apesar disso, Estudos Universi-
isso. Sua fórmula consistia numa tários foi alvo de muitas críticas.
linha programática bastante de- Uma delas era que a redação fa-
finida e num projeto gráfico que lava demais em alfabetização e
primou por entendê-la como um educação de adultos. Na época,
todo. Do número um ao cinco – a Rádio Universidade do Recife,
1962/1963 - a diagramação da dirigida pelo poeta José Laure-
capa e o miolo se caracterizaram nio de Melo também entrou na
por uma unidade que lhe per- roda por conta do seu bordão
mite ser moderna após tantos publicitário: “Rádio Universida-
anos. Os cubos e as letras no es- de do Recife, a serviço da demo-
paço em branco da capa, varian- cratização da cultura”. Sem dú-
do de cor a cada edição, tem a vida, uma crítica preconceituosa
marca do bom design. Outro seu e equivocada porque o país se
grande mérito foi a diversidade encontrava mobilizado para er-
– tão em moda hoje em dia. Po- radicar o analfabetismo: viví-
rém, vamos deixar para depois o amos a euforia do PNA, Plano
porque dessa atualidade... À pri- Nacional de Alfabetização, obra
meira vista, numa passada pelos do Presidente João Goulart,
sumários das suas cinco edições, cujo objetivo era criar vinte mil
o leitor se impressionará com o círculos de cultura para atingir
espaço ocupado por ensaístas e dois milhões de brasileiros com
colaboradores que não tinham a implantação do método Paulo
nada a ver com a linha editorial Freire. No mais, à sua maneira, a
1
Endereço eletrônico: marciuscortez@hotmail.com
revista abria seu leque para eco- por se retirar de uma vivência e tinha percebido o mal que isso
nomia, pedagogia, arte, cinema, um tempo comunitário e, conse- faria à cultura brasileira.
atualidades (Angola, Cuba), fi- quentemente, de uma inserção
losofia (destaque para artigos em profundidade nesta vivência Foi a faca afiada do cozinheiro
sobre o Marxismo), antropo- e neste tempo comunitário. de almas que cunhou o termo
logia, história, ciências exatas, palhaços da burguesia.
medicina social, religião, crítica A verdade principal desse meu
de cultura, ciência política e é pequeno depoimento começa a Talvez por masoquismo, ou seja
bom lembrar que, de repente, aparecer. Fazer uma revista que lá porque, a nossa obsessão seja
no meio dos ensaios, estudos não seja alienada, em nosso país, gostar de pensar o mundo, jus-
e resenhas, aparecia um verso é impossível. Há duas pedras no to esse mundo que resiste ao
inteiro de algum poeta contem- caminho de qualquer publicação pensamento. Ou em outras pa-
porâneo (o primeiro número nos que pretenda ser independente lavras, somos movidos por nos-
trouxe “A Teoria do Ócio”, - já e corajosa: o clientelismo, tam- sas contradições. Possivelmente,
naquele tempo - , de Sebastião bém conhecido como brodagem, por conta de tudo isso, o cor-
Uchoa Leite). Muito bem, a essa e o monopólio. Nosso mercado dão dos insubmissos navegantes
altura, você deve estar se per- editorial, por exemplo, congrega cada dia aumenta mais, apesar
guntando “o que houve para distribuidores, livrarias, editoras da dureza que é fazer emergir
32 uma publicação assim não pas- privadas, editoras universitárias das profundezas a noite móvel
sar dos cinco números?” Ou in- e entidades institucionais como que nos habita.
Estudos Universitários

dagando de outro modo, “qual a Câmara Brasileira do Livro, a


a razão da prisão, inquérito e Academia Brasileira de Letras, Se você quiser quebrar a cara,
perseguição ao seu editor, o crí- que praticam de maneira selva- tente ficar colado a uma pro-
tico literário Luiz Costa Lima?”. gem uma política chapa branca posta de visão de uma cultura
Penso eu que foi algo mais além e mafiosa. Quanto ao monopó- realista, situada. É difícil admitir,
de uma idiossincrasia golpista, lio, vamos a um número: apenas mas as oligarquias culturais per-
pois tem mais jeito de haver sido sete famílias ligadas a grupos manecem com a faca e o queijo
coisa orquestrada pela ditadura, políticos dominam as grandes na mão. O Golpe, o Pós-golpe
que nunca se importou se ia su- redes de comunicação no Brasil, e o arremedo dessa democracia
jar o seu nome promovendo a que geram 85% das informações que impera entre nós impossi-
censura e empastelando ideias. veiculadas no país. O monopó- bilitou a sedimentação de uma
lio é uma forma sofisticada de mente crítica que gerasse uma
Num aspecto Estudos Universi- censura. Enquanto ele perdurar, pressão comunitária contra in-
tários se diferencia da maioria perdurará o xodó da sociedade telectuais ingênuos e não si-
das revistas de cultura produ- de consumo: a homogeneização tuados. E para piorar as coisas,
zidas no Brasil, no passado e das consciências, a qual cresce experiências como a da revista
no presente. Hoje quando vejo na proporção da homogeneiza- Estudos Universitários tombam
algumas dessas revistas pseudo- ção dos produtos de consumo pelo caminho. Certamente, se
culturais (Piauí, Cult), ponho-me de massa. O choque de ele- ela não tivesse sido fechada o
a rir porque elas caíram naqui- mentos dramáticos antagônicos seu exemplo haveria se multipli-
lo que logo de cara, a Estudos que tão útil seria para implodir cado. Com isso, o país não teria
Universitários descartou. Como a pasmaceira artístico-cultural perdido tanto tempo e o exter-
já disse, o primado substancial tomou chá de sumiço. Atual- mínio que nos ronda seria mais
da publicação editada por Luiz mente, a saída para muitos dos suportável.
Costa Lima baseava-se numa nossos escritores e poetas é ali-
concepção realista de cultura. O nharem-se e submeterem-se ao
que não vem a ser o caso das conteúdo do monopólio. Não os
citadas revistocas que optaram censuro: Oswald de Andrade já
Resgate
de um trabalho
desmantelado
pelo Golpe de 1964 33
Juracy Andrade1 Quase 50 anos depois do golpe ção do Sistema Paulo Freire de

Estudos Universitários
militar de 1964, é relançada a Educação e em seu método de
revista Estudos Universitários, alfabetização de adultos. Mas
que era editada pelo Serviço de lembro que ela foi concebida
Extensão Cultural (SEC) da então como uma publicação destinada
Universidade do Recife, chefiado a abrir espaço para a divulgação
pelo professor Paulo Freire (hoje das ideias e trabalhos dos pro-
Pró-Reitoria de Extensão da fessores da universidade, algo
UFPE). Antes de algumas con- comum em instituições do gê-
siderações sobre o que fazíamos nero e que não tínhamos.
naquela época, nós integrantes
da equipe desse autêntico gran- Depois da anistia de 1979,
de homem que revolucionou a quando fui reintegrado à UFPE
educação brasileira, ao lado de (fui demitido em 1964 com base
Anísio Teixeira e Darcy Ribei- no primeiro, e na época único,
ro, registro meu agradecimento Ato Institucional) e ocupei, até a
pelo convite para que eu parti- aposentadoria, o cargo de coor-
cipe deste relançamento. denador da Assessoria de Comu-
nicação Social, procurei saber
Não tenho mais nenhum exem- por que se havia abandonado a
plar da revista. A sede do SEC revista Estudos Universitários. A
foi saqueada pelos “revolucio- informação que consegui é de
nários”, desaparecendo precio- que sua publicação fora con-
sa incipiente biblioteca, obras fiada ao professor e poeta César
de arte e caros equipamentos Leal, que não se interessara pela
que eram utilizados na aplica- sua retomada.

1
O autor tem formação em filosofia e teologia e é jornalista. Endereço eletrônico: juracy.andrade@gmail.com
Concentrei-me, então, com a alheias aos legítimos interesses sassinatos de inconformados,
decisiva colaboração das colegas nacionais. Por toda parte bro- demissões arbitrárias, cassações
Teresinha Nunes (que ainda não tavam publicações, movimen- de parlamentares comprometi-
era deputada) e Luzanira Rego tos culturais, sociais, políticos dos com o povo.
(precocemente falecida), em me- dedicados ao objetivo de levar
lhorar a imagem da universida- o nosso país a ser dono de si Os autointitulados “revolucioná-
de, intensamente bombardeada mesmo, do seu destino, das suas rios” acharam que isso não bas-
na época devido a desentendi- riquezas. Talvez fosse cedo de- tava para conter o comunismo
mento entre o reitor Geraldo La- mais para se conseguir obter tal e então veio o golpe dentro do
fayette e Gilberto Freyre. Desen- objetivo, o que em parte está se golpe, com o Ato Institucional
tendimento que repercutia em conseguindo hoje (falta muito), nº 5: mais repressão, mais cassa-
abundantes matérias negativas tanto tempo depois. ções, tortura de presos políticos,
no Diário de Pernambuco, mui- desaparecimentos, um enorme
to ligado ao segundo. A pro- No Nordeste, que ganhara a atraso que só agora, tantos anos
pósito, com toda a veneração possibilidade de se reintegrar à após a redemocratização, come-
devida ao mestre de Apipucos, Federação com a Sudene origi- ça ser lentamente recuperado. A
lembro que foi ele, devido a de- nal de Celso Furtado, e sobretu- retomada de Estudos Univer-
34 sentendimento com outro reitor, do no Recife, as iniciativas pela sitários certamente contribuirá
João Alfredo da Costa Lima, que contemporaneidade do progres- nesse sentido.
Estudos Universitários

insistiu junto aos coronéis de 64 so mundial se multiplicavam,


para que a então Universidade mobilizando a juventude, os
do Recife fosse submetida a um estudantes em ações como o
Inquérito Policial Militar. Movimento de Cultura Popular,
o SEC, a explosão artística no
O fato é que a revista Estudos teatro popular, atividades que
Universitários continuou desa- atraíam a admiração de jovens
parecida mais 30 anos e agora do Rio e e de São Paulo, que
volta sob a égide da Pró-Rei- aqui vinham ver o que se estava
toria de Extensão, o que, além fazendo para mudar o país.
de ser muito positivo para a
comunicação da UFPE com o É aí que se insere a revista Es-
mundo acadêmico, tecnológico tudos Universitários, produzida
e científico, e com a sociedade pela equipe do SEC dentro dessa
em geral, significa o resgate de movimentação de independên-
uma iniciativa de valor de uma cia, autonomia e modernidade.
equipe que realizou um trabalho Os militares, cujas lideranças
sério e foi punida arbitrariamen- eram formadas no War College
te pelo golpe militar de 64. dos Estados Unidos, viam tudo
isso, dentro da bitola da Guerra
Os anos que precederam o golpe Fria, como um avanço interno
foram de grande efervescência do comunismo para dominar o
e euforia com a perspectiva de Brasil e convenceram disso o go-
mudar um país cujas elites insis- verno dos Estados Unidos. O res-
tiam (prosseguem insistindo) em to a gente sabe como foi: golpe
permanecer no atraso, atreladas militar, poder arbitrário durante
a um dos lados da Guerra Fria e 21 anos, repressão, prisões e as-
A Revista
e o Patrono
Geraldo Pereira1 Fico satisfeito em saber que a foi mestre – continua sendo um
Revista Estudos Universitários, mestre dessas relações –, princi-
da Universidade Federal de Per- palmente quando fundou e pre-
nambuco (UFPE), não apenas foi sidiu por anos a fio o Seminário
resgatada, mas, sobretudo, volta de Tropicologia, aglutinando
a contar com uma periodicidade pensadores de várias searas dos
estabelecida. Nisso devo reco- saberes humanos. E a Revista é
nhecer o protagonismo do Rei- um pouso certo para tanto.
tor Amaro Lins e o papel da pró- 35
reitora Solange Coutinho, ambos O diálogo da universidade com

Estudos Universitários
comprometidos sempre com as a sociedade passa, necessaria-
peculiaridades sociais e econô- mente, por um periódico assim,
micas da gente de Pernambuco com a possibilidade de abordar
e especialmente voltados para as temas que interessem de perto o
particularidades culturais do Es- poder público e cheguem à so-
tado. Uma instituição acadêmica ciedade organizada. As grandes
do porte da UFPE, precisa mes- questões de Pernambuco, so-
mo dispor de um veiculo assim, bretudo as atuais, aquelas liga-
capaz de servir ao pensamento das ao petróleo, à refinaria e ao
dos professores e dos pesquisa- estaleiro, reconhecem a discus-
dores da Casa. Pensamento que são e o debate desses assuntos
não deve se restringir às publi- de forma ampla, notadamente
cações de natureza estritamente com a inserção dos docentes da
científica, nas quais as normas academia, no caso em particular,
para publicação exigem uma dos pesquisadores que são pro-
metodologia própria, as quais fessores da Universidade Federal
são, por vezes, limitantes. De de Pernambuco, sem desprezar
mais a mais, entende-se que as as demais, em pé de igualdade
ciências e as vertentes da cultu- com a instituição primeira. Há
ra e das artes se relacionam com uma nova perspectiva no Estado,
facilidade, permitindo ao inves- especialmente no Recife, o declí-
tigador ou ao ensaísta a produ- nio da violência urbana; declínio
ção de textos que sejam plurais, que resulta de um esforço con-
multidisciplinares e transdisci- junto das lideranças de governo,
plinares. Nisso Gilberto Freyre mas que é fruto do planejamento
1
Professor da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE e membro do Conselho Estadual de Cultura. Endereço
eletrônico: pereira@elogica.com.br
e da execução de um programa muito da arte para ser escrito e natural nos distantes rincões;
criado por um doutor da UFPE. discutido; para ser lido, princi- natural e até importante, por-
Um tema de grande atualidade, palmente. que na crença do povo – a Igreja
o qual não poderá dispensar o contribuiu para isso – os meni-
concurso de outros interessados Paulo Freire, que inspira este nú- nos falecidos viravam anjinhos
nesse esforço que vai dando cer- mero da Revista Estudos Univer- protetores da família nos céus.
to e poderá servir de mote para sitários, a quem conheci pesso- Mas Freire não fez, somente,
um dos números futuros. almente numa das vezes em que essa mudança no palavreado das
esteve na Universidade Federal cartilhas, tendo trabalhado espe-
Há certos assuntos, como a eco- de Pernambuco, foi um pionei- cialmente no sentido de libertar
logia e o meio ambiente, o sane- ro, um antecipador social. Por o homem do jugo em que vivia,
amento, a formação técnica dos isso, pelo pioneirismo e pela an- sob os grilhões da ignorância e
jovens para o mercado de traba- tecipação de suas iniciativas, pa- do analfabetismo. Por essa razão
lho em expansão e a temática receu tão ameaçador para o re- promoveu a inclusão social da
de agora, a do analfabetismo, gime ditatorial. É assim, quando pessoa; da pessoa simples, hu-
enfocando Paulo Freire, espe- o homem pensa, mesmo sendo milde.
cialmente. Não é exagero incluir um cidadão simples, com toda
36 assuntos que contemplem o es- certeza cria asas e torna-se ca- Quando Paulo Freire visitou a
pírito, tais como a prosa e a po- paz de exercer a cidadania. Tem Universidade numa das vezes em
Estudos Universitários

esia. Pernambuco é o celeiro das condições de falar e de ser ou- que esteve em Pernambuco, o
letras, porque foi aqui que se es- vido, mas sobretudo tem como cerimonial concedeu a palavra a
creveu o primeiro livro brasileiro: fazer a escolha certa na hora do um prefeito analfabeto. Ele su-
a Prosopopeia. Bento Teixeira foi sufrágio nas urnas. E isso pode biu ao palco e disse: “Não tenho
quem redigiu este poema épico; mudar e muda todo o contexto inveja de ninguém! Só tenho in-
uma peça em termos de criação tradicional do eleitor de cabres- veja de quem sabe ler!”. Na ver-
literária. Mas, foi por cá, de igual to, do antigo coronel do interior, dade, aquele político estava se
forma, que a medicina prospe- que mandava e desmandava, que queixando ali, em nome de todos
rou, quando se publicou o resul- indicava o candidato e até, como os que vivem à margem da so-
tado das pesquisas de Guilherme sucedia às vezes, deixava de re- ciedade, porque não sabem ler e
Piso e Georg Marckgraf, médicos velar o nome sufragado, justi- por isso mesmo não se integram
e naturalistas da expedição de ficando que o voto era secreto. à vida comunitária e social. Sen-
Nassau. Ou foi por cá, também, Isso desaparece no momento em do assim, Paulo Freire, que não
que veio à luz os livros de Mou- que o matuto ou o homem nas- admitia fosse o homem frustrado
rão, Rosa e Pimenta. Esses te- cido no esturricado dos agrestes em seus direitos mínimos, talvez
mas, sobretudo históricos, bem aprende a ler e passa a se incluir tenha sido o introdutor do per-
que poderiam ser incluídos no no seio social. tencimento entre as populações
elenco de assuntos selecionados periféricas, marginais. E talvez
para o porvir das coisas. O grande educador acabou com tenha sido o mesmo educador o
a velha frase das cartilhas de ou- introdutor, também, do empo-
É esse intercâmbio, em tudo sa- trora: “A vovó viu a uva!”. Ora, a deramento social. O responsável
lutar, pode contemplar, também, vovó da gente nordestina nun- pelo poder que pode ter e tem o
as diversas manifestações cul- ca viu uma uva sequer, antes se cidadão comum no exercício de
turais e artísticas, promovendo habituou a ver o sofrimento da seus direitos e deveres.
estudos que sejam definitivos fome, da desnutrição e da diar-
no tocante às origens dessas réia. Da mortalidade infantil, so-
expressões da cultura local. Há bretudo, tomada como um fato
Entrevista
39

Um trabalho rico

Estudos Universitários
de possibilidades 1

A iniciativa de dar continuidade à publicação da Revista Estudos


Universitários remeteu a uma memorável conversa-entrevista com
o Profº. Jarbas Maciel2, verdadeiro prodígio da cultura brasileira.
Músico, matemático e filósofo pernambucano, nascido em 16 de
maio de 1933, Jarbas Maciel estudou no Conservatório Pernam-
bucano de Música, tendo sido aluno do Maestro Guerra Peixe.
Bacharelou-se em Filosofia pela antiga Faculdade de Filosofia de
Pernambuco e em Matemática pela Universidade da Pensilvânia
em Filadélfia. Nos anos 1960 participou ativamente dos movi-
mentos culturais da cidade, colaborando com o Serviço de Exten-
são Cultural da antiga Universidade do Recife (atual UFPE), criado
por iniciativa do educador Paulo Freire. Após 1964 e o expurgo
da equipe formada pelo escritor da Pedagogia do Oprimido, Jar-
bas continuou contribuindo com a universidade e com a produ-
ção cultural local, tendo sido um dos criadores do Movimento Ar-
morial. Atualmente realiza pesquisa na área de Ontologia Formal
(Teoria da Relação), campo filosófico no qual vem desenvolvendo
um importante artigo. Quando indagado sobre o título que mais

1
Entrevista realizada com o Professor Jarbas Maciel em 27 de novembro de 2009, por Miriam Vila Nova Maia,
Dimas Brasileiro e Djanyse Mendonça. Endereço eletrônico de Miriam Vila Nova: miriamufpe@hotmail.com
2
Endereço eletrônico do Prof. Jarbas Maciel: jmrecife@terra.com.br
preza, responde: “o de ter sido aluno do maestro Guerra Peixe,
um dos maiores compositores de vanguarda do Brasil, um dos
mais importantes compositores dodecafonistas e um dos maiores
folcloristas do país!”.

Sobre a fundamentação O objetivo foi chamar a atenção de Paulo e da equipe que nós
teórica do sistema Paulo estávamos lidando com uma coisa muito maior do que simples-
Freire publicada em 1963 mente um método. Não era só um método de entrar na sala de
aula e alfabetizar. Toda a motivação da alfabetização é calcada
na revista Estudos Uni-
em uma visão de mundo que está muito bem explicitada no cha-
versitários. mado de Paulo. Então, a primeira intenção foi essa. Alertar que
nós estávamos lidando com uma coisa bem maior. Em segundo
lugar, a riqueza das ideias de Paulo, as ideias originais de Paulo,
era tanta que me despertou um desejo de trazer para o método
uma tecnologia lingüística que permitisse um trabalho que nunca
tinha sido tentado no país. E que no frigir dos ovos nos faria
realizar um grande, esse não era o ideal de Paulo, mas isso era
uma grande advertência que ele não se cansava de fazer, é que a
40 educação tem que ser permanente, não tem sentido você educar
crianças ou só alfabetizar adultos e quando acabou, pronto, está
acabado e “tchau”. A educação é um processo permanente. Então
Estudos Universitários

a gente pensava nisso, desenvolver um tratamento linguístico, em


cima das ideias originais de Paulo, que nos permitisse a conclu-
são. O primeiro trabalho que a equipe tinha quando ia alfabetizar
uma comunidade de adultos era levantar o universo vocabular.
Então nós queríamos alfabetizar e fazê-los progredir. Não era
somente alfabetizar. A gente ia produzir livros com universos
vocabulários de quinhentas, mil, duas mil palavras, e trabalhando
toda literatura brasileira, José Lins do Rego, Jorge Amado, quem
fosse. Era possível fundamentar? Claro! O trabalho era riquíssimo
de possibilidades. Não era uma ordem, o método não precisava,
era emoldurar o método dele em uma perspectiva mais ampla. Era
um sistema de educação permanente de adultos.

O impacto do golpe na Foi uma tragédia. Cada pessoa tem uma maneira de reagir a um
produção cultural e golpe desse. Eu estava muito entusiasmado com esse trabalho, e
intelectual quando essa coisa ocorreu foi um choque. É como eu digo, foi
uma tragédia. É como se você tivesse levado um tiro na espinha.
Você fica paralisado. E cada um tem sua maneira de reagir. Não
se abalou, ah meu Deus, eu não gosto nem de falar nisso. (...)
O Recife ficou pequeno, foi difícil viver aqui. O Jomard, Jomard
Muniz de Britto, sempre foi um intelectual de luz própria, ele
tinha seus próprios projetos, e está aí, até hoje ele está por aí. Eu
simplesmente parei tudo. Parei tudo realmente. E os contatos que
nós tínhamos na Paraíba, eles estavam empenhadíssimos nesses
objetos vocabulários. Por que se você alfabetizar e deixar, acabou.
Infelizmente é uma resposta muito trágica essa minha, não é?
Elaboração do projeto e Foi extraordinário. Quando eu voltei dos Estados Unidos, eu esta-
criação da TV universitária va mais ou menos desempregado. E fui convidado pelo pessoal da
TV Tupi para fazer um curso com o bambambam da tv brasileira.
(...) Eu saí da televisão. Mas meu primeiro trabalho aqui no Brasil
foi na televisão. Eu retornei em 1960. No final de 1960. Então lá
na televisão, eu conheci um sonoplasta, chamado Hugo Martins,
que foi importantíssimo na TV Universitária. Aí quando Edimir
Régis, teve que criar a TV e o rádio, ele veio me buscar para que
ajudasse a fazer a rádio. Eu disse: “ih rapaz.. Você fazer uma
rádio é complicado, por causa da qualidade”. Então ele falava,
“vamos fazer”. Ele era preocupado com a continuidade. E tem tão
pouca gente preocupada com a continuidade das coisas. (...) “Aí
ta certo”, eu disse, “vamos fazer a rádio”. Aí ele tinha um material
de música que queria levar ao ar. O Hugo adorava. Ele colocava
na pastinha os discos. E o povo adorava. Um belo dia quando eu
estou fazendo o programa, de noite, o Edimir Régis vem e joga
uma pastinha em cima de minha mesa. “O que é isso?” pergun-
tei. “É o orçamento para nós fazermos uma TV universitária”.
E disse “Edimir, essa ideia é muito boa, mas tire o cavalinho da
chuva porque isso é muito caro.” “Não, mas a gente consegue 41
o dinheiro”, afirmei “Mas a universidade não tem dinheiro para
isso”. Respondeu “mas a gente consegue e é você que vai fazer o

Estudos Universitários
projeto”. Isso foi em 1966, 1967... Dizia “Tem que ser logo, não
pode dormir no ponto”. E eu chamei o Hugo e nós fizemos o
projeto. E quando estava pronto nós fomos levar para o professor
Murilo, o reitor. E ele quase chora. Pegamos ele de surpresa. Eu
disse “Essa é a menina dos olhos do seu reitorado”. Ele pegou na
hora. A tal ponto que na hora de fazer a concorrência para ver
se era a Toshiba, a Sony, ele fazia pessoalmente as concorrências
(risos). E saiu a TV Universitária. Por uma ideia de Edimir Régis.
Ela está passando por uma reestruturação. E isso é bom. Agora é
um problema, porque a TV Universitária é problema de fazer.

O Movimento Armorial Fui chamado (por Ariano Suassuna) para colocar música nas
peças dele. Aí a gente fez um concerto com a orquestra de cordas
da sinfônica na Faculdade de Filosofia de Pernambuco, a FAFIPE,
ali na Nunes Machado, aí quando acabou o concerto eu peguei
o instrumento, fechei na maleta e ia saindo então o Ariano disse,
“senta aqui, senta aqui, rapaz vamos fazer o movimento”. E eu
falei, “está certo, vamos fazer”. Aí fizemos. O Movimento Armo-
rial tem um embasamento filosófico muito sólido sobre a forma
de uma proposta estética genial. Mas institucionalmente não se
encontrou. Você entra na casa de Ariano, é um santuário, um
santuário de cultura. Gilberto Freire, hoje se fala muito pouco de
Gilberto e foi uma das maiores inteligências do Brasil.

Paulo Freire Olhe, o que eu posso te dizer, ele era um homem bom, é a pri-
meira ideia que me vem e era profundamente culto. Ele era de
uma inteligência brilhante. Paulo quando começava a falar, sei lá,
ele tinha uma técnica, ele colocava o auditório na palma da mão.
Impressionante. Ele gerava uma empatia, ele levava a platéia aon-
de ele queria. Eu nunca me certifiquei disso, mas eu soube que
Paulo, antes de fazer concurso para universidade, Paulo cantava
serestas. Aqui em Casa Forte. Não é qualquer pessoa que tem essa
sensibilidade, esse poder de comunicação, só podia resultar em
uma coisa excelente.

César Leal e a retomada O César às voltas com a revista, e eu a todo o momento dizia a
da Estudos Universitários ele, “César, esquece isso. Faz a tua poesia”. E ele de fato estava
em 1966 fazendo o “Triunfo das Águas”, que é uma poesia massuda, tipo
epopéia. Poemas grandes. E naquela ocasião já estava ganhando
projeção internacional. Eu fiquei muito calejado. Eu me tornei
uma pessoa muito descrente. É como se você casasse, tivesse
filhos e colocasse-os nos melhores colégios da cidade. E depois
você vai e tira eles do colégio e diz, acabou. Não se toca mais
nesse assunto. Isso não existe.

42
Estudos Universitários
Estudos
Musicologia: Oportunidade
para a Universidade Brasileira1 45
Jarbas Maciel2

Estudos Universitários
Música, analisada de um ponto de vista estritamente filosófi-
co – o que equivale a dizer que a generalização de seus con-
ceitos fundamentais foi levada a seus limites extremos – surge
como uma manifestação cultural cujas raízes são duplas. Uma
ramificação afunda-se nos domínios, da atividade estética, ou
seja, nos domínios da Arte propriamente dita. A outra rami-
ficação está orientada em direção aos domínios da atividade
científica. Música: arte e ciência.

Entretanto, o que se tem observado em sua longa e relativa-


mente lenta evolução histórica é que somente a raiz estética
– música como arte – foi desenvolvida com ampla liberdade
e, como não deixa de ser curioso observar, com zelo e um
ciúme já tradicionais. A raiz científica da Música tem sido,
consequentemente, obscurecida, por vezes evitada, segrega-
da até e, por fim, relegada a uma categoria de inferioridade
perfeitamente anacrônica. É, hoje em dia, unicamente objeto
Cópia do artigo publicado na primeira edição da Estudos
1
de atenções e dos cuidados de fabricantes de instrumentos
Universitários, em 1962. musicais, de engenheiros que dirigem “studios” de gravações
2
Jarbas Maciel é professor aposentado do Departamento de
Filosofia da UFPE. Conferir seu currículo na introdução do eletro-mecânicas na América e na Europa e, finalmente, de
artigo “Um trabalho rico de possibilidades”, pág. 39. Endereço
eletrônico: jmrecife@terra.com.br
um reduzido número de compositores e investigadores que
procuram abrir novos caminhos estéticos com a Musicologia. Afora
essas exceções, a pesquisa dos fundamentos científicos da Música
tornou-se, para o grande público, um verdadeiro “tabu”. Ninguém
– nem mesmo o filósofo – se sente mais à vontade para discutir,
comparar, especular, pesquisar enfim tais questões. E não parece
haver argumento capaz de afrouxar estes preconceitos centenários
arraigados na mentalidade geral. Para os que sustentam seme-
lhante posição – a grande maioria, aliás – Música, como de resto
tudo o que cheirar a criação artística em geral, é algo intocável.
Santuário que se deve observar a distância. A obra extensa dos
grandes compositores é museu indevassável, misterioso e repre-
senta um amontoado de conquistas de cujo caráter fixo, imutável
e eterno não se pode duvidar, nem mesmo cientificamente. Seria
atrevimento, irreverência ou profanação impertinente. É como se
todo um considerável setor do pensamento filosófico – a Estética,
pura e aplicada – tivesse parado no século XVI e, ignorando Bacon
e toda a grande revolução cultural que ele trouxe e que tem se
desenvolvido sem perdas consideráveis de continuidade até os dias
atuais, tivesse radicalizado suas posições em torno de um obscu-
46 rantismo medroso, de um alheamento estúpido às tremendas mu-
danças da realidade histórica social que ai está, efervescente como
nunca, profundamente fértil e trazendo dentro de si os germes
Estudos Universitários

poderosíssimos de uma época de grandes conquistas para a Hu-


manidade. Observem-se como os demais campos da investigação
filosófica evoluíram e se tornaram independentes a partir de então,
constituindo as chamadas ciências particulares. Novos horizontes
seriam, mais tarde, desbravados, como é o caso da Sociologia e, de
um modo geral, das Ciências do Homem. Mas não assim com res-
peito à Estética. Esta nunca se especializou e nem vingou abando-
nar, de um modo geral, sua posição tradicional que, remontando
à própria Antiguidade Clássica, estacionaria de uma vez por todas
no estágio em que se achava ao abrir do século XVI. Limitou-se,
quando muito, a adotar uma posição teórica e idealista em face
da produção artística da humanidade – produção esta que se de-
senvolvia independentemente mesmo de qualquer auto-reflexão
de caráter filosófico – numa evidente prova de seu isolamento
medroso diante da realidade histórica e social. Consequentemen-
te, hoje, a Estética (com raras exceções que se devem agradecer
principalmente a alguns não-estetas ilustres, dinâmicos e realistas)
limita-se a observar passivamente os resultados da produção artís-
tica contemporânea, chegando sempre depois e atrasada, com seus
julgamentos amiúde verbais e subjetivos que somente concorrem
para aumentar a onda de obscurantismo inútil que parece envolver
o campo da criação artística. Em Música delineou-se, fracamente,
a única reação concreta, dentro dos domínios da Estética, a seme-
lhante estado de coisas: surgiu a Musicologia, a partir dos fins do
século XIX.

Musicologia – ciência da Música. Apesar de ter nascido um pouco


tarde, com a instituição em 1878 de um curso oral de História
da Música no Conservatório Nacional de Paris, com a fundação
em 1895 da famosa “Schola Cantorum” e com a especialização
crescente dos estudos de etnologia que indicavam claramente o
novo ideal particularista que se apossava da Antropologia e da
Sociologia, a Musicologia tem se constituído talvez no único ramo
autêntico de investigação estética aplicada. Suas investigações têm
caráter concreto e significação objetiva, dado que suas ramifica-
ções a relacionam com departamentos de conhecimento cuja im-
portância é decisiva para a interpretação do homem, da sociedade
e da natureza. Além disso, abre novos campos de investigação, re-
lacionando com a Música várias ciências especializadas e aparente-
mente afastadas dos domínios da Estética. Parte da Física, que lhe
dá subsídios para o estudo da acústica. Liga-se à Fisiologia, com
o estudo do aparelho vocal e auditivo, e à Psico-fisiologia, com o
estudo da mecânica de reações sensoriais e perceptivas diante dos
estímulos sonoros e rítmicos. Envolve um vasto campo de estudos
a bem dizer virgens no campo da Psicologia, aspecto este que
parece mais direta e fundamentalmente ligá-la à estética propria-
mente dita. Junta-se à chamada Métrica, com o estudo matemá-
tico das chamadas configurações rítmicas temporais. Associa-se à
História, para a qual contribui decisivamente com os estudos litúr- 47
gico e de cunho nacionalista. Representa, por fim, departamento
fundamental das Ciências do Homem, trazendo, com os estudos

Estudos Universitários
sobre o folclore de todos os povos do mundo e com os chamados
levantamentos musicográficos (gamas e escalas regionais) das mais
variadas regiões do globo, uma contribuição preciosíssima para a
Etnologia. Ainda, é possível que a pesquisa musicológica chegue a
evidenciar, com um respeitável apoio científico particular e filosó-
fico (estético), a pretendida união de todas as artes.

Seja como for, o fato é que a Musicologia continua a ser, ainda


hoje, mal conhecida e instintivamente evitada pelo grande público
consumidor dos produtos finais da raiz estética da Música. É o
velho preconceito em ação, que já começa a fazer lembrar certo
hipotético atavismo a condicionar toda a mentalidade musical do
Ocidente civilizado dentro dos moldes europeus. O grande público
musical ainda continua a temer a outra face da moeda, isto é, tudo
o que se relacionar à raiz científica da criação musical. Pelo que
nos propomos a mostrar, neste breve estudo, como semelhante
atitude é falsa, inautêntica, ilusória, idealista e, por fim, inútil ao
progresso mesmo da Música como um todo.

É que este mesmo público – musicalmente alienado - não somente


consome os produtos acabados de uma intensa elaboração musi-
cológica mais ou menos inconsciente mas, através de suas próprias
tendências para o que é novo, para a renovação refrescante de ve-
lhas formas musicais do passado, contribui ele mesmo, inconscien-
temente, para a realização das inúmeras conquistas musicológicas
e musicais que tem sustentado nos ombros o que de evolução a
Música tem experimentado nesses últimos cem a duzentos anos.
Trata-se, portanto, de fazer vir à luz – e principalmente aos olhos
do público – toda essa intensa elaboração musicológica, trocando
miúdos os resultados dessas conquistas lentas mas certeiras que
tem impulsionado para adiante a criação musical em todos os ní-
veis (popular, semi-popular, técnico-programático e erudito) com
bases diretas ou mais ou menos indiretas no folclore. A “alienação”
musical desse público ressalta claro como cristal quando se o vê
precisamente contribuir, sem a mínima consciência disso, para rea-
lizar na prática musical o que se entende por inovação rítmica, me-
lódica ou harmônica de formas presentes na tradição ocidental ou
de caráter estritamente regional ou mesmo local. Nós temos, aqui
no Brasil, um exemplo notável disto que acabamos de dizer com
a chamada “bossa nova” em nossa música popular. O ritmo típico
“bossa nova” é a realização de um grau a mais de assimetria rít-
mica dentro do ritmo de samba tradicional, com bases diretas em
certas variantes de um ritmo chamado “xambá” nos nossos xangô
e candomblé. É inovação rítmica legítima, perfeitamente enqua-
drada dentro das tendências atuantes da evolução musical afro-
brasileira. É não somente um fato musical impressionante, como
também uma prova soberba de nossa vitalidade musical. Música no
Brasil – seja ela popular ou erudita – é algo vivo, atual, dinâmico,
48 autêntico. A chamada “bossa nova” é, ao mesmo tempo, etnológi-
ca, histórica e socialmente autêntica e válida. Isso principalmente
quanto ao seu fraseado rítmico, de efeito africano direto. Quando
Estudos Universitários

à melodia e à harmonia, representa a “bossa nova” uma fusão a


princípio desconcertante e improvável de duas correntes ou ten-
dências atuantes no seio da música brasileira. Uma, que procura
restabelecer uma linha melódica recortada, parecida com a anti-
ga serenata romântica de nossa música popular de 40 a 50 anos
atrás. A outra, que superpõe a essa melodia recortada, rebuscada
às vezes, uma harmonia essencialmente cromática, riquíssima e de
um poder antes nunca visto em nosso populário. É uma harmonia
difícil, às vezes, para o ouvido do povo ainda não acostumado, por
conter um alto teor de tensão dissonante e uma densidade sonora
mais complexa do que a utilizada por Debussy ou Ravel.

É como se o povo sentisse em que direção deve marchar o pro-


gresso, a renovação dessas formas já estabelecidas por um passado
musical mais ou menos contínuo e, com as próprias mãos, sem o
saber, molda através de seus autênticos representantes – os ver-
dadeiros compositores (populares, semi-populares e eruditos) que
têm realmente o que dizer – os destinos da canção brasileira. É
que a música, como tudo o mais, não pode parar historicamente.
Avança, como na “bossa nova”, através de uma estranha alquimia:
mistura do velho (linha melódica recortada, à maneira de nossas
antigas serestas, que imortalizaram um Xisto Bahia, um Heitor dos
Prazeres ou um Ernesto Nazaré) com o novo (estrutura harmô-
nica vertical cromática, mais densa do que as harmonias dos im-
pressionistas franceses). A período de relativo desfazimento, como
ocorreu logo após a Segunda Guerra com a excessiva influência
norte-americana (veja-se a ausência de ritmo, por exemplo, em
toda a produção popular dominada por Dick Farney e Lúcio Alves),
impõe esse mesmo estranho alquimismo períodos de afirmação
do nacional (veja-se, na “bossa nova”, uma retomada de marca-
ção rítmica extraída ainda morna de nossas raízes culturais africa-
nas). Situações como essas evidenciam, antes de tudo, vitalidade
musical de um povo. Não admira que, neste momento, a música
popular brasileira – e não somente nossa música erudita – tenha
tomado conta das platéias européias. Guerra Peixe em reportagem
radiofônica recente, após classificar a chamada “bossa nova” como
“a melhor coisa surgida ultimamente na música brasileira”, acres-
centa o seguinte comentário: “As combinações harmônicas, que
até a pouco se vinha tornando cópia servil de padrões cosmopo-
litas, vão agora criando aspectos surpreendentes. O que resta do
impressionismo francês (lembro Debussy e alguma coisa de Ravel)
– harmonias que nos EE. UU. Não passaram de simples adaptações
exteriores – vem no Brasil adquirindo alguma personalidade. Aliás,
no que tange às relações entre melodia e harmonia, convém, a tí-
tulo de ilustração, salientar o seguinte: depois de Gershwin, Elling-
ton e Porter, a música popularesca norte-americana estacionou,
sem que até o momento se verificasse a mais leve manifestação de
renovação; antes descambou para o virtuosismo do “bebop” e para
o desenvolvimento supérfluo da orquestração, no fundo simples 49
artesanato profissional, jamais criação autêntica. Na música bossa
nova, a harmonia é modulante e parte intrínseca da composição,

Estudos Universitários
tornando-se um valor estético de indubitável validade. E a melodia
adquire maior expressão exatamente naqueles momentos quando
a harmonia (acordes) cria determinadas condições”. A que se deve,
fundamentalmente, semelhante vitalidade? Ao povo, sem dúvida
alguma. Mas, tudo isso ele faz sem saber! Exatamente por isso é,
musicalmente, alienado. Os próprios músicos e demais profissio-
nais – professores, instrutores, arranjadores, compositores, etc. – se
acham, via de regra, neste estado de inconsciência diante das cor-
rentes musicais históricas que os carregam a todos, quer queiram
ou não, quer disso tenham conhecimento ou não.

De fato, não é raro presenciar-se um culto exagerado do passado.


Ensina-se música, em geral, como um fenômeno eternamente en-
volto em mistérios insondáveis. Os grandes compositores são en-
deusados e suas obras, impropriamente analisados, tornam-se ami-
úde pouco menos do que incompreensíveis. Teriam criado música
longe do povo, divorciados do popularesco e através unicamente
de uma sutilíssimo inspiração que vinha misteriosamente “do alto”.
Ninguém se dá ao trabalho de dizer que a própria polifonia en-
sinava seus primeiros passos no medievo, dentro de catedrais e
organizações monástica para, logo depois, ganhar as ruas e ser
arremedada pelo populacho cujos ideais musicais tão bem incorpo-
ravam os menestréis ambulantes, “troubadours” e “trouveres” que
povoam toda a produção literária da época. Nesse foco de criação
popular intensa é que beberam os grandes – mas infelizmente já
esquecidos – paladinos da música bizantina (séculos X a XIII, nota-
damente), em cuja obra se encontram muitas das constantes musi-
cais da Idade Média que, muito mais tarde, com os impressionistas
franceses, movidos pela “Scholla Cantorum”, serviriam de “pistas”
na busca desenfreada pelas raízes nacionalistas da criação musi-
cal francesa, espanhola, etc. Entretanto, o alheamento à realidade
histórica da criação musical persiste, teimoso e cego. A inconsci-
ência e a falta de crítica diante das verdadeiras correntes musicais
históricas, do passado ou do presente, dos paises estrangeiros ou
de nosso próprio país ainda dominam grande parte do público
musical de nossos dias. E mal seculares que atingem auditórios e
músicos profissionais, indistintamente.

Observe-se, a este respeito, como raro é o instrumentalista que


parece enxergar além dos símbolos e da notação das partituras
musicas, como também além das possibilidades das “máquinas
sonoras” que manejam com eficiência. Falam, por exemplo, em
“estudar” ou “executar” música quando, em realidade, apenas pa-
recem reduzir seus horizontes estéticos à simples manipulação de
uma máquina musical destinada a dar expressão sonora a sím-
bolos e sinais convencionais registrados num pentagrama. Raro é
o músico profissional que, às custas de sua própria reflexão, está
capacitado a adotar uma posição crítica, por exemplo, diante da
50 validade destes símbolos e sinais convencionais com que se re-
gistram ritmos, melodias e harmonias no papel de música. Sua
grande maioria acredita nesta validade como se ela fosse um dado
Estudos Universitários

“a priori” da razão. O próprio estudante de composição acredita


estar, de fato, estudando música quando, em última análise, toda
a sua atividade reduz-se a puro mimetismo inconsciente, através
do qual ele aprende o manejo dito “correto” daqueles símbolos e
sinais dogmáticos e muitas vezes enigmáticos, que os instrumen-
talistas mais tarde traduzirão em sons. Via de regra, o estudante
de composição não tem independência nenhuma, não tem auten-
ticidade nenhuma. Obrigado a ficar voltado para o passado, perde
contato com sua realidade histórica e social especifica, que é a de
seu povo, de sua terra, e, sem poder viver aquele passado porque
não pode ter a mesma perspectiva que animava os grandes mestres
que, agora, procura em vão imitar, entra em franca crise ao sabor
das mais desencontradas e violentas contradições. Uma vez em cri-
se, só lhe resta uma alternativa: enveredar pelo curiosismo musical
que se faz passar, atualmente, por “música moderna”, ou música
“atonal”, politonal, microcromática ou simplesmente “música con-
creta”, afundando-se num cerebralismo mais cedo ou mais tarde
fracassado. Perde-se, assim, num desfazimento musical que não
encontra a menor repercussão no seio do povo, antes afugenta-se.
Tanto auditórios interpretes como compositores, privados de uma
visão crítica que, ela somente poderá salvá-los do “caos” musical,
já que mais parecem se dar conta de que, o quanto de tentativas
e experiências musicais têm sido feitas no Ocidente até hoje re-
presenta apenas ínfima proporção do que, em realidade, resta por
desbravar e conquistar neste imenso oceano que é a musicologia
pura e aplicada. A idéia de que, depois de Franck Debussy e Ravel
de um lado, Stravinsk e Shostakovich do outro, pouco resta por
“descobrir” em música é não somente uma noção falsa, mas reflete
fundamentalmente a mentalidade de crise musical que se apossou
do mundo europeu ocidental em pleno século XX. Referimo-nos
ao chamado mundo europeu ocidental em separado por estarmos
convencidos da evidência histórica que assinala indícios inegáveis
de uma surpreendente vitalidade musical em certos países orien-
tais, principalmente naqueles que realizaram a experiência socia-
lista e, também, significativamente, naqueles países desenvolvidos
onde a influência africana tem sido fator determinante de forma-
ção de cultura, como é o caso particular dos países centro e sul-
americanos. Ora crise musical – isto é, crise de criação musical em
todos os níveis: popular, semi-popular e erudito – pois bem, crise
musical parece ser um, dentre os diversos aspectos da crise maior
que tem abalado ultimamente o mundo ocidental. Mas nem por
isso vem a ser crise musical mundial, em sua totalidade. A exceção
são, felizmente, inúmeras e bastante refrescantes.

Não seria nenhum exagero afirmar ser a Musicologia a solução


natural para o problema de crise que envolve o Ocidente musical
como um todo. Ela já o é, em países ocidentais de colonização eu-
ropéia – em que esta crise não é real, historicamente, mas impor-
tada – e onde o compositor faz análise musicológica, consciente 51
ou inconscientemente, tanto para poder sobreviver como para ter
o que dizer. Liga-se, assim, o compositor, através de um compar-

Estudos Universitários
timento da Etnologia, ao complexo antropológico que o sustenta,
bebendo diretamente na fonte. Sua obra tem razão de ser, tem
futuro, tem significação e, o que é mais importante, encontra sua
plenitude no outro pólo da criação estética, isto é, no povo, nos
ouvintes, nos auditórios. Daí o tremendo poder da onda naciona-
lista musical que invadiu a Europa a partir de seus dois focos mais
poderosos – a França e a Rússia – e fazendo com que os músicos
de países subdesenvolvidos se voltassem criticamente para suas
verdadeiras raízes culturais, no seio da massa popular. De fato, na-
cionalismo, como atitude de fora para dentro, de cima para baixo,
sem raízes concretas no seio do povo, dos destinos históricos desse
povo, nacionalismo como simples maneira de buscar originalida-
de e exacerbar ainda mais um individualismo doentio inimigo do
que pertence, de direito, a todos, como é a música, como são as
danças, os folguedos e demais manifestações típicas do homem
em sociedade, pois bem, tal “nacionalismo” nada mais poderá re-
presentar do que ridículo amadorismo saudosista, condenado ao
esquecimento.

Em outras palavras: é preciso orientar a quantos fazem da música


objeto de seus interesses no sentido de uma crescente valorização
de seu aspecto mais cientifico, única maneira racional de se con-
tornar a crise que, de qualquer maneira, já ai está há mais de meio
século. Que a atividade estética legitima exige inspiração, gênio,
talento, eis o que não se poderá jamais negar. Mas inspiração,
gênio de talento não devia bastar para inibir um estudo racional,
sistemática e conseqüente do fenômeno musical em seus mais va-
riados aspectos, inclusive sob a forma de interpretação e criação.
Inspiração é algo difícil de controlar e muito mais difícil de definir.
É qualquer coisa imprecisa, imprevisível e, até mesmo, misteriosa.
Mas, perguntamos: por causa disso haveremos de abandonar toda
a pesquisa estética, toda a elaboração cientifica e filosófica a res-
peito de uma atividade que a envolve e subentende em alto grau, e
cuja fertilidade para o progresso de conhecimento humano do ho-
mem já foi demonstrada além de qualquer dúvida? Claro que não.
Os fenômenos psicológicos não são menos indefiníveis, imprecisos,
imprevisíveis e misteriosos, mas nem por isso deixa de haver uma
ciência particular, especializadíssima e importantíssima – a Psico-
logia – dedicada ao seu estudo.

Concluamos, então. Se a Música admite, de fato, aquelas duas


raízes, isto é, se é ao mesmo tempo Arte e Ciência; se a Musicolo-
gia, como reflexão ao mesmo tempo filosófica (estética) e cienti-
fica (particular) diante do fenômeno musical é não apenas válida
mas já se tem constituído em importantíssimo setor da pesquisa
etnológica; se o nosso contexto histórico e social como país sub-
desenvolvido, de colonização européia e profunda miscigenação
racial mormente com o elemento negro africano, envolve, sustém
52 e dá vida a uma manifestação musical dinâmica, continua, sempre
se renovando ao mesmo tempo que o nosso povo mais se afirma
como povo e como nação, pois bem, tudo isto posto, a quem
Estudos Universitários

mais caberia a responsabilidade de coordenar todo este conjun-


to a fim de não somente analisá-lo e interpretá-lo mais também
resolvê-lo e colocá-lo ao serviço consciente de nossa realidade,
senão à Universalidade brasileira? Justifica-se amplamente, por-
tanto, o titulo deste artigo, uma vez que não somente ressalta
clara a oportunidade da inclusão dos estudos de Musicologia nos
currículos universitários, como também evidencia-se a urgência de
que a Universidade Brasileira, tornando-se cada vez mais autentica,
ataque problemas novíssimos e de caráter eminentemente nativo,
no seu esforço de emprestar sentido às mais diversas manifestações
da realidade social a que deve, antes de tudo, servir.

Referimo-nos, mais de uma vez, ao “tabu” diante da raiz cientifica


da Música, ou seja da Musicologia, e também ao alheamento de
nosso público musical face aos problemas que o desenvolvimento
de um povo como o nosso suscita nos mais variados setores da
atividade humano, em especial no setor da criação musical. Fomos
mais longe até, ao incluirmos no imenso rol dos alienados sócio-
culturais músicos profissionais, professores, instrutores, orques-
tradores e compositores. Não cremos que tenhamos exagerado as
coisas. A alienação existe, profunda, perigosa, anestesiante, inimi-
ga de todo progresso e de toda a renovação. Pois bem, resta-nos
apontar o que, após já boa parcela de estudos e observações nestes
e em outros países, se nos afigura como solução para a erradicação
total daquele “tabu” e daquela alienação. É a Universidade brasi-
leira que – ela somente – poderia re-integrar o homem em toda a
plenitude de si mesma, em toda a plenitude de sua própria vida,
através de sua re-educação critica e de sua situação em uma reali-
dade cuja reformulação partiu precisamente de si mesma.
RESUMÉ

La musique, considérée d’un point de vue strictement philoso-


phique, se présente comme ayant une double racine, étant donc
une science et un art. La musicologie est exactement cette racine
scientifique de la musique, quelque chose de généralement incon-
nu du grand public. Il arrive ainsi parce que la musique comme
science a été longtemps regardée comme une espèce de “tabou”
L’esthétique’, qui semble sêtre arrêtée au stade ou elle était arri-
vée au XVIe siècle, n’ayant pas suivi le développement contagieux
et la spécialisation de toutes les autres sciences (spécialement les
sciences de l’homme), peut être actuellemente rafraichie, et l’est en
efet, par les études musicologiques réalisées par plusieurs centres
universitaires dans le monde entier. La raison pour laquelle la mu-
sicologie peut remplir ce rôle, et elle est déjà en train de le remplir,
est que son champ de recherche est extrêmement large, englobant
pratiquement tous les arts et les sciences. Mais ce “tabou” ne sem-
ble pas être un fait, isolé; étant plutôt un aspect de l’aliénation
culturelle de ce même public. Partout, au même temps que le pu-
blic donne des signes très définis de cette “aliénation musicale”, 53
Il contribue inconsciemment mais concrètement au processus de
“désaliénation” de la culture, qui a été entrepris dernièrement par

Estudos Universitários
plusieurs pays sous-développes dans le monde. Cela arrive appa-
remment moyennant l’évolution de la musique populaire et folklo-
rique. C’est le cas, par exemple, de la musique soi-disant “bossa
nova” aujourd’hui au Brésil. “Bossa nova” est considérée comme
un signe très défini de vitalité dans la création musicale au Brésil.
Cette vitalité jaillit spontanément du peuple, aliénée ou non, mais
elle est un défi pour les systèmes pédagogiques, Il y a longtemps
établis et jusqu’à nos jours maintenus, ici et dans la plupart des
universités latino-américaines. Des systèmes qui semblent être en
grande partie étrangers aux nouveaux problèmes et situations nés,
naturellement de notre développement. Ici apparait précisément
une des opportunités et des responsabilités les plus urgentes de
l’Université au Brésil, lutter pour que la musique érudite brésilienne
ne soit pas en retard ou isolée des activités artistiques populaires.
Pour beaucoup de pays sous-développés, avec une grande influen-
ce culturale africaine, ce défi n’est seulement un problème qui se
présente évident à qui est engagé dans la bataille du développe-
ment et du progrès de sa nation, mais il est aussi une répercussion
de la crise musicale du monde occidental au siècle présent. Ayant
une immense vitalité et une source pratiquement intarissable de
matériel et d’idées nouvelles, dans un folklore vivant et dans un
art populaire dynamique, la musique de ces pays ne peut pas ac-
cepter ou faire sienne cette crise. Elle est dorénavant forcée, pour
ainsi dire, à se “désaliéner”, c’est à dire, à se faire authentique èt à
quitter l’imitation. Cela ne peut être fait sans l’Université, qui doit
mettre la musicologie dans ses “curricula” et prendre à sa charge
la tâche de centraliser et de coordonner tous les efforts dans ce
but, ce sera quelque chose, en effet, d’une très grande opportunité
pour le Brésil, se jours-ci.
ABSTRACT

Music, considered from a strictly philosophical point of view, is


presented as having a double root, being therefore both a science
and an art. Musicology is precisely this scientific root of music and
something generally not known to the great public. It has become
so because music as a science has long been looked upon as some
sort of “taboo”. Esthetics, which seems to have stopped dead at the
stage at which it was from Classical Antiquity up to the 16th Cen-
tury, not following the contagious development and specialization
of all other sciences (in especial the Sciences of Man), could be and
is actually being considerably refreshened by musicological studies
taken up by several University centers all over the world. The rea-
son why Musicology could do and is already doing this job is that
its field of inquiry extremely wide, encompassing practically all arts
and sciences. But this “taboo” does not seem to be isolated fact,
being rather but one aspect of the cultural alienation of this very
same public. However, at the same time that the public is shown
to yield very definite signs of this “musical alienation”, it uncons-
54 ciously (but concretely) contributes to the process of desalienation
of culture which has lately taken hold of most underdeveloped
countries the world over, and this it apparently does through the
Estudos Universitários

evolution of popular and folk music, as it is the case, for example,


of the so-called “bossa nova” music in Brazil today. “Bossa nova”
is then analysed and furthermore considered to be a very definite
sign of vitality in musical creation in Brazil. This vitality stems
spontaneously from the people, alienation or not, but meets a
challenge in the long established pedagogical systems now still in
use here and in most of Latin American universities, systems which
seem to be to a great extent alien to the new problems and situ-
ation brought naturally about by our development push. Here lies
precisely one of the most urgent opportunities and responsabilities
of the University in Brazil, lest Brazilian erudite music lag behind
and get out of phase and isolated from popular artistic activities.
To most underdeveloped countries with a great deal of African
cultural influence, this challenge is not only a problem which faces
whoever is commited to the cause of the development and pro-
gress of his nation, but also a repercussion of the musical crisis of
the Western World in the present century. Having a tremendous
vitality and a practically inexhaustible source of new material and
ideas in a living folklore and a dynamic popular art, the music of
these countries cannot accept or make its own this crisis, being
therefore forced, so to say, to desalienate itself, that is, imitative.
And this cannot be accomplished unless the University, through
the inclusion of Musicology in its curricula, takes onto itself the
task of centralizing and coordinating all the efforts towards such
an end, something indeed of a very crucial opportunity to Brazil
these days.
A concepção de transformação social
e de emancipação na extensão universitária:
em busca de novos rumos 55
Sonia Regina Mendes dos Santos1

Estudos Universitários
Resumo

Esse artigo discute aspectos do Plano Nacional de Extensão


para a institucionalização da extensão, a partir da análise do
conceito de transformação social, entendo-o como constituti-
vo do ideário político das atividades da extensão, porém insu-
ficiente para mobilizar e organizar as atividades da extensão.
Nesse sentido, apóia-se em diferentes entendimentos sobre o
conceito de emancipação, compreendo-os como desafiadores
e pertencentes a diferentes formas de luta presentes em diver-
sas manifestações de sujeitos sociais, nos vários lugares, for-
matos e sentidos, apropriados pelas várias culturas em defesa
de um mundo mais justo e fraterno. Por meio do conceito de
emancipação vislumbra-se uma nova diretriz para a extensão
Professora Adjunta do Curso de Pedagogia do Programa de
capaz de reconhecer e deflagrar junto a estudantes, docentes
1

Pós-graduação – Curso de Mestrado em Educação, Cultura


e Comunicação das Periferias Urbanas da Faculdade de
Educação da Baixada Fluminense/UERJ. Endereço eletrônico:
e participantes das atividades extensionistas a superação de
profsmendes@uol.com.br determinadas condições sociais excludentes.

Palavras-chave: Extensão - Institucionalização – Transfor-


mação social - Emancipação
Introdução

1. O que preconiza
o Plano Nacional de
Extensão?
De acordo com o Plano Nacional de Extensão 1999-2001 (SESU/
MEC: 1999, p. 1), a extensão se caracteriza como processo edu-
cativo, cultural e científico, que articula o ensino e a pesquisa
de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre
universidade e sociedade. Pela extensão a universidade encontra a
sociedade e vê na oportunidade a elaboração/reelaboração/cons-
trução do conhecimento através da prática. Sendo que o retorno à
Universidade será a ampliação do nível do conhecimento anterior.
De acordo com o Plano Nacional de Extensão, a extensão é “prá-
tica acadêmica que interliga a Universidade nas suas atividades de
ensino e pesquisa com as demandas da população, que possibi-
lita a formação do profissional cidadão e se credencia, cada vez
56 mais, junto à sociedade, como espaço privilegiado de produção
do conhecimento significativo para a superação das desigualdades
sociais existentes”.
Estudos Universitários

A extensão universitária se apresenta, então, como resultado da


articulação com o ensino e a pesquisa, como instância capaz de
identificar, fortalecer e legitimar o papel de universidade em sua
relação transformadora entre universidade e sociedade.

“A Universidade como uma das expressões de organização e funciona-


mento da sociedade, deve relacionar-se construtivamente com o mercado
e com os governos. No entanto, o horizonte da Universidade vai muito
além disso, [...] não pode ser assistencialista, paternalista. O seu compro-
misso deve ser com a formação da Cidadania.”( Franz, W, 2005).
Ao interagir com a realidade, a extensão se apropria do conheci-
mento popular e das necessidades reais da sociedade, o que possi-
bilita de certo modo, construir um conhecimento técnico e cientí-
fico voltado a soluções de problemas. Mas, o que será que ocorre
de fato pela função da extensão na sociedade? Cabe a extensão
definida como espaço de produção do saber advindos da aproxi-
mação efetiva entre a realidade e a universidade, conduzir-se pela
idéia de contribuir para a transformação social? Que sentido da-
mos as atividades extensionistas que nos asseguram afirmar nossa
contribuição na transformação social? O conceito de transforma-
ção social seria o mais pertinente à atividade extensionista?

Diante dessas questões é importante partir da compreensão da


Extensão como elemento processual e essencial que caracteriza as
funções sociais e acadêmicas desenvolvidas pela universidade. Sua
ação de modo geral busca possibilitar o acesso pela comunidade
externa ao conhecimento produzido nos diversos setores de ensino
da universidade, o que não está assegurado é que necessariamente
tais atividades de extensão permitem uma inter-relação com a
comunidade no sentido de sua transformação. De um modo geral,
o que caracterizou por longo tempo a extensão foram as práticas
assistencialistas. Se no discurso parece que superamos essa etapa
da extensão, o que pode nos indicar que estamos a caminho da
transformação social?

A extensão tem sido de sobremaneira entendida como forma de


intervenção social, possibilitando a disseminação e socialização
do conhecimento produzido para além dos espaços acadêmicos,
visando atender as necessidades comunitárias. Diante da grandeza
das demandas sociais que as universidades podem interferir, ao
mesmo tempo, que se pode verificar as possibilidades e maneiras
circunscritas de seu quadro de professores e discentes identifi-
cados com a causa e capazes de conduzir o processo, alentados
por um conjunto de diretrizes e idéias cabe como indagação, a
princípio por razões ideológicas e seguida de razões mais práticas, 57
interpelar sobre a propalada idéia de transformação social que
temos cultivado na extensão.

Estudos Universitários
Um aspecto central nesses debates sobre as finalidades da exten-
são sempre foi a tentativa de superar o caráter assistencialista de
suas práticas. Durante década e até os dias atuais o “social” da uni-
versidade, esteve reduzido ao assistencial, a oferta de prestação de
serviços de saúde e educação. Como o intuito de melhor preparar
os seus estudantes e atender as demandas da comunidade local, a
extensão incumbiu-se de trazer para a universidade atividades que
seriam de órgãos sociais públicos sem a devida contextualização
educativa e científica marcadamente de visão extrínseca e com-
pensatória de cidadania.

Com origens nos movimentos estudantis e de docentes militan-


tes em busca do diálogo com a sociedade, certamente a extensão
universitária tem se constituído como espaço importante na cons-
trução de um conceito de universidade como um bem público.
Contudo, cabe ainda ser repensada a luz das próprias diretrizes
conclamadas por meio do Plano Nacional. O que a sociedade es-
pera da universidade e o que efetivamente ela é capaz de oferecer,
fazer, comprometer-se?

Nesse sentido, a questão será priorizar e criticar a direção assu-


mida no Plano Nacional pelo ideário de transformação social, que
assume identificar a universidade como capaz de gerar impacto,
de maneira que efetivamente promova mudança social. De forma
a aprofundar o entendimento dessa diretriz optou-se por trazer a
tona uma concepção politizada sobre o tema de modo a argu-
mentar em prol de uma extensão mais identificada com a emanci-
pação dos sujeitos.
Não seria papel da extensão formular alternativas para as soluções
dos problemas sociais? E, por vezes, exemplificar e desdobrá-las
em análises das políticas públicas? Qual seria uma diretriz mais
viável para extensão?

De antemão vale anunciar que não se está renunciando a esse


ideário, mas ao mergulhar nos entendimentos sobre transformação
social, encontrar pistas para que a extensão possa assumir mais
claramente proposições para o seu desenvolvimento na universida-
de e na sua relação com a sociedade. Cabe ainda destacar que para
reavaliar a institucionalização da extensão e fornecer indicadores
para o seu processo avaliativo é essencial uma política clara que
inclua conceitos e diretrizes consistentes ao trabalho a ser desen-
volvido.

O processo de transformação social tem nos autores mais clássicos


da sociologia (Marx, Weber), cada um a seu tempo uma importan-
te compreensão da dinâmica da sociedade.

58
Estudos Universitários

2. Transformação
social ou Emancipa-
ção? A universidade
desafiada.
O processo de transformação social, no entendimento de Karl Marx
(2001), está estreitamente relacionado com as contradições e com
as lutas de classes que se desenvolvem na própria base material
da sociedade. Trata-se de uma concepção que contempla uma
relação dialética entre infra-estrutura e superestrutura, entre ser
e consciência, enfim, uma relação onde o homem é considerado
como sujeito ativo no processo; um sujeito que, dentro de certas
circunstâncias, influi na transformação social. Assim, pode-se dizer
que, para Marx, a transformação social ocorre numa determinada
consciência, fruto das contradições que se manifestam na base
material da sociedade que leve aos homens conservar ou modificar
a realidade social.

Para explicar melhor seu ponto de vista sobre a transformação social


no mundo capital, Marx entende que os trabalhadores dispersos no
início do capitalismo sem consciência das condições degradantes
de sua existência somente ao longo do processo adquirem a cons-
ciência política de sua condição de explorados e dominados. Como
o desenvolvimento das forças produtivas desenvolve-se, por um
lado, a classe dos capitalistas e, de outro lado, a classe proletária.
De um lado, uma classe que quer manter as suas condições pri-
vilegiadas de existências, de outro lado, uma classe que pretende
promover mudanças profundas em suas condições degradantes de
existência. O desfecho dessas contradições entre forças produtivas
e relações de produção e antagonismo de classes vai depender das
circunstâncias históricas. Uma transformação mais radical da socie-
dade emergiria na medida em que a classe dominada, tivesse como
classe organizada, empreendido mudanças significativas nas rela-
ções de produção, desencadeando uma revolução social. No bojo
do capitalismo, classes sociais com interesses antagônicos lutariam
ente si para conservar ou transformar a sociedade existente.

Na concepção de Weber (1983), a transformação da sociedade


ocorre nas lutas entre as diversas ideologias, entre as diversas visões
de mundo. Uma nova visão de mundo se destaca entre as demais,
conquista novos adeptos e se propaga no meio social, e no sentido
por ela postulado, conserva ou transforma o mundo. A condição
de transformação está condicionada as noções de carisma, posição
social e situação de classe.

O carisma como propriedade individual e não uma propriedade


adquirida por determinado indivíduo sob determinados condicio- 59
namentos sociais, explicaria a criação de ideologias ou as visões de
mundo. Weber define carisma como uma “qualidade excepcional

Estudos Universitários
de uma pessoa” (Weber, 1983 a, p. 340); dons considerados como
sobrenaturais, não acessíveis a todos (Weber, 1983 a, p. 223). É por
meio do carisma que o indivíduo – na qualidade de profeta, líder
partidário, herói, etc. – produz idéias inovadoras, dando origem
e evolução das ideologias particulares. Como ponto de análise o
autor analisa que a transformação social do feudalismo para o
capitalismo pode ser explicado pela postura racional disseminada
pela ética protestante que se proliferava junto a outros condi-
cionantes. O capitalismo apoiado nas idéias da ética protestante
de desenvolvimento dos interesses materiais, penetrou nos grupos
sociais predispostos a assumir a nova conduta, o novo ethos da
racionalidade prática.

No âmbito dessa discussão, a extensão universitária dada suas


atividades deveria se converter em campo específico no desencade-
amento de processos de conscientização das classes ou se aliasse a
partidos políticos identificados com a luta de classes, ou ao menos,
na promoção de ideias visando a superação do homem egoísta em
homem coletivo.

Do ponto de vista weberiano, a crença seria subverter a lógica


racionalista, em função da formação de uma mentalidade mais
humana e solidária. Assim,vale considerar que a diretriz extensio-
nista que proclamam a transformação social, mas não identifica
por qual orientação teórico – conceitual balizar um conjunto de
práticas e atitudes, assume-se mais como discurso do que orien-
tadora de práticas.
3. A Emancipação
como possibilidade.
Para essa discussão, buscou-se fundamentar o conceito de emanci-
pação a partir dos pensadores da Teoria Crítica, em especial Ador-
no, Freire e Boaventura Santos.

Na obra Educação e Emancipação (2000), Adorno recoloca o desa-


fio para o processo educacional fazer oposição a barbárie a partir
de uma educação capaz de promover a emancipação.

Para Adorno (2000), a possibilidade

[...] reside na sociedade e em sua relação com a escola [...] Enquanto a


sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas
condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra
sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural,
60 então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importan-
te. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobre-
Estudos Universitários

vivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam
seu alcance e suas possibilidades (ADORNO, 2000, p. 116-117).
Como a barbárie se apresenta ao homem não pela obviedade, mas
por meio de um conjunto de imposições, compromissos e valores
impostos, é preciso para combatê-la por meio da educação em
compreender seus fatores psicológicos. A desbarbarização implica
em ensinar aos jovens a respeitarem o outro, o diferente, a viverem
uma educação mais humana, sem competição. Depreende-se que
a educação para a emancipação precisa ser inserida não apenas no
pensamento, mas na prática educacional. Neste sentido, a esco-
la deve funcionar como um local privilegiado de reflexão contra
atitudes preconceituosas, discriminatórias e opressivas. Contudo,
estamos diante do mundo capitalista que conclama uma educação
que estimula a competição. O que pode ser feito?

Romper com esse paradigma é o que se pode fazer no enfren-


tamento da lógica da dominação. Ao manter a competitividade
como instrumento central da educação continuaremos a ter a bar-
bárie, a exclusão, a legitimidade de uma cultura que predomina
sobre a outra, um dominador e muitos dominados. A cultura da
competição e do mérito torna a escola lugar de formação de futu-
ros autoritários.

Em Freire (1991), destaca-se que mesmo reconhecendo que o pro-


jeto da emancipação humana só seja efetivado numa sociedade so-
cialista que transcenda o modelo negativo do socialismo soviético,
reconhecia no contexto real de miséria, injustiça e opressão, as con-
dições materiais para a emancipação. No entanto, a emancipação
humana é fruto da uma luta interrupta, uma conquista efetivada
pela práxis humana, uma luta em que o processo de emancipação
contempla o processo de humanização tanto do oprimido quanto
do opressor. Essa luta unicamente tem sentido quando os oprimidos
ao buscarem reconstruir sua humanidade, não se tornam opressores
dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. “E aí
está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-
se a si e aos opressores.”(FREIRE, 1991, p.30): “A libertação, por
isto, é um parto[...] O homem que nasce deste parto é um homem
novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-
oprimidos, que é a libertação de todos” (FREIRE, 1991, p.35).

Em seu projeto de educação, Freire almeja a libertação, a huma-


nização e emancipação, reconhecendo que a natureza humana
se constitui social e historicamente e que o homem vocaciona-
do a liberdade, busca incessantemente espaços de autonomia. A
emancipação consiste num fazer cotidiano e histórico permeado
de desafios e possibilidades, mas que, no entanto, não pode se
proposta pela classe dominante, mas por aqueles que sonham com
a recriação da sociedade. Assim, no contexto da sociedade capita- 61
lista, há muitos limites ao processo de emancipação humana. Esta
emancipação será sempre um processo em construção, um devenir.

Estudos Universitários
Nesse sentido, a emancipação humana no pensamento de Freire é
um vivenciar cotidiano, não um projeto a ser concretizado somen-
te num futuro longínquo, inclusive para ser construído e vivido
por outros. Portanto, as práticas emancipatórias da humanidade
se efetivarão ao mesmo tempo no cotidiano e na história. Ocorre
em casa, nas relações entre pais, mães, filhos, filhas, na escola, nas
relações de trabalho, espaços fundamentais que possibilitam aos
seres humanos o exercício do processo de emancipação.

Mas, de que forma os projetos extensionistas são ou podem ser


emancipatórios? Uma das perspectivas de Freire coloca-se sobre o
conhecimento crítico da realidade, não com os olhos ingênuos de
que tudo pode ser mudado, nem com o pessimismo que imobiliza,
é preciso assumir a educação com suas limitações, mas também
como tudo que reúne de possibilidades. Nesse sentido, Freire ar-
gumenta contra a concepção bancária de educação, como uma
educação que não promove a emancipação, ao contrário, reduz o
ser humano ao “autômato”, que constitui a negação de sua onto-
lógica vocação de ser mais. Uma concepção de homem como ente
vazio, a quem o mundo preencha de conteúdos, constituído numa
consciência particularizada, mecanicistamente compartimentada.
A superação da sociedade não se verificaria pela educação bancária
que reflete a sociedade opressora. Em seu lugar, Freire propõe uma
concepção dialógica da educação fundamentada numa compreen-
são problematizadora do ato de conhecer e a intencionalidade de
mudar o mundo.

A sociedade que aí está impõe sua cultura, e o projeto de emanci-


pação humana de Freire resgata o direito e o respeito as diferenças,
entendo-os como advindos das desigualdades sociais. Mas a uni-
versidade vem refletindo sobre as práticas educativas que institui
nas atividades extensionistas? Como tais práticas se apresentam?
Que valores defendem? Refletem sobre o diálogo crítico entre as
culturas, potencializando formas mais humanas de convivência ou
são mais uma instância de poder exarcebado de uma cultura sobre
a outra?

As práticas extensionsitas numa perspectiva emancipatória, reco-


nhecem que o simples direito à diferença entre as multiplicidades
de culturas é insuficiente, é preciso estar a favor da transformação
das condições e situações de vida e de existência das maiorias des-
tituídas de poder econômico, social e político.

Boaventura Santos apresenta de forma singular uma nova con-


cepção de emancipação. Esta perspectiva nasce do aprofundando
da teoria democrática, que contempla uma nova equação entre
subjetividade, cidadania e emancipação. Segundo este pensador,
no contexto atual, a globalização embora hegemônica vem sen-
62 do confrontada com uma visão alternativa a globalização, contra
hegemônica realizada por um conjunto de movimentos e orga-
nizações que través de vínculos lutam em favor de um mundo
Estudos Universitários

melhor, mais justo. O socialismo encontra-se liberto da caricatura


grotesca do “socialismo real” e torna-se, portanto, disponível para
voltar a ser a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida
melhor para todos.

No contexto da hegemonia do capital ocorre também a globaliza-


ção contra-hegêmonica. Essa exploração econômica geradora de
riqueza nas mãos de poucos combina-se com formas de opressão
que ampliam ainda mais o potencial de exploração. De modo que
se gera na sociedade, além de setores explorados, incluídos no
processo de produção capitalista, setores oprimidos, que podem ou
não estar inseridos nesse processo. A conformação do modelo de
funcionamento dos mecanismo sociais de inclusão e de exclusão
foi denominada, a partir da própria produção teórica liberal do
final do século XVIII, de contrato social. Santos (1999), considera
que o contrato social vem sendo ampliado, setores subalternos tais
como as mulheres, as minorias étnicas, pessoas com necessidades
especiais e pessoas com distintas orientações sexuais vão, por meio
de lutas e concessões, ampliando seus direitos. A própria estru-
turação do contrato social acontece no conflito entre as forças
denominadas por Boaventura de Sousa Santos de emancipatórias
e regulatórias. As forças emancipatórias são aquelas que atuam no
sentido da ampliação e extensão do contrato social, enquanto que
as forças regulatórias atuam no sentido da manutenção dos limites
de tal contrato e a permanência das estruturas de exploração e de
opressão.

O conceito de emancipação incorpora a possibilidade de transfor-


mação social, mas como possibilidade, ou seja, não como determi-
nismo histórico. A emancipação é, dessa forma, uma das forças que
age na realidade, na tensão com a regulação, buscando ampliá-la.
Está vinculado à ideia de dignidade humana, não estabelecendo
uma forma ou uma direção específica na conquista de tal condi-
ção. Por outro lado, a disputa pela hegemonia acontece no senso
comum, hoje impregnado da visão de mundo dominante, e que
pode, e deve, ser tensionado pelo pensamento emancipatório e sua
visão de mundo, que se vão criando na construção de alternativas
e experiências localizadas.

4. Emancipação e
práticas de extensão:
em busca de novas
manifestações.
Diante dessas contribuições sobre a emancipação, resta a Universi-
dade, em especial, o campo da Extensão, a construção de uma prá- 63
tica que possibilite aos estudantes e os sujeitos sociais a vivência
da autonomia, a participação na tomada de decisões e a produção

Estudos Universitários
de um trabalho coletivo, numa atitude ousada de enfrentamento
da hegemonia das forças de regulação (Santos, 2003). O desa-
fio que se apresenta é compreender e desvelar as relações sociais
presentes no âmbito local e formar sujeitos aptos à disputa pela
hegemonia com as classes dominantes.

O desafio é ainda maior quando reconhecemos de modo recorrente


a compreensão de que a extensão é compreendida como a possibi-
lidade única da universidade interagir com a população, dos alunos
terem contato com o mundo fora da universidade. Contudo, essa
direção não a qualifica, ou seja, como nos articulamos com o mun-
do fora da universidade? Significa que a universidade sai e leva o
conhecimento produzido dentro dela à comunidade? Significa de
que saímos da universidade e de forma autoritária nos apresenta-
mos? Significa que não existe o reconhecimento de que é possível
também aprender com a comunidade?

Concorre para o agravamento da relação com a comunidade, o


fato de que a extensão é, muitas das vezes, vista como ativida-
de secundária entre as funções da universidade, paradoxalmente
mais flexível e livre em suas proposições e menos rigorosa sobre a
conduta ética no encaminhamento da relação com a comunidade.
A extensão menos institucionalizada está menos condicionada a
condutas éticas sobre como a universidade por meio de projetos
pontuais, unipessoais, se compromete com a comunidade que a
cerca. Entramos e saímos, muitas das vezes, sem pedir licença e
sem despedidas, encerramentos, finalizações e devoluções sobre o
trabalho desenvolvido.
Esta é uma linha de pensamento que reforça a concepção autoritá-
ria do fazer acadêmico. Queremos ressaltar que a expressão via de
mão única não aparece explicitada de forma precisa nos discursos,
contudo, sem valorização, reconhecimento e sem financiamento,
a extensão no âmbito das universidades ainda carece de um apro-
fundamento conceitual, o que a leva a ambigüidades, pouca cla-
reza sobre as formas de se relacionar com esse “lado de fora” da
universidade.

Esperançosamente, aguardo que a extensão, aprofunde ainda mais


os conceitos que fazem parte de suas diretrizes e, a partir de seus
projetos, tematize de uma maneira clara as questões locais, a preo-
cupação com o outro, não só pela formação crítica dos estudantes,
mas pelo entendimento de que universidade ao se aproximar da
sociedade amplia a troca de saberes e as possibilidades de emanci-
pação dos grupos excluídos.

64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Estudos Universitários

ADORNO, T.. Educação e emancipação. São Paulo - Rio de Janei-


ro: Paz e Terra, 2000.

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versitária. In: FÓRUM DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA DA ACAFE,
6., 2005, Chapecó. Anais 2005. Argos Editora Universitária.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 19 ed. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1991.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin


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SANTOS, B. S. A transição paradigmática: da regulação à emanci-


pação. Oficina do CES, Coimbra-Portugal, n. 25, 1995.

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2002

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-moderni-


dade. 9ed. São Paulo: Cortez, 2003.

_______. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitis-


mo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1983

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São


Paulo: Martin Claret, 2003.
CÁTEDRA PAULO FREIRE:
reconhecimento institucional,
preservação da memória e espaço de produção
e socialização da Pedagogia Paulo Freire
Eliete Santiago1 Resumo

O texto apresenta a Cátedra Paulo Freire da UFPE como re-


conhecimento institucional, preservação da memória e espa-
ço de produção e socialização do conhecimento no âmbito da
universidade e dos movimentos sociais. Tece as razões para a
sua criação e apresenta as as grandes linhas de organização e
funcionamento.

Introdução 65

Estudos Universitários
Uma Cátedra pode ser compreendida como um espaço criado
e dinamizado com a finalidade de construção e socialização
do conhecimento e, ao mesmo tempo, se constituir em uma
homenagem. A Cátedra é uma distinção; um reconhecimento
público, coletivo e institucional a alguém que prestou relevante
contribuição social e que se espera, através dela e com ela, que
seja disseminada idéias e práticas que contribuam para a pre-
servação da memória ativa.

No caso da Cátedra Paulo Freire na Universidade Federal de


Pernambuco, a sua criação representa o reconhecimento da co-
munidade acadêmica a relevante contribuição social prestada
pelo Professor Paulo Freire à humanidade, a partir da Educa-
ção, e ao mesmo tempo uma homenagem a um professor da
Universidade, reconhecido como educador do mundo.

Recife é a cidade que Paulo Freire nasceu, viveu, conviveu


e projetou-se para o mundo. A partir deste lugar foi se tor-
nando professor e esboçando a sua condição de cidadão do
mundo. Iniciou a construção dos pilares teórico-metodoló-
gicos do que hoje denominamos de Pedagogia Freireana ou
Pensamento Freireano.

A Universidade é um lócus privilegiado da construção e so-


cialização do conhecimento e a Universidade Federal de Per-
nambuco foi o espaço acadêmico, político e profissional de
vivência de Paulo Freire. Portanto, homenageá-lo criando
um espaço que possibilite de forma organizada, sistemática,
crítica e criativa a circulação das suas idéias e práticas; mo-
bilizar pessoas, instituições e entidades; coordenar estudos e
Coordenadora da Cátedra Paulo Freire. Centro de Educação,
discussões; socializar invenções e intervenções sócio-políti-
1

UFPE. Endereço eletrônico: mesantiago@uol.com.br


co-educativas é contemplar a população em geral, e universitária
em particular, com o conhecimento de uma pedagogia crítica re-
volucionária e o testemunho de uma vida dedicada a formação e
a vivência de uma ética humanizadora.

A Cátedra Paulo Freire na UFPE inscreve-se, assim, como compro-


misso político-acadêmico de perenizar a contribuição de Paulo Frei-
re para o pensamento pedagógico brasileiro.
Na UFPE, o Centro de Educação é o espaço físico, acadêmico e ad-
ministrativo que acolhe a Cátedra Paulo Freire dada a aproximação
entre a sua natureza e a do CE que, apesar da sua multiferencialida-
de, tem na educação a sua essência.

PAULO FREIRE VIDA E PAULO REGLUS NEVES FREIRE, pedagogo, recifense, cidadão do
OBRA: razão de ser da mundo.

Cátedra na Universidade Nasceu no Recife, em 19 de setembro de 1921. Filho de Joaquim


Federal de Pernambuco Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire, despediu-se do planeta
terra no dia 02 de maio de 1997, em São Paulo, deixando um legado
66 espiritual e acadêmico como herança pública, política e social, cuja
responsabilidade de cuidar, distribuindo-o criticamente e ampliando
Estudos Universitários

seus raios de uso e inovação, é individual e institucional.

A experiência profissional de Freire foi construída em diferentes es-


paços e níveis educacionais no âmbito escolar e do movimento social
a partir do Colégio Osvaldo Cruz, estendendo-se pelo SESI, Instituto
Capibaribe do Recife, pela Escola de Serviço Social, Escola de Belas
Artes, Serviço de Extensão Cultural do Recife da Universidade do Re-
cife, atualmente, Universidade Federal de Pernambuco, espalhando-
se pelo mundo nas mais diversas formas de colaboração. Destaque
cabe ao Serviço de Extensão Cultural (SEC), criado por Paulo Freire
no início dos anos 60 do século passado, para intercambiar com a
sociedade.

Na verdade o SEC foi um dos espaços que funcionou como um la-


boratório de vivências na construção e experimentação do sistema
Paulo Freire.

Foi ele um dos maiores educadores do Brasil e uma das maiores


autoridades mundiais em educação. Criador de um sistema de alfa-
betização revolucionário para adultos, influenciou professores(as) de
todo o mundo, obtendo reconhecimento universal do seu trabalho.
Foi Secretário de Educação da Cidade de São Paulo entre 1989 a
1991 quando oportunizou e vivenciou uma releitura da Pedagogia
do Oprimido no exercício da atividade de gestão. Como professor
recebeu diversos títulos de Doutor Honoris Causa de Universidades
do mundo inteiro e escreveu dezenas de livros, entre eles destacamos:
Pedagogia do Oprimido (difundido em diversos idiomas no mundo
inteiro), Educação como Prática da Liberdade, Ação Cultural para a
Liberdade, Cartas à Guiné Bissau, Extensão ou Comunicação?, cujas
idéias estão na base dos seu pensar. Há aqueles mais recentes, pós
exílio, como Educação na Cidade, A Sombra desta Mangueira, Cartas
à Cristina,etc., além dos livros diálogos e os capítulos de livros, sem
esquecer que existe uma vasta produção em forma de livros, estudos
e pesquisas sobre sua obra.

Os escritos de Paulo Freire são testemunhos do profundo respeito


por aqueles e aquelas com quem conviveu, a quem ensinou e de
quem aprendeu. Não somente porque os escutou e as escutou, mas
porque considerou os seus saberes e linguagens. Respeito e solidarie-
dade por homens e mulheres letrados(as) alfabetizados (as); letrados
(os)analfabetos(as); alfabetizandos(as) - são referências nos seus
textos e contextos numa demonstração do valor atribuído ao saber
popular.

Observando, ouvindo, indagando, fazendo, refletindo, numa atitude


de vigília, Paulo Freire – cidadão do mundo e personalidade do sé-
culo XX – foi com a vida e a lida, com a existência cantada e falada
pelos homens e mulheres, construindo um pensamento e uma prática
político-educativa comprometidos com a humanização dos sujeitos e
com a transformação da sociedade.

Um pensamento e uma prática cuja finalidade maior é o processo 67


de conhecimento – conscientização – intervenção na realidade do e

Estudos Universitários
pelo sujeito.

Essa pedagogia, que toma homens e mulheres como sujeito do co-


nhecimento e da história, que se preocupa com a leitura da palavra
antecedida pela leitura do mundo, mal começava a ser construída no
Brasil, no final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta. Essa
epistemologia política mal começava a ser esboçada e já incomoda-
va o poder que nos anos 60-70 se apossava da direção política do
País. Esse pensamento e prática, essa pedagogia da humanização foi
interrompida no Brasil, pois ameaçava o poder político e econômico
constituído que arrancavam do homem e da mulher brasileira a sua
condição de protagonistas das suas próprias vidas – vivências – e
História.

A pedagogia que reconhecia a natureza de ser mais do homem e da


mulher e por reconhecer respondia com processos de produção do
conhecimento e não com processos de transferência daquele e da-
quela que sabe mais para o aquele e aquela que sabe menos ou que
parece não saber, foi interrompida, mas não anulada.

A acerbação do poder, o golpe de estado interrompeu o olhar e a


experiência no chão brasileiro, mas não o sonho coletivo também
sonhado por Freire que, apesar das adversidades, continuou a so-
nhar o sonho, deu continuidade ao trabalho, permaneceu na luta e
na construção da pedagogia do saber fora do Brasil, mas sem se
distanciar dele.

A necessidade de continuar vivo e em família, levou Paulo Freire,


mesmo a contragosto, a vários contextos de empréstimos, onde nem
se desligava do Brasil e nem a ele ficava colado, mas, perto e dis-
tanciado ao mesmo tempo, deu continuidade às reflexões e práticas
pelos países solidários. A passagem rápida pela Bolívia permitiu
rumar para o Chile, os Estados Unidos da América do Norte, Suíça
e a África para somente depois de 15 anos, em outro contexto de
abertura política, retornar ao Brasil no início dos anos 80.
São Paulo, Pontifícia Universidade Católica–PUC/SP e Universida-
de de Campinas-UNICAMP, recebeu Paulo Freire no seu retorno ao
Brasil. Esse mesmo Estado/cidade oportunizou-o (re)ensaiar a Pe-
dagogia do Oprimido ou a pedagogia do saber, desta vez sob a sua
própria direção na Secretaria de Educação do Município – gestão
colegiada - de onde deu continuidade a contribuição e ao compro-
misso com a formação humana e intelectual de crianças, jovens e
adultos desse país.

A ética da solidariedade, a responsabilidade política e o compromis-


so social com a humanização dos sujeitos, realizaram-se em Paulo
Freire como práxis política e pedagógica mediada pela educação.
Ética que tece a sua trajetória e que se objetiva como opção por uma
educação libertadora.

É essa responsabilidade política e pedagógica como trabalho em Edu-


68 cação, que Paulo Freire sistematizou, acumulou e construiu como
uma Pedagogia – A Pedagogia do Oprimido, A Pedagogia da Es-
Estudos Universitários

perança, A Pedagogia da Autonomia, A Pedagogia da Indignação


– que a UFPE dar continuidade através da criação de uma Cátedra.

A Cátedra Paulo Freire na UFPE tem como finalidade efetivar esse


compromisso da Universidade com a divulgação do pensamento e
da obra de Paulo Freire na construção de uma ética humanizadora
como trato ao ensino, a pesquisa e a extensão.

Linhas básicas do fun-


cionamento da Cátedra A Cátedra Paulo Freire além de testemunho e reconhecimento da
UFPE ao Professor, Cidadão do Mundo, Andarilho da Utopia, Per-
Paulo Freire na UFPE sonalidade do século XX, projeta-se como um espaço dinâmico e
dialógico de produção e socialização do conhecimento buscando
tecer o pensamento freireano como memória e como atualidade.
Três grandes linhas tecem o movimento da Cátedra: estudo bio-
gráfico, estudo da pedagogia e a preservação da memória que dão
origem as atividades sistemáticas.

Propõe-se a formação de um acervo com o uso de diferentes lingua-


gens; a oferta de cursos organizados de tal forma que possam ser
creditados pela graduação e pela pós graduação; realização de semi-
nários para relato de experiências sociais e comunitárias, o desenvol-
vimento de estudos e pesquisas em articulação com o Programa de
Pós Graduação em Educação; o intercâmbio com outras instituições
congêneres e entidades de classe e dos movimentos sociais

A Cátedra Paulo Freire no seu primeiro ano de atuação, além do


intercâmbio da UFPE/Centro de Educação com o Centro Paulo Frei-
re – Estudos e Pesquisas e com a Cátedra Paulo Freire da PUC/SP,
formou um GRUPO DE LEITURA que realiza encontros de leituras
quinzenais.
Resenhas
“Comunicação ou extensão?”1
do prof. Paulo Freire 71
Prof. Xavier Uydenbroek2

Estudos Universitários
“Se aquele que faz extensão não for capaz de crer no povo, nos traba-
lhadores, nos camponeses, de comungar com eles, será no seu trabalho,
no melhor dos casos, um técnico frio. Provavelmente, um tecnicista; ou
mesmo um bom reformista. Nunca, porém, um educador das e para as
transformações radicais”. (P Freire: Ext/Com: 42)
Esta pequena mas significante camponeses, como recipientes
obra de Paulo Freire analisa passivos, o conhecimento e
o problema da comunicação os métodos necessários a um
entre técnicos agrícolas e cam- programa de reforma agrária.
poneses envolvidos no processo Ao contrário de comunicação,
de implantação da reforma projetos de extensão falham
agrária no Chile em 1965- exatamente porque tratam as
67. Portanto, a preocupação pessoas como meros objetos e
principal do educador brasileiro por se recusarem a revelar-lhes
refere-se ao papel do agrô- o verdadeiro significado das
nomo como educador. O livro relações homem-mundo.
trata de uma investigação se-
mântica sobre as duas palavras Quando em 1960, Paulo Freire
do seu título as quais oferecem criou o Serviço de Extensão
diferentes opções pedagógi- Cultural (SEC) da Universidade
cas. Extensão é descrita como do Recife, que seria nossa futu-
uma forma de estender aos ra UFPE, ele se deparou com o
1
Livro do educador Paulo Freire, publicado em 1969 sob o título Extensión ou Comunicación? pelo Instituto de
Capactación e Investigación em Reforma Agrária, em Santiago de Chile.
2
Professor belgo-brasileiro da UFPE e educador popular, no Brasil há 40 anos. Endereço eletrônico:
uytdenbroek@superig.com.br
termo extensão “numa relação Denuncia P Freire:
neses? Como dialogar com os
significativa com transmissão, camponeses sobre uma técnica
entrega, doação, messianismo, “tempo perdido, sim,
que não conhecem? Como dia-
mecanicismo, invasão cultural, do ponto de vista hu-
logar sobre assuntos técnicos?
manipulação, etc. (idem: 29)
mano, é o tempo em
“Todos estes termos, diz Freire, envolviam que os homens e as
ações que, transformando o homem e a mulher mulheres são ‘reifica-
em quase “coisa”, o negavam como um ser dos’. Tempo perdido
de transformação do mundo. Além de negar é o tempo que se usa
a formação e a constituição do conhecimento em bla-bla-blá, ou
autêntico. Além de negar a ação e a reflexão em verbalismo, ou
verdadeiras àqueles que são objetos de tais em palavreado, como
ações”. (idem: 13) também é perdido o
A extensão nesse sentido tinha Impõe-se atender à lógica do tempo do puro ativis-
um caráter de invasão cultural: mercado e não perder tempo mo, pois que ambos
72 “o invasor (o extensionista) em escuta e atenção aos atores
atua, os invadidos (a população sociais. não são tempos da
atendida) têm a ilusão de que verdadeira práxis3.”
Estudos Universitários

atuam na atuação do primeiro; Resultado: “as instituições


este diz a palavra; os segundos, faziam pacotes, transpondo
(idem: 33)
proibidos de dizer a sua, es- ideologias passando por cima Os cursos de formação na aca-
cutam a palavra do primeiro.” da inteligência dos atores so- demia e as políticas públicas de
(idem:27) Não há diálogo nesse ciais, diz P Freire.” Estado pouco têm priorizado a
modo de ser porque a invasão, discussão dos difíceis caminhos
a conquista ou a manipulação É um mundo hierarquizado da ação pedagógica voltada
excluem o reconhecimento do onde um manda e o outro para a apuração do sentir, pen-
outro como sujeito humano. obedece. Cada um cumpre a sar e agir dos atores envolvidos
sua função e a gestão do res- nos problemas essenciais da
Será que as coisas ponsável responde pelo todo. cidade de forma a se construir
A engenharia social nos orienta coletivamente as novas solu-
amadureceram mais de para que sejamos bons repassa- ções necessárias.
1960 para cá? dores do que nos foi ensinado
pelos docentes especialistas
Hoje mais do que nunca, a que pensam por nós. Pouco
“A educação que não
lógica da produtividade ou importa se há ou não proble- tente fazer esforço, e
da competitividade domina as mas éticos. Os Programas estão que, pelo contrário,
relações sociais. montados, os procedimentos
bem definidos e o papel de insista na transmissão
Os doutores da Academia cada um e cada uma é encami- de comunicados4, na
daquela época já perguntavam nhar. E o diabo... faz a festa.
para P Freire: “Como numa
extensão de conteú-
ação de extensão, ‘perder um Isto é a pedagogia do opressor dos técnicos, não pode
tempo tão grande’, procurando para a qual fomos adestrados. esconder sua face de-
adequar nossa ação às con-
dições culturais dos campo-
sumanista...... Precisa-
3
Práxis na qual a ação e a reflexão, solidárias, se iluminam constante e mutuamente. Na qual a prática, implicando na teoria da qual não se separa, implica também
uma postura de quem busca o saber, e não de quem passivamente o recebe. (Ext/ Com: 80)
4
“Ensinar não é tranferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua própria produção ou a sua construção.” (Pedagogia da Autonomia: 21)
mos, de um ponto vista Desse modo, nos espaços de nos educamos juntos em comu-
extensão, podemos aprender nhão mediatizados pelo mundo
mais crítico e de uma a ressignificar a dimensão do no qual estamos inseridos.”
visão mais histórica da conhecimento. Ele será con- (Pedagogia do Oprimido: 39)
siderado tanto mais autêntico
América Latina como e válido quanto mais servirá a São os projetos de extensão
para o Terceiro Mun- vida na sua integralidade, e so- onde cada um e cada uma se
do em geral, que não bretudo a vida do ser humano sente gente, se surpreende
mais ameaçada. companheiro do outro porque
somente a capacitação está na mesma carência ou so-
técnica, mas qualquer Portanto só existem para o frendo conjuntamente a mes-
produtor de conhecimento ma situação cruel e desumana.
outra dimensão educa- duas opções:
tiva popular tem que Nessas rodas de reflexão em
estar associada a este - Ou vingam as ciências a projetos de extensão, o su-
serviço da exclusão dos outros jeito participante junto com
esforço através do qual que não nós, submetendo o os outros e outras resgata a
os homens simples se saber e o trabalho humano a dignidade que lhe foi roubada.
decifram a si mesmo fontes de poder e de interes- Portanto ali nesses espaços
ses situadas fora dos direitos cada pessoa vai refletir critica- 73
como homens, como essenciais da pessoa. As in- mente e se constituir sujeito.
pessoas proibidas de tenções e os usos do conheci- Ele e ela vão aprender a tomar

Estudos Universitários
mento serão transformados em posição diante das instituições
ser.” (idem: 64) interesse de posse ou em poder existentes. Ali, se plasmam
social. novas subjetividades. É o ponto
“O conhecimento de partida para a construção de
- Ou vamos servir aos seres novos saberes e novas práticas,
exige uma presença humanos e aí a pesquisa- tanto no campo dos serviços
curiosa do sujeito em extensão deverá se reconhecer públicos, como da comunida-
mais em sua fragilidade e em de acadêmica e dos próprios
face do mundo. Requer sua provisoriedade, sempre movimentos sociais.
sua ação transforma- aberta ao diálogo. Caberá aos
dora sobre a realida- experts institucionais, aos pes- Ai se pode desabafar, brigar
quisadores populares recusar consigo mesmo, gritar sua in-
de....Conhecer é tarefa certezas irremovíveis e estabe- dignação, ensaiar uma releitura
de sujeitos, não de ob- lecer diálogos de fertilidade e original do mundo, ressignifi-
complexidade crescentes entre car a sociedade a partir do seu
jetos. E, é como sujeito todos e as diferentes formas e pensamento, enfim eu diria,
e somente enquanto alternativas de compreensão do trilhar caminhos de aprendiza-
sujeito, que o homem que existe: saberes diferentes gem para poder se empoderar
mas fundamentais. da sua própria dignidade quase
e a mulher podem sempre silenciada.
realmente conhecer.” Processa-se então uma arti-
(idem: 16) culação da EXTENSÃO como “Assim aprendemos a
estratégia de construção de um
Educadores e educandos, dou- compromisso institucional de pensar o tempo, a pen-
tores e povo só produzem um cooperação e de sustentação sar a técnica, a pensar
do processo de mudança.
conhecimento válido quando a
curiosidade de ambas as partes “Ninguém educa ninguém.
o conhecimento en-
é estimulada para a construção Ninguém se educa sozinho. quanto se conhece, de
do bem comum. Todos educadores e educandos pensar o que das coi-
sas, o para que, o como, “Esta é a razão pela qual, para nós, já dizia P
o em favor de que, de Freire ...em 1969, a ‘educação como prática da
quem..” (Pedagogia da liberdade’ não é a transferência ou a transmis-
Indignação: 46) são do saber nem da cultura; não é a extensão
de conhecimentos técnicos; não é o ato de depo-
sitar informes ou fatos nos educandos; não é a
A Extensão popular é um com-
promisso político, um compro-
‘perpetuação dos valores de uma cultura dada’;
misso com as classes populares, não é o ‘esforço de adaptação do educando a
com a luta por condições de seu meio’. ...mas é sobretudo e antes de tudo,
vida melhores para todos, pela
cidadania e pelo controle social uma situação verdadeiramente gnosiológica.
e um modo de participação Aquela em que o ato cognoscente não termi-
dos professores, profissionais
técnico administrativos, estu-
na no objeto cognoscível, visto que se comunica
dantes e atores da sociedade a outros sujeitos, igualmente cognoscentes ”.
civil neste trabalho político. (Com/Extensão:53).
74 Ela busca trabalhar pedagogi-
camente o homem e os grupos espaço privilegiado de
Acreditamos que optar por esse
Estudos Universitários

envolvidos no processo de par- tipo de extensão, denomina-


ticipação popular, fomentando articulação entre o en-
da extensão popular, significa
formas coletivas de aprendi- sino e a pesquisa, com
admitir a necessidade de se
zado e investigação de modo constituir uma nova prática
a promover o crescimento da
a intencionalidade de
social de Universidade, que
capacidade de análise crítica contribuir para a pro-
priorize trabalhar a partir das
sobre a realidade e o aperfeiço- moção da vida huma-
demandas, interesses e saberes
amento das estratégias de luta das classes populares.
e enfrentamento. na”.(CBEU Dourados
“Este compromisso com a
“Na contramão da MS, 2009)
humanização do homem, que maioria das práticas Bibliografia:
implica uma responsabilidade de extensão universi-
histórica, não pode realizar-
se através de palavrório, nem tária, a extensão po- CBNEU 4to Congresso Brasi-
leiro de Extensão ANEPOP Ar-
de nenhuma outra forma de pular propõe caminhar ticulação Nacional de Extensão
fuga do mundo, da realidade
concreta, onde se encontram
por um jeito diferente Popular, Dourados MS, abril de
2009.
os homens concretos. O com- de conduzir o processo FREIRE, Paulo Educação e
promisso, próprio da existência formativo, onde a per- Mudança 12ª edição Rio de
humana, só existe no enga-
jamento com a realidade, de cepção crítica, o pro- Janeiro, Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo Extensão ou
cujas ‘águas’ os homens ver- tagonismo estudantil Comunicação? 8ª edição Rio
dadeiramente comprometidos
ficam ‘molhados’, ensopados.
e a horizontalização de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
Somente assim o compromisso das relações são eixos FREIRE, Paulo Pedagogia do
Oprimido 17ª edição Rio de
é verdadeiro”. articuladores. Nesse Janeiro, Paz e Terra 1987.
(Educação e Mudança: 9).
sentido, a extensão FREIRE, Paulo Pedagogia da
Indignação São Paulo, Editora
pode passar a ser um Unesp, 2000
“Paramos no tempo porque O SEC/UR é apreciado em to-
nos conservamos os mesmos dos os seus desdobramentos: a
diante do nosso passado. criação da Rádio Universitária;
(MARCIUS, 2008: 12). Eis as a revista de cultura Estudos
palavras de passagem que Universitários (verdadeiro libelo
abrem e orientam toda narra- contra uma concepção de cul-
tiva do livro Golpe na Alma tura brasileira elitista, acrítica
do crítico Marcius Cortez. Tal e reacionária); os cursos de
como já ousara ensaiar um formação para o público extra-
distinto filósofo de Frankfurt, o universitário; e, sobretudo, as
autor faz da memória a arma- pesquisas e projetos em torno
palavra que nos convida a es- do Sistema Paulo Freire de
crever a história a contrapelo. Educação. Neste sentido pode-
Narrar as memórias do Serviço ria se afirmar que a educação

Golpe na
de Extensão Cultural (SEC/UR) popular e a cultura brasileira
da antiga Universidade do Re- ocupam um ponto central no
cife (atual UFPE) é lutar contra texto de Cortez, mostrando os
a produção do esquecimento anos em que o jovem Freire

Alma1 operada pelo militares e suas


fogueiras de livros e documen-
tos erguidas em sagração das
desenvolve a semente de sua
pedagogia e como toda a sua
equipe esteve envolvida na
75
Dimas Brasileiro Veras2 - classes conservadoras do país. criação desta concepção liber-

Estudos Universitários
Outubro de 2009 tária de educação. Paulo Freire
Neste livro a atuação de Paulo aparece como orientador deste
Freire e de seus jovens cola- círculo de cultura hetorodoxo
boradores é relatada em toda no qual caminhavam docen-
sua simplicidade e coragem ao tes e discentes; esquerdistas e
enfrentar e defender o papel direitistas; jesuítas de batinas
social da universidade no Brasil e leigos de botinas. O Golpe
dos anos 1960. Leitura que na Alma aparece tecido com o
aquece as mãos com o calor claro calor democrático daque-
daquela geração que ousava les anos: do primeiro círculo de
desafiar todos os moinhos da cultura no Poço da Panela, ao
alta cultura brasileira. Por Programa Nacional de Alfabeti-
outro lado não deixa de ser zação e seus círculos de cultura
uma experiência de gelar a es- nas cidades satélite de Brasília.
pinha frente à frieza das elites
conservadoras e seu gradual Em Marcius a utopia da revolu-
desarranjo da democracia na ção educacional de uma gera-
mão de seus algozes. Para estes ção se transforma em deleite
a extensão universitária era de quem rememora ao folhear
vista como serviços supérflu- as páginas. O pessimismo de já
os, agência de analfabetos, ou saber o final da história se trans-
antro de comunistas. Expres- forma em esperança de recom-
sões contraditórias cunhadas por esta a partir do presente.
por importantes intelectuais Tudo vira imaginação, trans-
da cidade em sua sanha contra gressão a partir do que poderia
emergência da extensão uni- ter sido. O sabor da textura-
versitária na UR. geradora de Cortez se assemelha
1
Livro do escritor Marcius Cortez, publicado pela Pé de Chinelo Editorial, São Paulo: 2008.
2
Historiador e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Endereço eletrônico:
dimasveras@hotmail.com
à palavra geradora do Sistema de antigos membros do SEC/
Educacional que descreve, UR: Almeri Bezerra, Arthur Car-
deleite da imagem e da fala que valho, Jomard Muniz, Juracy
em certo momento Paulo Freire Andrade, Luiz Costa Lima e
opôs as cartilhas sectárias. Roberto Cavalcanti. Sem dú-
vidas um dos momentos mais
O Golpe na Alma é uma altos do livro é quando finda-
pequenina caixa preta de dos os anos de ditadura militar,
surpresas de onde emergem o já adulto Marcius encontra
crônicas sobre as coisas miú- o antigo presidente do Diretó-
das que povoam o cotidiano rio Central dos Estudantes da
da juventude brasileira nas Universidade do Recife: Mar-
vésperas da ditadura militar cos Maciel. O resultado desse
no Brasil. Cortez não deixa de encontro não poderia deixar
fora a alegria dos momentos de ser hilário. Não se trata
festivos, descrevendo as festas apenas de um livro de memó-
que normalmente aconteciam rias para alguns iniciados, seu
na casa do crítico Luiz Costa manuseio parece atrativo para
Lima, editor da Estudos Univer- pesquisadores sobre a eferves-
76 sitários naqueles anos. Tertúlias cência vivida nos anos 1960,
regadas a ritmo de cuba-libre, mas também é receita podero-
bossa nova e muita paquera. A sa para leituras silenciosas ou
Estudos Universitários

estas se acrescentam as remi- sediciosas na solidão da casa


niscências do intenso prazer ou no burburinho das ruas das
vivido pelo grupo no Rio de cidades deste imenso Brasil
Janeiro. O encontro com um afora.
importante cineasta do Cine-
ma Novo, seu debate caloroso
com Jomard Muniz Britto e a
delícia de dançar no final da
noite o samba estilizado de
um carioca hoje bem famoso.
A ação educacional e política
aparecem em equilíbrio com a
efervescência artística e cultu-
ral da época, a luta pelos direi-
tos fundamentais da cidadania
é humanamente narrada no
contrapeso das boemias letra-
das, tudo isso sem se esquivar
do horror dos anos de ditadura
militar e suas conseqüências:
prisões, exílios, tortura e morte.
O Golpe na Alma tem este tra-
ço de obra em dobras (sauda-
ções a Uchoa Leite) de alegria,
dor, amor, esperança, carinho e
respeito.

Cada crônica uma dobra e em


meio a elas, também os relatos
Resenha em forma de torpedo jomardiano
ou o modernismo que não datou.1 77
Marcius Cortez2

Estudos Universitários
Texto-tirombaço: bem no peito da maior tendência
nacional – o fácil simplesmente.
“do modernismo à bossa nova” de Jomard Muniz
de Brito, reeditado em 2009, destrincha a
reinvenção do país, também chamada de modernismo.
Nós avançamos ou vor-tâ-mo pra trás? O cheiro do
ralo impera na cur-tu-ra nacioná? Ou os senhores das
comunicações/distribuições/editorações e os juízes
fisiológicos enrabaram a contra-maré? Na paisagem,
vigora o cala-te boca para os que não são bocas-de-siri
enquanto os conyventes queimam gasolina azul.
Diante do nosso nariz, deserto global – uma grande
Sibéria que brota das geleiras dos quase dois milhões
de analfabetos paulistas.(São Paulo é fogo!)

1
Resenha do livro “Do Modernismo à Bossa Nova” de Jomard Muniz de Brito, republicado em 2009 pelo Atelier
Editorial
2
Esta resenha foi escrita por Marcius Cortez, durante a VII Bienal Internacional do Livro, Recife, PE. Endereço
eletrônico: marciuscortez@hotmail.com
Ler e reler esse livro te reorienta, meu rapaz, minha moça.
Homem brasileiro, cultura nacional, realidade brasileira
- os aspectos que isso tinha ontem, as ilações que isso
tem hoje. Eterno retorno de outrem. Brasil, brasas,
brasilírico.
Historicidade com inversão térmica. No horizonte do
barquinho e do céu anil, as galáxias haroldianas
confirmam que é a noite banal (ou seria a arte
enlatada) o que nos assola.
92% dos brasileiros nunca foram num museu. 78%
nunca assistiram a um espetáculo de dança. Só 13%
vão ao cinema, uma vez por ano. E solamente 17%
compram livros.
Leituras em abismo. Em cena, coitados, os palhaços
da burguesia negam que são os palhaços da
burguesia.
78
Today, a nossa grande e única fonte de cultura é o
Estudos Universitários

que se vê na TV. Durma com esse oceano de rosas.


Por isso, haja mar, muito suco de cajá e uma fotona
bem grandona do parangolé de Hélio Oiticica.
Informações Gráficas

Formato
21 x 30 cm

Tipografia
Libre Sans Serif SSi
Libre Serif SSi
Frutiger 57Cn

Papel
Miolo: reciclato 90 - gm/2
Lâmina: reciclato 120 - gm/2
Capa: triplex 250 - gm/2

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