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Revista Científica Unijorge

N° 10 - Volume I - Ano 2020


Revista Científica Unijorge

Centro Universitário Jorge Amado - UNIJORGE


Reitor: Nédio Luiz Pereira Junior
Pró-reitora de graduação: Midian Angélica Monteiro Garcia
Diretoria Administra�va Financeira: Ivan Souza Guerra Lima
Diretoria de Marke�ng e Vendas: Davino Pontual
Coordenação Geral de Pós-Graduação: Sylvia Dalcon Bastos Barreto
Coordenação Geral Acadêmica de Graduação Presencial: Suzeli Mauro
Coordenação Geral Acadêmica EAD: Edinaldo Luz das Neves
Núcleo de Publicações UNIJORGE
Editor Chefe: Eduardo Reis Silva
Comissão de Editoração da Revista
Revisão: Eduardo Reis Silva, Milena Nascimento de Souza e Simone Miranda Chaves
Conselho Cien�fico:
Ana Amélia de Sousa Magalhães, UNIJORGE, Brasil
Anna Amélia de Faria, UFBA, Brasil
Moisés Oliveira Alves, UEFS, Brasil
Camila Magalhães Pigozzo, UNIJORGE, Brasil
Carlos Alberto Ferreira Danon, Centro Universitário Jorge Amado - Unijorge, Brasil
Edinaldo Luz das Neves, Centro Universitário Jorge Amado, Brasil
Eduardo Reis Silva – UFBA, Brasil
Revista Cien�fica Unijorge
Ká�a Jane Chaves Bernardo, UNIJORGE, Brasil
Lenir Silva Abreu, UFSB, Brasil
Midian Angélica Monteiro Garcia, Centro Universitário Jorge Amado - Unijorge, Brasil
Miguel Alberto González González - Universidad de Manizales - Colombia
Mônica Ramos Daltro, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Brasil
Neurilene Ribeiro Mar�ns, Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Brasil
Sayonara Amaral de Oliveira – UNEB, Brasil
Silvanne Ribeiro, Faculdade de Educação - Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil – UFBA
Tânia Maria Hetkowski, UNEB, Brasil
Conselho Editorial:
Guilherme Marback Neto, Centro Universitário Jorge Amado - Unijorge, Brasil, Suzeli Mauro, Centro
Universitário Jorge Amado, Unijorge, Brasil, Neurilene Ribeiro Mar�ns, Universidade do Estado da Bahia -
UNEB, Brasil e Tânia Maria Hetkowski, UNEB, Brasil
Organização: Eduardo Reis Silva, Milena Nascimento de Souza e Simone Miranda Chaves
Revisão: Milena Nascimento de Souza e Simone Miranda Chaves
Capa e Editoração: Marcus Vinícius Souza Santos
Imagem da Capa: Albert Eckhout. Mulher mameluca. Oléo sobre tela, 271cm x 170cm, C. 1641.
Recife, Brasil. Acervo do Museu Nacional da Dinamarca. Dominio Público ©.

Av. Luis Viana, n. 6775, Paralela,


Salvador-BA CEP:41.745-130
CENTRO UNIVERSITÁRIO JORGE AMADO

Revista Científica Unijorge

N° 10 - Volume I - Ano 2020


REVISTA OLHARES
Periódico cien�fico anual editado pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), localizado
em Salvador (Ba), que tem como obje�vo difundir os resultados e contribuições de pesquisas e
estudos no campo da educação nas áreas de ensino-aprendizagem, planejamento e avaliação.
Ao compreender que as questões em educação são complexas, demandando abordagens e
contribuições de diferentes campos de conhecimento, a Revista Olhares convida os estudiosos
do Brasil e do exterior a submeterem seus trabalhos e, desse modo, colaborar para a com-
preensão, debate crí�co e proposição nos diferentes temas que fazem parte do escopo da
Revista.

REVISTA OLHARES [recurso eletrônico]. - N.10 (2020). - Salvador: Centro Universitário


Jorge Amado (UNIJORGE). Núcleo de Publicações (NP), 2009-.
v.: l.; 28cm.
Anual.
Início: 2009.
Disponível em: h�p://revistas.unijorge.edu.br/Portal/index.php/Olhares/

ISSN 2526-5989

Descrição baseada em: N.8 (2018).


1. Educação – Periódicos. 2. Ensino superior – Periódicos. I.
Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). II. Núcleo de Publicações (NP).

CDU (051)37
Ficha catalográfica elaborada por: Ana Bárbara N. Fortunato CRB-5/1297

As opiniões con�das nesta revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores


PREFÁCIO
Eduardo Reis Silva
ARTIGOS
TECENDO O PROGRAMA
de Trabalho de Conclusão de Curso
durante a pandemia, p.07
Ana Amélia Magalhães
Katiani Lucia Zape
Luis Carlos M. Laurenço
MOVIMENTOS EM REPERTÓRIO:
descolamentos cartográficos, p.17
Midian Angélica Monteiro Garcia
Lilian Miranda Magalhães
Érica Etelvina, Everton
Carlos Alberto Danon
Eduardo Reis Silva
NOMADISMOS, ENCONTROS E FLUXOS:
deslocamentos no/para o acercamento de
atos de cuidado em alimentação e nutrição, p.23
Lilian Miranda Magalhães
Indira Ramos Gomes
João Paulo de Oliveira Rigaud
ESCOLA MERITOCRÁTICA:
onde está a igualdade de condições
para o acesso e permanência de todas
as crianças e jovens na escola?, p.29
Tânia Maria Hetkowski
EDUCAÇÃO E CORRENTES FILOSÓFICAS CLÁSSICAS:
um olhar pluriparadigmá�co, p.37
Vanessa Borges
Matheus Souza
A PSICOLOGIA NA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS:
leituras para pensar o exercício profissional, p.43
Pablo Mateus dos Santos Jacinto
GAROTOS QUE ESCREVEM SONHOS
para/como camaleões, p.55
Eduardo Silva Santos
O DESAFIO DA PROMOÇÃO DA
APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA
da disciplina Projeto Integrador
em tempos de Pandemia, p.63
Adriano Santos Araújo
Juliana Freitas Guedes Rêgo
APRENDIZADOS E REFLEXÕES
sobre a virtualização do Núcleo de Prá�ca
Jurídica (NPJ), durante a pandemia, p.71
Katiani Lucia Zape
Luis Carlos M Laurenço
PENSAR A VIDA A PARTIR DAS HERANÇAS,
segundo Clarice Lispector, p.79
Moisés Oliveira Alves
ESPAÇOS URBANOS
na literatura baiana contemporânea, p.87
Milena Guimarães Andrade Tanure
Revista Científica Unijorge

PREFÁCIO Com total liberdade toco em segredos para os quais não


existem palavras e que só a cinematografia pode patentear.
Ingmar Bergman

A revista Olhares nesta edição de 2020, de certa forma, desmaterializou as textuali-


dades vigentes dos consensos e das convenções tecnicistas, não como ato de
bravura ou de rebeldia. Mas, em relação ao que conferem os estudos que contem-
plam as pesquisas acadêmicas. Como prosperar caminhos de exa�dão nas ranhuras
de um ano colapsado? Como não sair dos trilhos, das vielas, das brechas lançadas
nos muros, nas contaminações de todas as ordens?
Questões estas, que permeiam mul�disciplinarmente os textos dos autores aqui
contemplados, sejam em ar�culações e desar�culações teóricas, em inteligibili-
dades sensoriais ou em dinâmicas de visibilidades intrínsecas das zonas performa�-
vas que decantam os universos cria�vos do pensar dentro e fora das universidades.
A importância desta publicação está no caráter do registro, no sen�do mesmo de
uma perspec�va documental, que perscruta, simbio�camente, os organismos os
quais povoam as corporalidades do corpo que pensa e do pensamento que se
incorpora às circularidades do tempo, num eterno retornar-se, como bem vislum-
brou Nietzsche.
Deste modo, os ar�gos, ensaios, resenhas e textos ar�s�cos selecionados aqui,
lançam-se abertamente aos encontros febris dos conectores de átomos falantes,
dos bailados das palavras que projetam suas representações ansiosas, das razões
que suplantam palavras em novas outras e outras palavras que se alargam nas
dimensões que somente o que se espera de um presente aparentemente sem
futuro, futuro se faz na remodelagem do caminho escrito: do que se escreve, do que
se preserva enquanto materialidade porosa das leituras que habitam as historiogra-
fias de todos nós.

Eduardo Reis Silva*

* Doutorando em Artes Cênicas UFBA, Mestre em Literatura e Crí�ca Literária (PUC/SP), Editor chefe da Revista Olhares.

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TECENDO O PROGRAMA
de Trabalho de Conclusão de Curso
durante a pandemia

Ana Amélia Magalhães *


Katiani Lucia Zape **
Luis Carlos M Laurenço ***

Resumo: O presente trabalho tem como propósito apresentar a experi-


ência vivenciada pela coordenação, docentes e discentes da disciplina
Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, do curso de Direito da Unijorge,
durante o período de pandemia da COVID 19. Tratar um pouco sobre a
virtualização da disciplina, bem como dos aprendizados e conflitos
gerados a par�r do olhar dos diferentes atores envolvidos é o que
propomos no presente trabalho.

Palavras-chave: Trabalho de Conclusão de Curso. Pandemia. Virtualiza-


ção.

Abstract: The purpose of this paper is to present the experience of the


coordination, professors and students of the Course Completion Paper -
TCC discipline, from the Unijorge Law course, during the COVID 19
pandemic period. , as well as the learning and conflicts generated from
the perspective of the different actors involved is what we propose in this
paper.

Key-Words: Course Completion Paper. Pandemic. Virtualization.

* Mestre em Administração Estratégica – UNIFACS, Pós Graduada em Administração de Recursos Humanos – FVC e graduada em Engenharia Química. Professora dos
Cursos de Direito e Recursos Humanos – UNIJORGE.
** Doutoranda em Relações Internacionais – UFBA, Mestre em Política Sociais e Cidadania – UCSAL. Especialista em Direito Administrativo – PUC Minas. Especialista
em Gestão do Desenvolvimento e Responsabilidade Social – UFBA. Especialista em Gestão de Organizações Sociais pela Faculdade Fátima. Graduada em
Direito – UCS. Advogada com foco em direito do terceiro setor. Professora do Curso de Direito – UNIJORGE. Atuou como Coordenadora do Programa de Conclusão
de Curso e do Núcleo de Prática Jurídica - NPJ da UNIJORGE. Membro do Tribunal de Ética e Disciplina OAB/BA 2016 - 2018 e 2019 -2021. Membro do Conselho
Consultivo OAB - BA 2019 - 2020.
*** Doutor em Ciência Jurídica – UAL; Possui Mestrado em Direito – UNESA; Pós Graduação em Processo Civil e Graduação em Direito - UNIFACS, Graduação em
Ciências Contábeis – UNEB. Presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB/BA. Advogado Sócio da Fragata e Antunes Advogados, Professor e Coordenador do
Curso de Direito – UNIJORGE.

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ARTIGOS

O Trabalho de Conclusão de Curso no Curso de Direito da Unijorge

O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) é um componente curricular obrigatório, segundo as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Direito, e integra as a�vidades de iniciação à pesquisa previstas no projeto
pedagógico do curso de Direito da UNIJORGE. A produção do TCC integra as a�vidades de pesquisa e extensão
previstas no projeto pedagógico do curso de Direito do Centro Universitário Jorge Amado e consiste em uma
pesquisa individual, compreendendo a elaboração, execução de um projeto de pesquisa e defesa do trabalho final
pelo aluno, perante uma Banca Examinadora, sendo acompanhado pela coordenação do Núcleo de Prá�ca Jurídica -
NPJ.

De acordo com o regulamento da disciplina, o TCC se apresenta como uma tarefa permanente de integração das
a�vidades de ensino, pesquisa e extensão, apontando as possibilidades de integração entre as diversas prá�cas
acadêmicas, regulares e complementares, cumprindo assim duplo obje�vo: o de consolidar internamente a
qualidade dos trabalhos acadêmicos e de jus�ficar socialmente o seu caráter público de a�vidade educa�va.
Em conformidade com o regulamento do TCC, o mesmo deve ser elaborado de acordo com a linha geral de pesquisa
definida pelo Colegiado do Curso: “Efe�vidade dos Direitos Fundamentais e Responsabilidade Social”. O trabalho é
elaborado individualmente na modalidade de ar�go cien�fico ou monografia, sendo composto por duas etapas
dis�ntas e obrigatórias, emolduradas em duas disciplinas: TCC I e TCC II.

Durante a disciplina de Trabalho de Curso I, disciplina ofertada na grade curricular do 8º semestre, o discente tem a
oportunidade de sistema�zar suas experiências acadêmico-profissionais definindo sua pesquisa individual e os
referenciais teóricos de seu objeto de estudo e é es�mulado a u�lizar a legislação, jurisprudência, doutrina e outras
fontes per�nentes para elaboração de seu projeto de pesquisa, oportunidade em que é orientado cole�vamente e
individualmente pelo professor da disciplina. O produto obrigatório a ser desenvolvido nesta etapa é o projeto de
pesquisa.

Por sua vez, a disciplina Trabalho de Curso II é ofertada no 9º semestre, sendo des�nada para a conclusão da
pesquisa e do texto final do trabalho cien�fico, oportunidade em que o mesmo é subme�do à aprovação da banca
examinadora. Em TCC II, os alunos são acompanhados por professores especialistas na área de concentração
definidas previamente, as quais podem ser: 1) Direito Penal e Criminologia; 2) Direito Civil, Empresarial e Consumi-
dor; 3) Direito Cons�tucional, Administra�vo e Tributário e 4) Direito Processual; 5) Direito do Trabalho.

A integração entre TCC I e TCC II sempre foi mo�vo de reflexão entre a Coordenação do Curso, do Núcleo de Prá�ca
Jurídica (NPJ), bem como entre os professores das referidas disciplinas. O descaso de alguns alunos com a elabora-
ção do produto em TCC I, a reclamação quanto a falta de contato com professores especialistas ainda no 8º semes-
tre, a desistência de projetos de pesquisa, a alteração da linha de pesquisa e a incipiente produção apresentada por
muitos discentes deixavam evidenciada a falta de segurança na pesquisa cien�fica, bem como a necessidade de
promover maior interação e fortalecimento do vínculo entre as disciplinas.

Diante deste cenário, em 2019.2, a Coordenação do Curso e do NPJ, juntamente com o colegiado e representantes
dos alunos, revisitaram o regulamento da disciplina de Trabalho de Curso com o obje�vo de estabelecer uma maior
unidade e fortalecimento entre TCC I e TCC II, sendo proposto para tanto, a inclusão de qualificação do projeto na
disciplina de TCC I, a qual consiste na análise de um professor especialista sobre alguns elementos do projeto, como
a aderência às linhas de inves�gação, a viabilidade do tema proposto, a jus�fica�va, obje�vo geral, obje�vos
específicos e o problema de pesquisa. Também foi estabelecido que as qualificações teriam início em 2020.1.

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A Pandemia e o reflexo no planejamento das disciplinas Trabalho de Curso

Vendo os fogos e as orações pelo ano novo que estava chegando jamais se imaginou o que em mais 03 meses
estaria para acontecer. O semestre de 2020.1 iniciou com 51 alunos matriculados na disciplina de TCC I e 128 em
TCC II quando o mundo foi surpreendido, em 11/03/2020, com a Declaração da Organização Mundial de Saúde
(OMS), que elevou o estado da contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus
(Sars-Cov-2).

Assis�mos ao surgimento de uma série de medidas tomadas pelo Estado da Bahia, a exemplo do Decreto Legisla�vo
nº 6, de 20 de março de 2020, o qual reconheceu a ocorrência de estado de calamidade pública. A par�r de então,
os Estados e Municípios baianos adotaram várias medidas para tentar evitar a propagação do vírus entre a popula-
ção, entre as quais, o fechamento de diversos estabelecimentos empresariais, inclusive das ins�tuições de ensino
superior.

Entre as várias medidas tomadas para regular as a�vidades de ensino, destaca-se a Portaria 343, do Ministério da
Educação (MEC), de 17/03/2020, que dispôs sobre a “subs�tuição das aulas presenciais por aulas em meios digitais
durante a pandemia COVID-19; da Portaria 345, do Ministério da Educação, de 19 de março de 2020, que determi-
nou, que tal subs�tuição não se aplicava às prá�cas profissionais e de laboratório; Parecer CNE/CES nº 5 de 28 de
abril de 2020, o qual reorganizou o calendário escolar e possibilitou o cômputo de a�vidades não presenciais para
fins de cumprimento da carga horária mínima anual e a Portaria MEC 544 de 16 de junho de 2020 que dispôs sobre
a subs�tuição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durasse a situação de pandemia do novo
coronavírus – Covid-19, revogando as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março de
2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020.

Naquele momento, a Coordenação do Curso e o Núcleo de Prá�ca entenderam que a virtualização das disciplinas de
Trabalho de Curso seria tranquila comparada, por exemplo, às disciplinas de prá�ca jurídica. Em TCC I, as preocupa-
ções importantes eram a realização da qualificação do projeto, uma vez que esta alteração era novidade e não
�nhamos exper�se alguma. Em TCC II, acreditamos inicialmente, que o acompanhamento da construção dos
trabalhos seria sereno e que os alunos e professores não teriam dificuldade em se adaptar a orientação remota,
uma vez que já contavam e u�lizavam, antes mesmo da pandemia, com o auxílio da tecnologia (fone, whatsapp,
e-mail, plataformas colabora�vas) para desenvolver as orientações. Naquele momento, a defesa de TCC II não era
foco de maiores reflexões, pois acreditávamos que a pandemia seria controlada em curto espaço de tempo e o
semestre seria finalizado presencialmente.

O Trabalho de Conclusão de Curso na Pandemia

Antes da virtualização da disciplina, os alunos �veram em torno de três aulas presenciais da disciplina Trabalho de
Curso. Em TCC I, as mesmas oportunizaram a apresentação da professora e do programa da disciplina, bem como
permi�ram que fosse realizado uma breve revisão dos conceitos de Metodologia e o início das orientações individu-
ais com obje�vo de apresentação das primeiras ideias para a formatação do pré projeto e de sua apresentação para
a banca de qualificação.

Em TCC II, como a divulgação dos orientadores e calendário de prazos ocorrem antes do início do semestre le�vo,
muitos alunos já �nham conversado pessoalmente com o professor da área, apresentado seu projeto, formalizado a
orientação e discu�do os principais passos da pesquisa, enquanto outros alunos, ainda indecisos, analisavam o
melhor caminho a seguir.

Após definido junto a coordenação do curso as estratégias para o acompanhamento da disciplina, todos os professo-

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ARTIGOS

res e alunos de TCC I e TCC II foram informados via e-mail sobre os instrumentos, mecanismos e cuidados a serem
tomados durante a virtualização das aulas, sobretudo quanto ao aproveitamento, a plataforma a ser u�lizada, o
estabelecimento do diálogo e as consequências da ausência. Além disso, os alunos que até aquele momento
estavam atrasados com as entregas solicitadas pelas disciplinas, foram contactados pela coordenação do NPJ, via
fone ou whatsapp com obje�vo de regularizar as pendências. Entretanto, passados os primeiros dias, entendeu-se
que seria importante estabelecer um diálogo ainda mais próximo, pois começamos a receber registros de alunos que
estavam passando por dificuldades das mais variadas ordens: saúde, financeira, psicológica e técnica que dificulta-
vam o processo da escrita. Além disso, muitos alunos dependiam do acervo da biblioteca, outros, dos equipamentos
da ins�tuição e ainda �nha o grupo que não conhecia ou era resistente às plataformas de tecnologia, conforme pode
ser observado no registro abaixo:

Escrever o TCC em plena pandemia do covid-19 foi o meu maior desafio na caminhada do curso de Direito. Foi
até mais di�cil que passar no exame da Ordem no final de 2019. Os desafios foram muitos, �ve que me
reinventar, estava na zona rural onde a Internet mal funcionava, sem apoio técnico, no meio de um caos, sem
acesso a bibliotecas, sem minhas bibliografias escolhidas para desenvolver meu tema. Entretanto, eu não
estava só, contei com o apoio da coordenação do NPJ e de alguns colegas que juntos fizeram a diferença. (Edna
Ramos – aluna de TCII em 2020.2)

Cientes dos desafios impostos, a coordenação do NPJ construiu um mapeamento iden�ficando os discentes que
estavam precisando de suporte e suas principais fragilidades, tentando, na medida do possível, auxiliá-los. Assim,
foram tomadas as seguintes inicia�vas: indicação do atendimento psicológico realizado pela Unijorge; encaminha-
mento do nome dos alunos com dificuldade de acesso a internet para recebimento dos chips de acesso à internet
disponibilizados pela IES, ajustes de prazos de entregas em atraso, divulgação do acesso para biblioteca virtual
disponibilizada pela Unijorge e mobilização dos alunos com potencial para auxiliar os colegas em dificuldades.

Para minimizar os impactos da virtualização das aulas, que implica em ter professores e alunos reunidos no mesmo
dia e horário que estão matriculados, porém conectados a uma plataforma virtual, a professora de TCC I u�lizou
como estratégia metodológica, a inclusão de atendimentos individuais e virtuais, de 15 minutos para cada aluno.
Assim, além da aula comum a todos, os alunos passaram a ter atendimento personalizado, o que permi�u a iden�fi-
cação de demandas individuais. Em TCC II, as orientações con�nuaram seguindo a proposta dos professores, porém
no formato virtual. Cada orientador manteve o horário e o dia da orientação, bem como o formato, vez que alguns
optaram pelo atendimento em grupo e outros u�lizam a orientação individual, entretanto, estes passaram a ser no
formato remoto. Grande parte dos orientadores já u�lizavam os grupos de whatsapp e do e-mail como ferramenta
de auxílio para orientação. A plataforma indicada foi a adotada pela ins�tuição Webex e Teams, mas alguns profes-
sores u�lizaram outras por entenderem ter mais recursos ou ainda serem mais acessíveis, a exemplo do Google
Meet. A frequência dos alunos con�nuou sendo acompanhada tanto em TCC I quanto em TCC II.

Em que pese tais medidas serem importantes, iden�ficamos que a grande maioria dos alunos estava insegura
tecnicamente e emocionalmente e isso atrapalhava a construção do trabalho. Assim, pensando em fortalecer estes
alunos, a coordenação do NPJ, em conjunto com a professora de TCC I, optou pela criação de espaços de troca e
aprendizagem que pudessem contribuir academicamente, tecnicamente e emocionalmente e, ao mesmo tempo,
promover o intercâmbio de experiência entre alunos de TCC I e TCC II. Desse modo, foi pensado e implementado o
projeto TCC sem Medo.

Projeto TCC sem Medo

Composto por uma série de encontros virtuais e com obje�vo de discu�r os receios mais comuns do aluno no
desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso, oportunidade em que par�ciparam professores do curso,
egressos e convidados externos, os quais, por meio digital – plataformas “WEBEX” em 2020.1 e a plataforma

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“TEAMS” em 2020.2, trabalharam temas diversos os quais passaram pela condução da escrita, regras da ABNT,
plágio, oratória, entre outros. Cada evento teve duração de uma hora e meia a duas horas, sendo sempre em
horários que não comprome�am a grade do curso.

Todos os eventos foram realizados gratuitamente, permi�ram a interação dos par�cipantes, tendo sido a gravação
disponibilizada ao grupo. Os eventos foram abertos para os alunos em geral, mas par�ciparam sobretudo os alunos
de final de curso, os quais �veram oportunidade de trazer ques�onamentos e dúvidas para os convidados, o que
resultou em uma importante sinergia nas disciplinas de TCC I e TCC II.
Os eventos realizados foram
:

1. TCC sem Medo: Escreva sem medo - com Professor Fábio Santos e a aluna Zulene Gomes, em
11/05/2020.
2. TCC sem Medo da ABNT: com Professor Milton Bernardes, em 20/05/2020.
3. TCC sem Medo: Histórias Vencedoras - com Professor Daniel Lins e as alunas Rebeca Vieira e Maria
Clara Oliveira, em 02/06/2020.
4. Workshop sobre oratória: Fale sem medo no TCC – com professor Gutemberg Santos, em
24/06/2020.
5. TCC sem medo: Desmis�ficando o TCC – Passos para a pesquisa cien�fica, com a profa. Erica Rios,
em 11/08/2020.
6.TCC sem Medo: Plágio e Compliance - Os desafios da Hipermodernidade - com Prof. Ronaldo Oliveira
e a aluna Zulene Gomes, em 03/09/2020.

Troca de Experiências entre alunos – Consis�u em alguns encontros realizados durante o horário de aula, oportuni-
dade que foram convidados ex-alunos da disciplina para compar�lhar sua experiência, os desafios e as formas
encontradas para sua superação e construção do seu trabalho de conclusão de curso. A ideia era promover este
espaço entre pares, acreditando que este diálogo pode ter um alcance diferente daquele estabelecido entre docen-
tes e discentes.

Espaços de Experimentação e Aprendizagem – Inicialmente, este espaço foi criado com o obje�vo de capacitar os
alunos com dificuldades de manusear as plataformas virtuais, Webex ou Teams. Percebemos que os discentes
sabiam ingressar, mas não dominavam o uso de recursos importantes como por exemplo, o controle da apresenta-
ção, ferramenta esta necessária tanto para a qualificação de TCC I como também para a defesa de TCC II. Assim, os
espaços de experimentação e aprendizagem �veram início com este propósito.

Em maio de 2020, a professora de TCC I criou a sala virtual e capacitou os primeiros alunos, em seguida, estes
passaram a auxiliar os próprios colegas, estabelecendo entre eles uma rede de apoio e solidariedade. Após o
domínio da ferramenta, os alunos demandaram auxílio para a apresentação virtual dos trabalhos e demonstraram a
necessidade de treinar e corrigir eventuais erros, antes da data de apresentação. Diante desta demanda, a professo-
ra de TCC I se colocou à disposição para acompanhar, pois entendemos que era necessário o acompanhamento de
um responsável técnico, já que o ensaio embasaria a apresentação dos trabalhos.

Desta maneira, foram criadas salas específicas para o treino dos alunos de TCC I, os quais se preparavam para a
qualificação, e uma sala específica para os alunos de TCC II, que se organizavam para apresentação de seus ar�gos.
Foram dedicadas seis horas em média para cada grupo. A ideia foi muito bem recebida pelos alunos que par�cipa-
ram intensamente, não apenas assis�ndo e aprendendo com os erros e acertos dos colegas, mas também contri-
buindo sob vários aspectos, entre eles cogni�vo e psicológico. Sobre a relevância do espaço de experimentação e
aprendizagem destaca-se:

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ARTIGOS

Foi o espaço onde encontramos oportunidade para deixar nossos medos de lado e nos preparar para a banca
em si. Todos, no primeiro dia, gaguejavam ou não conseguiam terminar suas falas. Nos úl�mos ensaios, já
estávamos preparados. Isso nos ajudou muito, tanto na apresentação quanto na produção do material a ser
apresentado. (Diego Barreto - aluno de TCII em 2020.1)

Sem dúvida, a oportunidade trouxe aos alunos maior segurança técnica, metodológica e emocional, aliviando em
grande parte o estresse e a tensão que um trabalho acadêmico pode gerar, sobretudo em tempo de pandemia.

A Experiência da Virtualização das Apresentações

Como sinalizado, os alunos de TCC I, a par�r de 2020.1, foram subme�dos à banca de qualificação do projeto. Tendo
em vista a pandemia, esta aconteceu de forma virtual, sendo que no primeiro semestre de 2020 par�ciparam 43
alunos, enquanto no segundo semestre, 2020.2, o Curso de Direito manteve duas turmas de TCC I, contudo, com um
número maior de matriculados, 116 alunos. As qualificações foram organizadas em bloco a depender da área do
conhecimento dos trabalhos, sendo designados especialistas para cada uma das áreas temá�cas. Os alunos foram
convidados a par�ciparem de todos os momentos. A divulgação foi realizada via e-mail e whatsapp. Além do
professor especialista convidado, também es�veram presentes a professora da disciplina de TCC I e a coordenadora
do NPJ.

Tendo em vista todo o aparato de apoio criado durante o semestre, as qualificações aconteceram de forma exitosa,
sem maiores intercorrências, inclusive tecnológicas. Os especialistas convidados foram os professores do próprio
curso e de forma generosa realizaram apontamentos importantes sobre os projetos, sugeriram bibliografias e
trouxeram aos alunos maior segurança para seguir no caminho da pesquisa, atendendo assim ao obje�vo proposto.
O registro da aluna Marina Andrade, turma 2020.1 retrata um pouco do sen�mento dos alunos de TCC I:

Eu amei a qualificação! No início fiquei apreensiva, sem saber do que se tratava, com receio de ser uma forma
de me vetar com relação à área que escolhi, mas quando vi que se tratava de uma coisa posi�va, eu amei.
Acho que todos os cursos deveriam ter, por que a pré banca serviu como um norte, pra eu saber se estava indo
pelo caminho certo, se meu tema �nha sen�do no meio jurídico. Ao meu ver só me fez agregar conhecimento.

Contudo, deve-se destacar que a turma de 2020.1 par�cipou e interagiu muito mais, na medida em que os alunos
acompanharam intensamente as apresentações dos colegas, evidenciando que a solidariedade e a interação entre
este grupo certamente foi o diferencial. Infelizmente, no semestre de 2020.2, os alunos, em sua grande maioria,
transparecem sen�mentos individualistas, na medida em que pouco ou nada contribuem auxiliando os colegas ou
ainda manifestando empa�a aos mesmos, o que pode ser percebido pelo descaso na par�cipação nas bancas de
qualificação. Os alunos preocuparam-se em par�cipar do seu momento apenas e não perceberam o quanto seria
rico o compar�lhar de outros momentos. Entende-se que tal comportamento está atrelado a ausência de pertenci-
mento ao grupo, pois várias turmas foram unificadas em apenas duas e a iden�dade das mesmas pode ter sido
comprome�da. Além disso, o desgaste das turmas em uma situação de pandemia não controlada, pode ter contribu-
ído para a dispersão e o comportamento com menor comprome�mento, pois a situação pandêmica que inicialmen-
te imaginamos que cessaria em apenas um ou dois meses já se alongava para o segundo semestre do ano.

Em relação à disciplina de TCC II, destacamos que no primeiro semestre de 2020, 124 alunos se matricularam,
enquanto em 2020.2, o número de matriculados alcançou 90 alunos. Da mesma forma que as orientações ocorre-
ram de forma on-line, por intermédio do uso de diferentes instrumentos, a critério dos professores e orientadores
envolvidos no processo. Em que pese o receio e o desconforto inicial alunos e professores auxiliados pela coordena-
ção, foram criando novos formatos para estabelecerem o processo de construção, conforme registro da aluna:

Inicialmente, a sensação predominante ao elaborar o TCC virtualmente, foi de insegurança, com dificuldades
visto que, até então, não possuía in�midade com mundo digital, mas encarei o desafio que não se cons�tuiu

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um desafio solitário e sim de forma solidária, ao contar com o apoio de professores e o orientador de TCC que
igualmente sofreu com a necessidade de adaptação tecnológica para orientar virtualmente seus orientandos,
portanto, foi criado um grupo na plataforma de comunicação WhatsApp, e a par�r de então consegui
vivenciar o significado das palavras persistência e solidariedade, ao unir forças com meus colegas para vencer
qualquer desafio seja individual ou cole�vo. (Agda Santana, aluna de TCI em 2020.2)

Acredita-se que os alunos que defenderam TCC II em 2020.1 �veram um outro fator que dificultou ainda mais a
construção do trabalho: a impossibilidade de realização das pesquisas de campo que estavam programadas para
serem desenvolvidas ou finalizadas, o que exigiu de alguns alunos a readaptação ou alteração do mesmo, além de
todas as demais dificuldades já inerentes ao processo. Essas situações demandaram da coordenação e dos professo-
res um tratamento ainda mais próximo, pois para muitos não havia a oportunidade de esperar o amanhã. Para estas
situações, foi criada uma rede de suporte emocional, técnico e metodológico, a qual contou também com o apoio
de outros discentes, que de forma empá�ca dedicaram-se a contribuir com o outro, mesmo no meio do furacão,
conforme registro abaixo:

A experiência do TCC de forma virtual sem dúvida não foi uma tarefa fácil, a começar pela mudança no
desenvolvimento do trabalho o qual inicialmente trataria de uma pesquisa de campo, o que se tornou inviável
devido a pandemia. Dificuldade essa que foi acrescida pela falta do auxílio tecnológico. Quando me vi sem
meios adequados e necessários para o desenvolvimento do meu trabalho, não �ve outro pensamento senão
desis�r e, nesse momento, em meio a crise de choro e ansiedade, envei um e-mail para a coordenação do NPJ
relatando a minha situação. Em resposta, fui incen�vada a con�nuar, e com este impulso eu segui. Basicamen-
te, fiz todo o TCC com auxílio de um pequeno celular, caderno, caneta e o mais importante, a fé. Contei com
auxílio de amigos/colegas que seguraram a minha mão e me deram suporte durante o desenvolvimento, e
toda vez que vinha o desânimo, eu lembrava de todo o apoio recebido por eles. Faltando poucos dias para o
depósito do TCC, consegui digitar todo trabalho que �nha sido escrito a próprio punho. Apresentar o trabalho
com tópicos suprimidos, mas sem perder a essência do conteúdo, regozijou a alma, mas saber que em um
momento de isolamento social e com recursos limitados eu �ve a empa�a e solidariedade dos amigos me
ensinou e alegrou muito mais. (Elinaine Pinheirinho, aluna de TCII em 2020.1).

As bancas públicas de apresentação dos trabalhos também foram realizadas de modo virtualizado, sendo as
mesmas organizadas a par�r das linhas de pesquisa. A divulgação ocorreu via e-mail e também por whatsapp e
movimentaram alunos, professores e familiares daqueles.

A virtualização trouxe de volta ao curso um ritual que estava de certa forma esquecido – par�cipação das famílias
durante a defesa do TCC. Muitos familiares par�ciparam das defesas, inclusive pais que estavam longe dos seus
filhos, no interior do Estado e também no exterior, �veram a oportunidade de acompanhar este momento.

A experiência do TCC on-line foi melhor do que eu esperava. No início, eu estava um tanto desanimada por
conta do afastamento com o meu orientador em decorrência da pandemia. Porém, com o apoio da coordena-
ção do NPJ, aos poucos fomos nos adequando à nova realidade (o TCC virtual). Assim, às segundas-feiras de
manhã, me propus a auxiliar o professor para um melhor aproveitamento meu e dos meus colegas de TCC e
deu muito certo. Fizemos reuniões e fomos enviando as nossas produções através do Classroom e logo
�nhamos retorno. O grande dia chegou e apesar do nervosismo, a melhor parte foi poder contar com a
par�cipação da minha família e de amigos em meio a pandemia. (Rebeca Bahia - aluna de TCC II em 2020.1)

Foi possível sen�r a vibração das famílias comemorando ora, o final de um ciclo, ora a esperança, uma vez que
aquele aluno era o primeiro integrante a conquistar o diploma de curso superior, o que fez com que muitos familia-
res, após a leitura da ata, extravasassem seus sen�mentos por meio de lágrimas, gritos e aplausos, o que contagiou
a todos, e nos afastou por alguns momentos do mundo pandêmico.

Outro ponto posi�vo deste formato foi a ampla par�cipação dos estudantes, os quais, mais uma vez, demonstraram
solidariedade e amizade. Em todas as sessões, foi possível acompanhar demonstração de empa�a entre os alunos

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ARTIGOS

os quais se disponibilizaram para gravar a apresentação, assumir o controle do slide, fotografar a sessão e impulsio-
nar os colegas com palavras de incen�vo. Os professores do curso também fizeram a diferença, na medida que se
juntaram ao grupo para acompanhar a defesa, para desejar boa sorte e para deixar registros e votos de sucesso.

Breves Reflexões

Não ter um modelo para seguir ou para atribuir os erros no caso de fracasso é algo complexo, mas ao mesmo tempo
pode ser libertador na medida em que mantemos as prioridades, no nosso caso, a construção do perfil do egresso e
a qualidade do ensino proposto. Diante destas premissas, a coordenação do Curso e do NPJ, juntamente com os
professores e alunos foram desenvolvendo e experimentando meios, estratégias de como implementar o trabalho
de conclusão de curso de forma remota e em meio a uma pandemia. Certamente, foi uma experiência única para
todos nós, mas ao contrário do que imaginávamos, a experiência na disciplina de Trabalho de Curso não foi fria, nem
muito menos apá�ca. O modelo virtual para o Trabalho de Conclusão de Curso possibilitou que mesmo longe
es�véssemos perto, talvez como nunca antes �véssemos estado. O olhar e a escuta atenta fizeram muita diferença
na medida em que conseguimos nos aproximar das demandas dos nossos alunos e contribuir para que eles desco-
brissem e construíssem novas rotas. Não foi uma tarefa fácil, pois naquele momento a equipe da coordenação do
NPJ estava reduzida a uma pessoa apenas, por isso foi fundamental contar com o apoio dos professores da disciplina
e dos próprios discentes. Sabemos que nem tudo foram flores, e que algumas decisões podem ter comprome�do o
processo, a exemplo do quan�ta�vo de alunos na turma de TCI em 2020.2. Entretanto, acreditamos que consegui-
mos promover junto aos discentes a capacidade de trabalho em equipe, a ap�dão para aprendizagem autônoma e
dinâmica, além da qualificação para a vida, o trabalho e o desenvolvimento da cidadania, conforme demanda o
Parecer CNE/CES nº 146/2002.

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Referências
BRASIL. Decreto Legisla�vo nº 6, de 20 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 345, de 19 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES nº 146,de 13 de maio de 2002.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES nº 5, de 28 de abril de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES nº 19, de 10 de dezembro de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020.

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MOVIMENTOS EM REPERTÓRIO:
descolamentos cartográficos

Érica Etelvina Viana de Jesus *


Lilian Miranda Magalhães *
Everton da Silva Batista *
Carlos Alberto Ferreira Danon *
Eduardo Reis Silva *
Midian Angélica Monteiro Garcia *

Resumo: Esse texto engendra cri�cidades possíveis nas variabilidades


dos encontros cogni�vos, que foram e con�nuam sendo estabelecidos
pelos entroncamentos das definições e ar�culações semelhantes e
dessemelhantes do campo da pesquisa acadêmica. Contemplam-se
também diversos olhares, tanto dos autores que assinam este ar�go,
quanto dos teóricos que visualizam e virtualizam planos de imanência
cons�tuintes de um meio no qual os saberes encontram-se em movên-
cias. Trata-se de descolamentos que rearranjam repertórios os quais
ultrapassam os maneirismos canônicos da tradição do pensamento
filosófico/cien�fico concernentes à educação.

Palavras-chave: Cartografia; Pesquisa; Subje�vidades

Abstract: This text engenders possible criticisms in the variability of


cognitive encounters, which were and continue to be established by the
crossroads of similar and dissimilar definitions and articulations in the
field of academic research. Different views are also contemplated, both
from the authors who sign this article, and from the theorists who
visualize and virtualize immanence plans that constitute a medium in
which knowledge is in motion, which rearranges repertoires that go
beyond the canonical mannerisms of tradition of philosophical/scientific
thought concerning education.

Key-Words: Cartography; Search; Subjectivities

* Pós doutorado em Neurociências na Universidade Autônoma de Barcelona e doutorado em Imunologia UFBA, professora da UNIJORGE.
* Doutora em Alimentos, Nutrição e Saúde – UFBA- Professora da UNIJORGE, NEPAC/UFBA.
* Doutor em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa do CPqGM/FIOCRUZ, professor da UNIJORGE, professor da UNIJORGE.
* Doutor em Medicina e Saúde Humana Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública – EBMSP.
* Doutorando em Artes Cênicas UFBA, Mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC/SP).
* Doutoranda em Artes Cênicas UFBA - Mestre em Teorias da Literatura e da Cultura UFBA. Professora da UNIJORGE.

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ARTIGOS

Quanto mais irracional, mais aberrante – e, portanto, mais


lógico.
David Lapoujade

É possível pensar o ensino da pesquisa fora dos parâmetros estabelecidos na academia? Quais relações afetam o
sujeito e o objeto da pesquisa? Até que ponto o limiar entre o objeto e o sujeito da pesquisa é de fato tão rígido?
Estão de fato em campos semân�cos tão dis�ntos ou esse par é cons�tuição de um pensamento dicotômico e
binário?

Para principiar uma reflexão sobre todas essas questões levantadas, iniciamos com o conceito cunhado por Denise
Najmanovich (2001), sobre a ideia do Sujeito Encarnado, cuja discussão pressupõe pensar que o sujeito da contem-
poraneidade se cons�tui a par�r de uma nova noção de corporeidade. Nesse sen�do, o conhecimento do outro e de
si implica as dimensões múl�plas que engendram a experiência corporal em seu contato com os espaços, com os
objetos, com o outro. Trata-se de agenciamentos que se instauram no atravessamento mesmo da experiência, daí a
ideia de um corpo vivencial. É possível, portanto, compreender e deslocar o próprio lugar da pesquisa, que assume,
nessa perspec�va, uma tonalidade de gesto cartográfico que considera a própria enunciação e todos os aspectos
que a atravessam como aspectos privilegiados para a inves�gação.

Tal concepção cunhada por Najmanovich delineia o sujeito em suas movências, cons�tuído em uma espécie de
devir. É, nesse sen�do, que é possível pensar a pesquisa como um movimento que se define não como ação fixa,
previamente determinada, mas como uma experiência deslizante, no sen�do de implicar reorganização constante
do corpo, como ela mesma afirma, a realidade é “enatuada”. Trata-se de um desafio que dialoga plenamente com
pesquisas que já se propõem percursos metodológicos processuais, na relação com o próprio objeto de inves�gação.
Experienciar o mundo, portanto, é vivenciar no corpo as várias teias que o cons�tuem em seus contextos, numa
experiência corporalizada, o que Najmanovich denomina de malha de percepção do sujeito encarnado. O pesquisa-
dor contemporâneo é esse sujeito em devir cujo corpo, mente, sujeito e objeto não se dissociam.

Já não se trata, simplesmente, de indicar novos lugares no velho mapa da modernidade, e sim que os
desenvolvimentos contemporâneos exigem a construção de um novo espaço cogni�vo, em que corpo-mente,
sujeito e objeto [...], são pares co-relacionados e não oposição de termos independentes. Najmanovich (2001,
p. 8).

É nesse sen�do, que se compreende que Najmanovich tenciona a ideia de um modo fixo para se construir o conheci-
mento. Nesse sen�do, inves�gar, pensar e conhecer são movimentos cria�vos que envolvem as várias vozes que se
enlaçam na experiência do pesquisador enquanto sujeito encarnado.

Trazer o corpo encarnado para a pesquisa confronta a perspec�va epistemológica moderna, onde o corpo restringe-
-se a uma dimensão �sica com dotação de movimento mecânico dado pela funcionalidade do ritmo biológico da
vida. Nessa lógica, o corpo é para ser examinado, manipulado com base em parâmetros expectados por classifica-
ções que estabelecem linhas de normalidades e de patologias. Para as normalidades indicam-se atributos de
condução para manutenções e con�nuidades, para as patologias, ao contrário, prescrevem-se ajustes e correções.

Canguilhem observa:

A necessidade de restabelecer a con�nuidade, para melhor conhecer, a fim de melhor agir é tal que, levando-a
às úl�mas consequências, o conceito de doença se desvaneceria. A convicção de poder restaurar cien�fica-
mente o normal é tal que acaba por anular o patológico. A doença deixa de ser objeto de angús�a para o
homem são, e torna-se objeto de estudo para o teórico da saúde. É no Patológico, com letra maiúscula, que se
decifra o ensinamento da saúde, de certo modo assim como Platão procurava nas ins�tuições do Estado o
equivalente, ampliado e mais facilmente legível, das virtudes e vícios da alma individual. Canguilhem (2009,
p.12).

A ideia oposi�va e excludente entre o normal e o patológico quando parametrizadas pelas medidas modernas elege
o normal como referência de busca. O terreno biológico quando considerado o patológico migra para o campo do

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rejeito, que, ao estabelecer contrastes de coexistências impossíveis, indica o padrão da funcionalidade normal do
corpo e de suas partes. Normal e patológico estão afastados, tencionam dicotomias de víveres, não pressupõem
condições diferentes para coexistências, ainda que negociadas. No alcance tautológico do padrão, onde a normalida-
de emergisse única, o patológico e a normalidade se dissolveram, a existência de padrões requer oposição para fazer
nãos, subalternidades e invisibilidades. A supremacia de um corpo normal, contraditoriamente, afirma-se na
fragilidade de um corpo patológico. Ou seja, em úl�ma instância, a hegemonia para montar estrutura, supostamente
sólida, finca alicerce em um terreno, que a própria normalidade, considera arenoso.

O corpo encarnado, narrado por Najmanovich (2001), pressupõe uma corporalidade que emerge em movimento
carnal, como sugere a composição semân�ca, a vida das pessoas em suas expressões subje�vas e nos seus pertenci-
mentos cole�vos. Encarnar o corpo é torná-lo uma conjunção de si refle�da na conjunção das alteridades. Corpos
de encarnações perfilam paisagens que nas construções subje�vas comunicam os sen�dos e significados das
conjunções cole�vas. O movimento de fazer o corpo encarnar é, portanto, um movimento de busca de vida que se
encontra na busca de outras vidas. Trata-se de um paradigma que associa diferença e diversidade em compar�lha-
mento de história, memória e devir. Nesse trânsito, a encarnação de um corpo se movimenta pelo compar�lhamen-
to e ressignificações que operam a par�r de outros corpos em encarnação.

A epistemologia para percepção de conjunturas em movências por corpos encarnados requerem um processo de
compreensão de intera�vidades proximais. Não de uma proximidade românica que apaga conflitos, narrando
harmonias de ordens, mas de uma proximidade ordinária, que no movimento do co�diano move-se em negociação,
influência, solidariedade, violência...abordagens, concepções e manejos que fazem o dizer da vida que inclusive diz
sobre a morte. Nessa lógica, a pesquisa não se desloca para pessoas, seja por aproximações de interesses ou
distanciamentos de neutralidade, mas, aloca-se para o corpo encarnado. Aloca-se para compreender por escuta,
olhar, tato, cheiro, os reflexos de um espelho de vida, que entre outros e outras, encontra-se esse, o também, corpo
encarnado de quem faz pesquisa.

Ao pensar em pesquisa e colocar-se no local de pesquisador, faz-se necessário vislumbrar a perspec�va do sujeito
encarnado de Najmanovich (2001), em que para se conceber a busca pelo conhecimento do mundo é necessário
contemplar sua inserção nele e nos seus próprios processos de conhecimento. Enredados nessa concepção, a ideia
basilar de uma pesquisa não pode ser buscada pelo pesquisador, e sim experienciada por ele para que, por fim, seja
tomado pelas ideias. De fato, como reflete Gomes (2015, p. 121): “Quando dizemos que estamos implicados em
nossa pesquisa não estamos falando de nós, indivíduo singular, mas de campos de forças que nos tomam e nos
movem para diferentes lugares”.

O lugar do pesquisador é o “lugar do não saber”. Aquele que se permite vivenciar o estado processual da pesquisa,
se envolvendo com os acontecimentos que a cercam em um constante movimento co�diano de perceber e reconce-
ber novos olhares para o objeto da pesquisa. O “não saber” aqui é percebido como o não encarceramento das ideias
em contextos previamente categorizados, que contemplam uma metodologia prevista e estabelecida antes do seu
início, fundamentada em previsibilidades de hipóteses que, ao serem testadas, devem se confirmar ou não. Ao se
desvencilhar das amarras metodológicas previamente concebidas, se experienciam os desenlaces, frutos dos
movimentos co�dianos dos sujeitos da pesquisa, que somente podem ser contemplados por um pesquisador que
permite a construção e reconstrução dos saberes durante o processo.

Aqui vale a reflexão da “pesquisa com o co�diano” proposta por Ferraço (2003). Ao se inserir profundamente no
objeto de estudo, ao ponto de confundir-se com ele, surge uma nova perspec�va de ser pesquisador de si próprio,
cons�tuindo-se o cerne da sua própria inves�gação. Dessa forma, os lugares de estudo se modificam e se fundem
nas movências do corpo encarnado, não se inves�gando “sobre” os movimentos do co�diano, mas sim “com o
co�diano”, entendendo-se todos envolvidos como par�cipes da tessitura do saber. De fato, ao considerar o sujeito
da pesquisa Ferraço (2007, p. 74) observa: “[…] todos aqueles que, de modo mais visível ou mais su�l, deixam suas

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ARTIGOS

marcas nesse co�diano”.

Não obstante ao “lugar do não saber”, nas escolhas dos objetos de pesquisa também se contempla o “lugar de
iden�ficação”. Ao compreender o pesquisador como aquele que pesquisa sobre si mesmo, a construção das
reflexões sobre o objeto a ser contemplado pelo estudo não se inicia do desconhecimento completo. As fundamen-
tações desse pensar se permeiam nas afinidades do pesquisador, as suas experimentações, no vivenciar o mundo,
atravessam suas subje�vidades e os sen�dos por elas traduzidos. Assim, o estudo com o co�diano pode ser legi�ma-
do, pois, tendo nascido das inquietações que permeiam as vivências e experimentações do exis�r co�diano do
pesquisador, contempla o “outro”, indivíduos atores e autores desse movimento co�diano.

A compreensão dicotômica que polariza o normal e o patológico como condições antagônicas e excludentes,
mantém noções classificatórias e processos de validação que afastam a complexidade da experiência enquanto
processo dinâmico, que contempla, de modo simultâneo, ambiguidade, coexistência, incerteza, imprecisão.
Orientada por lógicas semelhantes, a epistemologia posi�vista, ainda hegemônica na produção cien�fica em
diferentes campos disciplinares, atribui legi�midade a métodos convencionados como forma de manter uma
espécie de ordem das pesquisas cien�ficas que cerceiam processos poié�cos de produção do saber. Contudo, ao
ins�tuir e manter direções, tal perspec�va epistemológica enrijece, circunscreve e restringe processos inves�ga�vos,
desde os pressupostos às hipóteses.

Por outro lado, a grandeza da existência sempre escapa, escorre, ebule, provoca microrupturas. Convoca outras
questões, outros instrumentos conceituais, outras ferramentas para transitar por territórios dinâmicos, mul�dimen-
sionais.

Nesse contexto, fazem-se necessários enfoques originais, dinâmicos, intera�vos, complexos, que assumam a
existência encarnada do pesquisador como parte cons�tu�va e ressonante da realidade atuada, cambiante. Vincula-
do ao seu objeto, o sujeito que delineia a inves�gação é também atravessado por ela. Sensível, atento a conexões
emergentes, intensas ainda que efêmeras, transformadoras ainda que imprevistas, impensadas, pode fazer pergun-
tas inéditas e contribuir efe�vamente para a ampliação de repertórios teóricos acerca de fenômenos cada vez mais
complexos.

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Referências
CANGUILHEM, G. O Normal e o patológico. Tradução de Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas; revisão técnica
Manoel Barros da Mo�a; tradução do posfácio de Pierre Macherey e da apresentação de Louis Althusser, Luiz Otávio
Ferreira Barreto Leite. - 6.ed. rev. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

FERRAÇO, C.E. Eu, caçador de mim. In: GARCIA, R.L. (Org.). Método: pesquisa com o co�diano. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.

FERRAÇO, C.E. Pesquisa com o co�diano. Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 98, p. 73-95. 2007.

GOMES, M. A. O. Diversidade e diferença no aprender ensinar: ou sobre fragmentos de infância, bons encontros e
cuidado de si. Práxis Educacional. v. 11, n. 18 p. 117-129. 2015.

LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: N-1 Edições, 2015.

NAJMANOVICH, D. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do co�diano. Rio de Janeiro: DP&A editora,
2001.

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NOMADISMOS, ENCONTROS
E F L U X O S : deslocamentos no/para o
acercamento de atos de cuidado em
alimentação e nutrição

Lilian Miranda Magalhães *


Indira Ramos Gomes **
João Paulo de Oliveira Rigaud ***

Resumo: O presente trabalho parte da obra Seara Vermelha do escritor


Jorge Amado para fazer reflexões sobre os "caminhos da fome". A
expressão amadiana é aqui compreendida como fluxos migratórios
decorrentes de um contexto de constante desterritorialização e violação
de direitos, que culminam no mais extremo nível de insegurança
alimentar e nutricional. Propõe ainda pensar encontros entre aqueles
que vagueiam e cons�tuem mul�dões de famintos como atos de
solidariedade para a preservação da vida. Tal perspec�va emerge de
nomadismos epistemológicos para acercamento e ampliação do cuidado
em alimentação e nutrição, considerando o seu caráter rizomá�co.

Palavras-chave: Segurança Alimentar e Nutricional. Iniquidade social.


Alimentação e Nutrição. Cultura.

Abstract: The present work is based on the book Seara Vermelha by the
writer Jorge Amado to reflect on the "paths of hunger". The Amado
expression is understood here as migratory flows resulting from a context
of constant deterritorialization and violation of rights, culminating in the
most extreme level of food and nutritional insecurity. It also proposes to
think of encounters between those who wander and constitute crowds of
hungry people as acts of solidarity for the preservation of life. This
perspective emerges from epistemological nomadisms for approaching
and expanding care in food and nutrition, considering its rhizomatic
character.

Key-Words: Food and Nutrition Security. Social Inequity. Food and


Nutrition. Culture.

* Doutora em Alimentos, Nutrição e Saúde – UFBA- Professora da UNIJORGE, NEPAC/UFBA.


** Mestre em Alimentos, Nutrição e Saúde/ NEPAC/UFBA.
*** Mestrando em Alimentos, Nutrição e Saúde NEPAC/UFBA.

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ARTIGOS

Ante ao convite para transitar por zonas de indiscernibilidade entre arte, pensamento, vida, trago comigo a Literatu-
ra para pensar sobre o campo da alimentação e nutrição. A literatura, que põe em movimento e alimenta o espírito
crí�co, ávido de experimentar imagens, linguagens, sen�mentos, pensamentos, experiências e as (trans)formações,
que dela decorrem. A literatura que provoca o desejo de liberdade e convoca-nos à criação.

Seara Vermelha

“Seara Vermelha”, uma das produções que cons�tuem a vasta obra de Jorge Amado, foi publicada em 1946. O
romance narra o êxodo de nordes�nos na década de 1930.

E através da caa�nga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável mul�dão de camponeses. São
homens jogados fora da terra pelo la�fúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas,
que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de todas as partes do Nordeste na
viagem de espantos, cortam a caa�nga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras,
vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os
corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. (AMADO, 2009, posição 654.5685)

Em meio aos andarilhos, estão as famílias de Jerônimo e João Pedro. O primeiro com a esposa Jucundina, dois filhos,
três netos órfãos e a cunhada Zefa. O segundo com a esposa Dinah e a filha Gertrudes. Um jumento, uma gata,
pouca roupa e quase nenhuma comida.

Para iniciar a discussão que aqui pretendo fazer, permitam-me ler fragmentos da narra�va do momento em que se
encontram com outro grupo.

Era uma família que estava acampada sob o oi�zeiro. Além do homem que os recebera havia mais dois rapazes
e quatro mulheres.
[Jucundina prepara o modesto jantar]
— Vosmecês são servidos?
Houve um gesto impreciso de uma das moças. Como se quisesse marchar para diante e aceitar. Jucundina teve
medo. Tinha ainda muito caminho pela frente e pouco man�mento. O dinheiro era contado para as passagens
no navio até Pirapora. Podiam dispor de pouco e o que levavam mal daria se fizessem a viagem com a rapidez
que pretendiam.
Ficou olhando a moça que não chegou a sair do lugar, apenas o pescoço estendeu-se para logo se recolher.
Foi o homem que antes empunhava a repe�ção quem respondeu:
— Obrigado. Nós já comeu vai pra mais de meia hora…
Jucundina dividiu a carne. Deu pedaços maiores aos três homens. Zefa silenciara e mas�gava num canto,
benzendo-se de quando em vez. Dinah deu um pedaço de sua carne a Gertrudes e pediu a João Pedro que
armasse a rede. Jucundina começou a coar o café.
As latas eram poucas e só havia dois canecos. Serviu primeiro a Jerônimo e João Pedro. As moças olhando, os
rapazes olhando também. O homem da repe�ção havia baixado a cabeça, talvez para não olhar ele também,
talvez para não ver as filhas e os filhos de olhos puxados para o café. Mas não resis�u até o fim. Quando
Jucundina estava servindo a Zefa e a Marta, ele falou:
— Se vosmecê pode dar, eu aceito um pingo de café pras duas meninas…
E antes mesmo que Jucundina respondesse, ele explicou, as mãos balançando, a voz distante:
— É que faz muito tempo que a gente tá viajando. Nós vem do Ceará e já acabou tudo que a gente trouxe. Faz
três dias que não tem café. Só tem mesmo rapadura e farinha…
Todos tomaram café. E Jucundina ainda deu um pedaço de carne. Pequeno, mas que foi recebido num silêncio
que valia mais que qualquer ruidosa manifestação de alegria.
— Deus ajude vosmecê… (AMADO, 2009, posição 919.5685)

Os fluxos migratórios proporcionam encontros. Encontros entre seres errantes que, demovidos daquele que parecia
ser o seu lugar no mundo, foram empurrados sob o sol caus�cante, para peregrinar por entre arbustos secos e
espinhos emaranhados na vegetação inóspita (VIDAL, 2013; CÉSAR, 2015). Carentes de quase tudo, ambos desfeitos

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pelo descaso, pelo desterro, agora trilhando os “caminhos da fome”, feitos de angús�a, incerteza, agonia, mas não
apenas isso.

Na cena descrita, os sertanejos compar�lham os seus parcos suprimentos. Desenvolvem atos dos quais emerge um
cuidado mediado pela comida. Atos de solidariedade que demonstram o valor e o respeito à vida. Atos de uma
gra�dão reme�da à divindade: — Deus ajude vosmecê… Atos voltados à autopreservação, mas também a preserva-
ção de outrem. Pois, é pela incorporação de par�culas cons�tu�vas do que denominamos alimentos, que o mundo
adentra o corpo para integrá-lo, para dinamizá-lo. O fenômeno da alimentação nos mantém no mundo e invariavel-
mente, envolve solidariedade e interdependência entre os seres e as coisas.

Nesse sen�do, o cuidado em alimentação e nutrição emerge de redes múl�plas e interligadas. “Construções
imanentes formadas por arranjos provisórios que, a todo momento, integram atores humanos e não humanos em
fluxos constantes de conexões entre si e com o mundo. Interações que os modificam (atores, redes e mundos)
incessantemente” (MAGALHÃES; AMPARO-SANTOS, 2020, p. 9).

A fome de um agricultor evidencia que os alimentos que ele produz não lhe pertencem. Há obstruções, ausências,
insuficiências, relações de poder, atuações pouco salutares que esgarçam e fragilizam as tessituras (CÉSAR, 2015).
Aos poucos atores que restam, incide a tarefa de produzir entrelaçamentos reparadores, capazes de amparar a
produção de vida e a con�nuidade da existência. As redes de cuidado em alimentação e nutrição demonstram ser
formações rizomá�cas.

Ainda assim, ante o contexto de constante desterritorialização, precariedade e violação de direitos, as redes podem
falhar. A narra�va da travessia do Rio São Francisco pelos re�rantes em um barco a vapor, denuncia a desigualdade e
o desrespeito à dignidade humana, remetendo-nos ao “Navio Negreiro” de Castro Alves. Muitos não resistem à
longa e devastadora viagem.

Mas, a dispersão dos membros da família começa tempos antes. Zefa, irmã de Jucundina escolhe o mis�cismo e
torna-se uma peregrina ao lado do Beato Estêvão. Os filhos de Jerônimo e Jucundina - Jão, Zé Trevoada e Nenem -
recusam o jugo da exploração. O primeiro, a quem o trabalho na roça parecia cada vez mais estafante e sem futuro,
foge para uma capital distante e torna-se policial. O segundo, movido pela revolta e pela sede de vingança, adentra o
sertão e torna-se um dos cangaceiros do bando de Lucas Arvoredo. O terceiro, inconformado com a injus�ça social,
ingressa no exército, torna-se comunista e ar�cula um levante com os cabos e soldados.

Os diferentes rumos escolhidos não rompem os laços parentais, mas evidenciam que o grupo não é uníssono. Longe
de reafirmar o modelo de família plenamente harmônico, em comunhão orgânica de sen�dos atribuídos à vida,
quase fusional, Jorge Amado expressa outra noção de comunidade.

Uma comunidade diversa, heterogênea, cuja dispersão é iminente. Uma “comunidade de celibatários” que se
afastam para elaborar as suas próprias maneiras de ser e estar no mundo, que se deslocam para produzir e preser-
var a originalidade do seu próprio e mutável ritmo, para expandir sua potência vibratória, para compor e cons�tuir,
de modo sempre provisório novos “acordos e acordes” (PELBART, 2003).

Assim como em “Capitães de Areia”, “Mar Morto”, “Suor”, o autor baiano denuncia os efeitos da desigualdade
social, ao tempo em que expõe a alegria, o desejo pela vida, o exercício da liberdade, os atos de coragem, solidarie-
dade, transgressão, subversão e insurgência daqueles que trilham as “estradas da esperança”.

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ARTIGOS

Considerado criminoso por ser comunista, Nenem é encarcerado. Contudo, o aprisionamento do seu corpo, não
cessa os seus movimentos e o cabo Juvêncio faz da prisão “a sua universidade”. A contenção e exílio possibilitam
encontros com os autores dos “livros que cobiçava nos dias anteriores à revolução de 35”. Encontros potencializados
por aqueles que “sabiam que deviam cultivar no moço sertanejo o interesse pelo problema do campo. E lhe envia-
vam todos os materiais, livros e folhetos que tratavam da questão camponesa. Ele os devorava nos dias longos da
prisão” (AMADO, 2009, posição 5205.5685). Encontros e afecções que nutrem o seu ser e aumentam a sua potência
de agir. Após a soltura, ele retorna ao sertão para esclarecer os camponeses sobre os seus direitos. Retorna para a
colheita.

Mas, o autor mantém desfechos em aberto:


É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos
que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as ví�mas da seca e dos coronéis juntam seus trapos, seus
filhos e suas úl�mas forças e iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes
Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é di�cil, se não impossível, descobrir qual a maior
miséria, se a dos que partem ou a dos que voltam. (AMADO, 2009, posição 673.5685)

Os livros “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus e “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire poderiam ser
indicados para pensar sobre as con�nuidades da estória. O primeiro por se basear na escrita do co�diano de uma
mulher negra, pobre, migrante e mãe solo na cidade de São Paulo, que conquista espaço na literatura brasileira. O
segundo por ser da autoria de um nordes�no, que analisa cri�camente os contextos de opressão incorporados e
naturalizados na história desse país. Contudo, faz-se necessário voltar à Seara Vermelha.

O acampamento do Beato Estêvão é cercado com o intuito de conter a rebeldia dos colonos, que abandonam as
fazendas para segui-lo, mas nos jornais da capital são publicados

Ar�gos dizendo que o beato estava incitando os homens do sertão à desordem, que corria perigo a safra
daquele ano por falta de braços, que os mais sãos princípios da civilização cristã [...] perigavam, sucumbiam
naquela onda de supers�ção que tão rapidamente se alastrava por todo o sertão nordes�no. (AMADO, 2009,
posição 4036.5685)

Com a chegada dos cangaceiros para defender o beato e o seu povo, os policiais proíbem a passagem dos romeiros
para que não se juntem ao grupo e impedem que os sertanejos acessem comida e água.

As estratégias baseiam-se na interrupção de fluxos para conter o aumento da “potência de vida mul�dão”. Mas, por
trás delas há ainda lógicas interrogadas por Jão, momentos antes de entrar em confronto com o próprio irmão, Zé
Trevoada:
Pra que foi feito cangaceiro se não para matar soldado de polícia, pra que foi feita a polícia se não pra caçar
jagunço na caa�nga? Era uma guerra sem fim e sem razão [...]. Sem razão por que eram tão parecidos, eles e
os cangaceiros, em verdade eram iguais, que diferença havia? (AMADO, 2009, posição 3967.5685)

Por outro lado, cabe destacar que, da desterritorialização dos pequenos agricultores, decorre ainda um �po de
epistemicídio que possibilita capturas e sequestros pelo Capitalismo.

Dando con�nuidade às lógicas que fundaram o Brasil colonial, a organização territorial contemporânea mantém a
hegemonia dos grandes la�fúndios. A expulsão e exploração dos pequenos agricultores agravou as desigualdades
sociais e abriu espaço para a expansão do agronegócio e da indústria de alimentos, para o aumento do uso de

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agrotóxicos, das monoculturas e da transgenia, evidenciando processos de apropriação e expropriação da alimenta-
ção (DAUFENBACK et al, 2020; FRUTUOSO; VIANA, 2021).

Tais modelos vigentes operam uma modalidade de produção do comum. Um comum alimentar que opera capturas
da diversidade e se insinua sobre as prá�cas co�dianas, afastando os corpos das possibilidades de encontros
salutares, vibrantes, ressonantes. Pois, pela heterogeneidade e natureza das par�culas cons�tu�vas, do que denomi-
namos comida, o mundo adentra o corpo, integrando-o, dinamizando-o, provocando pulsão de vida. Provocando
mútuas afecções que de tão intensas podem passar a habitar registros mnemônicos. Singulares encontros, singula-
res ressonâncias, singulares registros.

Assim, embora esse comum alimentar por vezes obscureça as ma�zes e nuances da alimentação co�diana sempre
condicional, sempre mutável e diferente como os dias que se sucedem e surpreendem, todos esses processos que
intencionam a completa subordinação às regras e normas de um cuidado heterônomo, ver�calizado, colonizado, a
grandeza da existência sempre escapa, escorre, transcende.

Neste contexto pandêmico em que as guerras “sem fim e sem razão” con�nuam a impor desterritorializações,
indígenas, quilombolas e “o povo da roça” resistem (AMADO, 2009, posição 3965.5685). Empreendendo outras lutas
para se manterem no mundo. Lutas que não se restringem à doação de alimentos para evitar que pessoas vivenciem
dolorosa experiência da fome, mas que se ar�culam em movimentos sociais que se voltam à soberania alimentar e
acionam mecanismos legais de exigibilidade do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas para promo-
ver a emancipação e o aumento da sua, da nossa potência de exis�r.

Nesse sen�do, é importante afirmar que:

Sabendo-se atores, os sujeitos podem se situar melhor nas redes e atuar de modo integrado, segundo
princípios é�cos, desenvolvendo posturas mais poli�zadas e conscientes que relacionam as prá�cas no âmbito
privado à soberania alimentar e aos sistemas de produção economicamente justos e sustentáveis. Ao
tornarem-se mais a�vos e conscientes, é possível que se conectem de outros modos com os alimentos,
entendendo que a alimentação está ligada a outros direitos humanos fundamentais – como saúde, trabalho e
educação – e assim se posicionar na luta pela implantação e execução de polí�cas públicas que oportunizem a
garan�a da Segurança Alimentar e Nutricional à população. (MAGALHÃES; AMPARO-SANTOS, 2020, p. 9)

Por fim, creio que seja importante marcar, que sou efeito dos encontros decorrentes do êxodo dos nordes�nos. Um
baiano, uma pernambucana, dois desertores, que chegaram à cidade de São Paulo, em busca de uma vida melhor,
levando consigo quase nada.

Sou também migrante. De São Paulo à Bom Jesus da Lapa. De Bom Jesus da Lapa à Salvador. Da Nutrição ao constan-
te trânsito pelos campos da Antropologia, Sociologia, História, Educação, Saúde Cole�va, Filosofia, Literatura. Do
reconhecimento da orfandade à eleição das filiações (pessoais e teóricas) como um modo de exercício da autono-
mia. E assim como o que produzo, também sou eu um efeito destes nomadismos epistemológicos.

Ao escolher outros caminhos, e afirmando aquilo que me dis�ngue, os afastamentos e as incertezas são inevitáveis.
Por outro lado, ao longo dessa sinuosa e edificante trajetória, outros encontros tornam-se possíveis. Outros nôma-
des, outros modos de exis�r, outros acolhimentos, outras formas de inventar direções, outros devires.

Em mim, deslocamentos estão em curso. A minha presença nesse espaço é efeito dos encontros com um dos meus
mais recentes bandos.

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ARTIGOS

Referências
AMADO, J. Seara Vermelha. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle.

AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autên�ca, 2013.

BARTHES, R. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços co�dianos. Tradução de Leyla Perrone-
-Moisés. São Paulo: Mar�ns Fontes, 2013.

CÉSAR, C. Reis do agronegócio. Estado de Poesia, 2015.

DAUFENBACK, V. et al. Desigualdade no acesso à terra e insegurança alimentar e nutricional: um olhar sobre os
marcos polí�cos, legais e ins�tucionais da segunda metade do Império até o primeiro governo de Getúlio Vargas
(1850-1945). Revista Ingesta, n. 2, v. 1, p. 96-117, 2020.

FRUTUOSO, M. F. P; VIANA, C. V. A. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação –uma
discussão necessária em tempos de pandemia. Interface -Comunicação, Saúde, Educação, v. 25, 2021.

MAGALHÃES, L. M; AMPARO-SANTOS, L. Mul�plicidade, heterogeneidade e coordenação: a produção do cuidado em


alimentação e nutrição a par�r das prá�cas de apoio matricial. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 7, 2020.

NANCY, J-L. A comunidade inoperada. Tradução de Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.

PELBART, P. P. A comunidade dos sem comunidade. In: PELBART, P. P. Vida capital: ensaios de biopolí�ca. São Paulo:
Iluminuras, 2003, p. 28-41.

VIDAL, L. Seara vermelha: homens em deslocamento, homens em espera no Nordeste dos anos 1930. Revista Porto,
v. 2, n. 3, p. 2-16, 2013.

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ESCOLA MERITOCRÁTICA:
onde está a igualdade de condições para o
acesso e permanência de todas as crianças
e jovens na escola?

Tânia Maria Hetkowski *

Resumo: Este ensaio tem como obje�vo abordar sobre a meritocracia perversa
que perpassa as escolas de Educação Básica do século XXI, em especial da rede
privada, que alicerçam seus pressupostos ideológicos, seus modelos de curricula-
rização, suas formas de avaliação e suas a�vidades cole�vas estribadas na
compe��vidade, na demonstração de competências, na conquista de méritos e
no desempenho de notas robustas, caso contrário são convidados, pressionados
ou expulsos desses espaços arquitetados para “alunos brilhantes”. Assim,
iden�ficamos nas histórias de mães, pais, responsáveis por crianças em fase
escolar, muitas lutas, tristezas, angús�as e descontentamento com estas escolas
quando seus filhos são apenas “crianças normais”, potenciais a serem grandes
heróis de um futuro quase sempre incerto, porque o importante, nessa sociedade
da estupidez, não é ser dez na escola, mas ser dez na vida. Aprender a respeitar o
outro, a exercer a é�ca da solidariedade, a lidar com as adversidades e as
diferenças e acima de tudo aprender que a Escola é um espaço onde (com)vivem
gentes com histórias e potenciais singulares. Desde modo, desejamos que os/as
gestores/as escolares repensem suas funções e suas ações junto a estas crianças
e jovens, futuros homens e mulheres, que cuidarão de nós idosos, velhos,
anciões, também sujeitos singulares.

Palavras-chave: Escola. Meritocracia. Educação Básica.

Abstract: This essay aims to address the perverse meritocracy that pervades Basic
Education schools of the 21st century, especially in the private network, which
underpin their ideological assumptions, their curricular models, their forms of
assessment and their collective activities based on competitiveness, in the
demonstration of competences, in the achievement of merits and in the perfor-
mance of robust grades, otherwise they are invited, pressured or expelled from
these spaces designed for “brilliant students”. Thus, we identify in the stories of
mothers, fathers, guardians of children in school, many struggles, sadness,
anguish and discontent with these schools when their children are just "normal
children", potential to be great heroes of an almost always uncertain future,
because the important thing, in this society of stupidity, is not to be ten in school,
but to be ten in life. Learning to respect the other, to exercise the ethics of
solidarity, to deal with adversity and differences and, above all, to learn that the
School is a space where people (with) live with unique histories and potentials.
Therefore, we want school managers to rethink their roles and actions with these
children and young people, future men and women, who will take care of us
elderly, old, elderly, also unique subjects.

Key-Words: School. Meritocracy. Basic education.

* PhD em Informática na Educação – Uchile, Doutora em Educação – UFBA. Professora da UNEB, atuando nos Programas de Pós-Graduação Educação e
Contemporaneidade (PPGEDUC) e, Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação (GESTEC). Pesquisadora nas áreas da Educação Básica, Formação de Professores
e TIC e Mãe de uma adolescente e aluna da Educação Básica.

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ARTIGOS

Introdução

A escola deve ou deveria ser espaço onde crianças e jovens experienciam seus primeiros contatos com o mundo
social, onde aprendem, no convívio, com o outro sobre seus direitos, deveres, limites, respeitos e conhecimentos
formais, os quais são preceitos das unidades escolares com apoio da família. Segundo a Cons�tuição Federal de
1988 (CF/88), ar�go 205, " A educação, direito de todos e dever do Estado e da família” e, complementa, em seu
ar�go 206, sobre os princípios da educação na garan�a da “I - igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e; III - pluralismo
de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de ins�tuições públicas e privadas de ensino” entre outras
garan�as. (CF, 1988). Ademais ainda nossa Carta Magna, como Lei, defende e cauciona “o direito à educação a todos
com o intuito de garan�r o pleno desenvolvimento da pessoa”.

Essa perspec�va visa compreender um preceito de escola democrá�ca, com autonomia da unidade escolar, com
respeito as diferenças, com processos de ensino e aprendizagem dinâmicos, intera�vos, socioafe�vos, com avaliação
dinâmica e con�nua e, com atenção as singularidades dos/as alunos/as, onde a construção dos conhecimentos e
saberes ocorrem de forma rigorosa 1, porém respeitosa e sem preterir uns/umas alunos/as aos/as outros/as.

A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, no seu ar�go 2º, destaca que “A educação, dever da família e do Estado, inspira-
da nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ademais os ar�gos que
compõem a CF/88 e a LDB/96, nos seus textos, enfa�zam, tutelam e ra�ficam o respeito as diferenças e níveis de
aprendizagem, a formação do cidadão, a permanência na escola e ao “não abandono intelectual de crianças ou
adolescentes”. Ou seja, a criança deve ir para a escola e a escola deve ser um lugar de convívio respeitoso entre
alunos/as e professores/as, garan�das as diferenças de religião, de níveis de aprendizagens e de combate à violência
que, segundo o ar�go 12º “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de
ensino, terão a incumbência de: IX - promover medidas de conscien�zação, de prevenção e de combate a todos os
tipos de violência, especialmente a in�midação sistemá�ca (bullying), no âmbito das escolas”. (LDB, 1996, grifos
meus).

Esse contexto demonstra, a par�r de Leis maiores, que regem a Educação Básica, que a “meritocracia” não
compõem os textos da Carta Magna e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, muito menos compreendem o
desejo e as expecta�vas de crianças e jovens, os quais são submissos aos projetos, planos, metodologias e progra-
mas que as escolas cons�tuem para sua formação escolar. Ou seja, existem leis que protegem os alunos/as do
comércio meritocrá�co, do incen�vo a compe�vidade e de preferências, pelos gestores/as e professores/as, por
alunos/as mais capazes, mais bem avaliados, mais competentes e que alcançam notas brilhantes. Essa crí�ca se faz
porque precisamos ensinar conteúdos escolares associados ao respeito ao outro, ao meio ambiente, a vida, a
dignidade e as relações sociais saudáveis, pois o mundo está cheio de pessoas inescrupulosas, egoístas, individualis-
tas e solitárias. Bauman (2003) enfa�za que as “relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e
maleáveis, como os líquidos”. É esta escola que queremos para as futuras gerações?

Os espaços escolares não deveriam ser espaços perversos e meritocrá�cos, devem ser espaços de diálogos entre
sujeitos diferentes; de ensino e aprendizagem com relação à vida e as experiências co�dianas; de resolução de
problemas conjuntos entre pais e comunidade escolar; da divisão de responsabilidades e não da transferência dos
fracassos, limitações e ausências somente ao “sujeito” aluno.

1 Neste sen�do, a formação de conceitos mais elaborados, de acordo com essa perspec�va, é a finalidade principal do ensino escolar, pois este tem grande influência
no desenvolvimento psíquico (LEONARDO e SILVA, 2013, p. 310).

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Comumente ouvimos e convivemos, como responsáveis, mães e pais de alunos/as, com certas afirma�vas ou
expressões de professores/as e de coordenadores/as pedagógicos/as2: “mãe sua filha está com problemas nas
disciplinas de �sica, matemá�ca e português”; “este trimestre seu filho foi muito mal em química”; “as disciplinas
mais importantes para um ves�bular são matemá�ca e português e sua filha apresenta dificuldades”; “seu filho é
um amor de criança, mas não é participativo nas aulas”; “em duas unidades sua filha tem notas muito baixas, agora
mãe, é correr atrás para recuperar”. Lamentavelmente nesses discursos, nessas afirma�vas, percebe-se a transferên-
cia do fracasso escolar ao/a aluno/a e a família3. Prioste (2020, p. 04) supõe “que a maior parte das dificuldades na
aprendizagem poderiam ser superadas por meio de acolhimento às famílias e às crianças; maior apoio ao professor;
mudanças no contexto educacional e nas estratégias pedagógicas”.

De modo que, este ensaio tem como pretensão falar e refle�r sobre a meritocracia perversa nas escolas de Educa-
ção Básica e, demonstrar que precisamos evoluir muito como escolas, professores/as, projetos pedagógicos e
compreensão de ser humano para (re)criarmos uma escola baseada na responsabilidade com o ensino formal, com
respeito as singularidades de cada sujeito escolar e, na efe�vação de que seu papel de não transferir o fracasso ao/a
aluno/a e a família, mas de prover e garan�r de qualquer �po de intimidação sistemática. Reprovar uma criança ou
jovem não deveria ser uma demonstração de “escola de qualidade”4 , mas de constrangimento de um grupo de
profissionais especialistas e formados para a condução de processos de ensinar e aprender, sensatos de que deve
haver a “conscien�zação, prevenção e combate a todos os �pos de violência [..] no âmbito das escolas”. (CF, 1988),
incluindo a violência, neste sujeito da reprovação, de se sen�r inferiorizado, fracassado, envergonhado e incapaz de
defesa.

De acordo com a CF/88, ar�go 227, ao reger sobre a proteção da criança e adolescente, garante que "é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, explora-
ção, violência, crueldade e opressão”. (grifos meus). Fica evidenciado na Carta Magna que, quando a escola, coloca
o/a aluno/a em uma condição de aviltamento e fracasso”, agride os princípios cons�tucionais de proteção de
menores incapazes de defesa. Segundo o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA, 1990), ar�gos 136 e 232, é crime
pelo “agente, para fim de educação, ensino (...) submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou
vigilância a vexame ou constrangimento”. Isso cabe às escolas meritocrá�cas, ao posicionamento de profissionais da
educação mencionado neste ensaio e, a uma chamada para discussões e reflexões sobre a missão das escolas e ao
cumprimento das leis de proteção de jovens e adolescentes.

Meritocracia na vida das crianças e jovens da educação básica

“Mãe, infelizmente sua filha não conseguiu passar de ano”.


(Coordenadora Pedagógica da Escola O).

Poderíamos afirmar que a escola fracassou, mas, a sinalização é de que a criança não conseguiu “passar” de ano e
que o fracasso e incompetência são seus feitos. Não são da escola, da equipe escolar, do impecável projeto polí�co
pedagógico, das metodologias u�lizadas em sala de aula, das narra�vas baseadas na produção de mentes brilhantes
e de salas repletas de alunos/as “sabidos/as”. Quem é e/ou são os/as culpados/as? Poderíamos dizer que é o
sistema. Mas o sistema é construído, man�do, modificado ou inovado pelo estado, pelos entes federa�vos e pela
sociedade civil, formados por gentes, por seres humanos. Nesse caso, a escola, como sistema de ensino, também
formada por pessoas: gestores/as, coordenadores/as, professores/as, alunos/as e seus responsáveis.
2
Este texto não tem o obje�vo e generalizar Escolas, Professores, Coordenadores Pedagógicos e/ou Gestores Escolares, mas são situações que muitos pais e mães
vivem. São afirmações ouvidas e vividas, nas experiências como mãe e filha, com algumas Escolas da Rede Privada.
3 Em pesquisa realizada com professores de três escolas da Educação Básica, “um dado que merece destaque é o fato de os docentes atribuírem à família a
responsabilidade pelo aprendizado e desenvolvimento do/a aluno/a na escola, o que nos permite dizer que eles acabam por transferir à família atribuições que
competem a eles mesmos”. (LEONARDO; SILVA, 2013, p. 313).
4 Na condição de professora e pesquisadora, por quase três décadas, a Educação de Qualidade é muito rela�va, uma vez que a minha prá�ca de sala de aula e de
processos de ensinar e aprender, com alunos de diferentes níveis de formação, sempre ocorre pela via do diálogo, do valor pela vida e do respeito às limitações de
cada sujeito do conhecimento.

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ARTIGOS

Mas essa escola, meritocrá�ca, baseada no discurso e nas consequências da modernidade, em efervescência no
final do século XVIII, traz em seu âmago reflexos intensos, nas suas dinâmicas, de evidências despó�cas e atroz, tais
como “emergência de modos uniformes de mensuração [...]; formação em dimensões padronizadas, ´vazias´,
penetram as conexões entre a a�vidade social e seus ´encaixes´ nas par�cularidades dos contextos de presença [...];
sistema de datação padronizado [...]; não há necessidade de se confiar em alguém [...]; credibilidade em face de
resultados con�ngentes [..]; condições da modernidade é conhecimento certo”. (GIDDENS, 1991, p. 23-40). Ou seja,
a ins�tuição escolar se assenhora de uma zona de conforto onde se considera vigiadora e punidora de sujeitos
“menos brilhantes”, uma vez que estes não se padronizarão, não terão credibilidades quanto aos seus resultados e, a
escola não pode confiar na sua superação e sucesso, pois seus desfechos notórios são incertos.

Refle�r sobre a meritocracia é buscar compreender esse sistema desde a e�mologia da palavra até sua repercussão
na formação escolar de crianças e jovens. A palavra meritocracia vem do la�m miritum e do sufixo grego kpatía
“cracia”, estabelecendo uma relação direta entre mérito e poder. Para Abbagnano (2007, p. 660), “o mérito é
diferente da virtude e do valor moral, cons�tuindo a avaliação da virtude ou do valor moral, com fins de reprova-
ção”. A condecoração fundamenta-se no merecimento das ações executadas, levando em conta a perspicácia, a
competência e a soberania perante os demais sujeitos envolvidos no cumprimento da tarefa e/ou missão. Nesse
sen�do, a meritocracia pode ser evidenciada em ações, das escolas, tais como esta: “meus colegas brilhantes com
notas dez em física são convidados pelo professor e pela escola para realizar estudos avançados de física, mas só
quem é bom” 5. E os/as alunos/as que não se iden�ficam com �sica devem ser /as ou reprovados/as? Uma vez que
“essa escola”6 não proporciona reforço escolar para aqueles/as alunos/as que encontram dificuldades no entendi-
mento de �sica, domínio ou mesmo ap�dão para as ciências exatas.

Nessa perspec�va, há uma relaçao intrinseca entre a meritocracia, o capitalismo e a compe�ção como fatores que
determinam o lugar e a posição que muitos “sujeitos” ocupam. A meritocracia se cons�tui, em especial, entre um
aluno/a ter ou não ter uma determinada competência para enfrentar os métodos de seleção (ves�bular, concurso,
recrutamentos) que avaliam a capacidade laboral e/ou intelectual, como também devem apresentar aspectos
�sicos, psíquicos e sociais em consonãncia com suas habilidades cogni�vas. Significa que diante às premissas da
CF/88, da LBD/96 e da ECA, grande maioria desses sujeitos escolares são negligenciados, violentados e excluídos do
sistema vigente.

De acordo com Barbosa (2010), a meritocracia


é vista como desagregadora do ambiente de trabalho, pois estabelece a compe�ção onde ela não exis�a. Ela é
equivocada, pois troca quan�dade por qualidade. Ela é injusta, porque não reconhece e retribui o trabalho de
todos. Em suma, ela é uma nova forma de exploração e de estresse organizacional. (p. 83)

Na Educação Básica, neste caso específico da rede privada, podemos considerar que os alunos têm muitas oportuni-
dades de acesso as tecnologias, a diferentes culturas, a vivenciar novas experiências e conhecimentos através de
viagens com seus pais, acesso a livros e outros meios para seu desenvolvimento, porém todos estes elementos
significam sucesso e “mérito”, uma vez que “a aprendizagem está sempre ‘adiante’ do desenvolvimento, que a
criança adquire certos hábitos e habilidades numa área específica antes de aprender a aplicá-los de modo conscien-
te e arbitrário. (VIGOTSKI, 2000, p. 322) , ou seja, o desenvolvimento da criança é visto como maturação natural das
suas estruturas biológicas e, a aprendizagem é o aproveitamento das oportunidades exteriores, neste caso dos
processos de ensino e de saberes que a escola deve oferecer, considerando que as crianças têm diferentes habilida-
des; são singulares; apresentam suas limitações em diferentes áreas; estão expostas e susce�veis à construções
nega�vas e/ou posi�vas que afetam suas posturas, posicionamentos, saberes, medos, anseios, vergonhas entre
5 Fala de uma aluna sobre os/as alunos/as destaques em Física, em especial, uma vez que suas notas não eram compa�veis com aquelas esperadas pelo professor
e pela Escola.
6 Não há intenção de generalizações, mas de localizar situações e histórias que foram vividas, experenciadas e que marcaram a vida e a relação dos/as alunos/as
com algumas escolas.

32 REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCELO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020


outros que, diante desse adulto, professor, profissional e modelo de “saber”7 devem ser acolhidos e não escolhidos.
Ou seja, as

múl�plas interpretações acerca de como avaliar o desempenho, do que realmente entra no seu cômputo, do
que sejam talento e esforço, de quais são as origens das desigualdades naturais, da relação entre responsabili-
dade individual e/ou social e desempenho, da existência de igualdade de oportunidade para todos, da
possibilidade concreta de mensuração do desempenho individual etc. (BARBOSA, 2010, p. 22)

Discu�r meritocracia neste contexto tem uma propensão capitalista e a escola aparece como “terras virgens”
(BAUMAN, 2010, p. 10) a serem exploradas - através de milhares de crianças e adolescentes -, e subme�das a
metanarra�vas de que a compe��vidade perversa faz parte do sucesso dos melhores, os quais terão um futuro
magnífico; de que os princípios da individualidade e da racionalidade são pressupostos de um profissional triunfan-
te; de que a ideologia neoliberal impulsionará sua vida financeira opulenta e suntuosa entre outras barbáries. Para o
autor, estas e outras premissas cons�tuem a “sociedade do medo”. Assim, as crianças e jovens são “formados” para
vencer, para ser os melhores, para obter resultados mais súperos, para mostrar seus exímios desempenhos, em
especial através de notas, memorização, transmissão, repe�ção e decoreba. Não parece aquela velha escola
bancária? A escola e a educação bancárias moldam, homogeneízam e depositam ideários meritocrá�cos, capitalistas
e neoliberais.

Para Ravitch (2011, p. 49), as “mudanças induzidas pelas pressões da responsabilização corrompem o próprio
propósito da escolarização, causando a focalização dos profissionais na mensuração ao invés de nos obje�vos da
educação”. Não obstante, não entendem que o desenvolvimento das competências e habilidades profissionais não
dependem unicamente do esforço individual, mas de oportunidades para sujeitos aprendentes nas suas trajetórias
educa�vas e forma�vas cole�vas, bem como nas oportunidades de amparo escolar, auxílio nas dificuldades e na
complementação de a�vidades que exigem habilidades outras, que não aquelas presentes e evidenciadas nas
crianças e adolescentes (lógica, desenho, harmonia, corpórea, entre inúmeras outras).

A realidade de inúmeras destas crianças, contempladas neste texto, têm ou �veram nas suas histórias de vidas,
oportunidade de conhecer, pessoalmente, muitas culturas, museus, passeios em diferentes cidades, viagens para
alguns países entre outras possibilidades etnológicas, etnográficas e ontológicas, mas esses saberes não compõem
as tabelas e planilhas da escola. Vamos ilustrar um fato que ocorreu com uma aluna, a qual conheceu muito espaços
e lugares com artes romanas, egípcias, gregas, la�nas e brasileiras incluindo, pesquisou sobre as artes japonesas do
animè e do mangá e, deleitava-se desenhar, criar e representar personagens dessa arte, demonstrando suas
descobertas nos riscos, rabiscos e traçados sua sensibilidade e seu amor pelas artes. Mas ficou em “recuperação na
disciplina de Artes”, porque o Barroco precisa ser memorizado, reproduzido, decorado e respondido obje�vamente
através de perguntas de múl�pla escolha, com apenas uma chance de interpretação. Isso é aprender Artes? Acredito
que não é a transmissão de conteúdos e cópias de livros que ensinam sobre Arte, poque na realidade a arte cons�tui
a vida e vice-versa. Mas na escola meritocrá�ca a Arte é “sacrificada” na vida das crianças e adolescentes.

Assim, este texto vem provocar professores/as, coordenadores/as pedagógicos/os, gestores/as das escolas da
Educação Básica8, pois não podemos manter um processo de ensino e aprendizagem baseados na meritocracia,
porque “nós somos responsáveis pelo outro, estando atendo a isso ou não (pois) o oposto do reconhecimento social
significa a negação da dignidade, a humilhação” (BAUMAN, 75-78). Vamos exercitar o fazer e exercer educação
escolar na formação de gentes para conviver, cuidar, relacionar, amar e sonhar com outras gentes.

7
Nos meus escritos desde 2004, destaco que o professor é um incompleto, em permanente construção e em permanente desafio para superar suas limitações,
porque é apenas um ser humano. Aqui podem ser consultado um dos textos publicados:
h�ps://revista.uni�ns.br/index.php/humanidadeseinovacao/ar�cle/view/3054 .

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ARTIGOS

Considerações sobre a vida na escola

“Mãe, tu dizes que sou boa filha, mas eu não sou! Eu não consigo
tirar notas boas, eu sinto que vou desmaiar quando tenho que
apresentar trabalho na sala de aula... eu não sou boa em nada!
snif... snif... snif.”
(Aluna da Escola O, 2019).

Esse chamamento da criança nos permite analisar o tamanho do sofrimento em não se encaixar nessa formatação
da escola. Ser boa filha não significa �rar notas dez, mas saber respeitar seu colega, saber seus deveres como
sujeito, como aluna, como filha e como cidadã, pois a educação se estende pelas relações sociais, polí�cas, culturais
e ideológicas, mas a criança associa que ser mediana na escola, seu desempenho como filha, também poderá ser
ques�onado, planificado, contestado e reprovado. Lamentavelmente, aos poucos, vamos matando a curiosidade, a
al�vez, o desejo, a ânsia e o ânimo destas crianças e jovens pela escola, pelos conhecimentos e pela perspec�va de
con�nuidade na vida escolar.

Acredito que as escolas podem repensar o alinhamento de suas “exímias” propostas pedagógicas com a prá�ca dos
professores/as e com a realidade dos alunos/as, porque uma teoria dissonante das ações pode comprometer o
ensino, a aprendizagem e o futuro desses sujeitos da Educação Básica. Confio nos princípios “da esperança, da
confiança na capacidade que o ser humano tem de ser sensato e digno. Acredito que o mundo que habitamos pode
ser melhor que hoje; e podemos fazer com que ele seja mais ‘amigável’, mais hospitaleiro, para a dignidade
humana” (BAUMAN, 2010, p. 81).

Vamos fazer deste sujeito um hospedeiro de dignidade humana. Vamos evitar seu salto para o abismo chamado
“desgosto pela escola”. Vamos ensinar que a escola é um lugar que pode celebrar e viver a solidariedade; que deve
respeitar as diferenças cogni�vas; que pode prezar as habilidades e preferências por umas ou outras disciplinas; que
promove sustentáculo e amparo àqueles/as alunos/as que têm mais dificuldades em determinados conteúdos; que
assuma sua responsabilidade sobre a educação formal - função da escola e dos professores -; que cuide e incen�ve
as crianças brilhantes, mas que “enxergue” e olhe para àquelas quietas, serenas, obedientes, caladas e silenciosas,
porque o silêncio fala muito mais que mil palavras e, com certeza esta criança ou jovem está sofrendo com/na
escola.

8 Para Leonardo e Silva (2013, p. 314), ao concluir a pesquisa com professores da Educação Básica, concluem “que, em sua maioria, os par�cipantes não conseguiram
verbalizar como compreendem o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos/as alunos/as e buscam culpados; culpam-se a si próprios, mas não demonstram
como ocorrem estes processos, o que denota uma apropriação frágil de conceitos importantes para o exercício da profissão”.

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Referências
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5 de outubro de 1988.

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GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

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do Ensino Fundamental. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v.
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PRIOSTE, C. Hipóteses docentes sobre o fracasso escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Revista Educação
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RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de
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VIGOTSKI, L. S. A Construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Mar�ns Fontes, 2000.

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 35


EDUCAÇÃO E CORRENTES
FILOSÓFICAS CLÁSSICAS:
um olhar pluriparadigmá�co
Vanessa Borges *
Matheus Souza **

Resumo: Este ar�go traz como proposta uma reflexão sobre as correntes
filosóficas clássicas que impulsionaram a conformação da educação na
contemporaneidade. Esta discussão crí�ca se faz necessária, principal-
mente em um momento de ascensão de um discurso conservador no
Brasil, com ênfase na narra�va pró “neutralidade da educação’ e com
reflexos diretos na área. Trata-se de um trabalho bibliográfico, no que se
refere ao seu objeto, e qualita�vo no que diz respeito à sua abordagem,
realizando, assim, uma análise interpreta�va dos paradigmas observados.

Palavras-chave: Educação. Correntes Filosóficas. Liberalismo. Posi�vismo.


Socialismo.

Abstract: This paper aims to discuss the classical philosophical tendencies


that boosted the conformation of today’s education. This critical discus-
sion is crucial, especially at a time like ours, when a conservative discour-
se rises in Brazil – with an emphasis on the pro “neutrality of education”
narrative and with direct reflexes on the area. It is a bibliographic
research, in relation to its object, and a qualitative one in relation to its
approach, therefore carrying out an interpretative analysis of the obser-
ved paradigms.

Key-Words: Education. Philosophical currents. Liberalism. Positivism.


Socialism.

* Bacharela em Relações Internacionais e em Administração – UNIJORGE; especialista em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas; Mestra em Desenvolvimento
Regional e Urbano - UNIFACS; Doutora em Educação – UNEB; professora do Bacharelado em Relações Internacionais – UNIJORGE e coordenadora de seu Núcleo de
Pesquisa e Extensão em Relações Internacionais (NURI).
** Bacharel em Relações Internacionais e em Administração – UNIJORGE; Especialista em Política e Estratégia pela UNEB; Especialista em Gestão da Inteligência
Estratégica pela Faculdade Batista Brasileira; Mestre em Administração – UFBA; Doutorando em Administração – UFBA; professor e coordenador do Bacharelado
em Relações Internacionais UNIJORGE.

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 37


ARTIGOS

Introdução

Entendendo que toda educação se encontra permeada de valores e, por isso, imersa em uma perspec�va polí�ca
(ADORNO; HORKHEIMER, 1995), é impera�vo que ela se coloque de forma comprome�da com a transformação da
realidade social da qual faz parte. Dessa forma, ainda que o processo de educar não possa ser pensado apenas a
par�r da perspec�va da formação do indivíduo dentro da sala de aula, é dali que se forja a consciência democrá�co-
-cidadã, promotora de mudanças sociais para além dos muros da escola. Por isso, a importância em se discu�r a
práxis-educacional como ferramenta de desconstrução da educação bancária e sinalizá-la enquanto ação libertadora
(FREIRE, 2009). Nesse sen�do, diversas correntes e ações pedagógicas têm norteado a educação em diferentes
épocas e, na impossibilidade de citar todas, à custa do limite de laudas, atentar-nos-emos àquelas que fundam o
pensamento pedagógico contemporâneo, a começar pelas prá�cas pedagógicas iluministas, que inauguram o
entendimento da educação em uma perspec�va de apego aos princípios de liberdade, e promovem uma mudança
de paradigma – de uma educação conduzida a par�r de dogmas religiosos para uma pautada nos princípios da
racionalidade.

Dessa forma, o presente ar�go foi pensado a par�r de três partes dis�ntas (mas conectadas), considerando-se a
influência – para o desenvolvimento da pedagogia – da gênese histórica dos pensamentos iluminista, posi�vista e
marxista. Buscar-se-á, então, apresentar uma abordagem histórica a�nente às leituras filosófico-pedagógicas
forjadas a par�r do movimento iluminista no século XVIII, bem como suas repercussões no âmbito da educação
contemporânea.

Os procedimentos metodológicos u�lizados para a realização desta pesquisa permitem qualificá-la como resumo de
assunto (quanto à sua natureza) e como explica�va (quanto aos seus obje�vos). Assim, foram u�lizadas publicações
em livros, ar�gos, periódicos, sites, etc. Deste modo, este trabalho qualifica-se como bibliográfico, no que se refere
ao seu objeto, e qualita�vo no que diz respeito à sua abordagem, realizando, assim, uma análise interpreta�va das
correntes paradigmá�cas observadas.

Desenvolvimento

No rol das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII destaca-se um movimento polí�co-intelectual que “repre-
sentou o ápice das transformações culturais iniciadas no século XIV pelo movimento renascen�sta” (PAZZINATO;
SENISE, 1992, p. 98) e asseverava a separação entre as esferas de ação da religião e da ciência, transformando –
profundamente – o modo de pensar e agir dos indivíduos. A nova lógica motriz da sociedade era o progresso e
apenas o conhecimento cien�fico permi�ria ao indivíduo o domínio da natureza, que racionalizaria suas condições
de vida.

Foi nesse período que emergiu o entendimento liberal de que a educação, ao contrário do que se pensava até então,
deveria ser direcionada a todos os indivíduos (ROUSSEAU, 1973), pois ela passava a ser entendida como um elemen-
to propulsor da equalização social. Como resultante desse entendimento, escolas, currículos e o papel dos professo-
res começaram a ser pensados de formas diferentes (GADOTTI, 2006), parametrizados pelos princípios educacionais
iluministas, a saber:

a) desenvolvimento da educação estatal, com maior par�cipação das autoridades oficiais no ensino; b) começo
da educação nacional, da educação do povo pelo povo ou por seus representantes polí�cos; c) princípio da

38 REVISTA OLHARES | N° 08 | VOL I | NÚCELO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2018


educação universal, gratuita e obrigatória, no grau da escola primária, que fica estabelecida em linhas gerais;
d) iniciação do laicismo no ensino, com a subs�tuição do ensino religioso pela instrução moral e cívica; e)
organização da instrução pública em unidade orgânica, da escola primária à universidade; f) acentuação do
espírito cosmopolita, universalista, que une pensadores e educadores de todos os países; g) primazia da razão,
crença no poder racional e na vida dos indivíduos e dos povos; e h) reconhecimento da natureza e da intuição
na educação. (LUZURIAGA, 1983, p. 150-151)

Na efervescência polí�co-pedagógica do século XVIII, emerge, então, a ideia de intervenção do Estado na educação,
sustentada pelos princípios de democracia, laicidade e gratuidade. Foram criadas nesse período, de forma inaugural
na Alemanha, planos de educação e modelos escolares que favoreceram a mudança do controle da educação, que
saiu das mãos da igreja para as do Estado. Essa transição não pode ser entendida, no entanto, sem a percepção
polí�ca da ascensão de uma nova classe social: a burguesia. As mudanças foram possíveis graças às mo�vações
daquela classe em promover o controle civil do ensino através da criação de uma educação nacional pública, que
mais tarde – ironicamente – funcionaria como um instrumento eficaz para acomodar os indivíduos na aceitação da
própria pobreza e das desigualdades sociais como “naturais”. É por isso que se faz necessário esclarecer que a
“escola para todos”, defendida pelos ideais liberais, além de se caracterizar por um ensino voltado para uma cultura
universalista e an�rrevolucionária (LUCKESI, 1991), com conteúdo orientado e pensado a par�r dos valores e visões
de mundo de intelectuais ligados à burguesia, não considerava as dificuldades do estabelecimento de condições
materiais concretas para que todos pudessem – de fato – ter acesso ao ensino.

No distanciamento que a educação foi percorrendo em relação ao modelo do an�go regime, alguns filósofos se
destacaram na fundação do pensamento pedagógico do período, dentre eles, Jean Jacques Rousseau, que não
apenas cri�cou o individualismo burguês, mas evidenciou a relação entre polí�ca e educação e propôs um modelo
de educação que se afastasse do ar�ficialismo das convenções sociais e oferecesse uma formação que valorizasse a
liberdade1. A concepção do autor se pautava no estabelecimento de novas formas de compreensão das diferentes
etapas da formação humana e do desenvolvimento de modelos que respeitassem as especificidades naturais de
cada uma delas. Dessa forma, debruçado em sua premissa da “bondade natural”, e almejando uma sociedade em
que os indivíduos fossem não apenas livres e iguais, mas também soberanos, a educação rousseauniana propõe a
instrução do ponto de vista do intelecto, mas leva também em consideração o caráter �sico, moral e da natureza de
cada indivíduo.

As ideias de Rousseau influenciaram muitos educadores de seu tempo (Pestalozzi, Herbart e Fröebel), mas não
representavam, em sua essência humanista, o pensamento dominante da época. Se, de modo mais amplo, o
iluminismo se propôs a desvencilhar a lógica repressiva da monarquia e da Igreja, representou igualmente o alicerce
da pedagogia burguesa, através da qual o acesso da classe trabalhadora à educação seria o mínimo suficiente para
“permi�r a sobrevivência em um regime econômico de exploração do trabalho” (GADOTTI, 2006). O iluminismo
educacional, dessa forma, ganhou robustez pregando um ideal de liberdade que obje�vava a acumulação de
riqueza, mas se transves�a com as noções de humanidade, razão, cultura e igualdade. Se, em um primeiro momen-
to, quando a burguesia era – de fato – uma classe revolucionária (LÖWY, 2007), trouxe para si a luta pela afirmação
dos direitos individuais, reafirmando os ideais da Revolução Francesa, pouco depois concebia a premissa smithiana
sobre uma formação educacional diferente a depender da classe social, a recebê-la: para a trabalhadora, uma
educação “em conta-gotas”, instrucional para o trabalho; para a dirigente, uma educação preparatória para cargos
de liderança (GADOTTI, 2006).

À medida que a pedagogia se desatrelava dos padrões medievais, ampliava seu aspecto empírico-analí�co e ganhava
ares de ciência, surgem duas concepções antagônicas de organização social que vão moldar novas perspec�va
pedagógicas: emergem as correntes posi�vista (eli�sta) e marxista (popular), que serão analisadas a seguir.

A corrente posi�vista foi inaugurada e sistema�zada por Augusto Comte em seu entendimento dicotômico da
1
“A educação nacional só é adequada a homens livres, pois só eles podem ter uma existência cole�va e são verdadeiramente disciplinados pela lei. Um francês, um
inglês, um espanhol, um italiano, um russo são todos pra�camente iguais; todos deixam a escola já preparados para a servidão” (ROUSSEAU, 2003, p. 237).

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 39


ARTIGOS

educação: ancorada pela ideia de que a ciência deve fundamentar não apenas o conhecimento, mas a própria vida
moderna, essa teoria tem como princípios básicos a busca por leis que regulem as relações sociais, tal qual ocorre na
natureza, e a aplicação de métodos empíricos e da racionalidade cien�fica para explicá-las. Entendendo que o
pensamento iluminista inaugurou a concepção burguesa de educação, pode-se afirmar que a mesma foi consolidada
– então – pelo posi�vismo pedagógico, já que como teoria conservadora, ele não carrega em si nenhuma proposta
de mudança social, procurando apenas entender a realidade (LÖWY, 2007). Segundo essa lógica, todos os fenôme-
nos (naturais ou sociais) devem ser pensados como “fatos” que, como tais, independem da vontade humana.
Exis�riam, dessa forma, leis sociais, que assim como as naturais, conduziriam – imutavelmente – a sociedade.

Assim, em sua perspec�va funcionalista-organicista (LÖWY, 2002), o papel da educação seria orientar os estudantes
para a vida num entendimento linear, em que cada indivíduo seria ensinado e preparado para ocupar o lugar que lhe
cabe numa está�ca estrutura de organização social, concepção que era refle�da tanto na construção curricular
quanto nas prá�cas docentes. A escola posi�vista vai ser deduzida a par�r do entendimento de que a educação:

Es la acción ejercida por las generaciones adultas sobre las que no están todavía maduras para la vida social.
Tiene por objeto suscitar en el niño un determinado numero de estados, �sicos, intelectuales y morales que
exigen de el la sociedad polí�ca y el medio social al que está des�nado de un modo par�cular. (DURKHEIM,
1978, p. 60. Grifo nosso)

Pode-se reafirmar, através da ênfase dada na citação acima, que a pedagogia posi�vista se enfa�za um modelo
pedagógico vinculado à mera transmissão de conhecimentos e se assenta na adequação do indivíduo a uma posição
social pré-determinada, cabendo à educação o papel de adestradora das relações de dominação. Para validar essa
premissa, a corrente se apoia no entendimento de que o conhecimento “verdadeiro” é neutro, argumento cuja
finalidade polí�ca é desqualificar qualquer tenta�va de ques�oná-lo, taxando previamente como “ideologizada”
quem o contradiz. No entanto, apesar de seu uso enquanto ferramenta polí�co-ideológica de manutenção dos
privilégios da elite, a pedagogia posi�vista trouxe algumas contribuições importantes para a Educação, principalmen-
te no que diz respeito ao seu desenvolvimento enquanto ciência e à crí�ca direcionada ao humanismo religioso.

Estabelecendo um distanciamento do posi�vismo, a pedagogia socialista vai ser formada em um contexto de


reivindicação popular por um ensino verdadeiramente democra�zado, propondo uma educação igual para todos,
mas que não se realizaria em sua plenitude enquanto a sociedade es�vesse organizada em um modelo econômico
que favorecia a desigualdade, pois apenas mudanças profundas seriam capazes de construir uma sociedade igualitá-
ria.

A corrente socialista bebeu da fonte iluminista, mas foi só a par�r das demandas dos trabalhadores industriais no
pós-revolução, que ela se firmou, sustendo crí�cas à concepção burguesa de mundo, no que concerne às prá�cas
pedagógicas eli�stas e à consequente impossibilidade de se alcançar a jus�ça social a par�r daquelas premissas.
Apesar dos mais destacados expoentes do socialismo, Marx e Engels, não terem criado uma teoria com foco especí-
fico na educação, o Manifesto Comunista já trazia indicadores de como deveria se organizar a educação socialista, a
saber: (1) seria necessária a eliminação completa do trabalho infan�l; (2) o Estado deveria fornecer condições
materiais para que os estudantes trabalhadores pudessem frequentar a escola; e (3) a educação deveria abarcar
técnicas voltadas ao trabalho manual, não devendo, no entanto, ser restrita àqueles temas, mas ar�culada com
múl�plos saberes – inclusive os saberes burgueses (GADOTTI, 2006).

A proposta socialista se assenta principalmente na introdução, no processo de aprendizagem, de um componente


mais voltado ao social. Nessa perspec�va, Babeuf (2019) defendia a concepção de uma escola pública e do mesmo
�po para todos, alertando, em seu Manifesto dos Iguais, que a educação burguesa incu�a no povo sua sujeição à
condição de pobreza e subordinação; enquanto (o anarcossocialista) Proudhon (2009) já prenunciava, sob a égide da

40 REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020


escola burguesa e como impacto da própria acumulação capitalista, a formação de um exército de trabalhadores de
reserva que intensificaria a exploração dos assalariados, o que o fazia classificar como “utópica” a perspec�va de
que qualquer educação burguesa pudesse ser verdadeiramente universal.

Se a consciência de classe passou a ser o fundamento do currículo da escola socialista, faz-se necessário citar a
atuação de Nadja Krupskaia (2017), intelectual que redigiu o primeiro plano de educação na Rússia pós revolucioná-
ria. Crí�ca ferrenha da “escola neutra” e de uma sociedade de classes na qual os pais precisam explorar a mão de
obra dos próprios filhos em nome da sobrevivência, Krupskaia (2017) ia além: advogava pela autonomia do indiví-
duo, que não poderia ser alcançada enquanto as escolas diferenciassem “a�vidades de meninas” de “a�vidades de
meninos”, construção social que depreciava a mulher e seu trabalho e que impediria a mudança da mentalidade
social individualista – forjada pelo capitalismo – para uma mentalidade cole�vista.

Conclusão

No âmbito da epistemologia da educação, a percepção de diversas correntes filosófico-pedagógicas se faz necessária


para um entendimento mais crí�co dos fenômenos e processos que conformaram a educação na contemporaneida-
de.

Enquanto a perspec�va liberal ins�tuía à escola a função de preparação de indivíduos para sua conformação na
sociedade capitalista, exercendo papéis sociais pré-definidos, a posi�vista, empunhando a bandeira da “neutralidade
cien�fica”, trazia uma concepção mais tecnicista da educação, na qual os parâmetros de racionalidade, eficiência e
produ�vidade, se colocavam como essenciais para uma reorganização do processo educa�vo, tornando-o mais
obje�vo e operacional. O fortalecimento dessa percepção do papel da educação, tal qual apregoam os movimentos
atuais da extrema direita brasileira – através de um número de movimentos e projetos, dentre os quais o mais
famoso é o “Escola Sem Par�do – revela uma concepção polí�co-social conservadora que obje�va suprimir qualquer
possibilidade de mudança social, desconsiderando que a prá�ca humana é – por si – uma prá�ca polí�ca, e atribuin-
do ao professor a mera função de instrutor.

Tanto a corrente liberal quanto a posi�vista apresentam caráter sistema�camente dominante, o que as difere da
pedagogia socialista, que se lança como uma promessa contra hegemônica àquelas correntes, entendendo a
educação como uma ferramenta poderosa de transformação da ordem social e o educando como um sujeito a�vo,
histórico, social e contextualizado.

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 41


ARTIGOS

Referências
ADORNO, Theodor; W, HORKHEIMER, Max. A dialé�ca do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

BABEUF, Gracchus. Manifesto dos Iguais. Disponível em: h�p://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/a_pdf/babeu-


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GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Cortez, 2006.

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LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e posi�vismo na sociologia
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973.

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PROUDHON, Pierre-Joseph. La capacidad polí�ca de la clase obrera. Capítulo I. Revista de Estudios Libertarios, n.7.
Madrid: Germinal, 2009.

42 REVISTA ‘| N° 10’’ | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020


A psicologia na Pandemia
do Novo Coronavírus:
leituras para pensar o exercício profissional

Pablo Mateus dos Santos Jacinto*

Resumo: O presente estudo apresenta uma reflexão sobre os desdobra-


mentos da Pandemia na atuação profissional da(o) psicóloga(o), ao
iden�ficar um significa�vo senso de responsabilidade social a par�r da
oferta de serviços psicológicos voluntários, para a situação de emergên-
cia e calamidade pública; no entanto, e ao mesmo tempo, reconhecendo
lacunas no processo forma�vo para atuação nesta área. A transposição
das modalidades de serviços clínicos para o mundo remoto e a perma-
nência de profissionais na atenção presencial no âmbito das polí�cas
públicas também caracterizam a atuação profissional. Desta forma,
considera-se que a profissão assumiu um horizonte é�co-polí�co
essencial para o enfrentamento da dimensão subje�va da Pandemia, do
cuidado em saúde mental e da defesa dos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Psicologia. Pandemia. Atuação Profissional. Tecnologias


de Informação e Comunicação (TICs). Formação em Psicologia.

Abstract: This study brings a reflection on the consequences of the


Pandemic in the professional performance of the psychologist, by
identifying a significant sense of social responsibility based on the offer
of voluntary psychological services for emergency situations and public
calamities; however, and at the same time, recognizing gaps in the
training process for acting in this area. The switch of the modalities of
clinical services to the online world and the permanence of professionals
in face-to-face care within the scope of public policies characterize the
current practice. Thus, it is stated that the profession has assumed an
essential ethical-political horizon for facing the subjective dimension of
the Pandemic, mental health care and the defense of Human Rights.

Key-Words: Psychology. Pandemic. Professional Practice. Information


and Communication Technologies (ICTs). Training in Psychology.

* Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia – Professor da UNIJORGE

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ARTIGOS

Introdução
O Coronavírus é um vírus pertencente à família Coronaviridae e tem, dentre seus �pos conhecidos, aquele classifica
do como SARS-CoV-2, provocador da doença COVID-19 (LIMA, 2020). Esse �po foi descrito em 2019 e rapidamente
se alastrou pelo planeta, gerando ações emergenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos países a�ngi
dos. Atualmente, classifica-se o contexto diante da difusão da COVID-19 como um estado de pandemia.

De fácil contágio, a COVID-19 se caracteriza por um vírus cuja infecção respiratória resulta em sintomas que variam
entre cefaleia, febre, tosse, confusão psíquica e insuficiência respiratória, dentre outros. Seu índice de letalidade
varia de acordo com condições dos pacientes, sendo maiores na população idosa e com comorbidades imunológicas
(LANA et al., 2020). Considera-se também a variação das taxas de mortalidade de acordo com aspectos socioeconô-
micos relacionados ao acesso à saúde, bem como fatores sociopolí�cos materializados nas medidas governamentais
de combate à doença, como incen�vo a prá�cas preven�vas ou garan�a de acesso a leitos clínicos e intensivos. Na
China, considerada o epicentro inicial da doença, as taxas de letalidade chegaram a 2,2%, embora os casos conside-
rados graves a�ngiram 13,2% (LANA et al, 2020). No Brasil, dados coletados entre 17 de março e 24 de abril de 2020
revelaram uma taxa de letalidade geral de 6,9% (SOUZA et al, 2020).

Diante da gravidade da doença e visando ao combate das consequências relacionadas à COVID-19, governos
municipais e estaduais brasileiros têm adotado medidas restri�vas que a�ngem diversos setores econômicos.
Especialmente nos municípios, em que o número de casos é alto em relação ao quan�ta�vo de leitos de UTI
disponíveis, decretos foram publicados autorizando o funcionamento apenas de serviços essenciais, como setores
da área da saúde e alimentação. A despeito das flexibilizações que ocorrem em alguns municípios diante da pressão
dos lobbies empresariais e avaliação das condições sanitárias, as medidas restri�vas ou o funcionamento dos
serviços se refletem nos contextos de trabalho de milhões de brasileiras e brasileiros.

Eurico e colaboradoras (2021) analisam que a pandemia chega ao Brasil num cenário de profunda devastação, em
que o aprofundamento da crise econômica e polí�ca se expressa no aumento exacerbado do desemprego, na
ampliação do trabalho precarizado e terceirizado, na intensificação do genocídio da população negra, em especial
dos(as) jovens negros(as) e periféricos(as); no crescimento do feminicídio, sobretudo contra mulheres negras; no
massacre das comunidades indígenas e quilombolas; nos explosivos conflitos agrários, na desapropriação de terras e
despejos; na destruição do meio ambiente; na proliferação de queimadas, etc. Segundo as autoras, configura-se um
cenário de barbárie nos diversos âmbitos da vida social, legi�mado e impulsionado pela fragilidade e inconsistência
das informações e medidas de proteção à vida.

Uma primeira reverberação da pandemia do novo coronavírus no âmbito do trabalho é o desemprego. A inadequa-
ção dos postos de trabalho ao cenário de restrição social tem levado ao fechamento de empresas, flexibilização de
contratos, licenças e até demissões. Esse impacto expõe uma situação de privilégios, já que a maior parte dos
trabalhadores afetados corresponde às classes mais pobres, sem acesso à educação superior e ocupante em funções
que não podem recorrer à execução remota (BLUSTEIN et al., 2020). Em dupla precarização, essa parcela tem menor
quan�dade de reservas e maior parte da renda comprome�da com despesas essenciais.

Em pesquisa realizada nos Estados Unidos acerca das taxas de desemprego anteriores e ao longo da pandemia, com
aproximadamente 50.000 respondentes em duas ondas, Brynjolfsson e colaboradores (2020) curiosamente encon-
traram diferenças pouco significa�vas. Os autores, entretanto, observaram que essa baixa variação inesperada pode
ter sido causada pelo quan�ta�vo de trabalhadores que desis�u de buscar a�vidades remuneradas no contexto da
pandemia. Nesse sen�do, Coibion, Gorodnichenko e Weber (2020) chegaram a conclusões semelhantes, es�mando
20 milhões de empregos perdidos nos Estados Unidos, mas com uma taxa de desemprego variando posi�vamente
apenas 2%, fruto do quan�ta�vo de pessoas que não tem buscado emprego na pandemia.

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Não foram localizados levantamentos oficiais com as taxas de desemprego relacionadas diretamente à COVID-19 no
Brasil. Entretanto, Werneck e Carvalho (2020) e Castro, Dal Seno e Pochmann (2020) sinalizam que o sucateamento
das garan�as trabalhistas e a exacerbação das desigualdades no Brasil podem trazer graves consequências aos
postos de trabalho durante e após a pandemia. Vale destacar este agravamento ao observarmos as condições das
mulheres, afetadas pelo trabalho domés�co e sua sobrecarga que, em algumas situações, �veram que abandonar
seus postos de trabalho.

Acerca de quem mantém suas a�vidades, profissionais de saúde têm sido alvo de estudos que relacionam o trabalho
no enfrentamento à COVID-19 e seus impactos na saúde do trabalhador. De acordo com Medeiros (2020), esses
trabalhadores sofrem diante da alta exposição à infecção, que é agravada pela inadequação dos estabelecimentos
de saúde e pela baixa disponibilidade de equipamentos de proteção individual. A saúde mental desses trabalhadores
também tem sido alvo de inves�gação. Greenberg e colaboradores (2020) constataram que as situações de pressão
vivenciadas por esses trabalhadores não possuem precedentes. Decisões sobre como gerenciar seu tempo entre
pacientes, como alocar recursos e como balancear os cuidados individuais com o cuidado com o outro trazem fortes
impactos à saúde mental (ROCHA; BRAMBILLA; BARROS, 2020).

No cenário da educação, o grande fator de impacto é a suspensão das aulas presenciais, porém con�nuação das
a�vidades por meio remoto (SANTOS JÚNIOR; MONTEIRO, 2020). Essas a�vidades envolvem toda a equipe pedagó-
gica, à qual lhe cabe a aplicação de novas ro�nas, adaptação de materiais e metodologias e necessidade de aquisi-
ção de novos saberes, especialmente no que se refere ao aprofundamento em disposi�vos e funções tecnológicas
necessárias à execução do trabalho. Em pesquisa realizada pelo Ins�tuto Península, com 2.400 respostas de profes-
sores da educação básica de todo o Brasil, foi iden�ficado que apenas 2% dos respondentes informaram não terem
mudado seus hábitos durante a pandemia (Ins�tuto Península, 2020). Ademais, a maioria dos professores compre-
endiam sua importância no acompanhamento remoto aos alunos e na disseminação de informações de qualidade
sobre a pandemia. Foi observado, neste levantamento, a preocupação dos professores com a própria saúde e a
necessidade de se adaptar à nova ro�na, incluindo a�vidades acadêmicas, culturais e domés�cas, realizadas em
quarentena. Esse levantamento foi realizado em março de 2020, apresentando uma realidade mais próxima com o
início da pandemia no Brasil.

Para Greenberg e colaboradores (2020), aplica-se o conceito de “ferida moral” (moral injury) para representar o
estresse psicológico causado diante de inseguranças técnicas, polí�cas e trabalhistas no contexto do trabalho.
Profissionais de saúde podem, por exemplo, ques�onar se suas condutas foram adequadas em certa situação.
Educadores podem ques�onar sua eficácia e capacidade em exercer sua função em um novo formato. O contexto da
Pandemia tem colocado os trabalhadores nessas e em outras situações de risco à saúde mental.

Um denominador comum recai sobre a tensão em volta da situação sanitária peculiar e pelos desafios encontrados
nas novas formas de organização do trabalho. Medidas restri�vas, intensificação de cuidados com higienização,
novos locais de execução laboral e a necessidade de aprimorar e desenvolver novas metodologias de trabalho são
situações que demandam enfrentamento dessas duas grandes categorias. Na pesquisa de Brynjolfsson e colabora-
dores (2020), os autores demonstraram que 35,2% dos trabalhadores pertencentes à amostra coletada modificaram
o seu trabalho para o contexto remoto de atuação. Para os autores, há uma possibilidade de prolongamento dos
efeitos da pandemia na organização do trabalho. Por fim, Jackson Filho e colaboradores (2020) destacam que a
saúde do trabalhador deve ser foco de preocupação por conta dos sujeitos envolvidos e pela importância das suas
funções, sobretudo, no combate à pandemia.

A Psicologia na Pandemia

A atuação profissional de psicólogas (os) historicamente caracteriza-se como uma a�vidade presencial, em seus
diferentes e distintos campos de atuação (notadamente a saúde, educação, organizações, justiça e assistência

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social), e tem sofrido de modo intenso as modificações decorrentes da pandemia. A recomendação em relação à
priorização do desenvolvimento de serviços de maneira remota, a par�r do uso de Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) têm transformado a prá�ca psicológica em muitas áreas.

Pode-se considerar que, no Brasil, é recente a autorização de prestação de serviços por meio de TICs; e apresentare-
mos, aqui, um breve histórico, que inicia-se em 2012, com a promulgação da primeira resolução que previa a
realização de atendimentos remotos – a Resolução CFP N°. 011/2012 (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012).
Nessa resolução, os atendimentos realizados deveriam ser pontuais, informa�vos e focados no tema proposto,
sendo limitados a 20 encontros virtuais, sob a denominação de “orientação psicológica”. Permi�a-se também a
realização de processos de seleção de pessoal, aplicação de testes, supervisões eventuais ou complementares à
formação presencial e atendimentos em situações de trânsito ou impossibilidade dos clientes comparecerem aos
espaços �sicos de atendimento. Em processo de construção desse fazer, a resolução referida permi�a atendimento
psicoterapêu�co apenas em caráter experimental. Apesar do avanço tecnológico, era possível perceber uma
regulamentação ainda bastante limitante acerca da atuação da Psicologia no contexto virtual, sob a argumentação
da escassez de estudos que comprovassem a efe�vação dos atendimentos psicológicos mediados por TICs, bem
como a falta de preparação ins�tucional em regular e fiscalizar esse �po de exercício profissional.

Sob crí�cas sobre a insuficiência da Resolução CFP N°. 011/2012 diante da expansão das TICs, bem como do próprio
campo de atuação profissional da Psicologia, o Sistema Conselhos de Psicologia do Brasil elabora e publica a Resolu-
ção CFP N°. 011/2018 (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018). Pautada em estudos sobre a efe�vação do
trabalho da(o) psicóloga(o) mediado por TICs, e na análise do Sistema Conselhos sobre a realidade de atuação
profissional da categoria no Brasil, essa resolução amplia o rol de possibilidades de prá�cas nesse contexto. Todas as
funções pautadas na resolução anterior passam a ser autorizadas por meio das TICs não apenas como recursos
eventuais, mas podem responder à integralidade do trabalho. Reitera-se a necessidade de cuidados técnicos e é�cos
para a realização do trabalho nessa configuração, incluindo a necessidade de registro do profissional em plataforma
própria do Conselho Federal de Psicologia (CFP), visando centralizar informações sobre quem atua nessa modalida-
de, bem como facilitar medidas de orientação e fiscalização.

Essa trajetória norma�va da atuação revela que o trabalho profissional mediado por TICs no Brasil é recente. Desse
modo, estudos e referências sobre essa realidade de atuação são incipientes. Em 2020, quando é deflagrada a
pandemia da COVID-19, a atuação da Psicologia mediada por TICs no Brasil estava no segundo ano de vigência.
Nesse cenário, mesmo profissionais que não atuavam nessa modalidade foram tensionados, pela nova realidade, a
buscar atualização técnica, bem como adaptação pessoal, para se enquadrarem em diversas formas de trabalho não
presencial. Torna-se necessário, com isso, compreender a realidade de trabalho em que profissionais de Psicologia
se encontram, iden�ficando as principais mudanças na atuação durante a pandemia, quais relações essas mudanças
detêm com as experiências mediadas por TICs, bem como quais seus impactos na condução e no resultado das
ações realizadas.

Desse modo, o obje�vo deste estudo é apresentar um panorama sinté�co acerca do impacto da Pandemia do Novo
Coronavírus no trabalho da(o) psicóloga(o) brasileira(o) e tecer reflexões sobre as reverberações no cenário forma�-
vo. Especificamente, buscou-se: iden�ficar os desdobramentos da pandemia no desenvolvimento do trabalho
profissional das(os) psicólogas(os); compreender as adaptações realizadas para a condução das a�vidades profissio-
nais; explicitar as principais dificuldades iden�ficadas pela categoria no contexto da COVID-19. Como base para a
análise foram consultados os levantamentos conduzidos pelos Conselhos Regionais de Psicologia do Brasil; no
entanto, considerando que apenas o Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03) publicou um relatório com
resultados, e, aqui, analisamos o mesmo.

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Método

Realizou-se um estudo documental com análise de dados secundários publicados pelo Conselho Regional de
Psicologia da Bahia (CRP-03) em 2020, acerca do trabalho de psicólogas(os) no contexto da pandemia. A pesquisa
documental é definida como um método sistema�zado de análise de materiais documentais não organizados a
par�r de tratamento acadêmico, tendo como vantagens a possibilidade de reunir informações direto da fonte e
agregar dados que variam de textos a mídias dispostas para elucidar uma questão (BOWEN, 2009). Neste contexto, a
escolha por uma pesquisa documental se pautou na referência das fontes, sendo os Conselhos Regionais de Psicolo-
gia aptos a garan�r maior acesso à categoria e, portanto, produzir materiais que refletem de modo mais rigoroso a
realidade profissional.

De teor qualita�vo, esta análise foi auxiliada pelo so�ware MAXQDA, buscando reunir as principais interlocuções
entre os materiais. Procurou-se iden�ficar: situações sobre empregabilidade, mudanças na modalidade de atuação,
mudanças no co�diano de trabalho, e reflexões sobre a formação profissional e capacitação/preparo para o trabalho
em situações de emergências e desastres. Os dados encontrados e tratados anali�camente serão apresentados a
seguir.

Resultados

O documento analisado foi realizado com base em um levantamento conduzido em junho de 2020, na primeira onda
da pandemia no Brasil. Desse modo, os resultados apontados se referem àquele momento de poucas informações
sobre o vírus e início das adaptações sociais para enfrentar esse contexto.

O relatório englobou 685 (seiscentas e oitenta e cinco) respostas de profissionais difundidas(os) pelo estado da
Bahia. As(os) profissionais se dividiam entre múl�plas áreas de atuação, cobrindo principalmente a clínica (N = 475),
a social (N = 135), a escolar (N = 88), a docência (N = 64), a organizacional e do trabalho (N = 56), a da saúde (N = 52)
e a hospitalar (N = 42). Outras áreas foram pontuadas, não havendo mais de dez respondentes na amostra: jurídica,
trânsito, esporte, gestão e outros.

O documento retrata que 21% das(os) profissionais relataram ter perdido vínculos de trabalho por conta da pande-
mia. Na época, 31% interromperam suas a�vidades temporariamente. Apesar da clínica agregar o maior quan�ta�vo
de profissionais, proporcionalmente destaca-se a manutenção das a�vidades às(aos) trabalhadoras(es) da saúde
(92,16%), da docência (82,81%), da área social (77,04%), e da hospitalar (73,81%). Man�veram suas a�vidades
66,11% das(os) psicólogas(os) clínicas(os), por sua vez. Um dado que chamou atenção se refere ao trabalho voluntá-
rio. Do total de respondentes, 101 profissionais relataram ter começado a atuar voluntariamente no período da
pandemia.

Outra constatação relevante se refere à modalidade das a�vidades man�das. Em quase todas as áreas, foi superior o
número de profissionais atuando de modo remoto ou híbrido, exceto nas áreas social, da saúde e hospitalar, nos
quais perdurou o trabalho presencial. Destes, apenas 68% sinalizaram que os municípios em que atuam disponibili-
zaram Equipamentos de Proteção Individual (EPI), revelando responsabilidade pessoal por manter as demandas de
segurança sanitária.

Para atuar no cenário remoto, as(os) profissionais precisaram se adaptar às norma�vas do Conselho Federal de
Psicologia (CFP). Desse modo, foi demandado que houvesse o cadastramento profissional na plataforma e-Psi,
responsável por reunir e avaliar a autorização de psicólogas(os) para trabalhar por intermédio das TICs (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018). No contexto de pesquisa, apenas 57% das(os) profissionais possuía o seguinte
cadastro, sendo que, destes, 71% havia realizado apenas durante a Pandemia. Dos que não realizaram o cadastro,
35% informaram desconhecer sua existência, e 20% apresentaram dificuldades (principalmente sobre como realizar

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a fundamentação da solicitação do cadastro em iden�ficar quais TICs u�lizar no trabalho).

O úl�mo ponto se referiu à preparação de atuação para situações de emergências e desastres. Do total, apenas 46%
relataram se sen�rem preparadas(os) para desenvolver a�vidades nesse contexto. As(os) demais se dividiram em
“não se sen�rem preparadas(os)” (16%) e “não saberem responder” (38%). Os fatores que sustentavam essa
percepção de não preparo envolviam, em ordem de maior ocorrência, a falta de capacitação profissional, as
emoções suscitadas pelo contexto da Pandemia, as condições de trabalho e o inedi�smo da situação, promovendo
demandas cujo repertório profissional disponível não contempla. As(os) respondentes informaram tentar driblar
essas dificuldades através da realização de estudos e cursos, busca de informações, trocas de conhecimento, prá�cas
de autocuidado e prevenção ao contágio.

Discussão

Os resultados revelaram que houve mudanças no campo de atuação profissional da Psicologia no Brasil. Destaca-se a
atuação por meio de TICs, a qual apresenta desafios como: par�cularidades para lidar com situações de crise
(ZWIELEWSKI et al, 2020); estabelecimento de protocolos para manutenção do sigilo profissional (PINTO, 2002);
manejo do vínculo estabelecido (SIEGMUND; LISBOA, 2015); e necessidade de adequação legisla�va e de platafor-
mas efe�vas (VIANA, 2020). Viana (2020) acrescenta que o atendimento psicológico on-line é requisitado não
apenas pelo distanciamento que impede o contato entre profissional e cliente/usuário, mas também pelo aumento
das situações de sofrimento psíquico decorrentes da condição imposta pela pandemia. Todas estas questões são
compreendidas como de amplo impacto na vida das(os) psicólogas(os), especialmente pelo seu caráter de trabalha-
doras(es) da saúde (ROCHA; BRAMBILLA; BARROS, 2020).

Deve-se considerar que esta mudança ao mundo remoto possui inúmeros atravessamentos, não se tratando de uma
simples transposição; em especial, ao compreendermos as ferramentas, estratégias e técnicas psicológicas, não
necessariamente validadas para contextos virtuais. Face a esta questão, vale frisar a especificidade da oferta de
serviços psicológicos através das TICs. A necessária inven�vidade da prá�ca profissional também foi vivida pelas(os)
profissionais com a busca pelo aperfeiçoamento forma�vo.

Outro aspecto fundamental diz respeito às demandas emergidas pela pandemia, em especial no campo da clínica,
com o adoecimento psíquico oriundo da insegurança e fragilidade social vivida pela população brasileira. Na área
organizacional, com as demandas de flexibilização das relações trabalhistas, o acolhimento e a produção de saúde
de trabalhadoras(es) e o desemprego. Na educação, com as questões relacionadas à acessibilidade à TICs, ao
processo de ensino-aprendizagem, à privação da interação social, do brincar, e aos impasses da relação família-esco-
la. Na saúde pública, com a necessária presen�ficação do cuidado nos diferentes níveis de atenção e exposição à
COVID-19. Na Assistência Social, com a pobreza e a ausência de uma rede de proteção social gritando aos olhos da
Psicologia.

Neste processo, evidenciam-se lacunas em relação à formação de psicólogas(os) para atuação nesta conjuntura de
calamidade pública, que exige a garan�a de cumprimento de protocolos e medidas para a mi�gação de riscos
sociais. A formação profissional no âmbito das emergências e desastres tem sido inexistente ou insuficiente nas
graduações de Psicologia; no entanto, a área possui décadas de acúmulo teórico sobre concepções de eventos
desastrosos, estudos sobre vi�mização, situações de luto e psicopatologias decorrentes de desastres, e formas de
organização comunitária para lidar com situações de adversidades provocadas por eventos naturais e humanos
(OLIVEIRA; MORAIS, 2018). Nesse ínterim, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) colaborou com a realização de dois
seminários nacionais para discu�r a temá�ca, originando duas publicações que apresentam as possibilidades de
atuação da Psicologia em todas as etapas de um desastre, bem como explicitam sua atuação com outras polí�cas
públicas, notadamente a de saúde, assistência social e Defesa Civil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2020a;
2020b).

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No campo da regulamentação, observou-se que ainda perdura a falta de conhecimento da categoria para com o
alinhamento legal frente ao conselho de classe. Mesmo aqueles que chegaram a tentar o cadastro na plataforma
e-Psi, que organiza a atuação remota em Psicologia no Brasil, houve dificuldades na fundamentação da solicitação.
Isso porque, no processo de cadastro, é exigido que a(o) profissional discrimine sua prá�ca e apresente em quais
pontos a atuação mediada por TICs contribuirá com o trabalho desenvolvido, bem como quais cuidados é�cos serão
tomados. A dificuldade em escrever essa fundamentação está in�mamente ligada a diversas habilidades técnicas
previstas no escopo das Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs (BRASIL, 2020) para a graduação em Psicologia,
mas que parecem não se fazer visualizar na prá�ca de boa parte destas(es) profissionais, como: conhecimento sobre
fundamentos teórico-metodológicos da profissão; capacidade de tomada de decisões e administração e gerencia-
mento do trabalho; apropriação das prá�cas profissionais que compõem o núcleo básico de atuação profissional; e
competência para desenvolver atenção à saúde em dis�ntos contextos de trabalho individual e cole�vo.

Preocupa-nos este aspecto de fragilidade na formação em Psicologia, quando consideramos que, na pandemia, a
“solução educacional” emergencial implantada pelo governo brasileiro foi a adoção do ensino remoto emergencial.
No dia 17 de março de 2020, logo no início do período de isolamento social, o MEC publicou a Portaria Nº. 343, que
dispunha sobre a subs�tuição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durasse a situação de
pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Em sequência, a nova Portaria MEC Nº. 345, de 19 de março de 2020,
alterou a primeira, especificando o limite da autorização para a realização de a�vidades remotas em subs�tuição às
aulas presenciais no Ensino Superior e vedando a aplicação da subs�tuição às prá�cas profissionais de estágios e de
laboratório.

As Portarias do MEC Nº. 395, de 15 de abril de 2020, e Nº. 473, de 12 de maio de 2020, ampliaram o prazo de
vigência das anteriores até 31 de dezembro de 2020. O úl�mo ordenador, a Portaria MEC Nº. 544, de 16 de junho de
2020, fundamentada na publicação do Parecer Nº. 05, de 30 de abril de 2020, do Conselho Nacional de Educação
(CNE), revogou as anteriores quanto ao impedimento da transposição das a�vidades prá�cas de estágio e de
laboratório para a�vidades remotas e repassou a responsabilidade às ins�tuições de ensino quanto à definição dos
componentes curriculares que serão subs�tuídos por a�vidades remotas, desde que a aplicação da subs�tuição
obedeça às Diretrizes Nacionais Curriculares (DCNs) de cada área, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação –
CNE.

A publicação da portaria em junho, que abriu possibilidade para a realização de prá�cas de estágio remotas para
todos os cursos de Ensino Superior, mobilizou setores da sociedade que passaram a se perguntar se seria possível
um processo de aprendizagem profissional na modalidade à distância, considerando o conjunto de prá�cas e
saberes necessários para o bom exercício profissional – com destaque para as profissões da saúde, onde a Psicolo-
gia, tradicionalmente, também se localiza.

São essas tensões postas entre a presencialidade e a virtualidade, neste momento de necessário isolamento social,
que demonstram a necessidade da Psicologia afirmar-se um serviço essencial e de caráter social de extrema relevân-
cia, na medida em que se propõe a mediar processos de cuidado e garan�a de direitos com rigor técnico, é�co e
polí�co; colocando a Psicologia, ao seu modo e em seu saber-fazer, a serviço do enfrentamento da COVID-19.

Considerações Finais
Os dados aqui analisados demonstram que houve mudanças significa�vas na organização do processo de trabalho
de psicólogas(os) de todas as áreas cobertas pelas respostas. Essas mudanças incluíram a fragilização de vínculos
profissionais e adaptações de ro�nas e métodos de trabalho.

Apesar de não se referir originalmente à formação em Psicologia, o documento do CRP-03, em especial, apresenta

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um cenário de atuação sobre o qual as Ins�tuições de Ensino Superior (IES) devem estar cientes, no intuito de
preparar profissionais condizentes com as demandas co�dianas. Não se trata aqui de negligenciar uma atuação para
o campo de atuação presencial, visto que se considera este um cenário tradicional e perene de atuação, devendo ser
de fato a centralidade do direcionamento profissional. Entretanto, somando-se a evolução norma�va do Conselho
Federal de Psicologia (CFP), no que se refere à atuação psicológica mediada por TICs, bem como a iminência de
situações de emergências e desastres que dificultem a interlocução profissional presencial, cabe aos estabelecimen-
tos forma�vos fomentar estratégias que qualifiquem as(os) profissionais que adentrarão o contexto real de trabalho
– hoje, marcado pela pandemia do novo coronavírus, mas, sobretudo, como anúncio de uma vida dinâmica, em que
psicólogas e psicólogos, se bem formadas(os), saberão adaptar-se às mudanças de cada tempo e espaço.

Por tudo o que foi exposto, cremos que o presente estudo apresenta uma reflexão sobre os desdobramentos da
Pandemia na atuação profissional, ao iden�ficar um significa�vo senso de responsabilidade social a par�r da oferta
de serviços psicológicos (p.ex.) voluntários, para a situação de emergência e calamidade pública; no entanto, e ao
mesmo tempo, reconhecendo lacunas no processo forma�vo para atuação nesta área. A transposição das modalida-
des de serviços clínicos para o mundo remoto e a permanência de profissionais na atenção presencial no âmbito das
polí�cas públicas também caracterizam a atuação profissional. Desta forma, considera-se que a profissão assumiu
um horizonte é�co-polí�co importante para o enfrentamento da dimensão subje�va da Pandemia, do cuidado em
saúde mental e da defesa dos Direitos Humanos, mas que tal horizonte não pode dar-se descolado de uma reflexão
contumaz sobre a formação em Psicologia, suas fragilidades e seus desdobramentos na vida co�diana.

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Referências
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GAROTOS QUE ESCREVEM SONHOS
para/como camaleões

Eduardo Reis Silva *

Resumo: Este ensaio propõe uma experimentação e experiência de


escrita i�nerante, inconstante e incerta. Intenciona-se atravessar
tessituras pelo recorte dos garotos que escrevem como camaleões, em
alusão direta ao Música para Camaleões de Truman Capote como traço e
rasura das narra�vas de ar�stas como Pedro Almodóvar (1999) em Tudo
sobre minha mãe; Pa� Smith em Só garotos; Adélia Prado em Misere e
Caetano Veloso em Vaca profana.

Palavras-chave: Teoria literária; Cinema contemporâneo; Devir-escritor

Abstract: This essay proposes an experimentation and experience of


itinerant, fickle and uncertain writing. The intention is to cross areas of
intimate textures by the point of view from boys who write like chamele-
ons, in direct allusion to Truman Capote's Music for chameleons as a
trace and erasure of the narratives of artists such as Pedro Almodóvar
(1999) in All about my mother; Patti Smith in Just boys; Adélia Prado in
Miserere and Caetano Veloso in Profane cow.

Key-Words: Literary theory; Contemporary cinema; Becoming-writer

* Doutorando em Artes Cênicas UFBA, Mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC/SP).

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ARTIGOS

Estávamos andando em direção à fonte, o epicentro da


ação, quando um casal mais velho parou e ficou aberta-
mente nos observando. Robert gostava de ser notado, e
apertou minha mão com carinho. Oh, tire uma foto deles,
disse a mulher para o marido distraído, acho que são
artistas. Ora, vamos logo, ele deu de ombros. São só
garotos.

Pa� Smith1

Este ensaio é uma autoteoria ou apenas um resíduo laboratorial animalesco, polí�co, econômico, afe�vo das
excreções tóxicas do meu �gado gorduroso.
Falo das lanças metálicas, dos punhos cerrados, dos cones que impedem o tráfego nas ruas e estradas; das grades,
das celas, de tudo que equivocadamente separa uma coisa de outra; dos fios de cobre, das radiações, das contami-
nações das comunicações de fibra ó�ca, de seus transportes de dados na velocidade da luz, das imagens e impulsos
codificados; falo dos falocentrismos reais e imaginários, da hipertrofia dos corpos masculinos e de suas virilidades
excitantemente precárias, do triste culto à esté�ca de abdomens trincados numa saga Espartana; de silicones de
peitos, de vacas de divinas tetas e seus chifres para fora e acima da manada, dos preenchimentos de ácidos hialurô-
nicos que tentam preencher ironicamente a esgotada falta freudiana; falo dos beijos entre homens, dos beijos entre
mulheres, dos beijos entre trans, drags e todos os �pos de seres que beijam, que se beijam.
Falo de Walter Benjamin2, de suas Reprodutibilidades técnicas; falo de Baudelaire e sua Perda da auréola, não sou
mais um “bebedor de quintessências e um comedor de ambrosia. [...] Posso, agora, passear incógnito, cometer
ações reprováveis e me abandonar à crapulagem como um simples mortal. Eis-me aqui igual a você” (BAUDELAIRE,
2020, p. 21). Se nos abandonamos, se somos todos da mesma laia, se não existe mais contemplação e se estamos
diluídos na imensa mul�dão, onde todos podem ser reis e rainhas de suas lives, de seus planaltos e de seus labora-
tórios pessoais, é porque as coroas, auras e auréolas perderam-se na lama e no chorume e com certeza já não
significam o que significavam antes. Posso então, neste texto, ves�r uma mul�plicidade de halos, desfilar com a
cabeça penhorada pelas ruas, praças, academias, universidades e Shopping Centers, para me orgulhar do brilho
reluzente de um falsário, assim como Robert Mapplethorpe3 e Pa� Smith passeavam por Nova York em busca de
algum reconhecimento.
Visto-me de teorias, armo-me até os dentes, munido, a�ro referências para todos os lados, fico transparente ao
entrar na vaidosa esterilidade de significados libidinosos de um evento acadêmico, fico paralisado quando detectam
que estou na desmontagem policromá�ca da palavra e do signo de Derrida4, ou no passeio esquizofrênico de
Deleuze e Gua�ari5 com suas máquinas desejantes, na beleza do desgesto do Butô de Kazuo Ohno6. Quem sabe na
performa�vidade dos afetos de Sofie Cale7, na teatralidade desconcertante de Dimitris Papaioannou8, ou na delicio-
sa cadência dos pés que pensam o samba de Dona Ivone Lara9 ao cantar “[...] Sonho meu, sonho meu, vai buscar
quem mora longe, sonho meu”. (LARA; CARVALHO. 1978)10
Posso até falar dos hologramas de nós mesmos em todas as plataformas que nos duplicam em mul�plicidades, que
nos clonam nos cemitérios dos registros de marcas e empresas. Estamos ali, inteiramente decodificados sem
nenhum destaque. Apenas mais um no registro serial, fomos rastreados com todos os desejos e paixões fe�chizados
em algoritmos. Uma espécie de devir-sonho-camaleão, não apenas como imitação, semelhança e capacidade de
integração ao ambiente, mas sim, de ultrapassar a ideia hegemônica da representação de algo, de alguém, de uma
materialidade, de um chão, como pensou Deleuze e Gua�ari sobre o devir animal:
Jung elaborou uma teoria do Arqu�po como inconsciente cole�vo, onde o animal tem um papel par�cular-
mente importante nos sonhos, nos mitos e nas cole�vidades humanas. Precisamente, o animal È inseparável
de uma série que comporta o duplo aspecto progressão-regressão, e onde cada termo desempenha o papel de
um transformador possível da libido (da metamorfose). Todo um tratamento dos sonhos sai daí, pois uma
imagem perturbadora estando dada, trata-se de integrá-la em sua sÈrie arque�pica. Tal sÈrie pode comportar
sequências animais, vegetais, ou atÈ elementares, moleculares. Diferentemente da história natural, não È mais
1 SMITH, Pa�. Só garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 50.
2 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodu�bilidade técnica. São Paulo: L&PM Edição de bolso, 2018.
3 Robert Mapplethorpe foi um fotógrafo estadunidense, conhecido pela sensibilidade no tratamento de temas controversos e no uso do preto e branco na fotografia.
Seu trabalho abrangia uma variada gama de interesses, indo de retratos de celebridades, nu ar�s�co, autorretratos e imagens de flores.
4 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspec�va, 1995.
5 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O An�-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2010.
6 Foi um dançarino e coreógrafo japonês, considerado um mestre do teatro butô, arte que mistura dança e artes dramá�cas. Foi discípulo e fez parceria com Tatsumi
Hijikata (1928-1986), inventor do butô, e esteve três vezes no Brasil, nos anos de 1986, 1992 e 1997 por meio do diretor brasileiro Antunes Filho.
7 Sophie Calle é uma escritora francesa, fotógrafa, ar�sta de instalação e ar�sta conceitual. O trabalho de Calle se dis�ngue pelo uso de conjuntos arbitrários de
restrições e evoca o movimento literário francês da década de 1960 conhecido como Oulipo.
8 Dimitris Papaioannou é um diretor de teatro experimental, coreógrafo e ar�sta visual grego que chamou a atenção da mídia e elogiou sua direção cria�va da
Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004.
9 Yvonne Lara da Costa, mais conhecida como Dona Ivone Lara, foi uma cantora e compositora brasileira. Conhecida como Rainha do Samba e Grande Dama do
Samba ela foi a primeira mulher a assinar um samba-enredo e a fazer parte da ala de compositores de uma escola, a Império Serrano.
10
LARA, Dona Ivone; CARVALHO, Délcio. Sonho meu. In: Álibi. Rio de Janeiro: Polygram, 1978.

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o homem que È o termo eminente da sÈrie, pode ser um animal para o homem, o leão, o caranguejo, ou a ave
de rapina, o piolho, em relação a tal ato, tal função, segundo tal exigência do inconsciente. (DELEUZE,
GUATTARI, 1997, p. 12).

Para os filósofos franceses “[...] não se trata mais de instaurar uma organização serial do imaginário, mas uma ordem
simbólica e estrutural do entendimento”, não se trata “[...] mais de graduar semelhanças, e de chegar em úl�ma
instância a uma iden�ficação do homem e do animal no seio de uma par�cipação mís�ca” (1997, p. 12). Tudo isto
para dizer, que eu me transformo em um vetor de conexões, em um conector de sonhos que se conecta a outras
centenas de milhares de conectores de sonhos que estão por aí, na vida, na minha, na sua, na de todos nós.
Não vai demorar o dia em que a Poli Shop ou as Casas Bahia terão disponíveis em seus estoques, disposi�vos
eletrônicos, que cumpram a função de sequestrar os sonhos dos outros em bene�cio próprio. Isso já existe, eu sei,
mas digo, no sen�do de um produto comercializável, que todos possam adquirir, por exemplo: hoje eu amaria saber
como são os sonhos de minha sobrinha, o que a faz seguir adiante? Também seria incrível entrar na cabeça de
figuras como Almodóvar, Maria Bethânia e seu irmão maravilhoso, como também seria intrigante saber o que se
passava nas sinapses de Arthur Rimbaud, no período em que traficou armas de fogo na E�ópia.
Esses conectores de sonhos bio11 e necropolíticos12 que acabei de citar, são atravessados pelas facções das vontades
e desejos, pelos poderes, pela liberdade e subordinação, pela edificação e pela ruína de nossos corpos e arquitetu-
ras de homens, mulheres e seres de todos os �pos tecnicamente construídos para exercerem um espaço socialmen-
te reconhecido pelos códigos linguís�cos das culturas. Temos um carimbo, uma carteirinha, posso até me matricular
no clube para fazer natação. Posso emi�r passaporte, posso comprar drogas lícitas nas farmácias, posso até mudar
de sexo, caso este seja o meu desejo. O Estado, regulador das subje�vidades, hoje, me permi�ria tal façanha.
O padrão homem cis e o padrão mulher cis são também produtos falaciosos de um sistema econômico mundial que
visa manter uma ficção, de casas, famílias e filhos biodegradáveis pela nação que os fabricou, como um espaço
domés�co pronto para ser absorvido por todas as mul�nacionais liberais e principalmente as farmacológicas. É o
que diz Paul B. Preciado em referência a sua transição de gênero, em seu Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na
era farmacopornográfica:
Homens e mulheres são, hoje, bioprodutos de um sistema sexual bifurcado com tendência paradoxal à
reprodução ou à autodestruição. “Ser homem é ser deficiente, emocionalmente limitado… egocêntrico,
encerrado em si mesmo, incapaz de empa�a, iden�ficação com os outros, amor, amizade, afeição ou ternura”.
Homens e mulheres são unidades isoladas, criaturas condenadas a uma autovigilância e a um autocontrole
constantes por um rígido sistema de classe-sexo-gênero-raça. O tempo que devotam à disposição polí�ca das
suas subje�vidades é comparável à extensão total de suas vidas. Uma vez que toda sua vitalidade foi u�lizada
no trabalho de redução da própria mul�plicidade somá�ca, tornaram-se seres fisicamente fragilizados,
incapazes de encontrar qualquer sa�sfação na vida, poli�camente mortos antes de terem deixado de respirar.
Não quero o gênero feminino que me foi atribuído no nascimento. Também não quero o gênero masculino
que a medicina transexual me promete e que o Estado acabará me outorgando se eu me comportar de forma
correta. Não quero nada disso. (PRECIADO, 2018, p. 149)

Preciado ainda afirma, que “o gênero e a masculinidade e a feminilidade farmacopornográficas são artefatos
originados do capitalismo industrial que a�ngiram picos comerciais durante a guerra fria”, assim como “a comida
enlatada, o computador, as cadeiras de plás�co, a energia nuclear, a televisão, o cartão de crédito, a caneta esfero-
gráfica descartável, o código de barras, os colchões infláveis ou os satélites de telecomunicações”. (2018, p. 109).
O que escrevo para/como camaleões é uma espécie de cartografia puída, um quebra-cabeças sem cabeças, algo
como um feto abortado, uma humanidade que não chegou a se concre�zar ou a se suceder como era esperado, uma
vaca prenha, um camaleão-vaca-profana de divinas tetas, um texto paráfrase meio do caminho, algo que não é meu
e nem de ninguém, uma narra�va entre narra�vas, palimpsestos nas gráficas que grafam as mesmas estórias.
Naquele lugar onde ninguém fica, mas que todo mundo atravessa, porque nos foi ensinado e, em outros casos,
fomos obrigados a escolher um lado. Que lado estou agora? E vocês, homens e mulheres, vocês são de fato homens
e mulheres?
Tudo me parece excessivo e transbordante. Como um estudo inú�l de uma geografia invisitável: terreno baldio, casa
11 Em referência ao estudo de Michel Foucault em Nascimento da Biopolí�ca, 2010.
12 MBEMBE, Achille. Necropolí�ca. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

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ARTIGOS

de �jolos abandonada porque faltou orçamento, virilizante terreno descampado da comunidade que joga bola,
deserto sol quente, rua vazia dos centros an�gos, portas giratórias dos bancos fechados nos feriados, corredores de
hospitais desa�vados, motéis de beira de estrada, elevadores emperrados entre um andar e outro. São restos de
comida doada aos sem tetos, aforismos indigestos, excrementos de pensamentos fluidos de uma autoflagelação sem
fim que u�lizo para tentar construir e desconstruir a minha subje�vidade de garoto, homem, masculino, barba e
bigode.

Nasci em 1982. Numa sexta-feira, às 14h30 minutos, numa cidade vizinha a que eu morei até os meus 15 anos na
região sul de Minas Gerais, isto porque não exis�a hospital em minha cidade naquela época. Era necessário ir para
os municípios mais próximos. Minha irmã nasceu em Boa Esperança e o meu irmão mais velho nasceu de parteira,
foi preciso u�lizar fórceps para auxiliar a sua saída, ou chegada ao mundo.

No ano de meu nascimento o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo, pela Itália. Em dois de abril a Argen�na invadiu
as Ilhas Malvinas, dando início à Guerra das Malvinas. Em 08 de julho os 137 ocupantes do Boeing 727 da Vasp
morreram após colisão em um dos picos da Serra da Aratanha, no Ceará. Morria também, em 14 de setembro, seis
dias após o meu nascimento, a atriz norte-americana e princesa de Mônaco Grace Kelly. Pensando bem, nem foi um
ano tão turbulento, apesar da ditadura militar que ainda vigorava.

Meu pai era policial militar, minha mãe era comerciante, vendia roupas e joias consignadas nas casas das pessoas,
para as mulheres dos fazendeiros de café da região, estendia sua freguesia às cidades vizinhas. Sempre soube ganhar
dinheiro com facilidade. Mesmo nos momentos mais di�ceis fazia alguma coisa ociosa virar renda. A ideia de
produto e mercado ela compreendia bem. Eu vivia sozinho, às vezes ves�a os ves�dos de minha mãe, era tanto
amor, que em algum lugar em mim eu queria ser ela, imagina ser alguma outra coisa diferente daquilo que eu era,
fantasiava histórias ao perambular pelos corredores do sobrado que meus pais construíram para oficializar o
voluntarismo do experimento capitalista, com vistas a reproduzir a Mandala X, Y, Z.

Virou moda na modernidade tardia construir mandalas que ingenuamente dão conta de uma estrutura complexa,
como as mandalas pedagógicas, com suas palavras-chave e seus verbos de ação, neste caso, temos a mandala
heterobrancafamiliapródiga, que é a seguinte: casa, filhos, carro, religião, escola, faculdade, profissão, trabalho,
dinheiro, consumo, produto, cansaço, esgotamento, doença, farmácia, hospital, cemitério.

Em uma edição an�ga do programa Roda Viva da TV Cultura, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar (1995) estava no
Brasil para lançar o seu filme a Flor do meu segredo na mostra internacional de cinema de São Paulo. Na entrevista,
dentre os inúmeros assuntos abordados, o que mais me chamou a atenção, foi quando ele disse que sen�a várias
esferas de frustração em sua vida e começou a enumerá-las: como ator, cantor e sobretudo como escritor.
Penso que as minhas frustrações também se esbarram nas dele, com certeza de uma forma intensamente pior,
piorada, quase mambembe. Sou pura frustração, escrevo mal, minha dicção é toda embolada, minha formação é
totalmente esburacada e cheia de vácuos.

Escrevo, não para aprender a escrever corretamente, não busco isso. É como se a minha desqualificação abrisse uma
outra tonalidade de escrita, toda ela rasurada, mutável e desigual como uma tatuagem em aquarela num bíceps de
um rapaz bonito correndo sem rumo na areia da praia: palavras, imagens e os seus restos coloridos indo embora no
vulto que se desmanchou no ar. Para Deleuze e Gua�ari se o escritor é

Um fei�ceiro È porque escrever é um devir, escrever È atravessado por estranhos devires que não são
devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc. Será preciso dizer por quê. Muitos suicídios
de escritores se explicam por essas par�cipações an�-natureza, essas núpcias an�-natureza. O escritor È um
fei�ceiro porque vive o animal como a única população perante a qual ele è responsável, não pelos bezerros
que morrem e que lhe dão o incrível sen�mento de uma Natureza desconhecida - o afecto. Pois o afecto È um
sen�mento pessoal, tampouco uma caracterís�ca, ele È a efetuação de uma potência de ma�lha, que subleva
e faz vacilar o eu. (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 17).

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É o que diz o cineasta espanhol em seu eu que vacila, no tocante ao seu devir-Almodóvar e seu devir-garoto ao
escrever sonhos para camaleões: “Tinha como única ambição contar uma história e que essa história fosse compre-
ensível. Minha falta de conhecimentos não seria um peso nem um obstáculo” e “não pensava em escondê-la, mas
antes em integrá-la, como parte da linguagem cinematográfica” (ALMODÓVAR, 2008, p. 14).
Lembro-me de Adélia Prado (2013), em seu livro Miserere, onde a poeta fala de seu estado de miséria, do tempo
que ficou sem escrever, do seu deserto e de seu desamparo total. Acho que muitos de nós se encontram neste
mesmo desterro. Em uma desnecessidade de tudo apesar de toda urgência. Parece que nada mais é necessário, que
dirá escrever. Para quê? Para quem? Só me resta a cama e meus dias eternos, de janela em janela e novamente
lençol e travesseiro. Com poucos livros, alguns filmes, sem teatro, sem magia, sem sonho e nem delírio. Apenas o
sono anestésico e acachapante de um garoto num quarto/sala alugado em uma cidade estrangeira de seu próprio
país. Resta apenas a realidade? Cada vez mais? E mesmo quando se entra em outras searas imagina�vas, ainda
dialoga-se com às representações das representações? Uma mísera representa�vidade que inocula a toxina do real
em nossas capacidades cria�vas, atrofiando-as.
Uma força sobrenatural à lá cinema americano irrompe extraordinariamente me fazendo refém de mim mesmo em
meio ao caos de um mundo colapsado, não somente por um vírus, mas por uma radiação extra�vista que consome
nossas experiências em troca de milhares de mercadorias adquiridas em sites de compras. Vive-se para comprar,
comprar e comprar, para ter dinheiro para ter, mas ter o quê? O que é que temos? Panelas, cosmé�cos e roupas? Eu
furei, ou melhor, eu tento furar a lógica da mandala hetero-patriarcal-família-pródiga, não sou casado e não tenho
filhos e nem os terei, não tenho carro, não sei dirigir. Sou voluntário de um movimento ao qual eu não tenho muita
escolha, sou escolhido e quase sempre obedeço, viver neste contexto requer algum �po de troca, mesmo que seja
um escambo. Quando não obedeço, meu corpo faísca espiralado, des�tui-se dele mesmo ao entrar no que ainda
não sou. No poema Qualquer coisa que brilhe, a poeta e conterrânea mineira ilumina a condição ordinária de nossas
vidas.

São eternos esta oficina mecânica,


estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, tudo é muito eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida, tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri meus olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
(PRADO, 2013, p. 45)

Em Tudo sobre minha mãe, filme de 1998, Almodóvar constrói um personagem que aparece apenas no início do
filme, mas que conduz toda a estrutura do drama, um garoto, um jovem homem, poderia ser eu, Esteban é o seu
nome, ele diz a sua mãe que seu sonho é se tornar escritor e conhecer o pai, na sequência ele ganha de presente de
aniversário um convite para assis�r ao espetáculo Um bonde chamado desejo do dramaturgo estadunidense
Tennessee Williams (1947) e a promessa de que enfim saberá o que de fato aconteceu em seu passado, também
ganha um livro, Música para Camaleões, de Truman Capote. A personagem da mãe então lê uma passagem do livro,
que é a seguinte:

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ARTIGOS

Comecei a escrever aos oitos anos – a par�r do nada, sem qualquer exemplo que me inspirasse. Jamais �nha
conhecido alguém que escrevesse; a bem da verdade, conhecia poucas pessoas que liam. Mesmo assim, as
únicas quatro coisas que me interessavam eram: ler livros, ir ao cinema, sapatear e desenhar. Então um belo
dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentara para o resto da vida a um deus que dá talento e
entrega um chicote para a autoflagelação. (CAPOTE, 2006, p. 05)

Logo no início da trama o garoto Esteban morre atropelado, após tentar conseguir um autógrafo da atriz que
interpretava Blanche Dubois no espetáculo teatral referenciado acima. Ironicamente o rapaz foi atropelado pelo
bonde do desejo que passou levando todos os seus sonhos, seus escritos inacabados e o vazio da imagem de um pai
rasgado nas fotografias. A par�r desse momento, Manuela, sua mãe, que havia fugido para Madrid após engravidar
de seu pai, agora, com a morte do filho retorna à Barcelona, na intenção de reencontrar a transexual Lola, para dizer
que �veram um filho e que ele morreu sem saber que �nha um pai, um genitor com corpo de mãe, um procriador
com um par de tetas siliconadas, cabelos longos, boca vermelha carnuda e uma pele pálida em decorrência de sua
soroposi�vidade.
Este é o quadro familiar, nada ortodoxo, que Almodóvar nos apresenta. São estas famílias que o Estado ainda não
incluiu em sua cadeia produ�va e mercadológica. Garotas e garotos trans morrem aos montes, assassinados e
negligenciados em clínicas clandes�nas. Lorena Muniz, no ano de 2020, foi esquecida sedada na mesa de cirurgia,
por conta de um incêndio na clínica, teve morte cerebral por inalar fumaça tóxica, ela sonhava com o implante de
silicone nos seios. Sobre Lola, a personagem mãe/pai de Esteban, Almodóvar diz assim:

Conheci muitas pessoas que viveram em Paris, fizeram implantes mamários lá e vieram trabalhar em
Barcelona, tal como Lola. Esse personagem foi inspirado diretamente por uma traves�, que era proprietária de
um bar em Barcelona e vivia ali com sua mulher. Ele (que era ela) a proibia de usar minissaia, embora, ele
andasse de biquíni. Quando me contaram essa história, fiquei impressionado, porque era uma manifestação
perfeita do caráter completamente irracional do machismo. Guardei a história com a ideia de me servir dela
um dia, e quando fazia as pesquisas em Barcelona para a personagem de Lola descobri coisas verdadeiramente
incríveis. Conheci uma traves� de 45 anos que andava na pros�tuição com o filho, que �nha vinte e poucos
anos e também era traves�. No aniversário do menino, o pai traves� e a mãe ofereceram-lhe uma cirurgia de
mamas. Na verdade, as cenas mais extravagantes de tudo sobre minha mãe são inspiradas na realidade, mas
ainda estão aquém da realidade. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 213 - 14)

Almodóvar dedica os seus filmes às mulheres de sua vida. Não poderia fazer diferente. Dedico este texto rép�l
sáurio, de olhos grandes e salientes e língua protrá�l e pegajosa à minha mãe que já virou poesia, à minha irmã, às
minhas amigas mulheres, a todas as mulheres que são mães e a todas as pessoas que querem ser mães e a todos os
filhos que querem ter mães, a todos os garotos que são garotas e lutam por seus pares de seios, a todos os garotos
que escrevem seus sonhos para as suas mães camaleônicas, para todos os Estebans que �veram pais traves�dos de
mães. E neste exato momento, gostaria de sair cantando pelas ruas a música Vaca profana do irmão de Maria
Bethânia, inspirada na movida madrileña e cantada estrondosamente no fino cristal da voz de Gal.

Respeito muito minhas lágrimas


Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
(VELOSO, 1984)

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Referências
ALMODÓVAR, Pedro. Tudo sobre minha mãe. 1999.

BAUDELAIRE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 21.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodu�bilidade técnica. São Paulo: L&PM Edição de bolso, 2018.

CAPOTE, Truman. Música para camaleões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O An�-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia - Vol. 4. São Paulo, Editora 34, 1997.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspec�va, 1995.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolí�ca. São Paulo: Edições 70, 2010.

LARA, Dona Ivone; CARVALHO, Délcio. Sonho meu. In: Álibi. Rio de Janeiro: Polygram, 1978.

MBEMBE, Achille. Necropolí�ca. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

PRECIADO, Paul B. Texto Junkie: sexo, drogas e biopolí�ca na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições,
2018.

PRADO, Adélia. Miserere. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2013.

SMITH, Pa�. Só garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 50.

STRAUSS, Frédéric. Conversas com Almodóvar. São Paulo: Zahar, 2008.

VELOSO, Caetano. Vaca profana. In. Profana. Sony Music, 1984.

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O DESAFIO DA PROMOÇÃO DA
APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA
da disciplina Projeto Integrador
em tempos de Pandemia

Adriano Santos Araújo *


Juliana Freitas Guedes Rêgo **

Resumo: Este ar�go tem como obje�vo mostrar o desafio da promoção


da aprendizagem significa�va da disciplina Projeto Integrador em
tempos de pandemia no Curso Superior de Tecnologia em Logís�ca no
Centro Universitário Jorge Amado. A metodologia u�lizada é um estudo
de caso na turma de 4º semestre, no período 2020.2. A importância de
tratar deste tema evidencia-se diante da compreensão que tanto o
professor quanto o aluno fazem parte do contexto de aprendizagem,
configurando uma experiência bilateral. Além disso, a aprendizagem
significa�va busca a união entre teoria e realidade como prá�ca pedagó-
gica.

Palavras-chave: Projeto Integrador. Aprendizagem Significa�va. Prá�ca


Pedagógica. Ensino do Superior. Tecnologia em Logís�ca.

Abstract: This article aims to show the challenge of promoting meaning-


ful learning in the Integrator Project discipline in times of pandemic in
the Logistics Technology Course at Centro Universitário Jorge Amado. The
methodology used is a case study in the 4th semester class, in the period
2020.2. The importance of dealing with this topic is evidenced by the
understanding that both the teacher and the student are part of the
learning context, configuring a bilateral experience. Furthermore,
meaningful learning seeks to unite theory and reality as a pedagogical
practice.

Key-Words: Integrator Project. Meaningful Learning. Pedagogical


Practice. Higher Education. Technology in Logistics.

* Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano – UNIFACS. Professor da UNIJORGE


** Doutora em Economia – UFBA – Professora da UNIJORGE

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ARTIGOS

Introdução
Uma aprendizagem, para ser realmente significa�va, deve buscar relacionar conteúdos abordados em sala de aula,
com os conhecimentos prévios dos alunos em assuntos correlatos.

Desta forma, surge a seguinte problemá�ca de pesquisa: Como a educação da disciplina Projeto Integrador, em
tempos de pandemia, contribui para a promoção da aprendizagem significa�va no Curso Superior de Tecnologia -
CST do Centro Universitário Jorge Amado? A hipótese adotada é que a disciplina é um meio de promoção mesmo
em tempos de pandemia e na modalidade a distância.

Sendo assim, o obje�vo deste ar�go é mostrar a contribuição da disciplina Projeto Integrador, em tempos de
pandemia, para a promoção da aprendizagem significa�va no CST em Logís�ca do Centro Universitário Jorge Amado,
localizado em Salvador - BA.

A fim de a�ngir tal obje�vo, o presente trabalho busca es�mular os alunos a aplicar no produto final da disciplina
saberes adquiridos dentro e fora do ambiente acadêmico; desenvolver a visão crí�ca dos discentes a par�r de um
problema de pesquisa e encorajar os alunos a iden�ficar novas oportunidades de gestão e planejamento.

A metodologia u�lizada é um estudo de caso na turma de 4º semestre do CST em Logís�ca, no semestre 2020.2,
cujos professores da disciplina são os autores do ar�go. A turma com um total de trinta alunos foi dividida em cinco
equipes com seis componentes cada, com a finalidade de elaborar um estudo de uma operação logís�ca e demons-
trar as formas de controle e de movimentação de entrada e saída de um determinado produto controlado no Brasil
com a proposta metodológica de análise da mega explosão de nitrato de amônio ocorrida no porto de Beirute, no
Líbano, no dia 04 de agosto de 2020.

Levando em consideração as outras disciplinas do semestre, foi proposto para as equipes: 1) assessorar uma
empresa na execução das operações logís�cas internacionais em terminais, a par�r da legislação vigente; 2) analisar
os mercados, bem como operacionalizar a�vidades logís�cas aplicando regras do comércio exterior; 3) fazer uma
gestão eficaz dos processos de armazenagem, acondicionamento e movimentação destes materiais; 4) acompanhar
o processo produ�vo de empresas, que atuam o produto controlado.

O texto organiza-se em quatro partes com a introdução e a conclusão. Na segunda parte abordamos a fundamenta-
ção teórica, cujo foco é a aprendizagem significa�va. Na terceira parte apresentamos os resultados e a discussão da
pesquisa. Por fim, na conclusão, a hipótese de pesquisa é validada e são feitas sugestões e recomendações em
relação à disciplina Projeto Integrador.

Fundamentação teórica

A aprendizagem significa�va é um processo segundo o qual se relaciona um novo conhecimento ou uma nova
informação com a estrutura cogni�va da pessoa que aprende de forma não arbitrária e substan�va ou não literal. A
interação com a estrutura cogni�va é o que caracteriza a aprendizagem significa�va e, neste processo, conteúdos
podem adquirir um novo significado, produzindo uma transformação de ideias (PALMERO, 2010).

Deve haver algumas condições fundamentais para que a aprendizagem significa�va ocorra, tais como: vontade de
aprender dos alunos de forma significa�va e um material potencialmente significa�vo por parte do professor
(PALMERO, 2010). A aprendizagem é significa�va quando o conteúdo se relaciona com o que o aluno já sabe, ou
seja, as ideias se relacionam com a estrutura cogni�va existente do estudante como uma imagem, um símbolo, um
conceito ou uma proposição (AUSUBEL, 1983).

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Neste contexto, é essencial que o papel do professor seja o de ques�onar, permi�ndo aos alunos buscar as respostas
que os sa�sfaçam. Ao contrário do modelo mecânico, em que os professores dão respostas prontas e contribuem
para uma acomodação cogni�va do aluno, é necessário que o aluno dê importância ao desejo de buscar, de apren-
der, de ter curiosidade e estar sempre disponível para buscar respostas (BRITO, 2012).

O envolvimento do aluno no processo de aprendizagem resulta em maior aproximação do professor com as a�vida-
des pedagógicas, com o docente assumindo o papel de facilitador. Para tanto, os trabalhos em equipe de forma
orientada são importantes, pois desenvolvem o autoaprendizado e contribuem para a construção do conhecimento
de maneira a�va (SUGAHARA; JANNUZZI; SOUSA, 2012).

Os trabalhos em grupo com abordagens baseadas em problemas, ou seja, em ques�onamentos, explora o aprender
por si próprio. O aprendizado autodescoberto sob a perspec�va da autonomia, é extremamente necessário à
formação dos egressos que terão que lidar com o mundo profissional (SUGAHARA; JANNUZZI; SOUSA, 2012).

Sendo assim, os alunos têm a oportunidade de par�cipar de uma abordagem intera�va e colabora�va, que no
processo de construção de um conhecimento conjunto permite o desenvolvimento de capacidades e posturas
importantes na sociedade atual e na sua atuação nas organizações em geral (SUGAHARA; JANNUZZI; SOUSA, 2012).

Desta forma, as ins�tuições de ensino, ao optarem pelo uso de metodologias a�vas de ensino baseada em proble-
mas, demonstram que estão abertas às inovações metodológicas em prol de uma aprendizagem mais efe�va
(SUGAHARA; JANNUZZI; SOUSA, 2012).

No entanto, a pandemia do Novo Coronavírus trouxe um grande desafio para a prá�ca da aprendizagem significa�va,
já que impossibilitou tanto os trabalhos em grupos presenciais, que possuem uma abordagem intera�va e colabora-
�va nata, quanto às visitas às empresas, que são importantes para relacionar a teoria com a prá�ca.

Sendo assim, de forma inédita, todo o processo precisou fazer uso da educação a distância e do distanciamento
social a fim de resguardar a saúde dos envolvidos (alunos, professores e empresas) e ainda assim manter o mesmo
padrão de aprendizagem significa�va.

A educação a distância é uma metodologia de ensino consolidada no país e os cursos que fazem uso desta modalida-
de crescem ano após ano. Novais et al (2007) apontam que neste �po de metodologia o aluno passa a ser par�ci-
pante a�vo da construção do conhecimento, bem como proporciona uma intera�vidade até então desconhecida ao
ensino não-presencial. Tudo isto é de extrema importância para a aprendizagem significa�va.

No entanto, o distanciamento social, a visitação in loco ainda é um fator extremamente desafiador para a aprendiza-
gem significa�va da disciplina Projeto Integrador.

Resultados e discussão

A prá�ca pedagógica dos CST do Centro Universitário Jorge Amado foca no desenvolvimento e integração de
competências. Sendo assim, a disciplina Projeto Integrador – PI está presente em todos os semestres dos CST e uma
das notas desta matéria compõe uma das avaliações das outras disciplinas do semestre.

Os PIs têm por obje�vo promover a visão crí�ca e integrada dos conhecimentos, a par�r do estabelecimento de
relações entre o ensino adquirido em sala de aula e a experiência pessoal e profissional, além de fomentar nos
alunos a busca da inovação, cria�vidade e iden�ficação de novas alterna�vas na gestão das empresas pesquisadas.

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 65


ARTIGOS

Para a confecção do estudo, a equipe 1 escolheu trabalhar com o cianeto de sódio, a equipe 2 escolheu dinamite, a
equipe 3, ácido sulfúrico, a equipe 4, ácido nítrico e, por fim, a equipe 5 escolheu nitroglocerina.

A par�r do que foi proposto pelos docentes, as equipes u�lizaram a metodologia do estudo de caso, mas em função
do distanciamento social, sem a possibilidade das múl�plas fontes, tais como: entrevista semiestruturada, observa-
ção direta e revisão bibliográfica. Restando, assim, a única possibilidade da revisão bibliográfica. Foi es�mulado
também que todas as equipes apresentassem sugestões e recomendações na conclusão para os seus respec�vos
estudos de caso.

Nesta etapa, os estudantes colocaram em prá�ca conceitos construídos nas outras disciplinas do semestre como
Fundamentos do Comércio Exterior, Terminais e Aduana, Embalagem e Armazenagem de Produtos e Administração
da Produção. A logís�ca é um macroprocesso composto de três processos básicos (abastecimento, planta e distribui-
ção). A armazenagem é um subprocesso que ocorre dentro dos três processos logís�cos e são partes dela a confe-
rência, a movimentação interna e a estocagem de produtos (FARIA; COSTA, 2011).

A armazenagem é importante para reduzir os custos de transporte e de produção, coordenar a oferta e a demanda,
assessorar no processo de produção e também para colaborar no processo de comercialização do produto. Para que
uma armazenagem seja eficiente é necessária a existência de um layout que seja acessível ao fluxo de materiais e
produtos (BALLOU, 2006).

É imprescindível assegurar a máxima u�lização do espaço, evitar acúmulo de estoques, propiciar a menor distância
para a movimentação a fim de não haver aumento nos custos logís�cos (BALLOU, 2006). E quando tudo isto envolve
a logís�ca de um produto perigoso o respeito à legislação vigente é imprescindível, bem como o cuidado deve ser
redobrado.

A equipe 1 analisou que o cianeto de sódio é controlado pelo exército e que possui também uma regulamentação
pelo código internacional do cianeto e que para ser um transportador ou produtor é necessário ter cer�ficado do
código do cianeto. O produto pode ser transportado por qualquer modal, desde que os transportadores de cianeto
implementem planos de segurança e recursos adequados de resposta a emergências.

O transporte de produtos perigosos se inicia com a preparação para expedição dos produtos perigosos. Sendo assim,
se começar errado, a tendência é que haja problemas nas demais etapas. Esta operação envolve muitos riscos e
pode ser letal ao operador, não podendo reu�lizar embalagens vazias. O descarte das mesmas deve ser realizado
conforme o estabelecido para o produto.

A equipe 2 analisou que para realizar uma operação logís�ca com cargas explosivas, especificamente a dinamite, é
imprescindível seguir à risca todos os protocolos de segurança ministrados pela Norma Regulamentadora (NR) nº 29,
desde a sua produção até o seu des�no final. Visto que, um mínimo deslize em um processo logís�co de movimenta-
ção, transporte ou armazenamento é capaz de gerar uma tragédia, devido ao alto poder de destruição deste
artefato.

A equipe 3 analisou que o ácido sulfúrico possui várias aplicações industriais. O principal uso do ácido sulfúrico
engloba a fabricação de fer�lizantes, o processamento de minérios, a síntese química, o processamento de efluentes
líquidos, solução de baterias usadas em automóveis e o refino de petróleo. Essa substância pode ser ob�da indus-
trialmente por duas tecnologias dis�ntas, conhecidas como processo de câmara de chumbo e processo de contato.

A equipe ressaltou que ácido sulfúrico é uma commoditie e a sua produção é um bom indicador da força industrial

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de um determinado país. E há relatos de acidentes com este produto químico no Brasil, sendo o úl�mo em 2020,
numa usina de açúcar e álcool em Minas Gerais, o que reforça a necessidade de uma logís�ca que siga todos os
protocolos des�nados a este produto.

A equipe 4 analisou que para receber produtos corrosivos como é o ácido nítrico, os terminais devem se planejar
com antecedência, principalmente quanto à sua estrutura. Para isto, deve haver janelas voltadas para a área
externa, além de porta para o acesso do Corpo de Bombeiros, caso haja necessidade. Saída de emergência bem
localizada e sinalizada (contendo a indicação de corrosivo).

Deve possuir um sistema de exaustão, ao nível do teto, para re�rada de vapores leves e ao nível do solo para
re�rada dos vapores mais pesados. Refrigeração ambiental também é importante, caso a temperatura ambiente
ultrapasse 38° e a iluminação deve ser feita com lâmpadas à prova de explosão. Deve haver ex�ntores de incêndio
com borrifadores e vasos de areia, bem como prateleiras espaçadas, com trave no limite frontal para evitar a queda
dos frascos.

De acordo com a NR 26, que trata da sinalização de segurança, o empregador deve assegurar o acesso dos trabalha-
dores às fichas com dados de segurança dos produtos químicos que u�lizam no local de trabalho. Deve haver
disponibilidade de equipamentos de proteção individual e equipamentos de proteção cole�va e a área administra�-
va deve estar separada da área técnica e da armazenagem.

Toda a documentação necessária deve ser emi�da de acordo com o material transportado às regiões de origem e
des�no. Deve haver um extremo cuidado para a movimentação, em especial das soluções concentradas, bem como
evitar todo �po de contato.

A equipe 5 analisou que a nitroglicerina é um produto químico altamente instável empregado tanto na indústria
farmacêu�ca quanto de explosivos, a exemplo de demolições da construção civil. Este produto é altamente explosi-
vo devido à sua instabilidade e é considerado um composto possivelmente cancerígeno ao ser humano devido à
presença do tolueno em sua estrutura.

A par�r de uma situação real, a explosão no porto de Beirute, no Líbano, todas as equipes confrontaram a teoria
com a realidade a fim de visualizar a relação entre dos produtos perigosos com a logís�ca. Esta situação favoreceu a
aprendizagem dos alunos, mesmo em tempos de pandemia, pois eles se tornaram sujeitos do seu próprio aprendi-
zado, autônomos, fazendo relações entre a situação que ocorreu no Líbano com o controle e movimentação de
entrada e saída de produtos controlados no Brasil.

Considerações finais

Este ar�go abordou a temá�ca do desafio da promoção da aprendizagem significa�va da disciplina Projeto Integra-
dor em tempos de pandemia no CST em Logís�ca do Centro Universitário Jorge Amado na cidade do Salvador - BA,
tendo como metodologia o estudo de caso na turma de 4º semestre, no semestre 2020.2.

A disciplina Projeto Integrador tem como obje�vo que o discente possa aplicar no produto final da disciplina saberes
adquiridos dentro e fora do ambiente acadêmico. Como foi discu�do ao longo deste ar�go, o processo é criado a
par�r de uma realidade que se torna um desafio para o aluno, desenvolvendo a visão crí�ca.

Algumas equipes fizeram isso de forma mais intensa, fazendo inúmeras análises, já outras foram mais con�das, pois
as realidades encontradas dos produtos químicos foram totalmente diferentes. No entanto, todas as equipes

REVISTA OLHARES | N° 10 | VOL I | NÚCLEO DE PUBLICAÇÕES | UNIJORGE | 2020 67


ARTIGOS

compreenderam que a explosão no porto de Beirute, no Líbano, ocorreu por negligência dos responsáveis pelo
depósito, pois este produto estava armazenado há cerca de seis anos e sem o cumprimento das normas de seguran-
ça.

Assim, a realidade libanesa, mostrou para os alunos o nível de importância das normas, e por que elas devem ser
cumpridas com muito rigor. Além de evidenciar como a logís�ca é essencial para que o processo seja seguro e sem
falhas e que acidentes similares podem ocorrer no nosso país.

A par�r da análise do campo apenas teórico devido ao distanciamento social, é possível afirmar que todas as
equipes desenvolveram a cria�vidade, buscaram novas alterna�vas e iden�ficaram oportunidades de gestão e
planejamento, além de desenvolverem o autoconhecimento.

Com base neste estudo de caso, pôde-se perceber que a hipótese de pesquisa foi validada, ou seja, a disciplina
Projeto Integrador é um meio de promoção da aprendizagem significa�va. No entanto, a aprendizagem significa�va
poderia ser mais difundida se a realidade de sala de aula permi�sse que as equipes fossem menores, de no máximo
três alunos, a fim de possibilitar a síntese dialé�ca adequada, em que as ideias dos colegas podem ser ra�ficadas ou
re�ficadas.

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Referências
AUSUBEL, D. P.; NOVAK, J. Psicología Educa�va: Un punto de vista cognosci�vo. México: TRILLAS, 1983.

BALLOU, R. H. Gerenciamento da cadeia de suprimentos/logís�ca empresarial. Porto Alegre: Bookman, 2006.

BRITO, R. M. C. O professor, a aprendizagem significa�va e a avaliação: base para o sucesso escolar do aluno. 2012.
Disponível em: h�p://www.anpae.org.br/seminario/ANPAE2012/1comunicacao/Ei-
xo03_38/Rosa%20Maria%20Cavalcan�%20Brito_int_GT3.pdf. Acesso em: 8 maio 2021.

FARIA, A. C.; COSTA, M. F. G. Gestão de Custos Logís�cos. São Paulo: Atlas, 2010.

NOVAIS, S. M. et al. Tomada Panorâmica sobre a Educação a Distância no Brasil. 2007. Disponível em:
h�ps://www.aedb.br/seget/arquivos/ar�gos07/1423_ar�go%20SEGET%202.pdfAcesso em 19 abr. 2021.

PALMERO, M. L. R. La teoría del aprendizaje significa�vo en la perspec�va de la psicología cogni�va. Barcelona:


Ediciones Octaedro, 2010.

SUGAHARA, C. R., JANNUZZI, C. A. S. C., SOUSA, J. E. de. O ensino-aprendizagem baseado em problema e estudo de
caso num curso presencial de Administração – Brasil. 2012. Disponível em: h�p://www.rieoei.org/expe/4872Su-
gahara.pdf. Acesso em: 8 abr. 2021.

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APRENDIZADOS E REFLEXÕES
sobre a virtualização do Núcleo de Prá�ca
Jurídica (NPJ), durante a pandemia

Katiani Lucia Zape *


Luis Carlos M. Laurenço **

Resumo: O presente relato tem como obje�vo apresentar a experiência


prá�ca e pedagógica vivenciada pelo Núcleo de Prá�ca Jurídica do Curso
de Direito do Centro Universitário Jorge Amado – NPJ, durante a pande-
mia, propondo uma reflexão sobre os caminhos adotados para que o
Núcleo con�nuasse desenvolvendo suas a�vidades pedagógicas e sociais
e os obstáculos impostos pela pandemia que ainda precisam ser supera-
dos.

Palavras-chave: Núcleo de prá�ca jurídica. Virtualização. Covid-19.

Abstract: This report aims to present the practical and pedagogical


experience lived by the Legal Practice Nucleus of the Law Course of the
Jorge Amado University Center - NPJ, during the pademia, proposing a
reflection on the paths adopted for the Nucleus to continue developing
its pedagogical activities and social and obstacles posed by the pandemic
that still need to be overcome.

Key-Words: Nucleus of legal practice. Virtualization. Covid-19.

* Doutoranda em Relações Internacionais – UFBA, Mestre em Políticas Sociais e Cidadania – UCSAL. Especialista em Direito Administrativo – PUC Minas.
Especialista em Gestão do Desenvolvimento e Responsabilidade Social UFBA. Especialista em Gestão de Organizações Sociais pela Faculdade Fátima. Graduada
em Direito – UCS. Advogada com foco em direito do terceiro setor. Professora do Curso de Direito – UNIJORGE. Atuou como Coordenadora do Programa de
Conclusão de Curso e do Núcleo de Prática Jurídica - NPJ do Centro Universitário Jorge Amado até janeiro de 2021. Membro do Tribunal de Ética e Disciplina
OAB/BA 2016 - 2018 e 2019 -2021. Membro do Conselho Consultivo OAB - BA 2019 - 2020.
** Doutor em Ciência Jurídica – UAL; Possui Mestrado em Direito – UNESA; Pós Graduação em Processo Civil – UNIFACS; Graduação em Direito – UNIFACS,
Graduação em Ciências Contábeis – UNEB. Presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB/BA. Advogado Sócio da Fragata e Antunes Advogados, Professor
e Coordenador do Curso de Direito – UNIJORGE.

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ARTIGOS

O Núcleo de Prá�ca Jurídica da Unijorge e seu funcionamento


O Núcleo de Prá�ca Jurídica – NPJ do CENTRO UNIVERSITÁRIO JORGE AMADO - UNIJORGE, é integrante do Curso de
Direito, funcionando em espaço próprio, como um laboratório jurídico, nos moldes do art. 6º da Resolução nº 5, do
Ministério da Educação, de 17 de dezembro de 2018, é obrigatório e integrante do currículo pleno do Curso de
Direito, indispensável para a consolidação dos desempenhos profissionais desejados, inerentes ao perfil do forman-
do em suas diferentes dimensões forma�vas.

Criado em janeiro de 2001, o NPJ funciona como o laboratório das a�vidades de prá�ca jurídica, de cunho eminente-
mente curricular e pedagógico que abriga diversas ações educa�vas do curso de Direito da Unijorge, ao mesmo
tempo que ar�cula e envolve docentes, discentes e a comunidade menos favorecida financeiramente do entorno.

O NPJ é voltado para a formação do estudante onde os conteúdos teóricos são instrumentalizados na prá�ca, por
meio de a�vidades reais e simuladas, internas e externas, com prestação de serviços de consultoria, oficinas,
assessoria e assistência jurídica à comunidade de baixa renda, sem prejuízo de outras. Sua missão é proporcionar
condições ao exercício pleno das a�vidades inerentes ao profissional do Direito, desenvolvendo competências e
responsabilidade profissional.

Sob o aspecto acadêmico, o obje�vo do NPJ é possibilitar aos alunos a ar�culação das a�vidades de ensino, extensão
e prá�ca jurídica, sustentadas pelo propósito de fortalecer as perspec�vas é�cas e a�tudinal. Busca-se promover
uma formação de excelência técnico-prá�ca, marcada pela interdisciplinaridade, pelo engajamento social, pela
capacidade de reflexão e postura crí�ca, para ter condições de compreender o fenômeno jurídico e dar soluções
cria�vas aos problemas que surgem, priorizando a mediação.

Sob o víes social, o NPJ tem como escopo a prestação de auxílio jurídico gratuito de menor grau de complexidade –
nas áreas civeis e trabalhistas, para a comunidade local de baixa renda, possibilitando o acesso à jus�ça, e à promo-
ção da cidadania daqueles que não têm condições de arcar com as custas processuais e honorários advoca�cios sem
prejuízo do seu próprio sustento ou de sua família.

Na busca de atender estes obje�vos acadêmicos e sociais, bem como contribuir com as exigências é�cas globais,
tornando os futuros profissionais mais preocupados com a prevenção de li�gios, com os Direitos Humanos, com a
defesa das minorias e mais comprome�dos com um mundo melhor, o NPJ propõe diferentes a�vidades: de cunho
acadêmico e de responsabilidade social, a exemplo das visitas técnicas, o dia de prá�ca jurídica, semana de valoriza-
ção do trabalho decente, além dos atendimentos jurídicos reais realizados à comunidade pelos alunos do curso de
Direito dentro das disciplinas de Estágio Supervisionado – Cível e Trabalhista.

As a�vidades desenvolvidas pelo Núcleo tentam contemplar a formação prá�ca jurídica e as suas diferentes dimen-
sões forma�vas que contemplam, entre outros, a prestação de assistência jurídica judicial e extrajudicial; o domínio
de técnicas de conciliação e mediação; a simulação de a�vidades e exercício de a�vidades reais da área jurídica; a
resolução teórica de casos concretos; o atendimento de assis�dos com urbanidade e respeito aos direitos humanos
e o comprome�mento com os problemas sociais por que passa a comunidade.

Os reflexos da pandemia na atuação do NPJ

Em que pese o NPJ ter passado por várias alterações nestes vinte anos de criação, sobretudo por ser um espaço de
construção de aprendizagem conectado com a necessidade prá�ca dos discentes e a realidade social em que está
inserido, a pandemia Covid-2019 impôs um grande desafio: garan�r a con�nuidade das a�vidades pedagógicas e
sociais desenvolvidas pelo NPJ mesmo durante o período pandêmico.
Com a proliferação da Covid -19 no Brasil, em meados de março de 2020, foi reconhecida a ocorrência de estado de
calamidade pública por força do Decreto Legisla�vo nº 6, de 20 de março de 2020, publicado no DOU na mesma
data. A par�r de então, os Estados e Municípios passaram a adotar medidas para tentar evitar a propagação do vírus

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entre a população, desta forma, foram propostas uma série de medidas de isolamento social com fechamento de
diversos estabelecimentos empresariais, entre eles as ins�tuições de ensino superior. A par�r de então, uma série
de medidas passaram a regular as a�vidades de ensino, a exemplo da Portaria 343, do Ministério da Educação
(MEC), de 17/03/2020, que dispôs sobre a “subs�tuição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto
durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19; da Portaria 345, do Ministério da Educação, de 19
de março de 2020, oportunidade que determinou, que tal subs�tuição não se aplicava às prá�cas profissionais e de
laboratório, conforme previsto no art. 1º § 3º.

Frente às determinações do MEC, as disciplinas regulares do curso foram virtualizadas rapidamente para que os
alunos não �vessem prejuízo no calendário acadêmico. Contudo, quanto às disciplinas de prá�ca juridica, às quais
estão vinculadas diretamente ao NPJ, a coordenação do curso ficou em dúvida de como proceder, pois a Portaria 345
do MEC não dis�nguiu se a restrição englobava todas as disciplinas de prá�cas profissionais ou apenas as da área de
saúde. Diante da dúvida, a coordenação do curso convocou uma reunião do Núcleo Docente Estruturante - NDE,
para tratar da questão, a qual foi realizada em 06.04.2020. Na oportunidade es�veram presentes todos os membros
do órgão, o qual é formado pelo Coordenador do Curso, Coordenador do NPJ e outros três professores, oportunida-
de em que foi deliberado que não haveria prejuízo aos alunos se fosse optado pela virtualização das disciplinas de
estágio, autorizando os professores de prá�ca jurídica a u�lizarem de ferramentas tecnológicas para o desenvolvi-
mento das a�vidades, como se observa na Ata da referida reunião:

A virtualização não seria um impedi�vo para a con�nuidade do estágio supervisionado pois existem ferramen-
tas tecnológicas que auxiliam professores e alunos a desenvolverem as a�vidades prá�cas, também acredita
que esta será a tendência do Judiciário que certamente passará a dotar ferramentas de virtualização para a
con�nuidade das a�vidades judicantes caso o período de isolamento social se alongue por alguns meses, sem
falar que atualmente muitos processos já são virtuais. Desta maneira, de forma unânime todos os par�cipan-
tes concordaram que as aulas de estágio supervisionado seriam virtualizadas e deveriam seguir o fluxo e o
cronograma normal, sendo as prá�cas reais subs�tuídas por simuladas até o retorno das a�vidades presen-
ciais.

Tal decisão do NDE se viu acertada, tanto que em 04.05.2020 foi publicado o Parecer CNE/CES nº 5 de 28 de abril de
2020, o qual reorganizou o calendário escolar e possibilitou o cômputo de a�vidades não presenciais para fins de
cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19, recomendando para a educação
superior, entre outras, a adotação de a�vidades não presenciais de prá�cas e estágios; supervisionar estágios e
prá�cas profissionais na exata medida das possibilidades de ferramentas disponíveis e o atendimento ao público
dentro das normas de segurança editadas pelas autoridades públicas e com espeque em referências internacionais.
A par�r do momento em que foi autorizada a virtualização das disciplinas de Estágio Supervisionado, os professores
foram orientados a desenvolveram as a�vidades prá�cas virtualmente, oportunidade em que foram propostas as
seguintes intervenções didá�co-pedagógicas:

Estágio Supervisionado I – Meios Alterna�vos de Solução de Conflitos - as a�vidades foram divididas em dois grupos
centrais: a) Formação Teórica – com aplicação de vivências e metodologias a�vas; e b) Formação Prá�ca. Esta divisão
estava previamente definida para a modalidade presencial da disciplina, sendo man�da na modalidade remota e
desenvolvida através de videoconferências com o uso da Plataforma CANVAS, em sua maioria, u�lizando o material
análogo de aulas presencial, tais como livros, ar�gos, vídeos com simulações e roteiros com instruções para desen-
volvimento de todas as a�vidades. Os feedbacks aos alunos foram dados de forma oral, em sala de aula virtual, para
possibilitar a evolução sobre a matéria.

Estágio Supervisionado II – Prá�ca Cível - A formação teórica com aplicação de conteúdo e resolução de casos
prá�cos foi realizada sem qualquer dificuldade pela plataforma virtual. O material u�lizado foi o mesmo das aulas
presenciais, bem como a metodologia u�lizada, com exceção do fato que a peça processual elaborada pelos alunos
deixou de ser manuscrita e passou a ser digitada e enviada via sistema eletrônico aos professores. Todas as a�vida-
des desenvolvidas pelos alunos foram corrigidas cole�vamente e as dúvidas esclarecidas pois, na oportunidade, os

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professores disponibilizaram diferentes canais de comunicação o que facilitou e agilizou o contato entre discentes e
docentes. Os trabalhos, peças e avaliações realizados pelos alunos de prá�ca foram arquivados digitalmente e
disponibilizado para eventuais consultas. Entretanto, deve-se detacar que o atendimento real, realizado pelos
alunos, restou prejudicado durante o período de 2020.1.

Estágio Supervisionado III – Prá�ca Trabalhista - as aulas foram realizadas pela plataforma virtual, espaços em que
foram divulgados todos os eventos, como palestras virtuais, lives, bate papo, webnários envolvendo a prá�ca
trabalhista, bem como foram realizadas a elaboração de peças processuais pelos alunos e correção pelos professo-
res. As plataformas também foram o meio u�lizado para os diálogos e escuta sobre as dificuldades e êxitos experi-
mentados ao longo do período, bem como para os feedbacks das docentes, de forma oral, em sala de aula. O único
atendimento realizado pelos alunos aconteceu antes da decretatação da pandemia, entretanto, após o reconheci-
mento desta os atendimentos reais agendados foram cancelados no período de 2020.1.

Estágio Supervisionado IV – Prá�ca Penal – Não houve grandes mudanças no desenvolvimento da disciplina, visto
que nesta já se trabalhava com casos simulados, o que con�nuou a ocorrer apenas se u�lizando de plataforma
digital.

No que tange à realização de atendimentos à comunidade, a Coordenação do Curso de Direito, em conjunto com a
Coordenação do NPJ e os professores do NPJ, conscientes da importância do trabalho social desenvolvido pelo
Núcleo, decidiram por promover um atendimento à comunidade, via telefone, para sanar dúvidas sobre a pandemia,
u�lizando para tanto os advogados do NPJ que também estavam sem exercer suas a�vidades por força da suspensão
das a�vidades do Poder Judiciário, desta forma, foi lançado o projeto “Atendimento Judico e Social Gratuito”.

O projeto consis�a em disponibilizar à comunidade um atendimento com os advogados do NPJ, via consulta telefôni-
ca, de modo que pudessem esclarecer dúvidas e obter informações sobre temas relacionados à pandemia, tais
como: auxílio emergencial, mudanças no regime de trabalho por conta da pandemia, contratos de locação residen-
cial e divórcio extrajudicial durante a pandemia.

Para tanto, foi criado um canal de atendimento por telefone no qual o interessado, ao ligar, era direcionado para um
dos advogados do NPJ para que pudesse sanar suas dúvidas em relação aos temas acima. Desse modo, a população
de Salvador e Região Metropolitana puderam se beneficiar desse importante serviço. Ao final do semestre foram
contabilizados mais de 50 (cinquenta) atendimentos à população.

Em que pese as incertezas do processo, bem como a falta de experiência com situação similar, entendeu-se que o
desenvolvimento remoto das disciplinas de Estágio durante 2020.1, bem como o atendimento oferecido para a
população foi sa�sfatório na medida em que garan�u a con�nuidade das a�vidades do NPJ. Isso pode ser constatado
através da devolu�va de alguns alunos, os quais registraram que era possível perceber os esforços de professores e
da coordenação para minimizar as perdas acadêmicas. O êxito da ação também pôde ser constatado no número de
pessoas que procuraram o atendimento jurídico dispobilizado.

A pandemia con�nua e com ela a manutenção das a�vidades remotas

Havia uma grande expecta�va que a pandemia cedesse e que em 2020.2 as a�vidades voltariam a ser desenvolvidas
presencialmente. Entretanto, o que se assis�u foi a intensificação da proliferação do vírus.

Desta forma, em 17 de junho de 2020 foi publicado no DOU a Portaria MEC 544 de 16 de junho de 2020 que dispôs
sobre a subs�tuição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durasse a situação de pandemia do
novo coronavírus – Covid-19, revogando as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março
de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020.

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A Portaria 544 autorizou a subs�tuição das disciplinas presenciais, em cursos regularmente autorizados, por a�vida-
des le�vas que u�lizem recursos educacionais digitais, tecnologias de informação e comunicação ou outros meios
convencionais até 31 de dezembro de 2020, trazendo assim, a confirmação de que o semestre de 2020.2 também
iria ocorrer de forma virutalizada, razão pela qual se tornou necessário pensar em como retomar os atendimentos
jurídicos realizados pelos alunos junto à comunidade. Pois, além deste ser um serviço social relevante, também é
uma forma de os alunos desenvolverem as a�vidades de prá�ca jurídica dentro das disciplinas de estágio supervisio-
nado, em especial a prá�ca cível e trabalhista. Desta forma, havia o entendimento que as prá�cas adotadas em
2020.1 precisavam ser aprimoradas sobretudo no que tange às a�vidades, à interação e vivência prá�ca dos alunos,
pois sua ausência fragilizava a essencia do próprio Núcleo, tanto sob o seu aspecto acadêmico quanto social.

Diante desta percepção, a Coordenação do Curso de Direito, em conjunto com a Coordenação do NPJ e após
homologação do NDE e Colegiado do Curso, deliberaram por implementar o atendimento virtual à comunidade
u�lizando de ferramentas prá�cas remotas mediadas por tecnologias de informação e comunicação.

Dessa feita, aqueles que desejassem atendimento jurídico do NPJ, observadas as regras dispostas em regulamento
do NPJ poderiam entrar em contato com uma central de agendamento a fim de marcar o dia e horário para seu
atendimento. Em regra, estes ocorreram nas áreas cível e trabalhista, uma vez que são estas disciplinas prá�cas que
prevem atendimento real. Após marcação do atendimento, o assis�do recebia um link de acesso a plataformas
virtuais, a exemplo do Microso� Teams, Google Meet, oportunidade que também era instruído como proceder com
o acesso à plataforma. Esse link poderia ser acessado pelo assis�do por PC, celular, ou outra ferramenta que tenha
acesso à internet.

Os atendimentos dos assis�dos ocorreram em ambiente virtualizado, com presença dos alunos, assis�dos e dos
professores responsáveis, de modo que os discentes realizaram a triagem dos atendimentos, por meio de entrevista
e do preenchimento da ficha específica para tanto, registraram a demanda, os dados e os fatos relevantes, indicaram
os documentos necessários e em seguida apresentaram ao professor-orientador que emi�u um parecer. Para
con�nuidade do atendimento, foram agendadas as sessões para tenta�va de pacificação extrajudicial do conflito,
nos casos necessários. Nas hipóteses de acordo, os estudantes elaboraram os termos do referido documento, sob
supervisão do seu professor-orientador. Nos casos em que não foi possível acordo entre as partes, os alunos
elaboraram a minuta da pe�ção inicial que seria corrigida pelo professor e entregue ao advogado do Núcleo que, a
par�r da distribuição do processo, passaria a acompanhar o trâmite processual.

Assim, de forma remota, em 2020.2 o NPJ realizou 20 atendimentos, sendo 15 na área cível e 5 na área trabalhista. A
ação possibilitou que os alunos atendessem às pessoas da comunidade, mantendo a dinâmica que exis�a quando
dos atendimentos presenciais, bem como a assegurando a con�nuidade de um trabalho realizado junto à comunida-
de há mais de 20 anos.

Infelizmente, a crise sanitária se agravou e o ministro da Educação, Milton Ribeiro, homologou o Parecer nº 19, do
Conselho Nacional de Educação (CNE), publicado no DOU de 10.12.2020, que estabeleceu normas educacionais
excepcionais a serem adotadas pelos sistemas de ensino, ins�tuições e redes escolares, públicas, privadas, comuni-
tárias e confessionais, durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legisla�vo nº 6, de 20 de março de
2020. Assim, diante da prorrogação da virtualização das aulas enquanto durar a pandemia, para 2021.1 o NDE e o
Colegiado do Curso deliberaram pela manutenção das disciplinas de estágio supervisionado u�lizando fermentas
prá�cas remotas mediadas por tecnologias de informação e comunicação, inclusive a manutenção dos atendimentos
à comunidade pelo NPJ de forma virtual.

Reflexões

A par�r do cenário pandêmico existente, diante da necessidade de suspensão das a�vidades educacionais de forma

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presencial, bem como da adoção de medidas de restrição impostas por Estados e Municípios, a sociedade se viu
obrigada a se adaptar à nova realidade tecnológica, deixando de lado um modelo tradicional e presencial, para um
modelo virtual. Angús�as e incertezas sobre o “novo normal” se fizeram presentes. Pesquisadores, sociólogos,
psicólogos, cien�stas e outros estudiosos, passaram a analisar o novo fenômeno social, não só o aspecto comporta-
mental das pessoas, que agora se viam obrigadas a ficar em casa e mantendo distanciamento social, até mesmo de
entes queridos, como também as novas perspec�vas de trabalho e novas formas de aprender e fomentar a cultura e
a ciência, tudo por meio da tecnologia.

A virtualização do NPJ reflete exatamente esta necessidade de adaptação ao “novo normal”, possibilitando não só a
con�nuidades das a�vidades sociais, como acadêmicas, sem comprometer a qualidade do aprendizado, nem tão
pouco deixando de cumprir o seu papel como agente promotor de ações de responsabilidade social. O futuro ainda
é incerto, mas no presente, o uso de ferramentas tecnológicas tem se mostrado eficaz, fazendo parte de uma nova
realidade que certamente não será esquecida por qualquer um que tenha vivenciado este momento.

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Referências
BRASIL. Decreto Legisla�vo nº 6, de 20 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 345, de 19 de março de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES nº 5, de 28 de abril de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES nº 19, de 10 de dezembro de 2020.

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PENSAR A VIDA A PARTIR
DAS HERANÇAS,
segundo Clarice Lispector

Moisés Oliveira Alves *

Resumo: Esse texto tem o obje�vo de realizar uma reflexão sobre a


escrita experimental de Clarice Lispector, seus procedimentos de escrita
intensiva, como espaço de invenção e pensamento.

Palavras-chave: Intensidade, herança, contemporâneo

Abstract: This text aims to reflect on Clarice Lispector's experimental


writing, her intensive writing procedures, as a space for invention and
thought.

Key-Words: Intensity, heritage, contemporary

* Doutor em Literatura e Cultura. Professor dos Cursos de Letras e Cinema – UNIJORGE e do Departamento de Letras e Artes – UEFS..

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Pensei em começar esse texto a par�r de um belíssimo ensaio de Agamben, O fim do pensamento1. Trata-se de um
passeio no bosque e a necessidade de tomar de assalto, de assaltar uma voz, já que no máximo temos a capacidade
de imitá-la. Diante dos uivos e zurros, os animais da floresta mostram nossa carência, não deixam nada em suspen-
so, somos aqueles que precisam erguer uma linguagem e nela um pensamento, atormentar-nos nela, por ela, com
ela. Os animais do bosque riem de certa maneira de nós, os sem voz. A escrita se torna nesse espaço possível para
delinear uma voz provisória nossa, e sobretudo, um lugar onde animais selvagens invisíveis, os pensamentos, irão
refugiar-se. A voz humana é risível, não diz nada se não houver uma mediação das palavras, essa espécie de intensi-
ficador de nossa voz primeira. Os cacarejos que se seguem, são uma tenta�va e uma outra forma de lançar no
mundo uma natureza estranha de ruído, de vozearia, além de insis�r no encontro do animal em nós soterrado,
seguem em direção a esse animal portando algum pensamento, algum tumulto, alguma poesia, tentam vasculhá-lo
até nos lugares mais imprevisíveis e insuspeitáveis.

***

Sim. Podemos começar pelo óbvio. Sabe-se que Clarice Lispector possui vasta obra, mas não referimo-nos apenas
aos romances, contos, crônicas, novela ou até mesmo aos materiais ao largo dos escritos ditos de ficção, como
entrevistas, cartas, fotografias. O que queremos dizer é que, cada frase em Clarice é uma obra, exata e vibrá�l, cujo
disparo abre fendas para que pensemos fenômenos históricos, �sicos, sensoriais, percep�vos. De gestos. Da
coreografia radical de pensamento. Assim, parece a escritora produzir microperfurações nas palavras, espécie de
escavação, ato de descascar o que só porta cascas, até que encontre a zona mais intensiva de cada uma delas.
Mostra-se, dessa maneira, a impossibilidade de em Clarice Lispector (CL) dirigir-se convencionalmente ao que se
conhece por obra em livro, salvo se considerarmos cada enunciado como uma proposição, termo proposto por Lygia
Clark nos idos de 1960, apontando aí mais do que um suporte, mas um emaranhado de experimentos e experimen-
tações que relatos de experiências. Que a escrita de CL é experimental, que experimenta a sintaxe, que, sobretudo,
nos experimenta, sabemos. O que nos desafia, certamente, são procedimentos que a escritora usa ao fazer uma
incansável busca da palavra-clímax, fazendo de cada parágrafo um bloco de intensidades, elegendo a narra�va como
espaço de invenção e deambulação desses experimentos. Podemos alargar essa frase: é Clarice, e não o inverso, a
eleita pela narra�va poé�ca, no sen�do e no modo que forças, zonas esté�cas e discursivas atraem um corpo
colocando algo aí constantemente em dinâmica. Deixar-se ser escolhido, eleito, parece-nos tão complexo quanto
escolher, pois trata-se de permi�r ser a�ngido por forças, reconhecer porventura a potência daquilo que de certo
modo enquanto afeta, torna-se também afetado; ser o alvo de corpos, matérias, estar na mira daquilo que vem
infinitamente rolando no tempo/espaço, sem ponto de par�da ou chegada.

Designada portanto, cabe à escritora pôr tais formas em movimento, es�cá-las, impedindo à sua maneira que essa
máquina prosaica sobre seu próprio corpo pousada, emperre; cons�tui parte do processo reencaminhar fluxos e
trajetórias, e face a ele, saber sobretudo herdá-lo. Que espécie de herança seria essa? Heranças são, antes de tudo,
posses abandonadas, deixadas à deriva, abandonadas pelos corpos que desapareceram. Ou podemos pensá-las
como restos de natureza vária: �sico-química, alquímica e simbólica que vem atravessando e rolando no tempo
espaço. É preciso acolhê-las sem a pretensão de salvá-las ou erguê-las como monumento, arquivo em que uma
memória ar�s�ca, nacional, cultural estará carimbada, mesmo porque heranças imprimem-se em nós, independen-
temente de nossa vontade; é preciso, diz Derrida, primeiro saber e saber reafirmar o que vem “antes de nós” 2. Só
assim que certo exercício de liberdade torna-se possível. Saber herdar, o que seria isso?

Primeiro, dizer sim ao que quer que seja efeito de herança, apropriar-se do que em nós está riscado da língua aos
gestos. Importante reforçar nesta configuração que não são heranças escolhas do sujeito, ao contrário, são elas que
insistem em nos caçar, criam ao seu jeito formas termodinâmicas, moventes. O sim ao acontecimento que não passa
pelo crivo nosso, que não vem por escolha nossa, parece libertar. Tal gesto desobriga o mundo de oferecer-nos
respostas ou outra natureza de réplica. O ponto que aqui celebramos é como o corpo pode responder ao que lhe
1 AGAMBEM, Giorgio. O Fim do Pensamento. Tradução Alberto Pucheu. Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, UFRJ,
ano VIII, n. 11, p. 157- 159, 2004.
2 DERRIDA, Jacques, ROUDINESCO Elisabeth. De que amanhã..., 2004, p. 13.

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acontece, a qualquer que seja o acontecimento. Ora, o dia a dia não se responsabiliza por ninguém, não seleciona
seus pontos, vias pistas de pouso. Flechado um corpo, torna-se necessário que ele, portanto, responda.

Quanto a reafirmar, trata-se de poder relançar o que se herda para outras direções, dar a essas existências outras
len�dões e velocidades. Propõe o pensador franco-argelino o seguinte: seria preciso pensar a vida a partir das
heranças e não o contrário 3. Ampliam-se assim, enormemente, os legados abandonados pelas culturas uma vez que
primeiro herdo gené�ca, linguís�ca e, espacialmente, o que possui proximidade de minhas prá�cas, mas também
torna-se meu aquilo que em determinada língua e espaços foram elaborados e que devido ao seu vigor e necessida-
de alcançaram-me, para além do familiar e pessoal. Pensar a escrita ou aquilo que em Clarice se escreve, pensá-la ao
mesmo tempo como herdeira de uma mul�dão informe e, sobretudo, um emaranhado, cole�vos, composto de
singularidades de várias ordens, é algo que move esse trabalho. Coloco-me do jeito que posso como herdeiro dessa
escritura, desse tecido lírico. Disso que ao longo de anos amplia, fissura, avoluma o meu viver, arte, pensamento.
Herdamo-nos, então. Há certamente quem assina e há, por sua vez, todos os povos, nomes, delírios, zonas manifes-
tas e em latência que inscrevem-se mais potentemente entre, ao lado de alguns nomes.

Ter coragem para a�var as heranças em alvoroço e sobressaltos, em repouso no nosso corpo, talvez seja a primeira
questão que aqui se imponha para abertura desse trabalho. A coragem para abrir acessos e outras passagens para
isto que Spinoza 4 chama ainda hoje de corpo, isto que não sabemos o que pode, por não termos o domínio e
controle do que ele encontra, aquilo que o a�nge, isto é, de suas afecções. Reconhecemos como coragem (bem mais
uma série de procedimentos do que um afeto), ter coragem de ir simultaneamente criando o caminho a ser trilhado,
enquanto acontece a obra, a�tude vinda de obras de arte contemporânea muitas vezes assumindo o pacto de não
haver projeto, direção e sen�do anteriormente precisos: abre-se mão do saber fazer e decide-se por ir fazendo,
aliando materiais, temas, estratégias oblíquas de composição e mistura, descarrilando tendências esté�cas, es�can-
do liames entre campos de pensamento, todas elas já presentes na escritura clariceana, as muitas escritas de Clarice
Lispector. Não esquecemos de parar. Parar também faz parte do mundo dos movimentos. Este quem que assina esse
diálogo senso-teórico, cosmo-teórico com Clarice foi levado diversas vezes a pensar as afecções do próprio corpo e,
sobretudo, essa relação com tal paisagem. Fragmentos que nos compõem. Chamo aqui por este termo materialida-
des verbais, celes�ais, �sico-químicas, alquímicas, térmicas. Corpos, portanto. Compostos, composições. Este quem
que assina este texto não despreza o poder e as implicações sócio-polí�cas dos encontros. Descobre-se com certo
terror mas com alguma alegria na hora e não em outra, o que de fato importa e arrasta o corpo vivo para outras
nuances de arte, vida e saber. Daí essa impressão de, diante da letra dessa ar�sta, instrumentos tradicionais de
domes�cação de tecidos poé�cos tornam-se insuficientes, pedindo a própria obra que sejam criadas tá�cas de
aproximação que em vez de domá-la, entrem em contato, contaminação e contágio, a fim de ampliar suas linhas,
tomando-os não só como linhas poé�cas, e sim, estranhos fios de alta tensão.

Nesta perspec�va, o que convencionou-se nomear de crí�ca de arte possui no campo do contemporâneo alguns
desafios, pois despedimo-nos da preposição sobre, e assumimos a preposição com cujas noções de comunhão,
aglu�nação e alianças trazem outra maneira de pensar aquilo que cada sujeito encontra. Abrindo mão do domínio e
da transformação do texto em objeto, a obra experimental de Clarice propõe que a aproximação seja através de
procedimentos mais criadores que autoritários, como assim entende-se ainda o papel e a função da crí�ca e arte.

Deixar-se ser a�ngido pelas


rangências e tessituras ao longo da
caminhada, por essa espécie estranha
de poeira mágica.

Poder estar à altura do que passou


e o-que-virá, poder ser o hospedeiro

3 Ibid., p. 14.
4 SPINOZA. É�ca. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autên�ca, 2010.

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ARTIGOS

do que está por vir, esteja vindo,


chegará.

Amplia-se em Clarice por sua vez a noção de obra, escritura, arte contemporânea que pode ser compreendida nesta
perspec�va em dupla vertente temporal: obras relacionadas ao assim chamado tempo presente, atreladas geral-
mente a um marco e ponto de referência e, em seguida, considerar delirantemente obras que alcançam e povoam
nossas paisagens, que convivem, coabitam o nosso tempo, ou seja, plas�cidades que por sua força possuem
habilidade de ler-nos, ler o presente onde nos encontramos, carne, osso e palavra. Contra o uso dos termos pós-mo-
dernidade e contemporaneidade, Jean Luc Nancy decide-se pelo termo de arte hoje, pois o contemporâneo =
disposi�vo histórico-conceitual instala-se como um desqualificador das prá�cas ar�s�cas contemporâneas ao
delinear para elas um território. Ainda assim, conforme vemos, prende-se Nancy a um marcador temporal, hoje,
que, segundo ele, fica insustentável no tempo presente uma vez que obras e prá�cas de arte escapam de qualquer
tenta�va de qualificação. Tal ato, prossegue, de ins�tucionalizá-las através desses marcadores (pós-moderno ou
contemporâneo) surge como estratégia de domes�car aquilo que desliza, não se estabelece em uma história de
determinada categoria esté�ca. Nesta esteira, pensamos a performance dentre as “linguagens” de arte como prá�ca
que consegue escapar desses qualifica�vos como barroco, moderno, contemporâneo inscritos que transformam
categorias esté�cas em espaços disciplinados nas historiografias de arte. Incita-nos a pensar como ela, a performan-
ce, tem resis�do, por quê e com quais estratégias a essas domes�cações5.

Das tragédias á�cas aos pixos em muros de cidades, compõem cada uma de nossas heranças. Portanto, o que se
impõe aqui é: de que modo posso apropriar-me de tal herança traindo-a como forma alegre e potente de preserva-
ção? Entendemos trair no sen�do como gestos de atravessamentos, cujo ranger impede toda tomada, toda vontade
de posse. Como trair amando a coisa, ou ainda mais desafiador, como trair com amor, por amor ao amado, ao que
está instalado e é necessário que se expanda? Trair como um ato violentamente amoroso, amante, para que a coisa
traída se mova, desenhe outras portas e janelas e por essas fissuras inéditas, escape, persista, construa outros
territórios possíveis - e com alguma alegria - siga adiante. “Escolha e ajuntamento não �nham hora certa de começar
nem acabar, durava mesmo o tempo de uma vida”6, diz Clarice.

Para a escritora esse lance de escolher é o ato necessário de quem, sem perceber, também se escolhe, filtra ao
separar grãos, sensações, pensamentos, hábitos (esse emaranhado desdobrável de etcs.) com o qual deseja coexis-
�r. Conforme vemos, torna-se uma passividade a�va. Se por um lado, nascer basta para estar exposto ao que virá,
por outro, vive-se em certo aspecto, em absoluta pobreza, caso não seja dado o sim ao que se tem de herança.
Devido a essa resistência e ignorância, há aqueles que vivem muito pobres toda uma vida, quando se pode medir o
volume e tempo de tal energia. Prefere-se considerá-la através do dilatar de suas forças intensivas, nervos e fios de
al�ssonante tensão. Tais corpos, entretanto, não tomam posse de suas heranças. Como não cons�tuem atributos de
um corpo, deixam-se converter em pasto, plataforma, alvo, canal de escoamento e de afetação. Em vista disso, resta
ao herdeiro assumir-se como obra, obra diante da obra-X. Ar��cios polimorfos diante d’outros. Se entendermos
obra como aquilo que resulta de empenho e ardor, e�mologicamente como um trabalho manual – opera - vê-se
facilmente toda obra como efeito, es�lhaços, resíduos, sobras, es�lhaços. De que ordem de efeitos cons�tui-se uma
obra? E desse encontro páginas de atrito, faíscas, confronto, retomada, quatro mãos, a confirmar quão eró�cos são
os mecanismos da escrita – faz parte da força eró�ca dar liga, isto é, atrair e repelir, atrair acolher anelar expelir;
assim sendo a escrita com sua ar�lharia de sensações, percepções, afetos, processos �sico-químicos. O viver exige
essa ero�cidade, substância magné�ca entre moléculas, entre amantes, o cão e o seu dono, entre texto e leitor.
Nesta perspec�va, textos de Clarice possuem uma força eró�ca que faz com que sejam cada vez mais invocados no
contemporâneo e em outras geopolí�cas. Como tudo que é forte não se entrega à domes�cação, aos códigos e
cadastros, seus escritos convidam paradoxalmente à aproximação, e não ao distanciamento. Entendemos, portanto,
tal potência eró�ca como convocação mul�dimensional de espaços e corpos, possibilidade de instaurar incansavel-
mente novos elos e alianças. Gerar. Desata-se de um lado por necessidade de atar-se a outras camadas, todas

5 Cf. NANCY, Jen-Luc. El arte hoy, Buenos Aires: Prometeo libros, 2014. p. 22.
6 LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de janeiro: Rocco, 1999, p. 99.

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portadoras de alta vitalidade. De uma desesperada vitalidade 7, diz-nos Pasolini Não há modo de reconhecer a
circulação dinâmica e aberta de textos de Clarice entre dis�ntos grupos e gerações senão por meio dessa atração
que restaura corpos e a�va ali alguma faísca, alguma força ainda inibida cuja letra, vocábulos, modos de usar a
sintaxe, desistências de lógicas fáceis de sen�do põem-se em ação e exercício indo mais além, pois con�nuam essas
moléculas sígnicas, fragmentos de vida agindo em qualquer ponto inesperado do leitor, provocando inchaços,
repulsas, exibem a frágil ficcionalidade do estável, furam canais e linhas obstruídas para que a matéria vibrante e
possível inscrita como fóssil em cada corpo, passe.

Como um paradoxo, apenas após esta afirmação ficam viáveis trânsitos e seleções por tessituras linguís�cas e
culturais que não par�cipam de nossa coleção, daí surgem outros laços, anéis, fissuras, mutações, par�lhas. Neste
caso, o sim é às vezes tudo que um corpo tem para seus múl�plos e variáveis encontros. Esse ato de colher o que
fora abandonado, desertado, tal ato de colheita do que está despovoado é o que podemos entender como homena-
gem. Prestar uma homenagem não tem nada a ver com hagiografar processos e histórias de percursos ar�s�cos e
ín�mos. Isto é da ordem da canonização, logo de tá�cas de autorreferenciar-se por meio de códigos e categorias,
tornando-as monumentais e modelares. Procedimentos fracos.

Trata-se de dar hospedagem da maneira que o corpo hospeda um vírus, deixando-o que transforme, altere, expo-
nha, inche seu desenho e, em imediato, no sen�do de dar asilo, do modo que, historicamente, existências a favor da
vida abrigam outras em situação de risco, asilar um sobrevivente, sobrevivente de seu próprio desaparecimento.
Grafa-se aqui grande homenagem à Clarice Lispector. Assumo os riscos. Escrevo o que se segue como se fosse o
primeiro. Como se não �véssemos mediadores e acervo crí�co no decorrer dessas décadas todas. O que provoca
aquele para que sobre ele diga-se algo? Como responde um ao outro e assim trate de povoar páginas e páginas,
pergunta-se quem lê. Um estudo crí�co é antes de tudo uma história de uma provocação. Homenageia-se ao nome
próprio, mãos, que ajudaram a disparar em corpo nosso o que sempre fora nosso e por desleixo não fazíamos uso.
Talvez único critério que sirva para nortear a obras de ar�stas; além de mo�vos para festejar nomes e obras:
aumentar a força de ação de um corpo: fazê-lo disseminar-se: provocar seu poder de riso: explorar suas múl�plas
mortes o máximo do máximo possível nisto que chamamos de vida.saber.arte: reconhecer a possibilidade que, em
qualquer hora, pode-se tombar: rente ao chão, saber da necessidade de, às vezes, apenas o recuo fortalece o salto:
saber perder como aprendizagem dificílima apesar de necessária, portanto, vital: perder às vezes é a chance de ouro
que nos é dada, sem querermos, que se impõe e ordena que, a par�r daquele instante, mudemos defini�vamente
de forma; acolher como alegria total o que pertence somente ao ato de escrever: o escrever apenas: e não o que
esteja fora dele como a literatura e seus �tulos, espaços, sistemas de hierarquias e pertencimentos: escrever mais
como uma amante da escritura bem diferente daquela que toma-se como uma profissional.

Acontece que certa herança deixada, qualquer que seja, pode ser escutada como uma voz de um sobrevivente. Mais
relevante que a forma como o sobrevivente aporta, salta para o meio da estrada ou poço, impõe saber o que fazer
com essa sobrevivência. Seu alegre e espantoso estado de sobrevivente. Ocorre que fica impossível reconstruir
trilhos e pegadas, pois a linha verdadeira é muito apagada, as outras são mais visíveis 8. Escrever em homenagem é
uma prá�ca sobretudo visual, pois pauta-se no gesto de reinventar rastros, elos, ligar pontos e ângulos, surpreender
possíveis sobras, logo muito mais aliada ao desenho e suas materialidades (riscos, grafite, traços, esboços, borrões).

Tal prá�ca visual, paradoxalmente, é convidada a agir sobretudo sobre aquilo que não pode ver, impedindo-se
mesmo de desvelar, descobrir, desvendar. Tais ações são frágeis por pressuporem haver um fundo e raiz onde uma
verdade qualquer seria achada, pega em estado de perplexidade, à disposição de nossos olhos, exausta, à espera de
flagrante e resgate. Como dar então visualidade ao invisível? Em que lugar encontrá-lo? O que não se vê é realmente
singular ou existe mais, se for pluralizado? Como aproximar-se do que tem músculo e ao mesmo tempo, fantasmal?
Nesta perspec�va, o livro visual pretende amplificar (ação sonora) invisibilidades, extrair do invisível mais invisibili-
dades ou o gesto contrário: operar no visível, isto é, sobre o que incide certo quantum de luz, traçar uma linha, um

7 PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac e Naif, 2006.
8 Ibid., p.99.

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ARTIGOS

fio, pousar sua navalha nessa linha do excessivamente visível a tal proporção que nele vaze algo demasiado superfi-
cial, estranho, caudaloso como os ruídos quase noturnos quase ma�nais da galinha (ave que solta suas penas na
poé�ca de Clarice e fica preciosa), animal que recebe um nome, alimento e água a fim de que se es�quem ossos e
engordem sua carne branca. Ave amada, mas cujo amor projetado não a salva do próprio amante, desse amor
amador nada profissional que, em vez de deixar viver, mata. Para que se entenda a questão dos corpos eleitos,
podemos combinar ave e herança em língua clariceana a par�r da oferenda, posto que ambas vivem e ganham
suntuosidade e energia, se levadas ao sacri�cio.

Cabe ao eleito oferecer, ofertar, isto é, certa capacidade de juntar algo de si e convidar que outrem a vejam, vascu-
lhem-na, fissurem-na invocando simultaneamente essa troca: via nos outros o que os outros tinham juntado deles
mesmos; o ser sabia como era difícil descobrir a linha apagada do próprio destino, como era difícil não perdê-la
cuidadosamente de vista, cobri-la com o lápis, errando, apagando, acertando 9 . Iniciado o jogo, os eleitos são
escolhidos aleatoriamente por via de combinações, interferências e cruzamentos cujas pontas estão interditadas,
tornando inacessíveis pois a chegada numa origem e começo. Vive-se então com tais efeitos vindos de um equívoco
e o eleito (e por equívoco o ser foi eleito 10) portanto, si�ado. É nesta esteira aos sustos & saltos e em dispersão que
aqui, cacareja-se.

9 Ibid., p. 100.
10 Ibid., p. 100.

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Referências
AGAMBEM, Giorgio. O Fim do Pensamento. Tradução de Alberto Pucheu. Terceira Margem, Revista do Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Literatura, UFRJ, v. 8, n. 11, p. 157-159, 2004.

DERRIDA, Jacques, ROUDINESCO Elisabeth. De que amanhã..., Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

Cf. NANCY, Jen-Luc. El arte hoy, Buenos Aires: Prometeo libros, 2014.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac e Naif, 2006.

SPINOZA. É�ca. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autên�ca, 2010.

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ESPAÇOS URBANOS
na literatura baiana contemporânea
Milena Guimarães Andrade Tanure *
Resumo: A crí�ca literária tem demarcado o modo como o texto literário tem sido u�lizado
para tentar recuperar o que perdido, tendo o poder de conferir o reconhecimento e o
sen�mento de estabilidade e pertencimento, razão pela qual as representações memoria-
lís�cas têm ganhado vulto. Pensando nisso, o presente ar�go propõe-se a pensar a
produção literária contemporânea brasileira a par�r de um recorte regional, o Estado da
Bahia e, mais especificamente, as imagens da cidade de Salvador que são por ela
representadas. Ao se representar os espaços �sicos, cons�tuem-se espaços da memória
que significam não pela sua própria existência, mas pelas relações humanas que são neles
travadas e as vivências que deixam marcas na própria cidade e na memória. Dessa forma, o
intento é analisar o modo pelo qual, a par�r de representações do espaço urbano, o texto
literário baiano é capaz de engendrar a leitura de memórias subje�vas e cole�vas. Par�ndo
do conceito de memória, as considerações se desenvolvem no intuito de inventariar esse
mapa memorialís�co a par�r das lembranças das personagens em uma cidade de Salvador
da atualidade e de um dado passado. Como delimitação do corpus, cotejaremos as
produções literárias dos escritores Carlos Ribeiro e Fábio Mandingo a fim de destacar o
modo pelo qual ambos projetam uma dada imagem da cidade de Salvador, a par�r de
espaços muito bem demarcados, e se entrelaçam pelos fios da memória que dão a ver não
apenas espacialidades, mas as experiências que dão forma e cor às ruas, esquinas e vielas
que se encenam nas narra�vas. Para tanto, as considerações apresentadas desenvolvem-se
a par�r do entrecruzamento de leituras dos textos literários, mas também históricos e
sociológicos, como de Lejeune (2008), Gagnebin (1997), Arfuch (2010) e Halbwachs (1990),
Pesavento (1999), Duarte (1989) e Gomes (1999). A par�r de tais leituras, é possível pensar
categorias como memória, espaço urbano e memória cole�va a fim iden�ficar o modo pelo
qual a narra�va literária é capaz de permi�r que se estabeleça a relação entre memórias
subje�vas e cole�vas a par�r da representação do espaço urbano.

Palavras-chave: Espaço urbano. Literatura baiana. Memória.

Abstract: Literary criticism has demarcated the way in which the literary text has been used
to try to recover what was lost, having the power to confer recognition and a feeling of
stability and belonging, which is why memorialistic representations have gained importan-
ce. With this in mind, this article proposes to think about contemporary Brazilian literary
production from a regional perspective, the State of Bahia and, more specifically, the
images of the city of Salvador that are represented by it. When representing physical
spaces, memory spaces are constituted that signify not by their own existence, but by the
human relationships that are held in them and the experiences that leave marks in the city
itself and in memory. Thus, the intent is to analyze the way in which, based on representa-
tions of urban space, the Bahian literary text is able to engender the reading of subjective
and collective memories. Departing from the concept of memory, considerations are
developed in order to inventory this memorial map based on the characters' memories in a
city in Salvador today and a given past. As a delimitation of the corpus, we will compare the
literary productions of writers Carlos Ribeiro and Fábio Mandingo in order to highlight the
way in which both project a given image of the city of Salvador, from very well demarcated
spaces, and intertwine through the threads of memory that they show not only spatialities,
but the experiences that give shape and color to the streets, corners and alleys that are
staged in the narratives. Therefore, the considerations presented here develop from the
intersection of readings of literary texts, but also historical and sociological ones, such as
Lejeune (2008), Gagnebin (1997), Arfuch (2010) and Halbwachs (1990), Pesavento (1999) ),
Duarte (1989) and Gomes (1999). From such readings, it is possible to think of categories
such as memory, urban space and collective memory in order to identify the way in which
the literary narrative is able to allow the establishment of the relationship between
subjective and collective memories from the representation of urban space.

Key-Words: Urban space; Bahian literature; memory.

* Doutor em Literatura e Cultura. Professor dos Cursos de Letras e Cinema – UNIJORGE e do Departamento de Letras e Artes – UEFS..

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ARTIGOS

Considerações Iniciais
As narra�vas literárias como estruturas textuais não prescindem das representações dos espaços. Neste sen�do, o
corpo urbano talvez seja um dos mais recorrentes na literatura brasileira contemporânea e tais narra�vas têm a
capacidade de engendrar representações significa�vas da cidade e do homem de seu tempo. Assim, pode-se
destacar que as representações literárias do tecido urbano são capazes de ofertar uma nova visão da cidade a par�r
das subje�vidades que são apresentadas, seja quando a cidade é o espaço em que se desenvolve a narra�va,
exercendo, muitas vezes, importante elemento para a iden�ficação de sen�dos, ou própria personagem da obra.
Para a discussão que aqui se propõe, o propósito central é pensar a cidade a par�r da ó�ca da representação
literária. A literatura, como um dos instrumentos com que se faz leituras da cidade, representa uma das possibilida-
des de se delinear a cons�tuição e o desenvolvimento do espaço urbano. Assim, é possível [...] pensar a literatura
como uma leitura específica do urbano, capaz de conferir sen�dos e resgatar sensibilidades aos cenários citadinos,
às suas ruas e formas arquitetônicas, aos seus personagens e às sociabilidades que nesse espaço têm lugar (PESA-
VENTO, 1999, p. 10).

Nesse cenário de representações, o espaço urbano e sua história podem ser apresentados pelo texto literário, seja
como pano de fundo em que se desenvolve a narra�va ou como própria personagem de onde emergem as histórias
a se narrar. Barthes (2001, p. 224) afirma que “a cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma
linguagem: a cidade fala a seus habitantes, falamos nossa cidade, a cidade em que nos encontramos, habitando-a
simplesmente, percorrendo-a, olhando-a”.

O presente trabalho, lançando luz em uma produção mais contemporânea da literatura baiana, propõe-se a colocar
em cena a produção literária do professor universitário, jornalista e escritor Carlos Ribeiro, bem como a do professor
municipal e também escritor Fábio Mandingo, a fim de avaliar a representação de uma cidade de Salvador em suas
narra�vas marcadas por um tom memorialís�co que diz respeito não apenas às memórias individuais das persona-
gens, dos escritores ou de um provável leitor das narra�vas, mas também às memórias cole�vas que se desvendam
a par�r da representação do espaço urbano. Na prosa de Ribeiro e de Mandingo espaços urbanos ganham significa-
do como lugares de memória nos quais os personagens viveram experiências singulares. Em algumas dessas
narra�vas, há um tom de lamento em razão da perda de um tempo vivido e que se foi em meio às demolições e
transformações ocorridas nos processos de modernização, ou em decorrência do próprio decurso do tempo. Em
outras, por sua vez, há um tom nostálgico pela perda do espaço, mas também da infância e das prá�cas de sociabili-
dade de um dado momento.

Da obra de Carlos Ribeiro nos valeremos do conto O visitante invisível, do livro Contos de Sexta-feira, e passagens do
romance O chamado da noite que dialogam com o conto anteriormente selecionado. Ribeiro faz parte de uma
tradição literária que promove uma relação entre a criação ficcional e as memórias subje�vas e cole�vas. Entre as
marcas dessa produção de memórias, em suas narra�vas têm-se tanto as representações de um tempo pretérito,
quanto a presença de um narrador ou personagem que retoma elementos do passado em razão de um estranha-
mento diante dos espaços e prá�cas do presente. Dessa forma, ao perambular pelas ruas e esquinas das narra�vas,
os narradores e personagens de Ribeiro experimentam um sen�mento de desconforto ao se depararem com as
ausências das caracterís�cas de uma cidade de Salvador do passado e a par�cular solidão do homem contemporâ-
neo em razão da perda de an�gas prá�cas de sociabilidade. De modo geral, é possível iden�ficar, ao longo da obra
de Ribeiro, personagens que são escritores, professores ou do universo universitário e os espaços urbanos que
majoritariamente aparecem são um centro an�go de Salvador, com destaque para o Pelourinho, os cinemas de rua
de outrora, o Colégio Central, localizado na avenida Joana Angélica, a avenida Sete, a avenida Carlos Gomes e, em
outro sen�do, a praia de Itapuã.

Da produção de Fábio Mandingo, por sua vez, nos valeremos do seu terceiro e mais recente livro, Muito como um
Rei, o qual é composto por sete contos ambientados em uma Salvador de uma juventude livre nas deambulações de
seus narradores e personagens por espaços excêntricos (no sen�do de exteriores ao centro), como Caminho de

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Areia, Massaranduba, Lobato, Cantagalo, Ribeira e o Dois de Julho, além do Pelourinho, mas com outra conformação
que não a apresentada por Ribeiro. Gírias, sons, rodas de capoeira e outras espacialidades e vivências vão se
revelando nas narra�vas que nos levam a “espaços da cidade de Salvador que não são tão visíveis do ponto de vista
da orla que é frequentada por turistas e pela classe média” (CRUZ, 2017). Dessa forma, nessas narra�vas, para além
de dor, miséria, falta de horizonte e agressão policial, revelam-se as memórias de uma dada infância na qual havia
chão de cimento vermelho, “touca de meia-calça na cabeça de todas as mulheres, que não �ravam pra nada”, filhos
de mulheres e homens cachaceiros, tubaína, festas de debutantes de “boa família”, no Clube Itapagipe e outras
espacialidades que não as centrais, como alguns bairros periféricos de Salvador.

Para a discussão que aqui se deseja delinear, significa�vo é o fato de que tanto nas produções selecionadas de
Ribeiro como na de Mandingo as retomadas memorialís�cas advêm, sobretudo, a par�r de fatos da infância que são
ambientados em uma Salvador de um outro período, entre as décadas de 60 e 80, principalmente. Tais narra�vas
desenvolvem-se, em especial, a par�r do gênero conto e, apesar de tal gênero se fazer presente em vários momen-
tos da história da literatura nacional, hoje, ele passa a ter uma roupagem muito específica e caracterís�ca de seu
tempo. Nessas narra�vas, o retrato pintado do final do século XX e início do século XXI apresenta o homem com
suas limitações a apreensões em suas lutas diárias, destacando, até mesmo, suas pequenas vitórias diante de uma
sociedade esmagadora (ARRUDA, 2012). Como assevera Ângela Maria Arruda (2012, p. 225), “não há mais uma
preocupação como �nha o humanismo liberal, com grandes feitos e soluções. Hoje, o conto está centralizado nos
pequenos (ou grandes) problemas individuais, que nem sempre têm soluções, como são também na realidade”. As
narra�vas de Ribeiro e Mandingo projetam-se a par�r desse cenário na medida em que, ainda que apresentem em
seu bojo problemas mais universais, como a violência policial e as consequências de uma modernização do espaço
urbano, há um destaque dado aos fatos �dos como menores que levam a pensar contextos mais amplos, como
ocorre no conto Infanto Juvenil IV, de Mandingo, no qual é narrada a prá�ca de se jogar futebol de botão, mas isso
se coloca como ensejo para se pensar temas múl�plos, como as prá�cas de sociabilidade de um dado período.

Nesse sen�do, cabe sinalizar que se coloca como marcante nas narra�vas de Ribeiro e Mandingo a presença de um
memorialismo recorrente que abarca tanto memórias individuais quanto cole�vas. Nesse sen�do, Jaime Ginzburg
(2012) iden�fica entre tópicos constantes e interesses recorrentes da literatura contemporânea a redefinição entre o
público e a vida privada. Assim, temas normalmente �dos como in�mistas ou universais, como o sofrimento
amoroso, são tratados a par�r de uma perspec�va inscrita na história com foco nos conflitos e posições que se
apresentam no contexto social (GINZBURG, 2012). Essas memórias que se cruzam nas narra�vas de Ribeiro e
Mandingo surgem a par�r da representação de espaços da cidade de Salvador que se revelam em sua produção
literária.

Tal caracterís�ca, por sua vez, também localiza esses escritores em uma dada tradição que tem se valido de um texto
da cidade como via de criação de memórias e de denúncia ou pesar por uma imagem do espaço urbano que se
perdeu, sobretudo em razão das ondas de modernização. Nesse sen�do, Idilva Maria Pires Germano (2009) afirma
que a crí�ca literária brasileira que tem se voltado para uma produção do final do século XX, cujo tema central é a
cidade, e nesse grupo ela destaca Alexandre Faria e Renato Cordeiro Gomes, cunhou a noção de “literatura de
subtração”. Segundo Germano (2009), tal conceito compreende uma literatura na qual figura a perda da cidade ideal
(racionalizável, controlável e unificável) e do discurso moderno. Isso ocorre “seja descrevendo caleidoscopicamente
as cenas da vida urbana, sua heterogeneidade, as cruezas da violência e do medo e os fragmentos do presente
avassalador, seja revisitando nostalgicamente a cidade perdida e o trabalho da memória e do sonho” (GERMANO,
2009, p. 427). Assim, “os textos evocam a distopia, o sen�do penoso de se viver na metrópole e de dizê-la” (GERMA-
NO, 2009, p. 427). Nesse cenário, figuram as produções literárias de Carlos Ribeiro e Fábio Mandingo e a discussão
que aqui se propõe empreender obje�va pensar uma ligação entre a vida urbana e a vida subje�va nas narra�vas a
par�r da representação da cidade de Salvador.

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ARTIGOS

Diálogos urbanos: errâncias, experimentações e memórias nas cidades de Salvador de Ribeiro e Mandingo
L

A grande presença da rememoração na escrita literária contemporânea merece ser pensada e, para tanto, é preciso
se reconhecer que tal prá�ca compreende fenômeno que não se evidencia apenas na literatura. Conforme afirma
Andreas Huyssen (2000), a emergência da memória como uma das preocupações centrais das sociedades ocidentais
é um dos mais surpreendentes fenômenos culturais e polí�cos da atualidade. Contrastando com o privilégio
ofertado ao futuro no início do século XX, tal fenômeno se caracteriza por uma volta ao passado e desde a década
de 1970, na Europa e nos Estados Unidos, tem sido possível observar uma série de prá�cas memorialís�cas, tais
como a restauração de velhos centros urbanos, o boom das modas retrô, a nostalgia sendo comercializada em
massa, o crescimento de documentários históricos na televisão, etc. Entre tais prá�cas de culto ao passado, Huyssen
(2000, p.14) cita, ainda, a literatura memorialís�ca e confessional, assim como o “crescimento dos romances
autobiográficos e históricos pós-modernos (com as suas di�ceis negociações entre fato e ficção)”.

No mesmo sen�do, Pierre Nora (2009) afirma que o mundo está experimentando a emergência da memória.
Segundo o historiador, os países, povos e grupos sociais, ao longo dos úl�mos vinte ou vinte e cinco anos, passaram
por profundas transformações no tradicional modo como se relacionavam com o seu passado. “[...] é como uma
onda de recordação que se espalhou através do mundo e que, em toda parte, liga firmemente a lealdade ao passado
– real ou imaginário – e a sensação de pertencimento, consciência cole�va e autoconsciência” (NORA, 2009, p.6).
Nora (2009, p.7) assevera, ainda, que esse movimento generalizado e enraizado se ancora em duas principais razões.
Uma delas diz respeito ao que ele denominou de “democra�zação da história”, que compreenderia uma consequên-
cia da emancipação e libertação de povos que passaram a recuperar seu passado e afirmar sua iden�dade. A outra
razão diz respeito ao fenômeno por ele denominado “aceleração da história”. Segundo ele, isso significa dizer “que o
fenômeno mais con�nuo e permanente não é a permanência e a con�nuidade, mas a mudança, e uma mudança
que está afetando tudo mais e mais rapida¬mente” (NORA, 2009, p.7). Uma incerteza do futuro tem sido capaz de
criar no presente uma obrigação de recordar e o dever de que “o presente acumule assiduamente, de maneira
rela�vamente indiferenciada, todos os traços visíveis e todos os sinais materiais que cons�tuem evidência e que vão
fornecer evidência do que uma nação, um grupo, uma família é ou terá sido”. Nesse contexto, em que há um
obscurecimento do passado e do futuro, tem-se a recordação como caracterís�co elemento do tempo atual, o
“tempo da memória” (NORA, 2009, p.7).

A par�r da compreensão aqui apresentada, de que vivemos uma época de grande emergência da memória, perce-
be-se que “não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós representamos os nossos papéis
neste processo. É como se o obje�vo fosse conseguir a recordação total” (HUYSSEN, 2000, p.15). Nesse cenário, as
narra�vas de Mandingo e de Ribeiro parecem assumir um papel de, pelas suas construções, recuperar algo que
perdido, como memórias de um tempo, espaços urbanos que se transformaram e prá�cas de sociabilidade de um
outro período.

Nas narra�vas de Ribeiro e de Mandingo aqui selecionadas, o homem está na cidade assim como a cidade está no
homem. Há que se perceber, contudo, que isso não se dá apenas com aquele que, nas teias da narra�va, conta a si,
mas com todos aqueles que, de algum modo, se relacionam com os mesmos ambientes e, pela narra�va, rememo-
ram espaços e as vivências neles experimentadas. Isso se deve ao fato de que tais memórias, uma vez se apresen-
tando diretamente relacionadas às mudanças sofridas pela cidade de Salvador, representam memórias de cunho
não apenas individual, mas também cole�vo, razão pela qual é relevante se pensar como se opera esse enlace. Para
tanto, contudo, é preciso reconhecer que, conforme assevera Maurice Halbwachs (1990), a memória não compreen-
de construção fisiológica individualizada em cada ser humano, mas uma construção social. Sendo assim, ela deve ser
compreendida como fenômeno social e cole�vo, ou seja, “como fenômeno construído cole�vamente e subme�do a
flutuações, transformações, mudanças constantes” (POLLAK, 1992, p. 201). Pensando os elementos cons�tu�vos da
memória, individual ou cole�va, Michel Pollak (1992) afirma que ela não diz respeito à vida �sica de uma dada

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pessoa, uma vez que é, em parte, herdada. Ademais, ela sofre flutuações em decorrência do momento em que está
�� sendo ar�culada. Sendo assim, “a memória é um fenômeno construído”, de modo consciente ou não, e é, ainda, “um
elemento cons�tuinte do sen�mento de iden�dade, tanto individual como cole�va, na medida em que ela é
também um fator extremamente importante do sen�mento de con�nuidade e de coerência de uma pessoa ou de
um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992, p. 205, grifo do autor).

Pensando sobre a memória cole�va como formadora de um sen�mento de iden�dade e a necessidade de manuten-
ção dos espaços que remetem a lembranças sociais, Maurice Halbwachs (1990) iden�ficou que a memória cons�tui-
-se conjunto de recordações socialmente construídas que ultrapassam o âmbito individual. Fazendo uma leitura de A
memória coletiva de Halbawachs, Marlise Giovanaz (2007, p. 237) evidencia o modo como o sociólogo francês
coloca em cena que a manutenção da memória cole�va dos cidadãos requer uma preservação dos espaços.

O autor ressalta que a permanência e a estabilidade dos objetos materiais que nos cercam e com os quais
estamos em contato diário nos propicia um equilíbrio mental, como se fosse uma sociedade silenciosa e
imóvel, estranha às nossas transições e mudanças, proporcionando-nos uma sensação de ordem e de
con�nuidade. O nosso entorno material conserva nossas marcas e a de nossos mais queridos, lembram-nos
fatos importantes de nossa vida individual e estão associados à memória de nosso grupo. Todo espaço
habitado recebe as marcas dos indivíduos que nele transitam. Os quarteirões no interior da cidade, bem como
as casas que os cons�tuem, estão também ligados ao solo, como as árvores, os rochedos e as montanhas.

Nesse sen�do, subjaz a tais afirmações o fato de que ao indivíduo interessa a manutenção dos espaços públicos
cons�tu�vos das memórias, uma vez que, cons�tuindo-se a memória, cons�tui-se a si. Há que se perceber, ainda,
que esse não é um tema recente, uma vez sendo “subjacente à própria condição humana, à medida que suas raízes
se fundam nas necessidades de autoconfirmação e no medo. O impulso à autoconservação nasce do medo mí�co da
perda do próprio eu, medo da morte e da destruição” (DOURADO, 1989, p. 65, grifo do autor).

Pensando essa manutenção dos espaços urbanos para a cons�tuição do sujeito, cabe par�rmos para a análise do
conto O visitante invisível, de Ribeiro, a fim de perceber como ao longo na narra�va é possível aferir um tom de
angús�a e um retorno cíclico ao espaço em que se viveu expressivas experiências. Isso é iden�ficável, por exemplo, a
par�r da presença do mesmo trecho no início e no final da narra�va: “Escuta. Façamos de conta que você possa
tornar-se invisível. E que possa fazer uma viagem no tempo. Você desce, agora, a ladeira do Pelourinho, vê? É um dia
qualquer de 1963” (RIBEIRO, 2010). A repe�ção sugere a angús�a por aquilo que se perdeu e nos remete a um
eterno retorno aos espaços que já não mais são como no passado. Ainda que desintegrados os espaços, a criação
dessas memórias se revela via de manutenção daquilo que fincou raízes no imaginário do narrador.

No conto, o visitante que narra e o menino que é observado se entrelaçam como se um �vesse criado o outro e
temporalidades dis�ntas se cruzam fantasiosamente. Nesse sen�do, é como se o narrador visse a si em um tempo
passado. Elaborando o conceito de lembrança encobridora, Freud (1899) evidencia que, na maioria das lembranças
importantes, aquele que rememora, na recordação, vê-se como criança e está consciente de que tal criança é ele
mesmo. Apesar de tal consciência, contudo, aquele que lembra “vê essa criança tal como a veria um observador
externo à cena”. Na narra�va, isso se faz emblemá�co, uma vez que aquele que rememora vivências da infância
convida o leitor para, silenciosamente e fazendo de conta que se é invisível, adentrar os caminhos da memória e veja
a si, em uma residência familiar, em um ano específico, 1963.

Em “O visitante invisível”, o narrador que conduz a retomada memorialís�ca olha para si, de fora da vivência
rememorada, e se vê criança a brincar em sua casa em meio aos elementos �sicos que, recons�tuindo um espaço
significa�vo da infância, compõe a lembrança que é construída. Nesse ponto, é válido observar que “sempre que
numa lembrança o próprio sujeito assim aparecer como um objeto entre outros objetos, esse contraste entre o ego
que age e o ego que recorda pode ser retomado como uma prova de que a impressão original foi elaborada”

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ARTIGOS

(FREUD, 1899, p. 189). Como assevera Freud (1899, p. 189), a reconstrução de uma lembrança da infância evidencia
o caráter cria�vo da memória, uma vez que tal cena “não pode ser uma repe�ção exata da impressão originalmente
recebida, pois, na época, o sujeito estava em meio à situação e não prestava atenção a si mesmo, mas sim ao mundo
externo”.

No conto de Ribeiro, tal como assinala Freud (1899, p. 179) a propósito das lembranças infan�s, apresenta-se um
conteúdo psíquico que aparece em lugar de outro; assim, “os elementos essenciais de uma experiência são repre-
sentados na memória pelos elementos não essenciais da mesma experiência”. Neste sen�do, em O visitante
invisível, têm-se os elementos espaciais no conto, os quais se revelam primordiais para se recons�tuir locais em que
foram vividas significa�vas experiências e que são recons�tuídos pela memória.
Há que se observar, ainda, que o ato de recons�tuir o passado é conduzido no presente, havendo a retomada do
passado a par�r das referências construídas no tempo atual.

Nossas lembranças infan�s mostram-nos nossos primeiros anos não como eles foram, mas como nos
apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos do
despertar, as lembranças infan�s, como nos acostumamos a dizer, não emergiram; elas foram formadas nessa
época. (FREUD, 1899, p.189, grifo do autor)

A voz que se enuncia no conto convida a um passeio por vivências e espaços do passado. Já nas primeiras linhas, a
narra�va indica o centro histórico de Salvador como o ambiente a par�r do qual são desvelados sen�mentos e
vivências. Esse retrato do centro, por sua vez, cria e recria uma imagem da cidade que se assemelha à construção de
Bahia propagandeada pela mídia: o Pelourinho como metonímia da Bahia em que sinos tocam nos ares finos dessa
velha Salvador. Desse modo, ainda associada ou representa�va de uma sacralizada imagem de Bahia e do Pelouri-
nho, bairro an�go e um dos mais emblemá�cos do centro histórico, as cenas que são cons�tuídas ao longo da
narra�va indicam certa aproximação a uma representação de Bahia sagrada, mí�ca e sincré�ca. Não há um desta-
que ao fato de esse espaço ter sido, em certo sen�do, abandonado pelo poder público e passar por constantes
processos de degradação. O conto, ao descrever as vielas, gostos e cheiros sacralizados no imaginário popular, expõe
uma conformação �sica e social do Pelourinho no final dos anos 1960 ainda marcada por uma determinada sociabili-
dade com trocas subje�vas mais ín�mas e experiências familiares, mas já sinaliza um processo de abandono pela
elite burguesa que começara a tomar novos espaços da cidade.

No conto O visitante invisível há, ainda, uma relação entre as memórias urbanas e subje�vas. Desse modo, apresen-
ta-se para o leitor uma série de imagens que integram a história da cidade, como a ladeira do pelourinho, a janela de
um sobrado, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, casarões “velhos e desbotados” e o edi�cio Bola
Verde. Revelam-se, ainda, elementos ín�mos que desvendam as feições singulares do núcleo familiar, como uma
an�ga geladeira GE, uma mulher que arruma um quarto, um menino que brinca, livros na estante, “travessas de
farofa de ovo com manteiga, arroz, carne, leite, café e deliciosas fa�as de parida” (RIBEIRO, 2010, p. 22). Os tecidos
da memória são responsáveis por entrelaçar a história subje�va e urbana na formação de um único corpo narra�vo.
Esse mesmo cenário, um apartamento velho no Pelourinho, que interliga a conformação urbana do an�go espaço e
as memórias subje�vas de um dado personagem – ou do leitor que com esse espaço tenha se relacionado – se
encontra no romance O chamado da noite. Nessa narra�va, um homem de meia idade, que em seu trânsito pelas
ruas de Salvador constrói suas memórias, revela essa mesma centralidade urbana e as singularidades cole�vas e
subje�vas a par�r do bairro do Pelourinho que recria.

A terra do Prestes João era aquele apartamentozinho apertado no Taboão onde nas manhãs de domingo eu
me reunia com minha mãe e o meu irmão mais velho, e as minhas �as, para comer feijoada e beber mirinda. E
o que mais me fascinavam eram aqueles líquidos mágicos com seus nomes estranhos: mirinda, crush, grape�,
fratellivi�a, enfim, que comprávamos no armazém que existe até hoje, na bola verde, em frente àquele edi�cio

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velho, caindo aos pedaços, com vista para lugar nenhum ou para uma rua suja e decadente que eu não via
naquele tempo, porque tudo o que eu via em volta de mim era o mistério. De forma que da janela eu podia
enxergar ao longe os desertos do Congo e as savanas do Sudão; o Pacífico furioso; a imensa noite pré-histórica
onde Turok enfrentava com o inseparável arco e flecha os monstros abissais; a paisagem misteriosa de Opar,
na qual Tarzan chegava, capturado por uma aranha voadora gigante ao palácio da rainha má que lhe oferecia o
reinado em troca da sua alma. (RIBEIRO, 1997, p. 46)

Mais uma vez tem-se a figura do infante a par�r das lembranças e do ato de rememorar que cria e recria an�gos
espaços, sujeitos, objetos, situações e reelabora as próprias imaginações infan�s. Desse modo, são retomadas
an�gas prá�cas, como a reunião familiar aos domingos, os refrigerantes que marcaram uma época e a existência dos
an�gos armazéns, hoje, em sua maioria, subs�tuídos pelas grandes redes de supermercados. Percebe-se, ainda, que
nessa passagem, diferente do que ocorre em O visitante invisível, tem-se um confronto entre o cenário do passado e
o da atualidade. O personagem que narra revela um panorama contemporâneo no qual uma das marcas mais
expressivas é o da degradação de edi�cios velhos e caindo aos pedaços e ruas sujas e decadentes. No entanto, se
isso já exis�a na época rememorada, era estranho ao menino que naquele espaço construíra suas fantasias.

A par�r de tais leituras, não se pode negar que, em Ribeiro, as representações do centro histórico de Salvador,
sobretudo do bairro do Pelourinho, recriam o ar misterioso, sacralizado e até um tanto estereo�pado do que se
convencionou chamar de cidade da Bahia1. Nas narra�vas de Mandingo, por sua vez, uma leitura apressada poderia
supor que uma escrita periférica colocaria em cena uma periferia marcada por dor, miserabilidade e violência. Os
crí�cos da literatura brasileira contemporânea, tais como Karl Schollhamer e Beatriz Rezende, têm sinalizado que
tais narra�vas são essencialmente urbanas e, falar da cidade de hoje, é falar, majoritariamente, sobre as violências
dos espaços urbanos. Relaciona-se a isso o fato de que, a par�r do espaço de onde surge uma literatura dita periféri-
ca ou marginal, surgem certos estereó�pos de que a escrita contemporânea que emerge desses espaços daria a ver
quase que absolutamente, ou em demasia, cenas de violência. Nesse ponto, a ideia seria de que, nas narra�vas de
Mandingo, pelas suas experiências “de dentro” de um dado pelourinho, por exemplo, as imagens de violência
seriam as mais marcantes ou presentes. Uma leitura apressada poderia supor isso ao re�rar a seguinte passagem do
conto Infanto Juvenil V:

O Olodum dignificava o brega, dava uma direção ao mangue, era o que eu sen�a. O co�diano era sempre um
inferno de violência e sexo e sangue quente escorrendo entre as pedras e mau cheiro de merda e urina.
Fumaça de lixo queimando dentro das carcaças dos casarões em ruínas, barulhos de bolas de sinuca batendo,
cachaça sendo jogada na rua pro santo. Bitelo foi morto pelo melhor amigo com golpes de faca de cozinha na
hora de dividir um roubo, Dico foi preso com maconha na subida do São Miguel e apanhou tanto que teve o
baço estourado por um pisão de coturno, Clarinda perdeu um dedo na briga com Lídia Brondi, a traves�, que
tava pegando o marido dela... vixe... Dois-Mundo bateu em dois polícia que tavamarregando a mesa de bicho
dele e andava meio sumido da área”. (MANDINGO, 2015, p. 82-83)

De fato, nas narra�vas de Mandingo não existe um mascaramento da realidade di�cil que pode se apresentar para o
sujeito em condições periféricas, como na passagem em que aparece a seguinte reflexão: “Às vezes sua mãe é
somente aquele corpo arrastado no asfalto, pendendo dos fundos de uma viatura. (MANDINGO, 2015, p. 25)”. Há
que se perceber, no entanto, que as narra�vas nos oferecem mais do que isso, dando a ver memórias de infâncias,
espaços e sociabilidades desses espaços marginalizados, sobretudo, pelo poder público. Não se quer com isso
obliterar a relevância dessas escritas como possibilidades de denúncia pela via ficcional, mas sinalizar a existência de
algo que está para além disso.

Na esteira do pós-estruturalismo, as novas formas de pensar a literatura têm dado a ver, sobretudo entre os séculos
XX e XXI, sujeitos e obras que, durante muito tempo, foram silenciados pelo sistema literário canônico. Os estudos
da professora Dalcastagnè (2012) nos possibilitam pensar realidades que, muitas vezes, foram inviabilizadas e

1 Tal expressão, representa�va do modo como ficou conhecida a cidade de Salvador até o século XX, sugere o destaque da cidade no cenário baiano e foi u�lizada
por muitos ar�stas como Jorge Amado, Carybé, Piere Verger e Caymmi, todos eles, nos dizeres de Wan-Dall Junior (2013, p.4) a par�r das colocações de
Drummond (2012, p.5), responsáveis por ampliar e difundir “uma iden�dade da cidade de Salvador, este�zando o Centro Histórico e a ‘cultura mes�ça’
do povo baiano”.

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ARTIGOS

silenciadas por questões étnicas, de classe ou de gênero. Dando espaço e notoriedade às produções contra hegemô-
nicas ou marginais, o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC), sob regência de Dalcastag-
nè (2012), apontam a ainda pouco equânime imagem nacional a par�r de representações literárias que não atentam
para a diversidade brasileira.

A abertura de espaço para escritas diversas das canônicas possibilita perceber narra�vas outras que dão a ver faces
diversas da cidade e de experimentação do urbano. Sendo assim, se dentro do cânone surge, em especial, uma
Salvador com suas regiões centrais e sacralizadas, como o Pelourinho, o Campo Grande, a Avenida Sete de Setembro
e as novas espacialidades centrais, como a Pituba; as escritas das margens dão a ver novas configurações do espaço
urbano, como os bairros fora do centro e as suas formas de vivência. Nesse sen�do, percebe-se que o sujeito que
transita por essa cidade que não lhe é acessível de forma igualitária, mas sim desigual, desvela as suas leituras do
espaço urbano e, portanto, deixa ver outras imagens de cidade. Pensando sobre isso, Dalcastagnè (2015, p. 99-100)
afirma que nessas narra�vas

temos essa tenta�va de reconfiguração da paisagem urbana, quando as pedras da cidade são deslocadas pelo
movimento das personagens. É desse atrito que nascem novas histórias, trazidas por corpos socialmente construí-
dos para ocupar outros espaços. Daí a importância esté�ca e polí�ca de seu trânsito, porque apesar de toda hierar-
quia estabelecida nas grandes cidades, apesar de todo esforço de exclusão empreendido pelas elites dominantes –
seja no mundo concreto, seja no âmbito das representações – essa passagem, e sua narra�va, transformam o
espaço que tocam, promovendo uma espécie de alargamento do universo dos possíveis.

A par�r dessas projeções se revelam outras imagens da cidade com suas mazelas, exclusões e com as marcas da
violência a par�r de outro prisma, além de outras lógicas de experimentação esté�ca e ar�s�ca do urbano, e é nesse
cenário que figura a produção de Fábio Mandingo.
Em Muito como um rei, as memórias de seus narradores, e talvez até dos leitores que, de algum modo, dialoguem
com aquelas espacialidades ou experiências, emergem a par�r dos espaços urbanos. Sendo assim, as memórias vão
sendo (re) criadas ao longo de toda a leitura do livro: há a brincadeira de jogar futebol de botão, as castanhas
assando no quintal, a única casa com televisão na qual todos os meninos se amontoavam para ver filmes, o Clube
Itapagipe e os namoros escondidos.
Se em O visitante invisível, de Carlos Ribeiro, havia uma frase a se repe�r que evocava um eterno retorno ao espaço
do passado, em Infanto Juvenil IV, a narra�va de Ribeiro reitera a frase “A janela ficava aberta, podia dormir aberta
nessa época...nessa época” (MANDINGO, 2015, p. 53). Aqui, já há uma quebra do esperado: não apenas o discurso
de uma dada elite ou da classe média evoca um passado seguro e no qual não havia a violência da contemporanei-
dade, o discurso periférico também relembra um período marcado por menor violência, ou também marcado pela
inocência infan�l que não atentava para a realidade em que se vivia.
Além disso, para além de cenas do espaço �sico das ruas como espaço de memórias nega�vas ou de marginalidade
polí�ca, econômica e social, há a experiência da rua como o espaço da formação de corpos, como espaços de
construção de memórias da infância. Nesse aspecto, é possível citar duas passagens. Em Infanto Juvenil III, narrando
as descobertas do amor na juventude, Mandingo (2015, p.11) atravessa as experiências da infância com a seguinte
imagem do urbano: “À noite a rua era escura, os cheiros de sabonete se misturavam ao cheiro das águas da enchen-
te ainda secando em poças, depois da úl�ma chuva que deixara a todos ilhados em suas casas. A rua era por não
haver postes de iluminação”. Dessa forma, intercalando condições sociais ao contexto citadino e às vivências infan�s,
Mandingo não mascara espacialidades degradantes, mas as marca de uma significação de afeto que não exclui a
visibilidade daqueles contextos, contudo, coloca a periferia como local de ondem emergem outros discursos,
vivências e memórias. Assim, neste mesmo conto, aparece: “Calados vendo o pôr-do-sol, em cima da laje de Tiago. A
tarde toda jogando bola no asfalto esburacado. Es�cavam a hora do banho examinando as pernas, ferida por ferida,
dedo por dedo: o que era de cascão seco que podia ser �rado e o que era de unha �rada que tava renascendo”

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(MANDINGO, 2015, p. 9). Assim, atreladas às memórias subje�vas desse narrador que conta da infância vão se
atrelando memórias subje�vas de espaços urbanos outros que não apenas o centro da cidade de Salvador, mas
também o subúrbio e a cidade baixa com suas lógicas de sociabilidade e conformações �sicas de um dado período.

Considerações finais

A história de uma cidade está atrelada às narra�vas de vida dos sujeitos que nela vivem ou que com ela se relacio-
nam. Sendo assim, a narra�va de um espaço urbano é socialmente cons�tuída e par�lhada. Nesse sen�do, a
reflexão aqui realizada permi�u perceber como as narra�vas de Ribeiro e Mandingo possibilitam pensar um entre-
cruzamento entre as memórias urbanas e humanas, cole�vas e individuais, a par�r da representação da cidade.

Salvador, seja pela sua posição geográfica, por sua cons�tuição histórica, pelas manifestações culturais que lhes são
caracterís�cas ou pela imagem que se produziu da primeira capital do país, encanta turistas e soteropolitanos.
Inegavelmente, para aqueles que circulam pela cidade, seja de carro, ônibus ou a pé, a sensação que se tem é de
que quase todos os caminhos levam a uma atraente vista do mar.

Esse mar que encanta e que compõe grande parte dos cartões postais da cidade par�cipa da imagem sacralizada
que se tem da cidade da Bahia. Aquele que, transitando pela região do Campo Grande, desce a Avenida Lafayete
Cou�nho2, por exemplo, costuma ser, de logo, atraído pelo mar da Baía de Todos os Santos. Há, no entanto, aqueles
que quase que esquecem essa vista e se voltam para a cidade que se fez porto, fortaleza e se ampliou para tantos
rumos. Em Ribeiro e Mandingo, é esse encantamento pela cidade que se faz representar nas narra�vas a par�r de
um processo de representação de uma cidade e das memórias experimentadas nesse espaço urbano. Percebe-se,
ainda, a representação de um sujeito contemporâneo que, envolvido pela modernosidade3, espanta-se com os
vazios deixados pelas experiências do passado que não mais existem, como a segurança ao se andar pela cidade e as
relações subje�vas ín�mas travadas nos múl�plos espaços de convivências que não se restringiam ao fugaz e
impessoal tempo vivido nos shopping Centers. Assim, evidencia-se o homem inserido na contemporaneidade, mas
marcado e atento ao passado e que, em seu perambular pelas ruas, realiza o inventário do que se perdeu em
decorrência dos processos de modernização que se impuseram à cidade.

A inves�gação sobre os elementos rememorados nas narra�vas de Ribeiro e Mandingo revelou o modo como os
espaços nos quais tais escritores viveram grande parte de sua infância e adolescência são reiteradamente recriados
em sua produção ficcional. Assim, a reconstrução de espaços e prá�cas do passado, a par�r dos atos de rememorar
e ficcionalizar permeados por um tom nostálgico, revela o modo pelo qual, no processo de criação dessas localida-
des urbanas, são evocadas a an�ga arquitetura, lojas e cinemas que formavam a velha centralidade, bem como as
caracterís�cas ambientais quase que ex�ntas. Há que se destacar, ainda, que, além da conformação �sica de tais
espaços, as narra�vas de Ribeiro e Mandingo evocam as prá�cas sociais e culturais que marcaram época, como o
o�cio de pescador, lendas populares e o perambular pelo an�go centro para ir aos cinemas de rua, bem como os
jogos de botão, os banhos de mar na Ribeira e as brincadeiras de uma infância.

Dessa forma, a par�r de uma leitura suplementar, no sen�do de Derrida, não se buscou um complemento entre as
leituras de tais autores contemporâneos, mas um acompanhamento de leitura, uma afinidade. Assim, buscou-se
pensar as narra�vas deles de forma suplementar na medida em que ambos colocam suas imagens da cidade de
Salvador a par�r de olhares dis�ntos, ainda que passeando pelos mesmos lugares geográficos, mas todos marcados
por singulares construções afe�vas de memórias.

2 A Avenida Lafayete Cou�nho é mais conhecida pelos soteropolitanos como “Contorno”, uma vez contornando a falha geológica que separa a cidade alta e a
cidade baixa. Projetada por Diógenes Rebouças em 1952, a via ar�cula a região do Comércio (Cidade Baixa) até o vale do Canela, passando pelo Campo Grande
(LEME, 2005).
3 Expressão u�lizada por Ribeiro em O chamado da noite(1997).

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ARTIGOS

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