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Ficha catalogada na Biblioteca CEUNI-Fametro

L372s Lima, Nata Souza.

Sociologia e antropologia. / Nata Souza Lima. -- Manaus: CEUNI-


FAMETRO, 2021.
178 p.

ISBN: 978-85-64293-06-9

1. Sociedade 2. Cultura 3. Diversidade cultural 4. Fato social I.


Título.
CDU.:572

Responsável Técnico: Lorena de Fátima Vidal (CRB: 410/11-AM)


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vem se consolidando como a melhor instituição de
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com variadas visões de mundo. Somos uma instituição
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sempre de desenvolver a economia da Amazônia. Nossa
estrutura é moderna, estamos em diversos municípios
levando uma educação inclusiva e de qualidade.
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experiência em estudar numa instituição com o corpo
docente com mestres e doutores e de qualidade de
“É a educação que
ensino comprovada pelo MEC.
faz o futuro
Maria do Carmo Seffair parecer um lugar
Reitora de esperança e
transformação”.
(Marianna Moreno)
Sumário
UNIDADE I

Debates fundamentais em Sociologia 13

A noção de "ciência social" 13

Sociologia e método sociológico 16

Industrialização e mudança social 22

Individualismo e estigma 31

Modernidade e globalização 38
UNIDADE II

Debates fundamentais em Antropologia 53

Evolucionismo social 53

Natureza e cultura 59

Etnocentrismo e Alteridade 65

Trabalho de campo e Etnografia 68

Populações tradicionais e vozes ameríndias 74

UNIDADE III

Problemas sociais do Brasil 85

Formação nacional 85

Questões étnico-raciais no Brasil 91

Conflitos agrários e as lutas pela terra 99

Cidades e violência urbana 105

A Amazônia no debate social 110


UNIDADE IV

Desigualdades sociais e direitos humanos 121

Direitos humanos e justiça 121

Gênero: desigualdades e violências 125

Migração e fronteiras 136

Poder e subalternidades 142

Estado e intervenção social 146

Referências 152

Caderno de exercícios 159


Unidade 1
Videoaula 1

Videoaula 2
13

DEBATES
FUNDAMENTAIS
EM SOCIOLOGIA

A NOÇÃO DE “CIÊNCIA
SOCIAL”

As ciências sociais são um


campo do conhecimento moderno
que compreende três disciplinas
principais: Sociologia, Antropolo-
gia e Ciência Política. Esses três sa-
beres propõem olhares diferentes
sobre a vida social humana. Embora
estas áreas do conhecimento sejam
muito próximas entre si, não são to-
talmente iguais. A Sociologia busca
estudar as relações do indivíduo na
sociedade, a estrutura e dinamici-
dade das sociedades modernas, fa-
14

Anotações:
zendo uma análise no percurso histórico e as suas
transformações ao longo do tempo. A antropologia
analisa a distinção das culturas humanas, a diversi-
dade dos grupos sociais ou étnicos e as mudanças
que ocorrem, devido à interação entre os grupos.
Ao passo que a Ciência Política estuda a siste-
matização do poder do estado, as instituições e o
processo político partidário de um país, as políticas
públicas em todas as suas etapas, ou seja, na elabo-
ração, implantação e avaliação do resultado de sua
aplicação. Neste livro, nosso enfoque será sobre
Sociologia e Antropologia, duas áreas das Ciências
Sociais, que têm origens aproximadas, mas formas
distintas de observar e refletir sobre as relações
sociais.
Numa percepção clássica, a Sociologia se
constrói a partir de três principais teóricos, que
produzem visões diferentes sobre a sociedade
e as transformações modernas. Primeiramente,
veremos a consolidação da Sociologia como uma
Ciência moderna, a partir de Émile Durkheim, na
França. Em seguida, estudaremos outros dois
teóricos fundadores de problemas sociológicos
modernos, mas que não estiveram intrinsecamente
ligados à formação da Sociologia como um campo
disciplinar, mas cada um adotando compromissos
diferentes em relação à ciência e à compreensão
das transformações da modernidade. São eles: Karl
Marx e Max Weber, ambos alemães.
15

Anotações:
A formação da Sociologia como Ciência

O Iluminismo foi um movimento filosófico


do século XVIII, que propôs a separação radical
entre igreja e ciência. Esse foi o marco da ciência
moderna, onde autores como Renè Descartes,
Jonh Locke, Rousseau, Voltaire, entre outros,
elaboraram ensaios sobre as leis, as formas de
desigualdade, as relações de poder e, sobretudo,
a necessidade do método como meio pelo qual se
conhece a realidade. A partir desse movimento
intelectual, consolida-se a modernidade, baseada
na técnica, no método e na comprovação científica.
Desse processo, as ciências exatas e da
natureza consolidam métodos e regras para a
investigação científica, apreensão e acúmulo do
conhecimento. O método científico proporciona
maior veracidade e controle de uma determinada
experiência. Além disso, assegura o acúmulo de
conhecimento, uma nova descoberta, devidamente
testada e aprovada pelos cientistas que compõem
um campo disciplinar, não precisa ser testada do
zero. Outras teorias e experimentações podem ser
realizadas a partir dos conhecimentos já adquiridos
cientificamente.
No final do século XIX, havia uma lacuna
em torno da produção de conhecimentos sobre a
humanidade e as sociedades, que até ali era feita
pela Filosofia ou pela Teologia, a primeira com mais
ênfase nas questões do espírito humano, a segunda,
com ênfase na crença e na fé. Nas duas, a produção do
conhecimento não passava por métodos científicos,
nem por processos de testagem e comprovação.
16

Anotações:
Movidos por essas questões, dois autores do
final do século XIX buscaram consolidar abordagens
científicas sobre a vida social. O primeiro foi
Gabriel Tarde, que propôs a literatura (por meio da
interpretação literária) como meio para a análise
social. Essa ideia não repercutiu com a mesma
proporção que a proposta de Auguste Comte, que
inaugurou a noção de “física social”, uma ciência
que seria capaz de analisar a sociedade, a partir
do método científico já consolidado nas ciências
“duras” (exatas e da natureza, principalmente).
Comte teve grande influência na educação
francesa, sendo primeiramente um crítico do
elitismo em torno do acesso ao conhecimento, o
que o levou a ser apoiado por diversos intelectuais
da época. Foi mentor de Émile Durkheim, quem o
ajudou a formular as primeiras ideias em torno da
“física social’’. Ocorre que Comte, antes de finalizar
suas formulações em torno da nova ciência, fora
acometido de “colapsos nervosos”, o que abalou
seu trabalho e, sobretudo, sua criatividade. Assim,
foi Émile Durkheim, aluno de Auguste Comte, quem
seguiu com a tarefa de construir a primeira ciência
social, a qual chamou de “Sociologia”.

SOCIOLOGIA E MÉTODO SOCIOLÓGICO

Émile Durkheim foi fundamental para a


criação formal da Sociologia no espaço acadêmico
francês, tendo sido o primeiro a ocupar uma cadeira
universitária com esse nome (em Bordéus, 1887) e
fundou, em 1896, o L’Année sociologique (anuário
sociológico), que se tornou a principal revista de
Sociologia da França, divulgando o pensamento da
17

Anotações:
“escola” durkheimiana, que teve muitos discípulos,
entre eles, seu sobrinho Marcel Mauss (fundamental
para os estudos em Etnologia, como veremos
posteriormente).

Figura 1 - Émile Durkheim

Fonte: Domínio público.

Esse processo envolveu a defesa da existên-


cia de um objeto propriamente sociológico, o “fato
social”, distinto do objeto de outras áreas do conhe-
cimento, como a Biologia, a Filosofia, a Psicologia,
o Direito, a Economia, etc. Esse objeto demandaria
a codificação de um método específico para tratá-
lo e de uma ciência distinta e autônoma — a Sociolo-
gia — para descobrir as leis de seu funcionamento.
Em “As regras do método sociológico”,
Durkheim defende que os fatos sociais existem
“acima” das consciências individuais, sendo-lhes
exteriores e as antecedendo. Essa definição sobre
18

Anotações:
os fatos sociais, implica na construção do conceito
de “sociedade”, na sociologia durkheimiana, para a
qual a “sociedade” existe acima (sobrepondo) dos
indivíduos. Para Durkheim, “sociedade” não significa
meramente uma coletividade de sujeitos, mas uma
“consciência pública ou coletiva que exerce um
poder de coerção ou se impõe, de maneira mais ou
menos perceptível, aos indivíduos” (CASTRO, 2014).
O método sociológico seguirá, portanto,
algumas premissas importantes, distinguindo-
se de outras ciências, da Filosofia e da Religião.
Durkheim afirma que o fato de ter nascido a partir
das doutrinas filosóficas consideradas relevantes,
a Sociologia não alterou o hábito de se apoiar
em qualquer sistema no qual se sinta solidário,
a exemplo de ser positivista, evolucionista,
espiritualista, ao invés de cultivar simplesmente a
Sociologia (idem).
Quanto às ideologias, a Sociologia de
Durkheim não deve “tomar partido” entre as grandes
hipóteses que dividem os metafísicos. Tampouco
lhe cabe defender a liberdade ou o determinismo.
Nesse aspecto, distingue-se muito das teorias
socialistas que ganharam força na Europa no final
do século XIX, principalmente com a publicação
das obras de Karl Marx. A Sociologia, segundo o
princípio da tradução francesa, deve limitar-se
a que o “princípio de causalidade seja aplicado
aos fenômenos sociais’’. Isso significa tratar os
fenômenos sociais como dotados de “causas” que
também produzem “efeitos” próprios. Além disso,
esse princípio é estabelecido por ela não como uma
necessidade racional, mas tão somente como um
postulado empírico, produto de legítima indução.
19

Anotações:
Durkheim (apud CASTRO, 2014, p. 38) reafirma:

A sociologia assim entendida não será


individualista, nem comunista, nem
socialista, no sentido vulgarmente
atribuído a essas palavras. Por
princípio, irá ignorar essas teorias,
nas quais não poderia reconhecer
valor científico, uma vez que elas
tendem claramente não a exprimir os
fatos, e sim a reformá-los. Se ela se
interessa por eles, é tão somente na
medida em que vê neles fatos sociais
capazes de ajudar a compreender a
realidade social por manifestarem
as necessidades que operam a
sociedade.

A ênfase na ausência de um viés ideológico à


Sociologia, proposta por Durkheim, estava atrelada
principalmente ao seu esforço de objetividade, cru-
cial para sua consolidação como Ciência. Para tanto,
o autor defendia que os fatos sociais (como objetos
sociológicos) deveriam ser tratados como coisas.
Nesse processo de construção da objetividade, o
sociólogo deveria abrir mão das “pré-noções” e ob-
servar os fatos como eles são, buscando examinar
suas características mais objetivas.
20

O suicídio (1897)

O livro de Émile Durkheim, publicado pela


primeira vez em 1897, marcou a Sociologia por
ter sido a primeira obra a se debruçar sobre um
problema social (fato social), a crescente onda de
suicídios na França, a partir de dados estatísticos
e empíricos. As explicações sobre o Suicídio, na
época, tratavam esse fenômeno como um problema
de ordem individual.
Analisando taxas de mortes autoprovo-
cadas, a partir de regiões, concentração
em períodos, Durkheim pôde argumen-
tar que o suicídio não era um fenômeno
isolado a cada caso, mas tinha influên-
cias coletivas e sociais. Essas unidades
de motivação agrupariam os casos de
suicídio, demonstrando que havia
uma dimensão coletiva a ser con-
siderada.
Comparando diferentes ex-
pressões de suicídio (ou morte au-
toprovocada), Durkheim estabele-
ceu três principais motivações
geradoras dessas mortes.
A primeira, chamou de egoísta,
a qual as altas taxas estavam associa-
das à diminuição da integração social.
Pessoas com maior isolamento de gru-
pos onde houvesse sensação de per-
tencimento, eram as que estavam en-
quadradas nesssa categoria. Durkheim
salienta, por exemplo, que o individu-
21

Anotações:
alismo se expressava também na desagregação das
comunidades religiosas, nas quais os protestan-
tes prezavam mais pela individualidade, enquanto
católicos costuravam suas relações de forma mais
comunitária.
A segunda, a altruísta era caracterizada pelas
mortes auto cometidas em nome de um grupo ou
causa. Nesta, ao contrário da primeira motivação,
o sujeito estaria tão imerso pelo pertencimento e
pelas crenças de um grupo (religiosas, políticas,
ideológicas, culturais), que sua morte ocorre como
um serviço final, ou uma defesa, do conjunto de
crenças que o grupo representa.
A terceira, chamada de anômica, categoriza
situações em que um indivíduo está se sentindo
sem direção social. Diferente da primeira, em
que o suicídio se baseia na ausência e diminuição
da integração social, na anômica, a morte está
relacionada aos eventos de ruptura da crença no
grupo social. Está relacionado aos momentos
de crise social profunda, como grandes crises
econômicas, guerras e situações pós-traumáticas.
22

A noção de “fato social”

A noção de “fato social” é fundamental para a


construção da perspectiva francesa da Sociologia.
Durkheim afirma que, “embora consideremos os
fatos sociais como coisas, é como coisas sociais.”
Assim, o valor dos fatos sociais é seu aspecto
sociológico. O suicídio, a devoção religiosa, por
exemplo, são fatos sociais com explicações
sociológicas, dotados de complexidade que
vinham sendo reduzidas por explicações psíquicas,
orgânicas, de fé, ou seja, descaracterizados de
dados objetivos sobre eles mesmos. O esforço
Para maior da Sociologia durkheimiana foi o de tratar
aprofundamento desses fatos sociais, sem descaracterizá-los.
de como o método
de investigação
sociológica de INDUSTRIALIZAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL
Durkheim se aplicava
aos fatos sociais, O surgimento da Sociologia, além do
ler “O Suicídio”, a contexto acadêmico de sua criação na França,
primeira investigação está relacionado à preocupação em torno da vida
sociológica publicada
moderna. E o marco inicial da Modernidade como
sobre um fenômeno
social. Sugiro conhecemos, é a industrialização. A primeira
também a leitura revolução industrial ocorreu na Inglaterra, com o
de “As estruturas surgimento da máquina a vapor. Esse processo
elementares da vida deu início às transformações nas relações com
religiosa”. a propriedade e o trabalho. A demanda por mão
de obra, o avanço das grandes propriedades
— principalmente para plantação de algodão,
motivada pelo crescimento da indústria têxtil —
geraram um grande êxodo rural e vários problemas
urbanos. Rapidamente, a indústria dominou a
economia europeia, provocando muitos problemas
sociais, como a superlotação das cidades, o
trabalho precário, a fome, entre outros.
23

Anotações:
Figura 2 - Karl Marx

Fonte: Domínio público.

A obra de Karl Marx, apoiada por seu amigo


Friedrich Engels, dialoga com esse contexto social.
Ambos não são definidos como sociólogos, mas as
ideias de Marx, que passam pela Filosofia, História,
Direito e Economia, são de grande interesse
sociológico e exercem muita influência nas Ciências
Sociais.
Suas obras de maior destaque são (1) “O
Manifesto do Partido Comunista”, livro de caráter
mais panfletário, mas extremamente mobiliza-
dor e inquietante, que apresenta um resumo das
suas teorias em torno da exploração do proletaria-
do pela burguesia, da luta de classes sociais, da
necessidade de união dos trabalhadores do mun-
do contra as apropriações e acúmulos do Capi-
tal industrial; e (2) “O Capital”, obra que contém
3 volumes principais, além de outras publicações
24

Anotações:
após a morte de Marx, onde o autor apresenta sua
teoria econômica sobre a lógica do Capital, seu
processo de produção, circulação e o sistema de
Mais-Valia.
Aqui falaremos sobre “A ideologia Alemã”,
publicado originalmente em 1932, quando Marx
desenvolveu, em parceria com Engels, as princi-
pais noções sobre o “materialismo histórico”. O ar-
gumento de “A Ideologia Alemã” segue como uma
resposta aos filósofos alemães seguidores de He-
gel, cujas teorias partiam do pressuposto de que
o mundo das ideias antecede à realidade material
(nunca alcançada). Marx e Engels argumentam que
a história é material, existe no mundo real e são as
condições histórico-materiais que dão suporte às
relações de poder.
Essa concepção materialista da história hu-
mana permitiria compreender como as relações
dos indivíduos entre si e suas formas de proprie-
dade se alterariam, à medida que fossem se desen-
volvendo forças produtivas novas e mais podero-
sas. Para Marx, o cerne das relações sociais são as
formas de como os homens produzem seus meios
de existência, transformando inclusive a natureza.

Não se deve considerar esse modo


de produção sob esse único ponto de
vista, ou seja, enquanto reprodução
da existência física dos indivíduos. Ao
contrário, ele representa, já, um modo
determinado da atividade desses
indivíduos, uma maneira determinada
de manifestar sua vida, um modo de
vida determinado. A maneira como
os indivíduos manifestam sua vida
25

Anotações:
reflete exatamente o que eles são. O
que eles são coincide, pois, com sua
produção, isto é, tanto com o que
eles produzem quanto com a maneira
como produzem. O que os indivíduos
são depende, portanto, das condições
materiais da sua produção (MARX
apud CASTRO, 2014, p. 12).

Esse debate é fundamental para as propostas


de Marx em torno da construção de sua própria
obra. Ao contrário dos filósofos até ali, Marx não
tinha interesse em produzir reflexões distantes
da realidade (material). Seu esforço era de
compreender como a sociedade moderna produziu
as condições da desigualdade, e como as massas,
o proletariado (trabalhadores), em condições de
subalternidade, poderiam produzir condições
materiais para o Comunismo.
Ao contrário de outros autores do panteão
sociológico que se limitaram à compreensão da
realidade social, a obra de Marx e Engels, tem um
comprometimento com a mudança social, tendo o
trabalho e a economia como as principais chaves
conceituais de análise. De certa forma, pode-se
dizer que todos os grandes paradigmas da Socio-
logia foram inquietados por questões da sua época,
alguns com limites institucionais, outros nem tan-
to. Marx talvez tenha sido o mais inadequado para
as instituições acadêmicas. Já seu conterrâneo,
Max Weber, foi um exímio acadêmico, apesar de não
gostar da docência.
26

Anotações:
Figura 3 - Max Weber

Fonte: Domínio público.

Weber teve seus primeiros trabalhos publi-


cados, cerca de vinte anos após a morte de Marx,
interessava-se a respeito de como a modernidade
transformou-se em grandes instituições sociais,
como a Igreja e o Estado. Suas análises também
têm grande influência nos campos de Economia,
Política e Direito, sobretudo por conta das estru-
turas de organização burocráticas e do poder.
Porém, Weber construiu um trabalho dito “soci-
ológico” e, semelhante a Durkheim, preocupou-se
com a consolidação da disciplina, com o método
sociológico, com os interesses de investigação da
Sociologia. Sua proposta para a constituição dos
problemas sociológicos e apreensão das reali-
dades sociais se constituirá tomando como base
as conexões conceituais entre os problemas.
Para isso, Weber se debruçou sobre a
abrangência do que chamamos “social”, argu-
27

Anotações:
mentando que o termo nos levaria a um sentido
muito generalizado da realidade, tornando por
vezes, indeterminado: “se é encarado no seu sig-
nificado geral, não oferece qualquer ponto de vis-
ta específico a partir do qual se possa iluminar
a importância de determinados elementos cul-
turais” (WEBER apud CASTRO, 2014, p. 62). Contu-
do, a proposta de Weber para a construção de uma
análise sociológica, que apreenda as complexi-
dades da realidade social de forma abrangente
(sem desconexão com o social e o real), é a elabo-
ração de “tipos ideais”.
O “tipo ideal” é uma consolidação de padrões
sociais em um conceito emblemático. Lançando
mão da construção de “tipos ideais” sobre as
instituições, Weber consegue apontar elementos
constituintes da sociedade, dos fenômenos
históricos e das organizações.

A sua relação com os fatos empirica-


mente dados consiste apenas em que,
onde quer que se comprove, ou sus-
peite de que determinadas relações
— do tipo das representadas de modo
abstrato naquela construção, a saber,
as dos acontecimentos dependentes
do “mercado” — chegaram a atuar em
algum grau sobre a realidade, podemos
representar e tornar compreensível
pragmaticamente a natureza par-
ticular dessas relações mediante um
tipo ideal. Esta possibilidade pode ser
valiosa, e mesmo indispensável, tanto
para a investigação como para a ex-
posição (WEBER apud CASTRO, 2014,
p. 63).
28

Anotações:
Nessa elaboração sobre o método e a
construção dos objetos da Sociologia, Weber não
deixa de criticar Durkheim por conta do debate
sobre “distanciamento” e “neutralidade” em torno
dos fatos sociais. Para Weber, nossa interpretação
da realidade social não poderia ser feita sem
“pressuposições”, mas seria de antemão elaborada
a partir de alguns significados atribuídos sobre
as coisas sociais. Além disso, em sua teoria, os
tipos ideais são o caminho para a análise social,
e não o seu fim. Constituí-los é, portanto, criar as
ferramentas da análise sociológica.
A construção de tipologias mais importante
dentre as obras de Weber se dá em torno do conceito
de poder e dominação, que são os meios pelos quais
um sujeito ou organização conseguem a submissão
ou obediência a partir de certos comandos.

Pode depender diretamente de uma


situação de interesses, ou seja, de
considerações utilitárias de van-
tagens e inconvenientes por parte
daquele que obedece. Pode também
depender de mero “costume”, do
hábito obtuso de um comportamen-
to inveterado. Ou pode fundar-se,
finalmente, no puro afeto, na mera
inclinação pessoal do dominado. Não
obstante, a dominação que repou-
sasse apenas nesses fundamentos
seria relativamente instável. Nas
relações entre dominantes e domi-
nados, por outro lado, a dominação
costuma apoiar-se internamente em
bases jurídicas, nas quais se funda a
29

Anotações:
“legitimidade”, e o abalo dessa cren-
ça na legitimidade costuma acarretar
consequências de grande alcance.
Em forma totalmente pura, as “bases
de legitimidade” da dominação são
somente três, cada uma das quais se
acha entrelaçada – no tipo puro – com
uma estrutura sociológica fundamen-
talmente diversa do quadro e dos
meios administrativos (WEBER apud
CASTRO, 2014, p. 65).

Os tipos de Dominação elencados por Max


Weber:
1. Dominação legal em virtude do estatuto.
Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua
ideia básica é: qualquer direito pode ser criado
e modificado mediante um estatuto sancionado
corretamente quanto à forma. A associação
dominante é eleita ou nomeada, e ela própria e
todas as suas partes são empresas. O quadro
administrativo consiste em funcionários nomeados
pelo senhor, e os subordinados são membros da
associação (“cidadãos”, “camaradas”). Obedece-se
não à pessoa, em virtude de seu próprio direito,
mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo
tempo a quem e em que medida se deve obedecer.
Também quem ordena obedece, ao emitir
uma ordem, a uma regra: à “lei” ou “regulamento”
de uma norma formalmente abstrata. O tipo
daquele que ordena é o “superior”, cujo direito de
mando está legitimado por uma regra estatuída,
no âmbito de uma competência concreta, em que
a delimitação e especialização têm como base a
utilidade objetiva e nas exigências profissionais
30

Anotações:
estipuladas para a atividade do funcionário. O tipo
do funcionário é aquele de formação profissional,
pois as condições de serviço baseiam-se num
contrato, com pagamento fixo, graduado segundo a
hierarquia do cargo e não do volume de trabalho, e
direito de ascensão conforme regras fixas.
Sua administração é trabalho profissional em
virtude do dever objetivo do cargo. Corresponde
naturalmente ao tipo de dominação “legal” não
apenas à estrutura moderna do estado e do
município, mas também a relação do domínio numa
empresa capitalista privada, numa associação com
fins utilitários ou numa união de qualquer outra
natureza que disponha de um quadro administrativo
numeroso e hierarquicamente articulado.
2. Dominação tradicional em virtude da
crença na santidade das ordenações e dos poderes
senhoriais existentes. Seu tipo mais puro é o da
dominação patriarcal. A associação dominante é
de caráter comunitário. O tipo daquele que ordena
é o “senhor”, e os que obedecem são “súditos”,
enquanto o quadro administrativo é formado por
“servidores”. Obedece-se à pessoa em virtude de
sua dignidade própria, santificada pela tradição: por
fidelidade. O conteúdo das ordens está fixado pela
tradição, cuja violação desconsiderada por parte
do senhor colocaria em perigo a legitimidade do
seu próprio domínio, que repousa, exclusivamente,
na santidade delas.
No quadro administrativo, as coisas ocorrem
exatamente da mesma forma. Ele consta de
dependentes pessoais do senhor (familiares ou
funcionários domésticos) ou de parentes, ou de
amigos pessoais (favoritos), ou de pessoas que
31

Anotações:
lhe estejam ligadas por um vínculo de fidelidade
(vassalos, príncipes tributários). Falta aqui o
conceito burocrático de “competência” como esfera
de jurisdição objetivamente delimitada.
3. Dominação carismática em virtude de
devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes
por graça (carisma) e, particularmente faculdades
mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual
ou de oratória. O sempre novo, o extracotidiano, o
inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam
e constituem aqui a força de devoção pessoal.
Seus tipos mais puros são a dominação do profeta,
do herói guerreiro e do grande demagogo. A
associação dominante é de caráter comunitário,
na comunidade ou no séquito. O tipo que manda é o
líder. O tipo que obedece é o “apóstolo”.

INDIVIDUALISMO E ESTIGMA

Se para os três grandes paradigmas da Socio-


logia, o foco de análise se deu sobre temas de grande
abrangência, outros autores importantes para esta
Ciência optaram por objetos de análise mais “mar-
ginais”. Provavelmente, um dos primeiros desses
sociólogos foi Georg Simmel, contemporâneo de
Max Weber, que se interessou por desdobramentos
da modernidade no comportamento individual e na
psique. Podemos dizer que o conjunto de autores a
seguir, estabelecem relações entre dilemas sociais
coletivos e aspectos individuais ou o que conhece-
mos atualmente como “subjetividade”.
Um dos trabalhos mais célebres de Simmel
é “A Metrópole e a Vida Mental”, onde desenvolve
uma análise sobre como o novo ritmo urbano afetou
32

Anotações:
a relação das pessoas com o tempo e com as
implicações em torno dos laços de solidariedade.
Simmel viveu no tempo dos primeiros relógios
de bolso, do controle mais aguçado do tempo,
do surgimento dos automóveis e do ritmo das
máquinas de fábrica na vida social.

Os problemas mais graves da vida


moderna derivam da reivindicação
que faz o indivíduo de preservar a
autonomia e individualidade de sua
existência em face das esmagado-
ras forças sociais, da herança, da
história, da cultura externa e da técni-
ca de vida. (...) O século XVIII concla-
mou o homem a que se libertasse de
todas as dependências históricas
quanto ao Estado e a religião, a moral
e a economia. Juntamente com maior
liberdade, o século XVIII exigiu a espe-
cialização funcional do homem e seu
trabalho; essa especialização torna
um indivíduo incomparável a outro
e cada um deles é indispensável na
medida mais alta possível. Entretan-
to, esta mesma especialização tor-
na cada homem proporcionalmente
mais dependente de forma direta
das atividades suplementares de to-
dos os outros. Nietzsche vê o pleno
desenvolvimento do indivíduo condi-
cionado pela mais impiedosa luta de
indivíduos; o socialismo acredita na
supressão de toda competição pela
mesma razão. Seja como for, em to-
das estas posições, a mesma mo-
33

Anotações:
tivação está agindo: a pessoa resiste
a ser nivelada e uniformizada por um
mecanismo sociotecnológico
(SIMMEL apud CASTRO, 2014, p.11).

Para caracterizar esse tempo das


transformações radicais que a modernidade impôs
sobre os sujeitos, Simmel elaborou a noção de
“sentimento blasé”, uma forma de “não reação”
a novidades, problemas graves, violações, por
exemplo, que seriam “resultado dos estímulos
contrastantes que a vida moderna impõe aos
nervos”:

Uma vida em perseguição desregrada


ao prazer torna uma pessoa blasé
porque agita os nervos até seu ponto
de mais forte reatividade por um
tempo tão longo que eles finalmente
cessam completamente de reagir. Da
mesma forma, através da rapidez e
contraditoriedade de suas mudanças,
impressões menos ofensivas forçam
reações tão violentas, estirando
os nervos tão brutalmente em uma
e outra direção, que suas últimas
reservas são gastas; e, se a pessoa
permanece no mesmo meio, eles não
dispõem de tempo para recuperar a
força. Surge assim a incapacidade
de reagir a novas sensações com a
energia apropriada. Isto constitui
aquela atitude blasé que, na
verdade, toda criança metropolitana
demonstra quando comparada com
crianças de meios mais tranquilos e
34

Anotações:
menos sujeitos a mudanças (SIMMEL,
1973 apud CASTRO, 2014, p. 16).

Outra influência geradora da “atitude blasé”


para Simmel, seriam as relações com o dinheiro,
que acirra a distinção social, estabelecendo valores
em torno de quem tem mais.

A essência da atitude blasé con-


siste no embotamento do poder de
discriminar. Isto não significa que
os objetos não sejam percebidos,
como é o caso dos débeis mentais,
mas antes que o significado e va-
lores diferenciais das coisas, e daí as
próprias coisas, são experimentados
como destituídos de substância. Elas
aparecem à pessoa blasé num tom
uniformemente plano e fosco; obje-
to algum merece preferência sobre
outro. Esse estado de ânimo é um
fiel reflexo subjetivo da economia do
dinheiro completamente interiorizada.
Sendo o equivalente a todas as múl-
tiplas coisas de uma mesma forma, o
dinheiro torna-se o mais assustador
dos niveladores (ibid, p.16).

Se para Simmel, as transformações da vida


moderna impactaram, significativamente, na po-
tencialização do individualismo, da distinção e do
desprezo, para Erving Goffman um processo con-
tínuo da vida social, aprofundado em outros es-
paços do cotidiano — inclusive das interações face
a face, da individualidade — foi a segregação de
certos grupos e sujeitos a partir de estigmas soci-
35

Anotações:
ais. Goffman é um dos primeiros autores modernos
a refletir sobre a noção de “Estigma” como resul-
tado de certas regras de convívio, que corroboram
em atitudes preconceituosas e discriminatórias
contra grupos e pessoas. Apesar de ser usado
como um termo sobre a depreciação, o conceito
de Estigma vai além disso.

É uma linguagem de relações e


não de atributos. Um atributo que
estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem, portanto ele
não é, em si mesmo, nem horroroso
nem desonroso. Por exemplo, alguns
cargos nos Estados Unidos obrigam
seus ocupantes que não tenham a
educação universitária esperada a
esconder isso; outros cargos, entre-
tanto, podem levar os que os ocupam
e que possuem uma educação superi-
or a manter isso em segredo para não
serem considerados fracassados ou
estranhos (GOFFMAN apud CASTRO,
2012, p.13).

Goffman argumenta ainda, que se pode


elencar o Estigma em pelo menos três tipos:

1. As deformidades físicas, tidas como


abominações do corpo (considerando que
Goffman escreveu sobre essas formas de
estigma na metade do século XX, devemos
ponderar que há uma série de políticas
sociais em torno da diferença de corpos,
contudo, alguns estigmas ainda persistem,
porém, passíveis de punição por lei).
36

Anotações:
2. As culpas de caráter individual percebidas
socialmente como vontade fraca, paixões
tirânicas ou não naturais, crenças falsas
e rígidas, desonestidade, sendo essas in-
feridas a partir de relatos conhecidos de,
por exemplo, distúrbio mental, prisão,
vício, alcoolismo, homossexualidade, de-
semprego, tentativas de suicídio e com-
portamento político radical.
3. Estigmas raciais, de nação e religião, que
geralmente são repassados para uma
família inteira.

As atitudes de pessoas tidas como normais


para com uma pessoa com um estigma, e os
atos que empreendido em relação a ela são bem
conhecidas na medida em que são as respostas
que a ação social benevolente tenta suavizar e
melhorar. Contudo, as pessoas debaixo de algum
estigma social são percebidas numa posição de
inferioridade (menos humanos). Dessa forma de
tratamento consolidada socialmente, surgem
diversos preconceitos que funcionam como uma
ideologia para explicar a suposta inferioridade,
indicando que ela representa algum perigo.
Numa análise sociológica que se aproxima
dos interesses de Goffman, sobre os estigmas
sociais, Howard Becker coloca sua ênfase
no estudo de grupos considerados outsiders
[marginais], refletindo sobre os impactos das
regras sociais e suas quebras (violações). Becker
argumenta que todos os grupos sociais têm regras
de funcionamento interno, sejam as leis, conjuntos
de normas jurídicas que norteiam uma sociedade,
37

Anotações:
sejam as regras da tradição, que não são escritas
e normatizadas como leis, mas tem força de
imposição social e são transmitidas entre gerações.

Muitas regras não são impostas,


e, exceto no sentido mais formal,
não constituem o tipo de regra em
que estou interessado. Exemplos
disso são as leis que proíbem certas
atividades aos domingos, que
permanecem nos códigos legais,
embora não sejam impostas há cem
anos. (É importante lembrar, contudo,
que é possível reativar uma lei não
imposta por várias razões e recuperar
toda a sua força original...). Regras
informais podem morrer de maneira
semelhante por falta de imposição.
Estou interessado sobretudo no que
podemos chamar de regras operantes
efetivas de grupos, aquelas mantidas
vivas por meio de tentativas de
imposição (BECKER apud CATRO,
2014, p. 103).

As violações a essas regras sociais, geram


grupos e sujeitos marginalizados. Porém, o grau em
que uma pessoa é considerada marginalizada varia.
Essa diferença é atravessada tanto pela forma do
crime, quanto pelas proteções sociais em torno
de quem os comete. Um exemplo, são os crimes
de atropelamento cometidos contra ciclistas, por
jovens filhos de grandes empresários com carros
de luxo, que sequer sofrem alguma punição. Já
crimes tidos como mais graves (ainda dependendo
de quem o cometa), como assassinato ou estupro,
38

Anotações:
nos levam a ver o transgressor como um verdadeiro
marginal.
Com essa análise sobre como reagimos
às violações das regras sociais, e a partir disso,
como estabelecemos quem é ou não um outsider
(marginal), Becker pretende desenvolver uma
sociologia do desvio, deixando de absorver
unicamente as noções patologizantes do desvio
como verdades absolutas, mas problematizando
quais os pesos sociais, os valores morais, envolvidos
na classificação do desvio e dos desviantes. Em sua
concepção sociológica, afirma que “desvio é a falha
em obedecer às regras do grupo’’. O desvio como a
infração de alguma regra, geralmente, aceita.
Se um ato é ou não desviante, depende de
como outras pessoas reagem a ele. As violências
domésticas podem ser um exemplo disso. No caso
do Brasil, são absolutamente criminalizadas, mas
ainda pouco denunciadas. Essas violências que
ocorrem no ambiente doméstico podem se tornar
queixas policiais, ou se manter como segredo de
família e vizinhança, sem gerar sanções legais aos
agressores. Portanto, o grau em que outras pessoas
reagirão a um ato dado como desviante varia
enormemente. “O grau em que um ato será tratado
como desviante depende de quem o comete e de
quem se sente prejudicado por ele” (idem, p. 108).

MODERNIDADE E GLOBALIZAÇÃO

Se a industrialização marcou uma nova fase de


transformações sociais globais, a internacionalização
da indústria, assim como o fim da Guerra Fria em
1989, marcara uma fase explicada por muitos au-
39

Anotações:
tores como “globalização”, “mundialização” ou até
mesmo “pós-modernidade”. Essa era das transfor-
mações globais tem classificações ainda não total-
mente consolidadas, pois diz respeito ao passado
recente e ao presente. Contudo, alguns sociólogos
trataram de debater essas mudanças. Para Giddens
(1991), sociólogo britânico, o fim do século XX é de
fato uma era de transição, marcada pelo consumo
desenfreado e pela informação.

Alguns dos debates sobre estas


questões se concentram principal-
mente sobre transformações insti-
tucionais, particularmente as que
sugerem que estamos nos deslocan-
do de um sistema baseado na manu-
fatura de bens materiais para outro
relacionado mais centralmente com
informação (GIDDENS, 1991, p.8).

O autor, ao invés de classificar taxativamente


essa era “pós-moderna”, prefere refletir sobre
quais as transformações e consequências da
modernidade (a do século XX). Um dos seus
elementos de análise é a nossa relação com o
tempo e o espaço.

Todas as culturas pré-modernas pos-


suíam maneiras de calcular o tempo.
O calendário, por exemplo, foi uma
característica tão distinta dos esta-
dos agrários quanto à invenção da
escrita. Mas o cálculo do tempo que
constituía a base da vida cotidiana,
certamente para a maioria da popu-
lação, sempre vinculou tempo e lu-
40

Anotações:
gar — e era geralmente impreciso e
variável. Ninguém poderia dizer a hora
do dia sem referência a outros marca-
dores socioespaciais: “quando” era
quase, universalmente, ou conectado
a “onde” ou identificado por ocorrên-
cias naturais regulares (idem, p.21).

Essa vinculação entre tempo e lugar seria


fundamental, na visão de Giddens, para pensar num
dos pontos da transformação impulsionada pela
invenção do relógio mecânico, que estabeleceu
mais precisão em torno do tempo, possibilitando
maior controle em torno das horas — pagas, gastas,
etc. — desvinculando efetivamente o tempo do
espaço. Não seria mais necessário usar algum ponto
espacial como parâmetro de medida do tempo. As
horas estavam sendo controladas universalmente,
à disposição de todos, mesmo aqueles sem a
autonomia de “olhar as horas” por si mesmos.

O advento da modernidade arranca


crescentemente o espaço do tempo
fomentando relações entre outros
“ausentes”, localmente distantes de
qualquer situação dada ou interação
face a face. A separação entre o
tempo e o espaço não deve ser
vista como um desenvolvimento
unilinear, no qual não há reversões
ou que é todo abrangente. Pelo
contrário, como todas as tendências
de desenvolvimento, ela tem traços
dialéticos provocando características
opostas (GIDDENS, 1991, p.22).
41

Anotações:
Por que a separação entre tempo e espaço
é tão crucial para o extremo dinamismo da
modernidade? Giddens (1991, p. 23) explica:

1. “Em primeiro lugar, ela é a condição princi-


pal do processo de desencaixe que passo
a analisar de maneira breve. A separação
entre tempo e espaço e sua formação em
dimensões padronizadas, “vazias”, pene-
tram as conexões entre a atividade social
e seus “encaixes” nas particularidades dos
contextos de presença.”
2. “Em segundo lugar, ela proporciona os
mecanismos de engrenagem para aquele
traço distintivo da vida social moderna,
a organização racionalizada. As organi-
zações modernas são capazes de conec-
tar o local e o global de formas que seriam
impensáveis em sociedades mais tradi-
cionais e, assim fazendo, afetam rotinei-
ramente a vida de milhões de pessoas.”
3. “Em terceiro lugar, a historicidade radi-
cal associada à modernidade depende de
modos de “inserção” no tempo e no es-
paço que não estavam disponíveis para
as civilizações precedentes. Um sistema
de datação padronizado, agora univer-
salmente reconhecido, possibilita uma
apropriação de um passado unitário,
mas muito de tal “história” pode estar su-
jeito a interpretações contrastantes. Em
acréscimo, dado o mapeamento geral do
globo que é hoje tomado como certo, o
passado unitário é um passado mundial;
42

Anotações:
tempo e espaço são recombinados para
formar uma estrutura histórico-mundial
genuína de ação e experiência.”

Se Giddens estava interessado nas mudanças


geradas pelo processo de globalização (a uni-
formização de padrões globais, como da relação
com o tempo), Zygmunt Bauman, sociólogo po-
lonês, por sua vez, tem um olhar muito mais trági-
co e pessimista sobre os tempos pós-modernos.
Para Bauman, vivemos o tempo da “liquidez”, ter-
mo que baseará grande parte de sua obra. A liqui-
dez faz referência à fluidez/pressa/fragilidade das
relações sociais, mediadas pela vida moderna e
pelo consumo. A necessidade de consumir, nos le-
varia a um nível de relações sociais efêmeras, se-
melhante a obsolescência das coisas (capitalistas).
Nosso mundo seria, portanto, marcado pelas incer-
tezas em múltiplas dimensões.

Nesse novo mundo “líquido”, a incerte-


za passa a dominar a cena social, em
várias dimensões: as organizações
sociais (estruturas que limitam as es-
colhas individuais, instituições que
asseguram a repetição de rotinas, pa-
drões de comportamento aceitável)
não podem mais manter sua forma
por muito tempo (nem se espera que o
façam), pois se decompõem e se dis-
solvem mais rápido que o tempo que
leva para moldá-las e, uma vez reor-
ganizadas, para que se estabeleçam
(CASTRO, 2014, p. 128).
43

Anotações:
A crise do Estado-Nação é a provável ruptura
histórica e epistemológica nas ciências sociais. A
partir do fim da dualidade, URSS e EUA (Comunismo
e Capitalismo), que abriu as possibilidades para um
processo de globalização, visto que as instituições
internacionais, principalmente, as que lidam com
dinheiro ou com o comércio, trataram de promover
ou até exigir uma reformulação nas economias do
globo, passando a controlá-las e dando início a um
processo de mundialização do capital. São diver-
sas, diferentes e insistentes as pressões externas
e internas destinadas a provocar a reestruturação
do Estado.
A sujeição das economias (e políticas) nacio-
nais, a uma ordem global, é justificada como forma
de ideais capitalista ou socialista para que sejam
incogitados diante de uma dinâmica capitalista
que depende e se relaciona numa rede transna-
cional, que pode ser administrada dos diversos
lugares do globo, mas nunca internamente. Desta
forma, a nação transforma-se em mera província
do capitalismo mundial, sem soberania assegu-
rada para construir suas políticas independente-
mente dos órgãos financeiros internacionais ou
das grandes multi e transnacionais.

Para as multinacionais (isto é, empre-


sas globais com interesses e compro-
missos locais dispersos e cambiantes),
“‘o mundo ideal’ é um mundo sem Es-
tados. “A menos que tenha petróleo,
quanto menor o Estado, mais fraco
ele é, e menos dinheiro é necessário
para se comprar um governo.” O que
temos hoje é, com efeito, um sistema
44

Anotações:
dual, o sistema oficial das “economias
nacionais” dos Estados, e o real, mas
não oficial, das unidades e instituições
transnacionais. Ao contrário do Esta-
do com seu território e poder, outros
elementos da “nação” podem ser e são
facilmente ultrapassados pela glo-
balização da economia. Etnicidade e
língua são dois exemplos óbvios. Sem
o poder e a força coercitiva do Esta-
do, sua relativa insignificância é clara.
Como a globalização da economia
procede aos saltos, “comprar gover-
nos” é, certamente, cada vez menos
necessário. A clara incapacidade dos
governos de equilibrar as contas com
os recursos que controlam (isto é, os
recursos que eles podem estar certos
de que continuarão no domínio de sua
jurisdição independente do modo que
escolham para equilibrar as contas)
seria suficiente para fazê-los não só
se renderem ao inevitável, mas tam-
bém colaborarem ativamente e de
bom grado com os “globais” (BAUMAN
apud CASTRO, 2011, p. 200).

Uma questão atual ocupou o etnólogo francês


Bruno Latour: o debate sobre clima e negacionismo.
As ideias defendidas pelo intelectual francês em
“Onde Aterrar? — Como se orientar politicamente
no Antropoceno,” é de que os acontecimentos
políticos dos últimos 50 anos estão mobilizados
em torno da discussão sobre o fenômeno das
mudanças climáticas da Terra — e de sua negação.
Segundo Latour (2020), a desregulamentação dos
45

Anotações:
Estados após a queda do muro de Berlim, o aumento
das desigualdades sociais em todo o planeta e a
negação da existência de mudanças climáticas,
são processos de uma mesma situação histórica
em que as elites perceberam que não existe mais
espaço para sua existência (e de seus hábitos,
relações com o capital e o consumo) no mesmo
tempo e nas mesmas condições que o restante dos
habitantes do planeta.
Se nos anos 90 havia um notório esforço das
lideranças globais e redes de ativistas e organi-
zações sociais em torno do debate ambientalista,
vide a realização de grandes eventos sobre o Clima,
como a ECO 92 no Rio de Janeiro, como respos-
ta ao escasseamento de recursos naturais diante
do avanço predatório das demandas capitalistas,
houve também a compreensão de que o modo de
vida industrial moderno, não era sustentável para
a manutenção da vida, principalmente humana, no
planeta. As elites optaram, então, por incentivar a
negação do fim dos recursos naturais, do desgaste
das condições climáticas, assim como construir
comunidades muradas para si, entre outras es-
tratégias de proteção como a exploração de novos
planetas e viagens espaciais. Dessa forma, tam-
bém incentivaram a negação da globalização, para
assim apregoar a ideia de que não somos codepen-
dentes e interligados por relações e decisões políti-
co-econômicas.
Para Latour, é possível identificar dois mar-
cos temporais que evidenciam essa estratégia
de negação à globalização. O primeiro é a saída
dos EUA, por meio da decisão de Donald Trump,
do acordo de Paris em 2017; o segundo é o Brexit,
46

Anotações:
movimento de desvinculação da Inglaterra à União
Europeia. O autor defende que o movimento ini-
cial das ondas negacionistas globais, começa com
a negação das mudanças climáticas. Seu ápice é
o engajamento produzido pelo movimento políti-
co de Trump, pautado pela questão ecológica, e
pela negação da globalização. Fazer a “América
grandiosa de novo [Make America Great Again]” no
trumpismo, pressupõe o acirramento das relações
de fronteira, a negação da escassez de recursos, o
retorno ao modelo de crescimento americano dos
anos 60/70.
Se antes, as disputas ideológicas eram
marcadas pelas diferenças entre os projetos de
futuro, entre progressistas e reacionários, esquerda
e direita, atualmente vivemos numa retração
dessa disputa, que produz, de ambos os “lados”,
um efeito de recolhimento desses movimentos
ideológicos às suas próprias bolhas. As posições
políticas, agora, baseiam-se principalmente na
defesa de territórios ideológicos (e delimitação
destes). Assim, para Latour (2020), o Antropoceno
– era da intervenção humana na biosfera – impõe
desafios em torno de habitar a Terra. Nesse novo
processo político, capitaneado pelas alterações
climáticas e sua negação, a Terra se torna um
sujeito político, mobilizando os seres humanos a
refletirem sobre suas ações no planeta, indicando
através das catástrofes globais, do surgimento de
novos vírus, que as consequências da ação humana
serão vivenciadas comunitariamente, seja pelos
que ficarão sem casa e terão de migrar de seus
territórios de origem, seja pelos que serão afetados
pelas alterações num território que “não é seu”.
47

Anotações:
Por fim, o autor sustenta que a negação da
mudança climática global é, em si mesma, a negação
da racionalidade científica. As elites produziram e
optaram por negar a evidente finitude de recursos
naturais, criando e patrocinando uma atmosfera de
negacionismo, principalmente em torno da ciência
e de suas evidências, de modo que confundiu as
classes populares em relação aos fatos, engajando
milhares de fake news, que além de distorcerem as
verdades, distraem as massas sobre os problemas
que virão. Nas palavras do autor, “não se trata de
uma política da ‘pós-verdade’, mas sim de uma
política da pós-política, ou seja, literalmente sem
objeto, na medida em que ela rejeita o mundo que
reivindica habitar” (LATOUR, 2020, p. 35).
48

Filmes para conferir:

O Jovem Karl Marx (Raoul Peck, 2018): retrato


biográfico de Karl Marx que narra as vivências de
sua juventude e o início de sua amizade com Engels,
que o levaria a se tornar uma das personalidades
mais importantes do século 19.

Trabalho Interno (Charles Ferguson, 2010):


documentário sobre a recessão econômica global,
com início nos EUA, em 2008. Demonstra como
bancos e acordos de falência amarrados com o
Estado, levaram ao aumento de desemprego e
pessoas desabrigadas.

Para seguir:

Tese Onze: canal no YouTube organizado por


Sabrina Fernandes, socióloga, que debate temas
contemporâneos à luz das teorias sociológicas.
Unidade 2
Videoaula 1

Videoaula 2
52

Anotações:
53

DEBATES
FUNDAMENTAIS EM
ANTROPOLOGIA

EVOLUCIONISMO SOCIAL

Diferente da Sociologia, cujos


paradigmas circulam muito mais em
torno da obra de autores emblemáti-
cos, na Antropologia, os marcadores
paradigmáticos serão construídos,
principalmente, a partir de “escolas
de pensamento”. Há uma miríade de
perspectivas teóricas em Antropolo-
gia, porém, a subdivisão mais clássica
se dá pelo marcador da nacionalidade
onde o conjunto teórico foi desenvolvi-
do. As principais são:
54

Anotações:
a. Antropologia Francesa1: originada a par-
tir da Escola de Sociologia francesa, com
influência de Émile Durkheim e, principal-
mente, Marcel Mauss, com preocupações
teóricas voltadas para a compreensão de
sistemas e estruturas universais da hu-
manidade. Nos anos 50, tem grande re-
percussão a partir da obra de Claude Lévi-
Strauss e sua Antropologia Estruturalista.
b. Antropologia Britânica: é uma escola de
pensamento com grande ênfase na Et-
nografia e no Trabalho de Campo. A an-
tropologia britânica é sobretudo empírica.
Esteve diretamente ligada aos projetos
coloniais ingleses, principalmente no con-
tinente africano, provocando intensos de-
bates nos anos 80 sobre a ética da finali-
dade do trabalho antropológico.
c. Antropologia Americana: marcada por
diferentes fases, do Evolucionismo Social
ao Culturalismo e Interpretativismo, a
Antropologia Americana tem a noção
de Cultura como ponto de partida,
destacando sua diversidade. É a partir dela
que o olhar para os problemas internos —
da sociedade em que se situa — tiveram
destaques e confrontamentos.

Aqui citaremos alguns desses debates de


forma introdutória, lidando com as transformações

1
LAPLATINE, Françoise. Aprender Antropologia. São Paulo,
Ed. Brasiliense, 2010.
55

Anotações:
de objeto da Antropologia e, sobretudo, com as
mudanças em torno do conceito de Cultura. O
primeiro paradigma teórico em Antropologia foi
o “Evolucionismo Social”, tendo como principais
autores:
Lewis Morgan (EUA)2: os interesses de
Morgan nos estudos antropológicos se iniciam a
partir dos temas “família”, “herança” e “parentesco”.
Dedicou muitos anos ao estudo e comparação de
sistemas de parentesco humanos, distinguindo
como os “selvagens” faziam suas classificações
em comparação às sociedades “civilizadas”. Suas
pesquisas resultaram na publicação de “Sistemas
de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana”
e, posteriormente, “a sociedade antiga”, a qual
demonstra os estágios de progresso da sociedade
humana através da análise de cinco casos
exemplares: os aborígines australianos, os índios
iroqueses, os astecas, os gregos e os romanos.
Edward Tylor (UK/EUA)3: foi o primeiro
autor a estabelecer uma definição para o conceito
de “cultura”, em seu livro “Cultura primitiva”.
Descreveu Cultura como equivalente à Civilização,
estabelecendo, a partir desse pressuposto, que
os povos “não civilizados” (todos os povos fora da
Europa e não-colonizados) não detinham cultura.
Seu conceito dizia “Cultura ou Civilização, “é aquele
todo complexo que inclui conhecimento, crença,
arte, moral, lei, costume e quaisquer outras

2
CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural: textos de Morgan,
Tylor e Fazer. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2009.
3
Ibidem.
56

Anotações:
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na
condição de membro da sociedade.”
James Frazer (UK)4: sua obra principal foi
“O Ramo de Ouro”, publicado pela primeira vez em
1890, em dois volumes, com um total de oitocentas
páginas. A segunda e a terceira versões foram
publicadas com respostas a várias críticas de
outros autores da mesma época, chegando a 13
exemplares no total. Em 1922, Frazer preparou uma
versão condensada em um volume que se tornou
a versão mais conhecida, publicada até os dias
atuais.
É importante destacar que o Evolucionismo
Social é uma perspectiva teórica considerada
superada, porém, estudá-la é necessário para
entender qual o percurso da Antropologia, como
surgem as compreensões modernas do conceito
de cultura, e quais as “sombras” do evolucionismo
social que ainda permanecem. O postulado básico
do evolucionismo, em sua fase clássica, era o de
que, em todas as partes do mundo, a sociedade
humana teria se desenvolvido em estágios
sucessivos e obrigatórios, numa trajetória unilinear
e ascendente. Nessa lógica, toda a humanidade
deveria passar pelos mesmos estágios de evolução
social, seguindo uma direção que ia do mais simples
(os selvagens) ao mais complexo (civilização).
Como decorrência da visão de um único
caminho evolutivo humano, os povos “não
ocidentais”, “selvagens” ou “tradicionais” existentes,
no mundo contemporâneo, eram vistos como uma

4
Ibidem.
57

Anotações:
espécie de “museu vivo” da história humana, tidos
como representantes de etapas anteriores da
trajetória universal do homem rumo à “civilização”;
como exemplos vivos daquilo “que já fomos um dia”.
Na medida em que a arqueologia era, então,
pouco desenvolvida e não havia registros históricos
disponíveis para a reconstituição dos estágios
supostamente mais “primitivos”, o estudo dessas
sociedades assumia enorme importância, pois
assim se poderia reconstituir o caminho evolutivo
da humanidade, através de suas diferentes etapas.
Passava-se a dispor de uma espécie de
“máquina do tempo” que permitia, observando o
mundo dos “selvagens” de hoje, ter uma ideia de
como se vivia em épocas passadas. Para Frazer
(apud CASTRO, 2009, p. 107), “a selvageria é a
condição primitiva da humanidade e, se quisermos
entender o que era o homem primitivo, temos que
saber o que é o homem selvagem hoje”. A solução
para preencher as “lacunas” do longo período
“primitivo” de evolução cultural humana era utilizar
o método comparativo, aplicando-o ao grande
número de sociedades “selvagens” existentes
contemporaneamente.
58

Marcel Mauss

Mauss foi aluno notável e sobrinho de Émile


Durkheim, sendo iniciado na Sociologia pelo seu
tio, na Universidade de Bordeaux. Diferente de
Durkheim, que escreveu obras extensas ao longo
da vida, Mauss era um intelectual de ensaios,
com olhar mais direcionado para questões de
etnologia (estudo das sociedades “simples”) e sua
obra se dedica, principalmente, aos aspectos mais
elementares da cultura humana, na perspectiva de
que a partir da compreensão sobre a vida social
na sua forma mais simplificada, pode-se alcançar
os significados dos fenômenos nas sociedades
complexas.
Sua obra de maior importância foi o
“Ensaio sobre a dádiva”, onde
analisa diversas formas de trocas
econômicas entre sociedades ditas
“arcaicas”. É crucial para a teoria
antropológica, pois estabeleceu uma
série de comparações entre formas
elementares de troca entre diferentes
sociedades, assim como acordos e relações
que essas trocas asseguram. Em termos gerais,
defende que a troca se baseia em um sistema de
Dádiva, onde “dar”, necessariamente cria uma
expectativa pela retribuição. O esquema da Dádiva
se prolonga num processo que implica em “dar”,
“receber” e “retribuir”.
Em 1902 assumiu a cátedra de “História
das religiões dos povos não civilizados”, como
professor e diretor de pesquisas da École
Pratique des Hautes Études, de Paris.
59

Anotações:
NATUREZA E CULTURA

O embate a partir do Evolucionismo Social é


sobre a qualidade dos aspectos que compõem a
humanidade. Somos humanos pela nossa unidade
biológica, mas seríamos equivalentes mesmo com
formas de organização social tão diferentes? Para
os evolucionistas, havia aprendizados necessários
e inevitáveis para que os povos ditos “selvagens”
adquirissem equivalência no status de humanidade
em relação às sociedades ditas “civilizadas”.
Nessa perspectiva, há vários problemas,
principalmente, pela posição em que as teorias são
produzidas pelos seus contextos. A dúvida em torno
da humanidade dos “selvagens” era colocada pelos
colonizadores, que tinham suas próprias sociedades
como espelho da “civilização”. Essa inferiorização
social das sociedades ditas “selvagens”, reverberou
em projetos racistas contra sociedades africanas,
asiáticas e ameríndias, como se o aprendizado da
civilização tivesse, necessariamente que passar
pela universalidade racial (europeia, branca). Laraia
(2001, p. 12) afirma que:

São velhas e persistentes as teorias


que atribuem capacidades específi-
cas inatas a ‘raças’ ou a outros grupos
humanos. Muita gente ainda acredita
que os nórdicos são mais inteligen-
tes do que os negros; que os alemães
têm mais habilidade para a mecânica;
que os judeus são avarentos e nego-
ciantes; que os norte-americanos
são empreendedores e interesseiros;
que os portugueses são muito tra-
60

Anotações:
balhadores e pouco inteligentes;
que os japoneses são trabalhadores,
traiçoeiros e cruéis; que os ciganos
são nômades por instinto, e, final-
mente, que os brasileiros herdaram a
preguiça dos negros, a imprevidência
dos índios e a luxúria dos portugueses.

Os antropólogos estão totalmente convenci-


dos de que as diferenças genéticas não são deter-
minantes das diferenças culturais. A experiência do
nazismo a partir da 2ª Guerra Mundial, levou a UNES-
CO a estabelecer junto a antropólogos, geneticistas,
biólogos e outros especialistas, a declaração uni-
versal dos Direitos Humanos, que assegura a uni-
versalidade da humanidade e o direito à diferença
étnica, racial e cultural. A partir da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, Laraia (2001) destaca,
principalmente, os seguintes itens:

10. Os dados científicos de que


dispomos atualmente não confirmam
a teoria segundo a qual as diferenças
genéticas hereditárias constituiriam
um fator de importância primordial
entre as causas das diferenças que
se manifestam entre as culturas e as
obras das civilizações dos diversos
povos ou grupos étnicos. Eles nos
informam, pelo contrário, que essas
diferenças se explicam, antes de
tudo, pela história cultural de cada
grupo. Os fatores que tiveram papel
preponderante na evolução do homem
são a sua faculdade de aprender e a
sua plasticidade. Esta dupla aptidão
61

Anotações:
é o apanágio de todos os seres
humanos. Ela constitui, de fato, uma
das características específicas do
Homo sapiens.
15. b) No estado atual de nossos
conhecimentos, não foi ainda provada
a validade da tese segundo a qual os
grupos humanos diferem uns dos
outros pelos traços psicologicamente
inatos, quer se trate de inteligência
ou temperamento. As pesquisas
científicas revelam que o nível das
aptidões mentais é quase o mesmo
em todos os grupos étnicos (UNESCO
apud LARAIA, 2001, p. 13).

Mesmo diante da superação científica do


determinismo biológico, ainda é comum ouvir-
mos sobre qualidades — positivas ou negativas —
transmitidas pela genética, pelo “sangue”. O bom
desempenho em práticas esportivas é justificado
pela herança de um avô que quase foi jogador da
seleção; o sucesso musical de um cantor, porque
seus pais eram músicos. São exemplos comuns
dessa crença na transmissão de qualidades pela
natureza. Contudo, o determinismo também opera
para reducionismos negativos sobre as pessoas.
O crime de um adolescente acaba sendo jus-
tificado pelos comportamentos dos pais, pela sua
diferença racial/biológica, como se as condições
sociais e históricas não pesassem em desfavor
do seu destino. O mesmo pode ser descrito so-
bre o sucesso de grandes empresários jovens,
comumente retratados nas grandes revistas de
negócios, que vendem uma narrativa de esforço
62

Anotações:
pessoal, quando sua biografia demonstra uma
série de privilégios sociais e uma herança farta que
explica o “sucesso incomum”.

O homem é o resultado do meio cul-


tural em que foi socializado. Ele é um
herdeiro de um longo processo acu-
mulativo, que reflete o conhecimen-
to e a experiência adquiridos pelas
numerosas gerações que o ante-
cederam. A manipulação adequada
e criativa desse patrimônio cultural
permite às inovações e às invenções.
Estas não são, pois, o produto da ação
isolada de um gênio, mas o resultado
do esforço de toda uma comunidade
(idem, p. 42).

Compreender a Cultura como uma influência


forte no processo de socialização, também passa
pelo entendimento de que as Culturas humanas
são diversas. Em seu artigo “Raça e História”, Lévi-
Strauss (2017) escreve uma passagem linda para
refletir sobre a diversidade cultural humana.

É indubitável que os homens elabora-


ram culturas diferentes em virtude
do seu afastamento geográfico, das
propriedades particulares do meio e
da ignorância em que se encontravam
em relação ao resto da humanidade,
mas isso só seria rigorosamente
verdadeiro se cada cultura ou cada
sociedade estivesse ligada e se tivesse
desenvolvido no isolamento de todas as
outras. Ora, isso nunca aconteceu, salvo
63

Anotações:
talvez em casos excepcionais como
o dos Tasmanianos (e ainda aí para
um período limitado). As sociedades
humanas nunca se encontram isoladas;
quando parecem mais separadas, é
ainda sob a forma de grupos ou de
feixes. Assim, não é exagero supor
que as culturas norte-americanas e as
sul-americanas tenham permanecido
separadas de quase todo o contato com
o resto do mundo durante um período
cuja duração se situa entre dez mil e
vinte e cinco mil anos (LÉVI-STRAUSS,
2017, p. 341).

Para Lévi-Strauss (2017), não se pode supor


que essa “separação” entre as sociedades desco-
bertas pelos europeus através do contato colo-
nial, significasse o total isolamento desse grande
fragmento da humanidade. Essas sociedades
eram grandes, mantinham contatos e relações es-
treitas entre si. Quando se mantinham isoladas ou
distantes umas das outras, estavam demarcando
oposição e distinção buscando fortalecimento de
seus próprios costumes. Essas culturas não sur-
giram de acidentes, ou do acaso evolutivo, mas de
disputas acirradas pelo desejo de não se tornarem
“atrasadas” em relação aos seus vizinhos. Portan-
to, a diversidade humana não pode ser reduzida ao
isolamento desses grupos, mas das relações (de
disputa, conflito, comparação, distinção) que es-
tabelecem entre si.
Margareth Mead (1901-1978), antropóloga
americana, foi fundamental para a compreensão
de como a cultura molda os comportamentos e
64

Anotações:
papéis sociais. Também foi uma das intelectu-
ais responsáveis pela desnaturalização dos ditos
“papéis sexuais”. Em seu livro "Sexo e Tempera-
mento", Mead (1969) fez uma comparação sobre
como homens e mulheres desempenhavam pa-
péis diferentes de acordo com cada cultura, (que
atualmente compreendemos como relações de
gênero) a partir de três tribos da Nova Guiné, (Ara-
pesh, Mundugumor e Tchambuli). A cultura Arapesh
é caracterizada como maternal, tendo seu valor
atribuído por meio da “doçura” nas expressões e
comportamentos. Quanto aos Mundugumor, tinham
o comportamento agressivo e fomentado a homens
e mulheres.
A comparação entre sociedades com proxi-
midade geográfica ajuda a esclarecer que, embora
certas ideias vigentes em determinados lugares
sociais relacionem certos trabalhos com um dos
sexos, em outra sociedade a coisa se passa de modo
muito distinto. Mead nos ajuda a compreender que
os ditos “instintos”, não são aspectos inatos da hu-
manidade, mas são elaborados a partir de nossa
educação e se reproduzem por meio de aprendiza-
gem social. A autora afirma, por exemplo, que até
a amamentação, ato que poderia ser considerado
exclusivo das mulheres (que possuem mamas,
seios), pode ser transferida a um marido moderno
por meio da mamadeira. Se ideias como “instinto
materno” ou “instinto sexual” fossem padrões ge-
neticamente determinados, todas as sociedades
agiriam da mesma forma diante das mesmas
situações.
65

Anotações:
ETNOCENTRISMO E ALTERIDADE

Apesar de muitos avanços e debates que


consolidam a ideia de diversidade cultural, ela,
ainda, parece sempre escandalosa. Nosso pon-
to de vista sobre “o outro” opera sempre a partir
da nossa própria cultura e, esse primeiro olhar,
tendencioso, preconceituoso, tende a considerar
outros modos de vida como menos apropriados.
Esse comportamento é chamado de “etnocentris-
mo” e, levado ao extremo, reverbera em conflitos
sociais e marginalizações entre diferentes grupos
(ou de um grupo sobre outro):

O etnocentrismo, de fato, é um
fenômeno universal. É comum a cren-
ça de que a própria sociedade é o
centro da humanidade, ou mesmo a
sua única expressão. As auto denomi-
nações de diferentes grupos refletem
este ponto de vista. Os Cheyene, ín-
dios das planícies norte-americanas,
se autodenominavam “os entes hu-
manos”; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul
do Pará, consideram-se “os homens”;
os esquimós também se denominam
“os homens”; da mesma forma que os
Navajo se intitulavam “o povo”. Os
australianos chamavam as roupas
de “peles de fantasmas”, pois não
acreditavam que os ingleses fossem
parte da humanidade; e os nossos
Xavantes acreditam que o seu ter-
ritório tribal está situado bem no cen-
tro do mundo. É comum assim a cren-
ça no povo eleito, predestinado por
66

Anotações:
seres sobrenaturais para ser superior
aos demais. Tais crenças contêm o
germe do racismo, da intolerância, e,
frequentemente, são utilizadas para
justificar a violência praticada con-
tra os outros. A dicotomia “nós e os
outros” expressa em níveis diferentes
essa tendência (op.cit., p. 70).

Sendo assim, em uma mesma sociedade, a


primeira distinção que fazemos é entre pessoas
da família e pessoas de fora da família. Tendemos
a estabelecer um tratamento diferenciado entre
nossos familiares e pessoas que não pertencem
a esse círculo. De tal modo, ampliamos essa
diferenciação nas formas de tratar as pessoas, a
partir do pertencimento delas ao mesmo grupo
de amigos, à mesma vizinhança, à mesma região
do país e à mesma nação. Desse processo de
aglutinação e diferenciação, resultam distinções,
preconceitos e formas extremas de preservação
que priorizam as nossas identificações.
Como dissemos, a tendência mais comum
entre os grupos humanos é de considerar lógico,
apenas o próprio sistema cultural, atribuindo
a outras culturas e sociedades certo grau de
irracionalidade. Porém, os dados sobre uma
cultura devem ser analisados como um sistema
com lógicas próprias, e não na perspectiva de um
estrangeiro (que em nosso caso também pode ser o
pesquisador/antropólogo).
Em “O Pensamento Selvagem”, Claude Lévi-
Strauss dedicou-se a refutar as teorias evolucion-
istas cujas conclusões indicavam que os sistemas
de pensamento dos “selvagens”, eram inferiores e
67

Anotações:
“pré-lógicos” em relação à ciência das sociedades
brancas, ditas civilizadas. Muitas sociedades tidas
como “primitivas” confirmam valores e constro-
em seus sistemas de crenças em torno da magia,
de cosmologias próprias que dão sentido ao seu
mundo. Lévi-Strauss comprovou que o pensamen-
to mágico ou cosmológico tem uma estrutura com-
plexa e bem articulada.
Ao contrário do que as teorias evolucionistas
faziam crer, o pensamento mágico não antecede
o pensamento científico, ambos existem simulta-
neamente. A Antropologia constitui-se como uma
ciência que se opõe ao etnocentrismo. Essa não
é uma tarefa fácil, pois o antropólogo quase sem-
pre se constitui como um sujeito que não com-
partilha do mesmo ponto de vista daquelas culturas
ou sociedades que estuda. Para desvencilhar-se do
etnocentrismo, a Antropologia recorre à noção de
“alteridade”:

A abordagem antropológica provoca


uma verdadeira revolução do olhar.
Ela implica um descentramento radi-
cal, uma ruptura com a ideia de que
existe um “centro do mundo”, e cor-
relativamente, uma ampliação do sa-
ber e uma mutação de si mesmo. A
descoberta da alteridade é a de uma
relação que nos permite deixar de
identificar nossa pequena província
de humanidade com a Humanidade
(em sua totalidade), e correlativa-
mente deixar de rejeitar o presumido
“selvagem” fora de nós mesmos. Con-
frontados com a multiplicidade das
68

Anotações:
culturas, somos aos poucos levados
a romper com a abordagem comum
que opera na naturalização da vida
social (como se nossos comporta-
mentos estivessem inscritos em nós
desde o nascimento e não fossem
adquiridos no contato com a cultura
em que nascemos) (...) (LAPLAN-
TINE, 2010, p. 22).

A partir do pensamento antropológico


contemporâneo, a alteridade torna-se um elemento
fundamental para que o exercício antropológico de
aproximação de culturas diferentes das nossas,
seja realizado de forma respeitosa, estabelecendo
possibilidades de aprendizados e trocas culturais.
Além de necessária na realização do trabalho
antropológico, a noção de alteridade será muito
útil para tornar mais saudável o convívio com a
diferença social.

TRABALHO DE CAMPO E ETNOGRAFIA

Uma das rupturas em relação à fase do


Evolucionismo Social na construção da teoria
antropológica, foi a construção da etnografia,
como resultado da pesquisa empírica junto
às sociedades e povos estudados. Bronislaw
Malinowski (1884-1942) foi canônico ao propor o
método de “observação participante” como meio
para obtenção de dados sobre a vida dos nativos.
Hoje, a pesquisa em antropologia ainda segue a
tradição inaugurada por Malinowski. É muito comum
que nossas pesquisas prezem pela proximidade
com os sujeitos dos grupos sociais investigados,
69

Anotações:
produzindo documentos sobre nossas impressões,
conversas, sobre festividades e momentos rituais,
entre outras circunstâncias importantes da vida
social.
A pesquisa de campo realizada por Malinowski
teve as Ilhas Trobriandesas, na região ocidental
do Pacífico, como lócus de pesquisa. Dessa
experiência, escreveu “Argonautas do Pacífico
ocidental”, “A vida sexual dos selvagens” e “Jardins
de coral”. Dessas três obras, “Argonautas” é a de
maior destaque, pois além de descrever o circuito
do kula (sistema de trocas e hierarquias) e a
construção das wagas (navegações), é nessa obra
que apresenta seu método e as etapas de sua
pesquisa. Segundo Malinowski (2018),

Em etnografia, o autor é ao mesmo


tempo seu próprio cronista e o his-
toriador, enquanto suas fontes sem
dúvida são facilmente acessíveis,
mas também supremamente esqui-
vas e complexas; elas não estão cor-
porificadas em documentos mate-
riais, fixos, mas no comportamento
e na memória de homens vivos. Em
etnografia, muitas vezes há enorme
distância entre o material bruto da
informação — tal como é apresentado
ao estudioso em suas próprias obser-
vações, nas afirmações dos nativos,
no caleidoscópio da vida tribal — e a
apresentação final autorizada dos re-
sultados. O etnógrafo tem de transpor
essa distância nos laboriosos anos
que decorrem entre o momento no
qual pisa numa praia nativa, faz suas
70

Anotações:
primeiras tentativas de entrar em
contato com os nativos, e o momento
em que redige a versão final de seus
resultados (p. 57).

O pensador também explica como devem ser


estabelecidas as relações em campo, enfatizando
que o contato primordial deve ser com os “nativos”.
Durante o processo de aprendizado sobre um grupo
ou cultura diferente do nosso, a imersão nas lógicas
e rotinas do lugar são essenciais. Além disso,
é importante não perder de vista nosso status
de “outro” diante daqueles de quem queremos
informações. Esses laços não são desinteressados,
mas nem por isso chegam a ser superficiais.

Como foi dito, elas consistem prin-


cipalmente em afastar-se da com-
panhia de outros brancos e per-
manecer no contato mais estreito
possível com os nativos, o que real-
mente só pode ser alcançado acam-
pando em suas aldeias. É muito bom
ter uma base nas instalações de al-
gum homem branco para os materiais
e saber que há um refúgio ali quando
estamos adoentados ou cansados
dos nativos. Mas ela deve estar su-
ficientemente afastada para não se
transformar no meio permanente em
que você vive e do qual emerge em
horas fixas somente para “trabalhar
na aldeia”. Não deveria nem ser próxi-
ma o bastante para que recorramos a
ela a qualquer momento em busca de
distração (idem p. 58-59).
71

Anotações:
Figura 4 - Malinowski, em pesquisa de campo nas
Ilhas Trobriand

Fonte: Fotografia de Billy Hanckock. In: Malinowski, 2018.

Outro aspecto das relações é a forma de


como obtemos os dados em campo. Dificilmente,
as pessoas têm respostas prontas para as nossas
perguntas e, às vezes, dependendo dos nossos
questionamentos, elas não se sentem confortáveis
para responder. Todas as sociedades têm temáticas
tabu, situações que não são faladas abertamente
para estranhos. Malinovski (2018) apresenta
algumas estratégias para lidar com esse dilema:

Embora não possamos interrogar um


nativo sobre regras gerais, abstratas,
podemos sempre indagar como um
dado caso seria tratado. Assim, por
exemplo, ao perguntar como eles
tratariam o crime, ou o puniriam, seria
inútil fazer a um nativo uma pergunta
abrangente como “De que maneira
você trataria e puniria um criminoso?”,
porque não seria possível sequer
72

Anotações:
encontrar palavras para expressá-la
em um idioma nativo. Mas um caso
imaginário ou, melhor ainda, uma
ocorrência real estimulará o nativo
a expressar sua opinião e a fornecer
informações abundantes (p. 68-69).

Há, ainda, muitas situações e fenômenos


importantes que não conseguimos registrar
imediatamente. A convivência envolve múltiplas
formas de participação e atenção, que podem nos
fazer deixar de anotar ou gravar as cenas e conversas
no calor dos acontecimentos. Esses fenômenos são
chamados de “os imponderáveis da vida real”. São
coisas como a rotina do trabalho, formas de cuidado
com o corpo, maneiras de preparar e consumir os
alimentos, as expressões emocionais, os laços
fortes de amizade e as antipatias entre pessoas.

Todos esses fatos podem e devem


ser cientificamente formulados e
registrados, mas é necessário que
isso não seja feito com um registro
superficial de detalhes, como é
costume entre os observadores não
treinados, porém com um esforço
para penetrar a atitude mental que
neles se expressa (idem, p. 72).

Malinovski (2018) sugere três caminhos para


abordar o trabalho de campo. São eles:

1. A organização da tribo e a anatomia de sua


cultura devem ser registradas num esboço
firme, claro. O método de documentação
73

Anotações:
concreta, estatística, é o meio pelo qual
esse esboço deve ser feito.
2. Os imponderáveis da vida real e o tipo
de comportamento devem ser inseridos
no interior dessa estrutura. Eles têm
de ser colhidos mediante observações
minuciosas, detalhadas, na forma de algum
tipo de diário etnográfico, possibilitando
estreito contato com a vida nativa.
3. Uma compilação de depoimentos et-
nográficos, narrativas características, pro-
nunciamentos típicos, itens de folclore e
fórmulas mágicas devem ser considerados
um corpus inscriptionum, como documen-
tos da mentalidade nativa.

Uma sequência para a construção do trabalho


antropológico, clássico na antropologia brasileira,
foi proposto por Roberto Cardoso de Oliveira em
seu livro “O trabalho do Antropólogo”. Oliveira (2006)
argumenta que o trabalho do antropólogo consiste
em três atos cognitivos primordiais: Olhar, Ouvir
e Escrever. Os dois primeiros são executados,
quase sempre, simultaneamente. O autor propõe
algumas experimentações em torno de cada um.
Imagine chegar em uma sociedade completamente
desconhecida, da qual não se domina o idioma
nativo? As primeiras impressões serão construídas
a partir do Olhar.
Pelo Olhar, podemos notar como as pessoas
se vestem, com quem se relacionam, como se
alimentam, como são as casas, por exemplo. Ouvir,
complementa o Olhar. Por meio das conversas
podemos desfazer dúvidas, criar relações com as
pessoas do lugar, entender como as pessoas se
74

Anotações:
chamam, quais os pronomes de tratamento dados,
os status atribuídos aos membros de um grupo.
Por fim, Oliveira (2006) fala sobre o ato de
escrever, subdividindo-o em dois momentos: “Estar
aqui” e “Estar lá”. Se recorrermos ao exemplo de
Malinovski, veremos que ele tinha registros locais,
cadernetas e diários de campo, mas construiu as
etnografias finais sobre os Trobriandeses em seu
escritório. No campo, nós também construímos
registros escritos sobre as experiências imediatas,
mas o exercício intelectual de construção da
etnografia e sua relação com a teoria, é feito nos
momentos de solidão, distantes do espaço de
pesquisa.

POPULAÇÕES TRADICIONAIS E VOZES


AMERÍNDIAS

Segundo Cunha (2017), o emprego do ter-


mo populações tradicionais não implica neces-
sariamente adesão à tradição — no sentido da
permanência das tradições, pois a teoria antro-
pológica já concebe a cultura como dinâmica e
mutável.

Defini-las como populações que têm


baixo impacto sobre o ambiente,
para depois afirmar que são ecologi-
camente sustentáveis, seria mera
tautologia. Se as definirmos como
populações que estão fora da esfera
do mercado, será difícil encontrá-las
hoje em dia (p. 268).
75

Anotações:
Compreendendo esse conjunto complexo
que engloba as “populações tradicionais”, po-
demos inferir que as populações tradicionais são
aquelas que exercem impactos sustentáveis so-
bre a natureza, mantendo ou não relações com o
mercado global, que têm status étnico — social,
administrativo ou jurídico — reconhecido. São os
sujeitos chamados de “índios”, “indígena”, “tribal”,
“nativo”, “aborígene” e “negro”, a partir do contato
com o mundo branco.

E embora [tais termos] tenham sido


genéricos e artificiais ao serem criados,
esses termos foram progressivamente
habitados por gente de carne e osso.
Não deixa de ser notável o fato de que
com muita frequência os povos que de
início foram forçados a habitar essas
categorias tenham sido capazes de
se apossar delas, convertendo termos
carregados de preconceito em bandei-
ras mobilizadoras. Nesse caso, a de-
portação para um território conceitual
estrangeiro acabou resultando na ocu-
pação e defesa desse território (idem, p.
268-269).

Após um século de predominância de


antropólogos brancos, de países imperialistas,
fazendo pesquisa com os povos tidos como
“selvagens”, houve um importante esforço de
ressignificação dos papéis de sujeitos fixados na
posição de meros interlocutores. O movimento
indígena do Brasil teve grande importância nessa
reviravolta, fazendo surgir e repercutindo trabalhos
76

Anotações:
de intelectuais indígenas e de seus grupos étnicos,
dos quais destacamos dois a seguir.
Davi Kopenawa (2015) escreve “A Queda do
Céu” em parceria com o antropólogo Bruce Albert.
Para muitos teóricos, a cosmologia Yanomami
apresentada por Kopenawa é um vislumbre da
ideia de “filosofia ameríndia”, no sentido proposto
por Eduardo Viveiros de Castro, de que os povos
ameríndios teriam perspectivas epistemológicas
próprias e não dicotômicas, sobre a relação entre os
humanos (a cultura) e os seres da natureza. Mas aqui,
podemos escapar um pouco dessas categorizações
e pensar no trabalho do Xamã yanomami, como um
alerta sobre o avanço predatório “dos brancos”.
Esse alerta, escrito com muita beleza, apresenta
aspectos da cosmologia Yanomami e a história
de como Davi se tornou um Xamã politicamente
engajado que se encarrega do trabalho de impedir a
Queda do Céu, que significaria o recomeço da Terra,
pela vontade de Omama.

Figura 5 - Davi Kopenawa, liderança política e


xamã yanomami

Fonte: Foto de Daniel Klajmic, Instituto Socioambiental, 2019.


77

Anotações:
Uma das partes mais sensíveis do livro
é aquela em que Kopenawa, ainda criança, é
chamado pelo Xapiri nos sonhos. Os sonhos de
uma criança que poderá se tornar Xamã, são
sonhos febris, geralmente, sentidos por meninos
delicados, frágeis, que precisam ser ornados de
artefatos culturais, carregados de poder simbólico
que fazem a relação entre o mundo físico e o
mundo dos espíritos. Davi, vai sendo construído
como um homem Ianomami, feito de cautelas
e sensibilidades, sobre a caça, a relação com
a natureza, o sexo, sobre seu o povo e com os
espíritos. Ele aprende a ver que a vida é bonita (nas
danças dos Xapiri nos sonhos, nas visões de pó de
Yãkoana), por isso, importa manter o Céu.
Kopenawa nos ajuda a perceber que as
cosmologias contra-capitalistas, que também são
epistemologias “não-brancas”, dependem também
de um engajamento sensível na relação com a
natureza. Num tom semelhante ao de Kopenawa,
Ailton Krenak, intelectual indígena e liderança do
povo Krenak, às margens do Rio Doce (MG), tece um
conjunto de propostas sobre como evitar a extinção
da humanidade, diante da crise do clima, provocada
pela lógica da mercadoria, do sistema capitalista.
O autor utiliza a dicotomia ocidental entre
“natureza” e “cultura” (que também é um problema
antropológico ocidental), como ponto de partida
para afirmar que os povos ameríndios não fazem a
mesma separação entre humanidade e natureza.
Afirma que essa distinção é meramente conceitual,
e do mundo dos brancos, propondo que nossa
existência como humanidade depende do aparato
completo que só a natureza, na Terra, nos dá. O
78

Anotações:
livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) é
uma mensagem de alerta e esperança, diante da
predação da indústria, do consumismo e destruição
do meio ambiente. Seu livro mais recente, intitulado
“A vida não é útil” (2020), adota um tom mais
duro, quase uma decepção com a humanidade,
e principalmente com o Brasil – pois foi em parte,
escrito durante a pandemia do coronavírus.
É importante salientar que diversos povos
do planeta vivenciaram tempos difíceis diante das
incertezas da pandemia do coronavírus iniciada
em 2019, com primeiros casos reportados pela
China. Contudo, alguns grupos sociais foram mais
vulneráveis do que outros, entre eles, os povos
indígenas. Krenak (2020) reflete sobre como o
drama vivenciado pela humanidade diante da
COVID-19, é resultado da nossa relação predatória
com a natureza e dos descasos sociais entre nós
mesmos.

[Disseram] outro dia que brasileiros


mergulham no esgoto e não acontece
nada. O que vemos [...] é o exercício da
necropolítica, uma decisão de morte.
É uma mentalidade doente que está
dominando o mundo. E temos agora
esse vírus, um organismo do planeta,
respondendo a esse pensamento
doentio dos humanos com um ataque
à forma de vida insustentável que
adotamos por livre escolha, essa
fantástica liberdade que todos
adoram reivindicar, mas ninguém se
pergunta qual o seu preço. Esse vírus
está discriminando a humanidade.
79

Anotações:
Basta olhar em volta. O melão-de-
são-caetano continua a crescer aqui
do lado de casa. A natureza segue.
O vírus não mata pássaros, ursos,
nenhum outro ser, apenas humanos.
Quem está em pânico são os povos
humanos e seu mundo artificial,
seu modo de funcionamento que
entrou em crise. É terrível o que
está acontecendo, mas a sociedade
precisa entender que não somos o
sal da terra. Temos que abandonar
o antropocentrismo; há muita vida
além da gente, não fazemos falta na
biodiversidade (KRENAK, 2020, p. 39).

Através desses exemplos, Krenak demonstra


que a vida na Terra não se restringe à humanidade.
Independente da nossa existência, as plantas, os
animais e demais seres da natureza continuarão
seus processos de desenvolvimento e existência.
Portanto, o autor reforça a necessidade de uma
visão contemporânea sobre o planeta, que incor-
pore o cuidado com a Terra. Assim, as reflexões
dos povos ameríndios apresentam-se como novas
perspectivas e desafios para a Antropologia.
80

Filmes para conferir:

O Enigma de Kaspar Hauser (Werner Herzog,


1974): filme que retrata a vida de Kaspar, um rapaz
criado longe da sociedade até a juventude, quando
é deixado em uma cidade alemã. Ao longo do filme,
o rapaz é tratado como um ser humano em estágio
primitivo da humanidade, e são questionadas suas
capacidades de socializar, aprender e interagir com
outros humanos.

A última floresta (Luiz Bolognesi, 2021):


documentário que narra a cosmologia e a luta do
povo Yanomami na defesa de seu território e contra
a destruição da Terra, através do olhar de Davi
Kopenawa.

Para seguir:

@campopodcast (ins-
tagram e spotify): pod-
cast com curadoria e
pequenas aulas sobre
autores e autoras clás-
sicas e contemporâneas
da Antropologia. Idealizado
por Carol Parreiras e Paula
Maria.
81
Unidade 3
Videoaula 1

Videoaula 2
84
85

PROBLEMAS
SOCIAIS DO
BRASIL

FORMAÇÃO NACIONAL
Há uma ideia sobre a formação
nacional que gira em torno da cor-
dialidade, das relações amistosas e
pacíficas entre diferentes povos que
constituiriam o que conhecemos
como povo brasileiro. Contudo, essa
ideia tem uma compreensão que foi
internalizada pelo senso comum e
por movimentos que apregoam a
negação das diferenças sociais e do
racismo, e outra que percebe a cor-
dialidade como um efeito corruptivo
das relações hierárquicas no Brasil.
Deixando de ser uma colônia portu-
guesa, a sociedade brasileira con-
86

Anotações:
quistou sua independência nacional em 1822, sob
um regime monárquico.

Suas bases socioeconômicas e políti-


cas repousavam na grande proprie-
dade rural, monocultora e exportadora
de produtos primários para o mercado
externo; na exploração extensiva de
força de trabalho escrava, alimentada
pelo tráfico internacional de negros
desenraizados de suas tribos e comu-
nidades de origem no continente afri-
cano; na organização social estamen-
tal que estabelecia rígidas fronteiras
hierárquicas entre brancos, herdeiros
do colonizador português, negros es-
cravizados, homens livres destituídos
da propriedade da terra e populações
indígenas. Esses fundamentos soci-
ais conformaram uma vida associati-
va, isto é, padrões de socialidade e de
sociabilidade constituída em torno do
parentesco, da mescla de interesses
materiais e morais, da indiferenciação
entre as fronteiras dos negócios pú-
blicos e dos interesses privados, no
adensamento da vida íntima, na in-
tensidade dos vínculos emocionais,
no elevado grau de intimidade e de
proximidade pessoais e na perspecti-
va de sua continuidade no tempo e no
espaço, sem precedentes (ADORNO,
2002, p. 84).

Por sua vez, o poder político encontrava seus


fundamentos institucionais no patrimonialismo,
87

Anotações:
isto é, uma estrutura de dominação cuja legitimi-
dade se constrói tendo como bases as relações en-
tre grandes proprietários rurais, representantes do
estado burocrático e clientelas locais mantidos a
partir de trocas de favores ou de apoio político.

Figura 6 - Abaporu, de Tarsila do Amaral (1928),


símbolo do movimento modernista brasileiro, é
usado para ilustrar a capa do livro “Raízes do
Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda

Fonte: Google.

Assim, um dos pontos de partida da formação


do Brasil é sua relação com a “cordialidade”, conceito
caracterizado por Sérgio Buarque de Holanda,
em seu célebre livro “Raízes do Brasil”. Buarque
de Hollanda tece diferentes pilares (raízes) do que
constituiu o Brasil. Um desses pilares é o padrão de
comportamento cordial, que envolve as relações
estatais, burocráticas, numa teia de vínculos de
88

Anotações:
apadrinhamento e familiaridade. Em nível ideal,
o Estado e suas relações não deveriam ser uma
ampliação do círculo familiar ou da realização de
vontades privadas. Buarque de Hollanda afirma que:

Não existe, entre o círculo familiar e o


Estado, uma gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição.
A indistinção fundamental entre as
duas formas é o prejuízo romântico
que teve os seus adeptos mais entusi-
astas durante o século XIX. De acordo
com esses doutrinadores, o Estado e
as suas instituições descendem em
linha reta e, por simples evolução, da
família. A verdade, bem outra, é que
pertencem a ordens diferentes em es-
sência. Só pela transgressão da ordem
doméstica e familiar é que nasce o Es-
tado e que o simples indivíduo se faz
cidadão, contribuinte, eleitor, elegível,
recrutável e responsável, ante as leis
da Cidade. Há nesse fato um triunfo do
geral sobre o particular, do intelectual
sobre o material, do abstrato sobre o
corpóreo e não uma depuração suces-
siva, uma espiritualização de formas
mais naturais e rudimentares, uma
procissão das hipóstases, para falar
como na filosofia alexandrina. A ordem
familiar, em sua forma pura, é abolida
por uma transcendência (HOLLANDA,
1995, p. 141).

Contudo, o autor vai demonstrar que o Brasil,


diferente do modelo ideal das relações de Estado
89

Anotações:
e cidadania, terá a “cordialidade” como base
civilizacional.

A contribuição brasileira para a


civilização será de cordialidade —
daremos ao mundo o “homem cordial”.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas
por estrangeiros que nos visitam,
representam, com efeito, um traço
definido do caráter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece
ativa e fecunda a influência ancestral
dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal
(idem, p. 146).

A cordialidade não é sinônimo de boas ma-


neiras, de relações de bom trato entre as pessoas.
A noção de cordialidade percebida por Buarque
de Hollanda, passa pelo esforço de, por meio de
sutilezas cotidianas, estabelecer vínculos sociais
que funcionem como meios de troca (de favores,
cuidados, afetividades, obrigações).

Na civilidade há qualquer coisa de


coercitivo — ela pode exprimir-se em
mandamentos e em sentenças. Entre
os japoneses, onde, como se sabe,
a polidez envolve os aspectos mais
ordinários do convívio social, chega
a ponto de confundir-se, por vezes,
com a reverência religiosa. Já houve
quem notasse este fato significativo,
de que as formas exteriores de
veneração à divindade, no cerimonial
90

Anotações:
xintoísta, não diferem essencialmente
das maneiras sociais de demonstrar
respeito. Nenhum povo está mais
distante dessa noção ritualista da
vida do que o brasileiro. Nossa forma
ordinária de convívio social é, no
fundo, justamente o contrário da
polidez. Ela pode iludir na aparência —
e isso se explica pelo fato de a atitude
polida consistir precisamente em
uma espécie de mímica deliberada de
manifestações que são espontâneas
no “homem cordial”: é a forma natural
e viva que se converteu em fórmula
(idem, p. 147).

Essa ambiguidade da “polidez” como narrada


pelo autor, supõe que a gentileza seja um meio de
proteção exterior, servindo, quando necessário,
como uma ferramenta de existência.

Equivale a um disfarce que permitirá


a cada qual preservar inatas sua
sensibilidade e suas emoções. Por
meio de semelhante padronização das
formas exteriores da cordialidade, que
não precisam ser legítimas para se
manifestarem, revela-se um decisivo
triunfo do espírito sobre a vida. Armado
dessa máscara, o indivíduo consegue
manter sua supremacia ante o social.
E, efetivamente, a polidez implica
uma presença contínua e soberana do
indivíduo (ibidem, p. 147).

Um exemplo citado por Buarque de Hollanda


(1995) é o uso da terminação “inho”, aposta nas
91

Anotações:
palavras, que servem para criar mais familiaridade
com as pessoas ou os objetos. “É a maneira de
fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também
de aproximá-los do coração.” Podemos pensar nos
desdobramentos dessa “cordialidade” nas relações
de poder patrimonial e político, por exemplo. Há
muitos casos em que um patrão que exerce grande
domínio sobre uma mesma região, estabeleça
vínculos de familiaridade com famílias ao redor,
ampliando assim sua autoridade. O mesmo ocorre
com políticos de perfil coronelista, aqueles que se
mantêm por muitas décadas em posições de poder,
por exercitarem essa dicotomia entre autoridade
estatal e cordialidade familiar.

QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL

Quando falamos de questões étnico-raciais


no Brasil, é comum ouvirmos que não há racismo.
Esta ideia é fruto de uma teoria que sofreu grande
influência a partir da publicação de “Casa Grande e
Senzala” (1933), de Gilberto Freyre. Nessa época, em
virtude da formação da identidade nacional, havia
inquietações acerca de o que constituiria o ethos
da sociedade brasileira. Nesse livro, Freyre trazia a
ideia de que a miscigenação brasileira possibilitou
um convívio harmonioso entre as diferentes
raças que compunham o povoamento do Brasil.
Sendo assim, a interpretação dominante sobre a
realidade brasileira passou a produzir um discurso
negacionista em relação às desigualdades raciais,
reforçando a ideia de que a convivência entre as “três
raças” (indígenas, negros e brancos) era pacífica e,
portanto, estávamos sob uma “democracia racial”.
92

Anotações:
A quebra desse paradigma higienizador sobre
as relações étnico-raciais no Brasil, se dá a partir
da obra de Florestan Fernandes, “A integração do
Negro na Sociedade de Classes”. Essa obra buscou
compreender o que resulta do encontro dos negros,
mulatos e brancos, a partir da promulgação da Lei
Áurea, de abolição da escravatura, em 1888. Foi um
contraponto à tese freyriana de que as relações
entre brancos e negros, casa grande e senzala,
eram complementares, tendo contribuído com
a formação de uma identidade nacional (mito da
democracia racial).
Florestan (2008) afirma que o processo de
“integração” de pessoas negras foi desde o princípio
deformador, e que não era possível se pensar que
o cruzamento ou o processo de branquização que
ocorrera no “meio negro” havia sido tão eficiente
para se pensar numa “democracia racial”.

Sofrimento na adaptação dos recém-


libertos negros e mulatos às novas
circunstâncias para as quais foram
irreversivelmente empurrados.
Não havia mais um lugar para eles;
sua importância acabara com o
fim da escravidão. Ora, o negro não
estava acostumado a muitas coisas,
inclusive, à liberdade. Depois de
tanta dor diante da exploração cativa,
longe das escolhas, do encontro com
o outro, fosse ele branco ou mesmo
negro, o despreparo moral e material
era real e inevitável. Diante do
infortúnio experimentado pelo “meio
negro,” irá se registrar (nas décadas
93

Anotações:
seguintes a Abolição) um “déficit
negro” perceptível na cidade de São
Paulo (FERNANDES, 2008, p. 27).

Florestan analisa alguns dados censitários


e faz algumas considerações sobre as causas da
baixa demográfica do “elemento negro” em centros
urbanos. Em primeiro lugar, ele esclarece que:

A baixa no índice vegetativo não foi


tão alarmante, nem aconteceu pelas
causas que se imaginou durante
muito tempo. E, para ser bem
compreendida, deveria ser pensado
em conformidade com a alteração
da estrutura demográfica da cidade
de São Paulo. Ou seja, a cidade vai
receber no período do final do século
XIX e início do século XX uma grande
quantidade de imigrantes europeus
(brancos), e isso vai representar um
salto enorme na população de São
Paulo (idem, p. 30).

A ideia de cruzamento entre as raças (como


parte de um processo de branquização), mesmo
sendo pequeno, também terá sua importância.
Muitos indivíduos de pele mais clara e de condições
socioeconômicas melhores irão mudar de catego-
ria racial e algumas vezes, aceitos, inclusive, em
relações matrimoniais pelos brancos. Florestan
também salienta a discrepância das informações
sobre a cor das crianças nos registros de nasci-
mento. Muitas crianças mulatas eram declaradas
como brancas ao nascer, mas os óbitos continu-
94

Anotações:
avam sendo fiéis à cor dos indivíduos (declaradas
como negras/mulatas quando mortas).
Dessa forma, começou a ter um número
muito pequeno de nascimentos discrepantes em
relação ao número de mortes. No entanto, como
já fora mencionado, o decréscimo na população de
cor existiu, mas não atingiu proporções alarmantes
e também não foi causado por inadaptabilidade
dos negros e mulatos às precárias condições
de existência em relação aos brancos. Esse não
foi o maior problema que os negros e mulatos
enfrentaram em sua luta por sobrevivência no
mundo do branco.

Negritude, identidade e racismo

Se o processo de construção da identidade


nasce a partir da tomada de consciência das
diferenças entre “nós” e “outros”, para Munanga
(2012, p. 06), “o grau dessa consciência é idêntico
entre todos os negros, considerando que todos
vivem em contextos socioculturais diferenciados.”

O essencial para cada povo é reen-


contrar o fio condutor que o liga a seu
passado ancestral o mais longínquo
possível. A consciência histórica, pelo
sentimento de coesão que ela cria,
constitui uma relação de segurança
a mais certa e a mais sólida para o
povo. É a razão pela qual cada povo
faz esforço para conhecer sua verda-
deira história e transmiti-la às futu-
ras gerações. Também é a razão pela
qual o afastamento e a destruição da
95

Anotações:
consciência histórica eram uma das
estratégias utilizadas pela escravidão
e pela colonização para destruir a
memória coletiva dos escravizados
e colonizados. Nas bases populares
negras sem vínculos com as comuni-
dades religiosas de matriz africana, a
consciência histórica e, consequen-
temente, a identidade se diluíriam nas
questões de sobrevivência que toma
o passo sobre o resto e pode desem-
bocar num outro tipo de identidade: a
da consciência do oprimido economi-
camente e discriminado racialmente.
Na militância negra há uma tomada
de consciência aguda da perda da
história e, consequentemente, a bus-
ca simbólica de uma África idealizada
(MUNANGA, 2012, p. 7).

Munanga (2012) também questiona o fator psi-


cológico que gera questionamentos sobre o tem-
peramento do negro, que é diferente do tempera-
mento do branco e, se isso, pode ser considerado
como marca da identidade negra. Muitas relações
são feitas entre pessoas negras e atitudes tidas
como grosseiras (“a preta é braba”, “o negro briguen-
to). Ele não nega que possam existir diferenças de
temperamento relacionadas à negritude, mas es-
clarece que se essa diferença realmente existir,
suas causas são “o condicionamento histórico do
negro e de suas estruturas sociais comunitárias, e
não com base nas diferenças biológicas como pen-
sariam os racialistas” (2012, p. 08).
96

Anotações:
Se historicamente a negritude é,
sem dúvida, uma reação racial negra
a uma agressão racial branca, não
poderíamos entendê-la e cercá-la
sem aproximá-la do racismo do qual
é consequência e resultado. Para ser
racista, coloca-se como postulado
fundamental a crença na existência
de “raças” hierarquizadas dentro da
espécie humana. De outro modo, no
pensamento de uma pessoa racista
existem raças superiores e raças infe-
riores. Em nome das chamadas raças,
inúmeras atrocidades foram cometi-
das nesta humanidade: genocídio
de milhões de índios nas Américas,
eliminação sistemática de milhões de
judeus e ciganos durante a Segunda
Guerra Mundial. Como se não bastasse
o antissemitismo, a persistência dos
mecanismos de discriminação racial
na África do Sul durante a Apartheid,
nos Estados Unidos, na Europa e em
todos os países da América do Sul
encabeçados pelo Brasil e em outros
cantos do mundo demonstra clara-
mente que o racismo é um fato que
confere à “raça” sua realidade política
e social (idem, p. 08-09).

Ou seja, se cientificamente a realidade da


raça é contestada, política e ideologicamente
esse conceito é muito significativo, pois funciona
como uma categoria de dominação e exclusão
nas sociedades multirraciais contemporâneas
observáveis. Crítica observada na tirinha.
97

Anotações:

Fonte: Laerte, 2012.

Um dos dilemas da questão racial brasileira é


a desigualdade econômica, como salienta o verso
da canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, “E quase
brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”:
os oprimidos brancos da sociedade não têm
consciência de que a exclusão política e econômica
do negro, por motivos racistas, só beneficia a classe
dominante, o que torna difícil, senão impossível,
sua solidariedade com o oprimido negro; além
disso, eles mesmos são racistas pela educação e
pela socialização recebidas na família e na escola.

Os que pensam que a situação do ne-


gro no Brasil é apenas uma questão
econômica, e não racista, não fazem
esforço para entender como as práti-
cas racistas impedem ao negro o
98

Anotações:
acesso na participação e na as-
censão econômica. Ao separar raça
e classe numa sociedade capitalis-
ta, comete-se um erro metodológi-
co que dificulta a sua análise e os
condena ao beco sem saída de uma
explicação puramente economicista
(idem, p. 14).

Entre os povos indígenas, as questões étni-


co-raciais passam pelo apagamento identitário e
pelos problemas de casamentos entre indígenas
e brancos. Essa questão aparece na literatura
antropológica como contato interétnico, que no
início tinha interesse em compreender se os indí-
genas sofriam processos de “aculturação” a partir
do contato e construção de novas relações com os
brancos. A identidade das crianças nascidas dos
relacionamentos entre índias e brancos é obje-
to de controvérsia na etnologia brasileira, por se
tratar de uma questão sempre em disputa e nego-
ciação.
Esses filhos de indígenas com brancos são
chamados de “caboclos”, e seu pertencimento
gera polêmicas entre as famílias indígenas, pois
geralmente são filhos de mulheres indígenas, em
contextos onde o pertencimento étnico passa pela
linhagem paterna. Em alguns grupos, essas regras
sociais são renegociadas, para que os filhos de
mulheres indígenas com homens brancos, possam
ter o reconhecimento étnico assegurado.
99

Anotações:
CONFLITOS AGRÁRIOS E AS LUTAS
PELA TERRA

Os conflitos pelo direito à terra são muito


antigos no Brasil e tiveram seu ápice após a
abolição da escravatura. A população negra, até ali
escravizada, tinha seu trabalho ligado à produção
agrícola. Com o fim da escravidão e a substituição
pela mão de obra migrante (predominantemente
italiana) nas fazendas e cafezais, essa população
negra ficou totalmente desamparada, sem uma
redistribuição das terras nos espaços rurais do
país, e sobrecarregando as margens das cidades
que começavam a se reconfigurar diante da lenta
industrialização nacional.
Um dos primeiros movimentos sociais
importantes para a configuração das lutas pelo
direito à terra e reforma agrária no Brasil foram
as Ligas Camponesas, que eram associações de
trabalhadores rurais criadas, inicialmente, no
estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba,
no estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras
regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade
no período que se estendeu de 1955 até a queda de
João Goulart em 1964.
O movimento que se tornou nacionalmente
conhecido como “ligas camponesas,” iniciou-se
de fato, com 140 famílias no engenho Galileia, em
Vitória de Santo Antão, em Pernambuco tendo sido
criado no dia 1º de janeiro de 1955 com o nome de
Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de
Pernambuco (SAPPP).
O processo iniciado em 1955 desencadeou
novos núcleos até o início dos anos 60. 25 núcleos
100

Anotações:
foram instalados no estado, com predominância
visível da Zona da Mata e do Agreste sobre o
Sertão. Dentre esses núcleos, destacavam-se
os de Pau d’Alho, São Lourenço da Mata, Escada,
Goiana e Vitória de Santo Antão. A partir de 1959,
as ligas camponesas se expandiram rapidamente
em outros estados, como a Paraíba, estado do Rio
(Campos) e Paraná, aumentando o impacto político
do movimento.
Dentre esses núcleos, o mais importante foi
o de Sapé, na Paraíba, o mais expressivo e o maior
de todos. A expansão da Liga de Sapé acelerou-se a
partir de 1962, quando foi assassinado seu principal
líder, João Pedro Teixeira, a mando do proprietário
local. Pouco depois esse núcleo congregava cerca
de dez mil membros, enquanto outros núcleos iriam
se espalhar pelos municípios limítrofes.
De um modo geral, as associações criadas
tinham caráter civil, voluntário e por isso mesmo
dependiam de um estatuto e de seu registro em
cartório. Para constituir legalmente uma liga, bas-
tava aprovar um estatuto, registrá-lo na cidade
mais próxima e lá instalar a sua sede. As finalidades
das ligas eram prioritariamente assistenciais, so-
bretudo jurídicas e médicas, e ainda de autodefesa,
nos casos graves de ameaças a quaisquer de seus
membros. As lideranças pretendiam também, a
médio e longo prazos, fortalecer a consciência dos
direitos comuns, que compreendiam a recusa em
aceitar contratos lesivos, dia de trabalho gratuito
para aqueles que cultivavam a terra alheia e outras
prestações de tipo “feudal”.
Nesse momento, o uso do termo “camponês”
constituiu-se, no Brasil, como categorias unitárias
101

Anotações:
para classificar diferentes modos de trabalho sobre
a terra, com o intuito de unificar trabalhadores
rurais em oposição aos “latifundiários” (os donos
da terra — grandes propriedades rurais — que não
exerciam seu trabalho sobre ela). A desagregação
do movimento, em 1964, eliminou as organizações,
mas não desarticulou suas reivindicações básicas,
que seriam incorporadas pelos sindicatos rurais
no período seguinte (1965-1983). Convém notar que
esses sindicatos rurais têm sido, particularmente,
ativos nas antigas zonas de influência das ligas.
A ditadura militar, com início em 1964, forçou
e perseguiu as lideranças que compunham as ligas
camponesas. Um documentário clássico sobre
o impacto da ditadura sobre os movimentos de
reforma agrária no Brasil é “Cabra Marcado para
Morrer”, de Eduardo Coutinho. Além de narrar de
forma brilhante como se deu a expansão das ligas,
Coutinho segue os rastros de Elisabete Teixeira,
esposa de João Pedro Teixeira, assassinado a
mando dos coronéis.
Nos últimos 30 anos, próximo ao fim da
Ditadura Militar, os movimentos pela terra ganharam
novas configurações no Brasil. O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é, sem
dúvida, o movimento sindical mais influente na vida
rural brasileira, que tem como principal bandeira a
reforma agrária. Sigaud (2004), ao explicar como
funcionam os acampamentos e a estrutura de
organização do MST, afirma:

A partir do final dos anos 70 as ocu-


pações foram retomadas no sul do
país e estiveram associadas à insta-
lação de acampamentos com deze-
102

Anotações:
nas, centenas de famílias. As pri-
meiras foram organizadas por jovens
filhos de pequenos produtores, com
apoio da Comissão Pastoral da Ter-
ra (CPT), vinculada à Igreja Católica.
Foi este núcleo que criou, em 1984, o
MST. Em meados da década de 80 há
registros de ocupações em vários es-
tados brasileiros, graças a uma políti-
ca de expansão da organização. Em
1993, o Congresso Nacional estabele-
ceu que a improdutividade das terras
caracterizava o não cumprimento da
função social da propriedade, caso
previsto pela Constituição de 1988
para proceder à desapropriação. As
ocupações generalizaram-se em todo
o país. Durante o período, o Instituto
Nacional da Reforma Agrária (INCRA),
que até então tinha uma atuação
modesta, começou a desapropriar
as terras ocupadas e as redistribuiu
entre os que estavam nos acampa-
mentos, tornando-os titulares de uma
parcela de terra. As ocupações, os
acampamentos e as desapropriações
indicam uma inflexão no modo de pro-
ceder das diversas organizações no
mundo rural e do Estado. Daí poder-se
falar de um fato novo (p. 11).

A Reforma Agrária, por sua vez, consiste na


reivindicação pelo reordenamento e redistribuição
de terras improdutivas, ou grandes hectares de
terra que são usados de maneira industrial para
produção de um só produto que visa o lucro de
103

Anotações:
uma pessoa ou família. A ideia de Reforma Agrária
também está vinculada ao tipo de trabalho sobre a
terra, uma disputa entre o mercado agroindustrial
brasileiro e as famílias agricultoras (agricultura
familiar, modelos de produção orgânica de
alimentos, agriculturas de subsistência. O Estado
brasileiro tem conferido legitimidade à pretensão
dos movimentos, ao desapropriar as fazendas
ocupadas e redistribuir as terras entre os que
se encontram nos acampamentos. Utilizando o
exemplo da Zona Rural pernambucana, Sigaud
(2004) explica como ocorreram as disputas em
torno da terra e dos modelos de produção rural.

No final da década de 80, o Governo


brasileiro alterou as diretrizes em
relação à agroindústria açucareira,
no bojo de uma política mais geral
de retirada do Estado da economia:
suprimiu os subsídios que há déca-
das garantiam o preço da cana e do
açúcar; privatizou as exportações;
e permitiu a elevação da taxa de ju-
ros. Estas medidas, assim como uma
grande seca ocorrida no período,
desencadearam uma crise no setor.
Muitos patrões não lograram adap-
tar-se à falta de proteção do Esta-
do e faliram. Outros tantos trataram
de se reestruturar. Milhares de tra-
balhadores perderam o emprego,
quer pela falência dos patrões, quer
pela redução dos efetivos promovi-
da pelas empresas. No final dos anos
90, das quatro usinas que exploram
a cana na área estudada apenas uma
104

Anotações:
estava em situação tida como sólida
e equilibrada. A segunda saía de um
pedido de concordata; a terceira não
havia moído na safra de 96-97 e desde
1995 não pagava regularmente seus
trabalhadores; a quarta entregara ao
Banco do Brasil treze de seus enge-
nhos para pagar dívidas e habilitar-se
a novos empréstimos (p. 15).

Um dos argumentos contra os movimentos


de ocupação de Terras no Brasil, é de que os acam-
pamentos seriam realizados em espaços produti-
vos, portanto, prejudicariam a economia nacional.
Sigaud (2004) demonstra que as usinas de produção
de cana-de-açúcar, ocupadas pelos acampamen-
tos do MST, nos anos 90, já tinham baixas taxas de
produção. Isso demonstra que o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra estava organizado
para ocupar, primordialmente, as terras improduti-
vas. Vale ressaltar, que os acampamentos são orga-
nizados para produzir alimentos orgânicos a partir
de “agricultura familiar”, modelo econômico em que
as famílias produzem alimentos para subsistência,
com excedente de produção limitado para troca e
venda.
Nesse contexto, o MST trouxe a tecnologia
apropriada para ocupar terras, montar e administrar
os acampamentos, tendo as ocupações dos anos
90 como marcos inaugurais do movimento. O
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
buscou recrutar jovens com objetivo de montar
uma rede de militantes que passaram a atuar na
área a serviço do movimento e de suas ocupações.
Esse modelo de organização das lutas pela
terra, a partir dos anos 80, passou a perceber a
105

Anotações:
continuidade dos acampamentos de ocupação
como meio de adquirir o reconhecimento do
Estado sobre a propriedade. Isso ocorre a partir
de uma série de disputas políticas e jurídicas em
torno de como a propriedade foi adquirida, como
os regimes de trabalho são administrados. O INCRA
passou, então, a consolidar “assentamentos rurais”,
reconhecendo os direitos de propriedade para
muitos grupos “sem-terra” e comunidades.

CIDADES E VIOLÊNCIA URBANA

Os processos de urbanização do Brasil são,


quase todos, iniciados por uma elite agrária — com
cidades em zonas portuárias, ou industrial — que
moldou as principais metrópoles modernas. O
crescimento das cidades é absolutamente desigual,
gerando problemas de moradia, de distribuição de
condições básicas de sobrevivência como rede de
esgoto, problemas de infraestrutura, mobilidade
urbana e formação de guetos do crime organizado.
Dessa forma Milton Santos, geógrafo que se
especializou em compreender como a globalização
e a modernidade afetaram as cidades brasileiras,
explica:

Alcançamos, neste século, a ur-


ba-nização da sociedade e a ur-
banização do território, depois de
longo período de urbanização so-
cial e territorialmente seletiva. De-
pois de ser litorânea (antes e mesmo
depois da mecanização do território),
a urbanização brasileira se tornou
praticamente generalizada a partir do
106

Anotações:
terceiro terço do século XX, evolução
quase contemporânea da fase atual
de macrourbanização e metropoli-
zação. O turbilhão demográfico e a
terciarização são fatos notáveis. A
urbanização se avoluma e a residên-
cia dos trabalhadores agrícolas é
cada vez mais urbana. Mais que a
separação tradicional entre um Bra-
sil urbano e um Brasil rural, há, hoje,
no País, uma verdadeira distinção en-
tre um Brasil urbano (incluindo áreas
agrícolas) e um Brasil agrícola (in-
cluindo áreas urbanas). Registra-se,
todavia, uma atenuação relativa das
macrocefalias, pois além das cidades
milionárias desenvolvem-se cidades
intermediárias ao lado de cidades
locais, todas, porém, adotando um
modelo geográfico de crescimento
espraiado, com um tamanho desme-
surado que é causa e é efeito da espe-
culação (SANTOS, 1993, p. 9).

Entre esses diversos problemas enumerados,


talvez o mais contingente seja o aumento da
violência urbana gerada por fatores estruturais da
desigualdade brasileira, como o acesso aos direitos
básicos (educação, alimentação, saúde, esporte e
lazer).

A sociedade brasileira, egressa do


regime autoritário, há duas décadas,
vem experimentando, pelo menos,
quatro tendências: a) o crescimento
da delinquência urbana, em especial
107

Anotações:
dos crimes contra o patrimônio (rou-
bo, extorsão mediante sequestro) e
de homicídios dolosos (voluntários);
b) a emergência da criminalidade or-
ganizada, em particular em torno do
tráfico internacional de drogas, que
modifica os modelos e perfis con-
vencionais da delinquência urbana
e propõe problemas novos para o
direito penal e para o funcionamen-
to da justiça criminal; c) graves vio-
lações de direitos humanos que com-
prometem a consolidação da ordem
política democrática; d) a explosão
de conflitos nas relações intersub-
jetivas, mais propriamente conflitos
de vizinhança que tendem a conver-
gir para desfechos fatais. Trata-se
de tendências que, conquanto rela-
cionadas entre si, radicam em cau-
sas não necessariamente idênticas
(ADORNO, 2002, p. 84).

A metrópole torna-se o lugar privilegiado do


capital, onde se colocam todos os recursos, para
onde as pessoas migrarão em busca de trabalho,
e onde, consequentemente, muitas pessoas, sem
espaço nos meios de trabalho formais, realizarão
uma série de atividades tidas como marginais,
seja do ponto de vista das tecnologias, seja na
perspectiva das leis e fiscalizações.
Ao mesmo tempo, os investimentos e gastos
na cidade, terão como prioridade os interesses
econômicos hegemônicos: a população sem acesso
aos bens, serviços e direitos sociais, permanecerá
marginalizada, ampliando as crises nas cidades.
108

Anotações:
Mesmo que algumas atividades comecem a
crescer, persistirão a pobreza e a desigualdade,
uma vez que sem investimentos, sem nivelação
técnica e educacional, a população pobre terá suas
condições de existência cada vez mais degradadas.
A violência letal produzida intencionalmente,
a circulação de armas e a facilitação de sua
comercialização são desafios para as instituições
democráticas do Brasil, atualmente. Mais do
que meros problemas de segurança pública, a
concentração de assassinatos letais em territórios
urbanos demonstra como estão localizadas as
ações de grupos armados e seus domínios em
zonas e bairros das cidades.

Seja pela constante ameaça ou mes-


mo pelo uso concreto da violência,
tais grupos controlam diversos tipos
de negócios legais e ilegais nesses
territórios, garantindo lucros eleva-
dos para a sustentação e expansão
de suas atividades, corroendo a insti-
tucionalidade democrática em nível
local e apelando para a flexibilização
do monopólio legítimo da força pelo
Estado. Nos territórios onde exercem
ou disputam o poder com os rivais,
porém, o resultado é parecido: esses
grupos acabam impondo o silêncio
forçado aos moradores, que pre-
cisam se conformar a viver rotinas
de tiroteios e de corpos amanheci-
dos nas ruas, como se seus bair-
ros estivessem fadados a seguir
sob uma sombra eterna, inalcança-
dos pelo Estado de direito e pela
109

Anotações:
Justiça. (...) Quando esses grupos
são mais bem estruturados, como
ocorre no Rio de Janeiro, tendem
a funcionar como uma espécie de
governo territorial ilegal, assumindo
o monopólio do uso da força em
seus territórios e desenvolvendo
com a população uma relação ao
mesmo tempo tirânica, paternalista
e clientelista. Na capital fluminense,
nas centenas de bairros controlados
pelas facções criminosas — Comando
Vermelho, Terceiro Comando Puro,
Amigo dos Amigos e os grupos para-
militares — o poder político tende a
ser medido pela quantidade de fuzis
que tais grupos têm para se defender
(MANSO e ZILLI, 2021, p. 09).

A violência urbana insere-se nas relações


da cidade de tal modo, que seu funcionamento,
suas interações e seus modos de agir, tornam-
se parte da rotina da cidade. Tiros a luz do dia, a
possibilidade de furtos e assaltos nos meios de
transporte públicos, as grandes ações de grupos
criminosos organizados em certos períodos de
tempo ao longo dos anos, dão o tom da presença
cotidiana da violência nas metrópoles.
As forças policiais, que deveriam atuar, estra-
tegicamente, para o rastreio e contenção de grupos
e sujeitos que se posicionam tiranicamente sobre
certos territórios urbanos, por vezes são mais um
grupo que utiliza da violência (do poder de polícia e
do porte de armas de fogo) para aterrorizar a popu-
lação disputando o poder local. Não só adotam uma
110

Anotações:
violência policial deliberada, mais também agem
como grupos criminosos organizados, ou milícias,
aproveitando o status de agentes públicos. Com
isso, fragilizam ainda mais a credibilidade das insti-
tuições de ordem do Estado, que representam.
Para Santos (1993), a cidade em si, como
relação social e como materialidade, torna-se
criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeco-
nômico de que é o suporte como por sua estrutura
física, que faz dos habitantes das periferias (e dos
cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não
é apenas o fato do modelo socioeconômico vigen-
te, mas, também, do modelo espacial.

A AMAZÔNIA NO DEBATE SOCIAL

A análise sobre a Amazônia brasileira quase


sempre privilegia dois temas: a natureza e o que, ge-
nericamente poderíamos chamar de Amazônia Ofi-
cial, ou seja, a Amazônia dos Grandes Projetos. Essas
abordagens, embora importantes, são limitadas. Na
primeira, considera-se território apenas do ponto
de vista da natureza, tornando-o inócuo, pois são
as relações sociais que o constroem, ou destro-
em, inventam-no e o reconstroem num processo
que pressupõe conflitos, contradições e lutas dos
sujeitos. Na segunda, é preciso reconhecer que o
processo de transformação ocorrido na Região de-
terminou novos significados para as cidades, no
entanto, parte significativa da Amazônia não foi
atingida por este processo o que não quer dizer
que não seja influenciada por ele.
Becker (2005) afirma que existem dois
movimentos internacionais em torno da Amazônia.
111

Anotações:
O primeiro se dá em nível do sistema financeiro,
da informação, do domínio do poder efetivamente
das potências; o segundo tem relação com a
internacionalização dos movimentos sociais, por
meio de ONGs, por exemplo:

Todos os agentes sociais organizados,


corporações, organizações religiosas,
movimentos sociais etc., têm suas
próprias territorialidades, acima e
abaixo da escala do Estado, suas
próprias geopolíticas, e tendem a se
articular, configurando uma situação
mundial bastante complexa (p. 72).

O povoamento da Amazônia e seu desenvolvi-


mento foram fundados a partir de um paradigma de
relação entre sociedade e exploração da natureza.
Essa lógica encara o desenvolvimento como linear
(sempre adiante, sempre em “progresso”) assim
como, encara os recursos naturais como infinitos,
o que sabemos ser uma lógica equivocada.

É imperativo o uso não predatório


das fabulosas riquezas naturais que a
Amazônia contém e também do saber
das suas populações tradicionais que
possuem um secular conhecimento
acumulado para lidar com o trópico
úmido. Já há na região resistências à
apropriação indiscriminada de seus
recursos e atores que lutam pelos
seus direitos (idem, p. 72).

Outra posição sobre a Amazônia, diferente


daquela de caráter mais desenvolvimentista
112

Anotações:
é a percepção de seu território como uma
imensa unidade de conservação, que deve ser
preservada integralmente, com vistas a assegurar
a sobrevivência do planeta, devido aos danos
provocados pelo desmatamento e exploração de
recursos minerais sobre o clima e a biodiversidade.

A natureza foi reavaliada e revalori-


zada a partir de duas lógicas muito
diferentes, mas que convergem para
o mesmo projeto de preservação
da Amazônia. A primeira lógica é a
civilizatória ou cultural, que possui
uma preocupação legítima com a
natureza pela questão da vida, o que
dá origem aos movimentos ambien-
talistas. A outra lógica é a da acumu-
lação, que vê a natureza como recur-
so escasso e como reserva de valor
para a realização de capital futuro,
fundamentalmente no que tange ao
uso da biodiversidade condicionada
ao avanço da tecnologia. Outro recur-
so de que pouco se fala, mas que já é
fundamental, é a água como fonte de
vida e de energia em razão dos isóto-
pos de hidrogênio, questão teórica
ainda não solucionada, mas que vem
sendo pesquisada em muitos países,
especialmente na Alemanha e nos
EUA (BECKER, 2005, p. 74).

Uma postura de oposição à preservação


da Amazônia são os avanços e investimentos
em maquinários avançados para o agronegócio.
Com o crescimento da produção e o aumento da
113

Anotações:
produtividade da soja, a terra não é mais ocupada
como reserva de valor, como foi na época da
fronteira anterior. Agora o que sucede é o uso
produtivo da terra. Acrescem mudanças também na
pecuária, principalmente no Sudeste do Pará e no
Mato Grosso, onde ocorrem melhorias com respeito
às pastagens, aos rebanhos e à indústria de couro
e de leite. Mudanças bastante significativas em
termos econômicos. As redes e cidades permitem
a expansão dessa área econômica avançada que é
chamada de “arco de fogo”, ou do desmatamento ou
“de terras degradadas”, porque foi onde se expandiu
a fronteira e o desmatamento. Como proposta
diante dessas posturas, quase sempre externas,
sobre a Amazônia, Becker (2005) sugere que:

Se a Amazônia é efetivamente uma


região, então há que se substituir a
política de ocupação por uma políti-
ca de consolidação do desenvolvi-
mento. Uma política de ocupação
não tem mais cabimento, porque a
região já está ocupada. As florestas
que restaram devem permanecer
com seus habitantes. É necessário
articular os diferentes projetos e os
diversos interesses e conflitos que
incidem na região (p. 83).

Oliveira (2004) argumentava que as taxas de


crescimento da população urbana da Amazônia,
(Região Norte) na última década foram superiores
à média nacional, mesmo assim, o grau de
urbanização é o menor do Brasil, com distribuição
desigual da população, concentrada principalmente
114

Anotações:
nas capitais. Com exceção do Pará, nenhum dos
demais Estados da Região apresentava em 1991,
outras cidades que não as capitais com mais de 100
mil habitantes.
No caso apresentado por Oliveira (2004),
a cidade de Manaus, capital do Amazonas,
concentrava até os anos 2000 quase a metade da
população de todo o Estado. Atualmente, esses
dados mantêm praticamente o mesmo padrão, ou
seja, Manaus é a capital mais populosa da região
Norte do Brasil e concentra 52,8% da população
do Estado do Amazonas (IBGE, 2021). Com mais
da metade da população amazônica residindo nas
cidades é, especialmente, nas pequenas cidades,
que os problemas urbanos são percebidos de
forma mais intensa, com as ausências de políticas
públicas e desigualdades amplificadas.
115

Filmes para conferir:

Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002):


através de diferentes linhas narrativas, o filme
demonstra a formação das favelas no Rio de Janei-
ro, a violência urbana decorrente da desigualdade
social e do racismo.

Auto de Resistência (Natasha Neri e Lula


Carvalho, 2019): no Rio de Janeiro, mais de 16.000
inocentes foram mortos em operações policiais nos
últimos vinte anos, todos sob o argumento policial
de legítima defesa. Este filme segue as mães das
vítimas de violência policial enquanto elas lutam
por justiça contra um sistema corrupto e brutal.

Cabra marcado para morrer (Eduardo


Coutinho, 1984): em 1964, um filme sobre a vida
de João Pedro Teixeira, líder da liga campone-
sa de Sapé, Pernambuco, começa a ser roda-
do, com a reconstituição ficcional da ação
política que levou
ao assassinato. As
filmagens são inter-
rompidas pelo golpe
militar de 1964, com
captura de alguns rolos
de filmes e perseguição à
viúva de João Pedro, Elisa-
beth Teixeira. Dezessete anos
depois, em 1981, Eduardo Coutinho
retoma o projeto em busca de Elisa-
beth Teixeira e outros participantes do
filme interrompido.
116

Para seguir:

Amazônia Real (amazoniareal.com.br): edita-


do por Elaíze Farias e Kátia Brasil, o portal jornalísti-
co tem foco em grandes coberturas sobre a região
Norte do Brasil, especialmente nos temas “meio
ambiente”, “povos indígenas” e “cultura”. Vencedo-
ras dos prêmios “Rei da Espanha de Meio de Co-
municação de Maior Destaque da Ibero-América”
(2019), Jornalismo Multimídia do 41º Prêmio Vladimir
Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2019), e prê-
mio especial da Associação Brasileira de Jornalis-
mo Investigativo – Abraji (2021).
117

Anotações:
118

Anotações:
Unidade 4
Videoaula 1 Videoaula 2

Videoaula 3 Videoaula 4
120

Anotações:
121

DESIGUALDADES
SOCIAIS E DIREITOS
HUMANOS

DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA


As consequências da Segunda Guer-
ra deixaram a Europa devastada. Milhões
de mortos, muitas pessoas em situação
de miséria e fome, e milhares de civis que
tiveram algum direito violado por ataques,
ações ou crimes de guerra. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos surge
como uma resposta global a essas vio-
lações, principalmente o extermínio de ju-
deus, negros, homossexuais e outras mi-
norias, durante a Segunda Guerra Mundial.
122

Anotações:
Representantes de 50 países reuniram-se para
elaborar um organismo mundial que visava a garantir
a paz e o respeito entre os povos, que viria a ser a
Organização das Nações Unidas (ONU). A primeira
ação elaborada foi a formação de uma Comissão de
Direitos Humanos da ONU, que ficaria responsável
pela redação de um documento prescritivo para
listar todos os direitos fundamentais dos seres
humanos. Em 1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos foi concluída e aprovada durante a
Assembleia Geral da ONU naquele mesmo ano.
Atualmente, 193 países são signatários da
ONU. Isso significa que, entre outras coisas, eles
devem garantir em seus territórios o respeito aos
direitos básicos dos cidadãos. Não há uma maneira
expressa e objetiva da organização fiscalizar e
regular o cumprimento dos Direitos Humanos, mas
as legislações da maioria dos países ocidentais
democráticos, bem como seus sistemas judiciários,
recorrem aos artigos expressos no documento
para formularem seus textos legais e aplicarem as
decisões e medidas jurídicas.
Os direitos fundamentais da pessoa humana
são reconhecidos e protegidos em todos os Es-
tados, embora existam algumas variações quan-
to à enumeração desses direitos e à extensão
de cada um deles, bem como quanto à forma de
protegê-los. Esses direitos não dependem da na-
cionalidade ou cidadania, sendo assegurados a
qualquer pessoa. Entretanto, podem existir cer-
tos meios de proteção que as leis de um Estado
criam especialmente para os seus cidadãos.
As Constituições, geralmente, referem-se a
esses direitos como “direitos individuais”, o que
123

Anotações:
não significa que eles possam ser exercidos pelo
indivíduo sem responsabilidade social. Na Consti-
tuição brasileira existe um capítulo especial sobre
os direitos individuais, dispondo-se que eles são
assegurados aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no Brasil. Como se trata de direitos
fundamentais da pessoa humana, a interpretação
dos dispositivos da Constituição, em caso de dúvi-
da, deve ser feita sempre do modo que for mais fa-
vorável à proteção das pessoas. Assim, por exemplo,
um estrangeiro que esteja apenas de passagem
pelo território, sem a intenção de aí residir, tam-
bém tem direito à mesma proteção.
A estreita relação entre paz e direitos hu-
manos, assim como entre paz e desenvolvimento,
já foi reconhecida pela Carta das Nações Unidas
que, em seu preâmbulo, declara: “Nós, os povos
das Nações Unidas, determinados a preservar as
próximas gerações do flagelo da guerra (...) e a
reafirmar a fé nos direitos humanos fundamen-
tais...”. O artigo 55 acrescenta, além disso a fim
de criar condições de estabilidade e bem-estar,
necessários para as relações pacíficas entre os
Estados. As Nações Unidas deverão promover as
condições para o progresso e o desenvolvimento
econômico e social e, ao mesmo tempo, o respeito
universal — e a observância — dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais.

Debates:
Direito à Vida: relativamente ao direito à
vida, existe um artigo da Constituição afirmando
expressamente que ela é um direito inviolável, que
124

Anotações:
ninguém tem o direito de tirar de outra pessoa.
Além disso, o reconhecimento e a proteção do
direito à vida estão expressos no conjunto dos
direitos e garantias. Basta assinalar que a própria
Constituição prevê o julgamento pelo júri dos
crimes dolosos contra a vida, estando aí contida a
afirmação de que os atentados contra a vida humana
são considerados crimes. Há também expressa
proibição da pena de morte, com a ressalva de que
ela poderá ser estabelecida por lei apenas para
punir crimes praticados durante guerra externa
formalmente declarada. Assim, nem mesmo os
criminosos mais violentos e cruéis perdem o
direito à vida. Mas, ainda que não houvesse na
Constituição aqueles dispositivos, o direito à vida
estaria implícito, pois, sem ele, nem o Estado nem a
sociedade humana sobreviveriam.
Direito à igualdade: a igualdade mais
proclamada e aparentemente mais assegurada é
a igualdade de todos perante a lei. Em princípio,
as obrigações legais são dirigidas a todos, sem
qualquer diferenciação, além do que a lei deve
ser aplicada de maneira igual para todos. Pelo
princípio da igualdade jurídica, acolhido pela
Constituição brasileira, será inconstitucional uma
lei que conceda privilégios em relação a direitos e
obrigações. Mas por força de vários fatores, como
a condição social e econômica, os preconceitos,
as preferências e até os interesses dos aplicadores
da lei, não existe igualdade na aplicação das leis.
São também expressões do direito à igualdade a
garantia de direitos iguais para homens e mulheres
e a proibição de discriminações que ofendam os
direitos e a liberdade das pessoas.
125

Anotações:
Os Direitos Humanos estão quase sempre
sendo ampliados. Esse processo de ampliação
dos direitos gera inúmeros debates sociais. Um
exemplo de debate em torno de Direitos Humanos
é a legalização do Aborto. Atualmente, no Brasil, o
aborto legal só pode ocorrer em casos de risco à
vida da gestante ou em casos de estupro. Outros
países da América Latina, como Argentina, Chile e
Colômbia, já preveem o direito ao aborto nos meses
iniciais da gestação, conferindo às mulheres o
direito de optar ou não pela maternidade.
Rita Segato (2006), antropóloga Argentina que
trabalhou por muitos anos no Brasil, argumenta que
esses movimentos em torno de novas reivindicações
e reconhecimentos de direitos da pessoa humana,
podem ser chamados de “ética da insatisfação”. Tal
postura pode ser encontrada entre os cidadãos de
qualquer nação e nos membros da mais simples e
coesa das comunidades morais, o que constitui o
fundamento dos direitos humanos. É por meio das
insatisfações de certos grupos, principalmente
os tidos como subalternos em relação a outros,
que as mudanças legais, em torno da justiça, do
reconhecimento de novos valores sociais, podem
ser inscritas, inclusive na lei.

GÊNERO: DESIGUALDADES E
VIOLÊNCIAS

As violências de gênero começam a ser


problematizadas a partir dos movimentos de
mulheres nos anos de 1930. No entanto, a maior
evidência sobre o problema da violência de gênero
(na época chamada especificamente de “violência
126

Anotações:
contra a mulher”) tem início nos anos 60. Desde
então, tanto a militância feminista, quanto as
intelectuais, vêm discutindo e evidenciando as
diferentes formas de violência contra a mulher.
O período dos anos 60 a 80 é marcado pelo uso
da categoria “mulher”, e teve como fundamento
teórico, as noções de “estudos das mulheres”,
“universalização dos problemas da mulher”, e o
combate à opressão universal das mulheres pelo
patriarcado.
No Brasil, a abordagem das teorias do
“patriarcado” e da “opressão universal das mulheres”
é iniciada por Heleieth Saffioti, no fim dos anos 60,
com a defesa de sua tese “A mulher na sociedade de
classes”. Essa abordagem preocupava-se em como
analisar a opressão da mulher nas sociedades
patriarcais, e foi marcada pela relação com o
conceito de “classe” (GROSSI, 2000).
Após esse período, a categoria “patriarcado”
entra em desuso a partir das críticas feitas à
universalização das mulheres, o acentuamento
teórico das diferenças entre mulheres e o destaque
para os diferentes níveis de “opressão”. A categoria
“gênero”, formulada a partir das relações entre
homens e mulheres, além da relação entre pessoas
do mesmo gênero (mulheres e mulheres, homens
e homens), passa a ser a mais adequada para falar
das relações, desigualdades e poder entre homens
e mulheres. Usamos o conceito de Joan Scott, para
o qual, gênero refere-se ao:

Discurso sobre a diferença dos sexos.


Ele não remete apenas a ideias, mas
também a instituições, a estruturas, a
práticas cotidianas e a rituais, ou seja,
127

Anotações:
a tudo aquilo que constitui as relações
sociais. O discurso é um instrumento
de organização do mundo, mesmo se
ele não é anterior à organização social
da diferença sexual. Ele não reflete
a realidade biológica primária, mas
constrói o sentido desta realidade.
A diferença sexual não é a causa
originária a partir da qual a organização
social poderia ter derivado; ela é mais
uma estrutura social movediça que
deve ser ela mesma analisada em
seus diferentes contextos históricos.
(SCOTT, 1998, p. 88).

Ao mesmo tempo em que nega a universali-


dade da opressão das mulheres pelos homens, pro-
pondo uma análise que leva em conta os diferentes
contextos históricos e culturais das diferentes
relações de gênero, esse conceito possibilita uma
nova perspectiva sobre as violências de gênero,
ajudando a perceber as subjetividades dos dois
eixos da relação (masculino e feminino), propondo
que ambos têm estratégias de subversão da igual-
dade, que também passam por relações de violência.
Um dos principais problemas relacionados à
prática masculina é o acesso à violência. Em nos-
sa sociedade, espera-se dos homens que usem
a violência em momentos de fazer valer sua de-
cisão, em defesa de suas vontades. No Brasil, isso
é demonstrado pela nossa história legal, a história
das leis, que até os anos 2000 ainda admitiam a
“defesa da honra” como justificativa masculina
para a resolução de conflitos domésticos. Após a
aprovação da Lei 11.340, Lei Maria da Penha, ocor-
128

Anotações:
reram alguns avanços nas políticas públicas para a
proteção e criminalização da violência doméstica.
Esses avanços seguem em outras leis, como as
leis que tipificam crimes sexuais, modificadas em
2008, 2012 e 2014, passando a reconhecer estu-
pros como sexo sem consentimento, com ou sem
penetração, estupro de vulnerável, além de dar
mais crédito ao depoimento das vítimas.

Figura 7 - Atos de 8 de Março, dia internacional das


mulheres, na Avenida Paulista (SP), 2022

Fonte: Google.

Contudo, mesmo com os avanços das leis


(ainda que sejam tardios) os problemas relacionados
à violência de gênero, cujo eixo vítima e agressor
é, via de regra, ocupado por mulheres/crianças e
homens em oposição, ainda são gigantescos. Eles
passam primeiro pela ineficácia na aplicação das
leis e na distribuição dos recursos para os órgãos
de proteção. Passam também pela insensibilização
dos agentes que lidam com esse problema social.
129

Anotações:
Esbarram na inexistência de uma política de não
violência voltada para homens.

Tipos de violência de gênero:


1. Violência doméstica;
2. Violência sexual;
3. Abuso sexual;
4. Assédio sexual;
5. Exploração sexual;
6. Feminicídio;
7. Violência Psicológica.

Corrêa (1983) inicia seu livro com alguns


relatos e indicações sobre “associações femininas”
e formas de organização feminista, até os anos 70,
época em que escreveu e pesquisou sobre crimes
contra mulheres nas relações íntimas. Seu objeto
de estudo são casos de homicídio entre casais
— com relações de intimidade — ocorridos entre
1952 e 1972. Como método da pesquisa, realizou
levantamento documental dos processos, assistiu
alguns julgamentos e realizou entrevistas informais.
Do levantamento realizado, Corrêa selecionou 30
processos, e subdividiu a dissertação a partir dos
grandes temas que surgiram desse levantamento.
Nas defesas dos criminosos e no acolhi-
mento jurídico dessas argumentações, uma forte
moralização do gênero (papéis de gênero, papéis
de homens e mulheres, apesar do desuso dos ter-
mos). A descaracterização da vítima, através de
argumentos estritamente morais, elaborados pela
defesa, ocorre quase que como uma fábula. Em
um dos casos apresentados no trabalho de Corrêa,
uma mulher, casada por 16 anos, foi assassinada
130

Anotações:
pelo marido, sob argumentos de que ela “era vaido-
sa demais para uma mulher de família”, e que cer-
tamente “tinha um amante”. Sob suspeita de que
estava sendo traído, com base nessas argumen-
tações, ele executou a mulher quase em frente a
filha.
Os argumentos da suspeita do marido foram
levados ao tribunal do júri, e a defesa investiu for-
temente em desmoralizar a conduta da vítima, as-
sociando sua família à prostituição, sua vaidade
“anormal” a uma suposta traição; o fato de ela tra-
balhar fora ajudou a sustentar a ideia de que ela
era uma péssima mãe. O assassino foi absolvido
pelo júri, que acatou a motivação do crime como
“legítima defesa da honra”. Isso ocorreu entre os
anos 60, mas o padrão de desmoralização da víti-
ma, perdura até hoje, recebendo mais resistência
em casos que se tornam emblemáticos, dadas al-
gumas transformações sociais provocadas pelo
movimento feminista no Brasil. Contudo, essas
transformações não estão cristalizadas na socie-
dade, muito menos no aparato policial e sistema
judiciário brasileiro.
Os casos de estupro são continuamente
moralizados, em todas as esferas sociais, da família
até a mídia. A vida da vítima, já fragilizada pela
violência e exposição das agressões e intimidades,
é esmiuçada, para que todos possam dar sua
legitimidade sobre a violência. E foi, se não foi, “por
que foi?”.
Outro ponto importante das reflexões de
Corrêa (1983) sobre os casos analisados em sua
dissertação, dos anos 70: “os atores jurídicos
usam os poderes que a lei lhes confere para
131

Anotações:
reforçar uma ordenação existente na sociedade,
obscurecendo-a, ao agir como se ela não
existisse”. As performatividades do judiciário e
as decisões decorrentes delas, não são isentas,
mas são investidas de verdade, por meio da fábula
espetacular construída pela defesa e acatada pelo
júri ou juiz. Corrêa (1983) adverte sobre a diferença
entre a lei (escrita) no Brasil, que nem sempre
corresponde à norma social não escrita, indicando
que a justiça não é isenta, mas machista, branca,
heterossexual, burguesa, e manipula, através do
poder da lei, a vida social, moralizando a vida.
Por fim, devemos lembrar as proximidades e
identificações sociais possíveis entre os homens
que julgam e o homem acusado. Já sabemos,
pela ampla discussão que existe sobre estupro
e estupradores no Brasil, que as punições são
mais rígidas para homens em posições sociais
não hegemônicas. Corrêa (1983) aponta que, na
comparação entre decisões sobre assassinatos e
tentativas de assassinatos de mulheres, as penas
mais pesadas recaíam sobre homens em posições
subalternas (negros, “crioulos”, desempregados,
tidos como desocupados).
132

Patriarcado

O termo “Patriarcado” foi designado pela


primeira vez para tratar de sociedades cuja cen-
tralidade do poder (a transmissão de herança,
parentesco, moral, costumes) era coloca-
da a partir de um homem. Em algumas
sociedades, como na região do Medi-
terrâneo (Portugal, Itália, Espanha)
essa figura era representada
pelo pai ou pelo avô de uma
grande família. Esse padrão
se repete em diferentes so-
ciedades, seja pelo seu caráter
estrutural (e universalista), seja
pela colonização. Nas Américas,
por exemplo, é comum verificarmos
uma estrutura familiar patriarcal, nos
mesmos moldes das estruturas famili-
ares de países da região do Mediterrâneo.
Com o avanço dos estudos femi-
nistas, a noção de patriarcado se am-
plia para caracterizar um sistema de
poder e dominação masculina, que
subjuga as mulheres, limitando suas
possibilidades de acesso ao poder,
estabelecendo a domesticidade como
espaço feminino, negando às mulheres
direitos sobre sua sexualidade e repro-
dução.
No Brasil, o patriarcado é
caracterizado por Gilberto Frey-
re (2006) a partir da Casa-Grande,
onde o senhor da casa, teria sob
133

Anotações:
seu poder, tanto a sua própria extensão familiar (es-
posa, filhos, netos, etc), quanto todos os habitantes
da sua propriedade, inclusive a Senzala.
Esse esquema familiar foi bastante criticado
por autoras feministas, sob o argumento de que
ao reconhecer a família patriarcal como o modelo
familiar do Brasil, deixavam-se de lado todas as
diferentes configurações familiares, inclusive dos
negros escravizados nas senzalas, que tinham suas
próprias famílias e relações.
Atualmente, as feministas usam a expressão
“lutar contra o sistema patriarcal”, que significa
a luta contra a permanência do poder familiar e
social na mão dos homens e contra a manutenção
dos papéis sociais de subserviência atribuídos às
mulheres.
134

Anotações:
Masculinidades

Em primeiro lugar, devemos deixar claro o que


estamos dizendo quando falamos em “masculini-
dades”. À primeira vista, o termo “masculinidades”
faz uma referência direta ao “masculino”. Com isso,
nós dispomos de um conjunto de valores sobre a
ideia do “masculino”. A questão, portanto, é: o que
nós sabemos sobre o masculino? Que ideias vêm
à nossa mente quando pensamos neste termo?
Geralmente, a noção de “masculino” está associada
aos homens. Podemos associá-la ao sexo mascu-
lino, ao gênero masculino (em oposição ao gênero
feminino), podemos associá-la à força, ao vigor, à
ideia de “atividade”, autoridade, virilidade, poder.
Os atributos que, geralmente, vêm à mente
quando pensamos no termo “masculinidade” não
são acessíveis apenas aos homens. As mulheres
também podem exercer força, vigor, “atividade”,
autoridade, virilidade e poder. Então, o conceito de
masculinidade trabalha com a ilusão daquilo que
pensamos ser atributos exclusivamente masculinos
— atributos dos homens. Connell (1995, 2013) define
masculinidade:

Uma configuração de prática em torno


da posição dos homens na estrutura
das relações de gênero. O autor
ainda afirma que existe um modelo
hegemônico de masculinidade, tão
predominante que muitos creem
que as características e condutas
associadas ao mesmo sejam naturais
(p. 188).
135

Anotações:
Deste modo, a autora formula o conceito
de “masculinidade” a partir de seu estudo dos
comportamentos de meninos em escolas
australianas. Ela buscava entender como os
meninos reproduziam os valores sociais sobre ser
homem relacionando sua pesquisa, na época, com
a teoria produzida por Pierre Bourdieu, sociólogo
francês que, entre outras coisas, dedicou-se
a compreender a relação entre prática social,
estrutura e símbolo.
As noções sobre o que é “ser homem”
começam a se tornar um problema diante das lutas
históricas das mulheres por igualdade nos direitos
civis. Elas têm repercussão na França e EUA, com
eclosão mundial a partir dos anos 1960. A luta
das mulheres por direitos civis (o voto, a jornada
de trabalho, a reprodução sexual e doméstica, a
violência) explicita uma distinção entre os gêneros.
Mostra que existe uma desigualdade social entre
direitos de homens e mulheres.
A partir de então, vão sendo desnaturalizadas
as noções sobre o que são papéis masculinos e
femininos. Isso embaralha as concepções tidas
como naturais relativas ao significado do gênero
e do tipo de relação que se queria. Os homens não
“precisaram” pensar nisso, pois “ser homem” parecia
algo natural e confortável. A partir do movimento
das mulheres, principalmente em meados dos anos
70, muitos homens começaram a acompanhar
mulheres em suas reivindicações. E isso faz com
que eles próprios comecem a refletir sobre sua
masculinidade, descobrindo novas formas de
“ser homem” que não sejam associadas à ideia do
masculino viril, controlador, violento, etc.
136

Anotações:
Um dos grandes problemas do mundo,
em relação à violência contra as mulheres e a
desigualdade de gênero, é a ausência de uma
política de gênero. A questão que nos interessa
é a dificuldade que há em fazer esse esforço de
construção de uma “masculinidade” não violenta.
Pois, homens e mulheres, somos informados desde
muito cedo sobre os significados de “ser homem”,
e desde então, afastados de todos os riscos ao
padrão de masculinidade. Connell (1995) criou duas
categorias para definir tipos de masculinidade:
1. Masculinidade hegemônica: é o padrão
idealizado de masculinidade em uma so-
ciedade. Como algo idealizado, é também
inatingível. Na sociedade ocidental, esse
padrão pode ser representado pelas ideias
de “homem viril”, heterossexual, “chefe de
família”, etc;
2. Masculinidades subalternas: são as mas-
culinidades tidas como desviantes. Na
sociedade ocidental, exemplos dessas
masculinidades são as homossexuais, as
paternidades afetivas, entre outros es-
forços de homens contra as práticas he-
gemônicas de masculinidade.

MIGRAÇÃO E FRONTEIRAS

Quando falamos em “fronteiras,” geralmente,


os significados que vêm à mente são alusivos às
divisões físicas, geográficas e espaciais em torno
do pertencimento a um certo lugar. Atravessar uma
fronteira, nesse sentido elementar, pode significar o
afastamento de um lugar ao qual se pertence, assim
137

Anotações:
como a chegada a um lugar estranho. Nas Ciências
Sociais, a noção de fronteira pode ser concebida
também a partir da ideia de interstício entre formas
de ser no mundo, identidades, compreensões sobre
gênero, família, raça, pertencimento e moralidades.
A migração pode ser caracterizada a partir da
mobilidade entre fronteiras, carregando consigo
não apenas o afastamento espacial/geográfico,
mas também valores, cultura, estranhamentos e
estigmas. Se nos debruçarmos para compreender
“corpos em movimento” como os dos refugiados,
podemos notar que existem diversas formas de
criação e estabelecimento de fronteiras.

Figura 8 - Posto de Migração entre Peru e Equador

Fonte: Foto de Cris Bouroncle, AFP, 2018.

A fronteira, nos casos de acolhimento, de re-


fugiados é marcada pela presença de forte apara-
to estatal e militar, e sobre os sujeitos que buscam
refúgio humanitário, geralmente, pairam diver-
sas dúvidas que devem ser sanadas por meio do
138

Anotações:
preenchimento de formulários das agências es-
tatais e organismos internacionais. Fassin (2005)
nos ajuda a compreender essas práticas estatais
de acolhimento de refugiados, como controle das
fronteiras, assim como demarcação de identidades
e fluxos migratórios. O conceito de “governamen-
talidade”, articula as noções de “fronteiras sociais”
e “fronteiras físicas”, demonstrando que, se por um
lado, concede-se ao migrante um visto por “razões
humanitárias”, permitindo-lhes a inserção no mer-
cado de trabalho, por outro, limitam-se o acesso à
plena cidadania, requerendo a eles, uma série de
comprovantes de vínculos de trabalho ou estudo no
país. Tais aspectos foram notados por Silva (2016),
ao pesquisar a presença de haitianos em Manaus,
acolhidos pelos processos de ajuda humanitária.
No caso estudado por Silva (2016), dos pontos
de vista dos manauaras sobre os migrantes, há uma
percepção generalizada de que a presença dos
haitianos é boa, na medida em que são percebidos
como “trabalhadores e educados, que não se
envolvem com a criminalidade” e, ao senso comum,
acrescenta-se a percepção de que “a cidade
está mais colorida” (uma vez que haitianos são
predominantemente, negros/pretos). Apesar dessa
presença cotidiana nas relações com a cidade,
o autor percebe a ausência de políticas públicas
que desenvolvam relações socioculturais entre os
migrantes e os cidadãos nacionais. Isso cria outro
estigma em torno dos migrantes, pois a diversidade
não é encarada como troca cultural, mas como
mera exotização da diferença física e cultural.
139

Anotações:
A migração tem implicações econômi-
cas, sociais e culturais, tanto no local
de partida quanto no de chegada ou
de passagem. Se do ponto de vista
econômico a integração se dá de al-
guma forma via mercado de trabalho
formal ou informal, o mesmo não se
pode dizer do ponto de vista social e
cultural, já que a condição de imigran-
te, considerado como “trabalhador
temporário”, impõe uma série de
limites, seja no exercício da ci-
dadania política, seja no âmbito das
trocas culturais, em razão de pre-
conceitos que poderão enfrentar
(SILVA, 2016, p. 147).

Aspectos subjetivos da noção de fronteira po-


dem ser compreendidos por meio da obra de Veena
Das (2020), uma antropóloga indiana que se dedicou
a estudar violências cometidas contra mulheres du-
rante a guerra da Partição, entre Índia e Paquistão.
No contexto dessa guerra, mulheres indianas foram
sequestradas, forçadas ao casamento ou violenta-
das por soldados paquistaneses. Para os indianos,
principalmente das zonas rurais, a sexualidade das
mulheres confere honra a suas famílias, principal-
mente aos homens. Assim, os raptos de mulheres
nesse contexto, provocaram longas repercussões
subjetivas para a reinserção delas nas suas famílias
e sociedades.
A autora examina através dos relatos de
mulheres sobreviventes dos raptos da guerra da
Partição e reenquadradas nos sistemas de honra
e casamento indiano, como cada uma descreve os
140

Anotações:
processos de “divisão” subjetiva, como silenciam
em torno das violências, do rapto em si mesmo,
ou dos novos casamentos. O caso de Asha, é uma
das descrições/conversas emblemáticas da autora
sobre a temática.
Asha, tendo enviuvado jovem, no seu caso, o
potencial para desordens do desejo surgiu dentro
da família, depois das rupturas brutais da Partição.
Envolveu-se em várias traições, quebrando as
regras correntes da viuvez, mas recusando-se
a viver em má-fé, movendo-se através de suas
intrincadas relações com as mulheres de sua rede
familiar, quase forçando os outros a reconhecerem
a singularidade de seu ser. A via de saída do
“conhecimento venenoso” não foi uma ascensão
para a santidade ou a renúncia; foi uma queda em
direção a um cotidiano diferente.5
Todos os dias eu tentava ser útil. Estava dividida
entre a lealdade a meu marido morto, sua irmã, que
eu amara muito, e os novos tipos de necessidade
que pareciam brotar da possibilidade de uma nova
relação.
Apesar de repudiada, tanto por sua família
de origem, como por sua família conjugal, por ter
quebrado o tabu de casta alta quanto a um segundo
casamento, ela continuou tentando refazer seus
laços rompidos.
Uma vez reconhecido o seu ser sexual, nos
modos novos como passaram a vê-la seus afins
masculinos, ela teve de fazer uma escolha. Ou
assumia uma relação clandestina, ou aceitava o

5
DAS, Veena. Vidas e Palavras - a violência e sua descida ao ordiná-
rio. Ed. UNIFESP, 2020.
141

Anotações:
próprio público e até colocava em risco a honra da
família, por uma nova definição de si mesma que
prometia uma certa integridade, embora invia-
bilizasse os projetos de vida que tinha formulado
anteriormente para si mesma. No processo dessa
decisão, o self pode ter-se fragmentado radical-
mente e se tornado fugitivo, mas que foi descrito
é uma espécie de operação complexa que se tor-
na evidente, não necessariamente no momento
da violência, mas nos anos de trabalho paciente
ao longo dos quais Asha e a irmã de seu primeiro
marido reataram os laços rompidos.6
Das (2020) argumenta que as violências mar-
cam “limites” (fronteiras), pois esgotam nossa ca-
pacidade de representar os fatos do horror. Fazem
com que perguntemos “como seres humanos po-
dem ter sido capazes de atos tão hediondos”, como
os crimes de guerra, as violações indescritíveis das
invasões coloniais, as cenas cotidianas de violência
familiar e estupros.

A imagem do estado de alerta na


ocorrência da violência, da capaci-
dade de resposta onde quer que
ocorra na teia da vida, nos leva a per-
guntar se os atos de violência são
transparentes. Como se pode expres-
sar a relação entre a possibilidade e
a ocorrência, e mais ainda, entre o
factual e o eventual, se a violência,
quando acontece de modo dramáti-
co, encerra uma relação com o que

6
Idem.
142

Anotações:
está acontecendo de forma repetida
e não-melodramática, como dizê-lo,
não numa narrativa única, mas na
forma de um texto que é constante-
mente revisado, revisto e acrescido
de comentários (DAS, 2020, p. 118).

A partir das diferentes perspectivas apresen-


tadas sobre a noção de fronteira, podemos com-
preender como essa noção se expande por meio
das experiências sociais que os grupos e sujeitos
têm sobre os limites espaciais; como as políticas
migratórias e de acolhimento de refugiados pro-
duzem tensões a partir das diferenças de origem;
e como corpos e subjetividades são marcadas a
partir das dores geradas por violências em contex-
tos de tensões geopolíticas, levando à produção de
fronteiras/rupturas emocionais.

PODER E SUBALTERNIDADES

De um ponto de vista mais amplo, o conceito


de poder é definido por Bobbio (1995 apud SILVA,
2001, p. 128) como “a capacidade ou possibilidade
de agir, de produzir efeitos’’. Tanto pode ser referida
a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou
a fenômenos naturais. Assim, para o autor, o Poder
pode ser entendido, entre outras definições, como
“poder social”. Este tipo de poder diz respeito à vida
dos seres humanos em sociedade, ou seja, trata-se
das relações sociais. Portanto, designa capacidade
de ação, como forma de determinação de um
indivíduo sobre o outro. De tal modo o Poder, nessa
concepção social, não é algo que se possui, mas
uma relação que se estabelece socialmente (SILVA,
143

Anotações:
2001). Diversos teóricos nas Ciências Sociais se
desdobraram sobre o conceito de Poder. Aqui
restringimos sua discussão ao debate promovido
por Michel Foucault, filósofo francês que se dedicou
a investigar diferentes aspectos da dominação, do
poder, da sexualidade, das instituições de controle
e do Estado.
Para Foucault, ao contrário de outros analis-
tas, principalmente marxistas, poder não se esta-
belece como uma via de mão única, como se per-
cebe, por exemplo, no poder econômico. Para o
filósofo, o poder é exercitado de forma relacional
e em microrrelações. O conceito de poder é usa-
do como instrumento de interpretação social e as
“práticas sociais” ou “relações de poder” são o cen-
tro nervoso de suas análises (SILVA, 2001).
Como capilaridades de microrrelações, o
Poder em Foucault deve ser entendido:
1. Como algo produtivo, como saber, e,
portanto, não somente repressivo, mas
também pedagógico;
2. Uma relação que se estabelece entre
indivíduos, ao invés de um objeto estático
e transferível;
3. Não se estabelece em um só sentido
(de cima para baixo) nem deve ser
compreendido unilateralmente.

Algumas críticas foram feitas à concepção


de poder concebida por Foucault, principalmente
em torno das microrrelações que estabeleceriam o
poder. Spivak, filósofa e ensaísta indiana destacada
dos estudos “pós-coloniais”, discorda de Foucault
sobre a ideia de poder como resultado de uma teia
144

Anotações:
de relações, argumentando que há sujeitos que são
completamente alijados do poder: os subalternos.
Em seu ensaio “Pode o subalterno falar?”,
Spivak (1996) apresenta argumentos do ponto de
vista não-ocidental sobre a ausência completa da
capacidade de dizer algo e ser ouvida, por sujeitos,
instituições e posições que ocupam o poder. Para
ilustrar seus argumentos, a autora apresenta três
exemplos na história indiana, em que tentativas
de estabelecer um diálogo com o poder ou ocupar
o poder, foram completamente silenciados ou
assimilados pelas forças que de fato ocupam e
detém o poder:

[1] a maneira como a educação in-


diana foi pensada e instituída pelos
colonizadores britânicos, voltada a
formar uma classe de indianos ‘de
sangue e cor’ mas ingleses ‘no gosto,
na moral e no intelecto’, com o obje-
tivo de que esses servissem como
tradutores e intérpretes na mediação
entre os governantes europeus e os
governados indianos; [2] a manei-
ra como o ritual hindu de sacrifício
das viúvas foi compreendido histori-
camente tanto da perspectiva dos
britânicos (que o aboliram acreditan-
do que protegiam as mulheres de tal
violência selvagem), quanto da dos
indianos nativos (que defendiam sua
manutenção argumentando que esse
era o desejo de tais mulheres), mas
nunca da perspectiva das próprias
viúvas envolvidas; [3] o caso de Bhu-
vaneswari Bhaduri, jovem de 16 ou 17
145

Anotações:
anos envolvida na luta armada pela in-
dependência da Índia, e que se enforcou
em Calcutá em 1926 por não conseguir
realizar um assassinato político ao qual
foi incumbida. Para que sua morte não
fosse diagnosticada como ligada a
uma paixão ilegítima da qual teria re-
sultado uma gravidez, Bhuvaneswari
esperou sua menstruação para com-
eter o suicídio. Mesmo assim, seu ato
foi traduzido pelos familiares e intelec-
tuais como um caso de amor ilícito, e
somente tomou seu sentido real a par-
tir do discurso dos líderes e partici-
pantes masculinos do movimento pela
independência (SPIVAK, 1996 apud
FREITAS, 2020, p. 34).

O argumento de Spivak (1996) demonstra a


armadilha que acaba por retirar a capacidade de
agência dessas mulheres, incidindo sobre elas a
subalternidade. Elas não são ouvidas pelos sujeitos
em posições hegemônicas, são subjugadas pelas
normas do patriarcado, que impõe às mulheres
indianas a autonegação, ou ainda, são mulheres
narradas como tendo permitido (cedido) à “salvação”
do império britânico. Em seu argumento final, a
autora afirma que, há sujeitos em posições de
subalternidade, cuja voz é negada apesar de seus
esforços, e, portanto, “não podem falar”.
146

Anotações:
ESTADO E INTERVENÇÃO SOCIAL

A noção de Estado perpassa grande parte


dos debates em Sociologia e Antropologia, pois
a sua esfera e das políticas públicas são os meios
pelos quais as intervenções sobre as sociedades
acontecem. Nesse sentido, o Estado atua em
diferentes frentes: como um espaço a ser ocupado
pelas minorias sociais, como lugar de reivindicação
de reconhecimento de direitos sociais, como
lugar/agente responsável pela implementação das
leis e da repressão. Essas perspectivas em torno
do Estado são adotadas de modo diferentes por
distintos autores e autoras, uns com ênfase nos
processos legais e repressivos, outros com foco
nas lutas de movimentos sociais contra repressões
(de Estado, de outros grupos sociais hegemônicos,
etc.) e pelo reconhecimento de direitos.
Nesse sentido, é importante compreender
como o Estado atua para a produção de pro-
gramas e projetos sociais, sendo, portanto, uma
esfera de controle e intervenção social. Tor-
na-se importante aqui ressaltar a diferenciação
entre Estado e governo. Numa perspectiva da
promoção de direitos e políticas sociais, podemos
considerar o Estado como conjunto de instituições
permanentes. São os órgãos legislativos, os tri-
bunais, as instituições de assistência social,
entre outras que são consolidadas (a partir de
orientações constitucionais), e que possibilitam
ações de governo. O Governo, por sua vez, pode
ser compreendido como um conjunto de pro-
gramas sociais elaborados a partir de sujeitos
eleitos pela sociedade civil, ou selecionados pe-
los poderes que ocupam o Estado.
147

Anotações:
É dos governos a responsabilidade pela
implementação de políticas públicas a partir de
ações do Estado. Governar adquire o sentido
de implementar um projeto político, validado
socialmente, dentro dos limites e obrigações
constitucionais. As ações do Estado, como políticas
públicas, devem ocorrer por meio de programas
sociais, não sendo reduzidas à mera burocracia.
As políticas públicas são de responsabilidade
do Estado, tanto em sua implementação, quanto
na manutenção a partir de processos de tomada
de decisão democráticos e transparentes, que
envolvem órgãos públicos, diferentes organismos
institucionais e agentes sociais relacionados às
políticas que serão implementadas.
Neste sentido, políticas públicas não podem
ser reduzidas a políticas estatais. E políticas sociais
referem-se às ações que determinam o padrão
de proteção social implementado pelo Estado,
voltadas, em princípio, para a redistribuição
dos benefícios sociais visando a diminuição
das desigualdades estruturais produzidas pelo
desenvolvimento socioeconômico. As políticas
sociais têm suas raízes nos movimentos populares
do século XIX, voltadas aos conflitos surgidos
entre capital e trabalho, no desenvolvimento das
primeiras revoluções industriais.
Para Bourdieu (2020), as esferas do Estado e
Governo confundem-se, uma vez que os agentes do
estado, que ocupam posições legislativas ou mesmo
administrativas também têm o poder de regular
(criar leis, implementá-las, interpretá-las, efetivar
denúncias ou não e cumprir regimentos), mesmo
estando eles próprios submetidos ao conjunto de
148

Anotações:
regras e obrigações em torno das próprias funções
estatais.
Portanto, o Estado é uma entidade de poder,
que regula e implementa políticas sociais. Por esse
mesmo motivo, é um espaço de disputas entre
ideologias políticas, principalmente partidárias,
legitimadas socialmente a partir da liberdade de
manifestação política e expressão, assim como das
disputas de grupos que compõem a sociedade civil
organizada (associações, ONGs, coletivos, etc.).
As lutas em torno do Estado podem ocorrer
entre agentes sociais do mesmo campo políti-
co-ideológico, administrativo e também entre
diferentes esferas constituidoras do Estado
(jurídica, política, econômica, intelectual, etc.).
Essa disputa se dá, principalmente, porque as
possibilidades de intervenção do Estado sobre
diferentes espaços da sociedade são muito am-
plas. As decisões tomadas a partir do poder es-
tatal, influenciam no reconhecimento de violações
contra mulheres, crianças, negros e negras, LGBTs,
assim como operam em torno de decisões sobre a
economia, distribuição de renda, que podem culmi-
nar no aprofundamento da desigualdade social, da
fome e da miséria.
Butler (2016) alerta para como o Estado
também produz “enquadramentos” que negam
a existência e, por sua vez, o acesso às políticas
públicas e sociais a certos sujeitos, corpos e
grupos. A história do reconhecimento do Estado à
diversidade e diferença, assim como as mudanças
nas leis e direitos sociais, são exemplos desses
enquadramentos. Outros são as leis contra as
violências domésticas e sobre feminicídios, ganhos
149

Anotações:
sociais que só foram possíveis a partir de 2006 e
2014, respectivamente. Antes do reconhecimento
legal dessas violências, houve décadas de lutas das
mulheres contra as violências machistas e, mesmo
com o reconhecimento legal desses direitos,
ainda são muitos os casos de violações, mortes de
mulheres e dificuldades em realizar as denúncias.
Portanto, pensar sobre o Estado e suas pos-
sibilidades de intervenção é uma tarefa contínua,
uma vez que há sempre sujeitos à margem do
reconhecimento e dos direitos sociais.
150

Anotações:
Filmes para conferir:

Parasita (Bong Joon-ho, 2019): toda a família


de Ki-taek está desempregada, vivendo em um
porão sujo e apertado, mas uma obra do acaso faz
com que ele comece a dar aulas de inglês a uma ga-
rota de família rica. Fascinados com a vida luxuosa
destas pessoas, pai, mãe e filhos bolam um plano
para se infiltrarem também na família burguesa, um
a um. No entanto, os segredos e mentiras necessári-
os à ascensão social custarão caro a todos.

A Lei do Desejo (Pedro Almodóvar, 1987):


um cineasta espanhol envolvido em um triângulo
amoroso, vivencia os limites da negação e do desejo,
enquanto sua irmã, uma mulher trans devota de
Nossa Senhora, adota uma menina abandonada por
uma amiga.

O Silêncio dos Homens (Ian Leite e Luiza de


Castro, 2019): o documentário apresenta diferentes
iniciativas pelo Brasil, de debates e reelaborações
das masculinidades. Busca apresentar a importân-
cia de grupos de acolhimento para homens, como
ferramentas para minimizar os efeitos das violên-
cias de gênero e outros problemas sociais gerados
pelo machismo.
151

Para seguir:

@think.olga (instagram): laboratório de inovação


social que educa e cria soluções para a desigualdade
de gênero.

@debora_d_diniz (instagram): professora de


bioética da UnB, que debate temas relevantes sobre
direitos humanos, além de questões de pesquisa e
metodologia em ciências sociais.
152

Anotações:
REFERÊNCIAS

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KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Cia das
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Anotações:
Letras, 2020.
LAPLATINE, Françoise. Aprender Antropologia.
São Paulo: Ed. Brasiliense, 2010.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito
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LATOUR, Bruno. Onde Aterrar? - Como se orientar
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LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In:
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MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico
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Segurança Pública. São Paulo: Revista USP, v. 01. n.
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MARX, Karl. A ideologia Alemã. In: CASTRO, Celso.
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MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo:
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SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São
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157

Anotações:
158
Caderno de Exercícios
159
160

QUESTÃO 01

(UFU, 2012 - Adaptado) Observe a tirinha de


Quino:

Se tomarmos como ponto de partida que


a ilustração indica a concepção de fato social,
segundo Durkheim, qual característica pode ser
identificada? Marque a única resposta certa:

a. Ser geral e igual em todas as sociedades.


b. Dar liberdade ao indivíduo, em uma dada
sociedade, de praticar ações e atitudes
ligadas ao seu senso crítico.
c. Ser particular de cada indivíduo, sem
interferência do grupo social no qual está
inserido.
d. Exercer sobre o indivíduo uma coerção
exterior.
e. A vontade individual se sobrepõe a do
grupo.
Unidade 1
161

QUESTÃO 02
Quando desempenho meus deveres de irmão,
de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo
de encargos que contraí, pratico deveres que estão
definidos fora de mim e de meus atos, no direito e
nos costumes. Mesmo estando de acordo com sen-
timentos que me são próprios, sentindo-lhes inte-
riormente a realidade, esta não deixa de ser obje-
tiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os
por meio da educação. Assim, também o devoto, ao
nascer, encontra prontas as crenças e as práticas
da vida religiosa; o sistema de sinais de que me sir-
vo para exprimir pensamentos; o sistema de moe-
das que emprego para pagar dívidas; os instrumen-
tos de crédito que utilizo nas relações comerciais;
as práticas seguidas na profissão etc., funcionam
independentemente do uso que delas faço.

Émile Durkheim. As regras do método


sociológico. José Albertino Rodrigues
(Org.). Trad. Laura Natal Rodrigues.
Rio de Janeiro: Companhia Edito-
ra Nacional, 1984, p. 1-2 (com adap-
tações).

No segmento de texto, Durkheim trata,


sobretudo,
a. da anomia social.
b. da solidariedade social.
c. da consciência coletiva.
d. do fato social.
e. das representações coletivas.
Unidade 1
162

QUESTÃO 03

Em “O Suicídio”, Émile Durkheim faz uso de


ferramentas metodológicas inovadoras na análise
social da época, demonstrando que o suicídio não
era um fenômeno individual, mas coletivo.
Aponte a alternativa correta a respeito da
metodologia da obra.

a. Durkheim aplicou questionários junto às


famílias de pessoas que haviam cometido
suicídio para compreender as motivações.
b. Foi a primeira obra de cunho sociológico a
utilizar dados estatísticos e interpretar as
taxas de mortes autoprovocadas.
c. O autor realizou a pesquisa em necrotérios,
a fim de verificar a real causa das mortes.
d. A obra demonstra que o suicídio ocorre
meramente por questões psicológicas.
e. Durkheim condena o suicídio e demonstra
que as mortes autoprovocadas ocorriam
em ambientes pouco religiosos.

QUESTÃO 04

Em seu estudo sobre o suicídio, Émile


Durkheim classifica três tipos de motivação para
as mortes autoprovocadas. A respeito da classifi-
cação dos suicídios elaborada pelo autor, assinale
a alternativa correta.
Unidade 1
163

a. Egoísta, altruísta e distópico.


b. Altruísta, heróico e anômico.
c. Egoísta, altruísta e anômico.
d. Altruísta, anômico e formalista.
e. Formalista, altruísta e civil.

QUESTÃO 05

A sociologia preocupou-se, inicialmente,


com as mudanças em torno do trabalho, a partir
da Revolução Industrial e a consequente onda mi-
gratória do campo para as cidades. Um dos prin-
cipais teóricos a se debruçar sobre as relações de
trabalho na modernidade foi Karl Marx.
Assinale a opção que corresponde correta-
mente ao pensamento deste autor:

a. As relações de trabalho expressam valores


e relações de poder dominantes na
sociedade.
b. O trabalho é realizado para satisfazer as
necessidades imediatas dos produtores
diretos e de suas famílias.
c. O mundo burguês caracteriza-se pela pas-
sagem do trabalho agrícola para o trabalho
desregulamentado e flexível.
d. A divisão do trabalho fortalece a solidarie-
dade entre as pessoas, na medida em que
fortalece a interdependência entre os in-
divíduos.
e. No capitalismo, é através do trabalho que
se garante o domínio sobre os meios de
Unidade 1

produção.
164

QUESTÃO 06

(UEL - 2012) Leia o texto a seguir:


“Desde o início a criança desenvolve uma
interação não apenas com o próprio corpo e o
ambiente físico, mas também com outros seres
humanos. A biografia do indivíduo, desde o
nascimento, é a história de suas relações com outras
pessoas. Além disso, os componentes não sociais
das experiências da criança estão entremeados e
são modificados por outros componentes, ou seja,
pela experiência social.”

(BERGER, Peter L. e BERGER, Bri-


gitte. “Socialização: como ser um
membro da sociedade”. In FORAC-
CHI, Marialice M. e MARTINS, José
de Souza. Sociologia e Sociedade.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos, 1977, p. 200).

A partir da análise do texto podemos concluir


que:
I - Os indivíduos, desde o nascimento, são
influenciados pelos valores e pelos costumes que
caracterizam sua sociedade.
II - A relação que a criança estabelece com o
seu corpo não deveria ser do interesse das ciências
sociais, mas apenas da biologia.
III - O fenômeno tratado pelo autor correspon-
de ao conceito de socialização, que designa o apren-
dizado, pelos indivíduos, das regras e dos valores
sociais.
IV - As experiências individuais, até mesmo
Unidade 2

aquelas que parecem mais relacionadas às nossas


165

necessidades físicas, contêm exclusivamente


dimensões biológicas.
V - O desconforto físico que uma criança sente,
como a fome, o frio e a dor, pode receber dos adultos
distintas respostas de satisfação, dependendo da
sociedade na qual eles estão inseridos.

Indique a única alternativa que contém as


premissas corretas:

a. Apenas I, II e III estão corretas.


b. Apenas I, II e IV estão corretas.
c. Apenas II e III estão corretas.
d. Apenas I, III e V estão corretas.
e. Apenas III, IV e V estão corretas.

QUESTÃO 07

Diferente da Sociologia, que tem seu cânone


clássico subdividido a partir de três autores (para-
digmas) principais, a Antropologia se subdivide em
três escolas de pensamento:

a. Escola de Sociologia Francesa, Escola


Britânica, Escola Alemã.
b. Escola Britânica, Escola Francesa e Escola
Americana.
c. Escola Brasileira, Escola Indiana, Escola
Americana.
d. Escola Francesa, Escola Americana,
Escola Espanhola.
e. Escola Britânica, Escola Mexicana e Escola
Unidade 2

Americana.
166

QUESTÃO 08

As origens da Antropologia são fortemente


marcadas pelo Evolucionismo Social. Suas
primeiras teorias argumentavam que o processo
de evolução da humanidade passava por três fases
principais:

a. Selvageria, monarquia e civilização.


b. Barbárie, tribo e cidade.
c. Tribo, barbárie e democracia.
d. Selvageria, barbárie e civilização.
e. Tribo, feudalismo e civilização.

QUESTÃO 09

Marcel Mauss (2015) foi um autor importante


para a antropologia, apesar de sua obra ter grande
influência da Sociologia de seu tio, Émile Durkheim.
Sua obra mais importante para os estudos
em etnologia foi “Ensaio sobre a Dádiva”, onde
apresenta aspectos elementares dos sistemas de
trocas sociais, baseadas nos princípios:

a. Dar, tomar e emprestar.


b. Dar, receber e negar.
c. Receber, doar e devolver.
d. Dar, receber e retribuir.
e. Receber, negar e retribuir.
Unidade 2
167

QUESTÃO 10

É comum ouvirmos sobre qualidades —


positivas ou negativas — transmitidas pela
genética, pelo “sangue”. O bom desempenho em
práticas esportivas é justificado pela herança de
um avô que quase foi jogador da seleção, o sucesso
musical de um cantor, porque seus pais eram
músicos. São exemplos comuns dessa crença na
transmissão de qualidades pela natureza. O trecho
se refere ao:

a. Relativismo cultural.
b. Determinismo sociológico.
c. Determinismo biológico.
d. Determinismo geográfico.
e. Racismo.

Unidade 2
168

QUESTÃO 11

A imaginação sociopolítica brasileira for-


mou-se no contexto da sociedade pós-colonial,
refletindo os desafios de construção de um pensa-
mento sobre a sociedade nacional, a identidade do
povo brasileiro e a política. Em decorrência desse
pensamento, surgiu uma série de noções nas ciên-
cias sociais, tais como miscigenação, eugenismo,
democracia racial, homem cordial, cultura popular
e pensamento autoritário.
Considerando a temática, assinale a opção
correta.

a. A miscigenação contribuiu para a melhoria


da qualidade genética racial do povo bra-
sileiro e, por isso, constituiu uma referên-
cia de valor para as ciências sociais.
b. Segundo as tendências dominantes das
ciências sociais contemporâneas no
Brasil, o discurso da democracia racial
funda-se em uma ideologia que esconde o
preconceito racial.
c. A visão do brasileiro como homem cordial
é uma proposta interpretativa de Mário de
Andrade.
d. A Semana de Arte Moderna, que apresenta
elementos constitutivos da identidade
nacional, aconteceu nos fins do século XX.
e. O pensamento autoritário foi concebido
para emancipar as classes populares e
conduzi-las à luta pela democracia racial
no Brasil.
Unidade 3
169

QUESTÃO 12

O fim da escravidão e a substituição pela mão


de obra migrante (predominantemente italiana) nas
fazendas e cafezais, mostra que essa população
negra ficou totalmente desamparada, sem uma
redistribuição das terras nos espaços rurais do
país, e sobrecarregando as margens das cidades
que começavam a se reconfigurar diante da lenta
industrialização nacional, culminou num importante
movimento pela reforma agrária durante os anos
50. Esse movimento era chamado de:

a. Levante pela Terra.


b. Ligas Camponesas.
c. Invasões de Terra.
d. Ocupações ao Latifúndio.
e. Empates.

QUESTÃO 13

Atualmente, desde o fim da Ditadura Militar,


os movimentos pela terra ganharam novas configu-
rações no Brasil. Tendo o _______________________
____________ como movimento sindical mais influ-
ente na vida rural brasileira, que tem como principal
bandeira a reforma agrária.
Complete o espaço da afirmação anterior com
a opção correta:

a. Movimento Pastoral da Terra.


b. Movimento dos Trabalhadores dos Serin-
Unidade 3

gais.
170

c. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem


Terra.
d. Movimento de Invasores do Agronegócio.
e. Movimento dos Povos Indígenas e Qui-
lombolas.

QUESTÃO 14

A falta de moradias e de serviços urbanos e a


favelização são questões estruturais da sociedade
brasileira que se intensificaram com a urbanização
ocorrida a partir de 1940, levando a uma forte
concentração populacional nas grandes cidades.
De acordo com o Censo Demográfico, havia, em
2000, cerca de 1,7 milhão de domicílios localizados
em favelas ou assentamentos semelhantes a
elas, abarcando uma população de 6,6 milhões
de pessoas, 53% das quais nos estados de São
Paulo e do Rio de Janeiro, nos quais as regiões
metropolitanas concentram a maioria das favelas e
dos favelados (Radar Social, IPEA, 2005, adaptada).

A respeito dessas informações que carac-


terizam alguns aspectos das metrópoles brasilei-
ras, julgue os itens que se seguem.
I. A favelização, fenômeno sobretudo metro-
politano, revela forte demanda reprimida por aces-
so a terra e à habitação.
II. A favelização é uma das formas encontradas
pela população pobre para solucionar suas
necessidades habitacionais.
III. A urbanização brasileira vem apresentando
Unidade 3

forte tendência de concentração da população


pobre nas metrópoles.
171

Assinale a opção correta.

a. Apenas o item I está certo.


b. Apenas os itens I e II estão certos.
c. Apenas os itens I e III estão certos.
d. Apenas os itens II e III estão certos.
e. Todos os itens estão certos.

QUESTÃO 15
A urbanização brasileira vem-se caracteri-
zando, nas últimas décadas, por intenso processo
de metropolização, ou seja, concentração de popu-
lação em grandes cidades conturbadas. O mais alto
escalão da urbanização brasileira é representado
por 26 grandes concentrações urbanas, formadas,
em sua maioria, por arranjos populacionais com
população acima de 750 000 habitantes. Em con-
junto, esses arranjos populacionais, nos centros ur-
banos brasileiros, totalizam 79,124 milhões de habi-
tantes e reúnem 41,5% da população do país. (IBGE,
Arranjos populacionais e concentrações urbanas
do Brasil, 2016).

Sobre esse fenômeno da metropolização


brasileira, julgue os itens a seguir.
I. Com o aumento da importância institucional
e demográfica, as metrópoles brasileiras estão
concentrando, hoje, um conjunto de questões
sociais, cujo aspecto mais evidente e dramático é a
exacerbação da violência.
II. Com a metropolização, há efetivo processo
Unidade 3

civilizador, que traz vantagens a todos os indivíduos


172

e grupos sociais que se instalam em áreas


metropolitanas.
III. A aglomeração de população em
metrópoles é o resultado de fatores de expulsão
do campo e de fatores da atração que as cidades
exercem sobre as correntes migratórias.

Assinale a opção correta.


a. Apenas o item I está certo.
b. Apenas os itens I e II estão certos.
c. Apenas os itens I e III estão certos.
d. Apenas os itens II e III estão certos.
e. Todos os itens estão certos.
Unidade 3
173

QUESTÃO 16

(ENADE 2017 - Adaptado)

A imigração haitiana para o Brasil passou a ter


grande repercussão na imprensa a partir de 2010.
Devido ao pior terremoto do país, muitos haitianos
redescobriram o Brasil como rota alternativa para
migração. O país já havia sido uma alternativa para
os haitianos desde 2004, e isso se deve à reorien-
tação da política externa nacional para alcançar
liderança regional nos assuntos humanitários.
A descoberta e a preferência pelo Brasil tam-
bém sofreram influência da presença do exército
brasileiro no Haiti, que intensificou a relação de
proximidade entre brasileiros e haitianos. Em meio
a esse clima amistoso, os haitianos presumiram que
seriam bem acolhidos em uma possível migração,
já que o país passaria a liderar a missão da ONU.
No entanto, os imigrantes haitianos têm sofrido
ataques xenofóbicos por parte da população bra-
sileira. Recentemente, uma das grandes cidades
brasileiras serviu como palco para uma marcha an-
ti-imigração, com demonstrações de um crescen-
te discurso de ódio em relação a povos imigrantes
marginalizados. Observa-se, na maneira como es-
ses discursos se conformam, que a reação de uma
parcela dos brasileiros aos imigrantes se dá em ter-
mos bem específicos: os que sofrem com a violên-
cia dos atos de xenofobia, em geral, são negros e
têm origem em países mais pobres.

SILVA, C. A. S.; MORAES, M. T. A política


Unidade 4

migratória brasileira para refugiados e a imigração


174

haitiana. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 3,


n. 50, p. 98-117, set./dez. 2016 (adaptado).
A partir das informações do texto, conclui-se
que:

a. O processo de acolhimento dos imi-


grantes haitianos tem sido pautado por
características fortemente associadas
ao povo brasileiro: a solidariedade e o res-
peito às diferenças.
b. As reações xenófobas estão relaciona-
das ao fato de que os imigrantes são con-
correntes diretos para os postos de tra-
balho de maior prestígio na sociedade,
aumentando a disputa por boas vagas de
emprego.
c. O acolhimento promovido pelos brasileiros
aos imigrantes oriundos de países do leste
europeu tende a ser semelhante ao ofere-
cido aos imigrantes haitianos, pois no Bra-
sil vigora a ideia de democracia racial e
respeito às etnias.
d. O nacionalismo exacerbado de classes
sociais mais favorecidas, no Brasil, motiva
a rejeição aos imigrantes haitianos e a
perseguição contra os brasileiros que
pretendem morar fora do seu país em
busca de melhores condições de vida.
e. A crescente onda de xenofobia que vem
se destacando no Brasil evidencia que,
o preconceito e a rejeição, por parte dos
brasileiros, em relação aos imigrantes
haitianos, é pautada pela discriminação
Unidade 4

social e pelo racismo.


175

QUESTÃO 17

A origem dos direitos humanos está associada


ao reconhecimento da cidadania a um número
cada vez maior de pessoas, como resultado do
movimento de desconcentração do poder político
em países da Europa Ocidental. Considerando as
ideias expressas no texto, é correto afirmar que os
direitos humanos:

a. Abarcam, já no século XVIII, a dimensão


dos direitos sociais (trabalho, saúde, edu-
cação).
b. Refletem no Século das Luzes, as aspi-
rações das camadas médias da sociedade
pela igualdade de direitos.
c. São relativos aos usos e costumes de cada
povo ou cultura.
d. Podem ou não ser exercidos, dependendo
da escolha de quem os possui.
e. São destinados apenas para pessoas não
miscigenadas.

QUESTÃO 18

(FUNCAB, 2013 - Adaptado) Nos anos ime-


diatamente posteriores à Segunda Guerra Mun-
dial, os direitos humanos foram declarados uni-
versais pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Desde então, foram promulgadas novas cartas de
direitos condicionando os países a ajustarem suas
legislações internas às exigências internacionais.
Unidade 4
176

É correto afirmar que os direitos humanos:

a. Não abarcam atualmente os chamados di-


reitos de terceira geração, que compreen-
dem o direito de viver em ambiente não
poluído e autossustentável.
b. São reconhecidos e protegidos apenas
mediante a concordância dos Estados
nacionais particulares.
c. Não dependem apenas da “não ação” do
Estado (ou do reconhecimento dos direitos
por um Estado-Nação), mas também da
ação deste no trato das questões sociais.
d. Não estão estritamente relacionados a
práticas democráticas, haja vista que hoje
não compreendem a dimensão de direitos
civis e políticos.
e. Devem ser aplicados apenas para seres
humanos que respeitam as regras sociais.

QUESTÃO 19

Os movimentos sociais são fundamentais


como meios de participação da sociedade civil nas
decisões políticas, em torno de buscar a promoção
de interesses de grupos sociais.
É correto afirmar que os movimentos sociais:

a. Buscam a conquista do poder de Estado


por meio dos partidos políticos.
b. Atuam fora da esfera das instituições,
porém buscam reivindicar direitos dentro
Unidade 4

das leis da sociedade.


177

c. Visam alterar as características estru-


turais de um sistema social e não apenas
melhorar suas condições.
d. Não possuem identidades em torno de
classes sociais, orientações sexuais ou
grupos étnicos.
e. Só tem legitimidade quando não degradam
o patrimônio privado.

QUESTÃO 20

Os Direitos Humanos estão quase sempre


sendo ampliados. Esse processo de ampliação dos
direitos gera inúmeros debates sociais. Para Segato
(2006), é por meio de certos grupos, principalmente
dos tidos como subalternos em relação a outros,
que as mudanças legais, em torno da justiça, do
reconhecimento de novos valores sociais, podem ser
inscritas, inclusive na lei. Os movimentos em torno de
novas reivindicações e reconhecimentos de direitos
da pessoa humana, podem ser chamados de:

a. Ética da insatisfação.
b. Dramas culturais.
c. Movimento mimimi.
d. Ética da negação.
e. Ética da expressão.
Unidade 4
Unidade 4 178

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