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Cultura e Classes Sociais

na Perspectiva Disposicionalista
Cultura e Classes Sociais
na Perspectiva Disposicionalista
Organizadora:
Lília Junqueira

Colaboradores:
Bernard Lahire
Jessé Souza
João Paulo Lima e Silva Filho
José Augusto Amorim
Lília Junqueira
Marcio Sá (e equipe)
Maurício Antunes Tavares
Raldianny Pereira dos Santos

Recife, 2010.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Reitor: Prof. Amaro Henrique Pessoa Lins
Vice-Reitor: Prof. Gilson Edmar Gonçalves e Silva
Diretora da Editora: Profª Maria José de Matos Luna

COMISSÃO EDITORIAL
Presidente: Profª Maria José de Matos Luna

Titulares: André Luiz de Miranda Martins, Artur Stamford, Christine Paulette Yves Rufino, Elba Lúcia C. de Amorim,
Emanuel Souto da Mota Silveira, José Dias dos Santos, José Wellington Rocha Tabosa, Kátia Cavalcanti Porto, Lívia
Suassuna, Marcos Gilson Gomes Feitosa, Marlos de Barros Pessoa, Sônia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque.
Suplentes: Alexandre Simão de Freitas, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Augusto César Pessoa Santiago, Benício de
Barros Neto, Bruno César Machado Galindo, Carlos Alberto Cunha Miranda, Carlos Sandroni, Ivandro da Costa Sales,
José Gildo de Lima, Luiz Carlos Miranda, Vera Lúcia Menezes Lima, Zanoni Carvalho da Silva

CONSELHO CIENTIFICO
Edistia Maria Abath Pereira de Oliveira – Serviço Social – CCSA, Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Serviço
Social – CCSA, Marco Antônio Mondaini de Souza – Serviço Social – CCSA, Fernando Gomes de Paiva – Administração
– CCSA, Luís De La Mora – Arquitetura – CAC, José Zanon de Oliveira Passavante – Oceanografia – GTG, Allene
Carvalho Lage – Núcleo Formação Docente – CAA, Carlos Eduardo Ferreira Monteiro – Psicologia e Orientação
Educacional – CE, Ana Emília Gonçalves de Castro – Design - CAC

CÂMARA DE EXTENSÃO
Solange Galvão Coutinho – Presidente - Pró-Reitora de Extensão – Design – CAC, José Mariano de Sá Aragão
– Assessor - Engenharia Civil – CAA/CTG, Leonor Costa Maia – Micologia – CCB, Márcia Ângela da Silva Aguiar –
Métodos e Técnicas da Educação – CE, Moacyr Cunha de Araújo Filho – Oceanografia – CTG

COMISSÃO ORGANIZADORA
Djanyse Barros de Arruda Mendonça, Miriam Vila Nova Maia – Divisão de Apoio Institucional – Pró-Reitoria
de Extensão

REVISÃO
A organizadora
Sumário

Apresentação 09

Parte I: Sociologia disposicionalista e processos de socialização

Por uma sociologia disposicionalista 17


e contextualista da ação
Bernard Lahire

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista 37


Lília Junqueira

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: 63


o que os fazem perder?
Marcio Sá e equipe

Socialização e intimidade: considerações sobre 89


os modos de vida de homens e mulheres
Raldianny Pereira dos Santos

Parte II: Repensando os conceitos


de campo e habitus em literatura e mídia

O campo, o mundo e o jogo: 103


o universo literário em questão
Bernard Lahire
Graciliano Ramos e o universo da escrita: 117
informações biográficas e processo criativo em Caetés
João Paulo Lima e Silva Filho

Limites do conceito de campo para entender 151


a teledramaturgia brasileira
Lília Junqueira

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista 187


José Augusto Amorim

Parte III: Perspectiva disposicionalista


das classes sociais no Brasil

As classes populares no novo capitalismo brasileiro 213


Jessé Souza

Ascensão social e ética econômica na classe popular: 233


habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
Lília Junqueira

O “Super-homem” de Negócios 271


Marcio Sá e equipe

De aprendiz a sabedor: 305


os jovens e as mudanças sociais no mundo rural
Maurício Antunes Tavares

Sobre os autores 357

Anexos 360
Apresentação

Este livro consiste na divulgação dos trabalhos de pesquisa “As classes 9


populares no novo capitalismo brasileiro” e “Desigualdades Sociais
e telenovelas: relações ocultas entre ficção e reconhecimento”, e di-
versos trabalhos e teses de doutorado alinhadas com estas temáticas
realizados na Universidade Federal de Pernambuco, envolvendo o
campus Recife e o campus do Agreste, com a participação de pes-
quisadores da Fundação Joaquim Nabuco, da Universidade Federal
de Juiz de Fora e da École Normale Supérieure de Lyon, na França,
durante o triênio 2008/2010. Com exceção de dois convidados ex-
ternos e do professor Marcio Sá (e sua equipe), todos os autores são
pesquisadores, alunos ou egressos do Programa de Pós-graduação
em Sociologia da UFPE. Todos os autores são pesquisadores mem-
bros ou parceiros do Núcleo de Pesquisa Cultura e Comunicação,
criado e coordenado por Lília Junqueira, organizadora deste livro.

Os trabalhos de pesquisa se deram articulados com atividades de


ensino de disciplinas específicas, tais como a disciplina curricular
eletiva Sociologia da Comunicação desenvolvida no curso de gra-
duação em Ciências Sociais em 2008 e o mini-curso sobre Pierre
Bourdieu, para o PET do curso de Ciências Sociais da UFPE, reali-

Apresentação
zado em 2009, ambos ministrados pela professora Lília Junqueira.
Além disso, o Núcleo de Pesquisa Sociedade, Cultura e Comunicação
realizou amplas sessões de discussão envolvendo alunos de nível de
graduação, mestrado e doutorado através de um grupo de estudos
permanente sobre os temas de pesquisa e teóricos trabalhados. O
trabalho envolveu também a orientação de bolsistas de iniciação
científica dentro do Programa Proext através da parceria com o
professor Jessé Souza.

O Núcleo organizou um ciclo de conferências e workshops em algu-


mas sessões abertas ao público e outras mais voltadas para os pro-
fessores, pesquisadores e alunos envolvidos mais diretamente nas
pesquisas, trazendo até a UFPE dois grandes nomes da sociologia
nacional e internacional, que enriqueceram a discussão da pesquisa.
O primeiro é Bernard Lahire diretor do Grupo de Pesquisa sobre a
10 Socialização da École Normale Supérieure de Lyon e autor de uma
vasta obra (mais de 20 livros publicados na França, a maioria com
tradução em várias línguas, inclusive no Brasil) sobre a sociologia
disposicionalista, e o segundo é o professor Jessé Souza da Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora, considerado um grande autor de
referência na sociologia brasileira, com o qual o Núcleo Sociedade
Cultura e Comunicação tem uma parceria direta, sendo responsável
por parte de uma pesquisa de espectro nacional desenvolvida por
ele, financiada pelo Ministério de Assuntos Estratégicos do Governo
Federal. Os pesquisadores do Núcleo contribuíram para esta pes-
quisa através de trabalhos de campo na região Nordeste, reflexões
teóricas e publicações em obras coletivas de caráter nacional, orga-
nizadas por Jessé Souza.

O resultado do trabalho é uma produção extremamente profícua e


de alta qualidade que é apresentada neste livro, constituindo uma
contribuição importante da UFPE para a reflexão sobre temas de
interesse geral da sociedade como os problemas sociais do conflito
de classes, das relações sociais (de classe, institucionais e individu-
ais) com a cultura e a mídia, e das desigualdades sociais. Ao mesmo

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tempo, trata-se de uma forte contribuição para a discussão acadê-
mica, trazendo uma perspectiva teórica de vanguarda nas ciências
sociais nacionais e internacionais, alicerçada em amplo e profundo
trabalho empírico realizado em Pernambuco, no Brasil e na França.

Na primeira parte, intitulada Sociologia disposicionalista e proces-


sos de socialização, temos a primeira conferência de Bernard Lahi-
re “Por uma sociologia disposicionalista da ação”. Nela, o autor
propõe, no campo de investigação da sociologia disposicionalista,
“colocar em questão as modalidades de acionamento de disposições
incorporadas (constituídas no curso do conjunto de experiências
passadas) pelos elementos ou pela configuração da situação presen-
te, ou seja, a questão das maneiras pelas quais uma parte das ex-
periências passadas incorporadas é mobilizada, convocada, desperta
pela situação presente.” Em seguida, o artigo de Lília Junqueira,
aponta como Bourdieu nos ajuda a compreender a relação da ficção 11
midiática com a sociedade, não apenas enquanto violência simbóli-
ca, mas também enquanto uma prática que participa da formação e
desdobramento dos habitus do campo e das classes sociais.

Perceber as telenovelas, por exemplo, como um campo permite es-


tudar os processos de sua recepção de uma forma não limitada
àquilo que pode emergir no espaço público, mas aos fenômenos
que ainda não estão expressos racionalmente. Passa a ser possível
a partir daí, penetrar o interior da comunicação entre telenovelas e
público, entrando em contato com sua essência emocional, psicoló-
gica, sem, no entanto, cair na armadilha da reificação dos processos
individuais, deixando de ver que, no caso das desigualdades sociais,
eles são coletivos.

O texto de Marcio Sá e equipe “Por um lugar no mercado ou jo-


vens em luta na TV: O que os faz perder? explora um dos maiores
desafios que enfrentam jovens universitários (e profissionais recém-
-formados) que é a inserção no mercado de trabalho. A relevância
social deste fenômeno acabou projetando-o à televisão. “O Apren-

Apresentação
diz 6 Universitário”, um reality show, é visto neste texto como um
“laboratório televisivo” da luta cotidiana de jovens que almejam se
tornar executivos de negócios. Para a análise dos reais motivos que
fazem com que os jovens participantes sejam, um a um, eliminados
do programa, recorre-se ao aporte teórico de corrente sociológica
que busca desvelar as disposições que orientam as ações dos indi-
víduos nos mais diversos contextos sociais. Observando a questão
nestes termos, os candidatos não estão apenas em luta uns contra
os outros pela vitória no programa, mas também travam grande
embate interno, cada um consigo mesmo, em busca de pensar, agir
e sentir de modos os quais ainda não tiveram a oportunidade de
incorporar por estarem no início de suas trajetórias profissionais.
Finalmente Raldianny Pereira dos Santos em “Socialização e inti-
midade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulhe-
res” faz uma reflexão sobre as mudanças nas relações de intimidade
12 a partir das novas relações sociais. Partindo da idéia de que acentu-
adas e aceleradas transformações na configuração geral do mundo
contemporâneo, em suas mais variadas esferas e dimensões, têm se
manifestado também no terreno das relações de gênero, tornando-
-se fecundo e instigante território de análise, seu artigo visa con-
tribuir para o debate e compreensão dos fenômenos da sociedade
atual. O artigo apresenta uma breve trajetória da construção social
da noção de intimidade, que perpassa as relações entre os gêneros,
e sua imbricação com o processo da reflexividade.

Na segunda parte, intitulada “Repensando os conceitos de cam-


po e habitus em literatura e mídia”, Bernard Lahire apresenta sua
segunda conferência, “O campo, o mundo e o jogo: o universo
literário em questão”. O objetivo da sua proposta “consistirá em
apoiar-me nos resultados de uma pesquisa realizada na França so-
bre os escritores, para apresentar as propriedades mais fundamentais
do universo literário e para discutir sobre a maneira pela qual os
sociólogos descreveram e teorizaram os microcosmos sociais que
compõem as sociedades complexas. Para isso, retomarei as noções
de « campo » (Bourdieu) e de « mundo » (Becker e Strauss) e explica-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


rei as razões que me levaram a falar de « jogo literário » no lugar de
« campo » ou « mundo » literário (...) Aliás, é bastante surpreendente
ver como a tradição sociológica que chama a atenção para o “peso
do passado” pode negligenciar o papel da situação presente que
“decide” portanto sempre aquilo que do passado vai poder ressurgir
e agir no interior da ação presente. Basta pensar nestes esquemas de
ação que não encontram mais, por razões de transformações sociais
radicais ou de transplantações individuais mais ou menos forçadas
de um universo social a outro (isto é aprisionamento, hospitalização
durável, imigração, situações de guerra, brusco declínio social ou
fulgurante ascensão social, etc.), as condições de sua atualização
feliz, harmoniosa para se lembrar ou se convencer da importância
da situação presente.”

João Paulo Lima e Silva apresenta parte de sua tese no artigo in-
titulado “Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações 13
biográficas e processo criativo em ‘Caetés’” no qual propõe tratar
a obra de Graciliano Ramos levando em conta a interligação entre
as informações biográficas (lidas a partir do recorte de uma sociolo-
gia disposicionalista) e o processo criativo de seus romances. Neste
sentido são apresentadas análises buscando captar direta e indireta-
mente aquilo que vemos ser condição para o entendimento da obra
do autor de Caetés: por um lado, a objetivação da condição de inte-
lectual que ele realiza em suas obras e, por outro lado, a objetivação
de sua condição existencial. Uma dupla objetivação que trará con-
tornos característicos aos seus romances. Lília Junqueira no texto
“Limitações do conceito de campo para entender a teledramaturgia
brasileira”, coloca em questão como pensar o espaço da produção
da ficção, se a pluralidade dos indivíduos que nele agem é a cada
dia mais vasto. Apesar do fato que a teledramaturgia e o cinema
já sejam considerados como campos profissionais em diversos paí-
ses, o número de agentes responsáveis pela produção e pela criação
das histórias aumenta progressivamente. Desenvolve-se neste texto
uma reflexão sobre as transformações no espaço da criação da tele-
dramaturgia nacional, ocorridos a partir dos anos 2000 apontando

Apresentação
como estas transformações dificultam a continuação da utilização
do conceito de campo de Bourdieu. Finalmente Augusto Amorim
em “O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista” rea-
liza uma reflexão sobre as relações entre habitus narrativo e a recep-
ção de cinema. O habitus narrativo é entendido como a disposição
geral do campo do cinema em produzir, distribuir, exibir e promover
filmes cuja linguagem se vincula à narrativa linear clássica, de fácil
compreensão e adesão por parte dos espectadores, constituindo-se
consequentemente também em habitus da recepção. Trata-se da
lógica que orienta o mercado cinematográfico, dominado pelo dis-
curso do cinema norte-americano. O habitus narrativo é, então, uma
disposição socialmente condicionada do campo profissional, mas
que implica, mesmo com sua característica de “núcleo duro”, em
processos de recepção espectatorial relativamente diversos, em fun-
ção de aspectos subjetivos específicos de cada espectador.
14
Jessé Souza abre a terceira parte, intitulada “Perspectiva disposi-
cionalista das classes sociais no Brasil” com sua conferência “As
classes populares no novo capitalismo brasileiro”, na qual apre-
senta a pesquisa realizada em parceria com o Núcleo de Pesquisa
Sociedade, Cultura e Comunicação da UFPE: “O trabalho sobre a
nova classe média, parte da idéia de fazermos uma análise de classe
do Brasil que seja contraposta a essa interpretação conservadora
do personalismo patrimonialista. Temos que repensar esse país de
outro modo, mostrando os conflitos. Esses conflitos estão todos nas
relações de classe. É a classe que é a grande invisibilidade. Não é a
classe no sentido marxista nem a classe no sentido liberal, já que o
liberalismo liga classe à renda. Se você liga classe à renda, tem-se
uma forma de falar de classe sem perceber nada de importante em
relação a ela (...) É isso que é feito para a dominação de todos os in-
teresses pelos conservadores, esse conceito não cai, embora ele não
tenha nenhuma solidez e não significar coisa alguma, só erro. Quer
dizer, é só erro você pensar em termos de você separar Estado de
mercado, é só erro você imaginar uma sociedade como a brasileira
como sendo pré-moderna, que é um absurdo, como se fosse assim

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


uma herança portuguesa de 500 anos.”

Em seguida, Lília Junqueira apresenta o resultado de sua inves-


tigação no artigo “Ascensão social e ética econômica na classe
popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe”, traçando
o perfil individual de uma vendedora ambulante da orla de Boa Via-
gem. O caso permite observar o desenrolar de uma experiência de
vida relativamente especial que apresenta o caso típico de habitus
dissonante com relação à classe de origem, composto por um com-
plexo híbrido de disposições. O resultado da trajetória de Suzana é
o desenvolvimento da lógica econômica internalizada e tornada dis-
posição. Suzana não apresenta um perfil perfeitamente empresarial,
com eficiente cálculo de risco. Por outro lado, estão presentes um
certo controle entre receita e despesa, controle do estoque, visão de
mercado e de marketing, e um emprego absolutamente racional do
lucro, levando em consideração as limitações de sua condição social. 15
Esta trajetória explica porque suas disposições econômicas convi-
vem com a ética religiosa da caridade, da generosidade e da culpa-
bilidade pelo lucro e a aversão ao crédito. Márcio de Sá apresenta
a seguir o artigo “O super-homem de negócios”, o qual tem como
objetivo a construção e apresentação de um tipo puro (ideal), nos
moldes propostos por Max Weber, que visa apoiar uma investigação
maior na qual se insere – voltada para a compreensão dos modos de
pensar, sentir e agir do homem de negócios contemporâneo. O su-
per-homem de negócios é um indivíduo que tem ambição e ostenta
símbolos de “sucesso” socialmente reconhecidos numa sociedade de
mercado, que acredita e/ou incorpora a ideologia de mercado (neo)
liberal e, principalmente, apresenta traços de personalidade específi-
cos socialmente constituídos, tais como: Agressividade; auto-estima
elevada; poder de persuasão, capacidade retórica (“ares proféticos”
em suas falas ao, muitas vezes, “aparentar saber mesmo quando não
sabe”); discurso “politicamente correto”; carisma, postura de líder
e inspirar segurança. Aos olhos da classe popular, o super-homem
de negócios reúne todas as disposições que ela necessitaria para
obter sucesso no mercado. Finalmente, Maurício Antunes Tavares

Apresentação
apresenta trecho de sua tese de doutorado intitulada “De aprendiz
a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural”. No
sertão nordestino, uma região triplamente periférica, em relação ao
Nordeste, ao Brasil e aos países centrais do sistema capitalista, os
processos de mudanças da sociedade mais ampla da qual a região é
parte atingem as relações sociais não só no plano econômico, mas
também no plano das relações privadas. É isto que contribui para a
difusão de uma “cultura jovem”. Essa cultura, que é parte de outra
que se pretende global – a cultura ocidental –, contribui com sua
parte para tensionar as relações intergeracionais nas comunidades
rurais a partir das mudanças nas formas de compreender o mundo.
Este artigo trata do desencaixe entre as velhas tradições camponesas
e as novas formas de sociabilidade dos jovens que vivem no campo,
a partir dos processos de modernização do campo e de difusão de
uma “cultura jovem global”, e também das adaptações que os jovens
16 operam nas tradições para usá-las como mecanismos criadores de
identidades e identificações. Embora localizado em um contexto ru-
ral específico do Sertão nordestino, este estudo também possibilita
uma leitura sobre mudanças sociais na sociedade brasileira, tratando
das conexões do lugar com o espaço regional e nacional.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Por uma sociologia disposicionalista
e contextualista da ação1
Bernard Lahire

17

Se caricaturássemos os dois grandes desvios que todo pesquisador de-


veria se esforçar para evitar em matéria de teoria da ação e do ator,
poderíamos dizer que existe, de uma parte, os modelos que confe-
rem um peso esmagador ao passado do ator, e mais particularmen-
te, às experiências iniciais (mais frequentemente presumidas como
homogêneas) vividas no curso da primeira infância (ver as diferentes
teorias psicológicas ou neuro-psicológicas, a teoria psicanalítica ou
a teoria do habitus)2 e, de outro lado, os modelos que descrevem e
analisam os momentos de uma ação ou de uma interação ou um
estado dado de um sistema de ação sem jamais se preocupar com o

1 Texto inédito no Brasil e na França, traduzido por Lília Junqueira.


2 Em Cadres et mécanismes de la socialisation dans la France d'aujourd'hui (1977, p. 81-82),
Passeron exprimia muito claramente, num parágrafo intitulado « La prime socialisation : vers une
sociologie des expériences originaires », algo implícito e comum para os vários sociólogos franceses
da época e por numerosos dentre eles ainda hoje: « O objeto mais claramente designado pela interro-
gação teórica à pesquisa empírica é sem dúvida a socialização que se exerce nos três primeiros anos
da infãncia, porque tanto a psicanálise quanto as teorias etnológicas e sociológicas da constituição
da personalidade social concordam, em termos diferentes, para conferir uma importância prototípica
às experiências originais. »

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


passado dos atores. No primeiro caso, somente as experiências pas-
sadas são reconstruídas a fim de compreender as ações presentes,
que são, na verdade, atualizações sucessivas do passado agindo. No
segundo caso, os atores são limitados exclusivamente pela lógica
da situação presente: quadro de interação, sistema de ação, orga-
nização, mercado ou campo. No primeiro tipo de modelo de ação,
negligencia-se o estudo das características singulares dos diferentes
contextos de ação, e no segundo tipo, elide-se, voluntária ou invo-
luntáriamente, tudo o que, na ação presente, depende do passado
incorporado dos atores (disposições, inclinações ou hábitos mentais
e comportamentais).

O programa científico de uma sociologia indissociávelmente dispo-


sicionalista e contextualista que proponho (Lahire [1998] 2006 et
2002), consiste a levar em consideração o passado incorporado, as
18 experiências socializadoras anteriores dos atores estudados (experi-
ências que se cristalizam sob a forma de disposições mais ou menos
duráveis, disposições a acreditar, a sentir, a pensar, a agir de uma
certa forma) sempre evitando de negligenciar ou anular o papel do
presente (os diferentes contextos presentes da ação).

O interesse é colocar em evidência o peso das disposições sociais


incorporadas (disposições a sentir, pensar, crer e agir de uma certa
maneira) nunca permitindo pensar que seríamos a cada instante –
e que nos engajaríamos a cada momento, em cada um de nossos
atos – a síntese de tudo o que vivemos anteriormente, e que cada
novo contexto (seja domínio de práticas ou quadro de interação)
seria só um simples terreno de expressão ou de atualização deste
passado incorporado. Seria ilusório pensar que o sociólogo poderia
se contentar de reconstruir esta síntese (este princípio unificador
ou esta fórmula geradora de todas as práticas) para pensar sobre as
práticas. Os comportamentos ou as práticas só se compreendem no
cruzamento das disposições incorporadas (e que não podemos su-
por, dede o início, homogêneas) e limites contextuais (que solicitam
mais ou menos tal ou tal parte de um patrimônio de disposições an-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tes que, mais globalmente, um sistema de disposições3). Esta con-
tribuição é consagrada a expor mais detalhadamente argumentos e
interesses de um tal programa científico sobre a ação e o ator.

Costume e antecipação prática

Numa apresentação abreviada de seu famoso Treatise of Human


Nature publicado um ano antes, o filósofo Hume defende a idéia
segundo a qual uma “ciência do homem” é possível e que “parece
haver todas as razões do mundo para imaginar que esta ciência
possa ser portadora no mais alto grau de exatidão4” ([1740] 2002).
Distinguindo as “impressões” (definidas como “percepções vivas e
fortes”), “idéias” (“percepções fracas”), Hume afirma que as idéias
originam-se de impressões e “que nós não podemos jamais pensar
em alguma coisa que nunca vimos ou sentimos em nosso espírito”. 19
Como bom empirista, e apesar de admitir a existência de “idéias ina-
tas”5, ele sublinha a importância de nossas experiências que, quando
se repetem, criam hábitos mentais e funcionam, no curso da prática,
como antecipações pré-reflexivas de fenômenos futuros.

Hume toma assim, o exemplo de interação entre duas bolas de bi-


lhar. A primeira, que está em movimento, bate na segunda, imóvel,
que, sob o efeito do choque, coloca-se em movimento. Aquele ou
aquela que faz a experiência repetida deste tipo de situação pode
constatar a cada vez o mesmo fenômeno (Hume fala de “conjun-
ção constante entre causa e efeito”) e termina assim, em situações
análogas, por antecipar os efeitos (o choque, depois a colocação
em movimento da bola inicialmente em repouso) produzidos (Su-
ponhamos que vejo uma bola rolar em linha reta em direção a

3 O habitus, da forma como é definido por Bourdieu é apenas um caso possível. Ele corresponde a um
tipo de patrimônio individual de disposições muito coerente. Tal patrimôniode disposições só pode
surgir em condições extremamente homogêneas de socializações primárias e secundárias.
4 Todas as citações são retiradas deste texto.
5 Idéia pela qual ele não pode ser seguido pelos pesquisadores em ciências sociais.

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


outra; concluo imediatamente que elas vão se chocar e que a se-
gunda vai entrar em movimento.”). Eis a maneira pela qual Hume
entende esta situação:

Que um homem, como Adão, seja criado em pelno vigor do


entendimento. Sem experiência, ele não seria jamais capaz
de inferir o movimento da segunda bola do movimento e da
impulsão da primeira. Não é algo que a razão vê na causa
que nos faz inferir o efeito. Uma tal inferência, se ela fosse
possível, seria equivalente a uma demonstração, sendo fun-
dada sobre uma comparação de idéias. [...]

Seria portanto, necessário a Adão [...] ter tido a experiência do


efeito, que se seguiria da impulsão destas duas bolas. Ele preci-
saria ter visto, em vários casos, que, quando uma das bolas batia
na outra, a segunda adquiria movimento. Se ele tivesse visto um
20
número suficiente de casos do gênero, todas as vezes que ele visse
uma das bolas se mover em direção a outra, ele concluiria sempre,
sem hesitação, que a segunda se moveria. Seu entendimento an-
teciparia sua visão e formaria uma conclusão apropriada a sua
experiência passada.

Segue-se portanto, que todos os nossos raciocínios sobre a causa


e o efeito são fundados sobre a experiência, e que todos os nossos
raciocínios originados da experiência são fundados sobre a supo-
sição de que o curso da natureza permanecerá uniformemente o
mesmo. Concluímos que casusas parecidas, em circunstâncias pa-
recidas, produzirão sempre efeitos semelhantess. Pode, agora, valer
a pena considerar o que nos determina a formar uma conclusão de
consequências tão ilimitadas.

É evidente que Adão, com toda sua ciência, não teria jamais sido
capaz de demonstrar que o curso da natureza deve permanecer uni-
formemente o mesmo, e que o futuro deve ser conforme o passado.
[...] Esta conformidade é uma coisa de fato, e se ela deve ser prova-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


da, ela somente admitirá prova que venha da experiência. Mas nossa
experiência do passado não pode ser uma prova de alguma coisa
para o futuro, a menos que suponhamos que haja uma semelhança
entre eles. É portanto, um ponto que não pode permitir nenhuma
prova, e que tomamos como verdade sem prova.

Nós somos determinados pelo COSTUME somente de supor que o


futuro será conforme o passado. Quando vejo uma bola de bilhar
mover-se em direção a outra, meu espírito é imediatamente levado
pelo hábito de efeito comum, e ele antecipa minha visão conce-
bendo a segunda bola em movimento. Não há nada nestes objetos,
considerados abstratamente e independentemente da experiência,
que me conduza a formar uma tal conclusão. E mesmo depois de ter
tido a experiência de numerosos efeitos repetidos desta forma, não
há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será
conforme a experiência passada. [...] 21

Não é portanto a razão que é o guia da vida, mas o costume. Só ela


determina o espírito, em todos os casos, a supor que o futuro será
conforme o passado. Por mais simples que esta operação possa pa-
recer, a razão, por toda eternidade, nunca será capaz de fazê-lo6. »

Para Hume, é mesmo portanto, sobre a base de uma experiência


repetida, que uma disposição mental é – pelo costume – pouco a
pouco formada. E é esta disposição que conduz o indivíduo que
percebe e age, a projetar no futuro (e portanto, antecipar sobre
as ações que ainda não aconteceram) o produto interiorizado de
suas experiências passadas. Hume nos dá o modelo de toda teoria
disposicionalista da ação que, tendo em conta os produtos incor-
porados de séries de experiências passadas relativamente análogas,
toma consciência do fato que o presente da ação (ou da interação),
e notadamente as propriedades do contexto da ação, não explicam
todo o comportamento dos atores. Ele sublinha também o fato que

6 Sublinhado pelo autor.

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


a “razão” e a “vontade” intervém pouco nas percepções ou repre-
sentações comuns que, fundadas sobre crenças práticas adquiridas
por experiência i.e. por costume com situações relativamente simi-
lares, relevam mais frequentemente de hábitos de percepção ou de
representação pré-reflexivos do que de esquemas explícitos e cons-
cientes, intencionalmente ou voluntáriamente construídos.

Basta substituir o exemplo das bolas de bilhar em interação por


situações propriamente sociais para perceber a importãncia de tal
reflexão para as ciências sociais. Pensemos na maneira pela qual um
indivíduo – criança, adolescente, depois adulto, torna-se sensível a
certos jogos de linguagem, a certos tipos de raciocínio, a certas for-
mas de relações sociais, a certos modos de exercício da autoridade,
a certos tipos de comportamentos ou de atitudes alimentares, mo-
rais, culturais, estéticos ou políticos, etc. Face a tal ou tal situação
22 (evento, proposição, gesto, etc.), o ator age ou reage em função do
que ele crê reconhecer dos imperativos (coisas a dizer e não dizer,
a fazer e a não fazer, maneiras de sentir e de apreciar, etc.) ligadas
a esta situação em função de suas experiências passadas. O que o
ator percebe, vê, sente, representa, etc., da situação em questão e
de suas propriedades incorporadas (disposições mentais e compor-
tamentos, esquemas ou categorias de percepção e de apreciação
mais ou menos coerentes ou contraditórias formadas no curso das
experiências socializadoras passadas).

Uma teoria disposicionalista, não mecanista da prática

Ao falar de disposições, de hábitos, de inclinações, de tendências, de


propensões, de ethos ou de habitus, as teorias da ação e da prática
disposicionalistas se distinguem, portanto, de suas concorrentes por
levar em consideração, na análise das práticas ou das representações
sociais, o passado dos atores. As sociologias de ator “sem passado”
se interessam menos pelo ator agindo do que pela ação enquanto
tal, qualquer que seja a história do ator que a efetua. São sociolo-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


gias desprovidas de toda teoria da socialização, da memória, do há-
bito e do passado incorporado. Entre as mais célebres, encontra-se,
é claro, a sociologia de Goffman que analisa a “ordem da interação”
sem procurar reconstruir a socialização passada dos atores (Goffman
1973; 1987; 1988 e 1991). Mas todas as formas de teoria da ação
racional, que dotam universalmente os atores de uma psicologia
sumária, assim como os sociólogos pragmáticos que lhes atribuem
uma série de competências sem história, são em todos os pontos,
opostos a esta tradição disposicionalista.

Mesmo se ele fala de “economia psíquica” ou de “habitus” e evoca


sempre os processos de interiorização das pressões sociais, um autor
como Norbert Elias produz um pensamento configuracional, que in-
site, ele também, prioritáriamente nas relações de interdependência
que formam entre eles os indivíduos, e sobre as pressões que elas
fazem pesar sobre os comportamentos e decisões de cada um entre 23
eles, do que sobre a articulação destes “paralelogramas de forças” e
do passado incorporado pelos indivíduos socializados. Ele escreve,
assim, que a estrutura e a forma do comportamento de um indivíduo
dependem da estrutura de suas relações com os outros indivíduos”
(1991a: 104) ou ainda que “as diferentes vias possíveis entre as quais
ele [o indivíduo] opta lhe são prescritas pela constituição de seu cír-
culo de ação e de suas relações de interdependência” (1991a: 95)7.

Contráriamente ao que certos críticos deixam, às vezes pensar, os


modelos disposicionalistas não estão condenados a fazer da expli-
cação pelas primeiras experiências socializadoras vividas no meio
familiar de origem, o coração da explicação sociológica das práticas
e crenças. Luc Boltanski deixa, assim, supor que as sociologias dis-
posicionalistas teriam “por objeto lançar luz sobre determinações
que, inscritas de uma vez por todas nos agentes, guiariam sua ação,
qualquer que seja a situação na qual eles se encontram colocados”

7 Pode-se sempre notar o fato que ele ultrapassou os limites deste tipo de análise quando ele passou
ao estudo preciso de um caso (por exemplo, o de Mozart [1991b]).

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


(1990: 65) ou ainda “reapresentar propriedades que, inscritas de
modo irreversível nos agentes e em seus hábitos corporais, determi-
nariam suas condutas em todas as circunstâncias” (1990:69).

Tal pensamento seria a prova de um determinismo bem pobre e de


esquecer ao mesmo tempo a existência das “socializações secun-
dárias8” e a pluralidade dos quadros socializadores que encontra-
mos já evocados por Halbwachs em suas reflexões sobre a memória.
“Cada homem, ele escreve, está mergulhado ao mesmo tempo ou
sucessivamente em vários grupos” (1968: 67-68) e estes não são
nem homogêneos nem imutáveis (1968:76). Estes grupos, que cons-
tituem os quadros sociais de nossa memória incorporada, podem
ser parcialmente ou muito fortemente heterogêneos e os indivídu-
os que por eles passam durante um mesmo período de tempo ou
em diferentes momentos de sua vida são portanto o produto desta
24 heterogeneidade de esquemas de percepção, de representação e de
apreciação, de memórias incorporadas, de disposições ou hábitos
mentais e comportamentais.

Um sociólogo como Halbwachs propunha portanto, já uma visão sutil


da socialização e dos determinismos, sensível a heterogeneidade e a
pluralidade dos quadros sociais da experiência, que poderiam inspirar
os sociólogos contemporâneos. Em A Memória coletiva, ele formula
um certo número de observações que os pesquisadores que procu-
ram entender a diversidade de influências socializadoras ( e, conse-
quentemente, disposições mentais e comportamentais) deveriam se
esforçar de lembrar quando desenvolvem suas pesquisas. Com efeito,
é a preocupação de recolocar em questão os conjuntos considerados

8 Não somente a homogeneidade do universo familiar – e consequentemente experiências socia-


lizadoras que são feitas em seu seio – é relativa (que a heterogeneidade seja fraca ou que leve às
contradições familiares as mais exacerbadas, esta está sempre presente no coração da configuração
familiar que não é nunca uma instituição total perfeita), mas a sucessão ou a « superposição » primá-
ria-secundária é frequentemente mexida pela ação socializadora muito precoce de universos sociais
diferentes do universo familiar ou de atores estranhos ao universo familiar (por exemplo a babá, a
creche ou a escola maternal). Sobre estes pontos, ver notadamente Lahire (1995), Darmon (2006) e
Henri-Panabière (2007).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


por demais apressadamente como homogêneos afim de considerar
as diferenças internas que lhe fazem escrever: “Para ter uma idéia ao
contrário, da multiplicidade das memórias coletivas, imaginemos o
que seria a história da nossa vida se, enquanto a contamos, nós pa-
rássemos a cada vez que nos lembrássemos de um dos grupos pelos
quais passamos, para examiná-lo nele mesmo e dizer tudo o que
nele nós conhecemos. Não seria suficiente distinguir alguns grupos:
nossos pais,a escola, o ginásio, nossos amigos, os homens de nossa
profissão, nossas relações na cidade, e ainda em sociedades políticas,
religiosas, artísticas à qual nós pudemos nos ligar. Estas grandes divi-
sões são cômodas, mas elas respondem a uma visão ainda exterior e
simplificada da realidade. Estas sociedades compreendem grupos bem
menores, que só ocupam uma parte do espaço, e é somente com uma
seção local de um dentre eles que nós tivemos contato. Eles se trans-
formam, se segmentam, tão bem que mesmo se ficamos no mesmo
lugar, que não saiamos de um grupo, acontece que pela renovação 25
lenta ou rápida de seus membros, ele se torna realmente um outro
grupo que tem poucas tradições comuns com os que lhe constituíam
no início.” (1968:76, sublinhado pelo autor).

Um dos grandes interesses da explicação disposicionalista é de per-


mitir compreender porque os indivíduos podem perceber diferen-
temente as mesmas situações e reagir diferentemente face às mes-
mas solicitações ou injunções exteriores. Se somente fizéssemos a
hipótese de que experiências socializadoras passadas diferentes se
sedimentaram e converteram em maneiras mais ou menos durá-
veis de ver, de sentir e de agir, quer dizer, em traços disposicionais,
não compreenderíamos o princípio de tais variações. Porque, se o
contexto fosse o único a pesar sobre o comportamento dos atores,
uma análisse detalhada das propriedades deste poderia ser suficien-
te para determinar precisamente o tipo de percepção, de ação ou
de reação que podem produzir os atores em função de suas posi-
ções ou de seus papéis no contexto em questão (situação de inte-
ração, configuração de relações de interdependência, organização,
mercado,campo, etc.)

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


Uma disposição mental ou comportamental sendo o produto incor-
porado de uma socialização (explícia ou implícita) passada, somente
se constitui em sua duração, ou seja, na repetição de experiên-
cias relativamente similares. Não se adquire disposições cognitivas,
perceptivas, apreciativas, etc., por conversão brutal e milagrosa e
pode-se assim dizer que sua força e sua durabilidade dependem da
precocidade, da duração, da sitematicidade e da intensidade de sua
incorporação9.

Um dos correlatos metodológicos destas precisões é o fato que uma


noção tal que a de “disposição” (ou de “esquema”) supõe que pos-
samos detectar, com ajuda de uma observação etnográfica, de en-
trevistas ou da objetivação estatística, uma série coerente de com-
portamentos, de práticas ou de atitudes e impossibilita de pensar
que possamos deduzir uma disposição a partir do registro ou da
26 observação de um só acontecimento. O vocabulário disposicionalista
carrega, portanto a idéia de recorrência, de repetição relativa, de
série ou de classe de acontecimentos.

Mas este imperativo metodológico da reconstrução de “séries coe-


rentes” não deve, no entanto, conduzir a uma antecipação perma-
nente da coerência tratando as séries em questão como uma “cama
de Procusto10”. Como o escrevia ainda D. Hume ([1740] 2002):
“Nossa experiência passada não é sempre uniforme.” Se a noção
de disposição implica teóricamente uma operação de colocação em
evidência da coerência de comportamentos, de atitudes ou de opini-
ões diversos e aparentemente espalhados, ela não deve, no entanto,
conduzir à idéia segundo a qual toda disposição seria forçosamente

9 Uma disposição ou um esquema pode, portanto, se reforçar por solicitação contínua ou ao contrá-
rio, enfraquecer-se por falta de treinamento.
10 Weber escrevia que « nada é, sem dúvida, mais perigoso do que a confusão entre teoria e história
», o que pode conduzir a utilizar « quadros teóricos e conceituais [...] como um tipo de cama de
Procusto na qual se introduziria à força a história » ([1904-1917] 1992 :178). Procusto é esta figura
da mitologia grega que amarra suas vítimas numa cama, cortando os membros das pessoas grandes
e altas que ultrapassam os limites da cama e esticando os pequenos e baixos até que eles atinjam o
tamanho necessário.

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geral, trans-contextual (i.e. independente de contextos específicos
de sua atualização) e ativa a cada momento da vida dos atores11.
A pesquisa da coerência deve, portanto, ser acompanhada de uma
preocupação com a delimitação das classes de contextos, de áreas
de atualização da disposição reconstruída. A questão de saber se a
disposição em questão é específica (disposição especializada que só
se atualiza em certos tipos de situação ou em certos domínios da
prática) ou geral e permanente não é concluir a priori, antes de toda
pesquisa empírica.

Enfim, a possível reconstrução de “séries” diferenciadas, heterogê-


neas, e às vezes concorrentes ou contraditórias, entre os mesmos
indivíduos coloca o problema da organização e da mobilização do
patrimônio individual de disposições em função dos contextos de
ação (domínio das práticas, tipo de situações, etc.) Se dificilmente
podemos seguir as definições de indivíduo que dele desenham um 27
quadro “estilhaçado”, sem “unidade” nem “coerência12”, isto não
deve conduzir o pesquisador a aumentar a importância de experi-
ências socializadoras e de traços disposicionalistas que elas impri-
miram sobre os indivíduos. O mesmo indivíduo pode ser portador
de disposições heterogêneas (e relativamente independentes umas
das outras) que podem, combinando-se, estar no princípio de uma
parte de seus comportamentos em tal ou tal contexto (Lahire 2002:
409-411). Estas diferentes disposições podem também atualizar-se
e colocar-se em estado latente segundo o contexto ou então, quan-
do são altamente contraditórias, entrar regularmente em conflito e
terminar por travar a ação (Lahire [1998] 2006).

11 O pesquisador terminará então, por não mais ver os contra-exemplos que deveriam, no entanto,
permitir-lhe perceber a exitência de outras séries concorrentes caracterizando os mesmos indivíduos.
12 Sem dúvida um dos limites do empirismo de Hume é recolocar radicalmente em questão a coe-
rência das experiências individuais. Falta aqui ao filósofo uma teoria das instituições ou dos quadros
socialisadores que colocam em forma e em ordem as experiências, organizam sua recorrência e tornam
possíveis, uma vez incorporados pelos indivíduos, modos de percepção ou de representações e tipos
de comportamentos relativamente estáveis e coerentes.

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


O peso respectivo do passado e do presente
A questão do peso relativo das experiências passadas e da situação
presente para dar razão às ações é fundamentalmente ligada à da
pluralidade interna do ator, ela mesma correlativa da questão da plu-
ralidade das lógicas de ação nas quais o ator foi e é levado a se ins-
crever. Efetivamente, se o ator é o produto de uma condição familiar
homogênea e unívoca de existência X e se ele só encontra ao longo
de sua vida situações idênticas e análogas a X, então passado e pre-
sente tornam-se um só. Não há mais nenhuma diferença entre o que
o ator conheceu anteriormente e o que ele conhece atualmente, e
observa-se, então, segundo a expressão de Bourdieu inspirando-se na
fenomenologia, uma profunda relação de cumplicidade ontológica
entre as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas da situação
social, cumplicidade que está no fundamento da illusio, i. e. da rela-
28 ção encantada com a situação: o ator vive a situação como um peixe
dentro d’água. Mas não há mais, propriamente falando, nem passado
nem presente (o que diz muito exatamente uma fórmula do tipo:
“(habitus) ajustados por antecipação às situações nas quais eles fun-
cionam e das quais eles são o produto”, (1997, p.174) porque o ator
viveu e continua a viver num espaço social homogêneo que jamais se
transforma. Numa fórmula do tipo: “passado que sobrevive no pre-
sente e que tende a se perpetuar no futuro na atualização em práticas
estruturadas segundo seus princípios” (1980, p.91), pressupõe-se a
homogeneidade, a unicidade do passado e bloqueia-se prematura-
mente o problema do reencontro entre um “passado incorporado” e
um “presente” diferentes ou contraditórios.

A articulação passado-presente somente ganha todo o seu sentido


quando “passado” (incorporado) e “presente” (contextual) são dife-
rentes, e ela reveste uma importância particular quando “passado”
e “presente” são eles mesmos heterogêneos. Se a situação presente
não é negligenciável, é, por um lado, porque existe historicidade im-
plicando que o que foi incorporado não é necessariamente idêntico
ou tem relação harmoniosa com o que requer a situação presente e,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


por outro lado, porque os que nela se engajam não são “Um”, isto é,
não são redutíveis a uma fórmula geradora de suas práticas, a uma
lei interna, a um nomos interior.

O modelo do habitus implica frequentemente o primado das expe-


riências passadas na medida em que elas estão “no princípio” não
somente da compreensão de experiências ulteriores, mas também de
sua seleção (de sua aceitação e de sua rejeição, de seu evitamento):
“à diferença das estimativas dos especialistas que se corrigem após
cada experiência segundo regras de cálculo rigorosas, antecipações
do habitus, tipos de hipóteses práticas fundadas sobre a experiên-
cia passada, conferem um peso desmesurado às primeiras experi-
ências; na verdade, são as estruturas características de uma classe
determinada de condições de existência que, através da necessidade
econômica e social que elas fazem pesar sobre o universo relativa-
mente autônomo da economia doméstica e das relações familia- 29
res, ou melhor, através das manifestações propriamente familiares
desta necessidade externa (forma da divisão de trabalho entre os
sexos, universos de objetos, modos de consumo, relações com os
pais, etc.), produzem estruturas do habitus que estão por sua vez no
princípio da percepção e da apreciação de toda experiência ulterior”
(p.90-91). Ou ainda: “O peso particular das experiências primitivas
resulta, com efeito, no essencial, do fato que o habitus tende a asse-
gurar sua própria constância e sua própria defesa contra a mudança
através da seleção que ele opera entre as informações novas rejei-
tando, em caso de exposição acumulada e sobretudo desfavorizan-
do a exposição a tais informações. [...] [o autor dá então o exemplo
da homogamia]. Pela “escolha” sistemática que ele opera entre os
lugares, os eventos, as pessoas suscetíveis de serem freqüentadas, o
habitus tende a se colocar ao abrigo das crises e questionamentos
críticos assegurando um meio ao qual ele é tanto pré-adaptado
quanto possível, ou seja, um universo relativamente constante de
situações próprias a reforçar suas disposições oferecendo o mercado
mais favorável aos seus produtos.” (p. 102).

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


Desajustes e crises

Se Bourdieu tem razão de sublinhar a propensão dos atores a que-


rer evitar as crises maiores, ou seja, as situações que viriam a con-
trariar muito fortemente ou demasiado duramente seu programa
de socialização incorporado, não somente ele confunde propensão
(ou desejos de atores) e situações reais (que não permitem sempre
tais evitamentos e não deixam verdadeiramente a escolha aos ato-
res), mas ele esquece a existência de múltiplas crises que fazem o
cotidiano dos atores. É, com efeito por ter privilegiado as grandes
crises, ligadas a transformações importantes das posições sociais
no espaço social que termina-se por negligenciar todas as pe-
quenas crises ou médias que os atores são levados a viver no seio
de uma sociedade diferenciada. “Salvo um transtorno importante
(uma mudança de posição, por exemplo), as condições de sua for-
30 mação são também condições de sua realização”, escreve Bourdieu
(1997, p. 178).

Assim, privilegiando o caso de situações “felizes” onde se está bem


adaptado à situação13, o modelo de ajustamento mágico dos hábitus
incorporados às situações (às quais é confrontado o ator), perma-
nece cego a suas múltiplas ocasiões de desajustamento, de desaco-
plamento, produtoras de crises e de reflexões sobre a ação, sobre os
outros e sobre si. Crises de adaptação, crises da ligação de cumplici-
dade ou de conivência ontológica entre o incorporado e a situação
nova, estas situações são numerosas, multiformes nas sociedades di-
ferenciadas. O contexto escolar constitui assim, segundo as catego-
rias de alunos, um convite ou um freio à expressão das disposições
socialmente constituídas pelas instâncias de socialização anteriores,
e notadamente pela família. Os comportamentos dos alunos em
“fracasso escolar” podem ser interpretados como os produtos de
uma colocação em crise das disposições incorporadas.

13 No original: “l’homme est à son affaire”

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


O modelo do ator feliz, “à son affaire”, que se sente como um peixe
dentro d’água porque ele é feito para a água e a água é feita para
ele, ator não levado por outras pulsões, habitus incorporados ou
tendências, mas inteiro na (ou à) sua ação, este modelo corresponde
no fundo prioritariamente ao que podemos imaginar da vida de um
animal em seu elemento natural do que a de um ser humano.

É impossível afirmar que “a mesma história habita ao mesmo tempo


o habitus e o habitat, as disposições e a posição, o rei e sua corte,
o empregado e sua empresa, o padre e o fiel, e que “a história em
um certo sentido comunica com ela mesma, se reflete em sua pró-
pria imagem” (Bourdieu, 1981, p. 30614). Isto significaria, por exem-
plo, que o empregador é redutível a sua atividade de empresário e
que nada vem perturbar este milagroso ajustamento de seu habitus
de empregador à sua empresa. Se a fórmula do ajustamento e da
correspondência disposições-posição (ou disposições/condições de 31
existência) é interessante teóricamente, ela não é portanto, jamais
totalmente verificável empíricamente ou históricamente, e isso pela
simples razão que as disposições de um ator não são constituídas
em uma só situação social, um só universo social, uma só “posição”
social. Um ator não pode jamais ser definido por uma só “situação”
nem mesmo por uma série finita de coordenadas sociais.

As aberturas seletivas do presente: fabricação e latência

O “presente” tem, portanto, tanto peso na explicação de comporta-


mentos, práticas ou condutas, quanto os atores são plurais. Uma vez
que estes tenham sido socializados em condições particularmente ho-
mogêneas e coerentes, sua reação às situações novas pode ser muito
previsível. Em compensação, quanto mais os atores são o produto de
formas de vida heterogêneas, ou contraditórias, mais a lógica da situa-
ção presente tem um papel central na reativação de uma parte das ex-

14 Traduzido pelo autor.

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


periências passadas incorporadas. O passado é portanto “aberto” dife-
rentemente segundo a natureza e a configuração da situação presente.

Ao invés de pressupor a sistemática influência do passado sobre o


presente, ou seja, ao invés de imaginar que todo o nosso passado,
como um bloco ou uma síntese homogênea, pese a cada momento
sobre todas as nossas situações vividas (as abordagens estatísticas,
probabilistas, nos ensinam que o passado de um ator abre e fecha seu
campo de possibilidades presentes, mas não pode em nenhum caso
descrever a relação passado-presente em termos de causalidade, por
exemplo), o campo de investigação proposto aqui abre a questão das
modalidades de acionamento de disposições incorporadas (constituí-
das no curso do conjunto de experiências passadas) pelos elementos
ou pela configuração da situação presente, ou seja, a questão das ma-
neiras pelas quais uma parte das experiências passadas incorporadas é
32 mobilizada, convocada, desperta pela situação presente.

Assim, é mais pertinente conceber os alunos que interagem com o en-


sino e reagem ao agir professoral como portadores de um patrimônio
de disposições e de competências não necessáriamente homogêneas
(entre as quais algumas são escolarmente rentáveis e outras inúteis,
ou que tornam “carente”) diferenciadas mais ou menos favoráveis ao
sucesso escolar, do que imaginar portadores de um habitus coerente
(um “sistema de disposições durável e transferível”) e globalmente
contraditório com relação às expectativas escolares. O estudo dos ca-
sos estatísticamente atípicos de crianças de meios populares que têm
sucesso escolar mostram bem que estas crianças podem ter algumas
disposições escolarmente favoráveis (do ponto de vista, por exemplo,
da relação à autoridade) lhes permitindo de construir no quadro es-
colar disposições culturais que faltam, aquelas que suas famílias não
puderam lhes dar a ocasião de constituir (Lahire, 1995)15.

15 Frequentemente se disse que os trânsfugas de classe tinham sucesso contra sua família de origem,
mas o exame detalhado das situações mostra que os trânfugas obtém sucesso tanto com sua família
(apoiando-se sobre os recursos familiares existentes) quanto contra ela (aprendendo a colocar em
latência, pelo menos no tempo escolar, as disposições culturais inadequadas).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Se a situação presente não explica, é claro, nada nela mesma, ela é o
que abre ou deixa fechados, desperta ou deixa em latência, mobiliza
ou mantém em estado inativado os múltiplos hábitos incorporados
pelos atores. Negativamente (porque deixam “não expressos” ou
“inatualizados”) e positivamente (porque eles permitem “expressar”
ou “atualizar”), os elementos da configuração da situação presente
tem um peso fundamental no engendramento das práticas. É o que
confirma a psicanálise freudiana, quando ela constata que “uma
lembrança pode ser reatualizada num certo contexto associativo,
enquanto que, tomada em outro contexto, ela será inacessível à
consciência” (Laplanche e Pontalis, 1990, p. 491).

Aliás, é bastante surpreendente ver como a tradição sociológica que


chama a atenção para o “peso do passado” pode negligenciar o pa-
pel da situação presente que “decide” portanto sempre aquilo que
do passado vai poder ressurgir e agir no interior da ação presente. 33
Basta pensar nestes esquemas de ação que não encontram mais,
por razões de transformações sociais radicais ou de transplantações
individuais mais ou menos forçadas de um universo social a outro
(isto é aprisionamento, hospitalização durável, imigração, situações
de guerra, brusco declínio social ou fulgurante ascensão social, etc.),
as condições de sua atualização feliz, harmoniosa para se lembrar
ou se convencer da importância da situação presente.

O presente define, delimita, portanto, o que, do passado incorpora-


do, pode ser atualizado. Invertendo as coisas, poderia-se dizer, como
se diz comumente, que o presente é visto, percebido, interpretado
através dos nossos resumos de experiências passadas (apropiações
de uma situação em função dos esquemas de percepção já consti-
tuídos), mas apagaríamos, então, o papel ativo da situação presente
(de seus elementos e /ou de sua estrutura geral) como estrutura de
seleção, como filtro oferecendo a possibilidade a certos esquemas de
se ativar (“de expressar-se”, de “realizar-se”), mas fechando também
toda possibilidade de “expressão”, de “atualização” a outros esque-
mas. Isto significa muito concretamente que as situações sociais

Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação


(das mais formais e institucionais às mais informais) nas quais nós
vivemos constituem verdadeiros “ativadores” dos resumos de expe-
riências incorporadas que são nossos esquemas de ação (no sentido
amplo do termo) ou nossos hábitos e que nós dependemos assim,
fortemente destes contextos sociais (institucionais ou não institu-
cionais) que “tiram” de nós certas experiências deixando outras em
estado de gestação ou latência. Mudar de contexto (profissional,
conjugal, familiar, de amizade, religioso, político, etc.), é mudar as
forças que agem sobre nós. E se as forças exigem às vezes, de nós,
coisas que não podemos dar, então não temos, em geral, outra es-
colha além de encontrar uma outra maneira de continuar a viver – o
menos mal possível –no mesmo contexto (adaptação mínima), de
mudar o contexto (fuga) ou de transformá-lo radicalmente para que
ele seja passível de ser vivido (reforma e revolução). Da natureza
de contextos que somos levados a atravessar depende a força de
34 inibição ou de rejeição de uma parte mais ou menos importante de
nossa reserva de maneiras de ver, de sentir e de agir das quais somos
portadores.

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Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Por uma sociologia da comunicação
disposicionalista1
Lília Junqueira

37

O desenvolvimento do individualismo nas sociedades contemporâneas


trouxe para as ciências sociais a necessidade de considerar a cres-
cente importância da dimensão cultural na explicação dos fenô-
menos sociais de toda ordem. A cultura, a economia e a política
são as principais dimensões consideradas para avaliar a realidade
social. Os clássicos das ciências sociais trabalharam na interação
destas três dimensões. A partir do século XIX se iniciou um processo
de especialização que levou a uma ênfase na política e/ou econo-
mia. Esta ênfase não conseguiu revelar a realidade social de forma
suficientemente compreensível. Na segunda metade do século XX
a ênfase passou a ser colocada na dimensão cultural. A partir dos
anos 80 esta ênfase atingiu sua forma mais desenvolvida. (Mukerjee,
1998). Com o processo de extensão do mercado e a consequente
ampliação do marketing e da publicidade seja na dimensão política,
econômica ou social, torna-se imprescindível o exame daquilo que

1 Parte deste texto foi objeto de publicação em livro da autora: “Desigualdades sociais e telenovelas:
relações ocultas entre ficção e reconhecimento, São Paulo, Annablume, 2009.

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


parece se constituir cada vez mais e em mais alto grau a própria
sociedade, ou seja, o seu sistema de representações simbólicas. A
importância crescente do papel da tecnologia no fluxo mundial de
informações, cujo volume e velocidade atinge níveis inéditos na his-
tória da humanidade configurando uma verdadeira revolução (Shaf,
1995; Castells,2006; Featherstone,1990), obriga os cientistas sociais
a observar as novas formas pelas quais a sociedade, os grupos e
os indivíduos pensam a si mesmos e aos outros e como, a partir
disto, o consenso e o conflito, as identidades sociais e individuais
são construídos, mantidos ou transformados. Este movimento de
flexibilização do pensamento sociológico deu espaço para que os
processos de comunicação fossem pensados.

38 Mídia versus sociedade, reproduzindo a dominação de classe

Foi necessário um grande avanço para que o pensamento sobre a


sociedade mediatizada alcançasse este patamar. A primeira corrente
teórica que tratou do problema, a teoria crítica, constituiu-se nos
anos 20 com o objetivo de superar o marxismo-leninismo clássico e
fazer oposição ao argumento positivista, segundo o qual o avanço
social é função do avanço tecnológico. Adorno e Horkheimer foram
os primeiros a mostrar que a produção e o consumo da difusão
de imagens em escala industrial obedecem preceitos próprios a um
modelo econômico preciso, o capitalismo (Adorno, 1987; Adorno e
Horkheimer,1985,1987; Habermas,1973;Benjamim, 1986) A difusão
eletrônica de imagens contribui para a dominação ideológica, por-
que ela trata a sociedade de classes como se fosse uma massa indi-
ferenciada. Na televisão, a classe dominante realiza sua programa-
ção de modo a responder aos seus próprios interesses comerciais e
de produção, a veicular seus valores, sua interpretação e sua visão de
mundo, como se fossem as legítimas da sociedade como um todo.
Esta massificação se produz graças à sedução exercida pela imagem,
de modo a facilitar a apreensão e absorção irrefletidas e acríticas dos

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


valores e das significações representativas da ideologia dominante.
Quanto às outras classes, elas sofrem invasão total de seu imaginá-
rio pela visão de mundo transmitida pela televisão (Adorno, 1987).

Este mecanismo contribui para criar e reproduzir ideologicamente a


sociedade de massa, a partir da indiferenciação dos grupos sociais. Os
grupos dominantes, impondo fortemente sua visão de mundo face
aos grupos dominados, e estes, impotentes para afirmar a sua. Este é
o quadro de uma dominação ideológica estabelecida em detrimento
da liberdade humana de reflexão, expressão e de organização.

Vista por este prisma, a esfera da interação social deixa de repre-


sentar um terreno fértil para a criação, a discussão e a afirmação de
valores próprios às classes dominadas, justamente porque a raciona-
lidade técnica invadiu todos os momentos de lazer. Os trabalhadores
não podem mais refletir sobre suas condições de vida sem fazer 39
alusão a argumentos emprestados à ideologia dominante, pela qual
se encontram condicionados, tanto no tempo de trabalho quanto
no tempo livre. Mais do que isto, os meios de comunicação de mas-
sa são responsáveis pelo reforço da distinção social entre uma elite
culta, que não precisa se expor à eles, e a massa popular, obrigada a
se contentar com o lixo cultural que ela lhes lança.

O primeiro problema colocado para a utilização da abordagem da


teoria crítica é a visão definitiva da separação entre mídia e socie-
dade. O entrelaçamento entre ambas é mais visível nos dias de hoje,
quando a mídia penetra em todos os domínios do social, desde
a economia, através da propaganda, até a política, com o marke-
ting político. A mídia já é vista como uma instituição que fez parte
da própria construção das sociedades modernas (Thompson, 2002;
Habermas,1984). Mas o problema mais grave é a consideração do
consumo de mídia como reprodução pura da ideologia dominante.
Através do conceito de indústria cultural é quase impossível para o
pesquisador penetrar os domínios da comunicação e da interação
entre espectador e mensagem, pois toda conclusão obrigatoriamente

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


volta à premissa da dominação total. Deste ponto de vista, o estudo
do discurso do público não pode acrescentar nada à teoria da domi-
nação, já que o público é a priori massa, e a mensagem, ideologia.
Com exceção de Benjamim, a teoria crítica apresenta uma aborda-
gem do sujeito bastante racionalista, na qual a atividade cognitiva
é mais valorizada do que a emocional e o inconsciente é desvalori-
zado como campo de estudo. Além disso, a teoria crítica conserva o
limitado modelo de comunicação positivista , onde o fluxo comu-
nicacional flui do emissor para o receptor de forma linear. Apesar
dos problemas colocados a teoria crítica deixou como contribuição
inestimável, a idéia de que a lógica capitalista entrou no âmbito da
cultura de forma irreversível. Esta idéia se comprova ainda nos dias
de hoje, quando a ligação entre mídia e capital se fortalece.

40 Mídia, hegemonia e resistência

Duas outras correntes importantes são reações a diferentes pontos


colocados pela teoria crítica. A primeira é a chamada escola dos Estu-
dos Culturais e a segunda são os autores envolvidos no debate sobre
redistribuição e reconhecimento, entre outros, Charles Taylor, Axel
Honneth e Nancy Fraser. A Escola dos Estudos Culturais aprofundou
os estudos sobre mídia e espaço público, reagindo contra o mode-
lo comunicacional funcionalista adotado pela teoria crítica. Segundo
seus autores, o fluxo de informações entre mídia e espaço público é
muito mais complexo, envolvendo além da seletividade, a negociação
e outras estratégias contra-hegemônicas. Os autores da teoria do re-
conhecimento reagem contra o raciocínio excessivamente racionalis-
ta, sobretudo de Habermas, construindo formas alternativas à teoria
da ação comunicativa, que contemplam a presença dos elementos
afetivos e sentimentais nas relações entre mídia e esfera pública.

A escola dos Estudos Culturais iniciou seus trabalhos em meados da


década de 50, com as obras de Richard Hoggart “As utilizações da
cultura” e de Raymond Williams, “Cultura e Sociedade”. A primeira

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


fase tem uma forte influência da lingüística e da literatura. Em seu
livro, Williams combate um materialismo vulgar, apoiado na idéia do
determinismo econômico. Sua contribuição essencial foi mostrar que:

“concentradas na palavra ‘cultura’, existem questões dire-


tamente propostas pelas grandes mudanças históricas que
as modificações na indústria, na democracia e nas classes
sociais representam de maneira própria e às quais a arte
responde também, de forma semelhante.” (Williams apud
Hall;2003:133)

Thompson elabora seu estudo sobre a cultura relativizando a de-


terminação e a dominação através do conceito de hegemonia de
Gramsci (Hall,2003:133). Nesta primeira fase, a preocupação do
grupo de pensadores, já radicado no CCCS – Centre for Contempo-
rary Cultural Studies, era o processo de concentração das indústrias 41
culturais, a imbricação do público e do privado em termos de radio-
difusão e a ascensão do imperialismo moderno e do neocolonialismo
atuante no mundo (Garnham, 1979; Hall,2003)

“A intenção era evitar o duplo engano do reducionismo eco-


nômico e a autonomização idealista do nível ideológico”
e “considerar que o material, o econômico e o ideológico
constituem três níveis, distintos numa perspectiva analítica,
mas entrelaçados nas práticas sociais concretas e na análise
concreta.” (Garnham, 1979:131;Hall, 2003).

A segunda fase se inicia com o empenho de Stuart Hall em reforçar


a direção de Thompson, aprofundando e atualizando o conceito de
ideologia. Segundo Nicolas Garnham, um crítico dos Estudos Cultu-
rais dos anos 702, na fase de sua direção por Stuart Hall, as preocu-
pações centrais da primeira fase foram negativamente redireciona-

2 Nicholas Garnham, professor da Universidade de Leicester, que lançou a revista Media, Culture and
Society nos anos 70 para divulgar a produção de outro grupo de pesquisadores (James Halloran, Peter
Golding, Phillip Elliot e Grahan Murdock) sobre os mesmos temas trabalhados pelos Estudos Culturais,
mas que defendiam uma abordagem mais centrada na economia. (Mattelart e Neveu, 2002)

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


das para uma “obsessão pela ideologia” e pela ideologia “em texto”
(Garnham, 1979:132), reforçada pela carência de teoria sociológica
que dava espaço a uma confusão entre sociedade e marxismo. Se-
gundo Hall, esta mudança de objetivos faz parte da evolução do
pensamento da escola, que buscava retirar todas as conseqüências
da adoção de Gramsci para organizar “o interacionismo radical de
Williams”. Segundo Hall, para Williams, todas as práticas poderiam
interagir em “formas de organização” ou estruturas de experiência,
o que era segundo aquele, insuficiente para explicar as relações de
poder no âmbito da cultura, já que situava o sujeito num âmbito
universal e não diretamente social. Além disso, Hall atribui à neces-
sidade de fortalecer a idéia de ideologia, o avanço acrítico dos estru-
turalismos no campo da compreensão da cultura. (Hall, 2003:137)

A partir dos anos 80 a teoria dos Estudos Culturais sente necessida-


42 de de buscar trocas com outras disciplinas para atender à crescente
complexificação dos objetos de estudo, a partir do fenômeno da
globalização. A teoria da hegemonia de Gramsci não responde sa-
tisfatoriamente, sozinha, por toda sorte de flexibilização que passa
a ocorrer na sociedade civil como efeito dos fluxos informacionais
globais e do avanço da tecnologia. Os estruturalismos são repensa-
dos e passam a ser absorvidos em parte. Segundo Hall, os Estudos
Culturais tentam pensar o sujeito na estrutura, pós-Levis Strauss,
através de Lacan e da psicanálise. O sujeito é recuperado enquan-
to entidade descentrada, através da teoria do discurso. Entender a
flexibilização das identidades torna-se um desafio essencial para
repensar a política, o papel dos meios de comunicação e do funcio-
namento do espaço público. Dentro desta empresa, a pesquisa dos
estudos culturais volta-se para a recepção da mídia, na tentativa de
captar esta flexibilização. A tendência, nos anos 80, conhecida na
história do grupo como a fase do “giro ethnográfico” inicia-se com
o ensaio de Stuart Hall intitulado “Encoding/Decoding” (1997), que
dá a partida para um volume significativo de trabalhos, incluindo os
de David Morley , entre outros The “Nationwide” Audience de 1974
e o famoso “Watching Dallas” de Ien Ang, publicado em 1982, na

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Holanda. Este último foi comemorado como um avanço da produ-
ção da escola, na medida em que dava relevo à noção do prazer que
a recepção retirava da prática de assistir telenovelas, em ruptura, de
um lado, com a visão frankfurtiana, e de outro, com a estruturalista
clássica. O fato interessante colocado pelo giro ethnográfico, é que
a partir dele, os Estudos Culturais voltavam aos princípios colocados
por Williams na primeira fase.

Segundo Gomes

“Embora em alguma medida os Estudos Culturais tenham


desde então se afastado de suas origens, o pressuposto mais
geral dos estudos de recepção vem do entendimento da
cultura que já estava em Culture and Society: a cultura é
um processo social total por meio do qual significados são
socialmente construídos e historicamente transformados.”
43
(2004:171)

Se nos anos 70-80, estudava-se as subculturas como identidades


substantivas bem enraizadas em suas classes-mães, enquanto focos
de resistência autênticos, e perfeitamente situados históricamente e
no espaço geográfico, atualmente, não é mais possível considerar a
identidade cultural desta forma. Entram em jogo outras desigualda-
des além da de classes, como a de raça, gênero e o consumo.

Uma renovação conceitual completa tem lugar, rejeitando a idéia


de oposição estanque entre o mundo objetivo e o subjetivo rela-
cionados nas trocas sociais. As identidades não são mais essenciais,
pois perderam sua fixação histórico-espacial. A experiência do eu
torna-se muito mais fragmentada, elaborada de forma específica e
somente pode ser percebida enquanto processo ou narrativa. Esta
perspectiva inspira-se na revolução cultural dos anos 60, com a ex-
periência das identidades no teatro, a elaboração das questões so-
ciais de gênero e raça, a psicanálise, a redescoberta do inconsciente
da subjetividade, e das teorias ligadas a este momento histórico,

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


como a semiologia, o estruturalismo e o pós-estruturalismo, com a
importância dada por elas à linguagem e à representação. (Mattelart
e Neveau,2002) Neste contexto, as emoções e sentimentos passam
a fazer sentido na construção de identidades, que por sua vez são
a base das desigualdades, como por exemplo, sublinha-se o prazer
obtido na relação que o público tem com a mídia.

Este redirecionamento torna a teoria dos Estudos Culturais mais


aplicável do que aqueles da teoria crítica, a fenômenos como por
exemplo, a discussão do público sobre as desigualdades sociais num
diálogo com a ficção televisiva. Não obstante alguns problemas es-
truturais permanecem inalterados.

Em primeiro lugar porque a telenovela e as falas que sobre ela são


produzidas são complexos de narrativa e discurso cultural num sen-
44 tido amplo e não apenas como discurso ideológico. Com efeito, os
estudos de recepção desenvolvidos pelos Estudos Culturais consi-
deram que os sentidos da mensagem são definidos fora dela, no
contexto sócio-histórico em que ocorrem:

“A consideração do contexto extralingüístico, da situação


social concreta onde ocorre a interação entre media e re-
ceptores implica uma opção metodológica dos estudos de
recepção em abordar o processo receptivo a partir do con-
junto das variáveis que levam os receptores a interagir com
os meios (...) Apesar de afirmar o receptor como sujeito ativo,
sua lógica nos leva a compreendê-lo como alvo, como local
de chegada das influências das várias instâncias, mediado-
ras, o que de qualquer modo denota a idéia de passividade.”
(Gomes,2004:41)

Tal contradição advém da filiação desses estudos à teoria marxista


que a leva a uma “associação entre recepção e resistência” (ibi-
dem), cujas implicações incluem o risco de acreditar que “a tarefa
dos meios de comunicação de massa é dominar e a dos receptores

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


(classe subalterna) é resistir.” (idem,pg. 42) Conseqüentemente essa
perspectiva acaba se fechando em questões recorrentes como: Por-
que as classes populares têm prazer e são atraídas por uma classe
que as nega como sujeitos? Como a mídia, mesmo livre de interfe-
rência direta, sempre articula definições da situação (leituras de sen-
tido) que favorecem a leitura dominante? Como práticas culturais
significantes (vestuário, música), assim expressas em narrativas ou
movimentos de jovens, mulheres, entre outros, agem contra, resis-
tem ao dominante no sentido de estabelecer um equilíbrio cultural,
uma justiça cultural? Quem é o receptor e o emissor e quais as suas
posições de poder ? Como o emissor exerce poder e como o receptor
o resiste? Na realidade, como afirma Gomes, há uma continuidade
dessa teoria com a dos efeitos limitados de origem funcionalista, e
não uma ruptura, como defendem seus mentores, já que o modelo
comunicacional que opõe emissor e receptor não é ultrapassado.
Além disto, uma produção intelectual voltada para as respostas a 45
tais perguntas acaba, quase inevitavelmente, desembocando nas
propostas de educação da audiência para a resistência, completa-
mente ineficazes nos dias de hoje.

Sobre o conceito de ideologia, os Estudos Culturais não podem fazer


a crítica fundamental, devido sobretudo, à sua filiação crítica marxis-
ta, que é a crítica da ideologia a partir do seu interior, da dimensão
da percepção, do sentido e da emoção. Segundo Rouanet (1987) a
teoria marxista deslocou a questão da percepção e do sentido para
fora deles mesmos, ou seja, para um espaço externo, relativo à di-
mensão econômica e política da sociedade. O conceito de ideologia
é o principal depositário desta noção de representação, cujo con-
teúdo é sempre político e cujo fundamento é sempre econômico.
O desdobramento do conceito de identidade operado pelos Estudos
Culturais não é suficiente para explicar como a percepção e o afeto
estão envolvidos nas desigualdades, pois ela não concebe o sujeito
como gerado no interior de relações que são estruturais. Mesmo que
a preocupação atual, dentro desta corrente teórica esteja voltada para
estes problemas, ainda há uma enorme dificuldade de acercar-se dela.

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


“Como combinar as conexões facilitadas pela expansão do
saber e da informatização com as representações sociocultu-
rais mediáticas mais ligadas aos meios massivos e que traba-
lham com a afetividade(?). Penso que para tornar credíveis o
saber acadêmico e a gestão política dos afetos é necessário
que ambos se articulem através de transformações práticas
das interações sociais que façam visíveis a convivência dos
diferentes, reduzam a desigualdade e dêem acesso aos ex-
cluídos. Como passar dos sujeitos simulados pelo populismo
mediático e político à construção de cenas cidadãs verossí-
meis onde muitas vozes confiem duradouramente que vale a
pena falar e escutar os outros?”(Canclíni, 2004:211)

Este trecho mostra a tensão insuperável entre a noção marxista de


sujeito e a perspectiva do reconhecimento. Há uma lógica perceptiva
que está inscrita na sociedade e que é anterior ao próprio sujeito.
46 Esta lógica escapa aos estudos da identidade e da ideologia dos Es-
tudos Culturais, na medida em que somente podem conceber como
política a afetividade já elaborada no nível racional, que tem condi-
ções de chegar ao espaço publico.

O poder simbólico e os desdobramentos do habitus

Bourdieu e sua escola trabalharam muito pouco as questões relativas


à mídia, sobretudo graças a seu posicionamento intelectual aversivo
às apropriações que a mídia faz do conhecimento científico e acadê-
mico, que produziram uma discussão profícua, mas que geravam tam-
bém um distanciamento com relação à investigação do objeto. Seu
trabalho mais conhecido sobre o tema é “Sobre a televisão” (1997).
Dado o desenvolvimento da operacionalização do conceito de campo
profissional no interior da televisão, o livro acaba nos ensinando mais
sobre o campo jornalístico do que propriamente sobre a televisão.

No entanto, o esquema do poder simbólico, um sistema de pensa-


mento que integra a mídia tanto à ideologia quanto aos processos

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


de construção de consenso é o motor das análises sobre a domina-
ção de Bourdieu e pode ser percebido atravessando toda a obra do
autor. Encontra-se apresentado de forma mais objetiva e sintética
no primeiro capítulo do seu livro “O poder simbólico” (1998). O
autor inicia o texto demonstrando preocupação com as possíveis
interpretações do esquema como um modelo monolítico e estático,
por isso apresenta-o como fruto de um conjunto de pesquisas sobre
o simbolismo em uma situação escolar particular. A clareza da ex-
posição das sínteses teóricas apresentadas nos convida à sua adoção
para outras pesquisas. A primeira síntese é realizada entre, de um
lado, o que o autor chama de dimensão da estrutura estruturante,
ou seja, os sistemas simbólicos como a arte, a religião, a língua e
o mito que são construídos a partir da “concordância das subje-
tividades estruturantes (senso=consenso)” (1998:8) Dela faz parte
a contribuição do pensamento idealista baseada em autores como
Cassirer, Sapir-Whorf e Panofsky, e de outro lado, estes mesmos sis- 47
temas simbólicos vistos agora enquanto “estruturas estruturadas”,
ou seja, “como intermediário estruturado que se deve construir para
se explicar a relação constante” (1998:9) entre as percepções aceitas
para efeito da comunicação prática e a concordância legitimada das
percepções no nível institucionalizado. Aqui é incluída a contribui-
ção dos autores estruturalistas, sobretudo Saussure.

Na síntese das estruturas estruturantes e estruturas estruturadas, o


poder simbólico é apresentado como “um poder de construção da
realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica” (ibi-
dem), já que os sistemas simbólicos “só podem exercer um poder
estruturante porque são estruturados”. Os símbolos são percebidos
nesta síntese, como “‘instrumentos por excelência da integração so-
cial ‘enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação,
que tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo so-
cial que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem
social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’”
(Bourdieu,1998:10)

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


A segunda síntese reúne o produto da primeira e a ideologia, ou as
produções simbólicas como instrumentos de dominação. Por um
lado, esta síntese vai contra a ilusão marxista de que o poder ideoló-
gico está ligado aos interesses particulares dos dominantes, ou seja,
manipula a dimensão do senso comum e dos sistemas simbólicos
exercendo poder sobre eles. Na medida em que afirma que “é en-
quanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação
e conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem sua função
política de instrumentos de imposição da dominação” (idem :11)
de uma classe sobre outra através da violência simbólica. Por outro
lado, esta síntese impõe-se contra o erro idealista de que a comu-
nicação é uma mera atividade apenas constitutiva do tecido social
e não envolve relações de poder. “o campo da produção simbólica
é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem
os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta
48 medida) que os produtos servem os interesses dos grupos exteriores
ao campo da produção.”(idem:12)

Por fim, Bourdieu confere, ainda, nesta última síntese, um papel


essencial ao corpo de especialistas que produzem os sistemas ideo-
lógicos para a luta pelo monopólio da produção ideológica legítima.
Os interesses destes profissionais interferem de forma essencial na
produção da ideologia.

Outra forma de abordagem que pode ser apropriada pelo estudo


da mídia é a investigação sobre a produção e consumo da arte e da
construção de sistemas de posição a partir dos campos profissio-
nais dos artistas. Apesar do distanciamento com relação às ques-
tões relativas aos processos de emissão e recepção de mensagens
em sua teoria do poder simbólico, os estudiosos interessados neste
campo de estudos, principalmente aqueles que se debruçam sobre
a dimensão subjetiva dos agentes, fazem utilização da teoria pós-
-estruturalista genética, sobretudo dos conceitos de habitus em
sua dimensão perceptiva.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“Essa dimensão perceptiva do habitus nos permite concluir
que atuam, sem que percebamos, sobre o processo de cons-
trução de nossas representações do mundo, disposições in-
teriorizadas em experiências anteriores, ao longo de nossa
trajetória singular. Por isso, toda reconstrução de mensagem
que operamos depende de nossa história, enquanto conjun-
to de experiências contrastadas e significadas.” (Barros Filho,
2003:77)

Desta forma, os estudos sobre processos de interpretação de men-


sagens podem ser pensados a partir dos conceitos de habitus e de
campo. A partir dos três conceitos principais de sistema de posi-
ções, habitus e reprodução social, as desigualdades estão contidas
nas teias de relações simbólicas que constituem a estrutura social.
Bourdieu adota o conceito de classe social, embora com uma de-
finição própria:
49

“A classe social não é definida por uma propriedade (mesmo


que se tratasse da mais determinante, tal como o volume e
a estrutura do capital), nem por uma soma de propriedades
(sexo, idade, origem social ou étnica – por exemplo, parcela
de brancos e negros, de indígenas e imigrantes, etc. – remu-
nerações, nível de instrução, etc.), tampouco por uma cadeia
de propriedades, todas elas ordenadas a partir de uma pro-
priedade fundamental – a posição nas relações de produção
-, em uma relação de causa e efeito, de condicionante a
condicionado, mas pela estrutura das relações entre todas
as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a
cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas
(...) trata-se também de apreender a origem das divisões ob-
jetivas, ou seja, incorporadas ou objetivadas em propriedades
distintivas.” (Bourdieu, 2007:101)

O conceito de incorporação remete ao conceito de habitus. Pode-se


dizer que a classe social é definida a partir do habitus de classe, ou
seja, das disposições que os agentes tem para agir de determinada

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


forma. Estas disposições são a internalização de percepções, lógicas
e sentimentos, além de práticas, que foram incorporados num pro-
cesso de socialização e que são socialmente legitimados. O habitus
“permite estabelecer uma relação inteligível e necessária entre de-
terminadas práticas e uma situação, cujo sentido é produzido por
ele em função de categorias de percepção e apreciação, por sua vez,
estes, são produzidos por uma condição objetivamente observável”
(idem, 97) O habitus é o processo básico e contraditório do poder
simbólico, na medida em que permite a interiorização da exterio-
ridade através das aprendizagens sociais formais e informais, que
formam um conjunto de disposições para o agente em contexto e
situação particular. Por outro lado, o habitus é, ao mesmo tempo,
matriz gramatical geradora (dela advém a idéia de genética) que
possibilita a mediação entre relações objetivas e comportamentos
individuais. Ele é a condição das práticas individuais, ou seja, onde
50 existe a possibilidade de surgimento de práticas, lógicas, sentimen-
tos e percepção novas, tornando possível uma exteriorização da in-
terioridade (Ansart, 1990).

Nos trabalhos sobre as instituições educacionais (Les Héritiers, les


étudiants et leurs études, Paris, Minuit,1964; La Noblesse d’État:
grands écoles et esprit de corps, Paris, Minuit, 1989, La Reproduc-
tion.Éléments pour une théorie du systéme d’enseignement, Paris,
Minuit, 1970) sobre a frequentação aos museus (L’amour de l’Art,
les musées et leur public, Paris, Minuit, 1966), sobre a exclusão so-
cial (La misére du Monde,Paris, Seuil,1993), e a dominação mascu-
lina (La domination masculine, Paris, Seuil, 1998), e sobre o caráter
simbólico das diferenças sociais (La Distinction, la critique sociale du
jugement, Minuit, 1979) Bourdieu mostra a distinção e a dominação
social sendo construídas e reproduzidas no plano simbólico, e ao
mesmo tempo inscritas numa estrutura que é de natureza social.
O interesse por estes trabalhos vem, em primeiro lugar, do enfren-
tamento precoce do problema da subjetividade, no qual as lógicas
perceptivas aparecem estreitamente ligadas à dimensão simbólica,
através do mito. O conceito de habitus é construído sobre a noção

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


de subjetividade. A re-ligação das específicas conformações do in-
consciente aos sistemas de posições sociais através da dinâmica das
distinções, é o segundo motivo. Estas operações teóricas tornam-se
possíveis em Bourdieu, a partir da síntese operada entre as tradições
kantiana e hegeliana.

Em sua sociologia da arte, Bourdieu mostra como o universo dos


criadores não é separado do universo da produção, apontando em
primeiro lugar as ligações entre as posições dos produtores no cam-
po artístico com os demais campos, e em segundo, entre o campo
dos produtores e o dos consumidores:

“Os determinismos sociais que deixam sua marca na obra de


arte se exercem, por um lado, através do habitus do produ-
tor, remetendo assim às condições sociais de sua produção
enquanto sujeito social (família, etc.) e enquanto produtor 51
(escola, contatos profissionais, etc.) e, por outro lado, através
das demandas e das coerções sociais inscritas na posição
que ele ocupa num certo campo (mais ou menos autônomo)
de produção. O que se chama ‘criação’ é o encontro entre
o habitus socialmente constituído e uma certa posição já
instituída ou possível na divisão do trabalho de produção
cultural (e além disso, em segundo lugar, na divisão do tra-
balho de dominação); o trabalho através do qual o artista faz
sua obra e, inseparavelmente, se faz como artista (e, quando
isto faz parte da demanda do campo, como artista original,
singular), pode ser descrito como a relação dialética entre
sua função que, frequentemente, pré-existe e sobrevive a ele
(com obrigações, por exemplo, a ‘vida de artista’, os atribu-
tos, as tradições, os modos de expressão, etc.) e seu habitus
que o predispõe de forma mais ou menos completa para
ocupar esta função ou – o que pode ser um dos pré-requisi-
tos inscritos na função – para transformá-lo mais ou menos
profundamente. Em suma, o habitus do produtor jamais é o
produto da função.”(Bourdieu, 1983:164)

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


Se por um lado esta definição parece fechada ao fato de que o
campo da criação das telenovelas, ou seja, o universo dos autores
e suas equipes de criadores de histórias seja aquele que goza de
uma maior autonomia em comparação com os demais campos de
produção da televisão, por outro lado, ela possibilita a apropriação
do conceito de habitus para o trabalho de criação, o que abre no-
vas possibilidades para a explicação destas inovações. Na realidade,
segundo Bourdieu, a autonomia relativa do campo artístico existe
em decorrência do fato que ele se caracteriza pelo desenrolar de sua
própria história. Uma das funções mais importantes deste campo é
a de relembrar, atualizar e superar a própria história:

“A problemática que está instituída, no campo, sob a forma


de autores e obras-chave, espécie de ponto de referência
para todos os outros, é, de ponta a ponta, história. A reação
52 contra o passado, que faz a história, também é o que faz a
historicidade do presente, definido negativamente por aquilo
que nega. Ou seja, a recusa, que está na origem da mudança,
supõe e coloca em evidência, chamando assim o presente,
aquilo contra o qual ela se opõe ao se opor ao presente.”
(Bourdieu, 1983: 169)

Esta história constantemente revisitada de forma positiva ou ne-


gativa se opera perfeitamente na teledramaturgia, como veremos
mais adiante, principalmente no momento em que ela se torna
um campo artístico e este trabalho de composição e recomposi-
ção da história inicia um processo de formalização, com o sur-
gimento de especialistas em catalogar todas as novelas, autores,
atores. Cada autor e cada ator passam a disponibilizar de meios
a través dos quais podem contar sua história, e esta passa a ser
importante para a sociedade. Por exemplo, coleções de biografias
são lançadas, contendo as trajetórias dos artistas e disponibi-
lizando concretamente o acesso da história deste campo para
todos os interessados.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Este processo de referência constante à história do campo, que pode
ser vista como parte do habitus do campo, dá subsídio para o con-
ceito do desdobramento do habitus. Embora possa parecer que uma
novidade está acontecendo no campo no momento em que aparece
uma reação às tendências criadoras anteriores, ou que uma revolu-
ção artística esteja tomando lugar, na verdade, o que acontece é que
o habitus está se desdobrando, está tomando posição contrária ou
reformulando tendências anteriores de criação presentes na história
deste campo. Desta forma, o estudo do universo midiático enquanto
trabalho de um campo de criação artística permite perceber de um
lado, a presença e o funcionamento dos mitos ligados à história do
campo, e de outro, avaliar o enfraquecimento destes mitos.

Outra forma importante de apropriação da teoria disposicionalista


de Bourdieu pela sociologia da comunicação refere-se a dimensão
dos estudos de recepção. É possível vislumbrar a presença e ou en- 53
fraquecimento destes mitos entre os consumidores dos produtos mi-
diáticos. Do ponto de vista teórico, pensar que o habitus de criação
se constitui, (a partir de condições de produção novas, por exemplo,
das telenovelas ocorridas por volta do ano 2000) num diálogo com
os telespectadores e que elementos provenientes das formas do pú-
blico pensar a sua experiência das desigualdades sociais penetram
no habitus dos criadores gerando desdobramentos, levam a uma
aplicação totalmente nova dos conceitos de campo e habitus, colo-
cando em evidência a sua dimensão geradora e diminuindo o peso
da função reprodutora da estrutura. Além disso, permite colocar
estes processos na estrutura social. Ou seja, permite estudar como
este equilíbrio entre mitos reproduzidos ou enfraquecidos presentes
nas formas de contar as experiências das desigualdades sociais se
apresenta nas diferentes classes, na medida em que se considera
suas condições próprias e sua posição no espaço social.

Desta forma, Bourdieu nos ajuda a compreender a relação da ficção


midiática com a sociedade, não apenas enquanto violência simbóli-
ca, mas também enquanto uma prática que participa da formação e

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


desdobramento dos habitus do campo e das classes sociais. Perceber
as telenovelas, por exemplo, como um campo permite estudar os
processos de sua recepção de uma forma não limitada àquilo que
pode emergir no espaço público, mas aos fenômenos que ainda
não estão expressos racionalmente. Passa a ser possível a partir daí,
penetrar o interior da comunicação entre telenovelas e público, en-
trando em contato com sua essência emocional, psicológica, sem,
no entanto, cair na armadilha da reificação dos processos individu-
ais, deixando de ver que, no caso das desigualdades sociais, eles são
coletivos.

Desta forma também, a noção de mediações adotada pelos Estudos


Culturais pode ser substituída pela de capital simbólico, e a produ-
ção de ficção midiática pode ser analisada enquanto campo simbó-
lico, onde as determinações colocadas aos especialistas da criação
54 fazem o contato da percepção individual do telespectador com a
estrutura social de poder, onde estão legitimadas as desigualdades
sociais. Embora esta apropriação apresente limitações, ela repre-
senta um avanço investigativo se comparado às formas pelas quais
a comunicação vinha sendo estudada. Em resumo, o ponto de vis-
ta disposicionalista permite que as produções midiáticas não sejam
pensadas somente enquanto violência simbólica, ou item de ne-
gociação entre produtores e consumidores, mas também enquanto
processo de formação de habitus, sobretudo para os indivíduos mais
jovens, aqueles que cresceram com a mídia, sobretudo a televisão.
Torna-se possível, assim, tomar a comunicação midiática com o ob-
jetivo de analisar, por exemplo, através dos discursos levantados pela
mídia e as diferentes formas pelas quais os indivíduos se apropriam
destes discursos, como as pessoas pensam a si mesmas e às experi-
ências em sua vida cotidiana. É possível estudar no só as disposições
existentes no campo da produção, como também certas tendências
para perceber, pensar e agir de determinada foram em determinadas
situações, através do discurso das pessoas gerado em suas trocas
com a mídia, sobretudo a ficção.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


O edifício conceitual de Bourdieu tem sido criticado no âmbito da
teoria contemporânea. Para muitos os conceitos de classe e habitus
são muito rígidos para pensar a sociedade informatizada, onde a
vida social corre em fluxos cada vez mais rápidos e as identidades
são cada vez mais flexíveis. (Hall, 2003; Featherstone e Lash, 2001;
Boltansky, 2005; Lahire, 1999) Aqui nos interessa a crítica ima-
nente, aquela que tem como objetivo torná-lo mais adequado aos
fenômenos sociais contemporâneos. Lagrave, por exemplo, aponta
para os problemas colocados para a desigualdades de gênero, do
tratamento descontextualizado com relação ao campo dos estudos
feministas, que Bourdieu dá em “A Dominação masculina”, Crossley
sugere uma redefinição do conceito de habitus a partir da observa-
ção empírica dos movimentos sociais, o que ele chamou de habitus
radical, Muel-Dreifus sugere o aprofundamento da relação entre
psicanálise e o conceito de violência simbólica, entre outras críticas.
(Lagrave 2005, Boyne, 2002; Crossley, 2003; Lemert, 2000; My- 55
les, 2004; Schinkel, 2003, Muel-Dreyfus, 2005) Nossos trabalhos de
pesquisa de campo (Junqueira, 1995;2001;2004;2005;2007) mos-
traram que, no Brasil, o sistema de posições de classe ainda define o
habitus das desigualdades sociais, mesmo quando visto pelo prisma
das telenovelas, que de alguma forma, procuram, (com exceção das
adaptações da literatura) avançar sobre os padrões morais da época
em que são exibidas. Procurando contribuir com a crítica imanente
de Bernard Lahire, desenvolvemos em outro texto desta coletânea
um estudo das limitações do conceito de campo para o estudo da
teledramaturgia.

Para entender como a experiência é revelada através do discurso


sobre os produtos midiáticos, é necessário entrar no mundo do in-
consciente, seja através do estudo dos mitos, da psicanálise, ou de
ambos. Só assim é possível observar as emoções, paixões, sentimen-
tos e lógicas das desigualdades sociais que possam ser despertados
neste exercício. Certos mitos estão localizados na história do oci-
dente e podem ser pensados como as lógicas subjacentes ao sistema
das desigualdades sociais.

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


Por outro lado, neste empreendimento, é preciso evitar, acima de
tudo, a armadilha do idealismo puro. Explicar os fenômenos da co-
municação via inconsciente não pode resultar numa apologia à fic-
cionalidade enquanto campo de trabalho do reconhecimento social,
antes é preciso recolocá-lo em relação com os poderes sociais, as
hierarquias e as instituições. É preciso superar o medo do incons-
ciente e avançar na compreensão dos fenômenos sociais incluindo
a consideração do agente humano e de suas relações em sua totali-
dade, mas sem perder de vista o que a filosofia e as ciências sociais
produziram enquanto conhecimento, a partir de fora dele. Desta
forma, também, a apropriação das teorias disposicionalistas pela
sociologia da comunicação se insere no movimento de renovação
e surgimento de novas perspectivas de abordagem das ciências so-
ciais e humanas iniciado nos anos 60 e 70, procurando dar uma
contribuição ao tomar como objeto um fenômeno pouco estudado,
56 mesmo pelas ciências da comunicação e dar a ele um tratamento
sociológico.

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61

Por uma sociologia da comunicação disposicionalista


Por um lugar no mercado... ou jovens
em luta na TV: o que os fazem perder?
Marcio Sá,
Marianny Jessica Silva,
Elisabeth dos Santos,
Thyago Fernandes da Silva,
José Rafael Barbosa, 63
Cássio Lucena,
Genildo de Almeida.1

«Quando se indaga, a respeito dos homens de empresa: “Mas


não precisam ter alguma coisa para chegar até lá?”, a res-
posta é: “Sim, precisam”. Por definição precisam ter “o que
é necessário”. A pergunta real, portanto, deve ser: “O que é
necessário?”. E a única resposta possível é: “Um julgamento
firme, avaliado pelos homens de julgamento firme que fazem
a escolha.” Os mais aptos sobrevivem, e aptidão significa não
competência formal – provavelmente não existe isso para
altos dirigentes – mas conformidade aos critérios dos que já

1 Marcio Sá é professor-pesquisador do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE


(NG/CAA/UFPE). Todos coautores são estudantes do curso de Administração do CAA/UFPE. Agrade-
cemos a Kássia Roberta de Souza, por sua colaboração ema algumas atividades que permitiram a rea-
lização deste trabalho. E, institucionalmente, ao CEPEDES/UFJF, FAPEMIG, CNPq e PROPESQ/UFPE,
pelo apoio institucional e financeiro para a realização da pesquisa. Registramos que este trabalho foi
apresentado no EnANPAD 2010.

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


tiveram êxito. Ser compatível com os que estão no alto é agir
como eles, ter a aparência deles, pensar como eles: ou pelo
menos mostrar-se de modo a criar neles tal impressão. [...] O
sucesso depende de uma escolha pessoal ou de um grupo, e
seu critério é incerto [Será ?]». C. W. Mills, A Elite do Poder

Introdução

Um dos maiores desafios que enfrentam jovens universitários (e pro-


fissionais recém-formados) é a inserção no mercado de trabalho. O
sonho de uma carreira de sucesso é compartilhado por muitos que
se projetam para o “campo” (Bourdieu) dos negócios. A relevância
social deste fenômeno acabou projetando-o à televisão. O Aprendiz
6 Universitário foi um reality show, exibido pela Rede Record em
64 2009, no qual o empresário Roberto Justus é também o apresen-
tador que busca selecionar um jovem, dentre dezoito concorren-
tes, para se tornar estagiário de sua empresa (a cada programa um
dos candidatos é eliminado). Os candidatos são divididos em duas
equipes que concorrem entre si em determinadas tarefas ao logo
dos episódios do programa. E, ao final de cada um deles, a equipe
perdedora vai para uma sala de reunião na qual estão presentes
o apresentador e seus dois conselheiros (Walter Longo, vice-presi-
dente do grupo de empresas de Roberto Justus e Cláudio Forner,
consultor do Sebrae) que o auxiliam na decisão de qual será dentre
os membros da equipe, aquele que deve ser eliminado do programa.
Na realidade, nosso interesse por este programa se deve ao fato de
vermos nele um “laboratório televisivo” da luta cotidiana de jovens
que almejam se tornar executivos de negócios2.

2 Este interesse é decorrente da pesquisa maior da qual este trabalho toma parte – pesquisa na qual
se busca explicar e compreender os modos de pensar, agir e sentir dos homens de negócios de nosso
tempo e que teve sua primeira etapa concluída e publicada em Sá (2010b). Deste modo, este artigo
soma-se aos esforços investigativos que visam à compreensão deste fenômeno por acreditarmos que,
ao conhecermos o que falta aos jovens que almejam vir a se tornar um homem de negócios, possamos
dar passo importante no sentido investigativo apontado.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Para a análise dos reais motivos que fazem com que os jovens partici-
pantes sejam, um a um, eliminados do programa, recorremos ao apor-
te teórico de corrente sociológica que busca desvelar as disposições
que orientam as ações dos indivíduos nos mais diversos contextos so-
ciais (família, escola, trabalho, grupo de amigos, neste caso específico,
na disputa por um lugar no mercado de trabalho) nos quais vivem,
a sociologia disposicionalista. Foi nesta corrente que Pierre Bourdieu
(2007 [1979]) desenvolveu pesquisas que revelaram alguns dos prin-
cipais mecanismos estruturantes da sociedade contemporânea.

O sociólogo francês Bernard Lahire (2003, 2004, 2005a, 2005b,


2006a, 2006b) vem procurando fazer retomada crítica à sociologia
disposicionalista e aos seus “instrumentos de pensamento” ao longo
de suas obras. Para Lahire (2004, p. 21), é “a tradição disposicio-
nalista, que tenta levar em consideração, na análise das práticas ou
comportamentos sociais, o passado incorporado dos atores indi- 65
viduais”. Em sua concepção, uma disposição é “uma realidade re-
construída que, como tal, nunca é observada diretamente. Portanto,
falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho interpre-
tativo para dar conta de comportamentos, práticas, opiniões, etc”
(p. 27), ou seja, “trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que
geraram a aparente diversidade das práticas”.

Este artigo tem como objetivo, ao “fazer funcionar” esta teoria


sociológica, analisar no O Aprendiz 6 Universitário os “ocultos”
porquês das eliminações dos participantes ao longo dos episódios
do programa. Para isso, orientação e procedimentos metodológi-
cos adotados são apresentados em seção específica, que antecede
a seção, um laboratório de mercado na TV, na qual apresentamos
informações relevantes sobre o programa, provas e motivos apre-
sentados e/ou explicitados para a eliminação dos participantes. A
seção principal do trabalho, O que há ‘por trás’ das eliminações?
surge em seguida. Nela explicamos, nos apoiando no suporte teó-
rico supramencionado, os reais porquês implícitos nas eliminações
dos jovens. Por fim, apresentamos nossas conclusões.

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


A sociologia disposicionalista em síntese3

Como neste trabalho faremos uso da sociologia disposicionalista


– em particular os trabalhos de Pierre Bourdieu e Bernard Lahi-
re – para atingir nosso objetivo, é fundamental de início apresen-
tar alguns de seus aspectos que aqui nos servirão. Pierre Bourdieu
(1994 [1972]) contribuiu substancialmente ao conhecimento tanto
da origem das práticas dos indivíduos quanto dos mecanismos es-
truturantes da sociedade contemporânea. Sua resposta à clássica
questão sociológica da relação agência-estrutura é dada por meio
de uma teoria da ação que está no cerne do que aqui se denomina
sociologia disposicionalista.

O conceito de habitus, central à teoria bourdieusiana (e que forma


junto aos conceitos de capital e campo, a base do arcabouço erigido
66 pelo autor) surge a princípio em Esboço de uma teoria da práti-
ca, definido, grosso modo, como “sistema de disposições”4. Mas
será em A Distinção... (2007 [1979]) que poderemos encontrá-lo de
modo mais articulado5.

3 Esta seção toma por base Sá (2010a) e seus pontos principais também podem ser vistos em Sá
(2010b).
4 “As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência
características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de
regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposi-
ções duráveis estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser ‘objetivamente
reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim
sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-
los e coletivamente orquestradas, sem ser produto da ação organizadora de um regente” (Bourdieu,
1994, p. 61-62). E, em nota, esclarece que: “A palavra disposição parece particularmente apropriada
para exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como sistema de disposições): com efeito,
ele exprime, em primeiro lugar, o resultado de uma ação organizadora, apresentando então sentido
próximo ao de palavras tais como estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de ser, um estado
habitual (em particular do corpo) e, em particular, uma predisposição, uma tendência, uma propensão
ou uma inclinação” (grifos do autor).
5 Ver figura explicativa na p. 193 da edição brasileira. Obviamente tanto o conceito de habitus quanto
os de capital e campo não deveriam ser vistos fora do sistema teórico elaborado pelo autor (em espe-
cial porque estes conceitos são desenvolvidos, desdobrados e levados ao plano de teorias ao longo da
obra de Bourdieu), entretanto, não é pertinente apresentar neste trabalho este sistema e, ao mesmo
tempo, fica muito difícil avançar nele sem apresentar e explicar estes conceitos sucintamente para que
então a contribuição da sociologia disposicionalista possa ser devidamente explanada.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“A divisão em classes operada pela ciência conduz à raiz
comum das práticas classificáveis produzidas pelos agentes
e dos julgamentos classificatórios emitidos por eles sobre
as práticas dos outros ou sobre suas próprias práticas: o
habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas clas-
sificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação
(principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre
as duas propriedades que definem o habitus, ou seja, ca-
pacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além
da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e
esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social
representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.” (2007,
p. 162, grifos do autor em itálico)

Em síntese, o habitus é um sistema de disposições incorporadas


constituídas a partir de um princípio gerador diretamente vinculado
à origem de classe do indivíduo. Dois exemplos comparados, que 67
podem esclarecer ainda mais o que Bourdieu quer dizer com a ideia
de habitus, são apresentados pelo próprio na sequência:

“Falar do ascetismo aristocrático dos professores ou da


pretensão da pequena burguesia não é somente descrever
estes grupos por uma de suas propriedades, mesmo que se
trate da mais importante, mas tentar nomear o princípio
gerador de todas as suas propriedades e de todos os seus
julgamentos sobre suas propriedades ou as dos outros.
Necessidade incorporada, convertida em disposição ge-
radora de práticas sensatas e de percepções capazes de
fornecer sentido às práticas engendradas desta forma, o
habitus, enquanto disposição geral e transponível, realiza
uma aplicação sistemática e universal estendida para além
dos limites do que foi diretamente adquirido, da necessidade
inerente às condições de aprendizagem [...]”. (2007, p. 163,
grifos do autor em itálico)

Um dos aspectos centrais na definição e análise do habitus é o “volu-


me e a estrutura do capital” (2007, p. 162) da classe ou, em particular

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


do indivíduo, uma vez que “o habitus se apresenta, como social e
individual: refere-se a um grupo ou classe, mas também ao elemento
individual” (Ortiz, 1994, p. 18). Indo além da concepção marxista,
Bourdieu irá compreender o termo capital não somente pelo acú-
mulo de bens e riquezas econômicas, mas também pelos recursos ou
mesmo poder que se manifesta em atividades sociais. Assim, além do
capital econômico (renda, salários, imóveis), é decisivo para o soci-
ólogo a compreensão de capital cultural (saberes e conhecimentos
reconhecidos por diplomas e títulos6), capital social (relações sociais
que podem ser convertidas em recursos) e o capital simbólico (aquilo
que chamamos de prestígio ou honra e que permite identificar os
agentes no espaço social). Nesta perspectiva, as desigualdades sociais
não decorreriam somente de desigualdades econômicas mas sim do
volume e da estrutura destes capitais distribuído entre os membros
das diferentes classes sociais (Socha, 2008, p. 46).
68
O terceiro conceito a ser aqui recuperado é o conceito de campo.
Bernard Lahire (2001, p. 24-26, tradução minha) apresenta “os ele-
mentos fundamentais e relativamente invariantes da definição de
campo que podemos extrair das diferentes obras e artigos do autor
em questão”. Em síntese lembra que, para Bourdieu, o campo é a
concorrência, é um lugar que ninguém consegue dominar por com-
pleto, mas que apresenta sempre dominados e dominantes em po-
sições diferentes. O conceito de campo nos é especialmente impor-
tante pois o “campo dos negócios” é um espaço social no qual são
hierarquizados os indivíduos de acordo com a posição que ocupam
e as práticas (mais ou menos pertinentes ao campo e ao posto dese-
jado ou ocupado neste) que apresentam, assim como lócus no qual
se dá a disputa destes por posições e, neste processo, a incorporação
de valores sincrônicos à dinâmica de uma sociedade de mercado –

6 Mas que não é somente adquirido por meio de instituições formais como a escola ou representado
por diplomas, mas também por meio de inserção e convívio sociais em determinados espaços, afinal,
saber bater palmas no momento adequado num concerto de música clássica, ou escolher o vinho
apropriado à temperatura ou momento do dia são tipos de conhecimentos também denominados
como “capitais culturais” por Bourdieu.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


justamente no processo observado na sociologia disposicionalista de
incorporação pela classe, em Bourdieu, pelo indivíduo, em Lahire,
de aspectos da sociedade na qual vivem. Como jovens candidatos
se apresentam nas entrevistas para estágio ou emprego? Existe um
padrão (parte implícito, parte explícito) a ser seguido, tem que ter
“boa aparência”, comunicação clara, cabelo bem aparado, estar ves-
tido de modo apropriado, etc. E “alguém” determinou isso? Não,
mas como nos apontou Bourdieu, são operações que parecem ser
“coletivamente orquestradas, sem ser produto da ação organizadora
de um regente”. Ou seja, tudo isso não está regulamentado em lugar
algum, é resultado de uma hierarquização valorativa que está ins-
titucionalizada na sociedade e que incorporamos ao nos inserirmos
(ou querer fazê-lo) no campo dos negócios. É este processo que se
reproduz no programa de TV objeto de nossa análise neste artigo.

Neste campo, de um lado podem ser observadas “forças homoge- 69


neizantes” sociais que viabilizam uma nova moral social, tal como
a leitura da comunicação de negócios e incorporação de alguns de
seus aspectos (como pode ser visto na revista Você S.A. que traz
reportagens que dizem como o executivo deve se conduzir sua car-
reira, mudar suas práticas, vestir-se, e até mesmo para onde ir nas
férias); e de outro, “forças heterogêneas” como o fato de que cada
executivo “faz trabalhar” nos negócios as experiências anteriores de
sua trajetória e dos contextos de ação pelos quais passou ou ainda
vive. Acreditamos então ser interessante atentar para o processo de
fabricação social e seleção do homem de negócios do qual o progra-
ma O Aprendiz Universitário é uma representação midiática.

Foi justamente nos anos 90 que Bernard Lahire começou a traçar as


primeiras linhas de sua “sociologia à escala individual”. Tomando na
realidade o mesmo objeto que Bourdieu evocava na teoria do habi-
tus, ou seja, o “social incorporado” nos indivíduos, sendo que não
de forma homogênea na extensão de uma classe, mas sim variante
entre os indivíduos de uma mesma classe. Acreditando que o indi-
víduo não é uma novidade histórica nem sociológica, o sociólogo

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


pontua que a forma como irá observá-lo não se deve ao que muito
se diz ser uma “sociedade individualista”, mas sim devido à compre-
ensão do social que se pode obter por meio dos indivíduos7. Lahire
então pergunta à Bourdieu se não seria mais pertinente, para com-
preender a sociedade, voltar o olhar para os indivíduos, afinal, estes
apresentam em suas disposições, manifestações dos mais diversos
aspectos de uma sociedade em sua condição individual. Assim, seria
melhor falar em disposições e não em sistema de disposições (habi-
tus) e em princípios geradores (e não em um único princípio gerador
para uma classe) e deste modo perceber as variações inter e intra-
individuais e as contradições que seriam inerentes aos indivíduos.
Em especial, ele nos leva a observar os diversos contextos de ação
nos quais o indivíduo se insere, além de sua trajetória de vida, como
elementos centrais na compreensão dos pensamentos, sentimentos
e ações deste indivíduo. Em sua construção teórica, Lahire (2006)
70 parte de sólida crítica à ideia de habitus – enquanto sistema de dis-
posições incorporadas fruto de único princípio gerador e aplicável/
transferível para os mais diversos contextos de socialização do in-
divíduo - afirmando que existem variações intra e inter-individuais
nas disposições e, consequentemente, nos hábitos dos indivíduos
de todas as classes e em comparação com outros membros de uma
mesma classe. Sua crítica está voltada para a “coerência do princípio
gerador”, dos habitus das classes, ao que prefere tratar como dispo-
sições (e não como um sistema).

Neste artigo, disposições são modos de pensar, agir e sentir – não


se trata do pensamento, ação ou sentimento em si, mas sim do
que está por trás deles, que “não pode ser observado diretamente”,
mas que pode ser construído interpretativamente e ser visto como
“molas propulsoras” de diversos pensamentos, ações e sentimentos
observáveis por meio das ações e falas dos jovens participantes do
programa.

7 Foi o próprio Lahire, em reunião de pesquisa realizada no dia 9/11/2009 na UFPE, promovida pelo
Núcleo de pesquisa Sociedade, Cultura e Comunicação, que fez esta contextualização.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Método
Algumas etapas foram vencidas para a realização deste trabalho e
aqui precisam ser descritas minuciosamente como requer a boa prá-
tica do ofício científico. Todos os episódios (no total de 15) foram
assistidos por ao menos um dos autores e/ou colaboradores que
contribuíram para a realização deste trabalho. Estes episódios foram
resumidos e transcritos conforme orientação prévia elaborada pelos
dois primeiros autores. Nesta orientação foi solicitado que fosse ob-
servada a forma como os personagens e suas falas eram expostas e
que também fosse seguido o padrão indicado na orientação (para
que houvesse maior unidade procedimental no modo como o mate-
rial foi reunido). Foi solicitado que todos os envolvidos destacassem
os trechos que fossem avaliados como sendo os mais marcantes de
cada episódio.
71
Cuidados especiais foram indicados e seguidos em relação aos di-
álogos sobrepostos (quando uma pessoa fala “cortando” a fala do
outro) para que tanto estes ficassem claros ao serem transcritos
quanto para que o sentimento expresso pelo falante fosse devida-
mente registrado na transcrição, afinal, o modo como as palavras
foram proferidas é muito importante para efeitos de análise. Para
cada um dos programas foi elaborado um relato sintético do que
aconteceu ao longo dele (incluindo falas e descrição de determina-
das atividades e depoimentos importantes que aconteceram ao seu
curso) e a transcrição na íntegra dos diálogos que acontecem no
ponto crítico do programa, a sala de reunião (momento no qual será
decidido quem será eliminado). Para análise do material empírico
reunido, foi utilizado o método hermenêutico. Ao se observar a obra
dos hermenêuticos “românticos” – com destaque para Wilhelm Dil-
they, por muitos considerado o “pai” da ciência social compreensiva
– pode-se dizer que a ciência social hermenêutica não se distingue,
em suas origens, da ciência social compreensiva ou interpretativa.
Já no século passado, a hermenêutica assume um caráter mais filo-
sófico no sentido de que compreender e interpretar não devem ser

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


apenas atividades relacionadas a procedimentos científicos, mas sim
relativo à experiência humana. (Outhwaite, 1985; Hamlin, 1998, p.
85-89; Sá, 2005).

Enquanto metodologia, Demo (1995) aponta que a hermenêutica


se refere à arte de interpretar textos. Partindo da constatação de
que a realidade social, e principalmente, a comunicação humana
propriamente dita, possui múltiplas dimensões, nuanças e variações
das mesmas que é fundamental atentar não só para “o dito”, mas
igualmente para o “não dito”. Para ele, “a hermenêutica se especia-
liza em perscutar os sentidos ocultos dos textos, na certeza de que
no contexto há por vezes mais do que no texto. Esgueira-se nas
entrelinhas, porque nas linhas está, por vezes, precisamente o que
não se queria dizer” (Demo, 1995, p. 247-8).

72
Um laboratório de mercado na TV

Origem do programa

The Apprendice (O Aprendiz), produzido por Mark Burnett Produc-


tions, em associação com a Trump Productions LLC, é uma franquia
de televisão que se originou em 2004 nos Estados Unidos. Tal como
inicialmente concebido, o programa mostrava 16 concorrentes de
todo o país, de várias origens, que competem entre si para se tornar
um aprendiz de Donald Trump8, dono do bordão “You’re fired!”
(“Você está demitido!”) proferido aos eliminados. O vencedor terá a
oportunidade de trabalhar para Trump como o presidente de uma
das suas empresas, pelo período mínimo de um ano com um salário
anual de US$ 250.000. Desde sua estreia, o programa foi licencia-
do para muitas versões internacionais, bem como várias imitações,

8 Trump é um magnata dos negócios americano que se tornou, com seu modo extravagante de ser e
maneira direta de agir, uma celebridade. Seu status cresceu ainda mais com a exibição do seu reality
show na rede americana NBC.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


sendo realizadas em: África, Austrália, África do Sul, Bélgica, Brasil,
China, Colômbia, Dinamarca, Estónia, Finlândia, Alemanha, Índia,
Indonésia, Irlanda, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Pan-árabe,
Rússia, Espanha, Suíça, Turquia, e Reino Unido. Totalizando 24
países incluindo os Estados Unidos. (Wikipedia, 2010)

O Aprendiz no Brasil

O Aprendiz, transmitido pela rede Record, iniciou seu caminho no


Brasil em 04 de novembro de 2004. O programa em princípio decla-
rava ter como foco selecionar dentre os candidatos, que variaram de
16 a 18, um funcionário “ideal” para trabalhar em uma das empresas
de Roberto Justus – empresário-publicitário de destaque nacional e
apresentador do programa. Divididos em duas equipes, sendo cada
um dos grupos comandados por um líder escolhido entre os mem- 73
bros do grupo, os participantes deveriam realizar diversas provas em
apenas alguns dias. De modo geral, o grupo vencedor recebe uma
recompensa, enquanto o perdedor dirige-se à sala de reuniões para
um “julgamento” a ser conduzido pelo apresentador, com o apoio
de dois conselheiros. Após as críticas e as observações de Roberto
Justus, normalmente dois participantes que são apontados pelo lí-
der como tendo apresentado os “piores desempenhos”, juntam-se
ao líder para então participarem do segundo momento da sala de
reuniões. Nesta ocasião, de acordo com a análise do apresentador e
dos conselheiros, um entre os três candidatos presentes na sala será
“demitido”, ou melhor, desclassificado do reality show. Após a se-
gunda (2005) e terceira (2006) edições, o formato de O Aprendiz foi
modificado. Ao invés de selecionar um funcionário, Roberto Justus
passa então a procurar um novo sócio em cada edição, desta forma,
nas edições quatro (2007) e cinco (2008), os candidatos têm como
objetivo serem estes novos sócios. Nas quarta e quinta temporadas,
os vencedores ganharam um milhão de reais em dinheiro e um mi-
lhão de reais em cotas de sociedade, respectivamente.

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


Em 2009, o programa abre espaço para os universitários. Torna-se
assim, O Aprendiz 6 Universitário. Em vez de uma sociedade, é
oferecido ao vencedor do programa uma vaga de trainee por pelo
menos um ano na Young & Rubicam (uma das empresas do grupo
pertencente à Roberto Justus), com salário mensal de dez mil reais
e prêmio de um milhão de reais. Dentre os dezoito candidatos nesta
temporada, dez são mulheres. Durante quinze episódios, jovens lu-
tam intensamente pela “sobrevivência” no programa, esforçando-se
para desempenhar determinados papéis cobrados em cada prova.
Diferentemente das demais edições, o líder da equipe vencedora
deverá indicar um participante que não usufruirá da recompensa
que o grupo receberá (regra que se estende até o oitavo episódio).

Episódios em síntese
74
Ao longo dos episódios do programa, os participantes enfrentam
provas que são geralmente relacionadas a empresas de destaque em
diversos segmentos de mercado. O objetivo das provas é avaliar as
capacidades e os potenciais dos participantes em tarefas que en-
volvem ações relacionadas a empreendedorismo, comunicação, ma-
rketing, administração financeira, vendas, publicidade e propagan-
da e administração geral. Podemos identificar ainda outro objetivo
central ao qual as tarefas se destinam: Avaliar os concorrentes em
relação as suas atitudes no decorrer dos episódios (autocontrole,
disciplina, motivação, entusiasmo, entre outros).

Dentre os quinze episódios do programa iremos discorrer brevemente


sobre três deles com fins ilustrativos. Por suas diversidades de requisitos
esperados dos participantes, área focalizada na tarefa e objetivos ligados
a essas duas condições anteriormente citadas, foram escolhidos os episó-
dios 1, 12 e 14. O episódio 1 tem como tarefa central a criação, monta-
gem e administração (merchandising) criativa de espaços para promover
o produto (salgadinho) criando receitas originais, estando intimamente
ligado ao marketing. Com esta prova, O Aprendiz espera dos universitá-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


rios a capacidade de planejamento estratégico, desenvolvimento de tra-
balho em equipe, liderança, lidar com um orçamento apertado, inovação
e criatividade. Em outro momento, no episódio 12, os participantes de-
verão montar um negócio dispondo de um pequeno capital e tendo que
multiplicá-lo ao máximo. O empreendedorismo é a característica central
da prova, desejando consequentemente, que as equipes apresentem um
senso empreendedor, capacidade para assumir riscos e gestão financeira.
Por fim, no penúltimo episódio (14), as três semifinalistas são levadas até
o Chile, onde deverão encontrar uma forma de sair do país e voltar para
São Paulo. A tarefa busca encontrar nas participantes, capacidade de ar-
gumentação, persuasão, inteligência relacional, atitude e comportamento
prospectivo, resiliência, controle emocional, foco no objetivo e criativida-
de ligados ao aspecto comportamental. Conclui-se que, como mostrados
acima, os requisitos que devem ser atendidos pelos participantes para
continuidade e consequentemente vitória no programa (ligado intima-
mente com o mercado de trabalho) são diversos e que exigem esforço 75
extraordinário dos jovens para o atendimento dessas expectativas.

Na sala de reunião...

A sala de reunião é o local no qual se dá o ponto crítico dos episódios,


é um momento rico em termos de falas, posturas e sentimentos dos
participantes. Trata-se de local tenso, afinal, é lá que se decide quem
continua e quem é eliminado do programa. Roberto Justus e seus con-
selheiros se encontram com os participantes da equipe perdedora para
a análise do desempenho dos participantes na tarefa e para a posterior
decisão sobre a eliminação. Todos estão vestidos em ternos ou tailleurs
sóbrios e levam consigo as suas malas, afinal, logo após a decisão “o
eliminado” volta direto para casa. Justus é o último a entrar na sala, um
fundo musical o acompanha neste momento. Ao entrar, ele se dirige à
sua cadeira que fica entre as cadeiras dos seus conselheiros. Os demais
participantes da equipe perdedora ficam à sua frente, ou seja, do outro
lado da mesa. A sala é coberta por uma penumbra que denota muita
sobriedade, tem poucos móveis e alguns arranjos discretos, na grande

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


maioria, em cores escuras. Dá-se bastante destaque à mesa, que está
localizada em seu centro. Justus geralmente começa falando, com um
tom de voz calmo, porém alterando-o em algumas ocasiões da dis-
cussão com o grupo. Entretanto, ele não perde o controle, dosa sua
agressividade mesmo quando provoca ou desafia os “aprendizes”. Faz
interrupções na fala deles, deixando-os pouco à vontade para se defen-
der. Em determinado momento, pede para que eles indiquem quem, na
opinião deles, mais contribuiu para a derrota do grupo. Deste modo é
gerado o conflito entre os jovens que, geralmente, leva a um mal estar
entre alguns deles. Após esta tensão, o participante que foi líder na
prova escolhe mais dois colegas da equipe para participar da segunda
parte da sala de reunião, é então que Justus solicita que todos os parti-
cipantes se retirem. Ele então consulta seus conselheiros, pede que cada
um deles indique quem deveria ser eliminado, chama os três indicados
de volta à sala, e escuta um pouco os argumentos dos três participantes
76 ameaçados de eliminação. Justus discute um pouco com eles, com seus
conselheiros e, logo em seguida, indica o eliminado.

Os eliminados

Abaixo apresentamos Tabela 1 na qual são reunidos os eliminados


de cada episódio e os motivos apresentados ou observados para suas
eliminações.

MOTIVOS APRESENTADOS NO PROGRAMA


EP. ELIMINADO(S)
PARA SUAS ELIMINAÇÕES
- Falta de domínio do inglês;
- Falta de concentração;
- Negligência no tratamento dos recursos;
- Falta de iniciativa;
1 Guilherme Aragão - Demonstrar pouca preocupação durante a tarefa;
- Agir de forma pouco coerente com o contexto;
- Ser o mais fraco e frágil do grupo;
- Não conseguir reverter uma situação desagradável a que foi
colocado.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Carla:
- Falta de concentração e de foco no resultado;
- Lentidão no raciocínio;
- Não se submete a hierarquia e;
Carla Stapani
- Falta de proatividade.
2
Raissa de Castro
Raissa:
- Descontrole emocional;
- Desconformidade ao senso coletivo e falta de resiliência;
- Não se submete a hierarquia.
- Falta de nexo nas decisões como líder;
- Apresentação pífia e falha;
- Péssima comunicação;
3 Pedro Amatti
- Pecar por ação e por omissão;
- Delegação de autoridade;
- Liderança falha e equivocada.
- Persistência em uma estratégia de venda;
- Mau desempenho em provas anteriores;
4 Taila Maitê - Não realizou nem uma venda;
- Não conseguiu se mostrar importante nem para o Roberto 77
nem para os seus colegas de equipe.
- Questionar a integridade e desconfiar da idoneidade do
programa;
5 João Luiz - Não entender as regras do programa;
- Ser injusto no julgamento;
- Questionar a pessoa com a qual pretende trabalhar.
- Não medir as palavras;
- Ser grosseiro, principalmente no momento de se defender;
6 Rutênio Nogueira - Não escrever bem;
- Ter apresentado as falhas da equipe e não ter tido iniciativa
para mudar a situação.
- Apatia ao desempenhar as tarefas;
- Não conseguir administrar/conter a ansiedade e frustração
7 Lucas Dobner mediante uma situação negativa;
- Não aparentar segurança para a líder;
- Falta de foco no resultado.
- Incapacidade de poder coordenar e controlar toda a equipe
8 Rafael Martins com as suas respectivas tarefas;
- Fragilidade no exercício da função do líder.
- Falta de proatividade;
- Jogar o celular durante momento tenso da tarefa;
9 Álvaro da Costa
- Não apresentar um otimismo incondicional;
- Não ter visão de negócios.

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


- Falta de proatividade;
- Postura durante o programa (postura “zen”);
- Falta de resiliência;
- Raciocínio lento;
10 Rebeca de Matos
- Não contribui para o grupo (peso morto);
- Aparentar algo que não é/ fingir bem;
- Vocação para o ócio (preguiça);
- Covardia.
- Limitação ao desempenhar a tarefa;
11 Maytê de Carvalho - Incapacidade de converter inteligência em resultado;
- Falta de energia e atitude para realização da prova.
Mariana:
- Não possuir ou não colocar em exercício nas tarefas as habili-
dades de criatividade, atendimento e venda.
Mariana de Souza
12
Rodrigo:
Rodrigo Prates
- Tentativa de canalizar os objetivos das tarefas em uma única
matriz ou foco;
- Apresentar limitação na realização da prova.
78
- Baixo desempenho apresentado em provas anteriores;
13 Ana Paula Siebert - Afirmar ter como prioridade na sua vida a abertura de um
negócio em contrapartida ao emprego com Justus.
- Agressividade além do normal assumindo riscos desnecessários;
- Tomada de decisão precipitada;
14 Stephanie Paris - Não controlar a ansiedade;
- Depositar em uma única pessoa a solução para seu problema;
- Fazer uso inapropriado da língua portuguesa.
- Por não manter um equilíbrio durante o Programa (ascensão
meteórica no início do programa e queda de desempenho
meteórica nas últimas provas);
15 Karina Ribeiro
- Não demonstrar impetuosidade para o alcance dos objetivos;
- Não apresentar um jeito que combine com o estilo da empre-
sa e o próprio perfil de Roberto Justus (perfil mais “atirado”).

Tabela 1: Eliminados e motivos para suas eliminações. Fonte: programa O


Aprendiz/elaboração própria

A vencedora

Ao final do programa, a estudante Marina Erthal é escolhida para a


vaga de trainee. O motivo apresentado por Justus para sua contratação

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


foi a impetuosidade para o alcance dos objetivos ao longo do progra-
ma, ou seja, a garra na luta pelo cargo e pelo um milhão de reais no
seu “laboratório de mercado na TV”. Em certo momento do programa,
o próprio Roberto Justus a compara com ele mesmo quando jovem…

O que há “por trás” das eliminações?

Lahire (2006a) destaca que a sociologia é a “ciência do oculto”.


Daquilo que não está explicitado na realidade social. Caso tudo es-
tivesse evidente na própria realidade, não seria necessário o trabalho
do cientista social, bastava-o coletar os depoimentos das pessoas,
que elas próprias poderiam oferecer as devidas explicações às dinâ-
micas do cotidiano. Entretanto, os motivos pelos quais as pessoas
fazem o que fazem e do modo como fazem, geralmente não são
devidamente explicados por elas mesmas. Cabe então ao cientista 79
fazê-lo, apoiando-se em teorias que avalia serem apropriadas para
explicar “as molas da ação” (Lahire, 2003) – o que está “por trás”
dos comportamentos, das falas das pessoas.

Obviamente, no caso da análise aqui proposta, há especificidades im-


portantes de serem explicitadas de início. Nosso foco não está em
(1) construir a gênese e (in)coerência das disposições de indivíduos
(Lahire, 2004), (2) demonstrar as dissonâncias e consonâncias de suas
práticas culturais em relação a sua classe (Lahire, 2006a), (3) nem de
desvelar o modo de vida e trabalho de um grupo sócio-profissional
(Lahire, 2006b), como o próprio Lahire vem fazendo uso da teoria dis-
posicionalista, mas sim, num contexto de ação específico – um “pro-
grama-laboratório”, que ilustra situações de um “campo” (Bourdieu)
também específico, o de negócios – analisar as verdadeiras razões
que estão “por trás” das eliminações dos candidatos. Outro ponto.
Por estarmos trabalhando com fonte secundária, temos limitações em
relação aos dados, trabalhamos com base nas falas, imagens e edição
que foi feita para cada episódio. Nestas edições, observamos o foco
nos participantes que estarão no último momento da sala de reunião,

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


ou seja, naqueles que estarão, ao final daquele episódio, em luta di-
reta para não serem eliminados do programa.

A eliminação, em nosso entendimento, não representa apenas perder


o jogo e o prêmio em dinheiro prometido ao vencedor, mas também
implica que, por algum motivo, o candidato foi preterido, considerado
inapto ao cargo. Ao recorrermos à sociologia disposicionalista, preten-
demos demonstrar que, na realidade, os motivos apresentados no pro-
grama não esclarecem de fato porque os candidatos foram eliminados.
Há algo para além destas justificações discursivas que nem o apre-
sentador, nem seus conselheiros, nem os participantes são capazes de
explicar – em particular, nos termos que o recurso desta perspectiva
sociológica nos permite. Como nosso foco analítico está naquelas que
avaliamos como sendo as principais disposições ausentes, não pensa-
mos ser necessário empreender análise participante por participante,
80 mas sim, ao apresentarmos os conjuntos de disposições apontadas
como ausentes, explicá-las em seu conjunto e ilustrá-las uma a uma
com trechos selecionados dos episódios do programa.

Aqui, antes de seguirmos, gostaríamos de recuperar o conceito de


disposição em Bernard Lahire (2004, p. 27), apresentado na intro-
dução. Para ele, uma disposição é “uma realidade reconstruída que,
como tal, nunca é observada diretamente. Portanto, falar de dispo-
sição pressupõe a realização de um trabalho interpretativo para dar
conta de comportamentos, práticas, opiniões, etc”, ou seja, “trata-
se de fazer aparecer o ou os princípios que geraram a aparente
diversidade das práticas”. E também, o modo como neste artigo o
reescrevemos anteriormente, “disposições são modos de pensar, agir
e sentir – não se trata do pensamento, ação ou sentimento em si,
mas sim do que está por trás deles, que ‘não pode ser observado
diretamente’, mas que pode ser construído interpretativamente e
ser visto como ‘molas propulsoras’ de diversos pensamentos, ações
e sentimentos observáveis por meio das ações e falas dos jovens
participantes do programa”.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Isto posto, o primeiro conjunto das principais9 disposições ausentes
são denominadas de gerais, haja vista serem, grosso modo, requisita-
das a praticamente todas as pessoas que anseiam se colocar no mer-
cado de trabalho contemporâneo. São elementares, sem desenvolvê-
las e apresentá-las fica difícil manter-se numa organização produtiva
moderna. Estas são disposições para: disciplina, autocontrole, pensa-
mento e ação prospectivos (Souza, 2010), concentração e aplicar co-
nhecimento (ver trechos ilustrativos na Figura 2). Como nosso interes-
se aqui é mais específico em relação a um tipo de perfil profissional o
qual os jovens participantes do programa representam, ou seja, jovens
futuros executivos, estas disposições gerais não são suficientes para
explicar parte das eliminações, muito embora a ausência de alguma
delas tenha sido decisiva em casos como os apresentados na Figura 2
e em alguns dos trechos completos em anexo.

Foi um conjunto de disposições gerais requisitadas pelo campo dos ne- 81


gócios que identificamos como tendo potencial explicativo específico
sobre as eliminações dos candidatos. Este conjunto denominamos de
disposições para pensar, sentir e agir adequadamente às situações de
negócios. Nele estão inseridas as disposições para: (1) “vestir a camisa”
da empresa, (2) avaliar riscos, (3) pensar, sentir e agir adequadamente
às situações de negócios específicas, (4) agir sob pressão e (5) investir
em si mesmo (para fazer-se empresa). Diferentemente do conjunto ge-
ral anterior, este é um conjunto de disposições que, como seu próprio
título diz, está diretamente relacionada a pensamentos, sentimentos e
ações necessários à carreira nos negócios. Apresentar orgulho de tra-
balhar na empresa; demonstrar comprometimento com a mesma; ter
cuidado com os investimentos dos recursos da empresa em novos ne-
gócios; vestir-se e falar adequadamente quando estiver representando
a empresa em almoços, reuniões ou eventos de negócios; dar respostas

9 Como Max Weber, acreditamos que a realidade é caótica, infinita e complexa, e, em decorrência dis-
so, não podemos apreendê-la por completo. Deste modo, o que podemos fazer é selecionar os fatores
mais importantes que podem vir a explicá-la. É exatamente isso que procuraremos fazer em termos
disposicionais, apresentar os principais conjuntos de disposições que identificamos como sendo mais
relevantes em termos explicativos das eliminações dos candidatos do programa.

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pertinentes e satisfatórias quando em situações de urgência; observar-
-se e fazer investimentos em sua carreira nos moldes dos que a empresa
faz em seu negócio. Estas seriam, de modo geral, exemplos de ações,
sentimentos e pensamentos decorrentes das disposições agrupadas
neste conjunto. Na tabela 2 estão reunidos estes dois primeiros conjun-
tos de disposições acima apresentados.

CONJUNTO DE
DISPOSIÇÕES
DISPOSIÇÕES GERAIS TRECHOS ILUSTRATIVOS
ESPECÍFICAS
AUSENTES
- “... a ansiedade não controlada da Stepha-
a. disposição para nie pode levá-la a cometer excessos.” (T1)
autocontrole - Lucas põe a mão no rosto e começa a
chorar inconsolavelmente. (T2)
- “O Guilherme, não que ele esteja me afe-
b. disposição para
tando, assim, atrapalhando. Eu acho que as
concentração
vezes desconcentra um pouco.” (T3)
82
c. disciplina /
- “Toda hora tomava bronca do oficial, pois
obediência a
queria bater sempre de frente com ele.” (T4)
superiores
Disposições gerais
necessárias ao ingresso - “...faltava nexo em cada uma das decisões
no mercado de trabalho de vocês. O resultado, comparando com
moderno d. disposição para o outro, pra nós era como se perguntasse
pensamento e assim: você quer ser rico com saúde ou pobre
ação prospectivos doente?” (T5)
- “São decisões incoerentes. Decisões que
não fazem o menor sentido.” (T6)
- “Faltou uma coisa que o Walter trouxe: co-
nhecimento do produto é a base da condição
e. disposição
de venda do produto.” (T7)
para aplicar
- “... apesar de ser uma pessoa muito inteli-
conhecimento
gente, não está mais conseguindo converter a
inteligência em resultado.” (T8)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


- “... tanto Marina quanto eu quanto a Kari-
f. “vestir a camisa” na, tomando aquilo pra si querendo novas so-
da empresa luções propostas enquanto o Álvaro, por sua
vez tava jogando no celular, entendeu?” (T9)
- “... com características agressivas demais.
g. avaliar riscos Correndo riscos que as vezes o empreendedor
não precisa correr.” (T10)
- “... e o Guilherme, que poderia estar
Disposições para h. pensar, sentir
ajudando traçando o caminho, tava cantando
pensar, sentir e agir e agir adequada-
dentro do carro...” (T11)
adequadamente às mente às situações
- “... uma pessoa que é sem lapidações,
situações de negócios de negócios
entendeu, ele é grosseirão, fala o que pensa,
específicas
tem palavras chulas.” (T12)
i. disposições para
VER TABELA 3
agir sob pressão
j. disposições para
investir em si mes-
VER TABELA 3
mo (para fazer-se
empresa) 83

Tabela 2: Conjunto de disposições gerais ausentes

Dentre estas disposições acima apresentadas que compõem o con-


junto de disposições para pensar, sentir e agir adequadamente às si-
tuações de negócios, identificamos duas disposições que necessita-
ram ser desmembradas mais especificamente. São elas: Disposições
para agir sob pressão e disposições para investir em si mesmo (para
fazer-se empresa). Muito embora também inseridas no conjunto das
disposições para pensar, sentir e agir adequadamente às situações de
negócios, estes dois outros subconjuntos supramencionados foram
destacados dentre as demais disposições, por se mostrarem mais
complexos e se desdobrarem em outras disposições de significativa
importância à explicação que aqui desejamos erigir.

No subconjunto disposições para agir sob pressão estão inseridas


as disposições para: para raciocínio rápido, retórica para justificar-
se, e demonstrar firmeza.

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


No subconjunto de disposições para investir em si mesmo (para
fazer-se empresa) estão inseridas: automotivação, aprendizagem
continuada, autopromoção, autoestima, estudo/conhecimento de
línguas. Ambos subconjuntos podem ser vistos acompanhados de
trechos ilustrativos na Tabela 3:

DISPOSIÇÕES ESPE-
CÍFICAS AO CAMPO DISPOSIÇÕES
TRECHOS ILUSTRATIVOS
DOS NEGÓCIOS ESPECÍFICAS
AUSENTES
- “ O tempo era fundamental e vocês ficaram
a. disposição para
paradas invés de pedir o próximo número
raciocínio rápido
ficava parada pensando.” (T13)
- “... ele conseguiu ser absolutamente
b. disposição
inconveniente, em minha opinião, na relação
retórica para
da forma como ele abordou, e não, por
justificar-se
questionar.” (T14)
84 Disposições para agir
sob pressão - “... porque faltou a ele vigor e decisão na
prova anterior e de certa maneira isso se
repetiu nesta prova...” (T15)
c. disposição
- “E você sozinho, (referindo-se a Pedro) com
para demonstrar
aquele microfone que passeava mais na sua
firmeza
mão do que um balão de festas com gás
Helio. Eu nunca vi um negócio que ia pra lá,
ia pra cá.” (T16)
- “A motivação do Álvaro tá péssima, não
tem, não existe motivação desde o primeiro
d. automotivação dia de tarefa ele passou o dia assim [Faz
uma expressão para exemplificar sua fala]
apático...” (T17)
- “Eu acho engraçado ele falar desse aprendi-
e. aprendizagem zado porque ele foi o único que virou assim e
Disposições para inves-
continuada falou: “eu não aprendi nada até agora com o
tir em si mesmo (para
programa.” (T18)
fazer-se empresa)
- “... ela não consegue vender seu trabalho
ao líder. Ela faz muita coisa e fala pouco.”
(T19)
f. autopromoção - “... a Maytê não conseguiu se posicionar de
uma maneira que as qualidades que a gente
conhece dela se sobressaíssem e marcas-
sem.” (T20)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


- “Uma coisa que eu acho seu maior defeito:
você não acredita em você mesma. Você já
g. autoestima
disse várias vezes que sabe que será a próxi-
ma a sair.” (T21)
- O Rutênio conseguiu a proeza de escrever
como um analfabeto quase escreve, porque
é imperdoável o que você fez ali para um
universitário, é um exemplo ruim...” (T22)
h. conhecimento
- você escreveu uma palavra errada que qua-
de línguas
se, se não fosse o pessoal da gráfica, a gente
ia ter “loundge” escrito com dge em vez de
só “lounge” com g. É por falta de concentra-
ção ou de inglês?” (T23)

Tabela 3. Disposições específicas ao campo dos negócios ausentes

Em síntese, são as principais disposições (gerais e específicas acima


exemplificadas) solicitadas por este contexto (programa-laborató-
85
rio de mercado), e que não são apresentadas de modo satisfató-
rio pelos jovens candidatos, que constituem os reais motivos das
eliminações. Os pensamentos, sentimentos e ações observados e
apontados como causa das eliminações são apenas aquilo que po-
demos ver na realidade.

Conclusões

O que faz um ou outro jovem ser eliminado de um programa-labo-


ratório como O Aprendiz é não apresentar, por meio de seus pensa-
mentos, sentimentos e ações explicitados, as disposições necessárias
à atuação naquele “campo” específico para o qual está sendo posto
à prova. Ou seja, o que os fazem perder não são suas falhas ou
faltas apresentadas pelo apresentador, conselheiros ou até mesmo
demais concorrentes, estas falhas-faltas são consequências compor-
tamentais exteriores, visíveis, da falta de uma ou mais disposições
(causas) que são necessárias de terem sido incorporadas para que se
venha ocupar um posto no campo dos negócios, ou mesmo que o

Por um lugar no mercado... ou jovens em luta na TV: o que os fazem perder?


participante demonstre “apetência” (Lahire, 2004) a incorporá-las.
Observando a questão nestes termos, os jovens participantes não
estão apenas em luta uns contra os outros pela vitória no programa,
mas também travam grande embate interno, cada um consigo mes-
mo, em busca de pensar, agir e sentir de modos os quais ainda não
tiveram a oportunidade de incorporar – haja vista estarem ainda em
formação universitária ou no início de carreira, ou seja, no início de
suas trajetórias profissionais. Por esta perspectiva disposicionalista,
somente após algum tempo de atuação no contexto de ação de ne-
gócios é que jovens entrantes podem incorporar e passar a orientar
suas ações por meio de disposições que a ele são pertinentes. No
entanto, em parte são exigidos desde a entrada que apresentem as
disposições que aqueles que ocupam posições de destaque no cam-
po, e nele atuam há anos, apresentam.

86 Os próprios apresentadores e conselheiros também desconhecem


os “princípios geradores das classificações que operam” (Bourdieu).
Por terem o habitus do homem de negócios incorporado, sabem
classificar e são classificados a partir dele, mas não aparentam ter
consciência de que, na realidade, estão selecionando um jovem de
acordo com o habitus que incorporaram ao longo de sua trajetó-
ria de vida-profissão. O fato de, em certo momento do programa,
o próprio Roberto Justus comparar a vencedora com ele mesmo
quando jovem, ilustra a busca por um(a) jovem que possa vir a ser
“como eles” amanhã...

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Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Socialização e intimidade:
considerações sobre os modos de vida
de homens e mulheres
Raldianny Pereira dos Santos1

89

A noção de intimidade tem experimentado, ao longo dos séculos, um


processo de transformação histórica. Segundo Habermas (1984),
“intimidade” é um produto da sociedade burguesa, que dividiu o
mundo social em esfera pública e esfera privada e, nesta última,
situou outra esfera ainda mais reservada, a esfera “íntima”. Áries
(1978) reforça o pensamento de Habermas ao esclarecer que a no-
ção burguesa de intimidade e família teve origem no século XV,
sedimentando-se e difundindo-se até o século XVIII.

É importante enfatizar que, durante este período, as classes popula-


res não tinham a compreensão de que certas atividades do cotidiano
deveriam ser realizadas na ausência do olhar de estranhos, ou mes-
mo, longe de certas testemunhas familiares, pertencendo, portanto,
a uma esfera íntima. Em decorrência disso, as camadas populares

1 Profa. Dra. do Departamento de Comunicação Social e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Socie-


dade, Cultura e Comunicação do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE.

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


demoraram a se apropriar dos burgueses padrões de comportamen-
to em formação, deles escapando com freqüência, mantendo assim,
por um longo tempo, os costumes recorrentes na Idade Média.

Sobre os costumes medievais, Norbert Elias exemplifica que era uma


prática muito comum dividirem o mesmo quarto pessoas de ida-
des, classes e sexos diferentes. As chamadas “roupas de dormir”, a
exemplo da camisola, só passaram a ser utilizadas no século XVI.
As pessoas dormiam nuas, a menos que houvesse uma prescrição
para que dormissem vestidas, caso de algumas ordens eclesiásticas.
A nudez era rotineiramente compartilhada. Os banhos ocorriam em
lugares coletivos para onde as pessoas também podiam se dirigir
nuas. Elias (1990, p. 165) salienta que a “despreocupação” com a
vergonha “desaparece lentamente no século XVI e mais rapidamente
nos séculos XVII, XVIII e XIX, no início nas classes altas e muito mais
90 devagar nas baixas”. Nesse período, a casa era também um espaço
de pouca significação para seus habitantes de camadas populares. A
sociabilidade para representantes dessas populações que conviviam
com a fome, o frio e as debilidades física e psíquica significava uma
estratégia de proteção contra o isolamento como um mecanismo de
sobrevivência. Esta sociabilidade se concretizava essencialmente por
meio de dois grupos. O primeiro, a família, que reunia pais e filhos
em torno de prestações de serviços, sendo “esvaziada, segundo os
especialistas, de todo conteúdo emocional e sentimental”. O segun-
do, a “comunidade familiar estendida” era o espaço em que, além
de serviços mútuos, efetivavam-se também trocas afetivas. Este se-
gundo círculo de sociabilidade agregava não somente os parentes
consangüíneos, em seus diferentes graus de parentela, bem como
os ditos “parentes espirituais”, a exemplo de padrinhos, madrinhas,
comadres, compadres, afilhados e até vizinhos (Muchembled, 1978).

Para as camadas abastadas, a casa representava um local que de-


veria ser preservado da pecha da “desonra”, uma vez que, como
ressalta Norbert Elias, era ela que levava o nome de seus senhores, e
não a família. Deste modo, seus moradores deveriam se precaver de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


comportamentos que “maculassem” seu local de moradia. Isto não
significa que seus habitantes mantivessem uma convivência harmô-
nica, ou até mesmo próxima. Os casais, inclusive, não raro viviam
em quartos separados, freqüentemente em lados opostos da resi-
dência, mantendo considerável distância entre si.

Dois fatores contribuíram sobremaneira para a modificação dos cos-


tumes medievais e para a constituição da noção de intimidade no
ocidente. O primeiro foi a emergência de um “sentimento de famí-
lia”, e o segundo o surgimento da idéia de “amor romântico”, am-
bos engendrados e difundidos pela burguesia em ascensão. Numa
tentativa de privar-se do convívio com as classes populares, cuja
proximidade não mais suportava, a sociedade burguesia passou a
edificar uma série de valores ligados à família que se traduzia fun-
damentalmente num fortalecimento da união entre pais e filhos. O
novo modelo foi propiciado pelo fim da prática de enviar as crian- 91
ças para serem educadas em casa de estranhos, por volta dos sete
aos dezoito anos. Esta prática foi substituída pelo encaminhamento
dos menores às escolas, o que já não significava uma separação tão
profunda e duradoura entre genitores e seus descendentes. Desta
maneira, a família começou a se concentrar em torno no núcleo
formado por pais e filhos, gradualmente afastando-se de outros
laços de sociabilidade. A respeito desse sentimento de família, Ariés
comenta que

“Em toda a parte... [o sentimento de família] reforçaria a


intimidade da vida privada em detrimento das relações de
vizinhança, de amizades ou de tradições... A casa perdeu
o caráter de lugar público que possuía em certos casos no
século XVII, em favor do clube e do café, que, por sua vez,
se tornaram menos freqüentados. A vida profissional e a vida
familiar abafaram essa outra atividade, que outrora invadia
toda a vida: a atividade das relações sociais.” (Ariés, 1978,
p. 273-4).

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


Por outro lado, na sociedade medieval, tanto as classes baixas quan-
to as classes altas, por motivos diversos, não estabeleciam relações
matrimoniais mediante um sentimento de amor que unisse o casal,
no sentido que entendemos hoje. O contato entre os cônjuges só se
tornou mais estreito a partir da difusão da idéia de “amor romântico”.

A institucionalização do casamento por amor como algo desejável e


praticamente inevitável remonta à Europa do século XIII, em que a In-
glaterra se sobressai como primeiro país daquele continente a adotar
esta noção de união matrimonial. O romance de Shakespeare Romeu
e Julieta, originalmente publicado em 1957, surge, neste cenário,
como expressão da emergência dessa idéia, embora o escritor inglês
não tenha sido o primeiro nome da literatura européia a abordar essa
temática. Antes da versão shakespeareana, várias outras tinham sido
escritas. Luigi da Porto foi quem denominou Romeu e Julieta os jo-
92 vens que experimentam um intenso amor apesar da malquerença que
envolve suas famílias. Também foi ele quem, em sua obra editada por
volta de 1530, situou a história na cidade de Verona. Porém, foi a
obra de Bandello, publicada em 1554, refundida na versão francesa de
Pierre Boisteau e traduzida em verso para o inglês por Arthur Brooke
que, provavelmente, exerceu mais direta influência sobre Shakespea-
re (Pennafort, 1940, p. 203 apud Lobato, 1997, p. 143-175). Ainda
em relação ao caráter inevitável do casamento por amor, Macfarlane
(1990, p. 218) cita um caso específico de litígio matrimonial registra-
do em York no ano de 1407, em que a corte eclesiástica negou pedido
de anulação do casamento de Agnes Nakerer e John Kent, ocorrido
sem a aprovação paterna, utilizando a justificativa de que “a validade
do amor... vai contra a vontade dos pais”.

A propagação do ideal de amor romântico, portanto, alterou a con-


cepção de casamento, que passou a ser compreendido como um
evento que resulta do amor, quando a idéia que anteriormente pre-
dominava era que o amor resultava do casamento, o qual não pas-
sava de um mero contrato social e econômico entre famílias com
interesses em comum. Estas noções de “sentimento de família” e

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“amor romântico” se prestaram bem à delimitação dos espaços pú-
blico e privado e, neste último, da esfera íntima. A família patriarcal
burguesa transferiu da esfera pública para a esfera privada as rela-
ções afetivas, amorosas, corporais e sexuais. É preciso destacar que
a ascensão do modelo de família burguês, no século XVIII, coincide
com um período em que teve início uma rígida moral puritana im-
posta pela Igreja Católica. Não por acaso, o século XIX ficou conhe-
cido como “o século da repressão sexual”. A conseqüência direta
desta moral puritana religiosa foi um grande empenho para confinar
à intimidade, “mais especificamente ao sagrado leito conjugal” a
vida sexual dos casais (Mira, 1999, p. 7).

Neste sentido, percebemos como, na emergente sociedade moderna,


a noção de intimidade correspondia àquele espaço que se opunha
a outro que era público e que, mesmo situado no âmbito de um
território privado, possuía ainda determinados limites que o torna- 93
vam inacessível, mesmo a certos integrantes da família nuclear. Ao
mesmo tempo em que era construída a concepção de intimidade,
ia-se estabelecendo o lugar da mulher – o espaço privado e a esfera
íntima – e o lugar do homem – o espaço público, na mesma medida
em que se ia também delineando a condição de subalternidade do
sexo feminino ao sexo masculino. Portanto, o público e o privado
são aqui compreendidos a partir do que Sassaki (apud Álvares, 1997,
p. 64) denomina “diferença de gênero, em que o público está para
o masculino e o privado ao feminino”.

Hoje a sociedade contemporânea atravessa importantes reorienta-


ções sociais e culturais. Giddens refere-se a este movimento como
“apropriação reflexiva do conhecimento”, ressaltando acentuadas
mudanças dos vínculos experimentados na intimidade. Para o autor
britânico, a reflexividade

“é uma característica definidora de toda ação humana. [...]


consiste no fato de que as práticas sociais são constante-
mente examinadas e reformadas à luz de informação reno-

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


vada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitu-
tivamente seu caráter.” (Giddens, 1991, p. 43-5)

Para o autor, a ação reflexiva produz um conhecimento sistemático


sobre a vida social que pode favorecer seu deslocamento da fixidez
da tradição. Neste contexto, o lar e, por extensão, a intimidade,
já não seria mais “naturalmente” compreendido como o lugar de
dominação do macho sobre a fêmea, herança do modelo burguês
de família. A intimidade seria agora um cenário em transformação,
onde “a destradicionalização da afetividade deixa para trás as ver-
dades inquestionadas nos contextos da família, da comunidade e da
religião” (Fridman, 2002, p. 5).

Giddens explica este fenômeno como a produção de uma extensa


massa de indivíduos que se descobrem “desencaixados” de seus am-
94 bientes tradicionais de confiança e de seus sistemas de referência.
A “transformação da intimidade” seria, portanto, uma resultante do
“contingente do próprio distanciamento trazido pelos mecanismos
de desencaixe, combinado com a alteração dos ambientes de con-
fiança que eles pressupõem” (Giddens, 1991, p. 143). A partir desse
processo de desencaixe, ou seja, por meio do “deslocamento das re-
lações sociais de contextos locais de interação”, homens e mulheres
estariam se abrindo para uma redefinição de seus papéis, tanto no
espaço privado quanto no espaço público. Segundo Fridman (2002,
p. 5), “os indivíduos passam a se interessar pelo bom entendimento
de sua constituição emocional e pela comunicação dos afetos di-
rigida ao outro”. Isto ocorreria porque, na vida contemporânea, a
mesma ação reflexiva que propicia o desencaixe apontaria também
para o reencaixe através do “projeto reflexivo do eu”.

Ao formular o conceito de reencaixe, Giddens (1991, p. 83) refere-se


“à reapropriação ou remodelação de relações sociais desencaixadas de
forma a comprometê-las (embora parcial ou transitoriamente) a con-
dições locais de tempo e lugar”. Esta reapropriação ou remodelação
de relações sociais desencaixadas só é possível através do projeto re-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


flexivo de construção do eu. Noutras palavras, por meio de um “pro-
cesso mútuo de auto-revelação”. Neste processo, a confiança pessoal
funciona como um importante instrumento de reencaixe na medida
em que a confiança em pessoas não é algo dado ou ganho. É, pelo
contrário, algo conjuntamente construído, que requer uma associa-
ção entre o auto-exame e a abertura do indivíduo para o outro.

É nessa perspectiva que o sociólogo Anthony Giddens indica a


“transformação da intimidade” como a promessa de uma democra-
tização da esfera pessoal, visto que a “democratização das emoções”
é a conseqüência mais imediata da abertura para o outro. Nas pala-
vras do autor, a fonte estrutural desta promessa é a emergência do
relacionamento puro, expressão que ele usa para designar

“uma situação em que se entra em uma relação social apenas


pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada 95
pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que
só continua enquanto ambas as partes considerarem que ex-
traem dela satisfações suficientes, para cada uma individu-
almente, para nela permanecerem.” (Giddens, 1993, p. 68-9)

A ascensão da noção de relacionamento puro, nos dias atuais, apon-


taria então para a derrocada da noção de amor romântico, uma vez
que o desejo da vivência de um “relacionamento especial” prevalece-
ria agora sobre a busca da “pessoa ideal”. A idéia de relacionamento
puro romperia, portanto, com as idéias de “único” e “para sempre”
do amor romântico, ao mesmo tempo em que conferiria outro sig-
nificado à compreensão de intimidade. Na contemporaneidade, ela
não seria mais entendida como um mero espaço restrito na casa
para a prática de atividades interditadas à observação de estranhos
e determinados integrantes da família, e de submissão da mulher ao
homem. De acordo com Giddens (1993, p. 146), trata-se, acima de
tudo, de “uma questão de comunicação emocional, com os outros e
consigo mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal”. Logo,
intimidade hoje representaria um movimento de ir ao encontro do

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


outro para conhecer suas particularidades e potencialidades e tornar
disponíveis as suas próprias.

Desta forma, a realização do processo da intimidade pressuporia


confiança entre os envolvidos e “confiar em alguém significa re-
nunciar às oportunidades de controlá-lo ou de forçar as suas ativi-
dades dentro de algum molde particular” (Giddens, 1993, p. 155).
Este entendimento de confiança se opõe frontalmente ao modelo
de família patriarcal concebido pela sociedade burguesa, que não
reservou lugar à liberdade de escolha das diferentes trajetórias do
desenvolvimento que os parceiros podem e devem seguir, e que
condenou a mulher a uma evidente submissão moral e financeira
em relação ao homem. Na intimidade em transformação busca-se a
sedimentação do sentimento de autonomia entre os parceiros, ou
seja, “a condição de se relacionar com outras pessoas de um modo
96 igualitário” (Giddens, 1993, p. 206) para que as vozes de cada indi-
víduo sejam igualmente ouvidas e valorizadas.

Assim concebida, a autonomia conduz ao “respeito pelas capaci-


dades do outro”, elemento que se apresenta como essencial para a
equalização do poder no relacionamento, constituindo-se um ins-
trumento bloqueador de uma das expressões mais nocivas deste
poder: o abuso emocional.

“Sem respeito, os ouvidos ficam surdos, as atitudes ficam


amarguradas e finalmente você não pode conceber o que está
fazendo, vivendo com alguém tão incompetente, estúpido,
irresponsável, insensível, feio, malcheiroso, relaxado... Antes
de tudo, faz você ficar pensando em por que escolheu aquele
parceiro. ‘Eu devia estar fora de mim’.” (Crowther, 1988, p. 45)

Portanto, a reflexividade, para Giddens, revelaria-se como modifi-


cações nas formas de se comportar cotidianas que, se de um lado,
“produziu um mundo fora de controle”, favorecendo a dissemina-
ção de mecanismos de desencaixe, por outro lado, abriria possibili-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


dades para a construção de novos modos de vida mais emancipados,
por meio dos mecanismos de reencaixe.

Lahire, em direção contrária ao pensamento de Giddens, apresenta


uma teoria disposicionalista da ação em que a reflexividade figura
como a presença do passado do indivíduo nas suas práticas do pre-
sente. Tomando como base o pensamento do filósofo Hume ([1740]
2002) segundo o qual as idéias (“percepções fracas”) originam-se de
impressões (“percepções vivas e fortes”) e “que nós não podemos ja-
mais pensar em alguma coisa que nunca vimos ou sentimos em nosso
espírito”, Lahire (2010)traz o conceito de reflexividade histórica, evi-
denciando o aspecto das disposições de forma significativa, o que não
o faz Giddens. A presença do passado no presente ou, noutras pala-
vras, a atualização do passado no presente, concretizar-se-ia por um
mecanismo do “costume”, ou seja, por uma disposição mental forma-
da pouco a pouco pela internalização de uma experiência vivenciada 97
repetidas vezes. Lahire (1995) destaca a importância da reflexibilidade
histórica no mundo contemporâneo ao enxergar as ações humanas
impregnadas por seus diferentes graus na prática cotidiana. Para o
sociólogo francês, ela está presente nas ações mais comuns e corri-
queiras que perpassam a organização mais ou menos planejada das
tarefas diárias, a exemplo da simples relação do sujeito com a escrita e
a ordem gramatical, que se transmite nas listas de compra. É o costu-
me e não a razão, portanto, o mapa norteador da vida. É ele que faz
o indivíduo supor que o futuro será conforme o passado, o que lhe
confere uma sensação de segurança nas águas turvas da existência.

Partindo de uma releitura do conceito de habitus de Pierre Bourdieu,


Lahire propõe, desta maneira, uma “sociologia das propriedades dis-
posicionais e contextuais” que dê conta da “apreensão da variação so-
cial dos comportamentos individuais segundo os contextos de ação”,
a partir do olhar sobre o indivíduo como um produto complexo de
múltiplos processos de socialização em que “suas relações, engaja-
mentos, pertencimentos e propriedades” (Lahire, 2002, p. 2) se ma-
nifestam em situações de oposições, complementaridades e mesmo

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


contradições na pluralidade de elementos e dimensões que compõem
a sua cultura. Logo, só é possível compreender os comportamentos
ou as práticas no cruzamento dos limites contextuais (experiências do
presente) com as disposições incorporadas (experiências do passado)
que, deve-se ressaltar, não são homogêneas.

Neste sentido, a proposta de Lahire significa um avanço em relação


ao conceito bourdieusiano de habitus ao defender a necessidade
de se demonstrar concretamente, por meio de pesquisas empíricas,
como as disposições são transmitidas nas práticas cotidianas. Lahi-
re não nega a existência de um “sistema de disposições duráveis e
transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como
estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e orga-
nizadores de práticas e de representações” (Bourdieu, 1980). Pelo
contrário, considera “a teoria da prática e do habitus desenvolvida
98 por Pierre Bourdieu uma das orientações teóricas mais instigantes e
mais complexas das ciências sociais” (Lahire, 1998), e aponta como
a maior falha da teoria o fato de o habitus, onipresente e onipoten-
te, estar ao mesmo tempo em toda e em nenhuma parte e não se
saber como ele é transmitido.

“Bernard Lahire utiliza a metáfora do “social dobrado ou des-


dobrado” para configurar a complexidade da realidade social.
O social desdobrado corresponde à versão abstrata das singu-
laridades individuais dentro de certas regularidades e invarian-
tes sociais e históricas, enquanto a vertente dobrada é a parte
social que todo indivíduo tem incorporada dentro de si, que
se apresenta “sob a forma de combinações nuançadas e con-
cretas das propriedades contextuais e disposicionais” (Lahire,
2002, p. 3). Nesse sentido, ele não propõe a substituição de
um tipo de visão sociológica por outra, mas sua harmonização
no sentido de melhor apreender a complexidade social, que
inclui necessariamente o indivíduo.” (Xavier de Brito, 2002)

Por exemplo, “a reflexividade histórica ajuda a conscientizar-se do


fato de que a desigualdade é indissociável da crença coletiva na le-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


gitimidade (alto grau desejabilidade coletiva) de um objeto, de um
saber ou de uma prática”. (Lahire, 2003). Deste modo, a diferença
natural, de origem biológica, entre homens e mulheres transforma-
da em desigualdade de gênero – tema central deste texto – passa
necessariamente por um processo social de legitimidade construída
por estes mesmos homens e mulheres a partir de um conjunto de
crenças compartilhadas resultantes de complexas, múltiplas e indi-
viduais experiências passadas repetidas que se manifestam em cos-
tumes que, por sua vez, orientam suas práticas no presente.

Assim, uma resposta mais segura quanto à configuração atual das


relações sociais entre homens e mulheres, homens e homens, mu-
lheres e mulheres e tendências emancipatórias e simétricas nas rela-
ções de gênero requer estudos empíricos que investiguem criterio-
samente os contextos de socialização; esclareçam como se formam
e se transmitem as disposições; confrontem supostas predisposições 99
naturais e disposições sociais; esclareçam se há dispositivos sociais
que determinam os modos de perceber, pensar, sentir, interpretar e
agir dos indivíduos; analisem se os esquemas de pensamento vão
se apagando progressivamente podendo mesmo desaparecer com-
pletamente por falta de atualização num determinado intervalo de
tempo; enfim, busquem evidenciar a gênese, ou seja, a origem das
disposições e como elas se articulam na prática dos atores sociais.
Explicações que prescindam do rigor sociológico que a análise das
diferenças e das desigualdades exige, ainda que imbuídas dos me-
lhores propósitos, carregam consigo o risco da parcialidade, da su-
perficialidade e das interpretações limitadas e enviesadas.

A proposta deste trabalho foi apontar reflexões em torno da noção de


intimidade, que perpassa as relações entre os gêneros, desenvolvida
por diferentes autores; sua imbricação com a reflexividade, um con-
ceito que nos parece fundamental para a compreensão da comple-
xidade dos processos de socialização no mundo contemporâneo; e a
premência de se investir na consolidação de uma sociologia empírica
capaz de dar conta de questões que, desde longe, nos desafiam.

Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


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Socialização e intimidade: considerações sobre os modos de vida de homens e mulheres


O campo, o mundo e o jogo:
o universo literário em questão1
Bernard Lahire

103

O objetivo da minha proposta consistirá em apoiar-me nos resultados de


uma pesquisa realizada na França sobre os escritores2, para apresentar
as propriedades mais fundamentais do universo literário e para discu-
tir sobre a maneira pela qual os sociólogos descreveram e teorizaram
os microcosmos sociais que compõem as sociedades complexas. Para
isso, retomarei as noções de « campo » (Bourdieu) e de « mundo »
(Becker e Strauss) e explicarei as razões que me levaram a falar de «
jogo literário » no lugar de « campo » ou « mundo » literário.

Ao discutir estas teorias a partir de dados empíricos, espero ao mesmo


tempo compreender as especificidades do universo literário e transmi-
tir uma maneira de discutir os conceitos e de utilizá-los. O sociólogo

1 Tradução de Lília Junqueira.Texto da conferência realizada na Universidade Federal de Pernambuco


em 3 de novembro de 2009. Uma versão foi publicada na França com o título « Le champ et le jeu : la
spécificité de l’univers littéraire en question » em MARTIN, Jean Pierre (org), Bourdieu et la litératture,
Nantes, Éditions Cécile Defaut, 2010, p. 143-154.
2 B. LAHIRE, La Condition littéraire. La double vie des écrivains, Paris, Éditions la Découverte, Labo-
ratoire des sciences sociales, 2006.

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


não deve tomar os conceitos senão como instrumentos. Ninguém
pensaria, na vida cotidiana, em pregar um prego com uma chave de
fenda. Ora, muitos pesquisadores em ciências sociais cometem, infe-
lizmente, este tipo de erro sem nem mesmo se dar conta.

Os conceitos de campo, de mundo ou de jogo são ligados a uma lon-


ga tradição de reflexões sociológicas e antropológicas sobre a dife-
renciação social das atividades ou das funções. Em Marx, Durkheim
ou Weber, encontramos elementos de reflexão sobre a evolução das
sociedades que são marcadas por uma tendência plurisecular a ir,
como dizia Herbert Spencer, do « homogêneo » para o « hete-
rogêneo ». As funções que eram no início indistintas (econômica,
política, jurídica, religiosa, ética, estética, científica, etc.) se sepa-
ram progressivamente e se organizam por vezes em microcosmos
sociais específicos que tem sua própria lei, sua lógica específica.
104 Nas reflexões de Durkheim sobre a divisão do trabalho, como nas de
Weber sobre as « esferas de atividade » e sua « legalidade específica
», encontramos o mesmo cuidado de compreender o processo de
diferenciação de atividades e funções assim como o funcionamento
dos microcosmos que resultam deste processo de diferenciação.

Campo, mundo e jogo

A teoria dos campos é um ganho científico incontornável da socio-


logia. O campo é definido como um microcosmo relativamente au-
tônomo no seio de um macrocosmo que representa o espaço social
global. Cada campo possui as regras do jogo e os interesses espe-
cíficos, irredutíveis às regras do jogo e interesses dos outros cam-
pos, e constitui um espaço diferenciado e hierarquizado de posições.
Este universo é um espaço de lutas entre os diferentes agentes e/
ou instituições que procuram apropriar-se do capital específico do
campo ou a redefinir este capital em seu próprio benefício. Estando
o capital desigualmente distribuído no seio do campo, existem por-
tanto, dominantes e dominados que lançam mão de estratégias de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


conservação ou de estratégias de subversão do estado das relações
de força historicamente existentes. Somente aqueles que constitu-
íram as disposições adaptadas ao campo estão em condições de
perceber todos os interesses e de crer na importância do jogo. Apli-
cada ao universo literário, a teoria dos campos permite estudar as
posições respectivas das diferentes editoras e dos diferentes autores,
as hierarquias e legitimidades literárias relativas, as lutas entre os
pretendentes ao status de grande escritor e suas estratégias. Ela per-
mite, notadamente, estabelecer uma diferença fundamental entre o
« subcampo de produção restrita » (o da literatura mais « pura », cuja
venda é lenta, e que se dirige a um pequeno grupo de conhecedores)
e um « subcampo de grande produção » (com suas produções mais
comerciais, destinadas ao grande público).

Entretanto, a teoria dos campos comporta certos limites para pensar o


universo literário. Apesar do fato de que ele seja altamente valorizado 105
simbólicamente e que possa engendrar vocações e investimentos pes-
soais intensos, o universo literário é um universo globalmente muito
pouco profissionalizado e pouco remunerador. Ele reúne, assim, uma
maioria de indivíduos que estão inscritos, aliás, por razões econômi-
cas, em outros universos profissionais. Pressionados, muito frequen-
temente, a exercer um « segundo emprego », os participantes do jogo
literário são mais próximos dos jogadores – que saem regularmente
do jogo para « ganhar a vida » fora dele – do que « agentes » estáveis
de um campo. É por esta razão, sobretudo, que preferi falar, no livro
A condição literária, a dupla vida dos escritores, de « jogo literário
», e não de « campo literário ». O conceito de « jogo literário » de-
signa um campo secundário, muito diferente em seu funcionamento
dos grandes campos de origem – campos acadêmicos e científicos,
notadamente – que dispõem dos meios econômicos de converter os
indivívuos participantes em agentes permanentes e de levá-los assim,
a colocar o essencial de sua energia a seu serviço.

Havia um interesse de entender a especificidade do universo lite-


rário enquanto universo pouco remunerador e muito pouco pro-

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


fissionalizado, mas que , no entanto, necessita de muito tempo
para ser exercido, assim como a situação singular de seus parti-
cipantes. Os escritores são frequentemente conduzidos a efetuar
permanentes idas e vindas e a dividir seu tempo entre o universo
literário e o universo ao qual pertence seu « segundo emprego »,
sem mesmo falar das cirunstãncias entre estes dois universos e o
universo conjugal ou familiar. Os escritores vivem grandes frustra-
ções, obrigados que são a colocar regularmente em latência suas
disposições mais fortemente constituídas, e que se contrapõem a
uma pluralidade problemática de investimentos, seus engajamen-
tos literários, para-literários e extra-literários entrando em concor-
rência e às vezes, mesmo em contradição.

Diferentemente de Pierre Bourdieu, que utiliza a metáfora do jogo


como uma simples metáfora pedagógica de fazer entender o que é
106 um campo, eu emprestei a metáfora do « jogo literário » e explorei
as suas potencialidades (apoiando-me sobre a relação que a palavra
tem com a de « trabalho » : trabalho (remunerador)/jogo (distrações
desinteressadas), atividade principal/atividade secundária, atividade
séria/atividade frívola, etc.) com o objetivo de diferenciar tipos de
universos que oferecem condições de vida muito diferentes a seus
respectivos participantes. Fazendo como se o universo literário fosse
um campo como os outros, os utilisadores da teoria dos campos
não tomaram consciência do fato de que a redução dos indivíduos
a seu estatuto de « agentes dos campos literários » era ainda bem
mais problemática do que em outros universos3, na medida em que
estes indivíduos se distinguiam, por razões ligadas às propriedades
do universo em questão, pela sua frequente vida dupla. Um dos
interesses científicos desta obra reside assim, na tentativa de espe-
cificação da teoria dos campos que ela propõe. Porque pareceu-me
útil designar diferentemente os universos sociais que se distinguem

3 Apontei, aliás, os problemas de redução dos atores sociais à seu « ser como membro do campo).
Cf. L’Homme pluriel, op. cit. et « Champ, hors-champ, contrechamp », in B. LAHIRE (sous la dir.), Le
Travail sociologique de Pierre Bourdieu. Dettes et critiques, La Découverte, Paris, 1999, p. 23-57.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tanto do ponto de vista das relações que eles tem com o Estado e
o mercado, como do ponto de vista da natureza das relações com
seus públicos respectivos, ou do ponto de vista das condições de
vida de seus membros. O escritor de « segundo emprego » constitui
um belo caso de múltiplo pertencimento que não deixa de colocar
um problema, portanto, para a teoria dos campos (Pierre Bourdieu).

Por sua vez, a teoria dos mundos da arte considerou a arte como
produto de um trabalho coletivo e colocou prioritáriamente o foco
sobre as « formas de cooperação » e sobre as « convenções » que tor-
nam possível a coordenação de diferentes participantes, e não sobre
as obras ou sobre os criadores. O universo que desenha a noção de «
mundo da arte » é mais amplo que aquela definida pelo campo : se
Pierre Bourdieu coloca claramente no centro do campo os agentes e
instituições em luta pela apropriação do capital específico ao campo
e exclui expressamente todos os que não concorrem, mas que so- 107
mente estão lá para tornar possíveis estas competições, H.S. Becker
considera, por exemplo, que os fabricantes de instrumentos de mú-
sica ou de papel de desenho, como o conjunto dos empregados de
uma editora « são parte integrante do mundo da arte considerada
». Nesta perspectiva, o mundo literário integra, portanto, todos os
que se designa comumente como os atores da vida literária: escrito-
res e editores, mas também pessoal das editoras (leitores, revisores,
assessores de imprensa, etc.), trabalhadores das gráficas, difusores,
livreiros, bibliotecários, representantes do Centro nacional do livro
ou dos centros regionais de letras, etc. H.S. Becker os considera to-
dos como participantes da fabricação coletiva da obra e de seu valor.
Privilegiando o estudo das formas de cooperação e de coordenação
assim como as convenções a partir das quais elas se organizam, ele
se desvia dos indivíduos criadores, e negligencia, consequentemen-
te, o fato de que eles não são ao todo definíveis por seus engaja-
mentos no seio do mundo em questão.

Minha abordagem se distingue também e sobretudo do programa


estruturalista que estuda a literatura, as obras literárias isoladas e

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


tratadas como sistemas fechados ou considerados dentro de uma
rede de interdependências, fora de toda consideração sobre os escri-
tores e sobre as condições práticas de suas criações. Esta idéia é co-
nhecida pelo menos desde o Contre Sainte-Beuve de Marcel Proust
que critica o « método » que consiste « a não separar o homem da
obra »4: a obra tem suas razões internas, ou propriamente literárias,
que não podem em nenhum caso serem ligadas a, ou explicadas
pela biografia de seu autor. Todas as formas de leitura interna das
obras – formalismo russo, New Criticism anglo-américano, estru-
turalismo literário francês, etc. – querem ignorar os autores : suas
origens sociais e sua formação escolar, os múltiplos quadros sociais
de suas experiências pessoais, o tempo de trabalho que eles po-
dem consagrar a suas obras, as pressões materiais que os levam a
escrever rápidamente (para ganhar a vida) ou, ao contrário, a dimi-
nuir o ritmo de publicação por falta de tempo, a natureza de suas
108 atividades profissionais extra-literárias, as pressões econômicas que
pesam, às vezes sobre suas « escolhas » de escrita, etc. Que as obras
uma vez publicadas possam dar lugar a comentários e análises in-
dependentemente de suas gêneses e condições múltiplas de criação,
é uma coisa. Mas que se desqualifique, a priori, toda investigação
que visaria a estabelecer pontos de ligação entre as obras e seus
autores, é outra. A obra conclui formulando uma série de hipóteses
concernentes às ligações entre propriedade das obras literárias, as
propriedades de seus criadores e as propriedades dos contextos prá-
ticos (condições de escrita) e literários (estado do jogo literário) de
criação das obras5.

4 M. PROUST, Contre Sainte-Beuve precedido de Pastiches et mélanges e seguido de Essais et articles,


Gallimard, Paris, 1971.
5 Mesmo se Pierre Bourdieu afirma, com a noção de campo, « ultrapassar a oposição entre leitura
interna e análise externa sem nada perder dos ganhos e das exigências destas duas abordagens,
tradicionalmente percebidas como inconciliáveis » (Cf. P. BOURDIEU, Les Règles de l’art. Genèse et
structure du camp littéraire, Seuil, Paris, 1992,p. 288), nenhuma pesquisa empírica veio a comprovar,
de fato, tal ultrapassagem. Sabendo que uma parte do que é literáriamente criado é o produto de uma
tradução-transfiguração literária de experiências extra-literárias, compreende-se facilmente porque a
noção de « campo » não pode cobrir o conjunto do problema.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Para ir ao que é essencial, a posição das grandes opções teóricas
com relação à questão dos criadores poderia se resumir assim : o
estruturalismo é « a morte do homem » (seu apagamento na ordem
dos materiais a interpretar) ; a teoria beckeriana dos mundos da arte
é a focalização sobre os tipos de atividade em detrimento dos indi-
víduos que os praticam ; a teoria dos campos é a redução do homem
ao seu « ser um membro do campo ». A sociologia, tal como eu a
concebo, é uma ciência preocupada em articular as disposições so-
ciais incorporadas e os múltiplos contextos de sua atualização; uma
ciência que desenvolve o estudo do mundo social interrogando-se
notadamente sobre as variações intra individuais dos comportamen-
tos. Interessando-se pelo indivíduo e pelos seus múltiplos pertenci-
mentos sociais passados e presentes, ela permite, ao mesmo tempo,
esclarecer as práticas dos criadores, cuidando para não reduzi-los à
sua função de criadores e a sua posição no universo da criação.
109

O jogo literário

Percebe-se que, frequentemente, é somente por um formidável abu-


so de linguagem que se qualifica as pessoas que escrevem e publi-
cam como « escritores », da mesma maneira que se fala em « médi-
cos », « professores », « operários », « engenheiros », de « patrões »
ou de « policiais ». Efetivamente, o substantivo « escritor » pode dar
a ilusão de remeter ao mesmo tipo de situação econômica e social
que os demais substantivos designando os « tipos de emprego » ou
as « profissões », enquanto que o jogo literário se caracteriza por um
grau muito alto de incertezas tanto estéticas quanto econômicas.

Em primeiro lugar, diferentemente de numerosos outros domínios


artísticos maiores (música, pintura, dança, teatro, comédia, cinema-
tografia ou fotografia), o jogo literário não dispõe de nenhuma escola
especializada. Não há « escolas de Belas Letras », da mesma forma
que existem escolas de Belas Artes ou consevatórios de música, o que
somente contribui para o mito do escritor incriado. Não há formação,

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


e consequentemente, também não há o direito de entrada fomal no
jogo literário (se compararmos com universos primos onde o ensimo
universitário e a tese são condições de entrada no universo em ques-
tão), mas há a manutenção, durante muito tempo de um sentimento
de incerteza quanto à sua existência enquanto escritor.

Da mesma forma, não existem nem progressões nítidas ou previ-


síveis (com etapas mais ou menos formalmente definidas) no que
seria bem intrépido chamar de « carreira literária », nem meca-
nismo institucional de estabilização ou de cristalização das eta-
pas concluídas. Diferentemente de um universitário que não pode
voltar atrás após ter passado de um grau ou escala a outro, um
escritor pode passar de um início de percurso tumultuado junto
à Gallimard ou ao Seuil para um pequeno editor regional. Um
degrau de notoriedade atingido não protege, consequentemente,
110 jamais completamente das flutuações do mercado (possibilidade
de diminuição do leitorado) ou daquelas do mundo editorial (pos-
sibilidade de recusa das pressões do mercado), como das recepções
variáveis da crítica. Só talvez, os grandes prêmios literários contri-
buem para estabilizar, pelo menos durante alguns anos, a situação
econômica do escritor, assegurando um leitorado suficientemente
extenso. Mas isto nunca é certo.

O jogo literário é, aliás, um universo de contornos indefinidos, com


uma multiplicidade de editoras, de modalidades de edição (do con-
trato por conta do editor à auto-edição, passando por contratos em
meia conta ou por conta do autor), de formas de reconhecimen-
to (dos maiores prêmios nacionais ou internacionais aos pequenos
concursos literários, passando pelos pequenos prêmios nacionais,
os grandes prêmios regionais e os pequenos prêmios locais) ou de
visibilidade pública (os maiores salões internacionais do livro aos
pequenos salões, da imprensa nacional à imprensa local, dos mais
prestigiosos aos mais modestos convites a conferências, leituras pú-
blicas, lançamentos, etc.)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


A mesma dificuldade em falar de « profissão literária » é devida ain-
da ao fato que a atividade literária não dá frequentemente lugar ao
exercício da dedicação exclusiva ( isto é verdade mesmo para uma
grande parte daqueles que atingiram um alto nível de reconheci-
mento literário), nem a rendas regulares – e principais – retiradas
desta atividade literária. Se nos apoiarmos sobre a definição webe-
riana da « profissão »6, a atividade de escritor não pode, em nenhum
caso ser definida como tal, já que as chances de ganhos são reduzi-
das e jamais regulares.

Enfim, a dificuldade suplementar que podem ter os escritores de


considerar a escritura como um « verdadeiro trabalho » ou um «
emprego como os outros » é sem dúvida ligado ao caráter « pessoal
», « íntimo » e « privado » que reveste, para muitos, a escrita literá-
ria. Escrevendo, os autores prolongam frequentemente, um prática
infantil ou adolescente que é construtiva de sua intimidade. Eles 111
escrevem geralmente em casa, no interior de um espaço pessoal,
longe de toda a coletividade do trabalho, de toda relação hierárqui-
ca direta e de toda obrigação de horário; eles escrevem frequente-
mente durante o tempo que é geralmente associado às práticas de
lazer pessoal e não ao trabalho (finais de semana e férias); e enfim,
eles mantém sempre relações pessoais e quase familiares com seus
editores mais do que relações econômicamente racionais.

Os universos de produção cultural se diferenciam, portanto, segun-


do seu grau de profissionalização ou de institucionalização. Assim,
há incomparávelmente menos incerteza e desacordos em matéria de
atribuição do estatuto de « físico » ou de « advogado » do que em
matéria de reconhecimento do escritor e a renda regular dos pri-
meiros contribue fortemente a cristalizar um estatuto profissional já
bem definido pelas formações.

6 « Chamaremos de (« emprego » ou) « profissão » (Beruf) a especificação, a especialização e a com-


binação de prestações que permitem a uma pessoa assegurar chances permanentes de provimento e
de ganhos » M. WEBER, Économie et société. 1. Les catégories de la sociologie, Agora Pocket, Paris,
1995, p. 201.

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


Desta situação singular do jogo literário decorrem dois grandes pa-
radoxos:

1º paradoxo: aqueles que estão no interior da economia do livro – os


escritores – geralmente não são considerados entre os que chamamos
« profissionais do livro » (os livreiros, editores, bibliotecários, etc.).

2º paradoxo: aqueles que podemos considerar como os maiores


profissionais de um ponto de vista estritamente literário, ou seja,
aqueles que colocam mais arte e invenção no que fazem, tem muito
pouca chance de serem considerados entre os maiores profissionais
de um ponto de vista econômico, podendo viver de sua renda de
publicação. A pesquisa literária inovadora se faz, na maioria das
vezes, ao preço de um corte temporário com o gosto do público.

112 A situação de vida dupla que vive a grande maioria dos escritores
não é nova nem ocasional. Ela é pluri-secular e estrutural. O modelo
flaubertiano de escritor rentista concentrado em sua obra e somente
em sua obra é um modelo pouco operacional para pensar o jogo
literário em seu conjunto. Flaubert, solteiro e sem filhos, rentista,
sem segundo emprego, « o homem-pluma » (como ele dizia de si
mesmo) cuja existência cotidiana tende a se resumir a sua escrita
(seja ela literária ou epistolar) e cuja força das disposições literárias
lhe faz viver a literatura como seu elemento natural, é a excessão à
regra do acúmulo de atividades.

O modelo daqueles que, como Flaubert, podem se entregar « de


corpo e alma » ao seu trabalho, que investem nele um tempo e uma
energia julgados por vezes « pouco razoáveis » por todos aqueles
cujos investimentos na atividade de escrita são menos intensos, é
consequentemente também o modelo de atores que abandonam
ou desinvestem de todos os outros domínios da existência (familiar,
política, esportiva, cultural, etc.). O alto grau de investimento supõe
portanto que seja administrada (e assumida) esta relação com os
outros universos sociais. Tomando como modelo apenas os auto-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


res que restringiram suas relações de sociabilidade extra-literárias,
limitadas suas relações de sociabilidade familiar, tendo delegado a
outros suas tarefas domésticas cotidianas, encontrou um compa-
nheiro « compreensivo » (e mesmo, às vezes, que ajuda financeira e
moralmente) ou optou pelo celibato para dedicar todo o seu tempo
à literatura, veríamos o jogo literário por um prisma limitado e não
perceberíamos que a grande maioria dos atores não jogam o jogo
em condições tão « ideais » ou, em todo caso, « favoráveis » ao in-
vestimento quase total no jogo.

Autonomia e especifidade

A idéia de « autonomia relativa » constituiu, com toda evidência, um


avanço científico, um progresso contra as explicações por grandes
determinismos sociais (de classe). Mas os pesquisadores frequente- 113
mente passaram fácilmente da autonomia relativa à autonomização
absoluta e confundiram « autonomia » e « especificidade ». Pode-
mos também lamentar a explicação reducionista das práticas ou das
produções (obras, discursos, etc.) pelo campo: tudo se explicaria
pela posição no campo; a verdade de toda prática no seio do campo
seria inteira a ser buscada dentro dos limites do campo e os atores
sociais são assim reduzidos a seu « ser como membro do campo »7. O
avanço científico que consistia em especificar certos determinantes
socias que pesam sobre as condutas, passaram a um fechamento
determinista nos limites restritos do campo. O pesquisador esquece,
então, que a vida fora do campo (anterior à entrada no campo – na
família, na escola e em toda uma série de outros quadros de sociali-
zação – é paralela à vida no campo) é importante para compreender
o que está em jogo no interior do campo.

A crítica das derivas reducionistas da teoria dos campos é ainda


mais pertinente quando estamos diante de um jogo, no sentido de «

7 Aspas da tradutora.

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


campo secundário », pouco remunerador, pouco institucionalizado
e pouco profissionalizado. Tratar os artistas como seres definidos
somente por suas propriedades artísticas, é cometer um erro de abs-
tração. Levar em consideração os espaços e tempos fora do campo
recoloca parcialmente em questão a noção de autonomia, à qual
podemos preferir à de especificidade: o que se joga no jogo literário
é específico (e irredutível ao que se joga, por exemplo, no universo
filosófico e sociológico), mas em nenhum caso separável do que
vivem os escritores do jogo.

Mostrando que o que se passa no exterior do jogo com os atores


tem consequências sobre o que os atores fazem (e criam) no jogo,
apontamos inevitávelmente o risco de ver a noção de autonomia
interditar toda investigação sobre a importância das experiências
extra-literárias ou para- literárias no processo de criação.
114
Me contentarei aqui, para concluir, de mencionar alguns elementos
que provam a existência de tais efeitos no caso de Franz Kafka8:

1) A situação com relação ao « segundo emprego » (e.g. Kafka


é jurista numa companhia de seguros contra acidentes de tra-
balho) explica os ritmos mais ou menos rápidos ou lentos de
criação, e por vezes até mesmo o gênero praticado (a novela
ou o poema podendo impor-se no caso de tempos de criação
extremamente limitados).

2) O « segundo emprego » pode fornecer os quadros narrativos,


os assuntos, os temas ou as linguagens ao escritor. Não é, assim,
por acaso que Kafka-jurista usa a metáfora da linguagem e do
mundo jurídico (O Veredito, O Processo)

8 Consagrei recentemente um estudo à obra de Franz Kafka (Franz Kafka. Éléments pour une théorie
de la création littéraire, Paris, La Découverte, Laboratoire des sciences sociales, 2010). Nesta obra,
proponho uma maneira sociológica de estudar precisamente a obra de criação literária que coloca em
evidência, em contraste, todos os limites do conceito de « campo ».

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


3) O « segundo emprego », como a formação escolar que o con-
duz, podem ter uma importância na produção de um estilo de
escrita. Numerosos comentadores sublinharam, assim, o estilo
ascético (despojado, simples, rigoroso) de Kafka. Ora, seu estilo
é marcado pelo estilo de escrita e de raciocínio jurídico. Kafka
pode mesmo construir curtas narrativas da forma que um jurista
o faria, tratando de um caso. Igualmente seus personagens (re-
duzidos ás vezes a letras – A.,B.,C. ou K. – como em certos textos
jurídicos) « raciocinam » frequentemente, tendo em vista as múl-
tiplas possibilidades que se abrem a eles, as múltiplas interpreta-
ções possíveis de uma situação ou as múltiplas soluções possíveis
para um problema, argumentando e contra-argumentando.

4) Finalmente, é impossível de compreender a obra de Kafka


sem reconstruir suas experiências mais recorrentes e marcantes
nos diferentes quadros de sua socialização (quadros familiar, es- 115
colar, de amizade, sentimental, profissional, político, etc.) Por-
que Kafka, como muitos outros romancistas, transpõe (o que
supõe uma transformação e uma recodificação específicas) sob
uma forma específicamente literária, os elementos de sua pro-
blemática existencial.

5) Todos estes elementos, e alguns outros ainda que o tempo


de uma conferência não me permite expor, tendem a provar que
o universo literário é expecífico (não escrevemos literatura da
mesma forma que escrevemos filosofia ou direito) mas que ele
não pode ser tratado como um universo autônomo deixando de
lado o estudo das experiências extra-literárias (fora do jogo) dos
criadores. Bourdieu pensava que a obra (seus temas e sua forma)
não podiam ser compreendidos a não ser a partir da posição de
seu autor no « campo literário ». O estudo preciso do caso do
Kafka é suficiente para mostrar que é impossível proceder desta
maneira (ou apoiar-se sobre um tal programa de pesquisa) para
explicar suficientemente as obras.

O campo, o mundo e o jogo: o universo literário em questão


Graciliano Ramos e o universo da escrita:
informações biográficas e processo criativo
em Caetés
João Paulo Lima e Silva

117

Introdução

Os primeiros romances de Graciliano Ramos foram recebidos por al-


guns autores da época com grande desconfiança. Atribuímos a
este fato a maior centralidade, na crítica destes, do estudo do re-
gistro de leitura realista, a nosso entender, muito parecido com o
que vemos em nossos dias nas leituras mais banais das telenovelas,
em que os espectadores atribuem valor às tramas ali encenadas
porque elas “parecem com a realidade”. Tipo de leitura que – con-
trastado com a perspectiva da crítica que tentar fugir às diversas
formas de referencialismo – faz perceber uma tensão entre dois
modos sociológicos de lidar com os intelectuais e seus produtos:
um regido pelo procedimento de seleção crítica e outro preocu-
pado com a reconstrução fiel do modo de leitura daqueles que se
pronunciaram a respeito da obra de Graciliano Ramos na época de
sua publicação.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Decorre daí o nosso esforço para, uma vez identificado o problema
de postura analítica, responder à pergunta: o que fazer com as infor-
mações como as que indicam que Graciliano escreveu quase todos os
seus romances em condições precárias de trabalho intelectual? Quere-
mos crer que esse dado concreto de sua condição de escritor1 tem pa-
pel explicativo decisivo em sua obra. Pareceu-nos evidente que suas
condições de trabalho intelectual têm algo a dizer sobre sua maneira
de escrever seus romances da forma como escreveu. Nesse sentido,
apesar de todo o lugar comum da crítica que sempre apontou para
união entre a vida e a obra do autor, não encontramos, na tradição
crítica, trabalhos que tentassem fazer, de maneira sistemática, de fato
a exegese das obras utilizando como fonte primária das interpreta-
ções as informações de cunho biográfico.

Assim, a vida de Graciliano foi sempre tratada de maneira parado-


118 xalmente separada da obra, principalmente quando o assunto era
seu processo criativo. Daí nosso esforço de crítica sociológica ao
procedimento da crítica literária só poder ser perfeitamente enten-
dido na medida em que se revela esse aparato reprodutor da visão
que traduz essa apartação entre vida e obra.

Cabe-nos, nesta segunda parte, logicamente, tratar a obra de Gra-


ciliano Ramos levando em conta essa interligação entre as informa-
ções biográficas (lidas a partir do recorte de uma sociologia disposi-

1 Na falta de estudos quantitativos que revelem como de fato vivem e trabalham os escritores no Brasil
de hoje, estudamos a condição literária de Graciliano tomando seu caso como exemplar de uma situação
estrutural que parece ser de extrema fragilidade e insegurança, a profissão de escritor. Os escritores são
agentes centrais no universo literário, mas aparecem frequentemente, como o caso de Graciliano eviden-
cia, como as figuras mais frágeis na engrenagem econômica das profissões ligadas ao livro. Mesmo em
países como a França, onde existe a consolidação do público leitor e dos outros elementos da autono-
mização do campo literário, diferentemente de outras profissões mais estáveis, como a de médico, a de
professor ou a de empresário, os escritores vivem em uma situação ambivalente, obrigados a acumular
a atividade literária e um outro emprego que eles chamam de “second métier”. É interessante ressaltar
que, apesar de se chamar “second métier”, normalmente a atividade não-literária é a principal do ponto
de vista da remuneração. Como consequência prática dessa ambivalência, os escritores alternam com
relativa frequência o tempo de trabalho de escrita com as atividades extra-literárias. Para ler mais a esse
respeito ver La condition littéraire: la double vie des écrivains (Lahire, 2006). Sobre as condições de
trabalho intelectual no Brasil, ver (Broca, 2004); (Miceli, 2001a).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


cionalista) e o processo criativo de seus romances. Faremos análises,
nesse sentido, buscando captar direta e indiretamente aquilo que
vemos ser condição para o entendimento da obra do autor de Cae-
tés: por um lado, a objetivação da condição de intelectual que ele
realiza em suas obras e, por outro lado, a objetivação de sua condi-
ção existencial. Uma dupla objetivação que trará contornos carac-
terísticos aos seus romances. A primeira objetivação porque, sendo
condição real e concreta de sua vida como escritor, serviu-lhe, em
nosso entendimento, como matéria-prima de construção de proble-
mática narrativa, de conteúdo. Temos, como bom exemplo disso,
Caetés e o seu protagonista, João Valério. Em suma, sua própria
condição precária de escritor serviu-lhe de apoio para a construção
de seus personagens e foi posta em cena na maioria de seus roman-
ces. A segunda objetivação teve função similar em seus romances,
mas difere da primeira por nos parecer que Graciliano usou também
a literatura como elemento terapêutico, fazendo do trabalho literá- 119
rio, tal como Paulo Honório fez em relação a Madalena, um elemen-
to de auto-superação, um esforço de redenção através da escrita. O
melhor exemplo disso na obra é a própria relação do protagonista
de São Bernardo com a escrita.

Nesse sentido, o trabalho de objetivação de si, feito através da


construção de sua obra, caracteriza-se como elemento central de
sua argumentação romanesca. Acreditamos que, fazendo do de-
feito qualidade, Graciliano Ramos vai por a favor de si e de seus
romances a problemática das próprias condições de trabalho in-
telectual, construindo protagonistas que, ao evoluírem na trama
das histórias de suas vidas, vão também revelando as precárias
condições da feitura dos romances produzidos pelo autor. Através
da análise da sociologia implícita nos romances de Graciliano Ra-
mos, que pode, em muitos sentidos, ser considerada uma sociolo-
gia implícita de si realizada pelo romancista através do trabalho
de dupla objetivação acima mencionado, podemos reconstruir os
itinerários das lutas internas de um escritor sociologicamente per-
cebido como trânsfuga social.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Graciliano: as inseguranças de um “escritor sem obras”

Para balizar o que defendemos, estudaremos aqui o que chamamos


de precariedade nas condições de trabalho intelectual do jovem Gra-
ciliano para mostrar que a literatura produzida por ele trabalhava
também a partir de impulsos extra-literários. Não precisamos, com
isso, descartar por completo a visão corrente segundo a qual o escri-
tor, ao realizar seu trabalho criativo, está também dialogando com
questões próprias do seu universo intelectual ou do campo literário
propriamente dito.

Graciliano Ramos apareceu-nos, todavia, como caso exemplar de


um romancista que escreveu sobre o seu mundo social estimulado
por questões de naturezas diversas: existencial, material e simbólica.
Esses estímulos devem ser relacionados aos seus romances porque
120 sua consagração atual oblitera o entendimento das dificuldades en-
frentadas por ele para construção do conjunto de sua obra. Na me-
dida em que sabemos que o romancista, pela vida que teve – que o
constrangeu mais do que o impulsionou à arte, dificilmente poderia
ser bem compreendido sem o entrelaçamento dessas informações,
voltamo-nos a elas para decifrar melhor como Graciliano Ramos se
tornou possível como escritor.

As dificuldades de se manter através de seu ofício de escolha, a lite-


ratura, situam seu sonho literário na medida em que evidenciam em
Graciliano a luta por encontrar na literatura, isto é, por meio dela,
um refúgio para os percalços das próprias condições de trabalho li-
terário e humana. Apontam para isso, na sua trajetória inicial, a sua
tentativa frustrada de tentar uma carreira literária no Rio de Janeiro
ainda quando jovem.

“Começaria a trabalhar, em 23 de setembro, como foca no


Correio da Manhã, passando, 18 dias depois, a suplente de
revisão. Juntando o baixíssimo salário com os rendimentos
da fazendola que o pai periodicamente lhe remetia, dava

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


para ir levando, em economia de guerra. Trabalhava de nove
horas da noite até duas da madrugada, movido a duas enor-
mes xícaras de café, dois pães e um pedaço de queijo. Acor-
dava meio-dia, engolia um copo de leite com pão torrado,
acalmando o estômago até sete da noite, quando jantava.”
(Moraes, 1992, p.30).

Não que as difíceis condições o tivessem feito desistir de seu so-


nho. A volta a Palmeira dos Índios foi precipitada, como sabido,
por conta da tragédia que acontecera em sua família. Em nosso
entender, contudo, Graciliano escreve Caetés de maneira a remo-
er certas questões. Em uma delas, essa primeira frustração aparece
aliada, sem dúvida, aos debates intelectuais locais – que começam a
ser decifrados a partir de trabalhos de recuperação de documentos
históricos, como o da Revista Novidade, por exemplo, analisada por
Ieda Lebensztayn (2009). Nesta revista a estudiosa identifica, no 121
projeto editorial, os princípios intelectuais que parecem ter guiado
em certa medida a produção de Graciliano Ramos, princípios que
estão claramente tematizados em Caetés.2

Um primeiro ponto a destacarmos, para melhor entender o que que-


remos apontar, é a formação literária de Graciliano Ramos. Desde
sua juventude, encontramos nela registro da ambivalência que deli-
neou em certa medida aspectos marcantes de sua obra: o diletantis-
mo das leituras, por exemplo, deu a tônica na maneira diferenciada
com a qual Graciliano lidou com o mundo das letras de sua épo-
ca, ao mesmo tempo em que funcionou como elemento negativo,
produzindo uma profunda insegurança em relação à qualidade dos
trabalhos por ele realizados.

Graciliano oscilou, por conta disso – é possível notar isso na sua


correspondência –, entre a esperança e a desconfiança em relação a

2 Só um trabalho mais específico sobre a relação dos subgrupos de intelectuais atuando no Nordeste
na sua relação com o espaço de produção do Rio daria uma real dimensão dos fatores que contribuíram
para feitura de um livro como Caetés.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


si mesmo. Isso demonstra, por um lado, que sua formação, à mar-
gem dos centros intelectuais, tornava-o apto a ser crítico das práti-
cas intelectuais de sua época. Por outro lado, por não ter respaldo
institucional ao seu conhecimento, convivia com o desconforto e a
insegurança quando o assunto era sua produção. Quando jovem,
comprava e

“(...) relia esporadicamente Aluísio Azevedo, Olavo Bilac e


Manuel Antônio de Almeida, e descobria Machado de Assis,
Euclides da Cunha e Graça Aranha.” (Moraes, 1992, p.39).

Mas o conhecimento obtido nessas leituras não o assegurava de


suas competências literárias. Demonstrava, assim, grande inseguran-
ça nos momentos de produção, como revela o fragmento a seguir:

122 “Sinto-me incapaz de escrever. Queres crer que a última coisa


que me saiu da cabeça foi aquele pobre Estrelas? Abandonei
Sudra, faz mais de um mês que não olho para ele. E já esta-
vam escritas cento e cinqüenta tiras. Não posso fazer nada:
sinto-me mais bruto que de ordinário.” (Ramos, 1982, p.28).

Como explicar essa ambivalência entre a cultura que ia acumulando


em suas leituras e a falta de segurança com o que fazer com elas?
Como observamos anteriormente, Graciliano não tinha o perfil de
intelectual convencional à sua época. Estudou pouco na escola, não
fez faculdade de Direito, não era bacharel. Em várias ocasiões, foi
crítico não apenas do bacharelismo, mas da lógica do diploma, que
segundo ele, não provava nada da inteligência das pessoas.

Nada nos impede, porém, de ver em sua autodidaxia um indicador


da oscilação no ânimo do jovem pretendente ao mundo das letras.
Essa oscilação se tornou, pouco a pouco, característica inerente à
sua personalidade, o que nos ajuda a entender melhor como Gra-
ciliano produzia seus textos: pontuando os elementos responsáveis
pela qualidade de sua escrita.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Nesse sentido, se, por um lado, ser autodidata lhe permitia um afas-
tamento relativo dos vícios intelectuais do período, inclusive por
questões de sociabilidade –como vemos claramente nas críticas dele
à verborragia dos bacharéis –, por outro lado, fragilizado por uma
formação não forjada institucionalmente, sentia-se deslocado do
universo intelectual no qual tinha que se inserir para realizar seu
sonho de tornar-se escritor.

A falta de legitimidade gerada pelo modelo de sua formação3 era res-


ponsável por um reforço à necessidade de reconhecimento dos pares.
Nesse caso, mesmo que o seu desejo de reconhecimento nunca se
manifestasse de maneira explícita, devido também a sua timidez, po-
demos reconhecê-lo, como veremos mais adiante, em cartas pessoais,
quando ele expressa sua vontade de ser visto como literato.

Verifiquemos, porém, antes disso, que as informações sobre como 123


adquiria sua cultura4 – através da leitura não coordenada de al-

3 Temos em mente para essa análise o estudo de Bourdieu em seu La noblesse d’etat, em que analisa detalha-
damente as propriedades sociais ambíguas presentes nas avaliações das escolas de elite francesas (Bourdieu,
1989). Através dessa leitura, percebemos melhor como as escolas francesas, principalmente as de elite, são
agentes institucionais que inculcam a “segurança” nos agentes que, ao passarem pelas etapas previstas pela
instituição, sentem-se investidos da autoridade produzida pela própria instituição. Detentores da legitimidade
do saber, porque criados sob as condições da produção coletiva, eles recebem das instituições a marca da
legitimidade. E, “depois de percorridos os caminhos”, sentem-se responsáveis por criar os “ caminhos a serem
percorridos”. As instituições de ensino têm a função de delimitar no corpo social os agrupamentos de pessoas
que se sentirão capazes de dizer como saber as coisas relacionadas ao saber. Em sentido contrário, a escola
também cria seus “burros”, seus “preguiçosos”, seus “esforçados”. Mas, quando designa seus “brilhantes”,
conseguimos com mais clareza identificar as categorias com conotações sociais que só são bem decifradas
na medida em que as ambiguidades antinômicas contidas nesses adjetivos são sobrepostas à estrutura de
características sociais correspondentes, isto é, toda vez que o fato de ser “brilhante” corresponde a alunos
que demonstram “facilidade” e “rapidez” no aprendizado, desempenho que é muitas vezes produzido pela
correspondência entre a cultura da classe social da qual é proveniente (a classe dominante) e a cultura da
própria escola. Para nossa análise tentamos captar esses sentimentos ambíguos em relação à cultura tantas
vezes expostos por Graciliano Ramos. É evidente que o papel institucional das escolas de elite francesas não
é comparável aos das instituições escolares brasileiras, mesmo as de elite. Contudo, o papel de atribuição de
legitimidade relativo às maneiras de fazer e dizer inscritos nas relações de dominação concretas no universo
intelectual brasileiro podem ser descritos a partir desse modelo de análise.
4 Em carta a amigo revela que recebeu seu almanaque para estudar :“meu velho: fiz um papel desgraçado
em não te escrever quando recebi o almanaque. [...]” (Ramos, 1982, p.19) Também podemos destacar a
leitura intensa que fez dos romances que, segundo lemos em Infância, funcionaram como uma espécie de
refúgio para o frágil menino que ele pareceu ser.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


manaques e romances – mostram-nos que, contraditoriamente, a
falta de educação escolar dava-lhe uma tônica que contrastava com
a formação de outros intelectuais de sua época. Mais tarde, em
momento de consagração, seu cinquentenário, essas características
foram relembradas em discurso de Augusto Frederico Schmidt:

“É que essa noite não se repetirá, é a noite única para a


sua vida, Graciliano. É uma noite de reparação, é uma noite
que devemos trazer a você, que é um ser tão desconfiado, a
convicção de que sua existência, que você considera tão me-
lancolicamente, é a existência que se realizou plenamente, é
a existência de um homem que venceu, que se afirmou, que
soube crescer sozinho, graças a sua força, graças a essa na-
tureza retorcida, áspera, inconformada e cheia de dignidade
que é a sua natureza, graças mesmo a esses sofrimentos que
a vida, sem economia, lhe proporcionou, graças às injustiças
124 que madrugaram para você e o foram sempre seguindo, até
que essa injustiça suprema de lhe tirarem a liberdade sem
motivo, por um período certamente fecundo para sua expe-
riência de romancista.” (Moraes, 1992, p.195) (Meus Itálicos)

Por um lado, é importante notarmos como as palavras de Schmidt


associam sabiamente a natureza desconfiada de Graciliano Ramos
às condições que o construíram como escritor. Seguindo a lógica
do poeta, foi justamente por Graciliano ter sido alguém que cresceu
sozinho, ou seja, por sua autodidaxia, que o Velho Graça podia re-
ceber aquela justa homenagem. Por outro lado, observamos nesse
texto aquilo que não consegue mostrar por si: as características
assinaladas por Schmidt são as mesmas que são responsáveis pelo
descompasso de Graciliano nesse meio onde ele se via e era visto
como figura de natureza retorcida.

O sentimento de estranhamento com o meio, assim como sua inse-


gurança, vinha de muito cedo, na juventude. Em carta a sua mãe,
datada de quatro de fevereiro de 1915, Graciliano escreveu do Rio
fazendo crítica severa às práticas intelectuais que lá encontrou:

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“O que eu sinto é morar numa terra onde só se pode con-
seguir alguma coisa com muito reclamo. Aqui tudo se re-
sume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. Um
indivíduo que é burro fala em voz alta, de papo, grita, diz
asneiras e às vezes chega a fazer figura diante dos outros
que são mais burros do que ele. [...] Veja a senhora como
as coisas são. Tudo reclamo. E o sujeito que for tímido, que
não declarar que é um gênio, é uma criatura morta. Ora, eu
estou arrependido de ter feito hoje uma asneira. Um rapaz
meu conhecido apresentou-me a um poeta, dizendo que eu
era literato. Eu caí na tolice de dizer que não era. Dei uma
grande patada, não há dúvida. Eu devia ter ficado calado ou,
melhor, ter entrado a dizer sandices sobre arte e outras coisas
que não conheço. Era o que eu devia ter feito. É o que todos
fazem.” (Ramos, 1982, p.49-50).

Destacamos nesse fragmento de carta a crítica que Graciliano tece 125


à sociabilidade existente entre os intelectuais no contexto carioca.
Observamos a partir dela a consciência que ele possuía da impor-
tância que esse tipo de sociabilidade tinha para quem, como ele,
pretendia entrar nos círculos literários do Rio de Janeiro. O “eu caí
na tolice de dizer que não era”, depois da crítica severa às práticas
locais, revela toda a ambivalência que nutria seu desejo de se tornar
um escritor. Na verdade, Graciliano sabia que viver fora do centro de
produção literária e dos círculos sociais a ele ligados não o ajudava
na realização do seu sonho. Que sonho? Graciliano queria desde
cedo o que sua condição não lhe autorizava, a dedicação total ao
ofício de escritor.

“Vivia do salário ganho na loja e da escassa renda que provi-


nha da “fazendola” e das cabeças de gado que ganhara, aos
12 anos, dos avós maternos. Há pouco saíra da casa dos pais
para morar numa república da rua de Baixo, mas isso pou-
co representava. Queria escrever e, se possível, trabalhar em
coisas bem diferentes das que fazia.” (Moraes, 1992, p.29).

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Dessa forma, o desejo e a realidade apareciam como dois elementos
apartados entre si na vida de Graciliano. As marcas da ambivalência
começavam a compor o escritor e durante toda a sua vida elas po-
dem ser notadas. Antes mesmo de ser apontado como romancista de
qualidade, já é possível encontrar informações sobre essas caracte-
rísticas de sua personalidade. Tomemos como exemplo o fragmento
a seguir:

“Assim que pôs o serviço em dia, Graciliano, entre um des-


pacho e outro, corrigiria os originais de Caetés. Um dos vi-
sitantes mais assíduos em seu gabinete era o professor de
português, filólogo e contista Aurélio Buarque de Holanda,
que se divertia com seu modo extravagante de fazer julga-
mentos”. (Moraes, 1992, p.69) (Meus itálicos)

126
Notemos primeiramente que Graciliano finalizava Caetés “entre
um despacho e outro”, o que caracteriza uma relação ao tempo de
trabalho bastante peculiar. Voltaremos a isso mais adiante. O que
queremos ressaltar nesse momento é que, se Aurélio Buarque se
divertia com o modo extravagante de Graciliano fazer julgamentos,
é porque algo denunciava a hexis corporal de Graciliano e sua falta
de conformidade com o habitual nos intelectuais do período. Isto é,
no seu jeito de falar e de afirmar as coisas, percebia-se uma diferen-
ça que pontuava o “sotaque” de sua formação. Como caracterizar
sociologicamente essa diferença?

É preciso, talvez, antes de continuar, dizermos com mais ênfase o


nosso propósito: não queremos explicar a prática literária de Graci-
liano pela insegurança ou por idiossincrasias do escritor, mas mos-
trar como a insegurança e outras de suas características podem ser
vistas e melhor explicadas pela descrição do tipo de socialização
específica que contribuiu para construção do homem como escritor.
Socialização essa, produtora de traços marcantes de sua personali-
dade e que, apesar de não podermos esquecer e esquecermos com
frequência, permeava o trabalho dele a ponto de se tornar elemento

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


estruturante e temático de sua obra, como nos casos de Caetés e
São Bernardo.

Por essa razão, buscamos associar os problemas existentes durante


todo o processo de elaboração de Caetés ao conteúdo mesmo do
livro, sem, com isso, cairmos necessariamente na idéia redutora de
que Graciliano simplesmente transcrevia sua vida para dentro de
seus romances. O que nos parece interessante, porém, é que ele usa
os elementos concretos de sua condição de escritor para reproduzi-
la de maneira transfigurada, mas sem deturpar a impressão de rea-
lidade literariamente por ele construída.

Para termos a devida dimensão do caráter estrutural da precariedade


de sua condição de escritor, no que tange especificamente à pro-
dução de Caetés, buscamos entender seu longo e penoso processo
de feitura, expresso também na insegurança sentida por Graciliano, 127
a exemplo da explicitada em momentos como aquele em que ele
recebe convite de Augusto Schmidt para publicação de seu livro:

“O que responder a Rômulo? Caetés, que vinha sendo es-


crito há cinco anos, poderia ser imediatamente composto,
não fosse à obsessão de Graciliano de reescrevê-lo, cortan-
do e substituindo palavras ininterruptamente. Desconfiado
e inseguro, precisaria de um tempo para remoer.” (Moraes,
1992, p.66) (Meus itálicos).

Essa ambivalência, que estruturou seu ofício, se traduzia frequen-


temente nos dois pólos de sua personalidade, já evidenciados: na
esperança do jovem que queria ser escritor e na sua insegurança
quanto à qualidade do trabalho. Entendemos que a grandeza de
Graciliano resulta, em grande parte, no final das contas, do fato de
ter ele transformado sua insegurança no motor principal que movia
o cuidado formidável que teve com seus escritos. Transformando a
desconfiança em motivo de mais cuidado e atenção, desde o início,
o escritor converteu essa característica, como revela o pedido de

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


“tempo para remoer”, em aspecto inconfundível de sua obra, garan-
tindo, por fim, a grande qualidade de seus romances5.

Observe-se que centramos nosso foco na idéia segundo a qual Gra-


ciliano tematiza reflexivamente sua condição precária de trabalho.
A auto-reflexão seria, nesse sentido, uma ponte entre a biografia e
a sociologia disposicionalista, a qual utilizamos para reter as infor-
mações biográficas pertinentes para entender aspectos da feitura de
Caetés. A reflexividade de Graciliano consistiria no seguinte: Caetés
é um romance sobre um romance falhado. João Valério não con-
segue terminar o romance, tamanho o turbilhão de eventos de sua
vida e a precariedade para escrever seu livro. O que corresponde
ao que descrevemos brevemente sobre as condições de trabalho do
próprio Graciliano Ramos no momento em que escrevia Caetés.

128 Dessa forma, é interessante afirmar, além de mostrar a correspon-


dência entre Graciliano Ramos e João Valério, que o que impres-
siona no escritor real é que a genialidade nele precisa ser descrita
como antípoda do que a palavra designa de hábito: na falta de boas
condições para dedicar-se exclusivamente ao trabalho literário, a
precariedade funcionou para ele como elemento constitutivo da-
quilo que iria narrar em seus romances. Da falta de material básico,
como papel, à falta de regularidade na prática da escrita, Graciliano
inicia uma carreira literária que se configurava, positivamente, como
precária e instável, mas qualitativamente impecável.

Nas informações biográficas, avolumam-se às indicações sobre as


parcas condições de trabalho intelectual do autor. Durante toda a
sua carreira lutou contra a falta de tempo decorrente de vários fa-
tores oriundos dos ambientes familiar e de trabalho. Nas horas que

5 Na verdade a insegurança de Graciliano o manteve protegido da pressa e da vontade de dar mais


volume que qualidade aos seus romances. Isso se torna ainda mais impressionante quando aprendemos
que, quando seu primeiro livro foi publicado, ele já contava com mais 40 anos. Na verdade, o que parece
ter acontecido é que Graciliano tenha sido de fato um mestre: ele conseguiu aos poucos converter tudo
quanto era dificuldade e defeito na mais pura qualidade literária.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tinha para escrever, era muitas vezes importunado pelas pessoas,
que não entendiam seu interesse pelo ofício, o que caracteriza, do
ponto de vista sociológico, uma situação recorrente na trajetória de
intelectuais oriundos de famílias populares.6 Inúmeras são as ocor-
rências em que Graciliano reclamava da falta de tempo e de con-
dições apropriadas de trabalho. Do início da carreira, destacamos o
seguinte fragmento:

“São nove horas, o correio vai sair, o velho Sebastião já man-


dou quatro vezes que eu largasse isto e fosse fazer a corres-
pondência comercial. O velho Sebastião como um Cérebro
anda a me vigiar. Tem uma raiva desesperada das tolices
que eu faço. Eu finjo que não entendo.” (Moraes, 1992, p.27)

Mais tarde, é marcante essa avaliação feita por Dênis de Moraes


(notemos que o biógrafo chega a esquecer que estava falando de 129
um escritor):

“E o escritor, por onde andava? Entre 1916 e 1921, inexistem


registros de produção literária. Assoberbado no comércio, só
não se distanciaria das leituras. Em parceria com o amigo e
ex-aluno João Acióli de Morais, comprara pelo reembolso
postal a coleção das obras completas de Eça de Queiroz.”
(Moraes, 1992, p.39).

Já bem mais tarde, depois de sair da prisão, notemos como, na carta


a Garay, citada por Ieda Lebensztayn, Graciliano fala de sua condi-
ção de vida:

6 Pensamos em questões sociológicas tiradas de análises similares do The uses of Literacy de Richard
Hoggart (1970). Não é sem paralelo, tomados os devidos cuidados, o fato de Graciliano conseguir, como
efeito irônico de sua obra, criticar e transpor as imagens intelectuais da vida popular, tornado sua obra
uma forma de negação contra leituras fáceis que insistem em lutar contra a “degradação da cultura
autenticamente popular”. Como na obra do sociólogo inglês, Graciliano consegue, na trama narrativa de
Caetés, desmontar algumas ilusões intelectuais a respeito das classes populares. Ao criar um protagonista
incapaz de escrever sobre o mito de formação de seu país, põe em relevo a fragilidade dos intelectuais
que, ao falarem do povo (do outro que não ele), o fazem como pretexto para tratar de suas próprias
contradições culturais.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


“É que ando aperreado, chateado, indignado com a obri-
gação de pagar casa, comida, bonde, roupa, café e outras
inconveniências. Eu vivia livre de todos esses aborrecimen-
tos. O governo do meu país é um governo sábio e algumas
vezes nos fornece mesa, cama, transporte e boas conversas,
tudo de graça. Você não acha que é safadeza sustentar um
cidadão durante um ano e de repente mandá-lo embora,
desempregá-lo sem motivo? Foi o que me aconteceu. Eu
estava quase habituado, considerava-me, com certa vaida-
de, hóspede oficial, membro de uma instituição respeitável
e necessária ao preparo de eleições e outros jogos nacionais.
Infelizmente a minha reduzida pessoa foi julgada inútil a
essa trapalhada – e o governo, por economia, me cortou os
meios de subsistência. Agora preciso dar dinheiro à mulher
da pensão e aumentar os lucros da Light. Para isso tenho de
explorar alguém ou qualquer coisa e ser explorado pelo dono
130 do jornal e pelo editor. Como não possuo bondes nem casas,
lembrei-me de explorar um hospital, um médico, enfermei-
ros e a doença que me ia matando anos atrás.” (Lebensztayn,
2009, p. 319).

A precariedade contrastava quase sempre com profundo desejo de


tudo superar pela literatura. Numa carta ao pai, ainda muito jovem,
percebemos melhor a vontade dele de viver da literatura ou, ao me-
nos, de tarefas ligadas a ela:

“Não quero emprego no comércio – antes ser mordido por


uma cobra. Sei também que há dificuldade em se achar um
emprego público. Também não me importo com isso. Vou
procurar alguma coisa na imprensa, que agora, com a guerra,
está boa a valer, penso.” (Moraes, 1992, p.30).

Pensamos não ser possível entender bem como Caetés foi escrito,
sem que se levem em conta as duras penas e a base insegura que
alimentavam Graciliano Ramos em seu desejo de tornar-se escritor.
Entendamo-nos: queremos apenas mostrar que Graciliano escrevia,
também, de maneira a suprir sua insegurança íntima. A insegurança

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


era muito profunda, em parte, porque gerada pelos primeiros passos
no aprendizado, retratados em Infância, mas também porque rea-
firmada pelo tipo de formação que caracterizou seu acesso à cultura
e o seu capital cultural.

A desconfiança de si em Graciliano, assim, deve ser entendida como


algo a mais do que apenas um traço de personalidade. Ela é um
elemento que caracteriza a relação do romancista consigo mesmo,
projetando-se, também, em tudo que ele produzia literariamente.
Não podemos, sob risco de produzir uma interpretação encantada
do autor e de sua obra, deixar de perceber as relações existentes en-
tre a maneira como ele escreveu – nas condições que eram as suas
– e aquilo que escreveu em sua própria obra. A forma e o conteúdo
do romance são, no caso estudado, intimamente associados à forma
e ao conteúdo da vida de Graciliano Ramos.
131
Como evidenciamos com alguns exemplos, a produção de Caetés
se deu em más condições para o trabalho intelectual. As razões
da precariedade são de ordens diversas, como ser atrapalhado por
questões de cotidiano, quando era balconista da loja do pai onde
recebia os clientes, por exemplo, ou, mais claramente, por passar o
tempo resolvendo problemas administrativos, quando prefeito em
Palmeira dos Índios. Tudo isso caracteriza a permanência e a cons-
tância da precariedade nas condições de trabalho literário durante
a feitura de Caétés.

Relendo a escrita de Caetés

Se recapitularmos os elementos levantados até aqui, temos, de um


lado, a precariedade das condições de trabalho e, de outro, os mo-
tores existenciais que o levaram a leituras e a querer construir seus
personagens. Se levarmos em conta esses elementos concretos, fica
mais interessante retomarmos as obras Caetés e São Bernardo e lê-
las como fruto de uma reflexão do autor sobre a própria precarie-

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


dade, que termina por deixá-lo mais sensível a si, e como explicação
em parte da reflexividade característica do jovem Graciliano que,
talvez sem perceber, inaugura uma abordagem crítica sobre olhares
tradicionais existentes sobre o Brasil.

Pensamos não haver exagero ao mostrarmos um Graciliano, já


em Caetés, contrapondo-se – não porque ele quisesse, mas por
que sua condição também o tenha levado a esse tipo de refle-
xividade – a uma tradição do pensamento social brasileiro de
então, quando pensadores como Oliveira Vianna e Alberto Torres
mostravam-se obcecados pela idéia de ordem. Estes autores fa-
ziam críticas à desordem do povo. Eles denunciavam a falta de
organicidade dele, a falta de coesão social, revelando toda uma
desagregação do corpo social.

132 Como já indicado, ao lermos Graciliano Ramos, percebemos como


ele inaugura uma postura reflexiva e crítica a esse de tipo de pen-
samento. É por isso que podemos entender com mais clareza, a
partir da leitura de Caetés, a dicotomia entre espaços de enuncia-
ção e do discurso produzida por intelectuais como Torres e Vian-
na, dicotomia contra a qual o romance aparece como negação
sublimada. Fica evidente, pela ironia adotada por Graciliano, a
impostura do intelectual que aparece pela primeira vez não apenas
como alguém centrado e preocupado com a desorganização do
povo, tido sempre como o outro de si, como se não fizesse parte
da sociedade que analisa.

O que acontece em Caetés é exatamente o contrário disso. Quem


é o verdadeiro caeté, ao final do romance, é o próprio João Va-
lério, protagonista que representa uma espécie de intelectual à
brasileira. Nesse sentido, a dicotomia entre sujeito (intelectual) e
objeto (povo) não aparece mais de forma amorfa e reproduzida
pelo discurso pedante do intelectual, pois ela já fora de algum
modo diluída pela literatura: o intelectual é feito, na matéria do
romance, do mesmo material desorganizado e informe que o povo.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


O intelectual e o povo aparecem como vítimas da mesma desarru-
mação estruturante da sociedade brasileira.

Segundo nosso ponto de vista, porém, só podemos entender bem


a importância dessas questões no romance, uma vez minimamente
descrita a precariedade real do intelectual, isto é, a precariedade
das condições de trabalho intelectual do próprio Graciliano. Gra-
ciliano Ramos não parece problematizar sua própria condição ao
denunciar-se através de João Valério tão precário quanto o povo,
tão precário quanto à sociedade que o produziu?

É ainda mais interessante analisar o problema dessa maneira por-


que, pelas razões já colocadas, Dênis de Moraes, maior biógrafo de
Graciliano, não chega sequer a questionar-se sobre as condições de
trabalho intelectual de Graciliano para relacioná-las a seus roman-
ces. E isso porque ele pensou essas condições a partir do pressupos- 133
to da separação biografia/obra, vendo as reclamações de Graciliano
sobre a falta de qualidade de seus romances como decorrentes da
personalidade do artista e de suas peculiaridades. Na verdade, os
documentos apontam para um elemento da personalidade do autor
que pode ser recuperado e inteligido do ponto de vista sociológico.
Para isso, basta perceber que Graciliano reclamava de sua situação
a partir de coisas muito concretas, relacionadas quase sempre à sua
própria vida e às suas condições de trabalho.

É claro que é preciso desconfiar do que um agente social diz a respei-


to de si mesmo, principalmente em um estudo sociológico que busca
justamente captar elementos que fujam ao campo de consciência de
quem está sendo estudado. No caso específico da auto-depreciação
de Graciliano, porém, pela coerência e sinceridade com a qual se mos-
trava aos mais íntimos, sobretudo nas cartas a amigos e a familiares,
parece razoável supor que sua insegurança era sincera. Quando dizia
que não se achava um intelectual, um escritor, é porque não se
achava mesmo. Era a maneira que encontrava para externalizar sua
insegurança. Quando afirmava que as suas obras eram ruins, é porque

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


muitas vezes ele de fato assim as percebia. Isso não o impediu, toda-
via, de guardar as coisas boas e ruins que falaram acerca do que ele
escreveu, o que demonstra, mais uma vez, a profunda ambiguidade
contida nessa relação consigo mesmo e com sua obra.

Tendo isso em mente, para fazermos a análise da sociologia implí-


cita ao romance Caetés, seguimos as pistas deixadas pela análise
de Luís Bueno (2006) que trata do romance e elabora interessante
estudo em que dois movimentos do protagonista João Valério ga-
nham centralidade: o sentimento de inferioridade e o de superação
pela vida intelectual. Fazemos hipótese de que tais movimentos são
projeções reflexivas elaboradas por Graciliano Ramos que, ao tra-
tar de sua própria condição, cria o universo social que produz seus
personagens, isto é, recria seu próprio universo ao objetivar suas
condições através da literatura.
134
Nossa idéia central mostra como Graciliano Ramos faz o trabalho
de objetivação de si em seus romances. Analista de si, o romancista
elabora uma análise acurada da sociedade toda vez que reutiliza
informações sobre sua própria forma de apropriação da leitura e
da escrita e as coloca em favor da construção de suas personagens.
Através desse recurso, o autor reflete sobre os dilemas de uma inte-
lectualidade batida sob o estigma de sua própria precariedade.

Os processos de incorporação dos pré-requisitos da leitura e da


escrita – a concentração, por exemplo7 –, normalmente esquecidos
por indivíduos para quem a cultura literária é algo familiar, ser-

7 Levamos em consideração para essa análise a tese de doutorado intitulada Infância: uma história
da formação do leitor no Brasil em que Marcia Cabral da Silva estuda o que ela chamou de “mate-
rialidade da leitura em Infância” (Silva S. A., 2004, p. 57-78). A autora analisou os aspectos sensíveis
dos objetos descritos por Graciliano em Infância e organizou os aspectos mais imediatamente sensíveis
ao leitor (ilustração, tipos de suporte, formato do livro, qualidade do papel) que, segundo ela, “podem
interferir na recepção da obra, na produção de significados, que variam no tempo e no espaço e acabam
delineando o personagem para o qual se destina a obra – o leitor” (Silva S. A., 2004, p. 57). Interessamo-
nos, porém, mais atentamente, pela análise do “processo de incorporação das mediações cognitivas” no
menino Graciliano Ramos, mediações analisadas pelo Graciliano adulto em Infância para representar-se
na idade de menino.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


vem a Graciliano em sua literatura, porque se tornaram elementos
constitutivos e constituintes de sua personalidade também como
escritor e aparecem tematizados de várias maneiras em toda a
sua obra ficcional. É produzida, assim, uma verdadeira trama de
reconstrução e re-elaboração de si nos romances a partir do traba-
lho de reflexão sobre as condições de produção intelectual feitas
também nos romances.

Trabalhados pela memória do escritor e performados de maneira re-


flexiva pelas técnicas literárias por ele empregadas, Graciliano utiliza
os pré-requisitos da competência literária para criar e descrever seus
protagonistas em contexto. Trabalha, por meio disso, a objetivação
no romance das competências sem as quais o escritor não surgiria,
impossibilitado que estaria de realizar quaisquer tipos de entendi-
mento ou construção de significado através da leitura e da escrita.
Nesse sentido, as dificuldades no aprendizado do Graciliano sujeito 135
empírico são realmente utilizadas de maneira madura, distanciada,
pelo Graciliano escritor, sobretudo em Infância.

Parece-nos, porém, evidente, tendo em vista as relações imbri-


cadas entre Graciliano Ramos, sua própria vida e seus romances,
que o amadurecimento tenha ocorrido pelas experimentações que
ele havia realizado dessas memórias também em seus romances.
Matéria-prima em suas tramas romanescas, o processo de apren-
dizado dolorido do menino Graciliano dá lugar à composição de
protagonistas cindidos internamente, caracterizados por uma di-
nâmica psicológica complexa, que põe em evidência o grau de
internalização de certos aspectos do universo intelectual, proble-
matizando aspectos de práticas de assimilação tidas como domi-
nantes em sua época.

Presentes em indivíduos reais como Graciliano Ramos e sendo in-


dicadores sócio-psicológicos de pessoas que viveram mudanças so-
ciais de ascensão ou declínio, as duas características apontadas por
Bueno a respeito do protagonista de Caetés, sentimento de inferio-

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


ridade e sua superação pela via intelectual, são, para bem dizer, uma
maneira encontrada por Graciliano de objetivar suas experiências do
mundo social por meio do trabalho literário.

Mas como essa postura reflexiva aparece de forma concreta no ro-


mance? João Valério estuda os caetés. O caeté é o elemento “primi-
tivo” da cultura brasileira. A matéria bruta da brasilidade. O mesmo
João Valério, no entanto, acaba se tornando um primitivo.

“Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeira-


mente polido, com uma tênue camada de verniz por fora?
Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costu-
mes. Eu disse que não sabia o que se passava na cabeça de
um caeté! Provavelmente o que se passa na minha.” (Ramos,
2002b, p.218)
136
Palavras de João Valério. Ele também é um caeté. Vê-se como tal.
O sujeito intelectual que se torna, portanto, objeto. O sujeito inte-
lectual é ele também primitivo e precário. Tão precário quanto o
seu objeto. Graciliano, porém, não elabora essa conclusão do prota-
gonista sem que isso tenha uma coerência com o resto do roman-
ce. Ele constrói sua verossimilhança inclusive por meio da falta de
contato de João Valério com as práticas próprias às de um escritor
profissional.

A tônica da postura reflexiva de Graciliano aparece com mais força


toda vez que, através de seu protagonista, ele utiliza os elementos
de sua própria condição de trabalho como elemento da visão de si
do protagonista. Nesse sentido, a condição de João Valério aparece
definida logo no primeiro capítulo sinalizando sua relação com a
literatura:

“Fiz a carta com inveja. Ora ali estava aquela viúva antipá-
tica, podre de rica, morando numa casa grande como um
convento, aumentando a fortuna com avareza para a filha de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Nicolau Varejão. E eu, em mangas de camisa, a estragar-me
no escritório dos Teixeira, eu, moço, que sabia metrificação,
vantajosa prenda, colaborava na Semana de Padre Atanásio
e tinha um romance começado na gaveta. É verdade que o
romance não andava, encrencado miseravelmente no se-
gundo capítulo. Em todo caso, sempre era uma tentativa.”
(Ramos, 2002b, p.13).

João Valério aparece pela primeira vez, caracterizado como intelec-


tual. Moço que sabia metrificação e que tinha um romance começa-
do na gaveta. Um escritor que, todavia, reconhecia que “o romance
não andava”. Na verdade um romancista que se caracterizava por ser
uma eterna “tentativa”.

Insistimos nessa correspondência entre as condições precárias nas


quais Graciliano Ramos escreveu Caetés e as condições descritas por
137
João Valério que o impedem de escrever o seu romance. É pertinen-
te a analogia entre as dificuldades de João Valério e as de Gracilia-
no. Por exemplo, o protagonista, depois de passar um bom tempo
envolto no cotidiano de Palmeira dos Índios, descreve da seguinte
forma suas atividades de escritor:

“Deitei-me vestido, às escuras, diligenciei afastar aquela ob-


sessão. Inutilmente. Ergui-me, procurei pelo tato o comuta-
dor, sentei-me à banca, tirei da gaveta o romance começado.
Li a última tira. Prosa chata, imensamente chata, com erros.
Fazia semanas que não metia ali uma palavra. Quanta di-
ficuldade! E eu supus concluir aquilo em seis meses. Que
estupidez capacitar-me de que a construção de um livro era
empreitada para mim! Iniciei a coisa depois que fiquei órfão,
quando a Felícia me levou o dinheiro de herança, precisei
vender a casa, vender o gado, e Adrião me empregou no
escritório como guarda-livros. Folha hoje, folha amanhã, lar-
gos intervalos de embrutecimento e preguiça – um capítulo
desde aquele tempo.” (Ramos, 2002b, p.19).

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Insegurança. Auto-depreciação. Dificuldade com a falta de frequên-
cia no trabalho. Tal como na biografia de Graciliano, João Valério
aparece envolto em uma vida que dificulta a realização do seu de-
sejo de tornar-se um escritor. É verdade que, é preciso dizer, João
Valério não é um alterego perfeito de Graciliano Ramos. Não é isso
que argumentamos. Sabemos que, no caso do romancista fictício,
os móveis que o impulsionam a escrever são em parte oriundos de
um desejo de reconhecimento social bem diferente do que parecia
mover Graciliano Ramos. Não há, porém, como não reconhecer, nas
palavras de João Valério, uma reprodução alterada das condições de
produção intelectual do próprio autor de Caetés:

“Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem


conhecer história! Os meus caetés realmente não têm veros-
similhança, porque deles apenas sei que existiram, andavam
138 nus e comiam gente. Li, na escola primária, uns carapetões
interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar, mas já es-
queci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de po-
der transformar esse material arcaico numa brochura de cem
a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada
no Ramalho.” (Ramos, 2002b, p.19-20).

São os mesmos Gonçalves Dias e José de Alencar que aparecem


como figuras lidas e relidas por Graciliano durante sua juventu-
de. Poderíamos inventoriar aqui um sem número de passagens
de Caetés em que Graciliano, através de João Valério, recupera
elementos de sua própria condição de vida e trabalho para carac-
terizar o “modelo de intelectual” de seu protagonista. Se fazemos,
por um lado, uma crítica à falta de preocupação com os dados
biográficos para recuperação da inteligibilidade do romance, não
podemos, por outro, negar o risco real do biografismo decorrente
do determinismo de afirmar ter Graciliano escrito o que escreveu
apenas porque teve uma vida condicionada por tais ou quais as-
pectos da estrutura social. Ele escreveu o que escreveu, em nosso
entendimento, muito mais porque, a partir desses condicionamen-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tos, construiu um projeto deliberadamente auto-reflexivo, o qual
nossa análise vem revelando.

Voltemos, então, ao que escreveu a fim de, mais uma vez, perceber
como as fontes biográficas de Graciliano Ramos são importantes
para identificar as informações mais concretas sobre a precariedade
do exercício do seu ofício e de seu personagem. Caetés, seu primei-
ro romance, começou a ser escrito em 1925 e Graciliano o dava por
finalizado em 1926, apesar de continuar a fazer retoques e modifi-
cações até 1928, quando foi entregue ao seu primeiro editor.

A demora na publicação ilustra toda uma estrutura de trabalho in-


telectual frágil que fazia parte de sua formação e fora, de alguma
forma, internalizada por Graciliano. Consideramos a hipótese de que
essa estrutura precária foi sendo, ao longo de sua carreira, objeti-
vada na construção de seus primeiros protagonistas. João Valério e 139
Paulo Honório, cada um à sua maneira, foram criados por uma fina
reflexão feita por Graciliano sobre si mesmo e sua própria condição.
Para tornar esse argumento mais claro, tecemos mais considerações.
Inicialmente, apreendemos mais detalhes sobre as condições de tra-
balho de Graciliano Ramos antes da publicação de Caetés. Lembra-
mos, por exemplo, que todo o tempo que passou tomando conta
da loja do pai fez parte de seu período de formação. Nessa época,
Graciliano também não encontrava tempo para manter regularidade
na escrita. E, mesmo o mais básico do material, como a falta de
papel, aponta a dificuldade que enfrentava para realizar seu ofício
de escritor:

“Entre um freguês e outro, folheava livros, jornais e revistas.


Quando cerravam as portas, ia para o fundo da loja escrever,
usando o papel dos talonários de pedidos e notas fiscais.
Sem regularidade, despachava sonetos e pequenas crônicas
para O Malho, Jornal de Alagoas e Correio de Maceió.” (Mo-
raes, 1992, p.26). (Meus Itálicos).

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Caetés, conforme já sinalizamos, foi escrito em mais ou menos cinco
anos. Ressaltamos, porém, como se deu essa formação, essa pre-
paração, destacada por Graciliano, que revela as dificuldades em
relação ao tempo de escrita para produção de Caetés:

“À noite, quando os filhos iam dormir, Graciliano escrevia na


sala silenciosa páginas de Caetés. Trabalho lento, pela falta
de tempo. Ao terminar um capítulo, lia para a mulher, em
busca de opiniões.” (Moraes, 1992, p.60).

Ocupado com os afazeres da política, Graciliano reclamava do ofí-


cio de gestor que lhe cabia porque isso o impedia de trabalhar em
seu livro: “Não sei. O que sei é que preciso dormir um pouco para
continuar os meus Caetés. Essa coisa de política é bobagem, e eu
não entendo disso.” (Moraes, 1992, p.73). Tais características e di-
140 ficuldades são muito parecidas, como vimos, com as que encontra-
mos descritas por João Valério para caracterizar sua condição de
intelectual.

Campo intelectual, crítica e a visão histórica

Não resta dúvida de que a publicação de Caetés em 1933 vai posi-


cionar Graciliano Ramos no universo intelectual literário da época.
Suas próprias palavras, em 1935, são testemunhas de uma polariza-
ção na qual ele assumia posição específica.

“Era indispensável que os nossos romances não fossem es-


critos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida,
mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desaparece-
ram os processos de pura criação literária. Em todos os li-
vros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado
de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas
verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém con-
fia demasiado na imaginação (...) seus personagens mexem-
se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão pra
cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.”
(Moraes, 1992, p.68).

A dicotomia expressa pelo próprio Graciliano, quando se posiciona


entre um eles, os que fazem literatura lá nos grandes centros, e um
nós, romancistas do Nordeste, pode ter alimentado toda uma vertente
de leituras críticas em que, até nossos dias, convencionou-se separar
esquematicamente a produção da época em duas grandes linhas: ro-
mance social, de um lado, e romance de introspecção, de outro.

A história da literatura, contudo, tem meandros e complexidades que


as dicotomias mais aparentes, mesmo as assumidas pelos agentes, não
revelam de imediato. Assim, em seu Uma História do Romance de 30,
Luís Bueno defende que o romance de 30 não pode ser visto como um
aglomerado mais ou menos confuso de autores, divisível apenas pelos 141
dois grandes grupos que a tradição crítica instaurou: os regionalistas
e os intimistas. O autor analisa o período a partir de uma leitura mais
abrangente do que a convencional, na tentativa de se dar os meios para
alavancar uma visão mais dinâmica e mais condizente com a realidade
da produção da época. O livro de Bueno foi organizado em duas partes
nítidas: a primeira deu conta da contextualização histórica do romance
de 30; a segunda analisa a obra de quatro autores do período histórico
em questão. Dessa forma, a articulação interna do trabalho se dá na
medida em que ele justifica a escolha dos autores:

“Depois de visto esse movimento geral (ele se refere à parte


de contextualização histórica) a atenção se volta para qua-
tro autores específicos – Cornélio Penna, Dyonélio Machado,
Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos –, escolhidos em função
não apenas do julgamento de que representam o melhor
da produção do período, mas também porque, respondendo
sistematicamente ao debate, em geral simplificador, que a
polarização ideológica instaurou, souberam ultrapassá-lo de
forma a construir um painel sintético e problematizador do
próprio romance de 30.” (Bueno, 2006, p. 16) (Meus itálicos).

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


A visão de Bueno não chega a romper com a visão da crítica literária
na medida em que aceita o mote analítico em voga: “o julgamento
de que representam o melhor da produção do período”. Articula, po-
rém, de maneira mais ampla a visão histórica, porque na medida em
que ela se preocupa com o campo intelectual, consegue justificar a
razão pela qual os autores foram escolhidos. Na verdade, quando a
perspectiva da escolha é justificada pelo fato de os autores selecio-
nados responderem “sistematicamente ao debate”, Bueno está con-
siderando a importância deles devido ao fato de eles participarem
do campo intelectual de maneira intensa e orgânica.

Ele critica, portanto, aquilo que ele chamou de “tradição da divisão”


que teria enraizamento histórico na polarização do pós-guerra. Em
seu argumento propriamente histórico, é forte a presença de uma
reflexão sobre a relação entre a polarização política e a divisão li-
142 terária. A partir dela nós entendemos melhor o alcance analítico do
trabalho de Bueno ao qual recorremos para avaliar Caetés:

“Pode parecer banal repetir isso tudo [Bueno fala da consta-


tação do engajamento dos escritores em relação à realidade
política], que já foi formulado longamente por João Luiz
Lafetá e Antonio Candido, por exemplo. Entretanto, o que se
quer enfatizar aqui não é a ocorrência em si dessa polariza-
ção ou o processo de engajamento pelo qual a intelectuali-
dade brasileira passou nos anos 30, mas sim quanto a idéia
de uma produção romanesca dividida em duas correntes
tão impermeáveis entre si tem sua origem numa realidade
anterior ao exame das obras elas mesmas.” (Bueno, 2006,
p.36). (Meus itálicos).

O ponto central do papel exercido pelo historiador nessa perspectiva


é o seguinte: a clivagem bipolar que dividia as visões de literatura
naquele período tinha chão na realidade histórica “anterior [ao
exame] [d]as obras elas mesmas”. Mais uma vez nos confrontamos
com uma pergunta que se torna recorrente do ponto de vista his-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tórico: como poderia a sociologia das obras dar conta de algo que
só é inteligível na medida em que carece de informações sobre uma
“realidade anterior ao exame das obras elas mesmas”? O que Bueno
procura precisamente é reler os pressupostos da crítica do passado,
para voltar a eles com mais propriedade. É isso que ele tenta fazer
quando cita a opinião de Mário de Andrade que, também segundo
ele, sintetiza o gosto da crítica pelo “conteúdo” da literatura.

“O caso da literatura é por certo muito complexo porque


nele a beleza se prende imediatamente ao assunto e com isso
não há mais barreiras para o confusionismo. Se em pintura
um crítico se preocupar exclusivamente com os problemas
da forma, nenhum pintor se revoltará; e o mesmo acontece
com as outras artes plásticas e a música. [...]

Em literatura o problema se complica tremendamente porque


143
o seu próprio material, a palavra, já começa por ser um valor
impuro [...]. E assim, a literatura vive em freqüente descami-
nho porque o material que utiliza leva menos para a beleza do
que para os interesses do assunto. E este ameaça se confundir
com a beleza e se trocar por ela. Centenas de vezes tenho
observado pessoas que lêem setecentas páginas num dia, va-
lorizam um poema por causa do sentido social de um verso,
ou indiferentemente pegam qualquer tradução de um Goe-
the para ler. Que o assunto seja, principalmente em literatura,
um elemento de beleza, eu não chego a negar, apenas desejo
que ele represente realmente uma mensagem como na obra
de Castro Alves. Quero dizer: que seja efetivamente um valor
crítico, uma nova síntese que nos dê um sentido de vida, um
aspecto do essencial.” (Bueno, 2006, p.39).

Bueno acrescenta algo mais a essas palavras de Mário de Andrade, o


que torna ambíguo o propósito do historiador:

“O que preocupa Mário de Andrade é o comportamento ge-


neralizado da década de se valorizar ou não as obras ex-
clusivamente pelo tema de que tratam ou, pior ainda, pela

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


posição assumida pelo seu autor. Não se trata, é evidente,
de uma proposta para que os escritores tomem de volta o
elevador até o topo das torres de marfim. É muito mais a
percepção de que há algo que conta em literatura além do
‘assunto’, ou do ‘problema’, de que criticar um autor da ‘es-
querda’ não é necessariamente adesão à ‘direita’ ou o con-
trário. Por conseqüência, é a denúncia do fato de que olhar
tão atentamente para aspectos que, em certa medida, não
dependem do livro em si, pode causar muito desentendi-
mento.” (Bueno, 2006, p.39-40).

Podemos inferir do argumento de Bueno que Mário de Andrade


está, assim como Candido, voltando-se contra uma leitura típica
daquela época que, em certo sentido, era também a dele. É possível
dizer ser evidente que tal clivagem interessa por ilustrar o limite de
tal divisão, sempre feita a partir dos critérios de leitura concreta-
144 mente adotados. Isso torna clara a importância para crítica naquele
momento de se distanciar desses parâmetros, a fim de encontrar seu
equilíbrio e autonomia em outra parte.

Para uma disciplina que tem vínculo oficial com a “documentação


dos fatos”, como a sociologia, porém, o caráter “problemático” des-
sa valorização pelo conteúdo, gerada pela clivagem das formas de
produzir literatura, tem valor de emblema a ser devidamente estu-
dado, já que boa parte da literatura de então também estava traba-
lhando com o desejo de ser também “documentação dos fatos”. A
relação íntima descrita por Bueno, assim também como por Antonio
Candido, caracteriza uma “função” vinculada às maneiras de fazer e
perceber a literatura que a aproximava das ciências sociais.

Isso, que depois se perdeu, queremos recuperar agora a partir de


outra perspectiva, fazendo da biografia sociologicamente informada
um elemento a ser levado em conta na leitura das obras. O problema
é que aquela dicotomia descrita e assumida pelos escritores entre
romance do Nordeste (romance social) e romance introspectivo (de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


cunho mais psicológico) pode ser lida apressadamente como indício
de uma disputa que caracterizaria as posições em um campo lite-
rário relativamente autônomo. Isso porque a existência de tomadas
de posição pode ser considerada um fator relevante que indica a
presença de um campo simbólico, em que a forma e o conteúdo dos
embates caracterizam disputas pelo direito à legitimidade de tal ou
qual discurso dentro do universo literário (Bourdieu, 1988).

É preciso, porém, que a precaução com a teoria já engendrada seja


reativada. Nesse sentido, podemos lembrar novamente a entrevista
dada por Sergio Miceli, agora com outro propósito – por ele ser figu-
ra, por assim dizer, pouco suspeita para falar sobre o uso da noção de
campo nesse contexto da década de 1930. Falando sobre a influência
de Bourdieu na sua tese de doutoramento, Miceli avalia que

“[...] muitos dos conceitos que ele [Miceli, fala a respeito de 145
Bourdieu] usava, na época, inclusive a idéia de campo, eram
pouco aplicáveis no Brasil. Não havia a rigor aqui um campo
intelectual, o qual precisa de adensamento.” (Bastos, 2006,
p.231)

De fato, ao observarmos com mais atenção o material biográfico de


Graciliano Ramos, constatamos que a utilização da idéia de cam-
po para o contexto brasileiro precisa ser feita com muito cuidado.
Percebemos, por exemplo, que é preciso identificar o que signifi-
ca, dentro de um universo ou sub-universo de produção literária
o esforço descentrado do autor de Caetés, porque não podemos
esquecer que ele se dá, em certa medida, de fora para o centro da
produção cultural do país.

Para entender como Graciliano entrou no universo literário brasi-


leiro, ainda é preciso avaliar como se realizou também o processo
social de legitimação e reconhecimento dele e de sua obra, trabalho
ainda não realizado pela tradição sociológica e apenas esboçado
nesta tese. Percebemos, em sua biografia, porém, que Graciliano

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


efetua um verdadeiro desajuste, um deslocamento (a ida do autor
para Rio), no sentido real e simbólico, quando entra no cenário
literário brasileiro. Isso porque a obra de Graciliano Ramos que, se-
gundo ele próprio, só era possível porque produzida na margem da
produção cultural – conforme podemos ver em “era indispensável
que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas
bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam intei-
ramente” (Moraes, 1992, p.68) – só se tornaria uma grande obra, e
o jovem Graciliano sabia disso, quando ela fosse devidamente aceita
e reconhecida pelos círculos intelectuais no Rio de Janeiro. Nesse
sentido essa reflexão teórica sobre Caetés se relaciona diretamente
com o fato de termos um autor que entra no campo literário bra-
sileiro com a publicação de Caetés, mas o faz de forma ainda a ser
caracterizada. Ao nos concentramos nas características da entrada
do romance Caetés no universo intelectual brasileiro, sobretudo no
146 carioca, percebemos a importância, por exemplo, das relações de
amizade de Graciliano Ramos, no trabalho coletivo que forjou o
reconhecimento de sua obra8.

Se voltarmos à questão teórica do campo literário, tendo presente as


considerações acima registradas, identificamos com mais facilidade
a precariedade do campo nas maneiras de agir e nas condições de
trabalho do próprio escritor. Temos um romancista que, de acordo
com as informações biográficas, produziu boa parte da obra fora do
campo literário. Percebemos, olhando por esse ângulo, que Gracilia-
no não escreveu seus livros para responder a essa ou aquela maneira
de escrever romances dados em seu tempo, mas, para dar respostas
a questões existenciais suas, como veremos mais adiante. Não pode-
mos negar esses elementos biográficos que deram contorno, junto à
precariedade de suas condições concretas de trabalho intelectual, à
sua obra. Negar isso seria forçar uma explicação da literatura de Gra-

8 Muitos intelectuais amigos de Graciliano leram os originais e o resenharam em alguns veículos impor-
tantes, gerando expectativa que se prolongaria por alguns anos devido ao atraso gerado aparentemente
pela perda temporária dos originais pelo primeiro editor, Augusto Frederico Schmidt.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


ciliano por meio de uma teoria que considera o campo literário como
entidade já relativamente autônoma da produção literária, como se o
único critério explicativo das obras, em quaisquer contextos, devesse
considerar como mote explicativo do texto literário apenas sua a po-
sição quanto aos tipos de romance sociais já existentes, ou em relação
aos outros de tipos de produção literária da época. Tomemos como
exemplo dessa perspectiva, um artigo recentemente publicado pela
revista do IEB sobre Caetés. Nele, lê-se que:

“À parte o desencanto dessa autocrítica — aliás, Graciliano


foi talvez o leitor mais severo de si mesmo —, convém re-
tirar dela dois comentários para a nossa reflexão: primeiro,
as leituras juvenis, que se nutriam de românticos e naturalis-
tas, causaram-lhe grande estímulo a princípio, porém o senso
maduro aos poucos o impelia a idear “modelos maiores”, os
quais intentariam provavelmente vencer os limites das referi-
147
das escolas, de maneira a representar melhor as tensões — isto
é, impõe-se ao literato em esboço a necessidade de superar a
tradição, movê-la por meio de um empenho aproximativo aos
contornos do momento.” (Gimenez, 2008 p.165).

Não desprezamos a idéia segundo a qual Graciliano Ramos tenha


de algum modo empreendido um diálogo com a tradição, porém
consideramos que, sem atribuir a devida relevância aos elementos
fundamentais sobre as condições de sua produção, não é possível
perceber, como queremos revelar, que o espaço social denominado
campo intelectual, naquele contexto, não encerra o complexo es-
pectro das experiências que encarnam e produzem o autor e sua
obra . Vistos dessa maneira, os romances reaparecem com outra co-
notação e a pergunta novamente reaparece: como e por que Caetés
foi realmente escrito? E alguns elementos para respondê-la preci-
sam ser retirados de um universo mais amplo que o das influências
intelectuais e literárias que marcaram Graciliano Ramos.

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


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dida na Universidade de Campinas, Unicamp, 2004.

149

Graciliano Ramos e o universo da escrita: informações biográficas e processo criativo em Caetés


Limites do conceito de campo para entender
a teledramaturgia brasileira
Lília Junqueira

151

Os estudos sobre as práticas de produção cinematográfica e televisiva


nas áreas de ciências sociais e comunicação buscam compreender
as relações sociais próprias ao universo da ficção audiovisual. Estas
pesquisas empíricas mostraram as limitações de certos sistemas con-
ceituais, entre outros a Teoria Crítica e os Estudos Culturais.

A partir dos anos 2000 novas pesquisas têm lançado luz sobre novos
problemas. Um dos resultados deste esforço foi apresentado em um
livro de minha autoria, publicado em novembro de 2009, com o
título: “Desigualdades sociais e telenovelas: relações ocultas entre
ficção e reconhecimento”1 Neste livro, utilizei o conceito de campo
de Pierre Bourdieu para descrever a teledramaturgia brasileira, não
somente enquanto simples setor de uma empresa monopolista de
comunicação, mas como uma dimensão da ação social que com-
porta lutas por legitimidade e por capital entre os agentes. Mesmo

1 Publicado pela Editora Annablume, São Paulo, Brasil, 294 p.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


se esta análise do campo da teledramaturgia não tenha sido levada
a cabo, já que meu interesse era mostrar a existência de um debate
entre os telespectadores, o resultado já foi muito rico. O fato de
conceber a produção de teledramaturgia enquanto campo ofereceu
muito mais possibilidades de reflexão sobre a comunicação entre as
telenovelas e o público, notadamente sob o aspecto das represen-
tações sociais das desigualdades sociais. Foi possível perceber, no
contexto do trabalho de criação, a existência de duas matrizes dis-
cursivas sobre as desigualdades sociais nas telenovelas, produzidas
pelos autores enquanto agentes do campo.

A partir dos anos 80, um processo de desdobramento destas matri-


zes começou a acontecer. Este processo se intensificou sob a ação
de outras transformações no campo: a inserção de tecnologia, o au-
mento da competição, o aumento do tempo dedicado às telenovelas
152 na grade da programação da televisão, a exportação de telenovelas,
o aumento do número de tramas dentro da telenovela, e o aumento
da importância dos números da audiência com relação às imposi-
ções do mercado.

O conceito de campo possibilitou ver o espaço da teledramaturgia


como um universo muito mais complexo do que permitiam as abor-
dagens da mídia mais correntes no Brasil. O conceito de “habitus”
também foi percebido como uma forma importante de pensar os
processos da experiência escrita e de leitura das telenovelas.

As experiências de escrita das telenovelas assim como as de leitura


pelos telespectadores parecem estar fortemente ligadas às matrizes
detectadas no campo. Em 46 anos de telenovelas, o público de-
senvolveu uma forma relativamente homogênea de interpretar as
telenovelas. Esta homogeneidade se deve à presença orientadora
das matrizes no conteúdo do produto. Também nos anos 80, com
o desdobramento das matrizes, teve início um processo de flexibi-
lização das leituras, sobretudo pelas novas gerações. Leituras mais
distantes das matrizes iniciais começam a surgir nas pesquisas de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


recepção. Este processo se desenvolve de forma crescente até os
dias de hoje, quando a transposição do conteúdo ficcional dos veí-
culos midiáticos tradicionais (cinema, televisão) para novos veículos
(computador, DVD, telefone celular) leva a flexibilização a um ponto
máximo, embora se possa verificar que a referência às matrizes tra-
dicionais encontra-se sempre presente.

Embora a reflexão desenvolvida no livro tenha sido bastante inova-


dora com relação aos estudos da ficção televisiva, certos problemas
conceituais permanecem. É necessária uma reflexão mais aprofun-
dada de certos destes conceitos, já clássicos, que merecem ser ainda
problematizados para uma compreensão mais refinada do universo
da ficção audiovisual contemporâneo. Por exemplo, como pensar o
espaço da produção da ficção, se a pluralidade dos indivíduos que
nele agem é a cada dia mais vasto Apesar do fato que a teledrama-
turgia e o cinema já sejam considerados como campos profissionais 153
em diversos países, o número de agentes responsáveis pela produção
e pela criação das histórias aumenta progressivamente. Desenvolve-
remos neste texto uma reflexão sobre as transformações no espaço
da criação da teledramaturgia nacional, ocorridos a partir dos anos
2000 apontando como estas transformações dificultam a continua-
ção da utilização do conceito de campo de Bourdieu (2007).

Articulações entre habitus do campo e distinção social nos


anos 90

A década de 90 caracterizou-se pela verticalização das tecnologias


da mídia. O processo de verticalização seguiu desregulamentado.
Conforme foi exposto no capítulo III, novas tecnologias tornaram-se
populares (telefones celulares, aparelhos de TV com tela de plasma,
internet). Iniciou-se a discussão sobre o conteúdo da ficção, que
doravante poderia ser acessada via Internet. Aumentaram as equipes
de criação das telenovelas. Os índices de audiência fixaram-se como
a principal forma de controle do trabalho dos autores, e não mais a

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Censura Federal. Novos formatos de ficção televisiva ganharam es-
paço na grade de programas. Houve expansão da produção de tele-
dramaturgia e dos equipamentos de recepção no país. Outras redes
passaram a produzir telenovelas entrando em concorrência com a
Globo. Houve um aumento geral do espaço para a teledramaturgia,
para novos criadores e novas idéias. No que diz respeito ao público,
houve um aumento e diversificação de sua composição proporcio-
nado pela popularização dos aparelhos de TV e DVD.

Em 1984 entrou em vigência o chamado Plano Real elaborado por


Fernando Henrique Cardoso, então, ministro do governo Itamar
Franco. Após um período de instabilidade iniciado com o impea-
chment de Collor, o Plano Real alcançou os objetivos de controle
da inflação no país e teve um impacto direto no aumento da renda
e do consumo das classes mais baixas. Houve, neste período um
154 boom de aquisição de televisores e DVDs pelas classes C, D e E.2
Mais tarde, na Presidência da República, Fernando Henrique imple-
mentou outras medidas que aumentaram indiretamente a participa-
ção dos mais pobres na cultura de massa, como políticas públicas
de financiamento, o microcrédito que atingiu a saúde, a educação,
a agricultura familiar, a gestão municipal, geração de empregos e
renda e infra estrutura urbana. A responsabilidade fiscal e social das
empresas foi estimulada. Estas medidas aumentaram o consumo ge-
ral da população mais pobre, inclusive o consumo de mídia, dentro
do qual os itens ficção e ficção televisiva era bastante significativo.
É importante também sublinhar a importância da retomada do ci-
nema brasileiro em 1995, com a produção de filmes de qualidade e
reconhecimento internacional como Central do Brasil que concor-
reu ao Oscar em 1999.

O campo da teledramaturgia respondeu a este aumento com o au-


mento das tramas secundárias, o aumento de temáticas tratadas
dentro das novelas e o mershandising social. Após 30 anos de recep-

2 Segundo reportagem da Folha de São Paulo em 12/04/1998.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


ção de telenovelas, a classe média dominava o habitus de escritura
do campo da teledramaturgia nacional.

“Grande parte dos telespectadores conhece as convenções


dramáticas das novelas em detalhe, acompanham o desenro-
lar da trama, a evolução ou ‘transformação’ de personagens
cuja magia não está em uma possível integridade inicial ou
final mas na trajetória desenvolvida ao longo dos meses. Es-
ses personagens comandam um universo de aparatos pessoais
que merecem escrutínio minuciosos. A experiência acumula-
da de decodificar imagens gerou uma sensibilidade acurada
e uma precisão de detalhe. O olhar dos telespectadores está
treinado para observar a marca do fogão, o tipo de salada,
a distribuição de funções entre o marido e a mulher. (...)
Ao copiar modelos das novelas, telespectadores revelam que
estão ‘por dentro’ e sugerem sua disposição de ir além dos
espaços supostamente demarcados por sua condição social, 155
sua identidade de gênero ou raça.” (Hambúrguer,1998:483)

O grande desafio para os autores passou a ser a adaptação das


novelas para a audiência das classes mais baixas. Num panorama
cultural no qual o gosto popular passou a ser visto como elitista
diante do chamado popularesco que surgia, (identificado no gosto
das classes mais baixas, por exemplo na música pelo estilo brega,
o pagode, o axé-music e o batidão, também chamado de funk) era
necessário subverter o perfil “classe média” das novelas. Por outro
lado, era necessário fazer face ao aumento da concorrência com
produtos de ficção estrangeiros e com outras redes de televisão
que começavam produzir novelas. As séries americanas aumentaram
seu espaço na grade da programação. O mesmo aconteceu com os
desenhos animados americanos e japoneses, principalmente o ani-
mê e os reality shows. Houve também aumento dos programas que
exploravam uma espetacularização da violência, inaugurados pelo
telejornal Aqui e Agora do SBT. As novelas não podiam ficar indi-
ferentes a este movimento da grade da televisão.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Em resumo, o campo da teledramaturgia sofreu um alargamento
significativo a partir dos anos 90. Em primeiro lugar, porque o mo-
nopólio de produção teve fim, embora o monopólio da audiência
ainda estivesse longe do fim. Nos anos 90 a Rede Manchete repre-
sentava uma concorrência real para a Rede Globo no ramo da tele-
dramaturgia. A Manchete produzia telenovelas desde 1984, tendo
realizado novelas de sucesso como Dona Beija (1986) e Kananga do
Japão (1989). Em 1990 ela superou a audiência da novela da Globo
no mesmo horário, com a novela Pantanal. As novelas da Manchete
tinham, neste período uma proposta mais regionalista, fugindo do
padrão global centrado no Rio, São Paulo e Nordeste. Pantanal foi
filmada com recursos cinematográficos, alcançando um resultado
visual e de audiência acima do esperado. Na mesma década foram
exibidas também Escrava Anastácia (1990), A História de Ana
Raio e Zé Trovão (1990), O Guarani (1991), Amazônia (1991), Fa-
156 mília Brasil (1993) Tocaia Grande (1995), Xica da Silva (1996) e
Mandacaru (1997), entre muitas outras. Em 1998 a Manchete fe-
chou seu núcleo de teledramaturgia. A Rede Bandeirantes produzia
ficção desde 1967, exibindo cerca de três novelas ao ano e mais
séries e minisséries. Nos anos 80 destacaram-se Os Imigrantes (1981
e 1982) e Chapadão do Bugre (1988). Nos anos 90 foram poucos
os destaques, com exceção de A Idade da Loba (1995). A Record
iniciou sua produção em 1997, com alto investimento e novelas de
alto padrão de qualidade, inspirado no modelo da Rede Globo de
fazer novelas. Captou muitos recursos humanos da Globo através de
contratos de altíssimos salários para atores, diretores e autores. Des-
tacam-se no período Estrela de Fogo (1997) e Louca Paixão (1998).

Pressionada pelo avanço tecnológico que atingia em cheio seu tra-


balho, pela modificação da composição do público e da imposição
da obediência ao imperativo do alcance de um patamar mínimo de
audiência, o que se tornava ainda mais difícil devido à concorrên-
cia com as outras redes, a teledramaturgia da Rede Globo passou
por mudanças profundas, inclusive o trabalho de criação. Soma-
se a estes fatores, a necessidade de produzir um produto passível

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


de exportação, pois com a globalização, aumentava a demanda do
mercado externo pelas telenovelas. A resposta encontrada foi a am-
pliação interna da novela, com o aumento do número de tramas e
de personagens. A partir deste aumento, mais temáticas poderiam
ser tratadas, possibilitando ao produto atingir um público muito
mais segmentado do que o das décadas anteriores. As regras de
organização de trabalho também precisaram mudar, pois o banco
de autores e atores , antes exclusivo da Rede Globo, passou a ser
assediado pelas outras redes com propostas irrecusáveis de salário. A
Rede Globo passou a fazer contratos mais longos para profissionais
em geral, sobretudo atores e autores. Em suma, uma luta real por
legitimidade entre grupos no interior do campo da teledramaturgia
passou a existir.

Se o alargamento do campo colocou desafios para os profissionais


de criação, por outro lado, aumentou o leque de possibilidades para 157
o seu trabalho. Novos autores, atores, idéias, experimentações, tive-
ram lugar. Além disso, o trabalho de criação de ficção nacional pas-
sou a ser mais valorizado pela sociedade, alcançando um patamar
de legitimidade maior, já que tudo que era considerado como gosto
popular na cultura brasileira nos anos 70 e 80, passou pouco a
pouco a ser considerado gosto da classe média e da elite, na mesma
medida em que o espaço do popular era ocupado pelo popularesco.

Germes de uma mudança de habitus a partir de novos desdo-


bramentos

A vertente afirmativa do Romantismo dos anos 80, representado


pelo trabalho de Ivani Ribeiro e suas equipes de co-autores, se des-
dobra nos anos 90 em três novas formas (Ver gráfico no anexo 2).

1) Romantismo do cotidiano. Representado pela obra de Ma-


noel Carlos, pela própria Ivani Ribeiro e por Walter Negrão. Fe-
licidade (1991), Mulheres de Areia (1993), A Viagem (1994),

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


História de Amor (1995), Por Amor (1997) e Quem é você?
(1996), Despedida de Solteiro (1992), Era uma Vez, (1998) e
Vila Madalena (1999) e Tropicaliente (1994) fazem parte deste
grupo. Caracteriza-se pelo ancoramento da vida cotidiana em
uma base romântica forte, sobre a qual são tratados alguns
temas atuais que atravessam o cotidiano da vida nas grandes
cidades. O problema do câncer de mama e a divulgação da im-
portância do esporte no tratamento dos deficientes físicos fo-
ram explorados na forma de mershandising social.

2) Romantismo futurista. Representado principalmente pela


autora Glória Perez, produziu novelas de grande sucesso como
Barriga de Aluguel (1990), De Corpo e Alma (1992), Explo-
de Coração (1995), Pecado Capital (1998), esta última, uma
segunda versão da novela de Janete Clair, em uma adapta-
158 ção para os anos 90. Caracteriza-se pelo tratamento de temas
atuais, como a crescente possibilidade de uso da tecnologia
para solucionar problemas que interferem nos relacionamen-
tos familiares e amorosos, como a inseminação artificial para
casais que não podem ter filhos, os transplantes de órgãos e
a denúncia à exploração do trabalho infantil e o problema do
desaparecimento de crianças. O mershandising social é uti-
lizado, através de campanhas a favor da doação de órgãos,
por exemplo. Inova também na abordagem dos contatos entre
diferentes culturas, um fenômeno típico da época, discutindo
como estes contatos interferem nas relações familiares e amo-
rosas. O leque das identidades e papéis sociais vividos pelas
personagens se amplia consideravelmente, sendo possível tra-
tar das desigualdades sociais de forma mais aprofundada, le-
vando em consideração sentimentos mais complexos. Explora
os limites dos papéis sociais de homens e mulheres, a inversão
psicológica destes papéis e a homossexualidade e problemas
relativos ligados à maternidade e o trabalho feminino na so-
ciedade contemporânea.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


3) Romantismo de experiências. Configura um grupo de auto-
res, na maioria novos ou estreantes que fazem experimentações
novas sobre a base do Romantismo individualista. Os principais
são, Antônio Calmon com Olho no Olho (1993), Cara e Coroa
(1995), Corpo Dourado (1998). Sérgio Marques com Salomé
(1991), Alcides Nogueira com O Amor está no Ar (1997) e Eu-
clides Marinho com Andando nas Nuvens (1999). Evitando
tratar das desigualdades sociais, com exceção das personagens
femininas providas de autonomia, são inspiradas num padrão
assentado no campo nos anos 80. A partir desta base explora
temáticas como o espiritismo, a vivência do coma, a ufologia e
os extraterrestres, vampirismo, ecologia, paranormalidade e a
construção de personagens usando arquétipos infantis.

O Romantismo Inverso, gerado nos anos 80, representado pela obra


de Cassiano Gabus Mendes, se desdobra novamente nos anos 90, na 159
forma do Romantismo Humorístico:

4) Romantismo humorístico. Representado pela obra do pró-


prio Cassiano Gabus Mendes e de Carlos Lombardi, tendo Lauro
César Muniz trabalhado uma novela dentro deste perfil: Zazá,
de 1997. Fazem parte deste grupo as novelas Meu Bem meu
Mal (1990), Perigosas Peruas (1992), O Mapa da Mina (1993),
Quatro por Quatro (1994), Vira Lata (1996) e Salsa e Meren-
gue (1996). Caracteriza-se pela presença de personagens estran-
geiros, pelo tratamento da corrupção através de seu aspecto
cômico, ou seja, os corruptos e malandros são ridicularizados,
muito embora este tema não seja central nas histórias. No amor
explora as tramóias, separações reconstituições de casais, a re-
composição familiar após as separações e o problema da AIDS.
Continua, neste aspecto, reproduzindo a forma risível do Ro-
mantismo clássico.

Além destes desdobramentos, a programação teledramatúrgica da


Rede Globo nos anos 90 coloca à disposição no horário nobre, duas

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


novelas que pertencem ao modelo original do Romantismo dos anos
70: Irmãos Coragem (1970) e Pecado Capital (1975), ambas em se-
gunda versão, exibidas respectivamente em 1995 e 1998. É importan-
te ressaltar o alto número de re-exibições no horário da tarde, com o
fortalecimento do formato “Vale a pena ver de novo”, iniciado nos
anos 80. Destacam- se no período a re-exibição de Gabriela em 1988,
de Vale Tudo em 1992 e de Renascer em 1995. A matriz modernista-
personalista dos anos 70, que havia se desdobrado em uma forma
afirmativa representada por Gilberto Braga e outra inversa, represen-
tada por Aguinaldo Silva, foi re-duplicada nos anos 90. (Ver gráfico
no anexo 3) forma afirmativa se apresentou em dois grupos:

1) Modernismo personalista globalizado. Representado pelo


desenvolvimento do trabalho de Sílvio de Abreu. Destacam-se
Rainha da Sucata (1990), Deus nos Acuda (1992), A Próxima
160 Vítima (1995) e Torre de Babel (1998). Caracteriza-se pela crí-
tica ao caráter do brasileiro e a decadência da elite. As histó-
rias tratam dos problemas e cenários da sociedade globalizada.
As grandes metrópoles e sua transformação urbana, as gran-
des empresas, conglomerados e shoppings centers, são cenários
para o desenrolar dos relacionamentos entre os personagens.

2) Modernismo personalista afirmativo. Constitui a continu-


ação da obra de Gilberto Braga, que foi desenvolvida e chegou
a uma fase de esgotamento nesta década. Inclui também no-
velas de autores de sua equipe com os primeiros trabalhos de
autoria de liderança de Leonor Brassères e Ricardo Linhares.
Deste grupo fazem parte Mico Preto (1990), Araponga (1990),
Lua Cheia de Amor (1990), O Dono do Mundo (1990) e Pátria
Minha (1994). A fórmula de Gilberto Braga dá mostras de can-
saço e esgotamento com a reação negativa do público à novela
O Dono do Mundo que radicalizava na construção vigarista do
anti-herói. Outra prova deste esgotamento é o fato de Gilberto
Braga ter cessado de figurar no horário nobre a partir de 1994 e
só voltado seis anos depois com uma adaptação de romance do

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


século XIX, (Força de um Desejo, 1999) o tipo de trabalho que
ele havia abandonado na década anterior.

Embora o modernismo-personalista afirmativo dos anos 80 chegas-


se à sua decadência, a forma de percepção, sentimento e pensamen-
to inaugurada por ele na comunicação com o público permaneceu
se fortalecendo através de duas formas invertidas que se desenvol-
veram nos anos 90:

1) Modernismo personalista inverso rural. Representado pela


obra de Benedito Rui Barbosa, com as novelas Renascer (1993),
O Rei do Gado (1996) e Terra Nostra (1999). Caracteriza-se como
inverso sobretudo porque o patriarca é visto como herói e não
anti-herói. Os patriarcas são vistos como pessoas que foram im-
portantes para o país, munidas de caráter admirável, coragem e
ousadia. Estes patriarcas são, na maioria, pertencentes a uma se- 161
gunda geração de estrangeiros radicados no país, proporcionan-
do a possibilidade da construção de uma identidade de fronteira
cultural. Assim, embora sejam apresentados como pessoas que
se sentem perfeitamente brasileiras, pelo nome e pelos hábitos,
fica claro que carregam no sangue a identidade européia que
se contrapõe à do patriarca típico brasileiro. As novelas tiveram
sucesso crescente na referida década junto ao público pelas te-
máticas e pelo tratamento das imagens e das gravações em es-
tilo cinematográfico, característicos do diretor Luiz Fernando de
Carvalho. O tratamento das desigualdades ganha complexidade
com a possibilidade de discussão de suas raízes no passado. Há
mulheres ousadas e autônomas e homens fortes e fracos. Os ne-
gros ainda estão ligados à imagem da colonização, do trabalho
braçal, enquanto o corte da classe social é suavizado através do
detalhamento psicológico dos personagens.

2) Modernismo personalista inverso realista mágico. Repre-


sentado pelo desenvolvimento do trabalho de Aguinaldo Silva
enquanto autor de liderança e pelos últimos trabalhos de Dias

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Gomes. Gente Fina (1990), Pedra sobre Pedra (1992), Fera Fe-
rida (1993), O Fim do Mundo (1996), A Indomada (1997) e
Suave Veneno (1999) estão neste grupo. Caracteriza-se pela ex-
ploração do personalismo pela via cômica, através da caricatura
e da paródia, criando personagens engraçados e o desenrolar
das histórias através da presença da magia, onde as crenças das
personagens se materializam colocando situações inusitadas.
Inspira-se no gênero literário do realismo fantástico conhecido
no Brasil principalmente pela obra do colombiano Gabriel Gar-
cía Marques. Através desta fórmula que obteve sucesso crescen-
te, foi possível explorar humoristicamente o personalismo.

A desvalorização progressiva da moral do sofrimento: valores


religiosos e crenças nas novelas.
162
O desdobramento das matrizes do Romantismo e do Personalismo
nos anos 90 apontam para a expansão geral das formas de cons-
trução das personagens e de tratamento das desigualdades. Este
fato aponta para o movimento de adaptação do habitus dentro de
condições favoráveis do campo.

Esta expansão se configura à primeira observação, como meramente


quantitativa. As novelas apresentam uma quantidade maior de possi-
bilidades de identificação para os telespectadores, acomodando me-
lhor as demandas da sociedade civil e permitindo que desigualdades
antes invisíveis na mídia, pudessem ser representadas e discutidas.
Em termos de conteúdo, os novos modelos ainda estão muito aquém
do reconhecimento destas desigualdades. Na questão de gênero, há
um aumento das imagens do sexo, chegando à banalização, mas não
da sexualidade. Neste quesito as novelas adaptadas diretamente da
literatura do século XIX são mais ricas do que as novelas dos anos 90.

No entanto, temas como o da violência contra as mulheres, e o


enriquecimento do tratamento dos problemas psicológicos vividos

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


pelas mulheres trazem discussões importantes. As desigualdades de
raça recuam nesta década, voltando a serem tratadas no contexto
do Brasil histórico, a partir das raízes da colonização. Ainda existem
poucos personagens negros nas novelas ambientadas na atualidade.
As diferenças de classe, constitutivas da estrutura do melodrama,
ganharam complexidade e foram suavizadas pela exploração psico-
lógica dos personagens, principalmente dentro da corrente do per-
sonalismo invertido. Algumas questões importantes vieram à tona,
como a questão agrária, por exemplo. Um grupo de personagens
representaram o MST na novela O Rei do Gado (1996) e discutiu-se
a dificuldade daqueles que pretendiam defender a causa no âmbito
político.3 Mas a partir de um estudo mais aprofundado, é possível
entrever outras duas novidades que parecem ser ainda mais impor-
tantes para o tratamento das desigualdades sociais nas novelas. A
primeira é a inserção da ciência num âmbito anteriormente exclu-
sivo da religião, através da microbiologia e a segunda, a mudança 163
do panorama das crenças e religiões apresentado nas novelas. Tais
mudanças são significativas, pois tem potencial para tocar nas ma-
trizes originais de percepção, pensamento e sentimento das novelas,
o Romantismo e o Modernismo personalista.

A exploração das potencialidades da microbiologia humana através


de suas conseqüências na vida cotidiana e nos relacionamentos afe-
tivos fortalece o Romantismo e o Modernismo personalista, na me-
dida em que constitui um aspecto ameaçador da modernidade, por
outro lado, os enfraquece, quando coloca em questão a doutrina
religiosa, sobretudo a católica. As novelas , principalmente aquelas
agrupadas na linha futurista de Glória Perez, provocam um deba-
te entre os partidários da religião, os conservadores e aqueles que
pensam ser estes fenômenos, parte natural do desenvolvimento da
sociedade. Já o fortalecimento e difusão de outras religiões além da

3 O incorruptível senador Roberto Caxias (Carlos Vereza), que acaba sendo assassinado no final da no-
vela. Observe-se que tanto o nome da personagem quanto seu final trágico denunciam o parentesco da
linha inversa rural com o Personalismo dos anos 70.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


católica coloca ambas as matrizes em questão. Para o Romantismo,
fortemente alicerçado de um lado no individualismo e de outro no
cristianismo, pode significar uma ameaça para a lógica da valoriza-
ção da consciência do sofrimento pessoal e alheio como eixo defini-
dor da moral. O cristianismo é uma religião construída em torno do
sofrimento. Sofrer é um ato louvável, visto como uma forma digna
de se obter uma felicidade ulterior. A máxima “Bem aventurados os
que sofrem” resume este princípio. Para o Romantismo, o sofrimen-
to é visto como parte da relação amorosa. “É doce sofrer de amor”.
A paixão amorosa e o amor irrealizado que colocam a vida em sus-
penso eram altamente valorizados no século XVIII.

O Modernismo personalista assenta-se sobre a valorização, na cultura


brasileira, de uma vida comunitária regida pela lógica católica, cujos
rituais internalizados na nossa socialização e na nossa vida privada,
164 teriam levado à construção do caráter personalista do brasileiro. Vem
do cristianismo e da religião católica a lógica da vida como totalidade,
da solidariedade e da caridade que permeiam a nossa valorização da
vida privada, conforme a teoria Damattiana (1987). Nas novelas dos
anos 70 e 80 os cultos afro-brasileiros e a magia apareciam como a
religião dos pobres e deserdados da nação. Mas não eram colocados
como um contraponto à doutrina católica, como a religião de cultu-
ras marginais resistentes. Eles eram valorizados enquanto crenças que
se misturavam à doutrina católica, todos pregando a seara comum do
sofrimento e do sacrifício como sentimentos e práticas importantes
na formação do cidadão brasileiro.

Estes pilares também poderiam ser colocados em cheque com a


sedimentação da representação da crise do catolicismo trabalhada
nas novelas. O enfraquecimento da inevitabilidade do sofrimen-
to no amor, caso internalizada, pode trazer fortes modificações
à doxa relativa às desigualdades sociais, a começar, no caso das
telenovelas, pelas de gênero, provocando inevitavelmente a crise
do habitus que fundamenta a dominação masculina. Com efeito,
nos anos 70 a presença das religiões nas novelas era praticamente

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


limitada à católica, ou na convivência entre os cultos africanos e
o catolicismo, como resultado da mistura cultural brasileira. Os
anos 80, com seu materialismo visceral, viu surgirem aqui e ali o
tratamento de outras crenças nas telenovelas. Os anos 90, ao con-
trário, explodiram em abordagens das crenças as mais diferentes
possíveis, abrangendo um amplo leque que vai do vampirismo até
a ufologia, passando pelo espiritismo. Este último contou com
algumas novelas que lhe foram inteiramente dedicadas. As causas
desta exploração das crenças e religiões no interior das novelas é
difícil de determinar fora do espectro do exercício dos profissionais
da criação para alcançar audiência a partir do espetacular. Embora
o Brasil continue sendo um país de maioria católica, o quadro da
evolução das crenças no Brasil apontava para o crescimento dos
“sem religião”4 e para a queda vertiginosa do número de católicos
no país. Entretanto, determinações políticas podem ter contribuí-
do também, como por exemplo, o poder que a religião protestante 165
passou a exercer no campo da teledramaturgia, através da pre-
sença dos pastores proprietários da Rede Record. Aliada ao cres-
cimento significativo do número de evangélicos nos país desde a
década anterior, esta mudança na configuração do mercado pode
ter ameaçado a Globo com a perda de 20% do total de audiência,
tornando imperativa a determinação de explorar outras crenças
para captar a audiência desta fatia do mercado. A representação
da crescente importância, para os brasileiros, de novas crenças e
religiões, possibilitaram o surgimento dos germes de uma práxis
inteiramente nova na área de criação do campo da teledramatur-
gia, dando vazão a uma possibilidade futura de modificação nas
suas matrizes de sentido iniciais, ainda que o tratamento direto
das desigualdades na construção e no comportamento das perso-
nagens ainda não tivesse sido modificado.

4 Segundo o Censo do IBGE de 2000, os “sem religião” compõe 7,4% da população brasileira. Eles se
concentram no Sudeste e Centro-Oeste com 8%, em seguida o Nordeste com 7,8% , o Norte com 7% e
o Sul com 4,1% de pessoas. Os evangélicos são cerca de 15% e os católicos, 70%.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Matrizes e habitus: permanências e mudanças na representa-
ção das desigualdades sociais (2000-2008)

Além da continuidade do alto ritmo de expansão iniciado nos anos


90, o campo da teledramaturgia vem sendo fortemente marcado
pela redefinição das competências no seu interior e na relação com
os outros campos. Este campo vai sendo radicalmente ampliado e
suas fronteiras tornam-se indefinidas, à medida em que a luta passa
a refletir novos tipo de concorrência entre novos tipos de agentes,
à semelhança do que ocorre no campo religioso segundo Bourdieu
(1990). Esta ampliação implica em mais espaço e condições para os
profissionais da criação, apesar do aumento da concorrência.

O fato mais importante desta reorganização do campo pode ser


atribuído à solidificação da produção de teledramaturgia por outras
166 redes de televisão além da Globo. Segundo o relatório Obitel 2007, a
TV Bandeirantes ainda representa uma força tímida no campo, com
dois sucessos e público: Floribella e Paixões Proibidas. A TV Record
do bispo Edir Macedo, da Igreja Evangélica ao contrário, passou a
ser a segunda maior produtora de teledramaturgia do Brasil, ultra-
passando o SBT. Construiu um complexo de estúdios no Rio de Ja-
neiro, contando com alto volume de investimentos financeiros, com
resultados excelentes em termos de competição comercial com a
Globo. De 2004 a 2007 a audiência das telenovelas da Globo dimi-
nuíram 20% enquanto a da Record cresceu 150%. Em abril de 2007
a audiência média nacional da Globo era de 29,9 pontos enquanto
a da Record era de 10,2.5 A estratégia utilizada para conseguir este
feito foi a cópia sistemática do padrão global, inclusive da inspira-
ção nas matrizes de percepção, sentimento e pensamento estabele-
cidas nas décadas anteriores pela sua concorrente. O maior êxito até
o momento foi o remake de A Escrava Isaura veiculado em 2004.

5 Fonte: Ibope, média das 18 h à 0h. Cada ponto equivale a 550 mil domicílios.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


NOVELAS EXIBIDAS PELA REDE GLOBO DE TELEVISÃO ENTRE 2000 E 2008
ANO 18 HORAS 19 HORAS 21 HORAS
Esplendor Vila Madalena Laços de Família
(Ána Mª Moretzshon) (Walter Negrão) (Manoel Carlos)
2000
O Cravo e a Rosa Uga-Uga
(Walcyr Carrasco) (Carlos Lombardi)
Porto dos Milagres
Estrela Guia Um Anjo Caiu do Céu
(Aguinaldo Silva
(Ana Mª Moretzshon) (Anônio Calmon)
2001 e Ricardo Linhares)
A Padroeira As Filhas da Mãe O Clone
(Walcyr Carrasco) (Sílvio de Abreu) (Glória Perez)
Coração de Estudante Desejos de Mulher Esperança
(Emanuel Jacobina) (Euclydes Marinho) (Benedito Rui Barbosa)
2002
Sabor da Paixão O Beijo do Vampiro
(Ana Mª Moretzshon) (Antônio Calmon)
Agora é que são Elas Kubanacam Mulheres Apaixonadas
(Ricardo Linhares) (Carlos Lombardi) (Manoel Carlos)
2003 167
Chocolate com Pimenta Celebridade
(Walcyr Carrasco) (Gilberto Braga)
Cabocla Da Cor do Pecado Senhora do Destino
(Benedito R. Barbosa) (João Emanuel Carneiro) (Aguinaldo Silva)
2004 Começar de Novo
Como uma Onda
(Antônio Calmon e
(Walter Negrão)
Elizabeth Jhin)
A Lua me Disse
Alma Gêmea América
( Miguel Falabella
2005 (Walcyr Carrasco) (Glória Perez)
e Mª Carmem Barbosa)
Bang-Bang (Mário Prata) Belíssima (Sílvio de Abreu)
Sinhá Moça Cobras e Lagartos Páginas da Vida
(Benedito R. Barbosa) (João Emanuel Carneiro) (Manoel Carlos)
2006
O Profeta Pé na Jaca
(Thelma Guedes) (Carlos Lombardi)
Paraíso Tropical
Eterna Magia Sete Pecados
(Gilberto Braga
(Elizabeth Jhin) (Walcyr Carrasco)
2007 e Ricardo Linhares)
Desejo Proibido Duas Caras
(Walter Negrão) (Aguinaldo Silva)
Ciranda de Pedra Beleza Pura A Favorita
2008
(Alcides Nogueira) (Andréa Maltarolli) (João Emanuel Carneiro)

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


MINISSÉRIES EXIBIDAS PELA REDE GLOBO
ENTRE 2000 E 2008
A Muralha
(Maria Adelaide Amaral e João Emanuel Carneiro)
A Invenção do Brasil
2000
(Guel Arrraes)
Aquarela do Brasil
(Lauro César Muniz)
Os Maias
(Maria Adelaide Amaral)
2001
Presença de Anita
(Manoel Carlos)
O Quinto dos Infernos
(Carlos Lombardi)
2002
Cidade dos Homens
(Guel Arraes)
A Casa das Sete Mulheres
168 2003
(Maria Adelaide Amaral)
Hoje é Dia de Maria
(Luis Alberto de Abreu e Luis Fernando Carvalho)
Mad Maria
2005
(Benedito Rui Barbosa)
Carandiru e outras Histórias
(Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas)
JK
(Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira)
2006
Antônia
(Elena Soárez, Fernando Meirelles)
Amazônia
(Glória Perez)
2007 A Pedra do Reino
(Luis Alberto de Abreu, Bráulio Tavares
e Luis Fernando Carvalho)
Queridos Amigos
2008
(Maria Adelaide Amaral)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


NOVELAS EXIBIDAS PELA TV RECORD ENTRE 2000 E 2004
HORÁRIO DAS 20 HORAS - SEGUNDA FASE
Marcas da Paixão
(Solange Castro Neves)
2000
Vidas Cruzadas
(Marcos Lazarini e Ecila Pedroso)
Roda Viva
2001
(Solange Castro Neves)
Metamorphoses
2004
(Arlete J. Gaudin)
NOVELAS EXIBIDAS ENTRE 2004 E 2008 -
TERCEIRA FASE
Ano 18 horas 19, 20 e 21 h 22 h.
A Escrava Isaura
2004 (Tiago Santiago
e Ana Mª Nunes)
Essas Mulheres 169
(Marcílio Morais)
2005
Prova de Amor
(Tiago Santiago)
Alta Estação Bicho do Mato Cidadão Brasileiro
(Margareth Bouri) (Cristianne Friedman) (Lauro César Muniz)
2006
Vidas Opostas
(Marcílio Morais)
Luz do Sol Caminhos do Coração
(Ana Mª Nunes) (Tiago Santiago)
2007
Amor e Intrigas
(Gisele Joras)
Chamas da Vida
2008
(Cristianne Friedman)

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


NOVELAS EXIBIDAS PELA REDE SBT
ENTRE 2000 E 2008
O direito de Nascer (Aziz Bajur e Jayme Camargo)
2001 Pícara Sonhadora (Abel Santa Cruz)
Amor e Ódio(Henrique Zambelli)
Marisol (Henrique Zambelli)
2002
Pequena Travessa (Rogério Garcia e Simoni Boer)
Jamais te Esquecerei (Henrique Zambelli)
2003
Canavial de Paixões (Henrique Zambelli e Simoni Boer)
Seus Olhos (Ecila Pedroso)
2004
Esmeralda (Henrique Zambelli e Rogério Garcia)
Os Ricos também Choram
2005
(Aimar Labaki e Gustavo Reiz Conchi)
2006 Cristal (Anamaria Nunes)
Maria Esperança (Yves Dumont)
170 2007
Amigas e Rivais (Letícia Dornelles)
2008 Revelação (Íris Abravanel)

NOVELAS EXIBIDAS PELA REDE BANDEIRANTES


ENTRE 2000 E 2008
Floribella
2005
(Patrícia Moretzhon e Jacqueline Vargas)
Floribella 2
(Patrícia Moretzhon e Jacqueline Vargas)
2006
Paixões Proibidas
(Aimar Labaki)
Dance, Dance, Dance
2007
(Yoya Wursch)
Água na Boca
2008
(Marcus Lazarini)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Esta re-configuração da produção da teledramaturgia provocou for-
tes transformações na organização interna da Globo, que passou a
fazer planejamentos anuais.

“Desde 2002 a emissora começou a trabalhar com o modelo


de temporadas, inédito desde então no país. Séries como
A Grande Família (2001), A Diarista (2004) e Sob Nova
Direção (2004), entre outras, ganharam um espaço fixo na
programação anual, (sendo exibidas) após a principal novela
do horário nobre. As minissérie passaram a ser transmiti-
das uma ou duas vezes por ano.. Desta forma a emissora
refaz sua estratégia para conseguir manter sua hegemonia
no atual cenário, o que exige diversificação de ações tanto
no plano interno como no externo. Internamente, continua
controlando os índices de audiência e mantém entre os te-
lespectadores o habito não só diário mas também anual de
consumir seus programas. (...) Além disso está envolvida em 171
um processo sistemático de internacionalização, relações
com canais internacionais e realizações de co-produções
(HBO e Telemundo).”(Vilches, 2007:82)

No final da década novas tecnologias atravessam o campo da tele-


dramaturgia contribuindo para a sua expansão. Inicia-se, por exem-
plo, a difusão pela televisão digital em São Paulo. A presença da
TV paga e da Internet rápida aumenta no país. Algumas televisões
afiliadas começam a produzir teledramaturgia, como o pólo de dra-
maturgia do nordeste da TV Jornal de Pernambuco. Externamente,
inaugura-se a televisão pública TV Brasil (idem).

Diminuição da desigualdade de renda no país e novos desdo-


bramentos do habitus de criação

Embora a televisão digital, a televisão a cabo e a internet rápida sejam


restritas às classes mais altas, o público nacional das novelas sofre
também uma transformação de grandes proporções. Tal transforma-

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


ção não está ligada somente ao aumento da difusão de equipamentos
de consumo de áudio-visual, mas sobretudo de políticas públicas de
inclusão social levadas a efeito pelo governo Lula. Segundo pesquisa
do IBGE6, de 2004 a 2006, a cobertura dos programas sociais aumen-
tou e chegou a um quarto da população. Programas sociais como o
BPC – Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e deficien-
tes físicos muito pobres, o Peti – Programa de Erradicação o Traba-
lho Infantil, destinado a tirar crianças de atividades econômicas para
devolvê-las às escolas, e, principalmente do Bolsa Família, dirigido
a famílias com crianças com 7 a 14 anos na escola, aumentaram o
rendimento do total da população pobre em 19,4% no referido perí-
odo. A maior cobertura dos programas ocorreu no Norte e Nordeste,
regiões onde a pobreza é proporcionalmente maior. A região Nordeste
está em segundo lugar na lista de regiões mais contempladas, e o
Estado de Pernambuco, onde foi realizada a maioria das pesquisas
172 de recepção apresentadas neste livro, está em sétimo lugar entre os
Estados mais beneficiados. (Segundo o IBGE, Roraima está em 1º lu-
gar, com 50% dos domicílios contemplados, Maranhão, com 41,3%,
Piauí, com 40,2%, Ceará, com 39%, Paraíba, com 37,9%, Alagoas
com 36,8% e Pernambuco com 34,9%. Os outros Estados do Nordes-
te foram contemplados com percentuais inferiores, como por exemplo
a Bahia com 33,3%, o Pará com 24,7% e o Amazonas com 24%.)

A classe A representava 56.894 do total dos domicílios, a classe B,


321.873, a classe C, 749.112, a classe D, 592.661, e a classe E, 68.499.
(idem) Em Pernambuco os consumidores das classes C, D e E, repre-
sentavam em 2007, 78% das residências na área urbana7, que con-
centram a maior parte do Estado. O resultado deste aumento signi-
ficativo de renda foi uma real diminuição da desigualdade de renda
e uma raríssima ascensão coletiva na estrutura social brasileira, com
cerca de 20 milhões de brasileiros saindo das classes D e E e entrando

6 IBGE, PNAD de 2006, divulgada em 28 de março de 2008.


7 A classe A representava 56.894 do total dos domicílios, a classe B, 321.873, a classe C, 749.112, a
classe D, 592.661, e a classe E, 68.499. (idem)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


na classe C, entre os anos de 2002 e 2007 (Juntas, as classes C, D e
E eram responsáveis por 71% das compras em 2007. Este fato pro-
vocou uma guinada no direcionamento das marcas e da publicidade,
que voltaram-se para estas classes. Produtos caros passaram a ser
comercializados através da facilitação do pagamento com divisão em
muitas parcelas no cartão de crédito. O consumo geral aumentou,
não somente dos itens alimentação, higiene e limpeza, mas também
de eletrodomésticos, habitação e lazer. Fonte: Pesquisa Target Marke-
ting, divulgada no Jornal do Commércio em 17/06/07).

O campo da teledramaturgia procurou absorver o impacto desta


transformação no público, criando novelas que pudessem captar a
identificação destas classes sociais. Novelas como Senhora do Des-
tino (Aguinaldo silva, 2004), Vidas Opostas (Rede Record, Marcí-
lio Morais, 2006) e Duas Caras (Aguinaldo Silva, 2007), obtiveram
sucesso de público. As séries Cidade dos Homens (2002), Antônia 173
(2006) e, no cinema Tropa de Elite (2007), entre outros, retrataram
o cotidiano das classes C, D e E no Brasil de maneira séria, sem fazer
concessão ao estilo “popularesco” emergente. Esta mudança, não só
na área da ficção televisiva, mas em toda a criação de ficção áudio-
visual do país, provocou uma verdadeira revolução na legitimida-
de e reconhecimento das classes mais pobres. Se antes as novelas
eram voltadas para a identificação da classe média, mostrando que
o Brasil “era a classe média”, agora, as classes mais pobres tem, fi-
nalmente, seu lugar na mídia e na televisão. Precisam ser analisados
com todo o cuidado os efeitos desta transformação na auto-estima
e no orgulho da nossa população, que a longo prazo, e junto com
outros processos, como a popularização da educação de qualidade,
certamente, elevarão o grau da democracia no país. Neste traba-
lho, podemos contribuir mostrando como o reconhecimento passa a
ocorrer no nível subjetivo, através da forma como os telespectadores
reagem às novelas, avaliam e julgam os personagens, construindo
formas mais autênticas de discurso sobre sua existência e sua vida
cotidiana, através das formas de percepção, sentimento e pensa-
mento mais próximas das suas que são apresentadas nas novelas.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


No desenvolvimento das matrizes originais, este período apresenta,
sobretudo a valorização do trabalho de Aguinaldo Silva, inscrito na
nossa corrente Modernista personalista inversa. Entre 2000 e 2008,
o autor foi responsável por três novelas de grande sucesso no horá-
rio nobre: Porto dos Milagres (2001), Senhora do Destino (2004) e
Duas Caras (2007). O processo de criação do autor sofreu modifi-
cações com relação à década anterior, mais voltada para o realismo
fantástico. O tratamento das crenças e da religião são minimizadas
nos trabalhos da década de 2000, em benefício do tratamento mais
plausível dos problemas cotidianos das classes mais baixas princi-
palmente dos habitantes das favelas. É grande, também, o espaço
dedicado às relações de contato entre classes baixas e classe média e
elite. Outros representantes do Modernismo personalista continuam
em voga, como a corrente rural de Benedito Rui Barbosa, que neste
período escreveu somente Esperança (2002) e Sinhá Moça (2006).
174 Os Modernismos personalistas afirmativos continuam com alguns
trabalhos de Gilberto Braga, com menor sucesso que nos períodos
anteriores como Celebridade (2003) e Paraíso Tropical (2007), e
Sílvio de Abreu com As filhas da Mãe (2001) e Belíssima (2005).
Novos desdobramentos desta corrente são as primeiras novelas de
liderança de autoria de Ana Maria Moretzhon Esplendor (2000),
Estrela Guia (2001) e Sabor da Paixão (2002), e de João Emanuel
Carneiro Da Cor do Pecado (2004), Cobras e Lagartos (2006) e A
Favorita (2008).

O Modernismo personalista afirmativo torna-se mais frágil nesta


década. O trabalho de Gilberto Braga procura se adaptar às trans-
formações da audiência, criando tipos populares importantes como
a Bebel de Paraíso Tropical. Benedito Rui Barbosa encerra sua con-
tribuição no horário nobre e passa a produzir novelas para o horário
das 18 horas8. As novelas de Gilberto Braga têm maior audiência
entre a classe média do que entre as classes C, D e E. O autor tem re-

8 É importante assinalar que o horário das 18 horas torna-se muito importante nesta década, acumu-
lando audiência e investimento para suas novelas.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


conhecimento junto a outros campos sociais como o campo intelec-
tual. Segundo reportagem da Folha de São Paulo9 sobre a recepção
da novela Paraíso Tropical entre os intelectuais, estes apresentam
uma visão muito positiva do trabalho do autor, com uma argumen-
tação que aponta para os elementos de renovação da obra, como
por exemplo o fato de que, nesta novela, “os vilões são impotentes,
e cada ato de interesse imoral rumo ao dinheiro, o sujeito oculto
de toda a trama, corresponde uma imediata frustração. Nada se
realiza nos planos gerais de supremacia de quem os tem. (...) Se
comenta aí o estado de moratória social e de crise de orientação
das elites.” (Tales Ab’Saber, doutor em Psicologia)10

A visão do Brasil de Vale Tudo, na qual os corruptos sempre vencem


sofreu modificações profundas em Paraíso Tropical, para adequar-
se às novas condições do campo, embora o motor das trajetórias
continue sendo o dinheiro. Este fato o mantém como representante 175
da matriz modernista-personalista afirmativa. Seria necessário fazer
um estudo em profundidade da evolução do trabalho deste autor
para saber se as mudanças apresentadas em Paraíso Tropical signi-
ficaram ou não uma transformação interna para um desdobramento
inverso da matriz modernista-personalista. Não será possível faze-lo
no âmbito do presente trabalho. Na Record, o modernismo-per-
sonalista se reproduz, através dos trabalhos de Lauro César Muniz
Cidadão Brasileiro (2006) e Marcílio Morais, Vidas Opostas (2006).

Trabalhos representantes das correntes derivadas do modernismo-


personalista foram re-exibidos em Vale a Pena Ver de Novo: Sílvio
de Abreu A Próxima Vítima (2000), e Deus nos Acuda, (2004), Dias
Gomes Roque Santeiro (2000), Benedito Rui Barbosa Terra Nostra
(2004) e Cabocla (2008).

9 “Paraíso Intelectual”, reportagem de Rafael Cariello e Laura Mattos, Caderno Ilustrada. Folha de São
Paulo, 26 de agosto de 2007.
10 O artigo recolhe ainda posições favoráveis sobre a novela e a obra do autor de Sérgio Miceli (sociólo-
go) e Renato Janine Ribeiro (filósofo), ambos da Universidade de São Paulo.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Dentro da corrente do Romantismo, fortaleceu-se o trabalho de Ma-
nuel Carlos Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003) e
Páginas da Vida (2006) e Glória Perez com O Clone (2001), e América
(2005). Destaca-se na corrente do Romantismo do cotidiano, da qual
faz parte Manoel Carlos, o surgimento de uma nova autora, Elizabeth
Jhin, com o sucesso das 18 horas, Eterna Magia (2007). A corrente
do Romantismo de experiências tem continuidade forte com Antônio
Calmon, sobretudo no horário das 19 horas com Um Anjo caiu do Céu
(2001), O Beijo do Vampiro (2002) e Começar de Novo (2004). Esta cor-
rente apresenta um autor novo com novelas de grande sucesso, Walcyr
Carrasco, com A Padroeira (2001), Chocolate com Pimenta (2003),
Alma Gêmea (2005) e Sete Pecados (2007). A corrente do Romantismo
humorístico, inverso, continua com os trabalhos de Carlos Lombardi:
Uga-Uga (2000), Kubanacam (2003) e Pé na Jaca (2006). Esta corrente
apresenta uma nova autora Andréa Maltarolli com um sucesso de audi-
176 ência, a novela Beleza Pura (2008).

Várias novelas das diferentes correntes do Romantismo são re-exi-


bidas em Vale a Pena Ver de Novo, entre as quais destacam-se: A
Gata Comeu (2001) e A Viagem (2006) de Ivani Ribeiro; História de
Amor (2001), Por Amor (2002) e Laços de Família (2005) de Ma-
nuel Carlos; Anjo Mau (2003) de Maria Adelaide Amaral; O Cravo e
a Rosa (2003) e Chocolate com Pimenta (2006) de Walcyr Carrasco.
A Record e a Bandeirantes reproduziram na maioria de suas novelas
o Romantismo tradicional atualizado. Ainda não há nestas redes de
televisão, grupos de autores que desenvolvam formas coletivas de
criação. Em geral, procura-se inspirar nos modelos da Globo.

As séries têm seu ritmo de desenvolvimento próprio, trazendo novi-


dades e apresentando espaço para experimentações com relação à
linguagem e à estética da ficção na televisão, chegando a um nível
ótimo de qualidade nesta década. Merecem destaque Hoje é Dia de
Maria de Luis Alberto de Abreu e Luis Fernando Carvalho (2005) e
JK, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira (2006).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Forças que enfraquecem e forças que mantém o poder das
matrizes originais

As novelas da primeira década do século XXI chegaram a um ponto


de expansão e desenvolvimento máximo em sua história. Pode-se
dizer que cada novela é um empreendimento de grande porte, não
somente do ponto de vista econômico, mas em todos os sentidos.
Houve um aumento significativo do investimento em infra-estru-
tura, cenários e equipamentos, mas também em pesquisa para a
área de criação, aproximando o campo da teledramaturgia de outros
campos como o cinema e a Universidade. A maioria das novelas
é subsidiada por extenso trabalho de pesquisa, que envolve uma
pluralidade de métodos que vai desde o levantamento histórico até
a pesquisa de campo, que envolvem todo o corpo de profissionais,
inclusive os atores, em sessões do que se convencionou chamar de
laboratórios, onde são submetidos a longos estágios junto a pesso- 177
as, situações e contextos que devem representar nas novelas. Além
da pesquisa, duas outras forças enfraquecem a hegemonia das ma-
trizes originais no contexto do trabalho de criação dos autores e
suas equipes.

Com o aumento dos países que importam as telenovelas da Globo,


adotou-se a estratégia de realizar novelas que façam alguma ligação
entre o Brasil e outros países. Várias novelas das 20 horas fizeram
gravações de capítulos das primeira semana de exibição, em outros
países, como O Clone (2001), Esperança (2002) e América (2005),
por exemplo. Este recurso gerado pelo campo da teledramaturgia,
para fazer face a novos desafios para as telenovelas, produzem efei-
tos diretos na questão das desigualdades sociais e sua dimensão
subjetiva e de identificação. Vimos que uma das matrizes originais
de criação das telenovelas no Brasil era calcada em uma discussão
das relações inter-pessoais e sociais da forma como elas se dão no
cotidiano nacional. Esta matriz foi construída sobre uma interpre-
tação do Brasil determinada, que veio se relativizando no decorrer

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


do tempo. A justaposição da vida cotidiana brasileira e da de outros
países teve efeitos contraditórios. Se por um lado ela radicalizou o
processo de relativização da identidade nacional transmitido pelas
novelas, de outro, reativou antigas formas de percepção, sentimen-
to e pensamento do que é ser brasileiro pelo público. De qualquer
forma, o simples fato de colocar a identidade nacional em questão
nas novelas significa um trabalho consistente que toca na matriz
Modernista personalista e em suas correntes afirmativas.

Além disso, a discussão sobre as crenças e as religiões também con-


tinuou na década de 2000. Como vimos no capítulo anterior, o tra-
tamento alternativo das crenças e da religião é um fator desestabi-
lizador do consenso em torno dos sentidos do Romantismo e do
Modernismo personalista. O paradigma católico parece ser totalmente
colocado em questão nesta década. Pode-se dizer que existe hoje,
178 nas novelas, uma espécie de consenso a respeito da existência da vida
após a morte que reforça não apenas o Espiritismo, mas muitos tipos
de esoterismo e crenças alternativas. A re-exibição de A Viagem de
Ivani Ribeiro em 2006 parece se inscrever nesta proposta. Toda a linha
do que chamamos aqui de Romantismo de experiências se desenvol-
veu bastante, trazendo contribuições e novidades como o trabalho de
Walcyr Carrasco, por exemplo. A novela Alma Gêmea, que tratou da
trajetória de uma personagem no decorrer de duas vidas (a índia Sere-
na, interpretada por Priscila Fantin), obteve expressivo sucesso junto
ao público. A fé católica teve lugar em algumas novelas das 18 horas,
como A Padroeira de Walcyr Carrasco (2001) e Ciranda de Pedra de
Alcides Nogueira (2008). Mas o para-psiquismo, a magia e a presença
de anjos do bem e anjos do mal interferindo na vida cotidiana foram
a tônica das novelas. Em 2007, Duas Caras de Aguinaldo Silva, traz
finalmente, a religião protestante para as novelas, mostrando como
as normas desta religião modelam o comportamento de seus fiéis,
através de personagens que vivem na favela. Em Páginas da Vida
(2006), Manoel Carlos que não tratava deste assunto em suas novelas,
abre uma exceção para o tema da vida após a morte, quando mostra
personagens recebendo sinais de pessoas que já morreram (Helena,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


interpretada por Regina Duarte, recebe sinais da presença de Nanda
(Fernanda Vasconcelos). Pode-se dizer que o tema da vida após a
morte passa a ser tratado como uma questão séria pelas novelas, sain-
do da dimensão do realismo fantástico e do surrealismo humorístico,
característico das décadas anteriores.

Por último, a radicalização do acúmulo de gêneros no interior da


novela, envolvendo padrões estéticos e de linguagem, radicalizam
os processos de hibridização que atingem, também, a seu modo, a
estabilidade das matrizes originais nas novelas novas. Nesta década
passa a ocorrer misturas entre as novelas. Personagens de novelas
anteriores são acessados nas novelas presentes. Por exemplo, o de-
putado Pitágoras, personagem de Ary Fontoura em A Indomada
(1997) vem a Porto dos Milagres em 2001. A caracterização das per-
sonagens passa a basear-se muito frequentemente em personagens
de outros gêneros de ficção e dramaturgia, além da literatura como 179
nos períodos anteriores.

A questão da autoria

O campo da teledramaturgia ganhou autonomia à medida que o


público passou a opinar na criação das novelas. A rede Globo de te-
levisão passou a ter maior liberdade de definição da sua programação
de entretenimento nesta década. As novelas deixaram de ser definidas
por anunciantes restritos como nos anos 70. A publicidade foi pouco
a pouco diminuindo sua interferência sobre o conteúdo das histórias.
O diálogo com o público, embora restrito à classe média e o aumento
da importância dos índices de audiência foram fatores importantes
para esta mudança. Até o fim da década, a Globo definia o padrão
definitivo do horário nobre que vigora até os dias de hoje, ou seja, a
novela das 18 horas, seguida pela novela das 19 horas, em seguida o
Jornal Nacional, e a novela das 20 horas. As novelas tornaram-se mais
elaboradas e com maior número de tramas internas. Expandiu-se o
número de profissionais envolvidos no trabalho de autoria e de reda-

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


ção de roteiros. Nos anos 70, 26 autores foram responsáveis pela cria-
ção de 64 novelas. Nos anos 80, um número menor de novelas (57)
foi criado por um número bem maior de profissionais de criação (37).

NÚMERO DE NOVELAS POR AUTOR NOS ANOS 7011


AUTOR (A) NÚMERO DE NOVELAS
Janete Clair 11
Gilberto Braga 7
Dias Gomes 6
Lauro Cezar Muniz 6
Bráulio Pedroso 5
Cassiano Gabus Mendes 5
Walter Negrão 4
Benedito Rui Barbosa 4
Vicente Sesso 3
180
Walter Jorge Durst 3
Manoel Carlos 3
Jorge Andrade 2
Marcos Rey 2
Silvan Paezzo 2
Mário Prata 2
Renato Correia e Castro 1
Maria Clara Machado 1
Mário Lago 1
Lafayette Galvão 1
Rubens Ewald filho 1
Sílvio de Abreu 1
Wilson Aguiar Filho 1
Teixeira Filho 1
Chico de Assis 1
Walter Avancini 1
Fábio Sabag 1

11 idem

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


NÚMERO DE NOVELAS POR AUTOR NA DÉCADA DE 8012
Walter Negrão 9
Cassiano Gabus Mendes 7
Gilberto Braga 6
Lauro Cezar Muniz 6
Aguinaldo Silva 6
Ivani Ribeiro 5
Manoel Carlos 4
Sílvio de Abreu 4
Benedito Rui Barbosa 4
Carlos Lombardi 4
Alcides Nogueira 4
Leonor Brasséres 4
Luis Carlos Fusco 4
Ana Maria Moretzsohn 4 181
Wilson Rocha 3
Janete Clair 3
Glória Perez 3
Dias Gomes 3
Daniel Más 3
Edmara Barbosa 3
Ricardo Linhares 3
Wilson Aguiar Filho 2
Teixeira Filho 2
Marilu Saldanha 2
Marcílio Moraes 2
Geraldo Vietri 1
Carlos Eduardo Novaes 1
Roberto Freire 1
Walter Jorge Durst 1
Euclides Marinho 1
Luciano Ramos 1

12 idem

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


Mário Prata 1
Dagomir Marquezi 1
Rose Calza 1
Sérgio Marques 1
Antônio Calmon 1
Regina Braga 1

Observa-se nas tabelas, uma tendência a distribuição do trabalho


entre os profissionais. Apenas 23 dos que figuram na tabela acima
foram os únicos autores ou lideraram equipes de autores. Os demais
foram colaboradores ou substituíram os autores iniciais em traba-
lhos já começados, como Walter Negrão e Lauro Cezar Muniz, por
exemplo. Ocorre também nesta década, a divisão do trabalho de
criação por novela. Temos poucos autores que se responsabilizaram
182
por uma novela inteira, e uma maioria de novelas escritas por gru-
pos de autores, conforme mostra a tabela abaixo:

NÚMERO DE AUTORES POR NOVELA13


DÉCADA DE 70 DÉCADA DE 80
NÚMERO NÚMERO NÚMERO NÚMERO
DE AUTORES DE NOVELAS DE AUTORES DE NOVELAS
1 60 1 22
2 4 2 26
3 0 3 4
Mais de três 0 Mais de 3 5

Diante deste quadro, torna-se necessário colocar em questão o proble-


ma da autoria nas novelas. Diferentemente dos campos profissionais
da literatura e do cinema, nas novelas existem alguns profissionais que

13 idem

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


criam a sinopse, os textos e supervisionam os outros redatores, e outros
que escalam o elenco, indicam o diretor –geral, participam da trilha
sonora e fazem outras interferências no processo de produção (No-
gueira, 1995). Esta divisão de trabalho tende a aumentar nas décadas
seguintes. No cinema de autor, a produção é controlada pelo diretor.
Na televisão, pela emissora, que, a partir dos anos 80, levava ainda em
consideração as prescrições da Censura Federal e crescentemente os
índices de audiência. Alguns autores podem ser considerados como lí-
deres e conservam um estilo próprio nesta década, é o caso de Gilberto
Braga , Cassiano Gabus Mendes, Manoel Carlos, Ivani Ribeiro, Sílvio de
Abreu e Benedito Rui Barbosa. Outros iniciam seus trabalhos neste pe-
ríodo, inicialmente como colaboradores e firmam uma forma própria de
comunicação com o público nos anos seguintes, em que farão traba-
lhos autônomos. Aguinaldo Silva, Glória Perez e Carlos Lombardi fazem
parte deste grupo. Esta tendência contrasta fortemente com o modo
de autoria da década de 70, na qual poucos autores eram responsáveis 183
individualmente por um grande número de novelas. Janete Clair, por
exemplo, escreveu sozinha 11 novelas. Ela faleceu em 1983, deixando
em aberto um espaço bastante significativo que foi preenchido com o
surgimento de um número crescente de novos autores e outros profis-
sionais envolvidos na criação das novelas.

A questão da autoria indica, por um lado, a flexibilidade e rapidez de


reconstituição do campo da teledramaturgia, a necessidade dos pro-
fissionais envolvidos de estarem sempre prontos para mudanças oca-
sionadas tanto no lado da emissora e do contexto jurídico-político e
mercadológico dentro do qual são elaboradas as novelas, quanto no
lado das necessidades, anseios e reclamações do público que tende
a se expandir de forma crescente. Por outro lado, esta flexibilidade e
a relativização da autoria das novelas colocam em questão a idéia de
que as telenovelas continuam apresentando uma forte homogeneidade
de construção (nas práticas de criação) das lógicas de percepção, pen-
samento e sentimento que são vividas pela sociedade brasileira e que
atravessam as novelas através do tempo, gerando um habitus de criação
teledramatúrgica que se articula com o habitus de percepção das desi-

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


gualdades sociais pelo público. Embora o estilo do autor, que gera uma
“atmosfera de comunicação” que a novela estabelece com o público,
na qual valores morais são transmitidos entrelaçados com sentimentos
e percepções determinados, pode-se perguntar como continuar relacio-
nando a crescente diversidade de novas tendências às matrizes origi-
nais. A cada década este exercício torna-se mais difícil.

Além disso, nos anos 90 e 2000, veremos que a tônica da criação


será a hibridização de temáticas e tratamentos, o que fará com que o
exercício mais importante da criação seja o alcance de uma unidade
interna do texto a partir de uma grande diversidade de influências.
Com efeito, a telenovela nos anos 80 já havia firmado uma forma de
leitura das telenovelas baseada nestes dois paradigmas que continu-
avam importantes para suscitar a empatia do público. A partir dos
anos 80 surgem novas formas de comunicação com o publico como
184 a de Cassiano Gabus Mendes, mais voltado para questões atuais,
para uma banalização do mundo da elite e da moda, ou de Benedito
Rui Barbosa, que contempla uma sensação de nostalgia da vida no
campo, e de momentos históricos da vida cotidiana no Brasil, ou
Manoel Carlos, que firmará nos anos 90 um habitus de tratamento
da vida cotidiana da classe média cujo modelo é construído a partir
de certos bairros da cidade do Rio de Janeiro, como o Leblon.

Não obstante, a influência do Romantismo e do Modernismo-per-


sonalismo originais continua forte, apresentando-se transformada
através de novas formas, adaptada para a atualidade vivida no mo-
mento. Pode-se perceber traços fortes do Romantismo na obra de
Ivani Ribeiro e do personalismo na obra de Gilberto Braga, Dias
Gomes e Lauro Cezar Muniz. O Romantismo e o personalismo são,
então, trabalhados nesta década, não só para gerar empatia e co-
municabilidade, como nos anos 70, mas também para constituir
pilares de sustentação a partir do qual outras tendências de percep-
ção, pensamento e sentimento poderiam se apoiar até se firmarem
como parte integrante do desenvolvimento do habitus de criação no
campo da teledramaturgia.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


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Vilches, Lorenzo (org) Anuário Obitel 2007. Culturas y mercados de la


ficción televisiva em Iberoamérica. Editorial Gedisa, Barcelona, 2007.

Limites do conceito de campo para entender a teledramaturgia brasileira


O espectador de cinema
na perspectiva disposicionalista1
Augusto Amorim2

187

Introdução

Para além da importante questão relativa à prática espectatorial, torna-


se necessário estender o foco da observação, a partir do objeto de
estudo (o espectador ou a espectatorialidade), em direção ao sistema
que o contém (suas estruturas e conjuntura). O agente espectador
e a prática espectatorial estão inseridos nessa realidade sistêmica,
que se realiza em determinado contexto sócio-cultural. Partindo
da perspectiva macro-estrutural e temporal, é possível chegar aos
aspectos subjetivos do espectador, permitindo que se compreendam
as motivações e os desdobramentos dessas práticas, incluindo as
adesões e rejeições. Trata-se de uma questão sociológica importante
para o estudo da recepção cinematográfica.

1 Este texto é uma adaptação de partes da tese Sentido e valoração nas práticas e no discurso do espec-
tador sobre o cinema brasileiro: estudo sobre o subcampo do cinema e seu habitus narrativo, defendida
e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
2 José Augusto Amorim Guilherme da Silva é doutor em Sociologia e analista sênior da Fundação Joa-
quim Nabuco (Recife-PE).

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


A prática da espectatorialidade é experiência fortemente subjetiva,
ainda que em parte seja socialmente condicionada, pois é resultado
de longo processo, que inclui socializações e interações familiares e
escolares, mas também trajetórias individuais no campo profissional
e relações interpessoais. Assim, a relação do agente com a mensa-
gem cinematográfica é plural e, por isso, o agente não é isolado do
seu contexto social, pois não está sendo exposto àquela mensagem
num “momento zero”. Pelo contrário, se encontra em permanente
contato com uma infinidade de mensagens, todas repercutindo dis-
tinta e concorrentemente entre si.

Aspectos teóricos

O sociólogo Pierre Bourdieu define que a relação entre produção e


188 consumo é mediada pela riqueza e o gosto a ela relacionado, o que
traz como consequência que escolhas e preferências estéticas entre
os diferentes grupos sociais são mútua e reciprocamente distintas
e distintivas, considerando ainda que tais preferências existem em
função do capital cultural adquirido nos processos de socialização.
Tal percepção distingue hierarquias reconhecíveis: gosto e cultura
“legítimos”, por um lado, e gosto “bárbaro” (Bourdieu, 2007, p.34)
e cultura “média”, por outro. Além disso, as escolhas se dão distin-
tivamente: para as classes populares, o critério de julgamento é em-
basado por pressupostos éticos e morais, enquanto para as classes
cujos agentes são dotados de maior capital cultural, o critério de
julgamento é estético. Trata-se, pois, de uma visão mais estrutural
da sociedade formada por classes sociais. A abordagem bourdieusia-
na é parcialmente questionada por Bernard Lahire, sociólogo fran-
cês, por meio da teoria disposicionalista, mais afeita a destacar a
ação criativa individual (Lahire, 2006). Este posicionamento teórico,
entretanto, somente foi possível na justa medida em que Lahire par-
te das categorias e conceitos de Bourdieu para flexibilizar as noções
de campo e habitus.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Assim, tais noções permanecem válidas porque, mesmo nas socieda-
des contemporâneas, aspira-se que as classes socialmente menos fa-
vorecidas tenham acesso, por meio de políticas públicas, à chamada
“alta” cultura. Por exemplo, o que é a noção de formação de pla-
teia em teatro, cinema e música senão uma tentativa de trazer para
a esfera popular um consumo qualificado por especialistas como
próprios de uma dimensão culturalmente “superior”? As situações
são variadas: o teatro shakespereano sendo representado nas ruas
das grandes cidades; o acesso incentivado em cinemas mantidos
pelo poder público, com ingressos a preços populares, ao cinema
de autor europeu; a realização de concertos de música clássica em
parques etc.

É claro que, paralelamente, há ações oriundas igualmente de polí-


ticas públicas que possibilitam o reconhecimento e a valorização da
produção cultural advinda de segmentos sociais populares, segundo 189
uma abordagem culturalista (Estudos Culturais) e antropológica de
cultura. São diferentes perspectivas que não se excluem, sobretudo
porque, no senso comum, no imaginário popular e nas subjetivi-
dades de muitos agentes, pertencentes a variados estratos sociais,
ainda persistem vivamente categorias distintivas e distintas que efe-
tivamente separam a cultura dita “superior” da cultura “inferior”.

“A conseqüência mais importante da mistura bastante fre-


qüente de perfis individuais é que, ao contrário do que
sustentam muitos discursos públicos (políticos, míticos), os
indivíduos não experimentam a distinção (“eles” e “nós”),
entre o legítimo e o ilegítimo apenas como uma fronteira
que separa grupos ou classes diferentes mas como uma linha
de demarcação que diferencia os diversos membros de um
mesmo grupo (os julgamentos de “vulgaridade” ou de “nuli-
dade” cultural geralmente referem-se a pessoas socialmente
próximas: membros da família restrita ou ampliada, grupos
de colegas, companheiros de trabalho, cônjuge, etc.) e como
uma linha divisória entre a pessoa e ela própria (os mesmos
julgamentos culturais que estigmatizam podem referir-se a

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


uma parte das próprias práticas culturais passadas e presen-
tes), uma linha de clivagem que as atravessa intimamente de
um extremo a outro. Assim, a separação do legítimo e do
ilegítimo é experimentada eventualmente como uma divisão
interna que, em certos casos, pode dar lugar a lutas de si
contra si. E é essa internalização ou essa interiorização da
oposição, da luta ou do combate que, em última análise,
permite a cada um dominar em maior ou menor medida as
diferenças de ‘legitimidade’ ou de ‘ilegitimidade’ (...)”. (Lahi-
re, 2006, p. 571).

A abordagem teórica preconizada por Bernard Lahire (2003; 2004)


destaca o estudo da ação social, a partir do conhecimento da mul-
tiplicidade subjetiva e de níveis consideráveis de heterogeneidade no
universo das disposições incorporadas pelos agentes em seus diver-
sos processos de socialização. Assim, o trabalho desenvolvido por ele
190 pode ser compreendido como extensão e desdobramento da teoria
praxiológica difundida por Pierre Bourdieu, uma vez que Lahire parte
de conceitos e categorias já desenvolvidos pelo primeiro, como campo
e habitus, redimensionando-os para dar conta das distinções sociais
da sociedade contemporânea, múltipla e multifacetada. Esta diferen-
ciação social é tema comum e recorrente na sociologia. Para atingir
tal objetivo, Lahire destaca a necessidade de deixar de lado a “grande
teoria”, utilizando os conceitos com cuidado para a compreensão do
detalhamento dos aspectos individuais dos agentes sociais.

Embora reconheça a importância da divisão da sociedade em classes


sociais, Lahire enfatiza o estudo da sociedade formada por indiví-
duos, deixando a problemática da divisão da sociedade em classes
num segundo plano, uma vez que o autor está mais interessado nas
tendências ressaltadas por escolhas pessoais e percursos individuais.
Lahire propõe que o indivíduo3 não seja objeto de estudo restrito
apenas ao campo da Psicologia, ao mesmo tempo em que a Sociolo-

3 Bernard Lahire opta, por óbvias razões, pela terminologia “indivíduo”, mais apropriada a identificar
singularidades, enquanto Bourdieu utiliza mais frequentemente a palavra “agente”.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


gia, como ciência social, não deve abordar apenas as questões cole-
tivas como referências de estudo. Sua tese é a de que a experiência
social “fabrica” o indivíduo, definindo-o (no entanto, sem engessá-
lo) como agente criativo de seu próprio destino. Sendo assim, o
interesse teórico do autor se debruça sobre as questões interiores
desse indivíduo no percurso da homogeneidade para heterogenei-
dade encontrados na esfera da diferenciação social.

Para além do interesse nas trajetórias individuais, Bernard Lahire


direciona seu olhar para casos específicos e atípicos de indivíduos
considerados marginais em grupos sociais populares (Lahire, 2004),
considerando que o conceito ou as categorias relacionadas às clas-
ses sociais existem objetivamente, mas as representações simbólicas
de tais classes desaparecem quando se observam certas escolhas e
padrões de comportamento que destoam de um habitus originário
de determinada classe social. O autor defende que há uma multipli- 191
cidade de propriedades sociais na subjetividade relativas à estéti-
ca, à moral, à religião etc. Para o sociólogo, essa multiplicidade de
variáveis tende a problematizar a análise sociológica que se dedica
apenas às categorias de classes sociais, uma vez que as condições de
socialização dos individuos são mais complexas.

As variadas esferas do mundo social tendem, por vezes, a serem


contraditórias quando vistas individualmente, determinando que a
explicação para a ação daquele agente extrapole o mero habitus
de classe. Assim, as diversas esferas simbólicas repercutem e são
representadas diferentemente, de acordo com um grande núme-
ro de variáveis e não apenas em relação à classe social a qual o
indivíduo pertence, incluindo idade, gênero, posições religiosas e
políticas etc. Tudo isso, conjuntamente, explica a visão de mundo
e as práticas cotidianas dos indivíduos. São o que o autor chama de
variações individuais ou diferenças intra-individuais, que resultam
em dissonâncias intra-individuais, ou seja, trajetórias individuais im-
prováveis, quando se observa o universo ou classe social a qual esse
indivíduo pertence.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


Enquanto Pierre Bourdieu define o habitus como um sistema mais
rígido de disposições condicionantes da ação, Bernard Lahire vai
considerá-lo “apenas” como simples disposições (o produto re-
sultante do social incorporado), reconhecendo, entretanto, como
Bourdieu, que essas disposições são duradouras, levando tempo
considerável para se constituir. No entanto, embora duradouras, são
mutáveis porque, em certos casos, podem sofrer atualizações ou
flexibilizações. Isso explica a razão pela qual indivíduos socialmente
próximos na escala social podem até mesmo realizar escolhas esté-
ticas diferenciadas entre si sobre qualquer aspecto ou esfera da vida
social, constituindo e construindo identidades individuais para além
do pertencimento de classe, embora o considerando. Em Lahire, os
indivíduos fazem parte de grupos sociais, mas não estão circunscri-
tos exclusivamente a esses.

192 As variações inter e intra-individuais dizem respeito às múltiplas per-


cepções e apreciações contidas nas práticas culturais dos indivíduos,
consequências das disposições (habitus) adquiridas nos processos de
socialização, que irão determinar as diferenças intra-classes (entre
indivíduos) e inter-classe, em função de trajetórias de vida distin-
tas. Lahire admite que há condições de socialização que definem
um padrão heterogêneo nas diversas classes sociais, recusando a
homogeneização nas socializações das diversas classes sociais, mas
reconhecendo que o habitus, em um sentido bourdieusiano, é mais
adequado para compreender os extremos da escala social (ricos e
pobres). Para o autor, as classes médias ficam à mercê de disposições
muito mais flexíveis porque, eventualmente, transitam em esferas
do universo social ora mais próximo dos “dominantes” ora dos “do-
minados”, definindo um padrão mais diverso de práticas culturais.
Se Bourdieu já definira o habitus não apenas como dimensão de
certa reprodução social, mas com alguma possibilidade da expressão
individual, Lahire reconhece que as disposições individuais supõem
alguma coerência entre a classe social de pertencimento e a prática
cultural a ela relacionada, embora admita que não haja, necessa-
riamente, tal correspondência. Os indivíduos, para Lahire, possuem

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


internalizadas subjetivamente diversas classes sociais e têm noção
da “hierarquia”4 social entre estas, mas podem adotar padrões dis-
tintos de seu habitus de classe, gerando disposições diferentes para
o consumo, perfis culturais dissonantes e distinções intra-classes.
Este é o mecanismo de funcionamento das disposições sociais nos
indivíduos, que permite compreender a razão pela qual há variações
individuais no interior de um mesmo grupo. Claramente, essas dis-
posições flexíveis e mutáveis não se dão ao acaso, sendo resultado
de processos de longo prazo.

A recepção espectatorial

Os problemas de aplicação da teoria da recepção de filmes por es-


pectadores de cinema, que relaciona origem e pertencimento social,
portanto habitus como sistema rígido de disposições, ao consumo 193
de determinados produtos cinematográficos emergem quando da
análise mais detida e aprofundada dos perfis individuais dos agentes.
No entanto, são razoavelmente suficientes quando observados (de
uma forma macro-estrutural) dados estatísticos gerais sobre padrões
de consumo que distiguem classes economicamente superiores de
inferiores, conforme explicitado por Bourdieu (2007), ao destacar a
dicotomia entre gosto “legítimo” e gosto “bárbaro”, em função de
capital social, capital cultural e capital econômico.

No caso dos espectadores de cinema, as questões implícitas à recep-


ção são complexas e partem de indagações do tipo: quem vai ao ci-
nema? Que filmes assiste? Quantos filmes assiste por semana, ou por
mês, ou por ano? Possui capital escolar e/ou capital cultural elevado?
As eventuais respostas a essas perguntas representam apenas parte da
solução do problema quando considerada a abordagem das pesquisas
quantitativas e estatísticas que explicitam classes sociais e práticas

4 Hierarquia e estratificação social são noções clássicas da Sociologia, embora preferencialmente neste
trabalho se utilize os conceitos de distinção e diferenciação social.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


culturais a ela relacionadas. Há, entretanto, algumas limitações nessa
abordagem porque, eventualmente, alguém pertencente a uma classe
superior, com alto capital cultural e econômico pode não se interes-
sar, por exemplo, pelo cinema de autor, como seria esperado. Como
resolver tal questão? Por outro lado, poderá ocorrer que um agente
oriundo de classe social com baixo capital econômico e cultural pos-
sa, eventualmente, interessar-se por esse mesmo cinema de autor:
apenas a boa vontade cultural bourdieusiana resolveria o problema?

Segundo a teoria disposicionalista, é de supor que agentes perten-


centes a classes sociais distintas vejam o mesmo filme, mas reali-
zem a significação deste de forma diversa. No campo do cinema há
filmes para todo tipo de públicos espectadores, pertencentes aos
diversos meios sociais, definindo que a apropriação da mensagem e
os sentidos e significados decorrentes são diversos. Há filmes comer-
194 ciais para públicos interessados em cinema comercial e há filmes “de
arte” ou de autor para públicos interessados nesses.

Assim, a questão que se coloca, no presente trabalho, não é so-


bre quem compreende (ou não) a obra na acepção bourdieusiana
de recepção. Por isso há uma convergência de propósitos teóricos
entre o disposicionalismo de Lahire e as teses culturalistas quanto
aos problemas da recepção. Não há apenas uma forma legítima de
recepção cultivada pelo habitus do pertencimento social, familiar e
escolar, que traz como consequência a posse do código legítimo de
compreensão da obra, mas um espectro de respostas condicionadas
às diferenças de gênero, pertencimento social, formação escolar /
instrucional e idade, além daquelas de caráter ainda mais subjetivo
e particular, como afirma Lahire.

No entanto, embora essas diversas formas de apropriação sejam


consideradas legítimas, pois já não se sustenta que haja apenas um
código de recepção, é importante ressaltar que no campo do cinema
permanecem as distinções, no sentido de Bourdieu entre cinema “de
arte” e cinema comercial. Distinções essas realizadas sobretudo pe-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


los especialistas do campo do cinema (ou do campo acadêmico ou
ainda do campo intelectual). O que Lahire desenvolve é uma atuali-
zação de um conceito teórico que serve para esclarecer um variado
espectro das ações dos agentes (ou indívíduos) em um período tem-
poral abrangente do século XX. O autor vai tratar das diferenciações
sociais contemporâneas, a propósito de um mundo socialmente re-
novado, a partir da contracultura dos anos 1960, que reconheceu
a existência e deu visibilidade a novos agentes sociais, caminhando
mais além com o reconhecimento das variações intra-individuais.

O espectador de cinema no Brasil

No Brasil, o público que frequenta cinema corresponde a, aproxima-


damente, 14 milhões de pessoas (abaixo dos 10% da população), com
faixa etária majoritária formada por jovens entre 12 e 18 anos, princi- 195
palmente solteiros e estudantes. O espectador brasileiro possui escola-
ridade média e/ou superior e é um agente oriundo das classes A e B.
A maioria costuma ir ao cinema, como parte de uma prática cultural
que se estende para uma atividade posterior. Também é um espectador
que, de modo geral, costuma programar com antecedência suas idas ao
cinema, assim como também a escolha do filme a ser assistido, sendo o
jornal o principal meio de informação sobre os filmes em cartaz. Além
do cinema, este espectador mantém outros hábitos de lazer como viajar
nos finais de semana, ir a shows e espetáculos, exposições e teatro, mas
também assiste a filmes em DVD, TV e internet.

O estudo5 que definiu o perfil de espectador acima descrito estima


que haja um potencial de aumento no mercado de cinema corres-

5 Este amplo perfil é resultado da pesquisa Hábitos de consumo no mercado de entretenimento, encomen-
dada ao Datafolha Instituto de Pesquisas pelo Sindicato das Empresas Distribuidoras Cinematográficas do
Município do Rio de Janeiro. Em dezembro de 2007, foram realizadas entrevistas com 2.120 pessoas, ho-
mens e mulheres, a partir de 12 anos, por meio de aplicação de questionário estruturado, nos dez maiores
mercados de salas de cinema do Brasil: Salvador, Recife, Fortaleza, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Porto
Alegre, Campinas, Região Metropolitana do Rio de Janeiro e Região Metropolitana de São Paulo.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


pondente a 11%, equivalendo a três milhões de novos espectadores,
principalmente mulheres, idosos e crianças da classe C. Os maiores
mercados são as regiões metropolitanas de Porto Alegre, São Paulo,
Campinas, Curitiba, Brasília e Belo Horizonte. Cabe uma ressalva de
que este perfil desenhado pela pesquisa se refere ao espectador de
cinema, como um todo, e não ao espectador exclusivamente ou ma-
joritariamente de filmes brasileiros. Do universo total de espectadores,
26% costumavam, na infância ou adolescência, ir ao cinema com
os pais e a maioria também leva seus filhos às salas de cinema. São
espectadores cujo habitus familiar permitiu a sua formação como es-
pectador e que, por isso, são detentores de capital cultural suficiente
para torná-lo identificado, corriqueiramente, com a prática cultural
de ir ao cinema, sendo ele (o espectador) definido como freqüentador
assíduo, ainda que essa regularidade varie de um para outro agente,
de acordo com suas condições de trabalho, familiares e financeiras.
196 Mesmo aqueles espectadores que ainda não levaram seus filhos pe-
quenos ao cinema, sentem-se intimamente pressionados a fazê-lo.
Já os agentes da classe C, que demonstram interesse por filmes, não
costumam ir ao cinema, sobretudo em função do custo, e a grande
maioria não passou pelo processo de formação de plateia no âmbito
familiar (ou seja, por meio da ação dos pais) e esse contexto não pro-
porcionou oportunidades relativas à prática espectatorial.

Mesmo os espectadores que não foram incentivados pela família à


prática, em etapas posteriores de seu processo de socialização, em
função de interações ocorridas na escola e durante a juventude e
adolescência, tendem a valorizar a freqüência ao cinema como uma
prática cultural desejável. O que permite concluir, pela observação dos
grupos focais6, que um número considerável de variáveis determina
essa freqüência e todas elas dizem respeito a fases da vida do agente,
nas quais a prática espectatorial significava algo de importante.

6 Informações oriundas dos grupos focais realizados com espectadores do Rio de Janeiro e São Paulo, para
o Projeto Cinema - Estudo Qualitativo (Datafolha Instituto de Pesquisas / Sindicato das Empresas Distri-
buidoras Cinematográficas do Município do Rio de Janeiro, abril/maio, 2008).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Entre os segmentos de agentes de faixas etárias mais elevadas, o
cinema é visto com nostalgia e saudosismo, quando se atribuía a ele
forte significação, sendo as representações simbólicas mais fortes
relacionadas à figura do “lanterninha”7 e do carrinho de pipoca.

“Resultados sugerem que aqueles participantes cujos pais


mantiveram o hábito de levá-los ao cinema, tendem a valori-
zar mais esta atividade. Na realidade, percebe-se que a maioria
dos jovens não passou pelo processo de formação de plateia
e os integrantes de classe C não obtiveram oportunidades que
pudessem ser favorecidos a este respeito (...). Espectadores na
faixa etária de 26 a 36 anos de idade que se encontram em
fase de transição, alguns casados, outros em processo de esta-
bilização profissional, estão mudando os hábitos. Já, aqueles
entre 38 e 50 anos, especialmente com filhos estruturam o or-
çamento em função da família.” (Instituto Datafollha, 2008).
197
A pesquisa mostra que o cinema proporciona lazer, entretenimen-
to e interação social (amigos, relacionamentos afetivos), além de
ser, para uma grande parte dos espectadores, fonte de informação.
Nota-se, porém, que diferentemente de outras gerações, o cinema
não é mais uma prioridade como opção para diversão, pois os espec-
tadores já dispõem no ambiente doméstico de tecnologias, suportes
e mídias co-relatas ao cinema que proporcionam o mesmo nível de
lazer. Há, inclusive, parcelas consideráveis de agentes que ignoram o
cinema como entretenimento, sobretudo em segmentos sociais es-
pecíficos das classes médias, preferindo outras atividades e práticas
que nada têm a ver com a espectatorialidade, mesmo a doméstica:

“Conforme informações da grande maioria, “antigamente


ia-se muito mais ao cinema”. Havia nesta época, a expecta-
tiva por grandes produções além do ineditismo. É consensual
entre os integrantes que os principais responsáveis, pela bai-

7 Funcionário do cinema, que munido de lanterna se encarrega de indicar lugares vazios aos espectadores
que entram na sala depois de iniciada a sessão do filme; é atualmente uma figura praticamente extinta.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


xa mobilização ao cinema, estão fortemente ligados à intro-
dução no mercado da pirataria, da TV a cabo e da internet.
Além disto, as mudanças contextuais e pessoais, nos âmbitos
social, familiar e profissional também exercem papel rele-
vante, como por exemplo, casamento e filhos.” (idem, 2008).

Os aspectos restritivos à prática espectatorial no cinema inclui o pre-


ço do ingresso e os gastos com estacionamento no shopping Center
e o lanche, cujos valores são estimados por espectadores em torno
de R$ 30,00 a R$ 35,00 (trinta a trinta e cinco reais), considerados
altos. As promoções em determinados dias da semana, com preço
reduzido, nem sempre são aproveitados pelo público que trabalha.
Essa retração coloca em segundo plano os “elementos emocionais,
o glamour e a magia do cinema”, que envolvem a espectatorialidade
na sala de exibição, e prioriza aspectos mais racionais, como a con-
198 veniência de assistir filmes em ambiente doméstico: locação mais
barata que a entrada do cinema, comodidade etc.

O processo de recepção

As etapas da recepção:

Etapa A – O agente espectador decide qual filme vai assistir.

Etapa B – O agente espectador efetivamente assiste ao filme (que


pessoalmente escolheu ou que assistiu por opção de seu acompa-
nhante).

Etapa C – O agente espectador elabora o discurso sobre o que se viu.

O que é acionado em cada uma das etapas mencionadas acima e


descritas abaixo pode ser mobilizado em outra, não sendo excluden-
tes. No entanto, trata-se de três mecanismos diferentes que atuam

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


em cada uma das respectivas etapas. Em todas, aparecem fortemen-
te os aspectos relacionados ao habitus familiar, escolar, profissional
e ao capital cultural do espectador, que são considerados no proces-
so de recepção dos filmes.

Na Etapa A mobilizam-se motivações diversas como: o gênero de


filme que mais se aprecia; as indicações dos amigos; as estratégias
de marketing e publicidade trabalhadas pelos agentes produtores
/ distribuidores dos filmes para cada um de seus lançamentos; a
repercussão dos agentes da crítica, se positiva ou negativa; os resul-
tados alcançados pelos filmes, segundo os resultados da bilheteria;
o que o seu parceiro / parceira de programa escolheu (no caso, as
mulheres costumam ter, em relação aos seus maridos, a prerrogativa
de decisão quanto ao filme a ser assistido); a sociabilidade8.

Ainda, o espaço de exibição: a “sessão de arte” do cinema alternativo 199


ou mesmo do shopping Center serve tanto para se pensar em elemen-
tos de distinção social e cultural positiva quanto para sinônimo de algo
que precisa ser evitado. Em outras palavras, os agentes que possuem
conhecimento mais aprofundado sobre cinema (dito “de arte”) farão um
movimento em direção ao tipo de sala correspondente, enquanto aqueles
que percebem o cinema como puro divertimento tendem a fugir dessas
sessões e salas. Assiste-se a filmes pelas mais variadas razões, desde o
simples lazer até motivações mais elaboradas: o interesse em narrativas
diferenciadas, em temáticas, em diretores etc. É possível que alguém ri-
gorosamente queira assistir a um filme por uma dessas razões quando
uma delas representa subjetivamente algo de grande relevância para si.

No Cine Rosa e Silva9, uma senhora por volta dos 70 anos adentra
a sala de exibição, acompanhada de uma moça mais nova, talvez

8 A atividade espectatorial é expressão de consumo de classe média alinhada à lógica do shopping


Center: o cinema é mais um estabelecimento comercial do complexo de compras e apenas um aspecto
dessa prática social.
9 Localizado em bairro de classe média do Recife–PE, parte de sua programação é destinada a exibir
filmes fora do circuito comercial.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


filha ou neta, para assistir ao filme Bezerra de Menezes – o diário
de um espírito (Glauber Filho, Joe Pimentel, 2008)10. De baixa es-
tatura, ela tem dificuldade para enxergar a tela por conta do blo-
queio causado pela poltrona da frente. Sentada, a senhora assiste
ao filme de forma desconfortável. Durante a projeção, demonstra
dificuldade para compreender o que se passa em termos de enre-
do. Em virtude disso, a acompanhante vai pontuando a história do
filme, identificando personagens, sobretudo o Dr. Bezerra, vivido
pelo ator Carlos Vereza.

Não é difícil supor que essa espectadora foi assistir ao filme por
conta da figura do espiritualista que viveu no século XIX. Nesse
caso não é a obra que atrai a espectadora e sim o tema abordado.
Do ponto de vista da utilização da razão como critério de adesão
ao filme, o mais comum é o interesse acontecer pela temática. No
200 caso da senhora mencionada acima, é possível que ela seja adepta
do espiritualismo, ou que essa característica seja aspecto impor-
tante de sua subjetividade e o motivo pelo qual foi ao cinema
assistir ao filme.

Na Etapa B, o agente espectador escolheu o filme que vai assistir.


Ao chegar ao cinema, diante de tanta oferta no complexo multiplex,
as opções podem ser alteradas pelas mais diferentes razões: horários
incompatíveis, o material promocional de outro filme que parece ser
mais atraente, os amigos que, inesperadamente, foram encontrados,
a lotação esgotada etc. A convicção do espectador médio em relação
ao filme que escolheu costuma ser pouco firme: na falta do filme
anteriormente escolhido, 68% dos espectadores assistiriam a outra
produção no mesmo cinema, no caso dos multiplexes11.

10 Fonte: diário de campo (observação não participante), em 26 de outubro de 2008. SILVA, J. A. A.


G. Sentido e valoração nas práticas e no discurso do espectador sobre o cinema brasileiro: estudo
sobre o subcampo do cinema e seu habitus narrativo. Recife: PPGS/UFPE, 2010 (tese de doutorado).
11 Fonte: Pesquisa Atributos que influenciam na escolha de cinemas e os hábitos de consumo de
seus freqüentadores: um estudo de caso no Recife expandido (Administração/Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE, 2008).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Ao entrar na sala de cinema, o seu comportamento, antes do início da
projeção, é aspecto dos mais interessantes. Neste momento de espera
que antecede ao início da projeção, acontece de tudo: conversa-se,
cochicha-se, namora-se, alimenta-se, brinca-se, encontram-se ami-
gos, fala-se alto, fala-se ao celular (por vezes, até mesmo em plena
exibição do filme), entra-se em atrito com outros espectadores etc.
Tais comportamentos, comedidos ou afetados, estão profundamen-
te relacionados a questões como educação familiar, personalidade e
objetivos ao se escolher determinado filme. De fato, os agentes, que
quase sempre estão em dupla, no caso dos adultos, e em grupo, no
caso dos adolescentes, supõem o espaço da sala de exibição como
espaço de uma sociabilidade por vezes muito intensa. O filme a que se
vai assistir é apenas um dos aspectos dessa sociabilidade. Um total de
51,4% dos espectadores do Recife prefere ir ao cinema acompanha-
do de namorado (a) e/ou companheiro (a). Aqueles espectadores que
frequentam o cinema no horário das 14 às 17 horas, em sua maioria 201
(55,5%) vai acompanhada da família. Já os espectadores que têm
como companhia namorado e / ou companheiro, mais de 70% têm
preferência pelo horário das 20 às 23 horas12.

O problema é que o filme exibido no cinema solicita um nível de


atenção e concentração durante a projeção que é, intrinsecamente,
distinto do nível de concentração solicitado pela exibição de filme
em ambiente doméstico. Na sala de cinema, silêncio é fundamen-
tal. Já o entorno da exibição de um filme em ambiente doméstico
permanece inalterado: todas as solicitações e demandas cotidianas
permanecem e estão presentes para atrapalhar (e é normal que as-
sim seja), ao contrário do cinema de exibição pública, onde tudo
perturba a concentração dos espectadores. Durante a projeção do
filme, pode ser que tal filme escolhido não seja exatamente o que
se esperava. Então, o agente espectador poderá ser surpreendido
positiva ou negativamente e: repudiar (ou gostar de) algo que es-
colheu ou repudiar (ou gostar de) algo que o outro agente (seu

12 ibidem.

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


acompanhante) escolheu. Neste momento, a adesão (ou rejeição) ao
filme tem sempre, embora não conscientemente para o espectador,
relação com os aspectos narrativos do filme.

Isto é, a narrativa do filme poderá entretê-lo ou entediá-lo. A iden-


tificação e a adesão e a consequente permanência ou saída da sala
estão fortemente vinculadas ao grau de narratividade de cada filme.
Quanto mais narrativo, mais possibilidade de se conseguir a adesão
do espectador. A abordagem do filme com relação ao tema pode se
chocar com a sua visão de mundo, onde entram em jogo seus va-
lores éticos e morais. Ainda que muito narrativo em sua linguagem,
o filme corre o risco de ser rejeitado quando afronta fortemente
crenças arraigadas dos agentes.

Na Etapa C, o agente espectador passou pela experiência subjetiva,


202 individual com o filme, restando agora construir um discurso sobre
este. A sua apreciação final vai depender não apenas daquilo que
efetivamente presenciou na sala escura, mas também para quem vai
verbalizar o seu ponto de vista. Neste momento, os valores culturais
nos quais está inserido, a partir de sua posição social, profissional,
intelectual, psicológica serão mobilizados, produzindo uma argu-
mentação condizente com a sua ética pessoal.

Aderir a um filme é atitude simbólica que resulta de uma conjun-


ção de significados que dizem respeito aos aspectos subjetivos /
individuais e/ou coletivos (grupo social a que pertence), conforme
já foi observado anteriormente, sendo considerável nesse processo
o contexto social em que o agente está inserido e a classe a que
pertence. A relação entre o mais “inocente” filme de entretenimen-
to, cujo objetivo é o de (aparentemente) apenas divertir, e o mais
despretensioso espectador ao assisti-lo está carregada de significado
decorrente da visão de mundo do agente. O filme é caracterizado
como mensagem simbólica que este será capaz de interpretar se-
gundo sua realidade.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Nos anos 1960, tal categorização sobre o espectador era intensa-
mente carregada de apelo ideológico, que classificava (e valorava),
em termos de uma espectatorialidade intelectualizada, a relação en-
tre o filme e o espectador. Um agente de classe média mais bem
formado, sob o ponto de vista da instrução educacional, que fosse
minimamente engajado politicamente, teria dificuldade em externar
livremente, sem receio de julgamentos dos seus pares, a adesão pelo
cinema narrativo hollywoodiano, pois apreciar filmes estava vincu-
lado a uma posição político-ideológica. Mas, nada impediria que,
secretamente, apreciasse o filme de forma velada. A adesão é as-
pecto subjetivo, relacionando-se não apenas a elementos racionais,
como também aos emocionais, que não dependem exclusivamente
de formação intelectual.

O processo pelo qual o espectador se identifica ou rejeita o filme é


originado a partir de sua formação sócio-cultural, de sua possibili- 203
dade de atribuir significado a determinados filmes que lhe são desti-
nados pela produção do campo, que o identifica e categoriza como
determinado público-alvo. No entanto, para além do conhecimento
acerca da simples atribuição de sentido por parte do espectador, é
necessário compreender as razões básicas da adesão e identificação
ao filme em questão, definindo porque determinada obra é capaz de
mobilizar dado agente, enquanto esta mesma pode nada significar
para outro espectador, pertencente a idêntico grupo social. A ade-
são ou a rejeição ao filme é determinada pelo tipo de agente espec-
tador que se efetivamente é: se um espectador mais ou menos inte-
lectualizado e iniciado no assunto, mas o princípio da narratividade
é base de sustentação dessa adesão, embora tal referencial não seja
explicitamente consciente por parte do espectador (o agente não
sabe o que é narratividade, mas será capaz de perceber que “uma
história foi bem contada” ou “prendeu a sua atenção”). Não se pode
deixar de notar então que há um caráter de conservadorismo na
adesão ou rejeição ao filme, partindo do pressuposto que aquele
mais narrativo (a forma estabelecida) o “seduz” mais intensamen-
te. Mas, a abordagem do conteúdo, que definirá uma “mensagem

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


moral” veiculada pelo filme, sobretudo com relação à conclusão (o
final) do enredo, é aspecto de relevante definição de seu discurso.

Sobre a identificação / adesão ao filme, é possível afirmar que, além


da narratividade e dos valores éticos e morais postos quando da
apreciação da obra cinematográfica, há outro elemento – o da iden-
tificação do espectador como agente da classe média representado
nos filmes. A avaliação posterior sobre o filme nem sempre condiz
com a atitude mais intimamente subjetiva adotada quando em sala
de cinema. É, por vezes, socialmente problemático admitir não gos-
tar de determinado filme que a crítica indicou como sendo bom ou
que um amigo do trabalho, cuja opinião é importante, apreciou. O
discurso que o agente espectador construirá sobre o filme assistido
nascerá de sua relação com esse objeto, ou seja, o discurso surge
não apenas de sua assistência, mas também da relação que foi cons-
204 truída antes, durante e depois de assisti-lo. Situação fática curiosa
é o caso da adesão de parcelas do público espectador à pornochan-
chada nacional, durante os anos 1970 e 1980. Para determinados
espectadores (homens) poder-se-ia assistir a esses filmes (sem que
a família e os amigos soubessem), e eventualmente ou comumente
(não importa) poder-se-ia gostar do filme, mas não seria social-
mente desejável, em determinados círculos sociais ou profissionais,
dependendo de sua inserção, externar positivamente essa adesão.
Talvez apenas para os amigos (outros homens) mais íntimos.

A construção do discurso do espectador

A fase primeira da elaboração argumentativa acontece ao nível das


informações que leu sobre o filme através de críticas, publicidade e
textos promocionais, além de informações repassadas pelos amigos
e colegas de trabalho; a segunda pressupõe o ato da assistência
propriamente dito, o acesso direto ao “texto” do filme; enquanto
a terceira diz respeito à opinião ou ao discurso que resulta desse
processo que compreendeu as duas primeiras fases, inclusive. Neste

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


momento, acontecem as identificações e adesões com relação ao
filme. O agente gostou, não gostou ou lhe é indiferente. No en-
tanto, o discurso não finaliza aí. Numa quarta fase, o agente será
capaz de trocar informações mais uma vez com os amigos, colegas
e parentes, eventualmente ler outra vez sobre a obra em questão,
para finalmente concluir o discurso. Surgirão então novas represen-
tações e sentidos. Até que ele eventualmente reveja o filme numa
outra situação e assim recomece o processo. Numa revisão, seus
posicionamentos poderão ser modificados ou não. Isoladamente, o
nível de formação acadêmico-profissional não é, necessariamente,
o único aspecto definidor do padrão de adesão do espectador. Ou
seja, não é porque o agente é bem formado, com pós-graduação,
que será capaz de aderir a um filme intelectual e narrativamen-
te mais elaborado. Por outro lado, não é certo que, por sua alta
formação acadêmica, tal agente rejeitará o filme mais abertamente
comercial. Sabe-se que uma sólida formação intelectual contribui 205
para que a percepção e o entendimento de um filme se dêem pelas
suas camadas mais profundas, mas não é garantido que, com isso, a
adesão ou a identificação mais completa seja efetuada. Neste ponto,
há necessidade de se relativizar o habitus de classe, nos termos de
Bourdieu, para que a ação do agente seja compreendida para além
da questão das disposições específicas da classe social de pertenci-
mento. Bernard Lahire (2003; 2006) oferece a chave dessa flexibili-
zação das disposições individuais que repercutem no gosto estético
e nas práticas culturais.

É possível que o agente intelectual assista ao filme como mero di-


vertimento, e que possa se entediar com aquilo que ele considere
intelectualmente muito elaborado, porque exige uma maior reflexão
de sua parte para a percepção e entendimento. Seu habitus de classe
e seu capital cultural permitem a possibilidade da apreciação, mas
é possível que o agente abra mão de tal repertório e simplesmente
faça a adesão ao filme mais comercial, sem grandes problemas por-
que percebe o cinema como mero entretenimento. Todavia, uma
situação oposta torna-se mais difícil, ou seja, o agente menos qua-

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


lificado do ponto de vista acadêmico / intelectual terá certamente
mais dificuldade de aderir a algo elaborado em termos de narrativa
e linguagem. A questão da capacidade cognitiva sobre um filme
nesses termos deriva de sua formação educacional e profissional,
que lhe poderá oferecer elementos (informações) extras para a con-
templação de filme menos óbvio. Então, não se trata apenas de sua
capacidade intelectual permitir uma melhor cognição, mais de uma
possibilidade de reflexão que é oriunda de formação familiar e esco-
lar: isoladamente ou de uma combinação dos dois habitus.

No caso do agente que ocupa uma posição socialmente valorizada


sob o ponto de vista intelectual, a manifestação aberta do gosto
pode não lhe ser útil profissionalmente, pois se espera de um profes-
sor universitário ou de um acadêmico / intelectual que seja reflexivo
sobre o filme que assista. Assim, nos seus círculos profissionais, ele
206 poderá ter receio de verbalizar aos seus pares o gosto por um tipo
de filme tido como superficial, afinal está em jogo sua reputação
profissional que o coloca numa posição social e intelectualmente
privilegiada.

Surgem, então, duas distinções: tanto no convívio social quanto na


vivência profissional espera-se de um intelectual mais adequação a
um tipo específico de consumo cultural, mais apropriado ao campo
profissional a que pertence. Nesse sentido, além do pertencimento
ao campo, existe a expectativa do desempenho de um dado “pa-
pel”, específico do universo social de pertencimento profissional,
um papel na dramaturgia social, ao modo de Erving Goffman13.
Assim, para este autor (Goffman, 1975) cada agente possui um co-
nhecimento prático de sua posição no espaço social que dirige sua
vivência no lugar que se ocupa, definindo, sobretudo, posições e
hierarquias, assim como condutas a serem adotadas e praticadas.

13 A respeito de Bourdieu sobre Goffman ver:, Pierre. Bourdieu,. Goffman, o descobridor do infini-
tamente pequeno. In: Erving Goffman: desbravador do cotidiano. 1. ed. Édison Gastaldo (org.). Porto
Alegre: Tomo Editorial, 2004.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


No caso do agente intelectual há quase sempre uma expectativa de
posicionamento frente às questões culturais, um desempenho que o
diferencie de outros espectadores, em particular, e de outros agentes
sociais, no geral. No entanto, na esfera privada (cônjuge, filhos, tal-
vez amigos mais próximos), o intelectual terá mais possibilidade de
revelar o tal gosto, que muitos sociólogos definiriam, erroneamente,
como um “gosto massificado” ou “comportamento de massa”. Isso é
especialmente problemático no caso do espectador pertencer ou ter
atividades profissionais no campo das ciências sociais e humanas.
Espera-se sempre um engajamento mais amadurecido no trato das
questões culturais e no consumo de obras artísticas e midiáticas do
que os agentes espectadores que mantêm atividades profissionais
no campo das ciências exatas ou das ciências biológicas.

No pólo diametralmente oposto, há agentes espectadores que não


pertencem a campos profissionais nos quais se tem uma expectativa 207
de comportamento mais erudito com relação ao consumo cultural.
Esses agentes são os mais conectados à ideia de consumo cultural
de filmes e de frequência ao cinema absolutamente vinculado à
questão do entretenimento e diversão, do consumo relacionado ao
mero prazer sensorial, não cogitando os aspectos mais intelectivos
de absorção e análise de filmes. Assim, assistir a um filme é atividade
de prazer muito próxima a jogar um videogame, brincar em parque
de diversões, ir à praia ou qualquer outra atividade de lazer, em que
os aspectos emocionais e de apelo aos sentidos são mais intensa-
mente mobilizados.

O local de exibição do filme

Assistir a um filme no cinema do shopping Center é social e cul-


turalmente distinto de assistir a um filme no espaço alternativo do
cinema “de arte”. São espaços simbolicamente diversos, sendo a fre-
quência regular, a um ou a outro, parte do estilo de vida, sendo
possível afirmar que esses locais conotam formas igualmente dis-

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


tintas de interpretar os filmes. Pierre Bourdieu preconiza que estilo
de vida implica em distinção social e expressão da subjetividade. O
consumo, no caso, é determinado por longo processo de socializa-
ções, que estabeleceram determinado capital cultural, permitindo
ao agente se distinguir e se expressar quando busca assistir aquele
filme em certo espaço de exibição. Então, percebe-se uma lógica de
distinção sócio-cultural na ação dos agentes que frequentam espa-
ços alternativos.

As salas alternativas (ou “de arte”) são quase sempre bem diferen-
tes fisicamente das salas convencionais dos cinemas multiplexes.
Observa-se que em cinemas de shopping Center há lanchonetes
que vendem cachorro quente, pipoca, refrigerante a preços altos,
enquanto nas salas alternativas há cafés, que vendem cardápio
mais elaborado (croissant, torta salgada e doce, chocolate quente,
208 espumante), mas igualmente caro. Curiosamente, lanchonetes de
multiplex e cafés de salas alternativas dimensionam (e metafori-
zam) o que cada um dos espaços simboliza, com as primeiras ofe-
recendo refeições fast food, que remontam a uma representação
clássica do cinema narrativo hollywoodiano (pipoca e refrigeran-
te). No multiplex, o filme e a refeição são práticos e descartáveis,
enquanto na sala alternativa, senta-se à mesa e degusta-se com
vagar o cardápio, assim como deve ser também com a “degusta-
ção dos filmes” - pausada e reflexiva. Consequentemente, as salas
são espaços físicos destinados a tipos específicos de exibição. Os
espaços “dizem” sobre como os agentes percebem e significam os
filmes. O espaço para filmes fora do grande circuito conota prova-
velmente um estilo de espectador mais intelectualizado, alternati-
vo ao gosto médio.

Há variados tipos de salas alternativas: desde aquela que exibem


filmes postos em reprise após cumprir carreira comercial, seja nos
espaços de grande circuito (multiplex) ou em salas alternativas (para
distribuidores independentes) até os espaços lançadores de filmes
que ainda não estrearam (nem vão estrear) no grande circuito. No

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


primeiro modelo de espaço alternativo, é possível notar uma dife-
renciação no perfil social de quem o frequenta, sobretudo no caso
da cidade do Recife onde esses espaços de reprise de filmes já exibi-
dos se situam no centro da cidade: provavelmente, um público es-
pectador de menor poder aquisitivo, uma vez que o valor do ingres-
so é mais barato. São espaços subsidiados por organismos públicos
de gestão cultural em níveis federal, estadual e municipal.

Já o espaço das salas dos multiplexes está na perspectiva e na ló-


gica do cinema como entretenimento da classe média que vai ao
shopping Center, sendo o programa do cinema um aspecto do en-
tretenimento e consumo, que inclui, ainda, olhar vitrines e parar na
praça da alimentação. A classe média vai ao centro de compras, mas
não frequenta os cinemas do centro da cidade. Assim, o cinema-
shopping torna-se espaço de (e para a) classe média, local inibidor
da presença de classes economicamente inferiores. 209

Considerações finais

A recepção do espectador ao filme oscila entre adesão e rejeição,


sendo explicada, parcialmente, a partir do conhecimento do con-
texto sócio-cultural – o campo do cinema – em que a atividade
cinematográfica (e, consequentemente, o espectador) está inserida.
Este campo é marcado por lutas entre os seus diversos agentes pelo
recurso escasso, o mercado (e, em última análise, os espectadores),
ocupado majoritariamente pelo cinema hollywoodiano, cuja dispo-
sição geral do habitus narrativo orienta grande parte das ações dos
agentes envolvidos nesse campo profissional.

É válido admitir que a espectatorialidade do modelo dominante de


cinema narrativo (visto nos multiplexes) também opera lógicas de
distinção social no sentido inverso: pelo aspecto mais conservador,
uma vez que esse cinema pode ser compreendido como um modelo
de reprodução dos modos de produção, distribuição e exibição do

O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


campo. Neste sentido, a proposta de salas alternativas se apresenta,
por seu caráter de formação de plateia, como espaço de distinção
social, pelo capital cultural de seus espectadores, mas também como
espaço possível de mudança em relação à realidade social do campo
do cinema no Brasil, ao possibilitar ao espectador a opção da diver-
sidade estética.

Os espectadores de cinema são agentes caprichosos, dotados de pe-


culiaridades individuais, o que prontamente desmente a tese - sem-
pre insistente - de que simples formulações mercadológicas ou am-
pla publicidade, apenas, são capazes de seduzi-los. Não são. O que
se observa, concretamente, é apenas o princípio norteador do gosto
dos espectadores – o habitus narrativo – que de tão geral jamais
oferecerá uma fórmula pronta e acabada. Se assim fosse, grandes
cineastas de mercado jamais fracassariam nas bilheterias. A adesão
210 dos públicos não resulta de fórmulas matemáticas; é tão somente
uma disposição geral, uma lógica orientadora capaz de chegar per-
to de saber o que o público deseja, mas sem nunca ter a certeza
absoluta sobre isso. Filmes bem produzidos podem ser desprezados
pelo público. Filmes mais simples podem ter a sua adesão. Quase
sempre, os espectadores de cinema são conservadores na recepção
das formas, e ligeiramente mais abertos e acessíveis aos conteúdos.
Muito raramente tal estado de coisas se modifica porque o público
deseja acessar mensagens audiovisuais de simples decodificação –
daí o habitus narrativo ser tão bem-sucedido no campo do cine-
ma. Corriqueiramente, os espectadores apenas desejam se divertir
ao assistir a um filme. Então, essa previsibilidade por vezes instável
se transforma em um dilema que aflige à boa parte dos agentes
criativos do campo: ter ou não ter muitos espectadores; ser ou não
ser compreendido. Não há resposta fácil.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Referências bibliográficas

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O espectador de cinema na perspectiva disposicionalista


As classes populares
no novo capitalismo brasileiro1
Jessé Souza2

213

A classe média no Brasil tem cerca de 90 milhões de pessoas. Isso signi-


fica que o Brasil está se tornando equivalente a países como a Fran-
ça, a Alemanha ou os EUA. Essa é a mensagem que é passada. Ou
seja, é um país de primeiro mundo onde a classe média passa a ser
a classe mais importante e os pobres trabalhadores são o grupo resi-
dual. Trata-se de uma estratégia, de uma forma de apresentar uma
sociedade sem conflitos, sem contradições entre as classes. Só a en-
xergamos como uma coisa boa, mas esse ponto será discutido mais
tarde. Contra quem, ou com quem estamos dialogando? No nosso

1 Palestra proferida na Universidade Federal de Pernambuco, como parte da programação dos Semi-
nários de Sociologia do Programa de Pós-graduação em Sociologia, e no ciclo de conferências orga-
nizado pelo Núcleo Sociedade, Cultura e Comunicação, no dia 30 de abril de 2010.
2 Jessé fala do projeto do seu núcleo de pesquisa (CEPEDES: Centro de pesquisas sobre o desenvol-
vimento da Universidade Federal de Juiz de Fora) de produzir uma nova teoria de classes para pensar
o Brasil. Este projeto prevê a produção de três volumes baseados em amplas pesquisas empíricas de
espectro nacional. Cada volume é dedicado ao estudo de uma classe social. O primeiro já se encontra
publicado: A ralé brasileira, quem é e como vive (UFMG, 2009), trata da classe dos excluídos da so-
ciedade brasileira. O segundo sobre as classes populares no Brasil tem uma parte em andamento, cuja
pesquisa foi encomendada pelo Ministério dos Assuntos Estratégicos e outra parte dedicada às classes
populares no nordeste, cuja pesquisa encontra-se em fase final na ocasião da composição deste livro.

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


estudo sobre as classes sociais , estamos dialogando com pratica-
mente toda a tradição sociológica brasileira, com alguns autores de
uma tradição de um binômio conceitual que nós podemos chamar
de personalismo/patrimonialismo. Como é que esta idéia foi criada?

É muito interessante ver como é que se cria a reflexão sociológica


no Brasil, e quem vai construir este binômio conceitual. Quem vai
construir a concepção do Brasil moderno e que permanece até hoje
é um pernambucano chamado Gilberto Freyre. Sem esquecer o fato
de que existiram autores importantes antes dele, Gilberto Freyre vai
construir a noção de identidade nacional. Este fato precisa ser dito
sempre, porque é daí que partimos. Gilberto Freyre vai inverter o si-
nal da forma racista como até 1930 o Brasil era compreendido: uma
terra de mulatos, sem chances de futuro. Todos os nossos intelectu-
ais até então, lidavam com esses termos: como fazer com que uma
214 terra de mulatos, que tem o pior do branco e o pior do negro, tenha
algum futuro? Como é que se pode refletir sobre isso?

Freyre vai inverter isso a partir dessa diferença de Boas, que é um


tema extremamente interessante que eu não posso entrar aqui por-
que ia ser um atalho que ia nos levar para outras coisas, mas que
é um tema muito interessante que um dia eu gostaria de ter tem-
po pra escrever sobre isso. Boas é extremamente importante não
só para sociologia brasileira através de Freyre, mas também para a
sociologia americana e, portanto, mundial moderna. Ele vai criticar
também o racismo na antropologia e na sociologia americana dessa
época, essa passagem do racismo para o culturalismo. Esse cultura-
lismo vai estar na base de todas as teorias da modernização, que vão
ter um pico nos anos 50, 60 e 70. Esse culturalismo e o parsonia-
nismo, ou Weber adaptado por Parsons, que é a elaboração de uma
oposição clara entre modernidade e tradição, onde as categorias
weberianas são despidas de seu caráter contraditório, sendo usadas
como instrumentos de poder.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


A teoria da modernização, no fundo, vai implicar uma série de es-
tudos empíricos aonde os Estados Unidos vão ser comparados com
todos os outros países do mundo de um modo positivo, ou seja, os
americanos vão ser sempre os mais diligentes, trabalhadores, disci-
plinados, dignos de confiança e honestos. O baque que o mercado
financeiro americano deu no planeta inteiro há poucos dias mostra
o quanto esses conceitos são de fato verdade. Esse mesmo material,
as comparações com a Alemanha, com a Itália, vão ser usados no
mundo inteiro e depois vão ser usados inclusive para comparações
dentro do Brasil, estando assim ligadas à categoria de patrimonia-
lismo. O patrimonialismo está ligado (este é o tema que eu quero
discutir com vocês hoje) ao racismo de classe. Esse material vai ser
usado para criticar, para colocar as classes dominantes brasileiras do
mesmo modo como os Estados Unidos eram vistos, ou seja, como
racionais, inteligentes, responsáveis, dignos de confiança, de grande
capital social. E as classes dominadas do Brasil, as classes populares 215
do Brasil, assumem o mesmo lugar que os países que eram com-
parados com os Estados Unidos, como tradicionais, não modernos
como o sul da Itália, a Alemanha autoritária, etc. As mesmas cate-
gorias são usadas para os mesmos fins de dominação.

Como é que construímos essas categorias, que são um arremedo


de cientificidade e são eivadas de interesses político desde o co-
meço? Este ponto é importante para que possamos compreender
como é que podemos estudar essas classes de outro modo. Esse
foi o nosso desafio.

Voltando a Freyre, percebemos que ele vai montar sua principal


contribuição, (não havendo ninguém tão importante quanto ele na
história do Brasil enquanto um homem de idéias), a idéia de identi-
dade nacional. Freyre vai ser o construtor dessa idéia de que o Brasil
não tinha uma noção de identidade nacional, e era preciso que ele
se conscientizasse disso. Sobre identidade nacional, vale aqui dizer
que ela é alguma coisa que tem que ser montada de modo positivo
já que ninguém vai se identificar com alguma coisa negativa e é

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


algo de que toda nação precisa. No fundo o que é uma identidade
nacional? É onde se orienta um conto de fadas para adultos, aon-
de você conta a origem da nossa sociedade, que nós estamos no
mesmo barco e que nós temos um futuro quase sempre grandioso.
Isso é repetido em todas as narrativas de identidade nacional e isso
é muito claro. Por exemplo, na narrativa da identidade nacional
americana, os americanos se vêm como os judeus modernos. A Eu-
ropa é o Egito, é o antigo, é a escravidão; os Estados Unidos são a
liberdade. Mas tem coisas incríveis nisso. O bispo que estava num
dos primeiros navios que subiu lá no monte para fazer o primeiro
sermão em terras americanas, diz assim “essa experiência que está
sendo realizada aqui agora ainda vai ser farol do planeta inteiro” e
coisas assim.

Enfim, a narrativa da identidade nacional tem que ser positiva, as


216 pessoas têm que se orgulhar dela. Antes de Freyre não havia possi-
bilidade de identificação positiva porque só se viam defeitos, vícios
e negatividades. É bem verdade que Freyre não sai do horizonte
racial, que ele também não critica a própria base da hierarquia que
está implicada nessas oposições. Mas qual é a oposição que está
entre modernidade/pré-modernidade no fundo? É aquela entre o
espírito e corpo. Todas as noções do mundo moderno que implicam
superioridade, nobreza, superioridade, justiça tem a ver com o espí-
rito, mesmo podendo esses conceitos adquirirem diferentes valores
em culturas não-ocidentais. Quem primeiro formula essa noção de
bem que vai ser dominante no Ocidente é Platão. Para ele, a noção
de virtude é o controle do espírito, das paixões do corpo, sendo
agressividade e sexualidade as duas principais. E o espírito virtuoso
ou a pessoa virtuosa é aquela que consegue controlar suas paixões.
Essa noção de virtude que opõe espírito e corpo vai ser usada por
Santo Agostinho como a interpretação do caminho cristão de sal-
vação. Ou seja, a salvação do cristão, a noção de virtude cristã, vai
ser a noção de virtude platônica. É assim que as idéias influem no
comportamento prático. Não é porque as pessoas começaram a ler
Platão e Casa Grande e Senzala que chegaram a essa noção de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


identidade. Claro que isso tem um papel importante, mas se não
fosse Vargas ter estatizado a ideia Freyriana, ter transformado isso
na interpretação do Brasil em cada escola, ter estimulado que as
escolas, principalmente do Rio de Janeiro, incorporassem esta idéia
em seus programas de ensino, ter dado dinheiro do Estado para que
elas usassem esses temas, ter criado um Ministério de Propaganda
com base exatamente nesse tipo de mensagem, essa idéia não te-
ria sido disseminada e não estaria hoje no âmago da nossa noção
de brasilidade. Ou seja, a idéia tem que estar acoplada a interesses
econômicos e políticos institucionalizados, se não, ela não segue em
frente. Essa noção platônica só vai atingir a todo mundo ocidental
e hoje em dia o planeta inteiro, que é um planeta ocidentalizado
em grande medida, porque a igreja católica, principal instituição do
ocidente, mãe de todas as outras instituições, o que houve de mais
poderoso em termos de influência para o comportamento prático,
inclusive por conta da noção de salvação, vai incorporar e introjetar 217
essa hierarquia entre espírito e corpo.

No caso da identidade nacional brasileira, ela é toda montada a


partir das virtudes ambíguas do corpo. Isso Freyre não vai criticar. E
o que caracteriza, então, o Brasil? A emocionalidade, antes de tudo.
Emoções, sentimentos, calor humano. Não é que tudo tenha a ver
com isso, mas Freyre vai conseguir montar isso de forma minima-
mente, embora ambígua, positivo. Dentro do mundo moderno, esta
emocionalidade é negativa. O mundo moderno é o mundo do inte-
lecto, da moderação, do autocontrole, da disciplina, do cálculo. É
tudo espírito, espírito abstraído, distanciado do corpo, que é o que
caracteriza, por exemplo, os Estados Unidos, a identidade americana
e a forma como os conceitos científicos são criados para ratificar
essa mesma hierarquia, com a legitimidade e a autoridade da ci-
ência. No caso do Brasil, ele será corpo: é o país do sexo. Todas as
celebrações brasileiras são sexualizadas e vocês sabem disso melhor
do que eu. Quer dizer, você vai ter sentimentalismo, emoções, calor
humano, amizade. Esse conjunto de idéias representa exatamente
o corpo e as virtudes ambíguas do corpo. Freyre vai conseguir dar

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


a um sinal que é claramente negativo, um sentido positivo. E essa
hierarquia não é criticada enquanto tal. Freyre assume a hierarquia
de modo inconsciente e irrefletido, mas a torna ambígua. Como? É
exatamente essa emotividade, esse calor humano que vai nos fazer
uma cultura aberta a outras culturas acrescentando a isso a possibi-
lidade de entrosamento e união. Esse é o fator positivo que Freyre
consegue criar e introduzir e convencer nesse aspecto. É ele que
introduz o elemento convincente nessa história que vai ser extrema-
mente importante para toda a identidade nacional brasileira.

Não existe problema nenhum nessa identidade como mito, e não é


a questão aqui discutir se isso é verdade ou não. O mito tem uma
finalidade pragmática; o mito é para que as pessoas como nós, para
as pessoas de classe média, que ganham 50 vezes mais do que o
porteiro, possam conversar e achar que participam do mesmo mun-
218 do que aquele porteiro, muito embora você só converse com ele
sobre futebol. É aí que esse mito cria esta possibilidade: um país de
desigualdade abissal é pensado como uma unidade comum, orgâni-
ca. É exatamente pra isso que o mito serve. Problemático é quando
o mito, quando as bases do mito viram ciência e a ciência social
brasileira foi construída em cima desse mito. O que Freyre fez não é
problemático, é uma coisa muito interessante, mas a apropriação de
Freyre que é feita pela inteligência brasileira é extremamente pro-
blemática e a ciência deve criticar todos os mitos e todos os tabus.
A ciência não tem uma finalidade pragmática, ou não deveria ter.
A ciência serve a um valor impessoal, serve a verdade. Isso significa
que não teria todas as mesquinharias humanas dentro da ciência;
isso significa que a ciência enquanto tal não avança se ela não es-
tiver com a preocupação em torno da verdade. A minha tese é que
a ciência social brasileira permaneceu no mesmo lugar por 80 anos
por conta disso.

Como assim? Quem fez esses 80 anos? Dentro desses 80 anos, po-
demos pegar Sérgio Buarque. O que é que Sérgio Buarque faz? Sér-
gio Buarque, um filho de Freyre, que depois nega essa paternidade,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


estando os prefácios de suas primeiras edições cheias de elogios à
Freyre que desaparecem ao longo do tempo, até não ter mais ne-
nhuma menção à ele, e mais ainda, seu estudo acaba por virar uma
coisa oposta ao estudo proposto por Freyre. Ele cria então a noção
do São Paulo desenvolvido, empírico; do Pernambuco, do Nordeste,
do Gilberto Freyre atrasado; de um Brasil que tem que ser mudado,
das elites, etc. Mas como é que Sérgio é filho de Freyre? O é por-
que ele pega exatamente as mesmas categorias ambíguas de Freyre,
ligadas a idéia de identidade nacional, que é como eu interpreto
Casa Grande e Senzala, um romance de identidade nacional, e põe
um sinal contrário. Aquilo que era positivo ou pelo menos ambi-
guamente positivo em Freyre, se torna negativo em Sérgio Buarque.
Ele vai dizer que emocionalidade, sentimentalidade, calor humano,
a facilidade com o trato íntimo, tudo que era virtude em Freyre, é
negativo e vício, apenas vício. Daí a noção de homem cordial, que
é uma noção negativa, ou seja, é uma noção negativa porque toda 219
construção normativa está dentro de um contexto, e vimos que
o contexto ocidental é que o espírito é superior ao corpo. Então,
quando você diz que uma pessoa é corpo, ou seja, é emoção e sen-
timentalidade, como dizem das mulheres por oposição aos homens,
ou dos negros por oposição aos brancos, você está querendo dizer
que um é superior e o outro é inferior.

Sérgio Buarque pega essas noções de emoção e cria o homem cor-


dial, que é o Brasil inteiro. Só que por algum milagre, que ninguém
nunca conseguiu explicar, esse homem cordial só desenvolve as suas
virtualidades no Estado. No mercado não. Todo brasileiro é homem
cordial, mas pouco a pouco, na obra de todos os grandes intérpretes
aqui que vão seguir Sérgio Buarque (e eu estou pensando aqui em
Fernando Cardoso, Raimundo Faoro, Roberto DaMatta, oitenta ou
noventa por cento dos grandes intérpretes vão repetir as idéias de
Sérgio Buarque de um modo ou de outro), nesse tema, que vai ser o
tema principal, o conceito central das ciências sociais e não só das
ciências sociais brasileiras, porque as idéias intelectuais não ficam
nos livros, elas vão para a vida. Vai ser, então, a principal categoria

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


do debate público brasileiro. É por isso que o debate público brasi-
leiro é sempre montado na oposição entre mercado e Estado, e foi
Sérgio e a noção de patrionalismo (que é uma noção vagabunda, do
começo ao fim, de A à Z, noção que não se mantém em pé por dois
segundos por várias razões que não vou entrar aqui, mas que no
livro tem uma discussão intensa sobre isso) que possibilitaram isso.

O fato é que para Weber, quando ele fala de patrimonialismo, quan-


do ele analisa a sociedade chinesa da China imperial, por exemplo,
esse conceito, essa confusão entre o público e o privado, só é pos-
sível com a ausência do direito formal, com o não desenvolvimento
da economia monetária. Se você tem economia monetária, você não
pode ter essa confusão, você tem que ter separação entre esferas.
Hoje você tem que ter uma autonomização da economia. Então, se
você diz que um país, que é uma das maiores economias do mundo,
220 tem patrionalismo é uma coisa que não se mantém nem aqui nem
na China. É uma palavra de apenas intuito político, quer dizer, pa-
trionalismo é um conceito histórico do modo que é tomada apenas
a autoridade de Weber para usar dentro de um contexto em que não
tem a menor aplicabilidade. Eu infelizmente não posso entrar aqui
em tanto detalhe sobre isso, se não eu não falo sobre as outras coi-
sas que eu gostaria de falar. Mas, o fato é que a noção de patriona-
lismo no fundo, ao criar essa oposição entre Estado e mercado, vai
dramatizar um falso conflito entre mercado e Estado, onde o Estado
é corrupto e o mercado é virtuoso. Imagina um negócio desses. Eu
não sei como é que isso não vira piada, ainda mais com a última cri-
se que explodiu recentemente. É incrível a dominação. O capitalismo
financeiro americano vendia títulos sem qualquer garantia, isso em
qualquer lugar é roubo, é fraude. Mas na mídia internacional é uma
economia alavancada, não é bonito isso? Esse eufemismo? É até
positivo isso. O Goldman Sachs maquiou o balanço da Grécia, que
estourou depois. Goldman Sachs é o principal banco americano, é
vanguarda do capitalismo financeiro. Pessoal honesto, de bem. E as
pessoas falam de corrupção do Estado como se não houvesse, como
se pudesse haver corrupção no Estado sem um corruptor no merca-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


do, e vice-versa. A verdade é que mercado e Estado são um sistema,
e eles são interdependentes e precisam um do outro. Porque drama-
tizar a oposição entre o Estado e mercado? E por que dramatizar de
tal modo esse conflito falso e superficial, sendo o Estado um mal e
o mercado um céu, o bem de todas as virtudes? Porque o mercado
no Brasil é compreendido como a racionalidade técnica, é universal.
Como sempre o que é dominante, é o universal, é bom pra todos. E
o Estado é politiqueiro, é particularizado, privatizado.

Por que isso? Eu acho que aí tem duas razões: ao dramatizar o


conflito falso, nós esquecemos os conflitos reais. Os falsos confli-
tos, as falsas contradições estão sempre no lugar de contradições
e conflitos reais que não chegam sequer a serem percebidos como
problema, a serem tematizados. Essa é a primeira coisa. Depois, dá
um charme crítico aí num caráter extremamente conservador. No
fundo, você está fazendo a política que interessa a grandes ban- 221
queiros e a grandes industriais, que é dizer que o mercado é tudo,
que o mercado deve invadir todas as esferas da sociedade, que é isso
que está em jogo aqui. O que a social democracia e a luta operária
durante 50 anos conseguiram foi dizer que existem esferas da vida
que não podem ser reguladas pelo dinheiro. Que esferas são essas?
Essas esferas antes eram a educação, saúde e previdência. Não é ra-
zoável que a educação das pessoas seja subordinada aos interesses
do dinheiro, é isso que se diz. O Estado, (a sociedade, através do
Estado) deve garantir como garantiu nesses países durante muito
tempo, boa escola para todos, do primário até a faculdade. Você
não consegue isso com o dinheiro. Ele vai levar as pessoas ricas a
terem boa educação e os pobres não. O Estado passa a ser o que?
Passa a ser a semântica da garantia de acesso a recursos escassos,
no caso aí, de educação e saúde, para as classes oprimidas. O que é
que a ciência social brasileira faz? De modo inteligente, vai tentar
mostrar que o Estado já é um mal em si, é corrupto e desonesto, por
que vamos deixar esferas ou empresas sobre o controle do Estado?
Todo o poder tem ser do mercado.

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


O tema do patrimonialismo se aproveita da tolice geral humana que
é de separar todo o mal de si, então, por exemplo, é dizer que essa
sociedade perversa e má na qual nós vivemos tem um culpado, esse
culpado está no Estado que são os ladrões que nos roubam em Bra-
sília e que nós todos somos santos e não temos nada a ver com isso,
somos virtuosos. O mal está sempre no outro. E aí, aquilo que serve
para meia dúzia de banqueiros e industriais, passa a ter um vínculo
agora com o ressentimento e a tolice nossa, nós todos que ajuda-
mos a transformar necessidade em virtude e localizar um inimigo
e facilmente identificá-lo. Esse termo do patrimonialismo que não
tem nenhuma solidez científica, e se mantém até hoje porque cum-
pre todas essas posições. Ele é só conservador de fio a pavio, mas ele
“tira onda” de crítico. Ele diz “não, eu sou contra a roubalheira do
Estado”, e ainda fala grosso. É isso que é feito para a dominação de
todos os interesses pelos conservadores, esse conceito não cai em-
222 bora ele não tenha nenhuma solidez e não significar coisa alguma,
só erro. Quer dizer, é só erro você pensar em termos de você separar
Estado de mercado, é só erro você imaginar uma sociedade como
a brasileira como sendo pré-moderna, que é um absurdo, como se
fosse assim uma herança portuguesa de 500 anos.

O país se industrializa, se urbaniza, muda, as pessoas são sociali-


zadas segundo outros mecanismos para atender Estado e mercado
como em qualquer lugar e ainda assim é percebido como sendo
pré-moderno, uma coisa que é patológica, é doente. E como isso
é montado? O Brasil tem pessoas inteligentes como em todo lugar.
Como esse tipo de coisa influencia pessoas inteligentes, consegue
ganhar a cabeça de pessoas inteligentes? São duas as posições de-
les: primeiro, na academia, de uma universidade sem debate e eu
fiz essa crítica ao Roberto DaMatta e ele não me cumprimentou na
Anpocs e acabou como um negócio pessoal. Quer dizer, a idéia do
autor é vista como um prolongamento da personalidade dele, é a
mulher dele ou um filho. Parece que você vai levar um tapa se falar
mal. O autor não serve a uma idéia impessoal e isso não tem a ver
com vaidade, porque vaidade humana nós todos temos. Mas é a

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


forma como você imagina essa vaidade, você fica orgulhoso e muito
contente, com auto-estima até alta porque você está servindo um
valor que é maior do que você.

Essa ausência de debate que entre nós existe e também a enorme


penetração da própria sede de identidade nacional na mídia que
aprendemos na escola, começa a repetir apenas essas mesmas idéias
que já estão na própria identidade, que nós, como brasileiros, já
aprendemos na escola. As coisas se acoplam completamente e aqui-
lo que deveria ser uma ciência crítica que deveria ser alguma coisa
que produz incômodo, arranhão, como aquele giz que você passa
no quadro e faz aquele barulho, não o é. Deveria ser isso, sempre
um soco no estômago ou não seria ciência. Assim como a arte; um
grande livro é um livro que lhe dá um soco no estômago, ele lhe
incomoda, pode ser bonito, mas ele lhe incomoda, se não, ele não
é um bom livro. Um grande filme, ele incomoda, porque nos tira do 223
estado de letargia de uma vida vivida de modo natural, irrefletido.

Passando agora para a montagem do livro, a idéia central sobre a


qual ele se baseia, nós esperamos que continue por muito tempo,
que tenha continuidade inclusive com um livro sobre o Nordeste.
Quer dizer, nós fizemos até agora dois livros, um que é esse aqui,
Sobre a ralé. Por que ralé? As pessoas, quando eu disse ralé, come-
çaram a se incomodar, a dizer “tire esse título pelo amor de Deus”.
Foi aí que eu disse, “pronto, agora é que eu vou usar mesmo, com
ele eu vou até o fim”. Fiz isso porque nós temos uma tendência
de eufemizar as coisas, ou seja, de negar conflitos. O fato de todo
conflito estar supostamente nessa relação entre Estado e mercado
é uma forma já de evitar isso. Como é que esses trinta ou quarenta
por cento da população brasileira é percebida no debate público? Eu
acho incrível, para mim é uma coisa completamente louca: você fala
de violência como se fosse uma coisa abstrata. Assim como crimina-
lidade, gargalo com a qualificação da mão-de-obra, saúde pública,
o SUS, repetência escolar, assuntos que não tem nenhuma relação
entre eles também são tratados como coisas abstratas. Os problemas

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


que daí se desenvolvem é que todos eles se referem a uma classe
que nunca foi percebida enquanto classe. Ela é percebida como re-
alidade fragmentada, para não ser percebida.

Então você termina tendo linhas de financiamento do Estado para


pesquisadores sobre violência e esses outros temas. No fim, o re-
sultado é que se montam temas de pesquisa e de debate refletindo
uma perspectiva superficial e fragmentada do debate. A compreen-
são da realidade só viria quando se unissem essas coisas. Eu acho
que todas essas questões, esses problemas que as pessoas vêem no
Brasil remontam a um problema: a constituição de uma ralé, ou
seja, de uma classe de desprezados que nós mantemos aqui e que
não existe em outros lugares nesse tamanho. É claro que ela não
existe na Europa, que é a nossa referência, o que nós queremos ser
desde a independência. Quer dizer, não é a corrupção já que corrup-
224 ção tem em todo lugar, e em Wall Street, por exemplo, e eu aposto
com vocês que a condição legal para a corrupção é muito maior lá,
no capitalismo americano, do que no capitalismo brasileiro. O que
nos separa, então, não é corrupção nem patrimonialismo nem coisa
nenhuma. É a constituição e a convivência, a naturalização dessa
classe de destituídos.

E por que chamar esse grupo de destituídos de classe? Para enten-


der de onde parto, podemos usar e estender a análise que Bourdieu
fez da sociedade francesa aonde ele fala que na sociedade moderna
existe uma hierarquia. Das questões existentes existe sempre uma
mais importante. Para se compreender qualquer coisa tem que se
compreender qual é a mais importante. Daí, o resto você hierarquiza
o modelo criado. Qual é a questão mais importante a se saber sobre
a sociedade? É a sua base de poder. O poder é a grande questão,
todos os outros são secundários em relação a ela. Por quê? Porque
é esse núcleo de poder que vai permitir o acesso privilegiado de
alguns a todos os bens e recursos escassos pelos quais nós lutamos
24 horas por dia. As coisas que queremos, todos os outros também
querem e essas coisas não são só materiais, mas tem a ver também

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


com prestígio, tem a ver com reconhecimento. A pergunta que se
faz é como isso é decidido. Isso é decidido pela relação entre capital
cultural e capital econômico. Quem tem capital cultural e capital
econômico, vai ter, com toda probabilidade, condições de ter acesso
privilegiado a todos os bens materiais e imateriais que são objeto
de controvérsia e conflito na sociedade. Basicamente, a classe alta
vai ser aquela com o capital econômico, que é o capital mais impor-
tante e a classe média, àquele capital cultural, mas é claro que há
sempre alguma forma dessas duas coisas se completarem em alguns
membros dessas duas classes. Isso quer dizer que você não pode ser
rico sem ter algum capital cultural, se não você vai ser o bronco.
Enfim, você tem que conhecer algo desse capital cultural, que pode
ser um conhecimento de vinhos e cidades charmosas, mas alguma
coisa você tem que ter para acoplar ao seu capital econômico.

No caso brasileiro, o que nós estamos chamando aqui de ralé são 225
pessoas que não tem acesso a nenhuma quantidade significativa
nem de capital econômico nem de capital cultural. E esse é um
tema que Bourdieu não estudou tanto porque não era a questão
francesa, mas é de fato a questão brasileira (e é isso que é legal em
pesquisa empírica porque ela esclarece coisas que não haviam sido
pensadas antes) a ralé não só não tem acesso à capital cultural e
a capital econômico, mas ela fica fora de todas as lutas por esses
recursos escassos. Ela não tem também acesso aos pressupostos e
é este ponto que é extremamente interessante: ela não tem acesso
aos pressupostos para incorporação desses capitais, coisas que po-
dem parecer óbvias, mas que descobrimos na pesquisa. Alguns dos
entrevistados nos contaram histórias de vida que indicavam que
eles tiveram acesso à educação. Quer dizer, praticamente todo o
pobre do Brasil tem escola, não é a falta da escola que é o proble-
ma, mas o fato é que essas pessoas iam à escola pra ficar fitando
o quadro negro, vendo o quadro negro, três, quatro horas e não
conseguiam aprender. Esses entrevistados diziam assim “eu acho
que eu não tenho cabeça boa, eu sou burro mesmo”. O incrível é
que isso foi repetido diversas vezes. E aí, indo para a casa dessas

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


pessoas nós víamos, por exemplo, um pai brincando com o filho
de carrinho de mão. Como é que você vai criar disposições nele
desse jeito?

Quer dizer, disposições para a concentração, a formação de uma ca-


pacidade de concentração que nós imaginamos ser uma capacidade
inata do ser humano, natural. Nós esquecemos o duro que demos
para adquiri-las. A disciplina que envolve toda criança para que ela
adquira certas disposições são amplamente antinaturais. Imaginem
uma criança de classe média, que vê o pai dela lendo jornal todos
os dias; que vê a tio falando inglês que volta dos Estados Unidos;
que vê a mãe contando histórias para ela, mostrando como história
uma coisa inventiva que tem a ver com imaginação. Ou seja, existe
um estímulo da parte dos pais para que o filho aprenda. As mães
da classe baixa dizem também “meu filho, vá à escola, só a escola
226 pode salvar você”. Mas imagine o que ele vai pensar: “mamãe, você
foi também? Se salvou?”. Ou seja, acaba por ser uma tradição per-
formativa. Em alguns lugares, em algumas classes, as crianças são
orientadas para chegar à escola como vencedoras. Existe todo um
estímulo afetivo, nós nos identificamos com quem nós amamos de
modo não refletido, inconsciente. Características que nós odiáva-
mos nos nossos pais, hoje nós fazemos igualzinho. Essa identifi-
cação afetiva com os pais é como as classes se transmitem. Não é
de modo material, baseado somente em propriedades e dinheiro; a
classe passa afetivamente, sentimentalmente. Disso, se cria em al-
gumas classes pessoas com capacidade de se concentrar, que são as
que provavelmente terão sucesso na escola. O que não se vê é que
toda uma classe, a ralé, manda crianças para a escola sem essa dis-
posição, sem os pressupostos emocionais para o aprendizado, para
qualquer aprendizado. O que é que esse aluno vai ter na escola?
Uma experiência de frustração, repetência, ele vai dizer depois o
que todos os nossos entrevistados diziam, é coisa de fazer chorar
a todos nós, pesquisadores envolvidos. Jovens de 19 anos dizendo
que a coisa que mais queriam era nascer de novo com uma cabeça
boa, que pudessem ter capacidade de aprender. A construção social

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


da desigualdade é completamente esquecida e surge inclusive a cul-
pabilização da própria vítima. O coitado chegou lá sem condições e
ainda se vê como burro, preguiçoso, já que é assim que ele é visto.

O último livro sobre a nossa classe média, do Bolívar Lamounier e do


Amaury de Souza, pago pela Confederação Nacional da Indústria,
diz exatamente isso sobre as classes baixas brasileiras, aquilo que
eu disse sobre as categorias que as ciências sociais americanas usa-
vam para separar os Estados Unidos de todos os outros países. São
exatamente as mesmas usadas aqui, agora para justificar o racismo
regional contra o Nordeste. Esse racismo regional contra o Nordeste
está ligado ao fato de que a ralé aqui é maior do que em outros
lugares. É um preconceito de classe que é transformado em precon-
ceito regional. Assim, temos uma classe de pessoas que não foram
pré-dispostas para o sucesso, o foram para o fracasso.
227
Pode se perguntar, então se essas pessoas têm empregos e a respos-
ta para isso é sim, claro. Mas qual seria o emprego dessas pessoas
quando elas são mulheres? Empregadas domésticas, faxineiras, ba-
bás e prostitutas. Se são homens, eles são carregadores, porteiros,
zeladores, coisas que envolvam trabalho físico, guardador de carro.
Trabalhos que exigem o corpo, ou seja, que exigem o mínimo de
aprendizado, ou de um aprendizado que parte do corpo, reduzido
ao corpo. Você animaliza uma classe, você animaliza de trinta a
quarenta por cento da população do país e diz que o problema é
o patrimonialismo, o que chega a ser engraçado. Não dá para ter
paciência com pessoas que dizem isso. Você animaliza quarenta por
cento da população, nega isso, fragmenta e diz que a culpa é dos
ladrões que nos roubam em Brasília, para dar ainda mais espaço
para as estratégias de mercado de um capitalismo, um dos mais
vorazes que existem no planeta, que tem um PIB que é setenta por
cento composto por juros e lucros, rendas de capital, e apenas trinta
por cento é massa salarial. Na França e na Alemanha é o contrário,
setenta por cento é massa salarial. Significa que setenta por cento
do PIB brasileiro está na mão de meia dúzia de pessoas e o restante

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


dos duzentos milhões estão com trinta por cento. Mas o problema
continua sendo para muitos não este, e sim o patrimonialismo, a
corrupção que é exclusiva do Estado.

O trabalho sobre a nova classe média, parte da idéia de fazermos


uma análise de classe do Brasil que seja contraposta a essa inter-
pretação conservadora do personalismo patrimonialista. Temos que
repensar esse país de outro modo, mostrando os conflitos. Esses
conflitos estão todos nas relações de classe. É a classe que é a gran-
de invisibilidade. Não é a classe no sentido marxista nem a classe no
sentido liberal, já que o liberalismo liga classe à renda. Se você liga
classe à renda, tem-se uma forma de falar de classe sem perceber
nada de importante em relação a ela. Um exemplo banal: um pro-
fessor universitário que começa sua carreira, ganha seus seis mil re-
ais líquidos, um operário da Renault ganha seis mil também. O tipo
228 de vida dessas duas pessoas vai ser, com toda probabilidade, muito
distinto um do outro em todos os aspectos como o consumo, qual
é a mulher que ele vai escolher, os amigos que ele vai ter, como ele
vai obter lazer, como ele vai educar os filhos. Tudo vai tender a ser
extremamente diferente entre um caso e outro. Se fosse depender
da renda, as pessoas seriam da mesma classe, o que não é verdade.

Falar que renda é classe é falar de classe pra não falar de classe.
Essa é uma estratégia do poder, falar superficialmente pra não falar.
E isso não é só no Brasil, isso é na sociedade moderna. No novo
capitalismo financeiro, até mesmo na Inglaterra, empresas não con-
tratam trabalhadores com passado sindical. Dentro desse escopo,
quando começamos a ouvir essa coisa de nova classe média, eu
comecei a pensar qual a maldade que estaria dentro desse conceito,
porque de que existia maldade eu estava certo. Qual seria essa mal-
dade? Por que todos os jornais conservadores do Brasil estão dis-
seminando essa idéia de nova classe média, que seria uma coisa só
boa, uma classe de empreendedores que mostraria que o capitalismo
brasileiro está bombando, saindo em todas as revistas, fazendo uma
comemoração de tudo isso?

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Como sempre, a análise do poder elimina conflitos e contradições
e o que nós encontramos aqui (nós começamos denominando esta
classe de “batalhadores”), seriam essas pessoas que trabalham de
dez a quatorze horas por dia. A nova classe média tem muito pou-
co dos privilégios da classe média, eles trabalham muito, o tempo
inteiro. A família se transforma em uma unidade produtiva. O que
nós vimos é uma coisa muito contraditória. Nós fizemos pesquisas
no semi-árido nordestino e nós pudemos ver coisas como o fato de
que as classes populares no Brasil são sempre vistas como um vazio,
como ausência, ausência de capital social, ausência de confiança,
ausência de capacidade associativa, que eu, como pesquisador, não
percebia antes. O que nós vimos é que, por exemplo, formas de
religiosidade popular, estão todas elas ligadas a uma relação com o
trabalho. Existe uma ética do trabalho que funciona, com resulta-
dos muito semelhantes à ética protestante, o que não se imaginava
antes. As pessoas trabalham muito. Mas essa coisa “rosa” que foi 229
montada, que é no fundo a imagem que temos, foi o que atrasou a
nossa pesquisa, ou seja, o que fazer com essa imensidão de entre-
vistas que nós temos sem ter um material, uma reflexão teórica para
enquadrá-las? A solução veio quando começamos a ler sobre estu-
dos acerca do novo capitalismo financeiro. Esses estudos demons-
travam que a principal causa da transformação do capitalismo é a
chamada de globalização. Esse termo não tem sentido algum, dizer
que o capitalismo é globalizado é redundante, todo mundo sabe
disso. Marx já havia dito isso com todas as letras, todos os grandes
teóricos clássicos também. Só que globalização é à entrada de uma
forma muito específica de capitalismo que poderíamos definir de
capitalismo financeiro. O que é que o capitalismo financeiro faz e
qual é a novidade dele?

O capitalismo financeiro vai fazer uma coisa importante, ele vai su-
perar o capitalismo fordista na medida em que nos cento e cinquen-
ta ou cento e oitenta anos de história do capitalismo até a entrada
da hegemonia do capitalismo financeiro, a fábrica era uma guerra
de classes e sempre foi. Colocava-se o trabalhador dentro da fábrica

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


e não só ele fazia greve, não só ele fazia seus próprios partidos, não
só havia mobilização mas havia também uma luta de trincheira
dentro da fábrica. Havia controle do trabalho sempre na tentativa
de disciplinar e controlar mais, até nos pequenos movimentos, no
movimento do braço do operário por exemplo. Você é uma máqui-
na, uma máquina para o capital. Todo encanto das lutas dos traba-
lhadores, da solidariedade entre os trabalhadores era se contrapor a
essa luta. Quem estudou isso dizia que pelo menos vinte por cento
dessa produtividade era diminuída pelos trabalhadores em diversas
formas de sabotagem. Ou seja, tinha uma guerra em toda a fábrica
entre capital e trabalho. Daí o grande custo que tinha a vigilância
e o controle do trabalho. Uma grande parte dos funcionários eram
hostilizados para controle e vigilância do trabalho diretamente pro-
dutivo, ou seja, o custo disso era enorme. Com uma série de crises
no capitalismo que aconteceu nos anos 70 e 80, novos experimen-
230 tos começaram a ser feitos, inclusive para superar esse modelo for-
dista, onde Ford é o primeiro homem a montar grandes fábricas,
botar trabalhadores dentro e dar bons salários. Você é controlado
aqui dentro, mas eu lhe dou cento e vinte dólares de salário por dia.
Isso foi feito em 1914. Esse tipo de capitalismo entrou em crise por
diversas razões que eu não vou entrar aqui agora, como o preço
do petróleo. Queria-se um novo modelo pós-fordista e o toyotismo
surge então como resposta a essa necessidade.

E por que Japão? Um país sem nenhuma tradição de luta operária,


aonde uma espécie de ideologia empresarial, a empresa como a casa
que tinha tudo a ver com a história japonesa, cuja religiosidade já
é nacionalista e aonde o que existe é uma identificação empresarial
dentro de uma tradição que já remontava isso. O que é que as fá-
bricas toyotistas faziam? Não precisavam do pessoal de controle, de
vigilância, acabando a luta de classes dentro da fábrica. Você tinha
só pessoas que se viam, enquanto trabalhadores, como patrões de
si mesmos. Fanáticos que torciam pela empresa, a vida era a em-
presa. O capitalismo ocidental vai se tornando cada vez mais um
capitalismo de tipo japonês, como já é hoje. Essa regra de que só

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


se recruta quem nunca tenha tido vida sindical, isso é generalizado
hoje em dia. No Brasil, no Paraná, você é posto para fora dos gran-
des frigoríficos se o seu patrão sabe que você tem alguma forma
de atividade política. O trabalhador deve ser então um ser apolítico,
completamente dominado pela fábrica, um escravo da fábrica. Esse
é o trabalhador moderno.

Ao pensarmos o que é que isso tem a ver com essa nova classe
média, vemos que tem tudo a ver. É a forma como esse capitalismo
financeiro está entrando nos países periféricos. Essa classe C não
está acontecendo só no Brasil, não são só trinta milhões de brasilei-
ros, são quatrocentos milhões de almas e na China muito mais. Nós
estamos desenvolvendo a hipótese de que isso é uma nova classe
trabalhadora e que esta não substitui a antiga classe trabalhadora
do Fordismo que continua a existir. O trabalho torna-se precarizado.
Boa parte da produção que antes era feita em fábricas é feita agora 231
em fundo de quintal, em pequenas empresas familiares e isso atende
também a outro grande elemento dos altos lucros do capitalismo
financeiro, ou seja, não só cortar os gastos de vigilância e controle,
como também aumentar o giro do capital. Quer dizer, o capital não
precisa mais ficar esperando o fim do mês para ter a remuneração,
ele pode agora em uma semana ou em um dia ter o lucro. Você
acelera o processo de valorização. Essas são as duas estratégias do
capitalismo financeiro.

Temos agora pessoas que trabalham para o capital, são trabalhado-


res de onde o capital tira a mais-valia e é claro que aí tem a ilusão,
que Marx já havia criticado no 18 Brumário, do camponês que se
imagina proprietário. A pessoa deve até as calças aos bancos, mas se
imagina proprietária da terra que já é do banco. No fundo ele tra-
balha para o banco, para pagar juros, empréstimos. Ele é empregado
do banco, ele é enganado pela ilusão da propriedade. Essa classe in-
teira, é enganada pela ilusão de que é empresária de si mesma. Ela
trabalha muito mais por conta disso, não precisa que ninguém vigie,
ela trabalha para um patrão invisível e é por isso que ela trabalha até

As classes populares no novo capitalismo brasileiro


14 horas por dia, trabalha muito. Tem dois empregos, trabalha e es-
tuda, trabalha sábado, domingo, muitas vezes é empregada por um
tio, ou por alguém da sua família. Como é que vai reclamar de um
tio que lhe deu um emprego? Você só trabalha quatorze horas por
um dever, por uma ligação familiar. Quer dizer, o que nós encontra-
mos nessa nova classe média que tem também acesso ao consumo?
Ora, mas a classe trabalhadora também tem acesso ao consumo!
Por que chamar de novo de classe média? Por que chamar de nova
classe média se a pessoa não tem o estilo de vida da classe média?

A história de vida dessas pessoas é para sempre o que elas têm de di-
ferentes em relação à ralé. É a possibilidade de incorporação de uma
ética de trabalho e de disciplina. Têm um contexto familiar que se
mantêm aonde as famílias da ralé são destruídas por abusos sexuais,
por exemplo, e todas as mazelas que se possa imaginar. Essa “nova”
232 classe tem outro tipo de família, tem um pai e mãe, existe transmis-
são de valores. Não tem grande capital cultural, exatamente como
a classe trabalhadora, mas tem uma ética do trabalho. Por que cha-
mar essa classe de classe média? Ela não tem nada de classe média,
não tem nenhum estilo de vida de classe média. Vocês entendem a
apologia que está aí? É a de que esse capitalismo só é bom, é rosa.
Esse mercado merece dominar, ele está mudando o país. Nisso você
esconde contradições, você esconde conflitos.

Um pouco isso. Obrigado.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Ascensão social e ética econômica
na classe popular: habitus dissonante
de uma trânsfuga de classe
Lília Junqueira

233

Os vendedores ambulantes no contexto relacional:


o conflito na orla de Boa Viagem

A cidade do Recife figura junto com outras grandes capitais do


nordeste entre as cidades de maior concentração de renda no Brasil.
Juntamente com o centro da cidade, o bairro de Boa Viagem é cam-
peão nesta desigualdade, posição agravada pelo fato de ser também
o mais populoso. Segundo Bitoun1 Boa Viagem se situa na região
intermediária entre a faixa litorânea e o morro, onde antigamente
passavam rotas de circulação de mercadorias entre os engenhos
e o porto. Com o tempo e a crescente ocupação da região, estes
caminhos se tornaram avenidas. A população que vive próxima às
avenidas tem padrão de vida médio ou alto. A que vive nas áreas
mais baixas tem padrão de vida mais baixo.

1 Jan Bitoun, Atlas de Desenvolvimento Humano do Recife, 2004.

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
Procurando benefícios de infra-estrutura e trabalho , parte desta
população ocupou pouco a pouco diversas áreas do bairro, à medida
que ele foi sendo urbanizado, formando favelas. O resultado é um
padrão ocupacional semelhante ao das faixas urbanas do litoral do
Rio de Janeiro, onde convive no mesmo espaço a população mais
rica e a mais pobre da cidade. Assim, Boa Viagem é o bairro com o
maior preço de terrenos por metro quadrado, onde há uma especu-
lação imobiliária extraordinária para os padrões da região nordeste,
e ao mesmo tempo, nas áreas das favelas há o Índice de desenvol-
vimento humano mais baixo, com precariedade de infra-estrutura
como rede de esgotos e fornecimento de água.

Neste cenário vamos focalizar a praia de Boa Viagem, local rei-


vindicado por todas as classes do bairro, onde de um lado se de-
senvolvem atividades de lazer e turismo diversas que envolvem as
234 classes alta, média e média baixa da cidade, e de outro, grupos em
ascensão social, habitantes das favelas, que se fazem fortemente
presentes com suas carroças de alimentação, bebida e pequenos ob-
jetos, transformando a praia num verdadeiro mercado da atividade
informal. Cerca de 500 famílias tiram seu sustento desta atividade
econômica se incluirmos as duas praias vizinhas, a do Pina e a de
Piedade. Entre os dias quatro e nove de março de 2009, a praia de
Boa Viagem foi palco de um conflito entre ambulantes e fiscais da
prefeitura que poderia ser apenas mais uma ocorrência entre tantas
outras nas grandes capitais brasileiras, não fosse por duas caracte-
rísticas inabituais: o alto grau de resistência dos ambulantes e o
apoio que eles receberam de parte da população de classe média do
bairro. A análise destas características, à luz da teoria sociológica
relacional e disposicionalista, aponta para elementos novos impor-
tantes para compreender o caráter das mudanças na atual estrutura
de classes no Brasil.

Sem aviso prévio aos ambulantes, a prefeitura do Recife espalhou


fiscais pela praia, proibindo a venda de alimentos e bebidas. Houve
violência. Alguns ambulantes enfrentaram os fiscais, que por sua

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


vez chamaram a polícia militar. Foram apreendidos mercadorias,
cadeiras, bancos e outros objetos. Os fiscais ameaçaram recolher
também as carroças para acalmar os ânimos. Não adiantou. Os am-
bulantes continuaram resistindo, respondendo às ofensas e humi-
lhações. Houve prisões, vários deles tiveram suas carroças apreen-
didas e alguns passaram a noite na delegacia. Três dias depois, os
ambulantes fizeram o primeiro protesto coletivo. Queimaram lixo,
pneus e colchões na Avenida Boa Viagem, atrapalhando o trânsito
dos que iam para o trabalho. A polícia militar estava presente. Dois
dias depois, em novo protesto, os ambulantes fecharam novamente
a avenida e anunciaram a criação de uma associação para defender
a padronização e o controle da vigilância sanitária em sua atividade
econômica. Um grupo de moradores de classe média e alta desceu
dos edifícios da beira mar para apoiar os ambulantes, portando car-
tazes e gritando palavras de ordem. O protesto foi divulgado pelo
conjunto da mídia estadual. 235

A partir deste protesto, a proibição foi aceita pelos ambulantes, que


não mais voltaram às areias da praia. Eles impetraram um mandado
de segurança contra a prefeitura. Inicialmente apenas 54 famílias
envolvidas no comércio receberam permissão para continuar comer-
ciando na praia. Trata-se de donos de vários carrinhos padronizados
que empregam vendedores, ou seja, os mais capitalizados. Entre os
menos capitalizados havia pessoas que tiravam o sustento de famí-
lias grandes há muitos anos. Estes foram os mais prejudicados, pois
perderam a mercadoria e ficaram sem sua fonte de renda principal,
ou como ele dizem, “desempregados”. No início de junho o Tribu-
nal de Justiça de Pernambuco derrubou a liminar que permitia esta
exceção, ficando proibido o comércio de qualquer tipo de alimentos
na Avenida, com exceção dos quiosques do calçadão.

A discussão sobre o acontecimento envolveu os mais diversos seto-


res da cidade e do Estado. A observação dos diferentes discursos,
neste momento de conflito, permite vislumbrar o sistema de posi-
ções de classe dentro do qual se delineia o objeto do nosso estudo:

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
uma pequena burguesia que emerge da ralé. O primeiro discurso
que se observa na mídia, e sem dúvida o mais forte, é aquele que
define a atividade dos ambulantes como uma “bagunça na praia”.
Para este grupo, a praia é ocupada por “diversas máfias usurpado-
ras dos espaços públicos que não diferem o público do privado e
onde manda quem pode e obedece quem tem juízo”.2

Os ambulantes são vistos como pessoas perigosas, desconfia-se da


sua ligação com traficantes e assaltantes das favelas. Para este gru-
po a situação do grande número de ambulantes na praia é insupor-
tável, devido à sujeira produzida, às agressões ao meio ambiente, à
degradação do patrimônio público e à transformação da praia em
um ambiente inóspito para os moradores de Recife e os turistas.
Trata-se dos empresários e lojistas que habitam na orla ou tem ne-
gócios no bairro, principalmente os ligados à atividade do turismo.
236
Desde 2004, a Associação dos Amigos de Boa Viagem, formada por
este grupo, faz pressão sobre o poder público para o reordenamento
da praia. São os capitalistas e pequenos empregadores mais capita-
lizados, segundo terminologia utilizada por Santos. (Santos, 2002)
Donos de grandes lojas, de cadeias de negócios interestaduais, atu-
ando no ramo da produção e da distribuição, com capacidade para
empregar um grande número de pessoas. Segundo eles a solução
para o impasse seria o cadastramento dos ambulantes, cobrando
deles uma taxa de limpeza (que deve ser utilizada para investir na
limpeza da praia), diminuir o número de barraqueiros por metro
quadrado (com o mínimo de 5 metros de distância entre eles) e
com a obrigatoriedade de manter sempre limpa sua área de atu-
ação, sob pena de multa, suspensão temporária e perda definitiva
de sua licença para comerciar no local. Além disso, deve haver um
disciplinamento dos horários de ocupação da praia pelos ambulan-
tes, e do horário de estacionamento para embarque e desembarque
de mercadorias. O pessoal da fiscalização e da prefeitura deve ser

2 Site da Associação dos Moradores de Boa Viagem: www.amabv.hpg.ig.com.br

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


qualificado para exercer melhor seu trabalho. A fiscalização deve ser
permanente e constante. A associação estabelece também critérios
para a seleção dos ambulantes que devem permanecer na praia.
Devem ser escolhidos aqueles que tem melhor poder aquisitivo, com
capacidade para se adaptar aos padrões de higiene e limpeza exigi-
dos. Os demais devem ser todos inscritos nos programas sociais do
governo e transferidos para outro local. A lista de proibições e puni-
ções é bastante longa, mas o local para onde devem ser transferidos
os ambulantes não é definido por eles.

Este discurso evidencia a posição claramente contrária aos negócios


dos ambulantes, certamente porque eles representam em certa medi-
da, uma concorrência real, por exemplo, para os donos de restauran-
tes próximos à praia. Concorrência que não pode ser declarada, posto
que a declaração poderia reforçar o efeito objetivo que ela anuncia.
Os ambulantes de fato começam a dificultar o equilíbrio econômico 237
de setores como este, pois como veremos abaixo, a prática de comer
na praia está adquirindo um certo charme cultural perante a classe
média assalariada. Para os empresários, não seria justo que com todo
o investimento feito nos negócios, parte da capitalização do turismo
fosse absorvida pelos ambulantes. Talvez por isso tenha surgido a
idéia de cobrar deles uma taxa de limpeza. A visão dos lucros esco-
ando do lado anterior à avenida para a areia da praia é um dos mais
importantes elementos que estão na base deste discurso.

O Estado (prefeitura, secretaria do planejamento, diretoria do con-


trole urbano, brigada ambiental, vigilância sanitária, guarda mu-
nicipal e polícia militar), justifica sua atitude com os ambulantes
através dos seguintes argumentos: Há dificuldade de controlar os
alimentos que são preparados fora da praia e levados para comer-
cialização. É difícil também controlar a forma como os alimentos
são acondicionados. O camarão, por exemplo, é um produto que
se estraga facilmente e pode causar danos graves à saúde, por
intoxicação. Proibir o comércio dos ambulantes foi, portanto, vi-
sando preservar a saúde de todos os que freqüentam a praia.3 As

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
soluções para o problema seriam o cadastro sócio-econômico e a
seleção dos mais capacitados para exercerem a atividade em ter-
mos de higiene. Os vasilhames de vidro devem ser proibidos por-
que podem ser transformados em armas. Aqui, uma preocupação
de segurança pública.

Outra parcela da classe média também se manifestou na mídia e em


blogs na internet. São grupos contrários à expulsão dos ambulantes,
não porque sejam contra a regulamentação do trabalho na praia, mas
em nome de uma tradição cultural que é a comedoria à beira mar:

“Acabaram com o caldinho na praia! (...) Acho que o comér-


cio ambulante desordenado ‘enfeia’ qualquer cidade, mas
o povo que vende esses bagulhos na orla está ali tentando
viver honestamente. Virou marca registrada de Boa Viagem
238 o formigueiro de ambulantes que enchem nosso saco ofere-
cendo comida, gritando e às vezes nos divertindo. Estão des-
caracterizando o cartão postal recifense. Minhas férias não
serão as mesmas sem sentar na praia e tomar cerveja com
caldinho. A elite deve estar satisfeita ‘tirando essa pobreza
da praia’.(...) Elitezinha que não sabe (e nem quer) distribuir
a renda direito. O poder fica na mão da nobre elite, que pra
aumentar salário mínimo só falta chorar na televisão dizen-
do que ta difícil trocar de carro importado todo ano.”4

Este discurso é emitido pela classe média assalariada, ocupada na


função pública em cargos mais altos, como médicos, engenheiros,
auditores ou contadores, especialistas em educação, professores de
ensino superior, especialistas em computação e advogados. (Santos,
2002;95) Este grupo propõe como solução o reforço da vigilância
sanitária, mas jamais a retirada dos ambulantes, para “não invia-
bilizar a mais democrática e gostosa praça gastronômica de que

3 Reportagem “ Comerciantes denunciam truculência na orla”Jornal do Commércio, 8 de maio de


2009. www.jc3.uol.com.br
4 Retirado do blog de um morador de Boa Viagem que, no momento do conflito, estava na França
cursando PHD em ciências da computação.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


se tem notícia no litoral brasileiro.”5 A representação social desta
classe sobre os ambulantes, de um lado demarca sua distinção social
em relação à classe empresarial, e de outro, em relação aos ambu-
lantes. Uns são denominados de “elitezinha”. Outros de “povo que
vende bagulhos e enche nosso saco”. No entanto, sua posição “po-
liticamente correta” não impede que se vislumbre nas entrelinhas a
percepção de que os ambulantes não são concorrentes diretos. São
inferiores econômica e culturalmente, por isso estão longe de repre-
sentar uma ameaça real.

Os ambulantes quase não tem espaço na mídia para suas reivindi-


cações. Eles são mostrados, retratados, há muitas fotos de seus pro-
testos, mas quase nunca são convidados a falar. Foi necessário fazer
uma entrevista com um dos ambulantes para conhecer seu ponto e
vista, que apresentamos a seguir.
239
Suzana tem trinta e seis anos, um filho de treze anos e é moradora
da favela Ilha do Destino, próxima à orla de Boa Viagem. Há dois
anos atrás, posto que não tinha renda fixa, Suzana decidiu colocar
uma carroça de alimentação na praia. Vendia espetinhos, salsichas
e queijo assado, além de bebidas como água, cerveja e refrigerante.
Suzana sentiu, já no mês de fevereiro, o endurecimento da fiscaliza-
ção, quando não foi permitido que eles entrassem na área de des-
file do último bloco do carnaval recifense, o bloco Camburão, dos
policiais. Este bloco sai na semana seguinte ao fim do carnaval, na
Avenida Boa Viagem. Suzana esperava um bom lucro, pois no ano
anterior havia conseguido ganhar mil reais durante o Camburão.
Mas não foi permitido que ela entrasse na área. Tentou entrar de
outras formas, deu uma volta, passou por uma rua adjacente, mas,
nada. A avenida estava bem fechada pela polícia militar. Com esta
proibição, ela teve cerca de trezentos reais de prejuízo com produtos

5 Reportagem “A praia é uma boca só”. Coluna “mesa posta” do Jornal do Comércio, assinada por
Bruno Albertim. 24 de maio de 2009.

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
de alimentação que não foram vendidos no período da validade.
Foi permitido colocar a carroça numa avenida paralela, mas não foi
possível vender nada, pois as pessoas não iam até lá.

Depois disso os ambulantes voltaram a vender normalmente na


praia. Mas no dia 4 de março, novamente foram surpresos pelo
arrastão dos fiscais. Sandra não foi vítima de violência, mas teste-
munhou sua colega grávida e o esposo entrarem num corpo a corpo
com o fiscal que por pouco não acabou mal.

“Tem muita gente, muito pai de família que vive e sobrevive


disso e eles metem a cara, e vai mesmo, enfrenta. Diz: venha
tomar (a carroça), tu é homem¿ Tu não tem família em casa¿
Bate de frente. Porque ali, poxa vida tem que prestar atenção
que ali, se eles se desempregarem, tem pessoas ali que tem
quatro, cinco, seis filhos para alimentar, sobrevivendo dali.
240
Feito esse rapaz, mesmo, que tem quarenta anos que traba-
lha na praia, que negocia na orla. Todo mundo conhece ele,
todo mundo compra a ele. Hoje, já não pode mais.”

Segundo Suzana, muitos ambulantes tiveram seus produtos con-


fiscados e não devolvidos, carroças apreendidas, e vários dos que
enfrentaram os fiscais e reagiram, passaram a noite na delegacia.
Este fato não foi noticiado pela mídia.

“Passaram de um cidadão para um criminoso. Deviam ter


conversado com a gente antes de ter feito tudo o que eles fi-
zeram. Porque eles não comunicaram nada, (e nos trataram)
como se a gente fosse um cachorro. Expulsaram a gente.
Hoje em dia nem os cachorros são tratados do jeito que eles
nos trataram: ‘Não pode, não pode e acabou-se. Não entra
mais e acabou-se. E se entrar a gente toma a carroça.’”

Hoje a praia está vazia, segundo Suzana, de todas as pessoas que


realmente precisavam da renda obtida para as famílias. A maioria não
conseguiu se cadastrar para continuar trabalhando nos vinte e nove

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


dias em que ainda era permitido. A prefeitura avisou sobre o cadas-
tramento na mídia, mas ela mesma foi procurar e foi submetida a
uma ciranda burocrática de respostas negativas, informações errône-
as. Submeteu-se à romaria à prefeitura enquanto pode, mas acabou
desistindo. Na realidade, a notícia do cadastramento só serviu, se-
gundo ela, para acalmar a opinião pública que já estava incomodada
com a injustiça contra os ambulantes. Só houve cadastramento para
os empresários que estavam no perfil que a prefeitura exigia. Mesmo
assim, hoje estes também estão proibidos de comerciar.

Segundo ela, a solução para o problema poderia ter sido negociada


entre todos os interessados. Os ambulantes teriam obedecido a um
comunicado da prefeitura dizendo que a partir daquele momento
o comércio estava proibido. A Prefeitura poderia também ter anun-
ciado suas exigências pela televisão ou mesmo num cartaz afixado
na orla, onde dissessem que a partir daquele momento passava a ser 241
exigido o uso de luvas, touca e avental. Eles estariam prontos para
providenciar o material necessário e atender as exigências. Reforçou
que a alimentação que ela vendia era feita no mesmo dia, limpa,
saudável, organizada, assim como a da maioria dos seus colegas.
Sublinhou o prejuízo dos vendedores de frutos do mar e peixe, que
certamente estariam ainda mais visados pela prefeitura.

Em resumo, os ambulantes se sentiram muito humilhados e injus-


tiçados e fizeram protestos coletivos que chamaram a atenção da
opinião pública como nenhum outro anterior. Há duas explicações
possíveis para esta novidade, além do fato de que o número de am-
bulantes aumentou significativamente nos últimos anos. A primeira
é que eles penetraram na dimensão da lógica econômica, desenvol-
veram uma visão econômica do mundo e uma auto-estima maior.
Uma visão social de si mesmos mais valorizada do que em tempos
passados. A partir daí, passaram a lutar e ser merecedores de mais
reconhecimento por parte da sociedade, enquanto sujeitos com ca-
pacidade de trabalho e uma função social importante Eles passaram
a fazer efetivamente parte da sociedade e não se sentem mais como

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
um resto humano amontoado nas favelas. Eles se vêem como traba-
lhadores fixos e profissionais, mesmo sendo informais e temporários.
A segunda, conseqüência da primeira, é a possibilidade de ter havido
uma ascensão social real, desde já, reconhecida por parcelas da clas-
se média, que se solidarizaram de várias formas com os ambulantes.

Os ambulantes se sentem também, diferentes da ralé. Embora muitos


dividam com eles o mesmo espaço de moradia, enfrentam dificul-
dades por terem desenvolvido esta capacidade de trabalho e auto-
estima. Suzana, em algumas passagens de sua entrevista, se referiu
a eles como pessoas que “não querem nada para si”, “que não tem
amor próprio”. Afirmou também ter sido chamada de “nariz em pé”
na favela aonde mora, porque não conversava com ninguém, não “se
misturava”. Ela respondia que não era por preconceito, apenas ela não
tinha tempo de conversar. Vamos verificar as formas e os efeitos desta
242 distinção mais adiante. Por hora, é importante observar como esta
breve visão panorâmica dos discursos midiáticos nos permite perceber
o desenho da lógica da mídia analisada aqui, sobre a chamada “classe
C emergente”. Ela descreve um processo de ascensão social que estaria
transformando a classe popular em uma classe média:

Região inferior do Sistema de Posições Sociais Urbano da Cidade de Recife


na qual os ambulantes operariam sua movimentação segundo a mídia

Classe Média Assalariada Classe Média Empresarial

Batalhadores Ambulantes

Ralé

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Os ambulantes ocupariam um lugar central nesta região do siste-
ma de posições, que é caracterizado como um local de movimen-
tação e de relativa desorganização. A meio caminho dos dois pólos
da região inferior da estrutura social6, este espaço reúne as carac-
terísticas observadas por Bourdieu na pequena burguesia francesa
no passado. Ele possui também a neutralidade na qual “as forças
de atração e repulsa se equilibram” (Bourdieu,2007:324). Mas é
sobretudo um lugar de tensão. Quando um grupo social se move,
ele produz um impacto que gera incômodo para os demais, que
desejam a permanência do status quo. Além disso Bourdieu assi-
nala que as metáforas mecânicas da movimentação dos agentes
neste espaço não devem nos deixar esquecer que “não só a repre-
sentação dos agentes em relação ao futuro de sua própria posi-
ção é que depende do futuro objetivo dessa posição, mas também
a representação dos outros agentes a respeito dessa posição con-
tribui para determinar o futuro objetivo da posição considerada” 243
(Bourdieu,2007:323)

Percebemos no discurso da mídia, todo o incômodo provocado


pelos ambulantes no seu entorno social. Mas tomar este discurso
como verdade é incorrer num grande erro. Aquilo que poderia nos
levar a pensar com apoio em Bourdieu, numa clara evidência da ob-
jetivação do processo de ascensão social da ralé para a classe média
corresponderia a comprar uma ilusão, ou seja a de que a ralé está
se transformando em uma classe média. Segundo Jessé Souza, com
base na pesquisa nacional da qual participamos,

“se fosse depender da renda, as pessoas seriam da mesma


classe, o que não é verdade. Falar que renda é classe é
falar de classe pra não falar de classe. Essa é uma estra-
tégia do poder, falar superficialmente pra não falar. E isso

6 Este esquema representa a metade inferior do sistema de posições sociais, e contém apenas as classes
adjacentes à pequena burguesia que estamos estudando, ou seja, as que são atingidas mais direta-
mente pelo seu processo de ascensão social. Estão fora do esquema as classes rurais, por exemplo. A
metade superior do esquema representaria o espaço entre a classe média e a classe mais alta ou elite.

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
não é só no Brasil, isso é na sociedade moderna. No novo
capitalismo financeiro, até mesmo na Inglaterra, empresas
não contratam trabalhadores com passado sindical. Dentro
desse escopo, quando começamos a ouvir essa coisa de
nova classe média, eu comecei a pensar qual a maldade
que estaria dentro desse conceito, porque de que existia
maldade eu estava certo. Qual seria essa maldade? Por que
todos os jornais conservadores do Brasil estão disseminan-
do essa idéia de nova classe média, que seria uma coisa
só boa, uma classe de empreendedores que mostraria que
o capitalismo brasileiro está bombando, saindo em todas
as revistas, fazendo uma comemoração de tudo isso. Como
sempre, a análise do poder elimina conflitos e contradições
e o que nós encontramos aqui (nós começamos denomi-
nando esta classe de “batalhadores”), seriam essas pessoas
que trabalham de dez a quatorze horas por dia. A nova
244 classe média tem muito pouco dos privilégios da classe mé-
dia, eles trabalham muito, o tempo inteiro. A família se
transforma em uma unidade produtiva. O que nós vimos é
uma coisa muito contraditória.”(2010)

Ao tomar distanciamento crítico com relação aos discursos da mí-


dia, percebemos que, para entender as relações entre o processo
social de ascensão e a produção da representação midiática deste
fenômeno no estudo das disposições da classe popular, torna-se
mais importante a perspectiva das variações individuais de Ber-
nard Lahire do que a de Bourdieu. Esta última obrigaria a pensar
a classe popular coletivamente, em bloco, procurando situá-la no
espaço da estrutura social, sem passar pela análise das trajetórias
individuais, que apontam para construções disposicionais híbridas,
mesmo que ele não leve em consideração únicamente o fator ren-
da. O caso que apresentamos a seguir é um bom exemplo deste
tipo de construção disposicional, impossível de ser entendido a
partir da idéia midiática de transformação da classe popular em
classe média.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Razão, fé e leitura: fundamentos de uma auto-reconstrução

Em meio à turbulência da movimentação coletiva dos ambulantes é


que vamos encontrar Suzana (cujo depoimento foi apresentado na
parte 1), e vamos observar sua trajetória e seu perfil disposicional,
para tentar, captando alguns traços de sua complexidade, entender
o fenômeno da ascensão de um grupo proveniente da ralé, no Brasil.

Suzana tem 36 anos, mora na favela Ilha do Destino, próxima à


praia de Boa Viagem, onde, a cerca de 16 anos atrás, invadiu um
terreno dentro do manguezal e construiu uma casa junto com o ex-
esposo. Ali ela mora até os dias de hoje com seu único filho Henri-
que, que tem 13 anos. Atualmente ocupada como faxineira diarista
em Boa Viagem, Suzana foi uma das vendedoras ambulantes de ali-
mentação, proibida de comercializar na praia no mês de março. Ela
não sabe dar informações sobre sua origem de classe. Praticamente 245
não conheceu os pais. Sabe que é filha mais nova de uma família
de seis filhos, que morava no bairro de Afogados (bairro de baixa
renda). O pai, segundo lhe contaram, era contratado do Instituto
do Açúcar e do Álcool e trabalhava carregando sacas de açúcar. A
mãe faleceu doente dos pulmões quando ela tinha três anos. Com a
morte da mãe, os dois filhos mais velhos, que já eram jovens adultos,
foram para São Paulo onde vivem até hoje, e os outros quatro foram
entregues à um orfanato, onde Suzana passou toda a infância.

A vida no colégio interno não era fácil. Sempre em condições pre-


cárias de funcionamento, pois era financiado por instituições reli-
giosas e de caridade, tinha poucos funcionários e muitas crianças
para cuidar. Ao todo eram 75 crianças. Os funcionários nem sem-
pre conseguiam assegurar os cuidados essenciais no tratamento das
crianças, como higiene e alimentação. Muitas vezes a disciplina era
mantida à custa de pancadas. Suzana conta que apanhou muito.
Conta também do sofrimento que passou com os irmãos por falta
de afeto, e do desejo em vão de que o pai viesse buscá-los. Tirando

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
estas dificuldades, Suzana lembra com muito carinho do ambiente
do orfanato, principalmente dos professores. Segundo ela, lá apren-
deu tudo que é essencial para a vida.

No orfanato eles receberam um ensino formal também precário.


Estudavam duas horas por dia. Aos 10 anos, Suzana foi matricula-
da no ensino público no mesmo bairro, mas conta que ainda não
sabia ler, na época. A escola pública não recuperou suas carências
adequadamente, pois, fez duas séries no mesmo ano, (3ª e 4ª) sob
a justificativa de que já fazia algumas horas de estudo no orfanato.
A disciplina era rígida. Acordavam às seis da manhã e iam dormir às
seis da tarde. Durante o dia, cada qual tinha sua função: Suzana e
sua irmã arrumavam os quartos das meninas. Outras arrumavam os
quartos dos meninos, outras varriam o salão. Os meninos ajudavam
com os banheiros, varriam o quintal, ajudavam as meninas a carre-
246 gar o lixo, e assim por diante. Ninguém ficava sem trabalhar para
ajudar. Era preciso disciplina também na hora das visitas dos repre-
sentantes de instituições de caridade que iam levar donativos. Sa-
ber se comportar, ser educado. As crianças participavam também de
campanhas para arrecadar fundos e donativos. Saíam todos numa
Kombi com um alto falante, chamando a atenção das pessoas, ba-
tendo nas portas, pedindo ajuda para o abrigo. As pessoas sempre
ajudavam, mas queriam saber qual a religião do abrigo.

A dona do abrigo era espírita, mas a religião que as crianças declara-


vam era a católica, e para a busca de recursos não se fazia distinção da
religião professada pela pessoa ou instituição doadora. Em qualquer
igreja que os aceitasse, eles assistiam missas e coletavam donativos e
dinheiro. Mas, segundo Suzana, o maior presente que as crianças já
ganharam foi a chegada de Laura. A nova instrutora veio para morar
no orfanato, diferentemente dos anteriores, que somente lá traba-
lhavam. Laura conversava com as crianças e dava afeto. Eles a viram
lutando por uma educação melhor para elas. Habitualmente elas re-
zavam sozinhas antes de dormir. Quando chegou, Laura rezava com
eles, dava um beijo na testa de cada um, dava boa noite.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Laura mudou a organização do trabalho no orfanato. Cada um pas-
sou a ter obrigações e direitos individuais. Cada um passou a for-
rar sua própria cama, mesmo os menorzinhos, que deveriam pedir
ajuda aos mais velhos para dobrar os lençóis grandes. Ensinou a ter
responsabilidade com suas coisas, já que, segundo ela, consequen-
temente eles teriam também responsabilidade com as coisas dos
outros. No orfanato Suzana aprendeu o significado do valor do tra-
balho, da honestidade, da confiança e da generosidade para consigo
mesma e para com os outros:

“Eu erro, tenho minhas falhas, eu sou humana, mas (...) eu


procuro sempre fazer o melhor, tanto para mim como para
qualquer outro ser humano, porque eu fazendo para mim,
fazendo para outro ser humano, eu me sinto bem, eu faço
a minha parte aqui, para mais tarde, Deus, se achar que eu
mereço, (...) me dar de volta.”
247

Os irmãos saíram do orfanato em períodos diferentes. Suzana foi a


que ficou lá por mais tempo. Foi também a que estudou mais. A mais
velha foi entregue pela dona do orfanato a uma amiga para trabalhar
como empregada doméstica. Suzana saiu com 12 anos também para
trabalhar em casa de família e estudar em colégio público. O irmão
não estudou e hoje faz bicos, não tem emprego fixo. A irmã do meio,
Lúcia, um ano mais velha que Suzana, aos 11 anos, insistiu em sair
do orfanato para procurar o pai. Nesta época ele já havia se casado
novamente e tinha filhos com a nova esposa. O resultado foi o mais
desastroso possível e acabou grávida aos 12 anos. Voltou ao orfanato
em que estavam as irmãs. Quando a criança nasceu, deixou Lúcia do-
ente e o pai entregou o neto a uma outra instituição de caridade, para
que Lúcia pudesse ser aceita numa casa de família como doméstica.
Segundo Suzana, esta instituição era estrangeira e na verdade, fazia
adoção de crianças brasileiras para os Estados Unidos.

A capacidade de leitura permitiu que Suzana alertasse sua irmã nesta


ocasião sobre as intenções do pai, e o enfrentou, com apenas 12 anos:

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
“Foi uma briga, uma confusão. Eu e minha outra irmã acom-
panhamos ela (ao orfanato onde ficaria o sobrinho). Quando
chegou lá, nenhuma sabia ler,só eu que sabia ler, aí eu li o
papel e disse: ‘-Aqui você tá dizendo que vai dar seu filho
pra adoção, você tá dando o seu filho nas mãos de outra
pessoa.’ Aí meu pai achou ruim e veio querer bater em mim
lá dentro. Eu disse: ‘-o senhor nunca me deu nada, o senhor
nunca foi meu pai, porque é que o senhor tem direito de
levantar a mão pra dar em mim¿ O senhor tá enganando
ela.’ Aí ele jogou na cara da gente: ‘-Ela tem condições de
sustentar o filho? Então ela tem que dar!’ Eu disse: ‘- O
senhor tá fazendo errado, eu vou chamar a polícia!’ Eu não
sabia, eu não tinha conhecimento, mas eu sempre tive ins-
trução. (...) Toda a instrução que eu tive, de educação, tudo
hoje, que eu tenho, foi devido a lá. À criação que eu tive no
colégio interno.”
248
Lúcia ficou doente, trabalhando em casa de família em certos perí-
odos, em outros desempregada, vivendo na rua. Em certo momento
viveu junto com um homem que a espancava e teve outros filhos
que foram, igualmente doados. Não resistindo à pressão, apresentou
problemas mentais irreversíveis. Hoje está internada em um hospi-
tal psiquiátrico porque não tem recursos para morar em uma casa
próxima das irmãs. O pai delas, já de idade, foi abandonado pela
esposa e voltou a procurar as filhas, não por sentimento de famí-
lia, mas para tentar satisfazer impulsos sexuais. Tendo a filha mais
velha aceitado sua presença em sua casa, ele tentou molestá-la se-
xualmente e também às outras filhas. Elas o expulsaram de casa e
ele acabou falecendo como indigente, dormindo sobre uma pedra.
Em seu coração, Suzana conta terem passado desde o amor até o
ódio na relação com este pai. Mas se orgulha, principalmente de ter
conseguido sentir perdão, que no caso dela era muitíssimo difícil.
Segundo Suzana, a justiça de Deus tarda mas não falha, ou seja,
não seria necessário que ela punisse o pai, já que a própria vida es-
tava oferecendo a ele as provas e sofrimentos pelas quais ele deveria
passar para pagar o que fez contra os filhos.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“Não era nunca para eu ter aceito meu pai em casa, porque
ele nunca foi meu pai. Mas a gente (se) propôs a ajudar
ele porque a gente tem bom coração. Deus, depois de todo
sofrimento da gente, demonstrou vida à gente. Não deixou
a gente roubar, nem furtar o que é de ninguém, graças a
Deus. Ganhar tudo com honestidade, ser pessoas de bom
coração...e, principalmente, acima de tudo (sentir) o perdão.
A gente sabe perdoar.”

Sem dúvida Suzana perdoou o pai, posto que, seria no mínimo


improvável que alguém que foi gerado e jogado no mundo como
ela, tivesse a trajetória na vida adulta que ela teve, se guardasse um
grande rancor a lhe atravessar a psique. No que se refere à vida de
mulher, Suzana seguiu todos os procedimentos considerados legí-
timos em nossa sociedade. Conheceu o esposo aos 16 anos, na-
morou durante dois anos. Ficou noiva durante dois anos e casou-se
249
com 20. Teve o filho com 25. Viveu dez anos casada e separou-se.
Hoje tem um namorado e é a melhor amiga do ex-marido.

Um complexo disposicional improvável

O caso de Suzana permite observar o desenrolar de uma experiência


de vida relativamente especial e levantar elementos para responder
à seguinte pergunta: o que acontece em termos de suas disposições,
quando um indivíduo que tem sua origem na ralé é afastado de sua
classe durante a infância, e volta para nela viver sua juventude e
vida adulta?

De fato, pelo habitus dos pais, podemos perceber que a origem de


classe de Suzana é a ralé. O pai, sobretudo, demonstra falta de
consciência de si próprio e dos filhos enquanto pessoas humanas,
falta de cuidados consigo mesmo, desapego com relação aos filhos,
falta de consciência da importância deles, que indica a inexistência
de uma visão do futuro e que ocasiona um profundo desinvesti-

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
mento em seus cuidados e em sua educação. Falta de afeto e de
controle dos seus impulsos, podendo chegar ao extremo do abuso
sexual dos próprios filhos (Carneiro e Rocha, 2009). Outros indica-
dores mais objetivos reforçam esta afirmação, como a ocupação do
pai e o bairro popular em que moravam.

Muito pequena, Suzana passa a viver num lugar onde ela aprende
o valor da pessoa humana, a necessidade de ter cuidados, afeto e
cultura. De repente, aos 12 anos, ela é devolvida para este lugar de
onde havia saído, mas do qual nada sabia. Para ela foi a própria
descida ao inferno. O orfanato era como uma espécie de fortaleza
da qual, aqueles que saíssem seriam devorados pelos animais e vio-
lentados pelos bárbaros. Foi o que aconteceu com Lúcia, cujo des-
tino ainda hoje tortura suas irmãs. Dando provas de uma coragem
extraordinária, Suzana encontrou formas de fazer sobreviver em si
250 mesma o habitus internalizado no orfanato, através da construção
de uma vida pessoal equilibrada e do apego aos estudos. “Minha
irmã, meus irmãos me guardavam muito por eu ser a mais nova e
ter tido mais cabeça, não ter me entregado muito fácil (...) eu sem-
pre tive mais cabeça.” A expressão ter mais cabeça significa para
Suzana escapar das decisões erradas, que a prejudiquem ou que a
destruam. A base para a permanência desta atenção de Suzana para
com a própria vida vem do fato de ela ter tido a capacidade de não
retroceder na aquisição de valores e de um habitus superior ao dos
pais e de sua classe de origem, através do uso da razão, da fé e do
conhecimento. Pensar antes de agir, planejar o futuro, sonhar o me-
lhor para si mesma e para os seus, amar e respeitar sua família foram
princípios que ela guardou no seu íntimo e potencializa ainda hoje
em forma de ação. Segundo Lahire,

“a distinção é tanto uma distinção de si para si, quanto uma


distinção de si enquanto membro de um grupo ou de uma
classe em face de um outro popular, subalterno, inferior,
etc.” (Lahire, 2006:360) “Se o mundo social é um campo
de lutas, os próprios indivíduos que o compõem geralmente

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


são, eles próprios, as arenas de uma luta das classificações.
É a luta de si contra si, a dominação de um si legítimo sobre
a parte ilegítima de si, o controle e o domínio do que há de
ilegítimo em si, que engendram o sentimento de superiori-
dade distintiva em relação àqueles que se imagina que não
tenham nenhum controle de si.” (idem:29)

Consequentemente, o caso de Suzana apresenta o caso típico de


habitus dissonante com relação à classe de origem, composto por
um complexo de disposições. De um lado, as disposições diacrôni-
cas ligadas a uma ética moderna, baseada na igualdade e liberdade
individuais, e ao trabalho útil e digno, e a valorização da expressi-
vidade individual (Souza, 2009:95) internalizados no orfanato. De
outro, a necessidade de adaptar-se ao seu meio social após a saída
do orfanato, que gerou uma série de variações sincrônicas, nas quais
Suzana teve que desenvolver capacidades novas. 251

“uma disposição pode ser reforçada por solicitação contínua


ou, pelo contrário, pode enfraquecer por falta de treinamen-
to. Devido ao fato de não serem atualizadas, as disposições
sociais, ao contrário das físicas ou químicas (por exemplo a
solubilidade do açúcar), podem como afirma Peirce, ‘cansar-
se’: a força de uma disposição só se dilui ou esfacela quando
ela não é utilizada.”(Lahire,2004:28)

As disposições ligadas à ética moderna de Suzana resistiram à cons-


trução de uma vida dentro da ralé, diferentemente de seus irmãos,
que adaptaram-se melhor a esta, deixando em segundo plano a
disposição moderna e colocando em primeiro lugar, os princípios
da falta de valor humano presentes na ralé. Como Suzana conseguiu
fazer isso? Sendo “mais cabeça”, ou seja, usando a razão e a fé e
colocando os estudos e o trabalho como prioridades permanentes
em sua vida, mesmo que de forma precária do ponto de vista de
uma formalização. Ao sair do orfanato, Suzana passou a trabalhar
e estudar. Fez o magistério, um curso básico de computação e o
ensino médio, mas não completou estes cursos. Chegou a estudar

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
para o vestibular, mas acabou não fazendo a segunda fase por falta
de dinheiro para pagar a taxa exigida:

“Uma coisa que eu prezo muito é meus estudos. Eu gosto


muito de estudar. Se eu tivesse oportunidade de fazer a mi-
nha faculdade, que o meu maior sonho era fazer a faculdade
pra direito. Eu fiz a primeira etapa do vestibular, passei. Na
segunda, a gente não tinha mais renda, porque antigamente
você tinha que pagar uma renda na Caixa pra poder adquirir
um formulário pra fazer vestibular, que era cinqüenta reais
na época.”

Mesmo assim, Suzana continuou estudando. Ela voltou ao ensino


médio público diversas vezes, refazia as séries que já havia feito “só
para não ficar sem estudar”, garantindo que tudo era muito dife-
rente, os professores, os colegas, que todos a respeitavam. Afirmava
252
que o colégio era um lugar onde ela se sentia muito bem. Certamen-
te o colégio a faz lembrar o ambiente do orfanato que lhe dava um
sentimento de segurança e de aconchego. Além disso, a freqüência
à escola serve para atualizar os conhecimentos obtidos no passado,
mas que mudam. Por exemplo, o emprego da língua portuguesa.
Suzana demonstrou, de forma subliminar em seu discurso, uma for-
te relação com a língua. Talvez por ter sido a leitura que a permitiu
na infância esclarecer a irmã de uma grande traição do pai, fato
marcante que fundou, no seio da família, a identidade de Suzana
como a irmã mais inteligente. Em outras palavras, o domínio da lín-
gua, e a coragem de se expressar deram a Suzana um poder pessoal
especial: “Eu sempre fui mais esperta do que minhas irmãs. Eu
sempre fui uma pessoa que, o que vinha na minha cabeça eu tinha
que falar”. Estas razões parecem complexificar o efeito definido por
Bourdieu como “boa vontade cultural”, ou seja, a forte predisposi-
ção das classes em ascenção para incorporar o capital cultural das
classes superiores. A relação que Suzana tem com os estudos não
pode ser considerada inócua do ponto de vista objetivo apenas por-
que ela não chegou à sua conclusão formal e não logrou, com ele,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


um espaço no mercado de trabalho. O estudo significa para ela, de
um lado o reforço constante de uma visão de si portadora de poder,
de uma forte potência pessoal, capaz de transformar seu universo,
empoderamento que possibilita demarcar constantemente sua dis-
tinção com relação à sua classe de origem, na qual os indivíduos
não tem nenhum poder social. De outro, permite a atualização do
habitus moderno, da expressividade pessoal, dos valores humanos,
do trabalho útil e do individualismo, através do contato constante
com os conhecimentos, a língua portuguesa e a leitura. A atuali-
zação deste habitus é fundamental para a incorporação da hexis
econômica e para o excelente desempenho de Suzana na educação
do filho, como veremos adiante.

Suzana demonstra, também um padrão cultural mais legítimo do


que seria esperado em sua classe. Ela vai ao teatro, ao cinema, com-
pra revistas e livros frequentemente, e lê constantemente os livros 253
didáticos do filho. Tem um gosto musical eclético e procura passar
este gosto pela cultura para o filho.

Gênero e ética da individualidade

Estes sentimentos e visão do mundo permitiram a Suzana, tam-


bém, no plano íntimo, relacionar-se e construir uma família com
um homem de disposições sociais distintas da ralé. Suzana conheceu
Roberto no ensino médio. Ela fazia a oitava série e ele a sétima. Ele
morava com a mãe viúva e já tinha trabalho fixo, no qual perma-
nece até hoje, numa papelaria do bairro de Boa Viagem (começou
como atendente e hoje é gerente). Roberto é também o pai do filho
de Suzana. Ele nunca deixou de dar apoio aos dois, mesmo tendo
se “juntado” quatro vezes depois da sua primeira união com ela.
Apesar disso, nunca teve outro filho e nunca se casou novamente.
Embora separados, Roberto tomou para si a função de protetor per-
manente de Suzana e de Guilherme, o filho deles. A visão que tem
da ex-esposa é a de uma mulher vitoriosa:

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
“Ele viu todo o meu sofrimento e das minhas irmãs e um dia
ele disse:- tá vendo, minha filha, hoje você se ergueu. Diga
que você é uma pessoa vitoriosa, você tem sua casa, não
precisa tá sofrendo humilhação de ninguém. Você tem saú-
de, tem seu filho. Você só precisa de um emprego. Se você
tiver um emprego, você tem tudo. Você já tem sua casa. E o
emprego você consegue, que você é uma mulher esforçada.”

Foi Roberto que iniciou a reação coletiva de retomada dos terrenos


invadidos por eles em Boa Viagem, onde hoje fica situada a casa
de Suzana e o filho, há 16 anos atrás. O terreno já estava tomado
e eles estavam construindo a casa, quando outras pessoas vieram e
colocaram cercas: “Pessoas que tem mais condições que a gente”.
Suzana, grávida, tinha que andar muito quando vinha do trabalho,
para dar a volta na cerca. Um dia Roberto se cansou da situação e
começou a derrubada da cerca:
254

“’Aqui mora gente de família, não mora ladrão, não mora


traficante. É todo mundo de família. Eu vou ser o primeiro
a derrubar a grade’. Então ele derrubou. Ele tomou a atitude
de derrubar a grade, disse: ‘na frente da minha casa eu passo,
porque eu derrubo a grade e o muro. Se alguém vier contra
mim, eu vou procurar meus direitos, porque eu conheço os
meus direitos de cidadão, entendeu¿ Porque aqui não é bicho
pra estar preso em gaiola, nós somos humanos, igual a todos
eles, igual a qualquer um’. Então ele foi o primeiro a derrubar.
O resto (das pessoas) saiu derrubando. A gente terminou ajei-
tando a praça, fazendo plantação, pé de limão, pé de banana,
essas coisas. Foi organizando, deixando tudo limpo.”

O discurso e a atitude de Roberto são o princípio da igualdade


individual e liberdade da modernidade, plenamente objetivados. A
auto-definição como ser humano é a base da distinção com a ralé.
É possível atribuir o sucesso da relação entre Suzana e Roberto,
entre inúmeras outras razões, à capacidade que ela teve de manter
funcionando suas disposições internalizadas no orfanato. Diferente-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


mente, suas irmãs tiveram destinos conjugais bem piores, com com-
panheiros que as maltratavam, o que era esperado dentro do padrão
de relacionamentos que elas aprenderam na família. Para Lahire as
influências conjugais, em casos como o de Suzana, podem ser vistas
como fator de mobilidade social:

“Embora não representem uma ‘reviravolta’ do ponto de


vista da estrutura social global e das grandes mobilidades
sociais intergrupos, esses microdeslocamentos geralmen-
te constituem oportunidades, para cada ator individual, de
conviver em ambientes socializadores ou com pessoas por-
tadoras de disposições que diferenciem, minimamente que
seja, daquelas que ele conheceu em seu meio de origem e,
consequentemente, de constituir gostos culturais diferen-
tes.” (Lahire,2006:356)

255
Roberto ajudou Suzana na atualização e renovação do habitus que
ela adquiriu na educação do orfanato de várias e diferentes manei-
ras. Mas a que nos interessa mais aqui foi a transmissão para Suzana
de um conjunto de disposições econômicas voltadas para a autono-
mia, que ela não tinha antes.

As disposições econômicas
“Nada é mais estranho com efeito (ou indiferente)
à teoria econômica do que o sujeito econômico concreto”

Pierre Bourdieu

Após a proibição da comercialização de alimentos na praia de Boa


Viagem, de onde Suzana retirava sua renda principal nos últimos
dois anos, ela trabalha em maio de 2009 como diarista de serviços
domésticos. Faz faxina duas vezes por semana, recebendo sessenta
reais por semana. Além disso, recebe pensão alimentícia do filho, no
valor de cento e quarenta e cinco reais. Por mês Suzana vive com

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
trezentos e oitenta e cinco reais. Recentemente, a área onde Suzana
mora foi cadastrada nas empresas de fornecimento de energia e
água do Estado. Antes disso, ela não pagava estas taxas. Mas agora
elas representam o elemento de maior peso no conjunto de suas
despesas. Cerca de setenta e seis reais de energia elétrica e vinte re-
ais de água. Sobram duzentos e oitenta e nove reais para as demais
despesas mensais, numa casa onde moram duas pessoas. Muitas
vezes Suzana tem que optar entre pagar as contas e a alimentação:
“A gente não vai deixar de se alimentar para pagar conta. Paga-
se? Paga-se, mas com atraso, guardando um pouquinho aqui, um
pouquinho ali.”

Suzana não tem direito ao bolsa família e ao bolsa escola. Contou


que esteve na prefeitura mais de cinco vezes tentando obter o be-
nefício, sem sucesso. A justificativa era que havia pessoas com mais
256 necessidade do que ela no momento. O bolsa família ainda não é
um direito, ou seja, o governo federal não pode ser processado por
não ceder o benefício aos cidadãos. Por isso, visando a adequação
do programa à verba disponível, limita-se o número de segurados
a partir do estudo da renda destas pessoas. Existe uma fila de dois
milhões de pessoas esperando para ter direito ao benefício.7 Suzana
faz parte deste contingente, mas não compreende o que faz com
que sua renda seja considerada superior à dos outros.

O histórico de trabalho de Suzana é bastante longo. Ela trabalhou


em muitas atividades diferentes, por pouco tempo e sem contrato
de trabalho. Trabalhou em um consultório de dentista como aten-
dente, como arquivista de documentos numa delegacia, como pro-
fessora primária com contrato temporário, entre outros. Sua carteira
é assinada como estoquista e garçonete, as atividades nas quais tem
mais tempo de experiência. Foi estoquista num shopping e garço-

7 Informação retirada do estudo “Vulnerabilidade social e geração de oportunidades: desafios para


a inclusão produtiva” da Diretoria de Estudos Sociais do IPEA, 2008.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


nete em diversos restaurantes do bairro. Contou que fez concur-
so para professora na rede pública de ensino, mas nunca passou.
Suzana atribui sua dificuldade de permanecer no mercado de tra-
balho à má sorte: “É duro seu filho querer alguma coisa e você
não poder dar. (...) Quando eu trabalho eu me dedico bastante, só
que eu não tenho sorte nos meus trabalhos porque, ou tem corte
(de pessoal), ou acontece alguma coisa e a firma fecha.” Sandra
recebia os direitos como o décimo terceiro, mas era explorada no
quesito carga horária de trabalho. As horas extras eram muitas e
não eram pagas. Por ser mulher, ela era sempre prejudicada na hora
da repartição das obrigações dentro do restaurante. Os restaurantes
contratam pessoal por temporada , por isso há muitas demissões em
períodos próximos. Num momento pode haver cerca de 30 pessoas
trabalhando, e três meses depois só haver duas, por exemplo. Os
empregados homens tem prioridade nas demissões, mas o acúmulo
de trabalho vai ficando para as mulheres, que são exploradas até a 257
exaustão. Suzana não tem noção deste mecanismo do mercado. Os
cursos que fez nunca acrescentaram muita coisa para o trabalho, na
maioria das vezes ela foi admitida por indicação, ou por experiência.

No entanto, foi possível perceber que Sandra tem duas inadequa-


ções para o trabalho assalariado que não são declaradas. São per-
ceptíveis, mas não conscientes. A primeira aparece nas entrevistas
quando falamos sobre o capital cultural, sobretudo a língua por-
tuguesa. Mesmo que em nenhum momento isso seja declarado, a
falha cultural está presente para Suzana e para as pessoas das ou-
tras classes com as quais tem de lidar no exercício de seu trabalho.
Ela conhece a língua e não se expressa mal, mas, trata-se de um
emprego típico da classe média baixa. Durante as entrevistas Suzana
cuidou bastante do que ia dizer e da forma como ia dizer, fazendo
auto-correções sucessivas das expressões utilizadas, demonstrando
o auto-policiamento típico do que Bourdieu denomina boa vontade
cultural. Fez inúmeras vezes referência ao desejo de aprender por-
tuguês, antes mesmo de adquirir outros conhecimentos que seriam
necessários para o trabalho, como administração e gestão. “Agora o

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
que eu queria mesmo, mesmo, mesmo, mesmo era fazer um curso
completo de português. Um curso completo, toda a base do por-
tuguês, me aprofundar bastante...era o que eu queria.” Mostrou
ter conhecimento da mudança das regras da língua portuguesa, e
contou que mandou o filho corrigir a professora na escola, que não
estava levando as novas normas em consideração. Autodidatismo,
auto-policiamento e um uso médio do capital cultural legítimo são
fenômenos típicos das classes que passam por processos de ascen-
são, segundo Bourdieu: “Sem fundamento consistente para suas
classificações e divididos entre seus gostos de tendência e os seus
gostos de vontade, os pequeno-burgueses estão condenados a pro-
ceder a escolhas (culturais) desconexas”(Bourdieu,2007:306) As-
sim, a língua, como outros domínios da cultura, é utilizada de uma
maneira “tipicamente média”, na qual, no caso de Suzana, resulta
uma mistura da terminologia gramatical legítima e de termos de
258 gíria criados e utilizados pela ralé, por exemplo.

“Não existe língua média, tampouco cultura média. Esta re-


sulta da relação da pequena burguesia com a cultura, erro de
objeto, equívoco, crença deslocada, alodoxia. (...) A relação
pequeno burguesa com a cultura e sua capacidade de con-
verter em cultura média tudo que ela toca – à semelhança do
olhar legítimo que ‘salva’,como se diz, o que ele ilumina- , não
é, se é que se pode falar assim, sua ‘natureza’, mas a própria
posição do pequeno burguês no espaço social, a natureza so-
cial do pequeno burguês que se faz lembrar incessantemente
e, em primeiro lugar, ao próprio pequeno burguês, determi-
nando sua relação com a cultura legítima e sua maneira – ao
mesmo tempo ávida e ansiosa, ingênua e séria- de seu apego
a ela; é, simplesmente, o fato de que a cultura legítima não é
feita para ele, quando não é feita contra ele, e que, portanto,
ele não é feito para ela que, por sua vez, deixa de ser o que é,
desde que é apropriada por ele (...)”(idem:307)

A segunda inadequação é a própria pretensão a tornar-se, no nosso


caso, um indivíduo da classe média. Esta pretensão que combina

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


“boa vontade cultural e espírito de economia, seriedade e obstina-
ção no trabalho” mantém o pequeno burguês sempre em estado de
alta tensão, propenso à agressividade. Suzana contou como a sua
paciência com os patrões dos restaurantes onde trabalhou foi dimi-
nuindo progressivamente:

“Trabalhei três anos na Central da Picanha, que fica lá no


Pina, na Tomé Gibson, mas eu saí de lá porque o garçon fez
uma coisa errada, eu nunca fui, isso é meu direito, eu acho
assim, (o povo fala pra mim ‘você é muito besta’, não é (que
eu seja) besta, mas nunca fui de trair colegas de trabalho
nem nada. Ele fez uma coisa errada, o cliente foi reclamar, o
meu patrão achou que eu, por ter mais tempo que ele, que
era pra eu ter orientado ele, eu disse: ‘olhe, orientação quem
dá é você, eu sou uma funcionária igual a ele, então, se você
quer, você procure fazer uma reunião e diga onde cada pes-
soa ta errado’. Aí ele disse “era pra você ter orientado, isso é 259
uma ordem minha”, eu disse ‘tudo bem, da próxima vez, eu
sei que é sua ordem, eu vou dar um conselho a ele, mas eu
não sou ninguém pra dar conselho, eu sou uma funcionaria
igual a ele na casa’. Aí ele “você ainda tá falando besteira,
é?”, aí eu disse ‘falando besteira não, Zeca, eu tô dizendo
a verdade’. Aí ele disse “cala a boca”, eu disse, ‘cala a boca?
Não confunda patrão com pai, não. Você não é meu pai pra
tá mandando calar a boca’. Aí ele disse “você tá respondendo
ainda?”, eu disse, ‘respondendo não, eu tô lhe dando a res-
posta que você passou pra mim. Eu tô lhe dando a resposta.
Você me fez uma pergunta, eu tava respondendo, eu disse
que você não confundisse, você não era meu pai e você me
mandou calar a boca’. Aí ele disse “vá pra casa descansar a
cabeça”. Aí eu disse ‘só lhe digo uma coisa, você não tá li-
dando com delinquente, tá lidando com um ser humano que
quer trabalhar. Eu já trabalho com você há três anos e quatro
meses, você nunca teve uma reclamação de cliente nenhum
sobre minha pessoa e principalmente de minha pessoa como
funcionária. Eu só espero que você saiba o que você tá fa-
zendo’. Ele disse ‘vá pra casa, domingo você vem’. ‘tá certo’,

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
aí eu fui pra casa, aí quando foi no domingo ele disse ‘nós
não precisamos mais do seu trabalho”, eu disse ‘tá certo, faça
as minhas contas que eu venho buscar, e eu só espero não
ter intriga com você’. Aí ele disse ‘certo’ ”.

Esta altivez com que ela se dirige ao patrão como se fosse igual a
ele, como se não estivesse em posição social inferior, irrita profunda-
mente os empregadores porque quebra as regras da ordem social do
domínio da classe proprietária sobre a classe trabalhadora. Aquela
tem internalizada a disposição para mandar e espera ser obedecida.
Já Suzana, é funcionária altamente dedicada e esforçada, mas ao
mesmo tempo, está pronta a colocar o patrão em seu devido lugar, a
explicar coisas a ele, a ensiná-lo como deve dirigir seus empregados.
Estamos diante, portanto, de um conjunto de disposições claramen-
te contraditório, que pode também ser explicado pela condição de
260 trânsfuga social de Suzana.

“A pretensão pode escrever-se, igualmente, pré-tensão: pen-


dor ascensional convertido em propensão para perpetuar a
ascensão passada da que ela é o produto, tal pretensão tem
como contrapartida, o espírito da economia e toda a pe-
quenez associada às virtudes pequeno-burguesas. Se a pré-
tensão obriga o pequeno-burguês a entrar na concorrência
das pretensões antagonistas e o impele a viver sempre acima
dos seus meios, mediante uma tensão permanente, sempre
pronta a explodir em agressividade, ela é também o que lhe
fornece a força necessária para extrair de si mesmo, por to-
das as formas de auto-exploração – em particular, ascetismo
e malthusianismo – os recursos econômicos e culturais indis-
pensáveis para a ascensão” (idem:316)

Tais inadequações podem ser explicadas também, em parte, apro-


fundando o olhar sobre a trajetória individual de Suzana, pela es-
pecificidade de sua socialização. Uma pessoa que, aos 12 anos de
idade, foi capaz de enfrentar o próprio pai, que era a autoridade
máxima em sua vida, e que se construiu sozinha, sem ajuda de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


ninguém, ou seja, desenvolveu um forte domínio sobre seu univer-
so pessoal e relacional, pode ter desenvolvido, paralelamente, uma
dificuldade de considerar quem quer que seja como um superior. Em
outras palavras, o fato de ter origem na ralé pode ter potencializado
a disposição para a pretensão pequeno-burguesa de Suzana, e para
a autonomia.

A carroça de alimentação

No final de 2006, quando o filho já estava com 10 anos, Suzana


decidiu, junto com seu ex-esposo, montar uma carroça para vender
alimentação na praia de Boa Viagem.

“Eu tava desempregada e não tava conseguindo trabalho, só


conseguia fazer bico, não tava conseguindo uma coisa fixa. 261
Então, pra eu não ficar dentro de casa, porque eu me sinto
muito inútil quando não estou fazendo nada, aí ele (o ex-
esposo) disse: ‘vamos fazer uma coisa, vamos ver se a gente
consegue comprar uma carroça de alimentação pra você mes-
ma trabalhar. Você negocia, eu compro a carroça, compro os
materiais e você se vira com o resto, com seu trabalho.”

Foi adquirida uma carroça de madeira equipada com dois botijões de


gás pequenos, um pequeno fogareiro para esquentar os alimentos e
uma panela com tampa. A carroça é adaptada sobre uma bicicleta,
com um bagageiro onde cabe uma cesta grande de isopor para levar
bebidas. Suzana vendia cachorro quente, espetinhos, salsichas e quei-
jos assados, refrigerantes, cerveja e água mineral. Além da alimen-
tação, é necessário, para completar o preparo da carroça, ketchup,
maionese, guardanapos e copos de papel, etc. Suzana vendia na praia
de Boa Viagem todos os dias durante os dois anos em que foi permi-
tido. Além disso, ela comercializa também nos grandes eventos que
acontecem na cidade, principalmente o carnaval. A rotina de traba-
lho é exaustiva. Era preciso acordar às quatro e meia da manhã para

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
preparar a alimentação e preparar a carroça. Ficava na praia até as
dezessete horas aproximadamente. Não era possível dar a atenção de-
sejada ao filho, pois Suzana não tinha quem a substituísse na carroça.
Mas segundo ela, no final de cada dia, valia muito a pena o esforço.
Já para comercializar em eventos, a rotina é ainda mais pesada, pois
é necessário um grande deslocamento, mas o lucro é bem maior. É
preciso acordar às três horas, abastecer a carroça e seguir empurrando
por cerca de cinco quilômetros até chegar no centro da cidade, onde
acontece o carnaval. Chega-se no local da comercialização por volta
de quatro e trinta da manhã, e lá se permanece até às dezenove horas.

Na praia, o lucro de Suzana era bastante variável. Nos dias nublados


e chuvosos, em geral, o lucro é bem inferior aos dias de sol, mas
essa não é uma regra. O contrário pode acontecer, se por exemplo,
chegavam grupos de turistas que queriam comer na praia. Em mé-
262 dia o lucro diário era de cem reais. Nos eventos, a média sobe para
oitocentos reais. Mesmo vendendo na praia, o lucro de Suzana era
muito superior ao salário mínimo que ela recebia nas lanchonetes
em que trabalhou antes. Com a receita, Suzana pagava as despesas,
inicialmente as contas de água e luz atrasadas e mais tarde incluiu
as da loja de roupas C&A e as contas dos dois celulares da casa, um
dela e outro do filho. O restante do lucro era reinvestido em estoque
para a carroça. O ex-esposo ensinou a fazer o controle das despesas,
das saídas e entradas de dinheiro e mercadoria, anotando tudo num
caderno. Os lucros eram empregados em estoque de alimentação
para a família, roupas e objetos de necessidade do filho. Não conse-
guiu ainda comprar eletrodomésticos nem o computador que o filho
tanto desejava. Para adquirir bens duráveis, Suzana precisa da ajuda
do ex-esposo para dividir as parcelas. Compra-se financiado em dez
ou doze vezes e os dois se organizam para dividir as parcelas. Além
disso, Suzana recebeu uma herança a que tinha direito pela morte
de seu pai no valor de cerca de dois mil reais, que ela investiu num
pequena reforma de sua casa. Há ainda outra verba para receber,
que Suzana pretende empregar no início de uma poupança para
garantir a faculdade do filho.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


O ex-esposo de Suzana, já havia comercializado alimentação de ma-
neira informal antes, além da experiência em gerenciamento da pa-
pelaria, evidenciando o treinamento a longo prazo que é a base da
disposição econômica. Suzana não relatou haver tido dificuldades
para controlar o negócio, afirmou que com a experiência do tra-
balho nos restaurantes ela já havia aprendido muita coisa, e com a
orientação do ex-esposo, não sentia necessidade de conhecimentos
suplementares. O relato de sua experiência com a carroça de alimen-
tação evidencia a idéia do espírito de empreendimento e de cálculo,
característica das classes sociais em ascensão. É o que mostra, por
exemplo este trecho de seu discurso onde ela conta como fazia o
controle de entrada e saída de produtos:

“Eu não fazia compras de semana em semana. Sempre de-


pendia de quanto eu vendi. Porque eu tenho que deixar
aquela mercadoria sair para colocar o lucro e deixar o di- 263
nheiro guardado da carroça para o que faltar. Se eu não tiver
o lucro em cima do cachorro quente, eu tenho em cima da
cerveja, da água mineral, entendeu¿ E ali eu vou juntando.
Então ali eu analiso, se eu comprei cem garrafas de água
mineral, se eu vender vinte, aquele lucro eu guardo do dia
da garrafa d’água pra cobrir outra mercadoria da carroça que
saiu mais do que a água e precisa ser comprado, porque tá
sendo mais vendido, entendeu¿ Então eu compro cem, levo
vinte, vendo as vinte, e já guardo o lucro. Levo cinqüenta
cachorros, vendo trinta, a mesma coisa, o lucro eu guardo
pra abastecer a carroça com outra coisa que sair mais.(...)
E eu só compro mais mercadoria quando eu passar toda a
minha pra frente. Quando eu vejo que só tem um ou dois, aí
eu reponho mais.”

Com relação ao crédito, Suzana prefere não receber de pessoas des-


conhecidas ou de bancos. Ela conhece casos de amigos que pedi-
ram dinheiro emprestado a agiotas, depois não conseguiram pagar
e sofreram graves consequências, como ameaças de morte de seus
familiares. Por isso ela prefere evitar ao máximo de pedir, e quando

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
for inevitável, pedir somente a pessoas de confiança, que no seu
universo de relações são muito poucas: suas irmãs e seu ex-esposo.

Suzana demonstra também alguma preocupação com a produtivi-


dade e com os rendimentos. Ela percebeu que os adultos são levados
por seus pais para barracas que vendem alimentação infantil, como
picolé, balas e doces. Passou, então a colocar um pouco destes itens
na sua carroça, visando atrair este público. Parte da freguesia de
Suzana era relativamente fixa, ou seja, pessoas que a conheciam e
preferiam comprar dela, do que de outras carroças. “Eles chamam
a gente de ‘tia’.(...) A gente tem alguns lugares que sempre pára
na praia. Cliente não, tá sempre andando. Mas quando eles vêem
a gente, param, compram, conversam, já é conhecido, já.” Alguns
compram fiado. Suzana confia e vende. Mas se for um mau pagador,
ela percebe pelo comportamento. Ela vê a pessoa no dia seguinte
264 fazendo de conta que não a viu para não pagar. Nesse caso, ela não
vende mais para este freguês específico.

A consciência temporal de Suzana ao trabalhar em seu negócio tam-


bém não é incompatível com a lógica econômica. Fazer poupança de-
monstra espírito de previsão e de previdência. Ela conhece muito bem
seus limites e sabe de sua fragilidade financeira. Mas o pensamento
prospectivo está presente, na aspiração à ampliação de seu negócio.
Suzana sente que, para ampliar o negócio, o próximo passo seria co-
locar um ponto fixo fora da praia. Ela está pensando em colocar uma
mercadinho para funcionar em sua casa. Notou que nas redondezas de
onde mora não há pontos de venda de alimentação para a demanda
se sua classe. A classe média compra em grandes supermercados, para
os quais ela se desloca de carro. Mas para quem não tem carro, ir até o
supermercado é mais complicado, pois a pessoa tem que andar e voltar
trazendo pacotes pesados. Suzana sublinha que só não pode ser ven-
dida bebida alcoólica em casa, porque “não daria certo”. Certamente
ela se veria em situação de insegurança no caso bem provável dos con-
sumidores passarem a consumir a bebida diante da casa. A ampliação
necessitaria de um investimento em equipamentos para o mercadinho,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


como pranchas para colocar a mercadoria, e alguma reforma de sua va-
randa para abrigar o ponto de venda. Mas o verdadeiro desejo de Suza-
na era colocar uma escolinha de maternal e alfabetização em sua casa.
Nesse caso o investimento teria de ser maior, seria necessário construir
um primeiro andar sobre a casa. “Mas quem sabe desse mercadinho eu
não consiga me erguer, né, e levantar minha casa e embaixo eu fazer
minha escolinha.” Suzana tem alguma prática de ensino em escolas e
em aulas de reforço que já deu em sua casa.

Percebemos claramente, diante dos comportamentos e idéias de


Suzana, a presença da lógica econômica internalizada e tornada
disposição. Ela não apresenta um perfil perfeitamente empresarial,
com cálculo de risco, que permitiria captar crédito, por exemplo. Por
outro lado, estão presentes um certo controle entre receita e des-
pesa, controle do estoque, visão de mercado e de marketing, e um
emprego absolutamente racional do lucro, levando em consideração 265
as limitações de sua condição social. Além disso há muita preocu-
pação também com a qualidade dos produtos preparados por ela e
comercializados. Higiene e limpeza são itens fundamentais.

Suas disposições econômicas convivem com a ética religiosa da cari-


dade, da generosidade e da culpabilidade pelo lucro. Suzana se sente
culpada quando vê seus irmãos em dificuldades financeiras maiores
do que as dela e por estar em melhor situação do que eles. Se res-
sente profundamente das reclamações das irmãs e dos vizinhos. Diz
que procura ajudar a todos, mas não é possível. Afirmou que gostaria
de ter muito dinheiro para comprar uma casa para cada irmão. Esta
amálgama entre aquilo que conhecemos em forma de uma duplicida-
de conceitual entre ética econômica e tradicionalismo de base católi-
ca, é uma constante no discurso de Suzana. A força da moral religiosa
dificulta a internalização de disposições financeiras, principalmente
para o crédito. A seguir, apresentamos, a partir de uma pesquisa de
recepção de um programa de auditório, uma análise mais profunda
da visão de mundo econômica de Suzana, tentando lançar mais luz
sobre os valores e princípios envolvidos nesta questão.

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
Devo não nego, pago se puder:
a socialização midiática na resistência ao crédito

O programa de auditório Domingo Legal do comunicador Gugu Li-


berato é exibido aos domingos na rede de televisão SBT a partir das
19 horas. Dirige-se ao público de classe baixa e média baixa, onde
tem a maior parte de sua audiência cativa. O quadro “Devo não
nego, pago se puder” é um jogo televisivo, no qual um concorrente
deve, após ter sido selecionado pela produção a partir de um e-mail
ou carta ao programa, comparecer diante das câmeras do programa,
para contar a história de seu endividamento e submeter-se a algu-
mas provas de coordenação motora e de concentração. Vencidas as
provas, o concorrente recebe o valor referente à dívida que contraiu
para liquidá-la. Algumas vezes há recorrência de concorrentes que
perdem, neste caso, o valor do prêmio é acumulado para os do-
266 mingos seguintes. É importante assinalar o clima de terror psicoló-
gico instalado pelo programa. O candidato não tem condições de
concentrar-se, é interrompido pelo próprio apresentador, por ruídos
e música assustadores, tudo para ligar a idéia do esforço para con-
seguir dinheiro a um sacrifício insuportável. Trata-se de uma sessão
de humilhação pública feita espetáculo midiático.

No programa que Suzana assistiu para responder à entrevista, a


concorrente era uma faxineira diarista como ela, com cerca de trin-
ta e cinco anos e que havia contraído uma dívida de seis mil reais
para pagar uma cirurgia importante para a vida de sua mãe. Como
ela recebia cerca de setenta reais mensais, não havia meios para de
pagar a dívida. Suzana assiste ao programa aos domingos, de vez
em quando, quando não tem trabalho para fazer. Por um lado ela
gosta do programa porque acredita na vocação de Gugu para ajudar
as pessoas. Por outro lado, não gosta da exacerbação do sofrimento,
da tristeza e das lágrimas das pessoas que aparecem e ficam muito
tempo no ar. Para ela há um revezamento de tristeza, quando as
pessoas contam suas histórias, e de alegria, quando elas são ajuda-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


das. A parte da tristeza pode envolver negativamente o telespecta-
dor, que vai entrar na proposta psicológica do programa. Ela não
gosta de ficar assistindo muito tempo, pois acha que isso pode fazer
mal, causar depressão e uma visão negativa do mundo.

Segundo Suzana, a origem do problema está no cobrador da dívida. A


pessoa que faz um empréstimo a uma pessoa pobre não deve esperar
ser restituído tão cedo. Deve confiar em Deus que iluminará a cabeça
daquela pessoa para que ela consiga se erguer e juntar o suficiente
para pagar a dívida. Porque se ela conseguir fazer isso, ela tem a dívi-
da na consciência. Portanto, pagará, mesmo que muito tempo tenha
decorrido. Mesmo que o emprestador tenha morrido. Ainda assim, ela
devolverá o dinheiro à família, aos filhos. Acredita que o programa
tem uma orientação de beneficência. E ela acredita na beneficência,
porque foi beneficiária durante a infância, no orfanato. O programa
pode desencadear uma corrente de beneficência junto ao público. 267

“Muitas vezes, as pessoas ficam, tem a consciência e procu-


ram ajudar o outro. Tantas pessoas dizem, poxa, eu vou fa-
zer o possível para ajudar. Dessa vez, eu assisti um programa
que me tocou. Então vou fazer a minha parte, (...) pra que
outro ser humano me veja fazendo, toque o ser humano,
toque o próximo novamente, e assim sucessivamente.”

Já, outras pessoas, não aproveitam a oportunidade de melhorar,


nem mesmo se elas forem chamadas para concorrer no programa e
ganharem prêmios. Contou a história do rapaz, conhecido dela que
era muito pobre, lixeiro, carregador de papelão, analfabeto, foi se-
lecionado. Ela presenciou o dia da entrega de prêmios. Ele ganhou
vários prêmios, entre os quais uma máquina de fazer desenhos grá-
ficos em tecido. Ele começou a beber, e foi se desfazendo de tudo
por causa da bebida:

“Às vezes é falta de orientação, né? Logo do começo, assim,


de você ser orientada por alguém. E a vida que você leva é

Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
uma vida que você já se acostumou aquela vida monótona,
né? De fazer aquilo e ser conhecido por aquilo. E se você
fosse conhecido por coisas assim, que você, exemplo, como
ele mesmo ganhou o prêmio, se ele tivesse a partir dai ter...
Porque ele foi bem mais conhecido, né? Muita gente “oxe,
fulano de tal ganhou”, “e não ganhou mesmo? Vamo lá”. E
encheu de gente, tumultuou. “Oxe, eu conheço ele”, muita
gente conhecida tava em cima, tudo mais, entende? Mas ele
não soube aproveitar e eu acho que ele foi pouco orientado
pelo que ia fazer. E outra, não é me gabando, mas eu acho
que é pessoas pobre de espírito, entendeu? Que não olha
pra si próprio, não olha pra sua família, gosta de viver essa
vida ao relento, que não, num quer um futuro melhor pra si.
Porque se ele quisesse realmente um futuro pra ele, ele tinha
feito a vida dele.

268 A ralé não pode aproveitar as oportunidades que aparecem porque


não tem amor-próprio. No lugar dele ela teria investido no negó-
cio. “Porque, eu mesmo, iria agarrar esta oportunidade com unhas
e dentes, ia aproveitar, ia fazer um bom investimento pra mim, pro
meu filho. Ia investir em mim e no meu filho.”

Refletindo sobre o programa de televisão e sobre o discurso de Su-


zana, parece-nos claro que apesar de apontarem a chamada classe
emergente como fruto do novo capitalismo financeiro, na prática,
porta vozes do discurso social legítimo, tais como certos apresenta-
dores de programas de auditório, dificultam o mais possível a estes
trabalhadores a possibilidade de entrarem em contato com o mundo
financeiro, sobretudo com o crédito. Para isso existem mecanismos
sub-reptícios tais como reforçar o medo nos programas onde a
nova classe trabalhadora aparece, ou simplesmente ignorar total-
mente sua existência, onde eles jamais aparecem. Em segundo lugar,
é possível mais uma vez conferir a distinção com relação à ralé no
que diz respeito à utilização de um prêmio. A idéia é utilizá-lo da
maneira mais racional possível.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Referências bibliográficas

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Edusp, PA-RS, Zouk, 2007.

____________ O desencantamento do mundo: estruturas econômi-


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Lahire, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações in-


dividuais. São Paulo, Artmed, 2004.

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Santos, José Alcides Figueiredo. Estrutura de posições de Classe no


Brasil. Mapeamento, mudanças e efeitos na renda. UFMG-IUPERJ,
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da Ralé: “Do fundo do buraco”: o drama na ascensão social de em-
pregadas domésticas. In: Souza, Jessé (org) A Ralé Brasileira, quem
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Souza, Jessé. As classes populares no novo capitalismo brasileiro, in:


Cultura e classes sociais na perspectiva disposicionalista. Recife,
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Ascensão social e ética econômica na classe popular: habitus dissonante de uma trânsfuga de classe
O “Super-homem” de Negócios
Marcio Sá, Marianny Jessica Silva, Genildo de Almeida,
Elisabeth dos Santos, José Rafael Barbosa,
Thyago Fernandes da Silva, Cássio Lucena.1

271

Introdução
Quando lemos os discursos e relatórios dos executivos sobre
o tipo de homem necessário, não podemos deixar de chegar
a essa confusão simples: ele tem de adaptar-se aos que já
estão no alto. Isso significa que ele deve corresponder às
expectativas de seus superiores e de seus pares; pessoal e
politicamente, social e comercialmente, seu estilo deve ser
idêntico aos que estão no alto, e de cujo julgamento depen-
de seu êxito. Para ter importância na carreira da empresa, o
talento, qualquer que seja sua definição, dever ser descober-
to pelos superiores talentosos. É da natureza da ética interna
das empresas que os da cúpula não admiram, nem podem
admirar, aquilo que não compreendem nem podem compre-
ender. C. Wright Mills, em A Elite do Poder (1981 [1956])

1 Marcio Sá é professor-pesquisador do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE


(NG/CAA/UFPE). Todos coautores são estudantes do curso de Administração do CAA/UFPE. Agrade-
cemos a Kássia Roberta de Souza, por sua colaboração ema algumas atividades que permitiram a rea-
lização deste trabalho. E, institucionalmente, ao CEPEDES/UFJF, FAPEMIG, CNPq e PROPESQ/UFPE,
pelo apoio institucional e financeiro para a realização da pesquisa. Registramos que esse trabalho foi
anteriormente apresentado no EnANPAD 2010.

O “Super-homem” de Negócios
Este trabalho tem como objetivo a construção e apresentação de
um tipo puro (ideal), nos moldes propostos por Max Weber, que visa
apoiar uma investigação maior na qual se insere – voltada para a
compreensão dos modos de pensar, sentir e agir do homem de ne-
gócios contemporâneo. Na realidade, o título e o foco deste artigo
podem ser melhor compreendidos a partir da sigla que denomina o
tipo específico de homem de negócios em questão, o CEO – Chief
Executive Officer, o diretor-presidente ou diretor geral de uma em-
presa, seu mais alto executivo. Eles estão no topo da hierarquia
do mundo dos negócios contemporâneo. Sentam nas cadeiras mais
almejadas por aqueles que se projetam para este mundo e alimen-
tam a esperança de chegar “ao topo”. Personificam o sucesso mer-
cadológico bastante cultuado e reconhecido em nosso tempo. Eis
o porquê de nosso título provocativo. É nosso entendimento que a
construção de um tipo puro do que aqui chamaremos de super-
272 homem de negócios é de significativa importância à compreensão
dos modos de pensar, sentir e agir do homem de negócios comum,
afinal, de um modo geral, este toma como referência ou ideal a ser
alcançado, o CEO.

Neste sentido, apresentaremos uma revisão de literatura sobre o


tema observada a partir da perspectiva teórica oferecida pela so-
ciologia disposicionalista (cf. Bourdieu, 2007 [1979]; Lahire, 2001,
2003, 2004, 2005, 2006). Em seguida, nos voltamos brevemente ao
trabalho de Max Weber para nele recuperar as orientações de sua
doutrina metodológica – no que diz respeito à construção ideal-
típica. Cumprida estas etapas serão apresentados, e em sequência
analisados, trechos de um corpus linguístico constituído a partir das
seguintes fontes: (1) Matérias e seção (Agenda do CEO) seleciona-
das da revista Você S.A., (2) livros, entrevistas e transcrições dos di-
álogos de “um CEO midiático”, Roberto Justus (no programa de TV
O Aprendiz 6 Universitário, exibido pela Rede Record no primeiro
semestre de 2009), (3) trechos selecionados do documentário Enron
– os mais espertos da sala e (4) depoimentos de CEO recolhidos do
documentário The Corporation.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Partindo da articulação entre a literatura revisada e o corpus anali-
sado, ambos observados pelas lentes da sociologia disposicionalista,
ao final do artigo apresentamos um tipo puro do “super-homem de
negócios” que nos servirá ao confronto com o homem de negócios
real, já então numa outra etapa da pesquisa maior da qual este tra-
balho faz parte e que pode ser vista em Sá (2010b).

Literatura revisada à luz da sociologia disposicionalista2

Ao longo dos últimos anos encontramos na literatura científica es-


tudos que ou tomam o homem de negócios como objeto central ou
lhe dão significativa relevância. Tal literatura nos permite observar
que o nosso fenômeno de interesse neste artigo está intrinseca-
mente relacionado ao contexto sócio-histórico e às mudanças que
este apresenta ao longo da história contemporânea. Ou seja, seus 273
pensamentos, ações e sentimentos se constituem a partir de (e re-
fletem) o conjunto de valores éticos-morais e a própria ideologia
vigente que caracterizam o espaço-tempo no qual vive – e que vão
se modificando com o caminhar da história. O tipo específico de
homem de negócios objeto central deste artigo, o CEO, é resultado
deste processo de constituição sócio-histórica do homem de ne-
gócios comum, em particular, ao longo do século passado. Deste
modo, acreditamos ser necessário revisar, mesmo que sucintamente,
as origens deste personagem até o surgimento deste outro que hoje
ocupa o topo do mundo dos negócios.

Na Europa do início do século XX, o economista Joseph Schumpeter


(1988 [1911]) elabora suas considerações acerca do desenvolvimen-
to econômico. Suas idéias datam de 1909, tem grande repercussão
principalmente nos estudos que se seguem no campo da adminis-
tração e da economia. Segundo o autor, a figura do empresário é
um dos aspectos fundamentais ao fenômeno do desenvolvimento

2 Pontos abordados nesta seção podem ser vistos com mairo profundidade em Sá (2010b).

O “Super-homem” de Negócios
econômico. Esse desenvolvimento seria desencadeado por mudan-
ças no mundo como um todo (não apenas na esfera econômica), e
cujas causas e explicações só podem ser encontradas “fora do grupo
de fatos que são descritos pela teoria econômica” (p.47).

O papel fundamental que Schumpeter (1988, p. 48) atribui à figura


do empresário é insinuado por ele quando diz que “é o produtor que,
via de regra, inicia a mudança econômica e os consumidores são edu-
cados por ele, se necessário; são, por assim dizer, ensinados a querer
coisas novas”. Sendo assim, os empresários são entendidos como indi-
víduos cuja função é realizar as novas combinações3, ou “empreendi-
mentos” (outro aspecto considerado pelo autor como fundamental ao
desenvolvimento econômico). Deste modo, “não é necessário que ele
[o empresário] esteja permanentemente vinculado a uma empresa in-
dividual; muitos financistas, promotores etc. não são e ainda podem
274 ser empresários no sentido que lhe damos” (p.54).

Observando mudanças na estrutura societária americana, em par-


ticular numa de suas frações, as classes médias que denominou de
White Collar, o sociólogo americano C. W. Mills (1969 [1951]) nos
permite observar historicamente o homem de negócios de meados
do século XX no seio desta sociedade. O universo dos “colarinhos
brancos” é exposto pelo autor, e nele é possível situar o “homem
de negócios” como uma figura de destaque nesse universo maior
da “nova classe média americana”. Para Mills, “com a expansão das
empresas modernas, as propriedades aumentaram e o poder de con-
trole direto dos proprietários diminuiu” (p.119-20), passando a ser
mais indireto e exercido na prática pelos gerentes. Nessa situação
de destaque para qual o gerente é alçado, Mills se propõe então a
estudá-lo, e ao fazê-lo, identifica uma nova espécie de gerentes –
que muito embora sejam adaptados à vida burocrática, não se ajus-
tam de modo algum à imagem corrente do burocrata (p.113). Estes
gerentes mais jovens são por ele denominados de “dinâmicos”, e são

3 Sobre o que ou quais seriam estas “novas combinações”, ver Schumpeter (1934, p. 48-9).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


contrapostos ao antigo empresário.

« O antigo empresário buscava o êxito fundando e desen-


volvendo uma nova empresa. O burocrata consegue um
emprego de futuro e escala hierárquica previamente orga-
nizada. O novo empresário sobe num caminho em zigueza-
gue dentro e entre burocracias estabelecidas. » (Mills, 1969,
p.114, grifos nossos)

Mills também atenta que “uma das características do novo empre-


sário é a capacidade de ganhar experiência sem ser controlado”4
(p.116). Onde quer que esteja, este tipo de indivíduo parece ter a
capacidade de acumular aprendizagem na prática de atividades de
mercado, forçando os limites das convenções mercadológicas em
diversos sentidos, o que pode levar ao fato de que: “Às vezes, um
novo empresário torna-se um rico proprietário. Sabe então aplicar 275
inteligentemente seus bens em diferentes ações, a fim de diminuir
os riscos e aumentar as possibilidades de sucesso” (p.117-8).“Em
geral, o habitat dessa nova espécie de empresário são as áreas ain-
da imprecisas e não-organizadas. Está perfeitamente à vontade nos
‘serviços’ menos tangíveis – estudos de mercado e relações públicas,
agências de propaganda” (p.114, grifo do autor).

Essas características se aproximam muito do aspecto inovador que


Schumpeter atribui ao empresário, realizador de novas combina-
ções, porém, Mills nos permite observar diferenças claras entre os
gerentes burocratas de antes e os gerentes mais jovens, o que nos
instiga num sentido: O “campo” (Bourdieu) dos negócios estava
passando por mudanças, exigindo dos indivíduos que se projeta-
vam a desempenhar o papel de executivos, o desenvolvimento de
novas habilidades técnicas e administrativas para se adaptarem.

4 Esse empresário não é controlado por terceiros, mas por si próprio. Essa questão também será
apontada por Boltanski e Chiapello (2009, p. 110), como uma das características do mundo capitalista
dos anos 90.

O “Super-homem” de Negócios
O conceito de campo na sociologia disposicionalista5

Bernard Lahire (2001, p. 24-26, tradução minha) apresenta “os ele-


mentos fundamentais e relativamente invariantes da definição de
campo que podemos extrair das diferentes obras e artigos do autor
em questão”. Em síntese lembra que, para Bourdieu, o campo é
a concorrência, é um lugar que ninguém consegue dominar por
completo, mas que apresenta sempre dominados e dominantes em
posições diferentes.

O conceito de campo nos é especialmente importante pois o “cam-


po dos negócios” é um espaço social no qual são hierarquizados
os indivíduos de acordo com a posição que ocupam e as práticas
276 (mais ou menos pertinentes ao campo e ao posto desejado ou
ocupado neste) que apresentam, assim como lócus no qual se dá
a disputa destes por posições e, neste processo, a incorporação
de valores sincrônicos à dinâmica de uma sociedade de mercado
– justamente no processo observado na sociologia disposicionalis-
ta de incorporação pela classe, em Bourdieu, pelo indivíduo, em
Lahire, de aspectos da sociedade na qual vivem. Tanto o homem
de negócios em geral quanto o CEO são atores que ocupam posi-
ções específicas neste campo.

Um pouco depois, o mesmo Mills (1981 [1956], p. 154-5) enriquece


a literatura sobre o tema ao analisar uma sofisticada elite de execu-
tivos americana, “os homens da cúpula do mundo das sociedades
anônimas”, e ao desmistificar as origens desses homens, por ele
considerados “um tipo social perfeitamente uniforme”:

« Os altos dirigentes de 1950 não são rapazes da roça que ti-

5 Estes e os demais quadros foram construídos a partir de Sá (2010a, 2010b)

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


veram êxito na cidade: embora 60% da população na época
em que nasceram (1890) vivessem nas áreas rurais, apenas
35% dos executivos de 1950 vieram de comunidades rurais.
E isso era ainda mais exato nos ‘bons velhos tempos’ ; em
1870, apenas metade dos executivos nasceram na roça com-
parados com 93% da população de 1820. [...]

Esses americanos urbanos, brancos, protestantes, nasceram


em família de classe superior e média superior. Seus pais
eram principalmente homens de negócios: 57% são filhos de
negociantes, 14% de profissionais liberais e 15% de agricul-
tores. Somente 12% são filhos de trabalhadores assalariados
ou de funcionários burocráticos de categoria inferior.

Hoje, há pelo menos duas gerações que os altos dirigentes


das grandes companhias americanas, como grupo, se dis-
tanciaram muito das fileiras dos trabalhadores assalariados 277
ou funcionários burocráticos. Na verdade, suas famílias são,
em substanciais proporções, cidadãos de boa reputação nas
sociedades locais da América. [...]

Os executivos típicos, hoje como no passado, nasceram com


grande vantagem: seus pais tinham pelo menos níveis de
ocupação e renda de classe média superior; são protestantes,
brancos e americanos natos. Esses fatores de origem levaram
naturalmente à sua segunda vantagem: são bem educados,
no sentido de terem boa instrução. » (Mills, 1981, p. 155-7,
grifos nossos)

Observando o cenário francês, e considerando que o mesmo tam-


bém apresenta uma tendência comum a todo o mundo capitalista
e, deste modo, lhe é representativo, Boltanski e Chiapello (2009)
analisam as mudanças históricas que se deram no século passado
no “espírito do capitalismo” – que resgatam e desenvolvem a partir
de Max Weber (2005). De acordo com os autores, esse espírito, ou
seja, o conjunto de justificativas do capitalismo, cujo discurso pode

O “Super-homem” de Negócios
hoje ser encontrado na literatura de gestão de negócios6, volta-se
“prioritariamente aos executivos, cuja adesão ao capitalismo é in-
dispensável para o funcionamento das empresas e para a formação
do lucro” (p.46).

Para Boltanski e Chiapello (2009), nos anos 60, os executivos eram


movidos pela descentralização, meritocracia, maior autonomia, pre-
gada pela literatura empresarial da época (entendida por eles como
ferramenta principal do espírito do capitalismo). É uma questão
empresarial mais racional que se consolida, com uma proposta de
progresso social e econômico, e a promessa da garantia, capaz de
encantar seus seguidores. Essa época é marcada pela “passagem de
uma pequena burguesia patrimonial centrada na empresa de pesso-
as para uma burguesia de dirigentes assalariados, portadores de
diplomas superior e integrados a grandes administrações públi-
278 cas ou privadas” (Boltanski, 1982, citado em Boltanski e Chiapello,
2009, p. 96, grifo nosso).

Dizendo-se impressionado com as biografias de executivos que re-


colheu em suas pesquisas e apontando que elas remeteram-no “sem
cessar, a uma outra biografia: aquela da ‘pessoa coletiva’ de onde
as pessoas individuais tiram o nome comum que lhes designa é,
talvez, sua identidade social” (Boltanski, 1982, p.7, grifos e tradu-
ção nossa), Luc Boltanski volta sua atenção para o fenômeno de
formação de um grupo social de executivos na mesma França, nos
anos 70, em Les cadres... e assim nos ajuda a compreender este
outro momento histórico do processo de constituição do homem de
negócios contemporâneo.

O caso de um executivo (cadre em francês) proveniente da classe


pequeno-burguesa (M.) é apresentado, e sua condição de peque-
no-burguês o distingue de outros executivos, estabelecendo, por-

6 A leitura de Martelli (2006) esclarece o fenômeno da auto-ajuda empresarial em nosso tempo,


através da hipótese desta ser uma alternativa a qual se recorre diante do “sofrimento organizacional”
(Nogueira, 2004).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tanto, uma distinção de classe, nos termos de Bourdieu (2007).
Segundo M., existem “executivos e ‘executivos’: Os executivos diri-
gentes de empresas, e os peões na hierarquia social da atualidade”
(Boltanski, 1982, p. 16). Para M., tornar-se executivo não foi fruto
de vontade própria, mas sim um caminho dentre os possíveis a
alguém que partia de sua condição social. Segundo ele, existem
competências técnicas e sociais que são necessárias à ocupação de
um cargo de executivo. A sua trajetória de vida, oriundo da peque-
na burguesia e se projetando para o mundo burguês, o fazem ter
relativa dificuldade diante de situações nas quais lhe são cobradas
competências sociais e culturais (e.g., modo de conversar, manu-
seio de talheres apropriados num jantar formal) que lhe faltam.
(Boltanski, 1982)

Assim, Boltanski nos traz um elemento novo para a análise do


homem de negócios – as competências sociais e culturais in- 279
corporadas necessárias a quem se insere no mundo dos ne-
gócios como executivo. Não basta possuir habilidades técnicas
de gestão para fazer parte do almejado mundo de sucesso dos
empresários e dirigentes. Existem habilidades sociais, incorpora-
das ao longo da trajetória de vida de um indivíduo, por meio de
inserções em contextos de socialização e de atuação específicos
(tais como: família, escola, rede de amigos, experiências profis-
sionais), que lhe darão o aporte cultural necessário para fazer
parte de grupo social específico, com o qual o indivíduo deverá
se identificar e ser reconhecido como “membro”, a depender do
quão é capaz de se comportar de acordo com os padrões que
distinguem este grupo dos demais, ou seja, em termos bourdie-
sianos, a depender da sincronia do seu habitus (Bourdieu, 2007
[1979]) com o da classe7.

7 Reler a epígrafe do trabalho pode ajudar o leitor a observar estas questões no contexto para o qual
se volta este artigo.

O “Super-homem” de Negócios
O habitus e as disposições

A teoria da ação de Pierre Bourdieu (1994 [1972]) está no cerne do


que aqui se denomina sociologia disposicionalista. O conceito de
habitus, central à teoria bourdiesiana (e que forma junto aos con-
ceitos de capital e campo, a base do arcabouço erigido pelo autor)
surge a princípio em Esboço de uma teoria da prática, definido,
grosso modo, como “sistema de disposições” (cf. Bourdieu, 1994,
p. 61-2). Mas será em A Distinção... (2007 [1979], p. 162-3) que
poderemos encontrá-lo de modo mais articulado8. Em síntese, o
habitus é um sistema de disposições incorporadas constituídas a
280 partir de um princípio gerador diretamente vinculado à origem de
classe do indivíduo. Dois exemplos comparados podem esclarecer
ainda mais o que Bourdieu quer dizer com a ideia de habitus: “Falar
do ascetismo aristocrático dos professores ou da pretensão da
pequena burguesia não é somente descrever estes grupos por uma
de suas propriedades, mesmo que se trate da mais importante, mas
tentar nomear o princípio gerador de todas as suas propriedades
e de todos os seus julgamentos sobre suas propriedades ou as dos
outros. Necessidade incorporada, convertida em disposição gera-
dora de práticas sensatas e de percepções capazes de fornecer
sentido às práticas engendradas desta forma, o habitus, enquanto
disposição geral e transponível, realiza uma aplicação sistemática
e universal estendida para além dos limites do que foi diretamente
adquirido, da necessidade inerente às condições de aprendizagem
[...]” (2007 [1979], p. 163, grifos do autor em itálico).

Foi justamente nos anos 90 que Bernard Lahire começou a traçar

8 Em particular e de modo sintético na figura explicativa apresentada em Bourdieu (2007, p. 163).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


as primeiras linhas de sua “sociologia à escala individual”. To-
mando na realidade o mesmo objeto que Bourdieu evocava na
teoria do habitus, ou seja, o “social incorporado” nos indivíduos,
sendo que não de forma homogênea na extensão de uma clas-
se, mas sim variante entre os indivíduos de uma mesma classe.
Acreditando que o indivíduo não é uma novidade histórica nem
sociológica, o sociólogo pontua que a forma como irá observá-lo
não se deve ao que muito se diz ser uma “sociedade individualis-
ta”, mas sim devido à compreensão do social que se pode obter
por meio dos indivíduos9.

Lahire então pergunta à Bourdieu se não seria mais pertinente, para


compreender a sociedade, voltar o olhar para os indivíduos, afi-
nal, estes apresentam em suas disposições, manifestações dos mais
diversos aspectos de uma sociedade em sua condição individual.
Assim, seria melhor falar em disposições e não em “sistema de dis- 281
posições” (habitus) e em “princípios geradores” (e não em um único
princípio gerador para uma classe) e deste modo perceber as varia-
ções inter e intra-individuais e as contradições que seriam inerentes
aos indivíduos. Sua crítica está voltada para a “coerência do prin-
cípio gerador”, dos habitus das classes, ao que prefere tratar como
disposições (e não como um sistema).

Para Lahire (2004, p. 27), uma disposição é “uma realidade recons-


truída que, como tal, nunca é observada diretamente. Portanto, fa-
lar de disposição pressupõe a realização de um trabalho interpreta-
tivo para dar conta de comportamentos, práticas, opiniões, etc”, ou
seja, “trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que geraram a
aparente diversidade das práticas”. Neste artigo, disposições são os
modos de pensar, agir e sentir – não se trata do pensamento, ação
ou sentimento em si, mas sim do que está por trás deles, que “não
pode ser observado diretamente”, mas que pode ser construído in-

9 Foi o próprio Lahire, em reunião de pesquisa realizada no dia 9/11/2009 na UFPE, que fez esta
contextualização.

O “Super-homem” de Negócios
terpretativamente e ser visto como “molas propulsoras” de diversos
pensamentos, ações e sentimentos observáveis por meio das ações
e falas dos CEO.

A literatura empresarial a partir dos anos 80 aponta uma luta contra


a hierarquia (já existente nos anos 60, porém, agora com maior in-
tensidade), pois são pregados conceitos como de empresa “enxuta”,
organização do trabalho em equipes pluridisciplinares, autogestão,
autocontrole, criatividade, reatividade e flexibilidade. Entende-se
que as pessoas não querem mais ser controladas dentro das em-
presas, e sim desenvolvidas. Para que isso seja possível, “entram em
cena os líderes e suas visões” (Boltanski e Chiapello, 2009, p.104),
que teriam a capacidade de “garantir o engajamento dos trabalha-
dores sem recorrer à força, mas dando sentido ao trabalho de cada
um” (p.104-105). A própria palavra “cadre” na França, passa a ser
282 associada a hierarquia e burocracia, formas de organização conside-
radas ultrapassadas, e surge a palavra “manager” “para designar to-
dos aqueles que demonstrem excelência no gerenciamento de equi-
pes, no tratamento com as pessoas” (p. 106), ou seja, aqueles cujas
qualidades estão mais ajustadas ao estado atual do capitalismo. “Os
managers não procuram dirigir nem dar ordens; não esperam or-
dens da direção para aplicá-las. Entenderam que esses papéis estão
superados. Tornam-se então ‘animadores de equipe’, ‘catalisadores’,
‘visionários’, ‘coaches’, ‘inspiradores’” (p.107), “atletas da empresa”
que se impõem pelas competências, pelo carisma e pela confiança
que lhes é depositada. Esses gerentes de projeto, como também são
designados, são ainda humanistas, intuitivos e generalistas.

Temos, portanto, em Boltanski e Chiapello (2009) referencial fun-


damental, principalmente por entendermos por meio de O novo
espírito do capitalismo as mudanças que se deram no contex-
to sócio-histórico contemporâneo, mudanças essas capazes de
transformar o tradicional executivo (cadre), em um novo tipo de
profissional apontado pela descrição acima (o manager). São as
características do manager que nos interessam. São aqueles indiví-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


duos que hoje conseguem melhor incorporá-las que terão maiores
chances de chegar e permanecer no topo da hierarquia organiza-
cional, ou seja, ser um CEO.

Retomando a teoria de Schumpeter, e adaptando-a aos dias atuais


numa pesquisa sobre executivos das empresas transnacionais atuan-
tes no Brasil, López-Ruiz (2007), em diálogo crítico com a teoria eco-
nômica do capital humano, afirma que os executivos ou aqueles que
desejam ser, tratam suas competências, aptidões e habilidades como
seu capital mais valioso, que pode ser aprimorado através de investi-
mentos (termo que, para o autor, passa a substituir a idéia de consu-
mo) constantes em si mesmo com o objetivo de produzir benefícios a
longo prazo. Enquanto “empresários de si mesmo”, que “cuidam do
seu investimento” e gerenciam sua “carreira-vida-empresa”, internali-
zam o afã do lucro objetivado na empresa e acabam por converter as
regras de administração em máximas de condução de vida. 283

Os capitais bourdieusianos

Um dos aspectos centrais na definição e análise do habitus é o


“volume e a estrutura do capital” (2007 [1979], p. 162) da classe
ou, em particular do indivíduo, uma vez que “o habitus se apresen-
ta, como social e individual: refere-se a um grupo ou classe, mas
também ao elemento individual” (Ortiz, 1994, p. 18). Indo além da
concepção marxista, Bourdieu irá compreender o termo capital não
somente pelo acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas também
pelos recursos ou mesmo poder que se manifesta em atividades so-
ciais. Assim, além do capital econômico (renda, salários, imóveis), é
decisivo para o sociólogo a compreensão de capital cultural (sabe-
res e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos10), capital
10 Mas que não é somente adquirido por meio de instituições formais como a escola ou representado
por diplomas, mas também por meio de inserção e convívio sociais em determinados espaços, afinal,
saber bater palmas no momento adequado num concerto de música clássica, ou escolher o vinho
apropriado à temperatura ou momento do dia são tipos de conhecimentos também denominados
como “capitais culturais” por Bourdieu.

O “Super-homem” de Negócios
social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos) e o
capital simbólico (aquilo que chamamos de prestígio ou honra e
que permite identificar os agentes no espaço social). Nesta perspec-
tiva, as desigualdades sociais não decorreriam somente de desigual-
dades econômicas, mas sim do volume e da estrutura destes capitais
distribuído entre os membros das diferentes classes sociais (Socha,
2008, p. 46). Deste modo, seguindo com Bourdieu, será o volume
destes capitais articulados, que são decisivos aos distintos habitus
(ou então às “disposições” em Lahire) que diferenciam dois atores
que ocupam posições diferentes num mesmo campo, como é o caso
de um jovem trainee e um alto executivo.

Diferentemente da opção de López-Ruiz (2007), de dialogar critica-


mente com a teoria econômica do capital humano na sua constru-
ção dos tipos puros dos executivos das transnacionais, ao estabele-
284 cermos um diálogo com a sociologia de Pierre Bourdieu e Bernard
Lahire, pretendemos explicar os modos de pensar, agir e sentir do
homem de negócios de modo geral. Como acreditamos que estes
modos também se constituem a partir das referências que são os
atores que ocupam posição de maior destaque no campo, investi-
mos nesta etapa da pesquisa aqui apresentada, no conhecimento e
construção de um tipo puro dos mais altos executivos, os CEO.

A construção de um tipo puro (ideal)

Em Objetividade do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência


Política, Max Weber (1999)11 defende a idéia de que existe uma for-
ma de construção de conceitos própria e indispensável às ciências
da cultura (leia-se: ciências sociais). Esta forma seria a construção
idealtípica. Em suas palavras:

11 Todas as citações somente acompanhadas dos números das páginas nesta seção são referentes a
esta obra.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


« Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de
um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamen-
to de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados,
difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor
número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam
segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a
fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É
impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro,
na sua pureza conceitual, pois trata-se de utopia. […] pode-se
traçar igualmente a ideia de ‘artesanato’ sob a forma de uto-
pia, para o que se procede à reunião de determinados traços
que se manifestam de modo difuso entre os artesãos das mais
diversas épocas e países, acentuando de modo unilateral as
consequências dessa atividade num quadro não contraditório,
e referindo-a a uma expressão do pensamento que nela se
manifesta. […] E a este tipo ideal do artesanato pode ainda
opor-se, por antítese, um tipo ideal correspondente a uma es- 285
trutura capitalista da indústria, obtido a partir da abstração de
determinados traços da grande indústria moderna para, com
base nisso, se tentar traçar a utopia de uma cultura ‘capitalis-
ta’ […] ». (p. 138, grifos nossos)

Weber continua um pouco mais adiante esclarecendo de que se tra-


ta e a que serve a construção de um tipo puro (ou ideal).

« Trata-se de um quadro de pensamento, não de uma rea-


lidade histórica, e muito menos uma realidade ‘autêntica’;
não serve de esquema em que se possa incluir a realidade
à maneira de exemplar. Tem, antes, o significado de um
conceito-limite, puramente ideal, em relação ao qual se
mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico
de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual
é comparada. Tais conceitos são configurações nas quais
construímos relações, por meio da utilização da categoria de
possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e
orientada segundo a realidade, julga adequadas.

O “Super-homem” de Negócios
Nesta função, o tipo ideal é, acima de tudo, uma tentativa
de apreender os indivíduos históricos ou os seus diversos
elementos em conceitos genéticos. » (p. 140, grifos nossos)

Afinal, aprendemos com Weber que, no sentido que lhe atribuí-


mos, um tipo puro é algo completamente diferente da “avaliação
apreciadora”, pois não tem nada em comum com qualquer tipo de
perfeição em comparação com a realidade, salvo com a de se ter
nele uma tentativa de definir do melhor modo possível, em termos
lógicos, um conceito.

A constituição do Corpus

Originária do latim, a palavra corpus significa conjunto, corpo. Geral-


286 mente, quando utilizada no meio acadêmico, é compreendida como
um conjunto temático de dados, informações textuais e documentos
(Bauer e Aars, 2002). Para Barthes (1967), um corpus é uma coleção
finita de diversos materiais (sons, imagens, escritos, entre outros) reu-
nidos arbitrariamente por um pesquisador. Seguindo por este cami-
nho, extrapola-se ao significado convencionalmente aceito e abre-se
espaço para que este seja constituído por materiais de linguagem dos
mais diversos, independentemente da forma que se apresenta. Um
corpus linguístico é um conjunto de fontes linguísticas, que possibi-
lita a geração de dados e evidências para o estudo de fenômenos que
se dão no contexto do qual emergiram os textos constituintes do cor-
pus. Entendemos um corpus (linguístico) como uma representação
(também linguística) de uma determinada realidade num determina-
do tempo, ou seja, um contexto. (Mello e Sá, 2006)

Na sequência apresentamos uma a uma as fontes e suas partes que


compõem este corpus:

– A Revista Você S.A.: Considerada por muitos executivos como uma


ferramenta básica para o desenvolvimento da carreira, a revista busca

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


atender os interesses pessoais e de carreira dos homens de negócios
apresentando reportagens que fornecem novos casos e tendências do
ambiente mercadológico. Na realidade, vai bem além disso ao ofere-
cer orientações aos seus leitores sobre como projetar suas vidas, que
tipo de leituras fazer, para onde viajar, o que fazer como lazer, como
administrar a família, enfim, são diversos modelos a serem seguidos e
prescrições apresentadas nas suas diversas seções.

Os 10 últimos exemplares de junho de 2009 à março de 2010 da


revista foram lidos por ao menos um dos autores deste artigo, e pos-
teriormente apresentados em reuniões de trabalho nas quais proce-
demos a seleção das reportagens que serviriam aos nossos interesses
investigativos, bem como discussão e análise da coluna Agenda do
CEO. Dentre as matérias selecionadas, foram escolhidas para a com-
posição deste corpus, reportagens que, de modo direto ou indireto,
traziam informações relevantes sobre o objeto em estudo. 287

– As admiráveis agendas dos CEO: Qual a rotina de um CEO, indi-


víduo admirado por toda e qualquer pessoa que almeja uma posição
de destaque (topo) nas grandes empresas da atualidade? Quais são
suas atividades fora da vida corporativa, seus gostos, seu hobby?
Do que ele não abre mão? Para responder a essas perguntas surge
a Agenda do CEO, subseção da revista Você S.A., na parte Notas,
que apresenta aspectos da vida profissional e pessoal dos grandes
CEOs brasileiros.

Buscando dar ênfase as atividades que esses indivíduos realizam


fora da vida corporativa, a Agenda do CEO apresenta momentos
e atividades para além dos negócios. Jantares com a família, mo-
mentos de lazer ao lado da esposa e brincadeiras com os filhos nos
períodos de folga. As fotografias mostradas em cada reportagem
destacam o CEO e o seu passatempo predileto (hobby). Colecionar
moedas, pintar, pedalar, degustar vinhos, surfar, cozinhar e tocar ba-
teria são apenas alguns exemplos dessas atividades. De modo geral,
os CEO revelam como atividade indispensável a prática de algum

O “Super-homem” de Negócios
tipo de esporte (como futebol e/ou natação) e/ou malhar.

Essa subseção mostra assim, como o próprio nome sugere, as dinâ-


micas agendas dos indivíduos mais invejados no mundo dos negó-
cios. Tal agenda representa uma fonte de informação sobre com-
portamentos e atitudes para aqueles pequenos e médios executivos
e/ou empresários que sonham com agendas de sucesso como as
mostradas pela Revista Você S.A.

– Um CEO midiático: Para a composição do corpus e na tentativa


de reunir as características do homem de negócios contemporâneo
necessárias para a construção do tipo ideal proposto por este tra-
balho, procuramos pesquisar a vida de um dos CEO brasileiros mais
reconhecidos atualmente. Formado em Administração de Empresas
pela Universidade Mackenzie, autor de dois livros e apresentador
288 de seis temporadas de um reality show na área de negócios que
lhe rendeu grande repercussão midiática, Roberto Justus é um dos
maiores empresários do mercado publicitário do país, inspira profis-
sionais das mais diversas áreas de negócios, profissionais estes que
buscam nas suas obras e trajetória de vida, a fórmula do tão alme-
jado sucesso empresarial. (Portal Terra, n.d.)

Para o empresário, cada pessoa deve assumir a responsabilidade pela


própria carreira, e isso implica em impor a si mesmo a meta de atin-
gir um conjunto de qualidades que o tornem diferenciado, “toda
empresa tem suas metas e seus objetivos; uma pessoa deve também
ter os seus” (Justus e Andrade, 2006, p.125). Em “Construindo uma
vida – Trajetória profissional, negócios e O Aprendiz” (2006) e “O
Empreendedor – Como se tornar um líder de sucesso” (2007), é
possível elencar uma série de características, apontadas pelo próprio
Justus, como fundamentais para qualquer executivo. Segundo o au-
tor, tudo na vida de um homem de negócios deve ser pautado por
uma absoluta precisão. Por ser talvez hoje o CEO mais conhecido
nacionalmente, entrevistas, seus diálogos ao longo dos episódios do
programa O Aprendiz 6, e os seus dois livros citados acima também

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


fazem parte deste corpus.

– Os CEO “mais espertos”: Enron: os mais espertos da sala (2005)


é um documentário que retrata um dos maiores escândalos no
mundo corporativo norte-americano. A Enron foi formada em 1985
e a Fortune Magazine escolheu a Enron como “a empresa ameri-
cana mais inovadora” por seis anos consecutivos, de 1996 a 2001.
Seu slogan era “Ask Why”, sugerindo que a companhia não temia
ultrapassar barreiras, quebrar mitos. Durante 2001, as ações da En-
ron caíram de US$ 86 para US$ 0,30. Os administradores da sétima
maior companhia dos EUA fugiram com bilhões de dólares deixan-
do para trás, 20 mil funcionários sem emprego e seguro-saúde e
investidores sem dinheiro, representando um dos maiores fracassos
empresariais da atualidade – antes, considerada um novo modelo
empresarial. O grande investidor institucional e CEO, Ken Lay, tinha
total controle e manipulação da empresa, que declarou falência em 289
02 de dezembro de 2001. Disse John Olson (Analista de Ações): “Em
dezesseis anos, a Enron passou de US$ 10 bilhões em ativos para
US$ 65 bilhões em ativos. E, em 24 dias, foi à falência.”12

O documentário foi assistido em conjunto por parte dos autores


deste trabalho. Um dentre nós ficou responsável pela transcrição
dos trechos mais importantes aos nossos interesses investigativos,
em particular, falas dos CEO e falas de outras pessoas sobre os CEO
da Enron. Estes trechos transcritos também passaram a fazer parte
deste corpus.

– Os depoimentos de CEO em The Corporation: O documentário


The Corporation (2003) trás consigo uma forte crítica a mais impor-
tante das instituições do capitalismo. Ao longo do filme é feita uma
metáfora analítica onde a personalidade das corporações é com-

12 As informações aqui reunidas sobre o caso e o documentário Enron foram obtidas nas seguintes
fontes: 1. Fonte: http://www.webartigos.com/articles/24670/1/O-Caso-Enron/pagina1.html; Acessa-
do em: 22.mar.2010. 2. Fonte: http://empresasefinancas.hsw.uol.com.br/fraudes-contabeis.htm/prin-
table; Acessado em: 22.mar.2010.

O “Super-homem” de Negócios
parada à personalidade de um psicopata. Tendo em vista que um
psicopata age conforme seus interesses e é incapaz de sentir preo-
cupação por outras pessoas, a analogia torna-se bastante acurada
quando são mostradas ações agressivas e destrutivas das empre-
sas para com o meio ambiente e a sociedade onde estão inseridas.
The Corporation, portanto, revela uma abordagem personificada do
símbolo de excelência capitalista.

No DVD extra do documentário são apresentadas quarenta entre-


vistas com executivos, historiadores, intelectuais e ativistas que de
algum modo, se relacionam com o mundo corporativo. Para com-
posição deste corpus, foram selecionados sete depoimentos de CEOs
(ou ex-CEOs) de grandes empresas multinacionais, nos quais eles
refletiam sobre variados temas concernentes aos problemas e co-
tidiano das corporações no mundo de mercado globalizado. Todos
290 estes depoimentos foram assistidos, transcritos e assim reunidos a
este corpus.

O corpus em análise

De modo geral, podemos reunir das matérias e seções de Você S.A.,


um conjunto de características que são amplamente divulgadas como
sendo as esperadas, ou mesmo desejadas de serem apresentadas por
um CEO: Ter capacidade de liderar equipe, ser voltado para o alcance
dos objetivos, ser intuitivo, demonstrar autoconhecimento e confian-
ça em si mesmo, ser comunicativo e carismático, ter boa aparência, ser
destemido, criativo, saber ouvir e dialogar, principalmente com idéias
contrárias as suas, identificar com facilidade as necessidades que o
cerca, demonstrar comprometimento, responsabilidade e motivação
com a organização, deve ter autonomia e capacidade argumentativa
(desenvoltura) e otimizar seus conhecimentos e informações em prol
dos objetivos organizacionais, entre outras.

Obviamente, se seguimos os indicativos da revista (e não somente

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


dela, pois acreditamos que estas características são amplamente di-
vulgadas nos mais diversos meios de comunicação, cursos, palestras
e demais fenômenos que constituem o que Martelli (2006) deno-
mina de “auto-ajuda empresarial”), o indivíduo que viesse a reuni-
-las, seria considerado “o CEO ideal”. Mas, como bem esclarece Max
Weber, a construção de um tipo puro não implica em “avaliação
apreciadora” de características tomadas como sendo “ideais” por um
observador, que parte de juízo de valor prévio sobre elas (e.g., ser
assim é “bom”, ser daquele jeito é “ruim” para “ser um CEO ideal”).
Como deve estar claro ao leitor, nossa proposta é seguir as orien-
tações metodológicas do sociólogo alemão, o que nos leva a um
distanciamento das verdades autoevidentes socialmente comparti-
lhadas (doxa) (Souza, 2010) a aqueles que atuam num determinado
campo (Bourdieu).

Também estamos tratando aqui de um tipo de profissional singular, 291


plenamente inserido no mercado de trabalho moderno. Deste modo,
alguns pré-requisitos elementares ao trabalhador neste contexto
são, em tese, facilmente atendidos por um profissional que ocupa
um dos lugares mais almejados neste mercado. Ou seja, algumas
disposições, tais como, disciplina, autocontrole, pensamento e ação
prospectivos (Souza, 2010), foco nos resultados, são a princípio ele-
mentares não somente aos CEO, mas também a todos aqueles que
desejam ou atuam no mundo dos negócios.

Isto posto, o nosso objetivo aqui é expor os aspectos mais rele-


vantes à nossa construção idealtípica. Para tal, apresentaremos as
características selecionadas por meio de análise empreendida em
função do objetivo deste artigo, sempre ilustradas por trechos ou
descrições das diversas fontes constituintes do corpus (previamente
apresentadas). Dois senões, (1) é importante explicitar que, para o
processo analítico de seleção das características, foi considerada a
totalidade dos trechos que compõem o corpus e não apenas os que
serão abaixo relacionados com fins ilustrativos; (2) como pensava
Max Weber, acreditamos que a realidade seja complexa, infinita e

O “Super-homem” de Negócios
caótica, deste modo, nela estas características não estão separadas,
apenas aqui o fazemos em termos analíticos, seguindo a orientação
metodológica do próprio Weber, para que, procedendo deste modo,
possamos compreendê-las melhor.
Para análise do corpus, procedemos do seguinte modo. Após a reunião
de todas as suas partes, realizamos diversos encontros de discussão e
análise conjunta, sempre em diálogo com a literatura revisada à luz da
sociologia disposicionalista. Em nossas mentes, uma questão: Quais
seriam as características mais relevantes a serem selecionadas para
a construção do tipo puro do super-homem de negócios (CEO)? Foi
progressivamente que selecionamos aquelas que seriam, dentre tan-
tas observadas, as características mais fundamentais ao tipo puro em
construção. Em seguida, estas características são agrupadas em três
conjuntos e apresentadas acompanhadas (1) de trechos ilustrativos ou
descrições das diversas fontes que compõem o corpus, e (2) de breves
292 análises sobre tais conjuntos de características e de sua relevância na
composição do tipo. Em síntese, aqui iremos responder à questão que
mantivemos em mente ao longo desta etapa do trabalho.

O primeiro conjunto de características selecionadas foi reunido sob o


título Ambição e ostentação de símbolos de “sucesso” socialmente re-
conhecidos numa sociedade de mercado (ou ter ‘capitais bourdiesia-
nos’ em significativo volume). Como vimos na revisão de literatura, a
tipologia dos capitais, criada por Bourdieu para explicar o modo como
a sociedade se hierarquiza em outras dimensões que não apenas a eco-
nômica, nos é fundamental a seleção de quais características são rele-
vantes a um tipo puro – que pretende apoiar a compreensão sobre um
tipo de indivíduo que se encontra no topo desta hierarquia, ou seja,
em posição de destaque no “campo” dos negócios. Em nossa tese, o
tipo puro do super-homem de negócios apresenta características que
podem ser compreendidas por meio daquilo que Bourdieu chama de
capitais social, cultural, simbólico e, obviamente econômico – no caso
dos CEO, em significativos volumes. Neste conjunto estariam reunidas
as seguintes características (apresentadas em sequência, acompanha-
das dos específicos tipos de capitais aos quais está mais atrelada): Es-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


tar inserido em influente rede social (social); ser autodidata (cultural);
ter familiaridade com novas tecnologias (econômico/cultural); possuir
diplomas bem conceituados pelo mercado (cultural); ser generalista
(“saber um tanto de quase tudo”) (cultural); ter conhecimentos gerais
(cultural); práticas de lazer “úteis” ao desempenho nos negócios (e.g.,
esportes, música, viagem, leituras, filmes) (econômico/cultural); falar
língua(s) estrangeira(s) (cultural); saber e apresentar-se/portar-se ade-
quadamente ao padrão e às situações (cultural); desejar fazer história,
ser reconhecido como profissional de destaque (simbólico). A Tabela 1
sintetiza este primeiro conjunto.

CARACTERÍS- TRECHOS OU
TICAS DESCRIÇÕES / FONTE
- “O relacionamento entre ele e a direção se estreitou e em janeiro de
2008 Carlos virou CEO. Para ele, construir relacionamentos duradouros foi
importante para o sucesso da carreira.” (Revista Você S.A.. Agenda do CEO,
out., 2009)
293

- O então presidente dos Estados Unidos tinha relações próximas com


Kenneth Lay (ex-presidente da companhia ENRON) que era chamado de
Estar inserido
“Kenny Boy” por Bush. Não existem indicações de envolvimento direto de
em influente
Bush no escândalo da ENRON, mas havia um vínculo entre o poder político
rede social
e uma potência empresarial. [No documentário há um vídeo onde a família
Bush faz agradecimentos ao apoio na candidatura de Bush à presidência]

Peter Coyote (Narrador): “Antes, o pai George Bush havia ajudado a


garantir bilhões em subsídios do governo para a Enron International. Ele
ajudou a promover Lay a embaixador da desregulamentação.” (Enron: Os
mais espertos da sala).
“Se vou participar de uma reunião, procuro conhecer muito bem o assunto;
se vou tratar com alguma empresa, tenho que conhecer o panorama de
Ser autodidata
negócios dessa empresa. Eu não entro despreparado em nenhuma conver-
sa...” (Roberto Justus em entrevista a Revista Seu Sucesso, Edição38).
Ter familiarida- “Flávio é um entusiasta das redes sociais. Ele usa o facebook, para repas-
de com novas sar recados e acompanha o Twitter, para ver o que o público diz sobre a
tecnologias empresa.” (Revista Você S.A.. Agenda do CEO, dez., 2009).

O “Super-homem” de Negócios
“Eu acho que todo universitário já percebeu que adquirir conhecimento é
estar muito mais do que estar bem informado. É ter poder. Por isso, mais
do que um personagem de uma escola, o universitário hoje em dia é per-
Possuir
sonagem da história. Essa bagagem que eu adquiri aqui (na Mackenzie),
diplomas bem
esse conhecimento, me ajudaram a construir a minha vida e o sucesso nos
conceituados
meus negócios graças a tudo o que eu consegui aprender. (...) Cursar uma
pelo mercado
universidade com um ciclo de estudos, por isso, é perceber que tudo que
existe pode ser aprendido e que tudo o que existe é informação”. (Roberto
Justus em O Aprendiz 6 Universitário, Episódio 1).
“Prepare-se para falar um pouco de finanças, marketing e logística, mesmo
que essas não sejam suas áreas. É isso que se espera no trabalho em
Ser generalista
equipe no mundo pós-crise: multidisciplinariedade.” (Revista Você S.A.. 68
ideias, pessoas e tendências para 2010, dez., 2009).
- “Para exercitar minha criatividade, gosto de ler livros que tratam de
temas diferentes do que eu vivo no dia a dia.” (Revista Você S.A.. Agenda
do CEO, jun., 2009).
Ter conhecimen-
tos gerais - “O que mais me interessa é justamente avaliar até onde pode chegar a
abrangência da percepção de cada um em termos não só técnicos e profis-
294 sionais, mas especialmente culturais e simbólicos.” (JUSTUS e ANDRADE,
2006, p.124).
- “Devo ao esporte a consciência de que para fazer bem uma coisa é preciso
Práticas de ralar.” (Revista Você S.A.. Carreira – o segredo dos campeões, jan., 2010).
lazer “úteis” ao
desempenho - “Para Jeff, o risco era glamouroso. Ele corria riscos enormes. Falava em
nos negócios viagens perigosas onde alguém podia até morrer. [Onde começaram a
(esportes, praticar esportes radicais como MotoCross e viagens terrestres em terrenos
música, viagem, de condições bastante irregulares – vários acidentes ocorreram entre eles]
leituras, etc) Essas histórias viraram lenda na Enron e alimentaram a cultura machista da
empresa.” (Enron: Os mais espertos da sala. Peter Elkind - Coautor do filme).
“Está havendo uma internacionalização, com empresas brasileiras indo
Falar língua(s) para o exterior e investidores estrangeiros chegando. Com isso, o idioma
estrangeira(s) [refere-se a inglês] virou uma questão fundamental.” (Revista Você S.A..
Mercado, É hora de crescer, nov. 2009).
- “A apresentação diz muito. Saber se vestir é o primeiro passo.” (Revista
Saber e
Você S.A.. Carreira, marketing pessoal, jun., 2009).
apresentar-se /
portar-se
- Comportar-se adequadamente em reuniões executivas, almoços de negócios
adequadamente
e festas onde estarão presentes outras pessoas importantes. Além de vestirem-
ao padrão e às
se bem, os CEO apresentam conversas, posturas, gestos e atitudes adequados
situações
que podem ser vistos de diversos modos em todas as fontes do corpus.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


- “Eu acredito que sucesso como marca pessoal não é o popular ‘se dar
Desejar “fazer bem’, mas entender-se como empreendimento que precisa prosperar com
história”, ser re- sustentabilidade e deixar sua marca no mundo.” (Revista Você S.A. Notas
conhecido como – Reputação vital para a carreira, jan. 2010, no site).
profissional de
destaque - “É a nossa visão [Na Enron]. Queremos mudar o mundo.” (Enron: Os mais
espertos da sala. Jeff Skilling).

Tabela 1. Ambição e ostentação de símbolos de “sucesso” socialmente reco-


nhecidos numa sociedade de mercado (ou ter “capitais bourdiesianos” em
significativo volume)
Algumas outras características puderam ser agrupadas sob o título
de Acreditar e/ou incorporar a ideologia de mercado (neo)liberal.
Acreditamos que os CEO representam a personificação do ideal de
indivíduo numa sociedade que tem como pensamento coletivo insti-
tucionalizado que as pessoas deveriam ser ou mesmo agir como estes
homens “notáveis” que ocupam o topo do campo dos negócios. Por
seus grandes feitos mercadológicos, elevar exponencialmente o fatu- 295
ramento de uma empresa ou tirar uma outra “do buraco”, eles são
socialmente considerados “super-heróis”11 do nosso tempo . Em nossa
tese, esta construção social se deve em grande parte ao fato destes
indivíduos apresentarem, em sua ação, características que simboli-
zam este tipo de sociedade (neo)liberal na qual são cultuados. Estas
características tanto podem ser frutos de uma verdadeira crença na
ideologia de mercado, “disposições para crer” (Lahire, 2004) quanto
de habitus (Bourdieu, 2007) incorporado em “disposições para agir”
(Lahire, 2004) de determinado modo. São elas: Aparentar impessoa-
lidade nas decisões; capacidade de correr riscos, ser criativo, empre-
endedor (“liberdade” de ser seu próprio patrão); ter visão de negócios
(serem visionários, observar, intuir e criar/apontar mudanças no mer-
cado). A Tabela 2 sintetiza este segundo conjunto.

11 As capas de duas das últimas edições da revista Você S.A. sintetizam imageticamente isso que aqui
coloco, afinal, nelas aparecem homens de negócios em poses que fazem jus aos mais cultuados super-
heróis de nosso tempo. Edições 138 (dez) e 136 (out). Na edição 137 (nov), um executivo reproduz
a clássica cena de Charles Chaplin em O Grande Ditador, quando ele no papel de Hickel brinca com
o globo terrestre. (Ver capas mencionadas em: http://vocesa.abril.com.br/edicoes-anteriores/2010.
shtml; acessado em: 12/02/2010)

O “Super-homem” de Negócios
CARACTERÍS- TRECHOS OU
TICAS DESCRIÇÕES / FONTE
Walter: “Infelizmente um deles teve que sair e o único jeito é esse. A gente
não tem, não sei se a gente tem ainda coração pra aguentar emoções
Aparentar
como esta né Roberto?!”
impessoalidade
nas decisões
Roberto: “Tem que ter, a vida de um empresário é passar por esse tipo de
situação e olhar pra frente.” (Roberto Justus em O Aprendiz 6 – episódio 7).
- “Luiz Augusto Ferrari começou a fabricar painéis solares, de forma artesa-
nal, na garagem de casa. ‘Construí o primeiro experimento com uma furadei-
Capacidade de ra e uma serra tico-tico.’” (Revista Você S.A.. Agenda do CEO, fev., 2010).
correr riscos, ser
criativo, - “O preço das ações nunca nos satisfaz. Deve subir sempre. Encorajamos
empreendedor nosso pessoal a fazer coisas novas, a experimentar, ousar. Começamos
atraindo pessoas que gostam de um ambiente dinâmico.” (Enron: Os mais
espertos da sala .Kenneth Lay).
- “Para inovar, é preciso pensar não só no que os consumidores querem
296 agora, mas também no futuro.” (Revista Você S.A.. 68 ideias, pessoas e
tendências para 2010, dez., 2009).

Ter visão de - “Ken Lay se considera visionário e gosta de gente visionária, de gente
negócios com grandes idéias. E Jeff Skilling era o maioral nisso.” (Enron: Os mais
espertos da sala. Bethany McLean - Coautora do filme).
- “A visão de mundo de Skilling realmente impulsionava e afetava o
funcionamento da Enron.” (Enron: Os mais espertos da sala. Peter Elkind -
Co-autor do filme).

TAbela 2. Acreditar e/ou incorporar a ideologia de mercado (neo)liberal

Um terceiro e último grupo de características foram reunidas sob o tí-


tulo de Traços de personalidade específicos socialmente constituídos.
Estes são alguns traços de personalidade identificados na análise do
corpus que seriam peculiares ao que denominamos provocativamente
de super-homem de negócios. Por meio da sociologia disposicionalis-
ta, compreendemos que estes traços não são fenômenos psicológicos
que o tornariam um tipo de ser humano originalmente diferenciado
dos demais, mas sim que, por trazerem consigo, algumas caracte-
rísticas socialmente observáveis em diversos indivíduos que ocupam
a mesma posição socioprofissional (desejada por muitos outros que

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


ocupam posições inferiores na hierarquia do campo), esses traços de
personalidade seriam socialmente originados por meio de inserção
em determinados contextos e de trajetórias de vida que os levaram a
uma posição social relativamente similar entre eles. Ou seja, em nossa
tese, as características aqui reunidas não são traços psicológicos que
singularizam e diferenciam cada um dos super-homem de negócios
dos demais seres humanos “mortais”, mas sim são traços psicológicos
socialmente invejados e, do mesmo modo, constituídos. Estas carac-
terísticas, que acreditamos serem as mais relevantes à construção do
tipo, podem ser vistas de modo esquemático e ilustrado na Tabela 3,
seriam: Agressividade; autoestima elevada; poder de persuasão, ca-
pacidade retórica (“ares proféticos” em suas falas ao, muitas vezes,
“aparentar saber mesmo quando não sabe”); discurso “politicamente
correto”; carisma, postura de líder e inspirar segurança.

297
CARACTERÍS- TRECHOS OU
TICAS DESCRIÇÕES / FONTE
-“Exponha-se a novas ideias e questione os modelos vigentes. Enfrente
os desafios de maneira positiva.” (Revista Você S.A.. Mercado – é hora de
Crescer, nov., 2009).

- “A primeira lição que aprendi foi simples: se você quiser nadar entre tubarões
é melhor se tornar um deles. Um tubarão nunca é desleal ou desonesto; é
implacável – e sabe muito bem o que quer.” (JUSTUS e ANDRADE, 2006, p.36).
Agressividade
- “Nossa cultura é implacável. É uma cultura muito agressiva.” (Enron: Os
mais espertos da sala. Jeff Skilling).

- Skilling, chamava ao seu assistente-chave, Lou Pai, de ‘meu míssil’, pois


liquidava os inimigos com incrível habilidade. “Se significasse deixar cor-
pos pelo caminho, Skilling não ligava.” (Enron: Os mais espertos da sala).

O “Super-homem” de Negócios
- Tanto o comportamento de Roberto Justus no programa O Aprendiz,
quanto o modo como os executivos do documentário Enron se portam nas
diversas situações, demonstra que eles têm um alto conceito sobre eles
mesmos e se tomam como referências tanto para os mais jovens quanto
Autoestima
para seus colegas de trabalho que ocupam posições inferiores.
elevada
- “Quando Skilling se candidatou à Harvard Business School, um professor
perguntou se ele era esperto. Ele respondeu ‘Sou muito esperto.’” (Enron:
Os mais espertos da sala. Peter Coyote – Narrador).
- “Não basta ter poder para decidir – quem é o responsável pelo negócio
precisa sempre ter a melhor justificativa possível para cada decisão.”
Poder de persu- (JUSTUS e ANDRADE, 2006, p.123).
asão, capacida-
de retórica - “Eles representavam tão bem que convenceram os Estados Unidos de
que eram os mais espertos.” (Enron: Os mais espertos da sala. Mimi Swartz
- Editora da “Texas Monthly”).
- “No futebol ou no trabalho, você pode passar por um período ruim.
Você entende que isso pode acontecer e que é importante reunir forças
para se levantar sozinho.” (Revista Você S.A.. Carreira – o segredo dos
298 Capacidade campeões, jan., 2010).
de resistir a
diversos tipos - “Agora, vocês imaginam meninas, é o seguinte, vocês vão estar numa si-
de pressão do tuação de pressão no dia-a-dia. Vocês vão estar numa situação de pressão
mercado no trabalho. Vocês vão tá na frente de um cliente. Vocês vão trabalhar na
maior agência de publicidade desse país. Vocês vão ter pressão diariamen-
te. Concorrente poderosíssimo, gente pressionando...” (Roberto Justus em
O Aprendiz 6 Universitário, Episódio 10).
- “A consolidação de uma marca pessoal também está intrinsecamente li-
gada a uma conduta pautada por ética, caráter e dedicação. O sucesso não
deve ser a meta, mas a consequência de uma série de esforços.” (Revista
Você S.A.. Carreira, marketing pessoal, jun., 2009).
Discurso
- “E a corporação precisa assumir essa responsabilidade, assumir essa
“politicamente
autoridade e, efetivamente comportar-se como um cidadão corporativo do
correto”
mundo. Ela precisa respeitar as comunidades onde opera e precisa assumir
a autodisciplina que, no passado, os governos exigiam dela.” (Documen-
tário The Corporation - Sam Gibara – Presidente, ex-CEO da Goodyear Tire).
- “Somos os mocinhos. Estamos com os anjos.” (Enron: Os mais espertos
da sala. Jeff Skilling).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


- “Veja a liderança de uma forma mais ampla. Pense na maneira como
você pode ser um líder para seus clientes, para seus parceiros de negócios,
para seu canal de distribuição.” (Revista Você S.A.. Mercado – é hora de
Crescer, nov., 2009).

- “Firmeza é essencial porque o grande administrador não pode se dar ao


Carisma,
luxo de hesitar. Em certas posições, qualquer expressão de hesitação pode
postura de
fazer com que a empresa perca negócios, perca o pulso, perca a força”
líder e inspirar
(JUSTUS e ANDRADE, 2006, p.69).
segurança
- “(...) o líder tem condição de surpreender (...), com o pulso firme que ele
tem, com a iniciativa que ele tem, com o comando que ele exerce, com o
exemplo que ele dá, com a vitória no final, conseqüência desse tipo de
perfil. O líder tem que ter tudo isso dentro dele.” (Roberto Justus em O
Aprendiz 6 Universitário, Episódio 1).

Tabela 3. Traços de personalidade específicos socialmente constituídos

299

Foi a análise do corpus, seleção e agrupamento das características


acima apresentadas, articulada à revisão de literatura temática rea-
lizada sob perspectiva teórica específica, que nos permitiu a cons-
trução do tipo puro que apresentaremos a seguir como ponto de
chegada deste artigo. Ao termos demonstrado que as características
selecionadas como sendo fundamentais à construção do tipo podem
ser encontradas em diversas fontes secundárias, acreditamos refor-
çar tanto a origem social do fenômeno quanto a pertinência destas
características a tal fim.

O tipo puro do super-homem de negócios

O tipo puro do super-homem de negócios ao qual chegamos ao fi-


nal deste trabalho é o de um “indivíduo” que tem ambição e ostenta
símbolos de “sucesso” socialmente reconhecidos numa sociedade
de mercado (ilustrados na Figura 1), que acredita e/ou incorpora a
ideologia de mercado (neo)liberal (ver Figura 2) e, principalmente,

O “Super-homem” de Negócios
que apresenta traços de personalidade específicos socialmente cons-
tituídos, tais como: Agressividade; autoestima elevada; poder de
persuasão, capacidade retórica (“ares proféticos” em suas falas ao,
muitas vezes, “aparentar saber mesmo quando não sabe”); discurso
“politicamente correto”; carisma, postura de líder e inspirar segu-
rança (ilustrados na Figura 3). Como recuperamos em Mills (1981,
p. 172), “ser compatível com os que estão no alto é agir como eles,
ter a aparência deles, pensar como eles: ou pelo menos mostrar-se
de modo a criar neles tal impressão.” É deste modo que, “para que
a empresa se perpetue, os principais executivos julgam que devem
perpetuar-se, ou a homens como eles – homens do futuro não só
preparados mas doutrinados” (Mills, 1981, p. 169).

Acreditamos que, ao construir conceitualmente a referência máxi-


ma do campo dos negócios, socialmente compartilhada em nosso
300 tempo – em particular entre os indivíduos que atuam como ou mes-
mo anseiam ser um homem de negócios, damos passo significativo
no sentido de erigir compreensão científica ao fenômeno maior de
nosso interesse, o homem de negócios contemporâneo em si. Por
fim, precisamos registrar que, assim como Aron (2003, p. 759-60),
a reconstrução dos tipos ideais representa passo fundamental quan-
do consideramos que, “utilizando conceitos precisamente definidos,
medimos o seu afastamento da realidade, e combinando conceitos
múltiplos apreendemos uma realidade complexa”. É devido a isso
que a construção idealtípica apresentada neste artigo é fundamen-
tal à pesquisa maior da qual este trabalho faz parte.

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304

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


De aprendiz a sabedor: os jovens
e as mudanças sociais no mundo rural
Mauricio Antunes Tavares1

“Aí cheguei até meu avô. Meu vô já é um senhor de idade e ele 305
tava colocando fogo numa coivara. Aí cheguei pra ele e disse:
“vô, não faça isso não, que o senhor vai tá prejudicando a ter-
ra do senhor”. Ele olhou pra mim e falou que em setenta anos
ele nunca tinha chegado a uma pessoa pra dar um conselho
desse e porque era que “um cego recém saído de um ovo” ia
fazer ele mudar de opinião? Aí, pronto... eu me senti total-
mente constrangido com essas palavras que ele disse, porque
eu sabia que ele tava certo, mas ele não tinha tomado conhe-
cimento que aquilo era errado. Aí eu continuei falando com
ele. Hoje ele parou de queimar, mas minha tia e meus primos
não.” (Ranulfo, 18 anos, entrevista ao autor, 2007).

Ranulfo é um jovem de 18 anos, morador do município de Ibimi-


rim (Sertão do Moxotó, Pernambuco), que fez um curso de Agente
de Desenvolvimento Local (ADL) em uma ONG e trabalhou como
educador ambiental numa associação que realiza ações culturais
e ambientais. Neste depoimento ele fala da reação dos familiares

1 Doutor em Sociologia, Pesquisador da Fundaj – Fundação Joaquim Nabuco, Coordenação Geral de


Estudos Educacionais.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


quando assumiu uma posição pró-ativa na família, colocando-se
como conhecedor e não como aprendiz. Tentando ensinar aos mais
velhos, a ação desencadeia uma situação de tensão.

Comecemos pelo avô. A reação do avô se situa em um código


moral que ele crê inviolável, sentindo-se desrespeitado quando
um jovem deseja ensiná-lo a fazer algo diferente. Esse código
moral do camponês torna equivalente a hierarquia de idade e a
hierarquia de saber, onde o jovem será sempre o aprendiz do ve-
lho agricultor, numa relação de aprendizado que é unidirecional.
Isto porque a lógica da identidade camponesa traça linhas divi-
sórias entre o saber e a instrução: o saber considerado mais im-
portante para um camponês é o saber trabalhar a terra, e este é
o saber transmitido das gerações mais velhas para as mais novas,
é o saber considerado mais excelente que a instrução que vem
306 da escola. Na cultura camponesa tradicional, essa transmissão
intergeracional é a forma como os mais velhos se reconhecem
enquanto principais agentes educadores dos mais novos, autori-
dade conquistada pelo trabalho, que é a honra do camponês. Por
isto, nesse código tradicional, o insucesso escolar é mais tolerável
que o insucesso no trabalho2.

O jovem Ranulfo expressa sentimentos ambíguos com a situação.


Constrange-se com o avô porque reconhece como legítima a reação
dele. Sabe que essa legitimidade vem de um código tradicional que
ele conhece, pois foi formado nele. Mas conhece também os limi-
tes desse código e não se conforma em deixar tudo como está. No
entanto, nas experiências de aprendizagem que ele teve, o jovem é
incentivado a socializar os conhecimentos que têm em sua família
e comunidade, é isto que o faz persistir com o avô, até que esse
compreenda o que ele quer ensinar. Quando o velho, tempos depois,
aceita o ensinamento do jovem e modifica a sua prática, nesse mo-
mento o jovem Ranulfo recebe do avô o reconhecimento de que ele

2 Cf. Brandão, 1999a.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


também é sabedor das coisas da terra, um passo simbólico impor-
tante para a conquista da autonomia do jovem.

A questão da conquista da autonomia pelo jovem é um fator que


baliza a relação de poder entre pais e filhos, jovens e adultos, nas
famílias de agricultores. A problemática do trabalho está imbricada
à conquista da autonomia por duas razões: primeiro pela questão fi-
nanceira, sem dinheiro o jovem permanece na dependência dos pais;
e depois pela ausência de uma identidade de trabalhador, credencial
que permite o reconhecimento social do jovem pela sociedade nas
classes trabalhadoras.

Mas esse ganho na relação com o avô não é compartilhado por


outras pessoas adultas da família. A tia e os primos não deram
ouvidos a ele, demonstrando que a menor diferença de idade nem
sempre se traduz em maior entendimento entre as pessoas, pois se 307
trata, neste, de diferentes formas de ver o mundo. Esse depoimen-
to – tomado durante a pesquisa que culminou em tese de douto-
rado3, focalizando as trajetórias de vida de jovens moradores do
município de Ibimirim, Sertão de Pernambuco4 – exemplifica o que
convencionalmente chamamos de “problema das gerações”, que
diz respeito à entrada dos mais jovens num mundo dominado por
adultos. E revela também outros aspectos presentes nas comuni-
dades onde predominam agricultores familiares: diferentes visões
de mundo e novos modos de vida, mais permeáveis a comporta-

3 A tese orientada pela Prof. Dra. Maria de Nazareth Wanderley e defendida no PPGS/UFPE em maio
de 2009, teve o seguinte título - “Caminhos cruzados, trajetórias entrelaçadas: vida social de jovens
entre o campo e a cidade no Sertão de Pernambuco”. Na pesquisa vários métodos foram aplicados:
pesquisa documental, etnografia e entrevistas em profundidade com 34 jovens de 16 a 27 anos de
idade, moradores de sítios, vilas, agrovilas e da sede do município de Ibimirim.
4 A noção de semi-árido vem substituindo a noção de Sertão, como uma das lutas simbólicas que fa-
zem parte das lutas sociais mais gerais. A noção de Sertão foi constituída, historicamente, associada ao
que é rústico, selvagem e incivilizado. A noção de semi-árido busca resgatar os aspectos geomorfoló-
gicos, usando o vocabulário científico para, desta forma, adequar o termo para os propósitos políticos
dos movimentos sociais que lutam por políticas públicas que mudem o foco de “combate à seca” para
“convivência com o semi-árido”. Preferi manter o uso da noção de Sertão por ainda ser muito presente
no vocabulário popular, e por isto ser revelador, a meu ver, das lutas por reconhecimento identitário,
e neste caso, os jovens se dizem “sertanejos”, resignificando essa noção.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


mentos desviantes presentes na atualidade tornam menos coesas
essas comunidades na medida em que diminuem a força das idéias
tradicionais sobre a vida dos novos membros.

Assim, mesmo em regiões consideradas “atrasadas”, como é o caso


do Sertão nordestino – ou seja, uma região triplamente periférica,
em relação ao Nordeste, ao Brasil e aos países centrais do sistema
capitalista – os processos de mudanças da sociedade mais ampla da
qual a região é parte atingem as relações sociais não só no plano
econômico, mas também no plano das relações privadas. É isto que
contribui para a difusão de uma “cultura jovem”. Essa cultura, que
é parte de outra que se pretende global – a cultura ocidental –,
contribui com sua parte para tensionar as relações intergeracionais
nas comunidades rurais a partir das mudanças nas formas de com-
preender o mundo, como observou o historiador inglês:
308
“Por mais fortes que fossem os laços de família, por mais
poderosa que fosse a teia de tradição que os interligasse, não
podia deixar de haver um vasto abismo entre a compreensão
da vida deles, suas experiências e expectativas, e as das ge-
rações mais velhas” (Hobsbawn, 1995, p. 323).

É disto que trata este artigo: do desencaixe entre as velhas tra-


dições camponesas e as novas formas de sociabilidade dos jovens
que vivem no campo, a partir dos processos de modernização do
campo e de difusão de uma “cultura jovem global”, e também das
adaptações que os jovens operam nas tradições para usá-las como
mecanismos criadores de identidades e identificações. Embora lo-
calizado em um contexto rural específico do Sertão nordestino,
este estudo também possibilita uma leitura sobre mudanças sociais
na sociedade brasileira, tratando das conexões do lugar com o es-
paço regional e nacional.

Na perspectiva teórico-metodológica assumida, ao tratar das traje-


tórias de vida dos jovens de Ibimirim, também estarei tratando de

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


trajetórias de jovens, em Ibimirim, ou seja, que como outros jovens
mantêm relações dentro e fora do seu território, que compartilham
idéias, sentimentos e desejos, muitas vezes ávidos por transpor limi-
tes e fronteiras do seu mundo, sendo, no entanto, diferentes entre
si, nas condições de vida, nos pertencimentos, nas visões de mundo,
nos modos de vida, de modo a formarem muitas juventudes, no plu-
ral, por não ser possível homogeneizá-los, a priori, numa unidade
singular chamada “geração”. Da mesma forma, ao falar de trajetórias
individuais, também estarei falando de trajetórias de grupos sociais.

Isto é possível dentro dos paradigmas da sociologia das figurações


de Norbert Elias, que possibilita uma construção articulada entre o
macro e o micro, entre os processos de transformação geral e as mu-
danças que se expressam através de comportamentos e sentimentos
de indivíduos, portanto, que possibilita enxergar tendências gerais e
as trajetórias de indivíduos que, pela posição que ocupam em deter- 309
minado contexto de mudanças, expressam justamente os anseios e
problemas desses momentos de crise e de mudanças de paradigmas.
É por isto que a obra de Elias aborda desde o processo europeu
de constituição dos Estados e de uma “cultura civilizada”, até as
angustias do genial Mozart5, aprisionado pela aristocracia quando
desejava viver como um burguês, ou os significados diferenciados
atribuídos à pintura de Antoine Watteau – O embarque para a Ilha
de Cítera –, de acordo com os contextos históricos e das situações
específicas que vivia cada grupo social que a comenta6.

Ibimirim: processos de modernização e mudanças sociais

No município de Ibimirim, palco desta pesquisa, os novos fluxos de


produção e circulação de mercadorias, informações, idéias e com-
portamentos estão presentes desde o processo de conquista do Ser-

5 Elias, 1995.
6 Elias, 2005.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


tão pelos portugueses, nos séculos 17 e 18, mas intensificou-se
muito a partir da década de 1950. Neste período o lugar foi sacu-
dido pela construção da maior barragem do estado de Pernambuco
(concluída em 1958); pela implantação do Perímetro Irrigado do
Moxotó, com o assentamento de 600 famílias, ainda na ditadura,
e com a concomitante implantação de um parque agroindustrial
no semi-árido (1977-1986); pela evolução, decadência e retomada
da produção deste perímetro irrigado em um período de menos de
duas décadas (1984-2004).

A construção do açude introduziu uma dupla mudança na vida


das pessoas do lugar. Uma mudança no espaço e no tempo, que
acompanha os processos de modernização capitalista nas áreas
rurais de cultura tradicional7. O espaço foi totalmente reconfigu-
rado. Em uma extensão muito grande, o leito do rio cedeu lugar
310 ao açude, alterando as formas de uso da água. Assim, em pouco
menos de meio século, Ibimirim experimentou uma transformação
profunda na composição de seu espaço social. No lugar onde só
havia agricultura de sequeiro e das várzeas, surgiu uma pesca tra-
dicional – que hoje cede espaço à piscicultura – e uma agricultura
irrigada que passa a propiciar o cultivo de espécies permanentes e
produção constante.

As relações que marcaram os antigos núcleos de povoamento –


Puiú, Jeritacó e Moxotó, todos fundados entre o final do século 18
e início do 19 –, portanto lugares com sua própria história e partici-
pantes de redes sociais específicas, foram abaladas pela construção
das agrovilas. Estas, nascidas da prancheta dos técnicos do governo,
foram ocupadas por uma população desenraizada de seus lugares
de origem e de suas relações sociais. Às populações tradicionais lo-
cais somaram-se famílias de técnicos que vieram para trabalhar nas
obras de construção civil do açude e do perímetro irrigado, e tam-
bém famílias de camponeses recrutados como “frentes de trabalho”,

7 Rambaud, 1982.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


vindos dos estados de Alagoas, Paraíba, Bahia e Ceará e que depois
foram assentadas nos lotes do perímetro irrigado8.

O perímetro irrigado possibilitou a emergência de um importan-


te parque agroindustrial, em municípios distantes mais de cem
quilômetros de Ibimirim, privilegiados por serem núcleos urbanos
maiores e por estarem nas margens da BR 232, principal artéria do
interior do Estado. Este parque industrial exerceu forte influência
sobre os agricultores, induzindo-os a produzir para as indústrias,
capturando-os em objetivos de mercado. Isto se materializou em
duas formas extremas: na superprodução que caracterizou toda a
década de 1980, o “tempo da prosperidade” na memória coletiva da
população de Ibimirim9, e na derrocada dos anos 1990, provocada
pelo esgotamento da água do açude10 – combinação de secas e má
gestão da água, porque subordinada aos interesses industriais e ao
controle de uma estatal extinta no governo Collor –, e pelo deslo- 311
camento das industrias para o Centro-Oeste após serem vendidas à
multinacional Parmalat. Foi assim que o “novo Eldorado” do Sertão
dos anos 80 se transformou na “terra de ninguém” dos anos 90,
década em que o crescimento demográfico passou de positivo para
negativo11, até que em 2004 o açude encheu novamente e de Bra-
sília sopraram novos ventos, com o Ministério do Desenvolvimento
Agrário retomando o projeto. Foi quando Ibimirim viu retornar mui-
tos dos jovens que haviam migrado12.

8 Segundo fontes orais e documentais consultadas, numa primeira etapa o DNOCS privilegiou famílias
vindas de outras regiões, supõem-se, como forma de pressionar os antigos proprietários que estavam
em litígio desde a desapropriação das terras a desistir das reclamações.
9 Halbwacks, 2004.
10 O açude sangrou em 1986 e só depois de 18 anos voltou a sangrar novamente, em 2004. Em 2001
o açude estava com menos de 5% da sua capacidade total.
11 Nos anos 1990, a taxa média de crescimento anual em Ibimirim foi de -1,64%, passando de 28.101
habitantes em 1991 para 24.340 no ano 2000. Fonte Atlas do Desenvolvimento Humano, disponível
em http://www.pnud.org.br.
12 Dados da Contagem Populacional realizada pelo IBGE em 2007 mostram que a população de
Ibimirim atingia 27.261 habitantes, recuperando parte da população que migrou na década de 1990,
mas ainda inferior ao total da população que o município tinha em 1991, antes da crise.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


Alterando as formas de produção e os usos do território, através da
reorganização das atividades de pesca, agricultura e lazer, o tempo
social também foi reorganizado. Se antes, a agricultura tradicional
determinava a maior ocupação das pessoas na agricultura durante
o inverno – assim que se chama o tempo das chuvas no Nordeste –,
com a agricultura irrigada o trabalho foi distribuído mais igualita-
riamente ao longo do ano. Com isto, o lazer aos domingos passa a
ser a forma socialmente controlada do tempo livre. O lazer, então,
passou a ter dia e lugar certo, a prainha.

A prainha do açude se constituiu como espaço de encontro e de


mistura de pessoas, produzindo um relaxamento nos costumes,
para uns, um acirramento nos controles sociais para outros, como
a fofoca daqueles preocupados com a “perda da moral e dos bons
costumes”, contudo, possibilitou a convivência mais próxima entre
312 os diferentes, enquanto espaço público que se formou como lugar
de lazer. Os processos de mudanças sociais que foram detonados a
partir da construção do açude, passam pela introdução de novos
ofícios, pela chegada de novos trabalhadores e pelas mudanças nos
padrões de comportamento social vindas das novas possibilidades
de lazer e de sociabilidade entre os moradores e também da circu-
lação de idéias e comportamentos correntes na sociedade. Por isto,
não é a construção do açude nem do perímetro irrigado que, em si
mesmo, produzem essa transformação social. Nem se pode atribuir
todo o complexo processo de mudanças sociais somente às mu-
danças nos padrões de produção. Mas, como bem observou Maria
Isaura Pereira de Queiroz, as relações de produção são relações de
vida, colocam pessoas em movimento, sustentam práticas sociais e
conectam lugares13.

Por isto, embora seja um elemento detonador, as mudanças nos pa-


drões de produção são apenas um entre os vários aspectos que, en-
cadeados, devem ser tomados como elementos constitutivos desse

13 Cf. Queiroz, 1973, 1979.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


processo de mudanças sociais. O processo de modernização produti-
va local transbordou para outras esferas da vida além da econômica,
atingindo os padrões sociais de comportamento e de sociabilidade,
os modos de pensar, as racionalidades e as práticas sociais. Esse en-
cadeamento de práticas, idéias e comportamentos, embora vividos
em Ibimirim, estão relacionados com processos que interligam os
territórios regional, nacional e internacional.

As experiências de migração têm sua parcela de contribuição


neste processo de mudanças sociais, se pensadas enquanto sis-
temas de trocas e de conexão entre pessoas e lugares. No Sertão
nordestino, a migração, temporária ou definitiva, estabeleceu
um trânsito entre mundos rurais e mundos urbanos há várias
gerações, sempre relacionada com a instabilidade produzida
pelo desencaixe secular entre as políticas adotadas para a pro-
dução agropecuária e as condições naturais dessa região semi- 313
árida, onde o regime de chuvas é propenso a irregularidades
agudas. Essa instabilidade vivenciada pela população do Sertão
em função das diversas secas que geraram situações calamitosas
deixou suas marcas no imaginário do sertanejo, cujas expec-
tativas oscilam entre a esperança de dias melhores e o temor
da derrocada que se anuncia quando um ano fica sem chover,
um mau presságio 14. É possível pensarmos na experiência da
migração como memória coletiva de um grupo social que histo-
ricamente a tem como uma estratégia de manutenção do grupo
familiar, de ampliação da propriedade, enfim, como um dispo-
sitivo que viabiliza trocas materiais e simbólicas entre quem vai
e quem fica15.

O aumento da escolarização dos jovens no campo também con-


tribui para essa circulação de pessoas e idéias entre os mundos
do rural e do urbano, uma vez que a escola que está no campo

14 Gomes, 1998.
15 Garcia Jr., 1989.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


é uma agência socializadora moldada a partir do modelo de uma
sociedade de classes16, onde o urbano-industrial predomina sobre
o rural-agrário.

Na sociologia e antropologia do meio rural já foram observados


muitos processos de mudanças sociais em áreas camponesas, onde
ocorreram reordenamentos das tradições camponesas por pressão
vinda dos processos capitalistas. Por isto, são muitos os exemplos de
entrelaçamento entre aspectos da tradição local e aspectos “aliení-
genas” da sociedade urbano-industrial. A tradição, em muitos casos,
serve como esteio dos processos de mudança, como passado que so-
brevive no presente, pois que, no presente, constrói as possibilidades
do futuro17. Um exemplo disto é a permanência da representação
tradicional da terra como patrimônio da família, diferente da idéia
moderna de propriedade, pois o patrimônio é um bem familiar de
314 valor econômico e simbólico, onde a terra é base para o trabalho,
que é honra para o agricultor, visto que viabiliza a família18.

No entanto, como afirmou Elias, não se pode desconsiderar que


os princípios individualizantes da sociedade ocidental modificam o
peso da balança nós-eu nas comunidades tradicionais, alterando o
valor atribuído ao indivíduo e ao coletivo, no tocante às ações e às
decisões da vida19. Isto influi nas relações intergeracionais, uma vez
que são os jovens mais suscetíveis às idéias modernizadoras, porque
reforçam suas reivindicações por reconhecimento das diferenças e
opções individuais.

O que se observa em Ibimirim, como em outras partes do interior


do país onde o capitalismo avança sobre comunidades tradicionais,
é essa tensão entre novas práticas e idéias com as praticas e idéias
tradicionais. Mas, notem bem, nesse embate entre o velho e o novo,

16 Bourdieu e Passeron, 2008.


17 Woortmann, 1990, p. 17.
18 Wanderley, 2004, p. 48.
19 Elias, 1994.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


jovens e adultos não ocupam campos opostos – seria ingenuidade
pensar juventude como sempre aliada ao novo e os adultos sempre
apegados ao velho, como advertiu Elias (1997). Jovens e adultos,
pais e filhos vivem essas tensões no campo das relações geracionais
porque muito dessas idéias renovadoras incidem justamente sobre a
relação entre o individual e o coletivo, relação importante na família
de agricultores que tem no coletivo a força para a sua sobrevivência
na sociedade capitalista.

Educação e socialização:
do habitus de classe às trajetórias desviantes dos jovens

Em A educação – sua natureza e função, Durkheim define educa-


ção como uma “[...] ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as
gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social 315
[...]”20. A educação é por Durkheim considerada como uma sociali-
zação metódica das novas gerações, o que torna os dois conceitos
muito semelhantes. Diz ainda que “[...] a sociedade se encontra, a
cada nova geração, como que diante de uma tabula rasa, sobre a
qual é preciso construir quase tudo de novo”21. E conclui afirman-
do que “a ação exercida pela sociedade, especialmente através da
educação, não tem por objeto, ou por efeito, comprimir o indiví-
duo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário engrandecê-lo
e torná-lo criatura verdadeiramente humana”22.

Fica evidente a correlação entre o código tradicional do camponês,


onde o mais velho é sempre quem ensina – e só ele pode ensinar,
pois que possui o conhecimento da terra, a experiência da vida e
a honra de chefe de família – e as idéias de Durkheim, para quem
a educação é ação exercida pelos adultos – ou pela sociedade, em

20 Dukheim, 1978, p.41.


21 Idem, p.42.
22 Idem, pp. 46-47.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


outros trechos do texto –, sobre as gerações mais novas: estas “que
não se encontram ainda preparadas para a vida”, formada por um
tipo de indivíduo “tabula rasa”, que precisa ser transformado em
“criatura verdadeiramente humana”. Este sentido, também presente
no conceito de socialização, é denunciado por Norbert Elias por ser
unidirecional, dicotômico e, portanto, impróprio para se pensar as
relações humanas, mesmo as relações entre adultos e crianças. Diz
Elias que os limites do conceito de socialização residem na força
deste conceito em induzir o olhar sociológico sobre o processo de
modelagem dos novos indivíduos de uma sociedade como sendo
uma via de mão única. O que quer dizer que, ao não dar visibilidade
ao sentido inverso de todo processo de socialização – a influência
dos novos sobre os mais velhos –, o conceito deixa de explicitar as
tensões criadoras de novos padrões de pensar e agir que produzem o
atrito entre novas e velhas gerações. É preciso aceitar o fato de que
316 os filhos também socializam os pais, que os mais jovens criam novos
comportamentos, novas idéias e semeiam o novo no mundo em que
são socializados23.

O aparecimento de novos padrões de sociabilidade pode emergir


como expressão da insatisfação com os antigos padrões estabeleci-
dos, e por certo se desenvolvem menos por um esforço da razão e
mais pelas práticas sociais de pessoas que querem vivem diferente
de certos padrões socialmente estabelecidos. A busca do novo é
motivada por uma «necessidade de significação da vida», diz Elias,
“[...]um propósito que favoreça a plena realização pessoal e possa
ser vivenciado como significativo”24. É uma das maneiras de uma
geração se diferenciar da geração passada.

É a posição do jovem no mundo que forja nele essa necessidade de


significação da vida, como forma de diferenciação em relação aos
mais velhos, pois é na afirmação da diferença que a construção de

23 Elias, 1997: 242-3


24 Elias, 1997, p. 215

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


uma identidade se apóia. É, portanto, uma condição que se expressa
em termos objetivos e subjetivos, pois que o jovem se depara com
um mundo onde os adultos se encontram em posições já estabele-
cidas, enquanto ele é aspirante a uma posição. O jovem se vê diante
de um mundo já construído no passado, mas ao mesmo tempo é o
seu mundo, que foi interiorizado nele, incorporado pelos processos
de socialização. Para viver nesse mundo ele precisa construir uma
visão de mundo que o ajude a trilhar caminhos para se estabelecer
nesse meio. E é nisto que reside, potencialmente, a renovação mo-
vida pela necessidade de significação da vida e pelo desejo de dife-
renciação que pode ser muito mais forte entre jovens do que entre
adultos, não por essência ou natureza, que não fazem parte de uma
interpretação sociológica séria, mas pela posição deles de outsiders
em um mundo de estabelecidos25.

Mas essa incorporação não é feita de forma pura, ou seja, de for- 317
ma a que tudo o que foi ensinado ao jovem, via socialização, será
assimilado por ele. Segundo Mannheim, que influenciou Elias em
muitos aspectos, como neste de abordar as gerações como fonte de
renovação da sociedade26, cada geração herda da outra um repertó-
rio cultural que, no entanto, nunca será absorvido completamente
em virtude da experiência de cada nova geração ser diferente das
gerações que a antecederam. Esse repertório é formado através das
experiências das pessoas, que “testam” as idéias, valores e com-
portamentos que apreenderam nos processos de socialização e os
adaptam às condições em que vivem e às necessidades e anseios

25 Faço aqui uma analogia da relação entre estabelecidos e outsiders que é feita por Elias em uma de
suas obras clássicas, onde o sentido construído de outsiders deriva da relação desses com os estabe-
lecidos, adquirindo, portanto, o sentido de novatos. Cf. Elias & Scotson, 2000.
26 Elias foi assistente de Mannheim antes do exílio. Foi Mannheim quem primeiro publicou artigos
sobre a “questão da geração”. Importante ressaltar, devido aos diversos sentidos atribuídos ao concei-
to, que tanto para Elias, quanto para Manheim, uma geração não se define exclusivamente pela idade,
tampouco, pelo estilo de vida ou por comportamento, uma vez que esses podem ser comuns tanto
entre jovens quanto entre adultos. Ter a mesma idade não é suficiente para caracterizar uma geração,
na medida em que as visões de mundo, as diferenças de classe, gênero, etnia, região, entre outros
aspectos, fazem que os grupos juvenis se diferenciem tanto entre si que não podem ser agrupados
em uma mesma “geração”.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


próprios. Mannheim chama isto de contato original e o define como
um processo, mais inconsciente do que consciente, em que os re-
pertórios das idéias, atitudes e comportamentos das tradições cul-
turais vigentes na sociedade são avaliados e adaptados pelos novos
integrantes, criando possibilidades para a inovação do inventário de
práticas sociais27.

Entretanto, essa inovação é potencial, e somente em condições es-


pecíficas é que efetivamente as práticas sociais são renovadas. Uma
das condições para que haja potência de mudança é o compartilha-
mento de situações existenciais comuns entre os jovens, combinadas
com visões de mundo também comuns, aspecto apontado por Elias e
Mannheim. É preciso ter uma base social comum para poder vivenciar
as experiências da vida com certo conhecimento de que o outro tam-
bém experimenta a vida da mesma forma e, com isto, gerar situações
318 em que haja compartilhamento de idéias e sentimentos atribuídos à
vida, à liberdade, ao casamento, à família, à sociedade, à sexualidade,
enfim, às coisas da vida. E que também esses sentimentos passem a
motivar práticas comuns, divergentes em relação às práticas vigentes
que não se encaixam no modo de vida almejado pelos novos inte-
grantes da sociedade. Só então, de acordo com Mannheim, é possível
caracterizar uma unidade de geração e então agir como ator coletivo.
Esse é o caso, por exemplo, da “Geração 68”. A este rótulo se associam
idéias de liberação sexual, revolução, rebeldia, contestação, quando,
na verdade, muitíssimos outros jovens que tinham a mesma idade
nessa época não participavam e até mesmo poderiam se opor a mui-
tas das práticas e idéias dos grupos juvenis que deram sustentação às
diferentes lutas reunidas nesse mesmo rótulo “Geração 68”. Porém,
mesmo com pertencimentos baseados em diferenças de classe, de gê-
nero, de etnia, de região, o conjunto das ações e idéias desses grupos
tomou a forma de ação coletiva e ganhou a potência necessária para
fixar novas modos de ser, pensar e agir.

27 Mannheim, 1982.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Neste ponto é preciso retornar ao conceito de socialização e a cri-
tica de Elias a esse conceito, para pensar essa dupla possibilidade,
da ocorrência de condições para a ação coletiva dos jovens, ou o
contrário, da impossibilidade de qualquer identidade comum entre
os jovens, em virtude das divisões sociais entre eles. Não é a ação
individual potente para renovar as práticas sociais, mas também não
é sem importância, uma vez que nas relações sociais, segundo a
perspectiva eliasiana, os atos de um indivíduo ou grupo social se en-
trelaçam em sequências de ações, “cuja direção e resultado provisó-
rio não dependerão desse indivíduo, mas da distribuição do poder e
da estrutura das tensões em toda essa rede humana móvel”28. Desta
forma de compreender a sociedade, como efeito dos muitos entre-
laçamentos de múltiplas relações sociais, é que se pode desmanchar
a idéia de um “homem individual” de existência interior autônoma
da sua vida social, um ser psicológico diferente do ser sociológico e
biológico, de um “eu interior”. Para Elias esta idéia distorcida sobre 319
o indivíduo vem do individualismo do século XIX que, nas lutas
políticas antagônicas ao socialismo, grafou os sentidos modernos
do indivíduo como oposto ao coletivo29.

Na sociologia de Elias o indivíduo não é somente o resultado do


desenvolvimento psíquico singular, do processo de maturidade que
o faz deixar a infância. A «psicogênese» do indivíduo, que Elias
define como o processo de formação dos controles individuais, se
desenvolve na interdependência com a «sociogênese» da sociedade
à qual ele pertence, ou seja, na relação com modelos de idéias e
comportamentos difundidos socialmente. Portanto, a formação do
individuo, suas idéias e suas práticas dependem “sempre da nature-
za das relações entre ela e as outras pessoas”30, esse é o campo de
possibilidades que circunscreve as formas de ser e pensar:

28 Elias, 1994, p. 48
29 Elias, 1994, p. 134
30 Elias, 1994, p. 27

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


“cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas
as demais, tem uma composição específica que compartilha
com outros membros de sua sociedade. Esse habitus, a com-
posição social dos indivíduos como que constitui o solo de
que brotam as características pessoais mediante as quais um
indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade [...]
algo que poderia ser chamado de grafia individual inconfun-
dível que brota da escrita social.” (Elias, 1994, p.150)

Esta forma de Elias colocar a relação indivíduo-sociedade se ma-


nifesta na diferença entre o habitus de Bourdieu e o de Elias, uma
diferença que aponta para caminhos distintos em pesquisa, como
mostra o conjunto de suas obras. O habitus bourdieusiano aponta
para um processo de socialização primária marcante e tão forte que
pode ser reconhecido ao longo de toda a vida adulta, às vezes até
em momentos em que, aparentemente, deveriam prevalecer habitus
320
produzidos na maturidade da vida adulta e profissional31. Em Elias,
o habitus, mesmo atrelado às experiências da origem social familiar,
apresenta-se como um conjunto de grafias sobrescritas umas às
outras, em diversos momentos da vida, como resultado de assimila-
ções, rejeições e adaptações dos sujeitos, ao que ele denomina pro-
cessos civilizadores individuais. As marcas da infância e da juventu-
de estão lá grafadas, são bases sobre as quais se escreveram outras
grafias que, escritas sobre as primeiras, alteram-nas pela mistura,
pela condensação. É verdade que Elias admite que alguma das ca-
madas desse habitus social poderá ganhar proeminência, sugerindo
a questão da identidade nacional, mas é Bourdieu quem radicaliza
essa vinculação do habitus à classe social.

31 Exemplo disto é dado pelo próprio Bourdieu em seu livro autobiográfico, Esboço de auto-análise,
quando se refere à forma deselegante e um tanto grosseira, a seu ver, de como ele ministrou a con-
ferência de ingresso no Collège de France, fazendo críticas ácidas ao pensamento sociológico que
alguns de seus pares, ali presentes, representavam, e ouviam sem poder contestá-lo, devido à regra
do ritual. Bourdieu, em autocrítica, disse que entendia isto como uma manifestação de seu habitus
familiar e escolar: o seu comportamento, explicou ele, era de quem sempre se sentiu discriminado
por sua origem de família de funcionário modesto do interior da França, e que se sentia impelido, no
ambiente escolar, a afirmar-se através de acirradas disputas intelectuais com os colegas.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Segundo a crítica do filósofo francês Bernard Charlot (2000), o
habitus que Bourdieu cunhou é um tipo de “psiquismo de posi-
ção”, é a interiorização do mundo social, constituído na e pela
posição social, portanto, sempre ancorado na origem do gru-
po social ao qual o indivíduo pertence. Outro francês, Bernard
Lahire, este também sociólogo, falando sobre a analogia entre
habitus em Bourdieu e em Elias, aponta para a diferença episte-
mológica entre eles e as consequências disto na produção teórica
destes dois intelectuais:

“Bourdieu pensava que seria sobre a base de um habitus


familiar bastante coerente já constituído que as experiências
ulteriores adquiriam sentido. Os esquemas de socialização
são de fato muito mais heterogêneos e cada vez mais preco-
ces. [...] Uma outra diferença entre a abordagem eliasiana e
a abordagem bourdieusiana é o fato de que Elias apresenta
321
como centro de sua sociologia a idéia de relações de interde-
pendência entre indivíduos que formam então configurações
sociais específicas e se constroem por meio dessas relações
de interdependência. Bourdieu definiu os indivíduos, sobre-
tudo pelo volume e estrutura de seu capital (essencialmente
o econômico e o cultural). Ainda que aparentadas, estas são
duas concepções antropológicas definitivamente diferentes.”
(Lahire, 2004b, p. 318-9)

Bourdieu desenvolve uma sociologia da reprodução social explo-


rando o “peso” do passado incorporado sobre as práticas sociais
ao levar a fundo o uso do conceito de habitus na análise socio-
lógica. Já Elias desenvolve uma sociologia do processo onde está
presente a gênese do habitus, mas, em sua teoria, as relações de
interdependências que ligam o indivíduo às redes sociais ocupam
o centro da análise das práticas sociais. Desta forma, o passado
tem muito mais peso sobre as praticas sociais em Bourdieu do que
em Elias e o habitus bourdieusiano, mesmo que atualizado, sem-
pre apresenta um núcleo estável, juntamente o de classe. Mas, se
o habitus “molda as estruturas mentais e impõe princípios de visão

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


e de divisão comuns”32, que tipo de orientação crítica poderá ter o
indivíduo diante da sociedade que o socializou para reproduzi-la?
Se for assim, como explicar as tensões e conflitos que têm por base
as diferenças geracionais?

À “questão da juventude” Bourdieu (1983) responde que “juventude


não é mais que uma palavra”, alertando, com razão, que essa cate-
goria social é clivada por diferenças de classe e outras divisões sociais,
diferenciando as experiências de jovens segundo as filiações desses às
classes trabalhadoras ou às classes médias e altas, e alertando para as
ambigüidades embutidas ao falarmos em “problemas da juventude”33.
A essa mesma questão Elias responde que os jovens podem agir moti-
vados por uma necessidade de buscar um sentido na vida, “um propó-
sito que favoreça a plena realização pessoal e possa ser vivenciado com
significativo”, que traz embutido um desejo de diferenciação inerente
322 ao processo de individualização e de busca de autonomia do jovem34.

Na comparação entre essas considerações de cada um as respos-


tas apontam para caminhos diferentes na pesquisa sobre jovens e
juventudes. Bourdieu relativiza a questão geracional em favor das
divisões sociais mais “fundamentais” que seriam a classe, ou poderia
ser a nacionalidade, importante no contexto europeu, opondo-se às
tentativas de homogeneização de um discurso sobre a juventude35.

32 Bourdieu, 2001, p. 105


33 Bourdieu, 1986.
34 Elias, 2007.
35 Neste sentido, é pertinente a crítica que Charlot faz a Bourdieu, de que este apesar de negar o sujeito
da filosofia clássica – livre e racional –, faz do habitus um tipo de “psiquismo de posição”, pensado uni-
camente a partir da posição social do indivíduo. Se o habitus é “incorporação”, ou seja, internalizado, é
o exterior que dá inteligibilidade ao interior. Sendo assim, onde está o sujeito? Charlot admite que uma
distensão desta posição foi ensaiada por Bourdieu na obra A Miséria do Mundo, quando ele admitiu que
“as estruturas mentais não são mero reflexo das estruturas sociais”. De um lado, admite a força do desejo
interior: “a ilusão é determinada desde o interior a partir das pulsões que impelem a investir-se no objeto”.
Porém, de outro lado, enquadra esse desejo, prendendo-o a “um universo particular de objetos socialmente
oferecidos ao desejo”. Assim, para Bourdieu, “o desejo se manifesta somente, em cada campo [...], sob a
forma específica que este campo lhe assinala num momento dado do tempo [...]” (Bourdieu, 2003, p. 592-
3). É por isto que Charlot diz que podemos considerar que cada entrevista individual que figura nessa obra
de Bourdieu (A miséria do mundo), representa uma posição de um grupo social e que mesmo aí Bourdieu
continua desenvolvendo uma sociologia das posições dos grupos sociais (Charlot, 2000, p. 35-9).

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Elias toma a questão geracional como questão social de diferen-
ciação, que não apaga as demais diferenças, nem submerge diante
delas, mas ligam-se às formas de renovação da sociedade. Nisto, a
perspectiva aberta por Elias traz a possibilidade de considerar como
indivíduos jovens se diferenciam de seu grupo social de origem, e
mesmo de seu grupo social atual, ocupam as margens, os interstí-
cios dos lugares sociais, podendo apresentar trajetórias dissonantes
de seu grupo social. Assim, as trajetórias individuais interessam à
sociologia porque elas podem contribuir para o estudo das mudan-
ças sociais, trazendo à tona os efeitos variáveis das mudanças sobre
os grupos sociais, tal como Elias fez no estudo das trajetórias de
Mozart e de Watteau.

A perspectiva que tomo da teoria de Elias é de considerar as trajetórias


dos jovens a partir do campo de possibilidades existentes no conjunto
de suas relações sociais, de como esses jovens aproveitam esse campo 323
e de como, nas relações sociais, dão novos contornos a esse campo,
ampliam seus limites, inventam novas possibilidades, ou não. Con-
siderar as possibilidades para jovens que são outsiders, ou melhor,
novatos, que procuram tomar lugar entre os “adultos estabelecidos”.
Essa trama de relações que envolvem a vida social dos jovens e é
tecida com tensões silenciosas e conflitos mais ou menos abertos ou
dissimulados, com adesões a idéias e comportamentos estabelecidos
e também com negações e novas proposições necessárias aos que
buscam “significar a vida”, diferenciar-se dos que já estão no mundo.

Bernard Lahire considera que “as entrevistas biográficas podem


apresentar meios excelentes de questionar os modelos de personali-
dade coerente e estável, associados a modelos de decisão sem incer-
tezas”, sem que isto signifique ruptura entre indivíduo e sociedade,
pois que ele também considera que toda pessoa tem o mundo social
dobrado dentro de si36. Na perspectiva assumida aqui, as trajetórias
individuais tem a dupla dimensão, de demonstrar o efeito das rela-

36 Lahire, 2004, p. 35.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


ções sociais históricas na vida de indivíduos e, simultaneamente, de
demonstrar as contingências e heterogeneidades em grupos sociais
que podem ser identificados como uma classe social, ou uma etnia,
por exemplo. O estudo das trajetórias permite ver como “cada um fia
o seu caminho”, considerando que a passagem para a vida adulta é
um processo de auto-reconhecimento e de reconhecimento social.

Existe, ainda, outra contribuição dessa perspectiva eliasiana no pen-


sar as trajetórias individuais: a fortuna, o acaso, o imponderável,
toda essa matéria da vida humana que escapa às categorizações
sociológicas baseadas na repetição de padrões. Nas sociedades con-
temporâneas em que a instabilidade e precariedade das relações se
multiplicam, trabalhar com o imponderável passa a ser tão impor-
tante quanto o planejar e estabelecer objetivos para a vida. É por
isto, entendo eu, que as linhas de fuga que permitem explicar as
324 diferenças individuais, os desvios – que podem ser do tipo aponta-
do por Elias em Watteau e Mozart, por exemplo –, ou admitir até
mesmo as variações que podem sobrevir do acaso, do imprevisível
e não-planejado, tem maior alcance na elaboração formulada por
Elias do que na formulada por Bourdieu.

Família e comunidade:
velhas formas de controle e novas formas de subjetivação

A comunidade e a família são parceiras no controle do que fazem


os jovens e a dimensão do controle dos jovens evidencia o conflito
entre gerações, vivido no plano individual e social. Não há nenhuma
excepcionalidade nesse conflito: a possibilidade do conflito entre
gerações, especialmente entre pais e filhos, faz parte dessa relação,
se admitimos, como Elias, que em todas as relações existem tensões
e equilíbrio de tensões, exigindo sempre comunicação e negociação,
e possibilitando, sempre, a variação nas relações de força.

O controle sobre as mulheres, especialmente quando jovens, revela

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


as transformações que estão acontecendo nas relações intergera-
cionais com a circulação de novas idéias e comportamentos outrora
pouco aceitos no meio rural. Nas famílias das jovens entrevistadas,
a não ser aquelas em que não havia a presença do pai morando jun-
to, a negociação sobre as saídas para as festas, viagens e passeios
seguia o mesmo enredo: primeiro, começava pela mãe, que trans-
feria a decisão para o pai, que podia aprovar logo, mas geralmente
demonstrava maior resistência até que a mãe intercedesse pela filha,
momento da esperada flexibilização paterna, embora o desfecho
fosse sempre improvável, mantendo certa tensão no processo de
negociação. O depoimento de Joana é um excelente exemplo dessa
negociação:

“Eles não aceitam é festa sempre. Você vai a uma festa,


pronto, aquela tá boa, no ano essa festa tá boa [risos]. Você
não pode ir em outra [risos]. Mas, assim, tipo... a gente acaba 325
convencendo.
[Mauricio: Como é que você faz essa negociação?]
Primeiro a gente… eu falo com a minha mãe só que ela joga
pro meu pai. Ela diz ‘fala com ele’. Daqui a pouco aí a gente
vai, fala com ele e às vezes ele até deixa, mas tem hora…
Ela fala isso, mas ela não libera muito não. Por ela a gente
estaria sempre ali, juntinho, protegido por ela. Mãe é sempre
assim. Protetora. Ela tem muito… vamos dizer que ela... eu
não sei se é bem ciúme ou é proteção demais. Tem dia que a
gente sai à noite e ela fala que não dorme, só dorme quando
a gente volta. Mesmo sendo tarde, muito tarde, ela só dorme
quando a gente volta. Aí então, eles eu acho que assim... é
mais proteção. Eles não querem que a gente saia. Se a gente
sai muito com os colegas assim, tem reclamação. Não impe-
dem, mas reclamam. Todo pai e toda mãe quer cuidar do seu
filho.” (Joana, 27 anos, agricultora).

Os interesses de cada uma das partes não são os mesmos, mas uma
negociação permite estabelecer as condições para que os dois lados
sejam contemplados, abrindo mão de posições rígidas, o que é im-

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


portante para o equilíbrio da relação. Percebe-se como, para Joana,
essa tensão é “natural” na relação entre os pais e filhos, é normal
na juventude e constitui um desafio permanente na busca do jovem
pela sua autonomia, enquanto esse morar na casa dos pais:

“Ser jovem é ser normal. É você dar confiança, porque o


jovem tem que dar confiança, pra ele poder ter confiança.
Que às vezes ser jovem... se o jovem não dá... vamos dizer, ele
tem que ganhar um pouco de sua autoridade também. Ter a
confiança das pessoas pra poder mostrar quem realmente ele
é. Eu me sinto é… uma pessoa mais livre, mais jovem vamos
dizer, quer dizer isso me faz bem. Eu não tenho vamos dizer
que eu só faço aquilo que… porque tem pessoas que ficam,
dependendo porque você mora com seus pais, você fica a
ponto de que eles quem decide, a toda hora, todo passo que
você vai dar. Eu nunca gostei disso. Eu, na minha adolescên-
326 cia, eu era um pouco assim: eu não queria que eles fizessem,
eu não queria fazer só o que eles dissessem “Faça isso”. Eu
queria, eu ansiava pelos meus 18 anos [risos]. Eu achava que
ia mudar tudo depois dos meus 18 só que assim, eles nunca
vão deixar você de lado e vai dizer” – Você é uma pessoa
livre pra tal e tal”, não. Lá em casa não tem disso. Eles dei-
xam até tal ponto, porque se você não procurar [se afirmar]
eles sempre vão estar ali mandando e desmandando nos seus
passos.” (Joana, 27 anos, agricultora, Agrovila 4).

Pelo descrito no depoimento, o processo de conquista da autono-


mia é gradual e permanente quando os jovens continuam morando
na casa dos pais, principalmente no caso das mulheres. Há o re-
conhecimento dos “direitos” do jovem, quando há confiança dos
pais e respeito mútuo. O “ritual” de negociação, embora tradicional,
dialoga com as demandas atuais das jovens mulheres, que buscam
reconhecimento e relações menos desiguais em relação aos homens,
uma relação de confiança e o reconhecimento de sua autonomia
mesmo morando na casa dos pais. Ainda que essa autonomia seja
precária, no sentido que ela está sempre em negociação, embora

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


esta seja uma conquista a ser reafirmada continuamente, essa situa-
ção já fere o rígido código moral das comunidades camponesas para
as mulheres solteiras. O ritual é a forma da filha prestar reconheci-
mento da posição dos pais, um sinal de respeito à autoridade pater-
na e materna, o que faz entender o motivo de ser repetida continu-
amente, mantendo vivas as trocas intersubjetivas entre mãe, pai e
filha. O depoimento permite entender o processo de inter-influência
que Elias criticou faltar na concepção do conceito de socialização.

A dominação do pai sobre as filhas é duplamente marcada pela hie-


rarquia – a do mais velho sobre a mais jovem – que também envolve
os filhos homens –, e a do homem sobre a mulher – que também
atinge a esposa. Tanto que a negociação passa pela mãe, reconhe-
cendo sua autoridade hierárquica, mas esta atua como mediadora
entre pai e filha. Desta forma, a socialização familiar, em muitas
famílias, ainda é marcada pela subalternidade feminina em relação 327
ao homem.

Jessica, de 21 anos, também sofreu com o controle de um pai muito


rígido: O pai de rédea curta bota pra dormir bem cedo. Eu saí de
casa mais por causa do pai. Meu pai é linha dura. Mas, Jessica
saiu de casa cedo. Aos 16 anos, engravidou e foi morar com a fa-
mília do namorado. Foi trabalhar e estudou até completar o Ensino
Médio. Hoje, como coordenadora e educadora social na oficina de
marchetaria em uma ONG que realiza projetos culturais e de geração
de renda para jovens, ela é a principal responsável pela manutenção
de sua família, uma vez que o marido é autônomo e não tem renda
fixa. Devido a essa socialização fortemente marcada pela dominação
masculina, muitas jovens encontram dificuldade para afirmar-se in-
dividualmente sem uma presença masculina como apoio, conforme
o relato de Anita, falando de si e de suas amigas:

“Algumas das minhas amigas, colegas e também meninas


que eu não tenho tanta afinidade aqui na cidade, mas como
aqui é pequeno eu conheço todo mundo e todo mundo me

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


conhece, geralmente quando elas tão namorando elas... é
como se fosse assim... um seqüestro da subjetividade. “– Mi-
nha vida agora é dele, ele que decide, ele que faz”, tá enten-
dendo? É tanto que eu nunca consegui namorar ninguém
mais de um mês. Que quando eu vi que ele tava querendo
que eu vivesse a vida dele, em função daquilo que ele acre-
ditava... que fosse, que era, que podia, aí eu deixava.” (Anita,
19 anos, estudante, mora na cidade).

Anita, filha de uma professora de Ibimirim que educou ela e sua irmã
sem a participação do pai, estava cursando Licenciatura em Química
na Universidade Rural de Pernambuco, no campus de Serra Talhada.
A crítica que ela faz focaliza essa dimensão da subjetividade forma-
da na submissão ao homem, sendo sua descrição das situações das
amigas uma demonstração daquilo que Bourdieu chamou de vio-
lência simbólica da dominação masculina, que não usa a força, mas
328
se impõe através dos princípios de percepção, da sensibilidade e da
maneira de ver e julgar as situações que foram formadas dentro dos
parâmetros dessa dominação37.

Esses depoimentos fornecem uma amostra do campo de possibili-


dades para as mulheres num lugar onde predomina a agricultura,
na qual o homem é o principal ator envolvido, e, como tal, tem o
controle da maior parte da renda gerada no município. O exemplo
de Joana e Jessica mostra que quando as mulheres trabalham sua
posição frente aos homens é reforçada, como se conquistassem a
honra que os pais de família adquirem através do trabalho. O caso
de Anita mostra outra possibilidade, de uma trajetória escolar bem
sucedida que, associada à trajetória familiar, leva ao entendimento
da posição subalterna da mulher na sociedade e à rejeição em man-
ter uma relação com essa assimetria de gênero. Entre as professoras
da rede pública desses pequenos municípios do interior, com as
quais convivi durante anos em cursos de formação de professores,

37 Bourdieu, 1999.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


é até comum ouvir relatos que confirmam essa “virada” do pólo de
poder na relação com o marido, na medida em que estas crescem
profissionalmente, ou pelo menos sentem-se retribuídas com a con-
quista de novos títulos de graduação e especialização, enquanto
os maridos, por vezes, segundo elas contam, continuam na mesma
situação de antes, o que quer dizer, continua preso às mesmas idéias
de antes e às mesmas condições de sobrevivência.

Muitos jovens do sexo masculino, nas relações com as jovens da


mesma faixa etária, recorrem aos velhos padrões de manipulação
do comportamento da mulher através da maledicência, para manter
uma posição vantajosa nas práticas sexuais, como reclamaram al-
gumas jovens de que eles marcavam aquelas que são para casar e
as que são para ficar, expressão que também foi encontrada entre
jovens do sexo masculino da periferia do Recife, na pesquisa realiza-
da por Scott, Athias e Longhi (2005). Alguns exemplos são dados a 329
seguir. Paulinha tem 17 anos e é mãe de um bebê, e expressou bem
o controle que vem da comunidade:

“Eu não tenho a mesma liberdade de antes. Se a pessoa


fosse solteira poderia farrar melhor, sair. Se a pessoa quisesse
ir pra toda festa brincar poderia estar. Mas você tendo um
filho não, não pode porque as pessoas daqui têm um porém,
se ver uma pessoa muito de festa em festa começa logo a
falar. Então eu não gosto nem muito de tá saindo, é difícil.”
(Paulinha, 17 anos, Sítio Barro Branco)

A fofoca é um dos instrumentos mais utilizados nas comunidades


rurais para manter o controle sobre os jovens. O depoimento de
Daiane, da Agrovila 4, explicita quais são os “sinais” aparentes que
“justificam” fofoca, incluindo os fatos que “poderiam acontecer”:

“O pessoal aqui... critica muitas coisas, tipo... roupa... mu-


lher beber demais, muita coisa. Qualquer coisa que você faz
aqui o pessoal sempre comenta. Se você fica com alguém,

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


já é notícia do dia seguinte. [...] O pessoal às vezes inventa,
não é tanto que faz... fala muito daquilo que nem acontece
[...] inventa muito, comenta. [...] Eu gostava muito de ir em
festa, gostava muito mesmo, agora não. O pessoal começa a
falar. [...] Porque você deixa de viver um pouco a sua vida do
jeito que você quer...” (Daiane, 18 anos, Agrovila 4)

A fofoca, para ser eficiente no controle, utiliza, também, o mecanismo


da especulação, cujo uso não se atribui somente aos preconceitos dos
fofoqueiros, pois a fofoca deve ser entendida pelo seu caráter instru-
mental na comunidade, “na definição dos limites do grupo” – não
se faz fofoca sobre estranhos –, e na “educação” das novas gerações,
que seriam instruídas ao ouvir as fofocas38. Nos depoimentos que
ouvi, esta ultima característica é a mais forte, pois a fofoca provoca o
autocontrole das jovens, temendo os seus efeitos sobre as suas vidas.
330
Por isto, para exercer eficientemente o controle sobre os jovens, a
fofoca não se limita aos fatos, mas avança para interpretações sobre
gestos, situações, olhares, buscando criar um enredo que leve o ou-
vinte a crer que o desfecho poderia ter sido outro “se não fosse por
isto ou aquilo...”, o que pode ser entendido como uma ameaça. A
possibilidade de destruir a reputação da pessoa é dirigida aos jovens
que tiveram um comportamento fora do padrão, seja baseado em
fatos ou em especulações. É como um aviso para a pessoa se “enqua-
drar”, para que recue e aceite a moralidade dos adultos. Esse mesmo
mecanismo de controle social busca o exagero, a generalização de
fatos e características que se pode até verificar entre umas poucas
pessoas de um grupo mais fraco na hierarquia local, tem a função de
manter o status quo e as formas de dominação do grupo mais forte39.

A fofoca está na comunidade rural e na cidade, mas a sua força de


intimidação pode ser menor na cidade, principalmente em ocasiões
de festas para as quais acorre uma grande quantidade de pessoas,
tornando mais difícil o controle dos adultos. No depoimento de

38 Fonseca, 2000, p. 41-42


39 Elias & Scotson, 2000.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


uma jovem que saiu de uma vila para morar na cidade, ela explica
essa diferença entre ser controlada na vila e na cidade:

“Os vizinhos, as pessoas que moram ao seu redor também


controlam. Sempre controla... se você da um passo em falso,
assim.. beijar seu namorado ou fazer outra coisa assim... os
vizinhos já vai contar pro seu pai. Cidade pequena... assim...
onde é vila pequena, qualquer coisa as pessoas já interpre-
tam com se fosse que acabou-se o mundo. Então fica fácil
por isso. Na cidade não, você é mais... tem pessoas que não
te conhecem, você anda na rua, dança, vai pra festa dança,
faz o que quiser. Agora, se for povoado pequeno, se você
for na festa, amanhã já ta comentado que você bebeu, fez
isto, fez aquilo... Que você também não é perfeito. Quando
o pessoal não tem o que fazer, a gente fala mal da vida do
outro. Sítio, vila, só dá isso, que as pessoas não têm mais
nada o que fazer. Aqui [na cidade] é menor isso. Ter sempre 331
tem, na sua rua né. A cidade, assim, tem ruas que o pessoal
olha, fala, a gente sabe, mas... releva.” (Jessica, 21 anos,
mora na sede).

A dimensão da cidade, mesmo a pequena, já altera o impacto da


fofoca sobre a pessoa, como sentia Jessica que deixou a Vila Comer-
cial no Poço da Cruz para morar na sede da cidade. A vila pequena
permite que sempre haja um olhar sobre as jovens, e se alguma delas
se afastar desse campo de visão dos adultos, e dirigir-se a algum
lugar escuro, então se torna alvo de fofoca. Ser alvo de fofoca na
vila, pelo sentimento que Jessica expõe, provoca mais infortúnio do
que na cidade, onde é possível relevar. Na vila, a fofoca fere mais
profundamente, provoca mais, pois todos ficam sabendo. Mas,
mesmo na vila, sempre há estratégias de escape, pequenas formas
de driblar o controle se repetem cotidianamente e multiplicam-se
a partir da maior mobilidade dos jovens para a cidade, através do
transporte escolar para os estudantes, ou das motos que se multi-
plicam entre os jovens moradores dos sítios.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


Fiz observações sobre o controle e as estratégias dos jovens para
driblar o controle dos adultos, como durante a festa da padroeira
de Jeritacó, quando lá estive no final de 2007. A festa acontecia
naquele grande retângulo formado por duas ruas maiores, com
casas de moradores e algumas de comércio, fechado em uma ex-
tremidade pela igreja e, na outra, pelo palco da festa, de tal forma
que, ficando numa posição intermediária entre esses quatro lados,
era possível observar a movimentação das pessoas que circulavam
pela festa. Os jovens, quase sempre andando em pares ou peque-
nos grupos, circulavam de um lado para outro de tal forma que
um observador atento poderia reconhecer as pessoas solteiras ou
aquelas que não estavam com parceiro(a) na festa. Mais tarde,
muitos jovens entraram para o salão, a “boate” onde havia música
eletrônica, mas como a entrada era paga, muitos ainda ficaram de
fora e permaneciam na porta de entrada para falar com os que iam
332 entrando e saindo, pois os pagantes tinham uma marca carimbada
no pulso, que permitia entrar e sair a qualquer momento. Esta
situação foi que possibilitou algumas escapadas de jovens para os
seus encontros sexuais, como um dos jovens que me acompanhava
na festa. A permanência na boate por um tempo deixava os jovens
longe do olhar dos adultos, permitindo as “escapadas” para “ficar”
com alguém.

Se o controle sobre as mulheres tem um caráter moral centrado na


repressão sexual, os jovens do sexo masculino também se sentem
controlados, mas devido a razões relacionadas à preocupação dos
pais em ensiná-los a ser “responsáveis”, noção que se mistura com
as questões do trabalho. Nilton, morando na Agrovila 1, que era
“colada” à cidade antigamente, comentou sobre os atritos ocorridos
entre seu pai, ele e seu irmão quando adolescentes:

“Pai queria tratar a gente como criança e a gente não era


mais. [...] A gente queria ir em baile e pai queria que a gen-
te voltasse cedo. A gente não queria voltar cedo. [...] Tava
passando da idade. No outro dia tinha serviço também e ele

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


dizia “vocês não vão pra rua porque vocês têm que trabalhar
amanhã bem cedo”. Aí foi complicado.” (Nilton, 27 anos,
agricultor, Agrovila 1)

Na tradição camponesa é pelo trabalho que o homem constrói sua


honra, e isto deve ser ensinado aos jovens. Nilton, como a maioria
dos filhos de agricultores, começou a trabalhar desde muito cedo –
“trabalhar e brincar”, está gravado na memória da sua infância. Os
conflitos com o pai, que foram muitos, segundo a sua lembrança,
vieram justamente quando o pai, em seu julgamento, percebia o
lazer dos filhos jovens concorrendo com o trabalho. Mesmo crítico
ao papel que o pai exercia, Nilton, ao comparar sua juventude com
a do irmão que é 10 anos mais novo que ele, qualifica a educação
do irmão como de maior liberdade, só que, no entanto, a liberdade,
neste caso, recebe um adjetivo que parece ter um sentido negativo:
333
“Você sabe que esses jovens de hoje ta tudo pela rua, farrando.
Você vê molequinho de 8 anos, 9 anos, que nunca trabalhou.
Assim, tá certo que não pode trabalhar também. Porque o
negócio de hoje em dia tá mais avançado. [...] não tive aquelas
amizades, aquela liberdade toda que nem hoje o pessoal tem.
Uma liberdade danada que tem aqui mesmo... é diferente...
liberdade danada. Meu irmão mesmo, ali, quando eu vejo... lá
em casa é o mais novo dos homens... quando ele vem chegar
em casa é duas da manhã, três horas. Aí pronto, não tem o
que fazer né?” (Nilton, 27 anos, agricultor, Agrovila 1).

Essa liberdade danada soa negativamente porque desvinculada do


trabalho. Para Nilton, era negativa a forma como o pai controlava
os seus horários, chegando a impedir que ele e o irmão saíssem,
porque ambos tinham que ajudá-lo no trabalho no dia seguinte.
Quando ele, comparativamente à sua experiência, fala de uma in-
fância atual, de jovens que nunca trabalharam, é como se estivesse
reclamando da falta do trabalho na formação da nova geração,
sendo esta falta a responsável pela deturpação da liberdade em li-
berdade danada, ou seja, demasiada, sem o contrapeso da respon-

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


sabilidade do trabalhador. O trabalho, como forma de ensinar a
ser gente, é atribuição da família, especialmente do pai. O trabalho
e a socialização dos filhos no trabalho é a forma pela qual o pai
se reconhece e pode ser reconhecido como o principal agente edu-
cador na vida do filho, ensinando-o um saber que não existe na
escola, na igreja ou em qualquer outra instituição social. E como
aprendizado para a vida, o trabalho deve ser ensinado tanto aos
filhos homens quanto às filhas mulheres, embora com estratégias
e fazeres diferentes. É pelo trabalho que a jovem Joana adquiriu a
confiança dos pais e a autonomia para viver mais livremente sendo
solteira. Foi pelo trabalho que o jovem Valter aprendeu com o avô
“a ter respeito pelas coisas. [...] Respeito em todos os sentidos,
assim, em qualquer coisa que for fazer”.

Entretanto, se essa idéia sobre a formação pelo trabalho ainda está


334 arraigada na cultura, ela também começa a ser usada para criticar
os pais atribuindo-lhes a responsabilidade pela falta de interesse
dos filhos na agricultura, como fez uma jovem ao comentar sobre a
relação dos jovens com a agricultura:

“Nossos pais que começaram a se desinteressar [pela agricul-


tura]. Se eles tivessem interesse de ter crescido e ter dado o
ensino pra nós continuar, aí isso progredia. Mas como eles
começaram a se desinteressar, os jovens que vão vindo vão
se desinteressando muito mais. Daqui a uns anos, aqui, nem
nós vai ter mais.” (Kelly, 19 anos, moradora do Puiú).

A interrupção abrupta dessa prática social no Puiú, de ensinar aos


jovens o trato com a agricultura, é motivadora da sua fuga do seu
torrão natal, apesar da boa qualidade do solo, da disponibilidade
de terras e da abundância de água. A dificuldade de transporte,
isoladamente, não explica esse fracasso na transmissão da herança
cultural camponesa em Puiú. A questão é colocada na relação dos
filhos com os pais.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Exemplo disto está na questão da sucessão. Como as propriedades
normalmente são pequenas e indivisíveis, é comum o pai escolher
um dos filhos para sucedê-lo, assumindo a propriedade. Os demais
filhos e filhas precisarão de outros tipos de encaminhamento, como
ajuda para comprar terra, ajuda para casar, apoio para estudar. Nes-
se momento, comparações entre o “valor” que cada tipo de herança
representa pode gerar conflitos e, nesse caso, às vezes, é possível
que a terra seja vendida se o conflito não for solucionado antes da
morte do pai. Também é crescente a reivindicação das mulheres pelo
direito de herdarem a propriedade, não se conformando com um
enxoval para o casamento. Mas o sucessor pode ficar muitos anos
esperando que o pai ceda o poder de decisão definitivamente para
ele, gerando desconforto pela falta de autonomia40.

É preciso também considerar que o aumento da escolarização trans-


forma muitos jovens de “aprendizes” passivos em “co-participantes” 335
no aprendizado agrícola, podendo gerar situações em que eles in-
terpelem os adultos sobre suas práticas, especialmente aquelas que
se confrontam com a idéia de uma agricultura ecológica. A reivindi-
cação do jovem para que o seu saber seja reconhecido também pode
vir da avaliação negativa que este pode fazer a partir da memória
familiar na agricultura: se as gerações mais velhas não conseguiram
conservar e melhorar o padrão de vida familiar, ou se, ao contrário,
deixarem-no estagnar, ou decair, então isto pode ser uma “evidên-
cia” de que a agricultura tradicional precisa ser renovada.

Na sociedade que valoriza o conhecimento, o jovem reclama para si


o estatuto de “sabedor”, com muita pertinência, de ser reconhecido
como alguém que tem algo a ensinar. A escolarização crescente, a

40 Ver, entre outros estudos sobre sucessão na agricultura familiar, os estudos de Silvestro, Milton Luiz
et alii. Os impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar. Florianópolis: Epagri;
Brasília: Nead / MDA, 2001; Woortmann, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: HUCI-
TEC/Brasília: Ed.UnB, 1995; Wanderley, Maria de Nazareth B., “Jovens rurais de pequenos municípios
de Pernambuco: que sonhos para o futuro”. In: Carneiro, M.J. e Castro, E.G.de (orgs.). Juventude rural
em perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


necessidade de estar conectado às redes virtuais, os cursos extra-
escolares que abundam no mercado, tudo isto desafia o jovem, faz
dele público preferencial e, simultaneamente, constituem-se como
recursos que o atraem, porque ele os valoriza. Daí, para este jovem,
é preciso uma nova relação de aprendizado, quer na escola, quer na
família, o que provoca tensões.

Focalizei o controle social sobre os jovens neste item porque optei


por trazer à discussão aspectos da vida dos jovens nas comunidades
rurais que revelam situações de tensão e de conflito social entre
gerações mais velhas e as mais novas. Não são aspectos marginais,
secundários na vida dos jovens, mas fundamentais para as suas re-
lações sociais na comunidade. Os adultos manifestam preocupação
com os jovens no caso do possível envolvimento com drogas, às
vezes não distinguindo o usuário do colaborador do tráfico, e se
336 preocupam, também, com o comportamento sexual, especialmente
das jovens, às vezes relacionando um comportamento mais liberal
com prostituição. Os jovens manifestam sentimentos de incômodo
e insatisfação com essas situações de controle, como falta de con-
fiança e até de respeito, pelos adultos, em relação às suas escolhas,
idéias e comportamentos.

No que diz respeito à orientação sexual dos jovens do sexo masculi-


no, por exemplo, percebe-se que uma parte significativa de homens
jovens assume, abertamente, que é homossexual ou transexual,
através de comportamentos e outros sinais exteriores que não dei-
xam dúvida da escolha pessoal. Ainda que, por conta da discrimina-
ção, e também da afinidade entre eles, eles formem grupinhos, no
entanto não se isolam e mesmo se misturam com os demais jovens.
Esses comportamentos sexuais que já foram muito reprimidos no
seio das comunidades com forte influência religiosa, como entre os
camponeses, estão encontrando aceitação entre os jovens de hoje,
mais sensíveis à diversidade sexual. Embora o preconceito sexual
perdure também entre jovens, muitos são os que consideram a ho-
mossexualidade como direito individual que deve ser respeitado pela

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


comunidade. Embora os gays ainda sejam alvos das discriminações
e, às vezes, de agressões, a orientação sexual desses jovens, hoje,
encontra mais acolhida do que nas gerações mais velhas, porque
nestas novas gerações há mais espaço para a «anti-atitude» dos jo-
vens em relação ao padrão moral das gerações mais velhas41.

O controle expressa a dupla dimensão do conflito entre gerações:


a dimensão individual e a dimensão social. A dimensão individual é
vivida na relação entre pais e filhos, e por isto é permeada pela for-
ma de poder específica dessa relação social: o poder paterno. Mas
essa relação é alimentada por valores, crenças e práticas coletivas
que delimitam os costumes morais, determinam comportamentos
adequados a cada fase da vida, para cada sexo, para cada grupo so-
cial. Desta forma, o conflito entre gerações apresenta também uma
dimensão social. O controle é expressão do atrito entre padrões mo-
rais diferenciados entre as gerações mais jovens e as mais velhas42. 337
O conflito toma uma dimensão social porque também os jovens são
tomados, pelos adultos, como um coletivo, mais ou menos homogê-
neo em relação aos padrões de pensamento e comportamento. Por
todos esses fatores, educar para a vida através do trabalho, como
ainda vem sendo feito pelos agricultores, tanto tem formado novos
agricultores, quanto deixado, também, um grande número pelo ca-
minho. O que se pode perceber é que a socialização pelo trabalho
ainda ocorre, e continua a ser considerada positivamente, inclusive
entre jovens, mas não é, certamente, um caminho fácil e certo para
assegurar a sua permanência na agricultura, que depende de uma
conjugação de muitos outros fatores. Um fator mais importante é
a abertura de oportunidades de mobilidade social para os jovens.
Sem perspectiva de ter a sua própria terra, sem perspectiva de po-
der tomar conta do negócio a não ser quando o pai se aposentar
definitivamente, não haverá perspectiva de mobilidade, tornando o
conflito muito longo, como disse Elias:

41 Elias, 1997.
42 Elias, 1997, p. 255

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


“O estreitamento e o alargamento das oportunidades de
vida, das oportunidades de significado em geral e das opor-
tunidades de carreira em particular, para as gerações mais
jovens de uma sociedade em qualquer época são processos
que, sem dúvida, afetam mais fortemente o equilíbrio de
poderes entre as gerações. Poder-se-ia dizer que esses pro-
cessos constituem o núcleo dos conflitos sociais entre as
gerações. [...] A tensão latente entre gerações e os conflitos
que lhe estão associados intensificam-se quando os canais
ficam mais estreitos, mas a forma como esses conflitos
se manifestam são extraordinariamente variáveis.” (Elias,
2005: 221-2).

A educação escolar faz parte da estrutura de oportunidades que


a sociedade pode oferecer aos jovens. Mas, como advertiu Elias, a
formação das novas gerações nas sociedades complexas oscila entre
338 o estímulo ao desenvolvimento de um amplo horizonte de conheci-
mentos e de uma visão abrangente da vida num primeiro momento,
para depois frustrá-las pela repressão dos desejos e pelo bloqueio de
oportunidades43. Os jovens brasileiros já foram iniciados há muito
tempo nesse jogo dialético de sonhos e frustrações. Quando frus-
trado na escola o jovem procura firmar-se naquilo que ele aprendeu
desde cedo, no trabalho. Mas a amplitude do campo de trabalho
nos municípios pequenos é ainda muito estreita para o jovem. Para
muitos deles, não é o trabalho na agricultura o desejo, e, para uma
parte dos que estão na agricultura, esta não é expressão do afeto
à terra44, mas da oportunidade de aproveitar o principal campo de
trabalho do lugar.

43 Elias, 1994, p. 33
44 O afeto à terra, expressa uma ideia presente no senso comum dos agricultores, de que para formar
agricultores é preciso começar desde cedo, para que a criança crie esse sentimento de apego à terra.
Cf. Brandão, 1999b.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


As redes e “a rua”:
territórios dos jovens em busca de novas identidades

O «lugar», como foi abordado aqui, é fruto de relações históricas,


econômicas, culturais e políticas que se desdobram no seu interior,
de entrelaçamentos entre as relações sociais locais e as relações com
a sociedade maior. Nos dias atuais, o lugar também é influenciado
por redes, sejam criminosas, sejam redes de movimentos sociais, tor-
nando fatores de diferenciação e de alteração do campo de possibi-
lidades de cada lugar.

Ibimirim, desde a época em que houve o fracasso do Perímetro Irri-


gado, na década de 1990, viu crescer a influencia no narco-negócio
em seu território – como todo o Sertão do São Francisco –, que fo-
ram sendo ocupadas pelo plantio de maconha em larga escala, para
abastecer o mercado nacional. Os “donos do negócio” ganharam 339
adesões de agricultores abandonados pelo Estado, e intimidaram
outros que mesmo sofrendo necessidades materiais, resistiam à se-
dução deles, que ofereciam todos os insumos, preço razoável e a
certeza de comprar toda a produção. Ou seja, na ausência de uma
política estatal para a agricultura familiar, o narco-negócio criou
a sua própria “política pública”. O preço cobrado foi a dominação
violenta do território e a prisão e morte de muitos agricultores.

Valter, um jovem de 18 anos que hoje participa de projetos sociais


de uma das ONG que trabalham com os jovens em Ibimirim, é um
dos que conseguiu escapar do “negócio da maconha”. Nesse negó-
cio Valter era o chamado avião. Buscava nas plantações, repartia e
com a cera que raspava das mãos impregnadas pela manipulação da
maconha fazia o haxixe para vender. A sua parte no negócio era o
que conseguia com a venda desse haxixe. No final, “todos tinham o
seu”. aos 13 anos Valter “punha dois revólveres na cintura e saía
por aí pra gastar a grana que ganhava vendendo maconha e haxi-
xe”. Saia de casa e ficava vários dias fora, dizendo-se “bandoleiro”.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


Via perigo por todos os lados, porque, disse-me, sofria da “paranóia
da maconha e do haxixe” que usava compulsivamente. Alugava mo-
tos de amigos, saiam em turma e “ia para um sítio tomar cana e
transar com as prostitutas”. Não importava o quanto gastavam,
pois era fácil ganhar mais. Nessa fase, Valter chegou a desistir de
estudar e, como disse, foi quando ele “quase se perdeu de vez”.
Depois de ver muitos colegas sendo presos, morrendo por brigas ou
dívidas, ou desaparecendo – muitos corpos eram jogados no açude,
amarrados em pedras –, teve medo e resolveu parar. Mas só conse-
guiu se afastar mesmo quando entrou numa turma de jovens que
iriam participar do projeto com uma ONG recém chegada à cidade.

A ONG, chamada SERTA, chegou em Ibimirim no bojo da retoma-


da do projeto de irrigação, em 2004. Neste período de 2004 até
2007, algumas ONGs entraram em cena no agenciamento das fa-
340 mílias de agricultores e especialmente dos jovens. São organizações
não-governamentais que atuam com ações de educação não formal,
cultura e mobilização social de jovens. A ação principal do SERTA,
que trabalha com agroecologia, é o curso de Agente de Desenvol-
vimento Local, constituído de vários mini-cursos modulares: auto-
conhecimento, informática, fotografia, apicultura, caprinocultura,
agroecologia e empreendedorismo são os principais módulos. Mais
ou menos na mesma época que chegava o SERTA, entre 2005 e
2006, foi formada uma ONG local, a Associação Umburanas do Vale
do Moxotó, voltada para as questões da preservação ambiental e da
produção e difusão cultural, com ações direcionadas para os jovens.
A associação mantém uma biblioteca, um cineclube, um programa
de rádio, uma sementeira de espécies nativas da caatinga para re-
florestamento e uma oficina de marchetaria na qual reutiliza galhos
de árvores e arbustos podados e restos de madeiras utilizadas pelos
santeiros e marceneiros locais.

A forma pela qual os jovens entronizam esses processos formativos


pode ser percebida nos discursos deles. Para os jovens ADL formados
pelo Serta, desenvolvimento é a palavra-chave, e um desenvolvi-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


mento fundamentado na revalorização do agricultor e de uma agri-
cultura que representa o “resgate” de um saber mais antigo, anterior
à «revolução verde» que polui a terra e a água com fertilizantes e de-
fensivos químicos, porém um saber atualizado, enriquecido com o
conhecimento escolar, que faz a diferença com os saberes e práticas
das gerações mais velhas. Esse saber renovado é a bandeira que os
jovens levam para convencer os pais a abandonarem uma tradição
mais recente, essa da «revolução verde», e práticas antigas, como a
queimada antes de plantar. Buscam adesão para a agroecologia, o
que, geralmente transforma-se em mais um ingrediente nas tensões
entre pais e filhos, quando os primeiros não aceitam a introdução
de novidades na forma como plantam.

Na Associação Umburanas, que se volta especialmente para os jovens,


o que mobiliza é o discurso ecológico que, no ambiente rural, focaliza
a destruição da caatinga pelos carvoeiros ou fazendeiros que cortam 341
as espécies nativas e, no meio urbano de Ibimirim, dirige críticas ao
paisagismo – há poucas áreas verdes na cidade e quase sempre uti-
lizando espécies exóticas –, à falta de reciclagem do lixo e critica
também os santeiros da cidade, por utilizarem madeira sem jamais
plantar uma árvore, sendo responsabilizados pela quase extinção da
umburana na região – a árvore símbolo da associação. Os depoimen-
tos seguintes mostram a importância desses projetos para os jovens.

“[...]diziam assim pra gente: “seja responsável por si próprio,


nunca tenha medo de fazer”. Aí eu fui aprendendo. Aí eu
comecei a administrar, porque quem administrava mais era
mãe. [Mãe] Comprava o leite, a gente vendia, e ela fazia
todos os contatos. Aí depois eu comecei a pensar em ser
responsável por si próprio, de nunca ter medo de fazer e fui
trabalhando. Agora eu sou administradora. Ela [a mãe] de
vez em quando dá um conselho, avisa e tal, ajuda, orienta,
mas eu administro. Depois do Serta a minha cabeça mudou
muito. Porque eu aprendi a ter responsabilidade.” (Rita, 19
anos, agricultora, Agrovila 1)

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


“Às vezes as pessoas falam: “fizeram sua cabeça pra você
gostar dessas coisas”. Eu também penso às vezes e paro: será
que foi isso mesmo? Será que eu estou sendo... o pessoal
tá mudando as minhas ideia. Mas não, eles em momento
nenhum falaram “vá, faça isso, faça aquilo, isso não”. Eles
ensinaram a gente a ter mais… eles ensinaram a gente a
olhar mais pra nosso interior. Saber o que se passa na nossa
cabeça, assim, raciocinar mais, refletir mais. Eu passei a refle-
tir.” (Evaldo, 20 anos, digitador, mora na cidade).

O conhecimento trabalhado nos projetos sociais é articulado em três


níveis: o conhecimento técnico – o saber fazer –, o conhecimento
de si – o saber ser –, e o conhecimento do mundo – o saber conhe-
cer, ou aprender. Os processos formativos e de mobilização social
desenvolvidos com os jovens, filhos ou não de agricultores, tem se
pautado pelo objetivo de oferecer oportunidades para a ampliação
342
do universo cultural, sendo, por isto, valorizados pelos jovens. Esses
projetos produzem mediadores e forjam a participação dos jovens
em lugares de representação dos movimentos sociais. Através des-
sas organizações os jovens participam de encontros regionais ou
nacionais, disputam assentos em conselhos e fóruns em seus mu-
nicípios, assumindo posições de representação institucional, ainda
que, internamente, isto não implique na ascensão às instâncias de-
liberativas das ONG. Esta dimensão da valorização da juventude na
vida política tem provocado o movimento sindical a repensar suas
práticas. A jovem Diretora para Assuntos da Mulher e da Juventu-
de do Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Sub-médio São
Francisco narrou que faz pouco tempo que o movimento sindical
abriu oportunidades para os jovens, promovendo ações culturais e
esportivas, tratando de ecologia, de agroecologia, de turismo rural
e ecoturismo.

“A gente quer mudar a metodologia de intervenção. Quere-


mos trabalhar com os lideres dos sindicatos para abordar no-
vas questões. Deixar de trabalhar com assentamentos, para
trabalhar as questões da agroecologia, da mulher, do jovem,

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


da cultura. Hoje o sindicato só pensa a previdência social e
a questão dos assentamentos. É claro que tem muitas coisas
a fazer nos assentamentos, a luta ainda não acabou. Mas se
ficar só nisso, como é que o jovem vai se interessar pelo sin-
dicato? [...] Os sindicatos indicam os jovens para participar
dos cursos, das oficinas, das gincanas, do Festival de Cultura
e da Olimpíada que o Pólo organiza. Nossa forma de atuar é
junto com os sindicatos. Aí reunimos muitos jovens, muitos
mesmo. Mas quando acaba a ação, cada qual vai para o seu
canto, eles não ficam nos sindicatos.” (Cintia, 25 anos, dire-
tora do Pólo Sindical).

O jovem participa quando as ações estabelecem um diálogo menos


sectarizado, ou seja, que extrapola a discussão de agricultura e pre-
vidência social e avança para questões mais amplas da sociedade,
tais como as de gênero, sexualidade, drogas, desenvolvimento, es-
portes e cultura. Se o jovem participa das ações culturais e esporti- 343
vas, de festivais e competições e de cursos de formação em agroe-
cologia, então, a questão da participação “seletiva” dos jovens pode
ser pensada como rejeição ao conjunto de regras que estabeleceram
esse espectro estreito da política sindical45.

Isto novamente permite compreender a dimensão social do confli-


to de gerações, uma vez que as estruturas criadas pelo movimen-
to sindical, mantidas pelos líderes, quase todos adultos, resistem
à inovação. As atividades para os jovens não são incorporadas à
agenda política do movimento, que confinam a política às formas
e às temáticas já conhecidas. Desta forma, os adultos líderes não
conseguem compreender que o movimento de aproximação e dis-
tanciamento e a ação explosiva que depois se retrai fazem parte da
dinâmica da juventude contemporânea e possibilita criar identida-
des e identificações imediatas, momentâneas, que podem ser alte-
radas e reconfiguradas. Em uma época em que a comunidade pode
ser inventada sem uma territorialidade, que os laços comunitários

45 Elias, 2005, p. 243.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


perdem força diante da competição com os laços identitários, os
jovens se unem a partir de identificações comuns, que podem ser
mais ou menos estáveis, a depender de cada situação46. Ao contri-
buir para ampliar o universo cultural dos jovens e do conhecimento
de tecnologias alternativas de produção, essas organizações ajudam
a valorizar o papel que os jovens desempenham em suas comunida-
des, ou que podem desempenhar quando são dadas oportunidades.
Por vezes, esta situação cria uma confusão entre jovens e adultos,
porque muitos jovens estão adquirindo representatividade na socie-
dade, sem que tenham conquistado autonomia dos pais47.

Elas são novas agências de socialização que atuam articuladas às


agencias tradicionais, principalmente a escola e a família, mas que
trazem inovações pedagógicas, políticas e culturais para os jovens
desses lugares, ampliando as oportunidades de aprendizado e de so-
344 ciabilidade. Apesar de também serem marcadas por hegemonias e
conflitos internos, ainda assim oferecem um espaço de manobra para
o jovem atuar. Na disciplina interna, por exemplo, é comum que as
normas sejam constituídas no debate com os jovens, resultando num
“contrato de convivência” feito através de repetidas discussões coleti-
vas, o que coloca o jovem na condição de co-autor das normas cria-
das. Desta forma, os jovens podem vivenciar o papel de educadores,
sentindo que eles próprios também são responsáveis pela educação
de si e do outro. Esta é a dimensão da socialização que os novos
membros do grupo exercem sobre os mais velhos, é a dimensão da
renovação do repertório de práticas e idéia de um grupo social.

Também são espaços que criam novas redes de relacionamento, ofe-


recendo oportunidades de encontros – presenciais e virtuais – entre
jovens de outros lugares: das periferias das cidades, dos diferentes
mundos rurais e mundos urbanos do país. Esses encontros são pos-
sibilidades de conhecimento do outro e de si mesmo. Talvez esses

46 Baumann, 2003.
47 Castro, 2005.

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


encontros contribuam para o reconhecimento dos jovens como «ju-
ventude», ajudando a identificar o que há de comum entre eles.
Mas também podem aprofundar as percepções das distâncias sociais
vindas da impossibilidade de a «juventude» superar ou ignorar as
diferenças e desigualdades de classe, de etnia etc. Entretanto, as
identificações podem surgir do compartilhar emoções, sentimentos,
medos ou alegrias que fazem parte da época, por isso atravessam
as fronteiras dos grupos sociais, tal como o “medo de morrer” dos
jovens acuados pela violência na cidade e também no campo, como
foi relatado aqui; ou o “medo de sobrar”, de não conseguir um tra-
balho que lhes aponte as possibilidades de participar da sociedade
de consumo, aspectos que Regina Novaes identificou serem comuns
às juventudes cariocas, dos morros e da zona sul48.

“A rua” também é lugar de encontro entre jovens que moram no


campo e na cidade. “A rua” é a forma utilizada pelas pessoas que 345
vivem na zona rural para se referirem à cidade. Para os jovens des-
ta geração, é o “outro” lugar que ele vai freqüentar cotidianamen-
te, depois que terminar a 4ª série e, devido à freqüência contínua,
torna-se espaço estendido da sociabilidade do sítio e da vila. Na
rua, os vizinhos mais distantes podem ser encontrados, os amigos
e os parentes que moram em pólos opostos do município. “A rua”
é lugar de encontro, de namoro, de novas amizades, de fazer as
pazes, e também de disputas, às vezes performáticas, envolven-
do motos e carros e, namorados ou namoradas, exibidas como
distinções. É lugar dos acidentes de moto que vitimam jovens al-
coolizados. A dimensão da sociabilidade da cidade, com maiores
oportunidades de encontro, planejados ou fortuitos, é ampliada a
partir do maior afluxo de estudantes que vêm fazer as ultimas sé-
ries do Ensino Fundamental e o Ensino Médio na cidade. No início
da noite vem chegando vans, pickups e caminhões (pau-de-arara),
vindos de diferentes partes do território do município, enchendo a
cidade de vida a noite que, sem os estudantes, seria mais pacata.

48 Novaes, 2002.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


Eles se misturam, namoram, ouvem musica na rua e nos bares, o
jovem do campo participa ativamente da sociabilidade urbana, ou
melhor, ele faz parte dela.

Para muitos jovens que entrevistei, morar no campo ou na cidade


tem a ver com gosto e condições socioeconômicas, individuais e
do grupo familiar. Alguns jovens moram no campo e trabalham na
cidade; gostariam de morar na cidade, mas os pais gostam do sitio.
Alguns jovens moram na cidade e trabalham na agricultura. Algu-
mas famílias têm casa no sitio e na cidade. Muitos gostariam de ter
mais mobilidade, para ficar entre o campo e a cidade, como expres-
sam esses dois depoimentos:

“Porque o meu negócio e só ir e voltar, não morar. Eu não


quero nada com agricultura em termos de morar. Porque
346 não tenho paixão pra chegar a morar em zona rural não. É…
vizinhos que não tem, o ambiente que eu não me acostumo.
Fico onde tem pessoas, aqui na rua tem muitas pessoas. Lá
não tem. Eu não gosto. Eu gosto de trabalhar na roça ga-
nhar o dinheiro e voltar [...] Eu não quero moradia onde não
tem nada.” (Jorge, 27 anos, agricultor, morador da cidade).

“Escureceu, fica ali conversando, faz uma fogueirinha... vai


deitar, fica lá conversando à luz do candeeiro e já era. Dorme
e acorda mais cedo. Você fica tranqüilo, mais tranqüilo... Na
cidade o ar é mais abafado, poluição, muita coisa, o ar fica
mais pesado. [...] Outro dia é pegar a motinha, ir na praça fi-
car com os amigos, ver passar umas meninas, “ah vem cá...”,
conhecia, ficava ali conversando...” (Valter, 19 anos, agricul-
tor, morador de sítio).

Há uma hierarquia de lugares embutida nessa forma de apreciar a


vila e a cidade, que passa pelo tamanho e por sua relação com ou-
tros lugares de entorno. As hierarquias se fundamentam principal-
mente nas experiências vividas pelos próprios jovens, mas também
na relação com o futuro, na forma de afirmações ou indícios sobre

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


o lugar onde se deseja viver, na profissão que desejam ter. Mas existe
uma aversão às grandes cidades, que vem da experiência pessoal ou
do conhecimento sobre as experiências dos amigos e parentes que
migraram. Os motivos dessa rejeição estão associados à violência e a
consequente diminuição da liberdade de mobilidade, e esta diminui-
ção também foi associada ao custo de vida alto. Ou seja, os jovens
do interior do Nordeste sabem que morar na grande cidade pode
representar, potencialmente, uma ameaça à qualidade de vida deles,
visto que relacionam esta ao maior contato com a natureza e ao
inter-conhecimento das pessoas na cidade pequena, o que permite
maior liberdade de movimento.

Uma noção primária de liberdade está associada à mobilidade espa-


cial. Estar livre é exercer o poder de transcender a condição presente,
e uma das formas mais simples de transcendência é a locomoção49.
Os jovens demonstraram que a cidade grande pode ser vivenciada 347
com um sentimento de medo, que tolhe, aprisiona, tira a liberdade.
Para outros, é o sítio que aprisiona, que controla a vida através dos
mexericos e fofocas, que não oferece oportunidades de transcen-
dência para os moradores saírem do cotidiano. Por isso, uns jovens
vão buscar no campo o seu espaço de liberdade, outros vão buscar
na cidade. Não é o tamanho, a dimensão ou a densidade demográfi-
ca que produz a sensação de liberdade, e sim a experiência no lugar:
quanto mais movimento o espaço permite, maior a sensação de li-
berdade. “O lugar existe em escalas diferentes” (Tuan, 1983, p. 165).
Criar um sentimento sobre um lugar é um processo que surge e se
desenvolve no cotidiano da vida, nas experiências de cada individuo.
Leva tempo para amadurecer sentimentos, formas de percepção e
visão de mundo. É efeito também de repetições, de ações e roteiros
cumpridos no dia-a-dia, mas também de prazer, de sensações e de
novas descobertas através da mudança do olhar, da forma de ver as
coisas. Por isso, ser «jovem urbano» ou «jovem rural» tem tudo a ver
com as identificações construídas nas experiências.

49 Tuan, 1983.

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


Mas essa percepção da cidade como lugar de encontro não faz da
cidade um lugar mais interessante para morar do que o campo, para
outros jovens. Para Alice, que mora na Agrovila 4, a cidade não
oferece atrativos, ainda que ela não tenha intenção de trabalhar
na agricultura. A cidade de Ibimirim, para ela, é só para ir a festas,
fazer compras e voltar. E, interessante, para ela, a cidade é ente-
diante. O trecho do depoimento dela reproduzido a seguir mostra o
quanto a percepção altera o olhar e, conseqüentemente, influi nas
experiências:

“Hoje eu saí aqui assim, tava atordoada, eu abri o olho e


olhei, assim, “eu to achando isso aqui mais bonito”. Só que
assim, não tinha nada de diferente. É porque eu não tava
parando pra prestar atenção e quando eu parei eu vi que
tava bonito. Aí na verdade tava do mesmo jeito. Eu que não
tinha prestado atenção. Gosto daqui… de tudo. Tudo que
348
rodeia aqui, o povo… a paz que transmite o lugar...” (Alice,
19 anos, Agrovila 4).

Isto mostra o quanto pode variar a percepção dos jovens – e das


pessoas em geral –, sobre o lugar onde vivem e, a partir daí, nele
projetarem, ou não, o futuro de suas vidas. Certamente que percep-
ção, desejo, projeção não são, isoladamente, decisivos nas trajetórias
pessoais, mas atuam na alma dos indivíduos, podendo, com isto,
provocar disposições favoráveis na busca por soluções que coope-
rem para a conquista dos desejos. E tem aqueles que gostam do
campo e da cidade, como Evaldo:

“Gosto muito daqui. Eu gosto de juntar [as pessoas], tomar


cajuína, mesmo coca-cola, tomar cajuína, comer carne de
bode, [...] A gente comer aquela tilápia lá com ele, tomar
um banho no açude, pescar, caçar, eu aprecio muito. Gosto
disso, de ficar na rua, andar sozinho às vezes, na rua, tarde
assim e não ver perigo. Conversar com todo mundo, conhe-
cer todo mundo, eu gosto muito disso… [...] Eu gosto muito
de ver e cuidar e tratar bem das coisas, das plantas, preservar

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


lá a caatinga me deixa muito contente. Eu sou uma pessoa
de desejo simples assim. Eu gosto muito disso. Eu me alegro
muito com coisa simples, de pescar, de… “ (Evaldo, 20 anos,
digitador, morador da cidade).

A experiência dele de ter morado na capital de um estado, depois no


sítio – sem energia elétrica –, e depois na cidade pequena, deu con-
dições a Evaldo para decidir com segurança não optar pela migração
com o objetivo de estudar na grande cidade – uma oportunidade
concreta que ele tem. Viver na cidade grande não interessa mais a
quem deseja andar pela rua com segurança, conhecer e ser conheci-
do, comer um peixe, tomar um banho de açude, plantar, mesmo sem
ser agricultor. Isto não é fácil de fazer morando na cidade grande.
Gostar da cidade e gostar do campo não é uma contradição para ele.

Baseado no conceito de configuração, enquanto rede de interde- 349


pendências, tento destacar a variabilidade das formas a que cha-
mamos de rural e urbano, dos modos de percepção e de viver no
mundo rural e urbano do pequeno município. Morar no campo e
trabalhar na cidade, ou morar na cidade e trabalhar no campo, por
si só, não tem ajudado a encontrar uma definição mais clara, por-
que não definem o pertencimento da pessoa a um ou outro mundo,
senão o seu trânsito entre dois mundos que se misturam. Mas
os depoimentos também não diluem as identificações que os jovens
assumem para si; cada qual assumindo os seus gostos, ora tomando
o partido de um lado, ora considerando os dois lados como bons.
E embora não diluam, mostram um reconhecimento intersubjetivo
entre os jovens a partir de suas experiências, do gosto, do estilo, do
visual, de que forma jovens “rurais” e “urbanos” se misturam através
das identificações que compartilham50.

Assim, a partir do itinerário que percorrem e os aproximam, a noção


de «jovens rurais» pode agrupar aqueles que vão construindo proje-

50 Pais, 2006, p. 36

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


tos de vida em que o campo esteja presente e seja um dos elementos
centrais da vida. A centralidade pode se materializar pela moradia
no campo, mas também pode ser numa cidade que tenha o meio
rural presente no cotidiano, e a cidade pequena tem essa presença
marcante do mundo rural em seu território. Ou essa centralidade no
campo pode se expressar pelo trabalho, quando este proporciona a
mediação entre o sujeito e a natureza, produzindo, também, uma
ética e uma estética de vida (estilo) que valorize a harmonia entre o
homem e o meio-ambiente.

De forma semelhante, a noção de «jovem urbano» pode reunir aque-


les que vão construir projetos em que a cidade, a urbe, seja o epi-
centro dos desejos dos sujeitos. Para ser urbano, não é preciso morar
na cidade. Uma parte da classe média procura, hoje, morar no cam-
po, se não permanentemente, ao menos parte do tempo da semana.
350 Tampouco é necessário trabalhar na cidade, haja vista os inúmeros
profissionais liberais que atuam no campo. A centralidade da cidade
se expressa no estilo de vida, no gosto, nas práticas sociais que es-
tão fundamentadas na urbanidade da cidade moderna, no sentir-se
satisfeito ao viver as emoções mais comuns por estar na cidade.

Considerações finais

Para compreender as trajetórias de jovens de um pequeno município


é preciso reconhecer quais as visões que eles têm sobre a agricultura,
em função do “peso” desta na oferta de trabalho e de oportunida-
des de empreendimentos locais e, paralelamente, reconhecer quais
as expectativas dos jovens em relação ao futuro, seu e do lugar
onde vive. Investigar quais as estratégias que os jovens pensam para
permanecer ou entrar na profissão de agricultor, ou para sair da
agricultura vivendo em um município predominantemente agrícola,
revelou como os jovens fazem suas escolhas, ou melhor, como eles
se movimentam no campo de possibilidades, que é o campo das
escolhas. E as escolhas são modos de estar ligado a pessoas e luga-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


res, de buscar as coisas significativas para a vida, de ter capacidade
de fazer as opções preferenciais, e de enfrentar os desafios para se
adaptar aos imponderáveis da vida.

Algumas trajetórias mostram jovens em busca de um modo de vida


que ainda não foi experimentado por seus pais, na forma de uma
vida que tenta conciliar o melhor do campo, com o melhor da cida-
de. A aproximação entre a vida no rural e no urbano que esses jo-
vens buscam vem se concretizando através do acesso a transporte e
comunicação mais eficientes, encurtando distâncias e aumentando
a variabilidade das trocas materiais e simbólicas. Acontece, porém,
que falta aos jovens o apoio de políticas públicas que viabilizassem
os projetos produtivos que esses jovens elaboram, que possibilitas-
sem a oferta de oportunidades de formação e de trabalho. Assim, as
idéias, os comportamentos e disposições dos jovens apontam para
um modo de vida que ainda se encontra um tanto bloqueado pelas 351
relações de poder atuais, que mantém os jovens das classes traba-
lhadoras, e suas famílias, vivendo na insegurança econômica e so-
cial. Outras trajetórias mostram jovens que se acomodam ao modo
de vida das gerações mais velhas, para quem a vida não precisa ser
diferente do que é. Tanto um tipo de trajetória, que aponta para
mudanças, quanto o outro tipo, que aponta par as permanências,
são possíveis numa sociedade em mudança, onde o novo, que aflora
convive com o velho, que resiste. Desta forma, o jovem será, simul-
taneamente, portador “de um ideal de ruptura e de continuidade do
mundo rural”51.

Entender esses jovens implica em considerar as trajetórias plurais e


não lineares, por isto, entendo eu, implica em romper com a noção
tradicional de transição entre fases marcadas exclusivamente por
eventos objetivos, considerando a pluralidade das condições reais de
vida dos jovens brasileiros na atualidade. Hoje, há um contingente
grande de jovens que desejam ficar morando no lugar que nasce-

51 Wanderley, 2006, p. 19

De aprendiz a sabedor: os jovens e as mudanças sociais no mundo rural


ram, seja no campo, seja na sede do município. E para isto se tornar
realidade é preciso ampliar o campo de possibilidades através de
políticas públicas amplas, seja na educação, na cultura, na geração
de emprego e renda, nos esportes, no transporte, nas comunicações.
As populações do campo precisam dos mesmos benefícios e direitos
sociais que as populações das medias e grandes cidades. Nos dias
atuais as demandas por reconhecimento de distintos grupos sociais
se assentam sobre a busca da visibilidade das diferenças e da diver-
sidade, e isto está presente entre os jovens de diferentes lugares de
origem e áreas de atuação, como afirma Regina Novaes:

“Os jovens de hoje querem ser diferentes, pessoais e visíveis.


Em outras palavras, o sucesso da ação por eles proposta está
relacionada com a assunção das diferenças sociais, com o de-
sejo de transformar sentimentos pessoais e com a eficácia da
352 visibilidade de sua presença. [...] Portanto, esses jovens estão
dentro do espírito de seu tempo.” (Novaes, 2002: 55-56).

Nesse espírito do nosso tempo, tempo de intensificação dos pro-


cessos produtivos, de produtividade e competitividade intensivas,
as crises financeiras que arrasam populações de países inteiros e as
incertezas sobre o futuro do planeta mobilizam jovens e adultos de
varias partes do mundo a refletir e agir coletivamente. Mais uma vez
na história abrem-se oportunidades de mudanças que apontam para
a «necessidade de significação da vida». Esta necessidade se mostrou
nos discursos dos jovens: nas falas de jovens que se preocupam com
o desenvolvimento do município, com a degradação ambiental da
Caatinga, com a poluição provocada por uma agricultura depen-
dente de agrotóxicos, com a gestão da água no semi-árido. Está
presente quando os jovens falam dos seus sonhos. Os sonhos dos
jovens falam de si próprios e do mundo. Os sonhos transformam em
imagens mentais as idéias que os jovens construíram sobre a vida
no planeta, sobre o trabalho na agricultura e sobre suas vidas, idéias
que expressam visões de mundo às vezes diferentes das gerações
mais velhas. Os sonhos alimentam as esperanças, orientam cami-

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


nhos a seguir, projetos que podem se transformar em alternativa
de renda. Os sonhos se diferem dos projetos. Enquanto os proje-
tos remetem as dificuldades que o jovem do campo encontra para
realizá-los, sem terra, sem financiamento, sem oferta de empregos
não-agrícolas, os sonhos os remetem para o futuro. Os sonhos são
devaneios poéticos, que, como disse Bachelard (1996, p.8):

“Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vi-


das que alargam a nossa vida... Um mundo se forma no nos-
so devaneio, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo
sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento de
nosso ser, nesse universo que é nosso. Existe um futurismo
em todo universo sonhado.”

353
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Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Sobre os autores

Bernard Lahire foi o organizador da área de Sociologia da Escola


Normal Superior de Letras e Ciências Humanas de Lyon, na Fran-
ça, uma das instituições mais importantes em Ciências Sociais da
Europa. Criou, em 2003, e dirige o Grupo de Pesquisa sobre a So-
cialização ligado ao CNRS. Sua vasta produção acadêmica se inscre-
ve na tradição das teorias disposicionalistas da ação social, que ele
desenvolve a partir do estudo da pluralidade e da heterogeneidade
de disposições incorporadas pelos agentes nas sociedades contem-
porâneas, caracterizadas por uma forte diferenciação social. No Bra-
sil publicou, entre outros, a Cultura dos Indivíduos em 2006 e Re-
tratos Sociológicos: disposições e variações individuais em 2004.

Jessé Souza, professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz 357


de Fora, é criador e coordenador do Centro de Estudos sobre o De-
senvolvimento (CEPEDES), autor dos livros O malandro e o protes-
tante (1999), A modernização seletiva: uma reinterpretação do di-
lema brasileiro (2000) e A construção social da subcidadania: para
uma sociologia política da modernidade periférica (2006). Desde
2007, Jessé Souza tem trabalhado no projeto de uma nova teoria de
classes fundamentada em vasta pesquisa empírica, para a sociedade
brasileira, que resultará numa trilogia dedicada às classes sociais.

João Paulo Lima e Silva Filho é mestre em sociologia pela Univer-


sidade de Lyon 2 Lumière e doutor em sociologia pelo Programa
de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Per-
nambuco onde defendeu, em agosto de 2010, a tese Graciliano
Ramos: Estudos de sociologias implícitas financiada pelo CNPq.

José Augusto Amorim Guilherme da Silva é mestre em comu-


nicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em
Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Uni-
versidade Federal de Pernambuco, onde defendeu a tese Sentido e

Resumo
valoração nas práticas e no discurso do espectador sobre o cine-
ma brasileiro: estudo sobre o subcampo do cinema e seu habitus
narrativo. Analista sênior da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Lília Junqueira concluiu doutorado em Sociologia em 1995 na


Universidade Paris VII na França, com especialidade em mudança
social. Desde 1997 é professora e pesquisadora na Universidade
Federal de Pernambuco no Programa de Pós-graduação em So-
ciologia. Em 2006, criou e dirige o Núcleo de Pesquisa Socieda-
de, Cultura e Comunicação, onde desenvolve e orienta pesquisas
que se situam nesta interface. É autora do livro Desigualdades
sociais e telenovelas: relações ocultas entre distinção e reco-
nhecimento (Annablume, 2009) e membro do grupo de pesqui-
sadores do Observatório Iberoamericano de Telenovelas (Obitel).

358 Marcio Sá é professor do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmi-


co do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (NG/CAA/
UFPE) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Sociedade, Cultu-
ra e Comunicação da UFPE. Publicou também pela Editora Uni-
versitária da UFPE os livros Sobre organizações e sociedade (co-
leção livro-texto, 2009), O homem de negócios contemporâneo
(série de extensão, 2010) e Feirantes: Quem são e como admi-
nistram seus negócios (2010). Neste livro conta com a coautoria
de estudantes que compõem a equipe de pesquisa que coordena.

Maurício Antunes Tavares é doutor em Sociologia pelo Programa de


Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambu-
co, onde defendeu tese em 2008 no Núcleo de Pesquisa sobre Desen-
volvimento Rural do Nordeste. Pesquisador da Fundação Joaquim
Nabuco (Fundaj), na Coordenação Geral de Estudos Educacionais.

Raldianny Pereira dos Santos é doutora em sociologia pelo Pro-


grama de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco onde defendeu, em fevereiro de 2008, a tese intitulada

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


Mudança de Habitus? Imagens dos novos homens e mulheres na ficção
televisiva brasileira, financiada pela Capes. Atualmente é professora
doutora do Departamento de Comunicação Social da UFPE e coor-
denadora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Sociedade, Cultura e
Comunicação do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE.

359

Resumo
Anexos

360

Cultura e Classes Sociais na perspectiva disposicionalista


361

Anexos
Cultura e Classes Sociais na Perspectiva Disposicionalista

Coordenação Geral
Jowania Rosas

Design Gráfico
Bureau de Design da UFPE
Manuela Braga / Solange Coutinho

Capa
Marcel Scherz

Formato
15,5 x 22 cm

Tipografia
Frutiger 57 Condensed
Libre Semi Serif SSi
Libre Serif SSi

Papel
Miolo: Pólen - 80g/m2
Capa: Triplex 270 - g/m2

Montado e impresso na oficina gráfica da

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20 - Várzea


Recife | PE CEP: 50.740-530 Fax: (0xx81) 2126.8395
Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930
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