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FEI RANTES
Sob a influência marcante da obra dos
mercados de feira do Nordeste os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e
Profa. Dra. Maria José de Matos Luna feirantes da Feira de Caruaru, Bernard Lahire, o pesquisador toma a
Presidente da Comissão de Direitos condição dos feirantes no século 21
Humanos D. Helder Câmara da UFPE realizando e administrando suas como problema para estruturar e
Coordenadora do Curso de Letras da atividades comerciais” desenvolver a pesquisa que dá origem
UFPE aos capítulos, o que permitiu a este livro
Professora do Programa de Pós-gradu- congregar dos liames científicos à
Veridiano Santos
FEI RANTES
ação em Direitos Humanos da UFPE sensibilidade do autor.
Marcio Sa
(cientista social, historiador e
professor da ASCES-UnitA) Suas análises partem das origens
familiares, sociais e de como, ao longo
de uma trajetória de vida-trabalho,
“Marcio teve um olhar que uma pessoa tende a apresentar,
“estocar” e incorporar determinadas
foge do trivial, do senso comum. disposições que podem ser demanda-
Sobre o autor: O autor deste livro acerta das pelos contextos nos quais se
insere. Trata-se, então, de observar
Professor do Centro Acadêmico do
Agreste (CAA) da Universidade Federal
quando procura desmistificar tanto as disposições quanto tais
de Pernambuco (UFPE), autor de atributos dados à Feira de QUEM SÃO E COMO ADMINISTRAM SEUS NEGÓCIOS contextos nos quais elas se formam.
Marcio Sa
alguns livros, dentre os quais destaca
Filhos das feiras: uma composição do Caruaru sem critérios O trabalho versa, como se anuncia em
seu subtítulo, sobre estes feirantes e
campo de negócios agreste (Editora sócio-históricos e/ou sem seus modos de administrar negócios
Massangana-Fundaj), cofundador do
Grupo de Estudos e Intervenções do levar em conta questões em nosso tempo. A linguagem utiliza-
da é fruto de um esforço do autor de
Agreste (Geia) e membro do Instituto humanas, como a situação dos fugir do hermetismo científico e,
Histórico de Caruaru (IHC). Realizou
período de estudos na Università di feirantes” assim, possibilitar uma discussão mais
ampla com leitores não necessaria-
Bologna, esteve como pesquisador
mente iniciados no universo das
visitante no Trinity College (Universi-
ty of Dublin) e concluiu um doutora- Josué Euzébio ciências, expondo ao maior escrutínio
público possível os resultados que
do em Sociologia na Universidade do (historiador, presidente do Instituto Histórico
apresenta.
Minho. de Caruaru)
Contato: marciodesa@gmail.com
Para esta 3ª edição, além de uma
ampla revisão no “modo de dizer” – na
qual não se propôs fazer alterações
ISBN 978-85-415-1112-4
substantivas no que foi apresentado
na edição anterior, mas se empenhou
Edição
FEI RANTES
QUEM SÃO E COMO ADMINISTRAM SEUS NEGÓCIOS
Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda
Titulares: Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina Grisi de Oliveira, Dilma Tavares
Luciano, Eliane Maria Monteiro da Fonte , Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique Albert Brayner,
Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque.
Suplentes: Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria Figueiroa Barretto , Ester Calland de Souza
Rosa, Felipe Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de Freitas, Madalena de Fátima Pekala
Zaccara, Mário de Faria Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia Helena Lima Schwan-
born, Tereza Cristina Tarragô Souza Rodrigues.
Editores Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena Lima
Schwamborn
Créditos
Capa e Projeto Gráfico Ana Farias
Fotografia Aurélio Fabian
Revisão Flávio Gonzalez
Montagem e Impressão
Catalogação na fonte
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
Bibliotecária: Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
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mas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação
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juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.
Para três amores
e
Taíza Maria (amor de mulher)
Ana Carulina Lemos (amor de irmã)
Dona Terezinha Gonzaga (amor de mãe)
“É o centro da feira
Com seus labirintos
E mil molhos de coentro
Pra se tropeçar
É o rapa
É o tapa
É a bronca
É a briga
Eh boi!
E a gente se sente
Em plena Bagdá”.
Veneza, Veneza
(Accioly Neto)
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
Poeminha do Contra
Mario Quintana
PREFÁCIO À 3a EDIÇÃO
A mim coube a tarefa, por distinto convite formulado pelo autor, para pre-
faciar a terceira edição de Feirantes. O seu sucesso é inquestionável – e não
completou ainda uma década da publicação da primeira edição!
A Feira de Caruaru, foco do estudo, é por demais conhecida, não só
na Região Nordeste, mas também no Brasil, assim como fora do país. Na
música de Onildo Almeida, cantada por Luiz Gonzaga, “A Feira de Caruaru
faz gosto a gente vê...”, os produtos locais são apresentados como melhor ex-
pressão de um modo de vida singular, típico, nordestino. A isso se associam
a arte do Mestre Vitalino, o São João e o Forró. Um lugar por excelência de
afirmação da identidade regional, base de uma narrativa sobre o Nordeste
e o nordestino, com ampla ressonância na mídia local. Em 2006, coroando
tal construção, a Feira de Caruaru foi declarada, pelo Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, Patrimônio Imaterial do Brasil.
Feirantes, entretanto, propõe um outro olhar. Marcio se beneficia de um
diálogo prioritário com Pierre Bourdieu, Bernard Lahire e Jessé Souza,
para mostrar que há muito mais a considerar. Para além dos aspectos que
destacam seu caráter singular, regional, nordestino, a Feira de Caruaru se
constitui como uma expressão diferenciada, porque periférica, do capitalis-
mo contemporâneo, visto que a este se encontra cada vez mais articulada.
Formou-se como o espaço mais importante de comercialização da produ-
ção agrícola, artesanal e industrial local, seja para a própria população do
entorno, seja para públicos também de outras regiões (neste caso, espe-
cialmente produtos de confecções). Na outra mão, afirmou-se igualmente
como lugar de revenda para a região de produtos importados de outros
lugares, principalmente eletrônicos e um sem-número de industrializados.
Nos fluxos de ida e volta, sedimentaram-se várias feiras em uma só: de con-
fecções, de utilitários, de artesanato, de importados, de miudezas, de ervas
etc.
Na condição de lugar estratégico da comercialização de itens que reafir-
mam o cultivo de habilidades, gostos e costumes tradicionais, mas também
que promovem a introdução no plano local de novos hábitos e compor-
tamentos vindos de fora, assim como na condição de lugar de encontros
por motivos não só comerciais, mas também culturais e sociais em geral, a
Feira de Caruaru é um acontecimento que envolve e influencia o cotidiano
de vida e trabalho de milhares de pessoas. Converteu-se, assim, em um
relevante espaço de observação e análise sociológicas.
Essa é a principal contribuição que Feirantes propõe aos estudos socio-
lógicos. Um olhar sobre a feira como um campo social e sobre os feiran-
tes, a partir do seu habitus (com um foco no segmento específico nos pro-
prietários de pequenos negócios de alimentação – barracas para almoço
ou lanche), abriu um caminho para sua reinterpretação como espaço da
prática de milhares de nordestinos. Espaço esse que põe em ação modos
socialmente construídos de pensar, agir e sentir, onde é travada uma luta
diária pela subsistência e pelo sonho de uma vida melhor. Os batalhado-
res da Feira de Caruaru (na formulação de Jessé Souza), oriundos de mo-
dos tradicionais de vida social (muitas vezes chegados das zonas rurais do
entorno), veem-se diante do desafio de lidar com padrões de organização
socioeconômica importados do mundo moderno capitalista, tendo para
isso que incorporar ou acionar disposições que, quando anteriormente já
incorporadas (por exemplo, em contextos de migração para o Sudeste do
país), o foram em geral sem maior centralidade e definição. São exemplos a
disciplina, o cálculo racional e a visão de futuro. Os conflitos daí resultantes
(muitas vezes traduzidos na forma de conflitos de geração, quando os filhos
passam a ocupar espaços crescentes no negócio dos pais, trazendo com eles
novas mentalidades) se encontram expressos nas histórias de vida de dois
personagens reais, Justino e Neide, e na construção de um “tipo ideal” de
feirante batalhador da Feira de Caruaru, Pedro.
Ao posicionar assim seu olhar, o autor é capaz de, não deixando de con-
siderar as singularidades da Feira de Caruaru e dos feirantes que a cons-
tituem, projetar a análise para além do local, do regional, do singular. O
referencial teórico-metodológico adotado permite tratar esse como um
entre muitos contextos periféricos do mundo contemporâneo (constitu-
tivos de habitus e campos diferenciados e integrados, ao mesmo tempo,
aos seus núcleos centrais). A mensagem é direta: o estudo desse como um
entre muitos contextos periféricos do mundo contemporâneo é uma tarefa
imprescindível ao pensamento sociológico, sob pena de, por um viés socio-
centrista e parcial, não ser capaz de formular uma visão mais plural e inte-
gral do contexto contemporâneo mundial. Contudo, se pode ser anunciada
tão diretamente, a viabilização de tal perspectiva requer a assunção, como
pesquisador social, de um compromisso com uma agenda de trabalho que
exige muito mais do que estudos de curto fôlego; requer um esforço de
pesquisa empírica e reflexão teórico-metodológica que só as agendas de
grande envergadura permitem.
A boa notícia é que Marcio segue com essa agenda. A terceira edição de
Feirantes é apenas parte de um conjunto articulado de iniciativas, que tam-
bém se beneficia de variadas e fecundas redes de interlocuções com outros
centros regionais, nacionais e internacionais. Destaque-se que, da referida
agenda, outro importante livro do mesmo autor veio a público em 2018,
Filhos das feiras: uma composição do campo de negócios do Agreste (Editora
Massangana - Fundaj). Outros resultados estão a caminho. Uma excelente
leitura!
2. FEIRANTES:
Quem são? Como administram seus negócios? | 57
Quais feirantes? | 60
Origem familiar | 61
Perfil dos entrevistados | 63
Histórico recente de atividade econômica | 65
Formação e origem do conhecimento para desempenho de atividade
econômica | 66
Sobre a origem do negócio atual | 68
Como administram seus negócios? | 69
Sobre o negócio e sua administração | 70
Definição de atividades a serem desempenhadas | 71
Última melhoria no negócio | 72
Questões financeiras | 73
Pagamento aos trabalhadores | 76
O futuro do negócio | 77
Considerações finais do capítulo | 79
3. A HISTÓRIA DE JUSTINO:
“Eu sou um cara teimoso demais” | 83
São Paulo | 84
Na feira | 90
Comportamentos, valores, preconceitos, visões, contradições | 92
O cotidiano da sua vida-comércio de feira | 97
Em busca de seu destino | 99
Os porquês da história de Justino | 100
4. A HISTÓRIA DE NEIDE:
“Eu não ia ser mulher da roça” | 113
Origem familiar, infância e início da vida escolar | 114
Adolescência | 116
“O camponês e seu corpo” no Béarn (?) | 120
Vida adulta na cidade | 125
Casamento, nascimento dos filhos e separação | 126
Caruaru e a barraca na feira | 128
Valores e vida hoje | 130
Religião | 131
Estilo de vida, economia e hábitos de consumo | 132
Filhos: Educação e orientação | 134
A maior decepção da vida: O drama da filha mais velha | 137
Futuro: O novo relacionamento e a aposentadoria? | 139
A vida de Neide em breve retrospectiva analítica | 140
5. UM FEIRANTE-BATALHADOR
E SUA ADMINISTRAÇÃO | 145
[com Felipe Cavalcante Barbosa]
6. CONCLUSÃO:
a feira e os feirantes como hoje estão | 167
REFERÊNCIAS | 177
APÊNDICES
1. A TEORIA | 183
2. O MÉTODO | 203
3. A ESTATÍSTICA | 212
com Felipe Cavalcante Barbosa
AGRADECIMENTOS | 259
A FOTOGRAFIA | 261
[Por Aurélio Fabian]
APRESENTAÇÃO
O que é a Feira de Caruaru? Quem são seus feirantes? Como eles adminis-
tram seus negócios? Este livro teve como ponto de partida questões como
estas e objetiva apresentar os resultados de pesquisa teórico-empírica reali-
zada entre maio de 2007 e abril de 2010.
O seu interesse esteve centrado neste fenômeno que é fundamental à
vida de milhares de pessoas de uma região político-geográfica do estado de
Pernambuco. Foi este aspecto, a relevância da feira para uma região1, que
a projetou como campo e tornou seus feirantes não somente objeto central
da pesquisa, mas também seu título.
Na realidade, a possibilidade de investigar a condição de vida-trabalho e
o modo como membros das classes populares brasileiras, neste caso os fei-
rantes, administram seus pequenos negócios foi a razão maior que fez com
que esta pesquisa fosse realizada e agora possa ser apresentada não como
um estudo de uma questão local, pontual e específica de uma cidade do
interior do Nordeste, mas, sim, como um esforço compreensivo-explicativo
da condição de vida-trabalho de pessoas que vivem, como esses feirantes,
em contextos periféricos do mundo contemporâneo.
Desse modo, gostaria desde já de deixar claro ao leitor que a perspectiva
teórico-analítica que orienta o olhar para os feirantes não é regionalista,
1 E não somente para ela, haja vista que milhares de compradores, das mais diversas cidades do
Nordeste, vêm à Feira de Caruaru nos dias da sua feira da sulanca para comprar confecções e revender
em suas cidades de origem.
Feirantes - 23 -
tradicionalista e culturalista ou visa, de algum modo, singularizar a feira e
os feirantes de Caruaru, se comparados a diversas outras pessoas que vivem
em outras regiões, países e continentes. Muito pelo contrário, aqui eles são
vistos como inseridos e integrados ao mundo contemporâneo.
Ao vê-los desse modo, não se pretende pormenorizar a importância his-
tórica e identitária que a feira tem para o povo de Caruaru, mas, sim, acres-
centar novo olhar. Em particular, aqui se pretende abordar as histórias de
vida e os modos de trabalho dos feirantes que se dão nesse espaço-tempo.
A estrutura do livro
Após esta apresentação, no primeiro capítulo, O Capitalismo Contem-
porâneo e a Feira, esses dois tópicos são apresentados numa perspectiva
que os observa como estando diretamente interligados, como sendo, na
realidade, duas faces necessárias a um mesmo sistema político-econômico.
A feira tem maior atenção e é caracterizada como um tipo de mercado peri-
férico inerente e necessário – como diversos outros existentes mundo afora,
em particular em suas periferias – ao funcionamento mundial do sistema.
Tem-se em mente que é a partir de uma nova visão que tanto se poderá (re)
pensar a Feira de Caruaru – e por que não também demais feiras e merca-
dos com características similares? – como um tipo de mercado caracterís-
tico a estes contextos no capitalismo deste século.
Feirantes: Quem são? Como administram seus negócios? é o capítulo se-
guinte no qual são apresentados, com o apoio em dados estatísticos, quais
feirantes (e os aspectos gerais do modo como administram seus negócios)
foram pesquisados nessa etapa quantitativa da pesquisa. Ilustrados com al-
gumas das tabelas reunidas no Apêndice A Estatística, os dados são anali-
sados a partir das lentes teóricas ofertadas principalmente pelo trabalho de
Pierre Bourdieu na Argélia. O dilema central observado é que os feirantes
têm gênese familiar, origem social e trajetória de vida marcadas por experi-
ências em contextos de ação associados às ideias de tradição e de moderni-
dade em momentos distintos de suas vidas, sendo esse aspecto decisivo ao
modo como administram seus negócios de feira.
- 24 - Apresentação
Nos capítulos 3 e 4, são apresentadas as histórias de vida e trabalho de
dois feirantes. “Justino” e “Neide” são seus nomes fictícios2. Em A história
de Justino:“Eu sou um cara teimoso demais”, os leitores poderão conhecer
um dos personagens que fazem a Feira de Caruaru e que trazem incorpo-
rados em si um tanto da sociedade na qual vivem (Lahire, 2005a, 2005b e
2006a), ou seja, ilustram com suas histórias de vida-trabalho uma série de
aspectos que não lhes são singulares, mas, sim, equivalentes ou similares
aos de diversas outras histórias de feirantes, ou mesmo de outros tipos de
trabalhadores brasileiros que possuem origens e histórias de vida próximas
às de Justino. Acreditamos que não sejam poucos. Ao final, os porquês da
história de Justino ter acontecido tal qual aconteceu, e em particular daqui-
lo que ele diz ser sua “teimosia”, são desenvolvidos a partir do aporte teórico
dos trabalhos de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire.
A história de Neide:“Eu não ia ser mulher da roça” é contada no capítulo
seguinte. Neide pode ser vista como o duplo feminino de Justino, ou seja,
como se fosse uma irmã ou colega de infância tamanha a proximidade das
histórias até o início da vida adulta. A forte influência da mãe e do traba-
lho como um valor em si desde pequena é traço marcante de sua história,
somente superado pelo desejo de conquistar sua independência econômica
ao fazer a vida na cidade e assim fugir do campo. Um clássico artigo de
Pierre Bourdieu (2006 [1962]) possibilita que a história de vida de Neide e
sua determinação em não viver na roça sejam compreendidas, em particu-
lar, por meio da comparação com jovens camponesas francesas da década
de sessenta.
Como um feirante como “Pedro” administra seu pequeno comércio?
Essa é a questão-síntese que nos norteia no capítulo 5, Um feirante-ba-
talhador e sua administração. A construção desse personagem, de suas
disposições e práticas administrativas, se deu no sentido de responder à
pergunta acima. Fazemos, então, um recorte no “complexo disposicional”
de “Pedro”, nosso “tipo ideal” (Weber, 1999), e apontamos os conjuntos
de disposições3 que seriam, em nosso entendimento, mais decisivos para
a trajetória e, em especial, para as atividades administrativas desempe-
2 Esses e demais nomes de feirantes, de outros personagens e cidades aqui retratados são fictícios, salvo
Caruaru, para preservação da identidade dos entrevistados.
3 Ver próximo tópico que explica esse conceito.
Feirantes - 25 -
nhadas por um batalhador feirante. Ou seja, apresentamos os conjuntos
de disposições (1) para autossuperação, (2) econômicas gerais e (3) ad-
ministrativas, as disposições específicas a eles relacionadas e ilustramos
ambos por meio de trechos da história do feirante-batalhador. Por fim
retornamos à história do personagem e assim reconstruímos as origens
das disposições mais decisivas ao modo como um feirante-batalhador ad-
ministra sua barraca.
Na Conclusão: A feira e os feirantes como hoje estão, procura-se oferecer
um breve panorama contingencial das mudanças aos quais foram subme-
tidos feira e feirantes (e trabalhadores em condições similares) tanto em
termos locais – em particular no que diz respeito à realocação de parte
da feira – quanto mundiais, em decorrência das mudanças do capitalismo
contemporâneo. Aos nossos olhos, a leitura dessas conclusões precisa ser
complementada pela leitura dos textos que compõem o Anexo.
- 26 - Apresentação
falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho
interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas,
opiniões etc. Trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que
geraram a aparente diversidade das práticas.
Feirantes - 27 -
os feirantes pesquisados. Tanto teoria quanto métodos são meios de (1) se
apropriar de instrumentos-conceitos que apoiam leitura lastreada da rea-
lidade (no caso da teoria), e de (2) montar estratégia adequada para reali-
zar uma série de procedimentos no sentido da produção de conhecimento
científico – sobre determinada situação encontrada nesta mesma realidade
(no caso do método). A teoria fundamenta o modo como o pesquisador
a observa, mas não é nem o modo, nem o que esta observação mostra – a
realidade sob um novo olhar construído pelo pesquisador a partir do con-
fronto reflexivo da teoria, à qual recorre, com a empiria, para a qual se
volta. Confronto este que também depende do modo como foi executada
a pesquisa.
Desse modo, a decisão tomada foi de, ao colocar em apêndice estes as-
pectos mais específicos e técnicos relacionados à teoria e ao método, deixar
livre o leitor não acadêmico de ter que enfrentar essas questões que não são,
em si, de seu interesse – muito embora possam levá-lo a (1) contato com os
pressupostos teóricos que sustentam o que se diz ao longo do livro (e assim
esclarecer-se sobre de onde parte o olhar que observa o fenômeno em ques-
tão), e (2) saber como foi feita, etapa por etapa, a investigação.
Como, em contrapartida, o ofício científico nos aponta a importância de
apresentar o fundamento teórico sobre o qual nos apoiamos para dizer o
que dizemos, e assim apresentar onde está lastreado aquilo que é dito, no
Apêndice A Teoria4 são feitos resgates (1) dos conceitos de habitus, capital
(econômico, social, simbólico e cultural) e campo, centrais à sociologia de
Pierre Bourdieu, juntamente com alguns pontos da (2) leitura crítica de
Bernard Lahire, além de uma síntese dos pontos que me foram mais im-
portantes de (3) O Desencantamento do Mundo: Estruturas Temporárias e
Estruturas Econômicas, obra do período argelino de Bourdieu e principal
referência deste trabalho.
A opção foi a mesma em relação às etapas e fundamentos metodológi-
cos, o que levou à elaboração do Apêndice O Método. Nele, tanto todas as
etapas da pesquisa quanto autores e obras que serviram de suporte à forma
que estas tomaram são explicitados. Obviamente, esta opção gerou uma
4 Estando aí subentendido epistemológico (teoria da ciência) também. É desse apêndice que são tira-
das algumas das citações que são feitas ao longo do livro, especialmente em relação à Bourdieu (1979
[1963]).
- 28 - Apresentação
série de menções e notas indicativas de consulta aos apêndices ao longo do
texto, mas deste modo o leitor fica à vontade de conferir somente aquelas
que julgar importantes.
5 Esse “código científico” se faz presente nos apêndices, principalmente no teórico, por se tratar de
questões de relativa densidade teórica que necessitariam de grande investimento de tempo – que avaliei
não ser necessário fazer, haja vista que acredito que o livro possa vir a ser lido e compreendido pelo
leitor não acadêmico sem eles – de minha parte para “decodificá-las”.
Feirantes - 29 -
visões bem arraigadas em nossas mentes, corpos e corações.
Os capítulos foram concebidos de modo a ter relativa autonomia (exce-
to os capítulos 3 e 4, que penso serem, em muito, complementares um ao
outro)6 – muito embora seu conjunto tenha sido pensado de modo sequen-
ciado e estruturado conforme apresentamos no tópico anterior. Sugiro que
a leitura seja cotejada pela consulta aos apêndices teórico e metodológico
sempre que o leitor sentir necessidade de esclarecimentos desses termos.
A opção da redação dos demais capítulos foi pela primeira pessoa do
plural – exceção feita aos apêndices teórico e metodológico, onde optei por
redigi-los na primeira pessoa do singular – pelo fato de, em boa parte da
pesquisa, ter trabalhado com ou estar acompanhado de pessoas que cola-
boraram para que Feirantes viesse a existir. Obviamente, toda a responsa-
bilidade sobre tudo o que aqui é colocado é minha, muito embora creio
que, escrevendo nos próximos capítulos na primeira pessoa do plural, irei
me sentir mais à vontade e serei mais justo com o leitor, que assim poderá
imaginar que tive colaborações das mais diversas para fazer o que fiz e,
consequentemente, dizer o que digo (vide Agradecimentos).
_ _
Por fim, gostaria de registrar que Feirantes foi apenas o primeiro trabalho
concluído de uma agenda de pesquisa sobre a condição da gente, dos negó-
cios e do trabalho no Agreste pernambucano. São os proprietários, costu-
reiros e trabalhadores dos fabricos e das facções7; os toyoteiros (como são
denominados os motoristas de Toyotas ou veículos afins, transporte “alter-
6 Considerando isso, todos os demais capítulos podem ser lidos na ordem que apetecer ao leitor – ob-
viamente, antes da Conclusão. Sugiro ao público não acadêmico que inicie a leitura pelo capítulo 3 ou 4.
7 Fabricos e facções são sistemas produtivos domésticos que executam parte ou todas as etapas da
confecção de uma peça de roupa (por exemplo). Entre fabrico e facção existe uma distinção. Fabricos
são locais de trabalho, geralmente no interior das residências de seus proprietários, onde as pessoas
produzem suas próprias mercadorias para a comercialização na feira. O corte da mercadoria, nesse
tipo de organização, geralmente ocorre nos próprios fabricos, porém existem alguns profissionais au-
tônomos que se dedicam exclusivamente à atividade de corte, prestando um serviço ao primeiro. Já a
facção funciona como uma firma terceirizada, prestando um serviço aos demais negócios, geralmente
grandes fabricantes (empresas), na produção da mercadoria, que na maioria das vezes já vem cortada
e pronta para o processo de fabricação. Na época, obtive este esclarecimento com o então estudante de
administração e trabalhador num fabrico familiar Thiago Fernandes da Silva.
- 30 - Apresentação
nativo” fundamental ao deslocamento da população da região entre muni-
cípios, distritos e zona rural); os mototaxistas que se apinham no trânsito
de Caruaru e que também são importantes em outras cidades da região; os
ainda remanescentes agricultores-feirantes que vendem eles mesmos seus
produtos agrícolas nas mais diversas feiras das cidades agrestinas; as pesso-
as envolvidas com a comercialização de confecções em Caruaru, Toritama
e Santa Cruz do Capibaribe, entre outros.
Enfim, a partir deste livro, vislumbrou-se um amplo horizonte de traba-
lho investigativo desenvolvido nessa região (ver principalmente Sá, 2010,
2013, 2015, 2018) que despontou, por uma série de aspectos, como um
campo empírico a ser explorado – no qual é possível investigar questões
relativas ao drama dos indivíduos, dos seus negócios periféricos e/ou de
suas ocupações neste mundo no qual hoje vivemos – e que ainda hoje me
desafia visceralmente.
Feirantes - 31 -
CAPÍTULO
CAPítulo 1
O CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO E A FEIRA
As mudanças no capitalismo contemporâneo e no seu “novo espírito” (Bol-
tanski e Chiapello, 2009)8 precisam ser vistas para além dos contextos nos
quais essas transformações são mais perceptíveis. Afinal, observar apenas o
mercado financeiro internacional, os megainvestidores que naquele mercado
atuam, a dinâmica da vida da classe média em grandes centros urbanos, as
inovações da tecnologia da informação e comunicação ou ainda as grandes e
médias empresas com suas atualíssimas estratégias e técnicas de gestão pode
nos levar a acreditar em mudanças significativas na dinâmica mundial, mas
talvez não seja isso que se veja quando se volta o foco para suas margens po-
voadas por maiores e mais carentes parcelas de nossa população.
8 Para Boltanski e Chiapello (2009, p. 35-42), o capitalismo é um sistema que exige a acumulação
ilimitada de capital por meios pacíficos, na medida em que repõe continuadamente em jogo o capital
visando atingir resultados lucrativos. Isso, no entanto, não se dá sem um aparato ideológico que justifica
o engajamento no sistema. A esta ideologia os sociólogos franceses chamam de espírito do capitalismo.
Recuperando o trabalho de Max Weber e apresentando este espírito em diferentes estados históricos, os
autores apontam que as práticas capitalistas, além de favorecerem a aquisição de benefícios individuais,
são justificadas também por suas “vantagens” oferecidas ao coletivo (por exemplo: se mais indústrias
existirem, mais empregos também existirão e isso será melhor para todos pois o estado-região-país se
desenvolverá economicamente), tendo em vista a participação dos indivíduos economicamente ativos
nos processos do sistema. O espírito do capitalismo é justamente o conjunto de crenças associadas à
ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação
e as disposições requisitadas aos indivíduos.
Feirantes - 35 -
Contextualizando esse “novo espírito do capitalismo” no Brasil, Souza
(2010) destaca que, embora sejam essas parcelas grande maioria em nosso
país, não dispõem dos privilégios de, por exemplo, ter acompanhamento
médico apropriado em todas as etapas da gestação de seus filhos, ou mes-
mo ter uma mãe com aprendizado cultural prévio que permita compre-
ender e aplicar as orientações médicas devidamente e também parir seus
filhos num bom hospital. Não pensamos que seja necessário dar sequência
a esses exemplos para reiterar a substantiva diferença de vir ao mundo no
seio das classes média e alta brasileiras ou como membro das nossas classes
populares.
Embora ainda hoje se acredite que o Brasil é um país “completamente
singular” neste mundo que nos circunda, representado por uma imagem
“folclórica e caricata” – fruto de uma plástica simbiose de samba, negros,
ginga, índios, futebol, mulatas deslumbrantes, cerveja, ascendência portu-
guesa, Praia de Copacabana e eterno carnaval, essa imagem não caracteriza
o que está no cerne da tessitura social do país. Trata-se de engano sócio-
-histórico já teórica e empiricamente desconstruído9, mas que é repetido
localmente quando se fala sobre a Feira de Caruaru com frases do tipo:
“Nada mais nordestino nem mais brasileiro do que a experiência de uma
manhã de sábado caminhando pela Feira de Caruaru, consagrada pelos
versos de Onildo Almeida e pela voz de Luiz Gonzaga”10.
Ao ler ou escutar algo do tipo, não seríamos levados a pensar que, de
modo similar, não há nada mais tipicamente peruano do que passear por
uma feira em Cusco? Que não há nada mais marroquino do que passe-
Feirantes - 37 -
Com sua nova roupagem, o capitalismo reconfigura seus meios e modos
de produção, aplica tecnologia de ponta em arranjos produtivos flexíveis
capazes de ofertar ao mercado bens e serviços não mais apenas padroni-
zados (como no taylorismo-fordismo), mas, sim, de acordo com as possi-
bilidades mercadológicas de melhor venda do produto aos consumidores.
Ou seja, nesses arranjos é possível rapidamente modificar o que está sendo
produzido a depender do que está sendo demandado pelo mercado consu-
midor14.
Por outro lado, coloca os antigos operários que não foram capazes de
incorporar o uso desse tipo de tecnologia em sua prática cotidiana de tra-
balho – ou mesmo foram demitidos em processos de enxugamento ou re-
arranjo da estrutura produtiva – numa situação mais do que delicada. Ou
ainda chega a impedir, por meio dos requisitos solicitados nos processos
seletivos, que pessoas que tenham escolaridade incompleta, ou mesmo
que não tenham um curso técnico solicitado para o desempenho de uma
função específica, venham a ter a possibilidade de conseguir um emprego
numa dessas empresas.
A toda uma parcela de nossa população que tem origem e faz parte das
classes populares – ou seja, que não nasceu numa família (de classe mé-
dia ou alta) que lhe possibilitasse ter acesso às melhores condições sociais,
econômicas e culturais fundamentais para, na vida adulta, conseguir os di-
plomas requisitados e, concomitantemente, desenvolver “naturalmente” as
disposições elementares ao ingresso e manutenção no mercado de trabalho
moderno (basicamente: autocontrole, disciplina, pensamento e comporta-
mento prospectivo, cf. Souza, 2010) – restaram as esquinas, as margens de
um capitalismo que se revigora e demonstra ser capaz de se autojustificar
ideologicamente como nunca.
No caso deste livro, as esquinas – metaforicamente, no sentido de serem
as margens, as franjas, a periferia do sistema – também poderiam ser de um
sem-número de feiras mundo afora, afinal, como pretendemos demonstrar
ao longo deste trabalho (com o apoio das pesquisas de Bourdieu, em parti-
_ _
Feirantes - 39 -
missa, batizados, casamentos, receber a benção do padre,
encontrar conhecidos, parentes e compadres. Aproveitando
as oportunidades, a partir do agrupamento de gente, muitos
traziam seus produtos agrícolas para vender ou trocar por
outra coisa da qual estava necessitado. Poderia aproveitar
também a presença de um mascate que era habitual por esses
tempos naqueles caminhos e esses encontros eram oportu-
nos para apresentar as novidades do momento: tecidos, li-
nha, dedal, chapéus, apetrechos de uso feminino etc. Essas
transações comerciais aconteciam, provavelmente, antes das
atividades religiosas. Mas com o tempo, pode-se pensar no
aumento dos negócios e os encontros tornaram-se semanais,
os produtos iam se diversificando cada vez mais: gado, cabra,
galinha, e já poderia existir uma casa comercial, substituindo
o antigo mascate e sendo até mais conveniente a todos, pela
possibilidade de mudanças nas relações, caracterizadas pela
confiança mútua, pelos prazos na entrega dos produtos e nos
pagamentos etc. Pelo menos de forma teórica, montamos a
maneira e as condições de como começou a Feira de Caru-
aru. Uma história parecida com outra de qualquer lugar,
desde que as condições históricas sejam semelhantes.
Feirantes - 41 -
eu fui enfático, eu disse que tinha que ser a feira, porque as
duas outras manifestações nasceram, se não nasceram na fei-
ra, mas se projetaram e tiveram a feira como palco e cenário.
Era lá que os tocadores de forró e pífanos tocavam, isso tudo
que faz parte do ciclo junino hoje, era o grande caldeirão que
era a feira. O forró era estilo pé-de-serra lá, mas no dia da
feira o matutinho vinha, trazia sua sanfona, trazia seu pífano
e, enquanto estava por ali, fazia suas apresentações, a feira foi
palco de tudo isso, e Vitalino foi projetado pela feira, né? [...]
Então, analisando tudo isso, a feira é uma grande matriz cul-
tural, é a célula mater da nossa formação cultural, não tenho
dúvida em afirmar. (grifos nossos)
17 Aqui fazemos menção à crise econômica que aconteceu entre 2008 e 2009 e que teve repercussões
diversas e significativas em escala mundial, tendo sido comparada por muitos analistas com a crise da
bolsa de Nova Iorque de 1929.
18 Foram reunidas durante a pesquisa inúmeras matérias de revistas e jornais que, em linhas gerais,
enfatizam a Feira de Caruaru como um símbolo de orgulho e identidade da região. Algo bem diferente
do que é enfatizado em nossa visão: um tipo de mercado periférico.
19 Já que existem diversas feiras que acontecem alternadamente, a depender do dia da semana,
nos bairros da cidade. São muitos os feirantes “móveis” que comercializam em algumas dessas feiras
semanalmente.
Feirantes - 43 -
Mas que tipo de mercado periférico é esse? A feira é lócus de atividade
econômica, cultural e social para descendentes e remanescentes do meio
rural; desempregados dos centros urbanos regionais; nordestinos que mi-
graram e retornaram das grandes metrópoles, principalmente São Paulo;
pequenos, médios e, em menor escala, porém em maior influência, gran-
des empresários; e famílias que ou trabalham num mesmo negócio juntas
ou então em diversos pequenos comércios que tanto podem estar lado a
lado, como também podem estar espalhados por outros setores ou mesmo
em outras feiras que acontecem todos os dias da semana – nos diferentes
bairros da cidade. É, assim, um espaço que constitui e caracteriza as “fran-
jas” do capitalismo moderno, crucial em diversos aspectos à continuidade
dinâmica de seu funcionamento contemporâneo.
Isto é, embora seja originalmente atividade tradicional que remonta a
outras “eras históricas”, o comércio de feira está hoje acoplado ao sistema
– que não se mostra capaz de gerar empregos para parte significativa da po-
pulação e, ao mesmo tempo, se desenvolve de modo relativamente distinto
a depender da condição geopolítica da região na qual o observamos (se
central ou periférica, por exemplo). Em síntese, o argumento que aqui se-
guimos nos leva a observar que a feira não está à parte do mundo contem-
porâneo. Muito pelo contrário, também é decisivamente constituída pelas
instituições-chaves da modernidade, Estado e Mercado (Souza, 2000).
A tradição inerente a esse tipo de atividade vem sendo cada vez mais in-
fluenciada por essas instituições de diversas formas. Em tais contextos, são
comercializados produtos importados (muitas vezes trazidos e vendidos
pelos próprios chineses); cobrados impostos pelo Estado20 – que também
determina quais áreas podem ser ocupadas para o comércio e quais não, até
mesmo, em caso de mudanças coletivas dos feirantes, é o Estado que indica
os novos lugares para os quais eles deverão ir; observa-se número signifi-
cativo de feirantes que compram produtos agrícolas (produzidos em outras
regiões) numa central atacadista regional e os revendem na feira (ao invés
de produzi-los); diversos deles procuram dar “ares” de comércio estabele-
cido aos seus boxes, reformando-os aos moldes de loja; sem falar que parte
dos feirantes teve experiências profissionais em empresas, ou seja, tiveram
sua carteira assinada, ocuparam um cargo, desempenharam uma função,
21 Também chamadas de “boxes”, são espaços (que variam de dimensão, pois podem ser aumentados
pela união de alguns deles) que são concedidos para uso dos feirantes pela prefeitura. É prática entre os
feirantes vendê-las e comprá-las uns aos outros como “ponto comercial”. Também é prática fazer delas
poupança, ou então comprar barracas vizinhas ou em melhores localizações para ampliar o negócio.
22 Taxa anual paga à prefeitura.
23 Nos dias das duas grandes feiras, a da sulanca e a livre.
Feirantes - 45 -
galhas, sobrevivem com as sobras. A polícia faz batidas para busca e apre-
ensão de produtos falsificados em comercialização. Os feirantes sofrem a
cada mudança de governo municipal com a insegurança quanto aos seus
destinos, afinal, “dizem por aí que vão mudar a feira da sulanca para outro
lugar...”.
24 Sobre as mudanças que ocorreram em fevereiro de 2010 na feira da sulanca, ver Conclusão.
Feirantes - 47 -
Os fiscais da prefeitura tentam regular o uso que esses feirantes fazem
do próprio espaço público, tentam inibir que eles ocupem as partes “inde-
vidas” – as frentes de suas barracas, espalhando mesas para os clientes, por
exemplo. O feirante indaga: “onde meus clientes vão comer?” Trabalhado-
res, comerciantes, miseráveis, empresários e funcionários públicos “estre-
lam” cenas reais do drama moderno25.
25 Obviamente, “dirigidos” por suas instituições centrais, Estado e Mercado. Sobre essa visão da mo-
dernidade periférica, ver Souza (2000). Para efeito de análise, ver a feira como um tipo de mercado peri-
férico é algo substantivamente diferente de vê-la como algo apenas “tradicional”, ou seja, descolado e di-
ferente do mundo moderno do qual ela faz parte inextrincavelmente (se observada do primeiro modo).
26 O 18 de Maio, após a mudança definitiva da feira, no início dos anos 90, que antes acontecia nas
ruas centrais da cidade, no entorno da antiga Rua do Comércio (hoje rua 15 de novembro) e da Igreja da
Conceição. O parque é uma área de vários hectares, pertencente ao município, que foi disponibilizada
para ser ocupada pela feira.
27 Para esclarecer-se sobre esse conceito, ver Apêndice A Teoria.
28 Ver Apêndice O Método.
tem uma lógica comercial, porque ‘Ah, não quero botar uma
farmácia aqui não, porque já tem três. Eu vou botar lá lon-
ge, onde não tem’. Mas ninguém vai, você não vende! Então
com essa lógica, todo mundo achou muito legal que a feira
se concentrasse, os produtos de milho, os cereais, ‘não sei o
quê’, ali. Roupas, sapatos num outro canto, ervas medicinais
noutro setor.
Feirantes - 49 -
Em diversos desses setores, as barracas de ferro ou de madeira foram
reformadas e reerguidas em alvenaria29 de acordo com vontades, necessida-
des e possibilidades dos feirantes. Essas modificações na estrutura física das
barracas, realizadas sem que diretrizes ou normas reguladoras específicas
para tal fossem observadas, fizeram com que a estética da feira seguisse, em
certa medida, essa divisão setorial, ao mesmo tempo em que lhe permiti-
ram ter uma característica geral que a identificasse como uma feira (e não
como um outro tipo de centro comercial, por exemplo).
No setor de confecções, por exemplo, algumas barracas foram reforma-
das ao ponto de hoje terem aspecto “de loja”, com cerâmica no piso, vitrine
de vidro, vendedoras uniformizadas e exposição dos produtos claramente
espelhada no que é possível ver no outro lado da rua, num centro de com-
pras (com “ares” de galeria ou shopping de bairro)30. Já algumas barracas de
alimentação permanecem de ferro, embora outras também tenham sido re-
vestidas de cerâmica e ganhado um salão com mesas para os clientes faze-
rem suas refeições. As que vendem fumo de rolo (poucas, afinal, trata-se de
um tipo de comércio em declínio) permanecem, todas elas, com a mesma
estrutura de madeira (banco) que é utilizada na feira livre de sábado – mas
que ainda é vista também no mesmo setor de confecções. Já no setor de er-
vas, foram erguidas estruturas de alvenaria mais simples. Numa das laterais
do mercado de carnes, diversos feirantes montaram seus comércios de pro-
dutos diversos, tipo mercearias, ocupando espaços projetados na estrutura
exterior do prédio. Lá se estabeleceram e se organizam de modo similar uns
aos outros. Existem também diversas barracas fechadas (transformadas em
depósitos), setores e corredores que apresentam uma estética favelizada.
Obviamente, essa dimensão estética precisa ser associada a alguns outros
fatores, tais como a rentabilidade do negócio, os tipos de produtos comer-
cializados, mas a variação estética na feira é outro aspecto que lhe é carac-
29 Muito embora isso não seja permitido, visto que se trata de espaço público municipal e que, assim
sendo, não se configura como propriedade particular, sujeita a alterações conforme vontade do pro-
prietário. Na realidade, além de muitas barracas construídas com alvenaria, existe um comércio dos
boxes-barracas entre os feirantes e aqueles que querem sê-lo. Como já comentamos, os boxes-barracas
também são adquiridos pelos próprios feirantes a título de poupança-investimento. Veremos isso nova-
mente mais adiante na história de Justino (Capítulo 3), por exemplo.
30 Uma feirante falou-me com orgulho sobre o comentário que ouvia de alguns dos seus clientes sobre
o aspecto de seu negócio: “eu não imaginava que encontraria algo assim aqui na feira... nem parece que
é uma barraca de feira”.
31 Na realidade, surgiu uma favela numa parte da margem do rio que fica ao lado da feira, mais espe-
cificamente, do setor onde acontece a feira do troca (escambo e venda de produtos usados e, em alguns
casos, roubados) aos sábados. Mais do que juntas, feira e favela materializam essa condição periférica.
Feirantes - 51 -
As consequências dessas lacunas estruturais são sentidas pelos feirantes.
Uma senhora, que há dez anos conseguiu trocar o trabalho de doméstica
por uma barraca de lanches e bebidas na feira, diz que mesmo o movi-
mento do melhor dia (segunda, dia de feira da sulanca) anda piorando,
principalmente depois que foi aberto um grande supermercado atacadista
ao lado do parque da feira. Comparando a infraestrutura que o supermer-
cado oferece (estacionamento, segurança, banheiros etc.) com a feira, ela
conclui: “É óbvio que é melhor ir para lá”.
Se, por um lado, é um desafio colocar em prática as regras necessárias
para a gestão desse espaço público, por outro, o número de pessoas que
procuram na feira uma forma de subsistência econômica aumenta, haja
vista a realidade socioeconômica do país. Quem procura acaba encontran-
do uma forma de colocar um banco nas ruas que são tomadas pela feira da
sulanca, ou mesmo numa das ruas de acesso a estas, que acabaram também
se tornando espaços a serem ocupados pelos feirantes. Muito embora haja
um cadastramento com base na planta das áreas (destinadas à ocupação
com bancos nos dias de sulanca e feira livre) e bancos de cada uma das
áreas que detêm um alvará de funcionamento, na realidade existe grande
número de feirantes e bancos não cadastrados, pois o espaço ocupado pela
feira extrapola os limites da planta original, sem falar que alvarás fora dessa
planta foram distribuídos e assim se perdeu o controle (por exemplo, são
bancos que são colocados no meio da rua, na frente de outros, de outros...).
Embora o Departamento de Feiras e Mercados da prefeitura tenha também
como tarefa tentar evitar que se coloquem bancos fora dos espaços para tal
destinados, isso é muito difícil tanto pelo volume de feirantes no dia da su-
lanca, quanto pelo fato de que cada banco instalado (regular ou não) paga
o imposto32. Ou seja, ao arrecadar do “invasor” o imposto pelo uso do solo,
o governo municipal o legitima como feirante.
Além dessa questão relacionada ao poder público municipal, parte dos
feirantes está exposta a batidas da polícia federal e apreensão de alguns dos
produtos que comercializam, principalmente DVDs piratas. Os feirantes
que vendem produtos desse tipo precisam desenvolver estratégias para ten-
tar escapar das investidas da polícia.
32 Uma taxa de dez reais (em junho de 2009) por uso/ocupação provisória de cada feirante por feira
(no caso da sulanca) e de três reais todo sábado (no caso dos feirantes da feira livre), podendo estes
ocupar o espaço também nos demais dias da semana.
Feirantes - 53 -
lina, por exemplo) na Central de Abastecimento de Caruaru (Ceaca) para
revenda e até mesmo chineses oferecendo tênis ou demais produtos fabri-
cados em seu país podem ser vistos na feira. Observando seus setores e os
diferentes tipos de produtos comercializados em cada um deles, fica cada
vez mais evidente que o que faz ela vender “de tudo” é a dinâmica do mer-
cado contemporâneo – que tem no deslocamento e oferta de produtos mais
diversos possíveis uma de suas características – e não uma particularidade
original “congênita” da Feira de Caruaru ou de qualquer outra que lhe seja
similar.
Em grande parte, são eles que fazem a feira ser o que ela é. Se por um lado
observamos que a atividade é passada de pai para filho e que determina-
das barracas já se encontram na segunda geração de feirantes, por outro, é
fato que a feira recebe inúmeras pessoas que, sem emprego, veem nela uma
acessível atividade econômica de subsistência.
De modo geral, os feirantes são trabalhadores não necessariamente qua-
lificados, com formação escolar também não necessariamente completa,
afinal, ter escolaridade não é condição para “se dar bem” na feira. “Negociar
se aprende negociando”. Esta máxima pode representar o pensamento de
parte significativa dos feirantes sobre sua atividade e o relativo distancia-
mento de muitos deles da escolarização formal. É pensamento corrente en-
tre eles que, para “se dar bem na feira”, é preciso ter “tino para os negócios”,
“jeito”, “vocação para a coisa”. Como veremos mais adiante nos capítulos 3 e
4, dedicados às histórias de dois feirantes, com apoio do trabalho de Pierre
33 Uma versão anterior e homônima deste capítulo foi apresentada no XXXIV EnANPAD (Encontro
anual da ANPAD), 2010, Rio de Janeiro.
Feirantes - 57 -
Bourdieu34, são as disposições que incorporam ao longo de suas trajetórias
de vida, ou mesmo “herdam” de seus pais, que lhes proporcionam habili-
dade para o comércio, e não “um tino”, “jeito” ou “vocação” inexplicável35.
Como feiras livres também acontecem em dias alternados da semana
nos diversos bairros da cidade, muitos dos feirantes, que atuam na feira da
sulanca ou na própria feira livre do sábado, também o fazem em algumas
dessas outras feiras de bairro. Ou seja, trabalham diariamente como feiran-
tes, porém em feiras diferentes, a depender do dia da semana.
Não é possível tomar um perfil de feirante como sendo representativo
de todos os que fazem a Feira de Caruaru. Apesar de serem denominados
do mesmo modo, a realidade de quem vende ervas no setor dedicado a
esse tipo de comércio pode ser diferente da de um outro feirante que ven-
de bonecos de barro no artesanato. O perfil do feirante e dos seus clientes
pode apresentar maiores ou menores diferenças a depender dos setores em
questão. Em alguns casos, são realidades sociais, culturais e econômicas
distintas que podem facilmente ser observadas nos perfis de ambos36.
Há feirantes relativamente estabelecidos há anos em determinado ponto
e ramo. Nestes casos, dois caminhos diametralmente opostos são aponta-
dos para a próxima geração, seus filhos. Em parte dos casos, é possível ver
uma segunda geração já a frente do negócio ou mesmo sendo preparada
no dia a dia para isso. Noutra, pode-se ouvir deles que seus filhos estão
estudando, em alguns casos até mesmo já fazendo universidade, e que não
querem, de modo algum, que eles sigam a atividade dos pais.
Os casos de mudança de ramo são bastante frequentes também. Alguns
deles com os quais conversamos mudaram havia pouco tempo, estavam
ainda tentando “se consolidar”. Os diferentes traços estéticos das barracas
que observamos no capítulo anterior são, em parte, reflexos disso também,
Feirantes - 59 -
Muitos dos que prosperam nos negócios na feira, porém não o suficiente
para se aventurarem fora dela (quer seja por insuficiência de capital ou pela
crença de que podem “se dar bem” por lá também), tentam dar ares de loja
ao seu negócio, como já foi comentado no capítulo anterior. Ao que parece,
a referência imediatamente superior na hierarquia social – que classifica os
indivíduos membros da sociedade na qual vivem – é o comerciante esta-
belecido fora da feira. É como um deles que muitos feirantes querem mais
parecer.
Por fim, uma última característica que nos foi apontada pelo próprio
José Carlos da Silva, feirante e então presidente do Sincovac, é a dificuldade
de reunião e de mobilização para iniciativas conjuntas dos feirantes. Para
ele, “eles não têm cultura de associativismo e buscam soluções individu-
ais para seus problemas”. A pouca iniciativa e a insuficiente ação política
e social conjunta deixam os feirantes à mercê das alternâncias e ações do
Estado (em particular da gestão municipal) e do Mercado, ao não desen-
volverem mecanismos de fortalecimento conjunto para enfrentar a disputa
concorrencial.
Quais feirantes?
Devido à limitação imposta pelo imenso número de feirantes que atua na
Feira de Caruaru, um recorte delimitador nesta população precisou ser re-
alizado. Foi a forma encontrada para viabilizar uma pesquisa exploratório-
-descritiva capaz de reunir dados estatísticos sobre um grupo (universo)
dentro do imenso quantitativo dos feirantes da Feira de Caruaru.
O critério “ramo de atuação” surgiu como uma possibilidade objetiva
para a delimitação desejada. Mas dentre os diversos ramos existentes na
feira (confecções, importados, utilitários, artesanato, carnes, farinha, miu-
dezas etc.), como selecionar um deles? Alguns outros critérios passaram,
então, a ser observados.
O primeiro deles foi a necessidade de o feirante ter em seu comércio
uma ocupação continuada durante a semana, ou seja, abrir o negócio dia-
riamente. Afinal, foi objetivo da pesquisa caracterizar pessoas que têm na
atividade sua ocupação econômica principal. Nesse sentido, fez-se necessá-
Origem familiar
Apenas aproximadamente dois entre dez dos pais dos feirantes (20% dos
pais e 17,8% das mães) são nascidos em Caruaru (zona urbana), enquanto
cerca de sete entre dez (68,9% dos pais e 71,2% das mães) nasceram numa
outra cidade do interior do estado ou em zona rural38. As mães estuda-
ram, em média, pouco mais de um ano além dos pais (3,4 contra 2,2 anos),
mas são pequenos entre ambos o número dos que conseguiram completar
37 Cf. tabela 1 do Apêndice A Estatística. Todas as demais notas indicam tabelas que constam no
referido apêndice.
38 Cf. tabelas 2 e 5.
Feirantes - 61 -
o antigo primeiro grau (4,4%) ou ainda menos o segundo grau (2,2%)39.
Enquanto a maior parte dos pais dos feirantes tinha como atividade eco-
nômica a agricultura (42,7%), as mães eram principalmente donas de casa
(46,7%) ou então agricultoras (26,7%)40. Em síntese, em sua maioria os
feirantes são filhos de agricultores e donas de casa (ou agricultoras) que
nasceram e viveram num contexto rural-interiorano e que estudaram em
média três anos.
Aqui, gostaríamos de retomar de início algo apontado por Bourdieu
(1979): a diferença entre ter nascido e crescido numa sociedade na qual já
existe um conjunto de práticas – constituídas e compartilhadas ao longo de
curso histórico – condizentes com as demandas do mundo no qual se irá
viver e ter nascido num contexto no qual o conjunto de práticas “herdado” é
distinto daquele que será requisitado no cotidiano de vida e de concorrência
para se conseguir trabalho num mundo moderno. É também importante res-
saltar que se trata de questão para além da simples dicotomia entre primeiro
e terceiro mundo, uma vez que se trata de ter sua origem num espaço social
no qual as pessoas que nele vivem assimilaram (ou estão em processo de assi-
milação e, a depender do costume ou prática em questão, se apresentam mais
propensos ou não) as demandas requisitadas pelo capitalismo41.
Nesse tipo de estudo social, a origem familiar e o perfil dos pais são
aspectos de grande relevância para compreender como um indivíduo se
constituiu como tal desde sua infância. Para Lahire (2009), em grande me-
dida, “uma criança vê o mundo tal qual seus pais a ensinam a ver” e quanto
mais as situações nas quais ela viveu sob a influência destes se repetiram no
passado, mais esse modo de ver o mundo parece uma “segunda natureza”.
Assim, para compreender as ações dos indivíduos no presente, é também
preciso conhecer sua origem familiar e trajetória de vida. Ou seja, o estilo
de vida, as práticas cotidianas, a escolaridade, a atividade socioeconômica,
enfim, todos esses elementos tanto relacionados à família quanto aos pró-
prios feirantes nos são relevantes.
39 Cf. tabelas 3, 4, 6 e 7. Observação: o antigo primeiro grau hoje equivale ao ensino fundamental, já
o antigo segundo grau corresponde ao ensino médio.
40 Cf. tabelas 8 e 9.
41 E que não pode ser reduzida a uma diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas,
sim, entre tipos de sociedade que podem existir num e noutro. As pesquisas de Bourdieu (2006) na
região do Béarn (interior da França onde nasceu) servem também de exemplo nesse sentido.
Feirantes - 65 -
escolaridade. O analfabetismo (14% nas mulheres e zero nos homens) e a
conclusão do antigo segundo grau (16,7% para os homens e 4,8% para as
mulheres) podem ser diretamente relacionados à diferença no percentual
de homens que tiveram atividades anteriores formais (37,5%) em relação
às mulheres (23,8%). Se um dos requisitos básicos exigidos ao ingresso no
mercado de trabalho contemporâneo é a escolaridade completa, aqueles
que não o atendem estão em desvantagem. Algo que acaba por apontar aos
desqualificados o caminho que lhes é possível, o da informalidade. A maio-
ria dos feirantes teve antes do seu comércio atual outra atividade informal
(40%) e, se somarmos esse quantitativo aos de atividades familiares comer-
ciais (11,1%) ou rurais (6,7%), chegaremos ao total de 57,8% de feirantes
que antes tiveram uma atividade não formal. Muito mais do que já ter tido
a carteira assinada ou não, o ingresso e a atuação, mesmo que temporária,
em empresas convencionais impõem ao indivíduo um conjunto de práti-
cas pertinentes a esse “cosmos” que lhes são originalmente estranhas (tur-
nos de trabalho com horários definidos, uniformização de procedimentos,
hierarquia não familiar etc.). Já ter-se inserido e trabalhado num sistema
produtivo empresarial moderno tem repercussões quando o indivíduo sai
desse âmbito e retorna às atividades que, como o comércio e o artesanato,
estão mais próximas de (e combinam mais com) sua origem campesina.
Tabela 27: Origem do conhecimento para desempenhar a atual atividade econômica (%)
Proprietário(s) por
Gênero
Origem do conhecimento Feminino Masculino Total
Cursos 9,5 8,3 8,9
Experiência(s) com trabalho(s) atual(is) 9,5 20,8 15,6
Experiência(s) anterior(es) 19,0 37,5 28,9
Experiência(s) familiar(es) 28,6 12,5 20,0
Com outrosa 4,8 12,5 8,9
Sozinho 14,3 8,3 11,1
Crenças religiosas/dons 9,5 0,0 4,4
Não responderam/não souberam
4,8 0,0 2,2
responder
Nota : Amigos(as), companheiros(as), vizinhos(as), dentre outros não familiares.
a
Feirantes - 67 -
dos entrevistados que declaram ter aprendido a fazer o que fazem hoje por
meio da experiência é bastante significativo, em particular se comparado
aos 8,9% que apontam cursos como fonte do aprendizado que utilizam em
seu cotidiano.
Feirantes - 69 -
termo administração, registramos que aqui é entendido como designador
do conjunto de atividades necessárias ao planejamento e funcionamento
cotidiano de um negócio. Ou seja, atividades que vão desde a escolha devi-
da do local no qual será aberto o negócio, definição dos horários de funcio-
namento, divisão e monitoramento das atividades a serem desempenhadas,
controle financeiro, decisões sobre compras a serem feitas, contas a serem
pagas, trabalhadores a serem contratados (ou não), implementação de me-
lhorias na estrutura do negócio etc. Usamos o termo neste sentido amplo
como sinônimo de “gestão”49.
49 É claro que é preciso aqui fazer menção ao fato de que o termo precisa ser contextualizado. Esse
tipo de prática administrativa da qual aqui falamos é diferente do que geralmente é lido e discutido nos
círculos e principais livros da área voltados para a gestão de empresas formalmente constituídas. Trata-
se de um contexto que pede abordagem específica ao fenômeno administrativo, mas que, do mesmo
modo, não pode ser tido como algo com o qual o conhecimento em administração não possa ou deva
ser confrontado.
50 “Pratos feitos”, geralmente compostos de um tipo de feijão, arroz, macarrão, verduras e um tipo de
carne.
51 Cf. tabelas 33, 34, 35.
Feirantes - 71 -
Tabela 40: Definição das atividades a serem desempenhadas (%)
Proprietário(s) por gênero
Definição das atividades Feminino Masculino Total
Funções definidas totalmente 33,3 25,0 28,9
Funções definidas parcialmente 33,3 37,5 35,6
Funções não definidas 19,0 33,3 26,7
De acordo com o movimento 9,5 4,2 6,7
Outros 0,0 4,2 2,2
Questões financeiras
Mais de seis feirantes entre dez (62,2%) fazem “de cabeça” o acompanha-
mento da movimentação financeira do negócio. Enquanto isso, o percentu-
al de feirantes que fazem acompanhamento por escrito não passa de 13,3%.
Feirantes - 73 -
Proprietário(s) por gênero
Registro Financeiro Feminino Masculino Total
De cabeça 57,1 66,7 62,2
Por escrito (caderneta) 14,3 12,5 13,3
Através de pedidos 19,0 0,0 8,9
Através do dinheiro em caixaa 4,8 12,5 8,9
Outro(s)b 4,8 8,3 6,7
Notaa : Refere-se ao saldo em dia, receitas menos despesas. Notab: Em alguma conta bancária (corrente
ou poupança).
Feirantes - 75 -
perpetuando muitas vezes no mundo urbano atitudes rurais,
os comerciantes estão geralmente pouco propensos para ra-
cionalizar sua empresa: a maioria deles, iletrados, ignora a
contabilidade em partida dupla e a distinção entre o orça-
mento familiar e o orçamento da empresa e confunde muitas
vezes entradas e benefícios; passa-se por transições infinite-
simais do pequeno comércio como simples ocupação ao co-
mércio realmente lucrativo.
O futuro do negócio
Mais de 60% dos feirantes pensam em expandir o seu negócio56. Algo
contraditório se observado o percentual de feirantes, apenas 17,8%, que
dizem poupar mais de cem reais por mês em comparação aos 64,4% que
afirmaram não poupar nada57. Mas ao elencarem de que modo pretendem
fazê-lo, com maior frequência pensam em reformar a barraca (20%), mu-
dar de negócio (15,6%). Ou seja, não apresentam nem planos estruturados
nem ações necessárias para tal.
Num contexto como o de feira, tanto o modo como as pessoas se relacio-
nam com o tempo quanto as projeções em direção ao futuro são aspectos
da adaptação a uma ordem econômica e social, qualquer que ela seja, que
supõe um conjunto de conhecimentos transmitidos pela educação difundi-
da ou específica, ciências práticas solidárias a um ethos que permitem agir
com razoáveis probabilidades de sucesso. É dessa forma que a adaptação
a uma organização econômica e social tendendo a assegurar a previsão e o
cálculo exige uma disposição determinada em relação ao tempo e, mais pre-
cisamente em relação ao futuro, quando é verdade que nada é mais estranho
à economia pré-capitalista do que a representação do futuro como campo
de possíveis que pertence ao cálculo explorar e dominar (Bourdieu, 1979,
p. 18-21).
Numa sociedade de mercado, a ideologia vigente é a do crescimento, da
expansão dos negócios. No entanto, como pode ser visto na tabela 57, en-
quanto apenas 8,9% declararam querer ampliar os negócios, 37,8% dos fei-
rantes afirmaram que não pretendem fazer mudanças em seus negócios. Ao
Feirantes - 77 -
que nos parece, uma visão de mundo conservadora, ao menos em termos de
negócios, ainda se faz bastante presente numa realidade periférica como esta.
Feirantes - 79 -
de tempo?) que sua realidade de origem não lhe propiciou, administrar
as possibilidades e limitações imbricadas ao uso do dinheiro. Ou seja, ao
final deste capítulo, por mais que práticas tradicionais se façam presentes
no cotidiano dos feirantes, não se pode deixar de constatar que, cada vez
mais, o cosmos do capitalismo moderno se impõe ao contexto de mercado
no qual atuam.
58 Todas as citações de falas de Justino e de outros personagens que surgem ao longo de sua história
estão grafadas em itálico e foram levemente ajustadas da linguagem oral para a escrita.
Feirantes - 83 -
nino, já ajudava o pai na roça a fazer ração para gado, tirar leite de vaca,
colher frutas.
Seus pais nunca foram à escola. O pai era responsável pelas decisões so-
bre o dinheiro, as compras, enfim, quase tudo da família. A mãe sempre
aceitou o que o pai quis, nunca brigaram. Deles recebeu uma grande lição:
nunca pegar as coisas dos outros, não roubar.
Foi aos seis anos que começou os estudos no sítio. Depois de três anos,
foi para a escola da cidade. Muito embora fosse incentivado pelos pais a
seguir nos estudos, a rotina diária de trabalho na roça, ir para a cidade, as-
sistir a aulas até as dez horas da noite e depois voltar andando para o sítio,
“era difícil pra caramba”59, era também muito desestimulante.
Não foi bom aluno. Não se comportava direito. Procurava confusão.
Certa vez brigou com um colega num desfile de Sete de Setembro somente
porque ele estava na frente da fila, “todo mundo olhava logo pra ele. Quando
chegou em frente ao palanque, tava todo mundo, prefeito, vereador, governa-
dor do estado, tinha muita gente, tá entendendo? Quando chegou lá eu disse
‘esse cara não é mais do que eu não’ e quebrei ele no pau!” Mas nas avaliações
se saía bem, “nas provas eu era inteligente pra caramba”. Quando os exames
se aproximavam, se dedicava um pouco mais e pronto, tirava boas notas.
Como a situação de trabalhar na roça do sítio durante o dia e estudar
na cidade à noite era muito difícil, pensou: “eu vou parar o estudo e vou
embora!”
São Paulo
Aos 16 anos, impressionado com a imagem dos seus conterrâneos que
retornavam da metrópole paulista, largou o sítio, os estudos e se foi.
59 No entanto, sua esposa irá, num determinado momento de uma das entrevistas, dizer que “ele não
estudou porque não quis mesmo”, e cita a irmã mais nova dele como exemplo que, morando no mesmo
sítio e tendo que ir para a cidade estudar, conseguiu se formar e até ensinar o pouco que os pais hoje
sabem ler.
- 84 - A História de Justino
1982, era aquele tal negócio, você ia para São Paulo era uma
coisa, se você passar seis meses no São Paulo, você quando
chegava aqui era diferente. Eu aqui olhava pra você de uma
maneira diferente, de uma forma diferente. Olhava pra você,
você tava com uma pele limpa, mais novo, mais bonito, tinha
o real no bolso, né? E eu aqui não, aqui tava trabalhando na
agricultura, queimado do sol, sem dinheiro e cada ano que
passava mais o cara andava mais mal-acabado, né não? Aí
eu via você chegar nesse procedimento, nessa situação, eu digo
não, eu vou embora pra lá também né. Se ele se deu bem lá, eu
vou me dar bem também. E foi assim que deu a loucura e eu
digo ‘eu vou embora’. Coloquei o endereço de um tio meu no
bolso, comprei passagem e fui embora. Fiquei lá 21 anos.
Feirantes - 85 -
lhei na Telesp, trabalhei em metalúrgica grande... Trabalhei em
grandes restaurantes, trabalhei de garçom, trabalhei de cozi-
nheiro, trabalhei de lancheiro, trabalhei de lavador de prato,
passei pano em salão, sabe? Trabalhei em tudo! Tomei conta
de churrascaria, fui gerente, tá entendendo? Aí foi onde eu
aprendi muita coisa, né?...
a minha mão ficou colada com ela, ficou lá, ficou shshshshshshs,
parecia um bife na chapa. Ele olhou pra mim e disse ‘tá dan-
do choque?’ Me lembro como se fosse hoje, acontecendo hoje,
- 86 - A História de Justino
agora. Aí eu disse ‘não’... o coro da mão tinha ficado, tá enten-
dendo? Aí eu continuei lavando os pratos com aquela mão toda
queimada... o couro caindo e ele olhou pra mim e disse ‘você
não desiste’, eu disse ‘eu não desisto não, não sou de desistir
não’. Aí um dia a gente foi almoçar junto, ele disse: ‘você é atei-
moso demais’, eu disse ‘sou. Tem duas coisas na minha vida
que eu sou muito: é ignorante e ateimoso’.
60 “Foi o seguinte, eu trabalhava numa empresa com uma tal de Seladora, já ouviu falar? Seladora é um
produto [...] que eu não me dava com aquilo, tá entendendo? Eu fiquei amarelo da cor de merda de angu,
amarelo mesmo, cara, caiu uma fraqueza em mim da porra, tá entendendo? Amarelo, doente, aí eu fui no
médico, aí o médico chegou, disse: –“Olha eu lhe dou 90 dias pra você viver, você trabalha com que?” –“Eu
trabalho assim, assim, assim...” Ele disse assim: –“Você vai morrer se continuar trabalhando!” A empresa
do cara era pequenininha, aí que cheguei pro cara e falei o seguinte, expliquei a situação, ele disse só tem
um jeito: –“Você pede as contas”. Aí eu disse: -“Entre a morte e as contas, vou pedir logo as contas, né? Aí
pedi as contas, recebi aquele merrequinha... Eu fui no médico, comprei os remédios, cabou-se o dinheiro. Aí
eu fiquei desempregado, doente e... Acumulou aluguel em cima de aluguel, não tinha dinheiro pra comprar
as coisas de dentro de casa pra poder comer e foi onde eu entrei numa... E agora? Ninguém queria me dar
emprego, não tinha emprego, quem sabe de São Paulo naquela época sabe, era um desemprego triste. Aí eu
disse: –“Porra e agora o que é eu vou fazer?” Saía de manhã, saía cinco horas da manhã, chegava quase
cinco horas da tarde e não arrumava. Aí foi onde eu desci na Angélica, Avenida Angélica, quem conhece
São Paulo sabe onde é, um faxineiro cinco horas da tarde tava botando o lixo do prédio, tinha aquele ces-
tão assim, quando ele jogou o cestão, caiu dois pão. Eu peguei os pão botei dentro da, debaixo da jaqueta
assim, era um frio da porra naquela época, aí cheguei em casa comi aqueles pão com água da torneira. Aí
foi aonde eu disse agora foi o fim da picada mesmo.”
Feirantes - 87 -
Eu cheguei aí e pensei assim: ‘Meu Deus, se você existe me aju-
de agora porque senão eu vou pra uma pior!’ Você andava os
setes dias da semana atrás de um emprego, você não encontra-
va nem pra barrer a rua. E eu cheguei numa situação que eu
nem tinha emprego, nem tinha dinheiro, nem tinha o que co-
mer, doente. E eu cheguei no pé da cama, me ajoelhei e pedi pra
Ele... Olha, o final de carreira foi aonde eu falei ajoelhado no
pé da cama: ‘Minha Nossa Senhora! Ou você me arruma um
emprego ou um jeito de eu viver, ou eu vou roubar pra comer’.
[...] Tive tanta fé, quando foi no outro dia aí eu arrumei em-
prego. Pra você ver, eu cheguei pra um cara no restaurante e
disse: - ‘Olha, me arrume um emprego que eu tô numa situa-
ção difícil!’ Ele olhou pra mim e disse que não tava precisando
de ninguém não, eu falei: - ‘Eu trabalho pra você só pela co-
mida!’ Nessa mesma hora, eu entrei pra cozinha e fui traba-
lhar. Quando chegou o final do mês, eu tava trabalhando pela
comida, aí todos funcionário recebeu e eu sem receber, claro
que eu tinha entrado lá pra trabalhar pela comida. Aí ele me
chamou e disse: -‘Tá aqui o seu salário!’ E eu trabalhei pra ele
por dois anos. Só sabe eu o que passei...
- 88 - A História de Justino
Aí eu venci cara! Aí eu cresci, aí eu cresci, entendeu? Aí traba-
lhando no restaurante, trabalhando de segurança, vigilante, fui
trabalhar no X e melhorou mil por cento. Aí o dinheiro vinha
a fole, dinheiro vinha a fole. Aí eu não soube administrar o
dinheiro. Em 1989, eu consegui juntar 42 contos, 42 mil. Dava
pra eu comprar 3 churrascarias grandes em Caruaru naquela
época.
O problema era que além do que ganhava com o bom cargo, Justino re-
cebia propina. Recebia um “por fora” num esquema montado para burlar
as regras. “Eu era encarregado geral lá dentro, eu ganhava bem, cara, eu ga-
nhava bem. Mas dinheiro que entra fácil sai fácil, tá entendendo?” Veio então
uma mudança de direção e foi demitido.
Mesmo muitos anos depois de estar vivendo-trabalhando em São Paulo,
Justino apresentava comportamentos que mostravam sua não adaptação ple-
na às demandas de um mercado de trabalho modernizado. Não conseguia
se fixar num emprego ou trabalho especializado, nem ter a disciplina e o au-
tocontrole necessários nesse contexto. Um fato nos serve aqui de exemplo.
Quando trabalhava numa multinacional, um colega perturbava muito por
Justino dizer-se devoto de Nossa Senhora Aparecida. Certo dia, esse colega
fez alguma graça com a santa no refeitório e ele não pensou duas vezes, jogou
café quente na cara do indivíduo. Resultado, ambos foram demitidos.
Foi em São Paulo que Justino aprendeu a fumar, a servir com uma das
mãos para trás e pelo lado certo, a fugir do “rapa” quando trabalhava como
camelô, a diferenciar talheres e taças apropriados para cada tipo de comi-
da e de bebida, a cozinhar... Foi lá também que, quando trabalhou como
porteiro, criou o hábito de ler jornais, folheava-os em busca de algo inte-
ressante todos os dias. Foi lá também que conheceu sua esposa, teve sua
primeira filha e “se organizou” na vida, pois, antes do casamento, era “muito
atrapalhado”.
Durante todo o tempo por lá, foi difícil constatar e enfrentar que “nor-
destino lá fora não tem valor nenhum”. Justino trabalhou como garçom, ser-
viu “gente rica, grã-fina”, trabalhou muitos anos dentro de um condomínio
de luxo, e observava que quando chegava um nordestino, eles olhavam “de
um jeito meio diferente”. Mesmo se fosse muito rico, quando comparado
com os paulistanos, ele não era visto do mesmo modo, era diferente.
Feirantes - 89 -
Ele se culpa como sendo totalmente (e unicamente) responsável por não
ter aproveitado as oportunidades que teve em São Paulo.
Se fosse hoje, diz que faria diferente, guardaria a maior parte do seu salá-
rio e gastaria o mínimo possível.
Oscilando entre o céu e o inferno. Talvez assim seja possível sintetizar os
altos e baixos de Justino na capital paulista. As histórias desse tempo são
contadas, alternadamente, com empolgação e tristeza, afinal, lá ele sofreu,
“eu sofri, sofri pra cacete. Tive minha glória, mas também sofri demais, sofri!”
Foi assim que sentiu na própria pele o que é ser nordestino na megalópole
brasileira. As contradições dessa experiência vivida podem ser observadas
em duas de suas frases. Ao mesmo tempo em que nos disse que “São Paulo
é que é um lugar para um cidadão viver!”, confessa que, “na realidade, du-
rante 21 anos que eu morei em São Paulo, eu tinha vontade de vim embora...”.
Na feira
Depois dessa longa experiência, Justino atribui sua volta ao Nordeste
à saudade que sentia de sua família. Seus pais continuavam morando em
sua cidade natal. Na realidade, voltou de São Paulo pensando em morar e
trabalhar lá mesmo para ficar próximo dos pais, mas não encontrou nada
que lhe interessasse. Um amigo então lhe ofereceu um negócio na Feira de
Caruaru.
Entrou na cidade pela primeira vez na noite em que foi conhecer o boxe
da feira, a barraca que lhe foi oferecida. Chegou lá, viu o ponto, e investindo
- 90 - A História de Justino
quase todo o dinheiro que trouxe de São Paulo, fechou negócio na mesma
hora. O pouquíssimo dinheiro que sobrou ficou para iniciar o negócio, e lá
passou a viver-trabalhar com a esposa.
Na feira, seus tempos áureos foram nos primeiros anos, logo quando re-
tornou. Foi então que Justino apostou tudo para crescer, para ser dono de
restaurante e sair da feira, acreditando no sonho do negócio formal que
parte significativa dos feirantes alimenta.
Feirantes - 91 -
trabalhando para ele, mas sentiu na pele a dificuldade de ser patrão. “Aqui
no Nordeste pra você ser patrão é difícil porque a maioria das pessoas aqui
não quer ser mandado, aqui não, aqui ninguém quer ser mandado não”.
E relembra que lá em São Paulo era diferente, mas não consegue sequer
especular os porquês...
Naquele contexto, ele precisava se conter. Não ser tão agressivo ou rude
como muito provavelmente poderia ser se estivesse num contexto que o
permitisse assim se comportar.
Seus grandes amigos são seus pais, aliás, “os únicos amigos de verdade
que você tem é pai, mãe, avô e avó. Viver com pai e mãe é bom demais, né?”
Tem um grande orgulho do seu pai por ter criado cinco filhos sem deixar
faltar nada para eles, e “nenhum ter dado para o que não presta”. Além disso,
nunca bebeu, nem fumou. Muito embora tenha se espelhado nele, puxou
a ignorância da família da mãe. Conta que seu avô era tão ignorante que,
“se ele chegasse [e dissesse que] isso aqui é uma cana, você tinha que chupar
por cana. Hoje ele tem quase 90 anos, mas a palavra dele vale mais de que
- 92 - A História de Justino
assinatura de qualquer um. Se eu chegar na cidade dizer assim, meu avô
mandou buscar um boi inteiro, o boi vai. E eu garanto, com a assinatura
sua não vai não, tá entendendo?”
Uma coisa necessária a Justino, mas não somente a ele, é jogo de cintu-
ra. Quando nos fala sobre isso, demonstra acreditar no mito do “jeitinho
brasileiro”. Aliás, pensa existir algo equivalente, um “jeitinho nordestino”.
Como feirante, reclama bastante de uma série de dificuldades que diz en-
frentar para tocar seu negócio. Reclama dos políticos por não organizarem
a feira, dizendo que, quando nela chegou, tudo era dividido por área (con-
fecções, artesanato, utensílios domésticos, eletrônicos etc.), mas que hoje
está tudo misturado, “uma bagunça”; reclama dos feirantes denominados
de invasores (“eu acho que o pessoal que tá na beirada tem que sair, né?”)
que circundam o espaço físico estabelecido para a feira, também tentando
ganhar seu pão; reclama das leis trabalhistas que inibem o empregador de
“dar emprego” – como se na feira os trabalhadores fossem registrados for-
malmente; reclama do governo federal, para ele políticas como o bolsa-es-
cola e o bolsa-família estimulam as pessoas a não trabalharem e, de modo
geral, favorecem a vagabundagem e não aos comerciantes. Justino também
não acha justo distribuir a renda de acordo com a necessidade de cada um,
mas sim compensar de acordo com o esforço, ou seja, se esforçou mais,
ganha mais, afinal, para ele “a ajuda é o emprego”.
Seu machismo é explicitamente externalizado quando afirma que o ho-
Feirantes - 93 -
mem é superior à mulher. Ele acha o homem mais inteligente “no geral” e
acredita que tem certos serviços braçais que a mulher não faz. Além disso,
“na minha opinião, a mulher nunca chega no lugar do homem, tem muito
emprego que a mulher nunca vai chegar, o homem [também] pode sair daqui
agora, entrar dentro do cabaré e sair e ele é o mesmo homem. Se a mulher
entrar ela não é [a mesma depois]. É ou não é?”
Tanto nos negócios quanto sobre os destinos da família (para onde ir?
onde morar?), Justino é quem decide. Sua esposa, no máximo, é consultada,
mas não obrigatoriamente. Um exemplo: numa das últimas vezes que esti-
vemos com eles, Justino tinha fechado negócio numa casa, sem que a sua
esposa sequer tivesse visto o bairro, a casa, enfim, desse sua opinião sobre
esses aspectos. No entanto, ele acredita que, de modo geral, o homem pro-
cura uma mulher inteligente que o ajude. Quando falamos de sentimentos,
sensibilidade, filosofa: “Você é um homem que nunca gostou de alguém, você
é um homem forte, se você gostar de alguém, você se torna um cara frágil, não
é não?” Quando fala sobre seu casamento, o faz sem demonstrar sentimen-
tos, mas afirmando que vive bem, sem confusões, “brigar a gente não briga
não. Ela é tranquila”. Lembra que era atrapalhado antes (no sentido de
farras com mulheres) e que “depois da minha mulher, aí eu virei um santo”.
Ele acredita que o racismo não acabou no Brasil e se coloca como exem-
plo para ilustrar o que quis dizer com isso:
- 94 - A História de Justino
o nordestino ele é muito machista, muito ignorante.. Hoje não,
hoje o pessoal já tá mais com a cabeça mais aberta, já tá aco-
lhendo dentro de casa. Mas tem pai que diz que, se o meu filho
virar gay, o que é que faço? Eu mato. Tem muita gente aqui
que faz isso. Porra! “meu filho virou gay”, “a minha filha virou
sapatão” e aí? O cara vai fazer o quê?
O que eu acho é o seguinte, hoje isso tudo por quê? Porque não
tem lei. Se tivesse lei, as coisas não continuaria do jeito que tá.
61 Muito embora nos tenha dito que: “Se eu pudesse na minha vida hoje ninguém nunca me pedia um
prato de comida pra mim dar dois pra ele. Você só sabe o que é a fome quando você passa por ela. Você
com a barriga cheia tudo é bom, com fome... Fome, meu amigo, fome é uma tristeza no ser humano, tá
entendendo? Fome é uma tristeza. Você olhar pra milhões de gente assim: –“Pra quem eu vou pedir”? Você
fica com aquele negócio: –“Eu vou levar um não”! Você entendeu? Você chega na porta de um, se humilhar,
pedir, tá passando assim, assim... É, não é fácil não. Pro cara que é trabalhador, pro cara que nunca preci-
sou chegar um ponto desse. É uma... Tá louco, isso é uma loucura na mente, cara, é. Olhe, eu tive minhas
glórias em São Paulo, mas também eu tive minhas coisas difíceis também, você entendeu? A coisa que eu
mais olho assim você chegar, quinem eu já vi, o cara desfazer de um prato de comida. Se eu chegar na sua
casa, você pode me dar um ovo com farinha cara, pra mim é bem-vindo, tá entendendo, cara? É bem-vindo
mesmo, é bem-vindo mesmo, não tem esse negócio de caviar com rapadura não. Eu jamais na minha vida,
eu fico doente de ver uma pessoa desfazer de um prato de comida... Meus irmãos hoje foram pra São Paulo,
se deram bem, mas não passaram pelo o que eu passei, não passaram, sabe? Não passaram mesmo!”
Feirantes - 95 -
[...] A lei resolve. Se pega tu roubando uma vez: -“ô fulano é
o seguinte, tu vai passar...” –“tu roubasse o quê”? –“Eu roubei
uma caneta”. –“Tu vai passar seis mês de cadeia”. Se roubasse
um caderno e uma caneta vai ser um ano. Mas o problema é
o seguinte, se tudo passa a mão, o cara não tá nem aí, o cara
não tá nem aí.
Mas, em outro aspecto, reclama da lei. “Se você trabalha como um policial
na rua, você não pode dá um tapa num moleque porque os direitos humanos
vai impedir”. Apesar de tudo isso, pensa que o Brasil é um bom país, seu
problema são “as pessoas”...
Um aspecto interessante de observar na história de Justino é que, apesar
de ter recebido propina num dos seus trabalhos em São Paulo, quando per-
guntado sobre se fez na vida alguma coisa que julgue feia, um pecado do
qual se arrependeu depois, ele menciona o fato de ter saído com uma moça
de família (dando a entender que ela era virgem) como sendo a coisa de que
mais se arrependeu.
Ele comenta também um tipo de preconceito dos que têm uma melhor
condição econômica contra os que têm menos. “Aqui é que tá o negócio,
eu tenho um pouquinho, como você não tem, eu começo a desfazer de você”.
Justino observa outra diferença social entre os que têm poder econômico e
os que não têm: “Hoje se você matar um ser humano, se você tiver dinheiro,
você não vai preso. Um ladrão que rouba, se tiver dinheiro, não vai preso”.
Para ele, o mundo é dos mais fortes, e dentro daquilo que considera forte,
sem dúvida, o dinheiro é aspecto central.
“Olha, meu objetivo, se Deus quiser, é ter uma casa pra morar, um carro
pra mim e barriga cheia os sete dias da semana, tá bom demais. Sonhar mui-
to pra quê? Não é verdade?” Já para seus filhos, espera um futuro melhor.
Desde que voltaram de São Paulo, sua filha, hoje adolescente, mora com a
avó materna – que tem uma condição de vida melhor – numa capital do
Nordeste (na época, estudava o ensino médio numa boa escola particular
e pretendia fazer medicina). Depois de uma temporada que passou por lá,
a esposa de Justino voltou contando com orgulho que a filha estava namo-
rando com um coleguinha da escola, filho de uma família muito rica, dona
de uma grande rede que tinha lojas espalhadas pelo Nordeste. Contou que a
mãe do menino a convidou para um lanche em seu apartamento, era “tudo
- 96 - A História de Justino
muito chique”. Além disso, o menino era muito inteligente e já fazia uma
parte da propaganda da empresa do pai.
62 Instalada do outro lado do corredor, diante de uma barraca fechada, ela era feita com uma metade
de tonel onde ficava o carvão e suspensa por uma estrutura de ferro que também segurava duas grelhas.
Nestas grelhas estavam espalhados pedaços de carnes, frangos e também os peixes que tinham sido
fritos num tacho que estava ao lado.
Feirantes - 97 -
vimento nos dias das feiras livre e da sulanca. Ele compra os ingredientes
necessários para o preparo da comida na própria feira, com o dinheiro que
entra e fica no seu bolso. As carnes, às vezes, num supermercado próximo
(quando tem promoção), mas também a um marchante do mercado de
carnes do qual virou freguês. As atividades (compras e preparação de ali-
mentos) acontecem de acordo com o movimento. Tem como despesas fixas
as contas de água e luz, além do imposto pelo uso do solo a cada dia de feira
da sulanca, pois o espaço no qual está instalada a barraca é municipal.
Depois das entrevistas, continuamos a almoçar e visitar a barraca de Jus-
tino. A moça que trabalhava para ele pediu para sair, e como o movimen-
to tinha caído bastante, isso acabou sendo economicamente interessante,
mesmo sobrecarregando-os, uma vez que sua esposa passou a ainda mais
ficar dividida entre os cuidados com o filho e com a cozinha. Justino vai
então para trás do balcão ajudá-la.
Foi numa dessas visitas que soubemos um “grande segredo”. A esposa
dele nos revelou que eles moravam lá mesmo, na barraca, desde quando
voltaram de São Paulo. Só saíram por uns quatro meses, cerca de um ano
atrás, quando o filho nasceu. Justino ficou visivelmente abalado e envergo-
nhado com a revelação e procurou justificar o fato de morarem lá mesmo
como uma decisão tomada para economizar o aluguel.
Ela então nos mostra como organiza tudo. Eles têm um espaço que fe-
charam e colocaram um chuveiro. Desse espaço também usam o buraco
do ralo para fazer as necessidades. O colchão deles fica escondido, a fisca-
lização da prefeitura não pode saber que eles moram lá, isso não é permiti-
do. Aos seguranças noturnos (particulares), eles sempre oferecem um café,
lanche e dão um whisky no fim de ano – para que eles fiquem por perto e
também não os entreguem aos fiscais. Um dos freezers foi desativado e fun-
ciona como armário para a roupa deles. Para ela, o grande problema é lavar
as roupas. Além do espaço limitado, não pode lavá-las de dia para não dar
bandeira. Essas revelações nos foram marcantes, o espaço físico do negócio
é a própria casa deles.
Num contexto como este, existe certa solidariedade entre os feirantes
mais próximos que, sabendo de tudo isso, não denunciam, muito pelo con-
trário, apoiam-nos no que podem. Vez por outra chega uma vizinha para
avisar que a vigilância sanitária está na área, aproveita e leva um botijão de
gás emprestado prometendo devolver mais tarde. Uma outra, que também
- 98 - A História de Justino
tem uma barraca de alimentação, está dando uma saída e pede que olhem a
barraca dela. A chinesa que vende tênis fica um pouco com o filhinho deles
e vende o refresco enquanto Justino está ocupado.
Certo dia chegamos na hora em que ele estava começando a espalhar as
mesas pelo “salão”. Quando terminamos de ajudá-lo nisso, saímos com ele
para fazer compras. Ele fala que as coisas estão caras, que fica difícil quando
não tem movimento, que, se não fossem as barracas que tem alugadas, não
sabe como conseguiria pagar as despesas... Na volta, ele corta o jerimum
que comprou pra que a esposa o coloque na carne que está cozinhando. O
desgaste de viver com pouco dinheiro e a rotina lenta dos períodos sem
movimento o deixam visivelmente abatido.
Com o movimento fraco, chegou até a mandar a esposa e o filho para
a casa da sogra por algumas semanas e ficou sozinho na barraca. Seriam
menos bocas para comer, menos despesa com água e luz, além de lá existir
uma melhor condição para a mulher e a criança.
Feirantes - 99 -
riscar, fechar sua barraca, tentar alugá-la e ir. Essa foi a última vez que nos
encontramos. Até onde soubemos, seu próximo destino seria um açougue
que pretendia abrir em sua cidade natal.
63 Nesta seção, recuperamos alguns pontos da história de Justino sempre entre parênteses e aspas para
facilitar a compreensão sobre ao que estamos nos referindo ou do que estamos tratando.
64 Fenômeno semelhante ao que é relatado por Pierre Bourdieu em seus estudos sobre a região france-
sa do Béarn. “As pessoas que moram na cidade e que ostentam ou incorporam os símbolos da moderni-
dade (roupas que vestem, modo de fala, assuntos sobre os quais conversam, gostos alimentares, hábitos
de dança etc.) são vistas de modo diferenciado pelos camponeses e camponesas.” Em síntese, lá a vida e
as pessoas são vistas como “melhores”. Ver: Bourdieu (2006).
Feirantes - 101 -
da adolescência no contexto rural, tais como: rotina de trabalho familiar,
conhecimentos e práticas de atividades agrícolas e de atividades comer-
ciais informais de feira). No entanto, tudo isso que incorpora de modo não
reflexivo não lhe é tão importante e necessário num contexto de cidade
grande e desenvolvida como São Paulo, em comparação à vida no interior
do Nordeste, no sítio da sua família. Um exemplo: não lhe será muito útil
na urbanidade paulista ter incorporadas determinadas disposições para o
desempenho de atividades rurais (“fazer ração para gado, tirar leite de vaca,
colher frutas”) ou mesmo para dominar um animal de tração (um cavalo
ou burro, por exemplo). Lá precisará colocar em ação outras disposições
que lhe permitirão pegar ônibus certos, aprender a se localizar na cidade,
chegar ao expediente nos horários determinados (o que implica fazer cál-
culos de tempo a ser gasto no geralmente longo trajeto), cumprir ordens
dos superiores no trabalho, se comportar de modo apropriado nesses con-
textos, falar de modo correto, servir à mesa na postura indicada etc.
Na realidade, para “se dar bem” por lá, Justino precisaria desincorporar
parte desse “estoque de disposições” que levou consigo (constituído no sí-
tio e na cidade do interior nordestino até meados de sua adolescência) e
incorporar outros que são demandados para a vida cotidiana e para o êxito
num mercado de trabalho como o de São Paulo. Por mais que acredite ter
se adaptado ao estilo paulistano de vida (“se você entra dentro daquilo lá,
começa a ficar igualzinho as pessoas lá, não é?”), em termos práticos, o
tanto que ele se adaptou ainda não foi o suficiente para que conseguisse
viver como eles.
Apesar de todo o orgulho que tem dos empregos e de sua vida em São
Paulo, sua instabilidade ao longo desse período pode ser explicada por essa
tensão interna entre as disposições que portava e sua dificuldade em in-
corporar o que era requisitado aos indivíduos que buscam um lugar num
mercado de trabalho moderno (disciplina, autocontrole, espírito de cálcu-
lo, pensamento prospectivo, previsibilidade etc.). Um exemplo: Justino po-
deria ter feito uma queixa ao superior do colega que dele caçoava, ao invés
de ter tomado a atitude indisciplinada e descontrolada de jogar café no
rosto do indivíduo. Mas por que um dos seus irmãos se firmou por lá como
taxista? Para responder a essa questão, precisaríamos estudar sua história
de vida para compreendermos como e de que maneira ele teve mais êxi-
to nesse processo de renovação das disposições colocadas em prática, por
65 É entre os pequenos comerciantes que se encontra a proporção mais forte de propósitos estereo-
tipados e de discursos que obedecem à lógica da quase-sistematização afetiva, além disso, eles nunca
observam o sistema como sendo também responsável por sua falta de instrução e de qualificação pro-
fissional (Bourdieu, 1979, p. 88-92).
Feirantes - 103 -
Na realidade, seu retorno ao Nordeste pode ter sido realmente motivado
por essa sua inadaptação parcial ao contexto paulista, afinal, será que, se
ele tivesse conseguido se estabilizar por lá, teria voltado? O próprio modo
impulsivo com o qual Justino comprou a sua primeira barraca da feira
(“Chegou lá, viu o ponto, e investindo quase todo o dinheiro que trouxe de
São Paulo, fechou negócio na mesma hora”) demonstra pouca reflexão com
base num espírito de cálculo e num pensamento prospectivo necessários
à vida moderna. O reinvestimento dos capitais adquiridos em atividades
ou contextos modernizados no comércio de feira (atividade tradicional)
também foi objeto das análises de Bourdieu66 na Argélia, e explica “a ne-
cessidade (do comércio) tornada virtude” em sua fala (“eu sempre sonhei
com o comércio”). Mesmo explicitando a influência paterna neste sentido,
Justino não consegue observar, mais uma vez, o sistema no qual se insere67.
A contradição com o seu “sonho” aparece quando revela que, na realidade,
preferiria outro tipo de profissão (“ter uma profissão que o proporcionasse
uma vida mais leve, tranquila e estável”).
O fracasso na tentativa que fez de abrir um restaurante também pode ser,
ao menos parcialmente, compreendido (afinal, existem elementos outros
que estão fora de nosso alcance) pelo fato de Justino não ter as competên-
cias necessárias para: escolha adequada de um ponto comercial formal, sua
administração financeira, ordenação do ambiente, cuidados elementares
com uma cozinha um pouco mais refinada, definir critérios apropriados
para a seleção do tipo de funcionário pertinente de ser contratado etc.
66 “O comércio e o artesanato constituem vaga protegida e reservada que oferece um refúgio para aqueles
que não estão armados para a competição econômica ao mesmo tempo em que mantém, numa lógica
pré-capitalista, capitais e capacidades que poderiam ser investidos no setor moderno. Deste modo, os
capitais argelinos tendem a ser investidos no comércio ou então nesses setores da indústria onde podem
ser mantidas as empresas tradicionais de tipo familiar, muitas vezes conduzidas à maneira de empresas
comerciais, asseverando ao patrão a gestão financeira do negócio, comprando ele mesmo a matéria-
-prima, fixando os preços e vigiando as vendas.” (Bourdieu, 1979, p. 83-4, grifos nossos).
67 Algo também apontado por Bourdieu anteriormente, afinal, “para os filhos de comerciantes e de
artesãos, as esperanças de promoção são tanto mais reduzidas quanto a herança profissional é maior, as
tradições de profissão mais fortes e a probabilidade de uma herança importante mais elevadas. Tanto
o cálculo econômico se encarna progressivamente na conduta, à medida que a melhoria das condições
materiais o permite quanto o campo dos possíveis tende a se alargar à medida que a pessoa se ergue na
hierarquia social.” (Bourdieu, 1979, p. 74-79, grifos nossos).
Feirantes - 105 -
bourdieusiana. A ideia de doxa69 nos é interessante para explicar como
as pessoas podem ver o (e se ver no) mundo estando completamente em-
bebidas no modo tal qual este lhes é apresentado e confirmado por seus
pares. Em termos práticos, é o que Bourdieu denominou de doxa que nos
ajuda a entender como Justino compreende como “jeitinho” aquilo que é,
na prática, fruto de seu aprendizado para enfrentar e solucionar seus pro-
blemas de vida e subsistência no mundo de modo equivalente ao que faz
um paraguaio lá no seu Paraguai ou um tailandês lá na sua Tailândia. Ou
seja, o que ele e os brasileiros pensam ser “jeitinho” acontece por lá tam-
bém ou então paraguaios e tailandeses não estariam sobrevivendo neste
mundo, se “desenrolando”?
Como já colocamos no capítulo 1, perceber que na realidade “os bra-
sileiros não são marcianos verdinhos” e se defrontam de modo similar a
outros “seres humanos iguaizinhos a ele” com os dilemas da sobrevivência
num mundo moderno é tirar de si o “manto identitário” que os faz diferen-
tes e “únicos” em relação a todo o resto do mundo (como se, em cada um
dos outros povos deste mundo, também não existissem algumas práticas e
atividades culturais que aparentemente os tornam diferentes dos demais).
Não foi por acaso que Bourdieu observou drama similar ao dos feirantes
como Justino na Argélia dos anos 50 ou na região do Béarn (na França), um
pouco depois. Foi, sim, por se tratar de drama inerente ao mundo no qual
vivemos e que se torna mais real, concreto e, consequentemente, mais duro,
do que se mantido recoberto pelo “molejo brasileiro”. É essa crença coletiva
e excessiva nas particularidades locais da peculiaridade do povo brasileiro
que explica a crença de Justino e de milhões de nós, no “mito do jeitinho”.
É preferível para ele, e para grande parte de nós, acreditar que é mais “de-
senrolado” que os outros do que enfrentar as possibilidades e limitações
concretas impostas ao seu modo de ser.
Na realidade, suas maiores reclamações não seriam aquelas reclamações
contra si mesmo por não ter conseguido uma condição de vida que buscava
e que, em sua visão, teve nas mãos e jogou fora? A lástima de si e da condi-
ção de vida que oferece à sua família é projetada em quase tudo e quase to-
dos que circundam a vida de Justino. Mostrando-se incapaz de articular-se
69 Discurso construído socialmente naturalizado como autoevidente, o de que “os brasileiros são
adeptos do jeitinho”, por exemplo.
Feirantes - 107 -
valorativa da sociedade da qual fazem parte. Talvez, o difícil para nós brasi-
leiros seja constatar essa dura realidade que podemos clarificar ao fazermos
uso analítico do trabalho de Pierre Bourdieu. É mais fácil, em especial para
nossas classes alta e média, negar esses preconceitos, mantê-los de modo
velado, pois, assim, estarão sendo “politicamente corretos”. As contradições
entre a definição (“Justino se define como católico não praticante”) reli-
giosa de Justino e suas crenças sobre a importância da prática religiosa na
vida das pessoas (“acredita que a religião influencia o caráter das pessoas,
‘se você é de uma religião qualquer, mas se você é frequentador de uma
religião, você, seu comportamento é diferente. Se todo mundo tivesse uma
religião [as pessoas seriam mais ordeiras]...’”), ou ainda quanto a sua noção
de “pecado” (“um pecado do qual se arrependeu depois, ele menciona o
fato de ter saído com uma moça de família (dando a entender que ela era
virgem)”), ou mesmo suas contradições em relação à existência e o uso da
lei, assim como seus deslizes em relação a ela, são reflexos da doxa na qual
viveu e vive. Ou ainda, utilizando metáfora de Bernard Lahire (2005b), é o
social que se apresenta inscrito nele em estado “dobrado”.
Esperar e trabalhar para um futuro melhor para os filhos é o que lhe res-
ta, já que, mesmo que não formule ou explicite isso, o desânimo de Justino
em relação à sua vida presente e futura é reflexo de sua crença de que “seu
futuro já passou”, sua chance de “crescer na vida” foi em São Paulo e ele não
aproveitou. A esperança dele e da esposa agora parece estar nos filhos. É
por isso que ela fala com orgulho do namoro da filha (“a esposa de Justino
voltou contando com orgulho que a filha estava namorando com um cole-
guinha da escola, filho de uma família muito rica, dona de uma grande rede
que tinha lojas espalhadas pelo Nordeste”).
Foi na sua barraca de feira que pudemos observar não somente como Jus-
tino desempenhava as atividades de comerciante, mas também como ele, en-
tão, literalmente, vivia com a mulher e o filho. A condição precária daquele
momento era, em parte, resultado dos seus erros do passado, mas também é
realidade objetiva do seu esforço no sentido de um amanhã menos precário.
As consequências dos gastos malfeitos (do dinheiro que ganhou em São Pau-
lo) com farras e esbanjamentos, somadas ao insucesso na tentativa que fez de
colocar um restaurante, fizeram com que Justino hoje tivesse uma postura
diferente em relação ao dinheiro. Preocupando-se mais em poupar do que
em usufruir, foi assim que ele passou quase oito anos na própria barraca de
Feirantes - 109 -
aos contextos nos quais cresceu, trabalhou e viveu) e os contextos nos quais
viveu até agora (que lhe cobram apenas parte dessas disposições ou então
outras que ele não tem incorporadas). Eis o que, em nosso entendimento,
realmente pode explicar porque Justino tanto se diz teimoso...
N
A HISTÓRIA DE NEIDE: “EU
NÃO IA SER MULHER DA ROÇA”
Após a história de “Justino”, nos voltamos agora para “Neide”, uma mulher
agrestina para quem o trabalho sempre foi marcante. Por diversas vezes
ela retoma a importância de ter alcançado, por meio dele, independência
econômica para conquistas e difíceis decisões que precisou tomar. Sua mãe
é sua principal referência nesses termos. A disposição que Neide apresenta
para o trabalho tem origem na família e, em particular, no modo como via a
mãe lidar com a rotina diária do campo, com os afazeres domésticos e com
a criação de tantos filhos.
Ao iniciar a análise da história de Neide, nos chamou a atenção o fato de
que, em diversos pontos as interpretações sobre Justino também são perti-
nentes para aspectos que surgem e se fazem presentes na história de vida da
feirante – na realidade, sua história pode ser lida como um duplo feminino
de Justino, “sua irmã” ou amiga de infância.
Diante dessa relativa homogeneidade que pode ser constatada não so-
mente por meio das histórias deles, mas também pela de grande parte dos
feirantes que pesquisamos (como pode ser visto no capítulo 2), resolvemos
destacar um aspecto relacionado à sua condição feminina e, em particular,
ao modo como se projeta para a “vida moderna na cidade” – que vê em
oposição à “vida atrasada no campo”.
Feirantes - 113 -
A incorporação dos ideais e valores urbanos por jovens campesinas foi
um dos principais temas tratados por Pierre Bourdieu (2006 [1962]) em
pesquisa realizada no interior da França no início dos anos sessenta. Este
trabalho nos é fundamental e será recuperado neste capítulo, quando a his-
tória da protagonista apresentar traços por demais similares aos daquele
contexto.
71 Todas as citações de falas de Neide e de outros personagens que surgem ao longo de sua história
aparecem grafadas em itálico.
Foi depois dos trinta anos que seu pai começou a perder a visão. Não
pôde mais ir às feiras vender o que a família produzia na roça. Quando isso
aconteceu, sua mãe praticamente teve que se tornar pai e mãe e conseguir
o sustento da família, com ajuda da prole, somente da agricultura. O cami-
nho que surgiu foi deixar que os filhos homens seguissem, um a um, rumo
a São Paulo.
Feirantes - 115 -
morava em favela. Então através dessa dificuldade que nós
passamos, todo mundo sentia vontade, aquela vontade
de crescer, de sair daquele sofrimento, de levar uma vida
diferente. Então nós vencemos, os nove vencemos, sabe? Todo
mundo tem sua casa boa pra morar, tem, sabe? Tem sua vida
assim construída.
Caíram na estrada ainda bem novos, o destino foi tentar ganhar a vida na
capital paulista (tal qual também fez Justino, e depois seus irmãos) e, quiçá
de lá, mandar alguma ajuda para a família. As mulheres ficaram e seguiam
na rotina de trabalho na roça pela manhã, estudo à tarde (a mãe concedia
somente às moças esse privilégio, já que os rapazes que ainda não tinham
ido embora trabalhavam todo o dia) e escola da cidade à noite – iam num
transporte coletivo, todas as noites, já pago pelos irmãos que estavam em
São Paulo. Isso depois de terem concluído a antiga quarta série na escola de
um povoado rural mais próximo, para o qual precisavam andar uma hora
a pé até chegar lá.
Foi com esforço próprio, mas também à custa do esforço dos irmãos em
São Paulo, que todas as mulheres concluíram o então segundo grau (hoje
ensino médio), enquanto todos os homens não passaram da antiga quarta
série primária (ensino fundamental).
A diferença nos destinos das vidas em contextos como aquele estava em
parte atrelada ao fato de se tratar de um homem ou de uma mulher. No
entanto, como veremos mais adiante, o duplo papel (de pai e mãe) que a
mãe de Neide precisou desempenhar, para dar conta do sustento da família
desde a enfermidade do pai, e o fato de tanto Neide quanto suas irmãs te-
rem concluído os estudos regulares serão aspectos decisivos aos rumos que
sua história tomará.
Adolescência
Já mocinha, com doze ou treze anos, ao voltar da roça com a irmã, “quan-
do ouvia um barulho de carro, a gente já se escondia no mato pra ninguém ver,
com vergonha.” Não queriam que seus colegas as vissem naquela situação.
Feirantes - 117 -
Mesmo morando no sítio, aos quinze anos, Neide se considerava “mais
atualizada do que as próprias garotas que moravam na cidade. Ia pra todas
as festas que tinha na cidade... Eu não perdia uma”. Quando voltava para o
sítio, dava pouco ouvido ao que diziam por lá. “Povo mal informado, quem
estudava à noite, eles dizia que era tudo rapariga, era o vocábulo deles. As fia
de Seu Fulano são tudo rapariga! Isso era falta de conhecimento...”.
Mesmo sendo a escola muito mais do que um lugar no qual ela deveria
aprender as matérias, afinal, era por frequentá-la que muitas portas – para
amizades, paqueras, cinemas, enfim, para a vida citadina com a qual tanto
sonhava – eram abertas, Neide quase abandonou a escola por não gostar de
estudar. Sua sorte foi um tio que a incentivou a voltar, e sua ponderação:
“Poxa vida, se eu parar de uma vez eu vou ficar pro resto da vida aqui nesse
sítio, nesse mato. Não, não quero essa vida pra mim”. Então ela foi ao colégio,
falou com o diretor e ele a aceitou de volta.
Seu primeiro beijo foi aos dezesseis anos, numa daquelas idas ao cinema,
com um namoradinho rápido da cidade.
Neide não namorou nem na roça nem com ninguém da roça. Durante
a adolescência, o desejo de ir viver na cidade só se fortalecia. Ela tinha o
pensamento fixo de que, ao terminar os estudos, não viveria mais no sítio.
Queria fugir daquilo que representava a miséria em sua vida, daquele lugar
no qual ela já teve que “andar meia hora com uma lata de água na cabeça
pra tomar um banho”. Sua repulsa à vida da roça era tamanha que até a fazia
rejeitar pretendentes de boa condição econômica.
Queria ter seu próprio trabalho, ganhar seu dinheiro, poupá-lo para ter
uma casa, enfim, levar uma vida diferente. Foi então que lhe surgiu uma
primeira oportunidade para trabalhar somente num dia da semana, o dia
de feira da cidade. Ela foi. Aproveitava e fazia a feira da sua família, ficava
na casa de uma parente e voltava depois das aulas, no horário de sempre.
Alimentar a esperança de “viver o ideal de vida moderna na cidade” e
assim ter acesso aos bens de consumo que representam esse ideal (e que
ela, por se dizer tão moderna, já os tinha internalizado como valorosos em
si) é algo que se coloca em posição superior na hierarquia de valores de
Neide em comparação, por exemplo, a ter uma boa condição econômica no
campo. Sua prioridade era fugir da ampla ideia de “vida miserável” que em
parte viveu e em parte autorreforçou – obviamente por meio dessa “verda-
de” socialmente compartilhada que classifica o rural como ruim e o urbano
como bom. Ou seja, como sua prioridade era fugir da infância sofrida no
campo, do rótulo de “matuta”, a questão econômica fica em segundo plano
no seu discurso. No entanto, quando se tratar da sua independência, esse
aspecto econômico será fundamental para a incorporação e experiência da
vida e dos valores modernos urbanos.
Mesmo tendo seus sonhos totalmente voltados para a vida urbana, Nei-
de não alimentou a esperança de fazer uma faculdade. Para isso precisa-
ria se deslocar diariamente para uma das cidades maiores mais próximas
(Caruaru, Garanhuns ou Belo Jardim) e não havia a menor possibilidade
Feirantes - 119 -
financeira de fazê-lo. Além disso, ela estava tentando firmar-se naquela ci-
dade, precisava de um emprego. Dar continuidade aos estudos tanto não
era prioridade quanto não lhe atraía. A sua experiência na escola não lhe
permitiu incorporar a disciplina e a concentração necessárias ao estudo.
Como pelo trabalho ela já acreditava ter acesso direto ao mundo que so-
nhava, cursar uma faculdade não fazia parte do “horizonte dos possíveis”
para seu futuro. Talvez até o viesse a ser para um de seus filhos, mas ainda
não para ela.
72 Todas as citações desta seção são referentes a esse trabalho. Os dois quadros que se seguem são
construídos com trechos extraídos das páginas 83 e 84 no primeiro e 88 e 89 no segundo.
73 Pequeno agrupamento de casas na zona rural francesa que ficava no entorno de uma cidadezinha
ou vilarejo (bourg).
Feirantes - 121 -
danças, suas técnicas corporais, que irrompe na vida camponesa. Os modelos tra-
dicionais dos comportamentos em festas se perderam ou deram lugar a modelos
urbanos. Nesse domínio, como em outros, a iniciativa é das pessoas do bourg. Ele
também ilustra a observação crítica dos moradores da cidade, hábeis para perce-
ber o habitus do camponês como uma verdadeira unidade sintética, fica claro para
o camponês, a camponesa (que busca ao máximo demonstrar aderir aos valores e
modelos urbanos) e o jovem da cidade, quem é quem nesta “dança” dos distintos
habitus. (p. 83-4)
É observando cenas como essas que Bourdieu irá explicitar que as jovens
camponesas procuram ao máximo ter a aparência de moça da cidade. São
os jovens da cidade que despertam seus interesses nesses bailes. Os campo-
neses solteiros praticamente não dançam, afinal, o que se denomina “jeito
camponês” é, sem dúvida, uma característica da qual não podem fugir. Por
estarem particularmente atentas e sensíveis, devido a toda sua formação
cultural voltada para a aderência e incorporação dos valores urbanos, aos
gestos e atitudes, aos trajes e ao conjunto do comportamento dos seus pre-
tendentes, predispondo-se a julgar a personalidade dos jovens a partir da
aparência exterior, as moças, mais abertas aos ideais da cidade, julgam os
homens do campo segundo critérios que lhes são alheios. Ao serem avalia-
dos segundo esse padrão, eles são desvalorizados. (p. 86)
Como o camponês internaliza, por seu turno, a imagem desvalorizada
que os outros formam de si a partir das categorias urbanas, sua autoestima,
seu comportamento e até mesmo o modo como fala ou anda são vistos por
eles mesmos como obstáculos incontornáveis à abordagem de uma jovem
para a dança, com a possível consequência de estabelecer alguma aproxi-
mação a partir dessa iniciativa.
Consequentemente, “é por apreender seu corpo como corpo de campo-
nês que tem dele uma consciência infeliz”. (p. 87)
Feirantes - 123 -
casamento, elas são fortemente motivadas para se adaptar, adotando a aparência
da mulher urbana.
A camponesa fala bem a língua da moda urbana porque a entende bem, e a
entende bem porque a “estrutura” de sua língua cultural a predispõe para isso.
O que os camponeses e as camponesas percebem, tanto no morador da cidade e
no mundo da cidade como também nos outros camponeses, é em razão de seus
respectivos sistemas culturais. Daí decorre que, enquanto as mulheres adotam ini-
cialmente os signos exteriores da “urbanidade”, os homens tomam emprestados
modelos culturais mais profundos, em particular nos domínios técnico e econô-
mico. Também é compreensível que seja assim. A cidade é, para a camponesa,
antes de tudo a grande loja de departamentos. Mesmo que algumas dessas lojas se
destinem, de fato, a uma minoria, grande parte delas se dirige a todas as classes.
Em resumo, ela não vê senão, como se diz, o lado bom da cidade. Daí se compre-
ende, por um lado, que a cidade exerça verdadeiro fascínio na jovem camponesa e,
por meio da cidade, também os homens citadinos; por outro lado, compreende-se
que a jovem camponesa empreste das mulheres da cidade os signos exteriores da
condição das citadinas, ou seja, aquilo que conhece dessas mulheres.
Na cidade, por meio das revistas quinzenais femininas, dos folhetins, das histó-
rias dos filmes, das canções da moda transmitidas pelo rádio, as moças empres-
tam também os modelos da relação entre os sexos e um tipo de homem ideal,
totalmente oposto ao camponês “rústico”. Assim se constitui todo um sistema de
expectativas que o camponês não poderia preencher. Em virtude da dualidade dos
quadros de referência, consequência da diferente penetração dos modelos cultu-
rais urbanos em ambos os sexos, as mulheres julgam seus conterrâneos campone-
ses segundo critérios que não lhes dão nenhuma chance. (p. 88-9)
Como o leitor pode observar, a história de Neide até aqui tem diversas
similaridades com tais observações e análises. Em particular, sua determi-
nação em não continuar a vida no campo, assim como as jovens francesas
empenhadas em se projetar para a cidade. Eis o porquê da interrogação
entre parênteses no título da seção, afinal, muito do que o sociólogo francês
detectou também pôde ser observado de modo determinante na história
de vida da feirante.
Quando entrou lá, seu patrão dizia, “você tem que vim todo dia bem bo-
nitinha, cabelo bem arrumadinho, usar um batonzinho. Tão iniciando, não
Feirantes - 125 -
tem dinheiro, a gente faz um valezinho aqui tem batom, vocês compra mas
vem tudo bonitinha...”. Foi lá no supermercado, onde começou como caixa
e chegou a ser tesoureira, que aprendeu a fazer a contabilidade e a organi-
zar as finanças de uma empresa. Aqui a observação do pai agricultor-co-
merciante-“matemático” e a escolarização realizada, mesmo que sem tanto
empenho, podem ser consideradas como experiências prévias que possibi-
litaram a Neide incorporar e apresentar as disposições requisitadas no tra-
balho. Na realidade, a grande vontade de se firmar na cidade lhe abastecia
de forças para superar tanto as limitações que tinha quanto as dificuldades
que surgiam nesse caminho.
Mas esse emprego foi apenas a primeira de muitas experiências que teve,
aliás, ainda quando estava nele, Neide já comprava e vendia confecções,
tinha suas “virações”, como nos disse. Depois que o patrão vendeu o super-
mercado, ela comprou um ponto comercial no centro com sua indenização,
também passou a emprestar dinheiro a juros (como agiota), teve uma fabri-
queta de bolsas e, por último, antes da barraca de alimentação na Feira de
Caruaru, prestou serviços para a prefeitura do seu município natal.
Foi na cidade, por meio disso que chama de “virações”, que Neide con-
quistou sua autonomia econômica, no entanto, isso não era suficiente para
a realização do seu “sonho de vida”...
Feirantes - 127 -
dura realidade que teria de enfrentar se tivesse de continuar a morar naque-
la pequena cidade interiorana, na qual passou a sentir outros efeitos sociais
do conservadorismo.
Resolveu-se por entrar nesse novo ramo e comprar a lanchonete. “Já era
um pontinho feito, como se diz, né? Já tinha a clientela toda certinha, aí eu
venho tocando o negócio já há três anos. Nunca me arrependi”. Sua barraca é
simples, porém bem localizada, fica num dos principais corredores entre as
vias internas da feira. É feita de alvenaria e tem balcão coberto de azulejo.
Lá ela e seu filho vendem lanches básicos, folhados, coxinhas e bolos que
compra de uma fornecedora. Sanduíches, sucos e caldo de cana são feitos
na barraca mesmo.
Feirantes - 129 -
Valores e vida hoje
“A família da gente é muito unida, ninguém tem inimizade com ninguém”.
O único problema sério que teve foi com um dos seus irmãos quando ain-
da morava no sítio. Esse irmão era muito desobediente aos seus pais, mas
como ele já trabalhava, sua mãe pediu-lhe um dinheiro emprestado. Certo
dia ele veio cobrar o dinheiro de volta, mas ela não pôde pagá-lo e ele foi
rude e agressivo, “partiu pra cima dela”. No outro dia quando sua mãe, cho-
rando, lhe contou a história, Neide diz que: “aí eu reagi, peguei pesado, fui
pra cima dele. Mas imagina uma mulher com um homem. Fui pra cima pra
porrada mesmo. A gente ficou um tempo sem se falar...”. Mas depois ele foi
ao casamento dela e lá fizeram as pazes.
O exemplo da mãe lhe foi muito forte, em especial por ter vindo de onde
ela veio, no sentido de como uma mulher pode dar conta de situações difí-
ceis. “A minha mãe tinha saído de um berço de ouro, casou com meu pai, não
sabia o que era uma enxada e depois que casou, com vários filhos pra criar,
teve que ir aprender a ir pra roça, com uma enxadinha nas costas pra poder
ganhar a vida.” Foi sua mãe quem “cuidou daquele monte de crianças com a
maior responsabilidade e praticamente sozinha”, depois da cegueira do pai e
da ida dos irmãos para São Paulo. Neide diz que foi ao vê-la naquela situa-
ção que aprendeu a ser independente.
A sua independência, em especial econômica, é motivo de muito orgu-
lho e pode ser observada em sua visão sobre os homens, “muito machistas75
de um modo geral. Tem alguns que nem aceitam casar com mulheres que
tenham uma situação financeira melhor de que as deles [risos], não aceita
não. O pai dos meus filhos era assim”.
Ao longo de sua vida, Neide acredita ter mudado muito, em particular
nos últimos anos depois da separação. Perguntada sobre qual seria uma das
suas qualidades, ela responde ter muitas, mas destaca “a honestidade acima
de tudo, o meu carisma com todo mundo. Eu respeito mais as pessoas depois
que conheci a Deus”.
75 Para ela, ser machista: “É ignorância, a mulher não pode conversar com um homem porque se
conversar já tá rolando... É liberdade zero!”
Ela acredita que a religião influencia nosso caráter e que todo ser huma-
no tem que ter uma religião, “seja ela católica ou evangélica, ele tem que ter,
tem que ter conhecimento e tem que seguir”. São as necessidades da vida que
a motivam a frequentar a Igreja.
Feirantes - 131 -
A religião veio a ocupar o lugar que ficou vazio do sonho da vida na cida-
de com os anos de sofrimento no casamento com um homem de lá. Neide
demorou para aceitar sua infelicidade corroendo o sonho que sonhou. Foi
preciso, então, se apoiar em algum novo conjunto de valores. Foi na religião
que encontrou o amparo para se reconstruir diante da vida despedaçada,
o que dá sentido à comparação com uma escola, afinal, a igreja ocupou o
lugar da escola (na adolescência) rumo a uma nova vida.
Hoje ela sente ainda mais falta do lazer que afirma nunca ter tido. Está
cansada e quer mais tempo para viajar no final de semana, “a minha vida
só é de casa pra essa lanchonete, dessa lanchonete pra casa e uma missa
no final de semana... Até hoje eu me sinto uma verdadeira escrava do
trabalho.” Apesar disso, ela acredita que valeu a pena seu esforço pela esta-
bilidade econômica que conquistou. O modo como nos falou de sua casa,
de como ela é, do que tem nela, demonstra a necessidade que Neide tem de
confirmar para si mesma que valeu a pena toda sua dedicação ao trabalho.
“Comprar e pagar e não ter nenhum débito com Deus. Porque um dia a
morte vai vim pra todos nós. Então se você pegou, comprou aqui e não pa-
gou, vai ter que prestar conta a Deus, vai sim.” Talvez esta frase sintetize as
preocupações de Neide em relação ao modo como lida com o consumo e
com seu comportamento econômico de modo geral. “Eu tenho prazer de
comprar e pagar. ... Puxa vida, você não comprou, por que você não paga?”
Ela também não gosta de dever, raramente compra a prazo, “não gosto de
prestação. O bom é você ter o seu dinheiro no bolso, saber que não tá devendo
pra ninguém, isso é uma maravilha.” E emenda nos dando, envaidecida, o
exemplo da moto que comprou recentemente para o filho.
Feirantes - 133 -
no final de ano pra poder dar continuidade, fazer por onde
economizar, poupar pra chegar numa moto melhor...
Para juntar e guardar seu dinheiro, tem uma poupança no banco, “pro-
curo fazer minha economia pra poupar, o que me sobra eu faço minha pou-
pancinha”. Além da renda da barraca, tem também um imóvel no seu mu-
nicípio natal, que pretende vender e, com o dinheiro, comprar casas para
alugar em Caruaru.
Neide nos revela que gosta “de comprar roupa cara, eu gosto. Eu venho
trabalhar bem simplesinha, mas uma roupa pra eu sair não tem muita piran-
gagem não”. Afinal, seria de estranhar se Neide não se deixasse ao menos
neste quesito se levar pelas tentações da cidade, ou seja, sua disciplina eco-
nômica é quebrada em relação a “roupas”. É por meio desse tipo de consu-
mo que ela se sentirá realizando o sonho de infância.
Neide conta que “as roupas que compro uso quando saio no final de sema-
na e vou no shopping... na missa também vou mais arrumadinha. Aqui eu
venho simplesinha... Eu já fui assaltada uma vez” – assim nos justifica como
está vestida na feira.
Chega nessa fase, que os filhos passam dos treze anos, eles tem
que trabalhar sim, a justiça diz que não, o Conselho Tutelar diz
que não, que ainda é considerado uma criança, que tem que
viver batendo uma bolinha, mas é a partir daí que os pais, se
não tiver cuidado, eles viram vagabundo mesmo, não tem res-
ponsabilidade com nada. Trabalhar depois dos dezoito anos?
Não, ele tem que sentir a forcinha desde cedo. Eu me divorciei
tem quatro anos, e eu não senti peso algum em ficar com meus
três filhos e cuidar deles. Nunca me faltou nada nem pra mim
nem pra eles, nem o que vestir, nem o que calçar, nem dinheiro.
Aí eu passo pra eles quando eu converso, que o diálogo tem
que existir sim entre família, principalmente na minha situa-
ção que eu sou mãe e pai só. Tem que existir, eu separei, mas o
pai dele é um homem honesto que gosta de comprar e pagar. E
eu também gosto, mas nem sempre os filhos seguem a mesma
história dos pais. Nem sempre se preocupa em comprar e
pagar. Eu acho isso uma desonestidade...
Feirantes - 135 -
Eu tenho uma filha com quinze anos, para quem surgiu uma
oportunidade agora. Um colega chegou aqui, aí como minha
lanchonete hoje tá quase parada... aí eu disse tô com minha fi-
lha dormindo, é três anos que ela trabalha comigo, quer que ela
faça uma experiência com você, que lhe ajude hoje e amanhã...
tá com ele, ele aprovou no primeiro dia, com quinze anos, já
contratou salário mínimo mais hora extra e ela tá toda feliz.
Uma moleca, né? Quinze anos. Aí nós ficamos em dois aqui, eu
e ele [se referindo ao filho do meio].
Muito embora a filha ainda estude (pela manhã, e agora com o trabalho,
tenha que mudar o horário para a noite), mesmo que não fale, a prioridade
para Neide é o trabalho. O filho do meio, de dezoito anos, também estuda,
vai cursar o primeiro ano do ensino médio, mas não gosta, já repetiu duas
vezes. É ele quem está sendo preparado por ela para cuidar da barraca.
Feirantes - 137 -
Diferentemente dela, a filha não soube fazer uso de sua boa aparência.
A feirante se lamenta, diz que não foi por falta de conselhos que isso acon-
teceu. “Eu dizia sempre a ela: ‘Filha, a mulher tem que ser inteligente na
hora de namorar, se envolver com malandro acaba com a própria vida’”. E
vê com muita tristeza o fato de uma filha não ter aproveitado as oportu-
nidades que uma mãe como ela proporcionou. “Teve a oportunidade de tá
fazendo um vestibular. Eu já me esforçando e ela nega a tudo porque ele disse
a mim: ‘eu não quero mulher minha estudando ... porque mulher que vai pra
faculdade, principalmente à noite, vai e acaba botando ponta no marido’.”
Feirantes - 139 -
sim, não vou ficar dentro de casa vinte e quatro horas, é lógico.
Eu venho praqui, ajudo ele nos dias principais, no horário da
manhã que dá mais movimento, e à tarde eu vou mais cedo pra
casa e meu filho fica até duas, três, até ver que é conveniente
pra ele fechar.
Feirantes - 141 -
do pelo consumo de roupas “de marca”. É certamente aí que Neide realiza o
sonho da adolescência de ver-se como uma mulher urbana-moderna.
Muito embora tenha tentado bastante, e ainda tente, transferir aos filhos
seu habitus, em particular em sua dimensão relacionada ao trabalho, essa
tentativa não foi bem-sucedida em relação à filha mais velha, nem parece
estar sendo em relação ao do meio. Como demonstração desse empenho
de Neide, sua filha mais jovem, mesmo estando ainda em idade escolar, já
trabalha numa lanchonete – algo que nos foi contado com orgulho.
Neide diz gostar muito da feira e do seu negócio. Em A Distinção..., por
meio dessa categoria “gosto”, Bourdieu (2007) explica os mecanismos es-
truturantes da sociedade francesa de seu tempo ao afirmar que essa ideia
está atrelada à condição de classe e de possibilidades factíveis a partir dela.
O gostar surge, então, em muitos casos, como vimos também na história
de Justino, como autojustificação, ou mesmo autoengano, diante de não ter
conseguido coisa melhor na vida. Ou então com projeção do gosto da clas-
se da qual se quer fazer parte e se ver como tal, algo que podemos perceber
nas roupas que consome, no modo como descreve sua casa, nos seus planos
de aposentadoria e viagens. Ou seja, são planos condizentes com uma clas-
se da qual ela gostaria de fazer parte, e que é sua referência até mesmo no
modo como conta sua história e descreve suas práticas, mas da qual é, ao
mesmo tempo, vítima de preconceito (de classe) quando vai a uma loja de
roupas de marca, como ela mesmo diz, “feirada”.
Neide apresenta, ao longo de sua história, desejo, coragem, ousadia e so-
frimento em decorrência de sua imersão e visão de mundo de acordo com
determinado conjunto de valores sociais que funcionam para ela como ver-
dades autoevidentes também tomadas para si. Esse aspecto faz a sua histó-
ria de vida ser potencialmente similar à história de muitas outras pessoas
que hoje são feirantes. Afinal, o social se faz presente em nós muito mais do
que somos capazes ou nos permitimos observar.
76 Uma versão anterior deste texto foi publicado no volume organizado por Souza (2010).
77 Então estudante de Administração do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) da UFPE.
78 Neste texto estamos tomando como horizonte analítico um tipo deste batalhador que seria o “ba-
talhador feirante”. Aqui acolá escreveremos somente “batalhador”, mas sempre nos referindo a esse tipo
específico, o “batalhador feirante”.
Feirantes - 145 -
- Sua renda depende diretamente e pode ser ampliada pelo seu trabalho
(IPEA);
- Em geral, não concluiu o ensino médio, mas estudou alguns anos a
mais que seus pais;
- Tem atividade profissional melhor que a dos pais (em termos de reco-
nhecimento social);
- Tem como horizonte social a “pequena-burguesia” (Unger, 2008) não
somente em termos de bens de consumo a serem adquiridos, mas também
em termos de estilo de vida a ser almejado e, na medida do possível, segui-
do;
- Acredita que pode e trabalha para projetar os filhos rumo à ascensão
social já que seu tempo físico talvez não lhe seja suficiente para tal;
- Em geral, seus filhos têm um “ponto de partida” social melhor (em ter-
mos de disposições “herdadas” e/ou adquiridas na infância para a luta por
sobrevivência e êxito no mundo moderno) que os próprios batalhadores ti-
veram, pois concluem o ensino médio (ou mesmo chegam à Universidade);
- Apresenta dimensão moral-ética vinculada diretamente ao trabalho,
acredita piamente que, por meio dele, pode “crescer na vida” ;
- Incorporou no seio da família algo que o permite ascender socialmen-
te – um conjunto interligado de disposições necessárias à ascensão social
dessa classe, tal como a transmissão de exemplos e valores do trabalho duro
e continuado, mesmo em condições sociais muito adversas (Souza, 2010).
Origem e trajetória
Filho de Seu José e de Dona Josete, um casal de agricultores que vivia
nos arredores de pequena cidade da região. Pedro lá nasceu e viveu seus
primeiros anos, mas logo veio, ainda menino, morar em Caruaru com os
pais. Mesmo nascidos e criados num sítio como aquele no qual moravam
com os filhos, os atrativos de uma cidade maior e de uma vida melhor,
com mais possibilidades para arrumar um trabalho para eles e, futuramen-
te, para os seus filhos, fizeram com que Seu José decidisse se mudar com a
família. Muito embora fosse o campo lugar mais tranquilo para se viver, em
sua visão, para “crescer na vida”, era preciso ir a um lugar que possibilitasse
arrumar trabalho melhor que a agricultura.
Seu José lia um quase nada com muita dificuldade. Praticamente não
estudara na escola da roça. Dona Josete estudou um pouco mais, mas não
o suficiente para que lesse com qualquer facilidade. Já o filho Pedro e seus
cinco irmãos, criados e crescidos em Caruaru, foram algo além, porém não
muito. Estudaram todos numa escola municipal, os quatro mais velhos cur-
saram algumas séries do antigo primeiro grau. Um deles quase o concluiu,
mas foi reprovado no penúltimo ano e desistiu. Não conseguiu persistir
como os mais novos. Pedro e a moça mais nova conseguiram, terminaram
o primeiro grau. No entanto, mesmo ele tendo certa facilidade com a mate-
mática, não aguentou ir além. A rotina era muito dura, trabalhar o dia todo
e de noite ainda enfrentar as agruras de uma escola pública.
O pai foi trabalhar em obras, virou pedreiro. Na cidade, Pedro fez quase
tudo. De ajudante do pai a balconista de armazém de construção. Começou
a trabalhar logo cedo, ainda no tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na
contagem, transporte e venda dos seus produtos agrícolas. Ia sempre com
ele vendê-los na feira da outra cidade (a pequena). Atendia aos compra-
dores, pesava as mercadorias, recebia e passava troco. Já naquele tempo,
aprendeu que o dinheiro que entrava não era todo para gastar, lembra viva-
mente o que seu pai sempre dizia: “apurado não é lucro, meu filho!” Já em
Feirantes - 147 -
Caruaru, um pouco maior, continuou desempenhando atividades similares
na bodega que seus pais montaram na frente da casa onde moravam.
Então com 43 anos, morava numa pequena casa de cinco cômodos com
a mulher, três filhos e a sogra, no bairro mais populoso da cidade, o Sal-
gado. As crianças, de oito, nove e quinze anos, passavam a manhã com a
avó e à tarde iam para a escola. A mais velha raramente aparecia na feira,
já estava no ensino fundamental. Lê com bem mais desenvoltura que o pai,
quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso. Sua esposa
trabalha com ele, acorda regularmente cedo de segunda a sábado. Até hoje
vão juntos para a feira, suas vidas estão também ligadas pelo comércio.
Aos domingos toma algumas poucas cervejas com os irmãos. Quando mais
novo, ainda batia uma bola com os vizinhos, mas hoje em dia, não se ar-
risca. A idade e a distância que se autoimpõe dos mesmos (que seguiram
outros caminhos diferentes do trabalho) não lhe permitem mais. Pensa no
exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias que espera para eles.
Como uma pessoa como Pedro administra seu pequeno comércio? Essa
é a questão-síntese que nos norteia.
Para que o leitor tenha clareza do que pensamos quando utilizamos o
termo administração, é preciso recuperar a definição apresentada no ca-
pítulo 2. Aqui, administração é entendida como o conjunto de atividades
necessárias ao planejamento e funcionamento cotidiano de um negócio.
Ou seja, são atividades que vão desde a escolha devida do local no qual
será aberto o negócio, definição dos horários de funcionamento, divisão e
monitoramento das atividades a serem desempenhadas pelas pessoas que
nele trabalham, controle financeiro, decisões sobre compras a serem feitas,
contas a serem pagas, trabalhadores a serem contratados (ou não), decisões
sobre melhorias a serem feitas na estrutura do negócio, ordenação dessa
estrutura e de sua aparência. Usamos o termo como sinônimo de “gestão”.
Antes de seguirmos, é preciso fazer um alerta e um convite ao leitor. O
modo como Pedro administra seu pequeno negócio pode ser bem diferente
do que se diz na administração que é encontrada nos círculos científicos,
nas grandes e médias empresas, nos manuais mais vendidos e utilizados
nos cursos da área – obviamente, esse fenômeno (o modo como pessoas
com esse perfil administram seus pequenos negócios) também não recebe
atenção das ciências sociais não aplicadas. Para melhor observá-lo, é pre-
ciso ampliar o horizonte da visão sobre o indivíduo-administrador e vê-lo,
80 É Bernard Lahire (2005b, p. 120, tradução nossa) o sociólogo contemporâneo que nos permite
avançar com segurança nessa relação entre contexto social e indivíduo. Para ele, “o indivíduo é o pro-
duto de múltiplas operações de dobramentos (ou de interiorização) e se caracteriza pela pluralidade
das lógicas sociais que ele interiorizou. Essas lógicas se dobram todos os dias de modo relativamente
singular em cada indivíduo”.
Feirantes - 149 -
fonte de renda. Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura
de um negócio de feira, conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um
ponto e montar um pequeno comércio. Como sua esposa cozinhava bem e
ele já tinha a experiência de feirante na feira da sulanca, resolveu abrir uma
barraca de alimentação na feira. Via nesse ramo a possibilidade de rápido
retorno do investimento e também pensava, em médio e longo prazo, pro-
piciar vida melhor para sua família. Na realidade, era a melhor dentre as
poucas alternativas que lhe eram viáveis. Isso já fazia cinco anos.
A barraca de Pedro fica num dos “polos” de alimentação da feira, entre o
mercado de carnes e o de farinha. Ele fala com orgulho sobre a escolha da
localização do seu ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprá-
-lo e que rejeitou muitos outros por não serem bem localizados, pensava
ele, “tem que ter um bom local, tem que ter boa visão”. Ela é bem simples,
tem os equipamentos necessários a uma cozinha, um balcão com bancos
altos fixos e três mesas com cadeiras que ele e sua esposa espalham para os
clientes na frente da barraca. Além de geladeira, congelador, fogão e demais
utensílios de cozinha, uma televisão de 20 polegadas está quase sempre li-
gada. Tanto eles quanto os clientes assistem a programas de auditório, noti-
ciários populares ou programas policiais, quando não está em exibição al-
gum DVD do sucesso do momento. Ainda não satisfeito com o que tem na
barraca, pensa em equipá-la com um microondas e uma nova e maior TV.
Durante esse tempo no ramo de alimentação, ele já fez algumas me-
lhorias em seu negócio. A primeira delas foi uma reforma no teto, no ano
passado, colocou piso de cerâmica, tirou o balcão de madeira, fez um de
alvenaria (revestido com cerâmica) e colocou os bancos fixos de ferro. Pro-
cura, ao mesmo tempo, melhorar a aparência e o ambiente no qual serve
os clientes e passa seus dias de trabalho com a esposa. Eles têm uma jor-
nada mais puxada não somente nos dias das grandes feiras, mas também
nas vésperas delas. “Como amanhã é dia de feira, então tem que tá tudo
limpinho e arrumado”, diz ela ao continuar ajudando-o na arrumação. As-
sim como Pedro, ela também parece ter consciência de que nos negócios a
aparência vale muito. O cuidado com a higiene da barraca e das comidas
é constante. “Uma coisa que se faz bem feita, não tem valor se não tiver
uma boa aparência”. Além disso, emenda, “tem coisas que não se ensina em
cursos: bom atendimento, qualidade no produto e preço competitivo”. Outro
cuidado, também constante, é com a economia, afinal, “tem que fazer as
Feirantes - 151 -
As melhorias que fez no negócio e a educação dos filhos estão demandan-
do todo o dinheiro que sobra. Como reformou a barraca há pouco, para
ampliá-la pensa num empréstimo e comenta, procurando demonstrar-se
atualizado, uma notícia que assistiu na TV sobre a simplificação da aber-
tura de crédito para pequenos comerciantes. “Desse jeito, talvez até dê para
mim...” diz ele, muito embora demonstre certo receio desse tipo de opera-
ção, pois quando precisam de dinheiro, geralmente, seus colegas recorrem
a parentes, amigos ou até mesmo a agiotas.
Pedro pensa que o governo federal poderia facilitar o acesso ao crédito
com juros baixos. Pensa também que o governo municipal poderia me-
lhorar a feira objetivamente, tanto para o turismo quanto em termos de
organização, e também reduzir os impostos. Ele diz ter como maior preo-
cupação em relação à feira a questão da segurança. Tanto ele quanto seus
vizinhos se queixam bastante da ausência dela e apontam para o poder pú-
blico como responsável por isso.
Emocionado, Pedro diz que foi na feira que conseguiu quase tudo que
tem hoje, demonstra ter carinho por ela, mas que, mesmo assim, queria
conseguir montar um comércio “na rua”81 mesmo e não queria esse destino
de feirante, de modo algum, para seus filhos.
83 Diretamente relacionados a cada uma das disposições apontadas. Lembremos que essas disposições
somente podem ser construídas teoricamente, como conceitos, partindo dos pensamentos, sentimentos
e ações de um batalhador como ilustram os trechos a seguir entre parênteses.
Feirantes - 153 -
vimento. Nesse conjunto estariam reunidas, acompanhadas dos respecti-
vos trechos que as ilustram, disposições como as seguintes: disposição para
projeção dos filhos para ascensão (“[A filha] Lê com bem mais desenvoltu-
ra que o pai, quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso”);
disposição para fazer-se exemplo (“Pensa no exemplo a ser dado aos filhos.
Nas boas companhias que espera para eles”); disposição ascética (“Depois
de muito trabalho e com esta experiência ... recebeu uma promoção. Tor-
nou-se ‘encarregado’, fala com muito orgulho daquilo”); disposição para
aprendizagem pela experiência (“Através desse trabalho, além de aprender
o jogo de cintura de um negócio de feira”); disposição para projeção de
futuro (“também pensava, em médio e longo prazo, propiciar vida melhor
para sua família”); disposição para construção de imagem positiva (“O som
alto e algumas brigas que acontecem são vistos por Pedro como coisas que
afastam os seus clientes e afetam a imagem do negócio que ele tanto cuida
para fazer parecer ao máximo com um ‘restaurante’”); disposição para a
aquisição de bens de consumo “superiores” (“Ainda não satisfeito com o
que tem na barraca, pensa em equipá-la com um microondas e uma nova
e maior TV”).
Disposições econômicas gerais seriam as disposições mais gerais que se
impõem ao indivíduo no sentido de que ele incorpore, recuperando aqui
as palavras de Bourdieu (1979, p. 14), “através da educação implícita e ex-
plícita, o espírito de cálculo e de previsão” amplamente requisitados num
contexto capitalista moderno. Aqui estariam agrupadas basicamente duas
disposições já devidamente ilustradas: disposição para o cálculo econômi-
co (“seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”/“Registra o
que entra e o que sai de cabeça”); disposição para poupança (“conseguiu
juntar algum dinheiro para comprar um ponto e montar um pequeno
comércio.”/“já fez poupança regular”).
Como disposições administrativas denominamos as disposições que
são determinantes no modo como um batalhador comerciante pensa e
desempenha diariamente diversas das atividades necessárias ao “bom” fun-
cionamento de seu pequeno comércio, ou seja, inclinações e propensões à
realização de ações de planejamento, coordenação, ordenação e controle
de um negócio. Vale ressaltar que este último conjunto é diretamente de-
pendente e vinculado aos conjuntos anteriores, pois seriam mais gerais e
também relacionados ao modo como o indivíduo se projeta no mundo,
Feirantes - 155 -
-
Quadro-síntese da seção
156 -
Para autossuperação a. disposição para projeção a. “(A filha) Lê com bem mais desenvoltura que o pai, quer entrar
(inclinações e propensões – dos filhos para ascensão na universidade. O pai vibra e apoia muito isso.”
que podem ser observadas
empiricamente por meio b. disposição para fazer-se b. “Pensa no exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias
de trechos da história de exemplo. que espera para eles.”
vida de um trabalhador que c. “Depois de muito trabalho e com essa experiência (que o diferen-
apontam para pensamentos, c. disposição ascética
ciava) recebeu uma promoção. Tornou-se ‘encarregado’, fala com
sentimentos e ações – que muito orgulho daquilo.”
visam à superação de uma
condição de vida anterior
ou atual e, consequente-
mente, a projeção do fei- d.1 “Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura de
rante-batalhador para uma um negócio de feira.”
d. disposição para aprendi-
outra situação de vida, vista d.2 “Aprenderam a fazer o que fazem hoje por meio das experi-
zagem pela experiência
por ele como melhor, tanto ências profissionais anteriores de Pedro, da observação dos outros
para si próprio quanto para feirantes e da prática culinária de sua esposa.”
seus familiares)
Feirantes
e.2. “Emocionado, Pedro diz que foi na feira que conseguiu quase
e. disposição para projeção
tudo que tem hoje, demonstra ter carinho por ela, mas que, mesmo
de futuro
assim, queria conseguir montar um comércio “na rua” mesmo e
que não queria esse destino de feirante, de modo algum, para seus
filhos.”
f. “O som alto e algumas brigas que acontecem são vistos por Pedro
f. disposição para constru- como coisas que afastam os seus clientes e denigrem a imagem do
ção de imagem positiva negócio que ele tanto cuida para fazer parecer ao máximo com um
‘restaurante’.”
g. disposição para a aqui-
g. “Ainda não satisfeito com o que tem na barraca, pensa em equi-
sição de bens de consumo
pá-la com um microondas e uma nova e maior TV.”
“superiores”
h. disposição para o cálcu- h.1. “seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”
Econômicas gerais (dispo- lo econômico h.2. “Registra o que entra e o que sai de cabeça.”
sições gerais para a incorpo-
ração de espírito de cálculo i.1. “conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um ponto e
e de previsão) i. disposição para poupança montar um pequeno comércio.”
i.2. “já fez poupança regular.”
-
157 -
-
Administrativas j.1. “ainda no tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na contagem,
transporte e venda dos seus produtos agrícolas.”
158 -
(disposições que são deter-
minantes no modo como j.2. “Outro cuidado, também constante, é com a economia, afinal,
um feirante-batalhador j. disposição para cálculo “tem que fazer as coisas direitinho, se não no final do mês fica no
pensa e desempenha dia- econômico aplicado buraco.”
riamente diversas das ativi- j.3. “Como reformou a barraca há pouco (piso e balcão), para am-
dades necessárias ao “bom” pliá-la pensa num empréstimo”.
funcionamento de seu pe- j.4. “Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investi-
queno comércio, ou seja, as mento.”
inclinações e propensões à k. disposição para atendi- k. “Atendia os compradores, pesava as mercadorias, recebia e pas-
realização de ações de pla- mento e trabalho comercial sava troco.”
nejamento, coordenação, l. disposição para organiza- l.1. “Com o tempo, passou a orientar, ordenar e controlar os carre-
ordenação e controle de um ção e coordenação de ativi- gamentos melhor que seus colegas.”
negócio) dades l.2. “As atividades são divididas.”
Feirantes
m. disposição para “visão
m.2. “Ele fala com orgulho sobre a escolha da localização do seu
de negócio”
ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprar e que re-
jeitou muitos outros por não serem bem localizados, pensava ele,
‘tem que ter um bom local, tem que ter boa visão’”.
n.1 “Procura [...] melhorar a aparência e o ambiente no qual serve
n. disposição para cons- os clientes.”
trução de imagem positiva n.2 “nos negócios a aparência vale muito.”
nos negócios n.3 “fazer tudo ‘nos conformes’, como era exigido na transporta-
dora.”
n.4 “preza bastante pela organização e aparência de sua barraca.”
o. disposição para aprendi-
o. “tem coisas que não se ensina em cursos: bom atendimento, qua-
zagem na prática dos negó-
lidade no produto e preço competitivo”.
cios
p. disposição para aprendi- p. “Ele diz ter aprendido como fazê-lo no ramo observando as bar-
zagem por meio de obser- racas mais arrumadas que a sua, como os proprietários delas faziam
vação de outros negócios para mantê-las sempre “nos trinques” e terem êxito nos negócios.”
-
159 -
Voltando à história de Pedro
Por meio do quadro acima construído, podemos fazer breve retorno à his-
tória de Pedro e, assim, reconstruir, também de modo sintético, as linhas gerais
das origens das disposições decisivas ao modo como ele administra sua barra-
ca.
Tais origens podem ser observadas em sua história desde cedo, já na in-
fância, quando aprendia com os dogmas do pai que “apurado não é lucro”
ou por observação e acompanhamento do mesmo no desempenhar de suas
atividades cotidianas de agricultor-comerciante. Foram reforçadas depois,
já em Caruaru, mas ainda desenvolvendo atividades similares também na
bodega da família. A referência familiar é forte para a formação de sua dis-
posição ascética para o trabalho, o exemplo do pai é incorporado por Pedro
que assim também o faz. Trabalha muito não somente para sobreviver, mas,
também, tanto para dar este exemplo aos filhos quanto para ser reconheci-
do socialmente como um trabalhador e assim ser considerado digno.
É um pouco na escola, ao desenvolver um raciocínio matemático que já
conhecia na prática ao vender os produtos agrícolas do pai desde pequeno,
mas é muito mais nas suas experiências de trabalho (familiares e, poste-
riormente, profissionais) que Pedro desenvolve as propensões requisita-
das para a subsistência econômica no seio do capitalismo contemporâneo.
Trabalhar numa grande empresa, na qual existem procedimentos, normas,
orientações previamente definidas para o desempenho das funções, ou seja,
toda uma estrutura burocrática, faz com que uma pessoa como Pedro, nas-
cida “no mato” e criada numa cidade interiorana, precise incorporar novas
disposições que ainda não haviam sido requisitadas pelos contextos de ação
nos quais havia vivido até então e, desse modo, aprenda na prática o que
deve fazer. Como é possível observar, as possibilidades são bem significa-
tivas de que o indivíduo, ao ser confrontado com um novo contexto, ou
incorpore (em maior ou menor grau, a depender dos casos) determinadas
disposições nesse demandadas, deixando “adormecidas” outras mais per-
tinentes ao seu contexto original (campo/zona rural) ou anterior (cidade
maior, mas também interiorana), ou então reforce apetências contrárias a
esse novo meio social (cidade grande, trabalho na empresa) e acabe por
retornar a ambientes sociais mais favoráveis ao estoque disposicional que
porta, por exemplo.
Feirantes - 161 -
Considerações finais do capítulo
O que claramente diferencia essa nova classe trabalhadora do que se
convencionou denominar de classe média, por exemplo, não é apenas a
renda, mas também (e significativamente) os modos de pensar, agir e sentir
constatáveis nas vidas cotidianas que levam os membros de uma e de ou-
tra classe. Aqui procuramos caracterizar o modo como atua um dos tipos-
-membros de uma classe social que conseguiu, ao longo de sua trajetória de
vida, incorporar minimamente práticas necessárias à sobrevivência produ-
tiva no mercado de trabalho brasileiro contemporâneo.
Dentre tais disposições, a resiliência no trabalho, ou seja, a capacidade
de não desistir e de enfrentar jornadas extenuantes juntamente à prática de
poupança (mesmo que de modo inconstante) e a crença em sua iniciativa
prática de “se virar” mesmo em situações das mais adversas são destacáveis.
Além dos aspectos da história ideal-típica contada acima, dentre os fei-
rantes que responderam nosso questionário, 86,7% deles foram criados por
pai e mãe juntos – algo diferente da realidade da maioria dos membros da
ralé apresentados em Souza (2009). O trabalho desde cedo junto aos pais e
irmãos, quer seja na roça, na feira ou mesmo num pequeno comércio fami-
liar, é traço marcante na história de vida de inúmeros brasileiros que, como
Pedro, incorporam uma forte ética do trabalho desde então.
A projeção de um futuro melhor para os filhos observada na nova classe
trabalhadora brasileira é algo próximo ao que Bourdieu (2007) percebeu,
em relação à pequena burguesia francesa, ao observar que em suas exis-
tências muitos indivíduos não conseguem ir além de determinado status
na hierarquia social. Diante de tal condicionamento, fazem o possível para
projetar ao máximo seus filhos no sentido da ascensão social desejada. A
ideia que talvez possa sintetizar esse ponto seja a seguinte: “Com muito tra-
balho e o pouco estudo que tive, pude chegar até aqui, se meu filho estudar
e for trabalhador como eu, ele poderá ir ainda mais longe”.
Não gostaríamos de concluir este capítulo sem deixar claro ao leitor o
que pensamos ser mais importante em nosso aprendizado sobre a forma
como os batalhadores administram seus negócios. Acreditamos que parte
significativa do aprendizado utilizado no trabalho pelos feirantes advém
da experiência prática que eles têm ao longo de suas vidas, tendo início
Feirantes - 163 -
mentos, sentimentos e ações que são decorrentes das disposições (em es-
pecial dos conjuntos disposicionais de autossuperação, econômicas gerais
e administrativas, em nossa análise) que ele incorporou ao longo de sua
trajetória de vida. Essa resposta seria demasiado sintética e até mesmo la-
cônica se a tivéssemos proferido nas primeiras linhas deste capítulo e caso
não tivéssemos empreendido, em seu curso, todo um esforço de explicação
tanto sobre tais disposições quanto sobre o modo como se apresentam no
cotidiano de um feirante-batalhador como Pedro. No entanto, como nos
manda a tradição do ofício científico weberiano, acreditamos ter explicado
bem direitinho como chegamos até ela.
Feirantes - 167 -
Também se fez necessário observá-la novamente, agora diante desse
novo quadro, e colher algumas opiniões dos próprios feirantes (mesmo que
em termos contingenciais) sobre as repercussões da mudança. Os boxes-
-lojas que ficam nas margens do pátio não tinham mais em suas frentes os
bancos que eram ali montados. Chegamos a perguntar a um desses feiran-
tes-lojistas se ele achava que tinha ficado melhor com a mudança. Ele se
virou para dentro da “loja” vazia e, mostrando-a, respondeu que não. No
entanto, mesmo com o público reduzido, disse ser a época ruim para todo
mundo, mas acreditava que “iria melhorar”.
Já em termos de estética e funcionalidade, era inegável a melhoria do en-
torno do parque em dias de feira, também em termos de fluxo de pedestres
e veículos. Entretanto, as opiniões entre os feirantes eram divergentes. Toda
uma área que antes não vinha apresentando muito movimento (conhecida
como “Brasilit”) pareceu estar mais movimentada. Uma jovem disse que o
movimento esteve ruim nas semanas anteriores, mas que, com a chuva da
última semana (o que tornou muito ruim o tráfego por entre os corredores
da nova área da sulanca), melhorou para eles. Ou seja, a infraestrutura ain-
da precária no novo local da sulanca tanto pode prejudicar esses feirantes
como pode ser “bom” para outros concorrentes situados em locais com vias
melhor estruturadas diante de condições meteorológicas adversas84.
Já lá no então novo espaço destinado aos sulanqueiros, um terreno que
fica entre o pátio da feira e um grande supermercado atacadista, outro jo-
vem explicou que estava até bom enquanto a prefeitura permitiu que os
ônibus dos compradores parassem ali perto, mas depois que passou a man-
dá-los estacionar longe, os compradores estão preferindo passar direto e
ir para Santa Cruz do Capibaribe, já que lá dispõem de estacionamento
gratuito no próprio espaço no qual os feirantes se concentram (espaço este
que, ainda por cima, é coberto) e de considerável infraestrutura (o Moda
Center Santa Cruz).
84 A chuva e a lama no novo espaço destinado à sulanca foram tema de reportagem do noticiário local
AB TV, edição do meio-dia, do dia 03/05/2010. A reportagem mostrava pessoas andando pelo meio
da lama e trouxe a fala do secretário municipal de infraestrutura. Ele fez promessas de estruturação
do escoamento da água e calçamento das vias. No depoimento de um feirante que vendia de 200 a 300
camisas e que na última feira vendeu duas, escutava-se a reclamação de “quem paga” e não tem infraes-
trutura apropriada. Nesse ínterim, a taxa de uso do solo cobrada semanalmente dos feirantes também
aumentou, passou a quinze reais por banco.
- 168 - Conclusão
Como, de modo geral, o horizonte do feirante geralmente não se amplia
muito para o futuro em termos de médio ou longo prazo (algo que vimos
com a análise dos dados apresentados no capítulo 2), não parece muito razo-
ável esperar que eles se resignem e se disponham a “pagar o preço hoje” para
que no futuro estejam melhor instalados. Afinal, a impressão que se tem é de
que, ao ser ordenada de acordo com as decisões do poder público municipal
e mesmo pela pressão da concorrência das cidades vizinhas, a feira é molda-
da pelas instituições modernas Estado e Mercado (Souza, 2000).
A ordenação por quadras indicadas por balões com suas respectivas le-
tras, as vias e os lugares das barracas a serem instaladas mais nitidamente
delimitados e a limitação de circulação de ambulantes no novo espaço da
feira foram mudanças observadas nesse contexto. Um rapaz que vendia
água mineral na saída do novo espaço dedicado à sulanca comentou que
para ele piorou, já que antes, no meio da rua apinhada de gente, as pessoas
sentiam mais calor e compravam mais água, com a mudança, ele e demais
ambulantes não mais podiam entrar na área da sulanca, uma vez que os
seguranças não permitiam. Assim, ele passou a ficar numa das entradas do
novo espaço. E como não havia grande fluxo, nem amontoado de gente,
vendia menos.
Se, de um lado, o desenvolvimento urbano da cidade cobrava uma mu-
dança que se adiava, por outro essa realocação – um tanto quanto óbvia e ne-
cessária aos formuladores de políticas públicas e aos próprios moradores da
cidade que se incomodavam com o caos no centro em dias de sulanca – trazia
para os feirantes a incerteza sobre a próxima feira, que aumentava e fazia com
que até mesmo um dia chuvoso, numa infraestrutura ainda precária, abalasse
as estruturas da mudança em termos de médio e longo prazo.
_ _
Feirantes - 169 -
Obviamente, isso não seria diferente no Agreste pernambucano. Esta
é uma dentre tantas regiões que vêm apresentando, também nas últimas
décadas, mudanças no modo como seus habitantes vivem e trabalham. A
configuração do eixo de produção e venda de confecções do Agreste (leia-
-se: Caruaru/Santa Cruz do Capibaribe/Toritama) e o consequente en-
volvimento de diversos outros municípios circunvizinhos na atividade se
apresentam como um fenômeno que também pode ser visto como reflexo
dessa “nova ordem mundial” – que desloca para a periferia do sistema par-
te de um aparato produtivo que anteriormente lhe foi central, urbano, e
que foi responsável pelo movimento migratório de milhões de pessoas em
todo o mundo que partiam da tríade periferia-rural-interior para a centro-
-urbano-capital, local onde se concentrou progressivamente a capacidade
produtiva industrial e a população mundial ao longo do século passado.
O “regresso” à tríade periferia-rural-interior agora se dá de dois
modos, o primeiro por meio das próprias indústrias que, não mais centrais
no sistema, se deslocam para países, regiões ou cidades menores (ou mes-
mo menos importantes na geopolítica mundial) atraídas pelos benefícios
fiscais e pela mão de obra mais barata que lá encontram com facilidade
bem maior que em centros maiores mais competitivos. No Brasil, diversas
indústrias vêm procurando o interior do Nordeste para instalar novas fá-
bricas. É de modo similar que a China tem se tornado uma potência cada
vez maior pelo volume de produção industrial que consegue ofertar a um
custo baixíssimo. No entanto, é potência periférica por ter sua pujança do
crescimento econômico centrada no industrialismo.
O segundo modo é o que irá nos interessar nesta conclusão. É jus-
tamente o que se dá por meio do regresso da população e/ou manutenção
dos mais jovens em suas regiões de origem, ligados a uma estrutura produ-
tiva e de comercialização que se acopla ao capitalismo mundial e brasileiro
contemporâneo. Movidos por grande vontade e força de trabalho, trazendo
em seus corpos, mentes e corações as heranças de sua origem rural, a forte
referência que lhes foi a família, e um habitus não plenamente adaptado às
exigências do mercado de trabalho moderno, os feirantes podem ser vistos
como um exemplo das alternativas encontradas ainda hoje, na periferia do
sistema, para o desempenho de atividade econômica de subsistência e/ou
mesmo em busca por êxito socioeconômico.
Assim, simultaneamente à configuração de novas formas de produção
- 170 - Conclusão
domésticas como os fabricos e facções, a atividade de feira pode ser vista
como uma alternativa viável para uma geração de adultos não plenamente
escolarizados, principalmente descendentes de famílias de agricultores-fei-
rantes e que integram este mundo competitivo do qual fazem parte mesmo
sem se aperceber. São eles que estão, como reflexo dessas mudanças no ca-
pitalismo contemporâneo, deixando de ir tentar a vida em São Paulo (ou
retornando dela) e se engajando em alternativas locais como o agreste das
confecções.
_ _
Feirantes - 171 -
caracterizados por sua condição de instabilidade relativa a depender de si-
tuação contingencial. É claro que parte deles se estabelece e consegue assim
manter-se por anos e até mesmo transferir o negócio aos filhos ou mesmo
projetá-los para uma vida melhor (como pudemos ver nos capítulos ante-
riores), mas esses são dois lados de uma mesma moeda.
Os dados estatísticos que apresentamos, as histórias de vida de Justino e
Neide assim como o tipo ideal que construímos nos apoiam no sentido de
afirmar que o feirante, assim como diversos outros trabalhadores brasilei-
ros em condições similares, é um indivíduo que “joga” sem compreender
plenamente (ou até mesmo parcialmente) as regras do jogo no qual está
inserido. Não se apercebe tomando parte de um macrosistema e sofrendo
as consequências das implicações que traz à sua vida cotidiana (algo se-
melhante ao que Bourdieu constatou na Argélia). O modo como pensam,
sentem e agem – de significativa homogeneidade – pode ser percebido por
meio das comparações entre esta pesquisa e outras nacionais da qual tam-
bém fizemos parte (Souza, 2010).
Ao final deste livro, queremos deixar explícito ao leitor que os feiran-
tes, tanto quanto outros indivíduos que vivem-trabalham em condições
similares, vivem o “drama” de não estarem plenamente aptos a atender aos
requisitos que os tornariam empregáveis numa estrutura empresarial con-
vencional. E, numa sociedade de mercado, ficam em suas margens. É lá
que travam a luta cotidiana tanto pela sobrevivência e/ou êxito econômico
quanto pela mudança em suas disposições mais arraigadas no sentido de
adaptar-se ao mundo que lhes é imposto – tal qual o fenômeno objeto dos
estudos argelinos de Bourdieu. Isso, obviamente, não implica em estar “à
parte” dessa sociedade, mas, sim, em ocupar-se de atividade que, geralmen-
te, não é capaz de lhes conferir significativo volume de bens de consumo e
simbólicos – que podem ser compreendidos por meio dos “capitais bour-
dieusianos” (cultural, social, simbólico e econômico) que diferenciam os
indivíduos na hierarquia valorativa dessa sociedade.
As demais pesquisas que mencionamos acima, realizadas nas mais di-
versas regiões do país, nos mostraram a similaridade da realidade desses
trabalhadores, quer sejam feirantes ou não, que vivem nas margens do sis-
tema, lutando para cada vez mais poder vir a usufruir as benesses do “ca-
pitalismo cor de rosa” (Souza, 2010) que muito se diz lhe serem também
possíveis, assim como o é para as classes alta e média. Mas serão de fato?
- 172 - Conclusão
Apesar de nossa pesquisa ter se concentrado num grupo específico de
feirantes (os que possuem barracas que vendem alimentação na feira), as
reflexões que apresentamos nestas conclusões se expandem para bem além
desse público específico, pois eles são vistos, aos nossos olhos, como exem-
plares da condição de vida-trabalho de milhões de outros feirantes e traba-
lhadores das classes populares brasileiras.
Afinal, é em realidades similares a esta que aqui retratamos e analisamos
que pais e mães de famílias encontram meio de vida para sustentar os seus.
O fato de desvelarmos as incoerências no discurso e na forma como nos
contam suas vidas não quer “desvalorizar” ainda mais feirantes trabalhado-
res, que já não são valorizados na hierarquia das classes sociais em que se
estrutura a sociedade na qual vivemos.
Ao fazermos esforço de pesquisa para trazer à tona a condição desses
trabalhadores, acreditamos possibilitar que, por meio do esclarecimento
sobre tal condição de vida-trabalho, tanto o poder público possa fazer uso
deste livro para a concepção, estruturação e implementação de políticas pú-
blicas apropriadas a tal contexto – afinal de contas, se tomam como ponto
de partida uma compreensão equivocada desse quadro, não serão capazes
de erigir políticas adequadas – quanto os próprios feirantes (e a própria
opinião pública que os vê de outro modo) poderão tomar ciência de como
sua vida-trabalho pode ser vista, e assim a nossa desigualdade social possa
ser, por todos nós, modificada na medida em que passemos a nos ver com
olhos diferentes (Souza, 2009).
Reconhecer-se em seus modos de pensar, sentir e agir como membros
das classes populares e, assim sendo, diferentes da classe média e alta que
muito usufruem das benesses capitalistas é o primeiro passo ao esclareci-
mento sobre si mesmo, sobre a posição social que ocupa e sobre as lutas
que precisa enfrentar para ser, cada vez mais, socialmente reconhecido e
respeitado em sua condição de feirante.
Feirantes - 173 -
REFERÊNCIAS
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2009.
Feirantes - 177 -
IPEA. Vulnerabilidade social e geração de oportunidades: Desafios para a
inclusão produtiva. Brasília, DF: s.d.
- 178 - Referências
SÁ, M. Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste. (Tese de Douto-
rado em Sociologia) Braga: Universidade do Minho, 2015. Disponível em:
http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35680. Acesso em: 7
ago. 2019.
Feirantes - 179 -
cia Política. In: WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 3. ed. São
Paulo; Campinas: Cortez; Unicamp, 1999. parte 1. p. 107-154.
- 180 - Referências
APÊNDICES
A TEORIA85
Pierre Bourdieu e os conceitos
de habitus, capital e campo86
Como aporte teórico utilizado para compreender a feira e a própria con-
dição do feirante, os conceitos de habitus, capital e campo em Pierre Bour-
dieu foram significativos. Muito embora possam até vir a não aparecerem
de modo explícito em diversas partes do livro, viabilizam o olhar lançado
ao fenômeno em estudo. Eis a razão pela qual acredito ser importante aqui
recuperá-los.
Pierre Bourdieu (1994 [1972]) contribuiu substancialmente ao conheci-
mento tanto da origem das práticas dos indivíduos quanto dos mecanismos
estruturantes da sociedade contemporânea. Sua resposta à clássica questão
sociológica da relação agência-estrutura é dada por meio de uma teoria da
ação que está no cerne do que aqui se denomina sociologia disposiciona-
lista.
O conceito de habitus, central à teoria bourdieusiana (e que forma jun-
to aos conceitos de capital e campo, a base do arcabouço erigido pelo au-
tor), surge a princípio em Esboço de uma teoria da prática, definido, grosso
modo, como “sistema de disposições”.
85 Todos os trabalhos citados neste e nos demais apêndices encontram-se nas Referências.
86 Este e o próximo tópico recuperam de modo sintético pontos apresentados em Sá (2010).
Feirantes - 183 -
mente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposi-
ções duráveis, estruturas estruturadas predispostas a fun-
cionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações que
podem ser “objetivamente reguladas” e “regulares” sem ser o
produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a
seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio
expresso das operações necessárias para atingi-los e coletiva-
mente orquestradas, sem ser produto da ação organizadora
de um regente. (Bourdieu, 1994, p. 61-62).
87 Ver figura explicativa na página 193 da edição brasileira. Obviamente tanto o conceito de habitus
quanto os de capital e campo não deveriam ser vistos fora do sistema teórico elaborado pelo autor (em
especial porque estes conceitos são desenvolvidos, desdobrados e levados ao plano de teorias ao longo
da obra de Bourdieu), entretanto, não é pertinente apresentar neste trabalho esse sistema, mas ao mes-
mo tempo faz-se necessário apresentar e explicar tais conceitos sucintamente.
- 184 - a teoria
é, com efeito, princípio gerador de práticas classificáveis
e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium
divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas proprie-
dades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir
práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferen-
ciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que
se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos
estilos de vida. (Bourdieu, 2007 [1979], p. 162, grifos do autor
em itálico).
Feirantes - 185 -
em atividades sociais. Assim, além do capital econômico (renda, salários,
imóveis), é decisivo para o sociólogo a compreensão de capital cultural
(saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos88), capital
social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos) e o capi-
tal simbólico (aquilo que chamamos de prestígio ou honra e que permite
identificar os agentes no espaço social). Nessa perspectiva, as desigualdades
sociais não decorreriam somente de desigualdades econômicas, mas, sim,
do volume e da estrutura desses capitais distribuídos entre os membros das
diferentes classes sociais (Socha, 2008, p. 46).
O terceiro conceito a ser aqui recuperado é o conceito de campo. Ber-
nard Lahire (2001, p. 24-26) apresenta “os elementos fundamentais e re-
lativamente invariantes da definição de campo que podemos extrair das
diferentes obras e artigos do autor em questão”. Aqui esses elementos fun-
damentais são recuperados e acompanhados de exemplos que visam apoiar
a explicitação:
– Um campo é um microcosmo dentro de um macrocosmo que constitui
o espaço social (nacional) global (um mercado local, por exemplo, a feira é
um “microcosmo” dentro do mercado nacional-mundial).
– Cada campo tem as regras do jogo específicas, irredutíveis às regras do
jogo em outros campos (são diferentes as regras do campo dos negócios e
do campo das artes, por exemplo).
– Esse espaço é um campo de lutas entre os diferentes agentes ocupando
as diferentes posições (os feirantes estabelecidos que querem que os “in-
vasores” e ambulantes sejam retirados da feira; em cada setor da feira po-
demos observar feirantes mais ou menos bem-sucedidos, ou seja, ocupam
posições diferentes).
– As lutas têm por motivo a apropriação de um capital específico ao cam-
po (no caso da feira, o econômico) e/ou a redefinição desse capital (por
exemplo, nas grandes redes de comunicação, em especial a televisão, os
executivos das grandes emissoras nacionais buscam obter maiores índices
de audiência que seus concorrentes).
88 Mas que não é somente adquirido por meio de instituições formais como a escola ou representado
por diplomas, mas também por meio de inserção e convívio sociais em determinados espaços, afinal,
saber bater palmas no momento adequado num concerto de música clássica, ou escolher o vinho apro-
priado à temperatura ou ao momento do dia são tipos de conhecimentos também denominados como
“capitais culturais” por Bourdieu.
- 186 - a teoria
– O capital é inegavelmente distribuído no seio do campo; então exis-
tem os dominantes e dominados (no mercado varejista, é sabido que os
compradores das grandes redes de supermercados detêm grande poder de
barganha em face dos pequenos fornecedores ao ponto de “praticamente
determinar” o preço pelo qual irão comprar os produtos fornecidos).
– A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo,
que é então definida pelo estado de uma histórica relação de forças entre
os elementos (agentes, instituições) presentes no campo (dentre as barracas
de alimentação da feira, algumas podem cobrar um pouco mais caro pelos
PFs pois já fizeram um “nome” – ou seja, possuem capital simbólico relati-
vamente maior que as demais – ou então estão localizadas próximo de um
setor mais “nobre” da feira).
– As estratégias dos agentes são compreendidas se nós as relacionarmos
às suas posições dentro do campo (a depender do setor e da posição no
setor dos feirantes, das aparências de suas barracas, de serem diferentes os
produtos nos quais mais investirão para venda).
– Entre as estratégias invariantes, nós podemos notar a oposição entre
as estratégias de conservação e as estratégias de subversão (do estado da
relação de forças existente). Os primeiros, mais frequentemente os domi-
nantes, e os segundo, os dominados (e, entre eles, mais particularmente os
“novos entrantes”). Essa oposição pode tomar a forma de um conflito entre
“antigos” e “modernos”, “ortodoxos” e “heterodoxos”.
– Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm ao menos
interesse de que o campo exista, e então mantêm juntos uma “cumplicidade
objetiva” pelas lutas que os opõem (todos aqueles que são feirantes traba-
lham nela ou mesmo fazem compras por lá).
– Os interesses sociais são, então, sempre específicos a cada campo e não
se reduzem ao interesse tipicamente econômico (além dos salários, os pro-
fissionais dos mais diversos mercados de trabalho buscam também novos
desafios, status e reconhecimento social).
– A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições incor-
poradas) próprio ao campo (por exemplo, o habitus filosófico ou o habitus
feirante). Somente aqueles que incorporaram o habitus próprio ao campo
estão em situação de jogar o jogo e de crer na importância desse jogo.
– Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu
habitus e sua posição no campo.
Feirantes - 187 -
– Um campo tem uma autonomia relativa: as lutas que nele se desenro-
lam têm uma lógica interna, mas os resultados das lutas (econômicas, so-
ciais, políticas...) externas ao campo pesam fortemente sobre as relações de
forças internas (alterações no mercado financeiro internacional, ou mesmo
políticas como uma mudança na gestão pública municipal, têm interferên-
cia no campo). (Lahire, 2001, p. 24-26, tradução minha)
89 Posteriormente, Lahire (2009) passou a se referir ao seu projeto científico como uma “sociologia
disposicionalista e contextualista da ação”.
- 188 - a teoria
tradições que seriam inerentes aos indivíduos. Em especial, ele nos leva
a observar os diversos contextos de ação nos quais o indivíduo se insere,
além de sua trajetória de vida, como elementos centrais na compreensão
dos pensamentos, sentimentos e ações de hoje do indivíduo. Se nós olhar-
mos somente para o comportamento, vamos observar o indivíduo naquilo
que ele está agora fazendo. E a sua história de vida? Faz vinte, trinta ou qua-
renta anos que ele vive; morou no campo, estudou numa cidade pequena,
teve amigos no colégio, namorou, casou e passou a conviver com os ami-
gos da cidade, mudou-se para uma cidade maior, teve filhos, um emprego
numa empresa, foi demitido e virou feirante – são essas práticas que de-
senvolvemos ao longo da nossa trajetória de vida, nos diferentes contextos
sociais dos quais participamos, que vão nos formando. Esse “estoque” de
disposições (por exemplo, para o estudo ou para o comércio) não é pleno,
não é fechado, está em aberto. Em alguns casos, nós podemos desativar
algumas delas e noutros nós podemos (re)ativá-las, geralmente, de modo
inconsciente.
Apontando para a importância de se observar o conceito de campo como
histórico e não apenas como uma categoria de análise, Lahire (2006a, 2009)
coloca que Bourdieu e sua equipe passaram para o lado contextualista por
meio da teoria do campo, afinal, em alguns momentos abandonaram a teo-
ria do habitus para explicar as ações por meio da posição (concorrência) no
campo e vice-versa. Em síntese, eles fizeram desaparecer ora o habitus ora
o campo na sua própria fórmula: campo + habitus = práticas. Lahire lembra
que, para Bourdieu, o campo é a concorrência, é um lugar que ninguém
consegue dominar por completo, mas que apresenta sempre dominados e
dominantes em posições diferentes.
Capital é outro conceito importante revisto por Lahire. Para ele, Bour-
dieu e seus seguidores ortodoxos cometem um deslize ao transpor o con-
ceito para o plano empírico – ou seja, capital é um conceito-ferramenta
como diversos outros aos quais recorre o sociólogo para melhor compre-
endê-la. Na empiria, são observados costumes, práticas culturais legítimas
ou ilegítimas, mas o capital (neste caso, o cultural) somente existe em sua
condição de conceito-ferramenta da ciência social.
Em sua construção teórica, Lahire (2006a) parte de sólida crítica à ideia
de habitus – enquanto sistema de disposições incorporadas fruto de único
princípio gerador e aplicável/transferível para os mais diversos contextos
Feirantes - 189 -
de socialização do indivíduo – afirmando que existem variações intra e in-
terindividuais nas disposições e, consequentemente, nos hábitos dos indi-
víduos de todas as classes e em comparação com outros membros de uma
mesma classe. Sua crítica está voltada para a “coerência do princípio gera-
dor”, dos habitus das classes. Na realidade, para Lahire o mais frequente é a
incoerência das práticas dos indivíduos, é a dissonância das práticas e não
a consonância do habitus. Nós classificamos as práticas como mais ou me-
nos legítimas e estas são desempenhadas por diferentes pessoas originárias
e pertencentes às diversas classes. O exemplo que o próprio autor utiliza
de Wittigenstein, que era catedrático universitário de filosofia, assim tendo
uma atividade profissional considerada muito legítima, mas adorava filmes
populares de bang-bang, ilustra bem este ponto.
A possibilidade do conhecimento da sociedade por meio dos indivíduos
nos leva a observar que são as ideias políticas, sociais, econômicas ou visões
do mundo de uma determinada sociedade que se fazem presentes na forma
como cada um de nós também pensa e vive no mundo. Como geralmente
se fala de uma pessoa que não trabalha, ou que não busca trabalho, ou que
não quer “crescer na vida”? Essa é uma ideia individual ou é parte integran-
te do senso comum da sociedade na qual vivemos? É claro que o valor do
trabalho está institucionalizado em nossa sociedade e, ao mesmo tempo,
está incorporado em cada um de nós. Ou seja, não é uma ideia particular
original de um ou outro indivíduo, mas, ao mesmo tempo ,“faz a cabeça”
da grande parte de nós.
Foi em O Homem Plural...90 que Lahire esboçou sua versão da teoria da
ação disposicional afirmando que nem todas as situações se encaixam no
aspecto sistemático e unificador do habitus defendido por Bourdieu, muito
embora esteja longe de deixar de lado as contribuições singulares de sua
obra, afinal, “foi a teoria da prática e do habitus, desenvolvida por Pier-
re Bourdieu, que alimentou nossa pesquisa sociológica. [...] É, portanto,
a pensar ao mesmo tempo com e contra (ou mais frequente de um modo
diferente de) Pierre Bourdieu que esta obra convida” (Lahire, 2003, p. 13-
4). Destacando na sociologia francesa a herança de Maurice Halbwachs,
“sensível nas suas análises sobre a memória à multipertença dos actores in-
dividuais, às suas socializações sucessivas ou simultâneas em grupos varia-
90 Citações referentes à edição portuguesa desta obra. Logo, a grafia das palavras em português de
Portugal foi mantida.
- 190 - a teoria
dos, e à pluralidade dos ‘pontos de vista’ que eles podem mobilizar”, Lahire
aponta para possibilidades apresentadas por uma “sociologia psicológica”
– “que dá a conhecer as condições de estudo sociológico dos recônditos
mais singulares do social” (Lahire, 2003, p. 15; 17) presentes no indivíduo.
É partindo de um conjunto de questionamentos para os quais não en-
contra respostas no trabalho de Bourdieu que Lahire então propôs um
programa científico de uma sociologia em escala individual, focando nas
variações inter e intraindividuais dos comportamentos, na pluralidade das
disposições incorporadas e dos contextos de ação dos indivíduos (Lahire,
2003; 2004; 2005a).
Em A cultura dos Indivíduos, Lahire deixa claro que sua sociologia em
escala individual foi pensada para sociedades diferenciadas como a fran-
cesa atual. Não é o caso da realidade em estudo neste livro. Tanto no Brasil
de modo geral quanto em Caruaru, em particular entre os feirantes, foi ob-
servada significativa homogeneidade das disposições e, consequentemente,
das práticas apresentadas pelos indivíduos das classes populares (cf. Souza,
2010). É como se para as classes populares brasileiras nas quais os feirantes
estão inseridos ainda seja útil e pertinente fazer uso do conceito de habitus.
Ou seja, muito embora se tenha recorrido à epistemologia proposta por
Lahire em termos de orientação para a realização da pesquisa, os resulta-
dos apresentados apontam para uma homogeneidade entre membros de
uma mesma classe. Esta pode ser compreendida se observada a diferença
entre o grau de diferenciação profissional existente na sociedade francesa
e a homogeneidade observada em indivíduos que desempenham atividade
indiferenciada (comércio) e fazem parte de uma parcela da sociedade bra-
sileira que não possui atividades profissionais tão diferenciadas assim (cf.
Souza, 2010).
Desse modo, foi constatado neste estudo que existem variações intrain-
dividuais a depender da origem familiar, trajetória de vida e contextos de
ação nos quais atuou o indivíduo no grupo estudado, no entanto, como
pode ser visto tanto no capítulo 2 quanto nas histórias de vida apresenta-
das nos capítulos 3 e 4, não são grandes as variações interindividuais en-
tre os feirantes pesquisados e nem, se comparamos com demais pesquisas
recentemente realizadas no Brasil (cf. Souza, 2010), nas classes populares
brasileiras. Este aspecto, aos meus olhos, reforça a pertinência do trabalho
argelino de Bourdieu como principal referencial teórico de Feirantes.
Feirantes - 191 -
Recortes de “Trabalho e trabalhadores
na Argélia”
Entre 1955 e 1960, Pierre Bourdieu serviu ao exército francês, ensinou e
pesquisou na Argélia. Foi justamente nesse período que realizou seus tra-
balhos sobre esta sociedade, revelando tanto as mudanças estruturais que
ela sofria em decorrência do processo de modernização ao qual estava sen-
do, inevitavelmente, submetida, quanto como se relacionava com aquele
mundo moderno para o qual era projetada – ao mesmo tempo em que
mantinha vivos, de algum modo e medida, costumes de seus ancestrais.
Essa tensão social entre modos de pensar e viver “herdados” de gerações
anteriores (e incorporados por meio de processos e instituições sociais) e
outros cobrados pelo mundo em pleno desenvolvimento capitalista tornou
O Desencantamento do Mundo: Estruturas Temporárias e Estruturas Eco-
nômicas91, um dos trabalhos do período argelino de Bourdieu, obra funda-
mental à compreensão da condição dos feirantes que se procurou construir
neste livro. Ou seja, ter sua origem social vinculada a um mundo estrutu-
rado de determinado modo e ser projetado para outro é a trama social que
aproxima a realidade argelina daquela na qual estão imersos os feirantes.
Devido a isso, acredito ser necessário recuperar e apresentar pontos im-
portantes deste trabalho92 que tanto serviu de suporte teórico e comparati-
vo para as análises – decorrentes do confrontamento das observações reali-
zadas durante o período de campo desta pesquisa com a obra de Bourdieu
– quanto se mostrou teoricamente inspirador e esclarecedor em diversos
aspectos relacionados à pesquisa apresentada neste livro.
A diferença entre o capitalismo moderno93 em seu contexto europeu ori-
- 192 - a teoria
ginal (autóctone) e o modo como este chega a países situados na periferia
do mundo é ponto de partida importante observado pelo sociólogo francês
logo no início de seu trabalho sobre a sociedade campesina argelina.
elementares da empresa racional, força motriz deste sistema, como uma instituição que “controla sua
rentabilidade com o auxílio de cálculos, da contabilidade moderna e da elaboração de balanços”.
94 Todas as citações diretas e indiretas desta seção, somente acompanhadas pelos número das páginas,
são referentes a este autor e obra.
Feirantes - 193 -
lação e, a depender do costume ou prática em questão, se apresentam mais
propensos ou não) as demandas requisitadas por este capitalismo moder-
no95. Além disso,
95 E que não pode ser reduzida a uma diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas,
sim, entre tipos de sociedade que podem existir num e noutro. As pesquisas de Bourdieu (2006) na
região do Béarn (interior da França onde nasceu) servem também de exemplo nesse sentido.
- 194 - a teoria
neração direta por isso), indo à feira da cidade próxima nas manhãs de
sábado (para vender o produto agrícola, do qual advinha o sustento da fa-
mília); já o segundo acordava no horário certo de ir para a escola, estudava
numa boa escola da cidade, não trabalhava na infância, recebia “mesada” e
fazia poupança, podia se preparar e escolher uma profissão a seguir e fazia
um curso de língua estrangeira nas mesmas manhãs de sábado. Qual dos
dois teria mais possibilidades de incorporar práticas que melhor atendam
às demandas pessoais e profissionais relacionadas ao capitalismo moderno
(autocontrole, cálculo prospectivo etc.), ou seja, transformar-se em suas
atitudes econômicas? Não é necessário afirmar que o segundo jovem, por
ter sua história de vida inserida e determinada pelo “cosmos” moderno,
enquanto o primeiro terá que, ainda, tentar inserir-se e, nesse processo, ir
incorporando as disposições necessárias para tal. Assim, o primeiro jovem
vive tensão entre as práticas requisitadas por este mundo, para o qual se
projeta, e certos costumes rurais que permanecem nele arraigados e que
seriam inerentes ao seu contexto de origem.
Era entendimento de Bourdieu de que um novo sistema de disposições
(habitus), requisitado pelo mundo moderno, não seria elaborado no vazio,
mas, sim, constituído a partir das disposições costumeiras que, mesmo so-
brevivendo ao desaparecimento ou à desagregação de suas bases econômi-
cas tradicionais, nas quais surgiram e se fundavam, não se adaptavam às
exigências da nova situação senão por meio de uma “transformação cria-
dora”.
Feirantes - 195 -
uma ordem econômica e social, qualquer que ela seja, que supõe um con-
junto de conhecimentos transmitidos pela educação difundida ou específi-
ca, ciências práticas solidárias a um ethos que permitem agir com razoáveis
probabilidades de sucesso. É dessa forma que a adaptação a uma organiza-
ção econômica e social tendendo a assegurar a previsão e o cálculo exige
uma disposição determinada em relação ao tempo e, mais precisamente em
relação ao futuro, quando é verdade que nada é mais estranho à economia
pré-capitalista do que a representação do futuro como campo de possíveis
que pertence ao cálculo explorar e dominar (p. 18-21).
96 “Os cabilas guardam o trigo ou a cevada em grandes jarras de barro furadas a diversos níveis de
altura, e a boa dona de casa, responsável pela gestão das reservas, sabe que quando o nível do trigo está
abaixo do furo central chamado de thimit, o umbigo, é preciso controlar o consumo: o cálculo, como
se vê, é feito por si só, e a jarra é como uma ampulheta que permite perceber a cada instante o que não
existe e o que resta.” (Ibidem, p. 27).
- 196 - a teoria
agentes econômicos formados com outra lógica econômi-
ca devem fazer às suas custas a aprendizagem da utilização
racional do dinheiro como mediação universal das relações
econômicas: a tentação é grande com o efeito de converter
o salário que acabou de ser recebido em bens reais, alimen-
tos, roupa branca, mobília, e não era raro, cerca de cinquenta
anos atrás97, ver operários agrícolas gastarem em poucos dias
o rendimento de um mês de trabalho. (p. 27).
Feirantes - 197 -
A forma como o trabalho é visto numa sociedade camponesa como a Ca-
bila é outro ponto importante. Em suas análises sobre o trabalho, Bourdieu
aponta que o que está valorizado “não é a ação orientada em direção de um
fim econômico, é a atividade em si, independentemente de sua função eco-
nômica e somente à condição que ela tenha uma função social. O homem
que se respeita deve estar sempre ocupado com alguma coisa” (p. 43). A
coerção social em torno do trabalho faz com que as pessoas inseridas num
contexto como este abracem qualquer trabalho para não serem estigmati-
zadas. “Na grande maioria dos casos, não é o trabalhador que escolhe seu
trabalho, mas o trabalho que escolhe o trabalhador” (p. 56).
Voltando-se para a situação de pequenos comerciantes ambulantes, o au-
tor penetra no universo do comércio para demonstrar que a lógica econô-
mica não é capaz de explicar as práticas cotidianas de muitos deles.
- 198 - a teoria
A pressão da necessidade econômica e a situação de desem-
prego estrutural têm por efeito perpetuar práticas que to-
mam de empréstimo suas justificações à moral camponesa
do passado. Não é raro com efeito ouvir enunciar preceitos
que, em primeira análise, parecem pertencer à lógica do ethos
profissional: ‘Um homem digno, um homem que não pode
viver à custa de outros, mesmo que tenha de viver de ex-
pedientes, tem de trabalhar. Se ele não encontrar nenhum
trabalho, ainda tem a possibilidade de ser vendedor ambu-
lante’ (cozinheiro, Argel). (p. 64, grifos nossos).
Feirantes - 199 -
tipo familiar, asseverando ao patrão a gestão financeira do negócio, com-
prando ele mesmo a matéria-prima, fixando os preços e vigiando as vendas.
É a atitude com relação ao tempo e ao cálculo que ele autoriza que torna
o comércio no asilo do espírito pré-capitalista no seio do mundo urbano e
faz com que o pequeno comerciante se aparente ao pequeno camponês por
meio de tantos traços de seu estilo de vida e de sua visão do mundo (p. 83-4).
Essas atividades das quais não se espera, na maioria das vezes, outra coi-
sa senão os meios de subsistência, constituem, aos próprios olhos daqueles
que as exercem, uma coisa para a qual a pessoa se resolve por falta de coisa
melhor. É significativa aqui a concorrência do comércio europeu e da fração
racionalizada do comércio argelino, que sujeita os pequenos comerciantes à
clientela mais despojada que procura por eles, posto que esses comerciantes
concedem crédito e desconto. Benefícios medíocres e instáveis, capital re-
duzido e muitas vezes empenhado sob forma de adiantamentos à clientela,
outros tantos obstáculos objetivos à racionalização. Além disso, perpetu-
ando muitas vezes no mundo urbano atitudes rurais, os comerciantes estão
geralmente pouco propensos para racionalizar sua empresa: iletrados na
maioria, ignoram a contabilidade em partida dupla e a distinção entre o
orçamento familiar e o orçamento da empresa e confundem muitas vezes
entradas e benefícios; passa-se por transições infinitesimais do pequeno
comércio como simples ocupação ao comércio realmente lucrativo. Assim,
compreende-se que o artesanato e o comércio sejam o amparo do tradiciona-
lismo no seio da sociedade urbana: não há nada na atividade profissional, no
meio de trabalho (na maioria das vezes confundido com o meio familiar)
e nos contatos com a clientela que possa incitar o comerciante a mudar de
estilo e de modo de pensar; totalmente ao contrário, o sistema de represen-
tações e de valores legado pela tradição está perfeitamente de acordo com
uma atividade econômica que exclui a racionalização (p. 84-5).
Para os filhos de comerciantes e de artesãos, as esperanças de promoção
são tanto mais reduzidas quanto a herança profissional é maior, as tradições
de profissão mais fortes e a probabilidade de uma herança importante mais
elevada. Tanto o cálculo econômico se encarna progressivamente na con-
duta à medida que a melhoria das condições materiais o permite, quanto
o campo dos possíveis tende a se alargar à medida que a pessoa se ergue
na hierarquia social. A emancipação dos jovens é tão mais precoce quão
mais rapidamente eles conseguem um emprego estável e bem remunerado,
- 200 - a teoria
quanto mais eles são instruídos ou, mais exatamente, quão maior é a dife-
rença entre o nível dos pais e dos filhos (p. 74-9).
É também entre os pequenos comerciantes que se encontra a propor-
ção mais forte de propósitos estereotipados e de discursos que obedecem
à lógica da quase-sistematização afetiva, além disso, eles nunca observam
o sistema como sendo também responsável por sua falta de instrução e de
qualificação profissional, isto é, ao mesmo tempo por suas faltas e pelas
faltas de seu ser (p. 88-92).
Na Argélia, assim como na maioria dos países em vias de desenvolvimen-
to, a delimitação mais nítida é a que separa dos trabalhadores permanentes,
manuais ou não manuais, a massa dos desempregados ou dos trabalhadores
intermitentes, diaristas, serventes ou pequenos comerciantes, outras tan-
tas condições intercambiáveis, que cabem muitas vezes sucessivamente ao
mesmo indivíduo. De fato, a cada uma das condições econômicas e sociais
corresponde um sistema de práticas e disposições organizado em torno da
relação ao futuro que aí se acha implicado. Desse modo, os trabalhadores
se dividem de maneira distinta em dois grupos, os que são estáveis e que
fazem de tudo para assim permanecerem e os que são instáveis e que estão
dispostos a fazer de tudo para escapar à instabilidade. Esse é o fato funda-
mental que é preciso ter em mente para compreender, entre outras coisas,
o fascínio que é exercido nas camadas mais desfavorecidas pelas profissões
estáveis, ou mais precisamente, a estabilidade das profissões (p. 95-104).
Feirantes - 201 -
Desemprego e emprego intermitente arrasam as tradições, mas interdi-
zem a elaboração de um plano de vida racional. “Quando você não tem
certeza do dia de hoje como poderá ter certeza do dia de amanhã?” Ou seja,
a vida fica à mercê do quanto se conseguirá dia após dia. “Mais eu ganho,
mais eu como: menos eu ganho, menos eu como.” Um sujeito econômico
que esteja conforme essa descrição seria condenado em curto prazo se vies-
se a se encontrar jogado num universo econômico e social perfeitamente
racionalizado. De fato, às margens das cidades africanas ou sul-americanas,
existem universos econômicos que constituem como que uma barreira en-
tre os subproletários e o mundo moderno e cuja lei fundamental parece ser
aquela que rege as condutas individuais, a saber, a ausência de previsibili-
dade e de calculabilidade (p. 100-101).
- 202 - a teoria
2. O MÉTODO
O ofício científico, quando empreendido com o rigor que lhe é devido,
impõe àquele que o pratica a tarefa de expor o que fez para percorrer o
caminho necessário até chegar aos resultados que apresenta. Muito embora
etapas e operações metodológicas sejam parte integrante da pesquisa em
si, de modo geral, são do interesse de outros pesquisadores que esperam
encontrar resposta à questão: como a pesquisa foi feita?
Tendo clareza da necessidade de atender a esta obrigação imposta pelo
modo como concebo o ofício científico, mas, ao mesmo tempo, suspeitan-
do fortemente que tais explicações procedimentais não seriam do interesse
dos leitores em geral, resolvi reuni-las neste apêndice. Espero, assim, tam-
bém possibilitar a leitura sequenciada do livro sem a obrigatoriedade destes
esclarecimentos metodológicos. No entanto, não posso deixar de cumprir
com o dever de apresentar aos pares como fiz o que fiz.
Aqui não terei como objetivo discorrer sobre as técnicas específicas de
pesquisa utilizadas, mas, sim, apresentar as etapas do trajeto teórico-empí-
rico, desde seu início até a própria redação deste livro.
Entre 2007 e 2009, foi empreendido um conjunto de frentes de pes-
quisa sincrônicas tanto no sentido de conhecimento e aprofundamento
teórico necessários à fundamentação do trabalho quanto no sentido do
levantamento e reunião de dados indispensáveis a uma pesquisa social. A
pesquisa teórica se voltou principalmente para as obras de Pierre Bour-
dieu e Bernard Lahire por serem autores nos quais encontrava suportes
teórico, epistemológico e metodológico apropriados para o estudo do fe-
nômeno social em questão. Esta etapa se deu ao longo de praticamente
todo o período de realização da pesquisa.
Logo de início também foi realizada pesquisa bibliográfica que reuniu
tanto alguns trabalhos científicos relacionados às temáticas “feira” e “tra-
Feirantes - 203 -
balho informal” quanto alguns textos locais sobre a Feira de Caruaru ou
que comentavam aspectos desta feira. Os poucos trabalhos encontrados e
reunidos não foram explorados aqui no livro por não terem se mostrado
relevantes aos objetivos traçados.
Outra frente investigativa também aberta logo de início foi a pesquisa
documental e jornalística. Por meio desta foram reunidas informações ob-
tidas em relatórios (em especial, o do Iphan, para o reconhecimento da
Feira como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro) e matérias publica-
das ao longo das últimas décadas em diversos veículos de mídia impressa
(principalmente estaduais).
Já na etapa exploratória da pesquisa, foram realizadas entrevistas semi
e não estruturadas com onze pessoas que podem ser consideradas “vozes
de referência” sobre a feira, tais como feirantes com muito tempo de fei-
ra, historiadores ou porta-vozes de instituições significativas, por exemplo,
Sindicado dos Comerciantes e Vendedores Ambulantes de Caruaru (Sinco-
vac), Departamento de Arrecadação, Departamento de Feiras e Mercados
da Secretaria de Serviços Urbanos da Prefeitura Municipal, Secretaria de
Cultura. Visando compreender a dinâmica da feira como um todo, nessa
etapa foram realizadas observações (seguidas de notas) de inspiração etno-
gráfica por meio de visitas continuadas à feira em dias e horários alternados
da semana.
Essas quatro etapas, a pesquisa bibliográfica, a documental/jornalística,
as entrevistas com “vozes de referência” e as observações etnográficas sobre
a feira e os feirantes, nos possibilitaram conhecer a história da feira, o modo
como ela é tratada nos meios de comunicação locais, as nuanças de suas
mudanças ao longo do tempo, o modo como ela e seus feirantes são vis-
tos por informantes-chaves e a sua dinâmica cotidiana de funcionamento.
Tudo isso nos levou a um melhor conhecimento da realidade na qual o fe-
nômeno central de nossa pesquisa atua. Como a feira é feita pelos feirantes,
ao conhecermos ela, também os conhecemos.
Tais etapas foram úteis principalmente para (1) apropriação teórica fun-
damental à “leitura” da realidade pesquisada, (2) elaboração do capítulo 1,
(3) compreensão do contexto de atuação dos feirantes, (4) definição dos
direcionamentos a serem dados em relação ao foco da pesquisa e (5) utili-
zação de lente teórica (no caso da pesquisa teórica) e de suporte contextual
(no caso das demais) para a análise dos dados obtidos.
- 204 - o método
Capítulo 2: Etapa quantitativa
Feirantes - 205 -
Capítulos 3 e 4: As contribuições
metodológicas de “Retratos...” 98
As oito entrevistas em profundidade com cinco feirantes foram realiza-
das com Fabrício Maciel. Dentre os entrevistados, escolhi dois que com-
puseram os perfis de “Justino” e “Neide” apresentados nos capítulos 3 e 4.
Como orientação metodológica para a estruturação do roteiro e para a rea-
lização das entrevistas, tomou-se a apresentada por Bernard Lahire em sua
obra Retratos Sociológicos... Nesta seção recupero alguns dos seus pontos.
É acreditando na relevância da investigação empírica para a validação ou
não dos conceitos disposicionalistas que Lahire estrutura o que diz ser “um
dispositivo metodológico inédito”. Dispositivo este que consiste na realiza-
ção de entrevistas longas e sucessivas com cada um dos entrevistados99 sobre
temas diversos – tais como “família, escola, trabalho, sociabilidade, lazer-
-cultura e corpo (alimentação, saúde, estética, esporte)” (p. 34) – e que, de
forma geral, orienta a investigação para a obtenção do melhor conjunto pos-
sível de informações, evidências e indícios com potencial de subsidiar inter-
pretações adequadas acerca do “patrimônio de disposições” do pesquisado100.
Nesse sentido, sua proposta foca na compreensão de casos individuais
por meio de entrevistas longas e sucessivas que possam ir além do discurso
coerente que cada indivíduo tende a construir para se autojustificar so-
bre sua própria história, uma vez que em sua grande maioria apresentam
práticas incoerentes, mas incorporaram a hierarquia social da classificação
das práticas culturais, ou seja, sabem o que é mais ou menos legítimo, e se
autoavaliam de acordo com ela (por exemplo, sabem que é mais legítimo
98 Nesta seção, todas as citações acompanhadas apenas do número de página são referentes à obra:
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed,
2004. Também se tomou por base seção do trabalho anteriormente publicado: SÁ, Marcio. A sociologia
disposicionalista e o homem de negócios contemporâneo. In: Anais do VI EnEO – Encontro de Estudos
Organizacionais da ANPAD. Florianópolis: Anpad, 2010. (CD-ROM).
99 Cada conjunto de seis entrevistas foi realizado por um pesquisador com um entrevistado específico
(num total de oito) e resultaram em oito estudos de caso que são apresentados ao longo do livro, junta-
mente com os pontos para análise sumarizados ao final de cada um deles. Algumas “exigências teóricas”
para a estruturação das grades das entrevistas são apontadas por Lahire (ver: p. 37-43 da referida obra).
100 Ver páginas 32-34 da referida obra.
- 206 - o método
ler Kafka que assistir TV, logo, geralmente justificam a segunda prática,
quando admitem tê-la, como um momento de “descontração”, ou algo sem
importância, “para relaxar”; no Brasil, muitas pessoas condenam o hábito
de assistir novelas, mas, se perguntadas, sabem quem são os personagens
e como está se desenrolando a trama, ou seja, não admitem publicamente
gostar ou assistir, contudo o fazem “às escondidas até mesmo deles pró-
prios”...).
Um aspecto importante destacado pelo autor é a não consciência do in-
divíduo quanto aos princípios que regem suas ações, “embora seja suficien-
temente consciente para nos descrever o que faz, o ator não tem consciên-
cia das determinações internas e externas que o levaram a agir como agiu,
a pensar como pensou, a sentir como sentiu” (p. 22-3). Fica claro, então,
que não podemos partir de uma pressuposição de que o pesquisado terá
como fornecer as explicações sobre o que orienta sua ação (fatores dispo-
sicionais e/ou contextuais) e sobre as variações que apresenta em relação a
estas orientações em ações heterônomas específicas. O discurso coerente
sobre a própria vida é uma construção do indivíduo – que precisa desse
discurso para mostrar que é capaz de manter a coerência ao falar sobre si.
Mas, através de entrevistas sucessivas, podemos identificar as fissuras, as
incoerências, os choques entre as disposições legítimas e menos legítimas
dos indivíduos. Será necessário que o pesquisador interprete o que se pode
observar (em sentido amplo) por meio das interações investigativas, por
meio da própria narrativa que o entrevistado produz sobre sua história de
vida e dos demais instrumentos disponíveis para tal.
São as nuanças das vidas de cada um de nós que podem ser observadas
e analisadas se pesquisadas por meio de um instrumento metodológico
apropriado para trazer à tona essas questões, por meio das pessoas, das
falas delas sobre suas vidas, provocando-as a falar sobre temas como a fa-
mília, gerações anteriores, sobre como eram suas vidas na infância, sobre
como elas descobriram suas inclinações profissionais, como foram as suas
vidas na escola, em quais disciplinas tinham mais habilidades, quais menos;
quais os professores que as marcaram, por quê? Quais amigos têm ou tive-
ram mais influência sobre elas? Enfim, reconstruir suas trajetórias de vida.
Então a proposta metodológica utilizada foi fazer entrevistas sucessivas em
profundidade com essas pessoas, explorando as diversas esferas (política,
religião, consumo, trabalho, família etc.) de suas vidas, e, ao reconstruir as
Feirantes - 207 -
trajetórias de vidas dos entrevistados, explicar como as disposições que elas
apresentam hoje foram construídas nessas trajetórias.
No caso desta pesquisa, o roteiro para a entrevista foi estruturado para
duas entrevistas (o próprio Lahire esclareceu em reunião de pesquisa101, que
realizou seis entrevistas sucessivas em Retratos... porque tinha o objetivo de
testar a rentabilidade científica dos conceitos da sociologia disposiciona-
lista, o que não é o nosso caso, por se tratar de um fenômeno circunscrito,
uma vez que experiências prévias de pesquisa mostraram que duas entre-
vistas são suficientes). Essas entrevistas tiveram como temas: o trabalho, a
vida econômica, o consumo, a política, a vida escolar, a familiar, as relações
de gênero e a religião. Tais temas foram propostos por meio de questões
que constituem um roteiro que orientou a interação com os entrevistados.
101 Por ocasião de sua vinda ao Brasil em 2009, coordenada por Lília Junqueira (PPGS/UFPE), no
âmbito do Núcleo de Pesquisa Sociedade, Cultura e Comunicação, da qual tivemos a oportunidade de
participar.
102 Todas as citações somente acompanhadas dos números das páginas (nesta seção) são referen-
tes à obra: WEBER, Max. Objetividade do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In:
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo; Campinas: Cortez; Unicamp, 1999.
parte 1. p. 107-154.
- 208 - o método
que nos permitiram construir a história de “Pedro” (o tipo-ideal que apre-
sentamos no capítulo 5).
Em termos metodológicos, sua construção se deu inspirada na doutrina
metodológica de Max Weber. Em Objetividade do Conhecimento na Ciência
Social e na Ciência Política (1999), Weber defende a ideia de que existe uma
forma de construção de conceitos própria e indispensável às ciências da
cultura. Essa forma seria a construção ideal-típica. Em suas palavras:
Feirantes - 209 -
de exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito-limite,
puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a
fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus
elementos importantes, e com o qual é comparada. Tais con-
ceitos são configurações nas quais construímos relações, por
meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva, que
a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realida-
de, julga adequadas.
Nesta função, o tipo ideal é, acima de tudo, uma tentativa de
apreender os indivíduos históricos ou os seus diversos ele-
mentos em conceitos genéticos. (p. 140)
As ideias que dominaram os homens de uma época, isto é,
as que neles atuaram de forma difusa, só poderão ser com-
preendidas sempre que formarem um quadro de pensamento
complexo, com rigor conceitual, sob a forma de tipo ideal,
pois, empiricamente, elas habitam as mentes de uma quanti-
dade indeterminada e mutável de indivíduos, nos quais esta-
vam expostas aos mais diversos matizes, segundo a forma e o
conteúdo, a clareza e o sentido103. (p. 142).
Afinal, aprendemos com Weber (1999) que, no sentido que lhe atribuí-
mos, um tipo puro é algo completamente diferente da “avaliação aprecia-
dora”, pois não tem nada em comum com qualquer tipo de perfeição em
comparação com a realidade, salvo com a de se ter nele uma tentativa de
definir do melhor modo possível, em termos lógicos, um conceito.
Em síntese, um tipo ideal se trata de construção de um pesquisador que
103 A título de exemplificação do que venha a ser um tipo-ideal, podemos recuperar o seguinte tre-
cho da referida obra: “por exemplo, todos os enunciados de uma essência do cristianismo constituem
tipos ideais que, constante e necessariamente, apenas têm uma validade muito relativa e problemática,
se reivindicarem a qualidade de enunciado histórico empiricamente dado. […] Tais exposições típi-
co-ideais, contudo, comportam normalmente ainda um outro aspecto que torna ainda mais complexa
sua significação. Geralmente elas pretendem ser, ou inconscientemente o são, tipos ideais, não somente
no sentido lógico, mas também no sentido prático. Ou seja, são tipos exemplares que – seguindo nosso
exemplo – contêm aquilo que o cristianismo deveria ser segundo o ponto de vista do cientista […].
Dado que o tipo ideal reivindica aqui uma validade empírica, ele penetra na região da interpretação
avaliadora do cristianismo: abandonou-se o campo da ciência experimental para se fazer uma profissão
de fé pessoal, não uma construção conceitual típico-ideal.” (p. 143)
- 210 - o método
elenca os principais aspectos do fenômeno que quer compreender, sob sua
perspectiva. O tipo-instrumento é um meio de pesquisa comparativa com
a empiria. Ou seja, o tipo ideal weberiano é um instrumento para análise
compreensiva e construção teórica. Para a construção do tipo ideal neste
capítulo, as características gerais de quem seriam os batalhadores foram
articuladas com a análise dos dados coletados e, obviamente, observadas
pelas lentes teóricas de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire.
Feirantes - 211 -
3. A ESTATÍSTICA
[com Felipe Cavalcante Barbosa]
- 212 - a estatística
Tabela 3: Escolaridades dos pais dos(as) proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero
Nível de escolaridade Feminino Masculino Total
Analfabeto/Lê muito pouco/Só assina
57,1 45,8 51,2
o nome
1º Grau/Ensino Fundamental
23,8 33,4 28,9
incompleto
1º Grau/Ensino Fundamental
0,0 8,3 4,4
completo
2º Grau/Ensino Médio completo 0,0 4,2 2,2
Não souberam dizera 19,1 8,3 13,3
Nota: não houve incidência com relação aos níveis superiores de ensino. ª Na maioria dos
casos, por conta do esquecimento.
Feirantes - 213 -
Tabela 6: Escolaridades das mães dos(as) proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero
Nível de escolaridade Feminino Masculino Total
Analfabeto/Lê muito pouco/Só assina o
52,4 33,3 42,2
nome
1º Grau/Ensino Fundamental
38,1 41,7 40,1
incompleto
1º Grau/Ensino Fundamental completo 0,0 8,3 4,4
2º Grau/Ensino Médio completo 0,0 8,3 4,4
Superior completo 0,0 4,2 2,2
Não souberam dizera 9,5 4,2 6,7
Notaª: Na maioria dos casos, por conta do esquecimento.
Tabela 7: Quantidade de anos de estudo das mães dos(as) proprietários(as) (em anos)
Média Desvio padrão
Quantidade de anos de estudo da mãe a
3,450 4,1569
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros em relação aos proprietários.
- 214 - a estatística
Tabela 9: Atividades econômicas das mães dos(as) proprietários(as)
Proprietários por gênero
Atividade econômica Feminino Masculino Total
Dona de Casa 57,1 37,5 46,7
Agricultora 38,1 16,7 26,7
Comerciante 4,8 20,8 13,3
Trabalha com carteira assinada 0,0 4,2 2,2
Trabalha sem carteira assinada a
0,0 8,3 4,4
Aposentadab 0,0 12,5 6,7
Notaª: Autônoma não comerciante. b Recebe aposentadoria(s).
Feirantes - 215 -
Tabela 12: Quantidade de irmãos dos(as) entrevistados(as)
Média Desvio padrão
Quantidade de irmãosa 5,651 3,0541
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros de irmãos.
- 216 - a estatística
Tabela 17: Faixa etária dos(as) entrevistados(as) (%)
Proprietários por gênero
Faixa etária Feminino Masculino Total
18 a 24 anos 0,0 4,2 2,2
25 a 34 anos 14,3 16,7 15,6
35 a 44 anos 23,8 45,8 35,6
45 a 54 anos 38,1 20,8 28,9
55 a 64 anos 23,8 8,3 15,6
Não quis respondera 0,0 4,2 2,1
Notaª: Por motivos pessoais, não revelaram a idade.
Feirantes - 217 -
Tabela 20: Quantidade de filhos(as) dos(as) entrevistados(as)
- 218 - a estatística
Tabela 24: Tempo da penúltima atividade econômica anterior (%)
Proprietários por gênero
Intervalo de tempo (anos) Feminino Masculino Total
0a1 19,0 37,5 28,9
2a3 14,3 4,2 8,9
4a5 9,5 8,3 8,9
6a7 9,5 0,0 4,4
8a9 0,0 4,2 2,2
10 a 11 0,0 4,2 2,2
Mais de 12 4,8 8,3 6,7
Não respondeu a
42,9 33,3 37,8
Notaª: Em sua grande maioria, por falta de lembranças.
- 220 - a estatística
Tabela 35: Número de trabalhadores temporários
Média
Quantidade trabalhadores temporários 1,450
Nota: Trabalhadores temporários para suprir os picos de demanda semanal nos dias de feira
livre de sulanca.
Tabela 37: Critério(s) utilizado(s) para seleção dos trabalhadores não familiares (%)
Proprietários por gênero
Critérios de seleção Feminino Masculino Total
Análise de referências/experiências
0,0 4,2 2,2
profissionais
Entrevista(s)/teste(s) 4,8 25,0 15,6
Disposição/aptidão para o trabalho 4,8 0,0 2,2
Escolaridade 0,0 4,2 2,2
Indicação 19,0 12,4 15,6
Outros a
0,0 4,2 2,2
Não respondeu/soube responder 71,4 50,0 60,0
Nota: Motivos que levam os proprietários(as) a selecionarem seus novos funcionários não
familiares. a De algum modo, por necessidades contingenciais.
Feirantes - 221 -
Tabela 38: Principal produto de comercialização (%)
Proprietários por gênero
Produto Feminino Masculino Total
Almoço (PFs) a
61,9 54,2 57,8
Lanches b
38,1 45,8 42,2
Notaª: PFs (pratos feitos) correspondem a almoços tradicionais da culinária nordestina,
exemplo de prato: feijão, arroz, macarrão, vinagrete, um ou mais tipos de carnes e verduras.
b
Salgados e doces.
- 222 - a estatística
Tabela 46: Despesa com mão de obra (semanal) (%)
Proprietários por gênero
Despesa (R$) Feminino Masculino Total
Menos de 100,00 19,0 25,0 22,2
Entre 101,00 a 200,00 23,8 12,5 17,8
Entre 201,00 a 400,00 19,0 0,0 8,9
Entre 401,00 a 600,00 4,8 8,3 6,7
Entre 601,00 a 800,00 0,0 4,2 2,2
Não soube estimar 4,8 0,0 2,2
Não quis responder 4,8 0,0 2,2
Sem resposta 23,8 50,0 37,8
Nota: Percentuais das despesas com funcionários durante a semana de feira.
Feirantes - 223 -
Tabela 52: Lucro mensal dos proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero Total
Lucro mensal Feminino Masculino
Menos de 1 salário (R$ 465,00) 9,5 4,2 6,7
Entre 1 e 2 salários (R$ 466,00 - R$
14,3 25,0 20,0
930,00)
Entre 2 e 3 salários (R$ 931,00 - R$
9,5 20,8 15,6
1.395,00)
Entre 3 e 4 salários (R$ 1.396,00 - R$
9,5 8,3 8,9
1.860,00)
Mais de 4 salários (R$ 1861,00) 14,3 4,2 8,9
Não quis responder 4,8 0,0 2,2
Não soube estimar 33,3 37,5 35,5
Sem resposta 4,8 0,0 2,2
Nota: Trata-se do salário mínimo de R$ 465,00. Estabelecido pelo governo federal em 2009.
- 224 - a estatística
Tabela 55: Armazenamento do dinheiro (%)
Proprietários por Gênero
Armazenamento Feminino Masculino Total
Com o(a) dono(a) a
28,6 16,7 22,2
Na barraca 42,9 45,8 44,5
Em casa 9,5 29,2 20,0
Em conta-corrente 4,8 8,3 6,7
Em poupança 4,8 0,0 2,2
Não quis responder 9,6 0,0 4,4
Nota: Maneira de armazenagem do “apurado” diário. a Principalmente em seu(s) bolso(s).
Feirantes - 225 -
Tabela 60: Sugestões políticas para melhor condição de vida (%)
Proprietário(s) por gênero
Sugestões Feminino Masculino Total
Melhorar a condição social 38,0 37,5 37,9
Valorizar a Feira de Caruaru 14,3 4,2 8,9
Aumentar a empregabilidade 4,8 4,2 4,4
Melhorar o acesso ao crédito 4,8 12,5 8,9
Moradias populares 0,0 8,3 4,4
Aumentar o salário mínimo 4,8 0,0 2,2
Não acredita no governo 9,5 0,0 4,4
Não responderam/souberam responder 23,8 33,3 28,9
Nota: Consideram-se os governos municipal, estadual e federal. Sugestões para melhoria
da vida em sociedade, considerando sua individualidade e em contexto social e econômico.
- 226 - a estatística
ANEXO
Feirantes - 227 -
- 228 - Anexo
ANEXO DA 3A EDIÇÃO
Além de uma nova revisão ortográfica e do prefácio do Prof. Roberto Véras
de Oliveira, que muito me honra, esta edição de Feirantes traz como marca
própria um novo conjunto de textos que compõem este anexo.
O primeiro deles é a transcrição (com leves adaptações) de uma fala pro-
ferida na Câmara Municipal de Caruaru, logo após a apresentação de Filhos
das Feiras e da edição anterior de Feirantes, em setembro de 2018. Naquela
ocasião, procurei provocar os legisladores municipais a refletir sobre como
Caruaru estaria tratando a sua “mãe”, ou seja, a Feira de onde surgiu e com
a qual partilha seu nome, e apresentar as linhas gerais de como o negócio da
confecção local fez surgir seus personagens centrais no século 21, os filhos
das feiras.
O segundo é um conto que me tocou profundamente por acreditar que
ele traduz, em ficção literária, o espírito deste livro. Nascido num banco de
feira, de Taíza Maria, conta a trajetória de um menino que, uma vez pari-
do num daqueles bancos, cresceu na (e por meio da) Feira de Caruaru. A
história pode permitir uma expansão poética da reflexão proposta no texto
anterior, ou seja, um envolvimento emocional com a delicadeza da questão.
O terceiro, A novela da mudança da Feira da Sulanca: capítulo 2015, é um
texto-síntese do estudo de Jessica Rani F. de Sousa sobre os discursos que
emergiram na ocasião de um debate municipal que se deu recentemente
em torno da possível transferência da Feira da Sulanca, aquela que, dentre
as feiras que ocupam o Parque 18 de Maio, atrai o maior volume de pessoas
e gera o maior fluxo de dinheiro e mercadorias.
Por fim, Uma obra prenhe traz um generoso comentário no qual Luiz
Alex Saraiva registra suas reações a este livro, em particular, o que signi-
Feirantes - 229 -
ficou para ele relê-lo especificamente para a elaboração deste seu último
texto.
Não poderia deixar de registrar meu sincero agradecimento às autoras e
ao autor por suas produções originais que enriquecem este volume.
- 230 - Anexo
1. PARA QUE ESTES LIVROS
PODEM SERVIR?104
[Por Marcio Sá]
Não poderia iniciar esta fala sem registrar meu agradecimento ao presiden-
te da casa, o vereador Lula Tôrres, pela acolhida. Estendo o agradecimento
aos demais membros do poder legislativo municipal e, em particular, ao
vereador Daniel Finizola por este convite que muito me honra. Na pes-
soa da Professora Myrna Lorêto, então vice-líder do Grupo de Estudos e
Intervenções do Agreste (Geia), do Centro Acadêmico do Agreste (CAA)
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cumprimento também
todas as senhoras e todos os senhores presentes.
Sem dúvida, o que me trouxe aqui foi a repercussão do evento promovi-
do pelo Geia, na quinta-feira passada. Juntamente com a Editora Massan-
gana, da Fundação Joaquim Nabuco, tivemos a oportunidade de apresentar
à sociedade agrestina o livro Filhos das feiras: uma composição do campo de
negócios agreste e a segunda edição de Feirantes: quem são e como adminis-
tram seus negócios?
Gostaria de aqui partir da fala de um dos principais personagens de Fei-
rantes, Justino. Depois de ter vivido por décadas o sonho de São Paulo, ele
comprou uma barraca na Feira logo quando voltou de lá, cerca de quinze
anos atrás. Quando conversamos, obtinha renda por meio da venda de be-
bida e pratos feitos com sua esposa. Diante de situações de vida nas quais
precisou demonstrar persistência, ele costumava repetir a expressão: “eu
sou um cara ateimoso (sic) demais”.
104 Texto levemente adaptado a partir de original proferido na apresentação do livro Filhos das feiras e
da 2ª edição de Feirantes na Câmara Municipal de Caruaru, em 20 de setembro de 2018.
Feirantes - 231 -
Até hoje fico admirado como em poucas palavras Justino conseguiu
dizer tanto sobre a condição do feirante na Feira de Caruaru ainda hoje,
como eles são teimosos ao persistirem sobrevivendo de seus pequenos ne-
gócios. Mas é preciso que seja dito que há muitos feirantes teimosos noutro
sentido também, ou seja, em resistir às mudanças, em querer manter seus
negócios onde estão, por medo de perderem seus clientes ou de terem que
se adaptar ao incerto, ao novo.
A Feira de Caruaru é um desafio não somente para as pessoas que nela
encontram sua fonte de renda e ocupação, mas também para a gestão pú-
blica e para a sociedade caruaruense em geral. Basta voltarmos nosso olhar
para história e observarmos como polêmicas relacionadas à feira permane-
cem há décadas na pauta do governo municipal e da imprensa local.
Em 2007, a “Feira de Caruaru” recebeu o título de Patrimônio Cultural
e Imaterial Brasileiro. Se, por um lado, ela foi uma marca construída para
a cidade ao longo da segunda metade do século passado e neste obteve
o reconhecimento oficial como patrimônio cultural do país, por outro, é
possível escutar sobre ela depoimentos de feirantes insatisfeitos com o tra-
tamento histórico que a cidade lhe confere. Diferente do que diz a letra
daquela música consagrada e consagrante para a feira, um dos feirantes
que tive a oportunidade de entrevistar disse que “a Feira de Caruaru dá é
desgosto da gente vê”. Ele ainda enfatizou a vergonha que tinha em trazer
pessoas para conhecer a feira, aos seus olhos, algo bem diferente da visão
de caruaruenses que são “de fora” da feira e que preferem observá-la apenas
com romantismo, que muito difere da sua realidade.
Aos meus olhos, cuidar da feira e dos seus feirantes cobra de Caruaru
um plano, intenções organizadas que apontem para um futuro de médio
e longo prazo. Sem isso, ou seja, sem uma política pública de maior alcan-
ce, muitas obras podem ser feitas sem a devida clareza de suas finalidades
para além do curto prazo, o que pode tornar determinadas iniciativas ações
pontuais e dispersas, algo que contribuirá para que a feira continue onde e
como está, com um tratamento aquém do que merece.
No século passado Caruaru ganhou fama nacional como “a cidade que
tem a feira”. Mas neste século 21, que nova marca a Feira pode ser para a
cidade?
A máxima de Justino pode nos ajudar a refletir aqui. Caruaru não pode-
ria ser mais teimosa, persistente, nos cuidados com o seu maior patrimô-
- 232 - Anexo
nio? Se pensarmos e agirmos com o sim, poderíamos evitar o desperdício
desse seu grande capital, atrair novos investimentos e construir outro signi-
ficado para sua Feira neste século, ao torná-la objeto de planos consistentes.
Nesse sentido, a Feira de Caruaru poderia ser vista como “a mãe da cida-
de”, não somente por tê-la mantido economicamente por muito tempo, mas
também pela cultura e pelos ensinamentos que transmitiu. Afinal, foi com
ela que muita gente aprendeu a fazer contas, a assumir responsabilidades,
a se relacionar com os vizinhos de banco, a trabalhar duro etc. Não tenho
dúvidas de que ela ensinou mais a muitos caruaruenses que a escola. Se essa
cidade é filha de uma feira, como Caruaru está tratando sua mãe? Quais são
os planos que Caruaru tem para a sua Feira?
Reitero para finalizar este ponto: aos meus olhos, a feira vem sendo his-
toricamente empurrada para frente sem uma intencionalidade clara que lhe
dê um rumo, um futuro coletivo planejado para ser melhor que o presente.
Por outro lado, a feira poderia ser tratada de verdade, na prática, como
nosso maior capital, nosso maior ativo cultural, que rende não somente
dinheiro agora, mas também orgulho, reconhecimento e horizontes para as
próximas gerações de caruaruenses.
Se posso falar com alguma propriedade sobre a Feira de Caruaru ou se
o que falo provoca alguma reflexão, devo isso ao estudo que fiz e está re-
gistrado neste livro. Acredito que ele possa ter alguma utilidade para nossa
reflexão sobre o futuro que desejamos e queremos construir para a Feira de
Caruaru.
Na base do argumento que apresento no livro mais recente, “Filhos das fei-
ras: uma composição do campo de negócios agreste”, está o comércio de feira
de rua. Este segundo livro é um trabalho mais amadurecido, fruto de anos
de estudos em universidades estrangeiras e de outras viagens aqui mesmo
na região, a municípios como Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Jataúba,
Taquaritinga do Norte, Belo Jardim, entre outros, incluindo aí algumas zo-
nas rurais nas quais muitos se ocupam da produção de confecções. Mesmo
que seu foco maior se volte para os proprietários de negócios de produção
e comercialização de confecções, dirigi a esse pedaço de mundo que chamo
de agreste das confecções uma questão simples. Perguntei-me “como isso
tudo foi possível?” Questão que Pierre Bourdieu costumava fazer.
E para chegar até aos filhos das feiras, foi preciso resgatar um tanto da
história coletiva local a partir da qual eles foram gestados e crescidos. Afi-
Feirantes - 233 -
nal, sem o comércio de feira de rua, sem a família de origem rural que migra
para as cidades agrestinas, sem o saber da costura doméstica transmitido
de geração em geração, sem os retalhos-restos da industrialização do país,
sem as pessoas que iam e vinham do eixo Rio-São Paulo para Santa Cruz e
outros municípios agrestinos, enfim, sem tudo isso fica difícil imaginar o
agreste das confecções com os contornos que tem hoje e, consequentemen-
te, os seus filhos das feiras.
Esse termo foi criado para realçar uma herança que se mostra no jeito
de agir e que tais proprietários de negócios de produção e comercialização
de confecções recebem do comércio de feira de rua. Milhares de agrestinos
cresceram e foram educados nos seus corredores, entre seus bancos e bar-
racas. É dessa matriz social, cultural e econômica que ao menos alguns de
nós também são filhos e filhas.
Se, por um lado, tais milhares de negócios possuem uma origem comum
entre eles, por outro, tomaram rumos distintos ao longo do tempo, o que
fez com que seus proprietários se diferenciassem entre si, mesmo sendo
filhos de uma mesma história coletiva local.
A origem comum está nas feiras agrestinas e num modo de ser e agir que
foi e ainda é compartilhado em plena rua, quando se diz “chegue freguesa,
que lhe faço um desconto”. Ou então quando se grita: “eita que a macaxei-
ra hoje tá boa demais! Pague dois quilos e leve três!”. Esse jeito de ser se
mostra por meio de um pequenino menino que, em pé em cima do banco,
anuncia imitando como fazem os adultos: “oito laranjas por um real, quem
vai levar, quem vai?” Quando se procura atrair clientela e vender “no grito”,
pela oferta vociferada da mercadoria a quem passa, ou se recorre a modos
de agradar e manter a freguesia, guardando sua bolsa pesada enquanto ela
continua suas compras, ou mesmo separando-lhe um melhor pedaço do
bode. Está na habilidade com que se arruma, se coloca o maço de dinheiro
no bolso e no jeito como se puxam dele as notas necessárias ao troco. Ao se
ensinar aos filhos que “o apurado não é lucro” ou a embalar bem direitinho
a bandeja de ovos que a Dona Maria acabou de comprar. Tudo isso é vivido
e apreendido por meio de um sem-número de práticas que também se dão
naqueles dias de feira – práticas que fazem a cabeça e se inscrevem no cor-
po de quem cresceu, negociou ou ainda negocia por lá desde muito tempo
atrás (livro Filhos das feiras, 2018, p. 176-177).
- 234 - Anexo
Foi a partir de tal legado que, desde meados do século passado, cres-
ceu na aridez agrestina um conjunto específico de negócios. Agregando ao
saber prático do comércio de feira de rua a capacidade de confeccionar
mercadorias num dos cômodos do lar ou no quintal, milhares de famílias
passaram a se dedicar à atividade que deu fama e ganho econômico para a
região. A sulanca de Santa Cruz, o jeans de Toritama e a produção suburba-
na de Caruaru foram rapidamente disseminados por diversos outros mu-
nicípios do entorno, as máquinas de costura também invadiram o campo e
passaram a ser instrumento de trabalho e geração de renda para quem por
lá vivia e ainda vive.
Com todas as contradições e desigualdades de uma região que bem re-
trata o nosso país, o negócio da confecção local assim também se consti-
tuiu. De um lado, muito trabalho duro, inovação com poucos recursos dis-
poníveis, geração de soluções criativas e de formas alternativas de produção
em escala, como por meio das facções. De outro, exploração de mão de
obra infantil, pagamentos indignos, condições de trabalho precárias e uma
série de outros problemas que parte significativa de nós bem conhece. Para
além do julgamento positivo ou negativo que se pode fazer num primeiro
olhar, neste livro procuro apresentar uma interpretação sobre como tudo
isso se deu e se dá por aqui. Em particular, sobre como os filhos das feiras
criaram e fizeram crescer esse conjunto diverso de negócios e o que os tor-
na diferentes e semelhantes entre si.
Mas talvez parte de nós esteja se perguntando: para que um estudo como
esse pode servir? Antes de concluir esta fala quero dar uma resposta apon-
tando duas possíveis utilidades.
Uma primeira serventia é possibilitar que Caruaru reflita e se entenda
melhor nessa trama do agreste das confecções. Qual é o seu papel hoje nela
e qual poderia ser, por exemplo. Muito se escuta que Caruaru “ficou para
trás” no negócio de confecção, quando comparada com Santa Cruz do Ca-
pibaribe e Toritama, mas, caso o município se entenda com isso, poderá de-
senvolver ações para acompanhar e manter-se em sintonia com os demais.
Indo além, pode exercer sua liderança histórica também nesse processo de
desenvolvimento dos negócios de confecções agrestinos, articulando ru-
mos comuns a esses e a demais municípios envolvidos nessa trama.
Uma segunda seria inspirar pensamento e atuação política locais, uma
vez que, em termos gerais, leis e políticas nacionais ou estaduais são molda-
Feirantes - 235 -
das sem atentar para o que há de específico em municípios agrestinos como
Caruaru. Entender a história e a dinâmica das pessoas que construíram e
hoje fazem a principal atividade econômica da região pode permitir que
projetos de lei estaduais e municipais sejam propostos no sentido de apoiar
tais tipos de negócios, em particular os menores e que mais precisam. Mas
pergunto: quais políticas públicas Caruaru tem elaborado para seus peque-
nos e médios produtores de confecções? E quais poderia vir a propor se
tiver maior clareza de sua condição capital no agreste das confecções e pe-
riférica no mundo de hoje?
Melhor conhecer uma realidade como essa pode nos permitir fazer per-
guntas que nos levem adiante, que orientem avanços em bom rumo. Pode-
ríamos especular outros e outros exemplos e possibilidades aqui, mas não
creio que seja conveniente tomar mais tempo.
Para terminar, não queria deixar de registrar que esses livros condensam
os principais resultados de mais de onze anos de estudos sobre e para o
Agreste e, em particular, Caruaru. Para estar aqui hoje falando sobre eles,
assim como Justino, precisei persistir, ser muito teimoso e manter-me tra-
balhando nisso ao longo desse tempo. Espero que esta fala possa tê-los to-
cado para a importância de, inspirados pelas palavras de Justino, persistir.
Nesse caso, naquilo que se acredita ser importante para a construção de
visões e ações de médio e longo prazos para a Feira de Caruaru e para sua
Feira da Sulanca.
- 236 - Anexo
2. NASCIDO NUM BANCO DE FEIRA
[Por Taíza Maria105]
Sua origem era desconhecida e, na altura dos seus sete anos, tudo o que se
sabia é que ele tinha nascido num banco e num dia de feira.
Embora naquele agreste fosse comum que meninos da sua idade não
conhecessem o pai, causava estranheza que não se soubesse absolutamente
nada sobre a sua mãe.
– Você veio de onde? – seu Almir perguntava pela centésima vez.
Apenas um subir e descer dos ombros por resposta.
– Não sabe ou não quer dizer? – era a repergunta imediata.
– Vim de dentro da minha mãe.
– E você não sabe nada dela?
– Não. Mas ela sabe de mim!
E, assim, o mistério permanecia.
Nem seus traços físicos denunciavam um provável parentesco, pois ele se
parecia com meio mundo de gente. Tinha os olhos castanhos como quase
todos, os cabelos pretos tal qual a maioria, e a pele escurecida, que conden-
sava o sol das manhãs e tardes no corpo daqueles que viviam por entre as
lonas escaldantes e os bancos da Feira de Caruaru.
Um caminho para o enigma poderia ser observar o jeito de se portar e
tentar encontrar sua parecença com algum feirante. Mas tampouco essa
era uma pista a ser seguida. O menino falava rápido e sincopado, sorria
com facilidade e se exasperava com ligeireza, acordava primeiro que o sol e
reconhecia o cheiro da chuva antes da precipitação. Lamentava que o mo-
105 Doutora em Direito pela Universidade do Minho, professora dos Centros Universitários Asces-
Unita e Unifavip, taiza.maria@gmail.com.
Feirantes - 237 -
vimento da feira estivesse fraco, ao mesmo tempo em que cantarolava o
forró que tocava no rádio. Aquele menino falava, andava e se mexia com tal
desenvoltura no balé da feira, que não fosse a pequena estatura, se poderia
achar que era ele próprio um feirante. Inclusive, era com esta profissão que
sonhava ser quando crescesse. Mas não ali. Ele se imaginava trabalhando
na feira que ouvira numa música.
– Lá tem tudo que tem no mundo? – perguntou um dia a Dona Mercês.
– Maria Santíssima, protege essa inucência! Tem sim, fio, tem sim.
E como acreditava em tudo que fosse dito pela pessoa mais velha que
conhecia, o menino se via no futuro, como um homem feito e naquela feira,
em que tudo era tão intenso que entrar nela era viajar sem destino. Basta-
vam os primeiros acordes da música para despertar nele aquele cenário de
cores e melodias. A feira não o havia ensinado a ler, mas fez da necessidade
de saber ouvir uma virtude.
Contudo, enquanto o menino sonhava com a feira da música, os feiran-
tes que por anos se ocuparam de tentar descobrir de onde ele veio passaram
a se preocupar com o para onde ele iria. Ao menos até então, ele tinha abri-
go ou porque se tornara invisível aos olhos dos fiscais, ou quiçá era salvo
pela desistência deles de, diuturnamente, expulsar o menino de uma feira
tão imensa, que parecia não ter um lugar que se pudesse chamar de “fora”,
já que a cidade inteira cabia dentro dela.
Ele se alimentava graças à bondade alheia, e como retribuição carregava
fretes, ajudava a organizar roupas, pedia trocados aos passantes, catava as
frutas que os fregueses derrubavam e que corriam ávidas para baixo dos
bancos. Mas, para muitos, era tido como certo que em breve ele atravessaria
a linha que separa a piedade do problema.
– Que futuro esse menino pode ter? – lamentava Seu Almir.
– O mesmo que a gente: viver e morrer na feira – respondeu Seu Gonza-
ga, com sua habilidade de encerrar conversas que não queria nem começar.
– A feira já nos deu muito. – disse Dona Elsa fitando apenas Seu Almir.
– E com a mesma mão que dá, ela tira. – falou Seu Gonzaga, que gostava
também de encerrar as conversas alheias.
Mas tudo isso estava a léguas de distância da mente inventiva do menino
da feira. Ele se achava um afortunado. Não havia mãos que lhe dessem um
banho, mas todos os dias ele tinha um perfume diferente. Na segunda chei-
rava a goiabas frescas da barraca de Dona Isabel. Nas quintas tinha cheiro
- 238 - Anexo
de mato verde porque ajudava Seu Otoniel a vender coentro e cebolinha.
Na sexta o menino perfumava como todas as flores do banco de Dona Tere-
zinha. E aos sábados? Ah, aos sábados ninguém precisa usar perfume, pois
quem cheira mesmo é a feira!
Como é comum às crianças da sua idade, ambicionava brinquedos. E,
embora lhe fossem atraentes as luzes que via na “feira dos importados”, era
por entre as vielas do artesanato que se sentia legítimo dono de um arse-
nal de diversão. Nem os maiores historiadores de guerra seriam capazes
de descrever as batalhas que a mente do menino deflagrava, enquanto seus
olhos pousavam por sobre os bonecos de barro. Eram exércitos invencíveis,
formados por centenas de homens da sua cor, com os líderes em carros de
bois, protegidos por gatos maracajás, e nos quais os guerreiros de chapéu de
couro eram puxados por bandas de pífanos, que marcavam a cadência do
passo e davam a dramaticidade necessária aos momentos épicos.
O menino sabia que algumas crianças tinham televisões só suas, mas
isso não lhe causava inveja. Ele tinha várias espalhadas pela feira e nem
precisava mudar de canal. Na TV de Dona Elsa sempre estava passando
um programa policial, que falava de mortes que nada tinham a ver com
as narrativas honrosas dos seus bonecos de barro. A dois passos dali, Seu
Gonzaga tinha uma TV repleta de canais de esportes, com jogos até do
estrangeiro. Mas o menino gostava mesmo era da televisão de Dona Maria
das Mercês. Lá o assunto era Deus, com músicas que falavam de pai, mãe e
que os humilhados seriam exaltados.
– Dona Mercês, o que é humilhado? – perguntou naquele dia.
– É quando uma pessoa, que se acha importante, lhe trata como se você
não fosse.
– E exaltado, a senhora sabe?
– Claro que sei, mas agora tenho mais o que fazer.
O menino riu e entendeu que ser humilhado era coisa ruim e que Dona
Mercês não sabia o que era exaltado. De todo jeito aquilo semelhava ser
coisa boa, e vez por outra se via ele ali parado, com as mãozinhas sujas na
cintura, diante daqueles programas que falavam de amor.
E foi diante de uma televisão – a do Seu Almir – que o mistério maior da
sua vida se desfez. O jornal do meio-dia falava sobre os problemas da Feira
de Caruaru. Ao ver as imagens, os bancos por onde passava todos os dias e
reconhecer os rostos dos entrevistados, o menino percebeu que aquela feira
Feirantes - 239 -
da música, que embalava e coloria seus melhores sonhos, não existia. Ou
pior, era justamente aquela em que nasceu e sempre viveu.
Enquanto a matéria transcorria, o menino foi olhando para si mesmo,
se cheirando com desconfiança, tocando o próprio corpo e se apercebendo
que, tal qual a feira, ele estava sujo, lhe faltava muito (da água ao zelo), não
tinha um lugar certo para permanecer, estavam ambos inseguros e vulne-
ráveis às intempéries. Foi naquele dia que se deu conta de com quem se pa-
recia de verdade. Não era filho de um feirante. Ele era filho da própria feira.
Os feirantes relatam que seus olhos marejaram e que as lágrimas diluíram
o que nele existia de sonho. O menino da feira nunca mais foi visto. Mas
Caruaru guarda seus mistérios e crendices, o que é de se esperar de uma
cidade onde, tal qual no Gênesis, ainda existem homens feitos de barro.
Por lá se diz que o menino permanece por entre os bancos da feira. Vez
por outra é reconhecido numa criança que faz birra por um brinquedo,
nos olhos de uma menina que pede uma fruta, num pequeno aventureiro
que corre de perto da mãe, embora esta última em três segundos perceba a
traquinagem, tome o fugitivo pela mão e sigam os dois o mesmo caminho.
É assim que agem as mães que têm como maior temor perder um filho. E
era justamente assim que poderia ter agido a feira, caso tivesse percebido
quando aquele seu filho, um dia e de repente, se perdeu dentro dela mesma.
- 240 - Anexo
3. A NOVELA DA MUDANÇA DA
FEIRA DA SULANCA: CAPÍTULO
2015106
[Por Jessica Rani Ferreira de Sousa]107
106 Este texto é uma síntese, elaborada especificamente para esta publicação, de um estudo original-
mente apresentado no Encontro Nacional de Estudos Organizacionais (EnEO 2019), leia-se: SOUSA, J.
F. de S.; SÁ, M. Os Significados do Projeto “Nova Sulanca” sob a Ótica da Teoria do Discurso de Laclau
e Mouffe. In: Anais do X Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD. Fortaleza: Anpad, 2019.
107 Professora Substituta (2019-) do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE,
Mestra em Administração pelo Propad-UFPE.
Feirantes - 241 -
ainda se realizava no marco zero da cidade, sendo então transferida para o
Parque 18 de Maio. Em 2015, no Projeto Nova Sulanca, o terreno negocia-
do para a instalação dos boxes e funcionamento da Feira contava com 60
hectares e capacidade para 3.768 veículos particulares e 600 ônibus. A de-
sapropriação desse espaço contaria também com uma ampla infraestrutura
com o custo de R$ 11 milhões aos cofres públicos, sendo a maior parte do
montante provido pelo Governo de Pernambuco e R$ 1 milhão pela Pre-
feitura (Diario de Pernambuco, 2015). As instalações ficariam distantes do
centro da cidade e seriam espaço de 568 lojas periféricas, 10.776 miniboxes,
168 lojas de atacado, 144 lanchonetes, 22 restaurantes, mais de cinco mil
vagas de estacionamento etc. (Prefeitura de Caruaru, 2015).
Neste texto, analisam-se os discursos de variados sujeitos políticos, en-
volvidos direta e indiretamente com o debate acerca da mudança da referida
feira, na tentativa de captar os significados do Projeto “Nova Sulanca”.
1. Sobre o estudo
Na coleta de dados que dá embasamento a este estudo, foram conside-
rados comentários e depoimentos oficiais postados em versões online de
mídias tradicionais, como edições eletrônicas de jornais locais, reportagens
em vídeo, notícias de sites institucionais dos sujeitos identificados como
articulados e influentes no fenômeno, e blogs de perfil jornalístico que de-
batem temas políticos e assuntos relevantes para a realidade de Caruaru e
outras cidades do Agreste. Por fim, para captar o posicionamento dos su-
lanqueiros envolvidos com o projeto, também foram trazidos para análise
comentários de nove publicações, veiculadas na página oficial da Prefeitura
de Caruaru e no Facebook, local em que mais foram frequentes a partici-
pação e os questionamentos direcionados ao debate sobre a mudança da
Sulanca, por parte dos aderentes ao movimento “A Sulanca é dos Sulan-
queiros” e de outros feirantes. Os depoimentos e comentários levantados
totalizaram um arquivo de 257 declarações (opiniões):
- 242 - Anexo
Tabela única: Composição do arquivo
Corpus do estudo Depoimentos Comentários
Sites institucionais 7 0
Blogs 5 15
Edições online de jornais locais 25 1
Postagens no Facebook 9 180
Reportagens em vídeo 15 0
Total: 61 196
Fonte: Elaboração da autora
Feirantes - 243 -
as fortemente estimulado pela Sulanca. Em contrapartida, a base aliada da
Prefeitura ressaltava que aquele era um “projeto de primeiro mundo”, cuja
tentativa era atender a uma solicitação da “própria sociedade” (Rota do Ser-
tão, 2014). Até então, não se identificavam “articulados” os elementos cons-
tituintes dos discursos favoráveis e contrários à transferência da Sulanca.
Com a criação de um Conselho Consultivo Deliberativo em julho de
2014, a Prefeitura buscou retratar a intenção de garantir um processo dialo-
gado sobre as decisões acerca do destino da Sulanca. O Conselho era forma-
do por membros representantes da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL),
do Sindicato dos Lojistas do Comércio, (Sindloja), da Associação Comer-
cial e Empresarial de Caruaru (Acic) e alguns poucos membros da Associa-
ção dos Sulanqueiros.
Grande parte da polêmica em torno da transferência da feira tomou for-
ma quando se difundiu a informação de que os novos bancos custariam
caro aos bolsos dos sulanqueiros. Conforme divulgado pela imprensa, a
aquisição de boxes (com 4 m²) custaria algo em torno de R$ 28 mil à vista e,
caso optassem pelo financiamento, cerca de R$ 40 mil (JC ONLINE, 2015).
Já as lojas de 40 m² ficaram orçadas entre R$ 142 e 160 mil (G1, 2015).
O final de 2014 foi marcado por muita dificuldade da prefeitura para dar
encaminhamento às obras do projeto. Por uma denúncia de um antigo líder
de oposição feita ao Ministério Público e à Agência Estadual de Meio Am-
biente (CPRH) de que a área das novas instalações da Sulanca estava sendo
alvo de desmatamento, sem o devido licenciamento ambiental, o terreno foi
embargado. Entre muitas idas, vindas e audiências públicas, ficou definida
a necessidade de compensação ambiental, que deveria ocorrer mediante a
construção de um parque municipal de 5,2 hectares às margens da BR-104,
pelo ex-dono do terreno, mais outros 21 hectares, na zona rural, destinado
como unidade de preservação permanente do Governo do Estado (Folha
de Pernambuco, 2015).
Enquanto os poucos membros da Associação de Sulanqueiros integrantes
do conselho foram positivos em relação às condições de possibilidade de pa-
gamento dos novos boxes, muitos feirantes demonstravam falta de condições
de efetuá-lo. Também passou a se articular um conjunto de feirantes inte-
grantes de um movimento intitulado “A Sulanca é dos Sulanqueiros”, alegan-
do insatisfação pela falta de participação nas decisões no projeto idealizado
pela Prefeitura e posicionando-se contra a transferência da feira.
- 244 - Anexo
Se, por um lado, a transferência afetaria negativamente o pequeno fei-
rante, que outrora já teria pago o suficiente para conseguir um alvará de
funcionamento no Parque 18 de Maio, membros da comunidade empresa-
rial, por sua vez, destacavam a perda de mercado que ocorre na medida em
que outros feirantes deixam de vir para Caruaru, buscando outras cidades
para negociar (Acic, 2015). A resistência dos pequenos feirantes, além do
próprio Ministério Público e CPRH, nos momentos de imbróglio judicial
ao andamento do PL, desde sua concepção inicial, até as votações levadas
à Câmara em julho de 2015, demonstrava como os discursos contrários à
transferência impossibilitaram a constituição objetiva da plena efetivação
do projeto, nos termos propostos pela Prefeitura, sua base aliada e pela clas-
se empresarial da cidade.
Feirantes - 245 -
mento judicial das obras implicou na não sustentabilidade do Projeto Nova
Sulanca da forma que estava e na necessidade de reelaboração. A Prefeitura
apressou-se em elaborar e apresentar um novo projeto de lei à Câmara de
Vereadores, em substituição ao projeto anterior, dessa vez tentando atender
as recomendações da Justiça e declarando que a administração dos boxes
seria feita em uma espécie de regime de condomínio, a ser regido pelos
próprios sulanqueiros (Prefeitura Municipal de Caruaru, 2015).
Dessa vez, novo projeto e emendas emperraram na Câmara: represen-
tantes dos feirantes e do movimento “A Sulanca é dos Sulanqueiros” fize-
ram um abaixo-assinado e, liderados por uma figura política de oposição
ao governo, solicitaram um plebiscito para decidir a viabilidade ou não da
transferência. O PL nº 6.940/2015 seguiu para comissões parlamentares de
Legislação e Redação de Leis para análise e parecer, sendo apenas poste-
riormente encaminhado para votação em plenário (Câmara Municipal de
Caruaru, 2015).
- 246 - Anexo
Sulanca” no recorte proposto, em torno de algumas questões principais, as
quais disseram respeito a: (a) infraestrutura/financiamento; (b) competiti-
vidade e ganhos econômicos e (c) partidarismo/interesses políticos.
a) Infraestrutura/financiamento
Na opinião difundida entre os sulanqueiros insatisfeitos com a infraes-
trutura da Sulanca no 18 de Maio, há uma cadeia de equivalência com o
discurso à época difundido continuamente pela Prefeitura: “O espaço onde
funciona a Feira da Sulanca não oferece uma estrutura que permita o aces-
so de ambulâncias e agentes de segurança, trazendo riscos aos feirantes e
compradores em casos de incêndio, por exemplo” (P35).
Por parte de alguns feirantes, houve ainda comentários degradantes a
respeito da falta de infraestrutura, retratando-a como “nojo” (S164, 203);
“favela” (S164) e “chiqueiro” (S133), ou ainda: “impossível comprar e ca-
minhar com mobilidade pela Feira; estacionamento não comporta nem os
que vão para Feira de Artesanato. Tratando-se de condomínio, todos zela-
rão pela sua barraca e sua ala; diminuirá a sujeira e a mistura de produtos”
(S163). Também foram mencionados muitos argumentos a favor da trans-
ferência na luta por ganhos em mobilidade urbana, já que o trânsito fica
muito engarrafado nos dias de realização de Sulanca.
Ainda em relação à questão da infraestrutura, existia a preocupação com
o futuro incerto de vendedores ambulantes, carroceiros (S66, S68, S152),
além dos que aproveitam o movimento da Sulanca para vender outros
produtos. A Prefeitura, de sua parte, defendia-se de tal descontentamento
alegando que “uma das opções eram os tabuleiros para quem não tivesse
condições de adquirir um boxe” (P153), sem deixar claro, no entanto, as
condições para a aquisição de tais tabuleiros ou a forma de financiamento
para tal.
Quanto às condições de financiamento, foram esclarecidas no discurso
da Prefeitura apenas para a aquisição de boxes no sistema de condomínio,
a ser administrado pelos feirantes. Essas condições, no entanto, não foram
aprovadas pela Comissão de Legislação e Redação de Leis da Câmara de
Vereadores de Caruaru, antes mesmo da primeira votação na Câmara, em
seu parecer ao PL divulgado no dia 21 de julho de 2015. “Os projetos de lei
Feirantes - 247 -
apresentados pelo Poder Executivo, por exemplo, não podem ter aumen-
to de despesa. […] Não podemos criar despesas para um condomínio que
nem foi criado ainda” (C222). Além da inconstitucionalidade das emendas
sugeridas pelos parlamentares para o projeto de lei, que encontraram vários
problemas jurídicos, a comissão reprovou os gastos que a nova estrutura
em condomínio traria para os cofres do governo, sem clara compensação
no futuro.
- 248 - Anexo
lução que vai melhorar o grande equipamento econômico da capital do
Agreste” (P181) e fortalecer ainda mais a Sulanca: “Vamos dar um salto de
qualidade na nossa economia, colocando Caruaru mais uma vez na pers-
pectiva de mais desenvolvimento, mais emprego e mais renda para todos”
(P186).
c) Partidarismo/interesses políticos
Junto ao discurso dos partidários do Movimento “A Sulanca é dos Su-
lanqueiros”, articulou-se o discurso dos vereadores contrários ao projeto
na Câmara Municipal, conforme demonstrou o depoimento do líder da
oposição, referindo-se ao Projeto Nova Sulanca como “matéria de grande
relevância e interesse público”, dispondo ainda “de regime de concessão de
patrimônio público” (CV214). “Pedi, através de ofício, a realização de uma
audiência pública, mas não fui atendido [...]. A Prefeitura está lavando as
mãos em relação a essa situação e jogou o problema para a Câmara resolver.
Infelizmente, o prefeito tem maioria esmagadora e seremos voto vencido”
(CV237).
No discurso dos feirantes, alguns alegavam “oportunismo” de candidatos
por interesse nas eleições municipais seguintes (S88). Também houve alu-
sões à corrupção, no discurso dos que afirmavam que transferir a feira sem
a participação dos feirantes significava “roubar o povo” (S71) e “privatizar
a feira” (S166) ou “chamar privatização de transferência” era “roubar na
cara de pau” (S60, S69, S202). Alguns também citavam que as condições
de infraestrutura da feira só refletiam o seu “abandono” pelo poder público
(S205, S206).
O momento de discussões inflamadas na segunda votação na Câmara
disparou em destaque na imprensa local devido à mudança de voto de um
vereador, que primeiro havia votado contra o PL e depois mudou seu voto
para um “sim” na votação de segunda instância do dia 31, sob a alegação de
que havia sofrido “ameaças” (CV240) de indivíduos que afirmaram que, se
ele votasse contra o projeto, “cabeças iam rolar” (CV213, CV239), culmi-
nando em sua mudança de voto para assegurar a “certeza de que vivia em
uma democracia” (CV239).
Feirantes - 249 -
A única abstenção da segunda votação foi justificada pela falta de segu-
rança no PL: “Sou contra o projeto que veio para cá, que não me deixou
com segurança para votação, retirar a feira e eu ficar com o peso na consci-
ência de que votei errado. [...] Sou a favor da retirada da feira, mas com um
projeto que me dê essa segurança” (CV219).
Após a aprovação e seguimento do PL para sanção pelo prefeito à épo-
ca, a Asvac articulou-se junto ao Movimento “A Sulanca é dos Sulanquei-
ros”, reivindicando poder de intervenção e proteção aos interesses dos
trabalhadores da Sulanca, como foi possível observar nos depoimentos da
presidente da associação e do então líder do Movimento “A Sulanca é dos
Sulanqueiros”, eleito tesoureiro da Asvac, respectivamente: “Em nenhum
momento nós somos contra a saída da feira ou a permanência. Nós quere-
mos dignidade e direito de trabalho. A gente não é contra a transferência
da feira, mas da maneira como ela está sendo conduzida: sem informações
e sem proteção do pequeno sulanqueiro” (A215). “A gente vai desenvolver
um plano de trabalho e uma série de reivindicações, para que a gente possa
ir ao poder público não apenas como indivíduo, mas como associação com
caráter jurídico” (M216).
Considerações finais
O estudo que deu origem a este texto vislumbrou uma possibilidade de
futuro da Feira da Sulanca como um significante vazio, que ainda perma-
nece sendo disputado entre os sujeitos favoráveis a sua permanência ou sua
transferência. Mesmo publicada a lei que trata da transferência, a verdade
é que o futuro da feira, desde o período aqui relatado, ainda não adquiriu
um sentido estável, uma vez que um imbróglio judicial, ainda em dezem-
bro de 2015, anulou o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre o
Ministério Público, a CPRH, a Prefeitura de Caruaru e o dono do terreno,
que previa a legalização da área onde deveria funcionar a “Nova Sulanca”.
Não obstante, face a toda a repercussão que teve e aos interesses políticos
que ainda envolve, o PL não deixou de “passar para os anais da história de
Caruaru”.
No final de 2018, na tentativa de atender às necessidades emergenciais de
requalificação com as quais havia se comprometido a nova gestão ainda
- 250 - Anexo
no período de campanha eleitoral em 2016, seguem acontecendo algumas
obras de melhorias na parte da feira que funciona em terreno particular,
nas proximidades do Parque 18 de Maio, região conhecida como terreno
da antiga Fundação de Amparo à Criança e ao Adolescente (Fundac). Após
assinatura de Termo de Compromisso entre a Prefeitura de Caruaru e a em-
presa proprietária desse terreno, algumas obras de benfeitoria foram opera-
cionalizadas para, nas palavras da atual prefeitura, cumprir o compromisso
de “dar fôlego” à Feira de Caruaru até que se consiga, de fato, transferir a
Sulanca para um novo local (Jornal de Caruaru, 2017; Prefeitura Municipal
de Caruaru, 2018).
Referências
ACIC (Associação Comercial e Empresarial de Caruaru). Debate sobre a
Feira de Caruaru entre Queiroz e empresários. 2015. Disponível em: http://
acic-caruaru.com.br/debate-sobre-a-feira-de-caruaru-entre-queiroz-e-
-empresarios/. Acesso em: 13 out. 2015.
Feirantes - 251 -
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Dossiê
Feira de Caruaru: Inventário Nacional de Referência Cultural. Redação de
Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei Tito). Recife, 20 set. 2006. Dispo-
nível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_fei-
ra_de_caruaru.pdf. Acesso em: 7 ago. 2018.
RAQUEL Lyra fecha parceria que vai transformar a feira da Fundac em coisa
de cinema. Jornal de Caruaru. Caruaru, 9 nov. 2017. Disponível em: www.
jornaldecaruaru.com.br/ 2017/11/raquel-lyra-fecha-parceria-que-vai-
-transformar-a-feira-da-fundac-em-coisa-de-cinema/. Acesso em: 9 mar.
2018.
- 252 - Anexo
VEREADORES aprovam projeto da nova ‘Sulanca’ de Caruaru em 2ª vo-
tação. G1. Caruaru e região, 30 jul. 2015. Disponível em: http://g1.globo.
com/pe/caruaru-regiao/noticia/2015/07/ vereadores-aprovam-projeto-da-
-nova-sulanca-de-caruaru-em-2-votacao.html. Acesso em: 23 dez. 2015.
Feirantes - 253 -
4. UMA OBRA PRENHE
[Por Luiz Alex Silva Saraiva]108
Ter podido reler Feirantes: quem são e como administram seus negócios,
para escrever este comentário final à terceira edição do livro, significou
para mim várias coisas: privilégio, prazer, reflexão e provocação, aspectos
que pretendo desenvolver ao longo da minha escrita.
Em primeiro lugar, foi um privilégio. E não apenas por ter sido alfabe-
tizado e não integrar o expressivo contingente de analfabetos funcionais
no país, número que tende a crescer em razão da atual postura irrespon-
sável do Governo Federal, que, além de sistematicamente cortar recursos,
ainda congela o restante em meio a um esquema explícito de chantagem
da sociedade brasileira em prol de agendas eleitoreiras e privatistas. Mais
e mais brasileiras e brasileiros, se muito, conseguirão identificar as letras,
o que não significa que cheguem a compreender do que se trata o que,
em conjunto, essas letras dizem. Meu privilégio também se deve a poder
ler este trabalho, fruto de uma pesquisa empreendida com forte referen-
ciamento local, da forma como a li: a partir de uma posição de professor
universitário, gentilmente convidado pelo autor a comentar a certamente
bem-sucedida terceira edição do livro.
Em segundo lugar, foi um prazer. E digo isso por dois motivos. O pri-
meiro é que já residi em diversas cidades de diferentes regiões do país, e
me encantam as variadas diferenças de um país continental como o nosso,
visivelmente ampliadas quando fenômenos que não são usualmente to-
mados como organizações, como as feiras, passam a ser observados com
um olhar organizacional. Isso amplia de forma expressiva o que temos em
mãos quando vivemos em sociedade, pois passamos a ter como compro-
Feirantes - 255 -
misso observar a vida social organizada e as múltiplas formas pelas quais
se concretizam as gestões e as sociedades – no plural (CARRIERI, 2014).
Outro motivo para meu prazer ao ler o livro é a feliz possibilidade de in-
terlocução com colegas de outro lado do Brasil que também compartilham
a ideia de que é preciso imbuir de sentido o nosso trabalho docente, o que
inclui conceber e levar a cabo práticas de ensino, de pesquisa e de extensão
comprometidas com o meio que nos cerca. A metáfora da torre de marfim,
invocada frequentemente para se referir à universidade e à barreira por ela
erigida em relação à sociedade, é precisa, mas precisa ser desgastada e, tão
logo quanto possível, derrubada. Objetivamente, não há universidade que
não exista em função da sociedade, e é o social que precisa ser beneficiário
último do conhecimento acadêmico ali produzido. Mesmo que estejamos
tratando de uma sociedade que não compreenda precisamente o que ali é
feito, mesmo que a sociedade antagonize o que ali é pensado, é a ela que
este conhecimento se destina, no final. Por isso é tão prazeroso encontrar
colegas que pensem diferente – mas parecido – em um conhecimento que
precisa ser localmente assentado para tornar relevante e empolgante o pró-
prio cotidiano na academia.
Em terceiro lugar, ler este livro me fez refletir. E sobre vários aspectos:
o que constitui o cerne da organização? Em que medida este conceito, tão
caro à área de Administração, dialoga com o conceito sociológico de or-
dem, fundante da nossa sociedade? Estaríamos diante de mais do mesmo,
sendo a organização um imperativo de um campo de conhecimento com-
prometido com uma ordem que se ajuste ao contexto de um sistema de
produção capitalista? É por isso que estudamos a organização ou haveria
algo mais? Abordar uma feira, e fazer dos feirantes os protagonistas signi-
fica subverter a ordem ou reforçá-la em algum nível ao procurar fornecer
explicações lastreadas em uma noção de ciência que pode não dar conta
de organizações fora do padrão da grande empresa capitalista industrial?
Seriam os feirantes abordados a prova da falência das possibilidades expli-
cativas da ciência que temos, ou um novo capítulo revigorado da mesma
história, que se reinventa a partir de “objetos” novos? O Agreste pernambu-
cano e suas feiras, as cidades e suas (in)diferenças, os discursos e as práticas
que nos constituem, a história que construímos e a memória que preserva-
mos, bem como as diversas nuances da sociedade proporcionadas pela tec-
nologia, tudo isso – e não apenas isso, felizmente – me faz refletir sob um
- 256 - Anexo
prisma organizacional e reforça os sentidos de continuar a minha própria
trajetória como pesquisador.
Em quarto e último lugar, este livro me provocou. Eu me senti desafia-
do a me reinventar, o que tenho tentado fazer periodicamente, incorpo-
rando olhares que eu julgava desnecessários, ou já contemplados. Quando
me proponho a pesquisar um tema qualquer, estou considerando todas as
pessoas envolvidas ou elegendo, mesmo sem querer fazê-lo, “representan-
tes” que na prática atuarão como “amostra” e em função de suas especifi-
cidades terei a pretensão de compreender o fenômeno a que me propus?
Seriam minhas escolhas as mais indicadas, as mais relevantes, as que mais
se aproximam do que efetivamente são os fenômenos que desejo observar?
Em uma trajetória que procurou privilegiar uma ampliação do conceito de
organização, teria eu ampliado o suficiente o que tomo por práticas orga-
nizacionais e suas formas de ordenamento? O que não enxergo a partir do
que escolhi observar?
Asseguro ao leitor e à leitora que um livro que desperta simultaneamente
sentimentos de privilégio, prazer, reflexão e provocação em um leitor ex-
periente como eu já tem o seu mérito garantido. Além da fluidez da reda-
ção, que nos coloca ao lado do Marcio na sua empreitada, é um exercício
extraordinário que humanização o que ele conduz ao transformar a nar-
rativa – quando já pensávamos que a ideia amorfa de “feirantes” já estava
sedimentada – e trazer as histórias de Justino e Neide, que passam a dar
“uma cara” ao fenômeno. De seus tropeços e acertos emerge uma história
que poderia ser a minha, e isso me possibilita uma empatia imediata com
o texto. Além disso, a pesquisa não resulta apenas em uma mera apreensão
de informações: há uma visível preocupação ética que enobrece o estudo ao
revesti-lo da humanidade necessária para que ele faça sentido naquele meio
específico. Com isso, o autor não se esconde, quando facilmente poderia,
sob subterfúgios metodológicos que pressupõem o afastamento necessário
das pessoas para que possam ser produzidos resultados cientificamente vá-
lidos; pelo contrário, ele se aproxima dessas pessoas e precisamente dessa
proximidade nos mostra como é possível fazer uma pesquisa prenhe de
possibilidades.
Um exemplo ocorre quando alertado pelos feirantes da ameaça que po-
deria representar a mudança do lugar de realização da feira, que iria tra-
zer alterações na forma de trabalho e de vida daquelas pessoas. Atento à
Feirantes - 257 -
mudança, que efetivamente ocorreu, o pesquisador não definiu com um
confortável ponto final o momento em que os dados foram produzidos em
campo: estendeu-se, assim, ao momento em que a feira mudou de lugar,
e ao modo como isso trouxe uma série de reconfigurações na forma pela
qual aqueles feirantes administram seus negócios. Mantendo em vista uma
relação estabelecida com aquelas pessoas para além da produção do relató-
rio de pesquisa, uma mudança especial poderia significar novas batalhas,
nos termos de Souza (2010) para tais pessoas, que precisariam rapidamente
se readaptar às novas contingências. A pesquisa não acaba, assim, quando
nos convém, embora saibamos de prazos institucionais e das exigências das
agências de fomento. Mas nem por isso precisamos transformar as pessoas
com as quais lidamos em contexto de investigação em “objetos”, delas ex-
traindo o que nos interessa e deixando-lhes o vazio estéril de metodologias
desumanizadas de exploração da boa vontade alheia sem qualquer espécie
de interlocução humanamente significativa. Este livro é prenhe por ilustrar
outras possíveis formas de pesquisa. Por isso, vale a pena ler estas páginas
que apontam outros caminhos para além da torre de marfim.
Referências
CARRIERI, A. P. As gestões e as sociedades. Farol – Revista de Estudos Or-
ganizacionais e Sociedade, Belo Horizonte, v. 1, n.1, p. 21-64, jun. 2014.
- 258 - Anexo
AGRADECIMENTOS
A terceira edição deste livro somente pode ser oferecido a você, leitor, gra-
ças ao apoio de algumas instituições e pessoas. Acredito ter para com elas
um débito ético-pessoal que precisa ser aqui devidamente registrado em
forma de agradecimentos.
O primeiro devo à UFPE, por permitir a dedicação de parte de minha
carga horária de trabalho à realização de pesquisas. Ainda nesse âmbito,
preciso agradecer à Editora UFPE (e sua equipe sempre extremamente gen-
til e solícita), na pessoa de sua então diretora, a Profa. Maria José de Matos
Luna, pela atenção que teve por ocasião da apresentação do projeto original
do livro.
A pesquisa que originou Feirantes contou com substantivo apoio insti-
tucional do então Centro de Pesquisa sobre a Desigualdade (Cepedes) da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ao qual preciso agradecer na
pessoa de Jessé Souza. Por seu convite integrei pesquisa financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (em parceria
com o CNPq), edital Fapemig 020/2006, no âmbito do Programa de Apoio
a Núcleos de Excelência (Pronex). Assim, aqui também registro meus agra-
decimentos à FAPEMIG e ao CNPq.
Também preciso agradecer ao Centro de Gestão e Estudos Estratégicos
(CGEE), então vinculado ao Ministério de Assuntos Estratégicos (MAE)
da Presidência da República, por intermédio da Secretaria de Assuntos Es-
tratégicos (SAE), a oportunidade de participar do seminário “Camada de
empreendedores batalhadores brasileiros”109 com um grupo qualificado de
colegas de todo Brasil. Ao CGEE também devo agradecimento pelo aporte
financeiro que recebi, por intermédio do Cepedes, para arcar com custos de
realização desta parte da pesquisa. Na ocasião de uma das atividades deste
evento, a reunião da equipe com o então Ministro Mangabeira Unger, pude
Feirantes - 259 -
ter real dimensão de sua preocupação e visão sobre o desenvolvimento do
país, em particular do Nordeste.
Por motivos diversos, preciso mencionar gratidão aos professores-pes-
quisadores Lília Junqueira, Fabrício Maciel e Émerson Rocha, bem como
aos então estudantes: Jullyanna Rodrigues, Marta Rodrigues de Oliveira,
Marianny Jéssica de Brito e Felipe Cavalcante Barbosa.
Também preciso agradecer a Walmiré Dimeron – que em outubro de
2008 acumulava as funções de Secretário de Turismo de Caruaru e de Di-
retor de Documentação e Patrimônio Cultural da Fundação de Cultura de
Caruaru – por ter-me possibilitado o acesso ao relatório do Instituto do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), à época ainda não publi-
cado, elaborado com fins de registro da Feira de Caruaru como Patrimônio
Cultural Imaterial Brasileiro, e pela entrevista concedida em companhia do
historiador Josué Euzébio Ferreira (que antes também já me havia conce-
dido entrevista sobre a história da feira e da cidade). Aos demais entrevis-
tados não anônimos agradeço a todos nas pessoas de José Carlos da Silva
(Sincovac), Manuel Eudócio (in memoriam) e Veridiano Santos.
Por fim, e em maior intensidade, gostaria de registrar que este trabalho
somente pôde ser realizado graças a diversos feirantes que se dispuseram,
em algum momento, a nos conceder entrevistas nas quais nos abriram suas
histórias de vida e/ou a responder nossos questionários. A todos eles aqui
registro os meus mais sinceros agradecimentos.
Após a conclusão do projeto gráfico do livro, precisei acrescentar mais
dois últimos agradecimentos. Um a Aurélio Fabian, pelo belo e generoso
ensaio que tão bem retratou o cotidiano da feira e dos feirantes. E outro a
Ana Farias que, com bastante afinco profissional, conseguiu traduzir em
arte visual o espírito de Feirantes.
Esta 3a edição contou com a revisão precisa e a competência editorial de
Flávio Gonzalez, para quem fiz questão de registrar este último agradeci-
mento.
- 260 - Anexo
Agradecimentos
A FOTOGRAFIA
Feirantes - 261 -
- 262 - Anexo
Senhor vendendo sacos num dos corredores da feira