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melhores termos –, foi acrescentado Feirantes é um mergulho na cultura, na

um prefácio específico e um novo 3a economia, na educação, no cotidiano


anexo com textos que ampliam os
horizontes reflexivos do livro.
“São por demais valiosas Edição da vida de pessoas do Agreste pernam-
bucano, mais precisamente da cidade
as contribuições que o livro de Caruaru. Em particular, aqui foram
Por fim, é válido registrar que esta
publicação acontece em tempo
de Marcio Sá traz para investigados a condição de vida-tra-
balho e o modo como membros das
oportuno também pela proximidade a compreensão da maneira como classes populares brasileiras, neste
da impressão de Filhos das feiras: uma
composição do campo de negócios pensam, sentem e agem caso os feirantes, levam adiante seus
pequenos negócios.
agreste, livro que o próprio Marcio no interior de um dos maiores
aponta como “irmão mais novo” deste.

FEI RANTES
Sob a influência marcante da obra dos
mercados de feira do Nordeste os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e
Profa. Dra. Maria José de Matos Luna feirantes da Feira de Caruaru, Bernard Lahire, o pesquisador toma a
Presidente da Comissão de Direitos condição dos feirantes no século 21
Humanos D. Helder Câmara da UFPE realizando e administrando suas como problema para estruturar e
Coordenadora do Curso de Letras da atividades comerciais” desenvolver a pesquisa que dá origem
UFPE aos capítulos, o que permitiu a este livro
Professora do Programa de Pós-gradu- congregar dos liames científicos à
Veridiano Santos

FEI RANTES
ação em Direitos Humanos da UFPE sensibilidade do autor.

Marcio Sa
(cientista social, historiador e
professor da ASCES-UnitA) Suas análises partem das origens
familiares, sociais e de como, ao longo
de uma trajetória de vida-trabalho,
“Marcio teve um olhar que uma pessoa tende a apresentar,
“estocar” e incorporar determinadas
foge do trivial, do senso comum. disposições que podem ser demanda-
Sobre o autor: O autor deste livro acerta das pelos contextos nos quais se
insere. Trata-se, então, de observar
Professor do Centro Acadêmico do
Agreste (CAA) da Universidade Federal
quando procura desmistificar tanto as disposições quanto tais
de Pernambuco (UFPE), autor de atributos dados à Feira de QUEM SÃO E COMO ADMINISTRAM SEUS NEGÓCIOS contextos nos quais elas se formam.

Marcio Sa
alguns livros, dentre os quais destaca
Filhos das feiras: uma composição do Caruaru sem critérios O trabalho versa, como se anuncia em
seu subtítulo, sobre estes feirantes e
campo de negócios agreste (Editora sócio-históricos e/ou sem seus modos de administrar negócios
Massangana-Fundaj), cofundador do
Grupo de Estudos e Intervenções do levar em conta questões em nosso tempo. A linguagem utiliza-
da é fruto de um esforço do autor de
Agreste (Geia) e membro do Instituto humanas, como a situação dos fugir do hermetismo científico e,
Histórico de Caruaru (IHC). Realizou
período de estudos na Università di feirantes” assim, possibilitar uma discussão mais
ampla com leitores não necessaria-
Bologna, esteve como pesquisador
mente iniciados no universo das
visitante no Trinity College (Universi-
ty of Dublin) e concluiu um doutora- Josué Euzébio ciências, expondo ao maior escrutínio
público possível os resultados que
do em Sociologia na Universidade do (historiador, presidente do Instituto Histórico
apresenta.
Minho. de Caruaru)
Contato: marciodesa@gmail.com
Para esta 3ª edição, além de uma
ampla revisão no “modo de dizer” – na
qual não se propôs fazer alterações
ISBN 978-85-415-1112-4
substantivas no que foi apresentado
na edição anterior, mas se empenhou
Edição

em ajustar o texto para redizê-lo em


9 788541 511124
FEI RANTES
QUEM SÃO E COMO ADMINISTRAM SEUS NEGÓCIOS
Marcio Sa

FEI RANTES
QUEM SÃO E COMO ADMINISTRAM SEUS NEGÓCIOS

Recife, 2019. 3ª edição revisada


Recife, 2010.
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitora: Prof. Florisbela de Arruda Camara e Siqueira Campos
Diretor da Editora: Profa. Lourival Holanda
Vice-Diretor da Editora: Diogo Cesar Fernandes
Editor: Flávio Gonzalez

Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda

Titulares: Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina Grisi de Oliveira, Dilma Tavares
Luciano, Eliane Maria Monteiro da Fonte , Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique Albert Brayner,
Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque.

Suplentes: Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria Figueiroa Barretto , Ester Calland de Souza
Rosa, Felipe Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de Freitas, Madalena de Fátima Pekala
Zaccara, Mário de Faria Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia Helena Lima Schwan-
born, Tereza Cristina Tarragô Souza Rodrigues.

Editores Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena Lima
Schwamborn

Créditos
Capa e Projeto Gráfico Ana Farias
Fotografia Aurélio Fabian
Revisão Flávio Gonzalez

Montagem e Impressão

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20 | Várzea | Recife - PE | CEP: 50.740-530


Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 | Fax: (0xx81) 2126.8395
www.ufpe.br/edufpe | livraria@edufpe.com.br | editora@ufpe.br

Catalogação na fonte
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
Bibliotecária: Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

S111f Sá, Marcio.


Feirantes : quem são e como administram seus negócios /
Marcio Sá. – 3. ed. rev. – Recife : Ed. UFPE, 2019.
[269] p. : il.

Inclui bibliografia, anexos e apêndices.


ISBN 978-85-415-1112-4 (broch.)

1. Feiras – Caruaru (PE). 2. Feirantes – Caruaru (PE) –


Condições sociais. 3. Feirantes – Caruaru (PE) – Condições
econômicas. 4. Pequenas e médias empresas – Administração.
I. Titulo.

394.6098134 CDD (22.ed.) UFPE (BC2019-057)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por siste-
mas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação
total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa
juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.
Para três amores

e
Taíza Maria (amor de mulher)
Ana Carulina Lemos (amor de irmã)
Dona Terezinha Gonzaga (amor de mãe)
“É o centro da feira
Com seus labirintos
E mil molhos de coentro
Pra se tropeçar
É o rapa
É o tapa
É a bronca
É a briga
Eh boi!
E a gente se sente
Em plena Bagdá”.

Veneza, Veneza
(Accioly Neto)
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Poeminha do Contra
Mario Quintana
PREFÁCIO À 3a EDIÇÃO
A mim coube a tarefa, por distinto convite formulado pelo autor, para pre-
faciar a terceira edição de Feirantes. O seu sucesso é inquestionável – e não
completou ainda uma década da publicação da primeira edição!
A Feira de Caruaru, foco do estudo, é por demais conhecida, não só
na Região Nordeste, mas também no Brasil, assim como fora do país. Na
música de Onildo Almeida, cantada por Luiz Gonzaga, “A Feira de Caruaru
faz gosto a gente vê...”, os produtos locais são apresentados como melhor ex-
pressão de um modo de vida singular, típico, nordestino. A isso se associam
a arte do Mestre Vitalino, o São João e o Forró. Um lugar por excelência de
afirmação da identidade regional, base de uma narrativa sobre o Nordeste
e o nordestino, com ampla ressonância na mídia local. Em 2006, coroando
tal construção, a Feira de Caruaru foi declarada, pelo Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, Patrimônio Imaterial do Brasil.
Feirantes, entretanto, propõe um outro olhar. Marcio se beneficia de um
diálogo prioritário com Pierre Bourdieu, Bernard Lahire e Jessé Souza,
para mostrar que há muito mais a considerar. Para além dos aspectos que
destacam seu caráter singular, regional, nordestino, a Feira de Caruaru se
constitui como uma expressão diferenciada, porque periférica, do capitalis-
mo contemporâneo, visto que a este se encontra cada vez mais articulada.
Formou-se como o espaço mais importante de comercialização da produ-
ção agrícola, artesanal e industrial local, seja para a própria população do
entorno, seja para públicos também de outras regiões (neste caso, espe-
cialmente produtos de confecções). Na outra mão, afirmou-se igualmente
como lugar de revenda para a região de produtos importados de outros
lugares, principalmente eletrônicos e um sem-número de industrializados.
Nos fluxos de ida e volta, sedimentaram-se várias feiras em uma só: de con-
fecções, de utilitários, de artesanato, de importados, de miudezas, de ervas
etc.
Na condição de lugar estratégico da comercialização de itens que reafir-
mam o cultivo de habilidades, gostos e costumes tradicionais, mas também
que promovem a introdução no plano local de novos hábitos e compor-
tamentos vindos de fora, assim como na condição de lugar de encontros
por motivos não só comerciais, mas também culturais e sociais em geral, a
Feira de Caruaru é um acontecimento que envolve e influencia o cotidiano
de vida e trabalho de milhares de pessoas. Converteu-se, assim, em um
relevante espaço de observação e análise sociológicas.
Essa é a principal contribuição que Feirantes propõe aos estudos socio-
lógicos. Um olhar sobre a feira como um campo social e sobre os feiran-
tes, a partir do seu habitus (com um foco no segmento específico nos pro-
prietários de pequenos negócios de alimentação – barracas para almoço
ou lanche), abriu um caminho para sua reinterpretação como espaço da
prática de milhares de nordestinos. Espaço esse que põe em ação modos
socialmente construídos de pensar, agir e sentir, onde é travada uma luta
diária pela subsistência e pelo sonho de uma vida melhor. Os batalhado-
res da Feira de Caruaru (na formulação de Jessé Souza), oriundos de mo-
dos tradicionais de vida social (muitas vezes chegados das zonas rurais do
entorno), veem-se diante do desafio de lidar com padrões de organização
socioeconômica importados do mundo moderno capitalista, tendo para
isso que incorporar ou acionar disposições que, quando anteriormente já
incorporadas (por exemplo, em contextos de migração para o Sudeste do
país), o foram em geral sem maior centralidade e definição. São exemplos a
disciplina, o cálculo racional e a visão de futuro. Os conflitos daí resultantes
(muitas vezes traduzidos na forma de conflitos de geração, quando os filhos
passam a ocupar espaços crescentes no negócio dos pais, trazendo com eles
novas mentalidades) se encontram expressos nas histórias de vida de dois
personagens reais, Justino e Neide, e na construção de um “tipo ideal” de
feirante batalhador da Feira de Caruaru, Pedro.
Ao posicionar assim seu olhar, o autor é capaz de, não deixando de con-
siderar as singularidades da Feira de Caruaru e dos feirantes que a cons-
tituem, projetar a análise para além do local, do regional, do singular. O
referencial teórico-metodológico adotado permite tratar esse como um
entre muitos contextos periféricos do mundo contemporâneo (constitu-
tivos de habitus e campos diferenciados e integrados, ao mesmo tempo,
aos seus núcleos centrais). A mensagem é direta: o estudo desse como um
entre muitos contextos periféricos do mundo contemporâneo é uma tarefa
imprescindível ao pensamento sociológico, sob pena de, por um viés socio-
centrista e parcial, não ser capaz de formular uma visão mais plural e inte-
gral do contexto contemporâneo mundial. Contudo, se pode ser anunciada
tão diretamente, a viabilização de tal perspectiva requer a assunção, como
pesquisador social, de um compromisso com uma agenda de trabalho que
exige muito mais do que estudos de curto fôlego; requer um esforço de
pesquisa empírica e reflexão teórico-metodológica que só as agendas de
grande envergadura permitem.
A boa notícia é que Marcio segue com essa agenda. A terceira edição de
Feirantes é apenas parte de um conjunto articulado de iniciativas, que tam-
bém se beneficia de variadas e fecundas redes de interlocuções com outros
centros regionais, nacionais e internacionais. Destaque-se que, da referida
agenda, outro importante livro do mesmo autor veio a público em 2018,
Filhos das feiras: uma composição do campo de negócios do Agreste (Editora
Massangana - Fundaj). Outros resultados estão a caminho. Uma excelente
leitura!

Roberto Véras de Oliveira


Professor associado da UFPB
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Pesquisador do CNPq
PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO
Muito embora já haja alguns anos desde que foi esgotada a primeira edição
de Feirantes, foi somente no início deste que reuni condições necessárias
para sua revisão. Para tal, duas motivações merecem registro, a oferta da
disciplina eletiva “Agreste contemporâneo: gente, feira e negócios de con-
fecções” no CAA-UFPE, o que me deu a oportunidade de debater seus ca-
pítulos com os estudantes interessados, e a proximidade da publicação de
Filhos das feiras: uma composição do campo de negócios agreste, trabalho
mais recente que tem parentesco com este. Além de realizar ajustes no texto
original, achei pertinente inserir este prefácio com alguns comentários que
se seguem.
Em 2007, alguns meses depois de estabelecer morada em Caruaru, pude
perceber o quanto a dinâmica de vida e trabalho de parte significativa da
população agrestina se constituiu de modo associado ao comércio de feira
de rua. Como matriz sociocultural e econômica regional, a feira teve papel
mais marcante que a escola na formação de muita gente que, por meio dela,
aprendeu a calcular, se disciplinou, desenvolveu habilidades para interagir
e negociar, enfim, incorporou um jeito próprio de estar e agir no mundo
– aquilo que somente em Filhos das feiras pude caracterizar em melhores
termos por meio da noção “habitus feirante”.
Mesmo que ainda sem a explicitação de tal caracterização, acredito que
em Feirantes procurei tratar de modos de pensar, agir e sentir de uma cole-
tividade e de indivíduos socializados nos espaços de feira de rua, em parti-
cular um público específico, os proprietários de pequenos negócios de ali-
mentação (barracas que servem almoços e/ou lanches). Também acredito
que ter centrado maior parte dos esforços do trabalho de campo nesse pú-
blico foi apenas um modo de viabilizar o estudo, uma estratégia de pesquisa
que não deixa restrito a ele o que se pode pensar sobre a condição feirante e
até mesmo a respeito dos demais proprietários de negócios periféricos em
pleno novo milênio.
Aos meus olhos de hoje, cerca de oito anos depois da redação original,
seriam necessários alguns reparos no modo de dizer o livro. Por um lado,
procurei não modificar substantivamente as análises apresentadas (e não o
fiz), por outro, promovi retoques, inserções e cortes no texto que visaram
redizê-lo em melhores termos, mesmo que sem alterar de modo signifi-
cativo o sentido do que foi dito. Por diversas vezes o olhar de hoje, mais
amadurecido pelas experiências e aprendizados vividos neste ínterim, sur-
preendeu-se e repreendeu intimamente passagens da redação. Em muitos
casos fiz ajustes, mas em outros a opção foi manter alguns termos e trechos
como estavam, afinal, julguei que modificações mais profundas poderiam
interferir além do que gostaria e talvez afetar o conjunto do trabalho que,
mesmo tendo algumas diferenças em relação ao modo como observo e tra-
to os temas que venho estudando nos últimos anos, ainda penso ter perti-
nência como está posto.
Dois termos podem ilustrar o que disse acima, se fosse escrever o livro
hoje não teria utilizado “moderno” e “tradição” como nele estão. Preferiria
dizer aspectos que associamos à ideia de “moderno” ou à ideia de “tradi-
ção”, para diminuir o risco de ficar preso a um binarismo no modo de pen-
sar que não mais me parece ser pertinente para o estudo social no século
21, principalmente em ambientes complexos, multifacetados e periféricos
como o agrestino.
Outro ponto que gostaria de aqui reiterar é a importância que vejo de um
enfrentamento de questões mais delicadas e profundas de uma instituição
que povoa o imaginário regional e nacional como a Feira de Caruaru. Mui-
to embora passear por ela hoje em dia possa gerar sensação de uma menor
desorganização, quando comparada ao período da realização da pesquisa.
A distância entre a feira objetiva e a coletivamente imaginada me pareceu e
parece cada vez mais gritante. Ainda hoje escutar a feira sendo cantada não
pode impedir de se observar que ela muito precisa de administração, polí-
ticas públicas apropriadas e reestruturações para que possa vir a ser um es-
paço comercial mais decente para aqueles que dela se ocupam. Para melhor
existir neste novo milênio, a feira precisa de direcionamentos estratégicos
de médio e longo prazos, algo que ultrapasse os interesses particulares de
uma ou outra gestão municipal, por exemplo.
Este estudo também foi realizado, tendo em mente sua possível utilidade
para o debate público sobre a condição de vida-trabalho de parte signifi-
cativa da população agrestina, que se dedica a negócios não formalizados.
Como tanto a feira quanto a “informalidade” parecem estar presentes de
modo recorrente nas pautas da gestão pública, da mídia e de outros atores
locais, acredito que esta edição possa vir a ter alguma utilidade nesses ter-
mos.
Por fim, vivemos num tempo no qual as receitas de muitos consulto-
res, as falas de muitos gurus dos negócios, parcelas significativas da grande
mídia e do mercado editoral estão povoadas por conclames à adoção de
diretrizes práticas recorrentemente inscritas sob a marca do “empreende-
dorismo”, do “monte seu próprio negócio”. O assunto parece muitas vezes
ser tratado como se empreender fosse uma “nova solução” ao acesso de to-
dos e não uma atitude humana de séculos, que moveu criações e realizações
de diversas naturezas como montar escolas em localidades de difícil acesso
(como fez e faz a administração pública com suas limitações e dificuldades,
claro) ou promover apoio humanitário a populações em situações emer-
genciais (como faz uma ONG como Médicos Sem Fronteiras).
Hoje observo este livro como um esforço alternativo no sentido de com-
preender a condição de pessoas que, por iniciativa própria ou por falta de
melhores alternativas, se tornaram proprietárias de negócios periféricos.
Aqui não há uma intencionalidade predefinida de persuadi-las a formalizar
seu negócio ou à adoção de fórmulas para o “sucesso por conta própria”. O
que se procura é disponibilizar novamente um estudo, com suas forças e
limitações como qualquer outro, sobre o desafio de se levar um pequeno
negócio de feira adiante e sobre essa gente que o enfrenta, afinal, sem en-
tender do melhor modo possível fenômenos como esse, me parece ser mais
difícil que novas iniciativas possam viabilizar bons rumos coletivos, para
além dos feirantes e de seus negócios de feira.
Sumário
APRESENTAÇÃO | 23
A estrutura do livro | 24
Sobre teoria e método | 26
Breves considerações gerais | 29

1. O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A FEIRA |35


31
O que, então, é a feira, afinal? | 42
Estrutura física e comercial | 48

2. FEIRANTES:
Quem são? Como administram seus negócios? | 57

Quais feirantes? | 60
Origem familiar | 61
Perfil dos entrevistados | 63
Histórico recente de atividade econômica | 65
Formação e origem do conhecimento para desempenho de atividade
econômica | 66
Sobre a origem do negócio atual | 68
Como administram seus negócios? | 69
Sobre o negócio e sua administração | 70
Definição de atividades a serem desempenhadas | 71
Última melhoria no negócio | 72
Questões financeiras | 73
Pagamento aos trabalhadores | 76
O futuro do negócio | 77
Considerações finais do capítulo | 79

3. A HISTÓRIA DE JUSTINO:
“Eu sou um cara teimoso demais” | 83
São Paulo | 84

Na feira | 90
Comportamentos, valores, preconceitos, visões, contradições | 92
O cotidiano da sua vida-comércio de feira | 97
Em busca de seu destino | 99
Os porquês da história de Justino | 100

4. A HISTÓRIA DE NEIDE:
“Eu não ia ser mulher da roça” | 113
Origem familiar, infância e início da vida escolar | 114
Adolescência | 116
“O camponês e seu corpo” no Béarn (?) | 120
Vida adulta na cidade | 125
Casamento, nascimento dos filhos e separação | 126
Caruaru e a barraca na feira | 128
Valores e vida hoje | 130
Religião | 131
Estilo de vida, economia e hábitos de consumo | 132
Filhos: Educação e orientação | 134
A maior decepção da vida: O drama da filha mais velha | 137
Futuro: O novo relacionamento e a aposentadoria? | 139
A vida de Neide em breve retrospectiva analítica | 140

5. UM FEIRANTE-BATALHADOR
E SUA ADMINISTRAÇÃO | 145
[com Felipe Cavalcante Barbosa]

Origem e trajetória | 147


Experiências profissionais prévias e a administração do atual negócio | 149
Disposições para autossuperação, econômicas e administrativas | 152
Voltando à história de Pedro | 160
Considerações finais do capítulo | 162

6. CONCLUSÃO:
a feira e os feirantes como hoje estão | 167

REFERÊNCIAS | 177
APÊNDICES
1. A TEORIA | 183

2. O MÉTODO | 203

3. A ESTATÍSTICA | 212
com Felipe Cavalcante Barbosa

ANEXO DA 3A EDIÇÃO | 229

1. PARA QUE ESTES LIVROS PODEM SERVIR? | 231


por Marcio Sá (registro de fala)

2. NASCIDO NUM BANCO DE FEIRA | 237


por Taíza Maria (conto)

3. A NOVELA DA MUDANÇA DA FEIRA DA SULANCA:


CAPÍTULO 2015 | 241
por Jessica Rani Ferreira de Sousa (estudo)

4. UMA OBRA PRENHE | 255


por Luiz Alex Silva Saraiva (comentário)

AGRADECIMENTOS | 259

A FOTOGRAFIA | 261
[Por Aurélio Fabian]
APRESENTAÇÃO
O que é a Feira de Caruaru? Quem são seus feirantes? Como eles adminis-
tram seus negócios? Este livro teve como ponto de partida questões como
estas e objetiva apresentar os resultados de pesquisa teórico-empírica reali-
zada entre maio de 2007 e abril de 2010.
O seu interesse esteve centrado neste fenômeno que é fundamental à
vida de milhares de pessoas de uma região político-geográfica do estado de
Pernambuco. Foi este aspecto, a relevância da feira para uma região1, que
a projetou como campo e tornou seus feirantes não somente objeto central
da pesquisa, mas também seu título.
Na realidade, a possibilidade de investigar a condição de vida-trabalho e
o modo como membros das classes populares brasileiras, neste caso os fei-
rantes, administram seus pequenos negócios foi a razão maior que fez com
que esta pesquisa fosse realizada e agora possa ser apresentada não como
um estudo de uma questão local, pontual e específica de uma cidade do
interior do Nordeste, mas, sim, como um esforço compreensivo-explicativo
da condição de vida-trabalho de pessoas que vivem, como esses feirantes,
em contextos periféricos do mundo contemporâneo.
Desse modo, gostaria desde já de deixar claro ao leitor que a perspectiva
teórico-analítica que orienta o olhar para os feirantes não é regionalista,

1 E não somente para ela, haja vista que milhares de compradores, das mais diversas cidades do
Nordeste, vêm à Feira de Caruaru nos dias da sua feira da sulanca para comprar confecções e revender
em suas cidades de origem.

Feirantes - 23 -
tradicionalista e culturalista ou visa, de algum modo, singularizar a feira e
os feirantes de Caruaru, se comparados a diversas outras pessoas que vivem
em outras regiões, países e continentes. Muito pelo contrário, aqui eles são
vistos como inseridos e integrados ao mundo contemporâneo.
Ao vê-los desse modo, não se pretende pormenorizar a importância his-
tórica e identitária que a feira tem para o povo de Caruaru, mas, sim, acres-
centar novo olhar. Em particular, aqui se pretende abordar as histórias de
vida e os modos de trabalho dos feirantes que se dão nesse espaço-tempo.

A estrutura do livro
Após esta apresentação, no primeiro capítulo, O Capitalismo Contem-
porâneo e a Feira, esses dois tópicos são apresentados numa perspectiva
que os observa como estando diretamente interligados, como sendo, na
realidade, duas faces necessárias a um mesmo sistema político-econômico.
A feira tem maior atenção e é caracterizada como um tipo de mercado peri-
férico inerente e necessário – como diversos outros existentes mundo afora,
em particular em suas periferias – ao funcionamento mundial do sistema.
Tem-se em mente que é a partir de uma nova visão que tanto se poderá (re)
pensar a Feira de Caruaru – e por que não também demais feiras e merca-
dos com características similares? – como um tipo de mercado caracterís-
tico a estes contextos no capitalismo deste século.
Feirantes: Quem são? Como administram seus negócios? é o capítulo se-
guinte no qual são apresentados, com o apoio em dados estatísticos, quais
feirantes (e os aspectos gerais do modo como administram seus negócios)
foram pesquisados nessa etapa quantitativa da pesquisa. Ilustrados com al-
gumas das tabelas reunidas no Apêndice A Estatística, os dados são anali-
sados a partir das lentes teóricas ofertadas principalmente pelo trabalho de
Pierre Bourdieu na Argélia. O dilema central observado é que os feirantes
têm gênese familiar, origem social e trajetória de vida marcadas por experi-
ências em contextos de ação associados às ideias de tradição e de moderni-
dade em momentos distintos de suas vidas, sendo esse aspecto decisivo ao
modo como administram seus negócios de feira.

- 24 - Apresentação
Nos capítulos 3 e 4, são apresentadas as histórias de vida e trabalho de
dois feirantes. “Justino” e “Neide” são seus nomes fictícios2. Em A história
de Justino:“Eu sou um cara teimoso demais”, os leitores poderão conhecer
um dos personagens que fazem a Feira de Caruaru e que trazem incorpo-
rados em si um tanto da sociedade na qual vivem (Lahire, 2005a, 2005b e
2006a), ou seja, ilustram com suas histórias de vida-trabalho uma série de
aspectos que não lhes são singulares, mas, sim, equivalentes ou similares
aos de diversas outras histórias de feirantes, ou mesmo de outros tipos de
trabalhadores brasileiros que possuem origens e histórias de vida próximas
às de Justino. Acreditamos que não sejam poucos. Ao final, os porquês da
história de Justino ter acontecido tal qual aconteceu, e em particular daqui-
lo que ele diz ser sua “teimosia”, são desenvolvidos a partir do aporte teórico
dos trabalhos de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire.
A história de Neide:“Eu não ia ser mulher da roça” é contada no capítulo
seguinte. Neide pode ser vista como o duplo feminino de Justino, ou seja,
como se fosse uma irmã ou colega de infância tamanha a proximidade das
histórias até o início da vida adulta. A forte influência da mãe e do traba-
lho como um valor em si desde pequena é traço marcante de sua história,
somente superado pelo desejo de conquistar sua independência econômica
ao fazer a vida na cidade e assim fugir do campo. Um clássico artigo de
Pierre Bourdieu (2006 [1962]) possibilita que a história de vida de Neide e
sua determinação em não viver na roça sejam compreendidas, em particu-
lar, por meio da comparação com jovens camponesas francesas da década
de sessenta.
Como um feirante como “Pedro” administra seu pequeno comércio?
Essa é a questão-síntese que nos norteia no capítulo 5, Um feirante-ba-
talhador e sua administração. A construção desse personagem, de suas
disposições e práticas administrativas, se deu no sentido de responder à
pergunta acima. Fazemos, então, um recorte no “complexo disposicional”
de “Pedro”, nosso “tipo ideal” (Weber, 1999), e apontamos os conjuntos
de disposições3 que seriam, em nosso entendimento, mais decisivos para
a trajetória e, em especial, para as atividades administrativas desempe-

2 Esses e demais nomes de feirantes, de outros personagens e cidades aqui retratados são fictícios, salvo
Caruaru, para preservação da identidade dos entrevistados.
3 Ver próximo tópico que explica esse conceito.

Feirantes - 25 -
nhadas por um batalhador feirante. Ou seja, apresentamos os conjuntos
de disposições (1) para autossuperação, (2) econômicas gerais e (3) ad-
ministrativas, as disposições específicas a eles relacionadas e ilustramos
ambos por meio de trechos da história do feirante-batalhador. Por fim
retornamos à história do personagem e assim reconstruímos as origens
das disposições mais decisivas ao modo como um feirante-batalhador ad-
ministra sua barraca.
Na Conclusão: A feira e os feirantes como hoje estão, procura-se oferecer
um breve panorama contingencial das mudanças aos quais foram subme-
tidos feira e feirantes (e trabalhadores em condições similares) tanto em
termos locais – em particular no que diz respeito à realocação de parte
da feira – quanto mundiais, em decorrência das mudanças do capitalismo
contemporâneo. Aos nossos olhos, a leitura dessas conclusões precisa ser
complementada pela leitura dos textos que compõem o Anexo.

Sobre teoria e método


Este livro recebe influência marcante da obra dos sociólogos franceses
Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. Foi tomando seus trabalhos como re-
ferência que foram estruturadas e desenvolvidas as etapas da pesquisa que
deram origem aos capítulos que se seguem.
Ao procurar fazer uma retomada crítica da teoria disposicionalista – que
tem no trabalho de Pierre Bourdieu seu grande esforço de explicitação –
e dos seus “instrumentos de pensamento” na condição de teoria da ação,
Bernard Lahire (2004, p. 21) ressalta que é “a tradição disposicionalista que
tenta levar em consideração, na análise das práticas ou comportamentos
sociais, o passado incorporado dos atores individuais”.
O conceito mais importante e recorrente neste livro é o de disposição.
Assim sendo, é necessário explicitar ao leitor desde o início o que pensamos
quando nele falamos. Para isso, as palavras do próprio Lahire (2004, p. 27)
são esclarecedoras:

Na verdade, uma disposição é uma realidade reconstruída


que, como tal, nunca é observada diretamente. Portanto,

- 26 - Apresentação
falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho
interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas,
opiniões etc. Trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que
geraram a aparente diversidade das práticas.

Neste livro, quando se pensa em disposições, fala-se em modos de pensar,


agir e sentir – não se trata do pensamento, ação ou sentimento em si, mas,
sim, do que está por trás deles, que “não pode ser observado diretamente”,
mas que pode ser construído interpretativamente e elaborado como “mola
propulsora” de diversos pensamentos, ações e sentimentos observáveis por
meio das ações e falas dos feirantes.
Com esse suporte teórico-conceitual, podemos observar que tais ações,
pensamentos e sentimentos resultam de alguns princípios que os geraram.
Esses princípios seriam frutos da origem, visão de mundo e hábitos “herda-
dos” da família; dos contextos sociais dos quais participou o indivíduo; de
suas experiências educacionais e profissionais; assim como de outros pos-
síveis contextos de ação que foram significativos em sua trajetória de vida.
Ou seja, partindo das origens familiares e sociais, ao longo dessa trajetória,
uma pessoa tende a apresentar, “estocar” e incorporar determinadas dispo-
sições que podem ser demandadas por determinados contextos nos quais
ela irá se inserir. Trata-se, então, de observar tanto as disposições quanto
os contextos nos quais elas se formam. As histórias contadas nos capítulos
3 e 4 e o tipo ideal construído no capítulo 5 estão repletos de exemplos de
como esse conceito pode ser útil à compreensão-explicação do que está por
trás dos sentimentos, pensamentos e ações das pessoas.
Tanto quem são os feirantes como a forma de administrar seus negócios
resultam desses conjuntos de disposições que eles “herdam”, “ativam” (e
“desativam”) ou incorporam (e desincorporam) ao longo de suas trajetórias
de vida. Logo, para explicá-los, é preciso compreender a gênese daquelas
disposições, dentre todas as que compõem seu “complexo disposicional”,
que são decisivas para eles se tornarem quem são e, consequentemente,
para suas práticas cotidianas de gestão.
É entendimento do autor deste livro que não somente teoria e demais
conceitos apropriados dos trabalhos dos sociólogos franceses, mas tam-
bém recursos e estratégias metodológicas implementadas na pesquisa são
instrumentos para a construção do quadro descritivo e explicativo sobre

Feirantes - 27 -
os feirantes pesquisados. Tanto teoria quanto métodos são meios de (1) se
apropriar de instrumentos-conceitos que apoiam leitura lastreada da rea-
lidade (no caso da teoria), e de (2) montar estratégia adequada para reali-
zar uma série de procedimentos no sentido da produção de conhecimento
científico – sobre determinada situação encontrada nesta mesma realidade
(no caso do método). A teoria fundamenta o modo como o pesquisador
a observa, mas não é nem o modo, nem o que esta observação mostra – a
realidade sob um novo olhar construído pelo pesquisador a partir do con-
fronto reflexivo da teoria, à qual recorre, com a empiria, para a qual se
volta. Confronto este que também depende do modo como foi executada
a pesquisa.
Desse modo, a decisão tomada foi de, ao colocar em apêndice estes as-
pectos mais específicos e técnicos relacionados à teoria e ao método, deixar
livre o leitor não acadêmico de ter que enfrentar essas questões que não são,
em si, de seu interesse – muito embora possam levá-lo a (1) contato com os
pressupostos teóricos que sustentam o que se diz ao longo do livro (e assim
esclarecer-se sobre de onde parte o olhar que observa o fenômeno em ques-
tão), e (2) saber como foi feita, etapa por etapa, a investigação.
Como, em contrapartida, o ofício científico nos aponta a importância de
apresentar o fundamento teórico sobre o qual nos apoiamos para dizer o
que dizemos, e assim apresentar onde está lastreado aquilo que é dito, no
Apêndice A Teoria4 são feitos resgates (1) dos conceitos de habitus, capital
(econômico, social, simbólico e cultural) e campo, centrais à sociologia de
Pierre Bourdieu, juntamente com alguns pontos da (2) leitura crítica de
Bernard Lahire, além de uma síntese dos pontos que me foram mais im-
portantes de (3) O Desencantamento do Mundo: Estruturas Temporárias e
Estruturas Econômicas, obra do período argelino de Bourdieu e principal
referência deste trabalho.
A opção foi a mesma em relação às etapas e fundamentos metodológi-
cos, o que levou à elaboração do Apêndice O Método. Nele, tanto todas as
etapas da pesquisa quanto autores e obras que serviram de suporte à forma
que estas tomaram são explicitados. Obviamente, esta opção gerou uma

4 Estando aí subentendido epistemológico (teoria da ciência) também. É desse apêndice que são tira-
das algumas das citações que são feitas ao longo do livro, especialmente em relação à Bourdieu (1979
[1963]).

- 28 - Apresentação
série de menções e notas indicativas de consulta aos apêndices ao longo do
texto, mas deste modo o leitor fica à vontade de conferir somente aquelas
que julgar importantes.

Breves considerações gerais


A forma como o livro foi estruturado e escrito visa tornar sua leitura
acessível ao público não acadêmico. Obviamente, como poderão constatar
os colegas pesquisadores que também enfrentarem a leitura dos capítulos
seguintes e dos apêndices, ao escrever pretendendo atingir um público
mais amplo, não me sinto implicado em afrouxamento ou superficialidade
argumentativa, muito pelo contrário. Este desafio que me imponho neste
trabalho é fruto da convicção de que o hermetismo do código científico
muito atrapalha o debate público acerca do que produzem os professores-
-pesquisadores, em particular aqueles que são pagos pelo Estado brasileiro
para tal – como é o meu caso. É como se, ao perpetuarmos nosso “código
Morse”5 por meio de uma enfadonha prosa científica praticamente incom-
preensível ao leitor não acadêmico, nos livrássemos de expor ao crivo, e
assim discutir com a sociedade, tanto o que dizemos produzir “para ela”
(conhecimento científico) quanto o que, ao fazê-lo nas ciências sociais, di-
zemos sobre ela.
Penso que os resultados aqui apresentados precisam ser levados ao de-
bate público, principalmente por ir de encontro ao que se pensa e se diz no
senso comum da sociedade local, em particular em sua elite (classes alta e
média), sobre a feira e seus feirantes. Estar disposto a enfrentar este debate
é fazer-se ao máximo possível compreensível para aqueles com os quais se
quer debater. Se não consegui fazê-lo como pretendia, gostaria de explicitar
ao leitor meu esforço constante nesse sentido – muito embora o êxito na
leitura do livro também dependa de disposições à leitura e, em particular, à
leitura de textos reflexivos que podem nos levar ao confronto com valores e

5 Esse “código científico” se faz presente nos apêndices, principalmente no teórico, por se tratar de
questões de relativa densidade teórica que necessitariam de grande investimento de tempo – que avaliei
não ser necessário fazer, haja vista que acredito que o livro possa vir a ser lido e compreendido pelo
leitor não acadêmico sem eles – de minha parte para “decodificá-las”.

Feirantes - 29 -
visões bem arraigadas em nossas mentes, corpos e corações.
Os capítulos foram concebidos de modo a ter relativa autonomia (exce-
to os capítulos 3 e 4, que penso serem, em muito, complementares um ao
outro)6 – muito embora seu conjunto tenha sido pensado de modo sequen-
ciado e estruturado conforme apresentamos no tópico anterior. Sugiro que
a leitura seja cotejada pela consulta aos apêndices teórico e metodológico
sempre que o leitor sentir necessidade de esclarecimentos desses termos.
A opção da redação dos demais capítulos foi pela primeira pessoa do
plural – exceção feita aos apêndices teórico e metodológico, onde optei por
redigi-los na primeira pessoa do singular – pelo fato de, em boa parte da
pesquisa, ter trabalhado com ou estar acompanhado de pessoas que cola-
boraram para que Feirantes viesse a existir. Obviamente, toda a responsa-
bilidade sobre tudo o que aqui é colocado é minha, muito embora creio
que, escrevendo nos próximos capítulos na primeira pessoa do plural, irei
me sentir mais à vontade e serei mais justo com o leitor, que assim poderá
imaginar que tive colaborações das mais diversas para fazer o que fiz e,
consequentemente, dizer o que digo (vide Agradecimentos).

_ _

Por fim, gostaria de registrar que Feirantes foi apenas o primeiro trabalho
concluído de uma agenda de pesquisa sobre a condição da gente, dos negó-
cios e do trabalho no Agreste pernambucano. São os proprietários, costu-
reiros e trabalhadores dos fabricos e das facções7; os toyoteiros (como são
denominados os motoristas de Toyotas ou veículos afins, transporte “alter-

6 Considerando isso, todos os demais capítulos podem ser lidos na ordem que apetecer ao leitor – ob-
viamente, antes da Conclusão. Sugiro ao público não acadêmico que inicie a leitura pelo capítulo 3 ou 4.
7 Fabricos e facções são sistemas produtivos domésticos que executam parte ou todas as etapas da
confecção de uma peça de roupa (por exemplo). Entre fabrico e facção existe uma distinção. Fabricos
são locais de trabalho, geralmente no interior das residências de seus proprietários, onde as pessoas
produzem suas próprias mercadorias para a comercialização na feira. O corte da mercadoria, nesse
tipo de organização, geralmente ocorre nos próprios fabricos, porém existem alguns profissionais au-
tônomos que se dedicam exclusivamente à atividade de corte, prestando um serviço ao primeiro. Já a
facção funciona como uma firma terceirizada, prestando um serviço aos demais negócios, geralmente
grandes fabricantes (empresas), na produção da mercadoria, que na maioria das vezes já vem cortada
e pronta para o processo de fabricação. Na época, obtive este esclarecimento com o então estudante de
administração e trabalhador num fabrico familiar Thiago Fernandes da Silva.

- 30 - Apresentação
nativo” fundamental ao deslocamento da população da região entre muni-
cípios, distritos e zona rural); os mototaxistas que se apinham no trânsito
de Caruaru e que também são importantes em outras cidades da região; os
ainda remanescentes agricultores-feirantes que vendem eles mesmos seus
produtos agrícolas nas mais diversas feiras das cidades agrestinas; as pesso-
as envolvidas com a comercialização de confecções em Caruaru, Toritama
e Santa Cruz do Capibaribe, entre outros.
Enfim, a partir deste livro, vislumbrou-se um amplo horizonte de traba-
lho investigativo desenvolvido nessa região (ver principalmente Sá, 2010,
2013, 2015, 2018) que despontou, por uma série de aspectos, como um
campo empírico a ser explorado – no qual é possível investigar questões
relativas ao drama dos indivíduos, dos seus negócios periféricos e/ou de
suas ocupações neste mundo no qual hoje vivemos – e que ainda hoje me
desafia visceralmente.

Feirantes - 31 -
CAPÍTULO
CAPítulo 1
O CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO E A FEIRA
As mudanças no capitalismo contemporâneo e no seu “novo espírito” (Bol-
tanski e Chiapello, 2009)8 precisam ser vistas para além dos contextos nos
quais essas transformações são mais perceptíveis. Afinal, observar apenas o
mercado financeiro internacional, os megainvestidores que naquele mercado
atuam, a dinâmica da vida da classe média em grandes centros urbanos, as
inovações da tecnologia da informação e comunicação ou ainda as grandes e
médias empresas com suas atualíssimas estratégias e técnicas de gestão pode
nos levar a acreditar em mudanças significativas na dinâmica mundial, mas
talvez não seja isso que se veja quando se volta o foco para suas margens po-
voadas por maiores e mais carentes parcelas de nossa população.

8 Para Boltanski e Chiapello (2009, p. 35-42), o capitalismo é um sistema que exige a acumulação
ilimitada de capital por meios pacíficos, na medida em que repõe continuadamente em jogo o capital
visando atingir resultados lucrativos. Isso, no entanto, não se dá sem um aparato ideológico que justifica
o engajamento no sistema. A esta ideologia os sociólogos franceses chamam de espírito do capitalismo.
Recuperando o trabalho de Max Weber e apresentando este espírito em diferentes estados históricos, os
autores apontam que as práticas capitalistas, além de favorecerem a aquisição de benefícios individuais,
são justificadas também por suas “vantagens” oferecidas ao coletivo (por exemplo: se mais indústrias
existirem, mais empregos também existirão e isso será melhor para todos pois o estado-região-país se
desenvolverá economicamente), tendo em vista a participação dos indivíduos economicamente ativos
nos processos do sistema. O espírito do capitalismo é justamente o conjunto de crenças associadas à
ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação
e as disposições requisitadas aos indivíduos.

Feirantes - 35 -
Contextualizando esse “novo espírito do capitalismo” no Brasil, Souza
(2010) destaca que, embora sejam essas parcelas grande maioria em nosso
país, não dispõem dos privilégios de, por exemplo, ter acompanhamento
médico apropriado em todas as etapas da gestação de seus filhos, ou mes-
mo ter uma mãe com aprendizado cultural prévio que permita compre-
ender e aplicar as orientações médicas devidamente e também parir seus
filhos num bom hospital. Não pensamos que seja necessário dar sequência
a esses exemplos para reiterar a substantiva diferença de vir ao mundo no
seio das classes média e alta brasileiras ou como membro das nossas classes
populares.
Embora ainda hoje se acredite que o Brasil é um país “completamente
singular” neste mundo que nos circunda, representado por uma imagem
“folclórica e caricata” – fruto de uma plástica simbiose de samba, negros,
ginga, índios, futebol, mulatas deslumbrantes, cerveja, ascendência portu-
guesa, Praia de Copacabana e eterno carnaval, essa imagem não caracteriza
o que está no cerne da tessitura social do país. Trata-se de engano sócio-
-histórico já teórica e empiricamente desconstruído9, mas que é repetido
localmente quando se fala sobre a Feira de Caruaru com frases do tipo:
“Nada mais nordestino nem mais brasileiro do que a experiência de uma
manhã de sábado caminhando pela Feira de Caruaru, consagrada pelos
versos de Onildo Almeida e pela voz de Luiz Gonzaga”10.
Ao ler ou escutar algo do tipo, não seríamos levados a pensar que, de
modo similar, não há nada mais tipicamente peruano do que passear por
uma feira em Cusco? Que não há nada mais marroquino do que passe-

9 Que pode ser visto em Souza (2000, 2003, 2006, 2009).


10 DIARIO DE PERNAMBUCO. Na Feira de Caruaru, um banho das melhores tradições populares.
Recife, 19/08/1987, (p. 4 e 5, cad. Turismo). Eis a letra da música citada (“A Feira de Caruaru” de
Onildo Almeida) que foi um dos primeiros grandes sucessos de Luiz Gonzaga. Esta música tornou-se
praticamente um “hino” da cidade e da feira: “A Feira de Caruaru,/Faz gosto a gente vê./De tudo que
há no mundo,/Nela tem pra vendê,/Na Feira de Caruaru./Tem massa de mandioca,/Batata assada, tem
ovo cru,/Banana, laranja, manga,/Batata, doce, queijo e caju,/Cenoura, jabuticaba,/Guiné, galinha, pato
e peru,/Tem bode, carneiro, porco,/Se duvidá... inté cururu./Tem cesto, balaio, corda,/Tamanco, gréia,
tem cuêi-tatu,/Tem fumo, tem tabaqueiro,/Feito de chifre de boi zebu,/Caneco acuvitêro,/Penêra boa
e mé de uruçú,/Tem carça de arvorada,/Que é pra matuto não andá nú./Tem rêde, tem balieira,/Mode
minino caçá nambu,/Maxixe, cebola verde,/Tomate, cuento, couve e chuchu,/Armoço feito nas cordas,/
Pirão mixido que nem angu,/Mubia de tamburête,/Feita do tronco do mulungú./Tem louiça, tem ferro
véio,/Sorvete de raspa que faz jaú,/Gelada, cardo de cana,/Fruta de paima e mandacaru./Bunecos de
Vitalino,/Que são cunhecidos inté no Sul,/De tudo que há no mundo,/Tem na Feira de Caruaru”.

- 36 - O capitalismo contemporâneo e a feira


ar pelo comércio de rua de Marrakech? Ou mesmo nada mais indiano do
que... Enfim, não estaríamos, então, diante de uma realidade que, obvia-
mente observadas as especificidades locais (língua, modo de negociar, tipo
de produtos comercializados etc.), seria comum aos indivíduos que vivem
em contextos periféricos similares neste mesmo mundo de hoje?
Se realmente alimentamos a esperança de viver e ver um Brasil melhor,
acreditamos ser necessário construir explicações melhores sobre as orien-
tações das condutas cotidianas dos indivíduos que nasceram e cresceram
nesta parte do planeta. Nesse sentido, de modo diferente do que se faz
presente no imaginário da sociedade brasileira sobre ela mesma, é preciso
rever o mito que nos faz parecer seres de “outro planeta”, completamente
diferentes das demais sociedades contemporâneas e de seus dramas, como
se fôssemos “marcianos verdinhos”11. Ou seja, é preciso olhar para a fei-
ra e para seus feirantes como também sendo membros da ordem mun-
dial contemporânea e não apenas como representações folclóricas de um
regionalismo nordestino – que, obviamente, tem seu papel em termos de
representação identitária e histórica de um povo, mas que não nos faz subs-
tantivamente diferentes em termos dos dramas de povos de outros países
situados na geopolítica mundial em condição periférica similar à nossa.
Na realidade, o capitalismo financeiro internacional hoje também está
no ventre de nossa sociedade. Desmaterializando o modelo de produção e
consumo em massa taylorista-fordista12 (sem, obviamente, eliminá-lo por
completo) e até mesmo os arranjos produtivos flexíveis – que superaram o
taylorismo-fordismo em termos de modelo mais apropriado à nova fase do
sistema –, tal mercado torna a economia brasileira sensível à avaliação de
agências internacionais de classificação de risco. Apesar disso, investidores
internacionais não têm o poder de penetrar nas mentes, introjetar ideais e
fazer mover corpos alheios ao seu bel-prazer. Apenas acusá-los de “domi-
narem o mundo” seria repetir crítica, já acrítica, por se mostrar inócua e
extenuantemente repetida13. Não é isso que aqui queremos.

11 Ver desenvolvimento original desse argumento em Souza (2009).


12 Modelo produtivo para gestão e organização de processos produtivos industriais concebido por
Taylor (2006 [1911]), desenvolvido e disseminado por Ford (1926). A realidade criada pela implantação
em larga escala desse modelo é magistralmente ilustrada de modo crítico no filme clássico de Charlie
Chaplin, Tempos Modernos.
13 Se os vemos como Bourdieu, eles também são “escravos da sua própria dominação” nesse sistema

Feirantes - 37 -
Com sua nova roupagem, o capitalismo reconfigura seus meios e modos
de produção, aplica tecnologia de ponta em arranjos produtivos flexíveis
capazes de ofertar ao mercado bens e serviços não mais apenas padroni-
zados (como no taylorismo-fordismo), mas, sim, de acordo com as possi-
bilidades mercadológicas de melhor venda do produto aos consumidores.
Ou seja, nesses arranjos é possível rapidamente modificar o que está sendo
produzido a depender do que está sendo demandado pelo mercado consu-
midor14.
Por outro lado, coloca os antigos operários que não foram capazes de
incorporar o uso desse tipo de tecnologia em sua prática cotidiana de tra-
balho – ou mesmo foram demitidos em processos de enxugamento ou re-
arranjo da estrutura produtiva – numa situação mais do que delicada. Ou
ainda chega a impedir, por meio dos requisitos solicitados nos processos
seletivos, que pessoas que tenham escolaridade incompleta, ou mesmo
que não tenham um curso técnico solicitado para o desempenho de uma
função específica, venham a ter a possibilidade de conseguir um emprego
numa dessas empresas.
A toda uma parcela de nossa população que tem origem e faz parte das
classes populares – ou seja, que não nasceu numa família (de classe mé-
dia ou alta) que lhe possibilitasse ter acesso às melhores condições sociais,
econômicas e culturais fundamentais para, na vida adulta, conseguir os di-
plomas requisitados e, concomitantemente, desenvolver “naturalmente” as
disposições elementares ao ingresso e manutenção no mercado de trabalho
moderno (basicamente: autocontrole, disciplina, pensamento e comporta-
mento prospectivo, cf. Souza, 2010) – restaram as esquinas, as margens de
um capitalismo que se revigora e demonstra ser capaz de se autojustificar
ideologicamente como nunca.
No caso deste livro, as esquinas – metaforicamente, no sentido de serem
as margens, as franjas, a periferia do sistema – também poderiam ser de um
sem-número de feiras mundo afora, afinal, como pretendemos demonstrar
ao longo deste trabalho (com o apoio das pesquisas de Bourdieu, em parti-

no qual o capital é impessoalizado.


14 “Customização” foi o termo criado e divulgado como uma prática na qual os produtos são desen-
volvidos e configurados a depender das necessidades de cada cliente, no sentido de oferecer um produto
supostamente “individualizado”.

- 38 - O capitalismo contemporâneo e a feira


cular, de seu período argelino15), o cerne do drama desses trabalhadores é
bastante similar, independentemente de estarmos tratando de Brasil ou Ar-
gélia, Peru ou Marrocos. Entretanto, devido à nossa localização geográfica,
aqui estaremos falando de uma das maiores e mais conhecidas feiras livres
do país, a Feira de Caruaru. É lá que vivem-trabalham nossos personagens
principais.

_ _

A origem da Feira de Caruaru não é muito diferente da origem de diver-


sas feiras livres existentes Brasil e mundo afora. Isso pode ser observado
no trabalho do historiador local Josué Euzébio Ferreira (2001, p. 101-102,
grifos nossos), ao comentar a própria origem da cidade:

Os escritores e historiadores caruaruenses são unânimes em


afirmar que Caruaru nasceu, cresceu e se transformou em
povoado em função da existência dessa capela histórica. Po-
demos supor que a Fazenda Caruru, a partir da inauguração
da capela em 1782, passou a ser o único lugar do vale médio
do Ipojuca, além de Bezerros, onde os moradores de todas as
redondezas teriam a oportunidade de acompanhar um ato
religioso celebrado por uma autoridade oficial da Igreja Ca-
tólica. Aquela fazenda transformou-se em um ponto de con-
vergência da população em geral, em função do que para eles
seria o motivo muito especial: a religiosidade.
É nesse contexto histórico que encontramos as raízes da his-
tória da feira livre de Caruru, nas últimas décadas do sé-
culo XVIII e início do XIX. Vamos imaginar o dia da vinda
do padre para a capela de Nossa Senhora da Conceição, a
notícia espalhava-se com antecedência e (normalmente era
aos domingos) ele transformava-se em dia especial: assistir

15 Que podem ser vistas parcialmente no Apêndice A Teoria.

Feirantes - 39 -
missa, batizados, casamentos, receber a benção do padre,
encontrar conhecidos, parentes e compadres. Aproveitando
as oportunidades, a partir do agrupamento de gente, muitos
traziam seus produtos agrícolas para vender ou trocar por
outra coisa da qual estava necessitado. Poderia aproveitar
também a presença de um mascate que era habitual por esses
tempos naqueles caminhos e esses encontros eram oportu-
nos para apresentar as novidades do momento: tecidos, li-
nha, dedal, chapéus, apetrechos de uso feminino etc. Essas
transações comerciais aconteciam, provavelmente, antes das
atividades religiosas. Mas com o tempo, pode-se pensar no
aumento dos negócios e os encontros tornaram-se semanais,
os produtos iam se diversificando cada vez mais: gado, cabra,
galinha, e já poderia existir uma casa comercial, substituindo
o antigo mascate e sendo até mais conveniente a todos, pela
possibilidade de mudanças nas relações, caracterizadas pela
confiança mútua, pelos prazos na entrega dos produtos e nos
pagamentos etc. Pelo menos de forma teórica, montamos a
maneira e as condições de como começou a Feira de Caru-
aru. Uma história parecida com outra de qualquer lugar,
desde que as condições históricas sejam semelhantes.

Passados mais de duzentos anos, o comércio de feira é ainda hoje uma


atividade de importância central na vida de muitos brasileiros. No interior
do Nordeste, em particular, é mantido por parte significativa da população
o hábito de se fazer compras semanais em feiras livres. Embora seja ativida-
de que tem origem anterior a este tipo de capitalismo do qual aqui tratamos
de início (Weber, 2006; Boltanski e Chiapello, 2009), tal modalidade de co-
mércio está acoplada à sua dinâmica contemporânea.
A feira tem principalmente dupla função mercadológica. A primeira, de
escoamento da produção local, em especial, de confecções. Assim, a in-
dústria local, os fabricos e as facções16 são fenômenos interrelacionados à
feira em si por, em grande parte, terem precisado dela para vender o que

16 Sobre o que são fabricos e facções, vide nota sete na Apresentação.

- 40 - O capitalismo contemporâneo e a feira


produzem – haja vista que esses produtos são levados em grande quanti-
dade para revenda em diversas outras cidades. A segunda, revender para
a região os produtos importados de outras (desde aparelhos eletrônicos a
produtos agrícolas, passando pelos tênis chineses, entre inúmeros outros).
E, ao mesmo tempo enquanto isso acontece, costumes e práticas sociais e
mercantis observadas são, em certa medida, peculiares a esse tipo específi-
co de comércio.
No entanto, somente esse aspecto peculiar dos costumes e práticas es-
pecíficas de tal modalidade de comércio é geralmente destacado nas falas
sobre a feira. O então Diretor de Documentação e Patrimônio Cultural da
Fundação de Cultura de Caruaru, Walmiré Dimeron, quando perguntado
em entrevista de pesquisa para este livro sobre o que seria a feira em sua
visão, colocou:

Não sei se dá pra resumir, mas eu costumo dizer que Caruaru


vive de um tripé cultural, que é feira, forró e artesanato, mas
que eu poderia simplificar em barro, feira e forró. Mas a feira
é a célula mater dessa nossa formação, eu acho que tudo
que nós somos hoje, nós temos um pouco na nossa forma-
ção, no nosso jeito de falar, de ser, porque somos o que res-
tou de fato daquele processo inicial de, vamos chamar de
colonização dessas terras aqui. [...] Do ponto de vista ima-
terial, é a feira, você não tem nenhum resquício, então ela ter
sido, a capela e a feira juntas deram origem à cidade de Ca-
ruaru, então você imagina o que isso representa. Quer dizer,
um bem cultural que sobreviveu décadas a fio, só crescendo,
só crescendo, isso mostra que, por si só, ela já se impõe. En-
tão, voltando ao tripé cultural, o São João hoje é uma grande
vitrine cultural em Caruaru, mas eu digo sempre que a feira
se sobrepõe a tudo isso [...] a ideia inicial de registrar a feira,
de inventariar a feira, são duas etapas, primeiro vem o inven-
tário das peças e, paralelo a isso, nós entramos com o pedido
de registrar a feira como patrimônio imaterial, são coisas dis-
tintas. Aí teve a proposta do Iphan, que uma das propostas
era inventariar também o São João ou o Alto do Moura, e

Feirantes - 41 -
eu fui enfático, eu disse que tinha que ser a feira, porque as
duas outras manifestações nasceram, se não nasceram na fei-
ra, mas se projetaram e tiveram a feira como palco e cenário.
Era lá que os tocadores de forró e pífanos tocavam, isso tudo
que faz parte do ciclo junino hoje, era o grande caldeirão que
era a feira. O forró era estilo pé-de-serra lá, mas no dia da
feira o matutinho vinha, trazia sua sanfona, trazia seu pífano
e, enquanto estava por ali, fazia suas apresentações, a feira foi
palco de tudo isso, e Vitalino foi projetado pela feira, né? [...]
Então, analisando tudo isso, a feira é uma grande matriz cul-
tural, é a célula mater da nossa formação cultural, não tenho
dúvida em afirmar. (grifos nossos)

No sentido contrário, o feirante e sindicalista José Carlos da Silva criticou


em entrevista a visão “cultural” que muitos estudiosos destacam na feira e
citou a feira do troca como exemplo. Para ele, o que hoje existe na realidade
é a “cultura” da comercialização de produtos roubados, da prostituição de
jovens à luz do dia, uma favela constituída às margens do Rio Ipojuca.

O que, então, é a feira, afinal?


Enquanto estávamos em campo, circulando, conversando com feirantes,
aplicando questionários, observando suas barracas, como eles as adminis-
tram, e, inclusive, fazendo refeições nelas, a economia mundial passava por
grande crise17. Na periferia do sistema, os abalos também eram sensíveis.
Aliás, pareciam ser bem maiores. Não poderia ser diferente. No entanto,
por estarmos diretamente vivenciando sua realidade, conversas, planos em
relação ao negócio, ao futuro, o medo de que a diminuição do movimento
se estendesse por um período ainda maior, observamos os semblantes tris-
tes e os olhares distantes de muitos feirantes em seu cotidiano. A crise nos
foi ainda mais perceptível por meio deles.

17 Aqui fazemos menção à crise econômica que aconteceu entre 2008 e 2009 e que teve repercussões
diversas e significativas em escala mundial, tendo sido comparada por muitos analistas com a crise da
bolsa de Nova Iorque de 1929.

- 42 - O capitalismo contemporâneo e a feira


Cantada por Luiz Gonzaga, a Feira de Caruaru ganhou fama nacional a
partir de meados do século passado, fruto de construção midiática18 que
criou uma aura em torno dela. É hoje, mais do que nunca, um lugar onde
milhares de batalhadores nordestinos lutam por subsistência ou mesmo
pelo sonho de uma vida melhor.
O que talvez torne essa feira um pouco diferente de outras seja sua di-
mensão, variedade de itens comercializados, volume de negócios e prin-
cipalmente sua centralidade na vida de parte significativa da população de
uma região político-geográfica, o Agreste pernambucano. Mas há uma ex-
plicação histórica e geográfica para isso. “No início do século XVIII, Caru-
aru era apenas uma fazenda de gado localizada às margens do Rio Ipojuca,
porém passava bem em frente à sua sede um dos caminhos do gado que
vinha do sertão para o litoral” (Ferreira, 2001, p. 105-6, grifos nossos). Ou
seja, foi também por ter uma localização geográfica estratégica em relação
ao fluxo sertão-litoral, e que ao longo da história se tornou um ponto de
confluência para os municípios circunvizinhos de menor porte, que Carua-
ru foi se consolidando como principal entreposto comercial regional.
Assim, como diversas outras cidades do Nordeste, país e mundo, Ca-
ruaru teve sua origem diretamente vinculada ao comércio de feira. Hoje,
precisar o quantitativo de feirantes é tarefa delicada, já que o número varia
em decorrência de diversos fatores. No entanto, o então Diretor do Depar-
tamento de Arrecadação Externa da Secretaria de Finanças do município,
Luís Henrique Pereira Galvão, estimou existirem na cidade19 “21.000 fei-
rantes, e se botar diretamente e indiretamente, tem mais de 100.000 pessoas
envolvidas”, enquanto que o então presidente do Sindicato dos Comercian-
tes e Vendedores Ambulantes de Caruaru (Sincocav), José Carlos da Silva,
estimava existir “dentro da Feira de Caruaru em torno de 12 a 15 mil”.
Muito embora sejam observadas especificidades, nenhuma delas dife-
rencia substantivamente a Feira de Caruaru de outros mercados periféricos
do Brasil, ou até mesmo mundo afora.

18 Foram reunidas durante a pesquisa inúmeras matérias de revistas e jornais que, em linhas gerais,
enfatizam a Feira de Caruaru como um símbolo de orgulho e identidade da região. Algo bem diferente
do que é enfatizado em nossa visão: um tipo de mercado periférico.
19 Já que existem diversas feiras que acontecem alternadamente, a depender do dia da semana,
nos bairros da cidade. São muitos os feirantes “móveis” que comercializam em algumas dessas feiras
semanalmente.

Feirantes - 43 -
Mas que tipo de mercado periférico é esse? A feira é lócus de atividade
econômica, cultural e social para descendentes e remanescentes do meio
rural; desempregados dos centros urbanos regionais; nordestinos que mi-
graram e retornaram das grandes metrópoles, principalmente São Paulo;
pequenos, médios e, em menor escala, porém em maior influência, gran-
des empresários; e famílias que ou trabalham num mesmo negócio juntas
ou então em diversos pequenos comércios que tanto podem estar lado a
lado, como também podem estar espalhados por outros setores ou mesmo
em outras feiras que acontecem todos os dias da semana – nos diferentes
bairros da cidade. É, assim, um espaço que constitui e caracteriza as “fran-
jas” do capitalismo moderno, crucial em diversos aspectos à continuidade
dinâmica de seu funcionamento contemporâneo.
Isto é, embora seja originalmente atividade tradicional que remonta a
outras “eras históricas”, o comércio de feira está hoje acoplado ao sistema
– que não se mostra capaz de gerar empregos para parte significativa da po-
pulação e, ao mesmo tempo, se desenvolve de modo relativamente distinto
a depender da condição geopolítica da região na qual o observamos (se
central ou periférica, por exemplo). Em síntese, o argumento que aqui se-
guimos nos leva a observar que a feira não está à parte do mundo contem-
porâneo. Muito pelo contrário, também é decisivamente constituída pelas
instituições-chaves da modernidade, Estado e Mercado (Souza, 2000).
A tradição inerente a esse tipo de atividade vem sendo cada vez mais in-
fluenciada por essas instituições de diversas formas. Em tais contextos, são
comercializados produtos importados (muitas vezes trazidos e vendidos
pelos próprios chineses); cobrados impostos pelo Estado20 – que também
determina quais áreas podem ser ocupadas para o comércio e quais não, até
mesmo, em caso de mudanças coletivas dos feirantes, é o Estado que indica
os novos lugares para os quais eles deverão ir; observa-se número signifi-
cativo de feirantes que compram produtos agrícolas (produzidos em outras
regiões) numa central atacadista regional e os revendem na feira (ao invés
de produzi-los); diversos deles procuram dar “ares” de comércio estabele-
cido aos seus boxes, reformando-os aos moldes de loja; sem falar que parte
dos feirantes teve experiências profissionais em empresas, ou seja, tiveram
sua carteira assinada, ocuparam um cargo, desempenharam uma função,

20 Representado pelo poder público federal, estadual ou municipal.

- 44 - O capitalismo contemporâneo e a feira


tomaram parte de uma estrutura hierárquica, enfim, tiveram contato com a
dinâmica do mercado de trabalho oficial.
Passear pela feira é procurar – e não encontrar – sentido analítico em ob-
servá-la como o mito midiático construído há décadas. Praticamente apenas
a parte da área destinada ao comércio de artesanato tem aspecto diferen-
ciado do resto da feira – há um motivo claro e mercadológico para isso, é
para lá que grande parte dos turistas ainda vai. No entanto, de modo geral
na feira como um todo, as vias não estão geralmente muito limpas. Há pou-
cos banheiros públicos e em condições apropriadas de uso. As barracas21
sofrem intervenções (reformas e ampliações) desordenadas e aleatórias por
parte dos feirantes. Os fiscais do departamento de feiras e mercados da pre-
feitura dizem que é assunto de outro departamento (o de infraestrutura).
Diversos desempregados tentam encontrar a subsistência nas ruas margi-
nais, ocupando provisoriamente seus corredores ou então transitando por
seu espaço físico como ambulantes. São chamados de “invasores” pelos “es-
tabelecidos” mais antigos. Não compraram o ponto, não possuem o alvará
de funcionamento22 e, em alguns casos, não pagam o imposto por uso do
espaço que eles, os “estabelecidos”, pagam. Lutam por um espaço nas mar-
gens. Os fiscais recolhem de “todos que podem” esse imposto23. Diversos
pedintes perambulam constantemente por lá. Umas jovens procuram tra-
balho, outras se prostituem. Uns jovens cheiram cola, outros fazem peque-
nos furtos, ou ainda, simplesmente pedem como os mais velhos. Outros,
com um carrinho de mão, ganham uns trocados carregando as compras de
quem as faz em grandes quantidades, ou mesmo as feiras das senhoras aos
sábados. As milícias fazem a “segurança” pelas esquinas.
Numa outra margem, o rio foi invadido. Ou por construções irregulares
de comerciantes “bem-sucedidos” ou por uma pequena favela que se pro-
jeta para dentro dele. O seu aspecto é deprimente, tomado de lixo, exala
constantemente odor fétido. As pessoas que passam ou trabalham por lá se
alimentam de qualquer modo, em qualquer lugar. Outras esperam as mi-

21 Também chamadas de “boxes”, são espaços (que variam de dimensão, pois podem ser aumentados
pela união de alguns deles) que são concedidos para uso dos feirantes pela prefeitura. É prática entre os
feirantes vendê-las e comprá-las uns aos outros como “ponto comercial”. Também é prática fazer delas
poupança, ou então comprar barracas vizinhas ou em melhores localizações para ampliar o negócio.
22 Taxa anual paga à prefeitura.
23 Nos dias das duas grandes feiras, a da sulanca e a livre.

Feirantes - 45 -
galhas, sobrevivem com as sobras. A polícia faz batidas para busca e apre-
ensão de produtos falsificados em comercialização. Os feirantes sofrem a
cada mudança de governo municipal com a insegurança quanto aos seus
destinos, afinal, “dizem por aí que vão mudar a feira da sulanca para outro
lugar...”.

- 46 - O capitalismo contemporâneo e a feira


A feira da sulanca24 acontece há décadas no mesmo espaço físico no qual está ins-
talada a Feira de Caruaru. É considerada parte integrante desta. Na realidade, ela
avançava pelas ruas circunvizinhas da feira e reunia milhares de pessoas de todo
o Nordeste que lá procuravam vender e comprar confecções, principalmente fa-
bricadas em polos de produção de confecções da região, tais como os de Toritama
e de Santa Cruz do Capibaribe. Ela hoje acontece às segundas, dia de grande mo-
vimento para os feirantes fixos detentores de barracas-boxes de alimentação, por
exemplo. Para designar o que fazem os feirantes na feira da sulanca, costuma-se
usar a expressão “botar banco”. Ou seja, vender roupas numa estrutura de metal
ou de madeira que é instalada pelos “montadores de banco”, pagos para fazer isso
na virada da noite da véspera. A sulanca começa oficialmente a partir das três
horas da madrugada e vai até por volta do meio-dia. Os “sulanqueiros” também
pagam o mesmo imposto por uso do espaço público que os feirantes fixos. Como
a sulanca é muito grande e causa transtorno ao trânsito de automóveis e pessoas
pelo centro da cidade, ou seja, altera sua dinâmica, a possível transferência dela
para outro lugar mais apropriado é agenda pública e política constante na cidade,
o que causa medo aos feirantes fixos que têm, no dia que ela acontece, o grande
movimento em seus comércios, juntamente com o sábado, dia tradicional da feira
livre, dia de “fazer a feira”, como se costuma dizer por aqui. Ou seja, é justamente
nas segundas e nos sábados que muita gente faz refeições por lá. Nos dias de sulan-
ca, o ritmo do caminhar na feira varia de acordo com o lugar e o fluxo de carroças
dos carregadores de mercadorias. Os produtos são expostos, as pessoas circulam,
conversam, negociam, brincam umas com as outras de um modo que retrata os
costumes mercantis locais. De modo geral, a feira da sulanca tem ritmo próprio e
distinto das demais feiras que compõem o Parque 18 de Maio. Ela reúne pessoas
de um espectro geográfico maior, negociando num ritmo mais acelerado (pois
voltam para seus lugares de origem ao final da manhã) e num volume de compra
e venda bem maior do que as vendas regulares de um boxe ou mesmo banco na
feira fixa. São milhares de pessoas de diversas cidades do Nordeste que vão até lá
principalmente em busca de confecções e similares, que são comercializados em
grande volume e baixos preços nesse dia, para revender em seus locais de origem.

24 Sobre as mudanças que ocorreram em fevereiro de 2010 na feira da sulanca, ver Conclusão.

Feirantes - 47 -
Os fiscais da prefeitura tentam regular o uso que esses feirantes fazem
do próprio espaço público, tentam inibir que eles ocupem as partes “inde-
vidas” – as frentes de suas barracas, espalhando mesas para os clientes, por
exemplo. O feirante indaga: “onde meus clientes vão comer?” Trabalhado-
res, comerciantes, miseráveis, empresários e funcionários públicos “estre-
lam” cenas reais do drama moderno25.

Estrutura física e comercial


São vários setores que correntemente até são chamados, cada um deles,
de feiras – das confecções, dos utilitários, do artesanato, dos importados,
das miudezas, das ervas etc. Tudo isso reunido num parque26, respondendo
por um só nome: Feira de Caruaru. Eis nosso “campo”27 (Bourdieu).
Em nossa visão, quais seriam os aspectos mais relevantes dessa grande
feira? Para responder a esta questão, pretendemos caracterizá-la, a partir
de nossas notas de campo, com o apoio de informações e depoimentos de
informantes-chaves28.
Nesse sentido, é importante desde já esclarecer que a feira amplia-se em
dois dias da semana: nas segundas, quando acontece a feira da sulanca; e
aos sábados, com a tradicional feira livre. Neste dia o parque recebe mui-
tas pessoas dos distritos, zonais rurais e cidades vizinhas para o comércio
dos produtos agropecuários da região e compra de demais itens de consu-
mo como roupas, utensílios domésticos etc. Este é o dia de “fazer a feira”,
como se costuma dizer. Ou seja, é justamente nas segundas e nos sábados
que muita gente, por exemplo, faz refeições por lá. Nesses dois dias, grande

25 Obviamente, “dirigidos” por suas instituições centrais, Estado e Mercado. Sobre essa visão da mo-
dernidade periférica, ver Souza (2000). Para efeito de análise, ver a feira como um tipo de mercado peri-
férico é algo substantivamente diferente de vê-la como algo apenas “tradicional”, ou seja, descolado e di-
ferente do mundo moderno do qual ela faz parte inextrincavelmente (se observada do primeiro modo).
26 O 18 de Maio, após a mudança definitiva da feira, no início dos anos 90, que antes acontecia nas
ruas centrais da cidade, no entorno da antiga Rua do Comércio (hoje rua 15 de novembro) e da Igreja da
Conceição. O parque é uma área de vários hectares, pertencente ao município, que foi disponibilizada
para ser ocupada pela feira.
27 Para esclarecer-se sobre esse conceito, ver Apêndice A Teoria.
28 Ver Apêndice O Método.

- 48 - O capitalismo contemporâneo e a feira


parte da feira tem sua rotina alterada. O volume de pessoas e de negócios é
maior, assim como a presença de feirantes que, em muitos casos, vêm ven-
der seus produtos somente naquele dia.
A feira de todo dia é aquela que se consolidou – obviamente, além dos
dias de sulanca e feira livre – após a mudança de localização. Desde então
os feirantes puderam se instalar de modo definitivo nos espaços destinados
às suas barracas e comercializar seus produtos diariamente. Foi isso que
parte deles fez, e assim a feira passou a apresentar movimento durante toda
semana.
Mesmo nos dias mais tranquilos, andar pela feira e não se perder requer
aprendizado, algumas idas e vindas. Um importante aspecto a ser observa-
do nesse sentido é a sua divisão por setores. Contrariamente à desordem
que um primeiro olhar possa apontar, uma observação mais cuidadosa nos
leva a compreender que a lógica mercadológica se faz presente no modo
como as barracas são dispostas e agrupadas ao longo do pátio, como nos
falou o historiador Josué Euzébio:

tem uma lógica comercial, porque ‘Ah, não quero botar uma
farmácia aqui não, porque já tem três. Eu vou botar lá lon-
ge, onde não tem’. Mas ninguém vai, você não vende! Então
com essa lógica, todo mundo achou muito legal que a feira
se concentrasse, os produtos de milho, os cereais, ‘não sei o
quê’, ali. Roupas, sapatos num outro canto, ervas medicinais
noutro setor.

Muito embora, com a dinâmica da feira, em alguns casos essa divisão


setorial não seja plenamente obedecida, sendo observados alguns produtos
expostos à venda numa área diferente da sua natureza, a organização por
setores de acordo com o tipo de produto que se está sendo comercializado é,
nessa perspectiva, um dos aspectos constitutivos que a caracterizam. No
entanto, tal aspecto não é singular à feira, pode ser visto de modo similar
em outros tipos de aglomerações comerciais, ou seja, ao se dividir por seto-
res, a feira se organiza de acordo com uma lógica de especialização merca-
dológica que é comum a outros agrupamentos comerciais.

Feirantes - 49 -
Em diversos desses setores, as barracas de ferro ou de madeira foram
reformadas e reerguidas em alvenaria29 de acordo com vontades, necessida-
des e possibilidades dos feirantes. Essas modificações na estrutura física das
barracas, realizadas sem que diretrizes ou normas reguladoras específicas
para tal fossem observadas, fizeram com que a estética da feira seguisse, em
certa medida, essa divisão setorial, ao mesmo tempo em que lhe permiti-
ram ter uma característica geral que a identificasse como uma feira (e não
como um outro tipo de centro comercial, por exemplo).
No setor de confecções, por exemplo, algumas barracas foram reforma-
das ao ponto de hoje terem aspecto “de loja”, com cerâmica no piso, vitrine
de vidro, vendedoras uniformizadas e exposição dos produtos claramente
espelhada no que é possível ver no outro lado da rua, num centro de com-
pras (com “ares” de galeria ou shopping de bairro)30. Já algumas barracas de
alimentação permanecem de ferro, embora outras também tenham sido re-
vestidas de cerâmica e ganhado um salão com mesas para os clientes faze-
rem suas refeições. As que vendem fumo de rolo (poucas, afinal, trata-se de
um tipo de comércio em declínio) permanecem, todas elas, com a mesma
estrutura de madeira (banco) que é utilizada na feira livre de sábado – mas
que ainda é vista também no mesmo setor de confecções. Já no setor de er-
vas, foram erguidas estruturas de alvenaria mais simples. Numa das laterais
do mercado de carnes, diversos feirantes montaram seus comércios de pro-
dutos diversos, tipo mercearias, ocupando espaços projetados na estrutura
exterior do prédio. Lá se estabeleceram e se organizam de modo similar uns
aos outros. Existem também diversas barracas fechadas (transformadas em
depósitos), setores e corredores que apresentam uma estética favelizada.
Obviamente, essa dimensão estética precisa ser associada a alguns outros
fatores, tais como a rentabilidade do negócio, os tipos de produtos comer-
cializados, mas a variação estética na feira é outro aspecto que lhe é carac-

29 Muito embora isso não seja permitido, visto que se trata de espaço público municipal e que, assim
sendo, não se configura como propriedade particular, sujeita a alterações conforme vontade do pro-
prietário. Na realidade, além de muitas barracas construídas com alvenaria, existe um comércio dos
boxes-barracas entre os feirantes e aqueles que querem sê-lo. Como já comentamos, os boxes-barracas
também são adquiridos pelos próprios feirantes a título de poupança-investimento. Veremos isso nova-
mente mais adiante na história de Justino (Capítulo 3), por exemplo.
30 Uma feirante falou-me com orgulho sobre o comentário que ouvia de alguns dos seus clientes sobre
o aspecto de seu negócio: “eu não imaginava que encontraria algo assim aqui na feira... nem parece que
é uma barraca de feira”.

- 50 - O capitalismo contemporâneo e a feira


terístico. Em alguns casos, por exemplo, fica o contraste entre uma barraca
que “tomou banho de loja” e um corredor com o piso desgastado ou mesmo
com outro setor com barracas de madeira.
Muito embora a não regulação seja apontada como fator decisivo para as
diversas formas que as barracas tomam no parque da feira, a estética faveli-
zada, em sua maior parte, denota a sua condição periférica na dinâmica do
mercado mundial31. Na realidade, não se trata apenas de uma questão es-
tética, mas também de modo de funcionamento e de dramas urbanos nela
vivenciados que fazem com que a feira apresente traços de uma favela no
meio da cidade. O turista que passeou apenas pelos corredores da feira de
artesanato, como acontece geralmente, pode até não perceber esse processo
de favelização, mas isso se deve muito mais à diferença evidente que é man-
tida nas partes “para turista ver”, se comparadas às demais que compõem
em conjunto a Feira de Caruaru.
É por esses e outros aspectos que, diferente do que se consagrou na letra
da música (“A Feira de Caruaru/Dá gosto da gente vê...”), o então feirante e
sindicalista José Carlos da Silva afirmou que “a Feira de Caruaru hoje dá é
desgosto da gente vê”. Enfatizando a vergonha que dizia ter em trazer pes-
soas para conhecer a feira, emenda sua crítica à visão de caruaruenses que
são “de fora” da feira, dando o exemplo de quando esteve num seminário
numa faculdade da cidade. Lá ouviu alguém falar da feira com exaltação,
destacando a importância de valorizar suas virtudes, de reconhecê-la como
um emblema da cidade. Foi então que ele não se conteve, pediu a palavra,
e falou sobre a situação da feira. Para ele, “diferentemente do que se lê ou
escuta por aí, a feira é uma realidade muito complicada nos dias de hoje”.
Sua infraestrutura é precária, a prefeitura não fiscaliza as formas de ins-
talação dos feirantes como deveria (“tudo pode”), e assim, por um lado,
os feirantes constroem suas barracas (“com primeiro andar e tudo”) como
lhes convêm, e por outro, obras de infraestrutura básica, como banheiros
em muitos setores, não são executadas. Em sua visão, o descaso histórico
do poder público em relação a aspectos básicos de infraestrutura é evidente
num passeio pelo pátio da feira.

31 Na realidade, surgiu uma favela numa parte da margem do rio que fica ao lado da feira, mais espe-
cificamente, do setor onde acontece a feira do troca (escambo e venda de produtos usados e, em alguns
casos, roubados) aos sábados. Mais do que juntas, feira e favela materializam essa condição periférica.

Feirantes - 51 -
As consequências dessas lacunas estruturais são sentidas pelos feirantes.
Uma senhora, que há dez anos conseguiu trocar o trabalho de doméstica
por uma barraca de lanches e bebidas na feira, diz que mesmo o movi-
mento do melhor dia (segunda, dia de feira da sulanca) anda piorando,
principalmente depois que foi aberto um grande supermercado atacadista
ao lado do parque da feira. Comparando a infraestrutura que o supermer-
cado oferece (estacionamento, segurança, banheiros etc.) com a feira, ela
conclui: “É óbvio que é melhor ir para lá”.
Se, por um lado, é um desafio colocar em prática as regras necessárias
para a gestão desse espaço público, por outro, o número de pessoas que
procuram na feira uma forma de subsistência econômica aumenta, haja
vista a realidade socioeconômica do país. Quem procura acaba encontran-
do uma forma de colocar um banco nas ruas que são tomadas pela feira da
sulanca, ou mesmo numa das ruas de acesso a estas, que acabaram também
se tornando espaços a serem ocupados pelos feirantes. Muito embora haja
um cadastramento com base na planta das áreas (destinadas à ocupação
com bancos nos dias de sulanca e feira livre) e bancos de cada uma das
áreas que detêm um alvará de funcionamento, na realidade existe grande
número de feirantes e bancos não cadastrados, pois o espaço ocupado pela
feira extrapola os limites da planta original, sem falar que alvarás fora dessa
planta foram distribuídos e assim se perdeu o controle (por exemplo, são
bancos que são colocados no meio da rua, na frente de outros, de outros...).
Embora o Departamento de Feiras e Mercados da prefeitura tenha também
como tarefa tentar evitar que se coloquem bancos fora dos espaços para tal
destinados, isso é muito difícil tanto pelo volume de feirantes no dia da su-
lanca, quanto pelo fato de que cada banco instalado (regular ou não) paga
o imposto32. Ou seja, ao arrecadar do “invasor” o imposto pelo uso do solo,
o governo municipal o legitima como feirante.
Além dessa questão relacionada ao poder público municipal, parte dos
feirantes está exposta a batidas da polícia federal e apreensão de alguns dos
produtos que comercializam, principalmente DVDs piratas. Os feirantes
que vendem produtos desse tipo precisam desenvolver estratégias para ten-
tar escapar das investidas da polícia.

32 Uma taxa de dez reais (em junho de 2009) por uso/ocupação provisória de cada feirante por feira
(no caso da sulanca) e de três reais todo sábado (no caso dos feirantes da feira livre), podendo estes
ocupar o espaço também nos demais dias da semana.

- 52 - O capitalismo contemporâneo e a feira


Uma outra tensão recorrente, que pôde ser observada nas falas dos feiran-
tes com os quais conversamos, foi em relação a uma possível mudança da
feira para um outro lugar. Com o seu crescimento além do esperado e sua lo-
calização no centro da cidade, a feira tornou-se, para a administração pública
municipal, um “problema” fincado no meio dela – que se soma à invasão das
margens do rio que corta a cidade pela construção de um centro de compras
ou mesmo de algumas lojas. A transferência da feira para um outro local é
um tema que aflige os feirantes, pois, assim, “perderiam” tanto o investimen-
to que fizeram em infraestrutura das suas barracas (no caso das permanen-
tes) quanto a clientela que construíram, e consequentemente, o rendimento
do negócio. A própria alteração no cotidiano de trabalho deles, que já se dá
de determinado modo há um certo tempo, é motivo de grande receio.
Do outro lado da rua, à margem do rio que corta a cidade, existe um
centro comercial que contrasta com a feira. Na sequência, demais lojas que
foram construídas após a vinda da feira para o parque. “Antes da feira não
tinha nada disso aqui”, comenta durante um de nossos encontros, José Car-
los da Silva. E continua: “esses prédios foram feitos dentro do rio” que tem,
então, seu curso “espremido” no meio da cidade (algo que, consequente-
mente, causa enchentes em períodos de chuvas intensas).
A própria favela então instalada num outro trecho da margem do rio
é exemplo de como os problemas sociais podem ser observados na própria
feira. Refeições ou lanches feitos numa de suas barracas são quase sem-
pre acompanhados de pedidos de esmola ou mesmo dos restos da comi-
da ainda sobre a mesa. Os feirantes se queixam da insegurança. Apontam
roubos que sofrem e que veem o público sofrer, não recomendam que se
fique no parque após as cinco da tarde. Diante da ausência de policiamento
satisfatório na área, a solução encontrada por muitos feirantes foi recorrer
a milícias que espalham homens geralmente vestidos de preto e munidos
de equipamento de comunicação pela feira. Eles são vistos pelas esquinas,
durante todos os dias da semana. São seguranças particulares pagos pelos
feirantes na tentativa de minimizar a insegurança.
Outro aspecto caracterizador da feira é o fato de ela ser o local no qual
se dá a confluência entre produtos locais e demais de outras origens. Perso-
nagens como o tradicional agricultor que planta bananas na zona rural do
município (ou de um dos seus circunvizinhos), o desempregado urbano
que compra verduras produzidas no Sertão do São Francisco (em Petro-

Feirantes - 53 -
lina, por exemplo) na Central de Abastecimento de Caruaru (Ceaca) para
revenda e até mesmo chineses oferecendo tênis ou demais produtos fabri-
cados em seu país podem ser vistos na feira. Observando seus setores e os
diferentes tipos de produtos comercializados em cada um deles, fica cada
vez mais evidente que o que faz ela vender “de tudo” é a dinâmica do mer-
cado contemporâneo – que tem no deslocamento e oferta de produtos mais
diversos possíveis uma de suas características – e não uma particularidade
original “congênita” da Feira de Caruaru ou de qualquer outra que lhe seja
similar.

- 54 - O capitalismo contemporâneo e a feira


CAPÍTULO 2
FEIRANTES: QUEM SÃO?
COMO ADMINISTRAM SEUS
NEGÓCIOS?33

Em grande parte, são eles que fazem a feira ser o que ela é. Se por um lado
observamos que a atividade é passada de pai para filho e que determina-
das barracas já se encontram na segunda geração de feirantes, por outro, é
fato que a feira recebe inúmeras pessoas que, sem emprego, veem nela uma
acessível atividade econômica de subsistência.
De modo geral, os feirantes são trabalhadores não necessariamente qua-
lificados, com formação escolar também não necessariamente completa,
afinal, ter escolaridade não é condição para “se dar bem” na feira. “Negociar
se aprende negociando”. Esta máxima pode representar o pensamento de
parte significativa dos feirantes sobre sua atividade e o relativo distancia-
mento de muitos deles da escolarização formal. É pensamento corrente en-
tre eles que, para “se dar bem na feira”, é preciso ter “tino para os negócios”,
“jeito”, “vocação para a coisa”. Como veremos mais adiante nos capítulos 3 e
4, dedicados às histórias de dois feirantes, com apoio do trabalho de Pierre

33 Uma versão anterior e homônima deste capítulo foi apresentada no XXXIV EnANPAD (Encontro
anual da ANPAD), 2010, Rio de Janeiro.

Feirantes - 57 -
Bourdieu34, são as disposições que incorporam ao longo de suas trajetórias
de vida, ou mesmo “herdam” de seus pais, que lhes proporcionam habili-
dade para o comércio, e não “um tino”, “jeito” ou “vocação” inexplicável35.
Como feiras livres também acontecem em dias alternados da semana
nos diversos bairros da cidade, muitos dos feirantes, que atuam na feira da
sulanca ou na própria feira livre do sábado, também o fazem em algumas
dessas outras feiras de bairro. Ou seja, trabalham diariamente como feiran-
tes, porém em feiras diferentes, a depender do dia da semana.
Não é possível tomar um perfil de feirante como sendo representativo
de todos os que fazem a Feira de Caruaru. Apesar de serem denominados
do mesmo modo, a realidade de quem vende ervas no setor dedicado a
esse tipo de comércio pode ser diferente da de um outro feirante que ven-
de bonecos de barro no artesanato. O perfil do feirante e dos seus clientes
pode apresentar maiores ou menores diferenças a depender dos setores em
questão. Em alguns casos, são realidades sociais, culturais e econômicas
distintas que podem facilmente ser observadas nos perfis de ambos36.
Há feirantes relativamente estabelecidos há anos em determinado ponto
e ramo. Nestes casos, dois caminhos diametralmente opostos são aponta-
dos para a próxima geração, seus filhos. Em parte dos casos, é possível ver
uma segunda geração já a frente do negócio ou mesmo sendo preparada
no dia a dia para isso. Noutra, pode-se ouvir deles que seus filhos estão
estudando, em alguns casos até mesmo já fazendo universidade, e que não
querem, de modo algum, que eles sigam a atividade dos pais.
Os casos de mudança de ramo são bastante frequentes também. Alguns
deles com os quais conversamos mudaram havia pouco tempo, estavam
ainda tentando “se consolidar”. Os diferentes traços estéticos das barracas
que observamos no capítulo anterior são, em parte, reflexos disso também,

34 Ver Apêndice A Teoria.


35 Sobre trajetória de vida e os conceitos de disposição e incorporação, ver os dois primeiros tópicos
do Apêndice A Teoria.
36 A título de ilustração, os clientes do primeiro podem ser senhores de certa idade que mantêm cos-
tumes antigos na região de fazer uso de ervas para o tratamento de problemas de saúde. Os do segundo
podem ser turistas do Brasil e mundo afora que procuram souvenirs de viagem ou artigos do artesanato
regional. Este último pode ser um comerciante que, além daquele boxe na feira de artesanato, tem outro
comércio estabelecido no centro da cidade, enquanto que o primeiro pode ter no comércio de ervas
sua única fonte de renda.

- 58 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


ou seja, demonstram em qual estágio o negócio se encontra. Na realidade,
esse estágio depende não somente do êxito relativo do feirante, mas tam-
bém da situação geral do ramo específico no qual atua. A decadência do
comércio de fumo de rolo é um exemplo que já foi mencionado no capítulo
anterior. Próximo dele, tanto geograficamente quanto em termos de situa-
ção “de risco”, está a feira de ervas. Com o processo de modernização e a
acessibilidade aos médicos e aos recursos da indústria farmacêutica, as er-
vas naturais, geralmente utilizadas para tratamentos de saúde baseados na
sabedoria popular, vão perdendo espaço como alternativa medicamentosa
para o tratamento de enfermidades. É óbvio que ainda existe público que
opta por recorrer a esses produtos, mas a tendência que observamos é que,
cada vez mais, este público se reduza nas novas gerações que assimilam
com mais facilidade as práticas, recursos e valores modernos.
Apesar das diferenças, algumas características gerais podem ser observa-
das como presentes no cotidiano de grande parte dos feirantes. Um primeiro
aspecto amplamente observado em todos os setores da feira é a presença do
trabalho familiar. É um irmão, um filho, uma prima, o cônjuge ou uma nora
que geralmente tem a preferência quando se precisa de mão de obra.
Aprendizado construído na prática, ou na observação da prática, é um
outro aspecto caracterizador dos feirantes. Este ponto é ilustrado pelos da-
dos apresentados na tabela 4 (um pouco mais adiante), pois a grande parte
dos feirantes aprende a fazer o que faz por meio de experiências familiares,
anteriores ou mesmo no trabalho atual.
O modo informal de tratamento tanto em relação aos trabalhadores do
negócio quanto em relação aos clientes, em particular no caso daqueles que
já o são há anos, é outro aspecto que perpassa o cotidiano de praticamente
todos os setores da feira.
Outro aspecto marcante é a diferenciação, que permanece implícita em
muitos casos, entre um feirante e um comerciante convencional. Parte dos
comerciantes hoje bem estabelecidos de Caruaru passou pela feira, ou seja,
ela pareceu ocupar durante muito tempo (e talvez ainda ocupe, porém em
menor proporção devido à maior dificuldade de se fazer essa trajetória de
ascensão socioeconômica) o espaço de via de ascensão econômica e social
(pensemos em termos do prestígio social inerente ao comerciante bem es-
tabelecido numa cidade que tem em suas origens o comércio e ainda hoje é
um polo comercial regional).

Feirantes - 59 -
Muitos dos que prosperam nos negócios na feira, porém não o suficiente
para se aventurarem fora dela (quer seja por insuficiência de capital ou pela
crença de que podem “se dar bem” por lá também), tentam dar ares de loja
ao seu negócio, como já foi comentado no capítulo anterior. Ao que parece,
a referência imediatamente superior na hierarquia social – que classifica os
indivíduos membros da sociedade na qual vivem – é o comerciante esta-
belecido fora da feira. É como um deles que muitos feirantes querem mais
parecer.
Por fim, uma última característica que nos foi apontada pelo próprio
José Carlos da Silva, feirante e então presidente do Sincovac, é a dificuldade
de reunião e de mobilização para iniciativas conjuntas dos feirantes. Para
ele, “eles não têm cultura de associativismo e buscam soluções individu-
ais para seus problemas”. A pouca iniciativa e a insuficiente ação política
e social conjunta deixam os feirantes à mercê das alternâncias e ações do
Estado (em particular da gestão municipal) e do Mercado, ao não desen-
volverem mecanismos de fortalecimento conjunto para enfrentar a disputa
concorrencial.

Quais feirantes?
Devido à limitação imposta pelo imenso número de feirantes que atua na
Feira de Caruaru, um recorte delimitador nesta população precisou ser re-
alizado. Foi a forma encontrada para viabilizar uma pesquisa exploratório-
-descritiva capaz de reunir dados estatísticos sobre um grupo (universo)
dentro do imenso quantitativo dos feirantes da Feira de Caruaru.
O critério “ramo de atuação” surgiu como uma possibilidade objetiva
para a delimitação desejada. Mas dentre os diversos ramos existentes na
feira (confecções, importados, utilitários, artesanato, carnes, farinha, miu-
dezas etc.), como selecionar um deles? Alguns outros critérios passaram,
então, a ser observados.
O primeiro deles foi a necessidade de o feirante ter em seu comércio
uma ocupação continuada durante a semana, ou seja, abrir o negócio dia-
riamente. Afinal, foi objetivo da pesquisa caracterizar pessoas que têm na
atividade sua ocupação econômica principal. Nesse sentido, fez-se necessá-

- 60 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


rio que tais pessoas trabalhassem diariamente na feira, algo diferente, por
exemplo, do fabricante de roupas que vai à feira da sulanca para vender
sua produção, ou mesmo do agricultor que no sábado vende seus produtos
agrícolas na feira livre de produtos agrícolas. Um segundo condicionante,
já relacionado ao ramo de negócio, foi a possibilidade objetiva de mapear
todos os feirantes atuantes nesse ramo que atendessem ao critério anterior.
A fácil identificação de uma barraca que comercializa alimentação, assim
como o fato de sua abertura ser diária, nos apoiou em tal sentido. O tercei-
ro aspecto observado, e que acabou por ser decisivo na escolha do ramo
alimentação, foi o fato de ser possível encontrar comerciantes desse ramo
por diversas regiões da feira. Ou seja, enquanto, por exemplo, os setores
de confecções, importados, utilitários ou artesanato estão situados em re-
giões específicas, o ramo da alimentação se espalha por entre estes setores
em polos ou mesmo em barracas isoladas, que servem alimentação tanto
aos que trabalham na feira quanto aos que nela fazem suas compras. Des-
se modo, não estaríamos limitados a um setor específico geograficamente
circunscrito. Esse é um critério que julgamos importante, pois como os se-
tores das feiras apresentam diferenças entre si, ao escolhermos um ramo
que perpassa as especificidades setoriais, podemos englobar realidades e
situações diferentes.
Os critérios acima apresentados nos levaram a delimitar o universo dessa
parte da pesquisa aos feirantes do ramo de alimentação. Do universo de
respondentes, 46,7% eram mulheres e 53,3% homens37.

Origem familiar
Apenas aproximadamente dois entre dez dos pais dos feirantes (20% dos
pais e 17,8% das mães) são nascidos em Caruaru (zona urbana), enquanto
cerca de sete entre dez (68,9% dos pais e 71,2% das mães) nasceram numa
outra cidade do interior do estado ou em zona rural38. As mães estuda-
ram, em média, pouco mais de um ano além dos pais (3,4 contra 2,2 anos),
mas são pequenos entre ambos o número dos que conseguiram completar

37 Cf. tabela 1 do Apêndice A Estatística. Todas as demais notas indicam tabelas que constam no
referido apêndice.
38 Cf. tabelas 2 e 5.

Feirantes - 61 -
o antigo primeiro grau (4,4%) ou ainda menos o segundo grau (2,2%)39.
Enquanto a maior parte dos pais dos feirantes tinha como atividade eco-
nômica a agricultura (42,7%), as mães eram principalmente donas de casa
(46,7%) ou então agricultoras (26,7%)40. Em síntese, em sua maioria os
feirantes são filhos de agricultores e donas de casa (ou agricultoras) que
nasceram e viveram num contexto rural-interiorano e que estudaram em
média três anos.
Aqui, gostaríamos de retomar de início algo apontado por Bourdieu
(1979): a diferença entre ter nascido e crescido numa sociedade na qual já
existe um conjunto de práticas – constituídas e compartilhadas ao longo de
curso histórico – condizentes com as demandas do mundo no qual se irá
viver e ter nascido num contexto no qual o conjunto de práticas “herdado” é
distinto daquele que será requisitado no cotidiano de vida e de concorrência
para se conseguir trabalho num mundo moderno. É também importante res-
saltar que se trata de questão para além da simples dicotomia entre primeiro
e terceiro mundo, uma vez que se trata de ter sua origem num espaço social
no qual as pessoas que nele vivem assimilaram (ou estão em processo de assi-
milação e, a depender do costume ou prática em questão, se apresentam mais
propensos ou não) as demandas requisitadas pelo capitalismo41.
Nesse tipo de estudo social, a origem familiar e o perfil dos pais são
aspectos de grande relevância para compreender como um indivíduo se
constituiu como tal desde sua infância. Para Lahire (2009), em grande me-
dida, “uma criança vê o mundo tal qual seus pais a ensinam a ver” e quanto
mais as situações nas quais ela viveu sob a influência destes se repetiram no
passado, mais esse modo de ver o mundo parece uma “segunda natureza”.
Assim, para compreender as ações dos indivíduos no presente, é também
preciso conhecer sua origem familiar e trajetória de vida. Ou seja, o estilo
de vida, as práticas cotidianas, a escolaridade, a atividade socioeconômica,
enfim, todos esses elementos tanto relacionados à família quanto aos pró-
prios feirantes nos são relevantes.

39 Cf. tabelas 3, 4, 6 e 7. Observação: o antigo primeiro grau hoje equivale ao ensino fundamental, já
o antigo segundo grau corresponde ao ensino médio.
40 Cf. tabelas 8 e 9.
41 E que não pode ser reduzida a uma diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas,
sim, entre tipos de sociedade que podem existir num e noutro. As pesquisas de Bourdieu (2006) na
região do Béarn (interior da França onde nasceu) servem também de exemplo nesse sentido.

- 62 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


Perfil dos entrevistados
A maior parte dos feirantes atuais, assim como seus genitores, nasceu numa
outra cidade do interior ou na zona rural (51%) – no entanto, atualmente ob-
servamos um número bem maior de feirantes que nasceram em Caruaru (o
dobro, 40% contra 20%, se comparados com seus pais)42. Como podemos ob-
servar na tabela 13, o percentual de analfabetismo é de 14,2% entre as feirantes
mulheres e inexistente entre os homens; em contrapartida, de todos os que
concluíram o antigo segundo grau, 16,7% são homens e somente 4,8% são
mulheres. No total, seis dentre dez dos feirantes não concluíram o antigo pri-
meiro grau, enquanto apenas 15,6% deles completaram-no. A média de anos
de estudos dos entrevistados foi de 7,1 anos43.

Tabela 13 Escolaridade dos(as) entrevistados(as) (%)


Proprietário(s) por
Gênero
Nível de escolaridade Feminino Masculino Total
Analfabeto(a)/Lê muito pouco/Só assina o
14,2 0,0 6,7
nome
1º Grau/Ensino Fundamental incompleto 61,9 58,2 60,0
1º Grau/Ensino Fundamental completo 14,3 16,7 15,6
2º Grau/Ensino Médio incompleto 4,8 4,2 4,4
2º Grau/Ensino Médio completo 4,8 16,7 11,1
Não souberam/quiseram responder 0,0 4,2 2,2

Entre os feirantes, 35,6% têm entre 35 e 44 anos e 28,9% entre 45 e 54. Ou


seja, a maioria (64,5%) está na faixa etária dos 35 a 54 anos44. São adultos que
podem até ter sido empregados por um período no passado, mas que muito
provavelmente hoje não encontrariam um emprego formal com o baixo nível
de escolaridade que apresentam.
Se ao percentual de casados, 66,6%, acrescentarmos o dos que responderam
“viver junto” (11,1%), temos um total de 77,7% dos feirantes com relaciona-
mentos estáveis contra apenas 8,9% de solteiros45.

42 Cf. tabela 16.


43 Cf. tabela 15.
44 Cf. tabela 17.
45 Cf. tabela 18.
Feirantes - 63 -
Dentre o público pesquisado encontramos um percentual significativo
de indivíduos que, aos moldes do que Bourdieu constatou na Argélia, nas-
ceram e cresceram num contexto familiar e social que se configurava de
determinado modo (rural-interiorano), filhos de pais agricultores que lá
viveram e tiveram pouco estudo, ou seja, são em sua maioria “filhos do
campo”, mas que hoje enfrentam uma realidade citadina que cobra pro-
pensões distintas das transmitidas por seus pais em seu contexto original
ou incorporadas por eles ao longo de sua trajetória de vida. Um exemplo:
o respeito à hierarquia funcional na organização de trabalho não familiar
é algo novo ao jovem que cresceu trabalhando na agricultura familiar. No
campo, geralmente, os jovens trabalham desde cedo com os pais e os obe-
decem antes de tudo devido ao fato de eles serem os “chefes da família”;
já numa empresa, muito provavelmente existirá uma hierarquia funcional
que precisará ser, em maior ou menor grau, incorporada pelo jovem que
cresceu no campo e nela chega para trabalhar. Cabe aos que vêm do campo
a ela se adaptar.
O fato de terem estudado pouco (em média aproximada sete anos con-
tra os três dos pais) é um outro dado que podemos analisar a partir da
condição de grande parte dos feirantes, “filhos do campo projetados para
a cidade”. Nesta, tanto a escola é uma instituição mais forte e até mesmo
fisicamente mais acessível, quanto no contexto urbano o estudo formal é
algo mais elementar à vida do que no rural. No entanto, mesmo sendo em
grande parte filhos da transição do campo à cidade, as condições de vida
no “cosmos” de origem dificultam a mudança (zona rural-interiorana, pais
com pouca escolaridade, trabalhores braçais que não incorporam em suas
práticas diárias conhecimentos formais obtidos na escola, aliás, como já
vimos, passaram muito pouco tempo por lá). O pai agricultor pode até re-
petir diariamente ao filho que estude, pois será bom para o seu futuro, mas,
se ele mesmo não o fez e não o faz, como a criança poderá fazê-lo, se não
encontra no seio da própria família uma referência cotidiana para as práti-
cas que lhe dizem ser necessárias?
Obviamente também existe uma questão geracional elementar nesse
ponto (de uma geração para outra, ao longo da história, a média de anos
de estudo tende a ser maior num país como o Brasil), entretanto, aqui ana-
lisamos que a diferença de cerca de quatro anos de uma média a outra é
também reflexo desta trajetória de vida que começa no campo e que segue o

- 64 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


destino da cidade. Lá, as cobranças por estudo são maiores tanto para obter
um “bom” emprego quanto pela coerção social que praticamente impõe
um esforço para a incorporação da disciplina escolar e sua frequência (“não
está estudando? Por quê?”). Outros dados nos apoiam nesse sentido afinal,
apesar de ter estudado mais anos que os pais, a maioria dos feirantes não
conseguiu concluir o antigo segundo grau. Ou não conseguiram incorporar
suficientemente a disciplina escolar necessária para a conclusão dos estu-
dos, ou então aspectos contextuais (a necessidade de priorizar o trabalho,
por exemplo) foram impeditivos ao êxito nos estudos.

Histórico recente de atividade econômica


Antes de se tornarem feirantes, muitos dos entrevistados tiveram alguma
atividade informal (40%), ou mesmo um emprego formal (31,1%). A dife-
rença entre homens (37,5%) e mulheres (23,8%) dentre os que tiveram um
emprego formal é outro dado importante da tabela 21.

Tabela 21: Atividade econômica anterior dos(as) entrevistados(as) (%)


Proprietário(s) por
Gênero
Atividade econômica anterior Feminino Masculino Total
Emprego formal 23,8 37,5 31,1
Outra atividade informal 42,9 37,5 40,0
Atividade comercial familiar 9,5 12,5 11,1
Atividade rural familiar 9,5 4,2 6,7
Outraa 14,3 8,3 11,1
Notaª: Desempregados(as) ou donas de casa.

Aos serem perguntados se haviam exercido uma penúltima atividade


econômica, o maior percentual dos entrevistados (24,4%) foi o dos que res-
ponderam ter tido outra atividade informal, enquanto apenas 13,3% res-
ponderam que tiveram um emprego formal46.
Duas comparações relacionadas ao desempenho de atividades econômi-
cas podem ser feitas entre os gêneros recuperando os extremos do quesito

46 Cf. tabela 23.

Feirantes - 65 -
escolaridade. O analfabetismo (14% nas mulheres e zero nos homens) e a
conclusão do antigo segundo grau (16,7% para os homens e 4,8% para as
mulheres) podem ser diretamente relacionados à diferença no percentual
de homens que tiveram atividades anteriores formais (37,5%) em relação
às mulheres (23,8%). Se um dos requisitos básicos exigidos ao ingresso no
mercado de trabalho contemporâneo é a escolaridade completa, aqueles
que não o atendem estão em desvantagem. Algo que acaba por apontar aos
desqualificados o caminho que lhes é possível, o da informalidade. A maio-
ria dos feirantes teve antes do seu comércio atual outra atividade informal
(40%) e, se somarmos esse quantitativo aos de atividades familiares comer-
ciais (11,1%) ou rurais (6,7%), chegaremos ao total de 57,8% de feirantes
que antes tiveram uma atividade não formal. Muito mais do que já ter tido
a carteira assinada ou não, o ingresso e a atuação, mesmo que temporária,
em empresas convencionais impõem ao indivíduo um conjunto de práti-
cas pertinentes a esse “cosmos” que lhes são originalmente estranhas (tur-
nos de trabalho com horários definidos, uniformização de procedimentos,
hierarquia não familiar etc.). Já ter-se inserido e trabalhado num sistema
produtivo empresarial moderno tem repercussões quando o indivíduo sai
desse âmbito e retorna às atividades que, como o comércio e o artesanato,
estão mais próximas de (e combinam mais com) sua origem campesina.

Formação e origem do conhecimento para


desempenho de atividade econômica
Mais de sete dentre dez dos comerciantes entrevistados não realizaram
qualquer tipo de curso profissional. Se somarmos aqueles que afirmaram
ter aprendido sozinhos a fazer o que fazem hoje (11,1%), por meio de ex-
periências familiares (20%), experiências anteriores (28,9%) ou mesmo no
trabalho atual (15,6%), teremos 75,6% dos feirantes que aprenderam na
prática ou observando a prática alheia, contra somente 8,9% que afirmaram
ter aprendido o que lhes é necessário para o desempenho de sua atividade
econômica atual em algum tipo de curso profissional (ver tabelas 26 e 27).

- 66 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


Tabela 26: Formação profissional (realização de cursos) por gênero (%)
Proprietário(s) por
Gênero
Cursos profissionalizantesa Feminino Masculino Total
Possui algum curso profissional 14,3% 37,5% 26,7%
Não possui curso profissional 81,0% 62,5% 71,1%
Não responderam 4,8% 0% 2,2%
Notaa: Considera-se o fato de o entrevistado possuir ou não qualquer curso profissionalizante.

Tabela 27: Origem do conhecimento para desempenhar a atual atividade econômica (%)
Proprietário(s) por
Gênero
Origem do conhecimento Feminino Masculino Total
Cursos 9,5 8,3 8,9
Experiência(s) com trabalho(s) atual(is) 9,5 20,8 15,6
Experiência(s) anterior(es) 19,0 37,5 28,9
Experiência(s) familiar(es) 28,6 12,5 20,0
Com outrosa 4,8 12,5 8,9
Sozinho 14,3 8,3 11,1
Crenças religiosas/dons 9,5 0,0 4,4
Não responderam/não souberam
4,8 0,0 2,2
responder
Nota : Amigos(as), companheiros(as), vizinhos(as), dentre outros não familiares.
a

O modo como aprenderam a desempenhar as atividades, ao longo de


suas trajetórias profissionais, é outro dado importante que caracteriza o
feirante como um tipo de indivíduo que tem nas experiências de vida sua
fonte principal de aprendizado (praticamente única em muitos casos) dos
conhecimentos aos quais recorre e utiliza em suas práticas. O nível de es-
colaridade e a origem familiar nos ajudam a observar que, em sua maioria,
os feirantes não possuem as disposições necessárias ao estudo escolástico
(seus pais estudaram e leem pouco, eles mesmos conseguiram até passar
alguns anos a mais na escola, mas em grande parte não conseguiram con-
cluí-la) e terminaram por aprender o que lhes é necessário de modo em-
pírico, observando os outros que fazem aquilo que precisam aprender, ou
mesmo na própria dinâmica cotidiana de trabalho. O percentual de 75,6%

Feirantes - 67 -
dos entrevistados que declaram ter aprendido a fazer o que fazem hoje por
meio da experiência é bastante significativo, em particular se comparado
aos 8,9% que apontam cursos como fonte do aprendizado que utilizam em
seu cotidiano.

Sobre a origem do negócio atual


Em média, há pouco mais de doze anos que os feirantes pesquisados
estão com negócios no ramo de alimentação na feira47. Um percentual sig-
nificativo deles (93,3%) não paga aluguel, pois possui o ponto que, em mais
da metade (55,6%) dos casos, foi comprado graças a economias próprias48.
Já 26,7% dos feirantes tiveram na família, por empréstimo (2,2%), doação
(6,7%) ou herança (17,8%), a fonte do capital necessário ao início do ne-
gócio.

Tabela 32: Origem do capital inicial (%)


Proprietário(s) por gênero
Origem do capital inicial Feminino Masculino Total
Empréstimo de microcrédito 4,8 4,2 4,4
Empréstimo familiar 4,8 0 2,2
Doação familiar 4,8 8,3 6,7
Herança familiar 19,0 16,7 17,8
Agiota 4,8 0 2,2
Economias próprias 52,4 58,3 55,6
Outra(s) 9,5 12,5 11,1

Dois direcionamentos analítico-explicativos podem ser dados aqui. Um


primeiro aponta para o fato de que, de algum modo, esses indivíduos hoje
feirantes conseguiram ao longo de suas atividades econômicas anteriores
reunir capital por meio de poupança (sistemática ou não) e assim puderam
investir suas economias próprias (55,6%) num negócio de feira. Somente
a incorporação dessa prática – como vimos em Bourdieu (1979), o pen-
samento e a ação da poupança são aspectos relacionados ao cosmos capi-

47 Cf. tabela 30.


48 Cf. tabela 31.

- 68 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


talista e não originalmente ao campesino – mesmo que por apenas certo
período de tempo, torna possível para a maioria dos feirantes a montagem
de um negócio próprio. Ou seja, se um indivíduo no mundo moderno não
incorpora a prática de poupança, lhe são reduzidas as possibilidades de vir
a ter um negócio que exija um mínimo de capital inicial.
O segundo direcionamento está voltado aos 26,7% dos feirantes que
tiveram na família o aporte financeiro necessário para iniciar o negócio.
A origem familiar do capital, quer seja por doação ou herança (24,5%),
necessário ao comércio no qual atuam hoje também pode ser comparada
ao que observou Bourdieu (1979) na Argélia: a tradição estimula e prati-
camente impõe a solidariedade e o auxílio mútuo por meio das relações
pessoais, afinal, acredita-se que quem alcançou sucesso deve se servir de
seu próprio êxito para ajudar aos outros, começando pelos membros da
própria família. O baixo percentual de empréstimo familiar (2,2%) também
nos permite apontar para uma tradição de solidariedade familiar que se
opõe, em termos relativos, à prática moderna de empréstimo a juros. “De
todas as instituições e técnicas econômicas introduzidas pela colonização, a
mais estranha à lógica da economia pré-capitalista é sem dúvida nenhuma
o crédito que supõe a referência a um futuro abstrato” (Bourdieu, 1979, p.
28). Afinal, se os ancestrais transmitiam práticas de aprovisionamento de
produtos agrícolas para os tempos de intempéries, o contexto moderniza-
do dissemina outras possibilidades relacionadas ao tempo e ao futuro por
meio de mecanismos como o crédito bancário – a ser obtido e devolvido
num futuro acrescido do valor correspondente aos juros calculados, algo
de difícil compreensão para quem foi socializado num contexto rural no
qual os empréstimos eram obtidos com parentes ou amigos mais próximos,
que não cobravam juros e esperavam o tempo necessário para que o deve-
dor reunisse condições de efetuar o pagamento da dívida.

Como administram seus negócios?


Após apresentar e analisar dados gerais sobre a origem familiar, trajetória
de vida e antecedentes relacionados à atividade econômica, faz-se necessá-
rio agora apresentarmos os dados relacionados ao modo como os feirantes
desempenham as atividades administrativas fundamentais aos seus negó-
cios. Para que o leitor tenha clareza do que pensamos quando utilizamos o

Feirantes - 69 -
termo administração, registramos que aqui é entendido como designador
do conjunto de atividades necessárias ao planejamento e funcionamento
cotidiano de um negócio. Ou seja, atividades que vão desde a escolha devi-
da do local no qual será aberto o negócio, definição dos horários de funcio-
namento, divisão e monitoramento das atividades a serem desempenhadas,
controle financeiro, decisões sobre compras a serem feitas, contas a serem
pagas, trabalhadores a serem contratados (ou não), implementação de me-
lhorias na estrutura do negócio etc. Usamos o termo neste sentido amplo
como sinônimo de “gestão”49.

Sobre o negócio e sua administração


Dentre o total do universo de feirantes pesquisados, 57,8% têm nos al-
moços (PFs)50 seu principal produto comercializado, enquanto que para
42,2% são os lanches. Cada feirante tem, trabalhando em sua barraca dia-
riamente, uma média de quase dois (1,71) trabalhadores, além dele pró-
prio. No entanto, esse número fica em apenas um, se desconsiderados os
trabalhadores pertencentes à família do proprietário. Nos dias de maiores
fluxos de pessoas no parque devido às grandes feiras, existe a necessidade
de contratação de trabalhadores temporários, que recebem por diária e que
na maioria dos casos já estão certos de vir trabalhar em tais dias. Neste
caso, a diferença entre a média de trabalhadores externos à família (1,45)
e os familiares (0,645) é maior do que no caso dos trabalhadores regulares
como vimos acima51.
Na realidade, aqui nos defrontamos com fenômeno idêntico ao que
Bourdieu (1979, p. 58-9, grifo nosso) observava na Argélia.

49 É claro que é preciso aqui fazer menção ao fato de que o termo precisa ser contextualizado. Esse
tipo de prática administrativa da qual aqui falamos é diferente do que geralmente é lido e discutido nos
círculos e principais livros da área voltados para a gestão de empresas formalmente constituídas. Trata-
se de um contexto que pede abordagem específica ao fenômeno administrativo, mas que, do mesmo
modo, não pode ser tido como algo com o qual o conhecimento em administração não possa ou deva
ser confrontado.
50 “Pratos feitos”, geralmente compostos de um tipo de feijão, arroz, macarrão, verduras e um tipo de
carne.
51 Cf. tabelas 33, 34, 35.

- 70 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


No setor tradicional, em especial no artesanato e no comér-
cio, antigos procedimentos de recrutamento se perpetuam,
especialmente nas pequenas empresas familiares. Além de
todos aqueles que herdaram sua loja ou sua oficina, muitos
artesãos e comerciantes administram uma empresa cujo pro-
prietário é um parente; outros não puderam instalar-se por
conta própria senão graças à ajuda financeira de um parente
ou de um amigo. Em resumo, o setor tradicional permite
àqueles que não têm bagagem cultural alguma, nem ba-
gagem técnica, contornarem as barreiras que colocariam
como obstáculo regras racionais ou semi-racionais de se-
leção.

Por não apresentarem características que atendam suficientemente aos


requisitos para a ocupação de postos em estruturas produtivas empresa-
riais modernas, atividades como o artesanato e o comércio são alternativas
viáveis para aqueles que não conseguem emprego, ou mesmo, têm uma
condição precária no mercado de trabalho (não dispõem de competências
específicas) e, devido a isso, mesmo quando empregados, estão em risco de,
caso percam aquele emprego, não conseguir outro e assim ter na feira seu
destino. Esse aspecto não observado da separação entre família e negócios,
apontado como característica original e essencial ao capitalismo moderno
por Weber (2006), é um elemento que liga, como apontou Bourdieu (1979),
o comerciante de feira ao agricultor que trabalhava em família.

Definição de atividades a serem desempenhadas


Em média, a definição de atividades e funções a serem desempenhadas
apresenta frequências próximas entre as opções, funções definidas total-
mente (28,9%), funções definidas parcialmente (35,6%) e funções não de-
finidas (26,7%). Mas é possível observar duas diferenças entre as mulheres,
que em maior frequência têm as funções definidas totalmente (33,3% con-
tra 25%) e também apresentam um menor percentual quanto à não defini-
ção das funções (19% contra 33,3% dos homens).

Feirantes - 71 -
Tabela 40: Definição das atividades a serem desempenhadas (%)
Proprietário(s) por gênero
Definição das atividades Feminino Masculino Total
Funções definidas totalmente 33,3 25,0 28,9
Funções definidas parcialmente 33,3 37,5 35,6
Funções não definidas 19,0 33,3 26,7
De acordo com o movimento 9,5 4,2 6,7
Outros 0,0 4,2 2,2

Se, de um lado, quando pensamos em atividades comerciais realizadas


de modo tradicional imaginamos que as funções a elas necessárias sejam
desempenhadas de modo indefinido, de outro, quando pensamos numa
empresa e em seu processo produtivo, podemos imaginar uma grande fá-
brica com uma série de atividades definidas previamente a serem desem-
penhadas. Entre esses dois extremos, um sem-número de possibilidades. O
comércio de feira se mostra também uma delas. Neste, como podemos ver
na tabela 40, as funções a serem desempenhadas são em sua maioria defi-
nidas apenas parcialmente (35,6%); entretanto, as duas outras alternativas
também se fizeram presentes em percentuais próximos, 26,7% para funções
não definidas e 28,9% para funções definidas totalmente. A própria condi-
ção do feirante entre dois “cosmos” também aqui nos apoia a pensar que,
tendo em sua trajetória de vida referências e experiências distintas em re-
lação ao modo de organização de atividades produtivas (o pai no trabalho
agrícola e o chefe numa empresa, por exemplo), ele tende a misturá-las em
suas práticas, assim procedendo na administração do seu negócio.

Última melhoria no negócio


Fazia em média pouco mais de dois anos (2,23) que os feirantes tinham
feito uma última melhoria em seus negócios52. Como podemos ver na ta-
bela 7, na maior parte dos casos (37,8%), tal melhoria foi uma reforma ou
pintura do estabelecimento. A última melhoria apontada por 24,4% dos fei-
rantes entrevistados foi a compra de um equipamento utilitário ao negócio
(geladeira, freezer, fogão etc.), e 6,7% deles declararam ter sido a compra de

52 Cf. tabela 41.

- 72 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


algum equipamento de entretenimento (TV, DVD, som etc.). Apenas 4,4%
apontaram ter feito alguma melhoria nos serviços prestados.

Tabela 42: Última melhoria no negócio (%)


Proprietário(s) por
Gênero
Última melhoria no negócio Feminino Masculino Total
Equipamento(s) de entretenimento (TV,
0,0 12,5 6,7
DVD, som etc.)
Equipamento(s) utilitário(s) para o
19,0 29,2 24,4
negócio (eletrodomésticos etc.)
Reforma(s)/Pintura(s) 38,1 37,5 37,8
Melhoria(s) no(s) serviço(s) 0,0 8,3 4,4
Outros 19,0 4,2 11,1
Não fez mudança alguma 4,8 8,3 6,7
Não responderam/não souberam
19,0 0,0 8,9
responder

Um aspecto importante de ser observado aqui é o fato de que o comér-


cio de feira é praticamente uma segunda casa do feirante. Lá trabalha com
familiares e passa boa parte do dia, seu aspecto físico é um elemento fun-
damental. O próprio contexto de feira também não cobra dos feirantes me-
lhorias nos serviços (inovações no cardápio, por exemplo). Nas barracas
que oferecem almoço, as opções são praticamente as mesmas e seguem a
tradição da culinária regional.

Questões financeiras
Mais de seis feirantes entre dez (62,2%) fazem “de cabeça” o acompanha-
mento da movimentação financeira do negócio. Enquanto isso, o percentu-
al de feirantes que fazem acompanhamento por escrito não passa de 13,3%.

Tabela 43: Registro financeiro (%)

Feirantes - 73 -
Proprietário(s) por gênero
Registro Financeiro Feminino Masculino Total
De cabeça 57,1 66,7 62,2
Por escrito (caderneta) 14,3 12,5 13,3
Através de pedidos 19,0 0,0 8,9
Através do dinheiro em caixaa 4,8 12,5 8,9
Outro(s)b 4,8 8,3 6,7
Notaa : Refere-se ao saldo em dia, receitas menos despesas. Notab: Em alguma conta bancária (corrente
ou poupança).

Mas quando perguntados sobre a receita semanal do negócio, a resposta


mais frequente foi “não sabe estimar” (26,7%)53. A maior parte dos feirantes
também não faz conta de quanto lucrou (35,6%), mas 22,2% deles dizem
fazer uma contagem semanal. Seis dentre dez feirantes conseguem estimar
o lucro mensal do seu negócio, dois entre dez dizem ganhar com o negócio
entre um e dois salários mínimos54, enquanto que 15,6% afirmam ganhar
entre dois e três salários.

Tabela 51: Mensuração do lucro periódico (%)


Proprietário(s) por gênero
Mensuração Feminino Masculino Total
Contagem diária 19,0 8,3 13,3
Contagem semanal 19,0 25,0 22,2
Contagem mensal 14,3 12,5 13,3
Não conta com regularidade 23,8 8,3 15,6
Não faz contas de quanto lucrou 23,8 45,8 35,6

Já em relação às despesas mensais, como as contas de água e energia,


principais custos fixos do negócio, 48,9 % dos feirantes gastavam menos de
R$ 250,00 por mês com tais custos, 33,3 % gastavam entre R$ 251,00 e R$
500,00.

53 Cf. tabela 44.


54 Salário mínimo vigente na época da aplicação dos questionários: R$ 465,00.

- 74 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


Tabela 47: Despesa com custos fixos mensais (%)
Proprietário(s) por gênero
Custo mensal Feminino Masculino Total
Menos de R$ 250,00 42,9 54,2 48,9
R$ 251,00 - R$ 500,00 33,3 33,3 33,3
R$ 501,00 - R$ 750,00 14,3 4,2 8,9
R$ 751,00 - R$ 1.000,00 9,5 0,0 4,4
R$ 1.001,00 - R$ 1.500,00 0,0 8,3 4,4
Notaª: Custos considerados ao tipo de negócio: aluguel (caso tenha), impostos, energia e
água.

Já os custos variáveis, que englobam os custos de produção, materiais


de limpeza e insumos, foram levantados em termos semanais e podem ser
vistos na tabela abaixo.

Tabela 48: Despesa com custos variáveis semanais (%)


Proprietário(s) por
gênero
Custo semanal Feminino Masculino Total
Menos de R$ 100,00 4,8 8,3 6,7
R$ 101,00 - R$ 200,00 4,8 4,2 4,4
R$ 201,00 - R$ 300,00 4,8 8,3 6,7
R$ 301,00 - R$ 400,00 9,5 4,2 6,7
R$ 401,00 - R$ 500,00 4,8 8,3 6,7
R$ 501,00 - R$ 600,00 9,5 8,3 8,9
Mais de R$ 601,00 38,1 29,2 33,3
Não soube estimar 23,8 29,2 26,7
Notaª: Os custos variáveis correspondem aos de produção, materiais de limpeza e insumos.

Dois aspectos aqui são importantes de serem analisados. O primeiro


relaciona-se ao fato de a ampla maioria (62,2%) dos feirantes fazer suas
contas de cabeça, contra 13,3% que o fazem por escrito, 8,9% que o fazem
por meio dos pedidos registrados e os 8,9% que o fazem por meio de conta-
bilidade básica – receita menos despesas – diária, conforme visto na tabela
8. Faz-se necessário, mais uma vez, recorrer ao trabalho de Pierre Bourdieu
(1979, p. 85):

Feirantes - 75 -
perpetuando muitas vezes no mundo urbano atitudes rurais,
os comerciantes estão geralmente pouco propensos para ra-
cionalizar sua empresa: a maioria deles, iletrados, ignora a
contabilidade em partida dupla e a distinção entre o orça-
mento familiar e o orçamento da empresa e confunde muitas
vezes entradas e benefícios; passa-se por transições infinite-
simais do pequeno comércio como simples ocupação ao co-
mércio realmente lucrativo.

Por ser exemplar em seu caráter calculável e possibilitar precisão na ad-


ministração financeira dos empreendimentos, a contabilidade racional é
apontada por Weber (2006) como a “precondição mais geral” para a con-
solidação do capitalismo moderno, podendo ser observada não somente
como um procedimento técnico de controle financeiro, mas também como
símbolo da racionalização necessária aos empreendimentos nesse contex-
to. Ao não atenderem a tal requisito, em grande parte, por apresentarem
pouco tempo médio de escolaridade, os feirantes desenvolvem atividades
mercantis por meio de práticas não tão efetivas se observadas a partir do
“cosmos de racionalização” inerente ao capitalismo moderno (tal qual visto
por Weber).
O segundo aspecto está relacionado tanto à periodicidade da mensura-
ção do lucro, afinal, apesar de o maior percentual dentre os respondentes
(35,6%) ter afirmado que não faz as contas de quanto lucrou, 22,2% afirma-
ram fazer contagem semanal (contra 13,3% mensal e 13,3% diária, confor-
me vimos na tabela 9), quanto ao próximo tópico.

Pagamento aos trabalhadores


O pagamento aos trabalhadores é geralmente feito por semana (46,7%),
uma vez que a temporalidade desses negócios está vinculada ao ciclo das
feiras (que é semanal) e não à periodicidade mensal do ciclo dos negócios
formais). As despesas semanais com mão de obra eram, em quatro dentre
dez barracas, menores que R$ 200,0055.

55 Cf. tabela 46.

- 76 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


Tabela 45: Regularidade de pagamento dos funcionários (%)
Proprietário(s) por Gênero
Regularidade Feminino Masculino Total
Diária 14,3 12,5 13,3
Semanal 61,9 33,3 46,7
Mensal 4,8 4,2 4,4
Não responderam 19,0 50,0 35,6

O futuro do negócio
Mais de 60% dos feirantes pensam em expandir o seu negócio56. Algo
contraditório se observado o percentual de feirantes, apenas 17,8%, que
dizem poupar mais de cem reais por mês em comparação aos 64,4% que
afirmaram não poupar nada57. Mas ao elencarem de que modo pretendem
fazê-lo, com maior frequência pensam em reformar a barraca (20%), mu-
dar de negócio (15,6%). Ou seja, não apresentam nem planos estruturados
nem ações necessárias para tal.
Num contexto como o de feira, tanto o modo como as pessoas se relacio-
nam com o tempo quanto as projeções em direção ao futuro são aspectos
da adaptação a uma ordem econômica e social, qualquer que ela seja, que
supõe um conjunto de conhecimentos transmitidos pela educação difundi-
da ou específica, ciências práticas solidárias a um ethos que permitem agir
com razoáveis probabilidades de sucesso. É dessa forma que a adaptação
a uma organização econômica e social tendendo a assegurar a previsão e o
cálculo exige uma disposição determinada em relação ao tempo e, mais pre-
cisamente em relação ao futuro, quando é verdade que nada é mais estranho
à economia pré-capitalista do que a representação do futuro como campo
de possíveis que pertence ao cálculo explorar e dominar (Bourdieu, 1979,
p. 18-21).
Numa sociedade de mercado, a ideologia vigente é a do crescimento, da
expansão dos negócios. No entanto, como pode ser visto na tabela 57, en-
quanto apenas 8,9% declararam querer ampliar os negócios, 37,8% dos fei-
rantes afirmaram que não pretendem fazer mudanças em seus negócios. Ao

56 Cf. tabela 56.


57 Cf. tabela 53.

Feirantes - 77 -
que nos parece, uma visão de mundo conservadora, ao menos em termos de
negócios, ainda se faz bastante presente numa realidade periférica como esta.

Tabela 57: Expansão do negócio gênero (%)


Proprietário(s) por gênero
Expansão do Negócio Feminino Masculino Total
Mudar de negócio 14,3 16,7 15,6
Ampliar o negócio 9,5 8,3 8,9
Abrir outro ponto 0,0 8,3 4,4
Comprar equipamento(s)a 4,8 0,0 2,2
Reformar a barraca 19,0 20,8 20,0
Melhorar os serviçosb (cardápio) 4,8 8,3 6,7
Outros 0,0 8,3 4,4
Não pretendem fazer mudanças 47,6 29,2 37,8
Notaa: Voltados para o desenvolvimento do negócio. Notab: Serviços como melhoria na ofer-
ta (cardápio), atendimento ao cliente, controle financeiro etc.

Quando os feirantes foram perguntados sobre políticas públicas que po-


deriam melhorar seu negócio, 31,1% apontaram a oferta de empréstimo e/
ou maior acesso ao crédito e 20% indicaram a melhoria da organização da
feira e do turismo.

Tabela 59: Sugestões políticas para melhoria do negócio (%)


Proprietário(s) por gênero
Sugestões Feminino Masculino Total
Reduzir impostosa 14,3 8,3 11,1
Empréstimosb 19,0 41,7 31,1
Melhorias no turismoc 28,6 12,5 20,0
Não acreditam no governod 19,0 12,5 15,6
Não responderam/souberam responder 14,3 12,5 13,3
Outrose 4,8 12,5 8,9
Nota: Consideram-se os governos municipal, estadual e federal. Notaa: Principalmente os
impostos referentes ao funcionamento legal da barraca. Notab: Aumento do acesso ao cré-
dito ou microcrédito. Notac: Melhorias na organização da feira e atrativos turísticos. Notad:
Não acreditam em nenhuma hipótese de interferência(s) governamental(is) sobre o negó-
cio. Notae: Interferências ou melhorias indiretas ao negócio: melhorias sociais, aumento da
empregabilidade, moradias populares, melhorias na educação e policiamento (segurança)
da cidade.

- 78 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


Considerações finais do capítulo
A condição de vida dupla (moderna e tradicional) do feirante pode ser
observada ao longo dos dados que apresentamos neste capítulo. Apesar de
a feira ser observada como um tipo de mercado periférico inerente ao ca-
pitalismo contemporâneo por uma série de aspectos constitutivos de am-
bos, dados como os aqui apresentados e analisados mostram a importância
de compreender aqueles que a fazem, seus feirantes, como indivíduos que
apresentam tanto práticas tradicionais (por exemplo, contar lucro de cabe-
ça) quanto modernas (por exemplo, funções definidas previamente).
O modo como os feirantes administram seus negócios ilustra o drama
periférico vigente ainda hoje para grande parte da população mundial, ou
seja, o confronto entre ter vindo ao mundo configurado de determinado
modo e ser projetado para um “outro” com distinta configuração e noção
de temporalidade.
O exemplo abaixo dos procedimentos adotados pelos camponeses arge-
linos em relação ao trigo excedente ilustra essa mudança na relação com o
tempo, com o futuro e o modo como as práticas costumeiras são modifica-
das à medida que a moeda se insere de forma determinante no cotidiano.

Os cabilas guardam o trigo ou a cevada em grandes jarras


de barro furadas a diversos níveis de altura, e a boa dona de
casa, responsável pela gestão das reservas, sabe que quando o
nível do trigo está abaixo do furo central chamado de thimit,
o umbigo, é preciso controlar o consumo: o cálculo, como se
vê, é feito por si só, e a jarra é como uma ampulheta que per-
mite perceber a cada instante o que não existe e o que resta.
(Bourdieu, 1979, p. 27).

A possibilidade de trocar o excedente que outrora ficaria armazenado


– e que era monitorado por determinado tipo de cálculo – por dinheiro, e
fazer uso deste do modo como lhe aprouver, cobra do camponês e de seus
descendentes o desenvolvimento de habilidade para outro tipo de cálculo
(O que e quanto é possível comprar? O que é prioridade? Como adminis-
trar o dinheiro recebido por um mês de trabalho durante o mesmo período

Feirantes - 79 -
de tempo?) que sua realidade de origem não lhe propiciou, administrar
as possibilidades e limitações imbricadas ao uso do dinheiro. Ou seja, ao
final deste capítulo, por mais que práticas tradicionais se façam presentes
no cotidiano dos feirantes, não se pode deixar de constatar que, cada vez
mais, o cosmos do capitalismo moderno se impõe ao contexto de mercado
no qual atuam.

- 80 - Feirantes: quem são? Como administram seus negócios?


CAPítulo 3
A HISTÓRIA DE JUSTINO:
“eu sou um cara teimoso demais”
“Diga moço, vai almoçar?”58 Foi assim que conhecemos Justino, oferecendo
pratos feitos (PFs) aos transeuntes num dos corredores ao ar livre da Feira
de Caruaru. Passávamos por entre as mesas que ele lá espalha de segunda
a sábado. Servir PFs foi atividade cotidiana durante muitos anos da vida-
-trabalho de Justino.
Mas de onde ele veio? Qual é sua história de vida? De que forma e em
que medida incorporou (ou não) as disposições demandadas pelo mundo
moderno? Como vê o mundo? Quais contradições apresenta em suas falas
e ações? Qual é o cotidiano de seus negócios? É justamente pensando em
responder essas questões que contaremos a história de vida desse feirante e
depois explicaremos seus porquês.
Nascido numa pequena cidade também do Agreste pernambucano,
quando criança, ele e seus quatro irmãos eram colocados em cima de bur-
ros e assim acompanhavam os pais, agricultores-comerciantes, numa roti-
na dividida entre o sítio e a feira da cidade (onde vendiam os produtos da
agricultura). Desde aquele tempo, sua vida foi muito sofrida. Ainda me-

58 Todas as citações de falas de Justino e de outros personagens que surgem ao longo de sua história
estão grafadas em itálico e foram levemente ajustadas da linguagem oral para a escrita.

Feirantes - 83 -
nino, já ajudava o pai na roça a fazer ração para gado, tirar leite de vaca,
colher frutas.
Seus pais nunca foram à escola. O pai era responsável pelas decisões so-
bre o dinheiro, as compras, enfim, quase tudo da família. A mãe sempre
aceitou o que o pai quis, nunca brigaram. Deles recebeu uma grande lição:
nunca pegar as coisas dos outros, não roubar.
Foi aos seis anos que começou os estudos no sítio. Depois de três anos,
foi para a escola da cidade. Muito embora fosse incentivado pelos pais a
seguir nos estudos, a rotina diária de trabalho na roça, ir para a cidade, as-
sistir a aulas até as dez horas da noite e depois voltar andando para o sítio,
“era difícil pra caramba”59, era também muito desestimulante.
Não foi bom aluno. Não se comportava direito. Procurava confusão.
Certa vez brigou com um colega num desfile de Sete de Setembro somente
porque ele estava na frente da fila, “todo mundo olhava logo pra ele. Quando
chegou em frente ao palanque, tava todo mundo, prefeito, vereador, governa-
dor do estado, tinha muita gente, tá entendendo? Quando chegou lá eu disse
‘esse cara não é mais do que eu não’ e quebrei ele no pau!” Mas nas avaliações
se saía bem, “nas provas eu era inteligente pra caramba”. Quando os exames
se aproximavam, se dedicava um pouco mais e pronto, tirava boas notas.
Como a situação de trabalhar na roça do sítio durante o dia e estudar
na cidade à noite era muito difícil, pensou: “eu vou parar o estudo e vou
embora!”

São Paulo
Aos 16 anos, impressionado com a imagem dos seus conterrâneos que
retornavam da metrópole paulista, largou o sítio, os estudos e se foi.

– O que foi que te bateu e que te levou lá pra São Paulo?


– Era aquele tal negócio, tá entendendo? Naquela época, em

59 No entanto, sua esposa irá, num determinado momento de uma das entrevistas, dizer que “ele não
estudou porque não quis mesmo”, e cita a irmã mais nova dele como exemplo que, morando no mesmo
sítio e tendo que ir para a cidade estudar, conseguiu se formar e até ensinar o pouco que os pais hoje
sabem ler.

- 84 - A História de Justino
1982, era aquele tal negócio, você ia para São Paulo era uma
coisa, se você passar seis meses no São Paulo, você quando
chegava aqui era diferente. Eu aqui olhava pra você de uma
maneira diferente, de uma forma diferente. Olhava pra você,
você tava com uma pele limpa, mais novo, mais bonito, tinha
o real no bolso, né? E eu aqui não, aqui tava trabalhando na
agricultura, queimado do sol, sem dinheiro e cada ano que
passava mais o cara andava mais mal-acabado, né não? Aí
eu via você chegar nesse procedimento, nessa situação, eu digo
não, eu vou embora pra lá também né. Se ele se deu bem lá, eu
vou me dar bem também. E foi assim que deu a loucura e eu
digo ‘eu vou embora’. Coloquei o endereço de um tio meu no
bolso, comprei passagem e fui embora. Fiquei lá 21 anos.

Foi o primeiro da família a fazê-lo. Lá morou com o tio e depois com


um primo. Chegou num domingo e quando foi na segunda já trabalhava
com esse tio como ajudante de cozinha. Passou um tempo no ramo de res-
taurante, depois foi para o de segurança, “fui desenrolando”. Justino explica
como funcionavam as coisas por lá, “em São Paulo é o seguinte, você não
tem parente, né? Por mais amigo que você seja, por mais irmão que você seja,
o camarada tem que trabalhar. Lá o camarada dá comida ao cara duas vezes,
três vezes não”.
Justino enche a boca para dizer que trabalhou em todo tipo de empresa
por lá. Nessas empresas, diz cheio de si, pessoas com diploma universitário
não arranjam emprego com facilidade. A experiência de vida-trabalho em
São Paulo é sempre mencionada com orgulho, como um grande troféu que
carrega consigo, afinal, “eu, por ser analfabeto [ele assim se considera por
só ter estudado até a sétima série], nasci no sítio, no meio do mato, fazer que
nem o outro: numa cama de capim. Fui pra São Paulo de menor, cheguei lá e
me desenrolei”. E lá teve várias ocupações, em diversos ramos...

Trabalhei uns meses de ajudante de cozinha. Aí fui desenro-


lando. Depois fiquei no ramo de restaurante, entrei no ramo
de segurança, trabalhei em carro-forte, trabalhei em banco,
trabalhei em firma de patrimonial...
trabalhei em grandes empresas, trabalhei no aeroporto, traba-

Feirantes - 85 -
lhei na Telesp, trabalhei em metalúrgica grande... Trabalhei em
grandes restaurantes, trabalhei de garçom, trabalhei de cozi-
nheiro, trabalhei de lancheiro, trabalhei de lavador de prato,
passei pano em salão, sabe? Trabalhei em tudo! Tomei conta
de churrascaria, fui gerente, tá entendendo? Aí foi onde eu
aprendi muita coisa, né?...

Talvez esse grande aprendizado tenha começado por algo aparentemente


simples, mas de extrema importância: poder ocupar um posto de traba-
lho no mundo moderno, obedecer à hierarquia no trabalho. Nos primeiros
meses, foi muito difícil para ele ser mandado, ter que “engolir seco” recla-
mações. Tanto que, depois de seis meses, pensou em ir embora, voltar para
casa. Trabalhava como lavador de pratos, estava lá diante da pia, o chefe
empurrando pratos e mais pratos, ele falou então: “Caramba eu não nasci
pra isso não!” Olhou para o chefe, para os pratos, para a água caindo da tor-
neira, começou a chorar e disse “eu vou embora daqui, isso não é pra mim
não.” Mas não foi, resistiu. Foi cerca de um ano o tempo que levou para se
adaptar a receber e cumprir ordens, entrar no funcionamento do sistema.
Foi com muita teimosia e determinação que Justino conseguiu aprender
e ascender alguns poucos possíveis “degraus” no mundo do trabalho pau-
listano. Uma experiência que viveu num restaurante, também como lava-
dor de pratos, é marcante nesse sentido.
Era um restaurante industrial, tinha panelas tão grandes que ele tinha
que entrar dentro para poder lavá-las. Tinha também um fogão imenso,
“com mais de vinte bocas”. Justino vivia louco para pegar no fogão, tornar-se
cozinheiro, mas toda vez que chegava perto do fogão, o cozinheiro-chefe
dizia “ó, teu lugar é lá na pia”. Mas Justino era teimoso, aliás, sempre foi
muito teimoso. Não desistia.
Certo dia, o cozinheiro-chefe ordenou que ele pegasse uma travessa de
inox. Detalhe importante, o cozinheiro tinha acabado de tirá-la do forno
– mas propositalmente não avisou a Justino que a travessa ainda estava em
alta temperatura. Quando o pobre a pegou:

a minha mão ficou colada com ela, ficou lá, ficou shshshshshshs,
parecia um bife na chapa. Ele olhou pra mim e disse ‘tá dan-
do choque?’ Me lembro como se fosse hoje, acontecendo hoje,

- 86 - A História de Justino
agora. Aí eu disse ‘não’... o coro da mão tinha ficado, tá enten-
dendo? Aí eu continuei lavando os pratos com aquela mão toda
queimada... o couro caindo e ele olhou pra mim e disse ‘você
não desiste’, eu disse ‘eu não desisto não, não sou de desistir
não’. Aí um dia a gente foi almoçar junto, ele disse: ‘você é atei-
moso demais’, eu disse ‘sou. Tem duas coisas na minha vida
que eu sou muito: é ignorante e ateimoso’.

Depois desse episódio, o cozinheiro resolveu ensiná-lo. Quando o se-


gundo cozinheiro adoeceu, Justino foi para o fogão e lá ficou trabalhando
com o cozinheiro-chefe por dois anos. Quando ele tirou férias, “eu segurei o
lado dele, ele foi embora pras férias e eu fiquei como cozinheiro lá e trabalhei
muito tempo”.
Mas, sem dúvida, o grande drama vivido por lá foi a fome. Já depois de
alguns anos de São Paulo, ele estava desempregado e muito doente – em
decorrência de ter trabalhado em contato com um produto químico60. Essa
experiência foi a mais marcante de sua vida. Levou-o a pensar sobre o que
estava fazendo ali, que tristeza era aquela, porque saiu de sua terra para vir
parar naquele lugar. E o pior de tudo, estava sem dinheiro para voltar. Foi
então que pediu forças para Deus.

60 “Foi o seguinte, eu trabalhava numa empresa com uma tal de Seladora, já ouviu falar? Seladora é um
produto [...] que eu não me dava com aquilo, tá entendendo? Eu fiquei amarelo da cor de merda de angu,
amarelo mesmo, cara, caiu uma fraqueza em mim da porra, tá entendendo? Amarelo, doente, aí eu fui no
médico, aí o médico chegou, disse: –“Olha eu lhe dou 90 dias pra você viver, você trabalha com que?” –“Eu
trabalho assim, assim, assim...” Ele disse assim: –“Você vai morrer se continuar trabalhando!” A empresa
do cara era pequenininha, aí que cheguei pro cara e falei o seguinte, expliquei a situação, ele disse só tem
um jeito: –“Você pede as contas”. Aí eu disse: -“Entre a morte e as contas, vou pedir logo as contas, né? Aí
pedi as contas, recebi aquele merrequinha... Eu fui no médico, comprei os remédios, cabou-se o dinheiro. Aí
eu fiquei desempregado, doente e... Acumulou aluguel em cima de aluguel, não tinha dinheiro pra comprar
as coisas de dentro de casa pra poder comer e foi onde eu entrei numa... E agora? Ninguém queria me dar
emprego, não tinha emprego, quem sabe de São Paulo naquela época sabe, era um desemprego triste. Aí eu
disse: –“Porra e agora o que é eu vou fazer?” Saía de manhã, saía cinco horas da manhã, chegava quase
cinco horas da tarde e não arrumava. Aí foi onde eu desci na Angélica, Avenida Angélica, quem conhece
São Paulo sabe onde é, um faxineiro cinco horas da tarde tava botando o lixo do prédio, tinha aquele ces-
tão assim, quando ele jogou o cestão, caiu dois pão. Eu peguei os pão botei dentro da, debaixo da jaqueta
assim, era um frio da porra naquela época, aí cheguei em casa comi aqueles pão com água da torneira. Aí
foi aonde eu disse agora foi o fim da picada mesmo.”

Feirantes - 87 -
Eu cheguei aí e pensei assim: ‘Meu Deus, se você existe me aju-
de agora porque senão eu vou pra uma pior!’ Você andava os
setes dias da semana atrás de um emprego, você não encontra-
va nem pra barrer a rua. E eu cheguei numa situação que eu
nem tinha emprego, nem tinha dinheiro, nem tinha o que co-
mer, doente. E eu cheguei no pé da cama, me ajoelhei e pedi pra
Ele... Olha, o final de carreira foi aonde eu falei ajoelhado no
pé da cama: ‘Minha Nossa Senhora! Ou você me arruma um
emprego ou um jeito de eu viver, ou eu vou roubar pra comer’.
[...] Tive tanta fé, quando foi no outro dia aí eu arrumei em-
prego. Pra você ver, eu cheguei pra um cara no restaurante e
disse: - ‘Olha, me arrume um emprego que eu tô numa situa-
ção difícil!’ Ele olhou pra mim e disse que não tava precisando
de ninguém não, eu falei: - ‘Eu trabalho pra você só pela co-
mida!’ Nessa mesma hora, eu entrei pra cozinha e fui traba-
lhar. Quando chegou o final do mês, eu tava trabalhando pela
comida, aí todos funcionário recebeu e eu sem receber, claro
que eu tinha entrado lá pra trabalhar pela comida. Aí ele me
chamou e disse: -‘Tá aqui o seu salário!’ E eu trabalhei pra ele
por dois anos. Só sabe eu o que passei...

Neste momento Justino chorou, “foi um momento muito difícil da vida


que eu passei cara, difícil mesmo...”. Mas na época, não ligou para os pais,
não contou nada para eles. Teve vergonha de compartilhar seu drama.
Algum tempo depois, se restabeleceu e veio a sua cidade natal buscar
seus dois irmãos. Um deles ainda hoje continua lá trabalhando como taxis-
ta, tem um ponto, um bom carro e casa própria, “tá bem”. O outro voltou
para sua terra natal para trabalhar como pedreiro, por conta própria.
Só depois de seis anos foi que ele começou a realmente ganhar dinheiro.
Mas como não estava acostumado a ter “tanto” dinheiro, partiu para as far-
ras, começou a comprar roupas de grife, ir para o trabalho de táxi, enfim,
esbanjou. Trocava de emprego sempre que surgia uma proposta financeira-
mente melhor, sem ponderar o bastante sobre outros aspectos importantes
numa decisão como essa (estabilidade, aprendizado, futuro a médio e longo
prazo etc.), até que conseguiu um que, para ele, foi o seu melhor...

- 88 - A História de Justino
Aí eu venci cara! Aí eu cresci, aí eu cresci, entendeu? Aí traba-
lhando no restaurante, trabalhando de segurança, vigilante, fui
trabalhar no X e melhorou mil por cento. Aí o dinheiro vinha
a fole, dinheiro vinha a fole. Aí eu não soube administrar o
dinheiro. Em 1989, eu consegui juntar 42 contos, 42 mil. Dava
pra eu comprar 3 churrascarias grandes em Caruaru naquela
época.

O problema era que além do que ganhava com o bom cargo, Justino re-
cebia propina. Recebia um “por fora” num esquema montado para burlar
as regras. “Eu era encarregado geral lá dentro, eu ganhava bem, cara, eu ga-
nhava bem. Mas dinheiro que entra fácil sai fácil, tá entendendo?” Veio então
uma mudança de direção e foi demitido.
Mesmo muitos anos depois de estar vivendo-trabalhando em São Paulo,
Justino apresentava comportamentos que mostravam sua não adaptação ple-
na às demandas de um mercado de trabalho modernizado. Não conseguia
se fixar num emprego ou trabalho especializado, nem ter a disciplina e o au-
tocontrole necessários nesse contexto. Um fato nos serve aqui de exemplo.
Quando trabalhava numa multinacional, um colega perturbava muito por
Justino dizer-se devoto de Nossa Senhora Aparecida. Certo dia, esse colega
fez alguma graça com a santa no refeitório e ele não pensou duas vezes, jogou
café quente na cara do indivíduo. Resultado, ambos foram demitidos.
Foi em São Paulo que Justino aprendeu a fumar, a servir com uma das
mãos para trás e pelo lado certo, a fugir do “rapa” quando trabalhava como
camelô, a diferenciar talheres e taças apropriados para cada tipo de comi-
da e de bebida, a cozinhar... Foi lá também que, quando trabalhou como
porteiro, criou o hábito de ler jornais, folheava-os em busca de algo inte-
ressante todos os dias. Foi lá também que conheceu sua esposa, teve sua
primeira filha e “se organizou” na vida, pois, antes do casamento, era “muito
atrapalhado”.
Durante todo o tempo por lá, foi difícil constatar e enfrentar que “nor-
destino lá fora não tem valor nenhum”. Justino trabalhou como garçom, ser-
viu “gente rica, grã-fina”, trabalhou muitos anos dentro de um condomínio
de luxo, e observava que quando chegava um nordestino, eles olhavam “de
um jeito meio diferente”. Mesmo se fosse muito rico, quando comparado
com os paulistanos, ele não era visto do mesmo modo, era diferente.

Feirantes - 89 -
Ele se culpa como sendo totalmente (e unicamente) responsável por não
ter aproveitado as oportunidades que teve em São Paulo.

Cara, eu vou te falar. Hoje em dia, eu não tenho o que re-


clamar não, o erro foi meu. Eu tive tudo na mão e não sube
administrar, eu joguei fora. Todas oportunidades minha boa
foi de São Paulo, aí o dinheiro que eu ganhei em São Paulo
era pra tá muito bem aqui, muito bem mesmo. O problema é
que o cara novo ele não pensa, o que vem é lucro. Com zueira,
baile, gozação... Não tem dinheiro no mundo que dê, você pode
ganhar um milhão mais que gasta dois.

Se fosse hoje, diz que faria diferente, guardaria a maior parte do seu salá-
rio e gastaria o mínimo possível.
Oscilando entre o céu e o inferno. Talvez assim seja possível sintetizar os
altos e baixos de Justino na capital paulista. As histórias desse tempo são
contadas, alternadamente, com empolgação e tristeza, afinal, lá ele sofreu,
“eu sofri, sofri pra cacete. Tive minha glória, mas também sofri demais, sofri!”
Foi assim que sentiu na própria pele o que é ser nordestino na megalópole
brasileira. As contradições dessa experiência vivida podem ser observadas
em duas de suas frases. Ao mesmo tempo em que nos disse que “São Paulo
é que é um lugar para um cidadão viver!”, confessa que, “na realidade, du-
rante 21 anos que eu morei em São Paulo, eu tinha vontade de vim embora...”.

Na feira
Depois dessa longa experiência, Justino atribui sua volta ao Nordeste
à saudade que sentia de sua família. Seus pais continuavam morando em
sua cidade natal. Na realidade, voltou de São Paulo pensando em morar e
trabalhar lá mesmo para ficar próximo dos pais, mas não encontrou nada
que lhe interessasse. Um amigo então lhe ofereceu um negócio na Feira de
Caruaru.
Entrou na cidade pela primeira vez na noite em que foi conhecer o boxe
da feira, a barraca que lhe foi oferecida. Chegou lá, viu o ponto, e investindo

- 90 - A História de Justino
quase todo o dinheiro que trouxe de São Paulo, fechou negócio na mesma
hora. O pouquíssimo dinheiro que sobrou ficou para iniciar o negócio, e lá
passou a viver-trabalhar com a esposa.
Na feira, seus tempos áureos foram nos primeiros anos, logo quando re-
tornou. Foi então que Justino apostou tudo para crescer, para ser dono de
restaurante e sair da feira, acreditando no sonho do negócio formal que
parte significativa dos feirantes alimenta.

Durante três anos, eu consegui comprar doze barracas, com-


prei carro novo, comprei uma moto Twister nova, curti, fui pra
praia muitas vezes, deu dinheiro. Aí, visse, sabe que às vezes
dinheiro é bom, mas dinheiro às vezes traz você pro buraco. Aí
eu coloquei outro negócio lá na frente, vendi essa parte aqui e
não deu certo. Eu perdi.

Depois dessa tentativa malsucedida de abrir um restaurante num bair-


ro popular da cidade, perder significou voltar para a Feira – aliás, conti-
nuar por lá. Mas ele diz nunca se arrepender do que fez e usa uma máxi-
ma popular regional, “o homem só sabe o tamanho do bode depois que ele
foi pegado... Levei prejuízo, não me arrependo! Eu tentei e a gente só sabe
aquilo que tenta!” Sua atividade econômica atual é tida por ele como um
desejo antigo, “eu sempre sonhei com o comércio”. E lembra que se espe-
lhou muito no pai, que toda vida também foi comerciante. Foi com ele,
e graças a ele, que Justino aprendeu a negociar. Gosta da atividade, por-
que sempre está com algum dinheiro no bolso (comparando um emprego
formal no qual geralmente se recebe depois de trinta dias de trabalho).
Mesmo sempre afirmando gostar de ser comerciante, Justino revela num
outro momento que gostaria de ter uma profissão que lhe proporcionasse
uma vida mais leve, tranquila e estável. E diz que, se for para trabalhar
“pra alguém”, o melhor emprego é o federal, “porque é seguro, tá enten-
dendo?”.
Voltando a concentrar seus esforços na barraca e na venda de PFs, con-
seguiu se recuperar, comprou algumas barracas novamente (como forma
de poupança e também de ter outra fonte de renda, o aluguel, para os
tempos difíceis). Na época de nossas entrevistas, duas delas estavam alu-
gadas a chineses que vendiam tênis. Diz que chegou a ter nove pessoas

Feirantes - 91 -
trabalhando para ele, mas sentiu na pele a dificuldade de ser patrão. “Aqui
no Nordeste pra você ser patrão é difícil porque a maioria das pessoas aqui
não quer ser mandado, aqui não, aqui ninguém quer ser mandado não”.
E relembra que lá em São Paulo era diferente, mas não consegue sequer
especular os porquês...

Comportamentos, valores, preconceitos,


visões, contradições
Justino voltou diferente depois de 21 anos de São Paulo, seu modo de ver e
viver no mundo foi tocado por aquela longa experiência.

– Você acha que aprendeu alguma coisa lá?


– Hoje eu... Aqui é que tá o negócio, você entra na convivência
com as pessoas, você termina se envolvendo, por mais cultura
que você tenha, mas, se você entra dentro daquilo lá, começa
a ficar igualzinho as pessoas lá, não é?
– Então você não voltou o mesmo, não é?
– É, eu voltei mais diferente, tá entendendo?
– Alguma coisa melhorou, né?
– Lá eu era mais compreensivo. [risos]

Naquele contexto, ele precisava se conter. Não ser tão agressivo ou rude
como muito provavelmente poderia ser se estivesse num contexto que o
permitisse assim se comportar.
Seus grandes amigos são seus pais, aliás, “os únicos amigos de verdade
que você tem é pai, mãe, avô e avó. Viver com pai e mãe é bom demais, né?”
Tem um grande orgulho do seu pai por ter criado cinco filhos sem deixar
faltar nada para eles, e “nenhum ter dado para o que não presta”. Além disso,
nunca bebeu, nem fumou. Muito embora tenha se espelhado nele, puxou
a ignorância da família da mãe. Conta que seu avô era tão ignorante que,
“se ele chegasse [e dissesse que] isso aqui é uma cana, você tinha que chupar
por cana. Hoje ele tem quase 90 anos, mas a palavra dele vale mais de que

- 92 - A História de Justino
assinatura de qualquer um. Se eu chegar na cidade dizer assim, meu avô
mandou buscar um boi inteiro, o boi vai. E eu garanto, com a assinatura
sua não vai não, tá entendendo?”
Uma coisa necessária a Justino, mas não somente a ele, é jogo de cintu-
ra. Quando nos fala sobre isso, demonstra acreditar no mito do “jeitinho
brasileiro”. Aliás, pensa existir algo equivalente, um “jeitinho nordestino”.

– Você é um cara tinhoso, insistente, mas ao mesmo tempo...


– É, tem que ter o jeitinho brasileiro, né? [risos]
– Você acredita que o brasileiro tem isso?
– Tem, tem, tem.
– E o nordestino também tem a virtude dele... Como é o nor-
destino?
– Eu acho, veja você, hoje vocês vieram almoçar, eu não conhe-
ço vocês, vocês chegaram aqui pra almoçar: quanto é o almoço?
Um almoço é 10 conto. Isso aí, o cliente acaba desistindo e vai
embora. ‘Não amigo, óia, quanto é almoço?’ –‘O almoço é 10
conto’. –‘Não, tá muito caro.’ –‘Senta aí.’ –‘Pô, tu não faz nove
não?’ –‘Ah, senta aí que a gente se ajeita’...

Como feirante, reclama bastante de uma série de dificuldades que diz en-
frentar para tocar seu negócio. Reclama dos políticos por não organizarem
a feira, dizendo que, quando nela chegou, tudo era dividido por área (con-
fecções, artesanato, utensílios domésticos, eletrônicos etc.), mas que hoje
está tudo misturado, “uma bagunça”; reclama dos feirantes denominados
de invasores (“eu acho que o pessoal que tá na beirada tem que sair, né?”)
que circundam o espaço físico estabelecido para a feira, também tentando
ganhar seu pão; reclama das leis trabalhistas que inibem o empregador de
“dar emprego” – como se na feira os trabalhadores fossem registrados for-
malmente; reclama do governo federal, para ele políticas como o bolsa-es-
cola e o bolsa-família estimulam as pessoas a não trabalharem e, de modo
geral, favorecem a vagabundagem e não aos comerciantes. Justino também
não acha justo distribuir a renda de acordo com a necessidade de cada um,
mas sim compensar de acordo com o esforço, ou seja, se esforçou mais,
ganha mais, afinal, para ele “a ajuda é o emprego”.
Seu machismo é explicitamente externalizado quando afirma que o ho-

Feirantes - 93 -
mem é superior à mulher. Ele acha o homem mais inteligente “no geral” e
acredita que tem certos serviços braçais que a mulher não faz. Além disso,
“na minha opinião, a mulher nunca chega no lugar do homem, tem muito
emprego que a mulher nunca vai chegar, o homem [também] pode sair daqui
agora, entrar dentro do cabaré e sair e ele é o mesmo homem. Se a mulher
entrar ela não é [a mesma depois]. É ou não é?”
Tanto nos negócios quanto sobre os destinos da família (para onde ir?
onde morar?), Justino é quem decide. Sua esposa, no máximo, é consultada,
mas não obrigatoriamente. Um exemplo: numa das últimas vezes que esti-
vemos com eles, Justino tinha fechado negócio numa casa, sem que a sua
esposa sequer tivesse visto o bairro, a casa, enfim, desse sua opinião sobre
esses aspectos. No entanto, ele acredita que, de modo geral, o homem pro-
cura uma mulher inteligente que o ajude. Quando falamos de sentimentos,
sensibilidade, filosofa: “Você é um homem que nunca gostou de alguém, você
é um homem forte, se você gostar de alguém, você se torna um cara frágil, não
é não?” Quando fala sobre seu casamento, o faz sem demonstrar sentimen-
tos, mas afirmando que vive bem, sem confusões, “brigar a gente não briga
não. Ela é tranquila”. Lembra que era atrapalhado antes (no sentido de
farras com mulheres) e que “depois da minha mulher, aí eu virei um santo”.
Ele acredita que o racismo não acabou no Brasil e se coloca como exem-
plo para ilustrar o que quis dizer com isso:

Eu não sou racista e sou racista ao mesmo tempo. Eu não sou


a favor do negro, também não sou contra o negro. Mas diga-
mos assim, você vai daqui pra ali, lá pro açougue agora, vem
dois brancos, você vai embora, mas se vim dois cara preto mal-
-encarado você fica mei com... pode ser dois padres, você fica
com medo [risos]. Eu não sou racista não, mas... [risos] é a
realidade. No meu ver o racismo brasileiro não acaba nunca e
não é só contra o preto não. É contra o preto, contra o nordes-
tino inteiro.

Depois de pensar sobre o que seria melhor, um nordestino negro ou nor-


destino gay, ele fala sorrindo, “é melhor ser preto, né?” Ele acha que “o gay
nem tem direito de adotar uma criança e nem casar, na minha opinião”. E
justifica dizendo que

- 94 - A História de Justino
o nordestino ele é muito machista, muito ignorante.. Hoje não,
hoje o pessoal já tá mais com a cabeça mais aberta, já tá aco-
lhendo dentro de casa. Mas tem pai que diz que, se o meu filho
virar gay, o que é que faço? Eu mato. Tem muita gente aqui
que faz isso. Porra! “meu filho virou gay”, “a minha filha virou
sapatão” e aí? O cara vai fazer o quê?

Justino se define como católico não praticante (por não frequentar


regularmente a igreja), mas diz ter muita fé em Deus e que “a melhor
confissão é você se confessar diretamente com Deus e eu acredito muito nis-
so, entendeu?” Para ele, o mandamento mais importante é “não roubar”.
Também acredita que a religião influencia o caráter das pessoas, “se você
é de uma religião qualquer, mas se você é frequentador de uma religião,
você, seu comportamento é diferente. Se todo mundo tivesse uma religião
[as pessoas seriam mais ordeiras]... Pra uns só o dinheiro que vale, pra
outros não existe Deus... Tá entendendo?” Diz que não é um cara de ajudar
muito aos outros61, mas revela que de vez em quando faz um pouquinho,
“é final de ano e o dia das crianças, às vezes eu gosto de ajudar. Final de ano
mesmo passa esses mendigo por aqui, do jeito que você almoçou aqui, eles
almoçam, tá entendendo?”
Um dos grandes problemas do Brasil, para ele, é que “o país não tem lei”.
E atribui a grande criminalidade a essa “lacuna”.

O que eu acho é o seguinte, hoje isso tudo por quê? Porque não
tem lei. Se tivesse lei, as coisas não continuaria do jeito que tá.

61 Muito embora nos tenha dito que: “Se eu pudesse na minha vida hoje ninguém nunca me pedia um
prato de comida pra mim dar dois pra ele. Você só sabe o que é a fome quando você passa por ela. Você
com a barriga cheia tudo é bom, com fome... Fome, meu amigo, fome é uma tristeza no ser humano, tá
entendendo? Fome é uma tristeza. Você olhar pra milhões de gente assim: –“Pra quem eu vou pedir”? Você
fica com aquele negócio: –“Eu vou levar um não”! Você entendeu? Você chega na porta de um, se humilhar,
pedir, tá passando assim, assim... É, não é fácil não. Pro cara que é trabalhador, pro cara que nunca preci-
sou chegar um ponto desse. É uma... Tá louco, isso é uma loucura na mente, cara, é. Olhe, eu tive minhas
glórias em São Paulo, mas também eu tive minhas coisas difíceis também, você entendeu? A coisa que eu
mais olho assim você chegar, quinem eu já vi, o cara desfazer de um prato de comida. Se eu chegar na sua
casa, você pode me dar um ovo com farinha cara, pra mim é bem-vindo, tá entendendo, cara? É bem-vindo
mesmo, é bem-vindo mesmo, não tem esse negócio de caviar com rapadura não. Eu jamais na minha vida,
eu fico doente de ver uma pessoa desfazer de um prato de comida... Meus irmãos hoje foram pra São Paulo,
se deram bem, mas não passaram pelo o que eu passei, não passaram, sabe? Não passaram mesmo!”

Feirantes - 95 -
[...] A lei resolve. Se pega tu roubando uma vez: -“ô fulano é
o seguinte, tu vai passar...” –“tu roubasse o quê”? –“Eu roubei
uma caneta”. –“Tu vai passar seis mês de cadeia”. Se roubasse
um caderno e uma caneta vai ser um ano. Mas o problema é
o seguinte, se tudo passa a mão, o cara não tá nem aí, o cara
não tá nem aí.

Mas, em outro aspecto, reclama da lei. “Se você trabalha como um policial
na rua, você não pode dá um tapa num moleque porque os direitos humanos
vai impedir”. Apesar de tudo isso, pensa que o Brasil é um bom país, seu
problema são “as pessoas”...
Um aspecto interessante de observar na história de Justino é que, apesar
de ter recebido propina num dos seus trabalhos em São Paulo, quando per-
guntado sobre se fez na vida alguma coisa que julgue feia, um pecado do
qual se arrependeu depois, ele menciona o fato de ter saído com uma moça
de família (dando a entender que ela era virgem) como sendo a coisa de que
mais se arrependeu.
Ele comenta também um tipo de preconceito dos que têm uma melhor
condição econômica contra os que têm menos. “Aqui é que tá o negócio,
eu tenho um pouquinho, como você não tem, eu começo a desfazer de você”.
Justino observa outra diferença social entre os que têm poder econômico e
os que não têm: “Hoje se você matar um ser humano, se você tiver dinheiro,
você não vai preso. Um ladrão que rouba, se tiver dinheiro, não vai preso”.
Para ele, o mundo é dos mais fortes, e dentro daquilo que considera forte,
sem dúvida, o dinheiro é aspecto central.
“Olha, meu objetivo, se Deus quiser, é ter uma casa pra morar, um carro
pra mim e barriga cheia os sete dias da semana, tá bom demais. Sonhar mui-
to pra quê? Não é verdade?” Já para seus filhos, espera um futuro melhor.
Desde que voltaram de São Paulo, sua filha, hoje adolescente, mora com a
avó materna – que tem uma condição de vida melhor – numa capital do
Nordeste (na época, estudava o ensino médio numa boa escola particular
e pretendia fazer medicina). Depois de uma temporada que passou por lá,
a esposa de Justino voltou contando com orgulho que a filha estava namo-
rando com um coleguinha da escola, filho de uma família muito rica, dona
de uma grande rede que tinha lojas espalhadas pelo Nordeste. Contou que a
mãe do menino a convidou para um lanche em seu apartamento, era “tudo

- 96 - A História de Justino
muito chique”. Além disso, o menino era muito inteligente e já fazia uma
parte da propaganda da empresa do pai.

O cotidiano da sua vida-comércio de feira


No dia em que vimos Justino pela primeira vez, ele estava diante da chur-
rasqueira62. Quatro mesas estavam espalhadas pelo meio do que seria um
dos corredores da feira. Vestido de bermuda jeans, camisa do Corinthians
e com um cigarro na boca, andava de uma mesa para outra arrastando suas
sandálias, sem tirar a atenção por muito tempo da churrasqueira. Quase
todos que passavam por lá ouviam: “diga moço, vai almoçar?” Ele não faz
cerimônia na hora de abordar um possível cliente, usa seu recurso, joga sua
conversa, mostra, na prática, como é “ser desenrolado, coisa que o estudo
não ensina”.
A máquina de refrescos ficava alguns metros à frente, mais visível aos
transeuntes da via principal. A sua barraca era bem simples. Por fora, uma
estrutura de aço e uma cobertura de telhas brasilit. Por dentro, um grande
vão separado do corredor por um balcão também de aço e uma portinhola.
Tinha também uma parte menor mais para dentro, sem uma porta ou qual-
quer separação. Pelos quatro cantos, uma grande parafernália. As panelas
e caçarolas, acima da pia. No outro lado, a televisão e o DVD. Na pia, uma
trabalhadora contratada lavava os pratos. Num berço, entre três freezers
grandes (que armazenam as bebidas e a comida que fica de um dia pro
outro), o filho deles acompanhava toda a movimentação e vez por outra
abria o berreiro. Na parte menor, o fogão e alguns outros utensílios. Lá sua
esposa montava os PFs à medida que eram ordenados por Justino.
Eles são servidos com rapidez, a comida já está toda pronta nas panelas
que ficam em cima do fogão, o tempo de espera é o da montagem do prato
(pela esposa) e da seleção do pedaço de carne (por Justino). Seus clientes
são pessoas simples, frequentadores da feira – que tinha então maior mo-

62 Instalada do outro lado do corredor, diante de uma barraca fechada, ela era feita com uma metade
de tonel onde ficava o carvão e suspensa por uma estrutura de ferro que também segurava duas grelhas.
Nestas grelhas estavam espalhados pedaços de carnes, frangos e também os peixes que tinham sido
fritos num tacho que estava ao lado.

Feirantes - 97 -
vimento nos dias das feiras livre e da sulanca. Ele compra os ingredientes
necessários para o preparo da comida na própria feira, com o dinheiro que
entra e fica no seu bolso. As carnes, às vezes, num supermercado próximo
(quando tem promoção), mas também a um marchante do mercado de
carnes do qual virou freguês. As atividades (compras e preparação de ali-
mentos) acontecem de acordo com o movimento. Tem como despesas fixas
as contas de água e luz, além do imposto pelo uso do solo a cada dia de feira
da sulanca, pois o espaço no qual está instalada a barraca é municipal.
Depois das entrevistas, continuamos a almoçar e visitar a barraca de Jus-
tino. A moça que trabalhava para ele pediu para sair, e como o movimen-
to tinha caído bastante, isso acabou sendo economicamente interessante,
mesmo sobrecarregando-os, uma vez que sua esposa passou a ainda mais
ficar dividida entre os cuidados com o filho e com a cozinha. Justino vai
então para trás do balcão ajudá-la.
Foi numa dessas visitas que soubemos um “grande segredo”. A esposa
dele nos revelou que eles moravam lá mesmo, na barraca, desde quando
voltaram de São Paulo. Só saíram por uns quatro meses, cerca de um ano
atrás, quando o filho nasceu. Justino ficou visivelmente abalado e envergo-
nhado com a revelação e procurou justificar o fato de morarem lá mesmo
como uma decisão tomada para economizar o aluguel.
Ela então nos mostra como organiza tudo. Eles têm um espaço que fe-
charam e colocaram um chuveiro. Desse espaço também usam o buraco
do ralo para fazer as necessidades. O colchão deles fica escondido, a fisca-
lização da prefeitura não pode saber que eles moram lá, isso não é permiti-
do. Aos seguranças noturnos (particulares), eles sempre oferecem um café,
lanche e dão um whisky no fim de ano – para que eles fiquem por perto e
também não os entreguem aos fiscais. Um dos freezers foi desativado e fun-
ciona como armário para a roupa deles. Para ela, o grande problema é lavar
as roupas. Além do espaço limitado, não pode lavá-las de dia para não dar
bandeira. Essas revelações nos foram marcantes, o espaço físico do negócio
é a própria casa deles.
Num contexto como este, existe certa solidariedade entre os feirantes
mais próximos que, sabendo de tudo isso, não denunciam, muito pelo con-
trário, apoiam-nos no que podem. Vez por outra chega uma vizinha para
avisar que a vigilância sanitária está na área, aproveita e leva um botijão de
gás emprestado prometendo devolver mais tarde. Uma outra, que também

- 98 - A História de Justino
tem uma barraca de alimentação, está dando uma saída e pede que olhem a
barraca dela. A chinesa que vende tênis fica um pouco com o filhinho deles
e vende o refresco enquanto Justino está ocupado.
Certo dia chegamos na hora em que ele estava começando a espalhar as
mesas pelo “salão”. Quando terminamos de ajudá-lo nisso, saímos com ele
para fazer compras. Ele fala que as coisas estão caras, que fica difícil quando
não tem movimento, que, se não fossem as barracas que tem alugadas, não
sabe como conseguiria pagar as despesas... Na volta, ele corta o jerimum
que comprou pra que a esposa o coloque na carne que está cozinhando. O
desgaste de viver com pouco dinheiro e a rotina lenta dos períodos sem
movimento o deixam visivelmente abatido.
Com o movimento fraco, chegou até a mandar a esposa e o filho para
a casa da sogra por algumas semanas e ficou sozinho na barraca. Seriam
menos bocas para comer, menos despesa com água e luz, além de lá existir
uma melhor condição para a mulher e a criança.

Em busca de seu destino


Naqueles tempos, o negócio não estava bom para ele. Pensava em outras
possibilidades, vender algumas das barracas que tinha, comprar uma casa
e finalmente proporcionar uma morada decente para sua família...
Nos últimos contatos que tivemos, ele estava um tanto tenso, pensativo,
titubeante diante das decisões a serem tomadas, vendo uma casa aqui
outra acolá, extremamente dedicado a essas definições sobre o destino que
daria para sua vida e de sua família. Certo sábado, chegamos à sua barraca
para observar um pouco mais seu cotidiano e ela não estava aberta, surpre-
endentemente por ser um sábado, apenas a portinhola e parte do balcão
estavam entreabertos. Mas Justino, a esposa e o pequeno estavam lá com
um senhor, aparentemente velho amigo da feira. O assunto era um só. Ele
tinha feito negócio numa casa num dos subúrbios de Caruaru. Trocou-a
por algumas de suas barracas-poupança da feira. Estavam todos muito feli-
zes. Juntos, tomamos umas cervejas comemorando o fato.
No entanto, uma semana depois, seu futuro já havia mudado novamente.
Surgiu uma boa oportunidade de negócio em sua cidade natal, num ponto
bem central. E como não estava num bom momento na feira, resolveu ar-

Feirantes - 99 -
riscar, fechar sua barraca, tentar alugá-la e ir. Essa foi a última vez que nos
encontramos. Até onde soubemos, seu próximo destino seria um açougue
que pretendia abrir em sua cidade natal.

Os porquês da história de Justino


Como é possível explicar as visões de mundo e os comportamentos de
Justino? O que orientava seu pensamento e sua ação nos diferentes momen-
tos de sua trajetória? A nossa busca por respostas a questões como essas nos
leva – com o apoio teórico-explicativo que encontramos nos trabalhos de
Pierre Bourdieu e Bernard Lahire – de volta à infância e ao percurso de
Justino, mas agora para elaborar uma explicação.
De modo geral, é dura a rotina de uma criança nordestina crescida numa
família humilde que vive na e da roça. Trata-se de diário e puxado trabalho bra-
çal. Desde cedo Justino e seus irmãos estiveram envolvidos com as atividades
agrícolas e comerciais de seus pais. Por outro lado, a ausência da experiência
escolar era compartilhada pelos seus ancestrais diretos (“seus pais nunca foram
à escola”)63, e, desse modo, eles não vivenciaram a disciplina escolar e os diver-
sos aprendizados explícitos e implícitos que se impõem ao indivíduo quando
inserido em tal contexto. Não pôde, dessa forma, dar orientações aos filhos
com base em seus conhecimentos sobre o cotidiano escolar.
Como vimos, as decisões da família cabiam ao pai, à mãe cabia aceitá-
-las, como sempre fez. A simplicidade dos pais pode ser subentendida na
grande lição que Justino diz ter recebido deles (“nunca pegar nas coisas dos
outros, não roubar”). Afinal, nunca foram e nem queriam que seus filhos se
tornassem “o que não presta”.
Nesse contexto, muito embora Justino diga ter sido incentivado pelos
pais a ir à escola, o incentivo não coexistia com um comportamento co-
tidiano de leitura ou estudo por parte deles. Na realidade do lar, o “vá à
escola estudar” era substituído, na prática, pelo “vamos para a roça traba-
lhar”. Como a rotina de trabalho era necessária e a escola “supérflua” em

63 Nesta seção, recuperamos alguns pontos da história de Justino sempre entre parênteses e aspas para
facilitar a compreensão sobre ao que estamos nos referindo ou do que estamos tratando.

- 100 - A História de Justino


seu cotidiano familiar, o esforço para frequentá-la sem vislumbrá-la, em
termos práticos, inserida em sua realidade, era visto como um fardo, um
peso “inútil” a ser carregado por Justino.
Seu comportamento escolar indisciplinado pode ser explicado pelo pa-
trimônio disposicional familiar incorporado (“puxou à ignorância da famí-
lia da mãe”). A ignorância da família da mãe e do avô materno é destacada
em sua fala e observada em seu comportamento ao longo de sua trajetória
de vida. Em diversas ocasiões é recorrente. Era ignorante na escola ao bri-
gar com os colegas; em São Paulo, ao entrar e sair de diversos empregos,
alguns bons, e não se adaptar a uma atividade específica; ao gastar seu di-
nheiro com farras, roupas e demais coisas supérfluas; lá também, por exem-
plo, quando jogou café no rosto do colega de trabalho.
A ida para São Paulo em grande medida foi consequência do con-
senso social de seu meio de origem (nordestino rural), em relação ao
mundo e à vida moderna, que é visto em seu relato sobre os conterrâ-
neos que voltavam de São Paulo. Ir pra lá representava para Justino ga-
nhar dinheiro, se tornar mais bonito, manter-se jovem, melhor cuidado
(“se você passar seis meses no São Paulo, você quando chegava aqui era
diferente. Eu aqui olhava pra você de uma maneira diferente”)64; e, ao
mesmo tempo, sair do desgaste físico e da desvalorização social do tra-
balho agrícola, das dificuldades financeiras (“E eu aqui não, aqui tava
trabalhando na agricultura, queimado do sol sem dinheiro”) e, ainda,
da rotina da qual ele reclamava de trabalho-escola (“era difícil pra ca-
ramba”). Afinal, como a postura dos pais era de incentivo à escola, para
contrariá-los e largá-la era preciso de um motivo, haveria melhor do
que ir “tentar a vida” em São Paulo?
Apesar de dizer ter aprendido muita coisa em São Paulo, o que apren-
deu não foi suficiente para que lá alcançasse uma “vida melhor” que tanto
procurava. Por quê? Ao ir para São Paulo, Justino levou consigo, inscri-
to em seu corpo, parte do universo rural no qual havia sido socializado e
no qual cresceu até então (disposições incorporadas na infância e início

64 Fenômeno semelhante ao que é relatado por Pierre Bourdieu em seus estudos sobre a região france-
sa do Béarn. “As pessoas que moram na cidade e que ostentam ou incorporam os símbolos da moderni-
dade (roupas que vestem, modo de fala, assuntos sobre os quais conversam, gostos alimentares, hábitos
de dança etc.) são vistas de modo diferenciado pelos camponeses e camponesas.” Em síntese, lá a vida e
as pessoas são vistas como “melhores”. Ver: Bourdieu (2006).

Feirantes - 101 -
da adolescência no contexto rural, tais como: rotina de trabalho familiar,
conhecimentos e práticas de atividades agrícolas e de atividades comer-
ciais informais de feira). No entanto, tudo isso que incorpora de modo não
reflexivo não lhe é tão importante e necessário num contexto de cidade
grande e desenvolvida como São Paulo, em comparação à vida no interior
do Nordeste, no sítio da sua família. Um exemplo: não lhe será muito útil
na urbanidade paulista ter incorporadas determinadas disposições para o
desempenho de atividades rurais (“fazer ração para gado, tirar leite de vaca,
colher frutas”) ou mesmo para dominar um animal de tração (um cavalo
ou burro, por exemplo). Lá precisará colocar em ação outras disposições
que lhe permitirão pegar ônibus certos, aprender a se localizar na cidade,
chegar ao expediente nos horários determinados (o que implica fazer cál-
culos de tempo a ser gasto no geralmente longo trajeto), cumprir ordens
dos superiores no trabalho, se comportar de modo apropriado nesses con-
textos, falar de modo correto, servir à mesa na postura indicada etc.
Na realidade, para “se dar bem” por lá, Justino precisaria desincorporar
parte desse “estoque de disposições” que levou consigo (constituído no sí-
tio e na cidade do interior nordestino até meados de sua adolescência) e
incorporar outros que são demandados para a vida cotidiana e para o êxito
num mercado de trabalho como o de São Paulo. Por mais que acredite ter
se adaptado ao estilo paulistano de vida (“se você entra dentro daquilo lá,
começa a ficar igualzinho as pessoas lá, não é?”), em termos práticos, o
tanto que ele se adaptou ainda não foi o suficiente para que conseguisse
viver como eles.
Apesar de todo o orgulho que tem dos empregos e de sua vida em São
Paulo, sua instabilidade ao longo desse período pode ser explicada por essa
tensão interna entre as disposições que portava e sua dificuldade em in-
corporar o que era requisitado aos indivíduos que buscam um lugar num
mercado de trabalho moderno (disciplina, autocontrole, espírito de cálcu-
lo, pensamento prospectivo, previsibilidade etc.). Um exemplo: Justino po-
deria ter feito uma queixa ao superior do colega que dele caçoava, ao invés
de ter tomado a atitude indisciplinada e descontrolada de jogar café no
rosto do indivíduo. Mas por que um dos seus irmãos se firmou por lá como
taxista? Para responder a essa questão, precisaríamos estudar sua história
de vida para compreendermos como e de que maneira ele teve mais êxi-
to nesse processo de renovação das disposições colocadas em prática, por

- 102 - A História de Justino


meio de suas ações, no contexto paulista. Ou seja, a hipótese, para a qual
precisaríamos de dados específicos da trajetória de vida do irmão taxista
de Justino para sustentá-la, seria de que, por alguns aspectos da trajetória
e dos contextos de ação nos quais seu irmão atuou, ele conseguiu melhor
atender às demandas da vida numa realidade moderna do que Justino.
Essa explicação nos permite também apontar que a falta de noção de que
seu “sucesso ou fracasso” não estava apenas e plenamente em suas mãos
(“Eu tive tudo na mão e não sube administrar, eu joguei fora”) demonstra o
limite de compreensão sobre o mundo, similar ao que Bourdieu observou
em seu trabalho na Argélia65, característico às pessoas que ocupam posi-
ção social e têm ocupação também similar a Justino. Afinal, existia todo
um conjunto de experiências, hábitos e práticas prévias à vida adulta num
contexto moderno, que foram vividas por aqueles que neste contexto nas-
ceram e cresceram, mas que não foram experimentadas por Justino lá em
seu sítio no interior do Nordeste e que são decisivas ao seu êxito (ou não)
em São Paulo. Ou seja, ele não teve “tudo” e muito menos “jogou fora”, mas
sim não conseguiu desenvolver as disposições necessárias para administrar
um bom salário, investir o dinheiro de modo apropriado, retomar os estu-
dos ou preparar-se para o desempenho de funções especializadas, enfim,
estabelecer-se social, econômica e profissionalmente. Esse é mais exemplo
de visões a cerca do contexto no qual vivia que faltavam ao nível de consci-
ência de Justino quando em São Paulo.
O episódio de ter passado fome também apoia esse argumento. Ele não
se apercebeu, mesmo ao observar a história em retrospectiva, que a possi-
bilidade de se conseguir um trabalho em troca de comida é muito maior
do que quando se procura um emprego assalariado. Não teria sido a óti-
ma relação “custo x benefício” que ele ofertou ao empregador em potencial
a razão de ele ter conseguido um emprego quando estava faminto? Não
atentar para isso é não compreender a lógica de funcionamento do sistema
capitalista no qual se está inserido. O trabalho pode até ter-lhe sido con-
cedido por caridade devido à situação limite na qual estava, mas é preciso
atentar para a dimensão objetiva de sua “excelente” oferta.

65 É entre os pequenos comerciantes que se encontra a proporção mais forte de propósitos estereo-
tipados e de discursos que obedecem à lógica da quase-sistematização afetiva, além disso, eles nunca
observam o sistema como sendo também responsável por sua falta de instrução e de qualificação pro-
fissional (Bourdieu, 1979, p. 88-92).

Feirantes - 103 -
Na realidade, seu retorno ao Nordeste pode ter sido realmente motivado
por essa sua inadaptação parcial ao contexto paulista, afinal, será que, se
ele tivesse conseguido se estabilizar por lá, teria voltado? O próprio modo
impulsivo com o qual Justino comprou a sua primeira barraca da feira
(“Chegou lá, viu o ponto, e investindo quase todo o dinheiro que trouxe de
São Paulo, fechou negócio na mesma hora”) demonstra pouca reflexão com
base num espírito de cálculo e num pensamento prospectivo necessários
à vida moderna. O reinvestimento dos capitais adquiridos em atividades
ou contextos modernizados no comércio de feira (atividade tradicional)
também foi objeto das análises de Bourdieu66 na Argélia, e explica “a ne-
cessidade (do comércio) tornada virtude” em sua fala (“eu sempre sonhei
com o comércio”). Mesmo explicitando a influência paterna neste sentido,
Justino não consegue observar, mais uma vez, o sistema no qual se insere67.
A contradição com o seu “sonho” aparece quando revela que, na realidade,
preferiria outro tipo de profissão (“ter uma profissão que o proporcionasse
uma vida mais leve, tranquila e estável”).
O fracasso na tentativa que fez de abrir um restaurante também pode ser,
ao menos parcialmente, compreendido (afinal, existem elementos outros
que estão fora de nosso alcance) pelo fato de Justino não ter as competên-
cias necessárias para: escolha adequada de um ponto comercial formal, sua
administração financeira, ordenação do ambiente, cuidados elementares
com uma cozinha um pouco mais refinada, definir critérios apropriados
para a seleção do tipo de funcionário pertinente de ser contratado etc.

66 “O comércio e o artesanato constituem vaga protegida e reservada que oferece um refúgio para aqueles
que não estão armados para a competição econômica ao mesmo tempo em que mantém, numa lógica
pré-capitalista, capitais e capacidades que poderiam ser investidos no setor moderno. Deste modo, os
capitais argelinos tendem a ser investidos no comércio ou então nesses setores da indústria onde podem
ser mantidas as empresas tradicionais de tipo familiar, muitas vezes conduzidas à maneira de empresas
comerciais, asseverando ao patrão a gestão financeira do negócio, comprando ele mesmo a matéria-
-prima, fixando os preços e vigiando as vendas.” (Bourdieu, 1979, p. 83-4, grifos nossos).
67 Algo também apontado por Bourdieu anteriormente, afinal, “para os filhos de comerciantes e de
artesãos, as esperanças de promoção são tanto mais reduzidas quanto a herança profissional é maior, as
tradições de profissão mais fortes e a probabilidade de uma herança importante mais elevadas. Tanto
o cálculo econômico se encarna progressivamente na conduta, à medida que a melhoria das condições
materiais o permite quanto o campo dos possíveis tende a se alargar à medida que a pessoa se ergue na
hierarquia social.” (Bourdieu, 1979, p. 74-79, grifos nossos).

- 104 - A História de Justino


Ao ser “patrão” no Nordeste, Justino se reencontra com a hierarquia no
trabalho não familiar, algo que tinha experienciado em São Paulo, só que
lá estava ele geralmente na posição de subordinado. Se lá, num contexto
que se apresenta como impessoal e assim estimula e cobra a obediência
a uma hierarquia funcional, ele teve dificuldades para interiorizar e agir
em consonância ao sistema de trabalho, como ele espera que uma pobre
coitada que ele contrata e paga por diária para lavar pratos ou montar PFs
numa barraca de feira e que, muito dificilmente, já ocupou um posto de
trabalho como um dos que ele veio a ocupar, venha a obedecê-lo facilmen-
te? Somente observando-se retrospectivamente em sua trajetória de vida é
que Justino poderia comparar-se, à época de quando chegou em São Paulo,
com sua trabalhadora.
Mesmo se tratando de contextos diferentes, a situação é equivalente,
obedecer ao superior e executar atividade braçal continuadamente num
ambiente de trabalho não familiar. E a observação da diferença entre o pa-
trimônio disposicional que um nordestino – que não estudou ou estudou
pouco e que nunca trabalhou para outros que não da família – e o que um
patrão espera de um trabalhador é o caminho que nos leva ao entendimen-
to de que, em São Paulo, ou o trabalhador passa a cumprir as ordens (“en-
golir seco”), como ele mesmo mencionou, ou praticamente se colocará para
fora do mercado de trabalho. Logo, continua no mercado de trabalho quem
incorpora a postura de subordinação exigida. Foi isso que aconteceu com
ele e que ajudou a torná-lo diferente por lá (“mais compreensivo”). Porém
não compreensivo o suficiente para manter-se desse modo em sua volta ao
contexto nordestino e observar seus contratados de modo a entender que
eles precisariam de uma série de experiências e de um certo tempo para se
adequarem ao sistema de trabalho que lhes é imposto, mesmo que este não
lhes seja tão estranho quanto era inicialmente o paulistano a Justino.
Se é grande a força da ideia do “jeitinho” como característica que di-
ferencia o brasileiro dos outros “seres humanos iguaiszinhos a ele” que
vivem no mesmo planeta, nada mais normal do que aparecer na fala de
Justino uma extensão local dessa “máxima identitária” ao nordestino.
Esse é um tema já profundamente discutido na obra de Jessé Souza68, mas
aqui se faz necessário um curto comentário explicativo à luz da teoria

68 Ver Souza (2000, 2003, 2006, 2009, 2010).

Feirantes - 105 -
bourdieusiana. A ideia de doxa69 nos é interessante para explicar como
as pessoas podem ver o (e se ver no) mundo estando completamente em-
bebidas no modo tal qual este lhes é apresentado e confirmado por seus
pares. Em termos práticos, é o que Bourdieu denominou de doxa que nos
ajuda a entender como Justino compreende como “jeitinho” aquilo que é,
na prática, fruto de seu aprendizado para enfrentar e solucionar seus pro-
blemas de vida e subsistência no mundo de modo equivalente ao que faz
um paraguaio lá no seu Paraguai ou um tailandês lá na sua Tailândia. Ou
seja, o que ele e os brasileiros pensam ser “jeitinho” acontece por lá tam-
bém ou então paraguaios e tailandeses não estariam sobrevivendo neste
mundo, se “desenrolando”?
Como já colocamos no capítulo 1, perceber que na realidade “os bra-
sileiros não são marcianos verdinhos” e se defrontam de modo similar a
outros “seres humanos iguaizinhos a ele” com os dilemas da sobrevivência
num mundo moderno é tirar de si o “manto identitário” que os faz diferen-
tes e “únicos” em relação a todo o resto do mundo (como se, em cada um
dos outros povos deste mundo, também não existissem algumas práticas e
atividades culturais que aparentemente os tornam diferentes dos demais).
Não foi por acaso que Bourdieu observou drama similar ao dos feirantes
como Justino na Argélia dos anos 50 ou na região do Béarn (na França), um
pouco depois. Foi, sim, por se tratar de drama inerente ao mundo no qual
vivemos e que se torna mais real, concreto e, consequentemente, mais duro,
do que se mantido recoberto pelo “molejo brasileiro”. É essa crença coletiva
e excessiva nas particularidades locais da peculiaridade do povo brasileiro
que explica a crença de Justino e de milhões de nós, no “mito do jeitinho”.
É preferível para ele, e para grande parte de nós, acreditar que é mais “de-
senrolado” que os outros do que enfrentar as possibilidades e limitações
concretas impostas ao seu modo de ser.
Na realidade, suas maiores reclamações não seriam aquelas reclamações
contra si mesmo por não ter conseguido uma condição de vida que buscava
e que, em sua visão, teve nas mãos e jogou fora? A lástima de si e da condi-
ção de vida que oferece à sua família é projetada em quase tudo e quase to-
dos que circundam a vida de Justino. Mostrando-se incapaz de articular-se

69 Discurso construído socialmente naturalizado como autoevidente, o de que “os brasileiros são
adeptos do jeitinho”, por exemplo.

- 106 - A História de Justino


politicamente e pleitear ou promover mudanças nas questões que o afetam,
Justino encontra refúgio numa visão de mundo conservadora que critica
políticas sociais afirmativas que, por exemplo, possibilitam aos que estão
abaixo dele não ficar tão abaixo assim ao receberem apoio do Estado.
Além de conservadoras, as opiniões políticas que reproduz são também
preconceituosas. Machismo70, racismo, homofobia e até mesmo preconcei-
to contra o nordestino – incorporado em São Paulo por ser visto, e assim
também passar a ver os “nordestinos mais nordestinos que ele”, de modo
diferente. As contradições entre suas visões também aparecem quando
aponta para o fato de o Brasil ser um país que não tem lei, mas, em seguida,
em alusão aos impedimentos que os direitos humanos representam no sen-
tido da repressão física que a polícia poderia impor aos criminosos, deixa
a entender que seria bom se os policiais pudessem bater nos indivíduos
que cometeram algum delito. É interessante aqui também recuperar o fato
de Justino ter recebido propina num dos empregos que teve em São Paulo,
para permitir algo irregular. Sua visão da hierarquia das classes sociais está
centrada na posse ou não posse de capital econômico e atrela privilégios
legais aos que têm dinheiro (“Aqui é que tá o negócio, eu tenho um pou-
quinho, como você não tem, eu começo a desfazer de você”...“Hoje se você
matar um ser humano se você tiver dinheiro, você não vai preso. Um ladrão
que rouba, se tiver dinheiro, não vai preso”).
Como explicar esses preconceitos, visões e ações de Justino? A ideia de
doxa bourdieusiana nos serve aqui mais uma vez. Justino reproduz os gran-
des preconceitos de classe vigentes na sociedade brasileira. São eles que
surgem nos preconceitos, visões e ações apresentados por Justino. Como
estes têm aspecto bastante geral na extensão de nossa sociedade, ou seja, as
pessoas não sabem explicar por quê, mas sabem distinguir-se e classificar
uns aos outros de acordo com a origem e posição de classe na hierarquia

70 Aqui há tanto um forte componente sócio-histórico quanto um componente de contexto de sociali-


zação familiar de Justino a serem observados, afinal, tanto o Nordeste é uma região na qual o machismo
é ainda muito forte (haveria explicação melhor do que esse machismo para o fato dele ter vindo de São
Paulo buscar somente seus irmãos e nenhuma das duas irmãs?), quanto o modo como ele se relaciona
com sua mulher (“Justino é quem decide. Sua esposa, no máximo é consultada”...“brigar a gente não
briga não. Ela é tranquila”) será idêntico ao modo como seu pai se relacionava com sua mãe (“O pai era
responsável pelas decisões sobre o dinheiro, as compras, enfim, tudo da família. A mãe sempre aceitou
tudo o que o pai quis, nunca brigaram”). O componente sócio-histórico pode ser expandido à homofo-
bia que é explicitada por Justino.

Feirantes - 107 -
valorativa da sociedade da qual fazem parte. Talvez, o difícil para nós brasi-
leiros seja constatar essa dura realidade que podemos clarificar ao fazermos
uso analítico do trabalho de Pierre Bourdieu. É mais fácil, em especial para
nossas classes alta e média, negar esses preconceitos, mantê-los de modo
velado, pois, assim, estarão sendo “politicamente corretos”. As contradições
entre a definição (“Justino se define como católico não praticante”) reli-
giosa de Justino e suas crenças sobre a importância da prática religiosa na
vida das pessoas (“acredita que a religião influencia o caráter das pessoas,
‘se você é de uma religião qualquer, mas se você é frequentador de uma
religião, você, seu comportamento é diferente. Se todo mundo tivesse uma
religião [as pessoas seriam mais ordeiras]...’”), ou ainda quanto a sua noção
de “pecado” (“um pecado do qual se arrependeu depois, ele menciona o
fato de ter saído com uma moça de família (dando a entender que ela era
virgem)”), ou mesmo suas contradições em relação à existência e o uso da
lei, assim como seus deslizes em relação a ela, são reflexos da doxa na qual
viveu e vive. Ou ainda, utilizando metáfora de Bernard Lahire (2005b), é o
social que se apresenta inscrito nele em estado “dobrado”.
Esperar e trabalhar para um futuro melhor para os filhos é o que lhe res-
ta, já que, mesmo que não formule ou explicite isso, o desânimo de Justino
em relação à sua vida presente e futura é reflexo de sua crença de que “seu
futuro já passou”, sua chance de “crescer na vida” foi em São Paulo e ele não
aproveitou. A esperança dele e da esposa agora parece estar nos filhos. É
por isso que ela fala com orgulho do namoro da filha (“a esposa de Justino
voltou contando com orgulho que a filha estava namorando com um cole-
guinha da escola, filho de uma família muito rica, dona de uma grande rede
que tinha lojas espalhadas pelo Nordeste”).
Foi na sua barraca de feira que pudemos observar não somente como Jus-
tino desempenhava as atividades de comerciante, mas também como ele, en-
tão, literalmente, vivia com a mulher e o filho. A condição precária daquele
momento era, em parte, resultado dos seus erros do passado, mas também é
realidade objetiva do seu esforço no sentido de um amanhã menos precário.
As consequências dos gastos malfeitos (do dinheiro que ganhou em São Pau-
lo) com farras e esbanjamentos, somadas ao insucesso na tentativa que fez de
colocar um restaurante, fizeram com que Justino hoje tivesse uma postura
diferente em relação ao dinheiro. Preocupando-se mais em poupar do que
em usufruir, foi assim que ele passou quase oito anos na própria barraca de

- 108 - A História de Justino


feira com a mulher (sendo um desses anos com o filhinho também). Muito
embora isso o tenha envergonhado bastante quando revelado pela esposa,
pois além de, na condição de chefe da família, ele não conseguir proporcio-
nar um lar decente para sua esposa e filho, parece que sua vergonha aqui
também está atrelada ao fato de essa revelação trazer à tona a dura realidade
na qual ele se encontrava quando o conhecemos, em oposição à sua história,
para ele vitoriosa, em São Paulo. O então duro presente colocava em xeque as
“vitórias” proclamadas do seu passado e ressaltava a sua não capacidade de
ter construído, ao longo desse passado, um melhor presente.
Mas a sua pouca capacidade de se observar e de observar o contexto
reflexivamente, conforme aponta Bourdieu, limita as suas possibilidades
de fazer análises prévias aos seus passos futuros, ou mesmo posteriores aos
seus erros e/ou acertos. É por isso que ele sempre precisa tentar (“diz nunca
se arrepender do que fez”...“Eu tentei e a gente só sabe aquilo que tenta!”),
é aqui que reside o que ele pensa ser “teimosia”. Por não ter incorporado
plenamente disposições de previsibilidade e reflexivas, Justino insiste em
ações “não planejadas” nas quais arrisca (investiu tudo o que trouxe de São
Paulo na compra da primeira barraca de feira, “apostou tudo para crescer,
para ser dono de restaurante e sair da feira”, por exemplo). Desse modo,
podemos explicar o que ele diz ser “teimosia” como sendo, na realidade,
uma inadaptação sociocultural para realizar as iniciativas que empreende
ou anseia empreender. Se em algumas, ao longo de sua trajetória de vida,
ele obteve êxito, foi porque as exigências de adaptação foram menores do
que a sua força de vontade em “dar certo”. Ou seja, aspectos contextuais lhe
eram favoráveis, mesmo ele não tendo superado plenamente a sua barreira
interna, seu não atendimento aos requisitos necessários num contexto mo-
derno para levar adiante o empreendimento que se propunha desenvolver.
Em síntese, por meio da sociologia disposicionalista, pudemos aqui
constatar que a luta que Justino enfrentou (e ainda enfrenta) em sua vida
é uma luta dupla e simultânea. Uma delas é a luta pela sobrevivência e es-
tabilidade numa sociedade de mercado – para a qual ele se apresenta não
plenamente apto a ocupar postos de trabalho que o permitiriam ter acessos
aos bens de consumo por ele e por sua família desejados. Ou seja, é uma
luta por poder viver melhor do que sua condição atual de vida. A outra,
inextrincável da primeira, é uma luta interna entre as disposições que in-
corporou ao longo de sua trajetória (que estão diretamente relacionadas

Feirantes - 109 -
aos contextos nos quais cresceu, trabalhou e viveu) e os contextos nos quais
viveu até agora (que lhe cobram apenas parte dessas disposições ou então
outras que ele não tem incorporadas). Eis o que, em nosso entendimento,
realmente pode explicar porque Justino tanto se diz teimoso...

- 110 - A História de Justino


CAPítulo 4

N
A HISTÓRIA DE NEIDE: “EU
NÃO IA SER MULHER DA ROÇA”
Após a história de “Justino”, nos voltamos agora para “Neide”, uma mulher
agrestina para quem o trabalho sempre foi marcante. Por diversas vezes
ela retoma a importância de ter alcançado, por meio dele, independência
econômica para conquistas e difíceis decisões que precisou tomar. Sua mãe
é sua principal referência nesses termos. A disposição que Neide apresenta
para o trabalho tem origem na família e, em particular, no modo como via a
mãe lidar com a rotina diária do campo, com os afazeres domésticos e com
a criação de tantos filhos.
Ao iniciar a análise da história de Neide, nos chamou a atenção o fato de
que, em diversos pontos as interpretações sobre Justino também são perti-
nentes para aspectos que surgem e se fazem presentes na história de vida da
feirante – na realidade, sua história pode ser lida como um duplo feminino
de Justino, “sua irmã” ou amiga de infância.
Diante dessa relativa homogeneidade que pode ser constatada não so-
mente por meio das histórias deles, mas também pela de grande parte dos
feirantes que pesquisamos (como pode ser visto no capítulo 2), resolvemos
destacar um aspecto relacionado à sua condição feminina e, em particular,
ao modo como se projeta para a “vida moderna na cidade” – que vê em
oposição à “vida atrasada no campo”.

Feirantes - 113 -
A incorporação dos ideais e valores urbanos por jovens campesinas foi
um dos principais temas tratados por Pierre Bourdieu (2006 [1962]) em
pesquisa realizada no interior da França no início dos anos sessenta. Este
trabalho nos é fundamental e será recuperado neste capítulo, quando a his-
tória da protagonista apresentar traços por demais similares aos daquele
contexto.

Origem familiar, infância e início da vida


escolar
Foi num sítio – que ficava a cerca de trinta minutos de carro de uma
pequena cidade também do Agreste pernambucano – que os pais de Neide
fizeram morada e deram início à família. Lá tiveram quatorze filhos, mas
apenas nove chegaram à vida adulta. Quatro homens e cinco mulheres. Ela
era a segunda mais nova. Desde bem cedo, todos começavam a ajudar os
pais na agricultura e na venda de farinha, feijão e outros produtos confor-
me a safra pelas feiras da região.
Aos olhos dela, a característica mais marcante do pai era a honestidade.
Ele sempre foi religioso, católico praticante e bastante temente a Deus. Ja-
mais fazia algo errado porque acreditava que “um dia iria morrer e ter que
prestar conta”71. Ainda hoje ele é muito pacato, segundo Neide, exatamente
o contrário de sua mãe, que sempre foi extremamente ignorante, muito em-
bora “uma pessoa maravilhosa também” – a filha afirma ter puxado da mãe
a determinação para o trabalho.
Apresentando traços tão diferentes, era de se esperar que os pais também
tivessem comportamentos distintos na educação dos filhos. Enquanto seu
pai era “bem suave”, sua mãe era rígida. “Quando ela cismava com a gente,
comigo mesmo, ela batia”. Mas entre marido e esposa não havia brigas, às
vezes ocorria um desentendimento aqui, outro ali, mas viviam (e até hoje
ainda vivem) muito bem. Lembremos que estamos no Nordeste e que o

71 Todas as citações de falas de Neide e de outros personagens que surgem ao longo de sua história
aparecem grafadas em itálico.

- 114 - A História de Neide


machismo ainda hoje se reproduz nas estruturas familiares, algo que era
ainda mais forte décadas atrás quando Neide era criança.
Nenhum dos dois jamais foi à escola. Sua mãe apenas assina o nome, mas
seu pai, segundo Neide: “é um matemático. Apesar dele nunca ter ido numa
sala de aula, é muito inteligente”. E ela nos dá, com admiração, um exemplo
de como ele fazia:

Você pode perguntar, digamos por exemplo, essa casa... como é


que você vai fazer a metragem dessa casa? Tem 6x3, na hora...
Um terreno, minha irmã tem um terreno e ela quer lotear. En-
tão ela sabe quantos hectares tem ali e ele, na mente assim,
estudou, estudou, pensou, pensou, ele disse: nesse terreno são
tantos hectares, dá tanto chão de casa. Ele calculou tudo di-
reitinho na mente, vai dar tanto chão de casa. Aí avaliado em
R$3.000,00 ele já fez o valor, dá x. Ele é assim, uma mente bem
avançada mesmo, se ele tivesse tido oportunidade numa sala
de aula...

Foi depois dos trinta anos que seu pai começou a perder a visão. Não
pôde mais ir às feiras vender o que a família produzia na roça. Quando isso
aconteceu, sua mãe praticamente teve que se tornar pai e mãe e conseguir
o sustento da família, com ajuda da prole, somente da agricultura. O cami-
nho que surgiu foi deixar que os filhos homens seguissem, um a um, rumo
a São Paulo.

A situação financeira no início era razoável, depois que meu


pai começou a perder a visão, aí a coisa dificultou. Ela passou
a ser a mulher e o homem da casa, isso na agricultura, então
a gente pequenininho já ia tudinho pra agricultura. Diante
daquela dificuldade, daquela pobreza total, só não se passou
fome. Até sede no ano de 70 nós passamos. Uma coisa apertou,
na época de sede apertou. Então meu irmão mais velho foi em-
bora pra São Paulo cedo, lá morava com um monte de amigos.
Um se estabilizava, puxava o outro, não importava em que
ele fosse trabalhar, entregador de pizza, fazendo faxina, o que
fosse, mas tava “caindo” dinheiro, tava ganhando o sustento,

Feirantes - 115 -
morava em favela. Então através dessa dificuldade que nós
passamos, todo mundo sentia vontade, aquela vontade
de crescer, de sair daquele sofrimento, de levar uma vida
diferente. Então nós vencemos, os nove vencemos, sabe? Todo
mundo tem sua casa boa pra morar, tem, sabe? Tem sua vida
assim construída.

Caíram na estrada ainda bem novos, o destino foi tentar ganhar a vida na
capital paulista (tal qual também fez Justino, e depois seus irmãos) e, quiçá
de lá, mandar alguma ajuda para a família. As mulheres ficaram e seguiam
na rotina de trabalho na roça pela manhã, estudo à tarde (a mãe concedia
somente às moças esse privilégio, já que os rapazes que ainda não tinham
ido embora trabalhavam todo o dia) e escola da cidade à noite – iam num
transporte coletivo, todas as noites, já pago pelos irmãos que estavam em
São Paulo. Isso depois de terem concluído a antiga quarta série na escola de
um povoado rural mais próximo, para o qual precisavam andar uma hora
a pé até chegar lá.
Foi com esforço próprio, mas também à custa do esforço dos irmãos em
São Paulo, que todas as mulheres concluíram o então segundo grau (hoje
ensino médio), enquanto todos os homens não passaram da antiga quarta
série primária (ensino fundamental).
A diferença nos destinos das vidas em contextos como aquele estava em
parte atrelada ao fato de se tratar de um homem ou de uma mulher. No
entanto, como veremos mais adiante, o duplo papel (de pai e mãe) que a
mãe de Neide precisou desempenhar, para dar conta do sustento da família
desde a enfermidade do pai, e o fato de tanto Neide quanto suas irmãs te-
rem concluído os estudos regulares serão aspectos decisivos aos rumos que
sua história tomará.

Adolescência
Já mocinha, com doze ou treze anos, ao voltar da roça com a irmã, “quan-
do ouvia um barulho de carro, a gente já se escondia no mato pra ninguém ver,
com vergonha.” Não queriam que seus colegas as vissem naquela situação.

- 116 - A História de Neide


A vergonha de ser “do mato” e o desejo de ir para a cidade constituem
tema central para os desdobramentos da vida de Neide e se fazem presentes
desde o início de sua adolescência. As disposições que irá incorporar (ou
desincorporar) são principalmente decorrentes dessa vergonha e desse de-
sejo que podem ser vistos como atributos sociais relativos à sua condição
de classe e à distinção valorativa que ela faz e incorpora entre “o bom”, que
está na cidade, e “o ruim”, que está no campo.
“Então eu estudava, pra ser sincera não foi aquela vontade de estudar, era
mais uma necessidade porque ou estudava ou na frente eu não ia ter nenhu-
ma oportunidade de arrumar um emprego”. Desde o início da adolescência,
Neide tinha clareza de que terminar os estudos seria o meio de ter vida dife-
rente da que tinha no sítio, afinal, acreditava que, somente com o diploma,
poderia conseguir um emprego na cidade.
Não tinha boas notas na escola, pelo contrário, eram péssimas, mas na
realidade também tinha outros interesses por lá além do diploma. Paquera,
bagunça e conversa em sala eram outras atividades que adorava e muito
praticava.
A cobrança dos estudos completos para a obtenção de um emprego e,
consequentemente, a possibilidade de trilhar uma vida na cidade mo-
tivaram Neide a desenvolver o ascetismo mínimo necessário para dar
continuidade e concretizar os estudos – atividade para a qual não tinha
apetência.
– Paquerava muito [risos] ... Na época existia cinema na cida-
de, aí de vez em quando um convite: “vamos pra o cinema hoje,
eu tenho, eu pago a entrada”... Eles dizia, né? Eu não tinha
dinheiro não, todo mundo sabia. O sítio era muito próximo da
cidade. Quem não tinha dinheiro todo mundo sabia. Os cole-
gas sempre cobria sabe? –“Vamos pra o cinema”? – “Vamos”.
Às vezes eu tava no meio da aula, aí tinha aquele grupinho né?
– “Neide”... na época chamava gazear,“vamos gazear uma au-
linha hoje?” Aí eu digo: – “Vamos, como é que a gente faz?” ...
Eu era bagunceira, mas eu já tinha o nome de pipoquinha por-
que conversava demais. O diretor adorava tá na sala de aula:
“Neide...”. Eu dizia, “você gosta muito, diretor, de me chamar”.
Tinha sempre uma reclamaçãozinha, porque eu gazeava mui-
to, brigava muito, filava muito, tinha sempre um defeitozinho.

Feirantes - 117 -
Mesmo morando no sítio, aos quinze anos, Neide se considerava “mais
atualizada do que as próprias garotas que moravam na cidade. Ia pra todas
as festas que tinha na cidade... Eu não perdia uma”. Quando voltava para o
sítio, dava pouco ouvido ao que diziam por lá. “Povo mal informado, quem
estudava à noite, eles dizia que era tudo rapariga, era o vocábulo deles. As fia
de Seu Fulano são tudo rapariga! Isso era falta de conhecimento...”.
Mesmo sendo a escola muito mais do que um lugar no qual ela deveria
aprender as matérias, afinal, era por frequentá-la que muitas portas – para
amizades, paqueras, cinemas, enfim, para a vida citadina com a qual tanto
sonhava – eram abertas, Neide quase abandonou a escola por não gostar de
estudar. Sua sorte foi um tio que a incentivou a voltar, e sua ponderação:
“Poxa vida, se eu parar de uma vez eu vou ficar pro resto da vida aqui nesse
sítio, nesse mato. Não, não quero essa vida pra mim”. Então ela foi ao colégio,
falou com o diretor e ele a aceitou de volta.
Seu primeiro beijo foi aos dezesseis anos, numa daquelas idas ao cinema,
com um namoradinho rápido da cidade.

– Então os rapazes da roça se deram mal mesmo?


– Se deram mal.
– Não conseguiram nem roubar um beijinho?
– Não, não tiveram a menor possibilidade... eu não ia ser mu-
lher da roça. Amanhecer o dia com uma enxada nas costas,
um terreirão que tem no sítio, que todo dia tem que varrer e
quebrar aquela vassourinha na roça, um curralzin cheio de
gado pra você ser a primeira a entrar... pra tirar o leite, manual
assim, depois tem que fazer 30, 40 quilos de queijo. Nossa, não
queria aquilo não.

Neide não namorou nem na roça nem com ninguém da roça. Durante
a adolescência, o desejo de ir viver na cidade só se fortalecia. Ela tinha o
pensamento fixo de que, ao terminar os estudos, não viveria mais no sítio.
Queria fugir daquilo que representava a miséria em sua vida, daquele lugar
no qual ela já teve que “andar meia hora com uma lata de água na cabeça
pra tomar um banho”. Sua repulsa à vida da roça era tamanha que até a fazia
rejeitar pretendentes de boa condição econômica.

- 118 - A História de Neide


Na época eu adolescente, eu tinha maior medo de namorar um
rapaz do sítio pra não ter que casar e ficar numa vida miserá-
vel daquela, queria não. Muitos rapaz em situação financeira
boa, tinha um monte de gado, o povo chamava fazendeiro, in-
teressado por a gente que era tudo bonitinha, magrinha. Eu
mesmo não quero de jeito nenhum, tinha carro, fazendeiro,
dinheiro no bolso, vendia muito leite. Eu dizia não quero essa
vida pra mim. Eu via minhas amigas se casar, grávida, diga-
mos com nove meses, mas tinha que botar uma enxadinha nas
costas e ainda ser a primeira a sair de dentro de casa pra ir pra
roça e o marido atrás. Essa vida que eu quero pra mim? Quero
não, não quero!

Queria ter seu próprio trabalho, ganhar seu dinheiro, poupá-lo para ter
uma casa, enfim, levar uma vida diferente. Foi então que lhe surgiu uma
primeira oportunidade para trabalhar somente num dia da semana, o dia
de feira da cidade. Ela foi. Aproveitava e fazia a feira da sua família, ficava
na casa de uma parente e voltava depois das aulas, no horário de sempre.
Alimentar a esperança de “viver o ideal de vida moderna na cidade” e
assim ter acesso aos bens de consumo que representam esse ideal (e que
ela, por se dizer tão moderna, já os tinha internalizado como valorosos em
si) é algo que se coloca em posição superior na hierarquia de valores de
Neide em comparação, por exemplo, a ter uma boa condição econômica no
campo. Sua prioridade era fugir da ampla ideia de “vida miserável” que em
parte viveu e em parte autorreforçou – obviamente por meio dessa “verda-
de” socialmente compartilhada que classifica o rural como ruim e o urbano
como bom. Ou seja, como sua prioridade era fugir da infância sofrida no
campo, do rótulo de “matuta”, a questão econômica fica em segundo plano
no seu discurso. No entanto, quando se tratar da sua independência, esse
aspecto econômico será fundamental para a incorporação e experiência da
vida e dos valores modernos urbanos.
Mesmo tendo seus sonhos totalmente voltados para a vida urbana, Nei-
de não alimentou a esperança de fazer uma faculdade. Para isso precisa-
ria se deslocar diariamente para uma das cidades maiores mais próximas
(Caruaru, Garanhuns ou Belo Jardim) e não havia a menor possibilidade

Feirantes - 119 -
financeira de fazê-lo. Além disso, ela estava tentando firmar-se naquela ci-
dade, precisava de um emprego. Dar continuidade aos estudos tanto não
era prioridade quanto não lhe atraía. A sua experiência na escola não lhe
permitiu incorporar a disciplina e a concentração necessárias ao estudo.
Como pelo trabalho ela já acreditava ter acesso direto ao mundo que so-
nhava, cursar uma faculdade não fazia parte do “horizonte dos possíveis”
para seu futuro. Talvez até o viesse a ser para um de seus filhos, mas ainda
não para ela.

“O camponês e seu corpo” no Béarn (?)


Nos anos sessenta, já de volta à França, com a experiência de seus traba-
lhos etnográficos na Argélia, Bourdieu (2006, p. 83)72 retorna a sua região
natal, o Béarn, e realiza um estudo clássico no qual observa “a reestrutura-
ção do sistema de trocas matrimoniais como uma manifestação da trans-
formação global da sociedade”.
Percebendo que antigamente o casamento era um assunto familiar e
que depois de um certo tempo passou a caber ao indivíduo a procura por
companhia, Bourdieu se propõe a compreender por que “o camponês dos
hameaux73 é intrinsecamente desfavorecido nessa competição e, mais pre-
cisamente, por que se mostra tão mal adaptado, tão desconcertado, nas
ocasiões institucionalizadas de encontro entre os sexos” (p. 84). Por meio
de observação etnográfica de cenas de um baile local – em sua condição
de campo empírico na qual se dá esse drama, o sociólogo francês busca
explorar a ocasião privilegiada para tentar “compreender a raiz das tensões
e dos conflitos” que surgem em decorrência de mudanças de tal natureza
numa sociedade.

72 Todas as citações desta seção são referentes a esse trabalho. Os dois quadros que se seguem são
construídos com trechos extraídos das páginas 83 e 84 no primeiro e 88 e 89 no segundo.
73 Pequeno agrupamento de casas na zona rural francesa que ficava no entorno de uma cidadezinha
ou vilarejo (bourg).

- 120 - A História de Neide


A condição camponesa em baile
A cena de um baile local em que os solteiros reúnem-se à parte serve para iluminar
e dissecar o choque cultural entre o campo e a cidade e a consequente desvaloriza-
ção dos jovens do campo quando as categorias urbanas de julgamento penetram
no mundo rural. Como a educação e a posição social levam as jovens a serem sen-
síveis à “apresentação” (aparência, vestimenta, porte, comportamento), bem como
abertas aos ideais urbanos, elas assimilam os padrões culturais vindos da cidade
mais rapidamente que os rapazes, o que condena os últimos a serem medidos por
parâmetros que os desvalorizam aos olhos de potenciais cônjuges.
O baile de Natal descrito é realizado em um salão nos fundos de um café. No
meio da pista, uma dezena de casais dança, com muita facilidade, os ritmos da
moda. São principalmente os “estudantes”, isto é, os alunos do curso secundário
e dos colégios dos vilarejos vizinhos, a maioria proveniente do bourg. Dentre as
jovens na pista de dança, várias vêm dos recônditos dos hameaux mais distan-
tes, vestidas e penteadas com elegância, às vezes de maneira estudada; outras são
de cidades maiores e lá trabalham como costureiras, empregadas domésticas ou
vendedoras. Todas têm a aparência de moça da cidade. Algumas jovens, mesmo
meninas de doze anos, dançam entre si, enquanto os rapazes andam uns atrás dos
outros e se empurram em meio aos casais que dançam.
Em determinado momento uma jovem vai até o canto dos solteiros e tenta car-
regar um deles para a pista. Ele resiste, constrangido, mas contente. Dança uma
música só, exagerando, de propósito, a inabilidade e o peso de seus pés, um pouco
à maneira dos idosos quando dançam no festival; ele fica olhando para trás, rindo
para seus companheiros. A dança termina, senta-se e não dançará mais. “Aquele”,
uma pessoa diz a Bourdieu, “é o filho de fulano (um grande proprietário); a jovem
que veio tirá-lo para dançar é uma vizinha. Ela fez isso para animá-lo”.
Mais tarde, os solteiros voltarão bem devagar, em pequenos grupos, para suas
fazendas distantes do vilarejo. Não dançam e não têm essa esperança. O habitus
camponês os impede de despertar interesse nas meninas, pois é, para elas, exata-
mente a corporificação da realidade da qual pretendem fugir. Um caminho possí-
vel para tal é vislumbrado por meio de um casamento com um jovem da cidade…
Esse pequeno baile do interior dá ocasião a um verdadeiro choque de civilizações.
Nele é todo o mundo da cidade, com seus modelos culturais, sua música, suas

Feirantes - 121 -
danças, suas técnicas corporais, que irrompe na vida camponesa. Os modelos tra-
dicionais dos comportamentos em festas se perderam ou deram lugar a modelos
urbanos. Nesse domínio, como em outros, a iniciativa é das pessoas do bourg. Ele
também ilustra a observação crítica dos moradores da cidade, hábeis para perce-
ber o habitus do camponês como uma verdadeira unidade sintética, fica claro para
o camponês, a camponesa (que busca ao máximo demonstrar aderir aos valores e
modelos urbanos) e o jovem da cidade, quem é quem nesta “dança” dos distintos
habitus. (p. 83-4)

É observando cenas como essas que Bourdieu irá explicitar que as jovens
camponesas procuram ao máximo ter a aparência de moça da cidade. São
os jovens da cidade que despertam seus interesses nesses bailes. Os campo-
neses solteiros praticamente não dançam, afinal, o que se denomina “jeito
camponês” é, sem dúvida, uma característica da qual não podem fugir. Por
estarem particularmente atentas e sensíveis, devido a toda sua formação
cultural voltada para a aderência e incorporação dos valores urbanos, aos
gestos e atitudes, aos trajes e ao conjunto do comportamento dos seus pre-
tendentes, predispondo-se a julgar a personalidade dos jovens a partir da
aparência exterior, as moças, mais abertas aos ideais da cidade, julgam os
homens do campo segundo critérios que lhes são alheios. Ao serem avalia-
dos segundo esse padrão, eles são desvalorizados. (p. 86)
Como o camponês internaliza, por seu turno, a imagem desvalorizada
que os outros formam de si a partir das categorias urbanas, sua autoestima,
seu comportamento e até mesmo o modo como fala ou anda são vistos por
eles mesmos como obstáculos incontornáveis à abordagem de uma jovem
para a dança, com a possível consequência de estabelecer alguma aproxi-
mação a partir dessa iniciativa.
Consequentemente, “é por apreender seu corpo como corpo de campo-
nês que tem dele uma consciência infeliz”. (p. 87)

Essa consciência infeliz de seu corpo, que leva o camponês


a deixar de se solidarizar com seu corpo (diferentemente do
morador da cidade), que inclina o camponês a uma atitude
introvertida, raiz da timidez e do enviezamento, impede-o

- 122 - A História de Neide


de dançar, de ter atitudes simples e naturais na presença das
moças. De fato, embaraçado em relação a seu corpo, ele fica
desconfortável e sem jeito em todas as situações que deman-
dam extroversão e nas quais seu corpo é posto em cena. Pôr o
corpo em cena, como na dança, supõe que se admita exterio-
rizar-se e que se tenha uma consciência satisfeita da imagem
que se passa para os outros. Ao contrário, o temor do ridículo
e a timidez estão ligados a uma consciência penetrante de
si mesmo e de seu corpo, a uma consciência fascinada pelo
estado físico. Assim, tal aversão à dança nada mais é que uma
manifestação dessa consciência penetrante da condição cam-
ponesa, que também se exprime, como já se viu, no riso e na
ironia em relação a si mesmo; especialmente nas histórias jo-
cosas cujo anti-herói é sempre o camponês confrontado com
o mundo da cidade. (p. 87)

Eis a origem social da infelicidade do camponês em seu corpo. É tam-


bém para fugir de conviver e compartilhar essa infelicidade que as jovens
camponesas se projetam para a cidade, também alimentando a esperança
e se moldando para conseguir um casamento com um jovem “urbanizado”.

A mulher do campo e o casamento


Se as mulheres são muito mais aptas e mais dispostas que os homens para adotar
os modelos culturais urbanos, tanto corporais como indumentários, isso se deve
a diversas razões convergentes. Em primeiro lugar, elas são bem mais motivadas
que os homens para adotar tais modelos, uma vez que a cidade representa para
elas a esperança da emancipação. O atrativo e a influência exercidos pelas novas
técnicas e pelos novos produtos em prol do conforto, pelos ideais de civilidade e
pelas diversões oferecidas pela cidade, devem-se ao fato, em grande parte, de que
neles se reconhece a marca da civilização urbana, identificada, correta ou incorre-
tamente, à civilização. A moda vem da cidade grande, o modelo se impõe de cima
para baixo. As mulheres aspiram fortemente à vida citadina e essa aspiração não
é sem razão, pois, segundo a própria lógica das trocas matrimoniais, as mulheres
circulam de baixo para cima. Portanto, é do casamento, antes de mais nada, que
elas esperam a realização de suas expectativas. Ao porem todas as esperanças no

Feirantes - 123 -
casamento, elas são fortemente motivadas para se adaptar, adotando a aparência
da mulher urbana.
A camponesa fala bem a língua da moda urbana porque a entende bem, e a
entende bem porque a “estrutura” de sua língua cultural a predispõe para isso.
O que os camponeses e as camponesas percebem, tanto no morador da cidade e
no mundo da cidade como também nos outros camponeses, é em razão de seus
respectivos sistemas culturais. Daí decorre que, enquanto as mulheres adotam ini-
cialmente os signos exteriores da “urbanidade”, os homens tomam emprestados
modelos culturais mais profundos, em particular nos domínios técnico e econô-
mico. Também é compreensível que seja assim. A cidade é, para a camponesa,
antes de tudo a grande loja de departamentos. Mesmo que algumas dessas lojas se
destinem, de fato, a uma minoria, grande parte delas se dirige a todas as classes.
Em resumo, ela não vê senão, como se diz, o lado bom da cidade. Daí se compre-
ende, por um lado, que a cidade exerça verdadeiro fascínio na jovem camponesa e,
por meio da cidade, também os homens citadinos; por outro lado, compreende-se
que a jovem camponesa empreste das mulheres da cidade os signos exteriores da
condição das citadinas, ou seja, aquilo que conhece dessas mulheres.
Na cidade, por meio das revistas quinzenais femininas, dos folhetins, das histó-
rias dos filmes, das canções da moda transmitidas pelo rádio, as moças empres-
tam também os modelos da relação entre os sexos e um tipo de homem ideal,
totalmente oposto ao camponês “rústico”. Assim se constitui todo um sistema de
expectativas que o camponês não poderia preencher. Em virtude da dualidade dos
quadros de referência, consequência da diferente penetração dos modelos cultu-
rais urbanos em ambos os sexos, as mulheres julgam seus conterrâneos campone-
ses segundo critérios que não lhes dão nenhuma chance. (p. 88-9)

Como o leitor pode observar, a história de Neide até aqui tem diversas
similaridades com tais observações e análises. Em particular, sua determi-
nação em não continuar a vida no campo, assim como as jovens francesas
empenhadas em se projetar para a cidade. Eis o porquê da interrogação
entre parênteses no título da seção, afinal, muito do que o sociólogo francês
detectou também pôde ser observado de modo determinante na história
de vida da feirante.

- 124 - A História de Neide


Vida adulta na cidade
Quando terminou o segundo grau, sua mãe estava construindo uma casa
na cidade. Neide diz mal ter esperado que “fosse coberta, que tivesse por-
tas...”, pegou sua irmã mais nova e se foi, mesmo sem dinheiro suficiente
para manterem-se, “eu sou muito ousada, muito corajosa. Quando quero
tomar uma decisão, eu tomo mesmo, não quero nem saber”. Acreditava que,
como já conhecia a vida da cidade, poderia arranjar um emprego, assim
como as mulheres de lá. Além disso, “a gente não era tão feia e no comércio
lá a aparência, sabe, contribuía pra tudo”. Neste ponto demonstra noção
de um dos requisitos para ocupar um posto no mercado de trabalho que
ela acreditava atender, a boa aparência. A esse se somava o antigo segundo
grau completo.
Já na cidade, sua irmã também logo arrumou um emprego para traba-
lhar uma vez por semana. Mesmo assim, o dinheiro que ganhavam não lhes
era o suficiente. Neide nos conta que não tinham quase nada para comer,
“só era o feijãozin na água de sal, a gente fechava as portas pra ninguém
chegar e ver o que a gente tava comendo”. Mas ela não desistia e estava dis-
posta a praticamente tudo para conseguir um trabalho: “a necessidade tava
falando mais alto. O que pintasse no momento a gente pegava. Nem que fosse
um emprego doméstico...”.
Um dia, enfim, conseguiu arrumar um emprego num supermercado. Na
realidade, foi contratada para tirar as férias de uma funcionária, mas termi-
nou ficando com a vaga, como conta orgulhosa:

No retorno dela, eu sairia, só que ela saiu e eu fiquei. Era uma


funcionária que tinha cinco anos de empresa. De repente, uma
novata com apenas trinta dias fica, mas eu conquistei a con-
fiança e fui promovida. Passei a ser cargo de confiança até o
final. Foram nove anos de carteirinha fichada.

Quando entrou lá, seu patrão dizia, “você tem que vim todo dia bem bo-
nitinha, cabelo bem arrumadinho, usar um batonzinho. Tão iniciando, não

Feirantes - 125 -
tem dinheiro, a gente faz um valezinho aqui tem batom, vocês compra mas
vem tudo bonitinha...”. Foi lá no supermercado, onde começou como caixa
e chegou a ser tesoureira, que aprendeu a fazer a contabilidade e a organi-
zar as finanças de uma empresa. Aqui a observação do pai agricultor-co-
merciante-“matemático” e a escolarização realizada, mesmo que sem tanto
empenho, podem ser consideradas como experiências prévias que possibi-
litaram a Neide incorporar e apresentar as disposições requisitadas no tra-
balho. Na realidade, a grande vontade de se firmar na cidade lhe abastecia
de forças para superar tanto as limitações que tinha quanto as dificuldades
que surgiam nesse caminho.
Mas esse emprego foi apenas a primeira de muitas experiências que teve,
aliás, ainda quando estava nele, Neide já comprava e vendia confecções,
tinha suas “virações”, como nos disse. Depois que o patrão vendeu o super-
mercado, ela comprou um ponto comercial no centro com sua indenização,
também passou a emprestar dinheiro a juros (como agiota), teve uma fabri-
queta de bolsas e, por último, antes da barraca de alimentação na Feira de
Caruaru, prestou serviços para a prefeitura do seu município natal.
Foi na cidade, por meio disso que chama de “virações”, que Neide con-
quistou sua autonomia econômica, no entanto, isso não era suficiente para
a realização do seu “sonho de vida”...

Casamento, nascimento dos filhos e


separação
Ainda quando trabalhava no supermercado, Neide casou e teve seus fi-
lhos. Ela já tinha assumido um cargo de confiança e ganhado um aumento
com isso, ele trabalhava com o pai numa loja de móveis na cidade. Depois
de seis anos de namoro, casaram-se quando ela tinha vinte e três anos. Não
durou muito tempo sua felicidade. Na época do namoro, ele era bom para
ela, demonstrava amor, mas, depois do casamento, a rotina chegou muito
cedo. Ela começou a engravidar – foram três em sequência, a filha mais
velha estava então com vinte e um anos, o filho com dezoito e a mais nova
com quinze.

- 126 - A História de Neide


Ele começou a fazer amizade, aí me deixava subir sozinha pro
trabalho, em casa tinha uma pessoa que me ajudava com os
meninos, aí já começava a chegar dez, onze meia da noite,
foi perdendo o controle. Aí foi chegando sempre mais tarde,
os problemas começaram a surgir muito cedo, com seis anos
de casado os problemas surgiram, eu ainda fiquei doze anos
alimentando e pensando naquela idiotice “amanhã é outro dia,
ele pode mudar”. Fui dando oportunidade, mais oportunidade,
mas ele nunca mudou. Até que eu pedi muita força a Deus, foi
quando eu comecei a pedir ajuda, é como se diz, a católico, a
evangélico, eu me vi perdida, sabe? Aí pedi muita ajuda [...] foi
muito forte até Deus tocar meu coração: “É agora, Neide, sai
daí”. Aí um determinado dia ele “estreou” uma garota lá e eu
esperei uns quinze dias. Aí mandei, muito tempo de luta, fiz
tudo pra viver, mas não deu, disse: –“Hoje você vai arrumar
sua malinha e vai embora”.

Quando a conhecemos na feira, já fazia quatro anos que Neide havia


se separado. Mas a história deste relacionamento ainda era contada com
a tristeza que a lembrança do sofrimento vivido lhe trazia. A coragem e
ousadia que ela dizia ter (“eu sou muito ousada, muito corajosa. Quando
quero tomar uma decisão, eu tomo mesmo, não quero nem saber”), ao falar
sobre como decidiu ir para a cidade com a irmã, parecem ter lhe faltado ao
postergar a decisão do fim do casamento. O estigma da mulher desquitada
parece ter sido o fiel da balança para que ela aguentasse tantos anos de
sofrimento até decidir se separar, ou seja, a noção que tinha de ser “mu-
lher independente” não lhe era suficiente para suportar a vida e o rótulo de
mulher desquitada. Se, ao decidir ir para a cidade, os valores sociais tidos
como verdades autoevidentes74 a apoiavam, no caso da separação não, ela
não tinha como lastro para “sua” coragem e ousadia a “opinião pública”
favorável.
Depois da separação, o sonho de vida na cidade tornou-se um pesadelo.
Neide passou a não gostar mais de lá. “A vontade era de tá longe de tudo
aquilo ali pra não tá nem ouvindo o pessoal falar besteira.” Sentiu na pele a

74 O que Bourdieu denominou de doxa.

Feirantes - 127 -
dura realidade que teria de enfrentar se tivesse de continuar a morar naque-
la pequena cidade interiorana, na qual passou a sentir outros efeitos sociais
do conservadorismo.

Caruaru e a barraca na feira


O caminho que encontrou foi seguir para outra cidade maior. Faz três
anos que Neide mora e trabalha em Caruaru, “já tem dois anos que eu com-
prei minha casa, já estou estabilizada, agora eu já sou uma caruaruense”, fala
sorrindo, de modo completamente diferente de quando falou do casamento
frustrado. Em Caruaru, Neide procura reconstruir sua vida após ver “seu”
sonho de criança-adolescente transformado em pesadelo.
Neide diz que já alimentava o desejo de botar algum negócio na Feira
de Caruaru há tempos, “eu sempre fui apaixonada por essa feira da sulanca.
Sempre tive a maior paixão de tá aqui”. Mas abrir um negócio numa cidade
maior não teria sido o caminho encontrado para fugir do passado que a
atormentava?
Foi um colega que lhe deu a ideia da barraca de lanches. Neide então
começou a procurar um ponto com todo cuidado necessário.

Não é só você chegar, olhar assim a lanchonete é um negócio


que tá à venda, chegar e entrar. Tem que ter segurança total,
primeiro consultando Deus, manter a calma e esperar... Mas
tem que ter segurança total, não é... Tem que pesquisar, tem
que observar o movimento pra ver se compensa, pra investir
hoje tem que ter retorno.

Resolveu-se por entrar nesse novo ramo e comprar a lanchonete. “Já era
um pontinho feito, como se diz, né? Já tinha a clientela toda certinha, aí eu
venho tocando o negócio já há três anos. Nunca me arrependi”. Sua barraca é
simples, porém bem localizada, fica num dos principais corredores entre as
vias internas da feira. É feita de alvenaria e tem balcão coberto de azulejo.
Lá ela e seu filho vendem lanches básicos, folhados, coxinhas e bolos que
compra de uma fornecedora. Sanduíches, sucos e caldo de cana são feitos
na barraca mesmo.

- 128 - A História de Neide


Neide diz gostar muito da feira e do seu negócio, mas diz também que
“tá faltando hoje aqui é só o atual prefeito organizar, né? Tirar a feira não,
como existe muitos comentários, organizar pra melhorar. Esse pessoal que
trabalha nas pontes, então deviam entrar aqui, trabalhar nessas barracas
pra todas funcionarem [mostrando algumas barracas fechadas que não estão
sendo utilizadas]”. Pensa ela que, se as demais barracas hoje fechadas tam-
bém fossem abertas, poderia melhorar o movimento na feira.
Neide abre sua barraca diariamente às seis e meia da manhã e fecha por
volta das três horas da tarde, mas, se tiver movimento, fica até quando ne-
cessário. Calcula o lucro por semana. Primeiro reabastece tudo o que é ne-
cessário ao funcionamento da barraca, depois paga as contas e então diz
“esse é lucro”.

Tudo tem que ir pra pontinha do lápis. Meu filho já apren-


deu isso. Então ele sabe que nem tudo que entra aqui é lucro.
No final da feira, tem que fazer o quê? É como se diz “fechar
as portinhas”, fazer o caixa e ver o que tem que repor... Se so-
brou x, isso é lucro, ele aprendeu essa parte também. Aí dá pra
manter...

A experiência de trabalho com a contabilidade de uma empresa foi o


contexto profissional no qual Neide atuou por anos e que, com certeza,
mais do que lhe permitiu, cobrou dela que desenvolvesse aptidões para o
cálculo e registro econômico.
Hoje, sua esperança é de que o filho toque o negócio num futuro bem
próximo. Ela acredita estar preparando-o para assumir seu lugar. Quer
transmitir-lhe o valor de suas conquistas e orientá-lo, na administração fi-
nanceira, a fazer como ela faz. No entanto, nas oportunidades em que tive-
mos contato com seu filho, não percebemos nele o interesse que ela afirma
que ele tem pelo negócio.

Feirantes - 129 -
Valores e vida hoje
“A família da gente é muito unida, ninguém tem inimizade com ninguém”.
O único problema sério que teve foi com um dos seus irmãos quando ain-
da morava no sítio. Esse irmão era muito desobediente aos seus pais, mas
como ele já trabalhava, sua mãe pediu-lhe um dinheiro emprestado. Certo
dia ele veio cobrar o dinheiro de volta, mas ela não pôde pagá-lo e ele foi
rude e agressivo, “partiu pra cima dela”. No outro dia quando sua mãe, cho-
rando, lhe contou a história, Neide diz que: “aí eu reagi, peguei pesado, fui
pra cima dele. Mas imagina uma mulher com um homem. Fui pra cima pra
porrada mesmo. A gente ficou um tempo sem se falar...”. Mas depois ele foi
ao casamento dela e lá fizeram as pazes.
O exemplo da mãe lhe foi muito forte, em especial por ter vindo de onde
ela veio, no sentido de como uma mulher pode dar conta de situações difí-
ceis. “A minha mãe tinha saído de um berço de ouro, casou com meu pai, não
sabia o que era uma enxada e depois que casou, com vários filhos pra criar,
teve que ir aprender a ir pra roça, com uma enxadinha nas costas pra poder
ganhar a vida.” Foi sua mãe quem “cuidou daquele monte de crianças com a
maior responsabilidade e praticamente sozinha”, depois da cegueira do pai e
da ida dos irmãos para São Paulo. Neide diz que foi ao vê-la naquela situa-
ção que aprendeu a ser independente.
A sua independência, em especial econômica, é motivo de muito orgu-
lho e pode ser observada em sua visão sobre os homens, “muito machistas75
de um modo geral. Tem alguns que nem aceitam casar com mulheres que
tenham uma situação financeira melhor de que as deles [risos], não aceita
não. O pai dos meus filhos era assim”.
Ao longo de sua vida, Neide acredita ter mudado muito, em particular
nos últimos anos depois da separação. Perguntada sobre qual seria uma das
suas qualidades, ela responde ter muitas, mas destaca “a honestidade acima
de tudo, o meu carisma com todo mundo. Eu respeito mais as pessoas depois
que conheci a Deus”.

75 Para ela, ser machista: “É ignorância, a mulher não pode conversar com um homem porque se
conversar já tá rolando... É liberdade zero!”

- 130 - A História de Neide


Religião
Desde criança sempre foi católica, mas naquela época era muito mais
para ocupar o tempo do que por fé, “ia mais por diversão, na tarde de do-
mingo, como não tinha o que fazer, ia para a igreja... Quando eu vim aceitar
mesmo, ser mais praticante e conhecer a Deus eu já tava no auge dos pro-
blemas, do meu sofrimento”. Foi na crise do seu casamento que ela teve “a
oportunidade de conhecer a Deus”.

Às vezes eu sinto vontade mesmo, eu vou com aquela sede as-


sim de Deus, eu digo eu vou falar com Deus hoje, aí sempre que
eu vou, eu tenho a resposta que eu quero. Outro dia eu tava tão
triste na missa da graça, era uma segunda-feira pedindo tanto
a Deus por meus filhos... vim entregando a Deus: –“Senhor
tenha o controle dos meus filhos, o Senhor pode tudo e eu estou
colocando os três na sua mão”. Quando termina a missa, que
vou saindo: –“Mainha”! Quando eu olhei: Meu filho. Nossa!
Tive uma alegria tão grande que eu cheguei no paraíso, ele tava
morando com o pai, eu pedi tanto que Deus me trouxe ele.

Ela acredita que a religião influencia nosso caráter e que todo ser huma-
no tem que ter uma religião, “seja ela católica ou evangélica, ele tem que ter,
tem que ter conhecimento e tem que seguir”. São as necessidades da vida que
a motivam a frequentar a Igreja.

Se eu participo de um grupo religioso e vou de vez em quan-


do pra um encontro religioso, ali pra mim é como uma escola.
Porque tem os temas, acontece, cada louvor digamos que tem
um tema. “Como lidar com filhos no dia de hoje?” Tem o de-
bate todinho, tem o louvor, a gente reza, canta música, cada
música mais bonita que a outra. É sempre assim, então eu vou
aprendendo. Se eu me afasto, eu fico perturbada mentalmente.
Se eu tô ali, se eu tenho dúvida numa coisa: –“Meu Deus, por
que isso tá acontecendo com minha filha? Aí Deus diz: -“isso é
uma provação, ela tem que passar por tudo isso pra que um dia
venha dar valor a mãe que teve”.

Feirantes - 131 -
A religião veio a ocupar o lugar que ficou vazio do sonho da vida na cida-
de com os anos de sofrimento no casamento com um homem de lá. Neide
demorou para aceitar sua infelicidade corroendo o sonho que sonhou. Foi
preciso, então, se apoiar em algum novo conjunto de valores. Foi na religião
que encontrou o amparo para se reconstruir diante da vida despedaçada,
o que dá sentido à comparação com uma escola, afinal, a igreja ocupou o
lugar da escola (na adolescência) rumo a uma nova vida.

Estilo de vida, economia e hábitos de


consumo
Neide acorda bem cedo para ir à feira abrir a barraca. Também dorme
muito cedo, no máximo às oito da noite já está na cama. Não tem emprega-
da em casa, pois “não tem nenhuma necessidade”. Ela e sua filha fazem tudo,
o filho às vezes ajuda. Não assiste muito à TV, mas quando o faz é um pro-
grama religioso de que gosta, mesmo assim não assiste muito, “eu vim ter
uma televisão quando eu tinha vinte e três anos... Quando essa televisão veio
entrar eu já tava trabalhando, o tempo já era curto. Eu chegava em casa, eu
chegava cansada, então eu ia tomar um bainho, tomar um cafezinho e tchau.
Sempre foi essa rotina”. Também não é de ler, nunca gostou, mas quando
o faz é também por motivo religioso e nos mostra uma bíblia que guarda
debaixo do balcão da sua lanchonete.
A vida de Neide gira em torno de uma rotina de trabalho incorporada
desde a infância, uma vida-trabalho – a disciplina nos horários e a pratica-
mente ausência de atividades de lazer, salvo as idas que diz fazer à igreja e
ao shopping – a este segundo com menos frequência.
A casa própria em Caruaru foi uma conquista que aconteceu cerca de
um ano após sua chegada na cidade. Neide nos conta com vaidade e deta-
lhes o que ela providenciou para morar bem. Além disso, também se pre-
ocupa em justificar o fato de a casa ser grande, ter espaço para guardar
carros, mas não ter um.

Eu comprei uma casa há três anos, digamos assim, 99% pronta.

- 132 - A História de Neide


Ela havia passado por uma reforma há um ano. Com muro
alto, portão de alumínio, toda na cerâmica, sabe? Aí eu fiz o
quê? Rebaixamento com gesso, gosto dumas coisinhas bem de-
coradinhas, textura... gosto de morar bem, gosto de conforto
em casa... É uma casa boa que qualquer pessoa da minha si-
tuação financeira, uma pessoa arremediada, gostaria de ter.
Toda bem decorada, a casa é completa... É grande, tem espaço
pra três carros só que o único carro que tem agora é da minha
irmã, mas não por questão de não ter condição, sabe?... É por-
que eu quero um carro pra família toda andar, mas o único
motorista que tem, esse jovem aqui, não é habilitado, mas no
futuro nós vamos ter.

Hoje ela sente ainda mais falta do lazer que afirma nunca ter tido. Está
cansada e quer mais tempo para viajar no final de semana, “a minha vida
só é de casa pra essa lanchonete, dessa lanchonete pra casa e uma missa
no final de semana... Até hoje eu me sinto uma verdadeira escrava do
trabalho.” Apesar disso, ela acredita que valeu a pena seu esforço pela esta-
bilidade econômica que conquistou. O modo como nos falou de sua casa,
de como ela é, do que tem nela, demonstra a necessidade que Neide tem de
confirmar para si mesma que valeu a pena toda sua dedicação ao trabalho.
“Comprar e pagar e não ter nenhum débito com Deus. Porque um dia a
morte vai vim pra todos nós. Então se você pegou, comprou aqui e não pa-
gou, vai ter que prestar conta a Deus, vai sim.” Talvez esta frase sintetize as
preocupações de Neide em relação ao modo como lida com o consumo e
com seu comportamento econômico de modo geral. “Eu tenho prazer de
comprar e pagar. ... Puxa vida, você não comprou, por que você não paga?”
Ela também não gosta de dever, raramente compra a prazo, “não gosto de
prestação. O bom é você ter o seu dinheiro no bolso, saber que não tá devendo
pra ninguém, isso é uma maravilha.” E emenda nos dando, envaidecida, o
exemplo da moto que comprou recentemente para o filho.

Na loja eu comprei a dinheiro, a moto emplacada e documen-


tada, só fizeram me entregar ela pronta... Hoje é dele, dele
mesmo. Eu peguei uma pequena parte dele em dinheiro agora

Feirantes - 133 -
no final de ano pra poder dar continuidade, fazer por onde
economizar, poupar pra chegar numa moto melhor...

Para juntar e guardar seu dinheiro, tem uma poupança no banco, “pro-
curo fazer minha economia pra poupar, o que me sobra eu faço minha pou-
pancinha”. Além da renda da barraca, tem também um imóvel no seu mu-
nicípio natal, que pretende vender e, com o dinheiro, comprar casas para
alugar em Caruaru.
Neide nos revela que gosta “de comprar roupa cara, eu gosto. Eu venho
trabalhar bem simplesinha, mas uma roupa pra eu sair não tem muita piran-
gagem não”. Afinal, seria de estranhar se Neide não se deixasse ao menos
neste quesito se levar pelas tentações da cidade, ou seja, sua disciplina eco-
nômica é quebrada em relação a “roupas”. É por meio desse tipo de consu-
mo que ela se sentirá realizando o sonho de infância.

Eu vou atrás da marca... marcas famosas. Aí sabe o que eu


espero? Quando elas estão numa liquidaçãozinha. Aí eu dou
uma chegadinha, inclusive ontem até seis horas eu tava nessas
lojas. Já tem algumas liquidações, começaram com desconto
de 30%, vai chegar aos 50%, aí é nessa hora que eu pego e caço
uma comprinha. Se for no dinheiro, já tem um desconto bem
melhor.

Neide conta que “as roupas que compro uso quando saio no final de sema-
na e vou no shopping... na missa também vou mais arrumadinha. Aqui eu
venho simplesinha... Eu já fui assaltada uma vez” – assim nos justifica como
está vestida na feira.

Filhos: Educação e orientação


Se há algo que Neide se esforçou para passar para os filhos foram seus
“mandamentos econômicos”, suas práticas de (1) só comprar o que se pode
pagar, (2) pagar tudo o que comprar e (3) poupar o máximo que puder. “Só

- 134 - A História de Neide


compre aquilo que você tem condição. Se você ganha, por exemplo, um salá-
rio mínimo, digamos que seja de quinhentos reais, só gaste duzentos, poupe
trezentos. Aconselho eles assim, trezentos pra poupar”.
Mas, ao mesmo tempo, observa que “a situação dos meus filhos hoje não
é a mesma que a minha, já é em cima. Eles já tão tudo feito, tudo instruído,
já não têm aquela garra que eu tenho, não têm.” O que não a impede de
mostrar para eles a importância e o valor de trabalhar, de ganhar, cada qual,
o seu dinheiro. Mesmo observando que seus filhos partiram de uma con-
dição familiar e econômica diferente da sua, Neide procurou educá-los de
modo similar como foi educada.

Chega nessa fase, que os filhos passam dos treze anos, eles tem
que trabalhar sim, a justiça diz que não, o Conselho Tutelar diz
que não, que ainda é considerado uma criança, que tem que
viver batendo uma bolinha, mas é a partir daí que os pais, se
não tiver cuidado, eles viram vagabundo mesmo, não tem res-
ponsabilidade com nada. Trabalhar depois dos dezoito anos?
Não, ele tem que sentir a forcinha desde cedo. Eu me divorciei
tem quatro anos, e eu não senti peso algum em ficar com meus
três filhos e cuidar deles. Nunca me faltou nada nem pra mim
nem pra eles, nem o que vestir, nem o que calçar, nem dinheiro.
Aí eu passo pra eles quando eu converso, que o diálogo tem
que existir sim entre família, principalmente na minha situa-
ção que eu sou mãe e pai só. Tem que existir, eu separei, mas o
pai dele é um homem honesto que gosta de comprar e pagar. E
eu também gosto, mas nem sempre os filhos seguem a mesma
história dos pais. Nem sempre se preocupa em comprar e
pagar. Eu acho isso uma desonestidade...

Procurou colocá-los para trabalhar desde cedo, para aprenderem a “ga-


nhar a vida”, e nos conta como conseguiu um emprego recentemente para
sua filha mais nova.

Feirantes - 135 -
Eu tenho uma filha com quinze anos, para quem surgiu uma
oportunidade agora. Um colega chegou aqui, aí como minha
lanchonete hoje tá quase parada... aí eu disse tô com minha fi-
lha dormindo, é três anos que ela trabalha comigo, quer que ela
faça uma experiência com você, que lhe ajude hoje e amanhã...
tá com ele, ele aprovou no primeiro dia, com quinze anos, já
contratou salário mínimo mais hora extra e ela tá toda feliz.
Uma moleca, né? Quinze anos. Aí nós ficamos em dois aqui, eu
e ele [se referindo ao filho do meio].

Muito embora a filha ainda estude (pela manhã, e agora com o trabalho,
tenha que mudar o horário para a noite), mesmo que não fale, a prioridade
para Neide é o trabalho. O filho do meio, de dezoito anos, também estuda,
vai cursar o primeiro ano do ensino médio, mas não gosta, já repetiu duas
vezes. É ele quem está sendo preparado por ela para cuidar da barraca.

Meu filho é bem interessado. É bem interessado pra o negó-


cio, só é, como é que se diz, como agora ele tem uma moto, aí
ele não olha assim, hoje eu tenho uma moto então vou zelar
por essa moto, cuidar dela direitinho... Não pensa no risco que
corre, só quer andar em cima de 140... É o único lado negativo
dele é esse. Eu digo zele porque eu dei, agora você vai dar
continuidade. E eu o que eu tenho não foi presente de ninguém,
de ninguém, nem pai nem mãe.

Mas contrariamente ao que afirma Neide, como já comentamos ante-


riormente, seu filho não transparece ter qualquer interesse por tudo aquilo.
A impressão que tivemos foi de que, enquanto seu corpo está na barraca,
sua cabeça está em outro lugar.

- 136 - A História de Neide


A maior decepção da vida: O drama da
filha mais velha

Depois da separação, o outro grande drama da vida de Neide é a sua


filha mais velha. “Ela namorou um malandro, se envolveu, aí engravidou...
Enquanto tava comigo, não fez nenhuma besteira, agora isso foi maior de
idade já, dezoito anos.” Mesmo a contragosto da mãe, “eu conversei com ela,
disse ‘filha não se case! Se você faz questão de ficar com ele, faça o seguinte, se
junte, mas não case’”. Ela se casou com o rapaz. A mãe se lembra do dia no
qual recebeu a notícia: “foi num dia de terça-feira, fez um ano em agosto que
ela casou. Aí ela ligou umas nove horas, ela dizia assim: ‘mainha, eu acabei
de me casar...’ Tava eu e meu filho, eu chorei feito uma maluca aqui na bar-
raca o dia inteiro...”
Neide fala abertamente que o marido da filha quer levar “vida fácil”. Ela
conta que os trouxe para Caruaru no ano passado, no período em que a
filha estava de licença-maternidade, e arrumou emprego para os dois. Mas
de repente ele apareceu com um carro importado de luxo. Ela se pergun-
tou, “como é que um garotão de dezoito anos não faz nada e aparece com um
carro desses?”

Em resumo, quando eu tô em casa dia de sábado tocam na


porta, quando meu filho abriu, uma viatura procurando por
ela. Aí eu perguntei ... pra ver se eu ganho terreno nisso, ‘Dr. Eu
posso acompanhá-la?’ Ele disse: ‘pode’. ‘O que é que tá aconte-
cendo?’, ele disse: ‘Olhe aí o carro’. Eu olhei, meu genro alge-
mado, ‘ele foi pego com um carro roubado’. Eu morri na hora...
ela tornou-se cúmplice, teve que sair. Tá hoje morando com a
sogra e as duas não se batem, passa por todas as humilhações...
Pra mim foi a maior decepção da vida. Já olhei nela e disse:
Filha, pra que tanta boniteza?

Feirantes - 137 -
Diferentemente dela, a filha não soube fazer uso de sua boa aparência.
A feirante se lamenta, diz que não foi por falta de conselhos que isso acon-
teceu. “Eu dizia sempre a ela: ‘Filha, a mulher tem que ser inteligente na
hora de namorar, se envolver com malandro acaba com a própria vida’”. E
vê com muita tristeza o fato de uma filha não ter aproveitado as oportu-
nidades que uma mãe como ela proporcionou. “Teve a oportunidade de tá
fazendo um vestibular. Eu já me esforçando e ela nega a tudo porque ele disse
a mim: ‘eu não quero mulher minha estudando ... porque mulher que vai pra
faculdade, principalmente à noite, vai e acaba botando ponta no marido’.”

A vida que eu ofereci ela não enxergou, sabe? Não conheceu a


Deus, ainda não chegou a olhar pra trás e ver a vida boa que
eu ofereci, o luxo que ela teve. A vida que eu propus e ela não
deu valor a nada, largou tudo por um malandro que não tem
nada a oferecer. Ela leva a maior sorte de não tá no presídio
hoje.

Na época de nossas entrevistas, a filha, o marido e o bebê estavam mo-


rando num sítio. “Eu liguei pra ela um dia e perguntei: ‘você agora virou
matuta de sítio?’ Mesmo assim, ‘matuta de sítio’? ‘É essa a vida que você quer
pra você?’”. Lá viviam da ajuda dos pais dele – que Neide diz serem bem
humildes – e “ela e o bebê sou eu quem visto, quem calço e dou um realzinho
de vez em quando”.
Com muita vergonha, Neide diz que, com ele, a filha chegou a morar
em duas casas antes, e que acredita que em ambas ela deixou alguma conta
pendente. “Então isso pra mim foi a maior decepção da vida. A minha sepa-
ração não foi uma decepção, nunca me arrependi de ter casado com ele, não
foi. Agora o que a minha filha fez...”.
Diferentemente de todos os cuidados que Neide teve na adolescência e
na vida adulta na escolha de seus possíveis companheiros, sua filha não
foi tão criteriosa como ela. Em síntese, Neide pensa que seu casamento
“deu errado, mas eu escolhi certo”. O problema no caso de sua filha mais ve-
lha é que ela escolheu errado, se deixou levar por uma paixão, se envolveu
com “qualquer um” e, como se não bastasse, ainda feriu os mandamentos
da conduta econômica que Neide herdou do pai (pagar o que deve). Isso
machuca profundamente a feirante por fazê-la reviver sua dura “escolha”

- 138 - A História de Neide


autoimposta no passado. Sua filha mais velha não fez do mesmo modo...
Ver a filha levando a vida da qual tanto lutou para fugir, a vida de “matuta
de sítio”, ainda mais sem honrar com seus compromissos financeiros, é ver
o seu habitus não ser transmitido à filha, é ver todo o seu esforço ao longo
da vida não poder ser aplicado na estabilização ou projeção dos filhos para
uma vida melhor, é não ver reconhecido por uma filha, por meio de ações
práticas condizentes com seus “mandamentos”, toda uma trajetória de vida
de luta e de conquistas. Para Neide, é como se sua filha mais velha tivesse
jogado no lixo tudo o que ela tanto se esforçou para lhe proporcionar. Na
realidade, é essa a sensação que tem ao vê-la descendo na hierarquia de
classes, ou seja, caminhar rumo à “ralé” (Souza, 2009), quando a esperança
de Neide era vê-la ascender, como ela própria o fez ao longo de sua vida.

Futuro: O novo relacionamento e a


aposentadoria?
Neide nos conta que conheceu seu então futuro marido lá na feira mes-
mo. Ele tinha acabado de chegar de São Paulo e como estava com um bom
dinheiro, as mulheres “caíram em cima”, segundo ela. Depois que ele gastou
o dinheiro todo e ficou quieto, foi que eles começaram a namorar. Diz que
ele é liberal, que gosta de passear, sair, ir para bons restaurantes, e que “não
é pirangueiro, não mede esforço, sabe? Tendo, é pra gastar. Tem raiva quando
ele oferece e eu não quero.” A maior virtude que vê no seu novo companhei-
ro é ele “não ter nenhum vício”. Algo que admirava também em seus pais
e detestava em seu ex-marido – que, depois de algum tempo de casado,
passou a beber e farrar constantemente.
Além do novo casamento, ela revela que pretende em breve parar de tra-
balhar.

Aí quando chega na minha idade, aos 45 anos trabalhando


como eu já tenho, digamos assim, 25 anos de trabalho, de
luta, de muita garra aí já dá pra fazer uns investimentos e
parar. Aí os filhos dão continuidade, né?... É, uma parada as-

Feirantes - 139 -
sim, não vou ficar dentro de casa vinte e quatro horas, é lógico.
Eu venho praqui, ajudo ele nos dias principais, no horário da
manhã que dá mais movimento, e à tarde eu vou mais cedo pra
casa e meu filho fica até duas, três, até ver que é conveniente
pra ele fechar.

Mas, ao ser perguntada se não teria planos de ampliar os negócios, Neide


responde que sim, “pretendemos. Eu pretendo ter uma loja bem melhor, uma
loja de confecções. Eu tenho duas filhas... E o futuro tá aí nas mãos de Deus,
se for da vontade de Deus que eu tenha mais um negócio, é pra ter, trabalhar.”
Ou seja, a ideia de parar de trabalhar parece estar em aberto, caso surja uma
boa oportunidade de um novo e maior negócio...
Apesar de se dizer independente, Neide não parece ser o suficiente para
encarar a vida interiorana, mesmo que urbana, sem ser ao lado de um ho-
mem, ou seja, conforme os padrões. A virtude destacada em seu novo com-
panheiro nos apoia no sentido de indicar que, mesmo se dizendo muito
moderna, ela parece buscar alguém para ocupar a lacuna de seu casamento
fracassado, afinal, o que mais admira nele é a sua aparente ausência de de-
feitos graves, “vícios”.
Quanto ao futuro próximo, seus planos de aposentadoria e de viagens
parecem mais expectativas de classe média ou alta do que propriamente
suas. Será que Neide conseguirá viabilizar o sonho de viajar? Terão seus
filhos a sua garra para dar continuidade aos negócios ou expandi-los? Só o
futuro lhe dirá...

A vida de Neide em breve retrospectiva


analítica
Como vimos, a infância de Neide foi marcada pela dureza da vida-traba-
lho rural, que qualificou de “vida miserável”, mas que, ao mesmo tempo, fez
com que ela desde cedo incorporasse a disposição para o ascetismo no tra-
balho. Essa disposição ascética não foi plenamente estendida à escola, haja
vista que Neide não se mostrou uma estudante disciplinada, mas concluiu

- 140 - A História de Neide


os estudos por colocar em prática uma forte “disposição para crer” (Lahire,
2004) que, se assim o fizesse, poderia realizar seu grande sonho, que seria
“viver a vida” na cidade, fugir da “miséria” do campo.
Suas paqueras e namoros na adolescência são marcados por esse “desejo”.
Foi movida por ele que recusou “ótimos” pretendentes rurais, fazendeiros,
e que somente namorou, e depois casou, com jovens da cidade – tal qual
fenômeno social observado também por Bourdieu na França na década de
sessenta. Sabia que sua beleza lhe seria útil tanto para isso quanto para con-
seguir um emprego e foi assim que agarrou as oportunidades que surgiram
de trabalho e depois criou alternativas, “virações”, para manter algo muito
valoroso para ela, mesmo quando casada, sua independência econômica.
Os anos de trabalho com carteira assinada, como responsável pela contabi-
lidade de uma empresa, são motivo de orgulho até hoje em sua vida.
Mas o sonho da vida na cidade começou a se transformar em pesadelo
com as dificuldades no casamento. Foram anos de sofrimento, a ousadia
que dizia ter não se mostrou nesses momentos e, somente depois de longo
martírio, a “moderna” Neide conseguiu se separar com o apoio da religião
que a amparou. Na realidade, fez-se sua “nova crença” (em “substituição”
à da “felicidade na vida da cidade”) para suportá-la diante do conservado-
rismo que novamente lhe machucava. Carregar naquele lugar o estigma de
mulher desquitada era algo que, apesar de se dizer bastante forte e inde-
pendente, Neide não foi capaz de suportar. Ao tomar as reuniões religiosas
com uma “escola”, acredita ter incorporado por meio delas nova crença e
visão de mundo, novas disposições para pensar, sentir e agir diante daquele
contexto no qual sua vida se inseria – algo que, em parte, não fez nos tem-
pos de escola.
Apesar de relativo êxito e estabilidade econômica – que é como um gran-
de “troféu” para ela, conquistado a duras penas, afinal, ela mesmo nos dis-
se ter sido ao longo de sua vida “uma escrava do trabalho”, Neide tornou
virtude (em suas palavras, “realização de um sonho”) o fato de colocar um
comércio na Feira de Caruaru. De outro modo, podemos observar esse seu
momento de vida como resultante da sua necessidade de autojustificar sua
saída da cidade-sonho que se transformou em cidade-pesadelo com a se-
paração.
O ascetismo de seu modo de vida simples – sempre se acorda cedo, cuida
da casa, vai para a feira, retorna para casa, dorme cedo – somente é quebra-

Feirantes - 141 -
do pelo consumo de roupas “de marca”. É certamente aí que Neide realiza o
sonho da adolescência de ver-se como uma mulher urbana-moderna.
Muito embora tenha tentado bastante, e ainda tente, transferir aos filhos
seu habitus, em particular em sua dimensão relacionada ao trabalho, essa
tentativa não foi bem-sucedida em relação à filha mais velha, nem parece
estar sendo em relação ao do meio. Como demonstração desse empenho
de Neide, sua filha mais jovem, mesmo estando ainda em idade escolar, já
trabalha numa lanchonete – algo que nos foi contado com orgulho.
Neide diz gostar muito da feira e do seu negócio. Em A Distinção..., por
meio dessa categoria “gosto”, Bourdieu (2007) explica os mecanismos es-
truturantes da sociedade francesa de seu tempo ao afirmar que essa ideia
está atrelada à condição de classe e de possibilidades factíveis a partir dela.
O gostar surge, então, em muitos casos, como vimos também na história
de Justino, como autojustificação, ou mesmo autoengano, diante de não ter
conseguido coisa melhor na vida. Ou então com projeção do gosto da clas-
se da qual se quer fazer parte e se ver como tal, algo que podemos perceber
nas roupas que consome, no modo como descreve sua casa, nos seus planos
de aposentadoria e viagens. Ou seja, são planos condizentes com uma clas-
se da qual ela gostaria de fazer parte, e que é sua referência até mesmo no
modo como conta sua história e descreve suas práticas, mas da qual é, ao
mesmo tempo, vítima de preconceito (de classe) quando vai a uma loja de
roupas de marca, como ela mesmo diz, “feirada”.
Neide apresenta, ao longo de sua história, desejo, coragem, ousadia e so-
frimento em decorrência de sua imersão e visão de mundo de acordo com
determinado conjunto de valores sociais que funcionam para ela como ver-
dades autoevidentes também tomadas para si. Esse aspecto faz a sua histó-
ria de vida ser potencialmente similar à história de muitas outras pessoas
que hoje são feirantes. Afinal, o social se faz presente em nós muito mais do
que somos capazes ou nos permitimos observar.

- 142 - A História de Neide


CAPÍTULO 5
UM FEIRANTE-BATALHADOR
E SUA ADMINISTRAÇÃO76
[com Felipe Cavalcante Barbosa77]

Na pesquisa maior na qual este capítulo tomou parte, “batalhadores


brasileiros”78 (Souza, 2010) é o nome dado a uma nova classe trabalhadora
que pode ser associada a algumas características – fruto das contribuições
dos demais colegas então envolvidos naquela investigação, cruzadas com os
dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e com os demais
coletados ao longo da pesquisa de campo – sintetizadas abaixo:

- Tem renda entre ¼ e ½ de salário mínimo por membro da família


(Ipea);
- Trabalha mais de 44 horas semanais (Ipea);

76 Uma versão anterior deste texto foi publicado no volume organizado por Souza (2010).
77 Então estudante de Administração do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) da UFPE.
78 Neste texto estamos tomando como horizonte analítico um tipo deste batalhador que seria o “ba-
talhador feirante”. Aqui acolá escreveremos somente “batalhador”, mas sempre nos referindo a esse tipo
específico, o “batalhador feirante”.

Feirantes - 145 -
- Sua renda depende diretamente e pode ser ampliada pelo seu trabalho
(IPEA);
- Em geral, não concluiu o ensino médio, mas estudou alguns anos a
mais que seus pais;
- Tem atividade profissional melhor que a dos pais (em termos de reco-
nhecimento social);
- Tem como horizonte social a “pequena-burguesia” (Unger, 2008) não
somente em termos de bens de consumo a serem adquiridos, mas também
em termos de estilo de vida a ser almejado e, na medida do possível, segui-
do;
- Acredita que pode e trabalha para projetar os filhos rumo à ascensão
social já que seu tempo físico talvez não lhe seja suficiente para tal;
- Em geral, seus filhos têm um “ponto de partida” social melhor (em ter-
mos de disposições “herdadas” e/ou adquiridas na infância para a luta por
sobrevivência e êxito no mundo moderno) que os próprios batalhadores ti-
veram, pois concluem o ensino médio (ou mesmo chegam à Universidade);
- Apresenta dimensão moral-ética vinculada diretamente ao trabalho,
acredita piamente que, por meio dele, pode “crescer na vida” ;
- Incorporou no seio da família algo que o permite ascender socialmen-
te – um conjunto interligado de disposições necessárias à ascensão social
dessa classe, tal como a transmissão de exemplos e valores do trabalho duro
e continuado, mesmo em condições sociais muito adversas (Souza, 2010).

A história que aqui será contada é fruto de sólida pesquisa teórica e


empírica. Pedro é um “tipo ideal”79 construído com base na análise dos
diversos dados coletados, reunidos e articulados com referencial teórico
apresentado em apêndice específico neste livro. A construção deste perso-
nagem, de suas disposições e práticas administrativas, se deu no sentido de
responder às seguintes perguntas: Como um feirante-batalhador faz para
administrar seus pequenos negócios? Como aprendeu a fazer o que faz?
Como poderia aprender técnicas de administração pertinentes à escala de
seus negócios? Quais seriam as possibilidades nesse sentido? Norteados
por essas questões, nosso objetivo aqui é aprofundar o conhecimento sobre
a dinâmica dos “batalhadores feirantes” na sua administração, ou seja, bus-

79 Sobre esse método, ver o Apêndice O Método e Weber (1999).

- 146 - Um feirante-batalhador e sua administração


camos compreender como eles gerem seu principal meio de subsistência.
Eis o campo de batalha de Pedro. Vamos à sua luta.

Origem e trajetória
Filho de Seu José e de Dona Josete, um casal de agricultores que vivia
nos arredores de pequena cidade da região. Pedro lá nasceu e viveu seus
primeiros anos, mas logo veio, ainda menino, morar em Caruaru com os
pais. Mesmo nascidos e criados num sítio como aquele no qual moravam
com os filhos, os atrativos de uma cidade maior e de uma vida melhor,
com mais possibilidades para arrumar um trabalho para eles e, futuramen-
te, para os seus filhos, fizeram com que Seu José decidisse se mudar com a
família. Muito embora fosse o campo lugar mais tranquilo para se viver, em
sua visão, para “crescer na vida”, era preciso ir a um lugar que possibilitasse
arrumar trabalho melhor que a agricultura.
Seu José lia um quase nada com muita dificuldade. Praticamente não
estudara na escola da roça. Dona Josete estudou um pouco mais, mas não
o suficiente para que lesse com qualquer facilidade. Já o filho Pedro e seus
cinco irmãos, criados e crescidos em Caruaru, foram algo além, porém não
muito. Estudaram todos numa escola municipal, os quatro mais velhos cur-
saram algumas séries do antigo primeiro grau. Um deles quase o concluiu,
mas foi reprovado no penúltimo ano e desistiu. Não conseguiu persistir
como os mais novos. Pedro e a moça mais nova conseguiram, terminaram
o primeiro grau. No entanto, mesmo ele tendo certa facilidade com a mate-
mática, não aguentou ir além. A rotina era muito dura, trabalhar o dia todo
e de noite ainda enfrentar as agruras de uma escola pública.
O pai foi trabalhar em obras, virou pedreiro. Na cidade, Pedro fez quase
tudo. De ajudante do pai a balconista de armazém de construção. Começou
a trabalhar logo cedo, ainda no tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na
contagem, transporte e venda dos seus produtos agrícolas. Ia sempre com
ele vendê-los na feira da outra cidade (a pequena). Atendia aos compra-
dores, pesava as mercadorias, recebia e passava troco. Já naquele tempo,
aprendeu que o dinheiro que entrava não era todo para gastar, lembra viva-
mente o que seu pai sempre dizia: “apurado não é lucro, meu filho!” Já em

Feirantes - 147 -
Caruaru, um pouco maior, continuou desempenhando atividades similares
na bodega que seus pais montaram na frente da casa onde moravam.
Então com 43 anos, morava numa pequena casa de cinco cômodos com
a mulher, três filhos e a sogra, no bairro mais populoso da cidade, o Sal-
gado. As crianças, de oito, nove e quinze anos, passavam a manhã com a
avó e à tarde iam para a escola. A mais velha raramente aparecia na feira,
já estava no ensino fundamental. Lê com bem mais desenvoltura que o pai,
quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso. Sua esposa
trabalha com ele, acorda regularmente cedo de segunda a sábado. Até hoje
vão juntos para a feira, suas vidas estão também ligadas pelo comércio.
Aos domingos toma algumas poucas cervejas com os irmãos. Quando mais
novo, ainda batia uma bola com os vizinhos, mas hoje em dia, não se ar-
risca. A idade e a distância que se autoimpõe dos mesmos (que seguiram
outros caminhos diferentes do trabalho) não lhe permitem mais. Pensa no
exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias que espera para eles.
Como uma pessoa como Pedro administra seu pequeno comércio? Essa
é a questão-síntese que nos norteia.
Para que o leitor tenha clareza do que pensamos quando utilizamos o
termo administração, é preciso recuperar a definição apresentada no ca-
pítulo 2. Aqui, administração é entendida como o conjunto de atividades
necessárias ao planejamento e funcionamento cotidiano de um negócio.
Ou seja, são atividades que vão desde a escolha devida do local no qual
será aberto o negócio, definição dos horários de funcionamento, divisão e
monitoramento das atividades a serem desempenhadas pelas pessoas que
nele trabalham, controle financeiro, decisões sobre compras a serem feitas,
contas a serem pagas, trabalhadores a serem contratados (ou não), decisões
sobre melhorias a serem feitas na estrutura do negócio, ordenação dessa
estrutura e de sua aparência. Usamos o termo como sinônimo de “gestão”.
Antes de seguirmos, é preciso fazer um alerta e um convite ao leitor. O
modo como Pedro administra seu pequeno negócio pode ser bem diferente
do que se diz na administração que é encontrada nos círculos científicos,
nas grandes e médias empresas, nos manuais mais vendidos e utilizados
nos cursos da área – obviamente, esse fenômeno (o modo como pessoas
com esse perfil administram seus pequenos negócios) também não recebe
atenção das ciências sociais não aplicadas. Para melhor observá-lo, é pre-
ciso ampliar o horizonte da visão sobre o indivíduo-administrador e vê-lo,

- 148 - Um feirante-batalhador e sua administração


assim como suas práticas, como “produto”80, ainda em aberto, do repertó-
rio de disposições que foi capaz ou não de incorporar nos espaços sociais
em que viveu, ao longo de sua trajetória de vida.

Experiências profissionais prévias e a


administração do atual negócio
Antes de começar seu atual negócio, Pedro trabalhou com carteira assi-
nada numa transportadora de cargas de renome em Recife – indicado por
um primo que lá já estava havia certo tempo. Na capital, morou alguns anos
com a sua família. Na empresa, começou como estoquista. Com o tempo,
passou a orientar, ordenar e controlar os carregamentos melhor que seus
colegas. Depois de muito trabalho e com essa experiência, que o diferen-
ciava, recebeu uma promoção. Tornou-se “encarregado”. Fala com muito
orgulho disso. Mas, cada vez mais, se sentia aprisionado no regime de tra-
balho de uma grande empresa. Veio, então, a implantação de uma nova tec-
nologia de divisão de tarefas na estrutura produtiva. Depois de nove anos
de dedicação ao trabalho, veio também a demissão. Aos 32 anos, apenas
com o ensino fundamental completo, não encontrou possibilidades de con-
seguir um novo e “bom” emprego. Para gente como ele, muitas alternativas
não existiam.
Desempregado, veio visitar seus pais naquela pequena cidade onde eles
voltaram a morar. Um amigo de infância, agora feirante, sugeriu que fosse
à Feira de Caruaru, pois lá havia muitas possibilidades para ele. Foi nes-
se “passeio” que pensou tentar ganhar a vida por conta própria. Dentre as
oportunidades que vislumbrou, optou por “botar um banco na sulanca”.
Com o dinheiro da indenização do antigo emprego, comprou as primeiras
mercadorias (roupas e acessórios). Essa foi, por quase seis anos, sua única

80 É Bernard Lahire (2005b, p. 120, tradução nossa) o sociólogo contemporâneo que nos permite
avançar com segurança nessa relação entre contexto social e indivíduo. Para ele, “o indivíduo é o pro-
duto de múltiplas operações de dobramentos (ou de interiorização) e se caracteriza pela pluralidade
das lógicas sociais que ele interiorizou. Essas lógicas se dobram todos os dias de modo relativamente
singular em cada indivíduo”.

Feirantes - 149 -
fonte de renda. Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura
de um negócio de feira, conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um
ponto e montar um pequeno comércio. Como sua esposa cozinhava bem e
ele já tinha a experiência de feirante na feira da sulanca, resolveu abrir uma
barraca de alimentação na feira. Via nesse ramo a possibilidade de rápido
retorno do investimento e também pensava, em médio e longo prazo, pro-
piciar vida melhor para sua família. Na realidade, era a melhor dentre as
poucas alternativas que lhe eram viáveis. Isso já fazia cinco anos.
A barraca de Pedro fica num dos “polos” de alimentação da feira, entre o
mercado de carnes e o de farinha. Ele fala com orgulho sobre a escolha da
localização do seu ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprá-
-lo e que rejeitou muitos outros por não serem bem localizados, pensava
ele, “tem que ter um bom local, tem que ter boa visão”. Ela é bem simples,
tem os equipamentos necessários a uma cozinha, um balcão com bancos
altos fixos e três mesas com cadeiras que ele e sua esposa espalham para os
clientes na frente da barraca. Além de geladeira, congelador, fogão e demais
utensílios de cozinha, uma televisão de 20 polegadas está quase sempre li-
gada. Tanto eles quanto os clientes assistem a programas de auditório, noti-
ciários populares ou programas policiais, quando não está em exibição al-
gum DVD do sucesso do momento. Ainda não satisfeito com o que tem na
barraca, pensa em equipá-la com um microondas e uma nova e maior TV.
Durante esse tempo no ramo de alimentação, ele já fez algumas me-
lhorias em seu negócio. A primeira delas foi uma reforma no teto, no ano
passado, colocou piso de cerâmica, tirou o balcão de madeira, fez um de
alvenaria (revestido com cerâmica) e colocou os bancos fixos de ferro. Pro-
cura, ao mesmo tempo, melhorar a aparência e o ambiente no qual serve
os clientes e passa seus dias de trabalho com a esposa. Eles têm uma jor-
nada mais puxada não somente nos dias das grandes feiras, mas também
nas vésperas delas. “Como amanhã é dia de feira, então tem que tá tudo
limpinho e arrumado”, diz ela ao continuar ajudando-o na arrumação. As-
sim como Pedro, ela também parece ter consciência de que nos negócios a
aparência vale muito. O cuidado com a higiene da barraca e das comidas
é constante. “Uma coisa que se faz bem feita, não tem valor se não tiver
uma boa aparência”. Além disso, emenda, “tem coisas que não se ensina em
cursos: bom atendimento, qualidade no produto e preço competitivo”. Outro
cuidado, também constante, é com a economia, afinal, “tem que fazer as

- 150 - Um feirante-batalhador e sua administração


coisas direitinho, se não no final do mês fica no buraco”. Ele diz ter aprendido
como fazê-lo observando as barracas mais arrumadas que a sua, como os
proprietários delas faziam para mantê-las sempre “nos trinques” e terem
êxito nos negócios. Mas a experiência de trabalho lá em Recife também foi
significativa para que ele aprendesse a fazer tudo “nos conformes”, como
era exigido na transportadora.
Como preza bastante pela organização e aparência de sua barraca, ele se
sente prejudicado pela bagunça que vê tanto em algumas barracas vizinhas
como nos bares que ficam um pouco mais adiante. O som alto e algumas
brigas que acontecem são vistos por Pedro como coisas que afastam os seus
clientes e afetam a imagem do negócio que ele tanto cuida para fazer pare-
cer ao máximo com um “restaurante”.
Diariamente, somente o casal trabalha na barraca. Mas, geralmente, nos
dias de movimento bem maior, eles contratam uma diarista – principalmente
para cortar verduras, servir os clientes, montar os “PFs” (pratos feitos que
geralmente vêm com um tipo de feijão, arroz, macarrão, verduras e um tipo
de carne) e lavar os pratos. Como não é algo regular, às vezes aproveitam al-
guém que aparece na própria barraca procurando trabalho, outras vezes por
indicação de familiares, conhecidos ou até mesmo de pessoas que trabalham
para os vizinhos. Faz um teste e pronto, chama quando o movimento pede.
Aprenderam a fazer o que fazem hoje por meio das experiências profis-
sionais anteriores de Pedro, da observação dos outros feirantes e da prática
culinária de sua esposa – desenvolvida ao longo dos anos de trabalho do-
méstico e no dia a dia da barraca mesmo. Sem dúvida, o que mais vendem
são os “PFs”. Nos dias da feira da sulanca e no sábado, também vendem
cafés da manhã de comidas típicas – macaxeira com charque ou cuscuz
com galinha, por exemplo. As atividades são divididas da seguinte forma:
ela cozinha e ele faz as demais atividades. Faz compras, serve os pratos,
as bebidas e recebe o dinheiro. Registra o que entra e o que sai de cabeça
e guarda o dinheiro no bolso. Como as feiras móveis são semanais, sente
mais facilidade em estimar os valores de receitas, despesas e lucro nesse
período. Dos custos fixos que tem, reclama da conta de energia – para ele,
sempre alta – e, principalmente, do imposto que é recolhido semanalmente
pelos fiscais da prefeitura. Deste último, por não ver retorno.
Muito embora já tenha feito poupança regular, principalmente no tempo
de feira da sulanca, hoje em dia não tem conseguido manter a constância.

Feirantes - 151 -
As melhorias que fez no negócio e a educação dos filhos estão demandan-
do todo o dinheiro que sobra. Como reformou a barraca há pouco, para
ampliá-la pensa num empréstimo e comenta, procurando demonstrar-se
atualizado, uma notícia que assistiu na TV sobre a simplificação da aber-
tura de crédito para pequenos comerciantes. “Desse jeito, talvez até dê para
mim...” diz ele, muito embora demonstre certo receio desse tipo de opera-
ção, pois quando precisam de dinheiro, geralmente, seus colegas recorrem
a parentes, amigos ou até mesmo a agiotas.
Pedro pensa que o governo federal poderia facilitar o acesso ao crédito
com juros baixos. Pensa também que o governo municipal poderia me-
lhorar a feira objetivamente, tanto para o turismo quanto em termos de
organização, e também reduzir os impostos. Ele diz ter como maior preo-
cupação em relação à feira a questão da segurança. Tanto ele quanto seus
vizinhos se queixam bastante da ausência dela e apontam para o poder pú-
blico como responsável por isso.
Emocionado, Pedro diz que foi na feira que conseguiu quase tudo que
tem hoje, demonstra ter carinho por ela, mas que, mesmo assim, queria
conseguir montar um comércio “na rua”81 mesmo e não queria esse destino
de feirante, de modo algum, para seus filhos.

Disposições para autossuperação,


econômicas e administrativas
Aqui é preciso recuperar da teoria disposicionalista seu conceito cen-
tral, ou seja, o conceito de disposição82, e articulá-lo aos pontos centrais da
nossa história visando apresentar a gênese das disposições e como elas são
determinantes no modo de administrar do tipo de batalhador em questão.
Em nosso entendimento, a forma como os batalhadores comerciantes
administram seus negócios é principalmente determinada por esses con-
juntos de disposições que “herdam”, “ativam” (e “desativam”) ou incorpo-

81 No sentido de ser fora da feira, no centro comercial da cidade.


82 Ver seção “Sobre teoria e método” na Apresentação e Apêndice A Teoria.

- 152 - Um feirante-batalhador e sua administração


ram (e desincorporam) ao longo de sua trajetória de vida. Logo, nossa pre-
tensão aqui é explicitar essas disposições que permitem a Pedro dar conta
da dinâmica cotidiana de seu negócio. O movimento que fazemos a seguir
é de apresentar os conjuntos disposicionais, as disposições específicas a eles
relacionados e ilustrá-las por meio de trechos da história do batalhador.
Feito isso, poderemos apresentar um instrumento analítico para compará-
-lo à formação das principais disposições, ao longo de uma trajetória de
vida batalhadora, que possibilitam a um trabalhador desempenhar as ativi-
dades necessárias à administração de um pequeno comércio.
Pensando nesses termos, apontaremos os conjuntos de disposições que
seriam, em nosso entendimento, mais decisivos para a trajetória do nosso
tipo ideal e, em especial, para as atividades administrativas desempenhadas
por um batalhador comerciante. É claro que essas disposições se apresen-
tam como inextricavelmente interrelacionadas – haja vista que fazem parte,
juntamente com outras, do complexo disposicional de um indivíduo. No
entanto, pensamos ser necessário operar essa delimitação – de cada uma
das que julgamos ser mais importantes ao fenômeno em questão e assim
poder melhor compreendê-lo.
Dito isso, os conjuntos disposicionais que destacamos seriam: disposi-
ções para autossuperação, disposições econômicas gerais e disposições ad-
ministrativas. Juntamente a eles também apresentamos suas características
gerais, as disposições neles inseridas e os trechos ilustrativos83 recuperados
da história acima contada.
Disposições para autossuperação seriam inclinações e propensões –
que podem ser observadas empiricamente por meio de trechos da história
de vida de um batalhador que apontam para pensamentos, sentimentos e
ações – que visam à superação de uma condição de vida anterior ou atual
e, consequentemente, a projeção do batalhador para uma outra situação
de vida, vista por ele como melhor, tanto para si próprio quanto para seus
familiares. Para que essa superação aconteça é (ou foi) preciso que ele in-
corpore algumas disposições, reforce outras, ou então “desative” outras que
compõem seu “estoque”, mas que não seriam pertinentes a esse tipo de mo-

83 Diretamente relacionados a cada uma das disposições apontadas. Lembremos que essas disposições
somente podem ser construídas teoricamente, como conceitos, partindo dos pensamentos, sentimentos
e ações de um batalhador como ilustram os trechos a seguir entre parênteses.

Feirantes - 153 -
vimento. Nesse conjunto estariam reunidas, acompanhadas dos respecti-
vos trechos que as ilustram, disposições como as seguintes: disposição para
projeção dos filhos para ascensão (“[A filha] Lê com bem mais desenvoltu-
ra que o pai, quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso”);
disposição para fazer-se exemplo (“Pensa no exemplo a ser dado aos filhos.
Nas boas companhias que espera para eles”); disposição ascética (“Depois
de muito trabalho e com esta experiência ... recebeu uma promoção. Tor-
nou-se ‘encarregado’, fala com muito orgulho daquilo”); disposição para
aprendizagem pela experiência (“Através desse trabalho, além de aprender
o jogo de cintura de um negócio de feira”); disposição para projeção de
futuro (“também pensava, em médio e longo prazo, propiciar vida melhor
para sua família”); disposição para construção de imagem positiva (“O som
alto e algumas brigas que acontecem são vistos por Pedro como coisas que
afastam os seus clientes e afetam a imagem do negócio que ele tanto cuida
para fazer parecer ao máximo com um ‘restaurante’”); disposição para a
aquisição de bens de consumo “superiores” (“Ainda não satisfeito com o
que tem na barraca, pensa em equipá-la com um microondas e uma nova
e maior TV”).
Disposições econômicas gerais seriam as disposições mais gerais que se
impõem ao indivíduo no sentido de que ele incorpore, recuperando aqui
as palavras de Bourdieu (1979, p. 14), “através da educação implícita e ex-
plícita, o espírito de cálculo e de previsão” amplamente requisitados num
contexto capitalista moderno. Aqui estariam agrupadas basicamente duas
disposições já devidamente ilustradas: disposição para o cálculo econômi-
co (“seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”/“Registra o
que entra e o que sai de cabeça”); disposição para poupança (“conseguiu
juntar algum dinheiro para comprar um ponto e montar um pequeno
comércio.”/“já fez poupança regular”).
Como disposições administrativas denominamos as disposições que
são determinantes no modo como um batalhador comerciante pensa e
desempenha diariamente diversas das atividades necessárias ao “bom” fun-
cionamento de seu pequeno comércio, ou seja, inclinações e propensões à
realização de ações de planejamento, coordenação, ordenação e controle
de um negócio. Vale ressaltar que este último conjunto é diretamente de-
pendente e vinculado aos conjuntos anteriores, pois seriam mais gerais e
também relacionados ao modo como o indivíduo se projeta no mundo,

- 154 - Um feirante-batalhador e sua administração


sua racionalidade econômica e, obviamente, à orientação das suas ações
administrativas. Eis, então, elas já acompanhadas dos respectivos trechos
que as ilustram: disposição para cálculo econômico aplicado (“ainda no
tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na contagem, transporte e venda
dos seus produtos agrícolas”/“Como reformou a barraca há pouco (piso
e balcão), para ampliá-la pensa num empréstimo”); disposição para aten-
dimento e trabalho comercial (Quando criança, “atendia os compradores,
pesava as mercadorias, recebia e passava troco”); disposição para organiza-
ção e coordenação de atividades (“Com o tempo, passou a orientar, ordenar
e controlar os carregamentos melhor que seus colegas”); disposição para
“visão de negócio” (“Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do
investimento”/“Ele fala com orgulho sobre a escolha da localização do seu
ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprá-lo”); disposição
para construção de imagem positiva nos negócios (“Procura ... melhorar
a aparência e o ambiente no qual serve os clientes”/“nos negócios a apa-
rência vale muito”); disposição para aprendizagem na prática dos negócios
(“tem coisas que não se ensina em cursos: bom atendimento, qualidade
no produto e preço competitivo”); disposição para aprendizagem por meio
de observação de outros negócios (“Ele diz ter aprendido como fazê-lo no
ramo observando as barracas mais arrumadas que a sua, como os proprie-
tários delas faziam para mantê-las sempre “nos trinques” e terem êxito nos
negócios”).
A título de síntese do que acima acabamos de apresentar, eis abaixo um
quadro no qual reunimos os conjuntos disposicionais, as disposições neles
inseridas e os trechos ilustrativos.

Feirantes - 155 -
-
Quadro-síntese da seção

Conjunto de disposições Disposições específicas Trechos ilustrativos

156 -
Para autossuperação a. disposição para projeção a. “(A filha) Lê com bem mais desenvoltura que o pai, quer entrar
(inclinações e propensões – dos filhos para ascensão na universidade. O pai vibra e apoia muito isso.”
que podem ser observadas
empiricamente por meio b. disposição para fazer-se b. “Pensa no exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias
de trechos da história de exemplo. que espera para eles.”
vida de um trabalhador que c. “Depois de muito trabalho e com essa experiência (que o diferen-
apontam para pensamentos, c. disposição ascética
ciava) recebeu uma promoção. Tornou-se ‘encarregado’, fala com
sentimentos e ações – que muito orgulho daquilo.”
visam à superação de uma
condição de vida anterior
ou atual e, consequente-
mente, a projeção do fei- d.1 “Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura de
rante-batalhador para uma um negócio de feira.”
d. disposição para aprendi-
outra situação de vida, vista d.2 “Aprenderam a fazer o que fazem hoje por meio das experi-
zagem pela experiência
por ele como melhor, tanto ências profissionais anteriores de Pedro, da observação dos outros
para si próprio quanto para feirantes e da prática culinária de sua esposa.”
seus familiares)

Um feirante-batalhador e sua administração


e.1. “também pensava, em médio e longo prazo, propiciar vida me-
lhor para sua família.”

Feirantes
e.2. “Emocionado, Pedro diz que foi na feira que conseguiu quase
e. disposição para projeção
tudo que tem hoje, demonstra ter carinho por ela, mas que, mesmo
de futuro
assim, queria conseguir montar um comércio “na rua” mesmo e
que não queria esse destino de feirante, de modo algum, para seus
filhos.”
f. “O som alto e algumas brigas que acontecem são vistos por Pedro
f. disposição para constru- como coisas que afastam os seus clientes e denigrem a imagem do
ção de imagem positiva negócio que ele tanto cuida para fazer parecer ao máximo com um
‘restaurante’.”
g. disposição para a aqui-
g. “Ainda não satisfeito com o que tem na barraca, pensa em equi-
sição de bens de consumo
pá-la com um microondas e uma nova e maior TV.”
“superiores”
h. disposição para o cálcu- h.1. “seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”
Econômicas gerais (dispo- lo econômico h.2. “Registra o que entra e o que sai de cabeça.”
sições gerais para a incorpo-
ração de espírito de cálculo i.1. “conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um ponto e
e de previsão) i. disposição para poupança montar um pequeno comércio.”
i.2. “já fez poupança regular.”

-
157 -
-
Administrativas j.1. “ainda no tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na contagem,
transporte e venda dos seus produtos agrícolas.”

158 -
(disposições que são deter-
minantes no modo como j.2. “Outro cuidado, também constante, é com a economia, afinal,
um feirante-batalhador j. disposição para cálculo “tem que fazer as coisas direitinho, se não no final do mês fica no
pensa e desempenha dia- econômico aplicado buraco.”
riamente diversas das ativi- j.3. “Como reformou a barraca há pouco (piso e balcão), para am-
dades necessárias ao “bom” pliá-la pensa num empréstimo”.
funcionamento de seu pe- j.4. “Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investi-
queno comércio, ou seja, as mento.”
inclinações e propensões à k. disposição para atendi- k. “Atendia os compradores, pesava as mercadorias, recebia e pas-
realização de ações de pla- mento e trabalho comercial sava troco.”
nejamento, coordenação, l. disposição para organiza- l.1. “Com o tempo, passou a orientar, ordenar e controlar os carre-
ordenação e controle de um ção e coordenação de ativi- gamentos melhor que seus colegas.”
negócio) dades l.2. “As atividades são divididas.”

Um feirante-batalhador e sua administração


m.1. “Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investi-
mento.”

Feirantes
m. disposição para “visão
m.2. “Ele fala com orgulho sobre a escolha da localização do seu
de negócio”
ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprar e que re-
jeitou muitos outros por não serem bem localizados, pensava ele,
‘tem que ter um bom local, tem que ter boa visão’”.
n.1 “Procura [...] melhorar a aparência e o ambiente no qual serve
n. disposição para cons- os clientes.”
trução de imagem positiva n.2 “nos negócios a aparência vale muito.”
nos negócios n.3 “fazer tudo ‘nos conformes’, como era exigido na transporta-
dora.”
n.4 “preza bastante pela organização e aparência de sua barraca.”
o. disposição para aprendi-
o. “tem coisas que não se ensina em cursos: bom atendimento, qua-
zagem na prática dos negó-
lidade no produto e preço competitivo”.
cios
p. disposição para aprendi- p. “Ele diz ter aprendido como fazê-lo no ramo observando as bar-
zagem por meio de obser- racas mais arrumadas que a sua, como os proprietários delas faziam
vação de outros negócios para mantê-las sempre “nos trinques” e terem êxito nos negócios.”

-
159 -
Voltando à história de Pedro
Por meio do quadro acima construído, podemos fazer breve retorno à his-
tória de Pedro e, assim, reconstruir, também de modo sintético, as linhas gerais
das origens das disposições decisivas ao modo como ele administra sua barra-
ca.
Tais origens podem ser observadas em sua história desde cedo, já na in-
fância, quando aprendia com os dogmas do pai que “apurado não é lucro”
ou por observação e acompanhamento do mesmo no desempenhar de suas
atividades cotidianas de agricultor-comerciante. Foram reforçadas depois,
já em Caruaru, mas ainda desenvolvendo atividades similares também na
bodega da família. A referência familiar é forte para a formação de sua dis-
posição ascética para o trabalho, o exemplo do pai é incorporado por Pedro
que assim também o faz. Trabalha muito não somente para sobreviver, mas,
também, tanto para dar este exemplo aos filhos quanto para ser reconheci-
do socialmente como um trabalhador e assim ser considerado digno.
É um pouco na escola, ao desenvolver um raciocínio matemático que já
conhecia na prática ao vender os produtos agrícolas do pai desde pequeno,
mas é muito mais nas suas experiências de trabalho (familiares e, poste-
riormente, profissionais) que Pedro desenvolve as propensões requisita-
das para a subsistência econômica no seio do capitalismo contemporâneo.
Trabalhar numa grande empresa, na qual existem procedimentos, normas,
orientações previamente definidas para o desempenho das funções, ou seja,
toda uma estrutura burocrática, faz com que uma pessoa como Pedro, nas-
cida “no mato” e criada numa cidade interiorana, precise incorporar novas
disposições que ainda não haviam sido requisitadas pelos contextos de ação
nos quais havia vivido até então e, desse modo, aprenda na prática o que
deve fazer. Como é possível observar, as possibilidades são bem significa-
tivas de que o indivíduo, ao ser confrontado com um novo contexto, ou
incorpore (em maior ou menor grau, a depender dos casos) determinadas
disposições nesse demandadas, deixando “adormecidas” outras mais per-
tinentes ao seu contexto original (campo/zona rural) ou anterior (cidade
maior, mas também interiorana), ou então reforce apetências contrárias a
esse novo meio social (cidade grande, trabalho na empresa) e acabe por
retornar a ambientes sociais mais favoráveis ao estoque disposicional que
porta, por exemplo.

- 160 - Um feirante-batalhador e sua administração


Determinado a “dar certo na vida”, Pedro conseguiu incorporar as dis-
posições necessárias ao trabalho na cidade grande de modo pré-reflexivo.
Mas, depois de certo tempo, passou a não se sentir mais confortável por lá.
A demissão veio e Pedro voltou para suas origens, mas não veio incólume.
Ou seja, não simplesmente “tirou a farda” da empresa e vestiu “a bermuda e
a camiseta” de feirante. Em seu corpo, trouxe inscrito seu novo “complexo
disposicional”, seu “estoque acrescido” do que teve de incorporar para se
encaixar num processo produtivo empresarial e para a vida numa cidade
grande de modo geral. Agora, serão elas que estarão em xeque na volta de
Pedro ao seu antigo meio de socialização e ao novo ambiente de trabalho
na feira.
Mesmo sem ter consciência disso, ele age como se soubesse que até po-
derá ir além na escala da ascensão social, mas que não poderá ir muito. É
por isso que a projeção dos filhos para o estudo, para outro mundo que não
o da feira, é uma forma de superar sua condição original e assim ter, ao
final da vida, a sensação de dever cumprido, afinal, fez o possível para que
seus filhos “chegassem onde ele não chegou”. Muito embora num primeiro
olhar, esse aspecto não tenha relação direta com o modo como ele adminis-
tra sua barraca, num segundo olhar tem sim, e muito. É um elemento como
esse que faz com que um batalhador como ele tire seus filhos do cotidiano
do trabalho na feira (ao contrário do que fazem muitos outros pequenos
comerciantes), bem como mostra um objetivo ulterior ao ascetismo na ad-
ministração do negócio em si, ou seja, além da sobrevivência no agora, é
dele que são sustentados os seus sonhos-filhos de um futuro melhor.
Reler a história que aqui apresentamos, após termos trazido à tona al-
guns dos “princípios geradores” dos pensamentos, sentimentos e ações de
Pedro, assim como termos feito este breve retorno à sua trajetória de vida,
pode ser algo esclarecedor ao leitor que espera, de fato, compreender como
foram geradas, ao longo da vida do nosso personagem, condições objetivas
para que ele pudesse hoje administrar seu comércio de feira.

Feirantes - 161 -
Considerações finais do capítulo
O que claramente diferencia essa nova classe trabalhadora do que se
convencionou denominar de classe média, por exemplo, não é apenas a
renda, mas também (e significativamente) os modos de pensar, agir e sentir
constatáveis nas vidas cotidianas que levam os membros de uma e de ou-
tra classe. Aqui procuramos caracterizar o modo como atua um dos tipos-
-membros de uma classe social que conseguiu, ao longo de sua trajetória de
vida, incorporar minimamente práticas necessárias à sobrevivência produ-
tiva no mercado de trabalho brasileiro contemporâneo.
Dentre tais disposições, a resiliência no trabalho, ou seja, a capacidade
de não desistir e de enfrentar jornadas extenuantes juntamente à prática de
poupança (mesmo que de modo inconstante) e a crença em sua iniciativa
prática de “se virar” mesmo em situações das mais adversas são destacáveis.
Além dos aspectos da história ideal-típica contada acima, dentre os fei-
rantes que responderam nosso questionário, 86,7% deles foram criados por
pai e mãe juntos – algo diferente da realidade da maioria dos membros da
ralé apresentados em Souza (2009). O trabalho desde cedo junto aos pais e
irmãos, quer seja na roça, na feira ou mesmo num pequeno comércio fami-
liar, é traço marcante na história de vida de inúmeros brasileiros que, como
Pedro, incorporam uma forte ética do trabalho desde então.
A projeção de um futuro melhor para os filhos observada na nova classe
trabalhadora brasileira é algo próximo ao que Bourdieu (2007) percebeu,
em relação à pequena burguesia francesa, ao observar que em suas exis-
tências muitos indivíduos não conseguem ir além de determinado status
na hierarquia social. Diante de tal condicionamento, fazem o possível para
projetar ao máximo seus filhos no sentido da ascensão social desejada. A
ideia que talvez possa sintetizar esse ponto seja a seguinte: “Com muito tra-
balho e o pouco estudo que tive, pude chegar até aqui, se meu filho estudar
e for trabalhador como eu, ele poderá ir ainda mais longe”.
Não gostaríamos de concluir este capítulo sem deixar claro ao leitor o
que pensamos ser mais importante em nosso aprendizado sobre a forma
como os batalhadores administram seus negócios. Acreditamos que parte
significativa do aprendizado utilizado no trabalho pelos feirantes advém
da experiência prática que eles têm ao longo de suas vidas, tendo início

- 162 - Um feirante-batalhador e sua administração


nos valores elementares que incorporam no seio das famílias nas quais são
criados – melhor estruturadas se comparadas com a família da “ralé”.
Assim sendo, como proposta aos formuladores de políticas públicas
para esse público, deixamos o convite de buscar alternativas de capacitação
distintas do modelo de ensino-aprendizagem escolar que, muitas vezes, se
tenta fazer valer também para batalhadores-feirantes que não aprenderam
o que sabem-fazem na “escola”, mas, sim, desempenhando as mais diver-
sas atividades ocupacionais. Ou seja, a questão que aqui propomos é como
melhor desenvolver as disposições administrativas desses pequenos comer-
ciantes se eles aprendem principalmente pela experiência prática própria
e/ou pela observação da prática de outros e não sentados numa carteira
escolar?
De início, colocamos em suspensão a questão sobre uma possível dife-
rença entre o modo como um pequeno comerciante de feira administra
seu negócio e o que se diz na administração que é encontrada nos círculos
científicos, nas grandes e médias empresas, nos manuais mais vendidos e
utilizados nos cursos da área.
Aqui nos sentimos obrigados a explicar um pouco disso para o leitor que
não teve o contato anteriormente mencionado. Ou seja, tais livros e círcu-
los giram em torno de uma discussão geral sobre como administrar empre-
sas formalmente constituídas nas bases ideológicas e materiais do modelo
hegemônico do mercado contemporâneo, ou seja, do modelo empresarial
mais próximo possível do ideal do mercado neoliberal. Com estratégias e
procedimentos bem definidos, funções e métodos pensados e desenvolvi-
dos pelos estudiosos do campo, enfim, buscando ser o mais fiel possível ao
modelo padrão de administração de mercado voltada para a excelência no
desempenho competitivo e que faz uso de todos os recursos tecnológicos
desenvolvidos e disponíveis ao alcance dos resultados almejados.
Na realidade, é bem diferente sim, porém pensamos que seja talvez ainda
mais na forma como as atividades do administrador-feirante podem ser
compreendidas. Ou seja, por meio de arcabouço teórico disposicional que
tem poder para explicitar como, social e historicamente, ele pode vir a ad-
ministrar seu negócio como o faz hoje.
Por fim, é preciso responder a questão central que nos propusemos de
início: como uma pessoa como Pedro administra seu pequeno comércio de
feira? Uma pessoa como Pedro administra seu negócio por meio de pensa-

Feirantes - 163 -
mentos, sentimentos e ações que são decorrentes das disposições (em es-
pecial dos conjuntos disposicionais de autossuperação, econômicas gerais
e administrativas, em nossa análise) que ele incorporou ao longo de sua
trajetória de vida. Essa resposta seria demasiado sintética e até mesmo la-
cônica se a tivéssemos proferido nas primeiras linhas deste capítulo e caso
não tivéssemos empreendido, em seu curso, todo um esforço de explicação
tanto sobre tais disposições quanto sobre o modo como se apresentam no
cotidiano de um feirante-batalhador como Pedro. No entanto, como nos
manda a tradição do ofício científico weberiano, acreditamos ter explicado
bem direitinho como chegamos até ela.

- 164 - Um feirante-batalhador e sua administração


CAPÍTULO 6
CONCLUSÃO:
A FEIRA E OS FEIRANTES
COMO HOJE ESTÃO...
Os feirantes que trabalham na Feira de Caruaru conviviam nos últimos
meses de 2009 com a instabilidade em relação ao seu lugar de trabalho.
Em particular em relação à mudança na localização da sulanca, algo que,
como vimos, teria repercussões em diversos setores da feira, como no de
alimentação, haja vista que o público não mais circularia por entre as bar-
racas-boxes se a feira da sulanca fosse transferida das ruas que circundam
o parque para outro lugar.
Foi exatamente isso que aconteceu no dia 22 de fevereiro de 2010. A mu-
dança se deu nesta madrugada. Os telejornais locais davam destaque ao fato,
o então secretário municipal de infraestrutura apareceu bastante na TV ten-
tando explicar o que e como tudo estava sendo feito. Imediatamente pensa-
mos nos feirantes, em como estariam vendo e vivendo essas mudanças?
Fez-se necessário ir à feira novamente. Já no trajeto até lá, as mudanças
foram perceptíveis no trânsito bem mais ameno e até mesmo pelo acesso
às vias que circundam o parque, outrora tomadas de bancos, sulanqueiros,
compradores, ambulantes e carregadores. Foi algo evidente de início a pos-
sibilidade de transitar de carro e estacioná-lo em lugares nos quais antes
somente seria possível de se chegar andando, e mesmo assim por entre bar-
racas e grande multidão que dificultava o fluxo pelas ruas.

Feirantes - 167 -
Também se fez necessário observá-la novamente, agora diante desse
novo quadro, e colher algumas opiniões dos próprios feirantes (mesmo que
em termos contingenciais) sobre as repercussões da mudança. Os boxes-
-lojas que ficam nas margens do pátio não tinham mais em suas frentes os
bancos que eram ali montados. Chegamos a perguntar a um desses feiran-
tes-lojistas se ele achava que tinha ficado melhor com a mudança. Ele se
virou para dentro da “loja” vazia e, mostrando-a, respondeu que não. No
entanto, mesmo com o público reduzido, disse ser a época ruim para todo
mundo, mas acreditava que “iria melhorar”.
Já em termos de estética e funcionalidade, era inegável a melhoria do en-
torno do parque em dias de feira, também em termos de fluxo de pedestres
e veículos. Entretanto, as opiniões entre os feirantes eram divergentes. Toda
uma área que antes não vinha apresentando muito movimento (conhecida
como “Brasilit”) pareceu estar mais movimentada. Uma jovem disse que o
movimento esteve ruim nas semanas anteriores, mas que, com a chuva da
última semana (o que tornou muito ruim o tráfego por entre os corredores
da nova área da sulanca), melhorou para eles. Ou seja, a infraestrutura ain-
da precária no novo local da sulanca tanto pode prejudicar esses feirantes
como pode ser “bom” para outros concorrentes situados em locais com vias
melhor estruturadas diante de condições meteorológicas adversas84.
Já lá no então novo espaço destinado aos sulanqueiros, um terreno que
fica entre o pátio da feira e um grande supermercado atacadista, outro jo-
vem explicou que estava até bom enquanto a prefeitura permitiu que os
ônibus dos compradores parassem ali perto, mas depois que passou a man-
dá-los estacionar longe, os compradores estão preferindo passar direto e
ir para Santa Cruz do Capibaribe, já que lá dispõem de estacionamento
gratuito no próprio espaço no qual os feirantes se concentram (espaço este
que, ainda por cima, é coberto) e de considerável infraestrutura (o Moda
Center Santa Cruz).

84 A chuva e a lama no novo espaço destinado à sulanca foram tema de reportagem do noticiário local
AB TV, edição do meio-dia, do dia 03/05/2010. A reportagem mostrava pessoas andando pelo meio
da lama e trouxe a fala do secretário municipal de infraestrutura. Ele fez promessas de estruturação
do escoamento da água e calçamento das vias. No depoimento de um feirante que vendia de 200 a 300
camisas e que na última feira vendeu duas, escutava-se a reclamação de “quem paga” e não tem infraes-
trutura apropriada. Nesse ínterim, a taxa de uso do solo cobrada semanalmente dos feirantes também
aumentou, passou a quinze reais por banco.

- 168 - Conclusão
Como, de modo geral, o horizonte do feirante geralmente não se amplia
muito para o futuro em termos de médio ou longo prazo (algo que vimos
com a análise dos dados apresentados no capítulo 2), não parece muito razo-
ável esperar que eles se resignem e se disponham a “pagar o preço hoje” para
que no futuro estejam melhor instalados. Afinal, a impressão que se tem é de
que, ao ser ordenada de acordo com as decisões do poder público municipal
e mesmo pela pressão da concorrência das cidades vizinhas, a feira é molda-
da pelas instituições modernas Estado e Mercado (Souza, 2000).
A ordenação por quadras indicadas por balões com suas respectivas le-
tras, as vias e os lugares das barracas a serem instaladas mais nitidamente
delimitados e a limitação de circulação de ambulantes no novo espaço da
feira foram mudanças observadas nesse contexto. Um rapaz que vendia
água mineral na saída do novo espaço dedicado à sulanca comentou que
para ele piorou, já que antes, no meio da rua apinhada de gente, as pessoas
sentiam mais calor e compravam mais água, com a mudança, ele e demais
ambulantes não mais podiam entrar na área da sulanca, uma vez que os
seguranças não permitiam. Assim, ele passou a ficar numa das entradas do
novo espaço. E como não havia grande fluxo, nem amontoado de gente,
vendia menos.
Se, de um lado, o desenvolvimento urbano da cidade cobrava uma mu-
dança que se adiava, por outro essa realocação – um tanto quanto óbvia e ne-
cessária aos formuladores de políticas públicas e aos próprios moradores da
cidade que se incomodavam com o caos no centro em dias de sulanca – trazia
para os feirantes a incerteza sobre a próxima feira, que aumentava e fazia com
que até mesmo um dia chuvoso, numa infraestrutura ainda precária, abalasse
as estruturas da mudança em termos de médio e longo prazo.

_ _

Se, como vimos no primeiro capítulo, nas últimas décadas o capitalismo


deslocou progressivamente seu centro propulsor das fábricas para as bol-
sas de valores internacionais, é de se esperar que mudanças ocorressem na
estrutura das sociedades, quer centrais quer periféricas, que vivem embebi-
das neste sistema-mundo.

Feirantes - 169 -
Obviamente, isso não seria diferente no Agreste pernambucano. Esta
é uma dentre tantas regiões que vêm apresentando, também nas últimas
décadas, mudanças no modo como seus habitantes vivem e trabalham. A
configuração do eixo de produção e venda de confecções do Agreste (leia-
-se: Caruaru/Santa Cruz do Capibaribe/Toritama) e o consequente en-
volvimento de diversos outros municípios circunvizinhos na atividade se
apresentam como um fenômeno que também pode ser visto como reflexo
dessa “nova ordem mundial” – que desloca para a periferia do sistema par-
te de um aparato produtivo que anteriormente lhe foi central, urbano, e
que foi responsável pelo movimento migratório de milhões de pessoas em
todo o mundo que partiam da tríade periferia-rural-interior para a centro-
-urbano-capital, local onde se concentrou progressivamente a capacidade
produtiva industrial e a população mundial ao longo do século passado.
O “regresso” à tríade periferia-rural-interior agora se dá de dois
modos, o primeiro por meio das próprias indústrias que, não mais centrais
no sistema, se deslocam para países, regiões ou cidades menores (ou mes-
mo menos importantes na geopolítica mundial) atraídas pelos benefícios
fiscais e pela mão de obra mais barata que lá encontram com facilidade
bem maior que em centros maiores mais competitivos. No Brasil, diversas
indústrias vêm procurando o interior do Nordeste para instalar novas fá-
bricas. É de modo similar que a China tem se tornado uma potência cada
vez maior pelo volume de produção industrial que consegue ofertar a um
custo baixíssimo. No entanto, é potência periférica por ter sua pujança do
crescimento econômico centrada no industrialismo.
O segundo modo é o que irá nos interessar nesta conclusão. É jus-
tamente o que se dá por meio do regresso da população e/ou manutenção
dos mais jovens em suas regiões de origem, ligados a uma estrutura produ-
tiva e de comercialização que se acopla ao capitalismo mundial e brasileiro
contemporâneo. Movidos por grande vontade e força de trabalho, trazendo
em seus corpos, mentes e corações as heranças de sua origem rural, a forte
referência que lhes foi a família, e um habitus não plenamente adaptado às
exigências do mercado de trabalho moderno, os feirantes podem ser vistos
como um exemplo das alternativas encontradas ainda hoje, na periferia do
sistema, para o desempenho de atividade econômica de subsistência e/ou
mesmo em busca por êxito socioeconômico.
Assim, simultaneamente à configuração de novas formas de produção

- 170 - Conclusão
domésticas como os fabricos e facções, a atividade de feira pode ser vista
como uma alternativa viável para uma geração de adultos não plenamente
escolarizados, principalmente descendentes de famílias de agricultores-fei-
rantes e que integram este mundo competitivo do qual fazem parte mesmo
sem se aperceber. São eles que estão, como reflexo dessas mudanças no ca-
pitalismo contemporâneo, deixando de ir tentar a vida em São Paulo (ou
retornando dela) e se engajando em alternativas locais como o agreste das
confecções.

_ _

Já de volta ao pátio, as opiniões dos donos de barracas de alimentação


foram divergentes. Alguns afirmaram que seu movimento piorou (já que os
bancos da sulanca passaram a estar agrupados numa área um pouco mais
distante para que as pessoas se dirigissem até suas barracas); já outros, num
setor mais distante, disseram que não, que a mudança não interferiu tanto
assim, pois já tinham boa clientela fixa. Noutro setor, uma das barracas
que Justino tinha vendido, quando resolveu voltar à sua terra natal, estava
fechada e novamente com placa de “vende-se”.
Na realidade, a condição precária do feirante vem à tona numa situação
como essa. O seu comércio relativamente estável pode sofrer abalos a depen-
der de mudanças promovidas pelo Estado ou pelo Mercado (como vimos
no capítulo 1, com a crise no mercado financeiro internacional ou mesmo
com a concorrência das cidades vizinhas de Toritama e Santa Cruz). É esta
situação insólita que caracteriza o feirante – e demais trabalhadores em
situações similares Brasil e mundo afora.
A insegurança em torno do futuro, que não lhe pode ser objeto de pla-
nos seguros, já que poderá vender mais ou menos na próxima feira, ainda
mais se houver uma nova mudança, torna o feirante um tipo de indivíduo
dependente de um quadro contextual que foge em grande parte do seu al-
cance. É o mercado financeiro internacional, a concorrência local e o poder
público municipal que arbitram, em diversos aspectos, sobre seus destinos.
A falta de visão e ação associativa efetiva os deixa ainda mais à mercê das
instituições. De modo geral, não completamente escolarizados para terem
ao menos chance de competir por subempregos, os feirantes podem ser

Feirantes - 171 -
caracterizados por sua condição de instabilidade relativa a depender de si-
tuação contingencial. É claro que parte deles se estabelece e consegue assim
manter-se por anos e até mesmo transferir o negócio aos filhos ou mesmo
projetá-los para uma vida melhor (como pudemos ver nos capítulos ante-
riores), mas esses são dois lados de uma mesma moeda.
Os dados estatísticos que apresentamos, as histórias de vida de Justino e
Neide assim como o tipo ideal que construímos nos apoiam no sentido de
afirmar que o feirante, assim como diversos outros trabalhadores brasilei-
ros em condições similares, é um indivíduo que “joga” sem compreender
plenamente (ou até mesmo parcialmente) as regras do jogo no qual está
inserido. Não se apercebe tomando parte de um macrosistema e sofrendo
as consequências das implicações que traz à sua vida cotidiana (algo se-
melhante ao que Bourdieu constatou na Argélia). O modo como pensam,
sentem e agem – de significativa homogeneidade – pode ser percebido por
meio das comparações entre esta pesquisa e outras nacionais da qual tam-
bém fizemos parte (Souza, 2010).
Ao final deste livro, queremos deixar explícito ao leitor que os feiran-
tes, tanto quanto outros indivíduos que vivem-trabalham em condições
similares, vivem o “drama” de não estarem plenamente aptos a atender aos
requisitos que os tornariam empregáveis numa estrutura empresarial con-
vencional. E, numa sociedade de mercado, ficam em suas margens. É lá
que travam a luta cotidiana tanto pela sobrevivência e/ou êxito econômico
quanto pela mudança em suas disposições mais arraigadas no sentido de
adaptar-se ao mundo que lhes é imposto – tal qual o fenômeno objeto dos
estudos argelinos de Bourdieu. Isso, obviamente, não implica em estar “à
parte” dessa sociedade, mas, sim, em ocupar-se de atividade que, geralmen-
te, não é capaz de lhes conferir significativo volume de bens de consumo e
simbólicos – que podem ser compreendidos por meio dos “capitais bour-
dieusianos” (cultural, social, simbólico e econômico) que diferenciam os
indivíduos na hierarquia valorativa dessa sociedade.
As demais pesquisas que mencionamos acima, realizadas nas mais di-
versas regiões do país, nos mostraram a similaridade da realidade desses
trabalhadores, quer sejam feirantes ou não, que vivem nas margens do sis-
tema, lutando para cada vez mais poder vir a usufruir as benesses do “ca-
pitalismo cor de rosa” (Souza, 2010) que muito se diz lhe serem também
possíveis, assim como o é para as classes alta e média. Mas serão de fato?

- 172 - Conclusão
Apesar de nossa pesquisa ter se concentrado num grupo específico de
feirantes (os que possuem barracas que vendem alimentação na feira), as
reflexões que apresentamos nestas conclusões se expandem para bem além
desse público específico, pois eles são vistos, aos nossos olhos, como exem-
plares da condição de vida-trabalho de milhões de outros feirantes e traba-
lhadores das classes populares brasileiras.
Afinal, é em realidades similares a esta que aqui retratamos e analisamos
que pais e mães de famílias encontram meio de vida para sustentar os seus.
O fato de desvelarmos as incoerências no discurso e na forma como nos
contam suas vidas não quer “desvalorizar” ainda mais feirantes trabalhado-
res, que já não são valorizados na hierarquia das classes sociais em que se
estrutura a sociedade na qual vivemos.
Ao fazermos esforço de pesquisa para trazer à tona a condição desses
trabalhadores, acreditamos possibilitar que, por meio do esclarecimento
sobre tal condição de vida-trabalho, tanto o poder público possa fazer uso
deste livro para a concepção, estruturação e implementação de políticas pú-
blicas apropriadas a tal contexto – afinal de contas, se tomam como ponto
de partida uma compreensão equivocada desse quadro, não serão capazes
de erigir políticas adequadas – quanto os próprios feirantes (e a própria
opinião pública que os vê de outro modo) poderão tomar ciência de como
sua vida-trabalho pode ser vista, e assim a nossa desigualdade social possa
ser, por todos nós, modificada na medida em que passemos a nos ver com
olhos diferentes (Souza, 2009).
Reconhecer-se em seus modos de pensar, sentir e agir como membros
das classes populares e, assim sendo, diferentes da classe média e alta que
muito usufruem das benesses capitalistas é o primeiro passo ao esclareci-
mento sobre si mesmo, sobre a posição social que ocupa e sobre as lutas
que precisa enfrentar para ser, cada vez mais, socialmente reconhecido e
respeitado em sua condição de feirante.

Feirantes - 173 -
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- 180 - Referências
APÊNDICES
A TEORIA85
Pierre Bourdieu e os conceitos
de habitus, capital e campo86
Como aporte teórico utilizado para compreender a feira e a própria con-
dição do feirante, os conceitos de habitus, capital e campo em Pierre Bour-
dieu foram significativos. Muito embora possam até vir a não aparecerem
de modo explícito em diversas partes do livro, viabilizam o olhar lançado
ao fenômeno em estudo. Eis a razão pela qual acredito ser importante aqui
recuperá-los.
Pierre Bourdieu (1994 [1972]) contribuiu substancialmente ao conheci-
mento tanto da origem das práticas dos indivíduos quanto dos mecanismos
estruturantes da sociedade contemporânea. Sua resposta à clássica questão
sociológica da relação agência-estrutura é dada por meio de uma teoria da
ação que está no cerne do que aqui se denomina sociologia disposiciona-
lista.
O conceito de habitus, central à teoria bourdieusiana (e que forma jun-
to aos conceitos de capital e campo, a base do arcabouço erigido pelo au-
tor), surge a princípio em Esboço de uma teoria da prática, definido, grosso
modo, como “sistema de disposições”.

As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as


condições materiais de existência características de uma con-
dição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente
sob a forma de regularidades associadas a um meio social-

85 Todos os trabalhos citados neste e nos demais apêndices encontram-se nas Referências.
86 Este e o próximo tópico recuperam de modo sintético pontos apresentados em Sá (2010).

Feirantes - 183 -
mente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposi-
ções duráveis, estruturas estruturadas predispostas a fun-
cionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações que
podem ser “objetivamente reguladas” e “regulares” sem ser o
produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a
seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio
expresso das operações necessárias para atingi-los e coletiva-
mente orquestradas, sem ser produto da ação organizadora
de um regente. (Bourdieu, 1994, p. 61-62).

E, em nota, esclarece que:

A palavra disposição parece particularmente apropriada para


exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como
sistema de disposições): com efeito, ele exprime, em primeiro
lugar, o resultado de uma ação organizadora, apresentando
então sentido próximo ao de palavras tais como estrutura;
designa, por outro lado, uma maneira de ser, um estado ha-
bitual (em particular do corpo) e, em particular, uma predis-
posição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação.
(Bourdieu, 1994, p. 61, grifos do autor).

Mas será em A Distinção... que poderemos encontrá-lo de modo mais


articulado87.

A divisão em classes operada pela ciência conduz à raiz


comum das práticas classificáveis produzidas pelos agentes
e dos julgamentos classificatórios emitidos por eles sobre as
práticas dos outros ou sobre suas próprias práticas: o habitus

87 Ver figura explicativa na página 193 da edição brasileira. Obviamente tanto o conceito de habitus
quanto os de capital e campo não deveriam ser vistos fora do sistema teórico elaborado pelo autor (em
especial porque estes conceitos são desenvolvidos, desdobrados e levados ao plano de teorias ao longo
da obra de Bourdieu), entretanto, não é pertinente apresentar neste trabalho esse sistema, mas ao mes-
mo tempo faz-se necessário apresentar e explicar tais conceitos sucintamente.

- 184 - a teoria
é, com efeito, princípio gerador de práticas classificáveis
e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium
divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas proprie-
dades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir
práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferen-
ciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que
se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos
estilos de vida. (Bourdieu, 2007 [1979], p. 162, grifos do autor
em itálico).

Em síntese, o habitus é um sistema de disposições incorporadas consti-


tuídas a partir de um princípio gerador diretamente vinculado à origem de
classe do indivíduo. Dois exemplos comparados podem esclarecer ainda
mais o que Bourdieu (2007, p. 163, grifos do autor em itálico) quer dizer
com a ideia de habitus:

Falar do ascetismo aristocrático dos professores ou da pre-


tensão da pequena burguesia não é somente descrever estes
grupos por uma de suas propriedades, mesmo que se trate da
mais importante, mas tentar nomear o princípio gerador de
todas as suas propriedades e de todos os seus julgamentos
sobre suas propriedades ou as dos outros. Necessidade incor-
porada, convertida em disposição geradora de práticas sen-
satas e de percepções capazes de fornecer sentido às práticas
engendradas desta forma, o habitus, enquanto disposição geral
e transponível, realiza uma aplicação sistemática e universal es-
tendida para além dos limites do que foi diretamente adquirido,
da necessidade inerente às condições de aprendizagem.

Um dos aspectos centrais na definição e análise do habitus é o “volume e


a estrutura do capital” (Bourdieu, 2007, p. 162) da classe ou, em particular
do indivíduo, uma vez que “o habitus se apresenta, como social e individu-
al: refere-se a um grupo ou classe, mas também ao elemento individual”
(Ortiz, 1994, p. 18). Indo além da concepção marxista, Bourdieu irá com-
preender o termo capital não somente pelo acúmulo de bens e riquezas
econômicas, mas também pelos recursos ou mesmo poder que se manifesta

Feirantes - 185 -
em atividades sociais. Assim, além do capital econômico (renda, salários,
imóveis), é decisivo para o sociólogo a compreensão de capital cultural
(saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos88), capital
social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos) e o capi-
tal simbólico (aquilo que chamamos de prestígio ou honra e que permite
identificar os agentes no espaço social). Nessa perspectiva, as desigualdades
sociais não decorreriam somente de desigualdades econômicas, mas, sim,
do volume e da estrutura desses capitais distribuídos entre os membros das
diferentes classes sociais (Socha, 2008, p. 46).
O terceiro conceito a ser aqui recuperado é o conceito de campo. Ber-
nard Lahire (2001, p. 24-26) apresenta “os elementos fundamentais e re-
lativamente invariantes da definição de campo que podemos extrair das
diferentes obras e artigos do autor em questão”. Aqui esses elementos fun-
damentais são recuperados e acompanhados de exemplos que visam apoiar
a explicitação:
– Um campo é um microcosmo dentro de um macrocosmo que constitui
o espaço social (nacional) global (um mercado local, por exemplo, a feira é
um “microcosmo” dentro do mercado nacional-mundial).
– Cada campo tem as regras do jogo específicas, irredutíveis às regras do
jogo em outros campos (são diferentes as regras do campo dos negócios e
do campo das artes, por exemplo).
– Esse espaço é um campo de lutas entre os diferentes agentes ocupando
as diferentes posições (os feirantes estabelecidos que querem que os “in-
vasores” e ambulantes sejam retirados da feira; em cada setor da feira po-
demos observar feirantes mais ou menos bem-sucedidos, ou seja, ocupam
posições diferentes).
– As lutas têm por motivo a apropriação de um capital específico ao cam-
po (no caso da feira, o econômico) e/ou a redefinição desse capital (por
exemplo, nas grandes redes de comunicação, em especial a televisão, os
executivos das grandes emissoras nacionais buscam obter maiores índices
de audiência que seus concorrentes).

88 Mas que não é somente adquirido por meio de instituições formais como a escola ou representado
por diplomas, mas também por meio de inserção e convívio sociais em determinados espaços, afinal,
saber bater palmas no momento adequado num concerto de música clássica, ou escolher o vinho apro-
priado à temperatura ou ao momento do dia são tipos de conhecimentos também denominados como
“capitais culturais” por Bourdieu.

- 186 - a teoria
– O capital é inegavelmente distribuído no seio do campo; então exis-
tem os dominantes e dominados (no mercado varejista, é sabido que os
compradores das grandes redes de supermercados detêm grande poder de
barganha em face dos pequenos fornecedores ao ponto de “praticamente
determinar” o preço pelo qual irão comprar os produtos fornecidos).
– A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo,
que é então definida pelo estado de uma histórica relação de forças entre
os elementos (agentes, instituições) presentes no campo (dentre as barracas
de alimentação da feira, algumas podem cobrar um pouco mais caro pelos
PFs pois já fizeram um “nome” – ou seja, possuem capital simbólico relati-
vamente maior que as demais – ou então estão localizadas próximo de um
setor mais “nobre” da feira).
– As estratégias dos agentes são compreendidas se nós as relacionarmos
às suas posições dentro do campo (a depender do setor e da posição no
setor dos feirantes, das aparências de suas barracas, de serem diferentes os
produtos nos quais mais investirão para venda).
– Entre as estratégias invariantes, nós podemos notar a oposição entre
as estratégias de conservação e as estratégias de subversão (do estado da
relação de forças existente). Os primeiros, mais frequentemente os domi-
nantes, e os segundo, os dominados (e, entre eles, mais particularmente os
“novos entrantes”). Essa oposição pode tomar a forma de um conflito entre
“antigos” e “modernos”, “ortodoxos” e “heterodoxos”.
– Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm ao menos
interesse de que o campo exista, e então mantêm juntos uma “cumplicidade
objetiva” pelas lutas que os opõem (todos aqueles que são feirantes traba-
lham nela ou mesmo fazem compras por lá).
– Os interesses sociais são, então, sempre específicos a cada campo e não
se reduzem ao interesse tipicamente econômico (além dos salários, os pro-
fissionais dos mais diversos mercados de trabalho buscam também novos
desafios, status e reconhecimento social).
– A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições incor-
poradas) próprio ao campo (por exemplo, o habitus filosófico ou o habitus
feirante). Somente aqueles que incorporaram o habitus próprio ao campo
estão em situação de jogar o jogo e de crer na importância desse jogo.
– Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu
habitus e sua posição no campo.

Feirantes - 187 -
– Um campo tem uma autonomia relativa: as lutas que nele se desenro-
lam têm uma lógica interna, mas os resultados das lutas (econômicas, so-
ciais, políticas...) externas ao campo pesam fortemente sobre as relações de
forças internas (alterações no mercado financeiro internacional, ou mesmo
políticas como uma mudança na gestão pública municipal, têm interferên-
cia no campo). (Lahire, 2001, p. 24-26, tradução minha)

A leitura crítica de Bernard Lahire


Na década de 70, na França, observava-se uma diminuição da discussão
sobre classe social. Nos anos 80, quase o desaparecimento da classe social
como objeto sociológico. Alguns sociólogos falam, então, apenas da gran-
de classe média francesa e formulam a tese da sociedade individualizada e
mais “livre” que os indivíduos nas classes sociais. Foi justamente nos anos
90 que Bernard Lahire começou a traçar as primeiras linhas do que então
denominava de uma “sociologia à escala individual”89, tomando o mesmo
objeto que Bourdieu evocava quando falava em habitus, ou seja, o “social
incorporado” nos indivíduos, sendo que não de forma homogênea na ex-
tensão de uma classe, mas, sim, variante entre os indivíduos de uma mes-
ma classe. Acreditando que o indivíduo não é uma novidade histórica nem
sociológica, o sociólogo pontua que a forma como irá observá-lo não se
deve ao que muito se diz ser uma “sociedade individualista”. Sua perspecti-
va adota um ponto de vista de compreensão do social que se pode obter por
meio dos indivíduos (Lahire, 2009).
Lahire então pergunta à Bourdieu se não seria mais pertinente, para
compreender a sociedade, voltar o olhar para os indivíduos, afinal, estes
apresentam, em suas disposições, manifestações dos mais diversos aspectos
de uma sociedade em sua condição individual. Assim, seria melhor falar
em disposições e não em sistema de disposições (habitus) e em princípios
geradores (e não em um único princípio gerador para uma classe). Desse
modo, seria possível perceber as variações inter e intraindividuais e as con-

89 Posteriormente, Lahire (2009) passou a se referir ao seu projeto científico como uma “sociologia
disposicionalista e contextualista da ação”.

- 188 - a teoria
tradições que seriam inerentes aos indivíduos. Em especial, ele nos leva
a observar os diversos contextos de ação nos quais o indivíduo se insere,
além de sua trajetória de vida, como elementos centrais na compreensão
dos pensamentos, sentimentos e ações de hoje do indivíduo. Se nós olhar-
mos somente para o comportamento, vamos observar o indivíduo naquilo
que ele está agora fazendo. E a sua história de vida? Faz vinte, trinta ou qua-
renta anos que ele vive; morou no campo, estudou numa cidade pequena,
teve amigos no colégio, namorou, casou e passou a conviver com os ami-
gos da cidade, mudou-se para uma cidade maior, teve filhos, um emprego
numa empresa, foi demitido e virou feirante – são essas práticas que de-
senvolvemos ao longo da nossa trajetória de vida, nos diferentes contextos
sociais dos quais participamos, que vão nos formando. Esse “estoque” de
disposições (por exemplo, para o estudo ou para o comércio) não é pleno,
não é fechado, está em aberto. Em alguns casos, nós podemos desativar
algumas delas e noutros nós podemos (re)ativá-las, geralmente, de modo
inconsciente.
Apontando para a importância de se observar o conceito de campo como
histórico e não apenas como uma categoria de análise, Lahire (2006a, 2009)
coloca que Bourdieu e sua equipe passaram para o lado contextualista por
meio da teoria do campo, afinal, em alguns momentos abandonaram a teo-
ria do habitus para explicar as ações por meio da posição (concorrência) no
campo e vice-versa. Em síntese, eles fizeram desaparecer ora o habitus ora
o campo na sua própria fórmula: campo + habitus = práticas. Lahire lembra
que, para Bourdieu, o campo é a concorrência, é um lugar que ninguém
consegue dominar por completo, mas que apresenta sempre dominados e
dominantes em posições diferentes.
Capital é outro conceito importante revisto por Lahire. Para ele, Bour-
dieu e seus seguidores ortodoxos cometem um deslize ao transpor o con-
ceito para o plano empírico – ou seja, capital é um conceito-ferramenta
como diversos outros aos quais recorre o sociólogo para melhor compre-
endê-la. Na empiria, são observados costumes, práticas culturais legítimas
ou ilegítimas, mas o capital (neste caso, o cultural) somente existe em sua
condição de conceito-ferramenta da ciência social.
Em sua construção teórica, Lahire (2006a) parte de sólida crítica à ideia
de habitus – enquanto sistema de disposições incorporadas fruto de único
princípio gerador e aplicável/transferível para os mais diversos contextos

Feirantes - 189 -
de socialização do indivíduo – afirmando que existem variações intra e in-
terindividuais nas disposições e, consequentemente, nos hábitos dos indi-
víduos de todas as classes e em comparação com outros membros de uma
mesma classe. Sua crítica está voltada para a “coerência do princípio gera-
dor”, dos habitus das classes. Na realidade, para Lahire o mais frequente é a
incoerência das práticas dos indivíduos, é a dissonância das práticas e não
a consonância do habitus. Nós classificamos as práticas como mais ou me-
nos legítimas e estas são desempenhadas por diferentes pessoas originárias
e pertencentes às diversas classes. O exemplo que o próprio autor utiliza
de Wittigenstein, que era catedrático universitário de filosofia, assim tendo
uma atividade profissional considerada muito legítima, mas adorava filmes
populares de bang-bang, ilustra bem este ponto.
A possibilidade do conhecimento da sociedade por meio dos indivíduos
nos leva a observar que são as ideias políticas, sociais, econômicas ou visões
do mundo de uma determinada sociedade que se fazem presentes na forma
como cada um de nós também pensa e vive no mundo. Como geralmente
se fala de uma pessoa que não trabalha, ou que não busca trabalho, ou que
não quer “crescer na vida”? Essa é uma ideia individual ou é parte integran-
te do senso comum da sociedade na qual vivemos? É claro que o valor do
trabalho está institucionalizado em nossa sociedade e, ao mesmo tempo,
está incorporado em cada um de nós. Ou seja, não é uma ideia particular
original de um ou outro indivíduo, mas, ao mesmo tempo ,“faz a cabeça”
da grande parte de nós.
Foi em O Homem Plural...90 que Lahire esboçou sua versão da teoria da
ação disposicional afirmando que nem todas as situações se encaixam no
aspecto sistemático e unificador do habitus defendido por Bourdieu, muito
embora esteja longe de deixar de lado as contribuições singulares de sua
obra, afinal, “foi a teoria da prática e do habitus, desenvolvida por Pier-
re Bourdieu, que alimentou nossa pesquisa sociológica. [...] É, portanto,
a pensar ao mesmo tempo com e contra (ou mais frequente de um modo
diferente de) Pierre Bourdieu que esta obra convida” (Lahire, 2003, p. 13-
4). Destacando na sociologia francesa a herança de Maurice Halbwachs,
“sensível nas suas análises sobre a memória à multipertença dos actores in-
dividuais, às suas socializações sucessivas ou simultâneas em grupos varia-

90 Citações referentes à edição portuguesa desta obra. Logo, a grafia das palavras em português de
Portugal foi mantida.

- 190 - a teoria
dos, e à pluralidade dos ‘pontos de vista’ que eles podem mobilizar”, Lahire
aponta para possibilidades apresentadas por uma “sociologia psicológica”
– “que dá a conhecer as condições de estudo sociológico dos recônditos
mais singulares do social” (Lahire, 2003, p. 15; 17) presentes no indivíduo.
É partindo de um conjunto de questionamentos para os quais não en-
contra respostas no trabalho de Bourdieu que Lahire então propôs um
programa científico de uma sociologia em escala individual, focando nas
variações inter e intraindividuais dos comportamentos, na pluralidade das
disposições incorporadas e dos contextos de ação dos indivíduos (Lahire,
2003; 2004; 2005a).
Em A cultura dos Indivíduos, Lahire deixa claro que sua sociologia em
escala individual foi pensada para sociedades diferenciadas como a fran-
cesa atual. Não é o caso da realidade em estudo neste livro. Tanto no Brasil
de modo geral quanto em Caruaru, em particular entre os feirantes, foi ob-
servada significativa homogeneidade das disposições e, consequentemente,
das práticas apresentadas pelos indivíduos das classes populares (cf. Souza,
2010). É como se para as classes populares brasileiras nas quais os feirantes
estão inseridos ainda seja útil e pertinente fazer uso do conceito de habitus.
Ou seja, muito embora se tenha recorrido à epistemologia proposta por
Lahire em termos de orientação para a realização da pesquisa, os resulta-
dos apresentados apontam para uma homogeneidade entre membros de
uma mesma classe. Esta pode ser compreendida se observada a diferença
entre o grau de diferenciação profissional existente na sociedade francesa
e a homogeneidade observada em indivíduos que desempenham atividade
indiferenciada (comércio) e fazem parte de uma parcela da sociedade bra-
sileira que não possui atividades profissionais tão diferenciadas assim (cf.
Souza, 2010).
Desse modo, foi constatado neste estudo que existem variações intrain-
dividuais a depender da origem familiar, trajetória de vida e contextos de
ação nos quais atuou o indivíduo no grupo estudado, no entanto, como
pode ser visto tanto no capítulo 2 quanto nas histórias de vida apresenta-
das nos capítulos 3 e 4, não são grandes as variações interindividuais en-
tre os feirantes pesquisados e nem, se comparamos com demais pesquisas
recentemente realizadas no Brasil (cf. Souza, 2010), nas classes populares
brasileiras. Este aspecto, aos meus olhos, reforça a pertinência do trabalho
argelino de Bourdieu como principal referencial teórico de Feirantes.

Feirantes - 191 -
Recortes de “Trabalho e trabalhadores
na Argélia”
Entre 1955 e 1960, Pierre Bourdieu serviu ao exército francês, ensinou e
pesquisou na Argélia. Foi justamente nesse período que realizou seus tra-
balhos sobre esta sociedade, revelando tanto as mudanças estruturais que
ela sofria em decorrência do processo de modernização ao qual estava sen-
do, inevitavelmente, submetida, quanto como se relacionava com aquele
mundo moderno para o qual era projetada – ao mesmo tempo em que
mantinha vivos, de algum modo e medida, costumes de seus ancestrais.
Essa tensão social entre modos de pensar e viver “herdados” de gerações
anteriores (e incorporados por meio de processos e instituições sociais) e
outros cobrados pelo mundo em pleno desenvolvimento capitalista tornou
O Desencantamento do Mundo: Estruturas Temporárias e Estruturas Eco-
nômicas91, um dos trabalhos do período argelino de Bourdieu, obra funda-
mental à compreensão da condição dos feirantes que se procurou construir
neste livro. Ou seja, ter sua origem social vinculada a um mundo estrutu-
rado de determinado modo e ser projetado para outro é a trama social que
aproxima a realidade argelina daquela na qual estão imersos os feirantes.
Devido a isso, acredito ser necessário recuperar e apresentar pontos im-
portantes deste trabalho92 que tanto serviu de suporte teórico e comparati-
vo para as análises – decorrentes do confrontamento das observações reali-
zadas durante o período de campo desta pesquisa com a obra de Bourdieu
– quanto se mostrou teoricamente inspirador e esclarecedor em diversos
aspectos relacionados à pesquisa apresentada neste livro.
A diferença entre o capitalismo moderno93 em seu contexto europeu ori-

91 A versão brasileira (editora Perspectiva) de 1979 de Travail et travailleurs en Algerie, publicado


originalmente em 1963.
92 Como apêndice, pois penso que este tipo de leitura teórica tanto é bastante densa – principalmente
se considerado meu intento de tornar o livro acessível ao grande público – para o corpo do texto quanto
geralmente não é do interesse do leitor não acadêmico.
93 Quando falamos em capitalismo moderno, temos em mente a distinção que faz Max Weber (2006,
p. 13) entre este e outras formas de capitalismo existentes. Diz ele que este existe “lá onde a cobertura
das necessidades de um grupo humano, mediante atividades industriais e comerciais, realiza-se pelo
caminho do empreendimento, não importando a necessidade”, apresentando também as características

- 192 - a teoria
ginal (autóctone) e o modo como este chega a países situados na periferia
do mundo é ponto de partida importante observado pelo sociólogo francês
logo no início de seu trabalho sobre a sociedade campesina argelina.

Patrimônio objetivado de uma outra civilização, herança de


experiências acumuladas, técnicas de remuneração ou de
comercialização, métodos de contabilidade, de cálculo, de
organização, o sistema econômico importado pela coloni-
zação tem a necessidade de um ‘cosmos’ (como diz Weber)
no qual os trabalhadores se veem jogados e cujas regras
eles devem aprender para sobreviverem. Por conseguinte,
na maioria dos países do Terceiro Mundo, a situação é total-
mente diferente, da que ocorreu nos primórdios do capitalis-
mo a despeito de todas as eventuais analogias. [...]
A especificidade da situação de dependência econômica
(cujo limite é representado pela situação colonial) consiste
no fato de que a organização econômica e social não é o
resultado de uma evolução autônoma da sociedade que se
transforma segundo sua lógica interna, mas de uma mu-
dança exógena e acelerada, imposta pelo poderio imperia-
lista. (Bourdieu, 1979, p. 13-4, grifos nossos).94

Vale aqui salientar a diferença significativa existente entre ter nascido e


crescido numa sociedade na qual já existe conjunto de práticas – consti-
tuídas e compartilhadas ao longo de curso histórico – condizentes com as
demandas do mundo no qual se irá viver, e ter nascido numa sociedade na
qual o conjunto de práticas “herdado” é distinto daquele que será requisi-
tado no cotidiano de vida e trabalho. É também importante ressaltar que
essa questão está para além da simples dicotomia entre primeiro e terceiro
mundo, uma vez que se trata de vir ao mundo e viver num espaço social no
qual as pessoas que lá vivem assimilaram (ou estão em processo de assimi-

elementares da empresa racional, força motriz deste sistema, como uma instituição que “controla sua
rentabilidade com o auxílio de cálculos, da contabilidade moderna e da elaboração de balanços”.
94 Todas as citações diretas e indiretas desta seção, somente acompanhadas pelos número das páginas,
são referentes a este autor e obra.

Feirantes - 193 -
lação e, a depender do costume ou prática em questão, se apresentam mais
propensos ou não) as demandas requisitadas por este capitalismo moder-
no95. Além disso,

a economia monetária e o sistema das disposições a ela ine-


rentes [referindo-se a uma sociedade camponesa aparente-
mente homogênea] se desenvolvem em ritmo mais ou menos
veloz nas diferentes classes sociais, segundo seu tipo de ativi-
dade e sobretudo segundo a intensidade e a duração de seus
contatos anteriores com a economia monetária, e essas desi-
gualdades de ritmo tendem a aumentar as clivagens entre os
grupos. [...] os ritmos desiguais (segundo os indivíduos e
ou grupos) da transformação das atitudes econômicas são
fundamentalmente o reflexo das desigualdades econômi-
cas e sociais. (p. 12, grifos nossos).

A depender da classe social de origem e experiências de vida do indiví-


duo, mesmo tendo nascido e crescido num mesmo país ou região, pessoas
de origens sociais diferentes irão assimilar de modo e em ritmo distintos
as transformações sociais e econômicas de seu tempo. É nesses termos que
Bourdieu aponta para demarcações sociais (“clivagens”) que estão para
além da quantidade de dinheiro que um ou outro tem, pois estão relaciona-
das ao modo como um ou outro indivíduo vê o mundo, vive a vida, incor-
pora determinadas disposições e práticas (ter maior propensão a cumprir
horários de trabalho ou fazer poupança, por exemplo), educa os filhos, se
projeta neste mundo e caminha (ou não) em direção ao futuro.
Eis um exemplo que pode ilustrar esse ponto: um filho de pais agricul-
tores que foi criado no campo até o início da vida adulta e um outro que é
filho de um bancário e de uma professora e cresceu numa cidade grande.
Em termos hipotéticos, o primeiro acordava com o nascer do sol, cresceu
frequentando uma escola pública rural (na qual teve muita dificuldade em
concluir seus estudos básicos), ajudando o pai na agricultura (sem remu-

95 E que não pode ser reduzida a uma diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas,
sim, entre tipos de sociedade que podem existir num e noutro. As pesquisas de Bourdieu (2006) na
região do Béarn (interior da França onde nasceu) servem também de exemplo nesse sentido.

- 194 - a teoria
neração direta por isso), indo à feira da cidade próxima nas manhãs de
sábado (para vender o produto agrícola, do qual advinha o sustento da fa-
mília); já o segundo acordava no horário certo de ir para a escola, estudava
numa boa escola da cidade, não trabalhava na infância, recebia “mesada” e
fazia poupança, podia se preparar e escolher uma profissão a seguir e fazia
um curso de língua estrangeira nas mesmas manhãs de sábado. Qual dos
dois teria mais possibilidades de incorporar práticas que melhor atendam
às demandas pessoais e profissionais relacionadas ao capitalismo moderno
(autocontrole, cálculo prospectivo etc.), ou seja, transformar-se em suas
atitudes econômicas? Não é necessário afirmar que o segundo jovem, por
ter sua história de vida inserida e determinada pelo “cosmos” moderno,
enquanto o primeiro terá que, ainda, tentar inserir-se e, nesse processo, ir
incorporando as disposições necessárias para tal. Assim, o primeiro jovem
vive tensão entre as práticas requisitadas por este mundo, para o qual se
projeta, e certos costumes rurais que permanecem nele arraigados e que
seriam inerentes ao seu contexto de origem.
Era entendimento de Bourdieu de que um novo sistema de disposições
(habitus), requisitado pelo mundo moderno, não seria elaborado no vazio,
mas, sim, constituído a partir das disposições costumeiras que, mesmo so-
brevivendo ao desaparecimento ou à desagregação de suas bases econômi-
cas tradicionais, nas quais surgiram e se fundavam, não se adaptavam às
exigências da nova situação senão por meio de uma “transformação cria-
dora”.

Por não se transformarem no mesmo ritmo das estruturas


econômicas, disposições e ideologias correspondentes a es-
truturas econômicas diferentes, ainda atuais ou já caducas,
coexistem na sociedade global e por vezes nos mesmos in-
divíduos. Mas a complexidade dos fenômenos se acha ain-
da redobrada pelo fato de que tanto os resíduos do modo de
produção pré-capitalista como as disposições que lhes são
inerentes se mantêm mesmo em circunstâncias adversas. (p.
15-6).

Nesse contexto, tanto o modo como as pessoas se relacionam com o tem-


po quanto as projeções em direção ao futuro são aspectos da adaptação a

Feirantes - 195 -
uma ordem econômica e social, qualquer que ela seja, que supõe um con-
junto de conhecimentos transmitidos pela educação difundida ou específi-
ca, ciências práticas solidárias a um ethos que permitem agir com razoáveis
probabilidades de sucesso. É dessa forma que a adaptação a uma organiza-
ção econômica e social tendendo a assegurar a previsão e o cálculo exige
uma disposição determinada em relação ao tempo e, mais precisamente em
relação ao futuro, quando é verdade que nada é mais estranho à economia
pré-capitalista do que a representação do futuro como campo de possíveis
que pertence ao cálculo explorar e dominar (p. 18-21).

De um modo geral, o camponês empenha suas despesas em


função da renda obtida pela produção precedente e de modo
algum pela renda que espera obter; além disso, em caso de
colheita excedente, ele tende a tratar o trigo ou a cevada su-
plementares como bens diretos, preferindo acumulá-los em
vista do consumo antes que semeá-los e aumentar a esperan-
ça da colheita futura e assim sacrificando o futuro da produ-
ção ao futuro do consumo. (p. 22).

O exemplo do modo como os camponeses argelinos costumavam proce-


der em relação ao trigo excedente96 ilustra essa mudança na relação com o
tempo, com o futuro e o modo como as práticas costumeiras são reforçadas
na medida em que a moeda se insere de forma determinante nesse cotidia-
no. A possibilidade de trocar o excedente que outrora ficaria armazenado
– e que era monitorado por determinado tipo de cálculo – por dinheiro,
e fazer uso deste do modo como lhe aprouver, cobra do camponês o de-
senvolvimento de habilidade para outro tipo de cálculo (o que e quanto é
possível comprar? O que é prioridade? Como administrar o dinheiro re-
cebido por um mês de trabalho durante o mesmo período de tempo?) que
sua realidade de origem não lhe propiciou: administrar as possibilidades e
limitações imbricadas ao uso do dinheiro, haja vista que

96 “Os cabilas guardam o trigo ou a cevada em grandes jarras de barro furadas a diversos níveis de
altura, e a boa dona de casa, responsável pela gestão das reservas, sabe que quando o nível do trigo está
abaixo do furo central chamado de thimit, o umbigo, é preciso controlar o consumo: o cálculo, como
se vê, é feito por si só, e a jarra é como uma ampulheta que permite perceber a cada instante o que não
existe e o que resta.” (Ibidem, p. 27).

- 196 - a teoria
agentes econômicos formados com outra lógica econômi-
ca devem fazer às suas custas a aprendizagem da utilização
racional do dinheiro como mediação universal das relações
econômicas: a tentação é grande com o efeito de converter
o salário que acabou de ser recebido em bens reais, alimen-
tos, roupa branca, mobília, e não era raro, cerca de cinquenta
anos atrás97, ver operários agrícolas gastarem em poucos dias
o rendimento de um mês de trabalho. (p. 27).

Um outro exemplo também apresentado por Bourdieu ajuda na explica-


ção de como a inaptidão dos rurais para manejar o dinheiro e sua inadapta-
ção às regras jurídicas contribuíram para acelerar o movimento de despojo
de suas terras. O sociólogo francês segue afirmando que diversos pequenos
proprietários acossados pela miséria foram tentados pelo atrativo do di-
nheiro e venderam suas terras. No entanto, estando eles pouco familiariza-
dos com o uso do dinheiro, rapidamente dissiparam seu pequeno capital e
se viram obrigados a arrendarem-se como operários agrícolas ou então a
fugir em direção à cidade (p. 28).
Concomitantemente a essas transformações, faz-se presente estranha-
mento a elementos introduzidos nesse processo de modernização ao qual
foram submetidas, assim como os cabilas argelinos, diversas sociedades
periféricas do mundo contemporâneo. “De todas as instituições e técni-
cas econômicas introduzidas pela colonização, a mais estranha à lógica
da economia pré-capitalista é sem dúvida nenhuma o crédito que supõe
a referência a um futuro abstrato” (p. 28). Afinal, se os ancestrais transmi-
tiam práticas de aprovisionamento de produtos agrícolas para os tempos
de intempéries, o contexto modernizado dissemina outras possibilidades
relacionadas ao tempo e ao futuro por meio de mecanismos como o crédito
bancário – a ser obtido e devolvido num futuro, acrescido do valor corres-
pondente aos juros calculados, algo de difícil compreensão para quem foi
socializado num contexto rural no qual os empréstimos eram obtidos com
parentes ou amigos mais próximos, que não cobravam juros e esperavam
o tempo necessário para que o devedor reunisse condições de efetuar o
pagamento da dívida.

97 Em referência à Argélia aproximadamente entre anos de 1900 e 1910.

Feirantes - 197 -
A forma como o trabalho é visto numa sociedade camponesa como a Ca-
bila é outro ponto importante. Em suas análises sobre o trabalho, Bourdieu
aponta que o que está valorizado “não é a ação orientada em direção de um
fim econômico, é a atividade em si, independentemente de sua função eco-
nômica e somente à condição que ela tenha uma função social. O homem
que se respeita deve estar sempre ocupado com alguma coisa” (p. 43). A
coerção social em torno do trabalho faz com que as pessoas inseridas num
contexto como este abracem qualquer trabalho para não serem estigmati-
zadas. “Na grande maioria dos casos, não é o trabalhador que escolhe seu
trabalho, mas o trabalho que escolhe o trabalhador” (p. 56).
Voltando-se para a situação de pequenos comerciantes ambulantes, o au-
tor penetra no universo do comércio para demonstrar que a lógica econô-
mica não é capaz de explicar as práticas cotidianas de muitos deles.

Como compreender, com efeito, se formos nos colocar na


estrita lógica da rentabilidade econômica, a conduta de to-
dos esses pequenos comerciantes ambulantes, vendedores de
nadas por nada, que durante o dia todo arrastam pelas ruas
suas pequenas carretas na esperança de vender duas ou três
melancias, algumas roupas usadas ou um pacote de amen-
doim? Qual poderia ser, para aqueles que a exercem e para
a coletividade, a função desse tipo de trabalho que melhor
seria chamar de ocupação?
Em primeiro lugar, o pequeno comércio é a única ocupa-
ção que não exige capital inicial algum, nem a qualificação
profissional ou alguma aptidão especial, nem a instrução,
nem o dinheiro, nem o local [...]. De um modo geral, o pro-
blema do investimento inicial não é colocado. Pode-se levar
em nenhuma conta o equipamento [...]. A mercadoria é
adiantada por um parente ou um amigo, sendo reembolsa-
da depois de ter-se efetuado a venda. (p. 63, grifos nossos).

A passagem acima transcrita problematiza a condição de


pessoas que se ocupam para fugir ao rótulo de “desocupado”.

- 198 - a teoria
A pressão da necessidade econômica e a situação de desem-
prego estrutural têm por efeito perpetuar práticas que to-
mam de empréstimo suas justificações à moral camponesa
do passado. Não é raro com efeito ouvir enunciar preceitos
que, em primeira análise, parecem pertencer à lógica do ethos
profissional: ‘Um homem digno, um homem que não pode
viver à custa de outros, mesmo que tenha de viver de ex-
pedientes, tem de trabalhar. Se ele não encontrar nenhum
trabalho, ainda tem a possibilidade de ser vendedor ambu-
lante’ (cozinheiro, Argel). (p. 64, grifos nossos).

Numa realidade como essa, a tradição cultural estimula e praticamente


impõe a solidariedade e o auxílio mútuo por meio das relações pessoais,
afinal, acredita-se que quem alcançou sucesso deve se servir de seu próprio
êxito para ajudar aos outros, começando pelos membros da própria famí-
lia. No setor tradicional, em especial no artesanato e no comércio, antigos
procedimentos de recrutamento se perpetuam, especialmente nas peque-
nas empresas familiares. Além de todos aqueles que herdaram sua loja ou
sua oficina, muitos artesãos e comerciantes administram uma empresa cujo
proprietário é um parente; outros não puderam instalar-se por conta pró-
pria senão graças à ajuda financeira de um parente ou de um amigo. Em
resumo, o setor tradicional permite àqueles que não têm bagagem cultural
alguma, nem bagagem técnica, contornarem as barreiras que colocariam
como obstáculo regras racionais ou semirracionais de seleção (p. 57-8).
A racionalização da conduta econômica, que é essencialmente marcada
pela posse de rendimentos aptos a libertar da preocupação pela subsistên-
cia, coincide com uma transformação profunda das disposições: a raciona-
lização da conduta tende a se estender à economia doméstica, lugar das últi-
mas resistências, e as disposições compõem um sistema que se organiza em
função de um futuro apreendido e dominado pelo cálculo e pela previsão.
O comércio e o artesanato constituem vaga protegida e reservada que oferece
um refúgio para aqueles que não estão armados para a competição econômi-
ca ao mesmo tempo em que mantém, numa lógica pré-capitalista, capitais
e capacidades que poderiam ser investidos no setor moderno. Desse modo,
os capitais argelinos tendem a ser investidos no comércio ou então nesses
setores da indústria onde podem ser mantidas as empresas tradicionais de

Feirantes - 199 -
tipo familiar, asseverando ao patrão a gestão financeira do negócio, com-
prando ele mesmo a matéria-prima, fixando os preços e vigiando as vendas.
É a atitude com relação ao tempo e ao cálculo que ele autoriza que torna
o comércio no asilo do espírito pré-capitalista no seio do mundo urbano e
faz com que o pequeno comerciante se aparente ao pequeno camponês por
meio de tantos traços de seu estilo de vida e de sua visão do mundo (p. 83-4).
Essas atividades das quais não se espera, na maioria das vezes, outra coi-
sa senão os meios de subsistência, constituem, aos próprios olhos daqueles
que as exercem, uma coisa para a qual a pessoa se resolve por falta de coisa
melhor. É significativa aqui a concorrência do comércio europeu e da fração
racionalizada do comércio argelino, que sujeita os pequenos comerciantes à
clientela mais despojada que procura por eles, posto que esses comerciantes
concedem crédito e desconto. Benefícios medíocres e instáveis, capital re-
duzido e muitas vezes empenhado sob forma de adiantamentos à clientela,
outros tantos obstáculos objetivos à racionalização. Além disso, perpetu-
ando muitas vezes no mundo urbano atitudes rurais, os comerciantes estão
geralmente pouco propensos para racionalizar sua empresa: iletrados na
maioria, ignoram a contabilidade em partida dupla e a distinção entre o
orçamento familiar e o orçamento da empresa e confundem muitas vezes
entradas e benefícios; passa-se por transições infinitesimais do pequeno
comércio como simples ocupação ao comércio realmente lucrativo. Assim,
compreende-se que o artesanato e o comércio sejam o amparo do tradiciona-
lismo no seio da sociedade urbana: não há nada na atividade profissional, no
meio de trabalho (na maioria das vezes confundido com o meio familiar)
e nos contatos com a clientela que possa incitar o comerciante a mudar de
estilo e de modo de pensar; totalmente ao contrário, o sistema de represen-
tações e de valores legado pela tradição está perfeitamente de acordo com
uma atividade econômica que exclui a racionalização (p. 84-5).
Para os filhos de comerciantes e de artesãos, as esperanças de promoção
são tanto mais reduzidas quanto a herança profissional é maior, as tradições
de profissão mais fortes e a probabilidade de uma herança importante mais
elevada. Tanto o cálculo econômico se encarna progressivamente na con-
duta à medida que a melhoria das condições materiais o permite, quanto
o campo dos possíveis tende a se alargar à medida que a pessoa se ergue
na hierarquia social. A emancipação dos jovens é tão mais precoce quão
mais rapidamente eles conseguem um emprego estável e bem remunerado,

- 200 - a teoria
quanto mais eles são instruídos ou, mais exatamente, quão maior é a dife-
rença entre o nível dos pais e dos filhos (p. 74-9).
É também entre os pequenos comerciantes que se encontra a propor-
ção mais forte de propósitos estereotipados e de discursos que obedecem
à lógica da quase-sistematização afetiva, além disso, eles nunca observam
o sistema como sendo também responsável por sua falta de instrução e de
qualificação profissional, isto é, ao mesmo tempo por suas faltas e pelas
faltas de seu ser (p. 88-92).
Na Argélia, assim como na maioria dos países em vias de desenvolvimen-
to, a delimitação mais nítida é a que separa dos trabalhadores permanentes,
manuais ou não manuais, a massa dos desempregados ou dos trabalhadores
intermitentes, diaristas, serventes ou pequenos comerciantes, outras tan-
tas condições intercambiáveis, que cabem muitas vezes sucessivamente ao
mesmo indivíduo. De fato, a cada uma das condições econômicas e sociais
corresponde um sistema de práticas e disposições organizado em torno da
relação ao futuro que aí se acha implicado. Desse modo, os trabalhadores
se dividem de maneira distinta em dois grupos, os que são estáveis e que
fazem de tudo para assim permanecerem e os que são instáveis e que estão
dispostos a fazer de tudo para escapar à instabilidade. Esse é o fato funda-
mental que é preciso ter em mente para compreender, entre outras coisas,
o fascínio que é exercido nas camadas mais desfavorecidas pelas profissões
estáveis, ou mais precisamente, a estabilidade das profissões (p. 95-104).

O desemprego traz uma desorganização sistemática da con-


duta, da atitude e das ideologias. [...] A falta de emprego re-
gular ameaça a função social do chefe da família, isto é, sua
autoridade na família e sua respeitabilidade fora dela. [...]
Acontece que certos vendedores ambulantes acabam por tor-
narem a profissão uma coisa que não era na origem senão
algo provisório na espera de algo melhor aparecer. [...] Na
ausência de emprego regular, o que faz falta não é somente
uma renda assegurada, é este conjunto de sujeições que de-
finem uma organização coerente do tempo e um sistema de
expectações concretas. (p. 99-100).

Feirantes - 201 -
Desemprego e emprego intermitente arrasam as tradições, mas interdi-
zem a elaboração de um plano de vida racional. “Quando você não tem
certeza do dia de hoje como poderá ter certeza do dia de amanhã?” Ou seja,
a vida fica à mercê do quanto se conseguirá dia após dia. “Mais eu ganho,
mais eu como: menos eu ganho, menos eu como.” Um sujeito econômico
que esteja conforme essa descrição seria condenado em curto prazo se vies-
se a se encontrar jogado num universo econômico e social perfeitamente
racionalizado. De fato, às margens das cidades africanas ou sul-americanas,
existem universos econômicos que constituem como que uma barreira en-
tre os subproletários e o mundo moderno e cuja lei fundamental parece ser
aquela que rege as condutas individuais, a saber, a ausência de previsibili-
dade e de calculabilidade (p. 100-101).

- 202 - a teoria
2. O MÉTODO
O ofício científico, quando empreendido com o rigor que lhe é devido,
impõe àquele que o pratica a tarefa de expor o que fez para percorrer o
caminho necessário até chegar aos resultados que apresenta. Muito embora
etapas e operações metodológicas sejam parte integrante da pesquisa em
si, de modo geral, são do interesse de outros pesquisadores que esperam
encontrar resposta à questão: como a pesquisa foi feita?
Tendo clareza da necessidade de atender a esta obrigação imposta pelo
modo como concebo o ofício científico, mas, ao mesmo tempo, suspeitan-
do fortemente que tais explicações procedimentais não seriam do interesse
dos leitores em geral, resolvi reuni-las neste apêndice. Espero, assim, tam-
bém possibilitar a leitura sequenciada do livro sem a obrigatoriedade destes
esclarecimentos metodológicos. No entanto, não posso deixar de cumprir
com o dever de apresentar aos pares como fiz o que fiz.
Aqui não terei como objetivo discorrer sobre as técnicas específicas de
pesquisa utilizadas, mas, sim, apresentar as etapas do trajeto teórico-empí-
rico, desde seu início até a própria redação deste livro.
Entre 2007 e 2009, foi empreendido um conjunto de frentes de pes-
quisa sincrônicas tanto no sentido de conhecimento e aprofundamento
teórico necessários à fundamentação do trabalho quanto no sentido do
levantamento e reunião de dados indispensáveis a uma pesquisa social. A
pesquisa teórica se voltou principalmente para as obras de Pierre Bour-
dieu e Bernard Lahire por serem autores nos quais encontrava suportes
teórico, epistemológico e metodológico apropriados para o estudo do fe-
nômeno social em questão. Esta etapa se deu ao longo de praticamente
todo o período de realização da pesquisa.
Logo de início também foi realizada pesquisa bibliográfica que reuniu
tanto alguns trabalhos científicos relacionados às temáticas “feira” e “tra-

Feirantes - 203 -
balho informal” quanto alguns textos locais sobre a Feira de Caruaru ou
que comentavam aspectos desta feira. Os poucos trabalhos encontrados e
reunidos não foram explorados aqui no livro por não terem se mostrado
relevantes aos objetivos traçados.
Outra frente investigativa também aberta logo de início foi a pesquisa
documental e jornalística. Por meio desta foram reunidas informações ob-
tidas em relatórios (em especial, o do Iphan, para o reconhecimento da
Feira como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro) e matérias publica-
das ao longo das últimas décadas em diversos veículos de mídia impressa
(principalmente estaduais).
Já na etapa exploratória da pesquisa, foram realizadas entrevistas semi
e não estruturadas com onze pessoas que podem ser consideradas “vozes
de referência” sobre a feira, tais como feirantes com muito tempo de fei-
ra, historiadores ou porta-vozes de instituições significativas, por exemplo,
Sindicado dos Comerciantes e Vendedores Ambulantes de Caruaru (Sinco-
vac), Departamento de Arrecadação, Departamento de Feiras e Mercados
da Secretaria de Serviços Urbanos da Prefeitura Municipal, Secretaria de
Cultura. Visando compreender a dinâmica da feira como um todo, nessa
etapa foram realizadas observações (seguidas de notas) de inspiração etno-
gráfica por meio de visitas continuadas à feira em dias e horários alternados
da semana.
Essas quatro etapas, a pesquisa bibliográfica, a documental/jornalística,
as entrevistas com “vozes de referência” e as observações etnográficas sobre
a feira e os feirantes, nos possibilitaram conhecer a história da feira, o modo
como ela é tratada nos meios de comunicação locais, as nuanças de suas
mudanças ao longo do tempo, o modo como ela e seus feirantes são vis-
tos por informantes-chaves e a sua dinâmica cotidiana de funcionamento.
Tudo isso nos levou a um melhor conhecimento da realidade na qual o fe-
nômeno central de nossa pesquisa atua. Como a feira é feita pelos feirantes,
ao conhecermos ela, também os conhecemos.
Tais etapas foram úteis principalmente para (1) apropriação teórica fun-
damental à “leitura” da realidade pesquisada, (2) elaboração do capítulo 1,
(3) compreensão do contexto de atuação dos feirantes, (4) definição dos
direcionamentos a serem dados em relação ao foco da pesquisa e (5) utili-
zação de lente teórica (no caso da pesquisa teórica) e de suporte contextual
(no caso das demais) para a análise dos dados obtidos.

- 204 - o método
Capítulo 2: Etapa quantitativa

Para a elaboração dos questionários, foram observadas principalmen-


te duas obras recentes de Bernard Lahire (2006a, 2006b). O instrumento
também partiu de algumas questões que estavam sendo propostas numa
pesquisa nacional da qual participamos intitulada “Batalhadores brasilei-
ros” (Souza, 2010).
Os dados apresentados e analisados no capítulo 2 foram obtidos por meio
de questionário submetido às respostas de feirantes do ramo de alimenta-
ção (almoços e lanches) da Feira de Caruaru (N=45). A aplicação dos ques-
tionários ocorreu durante os meses de maio e junho de 2009 e a tabulação
imediatamente em sequência. Por se tratar de etapa exploratória-descritiva
da pesquisa, nos concentramos na análise da frequência (estatística descri-
tiva) nos dados obtidos. Foram identificados (por meio de visitas em dias
alternados da semana e mapeamento das barracas do ramo que se apre-
sentavam abertas) e entrevistados 90% dos feirantes que tinham barracas,
boxes ou quiosques de alimentação que abriam seus comércios diariamente
(N=50). Os critérios obrigatórios atendidos pelos pesquisados foram: (1)
abrir ao menos cinco vezes por semana, (2) ser o proprietário do negócio, e
(3) ter como principal produto de venda almoço ou lanche. O questionário
foi estruturado em seis partes: 1 – Aspectos Familiares; 2 – Perfis dos en-
trevistados; 3 – Sobre histórico recente da atividade econômica e formação
para desempenho da atividade econômica; 4 – Sobre a origem do negócio
atual; 5 – Informações gerais da administração do negócio; 6 – Políticas
Públicas. Além destas partes, um espaço ao final foi disponibilizado para
que os entrevistadores fizessem registros de suas observações gerais a cerca
do feirante e do seu negócio. Os demais dados obtidos são apresentados em
tabelas no Apêndice estatístico deste livro.
Uma observação importante: além dos questionários, as entrevistas em
profundidade e as observações sobre o cotidiano da feira e dos feirantes
também geraram conhecimentos úteis às análises que acompanham os da-
dos apresentados neste capítulo.

Feirantes - 205 -
Capítulos 3 e 4: As contribuições
metodológicas de “Retratos...” 98
As oito entrevistas em profundidade com cinco feirantes foram realiza-
das com Fabrício Maciel. Dentre os entrevistados, escolhi dois que com-
puseram os perfis de “Justino” e “Neide” apresentados nos capítulos 3 e 4.
Como orientação metodológica para a estruturação do roteiro e para a rea-
lização das entrevistas, tomou-se a apresentada por Bernard Lahire em sua
obra Retratos Sociológicos... Nesta seção recupero alguns dos seus pontos.
É acreditando na relevância da investigação empírica para a validação ou
não dos conceitos disposicionalistas que Lahire estrutura o que diz ser “um
dispositivo metodológico inédito”. Dispositivo este que consiste na realiza-
ção de entrevistas longas e sucessivas com cada um dos entrevistados99 sobre
temas diversos – tais como “família, escola, trabalho, sociabilidade, lazer-
-cultura e corpo (alimentação, saúde, estética, esporte)” (p. 34) – e que, de
forma geral, orienta a investigação para a obtenção do melhor conjunto pos-
sível de informações, evidências e indícios com potencial de subsidiar inter-
pretações adequadas acerca do “patrimônio de disposições” do pesquisado100.
Nesse sentido, sua proposta foca na compreensão de casos individuais
por meio de entrevistas longas e sucessivas que possam ir além do discurso
coerente que cada indivíduo tende a construir para se autojustificar so-
bre sua própria história, uma vez que em sua grande maioria apresentam
práticas incoerentes, mas incorporaram a hierarquia social da classificação
das práticas culturais, ou seja, sabem o que é mais ou menos legítimo, e se
autoavaliam de acordo com ela (por exemplo, sabem que é mais legítimo

98 Nesta seção, todas as citações acompanhadas apenas do número de página são referentes à obra:
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed,
2004. Também se tomou por base seção do trabalho anteriormente publicado: SÁ, Marcio. A sociologia
disposicionalista e o homem de negócios contemporâneo. In: Anais do VI EnEO – Encontro de Estudos
Organizacionais da ANPAD. Florianópolis: Anpad, 2010. (CD-ROM).
99 Cada conjunto de seis entrevistas foi realizado por um pesquisador com um entrevistado específico
(num total de oito) e resultaram em oito estudos de caso que são apresentados ao longo do livro, junta-
mente com os pontos para análise sumarizados ao final de cada um deles. Algumas “exigências teóricas”
para a estruturação das grades das entrevistas são apontadas por Lahire (ver: p. 37-43 da referida obra).
100 Ver páginas 32-34 da referida obra.

- 206 - o método
ler Kafka que assistir TV, logo, geralmente justificam a segunda prática,
quando admitem tê-la, como um momento de “descontração”, ou algo sem
importância, “para relaxar”; no Brasil, muitas pessoas condenam o hábito
de assistir novelas, mas, se perguntadas, sabem quem são os personagens
e como está se desenrolando a trama, ou seja, não admitem publicamente
gostar ou assistir, contudo o fazem “às escondidas até mesmo deles pró-
prios”...).
Um aspecto importante destacado pelo autor é a não consciência do in-
divíduo quanto aos princípios que regem suas ações, “embora seja suficien-
temente consciente para nos descrever o que faz, o ator não tem consciên-
cia das determinações internas e externas que o levaram a agir como agiu,
a pensar como pensou, a sentir como sentiu” (p. 22-3). Fica claro, então,
que não podemos partir de uma pressuposição de que o pesquisado terá
como fornecer as explicações sobre o que orienta sua ação (fatores dispo-
sicionais e/ou contextuais) e sobre as variações que apresenta em relação a
estas orientações em ações heterônomas específicas. O discurso coerente
sobre a própria vida é uma construção do indivíduo – que precisa desse
discurso para mostrar que é capaz de manter a coerência ao falar sobre si.
Mas, através de entrevistas sucessivas, podemos identificar as fissuras, as
incoerências, os choques entre as disposições legítimas e menos legítimas
dos indivíduos. Será necessário que o pesquisador interprete o que se pode
observar (em sentido amplo) por meio das interações investigativas, por
meio da própria narrativa que o entrevistado produz sobre sua história de
vida e dos demais instrumentos disponíveis para tal.
São as nuanças das vidas de cada um de nós que podem ser observadas
e analisadas se pesquisadas por meio de um instrumento metodológico
apropriado para trazer à tona essas questões, por meio das pessoas, das
falas delas sobre suas vidas, provocando-as a falar sobre temas como a fa-
mília, gerações anteriores, sobre como eram suas vidas na infância, sobre
como elas descobriram suas inclinações profissionais, como foram as suas
vidas na escola, em quais disciplinas tinham mais habilidades, quais menos;
quais os professores que as marcaram, por quê? Quais amigos têm ou tive-
ram mais influência sobre elas? Enfim, reconstruir suas trajetórias de vida.
Então a proposta metodológica utilizada foi fazer entrevistas sucessivas em
profundidade com essas pessoas, explorando as diversas esferas (política,
religião, consumo, trabalho, família etc.) de suas vidas, e, ao reconstruir as

Feirantes - 207 -
trajetórias de vidas dos entrevistados, explicar como as disposições que elas
apresentam hoje foram construídas nessas trajetórias.
No caso desta pesquisa, o roteiro para a entrevista foi estruturado para
duas entrevistas (o próprio Lahire esclareceu em reunião de pesquisa101, que
realizou seis entrevistas sucessivas em Retratos... porque tinha o objetivo de
testar a rentabilidade científica dos conceitos da sociologia disposiciona-
lista, o que não é o nosso caso, por se tratar de um fenômeno circunscrito,
uma vez que experiências prévias de pesquisa mostraram que duas entre-
vistas são suficientes). Essas entrevistas tiveram como temas: o trabalho, a
vida econômica, o consumo, a política, a vida escolar, a familiar, as relações
de gênero e a religião. Tais temas foram propostos por meio de questões
que constituem um roteiro que orientou a interação com os entrevistados.

Capítulo 5: Observações direcionadas e o


método ideal-típico102
Já visando conhecer a dinâmica administrativa desses feirantes em seus
micronegócios, foram empreendidas observações diretas e conversas in-
formais durante o período de campo da pesquisa, de setembro de 2008 a
junho de 2009. Por diversas vezes, fiz refeições em diversas dessas barracas
de alimentação e, assim, ampliei meu olhar para o fenômeno em questão.
Passei alguns expedientes observando o dia a dia de trabalho de alguns dos
feirantes. Nesses esforços foram devidamente tomadas, de modo sistemáti-
co, notas de campo.
Foram principalmente tais notas, somadas aos dados obtidos via ques-
tionário e às oito entrevistas em profundidade realizadas com os feirantes,

101 Por ocasião de sua vinda ao Brasil em 2009, coordenada por Lília Junqueira (PPGS/UFPE), no
âmbito do Núcleo de Pesquisa Sociedade, Cultura e Comunicação, da qual tivemos a oportunidade de
participar.
102 Todas as citações somente acompanhadas dos números das páginas (nesta seção) são referen-
tes à obra: WEBER, Max. Objetividade do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In:
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo; Campinas: Cortez; Unicamp, 1999.
parte 1. p. 107-154.

- 208 - o método
que nos permitiram construir a história de “Pedro” (o tipo-ideal que apre-
sentamos no capítulo 5).
Em termos metodológicos, sua construção se deu inspirada na doutrina
metodológica de Max Weber. Em Objetividade do Conhecimento na Ciência
Social e na Ciência Política (1999), Weber defende a ideia de que existe uma
forma de construção de conceitos própria e indispensável às ciências da
cultura. Essa forma seria a construção ideal-típica. Em suas palavras:

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de


um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamen-
to de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados,
difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor
número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam
segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim
de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É im-
possível encontrar empiricamente na realidade este quadro,
na sua pureza conceitual, pois trata-se de utopia. […] pode-
-se traçar igualmente a ideia de “artesanato” sob a forma de
utopia, para o que se procede à reunião de determinados tra-
ços que se manifestam de modo difuso entre os artesãos das
mais diversas épocas e países, acentuando de modo unilateral
as consequências dessa atividade num quadro não contradi-
tório, e referindo-a a uma expressão do pensamento que nela
se manifesta. […] E a este tipo ideal do artesanato pode ainda
opor-se, por antítese, um tipo ideal correspondente a uma
estrutura capitalista da indústria, obtido a partir da abstração
de determinados traços da grande indústria moderna para,
com base nisso, se tentar traçar a utopia de uma cultura “ca-
pitalista”. (p. 138).

Weber continua um pouco mais adiante esclarecendo de que se trata e a


que serve a construção de um tipo puro (ou ideal).

Trata-se de um quadro de pensamento, não de uma realidade


histórica, e muito menos uma realidade “autêntica”; não ser-
ve de esquema em que se possa incluir a realidade à maneira

Feirantes - 209 -
de exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito-limite,
puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a
fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus
elementos importantes, e com o qual é comparada. Tais con-
ceitos são configurações nas quais construímos relações, por
meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva, que
a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realida-
de, julga adequadas.
Nesta função, o tipo ideal é, acima de tudo, uma tentativa de
apreender os indivíduos históricos ou os seus diversos ele-
mentos em conceitos genéticos. (p. 140)
As ideias que dominaram os homens de uma época, isto é,
as que neles atuaram de forma difusa, só poderão ser com-
preendidas sempre que formarem um quadro de pensamento
complexo, com rigor conceitual, sob a forma de tipo ideal,
pois, empiricamente, elas habitam as mentes de uma quanti-
dade indeterminada e mutável de indivíduos, nos quais esta-
vam expostas aos mais diversos matizes, segundo a forma e o
conteúdo, a clareza e o sentido103. (p. 142).

Afinal, aprendemos com Weber (1999) que, no sentido que lhe atribuí-
mos, um tipo puro é algo completamente diferente da “avaliação aprecia-
dora”, pois não tem nada em comum com qualquer tipo de perfeição em
comparação com a realidade, salvo com a de se ter nele uma tentativa de
definir do melhor modo possível, em termos lógicos, um conceito.
Em síntese, um tipo ideal se trata de construção de um pesquisador que

103 A título de exemplificação do que venha a ser um tipo-ideal, podemos recuperar o seguinte tre-
cho da referida obra: “por exemplo, todos os enunciados de uma essência do cristianismo constituem
tipos ideais que, constante e necessariamente, apenas têm uma validade muito relativa e problemática,
se reivindicarem a qualidade de enunciado histórico empiricamente dado. […] Tais exposições típi-
co-ideais, contudo, comportam normalmente ainda um outro aspecto que torna ainda mais complexa
sua significação. Geralmente elas pretendem ser, ou inconscientemente o são, tipos ideais, não somente
no sentido lógico, mas também no sentido prático. Ou seja, são tipos exemplares que – seguindo nosso
exemplo – contêm aquilo que o cristianismo deveria ser segundo o ponto de vista do cientista […].
Dado que o tipo ideal reivindica aqui uma validade empírica, ele penetra na região da interpretação
avaliadora do cristianismo: abandonou-se o campo da ciência experimental para se fazer uma profissão
de fé pessoal, não uma construção conceitual típico-ideal.” (p. 143)

- 210 - o método
elenca os principais aspectos do fenômeno que quer compreender, sob sua
perspectiva. O tipo-instrumento é um meio de pesquisa comparativa com
a empiria. Ou seja, o tipo ideal weberiano é um instrumento para análise
compreensiva e construção teórica. Para a construção do tipo ideal neste
capítulo, as características gerais de quem seriam os batalhadores foram
articuladas com a análise dos dados coletados e, obviamente, observadas
pelas lentes teóricas de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire.

Feirantes - 211 -
3. A ESTATÍSTICA
[com Felipe Cavalcante Barbosa]

Parte 1 – Aspectos Familiares


Tabela 1: Proprietários por gênero
Sexo %
Feminino 46,7
Masculino 53,3
Total 100,0
Nota: consideram-se os gêneros como declarados pelos proprietários(as) entrevistados(as).

Tabela 2: Origens dos pais dos(as) proprietários(as) (%)


Proprietários por gênero
Origem Feminino Masculino Total
Caruaru 19,0 20,8 20,0
Outra cidade do interior de PE 42,9 41,7 42,2
Zona rural - sítio 4,8 29,2 17,8
Zona rural - distrito/povoado 9,5 8,3 8,9
Outra cidade do interior do Brasil 9,5 0,0 4,4
Outra capitala 4,8 0,0 2,3
Não souberam responder 9,5 0,0 4,4
Notaª: Excluindo a capital pernambucana.

- 212 - a estatística
Tabela 3: Escolaridades dos pais dos(as) proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero
Nível de escolaridade Feminino Masculino Total
Analfabeto/Lê muito pouco/Só assina
57,1 45,8 51,2
o nome
1º Grau/Ensino Fundamental
23,8 33,4 28,9
incompleto
1º Grau/Ensino Fundamental
0,0 8,3 4,4
completo
2º Grau/Ensino Médio completo 0,0 4,2 2,2
Não souberam dizera 19,1 8,3 13,3
Nota: não houve incidência com relação aos níveis superiores de ensino. ª Na maioria dos
casos, por conta do esquecimento.

Tabela 4: Quantidade de anos estudo do pai dos(as) proprietários(as) (em anos)


Média Desvio padrão
Quantidade de anos de estudo do pai a
2,225 3,1173
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros em relação aos proprietários.

Tabela 5: Origem das mães dos(as) proprietários(as) (%)


Proprietários por gênero
Origem Feminino Masculino Total
Caruaru 19,0 16,7 17,8
Outra cidade do interior de PE 52,3 41,7 46,7
Zona rural - sítio 4,8 29,1 17,8
Zona rural - distrito/povoado 4,8 8,3 6,7
Outra cidade do interior do Brasil 4,8 0,0 2,2
Recife 0,0 4,2 2,2
Outra capital 4,8 0,0 2,2
Não souberam responder 9,5 0,0 4,4

Feirantes - 213 -
Tabela 6: Escolaridades das mães dos(as) proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero
Nível de escolaridade Feminino Masculino Total
Analfabeto/Lê muito pouco/Só assina o
52,4 33,3 42,2
nome
1º Grau/Ensino Fundamental
38,1 41,7 40,1
incompleto
1º Grau/Ensino Fundamental completo 0,0 8,3 4,4
2º Grau/Ensino Médio completo 0,0 8,3 4,4
Superior completo 0,0 4,2 2,2
Não souberam dizera 9,5 4,2 6,7
Notaª: Na maioria dos casos, por conta do esquecimento.

Tabela 7: Quantidade de anos de estudo das mães dos(as) proprietários(as) (em anos)
Média Desvio padrão
Quantidade de anos de estudo da mãe a
3,450 4,1569
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros em relação aos proprietários.

Tabela 8: Atividades econômicas dos pais dos(as) proprietários(as) (%)


Proprietários por gênero
Atividade econômica Feminino Masculino Total
Agricultor 38,1 45,8 42,2
Comerciante 4,8 29,2 17,8
Trabalha com carteira assinada 14,3 4,2 8,9
Trabalha sem carteira assinada a
33,2 20,8 26,7
Aposentado b
4,8 0,0 2,2
Aposentado ativo c
4,8 0,0 2,2
Notaª: Autônomo não comerciante. b Recebe aposentadoria(s). c Recebe aposentadoria(s) e
exerce atividade econômica.

- 214 - a estatística
Tabela 9: Atividades econômicas das mães dos(as) proprietários(as)
Proprietários por gênero
Atividade econômica Feminino Masculino Total
Dona de Casa 57,1 37,5 46,7
Agricultora 38,1 16,7 26,7
Comerciante 4,8 20,8 13,3
Trabalha com carteira assinada 0,0 4,2 2,2
Trabalha sem carteira assinada a
0,0 8,3 4,4
Aposentadab 0,0 12,5 6,7
Notaª: Autônoma não comerciante. b Recebe aposentadoria(s).

Tabela 10: Criação dos(as) entrevistados(as) (%)


Proprietários por gênero
Criação do(a) entrevistado(a) Feminino Masculino Total
Criado(a) por ambosa 81,0 91,7 86,7
Criado(a) somente pela mãe 4,8 8,3 6,7
Criado(a) por outros familiaresb 14,2 0,0 6,6
Nota: Não houve incidências de criação somente paterna. a Pai e mãe casados ou em con-
vívio familiar. b Parentes ou considerados como familiares (amigos de família, padastros,
madrastas ou responsáveis legais).

Tabela 11: Origem dos(as) entrevistados(as) (%)


Proprietários por gênero
Origem Feminino Masculino Total
Caruaru 42,8 37,5 40,0
Recife 0,0 4,2 2,2
Zona rural - sítio 9,5 12,5 11,1
Zona rural - distrito/povoado 4,8 8,3 6,7
Outra cidade do interior do Brasil 4,8 8,3 6,7
Outra cidade do interior de PE a
38,1 29,2 33,3
Notaª: As cidades com maiores incidências foram: Riacho das Almas, Lajedo e Frei
Miguelinho.

Feirantes - 215 -
Tabela 12: Quantidade de irmãos dos(as) entrevistados(as)
Média Desvio padrão
Quantidade de irmãosa 5,651 3,0541
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros de irmãos.

Parte 2 – Perfil do entrevistado


Tabela 14: Formação escolar dos(as) entrevistados(as) (%)
Proprietários por gênero
Formação escolar Feminino Masculino Total
Inst. pública urbana 61,9 62,5 62,2
Inst. pública rural 28,6 25,0 26,7
Inst. particular urbana 4,7 4,2 4,4
Não souberam respondera 4,8 8,3 6,7
Notaª: Na sua maioria, por esquecimento.

TABELA 15: Quantidade de anos de estudo dos(as) entrevistado(as)

Média Desvio padrão


Quantidade de anos de estudo a
7,162 4,2656
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros.

Tabela 16: Origem dos(as) entrevistado(as) (%)


Proprietários por gênero
Origem Feminino Masculino Total
Caruaru 90,5 91,7 91,2
Outra cidade do interior de PE 4,8 4,1 4,4
Zona rural - distrito/povoado 4,7 4,2 4,4

- 216 - a estatística
Tabela 17: Faixa etária dos(as) entrevistados(as) (%)
Proprietários por gênero
Faixa etária Feminino Masculino Total
18 a 24 anos 0,0 4,2 2,2
25 a 34 anos 14,3 16,7 15,6
35 a 44 anos 23,8 45,8 35,6
45 a 54 anos 38,1 20,8 28,9
55 a 64 anos 23,8 8,3 15,6
Não quis respondera 0,0 4,2 2,1
Notaª: Por motivos pessoais, não revelaram a idade.

Tabela 18: Status relacional por gênero (%)


Proprietários por gênero
Status relacional Feminino Masculino Total
Solteiro(a) 9,5 8,3 8,9
Vive junto a
9,5 12,5 11,1
Casado(a) 57,2 75,0 66,7
Separado(a) 14,3 4,2 8,9
Viúvo(a) 9,5 0,0 4,4
Notaª: Corresponde à união estável.

Tabela 19: Atividade do(a) (ex)companheiro(a) (%)

Atividade do(a) (ex-) Proprietários por gênero


companheiro(a) Feminino Masculino Total
Dono(a) de Casa 4,8 25,0 15,6
Agricultor(a) 9,5 0,0 4,4
Comerciante 9,5 0,0 4,4
Trabalha com carteira assinada 0,0 16,7 8,9
Desempregado(a) 4,8 0,0 2,2
Aposentado(a) 4,8 0,0 2,2
Trabalha com ele(a) a
33,3 20,8 26,7
Não responderam 33,3 37,5 35,6
Notaª: Trabalham na mesma barraca.

Feirantes - 217 -
Tabela 20: Quantidade de filhos(as) dos(as) entrevistados(as)

Média Desvio padrão


Quantidade de filhos a
1,814 1,3319
Notaª: Consideram-se ambos os gêneros.

Parte 3 – Sobre histórico recente da atividade


econômica e formação para desempenho da atividade
econômica
Tabela 22: Tempo da atividade econômica anterior (%)
Proprietários por gênero
Intervalo de tempo (em anos) Feminino Masculino Total
1a3 23,8 8,3 15,6
4a6 19,0 8,3 13,3
7a9 19,0 16,6 17,9
10 a 12 4,8 25,0 15,6
13 a 15 0,0 4,2 2,2
16 a 18 4,8 4,2 4,4
19 a 21 0,0 4,2 2,2
22 a 24 9,5 0,0 4,4
25 a 27 0,0 4,2 2,2
Mais de 28 4,8 16,7 11,1
Não respondeu /não soube dizer 14,3 8,3 11,1

Tabela 23: Penúltima atividade econômica anterior (%)


Proprietários por gênero
Atividade econômica anterior Feminino Masculino Total
Emprego formal 14,3 12,5 13,3
Outra atividade informal 19,0 29,2 24,4
Atividade comercial familiar 0,0 16,7 8,9
Atividade rural familiar 14,3 8,3 11,1
Não respondeua 52,4 33,3 42,3
Notaª: Em sua grande maioria, por falta de lembrança.

- 218 - a estatística
Tabela 24: Tempo da penúltima atividade econômica anterior (%)
Proprietários por gênero
Intervalo de tempo (anos) Feminino Masculino Total
0a1 19,0 37,5 28,9
2a3 14,3 4,2 8,9
4a5 9,5 8,3 8,9
6a7 9,5 0,0 4,4
8a9 0,0 4,2 2,2
10 a 11 0,0 4,2 2,2
Mais de 12 4,8 8,3 6,7
Não respondeu a
42,9 33,3 37,8
Notaª: Em sua grande maioria, por falta de lembranças.

Tabela 25: Fonte de renda secundária (%)


Proprietários por gênero
Fonte de renda Feminino Masculino Total
Possui renda(s) secundária(s) 4,8 29,2 17,8
Não possui renda(s) secundária(s) 90,4 66,6 77,8
Não respondeu 4,8 4,2 4,4
Nota: Mensuramos aqueles que possuem outras fontes de renda, além do negócio na Feira
de Caruaru.

Parte 4 – Sobre a origem do negócio atual


Tabela 28: Motivo declarado da abertura do negócio (%)
Proprietários por gênero
Motivo declarado Feminino Masculino Total
Herança e/ou influência familiar/amigos 19,1 12,5 15,6
Meio de subsistência/desemprego 33,4 16,7 24,5
Vontade de abrir negócio próprio 9,5 12,5 11,1
Oportunidade proporcionada pela feira 9,5 16,6 13,3
Experiência(s) anteror(es) 19,0 8,3 13,3
Facilidade/lucratividade do negócio 0,0 16,7 8,9
Falta de opção 0,0 4,2 2,2
Outros a
9,5 8,3 8,9
Não respondeu/soube responder 0,0 4,2 2,2
Notaª: Alguns responderam sem objetividade ou de forma não tão clara.
Feirantes - 219 -
Tabela 29: Motivo declarado do tipo de negócio (%)
Proprietários por gênero
Motivo declarado Feminino Masculino Total
Vontade/gosto de trabalhar 33,3 16,7 24,4
Experiência(s) anterior(es) 14,3 37,5 26,7
Herança(s)/influência familiar 14,3 8,3 11,1
Oportunidade/viabilidade/lucratividade 23,8 16,7 20,0
Outros a
14,3 20,8 17,8
Nota: Considera-se a decisão de conduzir o negócio no ramo alimentício. a Decisões toma-
das por acaso, limitações financeiras ou tentativa(s) não planejada(s).

Tabela 30: Tempo do negócio atual (em anos)


Média Desvio padrão
Tempo do negócio 12,1471 7,9748

Tabela 31: Posse do atual negócio (%)


Proprietários por gênero
Tipo de ponto Feminino Masculino Total
Ponto próprio 90,5 95,8 93,3
Ponto alugado 9,5 4,2 6,7

Parte 5 – Informações gerais da administração do negócio


Tabela 33: Número de trabalhadores fixos
Média
Quantidade de trabalhadores 1,711
Nota: Pessoas que trabalham diariamente na barraca independentemente do dia.

Tabela 34: Número de trabalhadores familiares fixos


Média
Quantidade de trabalhadores familiares 1,044
Nota: Familiares que trabalham diariamente na barraca independentemente do dia.

- 220 - a estatística
Tabela 35: Número de trabalhadores temporários
Média
Quantidade trabalhadores temporários 1,450
Nota: Trabalhadores temporários para suprir os picos de demanda semanal nos dias de feira
livre de sulanca.

Tabela 36: Recrutamento dos trabalhadores não familiares (%)


Proprietários por gênero
Recrutamento Feminino Masculino Total
Procuram a barraca/interessados 4,8 29,1 17,8
Indicação de conhecidos/funcionários 14,3 16,7 15,6
Indicação de familiares 9,5 4,2 6,7
Convites/anúncios na barraca 0,0 12,5 6,7
Não respondeu/soube responder 71,4 37,5 53,2
Nota: Maneira como os trabalhadores não familiares conseguem o emprego no ramo ali-
mentício na feira.

Tabela 37: Critério(s) utilizado(s) para seleção dos trabalhadores não familiares (%)
Proprietários por gênero
Critérios de seleção Feminino Masculino Total
Análise de referências/experiências
0,0 4,2 2,2
profissionais
Entrevista(s)/teste(s) 4,8 25,0 15,6
Disposição/aptidão para o trabalho 4,8 0,0 2,2
Escolaridade 0,0 4,2 2,2
Indicação 19,0 12,4 15,6
Outros a
0,0 4,2 2,2
Não respondeu/soube responder 71,4 50,0 60,0
Nota: Motivos que levam os proprietários(as) a selecionarem seus novos funcionários não
familiares. a De algum modo, por necessidades contingenciais.

Feirantes - 221 -
Tabela 38: Principal produto de comercialização (%)
Proprietários por gênero
Produto Feminino Masculino Total
Almoço (PFs) a
61,9 54,2 57,8
Lanches b
38,1 45,8 42,2
Notaª: PFs (pratos feitos) correspondem a almoços tradicionais da culinária nordestina,
exemplo de prato: feijão, arroz, macarrão, vinagrete, um ou mais tipos de carnes e verduras.
b
Salgados e doces.

Tabela 39: Produção dos principais produtos de comercialização (%)


Proprietários por gênero
Produção Feminino Masculino Total
Produz a maior parte dos itens que
57,1 66,6 62,2
vende
Produz parcialmente os itens que vendea 14,3 4,2 8,9
Produz a menor parte dos itens que
0,0 12,5 6,7
vende
Compra praticamente tudo de terceiros 28,6 16,7 22,2
Notaª: Considera-se a quantidade produzida equilibrada em comparação à quantidade com-
prada de terceiros.

Tabela 41: Tempo da última melhoria realizada negócio (em anos)

Média Desvio padrão


Tempo da última melhoria 2,2329 2,0996

Tabela 44: Receita semanal (%)


Proprietários por gênero
Receita (R$) Feminino Masculino Total
Menos que 250,00 9,5 8,3 8,9
251,00 a 500,00 19,0 25,0 22,2
501,00 a 1.000,00 19,0 16,7 17,8
1.001,00 a 1.500,00 14,3 4,2 8,9
1.501,00 a 2.000,00 0,0 4,2 2,2
Mais que 2.501,00 9,5 12,5 11,1
Não soube estimar 23,9 29,1 26,7
Não quis responder 4,8 0,0 2,2
Nota: Percentuais das receitas obtidas durante a semana de feira.

- 222 - a estatística
Tabela 46: Despesa com mão de obra (semanal) (%)
Proprietários por gênero
Despesa (R$) Feminino Masculino Total
Menos de 100,00 19,0 25,0 22,2
Entre 101,00 a 200,00 23,8 12,5 17,8
Entre 201,00 a 400,00 19,0 0,0 8,9
Entre 401,00 a 600,00 4,8 8,3 6,7
Entre 601,00 a 800,00 0,0 4,2 2,2
Não soube estimar 4,8 0,0 2,2
Não quis responder 4,8 0,0 2,2
Sem resposta 23,8 50,0 37,8
Nota: Percentuais das despesas com funcionários durante a semana de feira.

Tabela 49: Despesa com produtos acabados (semanal) (%)

Despesa com produtos Proprietários por gênero


acabados (R$) Feminino Masculino Total
Menos que 100,00 9,5 8,3 8,9
101,00 a 200,00 4,9 20,8 13,3
201,00 a 300,00 9,5 8,3 8,9
301,00 a 400,00 14,3 4,3 8,9
401,00 a 500,00 9,5 20,8 15,6
501,00 a 600,00 14,3 0,0 6,7
Mais que 601,00 19,0 20,8 20,0
Não soube estimar 19,0 16,7 17,7
Nota: Correspondem aos custos de compra de produtos de terceiros: bebidas, salgados, do-
ces e frutas.

Tabela 50: Custo(s) mais prejudicial(is) (%)


Proprietários por gênero
Custo Feminino Masculino Total
Custo fixo 38,1 33,3 35,6
Custo variável 19,0 8,3 13,3
Custo com produtos acabados 28,6 41,7 35,6
Impostos 9,5 12,5 11,1
Não soube informar 4,8 4,2 4,4
Nota: Correspondem aos custos que mais pesam no orçamento dos feirantes.

Feirantes - 223 -
Tabela 52: Lucro mensal dos proprietários(as) (%)
Proprietários por gênero Total
Lucro mensal Feminino Masculino
Menos de 1 salário (R$ 465,00) 9,5 4,2 6,7
Entre 1 e 2 salários (R$ 466,00 - R$
14,3 25,0 20,0
930,00)
Entre 2 e 3 salários (R$ 931,00 - R$
9,5 20,8 15,6
1.395,00)
Entre 3 e 4 salários (R$ 1.396,00 - R$
9,5 8,3 8,9
1.860,00)
Mais de 4 salários (R$ 1861,00) 14,3 4,2 8,9
Não quis responder 4,8 0,0 2,2
Não soube estimar 33,3 37,5 35,5
Sem resposta 4,8 0,0 2,2
Nota: Trata-se do salário mínimo de R$ 465,00. Estabelecido pelo governo federal em 2009.

Tabela 53: Reservas para Investimentos (%)


Proprietários por gênero
Reservas Feminino Masculino Total
Não poupa 76,2 54,2 64,4
Investe/poupa até R$ 100,00 0,0 16,7 8,9
Poupa mais do que R$ 100,00 19,0 16,7 17,8
Outros a
0,0 8,3 4,4
Não responderam/souberam
4,8 4,1 4,5
responder
Notaª: Tentam poupar investindo o dinheiro na compra de bens.

Tabela 54: Recebimento do dinheiro (%)


Proprietários por gênero
Recebimento do dinheiro Feminino Masculino Total
O dono (proprietário) 61,9 70,8 66,7
Quem atende o cliente (trabalhador) 28,6 29,2 28,9
Outra pessoa da família ou
9,5 0,0 4,4
considerada como tal a
Notaª: Filhos(as), irmãos(ãs), primos(as), sobrinhos(as), amigos(as) de confiança etc.

- 224 - a estatística
Tabela 55: Armazenamento do dinheiro (%)
Proprietários por Gênero
Armazenamento Feminino Masculino Total
Com o(a) dono(a) a
28,6 16,7 22,2
Na barraca 42,9 45,8 44,5
Em casa 9,5 29,2 20,0
Em conta-corrente 4,8 8,3 6,7
Em poupança 4,8 0,0 2,2
Não quis responder 9,6 0,0 4,4
Nota: Maneira de armazenagem do “apurado” diário. a Principalmente em seu(s) bolso(s).

Tabela 56: Pensamento de aumentar ou expandir o negócio (%)


Proprietários por Gênero
Pensamento Feminino Masculino Total
Pensa em aumentar/expandir o
61,9 62,5 62,2
negócio
Não pensa em mexer no negócio 38,1 37,5 37,8

Parte 6 – Políticas Públicas


Tabela 58: Nível de crença política dos proprietários(as) (*)
Proprietários por gênero
Nível de crença política Feminino Masculino Total
Acredita totalmente 14,3 37,5 26,7
Acredita parcialmente a
42,9 41,7 42,2
Não acredita parcialmente b
9,5 8,3 8,9
Não acredita totalmente 33,3 8,3 20,0
Não soube opinar 0,0 4,2 2,2
Nota: Aqui consideramos os governos municipal, estadual e federal e todos os seus agentes
políticos vinculados. a Acredita na maioria dos políticos e governos, assim como em suas
iniciativas, entretanto não tem fé, esperança ou expectativas em alguns políticos ou gover-
nos. b Não acredita na maior parte dos casos, porém crê em alguns políticos ou iniciativas
partidárias, ou até mesmo em um dos governos.

Feirantes - 225 -
Tabela 60: Sugestões políticas para melhor condição de vida (%)
Proprietário(s) por gênero
Sugestões Feminino Masculino Total
Melhorar a condição social 38,0 37,5 37,9
Valorizar a Feira de Caruaru 14,3 4,2 8,9
Aumentar a empregabilidade 4,8 4,2 4,4
Melhorar o acesso ao crédito 4,8 12,5 8,9
Moradias populares 0,0 8,3 4,4
Aumentar o salário mínimo 4,8 0,0 2,2
Não acredita no governo 9,5 0,0 4,4
Não responderam/souberam responder 23,8 33,3 28,9
Nota: Consideram-se os governos municipal, estadual e federal. Sugestões para melhoria
da vida em sociedade, considerando sua individualidade e em contexto social e econômico.

- 226 - a estatística
ANEXO
Feirantes - 227 -
- 228 - Anexo
ANEXO DA 3A EDIÇÃO
Além de uma nova revisão ortográfica e do prefácio do Prof. Roberto Véras
de Oliveira, que muito me honra, esta edição de Feirantes traz como marca
própria um novo conjunto de textos que compõem este anexo.
O primeiro deles é a transcrição (com leves adaptações) de uma fala pro-
ferida na Câmara Municipal de Caruaru, logo após a apresentação de Filhos
das Feiras e da edição anterior de Feirantes, em setembro de 2018. Naquela
ocasião, procurei provocar os legisladores municipais a refletir sobre como
Caruaru estaria tratando a sua “mãe”, ou seja, a Feira de onde surgiu e com
a qual partilha seu nome, e apresentar as linhas gerais de como o negócio da
confecção local fez surgir seus personagens centrais no século 21, os filhos
das feiras.
O segundo é um conto que me tocou profundamente por acreditar que
ele traduz, em ficção literária, o espírito deste livro. Nascido num banco de
feira, de Taíza Maria, conta a trajetória de um menino que, uma vez pari-
do num daqueles bancos, cresceu na (e por meio da) Feira de Caruaru. A
história pode permitir uma expansão poética da reflexão proposta no texto
anterior, ou seja, um envolvimento emocional com a delicadeza da questão.
O terceiro, A novela da mudança da Feira da Sulanca: capítulo 2015, é um
texto-síntese do estudo de Jessica Rani F. de Sousa sobre os discursos que
emergiram na ocasião de um debate municipal que se deu recentemente
em torno da possível transferência da Feira da Sulanca, aquela que, dentre
as feiras que ocupam o Parque 18 de Maio, atrai o maior volume de pessoas
e gera o maior fluxo de dinheiro e mercadorias.
Por fim, Uma obra prenhe traz um generoso comentário no qual Luiz
Alex Saraiva registra suas reações a este livro, em particular, o que signi-

Feirantes - 229 -
ficou para ele relê-lo especificamente para a elaboração deste seu último
texto.
Não poderia deixar de registrar meu sincero agradecimento às autoras e
ao autor por suas produções originais que enriquecem este volume.

- 230 - Anexo
1. PARA QUE ESTES LIVROS
PODEM SERVIR?104
[Por Marcio Sá]

Não poderia iniciar esta fala sem registrar meu agradecimento ao presiden-
te da casa, o vereador Lula Tôrres, pela acolhida. Estendo o agradecimento
aos demais membros do poder legislativo municipal e, em particular, ao
vereador Daniel Finizola por este convite que muito me honra. Na pes-
soa da Professora Myrna Lorêto, então vice-líder do Grupo de Estudos e
Intervenções do Agreste (Geia), do Centro Acadêmico do Agreste (CAA)
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cumprimento também
todas as senhoras e todos os senhores presentes.
Sem dúvida, o que me trouxe aqui foi a repercussão do evento promovi-
do pelo Geia, na quinta-feira passada. Juntamente com a Editora Massan-
gana, da Fundação Joaquim Nabuco, tivemos a oportunidade de apresentar
à sociedade agrestina o livro Filhos das feiras: uma composição do campo de
negócios agreste e a segunda edição de Feirantes: quem são e como adminis-
tram seus negócios?
Gostaria de aqui partir da fala de um dos principais personagens de Fei-
rantes, Justino. Depois de ter vivido por décadas o sonho de São Paulo, ele
comprou uma barraca na Feira logo quando voltou de lá, cerca de quinze
anos atrás. Quando conversamos, obtinha renda por meio da venda de be-
bida e pratos feitos com sua esposa. Diante de situações de vida nas quais
precisou demonstrar persistência, ele costumava repetir a expressão: “eu
sou um cara ateimoso (sic) demais”.

104 Texto levemente adaptado a partir de original proferido na apresentação do livro Filhos das feiras e
da 2ª edição de Feirantes na Câmara Municipal de Caruaru, em 20 de setembro de 2018.

Feirantes - 231 -
Até hoje fico admirado como em poucas palavras Justino conseguiu
dizer tanto sobre a condição do feirante na Feira de Caruaru ainda hoje,
como eles são teimosos ao persistirem sobrevivendo de seus pequenos ne-
gócios. Mas é preciso que seja dito que há muitos feirantes teimosos noutro
sentido também, ou seja, em resistir às mudanças, em querer manter seus
negócios onde estão, por medo de perderem seus clientes ou de terem que
se adaptar ao incerto, ao novo.
A Feira de Caruaru é um desafio não somente para as pessoas que nela
encontram sua fonte de renda e ocupação, mas também para a gestão pú-
blica e para a sociedade caruaruense em geral. Basta voltarmos nosso olhar
para história e observarmos como polêmicas relacionadas à feira permane-
cem há décadas na pauta do governo municipal e da imprensa local.
Em 2007, a “Feira de Caruaru” recebeu o título de Patrimônio Cultural
e Imaterial Brasileiro. Se, por um lado, ela foi uma marca construída para
a cidade ao longo da segunda metade do século passado e neste obteve
o reconhecimento oficial como patrimônio cultural do país, por outro, é
possível escutar sobre ela depoimentos de feirantes insatisfeitos com o tra-
tamento histórico que a cidade lhe confere. Diferente do que diz a letra
daquela música consagrada e consagrante para a feira, um dos feirantes
que tive a oportunidade de entrevistar disse que “a Feira de Caruaru dá é
desgosto da gente vê”. Ele ainda enfatizou a vergonha que tinha em trazer
pessoas para conhecer a feira, aos seus olhos, algo bem diferente da visão
de caruaruenses que são “de fora” da feira e que preferem observá-la apenas
com romantismo, que muito difere da sua realidade.
Aos meus olhos, cuidar da feira e dos seus feirantes cobra de Caruaru
um plano, intenções organizadas que apontem para um futuro de médio
e longo prazo. Sem isso, ou seja, sem uma política pública de maior alcan-
ce, muitas obras podem ser feitas sem a devida clareza de suas finalidades
para além do curto prazo, o que pode tornar determinadas iniciativas ações
pontuais e dispersas, algo que contribuirá para que a feira continue onde e
como está, com um tratamento aquém do que merece.
No século passado Caruaru ganhou fama nacional como “a cidade que
tem a feira”. Mas neste século 21, que nova marca a Feira pode ser para a
cidade?
A máxima de Justino pode nos ajudar a refletir aqui. Caruaru não pode-
ria ser mais teimosa, persistente, nos cuidados com o seu maior patrimô-

- 232 - Anexo
nio? Se pensarmos e agirmos com o sim, poderíamos evitar o desperdício
desse seu grande capital, atrair novos investimentos e construir outro signi-
ficado para sua Feira neste século, ao torná-la objeto de planos consistentes.
Nesse sentido, a Feira de Caruaru poderia ser vista como “a mãe da cida-
de”, não somente por tê-la mantido economicamente por muito tempo, mas
também pela cultura e pelos ensinamentos que transmitiu. Afinal, foi com
ela que muita gente aprendeu a fazer contas, a assumir responsabilidades,
a se relacionar com os vizinhos de banco, a trabalhar duro etc. Não tenho
dúvidas de que ela ensinou mais a muitos caruaruenses que a escola. Se essa
cidade é filha de uma feira, como Caruaru está tratando sua mãe? Quais são
os planos que Caruaru tem para a sua Feira?
Reitero para finalizar este ponto: aos meus olhos, a feira vem sendo his-
toricamente empurrada para frente sem uma intencionalidade clara que lhe
dê um rumo, um futuro coletivo planejado para ser melhor que o presente.
Por outro lado, a feira poderia ser tratada de verdade, na prática, como
nosso maior capital, nosso maior ativo cultural, que rende não somente
dinheiro agora, mas também orgulho, reconhecimento e horizontes para as
próximas gerações de caruaruenses.
Se posso falar com alguma propriedade sobre a Feira de Caruaru ou se
o que falo provoca alguma reflexão, devo isso ao estudo que fiz e está re-
gistrado neste livro. Acredito que ele possa ter alguma utilidade para nossa
reflexão sobre o futuro que desejamos e queremos construir para a Feira de
Caruaru.
Na base do argumento que apresento no livro mais recente, “Filhos das fei-
ras: uma composição do campo de negócios agreste”, está o comércio de feira
de rua. Este segundo livro é um trabalho mais amadurecido, fruto de anos
de estudos em universidades estrangeiras e de outras viagens aqui mesmo
na região, a municípios como Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Jataúba,
Taquaritinga do Norte, Belo Jardim, entre outros, incluindo aí algumas zo-
nas rurais nas quais muitos se ocupam da produção de confecções. Mesmo
que seu foco maior se volte para os proprietários de negócios de produção
e comercialização de confecções, dirigi a esse pedaço de mundo que chamo
de agreste das confecções uma questão simples. Perguntei-me “como isso
tudo foi possível?” Questão que Pierre Bourdieu costumava fazer.
E para chegar até aos filhos das feiras, foi preciso resgatar um tanto da
história coletiva local a partir da qual eles foram gestados e crescidos. Afi-

Feirantes - 233 -
nal, sem o comércio de feira de rua, sem a família de origem rural que migra
para as cidades agrestinas, sem o saber da costura doméstica transmitido
de geração em geração, sem os retalhos-restos da industrialização do país,
sem as pessoas que iam e vinham do eixo Rio-São Paulo para Santa Cruz e
outros municípios agrestinos, enfim, sem tudo isso fica difícil imaginar o
agreste das confecções com os contornos que tem hoje e, consequentemen-
te, os seus filhos das feiras.
Esse termo foi criado para realçar uma herança que se mostra no jeito
de agir e que tais proprietários de negócios de produção e comercialização
de confecções recebem do comércio de feira de rua. Milhares de agrestinos
cresceram e foram educados nos seus corredores, entre seus bancos e bar-
racas. É dessa matriz social, cultural e econômica que ao menos alguns de
nós também são filhos e filhas.
Se, por um lado, tais milhares de negócios possuem uma origem comum
entre eles, por outro, tomaram rumos distintos ao longo do tempo, o que
fez com que seus proprietários se diferenciassem entre si, mesmo sendo
filhos de uma mesma história coletiva local.
A origem comum está nas feiras agrestinas e num modo de ser e agir que
foi e ainda é compartilhado em plena rua, quando se diz “chegue freguesa,
que lhe faço um desconto”. Ou então quando se grita: “eita que a macaxei-
ra hoje tá boa demais! Pague dois quilos e leve três!”. Esse jeito de ser se
mostra por meio de um pequenino menino que, em pé em cima do banco,
anuncia imitando como fazem os adultos: “oito laranjas por um real, quem
vai levar, quem vai?” Quando se procura atrair clientela e vender “no grito”,
pela oferta vociferada da mercadoria a quem passa, ou se recorre a modos
de agradar e manter a freguesia, guardando sua bolsa pesada enquanto ela
continua suas compras, ou mesmo separando-lhe um melhor pedaço do
bode. Está na habilidade com que se arruma, se coloca o maço de dinheiro
no bolso e no jeito como se puxam dele as notas necessárias ao troco. Ao se
ensinar aos filhos que “o apurado não é lucro” ou a embalar bem direitinho
a bandeja de ovos que a Dona Maria acabou de comprar. Tudo isso é vivido
e apreendido por meio de um sem-número de práticas que também se dão
naqueles dias de feira – práticas que fazem a cabeça e se inscrevem no cor-
po de quem cresceu, negociou ou ainda negocia por lá desde muito tempo
atrás (livro Filhos das feiras, 2018, p. 176-177).

- 234 - Anexo
Foi a partir de tal legado que, desde meados do século passado, cres-
ceu na aridez agrestina um conjunto específico de negócios. Agregando ao
saber prático do comércio de feira de rua a capacidade de confeccionar
mercadorias num dos cômodos do lar ou no quintal, milhares de famílias
passaram a se dedicar à atividade que deu fama e ganho econômico para a
região. A sulanca de Santa Cruz, o jeans de Toritama e a produção suburba-
na de Caruaru foram rapidamente disseminados por diversos outros mu-
nicípios do entorno, as máquinas de costura também invadiram o campo e
passaram a ser instrumento de trabalho e geração de renda para quem por
lá vivia e ainda vive.
Com todas as contradições e desigualdades de uma região que bem re-
trata o nosso país, o negócio da confecção local assim também se consti-
tuiu. De um lado, muito trabalho duro, inovação com poucos recursos dis-
poníveis, geração de soluções criativas e de formas alternativas de produção
em escala, como por meio das facções. De outro, exploração de mão de
obra infantil, pagamentos indignos, condições de trabalho precárias e uma
série de outros problemas que parte significativa de nós bem conhece. Para
além do julgamento positivo ou negativo que se pode fazer num primeiro
olhar, neste livro procuro apresentar uma interpretação sobre como tudo
isso se deu e se dá por aqui. Em particular, sobre como os filhos das feiras
criaram e fizeram crescer esse conjunto diverso de negócios e o que os tor-
na diferentes e semelhantes entre si.
Mas talvez parte de nós esteja se perguntando: para que um estudo como
esse pode servir? Antes de concluir esta fala quero dar uma resposta apon-
tando duas possíveis utilidades.
Uma primeira serventia é possibilitar que Caruaru reflita e se entenda
melhor nessa trama do agreste das confecções. Qual é o seu papel hoje nela
e qual poderia ser, por exemplo. Muito se escuta que Caruaru “ficou para
trás” no negócio de confecção, quando comparada com Santa Cruz do Ca-
pibaribe e Toritama, mas, caso o município se entenda com isso, poderá de-
senvolver ações para acompanhar e manter-se em sintonia com os demais.
Indo além, pode exercer sua liderança histórica também nesse processo de
desenvolvimento dos negócios de confecções agrestinos, articulando ru-
mos comuns a esses e a demais municípios envolvidos nessa trama.
Uma segunda seria inspirar pensamento e atuação política locais, uma
vez que, em termos gerais, leis e políticas nacionais ou estaduais são molda-

Feirantes - 235 -
das sem atentar para o que há de específico em municípios agrestinos como
Caruaru. Entender a história e a dinâmica das pessoas que construíram e
hoje fazem a principal atividade econômica da região pode permitir que
projetos de lei estaduais e municipais sejam propostos no sentido de apoiar
tais tipos de negócios, em particular os menores e que mais precisam. Mas
pergunto: quais políticas públicas Caruaru tem elaborado para seus peque-
nos e médios produtores de confecções? E quais poderia vir a propor se
tiver maior clareza de sua condição capital no agreste das confecções e pe-
riférica no mundo de hoje?
Melhor conhecer uma realidade como essa pode nos permitir fazer per-
guntas que nos levem adiante, que orientem avanços em bom rumo. Pode-
ríamos especular outros e outros exemplos e possibilidades aqui, mas não
creio que seja conveniente tomar mais tempo.
Para terminar, não queria deixar de registrar que esses livros condensam
os principais resultados de mais de onze anos de estudos sobre e para o
Agreste e, em particular, Caruaru. Para estar aqui hoje falando sobre eles,
assim como Justino, precisei persistir, ser muito teimoso e manter-me tra-
balhando nisso ao longo desse tempo. Espero que esta fala possa tê-los to-
cado para a importância de, inspirados pelas palavras de Justino, persistir.
Nesse caso, naquilo que se acredita ser importante para a construção de
visões e ações de médio e longo prazos para a Feira de Caruaru e para sua
Feira da Sulanca.

- 236 - Anexo
2. NASCIDO NUM BANCO DE FEIRA
[Por Taíza Maria105]

Sua origem era desconhecida e, na altura dos seus sete anos, tudo o que se
sabia é que ele tinha nascido num banco e num dia de feira.
Embora naquele agreste fosse comum que meninos da sua idade não
conhecessem o pai, causava estranheza que não se soubesse absolutamente
nada sobre a sua mãe.
– Você veio de onde? – seu Almir perguntava pela centésima vez.
Apenas um subir e descer dos ombros por resposta.
– Não sabe ou não quer dizer? – era a repergunta imediata.
– Vim de dentro da minha mãe.
– E você não sabe nada dela?
– Não. Mas ela sabe de mim!
E, assim, o mistério permanecia.
Nem seus traços físicos denunciavam um provável parentesco, pois ele se
parecia com meio mundo de gente. Tinha os olhos castanhos como quase
todos, os cabelos pretos tal qual a maioria, e a pele escurecida, que conden-
sava o sol das manhãs e tardes no corpo daqueles que viviam por entre as
lonas escaldantes e os bancos da Feira de Caruaru.
Um caminho para o enigma poderia ser observar o jeito de se portar e
tentar encontrar sua parecença com algum feirante. Mas tampouco essa
era uma pista a ser seguida. O menino falava rápido e sincopado, sorria
com facilidade e se exasperava com ligeireza, acordava primeiro que o sol e
reconhecia o cheiro da chuva antes da precipitação. Lamentava que o mo-

105 Doutora em Direito pela Universidade do Minho, professora dos Centros Universitários Asces-
Unita e Unifavip, taiza.maria@gmail.com.

Feirantes - 237 -
vimento da feira estivesse fraco, ao mesmo tempo em que cantarolava o
forró que tocava no rádio. Aquele menino falava, andava e se mexia com tal
desenvoltura no balé da feira, que não fosse a pequena estatura, se poderia
achar que era ele próprio um feirante. Inclusive, era com esta profissão que
sonhava ser quando crescesse. Mas não ali. Ele se imaginava trabalhando
na feira que ouvira numa música.
– Lá tem tudo que tem no mundo? – perguntou um dia a Dona Mercês.
– Maria Santíssima, protege essa inucência! Tem sim, fio, tem sim.
E como acreditava em tudo que fosse dito pela pessoa mais velha que
conhecia, o menino se via no futuro, como um homem feito e naquela feira,
em que tudo era tão intenso que entrar nela era viajar sem destino. Basta-
vam os primeiros acordes da música para despertar nele aquele cenário de
cores e melodias. A feira não o havia ensinado a ler, mas fez da necessidade
de saber ouvir uma virtude.
Contudo, enquanto o menino sonhava com a feira da música, os feiran-
tes que por anos se ocuparam de tentar descobrir de onde ele veio passaram
a se preocupar com o para onde ele iria. Ao menos até então, ele tinha abri-
go ou porque se tornara invisível aos olhos dos fiscais, ou quiçá era salvo
pela desistência deles de, diuturnamente, expulsar o menino de uma feira
tão imensa, que parecia não ter um lugar que se pudesse chamar de “fora”,
já que a cidade inteira cabia dentro dela.
Ele se alimentava graças à bondade alheia, e como retribuição carregava
fretes, ajudava a organizar roupas, pedia trocados aos passantes, catava as
frutas que os fregueses derrubavam e que corriam ávidas para baixo dos
bancos. Mas, para muitos, era tido como certo que em breve ele atravessaria
a linha que separa a piedade do problema.
– Que futuro esse menino pode ter? – lamentava Seu Almir.
– O mesmo que a gente: viver e morrer na feira – respondeu Seu Gonza-
ga, com sua habilidade de encerrar conversas que não queria nem começar.
– A feira já nos deu muito. – disse Dona Elsa fitando apenas Seu Almir.
– E com a mesma mão que dá, ela tira. – falou Seu Gonzaga, que gostava
também de encerrar as conversas alheias.
Mas tudo isso estava a léguas de distância da mente inventiva do menino
da feira. Ele se achava um afortunado. Não havia mãos que lhe dessem um
banho, mas todos os dias ele tinha um perfume diferente. Na segunda chei-
rava a goiabas frescas da barraca de Dona Isabel. Nas quintas tinha cheiro

- 238 - Anexo
de mato verde porque ajudava Seu Otoniel a vender coentro e cebolinha.
Na sexta o menino perfumava como todas as flores do banco de Dona Tere-
zinha. E aos sábados? Ah, aos sábados ninguém precisa usar perfume, pois
quem cheira mesmo é a feira!
Como é comum às crianças da sua idade, ambicionava brinquedos. E,
embora lhe fossem atraentes as luzes que via na “feira dos importados”, era
por entre as vielas do artesanato que se sentia legítimo dono de um arse-
nal de diversão. Nem os maiores historiadores de guerra seriam capazes
de descrever as batalhas que a mente do menino deflagrava, enquanto seus
olhos pousavam por sobre os bonecos de barro. Eram exércitos invencíveis,
formados por centenas de homens da sua cor, com os líderes em carros de
bois, protegidos por gatos maracajás, e nos quais os guerreiros de chapéu de
couro eram puxados por bandas de pífanos, que marcavam a cadência do
passo e davam a dramaticidade necessária aos momentos épicos.
O menino sabia que algumas crianças tinham televisões só suas, mas
isso não lhe causava inveja. Ele tinha várias espalhadas pela feira e nem
precisava mudar de canal. Na TV de Dona Elsa sempre estava passando
um programa policial, que falava de mortes que nada tinham a ver com
as narrativas honrosas dos seus bonecos de barro. A dois passos dali, Seu
Gonzaga tinha uma TV repleta de canais de esportes, com jogos até do
estrangeiro. Mas o menino gostava mesmo era da televisão de Dona Maria
das Mercês. Lá o assunto era Deus, com músicas que falavam de pai, mãe e
que os humilhados seriam exaltados.
– Dona Mercês, o que é humilhado? – perguntou naquele dia.
– É quando uma pessoa, que se acha importante, lhe trata como se você
não fosse.
– E exaltado, a senhora sabe?
– Claro que sei, mas agora tenho mais o que fazer.
O menino riu e entendeu que ser humilhado era coisa ruim e que Dona
Mercês não sabia o que era exaltado. De todo jeito aquilo semelhava ser
coisa boa, e vez por outra se via ele ali parado, com as mãozinhas sujas na
cintura, diante daqueles programas que falavam de amor.
E foi diante de uma televisão – a do Seu Almir – que o mistério maior da
sua vida se desfez. O jornal do meio-dia falava sobre os problemas da Feira
de Caruaru. Ao ver as imagens, os bancos por onde passava todos os dias e
reconhecer os rostos dos entrevistados, o menino percebeu que aquela feira

Feirantes - 239 -
da música, que embalava e coloria seus melhores sonhos, não existia. Ou
pior, era justamente aquela em que nasceu e sempre viveu.
Enquanto a matéria transcorria, o menino foi olhando para si mesmo,
se cheirando com desconfiança, tocando o próprio corpo e se apercebendo
que, tal qual a feira, ele estava sujo, lhe faltava muito (da água ao zelo), não
tinha um lugar certo para permanecer, estavam ambos inseguros e vulne-
ráveis às intempéries. Foi naquele dia que se deu conta de com quem se pa-
recia de verdade. Não era filho de um feirante. Ele era filho da própria feira.
Os feirantes relatam que seus olhos marejaram e que as lágrimas diluíram
o que nele existia de sonho. O menino da feira nunca mais foi visto. Mas
Caruaru guarda seus mistérios e crendices, o que é de se esperar de uma
cidade onde, tal qual no Gênesis, ainda existem homens feitos de barro.
Por lá se diz que o menino permanece por entre os bancos da feira. Vez
por outra é reconhecido numa criança que faz birra por um brinquedo,
nos olhos de uma menina que pede uma fruta, num pequeno aventureiro
que corre de perto da mãe, embora esta última em três segundos perceba a
traquinagem, tome o fugitivo pela mão e sigam os dois o mesmo caminho.
É assim que agem as mães que têm como maior temor perder um filho. E
era justamente assim que poderia ter agido a feira, caso tivesse percebido
quando aquele seu filho, um dia e de repente, se perdeu dentro dela mesma.

- 240 - Anexo
3. A NOVELA DA MUDANÇA DA
FEIRA DA SULANCA: CAPÍTULO
2015106
[Por Jessica Rani Ferreira de Sousa]107

Apesar de estar integrada ao complexo de feiras que compõem a “Feira


de Caruaru” (Iphan, 2006) e constituem, desde o ano de 2007, Patrimônio
Cultural e Imaterial da cidade (Iphan, 2007), a Feira da Sulanca, especifica-
mente, vem passando por uma série de dificuldades no que diz respeito a
questões de infraestrutura, organização e investimentos públicos. Mesmo
que o debate em torno da sua qualificação e realocação para instalações
mais adequadas seja bem mais antigo, foi somente em 2015 que o Projeto
“Nova Sulanca” configurou-se como um dos mais polêmicos da história da
feira até então, uma novela marcada por celeumas e imbróglios judiciais.
O referido Projeto de Lei (PL), cuja ideia inicial de transferência da Feira
ainda hoje se arrasta, foi de iniciativa da gestão municipal anterior à atual
(2017-2020), e visava à mudança da Sulanca de seu corrente local de fun-
cionamento para um terreno às margens da BR-104 no sentido Caruaru-
-Toritama, fora da zona mais urbanizada.
A última mudança de local da Feira de Caruaru data de 1992, quando ela

106 Este texto é uma síntese, elaborada especificamente para esta publicação, de um estudo original-
mente apresentado no Encontro Nacional de Estudos Organizacionais (EnEO 2019), leia-se: SOUSA, J.
F. de S.; SÁ, M. Os Significados do Projeto “Nova Sulanca” sob a Ótica da Teoria do Discurso de Laclau
e Mouffe. In: Anais do X Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD. Fortaleza: Anpad, 2019.
107 Professora Substituta (2019-) do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE,
Mestra em Administração pelo Propad-UFPE.

Feirantes - 241 -
ainda se realizava no marco zero da cidade, sendo então transferida para o
Parque 18 de Maio. Em 2015, no Projeto Nova Sulanca, o terreno negocia-
do para a instalação dos boxes e funcionamento da Feira contava com 60
hectares e capacidade para 3.768 veículos particulares e 600 ônibus. A de-
sapropriação desse espaço contaria também com uma ampla infraestrutura
com o custo de R$ 11 milhões aos cofres públicos, sendo a maior parte do
montante provido pelo Governo de Pernambuco e R$ 1 milhão pela Pre-
feitura (Diario de Pernambuco, 2015). As instalações ficariam distantes do
centro da cidade e seriam espaço de 568 lojas periféricas, 10.776 miniboxes,
168 lojas de atacado, 144 lanchonetes, 22 restaurantes, mais de cinco mil
vagas de estacionamento etc. (Prefeitura de Caruaru, 2015).
Neste texto, analisam-se os discursos de variados sujeitos políticos, en-
volvidos direta e indiretamente com o debate acerca da mudança da referida
feira, na tentativa de captar os significados do Projeto “Nova Sulanca”.

1. Sobre o estudo
Na coleta de dados que dá embasamento a este estudo, foram conside-
rados comentários e depoimentos oficiais postados em versões online de
mídias tradicionais, como edições eletrônicas de jornais locais, reportagens
em vídeo, notícias de sites institucionais dos sujeitos identificados como
articulados e influentes no fenômeno, e blogs de perfil jornalístico que de-
batem temas políticos e assuntos relevantes para a realidade de Caruaru e
outras cidades do Agreste. Por fim, para captar o posicionamento dos su-
lanqueiros envolvidos com o projeto, também foram trazidos para análise
comentários de nove publicações, veiculadas na página oficial da Prefeitura
de Caruaru e no Facebook, local em que mais foram frequentes a partici-
pação e os questionamentos direcionados ao debate sobre a mudança da
Sulanca, por parte dos aderentes ao movimento “A Sulanca é dos Sulan-
queiros” e de outros feirantes. Os depoimentos e comentários levantados
totalizaram um arquivo de 257 declarações (opiniões):

- 242 - Anexo
Tabela única: Composição do arquivo
Corpus do estudo Depoimentos Comentários
Sites institucionais 7 0
Blogs 5 15
Edições online de jornais locais 25 1
Postagens no Facebook 9 180
Reportagens em vídeo 15 0
Total: 61 196
Fonte: Elaboração da autora

2. O que está sendo questionado na


possível transferência da Sulanca?
“A mudança” de local da Sulanca é um assunto que se desgasta desde
2011, quando a Prefeitura divulgou uma pesquisa sobre as feiras realizadas
no Parque 18 de Maio e apresentou um novo calendário de horários de sua
realização (Acic, 2015). Entretanto, a decisão de retirar a Feira do Parque
18 de Maio foi oficialmente declarada apenas em março de 2014, após rea-
lização de uma consultoria contratada pela prefeitura para orçar o projeto
das novas instalações. Em abril, foi assinado o decreto de desapropriação
do terreno às margens da BR 104 (G1, 2015).
Em maio de 2014, o projeto foi levado à Câmara de vereadores para vo-
tação em uma sessão antecipada, na qual foi aprovado, mesmo após muita
polêmica. Foram 17 votos favoráveis, três votos contrários e três absten-
ções. O debate foi caloroso devido às reclamações por parte de alguns ve-
readores – de oposição – sobre a falta de tempo necessário para o devido
estudo do projeto e dúvidas quanto ao seu conteúdo.
Por ter sido votado às pressas e sem nenhuma consulta direta à popu-
lação, a decisão polemizou, também em virtude de que o Projeto “Nova
Sulanca” dependia de empresários ligados ao setor de confecção, que iriam
construir e administrar as instalações. Em questão também estava o risco
de perda de contato com a clientela mais antiga e o funcionamento das
demais feiras no Parque 18 de Maio, sem o movimento do fluxo de pesso-

Feirantes - 243 -
as fortemente estimulado pela Sulanca. Em contrapartida, a base aliada da
Prefeitura ressaltava que aquele era um “projeto de primeiro mundo”, cuja
tentativa era atender a uma solicitação da “própria sociedade” (Rota do Ser-
tão, 2014). Até então, não se identificavam “articulados” os elementos cons-
tituintes dos discursos favoráveis e contrários à transferência da Sulanca.
Com a criação de um Conselho Consultivo Deliberativo em julho de
2014, a Prefeitura buscou retratar a intenção de garantir um processo dialo-
gado sobre as decisões acerca do destino da Sulanca. O Conselho era forma-
do por membros representantes da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL),
do Sindicato dos Lojistas do Comércio, (Sindloja), da Associação Comer-
cial e Empresarial de Caruaru (Acic) e alguns poucos membros da Associa-
ção dos Sulanqueiros.
Grande parte da polêmica em torno da transferência da feira tomou for-
ma quando se difundiu a informação de que os novos bancos custariam
caro aos bolsos dos sulanqueiros. Conforme divulgado pela imprensa, a
aquisição de boxes (com 4 m²) custaria algo em torno de R$ 28 mil à vista e,
caso optassem pelo financiamento, cerca de R$ 40 mil (JC ONLINE, 2015).
Já as lojas de 40 m² ficaram orçadas entre R$ 142 e 160 mil (G1, 2015).
O final de 2014 foi marcado por muita dificuldade da prefeitura para dar
encaminhamento às obras do projeto. Por uma denúncia de um antigo líder
de oposição feita ao Ministério Público e à Agência Estadual de Meio Am-
biente (CPRH) de que a área das novas instalações da Sulanca estava sendo
alvo de desmatamento, sem o devido licenciamento ambiental, o terreno foi
embargado. Entre muitas idas, vindas e audiências públicas, ficou definida
a necessidade de compensação ambiental, que deveria ocorrer mediante a
construção de um parque municipal de 5,2 hectares às margens da BR-104,
pelo ex-dono do terreno, mais outros 21 hectares, na zona rural, destinado
como unidade de preservação permanente do Governo do Estado (Folha
de Pernambuco, 2015).
Enquanto os poucos membros da Associação de Sulanqueiros integrantes
do conselho foram positivos em relação às condições de possibilidade de pa-
gamento dos novos boxes, muitos feirantes demonstravam falta de condições
de efetuá-lo. Também passou a se articular um conjunto de feirantes inte-
grantes de um movimento intitulado “A Sulanca é dos Sulanqueiros”, alegan-
do insatisfação pela falta de participação nas decisões no projeto idealizado
pela Prefeitura e posicionando-se contra a transferência da feira.

- 244 - Anexo
Se, por um lado, a transferência afetaria negativamente o pequeno fei-
rante, que outrora já teria pago o suficiente para conseguir um alvará de
funcionamento no Parque 18 de Maio, membros da comunidade empresa-
rial, por sua vez, destacavam a perda de mercado que ocorre na medida em
que outros feirantes deixam de vir para Caruaru, buscando outras cidades
para negociar (Acic, 2015). A resistência dos pequenos feirantes, além do
próprio Ministério Público e CPRH, nos momentos de imbróglio judicial
ao andamento do PL, desde sua concepção inicial, até as votações levadas
à Câmara em julho de 2015, demonstrava como os discursos contrários à
transferência impossibilitaram a constituição objetiva da plena efetivação
do projeto, nos termos propostos pela Prefeitura, sua base aliada e pela clas-
se empresarial da cidade.

(Res)significando o Projeto “Nova Sulanca”: da


suspensão das atividades do conselho à elaboração
de um novo PL
Passado o “burburinho” inicial, o Projeto Nova Sulanca voltou a polemi-
zar em abril de 2015, quando, por decisão da Justiça ao acatar argumento
defendido pelo Ministério Público, foram suspensas as atividades do Con-
selho Deliberativo e Consultivo da Feira da Sulanca, bem como as suas re-
lações jurídicas existentes com as construtoras que iriam viabilizar as obras.
Foram encontradas irregularidades na própria constituição do Conselho, e
também na Lei Municipal 5.445/2014, relativa à desapropriação e conces-
são de direito de uso de terreno urbano destinado à construção do projeto.
Além disso, na decisão judicial o magistrado demonstrou convencimento
quanto ao fato de ter havido doação de imóvel para entidade particular sem
o devido procedimento licitatório, ou seja, sem que a doação se enquadras-
se nas hipóteses de dispensa previstas na Lei de Licitações (8.666/1993).
A ausência de demonstração de critérios claros para a escolha das pessoas
jurídicas que seriam beneficiadas com a construção do empreendimento
também pontuou como causa para a suspensão do Projeto Nova Sulanca
(MPPE, 2015; Diário Oficial do Estado de Pernambuco, 2015).
Claramente, esse momento acabou por ilustrar um importante desloca-
mento na estrutura discursiva da Prefeitura, uma vez que o novo barra-

Feirantes - 245 -
mento judicial das obras implicou na não sustentabilidade do Projeto Nova
Sulanca da forma que estava e na necessidade de reelaboração. A Prefeitura
apressou-se em elaborar e apresentar um novo projeto de lei à Câmara de
Vereadores, em substituição ao projeto anterior, dessa vez tentando atender
as recomendações da Justiça e declarando que a administração dos boxes
seria feita em uma espécie de regime de condomínio, a ser regido pelos
próprios sulanqueiros (Prefeitura Municipal de Caruaru, 2015).
Dessa vez, novo projeto e emendas emperraram na Câmara: represen-
tantes dos feirantes e do movimento “A Sulanca é dos Sulanqueiros” fize-
ram um abaixo-assinado e, liderados por uma figura política de oposição
ao governo, solicitaram um plebiscito para decidir a viabilidade ou não da
transferência. O PL nº 6.940/2015 seguiu para comissões parlamentares de
Legislação e Redação de Leis para análise e parecer, sendo apenas poste-
riormente encaminhado para votação em plenário (Câmara Municipal de
Caruaru, 2015).

3. Tensões na Câmara de Vereadores: as posições


diferenciais em torno do PL nº 6.940/2015 e o
futuro da Sulanca como um significante vazio

As tensões em torno do Projeto “Nova Sulanca” ecoaram com maior


intensidade no período circunscrito às votações realizadas na Câmara de
Vereadores, ao final de julho de 2015. Na primeira votação, do dia 28, o
PL foi rejeitado por não obter aprovação mínima de dois terços da Casa
com os 15 votos favoráveis, sete contrários e uma abstenção. Entretanto,
na votação de segunda instância, o PL foi aprovado com 16 votos a favor, 6
contra e uma abstenção. As posições diferenciais presentes nos discursos
dos sujeitos políticos analisados de acordo com as suas respectivas posições
de sujeito foram especificadas conforme a seguinte codificação: P: Prefeitura;
S: Sulanqueiros; CV: Câmara de Vereadores; M: Movimento “A Sulanca é
dos Sulanqueiros”; A: Associação de Sulanqueiros e Vendedores Ambulan-
tes de Caruaru (Asvac) e C: Comissão de Legislação e Redação de Leis da
Câmara de Vereadores de Caruaru.
Após análise de todos os comentários e depoimentos de tais sujeitos, foi
possível delinear os principais significados emanados pelo “Projeto Nova

- 246 - Anexo
Sulanca” no recorte proposto, em torno de algumas questões principais, as
quais disseram respeito a: (a) infraestrutura/financiamento; (b) competiti-
vidade e ganhos econômicos e (c) partidarismo/interesses políticos.

a) Infraestrutura/financiamento
Na opinião difundida entre os sulanqueiros insatisfeitos com a infraes-
trutura da Sulanca no 18 de Maio, há uma cadeia de equivalência com o
discurso à época difundido continuamente pela Prefeitura: “O espaço onde
funciona a Feira da Sulanca não oferece uma estrutura que permita o aces-
so de ambulâncias e agentes de segurança, trazendo riscos aos feirantes e
compradores em casos de incêndio, por exemplo” (P35).
Por parte de alguns feirantes, houve ainda comentários degradantes a
respeito da falta de infraestrutura, retratando-a como “nojo” (S164, 203);
“favela” (S164) e “chiqueiro” (S133), ou ainda: “impossível comprar e ca-
minhar com mobilidade pela Feira; estacionamento não comporta nem os
que vão para Feira de Artesanato. Tratando-se de condomínio, todos zela-
rão pela sua barraca e sua ala; diminuirá a sujeira e a mistura de produtos”
(S163). Também foram mencionados muitos argumentos a favor da trans-
ferência na luta por ganhos em mobilidade urbana, já que o trânsito fica
muito engarrafado nos dias de realização de Sulanca.
Ainda em relação à questão da infraestrutura, existia a preocupação com
o futuro incerto de vendedores ambulantes, carroceiros (S66, S68, S152),
além dos que aproveitam o movimento da Sulanca para vender outros
produtos. A Prefeitura, de sua parte, defendia-se de tal descontentamento
alegando que “uma das opções eram os tabuleiros para quem não tivesse
condições de adquirir um boxe” (P153), sem deixar claro, no entanto, as
condições para a aquisição de tais tabuleiros ou a forma de financiamento
para tal.
Quanto às condições de financiamento, foram esclarecidas no discurso
da Prefeitura apenas para a aquisição de boxes no sistema de condomínio,
a ser administrado pelos feirantes. Essas condições, no entanto, não foram
aprovadas pela Comissão de Legislação e Redação de Leis da Câmara de
Vereadores de Caruaru, antes mesmo da primeira votação na Câmara, em
seu parecer ao PL divulgado no dia 21 de julho de 2015. “Os projetos de lei

Feirantes - 247 -
apresentados pelo Poder Executivo, por exemplo, não podem ter aumen-
to de despesa. […] Não podemos criar despesas para um condomínio que
nem foi criado ainda” (C222). Além da inconstitucionalidade das emendas
sugeridas pelos parlamentares para o projeto de lei, que encontraram vários
problemas jurídicos, a comissão reprovou os gastos que a nova estrutura
em condomínio traria para os cofres do governo, sem clara compensação
no futuro.

b) Competitividade e ganhos econômicos


As posições diferenciais a respeito de competitividade e ganhos econômi-
cos giraram em torno, primeiramente, da preocupação com a diminuição
dos lucros e perda de clientes para outras feiras de confecção no Agreste,
sobretudo as de Santa Cruz do Capibaribe e Toritama.
Integrantes do Movimento “A Sulanca é dos Sulanqueiros” se mostravam
revoltados com os altos custos dos boxes, principalmente diante de um “ce-
nário econômico de crise” para “beneficiar shoppings centers e empresários
vinculados à Acic” (M187, S232) e denunciavam a falta de condições que
os pequenos sulanqueiros teriam para pagar os impostos necessários à ma-
nutenção dos boxes: “o governo tá ‘doidin’ pra regularizar essa economia
informal. E qual é o pequeno sulanqueiro que pode pagar os altos impostos
que o empresário paga à União? Novamente só os ricos vão ficar cada vez
mais ricos, é arriscado o pequeno sulanqueiro fechar o fabrico e trabalhar
para outros” (S208).
Tal cobrança de impostos foi evidenciada em um dos depoimentos do
chefe do Executivo, à época, segundo o qual “os fiscais da [Secretaria da]
Fazenda foram a cada um [sulanqueiro] e explicaram que é preciso estar
cadastrado e cumprindo as obrigações [pagamento de impostos]”. “Se ele
‘dá no pé’ e não cumpre com as obrigações, ele não é um sulanqueiro nor-
mal. Todos os que estiverem cadastrados vão ter direito e mesmo os que
não estiverem vão se regularizar”. E completou: “nós estabelecemos na lei
que só será cedido um espaço a terceiros – [...] depois que atender a todos
os sulanqueiros” (P224).
Adicionalmente, o discurso da Prefeitura e dos membros do antigo Con-
selho Deliberativo buscava, então, enaltecer a visão de progresso da “so-

- 248 - Anexo
lução que vai melhorar o grande equipamento econômico da capital do
Agreste” (P181) e fortalecer ainda mais a Sulanca: “Vamos dar um salto de
qualidade na nossa economia, colocando Caruaru mais uma vez na pers-
pectiva de mais desenvolvimento, mais emprego e mais renda para todos”
(P186).

c) Partidarismo/interesses políticos
Junto ao discurso dos partidários do Movimento “A Sulanca é dos Su-
lanqueiros”, articulou-se o discurso dos vereadores contrários ao projeto
na Câmara Municipal, conforme demonstrou o depoimento do líder da
oposição, referindo-se ao Projeto Nova Sulanca como “matéria de grande
relevância e interesse público”, dispondo ainda “de regime de concessão de
patrimônio público” (CV214). “Pedi, através de ofício, a realização de uma
audiência pública, mas não fui atendido [...]. A Prefeitura está lavando as
mãos em relação a essa situação e jogou o problema para a Câmara resolver.
Infelizmente, o prefeito tem maioria esmagadora e seremos voto vencido”
(CV237).
No discurso dos feirantes, alguns alegavam “oportunismo” de candidatos
por interesse nas eleições municipais seguintes (S88). Também houve alu-
sões à corrupção, no discurso dos que afirmavam que transferir a feira sem
a participação dos feirantes significava “roubar o povo” (S71) e “privatizar
a feira” (S166) ou “chamar privatização de transferência” era “roubar na
cara de pau” (S60, S69, S202). Alguns também citavam que as condições
de infraestrutura da feira só refletiam o seu “abandono” pelo poder público
(S205, S206).
O momento de discussões inflamadas na segunda votação na Câmara
disparou em destaque na imprensa local devido à mudança de voto de um
vereador, que primeiro havia votado contra o PL e depois mudou seu voto
para um “sim” na votação de segunda instância do dia 31, sob a alegação de
que havia sofrido “ameaças” (CV240) de indivíduos que afirmaram que, se
ele votasse contra o projeto, “cabeças iam rolar” (CV213, CV239), culmi-
nando em sua mudança de voto para assegurar a “certeza de que vivia em
uma democracia” (CV239).

Feirantes - 249 -
A única abstenção da segunda votação foi justificada pela falta de segu-
rança no PL: “Sou contra o projeto que veio para cá, que não me deixou
com segurança para votação, retirar a feira e eu ficar com o peso na consci-
ência de que votei errado. [...] Sou a favor da retirada da feira, mas com um
projeto que me dê essa segurança” (CV219).
Após a aprovação e seguimento do PL para sanção pelo prefeito à épo-
ca, a Asvac articulou-se junto ao Movimento “A Sulanca é dos Sulanquei-
ros”, reivindicando poder de intervenção e proteção aos interesses dos
trabalhadores da Sulanca, como foi possível observar nos depoimentos da
presidente da associação e do então líder do Movimento “A Sulanca é dos
Sulanqueiros”, eleito tesoureiro da Asvac, respectivamente: “Em nenhum
momento nós somos contra a saída da feira ou a permanência. Nós quere-
mos dignidade e direito de trabalho. A gente não é contra a transferência
da feira, mas da maneira como ela está sendo conduzida: sem informações
e sem proteção do pequeno sulanqueiro” (A215). “A gente vai desenvolver
um plano de trabalho e uma série de reivindicações, para que a gente possa
ir ao poder público não apenas como indivíduo, mas como associação com
caráter jurídico” (M216).

Considerações finais
O estudo que deu origem a este texto vislumbrou uma possibilidade de
futuro da Feira da Sulanca como um significante vazio, que ainda perma-
nece sendo disputado entre os sujeitos favoráveis a sua permanência ou sua
transferência. Mesmo publicada a lei que trata da transferência, a verdade
é que o futuro da feira, desde o período aqui relatado, ainda não adquiriu
um sentido estável, uma vez que um imbróglio judicial, ainda em dezem-
bro de 2015, anulou o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre o
Ministério Público, a CPRH, a Prefeitura de Caruaru e o dono do terreno,
que previa a legalização da área onde deveria funcionar a “Nova Sulanca”.
Não obstante, face a toda a repercussão que teve e aos interesses políticos
que ainda envolve, o PL não deixou de “passar para os anais da história de
Caruaru”.
No final de 2018, na tentativa de atender às necessidades emergenciais de
requalificação com as quais havia se comprometido a nova gestão ainda

- 250 - Anexo
no período de campanha eleitoral em 2016, seguem acontecendo algumas
obras de melhorias na parte da feira que funciona em terreno particular,
nas proximidades do Parque 18 de Maio, região conhecida como terreno
da antiga Fundação de Amparo à Criança e ao Adolescente (Fundac). Após
assinatura de Termo de Compromisso entre a Prefeitura de Caruaru e a em-
presa proprietária desse terreno, algumas obras de benfeitoria foram opera-
cionalizadas para, nas palavras da atual prefeitura, cumprir o compromisso
de “dar fôlego” à Feira de Caruaru até que se consiga, de fato, transferir a
Sulanca para um novo local (Jornal de Caruaru, 2017; Prefeitura Municipal
de Caruaru, 2018).

Referências
ACIC (Associação Comercial e Empresarial de Caruaru). Debate sobre a
Feira de Caruaru entre Queiroz e empresários. 2015. Disponível em: http://
acic-caruaru.com.br/debate-sobre-a-feira-de-caruaru-entre-queiroz-e-
-empresarios/. Acesso em: 13 out. 2015.

CÂMARA MUNICIPAL DE CARUARU. Líder de oposição pede parecer


jurídico para PL da Sulanca. 2013. Disponível em: http://camaracaruaru.
pe.gov.br/2013/?p=8639. Acesso em: 4 dez. 2015.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO. MPPE obtém na justiça


suspensão das obras da Feira da Sulanca. Diário Oficial do Estado de Per-
nambuco, Recife, PE, ano 92, n. 67, p. 1, 14 abr. 2015.

PREFEITURA MUNICIPAL CARUARU. Tira dúvidas sobre a transferên-


cia da Feira da Sulanca. 23 jul. 2015. Disponível em: http://www.caruaru.
pe.gov.br/noticia/23/07/2015/tira-duvidas-sobre-a-transferencia-da-feira-
-da-sul.html. Acesso em: 22 set. 2015.

PREFEITURA MUNICIPAL DE CARUARU. Parque 18 de Maio contará


com núcleo de segurança da Feira. 7 ago. 2018. Disponível em: https://caru-
aru.pe.gov.br/parque-18-de-maio-contara-com-nucleo-de-seguranca-da-
-feira/. Acesso em: 7 ago. 2018.

Feirantes - 251 -
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Dossiê
Feira de Caruaru: Inventário Nacional de Referência Cultural. Redação de
Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei Tito). Recife, 20 set. 2006. Dispo-
nível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_fei-
ra_de_caruaru.pdf. Acesso em: 7 ago. 2018.

IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Feirantes


e comunidade recebem título da Feira de Caruaru como patrimônio imaterial
do Brasil. 12 fev. 2007. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/noticias /
detalhes/1780/feirantes-e-comunidade-recebem-titulo-da-feira-de-carua-
ru-como-patrimonio-imaterial-do-brasil. Acesso em: 10 fev. 2016.

MPPE (Ministério Público de Pernambuco). Caruaru: Justiça acata ação


do MPPE e suspende obras do empreendimento da Feira da Sulanca. 13
abr. 2015. Disponível em: http://www.mppe.mp.br/mppe/index.php/co-
municacao/noticias/ultimas-noticias-noticias/3951-caruaru-justica-acata-
-acao-do-mppe-e-suspende-obras-do-empreendimento-feira-da-sulanca.
Acesso em: 10 dez. 2015.

POPULAÇÃO de Caruaru não aprova mudança de local da Feira da Su-


lanca. Folha de Pernambuco. Recife, 12 maio 2015. Disponível em: http://
www3.folhape.com.br/cms/ opencms/folhape/pt/cotidiano/interior/
arqs/2015/05/0012.html. Acesso em: 29 out. 2015.

RAQUEL Lyra fecha parceria que vai transformar a feira da Fundac em coisa
de cinema. Jornal de Caruaru. Caruaru, 9 nov. 2017. Disponível em: www.
jornaldecaruaru.com.br/ 2017/11/raquel-lyra-fecha-parceria-que-vai-
-transformar-a-feira-da-fundac-em-coisa-de-cinema/. Acesso em: 9 mar.
2018.

ROTA DO SERTÃO. Em reunião antecipada, Câmara aprova projeto de


mudança de Feira da Sulanca. 22 maio 2014. Disponível em: http://www.
rotadosertao.com/noticia/ 47244-em-reuniao-antecipada-camara-aprova-
-projeto-de-mudanca-da-feira-da-sulanca. Acesso em: 10 nov. 2015.

- 252 - Anexo
VEREADORES aprovam projeto da nova ‘Sulanca’ de Caruaru em 2ª vo-
tação. G1. Caruaru e região, 30 jul. 2015. Disponível em: http://g1.globo.
com/pe/caruaru-regiao/noticia/2015/07/ vereadores-aprovam-projeto-da-
-nova-sulanca-de-caruaru-em-2-votacao.html. Acesso em: 23 dez. 2015.

VEREADORES de Caruaru aprovam mudança de local da Feira da Sulanca.


Diario de Pernambuco. Recife, 31 jul. 2015. Agreste. Disponível em: http://
www.diariode pernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2015/07/31/
interna_vidaurbana,589783/vereado res-de-caruaru-aprovam-mudanca-
-de-local-da-feira-da-sulanca-oposicao-reage.shtml. Acesso em: 13 out.
2015.

VEREADORES de Caruaru aprovam projeto de transferência da Feira da


Sulanca. JC online. Recife, 30 jul. 2015. Disponível em: http://m.jc.ne10.uol.
com.br/canal/politica/pernambuco/ noticia/2015/07/30/vereadores-de-
-caruaru-aprovam-projeto-de-transferencia-da-feira-da-sulanca-192452.
php. Acesso em: 30 ago. 2015.

Feirantes - 253 -
4. UMA OBRA PRENHE
[Por Luiz Alex Silva Saraiva]108

Ter podido reler Feirantes: quem são e como administram seus negócios,
para escrever este comentário final à terceira edição do livro, significou
para mim várias coisas: privilégio, prazer, reflexão e provocação, aspectos
que pretendo desenvolver ao longo da minha escrita.
Em primeiro lugar, foi um privilégio. E não apenas por ter sido alfabe-
tizado e não integrar o expressivo contingente de analfabetos funcionais
no país, número que tende a crescer em razão da atual postura irrespon-
sável do Governo Federal, que, além de sistematicamente cortar recursos,
ainda congela o restante em meio a um esquema explícito de chantagem
da sociedade brasileira em prol de agendas eleitoreiras e privatistas. Mais
e mais brasileiras e brasileiros, se muito, conseguirão identificar as letras,
o que não significa que cheguem a compreender do que se trata o que,
em conjunto, essas letras dizem. Meu privilégio também se deve a poder
ler este trabalho, fruto de uma pesquisa empreendida com forte referen-
ciamento local, da forma como a li: a partir de uma posição de professor
universitário, gentilmente convidado pelo autor a comentar a certamente
bem-sucedida terceira edição do livro.
Em segundo lugar, foi um prazer. E digo isso por dois motivos. O pri-
meiro é que já residi em diversas cidades de diferentes regiões do país, e
me encantam as variadas diferenças de um país continental como o nosso,
visivelmente ampliadas quando fenômenos que não são usualmente to-
mados como organizações, como as feiras, passam a ser observados com
um olhar organizacional. Isso amplia de forma expressiva o que temos em
mãos quando vivemos em sociedade, pois passamos a ter como compro-

108 Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Feirantes - 255 -
misso observar a vida social organizada e as múltiplas formas pelas quais
se concretizam as gestões e as sociedades – no plural (CARRIERI, 2014).
Outro motivo para meu prazer ao ler o livro é a feliz possibilidade de in-
terlocução com colegas de outro lado do Brasil que também compartilham
a ideia de que é preciso imbuir de sentido o nosso trabalho docente, o que
inclui conceber e levar a cabo práticas de ensino, de pesquisa e de extensão
comprometidas com o meio que nos cerca. A metáfora da torre de marfim,
invocada frequentemente para se referir à universidade e à barreira por ela
erigida em relação à sociedade, é precisa, mas precisa ser desgastada e, tão
logo quanto possível, derrubada. Objetivamente, não há universidade que
não exista em função da sociedade, e é o social que precisa ser beneficiário
último do conhecimento acadêmico ali produzido. Mesmo que estejamos
tratando de uma sociedade que não compreenda precisamente o que ali é
feito, mesmo que a sociedade antagonize o que ali é pensado, é a ela que
este conhecimento se destina, no final. Por isso é tão prazeroso encontrar
colegas que pensem diferente – mas parecido – em um conhecimento que
precisa ser localmente assentado para tornar relevante e empolgante o pró-
prio cotidiano na academia.
Em terceiro lugar, ler este livro me fez refletir. E sobre vários aspectos:
o que constitui o cerne da organização? Em que medida este conceito, tão
caro à área de Administração, dialoga com o conceito sociológico de or-
dem, fundante da nossa sociedade? Estaríamos diante de mais do mesmo,
sendo a organização um imperativo de um campo de conhecimento com-
prometido com uma ordem que se ajuste ao contexto de um sistema de
produção capitalista? É por isso que estudamos a organização ou haveria
algo mais? Abordar uma feira, e fazer dos feirantes os protagonistas signi-
fica subverter a ordem ou reforçá-la em algum nível ao procurar fornecer
explicações lastreadas em uma noção de ciência que pode não dar conta
de organizações fora do padrão da grande empresa capitalista industrial?
Seriam os feirantes abordados a prova da falência das possibilidades expli-
cativas da ciência que temos, ou um novo capítulo revigorado da mesma
história, que se reinventa a partir de “objetos” novos? O Agreste pernambu-
cano e suas feiras, as cidades e suas (in)diferenças, os discursos e as práticas
que nos constituem, a história que construímos e a memória que preserva-
mos, bem como as diversas nuances da sociedade proporcionadas pela tec-
nologia, tudo isso – e não apenas isso, felizmente – me faz refletir sob um

- 256 - Anexo
prisma organizacional e reforça os sentidos de continuar a minha própria
trajetória como pesquisador.
Em quarto e último lugar, este livro me provocou. Eu me senti desafia-
do a me reinventar, o que tenho tentado fazer periodicamente, incorpo-
rando olhares que eu julgava desnecessários, ou já contemplados. Quando
me proponho a pesquisar um tema qualquer, estou considerando todas as
pessoas envolvidas ou elegendo, mesmo sem querer fazê-lo, “representan-
tes” que na prática atuarão como “amostra” e em função de suas especifi-
cidades terei a pretensão de compreender o fenômeno a que me propus?
Seriam minhas escolhas as mais indicadas, as mais relevantes, as que mais
se aproximam do que efetivamente são os fenômenos que desejo observar?
Em uma trajetória que procurou privilegiar uma ampliação do conceito de
organização, teria eu ampliado o suficiente o que tomo por práticas orga-
nizacionais e suas formas de ordenamento? O que não enxergo a partir do
que escolhi observar?
Asseguro ao leitor e à leitora que um livro que desperta simultaneamente
sentimentos de privilégio, prazer, reflexão e provocação em um leitor ex-
periente como eu já tem o seu mérito garantido. Além da fluidez da reda-
ção, que nos coloca ao lado do Marcio na sua empreitada, é um exercício
extraordinário que humanização o que ele conduz ao transformar a nar-
rativa – quando já pensávamos que a ideia amorfa de “feirantes” já estava
sedimentada – e trazer as histórias de Justino e Neide, que passam a dar
“uma cara” ao fenômeno. De seus tropeços e acertos emerge uma história
que poderia ser a minha, e isso me possibilita uma empatia imediata com
o texto. Além disso, a pesquisa não resulta apenas em uma mera apreensão
de informações: há uma visível preocupação ética que enobrece o estudo ao
revesti-lo da humanidade necessária para que ele faça sentido naquele meio
específico. Com isso, o autor não se esconde, quando facilmente poderia,
sob subterfúgios metodológicos que pressupõem o afastamento necessário
das pessoas para que possam ser produzidos resultados cientificamente vá-
lidos; pelo contrário, ele se aproxima dessas pessoas e precisamente dessa
proximidade nos mostra como é possível fazer uma pesquisa prenhe de
possibilidades.
Um exemplo ocorre quando alertado pelos feirantes da ameaça que po-
deria representar a mudança do lugar de realização da feira, que iria tra-
zer alterações na forma de trabalho e de vida daquelas pessoas. Atento à

Feirantes - 257 -
mudança, que efetivamente ocorreu, o pesquisador não definiu com um
confortável ponto final o momento em que os dados foram produzidos em
campo: estendeu-se, assim, ao momento em que a feira mudou de lugar,
e ao modo como isso trouxe uma série de reconfigurações na forma pela
qual aqueles feirantes administram seus negócios. Mantendo em vista uma
relação estabelecida com aquelas pessoas para além da produção do relató-
rio de pesquisa, uma mudança especial poderia significar novas batalhas,
nos termos de Souza (2010) para tais pessoas, que precisariam rapidamente
se readaptar às novas contingências. A pesquisa não acaba, assim, quando
nos convém, embora saibamos de prazos institucionais e das exigências das
agências de fomento. Mas nem por isso precisamos transformar as pessoas
com as quais lidamos em contexto de investigação em “objetos”, delas ex-
traindo o que nos interessa e deixando-lhes o vazio estéril de metodologias
desumanizadas de exploração da boa vontade alheia sem qualquer espécie
de interlocução humanamente significativa. Este livro é prenhe por ilustrar
outras possíveis formas de pesquisa. Por isso, vale a pena ler estas páginas
que apontam outros caminhos para além da torre de marfim.

Referências
CARRIERI, A. P. As gestões e as sociedades. Farol – Revista de Estudos Or-
ganizacionais e Sociedade, Belo Horizonte, v. 1, n.1, p. 21-64, jun. 2014.

SOUZA, J. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe


trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

- 258 - Anexo
AGRADECIMENTOS
A terceira edição deste livro somente pode ser oferecido a você, leitor, gra-
ças ao apoio de algumas instituições e pessoas. Acredito ter para com elas
um débito ético-pessoal que precisa ser aqui devidamente registrado em
forma de agradecimentos.
O primeiro devo à UFPE, por permitir a dedicação de parte de minha
carga horária de trabalho à realização de pesquisas. Ainda nesse âmbito,
preciso agradecer à Editora UFPE (e sua equipe sempre extremamente gen-
til e solícita), na pessoa de sua então diretora, a Profa. Maria José de Matos
Luna, pela atenção que teve por ocasião da apresentação do projeto original
do livro.
A pesquisa que originou Feirantes contou com substantivo apoio insti-
tucional do então Centro de Pesquisa sobre a Desigualdade (Cepedes) da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ao qual preciso agradecer na
pessoa de Jessé Souza. Por seu convite integrei pesquisa financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (em parceria
com o CNPq), edital Fapemig 020/2006, no âmbito do Programa de Apoio
a Núcleos de Excelência (Pronex). Assim, aqui também registro meus agra-
decimentos à FAPEMIG e ao CNPq.
Também preciso agradecer ao Centro de Gestão e Estudos Estratégicos
(CGEE), então vinculado ao Ministério de Assuntos Estratégicos (MAE)
da Presidência da República, por intermédio da Secretaria de Assuntos Es-
tratégicos (SAE), a oportunidade de participar do seminário “Camada de
empreendedores batalhadores brasileiros”109 com um grupo qualificado de
colegas de todo Brasil. Ao CGEE também devo agradecimento pelo aporte
financeiro que recebi, por intermédio do Cepedes, para arcar com custos de
realização desta parte da pesquisa. Na ocasião de uma das atividades deste
evento, a reunião da equipe com o então Ministro Mangabeira Unger, pude

109 Realizado em Brasília, nos dias 16 e 17 de março de 2009.

Feirantes - 259 -
ter real dimensão de sua preocupação e visão sobre o desenvolvimento do
país, em particular do Nordeste.
Por motivos diversos, preciso mencionar gratidão aos professores-pes-
quisadores Lília Junqueira, Fabrício Maciel e Émerson Rocha, bem como
aos então estudantes: Jullyanna Rodrigues, Marta Rodrigues de Oliveira,
Marianny Jéssica de Brito e Felipe Cavalcante Barbosa.
Também preciso agradecer a Walmiré Dimeron – que em outubro de
2008 acumulava as funções de Secretário de Turismo de Caruaru e de Di-
retor de Documentação e Patrimônio Cultural da Fundação de Cultura de
Caruaru – por ter-me possibilitado o acesso ao relatório do Instituto do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), à época ainda não publi-
cado, elaborado com fins de registro da Feira de Caruaru como Patrimônio
Cultural Imaterial Brasileiro, e pela entrevista concedida em companhia do
historiador Josué Euzébio Ferreira (que antes também já me havia conce-
dido entrevista sobre a história da feira e da cidade). Aos demais entrevis-
tados não anônimos agradeço a todos nas pessoas de José Carlos da Silva
(Sincovac), Manuel Eudócio (in memoriam) e Veridiano Santos.
Por fim, e em maior intensidade, gostaria de registrar que este trabalho
somente pôde ser realizado graças a diversos feirantes que se dispuseram,
em algum momento, a nos conceder entrevistas nas quais nos abriram suas
histórias de vida e/ou a responder nossos questionários. A todos eles aqui
registro os meus mais sinceros agradecimentos.
Após a conclusão do projeto gráfico do livro, precisei acrescentar mais
dois últimos agradecimentos. Um a Aurélio Fabian, pelo belo e generoso
ensaio que tão bem retratou o cotidiano da feira e dos feirantes. E outro a
Ana Farias que, com bastante afinco profissional, conseguiu traduzir em
arte visual o espírito de Feirantes.
Esta 3a edição contou com a revisão precisa e a competência editorial de
Flávio Gonzalez, para quem fiz questão de registrar este último agradeci-
mento.

- 260 - Anexo
Agradecimentos
A FOTOGRAFIA
Feirantes - 261 -
- 262 - Anexo
Senhor vendendo sacos num dos corredores da feira

A feirante e o feireiro em ação


Carrinho de vendedor de CD e barraca de alimentação (ao fundo)

Um dos corredores da feira de ervas


Fretista e seu “carro” no corredor central da feira de artesanato

Um dos muitos que vivem perambulando pela feira


Barraca de alimentação, mesas e cadeiras num corredor da feira

Feirante, feireiros e carnes


Jovem trabalhador assando carnes numa barraca de alimentação

Carnes na brasa num dos polos de alimentação


Neste livro, de tamanho 16 cm x 23 cm, foram utilizados papel Supremo 250g/m² para a
capa, papel Pólen Soft 80g para o miolo, tipografias Minion Pro, F*ck beans e Counterscraps.
Foi impresso e montado na Oficina Gráfica da Editora UFPE.

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