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Plural

M
achado de Assis é um
enigma. Analista pro-
fundo da condição hu-
mana, para uns, roman-
cista entranhado nos as-
suntos brasileiros, para outros, o escritor
carioca desperta interpretações distin-
tas, a depender das motivações do leitor.
O escritor em uma Talvez porque, como sabem todos,
foto colorizada
digitalmente
Machado quase nunca tenha percorri-
do os caminhos mais óbvios. Mesmo os
que pregam o seu caráter universal re-
conhecem seu enquadramento nacio-
nal. De outro lado, os que sustentam o
seu rea­lismo brasileiro admitem que,
para chegar a tanto, ele precisou lançar
mão – sobretudo em sua última fase – de
artifícios formais à época pouco frequen-
tes na literatura do País.

É justamente essa pluralidade de


“Machados” que nos salta aos olhos com a
publicação, pela editora Todavia, em par-
ceria com o Itaú Cultural, das obras com-
pletas do “bruxo do Cosme Velho” – as-
sim chamado, em verso, por Drummond.
A coleção de 26 volumes nos revela um au-
tor incontornável, que foi um grande ro-
mancista, mas também poeta, dramatur-
go, contista e ensaísta. Terras, Compila-
ção para Estudo, por exemplo, reúne leis,

Reencontro
resoluções, portarias etc., que testemu-
nham sua atuação como servidor público.
A edição é resultado de quatro anos de
pesquisa, que envolveram mais de 20 pes-

machadiano
soas, sob coordenação de Hélio de Seixas
Guimarães, professor da Universidade de
São Paulo , que também assina as apresen-
tações dos volumes. Neste momento, será
disponibilizada apenas a caixa completa,
com tiragem limitada. A partir de 2024,
LITERATURA O bruxo do Cosme Velho é os títulos serão vendidos separadamente.
As edições respeitam o estilo particu-
revisitado com a publicação conjunta de lar das pontuações dos textos machadia-
26 obras e a abertura de uma exposição nos – que foram sendo alteradas em su-
cessivas edições. Para o leitor de hoje, a
P O R FÁ B I O M A S C A R O Q U E R I D O dicção expressiva da prosa de Machado –

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TAMBÉM pág. 52
NESTA IA. O criador da DeepMind
SEÇÃO propõe dez medidas de
contenção para a tecnologia

A HISTÓRIA EM IMAGENS E OBJETOS


A Ocupação Machado de Assis, no Itaú Cultural, aborda, entre outros
temas, o embranquecimento do autor nascido no Morro do Livramento
POR A NA PAU L A SOUSA

P
ara marcar o lança- anos sob o regime escravocra- aos quais aderiu, mas na pró-
mento da coleção To- ta. Seu embranquecimento, pria forma de ser. Escritor,
dos os Livros de Ma- em fotos e narrativas, é um funcionário público e tradutor
chado de Assis, o Itaú Cultu- dos temas da Ocupação. O ra- de vários idiomas, ele foi tam-
ral, em São Paulo, abrirá, no cismo é encarado, por exem- bém enxadrista.
sábado 18, a Ocupação Ma- plo, por meio dos retratos anti- Entre os objetos seleciona-
chado de Assis. A exposição gos do autor submetidos ago- dos, há os manuscritos de ro-
ajudará a contar a história do ra a um processo de coloriza- mances como Esaú e Jacó
escritor nascido em 1839, no ção feito por Marina Amaral. (1904) e Memorial de Aires
Morro do Livramento, hoje Assim como a coleção de (1908) e as primeiras edições
chamado Pequena África, no livros, a exposição oferece de algumas de suas obras, co- O contrato de venda de
Rio, e morto em 1908. uma visão ampla a respeito mo a peça Desencantos: Fan- Quincas Borba para a editora
francesa Garnier e a saída do
Os visitantes serão desse homem que foi múltiplo tasia Dramática (1861) e o ro- caixão com o corpo do escritor
recebidos por uma imagem não só nos formatos textuais mance Quincas Borba (1891). rumo ao cemitério, no Rio
em grandes dimensões do au-
tor e, a partir daí, tomarão
contato com fotos, manuscri-
tos, cartas, exemplares de
suas próprias obras e tam-
bém daquelas de autores que
o influenciaram.
Como costuma acontecer
com as Ocupações, será re-
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produzido, no espaço, o am-


biente no qual se deu a cons-
trução dessa obra gigantesca.
Uma escrivaninha, penas, tin-
teiro, mata-borrão, ampulhe-
ta, pincenê e caderneta de no-
tas – numa mistura de origi-
nais e réplicas – ajudarão as
novas gerações a compreen-
der o que significava escrever
quando Machado escrevia.
Filho de um pintor de pare-
des afrodescendente e de
uma lavadeira portuguesa,
Machado viveu 50 de seus 69

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carregada de ênfases, hesitações e ironias Seu retrato crítico LISTA DE LIVROS


– pode parecer anacrônica ou deslocada.
Mas é justamente nesse tensionamento
das elites parece,
Desencantos (1861): Peça de teatro
da linguagem que podemos flagrar a dinâ- em determinadas
Teatro (1863): Duas comédias
mica narrativa própria por meio da qual passagens, tão
Quase Ministro (1864): Peça de teatro
Machado tornava literário o real. atual quanto antes
Dos romances destacam-se aqueles Crisálidas (1864): Poesia
que, na conhecida interpretação do críti- Os Deuses de Casaca (1866):
co Roberto Schwarz, transpõem no con- Peça de teatro
teúdo e, acima de tudo, na forma aspectos Se o seu “instinto de nacionalidade” Falenas (1870): Poemas
do processo social brasileiro da segunda não fez dele um abolicionista de primei-
Contos Fluminenses (1870): Contos
metade do século XIX. ra hora, é inegável que a sua obra nos colo-
São os casos, em ordem cronológica, de ca diante de alguns dos impasses das ori- Ressurreição (1872): Romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quin- gens do Brasil moderno, em cujo núcleo fi- Histórias da Meia-Noite (1873): Contos
cas Borba ou Dom Casmurro, dentre ou- gurava a escravidão. É isso que aponta, por A Mão e a Luva (1874): Romance
tros. Para Schwarz, um narrador como exemplo, Paulo Dutra, professor da Uni-
Americanas (1875): Poemas
Brás Cubas, que ora diz uma coisa, ora o versidade do Novo México (EUA) respon-
contrário, pode ser visto como a formali- sável pelas notas sobre a presença da ques- Helena (1876): Romance
zação literária do modo ambivalente como tão racial na obra do escritor brasileiro. Iaiá Garcia (1878): Romance
as elites brasileiras se equilibravam entre Voltar a Machado hoje significa o re- Memórias Póstumas de Brás Cubas
as ideias liberais e a estrutura social mar- torno a um autor cujo pertencimento ao (1881): Romance
cada pelo escravismo e pela lógica pessoa- passado literário nacional não o impede
Tu só, Tu, Puro Amor... (1881):
lizada do favor, situação que fazia com que de continuar a nos interpelar no presen-
Peça de teatro
aquelas ideias parecessem “fora de lugar”. te. Seu retrato crítico das elites parece, em
Papéis Avulsos (1882): Contos
certas passagens, tão atual quanto antes,
Mas não se trata, nem para Schwarz, bem mais de um século depois. Histórias sem Data (1884): Contos
de negar a dimensão “universal” de Ma- Nesse sentido, o distanciamento irô- Quincas Borba (1891): Romance
chado – que, mais recentemente, vem sen- nico da prosa machadiana, muitas vezes Várias Histórias (1896): Contos
do reforçada pela recepção internacional. confundido com absenteísmo político,
Páginas Recolhidas (1899):
O poeta norte-americano Allen Ginsberg, acaba por se tornar a alavanca de sua atua-
Contos, ensaios, discursos
por exemplo, dizia ser ele outro Kafka. lidade sempre renovada, como se seus tex-
Trata-se, na verdade, de mostrar que até tos sempre tivessem algo novo a nos dizer. Dom Casmurro (1899): Romance
mesmo essa universalidade só pode ser Afinal de contas, se é verdade que, Poesias Completas (1901): Poemas
compreendida à luz das singularidades de de lá para cá, o Brasil mudou, é certo Esaú e Jacó (1904): Romance
um país periférico como o Brasil. A desen- também que ainda temos muito passado
Relíquias da Casa Velha (1906):
voltura formal e linguística de Machado pela frente. E esse passado Machado en-
Gêneros variados
não está, portanto, em contradição com a tendeu como poucos. •
sua dimensão nacional. Uma ilumina a ou- Memorial de Aires (1908): Romance
tra, e é nessa superação tanto do universa- Fábio Mascaro Querido é professor Terras, Compilação para Estudo (1886):
lismo sem lastro real quanto do localismo de Sociologia da Unicamp. leis, decretos, resoluções, portarias etc.
restritivo que sua obra ganha força crítica.
Há muito se discute o alcance da pers-
pectiva “política” de Machado de Assis.
Criticado por seu tratamento pouco in-
cisivo da instituição da escravidão, ele
não deixou também de ser elogiado por
tê-la transformado, em seus contos e ro-
Em 2024, os volumes
mances, em elemento fundamental para serão vendidos
a compreensão do Brasil do século XIX. separadamente

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