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W A L N I C E N O G U E I R A G A L V Ã O

Heteronímia
em Guimarães Rosa
“E precisaria cada um, para simultaneidades no sentir
e pensar, de vários cérebros e corações. Quem sabe, temos?”
(João Guimarães Rosa, Tutaméia – Terceiras Estórias).

João Guimarães Rosa: famoso prosador bra-


sileiro, a quem se tributa a inovação da língua portu-
guesa do Brasil na ficção, aquele que assina assim
mesmo todos os seus livros publicados. Corresponde
a esse nome uma personalidade literária nítida, bem
como um cidadão reconhecido na carreira diplomáti-
ca e na vida social. Haveria outros? Outras personali-
dades, mesmo que embrionárias, outras vozes
1 Leyla Perrone-Moisés, Fer-
nando Pessoa – Aquém do Eu,
recalcadas, querendo-se fazer ouvir e não encontran- Além do Outro, São Paulo,
Martins Fontes, 1982, a quem
devo a epígrafe.
do ressonância? Este sujeito do discurso narrativo,
WALNICE
aparentemente tão coeso, tão unitário, como teria es- NOGUEIRA
GALVÃO
é professora de Teoria
capado à maldição da modernidade que faz do escritor Literária da USP
e autora, entre outros,
de Mitologia Rosiana
um estilhaçado (1)? (Ática).

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Desde 1929 Guimarães Rosa publicava Enquanto isso, que foi feito do poeta,
narrativas em periódicos. Mas escreveu autor de Magma, sempre inédito? Aquele
também um livro de poemas, intitulado que, quando pela primeira vez escreveu um
Magma, até hoje inédito, que submeteu ao livro completo, o fez de poesia? A publica-
Concurso de Poesia da Academia Brasilei- ção de Sagarana consagra de vez o prosa-
ra de Letras, em 1936, tendo recebido en- dor junto à crítica e ao público: ganha o
tão o prêmio devido ao primeiro colocado prêmio da Sociedade Felipe d’Oliveira, tira
(2). Embora premiado, e portanto contan- e esgota duas edições num só ano. O olhar
do com o aval crítico do júri, nunca quis do Outro é reconhecimento e fixação de uma
fazer de Magma um livro publicado. personalidade literária, enquanto prosador.
Enquanto Magma foi levado a concur- Dez anos decorrem entre a publicação
so sem camuflagem, assinado por João de Sagarana e a de Corpo de Baile mais
Guimarães Rosa, já outra foi a apresenta- Grande Sertão: Veredas num mesmo ano
ção a julgamento de seu primeiro livro de (1956). A proeza não é de somenos: são
prosa, com que disputou o prêmio Humber- algumas centenas de páginas de fabulação
to de Campos, oferecido pela Livraria José romanesca riquíssima e de alta invenção de
Olympio em 1938. O pseudônimo Viator linguagem. Do que custou esse feito, há
(o viandante) assinava o volume intitulado algumas pistas em anotações do escritor no
Contos, derrotado na competição. caderno do “Diário de Paris”, da época,
Não é tanto de admirar o uso de pseudô- recentemente estudado (4). Dessa fase de
nimo, que alguns concursos literários exi- preparação, onde tudo converge para a
gem, mas o seqüestro (no sentido marioan- necessidade de escrever, diz Guimarães
dradino) subseqüente do autor. Graciliano Rosa que “minha angústia básica é a ânsia
Ramos, membro do júri, relata, quando da de onisciência” e que assim, anotando no
publicação, oito anos depois, em 1946, diário, “tento evitar os recifes da incessan-
daqueles Contos ora metamorfoseados em te tempestade de minha vida interior”, bem
Sagarana, os esforços baldados para iden- como “um tormento acaparador, de ambi-
tificar Viator, que por pouco não ganhara o cioso, de insaciável”. Uma carta do mesmo
prêmio (3). O próprio promotor do prêmio, período dá contas de sua turbulenta condi-
José Olympio, intentava editá-lo. E Mar- ção psíquica ao criar: “[…] Eu ando febril,
ques Rebelo, jurado que votara em Viator, repleto, com três livros prontos na cabeça,
anota em seu diário ficcional, O Espelho um enxame de personagens a pedirem pou-
Partido, devidamente à clé e com a peço- so em papel. Estou apontando o lápis, para
nha que o tornou notório, um encontro que começar a tarefa. É coisa dura, e já me as-
teve com “Magalhães Braga”, em que foi susto, antes de pôr o pé no caminho peno-
tratado com a condescendência que mere- so, que já conheço” (5).
ce um modesto confrade ao reconhecer um O imperativo do escrever, apesar das
gênio. vascas de agonia que traz, ainda assim é
De um título como Contos, até um ou- menos daninho do que deixar de escrever,
2 “Parecer da Comissão tro como Sagarana, a distância é vasta, e quando nesse estado: se o livro não for escri-
Julgadora, Redigido por Gui-
lherme de Almeida”, in Em não só se levamos em conta os oito anos de to “fica coagulado na gente, como um trombo
Memória de João Guimarães
Rosa, Rio de Janeiro, Livraria
reelaboração, o reescrever porfiado e a se- na veia, pior que um complexo” (6).
José Olympio, 1968 . leção que eliminou muita coisa. O título Impelido por essas suas dores, a de es-
3 Ver Graciliano Ramos, “Con- Contos é indiscriminado, rotulara e tem crever e a de não escrever, Guimarães Rosa
versa de Bastidores”, crônica rotulado desde então inúmeros livros. Mas vai ainda, em vida, publicar mais dois li-
de revista reproduzida em Em
Memória…, op. cit. Sagarana mostra um escritor confiante, vros: Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia
4 Cecília de Lara, “Diário de
dono de seus recursos, inventando uma – Terceiras Estórias (1967), ambos de con-
Paris”, in Travessia, n o 18, palavra original já dentro de um “estilo tos. Continua, portanto, um prosador.
Florianópolis, UFSC, 1988.
Guimarães Rosa” (do vocábulo português Logo após sua morte, em 1967, a Livra-
5 Idem, ibidem. de origem germânica saga mais o sufixo ria José Olympio Editor prepara e publica
6 Idem, ibidem. tupi rana, “à maneira de”, o que parece). um volume de homenagem, intitulado Em

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Memória de João Guimarães Rosa (1968), livros, que sairiam postumamente. São eles
reunindo estudos, inéditos, discursos fac- Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra
símiles de traduções, pareceres, manuscri- (1970). O primeiro é um volume de contos,
tos, e mais uma bibliografia organizada por a exemplo de Primeiras Estórias e
Plínio Doyle. Esta inclui informações inte- Tutaméia, nos quais, mesmo descontando
ressantes sobre poemas (melhor diríamos, os quatro prefácios deste último, temos um
poetas) do prosador. conjunto de contos. Mas o segundo é uma
Conforme relata o autor da bibliogra- miscelânea de vários tipos de texto, na qual
fia, seguira uma pista de Manuel Bandeira, o que menos há são contos propriamente
na sua Antologia de Poetas Brasileiros ditos, reunindo matérias publicadas na
Bissextos Contemporâneos (2a ed., s/d, imprensa de 1947 a 1967. É o único livro de
Organização Simões). Ali, Guimarães Rosa Guimarães Rosa com essa natureza e é nele
fora representado por seis poemas, assina- que, também pela única vez, o próprio au-
dos pelo pseudônimo anagramático Soares tor confia ao livro impresso muitos de seus
Guiamar. poemas.
A partir daí, Plínio Doyle volta ao jor-
nal O Globo do ano de 1961, onde aqueles • • •
poemas tinham sido publicados, e
desencava mais doze e dois outros pseudô- Em Ave, Palavra vão aparecer, e até
nimos, igualmente anagramáticos. Aten- com relativa fartura, aqueles poetas cujo
ção: surgem, ao todo, três novos poetas, no esquivo perfil vínhamos perseguindo. Cada
jogo de esconde-esconde típico do anagra- um deles tem uma pequena explicação,
ma, enquanto o prosador prossegue osten- devidamente obscura, a seu respeito, num
tando seu nome, que a essa altura já era UM intróito mínimo que precede a publicação
NOME. dos vários blocos. Nem de longe têm a
Os três aparecem em quatro matérias personalidade própria e a detida complexi-
que Guimarães Rosa escreveu e assinou dade que Fernando Pessoa deu a seus
para O Globo durante o ano de 1961: heterônimos, os quais até horóscopo vie-
“Coisas de Poesia” (25/2/61), “Outras ram a ter. Mas a sombra desse poeta pode
Coisas de Poesia” (1/4/61), “Novas Coi- ser divisada a distância, sendo ele uma cause
sas de Poesia” (20/5/61) e “Sempre Coi- célèbre que nenhum letrado brasileiro ou
sas de Poesia” (22/7/61), segundo a in- português ignora. Entretanto, deve-se dar
formação de Plínio Doyle. A grande atenção à tradição literária divergente en-
maioria das outras matérias dessa cola- tre os dois países: os brasileiros têm-se
boração regularmente semanal naquele mostrado bem menos inclinados ao uso de
periódico, de 7/1/61 a 21/8/61, vai para o pseudônimos que os portugueses (7).
livro Primeiras Estórias e um resto para Ei-los aqui, finalmente, neste último
Tutaméia ou até para Ave, Palavra. livro, não três mas quatro poetas
Os pseudônimos são, além de Soares anagramáticos, acrescidos que foram de
Guiamar, Meuriss Aragão (ambos anagra- mais um, por nome Romaguari Sães, ana-
mas de Guimarães Rosa) e Sá Araújo grama, como os dois primeiros, de Guima-
Ségrim (anagrama de J. Guimarães Rosa), rães Rosa, e não de J. Guimarães Rosa, como
7 Almir de Campos Bruneti,
todos coerentes no somar nomes conheci- o terceiro. Os poemas são publicados em “Um Agostinho da Silva, uns
Fernando Pessoa”, comuni-
dos a outros inventados. blocos, que descrevemos a seguir. cação apresentada ao Con-
Plínio Doyle menciona ainda mais qua- De Soares Guiamar, temos nove poe- gresso Internacional Fernan-
do Pessoa, São Paulo, USP,
tro poemas (“Sextilhas”, “Em um Álbum”, mas (“Ou… Ou”, “Pescaria”, “Teorema”, 1988.
“O Burro e o Boi no Presépio” e “Poemas “Parlenda”, “Alongo-me”, “O Aloprado” 8 No segundo prefácio de
de Natal”), indicando as respectivas fon- (8), “Os Três Burricos”, “Motivo”, Tutaméia, “Hipotrélico”,
Guimarães Rosa chama a
tes, que não O Globo. “Adamubies?”), sob o título geral de “Às atenção para esse palavra,
Antes de morrer, Guimarães Rosa esti- Coisas de Poesia”. As duas datas ao pé da dizendo-a “esplêndida”, co–
mo se nunca a houvesse em-
vera preparando para publicação mais dois página, 25 de fevereiro de 1961 e 1o de abril pregado.

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de 1961, após o nome do jornal, mostram tos, “Quando Coisas de Poesia” de Sá Ara-
que se trata de duas matérias ora reunidas újo Ségrim e “Ainda Coisas de Poesia” de
numa só, ambas com poemas de Soares Romaguari Sães, à época dos demais, por
Guiamar, respectivamente intituladas quan- algum motivo não os publicando? Ou os
do n’O Globo “Coisas de Poesia” e “Ou- criou expressamente para Ave, Palavra?
tras Coisas de Poesia”. Aqui se origina uma Quanto aos poetas, os intróitos forne-
possível confusão, visto que, por engano, cem sucintas notas biográficas que entre-
Paulo Rónai, na “Nota Introdutória” a Ave, têm entre si um elegante jogo de máscaras.
Palavra, ao esclarecer que acrescentara Talvez o mais velho seja Soares Guiamar,
alguns inéditos por sua própria conta ao pois aparece primeiro, cronologicamente;
corpus estabelecido pelo autor, coloca en- já se retirou, dele mais versos não são dis-
tre eles “Coisas de Poesia”. Ademais, pro- poníveis, e “agora pára longe, certo à beira
vavelmente por erro gráfico, a numeração do Riachinho Sirimim”; é mais ou menos
feita por Plínio Doyle atribui o poema nú- mestre de Sá Araújo Ségrim; e é, ou queria
mero 13, “A Ausente Perfeita”, tanto a ser, autor do livro Anagramas. Deixa duas
Soares Guiamar quanto a Meuriss Aragão, frases do tipo lapidar, sobre o poeta e a
enquanto o autor é este último. poesia. É qualificado como “despercebido,
De Meuriss Aragão, cinco poemas impresso, inédito, fora-de-moda”.
(“Mulher Mar Morte”, “Saudade, Sempre”, Pela ordem, Meuriss Aragão é o segun-
“Saudade Sempre (Versão Aflita)”, “A do a aparecer. “Outro poeta de bolso”, é
Ausente Perfeita”, “A Espantada Estória”), “jovem, sem jeito, em sua primeira fase,
sob o título geral de “Novas Coisas de possivelmente extinta”. Sá Araújo Ségrim,
Poesia”, tendo ao pé da página a indicação o seguinte, “sofre só e sozinho verseja”.
do jornal e a data de 20 de maio de 1961. Também tem livro pronto, ou quase, intitu-
São os mesmos da lista de Plínio Doyle; lado Segredeiro; é dele que se diz ser “se
apenas, “A Espantosa Estória” da lista pas- bem talvez um tanto discípulo de Soares
sou a “A Espantada Estória” no livro. Guiamar, sob leves aspectos”; merece se-
De Sá Araújo Ségrim, um total de oito gunda matéria, com novos poemas esco-
poemas, divididos em dois blocos, cada um lhidos pelo biógrafo, que deles diz: “Sendo
com quatro poemas (“Distância”, coisas mui sentidas. Sendo o que ele não
“Recapítulo”, “Contratema”, “Rota” no sabe da vida”. O último, Romaguari Sães,
primeiro, e “Ária”, “Querência”, “Escólio”, o “embevecido”, é um “escondedor de
“Tornamento”, no segundo). O primeiro poemas”. Tido por “um tanto diferente”,
bloco tem o título geral de “Novas Coisas com respeito ao grupo: “Tem outra música.
de Poesia”, indicando ao pé da página o Tem um amor mais leve, originário, avan-
jornal e a data de 20 de maio de 1961. O çado”. Também deita falação sobre poesia,
segundo se intitula “Quando Coisas de em “entrevista” da qual uma única frase é
Poesia” e traz a indicação Inédito. transcrita.
De Romaguari Sães, também indicado
ao pé da página como inédito pelo autor, • • •
quatro poemas (“Marjolininha”, “Cândi-
da”, “Presença e Perfil da Moça de Chapeu– Os cinco intróitos que apresentam os
zinho Cônico” e “Marjolininha 9a”). O títu- quatro poetas são devidamente assinados
lo geral é “Ainda Coisas de Poesia”. por João Guimarães Rosa, que utiliza ou o
O livro, portanto, enriquece a obra po- impessoal ou a primeira pessoa, esta às
ética dos poetas anagramáticos não só de vezes singular, às vezes plural, dirigindo-
mais um pseudônimo, este último inédito, se ao interlocutor leitores. Destes, quer-
mas também de mais oito poemas igual- se captar a benevolência, engajar diálogo,
mente inéditos. Todavia, uma indagação com frases à guisa de arremate (salvo o
persiste: terá Guimarães Rosa escrito os dois primeiro): “Vejam, se serve”; “Será que
conjuntos de poemas que dá como inédi- conosco concordam?”; “Leiam-no, po-

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te, de “hipógrafe” (v. o conto “Vida Ensi-
nada”). Já Estas Estórias, como a epígrafe
geral de Corpo de Baile, pode trazer cita-
ções eruditas, entremeadas às outras. Mas
só Ave, Palavra concede autonomia ao tex-
to poético. Além dos quatro poetas
anagramáticos, figuram ali vários poemas
independentes; num deles, “Grande Lou-
vação Pastoril”, personagem secundária e
cantor da louvação é um “Dr. João Rosa”.
De modo geral, o jogo da intertex–
tualidade prefere citações que oscilam en-
tre a criação pessoal e o folclórico, despis-
tando esforçadamente as tentativas de clas-
sificação. A criação pessoal mimetiza ami-
úde o folclore, só em poucos casos extre-
mos podendo-se discriminar uma de outro.
Somos remetidos aos papéis do autor, cons-
tantes de seu arquivo (9), onde páginas e
mais páginas estão cobertas de anotações
de quadrinhas, versos, poemas, ditados,
objeto de um registro incessante e inume-
rável. Ainda assim, a diferença não é clara
rém”; “Aprovam-no?”. entre os recolhidos e os inventados. Sem-
Entretanto, não cessam aí as intrincadas pre que Guimarães Rosa apartava uma
relações entre o prosador e seus poetas. Em quadrinha, ou uma palavra, ou uma locu-
todos os livros, talvez apenas fazendo ex- ção, ou uma frase para empregá-la em seus
ceção Primeiras Estórias, é alta a textos, precedia-a de seu signo pessoal
intertextualidade com poemas, quadrinhas “m%”, que se encontra aos milhares nos
sertanejas, versos avulsos, ditados rimados materiais do arquivo. Mas esse signo de-
ou não. “A Canção de Siruiz” e “Olererê, signa apenas apropriação, deixando de
Baiana”, esta última hino do bando de esclarecer se o registro se refere a uma
Riobaldo, além de emblematizarem feixes invenção do autor, a um documento ou-
de significações do enredo, surgem e res- vido ou lido, ou ainda à modificação de
surgem no texto do Grande Sertão: Vere- um documento.
das. Em Corpo de Baile, três das sete “no- O despistamento é visível nos livros
velas” (cf. 1a ed.) trazem epígrafes poéti- publicados: as “citações” são reportadas a
cas, “Cara-de-Bronze” tem um cantador fontes e autores dos quais não se sabe com
violeiro que a todo momento contribui com segurança se são ou não malabarismos do
quadrinhas, “O Recado do Morro” também escritor. A epígrafe de “O Recado do Mor-
pode ser analisado como a crônica da com- ro” é sintomática: à quadrinha popular se
posição de uma canção. E na festa de segue a indicação, devidamente entre pa-
Manuelzão (“Uma Estória de Amor Muito rênteses, de “Contracanção. Peça
9 No Instituto de Estudos Bra- se Canta”). Em Sagarana, todos os contos Pseudofolclórica”.
sileiros da Universidade de têm epígrafes, às vezes longas, às vezes Correndo o risco da colaboração, já
São Paulo.
mais de uma, sempre na maneira folclóri- apontada pela crítica como responsável pela
10 Almir de Campos Bruneti,
op. cit.
ca. Em Tutaméia, o uso da epígrafe não é multiplicação dos heterônimos de Fernando
tão sistemático: alguns contos a trazem, Pessoa (10), dos quais surgiu mais um que
11 R. Jákobson, “Os Oxímoros
Dialéticos de Fernando Pes- outros não. Às vezes ela se desloca para o o poeta não incluíra entre eles – Bernardo
soa”, in Lingüística. Poética. Ci- fecho do conto, após o ponto final, quando Soares –, avanço aqui, com cautela, a su-
nema, São Paulo, Perspecti-
va, 1970. o autor a chama, neologística e corretamen- gestão de mais um também para João Gui-

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marães Rosa. No caso de Bernardo Soares,
é bom lembrar que até seu nome é compa-
tível com os demais, se levarmos em conta
a análise fonética que Jákobson fez para os
outros sem ter conhecimento de que este
surgiria mais tarde (11).
Pois João Barandão é o mais ubíquo dos
poetas do prosador. Estréia triplamente em
“Cara-de-Bronze”, de Corpo de Baile, sem-
pre com citações “das Cantigas de Serão,
de João Barandão”. Na primeira vez, figu-
ra com uma sextilha na terceira epígrafe.
Na segunda vez, uma nota de rodapé traz
uma quadrinha, à qual se acrescenta um
comentário sobre variantes, atribuído nada
menos que a Soares Guiamar, o mais anti-
go dos poetas anagramáticos. Na terceira
vez, outra nota de rodapé transcreve qua-
dra e meia, agora glosada pelo eruditíssimo
Oslino Mar (!).
Duas vezes estas cantigas e seu autor
serão mencionados em Tutaméia. Uma vez,
com três versos, em “Barra da Vaca”; e
outra, no corpo do texto de “Melim-Melo-
so”, onde uma quadrinha sobre esta extra-
ordinária personagem lhe é atribuída, acres-
centando o autor, “tão apócrifas”.
Em Estas Estórias, onde é republicado
“Com o vaqueiro Mariano” lá estão o mes-
mo troveiro e a mesma fonte na epígrafe à
terceira parte do texto.

• • •

Em suma: dentre os pseudônimos aqui


examinados – e não é fora de cogitação que
possam aparecer outros –, Viator desapa-
receu logo que suplantando pelo igualmente
prosador João Guimarães Rosa. Mas Soa-
res Guiamar, Meuriss Aragão, Sá Araújo
Ségrim, Romaguari Sães, João Barandão
são personas de poetas envergonhados,
embriões em clamor por reconhecimento,
no negaceio de máscaras e disfarces em
que se entremostram, ocultando-se e se
desvelando. No fundo do cidadão bem-su-
cedido, do narrador aclamado, haveria
um(uns) poeta(s) irrealizado(s), entre os
quais se inclui o autor inédito de um livro
de poemas, por título Magma, que nunca
publicou. “Quem sabe, temos?”.

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