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Do ortônimo aos heterônimos: uma análise da estética de Fernando Pessoa

Neiliane Coelho Gomes

Resumo: Consagrado por sua criação estética e genialidade única, Fernando Pessoa é um dos
grandes poetas da Literatura Portuguesa. Escreveu textos usando desde sua própria autoria
(ele mesmo), em Mensagem, até seus vários heterônimos. Os heterônimos são, sem dúvida, a
grande marca presente em sua estética de arte literária que o consagra nesse grandiosíssimo
poeta português. Este ensaio tem por objetivo analisar essa estética, assim como, os
heterônimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, a fim de exemplificar os traços presentes
em sua poesia e na estrutura dos versos.

Palavras chaves: Fernando Pessoa. Ortônimo. Heterônimos

Introdução

Ao refletirmos sobre a poesia portuguesa são muitos nomes que ganharam destaques.
Poetas que se consagraram na literatura mundial por possuírem a pura genialidade de unir
lirismo e técnica em seus textos, dentre esses nomes, um se destaca, Fernando Antônio
Nogueira Pessoa, por ser, aquele que escreveu usando a sua própria escrita (ele mesmo), mas
também criou seus heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo
Soares.
Como destaca Moisés na obra, A literatura através dos textos (1997, p. 451) “o maior
poeta português depois de Camões, tanto pela altura de suas intuições, como pela completa
multividência que desenvolveu”. Sua obra poética e sua escrita múltipla lhe faz ser esse
grande escritor português, igualado a outros, mas com característica que nenhum outro possui.
Em outro texto Moisés também cita que para ele “Fernando Pessoa é dos casos mais
complexos e estranhos, se não único, dentro da literatura Portuguesa” (MOISÉS, 2015)
O movimento modernista em Portugal desenvolveu-se durante o período em que o
país passava por importantes mudanças sociais, políticas e econômicas. O marco inicial do
movimento foi a publicação da revista Orpheu, em 1915, sofreu influência das estéticas
europeias como o Futurismo, o Expressionismo, etc. O nome da revista originou-se do
movimento Orfismo, na qual os escritores discutiam a volta da cultura europeia. Foi nessa
revista que Fernando Pessoa publicou seus primeiros textos, dentre eles, os dos heterônimos.
Nas diferentes formas de pensar o mundo “Pessoa, em seus “eus” produz uma imagem do
mundo em diversos olhares: a de um pastor de ovelhas, Alberto Caieiro [...] e Álvaro de
Campos é visto por Pessoa como vanguardista e cosmopolita, seus poemas exaltam não
somente o tom futurista a civilização moderna como também os valores do progresso.”
(MENEZES, 2012)

O presente ensaio objetiva-se a analisar o ortônimo (ele mesmo) e os heterônimos


(Álvaro de Campos e Alberto Caeiro) nas obras de Fernando Pessoa, considerando que são
duas escritas diferentes em seu projeto estético-literário, observando as características
temáticas e a estilística dos poemas.

1 O Ortônimo Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de junho de 1888, às 15h20, em


Lisboa no Largo de S. Carlos. Órfão de pai aos 5 anos, em 1896 saiu de Portugal e foi viver
em Durban, na África do Sul, com a sua mãe. Em 1905, decide retornar a Portugal, sua terra
natal, então com 17 anos. O escritor permaneceria em solo português até os dias finais de sua
vida. Fernando Pessoa morre a 30 de novembro de 1935, com 47 anos, apresentando sintomas
mais típicos de cirrose hepática, tendo provavelmente sido vítima de uma pancreatite aguda.
Na véspera, o poeta escrevera sua última frase: I know not what tomorrow will bring1
Além de poeta foi também crítico literário, filósofo, dramaturgo, etc. Em seus textos
com escrita por ele mesmo, Fernando exalta a aristocracia portuguesa em seus versos livres.
Essa temática fica evidente na obra Mensagem, publicada em 1934, ainda que seja da estética
do Modernismo português, é composto de poemas com métrica e rimas, está dividido em três
partes: brasão, mar português e o encoberto, evidenciando a nacionalidade de seu país.
No poema, Mar português, Pessoa identifica em sua escrita a integridade do mar e
do povo. Na primeira estrofe é descrita pelo autor que pelo mar acontecem coisas ruins e que
foi preciso isso acontecer para que o mar fosse dele, no entanto, na segunda parte ele descreve
que para alcançar novos destinos é preciso enfrentar os perigos do mar e no final tudo vale a
pena, pois a alma nunca será pequena.
Ó mar salgado, Quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram! [...]
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
(PESSOA, X, 60)

1
Tradução: “Eu não sei o que o amanhã irá trazer”.
2 Seus múltiplus “eus”: a heteronímia em Pessoa

Diante disso, é preciso ressaltar sempre, que o que faz Fernando Pessoa ser
considerado ícone da nossa literatura é, sem dúvidas, a criação de seus heterônimos.
Heterônimos são criações fictícias para assinar determinada obra e não deve ser confundido
com pseudônimo, pois, um pseudônimo é quando o autor usa outro nome para substituir o seu
nome verdadeiro, já um heterônimo é a criação de outro personagem autoral. Nesse viés, o
próprio Pessoa explica na Tábua Bibliográfica, publicada no número 17 da revista Presença,
em 1928, que sua autoria:
“pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortónimas e
heterónimas. Não se poderá dizer que são anónimas e pseudónimas, porque deveras
o não são. A obra pseudónima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina;
a heterónima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa
fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer
drama seu.” (PESSOA, 1928, p. 250)

Ainda de acordo com Moisés, os heterônimos resultam de um:

“desdobramento semelhante ao do dramaturgo, radicado no esforço de abranger,


gnoseologicamente, todas as modalidades do real: cada um dos seres que povoam a
vida interior do poeta corresponde a uma forma-padrão de conhecimento de mundo
e dos homens, ou seja, a uma cosmovisão – paradigma” (MOISÉS, 2004, p. 220)

Os seus heterônimos são, em si próprio, a sua expansão. Possuem biografia, data de


nascimento, profissão, uma terra natal, formação. Destacam como heterônimos de Pessoa
quatro nomes: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, este
último, autor do conhecido Livro do Desassossego, por sua aproximação estética com a lírica
de autor, é considerado um semi-heterônimo2. Em outro momento, na mesma Carta a Adolfo
Casais Monteiro, ele diz:

“A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim.
Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-
neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de
abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas.
Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência
orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.” (PESSOA, 1935)

2.1 Álvaro de Campos

2
Ao explicar, na Carta a Adolfo Casais Monteiro (1935), a gênese das suas criações Fernando Pessoa, explica
por que considera Bernardo Soares seu semi-heterônimo, segundo ele “em muitas coisas se parece com Álvaro
de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as
qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o
raciocínio e a afectividade.” (PESSOA, Fernando. Carta a Adolfo Casais Monteiro — 13 Jan. 1935. MultiPessoa.
Disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/heteronimia/1. Acesso em: 07/02/2023
Álvaro de Campos, nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890. É engenheiro
naval (por Glasgow). É alto, magro e um pouco tendente a curvar-se. Campos está entre
branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente
apartado ao lado, usa monóculo. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias, fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre.
Dono de uma poesia filosófica, crítica, fragmentada. Em Todas as cartas de amor
tem-se o nilismo, linha de pensamento filosófico pessimista, no poema Pessoa faz uma crítica
usando, simultaneamente seu tom filosófico. Ao repetir várias vezes na estrutura livre do
poema a palavra “Rídicula” ele cria um jogo de contradições, pois no início ridículo é
escrever cartas de amor, mas ao final considera que ridículo mesmo é quem nunca escreveu
cartas de amor.
Todas as cartas de amor são
Rídiculas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
(PESSOA, pag. 120)

2.2 Alberto Caeiro

Segundo a descrição do próprio Pessoa, Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, em 16 de


abril de 1889, e faleceu de tuberculose, em 1915 na mesma cidade. Nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a sua vida no campo. Era de estatura média e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Não usava barbas nem bigodes, era
louro sem cor, olhos azuis. Não teve profissão nem educação quase alguma - só instrução
primária, por isso escrevia mal o português. Cedo fica órfão de pai e mãe e passa o restante da
vida morando com uma tia-avó idosa, em uma quinta, no Ribatejo, onde viveu e sustentou-se
de uns pequenos rendimentos, pois não desenvolveu profissão. Escrevia mal o português, por
isso não se tem notícias de alguma produção em prosa.
Diferente de Campos, Caeiro é um escritor campestre. Há a procedência nos textos
de um eu-lírico bucólico, que exalta a natureza. Caeiro é o poeta do real objetivo, pois concebe a
realidade como é, sem questionamentos, sempre contemplando a natureza e o mundo com uma alegria
pura e simples. Recusa a ideia da subjetividade e da introspecção. ( POGGETTI, 2019, pag. 23).
Recorre ao Carpe Diem, para ele não é preciso racionalizar tudo, de para tudo ter uma razão
formada, por isso sua poesia é completa de naturalidade prevalece o sentir, o viver. Temos,
portanto, essas características em O Guardador de Rebanhos.

Eu nunca guardei rebanhos,


Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das estações
A seguir e olhar.
Toda a paz da natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
(PESSOA, I, pag. 6)

Conclusões

Fernando Pessoa consagra-se por ser esse escritor múltiplo e fragmentado. Tanto sua
poesia ortônima quanto sua poesia heterônima é fruto da sua capacidade intelectual e técnica
que compõe, assim, seu rico sistema literário e eleva suas obras como cânone. Estamos diante
de “uma poesia multipessoal, plurissubjetiva. E é esta, quanto a nós, a sua verdadeira
revolução poética” (SEABRA, 1998, p. 34)
Desse modo, tem-se que a estética dos versos dos heterônimos criados por Fernando
Pessoa apresentam diferenças. A poesia de Álvaro de Campos está mais voltada para o
sentimentalismo aliado a um tom crítico. Possui uma estrutura livre e longa com tom mais
narrativo. Podemos perceber que Campos é um poeta composto de fases contraditórias.
“Ele [Álvaro de Campos] é a ficção mais rica de Pessoa, porque nele o Poeta deixou
as contradições às soltas, em processo- Campos é o único que passa por diferente
“fases”, que muda. Nele a ficção se afirma como forma de conhecimento: “fingir é
conhecer-se”[...]” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p.121).

Tem-se que apesar do poeta fingir ao escrever seus sentimentos ele está de
maneira clara expressando-o. Já a poesia de Alberto Caeiro traz a exaltação da natureza.
Possui versos mais curtos e delicados. É o homem da calma absoluta perante o não-sentido da
realidade opõe a metafísica o desejo de não pensar. Para ele mais importante que possuir
razão é poder sentir, viver.

REFERÊNCIAS:

MENEZES, Valéria Queiroz. Os “eus” de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos. Miss Daisy Arte e Literatura. 26 set. 2012. Disponível em:
http://missdaisyarteeliteratura.blogspot.com/2012/09/os-eus-de-fernando-pessoa-alberto.html
Acessado em: 07/02/2023

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa- O Espelho e a Esfinge. Editora Cultrix, 2015.

_______. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004

PESSOA, Fernando. Carta a Adolfo Casais Monteiro (13 Jan. 1935). MultiPessoa.
Disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/heteronimia/1. Acesso em: 07/02/2023

______. Tábua bibliográfica. Presença, nº 17. Coimbra: Dez. 1928 (ed. facsimil. Lisboa:
Contexto, 1993), p. 250. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2700. Acesso em:
07/02/2023

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Aquém do eu, além do outro. 3° ed. [revista ampliada] São
Paulo: Martins Fontes, 2001.

POGGETTI, Caroline Rodrigues de Lima. A construção dialógica de sentidos em discursos


poéticos nos heterônimos de Fernando Pessoa. 2019. Dissertação de Mestrado. Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama. 3°ed. Lisboa: Imprensa


Nacional Casa da Moeda, 1998.

Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000004.pdf. Acesso


em: 07/01/2023
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000010.pdf. Acesso
em: 07/02/2023

Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/Poemas-de-Alberto-Caeiro%20-


%20Fernando%20Pessoa.pdf. Acesso em: 07/02/2023

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