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Auto da Compadecida: uma análise das características estéticas das

obras de Ariano Suassuna

Resumo: A peça Auto da Compadecida é uma das mais conhecidas obras do escritor
Ariano Suassuna. Nome principal do Movimento Armorial, Suassuna cria uma estética
de arte brasileira unindo a vasta cultura popular do sertão nordestino com aspectos da
cultura medieval. Desse modo, o ensaio objetiva analisar a relação do enredo criado
com a Literatura de Cordel, assim como, a característica picaresca do personagem João
Grilo.

Palavras chaves: Auto da Compadecida, Suassuna, Movimento Armorial

O movimento modernista brasileiro trouxe para a esfera literária uma nova


concepção de escrita com o objetivo de mostrar o Brasil em sua originalidade. Uma das
temáticas abordadas nessas obras foi a do sertão nordestino, contexto utilizado por
Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, dentre outros autores. Em meados dos anos 50
esse ideal ainda era visto e ganhava ainda mais força e foi durante a década de 70 que
deu-se início no Brasil o Movimento Armorial. Criado pelo escritor Ariano Suassuna, o
movimento reúne a mistura de uma arte erudita com a popular, ou seja, o intuito era
tornar a cultura popular produzida no nordeste igualmente valorizada com a erudita
produzida nas academias da elite brasileira.

O Movimento Armorial, divide-se em três momentos, a fase Experimental, a


fase Romançal e a fase Arraial, possui como característica principal a valorização da
cultura popular nordestina, através da Literatura de Cordel, das xilogravuras, da música,
etc. Durante a Ditadura Militar a população brasileira fazia uso de uma cultura de massa
americana que ganhava força a cada dia. Grande crítico dessa exploração Ariano decide
apropriar-se dessa cultura de massa para exportar a diversidade cultural nordestina.
Nesse sentido, o Movimento integra não só a Literatura, mas também outras artes como
a música, a arquitetura, o teatro, dentre outros.

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação com o espírito mágico dos folhetos do “Romantismo Popular do
Nordeste” (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano
que acompanha seus “cantares”, e com a xilogravura que ilustra suas capas,
assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com
esse mesmo romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1977, p. 39)
Sua criação estética traz uma pluralidade baseada, sobretudo nas
representações folclóricas locais aliado, por sua vez, às tradições medievais. Suassuna
constrói nas suas obras, o cenário do reino encantado nordestino unindo o que de mais
popular o nordeste tem a aspectos do cenário medieval como, por exemplo, os castelos.
Outrossim, é a criação de uma realidade paralela em seus personagens, o quixotesco, ou
seja, aqueles personagens que usam da linguagem e da esperteza para sair de situações
complicadas, característica essa que está presente em obras canônicas como Dom
Quixote. Diante disso, o presente ensaio tem como objetivo analisar na obra Auto da
compadecida (1955), peça teatral escrita por Ariano e que mais tarde chegaria às telas
do cinema em uma adaptação, a intertextualidade entre a Literatura de Cordel com a
obra e a representação picaresca na personagem, João Grilo.

Auto da Compadecida é uma peça teatral dividida em autos. O Auto segundo


Moisés (2004, p. 45) é “Auto – lat. Actus, realização, execução. Ação, ato. Vinculado
aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, o auto designa toda peça breve,
de tema religioso ou profano, encenada durante a Idade Média” e narra as aventuras de
dois amigos, Chicó o mentiroso ingênuo e João Grilo, o malandro. A obra apresenta um
diálogo intertextual entre a Literatura de Cordel e o enredo construído. Acerca disso
Tavares no posfácio da 39° edição pontua:

De fato, alguns episódios do Auto da compadecida baseiam-se em textos


anônimos da tradição popular nordestina. No primeiro ato, veem-se trechos
do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se
conta o episódio do cachorro morto cujo dono destina uma soma em dinheiro
para que seu enterro seja feito em latim, o que dá origem a uma série de
qüiproquós eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do gato que ‘descome’
moedas e o da falsa ressurreição ao som do instrumento mágico são
inspirados no romance popular anônimo História do cavalo que defecava
dinheiro.(SUASSUNA,2018, p 193-194)

O crítico menciona ainda, um outro folheto que compõem o terceiro ato, O


castigo da soberba. Percebe-se que existe uma intertextualidade explícita, no entanto,
alguns críticos vão afirmar que o que Ariano fez foi plágio, assim, essa perspectiva fica
clara, nas palavras de Tavares, ao contar um fato ocorrido certa vez quando um crítico
questionou Suassuna acerca das ideias geniais ali expostas como a do gato que
“descome” dinheiro. Por seu lado, Ariano teria respondido que retirou de um texto de
cordel. No que continua o crítico, e o cachorro que morre e deixa o dinheiro para fazer o
enterro? Responde sem cerimônia o autor: ah! Também tirei de outro folheto
nordestino. O crítico impacienta-se e desfere: então o que é que o senhor escreveu?
Suassuna, convicto, responde: “Eu escrevi o Auto, Oxente!”.

Portanto, o que Suassuna utilizou, como já afirmamos, foi utilizar um fato


presente no romanceiro popular nordestino para compor o seu enredo com a sua própria
criação. Nesse viés, no folheto conta a história de um homem que adquiriu um cavalo
que não servia mais para o trabalho braçal, pois estava muito magro. Ao voltar da venda
certo dia com três moedas de cruzado decidiu inseri-las no anus do cavalo, logo após, o
homem sai dizendo que está rico porque possuía um cavalo que defecava dinheiro. No
texto, Suassuna troca o animal por um gato ao construir no enredo umas das situações
picarescas, na qual a dupla, Chicó e João Grilo estão envolvidos.

JOÃO GRILO: - Ah, mas aquilo é porque foi seu cachorro. Com meu gato é
diferente...

MULHER: - Diferente por quê?

JOÃO GRILO: - Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro.

MULHER: - Fora cabra, vaca, ovelha e cavalo, bicho que dá lucro não existe.

JOÃO GRILO: - Não existe se não... Eu fico meio encabulado de dizer!

MULHER: - Que é isso, João, você está em casa! Diga!

JOÃO GRILO: - É que o gato que eu lhe trouxe descome dinheiro.

MULHER: - Descome dinheiro?

JOÃO GRILO: - Descome, sim. [...]

JOÃO GRILO: - Então tiro. ( passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata
de cinco tostões) Está aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente.
(SUASSUNA, 2018, p. 91-93)

João Grilo é a figura do herói do sertão nordestino, pobre, que possui a


esperança de um dia sair da pobreza e, para isso, usa da astúcia e inteligência para se dar
bem na vida. Isso pode ser visto em diversos momentos durante a narração do auto
quando João Grilo faz uso da sua linguagem de malandro para convencer o padre a
benzer a cachorra. Para isso ele cria toda uma situação para que o padre realizasse o ato
de benzer a cachorra.

CHICÓ: - Não sei, não tenho nada a ver com isso! Você, que inventou a
história e que gosta de embrulhada, que resolva!
JOÃO GRILO: - Cale a boca, besta! Não diga uma palavra, deixe tudo por
minha conta. (Vendo ANTÔNIO MORAES no limiar, esquerda) Ora viva,
seu Major Antônio Moraes, como vai Vossa Senhoria? Veio procurar o
padre? Se Vossa Senhoria quer, eu vou chamá-lo. É que eu queria avisar, pra
Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido.

ANTÔNIO MORAES: - Está doido? O padre?

JOÃO GRILO: - Sim, o padre! Está dum jeito que não respeita mais ninguém
e com essa mania de benzer tudo. Vim dar um recado a ele, mandado por
meu patrão, e ele me recebeu muito mal, apesar de meu patrão ser quem é.

ANTÔNIO MORAES: - E quem é seu patrão?

JOÃO GRILO: - O padeiro! Pois ele me chamou o patrão de cachorro e


disse que apesar disso ia benzê-lo.

ANTÔNIO MORAES: - Que loucura é essa?

JOÃO GRILO: - Não sei, é a mania dele, agora. Benze tudo e chama a gente
de cachorro. (SUASSUNA, 2018, p. 39-40)

Assim, esses momentos picarescos originam o sentido cômico da cena e


revelam a influência do aspecto quixotesco associado aos aspectos da tradição popular.
A gaita é utilizada em um desses momentos em que Ariano atribui uma situação
picaresca à cena. João Grilo, na sua habilidade de convencimento, persuade o chefe dos
cangaceiros, Severino de Aracaju, que poderia morrer, peregrinar em outro universo,
deparar-se com as almas, “visitar” o seu Padrinho Padre Cícero e, em seguida, regressar
à vida simplesmente com toque da gaita que havia sido benzida pelo próprio Padre
Cícero, em carne e osso.

CONCLUSÃO

Nesse sentido, a influência que Ariano Suassuna deixou para o Movimento


Armorial é, sem dúvidas, única. Com suas obras Ariano, evidencia as particularidades
do Brasil, ou seja, aquilo que é inegável não ser visto, seu povo. As produções literárias
desse povo, os romanceiros populares, assumem um viés artístico frente a crítica
literária. Ao usar esses textos a cultura do povo nordestino ganha renome nacional, uma
vez que, as produções do Sudeste são as mais consumidas e conhecidas.

Na peça Auto da Compadecida, Ariano usa de uma intertextualidade ao criar


situações nunca lidas na literatura brasileira que surgiram a partir de folhetos de cordéis.
Ao criar um enredo com as histórias populares, de tradição oral, e as ações picaresca de
João Grilo e de seu amigo Chicó a peça traz além da criação imaginária de Ariano,
como também a luta por sobrevivência do homem do sertão trazendo, assim, um
contexto ideológico da realidade desse lugar. Ao colocar como parte da obra a rica
Literatura de Cordel, Suassuna transforma a imagem de seca e pobreza do Nordeste em
uma imagem viva e com uma criação fantástica, assim como, a presença das
características da população que ali habita, como a religião e a linguagem informal.

REFERÊNCIAS:

ANTONIO, Luciano. O Auto da Compadecida: um cordel de frente para as


câmeras. Terra Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literários, v. 24, p. 16-26,
2012.

DA SILVA, Elen Karla Sousa; CARDOSO, Sebastião Marques. A tradição popular


nordestina na obra Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. Boitatá, v. 10, n. 20,
p. 196-212, 2015.

MOISÉS, Maussad. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 39°ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


2018.

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