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Prof.

André de Freitas Barbosa Análise literária

João Guimarães
Rosa
(1908-1967)
SAGARANA
(1946)
ASPECTOS GERAIS
A obra compreende nove contos ou novelas, que
têm em comum a vida no interior de Minas Gerais. A
experiência pessoal é ligada à natureza, que delira
com o homem (“Sarapalha”), orienta-o (“São Marcos”),
mostra-lhe caminhos a seguir ou evitar (“Duelo”),
avisa-o dos perigos (“O Burrinho Pedrês”) e demonstra
a possibilidade de ascensão ao plano divino (“A Hora e
Vez de Augusto Matraga”).
A junção de “saga” (“narrativa heroica”) ao sufixo
indígena “-rana” (“à maneira de”) origina o neologismo
“Sagarana”. Portanto, os nove contos são narrados à
maneira de histórias épicas, associando o plano
regional ao universal (regionalismo universalizante).
O BURRINHO PEDRÊS
A narrativa está centrada num idoso burrinho
pedrês (Sete-de-Ouros), testemunha de um trágico
acidente. Em contraponto com a intriga que se
desenvolve entre os boiadeiros, há episódios
relacionados à figura do boi, onipresente na vida
sertaneja. Pairando sobre todos, destaca-se a
sabedoria do burrinho, que aparece pouco na ação –
mas que domina a narrativa.
Aqui estão presentes os elementos fundamentais
de Sagarana: o nome do burrinho carrega a magia de
um número místico (7) e a simbologia do ouro. Já a
travessia é uma imagem frequente, como a presença
de forças ocultas e naturais atuando no mundo.
TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE LALINO SALÃTHIEL ou
A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO
A narrativa é centrada nas ações de um
malandro (Lalino Salãthiel) que deixa a esposa e o
trabalho para viver aventuras na cidade grande,
mas depois volta para sua região e, espertamente,
reconquista sua posição e sua mulher.
O conto é uma paródia da famosa “parábola do
filho pródigo”, apresentando humor (traço típico
do malandro folclórico). Não há julgamento moral
a respeito das atitudes de Lalino, as quais o senso
comum poderia reprovar. Aliás, até as
personagens “respeitáveis” são descritas como
“não tão respeitáveis assim”.
SARAPALHA
Em sua fazenda arruinada, Primo Ribeiro
reconstitui sua história ao Primo Argemiro, uma das
poucas pessoas que lhe restaram. A narrativa é triste:
Luísa, mulher de Ribeiro, fugira com outro, deixando-
o só com a maleita. Mas, ao saber que Primo Argemiro
também desejava sua mulher, mesmo que em segredo,
Ribeiro expulsa-o da fazenda.
Sarapalha é uma narrativa de linha trágica, o que
contrasta com A volta do marido pródigo. A história
de Primo Ribeiro mostra não só um mundo em ruínas,
afundado sob os efeitos da malária, mas também a
infidelidade feminina e o tradicional conceito de
honra do sertanejo.
DUELO
Quando Turíbio Todo descobriu a mulher (Dona Silivana) em
adultério com Cassiano Gomes, pensou muito antes de enfrentá-
lo: Cassiano era forte e manejava armas. Turíbio decidiu matá-lo
em outra ocasião, com um tiro por trás; porém, acidentalmente,
acabou matando Levindo, irmão de Cassiano. Turíbio fugiu e,
assim, iniciou-se a perseguição de Cassiano a ele.
Durante a caçada, Cassiano e Turíbio não se cruzaram uma só
vez. Cassiano parou em um vilarejo, vitimado por problemas
cardíacos. Nesse lugar, conheceu o humilde Timpim Vinte-e-Um,
que Cassiano decidiu apadrinhar. Enquanto isso, Turíbio emigrou
para São Paulo. Cassiano morreu, mas antes fez Timpim
prometer que mataria Turíbio Todo. Quando voltou de São Paulo,
Turíbio encontrou um “camarada meio quilo de gente” no
caminho... Começaram a cavalgar juntos. Esse “camarada”
insignificante matou Turíbio com um tiro – assim, de uma forma
inesperada, o fraco venceu o forte.
MINHA GENTE
O conto (narrado em 1ª pessoa) fala do apego à
fauna, flora e costumes de Minas Gerais. Os “causos”
que se entrelaçam são meros pretextos para mostrar
um sentimento de integração com a terra natal.
Alguns neologismos aparecem (“Sossegovitch” e
“Sapatogoroff”, por exemplo); são, porém, palavras
distantes do vocabulário interiorano.
Duas importantes temáticas são desenvolvidas: a
política no interior (envolvendo Tio Emílio) e os
caprichos do destino (o inesperado casamento de
Armanda com o narrador). O cenário é a Fazenda
Saco-do-Sumidouro (interior de Minas Gerais),
propriedade de Tio Emílio, pai de Maria Irma.
SÃO MARCOS
O conto (narrado em 1ª pessoa pelo médico José)
revela um dilema em relação ao narrador-personagem:
crer ou não crer em feitiçarias?
No Arraial do Calango-Frito, narra-se a rivalidade
entre José e o negro João Mangolô, que, por ser
ridicularizado pelo médico, torna-o alvo de uma
bruxaria: Mangolô constrói um boneco do inimigo e
coloca uma venda em seus olhos, o que faz José ficar
cego no meio do mato. Para achar o caminho de volta,
o médico reza a oração de São Marcos, considerada
“reza brava” e perigosa. Com o poder sobrenatural
dado pela oração, mesmo cego, José encontra a casa
de Mangolô, ataca-o e o obriga a desfazer o trabalho.
CORPO FECHADO
O narrador, médico de um vilarejo, ouve os “causos” de
Manuel Fulô (a técnica narrativa, portanto, é a da
entrevista). O “doutor”, no decorrer da história, interage
com Fulô, “um valentão manso e decorativo, como
mantença da tradição e para glória do arraial”.
Corpo Fechado apresenta um universo sobrenatural,
marcado por feitiçarias: um curandeiro (Antonico das
Pedras-Águas) fecha o corpo de Fulô – em troca da
cobiçada mula Beija-Fulô – e anula a fragilidade do
protagonista, que mata o temido valentão local (Targino),
que ameaçava a honra de Das Dor, noiva de Fulô.
Além dessa temática, sobressaem também a saga dos
valentões e a dos ciganos, muito frequentes no interior.
CONVERSA DE BOIS
As reflexões sobre o poder e a fraqueza são o tema
de Conversa de Bois. Manuel Timborna conta “um
caso acontecido”, procurando demonstrar que “boi
fala o tempo todo”; os diálogos dos animais
questionariam as injustiças dos homens. O cenário é
uma estrada do interior mineiro.
Os bois que puxam o carro praticamente formam
com o menino Tiãozinho um só personagem, meio
humano e animal. O menino parece não possuir o dom
da palavra: esta surge na consciência dos bois, que
questionam as maldades do carreador Agenor
Soronho, morto após ser lançado do carro por um
movimento dos animais.
A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
O tema fundamental do nono conto de
Sagarana é a conversão religiosa. Esta ideia é
justificada pela radical mudança de conduta que
Augusto Matraga experimenta no decorrer da
história. No desfecho, ele recusa definitivamente
as forças do mal, abandonando-se à morte e se
prontificando à santificação.
Outro tema do conto é a violência, diretamente
ligada à luta do bem contra o mal. Essa dualidade
é observada no confronto exterior entre Augusto
Matraga e Joãozinho Bem-Bem e no próprio
interior das personagens.
Dados estruturais
NARRADOR – 3ª pessoa onisciente. Ele esclarece ao leitor
que este se vê diante de uma obra de ficção:

“E assim se passaram seis anos ou seis anos e


meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem
mentira nenhuma, porque esta é uma estória
inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”

TEMPO – é impreciso; há uma indeterminação mítica.


Predominam os ritmos da natureza e da vida interior.

ESPAÇO – a narrativa se inicia no município de Murici,


passa então para a vila do Tombador e termina em uma
cidadezinha, próxima a Murici, chamada Rala-Coco (todas
são localidades do norte de Minas Gerais).
Aspectos do enredo e personagens principais
O primeiro movimento do conto nos apresenta
Augusto Matraga, inicialmente conhecido como
Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves.
Valentão, vivendo entre brigas e prostitutas, Augusto
Esteves encontra-se em evidente declínio pessoal.
Numa noite, após criar confusão por causa de uma
prostituta, ele descobre, através do Quim Recadeiro,
que sua esposa, Dionorá, abandonara-o, levando a filha
de dez anos, para se juntar com Ovídio Moura. Quim
lhe informa também sobre os planos dos outros
fazendeiros para o eliminarem, liderados pelo Major
Consilva. Até os capangas de Augusto haviam
abandonado o serviço, por falta de pagamento.
Esteves decide enfrentar o major e, depois, matar
Dionorá. Ao chegar à fazenda do inimigo, é recebido
violentamente por seus antigos capangas. Levam-no
até um barranco, onde o marcam com ferro em brasa.

O segundo movimento consiste na busca de


redenção do protagonista, resgatado por um humilde
casal de negros, Quitéria e Serapião. Curando-se dos
ferimentos, Nhô Augusto volta-se para a fé e se
confessa-se com um padre, que aconselha: para cada
dia de pecado, deveria trabalhar por três. O padre
conclui com uma frase que se tornaria a obsessão de
Nhô Augusto:
“Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de
ter a sua”.
Nhô Augusto decide partir para o Tombador, ao norte; o
velho casal, que o tratava como filho, parte junto. Nhô
Augusto trabalha duramente, às vezes falando sozinho.
Assim vive por cerca de seis anos.
Certo dia, um conhecido, Tião da Thereza, passa
casualmente pelo povoado e lhe conta que sua filha estava
“perdida na vida” e que o Quim Recadeiro havia morrido.
Nhô Augusto pede que Tião não revele que ele ainda está
vivo. Pouco depois, um famoso bando de jagunços –
liderados por Joãozinho Bem-Bem – chega ao povoado. Nhô
Augusto lhes oferece comida e pouso; ele come e bebe com
o bando, encantando-se com suas histórias de crimes e
aventuras. Joãozinho logo simpatiza com Nhô Augusto,
tratando-o como “mano velho” e convidando-o para se
integrar ao bando. Embora muito tentado, Nhô Augusto
recusa a proposta.
Começa o terceiro movimento do conto: certo
dia, Nhô Augusto sente saudades de mulheres e
decide partir para o sul, desta vez sozinho, para
encontrar “a sua vez e a sua hora”.
Após alguns dias no lombo de um burro, Nhô
Augusto chega ao Arraial do Rala-Coco, onde,
coincidentemente, também estava o bando de
Joãozinho Bem-Bem, resolvendo um caso: um
habitante do povoado havia matado Juruminho
(membro do grupo) e fugido. Como vingança, a
família do assassino sofreria as consequências:
um de seus irmãos seria assassinado e as irmãs
seriam entregues aos jagunços.
O pai do assassino implorava a Joãozinho Bem-Bem
que lhe poupasse a família e o matasse no lugar do
filho. Surpreendentemente, Nhô Augusto toma a
defesa do velho; ressurge a antiga vontade de lutar,
desta vez motivada por uma causa justa. Após troca
de ameaças, inicia-se uma briga coletiva; a confusão
se espalha, facadas e tiros são desferidos. Joãozinho e
Nhô Augusto rolam para a rua: Augusto rasga o ventre
do adversário, mas, logo em seguida, também morre.

Na cena final, o tratamento entre os dois lutadores é


de absoluto respeito, pois reconhecem um no outro o
seu igual. Por fim, Augusto Matraga cumpre seu
destino e morre regenerado, finalizando sua missão
apostólica e dando início à fama de santo.
Aspectos da linguagem
Mediante a presença de discurso direto, observam-se construções
populares, que ressaltam a verossimilhança da linguagem falada:

“(...) Mas Teófilo Sussuarana era bronco, excessivamente


bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
- Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de
filhos-da-mãe, que chegou minha vez!...”
O uso de comparações e metáforas é outra constante. Um bom exemplo
é a metáfora da cobra, tradicionalmente associada ao mal:

“(...) o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher


casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de
matar por obrigação (...).”
E no final, quando o protagonista dá o golpe fatal em Joãozinho:

“A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do


púbis à boca do estômago, e um mundo de cobras sangrentas
saltou para o ar livre (...).”
A constante da “Trindade”
O conto se estrutura numa espécie de trindade,
diretamente relacionada à Santíssima Trindade
católica. A vida de Matraga se divide em três fases:
pecado (I), purgação (II) e redenção (III). Cada uma
dessas fases é composta por trios de personagens:
Matraga, Dionorá e a filha (I); Matraga, Quitéria e
Serapião (II); Matraga, Joãozinho Bem-Bem e o velho
que pede misericórdia (III).
O protagonista, por sua vez, assume 3 nomes: o
nome social Augusto Esteves (I), quando é valentão e
pecador; Nhô Augusto (II), na fase de penitência; por
fim, Augusto Matraga (III), seu nome definitivo e
santificado pelo povo.

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