Você está na página 1de 7

O açúcar que não adoça o trauma:

uma entrevista com Geisiara Lima, autora do livro Corpo em Chamas

Corpo em chamas (2019), de Geisiara Lima, é uma obra transversal que une 18
poemas e algumas ilustrações autorais em aspectos de denúncia. A denúncia possui espaço
geográfico definido: Zona da Mata Pernambucana, região explorada pela monocultura da
cana-de-açúcar através do tempo e em diferentes modos de produção, desde os engenhos de
açúcar das capitanias hereditárias do período colonial às poucas usinas que ainda sobrevivem
no local. Ao expor com prolixia de assuntos e versos livres e longos a respeito do cotidiano
contemporâneo da região canavieira, a obra nos faz observar os trabalhadores e moradores da
Mata Norte que vão sobrevivendo entre o regional e o global, entre as queimadas
irregulares-regulares da cana (irregulares pois já estão em desacordo com as leis ambientais e
regulares pois acontecem cotidianamente) e o fogo das manifestações populares locais.
A obra foi publicada em 2019 pelas editoras Porta Aberta e Vão! Elaborações
artísticas, e teve seu lançamento realizado no comecinho do ano de 2020 antes da pandemia
da Covid-19, o que infelizmente acabou contribuindo para a pouca publicização do livro.
Entrei em contato com Geisiara Lima e com seu livro neste lançamento, ocorrido no Colofão,
antigo laboratório de vivências analogicas em Santo Amaro. Me apaixonando pela obra, logo
quis pesquisá-la mais a fundo, foi assim que nasceu o Corpo que queima com a Mata:
tradição, trauma e transversalidade na poesia de Geisiara Lima (2020), um ensaio que
escrevi e que foi resultado de uma pesquisa de quatro meses e que teve incentivo da Lei
Audir Blanc.
A pesquisa visou demonstrar o caráter decolonial presente em Corpo em Chamas,
buscando aspectos relacionados aos conceitos de repetição traumática e realismo traumático
preconizados por Hal Foster, em O retorno do real (2005), na intenção de prender o olhar na
ferida colonial aberta que é apresentada na obra. No trajeto de pesquisar, realizei uma
entrevista com a autora Geisiara Lima sobre sua trajetória como escritora e artista plástica; a
publicação do livro pesquisado; as desventuras sofridas pela população da Zona da Mata,
entre outros assuntos. É pra essa entrevista que os convido à leitura.
01. Geisiara, primeiramente, queria que você contasse um pouco a respeito de você e da
sua trajetória como poeta e como artista plástica, livremente.

Tenho 31 anos, nasci em Itambé-PE, atualmente moro em Timbaúba onde trabalho na


Prefeitura e tenho um bar, o Underground Rock Bar, que fica na rodoviária da cidade. Sou
graduada em Filosofia pela UFPB. Escrevo e desenho desde a adolescência. Há cerca de 10
anos conheci o pessoal do Coletivo Silêncio Interrompido e começamos a articular saraus
nos intervalos dos shows na região. O coletivo lançou a antologia Goiana Revisitada em
2012 pelo Funcultura com 16 autores, um mapa da produção literária da região, dentre eles
Phillipe Wollney, Ezter Lemos, poetas atualmente premiados em PE. Participei da produção
do Tipóia Festival de 2014 e 2015, publicamos nas edições do festival com a Cartonera da
Mata os livros dos Poetas Nazarenos I e II, fui colaboradora com ilustrações nas duas
edições, em 2015 fui a primeira mulher a fazer a arte de divulgação do Tipóia Festival. Em
2018, fiz o projeto de ilustração das peças de divulgação da Mostra Canavial de Cinema e
em 2019, as ilustrações dos Cartazes de 2 sessões do Iapôi Cine Clube. Participei do Recita
Mata Norte I e II. Para não me alongar, citei os projetos mais relevantes nessa minha
trajetória, teve muitos eventos com o S.I [Silêncio Interrompido] como o Fig [Festival de
Inverno de Garanhuns] e 2 anos da Bienal, também fui para a Bienal como ilustradora do
livro de Daniela Câmara, o I e II Ato Poético e já estou construindo o III. Atualmente estou
com o Coletivo Ispia! Realizamos ações de artes, exposições, grafite; e o Caçadores de
Rascunho, que é um projeto de registro urbano da Zona da Mata através do desenho, fomos à
Bahia em 2018 para o USK Salvador.

02. O corpo em chamas é seu primeiro livro autoral, certo? Como ele nasceu? Qual foi
o momento que você percebeu que o livro estava pronto para publicação e como se deu
essa publicação?

O livro tem trabalhos de 2014 a 2019, poemas que trabalhei bastante nos recitais e projetos
do Silêncio Interrompido e do Recita Mata Norte. As ilustrações também são desse período,
de algumas séries que publiquei nas redes ou fiz exposições em eventos e que estão sempre
trazendo as temáticas dos meus poemas, meus trabalhos se constroem, evoluem, são
acréscimo um do outro, não vejo um separado do outro desde que comecei. Demorou
bastante tempo até para decidir que o livro estava pronto, as travas foram mais psicológicas,
reconhecer a força do meu trabalho, estes poemas já tinham uma oralidade muito bem
trabalhada nos projetos, alguns deles já haviam sido até publicados na ontologias na região, a
decisão veio mesmo dentro do Recita Mata Norte, saber que tinha todos os subsídios,
logística necessária para uma publicação aqui na Mata, independente e de boa qualidade,
editoras que valorizariam meu trabalho, que já conheciam meu trabalho por isso teriam maior
respeito e apreço em publicá-lo.

03. Sinto que Corpo em Chamas é um livro visceral, com poemas cheios de ironias
anticapitalistas e decoloniais, que dialoga com passados, presentes e futuros do Brasil,
de Pernambuco e especialmente da Zona da Mata. Quais são as tuas referências para a
criação dos poemas?

Os poemas do Corpo em Chamas retratam as violências sofridas nesses territórios legados da


colonização, da escravidão, monocultura da cana-de-açúcar que transformou as paisagens
dessa região, as relações de trabalho, que isolou essas cidades sem acesso, sem transporte
público. O livro fala de um presente que respeita e sofre com o passado, o presente ainda
incerto e um futuro muito limitado para os moradores das pequenas casas cercadas de
canavial. A mulher tem essa relação com a terra, com a agricultura familiar, com a medicina
das plantas, a benzedeira, a que lava a roupa do marido que trabalha no corte, a falta de
controle de natalidade e as crias que estão pela própria sorte.

04. Você acredita que é possível dizer que há uma interlocução entre as culturas
populares típicas da Zona da Mata e referências de cultura pop internacional
perpassando o livro? Uma conversa entre o local e o global? Se sim, porque você acha
que isso acontece?

Os diálogos acontecem para mostrar a relação do ancestral e do novo, do rural e do urbano, a


xilogravura e o grafite. Neste território o punk se diverte no brinquedo. Cidades com menos
de 50 mil habitantes que sonham com o concreto da capital e outros que planejam morrer
aqui mesmo.
05. Você é também autora dos desenhos que compõem o livro. Para ti, como os poemas
conversam com os desenhos selecionados?

Os desenhos são de séries que foram criadas durante os anos de escrita dos poemas do livro e
que procuram compor as paisagens do livro, a prosa, a mística dos brinquedos, a brutalidade
das transformações provocadas pela monocultura nesses corpos, localizam um pouco o leitor.

06. Há uma transferência quanto ao gênero da voz poética nos poemas, às vezes a voz
poética é masculina, às vezes, feminina. Houve uma escolha consciente nesse sentido ou
você se deixou levar pela inspiração?

Os poemas do livro foram trabalhos de 5 anos focados na leitura, na oralidade, dando voz a
personagens que fazem parte de um cenário que sofre diversos tipos de opressões. Nos
parágrafos existem prosas de gêneros diferentes, ditados populares, sabedoria ancestral
através da fala numa região onde ainda tem um alto índice de analfabetismo, problemas
sociais, econômicos, transformações geográficas, dou a fala ao próprio território.

07. No poema O sujeito cinza, você indaga a escolha pela autodeclaração parda que
fazem algumas pessoas. Você não acredita que as/os brasileiras/os acabaram tendo
muita dificuldade historica de encontrarem as suas próprias origens por causa da
mestiçagem imposta e do genocidio de negros africanos e indígenas? Como se auto
afirmar para se autodeclarar preta/o ou indígena?

Acredito sim nesse processo, passei por ele, esse poema retrata esse processo para chegar a
essa aceitação, do conhecimento das nossas origens. A minha certidão de nascimento está
preenchida com essa palavra “pardo” que não consigo identificar como branco e nem como
negro, por anos fiz essa busca, passei a infância e adolescência escutando frases como “ela
não é nem tão preta” para expressar um “elogio”, mas que era uma forma muito agressiva de
negar a minhas origens. Passei mais de 10 anos alisando cabelo pensando que isso me faria
ser aceita pelo mercado, na escola, que me faria entrar em algumas salas, fiz transição há uns
5 anos só, eu mesma não lembrava como era meu cabelo sem aqueles sacrifícios para mudar
minhas raízes. Esse poema tem algumas ironias para retratar todo esse meu processo, minha
entrada numa universidade pública sendo a primeira mulher de muitas gerações de mulheres
da minha família.

08. Trazendo um pouco o tema da Zona da Mata, tão presente no seu livro, como é,
para você, ser nascida e criada em uma das regiões mais exploradas historicamente pelo
capitalismo em todos os seus vieses durante e pós colonização? Isso traz traumas para
todos que vivem na região?

Essa região é muito devastada pelas pragas que a colonização trouxe, muito isolada e carente
de políticas públicas, somos mão-de-obra escrava nos engenhos, somos mão-de-obra barata
nas usinas. Muitas destas cidades estão separadas por 5 km de cana e só têm como opção de
trabalho a usina ou as prefeituras, a política ainda é comandada pelos coronéis, latifundiários,
pequenos proprietários de terra que sobreviviam da agricultura familiar e que estão sendo
obrigados a vender suas terras para as usinas e migrar para os centros urbanos ou para
executar trabalhos precários, construir habitações em morros.

09. Me conta também como é ser poeta na Zona da Mata? Como é ser mulher e poeta
na Zona da Mata?

Escrevo desde a adolescência, participo de recitais há uns 10, 11 anos, até hoje a luta foi
grande, de escrever ninguém vive nessa região, é sempre uma atividade secundária porque
não temos espaços para trabalhar com poesia que ofereçam remuneração, criamos esses
espaços, somos artistas que precisam se produzir para sobreviver, arregaçar as mangas,
regular o som, editar o vídeo-poema, de uns tempos para cá estamos nos adaptando aos
editais, mas essa história dos editais é algo de agora. Por aqui fundamos uma rede de
colaboração, ilustrei muitos livros de poetas daqui, ilustrei cartazes de cineclube, de eventos
de música, já peguei equipamento de bandas para o evento de poesia, fazíamos recitais nos
intervalos dos shows de música, depois de alguns anos fazendo esses eventos, livros,
mapeamos os artistas da região para poder recorrer quando precisamos, queremos enriquecer
o projeto. Para uma mulher trabalhar com poesia, fazer seu trabalho circular, ser publicado,
ser respeitado é uma tarefa que muitas já abandonaram e hoje, entendo os motivos. Eu venho
de uma família onde as mulheres eram no “máximo” caixas de supermercado, minhas primas
trabalhavam nas lojinhas de roupas, elas não iam para a faculdade, elas não viajavam para se
apresentar nos festivais, elas eram donas de casa. Minha bisavó ficou viúva aos 67 anos e ser
viúva era uma glória perto das outras parentes que foram abandonadas pelos maridos, que
não tinham o nome do pai na certidão de nascimento dos filhos, eu mesma não tenho. Nesse
isolamento em que vivemos é até perigoso pegar o ônibus para um evento em outra cidade
para passar a noite porque só tem transporte até às 17 horas para a volta, você pede abrigo na
casa de um amigo e já sofre insinuações machistas, imagina produzir sessões de desenho com
modelo nú como fizemos em 2019 no Ispia!

10. Aliás, agora como uma recém mãe, o que você sente de dificuldades em ser poeta e
mãe?

Agora o tempo que me ajude para que consiga conciliar a maternidade com meus trabalhos,
para que consiga passar essas mensagens dos meus poemas para minha filha, ensinar o
respeito pelas tradições, pelos brinquedos, pela cultura da Zona da Mata, pela sabedoria dos
mais velhos, ensinar os legados da mulher que começou a me criar com 70 anos e pegava no
quintal o mato abortivo e o mato que ajudava no pós-parto, ensinar o legado dessas bruxas.
Tudo fica mais difícil quando temos nas mãos a felicidade de uma pessoinha que depende em
tudo da gente, mas também para que ela enxergue outras possibilidades é que terei que
persistir.

11. Você acredita que o turismo e a manutenção das manifestações populares da Zona
da Mata melhora as condições econômicas e sociais da área?

O turismo que é feito com respeito ao patrimônio, os projetos, editais que consideram a
história dessas pessoas, as tradições das cidades, podem sim trazer um desenvolvimento
social e econômico para a região. As pessoas que trabalham com arte, cultura na região
vivem em condições precárias, muitos levam essas atividades importantíssimas como
secundárias por não serem remuneradas, não colocarem o pão na mesa, acabam sucumbido
ao cansaço, migrando para os centros urbanos e os brinquedos perdem seus componentes e
vão desaparecendo cada vez mais.
12. Quais diferenças você sente na Zona da Mata nos últimos 10 anos?

10 anos pra cá eu enxergo que a Zona da Mata recebeu muitas indústrias, comércios que o
capitalismo trouxe não porque considere que sofremos um processo de modernização mas
porque nos enxerguem como números do consumismo, com isso veio a violência, os
genocídios das populações jovens negras que se espremem ao redor dessas indústrias onde
pensam que terão mais oportunidades. Timbaúba, em janeiro de 2021, registra 1 homicídio
por dia, a maioria em loteamentos, amontoados de casas construídos para que o povo tenha
moradia, mas nenhuma ocupação, nenhum laser, nenhuma das coisas que nos fazem
humanos. A cultura dos bois de Carnaval que era rural e foi trazida nestes processos de
migração para os mortos está quase extinta. Me lembro de chegar aqui e ver os últimos dias
de passagem do trem pela Transnordestina, hoje ficamos refém de uma só linha de ônibus,
com horário limitado. Como dito antes, crescemos em números, mas não houve melhoras nas
nossas condições de vida, de trabalho, de educação, temos um alto índice de analfabetismo,
ainda há situações em que precisamos ir para o Recife para ter um atendimento de saúde.

13. E por último, há uma intenção ou desejo, como autora, de mensagem passada para
os leitores no seu livro? Se sim, qual seria?

Não é mais uma mensagem num sentido pedagógico, mas prender o olhar sobre os corpos
que transitam nas encostas das rodovias dessa região, onde há cada 15 km tem uma usina,
uma queimada a noite que infringe as leis ambientais, mulheres que plantam na terra as ervas
que curam e o alimento que mata a fome das suas crias. Em cronologias distintas as relações
com a nossa cultura ancestral, a prosa na calçada que documenta nossos saberes nas línguas
não escritas.

Você também pode gostar