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O AUTO DA COMPADECIDA

(ARIANO SUASSUNA)
ARIANO SUASSUNA

Ariano Suassuna é um escritor nascido em João


Pessoa, Paraíba. Defensor da cultura da sua
região, o autor de Auto da compadecida lançou o
Movimento Armorial, que se interessava pelo
conhecimento e desenvolvimento das formas de
expressão populares tradicionais.
O dramaturgo pode ser considerado um dos
escritores do movimento modernista, mais
especificamente da 3ª fase, geração de 45. Mas
a obra de Suassuna reúne elementos de
diferentes movimentos, como o simbolismo,
o barroco e a literatura de cordel, tão presente no
nordeste.
O nome do escritor costuma ser atrelado ao
teatro, principalmente pelo papel que
desempenhou na modernização do teatro
brasileiro. A produção de Ariano Suassuna tem
como característica a improvisação e o texto
popular. O escritor coloca muitos elementos da
cultura nordestina em suas peças.
Auto da compadecida é uma peça teatral em
forma de auto (gênero da literatura que trabalha
com elementos cômicos e tem intenção
moralizadora). É um drama nordestino
apresentado em três atos. Contém elementos da
literatura de cordel e está inserido no gênero da
comédia, se aproximando, nos traços, do barroco
católico brasileiro. Trabalha com a linguagem oral
e apresenta também regionalismo através da
caracterização do nordeste.
A peça trata, de maneira leve e com humor, do
drama vivido pelo povo nordestino: acuado pela
seca, atormentado pelo medo da fome e em
constante luta contra a miséria. Traça o perfil dos
sertanejos nordestinos que estão submetidos à
opressão e subjugados por famílias de poderosos
coronéis donos de terra. Nesse contexto, o
personagem de João representa o povo oprimido
que tenta sobreviver no sertão, utilizando a única
arma do pobre: a inteligência.
Fica evidente o cunho de sátira moralizante da
peça, através das características de seus
personagens. O padeiro e a mulher são
avarentos, deixando passar necessidade o
empregado enquanto cuidam bem do cachorro. O
padre e o bispo, gananciosos, utilizam da
autoridade religiosa para enriquecerem. Todos
estes são condenados ao purgatório com a
interseção de Nossa Senhora.
Já Severino e o cangaceiro, apesar de todos os
crimes cometidos em vida, são poupados por
serem considerados vítimas naquela situação: a
seca, a fome e toda a difícil realidade os
obrigaram a levar este tipo de vida.
A peça é uma síntese do modelo medieval com o
modelo regional: trabalha o tema religioso da
moral católica (se aproximando dos temas
barrocos), mas inserido no contexto nordestino,
ou seja, regional. Por ser um dos objetivos do
movimento modernista trabalhar tendências
mundiais de forma regional, adaptando-se a
nossa realidade, a peça pode ser considerada
como uma tendência modernista.
INTERTEXTUALIDADE

 Enterro do cachorro (no cordel "O Dinheiro", de


Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Nesse
cordel, um cachorro deixara uma soma em
dinheiro no testamento com a condição de que
fosse “enterrado em latim”.
 Um gato que supostamente “descome”
dinheiro e um instrumento musical que seria
capaz de ressuscitar os mortos. Essas duas
estruturas narrativas estão no romance de
cordel "História do Cavalo que Defecava
Dinheiro", também de Leandro Gomes de
Barros.
 Suassuna substituiu o cavalo por um gato,
certamente para facilitar a encenação.
 No texto de Leandro Gomes, o instrumento
musical capaz de levantar defuntos era uma
rabeca e, em Suassuna, passa a ser uma
gaita.
 No último ato da peça ocorre o julgamento
dos personagens que foram mortos por
Severino de Aracaju, e do próprio Severino,
morto por uma facada de João Grilo.
É impossível não pensar no "Auto da Barca do
Inferno", de Gil Vicente, em que uma série de
personagens é julgada por seus atos em terra
e tem como juízes um anjo e um demônio.
 A fonte direta de Suassuna: "O Castigo da
Soberba", romance popular nordestino, de
autoria anônima, no qual a compadecida
aparece para salvar um grupo de
condenados.
 Cristianismo primitivo, que se baseava no
preceito “amai-vos uns aos outros”.
PERSONAGENS
Os personagens de "Auto da Compadecida"
são alegóricos, ou seja, não representam
indivíduos, mas tipos que devem ser
compreendidos de acordo com a posição
estrutural que ocupam. A criação desses
personagens possibilita que se enxergue a
sociedade de uma cidadezinha do Nordeste. É
por isso que a peça pode ser chamada sátira
social, pois procura reformar os costumes,
moralizar e salvar as instituições de sua
vulgarização.
PALHAÇO:
É o anunciador da peça e também o grande
comentador das situações. Suas falas
apresentam muitas vezes um discurso mais
direto, que dá a impressão de vir do autor. Na
verdade, o Palhaço exerce função metalinguística
no espetáculo, ao refletir sobre o próprio
mecanismo mágico de produção da imitação e
ao suprimir a distância entre realidade e
representação.
JOÃO GRILO
Protagonista, personagem pobre e franzino, que
usa de sua infinita astúcia para garantir a
sobrevivência. Já foi comparado a Macunaíma, o
herói sem caráter. Tal comparação, no entanto,
revela-se inadequada, já que João Grilo, ao
contrário do personagem criado por Mário de
Andrade, trabalha de forma dura, ajuda seu
grande amigo Chicó e tem como justificativa de
suas traquinagens ser assolado por uma pobreza
absoluta.
O mais acertado seria compará-lo ao
personagem picaresco, encontrado no romance
medieval Lazarilho de Tormes. Mas nem é
preciso ir tão longe, pois Pedro Malazarte – cuja
origem ibérica está em Pedro Urdemalas – é o
personagem popular mais próximo de João Grilo.
CHICÓ:
É o contador de causos, o mentiroso ingênuo
que cria histórias apenas para satisfazer um
desejo inventivo. Chicó se aproxima do
narrador popular, e suas histórias revelam
muito do prazer narrativo desinteressado da
cultura popular. Chicó e João Grilo são como a
dupla de palhaços entre os quais a esperteza
é mal repartida — um sempre a tem de mais e
o outro, de menos.
Padre João: mau sacerdote local, preocupado apenas
em angariar fundos para sua aposentadoria.

Sacristão: outro exemplo de mau religioso.

Bispo: juntamente com o padre João e o sacristão,


ajudará a compor o quadro de representação da
Igreja corrompida.

Antônio Moraes: típico senhor de terras, truculento e


poderoso, que se impõe pelo medo, pelo dinheiro e
pela força.
Padeiro: representante da burguesia interessada
apenas em acumular capital, explora seus
empregados e tem acordos com as autoridades da
Igreja.

Mulher do padeiro: esposa infiel e devassa, tem amor


genuíno apenas por seus animais de estimação.

Frade: bom sacerdote, serve, no enredo da peça,


para salvaguardar a instituição Igreja das críticas do
autor.
Severino do Aracajú: cangaceiro violento e
ignorante.
Cangaceiro: ajudante de Severino, seu papel é
apenas puxar o gatilho e executar outros
personagens.
Demônio: ajudante do Diabo, parece disposto a
condenar todos os personagens mortos no final
do segundo ato.
O Encourado (o Diabo): segundo uma crença
nordestina, o diabo utiliza roupas de couro e
veste-se como um boiadeiro. Funciona como uma
espécie de antagonista de João Grilo; como ele,
também é astuto, mas acaba sendo derrotado
pelo herói.
Manuel (Nosso Senhor Jesus
Cristo): personagem que simboliza o bem, porém
um bem sem misericórdia. É representado por
um ator negro, a fim de que isso produza um
efeito de estranhamento no público.
A Compadecida (Nossa Senhora): heroína da
peça, funciona como uma advogada de João
Grilo e de seus conterrâneos, derrotando com
seus argumentos cheios de misericórdia os
planos do Encourado de levar todos ao inferno.
ANÁLISE:
O enredo da peça é um trabalho de montagem e
moldagem baseado em uma tradição antiquíssima,
que remonta aos autos medievais de Gil Vicente e
mais diretamente a inúmeros autores populares que
se dedicaram ao gênero do cordel. Nesse tipo de
literatura, os criadores contam e recontam as
mesmas histórias e acrescentam o seu toque
pessoal. Reconhecer esse “toque pessoal” de cada
trabalho artesanal, contudo, exige do observador
grande atenção aos detalhes.
O autor sugere que na primeira cena se utilize o
palco como um “picadeiro de circo”. De fato,
nessa cena, todos os personagens (com exceção
de Manuel, o Jesus, representado por um ator
negro, que fica escondido para preservar o efeito
de surpresa) apresentam-se ao público fazendo
mesuras e são anunciados em voz alta pelo
Palhaço, numa atmosfera circense.
A primeira fala da peça cabe ao Palhaço, e a
orientação do autor é que seja realizada em
“grande voz”: “Auto da Compadecida! O
julgamento de alguns canalhas, entre os quais
um sacristão, um padre e um bispo (...)”.
Todos esses elementos antecipam partes da
narrativa: desde a apresentação prévia dos
personagens até o anúncio de que será realizado
um julgamento e que nele Nossa Senhora intervirá
de forma a salvar os condenados.
O espectador pode se perguntar: para que antecipar
o que vai acontecer e estragar a surpresa? O fato é
que, nesse tipo de tradição, o que importa não é um
final inesperado. O que deve ser apreciado é o
“como se fez”, ou seja, a habilidade do autor ao
trabalhar o material conhecido de todos.
Contar e recontar histórias é típico da tradição
oral e está quase extinto em nossos dias, em
virtude de mudanças históricas que fazem com
que o homem contemporâneo não tenha tempo
nem disposição para ouvir repetidas vezes as
mesmas histórias.
Linha de força: a carga religiosa, especificamente o
catolicismo, que se articula na lógica interna da
peça, por meio do binômio “bem e mal”. Trata-se, na
verdade, de um desdobramento da forte cultura
religiosa do nordestino, que se apega a Deus e teme
as influências do mal. Essa intervenção do elemento
religioso deriva também da tradição do teatro
medieval (ou mesmo vicentino), já que durante a
Idade Média as manifestações artísticas estiveram
sempre vinculadas à Igreja.
Ao resgatar essa tradição teatral medieval, Ariano
Suassuna realiza uma leitura da moral católica muito
ajustada aos tipos que cometem gestos transgressores.
Outra linha de força de "Auto da Compadecida" é a
presença do anti-herói ou herói quixotesco, uma espécie
de personagem folclórica que vive ao sabor do acaso e
das aventuras. João Grilo é esse típico anti-herói, que se
envolve com as mais diversas personagens e se
compromete com as próprias mentiras. No entanto, é
através dele que o autor propõe um exame dos valores
sociais e da moral estabelecida. Em outras palavras,
Suassuna pretende refletir sobre a fragilidade e a
suscetibilidade de nossas convicções.
Problemática da obra.
“Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua
igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que
sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de
insensatez e de astúcia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas
ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita
que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas
intimidades.”

“Que bem precisada anda disso. Saia e vá rezar lá fora. Muito bem, com
toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de
assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os
ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha
certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos,
praticamente da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade,
sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros,
generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados,
sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco.”
 A função cênica do Palhaço – porta voz do autor – é abrir e fechar o
espetáculo.
 O Palhaço tem também a função de descrever, de forma antecipada e
didática, o clima da peça, apresentar atores, assim como despertar a
curiosidade da platéia sobre o desfecho e adverti-la para que mantenha
distanciamento crítico e consciência crítica.
 O Palhaço irá esboçar, enfim, a finalidade primordial do espetáculo que é a
intenção moralizante e crítica do autor, respaldada na religiosidade cristã,
católica.
 No Auto da Compadecida, portanto, percebe-se uma função metateatral
(metalingüística), exercida pelo Palhaço, que conduz o espetáculo à maneira
circense:
“Ele se dirige ao público, anunciando o que está por vir e fazendo comentários.
Na sua qualidade, ele não se mistura à ação da peça. Aparece, sim, no
prólogo do início de cada ato e no epílogo. Porém, em uma de suas
intervenções torna-se também ator, ou melhor, curinga, pois participa da
cena do enterro de João Grilo”.
 Os personagens simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o
direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não
condenados.
 No Auto da Compadecida, enfim, Ariano reescreve e recontextualiza
gêneros medievos em produtos culturais populares nordestinos,
questionando procedimentos de exclusão social, política e religiosa, por
meio de personagens de extração popular.
 Dessa forma, poder-se-ia concluir que o autor trabalha dentro de um
enfoque eminentemente regionalista.
 Entretanto, cabe observar que o próprio Ariano não propõe, nas
indicações que servem de base para a representação, nenhuma
atitude expressiva que seja amplamente regionalista, nordestina.
 Apenas quatro personagens ligam-se a determinantes regionais: João
Grilo, Chico, Severino do Aracaju e o Encourado que, como justifica o
próprio autor, “segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um
homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro”.

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