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O filme “O Nome da Rosa” e a cultura jurídica medieval

Ivan Furmann, Doutorando em Direito pela UFPR,


professor de História do Direito e Filosofia Jurídica,
Unicuritiba e Faculdades Santa Cruz – Curitiba-PR.

1. O filme o nome da Rosa (Der Name der Rose -1986) de Jean-Jacques Annaud é
uma produção germânica (com participação italiana e francesa, logo um filme europeu).
Apesar de ter a participação de atores renomados no cinema norte-americano como Sean
Connery e Christian Slater o filme detém uma áurea diversa da indústria cultural rasa. O filme
é uma adaptação do romance com o mesmo nome (O nome da Rosa - Il nome della rosa) de
Umberto Eco (1980). Esse livro é um best-seller mundial que mistura elementos históricos,
lingüísticos (em especial seu belo recheio de intertextualidades) e filosóficos. Sua produção
custou US$ 17 milhões, recuperando apenas US$ 7 milhões nas bilheterias americanas. Porém
em todo o planeta o filme obteve uma bilheteria equivalente a US$ 77 milhões.
Negativamente avaliado pela crítica americana, recebeu alguns prêmios na Europa e foi o
filme mais visto no ano de 1986 na Itália e em diversos países da Europa. Não se revelou
sucesso comercial, porém não é possível denominá-lo de fracasso. É, com certeza, uma bela
obra de cinema, incompreendida pelo público distraído do mundo blockbuster. O filme aborda
boa parte do romance porém deixa importantes passagens de fora.
Entre as diferenças do filme e do livro podem ser enumeradas: a) No livro existe
uma importante passagem de um sonho de Adso inspirado na Coena Cypriani (conto satírico
medieval sobre personagens bíblicos), algo que se revela como um conto dentro do conto,
com toques de surreal, passagem totalmente omitida no filme; b) No livro o Abade explicita a
função de investigador para William, ordenando que todos devem ajudá-lo; c) No livro Adso
é um noviço beneditino no filme franciscano; d) O personagem Benno Upsala é omitido no
filme, mas no livro aparece como suspeito e ajuda nas investigações para provar inocência; e)
O abade é a sexta vítima no livro, no filme não se sugere sua morte; f) Muitos diálogos sobre
fé e comédia são cortados no filme; g) A motivação do assassino (Jorge) é reduzida no filme,
no livro a explicação é mais complexa; h) O fim é diferente no filme, no livro os três acusados
de heresia não são postos a fogueira imediatamente, Remigio é levado Avignon para lá ser
executado, Salvatore provavelmente seria perdoado e solto no caminho, e a moça segundo
afirma William a Adso, seria queimada no caminho; i) Na tradução para o português William
de Baskerville aparece como Guilherme de Baskerville; entre tantas outras diferenças. Mesmo
com tais reduções o filme é uma boa adaptação da obra.
2. A história se passa num obscuro mosteiro no remoto norte da Itália em 1327.
As cenas foram filmadas na região da Áquila no centro norte da Itália, região que sofreu
recentemente (2009) com um terremoto. Um mosteiro pode parecer um ambiente monótono e
enfadonho, porém na idade média tal espaço talvez seja exatamente o contrário. É nos
mosteiros que a vida intelectual e cultural da idade média é moldada e, especialmente no norte
da Itália, tal efervescência gerou movimentos novos com significativos frutos futuros.
As cenas panorâmicas da região aparecem diversas vezes no filme. Sempre com
um fundo sonoro que relembra o tempo lento e a ambientação de mistério. O escorrer lento do
tempo pode ser interpretado como um símbolo da diferença da passagem do tempo da
atualidade para a idade média. Assim como a imersão numa sociedade diferente da atual exige
ambientação gradual que vai se revelando em sua tranqüilidade e calma.
O filme é recheado de luzes e sombras. Simbolicamente a maior parte do filme se
passa nas sombras, ou com pouca luz, talvez uma referência ao período medieval, talvez uma
referência à falta de iluminação técnica. De qualquer forma, tal detalhe aparece como um
quebra cabeça, cada imagem que revela algo no enredo tem sempre uma iluminação com
meio rosto aparecendo meio rosto encoberto pelas sombras. A luz em geral aparece com
maior intensidade nos ritos religiosos, as sombras aparecem nas cenas consideradas heresias e
pecados. Em cada cena a luz e a sombra parecem conversar com o espectador, demonstrando
a ambigüidade da situação.
Outro detalhe interessantíssimo é a forma com que os homens estão dispostos com
o mundo natural. Os camponeses aparecem em casas em que compartilham a moradia com os
animais. Já os monges, de certa forma afastando-se de um convívio direto com os animais,
aparecem em desarmonia com a natureza. Como se pode observar quando, por exemplo,
matam um porco e com o seu sangue providenciam alimento. Os animais são o elemento
central das piadas e da ironia dos cléricos (Um burro ensinando a Escritura aos bispos. O Papa
como raposa. E o abade como macaco), principalmente quando se igualam os homens aos
animais. Portanto, o convívio com animais era considerado negativo pelos cléricos, algo que
somente camponeses incautos poderiam suportar, o que lhes aproximava da irracionalidade.
(Afirma Jorge: O riso é um evento demoníaco que deforma as linhas do rosto... e faz os
homens parecerem macacos). A vida dos camponeses é relatada superficialmente, porém
quase sempre aparece sob o olhar de Adso, um noviço curioso tentando conhecer o diferente.
O principal estilo de vida que aparece no filme é a vida nos mosteiros. Um modo
de vida repleto de rotinas (ferreiro, varrendo o chão), de horários de reza, de descanso, de
alimentação, de oração, bem como, de “copiar” livros, o que fica evidente nas passagens em
que os monges copistas dedicam-se a copiar determinadas obras. (São regras do monastério:
Um monge deve manter silêncio. Ele não deve falar o que pensa... até que seja questionado.
Um monge não deve rir. Para isso existe o bobo... que levanta a voz em risos). Também é uma
rotina repleta de gestos e símbolos. Cumprimentos (alguns extremamente desconexos para
nosso tempo) como beijo na boca entre William e o Abade ou a limpeza das mãos. A forma
de dirigir-se a cada um conforme o título. A forma de se vestir e de se comportar. A crença de
que o hábito pode conformar o homem (O que nem sempre é verdade conforme o próprio
filme argumenta). Outro ponto interessante é a sabedoria prática adquirida pelos monges. (Um
talo ralado de bistorta para tratar diarréia. Quanto à cebola, administrada em pequenas
quantidades... quente e úmida, ajuda a prolongar a ereção). O boticário Severino comunga de
forma mais evidente em relação a tal sabedoria prática.
3. O filme apresenta dois personagens principais, William e Adso. Em seguida
podem-se dividir os demais personagens entre os benedetinos, os franciscanos, os enviados do
papado e os considerados hereges. As demais pessoas aparecem apenas como parte do
cenário. A presença de tantos cléricos com proposições e posições tão diferenciadas é
fundante para o enredo, note-se que os únicos que conseguiam se deslocar durante esse
período da idade média eram os cléricos ou aqueles em nome de Deus (como os cruzados). A
presença de impostos, as barreiras das línguas e a própria condição social impediam que as
pessoas se deslocassem por longas distâncias. Faz sentido que somente tais personagens
apareçam de forma central nessa história medieval. Uma história contada por cléricos sobre
cléricos e apenas uma rosa.
William de Baskerville (Sean Connery), monge franciscano, e Adso von Melk
(Christian Slater), noviço que o acompanha, ganham a função de investigar uma série de
estranhas mortes que ocorrerem no mosteiro. O personagem William de Baskerville é uma
referência a um importante filósofo medieval denominado William de Ockham (também
conhecido como Guilherme de Ockham 1288-1348). Tal filósofo franciscano é um dos mais
destacados nominalistas medievais. Segundo autores reconhecidos com Michel Villey, os
nominalistas anteciparam em grande medida o uso da razão moderna utilizando-se dos
fundamentos da filosofia aristotélica (Segundo Adso: O mestre se fiava em Aristóteles, nos
filósofos gregos... e em sua notável inteligência lógica). Nesse caso, poderíamos caracterizá-
lo como um pré-moderno num mundo medieval. Para ser mais ousado, e provavelmente
errôneo, talvez William é um espírito racionalista no mundo medieval (alguns talvez
prefeririam a qualificação empirista). Na mesma medida, sua intuição e lógica faz referência
direta a Sherlock Holmes, Zadig e outros grandes investigadores dos contos modernos. A
observação é a grande arma de William (Não podemos nos deixar influenciar... por boatos
irracionais sobre o Anticristo. Em vez disso, vamos exercitar nossos cérebros... e tentar
solucionar este torturante enigma.), ele observa e compreende seu noviço Adso. Utiliza-se de
instrumentos (astrolábio, ampulheta, óculos, luneta), algo incomum para época, para
desvendar o mundo.
Adson de Melk (Christian Slater) também é um personagem que em tese teria
existido (apesar da simplificação do nome ao retirar a letra n, o que também tem um sentido
simbólico). Seria o filho mais novo do Barão de Melk, uma cidade da atual Áustria. O nome
traz uma série de referências intertextuais. Refere-se a Watson, fiel escudeiro de Sherlock
Holmes. Também se refere à abreviatura Adso (Adso = ad Simplicio), que significa
proveniente do simples, expressão que aparece na obra de Galileo Galilei. Adso, ao contrário
de seu mestre, sempre ressalta as pessoas acima da razão lógica das coisas. Novamente de
forma ousada, e de igual sorte errônea, Adso talvez seja a imagem de um outro pré-moderno
no medieval, porém um pré-moderno mais próximo ao espírito do romantismo. De qualquer
forma, a dupla de “estrangeiros” no medieval será o cerne do filme, aproximando o olhar de
nosso tempo com o passado, e as descobertas de tais personagens serão essenciais ao
desenrolar da trama.
Os personagens benedetinos pertencem à ordem monacal mais antiga que se tem
notícia, a ordem que criou o movimento dos mosteiros. Tais personagens não têm referência
histórica que comprovem sua existência, porém isso não lhes retira verossimilhança. Tais
personagens no filme e no romance aparecem como as principais vítimas de um assassino. Em
sete dias sete monges são mortos. A morte de tais monges é um importante símbolo do filme,
a tradição e a cultura antigas estão morrendo e uma nova está irrompendo. Dentre os
principais o abade (Michael Lonsdale) se destaca pela vontade de organização do mosteiro,
numa proposição tradicional de defesa comunitária. Os noviços dessa ordem são as duas
primeiras vítimas, Adelmo de Otranto e Venâncio (Urs Althaus), e demonstram que o futuro
morre primeiro. As outras vítimas também serão monges beneditinos Berengar (Michael
Habeck) o auxiliar da biblioteca, Severino o boticário (Elya Baskin) e Malaquias o
bibliotecário (Volker Prechtel). Mas o personagem mais enigmático e profundo de todos os
beneditinos é o assassino Jorge de Burgos (Feodor Chaliapin, Jr.), reconhecido como
venerável Jorge. Um bibliotecário cego que recheado de experiência e sagacidade comanda
todo o jogo de intrigas do filme. Tal personagem é uma referência a Jorge Luís Borges,
escritor argentino cego que foi bibliotecário chefe em Buenos Aires. A intertextualidade
profunda de Umberto Eco com Borges só poderia ser complementada oferecendo a posição de
assassino ao seu grande ídolo em seu grande romance. Jorge realmente é um personagem
fantástico. Borges é um escritor único e esplêndido.
Os personagens franciscanos representam uma nova ordem clerical que auxilia na
fundação de uma nova cultura. Seus personagens em quase sua totalidade são referências a
pessoas reais, Ubertino de Casale (William Hickey) (1259–1329), Michele da Cesena
(Leopoldo Trieste) (1270-1342) e Hugh of Newcastle (Vernon Dobtcheff) (morreu em 1322)
são todos personagens que existiram, porém as situações em que aparecem no filme são pouco
prováveis de terem acontecido. Tais cléricos aparecem quase sempre acuados e fugidios.
Acreditam em seus ideais mas temem a inquisição. Em parte seus ideais permanecem, em
parte foram esquecidos.
Os enviados do papado, que na época estava em Avignon, são: Bernardo Gui (F.
Murray Abraham), inquisidor que realmente existiu e foi importante na consolidação da
inquisição; Jerome of Kaffa (Franco Valobra) outro bispo que realmente teria existido; e
cardeal Bertrand (Lucien Bodard) o cardeal de Avignon entre 1280 e 1348-9. Tais
personagens apresentam o lado da centralização do poder papal na época, seus
posicionamentos e comportamentos demonstram tal perspectiva.
Por fim, aparecem os personagens hereges, Remigio de Varagine (Helmut
Qualtinger) e Salvatore (Ron Perlman). Ambos pertenciam a uma seita denominada
Dolcinianos, assim chamados porque seguiam os ensinamentos do Frei Dolcino. No livro
Remigio descreve detalhadamente a fisionomia e caráter de Frei Dolcino, inclusive
descrevendo seu suplício como algo terrível. Foi uma manifestação típica do norte da Itália
que manteve em certa medida proximidade com os cátaros. Eram inicialmente franciscanos
que se propuseram a ir além dos ensinamentos mais diretos do franciscanismo.
(PENITENZIAGITE!).
A garota (Valentina Vargas) aparece com ultimo personagem, que não se encaixa
em nenhum dos grupos. Quase sem importância para os cléricos será essencial para Adso.
4. O romance de Umberto Eco é recheado de intertextualidades, referências a
outros textos que formam uma espécie de mosaico de citações que se reorganizam de forma
nova. Em cada passagem do texto é possível encontrar referências ocultas, como passagens
secretas, que somente aqueles que tiveram contato com outros textos conseguem enxergar.
Como um jogo de esconde e esconde, o labirinto e a diversão do romance é o próprio texto e
suas referências. Buscar intertextualidades é uma diversão à parte nessa bela história.
O primeiro contato interessante nesse sentido é de Alighiero Chiusano e o seu
livro L’ordalia, um romance ambientado na época medieval que tem o mesmo estilo de o
nome da rosa e foi considerado o seu grande inspirador. Outros dois textos muito diretamente
relacionados ao romance são dos textos de Conan Doyle, e seu Sherlock Holmes, modelo
típico de investigador moderno, bem como Zadig de Voltaire, em especial quando logo no
início do filme afirma que nunca esteve (nunca viu) no mosteiro, mas pelas pistas observadas
sabia onde ficava o banheiro. Tais referências porém reaparecem sempre quando William
apresenta-se como investigador do caso (Não, não meu caro Adso, é elementar!). Porém sua
voz lógica parece sufocada numa sociedade em que os preconceitos e crendices ainda
prevalecem, assim, por mais que a estética nos lembre Sherlock, William está mais próximo
de Zadig de Voltaire, que também foi perseguido por saber demais.
Aparecem bem evidenciados os contatos com filósofos antigos, em especial, os
debates sobre a filosofia de Aristóteles, o filósofo que abalou aquele período em termos de
estrutura de pensamento. Aristóteles não se adaptava ao modelo de pensamento medieval
tradicional, por isso era rejeitado. Porém as novas ordens clericais propunham-se a adequá-lo
ao cristianismo o que gerava enorme conflito. Outra referência à antiguidade é o labirinto da
biblioteca que se assemelha ao labirinto do Minotauro de Creta e a solução de Teseu com o
novelo de lã, imitado por Adso devido a sua educação clássica. Esse labirinto aparecerá
também na obra de Borges com outro sentido. E a procura por intertextualidades escondidas
poderia ser feita num texto a parte, porém citá-las uma a uma é demasiado pretensioso, deixo
a tarefa para que cada um faça por si mesmo, e o faça no limite de seus próprios
conhecimentos.
Entretanto, nesse filme-romance uma intertextualidade é especial, o autor que
aparece com maior influência no conto sem dúvida é Borges, e no limite de minha arrogância
tentarei explicitar alguns pontos sobre tal contato. Borges foi cego durante boa parte de sua
vida. Pagava pessoas para ler livros para si. Os lia de memória. Tornou-se diretor da
Biblioteca Nacional da Argentina, e admirava alguns temas em especial: labirintos, espelhos e
livros. Seu conto "A Biblioteca de Babel" serviu de inspiração para a biblioteca do mosteiro
de Eco: "A Biblioteca é composta por um número indefinido, talvez infinito, de galerias
hexagonais, com enormes poços de ventilação no meio, cercados por balaustradas
baixíssimas". O labirinto da biblioteca é a metáfora do perder-se no conhecimento, talvez
remeta a dificuldade que os homens tem nos labirintos do conhecimento humano. Quem
pesquisa sempre recorre a um fio condutor, para não se perder no conhecimento. Os
pesquisadores novatos sabem disso, assim como Adso. Porém, o labirinto é decifrável através
de um enigma em que os números são a resposta. Números no centro do conhecimento, mais
uma teoria clássica. Existem muitas teorias sobre o enigma da biblioteca do romance, deixo
novamente tal análise e aprofundamento para o leitor curioso. Nesse ponto o livro vai além do
filme. Outra das histórias de Borges, "O Segredo", dispõe de um bibliotecário cego.
Outra estratégia de Borges é fazer referência a textos que nunca existiram ou que
aparecem com uma revelação fantástica, como em seu conto “do rigor da ciência”. Umberto
Eco ao explicar a origem do livro aponta: “No dia 16 de Agosto de 1968 foi-me parar às mãos
um livro que se deve à pena de um certo abade de Vallet, Le Manuscript de Dom Adson de
Melk, traduzido em francês segundo a edição de Dom J. Mabillo (Aux Presses de l'Abbaye de
la Source, Paris, 1984)”. Fato ou não, tal estratégia aguça nossa percepção e curiosidade.
Outro tema recorrente são os espelhos. Para Borges os espelhos exerciam enorme
fascinação. Perigosos por multiplicarem os homens. Talvez o objeto mais perigoso do mundo.
Fantásticos porque refletem parcialmente nossa imagem, são obscuros e claros. São uma
tentativa de nos fazer refletir sobre nós mesmos. “Olho meu rosto no espelho para saber quem
sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim.
Minha carne pode ter medo; eu não.” (Borges). O espelho dimensiona a finitude do infinito.
Agora nos vemos apenas como num espelho, em parte, mas chegara o tempo que veremos
face a face, assim imaginava Borges nas palavras de Paulo.
Talvez em seu conto mais genial Borges escreve sobre livros, num conto chamado
“O livro”, afirma que assim como os óculos são a extensão dos olhos e a espada do braço, “os
livros são a extensão da memória e da imaginação”. Essa oposição é muito ressaltada no
romance de Umberto Eco. Mais um instrumento para William. Borges lembra “uma frase de
Santo Anselmo que afirma ‘um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma
espada nas mãos de uma criança’ . Isto é o que se pensava dos livros. (‘escrever todas as
coisas num livro é deixar uma espada nas mãos de uma criança’ ‘A pena pode ser mais cruel
que a espada’.)”. Livros também são perigosos para os que não sabem os usar.
E Borges completa “Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que
podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu,
porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os
originais”. William ao ver tantos livros explode em alegria, está num salão de festas
conversando com os maiores homens que a humanidade já produziu.
Os livros para Borges são o tesouro do passado. “Em César e Cleópatra de Shaw
[dramaturgo irlandês que recusou o prêmio Nobel de literatura de 1925], quando se fala sobre
a biblioteca de Alexandria, os livros são descritos como a memória da humanidade”. O texto
de Shaw, porém, não é tão entusiasta com tal memória da humanidade. Borges talvez brinque,
talvez minta, talvez ironize, de qualquer sorte o fato é que tal memória deveria ser destruída.
THEODOTUS (filósofo da corte de Cleópatra)..A biblioteca de
Alexandria está pegando fogo.
CESAR. Isto é tudo?
THEODOTUS Tudo? Cesar: Voce quer passar para a posterioridade
como um bárbaro soldado que ignora o valor dos livros?
CESAR. Theodotus, Eu sou um autor, e digo-lhe é melhor que os
egipícios possam realmente viver suas próprias vidas do que
simplesmente imaginá-las com a ajuda dos livros.
THEODOTUS Cesar: Somente uma a cada dez gerações a humanidade
ganha um livro imortal. ....Sem a história (escrita), a morte o nivelará a
um simples soldado.
CESAR. A morte virá em de qualquer modo. Eu não peço um túmulo
melhor.
THEODOTUS. O que está queimando é a memória da humanidade.
CESAR. Uma memória vergonhosa. Deixe-a queimar.
(Bernard Shaw)

E venerável Jorge, uma imagem do lado obscuro de Jorge Luis Borges, deixa essa
memória miserável da humanidade, literalmente, queimar! Essa é a conclusão de venerável
Jorge ao não aceitar que a memória da humanidade pudesse trazer algo que não fosse
“adequado” a sua própria imagem. (William: Aristóteles dedicou o segundo livro da poética à
comédia... como instrumento da verdade. Jorge: Você leu essa obra? William: Claro que não.
Está desaparecida há séculos. Jorge: Não está não! Ela nunca foi escrita!). Realmente o
segundo livro da poética de Aristóteles foi perdido. Sabe-se de sua existência mas nunca se
encontrou tal texto. (William exclama: Quantas salas mais? Quantos livros mais?) Quantos
livros perdidos no passado. Muitos. Muitos perdidos de propósito. A idade média é o grande
filtro para o conhecimento da antiguidade. (Ninguém deveria ser proibido de consultar estes
livros.) Mas por que proibidos? (É porque contêm uma sabedoria diferente da nossa... e idéias
que nos fariam pôr em dúvida... a infalibilidade da palavra de Deus. E a dúvida, Adso, é
inimiga da fé.). A imagem da antiguidade sempre será distorcida pelas lentes do medieval.
Por fim, conhecer um livro tem funções diferentes para William, que quer
descobrir novos conhecimentos, e para Jorge. A alegria de William ao encontrar os livros é a
continuação da imaginação, das possibilidades, a tristeza de Jorge é a continuação da
memória. (Na sabedoria há tristeza. Quem amplia seu conhecimento... amplia também o seu
pesar). Para Jorge a cegueira é a única solução para uma vida recheada de livros. (Que nós
voltemos ao que éramos, e deveria ser sempre o ofício deste mosteiro: a preservação do
conhecimento. Preservação, eu disse. Não perscrutação... porque não existe progresso na
história do conhecimento... meramente uma contínua e sublime recapitulação.) Por isso, para
Jorge o livro era apenas um sucedâneo da memória.
5. O filme refere-se constantemente aos medos medievais que Jean Delumeau
apresenta em seu livro “A história dos medos no ocidente”. O medo da fome aproxima os
miseráveis do mosteiro e suas doações pelas portinholas de lixo, para viver a partir dos restos
lançados. Para os miseráveis, ao lado do mosteiro, o principal evento de cada dia é sempre a
busca pela comida. O medo de doenças faz com que o boticário tenha sempre soluções para
cada um dos casos. Ainda não se viveu a experiência da peste negra, mas as doenças sempre
espreitam.
O fim do mundo aparece como explicação para os eventos que não conseguem
encontrar sentido lógico. ("Após o temporal de granizo, com a segunda trombeta..." "'o mar
tornou-se sangue.") e o demônio aliado à escuridão são os responsáveis pelas tragédias
vivenciadas. O gato preto simboliza o demônio e ao mesmo tempo a negativação da mulher.
O medo da mulher já aparece na voz de Ubertino de Casalle “Quando uma
fêmea... por natureza tão perversa... torna-se sublime por santidade... então ela pode ser.
Bonitos são os seios... que alimentam um só bebê.”. Porém a culpabilidade da moça no caso
das mortes, como bruxa, demonstra bem o problema. A homossexualidade também é
ressaltada na fala de Ubertino de Casalle “Havia alguma coisa de feminino...alguma coisa de
diabólico... no jovem que morreu... Ele tinha os olhos de uma moça... buscando uma relação
com o demônio.”
6. O poder da inquisição é outro fato apresentado no filme. Logo a primeira cena
aparece um mastro queimado, o que dá a entender o domínio da inquisição da época, as brasas
ainda estavam acessas. As cenas de tortura chocam pela crueldade e a confissão forçada
também demonstra o poder e a loucura da inquisição.
Dos diversos grupos perseguidos pela inquisição os Franciscanos espirituais (que
acreditavam que Jesus e os discípulos não tinham propriedades), e a heresia dos Dolcinianos
são os destacados. (Mas também diziam que todos deviam ser pobres. Assim, matavam os
ricos. Sabe, Adso... o passo entre visão elevada e o frenesi pecaminoso... é bem curto). O
frenesi pecaminoso, entretanto, não era necessária ou exclusivamente dos hereges, mas da
própria inquisição.
A inquisição impunha a impossibilidade de fuga. Não se foge, tenta-se
desaparecer. William afirma a Ubertino “Eu me empenhei em ser esquecido!”. No mundo
real, realmente Guilherme de Ockham foi perseguido pela inquisição por suas idéias.
Defendeu os ideais franciscanos e considerou a posição do papa heresia, para sobreviver fugiu
para Bavária aonde, sob proteção do imperador do Sacro império Romano Germânico
permanece escondido. Na história “oficial” William teria fugido um ano após esses
acontecimentos, em 1328 para proteção do imperador.
A inquisição bloqueava a possibilidade de contestação (Sei também que quem
contesta o veredicto... de um inquisidor é culpado por heresia.) e William descreve sua vida
como importante relato de tal acontecimento. (William: Eu fui inquisidor, mas no começo...
quando a Inquisição se esforçava para guiar, não para punir. Uma vez presidi o julgamento de
um homem... cujo único crime fôra traduzir um livro grego... que conflitava com a Sagrada
Escritura. Bernardo Gui queria condená-lo como herege. Eu absolvi o homem. Gui me acusou
de heresia por tê-lo defendido. Apelei para o Papa. Fui preso... torturado... e me retratei.
Adso: O que houve então? William: O homem foi queimado... e eu ainda estou vivo). Num
mundo dominado pela desrazão o uso da razão é perigoso. O grande defeito de William é que
ele pensa demais. (O mestre raciocina demais.)
7. Mas afinal de contas o que os padres estavam fazendo naquele mosteiro?
Pretendiam realizar uma disputatio. Um debate sobre a pobreza da igreja.
Vossa Eminência, veneráveis irmãos... finalmente nos encontramos
para o esperado debate! Todos viajamos longas distâncias... para pôr
fim à disputa...que tanto abalou a unidade... da Santa Madre Igreja.
Bons cristãos de toda parte... voltam seus olhos a estes veneráveis
muros... aguardando ansiosos nossa resposta à pergunta... ''Cristo
possuía ou não... as roupas que Ele usava?''
Queridos irmãos da Ordem Franciscana... nosso Santo Pai, o Papa,
autorizou a mim... e a estes servos fiéis a falar em seu nome. A questão
não é se Cristo era pobre... mas se a Igreja deve ser pobre! Vocês,
Franciscanos, querem ver... o clero renunciar aos seus bens... e
entregar suas riquezas. Os abades dissiparam seus tesouros sacros... e
entregaram sua terra fértil aos servos. ...privando a Igreja de recursos
para combater os céticos... e lutar contra os infiéis.
Esquecem que até o maior monumento ao Nosso Senhor... é um pálido
reflexo de Sua majestade e glória. O Evangelho afirma
categoricamente... que Cristo possuía uma carteira! É mentira, e você
sabe! Por que Nosso Senhor mandou em sete ocasiões seus...
discípulos não carregarem nem ouro e nem prata?

A questão de fundo é a propriedade privada, em especial o enriquecimento


experimentado pela Igreja durante a baixa idade Média. As doações sustentavam os
mosteiros, por outro lado serviam de expropriação da população em geral. (Por aquilo que
deste na Terra... recebas cem vezes mais no Céu.). Mitos de generosidade e caridade se
perderam durante o período. (Ao distribuir os lixos aos miseráveis William afirma: Outra
generosa doação da Igreja aos pobres.). Talvez o mosteiro seja o exemplo de uma sociedade
desigual, em que os franciscanos não conseguiam ver Deus. “Acha que este lugar foi
abandonado por Deus? Já conheceu um lugar onde Deus se sentiria em casa?” William só
pergunta quando tem as respostas, e só responde com perguntas.
8. E talvez o tema amor seja o mais estranho de todo o filme. Antes do
romantismo, não se reconhece o amor da atualidade no mundo medieval. Antonio Manuel
Hespanha lembra que as formas de amor do período medieval eram o amor amicitae e amor
concupiscentiae. No primeiro o amor é amor a ordem do mundo, no segundo representa algo
mais negativo e carnal para época.
Adso: Mestre... Alguma vez... o senhor já amou?
William: Se amei? -Muitas vezes.
Adso: -Amou?
William: Claro. Aristóteles, Ovídio, Virgílio...
Adso: Não. Eu quis dizer...
William: Não está confundindo amor com luxúria?
Adso: Estou?
William: Não sei.
Adso: Só quero o bem dela. Quero que ela seja feliz. Quero livrá-la da
sua pobreza.
William: Nossa!
Adso: -Por que ''nossa''?
William: -Você está amando.
Adso: lsso é ruim?
William: Para um monge traz alguns problemas.
Adso: Aquino não louvava o amor acima de todas as virtudes?
William: Sim, o amor de Deus, Adso. De Deus!
Adso: E o amor da... mulher?
William: De mulher, Tomás Aquino sabia bem pouco. Mas a Escritura
é clara. Em Provérbios, a advertência. A mulher se apodera da alma do
homem. No Eclesiastes, temos: "Mais amarga que a morte é a mulher".
Adso: Sim, mas o que o senhor pensa, mestre?
William: Eu não tenho o benefício da sua experiência... mas acho
difícil me convencer de que... Deus teria criado um ser tão nocivo...
sem lhe conceder virtudes. A vida seria tranqüila sem o amor, Adso.
Segura... sossegada... e monótona.

9. Adso amava a moça? Por que não ficou com ela? O filme nos faz questionar o
nome da rosa, da camponesa. E talvez a maior ironia de todas é que o único personagem do
filme que insiste em conhecer nomes era Bernardo Gui, o inquisidor. E nesse sentido, para os
modernos, realmente falta um nome. O resgate da história dos oprimidos parece ser essencial
ao autor do romance e ao diretor do filme. Talvez esse seja o recado, essa é a contradição.
Porém a intenção de Umberto Eco pode ser mais profunda. A ultima linha do livro
apresenta a frase "Stat rosa Pristina nomine, nomina nuda tenemus" que se traduz literalmente
como "Da rosa fica apenas o nome, temos nomes vazios". O sentido geral, como assinalou
Eco, era que a beleza do passado, agora desaparecido, do qual apenas temos os nomes. Para o
romance a identidade da "rosa" perdida poderia ser interpretado de várias maneiras, tais como
o livro perdido de Aristóteles, a biblioteca destruída, ou a menina - mas o filme centra-se na
última opção na sua própria linha de fechamento. Segundo Eco, “neste mundo imperfeito, as
únicas coisas imperecíveis são idéias”. Em suas palavras:
“Desde a publicação de O Nome da Rosa" tenho recebido várias cartas
de leitores que querem saber o significado da expressão latina em
hexâmetro ao final, e por que esse hexâmetro inspirou o título do livro.
Eu respondo que o verso é de “De mundi contemptu” de Bernard de
Morlay, um beneditino do século XII, cujo poema é uma variação do
"ubi sunt servanda" (mais conhecido mais tarde por Villon do "Mais
ou sont les neiges d´antan"). Mas para os topos de sempre (o grande
passado, as cidades outrora famosas, as princesas encantadoras: tudo
desapareceu no vazio), Bernard acrescenta que todas essas coisas
partiriam (somente, ou pelo menos) permanecendo os nomes puros por
trás deles. Eu me lembro que Abelardo usou o exemplo da frase "nulla
est rosa" para demonstrar como a linguagem pode falar tanto do
inexistente como do destruído. E, tendo dito isto, deixo ao leitor para
chegar a suas próprias conclusões.”

Para fechar gostaria de repassar duas citações feitas por Borges sobre textos de
Leon Bloy referidas em um de seus contos. A primeira: "Cada homem está na terra para
simbolizar algo que ignora e para realizar uma partícula, ou uma montanha, dos materiais
invisíveis que servirão para edificar A Cidade de Deus". O que cada homem simboliza no
tempo, numa história repleta de nomes vazios? Ninguém sabe. Talvez nunca se saberá.
A segunda: "Não há na terra ser humano capaz de declarar com certeza quem ele
é. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus
sentimentos, suas idéias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro
da Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os iotas e os pontos não valem menos
que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e de outros é indeterminável
e está profundamente oculta".
Talvez sejamos apenas rosas, talvez não saibamos nossos próprios nomes.

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