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Analise do filme ( macunaima)

Ao longo da história do cinema, muitas obras literárias foram ponto de partida para a
realização de filmes. Há muitos cineastas competentes no processo de tradução entre
meios tão distintos. Joaquim Pedro de Andrade é um deles. Em O Padre e a Moça, o
poema de Drummond serviu como inspiração para um filme onde o apuro estético se
delineia. Quando produziu Macunaíma, o cineasta já havia comprovado a sua
habilidade com a linguagem cinematográfica, algo que lhe deu a segurança necessária
para elaborar um pensamento profundo sobre os brasileiros. Junto a isso, permitiu-lhe
travar um eficiente contato entre o seu filme e o público, algo que poucos realizadores
do Cinema Novo conseguiram, pois como sabemos, o hermetismo de determinados
filmes fez com que algumas produções se tornassem obsoletas ou ponto central de
discussões apenas entre intelectuais.

Por meio do herói que festeja muito, mas é “devorado” pelo sistema, Macunaíma faz
uma análise de um momento onde o mais forte engole o mais fraco, num ambiente
simbólico repleto de contato com a realidade dos brasileiros em pontos específicos da
sua história, inclusive o atual, um cenário político repleto de contradições e
inseguranças. O ato de “devorar” a que me refiro está interligado com as relações
econômicas e sociais cotidianas, tensas, apesar da constante reafirmação de mitos
próprios do povo brasileiro, tal como a sua cordialidade, o seu caldeirão racial que
“ferve sem queimar”, dentre outras falácias que constantemente se discute quando o
assunto é “entender o Brasil e os brasileiros”. Com sua linguagem carnavalesca, a
produção emula as ideias de Mário de Andrade, mas faz uma leitura imbricada com o
contexto histórico de seu lançamento, uma época ímpar para o país, mergulhado no
militarismo que deixou marcas extremamente profundas em diversos setores da
sociedade.

Com ecos do que se produzia no bojo da ebulição cultural europeia dos anos 1960, em
especial, as relações com Pocilga, de Pasolini, e Weekend à Francesa, de Godard, bem
como a criação de um tecido crítico que mesclava entretenimento com reflexão social,
sem deixar um eixo desequilibrar o outro, em Macunaíma, o realizador assume a
direção e o roteiro, demonstrando ser capaz de atar tais pontas da maneira mais
orgânica possível.

A jornada do personagem título, tal como a “trajetória do herói”, é uma saga do campo
ao urbano, com retorno ao ponto de origem em seu desfecho. Sincrético, o personagem
passa por transformações que alegorizam a formação do povo brasileiro: negro em seu
nascimento, vive tal como um índio, tornando-se um branco mais adiante. O filme
inicia com o nascimento de Macunaíma (Grande Otelo) numa aldeia próxima ao rio
Uraricoera. Ele vive com a sua mãe, os irmãos Jiguê (Milton Gonçalves) e Maanape
(Rodolfo Arena), além da cunhada Sofará (Joanna Fomm). Sem falar nada até os seis
anos, o personagem se expressa por meio da sua língua através de uma frase singular:
“ai que preguiça”. Inquieto e traquina, Macunaíma precisa sair de casa após uma
situação inusitada e durante em sua jornada errante, encontra uma criatura, o lendário
Curupira, interessado em devorá-lo. Escapa nesta primeira investida, encontra uma
fonte de água mágica e ao se banhar, torna-se branco.
Juntamente com a sua família, Macunaíma (agora Paulo José) parte rumo á cidade num
pau-de-arara. Atordoado com o caos do ambiente urbano, depara-se com um grupo de
guerrilheiras, apaixona-se por uma delas, Ci (Dina Staf), tem um filho negro (Grande
Otelo em outro personagem) e se mete em diversas confusões, inclusive na saga em
busca do muiraquitã, uma pedra com bastante significado para a narrativa, parte da
mitologia do personagem. Depois de atravessar uma existência cheia de percalços, é
atraído por Yara, a comedora de gente, figura que devora Macunaíma e fecha o seu
ciclo de vida.

Lançado numa época em que as pessoas acreditavam que tudo podia dar certo,
Macunaíma é um filme intenso. Seu final irônico, pessimista, revelava o tom de ironia
do cineasta responsável pela produção. Em A Utopia no Cinema Brasileiro, Lúcia
Nagib reforça que semelhante ao que Nelson Pereira dos Santos traz em Como Era
Gostoso Meu Francês, Joaquim Pedro de Andrade buscava uma síntese do brasileiro,
tendo em vista construir uma alegoria que desse conta da situação política do momento
em questão, a efervescente década de 1960. Além disso, o filme tem como personagem
central uma figura que “desfia uma identidade que se reporta ao brasileiro”, tal como
afirmou Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo,
Tropicalismo e Cinema Marginal. O que ambos os pesquisadores refletem sobre
Macunaíma é o seu potencial de representação do brasileiro e das suas contradições
enquanto um dos povos de caráter mais multicultural do mundo, uma mistura que
permite extensas discussões referentes ao conceito de idade cultural, algo que por sua
vez, coaduna em questões políticas.

Com traços do Tropicalismo, Macunaíma mescla elementos eruditos e populares, faz o


kitsch encontrar o gosto refinado. Intelectual, mas popular, o filme trouxe atores da
televisão, figurinos bastante coloridos, sem perder, como apontado anteriormente, o
rigor político e estético. Ao longo de seus 110 minutos, o filme traz a eficiente narração
de Tite de Lemos, direção de arte e figurino de Anísio Medeiros e montagem eficiente
de Eduardo Escorel. Com clássicos populares de Jards Macalé, Sílvio Caldas, Oreste
Barbosa e Heitor Villa-Lobos, o filme é parte da lista dos 100 Melhores Filmes
Brasileiros de todos os tempos, realizada pela ABRACCINE.

Macunaíma — Brasil, 1969


Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: Dina Sfat, Grande Otelo, Jardel Filho, Milton Gonçalves, Paulo José, Rodolfo
Arena, Joana Fomm, Hugo Carvana, Wilza Carla, Zezé Macedo.
Duração: 108 min

LEONARDO CAMPOS . . . . Tudo começou numa tempestuosa Sexta-feira 13, no


começo dos anos 1990. Fui seduzido pelas narrativas que apresentavam o medo como
prato principal, para logo depois, conhecer outros gêneros e me apaixonar pelas
reflexões críticas.

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