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Alegoria e Sátira no país do atraso: Brasil ano 2000, uma comédia sem graça nenhuma.
“eu queria trazer até os senhores, uma família de classe média do terceiro mundo, flagrada em seu
estado puro, sem qualquer vínculo aparente com nada a não ser com sua própria imagem primitiva”
(Walter Lima Jr. em trecho de Brasil Ano 2000)
No filme, o ano é 2000, e uma família na beira da estrada onde está enterrado o pai,
parte para o Norte, carregando apenas uma cristaleira. Após a grande guerra nuclear de 1989,
o Brasil aproveitou a oportunidade para, diante da destruição dos países “desenvolvidos”,
passar a ocupar um lugar de destaque entre as nações. Ainda que sob as ruínas da civilização,
o Brasil estaria cumprindo sua missão de “país do futuro”.
Nos bastidores do filme, o ano era 1968, vivia-se o Brasil super-real. Em meio ao
reboliço político-cultural entre as diversas formas de rebeldia e autoritarismo que impactaram
a sociedade mundialmente no biênio 67/68, Walter Lima e uma série de artistas ligados ao
cinema novo e à tropicália, realizam Brasil ano 2000 (Walter Lima Júnior, 1969) uma paródia
que mistura comédia musical e ficção científica, em franco diálogo com as inspirações
tropicalistas. Escrito e produzido justamente entre os anos de 1967 e 1968, o segundo longa-
metragem do diretor cinemanovista, tem como premissa a alegoria futurista de um Brasil do
século XXI, onde todo o atraso e colonialidade se manifestam, soando como ironia ao
movimento modernizador levado a cabo pelos militares naqueles anos.
A engenhosidade do argumento de Walter Lima se expressa na estrutura do filme.
Transitando entre o surrealismo e a chanchada, a narrativa conduz, através de uma família de
migrantes, toda uma alegoria das estruturas sociais brasileiras: a Igreja, a imprensa, o Estado,
os nativos, os militares, os intelectuais, são caricaturizados em personagens que montam essa
ópera bufa sobre poder e colonialismo.
As comédias musicais cariocas são referências vagas no filme de Walter Lima, mas não
é difícil notar alguns aspectos de chanchadas na estrutura do filme. A descontinuidade da
narrativa gerada pela inserção de números musicais, a organização espacial frontalizada dos
atores e as soluções narrativas em planos sintéticos, os diálogos claramente marcados
denunciando a encenação e a cenografia, o estilo paródico com que se aproxima do gênero de
ficção científica, e uma construção estética que busca o humor através dos personagens, em
figurinos e cenografias toscos, caricaturas típicas de um cinema estrangeiro, mas deglutidos e
ressignificados no caldeirão tropicalista.
O projeto de musical que estrutura o filme Brasil ano 2000, é ousado em seu
empreendimento, articulando artistas que estavam em destaque no mercado cultural
brasileiro. O filme, crítico ao estado de coisas vivido no Brasil naquele momento, parece ter a
intenção de atingir um grande público através da trilha sonora de Gilberto Gil, da voz de Gal
Costa, da canção de Caetano Veloso e do apelo futurístico de um Brasil do século XXI. Ainda
que o recurso cômico seja frágil, já que o tom satírico sustenta uma crítica a um ambiente
político repressivo, impedindo que a piada gere efetivamente o riso, a estrutura absurda que a
narrativa vai desenrolando, a incongruência entre os objetivos interplanetários e a arquitetura
e estrutura social coloniais, fornecem elementos para que as autoridades e estruturas de
poder sejam questionadas, o absurdo da paródia é tão grande que “rimos pra não chorar”.
Apesar de todo o absurdo que o filme encena, é difícil rir ou alegrar-se com a comédia.
Há um tom lacônico na crítica que o filme ensaia que atravanca o efeito cômico, gerando um
estranhamento entre a tentativa da comicidade e efetividade da crítica satírica. As músicas,
apesar de utilizarem recursos da música popular, não alcançam o efeito festivo da canção,
soam tristes, saudosistas, trágicas.