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19/02/2024 Ricardo Koba

Brasil: uma biografia

Por CARLOS DE NICOLA*

Considerações a partir do livro de Lilia M. Schwarcz & Heloisa M.


Starling

Em , de Lilia M. Schwarcz & Heloisa M. Starling, publicado em 2015, as


contradições do país se escancaram e podem tomar a forma de epitáfios
tumulares. Lemos questões fundamentais da existência nacional que
nunca foram passadas a limpo mesmo depois de mais de cinco séculos
de história “oficial” construída ao enterrar outras estórias.

Epitáfio 1 – circularidades históricas

Citando a obra O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, um dos


mais importantes romances italianos na voz do personagem Tancredi,
no roteiro de Luchino Visconti, para filme homônimo de 1963, as
autoras evocam um possível primeiro epitáfio: “Se queremos que tudo
continue como está, é preciso que tudo mude”.

Falecido um dia, esse biografado Brasil poderia receber tal honraria


post-mortem. Isto porque a história nacional é repleta de
circularidades: a escravidão massiva e cruel de pessoas negras e
indígenas ao longo de séculos, depois atenuada com uma falsa abolição
em 1888 que deixou resquícios profundos na sociabilidade nacional
impregnada de um racismo estruturante, apoiado na desigualdade
social de modo a deixar os ex-escravizados no olho da rua,
estigmatizados e sem perspectivas.

Talvez esse epitáfio servisse para lembrar o que faltou, que foi um
acerto de contas da sociedade escravocrata com o seu passado, por
meio da criação de condições para que a população pudesse usufruir de
possibilidades de ascensão social e profissional.

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Uma das entrelinhas desse epitáfio poderia ser o episódio da Guerra do


Paraguai, em 1865, mais especificadamente o fato de que ela consagrou
o Exército brasileiro enquanto “força de elite” nas palavras das
autoras, separado então da Guarda Nacional – espécie de antecessora
da Força Nacional de Segurança Pública. Após a guerra, essa profissão,
a de militar profissional, tornou-se uma forma de ascensão social,
conformando uma elite dentro do Exército, oposta à elite civil da
sociedade brasileira. A insatisfação com a situação do país e com sua
própria posição na hierarquia do poder era traço definidor dessa nova
elite.

De fato, Tancredi tinha razão. Tudo continuou como era antes. Os ex-
escravizados, marginalizados, e, os coronéis, agora fardados.

Epitáfio 2 – centrão das capitanias hereditárias

Outro possível epitáfio, em mais uma frase citada pelas autoras, dessa
vez a partir de Machado de Assis em seu conto “Teoria do medalhão”,
de 1881, é o seguinte: “Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou
conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de
não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos…”. O Centrão
brasileiro gestado na Constituinte de 1988 é herança dos tempos das
capitanias hereditárias, quando o conveniente tomou o lugar de
eventual projeto, plano ou promoção de destino nacional. A classe
política hegemônica brasileira nunca possuiu horizonte de atuação que
não fosse a da subordinação internacional do país alinhada à submissão
nacional violenta de seus concidadãos – obviamente, as populações
socialmente mais fragilizadas como as pessoas que foram escravizadas.

Mais uma entrelinha desse epitáfio nacional, mas com contornos de


enredo principal, foi o episódio de Leonel Brizola, então governador do
Rio Grande do Sul, durante a investida daquele mesmo Exército de
Caxias contra a posse do presidente constitucional João Goulart em
1961 – vice-presidente de Jânio Quadros, que se afastou da Presidência
por vontade própria, apesar de acusar “certas forças” que o
pressionavam. Leonel Brizola mobilizou a Brigada Militar gaúcha –
equivalente da polícia militar, naquele momento, então, ainda fiel ao
“legalismo” republicano – e moveu a Rádio Guaíba para o subsolo do
Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Leonel Brizola mobilizou o
estado e o resto do Brasil em prol da defesa da Constituição, na “Rádio
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da Legalidade”, em transmissões 24 horas por dia, ouvidas também no


exterior em campanha de agitação e propaganda inéditas.

O Centrão tenta nos convencer de que não assume partido, e Leonel


Brizola, naquele momento de 1961, tomou o partido de uma nação
insubmissa.

Epitáfio 3 – nacional por subtração

Um possível terceiro epitáfio pode surgir a partir do crítico literário


Roberto Schwarz que segundo as autoras do livro em questão, no texto
“Nacional por subtração” publicado em coletânea de 2009, disse que no
Brasil tudo parece “[…] ‘recomeçar do zero’, e que por aqui o nacional
se constrói por subtração.”. Vivemos na última década no Brasil
campanhas nacionais à Presidência pautadas pela anulação contraposta
à proposição. Foi assim nas eleições de 2014 que levaram Dilma Roussef
e Aécio Neves ao segundo turno, depois, em 2018, nas eleições que
consagraram Jair Bolsonaro e Fernando Haddad e, por último, em 2022,
novamente Jair Bolsonaro, agora contra Lula, o antagonista vencedor.

A oposição em relação à direita representada por Aécio Neves em 2014 e


à extrema-direita representada por Jair Bolsonaro em 2018 e 2022
consiste em um progressismo nuançado, mas completamente oposto
ao neoliberalismo radical, ao apagamento da memória da ditadura
militar, entre vários outros pontos nefastos. Em todo o caso, Dilma
Roussef, Fernando Haddad e Lula apoiavam-se na rejeição aos seus
opositores, normalmente resgatando programas de antigos de governo,
principalmente dos dois primeiros mandatos de Lula na Presidência
(2002-2005 e 2006-2009). Aquela falta de projeto de país, que atinge
também o progressismo e até a esquerda resulta, então, nesse nacional
por subtração do qual as autoras resgatam, e que deve constar em nossa
lápide coletiva.

Os meandros finais nessa sepultura da nação poderiam continuar a


desdobrar comparações presidenciáveis, nesse caso, a abranger Jânio
Quadros (1961), Fernando Collor (1990-1992), e Jair Bolsonaro (2019-
2022). Apesar das mais de seis décadas que separam o primeiro
mandato do último, há algumas similitudes nessas figuras nacionais à
direita, proselitistas, e que evocam – possivelmente sem nunca haver
lido – Machado de Assis e até mesmo o Roberto Schwarz. Apoiados em

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um discurso vazio de combate à corrupção, que sempre necessitou


encontrar espantalhos – feitos de vassoura (literalmente) no caso de
Quadros, ou dos etéreos “marajás”, no caso de Fernando Collor, e,
tratando-se de Jair Bolsonaro, dos comunistas (ladrões), suas bases
ideológicas podiam se resumir nas figuras de homens brancos por
sobre jet-skis, em um ritual de desempenho frágil, a partir de certa
concepção de masculinidade.

A repetição não é mera coincidência. Além de recomeçar do zero, Jânio


Quadros, Fernando Collor e Jair Bolsonaro conseguiram ser ainda mais
nulos do que o próprio zero.

A frase final na nossa lápide nacional poderia ser aquela aposta das
próprias autoras, na última página do último capítulo, nos idos daquele
ano de 2015 (que vocês se lembram, antecedeu o ano aritmeticamente
seguinte, ou seja, de 2016 – ano do golpe em Dilma Roussef): “no
Brasil, quem sabe, a democracia pode não ter um fim, e o futuro ser
bom.” As autoras se enganaram, mas devem ser perdoadas porque,
afinal de contas, não é todo o dia que se faz uma biografia do Brasil e,
muito menos, oferecem-se lhe epitáfios.

Carlos De Nicola é militante do movimento socioambiental.

Referência

Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Brasil: uma biografia: com novo


pós-escrito. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
[https://amzn.to/42Mou4S]

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