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Maria Victoria de Mesquita Benevi-

des

O Governo Jânio Quadros


ÍNDICE

O falso carisma

Quem foi Jânio Quadros?

1960: A vitória de Jânio e a quebra do sistema partidário

Acima dos partidos, o bonapartismo janista

Do tostão à vassoura, o moralismo autoritário

Entre nacionalismo e "entreguismo", as pazes com o FMI

Em política externa o Brasil não é mais satélite

A renúncia

Indicações para leitura


O FALSO CARISMA

Sete anos e um dia após o suicídio de Getúlio Vargas, outro


presidente, igualmente eleito com expressiva votação popular, dei-
xava o poder de forma traumática. Mas, além de carecer do senti-
mento de grandeza, inegável no gesto de Getúlio, a renúncia de Jâ-
nio Quadros permanece até hoje envolta na polêmica que ora enxerga
o golpe, ora a insanidade do protagonista. E a crise que provocou,
pela tentativa militar de se impedir a investidura constitucional
do vice João Goulart, quase leva o país à guerra civil.
A comparação, por mais superficial, será inevitável. Em sua
carta-testamento, bandeira do trabalhismo e do nacionalismo, Getú-
lio referia-se a "forças ocultas", porém identificadas com o impe-
rialismo e a direita interna, temerosa do "fantasma popular" e das
reformas econômicas e sociais iniciadas pelo presidente que enten-
dera a urgência da inclusão das massas na política. Em sua carta-
renúncia Jânio referia-se a "forças terríveis" que, embora suge-
rissem frustrações de interesse "de toda a nação", jamais foram
apontadas. Não seriam, por certo, as mesmas do drama getuliano.
Afinal, Quadros candidatara-se com apoio de poderosos grupos
econômicos exatamente em oposição à aliança partidária PSD-PTB,
herdeira natural da tradição varguista.
Getúlio Vargas tinha a marca inconfundível e duradoura do ca-
risma. Jânio, apesar de insistentemente apresentado como um dos
exemplos mais "brasileiros" do político carismático, teve apenas a
caricatura do carisma, ou seja, o talento histriônico, a facilida-
de para a adesão epidérmica, populista no pior sentido da palavra,
da manipulação e do autoritarismo. O carisma desprende-se muito
mais da personalidade do líder, e menos do "papel" que ele repre-
senta. O histrião terá o carisma da máscara; será, sempre, um fal-
so carisma. Jânio foi, sem dúvida, um bom ator. Mas com um papel
ultrapassado e mistificador, do ponto de vista do desenvolvimento
social e político e das reais aspirações de participação das clas-
ses trabalhadoras. Não foi um líder de massas, como Getúlio, ou
menos ainda carismático como os heróis de sua confessada admira-
ção, Lincoln, Tito, Nasser ou De Gaulle.
Jânio da Silva Quadros, sucessor de Juscelino Kubitschek, foi
o primeiro presidente a tomar posse em Brasília, a 31 de janeiro
de 1961. Sua renúncia, a 25 de agosto, foi considerada uma "trai-
ção" aos quase seis milhões de eleitores que confiaram na ação da
vassoura (símbolo de sua campanha contra a corrupção) e nas pro-
messas de redenção nacional. A interpretação deste breve governo
de sete meses esbarra, de início, em dois tipos de dificuldades: a
queda no maniqueísmo, pela condenação implícita de qualquer polí-
tica populista; e a sedução de uma análise personalista.
Quanto à primeira armadilha, trata-se de afirmar, como ponto
de partida, algumas diferenças. O populismo expresso nos governos
de Vargas (1950-1954) e de Goulart (1961-1964) estava efetivamente
vinculado aos movimentos sociais e aos partidos políticos, numa
inequívoca tentativa de política de massas. O estilo autoritário,
moralista e extremamente personificado de Jânio Quadros evocava um
"populismo de direita"—militarista, antiparlamentar e associado ao
grande capital —, o qual, dirigido "a todas as classes, ao conjun-
to da nação", terminava por diluir o próprio significado de povo e
de massa. Como indica Francisco Weffort — que analisou, para o
primeiro caso, o "Estado de Compromisso" — Jânio Quadros signifi-
cava não apenas a falência do sistema partidário, como o populismo
levado à sua contradição mais extrema e que se volta contra si
próprio.
A segunda armadilha é mais complicada. Como evitar o enfoque
pessoal na análise de um curtíssimo governo, marcado do começo ao
fim pela figura onipresente de um quase-confesso candidato a dita-
dor? Em que pese o exame das características estruturais e conjun-
turais da realidade brasileira no período, torna-se impossível se-
parar o governo Quadros da "personalidade" Jânio. Como é impossí-
vel ignorar, no ator político, o ator teatral. O leitor perceberá,
no entanto, que a insistência nos traços pessoais do presidente
será diretamente associada ao processo político e aos fatos. Esta
é a única saída para a tentação personalista. Tal perspectiva in-
forma, portanto, a breve apresentação: "Quem foi Jânio Quadros?",
e as tentativas de análise sobre o moralismo autoritário (do tos-
tão à vassoura) e sobre o bonapartismo janista (a crença em um go-
verno acima dos partidos).
Uma célebre boutade, atribuída a Milton Campos, dizia que "Jâ-
nio se elege com seus defeitos e governa com suas qualidades". Os
defeitos seriam, para o liberal udenista, os recursos populistas;
as qualidades seriam a independência, a administração eficiente, a
honestidade. Mas a própria UDN considerar-se-ia traída por seu
eleito. Como entender a ascensão janista ao posto de "candidato
ideal" de todos, em 1960, é tema de outro capítulo, enfatizando-se
a vitória de Jânio como causa e conseqüência da falência do siste-
ma partidário.
O governo Quadros transcorreu num período marcado pelo prenun-
cio de grave crise econômica, pela diversificação dos movimentos
sociais — Ligas Camponesas, transição do sindicalismo populista
urbano, intensificação das greves, etc. —, além da crescente in-
tervenção, tanto de militares quanto da Igreja, na cena política.
(No quadro internacional modificava-se o tradicional balanço da
"guerra fria", entre outras coisas pelos novos rumos impressos à
Revolução Cubana.) Tais questões pertencem, é claro, à problemáti-
ca mais ampla da chamada República Populista. Não são caracterís-
ticas apenas do governo em foco: foram herdadas dos anteriores e
continuaram, com intensidade redobrada, no governo Goulart. Neste
pequeno livro, dada sua intenção primeira e as óbvias limitações
de espaço, pretende-se abordar o que foi específico à presidência
Jânio Quadros e, por extensão obrigatória, ao fenômeno do janismo.
Além dos assuntos já referidos, e da própria evidência da re-
núncia, dois grandes temas singularizam o governo Quadros: a polí-
tica externa independente (que culminaria com a condecoração do
ministro cubano Ernesto "Che" Guevara) e a política econômica de
estabilização ortodoxa, na qual se destaca a "verdade cambial"
(instrução 204) e o reatamento com o Fundo Monetário Internacio-
nal.
Em toda a discussão transparece uma questão típica do autori-
tarismo personalista do governo Quadros: o desprezo do presidente
pelas instituições, sobretudo pelo Congresso, em favor de um sig-
nificativo respeito pelo papel dos militares. Estes se tornariam
"sacerdotes de uma santa inquisição, cada vez mais convencidos de
que uma corja de trêfegos assaltantes civis enlameava a puridade
nacional" (História do Povo Brasileiro). Não se encontrariam aí
alguns aspectos importantes da crise que "se resolverá" em 1964,
com a ascensão dos militares e a instalação de um regime autoritá-
rio, repressivo e "vingador"?
QUEM FOI JÂNIO QUADROS?

Afinal, quem era Jânio Quadros? Sua carreira política indica,


inegavelmente, o que se convencionou chamar de ascensão meteórica.
A do modesto advogado e professor de ginásio, de família simples,
sem fortuna e tradição política, que percorre os diversos escalões
da vida pública e chega à Presidência da República aos 44 anos de
idade. Sempre em são Paulo, este "paulista de Mato Grosso" con-
quista rapidamente boa parte de um espaço político até então par-
tilhado por bacharéis, comerciantes e fazendeiros da UDN e do PSD
(remanescentes dos antigos Partido Democrático e Partido Republi-
cano) e por partidários do ex-interventor Ademar de Barros.
Em 1947, suplente de vereador pela legenda do Partido Democra-
ta Cristão, assume o mandato devido à cassação dos candidatos do
Partido Comunista, então colocado na ilegalidade. No ano seguinte
elege-se deputado estadual também pelo PDC. Mas é nas eleições mu-
nicipais de março de 1953 que Jânio marca a força de sua escalada
populista. A campanha do "tostão contra o milhão" ("tem ou não tem
razão o homem da rua quando diz que quem rouba um tostão é ladrão,
quem rouba um milhão é barão?", indagava nos comícios) explode dos
limites acanhados do bairro popular de Vila Maria, principal redu-
to eleitoral janista. Contrariando todas as expectativas, Jânio
Quadros chega à Prefeitura de São Paulo com apoio de dois pequenos
partidos — o PDC e o Partido Socialista Brasileiro — e derrota uma
poderosa coligação partidária que incluía UDN, PSD, PTB, PR, ade-
maristas e comunistas.
Um ano depois, a campanha do tostão recebe o impulso da vas-
soura (supostamente para "varrer os ratos, os ricos e os reacioná-
rios") e do slogan: "Não desespere, Jânio vem aí". São as primei-
ras eleições após o suicídio de Getúlio. Eleito governador de São
Paulo, Jânio vence seu mais poderoso adversário, Ademar de Barros.
Nessa ocasião Jânio estava rompido com a cúpula do PDC (iniciando
uma sucessão de rupturas e renúncias que marcariam suas relações
com os partidos políticos pela vida afora), cujo presidente, Antô-
nio Queiroz Filho, pintava o retrato que o futuro confirmaria: "a
fantasia delirante do candidato a caudilho, dominado pela magia
dos extremos, com a falsa imagem de sua predestinação". Mas Jânio
contava com o entusiasmo dos socialistas, de uma ala dissidente do
PTB e o apoio de outro pequeno partido, o PTN (Partido Trabalhista
Nacional), liderado pelo deputado paulista Emílio Carlos.
Além do recurso à demagogia teatral, a atuação de Jânio seria
sempre marcada pela alta incidência de contradições e ambigüida-
des, numa taxa muito acima do "normal" que se concede como inevi-
tável a qualquer governante. O enérgico candidato que atacava os
desmandos do poder público e a inércia da burocracia é o mesmo
que, governador de São Paulo, proíbe os professores da USP de cri-
ticarem o governo, baseando-se nos Estatutos do Funcionalismo. O
estadista altivo que se opõe à aventura do Presidente Kennedy na
invasão a Cuba (Baía dos Porcos, abril de 1961) aceita a imposição
de regras rigorosas pelo FMI. O presidente que condecora o líder
revolucionário Guevara, ordena a repressão às manifestações de es-
tudantes em Recife, por ocasião de conferência da mãe do próprio
"Che". Empossado na Presidência, vai à televisão e reafirma sua
firme defesa da iniciativa privada; no dia seguinte envia um pro-
jeto sobre os abusos do poder econômico.
Nunca se definiu claramente acerca de Getúlio Vargas; ora ge-
tulista, ora antigetulista, passava do PTB para a UDN com a natu-
ralidade que beira o cinismo. Corteja a esquerda e os comunistas
para depois considerá-los, publicamente, "como irrecuperáveis para
a democracia". Eleito com forte apoio sindical, tentaria minar
exatamente as fontes do poder sindical, através do controle "des-
politizado" no Ministério do Trabalho, nos institutos de previdên-
cia e atacando a instituição do "imposto sindical".
As campanhas de Jânio Quadros são um capítulo à parte na his-
tória eleitoral brasileira. Em nenhum outro momento, a nível de
eleição majoritária, as contradições entre desenvolvimento e atra-
so, autoritarismo e liberalismo, progressismo e reacionarismo, pú-
blico e privado, foram tão bem manipuladas. Como em nenhum outro
momento o populismo assumiu feições tão "pessoais" — tão marcadas
pelo talento histriônico do ator, que se confundia com a marca de
uma carisma genuíno — reunindo, ao mesmo tempo, grupos sociais
díspares e até antagônicos.
O estilo da campanha para a Prefeitura se repete na campanha
para o Governo do Estado e depois para a Presidência. Os palanques
transformavam-se em verdadeiros palcos de tragicomédias: Jânio to-
mava injeções em público, simulava desmaios e comia sanduíches de
mortadela levados nos bolsos. E era carregado nos ombros do povo!
Numa esdrúxula mistura de radicalismo e Kitsch popularesco (um ad-
mirador udenista chegou a identificá-lo como um misto de Lênin e
Carlitos!) fazia violentos ou pitorescos discursos, num português
precioso de sílabas escandidas, e apoiado num visual que se torna-
ria típico: roupas surradas e em desalinho, cabelos compridos e
barba por fazer, ombros brilhantes de caspa... um visionário. Mui-
tos o tomaram como um messias, poucos denunciaram o charlatão.
Nos comícios Jânio atacava a inércia dos políticos, o abandono
da causa pública, os desmandos dos governos, a opressão de "Dona
Light". Apontava, como plataforma para a "recuperação moral e ad-
ministrativa", a correta equação dos direitos e deveres dos cida-
dãos e do Estado. É nesse sentido que se entende o apoio da es-
querda ao movimento janista, naquela época com inegáveis raízes
populares. A campanha contra a corrupção contida na mensagem de
Jânio Quadros, segundo depoimento de um socialista, "atacava, por
um lado, a base do poder das classes dominantes, através das de-
núncias de desigualdades e das injustiças da política do Estado,
e, por outro, acenava com a defesa dos interesses econômicos das
classes populares. A luta contra a corrupção, em certa medida,
atingia o poder que permitia o excesso de exploração" (depoimento
de Fúlvio Abramo a J. A. Moisés).
Na sucessão presidencial de 1955 Jânio apóia ostensivamente a
campanha de Juarez Távora (candidato do PDC e da coligação UDN-PL)
contra a aliança getulista PSD-PTB que elege Kubitschek e Goulart.
Em 1958 consegue fazer seu sucessor ao governo do Estado, Carvalho
Pinto, na mesma ocasião em que recebe grande votação para deputado
federal pelo Paraná, na legenda petebista (jamais poria os pés no
Congresso). Dois anos mais tarde é eleito presidente da República.
Após a renúncia tenta novamente o governo estadual de São Paulo,
nas eleições de 1962 ("renúncia é denúncia"), mas desta vez e der-
rotado por Ademar, que conseguia reunir até mesmo seus arquiinimi-
gos da UDN.
Embora notoriamente hostil ao governo Goulart, e simpático ao
movimento militar de 64, Jânio terá seus direitos políticos sus-
pensos, a exemplo do que ocorreu com outros nomes nacionais, como
Juscelino, Lacerda e o próprio Ademar. No governo Costa e Silva
será punido com 4 meses de confinamento em Corumbá. Com a anistia
política de 1979 Jânio inicia seu regresso à cena política, moti-
vado pelas eleições previstas para 1982. No velho estilo joga com
o "suspense" de sucessivas aproximações e recuos com quase todos
os partidos, oscilando do extremo de governismo ao extremo de opo-
sição. Ressuscita a vassoura, o anticomunismo, a lealdade e o res-
peito pela ação das Forças Armadas, a defesa de uma política eco-
nômica ortodoxa e, acima de tudo, a confirmação de sua crença num
regime forte e autoritário.
Esboçado esse breve quadro sobre o histórico janista, trata-se
de situar a campanha presidencial de 1960 e procurar entender a
esmagadora vitória do autodenominado "candidato do inconformismo".
1960: A VITÓRIA DE JÂNIO
E A QUEBRA DO SISTEMA PARTIDÁRIO

Os janistas exaltavam a "revolução pelo voto". Um sociólogo


chegou a falar de "rebelião do eleitorado". O que significava tal
fenômeno, justamente após um governo marcado pelo desenvolvimento,
pelo otimismo generalizado e pela tolerância política? Na realida-
de, a ascensão de Jânio Quadros, candidato ao mesmo tempo do povo
e das elites, evidenciava tanto a falência do sistema partidário
quanto o "esgotamento das virtualidades" do brilhante governo Ku-
bitschek.
O debate entre economistas sobre o colapso do modelo de desen-
volvimento capitalista via substituirão de importações, entrada em
massa de capital estrangeiro, recurso à inflação e endividamento
externo, é bem conhecido. Trata-se, aqui, de situar dois aspectos
que marcaram o final do governo JK, especialmente relevantes para
a compreensão da explosão janista: 1) a crescente insatisfação de
vários setores sociais com a alta do custo de vida, despertados
para a participação reivindicatória exatamente pelos frutos do de-
senvolvimento num governo politicamente aberto; 2) a transformação
gradativa do sistema partidário, com a decadência dos grandes par-
tidos conservadores — Partido Social Democrático e União Democrá-
tica Nacional —, o crescimento do Partido Trabalhista Brasileiro e
de agremiações interpartidárias, com o conseqüente processo de re-
alinhamento. Estes dois aspectos refletem, é claro, um fenômeno
mais amplo, relativo à crônica debilidade institucional brasilei-
ra, patente nas relações desiguais entre um Estado cada vez mais
forte e uma sociedade civil frágil e desarticulada.
O desenvolvimento do período Kubitschek despertara camadas so-
ciais para demandas que não apenas se exprimiam em obras públicas
ou empregos, mas no alargamento efetivo dos limites da partici-
pação — econômica, social e política. A legitimidade do sistema
político começava a ser posta em xeque pelas camadas emergentes na
medida em que o governo revelava-se incapaz de as absorver insti-
tucionalmente.
Jânio Quadros surge com força total nesse aparente vácuo ins-
titucional e caos partidário, agravados pela crise econômica. Sua
postura tradicionalmente suprapartidária será, ao mesmo tempo,
causa e conseqüência do esfacelamento do sistema partidário.
Não se trata apenas da famosa "crise do poder", como também da
crise de representatividade dos partidos políticos. Jânio apresen-
ta-se ostensivamente como o candidato independente, "acima dos
partidos", prometendo um governo "sem donos e sem influências".
Nesse sentido a vitória de Jânio em 1960 pode ser entendida
como fruto do desmoronamento da aliança PSD-PTB, habilmente arti-
culada por Getúlio Vargas desde os prenúncios da "democratização"
de 1945. As eleições de 1958 já haviam mostrado a inversão da ali-
ança getulista nos estados e municípios, em favor de acordos lo-
cais — muitas vezes com o inimigo da véspera, ou o adversário do
partido em termos nacionais. A coligação com a UDN passa a ser
disputada tanto pelo PSD quanto pelo PTB.
Um dos fatores mais importantes para o realinhamento refere-se
ao crescimento do PTB (de 22 deputados federais em 1945 a 116 em
1962), o que forçava a aproximação PSD/UDN, partidos com bases so-
ciais e interesses econômicos semelhantes, porém separados pelo
corte profundo da herança getulista. Do ponto de vista do janismo
o papel do PTB paulista é da maior relevância, mas em sentido con-
trário: aí se trata da fragilidade, e não da força. Por que o PTB
não vinga em São Paulo, justamente o estado mais desenvolvido do
país? Ao que parece, não havia interesse do trabalhismo nacional —
cuja hegemonia permanecia com os gaúchos — no fortalecimento do
PTB paulista. Este, deixado à sua própria dinâmica, seria, certa-
mente, um partido fortíssimo. Ainda uma vez se invocava a temeri-
dade de São Paulo "dominar" a cena política nacional... Deve ser
lembrado, também, que PSD e UDN nunca chegaram a ter força expres-
siva em São Paulo (como ocorreu no Rio, em Minas Gerais, na Ba-
hia), onde atuavam com maior eficácia os grupos de pressão, os
sindicatos, as associações de comerciantes e de empresários. Outro
fator importante para explicar a falta de um trabalhismo "autênti-
co" em São Paulo consiste na forte presença do ademarismo, atuante
no estado desde a década de 40. Além da fragmentação trabalhista
em partidos minúsculos, como o PTN, ironizados por Getúlio como
"bijuterias políticas, os partidos da Sloper".
No final dos anos 50 o janismo passa a competir favoravelmente
com o PTB — e seus aliados comunistas — na área sindical. Apoiando
o Movimento de Renovação Sindical e depois o dinâmico Movimento
Jan-Jan (Jânio-Jango), os janistas passam a controlar as negocia-
ções das greves — numerosas no final do governo JK — e das chapas
às eleições sindicais. Combatiam o imposto sindical e a influência
do Ministério do Trabalho nos sindicatos. 1960, segundo Francisco
Weffort, marcaria a transformação do sindicalismo populista, pelo
eclipsamento do PUI (Pacto de Unidade Intersindical), com sede em
São Paulo, pelo PUA (Pacto de Unidade e Ação), com sede no Rio de
Janeiro.
No plano parlamentar a situação também indica o realinhamento.
No Congresso os oradores petebistas eram mais contestados pelos
aliados do PSD, enquanto a UDN dividia-se, ora apoiando o PTB, ora
as posições mais conservadoras do PSD. O final do governo é marca-
do pela predominância dos agrupamentos interpartidários, a Frente
Parlamentar Nacionalista, de linha "esquerdizante", e a Ação Demo-
crática Nacional, onde predominavam os grupos mais reacionários de
todos os partidos, comprometidos com a corrupção eleitoral alimen-
tada pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) sob a
cobertura ideológica da "defesa contra o comunismo".
Apesar dos abalos e de infidelidades mútuas, a aliança PSD/PTB
mantém-se formalmente coesa e lança o General Lott para a Presi-
dência, em chapa conjunta com João Goulart. O Ministro da Guerra
de Juscelino (equivocadamente considerado "apolítico", quando de
sua escolha ainda no governo Café Filho) surgia como o candidato
natural das forças nacionalistas do Exército e de toda a esquerda.
Mas o PSD, ainda uma vez, "cristianizaria" seu candidato que, além
de totalmente desprovido de apelo popular, atemorizava os setores
mais conservadores do PSD, partidários da política econômica orto-
doxa sugerida por Jânio Quadros. Aos radicais do PTB, por outro
lado, constrangiam certos aspectos da campanha do General Lott;
este, embora defendesse posições progressistas como o voto do
analfabeto e restrições à remessa de lucros, não escondia seu vis-
ceral anticomunismo.
Jânio Quadros, que centrava sua campanha nos ataques à "cor-
rupção do governo anterior", à inflação e à alta do custo de vida,
o desperdício com as obras "faraônicas" de Brasília e as "irres-
ponsabilidades do presidente voador", reunia todos os descontentes
e os sem partido. E para a UDN tornava-se o candidato ideal, aque-
le messias que "conseguia efetuar o encontro do desespero com a
esperança pela antevisão de uma nova era de austeridade e reformas
sociais" (A. Arinos). É verdade que o temário janista significava
a encarnação das teses udenistas anticorrupção, que atraíam os se-
tores populares, tradicionalmente hostis à UDN, e ainda polarizava
o descontentamento dos militares e das camadas médias através das
promessas de "limpeza" na administração e estabilização da econo-
mia.
Apesar dessas semelhanças, a UDN dava uma guinada de 180
graus. Abandonava sua austera visão antipopulista e partia para um
festival de rua, com as "Caravanas da Liberdade" e o "Caminhão do
Povo", trocando o lenço branco das memoráveis campanhas do Briga-
deiro pela vassoura janista. No dizer de um de seus líderes, a UDN
estava "farta das derrotas gloriosas" e apostava nas eleições
(afinal, "o povo não pode errar sempre"...), abandonando sua espe-
cial predileção pelas manobras golpistas. Com Jânio Quadros os
udenistas acreditavam, enfim, derrotar "aquela coligação maldita"
que se achava no poder, conforme anunciavam em nota oficial do
partido. Esta crença na vitória de Jânio — com ou sem a UDN — su-
perou todas as dificuldades que acompanharam o apoio dos udenis-
tas, incluindo a renúncia do candidato.
Jânio contava com o decisivo apoio de Carlos Lacerda ("haverá
algo mais udenista neste país do que a obra de Jânio Quadros em
São Paulo?", indagava), dos udenistas históricos que viam com de-
sagrado a aproximação dos "realistas" com o PSD (não perdoavam o
acordo no governo Dutra) e do grupo que compunha o "movimento re-
novador", embrião da futura "Bossa-Nova". O candidato natural da
UDN, no entanto, era Juraci Magalhães, antigo tenente, fundador do
partido, e que formava, ao mesmo tempo, com o grupo da conciliação
e da abertura popular. Contava, ademais, com o discreto apoio do
presidente Kubitschek, que preferia a vitória da oposição para ga-
rantir, sem desgastes, a sua própria volta ao governo em 1965. O
baiano Aliomar Baleeiro, um dos mais combativos membros da "Banda
de Música", liderava a campanha pró-Juraci, com apoio do grupo
nordestino, para quem o paulista Jânio Quadros, por não pertencer
a nenhum partido, "não passava de uma bailarina política a qual
não deveria ser entregue a cabeça de João Batista" (M. V. Benevi-
des, A UDN e o Udenismo). Assim, a confusão partidária parecia ir-
remediável. Se os próprios partidos apresentavam divisões tão in-
trigantes, o que dizer da disposição do eleitorado para, even-
tualmente, dar provas de "maturidade política" e votar partidaria-
mente, acima de nomes e personalismos?
"A campanha eleitoral foi, em boa medida, uma comédia de equí-
vocos. Lott, apoiado pela esquerda, pautou seus pronunciamentos
por um anticomunismo extremado, que lhe alienava as simpatias das
massas urbanas sem lhe granjear apoio nas áreas conservadoras. Jâ-
nio, candidato da direita, introduziu no debate eleitoral a polí-
tica externa, solidarizando-se com Cuba e propondo uma atitude de
independência face aos dois blocos que dividem o mundo. No final,
ganhou o melhor orador, o demagogo talentoso, capaz de entusiasmar
as massas operárias com tiradas esquerdistas e, ao mesmo tempo,
inspirar confiança à burguesia com apelos à austeridade e promes-
sas de sobriedade no trato dos dinheiros públicos" (Paulo Singer,
Política e Revolução Social no Brasil). Na realidade Jânio contou
com o apoio da CONCLAP (Conselho Nacional das Classes Produtoras),
de grupos industriais importantes, como Matarazzo e Votorantim, e
associações paulistas como a FIESP, a FARESP e a Associação Comer-
cial.
A plataforma de Lott expressava a ideologia da ala nacionalis-
ta que fazia política ativa no Clube Militar. Jânio, por sua vez,
contava com a simpatia dos militares identificados às candidaturas
frustradas do Brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950) e do General
Juarez Távora (1955) e que não perdoavam o "contragolpe preventi-
vo" do 11 de Novembro, com o qual Lott garantira a posse de Jusce-
lino e Jango. Além dos militares da Cruzada Democrática, de se-
tores influentes da Escola Superior de Guerra, Jânio polarizava,
também, o engajamento político de jovens da Aeronáutica fiéis à
pregação radical de Carlos Lacerda. Assim é que, em novembro de
1959, os rebeldes de Aragarças (os mesmos oficiais do levante de
Jacareacanga de 1956) apontam como um dos motivos de sua rebelião
a renúncia de Jânio Quadros à candidatura para a Presidência (com
esta renúncia a UDN ficara em pânico, e Jânio reconsidera a deci-
são em menos de uma semana).
Além do pequeno PTN, do PDC e da maioria da UDN, a candidatura
janista contava com o apoio da Frente Democrática Gaúcha (UDN-PSD-
PL), de setores do Partido Socialista (interessados na proposta
progressista e modernizadora) e de alas dissidentes do PR, do PTB
e do PSD. Na Convenção Nacional da UDN, em novembro de 1959, a
consagração é apoteótica: Jânio recebe 205 votos contra 83 dados a
Juraci Magalhães. Este, apesar das vaias, faz um discurso premoni-
tório da renúncia, concluindo dramaticamente: "E agora, José?".
Para a vice-presidência a UDN recorre, mais uma vez, ao "charme
discreto" de um liberal consagrado como Milton Campos, depois do
malogro do lançamento da candidatura do ex-governador de Sergipe,
Leandro Maciel.
A "campanha das mãos limpas" do candidato à Vice-Presidência
Fernando Ferrari (do Movimento Trabalhista Renovador, dissidência
do PTB gaúcho), com apoio do PDC, complementava a campanha da vas-
soura e atraía votos udenistas. Os resultados do pleito indicam
não apenas a divisão do eleitorado antijanguista (a união dos vo-
tos de Campos e Ferrari teria garantido, por ampla margem, a der-
rota de Goulart), como o sucesso dos comitês Jan-Jan e do Movimen-
to Popular Jânio Quadros nos grandes centros trabalhistas e es-
querdistas como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.
Nas eleições de 3 de outubro Jânio é eleito com 5 636 623 vo-
tos, derrotando o General Lott (3 846 825 votos) e Ademar de Bar-
ros (2195 709 votos). Convém lembrar, para a correta avaliação dos
dados eleitorais, que em relação ao pleito presidencial anterior
há um aumento significativo não apenas do eleitorado, em números
absolutos, como da proporção do comparecimento às urnas: de 60% em
1955 passa a 80% em 1960. Do total de votos válidos dados a Jânio,
78% foram obtidos nos estados-chave Guanabara, Rio Grande do Sul,
Minas Gerais e São Paulo. Em 1919 havia mais de cem brasileiros
para cada voto dado ao presidente eleito. Em 1960 havia menos de
13 brasileiros para cada voto dado a Jânio Quadros.
Jânio obteve substancial votação em todas as camadas sociais,
mas uma pesquisa pré-eleitoral feita por Gláucio Soares na Guana-
bara indicou preferência significativamente maior por Jânio nos
estratos sócio-econômicos mais elevados, medidos por instrução e
ocupação. O perfil do eleitorado janista, em 1960, indicaria, as-
sim, que "Jânio ainda é a grande esperança dos deserdados, mas é
sobretudo o instilador de um novo ânimo defensivo à classe média
tradicional, atormentada pela inflação, temerosa das mudanças que
se processavam no país, ansiosa em busca de um messias-estadista
para repor as coisas nos seus lugares" (Souza e Lamounier, Isto É,
nº 4, 1976).
A vitória de Jânio seria reforçada pelo sucesso da oposição
nos governos estaduais: Carlos Lacerda, na Guanabara; Magalhães
Pinto, em Minas Gerais (derrotou Tancredo Neves); Luiz Cavalcanti,
em Alagoas; Pedro Gondim, na Paraíba; Aluísio Alves, no Rio Grande
do Norte; Correia da Costa, em Mato Grosso, e Ney Braga, no Para-
ná. Jânio não conseguira a maioria absoluta dos votos (48,26%),
mas em momento algum os radicais da UDN — que haviam invocado tal
motivo em 50 e 55 — manifestaram intenções golpistas. Uma era de
confiança, um clima de "democrática pacificação nacional" parecia
transformar os mais renitentes golpistas. Dois importantes fato-
res, no entanto, já indicavam tempestades futuras: a eleição de
João Goulart para a Vice-presidência (com visível hostilidade das
Forças Armadas e das classes conservadoras) e as características
do temperamento personalista, autoritário e psicologicamente ins-
tável do novo presidente.
ACIMA DOS PARTIDOS, O BONAPARTISMO JANISTA

"As proporções da vitória eleitoral de Jânio Quadros — por ge-


nerosa margem de quase dois milhões de votos sobre seu principal
adversário — conferiam-lhe considerável quantum de poder específi-
co em relação às forças que lançaram sua candidatura. Como nenhuma
delas poderia reivindicar 'dividendos partidários', Jânio coloca-
va-se acima da sociedade política, verificando-se o quarto do bo-
napartismo. O bonapartismo suspende a força política das classes
sociais e as transforma, por assim dizer, em suplicantes diante do
Estado. Então o povo, partidariamente desorganizado, passa a ser
aparente sustentáculo do poder. O chefe bonapartista, por cima das
classes, por cima dos partidos, busca o apoio direto do povo"
(Guerreiro Ramos, A Crise do Poder no Brasil). Pairando acima dos
partidos, fugindo ao esquema "esquerda e direita", Jânio signifi-
cava, para seus defensores, o encontro da ordem com o progresso, a
revolução política sem violência ou ilegalidade. Seria "um governo
ao mesmo tempo progressista e conservador, austero e audacioso,
amado pelo povo e respeitado pelas elites" (A. Arinos, A Esca-
lada).
A realidade seria bem diversa. Através da política dos "bilhe-
tinhos" Jânio converteria seus ministros em meros executores de
determinações presidenciais; pela criação das Seções Especiais do
Gabinete Civil e Militar, e do Serviço Nacional de Municípios,
tentaria anular qualquer mediação entre a Presidência e o poder
regional e local; pelo tratamento dispensado aos parlamentares e
empresários, revelaria o desprezo implícito por tudo aquilo que
não fosse emanação direta de sua própria autoridade, supervalori-
zada por um voluntarismo quase místico, na crença absoluta no
"mandato independente". Afinal, este seria o governo que promete-
ra, "sem donos nem influências".
As forças políticas que apoiaram sua candidatura não apenas se
revelaram impotentes para reclamarem "dividendos partidários", co-
mo incapazes de defenderem um projeto comum, por serem, em certos
casos, francamente antagônicas. O que explica, em parte, as pro-
fundas ambigüidades e contradições no relacionamento Executivo-
Legislativo. No governo Kubitschek, a euforia desenvolvimentista e
o estilo conciliatório do presidente, aliados à eficiente política
de "administração paralela" (que mantinha intacta a burocracia
tradicional, feudo dos interesses cartoriais e clientelísticos),
conseguiram, por um período determinado, responder às expectativas
de diferentes grupos sociais, com exceção dos marginalizados da
terra.
O governo Quadros, ao contrário, acirrou contradições, jogando
com forças políticas que se repeliam mutuamente. Todos "pertenci-
am" ao governo, um caleidoscópio que iluminava ora o moralismo ba-
charelesco da UDN, ora o conservadorismo burocrático e o industri-
alismo do PSD. Ou o trabalhismo do PTB e a crescente participação
dos sindicatos. Ora os interesses agrário-modernizantes sulistas,
ora os dos coronéis do Nordeste. O impulso desenvolvimentista dos
herdeiros de JK e a moderação estabilizadora dos ortodoxos. Ou se-
ja, uma amplíssima "frente", que tinha em comum os louros da vitó-
ria eleitoral; nenhum programa coerente garantia a unidade. Em re-
sumo, os que apoiavam o moralismo, condenavam o trabalhismo; os
que defendiam a política econômica ortodoxa odiavam a política ex-
terna independente, e vice-versa.
E Jânio teria que enfrentar não apenas os problemas decorren-
tes da crise econômica herdada, como os inerentes às promessas de
"reformas de base". Para tal proeza dificilmente o apoio do Con-
gresso poderia ser menosprezado. Durante os sete meses de governo
Jânio conseguiu fazer chegar ao Congresso apenas um projeto impor-
tante, o da Lei de Remessas de Lucros, e neste caso com a divisão
de seus próprios ministros.
A composição diversificada do Ministério é esclarecedora. Na
Fazenda, o udenista baiano Clementi Mariani, industrial e banquei-
ro, ministro da Educação no governo Dutra e presidente do Banco do
Brasil no governo Café Filho à época da famosa instrução 113, que
favorecia a entrada de capitais estrangeiros no país. Na Agricul-
tura Romero Cabral da Costa, um desconhecido na cena partidária
nacional, usineiro ligado aos setores mais arcaicos da agricultura
nordestina, fora indicado pelo governador de Pernambuco, o udenis-
ta Cid Sampaio. Na Viação, outro político sem expressão, o pesse-
dista Clóvis Pestana; na Saúde, Catete Pinheiro, um obscuro para-
ense do PTN.
Na pasta de Minas e Energia, um nome forte: o do paraibano Jo-
ão Agripino, que, embora da UDN, defenderia o nacionalismo var-
guista na área de minérios e na Petrobrás. Na Indústria e Comér-
cio, Artur Bernardes Filho, do Partido Republicano, empresário li-
gado aos interesses de multinacionais. A pasta do Trabalho seria
"despolitizada" pela indicação do paulista Francisco de Castro Ne-
ves, apenas formalmente filiado ao PTB, e contrário à política
janguista nos sindicatos e institutos (o simples fato de querer
denominar o Ministério como "Secretaria da Mão-de-Obra Nacional"
já indica as intenções "despolitizantes").
O Ministro da Educação, Brígido Tinoco, era um político do an-
tigo Estado do Rio, sem nenhum convívio com os problemas da educa-
ção. Jânio convocaria o Professor Anísio Teixeira que lhe entre-
gou, em pouco tempo, um plano de educação; a inércia burocrática
do Ministério, no entanto, não combinava com as idéias renovadoras
e o projeto seria arquivado. Na Pasta da Justiça, Oscar Pedroso
Horta representava, juntamente com o chefe da Casa Civil, Quinta-
nilha Ribeiro, uma escolha baseada na lealdade pessoal ao ex-
governador paulista. E, finalmente, o novo Chanceler, Afonso Ari-
nos de Melo Franco, seria o responsável pela defesa da política
externa independente, enfrentando o reacionarismo de seu próprio
partido, a UDN.
Nos ministérios militares, no entanto, a coerência foi manti-
da. O General Odilo Denys permanece no Ministério da Guerra; ape-
sar de comprometido com o grupo do 11 de novembro, que garantira a
posse de Juscelino e Jango, Denys já se afastara definitivamente
da ala nacionalista representada pelo General Lott, cujo esquema
de posições começara a desmantelar em todo o país. Na Marinha, o
Almirante Sílvio Heck, vinculado aos lacerdistas e comandante do
Cruzador Tamandaré em 1955; na Aeronáutica, o Brigadeiro Gabriel
Grum Moss, da ala mais "brigadeirista" da FAB, e na chefia do Es-
tado-Maior das Forças Armadas o General Oswaldo Cordeiro de Fari-
as. Jânio contava com o apoio dos militares da Escola Superior de
Guerra, para quem era "a negação da demagogia" (!). No plano fede-
ral, o único setor organizado e ativo era justamente a Casa Mili-
tar, sob a chefia do General Pedro Geraldo de Almeida, identifica-
do com o grupo da ESG ligado ao então Coronel Golbery do Couto e
Silva. Este era chefe de Gabinete da Secretaria Geral do Conselho
Nacional, onde se encontravam, também, os oficiais João Batista
Figueiredo, Walter Pires, Heitor de Aquino Ferreira e Mario Andre-
azza, no Serviço Federal de Informações (René Dreifuss, 1964: A
Conquista do Estado).
Aliás, um dos principais motivos para a hostilidade de setores
do Congresso a Jânio foi o espaço privilegiado concedido às Forças
Armadas. Como, por exemplo, a criação de subchefias militares do
gabinete presidencial em várias regiões do país e a sistemática
designação de oficiais para presidirem as Comissões de Inquéritos
e sindicâncias da cruzada moralizadora. Esta última medida provo-
cou violenta reação na Câmara dos Deputados, destacando-se a de-
núncia de Almino Affonso, líder do PTB, que indagava por que os
militares passariam a ser fiscais da coisa pública: "por acaso um
militar, por definição, é honesto, e há de ser um civil, por defi-
nição, um venal?" (Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram o Bra-
sil).
No plano civil, a prática de organizar reuniões nos estados
com os governadores, criando uma nova instância decisória de medi-
ação, constituiu-se em rede de apoio regional também fora do Con-
gresso. Note-se que pela primeira vez o governo não tinha maioria
no Congresso. O Bloco Parlamentar de oposição PSD-PTB-PSP (o Par-
tido Social Progressista era o partido de Ademar de Barros) compu-
nha a maioria na Câmara dos Deputados. Mas era uma maioria fluida,
extremamente heterogênea, que incluía desde socialistas até radi-
cais de direita. E não se poderia dizer que os unia uma posição
constante contra o governo, pois conservadores e progressistas di-
vidiam-se, em cada partido, em relação a quase todas as questões.
A política progressista de Jânio contava com o apoio das alas
rebeldes dos grandes partidos: a ala moça do PSD, a Bossa-Nova da
UDN e o Grupo Compacto do PTB. Mas, se os progressistas uniam-se
na defesa da política externa independente e do controle sobre a
remessa de lucros, dividiam-se quanto à política sindical e a prá-
tica das sindicâncias que visava diretamente membros da aliança
PSD-PTB. A Bossa-Nova udenista (José Aparecido, José Sarney, Sei-
xas Dória, Clóvis Ferro Costa), adversária dos lacerdistas e da
"Banda de Música", surgira exatamente para dar apoio às propostas
reformistas do novo governo.
Jânio, por sua vez, procurava apoio na esquerda, a nível indi-
vidual somente, cortejando lideranças "não alinhadas", como Miguel
Arraes, Leonel Brizola e Francisco Julião. A tentativa de aproxi-
mação com o PSD, através de políticos paulistas, não logrou resul-
tados — graças à forte bancada mineira, comprometida com o governo
anterior — e Paulo Pinheiro Chagas, líder pessedista da maioria,
chegou a nomear uma comissão de deputados para estudar a proposta
de impedimento do presidente (o que não ocorreu). E quanto à UDN —
considerada por Jânio "inepta e bacharelesca" — a frustração seria
total; suas lideranças parlamentares não eram consultadas pelo
presidente e o partido não dispunha de uma margem de manobras para
distribuir cargos e vantagens, típica atribuição de qualquer es-
quema de poder. Aparentemente vencedora, a UDN não era governo nem
era oposição; constrangida a "apoiar um governo que não era seu"
(como se queixaria mais tarde o presidente do partido, Herbert Le-
vy), pois não poderia isolar-se na oposição, muito menos renegar o
fruto de sua sedução populista, a UDN revelava o lado trágico de
sua própria ambigüidade, num processo autofágico de sua única vi-
tória (M. V. Benevides, A UDN e o Udenismo).
E, finalmente, cabe assinalar que, já nos primeiros meses do
governo Quadros, os debates no congresso sobre a adoção do sistema
parlamentarista recrutavam novos adeptos. Aliás, a encarnação viva
do projeto, o presidente do Partido Liberdade, Raul Pilla, uma se-
mana apenas antes da renúncia, sugeriu a criação de uma Comissão
de Política Parlamentar para a "defesa da integridade e efetivida-
de das funções parlamentares", a fim de evitar que o Congresso
continuasse perdendo prestígio entre o povo, conseqüência da "in-
vasão de sua própria esfera por outros órgãos do poder" (Mário
Victor, op. cit.).
Mas o desprezo de Jânio Quadros pelo Congresso — "um clube de
ociosos" — era tão grande que chegou a indagar a seu perplexo
Chanceler: "Ministro,V. Exa. pegaria em armas para defender este
Congresso que aí está?" (Afonso Arinos, Planalto). E depois da re-
núncia, ao contestar seus propósitos golpistas, não hesitaria em
vangloriar-se: "se quisesse teria fechado o Congresso com um cabo
e dois soldados".
DO TOSTÃO À VASSOURA,
O MORALISMO AUTORITÁRIO

Entre as contradições do governo Jânio Quadros destaca-se a


intrigante conjugação entre a defesa ativa de uma política externa
"de grandeza" e a adoção de um estilo provinciano e mesquinho no
trato da coisa pública. No estadista da autodeterminação dos povos
disfarçava-se, ora mais visível, ora mais superado, o prefeito dos
limites bairristas de Vila Maria. A "política dos bilhetinhos" re-
vela o tacanho autoritarismo de um governo que erigiu como norma o
controle burocrático personificado, baixado aos mínimos pormeno-
res, em toda e qualquer área da administração pública, mas também
nos mais diversos aspectos da vida social.
A "eterna vigilância", referência emblemática dos liberais
udenistas, revestia-se de especial significado para Jânio. Vigi-
lância moral, ideológica, punitiva, corretiva, didática, gratifi-
cadora. Em suma, uma nova "Voz do Brasil", altamente centralizada,
porém fragmentada em pequenas ordens, proibições, reclamações ou
simples avisos, carregados da aura onipresente de quem se apresen-
tava, sem o menor pudor, como o messias após o caos. - E que uti-
lizava, com mestria, recursos publicitários e dramáticos para uma
campanha nacional de "recuperação da austeridade e da autoridade".
Assim se explicam decisões pessoais do presidente da República
para questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da
órbita governamental. Como, por exemplo, os decretos proibindo o
funcionamento dos Jóqueis Clubes nos dias úteis e às brigas de ga-
lo em todo o território nacional. Ou as proibições de desfiles de
misses com maiôs cavados nos concursos de beleza e do uso de lan-
ça-perfume nos bailes carnavalescos. O presidente interferiu di-
retamente para a solução dos problemas relativos aos atrasos dos
trens urbanos e às filas de abastecimento nas cidades. Passando
por cima da competência do Ministério da Justiça ocupou-se com a
instituição da censura moralizadora — em defesa da família e dos
bons costumes — na televisão, nas diversões públicas e na publici-
dade comercial. Ordenou a suspensão das emissões da Rádio Jornal
do Brasil (baseando-se na célebre portaria da Comissão Técnica do
Rádio, utilizada no governo Kubitschek contra Carlos Lacerda e que
merecera de Jânio e dos udenistas o mais vivo repúdio), acusada de
divulgar "notícia inverídica".
Na instância das "amenidades", Jânio preocupou-se em lançar "a
moda racional para os trópicos" (inspirado em sua confessada admi-
ração pelos costumes britânicos), inovando o protocolo presidenci-
al ao adotar o terno "safari" — cuja uniformização desejou esten-
der aos demais órgãos do governo, aparentemente sem sucesso. A
economia com os gastos públicos chegaria às raias do ridículo com
a determinação de que os papéis velhos dos escritórios de toda a
administração pública deveriam ser coletados para venda filantró-
pica.
O suporte ideológico para esta política autoritária e persona-
lista encontra-se explicitamente no moralismo punitivo e redentor
que, aos olhos de Jânio e seguidores, garantiria a originalidade e
a autenticidade do que entendiam como "a revolução pelo voto". Em
termos concretos tratava-se de levar a todo o país a cruzada do
saneamento moral, sob a bandeira da austeridade, honestidade e
trabalho: "Este será um governo rude e áspero", afirmou no dia da
posse. E ao longo do governo seus discursos insistiam na tônica do
sacrifício: "que todos detenham suas ambições, que todos sofreiem
seu egoísmo, que todos sofreiem sua cupidez. Quero uma reforma de
princípios e de fundamentos". O sacrifício seria de toda a nação —
para Jânio povo, nação e governo confundiam-se numa só tarefa,
mais ainda, eram uma só entidade. Identificava, ademais, sua pró-
pria autoridade com o ethos da nação: "todos aqueles que se voltam
contra mim estão-se voltando contra a verdade e a nação".
Como salientaram Souza e Lamounier, "esta era a grande alqui-
mia do símbolo janista: o máximo de personalidade jamais praticado
em nossa história política como veículo para a extinção dos perso-
nalismos ou, pelo menos, de 'favores pessoais'. A vassoura, ins-
trumento para a remoção da sujeira; mas sujeira onde, de quem? A
sujeira administrativa, a corrupção, na perspectiva dos pobres. A
sujeira, quem sabe, representada pelos pobres, pelas reivindica-
ções, pela nova periferia urbana, na perspectiva dos setores ul-
traconservadores da classe média tradicional que aderiu ao janis-
mo" (op. cit.).
O apelo de Jânio ao discurso moralista, sabidamente sedutor
para a indigência política das classes médias — mas também para o
elitismo sutilmente hipócrita dos bacharéis — vinha de longe, e de
êxito comprovado. Sua fulgurante ascensão política assentara-se no
moralismo radical que explorava habilmente o ressentimento daque-
les setores médios temerosos da "proletarização". A análise de
Weffort sobre as bases sociais do janismo em São Paulo é esclare-
cedora; tratava-se de uma "classe média assalariada, proletarizada
ou em vias de proletarização, que já não tem muito a perder com o
desenvolvimento capitalista (...) o moralismo que se expressa em
Quadros expressa setores sociais que já não podem partilhar a es-
perança de favores e facilidades pessoais. Já não podem acalentar
os mitos do patriarcalismo. Seu novo mito é a idéia de justiça,
igualdade incondicional perante a lei. É evidente que este mora-
lismo é ambíguo quanto a seus efeitos políticos, e o líder mora-
lista dos homens do 'tostão' nunca viu impedimentos maiores em se
associar aos representantes, também moralistas, dos homens do 'mi-
lhão' " (O Populismo na Política Brasileira).
Esta análise permite situar o moralismo janista em suas ambi-
güidades e compreender por que a perseguição administrativa surgia
como uma "santa inquisição", pois se tratava de "limitar os privi-
légios". Daí o êxito da violência verbal de Quadros — e de seus
ares de ascetismo rigoroso, implacável, autoritário, porém supos-
tamente justo — junto à massa equivocada na caracterização dos
verdadeiros donos do poder. Trata-se de um radicalismo de tipo pe-
queno-burguês que obscurece e mistifica um reformismo de tipo ope-
rário, circunstância que denota, e até certo ponto explica, a
enorme ineficiência dos grupos de esquerda junto à classe operária
de São Paulo(Weffort, op. cit.).
Já nos primeiros dias de seu governo Jânio Quadros inaugura um
estilo inquisitorial na denúncia da "crise moral" identificada com
a corrupção e a irresponsabilidade do governo anterior. Seria uma
nova "caça aos escândalos", à moda da agressiva "Banda de Música"
udenista que atormentara os líderes de Getúlio e Kubitschek no
Congresso. Para Jânio a corrupção aparece como "o filhotismo, o
compadrio, o favoritismo sugando a seiva da Nação e obstando o ca-
minho dos mais capazes. Não haverá ninguém, a começar dos mais al-
tos escalões administrativos, que possa situar-se fora das normas
da exação, compostura e integridade que caracterizarão os negócios
públicos nesse qüinqüênio".
E nesse sentido, ao identificar o empreguismo com a base da
corrupção, que Jânio inscreve em seu programa de governo a neces-
sidade de "despolitizar a administração em geral". Despolitizar
significava acabar com o sistema de nomeações feitas por injunções
políticas, ou seja, extinguir a principal fonte do clientelismo
urbano. E a retórica do sacrifício será sempre invocada, apoiada
nos valores morais com os quais o discurso janista identifica o
povo: "um povo generoso, um povo bom, um povo excepcional, tra-
balhador e honesto". Daí, os reiterados apelos à "compreensão de
todos" ("e não quero nada que eu mesmo não faça!") para a conten-
ção de consumo, de reivindicações salariais, etc.
Assim é que a varredura da corrupção passa a significar a ins-
trução de dezenas de inquéritos administrativos (em grande maioria
presididos por oficiais militares) que tendiam a comprometer medi-
das, pessoas ou grupos vinculados ao governo Kubitschek. Assim
ocorreu com as sindicâncias da COFAP (Comissão Federal de Abaste-
cimento e Preços), no Instituto Brasileiro do Café, no IBGE, na
SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito), no Conselho Nacio-
nal de Pesquisas, na SPVEA (Superintendência pela Valorização da
Amazônia), Rede Ferroviária Federal, na Cia. Siderúrgica Nacional,
na Cia. Vale do Rio Doce, no Departamento Nacional de Obras contra
as Secas, entre outros. Os diversos Institutos da Previdência So-
cial foram os mais atingidos pela ânsia das delações e devassas.
Os relatórios finais, divulgados pela imprensa, chegaram a envol-
ver o nome do vice-presidente (notoriamente comprometido com a po-
lítica trabalhista e previdenciária dos governos anteriores), o
que provocou uma virtual ruptura entre Goulart e o presidente, o
qual lhe devolveu uma carta por julgá-la "descortês". Na maior
parte dos casos as sérias denúncias aos suspeitos eram publicadas
sem se assegurarem os direitos de um processo competente.
O funcionalismo público foi o alvo privilegiado da ação mora-
lizadora. Entre as principais medidas diretamente inspiradas pelo
presidente destacam-se as que maior impacto causaram na opinião
pública (intensos noticiários na imprensa) e nos debates par-
lamentares: a instituição do horário corrido para o funcionário
federal, o controle do "ponto" e o corte de 30% nas despesas com
pessoal. Outras medidas altamente criticadas referem-se à redução
de vencimentos ou de "mordomia" para funcionários em missão no ex-
terior, ao veto ao projeto que dava estabilidade aos empregados da
NOVACAP (o veto presidencial foi derrubado na Câmara dos Deputa-
dos), à criação de um Grupo de Trabalho para investigar o Contra-
bando, etc. (Mário Victor, op. cit.).
Tais medidas, a nível da Presidência, revelavam a continuidade
do moralismo autoritário do governador paulista que marcara sua
eficiente administração pelo controle absurdamente minudente sobre
a "moralidade pública": visitas "incertas" a órgãos de atendimento
público, fiscalização do uso de carros oficiais nos fins de sema-
na, acompanhamento das provas dos concursos para simples escritu-
rário, etc. Ainda na Prefeitura de São Paulo tomaria uma drástica
medida para "servir de exemplo perante a nação, do que se devia
fazer, doesse a quem doesse, em defesa do patrimônio público". Pu-
niu o atleta Ademar Ferreira da Silva, campeão olímpico de salto
triplo, por se ter afastado do cargo para a prática esportista,
justificando-se: "infelizmente era um funcionário relapso e a Pre-
feitura não é clube de atletismo" (Viriato de Castro, O Fenômeno
Jânio Quadros).
É evidente que a cruzada moralizadora servia aos interesses
ideológicos da manipulação janista, visando a reforçar seu prestí-
gio popular ("o povo será a um tempo minha bússola e o meu desti-
no"), mas também ao cálculo político que impunha a derrocada final
da herança getulista. Isso porque a devassa nos setores da admi-
nistração pública minava diretamente o controle clientelístico dos
representantes da aliança PSD-PTB. É bem verdade, também, que,
apesar da derrota eleitoral em 1960, esta aliança continuava majo-
ritária nas duas casas do Congresso; pouco a pouco os excessos da
"campanha saneadora" passaram a corroer as já frágeis possibilida-
des de diálogo do presidente com a oposição. Nas palavras de Mário
Victor, Jânio Quadros prosseguia a sua ação contra as ratazanas do
Tesouro, como as apelidava Rui Barbosa. "Eu continuarei. Custe o
que custar. Nada me deterá. Não olharei nomes nem posições" (op.
cit., p. 162).
É interessante considerar, no plano da ideologia, o parentesco
entre esse moralismo (falso ou verdadeiro, não importa) e o idea-
lismo decorrente da crença de que os fenômenos políticos são regi-
dos prioritariamente por expressões da vontade individual. Trata-
se, é claro, de uma visão maniqueísta, apoiada na divisão entre o
"mal" e o "bem" absolutos; e as "forças do mal", para Jânio e os
moralistas da UDN, encarnavam-se nas práticas explícitas e "perso-
nificadas" da corrupção no poder público, sem jamais questionar as
fontes, os interesses econômicos e a verdadeira correlação de for-
ças sociais no sistema capitalista que sustentava aquele mesmo po-
der. Já em sua análise sobre o golpismo e a oposição moralista,
que levaram ao suicídio de Getúlio, Hélio Jaguaribe assinala que
"todo esse moralismo manipulado, todo esse arsenal de velhas pai-
xões puritanas exercidas por todos os meios de difusão, não tem
outro valor que não seja o de instrumento útil na aglutinação das
frustrações da classe média" (Cadernos de Nosso Tempo, 1955, nº
3). Este moralismo, em última instância, apelará para a solução
golpista como a alternativa radical da "purificação" e da vitória
do "bem".
ENTRE NACIONALISMO E "ENTREGUISMO",
AS PAZES COM O FMI

Um certo fascínio, alimentado por boa dose de publicidade,


cercava a fama de Jânio Quadros como o eficiente administrador das
finanças públicas na Prefeitura e no Governo de São Paulo. Mas a
política econômica a ser posta em prática na Presidência da Repú-
blica permanecia uma incógnita. As propostas do candidato dissol-
viam-se no discurso geral de defesa da iniciativa privada, prudên-
cia quanto ao capital estrangeiro e sobretudo — a grande atração!
— o combate à inflação, o saneamento dos gastos públicos e a defe-
sa dos interesses das classes médias "empobrecidas". Nenhum plano
foi apresentado. A confiança expressa na campanha "Jânio vem aí"
parecia suficiente. Para o setor privado era, talvez, "suficiente"
a lembrança do pronunciamento do governador paulista, a respeito
da polêmica sobre a Petrobrás, de que "o Estado é mau patrão" (es-
ta famosa frase de Jânio seria seguida da não menos famosa frase
do General Lott: "a Petrobrás é intocável").
A expectativa em torno do novo governo expressava, também, os
interesses daqueles grupos econômicos que, beneficiados pela eufo-
ria desenvolvimentista de Kubitschek, temiam, agora, a "explosão
social". Defendiam uma "modernização conservadora", através do de-
senvolvimento com medidas deflacionárias. Logo depois de empossa-
do, Jânio pronuncia um discurso demolidor sobre "as irresponsabi-
lidades" do governo precedente, prometendo o maior rigor para en-
frentar a "terrível situação financeira do Brasil", com a herança
de uma dívida externa de cerca de dois bilhões de dólares. Sua po-
lítica econômica apresentava-se, portanto, como a retomada das te-
ses de estabilização, incluindo certas práticas preconizadas pelo
Fundo Monetário Internacional. O que não poderia ser feito sem
muita polêmica. E também não pode ser entendido sem uma breve alu-
são à crise que marcou o final do governo Kubitschek.
É em 1959 que Juscelino enfrenta a fase mais difícil do "de-
senvolvimentismo", pressionado externamente pelo FMI e internamen-
te pelas oposições, que atacavam tanto a inflação quanto os remé-
dios para contê-la. Entre os fatores inflacionários mais importan-
tes destacam-se os gastos com o ritmo acelerado do Programa de Me-
tas e a construção de Brasília, além dos aumentos salariais supe-
riores ao custo de vida, e a política de empréstimos ao setor Pri-
vado, através do Banco do Brasil. Acrescente-se o declínio persis-
tente dos preços, em dólares, dos produtos de exportação e a su-
perprodução do café.
O debate econômico no governo JK polariza-se em torno do sis-
tema de taxas de câmbio múltiplas, com a constante pressão dos ex-
portadores. A polêmica estabilização-desenvolvimentismo põe em
confronto a política ortodoxa defendida por Eugênio Gudin, Octavio
Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos (o "Bob Fields", cujo enterro
simbólico seria comemorado pelos estudantes da UNE) e os interes-
ses dos grupos que entendiam "o recurso à inflação como indispen-
sável para o desenvolvimento".
O rompimento de Juscelino com o FMI significava a renúncia ao
Plano de Estabilização Monetária, proposto pelo Ministro Lucas Lo-
pes, e cujas medidas seriam praticamente as mesmas do governo Qua-
dros: limitação de créditos, controle operacional sobre bancos
particulares, eliminação dos subsídios cambiais, revisão do salá-
rio mínimo, etc. Além de esbarrar nos interesses do sustentáculo
político-partidário e social do governo, a estabilização proposta
significaria a negação do Programa de Metas, e, acima de tudo, re-
nunciar à construção de Brasília no prazo previsto.
O poder do FMI não deve ser subestimado. De seu aval dependia
a concessão de empréstimos de capitais privados estrangeiros. Em
resumo, a tese do FMI apontava a necessidade de "se pôr a casa em
ordem" como pré-requisito para receber a ajuda financeira. A "or-
dem" significava taxa de inflação a menos de 10% ao ano, câmbio
unificado, abolição de incentivos a cafeicultores e restrição sa-
larial.
Um mês apenas após a posse, um grupo de empresários da CONCLAP
encaminha ao presidente um documento intitulado "Sugestões para
uma Política Nacional de Desenvolvimento". Jânio reage agressiva-
mente, como se entendesse sua autoridade solapada por pressões in-
devidas: "Tenho de aplicar medidas drásticas e ásperas, a fim de
conduzir este país à sanidade. São-me indiferentes os aplausos e
os apupos (...) Homens poderosos já me procuraram para expressar
sua insatisfação com o meu governo. Expliquei-lhes que só há dois
meios de tolher os meus passos: depor-me, ou assassinar-me, o que
não me parece fácil" (M. Victor, op. cit.). O impacto negativo foi
grande para a comunidade empresarial, assim refletida em editori-
ais da imprensa: "Não combina com o cargo e o poder do Presidente
da República jogar com palavras ameaçadoras".
Jânio recorria a gestos e retórica de uma austera independên-
cia, mas a simples escolha de seu Ministro da Fazenda, Clemente
Mariani — notório defensor dos interesses do grande capital, naci-
onal e estrangeiro —, indicaria que certas providências sugeridas
no memorial da CONCLAP seriam adotadas pelo governo. A reafirmação
da empresa privada (contra a ação do Estado) com franca entrada do
capital estrangeiro; incentivo à exportação com "supressão de
quaisquer controles", e com regime cambial favorável; redução de
gastos públicos; capitalização da agricultura contra os "extremis-
mos expropriativistas"; restabelecimento da livre concorrência no
setor de preços e aluguéis; e, finalmente, "ação moralizadora" na
Previdência Social e nos sindicatos contra o "peleguismo dos agen-
tes infiltrados no Ministério do Trabalho".
A medida econômico-financeira mais importante do período foi a
instrução 204 da SUMOC, que pretendia restabelecer a chamada "ver-
dade cambial". Isto é, ficavam extintas as taxas múltiplas de câm-
bio (com cortes radicais aos subsídios para produtos importados) e
decretava-se a desvalorização do cruzeiro em 100%. Os dispositivos
da 204 — cujo objetivo essencial era diminuir a inflação e corres-
ponder à "ordem" esperada do FMI —, além do evidente reforço às
finanças do governo, favoreciam os interesses da burguesia agrá-
rio-exportadora e dos investidores estrangeiros. Mas teriam efei-
tos devastadores para a grande maioria da população: aumento no
preço dos gêneros de primeira necessidade (pelo corte aos subsí-
dios ao trigo), nos transportes (corte aos subsídios a óleo e com-
bustíveis), além de medidas que incidiriam sobre o congelamento
parcial dos salários.
"A elevação do câmbio de custo de Cr$ 100,00 para Cr$ 200,00,
pela instrução 204, encarece os custos de produção da indústria,
uma vez que diversas matérias-primas e equipamentos eram adquiri-
dos no exterior por câmbio favorecido. As indústrias instaladas
nas áreas subdesenvolvidas são ainda duplamente prejudicadas, por
dependerem de suprimentos oriundos do exterior ou do parque manu-
fatureiro do Centro-Sul. A cláusula V da instrução parece desti-
nada a proteger certas empresas estrangeiras, pois assegura não
lhes será aplicada a majoração do custo do câmbio, senão quando
reajustarem as suas tarifas; em outras palavras, senão quando
transferirem para o consumidor os ônus da providência" (Guerreiro
Ramos, op. cit.).
O Jornal do Brasil assim condenava o aspecto drástico da ins-
trução: "De 1958 a 1959 o reajustamento do custo de câmbio de 50 a
100 cruzeiros foi realizado em três etapas e, ainda assim, ocasio-
nou um impacto de 50% no custo de vida. Sua Exa. cobra ao presente
um preço que não só está muito acima das possibilidades imediatas
do responsável final, que é o povo, como discutível também seria
admitir a justeza da cobrança que se exige de uma só vez" (Mário
Victor, op. cit.). Aos que atacavam a medida, Jânio lembrava que
prometera mesmo um governo "duro, duríssimo", para combater o "ci-
clo de insânias" precedente, e acrescentava: "e há ainda quem fala
na 204, merecendo ser posto sobre os joelhos, ter determinada par-
te mais carnuda que Deus todo-poderoso fez, muito a propósito mais
descoberta, para receber vigorosas palmadas" (Jornal do Brasil,
5/4/61).
E, aos nacionalistas que apontavam o golpe da 204 contra a Pe-
trobrás, respondia Jânio: "Encontrei a Petrobrás de joelhos, ou de
rastros, sobre a barriga, pedindo um bilhão de cruzeiros ao Banco
do Brasil. Quebrada, falida. E eu, que fui acusado de entreguista,
sou quem a sustenta, quem a defende... Hoje, com a 204, deve ser
feliz possuidora de alguns bilhões, pagos pelo nosso povo" (idem).
Afinal, era ele ou o "povo" que sustentava a Petrobrás com a 204?
O Ministro de Minas e Energia, João Agripino, era contra a medida,
pois "a verdade cambial num país como o Brasil, em que a legisla-
ção favorece lucros fabulosos, pode significar o maior enriqueci-
mento de poucos à custa do sacrifício do restante da população".
"A reforma cambial só se justificaria se viesse realmente associa-
da às outras reformas prometidas: a lei antitruste, a reforma do
imposto de renda, a reforma bancária, a de remessa de lucros para
o exterior e a de lucros extraordinários (...) Sem essa legisla-
ção, a verdade cambial significa uma política de formação de capi-
tais que muito interessou aos grupos econômicos do Brasil. Tanto
que as classes produtoras e a imprensa tida de direita a louvou,
aplaudiu e defendeu" (depoimento a O Cruzeiro, 16/11/61).
Apesar das polêmicas internas e da impopularidade das medidas,
o objetivo principal foi atingido: a apresentação de um perfil
"saudável" ao FMI, na mira de novos empréstimos e renegociação da
dívida externa. Os embaixadores Walter Moreira Salles, nos Estados
Unidos, e Roberto Campos, na França, conseguiram vender a imagem
da "estabilização ortodoxa" (imagem seriamente abalada desde o
rompimento de Juscelino com o FMI) e contratar um empréstimo de 2
milhões de dólares.
Outra polêmica importante refere-se aos projetos da Lei Anti-
truste e da Lei sobre a Remessa de Lucros. O governo dividia-se em
duas correntes: a nacionalista, liderada pelo Ministro João Agri-
pino, e a "entreguista", do Ministro Clemente Mariani (é interes-
sante lembrar que ambos eram udenistas e que o nacionalismo nunca
foi levado a sério na UDN pois, entre outras coisas, era muito
identificado com posições "getulistas"). Pela Lei Antitruste seri-
am considerados abusos do poder econômico "embaraçar a criação ou
funcionamento de empresas ou monopolizar certa atividade, ou esta-
belecer a exclusividade de determinada produção, ou distribuição
de mercadorias, com o objetivo de controlar o mercado interno". E
assim prejudicaria os interesses de muitas empresas estrangeiras
(M. Victor, op. cit.).
O projeto defendido por João Agripino (elaborado pelos deputa-
dos Oliveira Brito e Daniel Faraco) previa a intervenção nas em-
presas somente por solicitação do Poder Judiciário e sob seu con-
trole. Intervenção que existia no projeto Agamenon Magalhães
(apresentado em 1948, baseado na famosa "Lei Malaia", tão combati-
da pelos adversários de Getulio em 1945) e no substitutivo Adaucto
Cardoso, que tramitava na Câmara. O projeto, no entanto, é redefi-
nido na conceituação de delitos e sanções e substitui o órgão au-
tônomo pela CADEC (Comissão Administrativa de Defesa Econômica),
constituída na base de representações de Ministérios; o novo ór-
gão, sem nenhuma estabilidade, terminaria por agir sempre em fun-
ção do poder dominante — ou para proteger ou para destruir as em-
presas (João Agripino, op. cit.).
A Lei Antitruste seria aprovada no governo João Goulart em se-
tembro de 1962, no gabinete parlamentarista de Brochado da Rocha.
Quanto ao projeto de lei regulamentando a remessa de lucros
para o exterior, a divisão no governo era mais radical. A proposta
de João Agripino (elaborada pelo professor mineiro Darcy Bessone)
fixava em 10% da moeda de origem a remessa como remuneração de ca-
pital e que os lucros restantes, reinvestidos, fossem considerados
capital nacional, decorrente de fatores internos. O projeto denun-
ciava, também, a vinda de capital estrangeiro para atividades se-
cundárias ou competitivas desigualmente com nosso capital. O Mi-
nistro da Fazenda defendia uma linha política diferente, que sig-
nificava tributar fortemente a remessa de lucros e liberar o rein-
vestimento. Tal política significaria, a longo prazo, o fortaleci-
mento de poderosos grupos estrangeiros no país. "Pelo projeto Ma-
riani, o capital estrangeiro ingressa livremente, retorna livre-
mente, se estabelece na atividade que lhe convier, remete os lu-
cros sujeito apenas à tributação" (João Agripino, op. cit.).
No governo Goulart a linha nacionalista predomina e resulta na
lei aprovada em setembro de 1962. No entanto, em agosto de 1964,
em pleno governo "revolucionário" do General Castello Branco, a
proposta "entreguista" de Mariani é vitoriosa na nova Lei de Re-
messa de Lucros, inaugurando-se uma política frente ao capital es-
trangeiro definida por Aliomar Baleeiro como a "porta escancara-
da".
A posição de Jânio, na questão, era também marcada pela con-
cepção moralista. Em maio de 1960, ao receber um grupo de sindica-
listas que apoiavam sua candidatura, declarava-se a favor de uma
lei de remessa de lucros, porém "prudente para não assustar os ca-
pitais estrangeiros, e firme para não encorajar o capital estran-
geiro desonesto" (M. Victor, op. cit.).
Além da própria complexidade das questões envolvidas, uma das
principais razões para o desencontro das políticas econômicas do
governo era a total indiferença de Jânio pelas virtudes do plane-
jamento. Seu personalismo extremado, aliado a um certo provincia-
nismo de quem ainda raciocina em termos de Prefeitura e Governo
Estadual, favorecia a situação de isolamento em que passara a go-
vernar, estranho aos complexos meandros da "máquina federal". Nun-
ca trabalhou seriamente em conjunto com os membros dos ministérios
— preferia multiplicar os bilhetinhos — e não conseguiu consolidar
equipes de assessoria técnica, ou grupo de trabalho, como seu an-
tecessor. Em suas campanhas, desde a Câmara Municipal paulista, o
poder público, a burocracia emperrada, sempre fora o alvo princi-
pal dos ataques e denúncias. Na Presidência, via-se despreparado
para enfrentar a questão com eficácia.
O Conselho de Desenvolvimento, do governo JK, foi substituído
por uma Comissão Nacional de Planejamento (COPLAN), que não chegou
sequer a estudar os primeiros projetos de um novo plano qüinqüe-
nal, pois foi nomeada às vésperas da renúncia. Uma Assessoria Téc-
nica, solicitada a apresentar um programa preliminar de planeja-
mento, seria inteiramente esvaziada pela ausência de qualquer di-
retriz do Poder Executivo. A linha administrativa do governo nunca
foi definida. Conta o Ministro João Agripino que Jânio lhe confes-
sara que, "se fosse esperar estudos para tomar decisões, nada de-
cidiria; ao passo que, decidindo de qualquer forma, se a solução
fosse errada, dentro de pouco tempo seu Ministro teria estudos pa-
ra convencê-lo do erro".
Esta ação empírica, isolada, assistemática, impetuosa, sem uma
visão global das medidas, contribuiria não apenas para uma parali-
sia administrativa (frente às crises e ao acúmulo de demandas) co-
mo também para aguçar a instabilidade emocional do presidente.
EM POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL NÃO É MAIS SATÉLITE

"O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite


dos Estados Unidos." Esta declaração do jurista Raul Fernandes,
então Ministro das Relações Exteriores, dá o tom da diplomacia
brasileira na década de cinqüenta. E a recusa dessa estranha noção
de soberania explicaria o sucesso da política externa do governo
Quadros junto aos setores nacionalistas e de esquerda. Assim como
explicaria, no outro lado, a carga de pressões dos grupos políti-
cos e econômicos mais conservadores. Pois a mudança na tradicional
"satelização" significava não apenas reformular o alinhamento in-
condicional com os Estados Unidos em questões internacionais, como
também admitir que havia áreas de atrito entre interesses brasi-
leiros e norte-americanos. Significava, igualmente, a defesa de
uma posição "independente" entre as duas grandes potências mundi-
ais, e uma tentativa de aproximação com o chamado Terceiro Mundo.
Tudo isso não poderia se dar impunemente, num governo marcado por
tantas contradições na área econômica e apoiado por forças políti-
cas antagônicas.
O ponto alto da plataforma janista na campanha de 1960 era a
proposta de abertura na política externa, sobretudo em relação aos
países socialistas: "no meu governo tudo se fará, abrindo as por-
tas do comércio para o mundo, sem distinção de credo político ou
ideológico". Era esta, sem dúvida, a fonte de perplexidades para
os articuladores das candidaturas Lott e Jânio, obrigando-os a um
jogo ambíguo entre posições de "esquerda" e de "direita" (lembre-
se que, ainda como candidato, Jânio visitara Cuba a convite de Fi-
del Castro, convite recusado por Lott).
Em linhas gerais, o programa da política externa independente
incluía os seguintes pontos:

— estabelecimento ou fortalecimento de vínculos comerciais e


diplomáticos com os países socialistas, sobretudo a União So-
viética;
— estabelecimento de relações cordiais com Cuba, e uma posição
de apoio à autodeterminação do povo cubano;
— redefinição do apoio tradicional à política salazarista
quanto às "províncias ultramarinas" (Goa, Damão, Timor e Ma-
cau, na Ásia, e Guiné, Angola e Moçambique, na África);
— solidariedade aos movimentos de emancipação do Terceiro Mun-
do, incluindo a soberania da Argélia e o movimento de Patrice
Lumumba.

Conseqüências diretas dessas posições resultariam na abertura


de novas embaixadas (Senegal, Gana, Nigéria, Etiópia, Congo Kins-
hasa) e na perspectiva de o Brasil apoiar a discussão sobre o in-
gresso da China na ONU. Quanto à América Latina, tratava-se de
manter os princípios da OPA (Operação Pan-Americana, inaugurada no
governo JK) e fortalecer os laços com os países da ALALC (Asso-
ciação Latino-Americana de Livre Comércio). Tratava-se, em especi-
al, de firmar um acordo privilegiado com a Argentina para enfren-
tar a hegemonia norte-americana no continente (lembre-se que data
do início do governo Quadros o lançamento dos planos da "Aliança
para o Progresso" pelo presidente Kennedy).
"Ao lado das forças progressistas da História", no dizer do
chanceler Afonso Arinos, a política independente do Brasil signi-
ficava, ao invés da propalada "comunização", o respeito integral
aos princípios do Direito Internacional Americano: não interven-
ção; autodeterminação; solidariedade coletiva; antitotalitarismo
em geral e anticomunismo em particular. Tratava-se, enfim, de man-
ter o equilíbrio entre a luta pela autodeterminação dos povos e a
luta contra a infiltração do comunismo internacional na América"
(Planalto).
Tais ressalvas do liberal udenista não seriam suficientes para
enfrentar a oposição reacionária e, principalmente, entrosar uma
política externa independente com um governo conservador. Assim é
que a política externa tomar-se-ia o alvo privilegiado dos ataques
dos setores mais reacionários das Forças Armadas, da Igreja, das
Finanças e dos partidos políticos. Como depõe Afonso Arinos, o ir-
redutível reacionarismo da UDN, com sua visão belle époque da di-
plomacia, reivindicava a volta "às normas do Itamarati", de sermos
instrumentos de decisões alheias.
A política externa transforma-se, ainda, no principal elemento
mobilizador do "novo golpismo", pelo qual Carlos Lacerda e segui-
dores (com amplo apoio em seu jornal Tribuna da Imprensa e em O
Globo e O Estado de S. Paulo) tentariam acirrar o anticomunismo
visceral dos militares, as suspeitas dos católicos e o temor das
classes médias. Estavam em questão, evidentemente, os interesses
econômicos do capital associado, da grande imprensa, da influente
comunidade de portugueses no Rio e em São Paulo, que não poderiam
aceitar, entre outras, a política anticolonialista na África e a
agressiva independência em relação aos Estados Unidos.
As medidas concretas para a "abertura" iniciaram-se com as
missões especiais, incumbidas de ampliar ou planejar o intercâmbio
econômico com os países socialistas. A Missão chefiada pelo jorna-
lista João Dantas (que acompanhara Jânio em sua viagem à União So-
viética em 1959) visitou, de abril a junho, os seguintes países:
Albânia, Bulgária, Romênia, Iugoslávia e Hungria, onde foram fir-
mados acordos bilaterais de comércio e pagamento. A Missão Leão de
Moura destinou-se à União Soviética e, finalmente, a Missão chefi-
ada pelo vice-presidente João Goulart, para a China, seria inter-
rompida com a renúncia de Jânio. É importante assinalar que desde
o governo Vargas vigoravam acordos comerciais com países do Leste
europeu, reforçados e ampliados no governo Kubitschek. A inovação
dar-se-ia, com Jânio, na ênfase à ampliação do intercâmbio e na
proposta de reatamento de relações diplomáticas, assim como na in-
clusão da China no roteiro.
Importa assinalar, também, que, ao mesmo tempo que seguia para
o Leste a Missão Dantas, o embaixador Roberto Campos percorria os
países do "Oeste Europeu" (Clube de Haia) e o embaixador Walter
Moreira Salles os Estados Unidos, para negociar as dívidas e le-
vantar novos empréstimos. E, também, é claro, tranqüilizar os tra-
dicionais aliados quanto à permanência do Brasil no bloco ociden-
tal capitalista cristão. A imprensa divulgaria com grande destaque
os resultados dessas duas missões, em termos das "boas intenções"
dos americanos e dos europeus. Lembre-se que tais "bondades" foram
feitas justamente após a fracassada tentativa de invasão americana
em Cuba.
A maior dificuldade encontrada pela Missão Dantas se refere
aos problemas diplomáticos provocados pela aproximação do Brasil
com a República Democrática Alemã. Para os alemães ocidentais
qualquer acordo, de governo a governo, representaria um inadmissí-
vel reconhecimento da Alemanha da "cortina de ferro". O acordo co-
mercial sairia, portanto, "sem nível governamental", resolvendo-
se, no plano externo, o incidente diplomático. No plano interno a
crise culmina com a demissão do Secretário-geral do Itamarati,
Vasco Leitão da Cunha, que, motivado por informações alarmantes de
Roberto Campos, desautorizara a Missão Dantas junto ao governo de
Pankov.
A invasão de Cuba patrocinada por grupos econômicos e milita-
res norte-americanos, e com ampla cobertura do presidente John
Kennedy, agravaria a polêmica sobre os rumos "comunizantes" da po-
lítica externa. A posição brasileira contra a invasão, e a favor
da autodeterminação do povo cubano, seria violentamente atacada
por Carlos Lacerda e demais setores da direita organizada. Em en-
trevista à televisão americana, Lacerda declarou-se enfaticamente
favorável à intervenção militar em Cuba. Na televisão brasileira
diria: "No momento o Brasil apóia uma das mais sanguinárias, uma
das mais torpes, uma das mais sujas ditaduras do mundo, pois, no
momento, é a nação que fortifica a tirania de Fidel Castro no con-
tinente". O Embaixador americano John Moors Cabot acrescentaria
que o Brasil estava "comprometido" com Cuba, o que desapontava os
Estados Unidos. O jornal O Estado de S. Paulo sintetizava a polê-
mica: "O Sr. Jânio Quadros decidiu imprimir à rota de seu governo
uma guinada para a esquerda" (Mário Victor, op. cit.).
Toda medida entendida como essa "guinada para a esquerda" re-
percutia na imprensa norte-americana, para a qual "o colosso do
Norte" (expressão local deles) não se conformaria com o desvio de
órbita de um de seus mais fiéis e importantes satélites.
Um exemplo é elucidativo. O Itamarati anuncia que votaria, na
ONU, a favor da discussão da entrada da China; não se tratava de
apoiar a entrada, mas simplesmente de admitir a discussão da maté-
ria em Assembléia. Jornalistas americanos consideraram a posição
brasileira "uma bofetada direta nos Estados Unidos" (A. Arinos,
Planalto).
Outra medida de intensa repercussão nacional foi a divulgação
das providências tomadas pelo governo para o restabelecimento das
relações diplomáticas com a União Soviética. A Cruzada Brasileira
Anticomunista pichou muros, a grande imprensa acompanhou a viru-
lência lacerdista e associações de classe, como a CONCLAP, vieram
a público manifestar seu desacordo. Pelas palavras do deputado pe-
decista, Monsenhor Arruda Câmara, expressava-se a "maioria silen-
ciosa" dos católicos tradicionais, "apontando o inconveniente de
se criar esta cabeça de ponte, este ninho de serpentes dentro do
Brasil". A defesa de Afonso Arinos — além de invocar o exemplo de
Roma, com sua embaixada soviética — baseava-se nos critérios obri-
gatórios do intercâmbio econômico, pois tratava-se de "vencer a
etapa dos mercados tradicionais, cuja saturação na absorção dos
nossos produtos é evidente" (Mário Victor, op. cit.). As relações
diplomáticas com a União Soviética, no entanto, só seriam restabe-
lecidas no governo Goulart.
Os interesses econômicos que sustentavam a política externa
independente seriam sempre, aliás, enfatizados pelo presidente
Quadros. Se, por um lado, ele insiste no "dever de formar uma
frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as
formas de opressão", reafirma, por outro, que "a rejeição do colo-
nialismo não implica numa solidariedade platônica, mas consoante
os interesses nacionais (...) A exploração dos africanos pelo ca-
pital europeu é prejudicial à economia brasileira (...) A idéia
por trás da política externa do Brasil tornara-se agora o ins-
trumento para uma política de desenvolvimento nacional" (Jornal do
Brasil, 27/9/61). E, finalmente, concluía Jânio que "os interesses
materiais não conhecem doutrina".
Essas declarações são significativas. Pois já se tornou lugar
comum apontar, como principal causa para o malogro do governo Qua-
dros, o acúmulo de tensões divergentes, provocadas pela defesa si-
multânea de uma política externa progressista e uma política in-
terna conservadora. Se a afirmação contém sua dose de verdade —
aliás confirmada pelos fatos e pela confissão de "esmagamento" do
presidente renunciante —, é preciso adiantar a análise levando em
conta argumentos da "lógica de interesses", entre o progressismo
para fora e o conservadorismo para dentro... Não estão em causa, é
claro, a sinceridade dos formuladores da nova diplomacia; não im-
porta, igualmente, o grau de lealdade com que Jânio tratou os no-
vos parceiros. O que deve ser questionado é, exatamente, o aparen-
te paradoxo. Até que ponto não haveria razões objetivas para jus-
tificar uma agressividade diplomática justamente em nome dos inte-
resses de uma política econômica conservadora?
O sociólogo Octavio Ianni entende a abertura para o Leste como
uma política de resultados políticos e econômicos de amplo alcan-
ce. Politicamente o Brasil escapava à chantagem da "guerra fria"
ao mesmo tempo em que reduzia sua dependência frente aos Estados
Unidos, abandonando a "diplomacia subsidiária", e se aproximando
do Terceiro Mundo. No plano econômico era uma saída satisfatória
para o tipo de industrialização vigente, resultado do desenvolvi-
mento acelerado do qüinqüênio precedente, que levara à alta taxa
de capacidade ociosa.
Já para Brás Araújo, a política externa independente não ape-
nas expõe, de maneira clara, as contradições do sistema político
marcado pelas regras do capitalismo dependente, como se insere nu-
ma lógica própria. Ou seja, a exigência de novos mercados explica
a ofensiva diplomática assim como as "representações ideológicas"
para justificar a conquista desses novos mercados. As necessidades
objetivas do capitalismo brasileiro não dependeriam nem da "vonta-
de" de um Executivo forte, nem mesmo de um "bloco no poder". A de-
pendência do sistema, no entanto, provocaria a contra-ofensiva,
também lógica, do imperialismo americano e europeu (sobretudo ale-
mão) e de seus aliados internos, tanto na burguesia industrial
quanto na latifundiária.
Carlos Estevam Martins acrescenta um outro aspecto: o peculiar
tipo de nacionalismo janista, como principal instrumento de rede-
finição do processo de desenvolvimento brasileiro. A pressão li-
vremente exercida pelos capitais e pelas autoridades brasileiras
era considerada como principal obstáculo à expansão do capitalismo
brasileiro; tratava-se, portanto, de recorrer à tática que consis-
tia em explorar os temores suscitados nos Estados Unidos quanto à
"sovietização" da América Latina. "Vendo-se forçado a atender às
exigências do FMI e estando convencido, por causa da crise cubana,
de que Washington só se dispõe a atitudes benevolentes quando con-
frontado com um clima de urgência internacional, Quadros passou a
lançar mão do que havia a seu alcance para criar apreensão e alar-
me a respeito dos rumos de seu governo e assim fortalecer seu po-
der de barganha nas mesas de negociação. Tratava-se de elevar o
Brasil ao status de aliado privilegiado, de garantir a ajuda nor-
te-americana em condições tais que o processo de acumulação pudes-
se prosseguir com o mínimo de prejuízo para o capital nacional e o
máximo de entusiasmo popular" (Cadernos CEBRAP, nº9, 1972).
É nesse sentido que não se pode aceitar que a abertura para os
países socialistas e o apoio às lutas anticolonialistas conferia
ao governo Quadros uma visão de esquerda. A ambigüidade de Jânio
em relação às esquerdas sempre foi dosada pelo mais visível opor-
tunismo. Em momento algum demonstrou qualquer compreensão, por
exemplo, pela legalização do Partido Comunista; "os comunistas são
irrecuperáveis para a democracia", dizia. Ao contrário, sua apro-
ximação com as esquerdas era feita justamente através de contatos
com lideranças marginais à organização. Essa política de aproxima-
ção fragmentada tinha a grande vantagem de conseguir dividendos
externos, sem se comprometer com a "subversão" interna.
A análise de Carlos Estevam é ainda esclarecedora. "Para evitar
o alijamento prematuro de suas bases conservadores, e, ao mesmo
tempo, tornar-se palatável para o gosto americano, o janismo tempe-
rou seu radicalismo externo com uma importante concessão à direita:
o escalonamento de graus de independência da política exterior
(...) O governo manter-se-ia aquém da fronteira que separa a posi-
ção independente — avessa às imposições políticas ou ideológicas
que limitam as relações comerciais e diplomáticas com outros países
— da posição neutra, que se recusa a honrar os compromissos inter-
nacionais relacionados com a defesa do bloco ocidental, e do conti-
nente, em particular, face à ameaça da agressão comunista. Concre-
tamente, essa orientação manifestou-se na recusa oficial ao convite
para participar da reunião dos neutros em Belgrado" (op. cit.).
Esse equilíbrio entre "independência" e "neutralidade" (Afonso
Arinos insistia na diferença entre neutralismo e neutralidade) su-
gere as ambigüidades da posição brasileira. Embora condenando a
invasão de Cuba, por exemplo, a delegação brasileira na ONU termi-
na por se abster de votar a proposta mexicana — apoiada por Cuba —
e acompanha os Estados Unidos na resolução final, vaga e inócua,
que apenas recomendava aos Estados-Membros procurar intervir com
"medidas pacíficas". A nota do Itamarati, aliás, era muito clara
na condenação implícita aos "rumos socialistas" da revolução cuba-
na, pois insistia que "a não intervenção opõe-se a toda dominação
econômica ou ideológica" e defendia a democracia representativa.
E, apesar dos princípios do anticolonialismo, o Brasil abstém-
se de votar a favor de Angola (e contra Portugal) nas sessões da
ONU de março-abril de 1961. O embaixador brasileiro chegou a tecer
elogios públicos "à obra portuguesa em Angola". E o governo brasi-
leiro não veria inconveniente em reforçar suas relações com a
África do Sul (Brás Araújo).
Apesar das ambigüidades e contradições, mescladas a um certo
oportunismo, a política externa janista tornou-se o principal ele-
mento precipitador da ruptura irreversível entre as forças, já
contraditórias, que compunham o governo. Se a esquerda apóia a lu-
ta antiimperialista e a aproximação com os países socialistas (na
crença implícita de uma "revolução pelo alto"), a direita passa a
temer com mais vigor a ameaça do comunismo internacional. Os dois
grandes partidos nacionais, PSD e UDN, mantêm-se divididos, res-
tando o apoio unânime da ala mais avançada do PTB e seus aliados
comunistas.
A condecoração de Ernesto "Che" Guevara, de passagem pelo Bra-
sil vindo da Conferência de Punta del Leste (onde desmascara a
Aliança para o Progresso), foi a chamada gota d'água. O Ministro
de Economia de Cuba é condecorado por Jânio Quadros com a Grã-Cruz
da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul a 18 de agosto. A repercussão
nos meios militares e na imprensa foi a mais intensa deste gover-
no. No episódio, Jânio revelaria não apenas oportunismo (no caso,
mal conduzido), como os traços de seu conhecido estilo personalis-
ta e autoritário. Não consultou seu Ministro das Relações Exterio-
res nem os ministros militares e membros do Conselho da Ordem.
Cortejou as esquerdas com um presente de grego e comprou, sem ne-
cessidade e sem "lucros", um casus belli com a Igreja, os milita-
res (alguns devolveram sua condecoração) e os setores mais conser-
vadores do país, orquestrados na campanha liderada por Carlos La-
cerda. Este, em resposta imediata ao ato presidencial, condecora
no Palácio das Laranjeiras um político cubano em viagem de propa-
ganda anticastrista.
A condecoração a Guevara não fez avançar a posição progressis-
ta dos grupos políticos já solidários com a revolução cubana. Pelo
contrário, o efeito devastador causado pela cerimônia foi negativo
para as esquerdas brasileiras. Tratava-se, então, de justificar o
ato do presidente, desvesti-lo do aspecto de "provocação", defen-
dê-lo perante a opinião pública manipulada pela grande imprensa em
sua quase unanimidade. Isso significava, além do óbvio desgaste,
um desvio da verdadeira luta pelo reconhecimento dos rumos do so-
cialismo cubano. No final das contas o país nada ganhou com a bra-
vata de seu presidente — e o movimento por uma política externa
independente, coerente e responsável, saiu desgastado.
Uma semana após a polêmica condecoração, Jânio Quadros renun-
ciava à Presidência da República.
A RENÚNCIA

"Ninguém perturbará a ordem deste país comigo vivo. Ninguém! E


eu não aconselharia, quem quer que seja, a tentá-lo" (25 de março
de 1961). "Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo (...)
Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim
e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da colaboração. Se
permanecesse não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora que-
bradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio,
mesmo, que não manteria a própria paz pública" (25 de agosto de
1961).
Cinco meses apenas separam as duas declarações, expressivas do
início e do fim desse breve governo marcado pelas contradições e
ambigüidades. Ambigüidades tanto decorrentes da personalidade do
presidente, quanto das expectativas e posições, reciprocamente
contraditórias, dos diversos grupos sociais que o apoiavam (Hélio
Jaguaribe). E que teriam efeitos deletérios para o desenvolvimento
do sistema democrático no país. Por quê? Até que ponto é correto
imputar a um governante tão pesada carga de responsabilidade por
um sinistro futuro?
É claro que um homem não faz sozinho a história. Mas é impos-
sível negar a responsabilidade do presidente, num sistema presi-
dencialista, e sobretudo daquele presidente que quis governar
"acima dos partidos" e com forte apoio nos militares. Como é difí-
cil esquecer que, pela primeira vez na República de 1946, um pre-
sidente civil recebera a faixa presidencial de outro civil, no
prazo marcado pela Constituição. O que inspirava grandes esperan-
ças quanto à consolidação do regime democrático. Mas o perso-
nalismo autoritário de Jânio, o bonapartismo, o moralismo que de-
semboca no golpismo — temas da discussão nas páginas precedentes —
contribuiriam, de maneira inequívoca, para a crise que "se resol-
ve" em 1964.
Em primeiro lugar, pela consolidação da intervenção militar na
cena política, graças ao papel privilegiado concedido aos milita-
res, em detrimento das forças civis. Em segundo lugar, pela exa-
cerbação da extrema-direita organizada, que se mobiliza sobretudo
pelos aspectos contraditórios da "política externa independente".
Em terceiro lugar, pela conseqüente radicalização, no outro extre-
mo, dos setores populares e de esquerda. Estes, profundamente le-
sados pelo não cumprimento das promessas de efetivas transforma-
ções sociais, sobrecarregariam o governo Goulart de demandas in-
sustentáveis num sistema político ainda dominado pelos interesses
das oligarquias, das elites financeiras e do capitalismo interna-
cional, afinal não atingidos pelos raios punitivos do moralismo
janista.
Cabe lembrar, igualmente, a responsabilidade da UDN e de seu
ambíguo liberalismo, ao permitir a ascensão de Carlos Lacerda, que
se torna, para a opinião pública, o líder nacional do partido. Re-
vigorava-se, assim, o golpismo, fugazmente amortecido na segunda
metade do governo Kubitschek pela expectativa de vitória nas elei-
ções com Jânio. O novo golpismo, desta vez ideologicamente apoiado
no anticomunismo e no antinacionalismo — e não mais no antigetu-
lismo — dirigia-se contra supostas disposições golpistas do presi-
dente, na reedição dos "contragolpes preventivos". Significava,
também, o nítido distanciamento entre a ala radical da UDN carioca
e o udenismo dos "históricos" (Milton Campos, Afonso Arinos,
Adaucto Lúcio Cardoso, entre outros). Significava, acima de tudo,
que a nova frustração com uma falsa vitória (os udenistas reclama-
vam da marginalização política imposta por Jânio) não seria absor-
vida pela retórica dos bacharéis. E assim como a UDN aceitaria,
até com certo alívio, a renúncia de Jânio, aceitaria também o re-
gime militar instalado após a deposição do presidente João Goulart
(M. V. Benevides, op. cit.).
Carlos Lacerda seria o avesso do autoritarismo janista. E o
avesso de seu golpismo. Pois ao golpe de Jânio responderia o golpe
de Lacerda, ou vice-versa, clamando, ambos, por um certo tipo de
intervenção militar (H. Jaguaribe).
Os fatos imediatamente precedentes à renúncia têm, como prota-
gonista, justamente o governador da Guanabara. O pano de fundo
compõe-se do clima de denúncias sobre a "comunização" do Itamarati
e, sobretudo, pelo profundo ressentimento de Lacerda — que não era
considerado, como o desejava, "o parceiro privilegiado" do governo
federal. Num primeiro momento trata-se do famoso "caso da mala".
Lacerda sente-se insultado pelo fato de sua bagagem ter sido colo-
cada na portaria do palácio da Alvorada, onde esperava hospedagem
"oficial". Num segundo momento, Lacerda (e não por acaso a 24 de
agosto) pronuncia um violento discurso na televisão acusando o
presidente de intenções golpistas. Declara ter sido duas vezes
convidado pelo Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, para par-
ticipar do golpe (lembre-se que esta era uma atitude comum a La-
cerda; entre outras coisas, denunciara o convite para participar
do levante de Aragarças, em fins de 1959, por seus próprios alia-
dos, oficiais da Aeronáutica).
As denúncias de Lacerda causam um grande impacto e a Câmara
dos Deputados solicita o comparecimento do Ministro da Justiça. No
dia seguinte, após presidir as solenidades do Dia do Soldado, Jâ-
nio envia ao Congresso documento apresentando sua renúncia à pre-
sidência da República.
Aparentemente Jânio esperava voltar "nos braços do povo". Con-
fiava demais na "ignorância das massas" e naquilo que Max Scheller
chama "democracia das emoções". Confiava no temor dos militares e
da direita em geral com a "ameaça" da posse de João Goulart (pois
era o herdeiro de Getúlio, de memória associada a temíveis pactos
"comunistas" ou "sindicalistas"...). Confiava, também, no temor da
esquerda com a possível instalação de uma junta militar no gover-
no, se declarado acéfalo, pois o vice-presidente encontrava-se em
missão oficial na China. E assim, contando otimisticamente com a
repercussão na opinião pública (afinal, eram seis milhões de vo-
tos!), entre os militares, na direita e na esquerda, imaginava,
talvez, o ressurgimento de um novo "queremismo". Um "queremos Jâ-
nio" (num pastiche ao queremismo getulista que garantira a volta
de Vargas em 1950) que lhe daria respaldo para reassumir a Presi-
dência com poderes discricionários. Talvez sonhasse mais longe, do
exemplo de Getúlio para a história de De Gaulle.
As intenções do presidente ficariam mais claras com o depoi-
mento de seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco, que
lhe atribui as seguintes declarações, ainda na Base Aérea de Cum-
bica, onde se refugiara após a renúncia: "Não farei nada para vol-
tar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses,
se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplan-
tação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coi-
sas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas
decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém, que reúna
esses três requisitos" (Realidade, nov., 1967).
Não houve a esperada comoção popular. Não havia, aliás, nenhum
"dispositivo sindical" — como ocorreria para a posse de Goulart —
que pudesse ser mobilizado para neutralizar a renúncia. Jânio in-
compatibilizara-se com o movimento sindical pela própria política
de "despolitizar" o Ministério do Trabalho e a Previdência Social.
A maioria no Congresso, representada pela aliança PSD-PTB,
prontamente aceitou a renúncia. O presidente da Câmara, Ranieri
Mazzili, assume a Presidência, interinamente, e a questão da in-
vestidura de Goulart passa a dominar o cenário político, numa gra-
víssima conjuntura conspiratória e golpista, a partir do momento
em que os ministros militares deixaram clara sua oposição à posse
do vice-presidente. Pela ação legalista liderada pelo governador
gaúcho Leonel Brizola e pelo comando do III Exército, com apoio de
amplos setores sociais e políticos, o golpe é evitado e o parla-
mentarismo é adotado como solução de compromisso. João Goulart as-
sume a chefia do governo a sete de setembro, iniciando uma breve
experiência parlamentarista. Seu governo, marcado por inúmeras
crises, porém polarizador da mais intensa mobilização social e po-
lítica da história brasileira contemporânea, contribuiria para
acuar a direita em posições cada vez mais golpistas e reacioná-
rias.
Se a argumentação que atesta a tentativa de golpe de Jânio tem
sérios respaldos — inclusive pelas suas declarações posteriores —
é preciso levar em conta, igualmente, o clima altamente "golpis-
ta", alimentado por Lacerda e seguidores. Seria possível falar,
talvez, de dois golpes em marcha; o de Jânio, pela volta ao gover-
no com poderes especiais, e o de Lacerda, que certamente ainda
acalentava o "estado de exceção" defendido abertamente desde os
tempos de Getúlio Vargas. Seria um golpe da direita militar, a
mesma que tentaria, em vão, impedir a investidura constitucional
do vice Goulart. Nesse sentido, o golpe gorado de 1961, para La-
cerda ou para Jânio, fora um ensaio de 64.

* * *

Do ponto de vista do desempenho de Jânio, retoma-se o tema da


campanha contra a corrupção. Parece evidente que há muito mais
oportunismo (e nenhuma ingenuidade) neste estilo que pretende fa-
zer crer na força intrínseca da austeridade e da honestidade para
impulsionar o desenvolvimento e consolidar a justiça social. Em
momento algum entram em causa o questionamento do regime capita-
lista, as relações de forças, o problema das classes, enfim. Ali-
ás, o janismo nunca foi um movimento para organizar as massas, mas
para manipulá-las, no pior sentido do populismo autoritário e,
justamente, desmobilizador no plano da verdadeira participação.
Convém lembrar, ainda, que a vassoura não era o símbolo ino-
cente que sua inspiração doméstica pode insinuar. Mesmo apelando
para as imagens mais tolas, a vassoura tanto pode servir para var-
rer, como para, na superstição popular, afastar visitantes indese-
jáveis. Na discussão sobre o moralismo janista já se disse que a
varredura implicava em diversas versões de "sujeira". Que podia
ser a "sujeira da corrupção", como também a da "plebe" que quer se
mostrar — em toda sua "sujeira" — participar, reivindicar... "su-
jar o palco", enfim (Souza e Lamounier, op. cit.).
O mais importante é entender que o império da vassoura prepa-
rou o caminho para o domínio da espada. A política autoritária e
mesquinha, inspirada na máxima "governar é punir", transformara o
país num imenso quartel de inquisição. O incentivo às delações, o
aplauso às "apurações rigorosas" (em muitos casos sem direito aos
processos competentes de defesa) nas numerosas comissões de sindi-
câncias, com a responsabilidade centralizada nas mãos dos milita-
res, abriria o caminho para a instalação do esquema burocrático-
punitivo após 64.
Ainda quanto aos militares, observe-se que a impetuosidade e o
empirismo do presidente no trato das graves questões econômicas e
administrativas permitia a eclosão das divergências entre seus mi-
nistros (sobre remessa de lucros, sobre a 204, etc.) e tornava in-
viável a proposta de uma assessoria técnica para o planejamento.
Tal situação levaria os militares aos postos realmente importantes
do governo, especialmente os membros da Casa Militar, que, organi-
zada e ativa, incumbia-se das grandes tarefas — como, por exemplo,
os encontros com os governadores nos estados — e da "luta contra a
corrupção e a subversão". Assim, o governo Quadros teria con-
tribuído decisivamente para reforçar o papel "avalista" das Forças
Armadas, na linha seguida após 64, e na antiga lição dos liberais
em descaminho, de que "fora do Exército não há salvação".
O estilo de Jânio e sua renúncia contribuíram, também, para a
desmoralização do processo eleitoral e, conseqüentemente, da par-
ticipação democrática. Significa o desprezo, profundamente arrai-
gado no pensamento elitista (do qual o populismo acaba sendo o ou-
tro lado da moeda), pela legitimidade da participação popular. A
descrença consagrada de que "o povo não sabe votar" termina por se
tornar uma potente arma ideológica da direita, para incutir no po-
vo a percepção negativa de seus direitos políticos de cidadãos. Se
seu voto nada vale, para que votar? É nesse sentido que se pode
falar, como o jornalista Mino Carta, que "homens como Jânio con-
tribuíram para manter o Brasil distante da contemporaneidade".
É nesse sentido que ao janismo não interessa, efetivamente, o
desenvolvimento político e social do país. A demagogia teatral, o
moralismo maniqueísta, o personalismo arrogante, só podem vingar
no atraso decorrente da fragilidade das instituições e da mani-
pulação das classes populares.
Como indica Francisco Weffort, "o populismo trás em si a in-
consistência que conduz inevitavelmente à traição. Não obstante, o
mais hipócrita dos populistas nunca pode ser totalmente infiel à
sua massa; ele trairá, mas há limites para a traição além dos
quais a imagem do líder começa a se dissolver". Vinte anos trans-
corridos após a renúncia, o ex-presidente não consegue explicar o
gesto. A traição à massa talvez esteja mais clara numa de suas de-
clarações significativas: "O verdadeiro estado democrático é o
elitário" (Jornal do Brasil, 29/4/76).
Retomando a análise de Weffort, "donde vem a força que a massa
ilusoriamente atribui ao líder? Dela mesma, evidentemente. Quadros
foi apenas uma expressão do impulso popular, sua ideologia ambígua
foi apenas a expressão mistificada e mistificadora das condições
de existência do proletariado, num momento determinado de sua for-
mação como classe". Mas o falso carisma e os vícios do populismo
autoritário são rechaçados, e cada vez com mais vigor, à medida
que os trabalhadores organizam-se. E dirigem seu movimento, a par-
tir das bases e com lideranças autênticas, para a construção da
democracia.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org


INDICAÇÕES PARA LEITURA

1. Não existe, de meu conhecimento, uma obra de história polí-


tica específica sobre o desempenho da presidência Jânio Quadros. O
trabalho de maior fôlego, até o momento, ainda é a tese inédita de
Brás José de Araújo (Paris, 1970), que analisa o período em termos
das contradições entre capitalismo dependente e política externa
independente. A tradução encontra-se no prelo da Editora Graal.
O livro de Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram o Brasil, Ci-
vilização Brasileira, 1965, constitui útil fonte de consulta com
uma abordagem jornalística e interpretação pessoal favorável a Jâ-
nio Quadros. Igualmente favorável é o livro de Castilho Cabral,
Tempos de Jânio e Outros Tempos, Civilização Brasileira, 1962, e o
de Viriato de Castro: O Fenômeno Jânio Quadros, edição pessoal,
1959 (este abrange só até o governo estadual, e é muito engra-
çado!).

2. As análises de Francisco Weffort são fundamentais para a


compreensão do fenômeno janista e o sentido desse novo populismo.
Ver, principalmente: "Raízes Sociais do Populismo em São Paulo",
Revista Civilização Brasileira, nº 2, 1965; O Populismo na Políti-
ca Brasileira, Paz e Terra, 1978, e "Algumas Questões para a His-
tória do Período 1945-1964", Revista de Cultura Contemporânea, CE-
DEC, nºs 1e 2, 1979 e 1980.
O significado do governo Quadros (e as relações com o sistema
partidário), ainda durante sua vigência, é analisado por Guerreiro
Ramos em A Crise do Poder no Brasil, Zahar, 1961. Ver, também,
dois excelentes artigos: o de Hélio Jaguaribe, "A Renúncia do Pre-
sidente Quadros e a Crise Política Brasileira", Revista Brasileira
de Ciências Sociais, nº 1, 1961; e o de Maria do Carmo Souza e Bo-
lívar Lamounier: "Jânio, Três Momentos na Vida de um Político",
Revista Isto É, nº 4, agosto de 1976.

3. Do ponto de vista do janismo, eleições e partidos políti-


cos, existem vários bons artigos. De Oliveiros Ferreira: "Compor-
tamento Eleitoral em São Paulo", Revista Brasileira de Estudos Po-
líticos, nº 8, abril de 1960. De Gláucio Soares: "Classes Sociais,
Strata e as Eleições Presidenciais de 1960", Revista Sociologia,
nº 3, 1961. De Bolívar Lamounier e Fernando Henrique Cardoso os
capítulos 2 e 3 do livro Os Partidos e as Eleições no Brasil, Ce-
brap/Paz e Terra, 1975. De Paulo Singer, "A Política das Classes
Dominantes" in Octavio Ianni e outros, Política e Revolução Social
no Brasil, Civilização Brasileira, 1965. E uma boa análise do ja-
nismo, quando esteve associado aos movimentos populares em São
Paulo (as Sociedades de Amigos de Bairros) encontra-se na tese de
José Álvaro Moisés: Protesto Urbano e Democracia, no prelo. Sobre
as relações da União Democrática Nacional com Jânio e o moralismo,
assim como sobre a história da campanha presidencial de 1960, ver,
de Maria Victoria Benevides: A UDN e o Udenismo, Paz e Terra,
1981.
4. As memórias de Afonso Arinos de Melo Franco são importantes
para se ter uma "visão de dentro" da política externa e das con-
tradições no próprio governo: A Escalada (1965) e Planalto (1968),
Editora José Olympio. Carlos Estevam Martins, em Brasil—Estados
Unidos dos 60 aos 70 (Cadernos CEBRAP nº 9, 1972), aborda a polí-
tica externa no âmbito das propostas nacionalista e desenvolvimen-
tista. Um estudo formal da ideologia, através dos discursos do
presidente Quadros, é feito por Miriam Limoeiro Cardoso em Ideolo-
gia do Desenvolvimento: Brasil JK, JQ, Paz e Terra, 1978. Para os
que desejam compreender melhor a extensão da política externa, nos
governos Jânio e Goulart, ver de San Tiago Dantas: Política Exter-
na Independente, Civilização Brasileira, 1962, e de José Honório
Rodrigues: "Uma Política Externa Própria e Independente", in Polí-
tica Externa Independente, nº 1, maio 1965.

5. Uma avaliação do governo, incluindo as "razões da renúncia"


— em versão supostamente oficial, pois avalizada pelo ex-
presidente — encontra-se no Vol. VI de História do Povo Brasilei-
ro, de Afonso Arinos e Jânio Quadros, J. Quadros Ed., 1968.

6. O capítulo de Manoel Maurício de Albuquerque em Pequena


História da Formação Social Brasileira (Graal, 1981) aponta as
contradições e dificuldades do governo Quadros no contexto das re-
lações de classes.
O de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (Paz e
Terra, 1970), contém um útil resumo do governo, com boas referên-
cias bibliográficas.

7. Sobre a posição da esquerda frente ao governo ver os núme-


ros 36 e 38 da Revista Brasiliense, com artigos, entre outros, de
Caio Prado Jr. e Theotônio dos Santos (1961) e a coleção do sema-
nário Novos Rumos.
Sobre a Autora

Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares é socióloga, com


mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de Sâo
Paulo. Integra a direção do Centro de Estudos de Cultura Contempo-
rânea, CEDEC, onde participa dos trabalhos de pesquisa (Movimentos
Sociais e Direitos de Cidadania) e do Setor de Documentação, vol-
tado especificamente para a problemática das classes populares.
É autora de dois livros: Governo Kubitschek, Desenvolvimento
Econômico e Estabilidade Política (1976) e A UDN e o Udenismo, Am-
bigüidades do Liberalismo Brasileiro (1981), ambos editados pela
Paz e Terra. Com Francisco Weffort e Bolívar Lamounier editou o
volume Direito, Cidadania e Participação (T. A. Queiroz, Ed.,
1981), resultado de um seminário nacional, do mesmo nome, realiza-
do sob o patrocínio da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1979.
Trabalha, atualmente, numa pesquisa do CEDEC sobre Violência
Urbana. Neste campo publicou, a partir de uma solicitação da Co-
missão de Justiça e Paz de São Paulo: "Linchamentos, Violência e
'Justiça' Popular", in revista Espaço e Debates, nº 3, Ed. Cortez,
1981.
É colaboradora do Dicionário Histórico-Biográfico e do Depar-
tamento de História Oral do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas,
Rio.
Nasceu no Rio de Janeiro em 1942.
É mãe de Daniel, André e Marina.

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