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Autor: José Murilo de Carvalho

Título: "Militares e Civis: um Debate além da Constituinte"

GT: Elites políticas

Trabalho apresentado ao XI Encontro Anual da ANPOCS

Águas de são Pedro

1987
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ll'ORNAL DO BRASIL
Brasflia - Luiz Anlbmo Ribeiro

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Militares e Civis: um Debate além da Constituinte*

José Murilo de Carvalho


IUPERJ/FCRB

Da Autocrítica e do Varejo

Não apresento resultados de investigação nova. Transmito


reflexões que são produto da conjunção de dois fatores. De 11m
lado, a já longa, embora intermitente, convivência com o tema
dos militares i de outro, a observação do ..
debate atual sobre o
papel constitucional dos militares. A oportunidade para o amadu
recimento dessas reflexões deu-se durante reunião de um grupo
de trabalho, patrocinada pelo Social Science Research Council,
------------~--
realizada no Rio de Janeiro no início de 1987. Sou um pouco d~
vedor a todos os participantes do grupo mas sou-o especialmeg
te a Alfred Stepan, cujas idéias sobre a necessidade de autoca
pacitação dos civis em matéria militar são aqui incorporadas e
desenvolvidas.l)

Afasto-me do grosso dos estudos sobre militares em geral,


inclusive dos meus próprios, e sobre militares e constituinte
em particular, em dois pontos. O primeiro consiste em deslocar
a ênfase na acusação dos militares para a ênfase na autocrítica
dos civis. Explico-rre.Predomina nos estudos sobre militares, certamente
naqueles feitos por civis, a tendência de atribuir a eles quase
que exclusivamente a responsabilidade pelas intervenções na po
lítica. Estudam-se a organização militar, a ideologia militar,
a origem social dos militares, a profissionalização militar, em
busca de elementos que expliquem as intervenções. Depois dos
anos de governo militar, a busca de explicação por fatores mili
/'
tares adquire a característica adicional de indignação moral e
e de acusação contra a farda.

*Agradeço os comentários dos integrantes do grupo de estudos


de conjuntui.a d1 IUPERJ, patrocin \o pela Fundação Naumann,
feitos quando de primeira apr sentação das idéias contidas nes
te texto.
., 2

Todos estes estudos sao necessários e úteis. Como arg~


mentarei a seguir, se há algo errado com eles é que sao muito
poucos. Igualmente, a indignação é perfeitamente justificável
diante do que aconteceu nos últimos vinte anos, particularmente
diante da tortura e de outras formas de violação dos direitos
humanos. Mas tratando-se particularmente do esforço legislati
vo no sentido de reduzir, senão eliminar, o militarismo, a ~
titude de culpar exclusivamente, ou mesmo predominantemente, os
militares pode levar a ilusões amargas. Pretendo argumenta~que
boa parte da responsabilidade cabe também aos civis, inclusive
aos da academia, isto é, a nós. A responsabilidade vai desde a omissão
diante da intervenção militar até à aberta conivência e é de pes
soas de todo o es.pec+r o ideológico. A esquerda tem sido omissa,
a direita conivente.

o segundo ponto em que me distancio da maioria das análi


ses consiste em outro desvio de ênfase, agora do atacado para o
varejo, do macro para o micro. Explico-me novamente. Muitas a
nálises das intervenções militares tendem a atribuí-Ias a fato
res estruturais da sociedade, +a í.s :como a posição do país no
sistema capitalista, a natureza da luta de classes, o tipo de
modernização por que passa o país, e assim por diante. No deba
te constituint~, a tendência é nítida no sentido de dar ênfase
ao aspeto macro de definição do papel constitucional das forças
armadas em detrimento de medidas menos abrangentes, que sao me
nos atraentes do ponto de vista político, mas talvez mais efic~
zes do ponto de vista prático. Pode-se argumentar que consti
tuição deve mesmo cuidar de aspetos macro, de princípio. Mas em
outras áreas, inclusive nas das relações de trabalho, tem-se en
trado amplamente em aspetos mais próprios da legislação comum.
De novo, não se trata de desqualificar as preocupaçoes com o as
peto macro do debate constituinte e eu mesmo já tratei o proble
ma nesta perspectiva.2) Discutir o papel constitucional da~
forças armadas, da submissão dos militares ao poder civil legal
e legitimamente constituído, da cidadania do militar, tudo isto
e relevante e deve ser feito. Meu ponto aqui é que o debate fi
ca quase so a este nível e se abandona, no Congresso e fora de
le, a preocupação com aspetos menos gerais como a organização e
o controle do SNI, a organização e o controle do Conselho de Se
gurança acional, o processo de formulaç~o da política de
s-; ",":ional, 3 pr(,·Jr.;"a. fnr,)uld;;,~.:) -~;:)l.·~·lí~') ~d mi.Lí t.a r ,

tar apenas alguns. Sem a l.arie r o 1:>


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na militar de controle político e que, por t.aut.o , .•.-;~,(r:'t. ;'l.,' .....
res custos para os que o enfrentam.

Da Omissão Civil

A longo prazo, o problema do intervencionismo militar so


sera resolvido se grande parte do que foi colocado sob a ótica
e o controle militar passar a ser visto também pela ótica civil
e passar ao controle civil. Melhor di to, só sera resolvido se
deixar de ser problema militar ou civil para se tornar problema
nacional. Afirmo que os civis se têm omitido sistematicamente
em relação aos problemas de organização das forças armadas e de
defesa nacional. Vou expor dois exemplos mais gritantes de (,
missão, o da comunidade acadêmica e o dos políticos.

Do Veto aos Estudos Militares

Existe na comunidade acadêmica brasllelra, na verdade na


comunldade acadêmica latino-americana, um veto aos estudo'" mili
tares. são pouquíssimos
os pesquisadores que se dedicam ao te
- . - 3)
ma e os que o fazem como que tem que desculpar-se por faze-lo.
O tema não tem legitimidade acadêmica, ou teórica, e é cons'de
rado suspeito do ponto de vista político. Quem escreve sobre ml
litares corre o risco de ser considerado simpático a insti~ui
ção militar e a sua ideologia. Tal omissão, com as poucas exc~
çoes que começam a surgir e que serao apontadas ':'lais.àfrente I

é escandalosa e chocante tendo-se em vista a esmagadora, no sen


tido figurado e literal, presença militar na política nos pai
s!'.'·
)atino-americanos desde a independência e no Brasi 1 desde d.

R~p~blica. Vale a pena especular sobre as possíveis razões des


te veto.
Urna das razoes parece ser de natureza intelectual. Os
esquemas de interpretação política predominantes até pouco tem
po, ao centro ou à esquerda, têm dificuldade de atribuir aos
militares papel de ator político com algum grau de independê~
cia. Segundo a vertente liberal, os militares devem ser meros
agentes do poder do Estado, sujeitos ao governo civil. A inter
vençao militar é vista corno patologia que macula a imagem do
país e do governo e que desgraça os países subdesenvolvidos. Ca
be apenas lamentá-Ia e esperar que um dia dela nos livremos. Na
vertente da esquerda, com maior ou menor grau de influência ma~
xista, os militares são variáveis dependentes, são instrumentos
das classes dominantes; o intervencionismo é fruto do estágio
de expansão do capitalismo e da luta de classes em que nos en
contramos. Também neste caso não há muito a estudar e a fazer
no que se refere especificamente aos militares. Os motores da
história estão alhures. Variante desta visão é a tese que por
muito tempo predominou entre os estudiosos, tanto latino-ameri
canos corno norte-ame-ricanos, que dizia serem os militares meros
representantes das classes médias. O comportamento militar nes
ta abordagem era simples função das vicissitudes políticas e e
- o
conOrnlcas d os setores me-do 10S ur b anos. 4)

Dentro do campo acadêmico havia outra dificuldade. Não


se sabia como enquadrar os militares dentro dos esquemas tradi
cionais da Ciência política. Não cabiam dentro dos conceitos
de partidos, de grupos de pressão, de grupo social, de classe
social, de simples estrato burocrático. No caso brasileiro, os
poucos gatos pingados dentro da academia que, após 64, se aventu
raram ao estudo dos militares tiveram, para dar conta do fenôme
no, que recorrer a categorias sociológicas, particularmente ao
conceito de organizações complexas. Tal recurso, embora teori
camente fecundo, gerou incompreensões. O pequeno campo dos es
tudos militares dividiu-se numa polêmica, frequentemente não ex
plicitada, corno acontece muitas vezes entre nós, entre os que ~
tilizavam a teoria das organizações e os que insistiam em sali
entar fatores macro-sociológicos. A abordagem organizacional
era vista corno limitada e limitadora, corno negligenciando os as
petos externos à organização, particularmente (na crítica de es
querda) a luta de classes. Por seu lado, os estudos macro eram
,. ::;

criticados pelos que empregavam a teoria das organizações por


serem excessivamente abstratos e não darem conta da explicação
do militarismo.

Só recentemente, e o encontro do grupo patrocinado pelo


SSRC foi disto testemunho, as incomoreensões se dissiparam. Pa
rece que afinal a polêmica foi superada. Entendeu-se, de um Ia
do, que não há teoria de organizações que se preze que nao dê
importância ao ambiente em que elas operam e que não considere
como fundamental o intercâmbio entre as organizações e seu amb!
ente. De outro lado, entendeu-se que não faz sentido estudar
os militares sem dar atenção aos aspetos organizacionais. Na
verdade, todas as análises que tentaram fazê-Io acabaram por in
troduzir tais aspetos pela porta da cozinha. Mas são progressos
recentes , d a nao
que aan - pu d eram gerar resu lt a d os Slgnl tivos.5)
icmí.fãa.ca

Outro motivo para a rejeição dos estudos militares pare


ce ser de natureza política e tem a ver com a identificação dos
mili tares com governos ditatoriais. Preocupar-se com temas mi
litares era, e em parte ainda é, algo politicamente suspeito, in
dicador de simpatias direitistas. Os que se dedicavam, e se de
dicam, a tais estudos são quase forçados a assumir posição de
fensiva e pagam às vezes alto preço pela ousadia. A rejeição po
lítica aos estudos castrenses é reforçada, em países onde os mi
litares se envolverammais profundamente na repressão e na tortu
ra, por rejeição psicológica e moral. Todos os cientistas soci
ais destes países, aí incluído o Brasil, ou foram pessoalmente
vítimas da repressão ou conhecem parentes e amigos que o foram.
A imagem de torturador é transferida para a categoria militar
como um todo e para a própria instituição militar. Por transfe
rência, qualquer estudioso dos militares que não seja simple~
mente um denunciador enragé da tortura, torna-se alvo de suspei
ta de conivência, ou pelo menos de tolerância com as práticas
repressi vas.

Finalmente, creio poder detectar uma resistência de natu


reza social aos estudos militares, pelo menos no caso do Brasil.
Trata-se de resistência mais antiga, que precede de muito o gol
6
"

pe de 1964. Sempre houve no Brasil um fosso entre a intelectua


lidade de origem social alta e os militares do exército, de ori
gem mais modesta. A burguesia agrária e seus intelectuais sempre
tiveram certo desprezo pelos militares do exército, não exata
mente corno militares mas corno pessoas de classe social inferior.
a desprezo vinha também acompanhado de ri validade política em tor
no do controle do Estado. De um lado estava a elite dos bacha
réis, cujo domínio foi incontestado durante o Império, do outro
a elite militar que proclamou e sempre quis apropriar-se da Re
pública. A campanha civilista de Rui Barbosa marcou o momento
mais elaborado desta luta. a bacharel por excelência do novo
regime peni tenciava-se de ter incentivado a oposição militar a
Monarquia e procurava restaurar a pureza do governo civil imp~
rial. a episódio das cartas falsas atribuídas a Artur Bernar
des durante a campanha presidencial de 1921 serviu para revelar
com clareza o ressentimento militar face ao desdém das elites
civis. a falsificador usou de extrema -maLd qn í.da de , ao mesmo
tempo que revelou profundo conhecimento da psicologia militar,
ao fazer A. Bernardes chamar, em urna das cartas, '0 marechal Her
mes, ex-presidente da República e chefe moral do exército, de
"sargentão sem compostura". A ofensa atingiu profundamente o
complexo de inferioridade social dos militares e revelou o que
no fundo pensavam dos militares os representantes da elite ci
vil. Não é por acaso que, até pelo menos a década de 1930, os
únicos intelectuais que se mostravam simpáticos aos militares
ou tinham relações familiares com militares, corno o Lavo Bilac,
ou provinham de camadas sociais médias, ou tinham estudado em
outras escolas que não as de direito. Nos dois últimos casos
estão, por exemplo, Raul Pompéia, Silvio Romero, Virgínio Santa
Rosa.6)

A resistência de natureza social aos militares está cer


tamente em declínio devido a mudanças na composição social da eli
te civi 1 e dos militares. A eli te civil é cada vez mais forma
da por industriais e técnicos que têm muito mais afinidades com
os militares do que a elite agrário-bacharelesca. as militares
também se modificaram quanto a composição social adquirindo ca
racterísticas menos plebéias. Acrescente-se que a ocupação de
.' I

~númeras posições de poder apos 1964 deu à farda o prestígio sQ


cial que ela. não tinha. Mas não é certamente coincidência que,
mesmo hoje, entre os que se dedicam a estudar os militares se en
contrem principalmente estrangeiros, parentes de militares, e
pessoas que participaram dos movimentos de oposição armada. Os
últimos constituem o caso mais revelador. Embora tenham sido ví
timas da repressão, têm noção mais clara da importância dos as
petos militares !1a luta política. Eles têm também a vantagem
de não estarem sujeitos à suspeita quanto a sua posição polít!
ca.

Corno resultado de todas estas resistências, tem-se a qu~


se total ausência de estudos acadêmicos sobre militares. Só re
centemente foi criado na UNICAMP o primeiro centro destinado a
estudos de estratégia, mesmo assim após grande resistência por
parte de colegas e de autoridades acadernicas.7) Fora da univer
sidade, não há centros de pesquisa dedicados ao terna, corno e
comum encontrar em outros países. Penso em centros do tipo
do Stockholm International Peace Research Institute, (SIPRI), o
International Institute for Strategic Studies, de Londres, a
Brookings Institution de Washington.

Em termos de temáticas o campo de es tudos militares no


Brasil acha-se em fase de claro subdesenvolvimento, apesar do
es forço dos poucos que a ele se dedicam. Bas te mencionar que,
quase sem exceçao, os estudos são marcados por um poli ticismo
exagerado, mesmo nos autores que partiram inicialmente, ou ain
da partem, da perspectiva da teoria das organizações. A inter
venção militar na política domina a preocupação de todos. Os mi
li tares e a instituição militar aparecem corno fenômenos unidi
mensionais. Os militares existem, pensam e agem corno entidades
puramente políticasi nao sao seres humanos. Até agora, quase
\ nada tem sjdo feito abordando aspetos sociológicos fora do org~
ní.z ac í.oria L: quase nada sobre a família militar, o o.rçamento do
méstico, o lazer, o cotidiano dos quartéis, as condições de vi
da, as relações sociais. Igualmente quase nada existe sobre o
lado cultural, dos valores e da mentalidade militar. Dentro da
própria abordagem política, há ternas importantes apenas arranha
dos como o da relação entre o corporativismo e o intervencionis
mo militar, o da cidadania militar, o da relação entre a cida-
dania definida por critérios corporativos e a cidadania políti-
ca.

Na área de estudos estratégicos, so agora a academia co


meça a capacitar-se para propor esquemas alternativos aos apr~
sentados pelos militares ou a simplesmente poder discutir o te
ma com algum conhecimento de causa. Até agora havia monopólio
militar, ou de pessoas ligadas aos militares, sobre o tema. As
sim como na década de 1930 Góes Monteiro dominou o pensamento
sobre o papel político dos militares, na década de 50 em diante
o general Golbery e, após ele, a ESG ocuparam a area dos estu
dos de geopolítica. Os cientistas sociais que se aventuravam
a discutir o tema era apenas para rejeitá-lo in limine. Era co-
mo se um país do tamanho do Brasil pudesse simplesmente prescin
dir de pensamento e de cálculos estratégicos. Como se o estudo
das relações exteriores, por exemplo, pudesse ser feito sem re
ferência à estratégia militar, à política de fabricação de ar
mas e à própria política da organização militar.8)

Da Conivência política

Feita a autocritica da academia, façamos a crítica da so


ciedade política, particularmente d? congresso e dos partidos.
Permitam-me aqui pequena digressão histórica. Ela é necessária
para mostrar que já existiu no Brasil um sistema eficiente de g~
verno civil, com controles adequados sobre os militares, um sis
tema em que os civis controlavam porque assim o deseiavam e po~
que eram competentes para fazê-lo.

No Império, a Constituição definia a força armada como


essencialmente obediente e ela assim permaneceu dura~te quase t~
do o segundo Reinado. Os poderes civis, Executivo e Legislat~
vo, exerciam efetivo controle sobre ela. Câmara e Senado poss~
íam comissões destinadas a discutir os assuntos referentes ao
exército e à marinha e exerciam de fato suasatribuições. O con
trole exercia-se principalmente através da definição do orçame~
to e da fixação do contingente que eram feitos anualmente. Além
dis to, a Câmara tinha a inicia tiva quanto ao recrutamento militar.
Pelo lado do Executivo, o cont.ro
Ie civil era ainda rraisnítido. Os mi
nistros do exército e da marinha eram quase sempre políticos ci
vis. No caso da marinha, até o fim do Império não houve que~
xas contra esta situação. Ainda dentro do Executivo,havia o Con
selho de Estado que possuía uma seção para assuntos do exército
"
e outra para os da marinha. Novamente, os membros dessas seções
eram muitas vezes civis.

Como conseqüência, todos os temas relevantes para a for


ça armada eram discutidos pelos -
orgaos de representação e de ad
"
ministração. Entre estes temas estavam o recrutamento militar,
a organização da força armada, os gastos, a política de defesa
!

interna e externa. Os militares, co~o militares, restringiam-


-se a administrar a operação da forç~ armada. Sem dúvida, trat~
va-se de sistema político menos complexo do que o de hoje, mas
não menos complexo do que os de outros países da América Latina
em que o caudilhismo era endêmico.Havia convicção da desejabi
lidade do controle civil, havia vontade de controlar, havia me
canismos adequados de controle e havia capacidade Para controlar
no sentido de que havia civis capazes de fazê-lo.

Tudo mudou com a proclamação da República. E mudou não


por causa da República mas por causa da maneira como foi procla
mada, isto é, por uma revolta do exército contra o governo. As
mudanças começaram já na constituição de 1891, como é sobejame~
te conhecido. O "essencialmente obediente" do texto imperial
foi tornado inócuo COIr orepublicano "dentro dos limites da lei".
A força armada ganhou a qualificação de permanente e teve suas
funções ampliadas para incluir a garantia da manutenção das leis
no interior. Além disto, desapareceu totalmente o costume de
ter ministros civis nas pastas militares (com uma única exceção
no governo de Epitácio Pessoa). A eliminação do Conselho de Es
tado também retirou do executivo uma assessoria técnica e polí
tica para lidar com temas militares. Restou apenas o controle
através do Legislativo, que continuava a ser feito através do
10

orçamento, do recrutamento, dos efetivos. Apesar da resistência


de alguns liberais e das desconfiançasd~oligarquias. em rela
ção aos militares, os civis já começavam a transigir e a bater
em retirada particularmente em relação ao exército. A força ar
ma da deliberante, anátema para os políticos do Império, já cam!
nhava para se tornar realidade. O roldado do Império, na expr~
ssão de Alcindo Sodré, era o espantalho do soldado da Repúb lica,
tão diferentes eram no comportamento político.9) Mesmo assim,
a República Velha ainda produziu alguns políticos capazes de
tratar temas militares e estratégicos em pé de igualdade, senão
com maior competência, do que os próprios militares. Os nomes
mais óbvios são os do barão do Rio Branco, que nisto seguiu a
tradição paterna, e o de Calógeras, o único ministro civil do
exército no período, mais competente do que todos os ministros
militares. Após 1930, será difícil apontar políticos civis que
se comparem a estes dois.

Após a queda da Velha República, à nova carga dos milit~


res para ocupar posições dentro do Estado correspondeu um acel~
ramento da retirada dos civis. E isto até mesmo em momentos em
que a ameaça do uso da força não se fazia sentir. A Constitui
çao de 1934 reeditou a de 1891 no que se refere ao papel dos mi
litares. E foi mais além. Facilitou a participação política
dos militares permi~indo a agregação por oito anos contínuos ou
doze anos não contínuos sem perda de tempo de serviço e antigu!
da de de posto. Fez das polícias militares reservas do exérci to.
Principalmente, criou um Conselho Superior de Segurança Nacio
nal destinado a estudar e coordenar as atividades relativas ao
tema. Do Conselho participavam os ministros, inclusive os dois
militares, e mais os chefes de estado-maior do exército e da ma
rinha (lembre-se que a aeronáutica ainda não existia) . Antes do
golpe de 1937, o Congresso aprovou a criação do Tribunal de Se
gurança Nacional e vários estados de sítio. HOlive também por
parte de muitos políticos e da quase totalidade dos governadQ
res, aceitação do golpe de 1937.

Em contras te com a retirada civi 1, o exército desenvolvia,


-,
Li

através de Góes Monteiro, uma justificativa ideológica para a


intervenção na política interna; fazia, sob a orientação dos
oficiais da Missão Francesa, planos de guerra contra a Argenti
na; e preparava técnicos para gerir empresas estatais na area
do petróleo e da siderurgia.

Não vamos seguir passo a passo toda a história. Baste-


-nos examinar os quase três anos que se passaram apos o último
governo militar. Durante a República dos Generais o uso aberto
da força poderia justificar o recuo civil, por medo, por caut~
Ia, ou por nojo. Mas fazia parte das promessas da nova Repúbli
ca restaurar o governo civil, isto é, o governo da lei e da de
mocracia, como oposto ao governo do arbítrio edo autoritaris-
mo.

Já vimos que na área da academia os progressos têm sido


lentos e tímidos. Mas pelo menos algum progresso tem havido. Na
área política a situação é mais desalentadora. Comecemos pela
prometida desmontagem do tentacular sistema de informação e de
repressao que abrange o SNI, a ESNI, as DSI, as ASI, os 001-
-CODI, a OBAN, e os serviços de cada arma, o CIE, o CENIMAR, o
CISA, além das '2~s~seções dos estados-maiores. Tal sistema,
montado durante os governos militares, é, de acordo com levanta
mentos feitos por Stepan, o detentor de maiores poderes entre
os de todos os regimes autoritários recentes. Segundo Stepan, o
sistema brasileiro de informações possui um somatóriode carac
terísticas que nenhum outro possui, tais como statvs de minis
tro de Estado para seu chefe, monopólio do ensino de informação,
coordenação de todo o sistema de inteligência, independência,
presença de agentes em todos os órgãos públicos, nenhum contro
le por parte do Legislativo ou do Executivo. Nem mesmo a KGB so
viética detém tal soma de poderes, pois presta contas ao parti
do. Nos Estados Unidos, desde 1977 existem na Câmara e no Sena
do Select Commi ttees que supervisionam as atividades de inteli
gência. O Committee do Senado possui 15 membros (aet.e da oposi
ção) e um corpo técnico de 40 pessoas; o da Câmara tem 14 mem
bros e 21 técnicos. Isto sem falar nas comissões civis de asse
.
ssorla ao po d er execu t'lVO. 10)
12

o que mudou com a nova república? Por iniciativa e pre~


sao civil praticamente nada. Os CODI-DOI começaram a ser desmQ
bilizados em 1982,' ainda no governo dos generais, mas foram sub~
tituidos por subunidades operacionais (SOP) que se envolveram
em tentativas de minar a candidatura de Tancredo Neves em 1984.
Hoje, planeja-se, por exclusiva iniciativa e responsabilidade do
exérci to, substi t.n r as SOP por um Batalhão
í de Forças Es pe cí.a s,
í

ligado à Brigada de Paraquedistas,composto de 500 homens. A in


tenção é manter a capacidade de combater a subversão e a gueE
ll
rilha. ) No SNI nada foi formalmente mudado. As eventuais mu
danças deram-se por decisão do chefe do órgão que pode a qual
quer momento voltar atrás. Apesar de se ter discutido o pr ob Le.
ma no inicio do governo Sarney, especialmente através do minis
tro Fernando Lyra, as DSI e ASI continuam funcionando nos minis
térios e nas estatais. Vários ministros civis, senão todos, as
conservam, inclusive o Ministro da Cilltura.12) Nenhuma iniciati
va do Congresso ou dos partidos foi apresentada no sentido seja
de extinguir, seja de modificar, seja de controlar o sistema na
cional de informações. A única exceção talvez seja o habeas-
-.data votado pela comissão de sistematização. Mas resta saber
como funcionará quando se tratar do SNI.

Na área da poli tica de segurança as coisas. nao são mais


animadoras. Algumas alterações de palavras estão sendo propos
tas na constituinte. Mas até agora continua a prática anterior
de deixá-la exclusivamente a cargo de militares ou do' Conselho
de Segurança Nacional, controlado por militares. Não consta que
o Congresso Nacional, através de suas comissões de Segurança Na
cional, tenha convocado ministros militares seja para discutir
temas de segurança, seja para propor modificações no processo
decisório na are a. O proj eto para a Calha Norte, por exemplo,
foi feito dentro do CSN sem qualquer audiência do Congresso. A
Comissão de Segurança do Senado produziu um documento sobre a
indústria de armamento, confessando candidamente que nem ela co
nhecia os dados exatos sobre produção e exportação de armas.
Não tinha também informação precisa sobre o programa nuclear mi
litar. (Folha de são Paulo, 26-6-86). Os políticos não apenas não
cobram prestação de contas como legitimam a ação do CSN: Nelson
13

Ribeiro quando ministro da reforma Agrária pediu ao CSN estudos


para formular uma política de desenvolvimento rural integrado (O
Globo, 22/01/85).

Outro exemplo. A política de reorganização do exército


foi toda ela elaborada dentro do próprio exército, mais precis~
mente, pela 6~ sub-chefia do EME. Esta política, que deverá
custar ao país uns 2 bilhões de dólares até 1990, define um pl~
no de reforma em três etapas, a última terminando no ano 2015,
chamadas FT-90, FT-OO e FT-15. Na definição da reforma do exér
cito está naturalmente embutida uma definição de seu papel poli
tico. Em vez de se buscar uma capacidade de pronta resposta,
que teria a ver com a defesa externa do país, buscou-se apare.
lhar o exército para mais eficientemente funcionar em operações
internas. Assim é que o plano prevê maior seletividade no re
crutamento, a criação de sete batalhões deaviação equipados com
helicópteros, o deslocamento de unidades, a mecanização da cava
laria etc. (Folha de são Paulo, 13/04/86; O Globo, 4/04/86;
Jornal do Brasil, 7/09/87). A criação da aviação do exército é
particularmente significativa pois torna esta arma menos depe~
dente da aeronáutica para ações políticas internas. Ao congresso
nada foi perguntado nem ele perguntou qualquer coisa. Aparente
mente, o Itamarati também não foi envolvido. ~ possível mesmo
que nem a marinha e a aeronãuticao tenham sido. Apesar de tudo
isto, não faltaram os recursos. Não só não faltaram corno, no
reconhecimento de um general, nunca os houve tão abundantes nos
últimos vinte anos. Não é de admirar que o presidente da RepQ
blica conte com o sólido apoio do Ministro do Exército. Natural
mente, a alacação destes recursos não passou pelo Congresso.Mais
ainda. Na data da redação deste texto, o art. 24 das Disposi
ções Transitórias do projeto de constituição isenta de inclusão
no orçamento da União, e portanto de supervisão legislativa, a
alocação e fiscalização de fundos quando tal for aconselhado p~
los interesses da defesa nacional (Jornal do Brasil, 30/09/87).

Mas continuemos os exemplos. A política nuclear e outro


óbvio indicador de omissão política. Não é necessário falar mui
to sobre ela pois ultimamente a imprensa vem revelando boa pa~
14

te dos segredos da área. Criou-se um programa nuclear paralelo,


desconhecido até mesmo da comunidade cientifica, sob a supervi
são da marinha, que só foi revelado por ter conseguido o enri
quecimento do urânio por fora dos controles internacionais. Re
conhecidamente, a area nuclear não pode ser tratada com compl~
ta transparência. Mas a etapa tecno1ógica vencida abre perspeE
tivas para a construção de uma bomba atômica. Isto é assunto p~
ra a marinha decidir? Para as forças armadas? Para o CSN? Ou
mesmo para o Executivo apenas? ~ claro que nao. Trata-se de
opção que não pode ser tomada sem audiência da nação, pelo me
nos através da representação parlamentar. Não consta, no entan
to, que o congresso tenha reivindicado o exercicio .de suas obri
gações. Apenas a comunidade cientifica tem protestado sem que
haja evidências de eficácia do protesto.

Um último exemplo: a politica de produção de material


de emprego militar. Esta é uma área em que setores acadêmicos
vêm tentando estabelecer certa competência. No entanto, apesar
de todos os esforços, reina na matéria grande mistério quanto a
pontos fundamentais como sejam o número de empresas no setor, o
volume de mão-de-obra empregada, o valor da produção, o volume
de exportação, a transferência de tecnologia do exterior, o in
tercâmbio com as indústrias civis, os beneficios fiscais conce
didos pelo governo, a produtividade, etc. Tanto os órgãos de
governo envolvidos, e aqui entram órgãos civis com a CACEX, o
INPI, o Itamarati, como as próprias empresas, mantém segredo.
Novamente, trata-se de área que envolve não somente a politica
de defesa, mas também a po1itica econômica, a politica cientifi
ca e tecno1ógica. No entanto, como já foi mencionado, nem a Co
missão de Segurança Nacional do Senado sabe o que se passa. Ta~
to a Comissão como os acadêmicos se baseiam em fontes interna
. .
ClonalS de ln
. f ormaçao
- e em a dVln
. haçoes.
- 13)

Os exemplos poderiam continuar. A cada passo, a cada dia,


surgem fatos que confirmam a tese da omissão das instituições
politicas, particularmente dõs partidos e do Congresso. Não e
preciso falar da presidência da República. Creio haver consen
so entre analistas de nossa poli tica que o presidente tem como
15

seu mais confiável sustentáculo político as forças armadas, pa~


ticularmente o exército. Mais eloqüentes que qualquer análise
política são as abundantes chages políticas produzidas sobre e~
te aspeto da nova República. As charges de Ique e de Millôr,
por exemplo, algumas das quais são aqui reproduzidas, falam mais
alto do que qualquer análise e traduzem o sentimento geral so
bre a natureza-do relacionamento entre o presidente e as forças
armadas. O presidente alia-se abertamente ao ministro do exer
cito (remember os 2 bilhões de dólares) para contestar e pre~
sionar a constituinte. As forças armadas são usadas com desem
baraço para combater operários em greve. Mas o mais grave é que
a reação de outros setores políticos, principalmente o PMDB, o
fiador da nova República, é tíbia, hesitante ou simplesmente não
existente.

A Tática do Varejo

Diante da omissão em aspetos que têm a ver com a micro


política, definições de princípios do texto constitucional per
dem muito de sua possível eficácia. Estas definições já sao na
turalmente mais difíceis, exatamente porque se trata de princi
pios e as resistências aí são maiores como tem ficado claro pe
Ias reações dos mí.Lí.t.a
res , Uma improvável vitória nestas que~
tões (por exemplo, a definição do papel das forças armadas como
sendo de defesa externa) teria pouca conseqüência se não fosse
complementada por cuidadosa legislação ordinária cObrindo os po~
tos aqui discutidos. Por outro lado, uma derrota nos princípios
poderia ser compensada em parte por uma ação eficaz nestes aspe
tos de engenharia política. A não mudança do texto constitucio
nal referente à defesa da lei e da ordem não impediria, por exem
pIo, que se estabelecesse um controle parlamentar do SNI, ou que
o Congresso assumisse suas responsabilidades no que se refere à
política de defesa, à política nuclear,ã política de p~tos.

A título de ilustração, vejamos algumas medidas que pode


riam ser tomadas talvez sem grandes traumas. O SNI poderia ser
desmilitarizado, seu chefe perderia o status de ministro e se
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16

ria nomeado com aprovaçao do Senado. Suas operaçoes estariam


sujeitas ao controle de alguma comissão ou subcomissão do Con
gresso que poderia reunir-se secretamente. A ESNI não tem razão
de ser e poderia ser extinta. O que lá se aprende (ensinam-se
até línguas estrangeiras) poderia ser aprendido nas escolas ci
vis. O que não pudesse, poderia ser ensinado-em cursos intensl
vos ou no próprio trabalho. As DSI e ASI poderiam ser extintas
sem mais conversa.

As comissões de Segurança Nacional do Congresso, ou que


outro nome se lhes dê, talvez não tivessem que fazer grandes al
terações em sua organização. Bastaria que decidissem exercer
seu papel, reivindicar suas atribuições e capacitar-se para fa
zê-lo. Nos Estados Unidos, a Comissão das Forças Armadas na câ
mara e formada de 45 deputados, possuiu uns 40 técnicos, sete
subcomissões, e gasta em torno de 2 milhões de dólares por ano.
Guardadas as proporções, o que impede que sua equivalente brasi
leira se equipe e exerça as atribuições que lhe cabem? Junto
com a Comissão de Finanças, que controla as dotações orçament~
rias, ela poderia ter sob seu controle e supervisão todas as a
tividades militares.

A nova constituição vai certamente fazer alterações no


que se refere à composição e atribuições atuais do Conselho de
Segurança Nacional, particularmente quanto à atribuição de defi
nir os objetivos nacionais permanentes e a política de segura~
ça nacional. Essas atribuições são dos partidos e do Congres
so. Mas, novamente, a mudança em nada alterará as coisas se o
Congresso e os partidos não exercerem suas atribuições. Se não
o fizerem, alguém o fará por eles. Sabemos quem.

Medida mais complicada, devido à forte oposição militar,


seria a criação de um Ministério da Defesa, corno foi feito na
Argentina e corno e a prática na maioria dos países. Tal medida
reduziria o numero de ministros militares (o ministro da defesa
em geral é civil) e daria a estes representação funcional e não
política, corno bem observa Stepan. Os militares representar-
-se-iam nos órgãos que tivessem a ver com suas atividades (in
1/

clusive o próprio Conselho de Segurança Nacional) através de


seus chefes de estado-maior, ou de alguém por eles indicados. O
presidente da RepÚblica, supondo-se a existência de um presiden
te a quem isto incomodasse, não se veria sitiado pela pressao
dos representantes políticos das três armas.

Tudo isto supõe pelo menos duas coisas: vontade de fazer


e capacidade para fazer. Quanto à segunda, pode tomar algum
tempo mas é possível atingi-Ia, uma vez aceita sua necessidade.
A própria ampliação das tarefas militares, especialmente na area
industrial e tecnológica, cria espaços de convivência entre mi
litares e civis que podem resultar na capacitação mútua de uns
no campo dos outros. Exemplos desta cooperação encontram-se na
área nuclear, na produção de armamentos, na exploração da Antá~
tica, na informática, etc. Restaria capacitação na área políti
ca e de políticas pÚblicas. 6 Núcleo de Estudos Estratégicos da
UNICAMP é um bom começo. Do lado militar, a aeronáutica e, em
menor escala, a marinha, têm-se mostrado abertas a debates com
especialistas civis, sem fugir a temas controversos como a cria
ção do Ministério da Defesa, a definição do papel das forças ar
madas, etc.

Aos poucos pode ser possível a formação de civis, inclu


sive políticos, capazes de discutir de igual para igual os te
mas militares, mesmo os mais técnicos, e com isto se credencia
rem para formular políticas alternativas àquelas dos militares,
ou de convencê-Ios a modificar seu modo de pensar. ~ preciso re
conhecer que os militares desde a década de 30 fi zeram o esfor
ço na direção oposta, isto é, de se capacitarem em assuntos ci
vis e que isto foi fator importante no êxito que tiveram de in
vadir areas de competência civil e infundir nelas o viés mili
tar. Fator favorável ao movimento paralelo dos civis e o fato
de estar em franca decadência o principal órgão de formação ci
vil dos militares e de formação militar dos civis, a ESG. A ESG
hoje corre atrás dos acontecimentos, corre atrás até mesmo do
comportamento de certos setores militares. DifiCilmenteela será ca
paz de repensar a política militar dentro de um contexto de de
bate democrático. Esta tarefa caberá a pessoas ou instituições
18

civis que sejam capazes de vencer a resistência ainda existente


na área civil e de se tornarem interlocutores reconhecidos pelos
militares.

- ,.
Sem a formaçao destes especialistas nenhum esforço feito
pelas Comissões do Congresso no sentido de controlar e supervi
sionar a política militar terá êxito, pois os congressis~as ac~
barão dependendo das opiniões técnicas dos próprios militares.
Sem ela, qualquer versao nova que surja do CSN ficará também na
prática, senao no direito, dependendo de militares, ou de civis
de pensamento militarizado. Sem ela, qualquer política de seg~
rança nacional, ou de defesa nacional, na nova terminologia, se
não repetir as aberrações atuais, cairá vítima de romantismo e
se auto-derrotará. Sem ela, o discurso democrático nao se ins
t.rument.aLí zar-â, não se transformará em propostas políticas con
cretas e só restará a seus formuladores reiniciar as lamenta
ções de sempre quando vier nova intervenção militar. Não se
trata, é preciso que fique bem claro, de reeditar a aliança per
versa da tecnocracia com os militares. Trata-se exatamente de
destruir dois dos aspetos básicos dessa aliança, a saber;: a co
I.

nivência no autoritarismo e a separação das esferas de competên


cia. Trata-se de politizar a discussão militar e de torná-Ia
parte do debate democrático geral.

Se se pode prever a possibilidade de capacitação civil


quanto a temas militares, é mais difícil visuali zar o surgimen
to de uma vontade política sólida de construir a hegemonia do
poder civil. Como vimos, tal vontade certamente nao existe na
ação política do atual ocupante da presidência da República e
não se manifesta de maneira inequívoca no partido majoritário,
o PMDB. Não é nem preciso dizer que não há traços dela no PFL,
no PTB, etc. Quem observa a cena política da nova República
tem a impressão de que a tutela militar é algo normal e que de
ve continuar a exercer-se. E: como se houvesse concordância tá
cita de que ela não pode ser afastada ou que nao POde ser dispen
sada. Os democratas, aí incluídos alguns setores liberais e aL
guns de esquerda, ou evitam debater a questão ou discursam con
tra o militarismo em termos apenas de princípios fugindo as de
19

finições mais concretas ou recusando a negociação com os milita


res.

o trabalho da constituinte fica assim entre duas alter


nativas, nenhuma delas encorajadora. Se se tem êxito em introdu
zir mudanças democratizantes, como a redefinição do papel das
forças armadas, estas mudanças se tornarão ineficazes por falta
de condições de implementação; se são mantidas os dispositivos
atuais com mais razão nada mudará. No primeiro caso, haverá des
moralização da constituição, no segundo haverá, como já há, des
moralização do regime. Regime desmoralizado é caminho certo p~
ra intervenção militar aberta. Vinda a intervenção muitos fica
rão talvez felizes por poderem novamente culpar os militares.
Mas mais inteligente, embora menos charmoso, será nos autocriti
carmos agora para tornar menos provável a nova intervenção.
20

Notas

lEram membros do grupo, além do autor, Alfred Stepan, Eliézer


Rizzo de Oliveira, Augusto Varas e Andrés Fontana. Não puderam
comparecer Alain Rouquié e Adam Przeworski. De maneira infor
mal participaram também dos debates Edmundo Campos Coelho, Ge
raldo Cavagnari, João Quartim de Moraes e Antônio Carlos peixo
to. Joan Dassin representou o SSRC.

2vej a José Murilo de Carvalho, "Os Militares, a Cons ti tuinte e


a Democracia", Revista Presenia, 8 (agosto 1986), 38-44. Sobre
o tema militares e consti tuiçao veja também o número especial de
Política e Estratégia, 111, 3 (jul/set 1985), especialmente as
contribuiçoes de Edmundo Campos Coelho, João Quartim de Moraes,
Walder de Góes e Oliveiros S. Ferreira.

3A única resenha sistemática dos estudos sobre militares no Bra


sil foi feita por Edmundo Campos Coelho. Veja "A Instituição
Mili tar no Brasil: Ensaio Bibliográfico", BIB:""Boletimde Infor-
mação Bibliográfica, 19 (1985), 5-19.

4No caso brasileiro, o texto já clássico que deu origem a esta


versão é o de Virgínio Santa Rosa, O Sentido do Tenentismo, Rio
de Janeiro, 1933. Para América Latina, a versao mais influen
te é a de José Nun, "The Middle-Class Mili tary Coup" , in C~
véliz, ed., The Politics of Conformity in Latin America, Lon
don, Oxford University Press, 1967, 66-118.

5Contribuiu para a superação do falso problema a influência so


bre o pensamento marxista brasileiro de autores como Gramsci,
Poulantzas e Althusser, que recuperaram o político como campo
dotado .de certa autonomia. Da descoberta do Estado como obje
to de análise em suas características próprias para o estudo
dos militares como parte do Estado era um pulo.

6veja os discursos de campanha de Rui Barbosa reunidos em Contra


o Militarismo, Rio de Janeiro, J. Ribeiro dos Santos (Editor),
s/data. Rui condena com veemência em um dos discursos o que
ele tinha feito durante a Monarquia: "Hoje as facções paisanas
açulam os generais a meterem debaixo dos pés o regime constitu
cional" (p. 43). Raul Pompéia defendeu o governo Floriano e i
participação dos militares na política. Sílvio Romero, após
alguns anos de experiência republicana, apelou para nova inter
venção militar como única solução contra o domínio das oligar
quias estaduais. Olavo Bilac, como é sabido, fez a campanhi
pelo serviço militar obrigatório. Virgínio Santa Rosa defendeu
o programa de reformas dos tenentes.

70 Núcleo de Estudos Estratégicos foi recentemente criado na


UNICAMP. Entre seus principais pesquisadores, a maioria já
com trabalhos relevantes na área, estão Eliézer Rizzo de Olivei
ra, João Quartim de Moraes, Renato Dagnino, Geraldo Cavagnari~
Vilma Peres Costa.
21

8
No que se refere à política externa, dá-se fenômeno curioso. O
Itamaraty possui sem dúvida quadro civil capacitado • Seu forte
esprit de corps, comparável ao dos militares, pôde mantê-Ia a
salvo da invasão de militares em seus quadros. Por outro lado,
o forte civilismo parece ter também impedido que desenvolvesse
capacidade específica na área de estudos estratégicos, deixan
do oosmilitares tais estudos e talvez mesmo as decisões.

9Alcindo Sodré, A Gênese da Desordem, Rio de Janeiro, Schmidt,


s/d, p. 8. Que eu saiba, o texto de Sodré foi o único protes
to mais elaborado feito na década de 30 cont.ra a participação mI
litar na revolt~ e na política que se seguiu. Sintomaticame~
te, ele volta sempre ao exemplo imperial, corno já o fizera RuI
Barbosa, para condenar a prática republicana.

10veja Alfred Stepan, Os Militares: da Abertura à NJva República,


Rio de Janeiro, Paz e Terra, 21-39. Veja também Michael J.
Fi t2Patrick, "Oversight and ContraI of Intelligence Systems",
texto mimeografado, 1986, para urna descrição dos controles dos
sistemas de informação dos Estados Unidos, Rússia e índia. So
bre o SNI veja ainda Ana Lagoa, SNT: Corno Nasceu, corno Funcio-
na, são Paulo, Brasiliense, 1983.

llvej a Marcelo Tognozzi, "Defesa Interna Muda" , Jornal do Brasil,


27/09/1987, p. 4.

12veja Mirian Guaraciaba, "Regime Civil Mantém Espionagem que Mi


litar Montou", Jornal do Brasil, 27/09/1987, p. 5. Para urna
análise mais geral da permanência da presença militar no novo
regime, vej a Wa.lder de GÕes, "A Crise do Regime e a Sucessão de
1985", em Valder de Góes e Aspásia Camargo, O DRAMA.DA SUCESSÃO
e a Crise do Reg.ime, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, 134-
-149.

13Exemplo da dificuldade em debater o terna da indústria de mate


rial bélico foi dado em recente seminário organizado por Clóvis
Brigagão no Rio de Janeiro entre 7 e 8 de maio deste ano. Dos
32 convites enviados, menos da metade fo;L aceita O exérci
to não mandou representantes. Dos que compareceram, civis e
mili tares, só o representante do IBGE concordou com a deman
da por maiores informações. Confessou, no entanto, que o pr§:
prio IBGE não as possuía. O resto calou o bico e prestou mui
ta atenção.

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