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Gênero e cidades
espaço doméstico, privado, familiar, além da padronização
industrial do casamento e da família através do controle da
fecundidade e do estímulo ao casamento formal, processos
amplamente discutido por Therborn (2006).
A questão, tão rica, porém, esvaiu-se com o
esmorecimento do debate sobre o trabalho doméstico no
movimento feminista. Isto se deve, em primeiro lugar à perda de
prestígio do marxismo como pensamento teórico-crítico sobre a
sociedade; mas, et pour cause, também se deve às mudanças
teóricas nas distintas etapas do feminismo da segunda onda.
Para Nancy Fraser, a primeira etapa da segunda onda
do feminismo (anos 70, aproximadamente) pode ser caracterizada
pelo combate à desigualdade, principalmente econômica, entre
homens e mulheres. É, segundo a autora, a fase da redistribuição,
uma fase da igualdade expandida que aproxima o movimento
feminista do imaginário socialista (FRASER, 2007).
Transgredindo uma cultura política que privilegiava
atores que se colocavam como classes definidas nacional
e politicamente domesticadas, eles desafiaram as exclusões
de gênero dentro da social-democracia. Problematizando
o paternalismo do Estado do bem-estar social e a família
burguesa, os feminismos expuseram o profundo androcentrismo
da sociedade capitalista. Politizando “o pessoal”, expandiram
as fronteiras de contestação para além da redistribuição
socioeconômica – para incluir o trabalho doméstico, a sexualidade
e a reprodução. (FRASER, 2007:295)
A perda de força política da esquerda, porém, vai
engendrar uma autonomia da dimensão cultural do feminismo
que é atraído para a órbita das políticas de identidade. A
ênfase passa a ser a necessidade de “reconhecer a diferença”.
Elisabete Dória Bilac
Gênero e cidades
novos rótulos – um deles é a chamada “conciliação trabalho/
família” 5 . Esta questão remete diretamente à relação gênero e
espaço. É no mínimo curioso pensar-se em termos de políticas
de conciliação trabalho/família para as mulheres ao mesmo
tempo em que o espaço construído nas cidades, segregando
classes sociais e etnias em bairros distintos, separando bairros
residenciais operários das áreas fabris, tornam extremamente
difícil, quando não inconciliáveis, emprego e moradia para boa
parte delas. E a vivência desta contradição envolverá práticas
urbanas diferentes para homens e mulheres. Porque há, sim,
também, uma contradição não resolvida entre trabalho e
família para os homens, embora colocada em outros termos: a
sobrecarga feminina versus a ausência masculina no trabalho
doméstico.
5 Segundo Kergoat e Hirata, o “trabalho doméstico, que já foi objeto de numerosos
trabalhos, quase não é mais estudado; mais precisamente, ao invés de se utilizar esse
conceito para questionar a sociedade salarial (FOUGEYROLLAS-SCHWEBAL, 1998), fala-se
em termos como “dupla jornada”, “acúmulo” ou “conciliação de tarefas”, como se fosse
apenas um apêndice do trabalho assalariado” (KERGOAT, D.; H. HIRATA, 2007:599).
Mas há uma questão ainda anterior e fundante na
reflexão sobre gênero e cidade – as distintas vivências da
cidade instituídas pelo gênero. Pois nem todas são “en/gen-
dradas” da mesma forma. Não se trata aqui de classificar,
rigorosamente, as cidades como “masculinas” ou “femininas”,
mas de se reconhecer que, além de serem algumas cidades
mais favoráveis às mulheres do que outras, em algumas, mais
do que em outras, há uma possibilidade maior de se admitir
a diversidade e a multiplicidade do gênero, e, portanto, a
variabilidade em sua performance.
Pelo menos dois artigos acadêmicos que buscam
refletir sobre gênero e cidades se inspiram na coletânea de
Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis (2011), mais especificamente na
história da cidade de Zobeide.
Elisabete Dória Bilac
6 A noção de heterotopia que foi proposta por Foucault e retomada por Gianni Vattimo
se refere à justaposição de tempos e espaços (a vivência simultânea de diferentes
temporalidades, por exemplo, entre o pré e o postmoderno) (ECHETO; SARTORI, 2009:335).
Tal como os autores entendem Foucault, “uma das características das heterotopias é a
justaposição ‘em um só lugar real’ de múltiplos espaços ‘múltiplas localizações’ que são em
si mesmas incompatíveis.” (Idem, p. 343).
7 O conceito de evasão é emprestado de Emmanuel Lévinas. A evasão é “uma
necessidade de sair de si-mesmo, ou seja, de romper o acorrentamento mais radical, mais
irremissível, o fato de que o eu é si-mesmo” (LÉVINAS, 1935, apud MATTUELLA, 2008:40).
Na interpretação de Mattuella, em Lévinas, “o desejo de evasão não é o de ir para outro
lugar, mas sim de sair de onde se está, fugir da situação presente, curar a náusea de estar
preso a si mesmo: é ‘uma tentativa de sair sem saber para onde se vai, e esta ignorância
frias, habitadas em grandes blocos de cimento do capitalismo
pós-industrial.
Estas cidades do capitalismo pós-industrial estariam
vinculadas ao pós-patriarcado que buscou diferentes formas
de continuar submetendo as sexualidades outras ao poder
masculinizante que concebe uma representação da cidade
moldada a partir dos cristais metafísicos da dominação
masculina. A elas, homogêneas, (in)diferentes, não “lugarizadas”
(sem identidade nem relações, nem histórias) se opõem as
cidades outras, da multiplicidade, das diferenças e das
singularidades, por exemplo, de gênero. Estas são diferentes,
ambíguas, ambivalentes, nômades, excêntricas desejantes e
heterotópicas (ECHETO; SARTORI 2009:337).
Se a cidade de Zobeide constitui para estes autores o
Gênero e cidades
cidade desconhecida. Todos a viram, no sonho, de costas, com
longos cabelos e desnuda. E no sonho todos a perseguiam
sem sucesso. Ela os despistava. Após o sonho, saíram em
busca da tal cidade. Não a encontraram, mas se encontraram
uns aos outros e decidiram construir uma cidade como a do
sonho. Na disposição das ruas, cada um refez o percurso de
sua perseguição; no ponto em que haviam perdido os traços
da fugitiva, dispôs os espaços e as muralhas diferentemente do
que no sonho a fim de que esta vez ela não pudesse escapar
(CALVINO, 2011).
Este é o ponto do conto de Calvino enfatizado pelas
autoras: o enclausuramento das mulheres na cidade, sua
invisibilidade e o controle deste espaço pelos homens. A fundação
de Zobeide é a metáfora para exprimir a natureza “gendrada”
do espaço e do lugar urbanos onde as mulheres devem lutar
Gênero e cidades
protagonistas ativas no mercado de trabalho e migraram por
conta própria. Nos anos 90, Bilac faz uma incursão sobre
este tema, pensando principalmente a América Latina, seguindo
a trilha aberta por Mary Castro e colaboradores, com seu
magnífico levantamento bibliográfico comentado sobre o tema
(CASTRO, 1989). Os estudos migratórios assim, paulatinamente,
foram introduzindo a dimensão do gênero na análise dos
diferentes fluxos (ZONTINI, 2005).
Estas análises envolveram tanto a crítica das teorias
da escolha racional que supõem que homens e mulheres se
movimentam no espaço pelas mesmas razões econômicas (os
diferenciais de salário) quanto a crítica das determinações
estruturais pura e simplesmente (as necessidades do capital
impulsionando as migrações) para incorporar outras dimensões
como família, redes sociais, assim como cada vez mais as
chamadas “instituições migratórias” (por exemplo, agências
de contratação de trabalhadores, tanto legais quanto ilegais,
coyotes etc). Há neste campo todo um mundo a ser explorado
e ainda pouco conhecido, inclusive no caso particular do
tráfico de pessoas. Neste campo, em particular, é importante
estabelecer análises comparativas dos aspectos de gênero e
classe nos processos migratórios para distintas regiões tanto
de partida quanto de chegada.
Outro processo urbano pouco estudado entre nós
e cujas conotações de gênero são pouco investigadas é o
chamado processo de “gentrificação” ou “enobrecimento” de
certas áreas urbanas. No caso brasileiro, aparentemente, os
estudos têm se concentrado nos processos de “gentrificação”
das áreas urbanas centrais a partir de ações de revitalização
urbana. Porém, o termo pode também ser usado de uma forma
mais ampla, referindo-se, de um modo geral, às mudanças
provocadas pela compra ou aluguel de propriedades em regiões
Elisabete Dória Bilac
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Em primeiro lugar, a necessidade de se incorporar
nas análises as inter-relações entre classe, gênero e
etnia, que permitiria o desenvolvimento de insights
sobre as “contradições da opressão” e permitiria dar
conta da diversidade das experiências das mulheres
no processo, uma vez que elas estão presentes na
população expulsa quanto na população afluente;
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Em segundo lugar, o gênero deve ser compreendido
enquanto conjunto de relações sociais que permeiam
toda a vida humana e não como um atributo individual.
Assim, ao invés de se pensar se a “gentrificação”
significa ou não uma mudança nas relações de
poder entre homens e mulheres, é melhor buscar
entender como a “gentrificação” contribui para as
transformações nas divisões de gênero em diferentes
“estruturas de patriarcado”, ou seja, em diferentes
contextos histórico-geográficos que poderão conter
distinções locais importantes;
»»
Finalmente, a necessidade de se pensar como as
dimensões ideológicas envolvendo gênero, classe
e etnia são negociadas nas práticas sociais da
“gentrificação”.
Gênero e cidades
com.br/enanpege/menus/grupos-de-trabalho/gt-19-geografia-genero-e-
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Elisabete Dória Bilac
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Gênero e cidades