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Gênero e Cidades

Elisabete Dória Bilac   1

O tema que se pretende discutir - Gênero e Cidades -,


ao contrário do que sugere o nome desta mesa, não pode
ser considerado emergente. Afinal, após três conferências
internacionais sobre Women and Safety, promovidas pela UN-
Habitat   2 , que produziram uma série de sugestões e reivindicações
de políticas públicas, e a efetivação de programas para
cidades includentes das mulheres, a pesquisa das relações
entre gênero e o urbano ou entre gênero e as cidade não é
novidade, em termos internacionais. Tem a sustentá-la a força
de organizações como a Women in Cities International (WICI)
e a fundamentá-la e comprovar sua ocorrência a construção
de um formidável banco de dados bibliográficos, denominado
“Gênero e o Espaço Construído”   3 .
Contudo, entre nós, este tema não foi e nem vem sendo
muito desenvolvido. Continua sendo, portanto, uma questão
pendente. Uma busca ainda que não exaustiva nos principais

   1  Professora aposentada da Unesp-Ar. Pesquisadora do CNPq junto ao Nepo-Unicamp e


docente do Programa de Pós-Graduação em Demografia (IFCH-Unicamp).
   2  As três conferências foram: 1st International Conference on Women’s Safety –
Montréal, 2002; 2nd International Conference on Women’s Safety Bogotá, 2004; 3rd
International Conference on Women’s Safety New Delhi, 2010.
   3  Disponível em http://www.womenincities.org; http://www.gendersite.org.
periódicos especializados em estudos urbanos ou em gênero
de nosso país, trazem muito poucos resultados. O campo da
Geografia parece constituir uma exceção. A Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa (Anpege) patrocinou, no Encontro
de 2011, dois GTs sobre o tema: GT 7 - Espaço, cultura e
diferença: as dimensões étnico-racial, ambiental e de gênero
e suas ressignificações espaciais e GT 19 - Geografia, gênero
e sexualidades. Este é um indício seguro de que os cientistas
sociais terão muito a aprender com os geógrafos (ANPEGE,
2011a; ANPEGE, 2011b).
Nas diferentes disciplinas, em boa parte dos estudos
existentes, a relação entre gênero e cidade quando existe é mais
uma relação de localização: espaços específicos da cidade são
cenários para diferentes performances de gênero, por exemplo,
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bares e relações entre lésbicas, ou entre gays, experiências da


prostituição de travestis na rua, sociabilidade dos jovens da
periferia etc.
Quer me parecer, contudo, que a relação não é tão
simples assim. A questão é refletir o quanto as construções
ou as performances de gênero são “en/gendradas” de modos
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específicos por urbanos específicos; o quanto são impactadas
por características exclusivas de um determinado espaço ou por
um determinado processo urbano. É tentar pensar os distintos
Gênero e cidades

territórios como constituintes do gênero, assim como o gênero é


constituinte do território, de modo que ideias e representações
do gênero são continuamente retrabalhadas e renegociadas
através das práticas urbanas que, em contrapartida, também
são sempre “gendradas”   4 .
As estruturas e culturas das complexas cidades
contemporâneas são, ao mesmo tempo, espaços para o
florescimento de sexualidades e práticas de gênero normativas
e outras nem tanto: inovadoras, estigmatizadas, sem legiti-
midade. Como afirma Sewell, no Syllabus de curso na New
York University, gênero e sexualidade constituem o urbano
assim como são constituídos pela vida e pela forma urbana
(SEWELL, 2002). Nestes termos, o “urbano” seria o produto da
consubstancialidade das relações de gênero, classe e etnia.

   4  O termo “gendrada” é um neologismo pouco canônico, além de ser um anglicismo.


Porém, à falta de outro melhor, expressa bem a ideia de “engendramento (constituição) pelo
gênero” razão pela qual é utilizado aqui.
Mas nesta perspectiva, de um modo talvez velado,
a relação entre gênero, classe social e cidade foi central no
debate feminista dos anos 70 sobre o trabalho doméstico e a
articulação produção/reprodução. Principalmente no pensamento
de inspiração marxista, é a cidade, ou melhor, a divisão social
do trabalho capitalista que, reunindo a força de trabalho nas
cidades e nelas separando os espaços da casa e do trabalho
termina por retirar a mulher do mercado de trabalho e do
trabalho pago para encerrá-la na casa, no espaço privado e
protegido da família.
O processo, porém, foi longo, pois se a cidade dos
primórdios da industrialização era voraz consumidora da força
de trabalho, consumindo corpos e mentes e a própria vida de
homens, mulheres e crianças, a cidade industrial do capitalismo

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maduro introduzirá outras clivagens de gênero através do
modelo “criança na escola, pai no trabalho e a mulher em casa”.
Instala-se assim, o chamado “modelo homem provedor, mulher
dona de casa” que não teria nenhum sentido na economia
camponesa, onde a família era uma unidade produtiva e o
trabalho doméstico fazia parte desta produção.
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Na Europa, a constituição de um modo de vida urbano
da classe operária envolveu, portanto, a constituição de um

Gênero e cidades
espaço doméstico, privado, familiar, além da padronização
industrial do casamento e da família através do controle da
fecundidade e do estímulo ao casamento formal, processos
amplamente discutido por Therborn (2006).
A questão, tão rica, porém, esvaiu-se com o
esmorecimento do debate sobre o trabalho doméstico no
movimento feminista. Isto se deve, em primeiro lugar à perda de
prestígio do marxismo como pensamento teórico-crítico sobre a
sociedade; mas, et pour cause, também se deve às mudanças
teóricas nas distintas etapas do feminismo da segunda onda.
Para Nancy Fraser, a primeira etapa da segunda onda
do feminismo (anos 70, aproximadamente) pode ser caracterizada
pelo combate à desigualdade, principalmente econômica, entre
homens e mulheres. É, segundo a autora, a fase da redistribuição,
uma fase da igualdade expandida que aproxima o movimento
feminista do imaginário socialista (FRASER, 2007).
Transgredindo uma cultura política que privilegiava
atores que se colocavam como classes definidas nacional
e politicamente domesticadas, eles desafiaram as exclusões
de gênero dentro da social-democracia. Problematizando
o paternalismo do Estado do bem-estar social e a família
burguesa, os feminismos expuseram o profundo androcentrismo
da sociedade capitalista. Politizando “o pessoal”, expandiram
as fronteiras de contestação para além da redistribuição
socioeconômica – para incluir o trabalho doméstico, a sexualidade
e a reprodução. (FRASER, 2007:295)
A perda de força política da esquerda, porém, vai
engendrar uma autonomia da dimensão cultural do feminismo
que é atraído para a órbita das políticas de identidade. A
ênfase passa a ser a necessidade de “reconhecer a diferença”.
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É a fase das políticas de reconhecimento.


Incapazes de obter progresso contra as injustiças
da política econômica, preferiram voltar-se para os males
resultantes dos padrões antropocêntricos de valor cultural ou
de hierarquias. (FRASER, 2007:296).
150 Apesar do ceticismo sobre o sucesso desta segunda
fase em pleno momento pós-comunista e neoliberal, de retração
do Estado de Bem-Estar, a própria autora faz questão de afirmar
Gênero e cidades

que esta mudança da redistribuição para o reconhecimento


está “relacionada, por um lado, à queda do comunismo e,
por outro, à ascensão do neoliberalismo”. Não é um processo
isolado, mas parte de uma transformação histórica de maior
escala, associada à globalização.
Finalmente, após o 11 de setembro, as circunstâncias
conduziriam a uma terceira etapa, na qual uma justiça de
gênero está sendo reenquadrada (redimensionada). Nesta
fase, uma preocupação maior é com o desafio às injustiças –
interligadas – de má distribuição e não-reconhecimento.
Acima e além dessas formas de injustiça, feministas
estão mirando uma meta-injustiça que apenas recentemente se
tornou visível, a que eu chamo de mau enquadramento. O mau
enquadramento surge quando o quadro do Estado territorial é
imposto a fontes transnacionais de injustiça. Como resultado,
temos divisão desigual de áreas de poder a expensas dos
pobres e desprezados, a quem é negada a chance de colocar
demandas transnacionais. Em tais casos, as lutas contra a má
distribuição e o não reconhecimento não são levadas adiante,
e menos ainda são bem-sucedidas, a não ser que se liguem
a lutas contra o mau enquadramento. O mau enquadramento,
assim, emerge como alvo central da política feminista na sua
fase transnacional.

(...) chamo essa terceira dimensão de


representação. Como a entendo, representação
não é apenas uma questão de assegurar voz
política igual a mulheres em comunidades
políticas já constituídas. Ao lado disso, é
necessário reenquadrar as disputas sobre
justiça que não podem ser propriamente
contidas nos regimes estabelecidos. Logo, ao
contestar o mau enquadramento, o feminismo

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transnacional está reconfigurando a justiça
de gênero como um problema tridimensional,
no qual redistribuição, reconhecimento e
representação devem ser integrados de forma
equilibrada. (FRASER, 2007:305)

Porém, como as questões envolvidas na discussão do


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trabalho doméstico na primeira fase (a da redistribuição) não
se resolveram, elas retornam na fase da representação sob

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novos rótulos – um deles é a chamada “conciliação trabalho/
família”   5 . Esta questão remete diretamente à relação gênero e
espaço. É no mínimo curioso pensar-se em termos de políticas
de conciliação trabalho/família para as mulheres ao mesmo
tempo em que o espaço construído nas cidades, segregando
classes sociais e etnias em bairros distintos, separando bairros
residenciais operários das áreas fabris, tornam extremamente
difícil, quando não inconciliáveis, emprego e moradia para boa
parte delas. E a vivência desta contradição envolverá práticas
urbanas diferentes para homens e mulheres. Porque há, sim,
também, uma contradição não resolvida entre trabalho e
família para os homens, embora colocada em outros termos: a
sobrecarga feminina versus a ausência masculina no trabalho
doméstico.

   5  Segundo Kergoat e Hirata, o “trabalho doméstico, que já foi objeto de numerosos
trabalhos, quase não é mais estudado; mais precisamente, ao invés de se utilizar esse
conceito para questionar a sociedade salarial (FOUGEYROLLAS-SCHWEBAL, 1998), fala-se
em termos como “dupla jornada”, “acúmulo” ou “conciliação de tarefas”, como se fosse
apenas um apêndice do trabalho assalariado” (KERGOAT, D.; H. HIRATA, 2007:599).
Mas há uma questão ainda anterior e fundante na
reflexão sobre gênero e cidade – as distintas vivências da
cidade instituídas pelo gênero. Pois nem todas são “en/gen-
dradas” da mesma forma. Não se trata aqui de classificar,
rigorosamente, as cidades como “masculinas” ou “femininas”,
mas de se reconhecer que, além de serem algumas cidades
mais favoráveis às mulheres do que outras, em algumas, mais
do que em outras, há uma possibilidade maior de se admitir
a diversidade e a multiplicidade do gênero, e, portanto, a
variabilidade em sua performance.
Pelo menos dois artigos acadêmicos que buscam
refletir sobre gênero e cidades se inspiram na coletânea de
Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis (2011), mais especificamente na
história da cidade de Zobeide.
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O livro de Calvino remete aos relatos feitos por Marco


Polo ao imperador Kublai Kan sobre as cidades supostamente
visitadas em suas missões diplomáticas. São todas cidades com
nomes de mulher, cidades impossíveis, fantásticas, misteriosas,
ambíguas, mutáveis.
152 Em um destes artigos, os autores refletem sobre
as múltiplas cidades, visíveis e invisíveis, que podem ser
encontradas em uma única cidade; à tensão entre a cidade
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experimentada fisicamente, a cidade real, e a cidade imaginada


nos relatos, canções e imagens. Todas elas, porém seriam
produtos do espaço “outro” (heterotópico)   6 (ECHETO; SARTORI,
2009). Os estudos das transformações urbanas, seu crescimento
exponencial e suas projeções simbólicas, deveriam levar em
conta as diversas formas de imaginar-se as cidades que se
encontram na literatura, na música, no cinema como mecanismos
simbólicos que permitem ‘evadir-se’   7 das cidades homogêneas,

   6  A noção de heterotopia que foi proposta por Foucault e retomada por Gianni Vattimo
se refere à justaposição de tempos e espaços (a vivência simultânea de diferentes
temporalidades, por exemplo, entre o pré e o postmoderno) (ECHETO; SARTORI, 2009:335).
Tal como os autores entendem Foucault, “uma das características das heterotopias é a
justaposição ‘em um só lugar real’ de múltiplos espaços ‘múltiplas localizações’ que são em
si mesmas incompatíveis.” (Idem, p. 343).
   7  O conceito de evasão é emprestado de Emmanuel Lévinas. A evasão é “uma
necessidade de sair de si-mesmo, ou seja, de romper o acorrentamento mais radical, mais
irremissível, o fato de que o eu é si-mesmo” (LÉVINAS, 1935, apud MATTUELLA, 2008:40).
Na interpretação de Mattuella, em Lévinas, “o desejo de evasão não é o de ir para outro
lugar, mas sim de sair de onde se está, fugir da situação presente, curar a náusea de estar
preso a si mesmo: é ‘uma tentativa de sair sem saber para onde se vai, e esta ignorância
frias, habitadas em grandes blocos de cimento do capitalismo
pós-industrial.
Estas cidades do capitalismo pós-industrial estariam
vinculadas ao pós-patriarcado que buscou diferentes formas
de continuar submetendo as sexualidades outras ao poder
masculinizante que concebe uma representação da cidade
moldada a partir dos cristais metafísicos da dominação
masculina. A elas, homogêneas, (in)diferentes, não “lugarizadas”
(sem identidade nem relações, nem histórias) se opõem as
cidades outras, da multiplicidade, das diferenças e das
singularidades, por exemplo, de gênero. Estas são diferentes,
ambíguas, ambivalentes, nômades, excêntricas desejantes e
heterotópicas (ECHETO; SARTORI 2009:337).
Se a cidade de Zobeide constitui para estes autores o

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exemplo claro das cidades nômades, desejantes, da “alteridade”
(ou outridade) ela sugere outras reflexões para Flannagan e
Valiulis (FLANAGAN; VALIULIS, 2011).
Zobeide, cidade branca, bem exposta à luz, com ruas
que giram em torno de si mesmas, como um novelo se destaca
entre as cidades de Calvino pela história de sua fundação: 153
conta-se que vários homens de várias nações tiveram o mesmo
sonho no qual viram uma mulher correr de noite em uma

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cidade desconhecida. Todos a viram, no sonho, de costas, com
longos cabelos e desnuda. E no sonho todos a perseguiam
sem sucesso. Ela os despistava. Após o sonho, saíram em
busca da tal cidade. Não a encontraram, mas se encontraram
uns aos outros e decidiram construir uma cidade como a do
sonho. Na disposição das ruas, cada um refez o percurso de
sua perseguição; no ponto em que haviam perdido os traços
da fugitiva, dispôs os espaços e as muralhas diferentemente do
que no sonho a fim de que esta vez ela não pudesse escapar
(CALVINO, 2011).
Este é o ponto do conto de Calvino enfatizado pelas
autoras: o enclausuramento das mulheres na cidade, sua
invisibilidade e o controle deste espaço pelos homens. A fundação
de Zobeide é a metáfora para exprimir a natureza “gendrada”
do espaço e do lugar urbanos onde as mulheres devem lutar

qualifica a essência mesma desta tentativa’ (LÉVINAS, 1935:78). É, portanto, um desespero


tingido pelos matizes da utopia (de u-topos: não-lugar) (MATTUELLA, 2008:40).
para destruir as barreiras que foram construídas para mantê-
las invisíveis e reivindicar seus corpos e as necessidades deles,
como partes integrais da cidade e afirmar sua visibilidade
enquanto cidadãs urbanas.
A partir desta metáfora as autoras desenvolvem toda
uma teoria das relações de gênero enquanto relações de
dominação. Segundo elas, cada cidade é um regime de gênero
que ideológica e concretamente, manifesta uma relação distinta
entre seus sistemas político, econômico e familiar. Este regime
seria patriarcal: reflete as relações de poder em qualquer
sociedade na qual os valores e comportamentos dos homens
são presumidos como sendo normativos e assim incorporados
nas instituições e instituições urbanas de modo a privilegiar
o controle masculino e assegurar a subordinação feminina.
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Tal regime tenta também manter as mulheres invisíveis dentro


da cidade. Assim, o urbano expressaria uma tensão constante
entre visibilidade e invisibilidade feminina: entre as tentativas
das mulheres de transformarem o privado em público (o privado
também é político) e as dificuldades de fazê-lo. O exemplo maior
destas tentativas foi o movimento das Mães da Praça de Maio,
154 mas elas se manifestam também nos movimentos urbanos por
creches, escolas e outras reivindicações de melhorias públicas
de bairros e comunidades e que geralmente envolvem mulheres.
Gênero e cidades

A análise de Flannagan e Valiulis concentra-se na


questão da subordinação feminina, mas poderia ser expandida
para uma visão de gênero que desse conta também das
diferenças dos homens entre si e das mulheres entre si, ou
seja, que incluísse homens, mulheres, meninas e meninos,
assim como as minorias sexuais (transgêneros, homossexuais e
intersexuais) Mas na verdade, a construção dualista da cidade
modernista, de espaços/lugares privados femininos e públicos
masculinos enquanto expressão da razão ocidental é poderoso
instrumento de dominação, ao mesmo tempo, das mulheres e
das minorias sexuais e sua desconstrução não é fácil.
O fato de já terem ocorrido três conferências
internacionais sobre Mulheres e Segurança constitui um exemplo
claro disto: trata-se de estimular a construção de cidades
livres da violência contra as mulheres, violência física, sexual
e simbólica, de garantir à elas plenamente o direito à cidade
entendido como o acesso pleno ao espaço público, à tomada
de decisões que digam respeito à comunidade. Por outro lado,
esta luta, começando pelas mulheres, termina por envolver
todas as categorias de gênero, pois a necessidade de se mudar
a aceitação cultural da violência contra a mulher envolve a
oferta de estilos de vida alternativos a homens e meninos, ao
questionamento da vivência da masculinidade e a aceitação
da diversidade. Não é apenas um ideário, na medida em que
há programas postos em prática, mas há muito chão a ser
percorrido.
Do ponto de vista acadêmico a reflexão sobre a
subordinação feminina, embora esta não esgote a dominação
de gênero, mantém-se ainda como ângulo importante na
análise. Contudo, se espaços/lugares são “gendrados” é porque
se constituem, continuamente, através de processos sociais

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múltiplos que também envolvem uma dimensão de gênero.
Tome-se, por exemplo, as migrações. Até os anos 80,
principalmente no caso das migrações internacionais, conside-
rava-se a migração feminina como praticamente “acessória” da
migração masculina por trabalho. Foram as análises feministas,
começando com Morokvasic, analisando fluxos para a Europa
155
meridional que revelaram a diversidade de experiências das
mulheres nos processos migratórios e como muitas vezes eram

Gênero e cidades
protagonistas ativas no mercado de trabalho e migraram por
conta própria. Nos anos 90, Bilac faz uma incursão sobre
este tema, pensando principalmente a América Latina, seguindo
a trilha aberta por Mary Castro e colaboradores, com seu
magnífico levantamento bibliográfico comentado sobre o tema
(CASTRO, 1989). Os estudos migratórios assim, paulatinamente,
foram introduzindo a dimensão do gênero na análise dos
diferentes fluxos (ZONTINI, 2005).
Estas análises envolveram tanto a crítica das teorias
da escolha racional que supõem que homens e mulheres se
movimentam no espaço pelas mesmas razões econômicas (os
diferenciais de salário) quanto a crítica das determinações
estruturais pura e simplesmente (as necessidades do capital
impulsionando as migrações) para incorporar outras dimensões
como família, redes sociais, assim como cada vez mais as
chamadas “instituições migratórias” (por exemplo, agências
de contratação de trabalhadores, tanto legais quanto ilegais,
coyotes etc). Há neste campo todo um mundo a ser explorado
e ainda pouco conhecido, inclusive no caso particular do
tráfico de pessoas. Neste campo, em particular, é importante
estabelecer análises comparativas dos aspectos de gênero e
classe nos processos migratórios para distintas regiões tanto
de partida quanto de chegada.
Outro processo urbano pouco estudado entre nós
e cujas conotações de gênero são pouco investigadas é o
chamado processo de “gentrificação” ou “enobrecimento” de
certas áreas urbanas. No caso brasileiro, aparentemente, os
estudos têm se concentrado nos processos de “gentrificação”
das áreas urbanas centrais a partir de ações de revitalização
urbana. Porém, o termo pode também ser usado de uma forma
mais ampla, referindo-se, de um modo geral, às mudanças
provocadas pela compra ou aluguel de propriedades em regiões
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habitadas pelos estratos populares, por pessoas mais ricas


(gentry). Em consequência a renda média familiar local sobe,
assim como os preços dos aluguéis e dos impostos, o que
resulta na expulsão da população original. Muitas vezes a
“gentrificação” leva à segregação urbana.
Liz Bondi (1991) faz uma crítica detalhada dos quadros
156
teóricos utilizados nos estudos de “gentrificação” para análise
das dimensões de gênero do processo, da qual resultam as
seguintes recomendações:
Gênero e cidades

»» 
Em primeiro lugar, a necessidade de se incorporar
nas análises as inter-relações entre classe, gênero e
etnia, que permitiria o desenvolvimento de insights
sobre as “contradições da opressão” e permitiria dar
conta da diversidade das experiências das mulheres
no processo, uma vez que elas estão presentes na
população expulsa quanto na população afluente;

»» 
Em segundo lugar, o gênero deve ser compreendido
enquanto conjunto de relações sociais que permeiam
toda a vida humana e não como um atributo individual.
Assim, ao invés de se pensar se a “gentrificação”
significa ou não uma mudança nas relações de
poder entre homens e mulheres, é melhor buscar
entender como a “gentrificação” contribui para as
transformações nas divisões de gênero em diferentes
“estruturas de patriarcado”, ou seja, em diferentes
contextos histórico-geográficos que poderão conter
distinções locais importantes;

»» 
Finalmente, a necessidade de se pensar como as
dimensões ideológicas envolvendo gênero, classe
e etnia são negociadas nas práticas sociais da
“gentrificação”.

Migrações e “gentrificação” são apenas dois dos


inúmeros processos urbanos que constituem e são constituídos
pelo gênero e cuja análise nos ajuda a compreender as
complexas relações entre gênero e cidades   8 . Mas realmente
apenas afloram o tema. Há inúmeros processos urbanos que
podem e necessitam ser analisados da perspectiva de gênero
combinada com a de classe social e de etnia e que constituem

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ainda grandes interrogações pendentes. Não sendo “emergente”,
gênero e cidades é, contudo, um tema de grande atualidade a
exigir maiores reflexões sobre inúmeras dimensões ainda pouco
ou nada exploradas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 157

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   8  Refletir sobre cidades parece ser mais proveitoso do que refletir sobre o “urbano”
de modo geral, uma vez que este último termo sugere uma uniformidade de espaços na
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