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“ALÉM DE PRETO, BICHA”

Uilton Garcia Cardoso Júnior1​

Muitos fatores contribuem para que a história brasileira reivindique ressalvas para sua
apreensão imparcial. Mesmo numa observação rápida ou em um comentário imediato, numa
conversa informal, a complexidade de sua formação política e cultural exige que nosso modo
de compreendê-la considere as estruturas que a constituíram, tanto em abordagens onde o
coletivo é a atenção principal, como nas que se buscam identificar as subjetividades que a
compõem. Nosso passado colonial se enraizou de tal forma na maneira como nos elaboramos
socialmente, que mesmo quando reivindicamos seu fim, dependemos de sua hierarquia para
projetar nosso futuro. Hierarquia, dentre outros aspectos, substancialmente racial. Foi a
organização racial que o escravismo colonial delegou aos diferentes períodos da sociedade
brasileira que serviu de base para os momentos decisivos de seu percurso. Foi em referência a
ela que a elite intelectual buscou afirmar uma identidade nacional em meados do século XIX
e também quando, com a Abolição (1888), optou-se por manter vigente a exclusão política, e
porque não cívica, da grande parcela populacional não-branca. Sim, cabe dizer que foram
escolhas, preferências por estender aos capítulos seguintes dessa história mal contada seus
aspectos racistas, patriarcais e latifundiários.
Por isso, começo esse texto apontando nossa necessidade em assumir. Assumir que
nossa consciência racial é má formulada e que costumamos não a identificar nas diversas
instâncias em que ela é estruturante. Que tem a ver a racialização com os diversos
relacionamentos com qual lidamos? Onde ela se apresenta em nosso mercado de trabalho? E
nos índices demográficos? Onde se concentram os grupos racializados? Sexualidade? Qual
relação existe entre nossas preferências e orientações sexuais, expressões de gênero e essa tal
de consciência racial? Estas respostas não são e nem devem ser únicas, visto que nossa
extensão territorial é outro fator determinante para nossas elaborações. Nascido em Salvador,
mas residente em São Paulo, minha adolescência e juventude bem notaram que o “preto” e o
“bicha” foram enunciados de modos bastante distintos nas duas regiões. Sugiro, ademais, que
toda essa discussão se apresente demasiadamente íntima para cada realidade regional, embora
se tente destacá-la aqui num processo mais amplo.

1
Graduando em História da Arte pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/UNIFESP, onde pesquisa
a adequação da raça no discurso colonial-artístico brasileiro. É membro do Acervo Bajubá e do coletivo
LGBTT.me, e em ambos se dedica a investigar a maneira como os discursos raciais se envolveram com a
construção das identidades sexuais e de gênero.
DUPLA DISCRIMINAÇÃO
Considerando, então, que o passado colonial é absurdamente operante em nossa
contemporaneidade, o esforço de compreender o modo da elaboração das identidades negras
brasileiras carece do reconhecimento que ela possui uma circunstância desproporcional
quando comparada às brancas. Escravizados primeiro; ex-escravizados em seguida; pobres,
desempregados e periféricos por fim, a população negra não contou com os artifícios sociais
e materiais que fizeram parte da chamada modernização brasileira. Comumente referenciadas
em mentiras que permaneceram ativas desde os sequestros e escravização, a afro-brasilidade
precisou reformular seu modo de auto-concepção, em direção contrária às permanências aqui
listadas.
Para a cultura e movimento homossexual​2 da segunda metade do século XX, esta
complexa elaboração foi uma tensão reveladora. Participantes também dum contexto de
marginalização e preconceitos pela parcela dominante da população brasileira, hoje
epistemologicamente reconhecida como cisheteronormativa​3​, a similaridade excludente entre
os grupos não parece ter sido percebida como equivalente. Na verdade, elas não eram. As
nuances dos recortes sociais que compõem as dissidências sexuais e as raciais foram
concebidas enquanto originadas de contextos distintos e, por isso, se manifestaram
diversamente nos corpos dissidentes​4​. Para um corpo negro, os marcadores que o
estereotipam se originam de um imaginário e para os homens e mulheres trans, a sapatão,
travesti, bissexuais e para a bichas de um outro. Mesmo dentro destes últimos as diferenças
são gritantes. Ocorre que para uma pessoa negra ​e trans, sapatão, bissexual, ou bicha eles se
confluem, gerando uma espécie de terceiro imaginário, para concordar com o filósofo indiano

2
Diferencio aqui cultura e movimento, buscando reconhecer que o primeiro diz respeito à uma experiência da
sexualidade presente nas manifestações artísticas, vestuário, linguagem, etc, mas que não necessariamente se
orientou através da institucionalização de seu discurso. Entendo-a de forma tão política quanto o que chamo de
movimento, que se refere ao surgimento de grupos em busca das exigências dos direitos homossexuais,
sobretudo a partir da década de 1970. Opto pela nomenclatura “homossexual” por ser o termo vigente no
período ao que hoje concebemos enquanto Comunidade LGBTQIA+.
3
​Maria Leão, cientista social integrante do Acervo Bajubá, define o termo da seguinte maneira: “Em uma
explicação não tão acadêmica, a “heteronormatividade” seria a forma da nossa sociedade de elaborar o mundo
onde é verdade universal que tudo é cisgênero e tudo é heterossexual. As crianças nascem, seu gênero é definido
e é também contado para elas apenas que elas devem se interessar pelo “sexo oposto”. Desde a creche, qualquer
demonstração de afeto entre (quase bebês) meninos e meninas é explicada através de narrativas de namoro e
desejo, não restando nem espaço para serem construídos nem a amizade inter-sexual e nem o afeto e o desejo
intra-sexuais.” Disponível em
<http://acervobajuba.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Texto-visibilidade-le%CC%81sbica-acervo-bajuba%
CC%81.pdf>.
4
Uma abordagem decolonial entende a estrutura racial que a colonialidade inaugurou operante em diversos
aspectos da sociedade. Desse modo, a construção do racismo ocorre conjuntamente com as de gênero e
sexualidade, categorizando, por exemplo, uma família ideal a partir de uma hierarquia necessariamente racial,
de gênero e sexual. A cisheteronormatividade que apontamos, sendo assim, é obrigatoriamente branca. O modo
como elenco as separações dessas categorias aqui buscam reconstruir a maneira como ela foi inicialmente
compreendida na tensão raça-sexualidade-gênero dentro dos movimentos negros e homossexuais.
Homi Bhabha​5​. Isto reserva a este corpo um ​status passível de uma dupla discriminação,
proveniente tanto da branquitude como da cisheteronormatividade.
Ocorreu que mesmo dentro das comunidades negras o discurso cisheteronormativo
encontrou espaço. O antropólogo social Edward Macrae nos mostra, em seu livro “A
construção da Igualdade” (2018/1990), que a homossexualidade representou inúmeras vezes
nas “organizações negras de cunho mais político-reivindicatório” uma “vergonha da raça” e
até um “vício branco” (2018, p. 332)​6​. As dissidências sexuais operaram, algumas vezes,
como um dos malefícios da colonização pois, quando comparadas às dinâmicas sociais de
certas regiões africanas, exercício bastante comum na reelaboração da identidade negra
afro-brasileira, elas foram compreendidas como ​externas às identidades negras. Resta que
homossexuais negros existiam e a dupla discriminação começou a ser verbalizada justamente
através de seus incômodos. Este foi o caso de um rapaz, chamado Passarinho, que numa
conferência da antropóloga Lélia Gonzalez, em 1978, e no 1º Congresso do Movimento
Negro Unificado (1979), ousou pontuar a especificidade da discussão da sexualidade dentro
do contexto dos debates de discriminação racial. Ambos os eventos eram direcionados a
debater o racismo e entender suas reverberações no corpo negro e, coincidentemente ou não,
os momentos aproveitados por Passarinho para pautar suas questões foram nos debates sobre
a condição da mulher negra. Problema de complexidade significativamente maior, a dupla
discriminação machista e racista atuante sobre as mulheres negras parece ter sido um dos
únicos meios possíveis para a intersecção proposta pelo militante.
Os cruzamentos entre os imaginários e estereótipos raciais, sexuais e de gênero foram
fundamentais para o modo como a condição da pessoa negra homossexual foi posta nos
debates dos movimentos negros. Para o movimento homossexual, esse reconhecimento
ocorreu demasiado vagaroso também. Digo isto mais pela complexidade estrutural que faço
questão reiterar, e menos pela vontade de indicar ausência de iniciativas. A sentença “além de
preto, bicha” é absurdamente sugestiva, e sua sequência é sintomática. Se reconhecer preto é
um passo, bicha, outro. No caso do branco, cisgênero e hétero, a sequência é também real.
“Não bastava ser preto, tem que ser bicha também?”. Ouso estender a nossos dias esses tipos

5
BHABHA, Homi K. ​O local da cultura​. Minas Gerais: Editora UFMG, 1998.
6
MACRAE, Edward. ​A construção da igualdade. Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”​.
Salvador: EDUFBA, 2018.
Apesar de manter certo foco na dinâmica paulistana do movimento homossexual, sobretudo por meio da análise
do Grupo Somos, o autor se atenta aos diferentes desdobramentos ocorridos em diversas regiões do Brasil, de
onde Salvador ocupa um lugar privilegiado. Na parte em que se dedica às dinâmicas dessa região, com foco no
Grupo Adé-Dudu, Macrae referência o trabalho “A participação dos homossexuais no movimento negro
brasileiro” de Wilson Santos, amplamente distribuído pelo grupo apontado em 1984.
de compilações de significados raciais-sexuais. Há diferença entre uma gay e uma bicha? E
entre uma lésbica e uma sapatão?
Macrae nos mostra (2018, p. 333-34) que pouco a pouco a dupla discriminação
ganhava consciência geral e, em 1980, quatro integrantes do Grupo Somos, em São Paulo,
indicam o fato de posicionamentos racistas dentro do grupo e propõem reformulações nesse
sentido, criando o Grupo de Negros Homossexuais (GNH). Um ano depois, em Salvador, oito
rapazes fazem algo semelhante, e fundam o grupo Adé-Dudu.

UM TERMO EM IORUBÁ PARA DENOMINAR O NEGRO E O HOMOSSEXUAL


“Adé” é um termo vigente entre fiéis e sacerdotes de religiões afro-brasileiras para
designar o homossexual​7​, e “Dudu” é um termo em nagô/iorubá semelhante ao nosso
“negro”. A combinação desses termos foi escolhida para denominar o grupo surgido em 1981
com o intuito de combater, sincronicamente, o racismo e o machismo. Diante do que temos
discorrido aqui, sobre o modo como a constituição da identidade negra brasileira ocorreu e
como ela esbarrou no movimento homossexual, a escolha de expressões próprios ao contexto
afro-brasileiro é significativamente estratégica. O nagocentrismo na Bahia foi um termo
inicialmente utilizado como modo de identificação e classificação dos africanos que haviam
sido importados para o trabalho escravizado colonial. Figuras como o médico legista Nina
Rodrigues (1862-1906), sobretudo em seu trabalho “Os africanos no Brasil” (1932),
protagonizaram o questionamento da prevalência dos africanos de origem bantu no Brasil,
reivindicando uma predominância dos de origem nagô/iorubá (juntamente com outras
parcelas sociais formadoras da região Sudanesa da África Ocidental, atuais Gana, Nigéria,
Camarões e regiões vizinhas) na região baiana. Este discurso teórico, intitulado
nagocentrismo, disseminou-se entre a população negra da Bahia e constituiu uma referência
identitária ativa para o processo de reelaboração que temos comentado. Adé-Dudu, então,
surge como uma reivindicação consciente do lugar que se buscava constituir.

QUIMBANDA-DUDU
Em novembro de 1995, 14 anos após o surgimento do Adé-Dudu, fundou-se em
Salvador, como um subgrupo independente do Grupo Gay da Bahia (GGB) (1980), o grupo

7
Vale ressaltar que, diante do quadro apresentado da utilização do discurso cisheteronormativo dentro do
movimento negro de 1970-80 em Salvador, contrapõem-se a realidade operante nos círculos religiosos
afro-brasileiros onde há “grande proporção de homossexuais entre fiéis e sacerdotes (...) especialmente no norte
e nordeste do país. (...) São inúmeros os casos de pai de santo que vivem abertamente a sua homossexualidade e
é nos terreiros que esta manifestação sexual goza do seu maior prestígio dentro da comunidade negra.”
(MACRAE, 2018, p. 131-132)
Quimbanda-Dudu. Noticiado pela Folha de São Paulo, no mesmo mês e ano, como “grupo de
pressão”, pela disposição em enviar “cartas e petições a entidades que, de alguma forma,
podem ajudar a atenuar o duplo preconceito que sofrem”​8​, o Quimbanda surge com uma
explícita contestação direta, não apenas pelos preconceitos específicos sofridos por seus
integrantes, mas também diante dos que fosse possível notar no quadro mais amplo da
sociedade. Mais abrangentes que isso, como nos mostra seu folheto explicativo
(disponibilizado juntamente com Boletim n.2 nesta publicação), o início das atividades do
grupo foi marcado por um “protesto contra as declarações e atitudes homofóbicas do
Presidente Zimbábue”, da Nigéria. No percurso das assimilações identitárias da negritude e
da homossexualidade, o grupo Quimbanda parece ter iniciado com uma postura
político-discursiva bastante distinta da qual notamos entre as décadas de 1970-80. O
continente africano persistia como referência estrutural para a afro-brasilidade, como nos
mostra os noticiários que os Boletins nos trazem sobre a situação política de alguns locais de
África, mas se acham completamente submersos nas temáticas dos Direitos Humanos e
defesa da liberdade sexual.
Outra diferença marcante é a mistura regional que seu nome convoca. “Quimbanda” é
um termo de origem bantu, que significa algo próximo ao nosso “feiticeiro homossexual”, e
“Dudu”, como vimos, “negro”, em nagô/iorubá. Essa mudança estratégica diz respeito ao
posicionamento pan-africanista tomado pelo grupo, em busca de “contrabalancear o
“nagocentrismo” dominante na Bahia contemporânea”, segundo seu folheto explicativo. É
interessante notar as assimilações que este grupo negro homossexual soteropolitano faz dos
discursos do debate racial mais amplo. Admirável, ademais, é o esforço notado nos Boletins
em tornar paralela a busca pela legitimação dos direitos básicos por meio de uma abordagem
afro-americana, sul-atlântica. Isto não apenas em relação ao contemporâneo, mas também em
relação à história colonial brasileira. O patrono escolhido para o Quimbanda-Dudu foi
Francisco Manicongo, “o mais antigo quimbanda registrado na história”, um escravizado
residente em Salvador que “em 1591 foi denunciado à Santa Inquisição como “sodomita”,
isto é, homossexual, o qual recusava-se “vestir roupa de homem”.” Francisco aparece ao lado
de figuras como Madame Satã (1990-1976), Mário de Andrade (1893-1945) e João do Rio
(1881-1921), nas diferentes edições do Boletim, o que demonstra o ávido interesse do grupo
em tornar possível a relação temporal, geográfica e racial entre diferentes pessoas que
compartilharam as causas das quais reivindicavam.

8
Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/09/cotidiano/16.html>.
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A acessibilização dos materiais que compõem o Acervo Bajubá, em constituição


desde 2010, são sempre uma escolha. Assim como o modo que lemos, analisamos e
relacionamos seus conteúdos, torná-los acessíveis diz respeito a nosso interesse em viabilizar
materiais que colaboram para uma revisão histórica da cultura e movimento LGBT brasileiro,
com todas suas nuances e complexidades. Embora difícil, esse exercício se mostra
absurdamente necessário. Não pretendemos titular novidades, como bem nos mostra
Passarinho, o Adé-Dudu e o Quimbanda-Dudu, antes, enxergar na revisão, na atenta
observação do passado, frechas que nos auxiliem a conceber melhor o presente e futuro.
A partir de hoje, publicaremos semanalmente uma edição do Boletim
Quimbanda-Dudu e posterior as edições do jornal também publicado pelo grupo, Alafia,
voltado ao combate a epidemia de HIV/Aids e promoção da saúde. Acompanhem nossas
redes sociais e sites, sempre há outros documentos que nos ajudam a compreender o percurso
dessa comunidade que integramos.

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