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Pelo civismo e pela moralidade: a sociedade brasileira pelas


lentes da propaganda oficial da ditadura militar através da
Agência Nacional (1970-1979).

For civis and morality: Brazilian Society through the lens of the oficial publicity
of the military dictatorship through the Agencia Nacional (1970-1979)

Júlia Boor Nequete1

Resumo
O presente artigo busca analisar as representações da sociedade brasileira através dos
documentários da Agência Nacional (1970-1979) um dos órgãos institucionais responsáveis
pela propaganda oficial da ditadura militar, através da Análise Fílmica. A análise empreendida
se dará a partir de quatro documentários: “Como se forja um chefe” (1970);
“Comportamento na estrada” (1970), “Ministério da Previdência Social – INPS” (1975) e “O
jovem estagiário” (1975)” levando em consideração como tais representações foram
construídas conforme a ideia de “Brasil Grande” e de Doutrina de Segurança Nacional tendo
correspondido, assim, a imposição do civismo como modelo de cidadania e moralidade.
Sobretudo, analisaremos os silenciamentos empregados pelos documentários sobre a
sociedade brasileira, resultando em um processo demarcado pelas violências simbólicas.
Palavras-chave: Propaganda política; Ditadura Militar; Agência Nacional.

Abstract
This article aims to analyze the representations of Brazilian society through the documentaries
of the National Agency (1970-1979), one of Organs institutional bodies responsible for the
official propaganda of the military dictatorship, through Film Analysis. The analysis undertaken
will be based on four documentaries: “Como se forja um chefe” (1970); "Comportamento na
estrada" (1970), "Ministério da Previdência Social - INPS" (1975) and "O jovem estagiário"
(1975)" taking into account how such representations were constructed according to the idea
of "Brasil Grande" and the Doctrine of National Security having thus corresponded to the
imposition of civics as a model of citizenship and morality. Above all, we will analyze the silences
employed by documentaries about Brazilian society, resulting in a process marked by symbolic
violence.
Keywords: Political adverstising; Military dictatorship; Agencia Nacional.

1 Mestra em História pela PUCRS/CAPES. E-mail: nequete.julia@gmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 13, n. 28, outubro 2021


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Introdução

O processo de consolidação da ditadura militar foi marcado não somente

pelo uso crescente do aparato repressivo, mas também pela difusão de imagens

que conferissem legitimidade e coesão ao regime que se instaurou a partir do

golpe de 1964. Através da ARP/AERP (Assessoria de Relações

Públicas/Assessoria Especial de Relações Públicas)2 e da Agência Nacional (AN),

órgão de comunicação oficial do Estado, a ditadura investiu em difundir suas

imagens e discurso oficial. Diferentemente das produções da ARP/AERP, a

Agência Nacional produziu uma propaganda em formato de cinejornais,

documentários e programa de rádio (A Voz do Brasil), seguindo uma lógica

informativa e, portanto, mais pedagógica e menos explícita. Porém, ainda que

os formatos de propaganda se distinguem entre estes órgãos, cabe ressaltar

que a AN seguiu o modelo aerpiano, no sentido de promover uma imagem da

ditadura através de ressignificações da ideia otimista sobre o país, como

analisou Carlos Fico (1994) em seu pioneiro trabalho sobre a propaganda

política da ditadura militar brasileira. No presente artigo, iremos nos concentrar

nas representações da sociedade brasileira através dos documentários

produzidos pela AN3 e como tais representações passaram pela ideia da moral

e do civismo, conceitos caros à ditadura e, desta forma, fizeram parte da

2 A Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) fora criada no período de Médici e sua
sucessora, a Assessoria de Relações Públicas (ARP), ocorreu no período de Geisel. Assim, estes
órgãos não tiveram produção contínua.
3 Todos os documentários podem ser encontrados no formato online através da plataforma
Portal Zappiens.

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imagem nacional necessária à sustentação da Doutrina de Segurança Nacional

(DSN)4.

A propaganda política alterou significativamente o mundo político desde

as primeiras décadas do século XX, sobretudo por se utilizar dos meios de

comunicação em massa como instrumentos de legitimação e dominação.

Através do – infeliz – sucesso demonstrado pela propaganda da Alemanha

Nazista (1933-1945), por meio da criação do Ministério de Educação e da

Propaganda, de Joseph Goebbels, uma série de regimes e partidos passou a se

utilizar desta estratégia de propaganda. No caso brasileiro, podemos observar

o uso sistemático de uma propaganda política oficial, isto é, sendo parte da

estrutura do Estado, a partir da experiência da ditadura do Estado Novo (1939-

1945) de Getúlio Vargas, com a implementação do Departamento de Imprensa

e Propaganda (DIP). Com o fim da ditadura estadonovista, o DIP fora extinto e,

em seu lugar, foi criada a Agência Nacional, que fez parte da estrutura do Estado

como meio de comunicação oficial até 19795.

4 A Doutrina de Segurança Nacional diz respeito ao ideário presente na consolidação das


ditaduras militares do Cone Sul. Desde o princípio do período da “Guerra Fria” este ideário
tomou força no interior das Forças Armadas, sobretudo, as brasileiras. Estes grupos foram
responsáveis pela criação da ESG (Escola Superior de Guerra), a qual formulou as bases da DSN.
A finalidade da DSN era estabelecer as bases de atuação para que o Brasil se desenvolvesse
através do binômio Segurança e Desenvolvimento. O princípio da doutrina era a visão de uma
guerra total, envolvendo setores civis da sociedade brasileira, constituindo a ideia do “inimigo
interno” a ser combatido, através do embate entre as duas grandes potências mundiais do
período.
5 No ano de 1979, através do o decreto-lei n.83.993 de 19 de setembro de 1979, a Agência
Nacional deu lugar à Empresa Brasileira de Notícias.

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Entretanto, a propaganda política arquitetada pela ditadura se nutriu de

aspectos bem diferentes daqueles promovidos pela propaganda varguista. É

importante destacar que, inclusive, os primeiros anos da ditadura militar não

observaram a necessidade de investir em uma propaganda política elaborada e

organizada, sobretudo para manter as aparências democráticas. Este quadro se

alterou a partir do contexto pós promulgação do Ato Institucional nº 5, no qual

o caráter ditatorial ficara evidente, e surge a necessidade de investir em imagens

favoráveis aos militares, e que os distanciassem da propaganda política

ostensiva e tradicional. Nina Schneider (2017), ao traçar uma análise comparada

entre a propaganda da ditadura militar brasileira e a propaganda nazista,

pontuou que, diferentemente desta última, a propaganda da ditadura militar

brasileira foi marcada por “(...) um caráter desmobilizador e aparentemente

apolítico” (SCHNEIDER, 2017, p. 330). A utilização de imagens personalistas

também fora evitada de forma que a propaganda oficial da ditadura focou em

criar uma imagem coletiva dos militares, pautada em uma ideia de unidade das

Forças Armadas. Todavia, como veremos neste artigo, as produções de

propaganda da Agência Nacional, ainda que tenham severas diferenças com a

propaganda nazista, também possuem muitas semelhanças com a mesma,

como a negação dos conflitos sociais e políticos da sociedade.

Os documentários da AN, assim como os cinejornais, eram transmitidos

à população através das salas de cinema, antes dos filmes principais6. Conforme

6 Ainda que a Televisão também fosse um veículo de comunicação que transmitia as produções
da AN, em menor escala, o cinema se constituía como principal espaço desde o decreto lei

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o modelo aerpiano, tais produções traçaram suas narrativas e imagens a partir

do processo de ressignificação de uma visão otimista do Brasil, elemento que

já fazia parte do imaginário social brasileiro tendo como pilares

(...) a exuberância natural, a democracia racial, o congraçamento


social, a harmônica integração nacional, o passado incruento, a
alegria, a cordialidade e a festividade do brasileiro, entre outros
– foram re-significados pela propaganda militar tendo em visa a
nova configuração sócio-econômica que se pretendia inaugurar.
(FICO, 1997, p.147).

Através destes elementos, a propaganda da ditadura promoveu sua

autoimagem por meio da ideia do “Brasil Grande” – ou, “Brasil Potência –

que fora amplamente explorado pelos militares como representação oficial do

país naquele momento. É importante destacar que tais ideias não foram criadas

pela ditadura, mas apropriadas por ela e possuem longa tradição no imaginário

social brasileiro. Para Carlos Fico (1997), o anseio pelo “Brasil Grande” se

sustentou na ideia da potencialidade nacional como naturalmente inclinada a

se tornar uma potência mundial e, principalmente, na confiança em um futuro

promissor. Como aponta Marcos Napolitano (2014) estes elementos tomavam

conta dos quartéis, se tornando ideais unificadores. Estes aspectos foram

reelaborados pela ditadura no sentido de que, o “Brasil Grande” finalmente

nº21.240, de 4 de abril de 1932, torna-se obrigatória a apresentação dos curta-metragens nos


cinemas antes das projeções dos filmes em cartaz. Sobre isto, ver mais em: SANTOS NETO,
Antônio Laurindo dos. Os cinejornais da Agência Nacional no sistema de informações do
Arquivo Nacional (SIAN) e no portal zappiens: contribuições para análise, descrição e
representação arquivísitica da informação. Dissertação de mestrado em Ciência da Informação.
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, UFF, Niterói, 2014.

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estava acontecendo, graças aos militares no poder, dando esta dimensão ao

projeto político ditatorial, uma dimensão cara para o imaginário social

brasileiro. Logo, cabe aqui compreendermos o potencial mobilizador de

confiança e identificação da sociedade para com este projeto de nação,

buscando associar anseios e crenças sociais ao projeto de modernização

conservadora-autoritária7. Tal projeto se configurou, segundo Rodrigo Patto Sá

Motta (2014, p. 22) a partir de uma relação ambígua e contraditória entre os

impulsos conservadores da ditadura, no sentido de manutenção das estruturas

e da ordem tradicional, com os grupos modernizadores, por vias autoritárias.

Assim, a “modernização” do país tomou corpo através de uma política muitas

vezes paradoxal no processo de impor “mudanças conservando” o quadro

estrutural e status quo, alimentando a imagem de que o país estava se

desenvolvendo devido à atuação dos militares.

É necessário lembrar que este projeto correspondeu, também, aos

preceitos da DSN, que serviu como sustentação ideológica primordial das

ditaduras militares do Cone-Sul8. Levando em consideração o aspecto de uma

narrativa pedagógica dos documentários, estas produções também possuíam a

função de educar o olhar dos espectadores a partir dos pilares da segurança

7 Cabe destacar que as formulações intelectuais sobre o autoritarismo possuem ocorrência no


pensamento brasileiro desde, pelo menos, as produções de Francisco Campos, Oliveira Viana e
Azevedo Amaral na década de 1920.
8 Cabe destacar que o cenário internacional foi fundamental na construção e efetivação da DSN
e das ditaduras militares que tomaram o Cone-Sul. É inegável a participação direta dos Estados
Unidos na formação militar brasileira desde o fim da Segunda Guerra Mundial, formando a base
ideológica da DSN.

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nacional. Logo, para a construção e efetivação do “Brasil Grande”, a atuação

dos cidadãos e cidadãs do país era imprescindível ganhando a forma do

civismo. Conforme Maria Helena Moreira Alves (1984), segundo a DSN,

qualquer grupo ou indivíduo poderia ser considerado como comunista ou

subversivo, tornando necessária a vigilância constante dos cidadãos, no sentido

de que qualquer indivíduo era suspeito, a priori (ALVES, 1984, p. 38).

Desta maneira a ditadura investiu na denúncia e na vigilância entre a

sociedade, não somente por meio da perseguição e da repressão

instrumentalizados pelo Estado ditatorial, mas também pela elaboração de um

modelo de cidadania, baseado na ideia do civismo9. Para além do nacionalismo

exacerbado e do culto à nação, o cidadão possuía função social e política em

conformidade com a DSN, elementos estes que foram difundidos pelos

documentários e cinejornais da AN, sobretudo com imagens da sociedade

unida através de símbolos como a bandeira nacional. Como analisou Enrique

Serra Padrós (2005) a DSN se baseava na

(...) rejeição da ideia da divisão da sociedade em classes, pois as


tensões entre elas entram em conflito com a noção de unidade
política, elemento basilar daquela. Segundo os princípios da DSN,
o cidadão não se realiza enquanto indivíduo ou em função de
uma identidade de classe. É a consciência de pertencimento a
uma comunidade nacional coesa que potencializa o ser humano
e viabiliza a satisfação das suas demandas. Nesse sentido,
qualquer entendimento que aponte a existência de
antagonismos sociais ou questionamentos que explicitem a
dissimulação de interesses de classe por detrás dos setores

9 É importante destacar que a noção de cidadania imposta pela ditadura militar estava ligada à
noção de obediência e civismo, em um sentido próximo ao da própria hierarquia militar.

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políticos dirigentes é identificado como nocivo aos interesses da


“nação” e, portanto, deve ser combatido como tal. Mais do que
isso, tal coesão política pressupõe o fim do pluralismo político,
condição essencial para a resolução dos conflitos e de seus
elementos centrífugos. (PADRÓS, 2005, p.144).

A função destas imagens, cabe destacar, também estava ligada a

desmoralização das denúncias e imagens da oposição, que também ocupavam

amplo espaço no debate público. Tudo aquilo que não estava em conformidade

com o “Brasil Grande”, como a corrupção, as torturas, os desaparecimentos,

os altos níveis de desigualdade social, a censura, as perseguições políticas, entre

outros dados que expunham os horrores e contradições da ditadura, eram

silenciados e deslegitimados. Para Maria Helena Capelato (1998) estas

atividades de controle “(...) ao mesmo tempo em que impediam a divulgação

de determinados assuntos, impunham a difusão de outros na forma adequada

aos interesses do Estado” (CAPELATO, 1998, p. 75). As imagens promovidas

pela AN também evidenciam este caráter, produzindo o que a autora chama de

“violência simbólica”, perspectiva com a qual iremos dialogar

constantemente ao tratarmos destes documentários.

O imaginário social e os documentários da Agência Nacional

A sétima arte fora excepcionalmente importante para o universo político,

e ainda o é. No início do século XX, com o constante aprimoramento da técnica

cinematográfica e desenvolvimento de uma linguagem própria, o cinema fora

gradualmente sendo incorporado, principalmente, para a propaganda política,

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não somente como ferramenta de produção, mas também como espaço de

sociabilidade. Conforme Jacques Aumont (1999) “(...) as condições próprias do

espetáculo cinematográfico são, psicologicamente, muito particulares. (...) Todo

o filme oferece-lhe uma importante quantidade de informações sensoriais,

cognitivas e afetivas” (AUMONT, 1999, p. 43). Características e potencial estes

que conferiram à sétima arte um espaço privilegiado para o mundo político.

Para os fins da propaganda política e das representações de poder, as

imagens em movimento ofereceram um terreno fértil pela sua potência em

atuar no imaginário social. Neste contexto, o documentário é um dispositivo

narrativo que possui uma longa tradição de utilização para as propagandas

políticas10, tendo sido muito explorado por regimes e partidos ao redor do

mundo. Os debates com relação ao que é compreendido ou não como

documentário são extensos na bibliografia especializada, afinal, quais são os

limites definidores de um filme de ficção para um filme documentário?

Conforme o pesquisador cinematográfico Bill Nichols (2005), os filmes que se

configuram como documentários estabelecem bases materiais para que o olhar

dos espectadores identifique na produção elementos do seu próprio mundo.

Há um conjunto de técnicas próprias da narrativa documentária que auxiliam

10 Além dos documentários de propaganda promovidos pelos regimes fascista, nazista,


salazarista e franquista, na Europa, o próprio Brasil, às vésperas do golpe de 1964, foi insuflado
também por documentários de propaganda golpista financiados pelo IPÊS (Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais). Este instituto, além de programas de rádio, de televisão e revistas
especializadas, explorou o gênero documentário para promover narrativas desestabilizadoras
sobre o governo de Jango, contribuindo para as mobilizações que pediam intervenção militar.

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em sua definição, como a utilização do voz-over, o uso de entrevistas e

testemunhos e o uso de pesquisas em arquivos, e que promovem

representações do mundo social a partir de uma percepção compreendida

como mais objetiva11. Por estas razões, o documentário apresenta os elementos

que a propaganda política tenta promover: a sua legitimação como informações

reais. Assim, é importante que haja a compreensão do público em compreender

aquelas imagens a nível informativo, elementos que foram explorados através

dos documentários da AN – e no próprio formato do cinejornal também, que

se utilizava das imagens realizadas pelos documentários.

Levando em consideração estes elementos, havemos de compreender

que as imagens que iremos analisar se nutriram de ideias oriundas da realidade

histórica brasileira, sobretudo através da utilização de símbolos caros à

sociedade. Os documentários produzidos pela AN totalizam em 102 durante o

período da ditadura militar, produzidos de 1964 a 1979. Todavia, o período de

maior produção corresponde, respectivamente, aos períodos de Emílio Médici

(1970-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979), totalizando, juntos, em 99

11 O debate entre os limites do documentário e do filme de ficção é extenso, como já dito aqui.
Basta pensarmos que as mesmas técnicas que são usadas para definir um documentário
também podem ser utilizadas pelo filme de ficção. Da mesma forma um documentário também
pode se utilizar de elementos de ficção em sua estrutura e narrativa. Exemplos de ambos os
casos não nos faltam. Sobre isto ver mais em: MELO, C.T.V. O documentário como gênero
audiovisual. Comun. Inf., v. 5, n. 1/2, p.25-40, jan/dez. 2002

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documentários12. Através do Gráfico 1 podemos observar os temas que os

documentários abrangeram em suas narrativas:

Gráfico 1 – Documentários nos governos Médici e Geisel por eixo temático

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Entretanto, nos períodos citados anteriormente, os temas que mais

receberam atenção se distinguem entre si, evidenciando as diferenças de cada

12 É importante destacar que estes números correspondem apenas à realidade dos


documentários e não se expressa da mesma maneira no caso dos cinejornais, produzidos
também pela AN. Para compreender sobre a produção dos cinejornais, ver mais em: FREITAS
I.D. Otimismo nas telas: A propaganda oficial da ditadura civil-militar nos cinejornais da Agência
Nacional (1964-1979). Dissertação de Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em
História, PUCRS, Porto Alegre, 2020.

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contexto de produção dos documentários13. No caso de Médici, período que

experimentou uma dualidade controversa na memória social, conforme Janaína

Cordeiro Martins (2009) marcado, simultaneamente pela imagem dos “anos

de ouro”, com o alto índice de popularidade e pelo chamado “milagre

econômico”; e pelas imagens dos “anos de chumbo”, período de maior

perseguição política e endurecimento do aparato repressivo, com o uso da

tortura, do desaparecimento e demais violações aos Direitos Humanos.

É interessante observar que estes altos índices de popularidade não

significaram um descuido com o aparato propagandístico. Ao contrário, foi no

período Médici que verificamos o maior número de documentários, produzindo

66 documentários ao todo. Os temas que ganharam amplo destaque são os que

endossam a ideia da integração nacional, promovidos através da ideia do

“Brasil Grande”, que encontrou na construção da Transamazônica seu

símbolo de maior magnitude. Já o período de Geisel, totalizando 33

documentários, verificou uma produção mais tímida, mas mobilizou igualmente

os sentimentos norteados pelo seu antecessor, isto é, a integração nacional e,

sobretudo, a cooptação de setores específicos da sociedade.

13 É importante lembrar que os grupos militares também experimentavam discordâncias e


disputas entre si, e, neste contexto, a propaganda política também era uma questão de embates.
Sobre isto, de maneira geral, a chamada “linha castelista”, ligada aos apoiadores de Castelo
Branco (1964-1967) eram avessos à ideia de propaganda, por ser demasiadamente ligada ao
varguismo; já a chamada “linha dura” optava por produzir campanhas propagandísticas e
uma imagem oficial personalista de seus ditadores.

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Assim, as atuações no imaginário social através do cinema foram também

marca importante deste período. O imaginário, segundo Baczko (1985) é a

dimensão na qual ocorrem as articulações de conjuntos de representações

coletivas associadas, sobretudo, ao poder, meio pelo qual o cinema (e, no nosso

caso, o cinema de propaganda) age, vinculando um conjunto de mensagens e

representações a determinado discurso político. Desta maneira, conforme a

historiadora Márcia Janete Espig (1998) o imaginário social corresponde

diretamente a um largo conjunto de representações, imagens e ideias de

determinado grupo social. Portanto, é importante também compreendermos

estas produções enquanto agentes históricos, pela relação íntima entre

imaginário e cinema. Neste sentido, José d’Assunção Barros (2012) destaca

que, de forma simultânea, o desenvolvimento do cinema como indústria e

linguagem correspondeu à sua atuação e intervenção em movimentos de

transformação das sociedades, sendo agente e produto social (2012, p.55).

Outro aspecto que é necessário destacarmos é que tais produções tinham

como função encenar o poder e criar a comunhão entre o povo brasileiro e o

regime ditatorial. Este aspecto ganhou uma dimensão maior pela especificidade

deste período histórico onde a integração nacional e as festividades cívicas

ganharam amplo destaque nas produções propagandísticas e nas políticas

empregadas pela ditadura, a exemplo do Programa de Integração Nacional

(PIN)14. Para compreendermos a lógica de imagem da ditadura é necessário

14 O Programa de Integração Nacional (PIN) foi promulgado através do Decreto-Lei nº 1.106 em


junho de 1970, durante o período do ditador Emílio Médici. O objetivo primordial do PIN foi

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analisar que ela se deu através do binômio, como colocou Maria Helena Moreira

Alves, da segurança e do desenvolvimento nacional, isto é, um necessita do

outro para ocorrer. Portanto, cabe ressaltar que as imagens dos documentários

promoveram também aproximar os estados brasileiros – não à toa um dos

temas mais explorados é o turismo interno – e interligar estes sob a mesma

unidade e identidade nacional, dando coesão ao país e ao projeto político

ditatorial. Neste sentido, as representações da sociedade devem ser observadas

pelo prisma de que o filme de propaganda não possui uma função de “(...)

inculcar crenças na opinião, mas sim promover uma comunhão de crentes, em

ritual” (SIMIS, 1996, p. 53). Por este motivo nosso olhar leva em conta quais

representações da sociedade brasileira estão presentes nas imagens dos

documentários, quais os símbolos que foram utilizados para criar esta imagem

de comunhão e como estas representações foram destacadas. Este processo

também se relaciona com o processo de consolidação de uma imagem acerca

da identidade nacional brasileira. Partiremos aqui da compreensão da Nação

como uma comunidade política imaginada, segundo o conceito de Benedic

Anderson (1993, p. 34), no sentido de que nenhum dos membros da Nação irá

se conhecer ou, ainda, ouvirão falar uns dos outros, mas estão envolvidos sob

uma “imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 1993, p. 34).

implementar grandes obras de infraestrutura econômica e social do Norte ao Nordeste do país.


Uma das maiores obras foi a Transamazônica, sendo a de maior magnitude deste projeto.
Todavia, como aponta Daniel Aarão Reis (2000) o programa encerrou-se em 1974, com a
maioria dos projetos tendo encontrado o abandono e o fracasso com “(...) em vez da promessa
inicial de um milhão de famílias, havia apenas cerca de 6 mil instaladas” (REIS, 2000, p.59).

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Nesta perspectiva, as imagens dos documentários ganham a dimensão

de (re)apresentar o país à sociedade. Como veremos, tais representações se

deram em conformidade com a ideologia do regime ditatorial, através dos

valores caros aos militares, evidenciando o que estavam defendendo como

sociedade brasileira e os limites destas representações. Para tal análise nos

utilizamos do método da Análise Fílmica, conforme proposto por Aumont

(1999) a fim de examinar as representações sobre a sociedade brasileira dentro

da lógica do “Brasil Grande” e da DSN promovido pelos documentários.

Como observa Manuela Penafria (2009), o método da análise fílmica se

desenvolve em duas etapas: primeiro, a decomposição e descrição de cenas;

depois, o estabelecimento de relações e interpretações destes fragmentos.

Através da Análise Fílmica podemos compreender de que “(...) modo esses

elementos foram associados num determinado filme” (PENAFRIA, 2009, p. 3),

o que nos permite verificar não somente os elementos que foram escolhidos

para aparecer e representar a sociedade no documentário, mas também os

silêncios produzidos a partir daquilo que não está presente, que é

especialmente relevante em um momento de ditadura e amplas perseguições.

Civismo e moral: a cidadania perante a Doutrina de Segurança Nacional

Segundo as premissas da DSN, as ditaduras militares do Cone-Sul tiveram

como base a noção de combate ao “inimigo interno” o que trouxe a

necessidade de criar uma imagem sobre aqueles que eram considerados

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subversivos15. Neste contexto, para fazer frente ao subversivo, a ditadura militar

brasileira insuflou comportamentos sociais que constituíram um modelo de

cidadania pautado, sobretudo, pelo civismo e pela moralidade. Isto se explica

uma vez que enquanto sustentava a ideia da segurança nacional, através do

civismo, se endossava uma moralização da sociedade brasileira, remetendo às

bandeiras que foram utilizadas por amplos setores civis para defesa do golpe

civil-militar de 1964 – da própria ditadura. Cabe também assinalar que, para que

o “Brasil Grande” se sustentasse era necessário manter uma coesão com

relação à função dos cidadãos neste projeto. Como nos lembra Tatyana Amaral

Maia (2013), o ideário do civismo foi um dos principais sustentáculos de

legitimação da ditadura militar, mas em um movimento que não fora

exclusividade do período16. Entretanto, tal civismo defendido pelos militares

encontrou suas especificidades de maneira que

O civismo, ao incorporar o otimismo, organizou o aparato


discursivo e ideológico nacionalista-conservador em torno do
projeto autoritário dos governos militares. O civismo, neste caso,
sobrepõe-se à cidadania moderna por desconsiderar a
legitimidade dos interesses políticos conflitantes existentes na
sociedade; por limitar a capacidade de organização política
coletiva; por aviltar a liberdade de expressão e os direitos
individuais em nome de supostos valores nacionais superiores. A

15 Cabe lembrar que a noção de subversivo era ampla justamente para abranger quaisquer
indivíduos que com ela fossem identificados. Assim, perseguiu-se setores rebeldes, comunistas,
trabalhadores, indígenas, jornalistas, professores, estudantes, artistas, intelectuais etc. Ou seja,
amplos setores da sociedade.
16 A construção de um ideário cívico como projeto político remonta, pelo menos, ao período da
1ª República (1889-1930) através de movimentos como a Liga de Defesa Nacional, que realizou
amplas campanhas de defesa do civismo (MAIA, 2013, p.187).

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defesa desses valores superiores absolutos, por princípio


imutáveis e responsáveis pela existência da sociedade, legitimava
ações coercitivas que limitavam a liberdade individual, esta
última sacrificada em nome de um bem considerado maior que
os cidadãos: a Nação. Aliás, a função social do cidadão estava
bem definida: ele era o agente responsável pela proteção desses
valores; ao romper com esse dever, perdia também seus direitos
políticos e sociais, ou seja, deixava de ser cidadão; tornava-se um
subversivo. (MAIA, 2013, p.188-189).

Desta forma, a compreensão de cidadania se tornou uma

responsabilidade cívica e, mais ainda, delimitava quem era compreendido como

cidadão, em oposição aqueles que eram considerados subversivos. Assim, os

cidadãos e cidadãs tinham uma função social e política bem definida. Iremos

analisar que os documentários da AN atuaram como grandes operadores não

somente no processo de difusão deste ideário, mas principalmente em

transformá-lo em narrativas documentárias pedagógicas em sentido de educar

os comportamentos civis. Também cabe salientar que estes investimentos

propagandísticos não estiveram isolados, ao contrário, tais aspectos foram base

de uma série de políticas e projetos levados a cabo pela ditadura, como a

obrigatoriedade escolar de Moral e Cívica, por exemplo.

A análise que aqui nos interessa é como, através de diferentes temas, a

própria sociedade brasileira foi representada nestes documentários. Através do

Gráfico 2 e 3 podemos observar, de maneira específica, como cada período foi

representado através de diferentes temas nos documentários em questão:

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Gráfico 2 – Documentários no Governo Médici (1969 – 1974)

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Gráfico 3 – Documentários no Governo Médici (1969 – 1974)

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

É necessário realizarmos já breves considerações acerca da seleção dos

documentários. Primeiro, consideramos, para melhor examinar as

representações da sociedade, tratar dos documentários que mais lidaram com

tal temática. Neste sentido, a sociedade em si apareceu dividida em uma série

de temáticas referentes a mesma, mas não somente. Como podemos ver nos

gráficos, cada período dos diferentes ditadores militares analisou a sociedade

em conformidade com temas diferentes entre si, o que é um importante

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subsídio de como suas relações com a própria sociedade foram se alterando.

De forma bastante resumida, o período de Médici fora marcado pela

popularidade em alta – através dos grandes festejos cívicos, da exploração do

“milagre econômico”, da Copa do Mundo, da Transamazônica e do PIN,

elementos apreendidos pelos documentários – simultaneamente com o

aumento da repressão em seus níveis mais altos. O período de Geisel já

encontrava outro contexto e, portanto, outra dinâmica social, o PIN (e a própria

Transamazônica) já se encaminhava para seu fim fracassado, as contas do

“milagre econômico” começavam a chegar em altos níveis de inflação, a

própria sociedade passou a se reorganizar em movimentos sociais, os índices e

denúncias de crimes cometidos pelo Estado se intensificaram e o quadro

político institucional se reconfigura através da promessa de uma reabertura

democrática “lenta, gradual e segura”. Podemos observar que os

documentários deste período apresentam uma ampliação de temas que se

ligam ao âmbito social e que este ganha uma maior visibilidade através dos

números dos documentários.

Pelos limites deste artigo, iremos apresentar brevemente dois

documentários de cada período, a fim de traçarmos uma análise ampliada sobre

tais aspectos, através de uma comparação entre eles. Assim, selecionamos

“Como se forja um chefe” (1970); “Comportamento na estrada” (1970);

“Ministério da Previdência Social – INPS” (1975) e “O jovem estagiário”

(1975). O primeiro diz respeito a uma produção de cerca de dez minutos e se

objetiva em apresentar os prestígios do serviço e carreira militar e o próprio

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culto à pátria. As primeiras imagens do documentário trazem crianças

brincando e observando o Exército marchando, ao passo que o narrador conta

que:

Ele ainda se lembra bem daquele dia. O dia em que descobriu sua
vocação. Não sabia explicar, mas gostaria de resguardar para
sempre a felicidade que lhe vinha do passeio com a mãe, do
encontro dos companheiros, do próprio sol, do céu, do chão
liberdade. É bom ser criança e ter ímpeto e de crescer, ser alguém,
de conduzir o destino, de assumir também responsabilidades.
(Documentário Agência Nacional, 1970, nº177).

Na sequência de imagens, o enquadramento das mesmas que surgem à

tela acompanha o movimento das crianças subindo em tanques de guerra,

brincando, enquanto a narração coloca que “ser alguém, de conduzir o

destino, de assumir também responsabilidades” conferindo um sentido

imagético a este discurso.

Figura 1 - Trecho de "Como se forja um chefe"

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1970, nº177

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Conforme se desenrola a produção, gradativamente as imagens e o

discurso vão incorporando a vida militar à vida das crianças em crescimento,

mesclando as cenas do mundo infantil e das Forças Armadas. Este jogo de cenas

permite analisarmos, também, as relações entre a classe militar e a sociedade,

uma vez que o discurso da narração destaca

Marcha soldado. É um grupo vistoso que atrai a atenção de quem


observa a ordem unida. O grupo é como se fora um homem só.
Marcando a mesma cadência, um dois, um dois, um dois.
Soldado, o menino compreende, tem missão importante, é ele
que dá segurança para que os outros vivam em paz e exerçam
em paz suas atividades. Continência, saudação de soldado. A
verdadeira vocação militar consiste em servir, em integrar-se no
todo pelo bem de todos. Ele compreende isso. A intuição diz-lhe
que ele será um soldado. (Documentário Agência Nacional, 1970,
nº177).

A sequência de imagens finais passa a ideia da dimensão de união entre

os indivíduos com as Forças Armadas endossando o compromisso cívico, como

podemos ver através das Figuras 2 e 3.

Figura 2 - Trecho de "Como se forja um chefe"

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1970, nº177

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Figura 3 - Trecho de "Como se forja um chefe"

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1970, nº177

Juntamente com a continência que o menino presta aos soldados, onde

ele está parado e o Exército passando em movimento, as imagens também

apresentam a bandeira nacional sendo hasteada pelos soldados que prestam

contingência à mesma enquanto o discurso do narrador afirma que “A

bandeira do Brasil, que é símbolo de tudo que ele [o soldado] ama. A família,

os amigos, o modo de ser da nossa gente. A história bonita da terra onde

nasceu. O futuro cada vez mais promissor do país com tudo de bom que se

pode conquistar no esforço do dia a dia” (Documentário Agência Nacional,

1970, nº 177).

A bandeira é símbolo do culto à nação e aos ideais patrióticos que a

ditadura impulsionou. Mas o documentário nos permite analisar,

principalmente, o papel que é transmitido para a sociedade sobre sua função

dentro deste ideário cívico de cidadania. Ao findar a produção o narrador

encerra expressando que

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A realização da esperança do jovem que se devota à pátria. Essa


pátria, dele, nossa. De tantos como ele, que sentem como ele,
apesar de virem de tão longe, de terem etnia e religiões
diferentes da sua. Essa pátria inspira a mesma fé em todos. (...) A
profissão militar desafia o interesse e o ideal do jovem, que tem
o espírito de aventura, amplitude intelectual, vigor físico,
sentimento do dever, caráter imaculado, e atração pelas missões
difíceis. Ele soube escolher. Tudo que lhe exigiu a Academia
militar, ele cumpriu, aprendeu a obedecer e aprendeu também
noções de chefia. A espada chega-lhe as mãos com honra. É a
justa paga do esforço. Mas é também um penhor para o futuro.
O pai, a mãe, os irmãos, a namorada, todos se sentem orgulhosos
com o jovem que se realiza em sua vocação e que cruza o portão
do adeus à Academia. Agora, ele é um chefe. Tem sob suas
responsabilidades, outros homens. Cumpre-lhe instruí-los sobre
a segurança da pátria e para o exercício pleno da cidadania.
(Documentário Agência Nacional, 1970, nº 177).

Assim, o documentário encerra enfatizando a aliança entre a cidadania e

o dever cívico. Um outro ponto deve ser levado em consideração. A juventude

é uma das constantes dos documentários produzidos neste período, assim

como a família. Ambas são categorias intensamente mobilizadas nestes

documentários. Cabe destacar que desde 1968 o movimento estudantil foi

duramente repreendido, como também foi um dos principais atores de

oposição à ditadura O protagonismo juvenil era, portanto, uma realidade social

e necessitava ser cooptada e incorporada no projeto de desenvolvimento e

segurança nacional. Ainda, como apontou Isadora Dutra Freitas (2020), ao se

debruçar sobre o caso dos cinejornais da AN, o período de Médici criou uma

relação com as juventudes baseado na necessidade do regime em consolidar

seus ideais no “imaginário das futuras gerações” (FREITAS, 2020, p. 96).

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Ainda em 1970 a AN produziu também o documentário “O

comportamento na estrada” que, em linhas gerais, se objetiva em tratar da

temática do trânsito. A narrativa se desenrola em cerca de dez minutos e se dá

a partir da transmissão de informações a respeito do comportamento a ser

adotado no trânsito a fim de evitar acidentes. Retomando o que Carlos Fico

postulou, a narrativa do documentário traz a ênfase na técnica de maneira

pretensiosamente “apolítica”. Todavia, o documentário acompanha uma

família que vai realizar uma viagem fornecendo importantes subsídios na

compreensão sobre a representação de família escolhida. Logo nos primeiros

minutos as imagens de carros e rodovias se mesclam às de determinada família

se organizando para viajar, enquanto o narrador diz que:

Fim de semana, cidade vazia como sonham motoristas e


pedestres nos dias movimentados. Está tudo calmo e sem perigo.
Quase todos estão indo para a estrada. Com pressa de sair e de
chegar. Com eles vai o perigo. Um a um, fazem o tráfego intenso.
Antes de pegar a estrada, faça sempre uma revisão completa e
cuidadosa. Não, não era bem “essa” revisão. (Documentário
Agência Nacional, 1970, º80).

Quando o narrador expressa “não, não era bem essa revisão” a imagem

que surge à tela diz respeito a uma mulher, que irá se apresentar como a mãe,

se maquiando em frente ao espelho, como podemos ver na Figura 4:

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Figura 4 – Trecho de “O comportamento na estrada”

Fonte: Documentário Agência Nacional, nº80

Na sequência, o documentário realiza um “passo a passo” de como se

deveria organizar a revisão do veículo e a necessária atenção ao trânsito

alertando “cuidado, sua atenção na estrada deve ser maior. A cada momento

está em jogo a sua vida, a vida de sua família” enquanto apresenta imagens

da família entrando no carro. Neste movimento, quem se senta no lugar do

motorista é a mãe enquanto ouvimos o narrador dizer “Nada de preconceitos.

Mulher também dirige, e bem. Ela sabe, o cinto de segurança é a garantia de

quem viaja” enquanto apresenta as imagens da mulher apertando o cinto,

como podemos ver na Figura 5:

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Figura 5 - Trecho de “O comportamento na estrada”

Fonte: Documentário Agência Nacional, nº80

O documentário segue e se finda com imagens de carros transitando em

estradas e a figura da mulher e da família se perde. No entanto, aqui podemos

observar três questões importantes: o potencial feminino de cuidar da família é

evocado, enquanto os cidadãos homens recebem ampla atenção nos

documentários ligados às Forças Armadas, a mulher aparece timidamente em

relação à instituição familiar, como espaço onde pode tomar frente e realizar a

segurança, demonstrado simbolicamente através da imagem da direção do

carro e pela responsabilidade pela segurança familiar.

Outro aspecto a ser considerado sobre tal narrativa é o trecho em que o

narrador diz que “nada de preconceitos” em um sentido de justificar a

posição feminina relacionada à família, mesmo após ter utilizado de tom irônico

através da imagem da mãe se maquiando no espelho quando o narrador se

referiu à “revisão do carro”, alimentando a ideia da mulher ligada à

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feminilidade. É importante que se destaque, ainda, que este é um dos únicos

documentários17 em que uma mulher fora protagonista. Neste sentido, é

necessário destacar que as representações com relação à mulher e à família

dizem respeito à uma família tradicional, branca e de classe média, principal

público-alvo das produções da AN18. Tais valores, é importante lembrar,

corroboram com uma ideia conservadora sobre as mulheres brasileiras, uma vez

que o golpe civil-militar gozou de amplo apoio por parte de organizações de

mulheres conservadoras ligadas à Igreja Católica19.

Já o documentário produzido em 1975 “Ministério da Previdência Social

– INPS” apresenta as modernidades das instalações de uma maternidade do

INPS. Ao acompanhar uma mulher realizando o parto, são apresentadas aos

espectadores sobre os avanços tecnológicos realizados na área. Enquanto as

imagens apresentam a mulher se preparando para o parto, o narrador afirma

que “A mulher está confiante pois recebeu do instituto um tratamento pré-

natal adequado” (DOCUMENTÁRIO AGÊNCIA NACIONAL, 1975, nº 92). O tom

17 Além deste, destacamos também os documentários “Rota Azul” (1970); “Criança” (1973)
e “Turismo no Rio Grande do Sul” (1974).
18 Como analisou Nina Schneider (2018), o cinema, neste período, era um espaço popular,
sobretudo para as classes médias, principais consumidoras e, por consequência, público-alvo
dos filmes de propaganda.
19 Às vésperas do golpe civil-militar de 1964 uma série de organizações de mulheres, como a
Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), Liga da Mulher Democrata (LIMDE) e União
Cívica Feminina (UCF) atuaram fortemente para o golpe (e também na própria manutenção da
ditadura). Estas organizações se uniram através do discurso anticomunista e estavam ligadas a
grupos da Igreja Católica. Desta forma, sua atuação política se deu principalmente na defesa da
família tradicional e dos valores cristãos frente a suposta ameaça comunista. Inclusive foram
principais organizadoras das conhecidas “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
(PRESOT, 2010)

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informativo é corroborado com as imagens que vão surgindo à tela no sentido

de endossar o discurso do narrador. O documentário, de cerca de oito minutos,

se desenvolve apresentando os benefícios do INPS, tratando assim também de

temas sociais e econômicos. As tecnologias e o atendimento médico prestado

são observados pelo prisma de uma tecnologia “altamente avançada”.

Ao fim do documentário, o ambiente externo finalmente surge, através

das imagens em movimento de multidões de pessoas andando pelas ruas, em

um movimento em que o enquadramento sobre a multidão vai gradualmente

sendo ampliado em um ângulo aberto, enquanto o narrador expressa “O Brasil,

em todos os pontos de sua geografia, conta com a presença do INPS”,

sustentando a ideia de onipresença do instituto sob toda a população,

simbolizada através das imagens da multidão, como podemos ver nas Figuras

6 e 7:

Figura 6 - Trecho de "Ministério da Previdência Social - INPS”

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1975, nº92

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Figura 7 - Trecho de "Ministério da Previdência Social - INPS”

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1975, nº92

Já o documentário “O jovem estagiário” (1975) apresenta,

principalmente, a defesa de uma educação profissionalizante para a formação

universitária, tema que a ditadura defendeu também através das reformas. O

documentário, de cerca de onze minutos, se inicia com imagens de jovens

tomando banho de mar, surfando e se divertindo nas praias do Rio de Janeiro,

como podemos ver na Figura 8:

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Figura 8 - Trecho de "O jovem estagiário”

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1975, nº77

Enquanto as imagens vão se sucedendo, como imagens típicas do jovem

brasileiro – que, mais uma vez, vemos através de uma representação de

juventude branca de classe média – o narrador diz que

Os jovens de menos de 20 anos compõem quase metade da


população brasileira e o país aposta neles. Desde os primeiros
anos de vida até os bancos da faculdade, o jovem representa para
o país um investimento que deverá produzir mais tarde
resultados dos quais se permite beneficiar toda a comunidade.
Na empreitada do desenvolvimento, a energia entusiasmada e
alegre juventude é o fator de confiança no futuro. (Documentário
Agência Nacional, 1975, nº 77)

As imagens que vão surgindo apresentam jovens se reunindo para tocar

violão, dançar, corroborando com a ideia de “alegre juventude”, ao passo que

o narrador defende a necessidade dos programas de estágio para trazer a

prática do mundo do trabalho ao ensino teórico das universidades. Assim, são

apresentados o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) entre outras

agências que oferecem o programa de estágios como forma de

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profissionalização simultaneamente com a necessidade de “rejuvenescimento

das empresas”. Inclusive, o documentário cita como exemplo as empresas

Globo por sua constante contratação de estagiários e inserção dos mesmos na

profissão de repórter. Mesmo as imagens dos jovens dentro do ambiente de

trabalho são retratadas através de sorrisos, apontando para este espírito juvenil

que interessava representar, como vemos na Figura 9:

Figura 9 - Trecho de "O jovem estagiário”

Fonte: Documentário Agência Nacional, 1975, nº77

O documentário se encerra apresentando imagens de fábricas,

simbolizando a efetividade da educação profissionalizante dentro do projeto de

modernização autoritária-conservadora. Enquanto tais imagens aparecem o

narrador afirma que “O CIEE ajuda uns aos outros a se complementarem para

servir ao país na construção do futuro”, alimentando, mais uma vez, a ideia de

que o futuro e o progresso estavam se concretizando através da ditadura.

Assim, a juventude aparece como uma constante entre os períodos

analisados. Todavia, observando os gráficos e os documentários, os temas

ligados ao Serviço Militar e Forças Armadas, presentes no período Médici,

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perdem o fôlego no período de Geisel. Isso pode, talvez, se explicar como

reflexo do processo de desgaste da ditadura. Por outro lado, indica a

preocupação constante em interpelar a juventude e a família na arquitetura do

“Brasil Grande” e, sobretudo, na lógica da segurança nacional.

Considerações Finais

As produções documentárias aqui analisadas fazem parte de um conjunto

maior de documentários, como pontuado anteriormente. Todavia, os

documentários apresentados permitem a verificação de uma imposição de

valores à sociedade brasileira por meio de uma narrativa que se colocava como

“documentário”. É importante percebermos que, mesmo que quando a voz-

over traz falas de pessoas presentes nos filmes, estas não aparecem falando. A

sociedade necessariamente foi representada enquanto sujeitos passivos que

apenas existiam sendo retratados em conjunto, marca que auxilia na

problematização da construção de um filme documentário, visto que o

testemunho são marcas deste dispositivo narrativo. Estas representações se

assemelham com a ideia proposta por Nina Schneider (2018) de desmobilização

da população a partir de sua homogeneização imposta.

Outro aspecto que deve ser evidenciado é o constante

embranquecimento da população de um país marcado pela diversidade étnica,

bem como as representações de família e juventude como pertencentes à classe

média. Nos documentários analisados, pouco há a presença desta diversidade

étnica, uma vez que os grupos são majoritariamente brancos. O documentário

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“Comportamento na estrada” (1970) também nos fornece elementos sobre a

compreensão do papel das mulheres dentro desta sociedade, demarcando seu

espaço como o espaço familiar, enquanto aos homens é conferido o espaço

público, ligado às Forças Armadas e à segurança nacional frente ao “inimigo

interno”.

Todos estes aspectos endossaram uma ideia da ditadura, e dos próprios

militares, como salvacionistas e responsáveis pelo desenvolvimento nacional.

Evidentemente, as produções silenciaram sobre todos os horrores que estavam

sendo cometidos em nome do “Brasil Grande” e da manutenção da ordem

social. Através dos usos de símbolos nacionais defendeu-se uma imposição

também moral para a sociedade brasileira, no sentido de que criou modelos de

cidadão que, caso não fossem seguidos, poderia ser compreendido como

subversivo e antipatriótico e assim perder todos seus direitos políticos e ser

gravemente reprimido, realidade que muitas pessoas enfrentaram. Desta forma,

a narrativa otimista foi parte da violência empregada pela ditadura militar à

sociedade brasileira, revelando aspectos também violentos, sobretudo, através

do silenciamento. Esta imagem positivada da experiência ditatorial serviu como

endosso aos discursos golpistas. Cabe aqui lembrar, também, que o dispositivo-

narrativo do documentário não fora uma escolha particular da AN, mas seguiu

uma lógica de propaganda baseada em referências internacionais.

Para além das múltiplas experiências de viver sob uma ditadura militar,

esta empenhou-se intensamente em fazer circular imagens positivas sobre si,

apropriando-se constantemente de símbolos caros à nacionalidade associando-

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os à imagem oficial da ditadura. É importante lembrar que a memória com

relação a este turbulento período é um campo de constantes disputas sociais e

políticas. Nos últimos anos, inclusive, o Brasil tem sido marcado por

movimentos que ovacionam a ditadura e clamam seu retorno. Muitos dos

elementos analisados aqui atravessam a argumentação de tais grupos,

resultando em uma reprodução da imagem que fora criada pelos próprios

militares para encontrarem legitimidade. Todavia, como observamos, tal

imagem fez parte da violência imposta e se deu principalmente pelo

apagamento de dados e silenciamento sobre a própria sociedade de forma que

os próprios brasileiros e brasileiras foram apagados do discurso oficial, dito

nacionalista. Desta forma, é evidente que os resultados desta propaganda

política podem ainda ser percebidos.

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