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pontas soltas

& peça-me um refrão


[36 contos e uma dramaturgia]

Letícia Andrade

Belo Horizonte, 2017


1
para alice, eclipse, o broto rubro nascido do meu corpo.

2
pontas soltas: porque certas coisas devem ser marcadas, 4

I. íntimas
Receita de família, 6
A fome era docilmente faminta, 7
Iniciação pro estrangeiro, 9
Noções pro suicídio, 11
Semana fechada, 15
Minha programação preferida, 18
Solteirx, 20
Natal terror, 21
De como desfrutar as suas férias, 23
Nem bonita, nem feia, 25
Solitária gaga, 29
Jurema tinha medo de sair de casa, 30
Mulher gorda de pernas abertas, 33
Lady Liar, 35

II. públicas
No escritório do edifício de um centro urbano qualquer, 36
Esquina civilizada, 37
A hora perigosa, 38
Zonamorta, 40
Círculo dos horrores, 41
O filme público de Medéia, 42
Primeiro salto no estrangeiro, 44
Baixa Guaicurus, 45
Lá tá ele: O velho preto estacionado no corredor da choperia Bom Grill, 46
Rotina de parque, 47
A praça do poder, 48

3
Quando o concreto brigou com a árvore e a mulher abriu as grades, 49
Excesso da calçada, 50
Homem de bem, 51
Casa de passagem, 53
Coisas vagabundas, 55
São iguais, 57
Chega a hora, 58
Nem me vê, 59
A vendedora de rua, 60
Dia de pagamento, 61
No meio da rua estrangeira, 64

Peça-me um refrão, 66

4
pontas soltas: porque certas coisas devem ser marcadas

Este livro começou a ser escrito há um bom tempo, desde 2004. As primeiras
narrativas nasceram do cotidiano, do consumo e da mesquinharia dos lugares
ao nosso redor. Outras narrativas viriam respiradas pelas minhas leituras do Noll,
Bonassi, Cortázar e Aquino, caras que tenho frutíferas implicâncias literárias e
me ensinaram a potência da palavra ficcional: instantânea, corrosiva e sintética.
Seguindo os cães que se deixam domesticar, as composições seguintes
surgiram no encalço de ensaios de teatro. Por esse tempo, a ficção tinha o peso
da atuação, pois tinha voltado a atuar. E a narrar. Com minha própria boca. E a
escrever contra o condicionamento, a paralisia das relações, a dominação, a
inveja e a solitude. Alguns contos apareceram também a partir do meu olhar de
dramaturga de sala de ensaio e desafios lançados para os atores, que tanto
admiro e que são a matéria viva do meu trabalho. Nunca abandonei esse vício.
Outros contos são reflexos de percursos por zonas escondidas e por lugares que
estão debaixo das nossas fuças, e não percebemos, que costumo fazer com
uma alemã e uma nega, que trabalho. Por isso que tem certas palavras que
devem ser ditas: narrativas são ações no tempo e no espaço, diz o manual. E
mais: são bússolas, labirintos. Facas enferrujadas, fincadas no chão, a água
podre que vaza da privada, do sentido de público conhecido como vulgar e do
sentido de privado aceito hipocritamente como público. Coisas que me fazem
mancar e me dar azia. As cicatrizes aceitas e impostas pela experiência. Estes
contos são zonas de atravessamento. Costuras dos corpos que passam por aí.
Retratos de pequenas amnésias de nossa domesticação. Nada muda. Apenas a
dor que te obriga a ter esperança.

5
I.íntimas

Receita de família

Numa sala de tevê de um apartamento habitacional de dois quartos de sessenta


metros quadrados, financiado por trinta anos, despeje:

 Pai e mãe no sofá;


 Acrescente necessariamente dois filhos ou mais e bata bem.
 Teremos uma massa, nem sempre homogênea, que se chama
família.
 Acrescente a gosto cachorro, barata e ratos, que podem morar ou
não dentro do sofá;
 Misture lentamente uma boa dose de convivência em rotina;
 Uma pitada de ódios antigos,
 Outra pitada de mesquinharias de todas as qualidades;
 Uma conta de telefone estourada
 E o ingrediente indispensável para fazer a massa crescer: a
mesma televisão de vinte anos, com a antena quebrada e controle
remoto reservado ao pai. Objeto de disputa, objeto de desejo de
todos na casa.
 Deixe descansar.
 A seguir separe mãe na cozinha, triturada em suas próprias veias
entupidas, filho mudo no banheiro mergulhado em suas revistinhas
inocentes, filha no quarto, ao som do seu IPOD ensurdecedor e ao
sonho de uma cinturinha de barbie e pai na garagem, regado em
aguardente do seu fracasso e na sua silenciosa cirrose.
 No fim do dia, junte-os novamente na hora do jantar. Tudo pronto.
 Agora congele e vá degustando, ao sabor do micro-ondas, uma
porção a cada dia. Delícia cremosa: dá gosto e alimenta.

Ps. Receita prática e acessível a qualquer paladar, ocasião ou classe


social, mas tome cuidado com os exageros. Se não conseguir evitar
a gula inevitável, não se esqueça do anti-ácido. Não se preocupe,
nosso organismo digere tudo, tudo mesmo, até mesmo uma coca.

Boa digestão.

6
A fome era docilmente faminta

A fome acordou com azia. Não era seu melhor dia. A fome perdeu todo o seu
apetite, a coitada. Não sabia o que fazer (como todos nós, todos os dias).

Ela, então tirou toda a embalagem que a protegia e, em estado cru e fresco,
como qualquer mulher e homem normais em idade madura, foi dar uma voltinha
por aí, para se sentir mais jovem e desejada.

Vou de boca com tudo.

Não tinha nada melhor para fazer do que escrever sobre a dor e a própria fome
das gentes ao seu redor, porque na verdade estava com uma sensação de
inutilidade neste mundo. Foi então que as palavras começaram a sair.

Será que eles me sentiam ali? Eles me têm? Ou sentem apenas uma sensação
egoísta de gula mal resolvida, que antecede o almoço? Isso é dor ou fome?

Como a fome não tinha muito talento para entradas, pois sempre tinha sido muito
direta e gulosa, anotou primeiro algumas perguntas para desenvolver depois.

Qual formiga não deve ter sentido o prazer imensurável em apreciar a doçura de
uma pedra de açúcar? Ela me tem? Não, não, ela é apenas feliz, eu não tenho
nada com isso.

E quando a criança pede com olhos molhados o quitute da vitrine, mas a mãe
sente o amargo na boca e a falta de moedas na bolsa? Estou ali? Talvez um
pouco, não sei responder.

Por que aquela garota, que parece normal, que deseja um outro alguém lhe
aconchegar, que sofre das próprias ancas, que não desiste, porque não tem
escolha mesmo, e que não é tão feia, mas também não perfeitamente bela,
sempre volta para casa, com ela mesmo todas as noites, e às vezes sente um
buraco negro nascendo no seu o estômago? Tenho a sensação nítida de estar

7
lá, mas eu era de outra ordem, eu era um nome com outra função, com outra
natureza. Ainda também não sei responder essa também.
Já o fast-food da minha rua era um lugar onde menos me havia e mais eu tinha
a sensação de que estava em excesso por lá. Meu vazio era tanto, que eu
parecia que estava sobrando. Eu era o excesso desnecessário de uma gota a
mais num tonel, mas continuava tão escassa.

comecei a ficar faminta.

Já na volta para casa no elevador, ela começou a perceber que as gentes que
trouxe consigo começaram invisivelmente a mastigar paulatinamente sua pele,
ainda suculenta dos anos de sucesso que tivera, e avançavam pelos órgãos, até
pararam nos ossos e não paravam mais. Mas aquilo só podia ser coisa da sua
cabeça: a fome estava ali, inteira, no entanto. Era a mesma.

Silenciosamente, gostou do sabor que deixou na boca de cada gente e concluiu:


apesar de famintos, são dóceis. Eu sei.

Aquela sensação apetitosa que a levou além de todo estado de mastigação e de


desintegração, fez a fome ficar mais branda e menos coitada. Foi então que
decidiu levar adiante sua vidinha de pequenas gulas e abriu a geladeira
novamente.

8
Iniciação pro estrangeiro

Porque eu atravesso a fronteira, a cidade cifrada e a sala de jantar.

Hoje tomei a decisão. É preciso deixar este lugar. Esta casa. Esta família morta.
Toda uma vida vivida num mesmo recinto, olhando a mesma parede amarela,
pegando o mesmo ônibus, temendo os mesmos tipos de perigo.

Era isso. O medo na esquina. O bom dia ao porteiro. O almoço ao meio-dia. Os


telefonemas para dar. Os consultórios para visitar e o almoço de Domingo. Em
frente da televisão. O sofá de chita que era do meu avô, última herança de um
homem deletado de nossa vida familiar. Os motivos? Ainda vou saber.

E as contas para pagar. E as contas para pagar. As contas em atraso. E a água


cortada. E o cachorro que vomitou no sofá. E a descarga que quebrou o reparo.
E a louça suja.

Porque a mãe dá uma sonsa e só pensa em emagrecer. Diz baixinho que faço o
que quero com o pai, que ninguém se importa com seu sofrimento de há anos e
que se não obedecermos teus mandamentos rigorosamente seremos
queimados vivos nas brasas do inferno.

O irmão se trancou no quarto e há anos que não sei tem barba ou se se interessa
por homem ou mulher. Quarenta dias sem olhar meu olhar. Quarenta dias sem
trepar. Quarenta dias sem vale a pena ver de novo.

O pai, mesmo ausente, manda nos meus pensamentos, delimitando funções na


casa: pagar um carnê ou comprar cigarros. Perdeu a capacidade de andar
sozinho, e não consegue mais largar a tevê.

Este aparelho tão útil é para nós o quinto membro da família.

E a Segunda feira e a Terça e a Quarta e a Quinta e a Sexta e o Sábado. Então


sento e espero o Domingo. Domingo embalado à vácuo.

9
Porque há coisas que tenho muito medo: medo das coisas que eu nunca vou
fazer. Ou coisas como ladrão, barata, e apresentadora de TV.

Farei uma mala porque hoje parto para o estrangeiro: México, São Paulo,
Campina Grande. Nesta época, Guadalupe está fora de temporada e os preços
estão cada vez menores. De qualquer forma tenho que ter dinheiro extra, caso
precise subornar o cara da alfândega. Vou agora mesmo fazer a mala, agorinha.
Levarei máquina de tirar fotos, livro preferido, escova de dente, dicionário e um
mapa-mundi. E o resto das minhas tralhas ficarão por aí, boiando nesta casa
como um esgoto a céu aberto. Mas e o cão? Penso nisso mais tarde.

10
Noções pro suicídio

(pequeno tratado sobre uma vida banal)

para aqueles que tiveram a sorte de não precisar.

Fiquem sabendo: sou o suicida da semana. Mande flores para meu funeral,
cartões cheios de condolências, ria das minhas falhas, digam que fui um
fracassado, e que é uma pena, ah sim, um imenso desperdício, que um jovem
tão promissor, dotado, abundante, cheio de vida e energia, tirou a própria vida
sem motivo plausível. Possivelmente provável, provavelmente possível.

Isso. Quero ver a cena. Eu mereço.

Amigos falsos. Artistas invejosos. Parentes distantes. Amores inúteis. Todos,


sem exceção, absolutamente todos nestas ocasiões funestas, irão sadicamente
se certificarem se fui mesmo pro inferno ou se corre o risco de ser aqueles
alarmes falsos que deixam a gente tão decepcionado. Todos que sempre odiei
durante minha vida de merda. Todos que me amaram um pouco. Todos que
cruzaram comigo na rua. Até aqueles que dividiram comigo o primeiro ginasial.
Que tomaram a primeira vacina comigo, naquele domingo gordurento da escola
da Avenida Amazonas com rua José de Alencar.

Estes e outros curiosos celebrarão internamente minha derrocada, sentindo


todos eles que são mais felizes, mais magros, mais ponderados, mais
acompanhados, mais bem-sucedidos, mais calmos, mais sortudos do que
aquele pobre cadáver exposto no meio de um salão barato de um cemitério de
quinta.

Depois de cinco anos exatamente, meus ossos serão jogados pros cães de rua
comerem a dentes vistos. (estes simpáticos animais que serão exterminados
num futuro próximo nas câmaras de gás)

Será assim mesmo. Já estou no velório ouvindo fofoquinhas, burburinhos,


óculos pretos e tapinhas nas costas.

11
Sorrirei irreversivelmente com meus lábios frios e cheios de formol.

Meu irmão herdará facilmente os livros que suei tanto para pagar. Meu pai,
distante, voltará a esta cidade, por contra vontade, apenas para demonstrar que
honra a minha memória. Palmas. Homenagem que confesso ser dispensável.

É preciso registrar que em nossa família, as mulheres estão ausentes. Motivos


de morte e abandono são as mais lógicas e naturais.

Antes, devo confessar que planejar a própria morte não é algo simples.
Acrescento que nunca fui simples, muito menos objetivo em se tratando de
assuntos de morte. Na realidade, a simples escolha de uma camisa é um
problema.

Falo sobre a morte porque ela é o ponto de chegada do problema. A grande vilã
desta história é a vida, com suas vilanias, mesquinharias. A idéia restrita de
gente que só pensa em trabalhar a vida inteira para fazer cirurgias caras e,
depois de sofrer muito na recuperação e posteriores cuidados e regimes, tabelas
e filtro solar, exibir-se nos shoppings, nas ruas e nos ônibus empoeirados.

A vida, sobretudo a minha, sempre foi funesta. Perdas, mentiras, competições e


as melhores baixezas possíveis para se virar. Aprendi desde cedo a furtar a
atenção do mundo. Não tenho pretensões piegas e queria apenas sobreviver.

Por isso, sempre fui de tomar alguns remédios pesados e ter mania de
perseguição. Muitas vezes com causa e outras por razões imaginárias. Já não
sabia distinguir invenções minhas ou crueldade alheia. Talvez pela falta de jeito
com gente, passei a colecionar idéias sobre assassinatos, perdas, tragédias
inesperadas, acontecimentos insólitos, possibilidades absurdas.

Tudo que parecesse inevitavelmente estúpido frente à condição humana. Frase


propositalmente piegas, para dar um clima.

O homem, a cultura e a sociedade parecia um quebra-cabeça frágil, monótono


e estúpido. Imprestável. Uma validade vencida mesmo. Descobri que não
produzo suficiente. Mais pieguice, senhores.

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Cenas que ninguém gosta de imaginar. Como por exemplo a última trepada
antes da morte. Não dá uma pena pensar que você pode morrer exatamente no
momento em que sua última transa foi um tédio? Peço muito que isso não
aconteça. Porque o primeiro sexo costuma ser meio desajeitado, sem gosto e
meio por obrigação. O que vale é abrir a porteira. Mas o último não, o último tem
a ver com a honra, é um testamento seu à humanidade mesquinha. Faz provar
que você realmente é melhor que muito babaca por aqui.
De volta à morte, ou seja, à minha, comecei a ler romances policiais e a ver todo
tipo de filme e sitcoms enlatados para me inspirar de alguma forma. Algumas
idéias caíram.

Primeiro. Pular de cima de um edifício bem conhecido centro da minha cidade


(sei que era óbvia, mas não deixava de ser tentadora a idéia da fama, de um
espetáculo derradeiro, um happening ultra-mega-pós-moderno: “última flama de
um coração desesperado”). Mas eu não ia gastar toda uma vida, mesmo que
seja a minha, com algo tão bobo. Isso não.

Segundo. Mas o melhor, era se enterrar vivo e ir morrendo aos poucos asfixiado
e sendo comido por vermes e formigas peçonhentas. O problema que isto ia
requerer outro fazendo isto por mim, o que iria ser impossível, já que ninguém
quer ser assassino assim de favor. Assassino que é assassino mata e pronto,
não tem essa de pedir não. Além do mais ia ser plágio do Tarantino porque
criatividade também é um assunto duvidoso para mim.

Terceiro. Jogar-se na frente de um vagão de metrô em alta velocidade. Coisa


épica. Irreversível. Rápido, quase indolor. Ponto. Vejam a notícia no jornal:
Jovem se atira no metrô. Sejamos cúmplices e solidários sobre este fato tão
comum de nossa sociedade contemporânea. Rezemos pelas almas fracas,
impregnadas de um pessimismo nocivo ao bem-estar de nossas crianças.
Rezemos. Não é preciso tomar nenhuma atitude. Precisamos estar preparados
para tudo.

Bom, amigo... ah, amigo... e não posso esquecer delas: as amigas!!!!! (o mundo
não vive sem as mulheres: elas, maravilhosas e necessárias para o universo
masculino). Já devem ter percebido que não sou muito bom nisso. Tenho me
repetido. Sou repetido. E um pouco gasto, devo confessar.

Tenho então eis as alternativas: me entupir de remedinho, dar um tiro nos


ouvidos, ou me enforcar, com aquele lance de amarrar a cabeça no lustre e saltar
do banquinho.

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É isso aí. O plano tá feito, agora é só escolher e executar! Finalmente cheguei
em pelo menos três opções. Agora só falta escolher. Vamos lá...

Eu fico preocupado o que vai doer mais, o que vai fazer mais sujeira e o que vai
mais me desfigurar, afinal de contas tenho que estar bonito no enterro. Pros
inimigos e pras admiradoras que não tiveram o prazer de me comer na vida. Digo
“comer” porque sou um homem moderno e as mulheres de hoje estão cada vez
mais insaciáveis na cama. “Graças a deus”.

É. Acho que o pior é ficar todo estraçalhado do tiro. Além do mais, quero algo
que não seja um lugar comum. Talvez, o melhor seja se enforcar, tipo algo meio
medieval, um ato meio nobre, coisa de pessoas que se preocupam em preservar
certos procedimentos da memória. Todo mundo vai achar que eu pirei de vez e
me inspirei nos poetas malditos ou o cacete.

Afinal todas essas ideias eram uma fuga. Devo ir direto ao ponto.

Então me sento na cadeira do meu quarto imundo. Abro a última gaveta da


escrivaninha, que fica ao lado minha cama. Apanho uma arma de ferro preta
pesada com duas balas. Olho pra cima, vejo meu lustre com motivo japonês
gravado na estrutura de papel branca. Penso que comecei a gostar de sushi
muito tarde na minha vida.
Silêncio. Estouro. Silêncio. Depois. Fico me perguntando para quê saber o que
vem depois. Não há ação. Imagem. Sentido. Ponto.

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Semana fechada

Toda vida. Toda carne. Todo excesso. Todo despudor. Todo dia.

Para minha amiga inestimável, neste dia de felicitações,


entrego-te minha palavra morte, que tanto te fascina.

segunda-feira

Levantar às 5 da manhã, para ficar registrado o peso do meu corpo e a


cabeça rodando. Do desejo de se afundar eternamente neste travesseiro rouco.
Mas resistir, como todo marginal. Invocar-se contra toda forma de patetice da
vida de apartamento e ônibus lotado. Tomar café. Preto. Muito. E mais uma vez,
pra dá conta.
Hoje é o dia da amiga bêbada, presenteá-la com meus cds. Quero
ressaltar que ela, minha amiga, não é uma alcoólatra. É que nós, ficamos sempre
bêbadas, quando nos encontramos. Por isso, a amiga bêbada. Então, foi no
boteco copo sujo da minha cidade meia-boca, que começamos o dia. Bem no
centro ardido da capital mais comum e repetitiva do país. Gastamos o papo, o
fígado, o saco, chegamos aonde queríamos: bêbadas e felizes. Inertes e
anestesiadas do povo que passava sem parar à nossa volta. Estamos apenas
nos exercitando: olhando bem para os corpos silenciosos que não conhecemos.
Estamos exercitando a capacidade de contemplar tanta pressa descartável,
tanta gente sem nome. Não perdemos a capacidade de sorrir. Vamos para outro
bar, que este já deu tudo o que tinha que dar, diz ela. É pra já, arremato eu.

terça-feira

É o cão. Acordo mais tarde. Eu sei, já vou colocar ração pra você. Café,
não posso esquecer, como se eu pudesse... Hoje vou arrumar a mochila e fugir
pro mato com o cão. Vamos calados, voltamos exaustos. Deixo ele numa casa.
Levo comigo sua corrente, com seu nome gravado. Entro no carro, agora preciso
resolver coisas mais importantes. Um cão deve se virar bem. Com gente é pior,
e se sobrevive do mesmo jeito.
Empacotar o resto. A gente esquece das atitudes e das pessoas, quando
jogamos o excesso fora.

quarta-feira

15
No mercado, à tarde. Tenho uma amiga loura que é um caso e parece
com a Barbie, ela e seus lourônios. O problema do mundo é que todos
subestimam o que ela é capaz de fazer. Eu não. Por isso, é esse o dia dela.
Meus apetrechos estimados como colares, brincos serão para ela. Sei que ela
saberá usá-los tão bem como eu. Caipirinha e cuba libre, é isso que vamos
beber em sua homenagem. Mas antes, um café, preciso me preparar bem.
Desta vez, contemplo os machos machistas da minha cidade tradicional.
Corpos gastos de cachaça, trabalho de segunda e babaquice. Ah, e o “contar
vantagem”. Gosto de colecionar as invenções de um cara que quer conquistar o
rabo de uma mulher, ou melhor, somente impressioná-la, pela incapacidade de
consegui comê-la: Voltei de não sei aonde de uma prainha chinfrim esta semana,
e ainda não me acostumei com o frio daqui. Depois da semana que vem, quando
eu for ver o show de um zé ninguém barango numa cidade onde não faço
questão nenhuma de ir, eu te ligo, gatinha. Sim, não deixa de ser divertido. Esse
negócio de caipirinha sobe que é uma beleza, ah, se eu soubesse antes...

quinta-feira

Para o parente mais próximo. Meus livros. Meu suor.


Ir no túmulo da mãe, coisa que nunca fiz em seis anos. Existe aquele
poema, feito na manhã do enterro que precisava falar para você. Algo de
goiabada com queijo nas palavras, misturado ao cheiro das flores do enterro.
Mas eu tenho medo dele. Eu só consegui falar uma vez e tá ótimo.
Para o companheiro de trabalho, meus sapatos e um arquivo com tudo
que fiz estes anos. (os arquivos são invisíveis). São bobagens, mas nossas
bobagens são únicas, dizia ele. Éticas invocadas. Malditas, graças a deus.
Entrarei na catedral ainda mais uma vez e, deste chão batido e vermelho,
conservarei o dor e o calor dos fiéis. De acreditarmos na estrutura da grande
obra. Dos labirintos que nos fascinam. De toda loucura santa.

sexta-feira

Tá passando da hora. Café, meu café.


Lacrar as portas. Selá-las. Jogar sal grosso, queimar os papéis e fotos. Guardar
somente aquela em que ela se formou num interior incoercível.
Pegar o carro que nunca bati antes, e ir pro seio da família. 180 km/h. Dormirei
abraçada à mãe desta terra e contarei meus sonhos de menina. Tomarei milk-
shake com meu irmão, o herói dos meus quadrinhos. Ficarei frente a frente com
minha filha, e tomarei o primeiro e último porre. Já é grande e precisa aprender
certas coisas. É o seu olhar que faz com que eu tenha medo por ela. É o meu
olhar esguio que olho no dela. Essa vastidão incontrolável. Finjo que isso não se
repetirá. Não olho fundo, passo de relance.
Deixarei para esta mãe, uma carta bem cheia de palavras doces e
suculentas para ela saborear no seu café da manhã de biscoito de nata, com o

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cafezinho ralo mais gostoso que eu tomei na minha vida. Será bonito e florido a
minha sexta-feira, como eram todas. Irreversíveis e apaixonantes.

sábado

O carro mais uma vez me leva para longe dali.


Aprofundar nas veias de asfalto da minha semana de trajetos e pousos.
Estou na frente do homem que me pariu. Ainda tenho a chave, uso-a.
Ele está na sua escrivaninha de madeira escura, único móvel que ainda
permaneceu do primeiro casamento. Sua filha já é uma adolescente, o que me
faz sentir mais velha e distante da sua vida. Ela não está em casa. A última
mulher também o abandonou. Ele ainda tem uma foto minha em cima da mesa.
Aquilo me faz um mal, uma tremedeira, antigo hábito meu. Ele me pede para
sentar. Tomar uma cerveja com ele. A minha gelada e sem colarinho e a dele
meio morna, espumante. O tempo se alarga um pouco. Quase me captura. Ele
volta para escrivaninha. Ainda fala comigo. Olho de novo pro retrato. Ele diz das
mãos longas da minha mãe. Que está ficando velho. Que sempre pensou em
mim distante dele. Me alivia. Me afasto. Me liberto.

domingo

Parei o carro numa vaga proibida. Aberto. 5 horas da manhã. O metrô vai abrir.
Paraíso. Desço as escadas rolantes. O chão preto de bolinhas de borracha.
Aproximo-me da lista amarela. Zunindo. Um zumbido metálico. Luzinhas
vermelhas compõem as palavras no letreiro do vagão que desliza na minha
frente. Na cidade onde nasci, na caverna sob o hospital onde dei meu primeiro
berreiro em muitos na minha vida. Suavemente, os trilhos ficam cada vez mais
cheios da massa férrea movente. Na cidade mais rica e anônima do país.
Território duro e, por isso mesmo, humano. Uma grande cobra serpenteia as
linhas da minha terra de brita e aço. Atrair o ferro, não, o ferro atrai o corpo
mole. Meu corpo. Meu corpo oco. Corpo soro. Soco.
Para o meu lugar, eu deixo o resto: carne e ato.

Desta semana não passa. Feito, está tudo planejado. Agora vamos começar:

segunda-feira

Levantar.

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Minha programação preferida

O porteiro vê a imagem minúscula em uma tela de 20 por 30 centímetros. Preta


e branca, volume rascado e imagem que roda a cada cinco minutos. A vantagem
é o controle remoto em miniatura. Gosta de futebol e noticiários policiais. Quem
venceu o jogo ou quem foi esquartejado na semana.
Enquanto o porteiro masca chiclete na porta em pé encostado na porta da
garagem, a doméstica assiste à novela das oito em sua tevê de 29 polegadas na
cama da patroa. Esta ainda está no trabalho. A patroa só vive de trabalho para
pagar a doméstica e as dívidas que contraiu.
A doméstica se acha muito especial, gostosa e necessária ao mundo.
A doméstica ama o mocinho da novela, que usa gel no cabelo, tem cinturinha
malhada e fala com a voz grossa e melosa.
O despertador toca. É a hora de levar o lixo para baixo. Sabe que não vai
acontecer nada mesmo na novela, pois a revista A favorita dizia que Pedro
Augusto vai se declarar à Maria de Fátima só na semana seguinte. Está
tranquila, pode ir terminar suas tarefas.
Vou dar uma pausa, pensa ela. Aproveita para se refrescar: abre a torneira, pega
o sabonete para pele delicada e sensível e esfrega nas duas mãos, formando
uma massa branca e densa. Passa no rosto, que tem alguns cravos a espera de
serem espremidos, e depois enxágua com água até tirar o excesso. Linda,
arremata a doméstica para o espelho.
Enquanto isso o porteiro está cheirando rapé. Depois desvia da câmera que
tem dentro da guarita para tomar sua cachacinha.
A doméstica desce no elevador cantarolando um pagode que aprendeu na
semana passada. Ela caminha em direção ao portão, que na realidade é em
direção à guarita do porteiro. Gosta de se exibir. Mostrar as ancas quase
perfeitas com apenas três celulites e uma estria, quase invisível. Para vê-lo sofrer
a cada dia mais. O porteiro ama a doméstica, mas a doméstica ama o mocinho
da novela. A doméstica faz gato e sapato do porteiro. Não vê a hora de fugir dali
e encontrar o mocinho da novela. Já ele quer terminar o curso de eletrônica por
correspondência para dar uma vida melhor para doméstica.
No momento que ela passa com seu cheiro de fêmea “filha da puta”, ouve-se da
televisão que o momento crucial da novela chega: Pedro Augusto revelará que
ama Maria de Fátima:
Diz que me ama, suplica Pedro Augusto.
Não consigo entender, retruca estupidamente Maria de Fátima.
A doméstica se morde por dentro: tem pouco tempo para levar o lixo para
garagem, subir o elevador a tempo de conseguir assistir ao momento mais
importante da sua vida.

18
Não há tempo..., chega a balbuciar a doméstica.
O quê?, responde o porteiro.
Não vou conseguir chegar lá em cima a tempo de ver o final..., diz corroída de
humilhação.
O porteiro sabe que aquele momento é único e que agora pode fazer tudo o que
quiser com a doméstica. Ela é toda sua. Sua.
Três infinitos minutos de novela e ele pode saborear toda submissão de uma
mulher gostosa que de forma egoísta guarda para si a buceta sem uso ou
validade.
O rosto do porteiro se ilumina. Convida cordialmente, com gestos que lembram
o mocinho da novela, para entrar na guarita apertada e se sentar ao lado dele
na cadeira puída.
Quer o controle? pergunta o porteiro estendendo o pequeno objeto que falta dois
botões.
Não, não precisa, diz a doméstica que aceita sua derrota, engolindo o fel e o
amor próprio.
Precisa sim, meu docinho, quero que minhas mãos fiquem desocupadas.

19
Solteirx

Na minha casa tem comida de todo tipo: bisnaguinha, toddynho e sucrilhos. Tudo
muito saboroso e nutritivo. Faço compras todo Sábado ao meio dia em ponto: a
hora do rush no supermercado. É mais excitante porque assim consigo ver todos
os meus vizinhos juntos ao mesmo tempo. Durante a semana ficam trabalhando
em seus trabalhos ou escondendo em seus esconderijos.

Tem a seção de congelado que gosto muito: tudo muito limpinho e embaladinho.
É prático e livre de vírus. Tem a seção de doces, que é linda e colorida, com
embalagens que brilham prateado, mas que evito pois já tenho quilinhos a mais.

Na minha casa também tem microondas, facas guinço, a melhor do Brasil e tudo
que eu preciso pro meu bem-estar. Sou bem feliz e não tenho o que reclamar.
Não tenho cachorro, porque suja muito, mas tenho o Josué, que é meu peixinho
beta, cor azul-lilás. Lindíssimo. Limpíssimo. Ele é um animal bem compreensivo
e silencioso do jeitinho que eu quero e melhor: come pouco, muito pouco.

Meu pai foi embora quando eu nasci, e como não tenho dinheiro suficiente,
nunca tive como contratar detetive para achar ele. Ele deve ter seus motivos
para ter me abandonado é óbvio. Pode, por exemplo, ter batido a cabeça em
alguma quina desses corredores que deixam a gente perdido. Devo perdoá-lo.
Ser solidário com os outros, diz nas campanhas para arrecadar renda para os
mais carentes que nós. Não fico triste, porque sou bem alegre. Não tenho o que
reclamar.

Mamãe morreu faz cinco anos, trinta e três dias e dois minutos. Tomou muito
remédio de emagrecer, os médicos disseram. Segundo especialistas para não
adquirir a mesma doença que pode se manifestar a qualquer momento, devido
ao fator genético, devo ter cuidados especiais: ficar longe de medicamentos de
qualquer natureza e tomar muita água, que não tem qualquer contra-indicação.

Diante do exposto, desejo expor que procuro companhia, da qual gostaria de


compartilhar toda minha vida. Deve ser alguém carinhoso, asseado e de bom
caráter, sobretudo. Se você é esta pessoa, ligue-me para conversarmos pois
ficarei bem alegre. Não que eu já não seja, mas que para que eu possa ser ainda
mais feliz.

De alguém que espera teu telefonema,

20
Natal terror

Ao ente familiar que mais odeio, desejo este feliz natal

Titia boa não pode fumar, está doente, acabada, separada e não tem
direito de fazer nada divertido. Os doentes são condenados ao tédio e à falta de
vícios. E ainda pedem que melhorem rápido. Não a cumprimento para não a
constranger ainda mais. Ela que tenha o resto do seu orgulho.
A priminha ficou magoada porque não ganhou o pirulito da outra priminha.
Ambas irritantes, ambas mimadas pelo efeito de pais que adoram comprar a
felicidade num pacote de batata fritas com refrigerante.
A titia descolada fugiu pro interior com o namorado gostosão e a vó só
sabe ficar repetindo que isso é um absurdo, um verdadeiro absurdo. Penso que
ela deve saber o que é uma felicidade sem embalagem ou prazo de validade.
Comida tem de montão, enquanto a maioria da família passa fome o ano
inteiro.
O único primo tenta se esconder nas profundezas de um video-game
interminável. Os presentes são ótimos: roupas bregas e vasilhames de cozinha.
Cd, livro ou flor estão sempre em falta no lugar.
Espero todo ano este dia santo. Rezamos à meia noite e pedimos a união
da família. Agradecemos a presença de todos e aqueles que já se foram.
Na verdade, os tios divertidos já morreram todos. Jesus de Nazaré deixou
os chatos para nós. É neste instante, que o tio machista faz “as vezes” de pai.
Não posso deixar de narrar que nesta família os homens são ausentes. Todos
pediram suas contas.
É assim que a família pede a Deus que ele cale a boca e desconfie que
aquela não é hora de fingir um papel que ele nunca assumiu. Não tem jeito, agora
ele começou e não vai parar, todos se mexem constrangidos. Decidem começar
a comer a ceia, pois afinal ela está tão gostosa.
E o tio começa a falar de cada sobrinha, vomitando seu discurso de inveja
e despeito. A música, antes suave, aumenta vertiginosamente. Todos riem
muito. As meninas vão para cozinha lavar as louças. A titia gente boa aproveita
para fumar na varanda, escondida dos olhos dos que julgam e não admitem seus
próprios vícios, mas sempre o alheio. As priminhas chatas continuam de mal. A
vó volta ao assunto da filha mais nova, ovelha negra e porra-louca. O primo não
saiu do videogame nem para comer, nem para ir no banheiro ou arrotar
vantagens pro primo mais novo. E o tio começa agora a falar mal da comida.
Espero todo ano este dia santo. Renovo-me da matéria humana
verdadeira. Sinto-me integrada ao mais puro teor miserável da família. Acredito
em Deus, no futuro e no amor sincero entre os seres. Não posso esquecer da

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sobremesa, este epílogo necessário que perdura este momento de celebração
e felicidade. Fria e enjoativa, cai no meu estômago, arrematando mais um natal,
que sobrevivo às custas de um forte anti-ácido. É preciso passar no banheiro
antes de passar pela tortura final da despedida em cada membro da família.
Respiro, jogando o resto do doce pra dentro. Engasgo com tanto glacê. Parto.
Mal posso esperar o próximo ano. Sou feliz porque tenho família.

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De como desfrutar as férias

Sente em frente ao computador e compre um pacote num site de compras


coletivas. Sempre um bom negócio. Comece bem, economize e tenha sorte para
a rede não cair.

Tudo organizado? Agora, vá pra uma praia bem longe. Longe mesmo. Longe pra
dedéu. 14 horas de viagem, dirigindo. Dirija na chuva, nos buracos, nos
engarrafamentos. De dia, de noite e de madrugada. Não perca a ilusão da pele
dourada ao sol. (essa lavagem cerebral das propagandas de xampu, cerveja
gelada e picolé geladinho).

Chegue um dia. Na praia. Ou na conchinchina que escolher. Provavelmente vai


chover. Melhor, já chove. Torrencialmente. E mais um pouco.
Torça para fazer sol. Torça para achar um lugar pra se hospedar, que não seja
no mínimo um roubo. Torça para ser feliz.
Continua chovendo, nublado. Descubra que a praia que você escolheu ficar 15
dias só tem família, crianças, guarda-sol e vendedores ambulantes à rodo.
Ripongas por todos os lados, vendendo porcarias mil. Pequenos burgueses
consumindo ripongas.

Descubra que você tem tédio de viver a própria vida e finge que uma viagem
para longe vai melhorar seu sentimento de impotência.
Ache um lugar para dançar de noite. Só o forró e o axé gordurosos que se
repetem.
Saia beijando a boca do primeiro ou primeira que você achar, dependendo de
sua preferência. Isto deve ser registrado para no retorno, caso você tenha a
petulância de sair contando para seus amigos invejosos.

Permaneça bêbado, bêbada, tanto faz, você entendeu bem esta parte. Os 15
dias. Resista à ressaca, à vergonha e ao sono. Você sobreviverá. Lembre-se
que você que escolheu isso.

Reze para não pegar insolação, intoxicação, alergia de mordidas de pernilongos


ou disenteria. Tenha sorte ou, no mínimo, um limite no cartão de crédito folgado.

Volte para casa são e salvo, como se a gente soubesse o que é isso...

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Agora é preciso recomeçar o ano e esperar as férias seguintes num lugar mais
longe ainda (tudo para você se convencer que será feliz na próxima). E o próximo
desconto no site de compras coletivas, é lógico.

Boas dívidas no retorno. Qualquer gota de felicidade tem preço superfaturado no


mercado. Seja livre, seja filiado. Volte sempre. Agradecemos sua visita.

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Nem bonita, nem feia

Em homenagem à atriz.

Me deixa cuidar dela, ela não é ninguém, não é bonita, nem feia, mesmo
assim, deixa...

Ela acorda às seis e quinze da manhã. Digo, eu. Eu acordo. Eu me visto, às


6h15. A blusa branca, de botões. O sapato preto, engraxado. Às seis e meia, ela
acaba o banho. Ela saía muito cedo de casa. Ainda de noite. Qualquer dia
desses ela ia ser encontrada morta num beco escuro. Som de estouro de cano
de esgoto. Um cano parecia ter estourado dentro da sua cabeça. Mas isso passa
rápido e agora ela enxerga o sol. Estava atrasada. Sempre pegava o metrô às
sete e meia. Mas hoje alguma coisa saiu errado. Um lapso. Algo entre às seis e
quinze, quando acordou, e o momento que devia pegar o metrô. Ela se lembra,
instantaneamente: eu estava ali, sem calcinha. Digo, ela.

Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela precisa fumar um cigarro.

Vamos aos fatos, não à história.

Loira, aproximadamente 30 anos. Sozinha. Ninguém reclamou o corpo.

Que corpo? Mas ela matou ou foi morta?

Não sei. Ainda não aconteceu. Ela vai começar de novo, sabia que podia fazer
melhor.

Aquele era um dia normal?

Ela esquecia as palavras. Som vazio. E frígida. Eu já disse que ela era frígida?
Outro lapso. Som de vácuo. Sabia que podia fazer de maneira organizada.
Sempre pegava o metrô às sete e meia. Lotado. Embalada à vácuo. Como
sempre, ela ia em pé. Mas naquele dia, as pessoas a olhavam com uma cara
esquisita. Mas aquilo era coisa da sua cabeça. Só podia ser. Ela era invisível.

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Um inseto. Não, melhor, um pernilongo. Que a fura. Que a chupa. Que coça a
pele, quando marca. Marca vermelho inchado.

A senhorita quer se sentar?

Sim. Um cigarro. Ela precisa fumar.

Comecemos de novo.

Seis e meia da manhã. A blusa branca, de botões. O sapato preto, engraxado.


O banho. Som de ondas. E o batom. Ela gosta do vermelho. Mas tem que passar
o cor-de-rosa. Tinha se esquecido do batom. Ela adora a hora de passaro batom.
Ela não é bonita, mas fica linda com batom. Foi quando viu no espelho que sua
boca estava machucada. Marcada. Aquele dia, ela passa o vermelho em cima
do vermelho do corte.

A rua tava vazia, mas havia um homem. No boteco da esquina. Ela toma um
café. Pingado. Sabe que ele a olha de esgueiro. O homem com as mãos no
bolso. Que a olha de cima a baixo.

Adiante, senhorita. Fale o que aconteceu, sem abreviações e rasuras. Os fatos.


Ela vai contar. Agora vai chegar no ponto, no meio das coisas, quer dizer, dos
fatos.

Ela desce do metrô e entra num prédio. O escritório onde ela, eu trabalho,
trabalhava. Primeiro andar. Segundo. Terceiro. Quarto. O corredor mofado. O
cheiro de madeira com cupim. Cumprimenta as pessoas. Quinto. Sétimo andar.
Entra na sua repartição. Senta-se começa o dia. O patrão lhe chama. Ela era
invisível. Um pernilongo fêmea. Grita. Lá de dentro. Ela obedece, que jeito?

Volta ao escritório. Trabalha como se fosse o último dia da sua vida. As folhas
roxas são os requerimentos. As púrpuras são da contabilidade. Ela se lembra de
cumprimentar “aquele” colega: “Obrigada pelos bombons de aniversário”. Ela
entra no banheiro, senta na privada e digita um texto cheio de palavras cordiais,
formatadas em letras formais e sérias, em espaçamento regular e justificado.
Justo e alinhado. Sem erros ou repetições desnecessárias. Editado pela

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competência de uma funcionária extraordinária, diriam alguns. “Servimos bem,
para servir sempre”. Algo extraordinariamente cruel ia acontecer.

De repente, zonza. Perdi a noção, a cabeça e a estribeira. No chão, os papéis


rasgados, molhados. Minha meia-calça rasgada. Batom borrado ou sangue
estagnado? Batom vermelho? Não era rosa? Ela diz para ele, é assim que o
senhor me agradece, depois de todo o esforço, que fiz para chegar até aqui? Ele
sorria, sem olhar na sua cara. Então ela esquecia as palavras. Som vazio,
novamente. E esquecia de onde vinha e pra onde ia. Som de velocidade zunindo
ao redor. Um vai-vem acelerado de triller de violência gratuita ou de enlatado
com desfechos surpreendentes. E esquecia o fio, a meada, quer dizer, o meado
da conversa, da perguntação, quer dizer, do interrogatório, ou melhor dizendo,
do julgamento? As cenas em que ela se via e vivia naquele momento eram
processos de montagem desfacelados e fragmentados dentro da sua cabeça.
Dentro da sua cabeça. Tonta. Zonza. Zonas vermelhas e negras da sua rotina,
sem rotina. Ficava linda de vermelho. O batom. E se esquecia outra vez. De vez.
No final, ela passa mão na boca, tirando o resto de batom. Pra esquecer. Som
oco. Seja lá o que for algo que seja realmente vazio.

De repente, sozinha. Loira descabelada.

A senhorita está pronta?

Eu nasci, não basta?

Tempo largo, que quase se esquece de si mesma novamente. Recomeça a voz.

Pra onde estão me levando?

Pra dentro, senhorita, ouve a voz da sua cabeça.


Na cabeça dela, só ouvia. A etiqueta pendurada: MULHER NÃO RECLAMADA.
BRANCA. Melhor, CAUCASIANA.

Pra lugar nenhum, responde de fato a voz que a interroga.

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É verdade. Estou dura na sua frente e os indícios estão na minha pele. Podem
levá-los. É tudo o que sobrou. Eu me lembro assim, instantaneamente. Ela
estava ali, sem calcinha. Digo eu. Este é o fato. É a única coisa que sobrou de
tudo.

Pra lugar nenhum. Na cabeça dela, ela via a etiqueta no seu corpo, com a
seguinte frase:

NEM BONITA, NEM FEIA. SECRETÁRIA. OTÁRIA.

Mas ela nunca vai parar de responder à mesma pergunta.

Vamos dar uma pausa. A senhorita deseja alguma coisa?

Um cigarro, ela precisa fumar, digo, eu preciso. Eu fumo desde sempre.

Vamos aos fatos, não à história: Ela matou ou foi morta?

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Solitária gaga

Por uma narrativa desintegrada, porque tenho direito em não contar


historinha...

Eu poderia contar a história de velhas, veias, feias, veias, vulvas, vácuos


e vozes vazias, mas permaneço numa aqui dentro, cela da minha cabeça, que
faz parte de um bloco, que faz parte de um andar, que faz parte de um prédio,
que faz parte de um quarteirão, que faz parte de um bairro, que faz parte de uma
cidade, que faz parte de um estado, que faz parte de um país que ninguém sabe
localizar no mapa. Mapa mofado, sem atualizações.

Eu poderia recomeçar e me lembrar do que aconteceu ontem, uma


história extravagante sobre o que acontece aqui dentro quando as luzes se
apagam e não tem ninguém vigiando, porém não. As coisas mesquinhas que
vivo aqui, você também vive aí, todos os dias quando se levanta. Desta vez não
vou narrar acontecimento sequer, isto é crônica de quinta categoria sem início,
fim ou meios.
(não esquecer que os meios são necessários).

Eu poderia dizer que devia ter tido coragem de atravessar a porta da


minha casa, quando pude, em tempo, e ganhar o mundo lá fora com minhas
próprias pernas, mas não. Não. Eu poderia começar a perdoar, mas eu sou
humano e decido: eu não consigo, sou egoísta e ciumento de natureza. Eu não
consigo. Eu admito e não esqueço. Eu não. Não. Fiquei aqui parado na parede,
puída por pulgas e carrapatos. Deparado pelo não estampado na minha testa,
que me testa e me pesa. Convenhamos: não há nada mais anti-ecológico que
um infeliz.

A situação é o seguinte: aqui ama-se por um copo de qualquer coisa, por


um afago mal dado, muita picardia, fuga e pouco contato. Só mordidas e atos
atrozes na escuridão grudenta. Nossos cães perderam a domesticação. Estão
soltos. Tornaram-se vira-latas de profissão, é preciso admitir. Sei que é preciso
de diálogo, essas coisas, mas isso não é bem visto por aqui. Eles moram dentro
do concreto, atravessam as grades dos bueiros debaixo de mim. Já estão de
saída, agorinha mesmo vocês verão. No entanto, eu posso me lembrar do
desprezo que me lambem o orgulho da minha bunda. Tudo que é vivo que se
movimenta. Tudo que é morto um dia tem que se desintegrar. Agora eles vão
comer. Cuidado. Tudo que tem dentes, devora.

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Jurema tinha medo de sair de casa

Jurema era uma personagem extremamente desinteressante para mim,


escritor de gabinetes e enredos bem amarrados. As histórias deviam ser
histórias, pois o mundo era sempre um acontecimento. Sem fim. Pois não
sabemos nada de inícios. Só desejamos aquele caminho para nunca chegar.
Somente o meio. Sempre fui um sujeito atravessado de meios. Os miolos, os
recheios, aquilo que está detrás da porta ou dentro da caixa no fundo do armário.

Tudo que possa ser escondido para depois ser achado. “Amar talvez seja
a melhor maneira de se ter, e se ter seja a pior maneira de se amar”. Tomo o
saramago aqui por uma imposição afetiva. Minha é claro. Porque admito que a
expectativa é o pior dos meus vícios, e talvez de outros muitos que nunca tomam
a atitude que desejam verdadeiramente. É um momento fotográfico, que me
foge, impregnado de um flash ingrato, que deixa qualquer um cego. E quando
se volta a ver, o que fica no lugar da excitação é apenas lamento e a sensação
de se engolir à seco. Terra vermelha que se levanta com o cavalgar dos burros.

Retorno a ela. Esta aí na sua frente. Jurema era doida. Não daquelas que
ficam presas no hospício ou numa casa abandonada, por terem feito algo
extraordinário ou incomum.

Doida porque era incomunicável, insignificante, ninguém olhava pra baixo


para fitá-la. Essa coisa não conversava. Nem com o menino do lado da carteira,
com o pipoqueiro da esquina (essa esquina avessa que me persegue), nem
mesmo com a mulher ao lado de sua cadeira, quando ia fazer as unhas no salão
de beleza, única vaidade que ainda lhe sobrara. As mãos eram iguais as da mãe.
Isso a deixava orgulhosa.

Jurema, a minha personagem insignificante, nascera de parto normal, de


mãe forte e lutadora. Mãe esta que também teve trajetória repleta de tragédias
pessoais e familiares, ou como desejarem: algo que é pessoal pode ser ou não
necessariamente familiar. Se bem que a ideia daquilo que possa ser familiar para
mim pode não ser coincidentemente para ti, piedoso espectador.

Penso novamente o que pode vir a ser Jurema. Empreendo que posso vir
a ser Jurema. Desafio o que há nela de familiar. Sigam-me, com teu olhar crítico,
de receptor mal-intencionado. Todos queremos assassinar a picardia que existe
em nós mesmos. Quando não gostamos de algo em nós mesmos, culpamos
àquele que está do nosso lado. Por isso Jurema me incomoda.

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Não narrarei seu corpo, pois esse não diz tudo o que ela é. Nego tudo que
possa esconder o encontro entre as pessoas. Narrarei suas atitudes. As
humanas atitudes que nos salvam da incoerência. Ações que a tornam mais
humana do que estas longas descrições enfadonhas, herança de um século,
cheios de sonhos vazios.

Jurema, minto, ao contrário da mãe, não colecionou tragédias. Eram


ausências. Falta de mudanças na vida. Por isso, comia um pouco de tudo.
Acordava tarde raramente, quando não se obrigava a trabalhar longas horas
para o seu chefe barbudo, que tomava cerveja todo dia depois do expediente,
enquanto ela fazia os serões dele até às dez da noite. Continuava do jeito que a
vida ia lhe levando. O que lhe sobrava era promessa de mudar de emprego.

Outra sobra era a coragem de voltar para o interior e visitar sua antiga tia,
que casara-se com um rico fazendeiro. Tinha se esquecido dela. Ela queria ser
melhor que a família e perdoar antigas humilhações. No entanto, não conseguia
ser boa. A maldade era um alimento para sua força tão incipiente.

Jurema, apesar do pouco contato que teve com o mundo dos prazeres
juvenis, teve experiências que ajudaram a formar sua incapacidade de desistir
fácil do mundo. Os vícios se desenvolviam rápido, como os pernilongos que
deixam suas pegadas vermelhas de coceira e irritação.

Esclareço-me melhor. Esta moça sem corpo, era apenas uma voz que
nunca se desligava. Por isso, faladora, como afirmei antes.

Não que falasse o tempo todo. Mas escutava com todos os seus orifícios.

Não é que dialogasse o tempo todo com alguém ou mesmo sozinha. Mas,
o tempo todo, queria dizer algo: dar cabo de crenças.

Não que quisesse que os outros concordassem sempre com suas ditas.
Concordar nem sempre era o exercício que mais lhe apetecia.

Mas não.

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Dizia línguas inventadas, imagens úmidas e acontecimentos imbecis. Seu
hábito de ler quadrinhos a deixava propícia ao banal e à vida baixa da classe
média.

Portanto Jurema era louca por ser normal. Por ter vontade de fugir de casa
e não conseguir, porque tinha medo do escuro quando o dia caía. Outro medo
eram as mãos grossas e maciças, porque não conseguia deixar traço algum no
papel.

Esta personagem, confesso, para que não fique tão frustrado com esta
narrativa medíocre é uma mentira que inventei. Juremas não existem. Mas quero
inventá-la porque elas gritam. Gritam mudas. Todo dia, quando volto para a
minha casa, dentro da noite.

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Mulher gorda de pernas abertas

Ela está lá: de pernas abertas. Chegou às 7 da manhã com homem


desconhecido que catou na rua, no bar, na esquina, não sabemos direito.
Transam ininterruptamente. Tocam-se estupidamente. Riem nervosamente.
Fazem barulho na madrugada. Acordam a mulher do lado. É ela que nos contou
isso. Não sabemos o que a mulher das pernas abertas é, o homem tão pouco.
Imaginem o que quiserem. Mesmo assim ousamos imaginar uma atmosfera
suburbana. Louça suja na pia, cama desarrumada e roupas jogadas no chão.
Ele quer transar rápido porque parece que tem que embora. Mas não dá conta,
bebeu demais, o coitado. Imaginamos mãe, mulher, filho, cão, que esperam em
casa. Ela apaga. Ele vê a oportunidade de puxar o carro. Age rápido. Achamos
que rouba um pouco do seu parco dinheiro, a grana da mulher de pernas abertas.
Não entendemos exatamente o que este homem semi-bêbado deseja. Estamos
averiguando ainda. Afinal, somos seres de papel que furam a linguagem com a
voracidade dos carrapatos do cão.
Homem sai para a rua que desconhece, pois não sabe em que casa
parou. Tenta achar um ponto de ônibus. Ela lá, de pernas abertas: ronca. Ele
está no ponto e o sol queima sua cara. Ninguém passa na rua. Não sabe em que
direção vai para chegar ao centro da cidade. E ela lá, de pernas abertas: baba.
Finalmente passa um ônibus. Não quer saber para onde vai, sobe, vai embora
dali. (sempre queremos apagar as besteiras que cometemos numa noite). Agora
a mulher do lado, lembram-se? Ela consegue pegar no sono. Some da nossa
história.
Chegou às 10 da manhã em casa. Neste momento da história não
nenhuma pessoa em casa. Não há ainda como saber com quem mora. Ou se é
um solitário convicto. Abre a geladeira: não nada. Pensa um pouco. Não temos,
porém nenhum dom de onisciência: não captamos pensamento algum. Somos
muito televisivos, deglutimos só imagens.
12 da tarde, ela continua dormindo. Não temos conhecimento se ela
trabalha, quem a sustenta, se não está atrasada para alguma coisa, ela dorme.
O tempo come a vida dela. O ócio, a ressaca, a boêmia, a porra-loquice...
14 da tarde, ela acorda. Vimos sua ressaca, na tontura do seu levantar.
Até ela, não sabe direito onde está e como chegou ali. É a minha casa, ufa,
respira aliviada.
Ele já se encontra em outro lugar. Como ele chegou lá? Perdemos esta
parte. O certo que está na frente de um computador e fuma.
Ela está parada e olha as coisas no chão, roupas, camisinha úmida.
Preciso começar a pensar em fazer um regime. Estou muito gorda.
Este programa sempre dá pau. Odeio este servicinho. 16 da tarde, ela vai tomar
banho, ele sai da sala do computador e apaga a luz.

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Eles somem das nossas vistas.... Desligamos esta história. Cansamos
de cenas falidas.

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Liar Lady

Luz na passarela que lá vem ela: Liar lady, sua mentirosa, eu te amo, sua boneca
de carne. Ela me promete verba, merda, merda, que merda. Me promete espaço
e esse barraco, vaca, vaca. Eu me digo sempre: mulher, janela, homem, porta.
E aqueto um pouco. Quero fugir dessa reuniãozinha arcondicionada e instituir o
dia das coisas feitas com as próprias mãos. Pó, pó, pó e pó. E nada. Onde foram
palavras parar os livros deste lugar, ora palavras, que são necessárias? E ela
volta, todos os dias nos seus saltos fincados em nossas cabeças. CORTE A SUA
CABEÇA E OFEREÇA À ELA, DE BANDEJA. Lisa, ela fala com palavras
recheadas de laquê e chapinha fervente, gente... isso é ótimo. Isso nos
convence, irreversivelmente. Lava as mãos com spray álcool gel, sabor cereja
fresh mint: frescor no seu rosto de papel film transparente inviolável nas rugas
da vergonha aparente. As luzes se apagam e ela fica, lívida, segurando seu
celular, sem cobertura e sinal, esperando alguém lhe conectar.

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II.públicas

No escritório do edifício de um centro urbano qualquer

Bons-dias. Hora de começar o dia. Muitos corredores, andares e um elevador


para dar conta. Andares fechados e labirintos impessoais. São brancos-
acinzentados de um lugar que não se mora, não se namora, mas se demora e
se embota. Repartições plásticas e quadros transparentes de avisos da semana.
Prazos a cumprir. Cronogramas, planejamentos, pastas, arquivos, planilhas,
blocos infindos, canetas, grampeador e carimbos da empresa (tatuagens
padronizadas da domesticação). Recinto do cafezinho: lugar de salvação do
cigarrinho. Banheiro sujo e minúsculo. Lugar sem janelas e vontade de respirar
um ar que não seja viciado ou, o lá de fora, marcado pela poluição. Tele-
markentig: as repetições e xingamentos necessários de toda hora. Máquina de
cartão de pontos. O relógio maldito do sistema criminal da burocracia. Mesas
lotadas. Mulher que lê, mas não segura pensamentos. Olhares enviesados. Elas
estão prestes a cometer um deslize na produtividade lenta e obrigatória. Hora da
fofoca. O patrão passa. Todos ficam com o cu preso. Hora da saída: guardar
tudo com organização e eficiência. Sorrir. Tudo igual, mas diferente. Stress
calado e entupido. Cometer o trabalho nosso de cada dia.

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Esquina civilizada

Churanha é civilizado e vê tudo à sua volta. Esbarrões sem pedido de desculpas.


Buzinas irritantes que estouram nossos tímpanos, vozes anunciando tranqueiras
e o andar apressado e inconsciente de cada dia. Gente esperta vendendo
baratos e é ele o que há no pedaço: Fachada, o traficante do pedaço, com
tatuagem no braço, que finca seu ponto no lugar mais visível da esquina. A ironia
é que ninguém o vê, ninguém pega. Churanha é o seu faz-tudo, seu olheiro e
seu faxineiro. É ele que toma conta de tudo. E olheiro dos carros da avenida
principal. Churanha vê tudo e anota os horários de entrada e saída de todos que
interessam por ali. De repente, um carro que se choca ao outro. Tensão no sinal.
Todos estão prestes a se engalfinharem. Mas respiram. Tudo anotadinho. Em
órdi. Churanha vê tudo. Não faz nada, fica na sua, espiando. São cidadãos
civilizados, que nem ele. Um seguro é acionado. Um poliça é chamado. Mais
xingamentos por metro cúbico. Ninguém ofende a mãe, se não vira porrada
mesmo. Churanha vê tudo sentadinho no seu caixote de madeira podre. Vê
agora a mulher que acaba de ser despedida, apela para o portão de edifício de
sua antiga empresa e pede perdão por ter nascido. Pede para entrar, pede para
sair daquela situação humilhante. Pede suas contas atrasadas, seu décimo
terceiro, férias e FGTS de dez anos de casa, agora sem residência, teto e
cafezinho nas horas vagas. Churanha até pega na pena pra ela. Na rua lotada,
ninguém a escuta, ela é a formiga recém pisada, aliás, barata à prova de
detetização. Mais xingamentos por metro cúbico. Lá dentro, o som morno e
aconchegante do ar-condicionado sufoca sua voz mínima. O caminhão de lixo
passa e fica, com seu barulho fedorento de chato, o tempo suficiente para fritar
seus miolos. Ela pede mais uma vez, já tinha sido a funcionária do mês. Agora
nem tinha mais o que comer no mês. Eu quero entrar, meu senhor, tenho meus
direitos, está na constituição. Em vão, essa é a rotina de quem vê de fora.
Churanha vê tudo, mas não pode fazer nada, tem um servicinho quente para
fazer para Fachada. A vida é assim mesmo, crime é tomar partido por qualquer
coisa e perder a hora. Ela fica lá, à espera da porta se abrir e a salvar.

37
A hora perigosa

Ana escreve um romance sobre Ana. O porteiro acompanha tudo na espreita das
portas e dos interfones. A escritora mora numa kitinete abafada, com duas
janelas, um banheiro, uma cama, uma mesa, uma cozinha que só tem café e
água mineral e é conjugada com a área de serviço desativada. E um computador
fora de linha que apóia sua máquina de escrever. O interfone toca desde às seis
da manhã, anunciando o gás e vendas de apólices das caridades reservando
um lugar no céu. A palavra de Deus salva. E o porteiro que enche o saco,
perguntando se tudo está nos conformes e se ele não tem “unzinho” para arranjar
para ele. Ele está tão perto que a escritora que ela tem a impressão de que ele
está ali: parado, fincado na sua sala, ouvindo seus pensamentos e premeditando
seus passos. Ele até consegue pensar que pode ser feliz porque todos os dias,
cuida do edifício e da vida dos outros. E de Ana.

Mas por isso Ana não esperava: o destino a sacaneou bonito. O dia cheio de
ventania de um stress cheio de gastura de calor, acompanhado pela música
fétida do caminhão de lixo, acaba de levar sua única cópia pelos ares, como os
pombos sujos do edifício que invadem seu apartamento. Agora é que são elas.
O seu problema é resgatar os papéis e pedir redenção para colocá-los em
ordem. E o porteiro sorri pequeno e vê agora a oportunidade única que esperava,
ansiosamente. Ajudá-la caridosamente. Ela precisa dele mais do nunca. Ela o
chama. De uma vez. Descem escada abaixo com tudo. Esta é a hora perigosa.

Enquanto isso, quase colado dali, num outro cubículo, perto de seu apartamento,
mais precisamente, embaixo, está Ana, a outra, que diz sempre que acha lindo
ter o nome que escrito detrás para frente também se lê Ana. Ela ensaia seu
depoimento. Mora numa kitinete abafada, com duas janelas, um banheiro, uma
cama, uma mesa, uma cozinha que só tem café e água mineral e é conjugada
com a área de serviço desativada. E um espelho que se olha todo santo dia. O
seu olhar no espelho a salva. Ela é a mulher real da escritora que ainda está
descendo desesperadamente as escadas em busca de sua medíocre obra,
quase literária, quase terminada, que já pode estar perdida para sempre. Ela
ainda não sabe que ela existe, talvez nunca saiba. Mas ela está lá no seu
banheiro, onde se sente protegida do mundo, pensando como começar seu
depoimento. Tudo que Ana desejava era ser atriz, de teatro, é claro. Sua história
de vida, como iremos ver, não é trágica ou dramática, mas irônica, despojada,
como ela mesma costuma assim dizer. Então é assim: ela ensaia sua vida: seu
futuro casamento, seu futuro filho, seu futuro homem, que como ela, terá o nome
de Oto, que escrito de modo invertido também poderá ser lido como Oto. Sua
hora perigosa chegou há quatro meses, quando descobriu que tinha uma bolinha
no seu seio esquerdo. Olhou para o espelho como se visse suas entranhas
pularem para fora de uma vez. O tempo passava e a bolinha virou bola. Cresceu

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e cresceu e se tornou uma bola de beisebol. Foi ao médico, e perguntou do seu
futuro e ele, calado, sério, a olhou com a piedade de quem tivesse sido
condenado por um crime que não cometeu. Agora é que são elas. Ela tem que
tomar sua atitude, seu ato. Diz sim. Toma coragem, ensaia sua vida novamente
e entra na sala de cirurgia. O doutor faz isso todo dia, não se preocupe, tudo isso
é bem normal, não tenha dúvidas, ele é profissional e imparcial. Tudo vai dar
certo. Faz tudo desaparecer num instante. Há chance de voltar, não tenha
dúvidas. Ela pode dizer que quase teve sua vida de volta.

Volta para seu cubículo e naquele instante, Ana, que quase ganhou sua vida de
volta na mesa gelada da cirurgia, esbarra com Ana, que tenta resgatar sua vida,
naqueles papéis sem vida. De uma vez, trombam-se. Estupidamente não se
reconhecem, passam tão preocupadas com suas vidinhas, que perdem a única
chance de se salvarem. Elas passam. E o porteiro é o único que percebe que as
duas precisam uma da outra. Se cala. Comete seu egoísmo. Ele precisa mais,
pensa. Assim, comete sua ajuda e resgata metade dos papéis de Ana, que tem
que recomeçar tudo de novo, enquanto isso, Ana sobe, no seu elevador que a
nina, para seu cubículo e lá, protegida e sentada no seu vaso sanitário santo,
ensaia seu depoimento. A espera da hora perigosa recomeça.

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Zonamorta

Em homenagem às mulheres da minha guaicurus.

Menino, volta pra casa logo, que eu já não me aguento, sem você perto mim,
dizia a mãe, que já tinha encarado de um tudo nessa vida, no telefone, no interior.
O garoto, já homem, que contrabandeava todo tipo de pó, injetável e fumo, do
outro lado da linha, na cidade grande, dizia que ia se dá bem e que a parada já
tava no papo. Eu não te dou um mês para você se perder dessa vida, Samuca.
Se perder e me perder, menino. Se liga, velha, se liga...

Agora, ele vem me dizer que perdeu tudo que tinha num jogo de carteado. Olha
só, depois de seis meses, sem cheirar minha porta, minha cama, vem pedir
arrego. Vê se eu sô mulher de dá chance pra malandro. Eu?

O puteiro tava limpinho mesmo aquele dia. O almoço tava uma gostosura
mesmo, pensou Genecy. Frango com quiabo, com muita pimenta, farinha e
cerveja gelada. Era assim que as garotas da Rua 69 se divertiam no Domingo.
Depilavam, fazia unha e escova no cabelo. Amanhã era dia de batente, e ela não
podia perder o primeiro dia útil do mês, em que os bofes todos tinham
pagamento. Genecy foi tirar uma soneca e acordou assim: com uns moleques
grande chutando sua barriga e silicone. Levaram o resto do dinheiro do mês e o
DVD, que ainda tava no carnê. Genecy também ganhou uma bela marca de
corte, próxima da boca. É amanhã que eu volto pro morro, cansei desse puteiro
de zona sul, disse quando se olhou no espelho.

Pode não parecer, mas o malandro amava mesmo aquela magricela. O malandro
era o Américo, e a magricela, a Dinéia. Virava idiota. Homem babão. Foi no lixão
que conheceu ela: não tinha dente na frente. Pouco importava. Mas era forte é
forte, a magrela, dizia ele pros cabra lá do processamento. Foi um dia, que a
magrela não apareceu mais nem na rua, nem no galpão, nem no lixão. A filha da
puta deve tê pegado barriga e voltado pro interior. Que nada. Foi encontrada
furada da vagina até a barriga, nunca esquina de um beco qualquer. O povo
conseguiu até fazer enterro. Esse dia, o Américo bebeu todas, cantou sertanejo
a noite inteira e pegou mulher suja lá no puteiro da santos dummond. Por que eu
tive que demorar tanto pra pegar a magricela?, resmungava quando bateu a
porta do puteiro às 5 da madrugada.

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Círculo dos horrores

Para provar que se escreve na crise.

Na minha rua todo mundo se odeia e ninguém mais quer saber de conversar.
Não há espaço para bons-dias e adeus, apesar do campo aberto, nome bonito
para esconder o o nome sujo de terreno baldio. Só mordidas e atos atrozes. No
clarão do dia e na escuridão grudenta. Nossos cães perderam a domesticação.
Estão soltos. Tornaram-se vira-latas de profissão, é preciso admitir. Sei que é
preciso de diálogo, essas coisas, mas isso não é bem visto por aqui.

Na minha casa ninguém mais sabe da vida do outro. Acordamos cedo, jantamos
cedo e nunca trepamos. E no trabalho, somos a rotina do ócio. Não acreditamos
em atos instintivos e somos roedores de ricota pré-congelada e cubos de caldo
com sódio e ciclamato. Olhamos todas as noites pelos buracos quadrados do
nosso apartamento as luzes do medo lá de fora.

Somos um lugar nenhum de discursos entrecruzados, não conectados de uma


rede vazia, abstrata e retangular. De nada, quase nada. Mas poderíamos ser
também cadeias de ratazanas mortas esquecidas no armário. Tanto faz. Mas,
sobretudo, à espera de detetização.

Resta a palavra cruel, único traço de realidade.

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O filme público de Medéia

Na celebração do casamento, um filme classe B, ou


Quando você desfilou na avenida, sambou pisando no meu coração.

Todo mundo já quis que uma noiva, qualquer uma, fosse deixada num altar. Por
sermos mesquinhos e egoístas. Não suportamos a celebração alheia. Por isto
traímos, por isso somos traídos: para mantermos o quão somos miseráveis. Para
mantermos o ritual. Na verdade, o que mais temos medo é da bondade, por isso
somos maus. Isto me dói. Dor que se torna prazer, afinal, ao final. É um filme
vagabundo que todo mundo já sabe o final. Vamos a ele.

“Me dói te ver na minha frente todo dia, te cumprimentar, te sorrir e saber, melhor,
ter certeza que você comeu minha melhor amiga na festa do nosso noivado. E
continuamos vivendo, porque alguém disse isso pra gente e acreditamos que
tudo vai passar. Mas não vai. Nunca passa. Me dói te ver entrando pela mesma
sala, em que ainda iremos nos ver todos os dias durante anos. Te vejo hoje e
vejo o ontem: todo branco. O branco do sonho, de todo o meu sacrifício pra ver
tudo lindo: o bolo, as flores, os arranjos, meu vestido, teu terno, daquela festa
nos jardins daquela casa que custou mais caro do que meu décimo terceiro. Me
dói admitir que fui eu que me ofereci para pagar essa casa, enquanto você
aceitou, uma hora antes de você levantar aquelas saias roxas brega daquela
vaca, que sempre invejou minha coragem de ser sincera e amorosa. Minha
maldade é ser bondosa, verdadeiramente. A vaca roxa só queria trepar com “os
meus caras” para me mostrar que conseguia. Eu que sempre tive namorados e
ela que sempre teve rapidinhas excitantes de uma noite só, quer dizer, algumas
de alguns minutos apenas. Isto me dói: saber que eu sofro com eles que trepam
somente para sentirem que estão fazendo alguma coisa errada, pois é única
sensação de vida excitante, realmente, vida, que conseguem ter. Pois são
covardes e querem que eu me sinta covarde também. Que eu me sinta covarde
exatamente usando o vestido mais lindo que eu vesti na vida. E eu me sinto,
porque tenho que cumprir meu papel. A questão é que ainda sou mais viva e
mergulho dentro dessa lembrança vergonhosa e vejo nitidamente o filme da
traição. Revejo cada detalhe: não esqueço de como eu sei que ele tira uma
calcinha, como ele enfiou desajeitadamente seu pau curto na buceta suja dela.
E de como o pau mole custava a subir. Isto porque, raios, eu gostava dele e não
do pau dele. Vejam só, como sou bondosa. Eu vejo este filme cafona, que tem
um só enredo: estão com pressa, ofegantes, entram num banheiro fedido,
enquanto todos lá fora só pensam em preparativos, eles preparam o coito, a foda
no banheiro fodidofedido e torcem para que alguém veja e denuncie esta cena
lamentável. Porque toda traição deve ser revelada para todo mundo, pra ser
legitimada e deixar o traído humilhado. Novamente eu assisto o filme, vejo como
são incompetentes. E olho a cena, olho muito, até gastar minhas pupilas, minhas
entranhas de ódio e de ressentimento. Eu sinto com todos os meus suoresporos,
minhas garras, minhas ancas de mulher grossa e que sofre. E vejo o filme até
minhas vistas ficarem embaralhadas. Aí, vejo que eles, vocês, não conseguem
chegar ao fim, fingem o gozo, como numa cena que é ensaiada superficialmente.

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Pois eu vejo muito, estou dentro de vocês e controlo a covardia que a minha
esperteza sugou de vocês. Vocês desistem, pois são péssimos neste papel.
Todos já sabem. E em qualquer outro. Na décima terceira vez que rebobino a
fita e assisto esse filme pornô de quinta, que simula um gozo falso e sem tesão,
eu fico enjoada de tanto clichê e desligo a imagem. Agora vocês me pedirão para
assistirem de novo, pois sem mim, eles não traem ninguém. São apenas dois
seres perdidos, inúteis. Pois o que me dói torna prazer, pois saibam que sou
agora a diretora desse filminho de merda. E eu mando vocês embora. Chega
dessa palhaçada. Eu já vi tudo que eu tinha que ver”. Aí a ferida aberta que antes
latejava, torna-se uma coceirinha desejável, irresistível. Sorrio irreversivelmente
com meus lábios de traidora: afinal, todos desejam que a mulher pisada do filme
sacuda a poeira e dê a volta por cima. The end. Or the happy end.

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Primeiro salto no estrangeiro

A primeira quebra da fronteira deu-se numa cidade suja e ao mesmo tempo


esplêndida, à beira-mar. Fica longe de tudo que conhecia, e o próprio tempo que
estive lá mudou minha forma de ver e agir. A cena mostra atores cobertos por
tinta e argila azul e óleo. O tempo é caloroso. Insuportável. Lembro-me da sede
que era compartilhada por mim e por eles. Eram seres que buscavam água em
uma das cidades mais turísticas desta nação de famílias esfomeadas e
pisoteadas. Exploradas pela falta d’água e pela falta de vergonha na cara. Por
isso azuis, por isso enlameados, por isso desesperados.

Neste lugar, encontros eram aleatórios e breves. Isso me fez tomar decisões
urgentes, por vezes precipitadas, mas certamente inevitáveis. Encontros que
mudaram a vida insignificante de escritor de best-sellers, apegado a
horizontalidades de discursos.Quando enxerguei tais seres sendo lançados nas
calçadas e bancos, parei estarrecido. Entraram em lojas, lojas e lojas e uma
barbearia masculina. Charutos e conversa de futebol. (esse cara barbudo,
sentado ao meu lado, que me levou tão à sério, que teve desprezo por mim,
achando-me tão estúpida).

Descobri que aqueles homens e mulheres exóticas, que perambulavam


livremente numa rua cheia de esconderijos e pessoas apressadas, eram
necessários para que o mundo parasse de jorrar hipocrisia o tempo todo. Sei
que um dos seres se parecia comigo, apesar de eu ser tão apegado à
introspeção e à inexpressividade. Sei que eu era diferente daquela atriz entregue
ao corpo a corpo do asfalto engordurando de óleo de churrasquinho de gato e
esgoto à céu aberto. Na verdade, sempre estive parado na rua. Basta
contemplar, resquícios, fomes e sede, pois dentro de mim corre um rio. Que jorra
e me afoga.

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Baixa guaicurus

Ontem:

Quando andava na rua, seu olhar me pegou. Fui entregar um lance quente para
um chapa na esquina da tupis com rio de janeiro. Ela, uma bunda redonda e
vendia tranqueira paraguaia como ninguém. Mas pouco tempo, o lugar estava
atravessado dos hômi. O tumulto era certo, mas eu não sabia direito o que tava
pegando. Vazei. Outro dia esbarro, com você, piranha gostosa. Não passa dessa
semana. Acho que ela se chama graça, um chegado meu me disse.

O menino joão batista fazia ponto todo fim de tarde na rua gonçalves dias com
bias fortes, jogando bolinha e bastão com fogo, que aprendeu lá no projeto do
bairro, que ensina essas coisas para gente como essa. Ele parece um
macaquinho desajeitado desses circos fudidos, que não têm mais razão de sê.
Sei que ele sente frio quando começa a dá oito da noite. É quando começa a
ronda pelos edifícios e parapeitos do centro. Fica perambulando até a rua
esvaziar. Procura coisas perto dos bueiros, nas lixeiras e nas caçambas depois
que as pessoas botaram o lixo pra fora. Leva tudo embora na mão mesmo.
Atravessa o viaduto floresta e some no escuro.

Ele, um filho da puta, passava o dia todo, próximo da praça da estação,


vendendo, e repassando crack misturado, uma porcaria de terceira. “Fachada”
era seu apelido, mas nunca conseguia saber seu nome. Mas tinha o rosto de
uma índia estampado nos ombros e várias marcas de facas pelo abdome, que
vi outro dia quando estava sem camisa. Hoje passou correndo, sabe lá porque,
mas coisa boa não deve ser, tenho certeza. Nem sei nada dele. É vagabundo,
minha vó sempre me diz pra não dá trela pr’esses... merda, lá vem ele.

Eu vi ontem duas gentes se agarrando no beco perto aqui de casa, mãe. Eles
guniam alto. Cala boca, menino e deixa ver o que você trouxe.

Ele ainda não passou pela minha banca. Filho da puta.

Hoje:

graça, joão e fachada, três nomes, três corpos não identificados no IML, à espera
de uma cova que não se seja rasa.

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Lá tá ele: O velho preto estacionado no corredor da choperia Bom Grill

Ao fundo com cara amarela, o bacaninha ri da cara preta dele. São 11 horas no
mercado barulhento da cidade e o garoto debocha da carranca dura do velho
esguio. De camisa branca encardida, regada à suor e cachaça do dia anterior,
na sua cabeça, está depositada uma boina de feltro marrom sintética. O bacana
não tem nada o que fazer na vida. Tá de folga e é sábado, finalmente. Chama o
velho uma, duas, três, quatro vezes. Aborrecido. Já o homem preto é firme no
silêncio e já não gasta nem palavra nem intenção com sujeitinho à toa. Tá ele lá:
estacionado no corredor. A apurrinhação do garoto faz ele lembrar da mulher,
que tá lá: no barraco dele, que ele levantou com as suas mãos. Ela, empaturrada
de varizes, gorduras, desprezo e anos gastos pelos filhos e pelas tentativas de
agradar o marido. Problema dela. A velha que se vire. Hoje eu vou chegar na
hora que me der na cachuleta. Ele balbucia, mordendo os sons, graves e
catarrentos na boca. Problema dele. Grita pro bacaninha que ficava tirando
zanga da cara dele. Dá finalmente a partida do corredor e passa colado ao
garoto, quase encostando nariz com nariz. E vai mordendo as palavras de frente
para a cara do menino. Problema seu guri. Eu vou embora na hora que me der
na vontade. Cambada de ratos. Com as duas pernas de varetas seculares,
marcha lento e fundo para dentro do boteco do seu Sebastião e masca ainda
mais as palavras. Desce a do dia, Bastião. Hoje eu vou embora na hora que me
der na cachuleta. “Póbi diabo”.

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Rotina de parque

45 minutos de parque.

Você tem obrigação de sentir prazer. Você tem o direito ao lazer, regado ao
algodão doce, cachorro-quente, maça-do-amor, pipoca, torresmo, picolé
derretido artificial e cerveja gelada vendida com preço superfaturado.

Agora rode no Twister (não se esqueça que é desaconselhável para gestantes


e epiléticos, pois afinal nem todos têm direito ao prazer) e namore na Ilha dos
amores.

O resto é terra, mato, água poluída (lei dos patos e peixes na luta pela
sobrevivência), asfalto e concreto misturado. Superfícies que não se tocam. Não
se olham. Não sentem prazer. Sustentam o som do bondinho, que é um
caminhãozinho disfarçado, e que passa chiando.

Chegue na grama onde o mundo se esparrama. Veja o casal sem descrições


românticas dorme e se ajeita num saco plástico, que vira um travesseiro. A
neném peladinha alça voos através da leve flexão dos seus joelhos, num balanço
do meu imaginário, levanta os braços ao redor e serpenteia aquele agora, o meu
olhar viciado e o prazer sufocado. A pequena celebra a natureza ignorantemente,
enquanto aqueles que estão sentados, reclamam do sol que incomoda sua pele
e suas vistas grossas.

É sua obrigação: seja feliz.

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A praça do poder

O que é isto? Vocês nascem, se trituram uns aos outros, e acham que toda essa
matança, é coisa de gente? Vocês acham que trazer dos mortos todos os dias
esta história de sangue, merda e mesquinharia vão fazer a culpa de cada um,
menor do que a minha? E vocês, não vão falar nada? Tá vendo? Na hora de
botar para fora o que devia na hora devida, ficam aí calados? Levanta daí! Faz
alguma coisa. Acabou isso aqui. Essa história cresce dentro da minha cabeça,
toda merda de dia, toma vida, e quer me convencer que tudo isso é normal?
Vocês acham que vão continuar a invadir a minha casa? Não, não. Se alguém
tem que acabar com este espetáculo, vou ser eu! Esta praça é, minha, Não
desses poderosos e perdedores, é minha, e de todos esses transeuntes
desavisados que passam por aqui e nem percebem que cada pedaço disso aqui,
foi levantado com carne, espírito e trabalho. A gente gosta de acreditar que essa
história de tragédia não existe: E corrupção de cada dia? E a mentira nossa de
cada dia, debaixo dos panos dos “quem indica”? E o desempregado que não tem
um trocado para comprar fralda pro seu recém-nascido e tem vergonha de voltar
para casa? E o velho, deficiente, esbarrado, que não tem vez na fila? E a
doméstica sem vale, sem carteira e sem dentadura na boca? E a criança, sem
infância? E o homem, sem direito de falar o que pensa? E mulher que tem
vergonha de ser o que é? E a falta do sono no fim do dia? Parece uma história
medíocre, não é mesmo? Que coisa isso, gente, essa coisa de fazer a coisa
certa? Parece uma coisa tão fácil e simples fazer a coisa certa...

Não sei dizer, que nem o que sai da sua cabeça. O que sai pela minha boca e
nasce aqui dentro e atravessa esse ar, que carrega as pressas, é tudo que tenho.
Se tenho pouco ou muito, não me interessa, porque não cada vez sei menos.
Sei que tá na hora do descanso: eles vão continuar a rondar as nossa cabeça.
Tem coisa ruim mesmo a esmo que fica, mesmo eu achando que vai mudar
alguma coisa, muda não, muda não. Tudo fica bem estacionado, parado nesse
chão, como essas cabeçona que fica me olhando a noite inteira. A única
diferença do invisível das coisa ruim, é que eu ainda sei o que é bom. Se isso
existe já num sei. Mas tem coisa que quer ficar. Essa vontade pequena de que
coisa boa pode resistir.

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Quando o concreto brigou com a árvore e a mulher abriu as grades

A árvore morava dentro do concreto. E ela, mulher parca, vivia escondida atrás
das grades da sua ausência. Ambas desejavam escorregar a vida inteira. De
uma certa maneira, uma concreta e outra gradeada, queriam se levar para
passear. Foi quando, elas viram umas botas, dançando no ar pesado das suas
vidinhas presas. A árvore então passou a brigar com o concreto e ela mulher
gradeada atravessou o ferro, que semeou o concreto, que a árvore se libertou.
Ela, magra e amarga, seguiu perdida pelas ruas e continuava parca. A árvore
esfomeada de andança ficou lá com a raiz arreganhada, sem poder se mexer.
Ficou apiada. A mulher, faminta de vontade amada, deslizou por quarteirões e,
ops, a vida viu ela. Olho vermelho e arregalado, deitou sobre o cachorro. Um
tempinho de encontro entre os dois. E a árvore tinha ficado lá, largada. Já o
cachorro olhou para ela como se ela fosse bicho, mas ela, não, olhou pro cão
como se ele fosse gente. Naquele instante, um homem barbudo e carnudo,
careca e calvo, olhou para ela como se ela fosse estranha. Parou e xuxou. Deu
fome nela de grade. Aí, viu a pele lisa em cima da cabeça do homem e deu uma
vontade de passar um blush naquela careca, porque um rouge faz toda a
diferença. Que frescura, gente, ela caiu em si. Lembrou de lembrar da árvore e
viu que era tarde demais e que para a árvore também era tarde demais. Queria
voltar, mas tava perdida. A árvore secou de arreganhada lá sozinha, o cão
babava, o homem fumava, gente, ele não sabe nem tragar e eu? Ops, a vida
escorregou nela. Fica aí agora e senta, tem coisa que tem jeito, tem outras que
ficam concretas mesmo.

49
Excesso da calçada

Esse excesso me leva à ausência, eu sei.

Acordei olhando o excesso caindo da minha escada. Desço devagar, trespasso


o encalço e passo agora o sinal vermelho, e exatamente, neste momento, vejo
minha sorte, todo corte, que se arrasta atrás de mim. Parece que nada acontece
de fato. Um lapso. De fato, percebo e não vejo. A ação se abre e previno um
tapa na minha cara. Vejo a cena adiante. Sento-me. Dou tempo para as imagens
se formarem. Seria amassado pelo acaso do imaginário. Vejo minha morte do
outro lado da rua. Quando pisar na calçada de lá. Me esperando. Me
espreitando. Embrulhado no miolo de um carro, embalado à vácuo. Uma massa
oleosa de ossos e carnes se comendo que ocupava minha alucinação me fez
andar em círculos. Engulo, destruo, disputo, fulo. Agora já vejo o excremento de
unha, porra, cabelo. Líquidos escondidos debaixo das peles e das vergonhas.
Olhos soltos, crânio rolante, pele dilacerada, tostada, membranas expostas,
perfurações, feridas, luxações e contusões originadas de objetos contundentes
e perfuro-cortantes de um veículo em alta velocidade. Bebi muito sim, num
passado próximo, mas agora estou melhor. Não foi este o mote para um acaso
estúpido. Este acaso foi atravessado pelo delírio lúcido do excesso. As sirenes
futuras estarão estalando no resto que sobrou da minha cabeça e carcaça. Sei
o excesso foi o responsável, apenas ele, que me levará do outro lado do fio
branco, no ponto de chegada com luz vermelha. Esse excesso me faz
estacionar. Olhar para os lados e para o chão. Para os pés que deslizam
ignorantemente pelo concreto preto viscoso, traiçoeiro. Dali para frente já sabia
de tudo: pequeno salto da estrada para as páginas preto e branco de um jornal
de quinta. E o excesso se cessa, sem direito à replay in slow motion. O que fica?
Fico me procurando neste silêncio vazio de uma escuridão invisível. Não me
acho, mas fico com uma: e se os homens na terra fossem felizes?

50
Homem de bem

Não sei dizer, só sei o que sai pela minha boca e nasce aqui dentro e atravessa
esse ar, que carrega todas as pressas e desconfianças do mundo, é tudo que
tenho. Se tenho pouco ou muito, não quero mais ter certeza, mas é o que vou
começar agora.

Ele caminhava a esmo e ruminava essas palavras, carregando seus jornais de


volta para casa.

Cometerei, comerei e estacionarei. Minhas cuecas úmidas, calças desbotadas e


camisas amareladas, meus vinis empoeirados penduradas atrás da geladeira
brastemp, que era de meu pai, meus livros sem notas de pé de páginas, limpos
de palavras de difícil acesso. Tudo que tenho é o que preciso?

Entra na sala e a mesa posta é solitária, mas ele tem mais o que fazer. Não
pensa e pensa. O tempo todo. Tem que ocupar a mesa com o jantar do dia.

Ovo frito, com banana e canela, é o jantar de hoje. Há muito o que se fazer hoje.

Quebra os dois ovos e se lembra da vergonha da derrota do dia, abre e corta as


bananas e se lembra da falta de argumentos e do seu orgulho ferido.

O senhor tem formação profissional ou superior?


Não.
O senhor tem experiência anterior na vaga requisitada?
Não.
O senhor já teve carteira assinada?
Não, senhor.
O senhor tem referência pessoal de amigos ou parentes?
Não.
O senhor tem número de PIS ou INSS?
Não.
O senhor tem casa própria?

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Não.
O senhor é casado?
Não.
Já foi casado?
Não.
O senhor tem filhos?
Sim, um.
E onde ele está?
Não sei ao certo. A mãe, o senhor sabe... quer dizer, é que não o vejo muito
nesta situação.

Os ovos atiram bolhas de gordura pelo ar, enquanto a banana se derrete


lentamente, tornando-se macia, suculenta e adocicada. Ele tira aquela mistura
do fogo ainda alto e a serve em um prato. Senta-se à mesa com a janta na sua
frente, acende seu cigarro e abre o jornal e o lê, enquanto espera a comida esfriar
um pouco.

Temos as informações necessárias, entraremos em contato assim que a vaga


desocupar. Obrigado.

Não vê outra alternativa, se não pensar no caso.

Daqui pra frente, vou fazer um curso de computação e juntar algum dinheiro. Se
isso é importante, então é tudo que tenho.

Mas para e continua olhando os ovos com banana no prato. Naquela hora, a
única coisa que quer é que as palavras saiam pela sua boca e que outra pessoa
o escutasse, mesmo. Por alguns instantes. Mas se volta ao jornal, e começa
novamente a rabiscar grandes bolas sobre os quadradinhos que escondem
qualquer emprego para ele.

52
Casa de passagem

Peço passagem, senhoras e senhores:


paragens ali e aqui
debaixo e mais ali adiante
peço passagem para passar
dou passagem para passear
e nego quando pisarem no meu calcanhar

vejo o que eu vejo:


lugar de divertir refletir
espaço do pensar e do agir
sem licença nem frescura
ou nove horas pra acabar

e do alto da minha cabeça o ponto de vista olha a volta e no retorno se solta


pelo ar

vejo o que você é


e busco o que eu desejo ser

sim! deixa a coisa assim:


se eu te der passagem
você me dá a sua?

ser você e eu mesmo, sem senão ou deixa pra ontem

mas deixa quieta a boêmia


(que mal ela faz?)
que agora é a hora da esquizofrênia
coletiva e cheia de passagens
e fronteiras sem eiras nem beiras

53
conhece-te o outro para conheceres o mundo inteiro
conhecer meu amigo é deixar as coisas acontecerem

mas deixa quieta a boêmia


que a hora é da cachaçaria!

vou cantar uma canção que não deixa de passar na minha cachuleta:
"era uma casa muito excitada com teto forte que balança
mas não cai".

54
Coisas vagabundas

Cravo vermelho na lapela.


Um cheiro no cangote bem dado.
Batom vermelho marcado na barba rala.
Caninha 51, cachaça salinas, limão e sal.
Arroz com ovo e banana.
Você roubou minha loucura.
Fumar o cigarro perfeito depois de uma bela feijoada.
Pise machucando com jeitinho esse coração que ainda é seu.
Moça bonita de cabelos negros e saia de xita caminhando na praia.
O que você não pede sorrindo que eu não faço chorando.
Café passado no coador de pano, rapadura e prosa fiada.
Um forró bem agarradinho, quando a pista já tá vazia.
Terno branco e sapato bicolor.
Desabotoar um vestido longo.
A cerveja no entardecer no meio duma semana qualquer.
Um acorde melancólico de uma viola ao luar.
Eu não sou cachorro não.
Rapaz de cabelos revoltos e peito nu no final da tarde.
Pés nus roçando debaixo da mesa do bar, enquanto o papo corre solto.
Beijo na mão, olho no olho, pele, suor, saliva e cabelos.
Eu quero um samba feito só pra mim.
Barracão de zinco de duas portas e três janelas.
Um colo de mulher bem bronzeado.
Mais pra frente que pára choque de caminhão.
Amor de cão, baba de cão.
Uma carta de despedida, com palavras recheadas de esperanças.
Uma noite não faz verão.
Chão de terra batida, com galinhas, porcos e plantas rasteiras.

55
Domingo à tarde, depois do almoço, pés pro ar.
O amanhecer numa padaria depois de uma longa noite de bebedeira.
O olhar sem pudor.
Minha escrita sem vergonha.
Meu vício, que ninguém tem nada a ver com isso.

56
São iguais

Um puto é unzinho que mexe contigo quando você está quieto.


Porque não tem nada melhor para fazer a não ser te acabar com seus sonhos.
Te chutar quando ninguém está olhando.
Um verdadeiro mau-caráter que pensa que está por cima da carne seca.
Um cafajeste é aquele que dorme com uma mulher e a deixa ir embora no meio
da noite fria. Ele merece morrer sozinho numa cama de hospital.
Uma mulher sem caráter é a que se deita com o primeiro homem que lhe dá trela
no meio da noite, porque é carente e não porque quer ter um amor. Ela merece
ir embora no frio.
Um egoísta é o cara que divide a conta com a garota e ainda tem a cara de pau
de pegar seu troquinho mixuruca. Unha de fome.
Um filho da puta é o cara que descarrega a mãe num asilo, enquanto se casa
com a mulherzinha em tons pastéis dos seus sonhos de margarina. Sujeitinho
depravado, iguais a todos os pais.
Um filho da puta é aquele que se deixa de ser seu amigo porque agora está
pegando sua ex-namorada, que antes ele detonava sem parar.
Uma filha da puta é aquela que depois de gozar, amarra seu sorriso de satisfação
porque tem medo de se entregar, porque não quer dar o braço a torcer.
Um invejoso é o irmão que te chantageia a cada vitória sua, porque não tem
competência de ter suas próprias coisas. E você com falsa condescendência faz
o que ele quer.
Fracassado é aquele que projeta toda sua vida num futuro idealizado e esquece
de viver este presente mesquinho, que nem somos capazes de controlar.
Infeliz é o menino no meio da noite que não tem para onde ir, espreita o
desavisado para roubá-lo, filho da puta porque existe, tem fome e atrapalha o
trânsito na avenida principal. A falta do olhar generoso é o primeiro passo da
barbárie.
Me perco entre infinitos filhos da puta.
Não sei se eu mesmo estou me tornando um deles.
Na verdade, filho da puta é este narrador que acha que tem o direito de julgar e
apontar as atitudes dos outros à torto e à direita.
Filhas e filhos da puta, como eu, costumam ser irresistíveis, necessários, mas
nem por isso, deixam de ser hipócritas. Menos desprezíveis. Menos perigosos.
São todos iguais. Você vê todos os dias.

57
Chega a hora

Chega uma hora que é preciso dizer algumas coisas sinceramente verdadeiras,
que ficam guardadas aqui dentro ou dentro de você. É quando chega a hora da
partida para algum lugar que você sempre teve medo de ir ou mesmo de voltar,
mas que, beirando uma perversão íntima, tem quase uma obrigação escusa de
tomar tal atitude. É quando chega a hora de alguém que você já tocou várias
vezes e insuflou em você sentimentos desconhecidos, ir embora de vez e para
sempre. Graças a deus. Porque está passando da hora mesmo deste estranho
ir embora. Você não pode mais ficar recebendo àquele hóspede inoportuno. Tá
na hora de ficar sozinho.
Chega o momento que você deve decidir se dobra à direita ou à esquerda. Se
gosta de homem ou de mulher. Se gosta dos dois, ou ainda não gosta de nenhum
deles. Chega uma hora que você deve decidir se gosta de vermelho ou de
morango.
Chega o momento na vida de um ser humano, que ainda não perdeu a
capacidade de se emocionar com o sono de um bebê, que é preciso deixar de
traçar objetivos para um futuro distante. Para àqueles que sempre os teve em
seu trajeto, chegou a hora de perdê-los um pouco ou vez.
Estamos aqui. Perdemos, contudo, nossas graças, próprias e alheias.
Esquecemos o mais importante: Estamos integrados pela desgraça humana. E
chegou nossa hora de dizer adeus e continuar seguindo em outra direção. Tudo
se resume: Quando chega este momento? Chega ou já passou? E quando tudo
muda de vez? Uma piscada e tudo muda frente aos nossos olhos?
Chega a hora que nada dá certo. Porque nada muda mesmo. Porque você
espera que algo aconteça, é óbvio que todos desejam que algo extraordinário
em suas nossas vidas miseráveis. Porém, você espera sem saber o que pode
vir e acha isso a maior coisa da vida. Você se sente invencível. Coitado.
Gosto mesmo é da noção de não ter para aonde ir.
Esta é a sensação primeira.
É por isso que estamos aqui. Já nascemos tortos, com narizes pintados, excesso
de gordura trans e deformações múltiplas. Se é que tais coisas existem ou são
coisas que botam na sua cabeça.
Chegou a hora de ficar parado, sem dor, sem pena, sem punição, sem remorso.
Você não tem para onde ir.
A partir de agora, estamos preparados para qualquer espécie de tolice humana.

58
Nem me vê

Todos os dias eu passo por aqui: esse buraco escuro e fundo do canto mais
escondido da cidade, que ninguém nunca soube, e nem vai saber se o sol bate
ou se a chuva cai ou mesmo se a água encanada um dia já passou por aqui.
Tem aqui um jardim cinza, cheio de lixos abertos. Os restos daqui, que vocês
estão vendo: todos são seus, mas também meus e pode deixar que até os ratos
precisam de comer e as baratas de ser comidas. Eu como o que me sobra.
Tudo aqui são necessários: palito, cigarros, papel higiênico, da boca, do cu, da
carne. E mais cigarros. Bom que o tempo passa, e eu tampouco. A noite me
deixou assim escura e funda. Não me cretique. Ficou assim um óh: um
pratocheioredondoevazio.
E isso aqui, ó, não ontem nem hoje, mas nunca saram. Essa aqui tinha doze
anos e deixou a irmã cair.
Não me critique. Só falo o que vi. E você nem me vê, aqui, todo dia. Até já me
pisaram. Foi devagar. Mas pisaram.
Diz que ficou curioso? Tem gente que gosta de ver desgraça alheia, eu já vi. E
muita. E meu olho aqui óh já viu monstro que mora dos meus lado. E se fosse
inveja, me pergunta? Não, vergonha, sem ter na cara, porque é bom olhar, né.
Olha quanto pode. Que as baratas comem o resto.
Aqui todo mundo decide por mim, e desse lado daqui não vejo o que acontece.
Isso daqui: asco, esse aqui: nojo, e esse tesão.
Então eu abro pelas beiradas de ferro, as latas de milho, fora da validade e como
tudo uma a uma.
Agora pode me falar, sei dizer uma ou duas razão e sou capaz, apesar disso
aqui.
Quer dizer, me pergunta se eu tenho fome? Na, na, na, na, não, resignação,
como a sobra.
Arrumo tudo de madrugada e o coloco pelo avesso de manhã. É assim que
sempre acontece. Os home chega. As putas chega, depois dos barulhos, fico
assim, resto de cada saco e agora não tenho mais tempo. Tenho que tarefar.
Cada lixo no seu lugar: o que não dá volta para o lugar donde veio, e o que dá,
óh, para minha boca.
Agora, você me vê?

59
A vendedora de rua

A ela no dia da passagem de seus anos e às dores físicas desta merda de vida
contemporânea.

Quando já vi era tarde demais. Que essa rotina sempre tirava ela do controle
habitual que se regrava todo dia. Mas se treinou sozinha a mastigar e encher a
pança quando dava, a fumar seu cigarro quando o filho não estava perto, para
não dar explicações e curtir sozinha sua condição medíocre. Arrumava as
tranqueiras e pegava o ônibus das 5. Ela caminhava com dificuldade até seu
ponto habitual, que era na joão bonifácio com são sebastião, e ali restava o dia
inteiro sentada e impassível, não precisava de fazer muito. Os DVD se
mostravam sozinhos e parava quem queria, não incomodava ninguém e
ninguém dali perto comerciantes da esquina ou clientes apressados sabiam seu
nome. Ela era como você.

Naquele momento, eu queria cuidá-la com o carinho de quem se cuida da minha


própria mãe, levá-la pela mão, e pagar um café com churro para ela, mas me
sentia um covarde, pessoa estrangeira e intrometida, por saber que não sou
nada e não mudarei nada na vida dela. Sabia desde sempre que ninguém muda
a vida de ninguém, me restei a continuar nesse passo parco da minha caminhada
inútil de encontrar o meu extraordinário de cada dia. Só podia inscrevê-la aqui.

Só às 2 da tarde, abria sua marmita, naquela histeria coletiva natalina, e


mordiaeengolia aquele arrozcomfeijãoeliguiça unguentado pelo mormaço da
cidade. Não deixava de olhar os homens que passavam, pois tinha resquícios
de desejo embaixo dela, que nunca sarariam, o que se via era ainda uma grande
lata de vergonha pela própria gordurasaturada do ócio que os anos lhe legou por
contravontade. Eu sei que ás 6 da tarde vai chegar, sempre diz ela mesma,
pensando na novelaconsolo das 9 da noite. Mas as horas emplastadas custavam
a passar, os suores, a gastrite do seu estômago, a falta do filho durante o dia
dilatava sua espera. Mas ela era grossaetesa da sua própria humanidade e não
via nada além daquela esquina. Os dias não eram escorridos, mas injetados da
grande diferença que ela fazia na minha vida, ela sempre teria que estar lá, pois
em nenhum outro lugar, eu poderia trombar com tudo aquilo que fugimos: o
deslocamento do pavor de nos tornarmos descartáveis.

Mas hoje, choveu, choveu melado, antes das 6 da tarde e os DVDs foram
ensopados todos, em segundos e teve ali o seu prejuízo. Pegou o ônibus mais
lotado do ano, e no trajeto, pensava que quando chegasse em casa, o filho ia
criticá-la pela moleza e falta iniciativa, por aquela sacola do paraguai que virou
uma vitamina de plásticos, papéis de qualidade duvidosa e CDs carcomidos. Ela
não jantaria e se restaria apenas na frente da telinha chiada, e se entregaria às
baixarias sedutoras da mulher rica da novela. A única coisa que queria poder
dizer era: "Você me paga, você não sabe com quem está falando"..., daria um
sorriso internoerouco e dormiria feliz, com a sensação de uma vida
plenarealizada e foi assim que deu o sinal no ônibus para descer.

60
Dia de pagamento

23:00. Me diga a verdade: o que é uma puta, sem seu batom vermelho? Aqui
ama-se por um copo de qualquer coisa, pedaço de carne requentada na marmita,
por um afago mal dado, muita picardia, e pouco contato. No entanto, eu posso
me lembrar do desprezo que me lambe o orgulho da minha bunda. Tudo que é
vivo morre e se morre um dia vai pra debaixo da terra.

23:01. Chega de papo furado, hoje é dia de pagamento. O primeiro chega. Não
gosta de trepar com a esposinha e vem pra cá, pra ficar me lambendo com os
olhos, né? Mesmo porque eu nem preciso gastar minha buceta com seu pau
mole e muito menos sentir o seu cheiro engordurado e acre na minha pele e você
ainda me paga só para ficar aí me vendo, babaca... me fala, sinceramente, quem
é o desesperado nesta história: eu ou você? Pelo menos finjo que gosto disso
tudo para viver, e você, que acredita mesmo neste draminha de quinta
categoria... E o melhor é que eu ganho em cima da sua carência velada de
macho fracassado. Me responde, benzinho: quem é a cadela nesta história?
Quem come quem, homenzinho solitário? É o homem ou a mulher?

23:44, encara o próximo cliente. Chega mais titio... A hora 50, duas horas 70,
vamos para o reservado? Automaticamente e ironicamente narra a trepa com o
cara. Mas ele veio, meio vacilão, mas veio porque tava precisado, custou a
endurecer o coitado, a idade chega para todos um dia. 23:50, e eu: ai! me pega,
gostoso, garanhão, nossa como o seu é grande, vai, vai, vai! 23:55, serviço feito,
grana na mão, um beijo de longe, e, valeu, bonito, que o dia não terminou, fui.

00:15, de volta ao muquifo, botecomotel, tomo outra dose, quer dizer algumas
doses a mais...

00:20: este só gosta de ver, coloca a música, meu querido! Dança privativa é 20
a mais, pagamento adiantado. Obrigada, meu amor! Quer uma cadelinha, é?
Então vamos lá, senta e se segura: au-au!

1:00 da manhã. Ele chegou. Sabia que vinha. Nunca me deixou na mão. Ele é o
que poderíamos chamar de um legítimo macho declarado, e delicadeza nunca
foi o seu melhor. Às vezes saia roxa ou bem dolorida, mas sempre me pagava
um extra. E eu sempre fingi bem seus joguinhos hipócritas. Eu já sabia há algum
tempo que meu cliente fiel tinha mulher, filhos, e uma casa perfeita, daquelas de
propaganda de margarina e sabão em pó, onde todos têm dentes brancos, são

61
engomados e terrivelmente felizes. Já faz um tempo que sua patroa veio aqui,
gritando, aos quatro ventos, que queria ver a puta. História chata, mesmo final.

01:58, uma dose. As pessoas me olham, sempre como se nunca estivesse me


vendo, entra um homem que se destaca no meio daquele pardieiro já
esfumaçado e exalando alcóol barato.

02:04, ele senta-se na minha mesa: bem apessoado, me pergunto o que ele está
fazendo ali, bem na minha frente. Ele exala um perfume de garoto que quase se
tornou um homem, meio tímido, meio desnorteado, puxa papo comigo: Posso te
fazer uma pergunta? Eu digo: Você já fez uma, querido, duas perguntas, o preço
já sobe...Ele sorriu com a boca inteira cheia de dentes brancos, numa
naturalidade quase irritante, pois aquilo me estremeceu: lá dentro meus ais foram
ficando cada vez mais agitados, onde outrora estavam adormecidos. Naquele
instante, algo queria sair pela minha boca afora, mas a confusão era tanta que
eu não conseguia nem nomear o que sentia. Pode perguntar, sou toda sua, meu
bem, tudo bem. Até mesmo porque queria ver se o cara ia comprar a mercadoria
ou se ia ficar só de lero-lero. Mas como eu tava num bom dia, e sabia que era
dia de pagamento, deixei o pobre babar algumas palavras... Me disse na cara
dura: você gosta desse trabalho? Eu disse: E o que você tem a ver com isso?
Você quer fuder comigo ou com minha carteira de trabalho? E o ensebado
continuava: Não sente vontade de sair disso, não? Poxa, tem tanto trabalho no
mundo que não precisar tirar a roupa! Já pela sua figura, dá pra ver que você
tem até um corpo bonito. Fiquei muito surpresa e respondi que até sentia, mas
qual o problema de tirar a roupa? E ele: acho que você ficaria bem melhor
sempre vestida e fora desse trabalho! Aquilo tinha cabimento? A minha a vida é
bacana não faço nada de errado, nunca atraso minhas contas, e cuido muito
bem da minha saúde... Eu quero que você me deixe trabalhar em paz, oh, seu
engomadinho filhodaputa, sabia que você me fez perder 10 minutos do meu
tempo. O último que me prometeu me tirar da zona, sabe o que aconteceu? Me
bateu tanto na cabeça, que fui acordar numa merda de hospital público, me
expulsou da minha própria casa, e até ficou com meu radinho de pilha. Agora
não divido nada com ninguém... Você acha o quê? Que eu dou de graça, a única
mercadoria que tenho pra vender, neném? Sai fora. Vaza!
Filhodumacachorramanca... E foi-se num estalo porta afora, choramingando
pitanga. Vê se eu posso com isso? Eu nesse muquifo e o camarada quer saber
o que eu quero?

02:55. Chega mais um, meu cliente executivo discretíssimo chegou e é ele quem
diz, secamente: Vamos para o reservado?

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05:02. Eu poderia dizer que sou uma infeliz para acalmar a sensação incômoda
no coração dos que tem vergonha de saber que eu existo. Mas não, desculpem-
me se a minha buceta não se encaixa no mundo. Pois eu encaixo ela bem onde
quero e com quem quero. Convenhamos: não há nada mais mais tolo do que
uma puta sentimental. (Se mudar de ideia, estou aqui a noite inteira, de olho em
você).

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No meio da rua estrangeira

Porque há não como voltar, nem como ir além.

Estou lá, mas não quero voltar, nem ficar aqui. Aliás, cheguei aqui, do outro lado
daquele lugar, e já me perdi diversas vezes. Perdi o caminho de volta para casa.
Até que fiz pouso numa ilha deserta, porque era tudo que queria uma gota de
sombra e agua fresca, com coqueiros, caranguejos e falta de sorrisos.
Aqui, mulheres e homens avermelhados aprendem a cultivar o orgulho pequeno
de roer a mesma carne embolorada, dura e sem sabor por vários anos a fio.
Murmuram para dentro o refrão: farinha pouca, meu pirão primeiro. Quem morde
primeiro, ganha o reino dos céus. De tempos em tempos, todos aqui se reúnem
para realizar o linchamento mudo das catástrofes públicas, que obriga que cada
habitante exponha seu medo e se deixe ser julgado cruelmente por aqueles que
nunca viu.
No princípio, acreditava que era preciso mais diálogo, e mãos dadas, mas depois
de perder um dedo na última lua cheia, começo achar melhor fortificar as grades
das janelas do fundo de minha casa para que nenhum deles queiram vir comer
meus olhos tão apetitosos. De noite, tranco três portas e passo cadeados em
cada batente. E a paisagem azul, acinzentou, olho duro, olho longe, mas a pupila
dilatou e não consigo retroceder para a paisagem macia e aquoso que me
deliciava quando cheguei.
Do meio da estrada para trás, não me lembro das cidades por onde passei e
nem de como cheguei até aqui. Perdi mapas, sofás, olheiras, mas as contas só
aumentaram, mesmo sem casa, as contas iam sempre para onde eu ia.
Ainda guardo algumas memórias riscadas e embriagadas de minha cidade
cifrada, mas da última vez que voltei lá, tinham matado à paulada meu cão e
sobrou no meio da gosma envolta nos ossos lascados, a medalhinha com seu
nome gravado: eros.
A casa vendida no festival do ano, minha casa, minha vida, tinha sido demolida
para dar espaço a um pequeno lotezinho, que se aglutinou no meio da nova
avenida, que move ininterrupta a mais nova frota urbana de transporte classe
chique e eficiente da cidade. Sim, tudo ficou bem melhor assim. Melhor as vias,
do que aqueles muquifos atrapalhando a paisagem montada pelo prefeito. Bem
eficiente, e nada ficou no caminho. Nem bicho, nem gente e nem muros caindo.
A família se separou. O pai morreu de câncer e cirrose, a mãe foi para o asilo
para não dar trabalho para ninguém. O irmão como não sabia o que fazer
arrumou uma garota rica para que pudesse o sustentar e que pudesse trai-la,
quando quisesse, sem questioná-lo.
Eu queria voltar para que tudo fosse como antes. Mas me dei conta de que nunca
havia saído do lugar e de que na verdade havia uma corrente de ferro presa ao

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meu pé e atracada ao pé da velha estante de madeira, na qual eu via
repetidamente as velhas imagens de viagens que eu nunca faria, percebi que
era eu naquela sala, esquecida pela história. A rua não era estrangeira, apenas
nunca existira.

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Peça-me um refrão
[que valha a pena repetir]

Nota da autora: Esta peça é a oitava versão do roteiro cênico, que teve o nome
inicial de: “Dá licença, se não eu grito!”, em 2012, registrado na Biblioteca
Nacional. A peça estreou com a Companhia Boccaccione no Centro Cultural
Palace, em 2013, com a minha direção, em Ribeirão Preto/SP. Foi composta
para espaços não-convencionais de encenação ou para ocupação de um antigo
edifício ou casa. O texto foi revisado em 2016, para publicação e recebeu o nome
de “Peça-me refrão [que valha a pena repetir].

[Rusgas de uma dramaturga fragmentada ou em busca de um gênero


contemporâneo ou a ruptura dele de vez]
Você, leitorespectador pode chamar isso também de:
Drama épico fragmentado de afetos que gritam
Histórias pós-dramáticas de figuras gritantes despejadas ou
Drama épico de cada dia com partes cantadas, ditas e gritadas ou
Tragidrama de gritos e de ironias necessárias ou
Peça me o silêncio gritante dos vizinhos apenas ou
Épico de gritos e silêncios, com traços de Alice no país das maravilhas, com
um tom retrô e suburbano ou
Saídas, despejos e uma dose de vodka com limão ou
Peça sobre bestas sem ferraduras.

Figuras-pessoas por ordem de entrada na cena:

(Nada sobre mim ou Operadoras da cena mudas 1 – Tom Claro)


Muleke (tom amarelo vivo, com traços verdes)
Cara do Tuíter (tom azul vivo)
Rapaz das fotos (tom preto, traços brancos)
Dona Marga – (tom roxo)
Moça do Jazz (tom cor de rosa choque e vermelho sangue)
Garota ausente, na tela – (tom vermelho também)
Dito – (tom cinza e verde musgo)
Cético – (tom vinho escuro)

Cena 1: Na entrada do prédio, o muleke

Operadoras de cena falam para as pessoas esperarem lá fora, se precisarem de


alguma coisa é só chamá-las.

- Por favor, esperem fora do prédio.


- já vamos começar.
- desliguem seus celulares.
1
NADA SOBRE MIM - OPERADORAS DA CENA: são bilheteiras, arrumadeiras, garçonetes,
secretárias, são funcionais, além de levar os espectadores para lá e pra cá, servem os
espectadores, atravessam a cena, colocam músicas, operam som-luz-vídeo, os atores podem
chamá-las, pedirem coisas para elas, elas podem virar mesas, cabideiros, são formas animadas
mudas de funcionalidade, quase máquinas, objetos de ironia de nós mesmos, vestidas como
um Marlyn Monroe tupiniquim carnavalizada, mas têm uma fita adesiva preta na boca, não
falam nada... ou falarão...

66
- ou não.
- se quiserem sair
- é só nos chamar.
- dito isso
- dá licença.

Cada uma pega uma fita adesiva e prega na boca da outra, entram, fecham a
porta. Música lá de dentro: um jazz toca. Lá fora, Muleke vem da rua; ele anuncia
tranqueiras, como num rap, ele trabalha no prédio; vende tudo; é o Faz-Tudo,
mora na favela, mas durante a semana dorme no quartinho do prédio.

MULEKE
fala sem pausas, ritmo constante, tem um radinho móvel que solta um som...
vem de fones amarelos nos ouvidos, mas indiretamente, relaciona-se com a
música de Dave Brubeck (uma sugestão).
Cueca samba canção sem vergonha na cara, cueca box sou o foda da parada,
cueca de algodão fica bem quentinho aqui dentro, cueca de lycra para um cara
flexível, cueca de microfibra com brinde jontex, pro homem que sabe se cuidar;
e mais calcinha fiu-fiu sou gatinha, calcinha preta a safadinha, calcinha vermelha
te quero mais, calcinha de bolinhas amarelas sou bem comportada, de renda
aqui mora o perigo, da bandeira do Brasil, pré-copa do mundo que serve também
para as olimpíadas, calcinhas do tipo pp, p, m, g, nos formatos: comestíveis, asa
delta, com frente, sem frente, com aberturas variadas, cavadas, plus size, plus
plus size, nas cores laranja, laranja rosa, cor da pele e rosa bebê; e mais radinho,
de pilha, recarregável, mp3, mp4, mp5, mp6, fone de ouvido, DVDs, blu-ray,
lançamentos: luan santana, vc me deixa doido, xuxa baixinhos edição 21 a festa
é sua remasterizado, roberto carlos especial de natal antes tarde do que nunca
e também sou delas sempre delas em promoção e mais brinquedos modernos,
interativos, educativos para sua criança ser mais feliz e mais calminha, e mais
modem pré, pós, TV a cabo pré paga, celular 2, 3, 4 e até 5 chips, promoção
leve dois celulares e leve um chip a sua escolha e carregador, com uma recarga
de 12, e mais vendo, revendo, consigno conexão, banda larga 3G e 3G e meia
a mais moderna, rápida para vc...

Ele pode cortar o texto antes no momento que chegar na porta do edifício.

Eu sou daqui, o contratado.

Repete cinco vezes para cada espectador, feliz, apertando a mão de cada um,
mostrando satisfação por trabalhar ali. Sorrizão parado. Pausa.

Servimos bem para servir sempre, diz o manual...

Sorrizão parado. Pausa. Diz.

Dá licença, gente vitaminada, que o show já vai começar, a mocinha delícia


cremosa com gosto de cupcake de framboesa geladinha picante já vem... podem
se sentar, o banquinho serve para isso!

Sorrizão parado. Pausa.

67
Fim da cena 1.

Continua com o texto de cima... Entra pela porta de vidro. Desaparece. Seu som
ao longe, com as repetições.

Cena 2. Eles tentam se conectar

Dentro do prédio do 1º andar, sai Moça do Jazz. Recebe o público como se fosse
uma recepcionista de um hotel ou de um grande evento-reunião. É simpática,
mas não muito. Chega com uma proposta extravagante e ridícula a cada dia ou
apenas toca. Saia justa e camisa de seda de “petit pois”, de coque, cor de rosa
choque, demodê... Como se já falasse consigo mesma... História da menina com
papel higiênico ou eu queria tocar clarinete, mas não ensaiei.

MOÇA DO JAZZ

Dá licença... eu justamente vinha falando comigo mesma: esta sou eu, e, além
dessa máxima extremamente óbvia, vinha pensando que hoje as coisas irão se
resolver, isso não é ótimo?
Venham comigo, me sigam.
O público entra no prédio. No chão, TV que o rapaz utilizará.

Muleke entra e põe cartaz em painel.

algumas coisas já apontam para os gritos do lugar


eles tentam
se conectar
muito.

Fiquem à vontade e ocupem todo o salão.


Saída devagar da música.

Da forma mais confortável possível, se isso for possível, é lógico. Aproveitem


nem é todo mundo que pode entrar aqui. Temos várias áreas interditadas por
ordem da lei. Que nos rege, sem exceção. Sim, eu sei que este lugar não parece
inspirar acolhimento... (ela desliga o som) e não inspira mesmo, mas não nos
deixemos ser atraídos pelas aparências... fiquem à vontade... sintam-se em
casa: “este é um bom lugar para se viver, trabalhar, e criar lagartas invisíveis...”.
Vocês não concordam? Elas podem ser ótimas amigas... as lagartas... depois
serão borboletas, cheias de azuis, ou não... bonito isso... mas por favor, não se
sentem,

Pausa.

Muleke entra e põe cartaz em painel (ou pode ser vídeo):

mas isso não se aplica aos cadeirantes,

68
idosos
gestantes
e pessoas que gostam de enxergar outras perspectivas
as exceções
podem nos salvar.
ou não.

não encostem na parede e de preferência não suem, ah, nem mexam com
comidas, tem pessoas por aqui que acham isso muito feio. Ah, tem gente aqui
que é estranha mesmo, não se constranjam, é que a paulatina ausência
disseminada por esses corredores foi se tornando quase um vício, ou melhor,
um hábito secular entranhado nos ossos e nos ânimos de cada morador, não é
má vontade deles, não, talvez seja a falta de dias azuis e das pitadas de
gerânios... ah, que tola eu sou... eu tinha me esquecido dos gerânios para o
abrandamento dos buracos daqui e ali...
Ela delira um pouco, tem prazer nisso. Enfática. Muleke passando e dizendo
para os espectadores:

MULEKE
Não há motivos para alardes, afinal apenas 13 lagartas morreram esta
madrugada, mas o grosso da limpeza já foi feito, por mim, é claro. Mas tenho
que confessar que a paulatina falta de crianças brincando pelos corredores anda
preocupando os moradores. Está quase tudo pronto, rosinha.

Ele sai por uma porta. Pausa olha para os espectadores.


MOÇA DO JAZZ

Dito isso, dá licença...


Ela entra, e vai para uma das portas internas do salão.

CARA DO TUÍTER

Aparece nas escadas, descendo, vestido com camiseta do super-man e uma


jaqueta de couro sintético azul vivo. Andando de um lado para outro

www.senhorasesenhores.com.br tenho uma grande responsabilidade, pois


custamos muito para chegar até aqui, ou seja, chegamos até este dia, e apesar
de ser um canalha,...

se promovendo... como numa propaganda publicitária...

sim, o canalha, sim, o irresistível que sou e por isso mesmo sou o único capaz
de ser descarado o suficiente para dizer a verdade, ou verdades, no plural... pois
nada é uma única coisa só e uma coisa pode conter várias partículas vivas e
mutantes... Desculpe-me. Me perco dentro dessa navegação estelar de
pensamentos. Abro o link, conecte-se comigo: hoje temos que tomar uma
69
decisão, e apesar todos sermos diferentes, e esta ser nossa particularidade,
temos que pegar as diferenças e uniformizá-las todas numa coisa só. Pegaram
a ideia?

Voltando e passando para outra porta. Muleke trazendo um carrinho de bebidas


o serve, enquanto fala. Rompendo.

MOÇA DO JAZZ
Acho que ninguém entendeu nada. Ninguém quer saber desse blá-blá-blá... vai
de novo, você consegue.

Ela sai. Ele sobe as escadas novamente e recomeça:

CARA DO TUÍTER
Linque-se comigo! (como um político) O que é melhor? Viver para todo sempre
no mesmo lugar que você nasceu? Lugar esse que você foi assaltado pela
primeira vez, engoliu sua primeira dívida, aprendeu a andar de bicicleta, sem
rodinha, e teve, no momento mais constrangedor de toda sua vida, sua primeira
ereção, exatamente no primeiro dia de aula. Ou talvez seja melhor largar tudo, e
fazer da condição estrangeiro seu único aliado numa fuga no qual o único
predador seja você mesmo? O que é melhor: viver a experiência da sua primeira
enchente, incêndio ou arrastão na sua própria cidade ou degustar as enchentes
de outras terras: so so so far away daqui? Ou enfrentar aquilo que te incomoda
e sempre morou ao seu lado? E ainda: aceitar que você perdeu aquilo que nunca
teve?

Dito aparece numa porta. Dito olha para espectadores. Diz. Com desencanto.

DITO
Isso não existe!

CARA DO TUÍTER
Quem disse isso?

DITO
Eu!

CARA DO TUÍTER

Eu quem?

DITO
Eu. Eu existo, merda. Me olha.

Retorna... o Cara, casual... subindo as escadas novamente.

CARA DO TUÍTER
Bom, já que ninguém falou nada: eu já tomei minha decisão...

Dito sai e fecha a porta.

70
CARA DO TUÍTER
Peraí, que eu tenho umas tuitadas, adicionadas, postagens, cutucadas para dar
antes do fim de tudo isso... afinal sou um cara curtido na rede... vocês bem
devem saber...

risinho canalha...

Música.

Entra Rapaz. Está aflito internamente. Vem de Smoking, ainda com a gravata
solta e terno com botões soltos, como se fosse a uma festa, que contrasta com
Mochila pesada, que lembra a de um militar, botas também como de um militar.
Rapaz com filmadora na mão entra em cena, conecta o cabo, liga a TV. As fotos
são ampliadas pela TV. Mostra fotos de pessoas das ruas e desconhecidas,
misturadas a fotos de momentos “happy-end” dele e da família dele.

RAPAZ DAS FOTOS

Este sou eu, no meu primeiro fora, ela me disse que eu era alto demais para ela,
este sou eu, na minha, quer dizer, no meu primeiro porre, eu não sabia que era
possível conseguir vomitar todo o meu suco gástrico e ainda querer continuar
bebendo... aqui sou eu na minha primeira multa, este sou eu velando ela,
minha..., minha, minha, minha, minha...

Frase solta é repetida lá de dentro, três vezes, em volumes e intensidades


crescentes:

A minha voz pode te deixar em carne viva...

A minha voz pode te deixar em carne viva...

A minha voz pode te deixar em carne viva!

Rapaz das Fotos passa a foto... muda de tom, se refaz.

RAPAZ DAS FOTOS


Este sou eu, eu, eu sempre achei que não viveria muito, ou melhor, achava que
seria capaz de sair por ai, como o cara que conseguiu atravessar todos os países
do mundo e voltar vivo, com um meio sorriso no rosto... eu achava que seria um
cara, “o” cara, mas sou apenas um rapaz, e fiquei assim, e dá licença, se não eu
fico rouco, ou pior, eu posso fazer algo que vocês não vão gostar nada, nada, eu
já ouvi isso? Não.

Música cessa. Entra Dito em frente ao vídeo, como se visse uma TV. Moça liga
o projetor. Entra vídeo da Garota ausente.
GAROTA AUSENTE
Dá licença, se não eu posso fazer algo que você não vai gostar nada, nada... Eu
tenho um problema: Eu não consigo olhar diretamente pra você. Quer dizer, não
posso mais. Mas não é automatismo não, é medo mesmo, paúra de gente... Eu
71
até queria estar aí, mas eu não consigo: essa coisa toda de realidade acabou
me deixando assim, deletada. Mas calma, que eu sei onde quero chegar. E sei
que vocês também vão chegar a algum lugar. Muitos dos meus hábitos e
repetições são brasas de ferro quente ou marcas de digitais que me foram
depositadas. Nascemos inevitavelmente no outro e o outro em nós, criamos o
outro e o outro a nós, e continuamos existindo após o final de cada encontro,
mesmo que só pra nós mesmos. Tá. Era mais simples chegar onde eu queria.
Mas no fim das contas a coisa toda é uma só, e eis o espanto: os laços morrem
de velhos. Eu sou essa pessoa, você é essa pessoa, e eu sinto falta da falta do
nosso encontro. Talvez nunca chegue onde queria chegar.

RAPAZ DAS FOTOS


Minhas ideias são desalmadas e inflamáveis, como os nossos gazes, que
insistem em furar a camada de ozônio, tudo está por um fio, não sou capaz de
compor nenhum refrão que valha a pena repetir.

DITO
Era agora? Eu entro? Isso tá certo? Desse jeito? Assim? Sem introduções
piegas? Sem uma grande cena. É.

Olha pros lados espera alguma reação...

Sim. É agora. Agora já foi, bom... Desculpe-me: eu não existo, logo vocês não
me veem, logo, eu não penso, logo não valho a pena... porém, eu insisto em
estar aqui, ainda não me contaram o desfecho de tudo isso, eu aguardo...

Pausa.

Mas vocês me veem. Sim, é possível. Eu sabia.

Pausa.

Mas talvez nunca chegue onde quero chegar. A concretude é um desejo ímpar
hoje em dia. Esse mundo que jorra não tem como conter.

Mudança de foco para o Rapaz. Fica Dito na cena olhando rapaz.

RAPAZ DAS FOTOS


Eu poderia dizer a vocês que nesta história tenho uma função extraordinária e
tive coragem de atravessar a porta da minha casa, em tempo, e ganhar o mundo
lá fora com minhas próprias pernas, mas não. Eu sei que desde sempre o cavalo
que não aprende a cavalgar em tempo, fica entrevado e sem valor de venda no
mercado. A crise é uma tatuagem de mau gosto. Talvez este seja este o refrão
que valha a pena repetir...
Moça põe a Música clássica. Pausa. Aparece, Dona Marga. Fica Rapaz na cena
olhando para dona Marga.

DONA MARGA

72
Estamos no dia anterior à nossa saída. Bom, esta sou eu: uma pessoa como
vocês, e como eles. Tenho que esclarecer que quando algo está dando errado,
sou eu a requisitada para resolver aquilo que ninguém quer, pois em toda história
tem sempre alguém que paga o pato... Vamos às boas novas, ou não... Como
as regras não são cumpridas, e estou cheia de reclamações infindas, desculpem
as palavras curiosamente cáusticas, aqui falta acesso aos itens básicos: como
água, luz papel higiênico, bons dias e apertos de mãos, aqui sobra lixo, contas,
dívidas, hipocrisias de apartamentos lacrados e vários, vários nomes sujos na
praça, seguido da ausência de manutenção das máquinas, causado pelo
balancete quebrado de nossas finanças corruptas, e das fotos deixadas nos
cantos dos corredores... Desculpe-me acho que estou me antecipando,
(pequeno riso cínico) eu sempre faço isso... espero todos lá em cima.

Moça do Jazz faz passagem de música. Entra Música.

Muleke entra e põe cartaz em painel [ou pode ser projetadas]:

Aqui todo mundo se odeia


e ninguém mais quer saber
de conversar.
Não há espaço
para bons-dias
nem adeus.

Mais uma lagarta invisível bateu as botas, quer dizer, as asas.


Oremos por mais este fato lastimável.

Os três se olham. Pausa. Saem. Volta a moça do jazz está ligeiramente alterada.
Ela, a Moça do Jazz, entra de novo no hall. Rosto molhado. Os cabelos já
aparecem visivelmente desarrumados, seus cabelos vão se soltando... Fala no
microfone.

MOÇA DO JAZZ
Como eu ia dizendo para vocês, além da falta dos dias azuis, (desliga microfone)
aqui não é um teatro, isto não é teatro, no entanto, o teatro se instala em qualquer
lugar (...)
Entra Rapaz das fotos, saindo pelo elevador, vai direto para ela e a
encara. Quer dizer algo.
Projetado:
Ele está sempre a um ponto.
de algo que valha a pena.
Ou perdeu sua ferradura?
Momento de suspensão dos dois. Ele a vê como a irmã, ela a vê como também
um irmão, mas nunca se falaram, é a primeira vez que se veem e a primeira vez
muda tudo, mas serão irmãos? Apenas isso? Serão Amantes? Ela olha para ele
e fala.

73
MOÇA DO JAZZ
A gente tem é que buscar um mínimo de contato, fé naquilo que chamamos de
pele, conexão, e olho no olho...

Tocam-se. Mas logo se separam. Ele vai para porta de trás, para lá atrás de
costas, segurando algo que quer dizer... tudo junto, uma operadora dança com
Dito... muito rápido. Quando a música cresce, ao mesmo tempo, aparece do alto
da escada, descendo os degraus, conversando, banalmente, o Cara do tuíter, é
chato, muito chato, o Cara. A música sai. Agora ele surge com a camiseta escrita:
Keep Calm!

CARA DO TUÍTER
Não concordo! Nós estamos conectados, mesmo se a gente não quiser, nós
somos uma só rede no ar! Ninguém me disse que vocês já estavam aí, heim... e
você rosinha...
para Moça, cumprimenta, dá um tapa insuportável e cínico nas costas dela...
Beleza gata, tudo em cima? Eu já cheguei onde eu queria chegar... nas nuvens...
Dança com ela rapidamente. Sai música... Cara diz para os espectadores:
oh, mas é bom avisar pro pessoal aí que tá chegando: aqui não tem sinal...
Cara do tuíter passa e vai para o meio do público. Mudança de foco, Moça do
Jazz volta-se para o público... ela desliga o som.
MOÇA DO JAZZ
Desculpe, eu tava falando de contato, não é mesmo? Que ironia... mas vocês
devem estar se perguntando quem sou eu? Eu moro aqui há pouquíssimo tempo,
coisa de duas semanas, é bom aqui... pode ser uma boa casa.
CARA DO TUÍTER
Lá, detrás do público.
Ah, eu discordo plenamente, é péssimo este lugar...
MULEKE
E exatamente hoje faz 33 dias que não recebo: nem salário, nem vale, nem
trocado, nem gorjeta, nem um “muito obrigado”, um “como vai você”, ou um “não
há de quê” que valha a pena ouvir.
CARA DO TUÍTER
Sossega ai muleke, hoje tudo será decidido. Ou não.
Muleke sai. Dito passa na cena. Ela vê e não o vê, ao mesmo tempo, é apenas
um que passa, mas não o re-conhece... Ele fica chateado... Queria que alguém
o visse... Estranho... Ele seria um fantasma, uma alma perdida do lugar? Não se
relaciona com ninguém? Operadoras de cena passam de um lado para outro

74
também... Ela não o vê. Ele não gosta dela, pois também não o vê realmente.
Ele a acha arrogante e hipócrita. Ele vai para outro lado, enquadra-se numa
janela, escova os dentes.
MOÇA DO JAZZ
Mas eu já quase me acostumei... Falta gerânio, sabe?
Pausa.
...as pessoas passam e não te veem, mas elas são pessoas, feitas de atrasos,
insônias diárias e desejos cinzas...
Rapaz das Fotos, Marcelo, volta-se ágil e olha para ela de novo. Suspensão de
ambos. Dito vai em direção do Rapaz e abre agilmente sua mochila e deixa cair
muitas fotos no chão... Moça e rapaz olham fotos espalhadas no chão...
Dito sai.
MOÇA DO JAZZ
Não, não posso tomar essa decisão!...
Ela cai, ele sai. Do meio dos espectadores, sai o Cara do tuíter falando.
CARA DO TUÍTER
Caiu a rede. Eu já disse que aqui nada funciona direito? Pois é, todo dia é assim,
por isso que a gente tem que jogar essa indignação na rede. O que a gente faz
com tudo isso é o que ainda tá fora de toda de conexão, sacam? Eu vou subir...
alguém quer ir comigo? óh, isso aqui já deu o que tinha que dar...
Ele, Cara do tuíter, sobe no elevador. Ela, Moça do jazz, levanta-se.
MOÇA DO JAZZ
Desculpe, eu grito, às vezes: na falta de regurgitar as minhas tristezas, ou de
aprender o segredo do cultivo dos gerânios, eu prefiro a histeria da verdade,
mesmo que pra isso, eu faça doer alguns tímpanos...
Cuspe de Michel. Ela ouve o cuspe, mas ela olha para o outro lado, não o vê,
ele, com desânimo. Termina o gargarejo, cospe e aproxima-se um pouco da
Moça de jazz olho no olho, longe e diz. Ela não o vê, ele fica irritado, sai de cena.
MOÇA DO JAZZ
Vocês estão me ouvindo? Vocês estão me ouvindo? Eu quero fazer alguma
coisa para mudar isso aqui, essa apatia, cheirando a desinfetante e grades
enferrujadas. Mas não as coisas insistem em ficar ecoando nesse vazio.
Ela sai.
DITO
Para um espectador, nervoso, querendo explodir, mas contendo-se.

75
Olhando para Moça do Jazz.
Tem gente que não consegue calar a boca... Tem gente que não consegue gritar
e acaba gritando para dentro mesmo. Eu nunca gritei, porque a minha mãe tinha
uns ataques histéricos que duravam dias e sempre descontava na minha irmã...
pausa.
Desculpe-me, eu nem me apresentei:
para um espectador, oferece a mão para um cumprimento.
Eu sou Dito, só Dito e isso é tudo.
Moça do Jazz volta à cena. Ela não o vê. Ela cata as fotos no chão.
Mas quando ninguém me olha, eu também vejo que eu não existo, e logo tenho
cada vez mais ausências programadas que vem e vão, como assim, oh, num
click... No entanto, isso não é motivo que eu tenha medo de ser eu mesmo.
Porque eu não tenho medo de ser eu mesmo. Quando na verdade, eu estou
aqui, em pé, insistindo em existir. Seria isso a porra do meu ritual?
Sentado nas escadas, o rapaz das fotos diz.
RAPAZ DAS FOTOS
O que seria isso, essa coisa de fazer a coisa certa? Exatamente hoje no dia que
antecede a nossa saída? Isso de ser sempre afável, quando na realidade,
estamos sendo domesticados por coisas que nem nos damos conta ou que nem
sabemos para onde vão nos levar. Sabe que eu acho: que esse blá-blá-blá de
que o mundo pode ser melhor e de que o sonho não acabou, é notícia manjada
para apaziguar a gente... Quem aqui não gosta de uma mentira confortável, em
primeira mão, saída do forno ou do meio do furacão? (pequeno riso) Vocês estão
proibidos de subir! Vocês sabem o que eu quero dizer, não sabem? Sabem o
que a rede nacional deixou de anunciar? Que a esperança acabou há séculos,
sim, e foi contaminada maliciosamente e depois deletada assim, oh, num click!
E olhe que não há antivírus capaz de fazer um backup decente, que possa salvar
um mínimo de solidariedade entre nós... E tem mais: depois da invenção do CPF,
do gps, da wi-fi, dos chats, das cercas elétricas e da proliferação desenfreada do
sódio, do ciclamato, da sacarina, dos conservantes e da gordura saturada e
trans, nunca mais a liberdade teve espaço na programação oficial. (levanta-se)
Mas hoje eu tomei a decisão. Eu vou subir.
Ele sai, sobe as escadas. Ela entra de novo.
Passa Dito em frente dela, ela continua não o vendo, com música baixa, ela o
vê, depois joga com o espectador. Dito espera elevador. Passa Rapaz das fotos
correndo e perde o elevador, batendo na porta.
MOÇA DO JAZZ
É que as coisas ficam aqui, oh, nas minhas costas...

76
Rapaz sai por uma porta, Moça sobe as escadas e se depara com Cético, surge
no alto da escada. Suspensão dos dois, já se conhecem, há estranhamento,
dúvida: o que viveram juntos? Ela tem raiva, ele tem medo dela, ou seria,
ansiedade de sua presença?
Muleke coloca no painel:
Perfeito momento para se dizer:
Sinto a falta do nosso encontro...
Ou
Era exatamente você quem eu queria encontrar!
Mas...
Não.
Esquece.
CÉTICO
Tem gente que tem vocação para carregar o mundo nas costas, belezinha...
MOÇA DO JAZZ
Sempre o mesmo: sem falsa modéstia...
CÉTICO
Desculpe, espera...
Ele pega em suas mãos.
A gente é que tem que buscar um mínimo de conexão... de olho no olho....
MOÇA DO JAZZ
A linha tem nós, e não consigo desatá-los. Não agora. Não aqui. Mas se cada
um pudesse fazer um “nada” que “fosse”, as coisas não chegariam a esse ponto,
lembra?
Para ele.
Vamos subir?
Apesar de estarmos limitados ao térreo, pelas escadas, é mais seguro.
MOÇA DO JAZZ
Sim, nem sempre é possível contar com as máquinas. Com as pessoas, com o
espaço público, com o dinheiro público. Com o público.
CÉTICO
Todo cuidado é pouco. E nós somos tontos, por de menos embriagados.
MOÇA DO JAZZ
77
Desculpem-me. Eu já disse: as pessoas desse lugar são estranhas mesmo.
Eles sobem conversando. Retorno da música.

Muleke entra na cena para fazer a passagem da cena.

MULEKE

Sorrisão do início.
É isso mesmo, vitaminados, nada disse faz o menor sentido, pelo menos até
agora, por favor me sigam vamos ao terceiro andar: pessoas com dificuldade de
locomoção por favor, subam pelo elevador, o restante me acompanhem, pelas
escadas... fim da cena 2!

Todos sobem. Operadoras auxiliam. No Terceiro andar. O Jovem Cético está lá,
esperando o público. Quando saem alguns espectadores do elevador ou pela
escada, ele diz. Operadora entra com carrinho de vinil e toca uma música.
Escolher vinil e música.

Cena 3: Passagem por Residência de Cético


CÉTICO
Sabem por que as pessoas que se beijam na boca, fecham os olhos? Sabem
(pausa) Para imaginar mais... (pausa e sente...). É um tempo que não existe
entre nós. E sem os nós. Só o beijo e os olhos fechados.... Eu poderia gostar
disso, sabe? Desse tempo de evasão da mente, entretanto, puff, tudo some
assim, óoh... como num click. (Arredio, mas nunca grosso...) Eu confesso: Eu
sou cético sim, e não acredito em tempos ausentes, nem em imaginação
suspensa: é que paulatinamente fui perdendo o jeito com o olhar nos olhos, o
segurar das mãos de uma mulher e pedir licença,
Muda o tom.
mas vamos ao que interessa:
Mostra o lugar como vendesse... andando em direção à Sala dos Arcos,
mostrando o espaço.
Então... eu não tenho muitos móveis, É... é simples, mas é meu. To vendendo,
não tenho alternativa porque hoje é o dia que antecede a nossa saída...
Mostrando o espaço e indo em direção à Sala dos Arcos.
Cada quadro pendurado nestas paredes, que para vocês talvez não signifiquem
nada representa uma vida que não tive lá fora, quando pude, em tempo, sair.
Abre a porta de vidro e entra.
Cada porta empoeirada é uma mulher que deixei de amar, pelo temor da
rejeição. Cada canto escondido, um sonho que mergulhei num copo de vodka
com limão, mas agora isso não importa mais, porque eu tô vendendo... pois hoje
é o dia que antecede a minha saída, daqui...

78
Pausa. Olha para o espaço. Pega um banco. Ele se senta.
Muleke

Sentem-se, por favor. Aqui cada tem seu quadrado. Procurem o de vocês.

Cena 4: Cada um no seu quadrado.

Primeiro o público se senta. Moça do Jazz já de vestido vermelho, cabelos soltos.


Depois os atores se sentam. Todos sentados em cadeiras espalhadas pelo
espaço. Silêncio. Entra música. Jogo de caminhada pela sala, seguindo um
princípio do view points (sugestão). Cada um se apresenta no foco da cena,
todos param para ouvir. Quem se apresenta “suspende-segura” o movimento um
pouco antes de voltar a caminhar...
Apresentação em ordem aleatória.
DONA MARGA
Eu moro aqui há 33 anos; e vim do seio da família mais tradicional dessa cidade
e isso não é motivo de zombaria. Tenho certeza que hoje será o dia do não.
Mesmo porque a única coisa que preciso mesmo é de uma boa noite de sono.

MOÇA DO JAZZ
Eu sou a Moça, moro no térreo, mas eu gosto é da solidão úmida do terraço lá
de cima, e todo resto das coisas? Estão aqui, óh, nas minhas costas.

RAPAZ DAS FOTOS


Bom, eu sou o rapaz aqui de cima e sempre achei que os meus braços são
desproporcionalmente estranhos ao resto do tamanho do meu corpo... e penso
também que quando você mora no mesmo lugar desde o dia em que você
nasceu, está mais que na hora de tomar uma decisão, seja ela qual for.

CARA DO TUÍTER
Oi, eu sou o cara... Não é isso que vocês estão pensando... (falsa modéstia) É
que não sei porque tanta urgência dessa reunião, quando finalmente temos uma
boa noticia: aqui tem sinal e espero que a rede do sindicato não se incomode de
nos dar uma “conectadazinha”.

MULEKE
Agora eu vou falar: até pode ser que vocês acham que sabem de tudo, que estão
no centro da coisa, mas sou eu que vejo o que acontece. Se os homi chega me
arranco, se cliente chega me sorrio, se mina pinta me perfumo e jogo umseteum,
de resto tenho que tarefar, arrumar serviço e “um” pro fim do dia... e dá licença,
que já gastei lero demais com almofadinha. Tem gente que gosta de ver
desgraça alheia... não é mesmo?
DITO
Eu moro aqui desde sempre e sempre: não sou um à toa, só porque não grito. E
não entendo porque vocês continuam a não me ver. Isso não é motivo suficiente
para me ignorarem.

79
CÉTICO
Perdoem meu sutil atraso, apesar de não terem notado minha ausência, isso não
significa uma atitude minha de desimportância. Sou cético para aquilo que não
se pode mais mudar, porém sou extremante confiável em relação às pequenas
idiotices diárias que precisam se transformar, pois acredito que os elos e fios não
se desatam assim tão facilmente.

Todos se sentam. Música cai. O assunto da reunião se inicia. No jogo: Mulher


amarga, Jovem Cético e Cara do Tuíter. Muleke atravessa a conversa,
pontualmente, Dito quer falar alguma coisa, mas não consegue. Operadoras
oferecem café para os atores e convidados.

DONA MARGA
Com licença... Já que todos vieram, tomara que tenham vindo pelo bem, assim
eu espero. (fala de maneira firme, ágil) A lista é longa: longos atrasos nos
pagamentos dos itens básicos, paredes corroídas pela umidade, causada pelos
estouros diários de nossos encanamentos, seguido de pequenos roubos
misteriosos...

MULEKE
Opa, pode desviar essa bala perdida, porque não tenho nada com isso, eu
trabalho aqui e venho de boa, não me envergonho de dizer que vim do buraco
mais escuro do canto mais escondido da cidade, que ninguém de vocês daqui
sonham onde é, nem nunca vão saber, mas isso não significa que passo a perna
para conseguir o quê de viver, eu tenho meu charme natural e duas mãos para
trabalhar, donaroxa!...

DONA MARGA
Perdoe-me qualquer traço de preconceito arraigado que mora em mim...
continuando... Temos também a incrível e paulatina desocupação de nossos
moradores e funcionários, que estão indo dessa para melhor e além dos casos
omissos de depressão, seguidos de suicídios invisíveis, causado pela falta de
“bons-dias”, “até logos” e de crianças brincando livremente pelos corredores.
Pausa, todos olham para os lados, silêncio.

DONA MARGA
Por isso, vou repetir: é preciso tomar uma decisão.

Moça do Jazz, Dito e Rapaz das Fotos vão para o fundo da sala e iniciam suas
partituras.

CARA DO TUÍTER
Fomos enquadrados no estatuto hipócrita do politicamente correto, seremos
corretos? Somos obrigados a viver dentro de quadrados. Porém chegamos num
impasse, pois estamos, na realidade, em frente de uma porta que acabou de ser
batida em nossas caras. Rexetegue: #vamovenderpramultinacional, esse
elefante branco não está com nada, quando na realidade todos os sinais

80
apontam para uma alta valorização do mercado, e como diria Steve Jobs: “é só
jogar para cima” e ganha quem der o maior lance!

DONA MARGA
Senhores! É possível começarmos pelo começo e não pelo fim? Para buscarmos
um mínimo ato de conciliação entre nós? Tem coisa que ainda precisa ser dita
hoje...

CÉTICO
Se me permitem dizer, eu diria que tudo isso é uma grande estupidez,
caríssimos, quando na realidade, temos o privilégio de morar numa arquitetura
única, que tem no mínimo 80 anos de existência, para ser assim leiloado como
um suvenir de luxo, ou pior, aos olhos de alguns, apenas somos um terreno
baldio de segunda, pronto para ser tornar o mais novo shopping da cidade, como
se já não tivéssemos essas máquinas de auto-domesticação involuntárias o
suficiente entre nós. E se buscássemos um mínimo de decência, porque,
convenhamos, todo mundo precisa de um mínimo de decência para mudar isso
aqui.

CARA DO TUÍTER
E que o seria essa coisa de decência, hoje em dia, caríssimo? Isso de tentar
salvar algo quando na realidade já naufragamos e tem coisa que já está mudada.
Mas se o sinal falha, a gente tem que se reconectar. É daqui pra frente! Eu já
tomei minha decisão. Apesar de morar mal no meu “60 metros quadrados”, de
paredes finas, finíssimas, e aguentar o toc-toc infernal de uma moça que passa
as madrugadas no terraço para lá e pra cá, eu não sou de ficar olhando pro meu
umbigo... Vamo colocar na rede nossa indignação...

DONA MARGA
Senhores! A sujeira que se acumula, e não há mais espaços para “bons dias e
adeus”... é preciso tomar uma decisão!

Crescente entre Cara do Tuíter e Jovem Cético, concordando. Música se inicia,


com Nathalia e Marcelo.

CÉTICO
Está vendo, é isso que falo de decência: eu acredito sim, nos elos e fios, minha
senhora, que esta é a melhor ação a se tomar! Hoje não será o último dia nesta
casa.

CARA DO TUÍTER
rexetegue #todosjuntossmosfortes
rexetegue #amomuitotudoisso
#sóficaparadoquemquer
#soubrasileironãodesistonunca...

DONA MARGA
Senhores, eu já disse a vocês que há muito tempo que não durmo?

CÉTICO

81
E que se quisermos mudar a imundice e falta de vergonha na cara e até mesmo
nossas insônias, é preciso ficar e re-começar um bom diálogo entre os que não
querem sair...

CARA DO TUÍTER
rexetegue #melevaqueeuvou,
rexetegue #todosjuntosnumasóvoz
rexetegue #aquifracotenãotemvez
rexetegue #umfilhoteunãofogeàluta...

CÉTICO
Não podemos nos deixar ser vendidos pelo menor preço do mercado...

CARA DO TUÍTER
rexetegue #issonãotempreço

CÉTICO
A gente bate na porta de cada um,

CARA DO TUÍTER
#opovounidojamaisserávencido...

CÉTICO
faz um abaixo-assinado,

CARA DO TUÍTER

rexetegue #opovoaindatemvoz

CÉTICO
renegocia as dívidas ou faz um novo empréstimo...

CARA DO TUÍTER
rexetegue #dizemqueosjurosestãocadavezmaisbaixos...

DONA MARGA
Senhores, essa situação está fora de controle...

CÉTICO
Nós podemos levar a situação para as instâncias superiores...
CARA DO TUÍTER
rexetegue #sódeussalva...

CÉTICO
ai sim podemos vislumbrar uma saída...

CARA DO TUÍTER
rexetegue #éaúnicasaídapranós...

CÉTICO

82
NÃO PODEMOS DEIXAR O ELO SE ROMPER!

CARA DO TUÍTER
rexetegue #conseguimosconquistarcombraçoforte...

DONA MARGA
Silênciooooooooooooooooooooooooooooooooooooo!
dá licença, se não eu grito!

Pausa de todos e todos olham para ela.

dito isso, dá licença.

Pausa. Homens se olham. Ela sai com raiva, música continua, eles se abraçam
e depois começam a tirar um a um os espectadores de cena para descerem para
o pátio, a música para, Dona Marga volta.

MULEKE
Me sigam até lá fora: vamos à festa, mexer esqueleto, remexer o popozão...

A música volta. O cara do Tuíter, Muleke da Barraca e Jovem Cético vão levando
os espectadores pelas escadas abaixo para as duas varandas, nos 3º e 2º
andares, onde estarão os “apartamentos” de Dito e Dona Marga. Retorno da
música na transição das escadas. Música vai abaixando a medida que entra
Muleke cantando da janela do outro lado; Cara do Tuíter canta junto estão
tomando banho. Outras vozes internas o acompanham.

Transição para outro foco.

Cena 5: A visão interna de nossas instalações

Dito em uma das varandas de fora instaura sua instância de individualidade, é


um momento de lembrança, mas narra diretamente para os espectadores ao
mesmo tempo Dona Marga entra na cena na outra varanda, ações paralelas e
sem relação direta entre eles.

DITO
Fiquem à vontade. Imaginem agora que me veem... e existindo aqui neste lugar,
eu tinha coisas como você, tinha vida e sobrenome, carteira assinada e
poupança no banco. Eu já fui assim, um dia. As pessoas vinham na minha casa
e me diziam: Você é um cara de sorte! E eu, existia num quadrado azul que era
demarcado para mim e ninguém duvidava disso.

DONA MARGA
Está de roupão, descabelada. Entra música de fracasso. Muleke põe e tira o
som.

Ninguém nunca entrou aqui, é a primeira vez. Para tudo na vida existe uma
primeira vez de chegar, de sair, de fugir... eu já nem sei mais o que fazer com
tudo isso, tenho que arrumar logo e nem sei por onde começar...

83
Muda de tom, como se percebesse.

CARA DO TUÍTER
TODO MUNDO É MAIS BONITO PELA INTERNET!

DONA MARGA
Me olho no espelho: falida, me olho no espelho: feia, me olho no espelho não
pari e olho de novo no espelho: despejada... desculpe-me... Aceitam beber
alguma coisa? É que estou precisando dum bom trago...

Passa uma operadora e dá um copo com bebida para ela.

DITO
Aqueles eram dias normais. Acordava cedo às 6 da matina e já ficava de pé.
Sempre me levantava, arrumava a cama, fazia meu café, preto, sem açúcar e
esticava meu lençol, dobrando junto ao cobertor. Era uma coisa minha, só minha,
um ritual meu, eram velhos hábitos de existir...

DONA MARGA
Sabe... eu já tive grana, eu já tive respeito, vim do seio da família mais
conservadora... era respeito comprado, na verdade, mas eu tinha, e agora aqui
olhando nesse espelho e me vejo: feia e sozinha, ao ponto de ser despejada e
ai, como eu vou olhar para feia? Que vou falar para ela? Eu falei que faz muito
tempo que não durmo...

DITO
Já naquele tempo, meu quadrado azul era corróido pelo cinza que hoje mora em
mim, e na ânsia de viver nunca dava tempo de estancar os vazamentos
inevitáveis... aos poucos, o fluxo ia aumentando e corria mal dava para tomar
café, ia pro meu trampo e quando me via, já estava lá, existindo mal num
quadrado azul escuro quase cinza. Eu dizia coisa tá feia, acho que não sou um
cara de tanta sorte assim... ai ia pro Pronto Socorro, as pessoas sentem muito,
muito mesmo, do azul ao vermelho, assim oh, num click!

Ela sai correndo. Dito já está em baixo e se direciona. A música vai saindo.

DITO
E por falar em Hospital me lembrei da sopa que a minha vó tomava, ela odiava
a sopa que era servida lá. Não acreditava nesta coisa de comida rimando com
felicidade. “Comida enche o bucho e não as ideias! ”. Acho que agora vocês
começaram a realmente me ver...

Ele sai, entra no grande salão. Enquanto isso, todos os atores vão para as
janelas – “seus espaços-apartamentos” e se arrumam pra festa; Moça do Jazz
está em casa tomando sorvete; Cético em outra janela, Rapaz das fotos do outro
lado passando o café e sozinho; Muleke da Barraca correndo de um lado para
outro. Cara do Tuíter também em cena numa janela.

CARA DO TUÍTER
84
Acabou a privacidade! Depois do 11 de setembro, inventaram leis que permitem
o acesso a todos os nossos dados pra investigação. Não tá fácil, tem sujeira
demais, tanta escrivaninha empoeirada e cadeira com o assento podre de gasto.
É por isso que eu digo, eu já tomei minha decisão e eu tô dando o pé dessa
espelunca!
Joga roupas pelas janelas e por todas outras, enquanto a outra cena se inicia.
Cético e Moça do Jazz em cena nas varandas. Os dois presos por longos panos
vermelhos. Enquanto desenvolve a ação, fala com o espectador. Música:
VIOLÃO.
MOÇA DO JAZZ
Se eu morresse agora seria magnífico: uma morte instantânea? polêmica,
indolor, ensaiada, e beeeeem canastra..., (pequeno riso) porque sou dramática,
e regida por um mínimo de decência, que toda pessoa merece um pouco de
decência...
CÉTICO
Falta decência em todo lugar, e pior do que ler que a coisa tá feia é ver tanta
coisa feia piorando. Falta aquele dedo de “branquinha” precedente ao caos. Os
anos passam, e a vibração parece ser a linha contínua de fatos não-históricos
que deixam a desejar. Tudo e nada sempre juntos, sem chegar a um meio
termo... como nós...
MOÇA DO JAZZ
(tomando sorvete) A linha é que tem “nós”, e nós estamos tontos: por de
menos embriagados. Foi este o nosso começo...
CÉTICO
Agora você fala comigo? Eu estou falando da gravidade da nossa situação aqui...
Aliás, você aceita tomar um café comigo?
Música entra. Rapaz começa a tocar violão.
MOÇA DO JAZZ
Agora, no meio disso tudo isso? saídas, despejos: a vida está ficando difícil,
sabe?
CÉTICO
Sim, e agora é preciso de hora marcada pra se tomar um café? Eu só estou
falando isso, quando na verdade, é apenas uma forma tola disfarçar o medo que
tenho de dizer que sinto a falta da falta do nosso encontro...
MOÇA DO JAZZ
Mas você acabou de dizer... foi bonito por um instante... mas não é preciso de
hora pra nada daqui de cima, E eu falo dos fios, filtros e canalizações

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necessárias entre nós. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. Eu não tomo
mais café, aliás. Perdi o gosto. Está quente demais hoje, e pra variar eu derreto.
CÉTICO
Tão quente como naquele sábado desalmado, você se lembra, moça? Seu salto
quebrou e eu te ajudei no seu cambalear, e você sempre delirando nos seus
azuis esquisitos...
MOÇA DO JAZZ
Pudera, depois de ter perseguido todos os carros da cidade daquele sábado
desalmado, desbravei fantasmagoricamente todos os armazéns, atrás do café
ideal, da textura perfeita e do aroma mais acre possível, pois odeio tudo que é
“docinho”, você bem devia saber...
CÉTICO
Tá vendo? É disso aí que o mundo precisa...
Ele desce para o pátio...
MOÇA DO JAZZ
Cadê você? Onde você vai? A minha voz pode ter deixar em carne viva... (vai
repetindo, e tacando saltos no Jovem Cético lá em baixo) A minha voz pode te
deixar em carne viva... Como naquele sábado desalmado, onde cães farejavam
suas carniças, assim como os nós, assim como nós.
CÉTICO
Você que se deixa vitimar por muito pouco belezinha, lembre-se dos nós...
Aparece o Cara numa janela, gritando.
CARA DO TUÍTER
Mocinha pare com esse toc-toc sem fim.

Moça do Jazz vai para baixo puta.

Eu estou tentando sair desse buraco onde me meti... Os vasos sanitários não
são seus confidentes, são latrinas e só. Ainda tem essa conexão lenta daqui de
cima, essa falta de objetividade, e vocês continuam a não chegar a lugar a lugar
nenhum. Pior do que ler que a coisa tá feia é ver vocês, bando de feios, piorando
a situação. Calem a boca!

DONA MARGA
Cala a boca você, não vê que eles estão tentando fazer uma cena?

Jovem Cético e Moça do Jazz reaparecem lá em baixo um de frente pro outro.


Música: VIOLÃO.
CÉTICO

86
O universo respira contra os seus olhos, belezinha, e meu coração
provavelmente está em um dos seus sapatos.
MOÇA DO JAZZ
A gente tem que buscar um mínimo de contato sabe? Pele e conexão, lembra?
CÉTICO
Desculpe. Olha é só um minuto que te peço. Você sabe por que as pessoas
quando se beijam elas fecham os olhos? Você sabe por que toda vez que você
passa, eu penso em tomar um café, nos azuis dos lugares, mesmo que eu não
entenda o que você diz, e que neste momento eu te digo isso, não porque isso
seja uma cantada barata, mas porque eu realmente preciso que você não rompa
o elo? Comigo? O que você me diz?
Pausa. Ela olha para ele. Silêncio.
MOÇA DO JAZZ
Não, não posso tomar essa decisão!
Ela cai. Pausa de todos. Entra Muleke.
MULEKE
Rompe todo clima.
Uhu, que Drama! Eu diria burguês. Novelão de quinta. Fim da cena 5, vamos à
festa, por aqui!
Entra música de transição. Todos entram no são nobre. Retorno da música.
Moça do Jazz levanta-se e vai para dentro do salão. Jovem Cético vai atrás dela.
Muleke já assumindo um status de Solteiro vai acompanhando os espectadores
para o Salão Nobre.

Cena 6: Um lapso de memória do Rapaz das fotos e Garota se cruzam nos


seus pensamentos, e festa.

Dona Marga convida espectadores para salão. Projeção nas paredes internas
do Salão Nobre da Garota Ausente. Rapaz das fotos, fazendo malas. Continua
música no vídeo, com cantora. Rapaz deixa fotos pelo chão traçando suas
pegadas para a saída. Num canto melancólico, solitariamente, Dito, toma sua
sopa, enquanto assiste, como num filme, a cena do Rapaz das fotos e da Garota
Ausente que virá. E num outro foco também temos a moça do Jazz e o Cético
dançando juntos: jogo de elos e fios. Muleke encostado, só de olho no
movimento das gatas. Cara do Tuíter entrará depois dessa cena.

RAPAZ DAS FOTOS

De todo esse grito. Dá licença se não eu fico rouco. (Mostra as fotos para os
espectadores) Esse aqui sou eu mais novo. Eu adorava falar no telefone. E esse
aqui sou eu e essa aqui foi o meu primeiro amor. Também minha primeira
rejeição. Isto é um ornitorrinco. Uma das únicas espécies de mamíferos que

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botam ovos. Quando os ovos se partem e os filhotes nascem, passam a se
alimentar do leite das mães. E elas, por sua vez, tem glândulas mamárias nos
poros da pele, mas não têm tetas. Vai entender. O ornitorrinco é um fóssil vivo.
Esse aqui sou eu no colo do meu pai. Eu queria estar no colo da minha mãe, na
realidade, mas era ela é que bateu a foto pra eu sair no do meu pai...

Vê ela na projeção, a Garota Ausente.

GAROTA AUSENTE

Onde você me guardou, hein? Será que você ainda tem flashes? Eu manchei a
sua música? Por aqui e por aí. (irônica) E não me guarde tão à mostra, pois os
vizinhos podem comentar...

RAPAZ DAS FOTOS

Teu olhar, minha rota fuga diária. Que executo maliciosamente para não me
perder aqui.

GAROTA AUSENTE

Sua mão estendida, geografia de meus passos.

RAPAZ DAS FOTOS

Que eu finjo não ver.

GAROTA AUSENTE

Meu estômago pedinte, voraz das suas bobagens santas...

RAPAZ DAS FOTOS

e eu finjo não ter fome. Sua pergunta no ar...

GAROTA AUSENTE

que eu finjo não responder.

RAPAZ DAS FOTOS

Meus dedos entre os seus cabelos...

GAROTA AUSENTE

tão desdenhados, tão...

RAPAZ DAS FOTOS

Sua comida posta na pia...

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GAROTA AUSENTE

que eu finjo não tocar.

RAPAZ DAS FOTOS

Chega, disso e vem cá. Agora. Eu preciso disso. Você não se lembra do teu
vermelho escorrendo?

GAROTA AUSENTE

Os insetos se banqueteiam, rapaz... A coisa toda só está começando meu


rapaz. Te cuida, irmão.

Rapaz das Fotos sai da festa, com suas fotos e mala. E olha tudo lá fora pelas
janelas. Música clima de festa, música Todos vão entrando aos poucos.

Entra o Cara e música Revolution cai.


CARA DO TUÍTER
Bom, www.senhorasesenhores já que estamos todos aqui reunidos neste dia
ímpar, para confraternizar e nos despedir, abre link: eu gostaria de lembrar de
Dona Aurélia, símbolo desse lugar, boa generosa, defensora das lagartas
invisíveis, que nos levava nossa correspondência diariamente às nossas portas,
que foi morta à pancadas, por causa de um aparelho de DVD e cinco notas de
10... Um momento de silêncio, por favor.

Silêncio. Projeção.

GAROTA AUSENTE

Agora somos só nós dois: me dá uma hipocrisia, rapaz, você acha que é o único
que sofre por aqui? Bom deixa eu te contar algo extraordinário: tem gente que
está ao seu lado que também possui uma espantosa e doentia capacidade de
sentir. Para onde vamos, rapaz? Me dá uma hipocrisia! Que ela venha
embrulhada como presente do meu funeral, porque meu querido, muita coisa foi
comigo, é você que herdou meus livros e fotos. Isto não passa de um diário de
bordo do meu épico sentimento de falta.

Mais branda e afetuosa.

O que fica para a posteridade é todo o drama que se pode fazer para libertar um
pássaro negro de asas quebradas. Não é preciso sair da obscuridade pra ver as
coisas com mais clareza. Mas eu preciso sair daqui. As lamúrias estão
esgotando, as hipocrisias diárias foram todas fritas em óleo quente e ninguém
compareceu com as flores. Quantos sétimos dias serão necessários pra que eu
seja absolvida? Olha, eu quero que você saiba que eu vou esperar,
doentemente, pelo dia no qual você vai voltar a me ver como uma noiva despida
de todo o vermelho que está impregnado em mim. E você vai ver que eu estou

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entendendo, e vai ver que de mártir eu passei a testemunha, ou cúmplice de mim
mesma... Deixa eu te contar uma coisa, Assassina, eu? Bem, coisa triste é a
pobre velha de 77 anos assassinada à pancadas na sua própria casa da periferia
que mora em todo lugar. O resto se resolve, meu bem, você pode tomar qualquer
decisão. Não me venha com desculpas chulas. O defunto nem sabe que morreu.

RAPAZ DAS FOTOS

É fácil para você dizer: é possível atar duas pontas... quando na realidade você
não está aqui e não é você que tem um arreio atrelado entre os dentes, como
eu. Um cavalo manco que nunca cavalgou em campo aberto.

Rapaz das fotos sai. O Cara volta a falar.

CARA DO TUÍTER
Bom então sem delongas, vamos festejar.

A música agitada e brega volta, mas neste momento, Moça do Jazz, se destaca.
Solteiro Gatinho instaura cena com placas cortejando as pessoas e termina
chamando alguém para dançar. Marga entra em cena com um prato de quitutes.
Desconforto no início, relações truncadas. Operadoras servem alguma bebida e
bebem também. Na projeção, imagens sem som, reproduzindo as imagens de
espectadores. Enquanto isso Cético e Moça do Jazz se encontram, e se afastam.
Jogo de elos e fios.

CÉTICO
A linha tem nós, e nós estamos tontos: por de menos embriagados. Alucinados,
talvez.

MOÇA DO JAZZ
Não! (fala rápida, descontrolada, procurando as palavras) Eu preciso só um
pouco de jazz, decência, vodka com limão, de me livrar desse peso nas minhas
costas, ou de fugir para terraço úmido, desenferrujar essas grades que me
limitam... isso não faz o menor sentido... vc cheira a café, o que eu quero dizer
mesmo é que eu odeio esse cheiro de café. Para de me olha com essa cara de
cão perdido. Eu perdi o gosto, eu odeio café, assim como me enoja todo cheiro
de café que exala de você. A borboleta pra voar precisa furar o casulo e se
libertar da casca que a prende, que a sufoca e a salva da morte. E eu prefiro a
morte instantânea, a morrer em pedaços largados por este lugar interditado por
proibições burocráticas. Para de me olhar assim. Desse drama de segunda
categoria, absolutamente, sem final feliz. Vaza, eu desisto de você! Sai! Sai!
Estouro de Moça. Ela taca a mão no rosto de Cético. Entra projeção e música.
Todos correm até ela e a levantam. Jogo dos cavalos.

Porque eu uma besta correndo em desvario, sem rumo ou escolta, sem um lugar
que eu possa chamar de minha casa. É sempre uma fronteira líquida que me
draga.

90
Porque a única coisa que eu preciso mesmo é de uma boa vodka com limão.

Porque afinal todo mundo merece um mínimo de decência

Porque a única coisa que te peço é um minuto, um minuto que antecede o beijo,
aquele que acontece entre nós, quando fechamos os olhos para aquilo que não
conseguimos nomear.

Porque todo mundo precisa de um refrão que valha a pena repetir.

Ação cresce com música. Todos gritam.


Lá fora, ouve-se a voz, com ira:

DONA MARGA
E o que faço com a feia, enfio ela no cu?

Entrada do cara:

CARA DO TUÍTER
www.senhorasesenhores o clima pesou... vamos fazer um tuitaço? Ou um
flashmob? Alguma coisa que nos motive... Vocês sabem o que é tiutaço? É uma
rede social, um site na internet onde você escreve sobre tudo, mas precisa
reduzir sua vida e seu pensamento a 140 caracteres. Sabe o que é caractere?
(explica, se necessário). Aí lá a gente pode colocar qualquer assunto em
evidência! Pode tirar foto e colocar direto lá, mostrando onde a gente tá e o que
anda fazendo... Bom, vamos deixar isso tudo aqui, nesta janela, e ir para um
lugar mais, mais fora, sabe? Como numa “nuvem”: aquela coisa de não perder
as coisas: aí, põe nas “nuvens”... Você sabe o que é nuvem? É uma ideia, uma
caixa virtual que coleta e guarda as coisas... tipo rexetegue #seraquedeuslê... O
que há acima de nós agora? Steve Jobs dizia que todo conteúdo ia pra nuvem.
E Deus mora lá, logo, tem acesso a tudo! Vem comigo que isso já deu tudo que
tinha que dar, hoje é o dia da nossa saída de emergência. Esta cena já acabou,
vamos pro final, que isso aqui já deu.

Cara do Tuíter improvisa e aciona os espectadores para gritarem – chama o


público para fora. Pergunta para cada um. Música de Moça do Jazz na salinha.
Com fotos.

MOÇA DO JAZZ
Arranco o sapato do pé, respiro fundo, é agora.

Moça do Jazz sai. O cara. Ele leva o público para fora. Ele deixa o público lá.

Cena 7: Partida, lá fora do prédio.

Público para fora, Moça do Jazz sozinha, sentada no chão, fumando. Ela canta.
Rapaz das Fotos chega de carro. Eles acontecem.

RAPAZ DAS FOTOS


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Se sequestro não fosse um crime, você já estaria em meu porta-malas. Agora
sei que sou capaz de fazer um refrão que vale a pena repetir.

MOÇA DO JAZZ
Qualquer lugar em que eu puder encostar a cabeça eu vou chamar de minha
casa.

Eles vão embora, no carro. Os personagens surgem no térreo. Moça do Jazz se


junta a eles. Todos entram, menos Dito. Ele entra, fecha a porta.

Muleke entra no porta-malas. Vai indo embora. Deixa o público lá.

Frase no porta malas estampada #partiu.

Fim.

***
Verão de 2013, porque somos bestas selvagens que gritam e gritam, antes que
nos calemos, definitivamente.

Verão de 2016, é preciso rever, é preciso jorrar.

contato: leticiaandrade2000@yahoo.com.br

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