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Diário de um killer sentimental

Luis Sepúlveda

Título original: diário de un killer sentimental

Tradução do espanhol (Chile) por Pedro Tamen

Edições ASA
1. Um dia mau

O dia começou mal, e não é que eu seja supersticioso, mas acho que em dias como este o
melhor é não aceitar nenhuma encomenda, ainda que a recompensa tenha seis zeros à direita,
livre de impostos. O dia começou mal, e tarde, porque aterrei em Madrid às seis e trinta, fazia
muito calor e durante o trajecto até ao hotel Palace o taxista insistiu em atirar-me com uma
lengalenga sobre o campeonato europeu de futebol. Deu-me vontade de lhe apontar à nuca o
cano de uma quarenta e cinco para lhe calar o bico, mas não tinha comigo nenhuma fusca e,
além disso, um profissional não se envolve aos tiros com um cretino, mesmo taxista.

Na recepção do hotel entregaram-me as chaves do quarto e um envelope. Dentro dele


vinha a fotografia onde se via um grupo de seis sujeitos de bom aspecto, jovens, todos entre
os trinta e os quarenta anos, bastante parecidos uns com os outros; mas o único que
interessava era o que tinha a cabeça roDEAda por um círculo desenhado a marcador. A
encomenda era aquele, e não gostei do tipo. Havia também uma legenda que dizia: "terceiro
encontro de organizações não-governamentais, ong". Também não gostei. Nunca gostei dos
filantropos, e aquele tipo fedia a filantropia moderna. Um mínimo de ética profissional proíbe
que se pergunte que fizeram os tipos a liquidar, mas, ao olhar para a fotografia, senti
curiosidade, e isso incomodou-me. Dentro do envelope não vinha mais nada, e era assim que
devia ser. Tinha de começar a familiarizar-me com aquele rosto, a observar os pormenores
reveladores da sua força ou da sua fraqueza. O rosto humano nunca mente; é o único mapa
que regista todos os territórios que habitámos.

Estava a dar uma gorjeta ao rapaz que me trouxera a mala para cima quando tocou o
telefone. Reconheci a voz do homem das encomendas, um tipo que nunca vi nem quero ver,
porque as coisas entre profissionais são assim, mas cuja voz era capaz de reconhecer no meio
de uma multidão.

- Fizeste boa viagem? Entregaram-te o envelope? Lamento lixar-te as férias - disse ele em
jeito de saudação.

- Sim às duas perguntas; quanto a isso das férias, não acredito.

- Amanhã terás que viajar - continuou ele. - Procura descansar.

- Está bem - disse eu, e desliguei.

Estendi-me na cama e olhei para o relógio. Faltavam ainda cinco horas para aterrar o avião
que trazia do México a minha miúda - passe esta maneira imbecil de lhe chamar - e imaginava-
a queimada pelo sol de veracruz. Tinha-lhe prometido passarmos juntos uma semana em
Madrid antes do regresso a Paris. Uma semana a correr as livrarias e a visitar museus, coisas
de que ela gostava e que eu aceitava reprimindo bocejos, porque aquela miúda - é claro que é
mesmo imbecil chamar-lhe assim - tinha-me dado a volta à cabeça.

Um profissional vive sozinho. Para aliviar o corpo, o mundo oferece-lhe uma enorme
quantidade de putas. Sempre respeitara rigorosamente essa regra misógina. Sempre. Até que
a conheci.
Foi num café do boulevard Saint-Michel. Todas as mesas estavam ocupadas e ela perguntou-
me se podia tomar um café na minha. Vinha carregada com uma pilha de livros que poisou no
chão; pediu um café e um copo de água, pegou num dos livros e começou a assinalar frases
com um marcador. Eu continuei o que estava a fazer antes de ela chegar:

Examinar o programa hípico. De repente interrompeu-me para me pedir lume. Estendi a mão
com o isqueiro e ela prendeu-a entre as suas. Queria guerra, a garota. Há mulheres que sabem
comunicar a sua vontade de fornicar sem dizer uma palavra. "Quantos anos tens?", perguntei.
"Vinte e quatro", respondeu ela com uma boca pequena e vermelha."Eu tenho quarenta e 5",
confessei-lhe, contemplando os seus olhos de amêndoa. "És um homem novo", mentiu ela
com todo o calor que emanava dos seus gestos de fumar, ou de ajeitar o cabelo, que tinha a
cor das castanhas maduras e a textura fina e suave da água a deslizar pelas rochas cobertas de
musgo. "Queres comer antes ou depois de te comer?", disse eu enquanto chamava o criado
para pedir a conta. "Come e come-me pela ordem que quiseres", respondeu ela agarrada aos
seus livros. Saímos do café e metemo-nos no primeiro hotel que encontrámos. Não me
lembrava de ter estado com uma miúda tão inexperiente; não sabia nada, mas tinha vontade
de aprender. E aprendeu, tanto, que violei a regra elementar da solidão e me transformei num
killer com um par.

Ela queria ser tradutora e, como todas as intelectuais era suficientemente ingénua para
engolir qualquer história de tal modo que não me custou convencê-la de que eu era
representante de uma empresa de aeronáutica e que por isso tinha de viajar muito.

Três anos com ela. Fez-se mulher rapidamente, floresciam-lhe as ancas de tanto as usar, o
olhar tornou-se-lhe astuto, percebeu que o prazer assenta na exigência, o corpo habituou-se-
lhe à seda, aos perfumes exclusivos, aos restaurantes em que os criados andam elegantes
como embaixadores e às jóias de design. Deu um grande salto de garota para gata.

E entretanto fui violando várias regras de segurança, sobretudo as que insistem na solidão,
em permanecer anónimo, desconhecido, em ser apenas uma sombra, e assim o lugar onde
estabelecia os meus contactos passou a ser um escritório a que tinha de ir todos os dias de
manhã. À tarde e à noite partilhava com a minha miúda um andar que começou a cheirar a
casa burguesa, porque iam lá os amigos dela e organizavam-se festas. Durante esses três anos
executei várias encomendas na Ásia e na América, e acho até que me superei como
profissional, porque fui rápido na acção para poder voltar para ela. Como disse: tinha-me dado
a volta à cabeça.

Eram umas nove da noite quando decidi sair do hotel para comer qualquer coisa e beber
uns copinhos de gim. Sabia que ela não ia gostar que a deixasse sozinha em Madrid. Pagara-lhe
um mês de férias no México para a afastar enquanto eu executava uma encomenda em
Moscovo. Havia uns russos que se tinham tornado insolentes de mais com alguém de cali, e
esse alguém contratou os meus serviços para lhes recordar que não passavam de uns
amadores. Não. Não vai gostar que a deixe sozinha em Madrid. Enfim, só lho diria depois da
segunda ou terceira pinocada.

Depois de um fartote de mariscos num restaurante galego, dei um longo passeio pelas
imediações do prado. Não devia pensar no tipo da fotografia, mas não conseguia tirá- lo da
cabeça. Nem sequer sabia o nome dele, ou a nacionalidade, mas alguma coisa me dizia que era
latino-americano e que, para o bem ou para o mal, os nossos caminhos começavam a
aproximar-se.

"Aquele tipo é uma encomenda como outra qualquer, e nada mais. Uma encomenda que,
logo que deixe de respirar, representa para mim um cheque com seis zeros à direita, livre de
impostos, e por isso deixa-te de palermices", disse comigo mesmo entrando num bar.

De cotovelos fincados no balcão, pedi um gim e decidi desanuviar a cabeça olhando para o
televisor que presidia lá no sítio. No ecrã, uma gorda imbecil recebia chamadas telefónicas de
outros imbecis e depois fazia girar a roda de uma tômbola. Os prémios não eram tão imbecis
como os que participavam no programa. Numa pausa, o ecrã encheu-se de miúdas de mini-
saia que me fizeram pensar na minha. Faltavam menos de duas horas para o avião aterrar com
a minha gata francesa. Digamos que daí a duas horas e meia a teria no hotel. Não fora esperá-
la ao aeroporto obedecendo a uma regra que aconselha a evitar os aeroportos internacionais.
Há uma possibilidade num milhão de alguém nos reconhecer, mas a lei de Murphy pesa como
uma maldição entre os profissionais.

Suportei dois gins diante do televisor e desandei. A gorda da tômbola não conseguiu afastar
dos meus pensamentos o tipo da fotografia. Que diabo me estava a acontecer? Dei logo
comigo a perguntar ao homem das encomendas que é que aquele tipo fizera. "Quero saber
por que é que tenho de o matar. Ridículo. A única razão é um cheque com seis zeros à direita".
Tinha a certeza de que nunca o tinha visto. E, mesmo que o tivesse visto, isso não mudava
nada. Uma vez liquidei um homem por quem até cheguei a sentir algum apreço. Mas ele
andava a pedi-las e, ao ver-me aparecer, percebeu que não tinha maneira de escapar.

"Chegou a minha hora, não é?"

"Pois é. Cometeste um erro, sabes bem que sim".

"Bebemos um último copo?", propôs ele.

"Como quiseres".

Serviu dois uísques, brindámos, bebeu e fechou os olhos. Era um homem digno, e esforcei-
me por apagá-lo da lista dos vivos com a primeira ameixa.

Então por que raios é que havia de me importar com o tipo da fotografia? Ao que parecia,
trabalhava para uma ONG qualquer, mas o motivo da minha encomenda não vinha desses
lados. Nenhuma ONG dispõe de dinheiro suficiente para contratar os serviços de um
profissional, e suponho que também não resolvem assim as suas aflições. De mau humor,
comecei a andar de regresso ao hotel. A noite continuava quente e alegrei-me ao pensar na
minha gata francesa. Ao menos, não estranharia o calor de veracruz. Gostava que eu lhe
mordesse o pescoço, e, queimadinha como devia vir, isso seria um convite para lhe morder o
corpo todo. "Ora bem", disse cá para mim, "voltas a pensar como um homem normal". Na
recepção pedi a chave do quarto e descobri que havia outro envelope para mim. Não gostei. O
homem das encomendas nunca me faria chegar instruções por escrito. No quarto, tirei uma
cerveja do minibar e abri o envelope. Era um fax remetido do México pela minha gata
francesa:

Não esperes por mim. Lamento, mas não vou chegar. Conheci um homem que me fez ver o
mundo de uma maneira totalmente diferente. Gosto de ti, mas acho que estou apaixonada.
Ficarei no México outras duas semanas antes de regressar a Paris. Lá falaremos de tudo isto. O
que eu queria era ficar com ele para sempre, mas regresso por tua causa, porque gosto de ti e
porque temos que falar. Um beijo.

Regra número um: continuar sozinho e aliviar o corpo com uma puta qualquer. Pedi que me
mandassem o jornal do dia e procurei a secção d'elax nas páginas de anúncios. Meia hora
depois bateram à porta, abri e deixei passar uma mulher que arrastava atrás de si todo o ar
quente das Caraíbas.

- São trinta mil adiantadas, meu amor - disse ela, inclinada diante do minibar.

- Aqui há cem mil, mas só se te portares bem.

- Eu porto-me sempre bem, paizinho - respondeu, esticando a boca grande e vermelha.

E cumpriu. Os bons efeitos da pançada de marisco esgotaram-se depois do terceiro round.


Enquanto se vestia, comentou:

- Estiveste sempre calado, paizinho. A mim excita-me que falem comigo, que me digam
porcarias. És sempre assim?

- Não. Mas hoje tive um dia mau. Um dia péssimo. Um dia de merda - respondi, porque era
essa a verdade, a maldita e mísera verdade.

Quando a mulata saiu levando consigo as cem mil pesetas e as brisas quentes das Caraíbas,
telefonei para o bar e pedi que me mandassem lá acima uma garrafa de uísque.

E assim passei a noite daquele dia mau sem abrir a garrafa, embora sentisse uma
vontade terrível de me embebedar, e a falar com a fotografia do tipo que teria que eliminar,
porque, por muito cornudo que seja, um profissional é sempre um profissional.

2. Um assassino que fala de lealdade

"Não sei o que terás feito, mas estás lixado, mano. Talvez te sirva de consolação saber que vais
ser morto por outro tão lixado como tu, e o mais curioso é que te invejo, porque para ti tudo
estará acabado quando te meter no corpo um par de ameixas. Ao passo que eu, mano, terei
que continuar a viver".

Ia a perguntar ao tipo da fotografia que espécie de homem era ele, e se por acaso já estava à
minha espera, quando o telefone me interrompeu as fantasias. Antes de responder, corri as
cortinas e abri as janelas para arejar o fumo dos cem cigarros que fumara durante a noite. Já
era dia e a luz de Madrid, como sempre, feria as pupilas.

- Bem dormido? - Cumprimentou o homem das encomendas.

- Tens alguma coisa para mim? - Respondi.

- Problemas. Muitos problemas. Problemas de mais - suspirou ele.

- Estás a carregar-me muito a mala. Como sabes, hoje tenho de viajar - recordei-lhe.

- Claro. Mas antes tens um encontro com um mensageiro no bar do hotel. Vai chegar
às dez em ponto com um letreiro da Turis Sol que, como tu e eu sabemos, te nomeou gerente.
Às dez e quinze telefono-te outra vez.

- Muito bem.

Não fiz mais nenhum comentário. Olhei para o relógio. Eram nove da manhã, e por isso
meti-me no duche e estive longos momentos debaixo do jorro de água fria.

- Bem. Algum dia havia de acontecer. É uma miúda nova e pode dizer-se que tu já estás no
declínio. Por que raio é que te dói tanto? Fizeste dela uma mulher, e que gata! Por isso deixa-
te já de queixas - disse-me do espelho um tipo em pelota que se parecia comigo como um
irmão gémeo.

- Eu não me queixo. Sei perder, mas não suporto a deslealdade - respondi-lhe enquanto
partilhávamos a mesma espuma de barbear.

- Um assassino que fala de lealdade. Que palerma! - Respondeu-me ele erguendo uma
navalha semelhante à minha.

Às dez em ponto estava no bar do Palace pedindo uma sanduíche de frango e uma cerveja.
O mensageiro foi pontual. Era um rapaz de uns dezoito anos, vestido como o Miguel Indurám,
que entrou erguendo ao alto, como se fosse o troféu da volta à França, um letreiro onde se lia
“Turis Sol”.

Entregou-me um envelope e agradeceu as mil pesetas da gorjeta levando uma mão à


têmpora. Regressei ao quarto com a sanduíche, a cerveja e o envelope. Ali, enquanto esperava
a chamada do homem das encomendas, abri o envelope. Vinham lá dentro cinco fotografias
do tipo com quem tinha monologado quase toda a noite. Na primeira, descia de um Mercedes
azul com matrícula de lima. Tinha o cabelo castanho, ou meio-loiro, bastante mais comprido
que na fotografia que eu já conhecia. Na segunda estava a atirar uma bola num campo de
golfe. Um caddie baixinho apontava-lhe qualquer coisa ao longe, mas a paisagem do fundo,
bosques, não me trouxe maior informação. Na terceira fotografia ia a entrar numa casa que
me pareceu de uma rua sul-americana ou mexicana. Por cima da porta havia um letreiro, mas
o fotógrafo apenas focara a palavra vida". A quarta era quase uma repetição da fotografia que
recebera no dia anterior: a mesma mesa, mas com acompanhantes diferentes e com uma
variação na legenda da fotografia. "Segundo encontro de organizações não-governamentais,
ONG". Na última fotografia custou-me a reconhecê-lo: tinha o cabelo preto e uma barba de
várias semanas. Houve qualquer coisa que não me agradou naquela fotografia, e aproximei-
me da janela para a observar com mais atenção. Ia a andar num local que reconheci
imediatamente, porque o tinham fotografado na imensa cidade do México, justamente
quando ia a passar em frente da livraria El Péndulo, em colónia condesa; porém não foi isso
que me chamou a atenção, mas

Uma coisa qualquer que lhe sobressaía com insolência da cintura. O tipo vestia um pullover cor
de laranja, jeans, e ou tinha uma gaita tão comprida que tinha de a prender com o cinturão, ou
então levava um pistolão escondido debaixo da roupa. Nesse momento tocou o telefone.

- Recebeste os planos? - Perguntou o homem das encomendas.

- Recebi, e acho que o terreno está adubado -comentei.

- Os empreiteiros querem um trabalho impecável e ao mesmo tempo inesquecível -


precisou ele.

- Muito bem. Quando é que devo sair?

- Terás que esperar uns dias, porque nos falta o material mais importante.

Certo. Volto hoje para Paris. Telefonas-me para lá - disse eu, e desliguei.

Com que então o tipo tinha-se feito em fumo: "falta-nos o material mais importante". Onde
diabo estaria? E os empreiteiros exigiam uma morte inesquecível. Bem, não era a espécie de
encomendas que aceitava com gosto. A última vez que fiz um trabalhinho semelhante foi em
Los Angeles com um tipo que se esquecera de pagar as suas dívidas. Tive de me encarregar de
dois seguranças para entrar em casa dele, um trabalho extra que depois não apareceu na
conta. Depois de o atar, pendurei-lhe ao peito uma simulação de bomba. Então chamei a bófia,
os bombeiros, as urgências, e ao sair meti-lhe sete ameixas na coxa esquerda. Ficou-se a
sangrar e a chamar por socorro, porque ninguém se atreveu a aproximar-se com medo da
bomba.

Pois, o amigo da fotografia! Parecia que os seus pecados eram dos grandes, e mostrava-se
hábil. O homem das encomendas só me telefona quando as peças estão perfeitamente no
sítio, porque o que me compete é chegar, matar e partir. Dar com as peças e colocá-las é
trabalho para os furões.

Uma fotografia no Peru, outra no México. Pensar em enredos de coca era simples de mais;
além disso, essa espécie de assuntos são arrumados pelos assassinos contratados, a não ser
que o infractor seja um VIP. "Bem, bem, mano", disse eu olhando para as fotografias, "que é
que perdeste no México e no Peru? ou, melhor, que terás tu encontrado nesses dois países? e
que significa isso de brincar aos filantropos em dois congressos das ONG? Talvez mo expliques
quando chegar a tua hora. Acho que vamos ter tempo de sobra para uma conversa
interessante".
Estava a pagar a conta quando o recepcionista me avisou de que havia uma chamada para
mim. A cabina parecia uma sauna, e o calor aumentou quando reconheci a voz da minha gata
francesa.

- Como estás? - Perguntou ela num tom inseguro.

- A suar - respondi.

- Conseguiste dormir? - Continuou ela, desta vez num tom preocupado.

- Claro. Uma tipa das Caraíbas levou-me cem mil pesetas e meio litro de sémen.
Melhor que o valium - contei-lhe eu sem intenção pedagógica.

- Há três dias que não consigo pregar olho - confessou ela com palavras despedaçadas
pelo choro.

- Lamento. Não te posso comer pelo telefone mas, se é esse o teu problema, podes
recorrer ao teu cartão American Express para um prostituto mexicano to resolver - aconselhei
eu antes de cortar, mas a pequeníssima distância entre o auscultador colado ao meu ouvido e
o microfone na base do telefone não conseguiu conter o seu pranto e os seus "meu amor,
ouve-me por favor", que me aderiram à pele com a mesma insistência do suor.

No trajecto até ao aeroporto tive de suportar outro desses chatos loquazes que são os
taxistas madrilenos.

- Gosta de touros? - Atacou ele.

- Depende de como estão grelhados - respondi.

- Homem, eu estou a falar da festa, dos toureiros e do resto, percebe?

- E eu estou a falar das túberas, dos tomates de touro grelhados, percebe?

Parece que percebeu porque, depois de gabar um certo matador a quem as fêmeas atiram
soutiens, passou a queixar-se dos mouros, dos negros, dos ciganos, dos sul-americanos e de
toda a humanidade que não correspondesse aos seus cânones de europeu baixote a cheirar a
fritada. Mais uma vez lamentei a ausência de uma quarenta e cinco na mão direita.

No aeroporto, antes do check-in, entrei nos lavabos para mudar de camisa. No espelho, um
tipo muito parecido comigo secava a cara com as toalhinhas de papel que um magricela
silencioso, idêntico ao que estava ao meu lado, lhe entregara.

- Não é caso para tanto - disse o tipo do espelho.

- Não sei de que é que estás a falar - respondi.

- Como? - Perguntou o magricela das toalhinhas.

- Não, não é contigo - espetei-lhe eu, afastando-o num empurrão.


- Viste o estado em que estás? Relaxa. Há rebanhos de gatas como ela. Aceita com calma,
ainda tens muito tempo. Despacha a mala e depois tomas uns copinhos de gim - aconselhou o
meu gémeo do espelho.

Fiz o que ele disse.

Geralmente sigo os conselhos dele, sobretudo os profissionais. Lembro-me de uma


encomenda em meados dos anos oitenta. Tinha de liquidar um industrial de austin, Texas. O
tipo era muito hábil e encontrara a melhor forma de se proteger nas suas idas e vindas para e
do escritório: viajava num autocarro escolar cheio de crianças, sentado no meio delas. A
imprensa texana falava com admiração daquele benfeitor que renunciava à sua limuzina e
financiava o transporte escolar. O que não dizia era que aquele filho de uma cabra utilizava os
garotos como escudo.

"Não quero matar nenhum garoto, mas não tenho outra solução, porque o escritório dele é
inexpugnável", comentei eu com o tipo do espelho.

"Usa a cachimónia, companheiro. O teu objectivo é um ianque, que é sinónimo de patriota.


Topas?".

- Nem uma palavra. Não gosto de ti quando falas como um oráculo.

- Aproxima-se o 4 de Julho, e o teu objectivo não deixará de aproveitar uma ocasião


dessas para soltar adrenalina patriótica. É por aí que entram os tiros.

E foi por aí que entraram os tiros. Um furão averiguou que o ianque preparara a sua
hemorragia patrioteira para o dia anterior, de modo que me pus em movimento a 3 de Julho,
disfarçando-me do bobo orelhudo dos sete anões. Misturei-me com os lobos ferozes, com os
patos Donald, com os ratos Mickey e outros abortos do género que esperavam o autocarro
escolar enquanto distribuíam centenas de bandeirinhas com listas e estrelas, caramelos e vales
do McDonald's.

O autocarro parou à hora anunciada e nós, crianças, aproximámo-nos das caras que
assomavam às janelas. O ianque ia acompanhado por dois guarda-costas que ainda hoje
devem perguntar a si mesmos que diabo se terá passado, porque actuei logo que o vi: a uns
dois metros de distância meti-lhe uma ameixa de calibre quarenta e cinco expansivo. No meio
da gritaria dos garotos, o estalido, sufocado pelo silenciador, mal soou como um suspiro, e o
tipo desmoronou-se com um buraco na testa e os miolos a sair-lhe pelas orelhas. Foi um
trabalho limpo, embora eu deteste os projécteis expansivos porque danificam as estrias do
cano.

Estava eu a beber o segundo gim quando, sem querer, olhei de esguelha para o jornal que
um companheiro de balcão estava a ler. Era um diário turco, não percebia uma só palavra, mas
ali, na fotografia, estava a minha próxima encomenda, sorridente, num grupo de homens e
mulheres.

- O senhor fala inglês? - Perguntei ao leitor do jornal.


- Inglês, espanhol, francês e alemão. Não é fácil vender alcatifas nestes tempos -
respondeu-me ele agitando uns grossos bigodes.

- Esse homem, o terceiro a partir da esquerda, é um velho amigo meu. Pode dizer-me o que
é que diz a legenda da fotografia?

- Diz que o grupo assiste a um congresso de arquitectura. As grandes urbes e o problema


migratório são o tema central. Começou ontem e acaba dentro de três dias. É tudo.

- E onde é esse congresso?

- Em Istambul. Bonita cidade. Eu sou de lá - informou o vendedor de alcatifas.

Poucos minutos depois a minha chamada surpreendia o homem das encomendas.

- Em Istambul? Tens a certeza?

- Participa num congresso de arquitectura que termina dentro de três dias.

- Deixa-te ficar no aeroporto e telefona-me daqui a uma hora.

Assim fiz. Ouvi várias vezes chamarem para embarcar alguém com o mesmo nome que eu e
assim a minha mala ia-se embora sem mim. Imaginei-a às voltas, abanDonada no tapete sem
fim do aeroporto de Paris, enquanto eu esperava que passasse a hora que talvez me levasse a
Istambul, para um homem que tinha que apagar do mapa de maneira exemplar.

3. Encontro em Istambul

Em todas as capitais há um hotel Sheraton e todos são iguais. Os recepcionistas parecem


clonados de um protótipo universal e perguntam sempre o mesmo:

- O senhor tem reserva?

Tinha. O homem das encomendas é muito rigoroso nisso, mas, como de costume nos
hotéis Sheraton, deram-me o pior quarto. Não liguei. Não fora a Istambul para fazer turismo,
mas para observar o tipo a quem ia tratar da saúde.

- Incomoda-me ter de reconhecer isso, mas trata-se de um material muito difícil de


encontrar - dissera o homem das encomendas.

- E, se o encontrar, que faço? - Perguntei eu.


- Não compres lá. Os empreiteiros querem produtos nacionais - precisou ele.

Embora me preze de ser um bom profissional, as palavras dele aliviaram-me. Não estava
preparado para actuar em Istambul, não conhecia a cidade e, desde que deixei o aeroporto
para trás, os militares turcos puseram-me nervoso. Olhavam insistentemente para qualquer
um que, segundo eles, pudesse ser curdo ou tivesse alguma coisa a ver com os curdos. Parecia
muito difícil conseguir uma boa fusca na Turquia.

Donde raios sairão os taxistas? O que me levou do hotel até ao centro de congressos era um
turco com uns bigodes tão grandes como o guiador de uma bicicleta e, mal poisei o cu no
banco protegido por um plástico, transformou-me em alvo da sua ânsia catequista.
Amaldiçoou quantas mulheres de saias curtas passeavam pelas ruas, amaldiçoou os anúncios
de rum Bacardi, os de cigarros e, finalmente, pedindo-me que não me ofendesse, meteu-se
com os estrangeiros, pois só traziam para o seu país perniciosos costumes. À chegada ao
centro de congressos, já se estava cagando para o Kemal Ataturk. Ao mesmo tempo que lhe
pagava a corrida, prometi a mim mesmo dignificar as profissionais do amor e nunca mais
chamar filho da puta a quem não o merecesse. Filho de má pareceu-me um insulto muito mais
contundente.

Era curioso o homem a quem tinha de tratar da saúde. No programa do encontro grandes
urbes e problemas migratórios aparecia a sua fotografia, o seu nome, Victor Mújica - vamos
supor que era o dele -, uma interessante biografia que o apresentava como um pioneiro das
organizações não-governamentais, e a sua nacionalidade. Era mexicano e nascera em 1959 em
Guadalajara, Jalisco. O que quer dizer que tinha trinta e seis anos, boa idade para morrer.

Na cafetaria do centro de congressos tive-o a menos de dois metros. Tratar dele ali mesmo
teria sido uma brincadeira de principiantes, mas não podia nem devia fazê-lo. Os empreiteiros
queriam que o último ar que respirasse fosse americano, qualquer dos ares que sopram desde
o rio grande até ao cabo de Hornos. Falava com um grupo de homens e mulheres que o
olhavam com demonstrações de apreço. Saltava do inglês para o alemão e do francês para o
português com os seus companheiros de grupo. Houve uma mulher que, em inglês, lhe pediu
que cantasse. Primeiro recusou sem convicção, mas, perante a insistência, fechou os olhos
para desfiar com boa voz a letra de uma ranchera:

...ela quis ficar

Quando viu minha tristeza,

Mas estava escrito já

Que naquela mesma noite perderia o seu amor...

Cantava bem o pequenote mexicano, supondo que o era. Tinha o aprumo subtil que
denuncia o senhor do jogo, o que quer dizer que não devia ter problemas de solidão entre os
lençóis.

"Bom, meu. Vais apagar do mapa um tipo simpático", disse de mim para mim, e uma vez
mais me senti estúpido, porque queria saber por que é que tinha de o matar.
... Quis achar o esquecimento

 maneira dejalisco,

Mas os copos de tequilha

E aqueles mariachis

Puseram-me a chorar...

Acabou de cantar sem abrir os olhos, como se os versos da ranchera fossem algo de íntimo,
algo de seu, irrenunciável, e, no breve silêncio que antecedeu os aplausos dos que o
roDEAvam, ocupou-me o espírito a imagem da minha gata francesa. Ela estava lá, no México,
talvez gozando as hemorragias de pranto que os mariachis na praça Garibaldi costumam
provocar. Que cabrões, os mariachis, mais os que levam lá as suas gatinhas incautas! Sabem
que, depois de umas rancheras bem choradas, não há pernas nem cuecas que resistam.

- Não te entendo. Vieste ver o tipo a quem vais tratar da saúde, cheirá-lo, medi-lo, e
bastou uma estúpida canção para quase te fazer chorar. Olha o profissional em que te
transformaste! - Disse diante do espelho o homem que vestia um casaco igual ao meu.

- Não me lixes. Sabes que cumpro sempre.

- Espero que sim. E que pensas fazer agora? Ler um romance da Gorn Telíado?

- Vou vasculhar nas coisas dele no hotel.

- Esse não é o teu trabalho. O que acontece é que queres saber por que é que tens de
o eliminar. Eu sei.

- E vais dizer-me?

Claro: porque para o fazeres vão dar-te um cheque com seis zeros à direita, livre de
impostos. E é tudo, meu parvo.

Uma nota de cinquenta dólares quebrou as reticências do bigodudo que estava a atender
na mesa de informações do congresso. O tipo estava alojado no hotel Richmond.

Nada mal, o hotelzinho! O átrio ressumava nostalgia do império otomano e o recepcionista


era daqueles de que eu gosto: discreto de palavra, mas de focinho eloquente.

- Deixei há umas horas uns documentos para o senhor Mújica. Trata-se de assunto muito
importante e quero saber se os recebeu.

Sem dizer uma palavra, o recepcionista deu meia volta e, com um gesto do queixo,
apontou-me para o cacifo vazio do quarto quatrocentos e cinco.

- Os documentos foram oportunamente entregues ao senhor Mújica - disse ele com o


orgulho servil de um cinco estrelas.
Chego, mato e vou-me embora. Foi isso que fiz nos últimos quinze anos, e nesta profissão
aprendem-se coisas sem uma pessoa dar por isso. Uma delas é cheirar a tempo o fedorzinho
do que não encaixa.

O que não encaixava no corredor central do Richmond era o gordo semicalvo que lia o New
York Times encostado à parede e virado para os elevadores. Uns metros mais à frente
dispunha de uma sortida colecção de fofos sofás, mas o gordo estava a ler de pé.

Entrei no elevador e carreguei no botão do sétimo andar. Na solidão do corredor fumei um


cigarro com toda a calma do mundo e depois desci lentamente pela escada. No quarto andar
pude verificar que aquilo de ler o New York Times de pé e virado para os elevadores era
contagioso. A este segundo leitor de jornais só lhe faltava um chapéu texano para denunciar a
sua nacionalidade.

Quando me viu, concentrou-se na leitura. Amaldiçoei-me por ter cometido um erro de


principiante: o gordo lá de baixo tinha certamente um transmissor através do qual devia ter
dado a minha descrição ao compincha lá de cima, e este, ao ver-me aparecer pela porta da
escada, não teve a menor dúvida. Que diabo, era preciso actuar rapidamente, e foi o que fiz.

Dirigi-me aos elevadores e estendi uma mão para os chamar, mas, antes de tocar no botão
de plástico, virei-me, ao mesmo tempo que, com a perna esquerda, administrava um pontapé
no leitor impenitente.

Acertei-lhe em cheio nos testículos e, sem lhe dar tempo para se recompor, apliquei-lhe
dois golpes nas orelhas. Não só se lhe rebentou o auscultador, como lhe entrou na carne. O
homem tinha também um lindo microfone escondido na aba do casaco, um trinta e oito de
cano serrado e, que surpresa!, uma credencial muito bem plastificada de agente da DEA, isto
é, da DG Enforcement Agency, a agência antidrogas dos estados unidos.

Uns minutos depois, uma porta de emergência cuspia-me para a rua. Pus-me a andar.
Precisava de pensar, e rapidamente. A DEA andava atrás do meu próximo alvo. Istambul
connection? Teriam os mexicanos começado também a fumar alcatifas? Quantos homens mais
teria a DEA em Istambul? Precisava de encontrar urgentemente um lavabo para falar com o
habitante dos espelhos que me conhece tão bem.

O cansaço das pernas indicou-me que já andava há várias horas sem rumo definido para
um sítio qualquer, ou talvez, sim, involuntariamente, para um lugar concreto, que, apesar de
não me conduzir a parte alguma, me afastava cada vez mais dos hábitos profissionais.

Havia-me intrometido no que não me interessava, preocupavam-me as razões pelas quais


tinha de eliminar um homem, acabava de bater num agente da DEA e, como se fosse pouco, a
imagem da minha gata francesa aparecia-me na memória com dolorosos intervalos, como o
anúncio de alguma coisa que nunca poderia comprar.

Ao dar comigo num mar de alcatifas, tapetes, narguilés, pavorosas litografias de paisagens,
retratos de Khomeini e outras bagatelas orientais, soube que estava, sem ter tido essa
intenção, no grande bazar. A mistura de incenso e patchilli tornava o ar irrespirável. Os
vendedores assediavam os turistas e estes dedicavam-se a apalpar alcatifas com displicência.
Dois bigodudos sorridentes aproximaram-se de mim; um deles tinha um tapete enrolado nos
braços e o outro cumprimentou-me com uma inclinação de cabeça.

- Temos com toda a certeza o que o senhor procura. Se nos fizer o favor de aceitar uma
chávena de chá, poderemos discutir o preço - disse ele com ademanes de Ali Babá.

- Lamento. Não tenho intenção de comprar nada - respondi.

- Peço-lhe que dê uma olhadela, só uma, à incomparável qualidade dos nossos tecidos
- sugeriu ele, ao mesmo tempo que fazia um gesto para o seu acompanhante.

Este levantou o tapete enrolado até quase me roçar o nariz. Entre as dobras assomavam os
dois canos de uma espingarda. Desta vez fui eu quem inclinou a cabeça com humildade,
aceitando o convite para saborear uma chávena de chá no grande bazar de Istambul.

Os dois homens levaram-me para o quarto dos fundos da loja. Chegados lá, o da espingarda
apontou-me uma almofada enquanto o outro comunicava com alguém por telemóvel. Quando
acabou de falar, retomou o tom cerimonioso.

- Não sabemos quem o senhor é, nem qual é o seu jogo, mas suponho que não tardaremos a
sabê-lo. Também lhe devo dizer que não se portou nada bem com o amigo do hotel, o pobre
homem tem a orelha que parece uma almôndega. Além disso, causou prejuízos a certos bens
públicos dos estados unidos. Tudo isso é muito mau.

- Lamento, mas esse homem atacou-me e tive que me defender. Pensei que me queria assaltar
- desculpei-me eu.

- Não são frequentes os assaltos nos corredores do quarto andar do hotel Richmond. A sua
história não me agrada nada. Conhece a da princesa Xerazade? As histórias têm que ser
convincentes e bem contadas. Hassan, inspira aí um pouco o nosso convidado - ordenou ao
acompanhante.

Hassan sabia onde bater. Descarregou-me com tal força a culatra da espingarda no ombro
esquerdo que se me abriram os dedos da mão. À dor da pancada seguiram-se pavorosas
cãibras.

- E agora que pode melhorar o argumento da sua história, comecemos por uma curta biografia
do autor. Quem é o senhor? - Perguntou o cerimonioso.

Quis responder: "quem são vocês?", mas não estava em situação de impor condições. Com a
segunda pancada no ombro esquerdo, julguei que o meu braço me ia cair, que me ia
escorregar como um réptil morto pela manga do casaco. O Hassan não era apreciador de
longas pausas nos relatos.

- Sou um turista. Costumo fazer footing nos corredores dos hotéis.

Calculei bem o instante em que o Hassan me aplicaria o terceiro golpe. Inclinei o corpo para
o lado direito, de modo que a culatra me roçou o braço dorido enquanto eu a agarrava com a
direita e puxava para baixo.
O Hassan perdeu o equilíbrio e enredou os pés na bainha da sua jilaba. Enquanto ele caía
para a frente, consegui tirar-lhe a arma. Não sabia se estava carregada, mas não tinha tempo
para averiguar. Tudo estava em sair dali e, mais uma vez, era preciso pensar depressa.

- Acalme-se. Não poderá sair do bazar com uma espingarda nas mãos. Peço-lhe que desculpe
os maus modos do Hassan; pelo meu lado, proponho-lhe um diálogo cortês - disse o
cerimonioso.

E foram estas as suas últimas palavras, porque de súbito a cabeça caiu-lhe para a frente como
se tivesse recebido um coice e todo ele foi parar de bruços em cima de um montão de
alcatifas. Virei-me. Vi então a minha encomenda armada com um trinta e oito com silenciador,
embrulhado num jornal. Também tinham voado os miolos do impaciente Hassan, que fora cair
muito perto do seu companheiro.

- Segue-me, pobre imbecil - ordenou ele, e fiz o que ele dizia, lembrando-me do momento em
que vi pela primeira vez a sua cara numa fotografia e soube que os nossos caminhos haviam de
cruzar-se, para o bem ou para o mal.

4. O anjo exterminador apresenta-se

O homem que, mais tarde ou mais cedo, teria que matar, salvara-me a pele e levava-me
pela mão pelas veredas do grande bazar de Istambul. Parecia conhecer muito bem aquele
território, porque nenhum bigoctuclo tentou sequer vender-lhe um tapete.

- Disse-lhes mil vezes que o contacto do bazar já não valia - murmurou ele ao chegarmos á
saída.

- Pois - limitei-me a responder.

- Os gringos no hotel puseram-te nervoso? - Perguntou, tirando do bolso um telemóvel.

- Pois - repeti.

- És um perfeito idiota. Eles só estavam lá para garantir a sua fatia, nada mais. Mas,
enfim, vamos agora à massa - disse ele, e com um gesto mandou-me afastar uns passos
enquanto marcava um número.

- Pois - tornei a repetir.

Cochichou umas palavras inaudíveis, puxou-me por um ombro e assim entrámos num
café cheio de bigodudos a jogar gamão. Pediu dois cafés turcos.

- Eu preferia um gim - aleguei. Alterando a concisa linha argumentativa que mantivera


até então.
- Basta mencionares neste lugar uma só bebida alcoólica para deixares os tomates no
balcão. Por que não me procuraste no centro de congressos? Fui bastante claro ao dar as
instruções - observou ele, mexendo o café com a colher.

- Lá ainda havia mais gringos, e fiquei nervoso - disse em tom de desculpa.

Então o tipo olhou-me fixamente nos olhos. Fosse como fosse, as minhas palavras
acabavam de lhe dizer que eu não era quem ele esperava. Eu também olhei para ele. Era um
tipo de compleição forte, de músculos exercitados pela constante prática do desporto. Parecia
seguro de si mesmo e acostumado a impor-se graças a essa envolvente segurança. Animou-me
vê-lo de cenho franzido, pensando à pressa para recuperar da surpresa.

- Quem diabo és tu? - Perguntou, levando uma mão à cintura para me recordar que estava
armado com um trinta e oito com silenciador.

- Sou o anjo exterminador. O meu objectivo é matar-te, mas não aqui. Ainda não sei onde é
que o vou fazer, mas havemos de sabê-lo os dois quando chegar a altura.

Naquele preciso instante ouviu-se a buzina de um automóvel. O tipo separou-se da cadeira


e, sem tirar a mão da cintura, começou a caminhar de costas. Perdera toda a segurança, o
queixo tremia-lhe e tentava desesperadamente dizer qualquer coisa, mas as palavras não lhe
chegavam aos lábios.

Estava a terminar o pavoroso café quando o ar se encheu de sirenes de carros da polícia.

- Que é que está a acontecer? - Perguntei ao criado enquanto pagava a despesa.

- A mesma coisa de sempre. Terroristas curdos que mataram dois comerciantes no bazar.

Saí para a rua e, caminhando sem rumo, perdi-me mais uma vez. Que diabo estava a passar-se
comigo? Pela primeira vez na minha longa e impecável trajectória profissional, pusera a minha
futura vítima de sobreaviso, tinha provavelmente os homens da DEA a pisar-me os calcanhares
e metade dos comerciantes das três mil lojas do grande bazar estaria a dar a minha descrição à
polícia ou ao exército turco. Maldição, tinha atirado para cima de mim com a própria NATO.

Às cinco da tarde fazia um calor infernal e decidi procurar o fresco benévolo de um majestoso
edifício. Era a mesquita de Ortakey. Dos jardins avistei a ponte sobre o Bósforo, essa língua de
cimento que une, como se nada fosse, a Ásia e a Europa.

Ao inclinar-me para uma fonte, vi reflectido na água o homem vestido com o mesmo casaco. A
sua cara também reproduzia a minha preocupação.

- Bateste o recorde mundial de cagadas - disse ele como quem cumprimenta.

- Eu sei. Ajuda-me a pensar.

- Não tens muito tempo. Mete-te já num táxi para o aeroporto. A tua vítima deve estar a fazer
o mesmo, se é que não voou já vá-se lá saber para onde. Também não seria mau telefonares
para Paris. Pode ser que o homem das encomendas te tenha deixado algum recado no
atendedor de chamadas.
Segui os conselhos do meu duplo. No aeroporto comprei uma passagem para Frankfurt. Era o
voo mais directo e saía daí a duas horas. No bar internacional, a salvo das iras dos rapazes de
islâmicas imbecilidades, meti no bucho três copos de gim e a seguir telefonei para Paris, para o
escritório de contacto. Não havia recado nenhum no atendedor. Desliguei. Estava quase a
passar para a sala de embarque quando um estranho impulso me levou a marcar o outro
número de Paris, o número daquilo a que até há pouco chamara, como um cretino, a minha
casa, com os impostos em dia.

Havia vários recados, todos eles de amigos da minha gata francesa, que manifestavam uma
preocupação colectiva pela sua demora no México. Havia também um com a voz dela, que
soava como se falasse com um punhal a escassos centímetros da garganta: sou eu, responde-
me, por favor. Preciso de falar contigo. Não sei o que está a passar-se comigo, mas preciso de
ti e ao mesmo tempo não posso regressar sem o ver a ele. Não me odeies. És tão bom e
generoso! Voltarei logo que tenha falado com ele. Amo-te mas não sei o que se passa comigo.
Desliguei antes de a mensagem terminar. Estava metido em problemas de mais para fazer de
consolador.

O voo Istambul-Frankfurt durou cinco horas, quatro das quais dormi ajudado por várias
garrafinhas de gim que uma hospedeira me serviu com exemplar generosidade. Antes de
executar uma encomenda procuro dormir muito, e a melhor forma de o fazer é evitar os
sonhos, esses territórios para onde somos levados sem querer. Um colega irlandês ensinou-me
um truque para os eliminar: e preciso pensar intensamente num imenso pano verde que vá
cobrindo tudo o que tenhamos visto até ao momento de fechar os olhos. "Ioga do assassino",
chamava-lhe o irlandês, e sempre me dera resultado, mas, no avião, a maldita imagem da
minha gata francesa perfurou o pano verde e emergiu dele, fresca, excitante, como que
recém-saída de uma lagoa.

Ela levou-me pela mão, num dia de Outono, pelos jardins do Luxemburgo e descascou-me
castanhas quentes compradas à saída da estação de metro Gobelins. Mais tarde acariciou-me
o peito com movimentos involuntários depois do cansaço dos orgasmos bem coordenados,
deu-me de beber da sua boca quente golinhos de sancerre frio e escreveu com a língua frases
de amor no espelho. Numa praia de Puerto Rico prendeu-me as mãos com as pernas quando
lhe estava a pôr creme de protecção. Exigiu-me sexo com urgência em cima de uma mesa de
blackfrick num casino de Orlando. Leu-me versos de Prévert, Thomas e outros tipos que me
deixaram indiferente, e sussurrou canções de Brel, cujas palavras julguei entender. Não foi
fácil despertar sem me agarrar ao seu maldito nome.

O taxista que me levou do aeroporto para o centro da cidade era turco, mas a sua
nacionalidade não o isentava de pertencer à tribo universal dos indiscretos.

- Que lhe pareceu Istambul? Bela cidade, não é? - Cuspiu ele sem piedade.

- Como sabe que venho de lá?

- Porque é o último voo internacional. Em Frankfurt aterra um avião de três em três


minutos, mas os voos que vêm da Turquia chegam à pista de alta segurança. É por causa dos
curdos, sabe? São uma pandilha de terroristas, e os alemães tomam precauções.
- Passei muito mal em Istambul.

- Acredito. É o que acontece aos turistas que não se deixam aconselhar. Em Istambul nem
o Alam Delon tem relações com uma gaja; em compensação, os suecos e os alemães estão na
maior em Edirne. Todos tomam banho nus e ardem na areia. Ora se o senhor for mais
exigente, as ruas de gálata estão cheias de efebos de romance. É como cadaqués, mas lá o
marco alemão abre qualquer coração ou qualquer cuzinho.

- Obrigado pela informação, mas o que eu queria era comer uma gaja cabeluda. É que o
chador excita-me de morte - assegurei eu ao filho longínquo de alá.

No Frankfurter Hof deram-me um quarto em que se podia jogar futebol. Pedi que
mandassem para cima uma garrafa de gim e telefonei ao homem das encomendas.

- Tenho que falar contigo longamente e por extenso, agora mesmo - avisei.

- Certo. Estejas onde estiveres, procura um telefone público e telefona-me daqui a meia
hora para um número que esquecerás para sempre - disse-me ele ditando-me os números do
telemóvel.

Fiz horas no átrio do hotel. Estava cheio de mulheres bonitas. Era como que uma
competição em que se exibisse a beleza do género feminino em toda a sua plenitude. Vários
cartões de identificação presos aos decotes informaram-me que se celebrava em Frankfurt a
feira anual de moda e design. Aquilo era como se visse a minha gata francesa repetida num
labirinto de espelhos. Mas a beleza é efémera, como se sabe, e dirigi-me a uma cabina para
falar com o homem das encomendas.

- Sê breve, adoro a capacidade de síntese – disse ele.

- Eu sei. Pois aí vai: por pouco tratava da saúde de um agente da DEA, e depois quem
tu imaginas salvou-me a pele eliminando dois tipos. Diz-me: quem contratou os meus
serviços?

- Merda, não sintetizes tanto. Disseste a DEA? Tens a certeza?

- Nunca vi uma amostra mais perfeita.

- Acho que te vão duplicar a massa. Telefono-te para Paris amanhã ao meio-dia. Saberás
como chegar a tempo – e desligou.

Quando saí da cabina fui atacado por uma magrinha de olhos verdes.

- Essa camisa é do kendo - garantiu em francês.

Não quis discutir a paternidade. Em suma, é muito possível que nas galerias Lafayette
vendam camisas de design.

- Bom olho, garota. Por que é que não me acompanhas e lhe examinamos as casas de
perto? - Respondi eu agarrando-a pela cintura.

Aqueles olhos verdes eram portadores do bálsamo que elimina os sonhos.


5. Um assassino reformado

Às oito da noite do dia seguinte, e obedecendo às ordens do homem das encomendas,


estava eu de cu muito bem acomodado diante do volante de um Mercedes Benz e esperava no
parque de estacionamento de automóveis de aluguer do aeroporto Charles de Gaulle. O
concorde aterraria daí a poucos minutos e entre os passageiros do voo Nova Iorque-Paris vinha
aquele indivíduo de quem apenas conhecia a voz.

- Receio que as tuas borradas em Istambul tenham desarrumado o baralho - disse o meti
duplo no retrovisor.

- Assumo isso. Fiz o que devia e não me perguntes porquê.

- Eu bem sei por que é que fizeste aquilo. Essa gajinha tem-te pelo beicinho e estás
totalmente descontrolado - disse ele, acrescentando: - não receias o encontro com o homem
das encomendas? Sabes que na tua profissão não há despedimentos. Mas certidões de óbito.

- Se vem ter comigo, há-de ser por alguma razão. Nunca lhe falhei.

- Nunca? - Perguntou ele cheio de sarcasmo.

Mudei a posição do espelho com uma pancada da mão para ele não continuar a falar, mas
senti que tinha razão. Em que raio estaria eu a pensar? De manhã, ao chegar de Frankfurt,
dirigira-me ao escritório de contacto para esperar pela chamada do homem das encomendas.
Foi pontual. Telefonou do aeroporto Kennedy e deu-me as instruções que naquele momento
estava a cumprir. Depois pus-me a andar velozmente para aclarar as ideias, mas uma força
irresistível conduziu-me ao apartamento que até há poucas semanas partilhara com a minha
gata francesa.

Tudo o que lá estava me pareceu longínquo e alheio. Televisor, móveis, vídeo, aparelhagem
sonora, candeeiros, cama de casal, discos, livros e mais livros, quadros, bar, a roupa arrumada
nos armários, nada daquilo tinha a ver comigo. Decidi meter uns fatos e umas camisas numa
mala para sair dali definitivamente. Enquanto fazia isto, os olhos dela observavam-me de
todos os ângulos, multiplicados nas fotografias que me tirara em diversos lugares e que eu

mesmo pendurara nas paredes. Então soou o telefone, três vezes, e o atendedor de chamadas
activou-se. Era ela. A voz pareceu-me muito distante e cansada. Falava de amor, de um terrível
engano, de vergonha e de um regresso logo que saísse de um enredo de que tinha de sair
sozinha. Insistia nas palavras de amor, recordava dias felizes. Amaldiçoava-se, e eu castiguei as
paredes até que os punhos me sangraram, para não ceder à tentação de levantar o
auscultador.

- Falhaste-me, garota. E eu não admito essa espécie de falhas, - murmurei enquanto


fechava a porta. A voz dela ficou a flutuar na solidão daquele andar a que nunca mais
regressaria.
Um homem gordo com uma maleta e uma gabardina dobrada aproximou-se do automóvel.
Saí para lhe abrir a porta correspondente ao lugar do acompanhante.

- Ora até que enfim que nos conhecemos. Este encontro nunca devia acontecer, mas,
enfim, as coisas são como são - disse a voz que eu conhecia tão bem.

- Dirás aonde devo levar-te - respondi eu.

- Vamos dar um passeio. Caminhar junto ao Sena, se não te importas - sugeriu.

A noite estava fresca, agradável, e, depois de sairmos do carro, caminhámos durante meia
hora pelas imediações do Trocadero. O homem das encomendas fumava um cigarro atrás do
outro, a sua tosse era áspera e, de cada vez que eu tentava falar, ele respondia com um gesto
das mãos: "ainda não, rapaz; estou a pensar". Finalmente, apontou para um banco e ali nos
sentámos.

- Diz-me lá, tens alguma queixa de quem te dá de comer? - Começou.

- Não, nenhuma, e tu sabes isso.

- Perfeito. Agora és um homem rico. Não me interessa saber que é que fizeste com a
massa que ganhaste, mas deve ser uma bonita maquia. Estás na situação iDEAl para te
retirares.

- Vamos ao que interessa.

- Não é que tenhas cometido erros de mais: cometeste-os todos. Suponho que se deve
ao cansaço, ao stress ou lá como lhe chamam agora. É um aviso que te aconselha a reforma.

- Devo entender que assinaram a minha sentença?

- Não armes ao melodrama. É verdade que a tua atitude nos causou problemas, mas
sempre confiámos em ti. Não és um contratado que se risque com um traço. És um
profissional respeitado e queremos que te retires de uma maneira digna.

- Certo. Que tenho de fazer?

- Chegar até ao fim, mas sozinho. Esta é a primeira e a última vez que nos vemos. O
telefone de contacto já não existe e podes ter a certeza de que não tornarei a telefonar-te.
Tens de ir até ao fim e nos termos combinados. Vais cobrar tarifa dupla, mas, insisto,
queremos que faças a coisa sozinho e pronto.

- Está bem. Aceito. Sem furões, sem apoio, sozinho. Aceito.

- Alguma pergunta antes de nos despedirmos?

- Por que é que tenho de o liquidar?

- É realmente importante para ti saber isso?

- É o meu último trabalho. Toma a coisa como a curiosidade de um reformado.


- Por que não? Bem. O Victor Mújica está a jogar sujo com toda a gente. É um tipo hábil,
inteligente, escorregadio e, sobretudo, está limpo de qualquer delito. Aquele tipo nunca
passou um semáforo vermelho em toda a sua vida e, no entanto, põe em perigo várias
sociedades que negoceiam com drogas nos estados unidos. Montou uma enorme teia que lhe
permite abastecer-se nos mercados asiáticos e que fez cair os preços. Os colombianos e os
rapazes de Miami não gostam nada disto, mas até agora não conseguiram tocar-lhe nem com
um cabelo, porque ele procurou a melhor das protecções.

-A DEA?

-exacto. Unta os da DEA, que cuidam dele como de um bebé. E o mais curioso é que a sua
mercadoria, apesar de ser barata, é de excelente qualidade. O tipo é uma espécie de filantropo
das drogas, e é por isso que tens de o eliminar. Entendidos?

- De quanto tempo disponho?

- De muito pouco. Tens uma reserva no cozcorde de amanhã, e em Nova Iorque espera-te
um bilhete para a cidade do México. A surpresa que teve em Istambul confundiu todos os
planos dele, e decidiu regressar. Tens de actuar antes que ele reaja.

- De quem eram os corpos do bazar?

- Uns novatos. Uns brigões ao serviço da DEA em Istambul. Confundiram-te com um


assassino a soldo dos colombianos. Mújica salvou-te porque pensou que eras o correio dele, o
homem que levava o dinheiro para pagar uma remessa de heroína, e julgou que tinhas caído
nas mãos dos matadores contratados. Toda uma acumulação de confusões. Bem, agora já
sabes a história toda. Adeus e boa sorte, killer.

Vi-o afastar-se com passos cansados a caminho da paragem de táxis. Entrou num e a cidade
engoliu-o para sempre.

Fiquei sentado um bom bocado, a pensar que estava diante do meu último trabalho. Que
diabo, chegava a hora da minha reforma, mas eu nunca seria um desses reformados que
matam o tédio nos parques alimentando sonhos derrotados ou aquelas detestáveis ratazanas
com asas a que alguns chamam pombos.

Tinha uma conta bastante nutrida num banco da grande Caimá e sempre pensei que me
retiraria do ofício aos cinquenta anos. Toda a gente faz projectos para esse dia. O meu era
muito simples: uma casa em frente do mar da Bretanha, junto da minha gata francesa, que me
leria poemas incompreensíveis enquanto eu recitava textos de boleros. Merda. A reforma
surpreendia-me sozinho como um náufrago. Merda. Tinha de fazer alguma coisa para evitar
isso.

Entrei no Mercedes e comecei a dar voltas pelas avenidas que convergem para o arco do
triunfo. As mais belas putas de Paris oferecem-se ali como frutas maduras. Havia pretas,
brancas, brancas de mais, mulatas, vietnamitas, chinesas, travestis de ombros atléticos,
raparigas com aspecto de estudantes de secretariado. De repente vi aquela que procurava:
rechonchudinha, de ancas firmes, cabelo castanho, maminhas duras, boca pequena e
vermelha.

- Sobe - mandei.

- Trezentos francos por hora - disse ela enquanto se acomodava.

-junta-lhe um zero e amamo-nos a noite inteira.

- És um xeque ou um sultão? Vais comer-me no teu palácio?

- Achas bem no hotel Lutécia?

- Acho que és o rei Salomão e eu a rainha de Sabá.

- Sim, e estou disposto a satisfazer todos os desejos da minha rainha.

O recepcionista do hotel Lutécia olhou com desconfiança para a curtíssima mini-saia da minha
acompanhante. Enquanto eu preenchia a ficha do registo, procurou palavras elegantes para
uma pergunta venenosa.

- O senhor e a senhora registam-se juntos?

- O senhor acaba de lhe entregar a sua documentação e a menina está muito cansada. Há
algum regulamento que impeça que um pai se aloje neste hotel com a filha?

- De maneira nenhuma, meu caro senhor, não o quis aborrecer.

- Mas pensou que a minha filha era uma puta - repliquei.

- Por favor, nunca me atreveria a pensar semelhante coisa!

- Papá, na boutique há uma blusa de que gosto muito - insinuou a responsável da minha
recente paternidade.

- Pede-a e manda debitar na conta - disse eu entregando-lhe a chave.

A minha acompanhante tinha vinte e três anos, comprovados num bilhete de identidade
que a mostrava esguia e com o rosto sombrio das raparigas que cresceram nos subúrbios. Uns
meses submetida a uma cura de mimos poderiam fazer dela uma gata de alto a baixo. Tinha
talento para isso. Quando me perguntou se podíamos pedir sanduíches e eu, em vez disso,
encomendei uma lagosta à americana, sentou-se nas minhas pernas para me morder as
orelhas, sugerindo-me que não me esquecesse do champanhe.

Dez minutos depois era Dona e senhora do quarto e contemplava feliz o seu corpo nu
reproduzido em todos os espelhos. Quando o criado tocou à porta, recolheu a roupa antes de
desaparecer na casa de banho. Tinha classe, a miúda. Oxalá haja um tipo que um dia a
transforme numa gata.

- Não comeste nada. Não tens fome? - Perguntou ela com a sua boca pequena e vermelha.

- Não. E a lagosta não se come com fome, come-se com apetite.


Claro. Os pobres comem com fome e os ricos comem com apetite.

- De que subúrbio vens tu?

- De Crétell. E o champanhe, bebe-se com sede?

Como amante era péssima. Não fazia mais que mexer as ancas, e sem outro objectivo além
do de apressar o cliente, mas mentia bem, simulando orgasmos acompanhados de sensuais
gritinhos.

- Que é que tu fazes? - Perguntou, acariciando-me os pêlos do peito.

- Mato homens. Sou um assassino. Um killer.

- Como o Léon? Viste o filme?

- Sim. Como o Léon. Mas não sou tão cretino.

Dormiu abraçada ao meu peito, e então falei-lhe como se ela fosse a minha miúda. Disse-
lhe que lhe perdoava, que depois de executar a minha última encomenda no México iria
buscá-la e regressaríamos os dois para irmos viver ao pé do mar e longe da morte.

6. A morte e os seus mariachis

Depois de voar no concorde, duas vezes mais veloz que o som, o voo de nova Iorque para a
cidade do México revelou-se tão monótono como uma viagem de comboio.

- E então? Por onde é que vais começar? - Perguntou do espelho o tipo vestido com um
blusão igual ao meu.

- Vou ganhar forças com uma fusca - respondi.

- Uma browning quarenta e cinco? - Insistiu ele.

- Os tempos não estão para exigências. Mas hei-de conseguir uma coisa decente - garanti-lhe.

- Boa sorte, ó reformado - desejou-me a cara conhecida.

- Deixo a mala no depósito. Encarrega-te dela - disse eu à despedida.

O taxista que me levou do aeroporto para a zona rosa era um profissional dos bons
conselhos. Segundo ele, devia praticar uma vida de asceta, sem comer nem beber, porque o
governo envenenara muitos alimentos e bebidas para que as pessoas se preocupassem com
outras coisas e deixassem de falar das desvalorizações.

- É como em Inglaterra, chefe. Lá, para as pessoas deixarem o falatório acerca do príncipe
Carlos, da sua amante Lady Tampax, da magricela Diana e dos principezinhos, a miserável da
velha rainha mandou enlouquecer as vacas.
A zona rosa é uma espécie de supermercado de armas. Dei um passeio observando o
arsenal usado pelos guardas vigilantes de várias empresas de segurança. Agradou-me o colt
trinta e oito que espreitava do coldre de um magricela à saída do Sanhom''s. Dobrei
cuidadosamente uma nota de cem pesos e aproximei-me dele.

- Desculpe, mas preciso de ajuda - disse eu metendo-lhe a nota numa algibeira da camisa.

- Ora diga, senhor - respondeu ele, fingindo não ter visto nada.

- Está um panasca na casa de banho. Fui mijar e ele apalpou-me. Não se faz a um macho.
Por que é que não lhe prega um bom susto?

- Reze-lhe pela alma. Vamos correr com esse panasca - disse ele fazendo peito.

- Mas é preciso fazer a coisa com discrição, porque ele é filho de um amigo meu e, além
disso, é de muito boas famílias. Eu vou primeiro, falo com ele e um instante depois chega você
e assusta-o bem assustado.

- Não se preocupe. Eu vou atrás de si. Vamos ver o rapaz.

Nos sanitários masculinos estavam dois homens virados para os urinóis. Praguejaram
quando eu entrei mostrando-lhes um pequeno letreiro que dizia: "limpeza de sanitários. Por
favor desculpem o incómodo".

Quando acabaram de se aliviar e se foram embora, pendurei o letreiro na porta. Depois


fechei as portas das cabinas e esperei. O segurança apareceu poucos minutos depois.

- Meteu-se ali. Acho que está com vergonha - disse-lhe eu apontando para uma das portas.

- Saia daí, rapaz. Saia que não lhe acontece nada - garantiu o segurança aproximando-se da
porta.

Aproveitei o facto de ele estar de costas para lhe achatar a cabeça contra o tabique, e acabei a
tarefa com dois golpes na nuca. Era bastante leve, e não me custou deixá-lo sentado numa
retrete. O seu colt parecia impecável, e as doze balas sobressalentes passaram rapidamente
para os meus bolsos.

Armado, saí da zona rosa e caminhei até ao Sanborn's da avenida de Los Insurgentes. Não
tinha qualquer razão especial para ir até lá, mas lembrei-me de que uma das fotografias
mostrava o tipo a quem tinha de tratar da saúde a passar em frente da livraria El Péndulo,
muito perto dali, em Colonia Condesa. E lembrei-me também de que, noutra fotografia,
aparecia à porta de uma casa por cima da qual havia um letreiro de que se lia apenas a palavra
"vida". Tomei uma cerveja e esperei até ser assaltado por um pressentimento.

"Vida". Colonia Condesa. ONG. Colonia Condesa, o bairro preferido pelos artistas, intelectuais
pequeno-burgueses, progressistas e, por que não, sede de uma ONG cujo nome inclui a
palavra "vida". Tinha de procurar num palheiro uma agulha cor de palha.
Na avenida Baja Califórnia encontrei um hotel com um nome premonitório: El Triunfo'. Aluguei
um quarto e pedi emprestada essa réplica da enciclopédia Espasa que é a lista telefónica do
distrito federal.

Às cinco da manhã, depois de ter bebido litros de Coca-Cola, de fumar cinco maços de cigarros
e de passar em revista os nomes de centenas de empresas e organizações que terminavam
com a palavra "vida", encontrei o que procurava: instituto da habitação pró-vida, esquina da
Atuxco com a Alfonso Reyes, Colonia Condesa. O meu cérebro iluminou-se com o achado e
revolvi as combinações que o faziam acertar com o que eu já sabia do tipo: "Istambul,
congresso, as grandes urbes, instituto da habitação, o problema das migrações, pró-vida.
Bingo!", ouvi-me dizer a mim mesmo enquanto enfiava o blusão e inspeccionava o tambor do
colt trinta e oito.

A porta do hotel estava fechada com uma corrente grossa e custou-me a acordar o porteiro de
noite.

- Claro que não. Não posso deixá-lo sair a estas horas. É muito cedo e ainda andam à solta
os judiciais. Até a alma lhe vão roubar. É melhor esperar que dêem as seis. Vá, o senhor põe as
cervejas e eu convido-o para umas almofadinhas de queijo feitas pela minha velha.

Enquanto abria uma garrafa de coronas, agradeci a prudência daquele homem. Esquecera-
me que aquela é uma cidade que durante as horas nocturnas pertence aos delinquentes da
polícia judicial. Bebemos e comemos os pastéis dele, frios mas saborosos, e às primeiras luzes
saltei para as ruas.

Reconheci logo a casa. Era a mesma que vira na fotografia. Só faltava o tipo diante da porta.
Em frente da casa, e separada pela rarubla de Alfonso Reyes, havia uma igreja. Por sorte, os
templos mesicanos abrem cedo as portas à clientela. Entrei. Estava quase vazia, de maneira
que não me foi difícil chegar até à porta das escadas que levam ao campanário. Uma espessa
camada de pó cobria os degraus, sinal de que ninguém os pisava desde há muito.

A pouco e pouco a rua foi-se enchendo de vida. Um quiosque de flores abriu as suas coles
para a manhã. Outro pendurou jornais e revistas. Na casa que tinha em mira entrou um rapaz
que não tornou a sair. Mais tarde entraram duas raparigas que vi reaparecerem meia hora
depois. Tocou o carteiro, o rapaz abriu a porta e recebeu a correspondência.

As horas foram passando lentamente. Tinha toda a minha atenção concentrada naquela casa,
mas havia momentos em que não conseguia deixar de imaginar a minha gata a passear pela
"rambla". Que faria eu se a visse? Desceria para ir ao encontro dela? Estaria na cidade do
México, em veracruz, ou teria apanhado o avião para Paris?

Às duas da tarde parou em frente da casa um distribuidor de pizzas. Entregou três caixas. Três.
E eu só vira entrar um rapaz. Quem seriam os outros dois comensais?

Depois das quatro da tarde lutava contra o sono, e agradeci o roncar do céu a anunciar uma
tempestade que se aproximava vinda do norte. As nuvens negras escureceram rapidamente a
rua e quase logo a seguir descarregaram o aguaceiro. Vi sair o rapaz a correr. Entrou no
supermercado da esquina com a Atlixco e poucos minutos depois saiu com dois pacotes de
cigarros. Do meu lugar de observação reconheci a caligrafia da marca Chesterfield e tornei a
pensar na minha gata, porque era daqueles que ela fumava.

Às oito da noite continuava a chover. Eu estava ensopado e tiritava como um cão.


Mantinha-me acordado passando as balas de uma algibeira para outra como se fossem contas
de um rosário. A porta abriu-se de novo. O rapaz outra vez. Quando se preparava para fechar a
porta atrás de si, deu meia volta e, embora não pudesse ouvir o que ele estava a dizer, era
óbvio que falava com alguém que estava lá dentro. A seguir deu duas voltas à chave e pôs-se a
andar apressadamente sob a chuva.

Decidi descer, e foi a tempo, pois consegui impedir que um velho fechasse as portas da
igreja.

- Não o tinha visto, senhor. Mais um nadinha e ficava fechado até amanhã.

A tempestade engrossou. Não se via vivalma nas ruas e de repente, depois de uma
sequência de relâmpagos, apagou-se a iluminação pública.

Parei em frente da casa. Empunhei o colt na mão direita, esperei pelo relâmpago seguinte e
atirei-me contra a porta.

A casa estava às escuras, excepto o fundo do corredor, onde se via brilhar uma ténue
luzinha. Colado às paredes, passei diante de duas divisões que serviam de escritórios, e depois
diante de uma cozinha. Puxei atrás o cão do colt e, com um pontapé, abri a última porta.

A minha gata francesa esbugalhou uns olhos banhados de pranto, quis levantar-se do seu
assento acolchoado, mas, quando viu o revólver, limitou-se a abrir a boca pequena e
vermelha. A luz de uma vela que iluminava o quarto reflectia-se-lhe nas faces.

Junto dela estava a minha encomenda, pálido como um lençol e com o corpo sacudido por
tremores. Suava abundantemente. Aquele tipo tinha o tropel do séptimo de cavalaria dentro
das veias. Olhou para mim e fechou os olhos, dando a entender que compreendia a situação.

- A ela... não lhe faças nada... É uma francesinha... que se meteu nisto sem saber nada -
disse o tipo.

- Quis voltar, mas não podia deixá-lo assim. Olha o que lhe fizeram - soluçou a minha gata
francesa.

-conhecem-se? Então, tu...? - O tipo não conseguiu terminar a frase porque uma cãibra
devido à ressaca lhe travou a língua.

- O mundo é pequeno, danadamente pequeno - respondi eu.

- Ele voltou ontem de uma viagem - continuou, soluçando, a minha gata francesa. -
Vim despedir-me, mas de repente chegaram uns homens e injectaram-lhe qualquer coisa. É
preciso chamar um médico, mas ele não me deixa.

- Foram os da DEA, não foi?


- Filhos da puta... julgam que eu quis jogar sujo em Istambul... meteram-me cinco
doses... ontem... como castigo...

- Que é a DEA? Por que é que estão a falar como se se conhecessem? Não percebo
nada. Nada! Tira-me daqui! Quero voltar para Paris, para a minha casa! - Chiou a minha pobre
gata francesa.

- Bem, já sabes para que é que vim, mas antes quero saber por que é que fazes o que
fazes. Por que é que metes droga boa e barata nos estados unidos?

- Porque os odeio... gringos, é preciso... é preciso apodrecê-los... querem heroína. Pois eu


dou-lha... e quase de graça... É preciso apodrecê-los por dentro... É a única saída que nós,
latino-americanos, temos, percebes?... Por cada imigrante ilegal mexicano... por cada
mexicano... os que eles humilham na porra da sua fronteira... eu... eu apodreço vários deles,
percebes?

- Adeus, filantropo - disse eu, aproximando-lhe o cano da boca.

A detonação foi seca e curta. É assim que ladram os colts de trinta e oito. A minha pobre
gata francesa tremia, de olhos muito abertos. Abracei-a, amaldiçoando as malditas armadilhas
da vida.

- Tira-me daqui... - gemeu ela contra o meu peito.

- Claro, meu amor - murmurei-lhe eu ao ouvido antes de disparar por baixo do seu lindo
seio esquerdo.

Sim, é verdade, eu amava-a, mas no meu último trabalho não podia actuar de outra
maneira. Eu era um killer, e os profissionais não misturam trabalho com sentimentos.

Antes de sair, fui à cozinha e abri todas as torneiras do gás.

Ia a subir para um táxi na avenida Tamaulipas quando ouvi a explosão.

- Que foi aquilo, chefe? - Perguntou o taxista.

- O temporal. Que é que podia ser?

- Incomoda-o a música?

- Não. Deixe-a.

Acabava de descobrir que do rádio saíam versos daquela ranchera que diz:

... Ela quis ficar quando viu minha tristeza, mas estava

Escrito já que naquela mesma noite perderia o seu amor...


Jacaré

1. Um longo adeus

O criado aproximou-se do grupo de executivos sentados à mesa comprida e, com movimentos


rápidos, precisos, forçados pelos hábitos do patrão abstémio, trocou o copo de champanhe
por outro de água mineral.

Don Vittorio Brunni anuiu com uma leve inclinação de cabeça e tentou mastigar uma
fórmula qualquer de agradecimento, mas não conseguiu abrir a boca, pois naquele preciso
instante o homem que ocupava uma cadeira de rodas inclinou-se para ele e cochichou-lhe
qualquer coisa ao ouvido. Então Don Vittorio Brunni passeou os seus olhos cansados pelas
lentes escuras que escondiam a cegueira do seu inválido companheiro.

- Estás a olhar para mim com medo, sinto isso, não sejas estúpido, Vittorio - murmurou o
cego.

Don Vittorio desviou a vista, dirigindo-a para os numerosos convidados que enchiam a
sala.

Os executivos da fábrica de peles Brunni estavam de costas para uma estrutura de


alumínio e vidro que servia de parede lateral da ampla sala. Duas folhas meio-abertas da
janela, precisamente atrás deles, permitiam-lhes ser os únicos que recebiam algum do ar
húmido de Milão. Os restantes presentes suportavam com estoicismo a elevada temperatura
gerada pelas lâmpadas de halogéneo e pelos holofotes da televisão.

- Estão à espera, Vittorio - cochichou o inválido.

Don Vittorio Brunni ergueu o copo e olhou para o conteúdo como se procurasse nas
borbulhas as palavras necessárias, mas a única coisa que nelas encontrou foi o argumento de
um longo adeus definitivo que não conseguiu pronunciar, porque dos lábios nem uma sílaba
lhe escapou, nem sequer de alarme ou dor. Apenas levou a mão direita à nuca como que para
espantar um insecto inoportuno e caiu redondo por cima dos copos e dos tramessini de
salmão.

- Vittorio! - Exclamou o cego da cadeira de rodas, e o espesso aroma a água de lavanda


informou-o de que o chefe dos seus guarda-costas o tirava dali a toda a velocidade.

O comissário Arpaia ajeitou os óculos de tartaruga e coçou a barba de três dias. A verdade é
que a barba não lhe crescia mais que aquilo, apesar da sua insistência e dos litros de tónico
capilar com que banhava a cara todos os dias.
"Por que não experimenta bebê-lo, chefe?", costumava sugerir-lhe Pietro Chielli, o
corpulento detective a quem os colegas da brigada criminal chamavam El Bambino di
Brooklyn.

"E que tal vão as tuas aulas de aeróbica?", respondia Arpaia com um gesto benevolente.

A mulher que ocupava o outro lado da secretária era decididamente bela, e o comissário
Arpaia teria gostado de a conhecer noutro lugar, à saída de um cinema, por exemplo, mas ali a
tinha, no seu gabinete da brigada criminal, a observá-lo com os seus inquisidores olhos verdes.

- Sabe que veste bem de mais para um simples comissário de polícia? - Comentou
Ornella Brunni acendendo um cigarro.

Arpaia encolheu os ombros, envergonhou-se do letreiro proibido fumar pendurado atrás da


sua cadeira e tirou os óculos.

- Menina, com adulações não vai conseguir nada, porque não há nada para conseguir.
Se me fizer o favor de sair do meu gabinete, prometo-lhe uma vez mais que a manterei ao
corrente de qualquer novidade.

- Há quase vinte e quatro horas que o meu pai foi assassinado, e o senhor ainda não
mexeu um dedo - increpou-o Ornella Brunni.

- Não temos o menor indício de que se trate de um crime. Estamos à espera do


resultado da autópsia para decidir qual a atitude a tomar. Por favor, vá-se embora, que tenho
muitos assuntos pendentes.

- Não me interessa que encontre o ou os assassinos. Quero que se saiba por que é que
o mataram - insistiu a mulher.

- Às suas ordens. Mas primeiro tenho de conhecer o resultado da autópsia. Não me


obrigue a tirá-la daqui à força - implorou o comissário Arpaia.

A mulher suspirou, esmagou a beata com o pé e levantou-se da cadeira com movimentos


felinos.

Arpaia também suspirou, mas não se mexeu do lugar. Logo que Ornella fechou a porta, o
comissário Arpaia estendeu a mão direita para o intercomunicador.

- Chielli? Dose dupla, e pronto - ordenou.

Poucos minutos passados, os cento e sessenta quilos do detective Pietro Chielli ocupavam
todo o enquadramento da porta. Na mão direita tinha uma chávena de café e, na esquerda,
um exemplar de "II Manifesto".

- Aquela rapariga vai fazer-nos guerra, chefe. Leia o que ela escreveu sobre o assassínio
do pai - disse Chielli atirando com o jornal para cima da secretária.

- Sei-o de memória - respondeu Arpaia bebendo o café de um trago.

Chielli pegou na chávena vazia e esquadrinhou-lhe o fundo com atenção.


- Vamos ter visitas, chefe, e do estrangeiro.

- Como é que sabes? De que raio estás tu a falar?

- Dizem-no os restos do café. Houve uma cigana que me ensinou a lê-los. Também
posso ver o futuro, quer saber alguma coisa do seu futuro?

- Vai à merda com as tuas bruxarias! - Largou-lhe Arpaia, negando-se a olhar para o
fundo da chávena, onde a borra premonitória talvez perfilasse a imagem de Dany Contreras,
que, a menos de quinhentos quilómetros dali, via levitarem os grossos flocos de neve,
amontoados pelo vento, que por momentos apenas lhe deixavam ver uma bruma movediça
que se interpunha entre a janela e a cidade de Zurique. Dany Contreras ocupava um
confortável gabinete no quarto andar do edifício central da segiims helvética, e sentia-se bem
ali, sobretudo nos frios do inverno.

Contreras odiava o frio, considerava-o uma ofensa pessoal, porque suspeitava que as piores
desgraças acontecem quando está frio. A sua ex-mulher, para não ir mais longe, escolhera
precisamente um dia de inverno para arranjar um amante. Se o tivesse feito no verão, durante
as férias em Torremolinos por exemplo, a coisa pouca importância teria tido, apenas teria feito
parte das regras do jogo estival, mas não, tivera logo que ser em Janeiro. Quando ele lhe
perguntou porquê, confiante em que ela lhe daria uma resposta sensata por muito dolorosa
que fosse, teve que se contentar com um inesperado É que estava frio!

Contreras olhou carinhosamente para os brancos radiadores. De certeza que lá em baixo o


frio haveria de estar a tecer mais de um triângulo amante-mulher friorenta-cornudo. E a
verdade é que Contreras também abominava o frio porque lhe fazia lembrar Punta Arenas,
muito ao sul do mundo.

Desembarcara de um avião em Zurique quinze anos antes, sem passagem de regresso.


Mais um refugiado na nação dos bancos e da cruz vermelha. Mas a sua passada experiência
chilena como polícia da brigada de homicídios e uns cursos na Interpol tinham conseguido
evitar que passasse a pertencer à categoria dos estrangeiros de mau aspecto, até que um dia
um iluminado burocrata da repartição do trabalho achou que o seu currículo podia interessar
há Seguros Helvética. E ali estava, protegido pelos radiadores, longe dos escarros e do mijo
que durante anos limpara na estação central de caminhos de ferro de Zurique.

Gostava daquele gabinete, pois nele sentia-se ao abrigo das humilhações, e quanto mais
nevava mais ternura tinha por ele.

A chamada do intercomunicador afastou-o da janela.

- O senhor Zoiler quer vê-lo agora mesmo - disse uma voz.

George Zoiler apontou-lhe uma cadeira enquanto punha em ordem uns papéis na secretária.

- Conhece Milão? Não interessa. Oiça bem, Contreras, vou contar-lhe uma história. Em
1925 chegou a este vale de lágrimas um sujeito que foi baptizado como Vittorio Brunni.
Molhou as suas primeiras fraldas numa mansão familiar hoje avaliada em seis milhões de
francos, e estou a falar dos nossos, não da missanga francesa. Em 1955 herdou cinquenta por
cento da fábrica de peles Brunni, com um capital declarado de dez milhões de francos. O resto
foi repartido entre os irmãos, que, muito generosamente, lhe venderam ao longo dos anos a
parte que coubera a cada um. A indústria foi sempre de vento em popa, e em 1975 associou-se
em igualdade de posições com cano Ciccareili, outro magnata das peles, e assim duplicaram o
capital. Três anos mais tarde, bendito seja o criador, a fábrica de peles Brunni fez com a
Seguros Helvética um seguro que cobre todos os bens de infra-estrutura e transportes. As
relações entre a fábrica de peles Brunni e a casa que nos alimenta foram sempre
irrepreensíveis, um modelo de correcção, mas (e este mas não significa que tenhamos tido o
mínimo contratempo) acontece que há menos de quatro meses Vittorio Brunni fez também
um seguro de vida, de um milhão de francos. O curioso é que os beneficiários não são os
familiares, mulher e filha, nomeados herdeiros universais, mas uma certa pessoa, domiciliada
algures no pantanal, chamada Manai - assim, sem mais, Manai -, de quem não sabemos nada,
nem sequer se é homem ou mulher. O contrato obriga-nos, em caso de morte natural ou
acidental, a encontrar essa pessoa e a entregar-lhe o milhãozinho. E acabou-se a história. Que
acha?

- É estranho. Por que é que não incluiu Manai no testamento? Teria poupado o
pagamento dos prémios. Como sabemos, os milionários não gastam dinheiro por prazer -
reflectiu Contreras.

- Um capricho, suponho eu. As informações económicas, o atestado de uma saúde de


ferro e a aceitação de uma cláusula que nos autoriza a exigir uma autópsia levaram-nos a
aceitar. Não fizemos perguntas. Estamos na Suíça e a nossa economia alimenta-se de discrição;
além disso, consente-se sempre que um cliente italiano beneficie alguém às escondidas; não
se pode criticar os mediterrânicos por causa de uma aventurazinha, e muito menos alguém
que exporta anualmente vários milhões de francos.

- Mas há qualquer coisa que não encaixa e que lhe está a tirar o sono.

- É isso, Contreras. Vittorio Brunni morreu de repente. Não sabemos de quê e, como é
lógico, pedimos uma autópsia. Estamos à espera dos resultados e fazemos figas para que nos
seja favorável. Contreras, você, eu e todos os investigadores privados vivemos da
perversidade. Percebe?

- Receio que sim.

- Ainda bem que o diz. Se conseguirmos conservar esse milhão, a casa dar-nos-á de
prémio dez por cento, que serão repartidos de acordo com as sacrossantas leis da hierarquia...
que diz, Contreras, vamos a um conhaque?... Você e eu desejamos, por conseguinte, provar
que Vittorio Brunni foi assassinado.

- E se não foi? - Atreveu-se Contreras a perguntar.

- Se não foi, damos-lhe de presente um capacete de explorador para ir à procura dessa


agulha chamada Manai pelas mais remotas paragens do pantanal.
2. Um cego com uma pistola

Mal desceu do táxi, Dany Contreras sentiu que o frio húmido de Milão se lhe metia nos ossos.
Pegou e, subindo a gola do sobretudo, dirigiu-se para a porta da mansão. Ainda não tocara à
campainha e já dois mastins mostravam as cabeçorras entre os varões de ferro forjado.
Contreras retrocedeu, invadido por uma repentina onda de calor.

- Angélico, divino, quietos! - Ordenou uma voz, e os cães obedeceram.

O senhor de tal autoridade era um tipo do tamanho de um armário. Numa mão segurava
um walkie-talkie e na outra uma espingarda de dois canos.

- Não é saudável aparecer sem se fazer anunciar. Que é que quer? - Disse com os seus
melhores modos.

- Don Carlo Ciccarelli está à minha espera.

O armário perguntou-lhe o nome, conferenciou com alguém no interior da mansão e a seguir


abriu a porta com um comando à distância. Contreras deu uns passos sentindo o grunhido
receoso dos mastins.

- Siga-me e não se afaste de mim - indicou o armário.

Avançaram por um caminho ladeado de árvores nuas. No verão devia ser uma bela alameda,
supôs Contreras, mas as suas considerações estéticas interromperam-se ao chegar a um
terreiro coberto de relva. No meio da clareira, e sentado na sua cadeira de rodas, estava Carlo
Ciccarelli. Cobria as pernas com uma manta de xadrez, os olhos estavam tapados por uns
óculos escuros e nas mãos tinha uma pistola walter de nove milímetros.

- Não se mexa - ordenou o armário.

Contreras parou. Um homem começou a rodar a cadeira de rodas com movimentos enérgicos
enquanto o inválido continuava a empunhar a arma.

De repente outro homem correu uns vinte passos e deixou um gravador em cima da relva.
Afastou-se a correr e aproximou-se do inválido, cuja cadeira deixara de rodar. Vinha do
gravador uma voz quase inaudível. O inválido moveu levemente a cabeça, ergueu a arma e
apertou o gatilho. A voz emudeceu e, ao mesmo tempo, o aparelho saltava pelos ares em mil
pedaços.

- Agora, siga-me outra vez - tornou a ordenar o armário.

Dany Contreras apertou a mão ossuda e fria do inválido enquanto o homem que estava junto
da cadeira guardava a walter num estojo de pele.
- Contreras, chileno, quarenta e cinco anos, ex-policia, fala alemão, francês e italiano.
Pedi informações a seu respeito quando soube que vinha cá. Desculpe, mas um cego tem de
tomar as suas precauções – esclareceu Ciccarelli largando-lhe a mão.

- Dispara muito bem apesar da cegueira – comentou Contreras.

- Já lhe disse que um cego tem de tomar precauções. Venha cá, vou mostrar-lhe o
lugar onde morreu o pobre Vittorio.

Contreras seguiu o inválido até à porta da mansão, mas não entraram. Agora era o próprio
inválido que conduzia a cadeira de rodas, com grande segurança, e, contornando os muros,
levou-o até à parte traseira da casa. Lá estava a grande pérgula de alumínio e vidro que
Contreras achou que era um lugar estupendo para um restaurante de luxo.

- Gosta? Foi desenhada por um arquitecto local e é perfeita para exibir os nossos
produtos. Todos os anos apresentamos aqui os novos modelos da firma. É uma verdadeira
pena o que aconteceu com o Vittorio - disse o inválido.

- E o senhor, qual é a sua opinião? De que morreu o senhor Brunni?

- Fadiga, agora chamam-lhe stress, cansaço. O Vittorio trabalhava de mais. A autópsia


confirmará a minha opinião, ou dirá coisa parecida.

- Por que é que ordenou a autópsia? Costuma ser pedida pelo fisco ou por entidades
autorizadas, como nós, que já a tínhamos pedido.

- Para poupar tempo. Eu sabia do seguro. Entre o Vittorio e eu nunca houve segredos.
Não sei Donde lhe veio aquela maluquice, mas, como não queremos que caia qualquer sombra
sobre o prestígio da firma, solicitei-a. Dentro de poucas horas saberemos de que é que morreu
o meu sócio, e poderemos então dar-lhe sepultura cristã. Olhe, Contreras, está a ver aquela
torre?

Contreras olhou, seguindo a direcção que a mão do inválido lhe indicava. A uns cinquenta
metros erguia-se uma alta torre, como um espectro cinzento no meio da paisagem invernosa.
Tinham-lhe escorado a base com vigas de madeira, mas, mesmo assim, notava-se o latente
cansaço das pedras.

- Desmoronam-se ali mais de dois mil anos de história. Foi primeiro a casa de um
mercador, depois um templo romano, mais tarde uma igreja católica, até que os aliados a
bombardearam. Aquela torre é o meu orgulho.

O inválido dirigia as lentes escuras dos óculos para as ruínas, e Contreras perguntou a si
mesmo se ele seria cego de verdade. Sentiu o desejo de lhe passar a mão diante dos óculos,
mas a presença do guarda-costas levou-o a desistir da ideia.

- Ninguém pode deitar a mão àquelas ruínas. Sei que lá em cima há ainda um sino, mas
lá ficará até que o tempo decida o contrário. Aquelas ruínas são o meu orgulho e o meu
capricho. Ninguém lhes pode tocar. Um dia apareceram uns cretinos do programa de
conservação de monumentos e ofereceram-me ajuda para a restaurar, a mim, Carlo Ciccarelli.
Mandei-os pentear macacos. Aquelas ruínas são o meu orgulho, não as posso ver, mas
também a mim não me posso ver. Já me esqueci de como sou e de como são aquelas ruínas;
porém, sei que elas e eu nos desmoronamos juntos, carcomidos pelo tempo.

- O espelho da sua decadência. Não se preocupe. Estamos todos em decadência -


observou Contreras.

- Insolente e cruel. Gosto, Contreras. Bem, não tardaremos a saber que o Vittorio
morreu de morte natural, e assim pode ir preparando as malas para a viagem ao pantanal.
Sabe onde é esse maldito lugar?

- Não, mas hei-de encontrá-lo - respondeu Contreras.

- Quem é Manai? Se entre o senhor e o defunto não havia segredos, suponho que
conhecerá o beneficiário, ou não?

- Supõe mal. Não faço a mais pequena ideia. E agora ponha-se a mexer, que nós, os
velhos, temos que dormir muitas horas.

Contreras saiu da mansão com um confuso sabor na boca. Se tudo fosse como Ciccarelli
garantia, a companhia de seguros deixaria de poupar um milhão de francos, mas o velho
polícia que continuava a morar-lhe atrás das costelas repetia-lhe que tudo estava a acontecer
de um modo excessivamente fácil e simples.

Quando o portão com varões se fechou atrás de si, Contreras virou-se para o armário, que
continuava a empunhar a espingarda, e pediu-lhe que chamasse um táxi. O homem, como
única resposta, fez um gesto enfastiado que pôs os mastins a ladrar.

Uns bons quinhentos metros separavam a entrada da mansão do primeiro cruzamento de


estradas. Amaldiçoando a humidade que lhe aderia ao sobretudo, Contreras pôs-se a caminho.
Acabava de acender um cigarro quando viu que um automóvel parava ao pé dele.

- Senhor Contreras? - Disse o gordo que estava ao volante e que ocupava quase todo o
assento da frente. A seu lado estava um magricela com uma barba de três dias.

- Sim, sou eu. Que desejam? - Respondeu, alarmado.

- Polícia - indicou o gordo mostrando a chapa. - Faça o favor de subir, levamo-lo ao


hotel - convidou amavelmente o comissário Arpaia.

Dany Contreras acomodou-se no banco de trás e, depois de rejeitar o charuto italiano que o
detective Chielli lhe oferecia, repetiu a sua pergunta.

- Falar consigo, mais nada, e desculpe o nosso espanhol ser tão mau - escusou-se o
comissário.

- Se se trata apenas de falar, pela minha parte não há problema - disse Contreras.

- Que é feito de Jorge toro? Grande avançado, esse chileno! - Exclamou o detective
Chielli.
- Não podes tirar o futebol da ideia? Perdoe ao meu colega - tornou o comissário
Arpaia a desculpar-se.

- Mea culpa. É que eu sou adepto do Módena. Ele jogou seis anos connosco! - Indicou
o entuziasta Chielli.

- Sê um bom menino e encarrega-te de guiar devagar, sem complexos de Fittipaldi -


sugeriu o comissário.

- Os chilenos tiveram um piloto de fórmula um melhor que o Fittipaldi; chamava-se


Fioravanti. Não foi, senhor Contreras?

O comissário Arpaia levou as mãos à cabeça em busca de um gesto solidário, e Contreras,


tocado, consolou-o perguntando-lhe de que é que queriam falar com ele.

- Da autópsia. Por que é que a sua companhia se apressou a pedir uma autópsia?

- Por uma questão de rotina. Mas o morto está agora nas mãos do médico legista, que
trabalha para Carlo Ciccarelli.

Enquanto o detective Chielli ia insultando os condutores, Arpaia e Contreras iam


descobrindo que os seus interesses no caso eram antagónicos: por fidelidade à seguradora, o
investigador da Seguros Helvética desejava um assassínio e, por evidente comodidade, o
polícia pendia para a morte natural. No entanto, o seu comum olfacto de cães de caça dizia-
lhes que aquele quebra-cabeças tinha demasiadas peças soltas.

Já no centro de Milão, Contreras pediu que o deixassem perto do Duomo. Apetecia-lhe andar
um bocado e meditar antes de fazer uma visita ao médico legista.

- Mantenha-me informado. Não se esqueça de que estamos no mesmo barco -


lembrou-lhe Arpaia à despedida.

- Chile, campeonato mundial de futebol de 1962. O seu país foi finalista, terceiro lugar.
A selecção chilena marcou dezassete golos, onze dos quais foram de Jorge toro - asseverou em
tom didáctico o desportista Chielli.

Contreras percorreu apressadamente os dez quarteirões que separam o Duomo do hotel


Manin. A humidade de Milão tornava-se cada vez mais fria e o cinzento do céu parecia
pressagiar desenlaces até então imprevisíveis. Pediu as chaves na recepção e, juntamente com
o cartão magnético, entregaram-lhe um envelope fechado que decidiu abrir no bar diante e
um copo de Jack Daniel's. A missiva, escrita numa folha com timbre do hotel, era breve, mas
aqueles traços seguros, levemente inclinados para a direita, denunciavam uma mão
voluntariosa.

Estou no seu quarto, por isso não se surpreenda quando vir uma estranha nos seus domínios.
Ornella Brunni.

Dany Contreras dobrou o bilhete em quatro, fê-lo desaparecer num bolso e dirigiu-se para o
elevador. Ia a entrar na jaula quando o recepcionista o avisou de que tinha uma chamada.
- Tenho o resultado da autópsia - disse o comissário Arpaia.

- E é mau para mim - comentou Contreras.

- É isso. Paralisação súbita das funções vitais. Também é conhecida como morte súbita,
e costuma acontecer com recém-nascidos. Foi um prazer conhecê-lo, senhor Contreras.

- Quando é o funeral?

- Dentro de umas horas. E está tudo preparado no panteão familiar.

- Comissário, não lhe parece que tudo isto está a andar depressa de mais?

- E então? A vida moderna é assim. Vive-se e morre-se à velocidade do som - disse


Arpaia num tom que denunciava a sua incredulidade.

3. A passagem do tigre

Meila Brunni media um pouco mais que um metro e setenta; o corpo bem delineado,
envolto nuns jeans cingidos e numa blusa com reminiscências hippies, evocava o de um
Modigliani pintado por Andy Warhol. Estava estendida na cama, com o televisor ligado, e as
imagens sobre a conservação das florestas aumentavam o brilho dos seus olhos verdes. Pusera
um blusão de pele castanha debaixo dos pés para não sujar a coberta com as botas de
alpinista.

- Faz-se sempre assim convidada? – Cumprimentou Contreras.

- Desculpe, mas tenho de falar consigo, e a sós - desculpou-se a mulher sentando-se na


beira da cama.

- Sabe que se veste muito mal para uma mulher que acaba de herdar uma fortuna?

- Não tocarei nem numa lira desse dinheiro sujo. Podem metê-lo no cu - declarou a
mulher, ao mesmo tempo que procurava no blusão um maço de cigarros.

- Era disso que me queria falar?

- Não. Queria dizer-lhe que o meu pai foi morto, mas não se tratou de um assassínio,
foi, digamos, uma execução, um acto de justiça que mais tarde ou mais cedo havia de
acontecer.
- O resultado da autópsia é muito claro. Morte súbita. Às vezes as verdades também
chegam assim, subitamente.

- Estou-me cagando para a autópsia. Oiça: há um ano, em Assunción, um homem


chamado Michael Schiller morreu da mesma maneira, e há seis meses, em Barcelona, morreu
da mesma maneira Joan Estévez. E esses dois homens trabalhavam para o meu pai, para a
fábrica de peles Brunni.

Contreras foi ao minibar e tirou duas garrafinhas de uísque. Atirou uma a Ornella.

- Continue - disse, desenroscando a tampa.

- Schiller era um traficante de peles ao serviço do meu pai e Estévez encarregava-se de


organizar os transportes para a Europa. A nossa empresa é a maior exportadora mundial de
artigos confeccionados com pele de crocodilo ou caimão e, segundo os documentos de
importação, as peles provêm do Egipto ou de Cuba, mas é mentira. Há uns anos, o sócio do
meu pai descobriu que podiam obter as peles quase de graça no mato grosso.

- Quer dizer, no pantanal - observou Contreras.

- Como sabe? - Inquiriu Ornella, esgotando a garrafinha.

- Não sei nada, estou só a atar pontas. O seu pai fez um seguro de vida que beneficia
uma certa pessoa domiciliada no pantanal. Isto, se a sua morte se devesse a causas naturais ou
a um acidente. É por isso que estou aqui hoje, para determinar se pagamos ou não.

- Diga-me o nome dessa pessoa.

- Manai. Assim mesmo, sem mais, Manai.

Ornella Brunni levou as mãos à cabeça. No seu gesto havia uma mistura de satisfação e
desamparo.

- Sabe quem é Manai? - Perguntou ela sem tirar as mãos da cabeça.

- Não. E seria uma grande ajuda se você me dissesse quem é.

- Manai é o último grande feiticeiro dos anaré.

- Um feiticeiro? E quem são os anaré?

- Uma tribo do pantanal. Uma das últimas tribos que evitaram o contacto com os
homens brancos. Pobres anaré!

- Muito bem. Acho que devemos ter uma conversa longa e sem pressas, mas suponho
que nem você nem eu queremos perder o funeral do seu pai - disse Contreras estendendo-lhe
o blusão.
Na fria névoa do fim de tarde milanesa, uma dúzia de pessoas despedia-se de Vittorio
Brunni. A cerimónia foi breve. Contreras viu o inválido junto da viúva e, a prudente distância, o
par formado pelo comissário Arpaia e pelo detective Chielli. Ornella permaneceu afastada do
grupo, de mãos enfiadas nos bolsos do blusão.

Os homens da agência funerária depositaram o ataúde com os restos de Vittorio Brunni no


meio do panteão e fecharam a porta. De repente, Contreras percebeu que um dos guarda-
costas se inclinava para o inválido para lhe dizer qualquer coisa ao ouvido e que este dirigia o
brilho dos seus óculos escuros para Ornella.

Contreras meteu um cigarro entre os lábios, e apareceu uma mão que lhe ofereceu lume.
Era o detective Chielli.

- Está bastante frio em Milão, e a humidade torna-o pior - comentou o gordo.

- Chielli, veio aqui para me falar do tempo?

- Não. Queremos convidá-lo para uma grappa que temos no carro para estes casos de
urgência. Grappa Nonino. Alguma vez provou?

Contreras seguiu Chielli até ao automóvel, estacionado num dos caminhos que levavam ao
panteão dos Brunni. Lá, Arpaia ofereceu-lhe um copinho de plástico.

- Beba, que lhe vai assentar bem com este tempo de merda- disse o comissário.

Aquela grappa era uma delícia, e Contreras deixou-a descer lentamente pela garganta.

- Vimo-lo chegar bem acompanhado.

- A rapariga garante que o pai foi assassinado, embora prefira dizer executado. À vossa
saúde.

- A Ornella Brunni é uma filha do paizinho, uma menina rica que se meteu em todos os
movimentos que houve e não houve; simpatizante das brigadas vermelhas, dos presos
políticos, dos ecologistas, dos que fazem greves de fome, dos que organizam marchas tanto a
favor da dignidade gay como dos sandinistas... não lhe disse que o pai era um porco capitalista
e que foi executado por uma vanguarda proletária qualquer? - Ironizou Arpaia.

- Não, mas há um feiticeiro pelo meio.

Arpaia levou as mãos à cabeça, e depois à barba de três dias que não aparava há meses. Chielli
nu-se sorrateiramente e Contreras não soube o que havia de acrescentar.

Ornella Brunni e Dany Contreras conversavam na sala de jantar do Manin. A rapariga mal
tocou no seu prato, mas à hora do café Contreras sabia bastante mais de Vittorio Brunni, de
Manai e dos anaré.

Há uns anos, Michael Schiller, um aventureiro sem escrúpulos, apareceu em Milão convidado
por Carlo Ciccarelli para propor a Vittorio Brunni aquilo a que ele chamava uma redução dos
custos da matéria-prima. No pantanal havia milhares de jacarés, pequenos caimões que
povoam rios, mangues e pântanos. Essa espécie era protegida, e havia-os em grandes
quantidades. Além disso ao que parece, o tal Schiller estava em muito boas relações com
pessoas que colaboravam fazendo vista grossa. Os números não mentem e, com efeito, o que
Schiller propunha reduzia notavelmente os custos. Era aí que intervinha Joan Estévez: ele
introduziria as peles na Europa através de Barcelona e facilitaria a adulteração dos
documentos de origem, e assim as peles de jacaré poderiam penetrar em Itália como se
proviessem dos viveiros de crocodilos e caimões do Egipto ou de cuba. A única coisa que
faltava fazer era organizar batidas de caça no pantanal, e Schiller sabia muito disso. O que o
aventureiro não mencionou era que os caçadores tinham de penetrar no território dos anaré
índios que viviam daqueles répteis e que os veneravam como princípio e fim da vida.

- Há pouco mais de dois anos o meu pai fez uma viagem ao pantanal, convidado por
Schiller, para participar numa batida de caça, e regressou totalmente mudado. Perdera a sua
habitual loquacidade, foi cedendo a pouco e pouco a Carlo Ciccarelli a direcção da indústria e,
perante a impotência da família, acabou por se converter numa espécie de autista. Tinha
medo. Dormia pouco e mal, e às vezes acordava a gritar esse estranho nome: Manai.

A apressada entrada do detective Pietro Chielli na casa de jantar interrompeu Ornella.

- Venha, senhor Contreras, o comissário está à sua espera no carro.

Saíram para a rua. Arpaia convidou-o a partilhar com ele o banco de trás. Chielli colocou o
cogumelo azul no tejadilho da viatura e partiram a grande velocidade.

- Aonde vamos? - Atreveu-se a perguntar Contreras, amaldiçoando-se por não ter


deitado o casacão pelos ombros.

- À mansão dos Ciccarelli. Parece que tentaram matá-lo - respondeu o comissário.

Desta vez o armário da espingarda actuou com insólita gentileza; abriu-lhes logo o portão e
depois foi a correr atrás do automóvel. Quando entraram na propriedade viram vários guarda-
costas e empregados que percorriam o enorme jardim armados de lanternas.

Ciccarelli esperava-os sentado num cadeirão de espaldar alto. Parecia um monarca inválido
que não pudesse contemplar o seu reino.

- Comissário Arpaia, a sua água-de-colónia é inconfundível; detective Chicíli, os seus


charutos italianos são fedorentos; e Contreras, sim, Contreras, reconheço o seu cheiro; espere,
há mais um, sim, alguém esteve com aquela putinha, com a filha do Vittorio - cumprimentou o
inválido agitando o nariz sob os óculos escuros.

- Grande demonstração olfactiva, dottore. Que aconteceu? - Perguntou o comissário.

- Isto - disse o inválido atirando aos pés dos recém-chegados um grosso livro aberto.

Era uma edição em braille da “Divina Comédia”. Numa das suas páginas, justamente entre
os relevos que permitiam ler com o tacto "buon tetragono ai colpi di fortuna", cravara-se um
dardo diminuto cuja ponta tingia o papel de castanho.
- Estava aqui mesmo a ler, sim, a ler com os dedos, quando de repente senti que pela
janela aberta apenas entrava silêncio. Virei-me e nesse momento notei que alguma coisa
embatia no livro. Que diabo é isso?

- Um dardo, um dardo do pantanal - disse Contreras.

- Imbecil! Comissário, eu perguntei-lhe a si.

- É um dardo, dottore - respondeu Arpaia. - Terei que levar o livro para o mandar
analisar no laboratório.

Contreras saiu para o jardim. Uns focos de luz banhavam a torre em ruínas. Os guarda-costas
e empregados, que procuravam com as suas lanternas sem saber o quê, pareciam nervosos.
Não havia dúvidas de que alguém entrara na mansão, e no entanto ninguém vira qualquer
intruso. Os cães não tinham ladrado, mas no ar permanecia o odor de uma ameaça, o silêncio
mortal que acompanha a passagem do tigre.

Quando o comissário Arpaia e o detective Chielli saíram da casa, ouviu-se a sirene de um carro
da polícia que se aproximava. Lá dentro vinham os carabineiros que iriam proteger Carlo
Ciccarelli.

- Onde diabo foi você buscar que é um dardo do pantanal? - Perguntou Arpaia com o
livro embrulhado num saco de plástico.

- Sei pouco, mas ato pontas. Comissário, acho que tem nas mãos três homicídios e uma
tentativa de homicídio.

- A santíssima trindade! - Exclamou o detective Chielli.

- Sim, mas neste caso não se trata de Tito Foulloux Jorge Toro e Daniel Sânchez, a
trindade do futebol chileno... comissário, tenho a certeza de que, se pedisse a autópsia dos
cadáveres de um tal Michael Schiller, falecido em Assunción, e de um tipo chamado Joan
Estévez, falecido em Barcelona, descobriria que foram assassinados da mesma maneira que
Don Vittorio Brunni, para cujos restos pedirei eu outra autópsia.

O comissário ouvia-o olhando para o livro aberto. De repente tirou o saco de plástico e
aproximou os olhos. O dardo desaparecera. Agora, por sobre a mancha castanha via-se outra,
transparente, como que uma baba.

- Não acredito em bruxos, mas lá que os há, há - comentou Contreras.

Os mastins, nervosos, começaram a uivar. Talvez o intruso ainda estivesse ali.

4. Mano a mano

Um delicado raio de sol atravessando a névoa anunciou que amanhecia sobre Milão. Contreras
abriu a janela e o corpo de Ornella Brunni estremeceu debaixo dos lençóis. Fora uma noite
longa. A rapariga tocara-lhe à porta por volta das duas da madrugada, precisamente quando
Contreras acabava de falar ao telefone com o detective Chielli.

- Gosto de si, chileno, gosto mesmo - dizia Chielli.

- Adoro declarações de amor - respondeu Contreras.

- O seu humor põe-me louco. Fora de brincadeiras, parece que tem razão. Os do
laboratório encontraram curare no livro, e o dardo desapareceu porque era feito de teia de
aranha e de resina. A humidade do saco de plástico desfê-lo. Percebe?

- Curare. Um veneno que provoca paralisia muscular. Todos os músculos deixam de


funcionar, ergo, morte súbita. O comissário sabe que você me está a contar um segredo do
processo de instrução?

- Sabe. Arpaia quis dizer-lhe isto, mas é tão tímido como a barba. Em compensação,
eu... você entende-me, um tipo tão volumoso como eu não pode andar tímido pela vida.

- E importava-se de me dizer por que é que está a contar-me tudo isto?

- Porque o comissário e eu achamos que há qualquer coisa muito podre por trás da
morte de Brunni e dos outros dois tipos. Que diabo, gostamos do ofício e queremos ir até ao
fim.

- Está bem. Vamos dar uma mãozinha uns aos outros - garantiu Contreras antes de
desligar.

Abriu a porta julgando que lhe traziam algum recado, mas deu de caras com o olhar verde
de Ornella Brunni.

- Dei um passeio, fui a casa, senti medo e aqui estou - disse ela, atirando com o blusão
para uma cadeira.

- Está bem, pode dormir no sofá - resmungou Contreras.

- Estou acostumada a dormir em camas largas - insinuou a mulher.

- Pior para mim - aceitou Contreras pegando numa almofada.

Estenderam-se, ela na cama e ele no sofá. Assim permaneceram longos minutos, sem outra
linguagem além da provocada pela aspiração dos cigarros.

- Já sabe como mataram o meu pai, não é? – Disse Ornella quebrando o silêncio.

- Não, mas suponho que a nova autópsia irá encontrar-lhe no corpo restos de curare,
teia de aranha e resina.

- Manai. Foi ele. O grande feiticeiro Manai.

- Então, Ornella? Você é uma mulher inteligente. Não vai acreditar que um feiticeiro é
capaz de soprar numa zarabatana do outro lado do mundo e acertar na nuca do seu pai.
- O meu pai tinha medo de Manai. Repetia-lhe o nome nos pesadelos. Não sei como é
que o feiticeiro fez, mas fez. O grande Vittorio Brunni tentou comprar a vida com esse seguro
em nome de Manai, mas o feiticeiro não se deixou subornar.

- Ornella, eu trabalho com factos demonstráveis. A minha missão consiste em


demonstrar que foi assassinado; o que diga respeito ao culpado não me interessa.

- Vou falar-lhe de um facto demonstrável: Guido Vincenzo era um jovem antropólogo


que investigava as culturas do pantanal. Um dia publicou um artigo em que denunciava o
extermínio dos anaré, e entre os responsáveis citava as autoridades brasileiras e paraguaias,
mas também uma indústria italiana chamada fábrica de peles Brunni. Um mês mais tarde,
Guido apareceu no fundo do mar. Conduzia bêbedo quando se precipitou por um barranco
com o seu automóvel. O que é curioso é que guido não bebia, nem podia beber, porque era
diabético.

- Tem uma cópia desse artigo?

Ornella endireitou-se, foi até ao blusão e entregou-lhe várias folhas fotocopiadas. Contreras
começou a ler.

O artigo dizia que os anaré são índios de estatura muito baixa, razão pela qual às vezes são
confundidos com os pigmeus que habitam mais ao norte, nas regiões pré-amazónicas. São
nómadas que se deslocam num território de uns dois milhões de hectares e que vivem quase
excluzivamente dos ovos e da carne do jacaré. Falam uma língua com muitas palavras retiradas
do guarani e a sua mitologia está impregnada da presença do jacaré.

Até cerca de três anos antes da publicação do artigo, evitaram qualquer contacto com o
homem branco, mas uns caçadores de jacarés, comandados por um alemão chamado Schiller,
tinham invadido o seu território, aniquilando os índios que tentavam transferir as crias de
jacaré para o interior do baixo mato grosso para as pôr a salvo. O artigo terminava dizendo que
o mencionado alemão se declarava agente de compras da fábrica de peles Brunni, o que
punha em evidência a cumplicidade daquela empresa no extermínio dos índios.

Contreras acabou de ler, quis dizer qualquer coisa, mas descobriu que Ornella dormia
placidamente. Tapou-a delicadamente, e depois estendeu-se no sofá até ao dia seguinte.

O telefone sobressaltou Ornella Brunni.

Senhor Contreras? Fala Carlo Ciccarelli. Ontem à noite portei-me grosseiramente consigo.
Venha tomar o pequeno-almoço comigo, porque quero ter consigo uma conversa de homem
para homem. Daqui a dez minutos passam por ai a buscá-lo - disse o inválido, e desligou.

- Que horas são? - Bocejou Ornella.

- Horas de me ir embora. Continue a dormir. Prometo-lhe que volto antes do meio-dia.

Carlo Ciccarelli recebeu-o na vasta casa de jantar da mansão. Estendeu-lhe uma mão ossuda
ao mesmo tempo que agitava o nariz sob os óculos escuros.
- Bem, está a cheirar-me que passou a noite com a Ornella. Como é que essa putinha
se porta na cama? Fornica com o capital debaixo da almofada?

- É fabulosa, gosta de pinocar de pé. O senhor não tem a menor possibilidade de tirar
isso a limpo.

- Não se exalte, Contreras. Basta uma ordem minha para o porem fora daqui aos
pontapés.

- Não duvido, porque o senhor nunca poderia fazê-lo pessoalmente.

Carlo Ciccarelli soltou uma estrondosa gargalhada. Estalou os dedos e um criado trouxe-lhe
uma caixa de havanos.

- Sirva-se. São legítimos Vuelta Abafo.

- Não, obrigado. Sou fiel aos Condal.

- Gosto de si, Contreras. É insolente e cruel. Os idiotas julgam que a insolência e a


crueldade são defeitos, quando na realidade são virtudes. Que é que sabe da relação da
fábrica de peles Brunni com os índios do pantanal?

- Tudo.

- É o que eu imaginava. A Ornella está empenhada em afundar-nos. Que pensa fazer


com o que sabe?

- Nada. Sei de importações fraudulentas, de violação das leis internacionais, de


subornos, de crimes, mas tudo isso é o pão nosso de cada dia e a chantagem não é uma das
minhas especialidades. Estou a decepcioná-lo?

- Pelo contrário. Está a demonstrar-me que não é um idiota. Respeito os homens que
reconhecem as suas limitações. Quem tentou matar-me ontem à noite?

- Como é que eu havia de saber isso?

- A Ornella sabe, e de certeza que lho disse. Foi o mesmo que matou o Vittorio, o
Schiller e o infeliz do Estévez. Maldita sorte. Reconheço-o, e pouco importa se o resultado da
nova autópsia impedir que continuemos a esconder tudo. Mas há uma coisa que não pode
esquecer, Contreras: a sua companhia de seguros também está metida nisto, já que aceitou
cobrir um seguro por contrabando de peles, de modo que qualquer escândalo também
salpicará os suíços.

- E que sugere?

- Traga a Ornella e convença-a. Ela é a única que pode deter esse tipo. Prometa-lhe o
que quiser, dinheiro, que o poremos fora do país são e salvo, o que quiser.

Contreras reparou que Carlo Ciccarelli perdera todo o seu aprumo. Estava morto de medo,
porque o estranho visitante devia encontrar-se ainda num recanto qualquer da mansão. Era o
que indicava o constante uivar dos cães nos jardins e o inquieto cirandar dos guarda-costas,
que não paravam de se agitar atrás das árvores.

- Manai está lá fora e o senhor está borrado de medo, não é isso?

- Não seja estúpido. Manai não existe. Foi uma invenção minha para me libertar do
Vittorio. Quando soube da matança de índios, ficou indignado e voou para o pantanal para
interromper o negócio. Ele era um cobarde, e por isso Schiller e eu pregámos-lhe um susto.
Não foi difícil. Andava sempre acompanhado da mulher, e metemos uma poção na comida
dela, não mortal, mas que lhe provocou dores atrozes. Foi vista em Assunción por dúzias de
médicos, todos subornados, que se declararam incapazes de lutar contra a magia de Manai, o
grande feiticeiro dos anaré. Quando já não podia suportar os uivos de dor da mulher, Vittorio
pediu que o levassem à presença do feiticeiro. O resto, pode você imaginá-lo perfeitamente. O
feiticeiro (por certo muito bom actor) exigiu-lhe que abandonasse o negócio, Vittorio
obedeceu, a mulher curou-se, mas o medo meteu-se-lhe no sangue e levou-o a fazer esse
ridículo seguro de vida. Maldita sorte. Tínhamos tudo controlado até começarem essas
mortes.

Carlo Ciccarelli foi descendo de tom. Depois, para serenar, começou uma arenga em que
descrevia com frieza estatística as actividades da fábrica de peles Brunni no pantanal. Em
território paraguaio começaram a escassear os jacarés porque os índios transferiam centenas
de crias para o baixo mato grosso brasileiro, e por isso concordaram em castigá-los. Mataram
uns quantos, mas não contaram com a ira dos caçadores, que viram diminuir as suas receitas,
nem com a hostilidade dos militares brasileiros e paraguaios, que deixaram de receber as suas
comissões: descarregaram toda essa ira e essa hostilidade sobre os anaré.

- Somos uma grande empresa, Contreras. Em cima da mesa está uma cobertura feita
de pele de jacaré jovem. Para se fazer uma cobertura destas, que no mercado ultrapassa os mil
dólares, são precisos entre quinze e vinte animais. Estamos a matar uns quantos animais
protegidos? Sim, é verdade, mas quanto dinheiro dos nossos impostos destinamos a ajudar
esses índios piolhosos? Milhões, Contreras, milhões! Porque o capital não serve apenas para
comprar matéria-prima; também se investe em atestados de inocência, em diplomas de boas
intenções. Não pretendíamos liquidar todos os índios, mas a Itália, a Europa inteira, está cheia
de degenerados que nos querem arruinar. Até chegaram ao parlamento! São uns desalmados
que atiram tinta às mulheres que vestem peles. Houve um intelectualólde que escreveu um
artigo a denunciar-nos por exterminarmos os índios, mas nenhum desses miseráveis menciona
que produzimos riqueza, que geramos milhares de postos de trabalho.

- O seu patriotismo não me preocupa. Diga isso antes ao comissário Arpaia -


encaminhou Contreras.

- Ao comissário? Que é que ele pensa fazer?

- Chame-o e verá, ou prefere um dardo na nuca?

O comissário Arpaia e o detective Chielli não tardaram a aparecer. A polícia italiana e o


investigador privado iam trabalhar juntos, mano a mano.
- Ora diga, Contreras - cumprimentou o comissário e, depois de falar com Contreras,
ordenou: - Chielli, trata de evacuar a mansão. Só pode ficar o dottore Ciccarelli. - Além disso,
preciso de um helicóptero da polícia - acrescentou Contreras.

- Dito e feito! - Exclamou o detective Chielli mordiscando um charuto italiano.

Nos óculos escuros do inválido reflectiam-se o céu cinzento de Milão e o assombro que se
sobrepunha à sua arrogância senil.

5. O caçador solitário

- Proponho que o detective ficará cá em baixo, ou não? - Murmurou o piloto do


helicóptero.

Chielli olhou para ele com uma expressão de desprezo e, mudando a posição do charuto
italiano que lhe pendia da boca, deu meia volta e ofereceu-lhe a parte traseira da sua
anatomia. Seguidamente, dirigiu-se para a torre em ruínas. Contreras chamava a atenção de
Arpaia para qualquer coisa no chão.

- É mais que um pressentimento, comissário. A primeira vez que aqui vim, vi esses
restos de pássaros e atribuí-os aos cães ou à espingarda do porteiro. Depois, ao olhar para a
torre com atenção, espantou-me não ver nenhuma lagartixa. Nos muros da casa vêem-se
algumas, mas aqui não. Uma ruína sem lagartixas?

- É impossível trepar a esta torre sem uma escada - comentou Arpaia.

- Para nós, talvez. Mas um indivíduo que aprendeu a trepar às árvores antes de
aprender a andar pode ser ágil como um gato, por muito adulto que seja. Está lá em cima,
garanto-lhe.

Chieli avisou que o helicóptero estava pronto e, como sempre, queixou-se de o porem à
margem do que era divertido.

Giraram as pás, o helicóptero começou a subir e os arbustos ficaram como que esmagados no
chão. Contreras amarrado ao cabo que o segurava pelas axilas, sentiu que os pés se lhe
afastavam da relva.
De acordo com o que tinham recomendado ao piloto. O helicóptero ergueu Contreras a
vários metros acima da torre. A um sinal seu, aproximaram-no até que os pés tocaram de novo
em solo firme. Contreras libertou-se do cabo e com um gesto ordenou ao helicóptero que se
afastasse.

Lá estava o caçador. Embora estivesse sentado, com a cabeça e as costas cobertas por uma
pele de jacaré, intuía-se facilmente que não era mais alto que uma criança de dez anos. Junto
dele estava uma curta zarabatana, duas tigelas de barro, teias de aranha comprimidas, uma
bola de resina e restos de pássaros e de lagartixas. À sua volta, um círculo de pedras de cores e
insectos de muitas tonalidades transformava o seu lugar de descanso numa espécie de
diminuta atalaia. Lá estava, de pernas cruzadas e olhar ausente, o caçador solitário. Parecia
alheio àquelas árvores para ele inúteis e àqueles homens capazes de desafiar a noite sem a
protecção de talismãs.

Contreras aproximou-se cautelosamente e deu uma volta em torno daquela figura até se
deter à sua frente. Então acocorou-se. Debaixo da mandíbula do jacaré que cobria a cabeça do
caçador viu um rosto de idade indefinida, com as maçãs enfeitadas com três filas de sinais
vermelhos. Tinha os olhos abertos, mas um verniz sem brilho nublava-lhe as pupilas.

O investigador estendeu uma mão e tocou-lhe num ombro. Foi o bastante para o
homenzinho cair. Contreras pôs-lhe uma mão na testa. O caçador ardia em febre. Quando o
helicóptero estava quase a deixar a maca que transportava o caçador em poder dos serviços
de saúde que estavam lá em baixo à espera, um grito do detective Chielli obrigou toda a gente
a virar a cabeça. A escassos metros dali e sentado na sua cadeira de rodas, Carlo Ciccarelli
esgrimia uma walter de nove milímetros à procura de um alvo que não via, mas que se
reflectia nos seus negros óculos de cego.

A manápula de Chielli fez-lhe ranger os ossos do braço e a pistola caiu na relva.

- Sua besta! Eu ia fazer justiça, ia vingar o meu sócio!

O colérico inválido acabou por ser levado por dois carabineiros.

- É um quadro clínico complicado. Além de uma pneumonia, sofre de desnutrição


aguda acompanhada de desidratação. Só lhe podemos dar soro, porque não sabemos se o seu
organismo resistiria a um antibiótico qualquer. Não há dúvida de que é um homem adulto,
mas gostaríamos de saber a sua idade - informou o doutor Cacucci, da unidade de cuidados
intensivos.

Na cama, com a cara coberta pela máscara de oxigénio e com a agulha do soro espetada no
braço, o caçador solitário ainda parecia mais pequeno. Arpaia e Chielli olhavam para ele em
silêncio.

- Vou fazer uma chamada. Espero no corredor – disse Contreras.

Marcou o número do hotel Manin e pediu que o ligassem ao seu quarto. Ornella ainda estava
lá.
- Pensei que se tinha cansado de mim! – Exclamou ela quando reconheceu a voz de
Contreras.

- Ainda não, e depende de si que isso não aconteça nunca. Oiça com atenção: além do
antropólogo assassinado, sabe de mais alguém que conheça os anaré?

- Sim, sei de uma pessoa que os conhece.

- Bem. Venha com essa pessoa ao hospital, à unidade de cuidados intensivos.

- Porquê? Aconteceu alguma coisa?

- Não me canse, Ornella - disse Contreras, e desligou.

Enquanto esperavam, Arpaia e Contreras aguentavam a vontade de fumar observando o


passeio frenético do detective Chielli. Este ia deslocando a sua humanidade de uma ponta à
outra do corredor com grandes passadas, de charuto italiano pendurado na boca. De vez em
quando contava os dedos, como que para se certificar de que eram realmente dez, ou então
arrebitava as orelhas para verificar que ainda as tinha pegadas à cabeça.

- Ele é sempre assim? - Quis saber Contreras.

- Às vezes é pior, mas é bom tipo – respondeu Arpaia.

- Que é que lhe está a acontecer? Está nervoso? - Insistiu Contreras.

- Acho que está a pensar. Cada um faz o melhor que pode - sentenciou Arpaia.

O detective continuava a gastar o linóleo do corredor. Agora, aos dedos e às orelhas juntara
os botões do casaco. De repente parou, deu uma palmada na testa e dirigiu-se
apressadamente para Arpaia e Contreras.

- Chefe, aquele homenzinho não é o que tentou matar Carlo Ciccarelli. Talvez seja o
que espetou o dardo envenenado em Vittorio Brunni, mas ontem à noite não tinha forças para
soprar uma zarabatana. Além disso, se estava escondido no alto da torre, por que é que atirou
cá para baixo restos de pássaros? Acho que serviu voluntariamente de chamariz. Ele devia
querer que o encontrassem, à custa de muito esforço, mas que o encontrassem.

- Porra, Chielli, você tem razão. Esse homem não passa de uma falsa pista para
proteger outro – concluiu Contreras.

- Gordo, eu sempre disse que tu eras mais que um cu - festejou Arpaia.

- E o outro não deve andar longe – acrescentou Contreras.

- Os armazéns da fábrica de peles Brunni são ao pé da mansão de Ciccarelli - disse,


satisfeito, o detective Chielli.

Os dois polícias saíram do hospital a correr, e Contreras amaldiçoou a demora de Ornella.


Quinze minutos depois viu-a chegar sozinha, indiferente à decepção que se desenhou no rosto
de Contreras.
- Tinha-lhe pedido uma coisa muito importante, Ornella.

- E cumpri. Para que é que me marcou encontro aqui?

- Onde é que deixou o estudioso dos anaré?

- Sou eu. - Disse Ornella, e com um gesto apontou para a porta que Contreras
bloqueava.

O caçador continuava sem reagir, mergulhado no profundo poço da febre. Por momentos
entreabria a boca, e a máscara de oxigénio embaciava-se.

- Meu deus! Feriram-no? - Exclamou ela quando viu o homenzinho.

- Não. Tem uma pneumonia e está desnutrido e desidratado. É um anaré?

Ornella acenou que sim. Fez notar que as pintas que lhe enfeitavam o rosto eram próprias
de um caçador anaré e perguntou pelas coisas que tinha lá em cima.

- Estão na esquadra. O comissário Arpaia ordenou que as levassem.

- Vamos. É muito importante que eu veja os seus pertences para saber mais dele. Onde
é que o encontraram?

- Na mansão de Ciccarelli, no alto da velha torre.

Ornella Brunni levou as mãos à boca antes de perguntar:

- Tinha o corpo coberto por uma pele de jacaré?

- Sim. Que significa isso?

- É o engodo do caçador. Os anarés imitam muitos hábitos dos jacarés. Por exemplo,
quando os jacarés sentem que se aproxima um felino, um deles deixa-se cair na praia e serve
de chamariz. O felino ataca, certo de que apanham de surpresa o jacaré, e criva-lhe os dentes
na nuca. O felino, excitado pelo sabor do sangue começa a despedaçá-lo ali mesmo e,
confiado, vai-o devorando. É deste momento que estão à espera os outros jacarés. Que
entretanto o cercaram, cortando-lhe qualquer possibilidade de fuga.

- Onde é que aprendeu tudo isso?

- Guido Vincenzo, além de antropólogo, é meu companheiro.

- Os meus sentimentos, Ornella. Ainda quer ir à esquadra?

- Não. E acho que o mais acertado era ir à mansão de Carlo Ciccarelli - observou,
olhando para Contreras da solidão dos seus olhos verdes.

Tiveram que insistir durante longos minutos para convencer o armário da espingarda de
que a vida do patrão estava em perigo, que mandasse calar os mastins e lhes abrisse a porta.
Contreras pegou na mão de Ornella e assim correram pela alameda ladeada de árvores nuas,
enquanto os guarda-costas, surpreendidos, os seguiam gritando coisas que eles ignoraram, até
chegarem ao terreiro coberto de relva.

Contreras já conhecia o ritual: o guarda-costas mais alentado fazia girar a cadeira de rodas
ocupada por Carlo Ciccarelli, que empunhava uma walter de nove milímetros; outro homem
corria, deixava um gravador na relva e regressava para se colocar atrás da cadeira de rodas:
saía uma voz masculina do gravador... mas desta vez Ciccarelli não orientou o seu sentido
auditivo para a fonte sonora, nem procurou o alvo com os seus olhos ermos, nem disparou.

Nem sequer ergueu a pistola. Inclinou simplesmente a cabeça como um boneco de trapos
perante o espanto dos guarda-costas, que só reagiram quando caíram os óculos de cego do
seu patrão.

O comissário Arpaia e o detective Pietro Chielli chegaram na altura em que se tornava já


bastante difícil para Contreras manter os guarda-costas na ordem, evitando que mexessem no
cadáver.

- Tem uma marca atrás da orelha esquerda. O dardo, como sabemos, desfaz-se muito
rapidamente – indicou Contreras.

Arpaia e Chielli contemplaram o morto. Sem os óculos escuros era irreconhecível, não tinha
a mínima expressão.

Chielli pôs-se de joelhos e observou as árvores mais próximas tomando a orelha esquerda do
morto como alça de mira, mas Contreras desanimou-o:

- Não se dê ao trabalho de procurar a possível trajectória do dardo. Cravaram-no


enquanto um dos seus homens o fazia girar na cadeira de rodas.

Ornella e os três homens olharam uns para os outros. O verdadeiro caçador solitário estava
ali escondido, muito perto, invisível, oculto, camuflado pelos seus longínquos costumes.

6. Triste, solitário e final

A Shkeanumeré, “o que vem da água”, abriu os olhos e viu-se rodeado pela neblina da morte.
Era tudo branco, a cor mais estéril e triste; e embora a esteira onde estava estendido fosse
macia e branca também, sentiu que a morte se lhe alojava nos ossos, afastados do calor
simples da terra. Havia dois homens junto dele, dois homens da tribo dos Ieashmaré, os que
odeiam a água, dos quais se mantivera afastado grande parte da sua vida. Um era gordo e
mordiscava uma espécie de pauzinho; o outro era magro, tinha os olhos cobertos por duas
máscaras de resina transparente e na cara crescia-lhe um musgo cinzento. Olhavam para ele
com o mesmo receio com que se contempla um réptil ferido. Terríveis feiticeiros os Ieashmaré,
disse para consigo “o que vem da água”, levando uma mão à cara. Uma tromba comprida
crescia-lhe no lugar onde dantes tinha a boca. Talvez o tivessem transformado num urso
formigueiro.

- Calma, homenzinho. Não te mexas - disse o detective Chielli.

- Não te entende. Não acredito que perceba italiano - observou o comissário Arpaia
com evidente mágoa.

Aquele homenzinho frágil, que ensopava de suor a branca almofada e olhava para eles com
olhos espantados, era ao mesmo tempo um assassino em potência e uma testemunha de
primeira mão. Ao procurar o outro caçador - tinham decidido chamar-lhe assim -, a polícia
milanesa dera com um verdadeiro tesouro. Nos armazéns da fábrica de peles Brunni
encontraram milhares de peles de animais, caimões e outros répteis teoricamente protegidos
por uma legislação internacional tão retumbante como ineficaz. Mas do outro caçador apenas
haviam encontrado rastos: ossos de roedor e de aves pequenas e uns quantos excrementos
que os do laboratório declararam que poderiam pertencer a uma criança porque não
continham restos de álcool ou de tabaco.

- Gostaria de saber que diabo está a pensar esse lingrinhas - murmurou o detective
Chielli.

- Além de febre, tem medo, e o medo dificilmente permite pensar - comentou o


comissário Arpaia.

Dany Contreras abriu a porta e fez um sinal aos dois homens para que saíssem. Via-se que
estava incomodado. Telefonara umas horas antes para Zurique e a satisfação de Zoiler
parecera-lhe ofensiva, mas não sabia porquê.

- Para a Seguros Helvética tudo é ouro sobre azul. Vittorio Brunni não morreu de morte
natural e, como se não bastasse tanta sorte, o beneficiário do seguro não existe. Missão
cumprida, Contreras. Quando volta? – Perguntou Zolier.

- Fico cá mais uns dias. Não sei quantos. Quero conhecer o final de todo este caso.

- Não se meta em enredos, Contreras. A pasma italiana encarrega-se do assunto. Você


não perdeu nada em Milão.

- Bem sei, mas é uma questão pessoal. O senhor não seria capaz de entender.

- Entender o quê? Houve uns índios que mataram um cliente nosso. Apanharam um e
não tardarão a apanhar o outro. Ordeno-lhe que regresse no primeiro avião.

- Não. Voltarei quando tudo estiver esclarecido.

- Você é um sentimental, Contreras – exclamou Zolier com desprezo antes de desligar.

Arpaia e Chielli saíram do quarto. ““o que vem da água”” ficou sozinho.
A vereda da febre levou-o até ao Tumpaqui, e viu-se na grande canoa junto de Anahumaré,
"o que canta como a água". Haviam viajado durante sete jornadas, na sua maioria remando
contra a corrente, outras vezes carregando a canoa para se furtarem aos rápidos. Regressavam
do baixo mato grosso, livres de carga. Na viagem de ida tinham transportado mais de uma
centena de crias de jacaré. Os répteis não mediam mais de um palmo e agitavam-se como
larvas no fundo da canoa. Tinham fome, mas isso pouco interessava; e também não
interessava o sono e o cansaço, pois o que faziam tinham de o fazer. Eles eram anaré e
obedeciam a uma lei tão velha como o mundo, porque, no começo de todas as coisas, o
mundo era de água, e os homens e os animais viviam no dorso do grande jacaré. O réptil
sonhava com frutos e havia frutos, sonhava com peixes e havia peixes, sonhava com tartarugas
e também as havia. Mas um dia apareceu o primeiro Ieashmaré e cravou um dardo
incandescente no coração do grande réptil. Este, ferido de morte, chicoteou as águas dia e
noite com a cauda. Deixou mil filhos, alguns tão pequenos como uma larva e outros grandes
como um caçador, mas não disse qual deles tomaria o seu lugar. Por isso os anaré tinham de
cuidar de todos, para que o doce tempo dos sonhos voltasse no dorso do grande jacaré.

- Que diabo disse o doutor Cacucci? – Perguntou Contreras.

- O costume. Que não se pode ministrar qualquer medicamento. Um morto em


Assunción, outro em Barcelona, dois em Milão, e não podemos interrogar o principal suspeito -
lamentou-se Arpaia.

- Isso tem que ver com não saber línguas, chefe - comentou o detective Chielli.

- Sabe-se alguma coisa do outro? – Perguntou novamente Contreras.

- Tem toda a polícia milanesa atrás dele - respondeu Arpaia.

- Atrás de um tipo baixinho que anda meio-nu e disfarçado de crocodilo. Não é que
seja, digamos, uma investigação muito clássica - disse Chielli mordiscando o charuto italiano.

- Não quero mais mortos. Mais um, e cortam-me a cabeça - comentou Arpaia com um
suspiro.

Foram interrompidos pela chegada do elevador. Ornella Brunni avançou em passos


enérgicos na direcção do comissário.

- A sua gente revolveu a minha casa de alto a baixo, como se atreve?

- Tínhamos um mandado de busca. Sabemos que a senhora simpatiza com os tipos


que, entre outras coisas, assassinaram o seu pai - respondeu Arpaia.

- E ainda podem cair outros - acrescentou Chielli.

- Não haverá mais mortes - afirmou Ornella Brunni.

- Como é que sabe isso? Parece-me que a senhora guarda vários segredos que, em vez
disso, deveria partilhar comigo. É o seu dever. Posso prendê-la sob suspeita de encobrimento -
ameaçou o comissário, mas não pôde continuar porque do quarto lhes chegou a voz do
prisioneiro.
O homenzinho tinha tirado a máscara de oxigénio e, sentado na cama, olhava com expressão
de pânico para a agulha cravada no seu braço. Escapava-lhe dos lábios uma estranha e
monótona litania.

- Chielli, chama o médico - ordenou Arpaia enquanto, ajudado por Contreras e Ornella
Brunni, deitavam o prisioneiro na cama.

“O que vem da água" olhou para a mulher e soube que a morte o chamava. Aquela fêmea
tinha a selva nos olhos. Então sorriu, e na sua longínqua língua contou-lhe que, ele e o que
canta como a água", tinham feito o que tinham de fazer ao virem à terra dos Ieashmaré,
porque, ao regressarem à aldeia depois de transferir e pôr a salvo as últimas crias de jacaré,
tinham-na encontrado arrasada e semeada de mortos. Souberam então que eles também
eram os últimos, que já não poderiam salvar os jacarés, como vinham fazendo, e que era seu
dever acabar com os chefes dos Ieashmaré. Esperaram, com a paciência dos solitários, que
estes caçassem e levassem milhares de animais. E, escondidos entre peles de jacaré, longa.
Paciente e sem regresso fora a viagem em busca dos chefes dos Ieashmaré.

Quando o doutor Cacucci entrou, o homenzinho olhava para Ornella Brunni com olhos
desorbitados e estendia para ela os braços enquanto continuava o seu desesperado discurso.
De repente, o peito agitou-se-lhe convulsivamente e ficou imóvel.

O doutor Cacucci abanou a cabeça, auscultou-o e depois fechou-lhe os olhos.

- Não poderá negar agora que este homem a conhecia. Esteve a contar-lhe qualquer
coisa que eu quero que me conte agora a mim - ordenou Arpaia puxando Ornella Brunni de
lado.

- Não seja estúpido. Não percebi nem uma palavra, e mesmo que assim não fosse,
também não lhe contaria - respondeu a mulher.

- Comissário, dê-me uns minutos. E você venha comigo, Ornella - disse Contreras
pegando-lhe pelo braço.

Caminharam em silêncio até à cafetaria do hospital. Contreras pediu dois cafés e sentaram-
se frente a frente. O investigador entregou-lhe um guardanapo para enxugar as lágrimas.

- Está metida numa boa encrenca, e até ao pescoço. Para qualquer polícia, aquele
homem esteve a contar-lhe alguma coisa. Que é que foi?

- Não percebi nada. Sei um pouco acerca deles, mas não conheço a língua. Só alguns
missionários a conhecem. Além disso, nunca estive no pantanal.

- Não sei por que raio estou do seu lado, Ornella. Não sou polícia, mas já o fui, e isso
permite-me garantir-lhe que está metida numa tremenda encrenca. Está bem. Não entende a
língua dos anaré. Acredito. No entanto, há bocado afirmou que não haveria mais mortes.
Ornella, você sabe onde está o outro.

- E que tem, se for assim? Não me podem obrigar a denunciar ninguém.


- Não, mas a sua arrogância não salvará a vida do outro índio. Ele está muito doente,
não é? Você não foi ao hospital para falar com o comissário ou com o detective chicíli. E
também não foi para me ver a mim. Interessava-lhe saber que tratamento utilizava Cacucci
para salvar o anaré e para depois fazer o mesmo com o outro. Talvez a estas horas também
tenha morrido.

-Eles mataram o Guido. Era o meu companheiro. Eu amava-o - disse a mulher com os
seus belos olhos verdes afogados em pranto.

-Muito bem. Eles mataram o Guido Vincenzo e talvez muitos índios, directa ou
indirectamente. Mas já pagaram por isso, Ornella. Pagou o Schiller, pagou o Estévez, pagou o
Carlo Ciccarelli e pagou o seu pai duas vezes porque o enlouqueceram de pânico antes de o
matar. Quer agora salvar a vida do anaré?

- E entregá-lo à polícia para que o assassinem lentamente numa prisão?

- Você não é a deusa da ética nem a deusa do pantanal, Ornella. Não passa de uma
burguesinha mimada e cheia de ódio. Queria vingar a morte do seu companheiro. E
compreendo isso, mas não interveio directamente no caso, e sabe porquê? Porque os
burgueses nunca tiveram coragem e sempre se valeram de outras mãos para tirar as castanhas
do lume. Onde está o outro índio? Arre, diga-o de uma vez por todas.

-se tem de morrer, que morra em liberdade.

A mão de Contreras traçou um semicírculo antes de se espalmar no rosto da mulher.


Saltaram lágrimas e saliva. Virou-se na mesa uma chávena de café, mas o líquido não lavou o
orgulho destruído.

- Você mete-me nojo, Ornella. Está bem. Então que morra, se isso salva a sua
consciência de burguesita de esquerda. Será acusada de encobrir pelo menos três homicídios:
o do seu pai, o de Ciccarelli e o do último anaré. E eu serei testemunha obrigatória.

- Maldito polícia. Você é igual aos outros dois.

- Talvez seja, só que ato pontas mais rapidamente. Arpaia e Ghielli chegaram às
mesmas conclusões, Ornella. Foi um erro vir ao hospital, porque o anaré reconheceu-a, e por
isso não era a primeira vez que a via. Deve ter sido em Barcelona. Ao saber da morte do
Estévez, semelhante à do Schiller, você foi a Espanha e teve um primeiro encontro com os
índios. Estavam escondidos num armazém. Nunca saberemos como chegaram tão longe, talvez
escondidos no meio das peles que eram transportadas de barco. O Schiller e o Estévez foram
presas fáceis, mas se não fosse a sua ajuda eles nunca teriam chegado a Milão. Trouxe-os
como animais, na bagageira do seu Alfaromeo? Não. Acho que os ajudou a passar no último
carregamento preparado pelo Estévez. Sim. Deve ter sido assim. Cheiravam os dois a pele de
jacaré e por isso os cães de Ciccarelli, acostumados a esse cheiro devido à proximidade dos
armazéns da empresa, não conseguiram dar com eles. Espera-a uma longa pena, Ornella, e a
única atenuante a seu favor está em salvar a vida do outro índio. Decida.
Quando viu Ornella Brunni cabisbaixa, o comissário Arpaia compreendeu que estava muito
perto de dar o caso por encerrado. O detective Chielli também percebeu a situação e foi o
primeiro a descer para o automóvel. Quando Contreras, Ornella Brunni e Arpaia chegaram à
rua, Chielli esperava-os com o motor em marcha e um cintilante cogumelo azul no tejadilho do
carro.

- Aquilo de ir à polícia exigir a investigação do assassínio. O que é que foi, um álibi ou


uma brincadeira? - Perguntou Arpaia, mas Ornella pareceu não o ter ouvido. Não tiveram que
ir muito longe. Avançaram para norte pela via Manzoni e, seguindo as indicações da mulher,
Chielli parou o carro diante do portão fechado dos Giardini Pubblici. Um empurrão do
corpulento detective bastou para fazer saltar o cadeado enferrujado.

Agachado a um canto de uma jaula vazia, que em tempos servira para os leões do parque,
encontraram o homem que procuravam. O seu corpo estava frio debaixo da pele do jacaré,
porque a noite era fria, e fria é a morte em Milão, como em toda a parte.

- Já não há nada a fazer - disse o comissário Arpaia, e regressou ao automóvel para


pedir pela rádio uma viatura para a morgue.

Os outros também partiram, e ali ficou o último dos anaré, triste, com a tristeza dos que não
têm regresso; solitário, com a solidão dos derrotados. E no fim de um caminho que nunca
devia ter trilhado.

Na rua, o detective Pietro Chicíli algemou Ornella Brunni e cumpriu o ritual de lhe baixar a
cabeça para a obrigar a entrar para o automóvel. Dany Contreras olhou-a nos olhos. Aquelas
pupilas verdes observaram-no lá de territórios tão distantes que ele estremeceu e, para se
furtar a qualquer tentação de uma piedade tardia, pôs-se a andar para o hotel, para o calor do
bar e do uísque. Para se sentir ao abrigo do frio, que mais uma vez odiava com toda a sua
alma.

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1. Gatilho leve

O detective George Caucamán gritou:

- Quietos, que faço ir pelos ares as partes daquele que se mexer!

E os cavaleiros pararam de repente. Num movimento coordenado pelos anos de prática a


combater o roubo de gado nos desfiladeiros das cordilheiras da patagónia, dois polícias saíram
dos matagais e apontaram as armas aos surpreendidos ladrões. Caucamán ia juntar-se aos
seus companheiros, mas o gesto do cabecilha do grupo inquietou-o; metia uma mão debaixo
do poncho enquanto pedia que o deixassem identificar-se. Viu brilhar a culatra da uzi e avisou:
- Cuidado, tem uma metralhadora! - Mas o cavaleiro, com um só movimento, tinha
atirado o poncho para as costas e, de pé em cima dos estribos, corria a segurança da arma.
Caucamán saltou para ficar ao lado do cavaleiro, ergueu a remington de cano serrado e
alvejou-o. O homem saiu disparado como se lhe houvessem assestado um ferocíssimo coice
nas nádegas.

- George Washington Caucamán - disse o comissário.

- Faça o favor de dizer, chefe - limitou-se a responder o interpelado, sem ocupar a


cadeira que lhe tinham indicado. E não por modéstia. Mas porque tinha as botas e as calças
emporcalhadas de bosta de vaca. Que diabo. A vida de um polícia que combate os ladrões de
gado não é precisamente um mar de rosas.

- Meteste-te num poço de merda, rapaz.

- Há dez anos que ando com merda até ao pescoço, chefe. O senhor sabe que aqui os
casos não se resolvem à secretária. Eu cheiro a bosta de uma vaca e sei como se chamava a
avó do criador.

O comissário cruzou as mãos sobre o processo e fez que sim com a cabeça. Tinha à sua
frente um daqueles polícias que vão até ao fim de cada caso sem cuidarem de saber se acabam
com uma medalha de mérito pendurada ao peito ou eles mesmos pendurados num solitário
carvalho dos andes.

Tornou a abrir o processo antes de ler pela centésima vez as papeladas legais ali consignadas,
olhou detidamente para o detective. Media pouco mais de um metro e setenta, o seu corpo
tinha a configuração de um tronco centenário partido por um raio, e definir como pescoço o
espaço que lhe separava a cabeça do resto do corpo redundava numa inútil meiâfora; os olhos
brilhavam-lhe como duas brasas negras, e a cabeleira negra, hirsuta, rebelde, indomável
denunciava-lhe nas veias puro-sangue mapuche.

- George Washington Caucamán. Fui teu instrutor na escola de detectives e sempre te


falei claro. Disse-te que ser mapuche neste país de merda era quase tão mau como ser negro
no alabama. Disse-te que nunca, jamais, te ofereceriam uma colocação digna na cidade, e por
isso te escolhi para o serviço rural. E também te repeti vezes sem conta que não te metesses
em encrencas com os tropas.

- Com todo o respeito, chefe. Eu apenas me limitei a cumprir o meu dever.

O comissário reconheceu que mais uma vez o emporcalhado polícia tinha razão. "Os bons
polícias têm qualquer coisa de suicidas, o que os impele a levar o cumprimento do dever até às
últimas consequências", meditou. E pôs-se a ler o processo:

-...e como resultado da infeliz intervenção policial. O cidadão Manuel Canteras recebeu
uma chumbada dupla, de calibre 14, nos glúteos, o que levou a uma posterior amputação da
nádega direita em cem por cento e da nádega esquerda em setenta por cento. George
Washington Caucamán, deixaste sem cu o filho do general Canteras!
- Lamento, chefe. Sei que o general é peixe graúdo. Mas o processo esquece-se de
mencionar que o rapazinho comandava um grupo de bandidos que conduziam um rebanho de
quarenta vacas holstein rumo à argentina. Vacas roubadas à fazenda El Rosario. E também não
diz que tentou metralhar-nos com uma uzi.

O comissário acendeu um cigarro, franziu o nariz e continuou a ler:

- Manel Canteras filho encontrava-se a realizar uma excursão na companhia de um


grupo de amigos. Todos ex-membros das forças armadas, amantes da natureza e das belezas
regionais, os quais, quando encontraram inopinadamente um rebanho de reses extraviadas,
obedecendo a um elementar sentido do dever decidiram conduzi-las de regresso aos seus
pastos de origem nos arredores de Palena. Quando o faziam, levando o rebanho, foram
atacados de surpresa por um contingente da polícia civil... continuo?

- Pura palha, chefe. Que é que pensa fazer-me?

- O mais sensato seria obedecer aos desejos do general Canteras, expulsar-te do


serviço para que a gente dele se encarregasse depois de ti, mas eu arrisco-me pelos meus
homens que o cu do filho de um tropa nunca valerá o mesmo que a vida de um polícia.

- Fale claro, chefe.

- Consegui que o psicólogo da corporação te declarasse submetido a uma forte fadiga,


consequência do duro serviço, o que te levou a actuar de forma temerária.

- Não entendo nem uma palavra, chefe.

- Que estás meio-chalado, imbecil! E que isso te transformou num policia de gatilho
leve. Não digas nem uma palavra! Tenho que te tirar daqui e que te mandar para um novo
destino, na capital. Este maldito país tem quase cinco mil quilómetros de fronteiras, fazem por
toda a parte contrabando de vacas, de cigarros, de drogas, e eu tenho que prescindir de um
bom policia porque fez ir pelos ares o cu do filho de um general. Os chuis de gatilho leve são
colocados numa repartição, mas eu faço isto para o teu bem. É a única maneira de te proteger.

A capital. Estas palavras soaram para George Washington Caucamán como bofetadas. Que
raio podia ele fazer na capital? Há mais de quinze anos que combatia os ladrões de gado e os
contrabandistas e o seu elemento natural eram os morros. Podia dormir placidamente em
cima de um cavalo, num buraco escavado na neve ou abraçado aos ramos de um carvalho para
se proteger dos pumas. Santiago. A capital. Tudo aquilo era terrível de ouvir.

- A capital? Chefe, não me pode fazer isso.

- Lamento, rapaz. Não há outra solução, e segura as calças porque ainda não te disse o
pior: graças ao regresso da democracia, a direcção está empenhada em ajustar a imagem da
corporação, e nenhum comissariado quer tipos com antecedentes de gatilho leve. Por isso,
depois de muito esforço, consegui-te uma colocação no comissariado de investigação de
delitos sexuais. Alguma pergunta?

- Sim, chefe. Que tempo faz na capital?


- Frio, rapaz. Agosto é sempre frio.

George Washington Caucamán precisou de várias garrafas de aguardente para se recompor


de tão brutal surpresa, e, bêbado como um cacho, acabou abraçado ao seu cavalo, chorando o
pranto sem estridências dos antigos caciques, mordendo os lábios até deitarem sangue, como
os toquis, os capitães mapuches, ao entregarem os peitorais do comando depois das derrotas,
e do mesmo modo, num lento mas decidido ritual de despedida, se foi despojando das botas
de campo, das esporas de prata, da sela de couro, dos estribos talhados em madeira de
abacateiro, do chicote de tripa de guanaco, do poncho de lã peluda que o protegera dos piores
temporais e da espingarda remington de dois canos serrados, o seu coto salva-vidas que,
apesar de o ter resguardado dos mais terríveis malandrins, não o salvara das iras de um
general com um filho que perdeu o cu.

Acordou da bebedeira com a úlcera gástrica de todos os detectives quase a enlouquecê-lo,


e só com a ajuda de três saquetas de bicarbonato conseguiu novamente pôr-se de pé diante
da vida.

Uma semana mais tarde, o detective George Washington Caucamán, vestido como para um
casamento e sem vestígios de bosta na indumentária, subia a escada do avião que o conduziria
a Santiago.

- Bem, lá vamos - disse de si para si, já no ar, e fechou os olhos para não ver a
paisagem de pradarias, lagos, morros, vacas e mais vacas, pensando como estavam certos
aqueles versos que diziam que as penas são nossas e as vaquinhas são alheias.

2. Carraças

O oficial administrativo da direcção de investigações, a polícia criminal chilena, examinou a


documentação do recém-chegado e depois observou-o com atenção de antropólogo.

- Com que então, gatilho leve. Por que veio para as investigações e não para o corpo
de carabineiros?

- Tenho de responder a essa pergunta?

- Se quiser. Os mapuches não abundam entre nós. Vocês gostam de uniformes e por
isso preferem ser carabineiros.

- Devo ser a ovelha negra que confirma a regra.

- Também se diz que vocês são gente de poucas palavras.

- E bêbedos e preguiçosos. Também já fomos sifilíticos.

Terminada a fraterna troca de opiniões, o oficial mandou-o à direcção do pessoal. Ali, o


encarregado trocou-lhe a tosca chapa de detective rural por outra enquadrada num livrete de
cabedal, e entregou-lhe as ferramentas do ofício: um par de algemas, um colt 38 e uma caixa
de vinte e quatro balas.

- Vi uma vez um filme do Clint Eastwood. Ele era um polícia do Texas que chegava a
nova Iorque e se achava muito esquisito. Mais ou menos como você - disse ele.

- Acha-me parecido com o Clint Eastwood?

- Não. É que ele vinha da província e era um vaqueiro. Os do serviço rural também são
vaqueiros, ou não?

O detective de província não respondeu e leu rapidamente a folha com instruções que lhe
haviam preparado. Não eram muitas e sugeriam um negligente desenrasca-te como puderes.

- Foi muito famoso o que você fez ao jovem Canteras. O pobre rapaz terá de arranjar
um dador de cu para tornar a sentar-se. Cuide das munições, gatilho leve - disse o
encarregado, e piscou-lhe o olho, mas George Washington Caucamán preferiu ignorar o gesto.

- Diz aqui que tenho quarto numa pensão. Fica perto daqui?

- Deixe ver. Bairro San Joaquín. Fica para sul, acho eu.

- A quantas léguas?

O detective de província foi-se embora e deixou o encarregado a discutir com os outros


funcionários quantos metros media uma légua.

A cidade pareceu-lhe enorme, fria, agreste. Era difícil respirar e também custava a
orientar-se, porque o sol brilhava num lugar incerto do céu, mais acima da capa gordurosa de
gases que cobria Santiago. Caminhou meia hora para sul, até que, assustado, teve de se sentar
numa paragem de autocarros. Algo espesso e sujo se interpunha entre o ar e os seus pulmões.
Ao ver os míseros plátanos que sobreviviam na rua San Diego, as folhas escuras cobertas de
uma pátina da mesma tristeza nauseabunda que os tubos de escape soltavam, disse para si
mesmo que tinha de se mover com cautela, exactamente como fizera uns anos antes quando,
perseguindo o rasto de uns ladrões de gado a norte de Balmaceda, descobriu pegadas na neve
e estas o conduziram a um estábulo natural. Era um estreito desfiladeiro entre morros ladeado
por canas de quila, o bambu andino que recebe os nevões, suporta o peso e se inclina
formando abóbadas invisíveis para as avionetas da polícia. Os ladrões de gado tinham passado
por ali, era o que diziam as pegadas, e deviam estar no outro extremo da abóbada, que
aparentava ser muito comprida, visto que não ouvia o mugir dos animais. Desmontou e, com a
remington aperrada, avançou uns trezentos metros, até que, metido em esterco até aos
joelhos, se sentiu estranhamente alegre e embriagado. Percebeu então que tinha de sair,
porque os gases da matéria em decomposição começavam a narcotizá-lo e o matariam numa
questão de minutos.

- Com gases não se brinca - disse de si para si, e chamou o primeiro táxi que passou.

- Conheço a pensão. É na rua Copiapó. Em quinze minutos estamos lá - disse Anita


Ledesma, e o detective descobriu que estava nas mãos de uma motorista.
Os débeis raios de um sol distante aumentavam os tons cinzentos da cidade. George
Washington Caucamán pensou que não queria viver nem morrer em Santiago, e que havia de
fazer o possível para se ir embora tão cedo quanto possível. Um frasco azul junto do assento
da motorista chamou-lhe a atenção.

- Tem porcos, menina?

- Eu? Oxalá tivesse. Abria uma charcutaria – respondeu Anita Ledesma com toda a
graça dos seus quarenta anos bem resguardados atrás da barricada da esperança.

- Esse frasco é um desparasitador de porcos.

- Venderam-mo para o cão. Tem carraças.

- Brancas ou castanhas?

- Não sei. Nunca olhei para elas. Só o vejo coçar-se.

- Castanhas. As brancas não fazem comichão. Esse produto vai matar o cão, é muito
forte; para porcos sim, porque a pele dos suínos é grossa e a capa de gordura impede que as
toxinas entrem no organismo. Ferva meio quilo de urtigas num litro de vinagre até reduzir a
metade e depois esfregue o animal com essa solução.

- Chegámos, amigo. E não me deve nada - disse a taxista.

- É pela receita? Os segredos do campo não se vendem - alegou o detective com uma
nota na mão.

- Também lha agradeço, mas devo-lhe uma grande alegria: vi a sua fotografia nos
jornais, o senhor fez ir pelos ares o cu do filho mais novo de um tremendo filho da puta -
exclamou a feliz taxista entregando-lhe um cartão com o número do seu telemóvel e a
garantia de que podia contar com ela.

George Washington Caucamán desceu do táxi perguntando a si mesmo se a paisagem da


cidade não seria porventura composta pelas pessoas.

Na pensão mostraram-lhe um quarto de inventário espartano. Aceitou, e depois de


concordar sem palavras com as recomendações da patroa no sentido de não meter pessoas do
sexo oposto no quarto estendeu-se na cama e fechou os olhos até que a fome lhe lembrou que
não comera nada durante todo o dia.

Saiu e meteu-se na primeira tasca que encontrou no caminho. Enquanto esperava que o
servissem, pensou nostalgicamente nos seus companheiros da patagónia. Àquelas horas
estariam a assar umas costeletas de borrego, e depois beberiam mate e contariam piadas
picantes. Trinchava com pouca vontade um bife fino como um selo de correio quando dois
tipos de cabelo muito curto se sentaram à sua frente.

- Então tu é que és o índio de merda - disse um deles.

- De merda não, de loncoche - corrigiu.


- Somos amigos do Manuel Canteras e vamos fazer-te os tomates ir pelo ar - disse o
outro, tamborilando com os dedos na mesa.

- Pode ser, mas não com essa garra - respondeu o detective cravando o garfo na mão
do tipo.

Com o 38 regulamentar em punho, viu-os sair. Um repetia sinistras ameaças e o outro dava
gritos tentando retirar o garfo que lhe atravessava a mão.

Quando teve a certeza de que os tipos se tinham ido embora, guardou a arma e pegou
numa saqueta de bicarbonato. O alívio efervescente chegou rapidamente e levou consigo os
estrangulamentos intestinais. Ao tirar o dinheiro para pagar a conta, com o garfo incluído,
encontrou o cartão de Anita Ledesma e alegrou-se ao ouvir-lhe a voz.

- Anita? Sou o que te deu a receita para as carraças.

- Estava à espera da sua chamada. Meteu-se em problemas?

- Como sabe?

- A sua cara saiu na imprensa, e em Santiago os tipos rancorosos são mato. Diga-me
onde está e passo a buscá-lo daqui a uns minutos.

Sentado no táxi de Anita, repetiu para si mesmo que não queria viver nem morrer em
Santiago.

- Para a pensão? Levo-o aonde quiser, amigo.

- Vamos dar uma volta pela cidade. Tenho que pensar.

O automóvel pôs-se em andamento e a taxista respeitou o silêncio do detective. Ligou


discretamente o rádio. As notícias falavam do futuro esplendoroso que se abria ao país com o
auge das exportações. Meia hora mais tarde passavam em frente de uns jardins iluminados.

- O morro de santa Lúcia. Lindo e vazio - disse Anita.

- Os mapuches chamavam-lhe lenha mal seca e era um lugar sagrado - comentou o


detective.

- Até que chegou Valdivia, os espanhóis, e a seus pés ergueram esta cidade de merda -
acrescentou Anita.

3. Casos e coisas

Às oito da manhã o detective George Washington Caucamán entrava num renovado edifício da
rua Agustinas. Uma placa de acrílico indicava que no segundo andar se situava o comissariado
de investigação de delitos sexuais. Quando abriu a porta, pensou que se tinha enganado no
andar e estava numa escola de secretariado, porque as seis mulheres que ocupavam as
secretárias eram jovens, atraentes, e o lugar, com as suas galantes plantas de interior, tinha
muito pouco de dependência policial, mas o 38 de cano serrado que uma delas tinha à cintura
fez-lhe saber que se encontrava entre colegas. E, assim, fechou a porta e cumprimentou
timidamente.

- É um andar mais acima - disse uma das mulheres.

- O que é um andar mais acima?

- A fotocopiadora. Não vem da Xerox?

O detective de província perguntou pela comissária. Uma morena de óculos que tratava de
dactilografar um documento chamou-o à sua secretária. George Washington Caucamán
entregou a ordem de incorporação à comissária.

- Bem, bem, meninas, sabem quem temos aqui? O Charles Bronson da patagónia.

As mulheres polícias observaram-no com uma atenção de entomologistas, de ombro a


ombro, dos pés à cabeça, e não economizaram risinhos.

- Que look! A última vez que vi um fato como este foi no filine o falcão de malta - disse
a que era visivelmente mais nova.

- Tentarei corromper-me para usar roupas do Armani - respondeu o detective.

- George Washington Caucamán. Deve ser descendente de ingleses. O meu avô


chamava-se Evans e era galês. Se calhar somos parentes - comentou outra.

- Não acredito. Mas o meu bisavô conheceu galeses na patagónia. Ajudou-os a


despiolhar-se. E agora, já que são tão amáveis, gostaria de saber qual será o meu lugar de
trabalho e que tenho para fazer.

- Vamos dar-lhe uma secretária, e quanto ao resto é só esperar - disse a comissária.

Recebeu uma secretária no corredor, bastante afastada das mulheres policias. O detective
supôs que iriam confundi-lo com o porteiro do edifício ou com o responsável dos perdidos e
achados, mas não discutiu. A secretária tinha três gavetas, tão vazias como o serviço que
estava a começar.

A meio da manhã estava a lutar contra os bocejos. Vira entrar e sair várias mulheres, algumas
delas com olhos de enterro, outras pálidas e desmaquilhadas, umas muito novas, outras
maduras, e no meio daquele tédio a comissária aproximou-se da sua secretária.

- Fazer de móvel cansa - comentou o detective.

- Melhor para si e para toda a gente. Olhe, não temos nada de pessoal contra si, mas
informaram-nos que você é um daqueles chuis de gatilho leve, e aqui trabalhamos com outros
métodos.
- Percebo. Tentarei emendar-me, deixarei o 38 na secretária e andarei com uma
assistente social debaixo do braço.

- Não se exalte, detective. Não tardarão a trazer-lhe materiais de escritório e um


telefone com gravador. De acordo com o regulamento, devem registar-se todas as denúncias.

- O que quer dizer que me inclui no trabalho. Obrigado.

- No entanto, não ficará encarregado de nenhum caso, não posso evitar isso. Repito-
lhe que não temos nada contra si, e sim muito contra o imbecil que o destinou ao nosso
comissariado. Você sabe que nenhuma mulher agredida confiaria num homem, e menos ainda
num mapuche. Desculpe, mas a realidade é assim mesmo. Pode dar-nos uma mão em muitas
coisas, mas em nenhum caso.

- Nós, índios, somos optimistas, comissária. Garanto-lhe que não tardará a aparecer
um camionista violado por um bando de irmãs da caridade, e esse será o meu caso.

Ao meio-dia, com o telefone já ligado, as mulheres polícias decidiram que ele ficava de
guarda durante o turno da refeição, e deixaram-no sozinho. Não protestou, e logo que as
ouviu a descer a escada, marcou o número de Anita Ledesma.

- Como vai tudo? - Perguntou a taxista.

- Maravilhosamente. Tenho um telefone cheio de botões encarnados.

- Se se meter em enredos, não deixe de me telefonar.

- Ontem à noite jantei sozinho e não gostei.

- Aceito. Telefone-me por volta das nove.

Tinha acabado de desligar quando o telefone tocou pela primeira vez na sua secretária.

- Ontem à noite escapaste ensaboado, mas não te preocupes, vais pagar o que fizeste
ao Manolito – ameaçou uma voz rouca, de fumador empedernido.

- Se os teus amigos passarem pela taberna, eles que devolvam o garfo - conseguiu
dizer o detective antes de desligarem.

"Que persigam uma pessoa por fazer ir pelos ares a cabeça de um próximo, ainda vá",
meditou o detective, "mas tanto escândalo por causa de um cu dá vontade de rir.

Não conseguiu continuar a divagar, porque naquele preciso instante viu a mulher que,
indecisa, caminhava ao seu encontro.

- As meninas não estão?

Era uma mulher corpulenta, de uns sessenta anos, com um vigoroso carrapito agarrado à
nuca, e não vinha sozinha. Do braço direito pendia-lhe uma carteira de pele de imitação de
crocodilo, e do esquerdo um cônjuge que, tudo indicava, se mexia contra sua vontade.
- Não, mas eu sou uma delas - respondeu o detective.

- Querida. A roupa suja lava-se em casa - disse o cônjuge.

- Sente-se, Hipólito. E só fale quando o detective lho permitir - ordenou a mulher.

Hipólito começou a morder as unhas enquanto a mulher abria a carteira e procurava


qualquer coisa, até que deu finalmente com uma folha de papel.

- Olhe para isto.

Era uma factura de telefone, e bastante avultada. Naquela conta cabiam pelo menos dois
meses de ordenado de um detective. Hipólito começou a soluçar.

- É bastante dinheiro - opinou o detective.

- Mais que isso. Repare no detalhe das chamadas.

O detective tornou a observar a conta. Estavam detalhadas as chamadas de um mês. Na sua


maioria eram breves, uns minutos, mas havia três que constituíam a maior fatia da torta.

- Compreende o que fez este porco? - Disse a mulher, ameaçando dar uma berlaitada
em Hipólito.

O detective encolheu os ombros.

- Engataram-no, chuparam-no, vigarizaram-no. Este miserável, procurando noutro sítio


o que tem de graça em casa, frequenta gajas pelo telefone.

- O senhor faz isso, Hipólito? - Disse ele simplesmente para dizer qualquer coisa,
porque o regresso das mulheres polícias não lhe deixou dar a gargalhada.

- Ora bem. De que é que está à espera para ir deter essas putas? - Perguntou a mulher,
num desafio.

- Minha senhora, esta é uma reclamação para a comissão de defesa do consumidor,


isto se o seu marido declarar que o vigarizaram, que os serviços recebidos não correspondem à
oferta. Fora disto, não há nenhuma lei que impeça o Hipólito de dar à palheta como lhe dá na
gana.

A mulher saiu como um furacão, amaldiçoando os índios de toda a América, com o cônjuge
pendurado do braço esquerdo. O detective deitou à boca uma saqueta de bicarbonato.

- Que é isso? Coca? - Perguntou a comissária.

- Coca dos pobres. Quer provar? - Respondeu o detective com a boca cheia de espuma.

- Não morda. E já que lhe calhou a primeira coisa, observe mais estas, quem sabe se se
transformam num caso - disse ela entregando-lhe várias capas de documentos.

Tinham todas o título de hot line. George Washington Caucamán matou o dia a examinar
facturas telefónicas de muitos onanistas com problemas de pagamento.
4. O preço do prazer

Assim como as lotarias e as máquinas de moedas fomentaram a ludopatia com licença


estatal para consolo dos bancos e dos usurários, as linhas quentes reivindicavam uma prática
sexual tão antiga como a humanidade, resgatando-a da condenação eclesiástica e de um
aparente monopólio juvenil. O grande problema é que a palha sempre fora grátis e agora, em
vez disso, o sexo telefónico transformara-a num prazer de luxo.

- As confusões do sexo, Anita - comentou o detective George Washington Caucamán


para a sua companheira, enquanto esta lhe examinava os maltratados pés.

Anita Ledesma vivia numa casinha do bairro de San Isidro, e todo o seu mobiliário era
muito funcional e prático, como ela mesma.

- Olhe, amigo - disse-lhe ela no café onde se haviam encontrado -, eu acredito nos
astros, e eles dizem que você e eu acabaremos na cama, de modo que o melhor é evitarmos a
inútil cerimónia da conquista e começarmos já a conhecer-nos da melhor maneira. Tenho em
casa esparguete suficiente e várias garrafas de vinho.

- Suponho que chegou a hora de nos tratarmos por tu - respondeu Caucamán.

Entre os dois somavam oitenta anos, e tal cúmulo de tempo predispõe para o amor
sincero, livre de espaventos, proezas ou desculpas, e, como não há nada a perder, o resultado
é um enorme lucro.

- Achas mesmo que o sexo se presta a confusões? - Perguntou Anita passando-lhe uma
lima pelos calos.

- Às vezes. Lembro-me de uma história que me contaram uns arneiros na patagónia.


Há dois anos, uma frente de mau tempo interrompeu as manobras que um regimento de
infantaria estava a realizar na fronteira com a argentina. Os tropas tinham suportado trinta
dias e trinta noites a chover sem parar, quando um tenente se aproximou do grupo de arneiros
para lhes perguntar como é que eles aliviavam os tormentos de entre pernas. Responderam-
lhe que da maneira mais conhecida, e que se se sentia muito apertado podiam levar-lhe uma
burra para junto do rio. O tenente negou-se, e com um gesto de repugnância acusou-os de
pervertidos. Passou outro mês. À chuva juntou-se a neve, e o tenente tornou a encontrar-se
com os arneiros. Com toda a vergonha do facto, pediu que lhe levassem a burra para o pé do
rio. Os arneiros, sem entenderem a causa de semelhante pudor, disseram-lhe que muito bem,
que no dia seguinte a burra o esperaria junto do rio, que crescia cada vez mais. Ali esteve
também muito pontual o tenente e. Depois de ordenar aos arneiros que virassem as costas,
baixou as calças e começou a fornicar com o animal. Então um dos arneiros virou a cabeça e
disse-lhe: "meu tenente, a burra é para atravessar o rio. As putas estão do outro lado".
George Washington Caucamán acordou alegre nessa manhã. Anita tinha-lhe deixado um
termo de café e torradas junto da cama. Levantou-se de um salto e sentiu que os seus pés
livres de durões podiam levá-lo a qualquer parte.

- Coisa ou caso, eles têm um problema que também lhe diz respeito - disse a
comissária, apontando-lhe um casal que o esperava diante da secretária.

- O senhor é o especialista em linhas quentes? - Perguntou o homem.

- Segui pistas quentes durante quinze anos - respondeu o detective, recordando-se dos
sobressaltos de coração que tantas vezes sentiu ao apalpar uma bosta mole e fumegante num
caminho de montanha.

Ofereceu-lhes assento. A mulher não era muito alta, teria uns quarenta e cinco anos e,
apesar da preocupação que lhe marcava o rosto, mostrava a segurança de se saber atraente,
no melhor da sua vida e com desejos de a prolongar. Sentou-se com movimentos graciosos, e
o homem, um magro de idade semelhante que não parava de esfregar as mãos, preferiu
permanecer de pé.

- O senhor excedeu-se com a conta telefónica? - Disse o detective para quebrar o gelo.

- Não. Pelo contrário. Pela primeira vez na vida estamos livres de números vermelhos -
especificou o homem.

- Bem gostaria de ter essa espécie de problemas.

- Não é isso. Trata-se de uma história confusa e será melhor ser eu a explicá-la - disse a
mulher, procurando os cigarros.

George Washington Caucamán aproximou-lhe o cinzeiro e pegou no livrinho de


apontamentos.

- Chamo-me Maria Lombardi e o meu companheiro chama-se Sergio Téllez. Não somos
casados, mas vivemos juntos há vinte e três anos. Entre setenta e cinco e oitenta e nove
vivemos no estrangeiro, no exílio. Éramos actores, e depois do golpe militar, perdão, agora diz-
se governo autoritário, ficámos sem trabalho porque estávamos na lista negra. Não tivemos
outro remédio senão partir, e assim fizemos, primeiro para a Colômbia e depois para França.
Em oitenta e nove regressámos com todas as nossas economias para voltarmos a trabalhar no
teatro, mas o país mudara, cada velho companheiro defendia a sua pequena quinta com unhas
e dentes, e o exílio marcava-nos com o estigma dos pestíferos. À procura de trabalho,
comemos as economias, e estávamos já preparados para partir novamente quando
descobrimos que o medo da sida, por um lado, e a modernidade do país, por outro, tinham
introduzido os chilenos no sexo telefónico. E assim, para sobreviver, abrimos uma linha
quente.

George Washington Caucamán anotava, e perguntava intimamente a si mesmo como diabo


funcionariam as linhas quentes. Sempre tinha usado o telefone para os fins que Graham bell
previu quando o inventou. Talvez aqueles dois tivessem qualquer coisa a ver com o drama de
Hipólito.
- E tudo correu às mil maravilhas, até há uns dias - acrescentou o homem.

- Clientes que se negam a pagar as facturas porque as consideram excessivas?

- Não. Nunca tivemos queixas a esse respeito. Fizemos clientes fiéis e sempre
estiveram de acordo com o serviço - indicou a mulher.

Linha quente. Hot line. George Washington Caucamán pediu-lhe que lhe descrevessem em
pormenor o funcionamento do negócio, e a mulher assumiu a parte pedagógica.

- É como que um prostíbulo virtual. Sem espelhos, sem salões vermelhos, sem casa. Ao
atender um serviço, não vendemos os nossos corpos, oferecemos imaginação e estimulamos a
fantasia erótica do cliente. Por exemplo: um senhor telefona e quer saber como é que estou
vestida. Pergunto-lhe como é que me quer ver, e se me diz que de mini-saia, digo-lhe que
tenho uma tão curta que mal me cobre o cu, e que além disso não uso cuecas. Mas na
realidade não tirei o fato de treino, a melhor roupa para estar em casa. Para alguns sou loira,
para outros morena, ruiva, calva, meço dois metros ou sou anã, magra ou gorda, chata ou
mamalhuda, setentona ou rapariguinha virgem.

- E o senhor? Atende chamadas de senhoras?

- Tentámos isso ao princípio, mas a libertação feminina é inimiga do negócio - filosofou


o homem. – Pode dizer-se que sou o técnico de som. Há tipos que a querem no duche ou no
jacuzzi, e então eu deixo cair água de um regador num lavatório enquanto ela descreve como
se massaja com a esponja. Há outros que a querem num estábulo de cavalos, burros, vacas. Eu
relincho, zurro, simulo galopes com os dedos em cima da mesa.

- Tudo isso é muito instrutivo, mas quero saber por que diabo estão aqui. Aqui é o
comissariado de investigação de delitos sexuais - precisou o detective.

- Mais ou menos há uma semana começámos a receber a chamada de um tipo


estranho. Não paga para ouvir, mas para nós o ouvirmos.

- Em matéria de gostos não está nada escrito. E desde que lhes pague, não vejo de que
é que se queixam.

- É que nos persegue. Mudámos duas vezes de número, mas é inútil. E é horrível o que
temos ouvido - disse a mulher enxugando duas lágrimas que desconcertaram o detective.

De algures na cidade chegou-lhe o inconfundível fedor do estrume, e percebeu que estava


diante de um caso.

5. Vozes do tempo
O detective George Washington Caucamán dactilografou o conciso auto que detalhava a
visita do casal de actores reconvertidos ao sexo telefónico, e acabou indicando que iria nessa
tarde ao estúdio - apeteceu-lhe escrever prostíbulo virtual - para testemunhar as chamadas
que qualificou de obscenas e inquietantes. Antes de se levantar da secretária olhou para o
objecto que o casal lhe deixara, e como não sabia se havia de lhe chamar fita ou cassete,
decidiu que a ouviria antes de o inventariar como possível prova.

A comissária leu, comentou que o que seria verdadeiramente inquietante era que
rezassem o terço pelo telefone àqueles porcos, e perguntou-lhe se sabia conduzir, porque
tinha direito a usar um dos carros de patrulha.

- Nós, detectives rurais, sabemos conduzir automóveis, camiões, cavalos, barcos com
motor fora de borda e pilotar avionetas. Mas eu prefiro andar a pé, se não se importa.

Anita foi buscá-lo ao meio-dia. Trazia um cesto com sanduíches, um termos de café e
umas laranjas. Chovia sobre a cidade, e o cheiro a humidade tornava o ar quase respirável.

- Vamos a um sítio perto do céu - disse Anita, e pôs o carro em andamento.

No cimo do morro de San Cristóbal sentiram-se alegremente sós. Uns cem metros mais
abaixo, as encostas do morro desapareciam, diluíam-se na nuvem de gases que cobria tudo.
Sabiam que para aqueles lados, lá em baixo, estava o jardim zoológico, a enoteca, os jardins do
bairro Bellavista, a cidade triste e cinzenta de Agosto.

- Gosto deste sítio - disse o detective.

- Também eu. Venho aqui sempre que posso. Imagino que não tardará a soprar um
forte vento do pacífico, que levará consigo a nuvem de smog, e ao descer irei encontrar a
cidade que perdi em setenta e três - confidenciou Anita descascando uma laranja.

- Bem. Também pertences aos perdedores.

- E perdi muito. Um companheiro, por exemplo. Chamava-se Moisés Panquilef,


mapuche como tu. Que queres dizer com isso de que também pertenço aos perdedores?

- Conheci hoje um casal de actores, uns exilados que regressaram a uma cidade que os
desconheceu. Lamento isso do teu companheiro.

- E eu também. Conhecemo-nos na faculdade de pedagogia e depois vivemos juntos


cinco anos, até que num dia de Novembro de setenta e três o tiraram da escola onde ensinava
e desapareceu. E tu, George Washington Caucamán, quem és tu?

- Sou filho de um padeiro mapuche que lia as selecções. Daí o meu nome. E tenho um
irmão que se chama Benjamin Franklin Caucamán. Um dia o velho decidiu que nós, mapuches,
só sobreviveríamos se nos puséssemos do lado da lei. E assim me fiz detective, e o meu irmão
é carabineiro.

Chovia, e estava-se bem dentro do automóvel, isolados do mundo, protegidos pela cortina
de água que deslizava pelo pára-brisas. Anita pôs uma de Los Panchos no leitor de cassetes e
serviu duas canecas de café.
- Gostava de ouvir uma coisa - disse o detective tirando do bolso a fita que os actores
lhe tinham dado.

O tempo tem mil vozes, e muitas delas são cruéis. Esta voz do tempo apresentava-se
masculina, rouca, segura, dirigia-se aos homossexuais, às putas, aos padres vermelhos,
garantindo que muito em breve haveriam de pagar pela sua imoralidade e pelas traições à
pátria. Continuava com um fragmento do venceremos, mais umas frases do último discurso de
Allende, e depois com os prantos, os gritos desesperados, as súplicas, os uivos, as respirações
entrecortadas e semianimais dos que eram arrancados do desmaio para regressar às garras da
dor.

Anita arrancou a fita do leitor de cassetes.

- Espera! Não a partas - disse o detective.

- Quem foi o degenerado que fez isto? – Perguntou ela a si mesma com o trejeito do
pranto a deformar-lhe o rosto.

George Washington Caucamán procurou uma saqueta de bicarbonato e atirou-a para a


boca. Enquanto o milagre efervescente fazia efeito, lembrou-se de umas palavras do
comissário rural, ditas uns dois anos depois do golpe militar. Com elas, garantia-lhe que iriam
para o pior dos serviços, mas que teriam as mãos limpas e assim, quando o terror militar se
dissipasse, poderiam exibir diante do país a dignidade simples das mãos limpas.

- Deram-ma os dois actores de quem te falei.

- Sabes o que são esses gritos?

- Suponho. Pode ser uma montagem.

- Não! São gritos de gente que está a ser torturada. Eu conheço esses gritos porque
passei pelo inferno. Estive dois meses na villa Grimaldi - gritou Anita sem se preocupar com as
lágrimas, e o automóvel tornou-se estreito, pois todos os fantasmas do medo se refugiaram
nele.

- Isso já passou, Anita - disse ele abraçando-a e logo se envergonhou das suas palavras.
Só lhe faltava dizer agora "estamos em democracia e devemos perdoar aos que nos fizeram
mal".

- Que vais fazer com a fita? - Perguntou Anita secando as lágrimas.

- É uma prova legal. Pertence ao processo de instrução, se o houver.

- Não vai haver. Os tropas são intocáveis.

Parara de chover. Uma ave de rapina atravessou a pequena porção de céu enquadrada pelo
pára-brisas. Voava alto, tanto que George Washington Caucamán não conseguiu identificá-la.
Podia ser uma águia, ou um milhafre, ou um falcão dos andes. Fosse o que fosse, ela disse ao
detective que talvez tivesse chegado a hora de sair da cómoda casca da inocência, do "eu não
sujei as mãos", e disse-lhe, acima de tudo, que era aquele o momento de entender de uma vez
para sempre que quando a merda salpica, suja toda a gente.

- Onde podemos fazer uma boa cópia da gravação? - Perguntou o detective.

O prédio da rádio terra era no sopé do morro de San Cristóbal. Era uma emissora de
mulheres, feita e mantida por mulheres, e encarregava-se de recordar às mulheres que
também pertenciam ao género humano. Anita cumprimentava e recebia mostras de afecto.
Uma operadora de som recebeu a fita e poucos minutos depois devolveu-a com uma cópia.

- É mais nítida que o original. Tirei os ruídos parasitas do gravador - disse ela quando a
entregou.

Anita regressou ao seu trabalho de caçar passageiros pelas ruas já escuras da cidade, e o
detective foi a pé até ao estúdio ou prostíbulo virtual dos actores.

Ofereceram-lhe um assento numa sala de estar igual à de qualquer apartamento. Um sofá,


dois cadeirões, muitas almofadas, uma reprodução da Guernica, uma estante com livros e
bugigangas, e na mesa do centro o telefone ligado a um gravador com amplificador. Viu
também outros objectos, entre os quais reconheceu dedais, campainhas, um regador e um
lavatório com água.

- Para que são aquelas pranchas metálicas? - Perguntou.

- Faço com elas ruídos de trovões. Há tipos que a querem nua e a correr debaixo de um
temporal - informou o homem.

A mulher vestia um fato de treino azul e tinha o cabelo recolhido num rabo-de-cavalo que
lhe caía pelas costas. Não estava precisamente erótica. Indicou-lhe que se sentasse num dos
cadeirões quando soou o telefone.

- Está? Ernesto, tu outra vez? Vicioso. Ontem deixaste-me quase morta, Ernesto.
Queres que façamos aquilo outra vez? És o meu macho, o meu homem, sim, sinto-o, é
enorme, metes-me medo, vais deixar-me disforme, espera que eu tiro as cuecas, agora sim,
Ernesto.

O tal Ernesto esteve uns três minutos ao telefone. Com uma esferográfica atravessada na
boca, a mulher pedia-lhe que a deixasse respirar, que a gaita dele a sufocava, e dizia-lhe para
não se ir já embora, até que um som gutural deu a entender que se tinham acabado as
moedas de Ernesto.

- Três minutos. Dá para cigarros - comentou o homem.

- Ouviu a fita? - Perguntou a mulher.

- Creio que todos sabemos de que se trata - respondeu o detective, mas não pôde
continuar porque o telefone tocou outra vez.

- Nove. Telefona sempre às nove - disse o homem.


- Que tal, ó maricão? E tu, putéfia comunista? Estavam à espera da minha chamada? -
Disse a voz masculina rangente, rouca, decidida. - Gosto das surpresas, mas uns pelintras como
vocês não me podem surpreender. Sei que me denunciaram e que têm aí um índio de merda.
Estás aí índio? Alegro-me com isso, porque dentro de poucos dias serás tu a participar no meu
programa - ameaçou a voz, e soltou as bestas do horror.

6. A hora da recolha do lixo

A reacção do casal de actores foi histérica. Sem pararem de repetir que nada mudara
naquele país de merda, que tudo, a casa, a polícia, o próprio ar, estava controlado pelos
militares, encheram de qualquer maneira um par de malas e foram-se embora sem se dar ao
trabalho de fechar a porta.

O detective George Washington Caucamán ficou sozinho, abrindo lentamente uma saqueta
de bicarbonato e pensando que o Dono da voz acabava de cometer um importante erro. Mas
depois da recompensa efervescente pensou que talvez aquele homem tivesse a frigideira tão
bem segura pelo cabo que se dava ao luxo de lhe atar as duas pontas do novelo, e em ambas
estavam os tropas. Os responsáveis do centro de tortura, e os ameaçadores vingadores do cu
de Manuel Canteras.

De um telefone público telefonou para Anita Ledesma.

- Deixa o que estás a fazer e vai para a rádio. Acho que é o único lugar seguro - disse o
detective.

- Já estou aqui - respondeu Anita com um ar aflito.

- Tiveste visitas em casa?

- Degolaram o cão e meteram-lhe uns ramos no corpo. De folhas muito lisas e


compridas. Não saias daí.

Ramos de canela, a árvore sagrada dos mapuches. A mensagem era muito clara; não havia
poder que o pudesse proteger.

Da cabina telefónica viu o carro parado a uma dúzia de metros. Podia caminhar fingindo que
não os tinha descoberto, e depois de dobrar a primeira esquina desatar a correr até os
despistar, mas seria inútil. Haveria de certeza outra viatura nas imediações e deviam estar em
comunicação entre si.
O detective George Washington Caucamán lembrou-se com ternura dos bandoleiros da
patagónia. Quando o silêncio lhes dava a certeza de que estavam a ser cercados, disparavam
as suas armas para os quatro pontos cardeais. Nunca faltava um polícia nervoso ou novato que
lhes respondia, e assim descobriam uma linha de fuga.

Saiu da cabina e pôs-se a andar na direcção da viatura. O frio da noite deixava ver
claramente o jorro azul que saía do tubo de escape. A seis passos de distância confirmou que o
condutor tinha um acompanhante. A quatro passos viu que no banco de trás estava só um
homem, bastante volumoso. A dois passos descobriu que o acompanhante do motorista era o
mesmo tipo que lhe levara o garfo duas noites antes. Quando quase roçava um dos guarda-
lamas dianteiros, ouviu o ruído dos vidros a descerem. Então, pegou no 38 e disparou duas
vezes através de uma das janelas da frente. O magricela do garfo nunca mais estragaria
jantares a ninguém porque a bala entrara-lhe por uma orelha levando-lhe um quarto da nuca
ao sair. O condutor também não tornaria a sentar-se ao volante, nem pensava nisso. Toda a
sua atenção estava concentrada em tapar o buraco da garganta por onde a vida lhe fugia em
golfadas. E o de trás era um gordo que, agarrado a uma inútil kalashnikov sem culatra,
pestanejava para retirar os restos de sangue e de massa encefálica que lhe banhavam a cara.

O 38 do detective metido na boca fê-lo soltar a espingarda e sair do automóvel.

- Guias ou não? - Perguntou o detective empunhando o revólver.

Dois tiros numa rua vazia que continuava vazia. Dois corpos sobre o asfalto recebendo o
adeus das janelas que se fechavam, das luzes que se apagavam por gestos das mãos do medo.

- Não me mates - murmurou o gordo limpando o sangue do volante com a gravata.

- Se desceres dos oitenta à hora, já sabes.

O automóvel avançou por ruas desertas, silenciosas. A monotonia da viagem só era


quebrada pelo víbora-dois, responda. Que se passa, víbora-dois? Responda que saía
intermitentemente do equipamento de rádio.

- Para onde vamos? - Perguntou o detective.

- Para leste, para a cordilheira - respondeu o gordo.

- Diz-lhes que me seguem na direcção da estação central.

Com um quarto do cano metido na orelha, o gordo respondeu a víbora-um. Quando


chegaram a um parque de árvores altas e grossas, o detective mandou parar o automóvel.

- Tira o casaco.

- Não me mates. Por amor de deus, não me mates.

- Limpa o sangue do pára-brisas, imbecil. Ou queres que tenhamos um acidente? Tens


um telefone? Que é aquela luz branca ali em cima?
- Aí atrás há um telemóvel. Aquela é a virgem do morro de San Cristóbal. Não me
mates.

- De que é que estás à espera? Para o morro.

Mais ruas e avenidas desertas. Apenas uns cães vagabundos se atreviam a quebrar a
normalidade do medo. Chegaram ao sopé do morro.

- Há vigilantes à entrada?

- A estas horas não.

Começaram a subir a estrada estreita ladeada de árvores tão antigas como a cidade. Uma
chuvinha triste tornava difícil a progressão, as rodas agarravam-se mal ao terreno, mas o 38 na
orelha do gordo fez dele um piloto de fórmula um.

Já no cimo, mandou o gordo descer e algemou-o abraçado a uma árvore. Depois de verificar
a bateria do telemóvel, telefonou a Anita.

- Ouve sem fazer perguntas. Repeti o nosso passeio e aqui ficarei. Preciso de muita
gente às sete da manhã, que tragam todos rádios portáteis sintonizados com a vossa estação,
e que os técnicos estejam preparados para gravar uma conversa e a difundam às sete e cinco.

- Compreendo. Gosto de ti, índio.

- Adeus. Eu também gosto de ti, mulher branca.

O detective George Washington Caucamán renovou o carregamento do seu 38, examinou as


algibeiras do gordo, encontrou cigarros e um pequeno cantil com uísque.

- A noite vai ser comprida, gordo. Tenta dormir.

E assim foi. Uma noite comprida, fria e chuvosa. George Washington Caucamán acendeu aos
pés da virgem todas as velas que encontrou; e a virgem, lá muito em cima, abria os braços para
abençoar uma cidade maldita.

Às seis da manhã o gordo dormia de joelhos, abraçado à árvore. Acordou-o com um pontapé
e dirigiu-se para o automóvel. Pegou no microfone e disse:

- Aqui víbora-dois. Víbora-um, responda.

- Índio? Não tens escapatória. Até te hás-de arrepender de ter nascido - ladrou víbora-
um.

- Que venha o general Canteras, ou terão um terceiro morto - ordenou, apontando o


38 ao gordo.

- Como te atreves, índio de merda? - Ladrou então a mesma voz rouca, áspera e
masculina da primeira chamada intimidatória, a mesma voz do apresentador das fitas do
horror.
- Sei tudo, general. Não foi difícil reconhecer a sua voz de cabrão, e há duas gravações
em poder da imprensa. Negociemos. Espero-o daqui a uma hora ao pé da virgem do San
Cristóbal. Nem mais um minuto.

- Estás louco, índio. O general mata-te logo que te vir - disse o gordo.

Os minutos que separam a vida da morte sucedem-se velozes. Às sete menos cinco viu
avançar o Mercedes Benz do general. Uma tímida luminosidade diurna insinuava-se sobre as
copas das árvores. O general Manuel Canteras desceu do automóvel. Trazia um sobretudo
castanho e chapéu da mesma cor. Os gritos do gordo algemado à árvore não lhe detiveram o
passo decidido.

- Agora, Anita, comecem a gravar - disse o detective metendo o telemóvel no bolso


superior do casaco.

-Já és meu, índio - cumprimentou o general.

- Sei perder. Nós, índios, toda a vida perdemos. Vai levar-me com os outros torturados
para me incluir no seu programa?

- Isso mesmo. Eles são os meus despojos de guerra. Aníbal, César, Hitler, Franco, todos
os grandes soldados incluíram prisioneiros nos seus despojos. Franco usou-os para construir o
vale dos caídos. Eu uso-os para manter o poder em respeito.

O general Canteras interrompeu o seu discurso para virar a cabeça. Do bosque em redor
avançavam mulheres, dúzias de mulheres com as cabeças cobertas por lenços brancos e com
os retratos dos seus parentes desaparecidos.

- Que se passa? - Ladrou ele para os seus guarda-costas.

A um sinal de George Washington Caucamán, as mulheres ligaram os rádios, e o general


ouviu a sua confissão multiplicada.

- Maldito índio. Podia ter-te morto em qualquer altura.

Vários carabineiros sonolentos e confusos aproximavam-se em passo acelerado. O detective


mostrou a sua chapa à luz da manhã e gritou a plenos pulmões:

- Polícia! Está preso, general!

Amanhecia sobre Santiago e, como sempre àquela hora, o lixo era recolhido para sugerir um
pouco de decência.

Fim

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