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Bartolomeu
Bruno Ribeiro

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Copyright © Bruno Ribeiro
Todos os direitos reservados.

Capa: Wander Shirukaya


Revisão: Wander Shirukaya, Joedson Adriano & Bruno Ribeiro

ASIN: B07Z5QQQBV

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SOBRE O AUTOR

Bruno Ribeiro nasceu em 1989, um mineiro radicado na Paraíba. Editor da Enclave


editorial, escritor, tradutor e roteirista. Autor do livro de contos Arranhando Paredes
(Bartlebee, 2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider e dos
romances Febre de Enxofre (Penalux, 2016) e Glitter (Moinhos, 2018), que foi pré-
selecionado ao Prêmio Sesc de Literatura 2016, finalista da 1° edição do Prêmio Kindle e
Menção Honrosa do 1° Prêmio Mix Literário de literatura LGBTQI+ . Mestre em Escrita
Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), editor da Revista
Sexus, foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O
Globo e pela Amazon. Mais informações: brunoribeiroblog.wordpress.com

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SOBRE BARTOLOMEU

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Sumário

Chet Baker vai cantar no meu velório


Rendezvous
Andar de cima
Gabinete
Restrospecto, 2020
Reunião com Mona
O piquenique do abutre
Um museu de mortos
Todos aqueles corpos
Limpeza
Negócios
Ligação
Como construir uma carreira de sucesso no Brasil
Domingo

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“I believe in homicide,
I'll rest my case,
Don't cast a sigh.”

Homicide, 999.

“Não matarás.”

Êxodo 20:13.

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Chet Baker vai cantar no meu velório
Criança Branca

Sou conhecido como a Criança Branca e estou em Buenos Aires, hospedado em um


quarto na Pousada Díaz, no bairro de San Telmo. Local apertado, cama com cheiro de
mofo, aquecedor pequeno, poltrona com desenhos tribais e um abajur quebrado. Um
paraíso às avessas. Meu notebook está em cima de uma pilha de papéis, ao lado de alguns
livros sobre a cultura local. O trabalho não é fácil, agir em outro país é complexo e com a
falta de informação – algo que devemos nos acostumar se tratando da Indústria – as
coisas ficam difíceis. O cidadão que apagarei é brasileiro e vive aqui há cinco anos. Não
sei o nome, não sei o que faz e isso não importa. O pessoal da Indústria disse que o
Contato passará o endereço e a arma limpa de digitais, e fim de papo.

Olho para o notebook e leio o e-mail: Puerto Madero, restaurante Verón, às 20h15min.
Ele irá ao seu encontro. O Contato e o Trabalho são brasileiros. Você é um entregador
de pizza. Não há câmeras no local. Na volta, um táxi estará esperando na saída.

Coloco um casaco negro, o frio está afiado, calço sapatos sociais, pego a carteira de
Marlboro e saio da pousada, “Hola, Hola señor”, o vigia diz, acendo o cigarro, trago e
vou caminhando à Puerto Madero, que é bem perto de onde estou.

O Trabalho tem tudo para ser feito de maneira limpa. Da forma que eu gosto. Nunca fui
adepto da sujeira como alguns da Indústria. Muitos que conheço desse meio gostam de ter
o gosto do sangue alheio em seus lábios. Eu prefiro a poesia do ato, nada de estardalhaço.
Um tiro ou facada singela, com graça e cortejo, ganham de qualquer brutalidade gratuita.
A verdade é que ninguém pede para morrer do nada, enquanto dorme, transa, lê. Ninguém
pede para uma sombra surgir no meio da noite portando o óbito em suas mãos. Ninguém
pede isso. Por isso prefiro fazer de maneira rápida e higiênica, em respeito aos futuros
corpos. Um rito formal para aqueles que se vão. Feliz ou infelizmente, nosso trabalho é
esse: invadir a casa dos vivos e roubar qualquer resquício de ar que ali resida.

***

A lua cheia cintila no rio de Puerto Madero. Próximo da Puente de la Mujer, consigo
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ouvir o sotaque eufórico dos brasileiros tirando fotos, a empolgação dos turistas
americanos e vejo algumas crianças indo e voltando na enorme ponte. Visualizo o
restaurante Verón, sento em uma mesa do lado de fora, peço um Callia Alta Shiraz
Malbec, trago a nicotina, e aguardo o informante. O lugar é aconchegante, chão de
linóleo, janelas grandes, garçons customizados de camponeses, têm até cheiro de trigo.
Eu trago mais um pouco do cigarro, o garçom chega com o vinho, educado, todo cheio de
pose, espero que o informante pague a conta. O garçom pergunta se quero mais alguma
coisa, digo que não, viro a taça sem gracejo algum, fumo mais dois cigarros, e nada do
cara chegar; atrasos nesse meio são imperdoáveis. Estamos trabalhando com vidas aqui.

Chega uma moça de vestido vermelho, cabelos claros e curtos, um olhar meio nipônico.
Ela está na minha frente, sentada, servindo o Callia em sua taça, enquanto pede um
salmão para o garçom.

“Disseram que seria um homem.”, digo.

“Eu gosto de ver o choque na cara dos homens quando eles descobrem que eu tenho uma
buceta e não um pau. Algum problema em ser mulher?”

Acendo outro cigarro.

“Onde?”, levanto o tom de voz.

“Que pressa.”

“Onde?”

Um problema sério nessas situações é a sedução. Ela é uma víbora e qualquer membro da
Indústria que não esteja preparado para uma eventual sabotagem pode ser mortalmente
picado. A mulher sabe olhar, passar a língua nos lábios, sabe beber o vinho com pose. E
nenhuma pessoa é tão metodicamente sedutora assim. Essas víboras – homens ou
mulheres –, às vezes, são enviadas pela própria Indústria para testar seus membros. No
meu caso, o medo é um pouco mais particular. Digamos que fiz algumas coisas erradas e
digamos que Eles podem ter descoberto. Observo as unhas da mulher e uma delas está um
pouco quebrada, nada demais, só uma simples rachadura, mas isso para uma máquina
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treinada para seduzir diz muito. Pergunto se ela fuma, ela diz que sim. Ela cruza as
pernas, são magérrimas, sem marcas. Seus olhos esverdeados tentam puxar alguma coisa
de mim, eu continuo fumando, olhando ela da cabeça aos pés.

“Onde?”

“O seu rosto é diferente, branquelo. Você tem 16 anos por acaso?”

“Onde?”

Ela tenta, persiste, se eu fosse tão jovial neste meio como meu rosto aparenta ser,
provavelmente já estaria salivando, implorando para irmos a outro lugar. Transaria com
essa mulher, enfiaria tudo nela, até sentir que sua carne fazia parte da minha. Em seguida,
ela enfiaria alguma coisa na minha bebida, injetaria algo no meu rabo, ou simplesmente
faria à old scholl: um tiro com silenciador e tchau. Tudo isso pode ser neura minha, essa
mulher pode ser uma informante comum. Mas neste meio, sempre confie nas suas
neuroses. Sempre.

“Você vai adorar o salmão daqui. Pode me chamar de Flowers.”, ela sussurra.

“Diga o endereço”.

“Homem bravo.”

“Não tô brincando.”

“Você está se metendo em algo perigoso, querido.”

“Sempre é.”

“Dessa vez é diferente.”

“O endereço.”

“Quem avisa amiga é.”


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“Não existe amizade neste meio.”

“Um a zero para você.”

“Não terá outra partida.”

“O salmão daqui é diferente, sério.”

“Tem uma arma apontada para você, querida. Bem no meio das suas pernas.”

“Dois a zero. Pode deixar que eu pago a conta. Mas saiba que tem uma arma apontada para você
também, querido. Bem no meio das suas pernas.”

***

O táxi me conduz pelas ruas iluminadas da grande Buenos Aires. O perfume da mulher havia
ficado em mim. O ritmo da minha cabeça seguia o som do jazz suave que tocava no táxi e tudo
parecia ter perdido o sentido. Sua voz dizendo que nos veríamos novamente conseguiu reacender
qualquer fogo adormecido deste corpo frio que carrego. A moça não é uma mera informante, ela é
como eu, reconheço pelos trejeitos, mas por sorte ela é uma iniciante. Ela tremia um pouco na
hora de beber, unha quebrada, gaguejava, falha na interpretação, e quando cheguei perto dela para
dizer muito obrigado pela informação, consegui ver um pouco de suor na nuca; o perfume era
doce, o nariz dela fungou medo e o cigarro que estava no meio dos seus dedos quase caiu.

Estou seguindo pela Avenida Santa Fé, chegando à badalada Palermo, bairro dos hipsters, das
danças iluminadas e festivas da cidade. A avenida onde o Contato se encontrava era a Juan B.
Justo. O táxi parou, tirei a grana do casaco, agradeci em portunhol, traguei a nicotina pensando na
voz estranha e sedutora da informante-não-informante. Precisava colocar para fora aquela ereção
física e mental que ela havia deixado em mim. Nunca havia ficado tão afetado dessa forma.
Aparentemente, a dama iniciante nas artes da Indústria conseguiu atingir algum neurônio
adormecido. Quase cedo aos seus encantos só para poder tocar naquela pele alva. Quase, por
pouco mesmo, que eu me entrego só para ter o meu corpo baleado em um motel classe B de
esquina. Morto, sem identidade, mas saciado. Fui para o banheiro de um bar chamado INDIE.
Decidi me trancar lá dentro e lavar meu rosto até alcançar um mínimo de sobriedade. Respirei
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fundo, lavei as mãos, olhei-me no espelho. Cheguei à mesa do bar mal iluminado. Comprei uma
carteira de Marlboro e perguntei para o dono do bar sobre a encomenda da Senhorita Flowers.

Ele pergunta: “Clau?”.

Respondo: “5906667”.

Ele me entregou uma caixa de pizza, não olhou para a minha cara, jogou na minha mão e voltou a
falar sobre bandas com um cara que estava por perto. Gosto de gente assim, sem frescura. Nosso
trabalho é direto, sem palavras desnecessárias. Maldita Senhorita Flowers. Dei o fora.

***

Avenida Santa Fé com Carlos Lazo. Cigarro na boca, mente livre de interrupções. Estava com
luvas de couro, sinal óbvio de que a ação estava para começar. Havia colocado a encomenda no
bolso do casaco preto: carregada. A caixa de pizza em minhas mãos. O prédio onde o cidadão
morava era alto, uns vinte andares. Fiquei algumas horas na frente, vendo o movimento, e neste
período só uma pessoa saiu sem terno ou vestido de marca: era o porteiro, com sua gravata mal
arrumada e camisa social amassada. O local é bem vigiado, fino em demasia. Meu rosto sempre
ajuda a entrar em lugares assim. Olho para o relógio: 23h00min. No e-mail disseram para eu
entrar às 23h28min. Essas horas são exatas, provavelmente há alguém vigiando o Trabalho faz
alguns meses, logo, neste momento, o Trabalho deve estar fazendo alguma coisa que vá
favorecer a minha entrada. Às vezes assistindo televisão, lendo, no computador, tricotando,
ensaiando. Nós entramos em um tempo retilíneo, em que a pessoa esteja apta a receber visitas. No
caso de hoje: uma pizza. A Indústria sempre planeja seus atos. Quanto a isso não tenho do que
reclamar. Mas, depois dessa informante, definitivamente, mandarei um e-mail reclamando. Quase
me ferro. Maldita Flowers.

Concentração.

Caminho até a portaria.

“Hola, una pizza para el 409. ”

“Buenas noches... 409, hmmm, me parece que el Sr. Castro salió, joven. ”
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Sinto uma pequena gota de suor descer atrás da minha orelha esquerda.

Meus dedos tocam no cano da Taurus.

Piiii... O interfone começa a tocar. Lembro da informante loira francesa assassina. Tudo isso
poderia ser uma armadilha. Um clichê de péssimo gosto. A Indústria poderia estar querendo me
apagar. (Talvez tenham descoberto o que andei fazendo de errado). Esse tipo de pensamento é um
erro em trabalhos assim. Não sei o que está havendo comigo. Parece que as coisas estão perdendo
terreno, estou suando. Merda.

“Oh, perdón, el está en casa. Mi descuido. Puede subir. Ya está esperando.”

“Gracias, si.”

Fiquei com vontade de enfiar um tiro na cabeça desse porteiro.

No elevador, uma música ambiente. Este momento pré-ato é um dos meus favoritos. Somos
treinados de forma intensiva para não pirarmos a cabeça nesses minutos que antecedem o ato.
Alguns desistem, outros até se matam. Já teve cinco casos desses. O último foi com Carlos
Queiroz. O cara era promissor, nos treinos só tirava nota boa, foi contratado para assassinar um
político lá e Brasília, não sei o que deu no cara, mas ele enfiou um tiro no próprio queixo, voou
maxilar, dente, lábio, tudo ficou tatuado no teto do elevador. Depois de Queiroz, os treinos
ficaram mais intensos.

Sorte que já passei dessa fase. Bem, para mim, esses minutos são sagrados. O coração batendo
forte, o cérebro coagulando perigo pelas veias do corpo, a arma torna-se um fardo tão grande
quanto a cruz para Cristo. Até esqueci da maldita Senhorita Flowers e suas expressões diabólicas.
Maldita. Concentração. O botão 4° começa a piscar. As portas se abrem. Cheguei. Confiro se não
há câmeras. O corredor é enorme, um longo tapete amarronzado com desenhos vermelhos cobre o
chão. As paredes com quadros em aquarela, iluminação amarronzada. No teto, lustres brancos e
cheios de arabescos. Vou caminhando com a caixa de pizza, o coração acompanha o ritmo dos
passos. Vejo a porta com numeração 403, e vou observando os quadros de artistas que nem sequer
imagino o nome, 404, nunca fui muito ligado à pintura, meu amor sempre foi a literatura, 405,
meu pai foi um escritor e minha mãe era da Indústria, foi através dela que cheguei neste meio,
406, e foi com ela que perdi minha virgindade, 407, ter chifrado o meu pai poeta não foi um ato
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louvável, mas tive que aprender a não ter sentimentos desde cedo, 408, fazia tempo que não ficava
assim por causa de uma mulher. Maldita Flowers, 409, concentração, merda. Pensei em Queiroz
agora. A Taurus indo em direção do meu queixo, a massa cerebral enfeitando esse corredor
sofisticado. Aperto a companhia, faço uma cara de bom moço, não que isso seja difícil.

“Hola.”

O cidadão tem um pouco de pó branco no bigode espesso. Careca, nariz grande, olhos escuros,
corpulento, branco, estranho.

“Sou brasileiro, não precisa falar em castelhano.”, respondo.

Ele está com um roupão (como a maioria dos Trabalhos noturnos) e no fundo da casa, escuto
um músico a que sempre me agradou: Chet Baker.

“Adoro essa versão. I don‟t stand a ghost of a chance with you?”, pergunto.

“Finalmente enviaram um entregador com bom gosto. E brasuca ainda por cima!”, ele sorri, os
enormes dentes amarelados ficam expostos.

“Desde pequeno eu escuto, é genial.”

O Trabalho abre mais a porta e fica falando alguma coisa que não entendo. Ele pega a pizza, abre
a caixa e passa a língua nos enormes lábios. Forço a minha entrada, empurro o homem e não
reparo na decoração da casa. Sigo o ritmo da música, enquanto ele fala “que porra...” Eu pego a
Taurus PT-938 do casaco (minha favorita, fico feliz em ver que Eles não se esqueceram) ela é
uma semiautomática, ação dupla e simples, calibre 380 ACP, capacidade de 15+1 tiros. Munição
GOLD. Quase tenho outro orgasmo, o disparo é seco, acerta a testa do enorme homem, seus
joelhos dobram, seu corpo desaba de lado, lado esquerdo, sem jeito, todo torto, tombando feito
fruta madura no tapete branco da sala de estar, e criando uma poça avermelhada na altura da sua
cabeça despida.
***

O táxi me leva para a rua Bolívar. As coisas não estavam corretas. Não sabia quem era esse
homem que matei, mas a voz da Senhorita Flowers indicando que o perigo desse trabalho era

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iminente ficou na minha cabeça. Não deveria, mas ficou. Talvez seja porque eu queira transar com
ela. Não sei. Mas tinha que chegar ao meu quarto e enviar um e-mail para Eles. Alguma coisa não
me cheirava bem. Neste Meio, sempre confie nas suas neuroses. Sempre. O táxi para no meio da
Avenida Córdoba. Digo para continuar adiante, ele não continua, estou com o cabo da arma em
mãos quando um cheiro familiar aparece. Uma voz afetada diz para eu nem tentar. A porta se abre,
um vulto entra e cola ao meu lado. O taxista pega um celular, disca um número e diz: “feito”.
Anda ao meu lado: doce, cabelo curto, lábios finos e dignos da Nouvelle Vague. “Promessa é
dívida”, ela diz. Na sua mão, uma semiautomática. Começo a rir, pergunto se posso fumar. “Sinto
muito, tão lindo. Quem manda comer a mulher de quem não deve”, Flowers diz. A minha mão
ainda grudada no cabo da Taurus. Ela sabe o que eu fiz de errado. Eles sabem. O taxista começa a
andar com o carro, eu fico observando aquele rosto cínico, a franja escorrendo até o queixo, era
perfeito sob todas as formas arquetípicas possíveis. Meu dedo alcança o gatilho, fico preparado,
ela diz que eu posso fumar. “Mandar uma iniciante, erro número um.” “Não sou iniciante,
querido... E veja bem...” Ela aperta o gatilho primeiro, uma silenciosa, um barulho suave,
reproduzindo o assovio de um pássaro negro, o canto de uma flauta doce, tão doce quanto aquele
cheiro que agora significava o meu fim. Ela segura meus cabelos encaracolados, me arrasta até
seus lábios e sussurra: “Dois a um. Um último beijo, Criança Branca?”. A música de Chet Baker
ecoa pelas minhas memórias, enquanto tiro um merecido descanso nas longas pernas de Flowers,
cambaleando pelas ruas argentinas, rumo a algum buraco desconhecido. Eles descobriram o que
eu fiz. Devia ter imaginado, não fui discreto. Mereci esse fim. Não importa. Um enterro tornando-
se sonho pornográfico, penumbra, então o carro freia: escuto sons, passos e, antes de expirar,
sussurro: “I don‟t stand a ghost of a chance with you…?”.

Rendezvous
Eraldo

20h02min. Lobo Cego e Bartolomeu estão atrasados. Combinamos de 19h43min. Odeio atrasos.

Para a reunião de hoje, temos uma pauta surpresa: a morte de um dos membros. É lasca viu. Entro
no meu Facebook, coço o saco, dô uma cheirada. Fico mastigando a tampa da caneta e sem querer
estouro uma das espinhas que rodeiam meus lábios, cuspo no chão metálico da sala de reunião,
começo a assoviar alguma música do Caetano. Estresse.

Lau fica alisando sua barba com restos de Cream Cracker. Seus olhos redondos, azuis quase
marítimos, piscam sem parar, enquanto ele observa o enorme telão a nossa frente. Ao seu lado, eu
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ajeito meus óculos de aros grossos, pego um chiclete e fico mastigando, encarando o telão
também, daí pergunto: “o que as mulheres viam na Criança Branca? Ele tinha cara de nada, cês
não acham?”. Lau segura a risada, consigo detectar por causa do seu músculo facial que se
contorceu. Ouço um gemido de negação, é Marian Von Bismarck. Sim, ela inventou um dos
apelidos mais escrotos da Indústria (e olha que a concorrência é grande). Nunca entendi esse “Von
Bismarck”, mania doida que assassinos brasileiros têm de crar codinomes gringos ou sofisticados.
Enfim, acho brega. Muito brega. Marian, com seus olhos asiáticos, poderia perfurar meu peito,
tamanha a reprovação ao comentário que fiz. Ela se levanta da mesa em que estamos. Suas unhas
vermelhas alcançam a carteira de cigarros. Marian fuma com elegância. Todos nós observamos o
telão, nele está o rosto da Criança Branca. Um homem branco, olhos tristes, cabelos negros
encaracolados e um sorriso infantil.

Lau continua em silêncio.

A nossa sala de reunião é grande, isto é, para um grupo de cinco membros até que é espaçosa.
Dentre todos os Departamentos da Indústria no Brasil, o nosso é o mais invejado. O mais
respeitado também, diga-se de passagem. A verdade é que não quero perder essa sala nem as
mordomias que ganho por ser membro do Departamento. Não mesmo, veja só: um garoto de 18
anos faturando o que faturo por ano só para invadir computadores de futuros moribundos, coletar
dados, investigar suas vidas e descobrir seus endereços é o que chamo de emprego dos sonhos. E
acordar de um sonho bom nunca é legal, cês sabem. É como sonhar que tá trepando com a Britney
Spears e acordar com sua mãe berrando. É lasca, viu. A nossa sala é toda decorada por objetos
prateados (abajur, mesa, cadeira e portas) e um poético cheiro de margarida. Onde eu e Lau
estamos sentados, entra o contraste: uma mesa vermelha e redonda, que se torna pequena para a
tensão atual. Lau pega um charuto, o acende, fedor sobe, ele diz que está havendo um problema.
“Jogaram o corpo dele em alguma vala argentina”, Marian diz, apagando o cigarro no cinzeiro,
“algum de vocês recebeu mais informações?”.

“Nadica”, engulo o chiclete.

Marian balança negativamente a cabeça, caminha em círculos, alisando sem parar os longos
cabelos negros que fariam inveja a qualquer garota-propaganda de shampoo e condicionador.

“A Criança Branca não era tão inteligente assim, digo, para ser um traidor. Não sei. O que ele
poderia ter feito?”, Marian fica repetindo “o quê?”.
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“Olha, eu sei de uma história que ele estava trepando com a mulher de alguém do Andar de
Cima...”, digo, sem olhar para Marian.

“Ele não era tão inteligente, mas não era burro, Eraldo.”

“Ele pensava com o pau, todos sabemos disso.”

Volto a mexer no meu notebook, coloco uma música, Tempos Modernos, versão da Marisa
Monte. Impressionante como essa mulher consegue me seduzir. E essa versão na voz dela é
encantadora, puro ritmo, encanto e doçura.

“Música agora, Eraldo? Sério? Olha as merdas que você escuta, seu punheteiro de merda.”

Marian grita e pega outro cigarro, tenta acender, o isqueiro falha, tenta de novo, falha de novo, ela
arremessa o isqueiro na parede, joga o cigarro no chão, falha, senta ao lado de Lau, segurando o
choro. Ela diz que não temos sentimentos.

“Um companheiro nosso morreu, seus merdas. Vocês não veem isso? Nosso rabo está na reta. Se
um do Departamento vaza, a chance do Departamento inteiro ser apagado é grande. Nossas vidas
podem estar em perigo aqui dentro da Indústria. Vocês não enxergam isso?”, ela pega o isqueiro
que está na frente de Lau, que em nenhum momento tira os olhos do telão, pega o seu cigarro
mentolado no chão e o acende, em seguida joga o isqueiro em cima de Lau, que continua calado,
fumando o fedorento charuto.

“Merda, ninguém nessa empresa faz o que o nosso Departamento faz. O que a Criança Branca
fez? Como eles ousam mandar alguém apagar ele?”

“Fez alguma coisa.”, a voz grosseira de câncer de garganta e excesso de uísque de Lau é audível.
Marian chega perto dele, grita em seu ouvido “alguma coisa? Ele morreu, sabia? Morreu”.

“Ok”, ele olha para ela, sem demonstrar estresse.

“Se estamos na merda, você tem culpa também, Lau. Se lembra que no início do ano você deu
informações erradas para o pessoal interno da Indústria? Para os Gerentes? Você quase queimou
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nosso Departamento e toda a firma.”

Marian se levanta em silêncio. Alguém por trás da porta começa a falar: uma voz afetada, rude,
sem contornos, direta.

“Lobo Cego, DDI 960142966, O Departamento. Membro Segundo. Código-Senha: 666.”

A porta metálica é aberta, Lobo Cego entra usando um terno azul escuro, que por mais que seja o
maior tamanho disponível no mercado, ainda fica apertado em seu corpo. A tatuagem de lobo na
sua cabeça calva fica em evidência por causa da luz branca e reluzente da sala. Lobo faz uma
expressão de cansaço e diz: “nós fomos apagados. Certeza”. Ele repousa as duas mãos (que mais
se parecem patas de elefantes) em cima da mesa vermelha.

“Como...?”, pergunto para o Lobo, mantendo minhas mãos no meio das pernas, pois elas não
paravam de tremer. O troglodita chuta uma cadeira, “você é um dos maiores hackers do país,
crioulo. Invadiu o celular do Moro e da galera da Lava Jato. Um gêniozinho. Descubra aí, oras.
Acessa alguma coisa, invada o computador do Andar de Cima, todo mundo já deve estar sabendo,
só nós estamos marcando bobeira aqui”, ele segue em direção da máquina de café, “eu ouvi alguns
comentários quando estava vindo pra cá. Geral falando sobre a morte da Criança Branca, dizendo
que nosso Departamento só traz polêmica pra empresa, enfim, o chefão dessa pocilga tá pra
concorrer a presidente deste país de merda, cês sabem, né? Imagina se descobrem que ele financia
tudo isso aqui? Ele deve tá querendo apagar esse nosso circo dos horrores com nomezinhos toscos
e engraçados, e manter algo mais low profile, tão ligado? Já era pra gente”.

Fico olhando para as costas exageradas do Lobo Cego e retruco: “eu não tenho acesso e nem
meios de invadir as informações do Andar de Cima sobre nosso Departamento”, abaixo a cabeça,
alisando minhas unhas sujas com restos de biscoito, “o Andar de Cima mantém uma política que
evita qualquer invasão. Acredite”.

Lau se levanta, começa a caminhar lentamente ao nosso redor, circulando nossos corpos como
uma cascavel prestes a dar o bote; do nada, sua voz intimidante pergunta sobre o paradeiro de
Bartolomeu.

“Ele deve estar vindo”, Lobo responde, “mas... E se ele não vier?”

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“Será que ele já foi apagado?”, pergunto gaguejando.

“Um atrás do outro, isso seria estranho.”, responde Lau.

“Eu... Recebi um trabalho no nordeste. Apagar uma mulher em um residencial. Amanhã de noite.
Se eu for, algo me diz que não volto.” Lobo Cego começa a falar, “se eles mataram Bartolomeu,
nós já éramos”.

Marian fica salivando na hora de falar, “não é possível que eles decidam nos matar feito cães
sarnentos. Isso é um absurdo”.

Lau puxa o ombro dela, seus dentes expostos e queixo quadrado ficam evidentes, assim como os
nervos em seu pescoço, “isso não é a porra de um colégio, mulher. Você pensa que ainda está
trabalhando com o viado do Roberto Justus? Nós vivemos à flor da pele neste emprego, somos
peões, nossas vidas são feitas...” ele abre a palma da mão e fecha rapidamente, “disso ó, nada,
vazio, somos papéis e estatísticas”.

“Se fode, velho perturbado, reacionário, machista e broxa! Você e seus problemas de estresse são
outros pontos criticados pelo Andar de Cima, se lembra daquela matança sem sentido que você
aprontou em São José dos Campos?”

“Foi necessário, pirada.” Lau responde e volta a sentar, levanta a cabeça e começa a encarar a
lâmpada branca do teto. Marian fica repetindo “sei, sei...”.

O suor corrompe meu corpo, as pernas frágeis, braços inquietos... Começo a falar olhando
para todos, querendo fugir deste hospício, “não, não quero morrer, olha, eu nunca matei
ninguém, eu só encontro endereços, facilito a vida de vocês, sei lá... Eu não vou morrer.
Nunca fiz nada de errado, certo?”.

Ninguém responde.

“Sou um simples youtuber, ex-rapper da Rua Augusta com o QI do Roger do Ultraje a


Rigor. Nada mais que isso, ok, já invadi grandes sistemas, o povo da Lava Jato, ok ok,
mas ter a morte perfumando meu pescoço dessa forma é demais. Lasca, viu.”

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Alguns pingos de urina escorrem pelas minhas pernas. Estou em crise.

“Se acalma, covarde”, Marian grita comigo, “estamos ferrados e fim de história. Entende
isso? É bom se acostumar, aberração.”

“Você poderia pensar em alguma saída, né”, aponto o dedo na cara de Marian, “você é
bem relacionada com inúmeras pessoas, vá buscar ajuda ou você só sabe dar informações
erradas e abrir as pernas?”.

Ela fecha os olhos, quando os abre, seus dedos magros alcançam a alça da xícara de café
do Lobo Cego; ela arremessa, o líquido negro queima minha pele, começo a gritar,
pulando aleatoriamente, assoprando meu braço queimado. Lobo segura Marian para
evitar maiores tragédias, enquanto ela xinga toda a minha família. Eu digo que ela só
entrou neste Departamento porque deu para todos os machos do Andar de Cima. Um
escândalo caótico surge na sala de reunião, ruídos, berros, e apesar do nosso
Departamento ser conhecido pelo egocentrismo dos membros, nunca tivemos uma briga
tão eufórica como essa. Provavelmente porque nosso rabo nunca esteve tão próximo da
morte. Lau interrompe os gritos com um simples sussurro: “eu não quero morrer também.
Ninguém quer”. Nós paramos com o escândalo e começamos a encarar o velho, que está
inclinado na mesa vermelha, olhando para a foto da Criança Branca no telão, “... Mas se
eles fizeram uma emboscada com a Criança, creio que continuar aqui na Indústria é
perigoso. Já faz algum tempo que andam dizendo que nosso trabalho só causa problemas e
gastos desnecessários. E todos daqui já pisaram na bola em algum momento. Vivemos em
tempos de crises e cortes. Nossa vida tá na reta, não tenho dúvidas disso.”

Lau tira o isqueiro do bolso, entrega para Marian, que lacrimeja um pouco e acende o seu
cigarro mentolado.

Tento falar alguma coisa, mas fico sem reação.

Lau solta a fumaça do charuto, seus olhos tão cravados no telão agora estão presos em
meu rosto cheio de espinhas, ele diz: “você não mata, mas auxilia, moleque. É a mesma
coisa. Na verdade é até pior, porque você facilita e muito as coisas pra gente”. Lobo
começa a andar em círculos. Eu fico olhando para Lau, assustado, e dessa vez, realmente
sem reação. Ninguém fala nada, até que Lau continua, “depois da sujeira no trabalho em

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Nova Iorque que o Lobo e Bartolomeu fizeram”, Lobo ia falar alguma coisa, mas Lau não
interrompeu seu solilóquio, “Marian dando informações erradas de um Trabalho e quase
entregando a localização da Indústria com suas estratégias errôneas”, Marian bebe o café
de uma só vez, “juntando isso com o boato da Criança Branca ser amante da esposa de
um dos membros do Andar de Cima... Resulta em... Merda. Estão vendo? Isso já é o
bastante para que uma sutil e discreta empresa como a Indústria apague o nosso
Departamento. Nosso trabalho não pode ter ruído, entendam isso”.

“E eu fiz o quê?”, pergunto.

Ninguém responde.

***

Ninguém quer morrer. Estamos em silêncio faz cinco minutos, estou contando na minha
cabeça, e este dom com os números me fez ganhar o prêmio de QI Matemático 2009 na
escola. Bons tempos, eu não me preocupava com nada, só de ser o gênio mimado da
família. Agora estou aqui, ganhando bem, mas prestes a levar um tiro na cabeça a
qualquer minuto. Segundos.

“E se a Criança Branca fez alguma outra coisa que não sabemos?”, interrompo o silêncio,
quase engolindo as palavras; repito a pergunta, e questiono: “hein, hein? Fora o boato dele tá
pegando a mulher de um dos chefes, ele podia ser um informante de alguma empresa
concorrente da Indústria, algum chefão. Sei lá. O que fazemos não é algo muito de papai
do céu, convenhamos. A Indústria tem muitos inimigos, a Criança podia estar trabalhando
para algum deles...”.

“Eu falei com ele”, Lobo interrompe, “há dois dias. Ele estava tranquilo, disse que viria
para a reunião de hoje, pacato, duvido muito que ele fosse um traidor”.

Marian começa a rir, “já disse, a Criança não era tão burra assim. E outra coisa, ninguém
sabe quando vai morrer, careca idiota. Por Deus. Você queria que ele estivesse com uma
cara de nossa, vou morrer em Buenos Aires daqui dois dias, pois sou um traidor?” Ela
pega mais café, suas mãos tremem bastante agora.

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“Nós sabemos”, Lobo responde.

“Sabemos que vamos morrer”, Lau exibe um sorriso sarcástico, “não sabemos quando”.

“Não sabemos que vamos morrer. Certo? Estamos especulando,” digo.

“Não seja inocente”, Lau responde, apaga o charuto e vira o pescoço rígido para Marian,
“a Indústria não gosta de deixar marcas. Vocês não leram as 50 páginas do contrato do
funcionário?”.

Todos nós simulamos um luto. O silêncio não é absoluto, pois meus soluços e lágrimas
ecoam pelo quadrado metálico em que nos encontramos.

“Será que eles mataram mesmo o Bartolomeu?”, Lobo coloca a mão na sua face rude,
“não posso acreditar nisso.”.

Lau começa a tossir, responde de imediato ao Lobo: “Olha, eu espero que ele esteja
morto. Bartolomeu nunca se atrasou”. Ninguém entende a resposta, antes de qualquer
reação, Lau emenda, “tem uma história que creio ser desconhecida de vocês. Ele pode
estar vivo, meus caros”. O velho atirador se levanta, observa os olhos de cada membro da
sala, “e se estiver mesmo, há uma possibilidade de ele estar em nosso encalço. Sabiam?”.

Lau pega uma caixa na estante metálica da nossa sala, ele tira um DVD e o coloca no
aparelho que está a nossa frente, e após alguns segundos, a foto da Criança Branca cede
espaço para uma gravação de péssima qualidade. A imagem vai ficando um pouco nítida,
preto e branco, o ruído vai parando. É a gravação de um aeroporto. O velho volta a se
sentar e diz que a gravação foi feita com câmeras de segurança local. Vemos umas cinco
posições de câmeras e em cada plano aparecem suas numerações: 1,2,3,4 e 5. E nenhum
plano carregava nada de relevante. Só um aeroporto cheio, pessoas caminhando de um
lado para o outro, bolsas, crianças chorando, a voz da mulher dizendo que o voo G3 7687
para Guarulhos está atrasado. Homens de terno olhando seus relógios, filas enormes,
algumas pessoas sentadas aguardando um avião ou qualquer coisa que as tire dali.

“Conheço esse vídeo.” Lobo diz, pedindo um cigarro para Marian, que entrega sem sequer
olhar para ele.
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“Conhecemos”, responde Lau, “Marian e Eraldo não viram. Só quem conhece são os
assassinos da firma”.

“O que tem demais em um aeroporto brasileiro lotado?”, pergunto.

“Esse vídeo é exibido para todos os que sujam as mãos aqui na Indústria. Uma forma de
inspirar os iniciantes e veteranos. Todo ano eles exibem inúmeros vídeos dele em ação.”

“Dele?” Marian pergunta, acendendo o cigarro do Lobo e devolvendo o isqueiro ao velho.

“Bartolomeu. Como sabemos, nosso nobre Bartolomeu é considerado uma lenda aqui
dentro. Eles insistem em montar vídeos dele lutando com uma espada, dando
cambalhotas, batendo em dez caras ao mesmo tempo e outras palhaçadas. A maioria das
anedotas são inventadas, mas este vídeo é real.”

“Ele destroçando umas pessoas no aeroporto. Não é isso? Ótima mira. Mostra bem a
habilidade do Bartolomeu”, Lobo traga e começa a tossir freneticamente, engasga, cospe
no chão, respira fundo, e continua, “enfim, qual o objetivo de mostrar isso? Falar que o
nosso negão aí é bom e fim?”

“Vejam, depois eu digo.” Lau pega o isqueiro e seu charuto. Todos voltam a se sentar à
mesa vermelha, finalmente um segundo de paz, eu peço um cigarro também, estava
nervoso: a ideia de morrer era constante e em meio a olhos dilatados e uma nuvem de
fumaça que crescia entre nossos corpos, a ação começa.

Em transe, observamos tudo.

***

O primeiro tiro disparado aparentemente veio da parte superior do aeroporto. O


segundo ângulo de câmera das cinco mostra um homem de terno, carregando uma pasta
preta, cabelo penteado para trás, poucos detalhes do rosto, pois a qualidade não é tão
nítida. O disparo atinge a nuca do cidadão, deixando sua cabeça pendendo para o lado,
quase decapitado; ele dá uns três pulos para direita. Torto, morto. Outro disparo acerta
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sua perna, ele dá uma meia cambalhota e cai, formando uma bomba de sangue no meio
do aeroporto. A primeira câmera mostra só o rastro de sangue e as pessoas correndo.
Crianças sendo carregadas pelos pais, que olhavam ao redor do aeroporto, gritando
como se o mundo fosse acabar. Não havia modo de saber a posição exata do atirador, só
podíamos deduzir que o disparo vinha de algum lugar alto. O terceiro disparo foi
decisivo para concluirmos isso: uma mulher loira, com calça jeans e regata, estava
correndo, sua rótula foi parar no saguão da LATAM. Policiais começam a se mobilizar,
olhando para cima, armas em punho, não podíamos ver, mas deviam estar ensopados de
suor. O pânico se fragmentava nas câmeras um, dois, três, quatro e cinco, e um ruído
sutil foi audível, como o canto das corujas mais tímidas, um assovio em forma de enterro.
O som cessa quando vemos a cabeça da loira ser dilacerada em poucos instantes. Os
pedaços da cabeça aloirada mesclada com restos do seu cérebro foram exibidos nas
câmeras quatro e cinco. As pessoas entraram em um estado de pânico total, corriam aos
berros, fugindo do atirador misterioso. Eu não conseguia respirar. Marian virou o rosto
algumas vezes. Lau e Lobo nem piscavam. No meio da multidão, um homem de
terno marrom tira uma arma da sua maleta, ele aponta para algum lugar, atento,
aparentemente era alguém do meio, dada a precisão com que ele apontava. Ele grita
alguma coisa e em seguida uma mancha circular e vermelha aparece no seu peito, no
lado esquerdo do peito, e ele flutua pelo ar, saindo do campo da câmera dois, e surgindo
na câmera três, caindo em cima de uma mulher que estava empurrando um carrinho de
bebê. Ela fica suja de sangue, começa a gritar sem parar, mãos e rosto avermelhados,
dois policiais a acalmam, e mais policias entram no aeroporto. As câmeras ficam cheias
de homens fardados, todos apontando suas armas para cima.

Câmera um é desligada, ouvimos o som de alguém a socando, chutando, seja lá o que


for: destruindo-a. Câmera dois é desligada, na câmera três um homem corre. Ele larga
sua bagagem, tira o blazer e corre como se carregasse uma peste inflamável no corpo. A
três é desligada. Na câmera quatro, ele continua correndo, e a câmera é desligada.
Imediatamente, a última câmera aparece. O vemos de longe e em poucos segundos de
exibição, o fugitivo em alvoroço está sem cabeça, pairando seu corpo vagaroso e morto
por uns 3 metros, concluindo o seu voo mutilado em cima de várias pessoas que também
fugiam. O defunto sem cabeça sai rolando no chão por alguns segundos, e ouvimos um
estalo estranho: a câmera cinco é desligada.

***
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Lau começa a falar, empolgado: “Fuzil preciso, mira ótica e eletrônica sofisticada.
Pólvora sem fumaça ou chamas, tudo isso permite que o atirador atinja níveis de
eficiência nunca imaginados”.

“Isso não tira os méritos dele”, Lobo corta Lau, que ignora o comentário e continua
falando: “telêmetro laser e um computador balístico, esse fuzil consegue atingir alvos de
1000m sem dificuldade alguma, tenho certeza”.

Dessa vez ninguém interrompe seu discurso hipnótico sobre a qualidade da arma usada.

“Não sei se vocês sabem, mas Bartolomeu era um perito em snipers aqui na Indústria.”

“Não imaginava. Nunca o vi tocando em uma arma de fogo”, eu respondo.

Pois é...”, Lau se levanta, diz para prestarmos atenção: “a sessão cinema não acabou.
Vamos conhecer um pouco mais do nosso amigo. Assistam isso: Bartolomeu falando
sobre as qualidades dos snipers. Não sei se vocês sabem, mas nos anos 90 as vídeo-aulas
dele eram bem conhecidas por aqui. Os iniciantes em nossa bela arte ficavam grudados
nos telões, observando o nosso amigo falando de armas, melhores métodos para matar, se
infiltrar com sutileza e coisas do tipo. Melhor do que o Telecurso 2000”.

Marian começa a rir, “Bartolomeu é tão velho assim? Por favor, você já viu a cara dele?
Parece uma menininha inocente. Lógico, ele é um dos melhores daqui, eu sei, mas você
fala dele como se o cara estivesse aqui antes de todos nós. Tá bom que os negros
envelhecem bem, mas vamos com calma.”.

“E está mesmo, Marian”, Lau começa a caminhar pela sala, “o rosto feminino e olhar
caridoso enganam a todos, mas Bartolomeu está há muito tempo nessa empresa, mulher.
Muito mesmo. Não sei ao certo se ele tem alguma doença genética que não o deixa
envelhecer, mas se brincar, o cara tem a minha idade”.

Todos boquiabertos.

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O vídeo começa a rodar e Lau retorna ao seu assento. Bartolomeu surge na tela, usando
um colete azul, luvas de couro e sua velha e conhecida expressão gélida. Seus cabelos são
tranças longas e finas, amarradas em um coque perfeito; o olhar fixo para a câmera e a
postura ereta, assusta. A sua pele negra brilha na coloração pífia da gravação. Ele iria dar
uma pequena aula sobre o ofício do atirador. Os olhos do Lobo Cego cintilavam. A
qualidade do vídeo era precária, o ano estava do lado: 1999. Difícil de acreditar que
Bartolomeu não mudou nada. Mesmo rosto de hoje em dia. Formol é pouco. Depois de
alguns segundos, a sua voz suave, melancólica e preguiçosa, começa a ser audível.

“(...) O peso de um fuzil de sniper deve ser de no mínimo 5kg. Por quê? Para diminuir o
recuo e dar mais estabilidade. A arma do sniper não deve ser pesada, pois vai ser
carregada por várias horas junto com outras coisas. Deve ser confiável em qualquer
tempo e condição climática e facilmente reparada no campo.”

Um corte brusco ocorre no vídeo, depois de uns segundos de escuridão, retornamos à


aula.

(...) As armas podem ser do tipo ferrolho ou semiautomáticas. A diferença está no


volume de fogo e na precisão. As armas semiautomáticas são menos precisas, mas atiram
mais rápido. Também dão mais defeitos e são mais pesadas. Outro defeito importante é
ejetar o cartucho logo após o tiro, o que pode comprometer a posição. Os snipers do
USMC no Vietnã detectavam os vietcongues pela ejeção dos cartuchos das AK-47 que
brilhavam com o sol.”

Outro corte. Ruídos na imagem, tudo preto, Bartolomeu retorna, dessa vez segurando um
rifle. Já não entendo mais nada.

“(...) A primeira arma automática de snipers entrou em operação no ano de 1940 com o
Siminov russo, seguido do SVD em 1965. Era uma arma relativamente leve. Os modelos
automáticos da Segunda Guerra Mundial mostraram ser ideais a curta distância, com o
objetivo de parar avanços de muitas tropas. Quanto ao alcance, eles foram aumentados
progressivamente. Na Primeira Guerra Mundial, os alvos eram batidos a cerca de 200m,
aumentando para 400-600m na Segunda Guerra Mundial, e chegando a até 900m no
Vietnã.”

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Outra pausa, dessa vez demora a retornar.

“(...) Em 1945, a mira com zoom de 10x passou a ser o padrão dos snipers. Funciona
com maior campo de visão (...)”

Bartolomeu fica repetindo a última frase “Funciona com maior campo de visão” e quando
a imagem retorna ao normal, ele está sem o rifle nas mãos. O coque desfeito e as tranças
soltas. Aparentemente cansado de estar falando tanto.

“Quanto ao meu ataque e a distância que atingi os alvos, vejam: o disparo contra alvos
distantes é possível com fuzil comum e luneta com aumento de seis vezes. Os snipers
geralmente usam armas customizadas, mas tentar atirar a mais de 1km é considerado
perda de tempo. Os snipers são capazes de disparar a longa distância, mas esperam o
alvo se aproximar para garantir o acerto. Por outro lado, o disparo a longa distância
não é visto nem ouvido. No deserto, por exemplo, o sniper precisa identificar alvos a
1.500m, o que só é possível com luneta com zoom mínimo de 10 vezes, fora que o calor
distorce as imagens, além da presença de ventos fortes. Em campo aberto como o
deserto, o fuzil tem que ser bem potente como a Barrett M-82 e deve ser capaz de atingir
até veículos. E foi este fuzil que utilizei. Uma habilidade, fora o conhecimento total do
armamento a ser usado, que vocês devem aprender, é a ter paciência. Um sniper deve
ser um mestre zen, somos águias à espreita da alimentação. Dias e mais dias à espera do
alvo, aguardando o momento certo do disparo. No aeroporto, fiquei uma semana
escondido e para chegar ao local exato, sem ser visto, foi assim...”

Tudo fica escuro novamente. Esperamos alguns segundos. A imagem não retorna. Lau se
levanta, tira o DVD e diz que pena. Marian bate palmas, assovia, começa a dizer que até
esqueceu que está prestes a morrer, tamanha a vontade de dormir que ela teve. Lobo Cego
esboça um sorriso. Lau alisa a barba, “ainda assim, nada é melhor do que uma boa Colt
carregada. Não troco elas por nada. Enfim, adoro esse vídeo. Pena que está com defeito, 2
horas de duração, só Bartolomeu falando. Belo, não é?”.

“Vocês precisam transar, sem brincadeira.” Marian pega mais café, usa um tom de voz
acima do seu de costume, “ótima aula sobre armas, guerra e precisão, mas o que isso tem
a ver? Ele matou quatro pessoas em um aeroporto, e daí? Vocês são pagos para isso. Só
queria ver o neguinho dando uma aula? Velho pederasta”.
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Lau soca a mesa. “O que vou falar é sério. Entendam: Bartolomeu não é qualquer
obstáculo. Se ele estiver atrás de nós, já éramos. Entenderam? Fim de história.”

“Ouvi dizer que ele era um modelo, assim, antes de virar assassino”, digo.

“Você ouve muitas histórias”, Lobo responde, balançando a cabeça negativamente.

“A questão é, por que será que Bartolomeu não usa mais armas?”, Lau questiona de um
jeito que fica explícito que ele sabe a resposta da pergunta.

“Nem imagino, coroa”, Marian estica os braços.

“Essas pessoas que ele matou no aeroporto”, Lau volta a caminhar, encarando um por um,
charuto nos lábios, fumaça ao redor do rosto envelhecido, “eram membros do antigo
Departamento que ele trabalhava... O antecessor ao nosso”.

***

“Bartolomeu já trabalhou em quantos Departamentos? Assim, Departamentos como o


nosso?”, Marian pergunta, com um tom de voz ameno, como se já tivesse desistido de
tudo. Lau segura o charuto entre os dedos enrugados, a fumaça fétida escorre de sua boca,
“antes da minha chegada, não sei se ele participou de outros Departamentos,
provavelmente sim. Depois deste acidente no aeroporto”, Lau mostra um sorriso aberto,
seus dentes amarelos e horrendos ficam em evidência, “Bartolomeu parou de usar armas
de fogo. Podem ver, nem tocar em uma ele toca. Aparentemente se arrependeu. Ele até foi
chamado na época pelo prefeito do Rio de Janeiro para ser secretário municipal da ordem
pública, mas Bartolomeu sempre odiou política. E políticos”.

“Que traíra filha da puta”, o Lobo grita. Ele engasga um pouco, mas consegue perguntar
“o que esse Departamento fez?”.

“Um dos membros matou o Trabalho errado. E a mulher, aquela loirona do vídeo, foi
vista entregando dados pessoais sobre o próprio Departamento para um concorrente.”

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“Mas Lau, se ele se arrependeu, provavelmente não virá atrás de nós”, digo.

“Duvido muito, moleque. Ele pode nos matar usando as mãos se for necessário.
Bartolomeu já devia estar morto, mas ele sempre arruma um jeito de viver. E por não ter
vindo à reunião hoje, creio que esse abutre maldito arrumou um jeito de continuar
respirando.”

“Bartolomeu é um cara legal, não imaginava...”

“Não estamos falando de simpatia, Eraldo”, Lau corta bruscamente, “é viver ou morrer. Bartolomeu
tem a vida dele, assim como nós. Se eu tivesse a chance de apagar vocês para continuar vivo, eu o
faria. Tenho filhos, esposa, amante, porra. Minha mulher não sabe passar uma roupa, como ela vai
sustentar meus meninos? Já não temos aposentadoria, direitos, não temos nada. Eu faria de tudo
para permanecer vivo, tudo”.

“Será que Bartolomeu que matou a Criança Branca?”, pergunto.

“Não sei, pode ter sido...” Lau fica caminhando ao redor da mesa vermelha, “um passe de
volta ao mundo dos vivos. Ele é bom no que faz. Nunca suja, com exceção daquele
trabalho de Nova Iorque”.

A carteira de cigarros de Marian termina, Lobo Cego se levanta para ir pegar café, eu abro
meu notebook. Lau tira o DVD de Bartolomeu do aparelho e guarda na caixa colocando-a
em uma pequena estante metálica, cheia de DVDs e papéis.

“Poderíamos falar com alguém”, insisto em sobreviver, me levanto, tento buscar um olhar
de caridade, “não é? Vamos acionar o Andar de Cima, algum Gerente do outro lado. Sei
lá, não é possível que seja assim...”.

Lau me encara: “uma dica, Eraldo: não feche os olhos essa noite. Eu estou preparado,
amigos. Vou sobreviver, não importa o que aconteça. Mudo meu nome, vou para outro
país com minha família. Apaguem meu nome aqui, mas minha vida não. Que venham
vinte Bartolomeus”.

Lobo espreme o copo plástico com café, “digo o mesmo. Já desisti de ir para o trabalho no
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Nordeste. Não vou arriscar meu pescoço”.

Marian abaixa a cabeça.

Um luto prévio. Nossas almas partiriam deste universo.

Se estivéssemos fora da sala eu já poderia prever os olhares mortos em nossa direção. A


última marcha nessa enorme empresa, entre os corredores infinitos e largos, paredes nuas,
sem janelas, portas distantes, fechadas e cheias de códigos, espectros de terno e sem
terno, heróis e codinomes sem noção, e eu me perguntando se tudo isso faria sentido, e eu
me perguntando: onde fica a Indústria? Até hoje não sabemos... Chegamos aqui e não
sabemos como, mas chegamos. Em algum ponto entre São Paulo e Rio de Janeiro. Um
ponto recôndito, eterno. E os homens e mulheres deste estabelecimento de morbidez e
cifrão finado balançando a cabeça, falando em suas mentes “meus pêsames” para o nosso
Departamento, enquanto caminhamos rumo ao céu aberto, o exterior, o mundo real. E ali,
a qualquer momento, nossas vidas seriam extraídas dos corpos, seja por Bartolomeu ou
por qualquer um, o nome não importa.

A verdade é que não havia mais solução, nosso Departamento, de fato, seria apagado.

ANDAR DE CIMA

Homens de negócio

Já sabia, investir em peixe grande dá trabalho. Sempre avisei: enfiar um bando de


egocêntricos em um só buraco é merda, prejuízo, show particular, briguinha de ego, vocês
não veem a seleção brasileira? Time com Gaúcho, Kaká, Robinho... Deu certo? Não,
porra. Eu sempre disse que esse lance de matar como palhaços de circo é arriscado. Esse
lance de contratar empresa de publicidade pra criar nomes bacanudos pra assassinos,
marketing interno pra bombar os caras, branding pra assassino, puta que pariu, lógico que
ia dar em bosta, eu sempre disse... Ei, você nunca disse isso. Eu disse, vai se fuder,
Jorginho, eu tinha falado pro Carlos que ia dar merda. Ele disse mesmo, Jorginho. Carlão,
você é mó puxa saco. Se liga, galera, deixa de alvoroço, o lance é: decidido ou não
decidido? Decidido. Certo. Ok. Tudo em cima. Bota dentro. E o corpo da Criança

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Branca? Já resolveram aí? Limpamos, Paulinho, relaxa. Ótimo, a Mrs. Flowers deu sinal
de vida? Nada, disseram que sumiu assim que desovaram o corpo. Que vagabunda do
caralho, a Criança morreu mesmo? Certeza? Lógico que sim, Jorginho, tá duvidando da
minha galera de limpeza? Eles tiraram foto do moribundo, não é minha culpa que
aquela Criança Branca desgraçada seduzia qualquer puta. Calma, Lúcio, o chifre ainda tá
coçando, é?

(Risadas escandalosas contagiam a sala fechada).

Vai tomar no olho do seu cu, Carlão. Toma conta da sua esposa, aquela velha entupida de
Xanax, speed e pó. Nossa, Lúcio, e ninguém daqui curte isso, hein? Seu narizinho de aço.
Porra, até parece que nossas mulheres são criadas a maconha prensada e vinho sangue de
boi. Mas a esposa do Carlão é uma neurótica, a doida se entope de pílulas para emagrecer
feitas por crianças africanas. Ser corno ou não ser... Olha aqui! Olha aqui nada, para de
falar da minha esposa. Calem a boca! A Criança Branca está chifrando o capeta agora,
isso sim. Cadê a foto dele morto? Olha aqui, ó, veja, me deixa te mostrar aqui no
iPHONE, ó, abre o olho, se liga, tá morto, olha a carinha de bebê dele, mortinho. Chega
disso, apagamos o cara, precisamos achar a Mrs. Flowers e pronto. Já pensou se ela
decide fazer alguma merda? Ela não sabe a localização da Indústria. Claro que não,
Carlos, mas sei lá, nossos funcionários são bons no que fazem. (risos) A Mona disse que
já está vendo algum modo de ir atrás dela. Olha, mudando de pau pra caralho, e o lance
de Nova Iorque? Sei que foi em 2020, mas isso ainda tira meu sono, os putos deixaram
um prédio ser demolido. E Bartolomeu botou mais no nosso rabo esquartejando aqueles
corpos com essa nova modinha ninja dele. Bem, Pedro, até agora resolvemos essa
situação de new york, all right? A Marian tinha contato com um senador dos states, caso
antigo da moça, daí já entramos em contato com ele; estamos tirando o nome da Indústria
da reta. Infelizmente, alguns concorrentes e inimigos sabem que foi a gente. O Gordo
tinha contato com uns peixes grandes. Traidor filho da puta. Verdade, mas a nossa sorte é
que foi no Brooklyn, estamos falando que foi briga de gangue. A maioria dos presuntos
eram negros, sorte a nossa. Isso aí... (silêncio.) A Marian é muito gostosa, vocês comeram
ela também, né? Pena que de dez acertos dela temos que aguentar vinte cagadas. Ela já
cagou no meu pau, sério, fui fazer anal e a mina não suportou... Vamos voltar ao
assunto... Ser corno ou não ser... Olha aqui, seu puto... Ei, relaxem. Agora é sério,
voltando, como será com o Departamento? Apagamos um, o resto deve estar em
alvoroço, eles não são burros, sabem que serão apagados. Manda Mona apagar eles, fim
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de história. O grupo dela anda em falta, porra. A Mrs. Flowers está desaparecida e ela era
a melhor do grupo de limpeza da Mona. Complicado. Mona só está com aquele psicólogo
na cadeira de rodas. Ela tem um capanga, não é? Que nada, é só um cafetão que serve de
segurança dela, o cara nunca conseguiria apagar alguém do Departamento. Talvez
conseguisse apagar Marian e Eraldo; mesmo assim, precisamos de um profissional. Foda,
sem a Flowers complica. Mona precisa de uns membros novos. Urgentemente. Nosso
grupo de limpeza tá zerado. Enfim, como vamos fazer? Acho que eu tenho uma ideia.
Late, Paulão. Bartolomeu. O que tem ele? O cara é uma verdadeira máquina, molecada. O
nosso negão premium não se entrega fácil e já provou que faz de tudo pra continuar vivo,
meu pai sempre disse para eu me ligar nele. O que você quer dizer, herdeirinho? Eu quero
dizer que nós podemos apagar ele... Mas não apagar. Entende? Isso já rolou várias vezes
aqui, inclusive com ele mesmo. O próprio grupo de limpeza é feito de membros apagados
na teoria. Toda empresa precisa ter um Dani Alves da vida, cara mais velho e com
experiência pra comandar o time. Pois é, ainda acho que o Bartô pode render coisa boa
pra gente. Não entendo. Nem eu. Eu entendo, Carlão, essa galera é novata, eles não
sabem do que o Bartolomeu é capaz ainda. Expliquem aí, coroas. Vou sim, molecada com
cheiro de leite, se liguem, vou passar um vídeo para vocês. Ihhh... Lá vem. Só não me
diga que é aquele vídeo do Flamengo levando de quatro do Flu. Né esse não, né?

(Risadas escandalosas contagiam a sala fechada).

GABINETE
Os herdeiros

“Por que apagar um grupo bom, bróder? Prejuízos existem, mas não entendo. Eles
dão mais lucro do que prejuízo!”

“Senta aí, o Paulinho aqui vai explicar pra você. Aliás, vou dar uma aula pra ti, moleque.”

“Deixa de ser cuzão, ôr.”

“Ouça seu mano aqui, um dia você que vai herdar essa parada.”

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“Vai falando que eu vou fechar um aqui pra gente.”

“Somos como a bolsa de valores. Não por menos, nós temos os dados das bolsas por toda
a Indústria. Nossos Alvos, em grande maioria, são grandes investidores. O asfalto da
estrada é a bolsa de valores. Cada membro dessa Indústria, seja um Peão ou um Gerente,
é um investimento na nossa bolsa interna. E não devemos vê-los como humanos, e sim,
como dados estatísticos. Números. Não existe mais isso de gente. Agora é só algoritmo,
conta, equação. Nosso organismo é feito de bytes. Se liga, uma ação é a menor parte do
capital de uma empresa, é um pequeno pedaço dela. Certo? Uma pessoa que compra uma
ação passa a ser uma pequena sócia da empresa. Existem as Ordinárias Nominativas que
dão direito a voto em assembleia sobre definições da empresa e a Preferencial
Nominativa, que não dá direito a voto, mas preferência no recebimento de dividendos. A
mais vantajosa é a dos votos. Trabalhamos com ela aqui. Entende? O pessoal do Andar de
Cima vota com a gente e juntos decidimos os rumos da Indústria. Infelizmente, nossa voz
não é definitiva aqui dentro, apesar de sermos filhos do dono dessa merda. Enfim, você
consegue contatos, pessoal querendo comprar o seu voto, estratégias internas, e coisas do
tipo. Agora, vamos lá, como investir?”

“Que baseado forte do cacete.”

“As ações são negociadas; a compra e venda de ações ocorre na própria Bolsa. No nosso
caso, ocorrem aqui dentro. Essas negociações são feitas por meio de corretoras
habilitadas pela Comissão de Valores Mobiliários. Faça um cadastro na corretora,
informando os seus dados, e comece a comprar e vender. Você está no jogo. A corretora
abre uma conta, cada instituição determina qual a quantia mínima para a abertura. As
empresas dividem seus lucros com os acionistas. Mensalmente ou trimestralmente. As
ações podem ser compradas de três maneiras: Fundos de investimento, clubes de
investimento e individualmente.”

“Hm...”

“O jogo esquenta. Não existem valores mínimos. Agora vêm os riscos no meio da estrada: a
compra de ações é considerada um investimento de alto risco. Variações demais no mercado, não
há garantia de retorno do que foi investido. O mercado é como a sociedade, aliás, os dois são a
mesma coisa. Um moinho ambulante, como já dizia o poeta. Essas altas e baixas podem acontecer
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devido a alterações no setor de atuação da empresa. O velho risco de mercado. Outro problema é a
liquidez, não conseguir vender uma ação que tenha sido comprada. Por isso, pense em longo
prazo. Entende?”

“Como é? Você se empolga com essas paradas.”

“Não podemos pensar em curto prazo. Investir em um grupo só porque ele está rendendo
agora. Hoje, o Departamento é mais problema do que lucro. Nosso rabo anda na merda,
irmãozinho. Sabia? E o futuro? O que pode acontecer no futuro? As eleições estão
chegando, esqueceu?”

“Dá um pega aí.”

“Sempre a longo prazo, irmãozinho. Foi o que o papai ensinou. Não arrisque por algo
momentâneo. Saiba sacrificar as coisas na hora certa e tenha certeza que você terá algo
mais forte para trabalhar no futuro. ”

“Que lombra torta. Papo de universitário.”

“Por que você acha que Bartolomeu está vivo até hoje? Ou a Mrs. Flowers?”

“Hm? Bartolomeu é aquele neguinho com cara de bicha?”

“É.”

“O cara manja. Acho irados aqueles vídeos dele com a espada. Doidera geral. Ele parece o Travis
Scott ou aquele cara... Vocal do Cidade Negra...”

“Tony Garrido.”

“Isso, isso.”

“Enfim, várias ovelhas por uma. Ele não é exceção. Não precisamos de quantidade,
irmão. Precisamos de um ou dois, mas que valham a pena investir. Às vezes penso que
não precisamos de nenhum. Já pensou? Um novo começo, literalmente, limpar tudo.

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Deixar o nosso histórico limpinho. Um início todo construído por nós dois? Seria foda.
Sem essas lendas velhas e coisas caretas do tipo. As eleições estão chegando e não posso
vacilar. O Brasil se tornou um paraíso para nós, mas os comunistas estão voltando. Povo
brasileiro é besta. Não será uma eleição fácil, saca? Estão nos vigiando sem parar. Temos
que nos manter mais discretos, pelo menos por enquanto. Desligar os excessos, os circos,
os grandes orçamentos, como mandar matar gente fora do país semanalmente, regalias e
hotéis caros, o caviar do Andar de Cima. Cortar tudo, maninho. Voltar às origens. Papai
gostaria disso, eu tenho certeza. E ele entenderia a situação delicada em que estamos.”

“Acho que tô entendendo, papo doido do caralho, tanto faz, se quer apagar o
Departamento dele, apaga. Se quer apagar tudinho e começar do zero, topo também. O
que você achar melhor, maninho. Fala pro pessoal do Andar de Cima que eu não vou pra
reunião hoje. Vou ficar de banho-maria na banheira, a Aluska tá chamando. E eu tenho
que comprar minha passagem pra Buenos Aires, meu amorzinho tá toda alegre porque
vou pra lá.”

“Beleza, irmãozinho. Vá mesmo.”

“Isso aí.”

“Tô indo lá, depois volto. E sim, manda a Jéssika não entrar na banheira. Quando ela fica
limpinha perde a graça.”

“Xá comigo.”

RETROSPECTO, 2020

Lobo Cego

Desde que a Indústria disse nível máximo de perigo, eu não saí da academia. O suor e os
pesos eram o que mantinham meu nervosismo sob controle. Eles enviaram o e-mail,
criptografado como um ninho de pássaro, como sempre, confirmando a passagem e o dia.
Só isso, nada mais.
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Quando chegássemos no local, o resto das informações seria dado.

***

Estávamos em um bar na Broome Street. Nova Iorque possui estações bem definidas,
logo, o inverno estava gelando nossos ossos. Olhei o termômetro, marcava 1°F. O bar era
apertado, luzes vermelhas pipocavam e ventiladores cheios de poeira pairavam sobre
nossas cabeças. Um palco improvisado cedia espaço para um trio de garotas. Elas
tocavam Nirvana, e Bartolomeu estava próximo do palco, sorrindo com aqueles lábios
venenosos. Ao término da música, Bartolomeu bateu palmas, ajeitou sua jaqueta de couro
e foi conversar com a baterista, uma garota de cabelos curtos vermelhos. Elas começaram
a tocar novamente, a vocalista, uma negra com tranças azuis, disse que elas tocariam uma
autoral. A baixista, aparentemente a mais nova, com cabelos ruivos, começou a gritar no
microfone. A pequena plateia delirava e Bartolomeu se afastou da multidão. Suas tranças
se destacavam em meio à podridão do rock, assim como o seu rosto de lince, olhos
marcados de coloração pura, simetria letal, entretanto, límpida. Artista da morte.
Bartolomeu não é deste mundo, todos o olham como outro neguinho que pensa ser
roqueiro. Bartolomeu nunca fala nada, não pisca os olhos, não tem feições de pânico,
medo, alegria ou tesão. Ele simplesmente se movimenta em silêncio, e é assim que ele se
aproxima de mim. Antes que eu pudesse o ver, Bartolomeu já estava tomando água ao
meu lado.

“Bebendo água?”, perguntei.

Ele não respondeu. A minha pergunta foi idiota, confesso. O rock das meninas crescia.

“Devemos sair às 20 horas. Certo, Lobo Cego?”, ele pergunta, virando a garrafinha com
água.

“Pegamos os equipamentos aqui e damos o fora. Tome uma dose de uísque, cara. Para
relaxar, será difícil essa...”

Ele termina a água e vira as costas, ignorando o término da minha frase.

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Quase quebrei meu copo com vodca.

“Another one”, pedi ao barman.

Bartolomeu é o queridinho da Indústria. Eles dizem que ele é o melhor desse meio. Seu
treinamento intensivo, falta de emoção e nível de estratégia acima do normal para
resolver problemas fizeram dele um dos melhores do Brasil em nossa fina arte. Depois
que diversos empresários abraçaram o assassinato como uma das suas linhas de
investimento, obviamente que às obscuras do burburinho social, afinal, por mais que
nossos próprios governantes começassem a incentivar o uso arbitrário da violência como
método de solucionar problemas, o assassinato ainda era algo ilegal, mas neste interim,
Bartolomeu foi se tornando um dos grandes nomes do mercado de Trabalhos. Apesar
dessa idolatria em cima do seu nome, Bartolomeu nunca quis se associar em demasia com
os poderosos do país. Ele faz seu trabalho e fim, sem muita conversinha, conchavos e
tapinhas nas costas. Sua origem é um dos segredos mais bem guardados e os que ousaram
procurar saber algum detalhe dela perderam a vida.

Existe uma anedota interessante sobre um curioso e impetuoso jovem que estava entrando
na Indústria. Ele estava saindo da fase de treinamento, empolgado para cair em campo. O
início sempre é a melhor parte. A sensação de tirar uma vida, sem ser no treinamento, nos
excita a níveis não verbais. É indescritível. Este garoto, cheiro de leite, empolgação de
virgem e olhos vidrados, se interessou por Bartolomeu. A lenda do grande assassino era
contada para os jovens que estavam começando. Dizem que a maioria dos relatos são
mentiras, os professores gostam de criar lendas, heróis, histórias tão grandiosas como as
ficções narradas pela Bíblia. Tudo isso com objetivo de dilatar os olhos dos iniciantes, de
criar uma catarse que, no futuro, quando eles estiverem frente a frente com um Trabalho,
será de serventia. Essas histórias divinas servem para não cairmos na tentação de fugir,
nos matar ou simplesmente entrar em um colapso nervoso na hora. Nunca é fácil e o
número de desistentes ultrapassa o número de concluintes. Tomo outra dose. Bartolomeu
bate palma para a banda e volta a falar com a baterista. O pensamento retorna, lembro
com detalhes dessa história. Sim, claro, o rapaz idolatrava o velho abutre Bartolomeu e
seus sucessos grandiosos. Ele queria saber mais. Em uma noite, ele tentou mexer nos
computadores da Indústria com o objetivo de buscar mais informações sobre seu herói. O
jovem era um hacker experiente, mas em sua vã inocência, ele não imaginava que

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tínhamos o Eraldo do nosso lado. Qualquer intruso em nossas redes é imediatamente
detectado, e assim foi. Em poucos segundos, Eraldo descobriu que o rapaz estava
pesquisando coisas sobre o abutre. Dizem que Bartolomeu queria matar o garoto por
conta própria, para usá-lo de lição para os outros iniciantes que pudessem fuçar sua vida.
Não sei se é verdade e na hora tomei outra dose para me dar coragem de perguntar a ele
se era. O garoto foi preso e Bartolomeu pediu para soltá-lo. Os dois teriam um combate,
cara a cara, sem interrupções. Os líderes da Indústria não se intrometem nessas questões.
Eles até gostam. Afinal, o vencedor do combate era óbvio.

Bartolomeu criou uma simples regra: cada um poderia escolher uma arma. Lógico que o
jovem não queria, pois sabia que a morte era inevitável, então Bartolomeu disse: “respira
fundo”.

“Qualquer arma?”, o boy perguntou nervoso.

Nos corredores da Indústria, eles contam essa história diariamente e muitos dão risada,
outros creem veementes e alguns dizem que é outra lenda sobre Bartolomeu. Eu estou no
grupo dos que acreditam. Tomo outra dose. Bartolomeu beija a baterista. O jovem
escolheu uma Glock. Qualquer arma. O menino tremia bastante. Bartolomeu escolheu
uma caneta. Nessa hora todos começam a rir, as histórias aumentam com o tempo, mas a
suposta verdade é essa: uma caneta. Os dois ficaram no Quarto Branco, local feito para
combates e treinamentos. As paredes, teto e chão brancos causam um efeito estranho,
como se estivéssemos em um hospício. Na parte de cima do enorme quarto há uma
vidraria na horizontal, na qual estavam alguns membros da Indústria aguardavam o
desfecho para poderem tirar o corpo do jovem do local.

Bartolomeu pegou a caneta, se agachou, e começou a fazer pontos no chão.

Ele dava um passo, marcava um ponto, outro passo, mais um ponto, e foi marcando seus
passos até chegar ao pé do jovem. Bartolomeu fez o último ponto na sobrancelha do
rapaz.

“Quer se preparar também?”, perguntou Bartolomeu.

Nessa hora todos vibram. A história começa a tomar direções épicas e o suspense do que
pode acontecer cresce. O jovem disse que não. Bartolomeu retorna ao primeiro ponto
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marcado. Havia sete pontos até o garoto. Até seu olho. Algum membro da Indústria
gritou do alto “podem começar”.

Vou relatar a história da forma que Eles contam para os iniciantes do nosso meio.

Outra dose.

Sete pontos.

O jovem não pensou duas vezes: sem mirar direito, apontou a Glock para Bartolomeu e
começou a atirar. Gritava como um soldado de guerra aleijado e desorientado. Ao
pressionar o gatilho, o cartucho é enviado para a câmera e a mola do gatilho é solta,
ativando o pino de disparo. Bartolomeu se movimenta e dá seu primeiro e segundo passo.
O pino do disparo ativa a queima da pólvora. Terceiro. A explosão faz com que a
cápsula se separe da bala. Quarto. A combustão faz com que o tiro seja lançado a uma
velocidade acima de 250 m/s. Quinto. A força do recuo do disparo empurra o ferrolho
para trás, abrindo espaço para um novo cartucho. Sexto. Depois, a mola do recuo
empurra o ferrolho de volta à posição inicial. Sétimo passo. A caneta está dentro do
globo ocular do jovem: seu grito ecoou por alguns segundos no quarto branco.
Bartolomeu empurrou a caneta até fazê-la sumir de vista em meio ao caos vermelho que
transbordava pelo rosto do garoto. As duas mãos ágeis do Abutre encontraram o
pescoço do jovem curioso, e... crack, som de quebra, terror sonoro, um barulho que
simulou o urro de um animal selvagem sendo abatido, e foi assim com essa lição de moral
que tudo terminou.

Alguns pontos avermelhados atingiram as paredes.

Quatro homens mascarados e vestidos de branco pegaram o corpo do curioso, em


silêncio, e saíram. Bartolomeu limpou seu rosto e saiu junto com os mascarados.

Outra dose. Sete pontos. Quase quebro o copo com vodca.

Um crânio com uma caneta enfiada no olho tornou-se (literalmente) a bandeira do


treinamento intensivo da Indústria. Todos os novatos são obrigados a ver este crânio
caolho. A história serve para enfiar na cabeça de todos que curiosidade não é uma virtude
aqui dentro, é uma doença. Não podemos nutrir dúvidas, perguntas, questionamentos.
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Isso não existe. Curiosos pagam com a vida, e foi assim que a lição surtiu efeito.

Nunca mais houve histórico de curiosos na Indústria.

Bartolomeu é o melhor e olhá-lo beijando aquela baterista me excita. Ele poderia acabar
com todos aqui em segundos. Estou prestes a fazer um trabalho árduo junto com ele. Uma
lenda. Maldita baterista. O trio volta a tocar, Bartolomeu está com o celular em mão e
começa a falar com alguém. Ele se aproxima como um vulto, infalível em seus passos
delicados. O seu cheiro é suave, leve, aproximo-me do seu pescoço. Ele não me olha,
guarda o celular e diz que devemos partir.

“Você é gay?”, pergunto.

“We are here to take the package from Cláudio Ferreira”, ele diz para o barman.

O funcionário olha para Bartolomeu de forma estranha e chama o gerente do bar, um


velho gordo e com barba espessa na cara, que chega empurrando o barman e pedindo
desculpas.

“Cláudio Ferreira, you said?”, o gordo pergunta.

“Luís Santos, I said.”

“Ferreira?”

“Eles. X9800. Them. 9.”

“I will catch.”

O homem gordo vai para os fundos do bar e aguardamos. Acendo um cigarro, termino a
última dose e fico encarando Bartolomeu, que não olha para mim nem por um segundo
sequer. O rock sujo parece que aumentou o volume. O bar está mais lotado. Respiro
fundo. Sete passos. Curiosos. Caneta.

“Uma caneta, hein?”, pergunto.


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Bartolomeu continua imóvel.

“O lance dos sete passos é palhaçada, né não? A caneta ainda vai.”

O gordo surge com duas malas grandes e horizontais, Bartolomeu ergue as duas, vê o
peso de ambas e me entrega a mais pesada.

“Essa é sua.”

Beijo a maleta. O gordo vira as costas, o barman vai para o outro lado do balcão.

“O olho do menino virou troféu. Cê é bom mesmo.”

Bartolomeu começa a sair do bar, pego a minha mala e o acompanho. A baterista aparece
na sua frente, beija sua boca e sussurra algo. Bartolomeu diz alguma coisa no ouvido dela
e continua a caminhar até a saída.

“Bela garota, você não perde tempo.”

Bartolomeu ergue seu enorme braço e um táxi para na nossa frente.

“Lobo Cego. Se prepare. Esse trabalho não é piada. Abra os olhos”, ele diz.

“Cegos metafóricos sempre escutam essas piadas.”

“Vamos.”

“Sério, o lance da caneta. Verdade ou mentira?”

“We are going to Putnam Avenue, 529”, ele diz para o taxista.

***

Passávamos pela Manhattan Bridge e os ventos da metrópole já não surtiam mais efeito
em nossos corpos ansiosos. Ao menos no meu corpo ansioso. Bartolomeu observava a
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paisagem feita de prédios megalomaníacos com um olhar abstrato, impossível de ser
definido. Não havia nada. O rio que estava sob nós conseguia passar mais emoção do que
sua expressão. Depois de um tempo, estávamos na Myrtle Avenue, e os bares abertos e
luzes que nunca se apagam me motivaram a falar alguma coisa, finalmente.

“Qual arma você trouxe?”

“Uma espada.”

“Cê ta brincando.”

Na minha maleta, eu carregava meu bebezinho: a espingarda da marca Hatsan. Modelo


Escort PS Guard, calibre 12, capacidade de 7+1 tiros. Toda negra, grande, do jeito que eu
gosto. Cano de 612mm. Fico excitado só de pensar nas características dela. Fico ainda
mais quando penso no disparo da mesma, indo em direção à cabeça de algum Trabalho.
Tchau, cabeça. Bartolomeu continua olhando para a janela, sem direcionar os olhos para
mim em momento algum.

Poderia quebrar a alça da minha maleta.

“20h10min. O e-mail deve ter chegado.”

Bartolomeu pega o seu iPHONE, conecta e diz que eles enviaram. Ele me mostra, a
mensagem dizia: “Quando descerem na Putnam Avenue, 529, entrem no albergue e
procurem por Geoffrey. Ele irá entregar uma mensagem. Leiam. Agir em seguida”.

“Que metodologia. O lance é perigoso mesmo”, eu disse, alisando a alça da maleta,


enquanto olhava para Bartolomeu com seus dedos indicadores no queixo. Ele finalmente
olha para mim, seus olhos são injetados dentro do meu cérebro como um soco potente,
uma bigorna, uma fúria pacífica, um belo terremoto. Ele diz: “acho que nós estamos indo
matar algum desertor da Indústria. Se for isso mesmo, prepare-se em dobro.”.

“Não imaginava que existiam desertores em nosso meio.”

“Mais do que você imagina.”


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“Uma vez dentro, sempre dentro, né não?”

Ele volta a olhar para a janela. Ignorando-me.

***

O tal Geoffrey entrega a mensagem e partimos rumo ao objetivo final.

831 Madison Street.

Lobo Cego é Lucas Salles, empresário. Lucas Salles deseja falar com Vítor Hugo. Último
andar: sexto. O Trabalho estará à espera. Vocês o conhecem: é o Gordo. Segurança
reforçada. O Trabalho sabe quem são vocês, não se deixem enganar. Bartolomeu entrará
por cima, há uma casa do lado, 830, em que há um telhado. Através dele você poderá
pular no prédio do Trabalho. Seja a cobertura do Lobo. Não há câmeras. Ninguém irá
revistar. Evitem grandes sujeiras. Repetindo: evitem grandes sujeiras.

No caminho, Bartolomeu voltou a dizer... “O Gordo. Não te disse que era um desertor. Se
refugiou no Brooklyn. Veio longe. Gordo escroto. É uma missão suicida. Ele sabe que
estamos em seu encalço”.

“Pô, pensei que o Gordo tinha morrido.”

“Pensávamos.”

Bartolomeu não estava tenso, mas eu conseguia ver algo ali dentro. Certo remorso. Ele
amava a vida. Ele não era como eu, que não me importo em acordar amanhã ou não. O
velho abutre amava respirar.

Sorri, mostrando meus dentes amarelados para o vazio: finalmente tinha uma vantagem
em cima da lenda.
***

“I am Lucas Salles and I want to talk to Vitor Hugo.”


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A secretária era negra, olhos claros, cabelo amarrado.

“Nice tatto”, ela diz.

“It’s a wolf”, respondo apontando o dedo para a minha cabeça raspada.

“I can see that...”, ela responde olhando para o meu corpo, de cima para baixo.

“I’m gonna call him, wolfie”.

Fiquei aguardando na pequenina sala de espera marrom e suja do térreo do prédio,


tentando imaginar Bartolomeu saltando os telhados, de tocaia em algum lugar com seu
brinquedinho. Quem em sã consciência vem para um trabalho desses portando uma
espada?

“You can go up. It’s on the seventh floor.”

“Thanks, honey.”

“You’re welcome, wolfie.”

Entro no elevador, sorriso no rosto. Maleta em mãos. Uma música com pianos e
vocalizações desafinadas tocava. Olhei-me no espelho, levantei a cabeça e respirei fundo.
Odeio esses momentos pré-ato. Toda vez fico ansioso, pensando nos meus pesos, na
academia, no suor, naquilo que consegue extrair toda a tensão existente do meu corpo.
Respiro fundo, escuto o barulho do elevador apitando e a porta se abre. Dois homens de
terno me aguardam. Armados.

“Sir Lucas? Follow us, please.”

Sigo os dois homens pelo corredor e começo a imaginar o pior. Entramos em uma sala
com cheiro de esgoto, azulada e com péssima decoração. Quadros em branco, tapete
vermelho, uma mesa envelhecida e alguns negros parados ao lado do Gordo; obeso pra
cacete, careca, com óculos escuros e uma máscara cirúrgica preta em sua boca. Ele se
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levanta, mancando, estava com um sobretudo escuro e sua presença era soturna, assim
como o local em que estávamos. Ele estava usando a porra de uma fralda preta cheia de
manchas verdes e isso me deixou mais perturbado do juízo.

O Gordo realmente estava todo ferrado. Fisicamente e mentalmente.

Os dois homens atrás de mim fecharam a porta. Seguro a alça da minha maleta com mais
força e torço para Bartolomeu estar por perto.

“Lucas, vulgo Lobo Cego do Departamento. Quanto tempo.”

“Você deveria estar morto, né não? Ainda com essa máscara cirúrgica ridícula? E essa
fralda, Gordo? Deixa de ser escroto. Deu pra se cagar agora, é? Cacete. O que está
fazendo da vida, fora ser um traíra?”

“Ainda com os codinomes patéticos? Maldita Indústria e sua criatividade de botequim.


Bem, sem grandes novidades. Fui apagado, entrei em um departamento externo, e pelo
visto, decidi passar a perna neles de novo. Não sou como vocês que aguentam servir de
peões pra esses putos.”

“Típico.”

“Saiba que estou com contatos grandes, gente bem mais importante que a Indústria.”

“Meu salário já sustenta minhas dívidas.”

“Eles não avisaram para você que isso é o fim?”

O Gordo estava excitado com aquilo. A situação não estava boa.

“Eles também não avisaram que aqui está cheio de guardas, não só aqui, mas do lado de
fora? Meu, por isso não gosto da Indústria, eles têm preguiça de dar informações, eles
querem que vocês se fodam. Aqui no Brooklyn as coisas estão melhores, sabe? A negrada
que ando treinando sabe atirar, escutam com atenção e são espertos, sagazes. Criei um
exército barato, só preciso bancar a droga da rapaziada.”

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“Bacana. Mexendo com bombas ainda?”, estava começando a ficar nervoso.

“Claro, coloquei algumas pelo prédio, só pra avisar. Já sabia que em algum momento
vocês viriam. Esse prédio aqui é fachada. Tu saca que a detonação de um explosivo causa
uma onda de choque que percorre a uma velocidade de 3000 a 5000 m/s. Não sabe?
Resumindo: o melhor é largar essa maleta, amigão. Desiste, senão eu morro, tu morre e
qualquer outro filho da puta que estiver de tocaia pela área morre também.”

Um suor escorre. Sinto algumas gotas em minha nuca.

“Falando em maleta, deve ter uma bela arma aí dentro da sua. Que tal mostrar pra gente?
Uma espingarda, né isso?”

Os dois homens atrás de mim apontam dois canos nas minhas costas, um deles diz: “Right now,
baby”.

Até que a enorme janela atrás do Gordo é quebrada, o som causa certo estardalhaço. Era
um corpo. Um garoto decapitado e em suas mãos um rifle. Os homens ao lado do Gordo
se assustam, sinto que os canos apontados atrás de mim somem; abro a maleta com um
toque do meu dedo, pego a minha Hatsan e atiro no homem da esquerda, aproveitando o
tiro para arrebentar a maçaneta da porta. O sangue do estranho espirra no meu corpo,
enquanto dou uma coronhada no outro cara de terno, sinto seu maxilar sendo quebrado.
Termino de arrombar a porta e saio correndo pelo enorme corredor amarronzado, ao som
dos gritos do Gordo, que dizia “don’t let him run, don’t let him run away, fuck!”.
Recarrego a arma, viro e vejo um dos negros apontando uma Glock para mim, disparo,
sua cabeça portando um boné rosa desaparece, dando lugar a um muco de carne
ensanguentado, que se espalha pelo tapete de péssimo gosto do corredor. Continuo
correndo, rumo à última porta do local, uso meu ombro e a arrombo, vejo uma mulher de
calcinha dançando Dirty Dancing, a coronhada entra em ação novamente, e dessa vez
vejo alguns dentes saírem da boca da vítima. Escondo-me atrás de um sofá amarelo. A
casa é toda colorida, com cortinas verdes, televisão com purpurina, quadros de Marilyn
Monroe, teto vermelho, paredes cor de rosa. Aparentemente a mulher é uma dançarina de
cabaret. Ou era, depende da recuperação dela ao meu golpe. Aguardo os vermes virem ao
meu encalço. A situação era grave. A Indústria nos jogou em um buraco de cobra. Somos
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treinados para ações deste nível, mas essa quantidade de ação foge do nosso objetivo.
Apesar de gostar de sangue, essa sujeira é distante do nosso estilo artístico de se fazer as
coisas. Três caras aparecem na porta. Suados. Portando Glocks automáticas. A música
não cessa e eles olham ao redor, tensos e com as mãos tremidas.

A voz do Gordo surge ao fundo: “Dinamite, seus putos. Nitroglicerina, nitrato de sódio,
celulose e enxofre. Decorem o nome da receita que vai fuder com vocês, seus merdas da
Indústria. Where’s is the fuse, Joey? Joey? Let’s detonate this whole shit...”.

Bartolomeu sumido. Levanto, o primeiro tiro vai em direção do capanga gringo que
estava na cozinha, acerto o seu ombro e ele dá um giro, indo parar no fogão. Saio rolando
e me escondo atrás do sofá novamente. Recarrego, em cima de mim, consigo ver a pistola
me encarando, atiro sem pestanejar, a mão e o rosto do meu algoz saem flutuando pela
sala. O outro começa a atirar a esmo, acertando minha perna de raspão e o ombro. Meu
grito abafa por alguns segundos a música dançante da televisão; esta é a hora que o fim
começa a lhe dar boas-vindas. Fecho os olhos, aguardando o tiro derradeiro, mas ouço um
som estranho como ventania e, ao abrir os olhos, o cara armado está cortado ao meio.

Bartolomeu arregaça as tripas do cidadão.

A primeira explosão faz Bartolomeu cair no chão. As janelas do quarto são estouradas de
imediato, a televisão é derrubada com tudo, interrompendo a música irritante. Ele vê que
não consigo andar direito.

“Pegue sua arma”, ele diz.

Seguro a espingarda com força, enquanto ele me carrega.

“Pelo elevador é arriscado.”

“Não diga, Lobo.”

Descemos as escadas na maior velocidade que podemos, ela era em espiral, e lá pelo
quarto andar, vemos o Gordo fugindo com mais dois seguranças. Outra explosão,
exatamente no andar em que estávamos. Tudo ruía; sons simulando berros de colossos
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orquestravam nossa eventual morte. Bartolomeu arrastava meu corpo como se eu fosse
um pedaço de papel. Ele me jogou em um canto da escada e ordenou que eu fosse me
arrastando até lá em baixo. O Gordo gargalhava: ele realmente havia enlouquecido. Já
tinha escutado histórias de brasileiros que surtaram nos Estados Unidos, mas a situação
ali estava grave de verdade.

O abutre corre, consigo ver suas vestes negras indo em direção do Gordo e seus homens,
os detalhes são impossíveis de narrar com nitidez. Consegui me levantar e fiz um esforço
para acelerar meus passos; tentava ver a ação da lenda, eu tinha que ver. E vi uma mão.
Uma perna. Uma cabeça com óculos escuros e uma máscara cirúrgica preta flutuando
pela escada. Uma fralda no ar esfumaçando. Outra explosão, dessa vez eu pulei e o
impacto tornou-se realidade no térreo, quando o som de algumas costelas sendo
quebradas se fundiam com o desmoronamento. A secretária estava colocando vários
papéis em uma pasta. Ela estava tensa, viu-me caído, sorriu e disse “tão lindo”. Ela saiu
do prédio correndo. Arrastei-me até a sala de estar, tentando alcançá-la. Sangue pelo meu
corpo, visão nublada, a escuridão tomando conta. Bartolomeu não havia aparecido e
pensei que ele tinha morrido. Tudo caía. Até que senti um toque gélido em meu ombro
ferido, um toque de hiena – sim, eu viveria para contar essa história. Ou sonho. Até hoje
não sei se tudo isso aconteceu mesmo.

REUNIÃO COM MONA


Mona

Bartolomeu sentou na cadeira dourada com os braços magros e negros atirados para frente,
portando a sua boa e velha delicadeza. Sentada diante dele estou eu, com um cabelo curto e
vermelho, Ray-Ban roxo, um vestido florido, Marlborão na boca, and this is it. Bartolomeu
estava com um terno, lembrava Armani, com riscas finas. Entre nós dois, uma mesa de
centro com uma travessa com frutas cristalizadas, à qual não prestávamos atenção. Eu bebia
uma Budweiser Light, ele não consumia nada. Isso me incomodava.

“Peça algo.”

“Nada.”

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O garçom se aproxima, eu digo: “ele quer nada”.

O garçom vai embora constrangido.

“Quem é?”, ele pergunta, apontando o longo dedo indicador para a figura na cadeira de
rodas ao meu lado.

“Vegetal.”

“Ele precisa estar na reunião, Mona?”

Atrás de nós havia uma sacada envidraçada, ela dava para uma paisagem de arranha-céus
que formavam um emaranhado babilônico de formas geométricas gigantescas até o final
do horizonte. O ar límpido e a paisagem davam um clima de Dubai ou Qatar; a verdade é
que a decoração deste bar – em Belo Horizonte – é inspirada em uma das pinturas de
Pedro Caldas, pintor paulista, um dos meus favoritos.

“Vegetal é um dos membros do meu time também.”

Vegetal só verbaliza grunhidos através da sua máscara de gás surrada e acinzentada.


Regata branca desbotada da banda Legião Urbana. Jeans preto e rasgado. Um corpo
esquelético e meio morto. Os olhos azuis arregalados no vidro da máscara encaram
Bartolomeu, que depois de alguns segundos, decidiu pedir uma água para o garçom.
“Não precisa ter medo. O Vegetal aqui tem uma função nessa reunião.”

“Qual?”

“Ele é um ótimo psicólogo. Era. É. Enfim, consegue entender as pessoas. As mentiras.”

“Sei”, ele diz olhando para os lados, evitando os olhos do Vegetal, “todos conhecemos
psicólogos, Mona”.

“Será que eu sou Mona mesmo? Será que eu sou uma travesti mesmo?”

“Toda reunião você pergunta isso, e eu sempre respondo: não me importa.”


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Homem taciturno, cabelo trançado amarrado, perfume Ferarri. Limpinho. Parece que
nunca fudeu na vida. Bartolomeu, na parte externa, poderia pagar de anjo negro, virgem.
Um crioulo sabonete, como diria minha vó. Enxerido. Mas consigo ver seu interior, e ali,
eu sinto o cheiro pútrido, o chorume, a pestilência. Esse cara tá morto. É isso que me
excita nele. É isso que me convence a ser parceira deste versátil profissional. A água
chega. Ele abre e bebe até a metade da garrafinha. Lábios molhadinhos. Poderia chupar
esse corpo de ébano até deixá-lo mais seco que a figura ao meu lado.

“O negócio é o seguinte, Bartozinho: vocês cagaram no pau.”

O Vegetal fez um som estranho através da máscara. Um som de acidente de carro.

Eu seguro a risada.

“Cagamos no pau em relação a Nova Iorque? Esse trabalho já é antigo.”

“Antigo? Um prédio no Brooklyn explodido. Negros decapitados, arrebentados no meio,


estourados. Tudo destruído. Marca de sangue em todo lugar. Marcas de sangue suas e do
Lobo Cego. Puta que pariu, cês querem enfiar uma tromba no cu da Indústria?”

“Enviaram a gente para um buraco de merda, você não percebe? Era inevitável. O Gordo
ia explodir tudo de qualquer jeito.”

“De qualquer jeito? A Indústria paga caro para vocês fazerem a porra limpa. Não importa
o nível do trabalho. Faça ele limpo. Mate os Trabalhos, desove a arma em algum lugar,
informe aonde desovou, vá para um hotel qualquer, se limpe, volte para o hotel de origem
e dê o fora. Simples. Não tão simples, mas foda-se. No momento em que um prédio é
explodido, um bolo de pessoas morre de uma forma que faria a porra do Tarantino
aplaudir, e ainda por cima os culpados deixam marcas pelo lugar, a coisa começa a feder,
neguinho. Eu demorei a limpar a bagunça, sabia? Ainda tá fedendo, neguinho. Tá
fedendo!”

Um casal próximo da gente olha feio.

“Eu sou a dona desse restaurante, seus merdas mal comidos, algum problema? Não sou racista,
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cacete!”, grito.

O casal vira a cara, volta a nos ignorar.

O Vegetal tosse, o vidro da máscara fica embasado. Bartolomeu encara meu mentor de
cadeira de rodas. Pela primeira vez na vida, vejo algo que o incomoda. Fiz bem em trazer
o aleijado. Seria impossível o olhar do Vegetal não incomodar. Ele era um dos psicólogos
mais famosos da Indústria, era conhecido como Nariz de Rato. O cara sentia de longe o
cheiro dos traidores. Pena que hoje ele não consiga sentir nem o cheiro das suas cuecas
cagadas. O lado bom da situação é que seus olhos ainda funcionam e eu consigo entender
seus grunhidos anacrônicos.

“Certo, Mona. Como proceder agora?”

“Você podia dar um tiro nessa sua bela cabeça africana que tal?”

“Não.”

“Não? Fale que nem homem, mermão. O Departamento de vocês é de elite, coisa fina.
Eles pagam caro para manter vocês no pedestal, entendeu? Apelidinhos, nome bonito,
logo na porta, regalias, desconto em motel, cesta básica, restaurante, férias, décimo
terceiro recheado, desconto em lojas de departamentos, roupas estilosas e a puta que
pariu. Já é o segundo erro. Lembra daquela informação errada que a Marian deu para o
departamento de finanças? Quase fudeu uma operação e entregou a localização da
Indústria.”

“A Indústria nos jogou na mão de um cara viciado em bomba, ex-membro e com um


pequeno exército armado, Mona. Vamos, diga, o que fazer?”

“O profissional aqui é você, querido, não sou eu. A única coisa que a Indústria queria era
limpezinha. Um prédio demolido é foda de limpar. O sanguinho de vocês é foda de
limpar. Negros estripados é foda de limpar. Porra, cê é surdo, caralho? O Gordo tava
usando fralda, Bartolomeu. Fralda! Aquele gordo desgraçado perdeu o juízo, tava louco,
trabalhando com um bando de viciados em crack que deviam comer o seu rabo. Qual a
dificuldade de matar uns pivetes chapados e um obeso maníaco que usa fralda, me diz?

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Mas nãããão... Você poderia usar uma sniper na posição onde estava, mas nããão... Vou
usar a porra de uma espada! Uma espada, Bartolomeu, uma espada! Você tá mais doido
que o Gordo, cara. Que viagem é essa? Tá pensando que é o quê, filho da puta? Um
ninja? Ninja preto e brasileiro? Que porra é essa? Você devia mirar na cabeça daquele
povo e bang, mermão, e bang. Sua espadinha foi o que atrasou tudo e fez o Gordo surtar e
detonar a porra toda. Sua culpa, seu doente mental, sua culpa!”

“Como profissional afirmo que não tinha outro método. Acredite em mim.”

Pego outro cigarro, acendo, peço outra cerveja. Sem ser light.

“Cê perdeu o juízo, Bartô.”

“Discordo.”

“Você sabe qual a função do meu grupo, né não?”

Bartolomeu termina a garrafa de água, me ignorando.

Quase arremesso a garrafa de cerveja na cabeça do desgraçado.

Ele tem o dom de irritar.

“A Mrs. Flowers ainda está com vocês?”, ele pergunta.

“Flowers, eu, e o Vegetal aqui. Os faxineiros da empresa.”

“O que rolou com seu amigo?”, Bartolomeu aponta para o Vegetal.

“O Vegetal entrou no meu grupo de faxina depois que sua esposa, uma Gerente da
Indústria, descobriu que ele andava a traindo com uma paciente ninfomaníaca. A mulher
tacou fogo no cara; aí Vegetal, desesperado e em chamas, pulou da janela, e lá vai, um
homem quentinho, flutuando do quarto andar em direção do capô de um Gol Bola.
Cabum. Coma por seis meses. Recuperou, mas ficou com sequelas, paralítico, queimado,
fudido. Quase perdeu a língua por causa das queimaduras. O pau ainda serve. Vez ou
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outra eu brinco com ele, lógico que não fica duro, mas chupar pau mole é divertido. A
Indústria não quis abandonar o grande psicólogo, daí jogaram na minha mão.”

Bartolomeu pede outra água.

“Não sei porque ainda te ajudo, Bartolomeu. Faz tempo que você não limpa nosso rabo.
Faz tempo mesmo, sabia? A Indústria tá meio cabreira contigo...”

“Matei o Gordo.”

“Foi trabalho a mando da Indústria. Não nosso. Somos à parte, cê sabe disso.”

“Qual o lance? Conta logo, o pessoal quer apagar o Departamento?”

“Yeah, baby. O negócio tá feio pro seu Departamentinho.”

“Quem você quer que eu apague?”

“É aqui em Minas mesmo, sua terrinha. Ainda morando na cidade dos matutos?”

“Villa Baixa.”

“Você tem moral na cidade, né? Você gosta dessa moral, não gosta?”

Bartolomeu se inclina para frente, a luz do sol reflete em seu nariz grande, a garrafinha de
água cai no chão e sai rolando, indo parar nos pés do casal que partia do meu restaurante.
Eles nos observam, fazem cara de nojo e vão embora. O rosto de Bartolomeu está
dividido: o lado direito iluminado pelo sol que some aos poucos, tornando-se alaranjado,
enquanto o esquerdo fica mais escurecido que o normal, dando um tom soturno, um
aspecto tão aterrorizante que fez os batimentos do Vegetal acelerarem.

“Tá sentindo essa ponta gelada na sua coxa gostosa, Mona?”

“Tô.”

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“É uma faca. Se você tocar na minha vida pessoal novamente, eu te rasgo inteira. Aqui.
Você sabe que eu faria isso. Não sabe?”

“Relaxa, caralho.”

“Não relaxo. Eu arranco o seu pau na faca, traveco desgraçado. Nós temos um código.
Negócios. Você sabe da minha vida, mas não falamos dela. É assim que devem ser as
coisas”, a ponta gelada é removida, eu respiro aliviada. Viro a cerveja em um só gole,
arroto, e ele continua, “quem você ou vocês querem que eu apague?”.

“Dessa vez sou eu. A Flowers que está envolvida com um traficante aí, mas até agora está
no controle da situação.”

“Quem?”

“É aqui em Belo Horizonte mesmo, saca? Meu restaurante anda bombando, mas tô
sabendo de um concorrente na Rua Lavras. O cara tá crescendo, tem umas gostosonas
atendendo, tá ligado? O Queixo de Pedra disse para eu me ligar.”

“Queixo de Pedra?”

“Meu segurança.”

“Se essa moda de apelidos pega.”

“Então, o cara abriu o restaurante faz três meses, mas já está conseguindo...”

“Mona, não quero saber o que ele faz, o que fez, o motivo.”

“Esqueci os códigos da Indústria. Ando mal acostumada, lidando só com assassino de


beco, sabe... Foda, desculpa.”

“Não repita essa palavra na minha frente. Nunca mais.”

“Beco?”
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“Você sabe qual.”

“Você é tão fru fru...”

Bartolomeu pede outra água.

“E vamos parando de botar banca, neguinho. Você é a formiga do dia. Tu e o Lobo


colocaram o Departamento na ponta da agulha.”

“Sua vez. Fale mais. Qual a bronca?”

“Vai apagar o dono do restaurante?”

“Óbvio.”

“Ok. Minha vez. Se liga, o Andar de Cima entrou em contato comigo, falando que
possivelmente vão apagar os dados do Departamento. Apagar os dados de vocês é igual
a... Shazam, gatinho. Cê sabe, né? Tchau e bênção.”

“Absurdo.”

“Vocês são foda, mocinho, mas explodir a porra de um prédio, fora os erros de Marian,
excluindo o egocentrismo daquele velho Lau que lidera vocês... Nossa, esse velho se acha
o pica das galáxias, né não? Só porque já meteu bala em seis ao mesmo tempo. Enfim, a
Criança Branca não se salva também, tu tá ligado que ele comeu a esposa de um dos
fodões do Andar de Cima, não é?”

“Não sabia.”

“Você não sabe de nada. O grupo de vocês custa caro. Maior salário da Indústria, filho.
Apesar dos lucros que vocês dão, o prejuízo anda custando mais caro. Fora que o chefão
da Indústria tá pra se candidatar a presidente do país. Sabia disso? Qualquer escândalo
acaba com a carreira dele. A imagem do cara é limpa, saca? Limpa entre aspas, cê
entendeu. Enfim, só digo isso, Bartolomeu: abra o olho. Não quero precisar mandar a
Flowers meter um tiro na sua cabeça. Ou o Vegetal aqui... Porra, o Vegetal não faz é
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nada.”

“Faz. O olho desse desgraçado me assusta.”

“Que viadinho você.”

A água chega, Bartolomeu abre a garrafa e bebe até a metade, calculadamente. Um


homem metódico em tudo, sem dúvidas.

“Outra coisa”, digo, segurando as mãos leves e suaves como algodão do assassino, “a
Criança Branca vai fazer um trabalho na Argentina amanhã.”

“Tô sabendo.”

“Ele não voltará.”

“Como?”

“É isso”, solto a mão dele, “vocês estão na pontinha da agulha, gostosão”.

O Vegetal resmunga alguma coisa, coloco meu ouvido perto da máscara, concordo com a
cabeça e termino minha cerveja.

“E a sua esposa? Ingrid, né? Vai bem?”

“Você quer morrer mesmo?”

“Poxa, Bartolomeu, não podemos ter uma breve relação de amizade? Você até me
mostrou uma foto dela, ela é linda. Amo os cachos da sua mina, uma doçura.”

“Você fuçou na minha carteira, não te mostrei nada.”

“Sua carteira estava em cima da mesa no dia.”

“Manda esse seu amigo Vegetal se fuder. Você também, Mona. Tô indo embora, senão
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fica tarde, a estrada é meio perigosa.”

“Um assassino com medo de morrer. Incrível.”

“Você provoca. Mande as informações do seu mestre-cuca para o meu e-mail. Dia, data,
local, já sabe os procedimentos.”

“Que frescura.”

Bartolomeu não me cumprimenta. Antes de partir, ele olha mais uma vez para o Vegetal.

“Da próxima vez, não traga o psicólogo. Não confio em quem gosta de Legião Urbana.”

“Prometo.”

“Seja uma mulher de palavra”, ele diz sorrindo. Os lábios finos formam um desenho no
rosto de porcelana preta.

“Que isso, neguinho”, trago o cigarro até sentir o rasgo na garganta, “você sabe que sou
uma mulher com uma vírgula de comprimento. Cada palavra minha é pontuada por
verdades”.

O PIQUENIQUE DO ABUTRE
Bartolomeu

Meu nome é Bartolomeu e a situação não é favorável. Ela vai ligar, eu sei que vai. Observo meu
relógio. Respiro fundo. O trabalho deve ser feito. Fim de assunto. O ônibus para na rodoviária às
18h43min. Meu celular começa a tocar, rodoviária cheia, ruído, crianças chorando, um
termômetro do inferno. Atendo, confirmo o que já sabia: Ingrid, minha mulher. Respiro fundo. O
celular é desligado. Tento retornar a ligação e nada. Desço do ônibus. Sento um pouco. Refresco a
cabeça tomando uma garrafinha de água. Amarro minhas tranças. Ela não me atende.

Reflito um pouco sobre o trabalho, pego meu celular e confirmo as informações que Mona passou:
“Se liga, o meu amigo Queixo de Pedra vai te encontrar no Jack Rock Bar: Av. Contorno, 5623.
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Às 19:40. Lá ele vai te dar as informações restantes. Tem pousadas por perto, se vira para achar.
Hoje é quinta, não sei quanto tempo você vai demorar, visto que não posso te dar acessos ou
coisas do tipo, mas faça o serviço até amanhã. No sábado, ele vai fazer uma promoção no
restaurante e, bem, sábado é dia de ganhar dinheiro aqui no meu. Ok? Se brincar até consigo
faturar fazendo os quitutes do velório deste presunto filho da puta. Agiliza o processo. Beijos,
lindo.”

Leio e apago o e-mail em seguida. Infelizmente, ela não criptografa as mensagens ou trabalha com
uma linguagem mais discreta. Trabalho arriscado. Até sexta. Eu queria concretizar no domingo.
Gosto de fazer as coisas com calma estratégica. Versatilidade, diálogo, conhecimento, olho no
olho. Tenho excitação em conhecer as encomendas: o empresário que se afoga na banheira. A
atriz que pula da janela. O traficante com um tiro na cabeça. A esposa com o pescoço cortado.
Adoro conhecê-los.

***

Se eu fosse pela Av. do Contorno e Av. Brasil iria demorar menos. Pouca diferença, mas para o
taxista com bigode e cheiro de nicotina, eu digo para ele pegar a Av. Paraná. Ele consente com a
cabeça, liga o carro e acelera. Peço para ele ir devagar. Ele sorri, diz que o trânsito está tranquilo
“Nunca está”, digo. Passamos por uma espécie de galeria antiga e abandonada. Holofotes com
luzes fortes e azuis ainda reluzem nos outdoors velhos que estão colados na fachada do lugar;
todos com modelos e marcas de roupas fashion. Em um deles, vejo um homem com calças jeans
pretas, colares de exército, cabelos black power, óculos escuros e língua para fora. Na altura da
sua virilha, uma ruiva está ajoelhada fazendo um carão; ao lado dos dois, a marca COLCCYY. O
outdoor estava descolorido, muito antigo, antepassados fashionistas. Mesmo distante, eu posso
sentir o cheiro de defunto dessa galeria. De passado. De traumas. Fico feliz em saber que meu
rosto não mudou, apesar do cabelo distinto. Só não fico feliz em saber que este outdoor ainda
exista. Um passado caído e brilhante. Distante mesmo.

19h04min. Pago o taxista, estou na av. Contorno, em frente ao Jack Rock Bar. Típico pub
alternativo. Pergunto ao taxista se tem alguma pousada ou hotel por perto. Ele me indica três, diz
que tem o Toronto Tower Residence, na Rua Ceará, logo acima. E Liberty Palace e Promenade na
Rua Paraíba. Sigo para o Toronto Tower, por ser mais próximo. Faço meu registro e fico no
quarto 302. Tiro algumas roupas limpas da minha mochila e deixo em cima da cama. Quarto
grande, espaçoso, abajur egípcio vermelho, delicado, feito de resina, lâmpada de LED 3W, 12cm
de diâmetro, pelo cheiro é importado: fiquei com vontade de levar. Sigo para o bar.

58
***

“O nome do bar é por causa da música The Jack do AC/DC, saca?”, a garçonete tem cabelo azul,
piercing no nariz e brincos espalhados pelas orelhas. Sotaque de Belo Horizonte. Masca um
chiclete que faz mais barulho do que o rock ruidoso que toca. Ela se chama Blue Diamond. Estou
no balcão, tomando água, conversando com ela e vendo algumas poucas pessoas jogando sinuca.
É o tipo de bar que funciona melhor na madrugada. Pisco o olho para a Diamond, observo ao redor
novamente, o som realmente me incomoda. Bastardos, mal sabem que o blues começou tudo e,
agora, somos obrigados a falar que isso é rock. Malditos: isso é sujeira. E das ruins.

Um homem entra no bar com uma camisa do Flamengo, de imediato, quase arrombando a porta.
Sem dúvidas alguma é o Queixo de Pedra. Alto, horrendo, cabelo escroto. Ele faz jus ao apelido.
Vemo-nos. O chamo para uma mesa. Fico chocado com a grosseria da figura. Queria saber onde
Mona arruma essas desgraças.

Sentamos.

“Sou Bartolomeu. As informações, Queixo.”

“Vamos conversar, cara. A Mona disse que tu manja pra caralho do lance de matar, né não? E
bicho... Você realmente não se parece com o típico negão, tá ligado?. Bem que ela disse. Que
estranho. Você torce pra que time?”

“Típico negão?”

“É, pô. Não tem a ginga, sabe?”

“Mona me arruma cada um. Estou indo embora. Qual o nome? Qual o endereço do restaurante?”

“Olha, o dono tá morando no próprio restaurante, a Mona mandou dizer...”

“Não quero informações vazias. Só quero o endereço e nome da figura.”

“Calminha”, ele pega um papel todo amassado no bolso, “Rua Lavras, é pertinho daqui, 178.
Restaurante Persona. O nome é Renato Peixoto. Cidadão jovem, todo cheio de pose, se puder fode
com o rosto dele. Mó metidinho, eu mesmo ia fazer o trabalho, mas a Mona disse que era melhor
um...”

“Tchau, Queixo.”
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Puxo o papel da mão dele e me levanto.

“Ei, vamos conversar, cê precisa me dar umas dicas, mano. Eu curto hip hop, senta aí.”

Enquanto saio do bar, paro por alguns instantes na porta. Olho para trás, Diamond sorri, Queixo
de Pedra me encara; os roqueiros retornam para suas mesas. Está tocando Muddy Waters. Aponto
meu dedo indicador para ela, Diamond pisca os olhos azuis seguindo o ritmo da música. Poesia
pura. Uma benção ao meu trabalho.

“Bela despedida”, sussurro para mim, enquanto fecho a porta de madeira, trôpego de alegria.

***

Restaurante Persona, Rua Lavras, 178.

Pratos personalizados. O cliente é quem manda. Culinária dos signos: venha conhecer!

Pesquiso o nome do Trabalho: Renato Peixoto, chef, estudou culinária em Londres, vive em Minas
há seis anos. Figura conhecida no meio. Droga. Mona me coloca em cada uma. Pesquisa básica é
essencial. Odeio que me contem sobre a pessoa, prefiro pesquisar por conta própria. Decido ir de
táxi, não é muito longe.

Abro a janela e fecho os olhos. Chego rápido.

A entrada do restaurante é chamativa, postes com luzes brancas ao redor, árvores pela rua, um
clima europeu surge quando eu desço do táxi e jogo o dinheiro nas pernas do motorista. Um
enorme letreiro azul escuro indica o nome do local: PERSONA. Um segurança de terno, cabeça
raspada e ombros largos na entrada. Dois flanelinhas. Uma padaria fechada à direita. Uma galeria
fechada à esquerda. Condomínios e casas ao redor. Lembrei que o Queixo disse que o cara mora
no restaurante. Pelo tamanho do local, vejo que é possível.

Comprimento o segurança, ele me ignora. Já estou acostumado. Pergunto se está muito cheio, ele
diz que mais ou menos. Um cara está no palco, microfone de péssima qualidade. Ele está tocando
“Será” do Legião Urbana. Meu azar musical anda crescendo constantemente nessa cidade. Fico
cabisbaixo. Vejo uma mesa vazia, três lugares. Escolho-a (é distante do palco). Sento-me, olho ao
redor: sem ventiladores no teto (graças, finalmente uma arquitetura agradável de ver), piso de
porcelanato, creio que 47x47. Colunas brancas, uma fonte com um anjinho de pedra (mais brega
impossível) no centro do restaurante, luzes claras, lugar arejado, janelas abertas dando vista ao
belo exterior. Observo à minha frente, perto do palco e próximo ao balcão onde são retirados os
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pedidos, uma placa com design impecável, falando de uma tal Culinária dos Signos. Um garçom
com cheiro de lavanda se aproxima. Exagerou no gel. Hálito de menta. Ele não disfarça a careta.

“Posso ajudá-lo, senhor?”

“Como funciona essa Culinária dos Signos?”

“Nós preparamos um prato específico para o signo do senhor.”

Que coisa patética.

“Que interessante! O chef vem falar comigo?”

“Não, não. Eu anoto aqui...”

“Eu vim de longe, sabe?”, forço um sotaque, “passei um tempo na Espanha, estava no Rio Grande
do Sul e agora estou conhecendo essa bela cidade. Eu trabalho com moda, e nossa, nunca vi algo
tão criativo como essa culinária dos signos. Se rolasse e pá, eu gostaria de conversar com o
próprio chef sobre o projeto.”.

“Aguarde um momento.”

Espero. O músico insistia com Legião Urbana. Fico ajeitando a toalha branca na mesa, dobrando
guardanapos, até que o chef chega. Cabelo negro, franja, barbicha, três brincos na orelha direita,
um na esquerda, olhos verdes, alto, tatuado, típico chef contemporâneo. Detalhe para um enorme
colar que vai até o final do seu peito, de ouro; eu creio que tenha uns 24 quilates.

“Olá, o Diego disse que você gostaria de me conhecer.”

O chef fica todo desconfiado.

O segurança se aproxima.

“Exatamente, sou Eduardo Prado, trabalho com moda e estou viajando por vários locais do Brasil
e exterior, buscando novas tendências, e nossa, nunca vi algo tão interessante como essa culinária
dos signos, parabéns.”

Atingi o ponto fraco. Algumas pessoas mostram seus pontos de imediato. O excesso de brincos, a
barbicha bem desenhada, o perfume, a postura, o cabelo metricamente bem penteado: um
egocêntrico. Elogios desarmam essas pessoas facilmente. Nem a minha cor seria o suficiente para
mantê-lo na defensiva.

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“Nossa, Eduardo, obrigado mesmo. Fico muito feliz. Meu nome é Renato Peixoto. E eu também
viajei pra fora do país, sabe, morei em Londres por um tempo, estudei lá. E sinceramente... Não
sei como aguento viver neste país ainda. O Brasil é muito out, convenhamos. Tudo aqui é golpe,
tudo aqui é contra os empresários, olha, não aguento. As coisas melhoraram um pouquinho com a
saída do PT, né, mas ainda tá difícil pra gente...”

Coço minhas tranças, levanto a cabeça, respiro profundamente, e digo: “impossível não concordar,
meu amigo, impossível”. Reproduzo a risada escrota. O garçom e o segurança saíram de perto.

“Vai topar a culinária dos signos?”

“Claro. Sou de Câncer. O que você tem para mim?”

“Signo de água, interessante. É surpresa, senhor Prado. Tem que confiar no chef.”

“Como não confiar em um chef que estudou em Londres?”

Nós dois ficamos rindo. Alguns casais nos observam.

“Que legal, cara. E você faz o que com moda?”

“Sou estilista.”

“Muito lindo! Minha irmã é modelo, sabe. Lúcia Peixoto. É famosa na cidade. Ela até deve passar
por aqui hoje.”

“Legal, se ela quiser algumas dicas, estou à disposição.”

“Ótimo! Deseja mais alguma coisa?”

“Vinho?”

“Oh, temos um Chardonnay que chegou hoje, que ó...”

“Vocês têm uma adega?”

“Claro, tudo organizado aqui, meu amigo.”

“Ótimo. Creio que os vinhos de vocês não estejam abaixo dos 5oC, certo? Se for climatizada e
regulada a 14oC, vou aceitar o Chardonnay. Não quero danificar meu paladar, e quando fica muito
acima, como uns 20oC, o vinho perde o equilíbrio, e bem, libera um terrível aroma de álcool. Você
sabe, não é?”

Ele fica impressionado. Decorar algumas bobagens sempre é útil nessas horas.

62
***

O garçom serve meu prato. Renato ao seu lado, sorridente, empolgado como uma criança perdida
em um parque de diversão. Ele diz (textinho decorado, seguro a risada): “O seu paladar pede
conforto, pratos macios e sem variedade de textura, senhor Prado. Por isso escolhi para você o
nhoque de batata com molho cremoso de manteiga e sálvia”. O prato é bonito. Vi algumas pessoas
olhando. Aplaudi, disse que estava maravilhoso. Tiro uma foto, falo que vou postar no Instagram.
Ele acha super In. Como um pedaço, digo “batata Asterix?” Ele fica impressionado novamente. O
músico parou de tocar. Como em paz, bem acompanhado do vinho (que estava na temperatura
ideal).

Até que uma pessoa entra no restaurante. A irmã do Renato, deduzi. Linda. Cara a cara ela
lembrava a Keira Knightley.

***

Não consigo entender se Renato quer me comer ou quer que eu coma a irmã dele. Provavelmente
os dois. A irmã está sentada comigo e não para de me encarar, entusiasmada, os olhos brilhando
com as dicas furadas que estou passando.

“Olha, Lúcia, qual seu objetivo com a moda?”, pergunto para ela.

Eu olho para a boca da menina e só penso em sexo. Daqueles imundos.

“Acho que conheço você.”, ela ri bastante.

“De onde?”

“Não sei, seu rosto. Você já foi modelo?”

“Há muito tempo.”

“Você se parece com o Guilherme Pinto. Parece muito mesmo.”

A taça dela fica vazia em menos de 12 segundos.

“É um engano, linda. Não conheço esse Guilherme Pinto.”

Como e bebo por um tempo.

E falo algumas bobagens fashionistas para Lúcia, que está encantada.

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O segurança se despede da gente, digo tchau. Alguns garçons já estão sem o uniforme, um deles
se aproxima e diz que está fechando. Renato dá um esporro no pobre, eu me levanto, digo que
entendo a situação e peço para ele trazer a maquininha do cartão. Renato continua gritando com o
menino cheio de gel no cabelo. O garçom chega rapidamente com a máquina. Digito a senha, sem
tirar os olhos de Lúcia, que começa a tremer bastante. Agradeço o funcionário, termino minha
taça. Aperto a mão dela, começo a rir, ela relaxa. O último garçom se despede, digo tchau.

Renato está arrumando algumas mesas, ele liga o som que está próximo do balcão.

A música que está tocando é conhecida da minha audição.

Arnaldo Baptista: Cê tá pensando que eu sou Loki?

A irmã morde o lábio inferior.

“O Guilherme sempre foi meu sonho”, ela sussurra.

“Talvez seja um pesadelo.”

Levanto, digo que volto logo. As luzes do restaurante estão apagadas, deixando só a iluminação da
rua abafar nossa excitação. No caminho para o banheiro, eu passo perto do som. Deixo o volume
no máximo.

***

“Sô malandro velho e eu não tenho nada com isso...” Renato cantarola no mictório a música do
Arnaldo Baptista. Ele me vê, eu digo “a gente queimou... Muita coisa por aí”. Ele começa a rir. A
sua enorme corrente de ouro reluz no banheiro branquinho, sua voz afetada afirma que essa é sua
música favorita. “Sempre quando a coloco para rodar alguma coisa boa acontece na minha vida.”
Ele diz, sem parar de rir. O puto está jurando que tirou a sorte grande. Ele continua rindo, coloca a
mão no meu ombro e diz que essa música é mágica. Ele não lavou as mãos.

“Eduardo Prado. Eduardo... Prado. Pesquisei seu nome no Google. Não achei nada. Estranho, não
é?”

Vejo um pouco de suor descer por trás da sua orelha, continuo me olhando no espelho.

“Pensei que você era famoso.”

“Esse seu colar. 24 quilates? Grande. Corrente grossa.”

Ele sussurra bem baixinho: “Macaco...”.

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Ele joga o papel no lixo, diz “estamos fechando o restaurante, senhor Eduardo”.

Três passos rápidos, no tempo da sua respiração afobada; meus dedos sobem até a corrente de 24
quilates, estou atrás dele, levanto meu joelho na altura da costela, o pé direito vai em direção da
sua rótula, sinto a explosão do osso sendo fraturado. Seguro sua boca com minha mão direita e
abafo o transe de dor. Minha mão esquerda continua na corrente, puxo-a e deixo meu corpo cair
no chão com cheiro de sabão e lavanda. As costas queimam do impacto. Solto a mão direita da sua
boca e levo-a até a enorme corrente de ouro, minhas pernas estão acopladas no corpo miúdo do
chef; a chave é bem sucedida: ele se mexe tentando fugir, escarrando freneticamente. Suas pernas
como lesmas epilépticas, o fervor da morte em seu corpo é transmitido para mim, e forço as
minhas pernas para baixo, travando seu corpo ao meu. Continuo puxando a corrente em seu
pescoço, causando uma vertigem em ambos, uma tensão que só iria sumir quando sua vida deixar
de existir. Ele geme, “arghhhhhh, blargh, pararghhh...” A música não cessa. Cê ta pensando que
eu sou Loki, bicho? E puxo mais, mãos fechadas, as unhas entram na pele, quase posso sentir o
sangue saindo delas, quase. Giro meus pulsos, uma espécie de 360°, puxo para baixo a corrente,
sua cabeça está vermelha, sua respiração nervosa, ele quase rasga as narinas tentando buscar uma
última esperança, um raio europeu, londrino, uma fama que nunca existirá, puxo e prendo, giro
mais uma vez, sinto um barulho seco, como um carro batendo em um poste, mas com o volume
reduzido.

Seus olhos arregalados, boca purificada de saliva e vômito.

“Acabei”, sussurro bem baixinho.

***

Abaixo o volume e repito a música.

A irmã olha para trás, está sem a jaqueta, os braços magros e com tatuagens tribais esticam em
minha direção. “Você demorou”, Lúcia diz, lambendo os lábios. “Estava conversando com seu
irmão.” Ela olha para mim, da cabeça aos pés, “você é bi, né? Cabelo desarrumado, camisa
amassada, vai dar um trato nos dois, é? Saiba que sou fogosa”. A garrafa de vinho está vazia.
“Digamos que seu irmão sabe tratar bem de um homem. Espero que você também saiba.” Ela se
levanta, passa as mãos em meu cabelo, “senhor Guilherme, como você é alto”. Digo que não sou
Guilherme. “Para de ser tímido”, ela lambe meu pescoço, “você quis mudar de nome, recomeçar,
é normal isso no meio. Não vou contar para ninguém. Você é um negão tão gostoso, sabia?
Sensual, primitivo...”. Eu danço com ela ao ritmo da música. Beijamo-nos; levanto meu punho
direito, acerto o nariz da moça, um filete de sangue voa em meu rosto, o corpo esguio da modelo

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flutua, leve como pena, em direção a uma das mesas. Observo a atroz simetria da serra da faca
com restos de batata e molho que está no prato, pego o objeto cortante e pulo em cima dela sem
nem dar tempo de reação: a faca de prata atinge a sua jugular. Seus olhos temerosos me encaram
com pânico. Um pavor se alastra, assimilando-a ao irmão em seus momentos finais. Beijo os
lábios dela, agora abertos, tremidos, enquanto seu corpo sofre de um espasmo decadente; a faca vai
tornando a carne túrgida, e assim a vida da jovem se esvai, aos poucos. Suas unhas alcançam meu
rosto, sinto a gana daquela que deseja sobreviver. Dedilho a faca de prata, seguro o cabo e deslizo
a navalha na horizontal, formando uma lambida vermelha no pescoço esguio da modelo. E assim
partiu. Volto ao banheiro e me lavo. Subo até o quarto do Renato e troco de roupa. Minhas roupas
sujas e a faca eu guardo em uma sacola que acho no restaurante. Faço uma limpeza básica no
local. A irmã ainda treme um pouco no chão, tentando puxar ares na terra que ela não mais
pertence. Os pratos e copos eu jogo na sacola também. Observo o lado de fora por um tempo, um
casal passa pela praça. Não há seguranças ou policiais. Acredito que não tenha câmeras
também. Trabalho arriscadíssimo. Desligo o som do restaurante. Saio com a sacola, pego um táxi,
digo para ir ao Toronto Tower Residence, na Rua Ceará.

Iria tomar um banho, me limpar e fechar a conta.

Pego meu celular, seleciono o nome Mona. Envio uma mensagem.

“Feito. A irmã foi também. Acidente de percurso. Nunca mais me procure.”

Tento ligar para Ingrid. Uma, duas, três, quatro vezes. Ela não atende. Envio uma mensagem:

“Foi o último trabalho, meu amor. Agora é sério: prometo. Estou voltando.”

Respiro. Na mesma hora, vejo meus e-mails. Havia um criptografado enviado por
irmao@industria.com. Simulo uma espécie de luto. O e-mail era de um dos donos da Indústria:
Déjà vu, abutre, traição, voragem, ou isso ou nada. O meu passado renegado volta. Matar para
sobreviver.

UM MUSEU DE MORTOS

Mona

“Eles mandaram o e-mail?”, perguntei sem tirar meus olhos do rosto congelado e sem
expressão de Bartolomeu. Estávamos em meu novo empreendimento: o Café Mineirinho.
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Ele andava dando lucro. Bastante. O Café dos Signos era uma sensação e apesar dos
invejosos dizerem que era uma cópia do finado Renato Peixoto, o dinheiro que entrava na
minha conta não tinha nada de copiado. Enquanto isso, meu restaurante com ares de
Dubai começou a render acima da média proposta de 49% (depois do velório de Renato,
obviamente). E a Indústria estava reconhecendo meu trabalho, principalmente depois da
morte da Criança Branca. E apesar do sumiço repentino da Flowers, Eles estão vendo que
ainda me esforço. É sempre bom ser valorizada. Uma dama precisa dessas coisas.

“Mandaram, Mona”, ele respondeu, bebendo sua água como de costume.

O Café Mineirinho tem características de sobriedade na sua arquitetura. Poucas cores,


amplitude estética, mesas retangulares em madeira escura, todas bem espaçosas. Luzes
com um amarelo avermelhado dando um clima quente para o ambiente.

“Se levante, neguinho. Vamos conversar em outro lugar. Tem um quartinho nos fundos,
ficaremos mais à vontade. Tá começando a lotar aqui.”

“Os lucros estão bons, pelo visto.”

“Estão, Bartô. Estão mesmo.”

Caminhamos pelos clientes, passando pelo balcão de atendimento e entrando em um


longo corredor sem luz. Pego uma chave, abro a porta, entro, Bartolomeu me segue e um
punho acerta o nariz dele, de imediato, sem dar tempo de ele reagir. Bartô cai no chão,
levantando-se em posição de combate e com a boca sangrando. Na sua frente, com o
punho erguido, está Queixo de Pedra com sua camisa do Flamengo, rindo histericamente.
“Um ponto pra mim, negão”, Queixo diz, apontando um revólver para Bartolomeu. “Nem
tente reagir.” O aposento é acolhedor, uma espécie de pequena estufa quadrangular com
as paredes envidraçadas em três lados. A mobília consistia em um sofá velho, onde se
localizava o meu amado Vegetal, deitadão feito um esqueleto definhado, uma lesma com
seu corpo torpe e a máscara de gás acoplada ao rosto cheio de perebas. À frente da mesa,
uma mesa de centro, cadeiras e uma poltrona. Um tapete oriental barato e sujo decorava o
chão. Queixo continuou com a arma apontada e permaneceu com ela. Bartolomeu limpou
a boca, havia ficado uma ferida no lábio superior, ele sorri ironicamente e se senta ao lado
do Queixo.
67
“Mona, você tinha me dito que ele não viria para as reuniões”, Bartolomeu aponta para
Vegetal, que está vestindo uma regata imunda; seus braços que mais se parecem com dois
galhos, cheios de tatuagens sem sentido, macabras e abstratas, são erguidos no ar,
simulando um cumprimento.

“Vegetal é um dos meus, já disse”, aliso a cabeça fria do psicólogo moribundo, “sinto
muito, mas ele virá para todas as reuniões a partir de agora. Fora que ele gostou de você”.

“Foda-se”, Bartolomeu responde, encarando o cano do revólver do Queixo de Pedra, que


não parava de rir. “Pode abaixar isso, Queixo. Bartolomeu não é burro de fazer
nenhuma besteira.” Queixo abaixa, enquanto eu me sento na poltrona, acendendo um
cigarro, observando Bartolomeu, que está com um terno branco, elegante, na medida do
seu corpo esguio e conservado.

“Não precisava matar a irmã do Renatinho.”

“Foi preciso.”

“Um dos garçons descreveu o último cliente que ficou no bar. O crioulo metidinho das tranças.”

“Não há problema.”

“Bartolomeu, rapaz... Você anda descuidado.”

“Foi limpo. Não há como me acharem.”

“Se foi limpo que nem Nova York fudeu, né? E outra, que se foda você, não me achando,
tá ótimo.”

Ficamos em silêncio por um tempo, nos olhando sistematicamente, até que começo a
falar: “enquanto você estava fazendo meu trabalho, o Departamento estava em reunião.
Acho que eles sentiram sua falta”.

“Provavelmente”.
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“Será que eles sabem que você apagou os membros do seu antigo Departamento?”

“O que você quer, Mona?”

“A Indústria já deve ter ordenado uma nova faxina. Estou certa?”, jorro a fumaça dos
meus lábios na cara de Bartolomeu.

“Sim.”

“Apesar de ser um dos melhores, você está ultrapassado. Sabe que sua hora de ser trocado
já chegou. Assim como a minha. Hoje em dia, para sobreviver, precisamos sujar as
mãos.”

Bartolomeu fica me encarando sem reação. Ele se levanta, vai até o bebedouro, enche um
copo com água e pergunta “qual o motivo dessa reunião, Mona?” Acendo outro cigarro,
digo “prestem atenção nessa história. Quem me contou foi um dos donos da Indústria,
moleque novo, mas sabe das coisas”.

“Não conheço os donos. Pessoalmente, digo. Sei os nomes, claro, mas nunca os conheci
cara a cara”, Bartolomeu responde bebendo o copinho de água até a metade.

“Não precisa conhecer para ouvir a história.”

Bartolomeu se senta ao meu lado: “você não me chamou até Belo Horizonte só para
contar uma história, não é?”.

“Não. Preste atenção. Depois vamos aos negócios. É uma história que resume sua vida no
momento.”

“Resuma, por favor.”

Fico de pé, mostrando meu vestido florido, caminhando pelo trio que se encontra na sala.
Solto a fumaça do cigarro no ar fechado do ambiente e começo, “na minha vida de
consumidora, encontrei poucos produtos perfeitos. Mas, quando os achava, era uma
maravilha. A câmera que tirava a foto com melhor qualidade. A impressora certa. O
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cigarro com melhor tragada. Amei vários desses produtos, com paixão, e teria passado
minha vida diante deles, recomprando regularmente. Uma relação perfeita e fiel se
estabelecera. O problema é que essa alegria, essa alegria simples me foi confiscada. Meus
produtos favoritos, depois de anos, sumiram das prateleiras, simplesmente pararam de
fabricá-los. A minha carteira de cigarros favorita viveu apenas uma estação e tchau. É
brutal, cá entre nós, é terrivelmente brutal”.

Queixo de Pedra coçava seu cabelo curto, sem entender nada, enquanto Vegetal e
Bartolomeu prestavam atenção.

“Enquanto as espécies animais mais insignificantes levam milhares, às vezes milhões de


anos para desaparecer, os produtos manufaturados são extintos da superfície do globo em
questão de dias e jamais recebem uma segunda chance; só lhes resta sofrer, impotentes, o
ultimato fascista dos responsáveis pelas linhas de produtos que sabem, naturalmente,
melhor do que qualquer um, o que o consumidor quer. Eles pretendem captar uma
expectativa por novidade no consumidor, que não fazem, na realidade, mais que
transformar sua vida numa busca desesperada, num eterno périplo através de produtos
sucateados perpetuamente modificados. Você, Bartolomeu, deve saber que chega uma
hora que todo produto, por mais perfeito que ele seja, deve ser substituído. O novo virá
com características supostamente aprimoradas. Às vezes são piores do que o antecessor.
Mas é novo. As histórias velhas sempre serão contadas, mas as novas é que serão
compradas pelos consumidores. O velho que permanece no mercado deve provar o
porquê de merecer estar no mercado. Veja só o vinil, até hoje ainda rende. Ele provou que
merece estar entre o Ipod, Iphone, Spotify, etc. É vintage ter um vinil. Você é vintage,
Bartolomeu? Até onde você iria para manter este corpinho intacto? Até onde você iria
para permanecer no mercado?”

“Eu...” Bartolomeu começa a falar... Encosto meus dedos com anéis de ouro em seus
lábios. “Não precisa responder. Nunca responda. Eu te entendo. Nós somos dois abutres
velhos, querido. Dois adeptos da vida. Um negro e uma travesti. Lindos. Eu entro em
você pelos meus olhos e consigo me ver. Você a ama não é? A Ingrid. Claro que sim. O
Vegetal me disse, ele contou sua vida, só de olhar para você ele viu o amor aí dentro.
Você não pode morrer, você é eterno, você não nutre sentimento por ninguém dessa sala
ou do mundo, sem família, pátria ou sangue. Só ela e você. Dois sobreviventes. Dois
renegados de uma vida chique e cheia de luxo. Seu porte, modo de andar, perfume, você
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era da high society, querido. Não era, Vegetal? Muito preconceito? Vocês sofreram. Você
não aguentou mais. Você surtou. Você está aqui. E ela?”

Vegetal confirma com a cabeça mole, fazendo ruídos macabros.

“Nós sabemos quem é você, Bartolomeu. Nós sabemos. E eu sei que não é fácil. Nunca foi. Nem
pra ti, nem pra mim. Você alimenta fantasmas. Eu também. Enfim, voltemos aos negócios.”

***

Bartolomeu estava com o seu tradicional sorriso zombeteiro, aguardei sua fala. Após
alguns segundos, ele disse: “Vintage... Essa foi boa”. Vegetal se movimenta no sofá, o
seu riso vasto e aterrorizante fica ecoando através da máscara de couro. Eu pego uma
xícara, coloco chá e fico assoviando uma música que escutei na rádio e que infelizmente
não consigo me lembrar do nome.

“O que você tem para me dizer?”, Bartolomeu pergunta em um tom seco, guardando sua
raiva. Eu quase podia ver suas tripas explodindo.

“Você disse que eles enviaram o e-mail, certo? Ou seja, a Indústria já disse que você
precisa apagar seu Departamento, ok, ok? Vai entrar em ação quando?”

“O mais rápido possível.”

“Mesmo depois de apagar o Departamento você será morto. Essa é a nova.”

“Como?”

“Eles pediram para eu te matar, Bartolomeu. Na teoria, claro. A jogada é a seguinte. O


Andar de Cima sabe da sua importância. Lógico que sabe. Mas, manter você na Indústria
seria um bom negócio ainda? As cabeças pensantes queimaram alguns neurônios e
disseram que seria mais lucrativo se Bartolomeu entrasse no grupo de limpeza. E por que
não? Você já apagou um Departamento para se safar, está prestes a limpar outro. Sua
fama interna de abutre não é uma das melhores. Mataríamos o grande Bartô, deixaríamos
a lenda se perpetuar, e na realidade, cá estaria ele, comigo, limpando a merda da Indústria
71
sob outro nome. Lógico que aceitei. Ter você no meu time é pura vantagem.”

“Não posso acreditar nisso”, ele responde.

“Acredite. Você será morto, mas não será.”

Meu sorriso é largo, abaixo-me, fico agarrada nos joelhos dele, fumaça prendendo nossos
corpos como se fosse um.

“Você será um dos meus.”

Bartolomeu não reage.

“Assim que você apagar seu Departamento, qualquer vínculo que você tenha com a
Indústria será apagado. Terminado este trabalho de abutre, eles pediram para eu entrar em
contato contigo. Mal sabem que já somos melhores amigos, não é?”

Ele não consegue falar nada.

“O limpo Bartolomeu sendo rebaixado para um grupo de defuntos andantes? Eles


disseram que seu salário continuará o mesmo, olha aí que bom. Mas qualquer contato será
feito comigo. Esqueça seu passado depois deste trabalho. Você será todo meu. Outra
vantagem: sua vidinha continuará intacta. Cê tá na minha mão. Não tem como recusar”,
fico alisando seus peitos agora, “caso você diga não, a Indústria vai atrás de você, se eles
não te acharem, eu vou atrás. Um dos dois te pega, gato. E olha, não tente dar o fora.
Quero continuar sendo sua amiga. Não vamos piorar as coisas”.

Queixo abre o pequeno frigobar e pega uma cerveja. Bartolomeu se levanta, amarra as
tranças e encosta-se à parede do quarto.

“Um abutre deve permanecer entre os seus”, ele responde.

“Vou cuidar bem de você.”

“Já tem algum trabalho em mente?”

72
“Tenho. Mas vá fazer o seu último trampo. Coma seus companheiros, prove que você
merece viver e volte.”

“Mais alguma coisa?”

“Aguardemos o pronunciamento oficial da Indústria, então celebramos.”

Queixo de Pedra coça seu saco, arrota, ajeita a camisa e diz com sua voz trôpega: “e se ele
não voltar? O pessoal que ele vai encarar né pouca merda não, Moninha”.

Meu cigarro vai em direção do cinzeiro, Bartolomeu fecha a porta do quarto e dá o fora,
encaro o cafetão com um sorriso nos lábios, daqueles que só eu sei invocar, e digo: “esse
pessoal já está morto, Queixo. E a melhor parte é que eles já sabem disso”.

Todos aqueles corpos


Lobo Cego

Noite com vertigem, meu fígado não suporta mais. No bar, os caras me alisaram,
disseram que meu bíceps melhorou desde o mês passado. A barriga mais durinha. Tudo
isso porque disse a eles que minha vida corria perigo. Só ando desconfiado, olhos virados,
sem camisa e com um vômito travado na glote. Daí eu grito, sentindo o gosto do pulmão
alcoolizado e berro pelas ruas: “estou aqui, Bartolomeu”. Continuo caminhando, até cair
de boca no paralelepípedo. “Vamos, estou desarmado, me ataque, senhor lendário, use
sua caneta, vamos lá, rápido. Nova Iorque ficou na minha cabeça, sabia? Seu... Velho, pô,
cê me salvou”. E nada dele chegar, mas eu sei que ele está por perto. Eu não me engano.
Ele está aqui, me olhando, segurando a risada, pronto para um ataque. Alcanço a porta de
casa, a maçaneta, entro e apago. Ele está por perto. Claro que está. Todo dia é isso.

***

Antes de perceber que estava na cama. Antes de perceber que eu estava só de cueca.
Antes de ver o homem negro na minha frente, eu vi o sol. Suas luzes gritantes invadiram
minha visão amanhecida. A ressaca apodrecia minhas tripas e gemi: “fecha essa porra”. O
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barulho da cortina sendo fechada simula uma chaga na minha audição e o clarão do sol é
substituído pelas suas tranças. Bartolomeu joga alguns comprimidos em cima do birô.
Examina alguns dos papéis que estão no meu escritório e diz: “estava estudando minha
vida?”.

“Nós sabíamos que você viria”, respondo.

“Vivemos em uma selva.”

“Não podemos confiar em ninguém mesmo.”

“Não, Lobo. Não podemos.”

Ele segue em direção à cozinha, escuto o som da geladeira sendo aberta. Água indo em
direção do copo, passos lentos, ele na minha frente, entregando o copo cheio.

“Beba com o comprimido, vai melhorar sua cabeça.”

“Vai me envenenar? Golpe baixo.”

“Não.”

Eu bebo, não era veneno, só um simples analgésico, levanto, estico meus braços, abro a
janela.

“Agora o sol pode entrar.”

Coloco uma calça jeans rasgada, abro a geladeira, pergunto se ele quer alguma coisa.

“Obrigado.”

“Quando será?”

“O quê?”

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Começo a gargalhar, é impossível não rir. O modo como Bartolomeu lida com os
negócios é incrível, mas às vezes beira o patético. Ou o psicótico. “Vamos, negão. Enfia
uma caneta em mim logo. Sério. Deixa de palhaçada.” Pego um pão, presunto, queijo,
manteiga, jogo na mesa da cozinha. Bartolomeu fica olhando algumas fotos que estão em
cima da geladeira. “Suas?”, ele aponta para as duas meninas banguelas. “Aham. Segunda
esposa.” Bartolomeu deixa o porta-retratos em cima da geladeira e senta na minha frente.

“Se comoveu, Bartô?”

Ele ignora, pergunta se pode pegar um pouco do pão. “Claro”, digo com a boca cheia. Ele
abre o pão com uma faca e começa a passar manteiga em um dos lados. Lentamente,
como se estivesse pincelando uma obra-prima.

“Quem atacará primeiro?”, pergunto, comendo um pedaço do pão com presunto e queijo,
“essa pergunta fica na sua cabeça? Na minha é constante”.

“Qual o nome delas?”

“Júlia e Martha.”

“Martha...”, ele lambe a manteiga na faca, “belo nome”.

Fico mastigando, tentando segurar a tensão que alcança meu maxilar, “diz aí, o lance da
caneta é verdade? Ao menos isso. É que...” Minha faca com pedaços de queijo faz um
ataque frontal, seguro firme o cabo e miro estrategicamente no seu pescoço, mas no meio
do percurso, sinto algo escorrendo no meu estômago. Ele não está mais na minha frente.
Ajoelhado. Abaixo de mim, embaixo da mesa. Seus dedos seguram a faca com restos de
manteiga lambida, que agora está sendo introduzida em meu estômago.

“Desculpe, Lobo.”

“Nada pessoal.”

Respondo, ainda com o braço esticado, enfiando a faca no vazio, na posição que deveria
estar o pescoço de Bartolomeu. Meus olhos abertos, dentes cerrados, a hora havia
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chegado e não espero nada de especial. Ele foi meu algoz. O fim em suas mãos, em seu
toque e ângulo perfeito. Não poderia estar mais honrado. Este é nosso meio, somos Peões,
o nome já diz tudo. Armas. Feitos para isso. E ele conseguiu. Ele permanecerá vivo. Para
mim chega. E assim, encosto minha mão no seu punho fechado, firme, lacrado no cabo da
faca acoplado em meu bucho, é, nesta faca lendária que agora me estripa devagarzinho,
eis meu calvário.

“Lobo”, sua voz abafada, por estar debaixo da mesa, responde minha pergunta: “é mentira
o lance da caneta”.

Começo a tossir sangue e respondo, antes do último suspiro: “não acredito em você”.

“Nunca acreditam.”

Marian Von Bismarck

Brasileiro, sócio de uma empresa que fornece guias turísticos para a França. Hoje, escrevi
um texto referente ao último erro dele. Todos entenderam, graças. O pessoal pensa que
limpeza e higiene são sinônimos de sucesso neste meio do turismo. Ledo engano: vejam
Buenos Aires e o próprio bairro de San Telmo, por exemplo. A ideia de ser um local
recheado de hippies, meio sujo em sua aparência barroca, com pessoas servindo comidas
de procedência duvidosa, torna o ambiente mais agradável para os turistas. (Jovens
principalmente) (Jovens europeus principalmente). Daniel pede para eu ler o texto
novamente, pois foi bastante elogiado pelos outros, e explica bem a motivação que esta
empresa deve seguir de agora em diante. Não estava a fim de transar de novo e já sabendo
que ele iria gozar com a minha narração, começo a fazer um esforço para ler da forma
mais sensual possível.

“Erramos ao nos concentrar no gosto de uma clientela anglo-saxã em busca de uma


experiência light, que associa sabores e segurança sanitária, preocupada com a
pasteurização e o respeito à cadeia frigorífica. Essa clientela, na realidade, não existe: os
turistas americanos nunca são numerosos na França e os ingleses estão em queda
constante; o mundo anglo-saxão tomado em seu conjunto não representa mais de 4,3 por
cento de nossa cifra de negócios. Nossos novos clientes, nossos clientes reais,
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procedentes de países jovens e rudes, com normas sanitárias recentes e de toda forma
pouco aplicadas, estão, ao contrário, em busca, durante sua viagem à França, de uma
experiência gastronômica vintage, hard-core; no futuro, apenas os restaurantes em
condições de se adaptar a essa nova realidade mereceriam figurar em nosso guia.”

Observo a vida passar, enquanto seus gemidos obesos acordam metade do prédio. A noite
cai sobre meus ombros cansados, o cigarro repousa nos lábios e um caminhão de lixo
acelera; os garis trabalhando na madrugada, obrigados a sentir o nosso verdadeiro cheiro.
Aquilo que produzimos e descartamos de nossos lares. Em algum lugar dessa sujeira em
que vivemos, ele se encontra. Bartolomeu nunca perde tempo.

“Você promete?”, pergunto.

“Ninguém vai te matar, Marian...”.

“Por favor, Daniel. Eu te disse: é um ex-namorado, o cara é perturbado. Se eu sumir


nesses últimos dias, vá até o endereço desse cara.”

Entrego o cartão para ele.

“Gutenberg Valadão, advogado. Nome bonito. É o seu ex?”

“Digamos que é um amigo próximo dele. Tanto faz, não fazemos perguntas aqui.”

“Minha esposa que o diga.”

“Por favor, Daniel.”

“Pode deixar...”, ele fica roçando na cama, “se você sumir, eu desenrolo”.

Trago a nicotina como se hoje fosse o meu último dia. A fumaça cria um traço abstrato no
ar. Daniel chega atrás de mim, vejo um cigarro nos seus lábios velhos. Nossas fumaças se
cruzam, elas sobem rumo à lua cheia, guardada pelo céu escuro. Ele aperta meu corpo,
sinto sua banha em mim. Ele está lá embaixo. O todo está abaixo de nós, somos um.
Deuses do nosso próprio mundo. “Relaxa, Marian... Que ombro tenso, relaxa, você foi
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super elogiada pelos franceses, olha que chique. Vamos, fica calminha.”

“Não, Daniel. Dessa vez não.”

***

Estamos no carro do Daniel. Uma bossa nova tocando enquanto ele assovia, tentando me
animar. Fico olhando para o lado de fora, buscando o rastro daquele que já deve estar
atrás de mim. Ou dos outros. Não sei. Cada dia que passa é uma tortura.

“Vamos ao Chevallier amanhã?”

“Quem vai?”

“Um dos franceses do guia. Quer te conhecer.”

“Conhecer? Sei.”

“Ele é bonitão.”

“Não sei, ando meio cansada desse lance de fazer contatos.”

“Marian, você é uma das melhores.”

“Olha...”

Consigo ver longas tranças flutuando, uma espada: o estouro do pneu, o grito de Daniel.
O volante vai pra lá, pra cá, direita e esquerda, sem ritmo, balançando como carnaval,
tonto como um etílico bobo da corte. Outro barulho de pneu estourado. Sinto o parapeito,
a placa da lombada em amarelo. Daniel aperta a buzina por instinto. O farol se fragmenta,
o pneu detona, a marcha desloca. Meu rosto vai de encontro com o para-brisa da BMW.
Meu corpo se arrasta pelo asfalto, quicando como bola de ping pong, quebrando dentes,
dedos e nariz. Sufoco por causa dos vidros. Daniel do outro lado do asfalto, agonizando
ensanguentado.

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O carro virado, esfumaçado.

Bartolomeu se ajoelha na frente de Daniel, escuto um som estranho.

Pescoço sendo cortado.

Ele começa a desfilar na minha direção.

“Desculpa, Marian”, ele sussurra.

Forço um discurso, mas só consigo falar...

E corta.

Lau

Os meninos estão felizes. Eles insistem em perguntar sobre minhas armas e a resposta é
sempre a mesma “papai gosta de colecionar”. Tão pequenos, sagazes, tão vivos. Deito na
grama, enquanto a esposa cuida da janta. Digo que é tarde, devemos entrar. A janta está
maravilhosa. Elogio minha esposa. Coloco os meninos na cama. Transo com minha
esposa. Pego a cadeira de balanço e coloco do lado de fora. Em meus braços, a escopeta
carregada. Três carteiras de cigarro no bolso da jaqueta preta: refeição para uma
madrugada. Ao meu lado: a bandeira do Brasil. Um país digno, um país que se livrou da
ameaça vermelha. Estamos acima de todos, reinando sobre as ruínas de um mundo
devasso. Lógico que minha esposa perguntou o motivo de eu ficar acordado a noite
inteira, vigiando bandidos que não existem. Ela ainda falou dos seguranças do bairro que
pagamos mensalmente, sem atraso. Eles não irão nos proteger? Eu simplesmente disse
que haviam soltado um bandido perigoso e ele rondava nosso bairro. Eu disse que tudo
ficaria bem. Ela confiou em mim. Preparou um café forte. Sem açúcar. A arma não saía
do meu braço. As noites da semana passavam e ele não chegava. Ele viria. Claro que sim.
Eu ficaria anos acordado, alerta, dormindo por segundos, só para poder pegá-lo
desprevenido. Eu não iria morrer. Não agora. Não nas mãos dele. Essa noite ele viria.
Tenho experiência. Sei das coisas. Sei quando tem algum elemento estranho em meu
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circuito. Escuto um barulho dentro de casa, arrombo a porta com um pontapé, sem tempo
para maçanetas, arma carregada, não acendo nenhuma luz. Derrubo a porta do quarto dos
meninos: a janela estava aberta. Fecho imediatamente, eles ficam assustados, “papai, o
que foi?” Aliso suas cabeças, digo que mamãe esqueceu-se de fechar a janela.

“Mas ela fechou, papai”.

“Não, Miguel. Não fechou.”

Minha esposa desce as escadas, histérica com o caos que fiz.

Confie em mim. Ela confia.

Digo para ela ficar no quarto de visitas com as crianças.

Eles vão até lá.

Subo as escadas, sem suar, sem tensão: eu sei o que devo fazer. Entro em nosso quarto e
não há nada. Vou ao banheiro, olho-me no espelho: ficarei vivo. Desço as escadas, vou
até a cozinha, alguém grita. Derrubo duas cadeiras, tropeço no tapete da sala, jogo meu
ombro na porta do quarto de visitas, os três estão chorando, eu começo a suar um pouco.

“Um homem bateu na janela”, o menor diz.

Passo pela janela. Começo a rolar pela grama. Levanto-me, giro meu corpo, nada
ao redor, “sem covardias, Bartolomeu”, grito.

Um vulto na janela. Atiro, a janela é detonada em vários pedaços de vidro, na


minha frente, as mãos com luvas negras me desarmam, sua perna atinge meu
calcanhar e, em poucos segundos, minha cara está colada na grama.

“Quem diria que você é um homem de família”, a voz depressiva resmunga.

Fico em silêncio. A minha família aparece. Todos desesperados.

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“Se levante. Estou sem armas. Mande sua família se esconder”, ele diz.

Eu levanto, olho para minha arma na grama, não há outra solução. Viro meu pescoço para
a direção dos meus amores, “entrem, fiquem na sala. Papai vai resolver isso aqui e volta
logo”.

“Não minta pra eles”, o puto diz.

Minha esposa começa a gritar.

Digo para ela confiar em mim. Ela confia.

“Os vizinhos devem estar vendo.”

“Não me importo”, respondo,

“Um negro batendo em um idoso de bem, branco e de classe média. Certeza que não se importa?”

Eu vou correndo na direção dele, punho fechado, acerto o nariz, o sangue pinta o verde
perfeito da grama; enquanto seu corpo está em queda, ele consegue atingir minha costela
com seu pé direito. A idade não permite uma recuperação rápida, mas ainda tenho força,
me agarro a ele; de longe, parece que nos amamos, mas a verdade é que estamos como
um bolo fecal estranho, até que nos soltamos.

Começo a saltar como um pugilista.

Acertar a boca.

Eu tento, ele se abaixa e atinge o meu lábio inferior com o cotovelo. Tudo treme, vibra,
queima.

Tento a costela.

Ele gira, chuta a minha costela novamente. A dor se intensifica.

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O joelho.

Eu tento, ele levanta a perna, desce o pé no meu joelho, escuto o barulho do osso
saltando.

Creck.

Lágrimas caindo. Um dos meninos está na janela. A esposa o puxa de volta. Eu tombo na
nossa grama. Na nossa casa. Família.

O murro na cara. Ele me acerta em cheio.

O escuro começa a tomar conta. O grito dos meus amores. Os passos. As mãos leves de Bartolomeu
indo a meu pescoço. Aperta. Sem ar. Morrendo.

“Não fale nada para eles”, digo, bêbado de dor.

“Nunca”, ele responde.


Eraldo

O branquinho vai descendo pelo meu enorme nariz. O resto do pó vai para os meus
dentes. Branqueamento instantâneo. A rave não termina e meu show foi ovacionado. Eles
gritavam “quem diria que você voltaria, neguim!”. Analgésico, LSD, rivotril, ritalina, a
porra toda misturada, criando um sistema imunológico novo. Uma forma carnal e
espiritual de ver o mundo. De hoje não passo. O negão que apresenta a rave diz: “Com
vocês, DJ Maxwell!” A galera vibra. O Max é um cara legal, apesar de que o meu setlist
foi infinitamente superior ao dele. Algo atinge o topo da cadeia animal. O som. Bate-
estaca. Meu corpo vibra, a cadeira que estou sentado torna-se flexível, afunda em uma
câmera-lenta macabra. A cartela está na língua, o doce psicodélico, o gnomo e todos os
seres místicos concebidos pela Xuxa. Sinto cheiro de Sasha, boceta rosada, filha dos cães
midiáticos, cria perfeita. Divago sem parar, a cadeira afunda, meus pensamentos, seus
pensamentos, amora, carambola, abóbora, cebola e diarreia cor de fossa. O tempo. Parou.
Dietilamida do ácido lisérgico. Entorpecendo os músculos e fortalecendo a alma. Amo-
te, Albert Hofmann. E Tum, Tum, Tum, Tum, Tum. A galera grita. A cadeira vai girando,
sim, a saliva escorre, meus lábios grossos sentem a gosma, o fim, o alucinógeno correndo
82
pelos neurônios.

Estou dando uma volta em minha mente.

Enquanto estou girando, lent

amen

te

vejo as coisas fluírem de uma maneira pe cu li ar

s cois

as

e o passado

tornam-se u

vou

girando

até

ver

uma

83
luz. Sim, uma luz. Nela visualizo o meu passado, aquilo que neguei por um tempo.

Girando sem parar.

e sem rumo algum.

É assim que vejo minha futura esposa. Marian, tu és tão bela. Tão verdadeira. Ao
contrário de minha mãe, aquela velha que suportava as humilhações. Aquela escrota que
deixava os filhos serem alvos das brincadeiras do papai. Você é firme, Marian, você não
aguenta calada.

“Deixe o papai ver o bumbum de vocês.”

Cuspi. Quase morri engasgado. Velho Hendrix. Metalina. Fudida. O que estou falando?
Fundida. Sim, minha mente está girando, o cerebelo desce até o tórax, enquanto o coração
escorre pela glote. Meus pés nas paredes, meus dedos calejados de tanto mexer em vinis
nas noites, agitando as suas loucuras surreais e ilícitas.

QUE

EU

SOU?

Essa droga está fazendo efeito? Será isso um placebo?

Amo-te, Marian. Você não sabe, mas amo. Bartolomeu, você vem mesmo? Estou pronto.

Meu irmão, aquele louco. Não aguentou os traumas de infância, pegou o trezoitão e
estourou sua cabeça. Foi no jantar de 88. Vovô com Alzheimer, nossos pais expondo seus
rostos mascarados de felicidade com leve toque de tempero de sorriso. Os tios portavam
essas máscaras também. A empregada serviu o frango para nós. Meu irmãozinho desceu.
Começamos a cantar “parabéns pra você, nessa data...”

84
B

G.

Foi só uma lapada. O miserável atirou enquanto descia as escadas, o seu corpo magro e
espinhento foi parar na mesa de estudo. Junto com os livros de Culinária para Leigos e
Matemática. Nós vimos o mais novo da família perder a cabeça.

foi
um
trauma
pesado

A pergunta minha era: “quando será a minha vez?”.

Vejo-o sob meus óculos escuros. A massa é vermelha, aterrorizante, ao redor dos
neurônios, e vejo Dalí, vejo a circulação negra de todo o mal que me cerca desde o
princípio. Vejo os milhões de computadores que invadi, vejo o ninja, aquele da espada,
singelo, ágil, Bartolomeu entrando, é ele? Alfa e Ômega? Sangue chiaroscuro,
engrenagem de bostas, morte e amor, dor, bumbuns, DJ Max acaba o seu show, os
aplausos, a loucura, o fim da noite: esperar o cachê, receber e comprar vodca e maconha,
encher a cara com as putas, as fãs escrotas e os chupadores de cacete, a terra, fugir da
morte. Mas eu tô pronto, então pra que fugir? Parem tudo. Sério, parem. Parem! Observei

o universo e seus inúmeros pedaços. O apoteótico fim, o amorfo em sua forma


inexistente, o nada e o tudo. Contemplei a minha alma e chorei. A minha mente circulava
a 400 km/h. Alguém está na minha frente. Ela não para de rodar.
Amtrazporranenhumaondeestou. “Não queria que fosse assim.” Quem acabou de falar?

“Foi difícil te achar, Eraldo.”


85
800km/h? Desgraçado, acho que foi isso que verbalizei. Desgraça é verbo? Um novo
gerbo? G E R B O

Sei lá.

Uma volta na minha mente. Através dela, viajo para Saturno, paro no Brasil, e peço um
drink marciano. “Adeus, Indústria”, foi o que eu disse agora. “Adeus, família”, foi o que
eu disse alguns anos atrás. Vocês mataram o meu irmão. O filho de vocês. O dedo no
gatilho é dele, mas a bala que violentou a cabeça do miserável é de vocês. Sim, minha
vida não foi tão difícil, sempre tive dinheiro, o probl

ema é que meus pais eram terríveis. Certo, papai nunca me violentou. Ele só comia o
Júnior. Mas eu sempre gostei de sofrer. Na verdade, opa. Algo estranho

sendo

enterrado na
86
minha cabeça.

Giro giro

Eu já estou morto. Mas deu um leve atraso no sistema digital da morte. Verifiquem em
www.mortedigital.org

Download death in 78%

Morte sendo

Carregada em 9&¨%$$

%%%%%%%%%%%%

... É uma faca. Tô vendo. Ela vai entrando e eu girando. Algumas tranças perfeitas caem
em meu rosto. Nossa, isso dói. Você já partiu, Marian? Alguém? Cadê as fãs.

A faca tá entrando e foi bem na testa. No meinho. Porra, Bartolomeu.

Está sendo enterrada, lenta

M
E
N
T

Parem de girar. Está fazendo cócegas. Estou

ficando tonto. Está entrando. Entrou. Nossa,

cê manja mesmo, Bartolomeu.

Estou cansado dessa merda de.

87
LIMPEZA

Mona

“Uma semana e meia”, não tiro meus olhos dos seus pés inquietos, eles batem no tapete
oriental sem parar, “isso é um recorde, Bartô”. O quarto dos fundos do meu café
Mineirinho nos acolhia. Queixo de Pedra entra, quebra a quietude e pede desculpas pelo
atraso. Vegetal está no sofá, sentadinho e largado, bufando sem parar.

“O negão é bom mesmo, hein?”, Queixo chega falando, senta ao lado de Bartolomeu, que
imediatamente muda sua expressão, mostrando que ficou incomodado com meu
segurança particular. Ficamos nos encarando, Bartolomeu sabe que o chamei para
oficializarmos o trato. O abutre era meu agora. Finalmente tudo está dando certo para
mim. Aumento de salário, uma lenda ao meu lado, os negócios alimentícios dando certo.
Eu teria dinheiro para o meu tratamento hormonal, quanta felicidade.

O meu sorriso aberto devia estar incomodando Bartolomeu, sem dúvidas.

“A Indústria mandou algo?”, perguntei.

“Só confirmaram as mortes e disseram que já estou apagado. A partir de hoje, respondo
todos meus trabalhos para você. Feliz?”

“Delícia. Eles nem me enviaram nada, que estranho. Enfim, se confirmaram contigo tá
beleza.”

“O que tem para hoje?”, ele pergunta, se levantando e indo para o bebedouro.

“A Indústria me falou de um Gerente que saiu do meio. Atualmente o cara está em uma
empresa de publicidade”, Bartolomeu volta a se sentar com o punho fechado encostado
em sua bochecha, atento, “ele estava sendo vigiado e... Resumindo: pegaram ele falando
da Indústria para seus amigos. De acordo com o informante, ele estava bêbado. Daí já
viu”.
88
“Apagar quando?”

“A Indústria só me contou a história. Não me mandaram nenhum dado ainda. Temos que
aguardar. Mas imagino que você terá que apagar ele e os amigos que escutaram a
conversa.”

“Certo. Como irei receber agora?”

“Sua grana cai na minha conta”, solto a fumaça, tranquilamente, “e eu enfio na sua”.

Queixo começa a gargalhar.

Vegetal continua sem reagir a nada.

“Mais alguma coisa?”, ele pergunta.

“Seja bem vindo ao grupo de limpeza, querido. Aqui você se sentirá em casa. E sim, você
pode escolher outro nome agora. Bartolomeu já era.”

“Ótimo, mas... Só uma coisa, Moninha linda”, ele pega a garrafa de cerveja da mão do
Queixo de Pedra, fica a admirando, alisando, enquanto meu cafetão faz uma cara de
dúvida, “a Indústria não vai enviar nenhuma informação sobre esse cara para você. E eu
não vou mudar meu nome”.

“Como?”

“Você realmente acha que eles me colocariam neste seu grupinho de merda?”

“Como?”

“É o fim, Mona. A partir de agora, eu sou a limpeza.”

***

89
Não foi surpreendente. Ok, talvez fosse. Eu devia ter previsto. Merda. Bartolomeu
arrebenta a garrafa de cerveja na cabeça do Queixo de Pedra; ele chuta a mesa de centro
na minha direção, enquanto o Queixo rola no chão, segurando sua cabeça. Foi tudo muito
rápido, antes que eu pudesse pensar ou agir, o pé esquerdo de Bartolomeu estrangulava o
meu pescoço. Eu estava no topo. Todos me parabenizando, perspectivas. Não pode acabar
agora. O pé dele força mais, Vegetal tremendo e eu babando. O Queixo se recupera e pula
em cima de Bartolomeu, os dois caem no sofá velho e o viram no chão. Queixo pega
Bartolomeu pelo cabelo e o joga na porta do quarto, detonando-a de imediato.

“Queixo, seu merda”, fico alisando meu pescoço, “traz ele pra cá, todo mundo do café vai
ver...” Ele não escuta, entrou em frenesi, ainda consegui vê-lo chutando Bartolomeu, até
que escutei os gritos dos garçons e clientes. Que tragédia. Saí do quarto na hora e o
pessoal gritava “meu deus, uma briga!” Bartolomeu foi parar em cima de uma das mesas
retangulares do café. Os clientes corriam, o segurança tentou separá-los, mas meu cafetão
não pensou nem por um segundo e o nocauteou. Neste meio tempo, Bartolomeu enfiou
uma faca com pedaços de torta no estômago do meu servo. Sangue escorria da barriga do
Queixo de Pedra, descendo até a mão de Bartolomeu e pingando no chão amarronzado.

Eu me fingia de vítima.

Lentamente, fui colocando a mão dentro da jaqueta, alcançando meu ferro, sem que
Bartolomeu reparasse. Queixo abraça Bartolomeu e começa a correr acoplado a ele,
ambos quebram metade do balcão e param na cozinha. O barulho é estrondoso. Os
cozinheiros em alvoroço começam a sair de perto, todos boquiabertos. Mesmo com a faca
na barriga, Queixo consegue reagir; eles se agarram com as mãos, unhas arranhando a
carne, dentes expostos, feito dois bichos irracionais, selvagens, famintos. Queixo
desgruda dele, o soca uma, duas, três, o chão avermelhado, os gritos, minha arminha
saindo da jaqueta, quatro vezes, e me aproximo deles, mais sangue no chão da cozinha.
Bartolomeu está com as tranças detonadas, semi-careca, abre seus braços e, com as mãos
abertas, as fecha com tudo nas orelhas do meu cafetão, que fica tonto e leva uma
cotovelada no nariz, ficando mais sem sentido e desorientado. Bartolomeu vê a pistola
saindo da minha jaqueta, sua expressão causa medo, minhas pernas tremem, tiro ela de
vez, ele arremessa uma frigideira na minha direção. O treco atinge meu nariz, fico caída,
apertando o nariz ferido; consigo ver a mão de Bartolomeu pegando uma faca na cozinha,

90
ele ergue o máximo que pode e desce com tudo na cara do Queixo: uma, duas, três,
quatro, o cafetão grita, cinco, seis, sete, a arma agora está na minha mão novamente,
apontada para o desgraçado. Um dos garçons fica com medo, diz “senhora é melhor
não...” Ignoro-o, esse puto deve morrer agora. Bartolomeu se levanta, o rosto está
totalmente vermelho: seu sangue mesclado com o do Queixo. Eu atiro, ele percebe, vejo
que a bala não o acertou; ele some, uma sombra aparece do meu lado, rolando, aperto o
gatilho, pega raspando em seu ombro, o terceiro é disparado, ele chuta meu joelho,
desloca, o som é horripilante. A dor nem se fala. Seu punho magro desce, quebrando de
vez meu nariz. A visão prejudicada não me permite ver com nitidez, mas Bartolomeu
pega a arma e chuta meu saco. Qual o nome dessa arma? Sou péssima para esses dados
técnicos e bélicos, enfim, ela atira e não está mais em minhas mãos. Merda. Ele pula por
trás do balcão. Atira, matando de vez o Queixo de Pedra. Atira no garçom histérico
também. Ele me chuta no estômago e na têmpora, vai até o quarto dos fundos. Escuto três
estrondos. Vegetal dá seu último suspiro. Agora escuto barulho de sirenes. Ele está na
minha frente. Mais sirenes. “Você usando arma... Que desespero.” Consigo falar,
tremendo bastante, engolindo sangue. Ele enfia a arma na minha boca. Ele está nervoso. E
eu devia ter previsto essa situação. O cano quente do ferro me aquece. O estrondo ecoa
no cérebro: Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum ZumzumzumZumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum
Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzum Zumzumzummmmm.
91
NEGÓCIOS
Mrs. Flowers

Você, continuei, brilhava no meio daquele ruído branco televisivo, portando o terno Hugo
Boss, nariz sempre arrebitado, traços europeus, mas sem esconder as raízes brasileiras. E
o penteado entupido de laquê e gel, duro, charmoso? (Ele me encarava, suado, nervoso).
Sua voz ganhava meu corpo, viu? Você ao lado do seu irmão mais velho, na televisão?
“Minhas promessas serão cumpridas”, ele vive dizendo. Será que ele ganha? “As
minorias não terão vez no meu governo”. Será que ele ganha? “Bandido bom é bandido
morto”. Será que ele ganha? As eleições nem começaram e você aqui em Buenos Aires,
celebrando... O quê? Vocês devem estar muito ocupados agora. Não consigo entender o
que faria você viajar até a capital argentina... E por que você não trouxe a família pra cá?
Seu irmão futuro presidente do país até entendo, mas e sua esposinha desocupada? Por
quê? Amante? Acertei em cheio. Sorriso branco, o cheiro dela deve ser bom. Pensou que
eu não conhecia sua segunda vida argentina, Hermano más joven? Sua esposa, Karina,
suas filhas, Juliana e Barbara, nem imaginam que o papai tem uma mulher na Argentina,
não é? (Ele começa a suar mais, seus olhos arregalados, punhos fechados). Doce
Recoleta, bairro onde sua segunda mulher vive; lugar agitado, eu adoro. Desconheço o
nome dela, mas vi você saindo com ela ontem. Estuda moda na Universidade de Palermo,
acertei? Se bem, que com a touquinha dela e cabelos curtos arrepiados, eu diria que ela
faz cinema. Na FUC? Muito hipster sua segunda mulher, muito novinha também. (Ele
pisca os olhos freneticamente). Você banca ela, não é? Carinha de alemã, mas assim
como você, ela não esconde os traços brasileiros. Nós temos um modo de andar e rir
próprios. Concorda? Até a traição brasileira é única (seu penteado rígido e formal começa
a se desfazer, rosto molhado, corpo tremido). Você é o primeiro da lista, sabia? Eu tenho
o endereço de todos vocês. Se escondam no inferno e eu estarei lá com um tridente e uma
dose de gasolina. Pare de tremer, quer chamar a polícia? A Indústria chamando a polícia,
não sei, vocês não têm tanto poder assim. Os Peões estão cansados, eu me cansei, chega,
o tabuleiro virou, amigo. Vocês estão fodidos. Acabou, amigo. Acabou, seus putos. (Ele
fica girando a cabeça). Vocês me fizeram matar meu amor. Acredita em amor à primeira
vista? Ele morreu. Meti um tiro nele. Estou chorando, está vendo, está vendo? (Aperto a
corda, ele tenta gritar). Hoje é seu último dia, faça algo, homem. Olha meu rosto, minha
maquiagem, curte Rolling Stones? Vou colocar aqui, espero que você goste. (Ele fica
olhando para as facas em cima da mesa). Prometo que não vai doer: talvez um pouco (...).

92
LIGAÇÃO

“Linha segura?”

“Claro, Bartolomeu. Relaxa. Tá vindo amanhã mesmo?”

“Não confio em telefones, Flowers.”

“Deixa de frescura. Vem quando pra cá?”

“Amanhã. Fez seu trabalho?”

“Aham. Não sobrou um.”

“Você tá no hotel que confirmou no e-mail?”

“Exatamente.”

“Beleza. Até amanhã de noite.”

“Até.”

93
COMO CONSTRUIR UMA CARREIRA DE
SUCESSO NO BRASIL
Bartolomeu

Uma criança estava ao meu lado, brincando com bonecos de ação. Sua mãe dormia com a
boca aberta, roncando suavemente. O menino dava pequenos gritos, simulando um
combate entre os bonecos, “mierda, argh, ia... vos sos um boludo!” A aeromoça olhou,
pisquei os olhos, aguardei ela continuar caminhando e observei seu rebolado: era magra,
cintura fina, negra, olhos escuros e profundos, podia-se ver certa filosofia no seu modo de
andar. A criança continuava no “argh, psiu, iááá...” Sua mãe acorda, ela levanta a mão e
estapeia o ombro da criança. “Boludo, pará de hacer lío, chico!” O menino abaixa a
cabeça, “perdón, mama”. Ela olha para mim, faz uma cara feia e volta a dormir, abrindo a
bocarra argentina. Levanto-me e sigo até o banheiro. No espelho, vejo o meu novo rosto:
sem cabelos, mais abatido. Depois do embate com o Queixo de Pedra, decidi raspar
minha cabeça. Mijo, puxo a descarga e volto ao meu assento. Hoje seria o dia em que tudo
seria resolvido. Adentro os pensamentos no céu que me encara, reflito sobre as últimas
semanas: estava perto do fim. Cheguei ao Aeroparque às 19h14min. Andando pelo
corredor extenso do aeroporto, chego na área das bagagens, pego a minha e sigo até a
saída. E que surpresa ver ela de pé, com o tradicional cabelo curto aloirado, magra como
sempre, com um sorriso disforme e drogado; unha mal cuidada e, em suas mãos, uma
placa com meu nome:

BARTOLOMEU ;)

“Mrs. Flowers, há quanto tempo.”

***

Transamos no quarto de hotel. Ela continuava sabendo das coisas. Nada havia mudado
desde o nosso último contato pessoal. Os olhos compartilhavam as mesmas histórias, os
corpos nunca mentiam, tudo fluía com uma exatidão milimétrica. Juntos, após tantos anos
separados. Aparentemente compartindo o mesmo espaço dessa guerra que vivemos.
94
Nunca se sabe, mas talvez não saíssemos vivos deste quarto. Todos morrendo e eu me
pergunto: por que seríamos os únicos vivos? Não se sabe. Nosso sexo foi uma fusão
orgânica de pulsão de morte e tesão guardado de anos. Um orgasmo potente, único, talvez
último.

“Seu pau é pequeno, mas sabe ser divertido, viu”, ela diz, alisando meu pau mole, “o que
você tem a dizer do orgasmo, hein? Ouvi dizer que nesses últimos anos você se tornou
uma espécie de estudioso do sexo feminino. Confere?”.

“Muitas lendas, poucas verdades.”

“Eu escolho minhas verdades. Por que você acha que um cara como Serge Gainsbourg
conseguiu pegar a Jane Birkin?”

“Você não é uma Birkin.”

“E você não é um Gainsboug.”

“Sou um curioso pelo corpo humano.”

“Vai, fala algo aí sobre o nosso orgasmo. Quero ver se você manja mesmo.”

“Ai, ai... Para os homens, o orgasmo feminino é um mistério digno dos alienígenas.
Quanto mais nós vemos essa coisa bela se contorcendo”, aponto o dedo para a buceta
peluda dela e subo até a boca, “mordendo os lábios e chacoalhando como se o mundo
fosse acabar, mais nós desejamos. Há épocas os cientistas tentam investigar isso.
Questionando entre o queijo em suas cabeças rosadas e os neurônios recheados de
putaria, se perguntaram: como é possível o orgasmo? O ponto G existe? E como explicar
os orgasmos sem sexo? Os putos já criaram foguetes, supercomputadores, robôs, a merda
toda, mas eles não conseguem explicar o orgasmo de uma mulher como você. Por mais de
5 mil anos os filósofos chineses registraram em profundidade o orgasmo feminino. O
período Hongshan foi responsável por muitos tratamentos chineses que até hoje nós
utilizamos, como a acupuntura. O sexo era considerado um meio poderoso de acumular
energia no corpo. Cortesãs especializadas aconselhavam os imperadores sobre como
95
canalizar a energia sexual a fim de fortalecer seu poder e carisma. Médicos prescreviam
diferentes posições sexuais para curar males específicos. Se uma mulher está com pouca
energia ou triste, você deve comê-la por trás. Estimula o fígado, o ponto reflexo capaz de
reanimar o espírito. O sexo ultrapassa as barreiras do simples funfa funfa, Flowers. É útil,
é tudo. E o orgasmo entra nessa história, ele não é uma gozada escrota, algo que a gente
faz todo dia no banheiro. Goza, vira e dorme. A mulher é uma criatura especial. Um
alienígena antigo que vem evoluindo e tornando-se mais forte com o tempo. Entende?
Um simples tom de voz é o suficiente para fazê-la gozar por completo. É o suficiente para
ela ter o orgasmo da vida dela. Jane Birkin ficou com Serge Gainsbourg por um único
motivo: orgasmo. Aquela coisa feia e fissurada em nicotina sabia como fazer uma mulher
urrar. Ou talvez fosse por outro motivo. O charme. Quem sabe. Ou simplesmente ele a
escutava. Mulher quer ser atraída, não seduzida. Possuída. Você quer ser possuída. E
pelos seus olhos, eu vejo que você está possuída. Não houve sexo com o responsável pela
possessão, mas sua expressão está arrasada, seus olhos vidrados, você está se controlando
para não entrar em colapso. Reza a lenda que a Criança Branca deixava algumas mulheres
assim. Não imaginei que com você fosse acontecer.”

Ela diz: “Que pernóstico, que ridículo: me pega de quatro”.

***

Estávamos em um hotel na Carlos Pellegrinni. Tinha uma bela varanda, a vista dava para
a Avenida Santa Fé. Gostava de Buenos Aires, lugar com certa poesia natural, tinha vindo
para cá com Ingrid uma vez. Mas a melhor visita à cidade foi aos 22 anos. Meu primeiro
trabalho internacional pela Indústria. Apagar uma modelo. Foi como apagar meu passado.
Mrs. Flowes me acorda do transe e diz que precisamos falar de negócios.

Concordo com a cabeça.

***

“Curte?”, Flowers perguntou.

96
Estava tocando punk.

“O que é isso?”

“The Adicts.”

“Vamos fazer assim”, me aproximei do notebook dela, “você escolhe uma música, eu
escolho outra, assim por diante”.

“Ixi...”, ela faz uma careta horrenda, acendendo o cigarro sem delicadeza alguma, “você
é todo cheio de frufru, vai colocar o quê?”.

“Sidney Bechet.”

“Quié isso?”

“Blues.”

“É… Dá pra ouvir.”

“Punk Blues pra hoje.”

“Aceito. A trepada e o papo compensou, vou aceitar suas músicas de velho.”

Coloco minha calça, ela fica de calcinha, tragando e baforando ao ritmo patético da
música. Fico sentado na cama, olho debaixo dela: há uma maleta grande e preta.

Pergunto: “Você está sem arma? Como você apagou os caras?”.

“A arma tá dentro dessa maleta”, ela aponta pra debaixo da cama, “tá cego?”.

“Maleta grande.”

“Adivinha qual a arma?”


97
“Não sei.”

“A que você usava.”

“Barrett M-82?”

“Acertou, gato.”

“Ele vem pra cá?”

“Daqui a vinte minutos.”

Volto para a varanda.

“Esse trabalho é uma furada”, digo.

É sempre bom repensar os trabalhos. Iríamos recapitular tudo.

Estava tocando blues e minha lógica começou a fluir melhor. Finalmente.

“Vamos aos fatos, Flowers.”

“Manda.”

“O irmão mais velho da Indústria entrou em contato comigo através de um e-mail


criptografado. Com você também. Certo?” Ela concorda. “E tudo começou com esse
contato...” Minha cabeça entra em um transe benigno, o fluxo de informações é
verbalizado e pensado; começo a desovar meu diagnóstico: “... As únicas informações
concretas que tive nos últimos dias é que o irmão mais velho deseja construir uma nova
Indústria; neste novo empreendimento, você mataria alguns imprestáveis do Andar de
Cima, incluindo o irmãozinho dele, e eu apagaria o Departamento e o Grupo de Limpeza
da Mona. Você tá sabendo de mais alguma coisa?”.

“Não. Só fiquei sabendo disso também, Bartô.”


98
Olhei bem para a cara dela. Flowers estava nervosa. Ela nunca foi uma boa atriz.

Fiquei pensativo.

Preciso pensar... Bem, vamos lá: a Indústria é coordenada por dois irmãos. Os seus nomes
não importam, os chamamos na Indústria de irmão mais velho e irmão mais novo. O
Andar de Cima é formado de sócios majoritários que decidem juntos com os irmãos quais
Trabalhos serão aceitos (nem toda demanda de trabalho é aprovada). Depois de aprovada,
vêm à prioridade de cada Trabalho. Depois de decididos esses fatores, eles enviam para
nós os Trabalhos e assim o ato é concluído.

“O irmão mais velho propôs para mim uma espécie de sociedade. Para você também,
certo?” Flowers concorda com a cabeça. “Hoje, o Andar de Cima está empesteado de
engravatados sem visão, uma galera nova e que não tem noção alguma da periculosidade
do nosso trabalho, foi o que o irmão mais velho disse para mim em seu e-mail. Para eles,
é tudo brincadeira, principalmente para o seu finado irmão mais novo. Mas isso que
fazemos é arte. Agimos com delicadeza. Não há tijolos aqui. Há pincéis. O irmão mais
velho leva a herança do papai a sério. Tirando dois membros do Andar de Cima, (caras
experientes, conheciam o pai dele) o resto é tudo da geração foda-se (e você já os
detonou). O irmão mais velho estava vendo, ao vivo, cara a cara, de camarote, o declínio
do pequeno império do pai. Creio que a Indústria esteja começando a ser investigada e a
falta de precisão na escolha dos Trabalhos deve ser uma das causas. (A missão de Nova
Iorque, por exemplo, total falta de gestão ao nos mandar para a base do Gordo, local onde
a chance de sujeira era de 100%). As chances de expor a localização da Indústria e seus
membros estão crescendo. O irmão mais velho quer apagar tudo da Indústria, pois é um
candidato à presidência polêmico, e com certeza a mídia já está fuçando a sua vida. Para o
novo nascer, o velho precisa ser destruído... Mas ele disse que algumas relíquias podiam
permanecer intactas. E pagaria muito bem para mantê-las. Certo?”.

“Aham”, ela responde.

Bem acima do nosso salário.

99
“... E nós dois receberíamos uma parte dos lucros da Indústria. Ou seja: só vantagem. Se
tratando de uma empresa como a nossa, isso é perigoso. Sabemos que a vida não é só
vantagem”.

A lógica é: com um pensamento de inovação e renovação desses, qual a vantagem dele de


nos manter vivos? Ou qual a vantagem de manter duas relíquias vivas? “O cara está se
candidatando à presidência, Flowers”, volto a falar, “obviamente que é mais prático pra
ele apagar tudo e quem sabe mais pra frente reconstruir este polêmico império de mortes.
Queima de arquivo. Já vimos isso. O problema atual da empresa é exatamente o passado.
Se ele quer uma revolução, na realidade, ele não precisaria de nenhum de nós dois. Ele
usa os dois melhores para limpar a empresa: você mata o irmão mais novo e os sócios do
Andar de Cima. Eu mato o restante do problema. E depois, ele nos apaga, ou pior: nós
nos apagamos”.

“Qual o veredicto?”, ela não tira o cigarro da boca.

“Ele está vindo, Flowers. E eu creio que ele não quer dois profissionais trabalhando na
nova Indústria que deseja conceber.”

O punk volta a tocar.

“Ou seja...” A fumaça nos belos lábios dela dançam pelo ar.

“Sendo otimista, eu diria que ele só deseja um deste quarto. Sendo realista: nenhum. E
pior: algo me diz que você já sabia disso.”

“Puta que pariu. Não sei, Bartô. Pode ser viagem sua. Enfim, vou tomar um banho.”

Nos beijamos.

Barulho de chuveiro ligado.

Aumento o volume.

Pego a maleta dela e observo: há um passado aqui.


10
0
***

O telefone do quarto toca. Flowers atende. Em castelhano ela diz que os visitantes podem
subir. O punk insistia. “Os?”, pergunto. Ela confirma com a cabeça. Eu me aproximo do
notebook e coloco uma música do Blues Etílico. Mrs. Flowers está na varanda, detonando
o maço de cigarros. Ela nem percebe que mudei de música. Abraço as costas dela, cheiro
seu cabelo, ela sorri timidamente.

“Somos amigos faz quanto tempo, Flowers?”

“Alguns anos.”

“Ingrid insiste que eu peça a marca do shampoo que você usa.”

“Essa sua relação aberta com ela é uma graça. Ingrid está bem?”

“Não é aberta. Só prometemos não conter nossos instintos.”

“Aberta. Você já conheceu um dos amantes dela?”

“Um gordo fétido de Villa Baixa. Não tento entender.”

Ficamos rindo. Os seus lábios secos se encostam em meu rosto, a lua a nossa frente é
cúmplice das minhas deduções sentenciosas.

Ficamos alguns segundos em silêncio.

“Você está mentindo pra mim, Flowers. Vi sua cara enquanto eu falava. Você não me
interrompeu em nenhum momento. Você sempre me interrompe quando eu falo muito.”

“Eu não queria ter que te matar. Cê sabe”, ela diz.

“O dinheiro fala mais alto.”

“O dinheiro e minha vida. Desculpe.”


10
1
“Nossa vida. Talvez eles nos matem agora.”

“Duas pessoas estão subindo.”

“Duvido que ele venha. Deve ter mandado dois amigos, se você me entende.”

“Vou tirar a arma da maleta.”

“Rápido.”

“Quer uma caneta?”

Começo a rir, “não há necessidade”.

***

Toc. Toc.

Antes de abrir a porta, Flowers muda de música. Imediatamente a gaita é trocada pelo
ONE, TWO, THREE, FOUR... Eu coloco uma camisa branca, estalo os dedos, a porta é
aberta, não há irmão mais velho. Na nossa frente: dois japoneses. Ambos com ternos
amarelos, gravatas de bolinhas roxas, cabelos penteados para o lado e rostos sem
expressão alguma. Pareciam dois bonecos idênticos. Brancos como cera. Imóveis.
“Querem entrar?”, Flowers pergunta, sem entender. Eles entram. O maior dos japoneses
pega um maço de cigarros, acende, passa um para o irmão (só podem ser irmãos, são
similares demais), que tenta acender algumas vezes e não consegue. Seu irmão acende,
fazendo uma cara de decepção. Até esqueço que Flowers está exibindo os pequenos seios
para os visitantes. Ela fica do meu lado: estamos sentados na cama, enquanto eles ficam
no sofá vermelho. Eles nem piscam os olhos. Fumam tranquilamente, Flowers também,
até que eu pergunto “que porra é essa?”. Um dos japoneses pega um pedaço de papel que
está dentro do seu blazer amarelo e começa a ler com uma voz anasalada e um sotaque
bizarríssimo:

Oi. Flowers, obrigado por me livrar do lixo que me acompanhava. Bartolomeu,


obrigado por reduzir os gastos da folha de pagamento da empresa. Não apareci hoje por
102
conta das reuniões. A questão é que a Indústria está passando por um momento de
grandes cortes, como vocês já sabem.

A crise está pegando pesado.

Antes pagar bem um do que pagar mais ou menos dois.

Pagar bem.

Enfim, espero que vocês tenham entendido a mensagem.

Boa sorte para vocês. Beijos e até breve.

Nova Indústria Brasileira – Ninguém Mais Segura Este País.

Fico olhando para os japoneses, ambos sorrindo, os dentes pretos deixam seus rostos
mecânicos mais assustadores do que o normal. Flowers começa a lacrimejar, sua voz
trôpega se confunde com a bateria caótica da música.

“A grana é muito boa, Bartolomeu. Cê sabe.”

“Quem garante que ele vai pagar?”

“Você sabe que eu preciso da grana.”

Eles se levantam, fazem um cumprimento bizarro e seguem até a porta.

“Esses dois podem ser nossos substitutos. Ninguém garante nada. O puto nem deu as
caras, Flowers.”

“É muita grana, Bartolomeu.”

“Você me mataria?”

“Minhas dívidas.”
103
“Você devia parar de usar essas merdas.”

“Você sabe que estou tentando parar.”

“Seus filhos estão bem?”

“Perdi a guarda deles. Não tá fácil.”

“Não é fácil pra mim também.”

“Você tá sendo hipócrita.”

“Você não é como eles, que eu mato fácil.”

“Eu sei.”

Os japoneses abrem a porta e a fecham, sem tirar os sorrisos levianos dos rostos.

“Eles ficarão nos vigiando”, digo.

“Alguém tem que comprovar o veredicto.”

Tiro do punk. Coloco Ray Charles.

“Eu não vou te matar.”

“Eu sei. Tenho que pensar, Bartô.”

Ela entra no banheiro, ouço alguns soluços.

Nós somos máquinas criadas com este intuito. Nosso treinamento nunca permitiu afeições
que ultrapassem o objetivo de um trabalho. Se tivermos que fazer, nós faremos. Não há
amor entre Peões. Mando uma mensagem para Ingrid. Eu sei o que devo fazer. Espero
que você também saiba, Flowers.
104
***

Flowers começa a se vestir, seus olhos estão inchados. Ela não fala nada. Eu permaneço
calado. A degradação mental nos contamina, cada passo no quarto simboliza um
terremoto em nossos corpos. A tensão não cessava. O sexo cede lugar à morte em poucos
instantes: assim é o trabalho. Uma úlcera começa a subir, nunca tive amor por Flowers,
mas o que incomodava era saber que o irmão mais velho fará aquilo que eu imaginava.

“Não importa quem sobreviva, Flowers”, levanto-me da cama, chego perto dela, e ela se
assusta, “não vou te matar, já disse”.

“Ok.”

“Ele irá matar o sobrevivente disso, mulher. Porra, acorde”.

“Acho que não, Bartô. Ele precisa de alguém, nós somos bons no que fazemos. Ele não se
daria o luxo de perder todos.”

“Claro que daria, ele não se importa com nada e nos usou para limpar tudo. Basicamente
só nós dois podemos acabar com o império dele. Abra os olhos. O cara sempre foi
discreto e agora está perto de se candidatar à presidência da porra deste país. E se brincar,
ele ganha. O irmão mais velho é um empresário famoso, a galera curte seu jeitão escroto e
reacionário, daí imagina se descobrem a Indústria? A mídia já está caindo em cima das
declarações dele, e se descobrem que esse empresário polêmico é herdeiro de uma
empresa de matadores de aluguel? Uma empresa gigantesca e que existe há séculos?
Imagina?”.

“Eu sei, velho. Mas se liga: ele precisa de um, Bartô. Lógico que precisa. Pelo menos
um. E eu preciso dessa grana.”

“Vai me matar agora?”

Ela pega a arma, coloca na maleta, joga em cima da cama, veste uma regata e coloca um
blazer por cima, “agora não”.

105
“É um risco.”

“Nossa vida é feita disso, Bartolomeu.”

Ela beija meu rosto, eu seguro o braço dela: “Não, Flowers”.

“Pague a conta do hotel, da outra vez eu que paguei. Lembra?”

Eu começo a rir timidamente, abaixo a cabeça e digo: “estarei atento na hora de sair do
hotel. Ainda sabe usar?”, aponto para a mala.

“Não abandonei como você. Ando treinando e usando constantemente. Fique atento.
Estarei em lugares estratégicos. Desculpa, Bartolomeu.”

“Sem desculpas. São negócios.”

“Do paraíso ao inferno.”

“E você dando o primeiro passo, muito bem.”

“Se quiser eu te espero, vamos sair juntos. Código de honra dos assassinos.”

“Não use este termo.”

“Assassinos?”

“Sim.”

“Você é único, Bartolomeu. Um negro mimizento.”

“Não seja escrota. Você é melhor do que isso.”

“Foi mal.”

“Que banda é essa?”, aponto para o notebook.


106
“Iggy Pop. Cê não manja nada, hein.”

“Nome da música.”

“I’m sick of you.”

“Gostei.”

“Fique com o notebook. Um presente.”

“Prometo não trocar de música.”

Flowers e eu nos olhamos por um tempo. Sabíamos que o futuro era incerto, a grana que
o irmão mais velho está prometendo e as vantagens de se tornar o sobrevivente dessa
matança. Tudo era incerto. Mas desde quando nossa vida teve algo de certo? Flowers
tinha razão, por isso eu fiquei triste. Aumentei o volume, ela beija minha boca, morde,
uma fúria romântica; se não fosse por Ingrid, eu poderia falar que amo essa mulher,
mesmo sendo mentira, mesmo sendo verdade, mesmo sendo um desalento.

“Estamos fudidos, Flowers. Amamos viver e estamos fudidos.”

“Hedonistas sempre se fodem.”

“Não podemos fazer isso.”

“Podemos sim, não seja idiota.”

“Olha...”

“Chega, Bartô. Chega. O Brasil tá entrando em colapso e não temos mais o que fazer, só
sobreviver. Já percebeu? E quando o Brasil colapsar de vez entraremos em tempos trevosos. Você
consegue sentir, Bartô? Estamos sendo reduzidos a bárbaros, monstruosidades. Se o irmão mais
velho ganhar as eleições nosso trampo se tornará oficializado em algum momento. Há centro de
tiros para crianças. O sangue tornou-se ideologia. Animais: tempos trevosos. Por mais que o irmão
mais velho esteja com receio de ser descoberto, sabemos que em breve tudo isso será à céu aberto:

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o povo quer isso, sempre quis. Antes era só o homem e a natureza. Hoje há mais demandas.
Dividimos o átomo, quebramos a fabricação da realidade, pisamos na lua, sentimos o odor do sol, e
agora? Quando mais perfeito nos tornamos, mais psicóticos nos tornamos. Abraçamos a brutalidade
no Brasil. Aliás, no mundo. Tá tudo ruindo. Em breve o hino nacional será um grito. Fratura por
todos os lugares, Bartô. Você pede para não fazermos isso, mas se não fizermos, vamos fazer o quê
da vida? Você vai votar a desfilar? Eu vou voltar a traficar? É um caminho sem volta. Estamos fora
do Brasil e, fora do nosso ninho, o vemos mais nitidamente. O que você vê? Esperança? Sério? Se
prepare: eu estarei preparada.”

Não respondo: Flowers sai do hotel.

Deixei o punk tocando.

***

Acordei. Sol quente e porteño. Um sono inquieto, daqueles que a pessoa acorda cansada,
pensativa. Eu estava com um pouco de nojo da situação atual. Fiz alguns exercícios no quarto, suei
bastante, senti-me melhor. Liguei o notebook e fiz uma seleção de blues. Tomei banho (ainda não
me acostumei de estar careca), coloquei um jeans preto, camisa branca e uma jaqueta de couro
marrom. Olhei-me no espelho: não me acostumei. Abri a janela do hotel e observei o topo de
alguns prédios: ela já estava posicionada em algum lugar. Olhei para baixo, talvez estivesse em
alguma árvore. Loja. Café. Restaurante. Casa. Os olhos de Flowers miravam meu corpo em
alguma locação de Buenos Aires. Não fiz minha mala, deixei tudo no mesmo lugar, desci, tomei
um café da manhã reforçado e saí do hotel. Sentia-me observado. Assim que o sol atingiu meu
rosto, já comecei a olhar para os lados. A qualquer momento iria acontecer. Fui caminhando,
peguei um táxi, “para Defensa”, disse ao taxista com bigode espesso, que respondeu “dale”. Ele
seguiu para o endereço que solicitei. Os olhos dela me seguiam também.

DOMINGO

Bartolomeu

Ando esquecendo o lugar onde me encontro.

108
Eu pago o taxista, coloco meus óculos escuros e começo a caminhar pelas casas
envelhecidas e pelos cafés que são vendidos no meio das ruas infestadas de humanidade.
Domingo é um belo dia no bairro de San Telmo, turistas e nativos andam pela feira que
fica na Defensa e um verdadeiro oceano de humanidade é visível. Nada mais seguro do
que estar em meio a uma multidão.

Flowers mergulha em algum ponto deste mar.

Ainda lembro quando vim aqui com Ingrid, ela comprou um belo vestido rosa. Amou os
alfajores, comia sem parar. Lembrei-me dela, pois vejo uma garota de cabelos cacheados,
olhos de jabuticaba e um sorriso camponês, daqueles que cheiram a alfazema.

Escuto uma agitação caótica, palavras sem nexo, batuques inquietantes. Um vermelho
visceral surge nas ruas da Defensa, cheias de pichação, hippies, arte e grafites. É a famosa
batucada brasileira que surge à minha frente, contagiando todos os turistas. Mulheres e
homens gritam alegrias ao som de um tambor. O calor adentra a derme.

O sol some aos poucos e a noite nos cumprimenta elegantemente enquanto mastigo uma
torta em um pequeno e humilde restaurante. Pago a conta. Um dos japoneses de terno
amarelo passa na minha frente, ele sorri com aqueles dentes assustadores. Eles irão nos
espionar até isso acabar. Não importa como, não há outra escolha: estamos sem saída.
Sigo o fluxo, acompanhando aquele vermelho cheio de som e fúria do bairro.

Buenos Aires prova ser uma cidade para todos. Temos os livros e o ritmo, o café e a
cerveja de 2 litros. Negros, asiáticos, argentinos, brasileiros, americanos, holandeses,
alemães, todos os sotaques e vozes se juntam em um único tom. Tum Tum ta Tum Tum
ta. Flowers deve estar por perto. Minha audição começa a ficar mais atenta. Ela iria
escolher esse horário para agir, o momento em que os barulhos de San Telmo ecoariam
mais alto do que seu tiro. O estresse diário é extraído neste domingo de fogo batucado.
Vejo uma moça tropeçar no chão de paralelepípedo, um homem a ajuda, ambos sorriem.
A moça dá um pulinho engraçado, o homem fala algo, não consigo entender, o castelhano
dele era grosseiro. Os batuques não param. Fico parado, simulo uma estátua. Tambores.
Continuo imóvel: aguardando. O volume se intensifica: ouço uma nota errada, um lapso,
estalo, tiro. Viro para esquerda, não vejo nada. Viro para trás e ainda consigo ver um

109
vulto tombando de um telhado: uma fumaça escura saindo do corpo que caí em cima de
uma barraca de empanadas. Os batuques param. Todos ficam boquiabertos e seguem em
direção do ocorrido. Lentamente me afasto do círculo de pessoas que havia se formado ao
redor de Flowers, morta.

***

Na Europa, em meados do século XIX, aparece a primeira espingarda de ferrolho. O


“ferrolho” era o mecanismo de carregamento e extração da munição. A maioria das armas
funcionava sob essa forma. Obviamente que, com as armas de hoje, mais bem projetadas
e com material melhorado, a tecnologia e arquitetura delas foram mudando e evoluindo.
A questão é que armas velhas como espingardas de ferrolho têm mais chances de falhas. O
famoso “tiro saiu pela culatra”. Apesar da tecnologia do armamento contemporâneo,
ainda é possível fazer um tiro sair pela culatra.

A Barrett M-82 é uma arma que já montei e desmontei inúmeras vezes. Se tiver algo
bloqueando a saída do projétil, a bala tende a implodir e voltar na cara de quem deu o
tiro. Basta haver impedimento na passagem normal do projétil. Seja um pedaço de ferro,
seja uma tampa de caneta, seja uma rocha. Se algo travar na culatra, tudo pode estilhaçar.
Assim como o rosto de Flowers estilhaçou. Foi isso que respondi para o irmão mais velho
quando ele mandou um e-mail para o meu celular, dando os parabéns e perguntando
“como?”.

***

Bar Britânico, Rua Chile com Defensa, 285. 22h42min.

O irmão mais velho mandou este endereço. Quem diria que ele estaria por aqui. O chefão
realmente deseja concluir os negócios.

Por bem ou por mal.

O movimento no bairro diminuiu. Quase ninguém nas ruas ébrias da Defensa. E eu sei
que estou sendo seguido. O bar é próximo da minha localização atual, mas faço um
caminho contrário, buscando revelar as minhas sombras.
110
Os dois japoneses são ágeis, o irmão mais velho anda puxando uma galera entendida do
assunto para o seu lado. Entrei em um restaurante na Rua Peru com Defensa, pedi uma
água, fiquei olhando para as ruas mal iluminadas. Algumas americanas bêbadas passam
por mim, dizem “hello pretty boy, uhhh...” Eu ignoro. Pego uma das facas de
churrasqueiro que estão em cima da mesa, guardo em minha jaqueta. Assim que saio
surpreendendo-me, causando um choque que não deixei transparecer no exterior, mas que
me causou um susto no interior. Cruzo com os dois japoneses, eles não estão sorrindo
dessa vez: os ternos amarelos chamativos, o cabelo de ambos caindo em seus rostos
simétricos. Obviamente eles conheciam o endereço do bar Britânico e sabiam que eu
estava indo por outro caminho. Assim que me viram, pararam por alguns instantes e me
fecharam. Eu parei também, observando-os com atenção. Eu tinha que me livrar deles
antes de me encontrar com o irmão mais velho. A possibilidade de morrer neste encontro
crescia. Eles me pareceram fixos em algo como um simulacro de eternidade e, aos
poucos, eles foram pousando, com extrema lentidão, seus olhos negros em mim. Depois
de um tempo, simplesmente abriram caminho, se afastaram, então fiz um breve
cumprimento que não foi correspondido. Passei por eles e assim que fui andando, por
curiosidade, olhei para trás: ambos apontavam suas pistolas para mim. Um poste com luz
amarelada iluminava os dois assassinos, que estavam na mesma posição que adotaram
para que eu pudesse passar. Ao nosso redor não havia ninguém. Começo a correr. A
respiração rasga meu pulmão. Acelero o passo. Não escuto nenhum disparo. De repente,
como para justificar meus temores, ao virar a esquina da Rua Estados Unidos, escuto
passos que se aceleravam. Andei mais uns tantos metros antes de parar, surpreso. Com
cautela, olhei por cima do ombro: os dois a uns trinta metros caminhavam na minha
direção, muito juntos, um ao lado do outro a ponto de parecerem irmãos siameses.
Expressões petrificadas, amarelados, sem sinal de vida. As silhuetas negras e magras
recortadas pela luz do poste da outra calçada. Um perfume de farmácia subia entre os
paralelepípedos e casas velhas. Sentia uma ferroada no estômago. Percorri depressa o
trecho que me separava de um beco. Visualizo uma residência com a porta aberta, começo
a correr: três, quatro, cinco, seis passos largos. Ao transpor o umbral, depois de fechar
com certa pressa a porta do saguão, descobri que estava empapado de suor. Apoiei as
costas na porta. Respirei por três segundos. Deixei a porta entreaberta, observando a
sombra dos japoneses. Estava escuro e as escadas da residência ficavam ao céu aberto:
era uma espécie de favela. Em algum lugar eu poderia me esconder. Seria minha única
chance. Fui subindo as escadas até chegar ao último andar. Escuto o som de alguém
111
abrindo a porta. Estava tomando fôlego, aguardando os algozes me alcançarem nesta
escuridão que me encontrava. Ouvi as vozes dos dois japoneses. Vejo as armas em suas
mãos. Eles sobem as escadas e se aproximam. Passos singelos. Cheiro de chumbo. Pulo
em cima deles: saímos rolando pelas escadas. Som de músculos torcidos e ossos
quebrados. Um disparo, filetes de sangue escorrendo, ruídos japoneses e brasileiros
tornando-se um na Argentina. A faca em minha mão direita sentia a carne dos dois,
enfiava uma, duas, três, e sinto outro disparo, minha garganta exclama: um grito discreto.
Vejo o rosto de um deles se contorcer de dor, enfio a faca em sua testa com força, quase
quebrando minha mão. A arma do segundo chega ao térreo, primeiro que nós três, e
continuamos rolando, até que alcanço o pescoço do sobrevivente e como se fosse um
galho grosso, eu o torço, sentindo seus nervos sendo virados pelas minhas mãos. Bato sua
cabeça no chão de pedregulho. Fim. Ombro baleado, dois cadáveres em cima de mim, o
japonês com a faca na testa tendo espasmos, um fantasma se contorcendo no chão, com
os dentes horripilantes e pretos. O outro não se movia mais. Respiro fundo, tiro minha
jaqueta. Cuspo sangue. Penso em pegar suas armas, mas o orgulho fala mais alto. Já basta
ter quebrado meu código com Mona. Guardo minha faca ensopada de trechos de cérebro.

Saio da residência mancando e antes de fechar a porta ainda consigo escutar o grito de
pânico de alguma argentina que vivia no local. Tento correr. Já conhecia bem a
localização do Bar Britânico. Perto dele, havia uma sorveteria: foi o primeiro lugar que
vim com Ingrid em Buenos Aires. Caminho, ferrado e doído, até o endereço combinado.

***

Estou na Chile com Defensa. Obviamente, tornei-me um alvo fácil da própria polícia. As
poucas pessoas que passavam pela rua me observavam com certo espanto. Minhas roupas
manchadas de sangue, rosto detonado: eu carregava uma bandeira de nome problema. As
ruas amarelas estavam vermelhas. Comecei a perder noção do real. Tudo girava. Acelerei
meus passos, olhando constantemente para os lados, até que cheguei. 283, 284, 285: Bar
Britânico. Estava vazio e um garçom com moicano e brincos enferrujados apontou o dedo
para o final do bar. Mesas amadeiradas, chão sujo, cortinas brancas cobrindo as janelas,
teto caindo aos pedaços e com ventiladores bambos. Iluminação precária. Um jazz sutil
tocando. Segui o dedo do garçom até uma mesa pequena, dois lugares, um deles ocupado
por um homem branco com camisa da seleção brasileira, boné azul, short jeans, tênis sem
meia, cabelo preto e rosto jovial, óculos de grau, uma barbicha estranha e mal feita. O
112
típico herdeiro brasileiro. Um coach dos bons costumes. Ele levanta o braço para mim.
Volto a olhar o garçom e sigo até a mesa em que o irmão mais velho se encontra.

“Finalmente nos conhecemos pessoalmente, grande Bartolomeu”, ele levanta o dedo


para o garçom, “e aí, o que acha do meu bar?”.

“Sujo.”

“É, eu e meu irmão tomamos conta disso, até que dá um lucro bacaninha.”

“Seu irmão não toma mais conta.”

Ele começa a rir. Uma risada escandalosa, falsa, cheia de trejeitos e movimentos
exagerados.

“Meu irmãozinho já viveu o bastante, suas merdas estavam quebrando minhas pernas”,
ele começa a tossir, ficou evidente que estava forçando a tosse, “bem que disseram que
você é uma graça”.

“Faço o possível.”

O garçom chega.

“Uma cerveja. Geladinha. Brasileiro não toma nada quente, né Bartô?”

Não respondo. O garçom se retira.

“A Flowers morreu com estilo. Bloqueando a saída do projétil”, ele faz uma careta
estranha, sobreatuada, “bloqueou com o quê?”.

“Um mágico nunca conta seus truques.”

“Opa...”

“Posso ter bloqueado com uma bala da arma, um isqueiro, uma caneta. Certo?”

113
Sua risada carnavalesca ataca novamente, depois de alguns segundos de espetáculo, ele
apoia suas mãos lisas em cima da mesa suja e diz que “esse mercado permite alguns
exageros, não leve a mal. As suas histórias engrandecem a marca”. Depois de um tempo,
ele volta a falar, “meus amigos não chegaram ainda, estranho”. Ele encara o sangue que
escorre e o meu rosto machucado.

“Japoneses não se atrasam. Estranho mesmo. Mais estranho é você ter enviado a arma que
eu usava para Flowers. Acho que você já tinha em mente um vencedor nesse lance.”

“Qual lance, Bartolomeu?”

“Diga você.”

“Você é o sobrevivente. Os vermes do Andar de Cima foram apagados, não preciso me


preocupar com eles, todos morreram sem deixar marcas. A Flowers era boa no negócio,
você nem se fala. O pessoal do Departamento e aquele traveco da Mona foram sem deixar
bosta no tapete também. Ok, você sujou um pouco o café dela, mas conseguimos limpar
rapidamente. Estamos livres. Você receberá a sua grana e uma porcentagem do lucro da
Nova Indústria. Fim de história, certo? Você construiu uma carreira de sucesso,
Bartolomeu. Parabéns, já pode até aposentar. Aliás, aposentar ainda não, mas enfim, você
merece o melhor”.

“Talvez.”

“Não precisava apagar meus amigos. Os japoneses eram bacanas. Mas belezinha.”

“Precisava.”

Ele ri.

O garçom chega com a cerveja, coloca dois copos na mesa e nos serve.

O irmão mais velho não tira os olhos de mim, começo a ficar enojado.

114
“E agora?”, pergunto.

“Você não confia em mim.”

“Por favor, sem palhaçadas.”

“Geralmente vocês não confiam.”

“Vocês quem?”

“Você vai votar em quem, Bartô?”

“Ahn?”

“Responde, pô.”

“Não votarei em você, cara. Foi mal.”.

Ele quase cai da cadeira de tanto rir.

“Acho que não ganho. Meu objetivo é ganhar popularidade. Ouça o que eu digo: um dia, os atos
da Indústria se tornarão legalizados. Por enquanto, sabe como é... Qualquer coisinha em nosso país
é motivo para os direitos humanos atacarem. Nem arma podemos usar na porra do Brasil. Uma
loucura. Morremos desarmados, Bartô. Desarmados. Galera só quer saber dos direitos dos viados,
negros e putas, e nós, homens de bem? Como ficamos? Aos poucos, Bartô. Aos poucos, nós
vamos mudar isso. Cê vai ver só. A Indústria voltará a ser o que era em seus tempos áureos.”

“Eu sou negro. Não tá vendo todo esse sangue no meu corpo?”

“Mas você não faz parte deles. Você tá com a gente.”

“Não me importa, irmão mais velho. Nada disso me importa.”

“Pode me chamar pelo nome. Sem formalidades, não precisa me chamar de irmão mais velho.”
115
“Prefiro te chamar de irmão mais velho.”

“Você não quer conversar comigo?”

“Pare de enrolar.”

“Ai, ai, ai. Relaxa, cara. Você cresceu na Indústria. É um bicho treinado desde pequeno pelo meu
pai. Praticamente somos família. Querendo ou não, você representa o que eu sou.”

“Pense como quiser.”

“Você sabe quem são as pessoas que matou em vida? As diversas, dezenas, milhares de pessoas?
Curiosidade.”

“Não. Curiosos não são bem vindos na Indústria, esqueceu das regras?”

“Todos mereciam morrer.”

“Quem é você pra dizer isso?”

“Você entendeu.”

“Não entendi.”

“Você ama matar.”

“Amo sim. Infelizmente não inventaram nenhum antibiótico ainda para controlar assassinos
fissurados em sangue.”

“Aham. E quantas vezes você já disse isso para sua esposa? Quantas vezes você já disse que tá
tentando parar?”

“Não fale dela.”

“Ela ainda tá viva, Bartolomeu? Villa Baixa existe, Bartolomeu?”

116
Eu espremo o copo de vidro até ele quebrar em minha mão.

O garçom com moicano fica atento.

Tensão.

“Está? Existe?”

“Sim. E não fale dela. Você fala demais.”

“Você tá perdido. Viciado em tarja preta que eu sei. Todos vocês são. Por isso que nunca tivemos
medo de vocês nos entregarem. Porque vocês são insanos. Máquinas de matar. É pra isso que
servem, entendeu? Peões.”

Fico calado.

“Seu nome já está na lista de procurados, sabia? Você sujou sua imagem, andou matando sem
proteção. Tá descuidado.”

Fico calado.

“Ok. Desculpa por falar da sua esposa, desculpa por falar desse jeito. Voltando ao assunto: você
vai votar em quem?”

Ele começa a beber da cerveja e faz uma cara de simpático.

Eu pego um guardanapo e limpo o sangue que escorre da minha cara. Abro a boca, sangue
espirrando na mesa branca.

“Ninguém.”

“Que revoltado. E o que você acha de mim? Eu seria um presidente tão terrível para o nosso país
afundado? Você também acha que eu sou um fascista?”

“Com todo o respeito, podemos mudar de assunto?”


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“O Brasil ainda será o país do futuro, Bartô.”

“Ok.”

“Olha, nós realmente somos muito parecidos. Tô curioso para saber a opinião do meu assassino
preferido. Diz aí, por que euzinho seria tão cruel para o Brasil?”

Ele volta a beber.

Estou irritado e ferido. Puxo um ar inexistente e começo a falar algumas verdades para este
ególatra: “você é brega. Não curto gente brega. Você é um candidato-herói caricato, nacionalista
de botequim, daqueles que quando chegam em um canto, os seus seguidores começam a cantar o
hino nacional e a bater no peito berrando: sou brasileiro com muito orgulho. Enfim, acho tosco.
Mas, olha, se você se perguntar se eu me preocupo com essa porra toda, eu lhe respondo: não, não
me preocupo. Fim. É isso. O país, você, o resto, que se foda. Com todo o respeito.”

O irmão mais velho começa a aplaudir.

“Que lindo, rapaz. Que lindo. Por que não se preocupa? A situação do país não é importante para
um assassino?”

Ele pergunta com um tom irônico.

Seguro a raiva.

“Uma hora a gente cansa, irmão mais velho.”

“Vai deixar de trabalhar comigo só porque sou um herói caricato? Só por que...”

“Se liga, senhor ilustríssimo e grandiloquente presidente do Brasil, quero o meu dinheiro desse
serviço todinho que eu fiz. Beleza? É isso que importa agora. Chega de conversinha. Não vou
ficar aqui chupando seus ovos e tô pouco me fodendo com sua candidatura de merda. Depois te
atualizo se vou continuar na Indústria ou não. Tô cansado pra cacete. E afinal, você realmente
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pensa em me deixar vivo? Papo reto agora.”

“Claro que penso!”

“Você é um homem de bem, né? As vezes me esqueço disso.”

“Sou. E você?”

“Olha pra mim. Claro que não sou.”

Começamos a rir.

“Cá entre nós: herdar não é fácil. As pessoas pensam que é, mas não é.”

Não respondo, mas continuo rindo.

Ele bebe mais e diz: “Bartô, como você mesmo disse, chega de conversinha. O cartão que fiz para
você pegar a sua grana está no meu carro. Você pega, toma um banho”, ele volta a gargalhar,
“volta para o Brasil e espera meu contato. Que tal? Você pensa e vê se quer continuar mesmo ou
não”.

Digo com certa acidez: “Pode ser. E... Parabéns, você é bom. Limpou todos seus problemas sem
sujar as mãos. Aplausos.”.

“É, eu procuro e destruo os meus incômodos. Papai me ensinou a não deixar os mosquitos voando
perto demais. Isso aí. Uma honra te ver cara a cara, Bartô. Cansei desse lance da Indústria, sabe?
Pelo menos por enquanto. O Brasil é um país complicado. Aos poucos vou tentar legalizar esse
negócio. No atual momento da minha vida, como você bem sabe, a Indústria é um negócio
arriscado. Tô afim de investir em outra coisa, não sei. Se eu não ganhar a eleição, dizem que igreja
dá uma grana boa, fora que tem o lance de não pagar impostos. Talvez eu siga por esse caminho.
Fiz questão de vir até aqui só pra ver a grande lenda da Indústria. Papai te elogiava muito”, ele
pega o seu copo com cerveja e toma de uma vez, arrota alto, limpa a garganta, engasgando como
um porco. Levanta-se e sussurra, “às vezes é preciso sujar as mãos, sabe...”.

“Sei.”

119
***

Seguro a dor. As balas cravadas. Mancando, vou controlando a raiva de ver esse homem.
O verdadeiro abutre da situação. Um novo começo. Deixei me levar. Ele abre o porta-
malas do carro. Fica assoviando a música que estava tocando dentro do bar. Pego meu
celular, vejo a última mensagem que mandei para Ingrid. O garçom está espionando por
trás da cortina do estabelecimento. Tudo começa a ficar distorcido, a dor aumenta, ele
assoviando, encosto meus dedos no cabo da faca que está guardada dentro da minha
calça, ele diz que o cartão é para uma conta do HSBC que fica em Nova Iorque, e quando
ele vira, eu sinto a pressão no estômago, ele atira, não consigo respirar, sua voz com
sotaque paulista afetado diz “obrigado pelos serviços prestados... Pelo visto cê é humano,
né?” Começo a cair, ele ergue sua mão armada, abre fogo nas minhas costas, fala que
“papai dizia que você era o melhor, tá vendo, papai, o melhor é o caralho... Eu sabia que
cê era um fraco, negão. E ó, foi mal, mas negócios são negó...” levanto e enfio minha faca
no meio das suas pernas, vou subindo, forçando o pulso: corto seu pau, virilha, vou até a
barriga, peito, pescoço, queixo, dente, língua, nariz, olho esquerdo, tudo vertical, e meu
punho fratura, grito de ódio, o celular cai no chão, melado de sangue. Nossos corpos
ficam encostados no carro velho, o empurro dentro do porta malas aberto, as suas tripas
se enroscam na minha mão feito um labirinto; escuto um disparo e uma janela sendo
quebrada, o garçom apertou o gatilho, o segundo pegou de raspão na minha orelha,
escondo-me atrás do carro. O barulho da porta do bar se abrindo é audível, rastejo até
ficar no pneu da frente. O garçom é inexperiente, caminha apressado, forço o corpo para
ficar de pé, ele atira, erra o alvo; suspiro e arremesso a faca: o instrumento segue seu
percurso até o pescoço do alvo. O garoto tenta arrancá-la, enquanto isso uma poça de
sangue se forma ao seu redor, até que ele morre, se esparramando nos pedregulhos do
chão. O domingo havia dado lugar para a segunda. Banho de sangue no cenário porteño.
Meu corpo não consegue ficar de pé, mas eu insisto em tentar. No meu celular, a
realidade apita: não há mensagens, não há nada, só o vazio de um bicho negro que sofre,
que arde, que esvai. As ruas começam a se enrolar como o intestino do irmão mais velho,
o poste outrora de luz amarela torna-se roxo. Os mil, mais de mil, 10 mil, 15, não sei, 20
mil mortos, acho, que findei em vida me rodeiam em um círculo estranho, e estão todos
lá, todos, Mona sorrindo para mim, o Departamento, Flowers, os jovens, as crianças, os
bebês, no porta-malas ouço a gargalhada do irmão mais velho, estão todos os Trabalhos,
representando o remate, a culpa alucinante que tento conter em minha cabeça, começo a
ficar de pé, disforme – não vou morrer – até que ela se aproxima, ela, Ingrid, e me beija na
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boca – vai sim. O roxo me engole, enquanto os não sei quantos mortos aplaudem o nosso
suposto segundo casamento, aplaudem a minha promoção mórbida na firma. Pegadas de
óbito no ar. As vozes daqui são minhas, eu as criei, eu as projetei, narradores do meu caixão
particular: todos são Bartolomeu, invenções monstruosas. Parem de falar, parem de me
aterrorizar. De pé, busco uma salvação no meio deste delírio, que não vem. E o jazz, suave,
cumprindo sua função ritualística, continua ecoando através da porta aberta do bar,
infindável, em espiral, fundindo-se com os aplausos em uníssono. É assim que se faz uma
carreira de sucesso no Brasil. Tenha visão e desvie dos obstáculos. Mostre para o patrão o
quanto você vale: vale tudo. E agora? Ainda vivo.

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