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O Ébrio Feliz
E Outras Histórias


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SUMÁRIO

3 | Memórias De Um Bar
6 | Grito Rouco De Um Cachorro Magro
10 | Quando Morrem Os Sonhos
13 | Um Dia Feliz
17 | A Força Da Amizade
21 | As Ilusões Perdidas
25 | Retrato Do Artista Quando Velho
28 | O Diabo E A Vagina Dentada
31 | Carta A Charles Bukowski
33 | A Comida Mais Gostosa Da Cidade
36 | O Ébrio Feliz
40 | Cedo, Mas Nem Tanto
43 | Sonho E Labor
45 | O Homem Que Não Falava Inglês
49 | O Criador E A Obra
53 | Os Olhos Do Morto
55 | Uma Noite Carioca
58 | Revelações
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Memórias De Um Bar

O cara gritou lá embaixo, “Laranja fresquinha a dois reais! Só dois reais a laranja fresquinha! Banana
prata a dois reais. Uma dúzia de banana...”. Porra, não vou conseguir me concentrar com essa
kombi vendendo frutas embaixo da minha janela. Interrompi a leitura do Hammet que eu havia
começado ontem. Antes eu já havia encostado o Machado de Assis, as aventuras amorosas de um
boticário definitivamente não me interessam. O Machado é chato pra caralho, mas ninguém pode
falar sobre isso. Meus hábitos de leitor são, por assim dizer, tão volúveis quanto minhas relações
amorosas. Raramente consigo me dedicar à leitura de um livro apenas. A alternância de obras,
consumidas em paralelo, aumenta a riqueza e a compreensão dos textos, pois acentua as
qualidades e atenua os defeitos, colocando-as em perspectiva. Assim como o amor concomitante
de várias mulheres as torna individualmente mais interessantes, o mesmo fenômeno se dá no meu
processo criativo. Minha mãe sempre me disse que eu não acabava o que começava, que eu tinha
de amadurecer. Uma namorada disse mais ou menos a mesma coisa, pelo menos a parte sobre
amadurecer. Hoje ela está me acusando de tê-la traído e de ter deixado pistas em meu último livro,
de ter publicado fatos de nossa vida no catre. Ela estava certa, eu a traí realmente. Assim como um
livro que tornou-se enfadonho, larguei-a à mão para quando eu quisesse reviver o sabor de suas
aventuras. Está difícil ser original, já escreveram sobre tudo. Talvez eu tenha mesmo que narrar com
dissimulação fatos da vida real. De qualquer forma, todos sempre confundem as vozes dos meus
personagens com a minha verve criadora. É a síndrome de Zuckerman, o Fonseca já escreveu sobre
isso. Saí para beber alguma coisa. O álcool diminui a atenção, mas eu poderia passar o dia

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bebendo, deitado na cama, no sofá, sentado na poltrona, apenas lendo, abrindo um livro para
descansar de outro, fumando, fumando...

Bati a porta atrás de mim e andei até o bar. No caminho, reconheci o pipoqueiro com quem eu
conversava quando criança enquanto esperava o ônibus que me conduziria até a escola. Ele estava
guardando a carrocinha numa casa que funcionava como depósito de bebidas. Por décadas eu
fiquei sem vê-lo, mas identifiquei o mesmo corte de cabelo, os mesmos mullets balançando atrás da
nuca. Ele era bonito, um tipo másculo com cara de carranca. Estava sempre conversando com
mulheres, babás, mães que levavam os filhos para passear onde ele vendia suas balas, a pipoca,
seus doces. Havia realmente envelhecido, os cabelos estavam todos brancos, o rosto enrugado.
Manobrou a carrocinha e ia abrindo o portão da casa quando gritei: “O senhor vai pisar na merda!”.
Me olhou impassível. “Isso é o de menos”, respondeu. Tudo bem, segui em frente. A merda era o de
menos para ele. Continuei andando pelas ruas de dentro, não gosto de andar pela orla. Tentei seguir
uma loura, mas ela era muito alta, tinha a passada larga. Caminhei na sua cola por dez minutos,
totalmente absorto pela visão de sua bunda escultural, de suas pernas musculosas e atléticas, mas
cansei rapidamente e não consegui acompanhá-la. A idade, afinal, havia chegado com os meus
primeiros cabelos brancos. Entrei no bar e a garçonete me cumprimentou sorrindo. Ela já sabe o
meu nome, estou ficando conhecido no bairro. “Um chope?”, perguntou. “Um chope, meu bem.”
Havia uns gringos sentados na mesa ao lado, e chamaram o garoto do bar. Começaram a falar entre
si um idioma estranho, cheio de erres e gargalhadas. Pediram uma cerveja vagabunda, acho que
não conheciam as cervejas daqui. Não que sejam boas, são todas umas porcarias, mas sem dúvida
há melhores. Um coroa levantou-se, falou alguma bobagem e todos riram uma risada sonora. Enfim,
sentou-se com eles e o garçom lhes trouxe uma porção de frituras. A tevê ligada no alto da parede
exibia cenas de fogo e destruição. Uns mascarados haviam sequestrado um caminhão de gasolina e
ameaçavam incendiar trinta mil litros de combustivel enquanto dirigiam na contramão da estrada. O
apresentador vociferou contra os criminosos, contra os governantes e contra a população. Um
sujeito de pé em frente ao balcão reclamou: "Esse cara está falando merda há meia hora." Uma
mulher lindíssima chegou com uma amiga e um gordo enorme, e todos sentaram-se à minha frente.
Percebi nitidamente quando ela me encarou com os olhos verdes. Tinha os cabelos loiros, um pouco
avermelhados. Era quase ruiva, eu sempre gostei das ruivas. Usava um coque e duas mechas caíam

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de ambos os lados do rosto por sobre o ombro nu. Estou ficando cada vez mais tarado. Adoro
mulher exibindo o ombro, as axilas, o pescoço nu. A amiga retirou um telefone da bolsa e mostrou o
modelo. O gordo também mostrou o seu, e disse que era mais fino, mais rápido, mais caro, mais
poderoso. A ruiva falou: “Sou viciada em celulares. Não consigo mais viver sem eles.” Pedi mais um
chope e consegui beber calado por algum tempo. Então, um sujeito aproximou-se e disse: “Você
não é aquele escritor? Eu também estou escrevendo um livro...”. Agora que as revistas não falavam
mais de mim as pessoas se sentiam à vontade. “Me paga um lanche? Uma cerveja?”. “Infelizmente
não vai dar, companheiro.”, sorri sem jeito. “Você é um péssimo escritor, amigo. Seus livros não
valem nada.” Apontou o dedo na minha direção e completou: “Filho da puta!”. O gordo saiu, levando
embora a ruiva linda, e notei quando ela me encarou novamente. Sua amiga ficou sozinha à mesa e
puxou assunto comigo:

-Então você é escritor.

-Acho que ainda sou, se os advogados deixarem... E você? O que faz?

-Nada importante.

Ela riu e eu ri também.

-Quer uma cerveja?

-A cerveja aqui é cara.

-Um chope pra minha amiga - pedi à garçonete.

Bebemos mais alguns e paguei a conta com uma nota de cem. A grana estava acabando, mas eu
ainda tinha alguma lenha pra queimar. A mocinha olhou a cédula contra a luz e fez uma cara
estranha.

Saímos cambaleando pela rua. Avaliei o seu corpo, até que não era mau. Eu disse que morava perto
e ela falou que queria conhecer minha casa. Nossos olhos faiscaram. Senti o sangue circular pelas
veias outra vez. Eu estava vivo, o jogo ainda não havia acabado. Aquela seria uma ótima noite.

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Grito Rouco De
Um Cachorro Magro

Eu tinha dificuldades para defecar quando era garoto. As fezes endurecidas rasgavam a fissura do
meu ânus e o sangue pingava vivo na louça do vaso. Minha mãe tinha que aplicar os supositórios de
glicerina que o dr. Carlos Henrique trazia do consultório. Ela venerava aquele homem. Nós
morávamos nas depêndencias de empregada do apartamento que ele tinha na Zona Sul. O meu pai
era porteiro do prédio e tinha direito a um quarto com banheiro e cozinha atrás da garagem, mas a
mulher do Seu Carlos exigia que minha mãe dormisse no trabalho para o caso de alguma
emergência. Sabe como é, pegar um copo d’água, levar sanduíche na cama, procurar uma bolsa de
grife, ouvir uns gritos quando a madame estivesse cansada das aulas de ginástica e dos filhos
chatos e mimados. Essas coisas urgentes que só as dondocas sabem pedir.

Houve um tempo em que meu tio morou com o meu pai nos fundos do edifício, e antes de sair para
o trabalho, o dr. Carlos ordenava à minha mãe que levasse um pouco de comida e café fresco para
os dois na hora do almoço. Ele era um homem bom, e eu já disse antes, minha mãe o venerava
como um santo. Dizem que no hospital onde trabalhava, lá no subúrbio, ele colocava para dentro,
escondidos, os doentes que não podiam pagar ou que sofriam por muito tempo nas filas de espera,
amontoados em leitos improvisados nos corredores quentes e abarrotados.

Entre um emprego e outro, meu tio vivia de pequenos serviços. Certa vez apareceu vendendo
enciclopédias, dicionários ilustrados. Eu implorava que me deixasse retirar as embalagens
transparentes para que eu pudesse folhear os livros de capa dura. Sempre gostei do cheiro de papel

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novo, de ficar admirando as gravuras, as fotos, saboreando novos vocábulos. Eu passava as tardes
redescobrindo antigos cognatos, imerso em tanta história, em tanto conhecimento reunido. Certa
vez li em uma enciclopédia médica que a hemorragia do aparelho digestivo causa sangramento ao
evacuar, um sangramento escuro como borra de café. Desde então, passei a investigar a cor e a
consistência das minhas fezes, e agradecia aliviado quando via o sangue rubro, a merda lustrosa
boiando solene em meio ao caldo fecal.

O Marcelo era o filho da madame, o meu irmão branco, como se diz. Mas o Caim também era irmão
do Abel, essa coisa de irmão não significa nada, ainda mais quando um deles é preto, pobre e filho
da empregada. Eu já podia sentir os primeiros sinais do ódio fraterno crescendo em mim. Me
lembro, certa vez, de um aniversário em que lhe dei um dicionário, uma edição de luxo que meu pai
mandou encomendar ao meu tio, não sem algum sacrifício. O garoto nem sequer arranhou a
superfície do livro, alguém o encostou em um canto, longe dos outros presentes, e eu fiquei
esperando em vão que ele me deixasse rasgar o plástico da embalagem para sentir novamente o
cheiro do papel, a sua textura, imaginando febril as maravilhas que aquelas páginas encerravam e
que a mim era vedado conhecer. Acho que o Marcelo nunca sofreu de constipação. Só os
reprimidos, os sofredores, é que seguram a merda inconscientemente.

A Dona Célia começou a gostar de mim quando me tornei um rapazinho. Às vezes me chamava no
quarto para fazer algum serviço se minha mãe estava ocupada. Nessas horas, o dr. Carlos não
estava em casa e ela me recebia de camisola, vestida em roupas íntimas. Suas carnes preservavam
um certo tônus, mas os seios nunca foram lá grande coisa. A boca e os cabelos cheiravam a cigarro
de menta e sua pele era macia como eu nunca vira antes em mulher alguma. Um dia eu acabei
dando o tratamento real que ela merecia, e depois, me pediu que passasse em seu corpo os cremes
que trazia do exterior: alemães, franceses, americanos. Tudo coisa fina.

Hoje é o dia do meu anviversário. A campainha tocou e fui atender. Era o Marcelo, com a mulher e o
filho pequeno. Eu os convido, todo ano, para a minha festa. Afinal, ele sempre foi o meu irmão
branco. A Dona Célia já morreu e o dr. Carlos deve estar no céu, que Deus o tenha. Ainda no hall ele
estendeu a mão e me entregou um presente. Era uma camisa social. Estava tocando Marquinhos
Satã, e o pessoal, apertado, circulava pela sala tomando cerveja. Deixou transparecer um ar de
repugnância. Aquela música era poesia pura, mas ele nunca soube distinguir a manifestação

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autêntica da arte, mesmo quando ela cruzava o seu caminho. Babaquinha empertigado. E babaca,
pra mim, tem que se foder. Serviram um salgadinho e o ouvi dizer a um amigo: “Meu avô era
acadêmico.” Eu ia lançar o meu segundo romance e alguém comentou: “Estou louca pra ir no
lançamento do seu livro.” Eu poderia convidá-lo, mas sei que ele não iria, e também não daria um
único centavo por qualquer palavra que eu tivesse escrito. Só conseguiu publicar uma tese de
mestrado, e mesmo assim porque o avô era benemérito de uma faculdade importante. Sempre
achou que não existisse vida pensante no quartinho dos fundos. Comeu uma coxinha e me
perguntou: “Quando você vai ter filhos? Não seja frouxo.” E soltou uma gargalhada.

Depois da festa, saí com os cachorros pra arejar um pouco. Eu sempre levo os meus cachorros pra
cagar de madrugada, pra sujar as portas das lojas, dos bancos. Quero que eles mijem nas portarias
dos restaurantes e dos prédios de bacana. Às vezes eu lembro do meu pai que, eu já disse, era
porteiro, e fico imaginando o velho limpando aquela sujeira toda. Outro dia um cara gritou lá de
dentro: “Ôôô! Não pode isso, não.” Que se fodam, eles vão se foder um pouco também, todo
mundo tem que se foder um pouco. Se eu acreditasse em Deus, pediria perdão, mas antes iria
reclamar um bocado. Aproveitei para levar um pedaço de bolo e uns salgados para o mendigo que
mora no fim da rua. Ele também tem muitos cães e os meus cachorros gostam de estar com eles.
De vez em quando ele some, a vizinhança diz que foi recolhido para um abrigo, ou que está na casa
da filha na Baixada, mas depois ele sempre reaparece. Fui chegando perto, meus cães à frente
tentando correr enquanto eu puxava as coleiras com toda a força dos punhos. Os bichos latiram e
ele abriu os olhos. “Boa noite. Isso é pro senhor comer um pouco...”. E botei no chão a quentinha
que eu havia preparado, perto do jornal molhado e da mochila onde ele guarda os seus pertences. Vi
que ainda usava as botas de couro que eu lhe dei. Minha mulher perguntou por elas, mas eu disse
que deviam estar enfurnadas em algum canto no alto do armário. Eu gosto dele, dia desses o vi
tocando os cachorros pra cima de uns lourinhos que agora fazem ponto aqui na rua. Ele soltou um
urro, um grito rouco, e a baba se desprendeu de sua barba quando ele atirou contra os moleques
um copo de vidro. Lourinho não vai se criar com ele, não. Vão ter que voltar lá para a serra de onde
saíram.

Voltei para casa e li os emails. Quero dormir cedo, amanhã vou à faculdade e depois sigo para o
Leblon, dizem que o pau vai comer por lá. Na última vez eu estourei uma bomba de balão nos pés

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de um policial da tropa de choque. Fez buuumm!!! Era ele ou eu, não vou voltar para casa com o
rabo entre as pernas, não quero cagar sangue novamente. Se alguém tem que se foder nessa porra,
esse alguém não serei eu. Essa cidade é uma selva de pedra e a gente tem que morder que nem
cachorro magro.

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Quando Morrem Os Sonhos

Recebi o telefonema às quatro e meia, ainda de madrugada. A causa mortis havia sido a falência do
seu único rim, seguida de falência múltipla dos órgãos. Puta que pariu. O que eu ia fazer agora?
Ainda estava muito cedo para avisar as pessoas. Fiquei sentada na cama olhando o chão por alguns
minutos. Minhas costas doíam, a cabeça doía, tudo começou a doer de repente. Abri a janela e
acendi um cigarro. Fiquei olhando a rua vazia. Estava escuro, os carros começavam a circular na
avenida - táxis, caminhões abastecendo restaurantes, bares, padarias. As primeiras vozes da manhã
soaram lá fora. Ouvi uma gargalhada, uma buzina, o ronco alto de uma motocicleta. Aquele barulho
todo me atacou os nervos.

Me lembrei da nossa casa na praia, das ruas de areia fina. O Jorge ficava indo e vindo do Rio com o
meu pai, por causa do colégio. Eu ficava sozinha com a minha mãe e a minha tia. Gostava de ficar
jogando bola atrás da casa, chutando contra o gol imaginário que eu havia criado com a corda do
varal e umas ripas de madeira. Meus pais me criaram livre, e eu sempre gostei de brincadeira de
menino. Eu ainda não tinha idade para ir aos bailes de carnaval com os meus primos e com as filhas
das amigas de minha mãe que passavam as férias de verão em nossa casa. Então eu ficava
acordada acompanhando o desfile das escolas de samba na tevê e bebendo escondida durante a
madrugada. O Aliócha Karamázov disse que uma lembrança boa pode salvar toda uma vida. Eu
sempre gostei do Aliócha, quem é que não gosta do Aliócha? Mas o Ivan sempre foi o irmão mais
interessante e verdadeiro, ele esteve certo o tempo todo, e afinal, foi ele quem teve que enfrentar o
Diabo e toda a sua esparrela de advogado.

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Olhei novamente o relógio e liguei a televisão. Estava passando Beleza Americana, as pétalas
vermelhas caíam do teto enquanto o sujeito se masturbava debaixo das cobertas. Daqui a pouco
vou encontrar com o cara do cartório. Eu tive que suborná-lo. Ele vai usar uma das folhas em branco
que alguns cartórios deixam em seus livros de registro e eu vou dar um jeito de passar a casa de
praia para o meu nome. Eu prestaria favores sexuais até, mas o meu corpo e a minha saúde não
andam nada bem, tenho certeza que ele não gostaria de olhar as cicatrizes deixadas pelas últimas
cirurgias. Já perdemos dois apartamentos, uma fazenda, um posto de gasolina. Meu pai não
absorveu o golpe e o câncer se espalhou rapidamente. Ele era um homem de caráter forte,
conquistou tudo sozinho. Ficou rico comprando imóveis, e depois, emprestando dinheiro a juros
altos. Gostava de mim porque sempre fomos iguais, nunca suportamos fraqueza. Essa é a única
casa que restou e não vou permitir que se vá. O meu irmão quer vender a propriedade e ficar com a
parte dele, mas não tenho dinheiro para comprá-la. Me disse que está duro. Foda-se. Quem
mandou ser escritor? Agora vai ter que se virar pra continuar pagando aluguel. De qualquer modo,
ele não saberia administrar um patrimônio como esse, para ele a imaginacão sempre foi um lugar
melhor do que a realidade. Não tem estômago, nao tem colhão para enfrentar a vida sem evasivas
ou subterfúgios. E a vida é um espremedor de colhões, já disseram isso antes. Para ser honesta, eu
nem o considero um irmão. Nunca tivemos laços fraternos que nos unissem, apenas os laços de
sangue. É um merdinha, um lunático que vive no seu mundo de fantasias. Irmão, eu só tive o Jorge.
Nós éramos gêmeos, ele era lindo, louro como eu. As minhas amigas viviam dando em cima, mas
ele gostava mesmo era de passar no meu quarto depois que os meus pais dormiam e de se deitar
comigo com a porta trancada. Ele me ensionu a ser mulher. Eu tinha catorze anos. Mas o Jorge
morreu há muito tempo em um acidente de carro, não quero me lembrar disso agora. Depois vieram
os outros namorados. Os caras sempre ficavam gamados. Eu era novinha, e nenhum homem resiste
a uma garota novinha oferecendo assim as pernas, os peitinhos duros e muitas outras coisas que
eles sempre desejam. Mais tarde eu fiquei grávida e fiz o primeiro aborto. Na época eu estava de rolo
com um moleque de família medíocre cujo pai não tinha emprego fixo. Eu nunca gostei de homem
sem função. Um homem que não trabalha, para mim, não vale coisa alguma. A gente era só uma
meninada que saía à noite para pichar os muros, beber cerveja e fumar uns baseados. Depois
víamos o sol nascer, trepando dentro de algum carro. O Aliócha estava certo, uma lembrança boa
pode mover toda uma vida. Quando perdemos a fazenda entre a praia e a serra, eu perdi também a

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convivência com a gente simples que ajudou a me criar. Gente educada, de modos comedidos,
palavras poucas e exatas. Tinham sempre um quê de reverência, mas suas atitudes nunca foram
servis. Viveram entre nós por décadas, circulando pela área interna da casa. Jamais se intrometeram
em assuntos privados. Mantinham sempre a distância correta, nada demasiadamente próximo, mas
sempre à disposição para quando se fizessem necessários. Pareciam ter o sentido exato da sua
condição de criados, uma sabedoria atávica sobre a arte de servir, e eu os respeitava por saberem
preservar o nosso espaço. Agora são apenas uma memória, uma lembrança boa e vaga.

O dia amanheceu lá fora e os primeiros raios de luz cruzaram o quarto. Acendi outro cigarro. Vou
ficar uns tempos sem ir ao trabalho. O Rubens vai ficar maluco, o serviço está todo atrasado. Ele
que se foda também, é um simples funcionário e está se achando importante porque é amigo do
chefe. Agora inventou de mandar o garoto da recepção ir ao banco pagar suas contas na hora do
almoço. Daqui a pouco vai me ligar dando chilique porque não consegue tocar o serviço sozinho.
Trabalhar com mulher é uma merda, mas viadinhos como ele são ainda piores; eles exacerbam as
características femininas mais abjetas em um ambiente de trabalho. Eu tenho sempre que resolver
tudo, mas hoje não vou dar as ordens, não. Dizem que a maior humilhação para um homem é ser
comandado por uma mulher, mas isso não vale para uma frutinha como o Rubens. Um homem de
verdade se revela no abandono. Quero ver como eles se viram sem mim agora.

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Um Dia Feliz

Hoje acordei cedo. Quero andar um pouco para ver se as idéias voltam à tona. Estou seco, não
consigo escrever uma linha. Depois que eu saí daquele emprego de merda não consigo mais
concatenar os pensamentos. A Marta me chamou lá dentro:

- Quer ovos?

Porra, ela sabe que eu gosto de ovos mexidos pela manhã. Por que faz sempre a mesma pergunta?

- Claro, amor. Mexidos.

A Marta fez os ovos. O cheiro de manteiga subiu pelo ar e abriu o meu apetite. Ela trouxe pães,
suco, geléia. Depois vieram o bolo e o café preto. Não posso tomar café preto pela manhã, mas
tudo bem, hoje vou abrir uma exceção. Estou precisando mesmo fazer uma extravagância. Vou sair
por aí e beber umas cervejas quando ela for para o escritório.

- Anda logo, Nelsinho. Come bastante. Quero você na cama antes de eu tomar banho.

Tudo bem, se ela quer pica, então é pica que vai ter. Esse é o meu ofício, amor. É pra isso que estou
aqui. Ela já ia me empurrando para o colchão quando reclamei:

- Será que eu posso dar uma cagada antes?

- Vai logo.

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Essa mulher não se incomoda com as minhas maneiras rudes, tampouco se sensibiliza quando
procuro agradá-la. Vive sempre no mesmo estado de ânimo, uma felicidade adormecida, um humor
plácido, constante, sólido. Deitou-se na cama e ficou me esperando.

Terminei as necessidades e dei um pulo na cozinha. Que se foda, vou tomar uma cerveja antes de
fazer o serviço. Voltei para o quarto e tirei a roupa. Ela estava de camisola, as perninhas gordas
ficaram à mostra, os furos e as veias eclodiam por toda parte. Coloquei-a em posição e minha
cintura começou a chocar-se contra as suas nádegas. Vi suas carnes balançarem e ficarem assim
chacoalhando por muito tempo. Segurei os seus bracinhos para trás e pude ver a carne flácida dos
seus trícepes. O psiquiatra havia prescrito alguns medicamentos para aliviar as minhas tensões.
Descobri na composição dos remédios um anticolinérgico que retarda a ejaculação. Agora eu pratico
essa arte que é segurar o gozo. Já estou fodendo uma hora e meia sem gozar e estou progedindo.
A Marta gosta e assim ela vai trabalhar tranquila.

Saí para a rua e segui para o escritório do Álvaro. O Alvinho é engraçado, eu gosto de ficar
conversando com ele. A gente fica tomando cerveja e vendo televisão. A tevê é uma merda, mas
tudo bem, o que importa é a amizade. Entrei no elevador lotado e me alojei no canto, lá no fundo. A
porta fechou, o ventilador começou a girar e o elevador subiu. Estava cheio e ouvi uma voz falando:
“Você está muito nova pra andar assim amargurada. Imagina quando ficar velha.” O elevador parou e
a porta abriu. Tentei sair e fui pedindo licença; as pessoas se expremeram. Saltei no sexto andar,
caminhei até o seiscentos e doze e abri a porta. Eu sei que ela fica sempre destrancada. Dei bom dia
para a recepcionista e fui entrando sem ser anunciado. Ela é loura e tem os olhinhos puxados, estou
louco pra comê-la. Entrei na sala, a molecada do escritório estava jogando fliperama. De vez em
quando eu arrisco uns pontos, mas os garotos sempre ficam na minha frente, eu nunca vou
conseguir ser tão bom quanto eles. Encontrei o Alvinho e sentei no sofá. Os jornais daquele dia
estavam falando das manifestações no Centro da Cidade. Ele me perguntou:

- Você viu o que fizeram no Palácio Tiradentes?

- Fiquei com pena do policial.

- A garotada está querendo ir pra lá hoje. Você vai?

- Não, não vou.

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O Álvaro deu um sorriso:

- Deixa essa garotada tomar bala de borracha. Eu não tenho mais energia. A juventude é que está
na linha de frente.

Meteu a mão no frigobar, tirou duas cervejas e acendeu um cigarro. A fumaça invadiu parte da sala.
“Os meninos vão reclamar”, eu disse. Falou que não estava nem aí para as queixas dos funcionários
e que era o dono daquela porra toda. Me contou que um dos seus gatos tinha morrido no dia
anterior e que não estava num bom dia.

- Meus sentimentos.

- Os gatos são os nossos melhores amigos.

A secretária veio avisar que um cliente o esperava no andar de baixo.

- Dona Gisele, ofereça um café ao Senhor Nelson, por favor.

Acompanhei-a até a copa.

- O senhor deseja um café, uma água?

- Obrigado, Dona Gisele. Eu tenho mesmo que ir.

Ela me acompanhou até a saída e despediu-se com um sorriso branco.

- Dona Gisele - voltei-me rapidamente. - Hoje a senhora está um tesão.

Acho que ela gostou, ficou toda vermelhinha. Ainda vou comer essa loura. Eu tinha que passar no
mercado e comprar as coisas que a Marta havia pedido. Não quero ouvir reclamações quando ela
chegar em casa. Manda quem paga e obedece quem tem juízo. Mas antes eu vou passar no ateliê
do Doria. Ele me contou que está pintando um quadro da Paulinha. Eu sempre fui apaixonado pela
Paulinha, mas ela não quis nada comigo. Me deu uns beijos e, dias depois, apareceu na praia
exibindo um garotão. Quero ver como o quadro está ficando. Será que o Doria está comendo? Deve
estar.

Enfim cheguei em casa e botei as cervejas na geladeira. A Marta chegou logo depois. Ficou feliz
quando viu que eu havia feito as compras e guardado tudo direitinho. Ela quis ver tevê, parece que a

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novela estava boa. Aproveitei para tentar escrever algo diferente, não aguento mais escrever sobre
escritores. Logo depois ela me chamou para a cama. Tentei começar um romance, mas ela não
estava no clima.

- Não, Nelsinho. Deixa eu dormir, vai. Estou cansada. Você sabe que eu gosto de foder pela manhã.

-Está bom, amor. É você quem manda. É pra isso que estou aqui.

Apagou as luzes, abraçou o travesseiro e dormiu um sono tranquilo.

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A Força Da Amizade

O som estava a todo volume e eu olhei ao redor. Recebi alguns tapinhas nas costas, os homens
sempre gostam de quem é popular. As mulheres desfilavam sorrisos e olhares, alguns conhecidos
me cumprimentaram e disseram: “Não sabia que você escrevia tão bem, você diz exatamente o que
eu gostaria de dizer se soubesse como.” Agora eu era um arauto, o porta-voz daquela gente triste e
infeliz, daqueles seres cheios de cobiça e de desejos fugazes, cães à procura de uma presa fácil. A
gente sempre deve jogar comida aos cães, mesmo que eles mordam um pouco.

-Oi, Nelsinho. Quanto tempo! - me falou a Aninha passando a mão na minha nuca e encostando os
lábios em minha orelha.

Gostosa. A Aninha sempre foi gostosa. Quando eu era mais novo e trabalhava numa joalheria, ela
queria me dar. A gente passava o dia inteiro juntinhos atrás do balcão, ela ficava roçando as suas
perninhas nas minhas. Mas eu demorei muito para tentar comê-la. O gerente da loja foi mais rápido;
ele tinha carro e eu era só um fodido que andava de ônibus. Mas eu vou ser publicado novamente e
a mídia está vendendo os meus livros como hambúrguer na tevê. Agora a Aninha quer me dar de
novo. Eu lembro, foi difícil quando ela me chutou. Partiu meu coração cheio de paixão juvenil e eu
demorei a me recuperar.

Entrei no salão em direção à pista de dança e lá no canto eu vi a Eva. A Eva também quis me dar,
mas ela eu não deixei passar. Quando nos conhecemos, no fim dos anos noventa, ela vinha de
Laranjeiras numa noite de quarta-feira. Puxei um papo furado só para me exibir para um amigo.
Acabamos na sua casa fazendo sexo até as seis da manhã. Ela era mais alta do que eu, mulata,

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tinha as pernas longas. Tivemos bons momentos fodendo e olhando os barracos em frente à sua
janela, a gente desligava a luz para ninguém ver. Naquela época eu ainda era livre, ainda não havia
me enterrado num escritório procurando definhar até a morte. Mas isso é uma outra história e eu não
quero contar agora. Conto depois em outro texto, com um novo título. Hoje eu quero comer todas
elas.

Alguém disse que tornou-se escritor para parecer mais alto, mas o uísque não me deixou lembrar
quem foi. “Porra, lá vem a minha ex-mulher. Quem foi que a chamou pra festa? Foi algum traidor,
sem dúvida. Esse mundo tem sempre um Judas. E atrás dela está vindo a Tati Louca. Deixa eu sair
daqui.”

Parei para fumar um cigarro. Fiquei admirando a paisagem. Essa cidade é mesmo linda. Do outro
lado do vidro espesso daquela enorme janela eu pude ver o Quebra-Mar, a Pedra da Gávea à minha
direita, as luzes das outras mansões da Joatinga. A lua cheia exibia tons de rosa, os carros iam e
vinham por sobre o elevado, era uma noite quente de verão. O fumo me acalmou. Fumar é bom
demais.

-Nelson, é você?

Olhei para trás. Era a Isabela. Eu não via a Isabela havia, sei lá, uns quinze anos. Tinha engordado
um pouco, mas ainda preservava o mesmo sorriso franco, aberto. Me deu um longo abraço.

-Me conta, o que você tá fazendo aqui?

-Isabela! Como é bom encontrar você - um calor invadiu o meu rosto e me perdi nos seus olhos por
alguns instantes. - Está gostando da minha festa?

-Sua festa?

-É, uma festinha pra rever os amigos. Já encontrou alguém da faculdade?

Eu e a Isabela tinhamos cursado Letras na mesma, se é que posso chamar assim, instituição de
ensino. Como já mencionei antes, eu tive que abandonar o curso para me dedicar a uma infeliz
carreira no mundo corporativo. Alguns anos depois eu soube, por intermédio de um antigo professor,

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que ela estava fazendo doutorado. Fiquei muito orgulhoso, a Isabela sempre foi a minha única amiga
naqueles tempos.

-Quer dizer que finalmente você resolveu seguir o seu coração. Nelson Xavier, o premiado escritor.

Papo vai, papo vem, algumas tequilas para ela, mais uísque para mim, e a gente foi subindo a
escada para o andar de cima, entre um poema do Pessoa e alguns versos do Ovídio sobre a arte de
amar.

-Deixa eu te mostrar o manuscrito do meu próximo livro: O Ébrio Feliz.

-Uau! Será que eu mereço?

-Você sempre foi a minha melhor amiga.

-Para, Nelsinho. Você não vai querer estragar tudo...

-Ah, que isso...

E nos beijamos com o ardor da chama que acendeu em mim.

-Eu tenho que ir. Só vim trazer uma amiga e acabei entrando.

-Fica.

-Eu tenho que ir...

-Por quê? Você não vai recusar o pedido de um velho amigo.

-Para, eu tenho que trabalhar...

-A essa hora? Não acredito.

Deitei-a no sofá. Comecei tirando sua blusa, ela não ofereceu resistência. Beijei os seus seios. Tentei
abrir o zíper da calça, mas confesso que tive certa dificuldade. Não sei porquê as mulheres usam
jeans, esse pano grosseiro criado para o universo masculino.

-Tá bom, Nelsinho. Eu fico. Mas vai te custar uma grana.

-Você tá me cobrando um programa?

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-Deixa de ser bobo. Você é um escritor, tem que abrir a mente. Não tem nada demais em fazer
programa. Você sabe o que o Molière disse sobre escrever? A literatura é como a prostituição,
primeiro a gente escreve por amor, depois pra uns poucos amigos e, por fim, a gente faz por
dinheiro.

-Porra - falei com o orgulho ferido -, isso tudo porque você leu o meu nome nos jornais? Você
sempre foi a minha melhor amiga.

-Nelsinho, amor não enche barriga. E um artista como você não vive só de aplausos.

Peguei algumas notas de cem na minha carteira e coloquei-as na sua mão. Ela sorriu e me beijou a
boca com ternura. Enfim, eu estava feliz.

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As Ilusões Perdidas

“O Senhor te ama, irmão”, falou o homem que trazia uma gaiola presa a um cabo de vassoura. Um
passarinho cantava lá dentro; estava agitado, pulou de um lado para o outro e bicou um pedacinho
de jiló. Depois, moveu a cabecinha amarela para os lados rapidamente e continuou a alardear o seu
suplício.

O pastor estendeu a mão para o dono do estabelecimento e ofereceu uma folhinha. Antes mesmo
de saber do que se tratava, Angenor reparou nas mãos escalavradas do homem que lhe oferecia a
salvação naquele pequeno pedaço de papel. Mãos machucadas, porém grandes e ainda fortes.
Reconheceu o santinho pintado em cores vivas e passou os olhos pela oração no verso da folha. Era
São Sebastião, ele saberia dizer por causa das flechas.

- O senhor não pode ficar aqui. Por favor, vamos andando.

O homem ficou parado. O braço permaneceu ereto, metido na manga do paletó. Insistiu, “O Senhor
te ama”, e esticou um pote fazendo-o tilintar.

- Posso ler um salmo, senhor? - fez as moedas soarem novamente.

- Amigo, por favor. Vá mendigar em outro lugar. Aqui não pode, aqui não pode...

José tentou dizer algo mas conseguiu apenas esboçar um risinho tolo, um sorriso quase santo.

- O senhor está incomodando os clientes. Fora, fora daqui!

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Angenor sacudiu-o pelo braço e fez cairem ao mesmo tempo o pássaro e as moedas. As grades de
madeira se quebraram quando bateram no chão e o canário esvoaçou desnorteado. Por repetidas
vezes, chocou a cabeça e as asinhas contra a gaiola que ainda o encarcerava e pude notar o seu
peitinho batendo forte, os seus olhinhos assustados. O pastor caiu desequilibrado e rebentou a boca
num tronco de árvore forte e retorcido. Ficou estirado, sangrando. Neste instante, ouviu-se um grito
debaixo da marquise:

- Para, por favor, para.

Uma criança passou correndo em direção ao homem caído e recolheu do chão os óculos
quebrados.

- Papai, levanta papai.

A mulher que berrara aproximou-se.

- Nós somos pobres. Por que isso, meu Deus? Ele é um homem bom!

O menino berrou com sua vozinha fraca:

- Bate nele, papai. Bate!

Um guarda chegou de mansinho e procurou saber o que estava acontecendo. “Problemas”, pensou.
“Problemas justamente no meu turno.” Era um dia normal na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana. “Essa gente está incomodando”, disse o dono da loja. O guarda tentou retirar a família
dali, mas a mulher desvencilhou-se e falou para as senhoras que passavam:

- Por favor, ajudem. Ele só quis entregar o santinho! Nós somos gente pobre. O que uma mãe de
família tem que passar! Nós já tivemos uma casa também. Ele perdeu o emprego, não consegue
mais trabalhar. Ninguém quer ajudar. Meu Deus, eu sou uma mãe de família!

- Bate nele, papai! Vai.

- Fora daqui, seus vagabundos! Fora do meu restaurante. Vão encher o saco em outra calçada!

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O guarda ajudou José a se levantar. Ele recolocou os óculos e enxergou com dificuldade. Limpou o
sangue da boca com a manga do paletó e segurou a mãozinha do menino. Sentiu o dedinho do filho
estremecer e ouviu mais uma vez: “Você não vai bater nele, pai?”.

Os dias haviam corrido quando a hora chegou. Não era tarde, mas a noite caía mais cedo no
inverno. José pegou a mão do filho e disse: “Espera, aqui. Fica olhando. Se eu mandar, você corre e
não deixa ninguém te pegar.” O garoto sentiu um aperto na garganta. José esperou o homem sair da
loja e viu quando ele se despediu do maitre e dos garçons. Deixou-o andar alguns metros e então
começou a seguí-lo. Sabia onde Angenor morava e já havia estudado o seu trajeto. Atravessaram a
rua, e antes mesmo que chegassem à esquina, encostou em suas costas o cano gelado do revólver.

- Continua seguindo em frente e não olha pra trás. Entra aí na praça.

A vítima teve o impulso de virar-se, mas José fez com que sentisse a pressão da arma contra um de
seus rins. Conduziu-a até os bancos, atrás dos canteiros centrais, lá onde os cachorros preferem
cagar. Fez o homem sentar-se.

- Você acredita em Deus, filho da puta?

Angenor perscrutou o rosto do homem que estava à sua frente. Ele vestia terno, um terno velho e
fedorento.

- Você não se lembra, não é? Eu tenho um nome, filho da puta. Meu nome é José. Fala. José.

- Calma. Por favor, calma. O que você quer, é dinheiro?

- Fala, porra! José!

Angenor repetiu maquinalmente, mas o som saiu em descompasso com o movimento dos lábios.

- Agora fala João. Fala João, caralho!

- João.

- Você sabe quem é João? - e deu-lhe um murro com a coronha do revóver. - João é o meu filho,
porra! Nove anos, nove anos!

- Por favor, eu não sei...

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-Cala a boca. Deita aí - deitou-o de barriga para cima e encostou a arma. - Comeu bem né, porra?
Você vai ver o que eu faço com essa merda toda que você carrega nesse monte de banha. Não, é
melhor, não. Vou te ensinar a não ofender os outros. Abre a boca - colocou dentro o cano e disse:

-Qual o teu nome?

- Angenor - ele disse com dificuldade pois não tinha espaço para movimentar a língua.

- Angenor... Agora diz o nome do meu filho: João. Fala! João!

O homem ia obedecendo, mas José não permitiu que terminasse. Puxou o gatilho e sentiu o tranco
da arma. A cabeça pendeu para o lado, um objeto sem vida.

Saiu dali apressadamente e retornou para onde estava o menino. O garoto chorava baixinho; um
choro mudo, calado. Segurou-o no colo com apenas um dos braços e, com o outro, retirou do bolso
alguns trocados.

- Calma, filho. O papai vai comprar uma coisa gostosa pra você comer - o menino consentiu
meneando a cabeça. - Amanhã vou te comprar um passarinho.

João enxugou as lágrimas e sorriu acanhadamente. Apertou o corpo do pai com carinho.

-Te amo, papai.

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Retrato do Artista
Quando Velho

Olhei pela janela e vi o rio, os barcos passando, os toldos dos restaurantes colorindo o outro lado da
ponte. Uns caras tocavam um jazz americano enquanto os turistas iam e vinham sem cessar. Não
consegui achar o maço de Gauloises e acendi um Gitanes. Tentei relaxar por alguns instantes, expeli
a fumaça dos pulmões e esvaziei a mente livrando-me de todos os pensamentos. Daqui a pouco eu
vou à catedral assistir à missa. Ele ia gostar de saber que seu nome será falado em voz alta pelo
padre ali, naquele lugar cheio de história. Hoje faz dez anos. Estou com saudades. Quero ir no seu
restaurante favorito, tomar uma bebida perto da Pont Saint Louis. Não, vinho não. Vou tomar uma
cidra. Isso, ele gostava de cidra.

No dia em que o conheci, ele me viu cantando distraidamente enquanto eu ajudava mamãe a
arrumar os sapatos amontoados na loja que meu pai mantinha nos fundos do hotel. Abriu os
desenhos em cima do balcão e perguntou se o velho poderia fazer um sapato daqueles. Papai
confirmou com um movimento de cabeça e foi pegar alguns pares na oficina. Aquele homem alto, de
cabelos prateados, aproximou-se com cuidado:

-Que música é essa, meu bem?

-La Vie En Rose.

-E qual o seu nome, pequena?

-Ingrid.

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-Quantos anos você tem Ingrid, quantos?

-Eu fiz dez em setembro.

-Canta mais uma música, canta.

O Rui sempre gostou de mim desde o primeiro momento. “O Jacques vai te adorar”, ele disse. Veio
outras vezes com aquela pasta enorme que eu ainda não conhecia, com papéis cheios de rabiscos
e desenhos de sapatos, calças, scarpins. Um dia, quando ele já era um ótimo cliente, pediu
permissão ao meu pai para me levar num almoço em Petrópolis, na casa da família. Foi a primeira
vez que eu tive contato com o mundo dos ricos. Os refrescos servidos embaixo dos ombrelones, os
drinques coloridos dos adultos, o sorriso das mulheres, a água azul da piscina compondo um
quadro vivo junto ao verde do gramado impecavelmente cortado, as flores nos canteiros à luz das
montanhas. Esse quadro nunca saiu de mim.

O Rui me levava para cantar no apartamento do Jacques. O Jacques era escritor de radionovelas -
forte, bonito, alinhado. Acho que o Rui também cortava os ternos dele. “Eu não sou sapateiro. Sou
designer de sapatos. E se quiser também posso ser alfaiate.” Orgulhoso. Viado e orgulhoso. Mas o
Jacques também gostava de mim e um dia me levou para ver uma gravação da Elizeth Cardoso.
Teve que levar também a minha mãe, e não foi porque a ela faltasse confiança, mas porque mamãe
sempre sonhou ver a Divina. Naquela época os negócios começaram a piorar, a indústria da moda
liquidou a pequena concorrência e a gente teve que fechar as portas. O Rui sabia que meus pais
durariam pouco e quis ajudar porque eu ainda era uma moça jovem. O Jacques foi convidado para
trabalhar como correspondente fora do país e então insistiram para que me deixassem partir com
eles. Eu iria frequentar as escolas do estrangeiro, conhecer a civilização.

-E nós, Deus? Como vamos ficar sem ela?

-Ela virá visitá-los sempre. Eu vou cuidar pra que o senhor e a sua senhora fiquem bem.

Os velhos não conseguiram recusar. Os vizinhos falaram, também falaram os comerciantes, as


damas, os moleques. A pouca vergonha chegara enfim à sua apoteose, foi o que ouvi dizer. A
menina iria embora com o casal de pervertidos. Meus pais engoliram o choro e o orgulho.

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A dança foi sempre a melhor parte dessa história toda. O balé, o teatro, a música, o público em pé
aplaudindo por três minutos enquanto as cortinas desciam e subiam três vezes. As roupas, as
máscaras, os camarins. Mas eu tive que abandonar o meu sonho por causa do casamento com o
Antoine. Pouco depois, quando o Jacques morreu, o Rui me disse:

- Meu bem, você não precisa gostar do seu marido. Você está na França. Os franceses são os
artistas por excelência. Eles representam o que se espera deles, embora quase sempre a gente
possa perceber como tudo se tornou enfadonho. Seja indiferente.

O Rui me ensinou tudo, ele foi o meu verdadeiro pai. Quero olhar a rua e abro a janela um pouco
mais. Respiro fundo e sinto, castigando o meu rosto, o vento que anuncia o inverno. Fico olhando o
rio, as luzes da cidade. Paris, Paris! Estou velha e você é o quadro que enfeita o meu fim. Foi bom,
foi muito bom. Mas agora está terminando. A indiferença é a paralisia da alma, a morte prematura,
disse um médico inteligente. Inútil tentar ocupar-me com bons pensamentos. Não consigo pensar
em nada.

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O Diabo E A Vagina Dentada

O Diabo catou a peça branca. Moveu-a por sobre o tabuleiro, freando a mão em intervalos regulares
enquanto recolhia as pedras negras. Depositou-as ao lado da mesa e, por alguns instantes,
enquanto sorvia lentamente a fumaça do cigarro, contemplou o seu espólio. Falou com mansa
naturalidade:

-Mais conhaque?

Seria difícil ganhar aquele jogo. Eu quis escolher o xadrez mas ele argumentou que era um jogo
demasiado racional e por isso não combinava com personalidades impulsivas como a sua. Disse
que a dama é um jogo mais ágil, mais simples e não exige dos participantes grande esforço mental.
“É como a vida”, sorriu discretamente. “Não se deve pensar muito.” Serviu-me um pastelão de carne
e peixe, especialidade que aprendera a apreciar quando viveu em Petersburgo. Mandou entrar o
criado e continuou: “O segredo está no coração, nunca na cabeça.” Um jovem de aparência
estranha, muito branco, trouxe pães e uma garrafa de vinho.

-Fora, imbecil! E traga mais cigarros!

O rapaz retirou-se mudo.

-O senhor é religioso?

-Por que o interesse?

-A dádiva é uma coisa divina. O senhor deve reconhecer os bons ventos quando eles sopram a seu
favor. Há quem viva em tal calmaria que daria um olho por uma brisa que o levasse para frente.

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Minha filha é uma mulher de sorte. Os céus lhe presentearam com tamanha formosura que homens
morreram tentando conquistá-la. Não preciso mencionar que este casamento lhe trará grande
prestígio em seu futuro próximo. No entanto, é meu dever de pai assegurar-me de que nada lhe
faltará, se é que me faço entender. O senhor pode sustentá-la?

-Obviamente.

-Veja bem, não me refiro somente ao conforto que, sabemos, ela merece. Você deve entender que
minha filha possui certas necessidades, digamos, requer certos mimos que nem todo homem está
disposto a oferecer-lhe como afago.

-Senhor, posso lhe assegurar, eu amo a sua filha.

-Ótimo - mandou o lacaio encomendar um contrato ao juiz de paz e um anel de ouro com o brasão
da família a um ourives judeu. - Assim podemos nos dedicar somente às comemorações - e encheu
uma taça de vinho.

Nas núpcias, sozinhos no enorme quarto que se abria para a varanda, ela despiu-se linda. Deitou-se
num tapete grosso como pele de urso, entre almofadas e incensos. Uma melodia tocava baixinho
embalando a noite esfumaçada. “Vem”, ela disse. Fiquei nu e preparei-me para o coito. Agachei-me,
cheguei meu corpo junto ao seu e beijei-lhe os seios. Ela abriu as pernas e pude sentir o hálito
quente de sua vagina. Apontei o falo duro na direção da genitália e me posicionei para penetrá-la. Foi
quando ela disse novamente: “Vem.” Olhei dentro de sua vulva pulsante e vi, entre lábios
contorcidos, os dentes amarelos que ela me ofertava. Recuei e lenvatei horrorizado. Ela pediu:
“Mete!”.

-Monstro, que és tu?

-Não ouses recusar um desejo meu! O que pensas que és, verme?

Homens se aproximaram rapidamente e num átimo eu estava cercado. Eles tentavam me dizer algo,
murmuravam, mas suas línguas estavam cortadas.

-Monstro! - repeti entrando em pânico. Meu coração começou a bater acelerado, senti o estômago
contrair-se e a face ficar lívida. Um suor frio escorreu pelas mãos. Foi quando ouvi a voz do Diabo:

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-Revertere ad locum tuum!

Abri os olhos. Voltei, estou vivo! Foi um sonho, graças a Deus. Tateei através da penumbra tentando
acender a luz. Imediatamente ouvi uma voz feminina.

-Bom dia, amor. Levanta. Você está atrasado. Tem que levar o garoto ao colégio.

Me deu um beijo carinhoso e pude sentir o seu cheiro doce. Graças a Deus estou vivo. Foi apenas o
devaneio de um homem louco.

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Carta A Charles Bukowski

A vida é mesmo um hambúrguer frio. Acho que foi o Bukowski quem disse, e para ajudar a descer,
às vezes a gente tem que beber um pouco de cerveja quente. Acordei no sofá com o barulho que
vinha da rua. As vozes entoavam um som melancólico, um mantra que subia pela janela e entrava
em meus ouvidos. Levantei assustado e vi o gato bebendo água com o focinho enfiado no meu
copo. O relógio do videocassete marcava quatro da tarde. Eu havia dormido doze horas.

Andei debilmente até a bancada de mármore e olhei para baixo. Era uma procissão que atravessava
a rua. Uma falange de velhos seguia quatro homens que carregavam sobre os ombros um andor
paramentado com flores. As cabeças brancas balançavam tristemente e a marcha seguia lenta
enquanto alguns transeuntes se misturavam à confusão. O mendigo viu aproximar-se o grupo de
devotos, acendeu um cigarro e esperou em vão receber alguns trocados. Olhou a multidão se
afastando e apoiou-se em uma das pernas para aliviar a dor do pé necrosado. Senti uma pontada
próximo à borda das costelas, no lado direito superior da barriga. Lembrei do Prometeu, que teve o
fígado dilacerado por trinta mil anos. Talvez seja esse o preço por querer derramar um pouco de luz
sobre a humanidade. O doutor disse que minhas doenças eram de fundo emocional, mas acho que
ele deve ter lido o laudo errado.

O telefone tocou. Era o Vlado querendo jogar conversa fora. Falou algo sobre a mulher que tentou
comer na noite passada. Ela era jogo duro e ele foi dormir sozinho.

-Nelson, eu não como ninguém. Já não sei como é uma xoxota.

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-Calma, Vlado, elas são todas iguais. De vez em quando você acha uma garota que gosta de você,
e aí você não deixa escapar.

-Já encontrou alguém que gostasse de você?

Tentei dizer algo, mas não achei as palavras. Terminei a ligação e disquei para o laboratório.

- Por favor, gostaria de marcar uma Ultrasonografia de Abdome Total.

A atendente respondeu:

- Só teremos vaga daqui a quarenta dias.

- Obrigado, meu bem, pode reservar o horário.

- O senhor toma alguma medicação?

Disse os nomes dos remédios.

- Bebe?

- Diariamente.

- Aconselhamos não beber nas vinte e quatro horas que antecedem o exame.

Desliguei o telefone. Arrastei-me até o computador e abri o editor de texto. Tenho que escrever
algumas laudas para o jornal de amanhã. Essa será uma longa noite. É Henry, a vida é mesmo uma
foda mal dada. Se você estivesse aqui eu te chamaria pra tomar uns goles no hipódromo. A gente
escutaria um pouco de rádio, jogaria algum dinheiro fora e depois você iria dirigindo até uma
lanchonete. Eu sei que você gosta de camarões fritos.

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A Comida Mais Gostosa


Da Cidade

- Você não é aquele ator?

- É, eu sou.

A vesga colocou o meu prato na balança. Havia pouca comida, os granfinos comem pouco e eu
queria impressionar.

- Vi o seu último filme. Achei bem legal.

Sorri.

-É bom a gente receber o carinho dos fãs. Você é muito bonita, sabia? O que você está fazendo
aqui, pilotando uma balança nesse restaurante a quilo?

Fingi um ar descontraído e ela me olhou assustada.

- Escuta, está havendo uma seleção prum novo filme. Estão precisando de uma menina bonita,
assim, com o seu tipo. Posso te arranjar um teste.

- Jura?

- Vamos fazer o seguinte. Me dá o seu telefone. Eu te ligo. O diretor é meu amigo, ele vai te adorar.

Peguei o número do telefone.

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Na primeira vez que fui àquele restaurante não notei a menina de olhos tortos. Ficava atrás do
balcão; a gente só podia ver o seu rosto e os seios pequenos atrás da blusa do uniforme. Nesse dia
o garçom me perguntou se eu não era o tal ator de novelas. Sua mulher não perdia um único
capítulo e ficaria feliz com um autógrafo, uma pequena lembrança. A guria, sua filha, seria alçada à
condição de celebridade entre as amigas da escola. Não gosto de ser estraga-prazeres, por isso
decidi espalhar um pouco de felicidade.

- Pode ser aqui mesmo, no guardanapo?

O homem consentiu com uma brandura humilde e assinei ali o texto numa caligrafia cheia de estilo.

Chegada a data do teste, encontrei-a novamente no restaurante:

- Oi - lançou-me um sorriso.

- E aí? Pronta pro show?

- É. Estou nervosa.

- Que nada! Você vai se sair muito bem.

- Escuta, essa história de teste... Você não tá me enrolando não, né? Aliás, o que você viu em mim?

- Sabe como é... Eu te vi andando por aí, metida em roupa de ginástica. Você tem um belo par de
pernas.

Sorriu novamente e fechou os olhinhos miúdos, primeiro o estrábico, depois o outro. Andamos até o
meu apartamento. Ficava perto, somente a duas quadras de distância. Cumprimentei o porteiro que
me lançou um olhar de cumplicidade.

- Espera aqui enquanto eu tomo um banho. Quer uma cerveja?

- Você quer me comer, não quer? Diz logo, pode dizer.

- É, eu quero.

- Você também não é ator coisa nenhuma, é?

- Não, meu amor, não sou.

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Botei as mãos nas suas coxas. Estava usando shortinho jeans, tinha a pele fina feito papel de seda.

- Você tem uma bela bunda.

- É, eu sei. É que eu malho muito. Você também dá pro gasto.

- Há quanto tempo você trabalha nesse restaurante? Até que eles fazem uma comida boa lá, não
acha?

- A melhor da cidade.

Fiquei olhando sua carinha rosa, polvilhada de pequenas espinhas. Abriu minhas calças, beijou-me
suavemente e foi buscar a cerveja.

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O Ébrio Feliz

Flavia comprazia-se ao dizer que seu marido era escritor. Gostava mais ainda quando alguém lhe
perguntava quais livros eu havia publicado. Listava os títulos um a um, na certeza de que as pessoas
do seu círculo social reconheceriam o meu nome. É bem verdade que fiz algum sucesso entre a alta
classe média carioca, notadamente entre mães e filhas cuja existência se amparava no arrimo de
homens bem sucedidos, mulheres que dedicavam o seu dia a cuidar de crianças, a esmerar-se nas
tarefas do lar, na decoração da casa, em cursos sem importância.

Agora que escrevo textos medíocres, a admiração que Flavia sentia por mim há muito se esvaíra.
Como pude constatar, conquanto tardiamente, sua libido era estimulada pela exibição de minha
estatura intelectual, embora eu lhe assegurasse que, para um macho, o essencial é sentir-se
desejado por sua virilidade. A essa altura, eu já notava suas fugas vespertinas, o ar amodorrado,
suas evasivas mal ajambradas quando eu investia contra o seu corpo, sua insistente recusa em
cumprir com as obrigações matrimoniais. A necessidade de ganhar a vida envenena lentamente o
coração de certas mulheres. Flavia já não via em mim o arquétipo principesco de suas quimeras
juvenis, o homem culto, elegante e seguro com quem sonhara viver um dia. Nesses tempos difíceis,
já não havia restaurantes, vernissages, soirées. Pouco a pouco, eu ia descobrindo as facetas de uma
nova mulher, a Odette de Crécy dos antigos salões, e o meu amor era o de Swann às avessas, um
amor sem ciúmes e sem sofrimento.

Meu último romance, Debitum Conjugale, não conquistou a aprovação da crítica. As vendas pouco
expressivas foram atribuídas ao conteúdo evidentemente misógino da obra. Flavia culpou-me por
escrever porcarias que são apreciadas apenas por idiotas como eu, leia-se: meus amigos. Retruquei

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veementemente, afirmando que o desprezo ao sexo feminino é também amplamente exercido pelas
mulheres, umas contra as outras, e na sua vertente mais indigna, contra si mesmas. Insisti,
argumentando ser uma maneira de debater o assunto em sociedade. Acusou-me de sancionar a
falocracia secular e julgou o texto como sendo a prova irrefutável do pavor que sentem os homens
em não ser capazes de segurar suas fêmeas. Pegou o livro, com uma dedicatória, e rasgou várias
páginas. “Você tem que fazer dinheiro. Ce n’est que de la merde!”. Depois, jogou-o pela janela afora
e saiu, batendo a porta com força descomunal.

Na última vez que a vi, Flavia estava sentada na murada da Urca, um pouco afastada da
aglomeração de jovens que tomava a calçada em frente ao bar dos publicitários. Estava com ela
uma dona. Cabelo curto, vestia bermuda, tênis e camiseta regata. Notei certo grau de intimidade na
maneira como se olhavam e falavam. Não senti vontade de saber como andava a sua vida. Achei
que estava melhor sem mim. Após algum tempo acabei sabendo que ela havia viajado à Paris na
companhia de uma amiga e ficaria alguns meses cursando História da Arte.

Pouco tempo depois, encontrei numa cafeteria a moça de cabelo curto. Ela se chamava Nina e me
convidou para tomar um chope no Garota da Urca. Disse que gostava muito da minha literatura e
queria me conhecer, saber se eu era tão interessante como faziam crer os meus textos. Ela era
delicada, magrinha, seus cabelos deixavam à mostra a nuca delgada, os pelos brancos muito finos e
eriçados. Duas amigas a esperavam no bar. Deviam ter no máximo vinte e poucos anos cada, suas
idades somadas provavelmente dariam a minha. Nina comentou que eu era escritor, mas nenhuma
das duas havia ouvido falar na minha obra. Graças a Deus, mentes novas no pedaço, o anonimato
sempre me deixou à vontade. Disseram isso sem nenhum constrangimento, demonstrando muita
graça e personalidade. Uma delas me perguntou:

-Você escreve sobre o que?

-Nao é bem sobre o que, mas sobre quem - fiz uma pausa. - Eu escrevo sobre as pessoas.

Ela olhou dentro dos meus olhos. Uma das amigas se despediu e terminamos a noite na casa da
Nina, bebendo cerveja e fumando uns baseados. Ela começou a contar que havia morado cinco
anos com uma companheira, mas que no fim não sobrou nada. Nem móveis, nem dinheiro, nem
amor. Sua outra amiga, e agora minha também, a Julia, era linda; tinha o viço da juventude. Sorriu,

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exibindo os dentes brancos e perfeitos emoldurados por lábios cor de bronze. “Se você quiser, você
não fica sozinha um só dia. Eu te garanto.” A Nina sorriu sem graça e a Julia continuou: “Quando eu
quero, eu dou mole em qualquer lugar, no bar, na academia, na farmácia. É muito difícil eu ficar sem
companhia.”

Levantei-me e fui à cozinha procurar mais cerveja. Abri a geladeira e gritei pras meninas: “Acabou a
bebida!”. Não obtive resposta. Voltei para a sala e vi suas bocas grudadas, as línguas trançadas
enquanto se despiam no sofá. Esqueci o álcool por alguns instantes e fui servir-me daqueles corpos
de mulher. A Julia tomava a inciativa e quando me aproximei ela veio dar as boas-vindas. Seus
cabelos eram longos, lisos e castanhos, queimados pela luz do sol. Seu quadril era largo, as ancas
grandes, os seios duas mamas intumescidas. Ela era a vênus antiga, a deusa da fertilidade que
provia o leite, a carne e a cria. Mas, coisa estranha, sua beleza divina me reprimiu. Olhei para o lado
e vi a Nina acanhada, esperando humildemente sua vez de ser traçada, de entrar na dança depois
que eu me refestelasse com o leite e o mel que escorriam da vênus, como se ela própria, Nina, se
colocasse em segundo plano, como se tivesse a falsa percepção de que sua magreza, seus ossos
proeminentes sob a pele frágil, suas nádegas retas e lisas não merecessem a mesma atenção que
eu dispensaria ao corpo sinuoso de sua amiga. Mas foi justamente esta cena que despertou em mim
um estranho sentimento de ternura e de paixão momentânea. Ela aguardava um sinal, como um
músico atento ao regente aguarda a chance de entregar-se ao ditirambo da orquestra. Então sorriu.
Meus olhos nunca haviam testemunhado um sorriso como aquele. Empenhei toda a minha energia
em fazê-la feliz. Poderia ter me lançado à cunilingua, mas privei-a por ser esse um prazer demasiado
comum a todas as homossexuais. No sonho viril da minha fantasia, eu queria que ela sentisse a
potência do meu pau. O Freud disse que as mulheres têm inveja do falo, mas eu não queria que ela
o invejasse; eu queria, e muito, que ela o amasse. Ela gozou e pude sentir suas pernas trêmulas, sua
vagina inundada,  as curvas do seu ventre subindo e descendo junto ao monte púbico. Segurei a
ejaculação para dedicar-me a sua amiga, mas algo novo aconteceu. Durante a consumação, todo o
seu esplendor divinal, o seu perfume, a maciez da sua pele, o hálito de fêmea, tudo ficou de repente
fora de contexto, pareceu insignificante ante à paixão que eu sentira e ao prazer que fruí junto àquela
pequena menina lésbica de cabelos curtos. Então eu brochei e a Julia me abraçou carinhosa e
demoradamente.

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Ontem encontrei a Flavia na Sociedade Hípica Brasileira por ocasião do lançamento do livro de um
amigo em comum. Ela agora estava se exibindo com um jornalista famoso. Estava visivelmente feliz,
sorridente, sua aura invadia o salão. Havia emagrecido, estava bronzeada, com as maçãs do rosto
levemente rosadas. Fiquei imaginando-a comentar com ele a meu respeito, me chamar de lunático e
perdedor. Ela costumava dizer que eu não havia crescido, que eu ainda era um garoto perseguindo
sonhos adolescentes e que devia ter se casado com um homem de verdade. Imaginei-os na cama
zombando de mim, ela gozando no seu pau de homem sério e bem sucedido, ele me insultando
para se sentir mais másculo, fazendo a ela as promessas que eu fiz e nao fui capaz de realizar. Ali,
em meio a toda aquela gente distinta, ela sentia-se no seu ambiente natural. Os filhos dos ricaços
passavam montando cavalos enormes em suas aulas de equitação, desfilando sua postura helênica,
exibindo a imagem proustiana de um Alexandre da Macedônia. Seus pais ficavam na varanda anexa
ao restaurante, bebendo e comendo na companhia de empregadas, cuidando dos outros filhos que
ainda eram pequenos. Essas pessoas seriam, supostamente, a aristocracia da cidade, a alta
burguesia, mas sempre havia algum babaca que nutria por si mesmo uma consideração exagerada
só porque mantinha um cavalo morando entre a Lagoa e o Parque Lage, comendo ração importada
e tomando banho de mangueira enquanto cagava, abanava o rabo e pegava sol no lombo. Esses
babacas sempre falavam alto, acho que o cheiro de merda nas botas afetava seus cérebros de
vaqueiro e entortava-lhes o nariz. Engraçado, eles sempre tinham o mesmo nariz, um nariz afilado,
pontiagudo e com as narinas abertas. Acho que era para cheirar melhor a merda dos cavalos. Me
lembrei da granfina das narinas de cadáver. Sentei no salão para ver o jogo de futebol na tevê. Pedi
ao garçom um carioca e fiquei ouvindo dois caras conversarem ao meu lado. Estavam comentando
o jogo, o Santos perdia para o Vasco e um deles falou com sotaque paulista: "Não ligo mais pra
futebol. Esses caras não pagam o colégio da minha filha, não pagam a comida dos meus cavalos."

Hoje tem jogo na tevê. Não produzi muito, mas estou feliz. Fiquei lembrando da Flavia, da Julia e da
Nina. Fiquei lembrando de outras mulheres também. Liguei para o bar de sempre e pedi algo para
beber. O entregador tocou a campainha e dei-lhe uma boa gorjeta. Amar pode ser bom, mas eu
troco tudo por um monte de cerveja.

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Cedo, Mas Nem Tanto

Eu havia guardado o tresoitão pra meter aquela bala na cabeça quando já estivesse perto do fim. A
bala que eu havia mandado banhar de prata e onde gravei o nome que eu tinha escolhido para ela:
O Consolador. Era o título de um livro que minha mãe guardava na estante da sua casa, livro velho,
amarelado e gasto. Antigamente ele ficava em cima da mesa, ao lado da cama, sob a luzinha fraca
que vinha da luminária. Mas hoje ele fica lá em cima, numa das prateleiras mais altas, jogado entre
cadernos e fotos, atrás das bonecas russas. Abri a gaveta do criado-mudo e tirei de dentro a arma.
Preta, cano descascado, cabo caramelo. Será por um bom motivo e isso me conforta.

Saí de casa e fui andando pela Siqueira Campos. Desci a rua e virei na Tonelero. Eu queria caminhar
antes de fazer o serviço. “O cara é meu amigo”, pensei. Perto de atrevessar o túnel, eu senti as
mãos suarem, estava me dando vontade de cagar. Eu já tinha matado bicho quando era mais novo,
lá na roça. Mas gente seria a primeira vez. Fiquei lembrando o que ele fez por mim logo que cheguei
ao Rio. O Coronel, aquele filho da puta que pegava no meu pé quando eu trabalhava no Jóquei,
estava me dando um sermão. “Porra, você não quer ser cavalariço? Então bota uma perna-de-pau.
Aleijado não pode controlar o cavalo. Se você não tivesse as costas largas com o Doutor eu te
botava pra fora daqui agora mesmo.” Babaca. Sabia que eu precisava do emprego e que não havia
alternativas para mim além da humilhação. Mas o Alexei me ensinou a ter um pouco de orgulho.
Mancar pode, o que não pode é ser capacho de paraíba pau-mandado. Chamou o Coronel para
conversar, eu fiquei assistindo de longe. O cara começou a gritar, mexia os braços rapidamente,
acho que ofendeu o Alexei também. Um golpe frontal arrebentou o queixo do Coronel e ele apagou.
Ficou caído no chão, comendo barro de estrebaria.

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Da última vez que nos vimos ele finalmente me convencera a dar um fim na história. “Gente boa não
merece sofrer”, disse. Ele vai pro céu, se Deus quiser. O câncer já havia tomado o seu fígado, não
podia mais beber. Era o que ele mais gostava. Vivia a morte já em vida, sua mulher falecera alguns
anos antes e o sexo já não exisitia para ele. O trabalho na repartição pública era uma maldição,
aquela rotina, as mesmas pessoas mesquinhas, os mesmos móveis velhos e vagabundos, a mesma
lenga-lenga todos os dias. As pilhas de papéis, os escaninhos enferrujados, tudo era insuportável
para aquele homem. Os vícios de sempre, os remédios, o cigarro. Eu não reconhecia nele a pessoa
forte da nossa juventude. “Meu filho acaba o colégio esse ano. Não tenho dinheiro pra pagar uma
faculdade particular e ele não vai conseguir uma vaga nas universidades públicas. É outro que não
quer nada. Fazer o quê? De qualquer forma, quero deixar alguma coisa pra ele começar a vida, dar
um empurrão. É o melhor que eu posso fazer. Hoje eu valho mais morto do que vivo. Escuta, ele vai
poder usar o seguro. Eu não tenho coragem. Faz isso pra mim.” Então decidi por um ponto final
naquilo.

Cheguei na Xavier da Silveira, em frente ao Corpo de Bombeiros. Estava escrito na fachada do


quartel: “Nada do que é humano nos é indiferente”. Bela frase. Andei pela praça e acendi um cigarro.
Aquele vai-e-vem em frente à estação revigorou-me os ânimos. Cachorros, crianças, velhos; a vida
continua. Peguei um jornal do metrô e passei as manchetes em revista. “Vamos”, pensei comigo. “A
vida continua.” Parei na padaria em frente ao prédio e pedi um café. Carioca. Café forte ataca o meu
estômago. Tomei um comprimido de esomeprazol. Eu já havia tomado um pela manhã, mas
costumo ler a bula e sei que posso dobrar a dose. Entrei pela garagem quando um carro saiu, o
porteiro tinha deixado o portão aberto. Depois subi pelo elevador dos fundos porque sabia que não
haveria câmeras. Décimo primeiro andar. Abri a porta de ferro e saí para o corredor longo e abafado.
Toquei a campainha. Alexei abriu. Estava de banho tomado, agora que tinha cabelos longos podia-
se notar. Sorriu timidamente e me pediu que entrasse. Fiz menção de lhe dar um abraço. Afastou-
me com seus braços compridos. “Eu te convidaria pra tomar um uísque, mas agora... Me deixa
botar uma música. Eu gosto de escutar música clássica. Alto, sempre alto.” Voltou-se e foi andando
até o quarto anexo à sala. Ouvi uma música começar a tocar emitindo um som de vitrola. “Bach.
Johann Sebastian Bach...”, escutei-o dizer ao atravessar a porta no caminho de volta. “Largo ma
non troppo.” Dei-lhe um tiro no peito. Caiu. Mirei os seus olhos, estavam ao mesmo tempo calmos e

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assustados, como os olhos dos bichos quando sabem que vão morrer. Me lembrei da fazenda. Com
dificuldade e deixando escorrer sangue pela boca enegrecida, tentou falar por entre os dentes
acinzentados. Disparei novamente. Guardei o revólver na mochila e procurei algum dinheiro para
simular um latrocínio, mas não encontrei nada de valor. Joguei ao chão algumas garrafas que
estavam sobre a mesa de jantar, quebrei o vaso de plantas do aparador e saí pela porta. Acho que
os caras do seguro não vão desconfiar de nada.

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Sonho E Labor

O velho veio para cima de mim. Passou o braço pela minha cintura e enfiou a língua na minha boca.
Retribuí. Pegou meus cabelos e segurou-os alto e atrás, formando um coque. Beijou o meu pescoço
e ficou sentindo o meu cheiro, depois abriu o zíper nas costas do vestido e a roupa deslizou
acariciando o meu corpo. Era assim que ia ser, aquele velho conseguiu o que queria. Após servir de
repasto, tomei um gole de uísque. O homem permaneceu deitado, sujo pelo próprio esperma. Pediu
uma dose. Sorri, levei a bebida na cama e beijei-o ductilmente. Levantou-se após alguns minutos e
convidou-me para tomar banho. Obedeci.

O Francisco devia estar em casa se não estivesse tomando cerveja com os amigos do trabalho. Na
véspera do encontro, ele me disse: “Vai com Deus, amor. Vai realizar o seu sonho.” Não se importou
quando lhe contei sobre a proposta. “E você?”, perguntei. Me falou: “A sorte não bate à porta duas
vezes.” “Eu também estou fazendo isso por você. Não quero que você acabe os dias limpando
merda no banheiro dessa firma.” Apertei os seus ossos contra os meus e puxei-o para a cama.
“Você é o único homem que eu jamais amei”. Sorri um riso triste, mas o Francisco nunca sorria.

O homem atracou-se comigo. Botou as mãos nas minhas nádegas e puxou-as para cima. Deitou-
me de bruços sobre o sofá e segurou forte a minha nuca. Abraçou-me por trás e pude sentir o seu
músculo duro. “Ai”, soltei um grito surdo. “Eu vou te foder muito”, ele disse. Depois, enquanto
tomava café, chamou-me para a mesinha da antessala. Bateu a palma da mão sobre os joelhos e
falou: “Senta aqui.” Acomodei-me nua em seu colo. Colocou sobre o tampo da mesa uma caixa de
veludo preto e disse: “Abre.” Era um colar de brilhantes com uma pedra verde pendendo do centro.

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-É tudo pra você.

-Você vai me dar os cristais que eu te pedi?

-Só durante o carnaval.

Acabou, consegui. Aquele viado do Ronaldo vai morrer de inveja. Vou ser Madrinha de Ala. Talvez no
ano que vem eu seja Rainha da Bateria. Esse ano não vou fazer escova com ele, quero ir num salão
chique. E aquele atorzinho de merda do seu marido vai ter que engolir a minha fama. Agora o dr.
Steiner vai me dar as pedras e o Oswaldinho vai fazer a fantasia mais linda da carreira. Não vai ter
pluma, nem pena de faisão, nem dourado. Não quero usar esses adereços baratos. Vou vestir três
mil cristais Swarovski. O Oswaldinho disse que arrumaria um baile no Itamaraty e ainda tem a grana
das revistas. O Francisco não vai querer esse dinheiro, esse ano ele vai desfilar ao lado da Marinalva.
Não gosto dela, sei que está de olho no meu homem. Tudo bem, não tem problema. Vou ser
Madrinha de Ala. Foda-se a Marinalva.

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O Homem Que
Não Falava Inglês

Dostoiévski era melhor do que Chandler, embora alguém já tenha dito o contrário. Mas aquele merda
não sabia disso. Fitou-me por um momento com seu ar afetado e depois olhou o meu currículo.
“Vejo que o senhor não possui fluência na língua inglesa”, ele disse. “O senhor sabe, dominar o
idioma é essencial para exercer a função. O senhor deve imaginar.” “Falo russo”, respondi lacônico.
Coitado, o garoto tinha pinta de subalterno, devia ser mais um tecnocrata ordinário cumprindo as
ordens do chefe. Não soube como reagir. Acho que pensou, “O que esse lunático imagina conseguir
nessa empresa sem falar inglês decentemente? E que porra é essa de russo?”.

Terminada a entrevista de emprego, saí para comer em Botafogo. Andei por ruas estreitas e
arborizadas. “Deve haver por aqui algum lugar onde se possa almoçar sem gastar muito. Onde será
que comem os peões e os mecânicos daquela oficina?”. Descobri um lugar fantástico que servia um
arroz com feijão da melhor qualidade. Graças a Deus eu estava sozinho, odeio almoçar com gente
desinteressante falando ao meu lado, puxando conversa enquanto eu tento ficar calado. Pior ainda é
almoçar com as pessoas do trabalho, eles sempre falam sobre os mesmos assuntos. Dizem que
toda crise corporativa teve sua semente plantada num almoço entre colegas de trabalho. Tentei
pegar um taxi e um guardador de carros chamou um veículo com uma caneta presa ao que restou
de seu braço amputado. Dei uma gorjeta ao homem e entrei no carro. O motorista estava ouvindo o
boletim econômico e desatou a falar. Comemorou a baixa cotação do dólar, mas essa gente não
conhece a complexidade das forças que regem os mercados. Não sabem que o dólar muito baixo

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prejudica as exportações e aí o governo intervém com mão de ferro. Perguntou se poderia mudar a
estação e não me opus. Um homem começou a pregar na rádio, era dia de Nossa Senhora
Aparecida. Acho que o taxista não gostou e mudou a estação novamente. O locutor agora
anunciava a previsão do tempo. Trinta e quatro graus no Rio de Janeiro. Sol.

Cheguei no Flamengo por volta das três da tarde. O editor me esperava num apartamento no Morro
da Viúva, um lugar bonito, de frente para o Pão de Açúcar. Subi os cinco andares de escada, sou
claustrofóbico e não gosto de elevadores. Quando eu era garoto, por causa da falta de luz que
atingira a Zona Sul, fiquei preso durante muitas horas com um velho que tinha caroços no rosto. Ele
suava e usava um anel de ouro com uma pedra vermelha, desses que usam os advogados. Desde
então, eu procuro evitar elevadores. O meu psiquiatra disse que seria bom se eu ficasse preso outras
vezes, assim eu poderia aprender a dominar o medo. Fui recebido pelo secretário. O editor me
aguardava na varanda, vestia um tropical inglês e me ofereceu uma dose de uísque. “Prefiro cerveja”,
eu disse.

-Bom, vamos aos negócios. Li os seus textos e achei muito densos, melancólicos. Acho que não
vão vender. Tomei a liberdade de fazer algumas modificações, digamos correções, que, a meu ver,
trarão mais dinamismo à sua narrativa.

Disse que estava tentando estabelecer uma relação de confiança comigo, o autor, e falou que os
meus textos eram muito curtos.

- Não vão emplacar.

-Sabe como é, talvez escrever bem seja dizer muito com poucas palavras - respondi me lembrando
do Bukowski.

Ele era gordo e eu nunca confio num gordo vestindo um terno. O Nelson Rodrigues achava que os
canalhas eram todos magros, mas canalhas gordos sempre me causaram uma repulsa maior. Talvez
porque a gordura, o rosto redondo, dêem ao canalha gordo um ar de bonança e fartura que ferem o
meu senso de justiça. Já os magros, há magros cadavéricos e de olhos tão fundos, com os vincos
dos rostos tão marcados, que podemos imaginar deles as piores misérias, os mais duros
sofrimentos.

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Seu escritório era decorado com uma estante enorme repleta de livros. Será que ele leu tudo isso?
“O senhor tem muitos livros”, falei. Sorriu sem tentar esconder a vaidade. Duvido que ele saiba que
se pode viver para uma única obra do Dostoiévski, do Proust. Ele queria corrigir alguns trechos que
julgava ruins, mas entenderia se eu não aceitasse, afinal “os escritores são sempre muito vaidosos”.
Pegou os óculos e falou que seu papel era me orientar na escolha do melhor caminho. “Escreva o
seu próprio livro”, ouvi uma voz ressoar na minha cabeça.

-Percebi que você faz muitas referências a autores consagrados.

-É verdade. Eu sempre fico envaidecido quando descubro que os meus autores favoritos escreveram
algo que eu já havia conseguido concluir sozinho.

-Tenho um outro projeto que combina muito com o seu estilo. Gosta de literatura americana? Pulp
fiction, romance noir... O mercado está vivendo um boom de romances policiais.

Enquanto acendia um cigarro, passou a mão nos cabelos molhados e permaneceu pensativo.
Quebrei o gelo após alguns instantes.

-Vai ter que ficar pra outra vez. Infelizmente não gosto do gênero, não gosto do Hammet. Prefiro o
Tolstoi, o Tchekhov, o Gogol.

Nos despedimos afinal e saí à procura de um botequim. Pedi uma cerveja e fiquei ouvindo um
palhaço malabarista conversar com um cara sobre Tropicalismo, a Semana de 22. Dizia que
ingressara no circo no dia do aniversário da Revolução Francesa, aos catorze anos. Terminaram a
conversa e o artista vestiu o chapéu, puxou para cima dos ombros o suspensório e foi ganhar alguns
trocados no sinal de trânsito. Tirou uma bola de cristal do bolso da calça larga e começou a fazê-la
deslizar pelos braços, primeiro o direito, depois o esquerdo, depois pela testa e por fim rolou a bola
pela ponta do nariz fazendo-a cair dentro do chapéu de feutro. Ao final do número fez um rapapé e
foi recolher o dinheiro entre os carros. Peguei minha caderneta, coloquei sobre o balcão e anotei a
cena. Talvez eu pudesse usá-la mais tarde. Os bêbados e os garçons ficaram me olhando com certa
admiração e curiosidade enquanto eu anotava e bebia cerveja. Um cara veio puxar papo, disse que
sabia como ficar rico e nao iria ficar dependendo de aposentadoria. “Pra mim quem depende de
aposentadoria é um merda.” “Meu pai é aposentado”, eu disse. Ele ficou em pé ao meu lado durante
algum tempo mas permaneceu calado. Fiquei olhando uns caras jogarem mata-mata e colocarem

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moedas numa máquina para assistir clipes de música. Ouvi tocar um Zé Ramalho. Pensei em pagar
um chope ao artista da bola de cristal, mais ou menos como fez o Mandrake em A Grande Arte, mas
achei que o álcool não combina com malabarismos. Paguei a conta e tomei um taxi, agora a
caminho de casa. O trânsito estava intenso e puxei assunto com o motorista. Ouvimos no rádio a
notícia de que um pastor havia sido chamado para dar a última benção a uma vítima do tráfico. Ele
acabou convencendo os traficantes a liberarem a menina, mas ela apanhou um bocado porque
havia traído um deles com um garoto do asfalto. Depois, o motorista reclamou da bandidagem e
contou que, dia desses, um ladrão entrou no seu carro e pediu dinheiro. Ele foi encostando o taxi
devagarinho para perto de uma viatura. O ladrão falou, “Não para aí, não!”, mas quando notou já
estavam ao lado dos policiais. Então o taxista disse: “Vai, sai daqui. Tenho muito o que fazer hoje.” O
homem desceu com a arma escondida sob a camisa e o rabo entre as pernas.

Cheguei em casa, deitei na cama e acendi um cigarro. O médico havia aconselhado deixar o fumo,
mas não consegui parar. O telefone tocou, era a Fernanda querendo passar lá em casa. Eu não
queria continuar traindo a Cecília, ela gostava de mim e por isso eu queria cuidar dela. Tive que adiar
o encontro. Sempre fico constrangido ao dispensar uma mulher. E a Fernanda é muito bonita, tem
as coxas grossas, os seios duros e pequenos. Virei para o lado e mexi nos livros da estante. Acho
que vou ler o Pirandello.

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O Criador E A Obra

O policial Meira acordou às seis da manhã. Preparou um pouco de café e comeu um pedaço de pão
que ele mesmo esquentou na chapa de um pequeno fogão à lenha. O ar gelado invadia os fundos
da casa formando pequenas rajadas de vento. Andou até o banheiro, escancarou a boca em frente
ao espelho e olhou os dentes esverdeados. O bigode era basto e bem cuidado, e era possível notar
pequenas máculas prateadas crescendo aleatoriamente. Vestiu o uniforme, pegou um casaco velho
que jazia sobre a mesa, meteu o coldre sob o braço e seguiu para o distrito. Caminhou alguns
quliômetros por estreitas ruas de pedra, entre luminárias de ferro e pequenas casas cobertas por
trepadeiras vermelhas. Uma névoa fina repousava sobre os pastos. Cortou caminho por uma ponte
improvisada, atravessou o antigo cemitério que ficava na várzea de dois morros e viu surgirem a
delegacia e a pequena igreja da cidade. Era domingo, o dia gargalhava iluminado. Entrou na velha
viatura e foi sacolejando, embalado pelos solavancos da estrada, desviando o carro dos pedregulhos
enquanto admirava as imensas elevações de granito que brotavam no horizonte.

Parou numa venda para comprar bebida. Uma moça corpulenta aproximou-se por detrás do balcão
e abriu um sorriso conhecido. “O que vai ser hoje, policial?”. O Meira fingiu não ouvir e acendeu um
cigarro. Deslizou os dedos sobre os pelos do bigode, hábito antigo que renascia quando desejava
livrar-se de uma situação embaraçosa. Ela chegou-se, repousou o braço roliço sobre as caixas de
doces e afastou com as mãos avantajadas as garrafas de cerveja vazias. Seu sorriso fácil alargou-se
ainda mais e ela piscou os olhos seguidas vezes demonstrando nervosismo. O rosto do policial
permaneceu inalterado, os músculos hirtos talharam sua fisionomia inabalável e ele, enfim, pediu
uma garrafa de aguardente. A mulher percebeu os inequívocos sinais da indiferença masculina e

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então soube que ele não a amaria mais durante as frias noites no campo. Embrulhou a bebida num
papel comum e estendeu-a sem a graça de outros tempos. Tentou engolir a vaidade ferida e meteu-
se a pensar nos corações que ainda faria sofrer por um capricho vulgar. Deitaria com viajantes,
camponeses, meninos - todos que pudessem lhe trazer um pouco de ilusão e a fizessem sonhar por
míseros instantes com algum lugar distante e bonito, onde as mulheres eram belas e elegantes e os
homens a cortejavam e faziam galanteios, algum lugar bem longe dali, do buraco feio e pobre onde
Deus a havia confinado.

O sargento Meira entrou novamente na viatura e conduziu o carro cuidadosamente até o seu
destino. Avistou a casa simples de alvenaria no alto da colina, os convidados circulando pelo lado de
fora e a moça linda que sorria para ele. Foi saudado por velhos e crianças. Bebeu cachaça e batida
de limão, fumou um fumo reles e sentou-se entres os músicos para tocar violão com seu jeito
peculiar, um jeito de fazer soarem as cordas com apenas dois dedos da mão esquerda. O coracão
da moça bateu acelerado e ela sentiu as vísceras revolverem quando aquele homem de idade
mediana cantou lindas melodias e sorriu para ela enquanto apertava os olhos negros. Ela o convidou
para tomar café na pequena varanda atrás da casa, onde podia-se ouvir o murmurar do córrego.
Insinuou-se, mostrou o pescoço jovem, alvo, e deixou cair algumas mechas dos cabelos cacheados
por sobre os olhos que pareciam duas castanhas. Falou baixinho, mas não ousou levantar o rosto
para fitá-lo. Ele quis então abraçá-la e sentir de perto o seu perfume rústico, olhou o vento enrugar o
seu vestido e deixar à mostra as pernas finas, mas não se atreveu a beijá-la. Aquele amor era ainda
uma pequena semente, um sentimento delicado que começava a criar raízes, e que aos poucos
poderia fazer sumir antigas mágoas. O Clóvis surgiu de repente trazendo bebida. Veio dizer ao Meira
que ele era aguardado na roda de samba. Ficou feliz quando percebeu na irmã um sorriso tímido e
verdadeiro, o fruto da sedução de um homem mais velho, alguém que poderia cuidar dela e da mãe,
estender-lhes a mão nos momentos difíceis. Ele gozava a liberdade temporária concedida aos
presos no Natal e aproveitou para ir à feira, andar de bicileta, visitar os amigos já adultos que ele não
via desde criança, soltar pipa. O Meira havia se encantado pela menina já fazia algum tempo e de
vez em quando passava para visitá-la sob o pretexto de levar alguma coisa para o Clóvis na
carceragem - um bolo, uma lasanha, algumas frutas, algo que o fizesse se lembrar de casa e dos
prazeres simples de que ele havia sido privado. Um detento deveria comer apenas a ração que era

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servida na cadeia, mas o Meira sempre teve os seus esquemas. O Clóvis era um preso da família
agora. Após algumas horas, quando o céu estava púrpura e já era possível ver as primeiras estrelas
da noite, resolveram voltar para a delegacia, o policial e o preso, dois amigos, dois cúmplices,
entidades opostas do sistema carcerário. Despediram-se de todos e o Clóvis chamou a mãe para
rezar um pai-nosso. Pediu a sua benção. A velha colocou sobre o seu rosto as mãos enrugadas e
fez um sinal da cruz, mas ambos permaneceram calados. Ela viveria agora o tormento da ausência,
a clausura da dor, o cárcere do amor materno alienado do seu bem mais precioso.

O Meira havia bebido demais e restou ao Clóvis dirigir a viatura; ficou feliz porque teria a
oportunidade de guiar um carro outra vez. No caminho, cruzaram com um cavalo morto no meio da
estrada, e quando a luz se deteve no corpo do animal, ao frear instintivamente, ele pode ver a boca
do bicho, os dentes sorrindo sem vida, a cabeça virada fragilmente para o lado. O ventre estava
aberto e alguns órgãos ficaram expostos no asfalto. O dorso do animal tinha muitas marcas,
provavelmente das inúmeras judiações que ele teria sofrido. Teve dó. Chegaram na delegacia e
alguns policiais correram para acudir o Meira, que a essa altura era incapaz de manter-se de pé. O
delegado não estava e não ficaria sabendo de nada, ninguém ousaria dizer uma só palavra. Era
assim a lei daqueles homens naqueles vales e montanhas. O Clóvis foi conduzido à revista e depois
à carceragem; nenhum policial fez questão de lhe agradecer por ter ajudado um companheiro em
situação delicada. Entrou na cela e viu, pela janela, a grande pedra azul que se elevava ao fundo,
iluminada pela cor prateada da lua. Pensou no seu pai falecido. Agradeceu a Deus porque pode
visitar a família, ver os rostos duros da mãe e da irmã ainda moça e sentir o calor dos seus corpos
enquanto as abraçava. No próximo domingo ele as visitaria novamente e as ajudaria a fazer doces
para vender na cidade. Sentiu uma paz que há muito não sentia, uma estranha sensação de
liberdade. Desejou poder trabalhar outra vez, lavrar a terra, sentir o suor escorrendo do corpo e o
vento forte dos fins de tarde; desejou sentir o sol queimar a sua pele e a mente mergulhar na
ausência total de pensamentos. Olhou as estrelas manchando o céu escuro e sentiu-se só, um ser
sem importância. Lembrou do cavalo e teve pena. Ficou observando as mariposas chocarem-se
contra um lampião, atraídas por um pálido calor. Sozinho em seu cativeiro, preso na plenitude de sua
ignorância, ridículo ante a imensidão do mundo lá fora, tentou formular uma resposta para as

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questões que o afligiam. Não conseguiu e fechou os olhos. Apesar da força do universo que o
oprimia, desejou estar vivo - uma criatura ordinária, um ponto insignificante no meio do nada.

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Os Olhos Do Morto

Hoje andei com o dr. Pereira. Caminhamos por trinta minutos até o Jardim de Alah. De braços
dados, conversamos sobre futebol, família, e ele contou-me como eram aquelas ruas antigamente.
Sou enfermeiro e cuido de idosos. Aplico vacina, tiro sangue, auxilio a colocar e a retirá-los das
cadeiras de rodas, troco fraldas, ajudo a defecar. Mas, sobretudo, eu gosto de conversar com os
velhos. Nem sempre foi assim. Antes eu era cozinheiro, mas também já fui camelô e faxineiro.
Andamos até o botequim mais próximo, descendo a rua e virando num beco à esquerda. O dr.
Pereira gostava de tomar café ali, o português servia num bule de metal e o café era passado. Tomei
um curto na loja ao lado. Deixei o velho sentado na mesa e, como fazia sempre, disse para esperar
um pouquinho que eu já voltava. O português o olhava para mim. Quando eu morava com Virgínia,
eu só tomava café passado. Naquele tempo não era simples arranjar uma máquina de expresso,
como hoje existem tantas por aí. Virginia me ensinou a cozinhar. Ela precisava de alguém para ajudar
em casa e eu era um garoto que não sabia fazer quase nada para ganhar dinheiro. Foi um bom
emprego. Primeiro ela preparava a comida e eu apenas observava. Depois, ela repetia a receita
algumas vezes até eu pegar a mão. Hoje eu gosto de café expresso.

Desci até a praia com o dr. Pereira. Eu tinha que levar os pacientes para andar quando os médicos
liberavam o exercício. Lembro do meu pai que caminhava todos os dias após fazer uma operação de
safena. Era o que ele mais gostava de fazer no fim da vida. Foi difícil vê-lo definhar aos poucos,
envergar com o peso da idade, ficar sem tomar banho. Ele me acordava durante a madrugada e
perguntava: “Que dia é hoje?”. Depois veio o CTI. Foi entubado, sedado, passou semanas em coma
induzido. Às vezes eu ia vê-lo e ficava sentado na poltrona ao seu lado, pegando a sua mão, sem

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saber se ele notava a minha presença. Eu falava, falava, mas ele estava sempre com os olhos
fechados. Certa vez ele abriu os olhos, estavam vermelhos, úmidos. Eu me assustei e saí correndo
para chamar os médicos. Foi a última vez que vi os seus olhos.

Virginia me deixara algumas coisas. Me deixou uma boa casa em Botafogo, de dois andares. Estava
um pouco velha, mas era bem espaçosa. Também me deixou um bocado de gatos. Quando eu era
moleque eu gostava de maltratar os felinos. Botava fogo no rabo dos bichos, chumbinho na comida,
jogava neles as pedras das construções. Mas eu aprendi a gostar dos gatos. Eles são bonitos e
dormem o dia inteiro. Na minha casa eles andam soltos pelo terreno, quero que eles brinquem com
os ratos. Virginia também deixou um filho, fruto de um romance tardio. Antes de morrer, ela pediu
que eu cuidasse dele. O menino era quase cego e essa desgraça tirou-lhe o prumo da vida.
Alexandre é muito inteligente, embora confuso quanto ao seu papel num mundo onde as aparências
são sempre tão importantes. Eu gosto de ler livros para ele. Já lemos quase toda a coleção dos
clássicos universais e ele disse que admira o Dostoiévski.

Depois de deixar o dr. Pereira em casa, parei para tomar uma cerveja. Sentei numa mesa de ferro, na
calçada mesmo. O bar era perto do metrô e tinha muita gente indo e vindo, voltando do trabalho.
Hoje estou pensativo e fiquei imaginando como será a minha velhice. Não tenho filhos, não tenho
mulher, meus amigos vão morrer ou ficarão velhos também. Não quero morrer só, tenho medo de
ficar com os olhos abertos. Quero ter alguém para segurar a minha mão quando eu expirar. Quero
ter alguém para fechar os meus olhos.

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Uma Noite Carioca

Valéria estava deixando para trás longas semanas, intermináveis dias dentro do xadrez. O delegado
mandou-a entrar na sala em frente à sua e pegar os seus pertences. Retirou um relógio de metal
barato, todo amarelo, imitando ouro. Retirou também uma carteira com alguns trocados e uma bolsa
dessas de se levar à tira-colo.

Saiu pela rua sem saber aonde ir, o que fazer. A única coisa que não queria agora era se meter em
confusão. Havia sido detida após uma briga com um cliente dentro de um hotel na Nossa Senhora
de Copacabana, o cara tinha puxado o seu cabelo e arrancado o seu aplique. Ela voou em cima
dele, deu uma dentada no seu braço, e depois cuspiu fora um pedaço de pele. Ficou com a boca
cheia de sangue. O homem enloqueceu, aquilo iria ficar marcado. Os canas chegaram, meteram-na
na patamo e levaram para a delegacia. Isso já fazia algum tempo. Valéria não se lembrava
exatamente quando.

Resolveu andar ali pela Prado Junior, entrar numa boate, talvez encontrar alguns conhecidos. Seguiu
pela Barata Ribeiro, foi vendo a paisagem. Passou nos bares, nas lojas de sucos, ia dando um alô
para os garçons e para as meninas que encontrava no caminho, mas ninguém a cumprimentou e ela
sentiu-se só. Chegou num restaurante e foi entrando. Pediu um chope, ela podia pagar porque ainda
tinha algum dinheiro. Ficou por ali, zanzando entre o banheiro e o balcão, tentando puxar assunto.
Falou com o garçom e dessa vez pediu uísque. “É a última dose. Vai pra casa”, ele respondeu. Ela
não foi. Empurrava a porta do banheiro quando viu Norma se esgueirando pelo corredor. As duas se
falaram com um aceno de cabeça e seus olhos fixaram-se. “Não lembra de mim?”, Valéria sorriu.

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“Me oferece um drinque, tô sem dinheiro.” Norma também sorriu e achou graça. Ela se lembrava de
Valéria.

Ficaram num quarto, no andar em cima da boate. Comeram um sanduíche ordinário e Norma serviu
mais uísque. Aproximaram-se. Valéria tocou-a levemente, passou a mão no seu rosto e beijaram-se.
Tirou a roupa e ficou de calcinha. Era branca, de algodão, e tinha um fio dental atrás com algumas
lantejoulas. Norma meteu a mão por baixo e ficou sentindo a basta cabeleira loura. Depois arrancou
a calcinha e sentiu prazer em simplesmente olhar os cachos castanho-claros, a pinta negra que
Valéria ostentava ao lado do clitóris. Surpreendeu-se e não pôde deixar de sorrir ao pensar em como
cada vagina tem mesmo algo que as diferencia, que as humaniza.

“Me arranja uma grana?”. “Não tenho, meu bem. Mas você pode ficar vindo aqui sempre que quiser.
Te garanto que você vai faturar um bocado.” Norma serviu mais uma dose. “É por conta da casa.”
Valéria deu um grande gole e tomou o uísque de uma só vez. Sentiu o gosto amargo escorrendo
pela garganta. Deitou-se na cama, ao lado de Norma, e procurou se acalmar. O que fazer? Para
onde ir? Como arranjar dinheiro vestida naquela roupa suja, sem banho e sem maquiagem? Ficou
calada e um humor sinistro invadiu sua alma. Estava experimentando a mesma sensação de
claustrofobia que sentira na carceragem. Um calor subiu pela espinha, as orelhas se aqueceram e o
rosto, súbito, ficou vermelho. Vendo que Norma insitia em entabular uma conversa enfadonha,
levantou-se de chofre e, sem se despedir, pegou seus pertences, abriu a porta do quarto e desceu
apressadamente a escada que dava para a rua. Correu até a esquina e decidiu caminhar até a praia.
“Amanhã vou procurar o Denis.”

O Denis era um holandês que morava num cabeça-de-porco em Copacabana e rendeu a ela um
bom dinheiro nos primeiros encontros. Depois virou um conhecido, uma distração. “Ele vai ter que
me ajudar.” Lembrou-se de quando os dois andavam de braços cruzados pelas ruas do bairro - ele
se inclinava e falava um inglês perfeito aos seus ouvidos, ela respondia alto para que todos
escutassem sua pronúncia errada, entre risinhos e tragadas no cigarro. Os porteiros cravavam nela
seus olhos sequiosos e ela sentia-se a rainha daquelas ruas, a deusa do asfalto. “Ele tem que me
ajudar”, disse novamente baixinho e por entre os dentes.

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Deitou-se na areia da praia e resolveu descansar um pouco até o amanhecer. Na noite seguinte foi
vista sentada à mesa com dois homens na varanda de um pequeno restaurante, tomando cerveja no
seu quarteirão predileto em Copacabana.

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Revelações

O mundo vai acabar e estou na sala vendo tevê. O documentário diz que o universo vai morrer, o sol
vai consumir seu combustível e vai inchar, vai engolir a Terra. Dizem que já estaremos mortos, mas
até que seria bonito, virá uma chuva de fogos por aí. Tudo vai acabar, é só uma questão de tempo.
Não há escapatória, não há saída. A morte está ali na frente de braços abertos. Tic-tac, tic-tac, é só
uma questão de tempo. Tudo bem, acho que já morri mesmo. Só estou aqui fisicamente.

A campainha toca. É a vizinha de cima pedindo para eu tomar conta da filha enquanto ela dá uma
saidinha. A criança tem um cabelo com longas tranças embaraçadas. Deve ser foda pentear essa
garota. “Claro," eu digo. Quando eu era menino meu pai não deixava o meu cabelo crescer. Se
surgia um fiapo ele se apressava em me levar na barbearia. E o barbeiro era mesmo muito ruim. O
dono do estabelecimento tinha o negócio havia décadas mas ainda possuía a perícia de um
aprendiz. Poucas vezes presenciei tanta falta de destreza, de habilidade, quanto nas vezes em que o
meu pai me levou para cortar o cabelo em sua barbearia preferida. De vez em quando eu cortava
com os outros caras do local, mas o resultado era sempre péssimo e eu voltava para casa com
medo do que as garotas iriam falar no dia seguinte.

A vizinha ficou no corredor, olhando a tevê com uma cara estúpida. Seus olhos permaneceram fixos
na tela do aparelho. Por um momento não consegui estabelecer um diálogo que fizesse sentido.
Esses intelectuais não têm televisão em casa, acabam ficando com o cérebro atrofiado. Outro dia
me contou que não deixa a filha assistir tevê. É artista plástica e quer que ela faça desenhos com
massa de modelar, construa objetos com blocos de madeira. Acha que vai desenvolver a sua

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criatividade, mas criatividade sem referência não serve pra porra nenhuma. Depois não vou poder
culpar a juventude.

Coloco a menina sentada no sofá. Ela fica assistindo as estrelas explodirem, o apocalipse, o
cataclismo, o fim da porra toda. Parece interessada, não desgruda os olhos do aparelho. Ofereço
uma Coca-Cola e abro uma cerveja para mim. Não posso beber, misturar álcool com os remédios,
mas não estou nem aí, tudo vai terminar mesmo. Não sei para que tanto sacrifício, tanto esforço,
tanta dedicação. Se o mundo teminasse hoje eu me arrependeria de ter cuidado das relações
públicas do banco onde trabalho. Mas o mundo não vai terminar hoje e eu ainda vou ter que aturar
muito desgosto vivendo nesse país de gente pobre e ignorante. A ignorância é a pior de todas as
mazelas.

Vi o gato sentar na minha frente e um corpo pender da sua boca, com duas pernas e um rabo.
Deixou a lagartixa cair no chão e, quando o bicho tentou correr, já sem o rabo, o gato espetou-a
com a unha e abocanhou-a novamente. Mordeu-a com o lado da boca onde lhe faltavam os caninos
e a lagartixa tentou escapar em desespero. Ficaram nesse jogo de gato e rato por uns cinco minutos
até eu decidir ir embora da sala. Fiquei com pena, mas preferi nao interferir na natureza. Depois o
gato veio na minha direção e esfregou o rabo em minha perna. Voltei para ver se a lagartixa havia
conseguido sobreviver, estava torcendo por ela. Tinha um rasgo preto na barriga, estava com as
costas viradas para o chão. Achei que estivesse morta, mas quando encostei a vassoura em seu
corpinho, ela começou a mexer levemente os membros. Recolhi-a com a pá e depositei-a
gentilmente na escada dos fundos para que morresse longe da minha vista. Foi quando percebi o
animal arfando, tentando respirar. Estava agonizando. Lembrei do meu pai buscando ar enquanto
tentava falar com o tubo da traqueostomia enfiado no pescoço. Por que tinha que ser assim? Por
que todo esse sofrimento, tanta crueldade no final? Eu sempre odiei a forma como tudo foi criado,
inventado. O fim é mesmo humilhante. Como algo tão divino como a consciência humana tem que
conviver com tanta agonia, com tanto medo, com tanta incerteza no amanhã? Por que ninguém
havia inventado um jeito de tudo acabar rápido e sem dor? Um interruptor e pronto, a luz se
apagaria. Simples assim. O animal continuou arfando, tentando respirar. Notei a pele fina embaixo da
mandíbula subindo e descendo conforme o ar entrava. Que teia é essa que nos enreda? A morte é
uma aranha peluda, com oito olhos vermelhos e duas presas afiadas. E está vindo na nossa direção

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enquanto nos debatemos inutilmente em sua trama. Peguei o cutelo de carne para terminar logo
com aquilo. Era o que eu queria ter feito quando o meu pai estava no hospital. Ter dado um chute
nos fios e desligado os aparelhos todos de uma só vez. Simples assim, como quem chuta uma
aranha para longe. Mirei o pescocinho da coisa e treinei o movimento da cutelada algumas vezes
antes de executar o golpe final. Um, dois, três...

Voltei para a sala e a menina me disse, "Tio, acho que quero fazer cocô.” Será que ela sabe se
limpar sozinha? Só relaxei novamente quando minha filha aprendeu a se limpar sozinha. Meu primo
diz que é um E.T., que vai para Goiás encontrar os outros alienígenas. Mas eles não vão escapar
também, suas naves espaciais não vão valer de nada quando tudo for pelos ares. Carpe diem, my
friend. Ontem a Natália esteve aqui. Fumamos e tomamos cerveja barata, e ela recitou um pouco do
Baudellaire. Falou sobre os paraísos artificiais, sobre a história do haxixe, sua ligação etimológica
com a palavra “assassinos", e ficamos imaginando aqueles homens montando cavalos velozes, com
as cabeças nubladas, matando inimigos sob o efeito inebriante da droga. Seria bom morrer entre os
braços e as pernas da Natália, sugado por seus lábios de serpente. Ela me envolveria em um abraço
negro e fatal. À noite tive um sonho estranho, meus personagens pediam para não morrer, alguns
reclamavam que escritores medíocres haviam aprisionado suas almas em seus livros. Um deles
gritou para mim: “Salve o meu espírito.” Me lembro de ter gritado, “Deus, o que você quer de nós?”,
e uma voz retumbou acima da minha cabeça: “Quero que você mate e morra!”. Mas não vai ficar só
nisso, não. Também vou querer comer gente de vez em quando. Eu sei que, antes de tudo acabar,
Ele vai moer nossos ossos mais um pouquinho. Depois o meu editor me ligava e dizia que o Crumb
queria ilustrar os meus livros. Essa parte do sonho foi muito boa.

Aumentei o volume do aparelho e trouxe outro refrigerante para a menina. O próximo programa será
sobre animais assassinos; na selva é matar ou morrer. Ela vai gostar. Acendi um cigarro e me
recostei na poltrona. Também gostaria de morrer na minha velha poltrona, dando um último gole de
birita. A garota me chamou novamente. "Tio, quero fazer cocô…".

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