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Só Três Horas

Para Caio Fernando Abreu

Eu tenho um olho que chora mais que o outro. Não sei como explicar esse caso curioso. Dois
irmãos vizinhos que ocupam a mesma face, num só andar abaixo da cobertura burguesa de
falsa elite onde vive o meu cérebro. E mesmo assim, os dois funcionários de um mesmo patrão,
tem as suas divergências. O olho esquerdo é o que mais lacrimeja, mas o direito é o que mais
se emociona. Os dois discutem entre si sobre a falta de empatia do meu nariz entupido que vira
e mexe perde a sensibilidade com o cheiro dos outros. Foram estas pupilas escuras castanhas
que ele elogiou naquela mesa de praça enquanto tomávamos café com leite.

Uma caminhada despretensiosa sem nenhuma intenção que se transforma em um esbarro sútil
e escandaloso. Meu caminhar desfocado no andar e focado na leitura de um livro qualquer de
poemas soltos não anunciou a chegada daquele trem descarrilhado em duas rodas. Uma
bicicleta Caloi do ano de 2006 que, coitada, carregava um péssimo motorista, pra não falar
uma besta ambulante, porém extremamente elegante. Quando a buzina do veículo mal dirigido
conseguiu gritar, “sai da frente viado”, o corpo do bicicleteiro desorientado já se debruçava
sobre o meu e jogava o meu livro nas areias daquela praia cheia de vida e vazia de gente.
À primeira vista, nossos xingamentos poderiam ser comparados com quaisquer cumprimentos
diários do cotidiano carioca. O bom dia era “tu quer me matar filho da puta?”, boa tarde fora
“olha pra onde ‘cê anda, seu merda” e o boa noite como um sútil “vai tomar no cú”.
Depois de tantas ofensas carinhosas, reparamos a mini multidão de cinco pessoas se
interessando no atentado. Olhando a capa do meu livro que se fechava de vergonha e a
bicicleta que rodava suas rodas numa possível tentativa de fuga daquela situação
constrangedora, comecei a duvidar da minha lucidez que até agora parecia tão certeira. Será
que ele era um mal motorista de bicicleta ou é quem sou um péssimo pedestre? Passei a
acreditar na segunda teoria, talvez eu andava errado até hoje, mas acho curioso, porque talvez
ninguém tenha me ensinado a andar certo na vida. Descobri isso num acidente.

Naquele sentimento misto de arrependimento pelo que foi dito no calor da emoção e uma
possível tentativa de reparação do erro, nos convidamos para tomar um café da manhã. Eu
tinha ainda 3 horas livres antes de correr para a pressa das minhas aulas. Ele tinha a
aposentadoria dos horários de trabalho com o seu serviço home office de escritor. Ele tomava o
café de um jeito curioso, um charme organizado. Não sabia se as goladas do seu café com
leite eram uma intenção de me seduzir ou só uma forma daquele homem seduzir a vida própria
dele mesmo. No silêncio dos meus assopros pra esfriar a bebida quente, percebi a sua atenção
às mesas alheias; e um bloco de notas guardado no bolso interno do paletó que vira-e-mexe
seus dedos usavam para anotar alguma observação a respeito das conversas paralelas que
preenchiam a música daquela padaria chique que, pro salário dele seria uma refeição à la
croissants e outros tipos de pães com nomes franceses, enquanto pra mim seria só um
cafezinho pingado com um restinho de leite da Elegê.
“Você é uma tia bem da fofoqueira, né?” minha boca solta
“Eu lá tenho cara de tia, garoto? Tenha mais respeito… - larga o bloco e segura a xícara - Era
só o que me faltava… - assopra o café-leitado- Tia…- revirando os olhos ao mesmo tempo que
o líquido quente toca sua língua dentro da boca”
“Ué, se não é verdade, é só não se ofender”
“Não é bem assim não garoto, aliás adianto minhas novas desculpas ao ocorrido hoje mais
cedo, pode ficar tranquilo que vou deixar pago esse nosso lanche, assim ficamos quites. Pode
ser?”
“Então beleza. Quero o mesmo que você”
“Como assim?”
“Quero comer o que ‘cê tá comendo, ué. Cê acha que eu vou ficar no café pingado enquanto
vossa senhoria prova de todas essas regalias?”
“Você... - seus olhos tentam me analisar numa leitura rápida, mas seu olhar pausa por um
instante quando encontra meus olhos castanhos- Seus olhos são lindos”
“Eu sei”
“Alguém já lhe disse que um brilha mais que o outro?”
“Olha, você é a primeira pessoa que percebe isso. Realmente eu tenho um olho mais emotivo e
outro mais emocionado. Imagino que, pra você conseguir reparar esse pequeno detalhe,
certamente deve estar bastante interessado.”
“Você é muito convencido, garoto, e também muito abusado por sinal - solta um riso solto”
“Posso ser aproveitador, mas não tô te obrigando a fazer nada do que você não queira. Ou tô
errado?”
“E o que quer dizer com isso? - numa pergunta retoricamente debochada”

Um sorriso meu foi o que bastou para responder àquela pergunta. Ele entendeu. Perguntou
meu mapa e eu deduzi o dele. O charme de libra para balancear sua ascendência. Um sol
estonteante, perfeccionista e elegante no signo de virgem. Planetas nas casas dozes dos
peixes lúdicos. E uma lua minguante cheia de eficácia num capricorniano. Uma pessoa
ressentida, reservada e encoberta.
Da conta da mesa, pra colcha da cama dele foram 3 segundos. Eu tinha ainda duas horas de
liberdade no relógio antes de zarpar para a rotina e entrar na fila do bandejão. Trabalhos para
entregar na minha faculdade de artes que varei horas fazendo. Pra minha família aquilo não
era trabalho, pra minha vizinhança aquilo não era faculdade. Mas são coisas que ouvimos
quando trabalhamos com o divertimento alheio.
Quarto cheiroso, incensos gostosos, janelas afora com discos e vitrola perfeitamente
antiquados. A exímia organização caseira de uma bicha depois dos trinta anos. Angela Roro
cantava Cheirando a Amor enquanto nossos perfumes se abraçavam, amarrotando o lençol
bem passado.
Nossos beijos se colaram, nossas falas se embocaram, a poesia que eu lia no meu livro solto
se escrevia nas páginas amarelas do bloquinho de notas presas que seu paletó carregava.
A luz da lua nos paquerava com um “quê” de inveja. O canto de Angela pingava doses de
ciúme percebendo que o volume que estávamos dando atenção não era o de sua música.
O volume da minha calça aumentava o volume daquela samba-canção. Entrelaços, entrecasos,
entreapertos, entreamassos, entreabertos. Ele adentrou em mim por todas as minhas portas.
Meu pau entrava nele pela porta dos fundos. Sua língua me molhava os lábios e seus pelos
mergulhavam no meu peito suado pelado.
“Diz que me ama - eu disse”
“Não posso dizer isso, é mentira. Por mais que eu sinta.”
“Então minta. Minta pra mim que eu gozo pra você”
“Eu te amo”
“Obrigado.”
....
Agora faltavam quarenta e sete minutos para sair daquele paraíso. Seu esperma já tinha se
endurecido sobre a minha barriga. Deitei sobre o seu peito depois do ato, buscando qualquer
resquício de oxigênio para respirar e voltar à pulsação cardíaca de um jovem normal. Ele
beijava minha testa e acariciava meus cabelos e ficamos imersos num abraço, o que era,
segundo ele, o movimento cinestésico de maior beleza da terra, o abraço é a empatia das
almas.

Nossos olhos se namoravam. As pupilas marrons dele paqueravam a minha íris num arco de
poesia que só os poetas românticos mais frustrados conseguiriam pintar. Olhos lacrimejando o
prazer, olhos rindo com pés de galinha quase se fechando. Os maiores prazeres da vida
costumam ser aproveitados com os olhos fechados, diz ele. Pois então eu quero te ver cego,
disse eu. A transa com olhos vinda depois da foda de espadas nos mostrou uma nova carta
sobre o orgasmo. A gente gozava de palavras trocadas, no silêncio dos nossos corpos
gozados, com a inquietude das nossas almas. O toca discos encontrou seu final. E Roro parou
de cantar para ouvir nosso papo.

“O que te dá mais tesão? -fiz de curioso”


“Suas pupilas escuras castanhas - fazendo cafuné nos meus lábios”
“Tô falando de outra coisa. Quero saber qual seu maior tesão na vida”
“Liberdade”
“A sua ou a dos outros?”
“A de todos”
“Entendi… Bicha mentirosa”

A conversa correu arrastada, tentando aproveitar o momento bom que já tinha acabado,
fazendo sala-quarto-cozinha-banheiro pra esticar qualquer tic-tac que o ponteiro do tempo do
nosso prazer estava fazendo. O relógio dissera que era minha hora de partir. Fui ao banheiro
para tirar o cheiro do sexo. Apanhei minhas coisas e parti num cumprimento cordial e
amigavelmente romântico com aquele homem que me chamava de garoto.
Dentro do meu ônibus abro meu livro de poemas soltos e encontro uma folha rasgada amarela
no meio de tantas páginas pálidas.

“Morrerei grato por ter dividido essa mentira bem contada com você”
Dali em diante a viagem foi só ladeira abaixo. Com meu olho direito consolando o choro do
irmão, e o esquerdo escutando os conselhos falsos do parente emocionado. Ambos como
sempre, indignados com a falta de empatia do nariz entupido de catarro. Ambos sentindo a
mesma coisa, sabendo que nunca poderão se encontrar num abraço.

CADUMMA

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