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PALIATIVO

Elidia Novaes

Elidia,
Está muito bonito e tocante, com vários trechos preciosos, inclusive reflexivos. Mas,
em termos da proposta, não identifiquei os objetos, porque, se eles aparecem, estão
muito dissolvidos no meio de muitos outros. E quanto à reflexão, localizei dois trechos,
mas, se possível, gostaria que houvesse mais. Penso que seu texto dá muita margem a
isso, pela densidade. O trecho sobre o irmão silencioso está lindo! E o leitor pode
sentir nitidamente a sensação dessa jornada absurda no hospital. Que experiência,
Elidia!
beijo,
Noemi

Esfrego as mãos. Já gosto do cheiro do álcool gel.


Aproximo as palmas das mãos ao rosto. Respiro fundo. Duas vezes, mais uma. E volto.
Ali dentro, só um bipe eventual e sem ritmo. Giro a tampa do suco de cupuaçu. Uma
volta, e duas. O líquido espesso dedura o açúcar, escorre para o copo junto com a
certeza da escolha errada. O primeiro gole, o muxoxo, minha cabeça em movimento
lento, esquerda direita esquerda. Sim. Quando meu irmão trazia, tinha gosto de afeto;
agora, só sabor de excesso, parecido com o recibo da Uber que diz 98,30. Antigamente
era separado. Carestia, volúpia, gordice. Hoje tudo é excesso. E é tudo que se busca.
Porque a vida é hoje; agora; minuto é muito.
Mais um gole desse açúcar em forma líquida, quase um melaço. Justo o irmão que
quase não fala. Tudo que ele sempre queria era me dar garantias. De que estava ali, de
que estaria ali. Um jeito tão difícil de demonstrar e tão difícil de perceber afeto. E tão
precioso; tudo dentro de 500 ml de suco de cupuaçu. Bem docinho. Por outro lado,
uma vez, depois da internação por covid, tive uma crise de choro e ele ficou ali do meu
lado, e aquele silêncio presente era tudo de que eu precisava. São três irmãos, cada
um de um jeito, cada um de um jeito difícil de entender quando é amor. Demorei até
perceber que, no meio das idiossincrasias, eles foram criados não para não sentir, mas
só para não dar na vista. No final das contas, é difícil para todo mundo, cada um de nós
à sua maneira.
O frio na janela me espanta, fecho e imediatamente pego o controle remoto e me viro
de costas para o leito. Programa de música sertaneja, filme tipo sessão-da-tarde,
desenho (super)animado, repeteco de jogo, novela na Record, caneta para deixar a
pele mais macia, programa de culinária, de fofoca, hipnose para perder peso, culto de
igreja duvidosa, xampu para deixar mais inteligente, chá para aumentar libido,
repeteco de jogo, programa de música sertaneja, culto de igreja duvidosa 
A janela, quem sabe. Lá vem o guarda na última ronda. Vira a esquina vindo da rua de
baixo, para, espia de um lado, espia de outro, espia de novo, apita seu apito
desafinado e ardido. Fez isso a noite toda. Tira o maço meio amarrotado do bolso da
camisa. Só deve ter uns quatro ou cinco cigarros. Olha ali dentro e confere, sim, tem
poucos. Tenta o isqueiro uma, duas vezes. Na terceira, acende. Suga profundo e solta
a fumaça pelo nariz. Agora anda da árvore ao poste, do poste à árvore. Olha para a
brasa e para os dois dedos, aperta o cigarro um pouco, que fica meio amassado, meio
torto. O filtro molhado. Fuma até o toco. Chega na beira da calçada, procura um inseto
qualquer, ali, uma barata meio tonta. Apaga a bituca nela. Fica agachado olhando a
brasa, olhando, olhando fixamente até a tortura terminar. Não. Apagou antes. Ele vê
um retalho de seda estampada na sarjeta, um restinho de álcool gel na lixeira da
lavanderia por quilo. Usa como pavio e se agacha de novo. Reacende a chama, bem de
levinho até acabar o inseto. Ou a brasa. Se espreguiça e senta na mureta da alemã que
vende biscoitos holandeses e os vizinhos chamam Ingrid Von Herbert por conta de
uma personagem antiga de uma novela também. Fica lá um tempão antes de seguir
adiante. Dessa vez, poupa nossos ouvidos do apito desafinado para não dar na vista
que ficou parado ali esse tempo todo. Seu passo agora é acelerado, porque logo passa
o Jardim Celeste ou a van. Se ela não cruzar o farol aberto e passar direto pelo ponto
em frente ao café frequentado pelos médicos, a van é melhor. Do Zoo Safari, ele pega
só mais um ônibus até a divisa Diadema ou vai a pé até em casa. Só sei disso porque a
Shirlei, técnica de enfermagem que também não suporta aquele apito ardido, me
contou. Ela mora na divisa também e corre atrás da mesma van.
Um bipe, outro, ainda sem ritmo.
Daqui vejo a esquina e não vejo a barata. Mas tenho convicção, como dizem. Ali,
embaixo daquela gaze entre grená e azul, quase toda queimada com bituca. Uma a
menos, agradeço. Lembro de quando era pequena e tinha febre, dizem que nem
precisava ser de mais de 38 graus. Meu pai varava a madrugada comigo no colo, dando
tapinhas de confiança. Vai passar. A nossa volta, milhares de baratas subiam pelas
paredes, a mobília, as pernas e braços dele. Já vai passar. Acontece que pavor demora
mais. Paciente, ele batia de leve nas minhas perninhas e bracinhos, derrubando
exércitos de monstruosos insetos imaginários.
Música sertaneja, filminho, desenho, repeteco de jogo, novela na Record, caneta para
deixar a pele mais macia, celular para falar com outras pessoas, culto
Dia nascendo ali fora. Cantarolo Tom Waits.
You can put all of my possessions here in Jesus' name / And nail a sign on the door
Bright and early Sunday morning with my walking cane / I'm going up to see my Lord
Oh remember you never trust the Devil / Stay clear of Lucifer's hand
Oh and don't let 'em wander in the meadow / Or you'll wind up in the fryin' pan 1
1
Podem transferir todos os meus bens aqui na Terra para o nome de Jesus / E pregar uma placa na porta
Manhã brilhante de domingo com meu cajado / Eu vou subir para ver o Senhor
Nunca confie no Diabo / Fique longe da mão de Lúcifer
Não deixe minhas crianças vagarem por aí / Ou você vai acabar na caldeirinha
Os bipes continuam, um sim dois não, um sim três não
Lá vem ela, todo dia, correndo. Paramentada da cabeça aos pés, faixa na cabeça,
bermuda justa de stretch, tênis em cores cítricas, camiseta regata roxa, top verde,
faixa atoalhada num pulso; no outro, relógio daqueles que marcam peso, altura,
velocidade do vento, preferência sexual e prato tunisiano favorito. “Gostosa. Tudo isso
de cor e ainda precisa correr? Já chamou minha atenção” diz alguém no ponto de
ônibus. Não dá para ver quem é por causa da imagem gigante de uma mulher fazendo
boca de beijo para dizer que tem um banco que não cobra taxas.
Ela para, olha em volta sem foco certo, a boca se mexendo em sussurro inaudível.
Suspira e segue em frente. 50 metros e volta, continua correndo parada. Dá para ouvir
quando diz Podia estar roubando, matando ou sentada feito um inútil, bêbado no
ponto de ônibus, mas só hoje resolvi cuidar da minha vida. Também podia ter ficado
quieta ou ter pensado em algo mais bacana, mas assim está bom demais. Retoma sua
direção e volta a correr em movimento. Fosse eu, dava um soco bem dado no nariz,
esmurrava com tanta força até esquecer o por quê. E batia mais, chutava a barriga
quando caísse, pisava na cabeça, arrebentava aquela cara estúpida, arrancava os
dentes, rasgava o nariz, furava um olho, depois o outro, quebrava um joelho e os dois
tornozelos, batia muito, ajoelhava em frente àquele tórax e descia os dois punhos
como martelos, juntos, aumentando mais e mais a poça rubra e marrom. Até esquecer
por quê.
Uma lista. Tudo que faço quando não sei mais o que fazer. A caneta verde do MoMA.
Hidrográfica fina. A tela gigante de nenúfares no hall, a impressão de que aquilo nunca
ia acabar. Nem sou muito do tipo expressionista, mas naquela manhã fiquei sentada
no banco em frente por muito tempo, não sei quanto tempo, não sei quantas pessoas
passaram entre elas e eu. As flores quase se mexiam.
Mais álcool gel.
Começo a anotar.
Fisioterapia às 17
Carta para Anatel
Revisão do benefício
Combinar de encontrar o Danilo
Checagem do vazamento de óleo do carro
Torta para a sogra do Zé Enrique
Estreia do Serginho no Ipiranga
Dentista na 5ª
Ligar para a Camila, gerente do banco
Fraldas geriátricas

Um tufo de pelos do cachorro no braço do casaco. Incluo na lista:


Ligar para o Reinaldo sobre a coceira do Capitão Bingo. Será dermatite? Ou um
antipulga resolve?
Vejo a ponta do cartão do meu amigo. Leio
Me abraça, me beija, me chama de seu amor, mas não vou não. Essa festa é muito
heteronormativa. Amanhã te ligo

Caneta, lista, anoto


Ligar para o Dani só pra dizer que amo também

Entra alguém com uma bandeja. Anuncia almoço. E continua Só para acompanhante
Como sempre, tento adivinhar sem ler as etiquetas nas tampas. Frango? Polenta? Sopa
de cenoura? Crème Brulée? Duas colheradas e desisto, nem toco os outros potes.
Afasto a bandeja. Desisto de adivinhar e de comer (ou será que o verbo é beber aquela
gororoba?) Não sei.
bipe
Sertanejo creme hipnose fofoca receita caneta jogo novela
Guarda, só mais tarde. Barata a qualquer hora
garrafa de suco de graviola
caneta verde do MoMA SFco
álcool gel
retalho de seda estampada
recibo do Uber
pimenta calabresa
controle remoto da tv
cartão do André
tufo de pelos do cachorro
livro poema do Tom Waits

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