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Para Felipe, com todo o meu amor

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Eu não podia mais segurar. O segredo estava me


matando! Atravessei a horda de pessoas bem
vestidas da festa à procura de seu rosto. Ele
precisava saber o que eu sentia.
Será que era o certo a fazer?
Eu não fazia ideia.
Minhas mãos tremiam enquanto eu olhava de um
lado para o outro à procura daquele rosto que fazia
meu coração saltitar igualzinho a um fã
ensandecido em show de pop. A única coisa que eu
sabia é que não eu podia perdê-lo sem antes tentar.
E então eu o vi, escondido entre uma pessoa e
outra que tapava a minha visão. Apertei o passo e
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ajeitei o vestido colado no corpo – Deus! Aquele


vestido estava muito apertado –, a respiração
entrecortada traindo meu raciocínio lógico.
Que se dane a lógica!
Foi quando ultrapassei a última pessoa entre nós
que meus olhos viram o que me pareceu um soco
no estômago.
Não que eu já tivesse tomado um soco no
estômago para saber como é.
Mas eu definitivamente preferia ter levado um.

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– Ela chegou? – pergunto.


– Ainda não, Melissa.
– Cadê ela? – penso alto.
– Como é que eu vou saber?! – responde a
magnífica assistente do consultório, Lorraine, uma
garota de 18 anos com descendência japonesa,
ligeiramente viciada em café e que parece não ir
muito com a minha cara.
Talvez eu devesse voltar para a terapia. Sabe
como é, para acalmar os nervos. Isso se não for
normal querer esbofetear a própria paciente na cara,
quando você mesma é uma psicóloga.

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Algumas pessoas dizem que tenho tendência a ser


um pouco compulsiva em relação à organização,
mas elas erram na questão da intensidade. Eu sou
extremamente compulsiva.
Alana está atrasada de novo. Ela deveria estar
aqui há 28 minutos e até agora nada. No começo eu
ficava toda preocupada, no estilo “ai meu Deus,
será que alguma coisa terrível aconteceu com ela?
Blá blá blá”. Mas no dia em que ela apareceu
dizendo que algo terrível havia acontecido sim, que
seu salto havia quebrado e ela teve que parar para
comprar um novo, eu parei de cogitar chamar a
polícia por causa de um possível sumiço dela.
O problema é que não acho justo atrasar minha
agenda inteira por causa de uma paciente só.
Tá legal, tá legal, certo. Eu só tenho duas
pacientes e elas nem ao menos se consultam
comigo no mesmo dia. Mas isso não dá a ela o
direito se atrasar o quanto quiser. Ou será que dá?
Porque, querendo ou não, ela paga as minhas
contas.

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Faz quatro meses que toda segunda-feira de


manhã é a mesma coisa, e eu sempre me pergunto:
Cadê a porcaria da Alana?
Um único raio de sol adentra minha sala rosa-
claro através da janela sem cortinas, aquecendo um
pouquinho a mesa de madeira.
Aponto o lápis mais uma vez. Já fiz isso tantas
vezes pra passar o tempo que daqui a pouco vou
ficar sem lápis nenhum pra escrever. Assopro a
ponta perfeitamente afiada e o coloco no lugar
novamente.
Contribuiria bastante com a minha paciência se
Alana não fosse um tantinho desagradável. No
início eu a achava uma fofa. Que garota bacana.
Mas quanto mais tempo eu passo com ela, mais eu
me surpreendo com o quanto ela pode ser maldosa.
E, por mais que eu tente mudar isso, a língua dela é
mais afiada que a ponta do meu lápis.
O telefone da minha sala toca e eu pego o
aparelho do gancho.
– Ela chegou – diz Lorraine.

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– Aleluia! – respondo, os ombros caindo de


alívio.
Alinho minha agenda com o porta-lápis e a base
do telefone, analisando se a distância entre eles está
simétrica. Talvez um pouco mais para a direita...
Isso, assim está melhor. Ou será que ficou torto?
Preciso de uma régua...
Neurótica? Eu sei.
– Manda essa criatura entrar de uma vez – digo, o
telefone entre a bochecha e o ombro, enquanto
continuo analisando a droga da agenda.
– Humm... você está no viva-voz.
– Você colocou no viva-voz? – falo baixinho. –
De novo?
Quem mandou ela fazer isso? Eu já falei pra ela
parar, mas ela diz achar chique.
Por que eu fui chamar Alana de “criatura”? Será
que ela escutou? Ah, é claro que escutou! Ela não é
surda! Apesar de que está sempre tão concentrada
nela mesma que pode nem ter notado.

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– Bom, eu sabia disso, hahaha... – tento disfarçar


a enorme gafe. – Alana, querida, pode entrar!
– Agora já tirei do viva-voz, ela não escutou essa
última parte – droga, Lorraine! – Quer que eu
coloque no viva-voz de novo?
– Só peça para que ela entre, sim? – bato o
telefone no gancho. Às vezes eu acho que Lorraine
faz essas coisas de propósito.
Um vento gelado me estapeia na nuca e vou até a
janela para fechar o vidro. Se eu me esticar o
suficiente consigo ver os carros passando depressa
pela Avenida Paulista. Ontem fazia um calor de
andar de calcinha pela casa. E de um dia pro outro,
literalmente de um dia pro outro, a frente fria citada
há duas semanas no Jornal da Noite do canal 6
finalmente chegou a São Paulo.
Muito pontual. Igualzinha a Alana.
Sento-me na cadeira branca do meu consultório e
apoio os dois braços sobre a mesa juntando as duas
mãos, pose que na minha cabeça representa
profissionalismo.

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Quando a porta se abre e apresenta Alana, com


seu cabelo loiro claro, curto e liso, sem nenhum fio
fora do lugar, e o rostinho fino de princesa da Idade
Média, minha pose mais se assemelha com algo
vindo de uma ogra (também da Idade Média). Eu
nunca conseguiria manter um penteado chanel
desses nem se minha escova progressiva
funcionasse perfeitamente bem. Meu rosto é
redondo demais para essas coisas.
Tenho cabelos pretos e meu rosto é bem
branquinho, com a presença de enormes bochechas
rosadas (leia-se bochechuda). Posso dizer que me
considero uma garota bonita, com meus olhos cor
de mel e meus suéteres em tons pastéis.
Mas a minha paciente? Ela é deslumbrante!
Está usando uma blusa de linho branca por baixo
de um terninho vinho – a cor da estação, segundo
todas as revistas de moda –, uma calça preta justa
com detalhes em dourado – não me surpreenderia
se fosse mesmo ouro – e botas pretas de salto alto.
Ela é alta e magra, mas daquele tipo de magra que

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ainda teve a sorte de ter... bem, sejamos diretas, a


sorte de ter bunda.
Pelo que ela me conta, se esforça bastante indo à
academia pelo menos quatro vezes por semana.
Aposto que se eu tivesse um pouco mais de força
de vontade e dinheiro, minhas coxas seriam bem
menos moles e eu não estaria três quilos acima do
peso. Nem para a academia eu vou, apenas
caminho algumas vezes por semana.
Tá legal, algumas vezes por mês.
Tá, tá... por ano. Que seja!
Mas, como eu ia dizendo, não é minha culpa.
Meus genes vieram com pouca força de vontade e
muita preguiça. O mesmo serve para dietas e
descascar frutas.
– Jesus! Quanta gente feia! – Alana abre um
sorriso irônico, bate a porta com um empurrãozinho
da própria bunda e senta-se na cadeira de couro
branca a minha frente.
O cheiro de seu perfume doce mistura-se com o ar
da minha pequena sala. Por que nenhum perfume

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fica tão forte assim na minha pele?


Obviamente é essa a diferença entre colônia e
perfume importado.
– Por isso me atrasei! – ela move as mãos
enquanto fala.
– Por causa de... humm... pessoas feias?
Ela apoia o cotovelo na mesa, chegando mais
perto de mim.
– Quer saber por que me atrasei?
– Er... quero?
Ela levanta o dedo indicador.
– Pois vou te contar porque me atrasei.
E aí vem a desculpa de hoje, senhoras e
senhores:
– Tive que chegar até aqui de metrô – Ela revira
os olhos, dizendo a última palavra de forma
pejorativa. – E tem muita gente esquisita por lá.
Fala a verdade?
– Você veio de metrô? – digo, ignorando a última
parte.

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– Incrível, não? – ela coloca a mão na testa e


bufa.
Depende da linha pela qual você veio.
Aposto que ela veio pela Linha Amarela, a linha
mais “rica” da cidade. Ou a menos pobre.
As linhas Amarela, Azul e Verde do metrô são o
paraíso, se você as comparar com a superlotada
Linha Vermelha às seis da tarde. Dá arrepios só de
pensar.
– E por que veio de metrô? O que houve com o
seu mega-ultra-blaster-luxuoso carro? – é claro que
eu omito a parte do “mega-ultra-blaster-luxuoso”.
Mas o que mais eu poderia pensar de uma BMW? –
Está no conserto?
– Ah, não. Não houve nada com o meu carro. A
revista está me obrigando a escrever uma matéria
sobre adolescentes no metrô de São Paulo e então
uma coisa me ocorreu: eu nunca nem sequer tinha
botado os pés no metrô. Nunquinha!
Ajeito a postura na cadeira, reprimindo um
bocejo.

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– Mesmo?
– É claro que não! – retruca ela, sua língua afiada
entrando em ação. – Metrôs são muito nojentos.
Milhares de pessoas sentam-se na mesma cadeira
todos os dias. Já parou para pensar nisso? E você
consegue imaginar quanta gente já passou a mão
nas partes íntimas antes de se segurar nas paredes
durante a viagem?
Por que ela pensa que as pessoas se seguram nas
paredes? Ela não deve ter prestado muita atenção
em sua pesquisa de campo.
Ela balança a cabeça negativamente para mim.
– Não sei por que você ainda utiliza esse serviço,
Mel. Sinceramente.
Ah, minha nossa, por que não pensei nisso antes?
Ela abriu minha mente agora. Bum! Que gênio da
vida moderna Alana é! Acho que de agora em
diante eu também vou parar de andar de metrô por
aí e me locomover apenas de BMW.
Será que ela não entende que pessoas de classe
média e baixa precisam andar de transporte

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público? Já que essa é a única alternativa


disponível, varremos o pior para o fundo da nossa
mente e focamos nas coisas positivas.
“O metrô é limpinho. O metrô é incrível. Que
rapidez! Bem melhor que andar de BMW.”
– Bem, eu não gosto de pegar trânsito para chegar
em casa, por isso ando de metrô – digo, mas nem
eu mesma acreditei nessa. Tiro rapidamente o foco
de mim. –Mas você estava dizendo...
– Sim, estou fazendo uma matéria sobre
adolescentes que utilizam transporte público na
nossa cidade – ela me interrompe. – E o meu
editor...
Que no caso é o pai dela...
– Quer que eu escreva menos sobre celebridades.
Ele disse que eu precisava... bem, como se diz? –
ela abana as mãos com desdém. – “Saber como é
fazer parte da sociedade trabalhadora?”
“Parte do povão”, foi o que ela quis dizer.
Apoio os braços na mesa e entrelaço os dedos.
– E como foi essa experiência para você?

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Acredito que, como sua psicóloga, tenho o dever


moral de tentar mudar alguns de seus pensamentos
mesquinhos, e fazer isso sem utilizar a força dos
meus punhos pode se mostrar uma tarefa muito
difícil.
– Algo que eu não quero repetir. Vi muitos
modelos fora de moda, roupas esquisitíssimas. Uma
mulher combinou calça listrada com blusa
estampada de bolinhas e uma bota ridícula de couro
barato. Quer dizer, por favor, né? Tenha um pouco
de bom senso. E ela era bem gorda.
Minha expressão permanece imóvel enquanto ela
profere ofensas a uma mulher que nem mesmo
conheço, a fim de não mancomunar com essa
atitude hostil. Mas ela debocha de tanta gente que
meu choque é cada vez menor.
– Não acha que algumas pessoas não têm
condições para comprar roupas elegantes?
Ela dá de ombros.
– Seja como for, fico contente de não ter que
passar mais tempo com elas para descobrir.

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Alana continua falando, falando e falando sobre


as “mulheres gorduchas”, suas roupas “ridículas” e
seus penteados “horrendos”, enquanto gesticula
loucamente – as mãos se movendo freneticamente
enquanto fala, sua marca registrada –, esquecendo-
se de mencionar o objeto de estudo em questão: os
adolescentes.
Inclino-me para trás na cadeira, assustada, quando
a mão agitada dela esbarra no meu porta-lápis
meticulosamente organizado – pobres canetas
perfeitamente arrumadas! – e ele despenca sobre a
mesa, jogando os lápis e canetas pra tudo quanto é
lado, saindo do seu lugar tão estrategicamente
pensado.
Tento disfarçar meu incômodo, afinal, qual é a
culpa dela nisso? Ela nem ao menos sabe que isso é
um problema para mim. E nem pode saber! Isso
não é algo que eu saio por aí contando para todo
mundo.
Mas, poxa vida, um dos lápis até rebateu na mesa
e veio parar no meu rosto, pelo amor de Deus!

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– Ai, querida! Me desculpe... – diz ela, as mãos


pairando sobre a mesa, fazendo menção de
organizá-la, mas na verdade esperando que eu
mesma conserte as coisas.
– Er... não faz mal.
Mas faz sim. Rapidamente coloco o porta-lápis de
volta no lugar, me afasto e confiro se tudo está em
seu devido lugar.
Está tudo arruinado! Minha mesa é uma cena
apocalíptica do mundo dos lápis. Meu olho começa
a pinicar e devo estar quase chorando, porque
Alana se inclina para a frente e olha bem no fundo
dos meus olhos.
– O que foi? – pergunto.
– Eu acho que a ponta de um lápis entrou no seu
olho.
– O quê? – uma pontinha de dor me ataca quando
toco de leve o olho direito. Oh, meu Deus! – Com
licença.
Fico de pé com um sorriso forçado, abro a porta
da sala e saio correndo pelo corredor tentando não

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chorar e escondendo o pânico que sinto até chegar


ao banheiro.
Tranco a porta atrás de mim e tenho quase certeza
de que ouço um “ai, credo” vindo na forma da voz
irritante daquela maluca rica furadora de olhos!

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Ao olhar no espelho, descubro que ela estava


certa. Ai, credo!
Há uma ponta bem pequenininha do grafite
movimentando-se dentro do meu olho, pra lá e pra
cá. Cada vez que eu pisco, dói um pouco. Há uma
área particularmente dolorida e concluo que deve
ter sido ali que a ponta do lápis bateu e quebrou.
Não acredito que Alana furou o meu olho!
Preciso tirar o grafite dali. Ai, meu Deus! Como
eu tiro?
Não é que eu tenha medo de ir ao médico nem
nada parecido, porém nunca tive a ponta de um
lápis enfiada no meu olho. O que acha que vai
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acontecer quando eu chegar lá? No mínimo, eu vou


ter que tomar uma anestesia no globo ocular com
uma agulha gigante, que vai entrar pela minha
retina, chegar no meu cérebro e...
Ah, pronto, tirei.
Com um leve toque, o grafite saiu do lugar e
pousou em minha mão. Ufa!
– Mel, querida... – A voz de Alana soa abafada do
outro lado da porta. – Você está bem?
Que bem o quê?! Você furou o meu olho, tenho
vontade de gritar. Mesmo que meu olho pareça
perfeitamente bem, após eu ter recuperado a ponta
milimétrica do grafite que joguei na pia. Bom,
ninguém mandou eu apontar tanto a droga do lápis.
Para o meu horror, porém, ainda tenho vontade de
chorar. Demorei muito tempo para organizar o
porta-lápis. Respiro fundo e engulo o choro.
Mesmo porque ninguém mandou eu ter TOC!
A que nível da minha compulsão eu cheguei?
Será que fiquei tão nervosa com a mesa
desarrumada a ponto de não perceber que o lápis

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com a ponta mais afiada do mundo tinha decidido


pousar no meu olho? Porque, se for isso, preciso
conversar urgentemente com uma psicóloga.
Limpo o olho com papel higiênico – é a primeira
vez que desconfio do quão higiênico ele é. Abro a
porta e encontro Alana mexendo em seu celular,
mais interessada na timeline do seu Facebook.
Ela olha para cima, com menos remorso do que
eu gostaria de ver.
– Ai, você tem que me perdoar – ela encosta a
mão magricela e “manicurizada” na minha.
– Tudo bem, não foi sua culpa – ajeito o meu
suéter na cintura e forço um sorriso. – Eu vou ao
médico mais tarde. Tenho certeza de que não foi
nada.
Ela parece tranquila demais para o meu gosto e
volta para a minha sala, esperando que eu a siga.
Que folgada!
– Então... – ela fala mais ansiosa do que o normal,
aparentemente torcendo para que eu deixe o
episódio do olho para lá. Mesmo sendo difícil de

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imaginar como ela mesma pode esquecer se estará


olhando diretamente para ele pela próxima meia
hora.
– E então? O que me conta? – faço a minha
pergunta padrão de início de consulta.
– Eu estou noiva! – ela desembucha.
– Você o quê?
Ela pirou de vez?
Eu estaria piscando sucessivamente se
conseguisse, mas essa façanha reserva-se aos que
não estão com o olho dolorido.
– Mas você está namorando só há três meses –
digo com calma, porém completamente consciente
de que minha paciente com padrão de
impulsividade está prestes a se jogar de cabeça em
mais um relacionamento.
Ela sorri, radiante, revelando dentes muito
brancos. Com certeza é clareamento.
– Eu sei! Não é o máximo? Eu deveria ganhar um
prêmio por fisgar um cara em tão pouco tempo.

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É verdade. Foi um belo feito. Ou será que o


problema é o cara? Desvio-me do meu instinto de
oferecer meus serviços a ele, preocupada com sua
saúde mental, e prossigo em minha busca pela
explicação.
– Não acha que é um pouco cedo? – pergunto,
com cautela.
– Cedo? Eu já tenho 23 anos, pelo amor de Deus!
A última coisa que quero é ficar para titia. Sem
ofensa, Mel – suas sobrancelhas perfeitamente
desenhadas juntam-se com pena, e ela focaliza seus
olhos pretos no meu dedo anelar sem aliança
nenhuma.​ – De jeito nenhum serei uma velha dona
de 27 gatos.
Ora! E por que é que eu deveria me ofender? Não
estar noiva automaticamente me categoriza como
uma pessoa solitária? E por que é que não deixam
as donas de gatos em paz, droga?!
– Não me ofendi, humm... só tenho 24 anos –
tento manter a calma (psicólogos devem manter a
calma, certo?) e mudo de assunto dizendo a única

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coisa que julgo adequada no momento. – Então,


meus parabéns pelo casamento!
Estico a mão e toco levemente a dela, o mais
distante que consigo, tirando meu olho de seu
alcance. Vai saber o que a furadora de olhos pode
fazer! Sinto seu perfume doce ainda mais forte
entrando pelas minhas narinas. E no meu olho, que
arde levemente.
Apesar de ser muito cedo para um noivado, a
coisa mais sensata no momento é lhe dar os
parabéns. Ela não escutaria uma palavra do que eu
tenho a dizer no calor do momento. É recente
demais.
Porém, terei que investigar se esse é o melhor
momento para que ela tome uma decisão como
essa, e fazer algo a respeito. Afinal, sou uma
psicóloga especializada em relacionamentos. Foi
por isso que ela me contratou. E isso me coloca na
posição moral de alertá-la.
– E quando foi que isso aconteceu? – estou um
tantinho curiosa para saber como esse cara decidiu

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passar o resto de sua vida com uma mulher como


Alana.
– Sábado passado. E eu fiquei tipo assim, muito
surpresa com o pedido. Não consegui falar nada! O
restaurante inteiro esperava pela resposta. Aí uma
velha intrometida atrás de mim falou “Vamos, meu
bem, se você não quiser, eu aceito”. Então eu disse
“Cale a boca!” para ela e aceitei o pedido. Recebi
uma salva de palmas do restaurante inteiro!
Ela bate palminhas.
Gosto da história. Aliás, é exatamente assim que
imagino ser pedida em casamento. Menos a parte
de ofender uma senhora de idade e mandá-la calar a
boca, é claro.
– Ele me deu esse anel – ela estica a mão a cinco
centímetros do meu rosto e eu nem sei dizer se é
um diamante, de quantos quilates ou quanto custou,
pois nunca vi algo parecido. – Sei lá, eu o achei
pequeno demais, você não achou?
– Se tem uma coisa que esse anel não é, Alana... é
pequeno – digo, sem conseguir tirar os olhos do

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diamante, ou seja lá que pedra brilhante for essa.


– É, pode ser – ela desdenha com as mãos e
prossegue a todo vapor. – Os preparativos do
casamento já foram iniciados. Não vou ficar me
estressando com pagamento, reservas e todas essas
coisas chatas. Disso meu noivo que cuide. E deixei
minha assistente pessoal cuidando do resto: lista de
casamento, confecção dos convites etc. Para que eu
possa decidir somente do que gosto e do que não
gosto.
– Aham.
– Cá entre nós... ​– ela se inclina, em tom
conspiratório. – Estou bem mais preocupada com o
vestido de noiva.
Às vezes me esqueço do quanto Alana é rica. Ela
vem de uma família tão rica, mas tão rica que
jamais precisará se preocupar com a aposentadoria.
Ou com a aposentadoria dos filhos. Ou qual dos
Berlocs da Vivara vai comprar em seguida para
completar sua pulseira Life. Pois ela já comprou
todos.

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Ela pode comprar a Vivara, pelo que eu entendo.


Nunca entendi exatamente por que ela se consulta
comigo, dentre tantas outras terapeutas. Tudo bem
que eu sou especializada em relacionamentos e não
se encontra uma dessas em cada esquina. Mas
mesmo assim. Alana é tão rica que pode contratar
uma terapeuta particular para dormir em sua
mansão, em vez de se deslocar até este lado da
cidade exclusivamente para me ver.
– Eu não contrataria uma terapeuta particular.
Preciso fazer algumas coisas... Humm... como se
diz? Fazer coisas como o resto das pessoas, sabe? –
respondeu ela quando lhe perguntei sobre isso uma
vez. Desde então, eu sempre a escuto usar esses
termos que significam “parte do povão” de forma
implícita.
Nós nos conhecemos numa loja caríssima de um
shopping da Zona Sul, onde quase nunca entro,
pois minha conta bancária não permite. (Até posso
comprar uma peça de lá se eu vender um rim e tirar
uma boa grana com esse procedimento.)

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Ela chegou perto da arara que eu estava


bisbilhotando bem no momento em que eu
segurava a etiqueta que marcava R$860,00 reais em
um vestidinho preto básico.
– Uau! Olha esse preço! – eu sussurrei a ela.
– Deve estar errado, não é possível – Alana disse,
o rosto impassível.
– Eu sei! Também fiquei chocada! – disse eu, de
repente mais à vontade na loja, agora que tinha
alguém com quem compartilhar meu espanto. Até
ela começar a sorrir, levantar o nariz, puxar o
cabide com o vestido e entregá-lo à vendedora de ar
esnobe para que ela colocasse no provador com
suas outras peças, e eu entender que na verdade ela
tinha achado o preço absurdamente ridículo de
barato.
Alana me pareceu simpática (posso ter me
enganado um pouco aqui). Quando eu lhe contei
que era terapeuta, logo pediu meu cartão de visitas
e falou que eu tinha acabado de ganhar mais uma

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paciente. O que ela não sabia é que ela era apenas a


segunda.
Quando percebeu que eu sairia da loja sem
comprar nada, Alana estendeu um cardigã rosa-
claro para a vendedora e disse:
– Embrulhe para presente, Silvia. Para minha
mais nova terapeuta.
É a peça mais cara do meu guarda-roupa até hoje.
Reescrevendo: a peça é mais cara do que meu
guarda-roupa.
– Como está se sentindo em relação a tudo isso? –
pergunto a ela, tentando voltar ao que realmente
interessa.
Ela começou a se consultar comigo porque não
conseguia fixar-se em um relacionamento sério.
Desde então, torci para que ela encontrasse um cara
legal. E, para minha surpresa, ela encontrou.
Desconfio que eu seja o cupido, porque em menos
de um mês ela conheceu um novo partido e
embarcou de cabeça em mais uma jornada
impulsiva no amor. Mas casar-se com ele depois de

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tão pouco tempo de namoro? Eu me importo muito


com os meus pacientes e estou preocupada com ela.
Isso só deveria ser permitido em filmes.
Ao longo da terapia, trabalhamos para que ela se
torne uma mulher mais pé no chão, porém temo
que sua personalidade impulsiva atrapalhe sua
recuperação.
Alana entrelaça as mãos, apoia os cotovelos na
mesa e o queixo nos dedos.
– Não posso dizer que não fiquei surpresa. E
entendo sua preocupação, juro. Mas acho que
Rafael é o homem da minha vida. Tipo, ele me
entende como ninguém. Todo mundo me acha fútil
ou mesquinha. Ou as duas coisas. Mas não ele...
Minha paciente parece feliz e eu começo a pensar
em minha vida. É bem patético estar sentada na
frente de uma garota tão deslumbrante quanto ela,
que tem um cara atrás do outro tentando conquistá-
la, e ainda por cima está noiva de um deles.
Enquanto do outro lado da mesa está uma terapeuta

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de relacionamentos, que provavelmente também


precisa se consultar com uma.
Talvez um casamento repentino seja melhor do
que casamento nenhum.
Se eu fosse comparar a vida dela com a minha,
estaria perdida. Tenho 24 anos e a essa altura eu
imaginava estar pelo menos namorando. E segundo
os meus planos, namorando com ele.
Tem mais alguma coisa me incomodando, só não
sei ao certo o que é.
Talvez seja difícil ouvir o nome do noivo dela,
xará do cara que eu amo.
Ou talvez seja apenas o meu olho dolorido.

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Eu estaria nesse momento seguindo em direção ao


metrô Trianon-Masp, provavelmente ultrapassando
alguns dos estudantes que acabaram de sair do
cursinho, na pressa de chegar ao hospital que o meu
convênio cobre, na Zona Leste de São Paulo.
Mas graças à bondade de Alana (ou à culpa pelo
incidente do porta-lápis/medo de ser processada),
sigo calmamente de táxi (pago por ela) em direção
ao hospital Santa Heloísa, que o meu convênio
definitivamente não cobre e nunca cobrirá, para ter
meu olho medicamente verificado (também pago
por ela).

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Não que eu fosse fazer falta alguma no


consultório, já que nesse início de carreira minhas
únicas pacientes são Alana e uma menininha muito
fofa chamada Camille. Espero que Camille não
tente me cegar na quarta-feira também.
Por causa do trânsito, a Avenida Paulista passa
devagar pela janela do táxi, contrastando com o
estilo de vida veloz da cidade. Prédios altos tocam
o céu, estudantes de mochilas nas costas andam
conversando uns com os outros e homens de terno e
gravata passam por eles, apressados. Duas
barraquinhas de pulseiras e colares artesanais estão
montadas na calçada movimentada perto de onde
duas mulheres da minha idade conversam
animadamente com alianças reluzentes no dedo.
Imagino que seja isso o que o amor correspondido
faz na vida de alguém.
Encosto a cabeça no banco do carro, deixando a
luz do sol esquentar minhas pálpebras.
Mesmo sendo melhor evitar pensamentos que me
façam chorar – meu olho já sofreu o suficiente por

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um dia – não consigo deixar de pensar no meu


Rafael e nos planos que tenho para nós dois.
Não que ele saiba desses planos. É complicado
contar ao seu melhor amigo que você gosta dele,
né?
O táxi com cheiro de pinho, vindo do
aromatizador em forma de árvore de Natal
pendurado no retrovisor, para na frente do
imponente hospital designado a mim. Como Alana
já havia dado uma nota de cinquenta ao motorista, e
o taxímetro marca apenas R$25,00, recebo um
sorriso de orelha a orelha dele ao sair do carro, feliz
com a gorjeta.
– Pode me ligar a hora que quiser, dona, que
venho na hora buscar você ou sua amiguinha loira,
viu? – grita o taxista e me entrega seu cartão de
visitas. Agradeço a ele, imaginando sua desilusão
quando descobrir que eu não daria gorjeta a ele
nem que faltassem apenas dez centavos de troco.
Olhando (com um olho só) pelo lado positivo,
pelo menos consegui o telefone de um cara hoje, se

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eu considerar serviços de táxi. Não que isso vá


acrescentar alguma coisa na minha vida romântica
inexistente.
Apoio-me no balcão de mármore para
atendimento do hospital, digo meu nome e o que
houve. A recepcionista, com um batom clarinho na
boca e o cabelo preso para trás, logo me diz que
uma consulta já havia sido marcada para mim e que
um médico me atenderá em instantes. Ela faz a
minha ficha e mal coloco a bunda na cadeira para
aguardar quando meu nome é chamado.
Hmmm. Então é assim que é ser rica.

Ando pela rua, aliviada. O vento gelado bate no


meu olho mas não me incomodo mais, depois de o
médico dizer que não houve nenhum dano ao meu
globo ocular, somente uma pequena irritação
causada pelo contato com o grafite do lápis, que

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pode deixar meu olho avermelhado pelos próximos


dois dias.
E ele até me deu uma amostra grátis do remédio,
assim não precisarei efetivamente comprá-lo. É por
isso que os ricos são ricos! Vira e mexe eles
ganham alguma coisa.
O Hospital Santa Heloísa fica localizado umas
ruas abaixo da Avenida Paulista. Como Alana não
pensou também no meu trajeto de volta, estendo o
braço e pego o primeiro ônibus que sobe a rua
inteira até o trabalho.
Abro a porta de vidro do pequeno consultório que
divido com o psiquiatra e psicólogo Júlio Parreira,
um velhinho de 67 anos com uma barriga enorme e
cabelos brancos.
É claro que já desconfiei que ele fosse o Papai
Noel. Ele pareceu ligeiramente incomodado quando
lhe disse isso certa vez. Suspeito, eu diria.
Dou de cara com uma recepção vazia. Lorraine
não está. Imagino que ainda esteja no almoço,
mesmo que esse já tenha acabado há treze minutos.

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Então vejo: ah, quanta bagunça! O quadro


abstrato cheio de formas e cores primárias na
parede atrás da estação de trabalho de Lorraine
combina com a confusão que é a mesa dela. Um
montão de papéis e pastas completamente
desalinhadas. Três pastas coloridas chamam mais a
minha atenção, empilhadas uma em cima da outra,
a primeira na horizontal, a segunda na vertical e a
terceira na horizontal novamente. Porque alguém
faria uma coisa dessas? Não é muito mais fácil
simplesmente empilhar a droga das pastas na
mesma direção?
Por que Lorraine nunca organiza sua mesa de
maneira adequada?
E por que eu tenho que me importar tanto com
isso? Por quê, Senhor? Por quê?
Argh!
Olho para os lados e vejo que ninguém se
aproxima. Lorraine não está em nenhum lugar para
ser vista. Removo a pasta de cima e coloco a
segunda na posição certa, deixando-as alinhadas.

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Mas quando estou para colocar a terceira no lugar,


percebo Lorraine parada bem ao meu lado, com um
coque no alto de seus cabelos pretos e um copo de
café na mão, me olhando com uma expressão
entediada.
–Ah! – solto um gritinho. – Você me assustou!
– Desculpe – ela diz, com uma mão no bolso da
calça jeans, olhando para os meus dedos em cima
das pastas de sua mesa.
Melissa, tire as mãos daí agora! Sua maluca
obsessiva compulsiva.
Mortificada, largo as pastas no lugar e assumo
uma postura autoritária, para disfarçar o TOC.
– Er... seria bom arrumar sua mesa de vez em
quando – digo sem sorrir, morta de vergonha. – Os
pacientes podem ter uma impressão errada do
lugar.
– Só fui pegar um café – diz ela sem nem me
olhar nos olhos, sentando-se em sua cadeira
confortável de couro, que de repente tenho vontade
de trocar por uma banqueta de plástico.

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Três copinhos usados de café espalham-se pela


mesa dela. Ambas sabemos que ela não tem uma
célula de organização em seu corpinho magrelo.
Meus dedos coçam. Mas a porta da sala de Júlio
se abre, distraindo-me de meus pensamentos, e ele
acompanha uma paciente até a saída.
Giro os calcanhares para observá-lo, apoiando o
cotovelo no balcão da recepção.
Tento tirar da cabeça o nervoso que mais uma vez
passei por causa do meu transtorno. Afinal, quantas
vezes já não passei por situações como essa? O
problema é que o TOC é algo que vai e volta em
minha vida, e eu tinha certeza de que dessa vez ele
não ia mais voltar.
Porém, de pouquinho em pouquinho, estou
começando a ter impulsos cada vez mais fortes. E
se eu me conheço bem, temo daqui a pouco estar
fazendo quatro faxinas por dia na cozinha lá de
casa (baseado em fatos reais).
Pense em outra coisa. Chacoalho a cabeça para
afastar os pensamentos inconvenientes.

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– Olha, essa mulher tem sérios problemas – ele


diz assim que fecha a porta atrás de si.
– Júlio! – arregalo os olhos. – Fale baixo! Ela
ainda podia estar do outro da porta quando você
disse aquilo.
Ele levanta as mãos para o alto.
– Ora, estou mentindo?
– Ué, eu não faço ideia! – digo, contendo o riso. –
Ela não é minha paciente.
– Bom, então vou lhe contar – ele se senta com
um estrondo na poltrona marrom do lobby. – Ela se
consulta comigo porque o marido...
– Lalalala! Isso é confidencial, eu não posso ouvir
– tapo as orelhas com os dedos.
– Você deveria estar tapando o olho, isso sim! –
ele aponta para o meu olho avermelhado. – Credo!
O que aconteceu? Tá tentando virar pirata?
Ele começa a dar risadinhas de mim com seu
senso de humor nada refinado, dizendo que vai me
comprar um tapa-olho. O bom velhinho não teria
uma conduta dessas.

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Eu me afundo dramaticamente na poltrona ao


lado dele.
– É uma longa história. Bom... na verdade, não é.
Minha paciente furou meu olho com um lápis. Fim!
De qualquer jeito, já fui ao médico.
– Ora, que diagnóstico deu a ela para ter feito
uma coisa dessas com você? Dupla personalidade?
– Foi só um acidente – não consigo segurar a
risada. – Mas chega de falar da minha vida sofrida.
O que há de novo com você?
Ele se encosta e entrelaça as mãos na barriga
protuberante.
– Ah, nada demais, nada demais. O mesmo de
sempre – ele me olha de canto de olho. – Aliás, tem
uma coisa.
Júlio se levanta e vai correndo até sua sala, a
maior do consultório. Ouço um barulho de gaveta
ao fundo, passos rápidos de um rechonchudo, uma
bufada, e então ele está de volta no lobby com o
celular na mão.

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– O que você acha? – ele estende seu smartphone


para mim e revela uma foto sua num jaleco branco
de médico e uma expressão formal no rosto. – Eu
me inscrevi em um site de namoros online.
– Tá brincando? – pego o celular das mãos dele.
– Por insistência dos meus filhos. Segundo eles,
eu deveria ter feito isso há um tempão. Decidi dar
uma chance.
– Júlio, isso é incrível! Bom pra você – analiso a
foto do meu amigo divorciado.​ – Essa é sua foto de
perfil?
– É sim, filha. Ouvi falar que mulheres adoram
médicos – ele levanta sugestivamente as
sobrancelhas.
– Se eu fosse você, colocaria uma roupa mais
informal, como uma camisa pólo. E tiraria outra
foto. E dessa vez sorrindo – acrescento.
Suas sobrancelhas se juntam e ele coça o queixo.
– Sem jaleco, sorriso no rosto – repito.
– Sem jaleco? – ele parece desapontado, suas
bochechas caídas de descrença. – Ora, mas então

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como é que elas saberão que sou médico?


– Elas não saberão – levanto o dedo indicador. –
Pense bem, doutor. Você não quer arranjar uma
namorada interesseira.
– Isso nunca! Já me basta minha ex-mulher.
– E, além disso, o jaleco pode dar a impressão
errada sobre você. Alguma mulher muito bacana
pode te achar um workaholic que não vai ter tempo
pra namorar.
– Você pode ter razão. Mas ainda não estou muito
certo quanto a isso. – Ele pega o celular de volta,
bloqueia a tela e passa a mão nos cabelos brancos
escassos.
– Sobre o jaleco? Olha, vai por mim, você não vai
querer uma maria-jaleco e coisa e tal...
– Não, não – ele me interrompe, achando graça. –
Quero dizer, sobre a coisa toda.
– Ah. Namoro online? E por que não?
– Não me parece uma maneira muito natural de
conhecer pessoas.
Apoio a mão no ombro dele.

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– O senhor deve fazer o que se sentir confortável.


Mas a internet é uma ótima ferramenta na busca por
relacionamentos. É uma forma como qualquer
outra. E há vantagens, como filtrar os interesses em
comum.
Ele calmamente sorri para mim, mostrando seus
dentes amarelados.
– Você é realmente boa nisso, não é, filha?
Cruzo as pernas e o couro sintético da poltrona
range.
– Err... não sei se isso é verdade.
– Ora, mas é claro que é. Você entende sobre
relacionamentos e quer ajudar as pessoas – ele me
incentiva, sabendo o quanto eu queria ter mais
pacientes. – Mais dia, menos dia, vai estar ajudando
muita gente.
– Obrigada, doutor. Assim espero.
Ele se levanta da poltrona.
– Não, obrigado você. Agora sim arranjo uma
namorada. Vou te comprar uma lembrancinha por
isso.

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– Imagine, isso não é necessári...


– Que tal um tapa-olho?

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Na sexta-feira à noite nos encontramos no Villa’s.


É um lugarzinho charmoso no bairro dos Jardins,
com a decoração composta de luzes verdes
fosforescentes iluminando lindos vasos de
palmeiras, cadeiras de ferro combinando com as
mesas de vidro, ocupadas por seus clientes ricos.
Então, o que é que eu estou fazendo aqui?
É o que eu penso toda vez que piso no Villa’s. O
burburinho animado vindo dos diversos happy
hours consegue me deixar mais empolgada – apesar
de o frio na minha barriga não ser por causa disso.
Não sei por que frequentamos tanto esse lugar se
o preço da água é mais caro do que a roupa que
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estou usando.
Bem, talvez eu saiba o porquê. E ali está o meu
porquê. Sentado em um dos banquinhos altos
acoplados ao balcão do bar está o meu melhor
amigo, Rafa. O meu Rafa.
Diferentemente do noivo da minha paciente
Alana, esse Rafa não é louco e nem desesperado
como aquele parece ser. Ah, não. Eu diria que ele é
a definição de bom partido.
Nós nos conhecemos no colégio e permanecemos
amigos desde então. Isso porque somos muito
parecidos. Somos organizados, racionais e
pensamos antes de agir. Não somos impulsivos. Ele
é inteligente, responsável e gentil.
Nós dois fazemos sentido juntos.
E por sermos tão perfeitos um para o outro é que
eu não tenho pressa. Sei que vamos ficar juntos no
final das contas, mesmo não tendo havido nenhuma
interação romântica entre nós até o presente
momento.
Mas isso não quer dizer nada, não é?

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É claro que já saí com alguns caras, uns mais


inapropriados que os outros, mas nunca namorei.
Nunca senti vontade de ter um compromisso com
nenhum deles como tenho com o Rafa. Ele
simplesmente faz sentido. E um dia ele vai
enxergar em mim tudo o que enxergo nele.
Ele tem que enxergar, certo?
Então, se eu frequento tanto esse bar, é porque o
Rafa adora esse lugar. E se o preço é absurdo, se os
funcionários são rudes ou se é longe da minha casa,
eu não me importo. Porque só de passar a minha
noite de sexta-feira ao lado dele já é o suficiente.
Mesmo que não estejamos sempre sozinhos.
– A propósito, você está linda – diz Pati, minha
amiga supersincera, toda trabalhada no brilho. Ela
faz faculdade de Moda e acredita estar lançando
uma tendência incrível. Felizmente para ela, eu sou
tão sincera quanto.
– Obrigada, Globo de Luz dos Anos 80 – digo,
referindo-me à sua blusa de paetês prateados que

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ela combinou com uma calça furta-cor, meio roxa,


meio azul, meio sei lá o quê.
– Ha ha. Muito engraçado – ela diz na minha
orelha. – Você também não está lá essas coisas.
– Você acabou de dizer que eu estou linda –
rebato, minha voz tentando sobreviver no
burburinho.
– Bem... pois eu menti.
Um garçom vestindo camisa social e gravata preta
passa por nós carregando uma tábua fumegante de
filé mignon com uma mão só. Minha boca se enche
de saliva, e meus olhos quase de lágrimas. Essa
porção custa o valor das minhas roupas!
Aumento o passo na direção de Rafa, a fim de
pegar a banqueta ao seu lado. Pati diz que eu sou
covarde. E, sim, eu sei que eu poderia dizer a ele o
que acho de nós dois, mas eu quero que as coisas se
desenrolem naturalmente. Só que também tem o
seguinte: eu não quero ficar para titia. Então talvez
ela tenha alguma razão.

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Conheço Patrícia desde que tínhamos nove anos,


quando ambas morávamos no Flor-de-Lis, o
condomínio dos meus pais. Posso dizer com toda
certeza que ela é minha melhor amiga, apesar de
não ter muita certeza sobre os modelitos dela.
– Hey! – digo sorrindo para o Rafa e sentando-me
ao seu lado.
Ele me dá um beijo na bochecha. Droga, por que
é que ele não erra e acerta minha boca?
– Você está elegante – ele diz.
Meu coração bate mais forte.
– Essa coisa velha? – puxo um pedaço do pano da
bata azul-bebê que comprei semana passada.
– Antes de mais nada, posso saber o motivo do
sumiço? – Pati se dirige ao Rafa.
E eu preparo meus ouvidos para a resposta.
Pelos menos ele está aqui.
Fazia duas semanas que ele não saía conosco,
sempre com uma desculpa diferente, mas todas
relacionadas ao trabalho. Eu já estava achando
aquilo muito estranho. Porque praticamente nunca

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ficamos sem nos ver por tanto tempo assim, e


ultimamente ele tem furado muito com a gente.
– Você sabe, Pati – ele levanta uma sobrancelha.
– Minha vida de modelo não me permite muito
tempo de lazer.
Ele não é modelo coisa nenhuma. É um
administrador recém-formado, que trabalha como
analista da área de cobrança de dívidas no Banco
Nacionalista. Só que ele e Pati sempre brincam que
são bonitos demais para não terem sido convidados
para desfilar em Milão.
E realmente, preciso concordar.
Não, não estou falando de Pati, não. Sim, ela
também é bonita, na verdade. Pati tem lindos
cabelos ruivos e ondulados, um sorriso bem
branquinho e sardas fofas ao redor das bochechas.
E tem um nariz pontudo, bem grande e avantajado
para frente, que você acha que não funcionaria, mas
que nela funciona muito bem, e lhe dá um certo
toque imponente. Mas não é dela que estamos
falando.

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Estamos falando do Rafa... ah! Como alguém


pode nascer assim tão fofo? Quero dizer, sem ser o
Príncipe Harry ou sem fazer cirurgia plástica? Pati
diz que eu exagero nesse ponto, que ele é apenas
“aceitável”.
Isso se dá porque ela só olha para a beleza
superficial dele. Eu olho para o conjunto todo da
obra: o rosto simétrico, o maxilar quadrado, o
modo como ele anda, a postura ereta quando está
sentado, a voz grossa e o modo imperativo de falar.
Seu cabelo sempre penteado para trás, de um loiro
escuro bem lisinho – só que ele não precisa fazer
escova progressiva igual a mim (quer dizer, pelo
menos eu acho que não. Vai saber? Muita gente
nem desconfia que meu cabelo não é liso de
verdade, esses trouxas. Viva o progresso!).
Nem acredito que sou melhor amiga de alguém
como ele. Deve ser por isso que também não
consigo ser sua namorada. Seria pedir demais do
universo.

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Mas gostaria gentilmente de deixar claro para o


universo que eu prefiro mesmo que ele seja meu
namorado em vez de melhor amigo. N-a-m-o-r-a-d-
o. Só para deixar registrado, caso haja dúvidas.
– Não importa o que você diga, cara – diz Pati,
pendurando sua bolsa verde-limão na cadeira. –
Sou mais estilosa que você.
– Pati, olha só para mim – ele aponta para seu
terno preto bem passado. Ele deve ter vindo direto
do trabalho, depois de fazer algumas horas extras.
Talvez seja por isso que tem estado tão ausente. –
Mais dia, menos dia, alguém vai me descobrir.
– Não se me descobrirem primeiro – ela se inclina
no balcão e cerra o punho no ar.
– Como nenhum de vocês é modelo de verdade...
– digo. – Não há necessidade de passar fome, então
será que podemos comer?
Gostaria de poder dizer que minha pressão cai
quando não ingiro açúcar rapidamente, mas isso
seria mentira. Eu simplesmente adoro comer.

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Uma porção de frango frito e minha velha


caipirinha de kiwi com vodca são meu pedido
padrão. Essa é a melhor tática. As coisas aqui são
caras demais pra arriscar pedir algo que eu possa
não gostar. Só checo o cardápio pra conferir se eles
não aumentaram o preço.
– Vou querer o de sempre – coloco o cardápio de
volta na bancada, olhando em volta do bar.
– Então, uma porção de frango frito e uma
caipirinha? – pergunta Rafa, e eu confirmo com a
cabeça.
– Falando em frango, cadê o galinha do Leo? –
interrompo e solto uma risadinha. Ah, essa foi boa,
vai? – Ele disse que viria pra cá depois do trabalho.
– Olhe melhor – Rafa aponta com a cabeça para o
lado.
Olho para onde aquela linda cabeça indica e ali,
um pouco distante do balcão, Leonardo mostra seu
sorriso cheio de dentes brancos enquanto conversa
com uma garota muito bonita. Morena, de cabelos
lisos e longos. Fico abismada com sua roupa (quase

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tão abismada quanto fiquei com a roupa de


astronauta da Pati). A garota usa uma calça muito
colada e um tomara que caia que parece mesmo que
vai cair a qualquer momento. Ele percebe que o
estamos encarando e diz “pede frango frito” com
mímica labial sem que a garota veja.
Argh!
– Cancela o frango frito – reviro os olhos.
– Coitado, Mel – Rafa diz. – Além do mais, se
cancelarmos o pedido, você também não vai comer.
– Tá legal – digo. – Mas vou comer tudo antes de
ele chegar.
– Tarde demais. Aí está ele.
Leo caminha em nossa direção, desviando dos
grupos de pessoas que bebem suas cervejas de pé.
Seus olhos verdes estão compenetrados no celular,
provavelmente salvando o telefone da garota.
Eu não diria que Leo é famoso por despedaçar
corações. Isso se prova impossível, tendo em vista
que ele nem ao menos sabe o que é um coração –
porque não tem um. Ele consegue arranjar defeito

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em cada garota que conhece, não fica satisfeito com


uma sequer.
Sinto pena pela mãe dele. A pobre coitada ainda
tem esperanças de ter um neto um dia. E eu acho
que, com a quantidade de garotas com quem ele
dorme, esse neto pode bater na porta dela a
qualquer momento, pedindo pela pensão.
– Olá, amigos. Olá, Melissa – Leo senta-se ao
meu lado e passa os braços ao redor dos meus
ombros.
Ele é um dos amigos mais próximos que tenho,
quase como um irmão. Se eu pudesse mudar
alguma coisa nele, seria seu jeito mulherengo.
Apesar disso, é um bom amigo. Mas come muito
rápido e monopoliza o frango frito.
– E aí, quem é a da vez? – pergunto, apontando a
cabeça na direção da menina.
– Só uma garota que ficou me olhando por muito
tempo, nada demais.
– Se ela ao menos soubesse como isso vai
acabar... – Pati diz, dando risada, os braços

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cruzados em cima da bancada.


– Ah, qual é! Eu não sou tão ruim assim.
– Deixem o cara em paz – diz Rafa. – Dessa vez
ele não teve culpa. A garota praticamente pulou no
colo dele.
Um arrepio percorre meu corpo só de pensar que
a garota poderia facilmente ter escolhido dar em
cima do Rafa, e meu estômago se embrulha.
Melhor mesmo que ela tenha feito isso com o Leo.
– Fazer o quê?! Quando alguém se joga pra você
desse jeito tão óbvio... – Leo diz, tentando alcançar
a cerveja no balde – Você agarra.
– Uma hora ou outra você vai querer se
comprometer – Rafa diz e passa uma cerveja a ele.
– Você vai ter que crescer, Leo. Foi isso o que ele
quis dizer – Pati diz.
– Não foi não, cara – esclarece Rafa, dando risada
e depositando cerveja mecanicamente em um copo
de vidro.
– Vai ter que se comprometer – Pati diz.

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– E aí vai ter que parar de fazer essas coisas de


criança. Como jogar videogames, por exemplo –
digo.
– Ou brincar no balanço do parquinho – inventa
Pati.
– Ou usar fralda – continuo.
– Não vai mais poder chupar chupeta – diz Pati.
– Certo, vou jogar a minha fora – diz Leo,
entrando na brincadeira, e bebe um gole da cerveja
direto do gargalo.
– Ou usar rodinhas na bicicleta – eu continuo.
– Ou andar dentro do carrinho do supermercado –
até Rafa participa.
– E não vou mais poder namorar todas as
menininhas da escola, já saquei –diz Leo,
levantando as mãos para o alto, em rendição.
E então ninguém se aguenta. De repente, estamos
todos rindo.
– Você entendeu o recado – digo a ele.
– Tá legal, agora me deixem ver o cardápio – Leo
muda de assunto, esticando o braço para alcançar o

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cardápio com capa de couro preta e o nome do bar


em alto-relevo. – Vocês, garotas, querem um
pedaço de mim, isso sim.
– Vai sonhando – diz Pati.
– Coitado – eu digo.
Ele sempre precisa do cardápio porque tem uma
política de pedir algo diferente toda vez que vem
aqui, para provar de tudo.
Bem a cara dele, se é que você me entende.
– Mas e aí, Rafa? O que me conta de novo? –
pergunto, redirecionando o foco para o que
realmente me interessa.
– Sem novidades, psicóloga Melissa – ele se
ajeita na cadeira. – Muito trabalho lá no banco, só
isso.
Ele coça a cabeça e olha para os lados. Minha
mente de psicóloga analisaria isso como um
desconforto, possivelmente uma mentira, mas não
quero ser paranoica e analisar todo mundo ao meu
redor.

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Algumas mesas de formato redondo ficam vagas


no bar lotado, quando um grupo imenso de
engravatados com ar cansado pede a conta e vai
embora para suas camas. A luz baixa do ambiente
deve ter lhes dado sono. Descemos dos banquinhos
altos e desconfortáveis do balcão e nos
acomodamos na nova mesa disponível, mas as
cadeiras não são muito mais confortáveis também.
Eu detesto esse lugar.
Fazemos nossos pedidos, mas Pati ainda não
parou de falar desde que nos levantamos do balcão,
reclamando do seu emprego como concierge no
hotel luxuoso onde trabalha, e no quanto deseja
trabalhar com moda.
Meu consultório preenche meu coração de
felicidade. Vou animada para o trabalho, volto
satisfeita para casa. Só que ter apenas duas
pacientes não ajuda muito nas despesas. Montar
meu próprio negócio está sendo mais difícil do que
imaginei.

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Abandonei um salário fixo, plano de saúde e o


meu precioso vale-alimentação. Ao mesmo tempo,
abandonei também horários inflexíveis e estou
realizando meu sonho. Só queria que esse sonho me
pagasse mais.
Leo me dá um chutezinho por debaixo da mesa e
me traz de volta à realidade.
– Ei, tô falando com você! O que aconteceu com
o seu olho, Frankenstein?
Eu o chuto de volta, ciente de que o meu chute foi
mais forte. Ele diz um “ai” sem som e sorri para
mim. Sorrio de volta. O cheiro do perfume dele
chega aqui do outro lado da mesa, o aroma
amadeirado de sempre do Leo desde a faculdade.
– Um lápis entrou no meu olho.
– Hum... ferimento de nerd. Sim, me parece
correto – ele diz com um sorrisinho nos lábios.
Pati dá uma gargalhada alta, impedindo-me de dar
a resposta que Leo merecia.
–Ei, Pati... você parece feliz – Rafa diz.

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– Anda saindo com alguém, não é? – é a vez de


Leo insinuar.
Pati ajeita-se na cadeira e morde o lábio.
– Bem, para falar a verdade... estou sim saindo
com um cara.
– É mesmo? – digo. – Você não me contou isso!
– Er... é porque é algo supernovo, amiga.
Ela mexe nas unhas e desvia os olhos de mim.
– Sei.
– E ele é lindo, lindo, lindo, lindo! – ela diz. Essa
última parte saiu tão alta que me preocupo com a
integridade física dos copos, que podem estourar
com a frequência de sua voz aguda.
– Deixe-me adivinhar – diz Leo. – Ele é cabeludo
e de barba até o peito.
– Provavelmente tem um alargador em cada
orelha – continuo.
– E curte bandas estilo underground – prossegue
Leo, claramente se divertindo.
– Não, não. Ele é de uma banda estilo
underground – digo, me divertindo também.

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– Ha ha. Não tem graça, gente – ela diz.


Ficamos em silêncio.
– Mas sim, ele tem uma banda – ela admite e
explodimos os quatro em gargalhadas.
Estou para apostar que ele também tem o cabelo
preso em um rabinho no alto da cabeça. Digamos
que a Pati tenha um tipo.
– Como eu ia dizendo... ele é lindo. Lin-do! Ele
está se desenvolvendo como pessoa, sabe? E ele me
disse a coisa mais engraçada outro dia, vocês não
vão acreditar...
Nossos pedidos chegam. Leo e eu começamos a
atacar o frango frito como se não houvesse amanhã
– tomo cuidado para que o Rafa não perceba meus
rudes modos alimentares – enquanto Pati continua
falando sobre o tal do cara lindo, lindo, lin-do!
– Tá bom, Pati. A gente já entendeu o quanto ele
é bonito, graças a Deus. Obrigado, Senhor! Bendito
seja! Então a gente já pode falar de outra coisa
agora – responde Leo, entre mastigadas.
Eu morro de rir.

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– Não é só porque você tem fobia a


relacionamentos que todo mundo precisa ter, ô
garoto – rebate Pati e eu concordo.
– Se você quiser tratar essa fobia, posso te atender
por um precinho camarada – ofereço. Qualquer
coisa por um paciente a mais.
– Não é fobia – Leo diz. – Eu só não sou um cara
que sonha com essa coisa toda de relacionamento
sério, casamento e tal. Esse é o seu sonho, Mel, e
não o meu.
Ele aponta um dedo para mim e faço uma careta
para ele.
Ele precisava falar disso na frente do Rafa?
– E digam o que quiserem... – Leo continua. –
Mas faz tempo que não encontro uma garota que
seja tudo isso.
– Então quer dizer que ninguém é bom o bastante
pra você? – arqueio as sobrancelhas. Ele se acha a
esse ponto?
Leo morde um pedaço do frango.
– Mais ou menos isso.

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– Você não é perfeito, sabia? – Pati questiona.


– Ah, não? – ele coloca a mão no peito, fingindo
dor no coração. Rafa só dá risada.
– É só te olhar para ver o defeito número um: não
sabe comer como um adulto – debocha Pati,
olhando do Leo para o frango.
Uma quantidade alarmante de pedacinhos de
comida se alojou na minha calça jeans. Limpo
discretamente antes de ser acusada também.
– Melissa também não sabe comer, e ninguém
parece ter um problema com isso – Leo aponta
tranquilamente para a minha blusa, onde uma
enorme mancha de ketchup decidiu se instalar.
Droga! Droga, droga, droga. Pode jogar bebida
na minha cara e uma pomba pode até cagar na
minha cabeça, contanto que não estrague as minhas
roupas. Principalmente as novas. Ketchup sai,
certo?
– Ketchup sai, certo? – pergunto a Pati, mas ela
faz que não sabe.

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Como ela pode não saber? Ela não faz Moda, pelo
amor de Deus?
Devo estar parecendo uma idiota. Será que eu não
consigo nem comer sem parecer uma babaca na
frente do Rafa? O que ele deve estar pensando de
mim?
Eu sei o que o Leo está pensando de mim. Porque
ele faz questão de me dizer.
– Pelo amor de Deus, Melissa! Recomponha-se!
Você é uma mulher adulta – ele me passa um
guardanapo, rindo de boca aberta, enquanto eu
penso em formas de humilhá-lo.
Mas acho que não preciso. Ele já faz isso sozinho.
– Eu conheço um antimanchas muito bom – diz
Rafa. Ele não é mesmo um cara gentil? – Você
pode comprar em qualquer supermercado. Fique
tranquila, mancha de ketchup sai.
Pati sorri discretamente para mim e Leo olha para
o frango com cara de tédio. Uma onda de alívio me
invade, agora que sei que não perdi uma blusa que
me custou R$99,00.

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No entanto, por mais engraçado que pareça, a


bata nem me importa mais. Também não importa
que a caipirinha tenha custado R$28,00, que o bar
fique longe de casa ou que eu esteja usando uma
blusa fedendo a ketchup.
Só o que importa é que estou certa. Ele pensa
como eu penso. Porque ele é perfeito pra mim.

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Em pleno domingo, eu tenho uma palestra


marcada para as 11h na Livraria Cornoalle, no
centro da cidade.
Eu me formei em Psicologia em uma das
faculdades particulares mais prestigiadas do
Estado, e tenho os conhecimentos necessários desta
área. O problema é que sou uma lástima como
empreendedora. E, para manter um consultório, é
preciso um pouco dos dois.
Logo que me formei, consegui um emprego de
meio expediente como psicóloga e orientadora na
escolinha de ensino fundamental onde estudei até
os 14 anos. Como sempre tive uma relação mais do
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que boa com a coordenadora de lá (sim, Leo tinha


razão, eu era nerd), mantivemos contato. Assim
que surgiu uma vaga, ela me ofereceu. E como toda
boa recém-formada sabe fazer, eu aceitei de
imediato.
Mas com a minha especialização em
Relacionamento Conjugal, eu desejava atender
pacientes com problemas na área amorosa da vida.
Digamos apenas que eu não era autorizada a falar
desse tipo de assunto para crianças de oito anos em
uma escola católica.
Então, quando meu pai me ofereceu uma salinha
(pequena, porém suficiente) no novo imóvel que
ele havia comprado para alugar, eu agradeci aos
céus. Eu finalmente poderia trabalhar por conta
própria, curando alguns corações partidos por aí,
começando minha jornada como empreendedora.
O problema é que sou terrível nisso.
Quando pedi demissão da escolinha, a mãe de
uma adorável aluna me implorou para continuar
atendendo sua filha, tendo percebido uma melhora

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significativa em seu comportamento. Contando


com Alana, num período de seis meses tenho uma
somatória incrível de duas pacientes.
Entro na livraria procurando por Leo, mas não
consigo encontrá-lo. O cheiro de café vindo da
cafeteria gourmet no cantinho do estabelecimento e
o ar condicionado me atingem em cheio. Se eu
fosse paranoica, diria que eles aumentam o ar só
para que os clientes fiquem com frio e comprem
café quentinho.
– Bom dia – a voz suave de Leo surge atrás de
mim.
Viro-me para encontrar seus intensos olhos
verdes.
Ele se veste muito bem, tenho que admitir. Blazer
azul marinho, camisa preta para dentro da calça
cáqui, cinto de couro e sapatênis. O cabelo
ondulado, curto e escuro, jogado para o lado.
É difícil imaginar que aquele garoto da faculdade
se tornou um pouco menos desleixado e até
bonitinho. Mas eu o conheço bem. É provável que

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ele tenha se aprontado no capricho por causa das


várias mulheres que irão compor minha plateia.
Leo trabalha em uma agência de organização de
eventos e concordou em me ajudar nas horas vagas
no estilo completamente de graça a expandir minha
clientela de duas pessoas para... bem, para mais
gente, por favor!
– Aí está você – cumprimento-o.
– Alguém andou se arrumando – ele me olha de
cima a baixo. – Tomou até banho?
Eu precisava de uma roupa que expressasse que
sou uma terapeuta que descobriu os mistérios dos
relacionamentos, assim como Silvio Santos
descobriu que jogar dinheiro pro alto em seu
programa de auditório só traz mais dinheiro ainda.
Contei com a ajuda da minha consultora
particular de Moda – Pati –, que não pôde
comparecer à palestra por causa da ridícula carga
horária no hotel onde trabalha. Optei por uma calça
social preta, que me custou o valor de todas as
consultas do mês passado, mas valeu totalmente a

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pena, porque ela é simplesmente incrível. Adicionei


uma camisa branca, um sapato de bico fino preto e
um blazer para completar.
Adotei uma maquiagem leve que eu esperava que
transmitisse a ideia de que acordei maravilhosa, e
não a terrível verdade, que é a de que o meu rosto
está coberto por uma interminável lista de produtos:
primer, base, corretivo, pó facial, bronzer, blush,
iluminador, sombra, delineador marrom, rímel
preto e, por fim, um batom nude.
– Eu sempre tomo banho – digo a ele, que logo se
distrai com a presença de uma garota de shorts
passando ao nosso lado.
Ele acompanha os movimentos dela, olhando por
cima do meu ombro. É tão típico dele. O Rafa
nunca faz isso. Nunca! Sabe qual é a chance de
encontrar um homem que não faça isso? Quase
zero. É por isso que ele é especial. (Tudo bem que
ele se torna um pouco menos especial por ter
furado comigo de última hora e não ter vindo à

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palestra. Outro compromisso de trabalho, para


variar.)
Saio andando para longe do Leo, como forma de
protesto, em direção ao auditório.
– É para o outro lado – ele me corrige e eu volto a
andar em sua direção. Paro na frente dele.
– Será que somente por hoje você poderia se
concentrar em me ajudar, por favor? – suplico. – E
não ficar olhando para a bunda das mulheres da
minha palestra?
Fico séria ao falar com ele. Estamos nos olhando
fixamente, e sinto que estamos formando uma
espécie de cooperação mútua. Mas outra garota
caminha em nossa direção, ele não aguenta e vira o
rosto para observá-la.
– Você é ridículo! – saio batendo o pé, o salto
fazendo barulho a cada passada no piso de
porcelanato, deixando para trás a voz dele na forma
da frase “É mais forte do que eu”.
Minhas mãos começam a tremer enquanto espio a
sala cheia de mulheres.

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– De onde todas elas surgiram? – falo sozinha,


incomodada com a falta de homens, mas
impressionada de tanta gente ter aparecido.
– Eu paguei para que elas aparecessem, claro –
diz Leo bem no meu ouvido e eu dou um pulo de
susto. – São figurantes.
– Figurantes?
– Eu só tô brincando... relaxa – ele coloca o braço
ao redor dos meus ombros. – Enviei alguns e-mails
para a lista de contatos lá do escritório que tinham a
ver com o seu conteúdo. E elas apareceram.
– Acho que as palavras “café da manhã grátis”
devem ter tido algo a ver com isso.
Ainda não acredito que tive que desembolsar o
custo do café antes da palestra.
Ele dá risada e me segura pelos ombros.
– Relaxa, menina. Vai dar tudo certo. Você vai se
sair bem e eu estarei lá com você – diz ele, de
repente doce e confortador. – E com outras 25
mulheres maravilhosas também.

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– Você acabou de me incluir nessa classificação


das mulheres maravilhosas? –ressalto a
ambiguidade da frase dele, sabendo que aquilo o
deixaria embaraçado.
Leo fica sem graça e diz “Deixa de ser idiota”.
Então, ele dá um empurrãozinho nas minhas costas
e me joga para dentro da sala. Vejo mamãe e papai
sentados no canto, ela acenando para mim de forma
efusiva. Aceno com a cabeça, sem esboçar sorriso.
Um passo de cada vez. Um passo de cada vez.
Já era hora de fazer alguma coisa a respeito da
visualização do meu negócio. As pessoas tinham
que me conhecer. Era isso ou vídeos no YouTube,
mas não sou muito boa com câmeras nem com
redes sociais. Foi aí que tive a ideia de oferecer
uma palestra gratuita sobre relacionamentos e, com
alguma sorte, algumas dessas pessoas se tornariam
minhas pacientes.
O fato de Leo ter composto a plateia somente com
mulheres me faz duvidar do seu profissionalismo?
Sim. Totalmente.

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Mas não posso me esquecer de que ele está


fazendo tudo isso de graça. Eu lhe ofereci sessões
de terapia como retribuição, mas ele disse que não
precisava. Aposto que ele aceitaria se eu retribuísse
apresentando-lhe amigas terapeutas solteiras.
Subo no palco tomando o maior cuidado para não
cair na escada lustrosa. As paredes do
minianfiteatro da livraria são de um tom de
vermelho escuro e a mobília é toda de madeira. É
bem bonita – e devia ser mesmo, já que tive que
pagar R$150,00 para alugar o espaço.
Cadeiras estofadas dão assento a mulheres de
olhos bem atentos a mim. E papai, o único homem
da sala, que olha para frente com tédio, por trás das
lentes dos seus óculos de grau. É tanta informação
que tenho dificuldade de me concentrar em uma
coisa só e de manter minha respiração num ritmo
normal.
As vozes dos clientes do lado de fora são
abafadas quando Leo fecha a porta, o silêncio
tomando conta do lugar.

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– Bom dia – minha voz sai trêmula.


Limpo as mãos suadas nas laterais da calça. A
calça mais cara que tenho está sendo recipiente
para o meu suor.
– Meu nome é Melissa Belinque. Sou psicóloga
especializada em relacionamentos e a palestra de
hoje é intitulada “Os cinco hábitos para uma
discussão saudável”. É destinada não só a casais
com dificuldade de se expressar em momentos de
crise, mas aplica-se também a problemas com
familiares, colegas de trabalho e relacionamentos
em geral.
É um bom começo. Nem gaguejei muito nem
nada. Leo está de pé na parte de trás da sala e me
levanta o polegar como sinal de aprovação.
Algumas pessoas balançam a cabeça e concordam,
mas a maioria permanece quieta. Continuo.
– Separei cinco dicas para transformar uma briga
em uma discussão saudável. A primeira delas é:
seja direto e diga o que o incomoda.

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Algumas pessoas fazem anotações e fico um


pouco mais à vontade agora que elas se
interessaram. A não ser por uma mulher na
primeira fileira, que estranhamente me lembra um
pônei e que não para de me olhar com uma
expressão emburrada naquela cara de cavalo dela.
– Esses passos parecem óbvios, eu sei. E se
houvesse uma fórmula mágica, o divórcio não
existiria, certo?
A plateia ri. Ufa! Minha piadinha passou no teste.
Se a carreira de psicóloga não der certo, eu posso
tentar stand-up comedy.
– Mas existe muito mais do que isso. É
importante lembrar que, a cada um desses passos, a
paciência e a compreensão devem estar sempre
presentes. Vamos começar falando sobre o passo
um.
Com o laser pointer, mudo o slide da tela da
apresentação que preparei. Estou indo bem! Falo
sobre os passos um, dois e três, e fico bem à
vontade ao me comunicar com a plateia.

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Na verdade, eu adoro isso aqui! Preciso me


lembrar de perguntar ao Leo se ele precisa de
palestrantes para a empresa dele.
Ando pelo pequeno palco, gesticulando e falando
com tranquilidade sobre os passos quatro e cinco.
Alinho meu blazer ao corpo quando meu relógio de
pulso revela que já se passaram trinta minutos. É
hora de abrir espaço para perguntas.
– O que eu devo fazer quando o meu namorado
ameaça terminar o namoro no meio de uma
discussão? – pergunta uma garota que não deve ter
mais do que 19 anos. – Tipo, toda vez que estamos
discutindo e ele vê que eu tenho razão, ele solta
essa “carta na manga” – ela faz aspas com os
dedos.
– Certo. Essa “carta na manga”... – repito o gesto.
– não é nada saudável. A hipótese de terminar um
relacionamento nem deveria ser colocada em pauta.
Eu sugiro que você o deixe terminar, como ele diz
que fará. O que eu duvido muito, se você quer

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saber. Assim que ele perceber que isso não tem


efeito sobre você, vai parar com essa palhaçada.
Fui longe demais praticamente chamando o
garoto de palhaço?
A plateia dá risada e a menina também. Não
falei? Stand-up comedy!
– E se ele não parar de agir assim, eu sugiro que
você o deixe mesmo ir. Não é saudável viver sob
pressão e ameaças. Isso pode constituir um
“relacionamento abusivo”. Causa medo e
ansiedade. Se você perceber que ele lhe faz mal,
sugiro que você se afaste.
Ela agradece e Leo passa o microfone à mulher-
cavalo da primeira fileira com o dedo levantado.
– Oi. Meu nome é Magda e eu estou tendo
problemas com o meu marido – ela diz com um ar
tímido, olhando incerta para as mulheres ao lado
dela. – Talvez eu devesse marcar uma consulta com
você, querida. Estou cansada de brigar.
Ai, meu Deus! Deu certo? Deu certo mesmo?
Quase não consigo conter a emoção. Não pela

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situação da mulher, pobre Magda. Mas pela


palestra estar rendendo os frutos que eu queria!
Sinto-me imediatamente culpada por tê-la
chamado de cara de cavalo, mesmo que em
pensamento, já que a cara de cavalo pode ser a
minha mais nova paciente! Que provavelmente só
tem cara de cavalo por estar triste. Aposto que ela é
bem bonita quando sorri.
Minha mãe faz joinhas entusiasmadas com as
duas mãos, o sorriso quase encostando nos brincos
enormes.
– Mas é claro! – digo, tentando parecer menos
impressionada do que realmente estou e limpo a
garganta. Não quero que ela pense que eu não
tenho muitos clientes nem nada. Não quero que ela
saiba da verdade. – Estaremos coletando as
informações de interessados ao final da palestra, e
você é a primeira da lista!
Ela sorri (e não, ela não é mais bonita quando
sorri) e faz menção de continuar falando, mas é

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interrompida por uma voz no fundo da sala, que


agora porta o microfone.
– Oi, meu nome é Raquel e estou à procura de
uma terapeuta especializada nessa área. Você teria
um portfólio sobre casais com mais de dez anos de
relacionamento para nos apresentar? – ela levanta o
queixo. – Desculpe, mas você me parece muito
nova.
Ai, droga! Eu sabia que algo assim poderia vir à
tona.
Mamãe olha para ela como um cachorro raivoso e
temo que ela voe no pescoço da mulher.
Limpo a garganta.
– Na verdade, eu tenho sim experiência com
terapia de relacionamentos – digo de forma vaga.
Ela não precisa saber que trato disso com uma
paciente só. E que Alana está prestes a jogar fora
todo progresso que construímos casando-se
impulsivamente. E que se trata de um
relacionamento que nem atingiu a marca de um
ano.

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Mamãe olha para trás com cara amarrada. A


plateia olha de mim para a tal da Raquel com
expectativa.
– Mas com mais de dez anos de relacionamento?
– ela insinua.
– Er... não, infelizmente.
Estou perdendo a atenção da mulher, que estende
o microfone de volta para o Leo. Então me adianto:
– Mas tem uma coisa muito vantajosa em
consultar-se com uma terapeuta mais nova: a
disponibilidade de ouvir.
A mulher volta a me dar atenção e abaixa o
microfone para si. Ando até o centro do palco,
posicionando-me bem de frente a ela.
– Não me entendam mal. Acredito que todo bom
terapeuta ouça seus pacientes com atenção. Mas um
profissional mais novo na área tende a tratar o
problema como se fosse a coisa mais interessante
do mundo. Digamos que nós tenhamos mais
bateria.
As mulheres dão risada.

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– Tudo nos interessa. Todo problema é tratado


com intensidade. Exatamente porque nunca o
escutamos antes.
– Hum... – a mulher coloca o dedo no queixo,
ponderando. – Não tenho certeza de que isso é
suficiente para...
– Mas é claro que é, pombas! – berra mamãe.
Meu queixo cai.
Mamãe está com a mão levantada, em sinal de
“permissão para falar”, mas ela não entende o
conceito de permissão, então simplesmente
continua falando. Todos viram-se para observá-la.
– Melissa é a melhor terapeuta da cidade, isso eu
posso afirmar com toda a certeza! – ela prossegue
olhando para trás enquanto papai dá um sorriso
nervoso, idêntico ao meu. Ambos sabemos o que
vem em seguida: mamãe é ótima em meter os pés
pelas mãos. Tenho certeza de que Leo está
prendendo a respiração assim como eu.
– E, entenda bem, eu sei o que digo – ela assume
uma expressão condescendente. – Eu a criei.

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Ela levanta o queixo e o dedo indicador. Eu quero


me esconder na terra.
– E paguei pelos estudos dela também, claro.
O grupo dá risada, simpatizando com os
sacrifícios financeiros de uma mulher de meia
idade. Que ótimo! Era tudo o que eu precisava. Que
clientes em potencial me achassem uma filhinha da
mamãe que não conseguiu entrar em uma faculdade
pública e teve que ser bancada pelos pais.
E foi exatamente o que aconteceu.
Leo está retesado no lugar, os olhos arregalados
para mamãe. Papai puxa a manga da blusa florida
dela discretamente, mas ela não parece ligar.
– Que foi, Zé? – ela faz cara feia para ele. – Eu só
estou tentando ajudar. Confie em mim.
Ela se levanta.
Ai, Senhor! Por favor, faça com que ela se sente!
– Er... mãe... – digo baixinho, os dentes cerrados,
e juntando as duas mãos nas costas.
– Queridas, se estiverem passando por qualquer
situação conjugal ruim, ela é a melhor pessoa para

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ajudá-los. Melissa é atenciosa, gentil e honesta.


Posso dizer que ajudou a mim e a seu pai nos
momentos mais difíceis do nosso casamento apenas
sendo uma filha exemplar. Imagine o que ela pode
fazer sendo uma profissional formada.
A plateia parecia impressionada com as minhas
habilidades infantis, balançando a cabeça em
aprovação e me lançando olhares simpáticos. Ok,
acho que posso respirar novamente. Até que
mamãe não foi tão mal dessa vez. Estou tão
acostumada com suas atitudes impulsivas que essa
foi fichinha. Ela se senta.
Leo sorri para mim. Ufa! Papai coloca os braços
ao redor dos ombros de mamãe como aprovação e
eu não posso deixar de sorrir também.
Pobre mamãe. Como pudemos desconfiar dela?
Como pudemos achar que ela faria alguma coisa
que prejudicasse meu trabalho?
Em nossa defesa, temos um histórico.
– Está bem – a mulher declara, provavelmente
mais envergonhada por mim do que realmente

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convencida. – Nesse caso, talvez a experiência não


seja necessária para compreender os problemas de
um relacionamento.
– Claro que não, meu bem – mamãe se dirige a
ela, agora em tom afável. –Não é só porque ela
nunca namorou que não pode te ajudar – e junta as
mãos, orgulhosa, como se tivesse fechado seu
discurso com chave de ouro.
E só então ela percebe minha expressão de
espanto por ter revelado para todo mundo aqui
presente que sou uma terapeuta de relacionamentos
que nunca conseguiu ter um.

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– Não foi assim tão ruim.


– Não foi?
– Tá legal, foi um completo desastre – admite
Leo, pelo telefone.
– A culpa é sua!
– Ah, não seja injusta. A culpa não é minha se
elas ficaram tão interessadas na sua vida – ele diz. –
Pelo menos dessa vez elas não se interessaram pela
minha.
– Não. A culpa é sua por ter convidado minha
mãe.
Depois que meu queixo caiu, o sorriso de Leo se
transformou numa careta e papai passou a mão pelo

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rosto e se afundou na cadeira, as pessoas


começaram a me encarar como se eu fosse anormal.
Parecia que procuravam bem no fundo da minha
alma a resposta para a pergunta “o que há de tão
errado com ela para não ter conseguido um
namorado?”.
Ou talvez seja só o meu cérebro me fazendo uma
pergunta pertinente.
Ainda não posso acreditar que ela tenha falado
uma coisa daquela...
Ah, mas é claro que posso! A quem estou
querendo enganar? Ela faz esse tipo de coisa o
tempo todo. Como da vez em que ela disse para
minha amiguinha de infância que não era só porque
ela era meio feia que não ia conseguir um
namoradinho na escola. (Pati não ficou muito
contente com esse comentário e até hoje lembra-se
disso com ressentimento.)
É isso o que ela faz. Apesar de só tentar ajudar,
acaba metendo os pés pelas mãos.

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Como se a situação não bastasse, uma mulher


rechonchuda na terceira fileira levantou a mão, e
sem esperar permissão para falar, desembestou a
me perguntar:
– Você nunca namorou porque acha que está
muito difícil de arranjar bons partidos hoje em dia?
Qual a probabilidade de encontrarmos alguém nos
tempos de hoje? – Ela falou meio esbaforida e
parou de falar abruptamente, aguardando minha
réplica.
Que droga de pergunta era aquela? Como é que
eu ia saber? Tenho cara de IBGE, por acaso?
Pareço alguém que trabalha com estatísticas?
Os minutos seguintes deram lugar a uma série
interminável de perguntas que, em sua maioria,
começavam com “já que você nunca namorou” e
“como alguém que nunca namorou, você acha
que...” e blá-blá-blá. De repente eu não era nova
demais para ser terapeuta. Eu era velha demais para
nunca ter tido um namorado.

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Apesar de não terem havido mais incidentes e as


convidadas terem pego meu cartão de visitas na
saída, a julgar pela expressão de desagrado de
algumas mulheres, não terei bons resultados. Era
como se o semblante delas declarasse “eu nunca me
consultaria com você nem que fosse a última
psicóloga da Terra”. Até mesmo a cara-de-pônei
parece ter desistido da causa, passando rapidamente
por mim sem me olhar nos olhos.
– E quanto à sua mãe?
– Não faço ideia – bufo, enquanto esfrego um
paninho com produto de limpeza no aparelho
telefônico para retirar umas manchas de gordura
quase imperceptíveis perto das teclas. – Não tenho
atendido às ligações dela.
– Não seja tão dura com ela. Ela só estava
tentando ajudar.
– Caramba! Imagina então se estivesse tentando
me atrapalhar.
– Ela tentou te defender, é sua mãe. Além do
mais, se não fosse por ela você nem existiria para

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poder passar a vergonha que passou.


Desligo o telefone assim que nos despedimos.
Eu vou perdoá-la, mais cedo ou mais tarde. Eu
sempre a perdoo. Só que dessa vez, vai ser mais
tarde do que mais cedo.
As buzinas dos carros lá fora conseguem adentrar
minha sala mesmo com a janela fechada.
– Algum sinal dela? – pergunto ao telefone com a
recepção.
– No – Lorraine utiliza o menor número de sílabas
possível para se expressar, a fim de gastar o
mínimo de energia possível no trabalho.
Olho para cima e contemplo o imenso nada. O
branco do teto se assemelha com a minha carreira,
uma tela quase vazia a não ser por Alana, meu
único portfólio na área de relacionamentos, que
também não parece estar indo nada bem.
Mas eu vou conseguir! Só preciso fazer com que
ela seja uma paciente com melhora clara e os outros
verão. Preciso ter sucesso em ajudá-la, assim ela
será um portfólio perfeito.

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O telefone toca.
– Melissa, Alana está aqui. E está no viva-voz.
Preciso me lembrar de conversar com Júlio a
respeito de trocarmos de aparelho telefônico para
um que não tenha esse recurso.
Peço para que a madame entre, dessa vez sem
cometer uma gafe igual à da semana passada.
As cadeiras brancas da minha sala ficaram
realmente adoráveis em contraste com as paredes
rosa-claro e a mesa de madeira. Ficou “a minha
cara”, como disse o Rafa na primeira vez em que
veio conhecer o consultório. Os livros de
Psicologia dispostos em ordem alfabética sobre a
mesa (por falta de verba para instalar prateleiras)
revelam minha pobreza.
Talvez durante o dia eu devesse desligar a
luminária redonda suspensa no teto por uma
cordinha prateada que tenta iluminar a sala, porque
ela não consegue competir com o sol que entra pela
janela na parede atrás de mim. E eu não consigo
competir com a conta de luz.

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Decorei minha sala com o máximo que pude.


Gostaria de ter posicionado dois candelabros entre
a porta, uma delicada gaiola para velas e um divã
rosa bem comprido.
Porém, o que consegui com o dinheiro que eu
tinha foi: uma mesa bem simples, três cadeiras e
um bônus de um tapete felpudo azul-claro debaixo
da mesa, onde meus pés descalços tornam-se livres
dos calçados desconfortáveis que faço questão de
comprar.
E faço questão de tratar Alana muito bem porque
isso tudo não teria sido possível se ela não tivesse
decidido pagar as consultas de um ano inteiro
adiantado por não gostar de lidar com pagamentos
o tempo inteiro. Isso é o quanto ela é rica. O
dinheiro simplesmente não lhe faz falta.
Estico os pés para calçar novamente as sapatilhas
assim que escuto passos no corredor. E quando a
porta se abre, paro no meio do movimento, atônita.
Alana e seu vestido esvoaçante azul-claro adentram

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minha pequena salinha, que de repente parece


pequena demais para ela.
Por que minha paciente tinha que ser tão
deslumbrante? Xingo a mim mesma por ter saído
de casa tão sem graça essa manhã. Eu estava tão
deprimida com a história da palestra que nem tive
vontade de me arrumar. Já a aparência dela?
Impecável.
Com uma tiara brilhante na cabeça e uma enorme
bolsa preta, ela me cumprimenta com seus dentes
brancos de atriz de novela.
– Desculpe a demora, querida. Eu não sabia que
roupa escolher!
– Er... e por que não escolheu antes? – coloco,
delicadamente.
As coisas que eu tenho que aguentar pelo meu
novo negócio...
– Querida, a inspiração não vinha, entende?
Simples assim! Mas não se preocupe, eu pago esta
consulta em dobro.

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As coisas INCRÍVEIS que eu tenho que aguentar


pelo meu novo negócio!
Abro um sorriso de orelha a orelha.
– Por que está tão elegante?
Ela me dá um beijo na bochecha.
– Vou encontrar meu noivo num restaurante
superdescolado e saudável. Ultimamente esses
alimentos gordurosos têm me deixado totalmente
enojada! – ela se inclina para frente. – Você sabe
quantas calorias tem em um pedaço de bolo de
chocolate?
– Er... não. Quantas?
– Ora, muitas!
É por isso que ela é toda magrinha. O corpo dela
começou a rejeitar os alimentos gordurosos. Por
que meu corpo não faz isso? Tá vendo só como não
é minha culpa?
Ela começa a me contar sobre sua semana, sobre
os problemas no trabalho e sobre o encontro desta
tarde com o noivo.

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– Discutiremos algumas ideias sobre a decoração


do casamento. Ele está superanimado com os
preparativos, mas eu estou uma pilha de nervos.
Tenho um problemão nas mãos.
O rosto dela se contorce e ela adquire um ar
sofrido. Ela se inclina para frente, a fim de revelar a
causa de tanto sofrimento e me preparo para ajudá-
la como psicóloga. Finalmente!
O que seria assim tão problemático? Inclino-me
também, para escutar a grande bucha que ela tem
para resolver.
– Não sei que vestido escolher!
Meu rosto finge surpresa para esconder o tédio.
Será que um dia meus problemas serão assim tão
não problemáticos?
Alana tira da bolsa uma enorme pasta rosa-
choque e a derruba em cima da mesa, fazendo um
barulhão.
Pobre mesa de madeira!
– Esta é a coletânea de todos os vestidos das
grifes que eu gosto – ela abre na página um. – É

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claro que vou experimentá-los pessoalmente. Isto é


apenas um catálogo para que eu me localize.
– E qual o problema?
– O problema é que eu não gostei de nenhum
deles! São todos tão modestos – ela fala, com
repulsa.
Olho para os vestidos a fim de conferir a tal
lástima do mundo da moda, e eis o que vejo:
modelos e mais modelos de vestidos compridos e
elegantes que qualquer garota mataria para ter.
– Você não gostou de nenhum? – pergunto, sem
desviar os olhos dos deslumbrantes pedaços de
pano branco.
Isso simplesmente não faz sentido para mim.
– Como eu poderia? – ela coloca a mão da testa. –
Minha assistente é incompetente demais. Ela fez
essa coletânea de vestidos da temporada passada
porque não entende nada de moda. Como ela achou
que eu fosse gostar disso?
Ela aponta com sua unha comprida francesinha
para um vestido de princesa longo, tomara que caia,

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preso na cintura, esvoaçante no comprimento, cheio


de detalhes brilhantes no busto e do branco mais
branco que já vi.
No entanto, não é meu casamento. É o de Alana.
Que continua falando, quase sem parar para coletar
oxigênio.
– Mas não se pode esperar muito da noção de
moda de uma assistente que gosta de combinar
camisa social com suéter, não é? – ela estreita os
olhos para o meu suéter listrado. – Sem ofensa,
Mel.
Ela fecha a pasta com força, sem um pingo de
vergonha e eu ignoro seu comentário a respeito do
modelito que estou usando.
– Vou experimentar alguns itens daqui só para ter
certeza. Principalmente o Vera Wang.
Aposto que a Vera sei lá o que já usou suéter com
camisa pelo menos uma vez na vida.
– Me diga uma coisa – prossigo, sem perder mais
tempo. – Você chegou a questionar seu noivo sobre
o motivo de um pedido de casamento tão rápido?

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– Mas é claro que não. Você pirou? – ela espalma


a mão na pasta e me olha como se eu fosse imbecil.
– Pra quê? Pra ele ter dúvidas quanto ao
casamento?
– Seria útil para o seu tratamento e...
Ela estende a palma, fazendo com que eu me cale.
– Não estou interessada em ficar encalhada pra
sempre, obrigada. O que me interesso... – ela
cantarola e dá três tapinhas no catálogo do tamanho
de uma enciclopédia. – É em escolher a grife para o
meu vestido de noiva!
Caramba! Será que ela pensa que sou uma espécie
de assistente pessoal dela? Outra assistente que
também se veste mal? Às vezes me pergunto se ela
ao menos sabe que sou formada em Psicologia. E
que não me visto mal coisíssima nenhuma!
Pelo jeito, ela acha que me paga para ser sua
confidente sobre o casamento, e não sua psicóloga
de relacionamentos. E me paga muito bem, aliás,
então que seja!

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O problema é que duvido que ela leve essa


história de casamento adiante. Alana é impulsiva
demais para isso. Já terminou com tantos rapazes
que eu poderia ficar rica atendendo-os, curando a
tristeza que ela deixou em seu caminho de
destruição.
Ela é o Darth Vader dos relacionamentos.
Só que, desta vez, ela está indo ainda mais longe.
Estamos falando de casamento, pelo amor de Deus!
E temo que assim que a coisa apertar, ela vá fugir
de novo e deixar todo mundo para trás.
Ainda bem que ela me pagou adiantado.
Depois do que parecem horas, Alana levanta-se e
leva consigo seu vestido esvoaçante. Não achei que
fosse possível ficar cansada de não fazer nada e de
não falar nada, mas eu estava enganada.
Acompanho minha paciente até a porta, olhando
para sua silhueta tão bem estruturada, leve como
uma pena.
– Mas é claro que ela estaria leve como uma pena
– digo para mim mesma ao voltar para a sala e

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notar que ela esqueceu a droga da pasta de vestidos


em cima da mesa. Agarro-a com as duas mãos. Ela
é mesmo pesada!
Contudo, assim que Alana se despede de Lorraine
na recepção (e não ouve nenhuma resposta de
Lorraine, a mal-educada!) e a porta se fecha num
estalo, não há mais tempo de avisá-la. E não tenho
força o suficiente para carregar a pasta até a rua. Eu
cairia com o peso muito antes disso.
Enquanto folheio a pasta de cinco quilos,
passando por vestidos classificados em post-its
como Vera Wang e Chanel, sinto uma sensação
estranha na barriga, que não consigo identificar.
Talvez seja fome. O que é um pensamento
totalmente contraditório ao objetivo de um dia
entrar num vestido Vera Wang tamanho 36.
Para mim, no entanto, comer é mais importante.

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– Desta vez, só vou comer o macarrão à


bolognesa – diz Pati, segurando a bandejinha
laranja de plástico do restaurante. – Estou de dieta,
sabe?
Não sei se ela entende o conceito de dieta, porque
nunca precisou. Ela é um palito desde que a
conheço. Já eu me mato para manter não o meu
peso ideal, mas sim o meu peso limite.
Combinamos de almoçar juntas para colocarmos
as fofocas em dia. Faz cinco minutos que chegamos
e ela já me presenteou com a informação de que um
antigo morador vizinho nosso foi preso por
agressão, então eu diria que a conversa está indo

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muito bem. Não para o vizinho, de qualquer


maneira.
O restaurante é um self-service abarrotado de
gente. O cheiro de feijão fresquinho paira pelo ar
do ambiente, onde é servida uma deliciosa comida
caseira que parece ter sido feita pela mamãe. Não
pela minha, porque ela cozinha mal. Mas as mães
no geral, eu quero dizer.
Pati veste o uniforme vermelho e branco do hotel
onde trabalha, mas faz questão de estilizar o look
com um sapato oxford preto envernizado que é a
cara dela. E eu estou usando a pasta de referências
de Alana que tampa praticamente toda a frente do
meu corpo, de modo que quase não importa o que
visto por baixo.
Ela me telefonou vinte minutos depois que saiu
do consultório, implorando para que eu levasse a
pasta tamanho-família até ela no restaurante em que
almoçaria com seu noivo. Disse-me que era
“superpertinho do consultório, não ia demorar um
minuto” com a maior cara de pau, achando que eu

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presto serviço de motoboy a ela também. Mas


concordei para agradá-la. O cliente tem sempre
razão, não é algo assim que se diz?
Encontramos uma mesa de seis lugares, já
ocupadas por outras quatro pessoas. Por falta de
lugares vagos, pedimos licença (e com isso eu
quero dizer que eu pedi licença, pois Pati ainda não
parou de falar sobre o vizinho agressor) e nos
sentamos uma de frente para a outra, pendurando
nossas bolsas na cadeira.
– Preciso contar uma coisa. Adivinha quem me
ligou um dia desses? – ela me olha sem piscar.
– Sua chefe? Pedindo que você voltasse ao hotel e
trabalhasse mais dezoito horas num só dia?
– Não, não foi minha chefe. Foi o Augusto.
Pausa dramática.
– Espero que você tenha conhecido outro
Augusto! – digo, na esperança de que seja qualquer
Augusto. Qualquer um. Menos aquele.
O negócio é que eu sei muito bem a quem ela se
refere, porém me recuso a acreditar que ele teve a

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cara de pau de entrar em contato com ela.


E que ela teve a cara de pau de atender.
– Não, é o próprio – ela suspira. – Sei que você
não gosta dele por causa daquela confusão toda,
mas ele me pareceu arrependido.
Todo mundo parece arrependido quando quer
levar você para a cama.
– Aquela “confusão toda” se chama traição,
Patrícia!
O casal ao lado olha para nós e me arrependo de
ter falado tão alto.
– Desculpe – digo baixinho.
Augusto é o ex-namorado de Pati. Eles
terminaram há tempo suficiente para que a
marquinha da aliança saísse do dedo dela, mas não
o bastante para que o chifre parasse de doer.
Então, sim, eu tenho um pé atrás com esse cara.
Não, não. Eu detesto esse cara.
– O que é que ele queria?
– Disse que encontrou umas coisas minhas em
seu apartamento, que ele nunca teve coragem de

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devolver. Ligou pra saber se eu queria passar lá pra


buscar.
– Você. Não. Vai – digo entre dentes. – E ponto
final.
– Eu sei, eu sei. Relaxa, eu não vou – ela levanta
as mãos, rendendo-se. – Eu disse que ele poderia
me mandar por correio. Ou então podia jogar fora,
pois o que quer que esteja lá, não me fez falta até
agora. Assim como ele.
– Boa garota! Você disse mesmo isso?
– Menos a parte do “assim como ele”. Mas todo o
resto foi dito – ela faz que sim com a cabeça.
– Ótimo – solto o ar que eu estava prendendo.
Menos mal. Sempre achei que assim que ele
estalasse os dedos, ela voltaria correndo para ele.
– Rafael me ligou ontem também – digo.
– “Espero que tenha conhecido outro Rafael” –
ela me imita, parecendo uma criança.
Eu a ignoro. O casal ao nosso lado conversa e dá
risadinhas, almoçando de mãos dadas sobre a mesa

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e utilizando os talheres com uma mão só.


Precisavam ser assim tão melosos?
Ah, a quem estou querendo enganar? Eles são
adoráveis!
– Ele me convidou para o aniversário de 25 anos
de casamento dos pais dele.
– Ah, era isso? – diz Pati, antes de sugar um fio
de macarrão com a boca, fazendo um bico. – Ele
também me convidou.
– Sério? – digo num muxoxo.
Fico decepcionada por não ter sido a única
convidada. Por que ele tinha que tratar todo mundo
do mesmo jeito? Assim fica difícil me sentir
especial para ele.
Pati engole o macarrão que mastigou em menos
de cinco segundos.
– E ele também chamou o Leo.
Caramba, o mundo inteiro foi convidado?
– Você vai? – ela me pergunta.
– Claro que sim. Gosto muito dos pais dele.

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– Aham. Sei. Vai dizer que não é porque você


quer que os parentes do Rafa a confundam mais
uma vez com uma namorada dele?
Faço-me de desentendida.
– É claro que não! Por que diz isso? – encho a
boca de arroz.
Sempre que eu vou a alguma festa de família do
Rafa – e olha que já fui em muitas (quatorze, para
ser exata) –, alguém pressupõe que sou namorada
dele. Se eu tiver sorte, as pessoas acabam falando
isso na frente dele. É por isso que nessas ocasiões
tento estar sempre o mais perfeita possível, para
que quando aqueles olhos azuis me observarem
envergonhados, talvez algo mude em seu coração e
abra seus olhos.
Até agora não consegui porcaria de mudança
nenhuma. Mas quinze é o número da sorte, eu estou
sentindo!
– E vai me dizer que você não começou a pular
feito uma idiota e foi correndo até o armário decidir
o look para a festa assim que desligaram o telefone?

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Nossa, ela me conhece demais.


– Eu não fui até o armário.
Encaro-a firmemente. Mas ela me conhece, então
qual é o ponto?
– Sei meu guarda-roupa de cor. Sendo assim, o
que fiz na verdade foi uma lista do um ao dez dos
possíveis modelitos. Tecnicamente você estava
errada – digo, triunfante.
Ela balança a cabeça de um lado para o outro, em
descrença.
– E você é tecnicamente patética – ela diz e enfia
mais macarrão na boca.
O casal ao lado começa a fazer cócegas um no
outro. A risada deles é tão boa de ouvir...
Quero isso para mim. Onde eu compro? E o mais
importante: quanto custa, e passa no crédito?
Com tristeza, percebo que eu e o Rafa não temos
oportunidades de rir desse jeito um com o outro.
Obviamente porque não somos um casal. Ou talvez
eu só precise fazer cócegas nele.
– Se você quer a minha opinião...

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– Eu não quero – digo.


– Acho que você deveria contar a ele. Eu sei que
você nunca concorda, mas você já tentou do seu
jeito e não deu certo. Por que não faz diferente
agora?
Ela tem certa razão.
O casal sorridente se levanta e vai embora,
carregando consigo planos para um futuro que os
aguarda ao atravessar a porta. Tudo bem que é só
uma porta de restaurante, mas eu digo
metaforicamente. Eles têm planos. E já passou da
hora de eu ter alguém para fazer planos comigo.
– Esquece isso – digo, franzindo o cenho.
“Senhor, vou falar rapidinho porque estou aqui
com a Pati, mas é para eu não esquecer de pedir. Só
queria Lhe lembrar de que já tenho 24 anos e que o
relógio está correndo e eu tenho um plano a
cumprir. Gostaria de estar noiva no ano que vem, se
não for pedir demais. Obrigada, Senhor. A Pati está
acabando de comer. Acho melhor eu me despedir.
Tchau. Amém.”

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Depois do almoço, caminhamos até o tal


restaurante superdescolado e sei lá mais o quê, para
devolver a pasta peso-pesado da minha paciente
peso-pena.
– Que restaurante chique! – digo, ao nos
aproximarmos.
– E supercaro – esclarece Pati. – Eles só servem
pratos fitness, então não se fala mais de outra coisa.
– A salada deve custar o meu salário.
– Falando em salário... – Pati encosta o nariz no
vidro. – Sua paciente está aqui?
– Foi o que ela disse – respondo ao observar o
lugar da calçada.
– Então anda logo, que eu preciso voltar pro
hotel! – ela checa o horário pelo meu relógio de
pulso.
O restaurante é todo de vidro transparente, com
dois vasos de cerâmica sustentando plantas podadas
em formatos arredondados em cada lado da porta.
O tempo nublado dá uma trégua ao dia, deixando o
sol aparecer por um breve instante, presenteando o

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pequeno restaurante com uma aura resplandecente.


Daqui de fora consigo ver um lustre do tamanho do
meu sofá pendurado no teto. Qual é a probabilidade
de ele cair na cabeça de um dos clientes?
Tento me convencer de que o único motivo pelo
qual eu não comeria nesse restaurante é a ameaça
iminente do lustre. Aperto os olhos para enxergar
melhor de longe, e estou prestes a andar em direção
à entrada quando percebo um rosto familiar lá
dentro.
Em uma mesa no centro do restaurante, bem
embaixo do lustre, está Alana com seu vestido
esvoaçante maravilhoso sentada de frente para o
noivo, que está de costas para nós. Pati me pergunta
se eu a encontrei e estou para lhe dizer que sim
quando o noivo da minha paciente, de mãos dadas
com ela sobre a mesa, vira-se para chamar o
garçom e o meu coração para.
Parece que tomei um soco no estômago e não
consigo respirar.

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– Ei, o que foi? – pergunta Pati, cutucando-me no


ombro, mas a voz dela já está muito distante. – O
que você está vendo?
Não, não pode ser. Simplesmente não pode!
Aperto os olhos com mais força ainda.
– Que que foi, hein? Cara, você está pálida! – diz
ela quando não respondo.
Eu uso óculos e não enxergo muito bem sem eles.
Mesmo assim, tenho certeza do que estou vendo.
Eu preciso ter piorado da miopia e do
astigmatismo, eu preciso! Porque não posso estar
vendo certo.
Vasculho a bolsa atrás dos meus óculos redondos
de aro fino prateado, e quando os encontro,
posiciono-os desajeitadamente na frente dos meus
olhos.
Ah, meu Deus!
Patrícia me segura pelos ombros e olha bem séria
para mim.
– O que está acontecendo, Melissa? – ela ajeita os
óculos tortos no meu rosto.

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Eu engulo em seco.
– Você está chorando? O que foi que você viu lá
dentro? – diz ela, tentando enxergar através do
vidro.
– O Rafa – digo, finalmente. – Pati, eu vi o meu
Rafa.

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Atravesso a rua desesperada. Não consigo


respirar, apesar de estar ventando tanto que o que
não falta é oxigênio. Talvez eu esteja tendo uma
crise de ansiedade. Ou talvez seja essa pasta, que é
bem pesada mesmo. Eu deveria ser capaz de me
autodiagnosticar? Bom, então talvez eu não seja
uma psicóloga tão boa assim.
Viro a primeira esquina e despejo o corpo num
banco de pedra, jogando a pasta bruscamente para o
lado e escondendo as lágrimas com as mãos.
Pati me alcança alguns segundos depois,
balançando em seus oxfords. Tento olhar para ela
com meus olhos turvos.

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– Mel, o que aconteceu? E daí que você viu o


Rafa?
Um nó tão grande forma-se em minha garganta
que chega a doer. Eu choro ainda mais.
– Ele estava com alguém?
– S-sim... – levanto a mão, pedindo para que ela
aguarde, o nó na garganta impedindo-me de falar.
Ela assente e coloca a mão no meu ombro. Mas
sei pela testa franzida que a curiosidade a está
matando.
– Lá dentro do restaurante, sentada numa mesa,
estava a minha paciente.
– Sim, e daí? Não viemos aqui devolver a pasta
dela?
– Escute! Na semana passada, ela me contou que
está noiva.
Dou um tapa na pasta.
– Mas só está namorando há três míseros meses,
que droga! – grito, com rancor de tudo o que ela
tem me contado.

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Começo a soluçar enquanto mais e mais lágrimas


quentes escorrem pelo meu rosto, e minha voz
adquire um tom choroso.
– Ela começou a se consultar comigo porque não
conseguia permanecer em um relacionamento
estável por muito tempo. Por isso, eu torcia para
que ela encontrasse alguém legal. E o problema é
que ela encontrou! O cara mais legal que ela
poderia ter encontrado. E está noiva dele.
– Como assim “problema”? – Pati pergunta.
De repente, ela fica estática. E arregala os olhos.
– Ai-meu-Deus! – ela chega bem perto de mim e
me segura pelos ombros. – Era o Rafa? Você viu o
Rafa lá dentro com a sua paciente?
Se tem uma coisa que a Pati não é, é burra.
Confirmo com a cabeça e olho para a esquina na
direção do restaurante.
– Mas o Rafa não está noivo. Vimos ele semana
passada!
– Mas você notou como ele tem estado distante
ultimamente? Bom, eu notei.

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– Isso não quer dizer nada – ela cruza os braços. –


Quer dizer, quais são as chances de isso acontecer?
– Sejam quais forem, não estão a meu favor.
Os prédios monstruosos da cidade parecem ainda
maiores, deixando clara a minha insignificância.
– Deixa disso! Até parece que ele é o noivo dela.
– Pati... – digo, secando o rosto com as costas da
mão. – O noivo dela se chama Rafael. Isso quer
dizer alguma coisa, não?
– Você não enxerga muito bem... tem certeza de
que viu o Rafa? Tipo, o Rafa mesmo? O nosso
Rafa?
– Pelo jeito ele é o Rafa dela agora – meu rosto se
contrai em raiva. – E eu estava usando óculos!
– Pode ter visto errado. E se estiver na hora de
aumentar os graus da lente?
– Mais? Eu já tenho três graus em cada olho!
Como isso foi acontecer? Será que é algum tipo
de pegadinha?
– Não é possível, amiga – ela cruza a perna e
aumenta a voz para competir com as buzinas dos

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carros e o motor do ônibus que passa ao nosso lado.


– Por que ele não contaria que está noivo? Isso não
faz o menor sentido. Você deve ter visto errado.
– Pati, era ele. Eu juro! – choramingo. – Eu o
reconheceria a um milhão de quilômetros. Era ele!
Ficamos as duas em silêncio.
Ela se levanta, olha para os dois lados ao
atravessar a rua e some ao virar a esquina do
restaurante.
Alguns segundos depois, Pati ressurge, olha para
mim e atravessa a rua de volta.
Sem dizer uma palavra, senta-se ao meu lado.
– Me explica direito essa história – ela diz sem
encontrar meus olhos, as sobrancelhas levantadas.
Ela viu o mesmo que eu. – Sua paciente está noiva
e está almoçando com o Rafa.
Faço que sim com a cabeça.
– Minhas lentes parecem ótimas agora, hein?
Ela me ignora.
– Mas isso só quer dizer que ela está almoçando
com ele. Pelo amor de Deus, ela pode conhecer

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mais de um Rafael, não pode?


– Pode, mas ela almoça de mãos dadas com todo
Rafael que conhece?
– Provavelmente não – ela concorda com a
cabeça.
– Pati, ela me disse que ia almoçar com o noivo
dela.
Ela abre a boca para falar.
– E nem venha me perguntar se ela não pode ter
ido a dois almoços! – me adianto.
Ela fecha a boca.
Algumas pessoas caminham pela calçada em que
estamos sentadas, mas eu não poderia me sentir
mais sozinha. Pati não se deixa abater.
– Há alguma chance de ela ter uma compulsão
por contar mentiras ou algo do tipo? – tenta ela
mais uma vez, mas nem ela mesma parece se
convencer.
– Não, ela não tem mitomania. Alana é
egocêntrica e mimada, mas não é mentirosa.

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Duas adolescentes passam ao meu lado e me


olham curiosas. Quase consigo ver as engrenagens
do cérebro delas movimentando-se e imaginando o
porquê de eu estar chorando no meio da rua.
Cresçam, e vocês verão!
– Eu não posso acreditar – sussurro.
– Nem eu.
Ficamos sentadas até o vento começar a ficar
mais gelado e desarrumar nossos cabelos. Pati
checa o horário no celular.
– Saco! Tô atrasada.
– Desculpe. Fiz você perder a hora.
– Deixa pra lá. Não é como se fosse o emprego
dos sonhos.
– Certo... – coloco a mão na testa, desnorteada.
– E agora? O que você vai fazer com a pasta? –
ela fica de pé e estica as mãos para me ajudar a
levantar.
Aproveito a deixa para jogar a pasta em suas
mãos estendidas. Essa porcaria é mesmo muito
pesada.

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– Ela que vá buscar a Vera Wang no inferno.

Andamos caladas. Como pode ser verdade? Na


sexta-feira passada saímos todos juntos e tudo
estava como sempre foi, como deveria ser. E agora,
sem mais nem menos, minha vida desmorona desse
jeito?
Tinha que ser com Alana? Justo com ela? Entre
milhões de mulheres no mundo?
É claro que não seria fantástico vê-lo sair com
mulher nenhuma. Arruinaria meus planos de
qualquer maneira. Mas tinha que ser com a minha
paciente?
E não é como se eles estivessem apenas
namorando. Eles estão noivos!
Incrível. Simplesmente incrível.
Passamos por um senhor vendendo discos feios
pintados à mão na calçada. Eles estão dispostos de
maneira desorganizada, e a distância entre o

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segundo e o terceiro disco está muito diferente da


dos demais, tornando-os ainda mais feios.
Não importa, não importa! Você tem problemas
maiores agora, sua besta. Deixe o TOC pra lá.
Continuo andando.
– Mel – diz Pati. – Mel!
– Me desculpe, o que disse?
– Você precisa se acalmar. A gente não sabe o
que está acontecendo de verdade.
– E como você sugere que eu faça isso? – digo,
parando de andar. Um sedan prata buzina para mim
e percebo que parei no meio do cruzamento.
– Me desculpa, tá legal! – grito para o motorista.
Uma senhora de mãos dadas com uma criança me
olha surpresa.
– Me desculpe – digo envergonhada ao motorista,
que em seguida buzina e mostra o dedo do meio
para mim.
– Vá se danar! – Pati grita de volta para ele.
– Pati, não sei se você entende a gravidade da
situação, mas a minha paciente está noiva – noiva,

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que ridículo! –, do amor da minha vida. Ele deveria


estar comigo e não com ela.
E é então que me dou conta.
Como um vento gelado bem forte batendo na cara
de alguém que acabou de sair do banho, algo
terrível me atinge. Ah, não, meu Deus, não.
– Eu vou ter que vê-la de novo – paro no meio do
passo.
Pati também para.
– Quem?
– Alana! Não tinha me tocado, mas terei que vê-la
novamente. Nas consultas. Falando sobre o
casamento. O-ano-inteiro!
Por que é que eu fui torrar todo o dinheiro
adiantado que ela me pagou? A decoração da
minha sala não me parece tão importante agora.
Nada mais parece.
Se ao menos eu voltasse e arrumasse aqueles
discos feios... certo? Eu sei que me sentiria muito
melhor...

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– Certo – diz Pati. – A primeira coisa que a gente


vai fazer é descobrir a verdade. E se for verdade...
– ela dá ênfase. – Então você terá que deixar de ser
terapeuta dela.
– Não dá.
– Pelo amor de Deus, você não pode continuar
ouvindo sobre ela e o Rafa.
– Você não entende. Eu preciso atender Alana –
passo a mão pelo rosto, esticando minha cara como
um desenho animado. – Ela me pagou adiantado.
– Então devolva o dinheiro, saco! – ela levanta os
braços no ar.
Eu a seguro pelos ombros.
– Como você acha que paguei por aquela porcaria
de tapete felpudo?
– Ai, sua burra! – os ombros dela caem.
A ironia da situação não me passa despercebida.
Há uma semana, Alana furou literalmente o meu
olho. Eu só não sabia que ela também faria isso
figurativamente.

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– Mel, falando sério. Você é uma das pessoas


mais inteligentes que conheço. Seja prática, ok?
Você não sabe o que está acontecendo. Só o que
sabe é que Alana está noiva.
Acho que agora não dá mais para voltar e
arrumar os discos, não é? Afinal, já estou muito
longe. Bem, não estou tão longe assim. Eu poderia
dar meia volta...
– E não é como se você tivesse visto eles se
beijando – Pati continua, incansável. – Se liga, é do
Rafa que estamos falando! Ele é certinho demais
pra isso.
Humm... isso é verdade.
– Casar depois de três meses de namoro? Isso
parece algo que ele faria? – ela empina aquele nariz
enorme para mim.
– Tenho que admitir que isso é verdade – uma
ponta de esperança toma conta do meu ser e me
animo consideravelmente.
Mas que ridículo! É claro que deve haver algum
engano. Rafa é mesmo muito certinho para fazer

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uma coisa dessas. Ele ao menos nos contaria antes.


Mas é claro! Um jubilo de glória percorre minhas
veias e dou um abraço aliviado em Pati.
– Ele não faria algo assim tão impulsivo – digo,
rindo quase histericamente.
Então por que ele fez? Por que estava almoçando
com ela?
Ignoro pensamentos negativos. Porque deve haver
uma explicação perfeitamente razoável para tudo
isso.
Está decidido! Vou voltar e arrumar aquelas
porcarias de discos. Preciso agradar o universo
como recompensa.
– Exato. Eu não sei por que eles estavam juntos,
mas você também não sabe, cara. Então não tire
conclusões precipitadas, ok? – ela diz, parada na
frente do imponente hotel onde trabalha.
Árvores podadas em formatos elegantes de um
verde bem vivo enfileiram-se em frente ao hotel de
vinte andares, criando uma aura suntuosa para os
transeuntes.

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– Você sempre sofre por antecedência e se


preocupa à toa.
Decido confiar em Pati. Mas desconfio da
natureza de suas boas ações quando ela se recusa
terminantemente a ficar com a pasta e queimá-la no
fogo do inferno por mim, entregando-me
novamente.
– Você é a melhor amiga dele e seria a primeira a
saber se ele estivesse noivo – ela diz, dando-me um
abraço rápido.
Ela está certa e eu vou ouvi-la. Vou ouvi-la e me
acalmar assim que eu voltar e arrumar aqueles
discos feios.
E ela conclui, antes de entrar no luxuoso hotel:
– Você não pode ter certeza de nada enquanto não
ouvir as palavras saindo da boca dele.

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– Estou noivo! – diz Rafa, e eu tento com todas as


minhas forças não fazer cara feia.
Aí está. O momento que eu torci o dia todo para
não acontecer. Só o que fiz foi me enganar. O que
somente prova mais uma vez que eu estava certa de
sofrer por antecedência. Pelo menos eu estaria mais
preparada.
Ouvir as palavras saindo da boca dele é como
uma flechada na minha bunda. E não no coração.
Porque uma flechada no coração teria me matado
instantaneamente, ao passo que uma flechada na
bunda não me mata, mas me causa uma dor

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descomunal e me obriga a conviver com isso. Além


de ganhar uma cicatriz parecida com uma celulite.
Só preciso aguentar essa noite sem chorar na
frente dele.
Não é como se eu tivesse me apaixonado muitas
vezes. Não estou à disposição de sofrer. E nunca
deixei outras pessoas entrarem em minha vida esses
anos todos porque esse espaço pertencia ao Rafa.
Não seria melhor ser como o Leo, que não se
apega a ninguém? Do outro lado da mesa, ele está
tão chocado com a notícia quanto eu. Bem, talvez
mais. Por não se ligar a ninguém, imagino que ele
não consiga entender quando alguém quer fazer
isso por vontade própria.
Assim que voltei ao consultório (depois de
arrumar aqueles discos de vinil e receber em troca a
expressão confusa daquele homem que imaginou
que minha aproximação significava uma venda),
meu celular apitou com uma mensagem de texto
não lida. Era do Rafa. Nunca antes eu detestei
receber notícias dele.

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Meu coração afundou e foi parar no chão.


Meu nariz ficou inchado, pois é isso o que
acontece quando eu choro. Meu nariz fica enorme.
Não tanto quanto o de Pati, mas ainda assim,
enorme.
O que eu fiz para merecer isso? Caramba, eu devo
ter feito uma porrada de coisas erradas na vida
passada.
Eu enviei uma mensagem à Pati:

E ela me respondeu logo em seguida:

Se nem a Pati estava tentando me dizer que eu


estava errada, é porque ela sabia que eu estava
certa.
– Acho que não ouvi direito – diz Leo,
mastigando bem devagar um pedaço de frango
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frito.
Rafa abre um sorriso tão grande que seus olhos se
fecham.
– Eu sei que é uma surpresa e tanto.
Surpresas não deveriam ser agradáveis?
– Eu conheci uma mulher incrível. O nome dela é
Alana. Ela é maravilhosa. Vocês precisam conhecer
minha namorada. Quero dizer, minha noiva.
Eu preciso é desconhecê-la.
– Quando a vi, jurava que já a tinha visto em
algum lugar antes. Foi amor à primeira vista. Quer
dizer, amor à segunda vista, então. Enfim... – ele
limpa a garganta e prossegue quando ninguém diz
nada. – Foi tudo muito intenso, mas temos passado
o tempo todo juntos e eu a pedi em casamento no
sábado retrasado.
– Acho que não ouvi direito – repete Leo. – Você
vai se casar?
Leo derruba o pedaço de frango em cima da
mesa. Finalmente alguém para compartilhar minha
preocupação.

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– Isso é... – Leo diz, procurando as palavras. –


Incrível!
Como é que é?
Ele se levanta, quase pulando por cima da mesa
para dar um abraço muito entusiasmado no Rafa
enquanto fico desacreditada com a reação dele.
Rafa discretamente limpa os pedacinhos de
comida que Leo deixou em sua camisa durante o
abraço.
– Ahá. Então era por isso que o senhor andava tão
sumido? – Pati levanta uma sobrancelha ruiva e
aponta o dedo para ele antes de abraçá-lo. – Ao que
parece, não era a sua “carreira como modelo” que
não lhe deixava muito tempo, não é? A sua vida de
modelo era só uma fachada para a sua vida de...
noivado.
Já que Pati decidiu dar-lhe os parabéns também,
sou obrigada a ser falsa. Levanto-me, com a
sensação de estar caminhando em direção à cadeira
elétrica das minhas esperanças. Assim que eu lhe

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der os parabéns, estará tudo acabado. Antes mesmo


de ter começado.
– Er... felicidades – digo e lhe dou um último
abraço apertado, decidindo que a partir de agora os
abraços serão rápidos. Serão simples. Serão com o
nariz tapado para não sentir o cheiro delicioso de
sabonete que emana do pescoço dele, reprimindo
meus sentimentos.
Eu já fiz isso uma vez, não é? Não com ele
exatamente. Mas posso fazer de novo. Por mais
doloroso que seja. E, depois de algum tempo, o
verei apenas como amigo.
– Eu tenho um pedido a você – ele pega minhas
mãos, que parecem muito menores entre as dele. –
Você aceita ser minha madrinha de casamento?
– Madrinha de casamento? – pergunto.
– Sim! Minha madrinha. Quero você participando
ativamente dessa comemoração.
– Ativamente? – pergunto outra vez.
– Não poderia ser diferente. Você é como uma
irmã pra mim.

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Não respondo. Minhas pernas tremem e apoio-me


discretamente na quina da mesa de vidro. Sinto
uma lágrima brotar nos meus olhos e tento engolir
o choro. Irmã?
– Eu sei que é repentino e que você nem sabe
quem é minha noiva, meu Deus! – ele dá uma
gargalhada. – Mas eu vou contar tudo, eu prometo.
Só me diga que será minha madrinha. Vai estar no
altar comigo?
No altar? Santo Antônio, o que está acontecendo?
Ele aguarda. Os olhos de Pati e Leo fazem peso
sobre mim.
– Mel? – Rafa se inclina para enxergar minha
cabeça abaixada. – Você está chorando?
Ele me segura pelos ombros.
– Er... – abro o sorriso mais forçado que consigo
e, vai por mim, eu deveria ser indicada ao Oscar. –
É que eu estou tão feliz por você!
E o prêmio de melhor atriz com habilidade em
disfarçar emoções negativas com maestria vai
para... Melissa Belinque! (“Quero agradecer a

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todos por esse prêmio, principalmente à Alana, por


ter ferrado com a minha existência. Sem ela, tudo
isso não teria sido possível.”)
– Eu sabia que você ficaria – Rafa diz.
Coloco as duas mãos no peito. Até eu quase
acredito em mim mesma.
– Você não tem ideia!
Meu nariz demorou muito para desinchar da
última vez, mas isso não parece ser um motivo bom
o suficiente para que meu cérebro ordene que as
lágrimas cessem.
Por sorte, lágrimas podem ser interpretadas de
vários modos. E enquanto Rafa fica satisfeito com a
minha reação, Pati me olha com muita, muita pena.
Forço ainda mais o sorriso.
– Então você aceita?
– Aceita o quê? – digo, com uma mão na cintura e
a outra na testa.
– Ser minha madrinha, boba.
– Nossa, eu... – dou um longo suspiro. – Nada me
faria mais feliz.

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Ele me abraça apertado e, por cima de seus


ombros, vejo um Leo desconfiado.
– Eu sabia que você não recusaria – Rafa diz, por
fim.
–Eu? Mas é claro que não. Não, nunca. Não. –
dou uma risada histérica. – Por que recusaria? Não
tenho motivos para isso, tenho?
Como consigo ser tão estúpida? Não passou pela
minha cabeça que eu seria uma das madrinhas?
Mas é claro que eu seria! Sou a melhor amiga dele,
ora! Ou melhor, sou praticamente uma irmã, como
ele fez questão de me lembrar.
Isso está mesmo acontecendo?
Por que, ao que parece, minha vida se
transformou em um filme e não sei pausar a fita.
Mas não para por aí. Rafa ainda faz questão de
convidar Pati e Leo como padrinhos também, o que
me classifica como só mais uma nesse casamento
estúpido.
Limpo o rosto molhado. Já chega! Tenho muitas
noites em claro para chorar. Preciso guardar

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lágrimas para isso.


Leo ainda me encara.
“Que foi?”, sibilo para ele. “Nada”, ele responde
e dá de ombros.
Nós nos sentamos para “comemorar”, mesmo que
o sucesso do Rafa seja a minha derrota. Ficarei
apenas tempo suficiente para não demonstrar meu
imenso descontentamento/desejo assassino.
– Uma caipirinha de kiwi, por favor – peço ao
garçom. – Capricha na vodca.
– Uma garrafa de cerveja e uma porção enorme
de batatas fritas com cheddar e bacon. Caprichada.
Aparentemente, estamos precisando... – diz Leo ao
garçom e olha para mim.
Que diabos ele quis dizer com “estamos
precisando”?
– Porque estamos comemorando, é claro – Leo
acrescenta, como se lesse a minha mente, e dá de
ombros.
– Conte como isso aconteceu. Como assim,
gente? Quem é ela? Quero saber de tu-do! –

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pergunta Pati, me olhando com cumplicidade, mas


sei que na verdade ela só está muito curiosa para
não perguntar.
– Certo. É justo! – Rafa levanta as mãos,
rendendo-se. – Chego aqui dizendo que vou me
casar sem nem ter dito que estava namorando.
Onde já se viu?
Balanço a cabeça afirmativamente bem devagar,
pois sinto que qualquer movimento brusco da
minha parte pode desencadear uma reação de
dilúvio. Leo está obviamente me medindo do outro
lado da mesa, mas permaneço com os olhos
grudados no noivo.
– O nome dela é Alana, como eu já falei. Ela é
redatora júnior, escreve para a revista Super Teen.
– Eu adorava essa revista! – Pati comenta.
Eu também, quando eu tinha treze anos.
– Ela é alta, loira e uau... linda!
Diga alguma coisa que eu não saiba.
Ele assume um ar sonhador e eu resolvo que é o
momento ideal para alinhar os quatro porta-copos

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em cima da mesa, coisa que eu estava morrendo de


vontade de fazer desde que cheguei.
– Estamos juntos há apenas três meses...
– Mentira! – diz Pati, cínica. – Não é muito cedo
pra um casório, não?
– Normalmente eu pensaria o mesmo, sim – diz
Rafa. – É difícil de acreditar que tenha acontecido
tão depressa, mas devido às circunstâncias, não
vejo alternativa melhor.
– Que circunstâncias? – pergunta Leo.
Aguardo calada fitando os porta-copos na minha
mão. Rafa pausa por uns segundos.
– Que circunstâncias?
– Foi o que perguntei – Leo responde a ele,
enrugando a testa.
– Eu estou perdidamente apaixonado por ela – ele
estampa um sorriso bobo naquela cara de boboca. –
É circunstância suficiente para mim.
Humm... não sei não.
O modo como ele disse essa última frase...

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Podem me chamar de louca, mas algo me soa


falso. Talvez ele não queira se casar de verdade!
Você não pode saber o que quer para o resto da
vida em três míseros meses.
Ou talvez seja nisso que eu quero,
desesperadamente, acreditar.
Leo continua me espiando. Ele já está me
enchendo o saco!
“Que foi?”, digo sem emitir som. “Nada”,
responde ele e dá de ombros novamente. Reviro os
olhos. Ele não gosta de histórias de amor mesmo,
então por que simplesmente não vai para casa?
Que é o que eu deveria fazer. Detesto histórias de
amor no momento. Comédia romântica está
terminantemente proibida na minha TV a partir de
hoje.
Nossos drinques chegam e tomo um gole enorme
da caipirinha. O gosto da vodca no capricho faz
meu rosto se contorcer.
– E onde vocês se conheceram? – continua Pati,
apoiando o rosto nas mãos, os cotovelos na mesa,

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desesperada para saber mais.


E eu começo a me cansar de tudo isso. Alana não
fecha a matraca, de modo que já ouvi essa porcaria
de história mil vezes. Eu mesma poderia continuar
a contar, caso o Rafa cansasse.
– Eu a conheci aqui.
Aqui? Nesta droga desse bar? Disso eu não sabia.
É oficial. Eu detesto este lugar!
Mas será que é por isso que o Rafa o ama tanto?
– Eu não conseguia tirar os olhos dela, e quando
eu menos esperava ela caminhou até mim e puxou
assunto – ele dá risada. – Nunca imaginei que ela
faria algo assim, mas ela falava com a maior
naturalidade. E me lembro de ter pensado: que
mulher incrível!
Meus olhos se enchem de lágrimas e disfarço
olhando para baixo, brincando com o canudinho da
bebida. As palavras dele me corroem por saber que
Alana teve coragem de fazer o que eu não tive em
dez anos.

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E ainda mais porque não vou poder me afastar


dele com tanta facilidade. Não é como se eu
pudesse sumir no mundo. Não posso recusar ser sua
madrinha de casamento. Ele conhece meus pais,
que provavelmente serão convidados para o
casamento também.
Além disso, posso acabar perdendo Pati e Leo ao
me afastar, e isso doeria mais em mim do que
qualquer outra coisa. Os quatro saindo como
amigos, Alana ocupando o lugar que costumava ser
meu? Nem a pau!
Mas como é que eu vou fazer isso? Como posso
continuar sendo amiga dele?
A única coisa que eu sei, sentada bem de frente
para o Rafa, que sorri ao pensar na minha paciente,
é que não tem como ser mais humilhada do que
isso. Achei que não tê-lo fosse ruim, mas perdê-lo
para outra pessoa é ainda pior.
Ignoro os olhares de piedade de Pati e quero
esbofetear Alana, que arruinou o meu plano
perfeito e tudo o que eu poderia ter.

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– Desculpe por não ter contado sobre ela antes,


mas vocês sabem como eu sou.
Um mentiroso? Ingrato?
– Tenho que melhorar isso em mim. Às vezes sou
tão reservado que não conto meus segredos nem
para mim mesmo.
Leo dá uma gargalhada com a piada, animado
demais para o meu gosto.
– Mas eu não sabia se daria certo, e tudo
aconteceu tão rápido que eu mal tive tempo de
raciocinar.
Está vendo só? Até ele admite que não raciocinou
direito.
– Mas por que é que você vai se casar assim tão
rápido, fofo? – pergunta Pati e eu retribuo a
pergunta com um olhar de gratidão.
É, fofo. Por quê?
– Não acha que deveria conhecer a moça direito?
– ela bate palminhas e cantarola, o laço preto
vintage na cabeça balançando enquanto fala, e eu
prendo a respiração.

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– Bom, er... – ele hesita e pisca rapidamente


várias vezes antes de responder. –Pensei em fazer
diferente dessa vez. Eu sempre planejo a minha
vida, desde o que vou comer no café da manhã até
os planos para aposentadoria. Pensei em mudar um
pouco. Ela é diferente. Ela me faz querer ser
diferente.
Ah, ela me faz ser diferente também! Me faz
querer furar o olho dela com um lápis bem
pontudo, pra variar um pouco.
As risadas animadas dos clientes do bar me
atingem como uma adaga. Por que estão tão
felizes? Não estão vendo o que o mundo se tornou?
Há uma semana estava tudo bem. Tudo seguia
conforme o planejado. Eu não tinha o Rafael para
mim, porém ninguém mais o tinha também.
Contudo, eu estava errada. Presumi que estivesse
tudo em ordem, mas faz três meses que minha vida
tomou outro curso. E eu só fiquei sabendo agora.
E quer saber? Que se dane!
Levanto-me abruptamente.

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– Eu já vou indo...
– Mas já? Acabamos de chegar – diz Rafa,
olhando para seu relógio de pulso prateado.
– E a batata frita ainda nem foi servida – Leo
franze a testa. – Desde quando você vai embora
sem comer batata? E sem derrubar cheddar em
você mesma?
– Desde que estou exausta.
Rafa se levanta rapidamente, pega minhas mãos e
me dá um beijo na bochecha. Aí ele me olha nos
olhos.
– Obrigado. Por tudo! Significa muito pra mim.
Se há dez anos me dissessem que eu seria a
madrinha de casamento do Rafa, eu não acreditaria.
Diria que eu seria a esposa, isso sim.
Aliás, se me dissessem isso há uma semana eu
também não acreditaria.
O que apenas mostra que talvez seja mais
proveitoso ser vidente do que terapeuta.
Dou adeus a todos e saio pela porta de vidro
pesada do bar, prometendo não voltar aqui nunca

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mais, e sigo em direção ao metrô. Mas não sem


antes parar na lanchonete da esquina e comprar três
batatas fritas tamanho gigante para me afundar
também na dieta. É o que chamo de fundo do poço
duplo.

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Meu condomínio fica localizado no bairro do


Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Eu
imaginava que só me mudaria da casa dos meus
pais quando me casasse. Só que eu também
imaginava que me casaria aos vinte, então eu diria
que nossa percepção muda com o tempo.
Conforme o tempo foi passando, eu sentia mais e
mais vontade de ter o meu próprio cantinho. E no
começo desse ano, finalmente consegui!
O que facilitou as coisas para mim é que meu pai
é um entusiasta investidor de imóveis. Ele tem nove
espalhados por São Paulo, incluindo o interior.
Emprestou-me um de seus apartamentos até que eu
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consiga me estabelecer financeiramente, assim


como a minha salinha no consultório.
O que me poupou de uma dívida de no mínimo
duzentos mil reais em um apartamento novo. Mas a
culpa faz com que eu tente pagar um aluguel a ele
todo mês, intenção essa que se desintegra assim que
chega o valor da conta do condomínio, luz, água e
comida.
– Papai, por favor, aceite – é o que digo todo mês,
com um cheque na mão, desesperada para que ele
não aceite.
– Não seja boba, filha. Guarde esse dinheiro
numa poupança. Eu não estarei aqui pra sempre.
E assim vai, mês após mês etc. etc.
Só que ultimamente eu não tenho conseguido
depositar quantia nenhuma na poupança, já que não
sobra dinheiro no final do mês. Inclusive, às vezes
falta.
De fato, o que acontece é que a poupança me
salva de ficar no vermelho. Então apesar de o
dinheiro das consultas não me darem o suficiente

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para pagar as contas, eu ainda tenho como segurar


as pontas até o final do ano.
Mas depois disso, acumularei dívidas, ou pior:
terei que voltar a morar com meus pais.
E é por isso que eu preciso de mais pacientes.
Depois de uma caminhada de cinco minutos do
metrô até meu condomínio, estou em casa.
Deixo minha bolsa e os dois pacotinhos de batatas
fritas (um pacotinho se foi no caminho e a culpa me
impediu antes que eu pudesse comer o resto) em
cima da mesinha de canto do corredor e acendo a
luz da sala.
O quadro na parede acima do sofá faz eu me
sentir um pouco melhor e aconchegada. Eu o pintei
quando era criança usando guache e os dedos das
mãos. E possivelmente os dos pés, levando em
conta a baixa qualidade da pintura. Estou vestindo
um jaleco branco de mãos dadas com duas crianças.
Na época eu queria me tornar pediatra e desenhei
uma médica bem alta de cabelos verdes (a tinta

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preta tinha acabado) representando a visão que eu


tinha do meu futuro.
Não me tornei pediatra, nem pintei meus cabelos
de verde, mas gosto de me lembrar que eu sempre
sonhei em ajudar as pessoas. É o meu propósito de
vida.
Poder me jogar no sofá e chorar à vontade é um
alívio. Não há ninguém para ouvir os meus soluços.
Não há ninguém. Encosto o rosto no sofá
branquinho e macio. Vale a pena sujá-lo com
lágrimas causadas por esses dois ingratos filhos da
mãe?
Quanto tempo da minha vida proporcionei aos
dois? Seria melhor se eu sumisse. Mas ele ao
menos sentiria a minha falta? Ou estaria tão feliz
que nem notaria?
A felicidade dele duraria pouco, isso eu posso
afirmar. Quanto tempo vai levar até que Alana se
canse e largue ele também?
Que droga de dia!

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Será que o dia em que conheci Alana foi quando


o destino dela se cruzou com o dele? Se eu nunca
tivesse lhe dado o meu cartão de visitas naquela
loja, ela o teria conhecido de qualquer maneira?
E o mais importante: tudo isso valeu um cardigã?
Em uma onda de fúria, levanto-me do sofá, pego
uma tesoura no porta-trecos em cima da mesinha de
canto e marcho em direção ao meu quarto. Abro o
guarda-roupa e encontro a peça: o imaculado
cardigã rosa que Alana me deu.
Tiro-o do cabide e jogo-o com força em cima da
cama que, a propósito, arrumei três vezes essa
manhã. Aproximo a tesoura a fim de cortá-lo em
pedacinhos.
Não preciso dessa merda!
Aproximo a tesoura sem ponta com aro cor de
rosa do tecido (de ótima qualidade), mas me
detenho.
A quem eu estou querendo enganar? Eu jamais
poderia fazer isso com um cardigã de R$300,00.
Em defesa dele, o cardigã não tem culpa de nada.

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E de que adiantaria? Eu só estaria punindo a mim


mesma rasgando a peça mais linda e cara que
tenho, tornando-me menos elegante e muito menos
atraente do que Alana. Seria mais fácil se ela
tivesse me presenteado com algo que eu tivesse
coragem de destruir, como um vaso de vidro, que
eu pudesse arremessar na parede e fazer uma cena.
Mas cá entre nós, eu teria que limpar tudo depois,
não é? E quantas vezes eu teria que limpar o chão
por causa do TOC? Não se passaria três segundos
até que minha compulsão entrasse em ação e eu me
visse com a pá numa mão e a vassoura na outra,
tentando tirar os milhares de cacos de vidro do
carpete bege felpudo do quarto.
Eu nunca conseguiria ser uma atriz de novela
mexicana.
Enquanto guardo o macio cardigã de volta em seu
cabide privilegiado no guarda-roupa (é o cabide
mais bonito, com pedrinhas de strass e tudo mais),
pondero as minhas opções.

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Pego o bloquinho ao lado do porta-trecos e


guardo a tesoura no lugar. Sinto-me estranhamente
calma, talvez mais como uma psicopata do que
como uma pessoa tranquila.

As opções não me parecem muito boas, mas se eu


optar pela primeira é quase certo que terei que
voltar a tomar remédios para ansiedade. Só que, se
eu optar pela segunda, perco minha paciente-chave
– que pode me proporcionar um bom portfólio – e
meu melhor amigo.
Nesse momento de grande desilusão amorosa,
decido fazer o que qualquer idiota faria: stalkear
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Alana em busca de fotos que me deixem pior do


que já estou.
Pego meu celular na bolsa e clico no ícone do
Google. Meu coração bate forte. Digito “Alana
Trindade Instagram” no campo de busca e o
primeiro resultado a surgir é o de uma garota loira
de biquíni na praia, mas a foto é pequena demais.
Droga, não enxergo direito! Caço os óculos na
bolsa, focalizo a imagem e sim, com certeza é ela.
Já que não tenho cadastro em nenhuma rede social
e não quero ser obrigada a fazer um perfil fake só
para xeretar a vida dela, eu estava torcendo para
que a conta dela não fosse bloqueada.
Não é.
Com as mãos trêmulas, passo os olhos pelas fotos
minúsculas de Alana com um Bulldog Terrier,
Alana com seu personal trainer, Alana com sua
amiga blogueira, Alana, Alana e mais Alana.
Paro de rolar a tela quando avisto uma foto em
especial. Minhas mãos tremem ainda mais. Ali,
com o sorriso mais maravilhoso que eu já vi em

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uma foto dele, Rafa está abraçando a noiva do


Chucky.
A cena é a seguinte: o cara que eu imaginava ser
meu futuro namorado usando um óculos de sol
aviador e camisa polo branca, abraçando minha
paciente pela cintura, enquanto ela posa para uma a
fotografia digna de Vogue.
Por que minhas fotos não saem desse jeito? Isso é
irrelevante quando nem tenho onde postar – e nem
quero. Mas mesmo assim...
A legenda da foto dela diz: “Contando os dias!
#Casório #NoivoLindo #NoivaMaravilhosa”.
Quem é que cria uma hashtag para se autoelogiar?
Mamãe ficaria fula da vida comigo se me pegasse
desse jeito. Isso porque ela sempre me disse que
inveja é algo detestável. Mas Alana também é,
então acho que estamos quites.
Tudo nessa foto é tão... perfeito. A vastidão do
mar atrás deles aparenta ter sido pintada à mão,
exclusivamente para o casal, que desfruta de duas
taças de champanhe no parapeito de uma lancha. O

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sol iluminando os sorrisos brancos e felizes dos


dois babacas caras de pau, o cabelo lisérrimo e
ridículo de Alana, o azul dos olhos do Rafa olhando
diretamente para mim através do celular, enquanto
eu permaneço imóvel do outro lado da tela.
De repente, nós que nos conhecemos há tantos
anos, parecemos pertencer a dois mundos
completamente diferentes.
Como pude pensar que algum dia eu ficaria com
ele? Qual é! É só olhar para Alana para perceber
que eu não tinha a menor chance desde o começo.
Eu sou ridícula.
Alana tem fotos pra burro. Rolo a tela para baixo,
passando por foto após foto do casal até que elas se
acabam.
Rafa destoa de toda essa produção fotográfica
falsa. Não tem nada a ver com ele! Ele precisa de
alguém mais parecido com ele. Alguém mais...
madura. Como ele não percebe que eu e ele temos
tudo em comum? Ambos detestamos redes sociais,
baladas e desorganização.

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Como um sinal dos céus me dizendo que já me


torturei o suficiente, a bateria do celular acaba,
encerrando minha sessão de automutilação. Mas
não consegue desligar também meus pensamentos.
Minha cabeça dói, mas que eu saiba não existe
ressaca de uma caipirinha só. Portanto, minha dor
de cabeça deve ser de tanto chorar. Fazia tempo
que eu não chorava desse jeito.
Para o meu azar, isso vai continuar acontecendo.
O grande e gordo “foda-se” vai ter que ficar para
outra hora, quando eu não tiver mais dívidas a
pagar. Vou ter que suportar a opção um. Estiro-me
na cama de barriga para baixo, a cabeça afundada
no colchão.
Como foi que a minha vida se tornou uma novela
mexicana de má qualidade, assistida apenas por
mim?
Vai ver que, de uma maneira ou de outra, um
cardigã de trezentos reais comprou a minha paz.

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É terça-feira e o dia amanheceu cinzento,


espelhando a nova situação da minha vida patética.
O frio é de congelar a ponta do nariz e eu coloco
um par de luvas felpudas pretas de bolinhas brancas
– as únicas que eu tinha – mesmo com chance de
parecer ridícula. É possível que Alana zombasse de
mim em sua pesquisa no metrô.
Deixei a touca com pompom no armário, pois aí
também já era demais, e calcei minhas botas pretas
até os joelhos.
Hoje eu mereço uma levantada no astral, então
paro em um dos duzentos Starbucks da Avenida
Paulista e peço um muffin quente de chocolate.

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Estou com sede, mas ignoro essa necessidade


fisiológica até chegar ao consultório e beber água
gratuita.
Como metade do enorme bolinho delicioso até
chegar na minha sala. Será que devo comprar outro
na hora do almoço também? Não há sentido em
fazer dieta num momento como esse. Se eu não
posso ser magra e ter um namorado, ao menos terei
gordura no corpo para me aquecer nos momentos
solitários.
Meu celular vibra em cima da mesa.
– Desembucha – atendo a ligação.
– Oi, tapada – diz Leo.
– Oi, tapado. Quero dizer, tarado – reflito. – Ah,
tapado também.
– Agora sim você captou a essência do meu ser –
diz ele, rindo como uma criança. – Como você
está?
– Estou ótima, ué. E você? – minto, enfiando um
pedaço generoso do bolinho na boca.

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– Bom, aconteceu uma coisa. Mas não quero falar


sobre isso por telefone. Topa um almoço?
– Eu combinei de almoçar com a Pati, mas você
pode ir conosco.
– Fechado. Mas se isso for uma armadilha pra
vocês garotas me seduzirem, vou logo avisando que
não sou fácil.
– Pelo amor de Deus, esse é o meu tipo de
almoço, não o seu.
Ele solta uma gargalhada.
– Então não sei mais se quero ir...
– Shopping Center Paulista, às 13h30. Vai estar lá
ou não?
– Vou verificar na minha agenda e retorno.
– Certo, querido. Tchau. Tenho mais o que fazer
– respondo, a boca cheia de muffin.
– Minha assistente te liga – ele diz antes de
desligar o telefone, mesmo não tendo uma
assistente.
– Minha assistente te liga – falo sozinha, sorrindo
e imitando o tom condescendente da voz dele.

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Levanto-me para guardar o resto do bolinho num


potinho de vidro, imaginando se consigo aguentar
até a hora do almoço sem comer mais nada.
Não aguento. Sentada na praça de alimentação do
shopping, me arrependo de ter comido aquele
muffin inteiro e mais um pacote de salgadinhos de
cebola. Será que além de ter Transtorno Obsessivo
Compulsivo eu também desenvolvi Compulsão
Alimentar?
Acabo de fazer anotações sobre ideias para
alavancar meu negócio no bloquinho de notas que
trouxe na bolsa e abaixo a caneta preta assim que
vejo Leo aproximando-se de mim.
– E aí! – Leo senta-se na minha frente e dá um
soquinho na minha mão.
O aroma característico do perfume dele envolve o
ambiente, instalando-se em minhas narinas. É
realmente muito bom. Aposto que custou caro.
– Você está atrasado. E sua assistente não me
retornou.

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– Não? – ele coloca a mão na testa e finge


aborrecimento. – Preciso me lembrar de demiti-la.
– Você precisa se lembrar de contratá-la.
– Touché.
– E aí, o que aconteceu? ​– minha voz se mistura
com o ruído do resto das conversas da praça de
alimentação.
– O que aconteceu com quem? – Leo arregaça as
mangas da camisa social verde-musgo, que
combina com os olhos dele. E puxa o bloquinho, dá
uma olhada rápida no conteúdo e o devolve para
mim.
– No telefone você disse que aconteceu alguma
coisa. E então, o que foi?
– Ah, não. Nada aconteceu comigo – diz ele. –
Aconteceu com você.
– Comigo?
– Acha que eu não te conheço? Você parecia
arrasada no bar.
Ai, droga! Eu sabia que ele tinha notado.
– Não seja ridículo. Eu?

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– Era você ou sua irmã gêmea que eu vi entrar


chorando na lanchonete da esquina. Eu sabia que
você não recusaria batata frita.
– Você me seguiu?
Que cara de pau a dele!
– Que cara de pau a sua! – bato com a mão aberta
na mesa.
– Eu não te segui, idiota. Eu estava indo embora e
tinha estacionado o carro ali perto. Foi quando te
vi.
Ele me olha pelo que parece uma eternidade. E é
então que balanço a cabeça e digo:
– E você nem me deu carona?
– O que houve? – pergunta ele, ignorando meu
comentário.
– Você não acreditaria se eu dissesse – passo a
mão no meu rosto.
Eu abro a boca para continuar, mas ele é mais
rápido.
– Você é a fim do Rafael e essa história de
casamento está te matando.

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Ai, meu Deus. Meus olhos se arregalam e a


verdade daquelas palavras, que são ditas com tanta
clareza, me atingem como um soco. A situação é
mesmo dolorosa e vai ser tão difícil quanto
imaginei.
– Como você sabe? ​
– Observando você – ele diz. – Não precisa ser
um gênio.
Ficamos os dois em silêncio.
– Desde quando? – ele pergunta.
– Desde sempre.
Levanto os ombros, o sinal universal de “fazer o
quê?”
– Desde sempre? – pergunta ele, inclinando-se
para frente e levantando uma sobrancelha.
Oh, meu Deus. Não quero que ele pense que...
– Não! Não desde sempre. Não na faculdade! –
me apresso em explicar. – Eu gostava dele na época
da escola, mas era só uma paixonite boba, então
deixei pra lá. Só que tudo voltou depois da
faculdade, eu jurava que eu ficaria com ele e...

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Balanço a cabeça de um lado para o outro. Uma


lágrima cai na parte de dentro dos meus óculos. Eu
os retiro do rosto e passo a mão no canto dos olhos.
– Sinto muito que você tenha que passar por isso.
– Eu sei que sente. Obrigada – agradeço com um
sorriso, mas me distraio com a chegada de Pati.
– Desculpem o atraso – ela diz, ofegante, e joga a
bolsa amarela vibrante em cima da mesa.
– Onde você estava? – pergunto.
– Er... eu?
Ela me olha por um tempão, o cenho franzido e as
bochechas coradas.
– É, você.
– Presa no trabalho. Só isso, só isso.
– Sei...
De forma estranha, Pati muda rapidamente de
assunto:
– Vamos comer? Estou morrendo de fome.
Compramos nossos almoços e permanecemos em
silêncio durante as primeiras garfadas. Por que
comer é tão bom? Por quê? Talvez porque minha

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vida esteja arruinada e comer seja a única coisa que


me restou. Aposto que mulheres magras não se
perguntam esse tipo de coisa. Aposto que Alana
não se pergunta esse tipo de coisa.
– Vou te dar um conselho. Esqueça o Rafael – diz
Leo.
Pati se engasga com a comida e começa a tossir.
Bato nas costas dela.
– Como assim? – ela me pergunta, a fala cortada
pela comida presa na garganta. – Ele sabe?
– Ele percebeu.
– Meu Deus, Melissa! Por que não disse antes?
Eu estava louca pra comentar isso com alguém –
ela coloca uma mecha ruiva atrás da orelha e
aponta seu narigão para o Leo. – Que merda ela vai
fazer agora se Alana é paciente dela?
– Alana é o quê? – Leo ergue as sobrancelhas,
olhando de uma para outra.
– Ele não sabia a história toda – digo a ela, entre
dentes.
Viro-me para encará-lo.

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– O negócio é que Alana é minha paciente lá no


consultório. Eu não sabia que o noivo a quem ela se
referia era o mesmo Rafael. Como eu poderia
saber?
Leo coça a testa.
– Ela é sua paciente? – ele pergunta, apontando o
dedo para mim.
– Isso.
– A noiva do Rafa?
– Exato.
Ele permanece imóvel, com o dedo levantado no
ar.
– Que merda! – ele diz e coloca um pedaço de
bife na boca.
– Quando diziam que o mundo era pequeno, eu
não imaginava que fosse do tamanho de um ovo de
codorna – diz Pati.
Leo apoia o garfo no prato e aponta o dedo para
mim de novo.
– Você é a terapeuta dela?
– Pois é – respondo a um Leo boquiaberto.

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– Será que dá pra fechar a boca? Eu tô vendo a


comida nos seus dentes! – É a vez de Pati apontar o
dedo pra ele.
– E teve que ouvir tudo a respeito dos dois? Sem
saber que era o mesmo Rafael? – diz Leo.
Eu não tinha parado pra pensar nisso até agora.
Mas ouvi tudo a respeito do...
– Ai, meu Deus! Eu sei tudo sobre o sexo – grito.
E em seguida tampo a boca por ter falado alto
demais na praça de alimentação lotada.
Em contrapartida, a boca de Pati se abre tanto que
agora consigo enxergar a comida nos dentes dela.
Erro fatal. Ela é muito curiosa para deixar essa
informação passar.
– Humm... Você... humm... – ela tamborila os
dedos na mesa de granito do shopping.
Quase consigo ouvir os pensamentos dela,
ponderando se seria muito insensível de sua parte
perguntar sobre o assunto.
Ao que parece, ela deixa a sensibilidade de lado.

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– O que ela te contou? Alguma coisa estranha? –


ela pisca.
Erro muito fatal.
– Eu não posso dizer. Por uma questão de ética...
– Não, não, não! Espere, não diga isso – ela fecha
os olhos e junta as mãos, assumindo uma postura
serena. – Então só me diga: é pequeno?
– Pati!
– Anote no bloquinho, se preferir.
– Pati, para com isso...
– Dez centímetros? Quinze centímetros? – ela
arregala os olhos quando não respondo. – Vinte
centímetros???
Eu a interrompo antes que ela conclua que o pênis
do Rafa tem um metro de comprimento.
– Nem pense nisso – levanto a mão. – Eu não
quero pensar nisso.
Leo solta um gemido de desespero.
– Ah, meu Deus! Vocês são horríveis.
– Pati é horrível. Eu não falei nada. O que Alana
me diz é confidencial.

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– Mas, amiga, veja bem: você não precisaria me


falar, em si. É só piscar o olho direito se eu acertar
– ela insiste. – Além do mais, seria muito injusto se
você não dividisse isso comigo.
– E por quê? – pergunto.
– Porque, se fosse ao contrário, você sabe que eu
te contaria tudo, e em detalhes, na hora em que
você me pedisse.
– Você me contaria mesmo se eu não te pedisse.
– Então! Viu? – ela diz, juntando as duas mãos
para implorar.
– Porque você é boca aberta, Patrícia! E eu não
posso ser. Não com a minha profissão.
Será que ela não poderia ser um pouco mais
compreensiva? Eu acabei de perceber que sei dos
detalhes da vida sexual dos dois. Dá pra ser mais
deprimente que isso?
Por que, a cada momento que passa, eu percebo
que há sempre um modo de a situação ficar pior?
– Escute o que eu vou te dizer – Leo afasta de si o
prato de comida pela metade. A coisa deve ser

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séria. – Você precisa se desligar de tudo isso. Tem


que se afastar e esquecer o Rafael.
Ele fala como se o noivado deles fosse durar! Mas
ele não conhece Alana como eu. Ele não sabe a
rapidez com que ela vai cair fora.
– Eu não posso.
– Pode sim! É só deixar de ser terapeuta dela.
Pode até deixar de ser madrinha, se for melhor.
– Você não está entendendo – mordo a ponta do
dedo anelar até tirar um pedaço da pele. Então solto
tudo em uma respirada só. – Alana é podre de rica e
preferiu me pagar adiantado, uma grana realmente
muito boa e...
– Você gastou tudo – completa ele,
compreendendo instantaneamente a minha burrice.
– Até o último centavo! – confirma Pati. – Sabe
aquele tapete felpudo da sala dela que você adora?
– ela começa a contar nos dedos, suas unhas
pintadas de roxo. – E a mesa de madeira? E as
cadeiras brancas? A tinta das paredes?

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– Tá legal, Pati. Acho que ele já entendeu – digo,


mas ela dá de ombros.
– De qualquer forma, eu tinha o direito de gastar.
O dinheiro é meu! Bom, era meu.
Leo continua me encarando com o dedo indicador
no queixo. É o que ele sempre faz quando estou
com algum problema. Ele fica todo esquisito e
pensativo.
– Já sei! – diz ele. – Eu te empresto esse dinheiro.
– A não ser que você tenha essa quantia... – anoto
o valor no bloquinho de notas e deslizo-o para o
lado dele na mesa. – ... não vai adiantar.
Sugo um gole do refrigerante dele pelo
canudinho.
– Merda! – ele toma o refrigerante de mim. –
Você ganha tudo isso?
– Ela me pagou pelo ano inteiro, tá legal? –
suspiro. – Dividido por mês não dá tanta coisa
assim.
– Tudo bem – ele respira bem fundo. Bem, bem
fundo. – Eu te empresto mesmo assim.

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Esse ato de bondade quase me faz chorar. Estou


tão perdida que é reconfortante ter alguém me
estendendo a mão. Mão essa que não posso segurar.
– Obrigada por se preocupar. Mas não posso
deixar você me emprestar tanta grana.
– Não me importo em te ajudar – ele diz. – Além
do mais, não seria meio antiético você continuar
atendendo Alana?
– Bom, tecnicamente. Mas isso se eu desse a ela
conselhos sem imparcialidade, e a qualidade das
consultas fosse prejudicada. Se eu conseguir deixar
a minha vida pessoal para fora da sala e atendê-la
visando ao seu bem, posso ser uma psicóloga
decente. E se eu, de fato, tenho condições de ajudá-
la, seria antiético deixar de ajudá-la.
– Mas e você nessa história toda, como fica? – ele
se remexe na cadeira. – Por favor, só aceite o
dinheiro.
– Eu não posso fazer mais dívidas do que já
tenho, Leo. Além disso, já me comprometi com a
minha paciente, pelo menos até o final do ano. Ela

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está fazendo progresso com as consultas. Ela


precisa de mim.
– E se você surtar antes disso? – Pati levanta uma
questão importante.
– Se eu perceber que não estou sendo prestativa,
eu interrompo o atendimento. Mas posso segurar as
pontas, eu sei que posso. Mesmo porque, Alana
foge de um relacionamento atrás do outro. Posso
apostar que daqui a um mês estaremos deixando
esse assunto para trás. E não vale a pena deixar de
ajudar a minha paciente por algo que muito
provavelmente será passageiro.
Minha barriga fica gelada – e não é por causa do
refrigerante. A imagem de Alana começa a mudar
ligeiramente em minha mente. É verdade que
sempre a considerei uma garota superficial e
maldosa, mas nunca levei para o pessoal. Ela saía
da minha sala e eu pensava “ufa, agora ela é um
problema do mundo”.
Mas agora? Ah, agora ela é um problema meu!

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– Se eu fosse você, sabe o que eu faria? – diz Pati,


de súbito, levantando o garfo no ar como se fosse o
Arquimedes dizendo “Eureca”, e espalhando grãos
de arroz por toda a mesa. – Eu lutaria por ele.
– Não. Péssima ideia... – diz Leo, mas Pati o
interrompe.
– Não, não, pensa só: você é uma terapeuta de
relacionamentos. É o que você faz de melhor!
– Pati, eu tenho duas pacientes. E uma delas está
destruindo a minha vida. Eu não diria que é o que
eu faço de melho...
– Mas... – ela me interrompe, apontando o garfo
para mim e fazendo um grão de arroz aterrissar no
meu nariz. – Você até deu uma palestra um dia
desses…
– Justamente para atrair mais pacientes! Olha,
Pati, sei que você quer ajudar, mas...
– E você fez aquele “curso sobre namoros” – ela
faz aspas com os dedos.
– Pati, era uma especialização em
Relacionamento Conjugal.

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– Dá no mesmo, dá no mesmo – ela abana as


mãos no ar. – Você entende do assunto!
– E o que é que isso tem a ver com alguma cois...
– Se liga! Você diria que três meses é tempo
suficiente? – ela pousa a ponta do dedo na mesa. –
Pra saber se encontrou a pessoa certa? – completa
ela ao notar minha confusão, empinando o nariz.
– Bem, não. Seria muito difícil ter certeza em tão
pouco tempo...
– Mas é claro! – ela grita.
Bem, isso é verdade. Três meses é realmente
muito pouco tempo, principalmente em se tratando
de uma pessoa tão impulsiva quanto minha
paciente.
– Eu digo o seguinte... – Pati continua. – Por que
você não testa o relacionamento dos dois, aplicando
tudo o que você conhece sobre o assunto?
– Que ideia idiota é essa? – pergunta Leo, sua voz
cortante. – Essa é a última coisa que ela precisa.
Ela tem que esquecer o cara, deixar o Rafa viver a

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vida dele e finalmente viver a dela. E não entrar em


um jogo idiota de “teste de casais”.
– É isso! – diz Pati, juntando as mãos e dando
pulinhos na cadeira, ignorando completamente o
tom irritado da voz do Leo. – “Teste de casais”.
Esse será o nome do plano.
Eu deixo um sorriso escapar.
– Obrigada, Leo – ela agradece, sem perceber que
ele parece a ponto de explodir de raiva. Ou
simplesmente não dando a mínima para isso.
As sobrancelhas dele descem até o olho,
entediado com a falta de noção de Pati.
E eu? Bem... eu devo admitir que essa é uma ideia
bem genial.
Ou estou em estado de negação.
Seja como for, eu definitivamente poderia fazer
isso. Quer dizer, eu gostaria de fazer isso. Poder ou
não poder são questões completamente diferentes.
Mas não vamos entrar em tecnicalidades agora.
– Não é uma boa ideia, Mel – Leo diz. – Você
não está seriamente pensando nisso, está?

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– Como assim? Por quê? – pergunta Pati,


ofendida. – Você acha que minha ideia é tão idiota
que ela nem deveria considerar?
– Exatamente, Patrícia. Você entendeu – ele bate
palmas irônicas para ela.
– Você não concorda que noivar depois de três
meses é uma atitude incoerente vinda do caretão do
Rafael? – Pati se dirige a mim.
Leo tenta argumentar, mas Pati não permite.
– E que você tem o direito de lutar por ele? – ela
aumenta o tom de voz.
Eu olho de um para o outro, sem piscar. Pati está
com a corda toda.
– E que se perceber que Alana e Rafael realmente
dão certo, poderá colocar um ponto final nessa
história? – ela junta as mãos em uma pose
orgulhosa.
– Você não está seriamente pensando nisso, está?
– repete Leo, ignorando Pati completamente.
Ela bufa.

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Leo me olha como se me estendesse a mão de


novo.
– Não, é claro que não – respondo.
Ele solta a respiração.
Os ombros de Pati caem, e ela apoia os cotovelos
na mesa, o queixo nas mãos. Continuo comendo,
mas a ideia ainda paira em minha mente.
– Você não pode desistir – ela diz, olhando para o
prato.
– Obrigada pelo apoio. Mas Alana é linda e ela o
ama. Ela o ama, assim como eu. E ela o tem. Então
que chance tenho eu?
– Amiga, você é uma garota honesta, verdadeira e
inteligente. E ele não sabe o que você sente por ele.
Então se ele souber, que chance tem ela?
Ficamos os três em silêncio.
– Ei, confie em mim. É melhor assim – Leo toca
em meu braço. – Você só iria sofrer ainda mais.
– Não é a primeira vez que eu sofro, de qualquer
maneira – digo a ele.

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Mas nem ele e nem Pati fazem a mínima ideia a


que me refiro. E eu prefiro que eles não saibam.
Principalmente o Leo.
– Mas não se preocupe – digo. – Você me
conhece. Eu não teria coragem de fazer nada assim.
Pra ser bem sincera, minha vida amorosa já está
há muito esquecida e estou perfeitamente bem do
jeito que estou.
Brinco com o bloco de notas. Volto algumas
páginas e corro os olhos entre as duas opções que
tenho.

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Sem dor, sem ganho, não é? Então acho que o


inverso também é válido.
Atenho-me à opção um e bebo o resto do
refrigerante do Leo.

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Opção três: Ela não é a pessoa certa para ele e


eu vou provar isso.
Repito essa frase para mim mesma como um
mantra, sentada no banquinho frio do metrô. Sei
que não vou colocá-la em prática, mas não quero
me esquecer das palavras, já que não as coloquei no
papel.
Meu telefone toca assim que coloco os pés em
casa.
Minha pulsação torna-se mais rápida quando leio
o nome no visor.
– Rafa? – digo, certificando-me de que minha voz
soe menos ansiosa.

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– Mel... – sua voz firme entra pelos meus ouvidos


e comanda que meu cérebro entre em parafuso.
– E aí? – pergunto, sem pensar em nada melhor
para dizer.
– Eu estou precisando muito da sua ajuda. Você
pode me encontrar? Preciso escolher uma camisa
nova. E não conheço ninguém melhor do que você
para me ajudar.
Há silêncio na linha. É tão estranho estar em
dúvida em relação a algo que ele me pede. Apesar
de eu querer muito passar um tempo sozinha com
ele, me incomoda que ultimamente ele esteja tão...
noivo.
– Mel?
– Oi! Sim, estou aqui.
– No shopping Boulevard. Você vem?
Aí me ocorre uma coisa. Ele quer me encontrar
no shopping para ajudá-lo a escolher roupas? Todo
mundo sabe que esse é um passeio típico de casais.
Mas por que então ele não chamou a outra metade
de sua laranja?

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Alana tem classe para dar e vender, além de ser


rica como um banco. E ele me escolheu?
Minhas mãos tremem ao redor do celular. Meu
coração bate forte. Talvez nem tudo esteja perdido.
Além do mais, escolhi a opção um, não foi? Então
preciso agir como tal.
– Se vier, te compro uma blusa nova, no lugar da
que você manchou de ketchup.
Alerta vermelho! Isso é totalmente um passeio de
casal. Será que ele não percebe isso?
– O quê? Você vai me comprar um vestido? –
digo, sorrateira.
– Ei, eu disse blusa.
– Vou pelo vestido.
Ganhar roupa nova sem movimentar a minha
conta-corrente? É algo que aceito na hora.
– Então, você vem?
– Você me ganhou no “vestido”.
– Eu disse “blusa” – ele dá risada.
Desligo o telefone. Será que fiz a coisa certa?

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Não sobre o vestido, é claro que não. É sempre


bom definir a peça antes de fazer acordos. Ele
poderia me dar um par de meias caso eu não
deixasse claro.
Estou falando sobre sair com ele, no geral. As
palavras do Leo passeiam em minha mente,
dizendo para que eu siga com a minha vida.
Mas que vida eu devo seguir? Assistir novelas
sozinha no sofá de casa? E quem é ele para me
dizer como devo viver a minha vida, se nesse exato
momento deve estar se engalfinhando com alguma
desconhecida no sofá da casa dele?
Mesmo que Rafa esteja comprometido – fato esse
que dói mais do que bater o dedinho do pé na
mesinha da sala –, eu preciso vê-lo.
Até parece que eu perderia um passeio de casal.
E um vestido novo.
– Aí está minha madrinha favorita! – Rafa diz, e
meu rosto se contorce involuntariamente numa
careta.
Finjo que não é comigo.

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Chego na loja em tempo recorde. Rafa para de


vasculhar a arara de camisas (não o animal, mas
sim uma arara de roupas... se ele estivesse
vasculhando um pássaro vestindo camisas seria
muito estranho) e aproveito para checar se há uma
aliança de noivado em seu dedo. Mas não há.
Ele me cumprimenta com um beijo no rosto, uma
das coisas que eu mais gosto nele: ele dá beijos nas
pessoas. Ele não dá “bochechadas”. O que,
pensando agora, me dá uma oportunidade de beijá-
lo por acidente, se eu fingir tropeçar e cair em cima
dele.
Mas não posso. Se tem uma coisa que eu jamais
faria seria beijar um cara comprometido.
– Você sabe que é a minha madrinha de
casamento preferida, não sabe? – ele insiste.
– Madrinha preferida? – meu estômago congela.
– É claro. Você tem o posto principal, sendo
minha melhor amiga.
– Ah, sim, sim. – E como se eu já não tivesse
usado essa palavra vezes demais, acrescento: –

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Sim!
– Mel, você está bem? – ele pergunta.
Sorrio, mostrando o máximo de dentes possível.
– Por que eu não estaria?
Isso vai ser mais difícil do que imaginei.
Giro a cabeça ao redor da loja. É um espaço
extenso e sofisticado, o chão de mármore
estendendo-se entre a ala masculina e a feminina.
Estico o pescoço para enxergar os vestidos do outro
lado da loja.
– Você parece aérea.
– Só estou animada por você. Quem poderia
imaginar, hein? Casamento!
– Eu sei. É loucura, não é?
– E como! – dou uma risada estridente, que ressoa
pela loja. Até o manequim de vestido do outro lado
deve ter ouvido.
Engulo a saliva, tentando me livrar do angustiante
arrependimento de ter vindo até aqui. Mas agora
que vim, pelo menos vou levar um vestido para
casa.

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– E aí? Qual é a minha tarefa? – pergunto


solenemente, sentindo o aroma característico de
sabonete da pele dele.
– Preciso que você me ajude a escolher uma
camisa. Você é ótima nessas coisas – ele coloca a
camisa roxa que estava segurando de volta no
cabide.
– Certo. Uma camisa. Ótimo.
Apenas uma camisa e eu pico minha mula daqui.
– E se você fizer um bom trabalho, vamos para a
ala feminina para que escolha o seu vestido. Os que
estão em liquidação.
– Até parece!
Ele acha graça da minha expressão de horror.
– Não, senhor! – bato o pé no chão. – Vou ganhar
meu vestido de uma maneira ou de outra. E de
qualquer preço! – Acrescento, levantando uma
sobrancelha. – É minha oferta final.
– Sim, senhora! – diz ele, levantando as mãos em
derrota. – Você venceu, senhorita bravinha.

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Tento não me derreter, mas minha boca se move


para cima formando um sorriso tímido.
– Tá legal, então. Vamos começar – olho para o
relógio. – Temos uma hora até o shopping fechar.
– Você é demais, sabia? – ele olha fixamente em
meus olhos e me deixa sem graça. Desvio o olhar e
giro o corpo para as camisas em exposição.
– Alguma ocasião especial para a camisa? – digo,
mudando de assunto. – Para o trabalho ou algo
assim?
Ele levanta as sobrancelhas.
– Er... Não – ele parece confuso. – Eu não te falei
pelo telefone? É para o cartório.
Viro-me para fitá-lo. Fico parada por um
momento, sem entender.
– Para o cartório?
– Para o dia do meu casamento no civil – ele me
esclarece.
– Oh...
Oh! A ficha demora para cair e reúno forças para
levantar o meu queixo, que caiu junto com ela. Mas

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é claro que a camisa é para impressionar Alana! Pra


quem mais seria? Pra mim?
Sou uma idiota.
Então é por isso que Alana não veio com ele. Não
porque ele prefira a minha companhia, não! Mas
porque é uma surpresa para ela.
E a triste situação para mim é a de que atravessei
a cidade para me encontrar com um cara que está
noivo e claramente não quer nada comigo, a não ser
dicas de moda.
Viro-me de costas novamente porque de repente
me sinto muito sem graça.
– Que cor? – finjo analisar a camisa roxa
horrorosa.
– Como disse? – ele pergunta, aproximando-se de
mim.
– A camisa – repito, ainda de costas. – Que cor?
Como sou estúpida. Estúpida, estúpida, estúpida.
Separo algumas camisas e faço com que ele
segure todas elas, jogando as peças em cima dele.
Será que ele percebe a minha fúria reprimida

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enquanto faço isso ou interpreta como entusiasmo


de compras? Diferentemente de todas as vezes que
venho ao shopping, essa definitivamente não é uma
ocasião divertida.
Uma parte de mim permanece feliz de estar com
ele, mas uma outra parte quer matar esse lado burro
do meu cérebro.
Separo onze peças, incluindo uma linda calça
cáqui – que sei que ele não me pediu, mas já que
estou aqui sofrendo, o mínimo que ele pode fazer é
experimentá-la para que eu possa ver como fica o
seu bumbum nela.
Apesar de que esse bumbum não é meu, mas sim
de Alana, e será ela quem desfrutará da calça. Ou
pior: ela vai desfrutar dele sem a calça. Credo!
Balanço a cabeça para afastar esse pensamento.
O provador é unissex, de modo que tenho
permissão para aguardar do lado de fora da cabine,
sentada em um pufe que puxei de dentro da cabine
ao lado. Meu reflexo no espelho que fica lá no final
do corredor revela que pareço bem. Até que estou

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bonitinha hoje. Meus cabelos pretos colocados atrás


das orelhas decidiram comportar-se bem, com um
aspecto mais liso e comprido que o normal, indo
até a metade das minhas costas. Mas o meu batom
já deve ter saído. Preciso retocar.
Rapidamente, abro o zíper da minha bolsa e tiro
de lá a nécessaire.
– Cadê essa porcaria? – falo baixinho, tentando
encontrar o batom com a tampa preta, porque é esse
o batom da cor nude (que me dá um visual discreto,
mas ao mesmo tempo deixa meus lábios mais
carnudos). No entanto, essa se revela uma tarefa
muito complicada, já que a iluminação nos
provadores é um pouco escura. Nem meu
espelhinho de bolso consigo encontrar.
Encontro pelo menos o batom! Ufa! Ouço um
barulho vindo da cabine do Rafa, portanto começo
a passar o batom depressa nos lábios. Ele deve estar
acabando de se trocar e pode sair a qualquer
momento, e não quero que ele pense que passei
batom por causa dele ou algo assim. Sem tempo

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para me olhar no espelho, jogo o batom e a


nécessaire de qualquer jeito dentro da bolsa e cruzo
as pernas no exato momento em que ele escancara
as cortinas e aparece usando uma camisa verde-
escuro.
E uau! A camisa está perfeitamente ajustada em
seu peito largo e eu quase fico sem ar. Faço
movimentos de aprovação com a cabeça e levanto o
polegar, enquanto recupero o controle sobre a
minha língua.
– Gostou mesmo? – ele pergunta, analisando-se
no espelho.
– Se gostei? – consigo dizer, por fim. – Essa vai
para a pilha do sim.
Noto meu polegar ainda estendido, como uma
criança de dois anos, e abaixo as mãos.
– Por que não experimenta a azul?
– O que houve com a sua boca? – ele me
interrompe e dá uma risada, inclinando a cabeça
para me enxergar.
– O quê?
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Entro em desespero. O que é que houve com a


minha boca?
Ele retorna à cabine e eu corro até o espelho da
cabine ao lado.
Ah, meu Deus! Eu passei o batom vinho-escuro, e
não o nude!
Esqueci que os dois são da mesma marca e têm a
mesma embalagem. As imperfeições da aplicação
do batom, que seriam imperceptíveis na cor nude,
ficaram tão evidentes na cor vinho que pareço uma
bruxa. Minha boca está toda borrada, como a de
uma criança que pegou a maquiagem da mãe e foi
apanhada.
– Estou vestindo a azul agora – ele anuncia de
dentro do provador. – Com a calça cáqui. Mas não
garanto nada. Não sei se gosto desse tipo de calça...
– Acho que vai ficar boa – respondo distraída,
repassando o batom vinho para consertar as arestas,
desta vez com a lanterna do celular ligada.
– Até que não ficou tão mal assim – ele diz ao
abrir a cortina da cabine. E a camisa ficou tão linda
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nele que tenho vontade de chorar por ele já ter


proposto casamento a outra pessoa.
Ele dá uma viradinha e sutilmente observa seu
bumbum no espelho. Começo a rir da cara dele. Ele
logo se endireita e finge que não estava avaliando a
própria bunda. Passa as mãos pelos cabelos loiros e
fecha a cortina novamente.
Ele é adorável.
Quando Rafa acaba de experimentar o restante
das camisas, deixo a área dos provadores enquanto
ele veste suas roupas novamente.
Tá legal, você me pegou. Na verdade, estou
fugindo de ter que escolher uma camisa para o
casamento dele. Ele que escolha a droga da camisa!
Será que ele se importaria muito se eu não fosse
à cerimônia de casamento? Talvez eu pudesse
fingir uma gripe forte. Ou uma cólica terrível. Isso,
cólica sempre funciona.
– Prefiro a camisa azul. O que você achou? – a
voz dele invade meus pensamentos e giro nos

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calcanhares para vê-lo caminhando em minha


direção, com o sorriso mais gentil do mundo.
Eu não poderia fazer isso com ele. Que culpa ele
tem nisso tudo? Ele me obrigou a me apaixonar por
ele, por acaso? Eu seria a pior melhor amiga do
mundo se não estivesse presente.
O que devo fazer?
– Ela ficou linda em você – assinto com a cabeça.
– De verdade.
– Então está decidido. Agora é sua vez!
Aleluia! E quer saber de uma coisa? Que se dane
o casamento! É minha vez de escolher um presente
do homem que eu amo.
Ok, posso dizer que tenho um fraco por roupas.
Quando pequena, eu adorava ganhar roupas de
aniversário. Meus pais me achavam muito
“esquisitinha” por causa disso, como diz mamãe.
Criança gosta de brinquedo, é o que minha mãe
dizia. Mas eu nem ligava.
Ela vive dizendo que uma vez me pegou tentando
trocar uma boneca por um vestido rosa de uma

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menina com quem eu costumava brincar, e me


impediu antes que a troca fosse feita. Mas não sei
se acredito nessa história. Mamãe é meio
mentirosa.
Rodo pelas araras analisando todos os vestidos
que encontro. Inclusive as etiquetas. Não quero ser
oportunista, não me entenda mal, mas quero
comprar uma peça da coleção nova. Só o que eu
poderia normalmente comprar dessa loja são as
peças em liquidação, e oportunidades como essa
não se apresentam todos os dias.
Separo alguns modelos. O que mais me chama
atenção é o manequim que eu tinha visto lá do
outro lado da loja. Ele sustenta um vestido azul-
piscina todo soltinho, preso nos ombros por
tirinhas, pela bagatela de duzentos e cinquenta
reais. Apanho o tamanho 40 para experimentar. Ou
será o 42?
Pego os dois.
– Prontinho – digo para o Rafa, que ficou me
observando por cima do ombro o tempo todo,

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tentando enxergar as etiquetas de preço das três


peças que separei.
Olho o relógio e faltam vinte minutos para a loja
fechar. Entrego as peças nas mãos de Rafa,
piscando os olhos inocentemente.
– Por aqui, por favor – digo e indico com o braço
o sentido do provador para que ele carregue as
minhas peças até lá.
– Eu virei seu chofer? – diz ele, e passa andando
por mim. – Olha que eu derrubo ketchup no seu
vestido novo, hein?
– Ótimo – digo, andando depressa. – Se puder
fazer isso de dois em dois meses seria perfeito.
Ganharei muitos vestidos ao longo do ano.
Só que aí ele me deixa sozinha, dizendo que
precisa fazer uma ligação, e não me acompanha e
não faz comentários divertidos como fiz com ele.
Pelo lado positivo, vou ganhar um vestido novo. E,
só de raiva, vou escolher o mais caro.
Provo todas as peças e fico na dúvida de qual
levar. Surpreendo-me quando minha cintura se

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afina magicamente no vestido azul-piscina, que


ficaria lindo no vento, com os meus cabelos
esvoaçantes como em um comercial de perfume.
Ou talvez seja melhor eu não sair no vento com ele,
porque na vida real o vento bate forte na região
traseira e alguém sempre acaba vendo a sua
calcinha.
Mas vale a pena arriscar. É só colocar uma
calcinha bonita.
– Vou levar este vestido, por favor – digo à
atendente do caixa, meu ânimo muito mais elevado
por causa do vestido do comercial de perfume ter
ficado perfeito em mim.
Olho para fora da loja, onde o Rafa ainda fala ao
telefone.
– Vocês estão juntos? – ela aponta para ele.
– Juntos? – pergunto.
– Sim! Posso colocar na mesma sacola?
– Ah, sim, sim – digo. – Estamos juntos, com
certeza. Juntinhos.

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E não é mentira, eu realmente estou com ele. Na


loja. Ela não perguntou se estávamos namorando
nem nada. Dou um suspiro audível, como se
estivesse boiando nas nuvens. Figurativamente,
porque eu não sei boiar de verdade.
– O vestido vai junto com a camisa azul e a calça
cáqui, por favor – digo.
Sorrio para a mulher enquanto ela embala meu
vestido no papel arroz de cor creme antes de
colocá-lo na sacola preta da loja.
Olha como o mundo é mágico! Você acorda
achando que não vai ganhar nenhum vestido novo,
mas de repente se vê numa loja caríssima
escolhendo um presente do seu cara favorito.
Pareço Julia Roberts, em “Uma linda mulher”. A
não ser pelo fato de que não sou prostituta, não
tenho cabelos ruivos e armados, Rafa não é tão rico
quanto Richard Gere, e talvez eu devesse ter
escolhido um vestido mais caro.
Caminho até meu melhor amigo. Seria correto da
minha parte voltar até o caixa de braços dados com

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ele? Ao me aproximar, tenho a minha resposta.


– Também estou com saudades. Um beijo, linda.
Até já! – ele diz, ao finalizar a conversa por
telefone.
Meu coração perde as batidas. Quem era? Como
assim, “até já”?, quero perguntar como uma
namorada enciumada, exigindo saber o que está
acontecendo. Mas eu não tenho esse direito. Porque
é mais do que óbvio quem estava do outro lado da
linha. Talvez eu devesse ir embora daqui sem
avisar, mas isso implicaria deixar também o vestido
para trás. Nem a pau!
Vamos combinar: eu não encontraria outro que
me caísse tão bem assim nunca mais. Eu me
preparo para ficar e suportar. Ficar e suportar, esse
é o meu lema. Sou boa nisso. Além disso, esta não
é a primeira vez que uma coisa assim acontece
comigo.
Pelo menos ele não finalizou a conversa dizendo
que a ama.

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Ele paga pela compra enquanto fico do lado de


fora da loja, sem coragem de encarar a atendente.
– Aqui está, milady – ele diz, gentilmente, e eu
pego minha sacola de suas mãos.
– Obrigada – digo, olhando para o chão.
– Você está bem? – ele pergunta novamente. –
Você parece meio... triste.
– Por que eu estaria triste? – olho para os meus
pés, as sapatilhas brancas que limpei hoje cedo
revelando novos traços de sujeira que adquiri
durante o dia.
– Tenho uma ideia! – ele checa o relógio de
pulso. – Temos três minutos até o shopping fechar.
Vem comigo!
Ele agarra a minha mão e saímos correndo pelo
shopping quase vazio, esbarrando nas poucas
pessoas que ainda passeiam. As luzes das lojas
prestes a fechar passam como um vulto diante de
meus olhos enquanto solto uma gargalhada.
– Um sorvete de frutas vermelhas com leite
condensado para a madame – ele pede o meu sabor

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favorito para a atendente da sorveteria. – E um


sorvete de caramelo, por favor.
Apoio-me no balcão, ofegante, e não tenho
certeza se meu coração bate forte por causa da
corrida ou por causa dele.
– Ah, e uma água – ele completa, me olhando de
canto de olho, pois sabe que eu não consigo tomar
sorvete sem uma garrafinha de água para
acompanhar.
Nós nos sentamos nos banquinhos da praça de
alimentação, um ao lado do outro.
– O seu parece bom – ele pega um pouco do meu
sorvete com a sua colher, deixando o seu de lado.
– Então seu plano era me trazer até aqui só pra
roubar todo o meu sorvete? – coloco uma mão na
cintura, fingindo indignação.
– Claro que era – ele se serve de mais uma
colherada. – Mel, você me subestima.
– Eu te subestimo, é? – digo, deliciando-me com
essa conversa e com meu sorvete de frutas
vermelhas.

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– Ora, mas é claro. Sei que você não se importa


em dividir comigo. Você acha que não te conheço...
– ele olha fixamente para mim. – Mas eu sei tudo
sobre você.
– Sabe? – pergunto, parando com a colher a meio
caminho da boca.
– Claro que sei. E sabe por quê?
– Por quê? – digo, inclinando-me lentamente para
mais perto dele.
Sou só eu, ou o rumo dessa conversa está ficando
interessante?
– Porque nós dois somos iguais – ele abre um
sorriso e o furinho em seu queixo fica mais
evidente. – Eu não sei, não. Acho que devíamos ter
sido almas gêmeas em outras vidas.
Para tudo!
Oi?
Ele disse mesmo isso? Que devíamos ter sido
almas gêmeas? Meu coração começa a acelerar, e
permaneço imóvel enquanto ele volta sua atenção

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ao próprio sorvete, como se não tivesse dito nada


demais.
– Você acha? – digo, tentando um tom casual.
Seguro firme em volta da casquinha do sorvete para
esconder as mãos trêmulas. Aperto-a tanto que um
tlec me adverte que acabo de rachar uma parte da
casquinha.
Rafa abre a boca para responder, mas então...
TRIMMMM!
Nossa conversa é interrompida pelo toque
estridente do meu celular.
Rafa continua mais interessado no sorvete de
caramelo, enquanto procuro a droga do aparelho na
bolsa. Cadê essa porcaria? Porém o toque cessa, e
seja lá quem estivesse me ligando acabou
desistindo, sem saber que estragou um momento
potencialmente mágico para mim. Ou para nós.
Ele disse mesmo aquilo? Ele finalmente está
compreendendo? Então, não é tarde demais?
Nós nos despedimos no final da noite, e assim
que viro a primeira esquina fora do alcance do

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Rafa, começo a dar pulinhos de alegria e gritinhos


baixos. A noite só poderia ter sido mais interessante
se tivéssemos conseguido, de fato, prosseguir com
aquela conversa. Restando assim uma dúvida
importante a ser esclarecida:
Quem foi o idiota que me ligou?

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Oito e cinquenta.
Meu estômago está vazio, mas não sinto fome.
Acho que minha pança contém gordura o suficiente
para durar semanas.
Acordei às cinco da manhã e não consegui mais
dormir. Organizei a prateleira de livros três vezes e
tirei o pó da estante. Não vou nem comentar que o
tal pó era inexistente, para não parecer esquisita.
Não fico tão preocupada com o idiota que me
ligou naquele dia no shopping (foi o Leo, a
propósito), e por um momento deixo de lado aquele
lance todo de almas gêmeas que o Rafa disse.
Estou nervosa demais para isso.

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Nove horas.
Ela ainda não chegou. Agora comecei a ficar com
fome. Vou até a cozinha do consultório e me sirvo
do café que Lorraine fez. Devo admitir que isso ela
faz muito bem, sendo viciada em cafeína e tudo
mais. Abro o meu lado no armário e pego um
pacote de bisnaguinhas.
Nove horas e vinte minutos. Já me empanturrei de
bisnaguinhas e nada de ela aparecer. Como mais
uma e sei que já é hora de parar, pois temo eu
mesma virar uma bisnaguinha.
Nove e meia. Alinho o aparelho de telefone com a
borda da mesa. Naquele dia, saí do shopping em
confusão total. Meu TOC chegou a um nível
absurdo, como há muito não me lembrava que
poderia ser. Aquele comentário do Rafa me fez ir
longe na ansiedade. Limpei duas vezes a sala de
estar. Outro fato (talvez nem mesmo relacionável)
foi que ontem à noite me senti compelida a comer
não apenas uma, mas duas barras inteiras de

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chocolate. Mas não sei se chamo isso de repetição


por conta do TOC ou de simples gula.
Nove e quarenta. Talvez eu devesse aproveitar
esse tempinho para retornar a ligação do Leo. Mas
assim que coloco a mão no telefone, ele começa a
tocar sozinho e fico atordoada por um momento,
achando que pode ser ele.
Mas não é. Claro que não. É pior.
Ela chegou.
– Oi, querida – Alana me cumprimenta, entrando
em minha sala com seu sorriso condescendente. Eu
tremo ligeiramente enquanto ela me dá um abraço
afetado. O cheiro de seu perfume doce me deixa
enjoada.
Só preciso sobreviver ao dia de hoje.
Essa é a primeira vez que a vejo depois de
descobrir tudo. A primeira vez que desejo não ser
sua psicóloga. Isso nunca tinha acontecido antes,
mesmo com toda a indelicadeza dela. Mas lembro a
mim mesma de que preciso deixar a minha vida
pessoal de fora.

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– Humm... olá – Minha voz falha. Limpo a


garganta. Vê-la faz tudo parecer muito pior. – E
então? Humm... o que me conta?
– Desculpe o atraso... os preparativos do
casamento estão me deixando louca! – a mim
também, Alana! – Te pagarei essa consulta em
dobro também.
Nem isso consegue me animar.
Nós nos sentamos. Dou um “ok” ao lado do nome
dela na agenda de pacientes, impedindo o impulso
de riscá-la raivosamente da página e da minha vida.
Não queria mais ter que ler o nome dela em lugar
algum. Inclusive, melhor que eu compre uma
agenda nova. Para o caso de eu rasgar essa daqui
durante um surto psicótico.
Acalme-se! Você é terapeuta. Se não for por você,
faça em nome da sua paciente. Ou em nome desse
tapete felpudo que você comprou com o dinheiro
dela.
Com a falta de pacientes, os dias seguintes na
minha agenda estão quase vazios. Entre os poucos

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eventos está a “festa de aniversário de casamento


dos pais do Rafa”, marcada para sexta-feira que
vem. Discretamente, risco esse evento da agenda.
Não poderei comparecer à festa se Alana estiver lá.
Não estou com cabeça pra isso.
Terei que inventar alguma desculpa para a minha
ausência. Dor de barriga, dente do siso arrancado,
cólicas... isso, cólicas de novo. Sempre funciona.
– Eu estou tão animada para o casamento!
E aí começa a ladainha. É blá atrás de blá, atrás
de bolo de um metro de altura, passando para lista
de presentes, entrando em Rafael é fantástico, o
que causa uma terrível dor no meu peito. Meu
coração afunda enquanto olho para o rosto pelo
qual o Rafa se apaixonou.
– E você sabe como eu sou, eu a-do-ro dar festas.
Mas detesto planejar, é tão chato – ela diz sem
pausas para respirar, continuando a encher meus
ouvidos com informações destrutivas à minha
saúde mental, e eu inspiro e expiro pelo que parece
uma eternidade. – Então, minha assistente começou

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a procurar pelos melhores lugares para fazer a


celebração. E tem um lugar em particular, onde
uma amiga se casou, que é es-pe-ta-cu-lar! Você
não está entendendo. Eu precisava que o meu
casamento fosse lá!
– Mesmo?
– Muito mais elegante, obviamente – ela
acrescenta, depressa.
Minha paciente sorri como se estivesse tudo bem
no mundo. E no mundo dela as coisas devem
mesmo estar perfeitas! Ela veste uma blusa
vermelha, com decote em v e os cabelos jogados
para o lado. Ela nem imagina o que se passa na
minha cabeça, não é? Será que o meu
comportamento com ela mudou ou é apenas a
minha forma de pensar que não é mais a mesma?
O que antes não me incomodava, suas falhas, sua
falta de empatia, agora quase me levam à loucura.
Depois que entramos no nível pessoal, não consigo
aturar sua superficialidade, e fico triste comigo
mesma. Porque encaro isso como uma derrota

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profissional. Eu deveria saber separar as coisas, não


deveria? Eu deveria colocar minha paciente em
primeiro lugar.
E é isso o que vou fazer. Eu consigo. Eu preciso
conseguir! A partir de agora, vou precisar ser duas
Melissas.
Porque é um pouco injusto enxergá-la dessa
forma, não é? Sem ela ao menos saber o que se
passa na minha cabeça.
Mas por que ela tinha que ter um cabelo tão
sedoso na cabeça dela?
– Só que lá é sempre muito requisitado e existe
uma lista de espera enooorme. A data que eu queria
era para daqui seis meses...
Seis meses? Eles pensam em se casar em seis
meses? Seis longos meses de conversas
intermináveis com ela? Oh, meu Deus. Faça com
que isso não seja verdade!
Não sei se torço para que aconteça mais cedo ou
mais tarde.

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– Mas então eles disseram que só poderiam fazer


reservas para daqui a um ano e meio.
Um ano e meio??? Não, Senhor, eu retiro o que
eu disse. Eu prefiro os seis meses.
– Puxa, que pena – é tudo o que murmuro.
Não consigo imaginar um mundo onde eu
sobreviva a um ano e meio com Alana tagarelando
na minha orelha sobre o casamento.
Eu me encontro dividida entre dois sentimentos
em particular: o primeiro (muito nobre eu diria) é a
felicidade por minha paciente ter encontrado a
metade de sua laranja. O segundo (bem menos
nobre e em maior quantidade) trata-se de mim,
destruindo essa laranja e me dirigindo a outro
hortifruti.
Como psicóloga, eu preciso ser nobre. Mas para
ser sincera, eu detesto frutas no momento.
– Mas você sabe que eu sempre consigo o que eu
quero, certo? – ela abre um sorriso e junta as duas
mãos. – Eu insisti tanto que eles me informaram

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que houve um cancelamento de última hora e que a


data do dia 25 de agosto estava disponível!
Ela bate palminhas, e por pouco não esbarra de
novo no porta-lápis.
– 25 de agosto? – pergunto, parando de pensar em
laranjas, maçãs ou em qualquer outra porcaria de
fruta que estava na minha cabeça.
– 25 de agosto!
– 25 de agosto, 25 de agosto? – pergunto. – Desse
ano?
– Não é incrível? – ela coloca uma mão em cada
bochecha, feliz com sua destreza em persuadir os
pobres funcionários do salão de festas. Eu coloco as
mãos no rosto também, em total descrença.
– E você reservou essa data... – digo, mais como
uma afirmação do que como uma pergunta. Meu
coração palpita forte, pois já imagino a resposta.
– Reservei! – ela grita, e sua voz ecoa através da
minha pequena sala. – Não é muito incrível?
– Mui...tíssimo – respondo, ainda com as mãos no
rosto.

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Não posso deixá-la fazer isso.


– Já contratei a organizadora de casamentos e ela
vai...
– Mas... – interrompo, estendendo a palma para
ela. – Alana, isso é daqui a menos de dois meses! –
grito antes que eu perceba, praticamente peidando
pela boca.
Alana parece assustada, mas logo começa a
gargalhar como se fôssemos grandes amigas de
infância. Uma amiga mais atordoada que a outra,
mas ainda assim, amigas.
– Eu sei! Eu sei, querida. Mas isso não importa!
Minha organizadora é fantástica, ela é uma
blogueira famosíssima também.
E blá-blá-blá.
Não dá para acreditar. Vai acontecer mais rápido
do que eu pensava? Para falar a verdade, eu
continuo não achando que essa história toda de
casamento vá para frente. Estou certa de que o
noivado da minha paciente impulsiva acabará do
mesmo modo como começou: rápido! O casamento

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será cancelado, sobrando apenas uma boa história


para contar aos meus filhos.
Mas ela marcou uma data! E se acontecer de
verdade? O que é que eu vou contar pros meus
filhos?
– Peraí, você não acha muito repentino? Quero
dizer, vocês se conhecem há apenas três meses!
E nem preciso me ater ao fato de que o noivo é o
Rafa. Independentemente de quem fosse o noivo,
Alana deveria esperar. Onde ela pensa que está?
Numa capela em Las Vegas?
– Eu sei que é, mas se você sentisse o que eu sinto
por ele...
Eu sinto. EU SINTO!
– ... Não ia querer esperar nem mais um minuto.
Ah, por favor! Eu esperei dez anos pelo cara e ela
não consegue esperar mais alguns meses? Faça-me
o favor.
E quem é que consegue preparar um casamento
em tão pouco tempo?

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– Alana, mas quem é que consegue preparar um


casamento em tão pouco tempo? – é exatamente o
que pergunto.
– Não escutou? – ela estala os dedos no ar para
que eu preste atenção. – Minha organizadora! Ela é
blogueira, sabe?
E o que é que isso tem a ver com alguma coisa?
– Mas e quanto ao seu vestido? – faço mais uma
tentativa. Preciso colocar algum juízo na cabeça
dela. Isso tudo está acontecendo rápido demais! –
Sei que você quer que ele seja perfeito. E você não
pode ter encontrado um vestido sem a sua pasta
mágica...
Desde o fatídico dia do restaurante, abortei a
missão de entregar à Alana a enorme pasta de
referências de vestidos de noiva. Ela não podia
saber o que eu tinha visto, e eu não podia encará-
los. Então, inventei que fiquei doente de repente,
gripe da galinha ou sei lá o quê, e que tive que ir
para casa. E não, eu não queimei a bendita pasta.

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– Você não veio buscá-la esse tempo todo –


abaixo-me para alcançar a pasta na última gaveta
da mesa.
– Ah, pode jogar essa pasta velha no lixo. Eu não
vim buscá-la porque já encontrei.
Levanto a cabeça de supetão e bato na quina da
mesa.
– Encontrou o quê? – pergunto, passando a mão
na cabeça dolorida.
– O vestido perfeito.
Caramba, Santo Antônio!
– Encontrou? – meus ombros caem de tanta
decepção com o mundo.
– Uma amiga da família é estilista e desenhou um
vestido deslumbrante. Aliás, ela é blogueira
também. Não é incrível?
– In...crível.
Todo mundo virou blogueiro nessa cidade?
– Já conversei com Iolanda e ela concordou em
fazê-lo para mim. Por uma pequena fortuna, é
claro.

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– Ah, Iolanda. Tinha me esquecido de Iolanda –


digo, enquanto ela esfrega sua costureira da alta
sociedade na minha cara.
– Sim, ela está ótima, está realmente ótima. Sabia
que o ateliê dela saiu na revista onde trabalho como
um dos cinco melhores de São Paulo?
Ah, Alana, por favor, continue. Fale mais sobre a
sua vida perfeita, eu imploro.
– Que máximo! – digo, os dentes cerrados.
Tento abrir um sorriso, mas parece que minha
mandíbula emperrou.
Infelizmente para o meu coração, tenho que ser
uma boa psicóloga e ajudá-la da melhor maneira
possível. Preciso deixar de lado a história toda com
o Rafa e fingir que o noivo é qualquer outra pessoa.
Isso! Como o Leo, por exemplo.
Esquece! O Leo? Isso seria impossível. Mais
impossível que toda essa situação. Finjo que o
noivo é literalmente qualquer outro cara.
– Me diga uma coisa. Como está se sentindo em
relação a tudo isso? Está satisfeita com o... humm...

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seu noivo?
– Você está falando como minha psicóloga agora,
não é?
Ela dá uma gargalhada, jogando o cabelo loiro
para trás. O que ela pensa que estávamos fazendo
até agora? Trocando figurinhas?
– Ora... sim! – respondo da maneira mais
profissional e menos psicopata que consigo.
– Acho que tudo está se movendo rápido demais.
Somos duas.
Minha paciente indica abertura. É nessas horas
que conseguimos alguns progressos no
atendimento, com o paciente disposto a se abrir.
– Só tenho medo de não dar certo de novo, sabe?
De enjoar dele, ela quer dizer.
– Você acha que é possível? – digo.
Ela apoia a cabeça nas mãos. Sua expressão
assume um tom sombrio.
– Você acha que seu comportamento teve alguma
melhora nos últimos tempos? – pergunto. – Mesmo
que tenha sido pequena?

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– Sei lá. Minha visão começou a mudar depois de


me consultar com você, mas...
Meu coração se enche de orgulho pelo feedback
profissional. Até eu me lembrar de que a paciente é
Alana e o orgulho escorre pelas minhas mãos, rumo
ao ralo.
– Mas você sente que isso pode acontecer de
novo?
– Não vai acontecer de novo – ela diz, fechando-
se para mim, voltando a adotar uma expressão
empolgada.
Ignorando minha vida pessoal, é com grande
pesar que digo:
– Se sentir dificuldade com essa questão, não
jogue tudo pro alto, tá legal? Converse comigo
primeiro. E vou te ajudar a passar por isso. Lembre-
se do que sempre te digo: você é a dona do seu
destino.
Engulo a saliva. Foi como se eu mesma tivesse
dado uma facada no meu próprio coração. Já que

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ela é minha paciente, antes no meu do que no


dela... eu acho.
A ironia da coisa toda é que, se ela teve uma
melhora, foi graças a minha ajuda.
Consequentemente, eu sou culpada pela minha
própria infelicidade.
Não é que eu levo a sério esse negócio de ser a
dona do meu próprio destino?
– Obrigada, querida – ela toca sua mão gelada na
minha, revelando unhas vermelhas. – Acredito que
exista uma pessoa certa para cada um de nós. Ele
me fará passar por isso sem problema algum.
O problema é que nós duas acreditamos nisso
com o mesmo cara.
– Mesmo porque não é todo dia que um cara te
pede em casamento em uma bandeja de prata, não é
mesmo?
– Desculpe, o que disse? – pergunto sem piscar,
um comichão instalando-se atrás da minha orelha.
– Sim. Eu contei como ele me propôs.

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– Não, não... – tento parecer calma. – Não. Você


não disse nada sobre uma bandeja de prata.
Meu rosto deve ser uma confusão de
incredulidade e choque, porque ela imediatamente
começa a me explicar.
– Eu lhe contei! – Alana agita as mãos. –
Estávamos no restaurante, com aquela vista
maravilhosa da cidade... bem, não é o melhor
restaurante da cidade, isso eu posso te dizer. A
carne estava um pouco dura e...
– Mas, humm... sobre o pedido? – Inclino-me
para frente, com pavor da resposta. – Você ia
dizendo?
– Ah, sim. Bom, estávamos jantando e então um
garçom apareceu ao meu lado segurando uma
pequena bandeja prateada, decorada com pequenas
pedrinhas brilhantes – que eu posso te dizer com
toda a certeza: não eram diamantes nem aqui nem
na China! Não deviam nem ao menos ser zircônia.
Mas enfim...

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Escoro-me na cadeira. O sangue do meu corpo


desce lentamente em direção ao chão. Eu conheço
essa história, meu Deus, eu conheço essa história!
Me diga que ele não fez isso!
– Aí o garçom abaixou a bandeja bem perto do
meu cabelo, e eu já estava quase ordenando que ele
se retirasse, pois não me agrada que um garçom
invada meu espaço pessoal.
O falatório de Alana nunca foi um problema tão
grande pra mim quanto agora.
– E foi aí que eu a vi: uma pequena caixinha preta
de veludo – ela fecha os olhos ao contar. Mas então
os abre velozmente como um lince. – Eu devia ter
percebido: caixa pequena, anel pequeno, não é
mesmo? Mas, de qualquer modo, meu coração
quase parou naquele momento, querida.
Igualzinho ao meu agora.
– E então Rafael pegou a caixinha de veludo e se
ajoelhou? – pergunto.
– Sim. Exatamente isso. Eu te contei essa parte?
Estranho, porque normalmente não conto essa parte

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a ninguém. Acho muito brega quando um homem


se ajoelha.
– Er... contou sim – disfarço e torço para que ela
acredite.
Mas ela imediatamente perde o interesse na
coincidência, mais interessada em continuar
falando.
– Bom, de qualquer maneira, o anel é ok, mas já
te disse que o achei incrivelmente pequeno.
Olho sutilmente ao redor, à procura de câmeras
escondidas. Será que é uma pegadinha?
Alana estende a mão magrela a dois centímetros
do meu rosto, mostrando o anel pela quadragésima
quarta vez. O anel que ela não gostou. Do pedido
que ela não gostou. Que eu, por minha vez, teria
amado.
Isso porque o idiota do Rafael roubou o meu
pedido de casamento!
O negócio é que eu considero a forma como
Alana foi proposta a mais linda de todas. Porque
quem a criou fui eu!

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Um dia estávamos passando em frente a uma loja


de antiguidades, Pati, Rafa, Leo e eu. Na vitrine,
uma linda aliança dourada cintilava entre os outros
itens expostos, cheia de arabescos em prata e com
um rubi no centro do anel. Era espetacular! Colei a
cara no vidro e fiquei admirando a peça. Eu gostei
tanto que até voltei lá no dia seguinte para comprá-
la, mas ela já tinha sido vendida, mas a questão não
é essa. A questão é que, de brincadeira,
compartilhei com eles como eu desejava ser pedida
em casamento. Assim, eles poderiam me fazer o
favor de compartilhar a informação com o meu
futuro noivo, para que ele soubesse que sempre
sonhei em ser pedida em casamento em uma
bandeja de prata, com uma caixinha de veludo,
num restaurante elegante e com o noivo ajoelhado.
Entretanto, eu claramente não devia ter feito isso,
porque o “sem imaginação” do Rafael reproduziu a
ideia com outra pessoa!
Será que posso processá-lo por direitos autorais?

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Quantas coisas mais ele vai tirar de mim para


entregar à Alana?
– Que incrível – consigo murmurar. – Fantástico.
Simplesmente fan-tás-ti-co.
– Achou mesmo? Eu gostei, mas não amei,
entende? – ela está tão perdida no monólogo que
nem percebe meu sarcasmo.
Como será que é ser assim tão egocêntrica?
Ela se inclina para frente, com ar de confissão.
– Bom, posso te contar isso, não posso? Ele nunca
vai descobrir de qualquer maneira.
Droga de sigilo entre paciente e terapeuta!
– Não gostei do pedido. Definitivamente não foi o
pedido de casamento dos meus sonhos.
É claro que não foi! Porque foi o dos meus.

– O que aconteceu? Anda, desembucha. –


pergunta Pati, sem rodeios.
– Eles vão se casar em menos de dois meses.
– Quem?

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– Quem? Dom Casmurro e Capitu! – digo,


irônica.
Ela fica sem entender.
– Alana e Rafael, pelo amor de Deus! – jogo as
mãos pro alto.
– Não-a-cre-di-to! – é a reação de Pati quando
termino de contar a história toda.
Eu sabia que ela entenderia melhor do que
ninguém.
Sentados nas poltronas confortáveis da cafeteria
que exala um aroma de café fresquinho, Leo e Pati
são obrigados a aceitar seu inevitável destino de
escutar meu desabafo.
Pati se inclina para frente. Sua curiosidade é tão
palpável que quase chega a ser um quarto
integrante do grupo, por assim dizer. Ela me
interrompe de vez em quando com expressões
como “filho da puta sem coração” e “vadia
desgraçada”.
– Mas isso não é tudo – digo e coloco uma mecha
do cabelo atrás da orelha. – Rafa praticamente me

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disse que somos almas gêmeas.


Leo levanta os olhos de seu café.
– O quê? – Pati fica realmente muito surpresa,
coloca a mão na boca e tudo.
Esperei um tempo até verbalizar o ocorrido, e
agora que o fiz, adoro o reconhecimento.
Pati dá um tapinha no ombro do Leo, dizendo um
“Ai, meu Deus, você ouviu isso?”.
– Não, peraí! Ele disse que vocês são almas
gêmeas? – Leo começa a investigar.
– Praticamente – digo.
Bato minha mão na palma estendida de Pati, que
grita um “vai, garota!”.
– O que quer dizer com “praticamente”? – ele
insiste.
– Tecnicalidades, tecnicalidades – jogo o cabelo
para trás e Pati faz uma dancinha desengonçada.
– Explique-se – Leo finalmente consegue cortar o
nosso barato e Pati faz cara de tédio para ele.
– Nossa, mas que sem graça, hein? – ela dá outro
tapa no braço dele.

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– Tá legal – apoio a xícara de café na mesinha de


mogno a nossa frente. – Tecnicamente ele disse que
“deveríamos ter sido almas gêmeas em outras
vidas”.
– Você entende a diferença do que ele disse para
o que você interpretou, certo? – Leo diz.
– Mesmo assim eu acho válido – diz Pati. – Ele
pode estar falando nas entrelinhas.
–A única coisa que ele está falando, EM LETRAS
GARRAFAIS, é que vai se casar – ele insiste em
ser chato.
É óbvio que ele conseguiu acabar com a nossa
graça.
– É, pode ser – me afundo na poltrona e tomo um
gole do meu café, que agora já está morno.
Porém, não consigo me conformar.
Depois de um silêncio que parece durar horas e
muita cafeína ingerida, um lampejo de coragem
passa pelo meu corpo. Uma ideia que não consegue
mais se calar. Talvez seja a cafeína falando.

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Não posso mais ignorar minha vida amorosa. Não


posso desistir de novo!
Sem querer, percebo que acabei fazendo uma bela
introdução para o que digo em seguida.
– Mas e se tudo isso tiver sido um sinal? –
pergunto, e devagar levanto os olhos.
O interesse de Pati foi novamente aguçado, o que
me incentiva um bocado. É como se ela já soubesse
o que eu vou dizer. Leo, que foi até o balcão ao
nosso lado retirar um novo copo de café, inclina-se
para nós e me olha desconfiado.
– Sim? – incentiva Pati.
– Ele a pede em casamento do jeito que eu
gostaria de ser pedida, diz que deveríamos ter sido
almas gêmeas...
– Em outras vidas, Melissa! – grita Leonardo do
balcão, mas eu o ignoro.
– ... Porque talvez eu devesse estar no lugar dela!
Pati tinha razão... Eu vou testar o relacionamento
dos dois.

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– Não. Não. Péssima ideia – Leo vem correndo,


derrubando café pelas laterais da xícara a cada
passada. – Péssima ideia. Eu não consigo ser mais
claro do que isso.
– Não, Leo. É uma ótima ideia – pego o copo de
café da mão dele e bebo de uma vez, como se fosse
pinga, enquanto Pati volta a dançar na cadeira. – É
a melhor ideia que eu já tive na vida!

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Assisto a “O casamento do meu melhor amigo”


acreditando que o enredo me incentivaria a colocar
o meu plano em ação. Porém, fico bastante
desmotivada ao descobrir que Julia Roberts termina
o filme solteira e dançando com seu melhor amigo
gay.
Em vez de interpretar a obra cinematográfica
citada acima como um sinal dos céus, ignoro e
pego meu bloco de notas tamanho gigante (para
anotações superimportantes).
Anoto “plano” no centro da folha e rabisco com
dois traços firmes embaixo da palavra.

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Acontece que acabo pegando no sono e só acordo


na manhã seguinte com o despertador gritando na
minha orelha. Mas não tem problema.
Na noite seguinte, peço uma pizza para me ajudar
a pensar melhor e abro o bloquinho na página do
“plano” novamente. Estou animada, como não me
sentia há dias. É como se um jato de energia
pulsasse novamente pelo meu corpo. Acho que isso
se chama esperança.
A ideia é transformar tudo o que aprendi na
minha especialização em Relacionamento Conjugal
em um “teste para casais”. É o plano perfeito! Vou
criar uma ferramenta imparcial de cunho
investigativo que me ajude a entender se o
relacionamento de um paciente tem as bases certas
para existir.
No caso de Rafael e Alana, se o resultado do teste
for positivo para eles, terei motivos palpáveis para
me ajudar a seguir em frente. Porém, se o teste
mostrar que eles não são compatíveis, serei honesta
e revelarei a ele o que sinto de uma vez por todas,

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torcendo para que ele enxergue o mesmo que eu já


enxergo há anos.
– E por que não? É um plano bem inteligente –
digo para o Leo ao telefone, depois de ter colocado
tudo no papel.
– Porque é um plano bem babaca – diz ele, seco.
E ele ainda por cima bufa pelo telefone, o mal-
educado!
– Qual é, Melissa? Quem é que faz isso?
– Deixa de ser tão estraga-prazeres, Leonardo! –
grito. – Será que você não pode simplesmente dizer
que sim? Que me apoia?
– Não, eu não posso dizer que sim. Não vou te
apoiar em uma coisa idiota dessas. Eu tenho mais o
que fazer.
Fico calada quando a voz grossa dele cessa na
linha.
– Ficou muda? ​– ele pergunta depois de um
tempo.
– Não. Deixa pra lá.
– Ficou chateada?

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– É claro que fiquei. Você me chamou de idiota.


Seu idiota!
– Eu não te chamei de idiota. Eu chamei o seu
plano de idiota. E ele é bem idiota mesmo.
O chiado da ligação é a única coisa que soa no ar.
– Não vai mais falar comigo?
– Não, acho que não tenho mais nada para falar
com você – rebato.
Apoio a cabeça no braço do sofá, sem dar um pio.
– Ah, que se dane. Eu te apoio – ele diz. – Eu
sempre apoio, não é?
– Obrigada – os músculos do meu corpo relaxam.
– Você vai se arrepender.
– Para com isso!
– Eu só não quero te ver magoada.
O comentário dele me incomoda. Porém ignoro,
tamanha a minha felicidade.
– Mas você tem que me prometer uma coisa – ele
diz. – Que se isso não der certo, você vai deixar pra
lá.
– Sim, vou deixar pra lá.

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– Imediatamente?
– Sim, imediatamente.
Mas vai dar certo. Algo que me diz que vai. Algo
me diz que é isso o que preciso fazer para que a
minha vida volte aos eixos.
Ora, faça-me o favor! Esse casamento é uma
loucura. Eles se conheceram praticamente ontem.
Estão prestes a cometer o maior erro da vida deles,
e vou estar cometendo o pior erro da minha se eu
não fizer nada a respeito.
– E se ela descobrir quem você é? – ele me
pergunta.
Pelos relatos de Alana, sei que a organizadora do
casamento é quem está cuidando da lista de
convidados. Acho difícil de minha paciente
descobrir que estou na lista como convidada do
noivo já que, nas palavras dela, ela “a-do-ra dar
festas, mas detesta planejar”.
– É improvável. Ela está muito mais interessada
no próprio vestido de noiva para se preocupar com
isso. Seu egocentrismo se intensificou nas últimas

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semanas. Além disso, não estou em nenhuma rede


social, e Rafa também não está. Não há como ela
nos relacionar virtualmente.
– Porque vocês são antissociais – diz Leo.
– Ora, eu só não me interesso muito por esses
trecos.
– Com “trecos” você quer dizer tecnologia?
– Usar o celular já está de bom tamanho.
– Talvez você devesse considerar ser mais
tecnológica. Assim você pode hackear a vida dos
dois pra completar o seu plano maligno.
– Ha ha! Muito engraçado.
Não é como se eu estivesse invadindo a
privacidade do Rafa, nem nada. Só estou checando
se ele está mesmo no caminho certo. Na verdade,
considero isso um serviço de utilidade pública. Eu
deveria cobrar dele.
– Eu amo esse plano, obviamente, porque eu
mesma te dei a ideia – diz Pati, quando ligo para
ela em seguida. – Mas você sabe que existe outra
possibilidade, não sabe?

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– Como assim? Qual? Você tem um novo plano


em mente?
– Sim. Chama-se “Contar a Verdade”.
– E como funciona? – pergunto, ingênua.
Ela dá risada do outro lado da linha.
– Você conta a porcaria da verdade! Deus!
Eu reviro os olhos.
– Tenho dito isso todos esses anos. Por que não
conta a ele o que sente de uma vez? Você sempre
foi a mais prática de nós duas.
– Não posso. Acredite em mim, isso é o mais
prática que posso ser – suspiro. – Por mais que eu
não acredite no casamento, Alana continua sendo
minha paciente. Vendo a situação dela
isoladamente, não posso machucá-la à toa,
entende? Não posso fazer turbulência no
relacionamento dela se não existir um motivo claro
para isso. Tenho que colocá-la em primeiro lugar.
– Ok, entendo – diz Pati. – Mas se eu fosse você,
falaria mesmo assim. Não sei por que você precisa

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ser assim tão... tão... correta. – Ela diz como se eu


tivesse uma doença.
Apesar de Alana ser toda rica e maravilhosa, no
fundo do meu coração eu sei que eu sou a mulher
para o Rafa. Nós prezamos relacionamentos sérios
e acreditamos na importância do casamento (ele
que o diga!). Somos perfeitos um para o outro, eu
sei disso. Mas ele não sabe. Dói pensar que ele
pode estar deitado com Alana nesse exato instante,
assistindo filmes com ela no sofá. Ou fazendo coisa
pior no sofá. Argh!
Ele precisava saber que existia a possibilidade de
ficar comigo. Todas as oportunidades perdidas que
tive de dizer a ele o que eu sentia me tornam uma
mosca morta. E agora eu nem sei se terei a chance
de dizer alguma coisa, no final das contas. Se eu ao
menos tivesse ouvido a Pati, talvez não estivesse
nessa situação. Se eu pensasse menos e sentisse
mais, eu poderia ter feito o Rafa sentir coisas por
mim de volta. Mas não fiz. E agora preciso dar um
jeito de consertar isso antes que seja tarde demais.

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– Eu só preciso tentar. Estou cansada de desistir!


Não posso passar o resto da minha vida imaginando
o que teria acontecido se eu tivesse tentado.
– Então, qual é o seu plano? – pergunta a
curiosidade de Pati.
Leo disse que se ele tivesse uma madrinha de
casamento igual a mim, estaria totalmente ferrado.
Mas aí percebeu que isso não era verdade, pois eu o
estaria ajudando a se livrar do suposto casamento, o
que seria ótimo para ele.
Mandei ele ir catar coquinho! Não é como se eu
fosse uma péssima madrinha de casamento nem
nada. Eu sempre quis ser madrinha, e pensei que
quando tivesse a oportunidade, eu seria a melhor
delas. Assim, para não me sentir a pior do mundo, a
pedido do Rafa enviei as minhas medidas para que
a costureira de Alana preparasse o meu vestido. Ao
que parece, Alana é daquele tipo de noiva que não
só escolhe a cor dos vestidos, mas também o
modelo deles.

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Eu não tinha ideia das minhas medidas. Fazia


tempo que não me pesava, para evitar surpresa e
descontentamento. Imagina então há quanto tempo
não me media? Aliás, acho que eu nunca tinha me
medido antes.
Depois disso, me senti um pouco melhor. Fora
que não estou executando o plano por mim, mas
por nós três. Preciso esclarecer essa situação.
Ninguém quer estar casado com a pessoa errada.
– Não acredito que você vai fazer isso tudo por
um cara – diz Leo, quando nos encontramos na
quarta-feira para almoçar comida asiática no bairro
da Liberdade, o coração da cultura japonesa em São
Paulo. As paredes vermelhas do restaurante e a luz
do sol entrando pelas amplas janelas abertas dão ao
dia um tom animado.
– Não é só um cara. É o Rafa. Ele é seu amigo
também.
– E eu não acredito em você, Leonardo – diz Pati.
– Você tem essa pose de insensível, mas acho que
mais cedo ou mais tarde...

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Provavelmente mais tarde...


– ... você vai encontrar uma mulher que te deixe
de joelhos.
– Ah, com certeza eu vou ficar de joelhos pra ela,
se é que você me entende – ele aproveita a deixa e
eu tenho que admitir que a culpa é todinha de Pati
por dizer uma frase tão ambígua a uma criatura
como ele.
– É sério! Você vai ficar de joelhos e não vai
deixá-la escapar e ser levada por outro cara – diz
ela. – Eu acredito em carma. E acho que o universo
ainda vai te mandar alguém muito difícil de ser
conquistada. Só pra calar essa sua boca, ô garoto!
Dou risada.
– Você acha que o universo vai querer se vingar
de mim? – ele pergunta.
– Sim, eu acho – Pati responde.
– Sim, eu espero – eu digo.
– Não é culpa minha se está difícil de encontrar
uma única mulher que seja tudo isso. Talvez seja
culpa do próprio universo.

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– Ei! – Pati diz, ofendida. – Nós duas somos tudo


isso! Você teria sorte de sair com uma de nós.
Ele quase engasga.
– Meu Deus, credo! Vocês são... sei lá – ele
desvia os olhos de nós. – Como irmãs pra mim.
– Você acabou de chamar a gente de feia – digo,
dando a última garfada em meu yakisoba.
Essa frase é mesmo bem ridícula. Declarar “você
é como uma irmã para mim” deveria ser crime.
Difamação! Eu deveria poder processá-lo por isso.
Essa é a desculpa mais cretina que a humanidade já
inventou para dispensar alguém.
– Eu não chamei vocês duas de feia... – ele diz,
olhando para mim. O sorriso irônico nos lábios dele
instintivamente me faz dar risada, apesar do insulto.
– Ha ha! Muito engraçado – digo.
Leo e Pati continuam por mais uns cinco minutos
brigando como gato e rato. E Pati realmente parece
um ratinho, se pensarmos bem, o que só comprova
a veracidade da minha analogia. Apesar de que isso
torna Leo o “gato”, fato esse que me deixa

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desconfortável em prosseguir com a analogia em


questão, pois já existem mulheres o suficiente no
mundo que o acham bonito. E ele definitivamente
não precisa de mais uma.
– Só não consigo enxergar vocês desse jeito.
No fundo do restaurante, num lugar onde se lê
“delivery”, reconheço uma figura masculina
conversando com a atendente. E dessa vez estou
com os meus óculos.
– Pati. Vou te dizer uma coisa, mas você não vai
gostar de ouvir.
Ela vira o rosto para mim, um fio de yakisoba
sendo sugado para dentro de sua boca.
– E o que é? – ela fala entre mastigadas.
– Augusto está aqui no restaurante – faço com a
cabeça na direção dele.
– Onde? – ela se vira para localizá-lo e então
volta os olhos assustados novamente para nós. –
Não quero que ele me veja.
Pati coloca a cabeça debaixo da mesa, fingindo
amarrar o seu coturno.

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– Pelo amor de Deus, Patrícia! Está tão


traumatizada que precisa se esconder? Posso te
atender no consultório, por um precinho camarada.
Será que ficou muito óbvio que estou falida?
– Só não quero que ele me veja, tá legal? É a
última coisa de que preciso.
Respeito a decisão da minha amiga e ficamos em
silêncio. Augusto vai embora e ela volta à
superfície, descabelada.
– É isso que chamo de não querer ver alguém
nem pintado de ouro.
Leo se mostra mais interessado nas mensagens de
texto que recebe o tempo todo. Com certeza são
mensagens das garotas fúteis com quem ele sai, o
que faz com que eu me sinta vazia, como um
lembrete de que não tenho absolutamente ninguém
com quem conversar.
Por que só eu não consigo arranjar alguém?
Abro meu biscoitinho da sorte e leio “O amor
estará onde o coração menos esperar”. Droga de
biscoitinho da sorte! Será que alguém acredita

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nessas porcarias? Digamos que o meu coração não


seja o órgão para o qual eu dê mais atenção,
biscoitinho. Ele não tem merecido, se é o que você
quer saber.
Pati também tem sempre algum cara com quem
está trocando mensagens e deixando escapar
risadinhas pelo canto da boca. A única coisa que eu
deixo escapar pelo canto da boca é comida.
De qualquer forma, não preciso de pessoas novas.
Principalmente quando tenho o partido perfeito à
vista. Rafa já está na minha vida há tanto tempo
que seria impossível deixar qualquer outro homem
preencher o papel que ele desempenha.
O que mais me dói é saber que no meu pior
momento, quando estou mais triste e perdida, meu
partido perfeito não está aqui para me ajudar a
passar por isso.
Isso porque ele está ajudando nos preparativos do
próprio casamento.

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Toda quinta-feira, meus pais e eu nos reunimos


para um jantar em família. O condomínio deles, o
Flor-de-Lis, é o lugar onde cresci, conheci Pati e
passei alguns dos melhores anos da minha vida. O
condomínio é formado por um prédio único, branco
e imponente, com portões de ferro pintados de
dourado, cercado por árvores que tornam o lugar
uma fortaleza aconchegante.
O Flor-de-Lis tem vinte andares e é bem mais
sofisticado e caro do que o meu, que é simples em
tudo, desde os portões pintados de preto até o hall
vazio e sem sofás ou almofadas coloridas. Mas isso
não diminui em nada a minha felicidade em relação

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ao meu prédio. Não há nada melhor do que ter meu


próprio cantinho.
Essa semana foi muito difícil.
Desço a pé até a rua dos meus pais. Ainda bem
que vou jantar com eles. Chego ao enorme portão
do condomínio, com duas sacolas de compras do
supermercado mais próximo daqui (que cobra uma
fortuna pelos tomates, eu devo acrescentar) e as
mãos congelando. E lá se foram R$ 35,90 apenas
em uma salada higienizada, alguns tomates, dois
molhos de macarrão e um suco de caixinha.
Por sorte, o porteiro me libera prontamente, sem
telefonar para o apartamento. Certamente pensando
que eu ainda moro aqui, já que visito meus pais
com frequência e me mudei daqui há poucos meses.
Mas logo que vejo quem é o porteiro escalado da
noite, entendo que na verdade eu tive foi azar.
– Olá, Mel, minha linda! – ele diz, quando fecho
o portão de entrada.
Carlos vem em minha direção intencionado a me
dar um abraço, como se fôssemos velhos amigos.

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Dou um passo para trás, como se houvesse jeito de


escapar dele. Não há.
– Ah. Oi, Carlos – digo, pouco à vontade com
essa intimidade toda.
Faço questão de parecer mal-humorada para que
ele entenda que não correspondo às cantadas que
me passa toda vez que venho aqui.
– Visitando os papais?
Carlos, o porteiro, deve ter uns quarenta e poucos
anos. É baixinho, gordinho e atrevido. Está
começando a formar uma careca, ficando parecido
com um dos meus tios. Ou com o senhor Peebles,
do Maguila, o Gorila.
– Isso mesmo – digo, indicando as sacolas de
compras. – Noite de jantar, então preciso mesmo
ir...
– Deixe que eu te ajudo – ele se inclina para pegar
as sacolas de compras, mas eu as tiro do alcance de
suas mãozinhas pequenas.
Observo os únicos fios de cabelo que ele tem na
cabeça tentando, em vão, cobrir a careca.

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– Tudo bem, não está pesado.


Não me entenda mal, eu não pretendia ser chata
nem maldosa com o cara. Mas sobre que cargas
d’água eu conversaria com Carlos durante o trajeto
até o apartamento, enquanto ele estivesse levando
minhas compras? Sobre o tempo? Sobre a política
do país? Sobre qual shampoo deixa nossos cabelos
mais sedosos? Não tenho assunto com ele e nem
estou a fim de conversar sobre qual shampoo ele
não usa na careca dele.
Tá legal, agora eu fui maldosa.
Mas, como sempre, ele se recusa a aceitar minha
recusa.
– Eu faço questão – ele sorri, a barrigona
sobrepondo-se ao cinto, e estende as mãos.
Ah, caramba. Já me imagino no elevador com ele,
para mais uma rodada de “Está um tempo feio hoje,
não acha?” ou “Mentira que você não usa
condicionador?”.
Terei que apelar para seus deveres obrigatórios de
porteiro.

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– Mas quem é que vai ficar na portaria enquanto


isso?
– Ninguém vai aparecer agora – responde ele,
dando de ombros.
Droga, Carlos! Mas que insistência!
Nesse exato momento, uma mulher de cabelos
vermelhos, usando salto alto, com cara de executiva
(o que ela provavelmente é, num prédio chique
como esse), surge do lado de fora do portão. Carlos
corre até a cabine para liberar sua entrada. A
atenção dele foi desviada para alguém mais
atraente, então eu aproveito a deixa e sigo em
direção ao hall. Correndo.
Ainda sem fôlego, abro a porta de vidro, que me
transporta direto à época da escola. Não consigo
contar nos dedos o número de vezes em que fiquei
sentada no sofá fofinho do hall com o Rafa,
estudando para as provas encostados nas almofadas
coloridas com estampas indianas, que ainda
permanecem ali. Porém agora elas parecem um
pouco desbotadas.

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Eu me aproximo do elevador, que está no último


andar. Com a mão na cintura, bato o pé no chão
repetidamente.
Décimo nono. Décimo oitavo. Décimo sétimo.
Que demora!
Quanto mais tempo eu ficar aguardando, maior é
a probabilidade de eu querer arrumar aquele quadro
que eu já percebi estar torto na parede, e organizar
as almofadas por cor.
Por que eu tinha que ter TOC?
O visor revela que o elevador está no décimo
primeiro andar. Ah, ótimo, o elevador está se
movendo como uma tartaruga eletrônica. Será que
dava pra demorar mais que isso?
Concentre-se no elevador. Ninguém te pediu para
endireitar aquele quadro!
Respiro fundo. Olho para as almofadas. Elas não
ficariam lindas organizadas por cor? “Rosa, laranja,
amarelo, azul e verde”, organizo-as mentalmente.
Estou dobrando os joelhos para colocar as sacolas
pesadas no chão, a fim de correr até o sofazinho e

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deixar o TOC vencer, quando escuto o estalo do


elevador e pego as sacolas novamente, assustada.
Um bando de garotas de uns treze anos, com
shorts mais curtos que o dinheiro que eu tenho para
passar o mês, passa por mim e senta-se no sofá,
depositando suas bundas minúsculas em cima das
almofadas e acabando de vez com a minha chance
de arrumá-las.
Entro no elevador vazio. Eu não podia pedir para
que as garotas saíssem dali, permitindo assim que
eu realizasse o meu desejo compulsivo, não é?
Então estou livre! Agradeço aos céus por ter
conseguido prosseguir sem muito estresse. Só Deus
sabe o quanto a coisa toda pode ficar estressante.
Enquanto o elevador sobe até o décimo sétimo
andar, me pergunto por quanto tempo não terei
rugas, como aquelas adolescentes. Principalmente
rugas de preocupação.
– Hmmm... – viro o rosto de um lado para o outro
no espelho para dar uma checada no material.

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Ainda sem sinal de rugas. Por enquanto estamos


bem. – É, nada mal.
– Está bonita. Não se preocupe.
– Ai, caramba! – dou um pulo de susto e arregalo
os olhos.
Quem disse isso? Fico imóvel até perceber que é
Carlos quem está falando comigo, lá da portaria.
Ele estava me observando esse tempo todo? Aperto
o botão do intercomunicador do elevador e bufo
baixinho.
– Ei, Carlos – digo, tentando não explodir com
ele. – Dia parado na portaria hoje, hein?
– Sim, por sorte sim. Mas hoje cedo? Ah, você
nem quer saber de hoje cedo...
Não quero mesmo.
– A senhora do 32 ficou presa no elevador de
serviço, e foi uma tortura pra tirar a coitada de lá
porque...​ ​– ele continua falando, e eu continuo
ignorando.
Eu me abaixo para pegar a sacola de tomates que
deixei cair no susto (justo a frágil sacola de tomates

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caros?), tomando o maior cuidado de encostar a


bunda no canto do elevador para que Carlos não
possa desfrutar também dessa visão.
Credo! Será que ele fica me observando toda vez
que venho aqui? Aposto que ele está observando a
ruiva executiva por outra câmera também.
As portas do elevador se abrem. Graças a Deus.
– Tchau, Mel – é o que finjo não escutar antes de
apertar o botão do vigésimo andar e fazer a voz de
Carlos sumir.
Toco a campainha do apartamento 171 e aguardo.
Mamãe se importa tanto comigo que mantém o
quadro do hall de entrada perfeitamente alinhado na
parede. Lar, doce lar.
Mas apesar de bem alinhado, o quadro não é o
mesmo que sempre vejo por aqui. Em vez da
pintura impressionista de um barquinho na praia, há
em seu lugar uma fotografia de um adorável
cachorrinho branco e minúsculo sentado na grama
de um parque.

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Toco a campainha novamente. Por que tanta


demora? As vozes de papai e mamãe soam
abafadas do outro lado. Encosto a orelha na porta.
– Zé, cadê a chave da porta da frente? Estava aqui
agora mesmo. Você mudou de lugar? – é o que
minha mãe parece dizer.
– Está no mesmo lugar de sempre, Margarete.
Não no lugar que você acabou de inventar.
– Se você sabe que inventei um lugar novo para
as chaves, por que é que você não as deixou lá?
Desencosto-me da porta e toco a campainha uma
última vez para lembrá-los de que,
independentemente do novo lugar das chaves, eu
continuo aqui.
– Já vai, já vaaaai! – grita minha mãe e olha pelo
olho mágico. – Peraí, querida, que seu pai está
ficando gagá.
E papai deve estar com aquela sua expressão
desinteressada, propositalmente ignorando mamãe.
Uma risada escapa dos meus lábios.

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Ela abruptamente abre a porta e um sorriso


enorme.
– Querida! – ela diz, puxando-me vigorosamente
para um abraço, seu perfume cítrico chegando até
mim antes dela. Quando ela finalmente me liberta
do abraço de urso, seu enorme brinco hippie se
enrosca na minha blusa branca de tecido fino.
– Não-se-mexa! – prendo a respiração, e mamãe
se mantém estática enquanto desenvolvo minha
técnica de resolver situações de risco envolvendo
roupas. Consigo nos soltar sem nenhum arranhão
em minha blusa e expiro aliviada.
– Precisava de um brinco tão grande? – pergunto
enquanto ela pega as sacolas da minha mão.
– Precisava de uma blusa com tanto tecido? – ela
pergunta de volta.
– Mas é claro que eu preciso, ora.
– Então é claro que eu preciso de um brinco tão
grande.
– Mas seu argumento não faz o menor sentido!

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No entanto, ela já está lá na cozinha


desempacotando as compras, cantarolando uma
música que provavelmente acabou de inventar.
Mamãe tem 47 anos, mas não parece ter mais que
40. Os cabelos pretos, compridos e repicados estão
presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça. Ela
usa uma bata marrom e calça legging combinando.
Dona Margarete finge não se importar com roupas,
mas ela não me engana. Aquela bata é de camurça.
Abaixo para dar um beijo em papai, que lê seu
jornal na poltrona verde da sala.
– Qual é a do visual hippie dela? – pergunto,
sentando-me no sofá creme ao seu lado e trocando
o canal da TV de 50 polegadas. Para que alguém
precisa assistir ao jornal enquanto está lendo o
jornal?
– Telma – diz ele, referindo-se à nossa vizinha de
porta.
Ele levanta os olhos cor de mel de sua leitura e
me olha pela primeira vez.
– Como estão as coisas no consultório?

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Tiro as sapatilhas e aninho meus pés no tapete


persa.
– Ah, tudo bem por lá.
Cinquenta por cento bem, pelo menos. Uma de
minhas pacientes, Camille, é um doce. Alana, uma
destruidora de vidas.
– O que houve?
– Como assim, “o que houve?” – pergunto. – Não
houve nada, ora.
– Te conheço mais do que sua mãe conhece a
cozinha dela – ele pensa por um segundo, ajeitando
no rosto os óculos de grau. – O que foi um exemplo
um tanto inútil, porque a sua mãe cozinha muito
mal.
– Foi exatamente o que eu pensei na hora que o
senhor disse isso.
Rimos e ele pega o controle remoto, mudando de
volta para o canal do jornal e levantando a
sobrancelha para mim.
– Seja o que for, filha... – ele dá um tapinha no
meu joelho. – Vai passar.

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Ele tem razão. Vai passar. Principalmente agora


que concordei em executar o plano maluco da Pati.
O que eu sempre digo às minhas pacientes mesmo?
“Você é a dona do seu destino”, não é?
O interfone toca e fico com medo de que seja
Carlos, convidando-se para subir e tomar um
cafezinho conosco. Depois de pedir ao meu pai a
minha mão em casamento.
– É Luli – diz minha mãe ao pegar as chaves no
novo lugar das chaves inventado por ela. – Já volto.
Olho para o meu pai sem entender, mas ele só dá
de ombros e diz:
– Você vai ver.
Alguns minutos depois, mamãe volta segurando
no colo o cachorro branquinho do quadro da
entrada, com lacinhos vermelhos no alto da cabeça.
Imagino que seja Luli.
– Surpresa! Diga olá para Mel – mamãe diz
naquele tom imbecil de quem fala com crianças e
cachorros.

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E gatos também, é claro. Não devemos


negligenciar os gatos.
– Oh, meu Deus! Você comprou um cachorro?
Eu a agarro dos braços de mamãe imediatamente
e sento-me com ela no sofá.
– Olá, Luli. Eu sou a Mel. É uma pena que não
possamos nos conhecer melhor, já que você vai
embora em uma semana – faço biquinho e falo
naquele tom imbecil também. – É sim, você vai. É,
sim. Você vaaaaaai.
– Como assim, ela vai embora em uma semana? –
pergunta mamãe, com a mão na cintura. – O que
quer dizer com isso, Melissa?
Paro de mexer na barriguinha rosa de Luli, uma
Lhasa Apso filhote, que me observa curiosa com os
olhinhos grandes. Miro papai, mas ele dá de
ombros novamente.
– Bem, é o que o senhora faz – digo, sem
entender a confusão dela. – Inventa uma nova
atividade que pensa querer fazer e desiste uma
semana depois.

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– Ora, mas que coisa ridícula, Melissa! – ela olha


de mim para papai. – Zé, diga a ela que não sou
assim!
– Você quer que eu minta? – diz ele, sem tirar os
olhos do jornal.
– Antônio! – diz minha mãe, os punhos cerrados
ao lado do corpo.
O nome do meu pai é José Antônio, mas mamãe
só o chama assim quando está brava com ele.
– Você quer que eu minta ou não quer, mulher? É
só falar – torna a dizer papai, virando uma página
do jornal. – É sério.
Luli olha de um lado para o outro, provavelmente
se perguntando se não seria melhor ter ficado no
pet shop.
– Eu não invento moda coisa nenhuma! O fato é
que eu descubro interesses novos todos os dias.
Mas eu nunca abandono uma tarefa pela metad...
– O piercing na orelha, a aula de dança, as tranças
no cabelo – conto nos dedos de uma mão e troco o
canal da televisão com a outra.

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– O seu celular de última geração, os livros de


Jane Austen, o novo negócio de manicure – diz
papai, virando a página e cruzando a perna. – Ainda
temos quinze caixas de esmaltes novos no depósito.
– Tenho “Orgulho e Preconceito” na minha
prateleira até hoje – digo.
Ela parece ultrajada.
– E, finalmente, Luli – digo, abraçando o
animalzinho indefeso que cheira a perfume de
bebê. Daqui a uma semana a coitadinha estará sem
lar.
Mamãe é uma pessoa extremamente impulsiva,
como ela fez questão de comprovar na minha
palestra da semana passada. Ela me pediu um
milhão de desculpas e me mandou uns trinta e-
mails (esse é o máximo de tecnologia que mamãe
consegue compreender).
Então eu a perdoei. Ela é minha mãe, o que mais
eu poderia fazer?
Além do mais, minha caixa de entrada já estava
ficando lotada e eu não descobri uma forma de

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bloqueá-la. A mulher sabe como ser insistente.


Nós não somos aquele típico caso de “tal mãe, tal
filha”. Nasci o extremo oposto dela. Sou
organizada, sigo regras. Penso muito antes de fazer
qualquer coisa, pois sei que tudo tem consequência.
Mas ela não. E Luli está prestes a descobrir isso
também.
– Não sejam ridículos, nada vai acontecer com
Luli – ela arranca a bolinha de pelos dos meus
braços e contenho um impulso de impedi-la. – Ela
já é da família e vai ficar aqui.
Mamãe sai da sala e vai até a cozinha,
prometendo um biscoito à Luli.
– Telma? – pergunto a papai.
– Telma.
Telma é a vizinha de porta dos meus pais há um
ano, um pouco antes de eu me mudar daqui. É
bonita, pinta os cabelos grisalhos de ruivo e fez
mamãe se tornar uma Maria Vai Com As Outras de
primeira. Ou melhor, uma Maria Vai Com A
Telma.

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Uma vez mamãe chegou a colocar um piercing na


orelha só para imitá-la. Mas, assim como todas as
novidades que Telma traz consigo, o piercing não
durou uma semana. E não só porque inflamou a
orelha dela, mas porque ela simplesmente se cansa.
“Onde é que eu estava com a cabeça quando fiz
essa porcaria de piercing? Ideia da idiota da Telma,
só podia ser”.
Espero que ela não diga “Onde é que eu estava
com a cabeça quando comprei essa porcaria de
Luli?”. Espero mesmo.
Se não a idiota da Telma vai se ver comigo!
Durante o jantar, a cachorrinha pede comida o
tempo inteiro. E, ignorando as regras dos
veterinários do mundo inteiro, mamãe presenteia
Luli com várias porções de arroz, feliz como se
realmente estivesse contribuindo para a saúde dela.
– Não é bom dar comida de gente a ela, mãe.
– Como é que você sabe? Já teve um cachorro por
acaso, querida? – Ela me pergunta, irônica, do

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outro lado da mesa quadrada de vidro preto de


quatro lugares.
Ela dá um pedaço de tomate à criaturinha
pequena.
– Não, nunca. Porque, se eu bem me lembro, a
senhora sempre disse odiar cachorros – mastigo um
pedaço de tomate, igualzinho à Luli.
– Ora, querida, era só um modo de dizer – ela
abana a mão no ar. – E, além do mais, se eu
soubesse que você realmente queria um pet, eu com
certeza teria comprado um pra você.
– Eu queria! E a senhora sabia.
Mamãe ainda vai me deixar louca.
– Não seja boba, querida – diz ela, sem se abalar.
Será que mamãe é sociopata? Ou apenas uma
grande mentirosa?
Será que ela percebe que está mentindo?
– Como é o cachorro de Telma? – pergunto,
enfiando outra rodela de tomate na boca, adiando
provar os pratos duvidosos preparados pela minha
mamãe. O arroz, empapado. Consigo ver daqui.

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– Como você sabe que Telma comprou um


cachorro? – ela parece encantada com a minha
“adivinhação”, e logo prossegue. – Exatamente
como Luli. Branquinho e tudo. Não é o máximo?
Agora nós duas podemos passear com nossos
cachorros pela manhã e levá-los ao pet shop!
Olho para papai. Papai olha para mim.
Continuamos comendo. Por que eu me dei ao
trabalho de perguntar?
– Mamãe... mãe! – digo, quando ela derruba um
pedaço de macarrão de propósito do prato dela até
o chão. – Por favor, pare de alimentar a cachorrinha
com comida de gente!
Luli será devolvida e possivelmente irá para o lar
de uma família feliz, então qual é o ponto de acabar
com sua saúde em uma semana só?
– Por quê? Virou veterinária? – ela pergunta.
Agora que foi pega no flagra, ela dá um pedaço
de macarrão ao animal na cara dura, desafiando-
me. Luli mastiga o alimento em meio segundo,
pedindo por mais. Papai dá uma gargalhada.

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No final das contas eu me rendo, pois estou


sozinha nessa luta. Papai adora o jeito louco da
mamãe.
Assim como Luli, que pula de alegria.
– Alimente-a apenas com ração – tento uma
última vez.
Ela não vai parar, então sou obrigada a apelar.
– Aposto que você não consegue aguentar,
digamos, por uma semana? Não, não acho que
consiga. Você não aguentaria, porque só donos
fortes de cachorro conseguem fazer isso – digo e
continuo comendo.
Papai esboça um sorriso sutil.
Se eu puder fazer com que ela pare de alimentá-la
desse jeito, semana que vem Luli estará salva na
casa de sua nova família. E se tem uma coisa que
mamãe não consegue recusar, é um desafio.
– Uma semana alimentando Luli com ração? E o
que eu ganho com isso?
Suspiro lentamente e reviro os olhos quando o
olhar de mamãe pousa sobre minha blusa.

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– Está certo: a droga da blusa.


Sei que ela gostou da peça no minuto em que
enroscou seu brinco enorme no tecido macio.
Parece até que ela fez de propósito, quando coloco
desse jeito. Ela sabe muito bem que perco o
encanto por roupas rasgadas, manchadas e afins,
mesmo que seja imperceptível. E que as doo
imediatamente para ela.
– Feito! – ela estende a mão para mim e eu a
aperto, revirando os olhos.
Sorrio para a bola de pelos branca, cujo colesterol
acabei de salvar.
Depois de lavar a louça do jantar, dou tchau à
Luli – provavelmente para sempre ​– e fecho a porta
dos meus pais atrás de mim, dando de cara com um
quadro de um cachorro felpudo na parede da porta
de Telma também.
Sigo em direção ao metrô. Mas não sem antes
ajeitar aquelas almofadas estúpidas do hall de
entrada.

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– Quero que você entenda isso como um


benefício a você mesma e ao seu noivado – digo o
que eu sei ser um argumento convincente ou que no
mínimo chamaria a atenção de alguém tão
egocêntrica como Alana.
Fato inédito na história do meu consultório, Alana
chegou no horário programado. Ainda não entendi
ao certo o que aconteceu. Só posso concluir que ela
se confundiu e pensou que sua consulta era há uma
hora atrás.
O perfume que emana da minha paciente me
alcança deste lado da mesa, misturando-se ao

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aromatizador de ambientes de lavanda que comprei


para a minha sala.
– E esse “teste”? É como aqueles das revistas? –
ela pergunta, tentando compreender a nova técnica
que estou lhe apresentando. Alana é mesmo muito
envolvida nesse mundo de revistas de adolescentes
e fofocas.
– Humm... Não, não é – limpo a garganta. – Na
verdade, é mais como uma conversa com o seu
parceiro. O segredo está na conclusão dessas
conversas. É uma ferramenta nova que desenvolvi
para pacientes em estágios iniciais de
relacionamentos.
– Certo... – uma de suas sobrancelhas desenhadas
se eleva e ela bate com as unhas compridas na
mesa.
Preciso convencê-la!
– Você sabe que tem um traço de impulsividade
que tem prejudicado há anos a sua vida amorosa.
Foi por isso que você me contratou. E nesse

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momento eu preciso ter certeza de que você


realmente encontrou o... humm... amor da sua vida.
Porque uma de nós duas está completamente
enganada sobre ter encontrado o cara certo. E eu
ainda não sei quem de nós duas é a azarada.
Ela morde o lábio inferior.
– Não é nada trabalhoso e pode ser divertido
conhecer mais sobre o seu parceiro. Você quer que
isso dê certo, não quer? – pressiono um pouco
mais, os músculos do meu corpo tão contraídos que
sinto que os estou enrijecendo sem precisar ir à
academia. Quem diria que um dos efeitos colaterais
do estresse seria uma barriga de tanquinho? Talvez
eu devesse escrever uma tese sobre isso.
– Está bem, tanto faz – ela abana as mãos no ar. –
Como começamos?
Sabe aquele momento em que você está na
montanha-russa, presa pelos cintos de segurança,
subindo em direção ao céu? Ouvindo os trilhos e as
engrenagens da máquina e pensando “agora não
tem mais volta”? É assim que me sinto, porém

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provavelmente com mais medo. Medo de que essa


montanha-russa que é a minha vida dê curto-
circuito e quebre.
Dou as instruções à Alana. O “teste para casais”
que desenvolvi – cujo nome verdadeiro é “Medidor
de Compatibilidade Romântica” – é na verdade
muito simples. Ele é dividido em três etapas, sendo
as bases dele o passado, o presente e o futuro.
Essas fases serão analisadas para entendermos se o
relacionamento tem ou não uma base sólida.
Apesar de Leo tê-lo chamado de “teste da dor de
cotovelo”, sei que fiz um bom trabalho. Desenvolvi
uma ferramenta neutra, justa e coerente. Ela serve
para qualquer casal em início de namoro. No
entanto, sinto-me como uma criminosa por estar
escondendo-lhes o fato de que conheço os dois,
tanto Alana quanto Rafa. Preciso ficar lembrando a
mim mesma de que é necessário. E de que não
estou fazendo mal a ninguém, nem infringindo
nenhuma lei, ou algo do gênero.

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– Vamos começar com o passado – digo. – A


primeira etapa é a seguinte: “Você conhece bem o
seu parceiro?”.
Analisando ambos do modo como os conheço,
infelizmente para eles a probabilidade de se
conhecerem bem é pequena. Isso porque não
acredito que concordariam em se casar um com o
outro se soubessem que são tão diferentes assim.
Concentre-se, Melissa! Foco! Você precisa ser
imparcial nas sessões. É a única forma de
realmente ajudar a sua paciente.
Chacoalho a cabeça, evitando pensamentos
tendenciosos. Mesmo porque só saberei com
certeza com o resultado do teste.
– Vou dar uma lista de perguntas para fazerem
um ao outro. Você pode memorizá-las e introduzi-
las no meio de uma conversa, de forma agradável. –
Passo-lhe a folha de papel sulfite com as perguntas
impressas, os dedos tremendo ligeiramente.
– Começarei sábado. Parece legal – ela dobra o
papel ao meio e o enfia de qualquer jeito dentro da

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bolsa. Precisava amassá-lo? – Sexta à noite tenho


um evento da revista, de modo que não verei meu
noivo.
– É mesmo? – pergunto, uma pitada de esperança
despejando-se na minha corrente sanguínea.
Subitamente, o céu clareia para mim. Sexta será o
aniversário de casamento dos pais de Rafa, que eu
já tinha me conformado em perder porque a
presença de Alana impossibilitava a minha.
Mas então ela não vai?
– É terrível. Eu já tinha um compromisso, mas
precisei cancelar – diz ela, apoiando a cabeça nas
mãos.
– Sim, uma pena, realmente – é o que digo, mas
por dentro estou dançando fervorosamente músicas
do É o Tchan.
Ela não vai, ela não vai! Tenho vontade de sair
gritando pela rua, correr até o guarda-roupa da
minha casa e escolher a roupa que usarei no evento
que agora eu definitivamente vou.

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Alana sai do consultório em direção ao vento


gelado de inverno após acabarmos a consulta,
levando consigo a folha que dará início a possíveis
mudanças no destino de nós três. E eu fecho a porta
atrás dela, com o coração disparado. Ainda não
acredito que fiz isso.
Passei uma semana inteirinha compilando tudo o
que aprendi sobre o tema, e através dos livros de
Psicologia que tenho em casa. Passei horas
convencendo a mim mesma de que essa era uma
ótima ideia. Passei cada segundo obcecada com
essa história (essa última parte me preocupa um
pouco). Passei noites mal dormidas, mas cheguei ao
resultado esperado com a minha mais nova técnica.
Acredito tanto nela como uma ferramenta eficaz na
construção de um relacionamento que eu poderia
aplicá-la em outros casais de pacientes também.
Mas infelizmente a única outra paciente que tenho
é uma menininha de oito anos que ainda não quer
saber de meninos e os considera nojentos.

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E, no momento, eu tendo a pensar o mesmo que


ela.
Minha mão é fria como o iceberg que separa Jack
de Rose em Titanic. Ou pode ser que seja por causa
do vento gelado.
Eu estaria mentindo se dissesse que não torço
para que eles sejam incompatíveis, para que no
final eu me permita me declarar ao Rafa. Mas eu
jamais faria alguma coisa que prejudicasse a
imparcialidade do teste.

A sexta-feira chegou e com ela minha ansiedade.


Passar a semana toda conjeturando a respeito da
festa não me fez nada bem. No final da tarde, ao
caminhar até a minha sala, esbarro no doutor Júlio,
que vem andando e balançando aquela barrigona
saltitante dele, sem perceber sua presença.
– Dispensei Lorraine mais cedo, tudo bem, filha?
Ela tinha consulta médica. – ele diz, mas estou

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distraída demais para entender. Minha mente


parece mais alerta do que nunca, e começo a
perceber todas as imperfeições ao redor do
consultório. O sofá parece estar um tantinho mais
para a esquerda do que deveria, e a pilha de revistas
na mesinha de centro da sala de espera está um
completo caos. Eu preciso arrumar tudo isso.
– Desculpe, o que disse? – digo, mas continuo
encarando as revistas velhas que os pacientes são
obrigados a ler num momento de tédio. Precisamos
de revistas novas.
– Que dispensei Lorraine para que ela fosse ao
médico.
– Certo. Deve ter alguma coisa a ver com o tanto
de café que ela toma – respondo, meio aérea.
– Mel, você está bem? – ele tenta encontrar meus
olhos. Finalmente os focalizo no médico a minha
frente. – Você tem estado tão abatida...
– Não é nada – coloco as mãos no bolso da calça
social. – Sabe como é. A correria do trabalho e
essas coisas...

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Ele me olha com uma expressão engraçada.


Ambos sabemos que minha vida profissional não é
nada corrida, tendo tanto tempo de folga entre uma
paciente e outra. Só apareci mesmo no consultório
hoje pois não consigo trabalhar de casa. Então, vim
para cá para trabalhar nas ideias de como atrair
mais clientes para o meu negócio.
– Desculpe, mas preciso ir – digo com o ar mais
jovial que consigo interpretar. – Tenho uma festa.
Nos vemos depois?
Vou até minha sala, pego minha bolsa e apago a
luz. Mas doutor Júlio ainda está ali, de pé e me
observando.
– Faz bem, minha filha. Vá se distrair um pouco.
Você é jovem, terá muito tempo para se preocupar
depois – ele me lança um sorriso piedoso e diz,
antes de voltar para sua sala. – Mas se precisar de
ajuda... estou do outro lado dessa porta.
Eu me concentro em sair do consultório, dizendo
a mim mesma que é desnecessário ficar aqui

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organizando revistas e arrastando o sofá pra lá e pra


cá. Eu não preciso disso. Eu não preciso!
Mas não consigo ir embora. É mais forte do que
eu.
Quanto maior a ansiedade, mais chances eu tenho
de me comportar compulsivamente. Dado o meu
estado emocional, o desejo de organizar está cada
vez maior dentro de mim.
Que droga! Eu já tinha melhorado.
A pior coisa é perceber que o TOC está
começando a me atingir novamente. É como se eu
fosse completamente inútil. E sozinha. Por que não
consigo desempenhar minhas atividades como
qualquer outra pessoa? Por quê? Por que não
consigo sair por aquela porta, e que se danem as
revistas? Por quê? Por quê? Por quê?
Só sei que enquanto tento descobrir a resposta,
meu corpo se move derrotado até a mesinha da sala
de espera, a fim de perder tempo com uma coisa
que sei que eu não preciso fazer.

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– Revistas idiotas – falo baixinho, culpando seres


inanimados.
Já faz vinte minutos e ainda não consegui sair
daqui. Uma revista em cima da outra, empilhada e
em perfeita simetria não é suficiente para me
parabenizar e comunicar à minha mente: “Muito
bem! Você fez um bom trabalho”.
Nunca estará bom o suficiente?
Por sorte, Júlio não saiu de sua sala para
presenciar meu comportamento incomum.
Transtorno Obsessivo Compulsivo é algo com o
qual eu venho lidando desde que tinha nove anos de

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idade. Muito nova para começar a me preocupar, eu


sei. Mas o que é que eu podia fazer?
Tudo começou com desvirar o chinelo para que
minha mãe não morresse, passando para não pisar
nas divisórias dos azulejos e prosseguiu
incansavelmente até medir a distância perfeita
entre o prato e os talheres. Então minha mãe (que
às vezes desconfio estar viva graças ao meu
trabalho impecável com os chinelos) percebeu que
havia algo estranho.
E havia mesmo. Para os outros, pelo menos. Eu
não gostava da cansativa organização excessiva,
mas para mim era necessário. Então eu organizava.
Caso contrário, não conseguia ficar em paz.
Eu não podia acreditar que aquilo estava
acontecendo. Por que justo comigo?
O pensamento “Será que preciso mesmo
organizar meu quarto de novo?” era rapidamente
substituído por “Mas é claro que precisa! Olhe em
volta! Não consegue ver? Está uma bagunça.
Arrume de novo!”. E lá ia eu tirar as bonecas da

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caixa já organizada e empilhá-las novamente, uma


por uma, a ruiva, a negra, a loira, a de cabelo
tingido de tinta guache verde, torcendo para que
daquela vez meu cérebro o considerasse um bom
trabalho.
Exaustos de me dizer em vão que o meu quarto
estava impecável, meus pais finalmente me levaram
a uma psicóloga. Fiquei arrasada quando ela me
disse que eu teria que tomar um remédio para os
sintomas do meu transtorno.
– Não precisa chorar, Melissa. É um remédio de
fraca dosagem. No momento você precisa tomá-lo,
e aprender a controlar o seu TOC – foi o que ela
disse.
– Eu posso controlar sozinha – eu dizia com
lágrimas escorrendo bochechas avantajadas abaixo.
– São só algumas manias.
– No seu caso não são apenas manias, querida.
TOC é uma doença séria. Esse remédio aumenta
seu nível de serotonina, uma substância de que
você precisa para lutar contra esse transtorno – e
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me entregou um lencinho de papel para secar as


lágrimas.
– Mas eu não preciso de remédio! – eu tentava
argumentar, sentada na cadeira fria do consultório
dela. – Posso me controlar, eu sei que posso! Acho
que não me esforcei o suficiente. Eu posso parar de
organizar a hora que eu quiser – eu dizia, ainda sem
entender que não era tão simples assim, e que esse
era o discurso-padrão de todo viciado. E eu estava
viciada.
Uma pequena viciada em organização.
Muita gente pensa que TOC é brincadeira, mas
essa é a parte mais difícil da minha vida. É uma
doença que faz o paciente ter comportamentos
compulsivos e repetitivos, muitas vezes
relacionados a organização e limpeza.
Sabe como é se sentir obrigada a fazer uma coisa
que você não quer e não precisa? Como é se sentir
escrava da própria mente? Uma mente impiedosa
que só parece querer o seu próprio mal? Por que eu
preciso lutar contra um vilão que está dentro de
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mim mesma? Por que preciso conviver com ele? Eu


não quero conviver com isso! E por que é tão difícil
de me livrar disso? Por que eu preciso,
exaustivamente, implorar todos os dias para que eu
mesma me deixe em paz?
Não é justo.
E apesar de sumir da minha vida de vez em
quando, o TOC sempre volta a aparecer.
Inspiro, expiro e pego o celular. Disco o número
dele. Já estou atrasada e preciso me aprontar para o
aniversário de hoje à noite. Não há tempo a perder.
– Leo? – digo, secando as lágrimas do rosto.
– O próprio. Que voz é essa? Você está bem?
Leo é a única pessoa que sabe sobre o meu
quadro, sem contar mamãe e papai. O que a maior
parte das pessoas não entende é que o TOC é coisa
séria. É difícil de ser tratado, e também não é
frescura.
Mas Leo entende. E quando tomei coragem para
contar a ele, logo me revelou que já tinha percebido
antes. “Não é todo mundo que confere se a porta
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está trancada oito vezes”, foi o que ele disse na


época.
– Eu não tô nada bem! – aperto o celular na
orelha.
– O que o Rafa fez dessa vez? – ele pergunta, sua
voz áspera.
– Não, ele não fez nada – por incrível que pareça
não estou chorando por causa do Rafa, pelo menos
dessa vez. – É o meu TOC. Eu não consigo sair
daqui.
– Onde você está? – a voz dele adquire um tom
mais compreensivo, misturando-se ao som de porta
se fechando ao fundo.
– No consultório.
– Já estou a caminho – ouço a chave virar na
fechadura dele e desligo.

Quinze minutos depois, Leo toca a campainha e


eu abro a porta com os olhos inchados de tanto

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chorar e agarro o pescoço dele.


– Ei, calma – ele diz, me abraçando de volta.
Inalo seu perfume e aconchego-me no peito dele,
aproveitando o tecido de sua camisa para secar as
minhas bochechas molhadas.
Desencosto a cabeça de seu peito. Seu rosto
familiar faz as coisas parecerem melhores,
aquecendo um pouco o meu coração.
– Por que está chorando tanto? Estou aqui, vou te
ajudar.
– Mas eu não deveria precisar de ajuda, deveria?
Eu devia conseguir sozinha.
– O que sua psicóloga tem dito sobre isso?
Eu me desenrosco dos braços dele.
– Er... minha psicóloga?
– Foi o que eu perguntei – ele cerra os olhos para
mim e encosta no batente da porta com os braços
cruzados.
– Eu não tenho ido – confesso.
Ele faz uma careta.
– Como assim, não tem ido?

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– Eu não tenho ido porque não encontrei uma


psicóloga de quem eu gostasse. Ponto!
Digamos que esteja “entre terapias” no momento.
Desde que minha antiga psicóloga se aposentou,
não encontrei outra profissional que pudesse
preencher o seu lugar. Não me encaixei com quatro
outras terapeutas com quem fiz uma consulta
experimental e resolvi que eu podia esperar.
O problema é que isso já faz quase dois anos.
– Você sabe que não deve ficar sem terapia – ele
balança o dedo para mim. – Há quanto tempo você
tem se sentido assim de novo?
– Há pouco tempo. Não é nada demais.
Desde que descobri sobre Alana tem piorado.
Mas não digo isso a ele. Não estou nem um pouco a
fim de ouvir um sermão sobre me distanciar de
Alana e Rafael outra vez.
– Melissa! – ele me segura pelos ombros. – Eu
vou te ajudar a sair daqui. Mas você tem que me
prometer que vai voltar para a terapia.

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Ele diz isso porque não sabe como é ter que ouvir
que você precisa tomar remédios, como é o meu
caso.
Bufo.
– Tá legal, tá legal. Acho que posso voltar a
procurar – digo, finalmente.
Ele me lança um olhar desconfiado, mas deixa
passar.
– Tá legal! O que você precisa arrumar? Sua
faxineira chegou – ele segura uma vassoura
imaginária na mão e começa a varrer.
Dou risada.
– Essas drogas de revistas.
– Então tá legal – ele se adianta e começa a ajeitá-
las para mim.
Desde que nos conhecemos, ele sempre se dispôs
a me ajudar. Essa não é a primeira vez que ele vem
correndo ao meu resgate, mas ele não faz ideia do
quanto isso é contraindicado. Não se deve
incentivar uma pessoa com TOC a permanecer em
seu padrão de repetição. Mas não digo nada.

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Preciso dele para situações de emergência, e ele se


negaria a me ajudar se soubesse o quanto isso pode
ser prejudicial também.
Ele continua empilhando as revistas, uma por
uma. Mas não posso deixá-lo fazer isso por mim.
Sou eu quem tem TOC. E não ele.
Pego o restante das revistas e termino de empilhá-
las.
– Essa parte é moleza – digo, sobrepondo uma
revista de decoração com uma de fofocas. – O
difícil é sair daqui sem querer organizá-las de novo.
Dá vontade de jogar tudo no lixo – abaixo a cabeça.
– Olhe para mim – ele levanta meu rosto com as
mãos. – Você sabe o esquema: primeiro deve se
acalmar e depois pensar se a organização é
realmente necessária. Você sabe que não é obrigada
a organizar as coisas quatrocentos milhões de
vezes, não é?
Eu começo a dar risada. Porque ele está certo. A
melhor coisa nessas situações é me acalmar e
raciocinar.

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– Tem razão – respiro fundo ao colocar a última


revista velha e amassada na pilha. – Tem razão. Eu
não preciso disso. Elas já estão perfeitamente
organizadas.
– Elas não têm que estar perfeitas. São revistas.
– Tem razão. Eu sei, eu sei – levanto as mãos para
o alto, em rendição.
O que a maioria das pessoas não entende é o que
leva uma pessoa com TOC à repetição. Dessa vez,
nem mesmo o Leo. Eu sei que eu não precisava
arrumar as revistas. Mas ao mesmo tempo eu
precisava, entende? E eu ainda preciso, pois a pilha
me parece meio assimétrica.
O fato é que nem sempre é algo racional. São os
chamados rituais. Repetições que eu preciso fazer
como uma válvula de escape para que a minha
mente fique em paz. Meu cérebro precisa organizar
as coisas ao meu redor, enquanto minha vida
estiver desorganizada.
Leo se levanta e me estende a mão. Permaneço
parada, apesar de precisar ir embora e deixar a

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pilha de revistas para trás. Por fim, seguro a mão


dele. Sou mais forte do que isso, droga!
Não sou?
Ando até a porta, tornando a olhar para trás a cada
dois passos. Meu trabalho não está bem feito, não
é? Eu poderia ter feito melhor!
Ao pisarmos no tapete da entrada, Leo fecha a
porta atrás de nós com firmeza.
– Será que não seria melhor se eu...
– Voltasse para arrumar as revistas de novo e
perdesse esse dia magnífico? – ele aponta para o
céu.
Há uma hora, o dia estava nublado e frio. Agora,
o céu se abriu, permitindo que o sol desse as caras e
iluminasse a vida por aqui. Meu ânimo começa a
mudar, e voltar lá para dentro não me parece uma
ideia tão boa assim.
Caminhamos até o carro do Leo. Venci a batalha
de hoje contra o TOC porque eu tinha companhia.
Mas... e quando eu estiver sozinha? Ficarei a noite
toda organizando revistas? Haja revistas!

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Leo me dá uma carona até meu prédio em seu


carrinho velho, e depois faz todo o caminho de
volta até o apartamento dele, a fim de se aprontar
para o aniversário de hoje à noite também.
Quando finalmente boto os pés na minha sala de
estar, estou cansada como se tivesse corrido numa
maratona. De 300 quilômetros. Tranco a porta e
encosto as costas na madeira fria, com os olhos
fechados.
– Por que eu preciso ser assim?
O excesso de ansiedade faz com que eu fique
emocionalmente cansada, como se tivesse
trabalhado num serviço pesado o dia todo. E,
querendo ou não, acho que viver dentro da minha
cabeça pode ser considerado um serviço pesado
sim. Eu penso demais.
Por sorte (por sorte nada, planejamento!), eu já
tinha um modelito em mente para essa ocasião.
Para o meu azar, estou vinte minutos atrasada em
relação ao horário em que eu deveria ter começado
a me aprontar.

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Tomo uma ducha rápida e lavo os cabelos. Pego o


secador no armarinho do banheiro e, uma
eternidade depois (não é nada fácil ter cabelos
naturalmente cacheados, mas fingir que os tenho
lisos), com meu cabelo sequinho, faço uma
maquiagem básica e visto meu vestido envelope
preto. Coloco uma sandália de salto alto da mesma
cor e levo uma clutch para guardar o celular e a
carteira.
Agarro a garrafa de vinho de R$60,00 que eu
tinha comprado há semanas, desde a primeira vez
que soube do aniversário dos pais do Rafa, e saio
do prédio em direção ao metrô.
A buzina de um carro parado bem em frente ao
portão do condomínio me faz dar um pulo de susto,
fazendo a garrafa bambear em minhas mãos antes
de eu me certificar de segurá-la bem forte e impedir
sua queda. O vidro do carro é abaixado, revelando
que o motorista é o Leo.
– Pediu um táxi, senhorita?

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Ele abre seu sorriso branquinho, o que forma


pequenas rugas ao lado de seus olhos e lhe dão um
tom charmoso. A camisa branca ficou perfeita em
seus ombros largos e sua pele morena, e o blazer
cinza o deixa parecido com um executivo rico. Mas
seu carro o entrega.
– Não pedi, não, moço – respondo, entrando na
brincadeira. – Isso quer dizer que a corrida é de
graça?
– Isso aí já é carona, Melissa – ele me corrige
quando entro no carro e sento-me ao seu lado.
– Você se aprontou rápido – cumprimento-o com
um beijo na bochecha.
– E você parece bem.
– Estou melhor – sorrio, em cumplicidade.
– Você até tomou banho.
– Por que veio até aqui? – digo, dando risada e
colocando o cinto de segurança. – É totalmente fora
de mão pra você.
– Eu sei, mas você teve um dia difícil, então
pensei em dar uma força.

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– Mas e se eu já tivesse saído de casa?


– Até parece, senhorita perfeição. Você não
consegue se aprontar em menos de cinco horas que
eu sei. Além disso, sei muito bem como você lida
com atrasos.
– Mal? – respondo, piscando os olhos com ar
inocente.
– Muito mal. E sabe como é, não queria ter que
tolerar uma Melissa mal-humorada hoje à noite –
ele revira os olhos, de brincadeira. – Você de bom
humor já não é lá essas coisas.
– Olha só como você é fofo. Sempre pensando em
si mesmo.
Ele me olha por alguns segundos, como se
quisesse me dizer alguma coisa. Mas então desvia o
foco, dá partida no carro e diz:
– Você acha que Pati precisa de carona?
Pati nos aguarda na portaria do Flor-de-Lis, cinco
minutos depois de termos avisado que estávamos
quase chegando. Ela usa uma calça pantacourt
rosa-choque, um cropped branco e sapatilhas,

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vindo em nossa direção. Ao longe, avisto Carlos de


plantão na portaria. Bem, sei que faz sentido,
porque, sabe como é, ele é o porteiro. Mas mesmo
assim. Será que ele pressente quando passarei por
aqui para escolher seu turno?
– Hello! – ela diz, sentando-se no banco de trás. –
Achei que seria divertido falar para Carlos que
você estava vindo pra cá, e ele demonstrou grande
interesse em vir falar com você.
– O quê? Como foi que ele demonstrou interesse?
– olho para o banco de trás, o cinto de segurança
prendendo-me pelo pescoço.
– Vindo em nossa direção – ela aponta para
Carlos, que dá passadas sorrateiras até o portão.
– Vamos embora – digo ao Leo, que parece achar
graça de tudo. Dou três tapas no encosto do banco
dele. – Tá esperando o quê? Vai, vai, vai!
Ele dá partida no carro, gargalhando alto. Saímos
da frente do prédio, deixando um Carlos estupefato
para fora do condomínio, sem saber muito bem o
que fazer em seguida.

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Nós nos movimentamos dentro do carro de Leo


com os vidros fechados e o ar condicionado
precário ligado. Pati e eu não podíamos nos dar ao
luxo de ter os cabelos desarrumados pelo vento (se
um dia meu filho for o “vento” na peça de teatro da
escola, vou dizer que ele tem um papel importante,
pois o vento é o grande vilão de muitas histórias de
cabelos rebeldes e seus penteados).
O dia se transforma lentamente em noite,
tornando o céu azul clarinho em uma tela
manchada com tons de coral e cor-de-rosa. O sol
pega fogo numa tonalidade bem alaranjada,
compondo uma vista de tirar o fôlego.
Sem piscar, tento apreciar esse pequeno momento
de paz, mas meus problemas me impedem. Não
consigo apreciar de forma inteira. Qual a vantagem
de observar algo tão bonito, se minha vida talvez
nunca consiga se equiparar a isso?
– Hein? – Leo me cutuca. – Tô falando com você,
ô maluca. Vamos fazer uma parada rápida numa
lojinha ali em cima. Ainda não comprei o presente.

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Mas isso era óbvio! Leo é totalmente


desorganizado e incapaz de fazer as coisas com
antecedência. Ele para o carro em frente a uma
placa onde se lê “proibido estacionar”, deixa o
pisca-alerta ligado e diz:
– Se um guarda aparecer, você explica que passei
mal e tive que parar.
– Eu não vou dizer isso.
– Eu digo – Pati diz, sem tirar os olhos do celular.
Ele levanta as sobrancelhas para mim e sai do
carro.
– Vou dizer que ele teve diarreia – falo sozinha.
Cinco minutos depois, ele volta segurando uma
garrafa de vinho bem mais cara do que a minha e
diz:
– Eu deixo você entregar a sua primeiro.

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Isso é espetacular. Tinha me esquecido de como a


casa dos pais do Rafa é enorme e sofisticada. Por
fora, pilastras brancas sustentam o teto da entrada e
uma escada de porcelanato nos leva à porta
entalhada de madeira. Por dentro, paredes azul-
marinho, um lustre gigantesco e um piso que faz
minhas sandálias dizerem “tlec tlec tlec” me
indicam que estou na alta sociedade.
Eles são bem ricos. Não tão ricos quanto Alana,
mas ainda assim, bem mais ricos do que eu.
E do que Pati também, que observa tudo a sua
volta como uma criança em uma excursão ao

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museu.
– Será que aqueles quadros impressionistas são
verdadeiros? – ela aponta para a parede do outro
lado da sala.
– Seja discreta – abaixo delicadamente o braço
estendido dela. – Mas eu não duvidaria nada se
fossem quadros de Salvador Dalí.
– Não pode ser um Dalí – ela me olha como se eu
fosse imbecil, repreendendo-me pela minha óbvia
falta de repertório artístico. – Ele era conhecido
pelo surrealismo. Este se parece mais com um
Monet.
– Podemos apenas concordar que eles são muito
ricos? – digo, constatando o óbvio, mas ela já está
absorta, compenetrada em uma escultura de bronze
sob uma bancada lateral.
A casa – ou devo dizer “palácio”? – está
impecavelmente organizada, os móveis lustrosos e
o piso, brilhante. O cheiro de produto de limpeza
espalha-se pelo ambiente, mas o deles é bem mais
perfumado do que o que eu uso lá em casa.

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Leo se aproxima de nós com Rafa a tiracolo,


dando tapinhas nas costas dele, cumprindo seu
objetivo de encontrá-lo em meio à multidão de
convidados da festa, para que o
cumprimentássemos.
Ainda não acredito na quantidade de pessoas que
tem aqui. Umas setenta, talvez oitenta. Imaginei
que se tratava de um jantar para os mais íntimos,
mas também não sei porque imaginei uma coisa
dessas, sendo que não sou assim tão chegada dos
pais do Rafa, de qualquer maneira. Então foi uma
interpretação estúpida dos fatos.
O que me deixa nervosa é que, justo hoje, o dia
em que eu poderia aproveitar a presença do Rafa
para mostrar o quanto sou encantadora e perfeita
para ele, sua atenção parece ser disputada entre
todos os convidados da festa.
– Que bom que vieram! – Rafa diz,
cumprimentando-nos com beijos no rosto com
aquele seu jeitão todo sério e fofo, de terno e
gravata. – Fiquem à vontade. Os canapés e o

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champanhe estão sendo servidos pela sala, e mais


tarde será servido o jantar.
– Onde está sua noiva? – diz Pati, desbocada.
– Infelizmente ela teve que comparecer a um
evento de trabalho – Leo responde por Rafa,
olhando feio para mim. ​
– Uma pena – digo, bebericando o champanhe. –
A gente devia saber mais sobre ela antes do
casamento.
– É mesmo? – Rafa se anima. – Pergunte o que
quiser. Posso te contar tudo.
– Er... eu não sei.
Ele não entendeu que foi só um modo de dizer?
Uma alfinetada por ele não se abrir com ninguém?
E eu lá quero saber mais sobre Alana, por acaso?
– Humm, sei lá, a cor preferida dela?
Chuto qualquer pergunta sem graça, para que o
tema “Alana” seja esquecido pela noite. A última
coisa que quero é falar sobre a minha paciente fora
do consultório.

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– Ah, aí você pegou pesado – ele diz, o cenho


franzido. – Cor preferida... foi uma pergunta muito
específica. Achei que perguntaria sobre o trabalho
dela, sobre como ela se parece ou algo assim.
Ele não sabe nem a cor preferida da própria
noiva? Foi uma pergunta muito básica. Prevejo
resultados negativos provenientes do teste um.
– Aposto que é rosa – digo, já sabendo a resposta.
– Pode ser que seja mesmo – ele diz, sorridente e
ingênuo.
Porém, mais rápido do que chegou, Rafa pede
licença e nos deixa para cumprimentar algumas
pessoas que acabaram de entrar, enquanto fico aqui
perdida no pensamento de que talvez eu
simplesmente não seja tão importante para ele
quanto ele é para mim.
– Adivinha quem vai entrar na igreja com você? –
diz Leo para mim e estende os braços.
– Não me diga que é você, por favor.
Ele afirma com a cabeça.

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– Acredita na sua sorte? – ele acha graça e me dá


um soquinho no braço.
– Sorte? De entrar na igreja com alguém que vai
dar em cima de todo mundo?
– Eu não faria isso, Mel. É uma igreja. Isso seria
pecado – ele afirma, solene.
– Não se faça de santo, Leo. Isso também é
pecado.
Mulher nenhuma passa por ele sem que ele note.
A não ser a mãe dele. E bem, eu.
– Vai ser legal – ele diz, atingindo-me com uma
cotovelada fraca no braço. – Pode até ser que
arranjemos alguém na festa.
– Eu não preciso arranjar alguém.
– Ah, precisa sim – ele abaixa a voz. – Se você
está correndo atrás do noivo, tem alguma coisa
errada aí, não acha?
– Não sei porque estamos tendo essa conversa.
Esse casamento pode muito bem nem acontecer, se
é o que você quer saber.

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– Puta merda! – Leo grita, com o olhar fixo atrás


de mim, e quase derruba a bebida em sua mão.
Algumas pessoas ao nosso redor param de
conversar e nos observam por um momento, antes
de perceberem que suas vidas continuam sendo
muito mais interessantes do que a nossa e voltam a
dar atenção a seus grupos.
– O que é? – digo baixinho, tentando controlar o
volume da nossa conversa.
Não posso passar vergonha nessa festa!
Simplesmente não posso. Não enquanto alguma tia
de Rafael não me confundir com a sua namorada.
– Aquela ali é a Bárbara? – Leo aponta para uma
garota ao longe, de uns vinte e tantos anos, muito
bonita, de cabelos castanhos, com uma saia muito
curta.
– Como assim, “aquela ali é a Bárbara”? Como é
que eu vou saber? – digo.
– Aquela ali! – ele tampa o rosto com a mão e
vira de costas para a garota. – É aquela prima do
Rafa, você a conhece.
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Eu a observo melhor.
–Ah! – começo a me recordar da garota do jantar
de aniversário do Rafa de dois anos atrás. – Ela é
muito simpática. O que é que tem ela?
– Simpática uma ova, ela é maluca! – ele arregala
os olhos. – Eu saí com ela mês passado e agora ela
não para de me ligar. Semana passada descobri que
ela mora no mesmo prédio que eu e agora vive
batendo na minha porta. Acredita?
– Nossa, que vexame. Como você fez para dar o
fora nela? – pergunta Pati, louca para saber dos
detalhes sórdidos.
Eu tenho dó dessa menina.
– Bem, sabe como é... na verdade, eu mandei ela
entrar.
Pati e eu reviramos os olhos. Eu tenho menos dó
dessa menina.
– Você é ridículo – eu digo.
– O que eu deveria fazer? A garota estava se
jogando pra cima de mim. É o que eu sempre digo:

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quando alguém se joga pra você desse jeito tão


óbvio, você agarra!
Ele sempre diz isso. É quase como um slogan
dele. É como uma desculpa para o quanto ele é um
mulherengo insensível, e um modo de jogar a culpa
nas garotas.
– Então é melhor você estender os braços, porque
ela está vindo para cá – diz Pati, e nós duas
começamos a rir e a nos distanciar, dando
tchauzinhos e fazendo bicos de dó.
– Não façam isso comigo. Não me deixem
sozinho. Melissa! – ele sussurra e tenta puxar a
manga da blusa de Pati, mas ela escapa fazendo o
moonwalk do Michael Jackson e rimos ainda mais.
Nós duas ficamos discutindo sobre como o
modelito ousado de Bárbara não lhe caiu bem – eu,
com nenhuma base profissional para opinar, e Pati
sendo a profissional aqui cursando Moda. E
ralhamos as atitudes relaxadas e insensíveis do Leo
até sermos interrompidas pelo som de uma faca

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entrando em contato com uma taça de vidro,


indicando que alguém pretende iniciar um brinde.
– Ahn, olá a todos! – diz no microfone o pai do
Rafa, o senhor Alberto.
Ele sempre teve um jeito muito particular de falar.
Quase tão lentamente quanto uma tartaruga. Com
todo o respeito, tenho certeza de que ele fará um
bocado de gente da festa cochilar de pé.
– Primeiramente, ahn... minha mulher e eu
gostaríamos de agradecer a presença de todos vocês
– ele pausa (obviamente). – É muito gratificante ver
que praticamente todos os convidados... ahn...
puderam comparecer a nossa... ahn, humilde
celebração.
Eu tenho algumas ressalvas a respeito desse início
de brinde (fora as pausas).
Pra começar, quem seria louco de perder um
banquete desses em uma mansão como essa? E
pegando esse gancho, de humilde essa celebração
não tem nada, senhor Alberto! Faça-me o favor. As
taças são de cristal, pelo amor de Deus!

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– É uma pena nossa nova nora, noiva do nosso


filho Rafael, não estar conosco no momento – ele
acrescenta em respeito ao filho.
Ah, ótimo. Agora é que ninguém aqui vai me
confundir com a sua namorada mesmo!
Rafa assente para o pai, agradecido. Leo me
observa do lugar onde está preso à Bárbara e Pati
sussurra um “Graças a Deus” alto demais no meu
ouvido.
– Mas deixe-me falar sobre a coisa mais
importante na vida... o amor.
Um “ooooooh” em uníssono é ouvido ao redor da
sala, e uma senhora ao meu lado coloca as duas
mãos no peito. Eu não tenho estado em comum
acordo com esse tal de amor nos últimos tempos,
mas aguento firme para ouvir o que ele tem a dizer.
Afinal de contas, ele está falando através de um
microfone, então o que mais eu poderia fazer?
– Você sabe quando se encontra a pessoa certa? –
ele faz uma pausa e os convidados param junto com
ele, esperando pela resposta.

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E, depois do que parece ser uma volta completa


ao redor do sol, ele prossegue:
– É quando você admira tanto uma pessoa... mas
tanto... que não pode fazer outra coisa senão ficar
ao lado dela para o resto dos seus dias. – Ele
assume uma expressão menos rígida. – Quando
você acorda pela manhã pensando na sorte que tem
e no quanto, ahn... no quanto sua vida é completa e
feliz com ela.
– Quando você tem um problema, mas também
tem o apoio dela para passar por tudo aquilo – ele
continua. – Quando você não consegue parar de
sorrir e se divertir na presença dela. Quando você
quer estar presente a todo momento, assim como
ela quer estar com você.
Outro “oooooh” roda pelo salão.
– Beatriz...
O senhor Alberto estende a mão para a esposa, e
ela se levanta com a ajuda do marido.
– A primeira coisa que você me disse quando nos
conhecemos foi “são 20h32”, na única noite em que

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eu não estava usando relógio. E hoje... – ele checa


o próprio relógio. – Exatamente às 20h32 dessa
sexta-feira, eu quero dizer que esses foram os
melhores 25 anos que eu poderia ter tido. E que não
me arrependo nem por um segundo de ter tirado
aquele relógio do meu pulso e escondido
rapidamente no bolso no minuto em que eu vi você
e não sabia o que dizer.
Uau! Essa foi, de longe, a coisa mais linda (e
lenta) que eu já ouvi em toda a minha vida. Muito
melhor que o brinde que meus pais fizeram no
aniversário de 20 anos deles, que foi algo como
“Amo você… você sabe”, ou algo curto e grosso do
gênero. Sei que eles não se amam menos por causa
disso. Mas, com certeza, perderam feio para os pais
de Rafa na performance.
Os aplausos dos convidados ecoam pela ampla
sala, enquanto a senhora Beatriz dá um selinho em
seu amor de longa data. Ela diz alguma coisa para o
senhor Alberto, que olha para a porta enquanto
Beatriz pega o microfone.

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– Querida, que surpresa maravilhosa... que bom


que conseguiu comparecer. – sua voz rouca é
intensificada pelo microfone, enquanto ela aponta
para a entrada da sala. – Essa que acaba de chegar é
nossa nora, Alana.
Em sincronia, as cabeças dos convidados giram
para a porta, e eu fico chocada com a visão. Alana
dá passadas lentas com o queixo empinado,
adorando a atenção e tentando ao máximo
prolongar o momento. Mas que droga, o evento do
trabalho acabou mais cedo ou o quê?! Eu finco as
unhas em Pati, que diz um “ai” baixinho, e olho
para o Leo, que se desvencilha de Bárbara e vem
em nossa direção.
– Preciso sair daqui! – digo a eles, desesperada.
– Mas o jantar ainda nem foi servido... –
resmunga Leo, mas finco as unhas nele também e
começamos a nos mover.
A sala é grande, porém não estamos assim tão
distantes de Alana, que pode me ver a qualquer
momento. Nós nos dirigimos à saída, Leo e Pati me

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tapando, e giro a maçaneta da imponente porta.


Mas, quando estamos prestes a sair, livres como
pássaros, uma voz surge atrás de nós e diz:
– Aonde vocês pensam que vão?

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Paramos no meio do passo. A voz da mulher –


que não consigo distinguir com perfeição por causa
do barulho – ainda ecoa em meus ouvidos. Ai, meu
Deus do céu! Quem disse isso? Não seja Alana, não
seja Alana, não seja Alana. Olho lentamente para
trás, com um olho fechado e o outro aberto. Para
minha surpresa, ninguém mais no salão parece estar
prestando a mínima atenção em nós a não ser
Bárbara, que tenta impedir a nossa saída.
– Aonde vocês pensam que vão? – ela torna a
dizer, com a mão na cintura e um sorriso falso
estampado no rosto.

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– Embora? – pergunto, confusa. A senhora


Beatriz continua com seu discurso, enquanto
ficamos parados aqui, com a chance de a qualquer
momento sermos expostos à verdadeira Alana –
que agora sobe rebolando no palco pelas escadinhas
laterais.
– Mas já? A festa acabou de começar! – ela tenta
se fazer de desinteressada, mas as batidinhas que
seu pé direito dá no chão revelam seu nervosismo.
– Sim. Já! – Leo sorri sem mostrar os dentes e
recua de mansinho. – Então, tchau.
– Tchau – diz Pati, as sobrancelhas erguidas num
arco, claramente com dó da garota, e segue Leo
porta afora.
Bárbara me fuzila com os olhos cerrados, por
baixo dos cílios postiços.
– Er... então, tchau – é o que digo antes de dar o
fora dali.
Ainda com os olhos arregalados, ficamos em
silêncio encarando a porta fechada pelo lado de
fora. Até cairmos na gargalhada.

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– Eu jurava que Alana me veria – digo, enquanto


caminhamos até o carro de Leo.
– Por que não conta a eles de uma vez? – ele para
de sorrir abruptamente, as mãos nos bolsos.
– Não posso. Poderia afetar a imparcialidade dos
testes. E eu preciso da resposta certa. Preciso seguir
com o plano.
Pati tagarela o caminho todo para casa a respeito
das obras de arte nas paredes e as esculturas pela
casa que, segundo ela, existiam em grande
quantidade até mesmo no banheiro. Ela só se cala
quando chegamos na primeira parada, a porta do
meu prédio.
– Obrigada pela carona, Leo – abro a porta do
carro e salto de lá.
– Não tem problema – ele diz, segurando o
volante. – Mas escute...
Abaixo-me e coloco a cabeça na janela.
– O que foi?
– Pense bem...
Do que ele está falando?

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– A respeito de contar a verdade a eles – ele


explica.
– Leo... de novo com isso?
– Só não quero te ver magoada.
– Confie em mim. Eu sei o que estou fazendo –
me afasto da janela do carro e sigo em direção aos
portões do prédio, deixando-o para trás.
No dia seguinte, acordo com um barulho
estridente.
– Alô? – é o que eu digo, desnorteada, ao atender
o telefone de casa que me acorda às nove da manhã
de um sábado. Mas então, escuto a voz dele.
– Como está minha madrinha de casamento
preferida?
Santo Deus! Será que Rafa não se cansa desse
apelido?
Estou aqui, torcendo para que esse casamento não
aconteça!
– Vou bem – minto, com voz de sono. – Ótima.
– Não te acordei, né? – diz o cara que acorda às
seis da matina para uma corrida revigorante.

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– Não, não. De fato, estou acordada há horas –


bocejo sem som para que ele não escute.
– Liguei para te avisar que os vestidos das
madrinhas já estão disponíveis para prova na
costureira da minha noiva.
Ainda não acredito que Alana escolheu os
vestidos das madrinhas. Tento afastar da mente a
imagem do meu corpo entrando na igreja com um
vestido horrendo e bufante.
– Não diga...
– Sim, senhora. Vou te passar o endereço. Tem
papel e caneta por aí?
Papel e caneta? Meu Deus, ele não conhece
mensagem de texto?
– Tenho, tenho sim – abro a gaveta da mesinha ao
lado da cama e agarro uma folha qualquer. – Pode
falar.
Ele me passa o endereço e eu anoto num
garrancho, sem a mínima vontade de saber os
detalhes.

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– É ela? – ouço uma voz perguntar ao fundo. Por


um momento acho que estou ficando louca.
– É sim, amor – Rafael responde e meu coração
começa a bater mais rápido.
– Deixa eu falar com ela. Alô? – a voz fica mais
forte e meus dedos tremem ao redor do telefone.
A voz de Alana soa estridente no meu ouvido e eu
jogo o telefone longe.
– Alooô? – ouço-a cantarolar através do aparelho
que repousa sobre a cama.
Droga! O que é que eu vou fazer? Com um
pensamento rápido, limpo a garganta e pego o
aparelho nas mãos.
– Olô? – digo, em minha nova voz engrossada.
– Olá! – ela diz, toda animada – É a Mel, né?
– Sim. É êeela – digo o mínimo que consigo,
tendo plena consciência de que minha voz fingida
deve soar ridícula em contraste com a voz de
princesa dela.
– Ah, ótimo! Aqui é a Alana. É um prazer
conhecer você! – ela prossegue, sem se importar

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com a minha resposta. – Minha costureira precisa


que as madrinhas provem os vestidos ainda essa
semana, por causa da data do casamento estar tão
próxima. O modelo é lindo, estou certa de que você
vai amar.
– Ahn... Certo – digo, com uma voz um pouco
mais normal. – Pode deixar.
– Humm... bem, foi ótimo falar com você – Alana
fica em silêncio. – Até logo, fofa.
Ela acabou de me chamar de fofa? Será que
Rafael disse que sou gorda, ou algo assim?
Ele retorna à ligação que lhe foi previamente
tomada e se despede de mim. E eu me afundo
debaixo dos lençóis, torcendo para que Alana não
tenha reconhecido a minha voz. Massageio o
pescoço, que dói de tanta tensão.
É isso o que eu chamo de levar o trabalho para
casa. Não consigo me livrar de Alana nem quando
estou na cama? Depois disso, não consigo mais
dormir.

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Não ajuda muito o fato de eu não ter sequer um


dia de descanso desse assunto. Justo no único
minuto em que consigo esquecer, recebo uma
ligação da própria noiva.
Minhas mãos ainda tremem. Eu diria que essa foi
uma ótima, maravilhosa, encantadora maneira de
começar o dia.
Assim como as consultas de segunda-feira com
Alana não são nada encantadoras também.

Nove e dezesseis. Espero minha paciente chegar


enquanto me sirvo de mais um copinho do café de
Lorraine e desconfio que ela utilize essa tática para
nos deixar dependentes dela e nunca perder o
emprego. Porque se for isso, está funcionando.
Nove e vinte e aproveito a falta do que fazer para
arrastar minha mesa de madeira uns cinco
centímetros para a direita, deixando as distâncias
até as paredes simétricas dos dois lados.

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Arrependo-me amargamente de ter comprado uma


mesa de madeira maciça.
Nove e meia e o cabelo de Alana está mais loiro
do que nunca.
– Ficou incrível, não ficou? – pergunta ela,
colhendo elogios.
– Er... fabuloso.
E é assim que uma segunda-feira parece ter
grudado na outra, como se eu não tivesse tido folga.
Não folga do trabalho, porque... sabe como é,
digamos que eu tenha folga cinco vezes por
semana, com a escassez de pacientes a serem
atendidos. Sinceramente estou quase eu mesma
fazendo panfletagem na porta do metrô sobre o
meu negócio, por falta de verba para contratar
alguém que o faça.
Mas o que quero dizer é que não tenho folga de
Alana. Ela chegou ao consultório toda ansiosa, mas
devo admitir que não mais ansiosa do que eu, que
esperava pelo resultado do teste número um.
– Fiz o negócio que você me passou.

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Inclino-me para frente. Junto as mãos tão forte


que as juntas começam a doer. As batidas do meu
coração são quase tão altas quanto meus
pensamentos.
– O teste?
– Sim. E percebi uma coisa surpreendente: meu
noivo e eu não nos conhecíamos tão bem assim.
Não brinca!
– E eu não fazia ideia disso até você aplicar seu
superteste conosco – ela diz, com uma expressão
preocupada no rosto.
Mas eu sabia! Eu estava certa esse tempo todo.
Eles não se conhecem bem o suficiente para se
casarem. Ai, meu Deus! Será que eles agora
enxergam isso?
– Só tenho a lhe agradecer – diz ela, abrindo um
sorriso enorme.
É claro que ela tem que me agradecer! É uma
jornada de autoconhecimento pela qual ela está
passando, e graças a mim ela agora está sendo
madura para reconhecer que estava sendo

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impulsiva novamente. Ela ia cometer o maior erro


da vida dela.
– Se não fosse por você, a coisa mais incrível não
teria acontecido – Alana diz, colocando as mãos no
coração.
Espere aí. O quê?
– Passamos a noite inteirinha conversando sobre
nossos gostos, nossa infância, nossas famílias, e só
olhamos para o relógio quando já eram cinco da
manhã.
Só pode ser brincadeira.
– Foi mesmo, é?
– Foi! Meu noivo disse algo sobre não saber qual
era a minha cor favorita, ou algo assim, então ficou
superanimado com a conversa também – ela diz,
batendo palminhas. – E foi incrível! Eu o conheço
muito mais que antes. Eu o entendo totalmente!
Abro a boca para falar, mas dela não sai nada.
– Então quer dizer que você sabe qual a cor
favorita do seu noivo também? – digo quando
retomo o ar.

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Sei que essa é uma pergunta um pouco idiota,


mas vou começar com o básico.
– É azul – ela empina o queixo para cima e sorri
como uma criança.
– E, digamos, o nome do animal de estimação
quando criança? Digo, se é que ele tinha um... – me
apresso em corrigir.
– Sim, o nome era Pelúcia. E eu passei uns bons
dez minutos tirando sarro da cara dele por ter dado
um nome desses a um peixe.
– E qual o maior sonho do Rafael, humm... do seu
noivo?
– Ele está atrás de um cargo de gerência no banco
onde trabalha.
Ela acertou tudo.
Droga, Alana, sua enxerida! Tinha que sair por aí
perguntando coisas e descobrindo informações
sobre seu noivo?
Afasto o pensamento de que a culpa é na verdade
toda minha se ela se sente muito mais conectada a
ele agora.

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(Também afasto figurativamente a Melissa-


pessoal para fora da sala, enquanto ela esperneia e
insiste em voltar. Mas tento ignorá-la, pois ela não
faz parte desta sessão).
– Preciso te agradecer – Alana segura em minhas
mãos, o toque frio da mão dela dando-me
tremeliques. – Falando sério, eu ainda estava na
dúvida sobre esse casamento às pressas. Mas
agora? Eu tive completa certeza de que ele é a
pessoa certa para mim. E isso nunca teria
acontecido se não fosse por você.
Fico em silêncio, atônita, e afasto as mãos dela.
Eu causei mesmo essa reação extraordinária no
relacionamento dos dois?
Meu senhor, como eu sou estúpida.
– Não tem de quê – cerro os dentes disfarçados de
sorriso, os punhos fechados debaixo da mesa.
Ok, então eles passaram no teste um? Tudo bem.
Ainda é cedo para definir, certo? Ainda tem muito
chão pela frente. Pena que esse chão parece ser

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feito de pedregulhos bem pontudos para os meus


pés descalços.
– Além do mais... – Alana diz, em tom de
confidência. – Já que fizemos um sexo maravilhoso
depois disso, posso afirmar que estou amando
realizar esses testes. Então, qual é o próximo?

Depois de aplicar o segundo teste a minha


paciente, o que provavelmente será o catalisador
para mais uma sessão de sexo com seu noivo –
vulgo, meu melhor amigo –, vou até a cozinha do
consultório para me servir mais uma vez de café.
E pego Júlio com a boca na botija, enchendo dois
copos de tamanho grande com a bebida,
provavelmente para levar para a própria sala.
– Por que não leva logo a garrafa? – pergunto e
balanço a cabeça, dando risada.
Ele se vira, surpreso.

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– Porque assim meu roubo de café fica mais sutil,


filha.
Ponho-me ao seu lado e alcanço a pilha de
copinhos descartáveis.
– E então? Como anda a busca pela mulher
perfeita?
– Nulas. Segui seu conselho e troquei a foto do
perfil, mas percebi uma coisa crucial.
– E o que é?
– Não é assim que imagino encontrar o amor.
Ele toma um grande gole do café e enche
novamente o copo até a boca.
– Sou da velha guarda. Prefiro ser apresentado a
alguém por alguém, e não por um programa tolo de
computador.
– Continue tentando, Júlio – encho um copo
grande também, agora que nosso vício involuntário
por café está às claras. – Tenho certeza de que as
coisas vão se ajeitar.
Munida de cafeína, volto para minha sala a fim de
focar em uma coisa pouco usual para mim. Tendo
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notado minha dificuldade com esses trecos, Leo me


deu algumas dicas. Mas ainda não sei ao certo
como isso pode funcionar.
Abro o notebook e acesso meu e-mail. Zero
mensagens, como sempre. Minha caixa de entrada é
menos badalada que o perfil de namoro online do
Júlio.
Incorporo ao e-mail o layout que Leo me enviou
mais cedo, com uma foto minha numa pose
profissional e com os dizeres “Terapeuta Melissa
Belinque. Agende sua sessão clicando aqui”.
E-mail marketing, ele disse. “É essencial para
qualquer tipo de negócio”. E então lá vou eu,
adicionar um por um os endereços de e-mail de
todas as mulheres que estavam na minha palestra e
que deixaram seus dados na ficha de inscrição,
convidando-as para conhecerem o meu espaço de
trabalho.
Pelo bem do meu consultório e da minha
alimentação, aperto “enviar”. Pensa que é barato

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manter esse corpinho cheio de gordurinhas bem


alimentado?
Meu e-mail marketing atravessa a rede em
direção às caixas de entrada daquelas pessoas que
me deram uma hora de sua atenção, torcendo para
que agora elas me deem dinheiro.
Com os dedos cruzados, e os olhos fechados,
aguardo alguma resposta, mas nada acontece.
Até que um bipe ressoa do notebook, e “você tem
uma nova mensagem” salta na tela. Eu consegui?
Com o coração saltitando, adio dar pulinhos de
alegria e clico em cima do alerta. E é então que me
deparo com uma coisa muito mais chocante do que
um cliente novo.
O site “alanaerafael.com.br” brota na tela, com
detalhes em verde-claro e ilustrações de lírios para
todos os lados, não só indicando-me que ainda não
tenho um paciente novo, mas que terei que gastar o
dinheiro que não tenho em um presente de
casamento para duas pessoas ricas, que claramente
não precisam de mais coisas na vida.
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– O que há de errado comigo? – pergunto, quando


Leo abre a porta de seu apartamento.
– Você aparece na porta dos outros sem avisar?
– Desculpe, o porteiro me liberou – digo e dou
passadas largas para dentro. – Deve achar que sou
uma de suas muitas garotas.
Encosto a cabeça no ombro do Leo e derrubo todo
o meu peso sobre o dele.
– Quantas garotas você acha que tenho? – ele
pergunta, reconfortando-me com um abraço.
– Não sei. Perdi a conta na faculdade – digo,
minha voz soando abafada em seu peito.

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A chuva cai lá fora, tornando o apartamento dele


muito mais aconchegante. Uns pingos me atingiram
quando eu entrava em seu prédio, e por pouco a
chuva não me acertou em cheio. O cheiro de
molhado adentra o apartamento bagunçado dele
através da janela aberta, enquanto do lado de fora
as gotas pousam nas folhas da grande árvore que
nos alcança aqui no primeiro andar.
– O que há com você? Esse mau humor é devido
à fome? – ele diz, conhecendo muito bem a
natureza do meu ser.
– Se eu disser que sim, vai me servir janta? –
desencosto do peito dele, muito cheiroso, devo
acrescentar. A propósito, aposto que é assim que
ele conquista “as muitas garotas”.
– Se eu ouvir um bom motivo, talvez eu sirva.
– Não estou a fim de cozinhar.
– E quando você está a fim de cozinhar? – ele me
olha de canto de olho.
– Touché...
Ele me puxa.

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– Venha!
Leo me conduz pela cintura até o sofá, suas mãos
quentes fazendo cócegas em minhas costelas e me
fazendo gargalhar.
– Para com isso! – digo, esquivando-me, e me
jogo no sofá.
Seus olhos fitam-me por alguns segundos antes de
ele se afastar.
– A senhorita fica sentadinha aí.
Isso não será problema. Tenho no corpo a força
de uma minhoca, sem vontade de fazer coisa
alguma. E definitivamente sem vontade de ir para
casa e ficar sozinha hoje à noite. E para o resto da
vida.
Talvez eu devesse adotar um gato. Sabe como é.
Pra me fazer companhia.
– Vai me contar o que aconteceu? – ele grita da
cozinha.
Eu me levanto do sofá com preguiça e vou até lá.
Encosto no batente da porta e o observo tirar várias
marmitas da geladeira. Leo não mora mais com a

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mãe, mas ela manda comida para ele toda semana.


Ao que parece, o prato de hoje é lasanha. Humm,
perfeito!
– Eles se dão muito bem – jogo as mãos para
cima, derrotada.
– Quem?
– Como, “quem”?! Romeu e Julieta.
– O quê? – ele para de remexer nas marmitas por
um momento para dar risada.
– Alana e Rafael! Pelo amor de Deus!
Ele revira os olhos.
– É claro que eles se dão bem. Eles vão se casar.
É bom que se deem bem mesmo.
– Não, é péssimo!
– Pra você, né? – ele diz, seco. – Ah, para.
Esquece esse cara.
– Eu não consigo, tá legal? Você não entende.
Ele coloca um prato no micro-ondas, aperta o
botão de “1 minuto” e cruza os braços.
– Eu entendo sim.

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O cheiro de lasanha começa a se alastrar,


confundindo meus sentimentos e me deixando até
mais feliz.
– Foi tudo muito rápido, muito impulsivo – digo.
– O Rafa não é assim, você o conhece! Mais cedo
ou mais tarde, essa história vai estourar e serei eu
quem terá que recolher os cacos do coração dele.
– Você não acha que está preocupada pelos
motivos errados? – ele diz com cuidado,
provavelmente com medo do meu olhar assassino.
E ele está completamente certo de ter medo.
– Elabore.
– Não acha que está depositando toda a sua
energia nesse plano terapêutico só para não ter que
enfrentar o fato que de que já não tem mais jeito?
Ai! Essa doeu.
– Mas é claro que não – digo, na defensiva. ​– Mas
que ideia louca a sua.
– Até agora não entendi por que você gosta dele...
– Por que diz isso?

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– Ah, fala sério, vai! Ele é tão sistemático que às


vezes chega a ser um pé no saco.
– Ei! Eu também sou sistemática.
– Eu não disse que você não era um pé no saco.
Leo termina de esquentar o jantar enquanto
reforça todo aquele papo de “você tem que
esquecê-lo”, “você tem que seguir com a sua vida”
e mais uma porção de coisas chatas. Ele não
entende que aquelas palavras não significam muita
coisa quando tenho certeza de que o Rafa é o
homem certo para mim. E não para ela.
Alana não está preparada para um relacionamento
sério, e Rafael não está preparado para um
relacionamento que não seja comigo.
Tá legal, eu posso ter inventado essa última parte.
Mas é meu dever ajudá-los a não cometer um
grande erro.
– Seja cavalheiro e traga meus chocolates, sim? –
digo, com os cotovelos apoiados na mesa, após
acabarmos com a tupperware inteira de lasanha. Eu
sempre me aproveito do chocolate belga caro do

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Leo quando venho aqui. Não posso me dar ao luxo


de comprar chocolates caros desse jeito lá pra casa.
– Já falei que você está ficando muito folgada?
Leo apoia os cotovelos na mesa também, e sua
camiseta se levanta um pouco na região dos braços,
deixando seus bíceps à mostra.
Ele já tinha todos esses músculos antes?
– Desculpe. Mas amigo é pra essas coisas.
– Ser seu amigo está ficando muito caro – ele se
levanta da cadeira, revelando o botão da calça jeans
aberto e o zíper abaixado.
– Leo! – grito, apontando para a calça dele. – Que
pouca vergonha!
– Eu comi demais, tive que abrir o botão. Qual é,
vai dizer que você não faz isso?
Ele entra na cozinha.
– Mas é claro que não! Isso seria horrível! – digo,
mas abotoo minha calça depressa, antes que ele
volte.
O apartamento de Leo, um solteiro de 25 anos, é
exatamente como se imagina: bagunçado, com

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roupas espalhadas pela casa e objetos aleatórios


jogados ao redor, como um mouse de computador
com o fio cortado ao meio na mesinha de centro.
Mas, de algum modo, meu TOC não se manifesta
muito por aqui. É claro que tenho vontade de
colocar aquela meia branca jogada no meio da sala
na máquina de lavar, mas acho que isso se deve
mais à higiene do que ao TOC.
Estranhamente, quando estou aqui consigo
relaxar. Talvez porque ele seja um relaxado de
carteirinha, causando um “efeito-espelho” em quem
entra.
Para dividir as despesas, ele mora com mais dois
amigos, que podem chegar a qualquer momento.
Por isso aproveito para me jogar no sofá enquanto
posso. Sempre que venho aqui, tenho vontade de
passar a semana. E não é só pela comida.
É também pela televisão de plasma de 43
polegadas (veja bem, a minha só tem 28).
O interfone toca e eu instintivamente tiro os pés
do sofá. De repente me sinto como uma intrusa.

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Provavelmente se trata de um de seus colegas de


quarto. Mas eles não tocariam o interfone, não é?
Então pode ser ainda pior. Pode ser alguma
menina fútil que ele conhece, esperando ser
convidada para entrar. Já estou agarrando minha
bolsa para ir embora de fininho quando ele volta
para a sala com meus chocolates e diz:
– É a Pati. Eu a mandei subir.
Bem, pelo menos Pati não é fútil.
– Pati? – digo, e ele nota a bolsa no meu ombro.
– Onde é que você pensa que vai?
– Humm... – fico sem jeito. – Achei que você
estivesse esperando companhia, sabe como é...
então ia sair do seu caminho.
– Claro que não. Por que você sempre pensa essas
coisas de mim? – ele faz cara de ofendido e eu me
sinto uma boba. Talvez ele seja mais fofo do que
parece. – Se eu estivesse esperando por alguém, já
teria mandado você embora faz tempo.
Retiro o que eu disse.

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– Eu tô brincando, tô brincando – ele diz,


puxando-me de volta pela cintura quando começo a
ir em direção à porta, com cara de nojo. – Se
alguém tivesse aparecido por aqui, eu a teria
mandado embora, porque hoje você é a minha
companhia.
Não sei se ele entendeu o quão ambígua a frase
dele ficou com a palavra “companhia”, mas deixa
pra lá. Coloco a bolsa de volta na cadeira, ponho os
pés pra cima no sofá e pego um chocolate da
caixinha.
– Inclusive eu também não estava esperando por
Pati – ele parece confuso.
– Er... desculpe. Eu disse a ela que estaria aqui. E
que eu estava chateada.
– Se ela quiser jantar, vai ter que preparar para ela
mesma – ele diz, sentando-se ao meu lado no sofá
cinza de chenille de dois lugares.
– Que coisa horrível! – dou uma gargalhada alta e
jogo uma almofada azul na cabeça dele. – Veja só
como você trata suas visitas!

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– E como é que eu trato as minhas visitas,


mocinha? Dando chocolate a elas e as
empanturrando de lasanha?
– Touché! – sorrio para ele, a boca cheia de
chocolate meio amargo.
Ele chega bem perto do meu rosto, cerra os olhos
e pega um chocolate da caixinha, que eu
monopolizei completamente. A campainha toca e
ele grita um “pode entrar”. Eu reviro os olhos para
ele.
– Veja só como você trata suas visitas! – repito, e
ele começa a fazer cócegas em mim.
Dou tanta risada que não percebo Pati parada na
porta – ensopada por causa da chuva, com cara de
cansada –, e caio no chão de tanto rir.
– Entre, Pati. Fique à vontade – diz Leo, com uma
reverência.
– É isso que é ficar à vontade nesta casa? – ela se
refere ao meu corpo estirado no chão. – Não,
obrigada.

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Daqui, consigo ver o lado bom do fundo do poço.


Vai ver que morrer de rir com os meus amigos
idiotas não é a pior coisa do mundo. Além do mais,
do chão eu não passo.

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Camille é adorável. É minha paciente preferida


(entre todas as duas que tenho). Tem bochechas
rosadas e enormes, cabelos curtos e lisos na altura
dos ombros e uma franjinha que vai até as
sobrancelhas. A mãe dela, Márcia – cuja franja
idêntica à da filha evidencia o quanto as duas são
parecidas – também é uma pessoa agradável. Traz
Camille para as consultas, alternando entre
aguardar na sala de espera ou entrar junto de
Camille para a terapia.
A menina tem tido resultados muito bons nos
poucos meses que tem passado comigo, sem contar
as consultas que tínhamos no colégio. Ela está
acima do peso e tem enfrentado uma onda de
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bullying com algumas crianças na escola.


Trabalhamos para torná-la uma pessoa mais segura,
elevando sua autoestima.
Ou seja, uma de minhas pacientes sofre bullying
enquanto a outra tende a estar do outro lado dessa
equação.
– Denise continua me chamando de gorda.
– Aquela Denise é uma idiota – diz Márcia,
vermelha de raiva. Agarrando sua bolsa bem firme
à frente do peito, com os braços cruzados, fica claro
o quanto ela se desgasta com a situação pela qual a
filha está passando. Mas logo que vê minhas
sobrancelhas levantadas, corrige rapidamente a
ofensa à garota, mas não de maneira menos ríspida.
– Quero dizer, ela é uma criança imatura, eu tenho
pena dela.
Temos conversado sobre como a reação dos pais
pode influenciar o modo como os filhos lidam com
as situações de crise, e para que Camille seja uma
criança empática e pacífica, devemos fazê-la
enxergar as pessoas com olhos mais tolerantes.

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Mesmo que isso se mostre muito difícil para uma


criança de oito anos que só quer enfiar terra na
calcinha de Denise, como ela própria já me
informou há algumas consultas.
– Mas ela é mesmo uma idiota, tia Mel – Camille
choraminga, pegando uma bala vermelha do pote
de vidro que fica em cima da minha mesa. – Ela é
uma tremenda babaca.
Eu me surpreendo com o vocabulário feroz da
criancinha bochechuda a minha frente, mas
compreendo sua raiva. É um pesadelo sentir-se
impotente diante de uma situação como essa.
– Que tal fazermos o exercício que lhe ensinei
para se acalmar?
Obediente, junto comigo ela começa a inspirar
pelo nariz e soltar pela boca. É importante que a
raiva não a impeça de agir com inteligência.
Proponho à Camille um exercício de desabafo,
que consiste em desenhar em uma folha em branco
todos os sentimentos ruins que estão dentro dela.

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Ela põe muito empenho na atividade, colocando até


a língua para fora.
– Agora, fofinha, nós vamos destruir esse papel.
– Ah não, não! – ela protesta, mastigando a bala e
apontando para o papel. – Eu levei muito tempo
desenhando tudo isso.
Ela levanta a folha e me mostra um desenho de
uma menininha com o coração partido em dois ao
lado de uma segunda garota com o rosto todo
riscado e um “x” no lugar do coração.
– Escute, Ca... esse papel representa o seu
coração. Você gasta muito tempo pensando coisas
ruins a respeito das crianças da escola. E eu queria
muito que você percebesse que o certo seria lidar
com esses sentimentos ruins, e deixar somente
coisas boas aí dentro de você. Você não quer deixar
coisas ruins dentro do seu coraçãozinho, quer?
Ela pisca.
– Vamos fazer esse exercício para diminuir a
importância dos comentários negativos de outras
pessoas na sua vida – digo a ela, mas explicando

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também à mãe, que procura manter-se calada e dar


espaço à filha.
– Mas como? – Camille me pergunta, os olhinhos
brilhantes.
– Picotando! – anuncio, levando até ela uma
tesourinha cor-de-rosa sem ponta. Ela fica
encantada.
– É assim que se faz, olha só – demonstro a ela,
cortando eu mesma um pedaço do papel. – Agora é
sua vez.
Ela começa a cortar com a tesoura o que ela deu o
nome de papel ruim para o coração.
– Você pode tentar sem a tesoura também,
picotando-o com as mãos.
Camille coloca muito empenho na atividade. Essa
é uma técnica que ajuda a criança a se acalmar,
além de mostrar a ela a importância de certas
pausas para lidar com o sentimento de raiva.
Pessoas com temperamento nervoso tendem a agir
no calor do momento, então fazemos atividades que
procurem reverter esse comportamento.

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– Isso foi divertido! – ela pula na cadeira.


– Sente-se melhor? – pergunto a ela.
– Acho que sim – ela coloca o dedinho no queixo.
– Quer dizer que posso fazer isso com Denise?
– Não! – dizemos eu e a mãe dela em uníssono.
– Não picotar Denise – diz ela, revirando os
olhinhos. – Quis dizer com o que sinto quando ela
me chama de gorda.
– Isso! – respondo, aliviada de meu exercício ter
dado certo, e de não tê-la transformado em uma
assassina-mirim. – Assim você pode reciclar o que
tem aí dentro de você, deixando apenas coisas boas.
– Maneiro, tia Mel – ela diz, e pega mais uma
bala do potinho.
Márcia já entrou em contato com os responsáveis
de todos os coleguinhas que andaram zombando da
filha e eles prometeram ensinar bons modos a seus
filhos. Eu mesma tenho vontade de dar uma lição
de moral nessas crianças. Mas não posso deixar o
destino de minha paciente nas mãos dos outros, por
isso trabalho com ela para que consiga resolver os

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seus conflitos emocionais internos, e para que ame


seu corpo do jeito que ele é, enquanto sua mãe
resolve os conflitos com as outras crianças que,
devo admitir, são bem idiotas.
Depois de mais conversa e muitas balas
consumidas, Camille sai feliz da vida de mãos
dadas com sua mãe, uma mulher baixa e gorda, na
faixa dos 40 anos de idade, com os cabelos também
curtos, deixando à mostra uma cintura avantajada.
Doutor Júlio me encontra no corredor, com um ar
animado, que deve estar muito em contraste com o
meu, e me estende um copo descartável.
– Café?
– Sim, obrigada – pego o copinho pequeno e
tomo um grande gole.
– Parece estar precisando, hein? – ele diz, com
aquela cara de Papai Noel.
– Está tão óbvio assim? – forço um sorriso.
Ele coloca as mãos para trás e abre um sorriso
semelhante ao meu.
– Só para quem olha pra você.

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– Não é nada demais.


– Tem ido à terapia? – ele pergunta, sabendo do
meu histórico de anos e anos ao lado de uma
psicóloga, mas não exatamente do porquê.
– Ah, tenho sim – minto descaradamente. A
última coisa de que preciso é de Júlio pegando no
meu pé. Já me basta o Leo. – Desculpe, Júlio, mas
preciso ir andando. Tenho um compromisso.
– Um compromisso bom? – ele me pergunta,
esperançoso.
– Ah, sim, com certeza. Super – minto
novamente.
Entro na minha sala, agarro minha bolsa e mais
uma vez deixo o bom velhinho imaginando o que
há de errado comigo, enquanto Lorraine,
praticamente uma estátua de pedra mexendo em seu
celular com um copo de café ao lado, não ergue os
olhos nem nota nossa presença.
Levanto a cabeça para o céu a fim de coletar o
máximo de sol que consigo desse tempo
seminublado, e caminho até a estação de metrô

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mais próxima, pouco preparada para o que vem a


seguir. Experimentar vestidos sempre foi meu
passatempo preferido, mas não dessa vez.
O ateliê da costureira da noiva do Rafa localiza-se
do outro lado da cidade, na Zona Norte de São
Paulo. E é por isso que, quando chego lá, toda
esbaforida e suada depois de um metrô e dois
ônibus no horário de pico, já são quase cinco da
tarde, e temo que ela feche as portas antes que eu
possa entrar. Mas a secretária, com ar bastante
animado, libera minha entrada prontamente, depois
de eu ter que explicar, com dor no coração, que sou
uma das madrinhas do Rafael.
– Cinco minutinhos e ela já vai te atender – ela
diz com um sorriso enorme, em contraste com a
cara de tédio da minha própria secretária.
Exatos cinco minutos depois uma mulher na faixa
dos sessenta anos, negra, com um batom vermelho
nos lábios e um vestido que ajusta-se perfeitamente
a sua silhueta encorpada aparece no corredor e me
chama pelo nome. Levanto-me e a sigo em direção

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ao que parece ser o paraíso: uma sala todinha em


tons pastéis rosa-claro e amarelo, o pé-direito alto,
com uma poltrona delicada com ar colonial no
canto, uma mesa dourada cheia de muffins de
chocolate e um bule de chá, e cortinas brancas na
janela que vão do teto ao chão.
– Muito prazer, meu bem, sou Iolanda – ela aperta
minha mão com firmeza, suas unhas de um azul
bem vivo. O cabelo afro adorna seu rosto, e o
vestido tubinho azul marinho dá a ela a elegância
de uma mulher de negócios. – É a melhor amiga do
noivo, correto?
– O prazer é meu. E sim, sou a própria...
– Então aqui está o seu vestido – com um gesto
delicado, ela aponta para uma capa preta de vestido
pendurada em um gancho no alto da parede rosa de
bolinhas brancas de um dos provadores. Abro o
zíper.
E é oficial: Alana me odeia. Não consigo
acreditar nos meus olhos. O vestido foi feito no
estilo sereia, e apenas uma mulher sem pneuzinhos

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ou sem paladar poderia vesti-lo. E essa, com


certeza, não sou eu.
– Eu não posso usar isso – me pego dizendo à
Iolanda, que está anotando alguma coisa numa
prancheta delicada na cor azul-claro. – Eu não
tenho corpo pra isso!
– Não seja boba, meu bem – ela para de escrever.
– Você pode usar o que quiser.
– Mas eu tenho barriga – digo, quase histérica.
– Que bom! Afinal para onde é que a comida iria?
– ela dá risada, com o mesmo senso de humor de
Júlio.
– Você não está entendendo. Só aquelas que não
colocam comida no corpo podem usar um vestido
como esse.
– Meu bem, essa é a primeira prova, certo? Se
não ficar bom, eu redimensiono para o seu
tamanho.
Redimensionar? Para o meu tamanho?
Sentindo-me uma baleia orca, experimento o
vestido verde-claro. Devo admitir que ele é um

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modelo maravilhoso: todo em seda, ombro a


ombro, e mais escuro e esvoaçante na parte
inferior. Não tem pedrarias, nem rendas. É básico,
porém muito elegante.
Fecho o zíper na parte lateral. Mas não sei se
culpo os chocolates ou a noiva pela forma como ele
fica no meu corpo.
Para meu completo horror, fico ridícula nele. Ele
está apertado demais na cintura, deixando evidente
minha gordura corporal. Eu quero chorar! Tenho
certeza de que se Denise pudesse me ver agora,
estaria me chamando de gorda também.
– Ficou bom, meu bem?
Abro a cortina bruscamente, revelando a natureza
do meu desespero.
– Oh, minha nossa – são as palavras de Iolanda. –
Acho que o noivo me passou as medidas erradas.
Mas é para isso mesmo que serve a primeira prova.
Não sei se Rafael errou as medidas, se me medi
errado eu mesma ou se engordei de lá pra cá. Mas

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uma coisa é certa: não tem como eu emagrecer


daqui pra lá!
E se eu continuar comendo os chocolates
importados da casa do Leo, definitivamente não
vou entrar nesse vestido.
A costureira junta as mãos, demonstrando mais
animação do que o momento merece, e pega sua
fita métrica, pronta para o trabalho.
– Vejo você em quinze dias, Melissa – ela acena
para mim da porta branca e decorada do ateliê, fita
métrica na mão, depois de ter medido até os
dedinhos do meu pé.
Mas não preciso me desesperar. Esse casamento
pode nem mesmo acontecer!
Retorno ao metrô ainda lotado e vou para casa me
sentindo derrotada. Não sei como posso levantar a
autoestima de uma garotinha de oito anos se não
consigo nem mesmo manter a minha de pé.

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É sexta-feira e passo o meu tempo planejando a


próxima consulta com Camille, enquanto espero
Pati chegar aqui no consultório para irmos embora
juntas.
Isso porquê... adivinhem só?
Que rufem os tambores...
Hoje à noite iremos a uma balada.
Sim, nem eu mesma acredito numa coisa dessas.
Faz muito tempo desde que eu não boto os pés
numa balada. Tem alguma coisa sobre esse tipo de
evento que me dá nos nervos, se eu for bem
sincera. São muitas pessoas juntas para o meu
gosto, dançando freneticamente ao som de músicas
que eu desconheço. Mas eles parecem saber muito
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bem o que estão fazendo com seus corpos,


enquanto eu fico lá, sentindo-me uma pateta total
por me mover de forma esquisita.
Digamos que eu não seja a melhor das dançarinas.
Mas é a despedida de solteiro do Rafa e todos
fomos convidados. E o melhor de tudo: Alana não
foi. Ha! Tudo bem que é porque ela está na própria
despedida de solteira, mas mesmo assim. Eu estarei
lá, e ela não.
Que é o único motivo de eu ter aceitado ir, para
começo de conversa.
Lorraine já foi embora. Seu horário é das nove às
dezoito, e ela faz questão de segui-lo à risca,
principalmente na hora da saída.
Agarro as moedinhas que junto na gaveta e saio
para comprar um café na cafeteria a duas quadras
daqui, já que ainda falta uma hora para a Pati sair
do hotel e Lorraine não está mais aqui para
preencher nosso estoque de café.
A essa hora, o sol já se pôs e a avenida Paulista
assume um ar ainda mais agitado. Os prédios

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comerciais com janelas iluminadas continuam


apinhados de funcionários trabalhando até tarde da
noite, misturando-se agora aos jovens – de idade ou
de espírito – com roupas descoladas prontos para
passar as próximas horas no bar mais próximo.
Ao caminhar de volta com meu café em mãos,
quase derrubo a bebida quente em mim mesma
quando, dentro de um restaurante bem ali adiante,
vejo um rosto familiar e meu estômago se
embrulha. É Augusto, o ex-namorado de Pati. O
rabinho preso no alto da cabeça e a barba no estilo
lenhador balançam enquanto aquele tremendo
cretino conversa com uma garota bem bonita com
cara de modelo e uma pinta enorme no queixo.
Ele está com a mão na coxa dela, enquanto a
pobre coitada inclina-se sobre ele, toda sorridente.
Daqui a quanto tempo ele irá chifrá-la também?
Não sei e nem quero saber. Augusto só faz com
que eu me lembre de outro casal que eu
recentemente também vi num restaurante. De modo
que prefiro esquecer o que vi.

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Aliás, qual é a minha com esse negócio de ficar


vendo pessoas em restaurantes? Seria um dom?
Deus! Pareço uma stalker.
Paro numa livraria a caminho do consultório e
compro também uma agenda nova. Ela é rosa, de
bolinhas brancas e estava na promoção por apenas
R$8,90. Um verdadeiro achado! Eu precisava de
uma agenda que não tivesse o nome de Alana
estampado pra lá e pra cá, para que eu pudesse
inaugurar um novo capítulo na minha vida sem ser
lembrada sobre ela a todo momento.
Ao sentar-me em frente ao notebook novamente,
guardo a agenda na gaveta, finalizo a atividade de
Camille e começo a bolar novas maneiras de atrair
a clientela ao meu consultório.
Pati chega às oito da noite, totalmente atrasada.
Eu já estava ficando cansada de fracassar como
empreendedora, e com fome também. Saímos
correndo para o metrô, depois de eu checar quatro
vezes se a porta da minha sala estava devidamente
trancada.

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Não comento nada sobre ter visto Augusto no


restaurante. Não faz sentido deixá-la chateada sem
motivo. Eles já não têm mais nada um com o outro
faz tempo.
Já que Pati mora no mesmo condomínio que meus
pais, decidimos nos arrumar juntas na casa deles.
Por isso trago comigo uma mala do tamanho de um
bebê elefante.
Carlos, o porteiro, não está em nenhum lugar para
ser visto e concluo que hoje deve ser seu dia de
folga. E meu dia de sorte.
– Querida, vai viajar pra onde? – diz mamãe
assim que abre a porta para nós e avista minha
mala.
Luli vem correndo em minha direção e dá
pulinhos frenéticos na minha perna. Infelizmente
ela é muito pequena, e seus pulos não passam do
meu joelho. Que bom que ela ainda está por aqui!
Quem sabe dessa vez eu esteja errada sobre
mamãe?

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Damos oi para o meu pai e seguimos as três para


o meu antigo quarto: Pati e Luli e eu.
– Com quantas garotas você acha que o Leo fica
hoje? – digo, passando rímel nos cílios.
– Se ele não parar de mergulhar no perfume,
nenhuma – ela responde, fazendo biquinho e
aplicando o blush alaranjado nas bochechas. – Já
falei pra ele não passar demais.
– O que há de errado com o perfume dele? – digo,
procurando o batom vermelho na nécessaire. – Eu
adoro aquele cheiro.
Começo a aplicar o batom quando sinto o olhar de
Pati sobre mim.
– Huuuuumm... – ela cantarola.
– O que é? – digo, sem entender.
– Você acabou de dizer que adora o cheiro do
Leo.
– Não. Não! – digo, estendendo o dedo indicador
para ela. – Eu adoro o cheiro do perfume do Leo!
– E tem diferença? – ela pergunta, com um
sorriso irônico nos lábios.

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– Quer parar? – fecho a nécessaire com força. –


Tem muita diferença.
– Sei.
– Joguei pedra na cruz, por acaso? Quer parar de
insinuar coisas assim? Pelo amor de Deus! É o Leo!
Sabe-se lá com quantas pessoas ele já ficou na vida.
Terminamos de nos arrumar e saímos do quarto
equipadas de botas compridas até os joelhos e saias
curtíssimas (que eu não possuía, mas Pati fez
questão que eu tirasse minha saia de tamanho
regular, alegando não se tratar de uma igreja o local
para onde estávamos nos dirigindo).
– Querida, você não acha que essa blusa fininha
vai protegê-la do frio, acha? – diz minha mãe ao
notar meu top. – Não se deve colocar a aparência
acima da saúde.
Falou a mulher com um corte de cabelo novo,
maquiagem perfeitamente aplicada e batom nos
lábios. Ela pode até enganar papai, mas a mim ela
não engana.

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– Não é para proteger, tia – diz Pati, toda à


vontade. – É para atrair os caras.
– Pati! – dou um tapa no braço dela.
– Ela tem razão, Melissa! – diz mamãe. – Já está
na hora de você arranjar uns... caras.
O fato de ela ter dito isso no plural me preocupa.
– Mãe, eu não estou indo procurar um cara – digo
e olho para papai de canto de olho, que está sentado
em sua poltrona observando nosso diálogo por cima
dos óculos.
– Ah, mas essa atitude não vai te arranjar um
namorado nunca, filha... – quem diz isso, para a
minha total incredulidade, é o meu próprio pai.
– Papai! – exclamo.
– Ah, querida. Não seja assim, vamos – diz
mamãe, segurando-me pelos ombros. – Seu pai tem
razão. Você é bonita demais para não ter um
namorado. Aposto que vários rapazes caem aos
seus pés e é você quem não dá bola.
– Bom, tem o Carlos – diz Pati, com um sorriso
matreiro.

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Meu rosto se contorce todo.


– Vira essa boca pra lá!
– Hum... Carlos? Quem é Carlos? – mamãe
cantarola. Papai só observa.
– Ela está falando do porteiro. Não liga pra ela,
mãe – olho feio para Pati.
– Você é interessada por Carlos? – mamãe é um
misto de confusão e constrangimento. – Não sabia
que ele era o seu tipo.
– E ele não é, pelo amor de Deus! Ele poderia ser
meu pai!
– Não me ofenda – diz papai, que voltou a assistir
TV.
– Bom... – mamãe ainda parece confusa. – Tenho
certeza de que existem vários outros rapazes da sua
idade que estão caidinhos por você.
Se ela soubesse o quanto está errada...
Quase sinto pena dela.
Quase, porque depois disso ela vai até o quarto e
volta com um casaco roxo na mão, que parece

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pertencer a um esquimó. É quase maior do que ela.


Até Luli se assusta e se esconde atrás do sofá.
– Ah, mas eu não uso isso nem morta! – digo e
pego minhas chaves, pronta pra sair.
– Vai usar sim! Está frio lá fora, querida.
– Mãe, esse casaco é enorme. Ele é inflável, por
acaso?
– Lembre-se, tia... os caras – diz Pati.
– Ah, é mesmo! Está bem – ela se lembra da
história toda e então joga o casaco no sofá, como se
fosse dar má sorte ou algo assim. – Então divirtam-
se. E vê se arranja um namorado, Melissa.
– Amo vocês – digo, quando a porta do elevador
se fecha.
O som está distante, mas eu juro que consigo
escutar mamãe dizendo algo como “seja o que
Deus quiser”.
Ótimo! Era tudo o que eu precisava. Expectativas
superaltas para hoje à noite.
Talvez mamãe preferisse que eu voltasse grávida
de gêmeos a solteira.

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Depois de enfrentar uma fila de vinte minutos,


finalmente entramos na Zity, uma das baladas mais
conhecidas da Rua Augusta. E com isso eu não
quero dizer que ela seja boa, não mesmo. O lugar é
apertado e escuro, e eu posso jurar que tem um
cheiro esquisito. Pati diz que é coisa da minha
“cabeça de velha” e prometo a ela que vou me
esforçar mais para gostar do lugar. Mas percebo
que fiz uma promessa que não conseguirei cumprir
depois de chegarmos ao segundo andar da balada
abarrotada de gente.
Pegamos nossas bebidas e caminhamos até o
centro da pista de dança, onde Pati começa a

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interagir com um carinha vestindo uma blusa


brilhante, ambos embalados ao som de Rihanna. E
eu fico no canto, balançando de um lado para o
outro, embalada ao som de... Bem, ao som de
Rihanna também, afinal estou no mesmo lugar que
eles.
Já se passaram três músicas e eu fico torcendo
para que a bebida comece a fazer efeito e torne essa
noite atípica um pouco mais agradável. Já estava
quase desistindo de tentar quando finalmente vejo
um rosto conhecido entre as luzes piscantes.
– Leo! – grito e aceno para ele efusivamente, que
vem acompanhado de um amigo. – Finalmente!
– Não me diga que estou atrasado – diz ele e me
abraça. O cheiro do seu perfume me mostra que
Pati estava certa. Ele realmente precisa passar um
pouco menos.
– Cinco minutos – digo, olhando para o relógio de
pulso.
– Vocês chegaram! – Pati vem em nossa direção
rebolando no ritmo da música, pelo jeito, incapaz

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de parar de dançar por um segundo que seja.


– Onde será que está o Rafa? – grito na orelha
dela.
– Ele vai se atrasar.
– Como é que você sabe? – digo. Por que sou a
última a receber essa informação?
– O Leo me contou por mensagem agora há
pouco.
– E por que é que não me falou nada?
– Mas é claro que eu falei. Falei assim que
entramos.
Eu tinha me esquecido de que decidi
simplesmente ignorar tudo o que Pati me dizia
quando entramos na balada, pois eu não estava
conseguindo ouvir porcaria nenhuma por causa do
barulho da música. Então parei de prestar atenção e
simplesmente concordei com a cabeça para tudo o
que ela dizia.
– Ah – digo, consternada. – É verdade.
Leo nos apresenta ao amigo que trouxe consigo.
Ao que parece, ele é seu amigo em comum com o

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Rafa. E provavelmente é do mesmo tipo que Leo,


que tornará essa noite uma caçada a alguma menina
que pareça difícil. O nome dele é Alessandro. E
vou aproveitar para deixar uma coisa bem clara:
Alessandro está de parabéns! Ou talvez eu devesse
cumprimentar os pais de Alessandro, que
conseguiram esculpir com perfeição esse deus
grego do Olimpo e dar de presente ao mundo.
Tenho que me controlar para não olhar diretamente
para o Alessandro, para não machucar minhas
córneas com tanta beleza.
Ele tem os cabelos espetados e é bem forte. Muito
forte mesmo. Cada braço dele me lembra uma
bigorna, o corpo assemelhando-se a um triângulo
invertido. Mais um pouco e ele vira o Johnny
Bravo.
– Está gostando da festa? – me pergunta ninguém
menos do que Alessandro, o Deus Grego, o que
quase me faz cuspir meu drinque nele.
– Humm... estou sim. Ha ha – digo, sem graça e
possivelmente sorrindo demais.

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– Eu também – ele diz e acompanha meu sorriso


(mas o dele não é excessivo e nem maníaco. É
largo e muito bonito).
– Eu não sou muito de baladas – por que diabos
eu disse isso? Ele vai achar que sou uma chata.
– Não? – diz ele. – Mas você dança tão bem – Ele
fala isso bem próximo à minha orelha e segura
levemente a minha cintura. Depois se afasta
novamente e dá um sorriso de lado.
Ele está dando em cima de mim? E por que
diabos ele acha que pode pegar na minha cintura?
Leo me observa do outro lado da nossa
semirrodinha. Depois puxa Pati e começa a dançar
com ela. Ele rebola muito. Até demais. Ele desce
até o chão e começa a rir junto com ela.
– Você faz o que de faculdade? – Alessandro
pergunta, de novo colado na minha orelha. Será que
ele não entende o conceito de espaço pessoal?
– Eu já sou formada – digo. – Psicologia.
– Sério? – ele diz, desinteressado, parecendo
pouco se importar se sou psicóloga ou curandeira. –

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Mas você dança tão bem.


E o que é que isso tem a ver?
Será que essa conversa tem alguma coerência?
Então me toco de que ele deve estar bêbado e
portanto não falará nada com nada. Deve ter bebido
antes de vir para cá com o Leo, que prossegue com
seu rebolado maluco do outro lado da roda. Sim,
eles estão bêbados.
– Obrigada – digo, e tento dançar um pouco
menos desengonçada.
– Vem comigo – subitamente, Leo me puxa pela
mão e me afasta da rodinha.
Olho para trás quando Pati se aproxima do Deus
Grego Apreciador de Boas Dançarinas, enquanto
ele me observa ressentido por me afastar. Mas seu
ressentimento não dura muito, não. Não quando ele
percebe a bunda de Pati indo ao seu encontro.
– Por que foi que me puxou? – pergunto ao Leo,
assim que encostamos no balcão do bar.
– Nada. Eu só queria uma cerveja e não queria vir
sozinho – ele dá de ombros.

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– Sei. Então pede essa daqui.


Aponto para o cardápio e ele pede a cerveja que
eu escolhi, mesmo sabendo que eu não gosto de
cerveja e nem conheço o gosto de nenhuma delas.
– Você não está dando bola pro Alexandre, está?
– ele diz, de repente.
– Alexandre? Achei que o nome dele fosse
Alessandro.
– Não, é Alexandre. Por que você achou que fosse
Alessandro? – ele pergunta, como se eu fosse
imbecil.
– Porque você disse “Ei, meninas, esse é o
Alessandro” – retruco.
– Não, eu disse “Ei, meninas, esse é o
Alexandre”.
– Não disse, não.
– Por que eu diria “Alessandro”, quando o nome
do cara é Alexandre? – ele diz. – Enfim, não
importa. Você não está dando bola pro Alessandro,
está?

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– Quer dizer, Alexandre. Alexandre! – ele se


corrige e começamos a rir.
– Não, é claro que não – Minhas bochechas ficam
quentes. Brinco com as unhas, fitando a própria
mão. – Nem para o Alexandre nem para o
Alessandro.
Tomo um gole da cerveja dele. Credo, que gosto
de xixi!
– Mas, hipoteticamente falando... e se eu
estivesse? – pergunto e o olho de canto de olho.
Será que ele ao menos se recorda que já tivemos
uma conversa parecida antes? Talvez não. Foi há
muito tempo. E eu prefiro que ele não se lembre, de
qualquer maneira.
– Ele não é um cara legal?
Leo adquire uma expressão carrancuda.
– Hipoteticamente falando? Não – ele dá um gole
na cerveja. E depois outro gole e mais outro. – Ele
não é seu tipo.
– E como é que você sabe?
– Porque ele é igualzinho a mim.

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– Ah – digo, sem graça. Minha barriga gela. – E o


que isso significa?
– Significa que você não estaria interessada. Vai
por mim.
– Ele disse que eu sou uma ótima dançarina, se é
o que você quer saber.
– Mel, você dança muito mal.
– Eu não quero nada com ele, Leo! – digo,
gargalhando. – O cara é muito sem noção.
– Sim, ele é – ele diz e me puxa pela mão de volta
para a pista.
– Além disso, é impossível ele ser um problema
meu agora – grito em meio ao barulho ao ver uma
garota peituda debruçada no Alessandre Alexandro,
a língua enfiada na goela dele.
– Melhor assim – diz Leo. – Ele é problema dela
agora.
E antes que eu possa analisar se aquilo ali teria
sido um ato de ciúme, escuto uma barulheira
danada vinda do canto da pista.

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– Aeeeeee! –alguns caras gritam quando Rafa


aparece no topo da escada. Ele levanta os punhos
para o alto, como sinal de vitória.
E que vitória! Estamos em um concurso de beleza
essa noite? Só pode ser!
Rafa veste uma camisa de linho branca e calças
cáqui dobradas na barra. A barba feita e o cabelo
penteado para trás me dão uma sensação
maravilhosa na boca do estômago, mas a aliança
que vejo pela primeira vez em seu dedo anelar me
dá uma muito ruim.
– Ei, você! – Rafa vem me cumprimentar. Ele me
abraça suavemente e sinto seu cheirinho de
sabonete. – Você veio!
– Mas é claro que vim! – coloco a mão no
coração e adquiro um ar solene, aproveitando a
deixa para relembrá-lo da nossa conversa no
shopping. – Como alma gêmea da sua vida passada,
eu não perderia por nada!
– Eu estou muito feliz por você estar aqui. – ele
me aperta ainda mais, o rosto em meus cabelos.

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Toma essa, Alana.


Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, ele é
puxado pelos amigos do trabalho e fico com a
sensação de que ele está sempre sendo tirado de
mim.
Dançamos, conversamos e bebemos todos em
uma roda enorme, formada por amigos do trabalho
do Rafa, duas primas dele que têm mais ou menos a
nossa idade – incluindo Bárbara, de quem Leo faz
questão de se distanciar –, Pati e Leo.
E eu, que tento controlar a quantidade de vezes
que meus olhos pousam no Rafa. A última coisa de
que preciso é de alguém percebendo que eu sinto
alguma coisa pelo noivo.
Depois de um tempo, os amigos de trabalho do
Rafa o puxam para o piso inferior da balada,
começando a demonstrar alterações em seus
sistemas nervosos, provocadas pela bebida. Os que
restaram no piso de cima continuam na roda, só que
agora toda desfigurada e estranha, porém com uma
imutável característica: Bárbara continua olhando

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insistentemente para Leo de maneira quase


maníaca.
A noite dá uma guinada quando bebo alguns
(muitos, realmente muitos) goles da cerveja do Leo.
E da outra cerveja depois dessa. E da caipirinha que
ele pediu em seguida. A música parece muito
melhor do que as anteriores, e eu começo a
entender o sentido de o lugar estar apinhado de
gente. Eu quase gosto disso.
Minha cabeça roda um pouco e começo a dançar
com Pati, depois com o Leo e até mesmo com o
Alê – que é como decidi chamar Alexandre – já que
no final das contas não sei qual o seu verdadeiro
nome. Quando finalmente começa a tocar uma
música que eu conheço.
– Ei! – digo, colocando a mão na boca. – Eu sei
cantar essa! “Rebola, rebola até o chãoooo...”
Eles parecem gostar do meu novo estado de
espírito e eu aprecio o quanto eles me apreciam.
– Leo! – digo e o abraço, rebolando de um jeito
esquisito e incapaz de parar de dançar, igual à Pati

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no começo da noite.
– O que é, doidinha? – ele diz, segurando-me
pelos ombros para que eu não esbarre nas pessoas
da roda atrás de nós.
– Eu amo baladas!
– Ah, é mesmo? – ele solta uma gargalhada alta.
Eu estou muito próxima do rosto dele, mas nem
mesmo me importo, pois fico muito próxima ao
rosto de Pati e de qualquer pessoa que se aproxime
de mim. Ao que parece, a Melissa bêbada é uma
alma muito carinhosa.
– Seu cheiro é muito bom – digo ao Leo e noto
Bárbara me olhando com uma cara muito feia. –
Acho que a Bárbrrra vai me matar.
Em um determinado momento, rebolo como uma
verdadeira dançarina (amadora) e do canto da pista
Rafa encara meu passinho de dança inusitado. Faço
um joinha para ele, que retribui o gesto.
Alê começa a sorrir para mim e eu viro a cara
para o outro lado. Mas quando volto a observá-lo,
ele ainda está me olhando.

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– Já te falei que você dança superbem? – ele


pergunta, aproximando-se.
E eu, bêbada do jeito que estou, começo a dar
risada de cada comentário que ele faz sobre a
minha dança horrível. E acho que ele entende isso
como um sinal verde, porque de repente começa a
dançar comigo. Só aí percebo que ele
provavelmente vai tentar me beijar a qualquer
momento. O que é que eu tenho que fazer pra me
livrar dele?
Olho para o Leo, sibilo as palavras “me tire
daqui”, mas ele levanta as sobrancelhas e vira-se de
costas. Localizo Pati num canto escondido da pista,
mas ela está ocupada demais beijando um carinha
que se parece muito com Augusto, e eu não vejo
outra alternativa se não dizer ao Alecsandro:
– Zai daqui.
– Ah, não seja assim – ele diz e faz cara de
cachorrinho.
– Naum! Votscê naum é meo tipo – digo, as
palavras meio carregadas no álcool.

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– E qual é o seu tipo, então? – ele continua,


tentando me agarrar pela cintura.
Inconformada com tamanha cara de pau,
empurro-o com força e levanto o dedo do meio.
– Naoun ouviu naum?
Viro as costas e saio à procura de Leo, pronta
para ralhar com ele por ter me deixado sozinha com
seu amigo imbecil, quando vejo que ele está
ocupado demais falando alguma coisa
aparentemente muito engraçada no ouvido de
Bárbara, que ri sem parar encostada na parede com
aquela coisa curta que ela chama de vestido.
De repente me canso dessa balada. O problema
desses lugares é que eles são completamente
imprevisíveis. Assim como o Leo. Quando você
menos espera, ele está se agarrando com garotas
estranhas em vez de permanecer ao lado das
próprias amigas.
Vou para perto de Pati, que a essa altura já parou
de beijar o carinha desconhecido que sumiu na
multidão e passamos os próximos dez minutos

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fazendo comentários sarcásticos e maldosos a


respeito do Leo e de como ele é um babaca e mau
amigo.
Rafa volta para o andar de cima e de volta ao
andar de baixo tantas vezes que parei de tentar ficar
perto dele. Às vezes ele encostava ao nosso lado,
tentava uns passinhos de dança – ele também dança
muito mal – ou fazia algum comentário sobre como
o lugar estava lotado ou sobre como eu precisava
conhecer Alana, o que por sua vez tirava de mim a
vontade de tentar ficar perto dele também.
O efeito da bebida começa a passar e Rihanna não
tem mais a mesma graça que tinha antes. O horário
na tela bloqueada do meu celular indica que já são
três e meia da manhã. Quero ir embora e esquecer
que perdi meu tempo nessa balada fedorenta, mas
preciso esperar Pati para podermos pegar um táxi
juntas, pois não consigo bancá-lo sozinha.
– Por que você sempre beija o mesmo tipo de
caras? – pergunto para a Pati. – Esse aí era
igualzinho ao Augusto. Cruz-credo!

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– Er... eu não sei – as bochechas dela ficam


vermelhas, e ela desconversa. – Não é aquilo que o
Leo sempre diz? “Quando alguém se joga pra você
de um jeito tão óbvio, você agarra”, ou alguma
idiotice assim?
Eu pisco, sem entender o porquê de tanta agitação
da parte dela. Ela me puxa pelo braço.
– Ai, quer saber, vamos embora?
– Graças a Deus –Jogo a mão para o alto, quase
sambando de felicidade, mesmo que aqui só toque
música pop.
Leo ainda está passando seu tempo com a prima
do Rafa, de conversinha com ela na parede. Pati vai
até lá, lhe dá um beijo na bochecha e avisa que
estamos indo embora. Os olhos de Leo encontram
os meus e ele parece envergonhado. E devia estar
mesmo! Já que literalmente virou as costas para
mim.
Eu apenas aceno com a cabeça para ele, sem
nenhum entusiasmo, sorriso ou intenção de lhe dar

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um beijo de tchau. Viro as costas enquanto ele me


fita e saio em direção às escadas.
Só digo uma coisa: minha mãe vai ficar
decepcionada quando eu voltar para casa sem
namorado.

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– Você virou as costas pra mim sim! – digo ao


telefone, comendo o chocolate que o Leo me
enviou via motoboy, a fim de fazer as pazes
comigo. – Você acha que pode me comprar com
chocolates?
– Você está ou não está comendo os chocolates?
– Claro que estou! Não sou estúpida! – digo, a
boca cheia de chocolate meio amargo. – Mas isso
não quer dizer que eu te perdoe.
Mas o que é que posso fazer a não ser perdoar
quem me dá comida? Morrer de fome? Decido que
é melhor deixar pra lá. Afinal, o chocolate foi uma
escolha sábia da parte dele.

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– Eu achei que você estava... sabe como é...


interessada no Alexandre. Não quis ficar no seu
caminho – ele diz, do outro lado da linha.
– Tá legal, deixa pra lá.
Estou ansiosa demais para dar atenção a isso.
Hoje é o dia da segunda análise do teste para casais
que estou aplicando em Alana, e não sei o que
esperar do resultado dessa etapa, devido ao fiasco
da última análise. Bom, fiasco para mim, de
qualquer maneira. Ótimo pra eles.
Depois daquela balada infernal, onde
provavelmente todo mundo meteu a língua na boca
de alguém menos eu, com grande desespero percebi
que meu tempo está acabando, afastando ainda
mais meus planos de ter um relacionamento.
Um mês já se passou, faltando apenas 26 dias
para o casamento. E já que não vou ter coragem de
gritar “eu” quando o padre disser “se tem alguém
que deseja impedir esse casamento, que fale
agora...”, essa é a minha chance de descobrir se o

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Rafa é ou não o homem da vida da Alana. Se não,


terei que me calar para sempre!
Em vista disso, tanto faz em quem Leo dá em
cima na parede da balada, ou com quem Pati
rebola. Eu tenho coisas mais importantes na cabeça.
– Eu vou descobrir! – digo ao Leo, quando
mudamos de assunto.
– Não descobriu até agora. Por que seria
diferente?
– O teste ainda não acabou. Tenha um pouco de
fé, sim?
– “Fé” não é o mesmo que colocar mandinga no
casamento dos outros.
– Ei! Não é o que estou fazendo – digo, meio
ofendida.
Ele não vê que tudo o que quero é esclarecer essa
história, sem interferir à toa na vida de ninguém?
Eu só preciso ter certeza de que não estou perdendo
nada. Pois não há como perder alguém que nunca
foi meu. Eu só preciso descobrir: o Rafa era mesmo
para ser dela?

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Esse comentário do Leo me torrou a paciência.


Se ele não tomar cuidado, terá que me mandar
mais uma caixa de chocolates.
Dessa vez, belgas.
Abro o arquivo de Alana no computador e corro
os olhos nas anotações do teste um. Pulo uma
página e digito a palavra “Presente” no centro da
folha. O cursor do teclado pisca na tela,
evidenciando o fato de que ainda não sei o que
digitar. Ainda.
“Eles se admiram?”
É só isso. Simples assim. É nisso que consiste o
teste do presente, e é só o que preciso analisar na
devolutiva de hoje. Uma das coisas mais
importantes quando se trata de relacionamentos é se
existe admiração entre o casal. Sem admiração, a
mágica pode acabar. Mas um casal que se admira
se mantém firme ao longo dos anos.
Minha paciente mais uma vez chega no horário
exato da consulta. Se ela não tomar cuidado vai
acabar me deixando mimada desse jeito.

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– E então? Conseguiu? – pergunto a ela assim que


abro a porta, sem mais delongas.
Dei à Alana algumas instruções a respeito do
teste, mas ela podia obter a resposta da forma que
desejasse.
E eu disse a ela que não, sexo não contava.
– Superconsegui! – ela diz.
Durante essa semana, eu fiquei me perguntando
se seria possível alguém tão correto quanto o Rafa
admirar as coisas maldosas que Alana fala ou o
modo como ela encara a sociedade como sendo
uma mera classificação de beleza ou jeito de se
vestir. Mas aí me lembrei de que eu não tenho que
me perguntar nada. E que – facada no coração –
sou somente a aplicadora do teste.
– E a que conclusão chegou? – esfrego as mãos e
preparo-me para a resposta.
– Que eu sou hilária! – ela junta as mãos,
maravilhada.
– O que disse?
– Que eu sou in-crí-vel, Melissa.

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– Como assim?
– É, ele me adora – ela coloca uma mecha do
cabelo loiro atrás da orelha. ​– Relacionamento cem
por cento à prova de balas, amiga.
Amiga?
– Ele disse que sou a mulher mais incrível que ele
já conheceu.
Também não precisa humilhar, né?
Meu estômago se revira como se eu tivesse
ingerido comida estragada.
– E, humm... por que diz isso?
– Porque ele me adora do jeitinho que eu sou! –
Alana continua, jogando os cabelos para o lado,
sem me esclarecer porcaria nenhuma.
– E com base no que você diz isso? – digo, os
dentes semicerrados.
Eu não podia estar mais confusa nem se minha
mãe me dissesse que sou adotada.
– Bom, deixe-me explicar, não é?
Ah, você acha?

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– Estávamos conversando a respeito dos nossos


conhecidos em comum... – ela diz e minha garganta
aperta. Graças a Deus eles não sabem que sou uma
conhecida em comum!
– E ele ria de tudo o que eu falava. A cada coisa
que eu dizia, ele gargalhava sem parar! – ela diz,
balançando as mãos agitadamente enquanto fala.
– Como o quê, por exemplo?
– Como quando eu explicitei o que há de errado
com o modo como a prima dele se veste. Ou com
as minhas imitações sobre o pai dele, “Ahn...
senhoras e senhores... ahn... gostaria de agradecer a
todos, ahn...”
Alana bate a mão na mesa, rindo sem parar.
– Ou sobre como ele escolheu uma camisa azul
horrorosa para nosso casamento no civil – ela tem
uma expressão divertida no rosto. – E que vou
trocar na loja imediatamente.
O que tem de errado com a camisa que
escolhemos?

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– E o mais incrível de tudo foi que ele se soltou


de um jeito que eu nunca tinha visto antes. Ele
estava tão relaxado, sabe?
Então ele já conhece esse lado mesquinho da
personalidade dela e gosta? E ainda por cima ela
fez relaxar a personalidade rígida dele?
Agora é sério, pessoal! Cadê as câmeras
escondidas?
– E então, ele me olhou de um jeito tão carinhoso,
tão terno, que aproveitei a deixa para perguntar...
“Você me admira?”.
Fico em silêncio. Depois desse balde de água fria,
nem quero mais saber o que ele disse. Mas preciso
prosseguir, pela integridade do teste. Droga de
teste!
– Foi aí que ele falou que me admira tanto que
não sabia como me explicar, e então eu disse “bom,
é melhor você tentar”. E aí ele começou dizendo
que admira meu jeito espontâneo, que gosta de
sermos tão opostos um do outro. Que adora que eu
tenha opiniões próprias e que não tenha medo de

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contradizê-lo quando é preciso. E aí passamos a


noite inteira rindo e trocando detalhes das nossas
despedidas de solteiro, foi o máximo...
Então, além de ele admirá-la, eles são
supercomunicativos, têm diálogos divertidos e dão
muita risada juntos?
Ela só pode estar brincando com a minha cara!
Com todos esses ingredientes para um
relacionamento perfeito, só me resta uma última
análise: o futuro.

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É sexta-feira e me preocupo com o fato de que o


meu círculo social contenha apenas três amigos.
Ainda bem que Pati nos convidou para uma
reuniãozinha tranquila na casa dela hoje à noite.
Apenas Rafa, Leo e eu. Haverá comida e
caipirinhas, e isso é o suficiente para que eu me
arraste até o condomínio dos meus pais.
Leo e eu fomos os primeiros a chegar. Coloco
minha bolsa no armário de entrada do apartamento,
uma porta de tamanho regular que dá acesso a um
cubículo minúsculo cheio de cabides para pendurar
casacos. Coloco na mesa os petiscos e bebidas que
eu trouxe. E Leo se joga no sofá vermelho de três

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lugares da mãe de Pati, que está em um jantar


romântico hoje à noite, deixando o apartamento
para a filha.
O negócio é que fazia um bom tempo que nós não
fazíamos isso. Só nós quatro, jogando conversa fora
na casa de alguém e enchendo levemente a cara,
sem falar em Alana, casamento ou os sinos da
igreja. Então não é à toa que passei uma camada
extra de perfume e maquiagem, e realmente
caprichei nos cabelos, fazendo cachos e prendendo-
os em um rabo de cavalo desorganizado no topo da
cabeça.
Rebolo no ritmo da música que toca no rádio da
sala e inclino-me para alcançar o outro lado da
mesa, posicionando simetricamente os potinhos de
petiscos. Mas quando volto à posição normal, noto
Leo me observando discretamente.
– Que é? – digo.
– Nada, ora.
– Você estava me olhando – pressiono.
– Nada, eu só estava pensando...

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Humm... então ele realmente estava me olhando?


Dou um passo em sua direção, com curiosidade.
– Se você vai adotar um gato quando perceber
que é tarde demais para começar a namorar, porque
vai estar com 90 anos quando parar de correr atrás
do Rafael.
– Ah, cale essa boca! – jogo uma almofada com
estampa psicodélica nele, que dá risada e joga outra
em cima de mim, acertando em cheio minha
bochecha. – E vê se deixa os gatos em paz.
– Parem com isso! – Pati interrompe nossa guerra
de almofadas. – Minha mãe morre de amores por
essas almofadas.
Não sei como. Elas são muito feias.
– Desculpe – dizemos os dois, envergonhados,
mas lançando sorrisos de cumplicidade um para o
outro.
É incrível como Leonardo me faz parecer uma
criança imbecil, assim como ele. Se fôssemos
crianças, papai diria que ele não é uma boa

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influência para mim. Para falar a verdade, papai


diria isso hoje em dia também.
O interfone do apartamento toca, e Pati se apressa
até ele.
– Alô! Ah, sim, pode deixar ele subir.
Ela coloca o aparelho no gancho e caminha até
nós.
– O porteiro avisou que o Rafa acabou de chegar.
Olho instintivamente no espelho com formato de
triângulos e coloco uma mecha solta do cabelo
atrás da orelha, sorrindo para mim mesma.
– Leo, me ajuda a pegar os copos? – pergunto
para o sujeito preguiçoso estirado no sofá, a fim de
me ocupar com alguma tarefa que faça meu
coração desacelerar um pouco. E tarefas domésticas
com certeza não aceleram o coração de ninguém. A
não ser de nervoso.
Pegamos os copos coloridos de vidro e saímos da
cozinha de ladrilhos azuis, cuja porta fica do lado
oposto à entrada do apartamento. Chegamos em
frente à mesa da sala quando Pati abre a porta e

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uma expressão de espanto toma conta de seu rosto.


Ela olha para mim, e então olha para a porta de
novo, lentamente dizendo:
– Oi, Rafa. Humm... – ela engole a saliva e
estende a mão. – E... olá! Você deve ser Alana.
Eu quase derrubo os copos de vidro no chão. O
quê? Alana? O que ela está fazendo aqui? Ai, meu
Deus, ela não pode me ver!
Com os olhos arregalados, começo a empurrar
Leonardo de volta para a cozinha, mas não há
tempo. Pati não consegue mais impedir a entrada
deles no apartamento sem que pareça estranho, e de
repente tenho o vislumbre da ponta do pé do Rafa
passando pelo rodapé da porta. Eles estão entrando!
Não dá tempo, não dá tempo! Não podemos mais
ir até a cozinha sem que nos vejam, ou ela
descobrirá tudo. E agora?
Pati faz um obstáculo humano na passagem de
Rafa, e sem pensar duas vezes, puxo Leonardo pelo
colarinho da camiseta e entramos os dois

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silenciosamente no armário que fica ao lado da


porta de entrada do apartamento.
O que eu não esperava, contudo, era que dentro
do closet da casa de Pati haveria tantas bugigangas
sem utilidade alguma para mim nesse momento em
particular, como uma vara de pescar, vários casacos
com um cheiro suave de mofo, um binóculo e
alguns sapatos espalhados. E isso é só o que
consigo enxergar (ou tatear), porque está bem
escuro aqui dentro, sendo as frestas pequeninas na
porta do armário as únicas coisas que clareiam o
ambiente.
O espaço apinhado de coisas me dá nos nervos.
E se daqui de dentro, na situação em que me
encontro, ainda consigo pensar pelo ponto de vista
do meu TOC, talvez eu devesse mesmo procurar
uma psicóloga.
Mas, lá fora, as vozes deles me distraem.
Olho pelas frestas e vejo minha melhor amiga
conduzindo o casal maravilha até o sofá, enquanto

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sorrateiramente vira de cabeça para baixo o porta-


retratos com uma foto de nós duas.
Que droga fui fazer! Era tudo o que eu precisava
essa noite.
Rafa pergunta a que horas Leo e eu chegaremos.
E Pati adquire um semblante abobalhado, sem
saber o que responder.
– Humm... com licença? – Leo sussurra e me
cutuca no ombro. – Mas por que é que eu estou
aqui dentro?
E é só então que me ocorre: não havia
necessidade alguma de puxar Leonardo para dentro
do armário comigo. Quer dizer, qual seria o
problema de ele estar lá fora, com eles? Ele não
precisa se esconder. Eu é que preciso!
Como sou burra! Com o espaço muito mais
apertado pela presença desnecessária do corpo de
Leo, noto pela primeira vez que quase não há
espaço para nós dois, que estamos colados um de
frente para o outro, e meus braços – para minha

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total descrença – ainda se apoiam no peito do Leo,


desde quando eu o empurrei para cá.
Minha respiração torna-se entrecortada.
Tiro minhas mãos dele.
– Humm... – sussurro de volta. – Desculpe. Eu
não pensei direito. Agora shiiiiiu.
Coloco um dedo nos lábios dele, sinal universal
de “cale a boca”, mas meu rosto começa a ficar
quente por uma parte de mim estar tocando os
lábios dele. Leo não diz nada. Afasto minha mão na
mesma hora, as bochechas pegando fogo. O
perfume dele embala meu coração em um ritmo
alucinado.
O problema com os armários é que eles não foram
feitos para que as pessoas se escondam neles.
Pergunto-me porque cargas d’água os amantes
escolhem lugares como esses para se esconder,
dada sua total incompatibilidade com o corpo
humano. Posso perguntar para Augusto, se eu
cruzar com ele por aí.

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– Eu acho que eles vão se atrasar – Pati abre um


sorriso amarelo.
Sinto um frio na espinha.
– Sem problemas. Eu só estava ansioso para que
vocês conhecessem Alana. Já estava na hora.
Já estava na hora? Já estava na hora? A hora já
passou há muito tempo!, tenho vontade de gritar do
armário. Bom, não de apresentá-la a mim,
particularmente. Mas para os outros! Não é normal
apresentar a namorada aos amigos somente quando
ela já se tornou sua noiva, principalmente se esses
amigos serão os padrinhos do dito casamento.
– Eu também estava super superansiosa para
conhecer vocês! – Alana começa a falar com aquela
sua típica empolgação, mexendo os bracinhos sem
gordura para cima e para baixo, sem que uma
grama de pele se mova.
Minha boca adquire um gosto amargo.
Como sempre, Alana não para de falar – por que é
que eu sempre fico presa na posição de escutá-la? –

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e Rafa dá gargalhadas espontâneas ao ouvi-la


contar a história de como se conheceram.
Minha garganta se aperta. Uma coisa é ouvir
Alana falar (e falar, e falar) sobre o casamento ou
sobre o noivo. Mas outra completamente diferente
é ouvir os dois juntos. Risadas altas ecoam pela
sala e atingem o armário onde estamos.
– Mas foi ela quem veio até mim – diz Rafa, entre
as risadas.
– Mas só porque você estava me encarando a
noite inteira! Ou você estava dando em cima de
mim ou ia me sequestrar. E eu tinha que ir até você
para descobrir o que era.
E mais risadas altas. Pati também ri, bastante à
vontade com a situação, constato.
– Rafael me disse que você faz faculdade de
Moda. Eu achei incrível! – Alana puxa assunto.
– Sim! – Patrícia relaxa visivelmente – Estou no
último ano.
– E você já trabalha com isso?

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– Na verdade, não. Trabalho em um hotel como


concierge até encontrar uma vaga na minha área.
– Você já ouviu falar da Pietré Belle?
– Se já ouvi falar? É só a marca de sapatos mais
tendência do mercado! – Pati diz.
– Pois meu tio é o dono da Pietré. Posso te
apresentar a ele no casamento.
Ah, mas é claro que ele é o dono. Blá-blá-blá,
olha como eu sou rica, blá.
– Você faria isso? – Pati empina o nariz para
frente e cola a mão no joelho de Alana.
– Mas é claro! – ela diz. – Isso não será problema.
– Mentira! – Pati se inclina mais ainda para
frente. – Você está brincando?
– É sério! – Alana dispara um sorriso orgulhoso.
Elas trocam risadinhas e Pati agradece um montão
de vezes com um “não acredito, isso seria incrível”.
Rafa fica encantado com essa troca de afeto,
agarrado ao ombro da noiva.
Leo me cutuca novamente, ao que eu prontamente
reviro os olhos.

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– E aí? – ele sussurra, seu rosto a poucos


centímetros do meu.
– E aí o quê? – sussurro de volta.
– Quantos gatos você vai querer?
Faço “shiu” para ele novamente, prestando
atenção no único gato que eu quero, que no
momento está bem ali na sala, com os braços ao
redor de outra mulher.
– Alana parece ser bem legal. E é bem bonita
também – ele diz.
Fico brava com esse comentário, mas quando me
viro para encará-lo, vejo que ele colocou o binóculo
velho nos olhos e seguro a risada.
– Para com isso! – sussurro.
– Eu não sei, vou verificar – Pati responde a algo
que Rafa pergunta, que graças ao Leo não consegui
ouvir.
Então ela pega o celular.
– E aí, Mel? Cadê você? – ela finge uma ligação
comigo e olha nervosamente para o armário. – Não
acha que já deveria estar AQUI?

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Sei que ela está tentando se comunicar comigo


através dessa ligação falsa (e muito mal
interpretada, devo acrescentar), mas ela deve estar
louca se acha que vou sair desse armário. Primeiro
porque não quero “conhecer” Alana coisíssima
nenhuma. E segundo porque tem coisa mais
ridícula do que a cena sem sentido de duas pessoas
saindo de um closet?
Faço que não com a cabeça, mesmo que ela não
possa me ver. O que ela espera? Que eu
simplesmente saia daqui agora e diga “surpresa”?
– Está bem. Certo, certo. Humm... então tchau –
Ela desliga a ligação imaginária e volta a encarar o
casal curioso sobre o meu paradeiro. – Ela não vai
poder vir.
– Ah, que pena – Alana finge interesse, mas não
tão bem assim, já que está verificando seu próprio
celular, minimamente interessada na conversa.
– E por que não? – Rafa pergunta.
– Porque ela... humm... está com dor de barriga.
O QUÊ? Eu estou com o quê?

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– Filha da puta! – sussurro.


Leo tem um ataque de riso sem som,
chacoalhando os ombros pra cima e pra baixo.
Ela não podia ter inventado outra coisa? Qualquer
outra coisa?
– Minha nossa! – Alana tira os olhos do celular, o
rosto contorcido de nojo.
– Sim, pobrezinha... – Pati diz, prosseguindo em
sua saga não intencional de me humilhar. – Parece
que pegou virose ou algo assim. Então ela, humm...
ela não quis vir até aqui para não passar virose à
noiva.
Ela parece muito orgulhosa da desculpa que
inventou para mim, sem perceber que acabou de
dizer para esse cara maravilhoso que estou com
caganeira.
– Mas ela sabia que eu vinha? – Alana pergunta
ao Rafa, percebendo a incoerência na história de
Pati. – Ela disse não querer passar virose a mim,
mas achei que minha visita seria uma surpresa.

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– Ah, sim... – Pati se adianta, percebendo que


cometeu uma falha no processo de mentir. – Eu
quis dizer o noivo. Ela não quis passar virose para o
noivo.
Encosto a cabeça na porta do armário,
desacreditada da minha situação. O que minha vida
se tornou? Eu me escondo em armários agora? Eu
culpo pacientes pelo meu fracasso amoroso? É
culpa dela que estou neste cubículo tão apertado?
Não, eu culpo o Leo a respeito disso. Ele tinha
mesmo que ocupar tanto espaço?
– Ai! – sussurro mais alto do que deveria quando
ele tenta mudar de posição, coisa que ele já deveria
ter notado, é simplesmente impossível. – Pare com
isso!
Por sorte, ninguém pareceu notar a nossa
interação aqui dentro. A música de fundo que toca
no rádio da sala ajuda a abafar as nossas vozes.
– E quanto ao seu amigo? – Alana quer saber. –
Leandro?
– É Leonardo, amor ​– diz Rafa.

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– Ele deve estar na cama com alguma garota por


aí – Pati responde de pronto, certamente muito mais
confiante com sua nova postura de mentirosa.
Rio o mais baixo que consigo, ao que Leo
sussurra bem baixinho:
– Por que vocês sempre assumem essas coisas a
meu respeito?
– Ah, para vai, Leo! Eu não vou nem comentar.
Agora shiu!
– Eu não estou sempre com alguma garota por aí.
– Só quando não está dormindo, né? Quer dizer,
talvez assim também. Agora fique quieto!
– Então pare de...
– Você está exagerando! – interrompo-o. – Agora
shiiiiiu!
– Eu estou exagerando? Foi você quem decidiu se
esconder em um armário! – ele esquece de
sussurrar.
– Você ouviu isso? – Alana diz e olha ao redor da
sala.

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Prendo a respiração, e posso jurar que Leo faz a


mesma coisa. A essa altura, a situação ficaria
ridícula para os dois. E até meio psicopata.
– Eu podia jurar que ouvi vozes – Alana vira o
rosto na direção do armário, depois focaliza a porta
da cozinha.
– Er... acho que foi a TV – Pati improvisa, os
olhos bem abertos.
Eles todos fitam a televisão da sala.
– Mas a TV está desligada – Rafael observa,
como se Pati fosse louca.
– Ah, sim... – Pati dá uma risada nervosa. – Quis
dizer a do quarto. Só um minuto, vou desligar.
Ela sai da sala em direção à TV imaginariamente
ligada no fundo do apartamento, fuzilando o
armário onde estamos, e eu sei que ela vai querer
me matar por deixá-la nessa situação.
– Ela é bacana, não é? – Rafa comenta com
Alana, dando-lhe um abraço de urso, quando Pati
sai da sala.

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– Ela é legal... mas aquele nariz? – ela fala mais


baixo, abre um sorriso sacana e dispara: – Deveria
seriamente considerar fazer uma cirurgia plástica.
– Alana, amor...
– Não, não... não estou falando por mal – ela se
defende, gesticulando, toda inocente. – Estou
falando para o próprio bem dela! Pelo amor de
Deus! Já pensou em quantas vezes ela bate o nariz
sem querer por aí, sendo ele tão grande?
Eu estou chocada. Mais chocada do que Alana
estaria se eu saltasse de dentro desse armário nesse
exato momento e sentasse no colo dela. Estou
chocada e horrorizada, porque não acredito que ela
tenha falado assim da minha melhor amiga, e ainda
por cima na casa dela!
Para o meu total horror, uma risadinha escapa dos
lábios do Rafa.
Meu queixo cai.
Olho para o Leo que, pelo que a luminosidade do
ambiente me permite ver, também ficou
incomodado. Rafa acabou de dar risada da cara de

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Pati, sua amiga de mais de dez anos? Pelas costas


dela?
Com isso, confirmo o que minha paciente me
disse. Rafael realmente conhece a personalidade
dela... e a considera hilária.
A culpa é toda de Alana. Papai diria que ela é
uma má influência também!
– “Alana parece ser uma garota legal”, hein? –
sussurro no ouvido de Leo, irônica.
Legal uma ova!
Pati volta para a sala, ingênua, sem ter a mínima
ideia de que sua orelha deve estar pegando fogo.
– Prontinho, desliguei – ela faz cara de brava para
o armário. Depois agarra uma vasilha de cima da
mesa. – Que delícia, vocês trouxeram sobremesa.
– É um doce gourmet que mandei minha chef de
cozinha fazer. Você vai a-mar! – Alana diz,
cruzando as pernas com uma expressão esnobe no
rosto, sem vergonha alguma do que disse sobre a
minha melhor amiga.
– Incrível! E o que tem no doce?

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– Não sei. É algo com doce de leite – Alana


responde, voltando a mexer no celular.
– Hum, que delícia. Perguntei porque não posso
comer nozes. Sou alérgica.
– Aham – Alana diz, sem levantar os olhos.
– E sabe como é, né? Alergia é uma coisa de
louco. Uma hora você está bem, e em outra você
está completamente inchada...
– Aham – Alana repete.
Pati continua falando, e nem mesmo posso culpar
Alana por não prestar atenção. Pati tende a falar um
bocado às vezes.
Eles trocam algumas histórias por mais uns vinte
minutos, comem meus petiscos enquanto minha
barriga ronca de fome dentro deste armário
empoeirado e se deliciam com o doce no final.
Mas, graças a Deus, decidem que é melhor
deixarem o encontro para uma outra hora, já que
supostamente Leo e eu lhes demos o maior cano.
A porta se fecha atrás deles e eu empurro
Leonardo armário afora de maneira mais brusca do

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que imaginei.
– Desculpe! – falo depois de ambos cairmos no
chão, tropeçando em um sapato velho que estava
dentro do armário.
– Tudo bem – ele diz, com um sorriso nos lábios.
– Vocês me pagam, seus idiotas! – Pati diz,
ignorando minha mão estendida para que ela me
ajude a levantar.
Em vez disso, vira as costas, sai andando em
direção ao sofá de veludo e diz:
– Tive que me virar sozinha, não tive? Agora é a
vez de vocês.
Leo e eu “nos viramos sozinhos”, levantando-nos
mutuamente do carpete, e nos sentamos ao lado
dela.
– Desculpe. Não quis te colocar naquela situação
– toco a mão dela. – Mas acredite quando digo que
foi muito pior para mim, que tive que ficar colada
no Leo o tempo inteiro.
– Quase no meu colo, você quis dizer – ele dá um
sorrisinho maroto.

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– Não precisamos entrar em detalhes – dou uma


cotovelada nele.
– Por que raios Leo entrou com você no armário?
– Er... eu não sei. Fiquei desesperada e, quando
vi, já estávamos lá – digo, enquanto ela me olha
esquisito. Acendo e apago o abajur com estampa de
ziguezague que fica na mesinha ao lado do sofá. –
Ainda não acredito que ela apareceu aqui. O que
achou de Alana?
– Eu não sei, não... me dói admitir, mas ela me
pareceu ser bem legal. Você ouviu tudo? Ela vai
me apresentar para o tio dela dono de uma marca
fabulosa de sapatos!
– Humm... é mesmo? – Leo e eu trocamos um
olhar rápido.
A última coisa que eu quero é magoar Pati. E se
isso significa ter que encobrir Alana, escondendo o
que ela disse pelas costas da minha amiga, então
que seja.
Agora eu entendo! No começo, todo mundo tem a
impressão errada de Alana. Pensam que ela é “uma

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garota bem legal”, e eu nunca entendi de onde veio


essa concepção.
E é aí que está: até me tornar psicóloga dela, eu
achava a mesma coisa. Por que motivo eu viria a
não gostar de alguém que sai por aí me comprando
cardigãs? E foi só quando me tornei sua terapeuta e
escutei suas confidências que percebi o quanto ela
pode ser maldosa.
E você não sabe como uma pessoa realmente é, se
ela é maldosa pelas suas costas, não é mesmo?
Não quero nem saber o que ela diz de mim e dos
meus suéteres por aí.
– Sei que não é o que você queria ouvir... – Pati
diz, se desculpando.
– Está tudo bem.
– Estou me sentindo mal – minha amiga tem
lágrimas nos olhos, e abana o rosto com as mãos.
– Está tudo bem, de verdade. Não estou chateada
com você nem nada.
– Não, eu estou me sentindo muito mal mesmo! –
ela diz, o rosto transformando-se num tom

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avermelhado. – Fisicamente mal.


Ela começa a tossir.
– Ai, meu Deus! – levanto do sofá em um pulo.
Leo bate nas costas dela e olha para mim.
– Acho que ela está engasgando.
– Não... alergia... nozes… – ela profere as
palavras que consegue.
– Temos que levá-la ao hospital! – eu constato a
obviedade da situação, totalmente apavorada.
Leo ajuda Pati a se levantar e faz menção para
que eu abra a porta, o que eu faço prontamente – ou
o mais rápido que consigo, dado que não funciono
muito bem em situações de crise.
Agarro a sobremesa assassina, a fim de mostrar
ao médico o que ela ingeriu antes da reação
alérgica. Não sei se isso é realmente necessário,
pois não conheço o procedimento para crises
alérgicas. Mas não custa nada levar.
Voamos em direção ao carro (Leo voou,
literalmente, porque caiu dos cinco degraus

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restantes das escadas em direção à garagem. Mas


acho que isso não vem ao caso).
O fato é que descemos os seis andares que nos
separavam do subsolo de escada, pois o elevador
estava parado em um andar acima de nós e não
descia de jeito nenhum. Podíamos ouvir vozes de
crianças, pancadas e pulos. Lei de Murphy, e coisa
e tal.
A essa altura, eu já estou suando feito uma porca,
e cheiro minhas axilas para ver se o desodorante
ainda está desempenhando seu papel enquanto
andamos apressados para o carro. Leo olha para
trás e vê minha situação ridícula, toda suada,
correndo, segurando a mão de Pati enquanto minha
cabeça está curvada para cheirar a minha axila
esquerda. Deprimente.
– Que nojo! – ele diz, ofegante.
– Cale a boca! – digo. – É tudo culpa de Alana.
– Que você está fedendo?
– Eu não estou fedendo! E é culpa dela a alergia.
A tal chef magnífica deve ter colocado nozes na

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receita.
Aposto que a chef é blogueira também.
Mas Alana não tem realmente culpa nisso tudo.
Ou tem? Quer dizer, ela não sabia que Pati tinha
alergia a nozes quando mandou preparar a
sobremesa. Mas ela poderia ter prestado atenção
quando Pati anunciou, em alto e bom som, que
tinha alergia à porcaria das nozes.
E aí a sola da minha sapatilha se solta, ficando
para trás na garagem. E eu culpo Alana por tudo
isso. Nesse momento, eu culpo Alana pela crise no
Congo!
– Droga! – pego a sola que ficou no chão,
enquanto vou mancando até o carro. – Ela vai me
pagar por isso.
Essa sapatilha me custou R$120,00!
– O quê? Vai se vingar de Alana? Já não é o que
você está fazendo? – diz Leo, após ajudar Pati a
entrar no carro (é impressão minha ou ela está com
os lábios maiores que os de Angelina Jolie?).

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– Estou falando do preço da sapatilha! E eu não


estou me vingando de ninguém! ​– bato a porta do
motorista do carro que meus pais me emprestaram
no momento do desespero. – Estou auxiliando
Alana. Não estou errada em ajudar minha paciente
a tomar a decisão certa.
Seguimos mudos até o hospital, que fica a dez
minutos de distância do prédio. Não tenho a menor
vontade de conversar com quem não me
compreende, e ele... bem, ele eu não faço ideia de
por que está tão quieto assim, mas também não
quero saber.
Pati entra na área de emergência e ficamos
sentados na sala de espera. O bom das emergências
é que você, definitivamente, não tem tempo de
pensar profundamente em mais nada. Nem em
como Rafael e Alana parecem se dar muito bem, e
nem em como Alana parece ser uma garota legal.

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Saímos do hospital.
O médico disse que Pati está bem, mas que foi
ótimo trazê-la rapidamente, pois sua alergia é bem
forte. Apesar de ele não ter demonstrado interesse
em provar a sobremesa (toma essa, Alana!), o
médico disse que, como Pati não sentiu o gosto das
nozes, provavelmente havia pouca quantidade na
receita. Mas que isso comprova mais uma vez o
quão forte é a alergia da minha melhor amiga.
Ela foi liberada e a deixamos em casa aos
cuidados de sua mãe, que voltou imediatamente do
jantar romântico, que acabou indo para o beleléu,

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horrorizada com o que aconteceu com sua


princesinha ruiva.
Bem, é culpa dela mesmo, se é o que querem
saber. A alergia a nozes veio nos genes.
Graças a Deus estávamos no mesmo prédio que
meus pais, que me emprestaram o carro deles
prontamente, dado que Leo veio de táxi e a mãe de
Pati tinha saído com o sedan preto que ela e a filha
possuem.
Estando motorizada, decidi dar uma carona ao
Leo até o prédio dele, como retribuição a todas as
caronas que ele já me deu até hoje, mesmo com
todos os seus pedidos contrários.
– Você não precisa me deixar em casa, garota. Tô
falando sério.
– Eu sei que não preciso. Mas eu quero! Gostaria
de retribuir o favor que me fez no outro dia.
– Qual dos mil? – ele diz, quebrando o gelo que
esteve entre nós desde o comentário dele sobre
minha suposta vingança.
– Justo.

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– Você precisa de um namorado – ele diz.


Piso no freio sem querer, e ambos nos deslocamos
bruscamente para frente.
– Pra quê?
– Pra que ele alivie o meu lado e faça esses
favores a você.
– Cale a boca – dou um soco fraco no braço dele.
– Mas... desculpe se te peço muita coisa.
– Não é tão mal assim.
Olho para o sorriso dele e percebo: Leo está
presente em todas as situações de crise da minha
vida. Será que ele é meu anjo da guarda, ou a
pessoa que as causa?
– E você? – focalizo os olhos nos dele quando
paramos no farol vermelho. – Por que nunca
namorou?
– Por que quer saber? – ele não desvia o olhar da
rua a nossa frente.
– Porque eu também nunca namorei, e quero
saber se há algo de errado comigo.
O farol abre e dou partida no carro.

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Ele começa a rir.


– Tá certo. É uma pergunta válida – ele dá um
soquinho fraco no meu braço. – Você parece
mesmo ter sérios problemas.
– Fala sério, Leonardo.
– Eu não sei, tá legal? – ele parece na defensiva.
A rua escura é apenas iluminada pelos postes
alinhados na calçada. Os carros ainda passeiam
para lá e para cá, pois em São Paulo (e numa sexta-
feira), esse horário significa hora de sair, e não de
voltar para casa.
– Não vejo futuro com essas garotas com quem eu
saio – a voz dele quebra o silêncio. – Não quero um
relacionamento com elas.
Meu coração se afunda um pouco. Qual o
problema dele com namoro?
– Você é muito teimoso! Não é possível que não
tenha encontrado alguém que valesse a pena.
– Eu sou teimoso? E você, então?
– O que tem eu?

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– Você faz a mesma coisa! A diferença é que não


sai com ninguém.
– Quem disse que eu não saio com ninguém??? –
aperto a buzina sem querer.
Ele me encara.
–Tá legal, eu não saio com ninguém faz tempo –
digo, trocando a marcha. – Só acho que
ultimamente não tenho encontrado ninguém por
quem valesse a pena lutar.
– Pois é. Eu também não.
– Touché!
– Somos mais parecidos do que você quer admitir
– ele diz. – Ambos somos seletivos quando se trata
desse assunto.
– Não é bem assim.
– Por que acha que nunca namorou, então?
– Eu não sei – dou um suspiro. – Talvez meu
timing não seja muito bom. Eu sempre chego tarde
demais, se é que você me entende.
Mas acho que ele não me entende. Não
completamente. Ele não faz ideia, não é? Ele nem

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ao menos suspeita.
– Pois eu acho que não. Nós dois somos muito
perfeccionistas nessa questão. – ele diz. – Ou
apenas azarados.
– Eu sou azarada. Você é um solteiro incorrigível.
– Não é assim – ele passa a mão nos cabelos e dá
risada. – Só que não vale a pena me arriscar quando
estou perfeitamente bem do jeito que estou.
Virando a esquina da rua dele, estaciono na vaga
mais próxima aos portões do prédio que consigo
encontrar. Um mendigo está deitado no chão,
coberto por um edredom surrado, em cima de uma
caixa de papelão.
Uma agonia cresce dentro de mim. Pobre homem!
Enquanto alguns têm uma casa quentinha, ele tem
apenas um edredom surrado e um pedaço de
papelão. Eu me culpo instantaneamente pela sorte
que tenho.
Enquanto pondero entre dar algum dinheiro a ele,
ou a não dar dinheiro nenhum – pois dizem que

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esmola não é a melhor solução para o problema –,


Leo interrompe meus pensamentos.
– Você vai querer isto? – ele pergunta.
– Humm... não.
– Então venha comigo – diz ele, abrindo a porta
do carro e agarrando a enorme bandeja com a
sobremesa de Alana, que já verificamos estar em
perfeitas condições. Menos para Pati, é claro.
– O senhor tem alergia a nozes? – Leo pergunta
ao homem e sorri para mim.
– Não tenho – diz o homem, estendendo as mãos
para pegar a bandeja.
– Então aqui está. Ainda tem o pacote de pratos e
talheres descartáveis que lhe dei semana passada?
– Ô, se tenho. Obrigado. Deus te abençoe, filho –
o homem diz, com olhos doces.
Leo troca mais algumas palavras com ele, com
um ar tão carinhoso que faz meu coração se apertar
e eu me pego sorrindo feito uma boba. Leonardo
anda em minha direção.

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A descartabilidade desses pratos e talheres


estranhamente se assemelham às mulheres com
quem ele sai, descartáveis para ele também. Ele
chega perto de mim e não resisto. Pergunto.
Não, não sobre as mulheres. Sobre os pratos.
– Você deu pratos descartáveis a ele?
– Para o Benedito?
Não compreendo por um instante. Leo vira a
cabeça para o homem sentado no papelão, comendo
feliz sua sobremesa de doce de leite com nozes. E
aí eu entendo. Leo não fez isso somente uma vez.
Ele deve ajudar esse homem com frequência.
– Benedito? – faço que sim com a cabeça. – É um
nome bonito.
– Sim, também acho. Ele é um bom homem. Não
gosto de vê-lo assim.
– E você sempre o ajuda?
– Sempre que o vejo por aqui. Mas ele nem
sempre está. Às vezes fica em um abrigo.
– Ah... – coitado do Benedito. Meu peito se aperta
de novo.

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Mas a dor em meu coração desfalece ao ver o


carinho que Leo tem com esse homem, seu cuidado
amenizando a vida sofrida que ele deve levar.
Talvez Leo não seja tão sem coração assim.
Caminhamos até o meu carro e a luz amarela do
poste incide sobre o rosto do Leo. Ele olha para
mim e sorri. Tiro a chave da bolsa e abro o carro.
Apesar do frio, de repente a noite ficou muito
agradável.
Só que aí Leo olha para o lado e arregala os
olhos. Eu acompanho o seu olhar e uma garota
muito bonita, de pernas compridas e cabelos
castanhos, vestindo calça skinny e top preto vem
em nossa direção. Eu normalmente chegaria à
conclusão de que ele estaria avistando seu próximo
alvo. Mas ele parece tão assustado que forço-me a
inspecionar melhor e finalmente reconheço de
quem se trata.
– Ah, não! – diz ele, virando de costas para ela e
de frente para mim.
– Se deu mal.

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É Bárbara.
Ela se aproxima mais ainda do prédio. O que é
normal, se pensarmos pelo ângulo de que ela mora
aqui. Mas Leo parece querer sumir da face da
Terra.
Estamos um pouco distantes, mas ela pode
reconhecê-lo a qualquer momento. Qualquer
mulher consegue reconhecer seu alvo. E essa daí
perece ser bem determinada.
– Ela me mandou um milhão de mensagens.
Droga, não quero que ela me veja agora!
– Então entra no carro, ora! – falo baixo.
Ele faz menção de entrar, mas nesse exato
momento ela olha em nossa direção.
E, no desespero, Leo faz uma coisa terrível.
Terrível!
Ele me puxa pela cintura... e me beija!
Eu sinto meu sangue esquentar até começar a
ferver. Meu coração dispara, minhas pernas
bambeiam e temo não conseguir ficar de pé.
O que ele pensa que está fazendo?

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Estou beijando o Leo? Ai, meu Deus! Eu?


Beijando o Leo?
Isso é muito errado. Erradíssimo.
Só que o problema é o seguinte: de repente, eu
esqueço de tudo a minha volta. Eu me esqueço do
Benedito, da mulher de pernas compridas, do meu
carro aberto, da onda de crimes em São Paulo. E se
eu não estivesse tentando ao máximo suprimir essa
sensação maravilhosa que é estar beijando o
Leonardo, eu poderia jurar que gosto muito disso.
A única coisa em que consigo pensar é nele, em
suas mãos segurando minha cintura com força, no
porquê de ele não ter me beijado antes, e no porquê
de ter me beijado agora.
Se eu for totalmente honesta aqui, sempre
imaginei como seria beijá-lo. Mas pensei que isso
seria algo que eu passaria a vida toda sem saber
como é.
A sensação da boca dele na minha é quente e
macia, e ele aperta a minha cintura fazendo com

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que eu queira chegar ainda mais perto, e mais perto


ainda e...
E então, com um sobressalto, eu volto a enxergar
tudo. Benedito nos encarando, o carro atrás de nós,
tudo. Ele parou de me beijar e eu fico desnorteada.
Minhas bochechas ardem na pele.
Ai, céus! Por que é que fui retribuir o beijo dele?
Meu coração bate tão forte que tenho medo de
isso ser visível. Olho para o meu próprio peito.
Não, deixe de ser idiota! É claro que não dá pra ver
seu coração se movendo!
Tento me recompor enquanto Leo olha para a
portaria do prédio, checando o paradeiro de
Bárbara, mas ela não parece estar mais por aqui.
Será que ela está escondida em algum arbusto, ou
até mesmo dentro do meu carro, planejando me dar
uma surra por causa do beijo?
Mas quem devia levar uma surra é o Leo! O que
foi que ele fez?
Ai, meu Deus, o que foi que ele fez?

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Sabe quanto tempo eu vou levar para esquecer


esse beijo agora?
Ele não tinha esse direito. Eu levei muito tempo
para enterrar certos sentimentos, que ele não podia
ter me feito lembrar.
Ele não tinha o direito de me fazer sentir de novo!
Rafa nunca pode saber disso. Ai, não! Se ele
descobrir, nunca vai querer se meter no meio de
nós dois. E o fato é que não existe “nós dois”.
Tento me acalmar. Somos apenas bons amigos. E
quando um amigo precisa da sua ajuda para,
digamos, despistar a ex – se é que podemos sequer
chamar Bárbara de ex-alguma coisa –, nós o
ajudamos. E se isso significa deixá-lo me beijar e
me fazer sentir, então que seja.
Aja naturalmente.
Só que sempre que penso em agir naturalmente,
imagino desenhos animados olhando para o alto e
assobiando. Então continuo com a mesma cara de
tonta quando ele finalmente olha para mim e diz:

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– Olha, me desculpe, tá legal? Uau, me desculpe


mesmo! – ele passa a mão na nuca e olha para o
próprio pé. – Eu não pensei direito. Não queria que
ela me visse, e não pensei direito. Você está bem?
– Sim... sim, sim, sim. Óbvio! Ótima – digo,
suspeitando que ninguém no mundo deve ter dito
tantos “sins” seguidos assim sem parecer idiota.
Eu disse aja naturalmente, e não como uma droga
de uma adolescente!
Benedito está se divertindo com a cena, nos
olhando e mastigando. Olhando e mastigando.
– Eu entendo – balanço as mãos. – Foi igual à
coisa toda com o armário. Amigo é pra essas
coisas! – dou um soquinho no braço dele.
– Certo! – diz ele, ainda me segurando pela
cintura. Quando ele percebe, se afasta
imediatamente de mim.
Isso para ele não deve ter sido nada. Nada! Ele
está acostumado a sair por aí beijando garotas e
coisas, tudo o que se move. Para ele, isso deve ter

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sido uma coisa completamente natural. Que


presunçoso!
Mas, em primeiro lugar, uma coisa
completamente natural não envolve a língua dele
dentro da minha boca, pra cima e pra baixo. E, em
segundo, não se deve sair por aí dando beijos em
todos os seus amigos. Você pode pegar herpes.
Ai, meu Deus! Será que eu peguei herpes?
Será que devo perguntar? Não, acho melhor não.
– Certo! – sorrio sem piscar, com os olhos
vidrados.
– Eu não deveria ter te beijado – ele passa as
mãos no rosto.
– Deveria, sim. Quer dizer, não! – corrijo-me
rapidamente. – Não deveria! Não deveria
meeeesmo. Mas tudo bem – dou um segundo soco
no braço dele, desta vez um pouco mais forte.
– Ai.
Ficamos em silêncio por um tempo e o clima está
ficando um pouco tenso. Até Benedito deve ter

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percebido, pois se virou para o outro lado e fingiu


estar dormindo. Ou dormiu mesmo, eu sei lá.
Nenhum de nós sabe o que dizer e nenhum dos
dois se olha nos olhos.
O pior de tudo é perceber uma coisa mais terrível
ainda: eu queria que ele me beijasse de novo. Que
ele simplesmente me puxasse para perto de si e
repetisse a dose. Agora.
Cadê a porcaria da Bárbara quando se precisa
dela?
Mas ele não faz isso. Mortificada, procuro a
chave do carro na bolsa, mas não consigo encontrá-
la.
– Droga! – arranho o dedo no zíper da bolsa,
durante a fúria da busca pela chave perdida. Por
que nunca encontro o que quero nessas drogas de
bolsas? Eu encontrei até um absorvente aqui
dentro, mas não encontro a porcaria da chave.
– Quer ajuda? – ele pergunta, e toca minha mão
sem querer. E então afasta a mão de novo como se
pudesse pegar uma doença ao encostar em mim.

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Ou, quem sabe, para evitar que uma garota como eu


imagine que esse beijo poderia nos levar a um
relacionamento sério.
– Não, não precisa.
Encontro a maldita chave. Mas não dentro da
bolsa, e sim na fechadura do carro. Me lembrei de
que eu já tinha aberto o veículo e a chave estava na
porta esse tempo todo. Perda de tempo, vergonha à
toa.
Eu me despeço do Leo com um aperto de mãos.
– Nos vemos... humm... depois – digo, abrindo a
porta.
O único problema é que, nervosa do jeito que
estou, tento entrar no carro pela porta do
passageiro, quando deveria estar na porta do
motorista.
Caramba, esse dia não acaba nunca?
Tenho duas opções aqui: a) ir até a outra porta,
sem graça, revelando meu verdadeiro estado
emocional ou b) mostrar que sei o que estou
fazendo.

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E escolho, estupidamente, a última opção.


Entro no carro pelo banco do passageiro e faço
uma manobra como se fosse uma contorcionista –
batendo a bunda no freio de mão, importante
acrescentar –, enquanto atravesso para o banco do
motorista, que é por onde eu sabiamente deveria ter
entrado da primeira vez.
Que ideia ridícula! Pareci ainda mais idiota.
E o pior de tudo é que, enquanto dirijo de volta
para a casa dos meus pais, só consigo pensar no
quanto eu já quis ter beijado o Leo um dia, há tanto
tempo. E que isso finalmente só aconteceu porque
ele estava tentando despistar outra garota.

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– Tô falando pra você que eu vou! – eu disse a


ele.
– Pois eu não acredito.
Quando comecei a cursar a faculdade de
Psicologia, eu disse a mim mesma que iria em
todas as festas da faculdade, para compensar todas
as matinês a que eu não tinha ido na escola. E
Leonardo duvidava disso.
– Ah, é? – eu disse ao Leo. – Pois então você
verá.
Conheci Leonardo no meio do primeiro ano. Ele
estava sentado em uma das cadeiras da secretaria,
esperando ser chamado para o atendimento, assim

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como eu. Eu tinha que resolver um problema sobre


o pagamento da mensalidade e ele estava
resolvendo um problema com a matrícula.
– Por que é que temos que pegar senha – ele
apontou a sala vazia com as mãos e olhou para mim
– se somente nós dois estamos esperando e há três
atendentes?
Comecei a rir.
– Talvez porque elas tenham coisas importantes a
fazer – eu disse, com cara de entendida, e me
inclinei na direção dele, sussurrando. – Como
mandar uma daquelas correntes de e-mail que, se
você se recusar a repassar até a meia-noite para 358
pessoas, sua família inteira morre.
Ele deu uma risada muito alta, e eu me lembro de
aquele ter sido o momento em que eu me interessei
por ele pela primeira vez. Os olhos dele eram os
mais lindos que eu já tinha visto, daquele tipo que
você simplesmente não consegue parar de olhar.
A atendente chamou meu número, e a essa altura
eu já tinha dado o meu celular a ele. Começamos a

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andar juntos pelo campus da faculdade todos os


dias. Na hora do intervalo, ele trazia dois amigos
para conversar com as minhas dez amigas na
lanchonete, e ficávamos assim até a próxima aula
começar.
Todas as minhas amigas o achavam lindo, e
apesar de não ter como negar isso, eu sempre
negava. Só que, de algum modo, eu não conseguia
negar a mim mesma que estava começando a sentir
alguma coisa por ele, mesmo com o Rafa, lá em
outra faculdade, há tanto tempo em meu coração.
Ele parecia estar ficando sem espaço.
E acho que foi esse o motivo pelo qual eu tive que
dizer não. Um mês depois que nos conhecemos,
Leo estava particularmente mais próximo de mim,
em todos os sentidos. Ele ficava ao meu lado e
sempre dava um jeito de me tocar, perguntava
minha opinião sobre vários assuntos, me chamava
para sair com os amigos dele. E eu devo admitir
que estava gostando muito disso. Mas lá estava
Rafael, no final de semana, sempre comigo.

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Alguém que me parecia uma opção muito mais


segura. Não sei se foi o medo de arriscar, se foi
porque Leo era muito mais bonito, o medo de não
ser boa o suficiente para ele, ou se foi porque eu
realmente continuava gostando do Rafa, que tive
que dizer não.
– Posso te fazer uma pergunta hipotética? – Leo
me perguntou em uma tarde, enquanto estudávamos
na biblioteca quase vazia.
– Então terei que responder hipoteticamente
também – eu disse.
– Certo. Se eu te dissesse, hipoteticamente
falando, é claro...
– Sim, claro – disse eu, achando graça daquela
brincadeira.
– Se eu te dissesse que posso estar interessado em
você, o que você diria? Hipoteticamente – ele me
perguntou com um sorriso confiante no rosto.
Então acho que a resposta a seguir deve tê-lo
deixado surpreso.

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– Eu... – entrei em pânico. Ele me olhava tão


intensamente que pela primeira vez na vida eu
soube o que era ter alguém dizendo que aprecia
você de verdade. – Eu diria que eu prefiro que a
gente continue do jeito que está. Hipoteticamente.
Eu não poderia ter sido mais burra.
Ele parecia ter tomado um tapa na cara.
– Sim, claro. Foi só, você sabe...
– Hipoteticamente? – eu perguntei, fazendo que
sim com a cabeça.
– Sim. Isso. Hipoteticamente.
Eu procurava o que dizer, mas nada me surgia.
Depois de um tempo em silêncio, ele me deu um
beijo no rosto, fechou o caderno e saiu pela porta
da biblioteca.
Eu pensei que, se eu estivesse na dúvida, era
melhor deixar como estava. Pelo menos por hora.
Afinal, estávamos sempre juntos, então para que a
pressa? Eu provavelmente teria outras chances.
Digamos que eu não seja a melhor pessoa do
mundo quando pressionada.

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Tentando cumprir minha promessa de ir a festas


de faculdade, eu já tinha conseguido sobreviver a
duas naquele ano. Não é que eu não goste de
baladas. É só que, na minha cabeça, elas são “um
inferno na Terra”. Tá legal, isso soou meio
negativo, mas veja bem: você se arruma por duas
horas (e estou sendo generosa aqui), mergulhando
em maquiagem e perfume, vestindo sua melhor
roupa e salto alto para descobrir que algum idiota
bêbado (ou alguma idiota bêbada, não sejamos
machistas) vai derramar cerveja/vodca/energético
em você, molhar a sua melhor roupa, pisar no seu
sapato preferido, empurrá-la ou fazer com que você
se esprema para passar pela multidão para chegar
ao banheiro feminino, só para encontrar uma fila de
vinte e cinco meninas apertadas, com a bexiga
estourando. Por esses e outros motivos, eu
considero balada “um inferno na Terra”.
Mas eu fui nas duas festas do primeiro semestre,
porque estava tentando viver como uma
universitária. Sabe como é, aproveitando todos os

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momentos que eu não poderia viver depois. E a


terceira festa daquele ano seria à fantasia, na qual
todos passavam o ano inteiro imaginando qual
fantasia usariam, para efetivamente providenciá-la
apenas uma semana antes da festa.
Como sou uma pessoa relativamente organizada,
já estava com a fantasia alugada muito tempo antes:
coelhinha. Eu sei, eu sei. Eu não tenho cara de
quem gosta de se vestir de coelhinha, a la Bridget
Jones, mas é que nessa ocasião eu queria
impressionar alguém, não que eu quisesse admitir
para mim mesma ou para ninguém. Eu queria
impressionar o Leo e fazê-lo continuar interessado
em mim.
Fazia uma semana desde que ele tinha conversado
hipoteticamente comigo, e as coisas estavam um
pouco estranhas entre a gente. Conversávamos no
intervalo, mas desde então nunca sozinhos, sempre
com nossos amigos em volta. Comecei a notar que
algumas colegas minhas caíam matando em cima
dele e senti ciúmes. Ele era meu amigo! Eu o tinha

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apresentado a elas! Ficava observando, com o que


eu esperava que não fosse uma expressão de raiva
tão óbvia, enquanto aquela palhaçada acontecia em
todos os intervalos. Talvez eu gostasse sim do Leo,
mas nem um pouco hipoteticamente. Eu já não
pensava muito em Rafa havia algum tempo. E
então me animei com a possibilidade de me
declarar ao Leo durante a festa à fantasia.
Era a noite da balada e eu estava ansiosa com
meu rabinho de coelhinha no centro da bunda,
grudado no tecido do vestido preto justo. Na
maioria das vezes, eu me colocava para baixo
quando me comparava às outras meninas, mas não
naquele dia. Não senhora! Naquele dia, eu estava
realmente bonita.
O tomara que caia fazia meus seios ficarem
empinados e lindos, como eu nunca achei que seria
possível, já que eu praticamente não tenho peitos.
Minha roupa chamava atenção, mas era porque eu
estava com duas orelhinhas de coelho, fantasia que
por si só já é considerada sexy. Mas não era vulgar

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como a de muitas outras meninas que passavam por


mim, que fizeram a proeza de transformar uma
fantasia fofa de abelhinha em abelhinha indecente.
Pati sempre me acompanhava nas festas da
faculdade. Depois de uma fila gigantesca, entramos
no salão abarrotado, com luzes coloridas piscando
para todos os lados, e a música eletrônica tão alta
que era impossível falar sem gritar. Pati – que
estava vestida de líder de torcida – pegou uma
cerveja no bar, enquanto eu fiquei na água. Não
queria ficar com hálito de bebida alcoólica caso eu
me encontrasse com o Leo e tomasse coragem de
beijá-lo.
Sim, era esse o meu plano.
Pati encontrou uma amiga de faculdade, então eu
sai em busca dele. Não queria que minha
maquiagem borrasse e nem que eu começasse a
ficar grudenta, então quanto antes eu o encontrasse,
melhor. Fora a ansiedade imensa se insinuando na
ponta do meu estômago.

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Eu não podia mais segurar. O segredo estava me


matando! Atravessei a horda de pessoas bem
vestidas da festa à procura de seu rosto. Ele
precisava saber o que eu sentia.
Será que era o certo a fazer?
Eu não fazia ideia.
Minhas mãos tremiam enquanto eu olhava de um
lado para o outro à procura daquele rosto que fazia
meu coração saltitar igualzinho a um fã
ensandecido em show de pop. A única coisa que eu
sabia é que eu não podia perdê-lo sem antes tentar.
Mas eu não o encontrava de jeito nenhum. O
salão estava muito lotado e eu já tinha dado uma
volta inteira, parando para dar risada das inúmeras
fantasias bizarras que encontrava no caminho,
como um menino vestido de privada, duas pessoas
(a segunda sem respirar, imagino) vestidas de
cavalo, e um menino vestido de coelhinha sexy, o
que me fez parecer totalmente ridícula ao lado dele,
ou o que o fez parecer totalmente ridículo ao meu
lado. Mas ele estava tão bêbado que não pareceu se

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importar, e inclusive tentou me puxar para dançar


com ele, ao que eu me esquivei de suas mãos
suadas. Eu não disse? Inferno na Terra.
Liguei para o celular do Leo, mas é claro que ele
não atendeu. Ninguém escutaria o toque do celular
nessa barulheira toda, se é que ele tinha levado o
celular para a balada.
Estava morrendo de medo de ele não ter ido à
festa de última hora, estragando todo o meu plano,
minha expectativa (desde sempre alta demais) me
devorando viva.
E quando eu estava quase desistindo, vi um
pedaço do cabelo dele e um par de olhos verdes
refletidos pelas luzes cintilantes entre a multidão,
escondido entre uma pessoa e outra que tapava a
minha visão. Apertei o passo e ajeitei o vestido
colado no corpo – Deus! Aquele vestido estava
muito apertado –, a respiração entrecortada traindo
meu raciocínio lógico.
Que se dane a lógica!

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Marchei em direção a um Leo vestido de surfista.


Foi quando ultrapassei a última pessoa entre nós
que meus olhos viram o que me pareceu um soco
no estômago.
Não que eu já tivesse tomado um soco no
estômago para saber como é.
Mas eu definitivamente preferia ter levado um.
O que vi me deixou enjoada. Lá estava ele...
agarrado a uma das minhas colegas de sala, a
mesma que sempre dava em cima dele, os lábios
colados ao dela, e me lembro de começar a ficar
tonta. Ele estava cambaleante, devia estar bêbado
feito uma mula, e eu fiquei parada sem conseguir
me mover.
É claro que eu não podia culpar a nenhum dos
dois, eu e o Leo não tínhamos nada um com o
outro. Eu não podia gritar com eles. Mas isso não
me impediu de ficar chateada com ela, e de
considerá-lo um galinha. Não achei que ele se
interessaria por outra pessoa tão rápido assim, e
aquilo fez com que eu me sentisse substituída.

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Conclui que eu estava enganada se por um segundo


imaginei que ele sentisse alguma coisa real por
mim. Talvez tenha sido só uma quedinha sem
importância.
Permaneci parada no meio da multidão, com o
rabinho de coelho, me sentindo tão idiota quanto a
Bridget Jones quando descobre que Daniel a está
mesmo traindo. Seria uma maldição que essa
fantasia carrega? E quando derrubaram cerveja no
meu braço pela quinta vez na noite, era hora de ir
embora. Porque eu estava realmente perto demais
de me machucar muito, muito feio.
E assim se encerraram as baladas da faculdade
para mim. Nunca mais fui a nenhuma delas.
Depois dessa história, enterrei tudo o que um dia
senti pelo Leo. Era óbvio que ele sempre escolheria
ficar com um monte de garotas por aí. E foi só uma
bobagem minha, não é? Ele não combinava comigo
e nem nada. Onde é que eu estava com a cabeça?
Então voltei a minha opção segura, o Rafa. Era
mais razoável ficar na fila de espera do Rafa, o cara

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coerente, do que na fila do mulherengo do Leo.


Rafa era um cara que, assim como eu, entendia as
prioridades certas da vida. Não saía por aí
fantasiado de surfista (muito menos de coelhinha).
Alguns diziam que ficaríamos juntos, e eu sorria
tranquila, distraindo o meu coração partido.
Só que quando o Leo me beijou agora...
Deus! Por que ele tinha que beijar tão bem?

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– Melissa, temos um problema – ela entra em


minha sala e joga sua bolsa Martin Gutiérrez
espalhafatosamente na cadeira. – Temos um grande
problema!
Alana me encara, as mãos na cintura.
Fico paralisada. Por um momento, eu acho que
ela descobriu tudo sobre mim.
Mas é claro que ela descobriu! Como não
poderia? Sou muito próxima do Rafa. Ela deve ter
descoberto de alguma forma. Minha mente voa em
direção a justificativas. Como devo me portar?
Fingindo-me de inocente? Finjo de morta igual a

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um cachorro? Admito tudo de uma vez? O que


devo fazer?
– Qual... – tusso. – Humm... qual é o problema?
– O futuro! – diz ela, pálida.
Fico sem entender.
– O futuro, Melissa – ela repete, impaciente. –
Meu e do Rafael. O teste!
–Ah! – abro um sorriso. – É esse o seu problema?
Suspiro aliviada ao perceber que ela não faz ideia
de quem eu sou. Quer dizer, ela faz ideia de quem
eu sou porque sou sua terapeuta, mas nada além
disso. Paro de me impressionar com a sorte que eu
tenho, e paro de sorrir também. Acho que não é
muito coerente sorrir de felicidade quando um
paciente lhe conta que tem um problema.
Pela primeira vez, o que ela diz representa uma
reviravolta nos testes, o que consequentemente
deveria representar uma vitória para mim.
Então é estranho que não pareça ter tanta graça
assim? É esquisito que eu não consiga parar de
pensar nos lábios do Leo?

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Tá. Talvez seja esquisito. Concentre-se, Melissa!


Tenho a intenção de dizer a ela que prossiga, que
estou acompanhando, mas ela já se sentou na
cadeira a minha frente e prosseguiu a todo vapor.
– Muitos dos nossos planos convergem. Muitos.
Temos vários pontos em comum em nossa visão
para o futuro – ela balança as mãos enquanto fala,
mas dessa vez elas tremem. – Mas uma delas
diverge. E muito.
– Ora, mas se trata apenas de uma divergência.
Talvez vocês possam conversar e...
– Ele não tem certeza se quer ter filhos.
Oh!
– É mesmo? – ergo as sobrancelhas.
Eu sempre achei que o Rafa quisesse ter um
montão de crianças correndo pela casa.
Nesse momento, meu coração se quebra junto
com o dela. Ele não quer ter filhos? Nunca?
– O que ele disse? – pergunto, cruzando as mãos
em cima da mesa.

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– Eu comentei com ele qual o meu nome de bebê


preferido... sabe como é, só estava imaginando.
Falei que queria ter dois filhos e um cachorro e ele
surtou!
Rafael é alérgico a cachorros. Talvez ele tenha
surtado por causa da parte do cachorro, penso em
estado de negação.
Os lábios dela se afinam.
– E então começamos a discutir feio e ele disse
que não tinha certeza se estava preparado para isso.
– Por causa do cachorro? – arrisco.
– Não! Por causa dos filhos.
– Mas pode ser que ele só esteja querendo ir com
calma.
– Não dá para ter calma num momento como
esse, Melissa! – ela dá um tapa na mesa. – Estamos
quase nos casando e... e...
– E?
– E preciso que ele me diga que está preparado
para tudo – ela enfatiza. – Preciso saber que ele
quer ter uma família comigo.

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– Entendo. Mas e você, Alana? Está preparada


para ter uma família?
– Não totalmente – ela pensa por um momento. –
Mas eu vou estar quando a hora chegar.
Tenho que admitir que isso é realmente um
problema. É um tremendo de um problema.
“Paternidade” é um assunto a ser discutido antes de
se comprometer no sagrado matrimônio. Rafa pode
ser bem mente fechada quando quer, e tem certos
assuntos que ele simplesmente não consegue abrir
mão. Como o do cachorro, por exemplo.
– Eu acho que ele até podia mudar de opinião
quanto aos filhos. Só que o problema é que, depois
da discussão, ele disse um monte de coisas
preocupantes.
– Como o quê? – levo a caneta até o queixo.
– Que estávamos indo rápido demais e que ele
precisava pensar.
– Pensar? – pergunto, para que ela analise a
situação junto comigo. – Teoricamente ele não teria

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que pensar a essa altura, já que foi ele quem a pediu


em casamento.
E é então que eu entendo.
– Espere um pouquinho... você acha que ele pode
estar arrependido?
– Talvez... – o olhar dela é tão triste que meu
coração se aperta contra o peito. Nunca tinha visto
um olhar desses no rosto bronzeado e animado
dela, que agora assume um tom mais pálido.
O que eu sempre admirei no Rafa foi seu
comprometimento. E esse traço de sua
personalidade parece ter acabado de sumir.
Quem diria que seria o Rafa a desistir!
– O que devo fazer? Você tem que me ajudar.
Por... favor – ela diz, apertando minha mão por
cima da mesa. A mão dela é quente e macia. Agora
sim fico preocupada com ela. Desde quando Alana
deixou de ter a mão fria combinando com a sua
alma?
Dou um sorriso sem graça, a garganta seca
contraindo-se involuntariamente. Sinto-me culpada

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por ela estar se sentindo dessa forma. Por um lado,


os testes foram ótimos pois desencadearam uma
porção de informações sobre o parceiro. Só que
esse também é, ironicamente, o lado negativo da
coisa.
Ao mesmo tempo, sei que, se não fosse por mim,
ela nunca saberia dessa informação de extrema
importância para o relacionamento. Ela tinha o
direito de saber.
– Eu sugiro que você dê um tempo a ele, para que
ele esfrie a cabeça. Dê a ele dois dias e depois
conversem sobre o assunto novamente. Você vai
precisar tirar dele essa informação. De repente ele
pode dizer que pensou melhor e mudou de ideia.
Ela faz força com os olhos, como se estivesse
evitando que as lágrimas surjam.
– Tá, mas e se ele não disser?
Eu solto o ar do meu peito.
– Então aí você terá que decidir se é capaz de
ceder.

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Ela olha para baixo. Uma única lágrima caindo


em sua bochecha coberta de blush.
– Eu não sou.
– Então está aí a sua resposta. Ou ele diz que está
a bordo, ou pula do barco.
Toco na mão dela.
– Obrigada – ela diz baixinho. – Eu não sei o que
faria sem você.
As palavras dela aquecem meu coração de uma
maneira que eu nunca imaginei que pudesse
acontecer em sua presença. Seu rosto de princesa
agora é muito menos ameaçador do que antes. E
não é só por causa da maquiagem borrada.
Não. É também porque acabo de perceber que
tenho nutrido um sentimento inesperado por Alana:
carinho.
Leo tinha razão. Rafa realmente pode ser um pé
no saco às vezes.
– Eu o amo tanto, mas tanto! – ela diz,
começando a chorar de verdade.

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– Eu entendo você. Mas o seu relacionamento


amoroso deve fazê-la feliz – enfatizo essa última
parte. E não acredito no que digo em seguida. – E
se você tiver certeza de que é ele quem a faz feliz,
podemos marcar uma consulta com vocês dois para
tentarmos tornar o diálogo entre vocês mais aberto.
Isso seria um completo fiasco. Porém, mais cedo
ou mais tarde, tudo estará às claras, não é? Não dá
para passar o resto da vida me escondendo dos
dois.
Além do mais, minha vida pode não estar lá essas
coisas, mas para mim é importante que pelo menos
a dela esteja.
– Vou pensar nisso – ela tira da bolsa um lenço
azul de aparência cara, bordado com um
monograma, e com ele dá leves tapinhas no rosto
para secar as lágrimas.
Ao final da consulta, Alana me dá um abraço
apertado e suas lágrimas molham minha camisa. Aí
eu repenso duas coisas: a primeira é que vou ter

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que lavar essa camisa hoje, apesar de ter tido a


intenção de usá-la duas vezes antes disso.
A segunda é que nem tenho mais tanta certeza
assim sobre essa minha história toda com o Rafa.
Alana pega sua bolsa na cadeira e então põe a
mão na barriga.
– Querida, preciso usar o seu banheiro. Estou me
sentindo mal.
Ela coloca a mão na testa e então dá passadas
rápidas que se transformam em uma corrida até o
banheiro. Sem fechar a porta, abre a tampa do vaso
e começa a vomitar.
Pobre coitada! Ela deve estar uma pilha de nervos
por causa do casamento, demonstrando o que
podem ser sinais de estresse. Olho para Lorraine,
que tem no rosto uma expressão enojada.
Se fosse comigo, eu também vomitaria. Se meu
futuro marido não quisesse ter filhos e me avisasse
a essa altura do campeonato, acho que eu vomitaria
na cara dele. Eu não queria estar na pele dela.

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Não quero nem ver a reação de Alana quando


descobrir que também não vai poder ter um
cachorro.

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Às cinco em ponto, eu caminho até o banheiro do


consultório, torcendo para que não esteja ocupado
por nenhum paciente de Júlio.
Está livre, graças a Deus! Fecho a porta,
carregando minha bolsinha de maquiagem em uma
mão e minha chapinha portátil em outra, mas não
antes de vislumbrar de relance o olhar de tédio de
Lorraine me seguindo até a última fresta de
abertura da porta desaparecer. Eu não sei o que essa
garota tem, mas confesso que ela me dá certo
medo.
Às cinco horas e cinquenta e quatro minutos
dessa terça-feira, a campainha do consultório toca e

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meu estômago começa a se sacudir. Talvez seja


fome.
Escuto Lorraine dizer (com uma voz
irreconhecivelmente doce) “pode entrar, pode
entrar” para o Leo, assanhada do jeito que é. Ele
responde baixinho alguma coisa que não consigo
ouvir muito bem, mas torço para que seja apenas
educado com ela, e não dê em cima da garota.
Não que eu ligue.
Ainda não acredito na história do Rafael não
querer ter filhos, mas ultimamente tenho prestado
atenção em muitas outras coisas. Minha cabeça
mais parece um turbilhão de pensamentos, e estou
meio biruta tentando organizar todos eles.
A carona oferecida por Leo permitiu que eu me
vestisse adequadamente pelo menos uma vez na
vida a um lugar de alto nível como o Villa’s – que é
para onde iremos para um happy hour –, com
direito a salto alto e tudo mais.
Não que eu me importe.

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Minhas pernas tremem. Mas é claro que deve ser


somente por causa do frio, ou por causa do salto
agulha que uso nos pés. Abro a porta que dá para a
recepção. E eu posso jurar que o queixo do Leo cai
alguns centímetros quando caminho com meus
saltos doze até ele.
Mas quem é que liga?
A reação dele é compreensível, já que dessa vez
eu caprichei bem caprichado mesmo. Em uma hora,
ondulei o cabelo dando uma leve desorganizada
nele para parecer que acordei assim e que nem
precisei penteá-lo. Também passei uma tonelada de
maquiagem, quase substituindo meu rosto por outro
completamente novo. O toque final foi o batom
vermelho matte, delineando minha boca.
Eu precisava me sentir bonita hoje. Meus lábios
precisavam parecer beijáveis. Vai que alguém
tentasse me beijar essa noite também...
Por isso ele parece tão surpreso. Ou talvez haja
alguma coisa errada comigo, como uma mancha na
minha roupa, ou a calcinha presa para fora do

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vestido. Ou talvez eu tenha passado aquele batom


escuro de maneira borrada no lugar do claro de
novo, para o Leo estar me olhando desse jeito.
– Você está linda – ele diz, a voz rouca, e me olha
com aqueles olhos cuja cor está ainda mais intensa.
Ele me cumprimenta, pousando a mão
suavemente sobre minha cintura através do vestido
fininho, e por um momento eu até me esqueço que
quem me deu esse vestido foi o Rafa. O vestido
está pendurado em meus ombros pelas duas
alcinhas finas e uso um sutiã que avantaja um
pouco meus seios quase inexistentes. E me lembrei
também de colocar uma calcinha bonita, para o
caso de o vento bater, sabe como é, na bunda.
Não que eu esteja ligando...
Passamos o dia trocando mensagens sem sentido.
O Leo sabe ser muito engraçado. Descobri várias
coisas sobre ele. Por exemplo, sabia que o cantor
preferido dele é o Jorge Vercillo? Dá pra acreditar
numa coisa dessas? Eu não fazia ideia. Jorge
Vercillo é tão poético e Leo é tão... bom, talvez Leo

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seja poético também, vai saber! E sabia que a cor


preferida dele é laranja? Pelo amor de Deus, quem
é que tem laranja como cor preferida?
E a fruta preferida dele também é a laranja! Dá
pra acreditar? Ai... só o Leo, viu!
– E aí, vamos? – digo a ele, as bochechas quentes,
mas sem agradecer ao elogio. A última coisa de que
preciso é de Lorraine assistindo a minha vida de
camarote. Saímos do consultório acompanhados do
olhar interessado dela. – Eu sei que o Rafa marcou
de irmos ao Villa’s, mas depois de te ver vestida
desse jeito... – ele para antes de abrir a porta do
carro do lado do motorista. –Deveríamos ir a algum
lugar mais sofisticado.
– Você só está sendo gentil – digo, entrando no
carro e batendo a porta.
– Não, na verdade estou tentando arranjar uma
desculpa para não ir ao Villa’s – ele entra e bate a
porta também. – Eu odeio aquele lugar.
– É sério? – viro-me no banco abruptamente. – Eu
também! Não acredito que você também não gosta.

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– Os garçons são muito esnobes.


– E a água é muito cara.
– O frango frito é muito caro – ele me corrige.
– E a recepcionista nos olha de cima a baixo.
– Hoje ela vai te olhar de cima a baixo, com
certeza – ele diz e sinto meu rosto esquentar. –
Aposto que os caras vão cair matando em cima de
você.
– Eu duvido – digo e mexo nas unhas. – E você?
Humm... com quem está saindo agora?
– Com ninguém. Tem uma garota... mas ela não
me quer.
– Não diga? Há uma primeira vez pra tudo –
deixo escapar um meio sorriso.
– Segunda vez – ele diz, olhando para a avenida,
e me pergunto se sei de quem ele está falando.
Borboletas circulam meu estômago e parece que
elas estão dando uma festa lá dentro.
– Como sabe que ela pensa assim?
– Eu a conheço bem.
– Se você diz...

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– Então, psicóloga Melissa – um sorrisinho surge


nos lábios dele, e meu coração se derrete só de
olhar para a sua boca. – O que fazer quando não
tenho certeza se o interesse é recíproco?
Será que ele está mesmo falando de mim? Não
quero fazer papel de idiota aqui.
– Não fique com outras pessoas. Já é um começo.
Ele dá uma gargalhada deliciosa, que me faz rir
também.
– Acha que ela ia gostar disso?
– Pode ser que sim, pode ser que não... Quem sou
eu pra saber?
O carro para no farol. Ele me encara enquanto
sorrimos um para o outro, mas em seguida desliza
seu olhar para a minha boca. Acho que o negócio
do batom funcionou. Mas não sei muito bem o que
dizer em seguida. Então viro o rosto e observo o
farol vermelho.
Como que para quebrar o silêncio, ele liga o rádio
e é Jorge Vercillo quem está cantando na estação de
rádio selecionada.

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Começo a cantar baixinho, no ritmo da música


“Final Feliz”.
E me surpreendo quando Leo também começa.
Ele grita, bem alto, cantando a plenos pulmões e eu
morro de rir com sua empolgação. Ele me olha e
continua a cantar, como se fosse pra mim.
Alguma coisa acontece, eu não sei explicar, mas
começo a cantar tão alto quanto ele, enquanto o
carro se move em direção ao bar que a gente odeia,
e as coisas não parecem assim mais tão ruins.
Tenho deixado Rafa em uma posição que talvez
não lhe pertença. Eu não estava esperando por isso,
mas acho que não há melhor amigo do que o Leo. E
talvez não haja melhor pessoa também. Não estava
nos meus planos. Mas ora, que se dane, não é?
Ao chegarmos, a recepcionista não me olha de
cima a baixo. Ela olha o Leo de cima a baixo e faz
meu estômago embrulhar. Que atrevida! Dá
vontade de dar com o cardápio na testa dela.
– Por que demoraram tanto? – uma voz grossa soa
no ar e levo um minuto até perceber que não vem

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da recepcionista. – Achei que não viriam mais.


Atrás de nós está Rafa, com seu cabelo certinho
penteado para trás. Ele vem da porta do banheiro,
dá um abraço em Leo e um beijo em mim,
observando-me por cinco segundos antes de dizer:
– Você está fantástica.
Meu reflexo é olhar para Leo. Não foi a
recepcionista quem me olhou de cima a baixo, foi o
Rafa, mas ele quase acertou. Porém, ele não está
mais ali. Leo virou as costas e caminha em direção
à mesa, deixando-nos aqui de pé um ao lado do
outro.
– Er... obrigada – fico na ponta dos pés para
enxergar o caminho que Leo está fazendo até a
mesa.
– Senti sua falta na casa da Pati. Espero que esteja
se sentindo melhor.
– O que disse? – paro de observar o Leo para
olhar para o Rafa. – Ah sim, eu estava... humm...
com dor de barriga, não é?
A miserável da Pati!

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– Parece que terei que conhecer Alana só no


casamento.
Os lábios de Rafa tornam-se um risco fininho e
ele desvia o olhar.
– Humm... Certo. – ele diz. – Por que não vamos
para a mesa?
– Ótimo! – aperto o passo para alcançar o Leo,
que caminha a alguns metros na minha frente com
uma camisa social azul com pequenas listrinhas
brancas muito bonita, que ajustam-se perfeitamente
nos ombros enquanto ele se move. É sério, ele já
tinha todos esses músculos antes?
Chegamos à mesa onde está sentada Pati, com
uma combinação irreverente de chapéu coco e
vestido de bolinhas por baixo de um colete de
tweed. Admito que a iluminação suave dá ao
ambiente um toque refinado, mas não à Pati.
Analisar o cardápio faz meu coração palpitar
ainda mais. Os preços aumentaram e o meu drink-
padrão agora custa uma fortuna. O problema é que

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esse não é o tipo de bar que aceita que clientes


pobres lavem os pratos.
Então, sutilmente troco meu pedido, pedindo uma
água mineral sem gás. E por R$5,90 é bom que ela
venha da fonte da juventude.
– Ouvi dizer que hoje é por conta do noivo? – Pati
diz, após checar o cardápio e fazer uma careta para
mim.
Rafa não escuta e continua lendo o cardápio.
– Ei... – Pati se inclina e lhe dá um cutucão. –
Está tudo bem?
– Como é? – Rafa levanta a cabeça. – Humm...
claro, mas é claro. Eu os convidei, então hoje é por
minha conta.
Pati se inclina para frente, em tom conspiratório.
– Sendo assim, espero ser convidada mais vezes.
– E será – diz Rafa. – Qualquer coisa para que me
perdoe pelo incidente com as nozes.
– Tudo bem, querido. Pode me envenenar,
contanto que me pague um gim-tônica.

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Fazemos nossos pedidos e conversamos sobre


trabalho. Eu os atualizo sobre minha secretária
desorganizada e eles reclamam de seus chefes
babacas. Tenho o cuidado de evitar falar sobre os
meus pacientes. Bom, de uma em particular.
O tempo vai passando, conversas são jogadas
fora, petiscos são servidos e engolidos e eu dou
risada das coisas bobas que o Leo diz.
– Parece que você gostou da minha despedida de
solteiro, não é? – Rafa dirige-se a mim. – Parece
que ela gostou bastante, né, Leo?
– Do que vocês estão falando? – digo, a cabeça
intercalando a direção entre um e outro.
– Vimos você dançando com o Alessandro – Rafa
explica.
– É Alexandre! – digo.
– Não é, não – Rafa sorri, diplomático. – Acho
que sei o nome do meu colega de trabalho. O nome
dele é Alessandro.
Viro-me para o Leo.
– Mas não era Alexandre?

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– Ao que parece, eu chamei o cara pelo nome


errado esse tempo todo – ele sorri para mim e toma
mais um gole de sua cerveja diretamente da garrafa.
Sorrio de volta, cerrando os olhos para ele.
– Eu não me interessei por ele, se é o que vocês
querem saber – anuncio, com o olhar fixo ao do
Leo.
Rafa despeja mais chope em seu copo de vidro.
– Ele não é o seu tipo – ele diz, categórico. ​–
Você precisa de alguém mais maduro. Alguém
mais parecido com você.
Coloco uma batata frita na boca, ponderando a
respeito do comentário dele. E não tenho mais tanta
certeza sobre esse negócio de pessoas similares
formarem melhores casais. Acho que não preciso
de alguém parecido comigo. Não! Preciso do exato
oposto.
No final da noite, Rafa e eu nos posicionamos na
fila para pagar a conta, enquanto Pati e Leo vão ao
banheiro.

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– Obrigado por ter vindo hoje. Eu estava


precisando me distrair.
– Não tem de quê – digo, fitando a porta do
banheiro masculino.
– Você sabe que eu sempre apreciei a sua
disponibilidade, não é?
– Como disse? – pergunto, virando o rosto para o
Rafa.
– Eu disse que aprecio o fato de você estar
sempre presente, vir comigo aos lugares que eu
gosto. Não pense que eu não reparo nisso.
A Melissa de um mês atrás estaria pulando de
alegria com esse comentário. Afinal, passei um
bom tempo fissurada no cara. Mas eu ainda sou a
mesma Melissa?
– Er… certo. – passo a comanda do bar de uma
mão para a outra, repetidas vezes.
– Deixe que eu acerto isso – ele pega a comanda
da minha mão e se adianta em pagar a nossa conta.
O que ele pensa que somos? Um casal?
– Não tem que fazer isso, sério...

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– Eu faço questão.
– Só estávamos brincando na mesa – tento puxar
a comanda de suas mãos, mas ele não deixa.
– Será um prazer.
Eu cedo.
Droga, se eu soubesse, teria comido mais!
Ele paga o que devemos ao restaurante – e deixa
acertado também o gim-tônica de Pati – e uma fila
gigantesca se forma atrás de nós. Parece que o bar
inteiro decidiu ir embora ao mesmo tempo.
Inclusive Pati e Leo, que agora posicionam-se ao
final dela.
Dou um tchauzinho a eles e mostro a língua para
o Leo, que abre um sorriso enorme e meu coração
parece voar entre as nuvens. Mas logo sou puxada
pelo braço por Rafa em direção ao vento gelado de
fora do bar e me arrependo por ter escolhido um
vestido de tecido tão fino. Vestido esse que ele
mesmo me deu. Vestido estúpido!
Sentamos num banquinho de pedra ao lado da
porta, a fim de esperá-los pagarem a conta.

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– Ei, porque você disse que “estava precisando se


distrair”? ​– digo.
– Como?
– Você disse há pouco na fila.
– Ah, sim! – a testa dele se enruga e seu rosto
revela certa dureza. – Pra falar a verdade, tive
alguns problemas com a minha noiva. Quero dizer,
com Alana.
Eu pisco. Ele passa a mão no rosto, a mandíbula
tensa.
– Não sei se eu deveria mais chamá-la de noiva,
já que ela quase cancelou o casamento ontem à
noite.
– O QUÊ?
Aí está o padrão de Alana. Ela finalmente
resolveu jogar tudo para o alto e fugir do
compromisso, não foi?
– É uma longa história – Ele passa a mão pelos
cabelos, bagunçando-os ligeiramente. – Mas
basicamente tudo aconteceu muito rápido e eu não

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tive tempo de raciocinar direito. Posso ter cometido


um grande erro.
Fico pasma. Completa e inacreditavelmente
pasma. Esperei por essa afirmação há tanto tempo
que achei que nunca a ouviria.
– Isso é sério?
Então quer dizer que eu estava certa? Esse tempo
todo eu estava certa! Agora seria o momento
perfeito para demonstrar todo o meu apoio e
reafirmar que o casamento foi uma decisão
precipitada.
No entanto, não tem tanta graça quanto eu tinha
imaginado. Borboletas não circulam pelo meu
estômago, nem nada parecido. Talvez algumas
moscas.
– Não! – me pego dizendo. – Vocês não podem
cancelar o casamento. Já comprei o presente de
vocês e tudo mais!
O momento finalmente chegou. Mas chegou tarde
demais. Rafa pode ficar ou não com Alana, que isso
já não me importa tanto assim. Porque, se eu for

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bem sincera... não tenho mais tanta certeza de que o


Rafa é a pessoa certa para mim.
– Por que não disse nada?
– Como assim? – ele tateia uma mão na outra,
aquecendo-se do frio.
– Por que não nos contou sobre isso no bar?
Passamos... – olho para o meu relógio de pulso. –
Duas horas e vinte minutos juntos e você não nos
deu nenhum sinal de que estava com problemas.
Por que não disse nada?
Rafa é um cara ótimo, não me leve a mal. Um dos
melhores que já conheci. Mas tem duas coisas que
percebi tarde demais.
A primeira: sua habilidade de esconder
sentimentos negativos e deixar as coisas chegarem
a um extremo. Exatamente como eu faço.
E a segunda é que, se tem uma coisa de que eu
não preciso, é de alguém como eu.
– Não quis estragar a noite de vocês com meus
problemas.

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– Mas você nos chamou por isso! – digo, tentando


fazê-lo compreender a incoerência vinda de um
cara tão coerente quanto ele.
– Eu não chamei vocês por isso. Chamei porque
precisava ver você. Precisava passar um tempo com
alguém que me entendesse.
– Que te entendesse? – pergunto. Qual o rumo
dessa conversa?
– Você sempre esteve aqui por mim e eu
precisava da sua companhia. Sei lá, posso estar
confuso... – ele estreita os olhos para mim, como se
me enxergasse pela primeira vez. – Mas às vezes eu
me pergunto se poderíamos ter tido alguma coisa.
Meu coração congela, e não é de excitação. Abro
a boca para falar, mas dela não sai nada. Ele
finalmente chegou à conclusão que eu sempre
quis...
E agora não quero mais. Se arrependimento
matasse!
Talvez eu devesse ir embora.

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Os eventos das últimas semanas passeiam pela


minha mente, um atrás do outro. Minha visão deles
dois juntos naquele restaurante chique, o pedido de
madrinha de casamento, sua despedida de solteiro,
tudo! Talvez eu tenha corrido atrás de algo que não
era para mim. Eu só não sabia disso.
É isso! Vou dizer a ele que não me sinto da
mesma forma e que não acho que poderíamos ter
tido algo além da nossa velha amizade, já que
finalmente consigo enxergar que ele não é o
homem da minha vida, afinal de contas.
Suspiro de alívio. Meus olhos estão finalmente
abertos.
E de repente eles se fecham. E eles se fecham
como resposta instintiva ao beijo que Rafa me dá
bem no meio dos lábios.
Sim, ele me beija! Dá pra acreditar? Tá legal que
eu sempre quis saber como seria. Só que… nada.
Não me sinto muito diferente, a não ser pelo fato de
os lábios dele serem bem mais macios do que
imaginei. Mas além de poder pedir dicas de

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hidratação labial a ele, nada. Nadinha. Necas de


pitibiriba!
E ele está noivo, pelo amor de Deus!
Quando o susto inicial do beijo se evapora e eu
recobro a noção, me afasto imediatamente dele, que
tem os lábios avermelhados por causa do meu
batom.
Preparo-me para repreendê-lo, mas para minha
surpresa sou eu quem é repreendida.
– Meu Deus, Melissa! O que há de errado com
você? – Leo surge na porta de saída do bar, com
Pati a tiracolo, totalmente boquiaberta.

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– Como você pode?


– Eu? – digo. – Leo, eu não...
– Meu Deus! Você não consegue mesmo, não é?
– ele me interrompe.
Depois de ter visto a cena toda, Leonardo
permaneceu parado na porta do bar com os braços
cruzados enquanto Rafa passava a mão no rosto,
nervoso. Ele me pediu desculpas baixinho, acenou
com a cabeça para Pati e Leo, sem olhá-los nos
olhos, e foi embora a passos rápidos.
E eu fiquei aqui, sozinha, para enfrentar o que
quer que venha a seguir.

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– Você não consegue mesmo deixar que as coisas


saiam do seu plano perfeito! – Leo continua. Meu
sangue gela. Nunca o vi com tanta raiva assim.
– Você não sabe do que está falando – digo,
tentando interrompê-lo antes que ele diga algo de
que se arrependa.
– É a droga da vida deles, Melissa! E você não
faz parte dela – ele explode. – Eles vão ter um
bebê, você sabia disso?
Meu queixo cai.
– Um bebê?
Desde quando eles vão ter um bebê?
– Ela está grávida? – Pati finalmente deixa
escapar uma pergunta.
Bem, isso explica o vômito... e o cheiro do
banheiro que tivemos que limpar aquele dia. Minha
memória retorna ao momento em que Alana me
contou a respeito de Rafa não querer ter filhos. Mas
quer dizer então que naquela altura ela já estava
grávida? Por isso o seu desespero! Rafael estava
dando para trás em relação a tudo, mas o bebê já

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estava a caminho. O que ele achava? Que era só


devolvê-lo à cegonha?
– Sim, ela está grávida. Ele veio me contar essa
semana – ele coloca a mão na testa, prostrado na
calçada de pedra, perto da porta do bar. – É por isso
que ele a pediu em casamento tão rápido. É por
isso. Não por nenhum impulso psicológico louco
como você pensou. Mas porque eles vão formar
uma família. E você beijou um cara noivo. E que
vai ser pai.
– Eu não o beijei!
– O que foi aquilo, então? Você sabe o que é um
beijo, não é? Sei que você não costuma beijar
ninguém, mas já deve ter visto em filmes.
Ai, essa doeu. Ele ao menos se lembra do beijo
que me deu? Será que eu beijo assim tão mal?
Os clientes que saem do bar passam por nós
encarando e cochichando, suas vozes misturando-se
ao vento.
– Ou vai dizer que foi ele quem te beijou?
– Foi!
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– Rafael, o cara mais correto do mundo? – ele


ironiza. – Só admita que você não aguentou perder,
tá legal? Fica menos feio.
– Você está me ofendendo.
– O casamento está chegando e você não
conseguiu deixar de ser tão controladora.
– Espere um pouco aí! Você está passando dos
limites – minha voz aumenta muitos decibéis. –
Depois de tudo o que eu passei, ainda tenho que
ouvir você fazer escândalo em porta de bar? – Sem
sucesso, tento me controlar, mas um grito escapa
pela minha garganta. – É a droga da minha vida
também!
Pati permanece imóvel, os olhos arregalados e a
boca semiaberta.
– Melissa, você passou dos limites. Você
escondeu quem você é da sua paciente. Como fica
sua consciência como psicóloga?
Ele está me tirando do sério. Lágrimas ameaçam
surgir, mas de alguma forma eu consigo impedir
isso de acontecer.
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– Não me ofenda, Leonardo – estou quase


rosnando para ele. – Eu nunca agi de má-fé. Eu
nunca sobrepus o que eu sentia nas sessões com
Alana. Eu fiz o melhor que pude por ela, droga!
– Será que ela acreditaria em você se soubesse?
– Meu Deus! E o que é que eu deveria ter feito? –
encosto uma mão na parede gelada de tijolos
laranja ao meu lado. – O que é que eu deveria ter
feito, hein?
Já estou tão exaltada que não dou a mínima para
as pessoas que pararam para nos observar.
– Hein, Leonardo? Deixar minha paciente em
recuperação se casar em tão pouco tempo?
Testemunhar a infelicidade de duas pessoas que eu
julgava incompatíveis? Você não sabe como eu
sofri.
Eu me aproximo de Leo, tão perto a ponto de
sentir sua respiração no meu rosto. Colo o dedo
indicador no peito dele.
– Não venha julgar a minha moral, se você nunca
passou por isso. E não venha me dizer como me

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comportar, porque você não sabe como é!


– Eu não sei? – ele dá uma risada amarga.
– Não, não sabe – cerro os punhos ao lado do
corpo. – Você não faz ideia.
– É claro que eu sei, Melissa, porque eu amo
você, droga! – ele explode e meu queixo cai mais
uma vez, assim como o de Pati, que assiste à cena
de camarote, infelizmente sem a adição de um
balde de pipocas.
– O quê? – dou um passo para trás.
Minhas pernas começam a bambear, e por um
momento acho que vou cair. Ele disse isso mesmo?
Coloco a mão na cintura e me inclino para frente.
– O quê? O quê? Como assim? Você me... o quê?
Leo passa a mão pelos cabelos escuros, engole em
seco e desvia seus olhos verdes dos meus. Ele
permanece imóvel, como se pudesse impedir que as
ondas sonoras das palavras que ele acabou de
proferir não chegassem até mim caso ele não se
movesse. Mas eu ouvi. Alto e em bom som.
– Desde quando? – pergunto.

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– Desde sempre – ele responde.


– Desde sempre? – a julgar pela temperatura do
meu rosto, eu devo estar parecendo um pimentão!
Sua boca se contorce em uma risada triste, seus
olhos num verde mais triste ainda.
– Então eu posso sim imaginar como você se
sente. Porque acho que me sinto ainda pior, te
ajudando a conquistar outro homem, que por acaso
também é um grande amigo meu.
Minhas mãos ainda estão cerradas ao lado do meu
corpo. Solto os dedos, relaxando.
– Você me ama?
As estrondosas batidas do meu coração me
assustam.
Então eu não fui a única que sentiu alguma coisa
real por ele? Foi recíproco?
– Isso não importa – Leo diz com ar cansado,
tirando do bolso as chaves do carro. – O que
importa é que eu também sou seu amigo e você não
teve consideração nenhuma por mim. Você está

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concentrada demais nos seus planos de vida


perfeitos.
– Não foi assim, Leo. Eu só...
– Não me chame mais quando precisar de ajuda.
Ser seu amigo ficou mesmo muito caro.
Ele coloca as mãos no bolso da calça e caminha
para longe de mim.
– Leo, espere. Não vá! Não quero te ver
magoado.
Ele para onde está. Gira lentamente nos
calcanhares e olha para mim.
– Se eu me lembro bem, eu te disse a mesma
coisa.
Ele se afasta e dessa vez não olha para trás.
Observo hipnotizada enquanto ele entra no carro e
vai embora, e só acordo do transe quando recebo
um abraço calado de Pati. Permaneço imóvel, sem
saber o que pensar.
Estragar tudo definitivamente não estava nos
meus planos.

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Arrumo a sessão de Psicologia da estante de


livros da minha sala de estar freneticamente. E as
lágrimas não me ajudam em nada, se é o que você
quer saber.
Meu coração se aperta no peito até formar um nó
enorme na garganta, que eu tento em vão segurar.
Esse último mês roda em minha mente. O choque
ao descobrir que Rafa estava comprometido, as
angustiantes consultas com Alana. O teste de
casais, o beijo de Rafa (o tal cara comprometido) e
a discussão com o Leo.
Mas uma coisa ficou enganchada em minha
mente como pulseira em tecido fino: o beijo que
Leo me deu.
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Pensar fixamente no beijo é completamente


natural, certo? Já que acabamos de discutir um com
o outro. Mas o pensamento tinha mesmo que vir de
cinco em cinco minutos?
Não posso negar que gostei do beijo, não sou
hipócrita. Só que não devo pensar na possibilidade
de ter alguma coisa com ele, principalmente agora
que eu já estraguei tudo. Eu sempre chego atrasada!
E se eu não tivesse feito esse plano idiota, nada
disso teria acontecido.
Só que imaginar o Leo em um relacionamento
sério é inconcebível, tanto pela quantidade de
mulheres com quem ele já dormiu sem
compromisso quanto pela lembrança que tenho dele
beijando outra pessoa naquela festa de faculdade.
E sinceramente até ontem eu nem ao menos sabia
que ele tinha sentimentos. Não desse jeito, e
principalmente, não por mim.
Depois de organizar a estante por ordem
alfabética, me jogo na cama e assim permaneço,
sem nem tirar os sapatos, e coloco o celular no

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modo silencioso. Preciso pensar: primeiro de tudo,


tenho que botar a cabeça no lugar. Segundo... bom,
primeiro preciso botar a cabeça no lugar para
descobrir o que fazer em seguida. E tentando botar
a cabeça no lugar decido que o melhor lugar para
ela é no travesseiro.
Só acordo às sete da manhã do dia seguinte, com
a barriga reclamando de fome. A tela do meu
celular indica que Pati me enviou quatro mensagens
de texto e me ligou seis vezes, mas não retorno.
Não acho que me fará bem conversar com a
curiosidade dela nesse momento, se eu mesma não
tenho as respostas para as minhas próprias
perguntas.
Meus pensamentos rodopiam como um furacão,
enquanto finjo que nada está acontecendo e tomo
uma xícara de café preto.
Nunca me senti tão triste. Meu coração se contrai
ao lembrar do beijo que Rafa me deu, como se eu
tivesse traído Alana, mesmo que a culpa tenha sido
dele. Eu nunca faria algo assim com ela.

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E a expressão no rosto do Leo? Corta-me o


coração só de lembrar.
Permaneço com o olhar na parede rosa a minha
frente. Até que me levanto da cama, calço as
pantufas com estampa listrada e abro o guarda-
roupa branco a fim de me olhar no espelho. Que
reflexo é esse?
Não me reconheço.
Meus olhos estão inchados e tenho olheiras do
tamanho das orelhas. Meu cabelo está ensebado e
pareço estar mais gorda também. Não era isso que
eu imaginava ao me planejar. Achei que assim as
coisas dariam certo.
Tomo um banho e resolvo o problema do cabelo
simplesmente ao lavá-lo. Essa foi fácil. Passo
maquiagem e resolvo o problema da olheira
também (mais ou menos, na verdade, já que nunca
realmente descobri como usar o corretivo, ou a
marca que comprei na farmácia é vagabunda
demais). Sobre os quilos a mais, não há muito o
que fazer, essa é a parte difícil.

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Coloco roupas limpas e recuso o impulso de


agarrar um pacote de bolachas gordurosas. Agarro
minha bolsa e saio em direção ao metrô lotado.
Seguro-me na barra de ferro do vagão e faço a
viagem de pé, com a falta de assentos disponíveis.

Logo que envio essa mensagem à Pati, ela me


responde:

Mas ela não se aguenta e meu celular apita em


seguida:

Ao que eu respondo:

Mas ela insiste:

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Deixo Pati falando sozinha.


Chego ao consultório e encontro Camille
sentadinha na sala de espera, sua mãe de pé ao seu
lado, com a bolsa nos ombros, sempre adiantadas.
Preciso afastar a tristeza por pelo menos uma
hora. Essa é a meta.
– Vamos entrar, lindinha? – digo a minha
paciente e depois dou um abraço em Márcia.
– Eu já vou indo... – a mãe de Camille dá um
beijo na bochecha grande da filha.
– Semana que vem nos vemos em consulta, certo?
– confirmo com a mãe. Dessa vez conversarei
apenas com a menina, de modo que ela tende a
colocar as asinhas de fora.
– Sim, Melissa. Venho buscar essa danadinha em
uma hora – ela aponta o dedo para Camille, que a
essa altura já entrou em minha sala e se ajeitou na
cadeira branca, folheando os livros infantis que
deixo na mesa para as consultas com ela.
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Torno a olhar para Márcia.


– Por que “danadinha”?
– Você vai entender... – ela diz e deixa o
consultório, sorrindo e revelando o grande bumbum
enquanto caminha.
Ao entrar em minha sala, fecho a porta. E, ainda
de frente para ela, respiro fundo. Então expiro, giro
e ando até a mesa esforçando-me para renovar as
energias e atender minha paciente.
– E então, o que me conta, lindinha? – inicio
nossa consulta e ela para de olhar para os livros,
pousando seus olhinhos em mim.
– Bem... – ela começa, as bochechas coradas ao
lado de um sorriso bem maior do que o normal.
– Bem? – induzo Camille a continuar.
– Denise é carta fora do baralho – ela afirma,
solene, batendo uma mãozinha na outra.
– Como é? – me preocupo com o que minha
paciente pode ter feito a outra criança de oito anos,
preparando-me para o pior.

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– Vou te contar – ela se debruça sobre a mesa,


ajeitando-se na cadeira e assumindo posição de
indiozinho. A menina fala com o dedo indicador
levantado. – Eu estava comendo meu lanche em
paz na cantina da escola, quando aquela pessoa
sentou do meu lado.
Sempre a alerto sobre palavras feias e negativas e
o porquê de não usá-las, de modo que agora
Camille se refere à Denise como “aquela pessoa”.
Não é uma das melhores nomenclaturas, mas já é
melhor do que “babaca”, “comedora de cocô” e
outros termos inadequados.
– Então ela começou a dizer que eu comeria toda
a comida do refeitório se as outras crianças não
tomassem cuidado comigo.
– E o que aconteceu em seguida? – meu coração
se aperta com a insensibilidade que algumas
crianças adquirem em sua personalidade, muitas
vezes vinda dos pais.
– Eu quis enfiar terra na calcinha dela.

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– Mas já conversamos sobre isso. Você


concordou que era errado.
– E eu sei que é – ela continua, pegando uma bala
verde do pote. – E foi por isso que eu não fiz.
Ela coloca a bala na boca.
– É mesmo? Estou impressionada.
– Sim. Eu respirei fundo e me lembrei do
exercício do papel.
– Isso fez você se sentir mais calma?
– Isso. Então eu disse pra ela que ela podia ir
lamber pedra, e que... – ela abre aspas com os
dedinhos, fechando os olhos. – “Atitudes como essa
vêm de pessoas infelizes. Eu tenho dó de você,
Denise. E eu gosto do meu corpo, sua comedora
de... caca!”.
– Muito bem! Você se defendeu!
Mas tenho certeza de que na hora ela disse
“comedora de cocô”.
– Sim, mas ela não calou aquela boca estúpida
dela. E começou a me chamar de gorda de novo,
mas eu comecei a sorrir.

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– Sorriu porque percebeu que não se importava


mais com o que ela dizia? – junto as mãos de tanta
felicidade.
– Não. Sorri porque nesse momento a Denise
ainda não tinha visto que a diretora da escola estava
atrás dela e ouviu tudinho o que ela disse. E lhe deu
suspensão imediata, na frente da escola inteira.
Tento segurar a risada porque acho que seria
muito antiprofissional. Mas não me aguento.
Começo a gargalhar tapando a boca, segurando a
barriga com a mão, ao que Camille me acompanha.
Estendo a mão para a minha paciente,
parabenizando-a por sua atitude exemplar e por
conseguir uma resolução pacífica para o problema,
apesar de seu temperamento nervoso.
– Para te parabenizar, eu tenho uma coisa para
você – me inclino até a gaveta e pego a agendinha
rosa de bolinhas brancas que tinha comprado para
mim há um tempo atrás.
Estendo a ela. Depois de resolver a história toda
com Alana, acho que não preciso mais de uma

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agenda nova. Não tenho mais vontade de riscar o


nome dela da minha agenda. E nem da minha vida.
– Que linda! – ela celebra, com os dedos
gorduchos ao redor do presente. – É pra mim?
– É sim. Você pode usá-la como diário. Quando
tiver um problema, repita o exercício que fizemos
do papel. Mas em vez de destruir a folha, quero que
você deixe registrado o que aconteceu, para que
possamos acompanhar sua evolução. Quero que
você veja o quão forte você é, Camille. Desse jeito,
será muito mais difícil que alguém te atinja.
Depois de mais conversa a respeito da nova dieta
que sua pediatra lhe indicou por questões de saúde,
e sobre o quão difícil está sendo para ela comer
abobrinhas, ela sai da minha sala feliz da vida com
seu novo diário. Sua mãe a aguarda no sofá.
– Obrigada, tia Mel – recebo um abraço apertado
da minha paciente pequenina e bochechuda. –
Terapia é demais!
– Viu só o que te falei? – diz Márcia.

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– Danadinha, não? – concordo com ela, olhando


para uma Camille alegre e orgulhosa.
– Obrigada, Melissa – Márcia pega em minha
mão. Depois, pega a mão da filha e sai do
consultório, satisfeita.
Abro o notebook e digito anotações sobre essa
última consulta. Não há recompensa maior que a
felicidade da minha paciente, que percebeu o
quanto a terapia a ajuda.
Em contrapartida, como posso não seguir o
exemplo de uma criança de oito anos? Há quanto
tempo eu mesma estou sem fazer terapia?
Desligo o notebook, agarro minha bolsa e apago a
luz da minha sala. Saio para o hall de entrada,
pronta para ir embora. Lorraine está entretida com
o celular e não nota a minha presença. Está tudo
muito calmo, mas não consigo me sentir do mesmo
jeito. Não quando aquela pilha de revistas volta a
estar tão desorganizada quanto da última vez, agora
com a adição de copinhos plásticos que os
pacientes esqueceram de jogar fora.

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Preciso ir até lá. Eu preciso!


Mas não é tão simples assim. Minhas forças se
esgotaram. Parece que foram drenadas do meu
corpo. Sinto como se um caminhão tivesse passado
por cima de mim.
Permaneço imóvel no meio da sala, com a bolsa
nos ombros, encarando a mesinha da sala de espera.
Como pode uma simples mesinha de centro ser a
vilã da minha história?
Tentando impedir que as lágrimas caiam sobre
minhas bochechas, assinto para mim mesma e me
concentro no que eu preciso fazer. Deixo a bolsa no
sofá da recepção e caminho em direção às revistas.
Ao me aproximar delas, porém, continuo andando e
me movo com vontade, passando reto pela mesa
bagunçada, as mãos cerradas ao lado do corpo, até
chegar à porta branca ao final do corredor.
Toc toc toc.
– Pode entrar.
– Júlio, você tem um minuto? – respiro fundo e
entro na sala.

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Quando eu era pequena, não entendia porque


tinha essa necessidade de organizar tudo ao meu
redor. E não entendia porque ninguém mais parecia
ter essa necessidade a não ser eu.
Era muito angustiante para uma criança de oito
anos ter que pausar a brincadeira para organizar a
casinha da Barbie. As fraldas das minhas bonecas
de colo eram trocadas repetidas vezes também.
Pelo amor de Deus, elas nem faziam cocô!
– Eu não aguento mais – digo ao Júlio, depois de
lhe contar tudo a respeito das últimas semanas. –
Por causa de tudo o que anda acontecendo, o TOC
está me deixando louca!

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Encosto a cabeça no divã da sala dele, fitando o


teto branco. O quadro abstrato na parede a minha
frente e a cadeira preta de couro onde ele está
sentado dão um toque clássico ao ambiente.
Preciso de um divã para a minha sala!
– Filha, não é por causa do que anda acontecendo
que seu TOC tem controlado você.
– Não é?
– De fato, esses eventos podem abrir espaço para
que o transtorno volte a aparecer e podem acarretar
também o aumento da ansiedade. Mas a ocorrência
do TOC acontece porque você não está se tratando.
– Ah... – dou um sorriso sem graça.
Fito as unhas da mão, o esmalte nude
descascando. Mas que droga! Eu não acabei de
pintar as unhas ontem?
Eu sei que deveria ter voltado à terapia há muito
tempo. Aliás, eu não devia ter deixado de fazer
terapia, para começo de conversa. E ele não vai
deixar isso passar.

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– Por que interrompeu o tratamento? – ele segura


a prancheta em uma mão e um caneta prateada com
seu nome gravado em outra. – Você sabe que o seu
quadro necessita do trabalho constante da terapia.
– Mas o TOC tinha desaparecido, entende? Não
achei que ele voltaria. Eu não queria que ele tivesse
voltado.
– Então não quis voltar para a terapia porque
achou que assim estaria concretizando a situação?
– Er... exatamente.
Que perspicácia a de Júlio! Nem mesmo Papai
Noel seria assim tão inteligente.
– Eu só não queria ter que passar por isso outra
vez – digo, contorcendo o rosto.
– A questão é que o TOC é um transtorno que
pode aparecer a qualquer momento da sua vida.
Você é psicóloga, sabe melhor do que ninguém.
Aliso minha calça social com as duas mãos.
– Isso é.
– Você precisa começar a encarar essa situação
com firmeza. Não é fugindo do problema que ele

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vai se resolver.
Minha boca se curva para baixo, como um gráfico
que espelha a minha vida.
– Mel – ele diz e olho para cima. – Existem várias
maneiras de fazer com que esse transtorno apareça
com muito menos frequência, e que isso seja mais
fácil daqui para frente.
Lágrimas de alívio brotam dos meus olhos. Eu
sofro muito com isso. A luz do sol entra pelas
frestas da cortina, esquentando meu rosto.
Aconchego-me no divã de suede.
– Isso é bom. Sabe como é, ouvir alguém dizer
que não vou passar o resto da vida arrumando
prateleiras de livros o tempo todo.
– Não vai, Melissa. Contanto que você se cuide –
ele enfatiza.
Ele tem razão. Para uma pessoa tão organizada,
eu definitivamente deixei essa área da minha vida
um completo caos. Está na hora de arrumar o que
realmente precisa ser arrumado.

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– Terei que... – lágrimas começam a cair pelo


meu rosto. – ... voltar a tomar remédios?
– Isso a incomoda?
– Um pouco – digo. Mas não há porque esconder
a verdade dele. – Tá legal, me incomoda muito. Por
que não posso ficar só na terapia?
– Mas qual é o grande problema com os
remédios? Sente que se voltar a tomá-los, estará
dando um passo para trás?
Eu me pergunto se Júlio é vidente ou apenas um
gênio com QI muito alto.
– Na mosca – alterno risada com choro,
levantando as duas mãos. – Você me pegou.
Ele começa a rir também. Então ele estica a mão,
abre a gaveta do armário preto e tira de lá uma
bandejinha de plástico branca, com caixas e mais
caixas de medicamentos.
– Eu preciso tomar quatro desses por dia. Um
para a pressão alta, um para diabetes, outro para
colesterol e o último para ansiedade – ele diz, ao
colocar uma a uma as caixinhas em cima da mesa

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de vidro. – E o resto tomo ocasionalmente, quando


necessário.
Os remédios me encaram de volta, a lembrança
tomando conta do meu espírito.
– Confesso que não consigo viver sem meus
remédios de diabetes. Sem eles eu não poderia
comer um docinho ou outro, não é? – ele coloca a
mão na barrigona protuberante. – Somos todos
humanos. E cada um de nós tem um problema. Não
há problema em querer se cuidar. Você só precisa
estar disposta.
– Eu estou.
Ele guarda os remédios de volta na gaveta.
– Não estou dizendo que você precisará voltar a
se medicar, filha. Pode ser que somente terapia seja
o suficiente. Só não feche sua mente para o
tratamento, se ele te proporcionar uma vida melhor.
– Diabetes, hein? – digo depois de um tempo,
secando as lágrimas com as costas da mão. – Não
sabia que o senhor não podia ingerir a tonelada de

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açúcar que toma com o café. Vou pedir à Lorraine


que troque por adoçante.
Ele dá risada e encosta na cadeira, que faz
barulho com o seu peso.
– Eu sabia que não devia ter contado sobre a
diabetes.
O piado dos pássaros mistura-se com o barulho
do vento lá fora.
– O que devo fazer em relação ao resto? –
pergunto. Será uma longa jornada até que eu
apresente alguma melhora em relação ao TOC, mas
enquanto isso preciso resolver os meus outros
problemas.
– E que resto seria esse?
– Todo o resto. Você sabe. Rafael, Alana,
Leonardo...
– Eu não sei – ele levanta e abaixa os ombros. – O
que acha que deve fazer? Aliás, Melissa. O que
você quer fazer? Veja que existe uma grande
diferença aí.
– Como assim? ​– levanto-me, sentando no divã.

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– Você vive falando essa palavra, “dever”. É uma


coisa muito presente na sua vida. Na verdade, nós
não devemos fazer nada. Somos pessoas livres.
Podemos fazer o que quisermos segundo nosso
objetivo.
– Na minha mente é muito claro que se eu deixar
de seguir uma linha de ação as coisas darão errado.
– Está vendo só? – ele estala os dedos no ar. – O
Transtorno Obsessivo Compulsivo relaciona-se
diretamente com a sua personalidade. Podemos
conversar mais sobre isso nas próximas consultas,
mas perceba que sua necessidade de organização a
mantém presa. Tanto no TOC quanto na sua vida. E
isso não é bom.
– Mas planejamento é uma coisa boa! Por que
diabos ninguém entende isso?
– Ser uma pessoa planejada é uma coisa ótima! –
ele responde, batendo uma mão da outra. – O
problema está na rigidez da sua personalidade. E
não conseguir sair do planejado é uma coisa muito
perigosa.

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– Sei... – coloco a mão no queixo e apoio o


cotovelo no braço do divã.
– Você é muito dura, filha. Eu não sei se você já
reparou, mas Lorraine morre de medo de você.
– Ora, e por quê?
– Uma vez ela me perguntou se você pensava em
demiti-la. Ao que parece, você vive repreendendo-a
por desorganização.
– Ah, meu Deus! – digo, batendo a mão na testa.
– Júlio, era por causa do TOC. A mesa dela me dá
arrepios!
– Você já explicou isso a ela alguma vez?
– Não. É claro que não.
– Nesse caso, quem sabe você possa reforçar
positivamente alguma coisa que ela faz? E evite
repreendê-la pela desorganização, tendo em vista
que você não é parâmetro. Você está no extremo
oposto, o que também não é saudável, não é, filha?
Não acredito que fui tão dura com Lorraine por
algo que ela nem mesmo tem culpa. O TOC pode
me deixar cega de nervoso.

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– Eu adoro o café que ela faz – digo a ele.


– Sei disso, você acaba com a garrafa inteira – ele
gargalha. – Não acha que está tão focada nos seus
planos que se esquece do resto?
– Talvez.
Franzo o rosto. É muito para absorver.
– Então como “lição de casa”... – ele faz aspas
com os dedos. ​– Quero que tente planejar menos e
prestar mais atenção ao redor. E nas coisas que
você quer fazer. Nas próximas sessões, iremos
tratar dessas questões mais profundamente.
– Lição de casa anotada – levanto o polegar.
Nunca pensei que meu terapeuta ideal estava bem
debaixo do meu nariz. Fico impressionada com a
quantidade de coisas que eu não enxergo. Talvez
meu nariz figurativo seja tão grande quanto o de
Pati.
– Em relação aos outros assuntos pendentes, a
pergunta é: o que você quer fazer?
O que diabos que eu quero fazer?
– Quero consertar as coisas.

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– E o que isso significa, tratando-se de sua


paciente e do noivo dela?
– Conversar com os dois e aconselhá-los – cruzo
as pernas. – É o que eu faço de melhor. Sinto-me na
obrigação moral de fazer isso por eles. Então, se
meu objetivo aqui é ser uma psicóloga decente, é
isso o que eu quero fazer.
– Ótimo. E em relação ao...
– Leonardo?
– Isso. O que você quer fazer em relação ao
Leonardo?
– Eu não sei, Júlio. Isso eu realmente não sei.

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– É agora ou nunca – fixo os olhos na direção


dele, que me encara.
Começo a me despir, fitando-o com os olhos
cerrados.
Vestido, é melhor que você fique bom!
Iolanda me aguarda do lado de fora do provador,
com uma trena nas mãos, pronta para mais uma
possível rodada de ajustes.
Mas quando fecho o zíper, que sobe sem
dificuldade pela minha cintura, tenho uma
revelação: eu fico maravilhosa em vestidos sereia.
Não consigo acreditar na minha sorte! Ou na
habilidade de Iolanda em adaptar a peça para meu

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formato de corpo. Ela conseguiu esconder todas as


minhas gordurinhas. Essa mulher só pode ser
mágica!
O caimento do vestido me deixou acinturada, pelo
amor de Deus!
– Iolanda! – abro a cortina de uma vez, os olhos
arregalados.
– Isso é uma expressão de felicidade ou espanto,
meu bem? – ela estica a trena com as duas mãos,
depositando o peso do corpo em uma perna só.
Espera só até o Leo me ver nesse vestido!
– Felicidade extrema! – abro um sorriso largo
para ela, que guarda a trena no bolso. – Seu ateliê
deveria sair mais vezes nas revistas. Você é uma
inspiração a todas as mulheres empreendedoras.
Quero ser você quando eu crescer.
Ela dá risada.
– Obrigada, querida – ela coloca a mão na cintura
por cima da saia lápis vermelha de cintura alta e me
estende a outra. Então me induz a dar uma
rodadinha para observar o caimento do vestido. –

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Mas, sinceramente, a última coisa que preciso no


momento é pensar em trabalho. Semana passada eu
saí com um tremendo workaholic e ainda não me
recuperei desse episódio!
– Humm... você é solteira? – pergunto, tendo uma
ideia maluca. Talvez eu possa equilibrar o meu
carma com o universo: quase separei um casal, mas
me redimirei formando outro.
– Sou divorciada. Os melhores cinco anos da
minha vida.
– Do casamento?
– Do divórcio.
Dou uma risada alta, que se evapora quando meu
reflexo no espelho exibe um vestido que deve
custar uma fortuna. Preparo-me para a hora da
verdade.
– Quanto lhe devo? – pergunto a ela, esperando
pela iminente facada.
– Desculpe?
– Qual é o valor do vestido? – e estou para
perguntar em quantas vezes ela divide no cartão de

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crédito. Vinte vezes sem juros?


– Não, meu bem. Não há custo algum. Alana está
pagando por todos os vestidos das madrinhas.
– Oh!
Sem gastos, uh?
O vestido acaba de se tornar ainda mais bonito!
Volto a atenção ao espelho, mal conseguindo
conter os gritinhos de felicidade. Fecho a cortina
dourada para dar início a uma silenciosa rodada de
dancinhas, viradas e voltinhas com o vestido de
princesa, como uma estrela de cinema no tapete
vermelho de alguma premiação de Hollywood.
– Iolanda? – digo, quando abro a cortina
novamente.
Ela desvia a atenção da prancheta e me observa
por cima dos óculos de gatinho.
– O que acha de um encontro às cegas?

– Caramba. Você está...


– Péssimo, eu sei.
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– Eu ia dizer abatido – digo.


Mas ele parece mesmo péssimo. Até o cabelo
dele, sempre muito bem ajeitado, parece ter
acordado de mau humor. As olheiras e a barba por
fazer dão ao Rafa uma aparência que eu não me
lembro de ter visto nele um dia.
Rafa me ligou algumas vezes desde o fatídico
incidente e finalmente marquei um almoço com ele.
Adivinha só onde ele sugeriu?
– O Villa’s fica vazio durante o dia, né? – digo,
tentando amenizar o clima chato entre nós.
– Eu ainda não acredito que te beijei. – Rafa diz,
direto ao ponto.
– Sei disso.
– Você precisa me perdoar! – ele me olha,
nervoso.
– Eu já te perdoei – digo, e é a mais pura verdade.
– Sei que foi apenas uma reação à pressão do
casamento.
– Eu não sei o que deu em mim. Digo, não me
leve a mal, você é linda e qualquer homem teria

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sorte de ter alguém como você.


– Obrigada. Mas você sabe que eu nunca te
beijaria estando noivo e tudo mais, não é? Eu nunca
faria isso com Alana.
– Eu sei, e você é incrível por isso... o modo
como você se importa com a minha noiva, mesmo
não a conhecendo.
– Er... claro. Não a conheço – digo, pisando em
terreno perigoso. – Mas não é só isso. Eu não me
sinto dessa forma por você.
Prefiro deixar claro a respeito do beijo. Ele foi
unilateral.
– Eu sei, é claro que não – ele balança as mãos. –
Sei que somos apenas amigos.
Preparo-me para a costumeira enxurrada de
decepção ao ouvi-lo dizer isso, mas ela não vem.
Porque eu mesma só quero tê-lo como amigo.
– Não – digo. – Somos praticamente irmãos.
É a primeira vez que entendo essa comparação.
Os garçons movimentam-se com menos
intensidade durante o dia, substituindo em suas

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bandejas pratos de porções por almoços à la carte.


O burburinho do ambiente é tão baixo que diminuo
o volume da minha voz.
– E então? – pergunto. – Por que está se sentindo
pressionado?
– Tem muita coisa acontecendo – ele responde de
forma vaga, olhando para as paredes amadeiradas
do bar.
Será que ele vai mesmo continuar escondendo a
existência do bebê? E de quem será que ele está
escondendo? De mim ou dele mesmo?
– Como o quê? – insisto. – Você sabe que pode
me contar qualquer coisa. Sou sua melhor amiga,
lembra? Além disso, sou terapeuta. Não existe
combo melhor.
– Ela está grávida – ele desabafa, depois de um
minuto inteiro de silêncio.
– Jura? – demonstro o máximo de surpresa que
consigo, mas meu estoque de atuação parece ter
acabado. Mal levanto as sobrancelhas para o alto.
Se tem uma coisa que cansei de fazer é escutar a

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mesma história duas vezes e fingir que não sei de


nada.
– Por isso a pedi em casamento. Eu me apaixonei
por ela no instante em que a vi, e queria mostrar
todo o meu respeito. Decidimos nos casar antes que
a barriga começasse a aparecer. Ela queria sair
magra nas fotos. Só que as coisas se tornaram
grandes rápido demais e me pergunto se fiz a
escolha certa.
– Ao pedir Alana em casamento? Ou em relação a
assumir a criança?
– Em relação a tudo – ele abaixa a cabeça,
desarrumando ainda mais o cabelo. – No calor do
momento, acabei dizendo que eu não sabia mais se
queria ter filhos. Mas eu só estava de cabeça
quente.
Ele surtou. Foi isso o que aconteceu.
– Mas qual é o grande problema? Está tudo
perfeito pra vocês. Vocês têm tudo!
– Eu não tinha planejado, esse é o problema. Não
sei se consigo dar conta. Eu quero o bebê e eu

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quero Alana, mas queria ter certeza de que eu podia


cuidar muito bem deles.
– Rafa. Escute o que vou dizer: se tem uma coisa
que aprendi é que planos podem ser readaptados.
Por que tenho a sensação de que estou analisando
a mim mesma?
– Você podia tentar ser mais flexível, tentar
coisas diferentes. Como por exemplo... – aproveito
a deixa, sorrateira. – Eu detesto o Villa’s.
Estendo as duas mãos, apontando o lugar.
– Seria bom se fôssemos a outros lugares, sabe? –
digo, dando risada com a recordação do Leo
dizendo que também odiava o lugar.
– Tudo bem. Podemos ir a outros bares no
Jardins, não faz mal...
– Não. Podemos ir a bares de outros bairros
também. A bairros mais acessíveis, com preços
mais razoáveis, por exemplo.
– Oh! Você acha o lugar muito caro? – ele coloca
a mão na testa. – Desculpe, eu não fazia ideia.

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– Não tem problema. Mas o ponto é que você


precisa aprender a absorver mudanças.
Resiliência... você provavelmente só não conseguiu
digerir tudo isso ainda.
Ele não diz nada.
– Olhe para mim. – digo, pegando em suas mãos
do outro lado da mesa. – Confesso que no começo
me preocupei que as coisas entre vocês estivessem
acontecendo rápido demais. Mas se você ama sua
noiva, que por sinal tem um grande senso de estilo,
levando em conta o vestido de madrinha que ela
escolheu para mim...
Tento descontrair o clima e fazê-lo sorrir. Dá
certo.
– Então não a deixe escapar. Sabe o quanto é
difícil encontrar o que vocês dois têm? Vai por
mim, é difícil pra caramba!
Ele dá risada e me sinto mais leve. Solto suas
mãos das minhas e tento calcular o tempo que perdi
presa a alguém que nunca foi para mim.

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– E se tem alguém que é responsável o suficiente


para cuidar de uma esposa e de um filho... – aponto
para ele. – ... Esse alguém é você.
Ele esconde o rosto nas mãos e abaixa a cabeça,
chorando baixinho, deixando à mostra um lado dele
que eu não conhecia.
Inclino a cabeça para baixo, a fim de encontrar
seus olhos.
– Alana só precisa saber disso.
– Acha mesmo? – ele diz, recompondo o
semblante sóbrio.
– Eu tenho certeza.
– O que devo fazer se ela não quer falar comigo?
Porcaria! Eu estraguei tudo!
Tenho uma ideia.
– Já pensou em fazer terapia de casal?
– Terapia de casal?
– Sim. Eu ficaria feliz em atender vocês dois.
– Sem querer ofender, mas eu não acho que
terapia vá me ajudar nesse momento.

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– E por que não? – pergunto e cruzo os braços. –


Se você quer saber, tenho pacientes que se
beneficiam muito com as minhas sessões.
Como por exemplo sua própria noiva!
– Estou certo de que é verdade – ele responde. –
Mas Alana nem mesmo atende as minhas ligações.
– Melhor ainda. Mais um motivo pra contar com
a minha ajuda. Eu seria uma espécie de mediadora
da discussão.
– Eu não sei não...
– O que custa tentar?
Muitos reais por consulta, nesse caso. Mas não
digo isso. Não estou fazendo isso pelo dinheiro.
Só que uma garota precisa comer!
– Como é que você vai se casar sem a noiva?
Ele cruza os braços e morde o lábio.
– E então, o que me diz? – incentivo.
– Está bem! – ele arregaça as mangas da camisa e
apoia os cotovelos na mesa. – Mesmo porque não
pode ficar pior do que está.

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Respiro pelo nariz e expiro pela boca, pouco


preparada pelo que sei que preciso fazer em
seguida.
– Ótimo. Então eu tenho uma coisa para te contar.

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– Como assim, “você é a Melissa”? – Alana me


pergunta, sem piscar.
O choque que vejo em câmera lenta se instalar no
rosto dela transforma-se em descrença total em
apenas três segundos contados. Mas ela é muito
elegante para armar um barraco ou dar um vexame.
– É você a melhor amiga do meu noivo?
– A própria – estendo a mão para que eles
adentrem a minha sala, mas eles não se movem. –
Er... por que não entram, sim?
Peço para que se acomodem enquanto eu mesma
me sento depressa devido às minhas pernas que
bambeiam.

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Rafa me deu um belo de um sermão quando lhe


contei sobre tudo na sexta-feira lá no Villa’s. Bom,
não lhe contei sobre tudo tudo, se é que você me
entende. Eu não precisava mencionar a parte de
achar-que-estava-apaixonada-por-ele, e blá-blá-blá.
– Minha nossa! – foi o que ele disse quando
acabei de confessar, sentado do outro lado da mesa.
– Então foi por isso que você agiu de modo tão
estranho quando lhe contei que estava noivo. Você
estava espantada pela coincidência!
– Er... mais ou menos isso.
E apesar da palestra de dez minutos sobre o quão
errado ele considerou a minha atitude, me perdoou
quase instantaneamente. Isso porque ele mesmo
tinha acabado de cometer o terrível erro de ter sido
tão beijoqueiro comigo.
Só que agora me resta pedir perdão a outra
pessoa.
– Eu preciso confessar que, no meio do caminho,
eu percebi sim quem eram vocês dois, mas
permaneci calada.

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Se ela está furiosa, faz questão de não


demonstrar. Em vez disso, mantém a postura
impassível, tamborilando as unhas vermelhas na
mesa, provavelmente se perguntando o que faz
comigo em seguida: se me joga no lago para ser
comida pelos jacarés, ou se manda cortarem-me a
cabeça.
– Por que preferiu permanecer calada? – são as
únicas palavras que saem da boca dela, antes de
seus lábios se transformarem em uma linha fina.
Delicadamente eu levanto a mão para que ela me
ouça.
– Sei que tenho muito a explicar, mas escute o
que eu tenho a dizer – que diabos eu vou dizer?
Pense, sua maluca. Pense! Inclino-me para frente a
fim de ganhar tempo. É melhor ser sincera, não é?
Ou o mais sincera que posso ser. – Quando percebi
que você era a noiva do Rafael, imaginei um
milhão de cenários em que revelar quem eu era a
você prejudicaria o tratamento. Fiquei com receio
de que você tomasse conhecimento do meu contato

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com o seu noivo e isso tornasse inviável o nosso


contato. E você está fazendo progresso, Alana.
Forço um sorriso, mas é de nervoso. Ela
permanece sem piscar. Rafa me dá um sorriso
piedoso. Minha tentativa de amenizar as coisas não
deu certo. Limpo a garganta.
– Entenda, você como paciente é muito
importante para mim. Digamos que eu não tenha
muitas clientes, estou no início da minha carreira...
– forço uma tossida e desvio o olhar do dela, que a
essa altura deve me achar uma terapeuta falida. –
Então, para que continuássemos com sessões de
terapia que fluíssem bem, eu não quis colocar um
peso no nosso relacionamento profissional.
Digamos que eu tenha uma relação de... humm... –
como é que digo isso sem dizer? – Uma relação de
muito carinho com o seu noivo. E caso você
soubesse, isso poderia prejudicar a relação que eu
tenho com você. Que eu também prezo muito –
acrescento.

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O fato de eles não terem falado nada nos últimos


dois minutos deveria me preocupar? Na corda
bamba, os dedinhos do meu pé se mantêm
retesados.
– Desculpe – abaixo a cabeça, pronta para ser
“demitida”. – Acho que fiquei com medo.
A sala fica em completo silêncio, quebrada
somente pela voz de Júlio, lá de fora, gritando algo
como “Lorraine, acabou o café”, ou algo assim.
– Entendi o seu ponto – Alana diz, seca.
Apesar de as palavras certas terem saído da boca
dela, ainda não sei se estou totalmente fora de
perigo. E resta a dúvida: ela entendeu exatamente o
que eu quis dizer com “uma relação de muito
carinho com o seu noivo”? Tomara que não.
Essa pode ser minha última sessão com ela, e
quem pode culpá-la? Eu entenderia se ela não
pudesse mais confiar em mim. É por isso que devo
a ela, no mínimo, a melhor sessão de terapia de
casal que eu posso lhes oferecer.

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– Eu sabia que tinha reconhecido sua voz ao


telefone naquele dia – Alana murmura, mais para
ela mesma do que para mim.
Minhas mãos suam, e as limpo nas laterais da
minha saia lápis. A ideia de trazê-los juntos até
aqui não me parece mais tão brilhante assim. Mas
eu precisava resolver as coisas entre eles. Eu
queria. Sabendo que eu podia ajudar, não podia
ficar parada sem fazer nada, vendo um
relacionamento ruir.
Cruzo as pernas e prossigo com o que acredito
que vá, de fato, dar início à sessão.
– Então, Rafael. Por que não começa? – pergunto,
estendendo a mão na direção dele. – Conte a sua
versão da história.
Alana cruza as pernas e coloca as mãos no joelho,
erguendo o queixo para cima. Não sei se ela está
mais incomodada comigo ou com ele.
– Bem... – ele passa a mão nos cabelos loiros. –
Não sei bem o que devo dizer.

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– Por que não começa pelo que está sentindo? –


digo. – Não existem respostas erradas aqui.
Os lábios dele estão cerrados. A luminária no teto
ilumina o ambiente, já que o sol está fraco demais
para que eu não precise de luz artificial.
– Eu me sinto um pouco sufocado – diz ele de
uma vez e não ousa olhar para a noiva. Alana
focaliza os próprios pés e contorce a boca.
– E o que o faz se sentir dessa forma?
– Tudo aconteceu muito rápido – ele se encosta
na cadeira. – Você mesma disse isso.
Arregalo os olhos para o comentário. Não
esperava que ele dissesse uma coisa dessas! Ele
conversou sobre aquilo com a Melissa amiga, e não
com a Melissa terapeuta. É diferente agora que
Alana está ali, me observando confusa, com cara de
má etc. etc.
– Eu disse que achava isso no começo! É o que
qualquer um acharia se o melhor amigo anunciasse
que está para se casar sem nem mesmo ter
apresentado a namorada antes.

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Alana me lança um olhar mais ameno. Tudo bem,


tudo sob controle. Certo?
– Sim, sim, sei disso – ele tenta consertar. – Tanto
é que um dia você me disse que eu estava fazendo a
coisa certa em me casar.
Faço de tudo para manter uma expressão neutra
no rosto quando me dou conta de que eu disse isso
a ele no fatídico dia do beijo.
– Não tenho dúvidas de que pedir Alana em
casamento foi a atitude correta. Agora eu sei disso.
Eu só estava receoso.
– Receoso com o quê? – pergunto para que ele
compartilhe seus medos com a noiva, coisa que
imagino que ele faça muito pouco.
Indico Alana furtivamente com a cabeça e ele gira
para encará-la.
– Eu tive medo de não dar conta de tudo. Queria
ter certeza de que eu poderia cuidar bem de você.
Há um silêncio constrangedor que parece durar
uma meia hora, enquanto Alana o fuzila com os

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olhos, mas que provavelmente foram apenas uns


dez segundos.
– E aí você achou que jogar tudo para o alto fosse
“cuidar bem de mim?” – ela faz aspas com os
dedos, olhando ressentida para ele. – Aliás, cuidar
bem de nós?
Alana coloca uma mão em cima da barriga, que
por sinal, não demonstra nenhum sinal de gravidez.
Ela provavelmente será uma daquelas grávidas que
não parecem estar grávidas, mas sim com um
pequeno inchaço na região do estômago, como
quando eu estou com o intestino preso.
– Não, amor! Eu só...
– Você não pensou em mim – ela o interrompe,
sem nem mesmo gesticular. Sem nem mesmo
mover as mãos? Ela deve estar mal mesmo.
– E nem você – Rafa diz, com o maxilar travado e
a voz endurecida.
Ajeito-me na cadeira quando os ânimos começam
a se exaltar.

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– Está bem, está bem. Vocês estão com


pensamentos muito negativos a respeito um do
outro.
Alana aponta para o Rafa.
– A culpa é dele.
– Não importa o culpado – digo. – Nem sei se
“culpado” é a palavra certa.
– É a palavra certa para ele – ela fala baixinho.
Eu a ignoro.
– Vamos fazer o seguinte. Esse deve ser um
ambiente confortável para vocês dois. Por isso,
enquanto um estiver falando, o parceiro deve tentar
ouvir. Apenas ouvir.
Eles murmuram um “está bem” mal-humorado.
Rafa cruza os braços de forma rígida e Alana vira
de costas para ele.
– Quero que falem pelo menos uma coisa boa a
respeito do outro.
Eles ficam em silêncio.
– Rafa, por que não começa?

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– Eu? – ele passa uma mão na nuca e olha para


Alana, que olha para as próprias unhas da mão. O
rosto dele volta a relaxar. – Ela é linda. Tem o
cabelo mais bonito que já vi. – Os ombros dele
caem e Alana o fita de canto de olho. – É carinhosa
e sincera.
Sincera ou maldosa?
– Ela se veste muito bem. Você mesma disse que
ela tem um ótimo senso de estilo. Não é, Mel? –
Rafa sorri como um bobo.
– Er... claro – digo. – Eu amei o vestido de
casamento que você escolheu para as madrinhas.
– O seu é o mais deslumbrante – acrescenta ela
para mim, com certo sarcasmo na voz. – Pedi para
que Iolanda fizesse um modelo diferente para a
melhor amiga do Rafa.
Ela levanta uma sobrancelha só, irônica. Eu
abaixo o olhar.
Nunca tinha percebido o quanto sou querida por
esses dois, cada um do seu próprio jeito.

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Coincidentemente, ambos me presentearam com


vestidos deslumbrantes.
É quase engraçado perceber que essa situação não
é mais tão terrível quanto eu pensava – ajuda que
eu já não tenha sentimentos pelo noivo. Mas a
graça termina quando percebo o que isso me
causou. Leo era importante demais para mim para
eu tê-lo perdido. Rafa não era o cara certo. Acho
que meu coração já sabia disso. Mas meu cérebro o
tem ignorado há muito tempo.
– Você tem realmente um ótimo gosto, meu amor
– Rafa diz para a noiva.
Alana levanta o queixo para cima e dá uma
espiada de canto de olho em Rafa. Ele pega seu
olhar, então ela se vira de volta.
– Alana? – digo. – É sua vez.
– Tá legal... – ela começa, incentivada pela
enxurrada de elogios da parte do noivo. – Ele é
muito responsável, isso eu tenho que admitir. A não
ser nesses últimos dias.

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Ela frisa bem essa parte antes de continuar,


cerrando os olhos para ele.
– Ele até me faz ser pontual.
– O que é um feito complicado – Rafa diz,
brincando, e eu faço cara feia para que ele não
abuse da sorte.
Ele para imediatamente e dá uma risada para
quebrar o gelo. Alana nem repara. Ela já está toda
concentrada em seu discurso.
– Você tem notado, não tem Melissa? Que tenho
chegado adiantada nas consultas?
– Adiantada? Na verdade você só tem chegado no
horário marcado...
– Dá no mesmo, dá no mesmo – ela abana as
mãos no ar, ganhando aquele ar agitado novamente.
– O fato é que ele insistia para que eu não deixasse
minha terapeuta esperando. E eu comecei a
perceber que talvez fosse errado da minha parte.
Talvez?
– Tem coisas que eu nem percebo que faço – ela
cora, e eu posso jurar que vejo um relance de

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vergonha passar por seus olhos. – Sinto muito se


atrapalhei sua agenda.
– Er... uau, tudo bem.
Alana acabou de se desculpar pelo seu egoísmo?
É verdade o que dizem, a maternidade pode
amolecer uma pessoa.
– Ele é tudo o que eu não sou e isso me dá
equilíbrio – ela aponta a cabeça na direção de Rafa.
– Só quero ser uma pessoa melhor pra ficar ao lado
dele.
– Não, meu amor – subitamente, ele pega na mão
dela. – Eu é que não consigo ser menos que perfeito
para alguém como você.
Tá legal. Isso foi até que bonitinho.
Mas não parece ter sido o suficiente para
acalentar o coração da noiva.
Eu falo durante alguns minutos sobre
relacionamentos que evoluem rapidamente e a
importância de certas pausas para alinhar as
expectativas, gostos e atitudes do casal. Mas Rafa

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está inquieto. A cada pausa que eu faço, ele


pretende dizer alguma coisa, mas então se cala.
– Rafael, você gostaria de falar alguma coisa? –
ajeito os meus óculos no rosto.
– Eu descobri.
Ergo uma sobrancelha.
– Descobriu o quê?
Alana o observa, os braços cruzados.
– Lembra-se de que falei que foi amor à segunda
vista com Alana, pois jurava que já a tinha visto em
algum lugar antes? – Rafa diz para mim e então
olha para a noiva.
– Sei, mas o que foi que você descobriu...
– Foi aqui – ele diz, interrompendo-me.
Aqui?
– Lembra-se daquela vez em que vim conhecer
seu consultório? Aguardei na sala de espera até que
você acabasse de atender uma paciente.
Ele se vira para Alana.
– E agora sei que era você, meu amor – ele pega
nas mãos dela.

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Eu sabia que a culpa disso tudo tinha sido minha!


Já juntei dois casais agora. Será que o universo
teria alguma vaga pra cupido? Eu definitivamente
preciso de uma renda extra.
– Eu não me lembro disso – Alana diz, olhando
para ele com curiosidade.
– Foi só por um segundo. Por isso não a reconheci
como a mesma pessoa quando a vi no bar. Mas
agora me lembro! Naquele dia eu pensei: “Essa
garota seria muita areia pro meu caminhão”.
Ela sorri e empina o queixo.
– E quando a vi naquele bar, pensei exatamente a
mesma coisa – ele continua, dizendo o que ele sabe
que Alana vai adorar ouvir. – E tive certeza de que
eu teria que me esforçar muito pra chegar ao seu
nível de perfeição.
Tenho que admitir. O cara é inteligente.
– Ah, Rafa... – ela diz, segurando a mão dele e
mostrando aqueles dentes brancos de atriz de
cinema. – Eu não quero que você seja perfeito. Eu
só quero que você esteja comigo!

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Ela coloca a outra mão na própria barriga.


– Ou melhor, conosco.
E eu fico aqui do outro lado da mesa, enquanto o
aperto de mãos deles se transforma num abraço,
que rapidamente se torna um beijo daqueles bem
dados, com direito à língua e tudo.
Bom, acho que eu mereço isso. Por ter desejado
mal ao relacionamento deles e tudo o mais, sabe
como é. Mas a coisa parece estar indo longe
demais, então decido que eu, definitivamente, não
sou paga o suficiente para isso.
– Rram, rram... – finjo tossir e acrescento, antes
que eles voltem a se amassar nas cadeiras do meu
lindo consultório. – O que vejo aqui são duas
pessoas que se amam. Claramente.
Eles dão risadinhas como dois adolescentes.
– Mas que estão passando por um período de
transição muito abrupto. Casamento e filhos são
passos enormes na vida de uma pessoa, ainda que
planejado. Imaginem quando não é?

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Eles concordam com a cabeça, agora de mãos


dadas.
– O que eu quero ressaltar aqui é o seguinte:
vocês têm algo muito especial, e não me refiro
apenas ao bebê. As pessoas costumam não
valorizar esse tipo de sentimento na idade de vocês.
Bem, na nossa idade...
Nós três damos risada, mas somente eu ficarei
para titia.
– Mas não existe regra quando se trata do amor. A
hora certa de vocês pode ter vindo antes do que o
esperado, mas ela veio! E vocês terão a vida toda
pra fazerem dar certo.
Eles sorriem um para o outro. No final das contas,
devo admitir que eles indiscutivelmente passaram
nos testes.
Eu me dirijo ao Rafa.
– Se você quer tanto cuidar da sua família, a partir
de agora precisa começar a pensar no melhor para
ela. Sua noiva e o bebê não precisam de um plano

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estratégico de negócios. Eles precisam de você. E


você é capaz de cuidar disso.
– Eu vou cuidar de vocês – Rafa diz, a mão na
barriga de Alana.
– E Alana – continuo –, você se sentiu ameaçada
quando seu parceiro demonstrou medo, porque
você mesma tem tendência a desistir. E por isso
ameaçou jogar tudo para o alto, fechando-se para a
resolução do problema.
Ela não diz nada, olhando para baixo.
– Relacionamentos não são fáceis. O casamento é
uma constante batalha. Mas não é uma batalha de
um contra o outro. É contra os problemas. Vocês
terão que aprender a ser fortes. E eu vou te ajudar
nisso, Alana. Se você me permitir...
Ela me olha, entorta a boca e dá um suspiro,
como se ponderasse não me jogar aos jacarés.
– Vou ser bem sincera com você – ela balança o
dedo indicador. – Não gostei de você ter escondido
a verdade de mim. Eu nunca escondo nada de você,

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nada! Bem, somente a gravidez, mas enfim... eu te


considerava uma amiga.
Nunca pensei que ouvir Alana dizer que “me
considerava uma amiga”, no passado, doeria tanto.
– Mas... você sempre fez muito por mim, desde a
primeira consulta. Sei que não sou uma pessoa fácil
de lidar. E sou grata por estar me ajudando com
meu problema de relacionamentos fracassados.
Sem você, e sem essa consulta de hoje, eu
provavelmente não teria o Rafael. Aliás, sem você
eu provavelmente não estaria desse lado da cidade
para ter conhecido ele no bar.
Fecho os olhos por um segundo, para recarregar
as energias. Sinto o toque gelado da mão dela na
minha, e meus olhos se abrem com o choque. O
sorriso de piedade – com um sutil toque de
esnobismo – que ela lança em minha direção me
faz respirar novamente.
– Acho que podemos reconstruir essa amizade,
Melissa – ela me olha de canto de olho. – Mas vou
precisar de uma coisa de você.

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– O que quiser – aperto a mão dela em retorno.


– De agora em diante, nas consultas comigo...
– Sim...
– Você vai ter que parar de usar suéter com
camisa social.
Dou uma gargalhada alta e seguro o impulso de
chorar de emoção.
Solto a mão dela para voltar à parte profissional e
encerrar a consulta – e essa história – de uma vez
por todas.
– Então quero que faça o seguinte, Alana – digo,
com ânimo renovado. – Comece a confiar em você
mesma! Sua impulsividade é um traço da sua
personalidade, mas ela não define a sua vida.
Lembre-se: você é a dona do seu destino.
Trabalharemos esse seu lado mais profundamente
nas consultas. Mas você precisa decidir que vai
ficar. Vai ficar e prosseguir no caminho que
começou. O casamento está marcado. É agora ou
nunca.

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Alana empina o queixo, olha para Rafael e respira


fundo, antes de sorrir e dizer:
– É agora!

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– Por que é que está com essa cara? – mamãe


pergunta, e sei que foi o meu nariz que me
entregou.
Chorei um pouco no caminho para cá. Foi só
lembrar de uma coisa engraçada que o Leo me
disse outro dia para me fazer ficar sentida. Parece
que eu não ganhei nada com essa história toda. Eu
só perdi.
E perdi muito.
Pensei que se fosse para inundar a casa de
alguém, que fosse a dos meus pais. Até mesmo Luli
pula em minha direção, como se estivesse tentando
me animar.

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É muito chato quando alguém percebe que tenho


alguma coisa a esconder por causa do meu nariz.
Deve ser difícil para o Pinóquio.
– O que tem de errado com a minha cara? –
pergunto, colocando a bolsa em cima da mesa.
– Você parece triste.
– Não é nada, mãe. Só estou com fome.
Mas fome é o que não tenho – é isso o que me
assusta. Além de que daqui a pouco mais de uma
semana o casamento vai acontecer, e o plano que
eu tinha feito para o meu futuro vai oficialmente
por água abaixo. Não que eu queira esse plano.
O problema é que ele era o único que eu tinha.
E agora, olha a bagunça que minha vida se
tornou!
Fora a coisa toda com o Leo. Até fiz uma lista, de
tantas reviravoltas:

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Não é um raciocínio muito lógico.


Vai ver ele está confuso. Ver o melhor amigo
ficando noivo pode mexer com a cabeça de alguém.
Digo isso por experiência própria.
Não importam as razões que eu crie para essa
declaração raivosa de amor da parte dele, sempre
chego à conclusão de que foi uma confusão
momentânea do cupido.
De qualquer maneira, não faz diferença, visto que
agora ele me odeia. É de se esperar que ele tenha
virado as costas para mim, depois de tudo o que eu
o fiz passar. Meu coração se aperta. Eu o fiz sofrer
esse tempo todo!
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– Então vamos jantar – mamãe se apressa na


direção da cozinha.
Talvez seja aquela sensação de fundo do poço,
mas estou mais calma. Se eu já estraguei tudo, não
há mais nada o que estragar. Nunca pensei que o
fundo do poço me traria tanta calma. Eu me
pergunto se os praticantes de ioga sabem disso.
– Sua mãe tem uma proposta pra você – papai diz
depois que dou um beijo em sua bochecha, e volta
sua atenção à leitura diária do jornal.
– O que é? – pergunto quando mamãe se
aproxima de nós, na sala de estar.
Ela se senta ao nosso lado no sofá, com as mãos
nas coxas. Luli dá um salto e senta-se entre nós, a
coleirinha de metal fazendo barulho.
– Bem, como você bem sabe, eu ando muito
ocupada com as coisas por aqui e um cachorro pode
dar muito trabalho, e...
– Eu sabia! – digo, triunfante, apontando o dedo
para ela. – Eu avisei que a senhora faria isso!

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– Ora, não seja tão dramática, querida. Eu


simplesmente vi que meus interesses agora são
outros.
– Mãe, Luli não é um de seus esmaltes no
depósito. Você não pode simplesmente guardá-la
quando perder o interesse.
– Eu sei disso, querida, e é por isso que estou
doando Luli a você.
– A mim? – digo, apontando para mim mesma.
Ela só pode estar brincando.
– Sim, a você! Não é uma ideia maravilhosa? –
ela junta as mãos na frente do rosto, esperando
minha reação. Pisco.
– Mãe, eu não sei se você sabe, mas meu salário
mensal mal cobre o valor do condomínio e as
contas do mês. Como você acha que eu poderia
cuidar de Luli?
Ela tem ideia do quanto estou pobre? Sou
provavelmente mais pobre que Luli. Talvez Luli
devesse me adotar. A cachorrinha olha de um lado

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para o outro, acompanhando a nossa voz, sem


entender nada. Papai nem tira os olhos do jornal.
– Mas você não tinha dito que sempre quis ter um
cachorro? – ela prossegue, cínica.
– Ah, e agora a senhora convenientemente se
lembra disso?
– Você teria tempo de cuidar dela, tendo um
horário de trabalho flexível... – ela continua citando
as vantagens.
– Mãe, você é dona de casa. Não tem horário de
trabalho mais flexível que o seu!
– Querida, mas seria tão bom pra você. Um
cachorrinho pode acrescentar muito em nossa vida.
– Acrescenta muitas dívidas – digo baixinho e
tampo as orelhas de Luli, para que ela não me
escute. – Não está nos meus planos.
– E por que é que precisa estar sempre nos seus
planos, Melissa? – ela se irrita. – Deus! Você é
igualzinha ao seu pai.
Papai levanta as sobrancelhas e sorri.
– Mãe, nós somos planejados, só isso.
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– Querida... – ela pega em minha mão. – ... de que


adianta ser assim tão planejada se você não se
permite ser livre para fazer as coisas que tem
vontade? Você manda na sua vida e não o plano
que você fez pra você.
– Mãe, eu simplesmente não consigo imaginar um
cenário em que Luli e eu não passemos fome.
– Querida, escute bem. Sei que você gosta de
Luli, então eu queria que você cuidasse dela. Mas
se você acha que não pode, decidi doá-la amanhã
ao meio-dia para a feira de adoção ali na Rua 5,
perto da feira, sabe? Ao lado daquele pet shop
famoso, como é mesmo o nome, Zé?
– Pet Mania – diz papai, ajeitando os óculos de
grau.
– Isso! Pet Mania, ali perto da feira.
Fico chocada.
– Você não pode simplesmente doá-la!
– Querida, Luli deve ficar com uma família que
vá cuidar muito bem dela. Sei que foi um erro meu

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tê-la adotado sem pensar direito. Mas agora preciso


fazer o que é certo.
– Entendo – digo, carrancuda, os braços cruzados.
– E acho que o certo para ela é ficar com você.
– Desculpe, mamãe, mas não posso.
Pego Luli nos braços e a acaricio. Ela lambe
minha bochecha e olho para baixo, engolindo o
choro. Gostaria de poder cuidar dela, gostaria
mesmo, mas não posso. Mal tenho dinheiro para
mim, como vou sustentá-la? Como mamãe mesma
disse, Luli deve ficar com uma família que cuidará
bem dela.
Jantamos, dou adeus à Luli com o coração
apertado e saio do apartamento dos meus pais.
Chego em casa sem conseguir relaxar. Ligo a
televisão, mas de nada adianta. Minha cabeça está
muito cansada, de tanto pensar. Parece que é só o
que faço. Pensar, pensar e pensar.
Pego no sono detestando a atitude impensada de
mamãe, mas dando-lhe crédito por sua inteligência

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emocional ao perceber que às vezes eu realmente


não me permito fazer o que tenho vontade.
Acordo no dia seguinte e me levanto para
preparar um café bem forte. Talvez adotar Luli não
fosse assim uma ideia tão ruim. Quer dizer, ia ser
uma gracinha poder ver os adoráveis pulos dela
enquanto eu faço meu café da manhã todos os dias.
E eu ainda prepararia um café da manhã incrível
para ela, com frutas e coisas apetitosas e saudáveis.
Mas com que dinheiro? Coloco a água do café
para ferver. Tudo bem que talvez eu pudesse pegar
todos os acessórios que meus pais já tinham
comprado a ela, como a casinha, as roupinhas e as
sobras do pacote de ração. Mas ainda assim não
teria o suficiente. Eu ia ter que comer ração
também.
Pego o potinho de café e o coador na gaveta. Se
eu pelo menos tivesse mais um paciente no
consultório, talvez eu pudesse ter adotado Luli. Aí
sim eu poderia dar a ela uma boa vida. Mas é tarde

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demais. Sobreponho o lábio inferior no de cima,


formando uma carranca.
Jogo a água no coador, que contém bastante pó de
café, quase exageradamente. Só que talvez, só
talvez, dar uma vida boa para Luli seja
simplesmente dar-lhe um lar. E quem me garante
que ela conseguirá ser adotada naquela feira de
cachorros por uma família decente? Quem me
garante, inclusive, que ela ao menos será adotada?
Ai, meu Deus! E se Luli ficar sozinha pelo resto
de sua vida, sem ter ninguém para cuidar dela?
Esse pensamento terrível toma conta de mim e
pouso a colher na pia. O café cai sem sentido na
garrafa térmica e os meus planos não me parecem
tão interessantes se eles me impedem de dar amor a
alguém. Um cachorro definitivamente não estava
nos meus planos, mas eu poderia muito bem dar um
jeito.
Que se dane, eu como ração se for preciso!
Com um forte impulso, deixo o café coando na
pia, corro em direção à sala, agarro minha bolsa e
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visto uma jaqueta de frio. Olho para o relógio de


parede e ele marca que já são 12h09. Droga! A essa
hora mamãe provavelmente já entregou Luli para
doação. Preciso chegar lá a tempo de adotá-la
primeiro.
Chamo o elevador que, para a minha surpresa,
chega muito rápido no meu andar, o que me reforça
a ideia de que isso pode dar certo, mesmo que nada
disso tenha sido planejado. Infelizmente, um casal
de idosos me olha de cima a baixo e permanece em
silêncio observando meus chinelos por cima das
meias, e meu modelito supermoderno de calça
velha de moletom e jaqueta jeans.
Corro em direção ao ponto de ônibus quando vejo
que o ônibus que devo pegar para o bairro dos
meus pais está passando naquele exato momento.
Por mais um golpe de sorte, o motorista pisa no
freio quando me vê correndo como uma maluca
que fugiu do hospício e, ofegante, consigo subir a
bordo.

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Nem me incomodo com os olhares curiosos para


o meu look desarrumado, pois tenho apenas um
objetivo em mente, e isso significa trazer aquela
bolinha de pelos para casa. Porém, aproveito para
tirar as meias agora que já estou a caminho –
porque estou realmente ridícula – e as guardo
dentro da bolsa.
Enquanto o ônibus se movimenta na velocidade
de uma tartaruga, me pergunto se o motorista parou
para que eu pudesse subir no ônibus ou se ele
apenas andava muito devagar mesmo. Ligo para
mamãe pela terceira vez, para saber informações
sobre o paradeiro dela e de Luli, mas como sempre
ela não me atende. Do jeito que ela é,
provavelmente nem mesmo levou o celular.
Já são 12h30 e nada de chegarmos. Minha
ansiedade rompe as barreiras do termômetro
quando o ônibus para em um engarrafamento que
parece que vai durar uma vida inteira. Mas, como
um desvio no destino, viramos na próxima esquina
e começamos a nos mover depressa, dessa vez
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quase perigosamente, enquanto o motorista se


transforma num piloto de Fórmula 1 e os
passageiros se veem obrigados a se segurar nas
barras e cadeiras a sua frente.
Desço no ponto perto da Rua 5 e ando depressa
em direção ao Pet Mania. Ao lado, há um grande
banner que diz “feira de adoção” e aperto o passo.
Caminho pelas jaulinhas à procura de Luli, mas
ela não está ali. Ouço os latidos dos cachorros e
começo a entrar em pânico.
Cadê ela? E se alguém a adotou?
O relógio mostra que já são 12h50. Oh, não...
Talvez ela já tenha sido adotada.
– Com licença? – digo sem fôlego à atendente
pequena e sorridente, com uma trança nos cabelos.
– Você viu uma Lhasa Apso branquinha?
– Uma Lhasa Apso? – ela diz, conferindo sua
prancheta.
– Sim, o nome dela é Luli. Me disseram que iriam
doá-la a vocês hoje ao meio dia.

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– Não recebemos doação de nenhuma Lhasa Apso


hoje.
– Tem certeza? – pergunto, colocando o cabelo
desarrumado atrás da orelha, sem saber o que fazer
em seguida.
– Melissa? – ouço uma voz familiar, então me
viro para observar. E o que vejo é a cena de mamãe
segurando Luli nos braços, tirando os óculos de sol
dos olhos e posicionando-os na cabeça. – O que é
que você está fazendo aqui? E vestida desse jeito?
Ignoro o comentário dela a respeito de minhas
vestimentas. Não é da conta dela.
– O que é que a senhora está fazendo aqui? –
aponto para o relógio no meu pulso. – Não deveria
ter vindo às 12h?
– Ah, sim! Mas parei pra conversar com Telma, e
você sabe como ela é enxerida. Ficou tentando me
convencer a não doar Luli, então eu disse “por que
você não fica com ela?”, ao que ela me respondeu
“tenho cara de canil?”, e depois ficamos discutindo

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sobre a cor de parede horrível que ela escolheu para


a sala de estar.
A descontinuidade da conversa delas me espanta,
mas não estou minimamente interessada na cor que
Telma escolheu para a parede dela.
– Eu fico com ela – interrompo a falação de
mamãe.
– O quê? – mamãe abre um sorriso.
– Sim, eu fico com Luli – estendo os braços na
direção do meu novo animalzinho de estimação,
aliviada por ter chegado a tempo. Pego ela no colo,
recebendo diversas lambidas animadas na
bochecha.
– Mas você disse que isso não estava nos seus
“planos” – ela diz a última palavra com sarcasmo.
– Eu sei o que eu disse, mas quero cuidar dela –
afago a cabecinha de Luli, que se agarra ainda mais
nos meus ombros, como se me pedisse para não
deixá-la aqui. E não vou. Mesmo não tendo um
centavo no bolso, ela faz parte dos meus planos
agora. Dos meus novos planos.
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– Ótimo, querida! – mamãe diz, passando os


braços ao redor dos meus ombros. – Você não sabe
o quanto isso me deixa feliz.
– Então está na hora de você me deixar feliz, dona
Margarete – digo. – Primeiro precisamos de uma
carona. Não posso voltar de ônibus com ela nos
braços.
Entramos no carro e ajeito a cachorrinha no meu
colo.
– E depois, Luli e eu aceitamos doações de ração,
roupinhas e todos os acessórios que a senhora
comprou para ela. As coisas andam meio paradas
no consultório. – Olho para os meus pés. Eu nunca
tinha confessado aos meus pais o quanto estou
quebrada.
Ela me olha por um momento.
– Está precisando de dinheiro?
– Não, mãe, não estou – minto.
– Sabe que tudo o que eu quero é te ajudar, não é,
querida?

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– Sei disso, mamãe. Mas vocês já fizeram muito


por mim. Isso é algo que preciso conseguir sozinha.
– Eu me orgulho muito por você ser tão
organizada, Melissa – ela diz, com as mãos no
volante. – Mas na maioria das vezes as coisas não
vão sair como o planejado na sua vida. E você tem
que arriscar.
– Sem querer ofender, mas você não é o exemplo
de sensatez. Você vive metendo os pés pelas mãos,
fala sem pensar, e age por impulso – digo e aponto
para a filhotinha que ela estava prestes a doar para
o abrigo de animais.
– Mas no final tudo deu certo, não foi? – ela
pergunta, apontando para Luli e eu.
– Sim, mas...
– Querida, meter os pés pelas mãos de vez em
quando não é uma coisa necessariamente ruim. Só
quer dizer que você está tentando.
Sinto o cheirinho doce do shampoo de Luli.
– Você pode ter um pouco de razão.

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– Melissa, eu te pari. É claro que eu tenho razão!


– ela rebate, ligando o motor do carro. – E é por
isso que pego tanto no seu pé. Você precisa pensar
menos, meu amor.
Eu faço isso, não faço? Pensar demais? Eu
realmente faço isso. É como se eu tivesse passado a
vida inteira presa numa caixa, quando na verdade
existiam muitas outras formas de viver. Eu quero
sair!
– Ei, mãe – digo, dando-lhe um beijo na
bochecha. – Obrigada por isso. Luli agradece
também.
Ela pisa no acelerador, e cruzes! Mamãe dirige
mal à beça. Buzinas soam altas quando ela corta os
carros e ônibus sem pestanejar, e temo não
conseguir levar Luli para sua nova casa.
– E mais uma coisa – ela acrescenta, enquanto
buzina para uma motocicleta. – Fiz o que você me
pediu.
– E o que foi que eu pedi?

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– Para que eu alimentasse Luli apenas com ração,


para que ela fosse para a casa da nova dona com
saúde. E eu o fiz.
– Não brinca! Isso é sério? – pergunto, afagando a
cabeça do animalzinho em meu colo.
– Pois é, então cadê aquela tal blusa que você me
prometeu como recompensa?

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Não sei se foi a noite muito bem dormida, ou se é


porque estou tendo a sensação libertadora de comer
um croissant de chocolate no café da manhã, mas
me sinto bem.
Olho para Luli, que pula noventa centímetros no
ar a fim de arrancar uma lasquinha do croissant, e
as coisas parecem diferentes. Além da nova bola de
pelos que ronda meu apartamento.
De qualquer jeito, nunca daria certo com Rafa. As
alergias dele me impediriam de ficar com Luli,
então eu teria que doar o Rafa para o abrigo.
Vou até a cozinha e me sirvo de mais café...
enquanto preparo pães de queijo com calma... eu

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não tenho pressa! Talvez meus planos possam


esperar. Não preciso necessariamente ter um
relacionamento agora. Por enquanto, posso esperar.
Talvez tudo o que eu fiz nem mesmo tenha sido
por causa do Rafa. Eu simplesmente tinha me
cansado de desistir da área amorosa da minha vida.
E não era o meu timing que estava errado, no final
das contas. Eu apenas tentei demais com a pessoa
errada.
Falta uma semana e um dia para o casório e Pati
me ligou hoje cedo no telefone do consultório –
pois sabia que eu não recusaria a chamada –, com o
pretexto de me encher de fofocas numa manhã
semiensolarada. Mas no fundo, no fundo, sei que na
verdade ela estava intencionada a descobrir alguma
fofoca da minha parte.
Não dei a ela esse gostinho.
Em vez disso, ela acabou me lembrando de que
hoje é o casamento de Alana e Rafael no civil. E
não que eles precisem disso, ou que já tenham
precisado um dia, mas eles têm minha benção.

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Os pais dos noivos serão as testemunhas, de


forma que pude me safar dessa. Para falar a
verdade, eu estou pensando muito menos neles
ultimamente. Minha cabeça gira em torno de outra
questão.
Não que eu esteja obcecada com isso nem nada.
Mas o negócio é que Leonardo não pode me
beijar, dizer que me ama e em seguida virar as
costas para mim e ir embora. É simplesmente
errado.
Você está errado, Leonardo. Muito errado!
E não digo isso porque gostei de ouvir aquelas
palavras.
Certo, talvez eu tenha gostado um pouquinho de
ouvir aquelas palavras, mas elas de nada adiantam
se a pessoa vai embora com raiva de você depois,
não é?
Ele achou que aquilo seria romântico?
Pois então ele tem assistido comédia romântica de
menos, se é o que você quer saber.

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Ele precisa de boas referências cinematográficas


da próxima vez que fizer algo assim.
Não que eu queira que seja comigo.
Mas se eu quisesse, hipoteticamente falando, e
não estou falando que quero nem nada, esse não
seria o jeito de me impressionar.
Mesmo que meu coração dispare só de pensar
nisso.
– Ei, Lo! – digo à Lorraine ao sair da minha sala
com um montão de pastas na mão e a bolsa no
ombro, pronta para ir embora mais cedo.
Afinal, o que há para fazer por aqui? Meus
planejamentos de marketing estão quase se
esgotando, de qualquer maneira. Assim como o
meu dinheiro.
– Sim? – ela pergunta, levantando os olhos do
computador, que aposto que está na tela do
Facebook, MSN ou algo assim. As pessoas ainda
usam MSN?
– Seu café é maravilhoso. Nós não
conseguiríamos mais viver sem você por aqui. É

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uma ótima secretária.


– Como é?
Ela desvia o foco do computador, parecendo ter
visto um fantasma.
– Você gosta mesmo do meu café? – ela esboça
um sorriso. Será que eu já tinha visto essa garota
sorrir?
– Se eu gosto? Não vê que eu acabo com a garrafa
todinha?
– Puxa... obrigada, Melissa!
– Pode me chamar de Mel.
– Tá legal, então... Mel.
Apoio a bolsa no balcão.
– E falando nisso... será que dava para não
colocar açúcar no café de agora em diante? É que
eu descobri que...
– Que doutor Júlio tem diabetes?
Afirmo com a cabeça, impressionada.
– Como você sabia?
– Eu recebo as entregas dele da farmácia no
consultório. Desde então, venho substituindo

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açúcar por adoçante natural. Ele nem percebe a


diferença.
Ok, talvez ela preste mais atenção no trabalho do
que eu imaginei.
Dou uma piscadinha para ela quando Júlio passa
ao nosso lado.
– Boa tarde! – digo a ele.
– O que disse? – ele vira para me encarar,
pescoço primeiro, barriga depois.
– Eu disse boa tarde.
– Ah, bom dia, bom dia – ele cantarola.
– O que aconteceu com você?
– Comigo? – ele questiona.
– É! Com você. – apoio o peso em uma perna só.
– Iolanda aconteceu comigo. Foi isso!
– É mesmo? Isso é fantástico. Como foi o
encontro?
– Foi esplêndido. Devo estar apaixonado. Não
devo? – ele abre um sorriso radiante com aquelas
bochechas enormes.
– Como eu posso saber?

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– Ora, filha... você não é especializada em


relacionamentos? Faça a sua mágica!
– Quer marcar uma consulta comigo, então? –
digo, brincando com ele.
– Eu quero – diz uma voz familiar e me viro para
conferir.
E não acredito nos meus olhos.
– Magda? – pergunto, ao observar a mulher com
cara de cavalo da primeira fileira em minha
desastrosa palestra de mais de um mês atrás entrar
pela porta do consultório.
– Você se lembrou do meu nome – ela sorri,
humilde.
Então dá um passo cauteloso à frente e ergue uma
mão para Júlio, num tímido cumprimento.
– Mas é claro que sim. Eu nunca me esqueço de
um rosto – digo, omitindo que é por causa da
característica marcante do rosto dela em si e dando-
lhe um abraço.
– Eu... – ela hesita. – E eu nunca me esqueço de
seus conselhos. Tivemos uma melhora muito boa,

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meu marido e eu, mas ainda há muito o que


resolver.
– Que bom que ajudei – digo e estendo o braço ao
redor. – E fico feliz que tenha vindo conhecer o
nosso espaço.
– Sim, sim, claro. Eu recebi seu e-mail, então vim
conferir.
Que ideia maravilhosa a do e-mail marketing!
Queria agradecer ao Leo por ter me orientado a
respeito da propaganda online. Se ele estivesse
falando comigo, quer dizer.
– Você também trabalha com terapia para casais?
E não é que minha recém-adquirida experiência
com Alana e Rafael me rendeu bons frutos?
– Sim, tenho experiência prévia na área, sim –
digo e cruzo os braços da mesma maneira como na
foto profissional do e-mail.
Ela não precisa saber quão prévia é a experiência.
Júlio levanta os dois polegares para mim atrás de
Magda.

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– Que maravilha. E quando podemos começar? –


ela pergunta.
– Deixe-me checar, só um minuto – pego a
agenda preta de couro dentro da bolsa e começo a
folhear. Mas então me detenho. Não faz sentido
esconder dela que estou totalmente, absolutamente
disponível, se tudo o que ela quer é minha
disponibilidade.
– Pra falar a verdade... – digo, guardando a
agenda de volta na bolsa e sorrindo para ela –, ...
podemos começar agora mesmo!

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É 24 de agosto, e isso quer dizer que amanhã é o


dia do casamento que, como diria Alana, vai super
acontecer. Até o clima da cidade esquentou, como
um grande clichê, para coroar a reconciliação do
casal.
Os pombinhos dão crédito especial a minha
pessoa pelo acerto de contas, mesmo que eu ainda
esteja em “processo de perdão” com minha
paciente. Pelo menos ela não me desconvidou pro
casamento, o que já é uma grande coisa.
– Um frapê de chocolate, por favor? – peço ao
atendente do café.
Pego a notinha do meu pedido com dificuldade,
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com a mão disponível. Acabei de voltar de Iolanda


para pegar meu vestido de madrinha. Mas não sem
antes ela me olhar de cima a baixo e dizer, com
muito tato:
– Andou comendo umas bolachinhas a mais,
querida?
Ela fez questão de acrescentar que não se
responsabiliza se o vestido ficar apertado. A culpa é
minha se salada tem um gosto estranho? Podem me
chamar de louca, mas não fui eu quem a plantou.
Então eu disse a ela que juntar casais adoráveis
me dava fome, se é que ela me entendia. Ela ficou
toda envergonhada e me deu um abraço rápido,
seguido de um “obrigada, meu bem” na forma de
um sussurro.
Com o frapê congelando meus dedos, sento-me
para apreciar a manhã na poltrona confortável do
café, o cheiro de croissants e folhados pairando no
ar.
Agora que tenho a terça-feira preenchida com
minha mais nova paciente, das dez às onze da

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manhã, parece até que enxergo os arredores mais


coloridos. Ou talvez seja o sol que invade os
espaços anteriormente frios, dando vida a tudo e a
todos.
Mas o fato é que, agora, ninguém me segura!
Viva o e-mail marketing! Seja lá quem inventou
essa maravilha, está de parabéns. Inclusive eu
deveria mandar um e-mail marketing a seu inventor
com meus formais agradecimentos. Só que aí eu
acho que não seria um e-mail marketing, mas sim,
somente um e-mail.
Tanto faz, digamos que eu ainda não seja o gênio
do empreendedorismo digital. Mas estou
aprendendo muita coisa ultimamente. E estou
pronta para curar alguns corações partidos por aí.
Talvez eu até faça uma conta em alguma rede
social. Tá legal, não vamos exagerar!
Se estou pronta para o dia de amanhã? Posso
dizer que adoro tradições. Mas quem diria que,
como primeira vez sendo madrinha, eu ia querer
separar o casamento?

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E, pensando por esse lado, a culpa não é


realmente minha, já que essa é a minha primeira
vez, e ninguém me deu um manual de instruções.
Apesar de que alguns chamariam esse manual de
instruções de bom senso.
De qualquer maneira, agora já entendi essa coisa
toda de madrinha.
Só que não é o casamento em si que me deixa
nervosa. A sensação estranha na ponta do meu
estômago fica perambulando por lá por causa do...
Bom, por mais que eu não queira admitir, tudo
isso é por causa...
Ah, que se dane! Obviamente é por causa do Leo.
E eu detesto essa sensação.
Porque estou quase certa de que sei por quê,
involuntariamente, me sinto dessa forma.
O ambiente do café tem um clima agradável.
Quadros com fotografias enormes e coloridas de
pessoas felizes preenchem as paredes.
No balcão de madeira há dois amigos
adolescentes com os olhos inchados de sono e

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uniformes escolares bem passados – provavelmente


mal-humorados por terem sido obrigados a acordar
tão cedo. Estariam eles inconscientemente
vingando-se de seus pais ao gastar uma fortuna
com cafés da manhã de valores exorbitantes no
cartão de crédito deles?
Há também duas mulheres bonitas conversando,
um casal adorável dividindo um sofá de couro, um
senhor bem vestido com terno e gravata cinzas
lendo o jornal e...
Espera aí um minuto! Um casal adorável
dividindo uma poltrona? O caramba que são
adoráveis! Mas que droga é essa?
Ajeito os óculos e estreito os olhos para ter
certeza. E é mesmo Pati dividindo o sofá com o
idiota do Augusto. Mas que porcaria ela está
fazendo ali?
Ouço sua risada estridente. Traição de ex-
namorado não é um tema engraçado para merecer
essa risada entusiasmada da parte dela. Tenho
vontade de ir até lá e arrancar um tufo de seu

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cabelo ruivo, arrastando-a para longe daquele


pervertido – que se divertia muito com aquela loira
com pinta no queixo e pernas bronzeadas que vi
com ele no restaurante. Tenho certeza de que ele
não mudou da água para o vinho.
Mas a vida é dela e não é da minha conta. Então
me levanto devagar da poltrona confortável do
café, xingando Pati mentalmente por me fazer sair
dali a fim de não ser vista por ela mesma.
Saio do café quentinho quase tropeçando nos
degraus com o vestido no cabide dentro da capa e
pego o celular na bolsa para contar ao Leo o que
acabei de presenciar. Ah! Esquece... esqueci que
ele provavelmente não quer falar comigo, então
desisto no meio do caminho. Decido por outro
número, em vez disso.
– Alô?
– Oi! Você não vai acreditar em quem eu acabei
de ver. E com quem!
– Quem? – diz ela, com a voz mais fina do que a
de um esquilo.

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– A minha amiga ruiva burra, com o idiota do


Augusto.
– Só um minuto – diz Pati com a voz doce. Olho
pela janela de vidro enquanto ela se afasta do
canalha. – Merda! Eu sei que eu devia ter contado
antes, mas eu posso explicar, eu juro!
Engraçado como a doçura na voz dela de alguns
segundos atrás desapareceu completamente.
– Você não deveria ter me contado nunca, porque
isso nunca deveria ter acontecido. Patrícia, sua
idiota!
– Eu sei, eu sei. Merda!
– Hoje, às sete, na minha casa. Essa é uma
reunião de emergência.
– Ah, não! Noite do sermão? Obrigada, mas eu
passo.
– Você não pode simplesmente “passar” uma
reunião de emergência!
– Ótimo, querida. Então tá bom! – ela retorna a
sua voz artificialmente doce, voltando a se
aproximar de Augusto. – Te ligo depois. Tchau,

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tchau – diz, como a cretina que às vezes é, e desliga


o telefone na minha cara.
Chego ao consultório no momento em que o meu
celular toca dentro da bolsa. Demoro um tempo até
localizá-lo, e quando finalmente consigo encontrá-
lo, ele para de tocar. Vejo no visor a ligação
perdida de Rafa, mas não quero retornar.
E se ele me disser que o casamento foi novamente
cancelado e que é tudo minha culpa?
Enquanto encaro o aparelho, o trim do celular
ressoa novamente e quase o derrubo das mãos.
– Alô?
– Oi, querida... – diz uma voz de mulher e
imediatamente reconheço a dona.
– Oi, Alana.
– Nossa madrinha preferida... – ela diz, em tom
reconciliatório.
– Essa sou eu – sento-me na cadeira e abro um
pequeno sorriso. Tiro as sapatilhas do pé.
– Bom, te ligamos há pouco para avisar que o seu
par como padrinho do casamento mudou, ok?

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Como assim, mudou?


– Humm... como é? – digo, calçando as sapatilhas
de novo.
– O Leandro, que era o padrinho correspondente a
você, vai participar da cerimônia com outra
madrinha, que ele já conhece faz tempo.
– Leonardo.
– O que disse?
– O nome dele é Leonardo.
Quem é que ele conhece melhor do que eu? Quer
dizer, eu entendo que ele conheça incontáveis
mulheres, mas até entre as madrinhas? Sério, Leo?
Sério?
– Mas ele me conhece há muito tempo – me pego
respondendo, na defensiva.
– Sim, mas sabe como é. Pediram-me para que a
troca fosse feita, querida.
– Está bem, então – digo, mais emburrada do que
gostaria.
– Bem... então, tchau, tchau – ela hesita, como se
estivesse pisando em ovos comigo. – Não vejo a

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hora de... você me ver em meu vestido amanhã.


Bye.
Ela desliga abruptamente. Continuo com o celular
na orelha, resmungando para mim mesma. E
finalmente não é por causa de Alana. Tem a ver
com a rejeição do meu antigo par.
Qual é o problema dele?
– Pati – digo, assim que ela atende à ligação.
– Eu-não-vou-na-sua-casa-hoje-à-noite.
– Vai sim.
– Não, eu não vou – ela diz cada palavra
lentamente, como se eu fosse imbecil. Eu bufo.
– Vai, sim. Porque eu tenho uma coisa pra contar.
E você vai querer saber.

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– E foi isso. Eu o vi beijar uma garota na balada e


decidi que não valia a pena.
Ela parece chocada com o que aconteceu na
faculdade, a cabeça ruiva apoiada nas mãos em
cima da bancada de granito branco da minha
cozinha. Penso em pegar água com açúcar para ela.
– Eu não acredito! – ela diz, finalmente.
– Eu sei, também fiquei chocada na época – falo
enquanto enfio um pedaço de bolo de chocolate na
boca, satisfeita por ter partilhado essa história com
ela. E por ela ter partilhado esse bolo comigo.
– Não! – ela me olha como se eu fosse idiota. –
Eu não acredito que você não me contou isso antes.
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– Ah, para!
– O que mais você escondeu de mim todos esses
anos? Que você já foi casada? Hein? Seu nome é
mesmo Mel?
– Não, Mel é meu apelido – rebato.
– Você me entendeu! – a voz dela sobe muitos
decibéis.
A luz branca da cozinha ilumina os cabelos de
Pati, deixando-a ainda mais ruiva, suas mechas
contrastando com os móveis brancos do ambiente.
– Você é minha melhor amiga, mas isso era
doloroso demais pra te contar. Além do mais, você
não é exatamente a pessoa ideal para repreender
alguém por causa de um segredo, não é mesmo? –
digo, cortando mais um pedaço do bolo macio, o
cheiro de chocolate passeando pelo ar. – Você
mentiu pra mim, sua vaca.
– Você chama de mentira, eu chamo de omissão –
Pati pega seu prato de sobremesa e caminha da
cozinha para a sala de estar minúscula do meu

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apartamento, os sapatos oxford fazendo barulho no


carpete de madeira. Eu a sigo.
– O mundo chama de mentira, Patrícia – Paro no
meio do caminho. – Espere aí! Foi por isso que
você se escondeu no dia em que vimos Augusto no
restaurante chinês?
– Er...
– Você não estava se escondendo dele. Estava
escondendo ele da gente. – Afundo-me no sofá ao
lado dela.
– É muito difícil de te enganar, sabia? Eu não
podia deixar você me ver interagindo com ele, ou
você descobriria tudo.
– Não precisava ser um gênio pra descobrir o que
estava rolando ao ver vocês engalfinhados no café
hoje.
Ela sorri com tristeza.
– Então eram para ele todas aquelas mensagens
que você vivia mandando?
– Pois é – ela diz e apoia a cabeça no sofá.
Espere aí!

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– Pati, eu posso jurar que vi você beijando


Augusto na despedida de solteiro do Rafa enquanto
eu estava... sabe como é... bêbada. Você o
convidou??
Ela estampa a maior cara de pau!
– Er... eu posso ter dito alguma coisa a ele sobre o
evento...
– E era ele o carinha lindo, lindo, lindo com quem
você estava saindo?
– Culpada – ela estende uma das mãos.
–Meu Deus, Patrícia! Quem é você? Uma espiã
da CIA? – suspiro. – Você merece coisa melhor.
– Pelo jeito ele também acha que merece.
– O que quer dizer com isso?
Ela fecha os olhos, como se estivesse
contemplando a própria estupidez.
– Ele tem saído com outra.
– Desgraçado!
É obvio que o Augusto não concorre ao prêmio de
“monógamo do ano”, mas pelo amor de Deus! De
novo?

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– Quando foi que descobriu isso?


– Hoje, no café.
– E o que você fez?
– Um escândalo, é claro.
Junto os pés em cima do sofá.
– Algo além de gritar?
– Também joguei café quente na cara dele.
– Pati! – dou um tapinha nela. – Você podia ter
queimado ele!
– E o que é que eu deveria fazer? Esperar o café
esfriar para aí sim jogar na cara dele? Ele devia
ficar feliz de eu não ter jogado também meu
cappuccino. Isso porque eu ainda ia beber.
Puxo meus joelhos para o peito e os envolvo com
os braços.
– O que ele fez dessa vez?
– Eu fiquei desconfiada quando notei um chupão
no pescoço dele. Mas deixei pra lá porque poderia
ter sido eu. Mas quando ele recebeu uma ligação, e
a foto de uma loira peituda apareceu na tela do seu

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celular e ele apertou ignorar, somando-se ao fato de


que eu não dou chupões, eu conclui tudo.
Encaro minhas unhas.
– Pati, eu nem sei como dizer isso. Mas eu o vi
com uma mulher loira há mais ou menos um mês
num restaurante perto do consultório. Só não contei
porque não fazia ideia de que você estava saindo
com ele.
O barulho de um trem chegando à estação de
metrô pertinho da minha casa é o único som que
escutamos. Pati – inusitadamente calada – olha
fixamente para um ponto qualquer da parede
amarela atrás de mim.
– Pode ser que ela seja a mesma? – pergunta ela,
os olhos vermelhos de raiva e indignação.
– Talvez. Eu me lembro de que ela tinha uma
pinta horrível no...
– Queixo? – ela me interrompe, e eu afirmo com a
cabeça.
Ela solta um grito abafado em uma almofada e cai
de lado no sofá, xingando a si mesma de nomes

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como “burra”, “estúpida” e mais uma porção de


coisas. Abraço minha amiga cansada de ser traída.
– Ela não era bonita – digo.
– Era sim.
– É, pode ser. Mas a pinta estragava o rosto dela.
– A pinta a fazia parecer uma atriz francesa – Pati
diz, emburrada.
– Só se for uma atriz francesa pornô – digo, e ela
esboça um sorriso. Mas ele logo se desfaz enquanto
ela abraça a almofada.
Dada minha total inabilidade de consolá-la,
decido agraciá-la de outra forma.
–Tá legal... vou contar uma coisa que vai te
animar.
Ela levanta os olhos curiosos para mim. Entrelaço
minhas mãos, e as separo novo. Coço a cabeça.
– Bom, é que talvez, só talvez... bem, eu não sei
ao certo, é que o Leonardo me deixou sem reação
naquele dia do bar, e você sabe como eu sou...
biruta! Fiquei biruta. Aí Alana me ligou pra falar
que eu teria outro par no casamento. Acredita?

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Nossa, não acreditei – Eu tenho consciência de que


estou falando como Alana, só não consigo parar. –
Quer dizer, ele pediu para trocar de par? Que
comportamento de pré-primário! Daí eu lembrei de
toda a história do beijo e...
– Beijo? Que beijo? – ela se inclina para frente,
chegando muito perto de mim.
– Ah, é. Não contei do beijo, não é? – nossa, ela
vai me matar, isso é certo. Ela olha furiosa para
mim e cruza os braços. – Leonardo me beijou.
– Ele fez o quê?
– Bem, foi no dia em que você estava tendo um
treco no hospital – e ficou horrível, pra ser sincera,
não me leve a mal –, e ele me beijou, mas só
porque queria despistar Bárbara, que estava atrás
dele feito cachorro no cio, então ele me puxou e me
beijou, e foi bom e eu amei, não vou mentir, mas eu
também fiquei tipo, o quê? Sabe assim?
Será que é assim que Alana se sente?
– Ai-meu-Deus! Ele te beijou? – ela abre a boca e
consigo ver seus dentes de trás. – Isso é o máximo!

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– Não, não é. Nós nunca daríamos certo...


– Ah, quer parar de ser tão cínica? É óbvio que
você gosta dele! Vocês vivem grudados um no
outro – ela joga a almofada na minha cara.
– Não sei do que você está falando – jogo a
almofada de volta, que ela desvia com as mãos.
– É quase impossível te ver em um momento de
crise sem que o Leo esteja lá.
– Isso é porque ele causa as crises!
– Pelo jeito, a única crise que ele causa é a de não
estar com você! Uuuuuuuuh... – ela começa a se
mexer em meu sofá numa dancinha boba, embalada
no ritmo de uma música que não está tocando.
– Cale essa boca!
Ela dá risada.
– Cara, isso é incrível! – ela me segura pelos
ombros. – Eu te conheço há muito tempo pra saber
que você está completamente perdida por causa
dele. Eu nunca te vi assim, nunca! Sinceramente já
desconfiei que você fosse assexuada.
– Ha ha ha! Muito engraçado.

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– Se liga, Mel! Você nunca ficou desse jeito por


causa do Rafa. Nem uma faísca sequer. Mas agora?
Você está nervosa. Você está caidinha pelo Leo!
– Talvez, mas eu...
– Talvez uma ova!
– Mas se eu realmente gostar dele,
hipoteticamente falando... – acrescento depressa,
estendendo o dedo. – ... eu vou ter feito tudo o que
eu fiz à toa. Eu vou ter corrido atrás do Rafa à toa.
Vou ter perdido todos esses anos.
– Nada é por acaso. Antes não era o momento de
você e o Leo ficarem juntos. Mas agora é!
– Mas do que adianta ele dizer que me ama e tudo
mais... – digo, mordendo o lábio inferior. –... se ele
não quiser ter um relacionamento comigo?
– Ah, sei lá... – Pati diz e se remexe no sofá
procurando uma posição para se acomodar. – Acho
que você deveria tentar.
– Mas qual seria o ponto?
Pati engole lentamente a saliva e fixa seu olhar
nos próprios pés.

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– Sei lá, cara... o que custa tentar? É só o que vou


dizer!
Mas ela comete o erro de olhar para mim, que
mantenho os olhos cerrados em sua direção. Pati
morde o lábio inferior e cede. – Ai, que saco,
Melissa. Eu não posso falar mais que isso!
– Como assim? O que mais você teria para me
falar?
Ela bufa.
– Ô, garota curiosa!
– Curiosa? Eu?
– Está bem, eu conto – diz, batendo com as duas
mãos nas pernas. – Quando o Leo e eu ficamos
conversando naquela fila gigantesca no Villa’s, ele
estava todo nervoso. E eu delicadamente perguntei
o porquê.
– Sei – cruzo os braços.
– Tá bom, eu delicadamente insisti pra caramba!
E ele me contou que estava caidinho por alguém.
Mas não queria me contar por quem, dá pra
acreditar? – ela coloca a mão dramaticamente no

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peito. – É óbvio que eu fiquei louca pra saber quem


era. Só que eu já desconfiava ser você faz tempo,
então fingi dar em cima dele para...
– Você o quê? – grito.
Pati sorri ironicamente, então eu logo acrescento:
– Quer dizer, não tem problema. É só que eu não
imaginava que alguma coisa tivesse rolado entre
vocês.
– E não rolou. Você não está entendendo. Preste
atenção!
Ela segura meus ombros e me chacoalha.
– Eu fingi dar em cima dele, porque se ele fosse
apaixonado por você, não ia arriscar estragar as
coisas correspondendo a sua melhor amiga, que sou
eu – ela faz um floreio para indicar a si mesma.
– Certo.
Solto a respiração que não percebi que estava
prendendo.
– Logo que eu comecei a beijar o pescoço dele,
ele começou a me contar tudo e...

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– Você o quê? – interrompo de novo, o sangue me


subindo à cabeça. Como ela pôde fazer isso?
– É brincadeira, é brincadeira! Eu não fiz isso. Só
queria ver a sua reação – ela tira sarro da minha
cara. – Ei, estou ficando boa nisso!
– Tá, quer parar?
Ela dá uma gargalhada estridente que faz meus
ouvidos doerem.
– Certo, certo. Então, quando eu dei em cima dele
“de mentirinha”, ele recuou e confessou tudo – ela
se inclina para frente no sofá. – Lembra-se de
quando falei que o carma faria Leo se apaixonar
por uma mulher muito difícil?
– Sim, e daí?
– Pois bem, não há nada mais difícil do que uma
garota que acredita estar apaixonada por outro cara.
– Ah, merda! – abraço a macia almofada cor-de-
rosa.
– Ele me contou que era apaixonado por você
desde a faculdade. Essa última parte nem eu tinha
imaginado.

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– Não acredito que ele me ama.


Eu sabia que Leo teve uma queda por mim na
faculdade, mas nunca imaginei que esse tempo todo
ele me amava. Quem imaginaria uma coisa dessas
vindo dele? E ainda mais que ele nutria esse
sentimento por mim há tantos anos?
– Pois acredite – ela diz e coloca os pés no sofá,
sentando-se em cima deles. Eu espero que os pés
dela estejam limpos! – Quando Rafa anunciou que
estava noivo, o Leo morreu de felicidade porque
isso significava que a sua paixonite pelo Rafa
deixaria de existir.
– Mas isso não aconteceu – meus ombros caem.
– Pois é. Então eu perguntei o que ele pensava a
respeito de vocês dois juntos...
– E o que ele disse? – é a minha vez de segurá-la
pelos ombros.
– Ele disse... olha, eu não posso contar.
– Você? Você não pode contar?
– Não posso.

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– E aquela história toda sobre você me contar


tudo, mesmo se eu não pedir?
– Isso é diferente. Você sabe que eu adoro falar
da vida dos outros, principalmente falar mal, mas
dessa vez, só dessa vez, eu realmente não posso.
Isso tem que vir da boca dele.
O que será que ela não está me contando?
Será que ele, de fato, namoraria comigo?
Ou será que é o exato oposto? Eu não ficaria nada
surpresa se ela não quisesse ser a pessoa a me
contar que Leo me ama sim, mas que isso não
muda o fato de que ele não quer estar em um
relacionamento sério. E acho que eu não poderia
culpar Pati por não querer me dar um fora em nome
do Leo.
– Se é assim, eu também não te conto mais nada –
digo, apontando minha colher para ela.
– Você não ousaria! – ela aponta a colher dela de
volta para mim.
Ficamos em silêncio, quebrado apenas pelo
ponteiro do relógio de parede da sala e das nossas

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mastigadas.
– Não sei o que devo fazer.
Não quero quebrar a cara outra vez...
– Deixe de ser burra, Melissa, e vá lutar por ele –
ela diz, colocando goela abaixo um pedaço enorme
de bolo de chocolate que quase não lhe cabe na
boca, o que torna seu julgamento um pouco
duvidoso.
– Já segui o seu conselho uma vez e não deu
muito certo.
– Mas você sabe qual é a diferença dessa vez, não
sabe?
Não é que aquele biscoitinho da sorte estava
certo, no final das contas, com aquela baboseira
toda de “o amor estará onde o coração menos
esperar”?
Respiro fundo, inalando o cheiro do meu
aromatizador de ambientes de laranja, e digo:
– Agora é com a pessoa certa.

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Espero duas senhoras de idade saírem lentamente


da minha frente e largo em disparada. Preciso me
encontrar com o Leo antes que ele saia de casa! As
batidas fortes do meu coração são quase mais altas
que o som das minhas sandálias fazendo tlec tlec
tlec no piso do metrô.
Ah, eu ainda não contei?
É isso mesmo, sigo de metrô. Po-bre-é​-fo-go!
Ao me lembrar de que Leo planejava entrar no
casamento com outra madrinha, fiz a única coisa
lógica que qualquer garota faria em meu lugar:
pegar o que é meu!

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Assim eu teria a chance de encontrá-lo antes que


ele saísse de casa e poderíamos conversar a respeito
de tudo. Se ao menos eu pudesse acertar as coisas
com ele antes do casamento, entraríamos juntos no
altar sem a presença dessa indesejável terceira
pessoa.
O problema foi que Pati disse que seria
impossível para ela sair mais cedo de casa do jeito
que estava. Quando não acreditei no que ela disse,
me enviou uma foto sua cheia de bobes nos cabelos
e o rosto pálido sem corretivo, blush e afins. E
como ela era a minha carona, e eu precisava chegar
depressa ao apartamento do Leo, tive que recorrer
ao plano B.
“B” de babaca, como estou começando a me dar
conta.
Os viajantes do metrô me olham de cima a baixo,
reparando no longo tecido verde-claro de que é
feito o meu vestido modelo sereia, que cobri com
um sobretudo preto. Aposto que se Alana estivesse
nesse momento fazendo sua pesquisa de campo no

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metrô concluiria que o nível de vestimenta subiu


muito desde sua última visita por aqui.
Eu não tinha outra opção. Cinquenta reais em um
táxi até a casa dele na Zona Sul estava fora de
cogitação, ainda mais agora que tenho um
animalzinho que exige comida de cinco em cinco
minutos. E imaginei que a curta distância entre meu
prédio e o metrô fazia o esforço valer a pena.
Não valia.
Não raciocinei direito no calor do momento e
quando vi já estava aqui.
Será que é assim que mamãe se sente?
Sento-me num banco bem no canto, esperando
que as pessoas me esqueçam, o que elas logo fazem
quando um homem e seu violão entram no vagão,
convergindo a atenção de todos a ele mesmo e às
suas músicas sertanejas sofridas.
Alana deve estar toda animada e nervosa do outro
lado da cidade, comemorando a chegada de seu
grande dia com muito espumante, véu branco e
tudo mais que o dinheiro pode comprar.

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Uma baldeação e dez estações depois, estou livre!


Desço a rua do metrô e chego ao prédio do Leo em
cinco minutos cravados.
Apresso-me na direção da portaria, meu cabelo
preso em um coque baixo muito elegante, que
magicamente consegui fazer, apesar de eu ter
puxado tanto meus cabelos para trás que meu couro
cabeludo está doendo até agora.
Estou prestes a apertar o botão do interfone para
me identificar para o porteiro, mas, como da última
vez, ele me deixa entrar sem mais delongas. Será
que eu tenho cara de socialite dessa região chique
da cidade? Ou ele simplesmente não está prestando
muita atenção em seu trabalho?
O dia amanheceu com intenções muito
sarcásticas. Um calor infernal faz com que um
pingo de suor escorra pelas minhas costas, a última
coisa que eu precisava nesse momento. Na verdade,
a última coisa que eu precisava nesse momento era
desse sobretudo gigante estúpido, quase pior que o
de esquimó de mamãe. Faço malabarismos para

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tirar o bendito casaco e o deixo com o porteiro com


cara de confuso, alegando a ele que o sobretudo
estraga meu modelito. E se tem uma coisa que Leo
precisa é me ver nesse vestido!
A espera do elevador parece levar mais tempo do
que o normal, e quando ele finalmente chega, entro
de uma vez. Dou de cara com uma senhora de
idade, que parece um pouco irritada com a minha
pressa. Mas nem ligo. Estou nas nuvens, e hoje
nem mesmo o meu TOC e o quadro de avisos torto
na parede do elevador podem me parar!
O elevador para no primeiro andar, expulsando-
me. Dou um passo lento para fora e a velhinha
bufa. Então dou um, dois e três passos mais
apressados e o elevador se fecha atrás de mim. Eu
me aprumo toda, levanto os ombros e pressiono um
lábio contra o outro com meu batom vermelho
matte.
Em frente à porta branca do apartamento, estufo o
peito e toco a campainha.

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Agora já foi! Não tem como voltar atrás. E eu


nem quero.
Ouço passos vindo de dentro e então a porta é
escancarada. Abro o maior sorriso do mundo.
Mas ele é desmanchado tão rápido que é como se
eu nem tivesse sorrido, para começo de conversa. E
a visão a minha frente me surpreende como um
tapa na cara.
Atrás de Leo, cujo rosto é uma mistura de
sobrancelhas erguidas e queixo caído, está Bárbara
com um vestido da mesma cor que o meu, porém
muito, muito justo nos seios (alguém deveria
urgentemente avisar a ela que ela não sabe se
vestir).
Meu olhar corre de um para o outro, movendo-se
freneticamente ao redor das órbitas. O que significa
isso? Então é ela a madrinha que entrará com ele no
altar?
Opa! Só um minuto. Eles estão juntos?
Ai, meu Deus, eles estão juntos! Quer dizer, se
ela é o par dele, a coisa só pode ser séria.

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O gelo que se forma no pé da minha barriga


move-se numa velocidade absurdamente rápida até
chegar a minha garganta. Engulo em seco.
Sutilmente, e sem tirar os olhos dele, aperto o
botão para chamar o elevador.
Só então percebo o quanto minha aparição
surpresa é inadequada, e quase me sinto como...
como... como a própria Bárbara! Que vergonha, eu
me tornei a Bárbara!
E isso dói mais do que o coque apertado em meu
couro cabeludo.
Não falo nada, não expresso nenhuma reação – ou
pelo menos é o que eu espero –, apenas levanto a
barra do meu vestido longo quando o estalo do
elevador indica sua chegada, viro-me rapidamente
em direção ao elevador e aperto o botão do térreo.
Como eu consigo ser tão idiota? Vejo o rosto de
Leo, ainda em choque, enquanto a porta do
elevador se fecha.
– Mel... – o som abafado da voz dele consegue
atingir o elevador em movimento descendente, e eu

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choro encostada nas paredes geladas de metal,


incapaz de defender minha bela maquiagem das
lágrimas.
Corro para a rua. O que diabos vou fazer agora?
Com medo de Leo vir atrás de mim, estico a mão
para o primeiro táxi que passa e sento-me no banco
de couro do carro. Digo o endereço do evento ao
motorista com a voz trêmula.
E penso em questões filosóficas da vida moderna
como “por que diabos entrei num táxi sem dinheiro
na conta bancária?”, “em quantos reais ficarei no
vermelho?” e “será que prejudicaria muito minha
vida profissional se eu decidisse ficar bêbada como
um gambá na festa de casamento da minha
paciente?”.

Tentando equilibrar uma enorme bolsa de


maquiagem nas mãos, Pati vem ao meu encontro
três minutos depois de eu ter enviado uma
mensagem de texto bastante chorosa a ela. Ela usa
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um vestido verde-claro semelhante ao meu, porém


no estilo tomara que caia, a cabeça ruiva repleta de
cachos.
– Você trouxe essa bolsa gigantesca para o
casamento? É sua bolsa carteira? – dou uma risada
nervosa, tentando esquecer que o reflexo no
espelho mostra que meus olhos estão prontos para o
Halloween.
– Deixe de ser idiota. É o kit de emergência que
eu trouxe no carro. Ah! – ela solta um gritinho
quando termina de fechar a porta rosa-choque do
banheiro perfumado das madrinhas e finalmente
olha para mim. – Que diabos aconteceu com o seu
rosto?
Ela abre a bolsa, quase do tamanho daquela pasta
de referências de Alana, e localiza o corretivo.
– Ele estava com a Bárbara.
– Oi? – ela dá outro grito e deixa cair um pouco
de corretivo em meu ombro. Não expresso reação e
então ela se inclina para frente. – Ah, meu Deus,

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você não gritou comigo por ter derrubado


maquiagem em você?
Faço que não com a cabeça.
– Deve estar mal mesmo.
Ela dá dois tapinhas em meu ombro, consolando-
me, e eu aperto a garganta, esforçando-me para não
permitir que mais lágrimas caiam.
– Se for chorar, coloque agora tudo pra fora, para
que eu faça o conserto da maquiagem de uma vez.
– É com isso que você está preocupada?
– Vamos consertar isso, amiga.
– A maquiagem ou a minha vida amorosa?
– A maquiagem – ela diz sem rodeios, retocando
o corretivo dos meus olhos com um pincel. – Eles
estavam... você sabe... pelados?
– Urgh! É claro que não! – abro os olhos. – Por
que é que ele atenderia a porta pelado?
Bem...
– Está certo, é ele. Ele atenderia a porta pelado.
– É, ele atenderia. – ela aplica o blush nas maçãs
do meu rosto.

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– Eles estavam pior do que pelados. Estavam


inteiramente vestidos. Para vir ao casamento.
– Nãoooo! – ela para com o pincel na mão,
jogando o pescoço para trás em descrença.
– Sim!
– Eles vêm juntos? – ela diz a última palavra com
repulsa.
– Sim!
– Filho da puta!
– Gosto da mãe dele...
– É, eu também – ela finaliza minha maquiagem e
começa a guardar os produtos dentro da bolsa.
– Melissa, eu te adoro, mas vê se não chora de
novo – ela diz, a voz fina. – Essa base é mais cara
que a sua vida!
Saímos do banheiro para o sol das treze horas da
tarde. O cheiro delicado de grama misturado com
lavanda me faz concluir que até o gramado deve
usar perfume importado, menos eu. Minhas
sandálias pisam na grama fresquinha do espaço a
céu aberto do casamento e o jazz que toca ao fundo

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invade meus ouvidos. A cada passo que dou estou


mais próxima de presenciar não só o casamento da
pessoa que eu achava que gostava, mas também a
pessoa que eu realmente gosto entrando de mãos
dadas com uma garota peituda no jardim.
Atravessamos o gramado sorrateiramente e nos
viramos na direção oposta quando avistamos meus
pais com suas roupas de gala, sentados em duas
cadeiras perto do altar.
Droga, tinha esquecido que eles foram
convidados. Não quero ter que explicar o porquê de
eu estar com cara de bunda. Então sutilmente nos
dirigimos para a ala dos padrinhos – inclusive, nada
de Alana ainda. Rafael parece aflito, enquanto olha
para o relógio e conversa com sua mãe.
Pati e eu nos fixamos num cantinho florido todo
decorado de lírios brancos. Daqui conseguimos ver
quem entra pelo arco de flores, cada pessoa mais
elegante que a outra.
Uma coisa eu devo admitir: Alana sabe como dar
uma festa! O ambiente parece ter saído de uma

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revista de noivas. O vasto jardim é composto de


uma grama de um verde bem vivo. Centenas de
cadeiras brancas decoradas com arranjos florais
foram enfileiradas de modo a reservar o espaço
central somente para o tapete vermelho que corre
em direção ao amplo altar feito de madeira.
Árvores robustas fazem sombra para mesas
revestidas de toalhas douradas (de novo, não me
surpreenderia nada se fosse ouro). Fotógrafos de
smoking completam a elegância da festa.
Começo a fazer os cálculos de quanto essa
cerimônia deve ter custado, e, senhor, deve ter sido
uma fortuna! O espaço está cheio de padrinhos e
madrinhas, alguns dos quais já vi em festas de
família do Rafa.
Um casal de padrinhos passa de mãos dadas por
nós. Por que eu nunca consigo ser parte de um
casal?
“Porque perdi muito tempo correndo atrás do
noivo, e quando percebi já era tarde demais e agora

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terei que comprar vários gatos” ou algo do tipo,


como disse o idiota do Leo.
Ah, que se dane! Vou comer até o caroço das
azeitonas e beber muito vinho para fazer jus ao
jogo de panelas que comprei aos noivos.
Pati arranja companhia em um dos padrinhos
assanhados da festa, um rapaz jovem com o cabelo
amarrado num coque no alto da cabeça, barba
comprida e alargador nas orelhas. O que me obriga
a ficar de pé olhando para o nada. Até que surge
pelo arco de flores a pessoa que eu gostaria que
tivesse ficado presa no trânsito. Ou até mesmo no
quarto com Bárbara.
– Pati, posso falar com você um minuto? – puxo
minha amiga pelo braço e sorrio para o padrinho
que segurava a mão dela.
– O que foi? Você está pálida.
– Leo está aqui!
Ela me puxa para trás de um arbusto antes que ele
possa me ver. Depois me analisa, aproximando-se
para enxergar de perto meus olhos úmidos.

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– Ah, mas você não ouse chorar agora!


– Pati, que vergonha! Por que é que fui até a casa
dele?
– Você se arriscou, Melissa. Não tem nada que se
sentir envergonhada. Só que, veja bem... – ela olha
por cima do meu ombro. Sigo o olhar dela e
focalizo Leo cumprimentando um convidado. –
Acho que você deveria tentar mais uma vez.
– Nem a pau! – falo alto demais e alguns
padrinhos se viram para me encarar. Começo a
sussurrar. – Ele estava com outra e você acha que
eu devo voltar rastejando até ele?
– Eu não posso dizer muito, tá legal? Mas vale a
pena, vai por mim. Só que isso tem que vir dele.
– O que é que tem que vir dele?
– Eu não posso contar.
– Ah, meu Deus! Ele é gay?
Coloco a mão na boca.
– Ele é gay, não é?
– Que gay o quê, Melissa! Ele sai com trinta
garotas por mês, como ele poderia ser gay?

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Ai. Ela não precisava jogar na minha cara a horda


de mulheres com quem ele sai.
– Ora, ele poderia ser sim, se essa fosse uma
forma inconsciente de provar para essa sociedade
ainda muito ultrapassada que ele se adequa aos
padrões que ela impõe, e que...
Ela levanta a mão para mim.
– Eu vou te interromper por aqui, porque essa
análise psicológica desnecessária pode levar horas.
E eu sinceramente prefiro voltar a dar em cima do
Ramón. – Ela aponta a unha verde para o padrinho
com as mãos nos bolsos da calça do terno, que a
aguarda a uns metros de distância de nós. – E estou
sentindo que, assim como Leo, ele também não é
gay.
– Então o que é que tem que vir dele? – meu
cérebro vasculha cada canto de meu raciocínio, mas
não encontra nada.
– Só vá falar com ele – ela diz, com um olhar
meio assassino. – Porque se eu perder Ramón de
vista, eu mato você.

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Pati me empurra e consegue me jogar mais longe


do que eu imaginei. Voz fina, músculos fortes.
Quem imaginaria? Talvez eu devesse mesmo
considerar começar uma academia.
Leo me observa ser empurrada desajeitadamente
em sua direção. Ajeito meu vestido, mas não me
movo mais do lugar.
Ele vem até mim, o olhar fixo ao meu. E caminha
sem a companhia de Bárbara, talvez por pena de
mim. Aliás, não sei onde ela foi parar, pois não a
vejo em lugar algum. Em contrapartida, nas mãos
ele traz meu sobretudo preto e eu tenho vontade de
me esconder no arbusto.
Ele me puxa com delicadeza pelo braço.
– Olá! – ele dá um beijo suave em minha
bochecha. – E é assim que se cumprimenta uma
pessoa quando se aparece na porta da casa dela.
– Certo... – digo, olhando para todos os lados a
não ser em seus olhos.
Ele me estende o casaco.
– Você me pegou de surpresa agora há pouco.

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– Eu percebi – digo, finalmente olhando para ele,


com um sorriso irônico. Eu me consolo com o fato
de que ele nunca vai saber o porquê de eu ter ido
até a casa dele.
– Como assim? Percebeu o quê? – ele segue meu
olhar e pousa os olhos em Bárbara, que finalmente
aparece acompanhada de uma senhora mais velha
que não me é estranha, mas que não consigo
reconhecer.
– Não. Você entendeu errado. Isso não quer dizer
nada.
– Elas nunca querem dizer nada pra você – faço
um gesto com a mão de “tanto faz”.
– Não é isso, eu...
– Você pediu para que me substituíssem como
seu par no casamento! Quem é que faz isso?
– Eu o quê?
Abano as mãos para ele.
– Por mim tudo bem. Não tem importância. Sério.
Afinal de contas, ele não tem nada comigo, certo?

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Pati dá uma risada estridente de alguma coisa que


o padrinho lhe diz.
– E você foi até o meu apartamento por algum
motivo que não tem importância também? – diz
Leo, me fitando.
Desvio o olhar e observo meus pés. Antes que eu
tenha chance de respondê-lo, Rafa aparece ao nosso
lado.
– Minha madrinha preferida! – ele diz, me
abraçando e exibindo seu sorriso perfeito. Posso
ver o quanto é fácil querer estar apaixonada por ele.
– Meu noivo preferido... – digo. – Quer dizer, não
para mim!
Ai, Deus! Onde foi parar minha dignidade?
– Bom, você entendeu!
– E aí, cara! – diz Leo, interrompendo meu
momento constrangedor. Ele espalma a mão na de
Rafa e o abraça bem forte.
– Meu padrinho preferido! – ele dá um passo para
trás para observar nós dois. – Vocês formam uma
bela dupla. Pena que tive que trocá-los de par.

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– O que disse?
– Alana não te contou? – ele franze o cenho para
mim. – Minha prima é caidinha pelo Leo e pediu
para entrar com ele no altar – ele lança um olhar
malicioso na direção do Leo e meu estômago se
embrulha. – Achei que vocês não se importariam.
Então foi Bárbara quem pediu para que a troca
fosse feita?
Dou uma risada sem graça.
– Inclusive, obrigado por trazê-las em segurança
– Rafa diz para Leo.
– Trazer... humm... trazer quem? – pergunto
novamente.
– Pedi a ele que trouxesse minha prima e minha
tia ao casamento – ele aponta na direção de Bárbara
e Leo me lança um olhar irônico. – Você conhece
minha tia, não é? Ela está sempre nos meus
aniversários.
Leo me olha com um ar divertido, enquanto Rafa
aponta para a mulher mais velha, de cabelos
brancos, que chegou acompanhada de Bárbara.

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– Elas moram no mesmo prédio que ele e estavam


sem carona.
Ah, bem... isso explica muita coisa.
– Não sei nem como te agradecer, Leo – Rafa
aperta a mão dele com firmeza enquanto eu devo
estar com a expressão mais embasbacada do
mundo.
– Que isso, cara! – um sorrisinho cínico preenche
o rosto de Leo, que aponta aqueles olhos para mim
e comenta. – Isso já foi o suficiente.

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– E por que é que escolheram lírios como parte da


decoração? – faço ao Rafa a décima pergunta idiota
que consigo imaginar.
Tento segurar a conversa o máximo que posso,
pois assim que ele se retirar, terei que ficar sozinha
com o Leo. Os pássaros cantam alto formando uma
bela sinfonia natural. Não duvido nada que Alana
os tenha contratado também.
Como era de esperar, ela já está atrasada meia
hora, e entendo que noivas se atrasem e tudo o
mais, mas se depender de Alana aguardaremos até
as bodas de ouro. Fora que hoje em dia as noivas se

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cansaram dessa tradição idiota e estão muito mais


pontuais.
Rafa responde todas as perguntas de forma
detalhada, levado a crer que eu estou realmente
interessada. Não estou ouvindo uma palavra. Aí um
convidado grita seu nome no canto do jardim e
estraga todos os meus planos.
– Com licença – ele diz, dando dois tapinhas no
ombro do Leo e se afastando.
O jardim já está apinhado de gente em sua
extensão, uma mistura de cores, vestidos e gravatas
regada a champanhe, canapé e queijo brie.
– Então... – diz Leonardo, depois de um momento
constrangedor de silêncio.
Tiro os olhos das bandejas que acompanham os
garçons para focalizar meu olhar no dele.
– Tá legal, me desculpe – digo, mas Leo continua
com o ar divertido.
– Por que exatamente?
– Nossa, como se eu tivesse feito mil
monstruosidades para você não conseguir adivinhar

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a qual delas me refiro.


– Eu quero ouvir a desculpa completa – ele cruza
os braços e deixa escapar um sorriso.
Limpo a garganta e coloco a mão na cintura.
– Bem...​ – empino o queixo, mas logo meus
ombros caem. – Me desculpe por ter tirado
conclusões precipitadas agora há pouco. E
também... por ter feito você sofrer, do jeito que eu
estava sofrendo.
Ele assente com a cabeça, um pouco mais sério.
– Não foi justo com você.
– Não, não foi – ele diz, com um sorriso fraco. –
Mas está tudo bem. Você não tinha como saber.
– Seria impossível, com inúmeras mulheres
entrando e saindo da sua vida. Mais saindo do que
entrando, aliás...
Ele dá uma risada alta e cruza os braços. Em
seguida, me puxa pela mão para mais longe através
do extenso gramado, afastando-nos da multidão de
no mínimo trezentos convidados. Nos sentamos em
um banquinho de pedra cercado de flores.

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– Desculpe por ter explodido com você naquele


dia. Eu fui um idiota por ter te ofendido. Eu sei que
você se importa muito com os seus pacientes e...
– Eu não o beijei – digo, de supetão.
Ele se cala em meio à abrupta mudança de
assunto. Mas logo em seguida balança a cabeça de
cima para baixo e prossegue:
– Eu sei que não. Rafa me contou. Desculpe por
não ter ouvido você.
– Então você também sabe que eu não o amo?
Ele sorri amargamente.
– Não me venha com essa. Ninguém faz o que
você fez se não tiver sentimentos pelo cara.
– Eu realmente precisava fazer tudo aquilo. Mas
não para ficar com o Rafa.
Não. Agora eu entendo.
– Eu tive que passar por aquilo para finalmente
entender que nunca o amei de verdade. Acredite em
mim.
– Então você o superou?

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– Não sei se havia realmente algo a ser superado.


Achei que ele fosse uma opção segura. Tive medo
de me arriscar e acabar me machucando. Aí quando
ele anunciou o casamento, meus planos “seguros”
foram por água abaixo e eu pirei.
Minha sandália de camurça branca destaca-se na
verdidão do gramado. Apoio o casaco preto
dobrado no banco ao meu lado.
– Achei que você não falaria mais comigo – ele
diz, e meu estômago congela. – Você sabe... achei
que você reagiria de forma toda estranha, igual à
vez em que eu te disse o que sentia na faculdade.
Ele recosta no banco e seus ombros tocam os
meus. O aroma de seu perfume delicioso emana de
seu pescoço e meu coração bate mais forte.
– É diferente agora – digo, sem encontrar os olhos
dele.
Ficamos em silêncio. Risadas altas de convidados
com cara de ricos segurando taças de vidro
misturam-se com a música ambiente.

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– Se você tivesse entrado em meu apartamento,


teria visto também a tia do Rafa na sala de estar e
saberia que não aconteceu absolutamente nada
entre Bárbara e eu.
– É. Talvez. Ou eu concluiria que você fez sexo a
três com as duas. Ou a quatro, com alguém que eu
não tivesse conseguido ver.
– É mesmo isso que você pensa de mim?
– E você pode me culpar por isso? – pergunto na
lata e me viro para encará-lo. Engulo a saliva ao
encontrar aqueles olhos viciantes.
– Não, eu não a culpo. Mas, Melissa...
Ele vira o corpo todo na minha direção,
colocando o joelho em cima do banco.
– Eu estive procurando por uma garota legal há
muito tempo, mas nunca me sinto satisfeito. E olha
que eu fiz minha parte para procurar, hein? – ele
empurra meu ombro com o dedo indicador. – Eu
procurei pra cacete!
– Não diga... – seguro a risada.

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– E se você quer saber o porquê... eu estava


comparando todas elas a você. ​
Engulo a saliva. Tá, isso até que foi fofo.
– Eu tinha que seguir com a minha vida e esse foi
o meu jeito de fazer isso. E o seu jeito foi correr
atrás de um cara comprometido, então acho que
estamos quites – ele diz, batendo seu ombro no
meu.
– Não estamos, não! – empurro-o de volta e solto
uma gargalhada.
– Relaxa, tá legal? – ele olha ao longe. – Já
entendi que somos apenas amigos.
É aí que a ficha cai. Ele nunca mais vai se
declarar para mim. Nunca! Tomar dois foras foi o
suficiente (mesmo que ele não tenha tomado um
fora da última vez, apenas me viu beijando outro
cara etc. etc.).
Mas o fato é: eu é que terei que me arriscar. Eu!
Ignoro minhas mãos trêmulas. Porque se tem uma
coisa que não vou fazer de novo é perdê-lo para
outra pessoa, de tanto esperar calada.

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– Não! – digo.
Ele ergue a sobrancelha.
– Por que não? Também não somos mais amigos?
– Não é disso que estou falando.
Os olhos dele fixam-se aos meus, a luminosidade
desse dia de sol transformando-os num verde ainda
mais claro. Eu espero que alguma coisa ao nosso
redor se precipite e interrompa a situação que estou
prestes a criar, mas nada acontece. Nada que me
impeça de passar vergonha. E, ironicamente, até o
vento para de soprar, como se estivesse me
esperando confessar de uma vez.
– O que é, então?
– Quando você disse que gostava de mim na
faculdade, eu fiquei com medo e me afastei. Mas
um tempo depois eu percebi que tinha sentimentos
por você.
Ele arregala os olhos.
– Tinha?
– Estava decidida a te contar isso na festa à
fantasia. Lembra-se daquela festa? A que você foi

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vestido de surfista?
– Mas você nem foi. Como pode saber sobre a
minha fantasia?
– Porque eu fui, mas quando te encontrei...
Pouso meu olhar na mesa do bolo de cinco
camadas do outro lado do gramado. Solto todo o ar
do peito.
– No meio daquele monte de gente bêbada, eu vi
você beijando uma garota.
– Oh... – ele não tira os olhos de mim. Sua
expressão tranquila se transforma em espanto. –
Isso só aconteceu porque você deixou bem claro
que eu não tinha chance com você.
– É, eu sei. Sou muito boba – digo, chutando uma
pedrinha do chão com o bico da minha sandália de
tirinhas.
– Ei, você não é boba.
– Então decidi que seria melhor te esquecer.
Achei que o Rafa fosse um bom pretendente, de
qualquer maneira. Uma opção não tão segura
quanto pensei que ele fosse... – estendo os braços,

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abrangendo o gramado decorado para o casório,


para enfatizar o quanto eu estava errada. – O
negócio é que te esqueci.
– Ah, certo... – ele vira o corpo para frente,
deixando de me olhar.
– Ou achei que tivesse.
O rosto dele gira de volta para mim.
– Eu não pretendia voltar a sentir tudo o que uma
vez senti por você, até que você me beijou na porta
do seu prédio.
Fecho os olhos e digo antes que eu desista:
– O que eu quero dizer com tudo isso é que eu
amo você. E não digo hipoteticamente.
Sem coragem de olhá-lo nos olhos, abaixo a
cabeça e digo:
– Agora estamos quites.
Mordo o lábio inferior. Ele me analisa pelo que
parece uma eternidade.
– E... – continuo, meu coração disparado. – Veja
bem. Eu sei que você não se vê em um
relacionamento e tudo mais, então... poderíamos ir

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com calma, sabe? Ver no que dá... sei lá. Eu posso


alterar meus planos por você. Meu plano é você,
entende? E desse plano eu não consigo abrir mão.
Ai, meu Deus! Do que é que eu estou falando? Eu
estou quase implorando ao cara!
Leo já está sem piscar por muito tempo. Talvez
eu devesse ter filmado e enviado para o Guiness.
Tem gente que ganha dinheiro com recordes, não
ganha?
Estufo o peito.
– Olha, se tudo o que eu disse foi uma grande
besteira pra você, tudo bem – cruzo os braços. –
Mas eu quis dizer cada palavra!
E aí ele levanta um só lado da boca, as
sobrancelhas erguidas quase até o meio da testa. Ai,
senhor! Acho que segui a receita perfeita para
assustar um cara com fobia de relacionamentos!
Porém, em seguida a expressão do rosto dele
transforma-se em um sorriso, que estampa seu rosto
com o que eu espero que seja alegria.
– Você me... ama? Ama mesmo?

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– Dá pra acreditar? – digo, os braços ainda


cruzados na frente do peito.
– Claro que dá. Olhe só pra mim! – ele indica a si
mesmo com as mãos num tom brincalhão. – Mas
tem uma coisa muito errada no que você disse.
Meu estômago se contrai.
– E o que é? – digo, o coração batendo forte no
peito.
– Eu nunca quis namorar as garotas com quem eu
saía, é verdade. Porque elas não valiam a pena. Elas
não eram você.
Meu coração bate tão acelerado que eu me
preocupo que ele exploda. Agora não, coração!
Ele se aproxima, ficando a um centímetro de
mim.
– Como pôde pensar que eu não quero ficar com
você?
– Namorar? – procuro esclarecer. É sempre bom
delimitar o tipo de relacionamento antes de fechar o
acordo. – Você quis dizer namorar comigo?
Ele dá uma gargalhada.

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– Como eu posso ser mais claro com você?


Vejamos... – ele começa a listar nos dedos. – Eu
odeio chocolate belga, odeio o Villa’s e a Pati é
meio irritante às vezes. Mas eu faço o que for pra
ficar com você.
Ele coloca as mãos ao redor da minha cintura, o
tecido do vestido se movendo a medida em que ele
se aproxima. Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu
Deus!
– Eu te amo, Melissa... – ele encosta o nariz no
meu, sua voz rouca chegando até meus ouvidos. –
E quero ser seu namorado, para que eu possa te
beijar a hora que eu quiser. Sem precisar inventar a
desculpa de que estou fugindo de alguma garota
louca.
Leo pousa a mão delicadamente em minha nuca e
me aproxima dele com a outra mão em minha
cintura. E é então que seus lábios tocam os meus
com urgência e eu acho que acabo de me apaixonar
outra vez. A sensação é bem melhor do que a do
nosso primeiro beijo. Primeiramente porque

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Benedito não está aqui nos observando. E depois


porque é muito melhor agora que sei que esse beijo
não será o último.
Eu sempre imaginei que meu final feliz seria no
casamento do Rafa. Só não imaginei que eu não
seria a noiva. E que meu final feliz não exigia um
casamento em si. E que ele seria com uma pessoa
cujo conceito de organizar é inexistente e que não
planeja nem o que vai comer no jantar.
Fico feliz de ter imaginado errado.
– Estou surpreso de Pati não ter dito nada a você
– ele diz, a mão em minha cintura. – Eu jurava que
ela daria com a língua nos dentes.
– Sobre o quê?
O que é que tanto a Pati não podia me contar?
– Sobre eu estar disposto a me comprometer com
você, claro. Sabe como é... sobre... sobre...
– Sobre O QUÊ?
Caramba! Pati deve sofrer muito com esse
negócio de curiosidade. Será que é assim que ela se
sente?

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Ele me olha por alguns segundos antes de dizer:


– Sobre eu ter comprado a aliança dos seus
sonhos no dia em que passamos em frente àquela
loja de antiguidades e você nos contou aquela
história idiota de como gostaria de ser pedida em
casamento.
– Você... comprou? Foi você?
Tá legal, universo... Você me pegou. Por essa eu
não esperava! Vou confiar mais em você daqui para
frente.
O rosto de Leo cora como eu nunca tinha visto
antes, quase como um tomate. O maxilar quadrado,
porém, se mantém rígido.
– Sabe como é... só por precaução. Vai que... ora,
de repente... bem, era uma loja de antiguidades, não
é? O anel era único. E... ah, você sabe.
Ele agarra minha mão com força. Aproximo meu
rosto do dele, e a ponto de sentir sua respiração,
sussurro:
– E você achou a minha história idiota?
Ele dá uma gargalhada e me beija.

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Então era isso o que Pati não podia me contar?


Ela tinha TODA razão! Com certeza, isso foi mil
vezes melhor vindo dele!
Um garçom de smoking estende uma bandeja
cheia de champanhe para nós. Pegamos uma taça
cada um. Pego mais outra, só para garantir.
– Ainda não acredito que você tá caidinha por
mim, Melissa Belinque.
– Ah, Leo. Sabe como é, né? Quando alguém se
joga pra você desse jeito tão óbvio... – bato minha
taça na dele, brincalhona. – ... você agarra!

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– Ela chegou?
– Ainda não – Pati respondeu.
– Cadê ela? – perguntei, levantando a cabeça para
enxergar os portões de entrada floridos.
– Não me importo de esperar, contanto que ela
me apresente ao tio dela.
Trombetas soaram bem alto e Alana finalmente
chegou ao altar. Fiquei feliz em saber que eu não
era a única que sofria com seus atrasos. Todos
pareciam estar suando feito porcos enquanto a
aguardavam, porque os trajes foram pensados para
o inverno, mas esqueceram-se de que até no
inverno São Paulo pode te surpreender e
demonstrar aspectos claros de um verão lascado.
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Atazanei a vida da tal da organizadora de


casamentos blogueira de Alana para que Leo e eu
entrássemos juntos na igreja. E deu certo, de modo
que Bárbara saiu em todas as fotos com cara de
bunda por ter que entrar com outra pessoa.
Só fico imaginando como vou fazer para lidar
com uma Alana-grávida nas consultas a partir de
agora. Porém, acho que vou ficar bem. É claro que
é difícil apagar a lembrança do que passei por causa
da minha paciente, junto do seu noivo beijoqueiro.
Mas, em determinado momento da festa, Alana
veio até mim, me deu um abraço apertado e disse:
– Você sabe que sem você eu não estaria aqui
hoje, não é?
Ela me lançou um olhar pomposo e disse
baixinho em minha orelha:
– Fico feliz em ter você como amiga.
E aí saiu desfilando com as amigas madrinhas
com vestidos verde-claro, dando gritinhos e pulos
pelo salão.
Como eu disse, vou ficar bem.

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Principalmente porque passei a ter um novo


incentivo. E ele segurava bem firme em minha mão
e o tempo todo buscava comida para mim na mesa
do buffet, parando para me observar com seus
doces olhos verdes. Mas não sem antes implicar
com meus modos alimentares, afirmando que eu
tinha migalhas de comida no vestido. Calúnia!
Papai e mamãe também pareciam estar adorando
a cerimônia. Eu me afastei deles quando mamãe
começou a discutir se deveria ou não pintar as
paredes da sala de estar da mesma cor horrível que
Telma pintou as dela.
E não, Alana não apresentou Pati a nenhum
membro rico e dono de marcas de sapatos de sua
família.
O casamento seguiu tranquilo, a não ser por um
único incidente infeliz: na hora do brinde dos
noivos, Alana insistiu para abrir o champanhe por
conta própria. Mas, para meu azar, digamos apenas
que ela não sabia lá muito bem como fazer isso
com graça e perfeição.

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Acho que nem preciso dizer no olho de quem


aquela rolha foi parar.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer imensamente a Alessandra


Mayumi, Andréia Ferreira e Giovana Rocha por
terem sido minhas primeiras leitoras. Nunca vou
me esquecer disso! Agradeço a Lúcia Facco pela
leitura crítica; a Renata Toniolli, pelos
direcionamentos sobre Psicologia; a Cristiane
Amaro, pelos direcionamentos sobre enfermagem;
e a Lura Editorial, por fazer parte da execução de
um dos projetos mais importantes da minha vida.
Também gostaria de agradecer a Felipe, a meu pai
e minha mãe, e a todos os amigos e família, por
terem me acompanhado nesta jornada. Não teria
sido a mesma coisa sem vocês!

PERIGOSAS ACHERON

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