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da mesa. Virava o lanche em 180 graus a cada mordida e fingia me divertir com o molho. De
repente, um pouco dele escorreu na lateral da boca e passei a língua para impedir que caísse.
O coração acelerou e senti o sangue correndo rápido. Um calor de desespero me fez querer
ser pequena outra vez, quando aquilo seria apenas mais um jogo, uma disputa para nosso livro
de recordes.
- Vamos ver quem assopra mais forte! O vencedor será inscrito no livro dos recordes e
ganhará um prêmio!
Desde então, tudo era motivo para pequenas e constantes competições entre nós. A
princípio, quase sempre me deixava ganhar, depois me levantava no ar e ríamos juntos,
eufóricos. Até aquela última, na piscina, até quando ele me beijou. .. por uns segundos...o
coração acelerado ... enquanto lambia o molho no canto da boca. Ele me olhava, o oficial de
justiça também.
- Por que vive anotando coisas? Tomar milk-shake em 10 segundos de canudinho? Que
significa isso?
Permaneci calada o maior tempo possível durante os dias confusos que se seguiram. A
voz da minha mãe soava estranha, distante e tinha que me esforçar para prestar atenção
porque não queria dizer nada que comprometesse meu pai ainda mais, ou a magoasse ainda
mais. Não precisam nos afastar, a gente ia resolver tudo do nosso jeito. Mas eu também sabia
que talvez a gente não conseguisse, não depois daquilo, depois do que apareceu entre nós,
que nem sei o que era, um relâmpago de alguma coisa. Não, depois daquilo, mesmo que o
clarão tenha ido embora, mostrou que o escuro não estava vazio e não dava para encarar.
Sentia falta dele, da nossa rotina, do nosso mundo seguro. Minha mãe não estava
segura, não conseguia encontrar o rumo depois de tudo. Hora, falava alto demais, hora parecia
apagada, como se não estivesse mais ali. Às vezes, eu a ouvia falando baixo ao telefone com a
advogada. Um dia, me informou que eu poderia vê-lo apenas uma vez por mês, na presença
do oficial de justiça.
Nos encontros, havia entre nós o silêncio, marcado pela distância que ele tinha que
manter de mim. Nunca falamos da aposta, do quase afogamento, do boca a boca, dos segundo
a mais, do beijo, do assombro geral, das testemunhas. Então, naquele dia no Big Bob, não falei
da saudade, do vazio, de nunca saber o que dizer depois daquilo, não depois do sangue
percorrendo caminhos desconhecidos no meu corpo, da falta de ar, do tremor, do espanto...
não depois de tê-lo beijado.
Amália Marchi