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Eu me dedicava ao trabalho de comer o lanche enquanto ele me olhava do outro lado

da mesa. Virava o lanche em 180 graus a cada mordida e fingia me divertir com o molho. De
repente, um pouco dele escorreu na lateral da boca e passei a língua para impedir que caísse.
O coração acelerou e senti o sangue correndo rápido. Um calor de desespero me fez querer
ser pequena outra vez, quando aquilo seria apenas mais um jogo, uma disputa para nosso livro
de recordes.

As disputas começaram em algum momento perdido da infância, numa tentativa de


me distrair enquanto cuidava de um machucado.

- Vamos ver quem assopra mais forte! O vencedor será inscrito no livro dos recordes e
ganhará um prêmio!

Desde então, tudo era motivo para pequenas e constantes competições entre nós. A
princípio, quase sempre me deixava ganhar, depois me levantava no ar e ríamos juntos,
eufóricos. Até aquela última, na piscina, até quando ele me beijou. .. por uns segundos...o
coração acelerado ... enquanto lambia o molho no canto da boca. Ele me olhava, o oficial de
justiça também.

Eu costumava colecionar temas para nossas disputas. Na escola, na praia, no shopping,


com os amigos, andando sozinha, sempre havia uma situação inusitada e eu pensava: - aposto
que poderia fazer mais rápido que ele, ou correr mais, ou sei lá. Eu sorria e buscava um papel
para anotar a ideia e depois propor a ele o desafio. Meus amigos assistiam a esse processo de
inspiração curiosos.

- Do que está rindo?

- Por que vive anotando coisas? Tomar milk-shake em 10 segundos de canudinho? Que
significa isso?

Eu dava de ombros e só guardava o papel.

Permaneci calada o maior tempo possível durante os dias confusos que se seguiram. A
voz da minha mãe soava estranha, distante e tinha que me esforçar para prestar atenção
porque não queria dizer nada que comprometesse meu pai ainda mais, ou a magoasse ainda
mais. Não precisam nos afastar, a gente ia resolver tudo do nosso jeito. Mas eu também sabia
que talvez a gente não conseguisse, não depois daquilo, depois do que apareceu entre nós,
que nem sei o que era, um relâmpago de alguma coisa. Não, depois daquilo, mesmo que o
clarão tenha ido embora, mostrou que o escuro não estava vazio e não dava para encarar.

Sentia falta dele, da nossa rotina, do nosso mundo seguro. Minha mãe não estava
segura, não conseguia encontrar o rumo depois de tudo. Hora, falava alto demais, hora parecia
apagada, como se não estivesse mais ali. Às vezes, eu a ouvia falando baixo ao telefone com a
advogada. Um dia, me informou que eu poderia vê-lo apenas uma vez por mês, na presença
do oficial de justiça.

Nos encontros, havia entre nós o silêncio, marcado pela distância que ele tinha que
manter de mim. Nunca falamos da aposta, do quase afogamento, do boca a boca, dos segundo
a mais, do beijo, do assombro geral, das testemunhas. Então, naquele dia no Big Bob, não falei
da saudade, do vazio, de nunca saber o que dizer depois daquilo, não depois do sangue
percorrendo caminhos desconhecidos no meu corpo, da falta de ar, do tremor, do espanto...
não depois de tê-lo beijado.

Amália Marchi

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