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“A lição mais importante que você me proporcionou é que existem outras formas de amar que

valem a pena.”

— Trecho de uma carta recebida pelo autor num dia de rock —


Prólogo

Não podia acreditar no que acontecia diante dos meus olhos. Ali, despois de
inúmeras lutas que tivemos para ficarmos juntos, via tudo caminhar para o fim certeiro — e o
pior: eu nada poderia fazer sobre isso.

— Como isso foi acontecer? — era somente o que ouvia em meio a um choro
desamparado — E agora, o que faremos?

Não sabia o que responder, ou mesmo se existia algo para responder. Em minha
mente, cada pensamento era turvo, sombrio, como um mar de piche, doloroso e impossível de
escapar, que nos afundava lentamente. Queria desabar num choro desesperado, órfão. Queria
gritar, espernear! Queria arrancar fora o órgão que em mim pulsava em chamas no peito e cuja
dor não aguentava mais carregar. Minhas mãos tremiam, minha garganta se fechava e meus
olhos se afogavam.

É o fim. Dizia uma perversa voz em minha cabeça, compulsivamente em desumanas


repetições. Depois de hoje, nunca mais existirá os três. É o fim.

A música da formatura retumbava ao fundo. Todos de quem nos escondemos,


temendo a crucificação certeira por nossa felicidade, agora, pouco se importavam com nosso
penoso pranto. Do que tinham valido nossas máscaras e todos os esforços que mantivemos para
deixar nosso sentimento em segredo? Do que importavam os beijos não dados, os abraços
negados, os afagos extintos? Por medo, morremos, sem que nenhum desses de quem nos
escondemos viesse ao nosso enterro.

E, como em qualquer morte, só nos restava o silêncio fúnebre e a escuridão eterna.

Estava tudo acabado: não mais existia nós três.


Capítulo I — Os dois, nós três.

Lucas

Uma vez, já me disseram o seguinte: Se acha que ama duas pessoas ao mesmo tempo,
escolha a segunda, porque se você realmente amasse a primeira, não teria a segunda opção.
Eu, mais do que ninguém, sabia como essa frase poderia estar errada.
— Olha, a vida nada mais é que um amontoado de experiências vivenciadas em uma
espécie de bar — comecei lentamente, atento à reação dos dois, como um pescador que joga a
isca certa esperando que os peixes se interessem.
— Mas que pinguço! — brincou Douglas. — Se quer filosofar, deveria escolher
metáforas melhores!
— Deixa ele continuar, Douglas! — prosseguiu Amanda, embora eu desconfiasse que
ela achasse o mesmo.
— Obrigado, Amanda. Não, não. Há poucas metáforas melhores. Sim, a vida parece se
passar dentro de um bar! — continuei com o mesmo tom maroto. — Afinal, os momentos que
vivemos são sempre acompanhados de drinks emotivos. Para ser franco, não sei se consigo
explicar poeticamente as emoções sem compará-las com drinks, bebidas, não necessariamente
alcoólicas, que tomamos cada vez que algo acontece e nos penetra o corpo, espalhando-se por
todos os lados. Alguns de nós podem se viciar em certos drinks, apesar de que nem sempre
iremos gostar do que bebemos, é verdade, há gostos que só aprazem a algumas pessoas, embora
precisemos tomá-los, faz parte da vida: nunca escolhemos o que iremos beber. Assim, vivemos
bebendo cada momento, mesclando todos os fluidos na busca incessante por uma bebida única,
o néctar dos deuses, que é a suposta felicidade eterna. Bom, é certo que, por vezes, nós nos
inebriamos pelo caminho e acabamos por nos perder sem ter a noção do que buscamos, mas
nada, nem uma única gota é desperdiçada ou tomada em vão, e nesses casos, acabamos
encontramos grandes amigos que nos acompanham nessas doses maravilhosas, ou estão ao
nosso lado quando for o momento das ruins. Essa busca pode durar anos, décadas! Ninguém
sabe se um dia irá encontrar esse tal néctar, ou mesmo, para aqueles que encontram, não se sabe
quanto tempo irá durar... mas é certo que, devido à busca, sempre irão nos restar excelentíssimas
memórias e o tal amontoado de experiências obtidas através de tantas misturas: vivemos.
Parei tomando ar, recostei-me no sofá fingindo um ar vitorioso por tamanha ponderação.
Douglas e Amanda, que, por segundos, continuaram pensando sobre as informações jogadas,
terminaram por rir e voltaram ao que estávamos fazendo, ignorando-me por completo.
Bom, para apresentações breves, sou semelhante a qualquer outro garoto que não
consegue se encontrar em meio a multidões, inteiramente tímido, completamente indeciso —
acredite, essa informação se mostrará relevante —, com uma fascinação por mitologia e muitos
outros gostos não tão comuns — ou talvez apenas prefira pensar assim —, inclinado muito mais
à poética romântica do que ao pragmatismo realista, e que, não importando quantos belos
adjetivos tecidos, não irá passar de um adolescente de dezoito anos, chamado Lucas Holanda
de Alencar. Fui adotado por meus pais muito novo e, para ser franco, minha história de vida
nunca foi nenhum belo enredo para filmes ou livros, por isso, não há nada para se falar e
aconselho que a ignoremos por completo até que surja algo. Na verdade, acredito que minha
vida realmente tenha começado quando me mudei para Fortaleza. Recentemente vim de Santa
Catarina para cá com meus pais, e nesse intervalo de tempo, acabei por fazer pouquíssimos
amigos, mas os dois que estavam comigo eram os melhores.
— Certo, agora é um pronunciamento oficial! — começou Douglas, jogando seu livro
e caderno para longe. — Se eu estudar mais alguma coisa, vou enlouquecer!
Sem retorquir uma única palavra, fizemos o mesmo que ele, acomodamo-nos ao sofá,
desperdiçando o restante do nosso tempo em conversas e carinhos.
Amanda, Douglas e eu estudávamos juntos no colégio Frederic Walden — FW —, e,
desde que nos conhecemos, numa roda comum de amigos, acabamos nos aproximando de forma
indescritível, inexplicável. O que eram apenas acenos acanhados de semiconhecidos nos
corredores, transformaram-se rapidamente em pequenos abraços um pouco mais sinceros, que
posteriormente, viraram conversas constantes... Por alguma razão, sempre parecíamos querer
estar juntos uns dos outros: nem que fosse para falar banalidades. De repente, não sei bem
quando, a presença de qualquer outra pessoa já não era mais importante para nós, desde que
estivéssemos juntos — e, acredite, inventávamos qualquer desculpa para ficarmos juntos. Uma
vez unidos, ninguém mais parecia se encaixar conosco, pois conseguíamos nos entender melhor
do que ninguém. Divertíamo-nos com devaneios compartilhados, e a ânsia de dividir qualquer
coisa de nossas vidas parecia não se extinguir. De alguma forma, completávamo-nos em
perfeita sintonia, como nunca antes eu havia experimentado. O que existia entre nós três se
tratava da mais intensa cumplicidade. Com algum tempo, não fazíamos nada mais separados,
tampouco acompanhados de qualquer outro colega, da escola ou de fora dela.
Bom, se existia alguma explicação na época para tal conexão, não parecia que nos
dávamos conta, afinal, afinidades e gostos semelhantes unem pessoas todos os dias, não é? Era
isso que eu gostava de pensar, mas aos poucos, nesses momentos em que estávamos num mundo
só nosso, silenciosamente, eu ia notando que essas não eram as únicas razões para desejar ter
os dois sempre por perto.
— Já providenciaram as fantasias para a festa? — perguntou Amanda em algum
momento da noite. — Não me apareçam sem fantasias!
— Claro que já temos nossas fantasias! — falei, arremessando uma pequena almofada
em sua direção. — Por que não teríamos?
— Além de ser meio gay ir a festas a fantasia? — sugeriu Douglas em tom maroto.
— Porque alguns de vocês são desligados, para não dizer lesados... Sem
ofensa, Luquinhas.
— Doeu, mas tudo bem. Ainda te amo.
— Ótimo! Vocês sabem que irão ter que dançar comigo na festa, não é?!
Amanda sorriu com seus olhos cintilando, devolveu-me a almofada e, em poucos
segundos, pôs-se de pé, colocando uma música lenta em seu celular para tocar. A melodia suave
ecoou por todos os lados, perfeita trilha sonora que parecia pertencer àquele ambiente mais do
que qualquer móvel. Garbosamente, começou uma pequena dança sozinha, fazendo minha da
sala de estar um íntimo palco exclusivo.
Ah... Por onde começar a descrever Amanda?
Primeiro, é importantíssimo dizer que ela era de uma beleza estonteante! Simplesmente
o tipo de garota que faria qualquer cara babar enquanto a admirava — digo isso porque era
exatamente o que eu fazia quando me perdia silenciosamente por aquela imensa beleza. Tinha
os cabelos dourados e ondulados, escorrendo como fios de ouro até pouco depois dos ombros,
chegando aos seus seios. Os olhos, que aparentavam possuir luz própria, eram de um verde
límpido, destacando-se em sua pele clara e delicada, a qual, vez ou outra, ruborescia de
vergonha ou raiva — pois, além de tudo, ela era uma baixinha extremamente brava, que se
irritava facilmente. No entanto, irritação alguma fazia com que perdesse seu jeito doce de
menina, entrelaçado a uma seriedade e luxúria descomunal de uma mulher... Costumava dizer
que, se Afrodite existisse, meu caro amigo, morreria de inveja ao pôr os olhos em Amanda.
Seu corpo, porém, não era o único digno de tamanhos elogios, pois além de todos os
encantos, possuía singular inteligência e muito bom gosto para música! Atenciosa em seus
gestos, doce em suas palavras, fazia com que ninguém perdesse o interesse em uma conversa,
por mais que perdurasse uma noite inteira.
Após poucas dezenas de segundos, com uma mão levantada em convite, Amanda
simplesmente falou, em tom doce e meigo:
— Nenhuma garota deveria dançar sozinha quando está tocando La vie en rose.
Douglas e eu nos entreolhamos, claramente sem saber o que fazer, contudo, antes que
sobrasse para mim, empurrei-o, fazendo-o ficar de pé a poucos centímetros de Amanda, a qual,
sem pedir permissão, tomou suas mãos e as posicionou para uma pequena valsa.
— Tá, tudo bem! Pedindo com jeitinho eu faço tudo!
A quem nunca cruzou com Douglas, permita-me descrevê-lo também, para que possam
ter noção da imagem que se desenrolava diante de meus olhos.
Douglas tinha o corpo magro, embora houvesse músculos bem definidos e delineados.
O tom de seu cabelo assemelhava-se a um negro exacerbadamente escuro, feito breu, num corte
curto, completamente eriçado e desgrenhado. Seu olhar, tinto de amêndoas, entoava uma
contínua expressão misteriosa, ora maliciosa; a pele era pálida, deixando em destaque a barba
rala que possuía no queixo e ao redor de sua boca... Ah! e a sua boca... Douglas tinha lábios
muito bem desenhados, carnudos — do tipo que dá vontade de morder só de olhar, sabe? —,
rosados, que se tornavam de um vermelho intenso quando ele os mordia ansioso. O rubor, a
malícia, tudo contribuía para que seu sorriso fosse ainda mais lindo. Se não tive a oportunidade
de falar antes, falo agora: seu sorriso de boca vermelha era o mais lindo que eu já vira em toda
a minha vida! Apesar de seu jeito levemente taciturno, toda a beleza atrelava-se ao seu espírito
livre, sedento, o que tornava impossível não se envolver pela aura indômita e inebriante que
Douglas exalava.
Dançaram o resto da música, sorrindo sem jeito, lançando-me olhares para conferir se
eu não os estava achando ridículos...
Não, não precisa me questionar, pois eu me antecipo: eu não os achava ridículos,
meus pensamentos velejavam bem longe disso. Eu os venerava veladamente, isso é certo, como
se fossem atos únicos do teatro da vida. Em momentos tais, eu percebia o quanto os dois haviam
me fisgado, talvez não intencionalmente — claro, acreditava veementemente que esse devaneio
pertencia unicamente a mim. Ainda assim, era nos carinhos sobre a pele ou nas calorosas
palavras ditas em acalanto, em cada segundo que eu passava ao lado dos dois, não conseguia
deixar de me envolver por aquele feitiço apaixonante, o qual me tomava por completo. Não
havia descrição melhor de como me encontrava: eu estava completamente apaixonado.
Sim, sei que minha visão sobre os dois pode estar infestada de romantismos piegas,
exagerados... No entanto, acredite: cada palavra empregada é verdadeira — afinal, não é assim
a paixão: cheia de exageros e visões enfeitiçadas?
Infelizmente, o nosso tempo juntos não demorou para acabar, minutos após a dança,
ambos disseram que tinham de ir. A carona de Douglas foi a primeira a chegar. Ele arrumou
rapidamente suas coisas e pediu para que eu o acompanhasse até o elevador, enquanto Amanda
terminava de ajeitar sua mochila.
Ainda esperávamos o elevador, quando Douglas começou a agir de forma estranha.
Primeiramente, conferiu por cima de meus ombros para saber se ninguém nos estava espiando
e, em seguida, levou cuidadosamente sua mão ao meu rosto, segurando-o afetuosamente. Por
pouquíssimos segundos, esperou minha reação em silêncio... Então, quando viu que eu nada
diria — nem tiraria sua mão de onde estava —, apenas sussurrou:
— Precisamos continuar aquela conversa... e preferiria que Amanda não ficasse
sabendo, por enquanto...
Ainda assustado com sua ação repentina — ou talvez com a ideia de que Amanda nos
pegasse daquela forma no meio do corredor — a única coisa que pude dizer foi:
— Na festa. Na festa nós... conversamos.
Douglas pareceu estranhar minha reação, com certeza não era a resposta que ele
esperava ouvir, mas felizmente, antes que pudesse retrucar, o elevador chegou, impedindo-nos
de continuar aquela conversa.
— Tá... Então, até a festa.
Douglas se deu por vencido e nos despedimos com um abraço amigável antes de ele
descer e ir embora. Sem desejar voltar imediatamente para casa, demorei um pouco no corredor.
Meu coração parecia não desejar desacelerar, suas palavras ficavam ecoando em minha cabeça:
“Precisamos continuar aquela conversa...” Aquela conversa... Só existia uma única conversa
que não havíamos terminado, e se fosse isso, então...
— O que você está fazendo sozinho aí fora? — a voz de Amanda ecoou pelo corredor,
quase me fazendo pular para fora do corpo. — Douglas já foi?
Assenti exasperadamente, ainda com os batimentos a mil. Amanda, que estava parada
no vão da porta, pareceu me analisar silenciosamente — o que não contribuiu para que eu me
acalmasse. Talvez nos houvesse visto daquela forma — pensava, começando a sentir um leve
pavor brotar em meu peito —, não, ela não poderia nos ver daquela forma! Contudo, sem dizer
nenhuma palavra, apenas estendeu sua mão, fazendo sinal para que me aproximasse.
— Minha mãe já chegou e não posso demorar mais... — falou, enfim, quando segurei
sua mão. — Então, conversou com Douglas?
— Não, eu não tive a chance...
— Tudo bem, na festa, então.
Não a respondi de primeira, inspirando intensamente sem saber o que dizer. Amanda
continuava a me analisar com seus lindos olhos verdes, tão intensos, que pareciam olhar para
bem dentro de mim — talvez percebesse a confusão de meus pensamentos. Muitos haviam
subestimado aquela face ingênua, mas para aqueles que a conheciam profundamente, sabiam
quão longe aqueles olhos conseguiam penetrar. Será, então, que ela desconfiava do que
realmente estava acontecendo, do que eu sentia naquele exato momento?
— Claro, talvez seja melhor assim — respondi, com a tal dúvida plantada em minha
cabeça.
Amanda limitou-se apenas a assentir, deu-me singelo beijo no rosto e foi embora,
deixando-me completamente sozinho, com a corda que eu mesmo havia posto em meu pescoço.

Amanda

Silêncio... Foi essa a primeira resposta que recebi de Lucas naquele momento. Sim, por
mais que, hesitante, houvesse me respondido, era irrelevante, pois eu sabia que deveria existir
razão por trás de seu silêncio. Apesar de ser pouco o tempo de amizade, conhecia muito bem
aquele garoto, nunca faltavam palavras a Lucas, a não ser que ele não quisesse dizê-las.
Lucas era um típico tímido, com mais de uma face para se conhecer. A que se via pelos
corredores da escola era de um garoto, com cabelos lisos, loiros e bagunçados, completamente
introspectivo, que nunca parecia largar um livro, não falava com muita gente, não olhava para
outras tantas. Seria preciso, no entanto, se aproximar um pouco mais para saber que existia um
verdadeiro rosto por trás dessa máscara de timidez — Que era uma gracinha. Para falar a
verdade, ele era lindo em quase todos os aspectos. Sua verdadeira personalidade mostrava
alguém doce por natureza, do tipo homem de Vênus, falando sempre cavalheirescos elogios ou
fazendo referências quaisquer à mitologia, que tanto amava. Ah, sim, a literatura! Lucas era tão
fascinado pela literatura, que, desde o dia em que nos conhecemos, perdi as contas de quantos
poemas já o vi declamar. O primeiro foi em meio a uma conversa com Douglas sobre
romantismos exagerados e os poemas de Fernando Pessoa, em que Lucas, com sua voz rouca e
aveludada, para defender sua tese de que em tudo havia uma gota de romantismo, declamara
garbosamente os versos do poeta lusitano: Todas cartas de amor são ridículas... Não seriam
cartas de amor se não fossem ridículas.
Sei que facilmente Lucas poderia ser confundido com alguém marrento, de nariz em pé
ou mesmo pedante, mas não era essa a verdade. Aliás, ele odiava que o elogiassem, tudo o que
fazia era porque sentia vontade de fazer, principalmente quando era romântico e doce com quem
gostava. Talvez essa fosse realmente a sua essência: um lindo romântico exagerado... Com esse
jeito meigo e essas suas palavras carinhosas, ele conseguia encantar a todos!
E foi exatamente o que aconteceu comigo.
Não sei dizer ao certo quando comecei a me apaixonar por esse garoto. Lucas apareceu
num momento em que o que mais desejava era esquecer qualquer tipo de relação amorosa. Era
o meu terceiro ano do ensino médio e a menor distração poderia ser prejudicial para mim —
pelo menos, era o que eu repetia incansavelmente, esperando que fosse verdade. Sempre fui
obsessiva em relação ao meu futuro, por isso ao começar este ano, prometi que não me
envolveria com ninguém. Todas as minhas energias seriam voltadas a um objetivo: minha
aprovação no vestibular de Medicina — meu sonho desde criança. Mas, então, nos conhecemos
e ficamos amigos rapidamente. Aliás, nós três! Não podia deixar Douglas de fora, já que ele era
peça importantíssima em nossa amizade. Quando estávamos juntos, algo em nós parecia
florescer mais do que de costume, éramos todos em nossa mais pura essência, pois tínhamos
uma liberdade única e podíamos ser quem fôssemos sem nenhum temor. Como um quebra-
cabeça, só nos sentíamos inteiros quando estávamos juntos. Era algo muito louco e intenso.
Louco principalmente para mim, que sempre me julguei — e fui julgada pelos outros — uma
garota extremamente centrada. Nunca fui de me deixar levar assim, de forma tão intensa por
alguém.
Eu sei que pode parecer esquisito tantas palavras apaixonadas para descrever uma
amizade. Acontece que o que existia entre nós três era um sentimento que simplesmente não
parecia caber em alguma palavra! Pense em momentos de completa insegurança e impotência
— é mais ou menos assim que nos sentimos quando estamos perto do vestibular —, por mais
regrados ou confiantes que sejamos, a imensidão do futuro nos apavora se pensarmos em espiar
um pouco além. Agora, tente sentir que, em meio a todos esses momentos, há um refúgio de
tudo isso, um lugar especial, onde, para fazer todas essas sensações ruins desaparecerem, basta
um colo e um cafuné. Pois bem, isso era o que significava minha amizade com aqueles dois.
Lucas e Douglas me faziam sentir dessa forma, cada um com seu jeito, carinhoso ou brincalhão,
sério ou malicioso. O que era perfeito, pois, sendo apenas amigos, não precisava me preocupar
com todas as responsabilidades de se ter um namoro, por exemplo. Fazíamos bem uns aos
outros e ponto, sem necessidade de maiores explicações ou cobranças.
Tola, não sei como pude demorar tanto para perceber que algo mais poderia surgir dessa
atmosfera apaixonante e segura, e quando veio à tona, custei a aceitar o fato de que estava
apaixonada.
Minhas confidências vieram naquele dia mesmo, mais cedo, quando Douglas não estava
presente. Lucas havia ido me buscar na parada de ônibus, caminhávamos até sua casa para um
sábado de estudos, como de costume. Nossas conversas começaram com tolices: fofocas,
seriados, músicas, até a festa a que os dois foram juntos na noite anterior.
— Não sei como vocês não estão de ressaca, se beberam tanto assim! Verdade que
Douglas passou mal?
— Eu não diria passar mal, passar mal... Apenas não conseguia ficar em pé sem ajuda...
É, então, talvez sim!
— Preciso admitir uma coisa! Uma vez já cheguei a achar que gostava do Douglas —
falei, um tanto envergonhada. Lucas me olhou surpreso, embora parecendo se divertir com que
ouvia —, mas...
— Mas...?
— Foi antes de você aparecer. Sempre fomos amigos, claro que não como somos hoje,
mas nunca rolou nada...
— Engraçado, isso me soa tããão familiar! — ele respondeu, com um sorriso maroto
cravado nos lábios. — Onde será que ouvi isso?
— Calma, como assim?
— Nada, estou sendo bobo, você me conhece! — rindo consigo, pegou em minha mão
de forma carinhosa, embora amiga, enquanto continuávamos a caminhar. — Por que esse
assunto agora? Por acaso você está a fim de alguém e não nos contou?
Lucas forjou um tom afetado com a possibilidade de estar escondendo algo dos dois. O
que seria compreensível; teoricamente, não havia nada que não contássemos uns aos outros.
Lucas e Douglas eram os braços a quem primeiro corria para jogar minhas novidades. Eram as
únicas pessoas que realmente tentava trazer para dentro de minha vida nos episódios que não
estavam, porque eu os queria ter por perto, sempre por perto.
Talvez nunca tivesse falado do que sentia por Lucas, por meu medo de acabar com que
possuíamos, aquilo de sermos os três, não queria me afastar dos — a — braços daqueles dois.
Éramos tão envolvidos uns com os outros que se me falassem que eu poderia estar apaixonada
por Douglas, não seria capaz de retrucar de uma vez. Por essa razão, como poderia correr o
risco de perder esse refúgio que tanto amava?
Continuando a me olhar, segurando minha mão, seus olhos esperavam ansiosamente
minha confissão, mas ainda com um tom maroto, como se não acreditasse que era verdade. Foi
só quando não o desmenti que pude observar sua mudança de brincalhão para completamente
surpreso.
— Ca-calma, você realmente está a fim de alguém e não nos contou?! — falou, ainda
surpreso. — Hahaha! Espera só o Douglas saber!
Esperei Lucas parar de rir para continuar, um pouco mais séria dessa vez:
— Esse é o meu medo, esperar só para quando Douglas souber... — confessei de olhos
fechados. Dali não poderia passar, tinha que falar. — Eu acho que estou apaixonada por você.
Continuei andando, mesmo quando Lucas parou abruptamente. Somente quando percebi
que ele não me acompanhava, virei para vê-lo com uma cara que não conseguia identificar bem
o que era. Ele parecia assustado, de fato, seu rosto estava ainda mais pálido que o de costume,
os olhos inteiramente abertos, a boca escancarada...
— Isso no seu rosto é um sinal de derrame ou você só não gostou do que ouviu? —
tentei brincar com tamanha confusão.
Lucas balançou a cabeça e veio apressado até mim. Bem de perto, sua respiração estava
descompassada, como se tivesse corrido quilômetros inteiros sem descansar.
— Você está fazendo um jogo comigo, garota? — falou sorrindo e me pegando pela
mão. — Você está brincando, não está?
Sorri, sentindo meu rosto corar, mas, soltando sua mão, continuei a andar, sendo
imediatamente seguida por ele.
— Só soltei, está bem? Eu sei que você pode não ter gostado, então só ignora que passa.
— Não, não, calma! Mas, e-e-eu... você... — Lucas respirou, buscando parar de
gaguejar, até que voltou a falar. — Claro que eu gostei, você não tem ideia, eu colocaria sua
mão no meu coração para mostrar que falo a verdade... mas... Douglas!
Eu estava prestes a falar que entendia, sabia que não poderíamos fazer isso com Douglas,
afinal, e se tudo mudasse? E se ele não gostasse? O melhor a fazermos era ignorar tudo isso e
continuarmos a viver como se nada tivesse acontecido. Desde que estivesse com aqueles dois,
com a nossa amizade, tudo ficaria bem. Então eu o vi, parado do lado de fora da portaria,
sorrindo ao nos ver. Por alguma razão meu coração enlouqueceu ao vê-lo.
— Na festa — falou Lucas, inteiramente corado. — Vamos conversar sobre isso na
festa...
Foi somente o que ele me falou, antes de encontrarmos com Douglas. O restante do dia
correu como todos os dias em que estávamos juntos. Por vezes até esquecia completamente o
que ocorrera horas antes. Mas quanto mais o horário da festa se aproximava, mais impossível
era deixar de me questionar: o que aconteceria daqui para a frente?

Douglas

— Bem arrumado, cheiroso... Já vai se encontrar com o Tico e o Teco, não é?


Revirei os olhos ao ouvir a voz de minha irmã: Thaís. Já fazia muito tempo que ela
tirava sarro de minha cara incansavelmente. Aliás, desde que percebera que Amanda, Lucas e
eu não desgrudávamos, era assim que os chamava: Tico e Teco. Normalmente eu retrucaria,
mandaria ir se catar ou algo parecido, mas o nervosismo não me deixava fazer nada mais do
que ficar calado.
Não que eu fosse falar mais do que isso, na verdade, sempre fui um cara muito
reservado. Exceto quando, por educação, eu me via obrigado a falar com outras pessoas, quase
nunca compartilhava da minha vida — a não ser com Amanda e Lucas, pelo menos. Mesmo
minha mãe ou minha irmã mal sabiam de minhas histórias, namoros, ficas, amizades... Toda e
qualquer informação que tinham sobre mim ou o que fazia, vinha por terceiros ou por
espionagem própria, pois sempre que havia uma escolha, preferia ficar calado, o nervosismo,
então, apenas dobrava esse desejo.
Vendo que não ia conseguir mais nada, Thaís sorriu afetuosamente e ajeitou o lenço em
meu bolso da frente. Apesar de adorar gozar da minha cara, ela era uma irmã extremamente
afetuosa, sabia que cuidaria de mim quando precisasse.
— Seja para quem for que estiver se arrumando desse jeito... — ela sussurrou, enquanto
dobrava o lenço e colocava de volta em meu bolso. — A pessoa está com sorte.
Franzi o cenho com a escolha da palavra “pessoa” no lugar de garota ou ela. Sem falar
mais nada, Thaís me deu um pequeno beijo na bochecha e foi para o seu quarto — parando
antes para pegar uma latinha de cerveja na geladeira —, deixando-me sozinho no quarto
silencioso, o que só serviu para aumentar minha ansiedade.
Meu Deus, o que estava acontecendo comigo? Onde é que eu tinha me metido? E por
que infernos eu estava tão nervoso, assim? Porra! Eu só iria encontrar com meus dois melhores
amigos, não era...? Não, não era só isso que ia acontecer. Mas o que é que era, então?
Esses eram, basicamente, os pensamentos que habitaram minha cabeça o dia inteiro.
Normalmente, e unicamente, em casos semelhantes eu já teria corrido e contado para Amanda
e Lucas, afinal, era somente com os dois que eu me sentia realmente à vontade para falar de
mim e da minha vida. Claro que já tive amigos, ainda os tenho, mas eles nunca passaram de
companhias para festas, e, em toda a minha vida, nunca estabeleci alguma relação que se
parecesse com a que nós três possuíamos. Esse era o problema, porque alguma coisa me dizia
que eu estava prestes a destruir tudo aquilo, porque talvez... talvez eu... sei lá, por acaso,
estava... a fim do meu melhor amigo — que era um homem!
Olha, para deixar claro, eu nunca fui preconceituoso, apenas nunca pensei que um dia
me sentiria atraído por um outro homem, ainda por cima, meu melhor amigo.
Tudo começou — por ironia — no fim do meu efêmero interesse por Amanda. Sim,
sim! Eu acho que já fui apaixonado por Amanda, nossa outra grande amiga. Nunca fui capaz
de falar a verdade, não nos conhecíamos como nos conhecemos hoje. O fato é que ela sempre
me deixava — ainda deixa — bastante abobalhado. Enfim, desistindo antes de tentar, as férias
chegaram e o tempo foi passando até o novo ano letivo. E é aí que entra o tal melhor amigo,
Lucas Holanda.
À primeira vez que o vi, não fui muito com a cara dele — se você quer saber. Lucas
parecia o tipo de cara marrento, que andava largado, sem olhar para os outros, como se pensasse
que fosse melhor ou coisa do tipo, se liga? Ainda assim, houve alguma coisa nele que me
impediu de ignorá-lo completamente, exatamente como eu costumava fazer com qualquer
pessoa que não me agradasse. Não, com ele era diferente. Existia algo naquele cara que me
fazia dar uma atenção especial, comparado aos demais. Juro que desconhecia o motivo desse
pensamento, vai ver que lá no fundo, eu já sabia que meu julgamento estava errado.
O que era verdade. Lucas começou a andar na mesma turma que eu e Amanda, e para
minha surpresa, ele não era nada marrento, muito pelo contrário! Era extremamente tímido, por
isso não costumava olhar para ninguém, andava largado por ser desastrado. Acho que já o vi
tropeçar nas coisas, mais vezes do que eu já recebera notas vermelhas na vida toda
Tenho que confessar, apesar de ter gostado de Lucas quando comecei a retirar todos
meus preconceitos contra ele, vi nele uma oportunidade para me aproximar de Amanda, algo
que não havia conseguido no ano anterior e já que ele andava um pouco mais com a turma dela,
pensei, ah, vocês sabem! Contudo, quanto mais me aproximava dele, quanto mais
conversávamos, mais parecia idiotice minha ter tentado conhecê-lo unicamente por esse
motivo. Desde que nos conhecemos, passamos a conversar bastante um com o outro.
Inicialmente porque tínhamos o mesmo gosto para as coisas, como música e literatura, indo de
Dingo Bells e Chico Buarque a Luis Fernando Veríssimo e José de Alencar. Lucas também era
divertido, conseguia me fazer rir até quando eu estava carrancudo, e sempre me escutava com
a maior atenção, como se sua vida dependesse do que eu dizia, mesmo que o assunto fosse a
influência da bolsa de valores sobre as sobrancelhas esquisitas do Pai Mei — observe, mesmo
que nada fizesse sentido, ele ouviria da mesma forma. Diante de tudo isso, não preciso dizer
que Lucas logo me cativou, e logo nos tornamos amigos.
Se no começo tive segundas intenções ao me aproximar de Lucas, quando a amizade
entre nós três começou a tomar a forma que é hoje, isso foi rapidamente esquecido, e eu já não
queria saber de mais nada que não fosse a companhia daqueles dois. Quando dei pela falta do
sentimento que tinha por Amanda, já não mais me parecia faltar. Apenas havia mudado,
expandido para englobar Lucas — ou era o que pensava.
E assim os dias foram passando: Amanda, Lucas e eu parecíamos impossíveis de
separar — bem como Tico e Teco. Não que isso nos incomodasse, gozações como as de minha
irmã ocorreram várias vezes, vindas de outras pessoas que sempre nos viam juntos. Muitos
colegas da nossa turma iam ficando cada vez mais deslocados perto de nós três, até que, por
fim, deixavam-nos a sós — como bem queríamos. Claro que não nos apartamos completamente
dos outros, vez ou outra recebíamos convites para sair, seja para shopping ou festinhas íntimas,
numa das quais começou o motivo de minha ansiedade.
Em uma festa na noite anterior, sem Amanda, estávamos... levemente bêbedos... bom,
o suficiente para ser mais seguro parar de dançar com o resto da turma. Por esse motivo, Letícia
— a dona da festa — havia cedido o seu quarto para passarmos alguns minutos nos recuperando
da zonzeira.
Eu me joguei na cama, enquanto Lucas tentava ficar em pé para vasculhar a estante de
livros da Letícia. Como eu já disse, Lucas era muito desastrado e não demorou muito para
derrubar a metade dos livros que lá havia — o que na verdade, não passava de sete ou oito —
e se convencer que era realmente melhor não mexer em nada.
Sentou ao meu lado na cama, e ficamos rindo por um bom tempo, tanto do vento quanto
para ele.
Foi então que aconteceu.
De repente, tudo ficou mais escuro do que já estava e senti uma grande vertigem. Sem
pensar direito no que estava fazendo, fechei meus olhos com força, e teria pendido para frente,
se não houvesse segurado no ombro de Lucas, o qual, ao ver que eu realmente não estava legal,
me convenceu a deitar... A deitar no seu colo.
— Larga de besteira e encosta a cabeça aqui — disse ele com um tom preocupado,
colocando o travesseiro em seu colo e me puxando para trás. — Logo.
Obedeci e acomodei minha cabeça no travesseiro com os olhos completamente cerrados,
esperando que a vertigem passasse um pouco mais. Quando finalmente os abri, vi que Lucas
me fitava de uma forma preocupada.
Por mais que eu odiasse admitir, sempre me surpreendia ao perceber que gostava do
carinho que Lucas me fazia. Assim como milhões de outras coisas, nunca tive nenhum amigo
homem com as mesmas liberdades e carinhos que tinha com ele. Vocês sabem, demonstrações
de afeto ou afagos entre dois amigos homens, mesmo que muito amigos, não é algo que costuma
ser incentivado pelos os pais — mesmo eu tendo uma das mães mais liberais do mundo. Por
essa razão, o primeiro cafuné que recebi de outro cara, e recebi com espanto, foi Lucas quem
fez. Com o passar do tempo, o espanto ia diminuindo e eu ia aproveitando cada vez mais, até
perceber que gostava mais do que o comum do toque da sua mão ou de seu abraço apertado, o
qual me fazia sentir cada traço de seu corpo colado ao meu.
Claro que tudo isso me deixava confuso pra caralho! Ele era um homem, não era? Eu
não deveria me sentir assim. Não deveria me empolgar, muito menos... Olha, mesmo ele sendo
meu melhor amigo, tinha coisas que eu não deveria sentir, nem pensar, correto? Eu era um cara
hétero, gostava de lutas, futebol... Mas eu sentia e pensava. Desejava.
— O que você está pensando? — perguntei com uma voz rouca, e baixa o suficiente
para que somente ele pudesse ouvir. Lucas riu, balançando a cabeça, enquanto continuava a
acariciar meu rosto. — Vai, me fala, cabeção!
— Só em como sua boca é vermelha e linda... — disse, tocando suavemente os meus
lábios com as pontas dos dedos.
No mesmo momento, senti meu coração enlouquecer, bombeando sangue para toda
parte do meu corpo. Foi em um segundo, como se sua voz, ou o que havia me dito, tivesse
despertado algo que estava há muito tempo dentro de mim, como a vontade absurda de beijá-
lo.
Levantei do seu colo e encarei seus olhos como se finalmente entendesse tudo aquilo
que estive sentindo nos últimos meses estando com ele e Amanda. Foi exatamente naquele
momento, ao ouvir aquelas poucas palavras, que me dei conta de que o que eu sentia por Lucas
estava bem mais além do que somente amizade.
— Tenho que te contar uma coisa — sussurrou ele com uma voz embargada, segurando
meu rosto. — Eu sei que deveria ter contado antes, por sermos amigos e tal... Bom, eu meio
que tive receio, mas quero dizer agora. Eu sei que vai soar confuso, mas acho que estou...
sabe... — Lucas parou, balançando novamente a cabeça, mordendo a boca para não falar mais
nada. Já ameaçava se levantar, quando o puxei de volta para cama. — Não faz isso, Doug.
Esquece... é bobagem! Desculpa.
Eu não acreditava que ele estava prestes a fugir, por isso, sem pensar em nada mais,
comecei a falar por ele:
— Cara, eu não sei como ou porque, só acho que sei o que você vai falar — sentindo
meu corpo ficar ainda mais quente, disse, sem desgrudar de seu olhar, que estava novamente
atento a mim. — E, sabe, com você...
Mas antes que eu pudesse terminar, um barulho ecoou no corredor que dava para o
quarto. Por puro reflexo, levantei com um susto, e me lancei para uma poltrona que havia num
canto do quarto, enquanto Lucas agarrava o travesseiro e se deitava de bruços na cama, fingindo
que estava dormindo. Patético, eu sei! Mas foi como aconteceu. Letícia, então, entrou no quarto
uns cinco segundos depois, junto com Jéssica e Natasha, para se certificarem de que ainda
estávamos vivos, e trouxeram duas xícaras de café para ajudar na desintoxicação da bebida.
Acho que me ver ainda grogue, com a cara inteiramente avermelhada, e Lucas
desmaiado alguns centímetros ao lado, com certeza não era o que esperavam, e por isso nos
deixaram a sós por mais algum tempo.
O negócio era que Lucas realmente havia desmaiado de sono enquanto eles ainda
conversavam comigo e não acordou até o momento em que fui embora. Sem saber o que havia
de fato acontecido aquela madrugada, fui me questionando o caminho inteiro, absurdamente
calado até em casa. Será que eu realmente estava apaixonado por Lucas? Será que não havia
sido só efeito da vodca? Isso é comum, não é? Mesmo com minha mente lanceada, meu coração
ainda pareceu despencar de vários andares ao pensar em Amanda. O que ela pensaria se
soubesse que isso aconteceu? E, sei lá, porque eu estava querendo beijar um outro homem se
meses atrás eu estava interessado por ela?
Porra! O que é que estava acontecendo comigo, afinal?
Sem saber de resposta alguma, peguei o chapéu negro que estava em cima da cama, o
charuto fajuto que havia arrumado, e saí para a festa, disposto a tentar encontrar a verdade.
Capítulo II — A Festa

Lucas

Lembra de como você se sentiu ao se declarar pela primeira vez para alguém sabendo
que iria receber um fora? Aquela angustia gélida tomando-lhe o corpo, por saber que estava se
metendo numa enrascada, a pior delas? Se não, deixe-me tentar descrever: é como andar em
direção à guilhotina segurando a bandeira de um sonho o qual nunca irá se realizar, ouvindo o
barulho do tambor retumbar fortemente em seus ouvidos, junto com um grito amargo: Cortem
a cabeça! Sim, eis como me sentia naquele momento: o réu que, em poucas horas, teria seu fim
trágico somente porque se deixou levar pela inebriante canção da paixão, brutal e cega,
acabando por se apaixonar pelos seus dois melhores amigos.

Tolo, pervertido e, futuramente, morto.

— Certo, vamos ver se eu captei direito — começou Natália lentamente, como uma
advogada que busca brechas na cena do crime. — Você marcou de se encontrar com os dois lá?

Assenti nervosamente, passando perfume pela segunda vez.

Natália, minha vizinha, a pessoa mais próxima a mim além dos dois, que passara a ser
minha confidente para assuntos os quais não podia contar a Amanda e Douglas, estava sentada
à beira da cama, vendo-me completamente inquieto, andando de um lado para o outro no quarto.

— Calma, Lucas! Calma!

Parei conferindo meu cabelo no espelho, já sendo capaz de sentir minha cabeça
despencar até o chão.

— Mas, espera — recomeçou Natália ainda tentando permanecer compenetrada,


embora já demonstrasse sinais de que logo se renderia ao deboche. — Olha, você tem certeza
que combinou, combinou, combinou de ficar com Amanda e com Douglas na festa?

— Bom, de certa forma sim, né, Nat? — era assim que eu a chamava.

— E eles não sabem disso... que você vai encontrar com os dois, assim... Os dois?

— Saber, sabem, eles não esperam ficar sozinhos comigo, mas eu te disse, eles querem
conversar! — dizer essas palavras em voz alta, só fez com que a angústia aumentasse de forma
assustadora em meu peito. — Meus deuses, o que eu faço?!

Sem mais ser capaz de aguentar, Natália tombou sua cabeça para trás, e deixou-se levar
por uma intensa gargalhada de zombaria, deitando-se na cama com o rosto completamente
vermelho e com os olhos cheios de lágrimas.

Como disse, Nat era minha melhor amiga além de Douglas e Amanda. Nós nos
conhecemos logo no dia em que me mudei. As primeiras interações sociais que fiz na cidade,
devo a ela. Quem nos via por aí, facilmente desconfiava que éramos irmãos, não por nossas
características físicas — Nat tinha os cabelos negros que descriam encaracolados até os ombros
e olhos esverdeados —, mas pela forma com que cuidávamos um do outro, e já que nunca tivera
um irmão de verdade, Natália parecia suprir essa falta na família — principalmente para tirar
sarro de mim. Quando comecei a desconfiar de como me sentia, ela foi a única pessoa a quem
recorri. Levei muito tempo para que fazê-la compreender o que ocorria e aceitar o fato de que
eu não estava apaixonado por um ou pelo outro, mas pelos dois.

— Boa, garoto! Para quem estava com medo de assumir a paixão, você está no melhor
caminho para isso!

— Ah, obrigado, Nat... Eu quero que você saiba que esse seu APOIO é muito
importante, estou bem mais tranquilo agora.

— De nada!

Eu estava prestes a retrucar, quando o toque do meu celular desviou minha atenção.
Nat, que estava mais próxima, pegou-o, conferindo quem era.

— Uuuh, é o Douglas.

Ela me passou o celular e voltou a se sentar na cama, com um olhar cheio de malícia.
Eu gastei alguns segundos, que pareceram eternos, respirando profundamente procurando me
acalmar, até enfim, ser capaz de atender.

— Oi, lindão.

— Oi, cabeção, já tá pronto?

— Sim, sim! Natália vai comigo, a gente já vai sair.

— Tô te esperando, então. Não vai demorar, certo? Liga para mim quando chegar?

— Claro que sim... Beijo.

— Beijo, cabeção!

Desliguei ainda mais tenso de que quando atendi o celular, e só para me tranquilizar,
Nat fazia um biquinho de beijo para mim.

— Ei, quer parar? Assim você me deixa mais nervoso!

— E por que você acha que eu faço? — disse ela rindo até novamente deixar seu rosto
vermelho. — Mas, então, a princesinha já terminou de se arrumar?

— Princesinha é a mãe! — ralhei enquanto dava uma conferida no espelho. — Tá,


vamos.

— Até parece que é assim! Espera...


Nat deu um pulo e veio até mim, cheirou-me, checou meu cabelo, e após estar
aprovado — ou pelo menos era o que eu esperava que estivesse —, puxou-me pelo suspensório
e me tirou do quarto.

— É, vamos.

Mas sair de casa com o restinho de tranquilidade que me sobrava, seria abusar demais
da minha falta de sorte. Sempre fui alguém de quem o destino insistia em satirizar, e exatamente
por isso, enquanto estávamos atravessando minha sala de estar, novamente meu celular
começou a vibrar e tocar. Dessa vez era Amanda.

— O-Oi, Mandy!

— Oi! — soou sua voz animada pelo telefone. — Você ainda vem, não é?

— Claro que sim, eu já estou até saindo de casa.

— Hmmm, espero que chegue logo também, então.

— Ah, você já chegou?

— Há uns cinco minutos.

— Cinco?! E você já topou com Douglas?

— Não, ele não está recebendo as mensagens no WhatsApp. Já ligo para ele!

Estarrecido, queria pedir para que ela não fizesse isso. Para falar a verdade, eu queria
dizer que não iria, que tinha sido maravilhoso conhecer os dois, depois compraria uma
passagem para o fim do mundo e passaria o restante dos meus dias como um ermitão, vendendo
arte na praia. Não era um péssimo plano, era?

— Lucas? — perguntou Amanda, percebendo meu denunciador silêncio. — Você está


bem? Estou te achando estranho! Cara, se você não gostou do que eu te disse mais cedo,
podemos esquecer, já disse!

— Não, para com isso! — falei de súbito, sem medir o volume de minha voz. — Por
favor, para de falar isso. Eu já te disse, queria te fazer sentir como meu coração dançou ao te
ouvir dizer aquilo. É só que... Precisamos conversar. Nós três.

— Eu sei disso. Esperarei você para conversarmos, está bem? Não demora.

Despedimo-nos logo depois. Desabei no sofá da sala ouvindo as risadas perversas das
três tecelãs, satisfeitas com a obra que haviam feito para mim. Mas, afinal, por que estava
reclamando? A culpa era inteiramente minha, eu era o único culpado por ser quem era: um
verdadeiro indeciso, de carteirinha e tudo!

Nunca fui bom em tomar decisões pragmáticas e sempre fugi quando me obrigavam a
decidir entre duas coisas de que gostava! Por exemplo, eu sou o tipo do cara que come sorvete
napolitano para não ter de escolher entre morango e chocolate; que possui dois super-heróis
favoritos, e até hoje não sei responder se gosto mais do pai ou da mãe. Tais comparações podem
parecer absurdamente tolas e frívolas, sei disso, embora o que aconteça comigo seja algo além
de somente indecisão. Na verdade, é uma ideologia de vida: quando não se tem motivos para
escolher, simplesmente não escolha, e o mais importante, não deixe que ninguém o obrigue a
isso.

Não via razão para escolher entre minha mãe e meu pai, se os amava da mesma forma!
Assim como eu curtia o super-homem, pois ele voava, soltava raios-laser pelos olhos e era
jornalista, gostava também do Batman pois era um gênio, nadava no dinheiro, tinha uns trecos
legais e ainda uma caverna para ficar escondido e guardar o seu carro. Uma caverna! Dava até
para desconsiderar seu cinto esquisito somente com isso. Então, como poderia escolher um dos
dois?

Novamente, reconheço as frivolidades desse meu discurso, até mesmo pode parecer
algo mimado da minha parte, mas eu não fazia o mesmo com objetos. Compreendia muito bem
quando só podia escolher um presente de natal ou aniversário. Mas estou falando de objetos,
não pessoas! Eles não eram meus objetos, simplesmente não poderia dizer qual deles queria
mais do que o outro, pois escolher é uma forma — mesmo que branda e sem intenção — de
ponderarmos os defeitos e qualidades de cada elemento, e baseado nisso, acabamos por
descartar o que não nos é aprazível e ficamos com aquilo que mais nos traz vantagens. Percebe,
agora, o tamanho da perversidade que existe em decisões? Escolher alguém pelas suas coisas
boas e descartar pelas ruins, não era nada justo! Dando-se conta de tamanha injustiça, o juiz
que morava em meu coração sempre fora demasiado brando com seus julgamentos, e por vezes,
batera o martelo em favor de dois em vez de um só.

Sabendo do meu cuidado em não descartar doces ou personagens fictícios, os quais,


por certo, não se machucariam com minhas (in)decisões, imagine como me sinto sobre Amanda
e Douglas... O que acontecia com aqueles dois transcendia qualquer decisão que já houvesse
tomado em minha vida...

Eu amava o jeito meigo e doce como Amanda me tratava, o seu carinho, o seu cafuné
com os dedos se enrolando em meus cabelos loiros. Aqueles olhos que me incitavam a
mergulhá-los eram as janelas mais lindas que eu já vira em minha vida... Não podia falar de
forma diferente sobre Douglas e seu sorriso de boca vermelha, a forma fraternal com que me
envolvia quando me olhava, e até mesmo o seu cheiro que ficava em minha roupa nos abraços
quentes e acolhedores que sempre costumava me dar. Amava tê-los comigo. Amava beber cada
sentimento que me traziam à boca, mesmo que de forma não intencional. Amava-os e pronto,
de graça, sem mais adendos e descrições. No entanto, foi somente quando, pensando no futuro,
eu já não mais me via sozinho — ou mesmo só com um dos dois —, que percebi o quão
enrascado estava. O quanto me apaixonara, e por mais louco e absurdo que possa parecer,
apaixonara-me por duas pessoas: meus dois melhores amigos.

Por muito tempo, desde que havia percebido minha paixão pelo dois, mantive em
segredo, temendo esse fatídico momento. Aliás, encontrar-se apaixonado por duas pessoas não
é algo comum, e, com certeza, não havia nenhum guia para leigos nem matérias na internet que
pudessem me socorrer — acredite, eu pesquisei. Nem mesmo na Literatura eu conhecia casos
semelhantes, estava sozinho naquele barco, e com a boca selada feito um túmulo — o meu
túmulo. Não preciso falar o quanto me eram difíceis os momentos como os de mais cedo, vendo-
os dançar tão ternamente, olhando um para o outro e olhando para mim... Se, nesses momentos
ou em quaisquer outros, interrogassem-me sobre por quem eu estava mais apaixonado, nunca
saberia responder, apenas estava. Nem mesmo conseguia pensar num relacionamento com um
sem que o outro estivesse presente!

Então, como poderia escolher? Como seria capaz de fazer isso com aqueles dois?
Também sabia que não poderia continuar nessa situação, não depois de tudo o que havia
acontecido. Era como se o Destino, irado com meu silêncio e frustrado com minha indecisão,
estivesse enfim me obrigando a tomar o papel que me cabia na ópera. Não restava mais tempo
para fugas, era chegado o momento que tanto procrastinara: tinha que decidir. Mas qual seria a
decisão?

E, ainda como o réu que acompanha compassivamente seu julgamento chegar aos
momentos finais, eu via escorrer os segundos para a decisão final.

— Estou inteiramente ferrado! — foi somente o que consegui dizer.

Amanda

Foi só desligar o telefone que Letícia e Jéssica, colegas de sala que já estavam comigo,
pularam em meu pescoço como um bando de hienas faria com suas presas.

A festa do Santo ou Pecador dava seus primeiros suspiros de vida, ou melhor, de


música. Todos já começavam a chegar vestidos no estilo cabaré, sendo fácil reconhecer garotas
fantasiadas de cortesãs por todos os lados, parecendo uma recriação de Moulin Rouge. Eu, por
exemplo, usava um vestido branco, com pedras brilhosas, que ia até meus pés com uma fenda
que deixava minha perna esquerda, na qual havia posto uma cinta-liga também branca, à mostra.
Em meus ombros desnudos carregava pérolas e uma estola vermelha, combinando com as unhas
que havia pintado naquela manhã para ficar ainda mais parecida com Satine. Tanto preparo
poderia parecer excessivo, todavia, não éramos apenas nós, garotas, que havíamos vindo
inteiramente produzidas para festa. Os homens também entraram na brincadeira e se vestiam
feito os mais charmosos boêmios, cada um com um tipo de chapéu fedora, suspensórios e
gravatas, alguns, inclusive, haviam preparado imitações de charutos e os traziam na boca,
parecendo mafiosos maldosos.

Sem exceção, todos pareciam estar em completo frenesi com a festa do Santo ou
Pecador. Há semanas que não se falava em outro assunto nos corredores da escola. Sendo uma
espécie de festa que ocorria anualmente com temáticas diversificadas, a desse ano, em especial,
parecia ter deixado todos completamente extasiados. Talvez fosse o momento em que
finalmente poderiam fazer aquilo que bem desejavam, mas que no restante do ano não teriam
coragem para tal. A excitação que sentíamos, quem sabe, fosse uma espécie de grito dos desejos
mais inconscientes prontos para virem à tona em duas formas: os declaradamente pecadores,
que não sentiam vergonha em sê-los, com a bandeira representando o desejo de cor rubra em
cada traje, ou os santos, com as roupas alvas e brancas, tímidos, embora num antro que mais
parecia um desafio lançado aos pecadores: desvirtuem-me, se forem capazes. Afinal, quem sabe
não fosse essa a verdadeira essência da festa, o tal questionamento: do que éramos capazes?

— Você anda toda cheia de segredinhos depois que grudou com aqueles dois, sabia?
— começou Jéssica, balançado um leque vermelho em uma mão, enquanto segurava um
drinque na outra. — Vamos, vamos, vamos, pode falar logo, você tá pegando quem? É o
Douglas ou o Lucas?

Não pude deixar de sorrir com a curiosidade das duas. Jéssica e Letícia eram as típicas
fofoqueiras que sentiam um prazer infinito em saber da vida dos outros. Por muito tempo elas
estiveram me cercando, de forma sonsa e cínica, sobre o que rolava nos “segredos da nossa
amizade”. Agora, no entanto, esse pudor sumira e dera abertura aos questionamentos mais
incisivos.

— Preciso estar ficando com um dos dois, por acaso? — perguntei, bebericando meu
drinque, sem dar muita atenção àquelas duas.

— Mas é claro que sim! — respondeu Letícia, por sua vez, tocando a ponta do meu
nariz com sua estola branca. — Podem me chamar do que for, mas eu não acredito numa
amizade tão próxima assim se não tiver interesse, principalmente entre homem e mulher. E se
tiver que apostar em alguém, eu aposto no Douglas!

Dei de ombros, sem satisfazer a curiosidade das duas, e, como tivesse ouvido seu
nome, Douglas apareceu ao longe, em meio aos dançantes e aos efeitos da balada, para me
salvar das duas hienas ferozes. Sorrindo maliciosamente e dando uma piscadela para duas, saí
com um “Eu disse que era com o Douglas!” de Letícia em minhas costas. Ao notar que estava
próxima, Doug abriu aquele sorriso que só ele sabia dar e levantou a mão para mim,
convidativamente.

— Sabia que estão apostando sobre o nosso romance secreto? — brinquei, assim que
cheguei perto dele. Devido ao som alto da música, tive que falar bem perto de seu ouvido.

Douglas me olhou com uma sobrancelha arqueada, e só entendeu quando seguiu meu
olhar até as nossas duas colegas que estavam paradas ao longe, olhando para nós como um
grande espetáculo enquanto bebiam de canudinho seus drinques.

— Espero que tenham apostado que eu beijo bem! — brincou, repetindo a ação de
falar ao meu ouvido, roçando sua barba rala em meu pescoço, fazendo-me arrepiar inteira.
Douglas fazia isso sempre que podia como forma de me provocar. — Vamos sair daqui e
procurar algo que nos importa! E entenda bebida quando digo “que nos importa”.

Tomada pelo braço, fui arrastada por Douglas até o local que vendia bebidas, o qual
se encontrava mais distante de onde estávamos. Todos já pareciam estar eufóricos e dançavam
animadamente ao som da música, dificultando nossa passagem até lá. Pegamos dois sucos de
morango e nos afastamos para outro lugar mais distante dos outros.
— Agora, ao que importa! — bradou Douglas de forma animada, retirando do bolso
um pequeno cantil prata. Como a maioria de nós ainda não tinha idade legal para comprar
bebidas alcoólicas, o local havia sido proibido vender drinques de verdade. Mas, claramente,
isso não era o suficiente para deter jovens vestidos de cortesãs e boêmios, e muitos de nós havia
trazido álcool escondido em garrafinhas semelhantes.

Douglas batizou nossos copos com um pouco de vodca e me devolveu, ainda mantendo
um sorriso no rosto. Ele estava incrivelmente lindo esta noite. Não somente pela roupa que
usava — uma justa camisa social preta, a qual fazia com que cada curva de seu braço aparecesse,
contrastando com gravata e lenço no bolso de cor bordô —, mas também porque estava
extremamente animado, como há algum tempo não o via. Douglas parecia estar tão excitado
com a festa, que até mesmo me chamou para dançar — algo que costumeiramente ele não
gostava de fazer —, continuava com piadinhas, embora conferisse o celular vez ou outra, para
saber se Lucas havia dado notícias. Quando isso acontecia, o gosto do álcool amargava minha
boca mais do que o de costume...

Era claro que, por mais que nos divertíssemos, como estávamos, ainda assim faltava
alguma coisa: faltava Lucas. Não podíamos negar a forma que nossa amizade se manifestava.
Éramos três grandes amigos, três, e não apenas dois. E se tudo mudasse entre nós? E se nos
afastássemos? Começava a pensar que era uma péssima ideia ter me aberto com Lucas mais
cedo, pois aquilo que havia entre nós três, aquela amizade, aquele pedaço de paraíso, não
poderia acabar.

— Lucas já falou com você? — perguntou Douglas, como se tivesse lido meus
pensamentos. De repente, seu ar animado ficou um pouco mais tenso, olhando apenas o copo e
não a mim.

Será que ele e Lucas haviam conversado?

— Falei mais cedo, um pouco antes de você aparecer — respondi, enquanto Douglas
continuava fitando o copo sobre o balcão, cada vez mais tenso. — Por quê?

Douglas deu de ombros e balançou a cabeça, tomando o restante que havia em seu
copo com um único gole. De nós três, ele sempre fora o mais ansioso e calado, apesar de ser
muito fácil saber quando algo parecia perturbá-lo, muitas vezes precisava que insistíssemos um
bocado para que falasse o que o se passava.

— Nada, nada — falou, abrindo um sorriso para tentar dissimular a tensão que se
instalara rapidamente. — Vamos beber e dançar enquanto ele não chega, sim?

Levantando-se, Douglas estendeu sua mão para mim.

— Tem certeza? — perguntei, preocupada. — Podemos conversar, se você quiser —


em resposta, Douglas balançou a cabeça e me tomou pela mão.

A maioria das músicas que tocara até então eram típicas dessas que você escuta em
qualquer balada, agora, porém, o DJ, em sua troca com o próximo, havia colocado um calmo
blues. As luzes também se acalmaram, as cores frenéticas deram lugar a uma iluminação mais
branda, tranquila, deixando o ambiente mais romântico...

Douglas me abraçou e começou a balançar comigo lentamente. Foi quando comecei a


notar que tinha algo estranho acontecendo... Nós dois já havíamos dançado muitas vezes antes,
sem que nada de diferente acontecesse. Éramos apenas dois amigos dançando, tranquilamente,
divertidamente, sem nenhum traço de tensão. Mas não agora. Naquele momento, nos primeiros
passos da música, meu coração parecia martelar forte dentro do meu peito. Por que ele estava
assim, descompassado? Envergonhada, já sentindo meu rosto corar, pousei minha cabeça em
seu peito para escondê-lo de Douglas, deixando que seu perfume me invadisse.

Por alguns segundos, continuamos assim, sem falar nada um para o outro, apenas
dançando e sendo deixada dançar. Com o rosto em seu peito, eu pude notar que seu coração
também batia de igual maneira, descompassado, forte. Nervoso? Sim, claramente, ele estava
tão nervoso quanto eu.

Por que estávamos nervosos com aquela dança? O que Douglas estava me
escondendo?... Não, por alguma razão, eu sabia que essa não era a verdadeira pergunta que
deveríamos fazer. Existia algo, algo que não estávamos contando um para o outro. Mas o que
seria, o que escondíamos de nós mesmos?

— Precisamos conversar — disse, por fim, decidida.

Douglas

Eu não sabia responder o que estava sentindo naquele momento enquanto dançava com
Amanda. Ainda procurava, silenciosamente, enquanto a sentia quente em meu peito, as
explicações dentro de minha cabeça, quando ela falou:

— Precisamos conversar.

Então lembrei da razão pela qual estava tão eufórico, talvez tão nervoso: Lucas.

Sim, precisávamos conversar. Animado com a situação, eu havia procrastinado esse


momento, deixando-me levar unicamente pela excitação que tomava conta de meu corpo por
completo, mas, não poderia continuar escondendo de Amanda o que estava acontecendo. Não
poderíamos esconder nada um do outro, essa deveria ser nossa primeira regra. Claro que eu já
havia uma bagagem imensa de fatos não ditos, afinal, nunca lhe contara sobre a paixão platônica
que tive por ela, mesmo depois de termos desenvolvido essa intimidade que tínhamos, que
jamais imaginei ser possível ter com alguém. E, agora, cá estava eu novamente, escondendo o
que sentia por Lucas.

Mas ali, com ela em meus braços, vendo-a de tão perto, por alguma razão, não tinha
vontade de abrir a boca. Não existia em mim nenhuma vontade de falar, apenas queria
aproveitar aqueles segundos com ela.
Medo, talvez? Mas do que eu tinha medo? Por qual razão eu não conseguia dizer que
estava a fim de Lucas? Seria vergonha de admitir que estava interessado em algum cara?
Porque, para ser franco, ainda não havia me acostumado cem por cento com essa ideia de... Sei
lá, beijar o Lucas? Então, era por Lucas, por Amanda ou por nós três que eu permanecia calado?

Amanda também permanecera calada por todo esse tempo, apenas se deixando fitar-me
com aqueles olhos verdes. Aqueles olhos... Eu lembrava do quanto eu gostava daqueles olhos
verdes! E mesmo que estivesse lutando comigo mesmo, com todos esses pensamentos, uma
coisa, porém, eu não parava de pensar: como ela estava absurdamente linda essa noite!

Esse foi o último pensamento que aparentemente fazia sentido em minha cabeça, antes
de tudo virar uma confusão borrada de lembranças e sentimentos.

— Tem alguma a ver com o Lucas, não tem? — perguntou Amanda, devagar, como se
percebesse que eu precisava de um empurrão.

Assenti, mordendo o canto inferior de minha boca.

— Há alguns dias... — comecei a falar, sem ter ideia do que viria depois. — Eu acho,
sei lá... ou eu achava que... mas, estou confuso! — terminei de falar, esperando que minhas
palavras houvessem feito algum sentido.

Apertando seu abraço em meu corpo, Amanda sussurrou em meu ouvido:

— Pode me contar, também há algo que preciso te contar — e voltou a fitar o meu rosto.

Eu comecei a sentir todos os músculos do meu corpo se tornarem rígidos de tensão, meu
coração parecia que ia pular boca a fora, enquanto minha língua já admitia que eu passaria
milênios a gaguejar. Mas eu precisava contar! — pensava feito um louco, sentindo a ansiedade
aumentar a cada momento que olhava para Amanda, tão perto, tão linda — Eu precisava contar
tudo! Precisava contar de como quase o beijei na noite anterior e como ele parecia querer a
mesma coisa que eu... precisava contar de como o queria e como estava com medo daquela
nova experiência... precisava contar que ela estava absurdamente linda esta noite, e como isso
estava me deixando confuso... precisava contar da paixão platônica que nutri por ela tempos
atrás... precisava contar que talvez nunca a tivesse esquecido... eu precisava contar... eu
precisava... precisava...

Então, sabendo o que precisava fazer, apertei seu corpo contra o meu com um abraço e
a beijei.

Não sabia o que esperar daquela ação, nem mesmo sabia o que estava pensando,
nenhuma consequência me viera à cabeça, nada, nada. Apenas fiz... E Amanda apenas retribuiu.
Por um tempo do qual me foge por completo. Beijamo-nos ali, de forma tão intensa que tudo
mais, que não fossem os nossos lábios, fugia de nós.

— O que estamos fazendo? — perguntou Amanda, entre beijos.

— Não sei, mas não quero parar. Você quer?


Balançando a cabeça em resposta, continuamos por mais algum tempo nos beijando
daquela forma, até que, lentamente, Amanda foi diminuindo seu ritmo, passando a me afastar
um pouco com suas pequenas mãos. Ficamos ali, parados, enquanto o mundo dançava à nossa
volta, apenas olhando um ao outro na luz fraca de néon.

— Que bom que finalmente vocês se entenderam... — disse uma voz rouca atrás de nós.
Com sobressalto, viramos nosso corpo rapidamente. Lá, no canto escuro, escorado na parede,
Lucas estava parado com os braços cruzados olhando para nós dois. — Hum... Olá!
Capítulo III — A dança
Lucas

Eu já conseguia ouvir a música no momento em que dobramos a esquina e toda aquela


batida parecia o final do cortejo, o anuncio de que meu fim chegara. Nervoso, ainda pensei
milhares de vezes em desistir de entrar, em fugir, em me esconder embaixo da minha cama e
não aparecer mais na vida até o momento do arrebatamento. Amanda e Douglas me entenderiam
— claro, logo depois me matariam. Eu aceitava meu destino, aceitava tudo o que fizessem
contra mim — mas recusava, veementemente, continuar com esse imenso e pesado Pássaro
Azul em meu peito que queria sair.
Depois de uma demora sobre-humana para dar o ingresso — Nat levara apenas dez
segundos para tal feito —, lá estávamos nós, imersos em luzes néon e fumaça de gelo seco que
se espalhavam pelo salão inteiro. Todos dançavam freneticamente com a música animada que
imperava no lugar.
— Onde vai encontrar com os dois? — perguntou Nat, conferindo sobre os ombros todas
as pessoas, como se quisesse procurá-los também, mas alguma coisa me dizia que, na verdade,
ela estava apenas procurando uma garota para flertar.
— Não sei. Eles não respondem as mensagens que mando.
Era verdade, já fazia alguns minutos desde que os dois haviam me dado alguma notícia.
Essa abstinência de palavras mais me fazia temer e tremer, apesar do tempo que me dava para
decisão. A quem eu iria escolher?
Mais uma vez a imagem dos dois inundou minha alma. O toque de Amanda... o cheiro
de Douglas... a dança dos dois... Sim! Aqueles dois, a cada momento em que ponderava, mais
certeza eu tinha de que nunca, nem em um milhão de anos, eu poderia escolher um dos dois.
Jamais escolheria — e essa seria minha escolha.
Sorumbático, andei de um lado para o outro procurando-os. Foi quando comecei a
pensar em um plano: encontraria os dois e pegaria tudo o que me restava de força e coragem
para deixar que as palavras, essas que tanto havia reprimido, sangrassem para fora de mim.
Faria com que entendessem o meu sentimento, a paixão que sentia por cada um deles — pelos
dois, não por apenas um —, e que, exatamente por isso, não poderia escolher. Se isso significava
que ficaria sozinho, aceitaria de bom grado a solidão, sabendo que havia feito a coisa certa, que
não os teria machucado, não os teria enganado.
Ainda estava imerso em meus pensamentos, quando senti um toque me retirar do transe.
Ao retornar à festa, Natália apontou para um local escondido, depois do bar, onde pude ver um
casal que dançava. Dessa vez, a música agitada havia sido trocada por uma mais calma — um
blues, talvez —, e duas pessoas dançavam apaixonadamente ao longe, apenas compenetradas
uma na outra. Era inteiramente desnecessário que eu olhasse mais de uma vez para reconhecê-
los, afinal, essa cena que tanto amava havia acontecido várias vezes diante de meus olhos. O
casal não era ninguém mais do que meus dois melhores amigos e, consequentemente, as duas
pessoas por quem estava apaixonado: Douglas e Amanda.
— Fique aqui — disse para Natalia, sentindo minhas mãos tremerem e a respiração ficar
presa em meu peito. — Vou falar com eles.
Sentindo o mundo em minhas costas, caminhei lentamente até aquelas duas pessoas.
Amanda e Douglas dançavam lentamente ao som do Blues, como se um laço romântico os
prendesse e não os deixasse ficar longe um do outro. Olhar para tal cena me fez perder o fôlego
e a vontade de ir falar com ambos. Não era medo que se apoderava de mim, mas devoção. Os
dois... ali, juntinhos, perto de mim... Sabia que depois do que falaria, momentos como esse
deixariam de acontecer por completo. O palco — ou o altar em que eu os colocava — ficaria
vazio, sem a menor sombra deles... Por essa razão, não os interrompi. Escorei-me em uma
coluna e os deixei continuar dançando garbosamente, com os olhos devotos, sedentos.
Foi quando aconteceu: Amanda e Douglas se beijaram — e não fizeram isso de uma
forma comum ou amigável. Não. Foi intenso, magnético e apaixonado.
Naquela dança, no encontro dos lábios, lá estava aquela paixão que haviam me
confidenciado, ardente feito uma intensa flama.
Um misto de emoções tomou conta de mim. Primeiro, o calor voraz do ciúme acendeu
em meu peito e se espalhou para todos os lugares de meu corpo — afinal, eles estavam se
beijando, sem mim! —, mas esse sentimento vil logo deu espaço para o frio da ansiedade que
se fincou fortemente em meu estômago. O que resultou dessa mistura foi um grotesco
emaranhado, quente e frio, ciúme e ansiedade, inteiramente confuso e demasiadamente insano!
Sim, insano, por certo, porque, lá no fundo desse turbilhão, ainda parecia existir uma pequena
semente, um germe suicida. Por alguma razão, no meio de toda a confusão daquela fatídica
ópera, existia em mim uma pitada de esperança. Pequena, fraca, tênue... mas de fato, existia.
— Que bom que finalmente vocês se entenderam — falei, por fim, quando pararam de
se beijar após um longo tempo. Minha voz saiu mais gutural e rouca do que pretendia. Lívidos,
ambos viraram para me fitar, como se minha imagem fosse um mau augúrio ouvido numa viela
soturna. Ainda acanhado, prossegui, sem saber ao certo o que faria depois. — Hum... olá!
Afastaram-se, os dois, de forma tão veloz, que mais pareciam ter sido atingidos por uma
descarga elétrica descomunal. Ainda lívidos, Amanda e Douglas me encaravam como se não
acreditassem no que acontecia diante deles. Será que a incredulidade que pintava seus olhos era
apenas sobre eu tê-los flagrado se beijando, ou o próprio ato? Bom, a resposta a essa questão,
se alguém sabia por exato, ficou velada num silêncio sufocante. Por demorados segundos
ninguém falou, deixando que o som da música retumbasse imperante sobre nós.
— Lucas, eu... nós... — Amanda começou a falar, insegura, mas antes que completasse,
adiantei-me afobado.
— Não, não, calma, não falem nada agora! — disse com a voz titubeante. Com a mão
estendida, pude notar que tremia um pouco devido ao nervosismo que sentia — Nós precisamos
conversar. Nós três. Vocês... — parei novamente, sem ter ideia do que falaria. Por muito tempo
havia ficado calado, mantendo o segredo daqueles sentimentos. Agora, no entanto, era chegada
a hora, e qualquer plano que formulara, fugia-me da minha cabeça. — Eu sei o que disse para
vocês, disse que conversaríamos. Então, lá vai... — imenso suspiro, e: — E-e-eu estou
apaixonado... por vocês... dois.
A palavra “dois” saiu mais fraca que o restante, como o fim de um pequeno eco no
escuro. Douglas e Amanda arregalaram os olhos, ficando ainda mais assustados, e rapidamente
entreolharam-se, antes de retornar o olhar para mim. O traço de seus semblantes facilmente
poderia ser confundido com o daqueles que haviam acabado de receber um soco no estômago.
— Como assim? — Perguntou Amanda, ainda dividindo seu olhar comigo e com
Douglas, que mantinha o maxilar rijo, inteiramente tenso. — Por nós dois... mas, mais cedo
você disse...
— Eu sei o que eu disse! Queria que cada um de vocês dois pudessem sentir meu coração
no momento em que me confessaram o que sentiam por mim — outra vez, ambos se
entreolharam, surpresos. — Não menti antes e não irei mentir agora. Sinto muito, mas eu estou
apaixonado por vocês dois. Não por um nem pelo outro. Pelos dois.
Surpresos com a informação, mais um silêncio brotou, até que Amanda, tomando a
frente, retirando nervosamente uma mexa de cabelos de seu rosto, perguntou:
— Quando você pretendia nos contar?
— Nunca — respondi sinceramente. — Até hoje, eu nunca pretendia contar, porque
nunca achei que vocês sentissem o mesmo. Então, quando vocês falaram que estavam sentindo
algo por mim, eu tive que fazer alguma coisa, mas mesmo vindo para a festa, ainda não sabia o
que faria...
— Sem saber o que faria? Caralho, você é um babaca, Lucas!
Douglas, que até então permanecera calado de espanto, xingou a meia voz e saiu
andando na minha direção, esbarrando fortemente contra mim. Tamanha fora a agressividade,
que Amanda correu até onde eu estava, segurando minha mão. Novamente, o calor tomou meu
corpo e me queimou as faces.
— Babaca?! Babaca?! — falei exasperado. — Babaca por falar a verdade ou babaca
para assumir o que você não assume? — Douglas parou, virando-se para me fuzilar com os
olhos amendoados, tomando para si o insulto. — Se eu estou sendo o babaca, por que vocês
estavam se beijando?
Fazendo a menção de falar, Douglas abriu a boca, mas parou antes que qualquer palavra
saísse de seus lábios. Quem tomou a frente da ópera, dessa vez, foi Amanda.
— O que você está querendo insinuar? — perguntou sem olhar para mim. Mesmo na
penumbra, eu conseguia ver seu rosto inteiramente rubro, apesar de não saber se era de raiva
ou vergonha.
— Isso importa, Amanda?! Ele é o otário da história! — vociferou Douglas ainda com
o cenho franzido. — Ele que nos enganou completamente! É isso que ele está tentando insinuar,
que fomos idiotas do início ao fim!
Senti as palavras de Douglas penetrarem em mim como estacas afiadas. De fato, eu
merecia o tom de agressividade recebido, merecia mesmo um soco, caso fosse seu desejo me
dar. Poderia ser acusado de tudo: indeciso ou até mesmo libertino, mas não de mentiroso. Não
agora, que finalmente a verdade transbordava de meu espírito, fazendo-me confessar tudo que
desejava havia eras!
— Eu nunca os enganei! — gritei em resposta, mesmo sabendo que não tinha direito de
fazer isso. — Nunca! Nunca falei que um era mais importante do que outro ou mesmo que iria
escolher um dos dois, porque não posso fazer isso, nem em mil anos eu escolheria um dos dois!
— as palavras saíam atropeladas por meus dentes, se a música não estivesse alta, eu tinha
absoluta certeza de que todos na festa poderiam ouvir minha respiração arfante. Mas o fato era
que precisava ficar calmo. Tinha de conter qualquer ímpeto agressivo, calar meu orgulho e
aceitar. Mas, ao mesmo tempo, eu também não poderia simplesmente não falar nada. Douglas
e Amanda estavam ali, se beijando de forma apaixonada e intensa! Era realmente eu quem os
estava enganando naquela história?
— Então, você quer que nós acreditemos que você gosta de nós dois, é isso?
Ao ouvir o tom cético de Douglas, Amanda levantou seu rosto para mim e nossos olhares
se encontraram. Seus olhos verdes, esses que eu tanto amava, que mais parecia um límpido lago
calmo, não possuía nem o ínfimo lampejo de hostilidade. Na verdade, se eu pudesse traduzir
seu olhar, arriscaria que não transparecia nada mais do que compreensão. Era isso!
Compreensão. Amanda me compreendia?
— É possível? — perguntou ela, ainda me fitando com aqueles imensos olhos. Seu tom
de voz era tão compenetrado, que eu mal sabia se ela questionava a mim ou a si. — É possível
gostar de duas pessoas ao mesmo tempo?
Afagando seus ombros com delicadeza, eu dividia meus olhares entre ela e Douglas,
que agora, parecia mais calmo — ou pelo menos, a impressão de que a qualquer momento
cortaria minha cabeça fora havia sumido de seus olhos. Assentindo, com um sorriso fraco que
se formou em minha boca, falei:
— Eu sei da história de vocês. Por ambos... Douglas estava tão louco por você que, no
início, se aproximou de mim para ter chance de conversar com você — temendo ter dito um
segredo que não era meu, olhei para ele que continuava impassível, aparentemente não se
importando com o que eu havia falado. Dessa vez, encarando Amanda, completei. — Você
também admitiu achar que sentia algo por ele. Lembra? Você me disse essa manhã, antes de...
— longo suspiro. — Tenho certeza que isso de vocês não sumiu, se tivesse, vocês teriam se
beijado daquela forma? E se não sumiu e se vocês gostam de mim, então, não sou eu que estou
engando, não é?
Aparentemente derrotado, Douglas relaxou os ombros e veio em nossa direção,
escorando-se na coluna em que minutos atrás eu estivera. Amanda, por sua vez, também
permanecia num imaculado silêncio, imersa no próprio mundo. Eu daria tudo para saber o que
aqueles dois estavam pensando naquele momento. Qual teria sido o peso das minhas palavras
no peito de cada um?
— E o que sugere que façamos? — perguntou Douglas, atento, sem sarcasmo no tom
de voz.
Lancei um demorado olhar para ele, vendo-o, novamente, com aquela devoção de um
amante de arte. A beleza de seus traços talhados com tento era tamanha, que, não obstante a
austeridade com que me fitava, meu coração não deixou de retumbar. Tal êxtase não era distinto
quando me perdia na beleza de Amanda, seu olhar e seu afago eram a canção cujo som incitava
meu espírito a dançar. Por isso, como poderia perdê-los? Assim, catando os cacos da coragem
— e um pouco de cara-de-pau — que ainda residia em mim, falei, singelamente:
— Deveríamos, talvez, ficar juntos... nós três.

Amanda

Precisei de um tempo imenso para compreender o que Lucas havia sugerido. Ainda
estava fora de mim com tudo aquilo que acontecia entre nós três. Atordoada, como se esperaria
de alguém que despencara vários andares direto ao chão e sobrevivera, mas que, ao vislumbrar
o borrão de tudo, finalmente tinha encontrado uma resposta para a vida — aquela epifania pré-
morte de que muitos falam. Essa era a sensação que me dominava naquele momento. Uma parte
de mim queria berrar, estapear e chutar aqueles dois. Nunca mais cheguem perto de mim! Nunca
mais! — diria, de forma categórica. Loucos! Pervertidos! Depois, sairia de lá de cabeça erguida,
orgulhosa... O negócio é que, a outra parte, a metade dessa quadrada e moralista, desejava de
forma brutal aceitar a proposta que há muito habitava em meu desejo, mas que não tinha
percebido até então. Sim, essa era a solução, ficarmos juntos: nós três. Porém, mesmo sabendo
qual pedaço de mim era mais forte, qual tinha as convicções — e seduções — avassaladoras, o
resultado da briga foi o meu silêncio. Não era capaz de falar nem uma única palavra: não sabia
se tinha coragem de assumir a insanidade que se passava em meu coração. O que aconteceria
para frente era novamente um borrão e mais despencadas.
Talvez pela fraqueza de ambas as partes, não por acaso, procurei forças em Douglas,
quem mais parecera se irar com a situação. Queria que alguém me retirasse daquela maluquice
toda! Todavia, no instante em que nossos olhos se encontraram, percebi que no lugar da fúria
ou sensatez que precisava e esperava encontrar, dei com um olhar profundo, ponderador.
Mesmo no escuro, eu conseguia ver sua pupila inteiramente dilatada, quase transformando o
castanho em preto.
Foi quando percebi: ninguém retrucaria.
— Talvez Lucas esteja certo — disse Douglas, por fim — Eu não sei o que sinto por
vocês dois, mas há algo sim... — devagar, ele se aproximou, tomando minha mão na sua — Eu
nunca te falei, mas já fui sim apaixonado por você, Amanda. Nunca falei porque, sei lá, sou
mole! Mas também... — ele parou, olhando longamente para Lucas, que parecia estar atento a
nós dois, como nunca estivera antes — Eu sinto alguma coisa por aquele cabeção. Algo que
nunca senti por cara nenhum... é confuso, admito... você... você não se sente assim?
— Não sei... é diferente.
— E por que não descobrimos juntos? — dessa vez, Lucas tomou a frente e se
aproximou de nós dois, tão perto que eu era capaz de sentir o seu perfume no ar.
— Porque isso é loucura demais! — foi somente o que fui capaz de falar. Meio fraca,
meio abobada, mas completamente sem convicção.
Suas mãos vieram ao meu rosto, acariciando-me de leve com um toque quente que me
fez arrepiar a pele.
— E não somos jovens o suficiente para provar da loucura?
Como acontecera com Douglas, uma atração magnética nos envolveu feito um lento
laço que se apertava ao passar dos segundos... cada vez mais próximo, numa suave dança. A
respiração quente em minha bochecha... os centímetros diminuindo... Por fim, o beijo, e
novamente fui tomada por aquele prazer.
Fechei os olhos e me deixei levar. Sua boca era macia, não tanto como a de Douglas,
mas, ainda assim, macia. Com gosto de hortelã, seus lábios continuaram a dançar enquanto seus
dedos se enrolavam em meus cabelos. Era como experimentar da força e da brandura, num só
momento, assim era o beijo de Lucas. Antes que terminasse, porém, comecei a sentir o toque
da barba de Douglas em minha nuca, seus lábios escapavam até minhas orelhas. Singelamente,
e de forma quase sincronizada, os passos foram me levando para outra boca, enquanto o outro
pajem tomava seu novo lugar.
Era óbvio que o beijo não mudara drasticamente da primeira vez, contudo, ali, com
Lucas participando daquela quente e atípica coreografia, o peso de cada passo parecia
completamente diferente. Mais intenso, mais cheio de emoção... O palco de nós três era enorme,
e tratamos de explorar cada centímetro. 1, 2, 3... 1, 2, 3... Eu e Lucas... Douglas e eu... Lucas e
Douglas... eu, Douglas, Lucas... Éramos, os três, apenas um.
Diminuindo o ritmo, nossos lábios foram parando lentamente, com cuidado e ainda
carinho. Repousando, Lucas e Douglas, por fim, um em cada lado de meu rosto.
— Viu? — sussurrou Lucas, bem em meu ouvido. — Não parece tão louco assim,
parece?
Balancei a cabeça, fazendo cafuné nos cabelos dos dois. Apesar de nossas bocas
haverem acabado de dançar, o restante de nosso corpo, porém, continuava a bambear
vagarosamente para os lados, em silêncio, aproveitando aquele momento apenas.
A plenitude dos passos que demos foi tamanha, que nos descuidamos por completo!
Esquecemos completamente onde estávamos! Por essa razão, só nos demos conta quando já era
tarde demais.
— Um fica a três?! — berrou uma voz feminina atrás de nós. — Menina, eu tenho que
falar: parece coisa minha!
Assustados, rapidamente nos soltamos e viramos para ver a figura de uma garota magra,
pequena — embora ainda mais alta do que eu — de cabelos curtos e desfiados, vestindo um
vestido de seda azul com detalhe de renda preto, parado olhando para nós com feições
divertidas.
Era Natasha!
Natasha era minha amiga desde o início da adolescência. Uma figura completamente
diferente do que você conhece por aí! Absurdamente festiva, parecia ser onipresente em
comemorações, sempre divertia o mais triste com dor de cotovelo, envolvia o mais revoltado
com a vida, ou qualquer pessoa de quem ela se aproximava... A essência mágica de Natasha
conseguia animar até defunto! Não se assustava facilmente com o que via, e talvez por estar
sempre aproveitando a vida, não perdia seu tempo para julgar ninguém. Apesar disso, de não
ser nenhuma fresca, como muitas das meninas da nossa escola, meu coração ainda martelou
com um grande barulho em meu peito, enquanto o corpo tremeu da cabeça aos pés.

Não importava que Natasha fosse minha amiga, no momento em que ela apareceu,
desviei meus olhos sem conseguir fitá-la.

— Ah, Natasha, é você! — bradou Lucas dando um suspiro de alívio. — Você nos deu
um susto!

Olhei para Lucas ainda num misto de confusão e espanto. Por que estava tão calmo?
Não importava quem fosse, ele não deveria estar aliviado por alguém nos ter visto!

— Ei, não precisavam ficar encabulados, não vou contar a ninguém! O que passa por
Natasha, fica com a Natasha! Não é, Amanda? — disse ela num tom imperativo, parecendo se
divertir com a cena que via, mas vendo que eu não iria responder, ela continuou, após um
pigarro: — Mas talvez fosse melhor ser mais cuidadosos: poderiam ter sido vistos, sabia?!
De repente, como se eu houvesse acabado de acordar de um sonho, lembrei que
estávamos na festa e mais uma vez o pavor dominou meu corpo, fazendo-o tremer ainda mais.
Olhei para todos os lugares assustada, temendo que alguém mais nos tivesse visto. Lucas se
calou derrotado, limitando-se apenas a lançar um sorriso acanhado no rosto para Natasha,
inteiramente corado de vergonha.

— É verdade... — falou ele por fim, conferindo por trás dos ombros outro possível
bisbilhoteiro. — E é exatamente por isso que vamos para um lugar mais reservado! — Lucas
pegou a minha mão e piscou o olho para Douglas. — Não é?

— Claro!

Então, notando meu silêncio, os dois me lançaram um olhar que fez meu coração
novamente rodopiar em meu peito.
— Vamos? — perguntei insegura.

A insegurança voou das palavras e o efeito dela pairou sobre nós. Lucas e Douglas me
olharam com ar surpreso, sem saber o que aconteceria a seguir. Vamos? — repeti mentalmente.
O choque de ter sido pega retirou-me daquele delírio, e deu chance para que a razão voltasse a
berrar em meus ouvidos! Aconselhava-me a correr, sair dali e nunca mais olhar para a cara de
nenhum dos dois. Por quê? Por quê? Porque eu estava assustada com a proposta, mais ainda
com o beijo — o melhor que havia experimentado em minha vida. Mas a ideia de nunca mais
ver Lucas, ouvir sua voz rouca e aveludada ou suas trapalhadas, assim como Douglas, com
aquele sorriso de boca vermelha e suas palavras gaguejantes quando alguma coisa o deixava
nervoso, foi suficiente para me calar a boca dessa voz absurdamente chata e mal-amada.

— Não queremos que você não faça nada que a deixe desconfortável, ou que não
queira... — para meu espanto, quem quebrou o silêncio constrangedor que se instalara, foi
Douglas, apertando fortemente minha mão.

Rapidamente, Natasha começou a cutucar a orelha por trás dos dois. Sorrindo, lembrei
que esse era o nosso sinal de resgate que havíamos estabelecido algum tempo atrás. Balancei a
cabeça em negação. Não tinha o menor desejo de ser resgatada de onde estava. Como se
estivesse orgulhosa de minha decisão, Natasha caiu de braços abertos nos ombros dos meninos.

— Ela vai sim! — anunciou animada, talvez meio bêbada. — Claro que vai! Mas tomem
conta dela, senão eu quebro a cara dos dois, está bem?! Eu não estou brincando, conheço um
pessoal barra pesada! — e se desvinculando dos dois, ela veio ao meu ouvido e sussurrou: —
Aproveite! Se tiver que se arrepender de alguma coisa, faça isso amanhã, mas hoje, minha
amiga, aproveite!

E assim, com suas últimas palavras, Natasha me deu o último empurrãozinho que faltava
para os braços dos dois. Não, dessa vez não estou sendo metafórica! Natasha realmente me dera
um empurrão que me fez desequilibrar até os braços de Douglas e Lucas.

Não fiquei com raiva, claro, principalmente porque os dois me ergueram e continuaram
a me segurar com aquelas mãos quentes até terem certeza de que eu estava bem equilibrada.
Abri um sorriso envergonhada para eles, que instantaneamente fizeram o mesmo. Se algum mal
aconteceria? Bom, estava disposta a descobrir amanhã, pois hoje eu iria aproveitar. “Aproveite
eternamente dentro das horas de cada dia” — Era o que sempre me dizia Natasha. Nunca havia
entendido, de fato, a verdade daquelas palavras até aquele dia, até estar abraçada com os dois.

— Então, agora vamos, não é?

Escolhi a melhor forma de responder à pergunta de Douglas. Dei um selinho em seus


lábios e logo em seguida fiz o mesmo com Lucas. Estava selado.

— É isso aí garota! Se você não tivesse ido, eu iria! — comemorou Natasha. — Carpe
Diem, meus amores.

Um tchauzinho foi a última coisa que vi de Natasha, porque no segundo seguinte,


avançamos festa adentro.

Douglas

— Falem mais baixo! — berrou Amanda. — Ou vão nos ouvir!

— Você acabou de gritar — disse Lucas enquanto beijava sua nuca. — E outra, você
acha que alguém nos ouviria nessa barulheira toda? Eu acho que não, e você Doug?

— Hã? Desculpa, não ouvi o que você disse. Não dá pra ouvir nada.

Ela riu, e continuamos a nos beijar. Finalmente havíamos encontrado um lugar vazio,
depois de uma procura que tenho certeza ter demorado aproximadamente a eternidade. Por isso
estávamos indo sedentos à fonte, sem perder o precioso — e escasso — tempo que nos restava.

Amanda estava no meio de nós dois e existia uma tensão excitante entre nós três, que,
para falar a verdade, era o que deixava tudo ainda melhor! O perigo, a sensação de proibido
tudo servia como um maravilhoso tempero de toda a experiência... Até aquele momento,
embora tivéssemos o costume de fazer em dupla, pela primeira vez experimentávamos dançar
a três, continuando a nos beijar sempre que podíamos — parávamos apenas quando outros
casais apareciam de surpresa, com certeza também procurando um lugar mais reservado com o
mesmo objetivo que nós. Ao ver que já estava ocupado, logo saíam, e novamente ficávamos a
sós, curtindo uns aos outros.

Em algum momento da festa, ela saiu do nosso meio — quase bati minha testa na de
Lucas — e afastou-se um pouco de nós, e para nossa surpresa, começou a dançar a música “In
the dark”, da Dev. Amanda dançava na batida da música, mexia o corpo, ajeitava os cabelos e
dava um sorriso provocante, cheio de malícia. Lucas, ao me olhar, deixou claro que estava tão
impressionado quanto eu. Nunca havíamos visto Mandy dançar daquele jeito. Tão sexy e
sedutor... Mais tarde, Lucas poeticamente descrevera o momento da seguinte forma: Acho que
até poderíamos ouvir o canto das sereias que levaram a vida de inúmeros marinheiros e, ainda
assim, elas não seriam capazes de nos enfeitiçar mais do que o olhar inebriado de luxúria que
Amanda nos lançava.

Novamente trocamos olhares, como em desafio: quem seria o primeiro a ceder à


tentação? Claramente, completamente abobalhado, Lucas, o elo mais fraco, foi o primeiro a se
deixar levar pelos encantos da carne. Deu um passo apressado para perto dela e a pegou pela
cintura, levantou-a, e deu um beijo.

— Ei, palhaço! — gritei, mas não estava com raiva. — É por isso que ela faz o que quer
com a gente! Temos que bancar os difíceis, senão, vamos acabar ficando desvalorizados!

Corri para onde os dois estavam, chegando por trás de Lucas, dando-lhe um beijo na
nuca e uma pequena mordidela em sua orelha. Ele a largou suavemente, reclamando por eu tê-
lo deixado inteiramente arrepiado. Ainda sorrindo, dei realmente um beijo em seus lábios. Se
Lucas estava irritado antes, não pareceu depois que paramos, e, sem tardar, puxei Amanda pela
cintura para beijá-la também.

— Não, não — disse ela dando-me pequenos tapas nos ombros, afastando-me dela. —
Vocês gritaram de novo! Assim vamos acabar sendo descobertos! Estou falando sério!

— Nós também — falou Lucas. — Ninguém vai nos ouvir.

— É, Amanda, relaxa — disse tentando voltar a beijá-la.

Não cedendo, deu-me uma pisada de leve com o salto — mas que ainda doeu um pouco
— e delicadamente afastou-me com ar desconfortável. Desisti e fui fingindo tristeza colocar a
cabeça nos ombros de Lucas, que tinha ido se sentar num sofá de couro preto, segundos antes.

— Amaaandaaaa, olha o que você fez com ele! — Lucas disse com uma voz claramente
sarcástica e bêbada, talvez gritando um pouco mais que o necessário, enquanto acariciava meu
rosto.

— É sério, gente — Amanda ajeitava os cabelos e olhava para o lado, procurando


alguma pessoa que estivesse escondida. — Eu tenho medo que acabem nos descobrindo.

— Mas e se descobrirem?

— É, o que é que tem? — completei.

— O que é que tem? — ela parecia incrédula, como se a resposta à pergunta que fizemos
fosse óbvia. — O QUE É QUE TEM, DOUGLAS?

— Olha aí, você gritando de novo!

Esmurrei levemente o braço de Lucas, que se calou. Amanda se irritava com a mesma
velocidade que se amaciava, no entanto, qualquer investida para cima da fera no momento de
raiva podia ser fatal, e um dos sinais de que Amanda estava nervosa, era aumentar o tom de
voz.
— Não mexe quando ela tá assim — sussurrei para ele. — É um perigo.

Lucas mordeu os lábios censurando um sorriso que parecia querer fugir de sua boca.
Amanda percebeu que estávamos cochichando alguma coisa e franziu o cenho para mim.

— Eu estou bem aqui, Douglas.

— Pois não, amor?

Ela nos fuzilou com o olhar — a coisa parecia estar ficando ainda mais séria. Antes de
voltar a falar, contudo, deu um enorme suspiro procurando se acalmar.

— Garotos, estou falando sério! Vocês podem levar isso com seriedade, por favor?

— Mas estamos falando sério! — retrucou Lucas com sinceridade, ou pelo menos com
um pouco. — Por que você tem tanto medo?

— Ah — começou incerta, novamente ajeitando a mecha de cabelo que voltara ao seu


rosto. — Não parece óbvio? — não respondemos. — Sei lá, de que isso se espalhe e comecem
a falar! Douglas, você sabe... logo amanhã estariam fofocando sobre nós. Gossip Girl veio fazer
estágio de aprendizagem no nosso colégio, vocês sabem disso! Ninguém fofoca melhor do que
as pessoas dessa escola... Sem contar que, se tivéssemos juízo, não estaríamos fazendo isso.

Lucas me olhou afetuosamente, eu ainda estava com a cabeça apoiada sobre seu ombro,
em seguida voltou a olhar Amanda, que permanecia em pé com a cara levemente emburrada.

— Eu não me importo — disse ele por fim. — É a minha vida, não me importo com que
os outros vão dizer. Para falar a verdade, não importa o que você faça ou deixe de fazer, sempre
vão dar um jeito de encontrar um defeito em você e começar a falar sobre ele. Qualquer que
seja, é inevitável. Assim sendo, por que eu deixaria de me satisfazer por eles?

— Tá bom! Tá bom! Você é mais despreocupado com as coisas e vive em outro mundo...
Mas e você Douglas? Praticamente crescemos nesse colégio, os porteiros conhecem nossos
pais.

— Não tem porteiros nessa festa, amor.

— Você me entendeu.

Calei minha boca, esperando ela respirar. Amanda ainda parecia um pouco irritada, não
me arriscaria responder qualquer coisa enquanto estivesse assim. Era o tempo que precisava
para pensar sobre sua pergunta.

E se nos descobrissem?

Passei o dedo indicador sobre minha boca que ainda estava úmida do último beijo que
eu recebera. Entendia o seu medo, sabia que era verdade tudo o que Amanda dizia. Sim, se eu
fosse um pouco mais ligado a essas coisas pop, poderia dizer que a Gossip Girl viera fazer
estágio no Colégio FW, e ainda assim foi reprovada pela inabilidade em espalhar fofocas ao ser
comparada com os outros alunos. Entretanto, o que estávamos tendo era incrível demais para
que parássemos somente por medo. O que existia entre a gente, era o tipo de risco que você
corre por ter mais bônus do que ônus, como uma loteria. Para ser franco, a cada segundo que
se passava com os dois presentes, cada beijo que dávamos ou até mesmo os simples afagos —
como o cafuné de Lucas em meus cabelos —, certificava que eu houvera tirado a sorte grande.

Ajeitei meu corpo no sofá retirando a cabeça dos ombros de Lucas, só para tentar dar a
impressão que estava falando com mais seriedade possível.

— É estranho, não é? — comecei meio incerto com o que diria para ela. — Mas você
não está gostando dessa eletricidade, dessa química? Tipo, eu corro o risco na boa, e quero
continuar, preferia que não acontecesse, mas não me importaria se a Dona Silvana viesse aqui,
sentar do meu lado... Tudo bem, seria constrangedor e provavelmente ela ocuparia boa parte do
sofá, mas não quero perder essa chance! Não foi esse cabeção que falou alguma coisa sobre
vida e bebidas? Ah, sei lá! Então, sim, eu quero continuar sem medo... Eu quero vocês dois.

Amanda encolheu os ombros e baixou a cabeça, sem falar nada. A única coisa que
podíamos ouvir era a música alta e alguns gritinhos animados.

— Você quer parar? Eu não quero que isso te prejudique, então...

— Não, não, eu não quero parar — ela se apressou em dizer, dando um grande suspiro,
e veio se sentar conosco deixando claro que havia sido derrotada. — Também estou gostando,
até mais do que eu esperava! Afinal, estou com vocês dois, como não gostaria? Apenas... Ah!
sabe... vocês estão fazendo barulho demais!

— Pois é, você está certa, Mandy! Tipo, se você só estivesse com ele, não estaria
gostando tanto assim, mas comigo é diferente... — gozou Lucas sarcasticamente. — E ela tem
razão Douglas, você estava fazendo barulho demais — continuando com a gozação, ele
esmurrou de leve meu braço.

— Só eu que estava, né? — retribuí o soco, subindo o tom de voz algumas oitavas, sem
perceber.

Amanda novamente cerrou os olhos e nos mirou ameaçadoramente. Paramos no mesmo


instante.

— Desculpa — falou Lucas, passando a mão em seus cabelos. — Nós vamos fazer mais
silêncio, prometo.

— Isso mesmo — concordei colocando a cabeça no colo dela.

Ela abriu um sorriso mais descontraído, e qualquer impressão de que Amanda estivesse
irritada se foi com ele. Lucas deu um beijo em sua bochecha e apoiou sua cabeça no ombro de
Amanda, que começou a fazer cafuné em nós dois.

Apesar de parecer mais relaxada, Amanda fitava o chão com um olhar preocupado,
deixando claro que ela havia abandonado seu corpo e vagueava por só Deus sabia onde.
Contudo, não demorou muito para que ela balançasse a cabeça e saísse de seu transe, lançando
um olhar mais caloroso e menos preocupado. Ela parou de fazer cafuné e se levantou de repente.

— Vamos — disse com um sorriso, maravilhoso na boca, que me fez perguntar como
uma garota poderia ser tão linda. — Vamos aproveitar sem arrependimentos o hoje.

Lucas e eu trocamos olhares maliciosos nos pondo de pé em um segundo — É pra já!


— dissemos quase que em coro.

— E em silêncio — completou ela com um sorriso nos lábios.

Assentimos, colocando o dedo indicador sobre a boca, fazendo um “psiiu”, antes de


voltarmos a cair nos amassos.

Sabe, agora, repassando bem cada detalhe naquela noite, a dúvida excessiva, o olhar
preocupado, o cuidado para ninguém nos ver... Sei lá! Talvez, se Lucas e eu fôssemos mais
espertos, ou então houvéssemos pensado um pouco mais adiante, teríamos pegado todos esses
comportamentos como o aviso de um iminente problema, não teríamos nos deixado levar. Mas,
não. Estávamos tão absortos em nós mesmos, no que acontecia hoje, que definitivamente
ignoramos o amanhã.

Ingenuamente ignoramos o amanhã e arcamos com as consequências.


Capítulo IV — O Luto

Amanda

Domingo, 13:30, foi quando o telefone tocou e foi ignorado pela terceira vez. O nome
de Lucas aparecia bem no meio da tela de meu celular, junto com outras duas ligações — uma
dele e uma de Douglas. Precisei de uma grande força, e um enorme peso no coração, para
conseguir ignorar todas.
Por quê? Porque a experiência da noite passada havia sido a pior de toda a minha vida
— e das vidas passadas, se é que elas realmente existem. Desconfortável, fui tratada como
objeto sexual por dois homens, trogloditas, idiotas, machistas, com mau-hálito e que beijavam
de uma forma tão ruim que me fazia lembrar tentáculos de polvos, dentes pontiagudos e alguma
coisa morta. Estava ignorando as ligações por absoluta repulsa e vaidade, porque eu sabia que
merecia muito mais do que aquilo. Qualquer um mereceria!
Era o que queria poder dizer, sem que fosse uma completa mentira.
Não, a noite anterior estava muito longe de ter sido péssima. Aqueles dois... Nós três!
Eu não havia sido tratada como objeto, aliás, nunca os dois haviam me tratado assim e na noite
anterior não foi diferente. Eles me trataram com um carinho aveludado no toque quente de suas
mãos, transmitiam segurança em cada abraço. Ali, entre beijos — os melhores que já havia
recebido —, existia uma cumplicidade mútua, a condução de uma dança harmônica que durou
a noite inteira, até que precisei ir e todos nós partimos.
— Poderíamos continuar nossa dança amanhã! — falou Lucas com um sorriso largo e
o rosto levemente avermelhado com a bebida. — Na minha casa, estarei completamente
sozinho. O que me dizem?
Douglas aceitou sem nenhuma hesitação, nem eu precisara de muitos segundos
pensando no que responder. Deixada levar pela noite maravilhosa, aceitaria ir para Júpiter, se
estivesse na companhia dos dois. Foi, porém, no silêncio do táxi, na volta para casa, que a
umidade de meus lábios, que havia me levado para o céu, pesava em mim como um chumbo
que lentamente me arrastava para o centro da terra.
Meu Deus, o que eu havia feito?! Lucas e Douglas eram meus amigos, e pior: eram dois!
Onde eu estava com a cabeça? O que iriam pensar de mim caso descobrissem? Mal consegui
me olhar no espelho aquela noite, enquanto tirava a maquiagem e todos os acessórios da festa
com desespero, como se estivesse tentando arrancar minhas próprias lembranças daquela noite.
O toque, o abraço, o beijo, a dança...
Absurdamente envergonhada, joguei-me na cama e fiquei me revirando no escuro, até
o momento em que apaguei. Desde que acordei, passei a ignorar todas as mensagens vindas
daqueles dos dois. O que mais eu faria? Não tinha forças para contar a verdade para Lucas e
Douglas: de que havia amado toda a noite anterior, que nunca, em toda a minha vida, havia me
sentido tão bem, tão livre, tão eu! E que, justamente por isso, não deveríamos continuar com
tudo isso.
Estava sendo duplamente covarde: por não conseguir admitir o quão maravilhoso fora
a noite passada, e principalmente, por estar fugindo para longe disso.
Mas quem estaria bem com toda essa situação? Esse negócio de estar apaixonada por
duas pessoas, nunca daria certo! Mesmo se continuássemos, não iríamos chegar muito longe:
nunca poderíamos ter um namoro a sério, nem poderíamos sair por aí e agir feito casal. Não
poderíamos ficar abraçadinhos, nos beijar em público, nem sequer apresentar para os nossos
amigos ou familiares! E o que minha mãe pensaria sobre isso? Como é que ela se sentiria? Eu
a conhecia bem o suficiente para saber que ela desaprovaria. Aliás, sejamos francos, quem não
desaprovaria? Iriam nos taxar de pervertidos, antes mesmo de saber que sentíamos algo a mais
uns pelos outros.

Era só questão de tempo para algo acontecer, e sairíamos os três machucados dessa
loucura que inventamos. Por alguma razão, sabia que eu seria a única que teria forças para fazer
o necessário para ficarmos bem — mesmo que esse tal “bem”, estivesse em uma trilha bem
distante de onde estávamos agora.

...

— Você está tão calada, querida... aconteceu alguma coisa?

Foi a voz da minha mãe que quebrou a sequência de pensamentos repetitivos em minha
mente.

Eram seis e meia da manhã, e o sol já imperava sobre o céu azul com poucas nuvens,
banhando todos os prédios e avenidas do centro da cidade de Fortaleza.

Estávamos dentro do carro, indo para o F. W, ao som de alguma música de MPB — que
não me ajudou em nada, pois me fazia lembrar do Lucas e do que teria que fazer horas depois.
Ela, que depois da pergunta, continuava a me encarar com aquele olhar pacientemente
questionador — tenho certeza que os psicólogos devem aprender esse olhar na faculdade, para
lidar com pacientes calados —, deixando claro que sabia que tinha algo de errado acontecendo
comigo e que, em algum momento da vida, eu teria que falar.

— Eu não estou calada, Dra. Marília. — tentei mentir, mesmo sabendo que seria em
vão. — Só estou cansada... um pouco de dor de cabeça, sabe?

Ela não acreditou e continuou a me fitar com seus olhinhos castanhos — que eram bem
penetrantes, se você quer saber — naquele rosto magro e afilado que possuía, sendo iluminado
pela luz dourada do sol que penetrava pela janela aberta do carro.

— Tem certeza que é só isso? — perguntou, num tom preocupado. — Podemos voltar
para casa, se você preferir.

Balancei a cabeça sem ânimo algum, ao mesmo tempo em que — para minha sorte —
o semáforo abriu, fazendo com que ela voltasse sua atenção para a movimentação à sua frente.

Não que minha mãe houvesse desistido de saber o que estava acontecendo comigo, não
senhor! O que aconteceu no carro era apenas um descanso, antes de novas perguntas
preocupadas mais tarde.
Essa preocupação aparentemente excessiva de minha mãe não era algo que me
incomodava, ou achava esquisita, já que sempre fomos muito apegadas uma à outra. Depois da
morte do meu pai, num acidente de carro, há três anos, esse laço se fortaleceu ainda mais.

Passamos a conversar sobre tudo o que acontecia em nossas vidas, íamos desde garotos
até seus problemas no consultório. Nossa ligação não enfraqueceu mesmo quando meu Tio
Roberto e seu filho Guilherme vieram morar conosco alguns meses depois da morte de papai,
continuávamos agindo sempre como se fôssemos as únicas pessoas com quem podíamos contar
de verdade. Então, não era nenhuma surpresa que ela houvesse percebido meu desânimo logo
de cara — mas, pela primeira vez, não poderia falar a verdade para termos mais uma daquelas
longas conversas que tínhamos, poderia? Precisava do silêncio para me proteger de sua
reprovação. Por isso, continuei a colocar a culpa na noite mal dormida e nas dores de cabeça
pelo restante do caminho até a escola.

Os corredores já começavam a lotar, mas, por sorte, não havia nem sinal dos meninos
— eles sempre chegavam tarde, faltando poucos minutos para o começo da aula. Aproveitando
o tempo que ganhei, escolhi uma carteira ao lado de outras pessoas, onde eu não costumava
sentar, para não dar a mínima chance de nenhum dos dois se aproximar de mim. Já estava
resolvendo meus exercícios, porém, quando uma conversa desviou completamente minha
atenção de Bhaskara.

— Que bizarro esse lance entre os três! — dizia um garoto cujo nome eu não lembrava
para uma amiga que estava ao seu lado. — Como é que isso pode acontecer?!

— Do que vocês estão falando? — perguntou um outro cara que estava próximo,
intrometendo-se na roda de conversa.

— Disso daqui, olha só! — o primeiro passou o celular para o segundo e esperou
atentamente até ver a cara de surpresa do amigo, para continuar. — Bizarro, né? Como é que
três pessoas resolvem ficar juntas, casar, essas coisas? Velho, isso é muito bizarro!

A garota que há pouco estava com o celular na mão, balançava a cabeça, fazendo seu
cabelo que estava arramado em um rabo de cavalo, balançar de um lado para o outro bem mais
que o necessário.

— Bizarro nada! — disse ela, seca e inteiramente ríspida. — Isso é uma sacanagem. A
palavra é essa: SA-CA-NA-GEM! — terminou, firme, recebendo apoio dos outros que estavam
na conversa.

Por algum momento, eu achei que minha aorta tivesse rompido, fazendo meu sangue
fugir completamente do meu corpo. Eles estavam falando da gente?! Não, não poderiam estar
falando da gente, ninguém mais tinha nos visto, não é? Com olhos completamente arregalados,
mal consegui disfarçar que prestava atenção na conversa, mas me lembrei de voltar ao meu
livro antes que notassem. Ainda de costas, reparei que continuavam a conversar sobre outras
matérias “bizarras” que tinham visto no Facebook.
Lívida e sem perceber que tremia, peguei meu celular dentro da bolsa, e rapidamente
comecei a escrever uma mensagem:

Precisamos conversar. No intervalo, no Nosso Lugar. — e mandei para Lucas e


Douglas.

Estava feito e eu, decididamente, iria pôr um fim nisso.

Douglas

— Te logo de manhã, e desse jeito — sussurrou uma voz, bem atrás de mim —, só me
faz ficar ainda mais apaixonado, sabia disso?

Parei de beber água no bebedouro e endireitei meu corpo, virando-me, com um sorriso
malicioso nos lábios. Lucas estava parado atrás de mim, escorado em uma coluna, sorrindo,
embora parecesse murcho e desanimado.

— Ah! Por que se virou? Acabou com minha vista! — ele saiu de sua coluna e veio em
minha direção com aquele ar maroto, e quando chegou bem perto, rapidamente beijou minha
bochecha e, num tom sedoso, sussurrou em meu ouvido: — Bom dia.

— Cuidado pra ninguém nos ver, cabeção!

— O quê? Sou mais discreto que um ninja! — retrucou abrindo novamente aquele
sorriso sem graça. — Você conseguiu falar com a Amanda?

Balancei a cabeça, enquanto Lucas respirava fundo, mexendo no celular torcendo a boca
de lado, claramente preocupado.

— Também não tive nenhuma notícia dela, o dia inteiro.

Lucas se calou, com os ombros murchos. Não adiantava fazer brincadeiras, como tinha
feito há pouco, a tensão continuava clara em seu rosto. Para ser franco, ele não era o único a
estar uma pilha de nervos com o sumiço de Amanda. O que dera nela, afinal? Por que não havia
dado nenhuma notícia desde a festa?

— Ei, vem cá — disse ele, enquanto passava seus braços por meus ombros. — Vamos
tentar relaxar, está certo? Vai ver ela precisou de um tempo, só isso.

Ele esforçou-se para iluminar um pouco mais aquele sorriso murcho, e, quando eu já
estava prestes assentir, de repente, o celular começou a vibrar dentro do meu bolso. Peguei-o
mecanicamente sem fazer a menor noção do que encontraria. Precisei de alguns segundos para
perceber do que se tratava, sentindo uma péssima sensação correr por minha espinha. Era uma
mensagem. Uma mensagem de Amanda.

Precisamos conversar. No intervalo, no Nosso Lugar.


Assim, limpa e seca. Nada de “Não se preocupem”, ou “Dormiram bem? Não se
esqueçam que iremos nos divertir muito! Beijinhos”. Não, nada que pudesse me deixar mais
tranquilo.

Uma trocar de olhares foi o que bastou para começarmos a subir apressadamente as
escadas, sem nada falar um para o outro. Seguimos diretamente para a sala de aula, esperando
encontrar qualquer explicação que fosse. Qualquer uma! Qualquer coisa era melhor do que
aquilo! Entretanto, ao entrar na sala de aula, não a vimos de primeira. Foi preciso demorarmos
mais um pouco para, enfim, encontrar Amanda, rodeada por pessoas com quem nunca havíamos
falado na vida, tornando impossível qualquer abordagem para conversas ou explicações.

Ninguém precisava ser muito perspicaz para entender o recado: Amanda estava fugindo
de nós dois e não queria nenhum tipo de conversa conosco até o intervalo.

— E agora? — sussurrei para Lucas, que ainda estava perto de mim.

— Agora? Agora esperamos, acho...

Bufei, enquanto Lucas e eu tomávamos nossos lugares usuais — nas últimas cadeiras,
um ao lado do outro —, e esperamos.

A última aula antes do intervalo foi de Física, e se normalmente conseguia demorar cem
anos, agora, com todo o lance da mensagem, pareceu uma eternidade! Carros voadores estavam
mais próximos de serem inventados e construídos, do que aquele intervalo estava de chegar.

Não havia palavras capazes de descrever como me senti dentro de sala enquanto o tempo
se escorria lentamente. A cada minuto eu mudava de lugar impaciente, inquieto em minha
carteira, sem encontrar uma forma de ficar confortável para tentar assistir àquela maldita aula.
Compulsivamente, olhava o celular para conferir as horas, rabiscava a folha do caderno,
mudava novamente de posição e tornava a olhar para as horas, só para descobrir que não havia
passado um único minuto que fosse. Claramente, Lucas parecia que estava prestes a explodir
de ansiedade e me confidenciava aquilo, ora ou outra, nas trocas de olhares.

Precisamos conversar... Era somente isso que perambulava na minha cabeça. Ora,
vamos lá! Nunca existiu um “precisamos conversar” que tenha sido bom. Ninguém diz
“precisamos conversar” para comprar pizza, para dar presente, ou sei lá o quê! Precisamos
conversar só significa uma coisa: vem desgraça por aí, então, vai se preparando enquanto não
tenho coragem de falar.

Era exatamente isso que o “Precisamos conversar” de Amanda significava: vinha


desgraça por aí.

Precisamos conversar... No intervalo, no Nosso Lugar...

Já havia perdido toda a paciência e estava prestes a fugir da sala, quando o sinal da
escola tocou e nos liberou para o intervalo. O maldito som, que para o resto da turma poderia
ser a libertação da tortura de Física, para nós era a libertação de uma ansiedade descomunal.
Os alunos saíram atrapalhados, uns por cima dos outros, numa confusão só, enquanto
Lucas e eu continuávamos sem mover um único músculo que fosse para irmos ao encontro do
que nos esperava.

Sentado, vi Tandara, uma de nossas colegas sair conversando com Henrique, Natasha e
Jéssica, que riam um pouco mais atrás, tudo como nos outros dias, como se nada tivesse sido
mexido no cenário. Então, ela apareceu.

Amanda seguia suas amigas mantendo um olhar distante com o rosto inteiramente
inexpressivo, sem nos dar alguma dica do que passava pela sua cabeça. Ela nem sequer nos
olhou furtivamente — exatamente como acontecia nos outros dias. Não, Amanda apenas
seguiu, sem parecer notar nossa presença, antes de ser engolido e se perder no mar de alunos,
restando na sala, apenas eu e Lucas.

— É isso aí, cabeção! — arfei fortemente, fitando-o com o semblante sério. O tempo
havia se esgotado, e agora, só existia uma única coisa que poderíamos fazer. — Temos de ir
conversar com ela...

Lucas

Existe um modelo, com um nome esquisito, que fala sobre os cinco estágios de um luto.
Não necessariamente alguém precisa morrer para que passemos por tais estágios, pois eles se
referem a um luto simbólico, à perda de algo demasiadamente importante. Afinal, a morte não
é a única forma de perdermos aquilo que amamos, não é?

Com a perda, o indivíduo entra nesse processo que, embora não seja um padrão, é
passível de observação em muitos que passam por esse luto. O primeiro estágio é o da negação:
não se aceitam os fatos que estão se desenrolando diante de si. Procrastina-se com todas as
forças o contato com a realidade, e por vezes, cega-nos por completo. Não reconhecemos, muito
menos aceitamos tal desventura.

Foi a negação que me fez demorar milênios na cadeira ou que nos fez pegar o caminho
mais longo que dava para o lugar que intimamente apelidamos de “Nosso Lugar”. Andava
sorumbático, descrente do que ocorria — Isso não pode estar acontecendo. Isso não pode estar
acontecendo comigo! Não agora, não depois de tudo!

Caminhava, por certo, mas caminhava descrente, como um marujo que insiste em pôr
seu barco contra a maré. Mas o fluxo continua seguindo, os fatos se escorrem e nos arrastam
para a verdade — o mar não para só porque não aceitamos sua correnteza.

É aí que aparece o segundo estágio: raiva.

Cada gota de meu sangue parecia ter entrado em combustão. Minha pele queimava,
meus dentes rangiam. Mas por que infernos isso acontecia?! Maldição! Estávamos
apaixonados, não estávamos? A noite da festa havia sido perfeita! Nunca havia tido nada
parecido, nem com homens nem com mulheres! Houve algo naquela noite... algo semelhante à
uma energia inefável! Os beijos, os toques... Os dois... Nós três! E ver tudo desmoronar,
momentos após eu descobrir que era possível, era como ser alvo de uma perversa piada divina!

Os fatos recaíam sobre mim como o suplício havia sido imposto a Tântalo, que após
testar os deuses, fora jogado ao Tártaro com fome e sede. Todavia, o pior e mais perverso desse
castigo, não residia na privação. Não, meus caros. Faminto, sedento, Tântalo havia sido posto
no meio de um campo de vastas frutas, sem nunca, jamais poder tocá-las.

Eis o pior dos castigos, eis o peso desgraçado que havia recaído sobre mim. Estar
próximo o suficiente, mas nunca, nunca poder tocar. Que eu nunca tivesse provado daquela
noite, droga! Se iriam retirar de mim assim...

Enfim, chegávamos ao terceiro andar da Walden. Essa parte da escola era um lugar
vazio, pouquíssimos alunos apareciam por lá. Para a maioria das pessoas, uma sala de ballet e
um pequeno auditório que era usando para aulas especiais e que na maioria das vezes
permanecia trancado, eram as únicas coisas que, aparentemente, existiam por lá. Claro que, para
nós, havia algo a mais.

No corredor, entre a entrada do auditório e os banheiros, num lugar quase imperceptível,


existia uma escada de ferro presa a parede, que levava para o lugar onde sempre nos
encontrávamos: o terraço da escola.

O Nosso Lugar era como um terraço qualquer. O chão era todo de concreto liso e um
pouco desgastado, levemente sujo. As paredes deveriam ter sido brancas quando foram
pintadas, mas agora, diferentemente do chão, estavam mais acabadas, restando algumas tiras de
tinta branca. Era, inclusive, em uma dessas listras que deixamos nossa assinatura: “Nosso
Lugar. Proibidos estranhos e quartos membros. ASS: A. D. L” escrito por Amanda com giz
de cera vermelho assim que passamos a utilizar o local como ponto de encontro, e, logo abaixo
“PS: L. tem um cabeção” feito por Douglas com giz de cera verde.

Podia não ser o lugar mais garboso da Walden, admito, mas era especial para nós. Lá
conseguíamos ter privacidade para ficarmos juntos, conversar sem interrupções sobre o que
quer que desejássemos, ou ouvir nossas músicas sem que reclamassem. Outra coisa que eu
adorava, era que lá, nunca batia o sol em nosso intervalo, permitindo-nos admirar
tranquilamente aquele céu azul à nossa volta, e os demais prédios do centro da cidade. Os dois,
o céu, o silêncio, a privacidade... os mínimos detalhes, que para muitos poderiam parecer
banais, para mim, misturavam-se como tintas que se mesclam para fazer a obra de arte perfeita.
Era nosso paraíso... por ironia, estávamos prestes a ser expulsos dele também.

Fui o primeiro a subir, dando a mão para ajudar Douglas. Amanda já havia chegado, e
permanecia sentada no parapeito fitando o horizonte. Ao nos perceber, contudo, olhou em nossa
direção, fazendo-me entender que procrastinar nosso encontro, em negação, não passara de uma
completa perda de tempo. Sabíamos o que aconteceria.

— Antes de qualquer coisa, quero que me deixem terminar de falar — disse ela no
momento em que desceu do parapeito, sua voz parecia falhar, embora seu tom fosse resoluto.
— Eu sei que não dei notícias ontem, desculpem por isso, precisava de um tempo para pensar...
— suspiro — pensar no que aconteceu na festa. Sei que vocês se animaram, até eu me animei,
mas não deveríamos fazer isso de novo. Não devemos repetir, não é certo e tudo só seria um
problema para gente. Então, antes que algum desastre aconteça... — bang-bang-bang. Suas
palavras saíam velozes e certeiras como tiros. De olhos cerrados, mais parecia que Amanda as
arrancara de si, como quem tenta arrancar um curativo de forma indolor, quanto mais rápido,
menor a dor. Naquele momento compreendi que tudo isso de rápido e indolor era uma completa
asneira. Há palavras que irão doer sempre, não importa a velocidade que sejam ditas. — Eu sei
que pode parecer loucura minha, principalmente depois da festa — continuava ela, ora decidida,
ora vacilante —, mas o que temos é errado e não posso correr o risco de me machucar, ou pior:
machucar vocês nessa loucura. Por isso... por essa razão... acho melhor que a gente pare de se
ver. Precisamos nos afastar.

Atônitos, passamos algum tempo sem qualquer reação. Somente quando Amanda abriu
os olhos e deu um longo suspiro, voltando a se recostar no parapeito da sacada, foi que
entendemos que havia acabado.

Começou, então, o terceiro estágio: Barganha.

— Porque você acha que isso é errado, Amanda? — perguntou Douglas, inteiramente
tenso. Mesmo que tentasse não parecer, as linhas de seu maxilar quase pulavam para fora de
tensão. — Eu sei que não é comum, mas, errado?

— Se não há nada de errado, então, por que estamos conversando escondidos de todo
mundo?

O tom ríspido de Amanda foi mais um golpe certeiro em nosso ânimo. Amuado, Douglas
baixou os ombros e deu as costas para ela, apoiando-se no parapeito para olhar a cidade.

Mais uma vez eu sentia minha pele queimar de fúria com a maldita sorte que havia
recaído sobre nós. Mas eu simplesmente não poderia deixar que tudo — agora, até a nossa
amizade — ruísse assim, por ser... errado?

— Errado por querermos ficar juntos? — Falei com a voz rouca e embargada. Assim
como minha pele, minha garganta estava em combustão. — Errado por me sentir bem com duas
pessoas que gostam de mim também? Que cuidam de mim, que são carinhosos, que me escutam
e me entendem? Posso não saber o que é certo, nem sei se alguém de fato sabe, mas o que eu
sinto por vocês... tenho certeza que isso não é errado.

— O mundo inteiro está errado, então? — retorquiu, quase com desdém.

— Não seria a primeira vez.

— Não é tão simples assim.

— Claro que não é. A paixão nunca é simples, Amanda, mas isso não nos impede de
tentar. E-Eu não quero desistir. Não quero. Eu faço qualquer coisa para ficarmos juntos: subo
essas escadas diariamente, minto, dissimulo, me disfarço, uso camuflagem, danço ragatanga!
Tudo, tudo isso eu posso fazer, o que não posso é desistir assim de vocês dois.
— Meninos, me desculpem — tornou a falar, tentando conter seu cabelo que era levado
pelo vento —, mas, entendam, tentem ouvir a voz da razão. Isso... nós... nunca daria certo!
Quantos casais a três vocês já conheceram? — abri a boca para respondê-la, quando,
rapidamente, ela completou. — Aline não vale, Lucas!

— Botolovers? — tentei, inseguro.

Amanda riu por alguns segundos, mas não o suficiente para mudar seu porte austero e
decidido.

— Não estamos numa ficção, seu bocó. Isso é o mundo real.

— É por isso que é tudo muito chato! — retrucou Douglas, virando-se, dessa vez para
encarar Amanda. — Essa merda de mundo moralista do caralho!

Novamente, Amanda se encolheu e permaneceu em silêncio, olhando a cidade como se


estivesse ponderando os dois mundos. Parou, dando um longo suspiro para se acalmar, como
sempre fazia. O vento forte fazia com que seu cabelo esvoaçasse como uma cortina dourada.
Entretanto, quando sua abstinência de palavras passava de segundos para minutos, ficava mais
claro qual deles sobressaía na ponderação.

— Você não quer tentar, de verdade? — perguntei de forma fraca e meio desamparada.

Ela mordeu os lábios e balançou a cabeça.

— Eu preciso de um tempo para mim. Por favor, entendam.

— Nós iremos te esperar — falou Douglas, com um tom mais ameno, aproximando-se
de Amanda, tomando sua mão direita afetuosamente.

— Isso mesmo!

— Mas não é justo que vocês esperem por mim...

— Se isso significa que temos uma chance de ficar com você, então iremos esperar sim
— repetindo a ação de Douglas, aproximei-me dela, parando à sua esquerda e tomando sua
mão. — Definitivamente, não somos a mesma coisa sem você.

Dessa vez, nossa única resposta foi seu longo suspiro. Seus olhos estavam vermelhos,
assim como suas bochechas rubras. Claramente, ela não estava se sentindo bem ao fazer aquilo,
mas, categoricamente fazia, embora não largasse nossa mão. Não que ela fosse mudar de ideia.
Não, não, muito pelo contrário: agarrávamos uns aos outros, como uma tentativa tola de
sustentar o nosso mundo. Fechei meus olhos e escorei minha cabeça em seu ombro. Era incrível
como Amanda era uma garota forte, talvez a mais forte que um dia já conheci. Ali, enquanto
nós, dois molengas, derretíamos de franqueza com nosso adeus, ela permanecia impávida —
nunca desmoronaria na nossa frente, nem na frente de ninguém.
Não sei quanto tempo continuamos entrelaçados daquela forma; poderia ter passado um
duradouro segundo, ou um ínfimo milênio — quem vai saber? Nossa noção de tempo havia
sido reduzida a pó — quando o sinal da escola soou, anunciando o fim do intervalo.

Anunciado o nosso fim.

— Precisamos ir.

— Não precisamos, não — retruquei, ainda, embora em tom fraco. — Mas se você
insiste...

— Me desculpem... — Amanda fechou os olhos e se desvinculou de nós dois. — Me


desculpem mesmo.

Despedindo-se com um pequeno beijo em nosso rosto, lentamente seguiu para a escada.
Douglas e eu nos limitamos a olhá-la caminhar para longe de nós dois, com uma impotência
avassaladora. Antes de descer, porém, Amanda olhou para O nosso lugar, também para se
despedir silenciosamente. Seus olhos, que pareciam naturalmente possuir luz própria, agora,
luziam de forma fraca e tristonha, como deve ser nos últimos momentos de vida de uma estrela.

Sem falar mais nada, desceu, dando início ao quarto estágio: depressão.

No silêncio, voltando para sala de aula, não fazia a menor ideia de quando a aceitação
— quinto e último estágio — chegaria. Ou se de fato chegaria.
Capítulo V — A Cantiga de Amigo

Amanda

— Ei, mana, o que você tem?

— Além de extrema beleza e uma simpatia inegável?

Completamente esparramado no sofá, Guilherme bufou impaciente e continuou a me


fitar de forma ameaçadora. Pelo visto, o sarcasmo que vinha treinando como escudo não havia
dado certo.

Apesar de primos, era impossível encontrar uma semelhança que fosse entre nós dois.
Alto, porte atlético e cabelos castanhos, Guilherme mais parecia como um daqueles
personagens superpopulares de high school americano, enquanto que eu, pequena, magra e
loira, não passava de uma personagem sem sal de algum romance juvenil com vampiros. Gui
era divertido, até um pouco bobão, mas dificilmente não era uma boa companhia. Logo após o
acidente de meu pai, Tio Roberto, irmão de minha mãe, e ele vieram de Manaus para morar
conosco. Desde então, talvez por ser alguns anos mais velho, passou a se comportar como se
fosse um irmão para mim, embora a idade não parecesse ser uma diferença marcante entre nós.

— Tudo bem, vamos lá — começou ele, novamente. — Eu sei que tá rolando alguma
coisa, e se está te chateando, como seu irmão mais velho, preciso saber. Então, vai, manda!
Qual é, eu não sou seu mano? — Gui mexeu as mãos ridiculamente, como se fosse um rapper,
então, prosseguiu. — O que aconteceu com você?

O que estava acontecendo comigo? Será que eu poderia realmente falar o que se passava
dentro de mim? O mundo não havia acabado, como os fanáticos prometiam todos os anos, para
começar. Não, não, muito pelo contrário. O mundo não só continuava de pé, como o tempo
parecia se arrastar de uma maneira que nunca pensei que fosse capaz, as obrigações e rotinas
eram horrivelmente seguidas, como se nada de ruim tivesse acontecido nas duas semanas após
a última conversa que tive com os dois. Após a nossa separação. A vida seguia — e por mais
tristonha que me encontrasse, eu era obrigada a seguir também.

Primeiro, fui obrigada a voltar à escola, onde procurei evitá-los o máximo que podia.
Mudava de corredor caso estivessem vindo, vivia colada em outras pessoas para não dar a
menor chance de virem conversar comigo... mas, mesmo com tantos cuidados, com todas as
tentativas de me afastar dos dois, era impossível olhá-los sem sentir meu coração pesar: pesar
de saudades e até mesmo de arrependimento. Sim, eu sentia uma falta de Douglas e Lucas que
era impossível de descrever. Nem mesmo conseguia dizer se era unicamente a saudade de nossa
amizade, daquele mundo só nosso que havíamos construído, íntimo e particular — onde eles
eram reis e eu rainha —, ou se me pesava aquela possibilidade que havia deixado para trás...
estarmos juntos, nós três... Sim, por mais que tentasse negar para mim mesma, eu sabia muito
bem o que sentia por Lucas e Douglas. Era paixão! Meu Deus, eu realmente estava apaixonada!
Sabia que só poderia estar ficando maluca! Isso acontece quando estamos sob muito
estresse, não é? Maluquice ou não, sim, agora eu percebia: estava completamente apaixonada
pelos dois. E, momentos como os da escola, que me permitiam olhar para os dois, de alguma
forma, também me causava paz e tranquilidade. Sabia o quanto os tinha machucado em nossa
última conversa, por isso, nunca iria voltar atrás, mesmo com todo o arrependimento do mundo.
Se iria amá-los, seria de longe, pois assim era melhor para todos nós.

Claro que todos pareceram perceber que O Trio da escola havia se separado. Talvez por
não ter nada melhor para fazer, muitos, deliberadamente, passaram a lançar teorias e a nos
questionar pessoalmente os motivos de tal separação, como se vissem mais graça do que pesar
no fato. Não viam em nós três amigos que dolorosamente se separaram, e sim mais um motivo
para fazerem fofocas. Letícia e Jéssica, principalmente, continuavam a cair em cima de mim
como hienas ferozes atrás de um pedaço de carne a qualquer custo. Natasha, a primeira a ter
percebido, diferente de todos os outros, era a única verdadeiramente preocupada comigo.

— O que aconteceu com vocês? — cochichou ela atrás de mim, logo nos primeiros dias
de separação. — Por que vocês andam tão distantes?

Virei assustada para olhar Natasha que me analisava silenciosamente.

— Nada, ué! — tentei fingir, completamente em vão. — Por quê?!

Natasha, balançou a cabeça mordendo os lábios. Pouco tempo depois, rabiscava alguma
coisa em um bilhetinho de papel e passava para mim.

“Nada é a soma dos miolos de bolsominions! Até parece que eu não percebi que
vocês três não se falam mais, não sentam mais juntos! Sem contar que você anda
tristonha ultimamente. O que foi, estão fingindo que nada aconteceu pra não
levantar suspeitas?”

Demorei alguns segundos fitando o pequeno bilhete, sentindo minha garganta apertar.
Claro que não poderia mentir para Natasha, ela era minha melhor amiga e a única que sabia de
nós três. Se existia alguém que poderia nos entender, seria ela. Por essa razão, arranquei outra
folha de meu caderno e logo comecei a escrever a resposta.

“Não, não. Não estamos fingindo nada, porque não há nada acontecendo entre
a gente... Seja lá o que tivemos naquela festa, morreu naquela festa.”

“Nossa, eles beijam tão mal assim? Hahahaha”

“Não, claro que não. Na verdade, eu nunca tive beijos melhores! Acontece que...
sei lá, não parece ser a coisa certa. É pervertido, não? É errado. Se descobrissem
sobre nós três, imaginem o que iriam falar por aí!”

Natasha pareceu absurdamente surpresa com minha resposta. No olhar em que me


mandou logo após, parecia haver uma fagulha resultante do atrito entre raiva e algo seco como
decepção. Até demorou alguns segundos antes de voltar a escrever, balançando a cabeça em
clara reprovação.
“COMO ASSIM NÃO PARECE SER A COISA CERTA? A COISA CERTA? A
COISA CERTA É TENTAR SER FELIZ, MENINA!” — assim, com todas as
letras maiúsculas — “Não acredito que você desistiu por medo do que os outros
iriam falar! Se tivesse sido ruim, se eles tivessem te tratado mal, se eles fossem
uns escrotos, tudo bem, eu iria entender (e muito provavelmente encher a cara
deles de porrada), mas... eles são doces, não são? Eles são loucos por ti, é
impossível não perceber os olhos deles brilhando quando te veem! Ai, não,
Amanda, errou feio! Por acaso esses que vão falar por aqui, são os mesmos que
pagam as tuas contas?”

“Não, mas podem contar pra quem paga! Minha mãe seria capaz de me mandar
morar com minha vó em Manaus, tenho certeza!” — respondi, a dor em minha
garganta e as lágrimas que queriam subir aos olhos confirmavam o que Natasha
dizia. Sim, eu sabia de tudo isso, sabia! Mas o que poderia fazer? A decisão que
tomei era certa, não era? Prossegui: “Além do mais, seria algo que nunca daria
certo. Nunca, não adiantava nem tentar... ”

“Ah! você virou vidente agora?”

“Estou sendo realista!”

“Ótimo, senhora realista. Machadiana. Olha, miga, não me entenda mal. Sou
sua amiga, então, irei te apoiar no que decidir. Eu queria apenas que você
estivesse fazendo isso pelas razões certas, não porque tem medo de pessoas que
deveriam viver na Idade Média! Realista, você diz? Pois bem! A realidade é que
muitos aqui não passam de falsos moralistas! Preferem colocar o outro na
fogueira antes de olhar para si, e sempre vão fazer isso, você dando motivo ou
não. Não seja boba, essas pessoas que não estão ligando para sua felicidade são
as mesmas que não vão ligar se estiver triste. Apenas querem mais um na cruz
para jogar pedra. É mais fácil odiar, desdenhar, julgar e taxar do que ouvir,
tentar compreender, tentar aceitar, amar... Posso não ter vivido muito, mas tem
uma coisa importante que aprendi: Lute! Lute pela sua felicidade, minha amiga,
porque ninguém mais vai fazer isso por você. Mas como eu disse: sou sua amiga
e te apoiarei no que decidir, apenas fico triste que tenha desistido de alguma coisa
antes mesmo de tentar — comigo sempre foi assim, é melhor dormir arrependida,
depois de tentar e falhar, do que morrer na vontade sendo assombrada pela
possibilidade de algo que poderia ter sido se você tivesse tentado. Bom, pense
nisso!”

Eu quase podia ouvir sua voz firme enquanto lia seu bilhete. Embora Natasha nunca
mais tenha tocado no assunto novamente, aquelas suas palavras pesaram em mim como
chumbo. Eu estava fugindo antes mesmo de tentar. Estava julgando antes mesmo de entender.
E a vontade... A paixão... Ela continuava firme e forte em meu peito, mesmo com todas as
tentativas que fiz para sufocá-la. Então, por que não?
Em casa, tudo parecia ainda pior. Afinal, tive a (má?) sorte de ter uma psicóloga em
casa, analisando cada passo que eu dava. Minha mãe continuava a me fazer perguntas sobre
meu novo estado de ânimo. “Por que eu andava triste? Estava tudo bem? Era algum rapaz?
Por que eu não contava para ela, como fazia antes?” A energia que eu gastava tentando parecer
bem, nunca, nunca iria me fazer sentir melhor. Sozinha no quarto, ainda por cima, não tinha
nenhuma notícia deles e novamente a saudade me tomava. Eu já não ligava mais para deter a
destruição do meu castelo, fazia apenas esforço para manter as aparências de minhas muralhas
— que já deveriam estar falhando, se até o Gui havia notado que não estava bem. Mas nunca
admitiria a verdade.

— Por que você está me perguntando isso, Gui?

— Por quê?! Olha, Mandinha, não me leve a mal, mas você não parece mais... você! —
começou ele num tom preocupado e carinhoso. — Há, o quê... duas semanas, você parecia estar
mais do que bem, feliz! E agora.... Agora não. Agora você não faz nada. Chega da escola e vai
direto pro quarto. Quarto pra escola! Nem mais estamos conversando!

— Ah, você só está carente, querendo conversar?! — brinquei, tentando mudar o rumo
da conversa. — Não precisava inventar uma desculpa como essa, Gui-Gui, era só falar! Vai,
me conta, esse garanhão está arrasando o coração de alguém?

Guilherme bufou, esfregando as mãos no rosto fortemente com impaciência.

— Sim, estou ficando com uma menina, da sua escola inclusive, se é isso que você está
perguntando. Mas, ah, Mandy! Não é disso que estou falando! — continuou, claramente
decidido a tirar informações de mim. — Achei que você estivesse saindo com alguém. Não está
de namorinho com ninguém?!

— Olha, você está enganado. Eu não estou, nem estava de... você falou namorinho?
Quem fala isso, Gui-Gui? Bom, não, não estou. E para sua informação, eu ando saindo sim,
está bem?

— Ah, você anda saindo? Então me conta, como anda Nárnia nessa época do ano? É
difícil passar pela porta do guarda-roupa?

— Não posso, Aslam me proibiu de contar — disse, por fim, encerrando a conversa e
me levantando do sofá. — Agora vou me encontrar com ele, está bem, maninho? Beijo!

Fui para o quarto e fiquei trancada sozinha, ensurdecida com o silêncio. Eu morava no
Centro da cidade de Fortaleza, que tinha uma vida própria pela manhã, cheia de barulho e
pessoas andando para todos os lados. Agora, à noite, porém, o silêncio era absoluto e quase
parecia morto — comparado com seu ritmo diurno. Nada poderia ouvir que não fosse o silvo
do vento entrando pela janela. No céu nublado, apenas poucas estrelas pareciam tentar escapar
do véu escuro de nuvens...

Sabe, não há nada mais propício para ponderações do que o silêncio e a solidão. Talvez
seja porque, quando olhamos para os lados e nos encontramos sozinhos, é que as ausências
verdadeiramente importam, começam a pesar. Principalmente se essas faltas foram causadas
por nós. Será que havia realmente tomado a decisão certa? Será que meu ego, o anseio de estar
certa, era mais importante do que realmente desejava?

...

Será que meu medo de viver e errar deveria vencer o próprio ato da vida?

Douglas

— Ei, cabeção, no que você está pensando?

Lucas balançou a cabeça, como se acordasse de um transe e olhou para mim, sorrindo
de forma murcha. Há muito tempo que seu sorriso largo e caloroso havia sido substituído por
algo murcho e tristonho. Estávamos em um lugar perto da biblioteca, escondidos — não
voltamos ao Nosso Lugar depois da separação —, matando tempo antes da aula de literatura.
Com a cabeça repousada em meu colo, eu fazia cafuné em seus cabelos, quando — como
sempre — seus olhos se perderam em pensamentos próprios, deixando claro que alguma coisa
o incomodava. Claro que eu já desconfiava do que se tratava, e, mesmo assim, ainda o
questionei.

Ameaçando não me responder de primeira, aproximei minha boca do seu ouvido e dando
uma mordidela, repetindo a pergunta em sussurros para ele.

— Amanda... — respondeu num tom rouco e cabisbaixo.

Essa era a resposta padrão para todas as vezes em que ele estava assim. Surpresa seria
se a resposta fosse diferente.

Amanda...

Duas semanas já havia se passado desde que ela afirmou com todas as letras que nos
queria longe e ele continuava assim, como se apenas ela importasse. Olha, não me entendam
mal, eu também sentia uma falta desgraçada de Amanda, mas ela quem decidiu pular fora! Ela
que nos tratou como simples aventuras adolescentes e ai foi embora! Fomos descartáveis, peças
que sem serventia, tinha um único destino certo: o lixo. Lucas tentava me convencer do
contrário, embora isso me irritasse ainda mais. Mesmo apaixonado e machucado, eu continuava
tentando seguir em frente, diferentemente de Lucas.

Que droga! Não poderíamos continuar, só nos dois? Não tínhamos, ainda um ao outro?
Por que ele insistia em cutucar o passado? Por que sentia prazer em ficar tristonho por alguém
que não nos queria? Não era fácil para ninguém, mas é claro que eu estava tentando. Apenas
eu! Nem sei dizer se Lucas se dava o trabalho de tentar, afinal, ele mesmo dissera: Não somos
a mesma coisa sem você!

Eu que era um otário, mesmo! Sem mais! Lucas era meu primeiro cara, primeiro!
Deveria ser tudo incrível, único. Eu me esforçava para isso! Estávamos na escola, colocando
nossa “reputação” em risco, lutava contra meus preconceitos todos e para quê? Para ele ficar
sentindo falta de Amanda a todo momento que tivesse uma pausa?

Em minhas veias, meu sangue, lentamente começava a ferver. Meu coração estava
quente, assim como meu rosto... Meu corpo estava em chamas, e a carapuça de estúpido
pesava... Estúpido. Estúpido. Estúpido!

— Não fica emburrado, por favor! — falou Lucas, levantando do meu colo e acariciando
meu rosto carinhosamente.

— Emburrado? — disse, retirando sua mão do meu rosto devagar. — Eu não estou
emburrado, Lucas.

Ele deu um longo suspiro, pousando a cabeça em meu ombro, enquanto seus dedos
entrelaçavam meus cabelos.

— Desculpa, Douglas. Não vou mais falar na Amanda, eu só achei que você sentisse
falta dela também.

— Eu sinto — disse com sinceridade. — Sinto demais. Eu também gosto dela, Lucas,
não é só você... Acontece que... Ainda estou aqui, não dá pra você ficar feliz com isso?

Claramente preocupado, Lucas levantou sua cabeça de meu ombro e colocou as mãos
em meu rosto e ficou me olhando de perto, sem falar nada por alguns segundos. Isso fez com
que meu coração batesse mais forte — Droga, como um cara conseguia me fazer sentir assim?
Lentamente, suas mãos subiram até seus dedos se enroscarem em meus cabelos.

— Você está certo — disse, com uma voz rouca e preocupada. — Você está
absurdamente certo. Você é muito importante para mim e se eu não estou te fazendo ver isso,
então, eu sou um babaca negligente. Desculpa, de verdade. Eu prometo que a partir de hoje não
falo de Amanda se você não falar.

Ficamos aninhados depois dessa conversa, até o fim do nosso intervalo, e voltamos para
a sala, onde nos eram cobradas vestimentas de aparências, com enfeites de hipocrisia.

...

— Então, o trabalho será organizado desta maneira, cada equipe deverá ter quatro
componentes, dois garotos e duas garotas. Serão distribuídos para as equipes uma escola
literária — José, nosso professor de Literatura, o favorito de Lucas, parou de anotar no quadro
as coisas que acabara de dizer, e se voltou para nos olhar. — O intuito desse projeto literário é
fazer uma grande revisão, e deixar a matéria mais dinâmica, certo, pessoal? Vamos ter aula
todos os dias essa semana.

— Podemos escolher os componentes das equipes, professor? — perguntou algum aluno


no meio da turma.

— Ééé... — José coçou o queixo gorducho e barbudo por alguns segundos, parecendo
pensar sobre a pergunta, antes de responder: — Não. Vou logo fazê-los se acostumar com a
ideia de que não existe democracia, para não se entristecerem no futuro. Bom, eu irei montar
as equipes, para evitar brigas... Serão dois homens e duas mulheres, biologicamente falando é
claro, com margem de erros para afins...

Alguns alunos riram, e outros continuaram sem entender qualquer tentativa de piada que
ele poderia ter feito, e então, continuou:

— Bom... que tal... Vou seguir uma lógica! Eu irei escolher uma pessoa, e quem estiver
do lado esquerdo será seu parceiro, ou parceira... Minha lógica é boa, não reclamem! Então...
Lucas e esse aí do seu lado — “esse aí” por um acaso seria eu —, Natasha, e... — ele fez uma
breve pausa, porém foi o suficiente para que eu olhasse Lucas de relance, sentindo meu coração
começar a bater freneticamente. Se ele seguisse a tal lógica, então, a próxima aluna seria... —
Amanda! — concluiu.

Por um segundo, o mundo pareceu parar de girar. Amanda estava em uma equipe com
nós dois? Depois de tanto tempo tentando conseguir que ela parasse para nos olhar, um
momento para conversar, uma mensagem, uma ligação... Todas renegadas, e agora, estávamos
na mesma equipe?

Olhei para o lado e Lucas olhava para mim. Não sorria, não parecia demonstrar muitas
reações, apenas me encarava atento, como se esperasse minha reação para decidir o que faria.
Ele tinha dito que não tocaria mais no assunto, eu havia prometido a mim mesmo que não me
aproximaria de Amanda novamente... Mas lá estava, a chance que tanto queríamos para
conversar com ela, matar a saudade de nossa amizade... De nós três.

O que faríamos, então?

— Até amanhã de manhã! — prosseguiu José. — Como vocês foram os primeiros a


serem pseudossorteados, eu quero que vocês estejam prontos até amanhã de manhã. Todos
podem aproveitar o horário da minha aula de hoje para discutir o trabalho em grupo. Alguém
contra?

Lançamos nossos olhares para Amanda, eu podia sentir que ela estava a um segundo de
protestar. Tensos, esperamos por esse momento. Segundos, minutos... E o protesto não veio.
Ela poderia fazer se quisesse, não poderia? Mas ainda assim, lá estava ela, sem retrucar. Podia
ser coincidência, poderia ser alguma coisa que meu pedaço tolo de esperança tentava se agarrar
ou poderia simplesmente não ser nada, um pequeno fato sem importância para ela. O fato é que,
seja o que fosse, isso não me impedia de martelar em minha cabeça: O que isso poderia
significar?
Lucas

No teatro dos absurdos que é a vida humana, desenrola-se uma ópera completamente
constrangedora. Sintam-se à vontade para visualizar: quatro adolescentes num velado silêncio
se encontram em uma minúscula sala de estudos, dois homens, duas mulheres, três ex-alguma-
coisa que se separaram após declarar sua paixão uns pelos outros, e uma melhor amiga que sabe
de tudo que acontecera no passado dos demais personagens — e justamente por isso, não ousava
pronunciar única palavra naquela guerra fria.

Sentada, Natasha mordiscava ansiosamente a tampa de sua caneta, enquanto seus olhos
vacilavam para cada um de nós três. Ninguém parecia ser capaz de falar. Quem ousaria? A
abstinência das palavras, porém, pairava sobre nós com um peso imensurável. Qual de nós daria
o primeiro passo? Quais seriam as primeiras palavras ditas em frente a ópera, e o que veria
depois?

O irônico em tudo isso era que, desde nossa separação, Douglas e eu buscamos todas as
oportunidades para falar com Amanda. Nunca ficamos em cima demais dela, é claro,
procuramos respeitar sua decisão, embora, por vezes, discutíamos o que falaríamos se
tivéssemos a chance de conversar. Agora, porém, nada mais sobressaia de nossos lábios que
não o silêncio. Mas, alguém, em algum momento, teria que falar alguma coisa, não teria?

Seria Douglas? Não... Não depois de nossa conversa de mais cedo. Desde que Amanda
nos deixara, ele ficava facilmente irritado quando se tocava no assunto. Essa era a sua forma de
lidar com o que acontecia: emburrado, procurando evitar de todas as formas um possível
problema existente. Olhei-o de soslaio procurando analisar sua postura. Sentado, cada talhe do
seu corpo estava tenso, as linhas do seu maxilar e suas feições pareciam ser feitas de mármore
frio, que nunca iria ser alterado. Então, não, não seria Douglas quem tomaria a primeira palavra.

Amanda não estava tão diferente assim, nem sequer nos encarava com seus olhos verdes
— e não parecia ter o mínimo de vontade de fazê-lo. Fitava incansavelmente os livros, apenas,
fingindo uma imersão absoluta nas letras trovadorescas, embora claramente não estivesse lendo,
pois não durava muitos segundos em cada página.

Enquanto Natasha... Não, ela também não ousaria falar nada. Em seus olhos
amendoados — afinal, era a única que me olhava naquela sala sufocante —, estava claro que
nunca iria se intrometer em nosso conflito. Seria neutra, nada falaria para ajudar ou nos
prejudicar. Estávamos sozinhos nesse empreitada.

Logo, começava a sentir que caberia a mim falar alguma coisa. Deveria tomar a frente
da conversa? Mas o que diria? Não poderia tocar no assunto — no nosso assunto, poderia?
Havia prometido a Douglas que ficaria calado, não tentaria mais. Será que isso ainda estava
valendo?
Já estava formulando minhas palavras, quando, de repente, suspirando intensamente
como se submergisse depois de anos dentro do mar, Amanda tomou a frente:

— Olha meninos, não podemos continuar nesse silêncio, está me enlouquecendo! Por
favor, podemos deixar nossos rolos de lado e vamos nos concentrar no trabalho?

— Sim, senhora — respondeu Douglas num tom seco e frio. — Seja feita a vossa
vontade.

Natasha e eu olhamos, meio boquiabertos, para Amanda a tempo de ver seu rosto ficar
levemente rubro de raiva.

— Qual é o seu problema, Douglas? Eu sei que vocês não queriam estar aqui! — a voz
de Amanda tremia e cada palavra dita saia com um esforço incomum. — E não é a minha
vontade, é a do José. Precisamos fazer a droga desse trabalho, então, porque não somos
amigáveis, maduros, e começamos logo de uma vez?

Amanda bateu o livro com força sobre a mesa que tremeu alguns segundos avulsos.
Douglas não quis retrucar e pressionou ainda mais seu maxilar forçando-se a se calar. Era a
deixa de que deveríamos fazer. Se, em algum momento anterior aquela pequena discussão,
existia a possibilidade de conversarmos, agora houvera sido sepultada com ranger de dentes.
Abrimos o livro e começamos a ler alguma coisa sobre o Trovadorismo, a primeira escola
literária havia ficado conosco, e assim, os minutos que sucederam foram dedicados unicamente
às trovas antigas. Foi somente ao fim de meia hora de leituras que voltamos a trocar algumas
palavras.

— Então — falou Natasha —, já sei como podemos fazer... Antes de explicarmos as


cantigas, podemos dar uma introdução dos conceitos. A coita do amor...

— Essa pode deixar comigo e com o Lucas! — tornou Douglas a falar num tom de
desdém, olhando carrancudo para o lado. — Se tem uma coisa que entendemos é do sofrimento
amoroso por uma senhora, não é? Vamos tirar essa de letra.

— Então falaremos os três! — irrompeu Amanda, quase aos gritos. — Ou vocês tiveram
um rolo sozinhos?

— Sozinhos não, mas somos os únicos que estamos tentando resolver — retruquei,
falando também em tom caloroso, magoado. — Enquanto você tá ai, fingindo que nada existiu...
Diríamos para ficar com as cantigas de amigo, mas pelo que vimos, você está longe de sentir
saudades de algum de nós dois!

— Vocês... — Começou, mas, por alguma razão se calou.

Natasha, que continuava de boquiaberta com o que se desenrolava em nossa frente. A


tensão dos dois parecia ter deixado o ar ainda mais pesado. O que aconteceu, após, foi algo com
que eu não contava. Amanda tinha um temperamento irritadiço, facilmente saia do sério. Não
perdia embates. Não parava em discussões. Enquanto esperávamos que ela arremessasse o
pesado livro de Literatura em Douglas, no entanto, silenciou, passando a mão em sua testa.
Quando tornou a nos fitar, seus olhos estavam praticamente afogados em lágrimas. Levantou-
se impiedosa, e saiu rapidamente da sala de estudos, deixando-nos, os três, completamente
atônitos.

— Muito bem! — disse Natasha, dando-me um pontapé por debaixo da mesa em nós
dois. — Olha só o que vocês fizeram, seus babacas!

Ainda espantados com que acontecera, Douglas e eu nos entreolhamos. Agora, um


sentimento de culpa pintava o castanho de seus olhos.

— Eu não queria fazê-la chorar... — começou.

— Mas fez! — retrucou Natasha, ainda de tom ríspido. — Os dois fizeram! Se vocês
não sabem o quanto um copo está cheio, então não se atrevam a colocar mais uma gota sequer.

Proferindo suas últimas palavras como se fossem um golpe no estômago, Natasha saíra
pisando fundo e bufando atrás de Amanda, deixando-nos sozinhos. Com as mãos cobrindo o
rosto, Douglas nada falou por alguns momentos. Eu quase poderia sentir a culpa exalando de si
— ou seria apenas a minha, que já pesava feito chumbo em meu corpo?

— Não queria tê-la feito chorar... Eu só ainda estava machucado com mais cedo,
machucado com a nossa separação... — finalmente Douglas estava se abrindo de verdade para
falar o que sentia. Por mais que comentássemos sobre o ocorrido, ele sempre parecia não falar
o que acontecia. Agora, no entanto, parecia estar quebrando esse muro que a vida o ensinara a
construir. — Droga! Estamos sofrendo também, não estamos? Eu sei porque brigamos mais
cedo, eu também sinto muito a falta da Amanda, só não consigo demonstrar assim como você.
Droga, explodi!

— Nós explodimos — confessei, agachando-me ao lado de onde ele estava sentado,


repousando a mão em sua perna, afagando sua coxa. — Eu não deveria ter dito o que disse. E
você não deveria ter segurado esses sentimentos por tanto tempo.

— Agora estragamos tudo, não é? — perguntou, mostrando seu rosto vermelho,


olhando-me completamente cabisbaixo. — Estragamos nossa única e última chance de fazer
com que Amanda voltasse com a gente... O que iremos fazer?

— Pedir desculpas. Pedir desculpas por termos dito que dissemos e seguir em frente. Só
nós dois.

Ele me olhou e, sem deixar de estar cabisbaixo, deu-me um pequeno beijo nos lábios.

— Vamos, é o mínimo que podemos fazer pela garota que gostamos.

Amanda
De frente para o espelho, encarava meu reflexo com os olhos completamente
avermelhados. Droga! Eu não acreditava que estava chorando, não agora, não na frente deles!
Eu estava indo tão bem tentando evitá-los, bancando a forte, fingindo mesmo que nada havia
me afetado, para desmoronar assim, na frente de todos? Agora, as lágrimas que foram
reprimidas por todo esse tempo pareciam querer se rebelar todas de uma vez só. Cada gota que
descia por minha face, era a certeza do fim de toda a minha atuação. Não poderia dar mais um
único passo... Era chegado, enfim, o momento em que teria que decidir quem iria escolher ser...
Seria a garota que não conseguia parar de chorar defronte a imagem desgraçada de seu reflexo,
a hipócrita que preferia manter as aparências por pura vaidade, mesmo que isso significasse um
completo aparte daqueles que amava, a fraude a qual bancava ser forte, que não estava satisfeita
consigo mesma, só para receber a aprovação da titia fulana que pouco tem a ver com sua vida?
Ou seria a mulher que é, que preferiria enfrentar o mundo, e que poderia ser facilmente taxada
de puta, mas, se assim acontecesse, estaria com um largo sorriso nos lábios avermelhados, pois
antes de tudo, antes de qualquer afirmação moralista, era aquela infinitamente feliz com aqueles
que amavam?

Eu já havia tentado agradar ao mundo, sufocando-me nas hipocrisias de todos os


moralismos que conhecia... Não estar com Lucas e Douglas, somente porque os outros iriam
pensar alguma coisa de mim?! Ah... Eu conhecia esse maldito peso, e simplesmente não valia
a pena. Se estar de acordo com padrões sociais não era o suficiente para me fazer feliz, então
eu simplesmente não estaria, começaria a estar em comunhão com os meus padrões. Por que
havia demorado tanto tempo para me dar conta?

— O importante é que, agora, você sabe o que fazer — disse Natasha passando a mão
em meus ombros.

Enxuguei as últimas lágrimas e respirei fundo. Ela estava certa. Há muito tempo eu sabia
o que deveria fazer, só fingia ignorar. Não mais.

— Amanda?

Virei-me apressada em tempo de ver os dois garotos — os meus dois garotos — parados
em frente à porta do banheiro feminino. Estávamos em horário de aula e nós quatro éramos os
únicos do lugar. Assim que eu os vi, aquele turbilhão de arrependimento devastou tudo dentro
de mim. Novamente, minha visão foi embaçando com mais lagrimas desejando afogar meus
olhos.

— Perdão se te machucamos lá dentro — falou Douglas, sem jeito, mas completamente


sincero.

— Nunca faríamos isso de propósito — completou Lucas. — Desculpe.

De início, a única coisa que consegui foi dar pequenos passos em direção dos dois,
limpando as lágrimas dos olhos as quais, agora, rolavam ainda mais intensamente. Segundos
depois, eu já estava no braço dos dois, falando tudo aquilo que havia segurado por tanto tempo.
O quanto sentia falta de seus abraços, das nossas conversas, do nosso beijo... O quanto era
horrível não estar perto deles. E, claro, o quanto sentia por ter pedido uma separação.
— Tudo bem... — respondeu Douglas, alguns segundos depois de conseguir me fazer
para de soluçar, e dessa vez, seu tom estava caloroso e aveludado, assim como era de costume
seu. — Nós sentimos muito a sua falta, Mandy.

— Mas o importante é que agora podemos conversar, não é? — prosseguiu Lucas,


acariciando meu rosto com sua mão quente. — Vou logo avisando que nunca mais iremos te
soltar!

— Eu é que não vou soltar vocês dois! — disse, finalmente tomando o controle de mim.
Como senti falta daqueles abraços... daquele porto... — Demorei demais para descobrir que
mais vale ser feliz do que “bem-falada”...

Minhas palavras cessaram assim que meus lábios tocaram a boca de Lucas... Meu
coração quase explodiu ao sentir seu beijo novamente, aquela sua boca macia... Aquele seu
gosto doce de hortelã... Após, então, a barba rala de Douglas, o gosto quente de seus lábios...
Seu cheiro... Como fui capaz de pensar que estava fazendo a coisa certa indo contra a tudo que
eu queria, só para manter as aparências?

— Está bem, você me convenceu... pode ficar com a cantiga de amigo — falou Lucas
numa voz rouca, conseguindo arrancar um sorriso meu.

— Ah, finalmente! — bufou Natasha, atrás de nós, ainda dentro do banheiro feminino.
— Nunca entendi porque demoraram tanto para se resolverem! Agora, se não se importarem,
vocês podem deixar os amassos para outra hora, na cama, sei lá?!

— Claro! — respondi, sorrindo para ela e para os meus dois meninos. — Vamos, temos
que voltar para preparar o nosso trabalho! E mais tarde, quem sabe...

Foi assim que fizemos nossas pazes, percebendo os pesos conflitantes da felicidade e da
aparência. Saímos do banheiro feminino de mãos dadas mesmo, retornando para sala de
estudos, afim de terminarmos o trabalho, antes de voltarmos para nosso mundo particular.

Os dias que sucederam tal episódio, foram, de fato maravilhosos, como sempre
costumavam ser quando estávamos juntos. Aproveitamos cada instante de segundo que
havíamos estado distantes uns dos outros, cada beijo, cada afago... Éramos, mais uma vez, os
três amantes, navegando silenciosamente em meio ao mar de prazer em um mundo inteiramente
nosso...

E por amor ao mar, mal sabíamos que nossas intempéries só estavam começando.
Capítulo VI — O Código

Douglas

Já repararam que todo início de relacionamento parece se passar num pedaço resgatado
do Éden? Sem se preocupar com um mundo fora das paredes sagradas, os apaixonados amam
a si e aos frutos do paraíso, inocentes — certo, alguns não são tão inocentes assim —, de olhos
vendados, tendo apenas o conhecimento do bem, e jamais do mal. Surgem as músicas
dedicadas, os escritos, os presentes e todo aquele papo de “mon amour, meu bem, ma famme”.
Tudo é tão incrivelmente gostoso, que parece ser o suficiente para nos cegar de todas as
dificuldades e caminhos esburacados que levam ao futuro. Os mais pessimistas dirão que tais
obstáculos são indícios de um único fato irremediável: relações amorosas foram feitas para dar
errado.
— Meu filho, aprenda com seu tio enquanto ainda é tempo! — dizia tio Daniel, desde
que eu era uma criança, sempre que a cerveja lhe subia a cabeça. — Casamentos, namoros são
como submarinos: Você até pode ver fora d’água, mas acredite, ele foi feito para afundar! — e,
sendo o único a achar graça, me dava um tapa nas costas e ria até que eu estivesse bem longe.
Claro, eu odiava a tal piadinha que era repetida incansavelmente em todos os encontros
de família, e por mais que resistisse à ideia de que meu tio alcoólatra pudesse estar certo, o
passar dos anos parecia tentar me provar o contrário. Nunca conheci uma história de amor que
houvesse dado certo — amigos, tios, primos. Nada. Nenhum deles poderia me servir de
testemunha de defesa para a acusação gravíssima contida naquela piada.
Meus pais? Esses tiveram a mais desgraçada história de amor que conheci. Logo após
eu ter completado oito anos de idade, minha mãe descobriu que meu pai mantinha um caso com
uma de suas melhores amigas por anos! Por anos! Não foi uma casualidade, um erro de
percurso, uma bobagem de bêbado de que você se arrepende no dia seguinte — não que eu
esteja defendendo tais casos —, mas se tratava de uma traição constante, duradoura e
premeditada, uma vida dupla! Por um tempo extremamente longo, meu pai dormia ao lado de
minha mãe, prometia-lhe amor único, cobrava confiança, fidelidade, e, mais do que tudo isso,
a enganava cada dia de todas as formas possíveis — e com uma amiga!
O período que sucedeu a descoberta foi o pior da minha vida. As brigas foram diárias
até que, enfim, cansados de tanto gritar um com o outro, os dois decidiram se separar.
Separando-se: meu pai se mudou para bem longe — se esquecendo dos filhos —, e minha mãe
para o sofá, onde passou todas as noites, por muitos meses, chorando até dormir, sempre
acompanhada por uma garrafa de uísque. Bêbada e depressiva.
Claro que a Dona Silvana, minha mãe, tentou seguir com a sua vida, apesar de nunca ter
se casado novamente. Arrumou outros paqueras e alguns namoros sérios, mas nenhum deles
durou muito tempo. No fim de cada relacionamento — duradouro ou não —, ela reagia da
mesma maneira, como numa repetição maluca da separação do meu pai: chorando e bebendo
no sofá até cair no sono. Talvez por essa razão eu sempre tenha levado minha vida em completo
segredo para ela, falando pouco do que acontecia comigo, dos meus relacionamentos... Desde
que meu pai nos abandoara, era minha mãe que precisava ser cuidada, não eu.
Mesmo com o exemplo infeliz, ainda tentei resistir. Continuava a odiar a maldita piada
do meu Tio e, aos quinze anos, me apaixonei por uma garota de meu bairro: Roberta. Mesma
idade, amiguinha de vizinhança desde quando éramos crianças, eu era adorado por seus pais e
avós. Claro, começar a namorar fez com que as piadinhas de Daniel passassem a ser
incansavelmente mais recorrentes — contudo, continuava firme em mostrar que ele e sua
ridícula anedota estavam errados. Eu estava certo em lutar por alguém de quem gostava. Nós
não afundaríamos!
Afundaríamos?
Bobo e desprevenido, fui me deixando levar pela paixão que senti. Era carinhoso,
atencioso e até romântico — na medida em que a idade me permitia ser. Visitava Roberta todos
os dias, assistíamos filmes, e nas primeiras semanas, conversávamos horas e mais outras tantas
horas por telefone antes de dormir... Como disse, eu me comportava como qualquer outro
apaixonado: cego por aquele pedaço de paraíso, como um marujo decidido a não naufragar...
Mas que um dia, naufragou.
As primeiras mudanças que percebi, porém, apareceram pouco depois de dois meses.
Roberta se tornou impaciente, não queria ver filmes, muito menos conversar antes de dormir.
As visitas diminuíram sem explicação — dor de cabeça, cansada, brigas com os pais, capítulo
final da novela... O tempo inteiro que restou de nosso namoro, não houve um único dia que não
me culpasse pela sua nova forma de se comportar. Era culpa minha, não era? Se aquilo estava
acontecendo, se o nosso amor estava afundando, eu deveria ser o único responsável. Sem
conseguir dormir, repassava cada detalhe de nossas interações — das mais bobas até as mais
complicadas — procurando qualquer coisa que pudesse me indicar como poderia me desculpar.
Até que, numa sexta-feira qualquer, resolvi levar um presente que havia comprado. Portas
abertas, entrei sem avisar, com intuito de fazer uma surpresa, sendo eu, porém, o único a ser
realmente surpreendido: esparramado no sofá, apenas de cueca, encontrava-se um garoto. A
situação que já seria ruim o suficiente, piorou absurdamente ao me dar conta de quem era.
— Douguinho! — disse o desgraçado ao me ver entrar. — Por que você não bateu, cara?
É falta de educação entrar assim na casa dos outros, a titia não te ensinou?
Sim, eu o conhecia. O tal garoto, alguns anos mais velho, esparramado e seminu no sofá
da minha namorada se tratava de ninguém menos do que meu primo, Ricardo — e o pior de
tudo: filho do tio da maldita piada. Levantando-se e vindo em minha direção, o otário não
parava de sorrir, achando divertido tudo o que acontecia.
— Roberta tá ocupada agora, tomando banho, depois de ficar com um homem de
verdade! O quê? Não me olhe assim, claramente alguém deveria fazer esse papel — falou,
empurrando-me para fora da casa. — Depois você volta para assistir filme, tá bom, priminho?
Meu mundo ficou vermelho. O desejo que me veio naquele momento, sentindo cada
empurrão em meu peito, foi de socar tudo o que aparecesse em minha frente. Pular em cima de
Ricardo e esmurrá-lo feito um louco faria.
Como Roberta poderia ter me traído? Ainda mais com meu primo, que não passava de
um babaca exibido! Riquinho. Mimado. Desgraçado!
Saí sem fazer nada e nunca mais voltei a olhar na cara de nenhum dos dois. Deixei de
andar em reuniões de família — porque eu tinha certeza que se ouvisse mais uma vez a piada
do submarino, iria socar meu tio — e me fechei completamente para qualquer experiência
amorosa, passando a ter apenas contatos rápidos, inteiramente físicos e sem apego algum.
Por mais que eu odiasse, havia, finalmente, desistido de lutar contra a maldita piada.
Meu tio estava certo: relacionamentos amorosos, nunca, nunca dariam certo, e repetia esse
pensamento toda vida que começava a me apegar a alguém.
Relacionamentos amorosos nunca dão certo! — dizia uma voz em minha cabeça,
sempre que pensava em ter algo mais sério com alguém, e fugia antes que algum desastre
pudesse acontecer, porque sempre acontecia.
Relacionamentos amorosos nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão
certo! Relacionamentos amorosos nunca dão certo! — era como um mantra, ansioso e doentio
— Relacionamentos amorosos nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
Foi entre essas repetições que conheci Amanda e Lucas, então, alguma coisa mudou.
Alguma coisa na voz mudou. Não sei se foram seus beijos, seus carinhos ou suas paixões, mas
alguma coisa naqueles dois — alguma coisa em nós três! — conseguiu calar a maldita voz.
Minha ansiedade com relacionamentos e minhas inseguranças não sumiram como se
nunca houvessem existido. Isso não acontece. Entretanto, desde Roberta, eu via naqueles dois
e no relacionamento louco e fora do comum que possuíamos uma chance dar as costas ao
passado para caminhar de mãos dadas com outras pessoas.
Novamente, então, voltamos ao paraíso.
Dançávamos, bebíamos e nos curtíamos como recém-amantes sem nos preocuparmos
com as dificuldades de se ter um relacionamento a três.
Éramos três adolescentes apaixonados. Três pessoas completamente distintas, com
manias e excentricidades — por “excentricidades” leia-se aqui, as Lucas — que resolveram
ficar juntas. Se o sentimento que nos unia por um lado conseguia render momentos incríveis,
por outro, não era capaz apagar essas diferenças que podiam nos levar a pontos extremamente
distintos. Dessa forma, por mais amigos e apaixonados que fôssemos, era impossível não brigar
algumas vezes — e sim, admito, Amanda e eu brigávamos com mais frequência do que algumas
vezes. Sempre parecia existir alguma coisa boba e sem importância que trazia uma discussão.
Nesses momentos calorosos, Lucas agia como uma balança neutra, tentando amenizar as
queixas entre nós dois. Um intermediário de nossos diálogos. E quem o via assim, tentando
conciliar nossas brigas, mantendo uma calma e compreensão sobre-humana, mal acreditaria
que Lucas era muito pior que Amanda e eu quando explodia, ficando incrivelmente carrancudo.
Eram explosões “homéricas” — como ele gostava de descrever, da sua forma difícil de falar —
, que, embora rápidas, faziam-no mudar completamente. Não havia mais nada do garoto meigo
e doce nas irritações de Lucas, mas alguém diferente, que sumia depois de algum tempo com
sinceros pedidos desculpas por ter saído do sério.
Eu sei que pode parecer um péssimo relato no primeiro momento, com todas essas
discussões. Odiava brigar com os dois, é verdade, detestava ver a mudança de humor em Lucas,
assim como me doía a ideia de alguma vez magoar Amanda, contudo, para cada briga e cada
recomeço, existia uma prova de que continuávamos tentando. Não afundaríamos. Era o que eu
gostava de pensar, até que então, veio o dia em que a voz tornou a soar na minha cabeça...
Era uma manhã de sábado. Lucas e Amanda haviam ido à praia, enquanto eu
permanecia preso em casa com matéria acumulada. Passaram o dia inteiro se divertindo
SOZINHOS, aqueles dois! Sem mim! Tudo bem, me ligaram algumas vezes, disseram que
queriam que eu estivesse lá, que estavam com saudades... Porra! Se me queriam lá, por que
foram a sós?! Por quê?!
Porque Relacionamentos amorosos nunca dão certo! — respondeu a voz —
Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
Ansioso, enciumado, sequer conseguia estudar qualquer coisa. Conferia o celular a
cada cinco minutos — sempre com a voz ressoando em minha cabeça: Relacionamentos
amorosos nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
— Você não deveria andar só de toalha pela casa sem saber se tem visitas, Douglas!
— brigou Thaís, ao me ver carrancudo e seminu pela casa, indo de um lado para o outro após
um longo banho que não serviu para me tranquilizar. — A Patrícia está aqui!
— Ah, não fique envergonhado por mim! — respondeu a amiga. — Sinta-se em casa.
— Não estou — respondi de forma abusada e irritada. — Acredite, sou muito mais
sem vergonha do que isso.
— Ah é? Vou encarar isso como um convite.
— Como quiser — foi só o que falei, antes de retornar para o quarto, inteiramente
carrancudo.
Por que eu me sentia daquela forma? Talvez, porque, exista uma peculiaridade quando
se está em um relacionamento a três: todo sentimento parece vir duplicado. Sempre sentimos
paixão por duas pessoas, ou raiva, prazer... Logo, se sentimos ciúmes... acho que vocês me
entenderam. O que sentia naquele dia, era demais para um único homem. Senti ciúmes por
Lucas, por Amanda e pelos dois juntos! Mas como seria diferente? As semanas que passamos
separados ainda estavam bem vivas em minha cabeça. Um golpe era desferido sempre que
percebia o quanto Lucas estava sentindo saudades de Amanda naquela época.
Relacionamentos amorosos nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão
certo!
O tempo passava e novos pensamentos começavam a vir à minha cabeça: e se os dois
ficassem tempo demais sozinhos? E se eles gostassem desse tempo, sem mim? E se me
esquecessem? Se descobrissem que eu sou a ponta menos importante do triângulo, o que
aconteceria?
Ora! Relacionamentos amorosos nunca dão certo! Eu havia aprendido isso logo cedo,
por que seria diferente agora? Eu que havia sido tolo demais para ignorar esse fato.
Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
Quase não consegui dormir àquela noite. Bolei de um lado para o outro da cama,
lembrando todas as histórias de amor que nunca haviam dado certo. Meus pais, Roberta... até
que em algum momento, entre escuridão e vozes, apaguei.
No outro dia, nos encontramos. Estávamos sozinhos em minha casa, bebendo — eu
muito, muito mais do que eles. Ainda era o ciúme que me fazia beber daquele jeito. Sim, sabia
que deveria contar para Lucas e Amanda o que se passava comigo, mas não queria que os dois
vissem minha insegurança. Claramente, não consegui esconder meu mau humor, por mais que
eu tivesse tentado.
— O que você tem, cabeção?
— É, Doug, conta para gente. O que tá acontecendo?
Vocês vão me excluir.
— Nada — foi só o que respondi.
Lucas veio até mim, passando o braço pelo meu ombro, começando a fazer um
pequeno cafuné.
— Até parece que a gente não te conhece, Douglas — falou de forma mansa, dando
um beijo em meu rosto. — Você pode contar tudo para nós dois. Sabe disso, não é?
Assenti com um grande gole de cerveja e troquei rapidamente o assunto. Os dois não
acreditaram em mim, é claro, mas sabiam que eu não iria falar, por mais que tentassem. O difícil
mesmo foi continuar calado depois de toda aquela bebida. A cada nova garrafa de cerveja, eu
soltava poucas informações, como um garoto mimado e birrento que queria brincar, mas que
estava emburrado demais para pedir. Eles continuaram a me perguntar o que eu tinha, e eu, a
beber, até que, enfim, apaguei no sofá.
Para ser franco, me recordo de pouca coisa depois disso. Lembro de Lucas e Amanda
me levarem para a cama, mesmo com todo o protesto e birra. Lembro de me beijarem e fazerem
cafuné em minha cabeça até que de fato dormisse, dizendo que iriam cuidar de mim.
— Parem de fazer isso! Vão namorar vocês dois, não parem por minha causa! —
reclamava bêbado, repetidamente. — Eu sei me cuidar sozinho!
— Você não está sozinho — disseram ainda me fazendo carinho. — Estamos aqui com
você. Nós dois. — E foi a última coisa que me recordo de ter ouvido antes de desmaiar de fato.
Acordei com uma ressaca de anos esmagando a minha cabeça. Não que ela fosse a pior
coisa da minha manhã, pois nos primeiros momentos desorientado na cama, flashes de
memórias iam me fazendo acreditar que a ressaca física que eu sentia naquele momento não se
comparava em nada com a ressaca moral que surgiu com cada lembrança.
Eu havia me comportando como uma criança com aqueles dois. Birrento. Orgulhoso.
Inseguro. Sabia que Lucas e Amanda não mereciam a forma com que os tratei na noite anterior,
por mais enciumado que estivesse. Enfrentá-los na escola foi tão ruim quanto lembrar das
idiotices da noite passada. Não que eles em algum momento tivessem reclamado das minhas
ações ridículas. Para ser franco, a compreensão e carinho com que me trataram só deixou mais
óbvio para mim o quanto eu tinha sido injusto com os dois. Talvez por essa razão, ou por não
aguentar a maldita voz que não parava de gritar em minha mente — Relacionamentos amorosos
nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão certo! —, finalmente abri o jogo.
Estávamos no Nosso Lugar, apoiados no parapeito vendo o centro de Fortaleza ao fundo. Contei
de minhas inseguranças, das tristes histórias amorosas que existiam no meu passado e até as
crises de ansiedade que tive no dia em que foram à praia juntos sem mim.
— Eu também me senti assim, algumas vezes — confessou Amanda parecendo me
apoiar, embora soando completamente sincera — Logo que voltamos, quando vocês ficavam
sozinhos... Sempre fiquei pensando o que vocês poderiam estar fazendo sem mim, e isso me
deixava levemente enciumada...
— Levemente?
— Tá bom, Douglas, eu ficava mordida! — disse, sorrindo claramente sem jeito —
Fico pensando em coisas, tipo, vocês já...
— Não, não, claro que não! — interrompi também ficando envergonhado — Claro
que já fomos bem longe, você sabe! Mas... não faríamos isso sem você! Viu? Isso não tá dando
certo... Por que daria? Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
— O quê?! Mas é claro que está, isso são apenas alguns problemas e outras
caraminholas tolas... Além do mais, acho que pensei numa solução — respondeu Lucas,
estranhamente animado — Ainda bem que eu os trouxe hoje, parece que eu estava
adivinhando...
Dito isso, Lucas ajoelhou-se aos nossos pés e retirou uma caixinha de veludo negro de
seu bolso. Sorrindo de forma maliciosa, retirou de dentro dela, três alianças que brilharam à luz
do sol.
— Um pedindo em casamento?!
— Claro que não! — respondeu, continuando a sorrir — Ainda não. É uma aliança de
compromisso... O que significa que estou tentando fazer um pedido de namoro. Para os dois...
não só um nem o outro, mas os dois. Os meus dois! Eu já havia pensando nisso há um tempo,
e pelo visto, estava certo. Vocês precisam meter na cabeça de vocês uma coisa: não iremos nos
deixar! Eu não vou, pelo menos. Por isso, não há necessidade para se sentirem inseguros. Não
há necessidade para termos ciúmes, nós nos gostamos e ponto! Nós três! — Lucas falava de
forma tão confiante, enquanto tocava nossas mãos e fitava-nos os olhos, que nem mesmo minha
insegurança ou meus ciúmes podiam contestar. Eram sérias, todas aquelas palavras ditas. — E
se aceitarem continuar, juro que talvez tenha a solução para os nossos ciúmes...
— Solução para nossos ciúmes? O que seria?
— Um código, Cabeção. Ao aceitarmos namorar, criaremos um código! Regras, até
nos acostumarmos com o que temos. Até eu, o subversivo, admito que um pouco de ordem vai
cair bem nesse primeiro momento. Como disse, já fazia algum tempo que eu pensava sobre
isso, e por fim, acho que pensei em alguns itens. Vocês querem ouvir? — perguntou, olhando
para nós de forma atenta, parecendo um pequeno filhote esperando assentirmos para poder
prosseguir. — Primeiro, nenhum de nós três poderá ficar sozinho com outro sem a permissão
do terceiro, isso vai evitar o problema de ontem. Segundo, as conversas por celular, Facebook,
Skype, Whatsapp, todas serão também em trio. Terceiro, se iremos levar esse código à frente,
precisamos confiar uns nos outros. Confiança é essencial, não somente porque nosso
relacionamento é diferente dos demais, mas, se nós não confiarmos uns nos outros, não
poderemos namorar. Não poderíamos, mesmo que fôssemos um casal de dois! Eu preciso que
vocês confiem em mim, assim como confio em vocês. Não foi isso que Eros disse a Psiquê? “O
amor não vive sem a confiança”? Então! Se nós não formos capazes de confiar e acreditar no
que temos, sinto muito, ninguém mais conseguirá.
Amanda e eu permanecemos calados por mais algum tempo. Apesar de não saber quem
era Psiquê, eu sabia que era verdade tudo aquilo que Lucas falava para nós dois. Mas será que
não estaríamos sendo absurdamente otimistas? E se de fato, nunca fôssemos dar certo?
Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
— Então, o melhor seria desistir? — prosseguiu Lucas, como se pudesse ler o que se
passava em minha mente.
— Claro que não! Mas, falando assim, até parece que é isso... que o que nós temos é
fácil!
Lucas parou, novamente nos olhando por longo tempo. Amanda, desde o início da
proposta permanecia completamente concentrada, pesando cada palavra dita. Foi quando ele se
aproximou ainda mais de nós dois, o suficiente para tocar nossos rostos, um com cada mão.
— Certo, fui descuidado, e também podem me acusar de romântico, ridículo ou otimista!
Acontece que nunca estive tão feliz em toda minha vida. Mas não posso fazer isso sozinho, não
posso mais arrastá-los para esse mar louco que eu mesmo sugeri, sem que vocês prometam lutar
por nosso navio. Eu entendo se não quiserem, afinal, sei que não será fácil, nem mesmo prometo
que perderemos os problemas de vista, também não vou esconder que existe a chance de
afundarmos e nos arrependermos dessa viagem na qual embarcamos... contudo, saibam também
que algo difícil sempre se tornará impossível se não tentarmos, e aí, o resultado será o mesmo!
Ou pior, porque as sombras do que poderíamos ser podem nos assombrar para sempre... Eu
quero tentar, eu quero ficar com os dois... Mas só posso falar por mim. Então, e vocês? Vão
embarcar comigo?
Nada dissemos por alguns segundos, aproveitando o efeito daquelas palavras. Amanda,
com um sorriso cravado nos lábios, me olhou de uma forma terna e também repousou sua mão
em meu rosto, acariciando-o amorosamente. Assentindo, pôs sua outra mão no rosto de Lucas
e ambos esperaram minha resposta, ansiosos.
Por alguns segundos, esperei a maldita voz, que não veio. Continuava ansioso, é claro.
Eu, mais do que os dois, sabia que sim, existia uma enorme chance de afundarmos... mas, se
nosso namoro daria certo ou não, pouco importava naquele momento em que eu coloquei
minhas mãos nos rostos de ambos, embarcando naquele peculiar e improvável submarino.
Lucas tinha razão, precisávamos confiar no que tínhamos, precisávamos confiar em nosso
sentimento. Não que eu houvesse esquecido todas as dificuldades de se ter um casal de três,
sabia que continuaria sentindo ciúmes, entendia que demoraria um tempo absurdo para me
acostumar com a insegurança — ou talvez nunca me acostumasse —, mas não podia fugir sem
saber aonde iríamos — talvez eu finalmente provasse que a maldita piada estava errada, afinal.
Lucas propôs que dois de nós deveríamos colocar as alianças no outro. Mais um de seus
atos comumente simbólicos. Segurando-as nas palmas da minha mão, observei cada detalhe
dos pequenos anéis. Eles eram feitos de prata e pareciam caber perfeitamente em nossos dedos.
Na parte de dentro, as iniciais “A.D.L.” estavam inscritas com traços cuidadosos.
— Onde você conseguiu? — perguntei ainda analisando as alianças.
— Ah, comprei de um designer, cunhado de um amigo meu. Um ótimo trabalho. E o
melhor: ele nem perguntou por que eu havia encomendado três.
Fizemos o que ele sugeriu, colocamos as alianças, firmando, enfim, nosso namoro e
código. Como esperado, nossos ciúmes não evaporaram no ar somente por usarmos alianças,
mas nossas regras pareceram acalmar nossas brigas e inseguranças de forma considerável. Cada
vez menos os conflitos pareciam assombrar o paraíso particular em que nos refugiávamos.
Entretanto, por mais que tentássemos nos fechar para os outros, ainda éramos escravos de um
mundo exterior ao nosso triângulo, cheio de hipócritas que há muito pareciam ter esquecido a
essência do amor e tentavam ditar leis moralistas e massacrar a todos aqueles que ousavam
caminhar fora das fronteiras de suas mentes fechadas e obsoletas. Quanto a isso, regra nenhuma
conseguiria nos tornar imunes aos problemas que começavam a brotar a nossa volta, como a
desconfiança de nossos familiares ou a presença de estranhos em nosso romance.
Ainda levávamos o namoro em completo segredo. Por essa razão, quando alguém se
aproximava, não podíamos agir feito namorados de verdade, pelo menos não abertamente. Isso
significava que éramos proibidos de lançar olhares intimidadores, pegar na mão, falar que já
era comprometido, ou qualquer outra forma de “marcar território” para espantar babacas — de
ambos os gêneros — que desejassem chegar perto de qualquer um de nós três. Assim, se uma
pessoa parecia mostrar interesse, tínhamos que nos contentar ao descontentamento velado e a
desejar uma morte lenta e dolorosa para o forasteiro, unicamente em nossos pensamentos. Claro
que sempre um pouco de frieza do cortejado acabava com os planos de qualquer cortejador...
Bom, pelo menos, era essa a minha teoria.
— Ainda bem que já está aqui! Estava com medo de ficar aqui sozinha.
Parada ao meu lado, encontrava-se a garota de quem Amanda mais tinha ciúmes em
toda sua vida: Patrícia. Sim, a Patrícia, amiga de minha irmã, do outro dia.
Aluna do cursinho da nossa escola, vez ou outra topava conosco, ou somente comigo, e
embora não nos conhecêssemos bem, sempre abria um sorriso malicioso e fazia questão de
parar o que estivesse fazendo para vir me abraçar e dar um beijo no rosto, como se fôssemos
amiguinhos desde a alfabetização da tia Júlia. Alisava-me um pouco nos braços, conversava
coisinhas tolas e voltava novamente para o que fazia antes. Amanda ficava maluca! Porque
apesar do comportamento estranho, Patrícia era incrivelmente linda. Como poderia descrevê-
la? Não sou tão bom em descrições, quanto o Lucas, por isso gostaria de pedir desculpas
antecipadamente. Certo? Então, vamos lá: Sua pele era negra, seu corpo cheio de curvas, e,
embora eu não gostasse de cabelos curtos, os seus combinavam com seu rosto magro e fino.
Quando topamos pela primeira vez, não havia notado sua beleza, por raiva e ciúme. Agora,
porém, realmente percebia o quanto Patrícia era linda.
Minha teoria de que educação seca e um gelo casual resolvem assédios, definitivamente
não surtia resultados com Patrícia. Muito pelo contrário: a cada cumprimento extremamente
polido, cada sorriso amareladamente cortês, era como se eu a tivesse instigando ainda mais,
lançando silenciosamente um desafio, ou sei lá o quê! Parecia ver em mim um plano
extremamente difícil de ser executado, e não um homem que não queria nada com ela. E como
se ser amiga da minha irmã já não tornasse suficientemente difícil de ignorar sua presença,
pouco tempo depois que a conheci, descobri que Patrícia era, na verdade, nossa nova vizinha.
Quando o ônibus chegou estava completamente vazio, permitindo que sentássemos
juntos. E assim aconteceu.
— Sua irmã me disse que ia viajar com sua mãe para Canoa Quebrada, esse final de
semana... — começou Patrícia, no momento em que nos sentamos. — Você também vai?
Balancei a cabeça e continuei a mexer em meu celular, tentando sufocar qualquer tipo
de abertura para conversas. Claro que não foi o suficiente.
— Ótimo! Então, eu vou dar uma passadinha na sua casa para a gente conversar ou
fazer alguma coisa!
— Olha, não sei se vai ser possível, vou receber uns amigos amanhã e...
— Não tem problema! — me interrompeu. — Se eles gostarem de bebidas, serão meus
amigos também.
— Ah, claro...
Assim continuamos “conversando” até chegarmos a nossas casas. Na frente do portão,
Patrícia deu seu costumeiro abraço, alisando o máximo que podia de meu corpo, e quando foi
me beijar, fez questão de mirar na minha bochecha a pouquíssimos milímetros da minha boca.
— Amanhã aceito aquele seu convite, então... — e entrou.
Sem dar muita importância ao que falava, simplesmente dei de ombros e sequer falei
algo para Lucas e Amanda, seria apenas um estresse desnecessário. Além do mais, no Brasil,
ninguém nunca aparece quando diz “Ah, vou aparecer, está bem?”, e com Patrícia não iria ser
diferente, iria? Descobri a verdadeira reposta com pouco menos de uma hora após a saída da
minha mãe e irmã para a praia.
Convicto de que eram meus namorados, fui, propositalmente, atender a porta só de
pijama — que se resumia a um calção preto e gasto de algodão que eu usava para dormir, tão
velho, que me deixa mais despido do que propriamente vestido. Ao abrir, no entanto, lá estava
Patrícia, segurando uma garrafa de tequila. Ao me ver seminu, seus lábios esticaram-se em um
sorriso malicioso, enquanto seus olhos passeavam de cima a baixo do meu corpo — demorando
muito mais na parte de baixo...
— Se essa cordialidade virar moda... — falou balançando a cabeça e mordendo os
lábios.
— Patrícia! — sobressaltado, pulei para trás da porta procurando me esconder. Com
uma mão, eu segurava a maçaneta e, com outra, meu calção, para que ele não caísse por
completo com o pulo. Sem parecer fazer cerimônia alguma, Patrícia entrou em casa mesmo sem
convite. Sem acreditar no que estava acontecendo, continuei, ainda escondido — Você se
importa...?
— Nem um pouco! — Interrompeu-me, sentando no sofá da sala, cruzando as pernas,
sem retirar os olhos de mim — E não precisa ficar escondido, a vista estava maravilhosa!
Completamente envergonhado, embora carrancudo, fechei a porta e parei à sua frente,
cruzando os braços. Silenciosamente, rezava para todos os santos que eu conhecia para não
bancar o ogro estúpido, e continuar me comportando como um gentleman, um cavaleiro de
cavalo branco e armadura brilhante em forma de um calção depravado.
— Olha, Patrícia, essa não é a melhor hora, então, você precisa ir embora.
— Ah, não! De novo com essa postura? Você não acha que já chega desse joguinho,
Douglas? Que tal pouparmos tempo, está bem? Eu sei da forma com que você me olha, então,
porque não paramos com isso? — Patrícia se levantou, aproximou-se de mim, e fez menção de
tocar meu braço, contudo, recuei alguns passos. — O que foi?! Eu já te vi só de cueca mesmo.
— Eu estou usando um calção!
— Certo, mas eu vi sua cueca todinha — seus olhos vacilaram mais uma vez para baixo,
antes de completar. — E mais um pouco, diga-se de passagem... Então, por que não deixa de
vergonha e admite logo que você me quer também.
— Eu não quero! E eu... Eu estou namorando, então...
— Eu também! — respondeu, tentando novamente acariciar meus braços. — Mas
ninguém precisa saber, não é?
Mesmo que minha mente recusasse a ideia de fazer qualquer coisa, meu corpo começava
a reagir de forma distinta da razão... Era de enlouquecer! Meu nível de testosterona estava a
mil! Meu coração bombeava sangue para todos os meus músculos que desejavam ficar rijos,
enquanto eu estava ali, parado, sem conseguir mover um único dedo para afastá-la de mim.
— Patrícia... para... — arfei quase silenciosamente, sentindo o seu toque quente. Na
minha cabeça, aquelas palavras pareciam muito mais categóricas do que como saiu de verdade,
e sem me dar ouvidos, ela continuou a me fazer carinho e se aproximar de mim. Continuei a
recuar mais passos para trás, que não pareceram importar para ela. Seus dedos já não mais
estavam em meus braços, agora, desciam lentamente pelos músculos do meu abdômen com
suas unhas arranhando-me suavemente. Fechei os olhos tentando me controlar. Falar que a ideia
de ceder à tentação não passou por minha cabeça naquele momento seria a mentira mais
absurda. Eu era um adolescente de dezoito anos de idade num triângulo amoroso bissexual, não
era Deus! No entanto, a simples ideia de agir feito meu pai, como um traidor desgraçado, foi o
suficiente para me controlar. Eu nunca poderia quebrar a confiança dos dois. Antes que Patrícia
fosse capaz de acariciar mais alguma parte de meu corpo, segurei firme em seu pulso e a afastei
para longe. Dessa vez, por mais que odiasse a ideia de não ser educado com alguém, deixei o
trasgo gritar por mim: — NÃO, NÃO, NÃO, PATRÍCIA! CAI FORA! EU NÃO QUERO! JÁ
FALEI PRA PARAR! QUAL É O TEU PROBLEMA?!
O choque genuíno parecia não querer abandonar o rosto de Patrícia, que retrocedeu
alguns passos no momento em que a porta bateu atrás de nós. Amanda e Lucas estavam parados,
olhando para nós tão espantados quanto qualquer outra pessoa na sala. O susto, porém, não
durou muito para Amanda, que logo fechou a cara numa carranca e cruzou os braços de forma
nada amigável.
— Explicações? — foi só o que disse, olhando de Patrícia para mim, e novamente para
ela. Acredito que me ver seminu, completamente vermelho de vergonha, com a garota de quem
ela mais tem ciúmes na vida, não deve ter caído muito bem — Privacidade?
Parecendo finalmente se recuperar do choque, Patrícia falou:
— Esses são seus amigos? — apontando de forma desdenhosa para Amanda e Lucas.
— Namorados — rebateu Amanda rispidamente.
— São o quê?
— Na-mo-ra-dos. Namorados. Você é surda, minha querida, ou só não sabe o que é
namorado e por isso tá atrás do nosso?
Novamente, Patrícia pareceu ficar em choque. Olhava alarmada para nós três, como
aberrações de circo. A cada segundo que passava, começava a sentir que ela entendia o que
acontecia naquela sala, o quanto havia pisado na bola, quem era os dois parados que a fuzilavam
com os olhos, e muito provavelmente eu teria sentido pena do que acontecia, mas não era culpa
minha que a gente tivesse chegado a esse ponto. Entretanto, se alguém houvesse apostado que
ela sairia assim, desconfortável, atingida e com o rabinho entre as pernas, teria perdido todo o
seu dinheiro.
Ajeitando sua postura, e dando um grande suspiro Patrícia falou:
— Olha só, sua patricinha escrota: eu não sabia que esse pirralho fazia parte do clube
de suruba de vocês, tá bom? Mas quer saber, pode ficar — ela me olhou novamente da cabeça
aos pés, embora dessa vez, com completo desdém. — Até porque, eu não gosto nem de coisa
usada nem de veado — e saiu.
Eu podia sentir a vontade assassina de Amanda de voar em cima de Patrícia no momento
em que ela passou pelos dois batendo a porta e os pés. Sozinhos, o silêncio não demorou a ser
quebrado.
— Eu posso explicar...? — Tentei começar sem saber ao certo por onde.
— Clichê, mas não precisa, cabeção — Lucas interveio, se aproximando e acariciando
meu rosto — Nós ouvimos você gritar.
Amanda se aproximou também, sorrindo, embora eu soubesse que ainda estava
aborrecida com a cena anterior. Expliquei o que havia acontecido, como ela havia entrado, o
que havia me dito e o clima pareceu amenizar entre nós três. O que agradeci silenciosamente.
Já fazia algum tempo que programávamos aquele dia e odiaria que algo pudesse nos atrapalhar.
— Então — começou Amanda, bagunçando meus cabelos, enquanto estávamos em
minha cama. Deitado no centro, Lucas e Amanda repousavam suas cabeças em meu peito, cada
um de um lado. Nossas pernas se entrelaçavam umas nas outras, com toda a liberdade — Como
está se sentindo agora que foi rebaixado de sex symbol a coisa usada do clube de suruba?
— Doeu um pouco, na verdade.
— Ah! mas, eu ainda te acho um sex symbol, Cabeção — brincou Lucas, mordiscando
minha orelha.
— Isso é porque você tá apaixonado. Apaixonados sempre acham que estão namorando
com deuses.
— Bom... — começou Lucas novamente, incerto: — eu tenho um amigo que jura, com
toda a certeza, que já namorou com uma deusa...
— Você só se envolve com gente esquisita! Por isso que ficou desse jeito!
— Ah é? E como anda o clube de suruba?
Assim continuamos aproveitando o dia, brincando e nos curtindo, completamente
apaixonados em nosso paraíso, que havia resistido a um ataque externo. Eu estava certo: não
afundaríamos.

Amanda

— Querida, não demore. Guilherme chegou.


Assenti para minha mãe enquanto terminava de me arrumar, atrasada. Apesar do
incidente com a vizinha maluca de Douglas, passar a tarde nos braços dos dois ainda foi incrível.
Sem brigas nem inseguranças, aproveitando apenas os nossos carinhos e a paz que sentíamos
quando, enfim, estávamos juntos.
O mundo real só pareceu retornar a nós três quando minha mãe me ligou, avisando que
eu já estava atrasada para o jantar em família que estavam fazendo para conhecer a nova
namorada de Guilherme. Sendo excessivamente tradicionais, os dois fizeram questão de
preparar uma reunião para conhecê-la — e isso, posso dizer, me doeu um bocado, por perceber
que nunca aconteceria com nós três. Nunca receberíamos um jantar de nossas famílias. Nada
de boas-vindas, de conversas descontraídas. Nunca receberíamos sequer a aprovação de
alguém. Sabia muito bem que não estava sendo pessimista, apenas realista. Eram as tradições,
os bons costumes, as aparências que deveriam vir primeiro que a felicidade — eu mesma quase
havia perdido os dois por causa dos meus preconceitos bobos. Ao aceitar entrar nesse
relacionamento com Douglas e Lucas, eu estava ciente de que teria que levar uma vida dupla
bem longe de nossa família. Era o preço para sermos quem éramos — e, para ser franca, estava
feliz em pagar.
Dando os últimos retoques em minha maquiagem, saí apressada do quarto e fui em
direção à cozinha. Minha mãe e tio Roberto conversavam com a mesa posta, mas não havia
nenhum sinal de Guilherme ou de sua namorada. Sentei com os dois e fiquei mexendo no celular
distraidamente, até que:
— Finalmente, aqui está ela! — soou a voz de Guilherme, bobão e animado atrás de
mim. — Amor, essa é minha prima, Amanda.
Virei para vê-los e, então, paralisei, sentindo uma onda fria passar por todo o meu corpo.
Ao lado de Guilherme, segurando a sua mão, estava parada uma garota negra de cabelos curtos
e nariz em pé. Seus olhos estavam vidrados em mim e sua boca sorria de forma maliciosa,
parecendo se divertir ao perceber meu espanto.
— Muito prazer! — disse, estendendo a mão para mim, sem tirar o sorriso sádico dos
lábios. — Engraçado, você é muito familiar, tenho a impressão de que já nos conhecemos. Você
não acha?
Sim, é claro que nós já nos conhecíamos: a garota, namorada de Guilherme, era Patrícia.
Capítulo VII — O incidente com Catarina, a Mãe

Amanda

— Ela o quê?! — Lucas perguntou aos berros, do outro lado da linha.

Foi impossível deixar de ligar para os dois logo na primeira oportunidade que
consegui. Após as constrangedoras apresentações e a descoberta de que minha “arqui-
inimiga” — desculpem se soar dramático demais —, aquela que estava com as garras em
cima de Douglas horas atrás, era, na verdade, a atual namorada do meu primo. Tudo foi como
um turbilhão de constrangimento e raiva.

— Essa novela da vida tem cada reviravolta... — prosseguiu Lucas, ainda surpreso
com o ocorrido. — Você acha que ela vai contar para alguém?

Era a pergunta que não consegui retirar da minha mente enquanto jantávamos mais
cedo. Alarmada, meu coração parecia enlouquecer cada vez que Patrícia começava falar,
achando que poderia ser aquele o momento em que ela finalmente contaria a todos sobre o
ocorrido de horas antes. Os xingamentos, os meus namorados... Mas não, nada acontecia.
Como num jogo sádico, Patrícia apenas se divertia com minha apreensão, sorria de forma
cínica e prosseguia com um discurso qualquer.

O tempo que passei assombrada pela possibilidade de tudo ruir, sem poder fazer
nada, durou uma eternidade, parecia uma tortura psicológica que pareceu a eternidade. E
Patrícia sabia, isso era um fato! Naqueles minutos intermináveis de conversa, em que ela me
tinha nas mãos, em que brincava comigo como um gato maldoso faz com sua vítima. Tudo o
que eu queria era um segundo com ela, um momento a sós e algumas palavras. Pois eu não
ficaria de braços cruzados enquanto Patrícia me envolvia naquele jogo. Talvez a maioria das
pessoas se deixasse amedrontar, mas eu não. Não o suficiente para ficar submissa — eu nunca
mais ficaria submissa.

Felizmente, esse momento aconteceu em algum momento da noite em que todos


estavam entretidos com alguma notícia no celular. Patrícia se afastou com a desculpa de ir ao
banheiro e eu a segui disposta a confrontá-la. Ela se virou no momento em que percebeu que
eu a seguia, com um sorriso irritante nos lábios.

— Então, sua metidinha... — começou lentamente, fazendo meu sangue ferver quase
que instantaneamente: — como anda o Clubinho da Suruba?

Meu corpo tremeu, meu rosto ficou quente, mas nunca deixaria que Patrícia
percebesse que ela me afetava.
— Muito bem, na verdade — respondi de súbito, rezando para que minha voz
continuasse firme —, mas não se dê ao trabalho de demonstrar interesse: nós não aceitamos
vacas.

Os olhos de Patrícia se arregalaram e um gostinho de satisfação adocicou minha


língua por vê-la, enfim, afetada em algum momento desde o início da noite. Um segundo
depois, seu rosto se transformou numa carranca.

— Você tem muita coragem, não é, sua vadiazinha dada?! — disse, completamente
irritada. — Olha como tu fala comigo, porque eu poderia contar agora mesmo o teu
segredinho sujo para todo mundo!

Era a minha deixa. Enfim o momento que eu estava esperando para fazê-la
compreender todas as peças daquele jogo que se desenrolava a nossa frente.

— Ah é? Eu tenho um segredinho sujo? Pois vem cá, me conta: em que parte do meu
segredinho sujo você contaria que estava alisando o Douglas na hora da descoberta? — me
aproximei de Patrícia, sentido meu rosto queimar ainda mais intensamente de tanta fúria. Se
meu corpo ameaçava tremer novamente, cada vez mais eu agradecia por minha voz continuar
firme. — Aliás, vamos olhar os fatos, minha queridinha. Você é a nova na família, eu não.
Para ser franca, você não é nem da família ainda, apenas mais uma namoradinha do
Guilherme. Péssima, por sinal, uma das piores. É você que precisa ganhar a confiança de
todos, afinal, ninguém aqui te conhece. Nem minha mãe, muito menos meu tio. Já eu... Bom,
acho que deu para entender. Mas se for lenta demais, eu posso desenhar. Caso tenha
entendido, eu pergunto: você quer correr o risco de ser colocada para fora da família mesmo
antes de conseguir entrar? Eu acho que não. Por isso, que tal ficar caladinha?

Sua boca abriu na iminência de palavras que não vieram. Eu não sabia de onde, em
meio à minha raiva, havia conseguido tirar todas aquelas palavras que pareceram atingir Patrícia
como socos no estômago. Visivelmente contrariada, ela cruzou os braços e bufou dando início
a um grande silêncio entre nós duas. Paradas no corredor, encarávamos uma a outra, apenas.
Como numa guerra fria, lá estávamos nós: duas mulheres com grande poder em nossas mãos,
temendo e analisando quem seria a primeira a apertar o botão que explodiria tudo.

Nos momentos em que nossos olhos mutuamente se fuzilaram, eu pude perceber o


quanto nos odiávamos, embora fosse pouco o tempo que havíamos convivido. As farpas, os
xingamentos, nada pareceu ser tão intenso quanto os olhares que trocamos naquele silêncio. O
sentimento que queimava nosso peito ia muito além de Douglas, o incidente ou a rejeição. Nós
nos odiávamos por nos encontramos uma nas mãos da outra, as duas, com um misto de prazer,
por ter o poder de destruição da inimiga, e raiva por depender da outra. A pior pessoa de que
poderíamos depender naquele momento.

— Pois bem — Patrícia disse, por fim, com um desdém amargo —, fique longe de
mim, sua metidinha escrota, que eu fico longe de você. Entendeu, ou é burra demais para
isso?
Ignorando-a por completo, apenas saí do corredor e fui direto para o quarto. Ainda
sentia meu rosto em combustão devido à conversa, quando peguei o celular e comecei a discar
os números de Douglas e Lucas.

— Desculpem — a voz de Douglas soava pesada, ressentida. Era a primeira vez que
falava desde eu ter começado a contar o que havia acontecido. — Tudo isso é minha culpa.

— Não, não é. Não é culpa de ninguém — Lucas falava com sua voz doce e
compreensiva. — Aliás, você foi ótima, Mandy! Até eu fiquei com medo! Duvido que ela fale
alguma coisa.

— Não sei, não — prosseguiu Douglas, ainda preocupado. — Essa menina é louca e
sem noção. Não sei se podemos esperar bom-senso dela. Eu ficaria com os dois pés atrás com
ela.

Apreensiva, eu mordiscava a ponta de uma caneta velha, pensando nos cenários


possíveis: E se Patrícia contasse? O que seria de mim? O que seria de nós três?

Minha mãe nunca nos aceitaria, isso é um fato. Defensores dos bons modos e da família
tradicional — seja lá o que isso significasse nos dias de hoje —, meu tio e ela enlouqueceriam
só com a possibilidade de que eu poderia estar manchando a “boa imagem que uma menina
deveria ter”: doce, recatada e do lar. Eu nunca fui nenhuma dessas três coisas, eles sabiam muito
bem disso. Não era exatamente doce, já que sempre fui cabeça quente e me irritava com
facilidade. Nunca fui tradicional para ser recatada ou retrógrada para ser definida como “do
lar”. Mas o que estava fazendo ia muito além do que a mentalidade conservadora dos dois
permitia alcançar. Aposto que seriam capazes, inclusive, de me despachar para Manaus sem
pensar duas vezes, sem se importar com minha felicidade. Se, para meu tio e minha mãe, há
muito eu havia passado da linha por ser quem era, agora, estava muito além do horizonte — o
que, de fato, era uma coisa boa, pois a possibilidade nunca aparece para aqueles que não sabem
que ela existe. Eu não estava blefando sobre a possibilidade de nunca acreditarem nela — e
Patrícia sabia disso. Sua única chance de me derrubar seria quando ela houvesse ganhado a
confiança de todos, o que significava que era apenas uma questão de tempo para tudo vir à tona.

E quando esse momento chegasse, então, o que faríamos?

— Não acredito que posamos fazer alguma coisa quanto a isso — respondeu Lucas.
— Termos mais cuidado, talvez seja uma possibilidade, mas não consigo pensar em nada
mais... nada mais além de pistolagem, claro.

— Dessa ideia eu gostei! Meu bairro é cheio de pistoleiros, aposto que consigo um
desconto — Douglas brincou, para me fazer relaxar.

— Bobos!

A voz dos dois, as brincadeiras, os carinhos me fizeram retornar ao porto seguro, à


proteção que existia ao estar com Lucas e Douglas. O sentimento de calma e segurança, no
entanto, não duraria para sempre. Aliás, “calma” e “segurança” não foram duas palavras que
pareceram existir no decorrer da semana.

Ainda amedrontados com a possibilidade de Patrícia abrir a boca, nós três decidimos
não nos encontrar fora da escola — o que foi ótimo, pois pude aproveitar o tempo extra para
estudar dobrado para o vestibular — estudar era uma das estratégias mais eficientes que eu
utilizava para me tranquilizar. Estranho e nerd, eu sei! Mas já estávamos nos aproximando do
fim do primeiro semestre e sentia que deveria me dedicar ainda mais ao ENEM — talvez, se eu
me saísse bem, minha mãe não me expulsasse de casa, não é? Sozinhos na escola, passávamos
quase todo o tempo do intervalo no Nosso Lugar, pensando em possíveis cenários e bolando
planos para caso Patrícia resolvesse abrir a boca.

Apesar dos nossos medos e exageros, os dias, então, foram virando semanas e tudo
ainda parecia normal. Minha família agia como se eu não estivesse quebrando um dos maiores
paradigmas de relacionamentos contemporâneos. Estava claro que Patrícia não havia revelado
o nosso segredo, e, por essa razão, relaxamos um pouco mais, voltando a nos encontrar fora
da escola — embora ainda evitando a casa de Douglas.

— Não podemos nos esconder para sempre, Amanda — falava Lucas, sempre que
me via assustada. Estávamos os três em sua casa, espremidos no sofá da sua sala, aninhados
com as pernas entrelaçadas. — Além do mais — prosseguiu —, as provas estão chegando.
Deveríamos nos preocupar somente com elas para curtirmos as férias juntos...

Assenti, enterrando a cabeça em seu peito despido, sentindo sua pele quente sob meu
rosto. Normalmente, quando ficávamos assim, Douglas deitava no centro, embora, agora, no
sofá estreito, ele recostara-se atrás de Lucas, com seus braços passando por cima de nós dois.
Nossos corpos, que, a vista de outras pessoas, poderiam parecer brigar por espaço, na verdade,
batalhavam para permanecerem juntos, unidos, entrelaçados.

— Vem cá, deixa eu ajudar — Douglas falou, passando por cima de nós dois e indo
se aninhar no lado oposto, deixando-me ficar ao centro dos dois. — Sou ótimo em massagens
— lentamente, ele retirou minha blusa de algodão e atirou ao chão. Se há alguns meses eu
poderia me sentir desconfortável com o fato de ficar somente de sutiã perto dos dois, hoje eu
já não me importava. Com o passar dos dias, eu me sentia cada vez mais segura com Douglas
e Lucas, gostava desses nossos momentos de completa intimidade — Relaxa...

Lucas continuou a me fazer cafuné enquanto os dedos de Douglas dançavam por


minhas costas, e passamos alguns segundos conversando trivialidades. Escola, séries, livros...
até que paramos e ficamos completamente em silêncio, aproveitando cada afago, cada beijo...

O gosto de hortelã adocicava minha boca a cada beijo que recebia. Aquele momento
íntimo que se desenrolava entre nós três, era como nadar em um mar de sentidos em que cada
gota que tocava minha pele trazia arrepios pelo corpo: a respiração quente de Lucas em minha
face, os lábios macios de Douglas em minha nuca, os corpos dos dois colados ao meu, suas
peles quentes como se estivessem febris....
Minhas mãos passeavam livremente pelos seus corpos, sentindo desde os músculos
na barriga lisa e definida de Douglas, até os traços rígidos do maxilar de Lucas... Era como se
uma gravidade própria e imensurável estivessem nos entrelaçando, apertando-nos uns contra
os outros. Uma força voraz nos impelia aos beijos e aos toques. Era desejo puro, quente e
intenso que fazia meu coração martelar forte, completamente descontrolado.

Novamente como numa dança, nossas respirações se encontravam no ar, nossos


corpos se exploravam. Eu nunca havia me sentido assim com ninguém — percebia entre
toques — com total liberdade e segurança de explorar e me deixada explorar. E mesmo com
todos os avanços que havíamos tido naquele tempo em que estávamos juntos, o fato é que
nunca havíamos chegado tão longe... nunca... até que...

... Até que vozes soaram do lado de fora do apartamento!

Lucas
Amanda e Douglas pularam para fora do sofá de uma só vez, assustados, como se a
voz que ecoava pelo corredor fosse a voz da própria estrela da manhã caída, expulsa dos céus,
o próprio Satanás — quando eu sabia que era muito pior: meu pais.

Os dois olharam-se por um segundo, ambos sem camisa, e olharam para suas roupas
jogadas — a de Douglas perto do meu quarto e a de Amanda no chão da sala —, calculando
quais eram as chances de tudo dar muito errado. Ora! Era claro que não precisava ser um
gênio em matemática para saber o resultado dessa equação: pelo volume da voz, faltavam
poucos segundos para meus pais entrarem no apartamento e o quarto estava demasiadamente
longe para chegarmos a tempo sem sermos visto. Mesmo que se fizesse soar a tocata de Bach,
a fuga nunca daria certo naquela circunstância.

— Escondam-se no banheiro! — cochichei, apreensivo. — Rápido!

Automaticamente, Douglas e Amanda se meteram dentro do banheiro social, bem no


momento em que o tilintar das chaves e o barulho da porta abrindo ecoaram pela sala,
anunciando, enfim, que o tempo havia acabado.

— Não acredito que Morgana teve a coragem de me procu... — as palavras de minha


mãe cessaram de repente, ao dar de cara com a imagem à sua frente, isto é: um filho, que mal
saía sem camisa do quarto, seminu no sofá, com uma almofada repousada no colo por
motivos suspeitos e de cara completamente avermelhada, envergonhado. Após alguns
segundos atônita, ela retomou sua compostura e prosseguiu com a voz mais séria que pôde
encontrar: — Lucas Holanda de Alencar! O que diabos está acontecendo aqui?

— Calor? — Tentei, incerto, não convencendo nem a mim mesmo. — Não me


acostumei com o clima de Fortaleza, muito, muito quente! Mas vocês sabem: odeio falar de
mim. Vamos falar de vocês! Que absurdo, mamãe! Qual o problema com essa... Morgana?
Ignorando-me completamente e notando que alguma coisa errada acontecia, minha
mãe deu mais alguns passos, franzindo seu nariz anguloso e olhou a sala como um detetive
olharia uma cena de crime, meticulosamente. Analisava cada coisa que estava ou não fora de
seu lugar. Sofá, mesinhas, tapete... até que, por fim, seus olhos vacilaram para a blusa de
Amanda jogada ao chão, e, como se soubesse o que havia acontecido logo depois, virou-se
para a porta do banheiro. Que infernos! Como ela conseguia fazer isso?!

— Lucas... — começou ela, novamente, andando na direção do banheiro, com o


indicador levantado. A cada passo que dava, meu coração parecia despencar dez andares. Dez,
dez, dez e mais dez. — Pelo amor de Deus, não me diga que...

Sua voz se perdeu no martelar da minha pulsação em meus ouvidos. Eu não


conseguia pensar em nada além do que iria acontecer naquele momento. Ela ia entrar! Ia
entrar no banheiro e veria os dois lá dentro! Estava acabado. Era isso, finalmente tudo iria ser
relevado.

Levantei-me apressadamente para impedi-la, mas, antes mesmo que chegasse à porta,
meu pai se intrometeu, colocando-se entre minha mãe e os meus dois namorados
(escondidos).

— Vamos, Catarina! — falou, pegando sua mão, afastando-a alguns passos dali. —
Deixe de bobagem! Você vai entrar no banheiro e depois? O que é que você vai fazer? Vamos
para o quarto — e depois retornou a me olhar só de cueca box branca, da forma mais séria que
podia, embora estivesse claro que aquela situação embaraçosa o divertia, e continuou: —
Lucas, arrume essa... essa... bagunça! E sei lá, vá para o quarto. Conhece esse lugar, não é?
Íntimo, privado...

Completamente contrariada, minha mãe se afastou do banheiro e foi com meu pai em
direção ao seu quarto. Antes que se fosse completamente, porém, parou no meio do caminho e
se virou para mim, com o rosto inteiramente sério.

— Quando é que você vai virar adulto, Lucas? — perguntou, em tom severo e
categórico, levantando o nariz como sempre fazia ao ralhar comigo. — Não é assim que um
Holanda se comporta. Escute bem: darei cinco minutos! Cinco minutos! Quando voltar, eu
quero — fez uma longa pausa, acompanhado de uma careta, olhando mais uma vez a sala
desdenhosamente — tudo dentro dos conformes. Fui clara?

— Clara como a luz do seu sorriso, mamãe.

Ela fez uma enorme pausa, fitando-me dos pés à cabeça com uma postura austera, de
certa maneira até impiedosa, e saiu com os sapatos de salto alto martelando no piso — toc,
toc, toc, toc.

Bom, como nunca havia tido a oportunidade de apresentá-la, não vejo momento mais
oportuno para tal: eis minha mãe. Se alguém parecia fazer completa justiça ao nome que
recebera, era ela. Embora nunca houvesse conhecido meus familiares maternos, ou ouvisse
história sobre eles, minha mãe sempre me contava que minha avó escolhera seu nome em
homenagem à imperatriz Russa: Catarina, a Grande. Era um nome poderoso, destemido —
contava-me ela. Muitas vezes, cheguei a desconfiar que seria por essa razão que minha mãe
sempre parecia se comportar como a própria imperatriz, de forma poderosa, comandando a
todos, desejando que tudo estivesse sob seu controle — ao que parecia, esse seu porte ajudava
em sua fama como advogada. Também gostava de manter uma postura nobre, sóbria, séria, e
insistia que eu fizesse o mesmo. “Não é dessa maneira que um Holanda deve se portar” —
Dizia na maioria das vezes que me dava uma bronca. Talvez Catarina, a Mãe, achasse por
certo que esse lance de sustentar o nome da família poderia me inspirar, quando na verdade,
mais me fazia achar que ela saíra de alguma narrativa vampiresca da Anne Rice.

Meu pai, Alexandre, era completamente o oposto disso. Tranquilo e relaxado,


ponderava o outro lado da balança, mantendo a harmonia da casa. Era divertido, descontraído,
costumava fazer piadas e beber cerveja comigo. Também advogado, preferia os afazeres
administrativos e burocráticos, enquanto minha mãe ia para os tribunais intimidar e massacrar
seus inimigos. Era quem mais passava tempo comigo, na verdade, por essa razão, parecia
muito mais com ele do que com ela. Quando eu fazia alguma coisa de errado, dificilmente era
duro e deixava que minha mãe exercesse o papel da Lei em casa. Formavam um perfeito time,
aqueles dois, em tudo que faziam: meu pai dava suporte necessário, minha mãe arrasava com
tudo de forma impiedosa e devastadora. Duas engrenagens que funcionavam de formas
diferentes, mas complementares.

Como bem o falei, entre os dois, eu arriscaria dizer que parecia muito mais com meu
pai — exceto quando me irritava, nesses momentos, eu era a perfeita cópia de minha mãe —,
mas fisicamente, como era adotado, não parecia com nenhum dos dois. Alexandre tinha a pele
amendoada e olhos igualmente escuros, embora fosse apenas um pouco mais alto que eu,
tinha um porte atlético que sempre invejei. Minha mãe, por outro lado, era mais magricela, de
cabelos castanhos demasiadamente lisos, cortados com rigor militar até os ombros. Tinha
poucos fios brancos, mas os que tinha, deixava-lhe com aspecto imponente no lugar de
parecer velhice. Dentre todas as características das quais poderia eu tecer, o anil de seus
olhos, no entanto, era o que mais diferia nós dois. Seu olhar era assemelhava-se a um imenso
oceano gélido, rígido e absurdamente impenetrável.

Somente quando o barulho da tranca do quarto de meus pais se fez soar pelo
apartamento, foi que achei ser seguro para os dois abandonarem o esconderijo. Estavam
inteiramente ofegantes com a apreensão parecendo saltar de seus olhos. Se não fosse toda a
adrenalina que imperava naquele momento — meu coração ainda parecia pular peito a fora —
, vê-los assim, poderia ser uma cena fofa. Não ousaria falar isso em voz alta, é claro.

— E agora, o que faremos? — Perguntou Amanda de rosto inteiramente rubro,


correndo até sua camisa e vestindo-a rapidamente — Vamos embora?

Nervoso, Douglas assentiu algumas vezes, exasperadamente. Foi quando uma


centelha esperançosa — ou louca — brotou em minha cabeça.

— Vocês querem conhecê-los? — Sentindo um pequeno surto de coragem aquecer


meu peito, perguntei, como um adolescente inconsequente que era. Douglas, que já estava
vestindo sua camisa preta de gola V, a qual contrastava em seu corpo pálido, parou na metade
do caminho, absolutamente atônito e de boca entreaberta.

— Está falando sério? — Perguntou, ainda parecendo não acreditar em minha


proposta — Você não viu como sua mãe estava? Ela iria nos devorar antes que pudesse nos
apresentar.

— É um risco, não minto— abri um sorriso acanhado no rosto — Mas vocês teriam
alguma chance se eu me colocasse na frente e os protegesse!

Ora, vamos! Eu sabia que poderia ser loucura. Não, eu sabia que ERA completa
insanidade! Conhecia Catarina, a Mãe, o suficiente para visualizar seus gestos, suas falas e o
que faria se descobrisse que seu filho estava num relacionamento um tanto quanto... Peculiar.
Uma prévia: não seria algo bom. Mas esses eram meus namorados, as pessoas que me faziam
me sentir bem, acolhido. Os dois não só faziam meu peito bater mais forte, como o faziam
bater imensamente mais feliz — mesmo que de seu jeito desafinado. Não me importava se ela
enlouqueceria, se tentaria nos matar. Estava apaixonado pelos dois o suficiente para enfrentar
mil dragões de uma só vez, ou muito pior, enfrentar minha mãe.

— Eu sei que não é nada auspicioso, mas como eu falei: precisamos nos acostumar
com o fato de que as pessoas irão descobrir sobre nós. Eu não quero enfiá-los no banheiro
toda vida que alguém estiver por perto. Não, preciso me corrigir, existem propósitos mais
interessantes para fazer isso, e estou muito tentado, inclusive, mas quando eu o fizer, não
quero que a razão seja para escondê-los.

Os olhares de ambos pareceram se iluminar, com um sol ensolarado após uma pesada
e intensa nuvem de eletricidade. Douglas se aproximou, já devidamente vestido, acariciando
meu rosto e dando um beijo que estalou.

— Nosso herói! — sussurrou, roçando a barba rala em meu pescoço — Mas não
acho que devemos travar essa batalha agora. Hoje não.

— Concordo com Douglas — Disse Amanda, que também se aproximara e abraçava-


me por trás, com seus braços enlaçando meu corpo — Você tem razão. Não podemos nos
esconder, eu compreendo isso. Precisamos ser corajosos e aproveitar o que temos, sabendo
que ele é lindo, mesmo que outras pessoas não pensem assim... Mas hoje, o melhor que
podemos fazer é irmos embora. Não acho que é o melhor momento para conhecer seus pais é
depois de vê-lo só de cueca. Por falar nisso, corra para se vestir!

Assenti largamente, refugiado no enlace dos dois. Rapidamente, antes que o tempo
dado por minha mãe acabasse, já estávamos fora do apartamento, caminhando pela galeria de
lojas praticamente deserta. Andávamos abraçados a vista de todos, pela primeira vez desde
que ficamos juntos. No centro de tudo, um córrego artificial atravessava o Mall, o barulho da
água e o frescor tornava-o absurdamente agradável — ou talvez fosse só porque tudo naquela
noite, ao lado de Amanda e Douglas, parecia estar acontecendo de maneira bela e inefável.
Por algum tempo resolvemos ficar lá, sentado e um banco de madeira, aninhados,
conversando e nos acariciando amorosamente.
Era a liberdade que tecia a melopeia na qual dançávamos.

— Obrigada por lutar por nós dois! — Amanda acariciou meu braço e se aninhou em
meu ombro, fitando o córrego — Obrigada por não desistir de nós dois.

— Não precisa agradecer.... Sabem, eu não poderia fazer menos pelas pessoas que
amo — Falei em sussurros de forma tão natural e fluída como a torrente a nossa frente, que
mal havia notado as palavras que saíram lábios a fora. Saíram, apenas. Fluíram de dentro do
meu espírito e foram banhar Amanda e Douglas que se levantaram, com os olhos atentos em
mim — Sim, é isso mesmo que vocês ouviram — Sorri — Eu amo vocês.

Amanda voltou a repousar sua cabeça em meu ombro, apertando as mãos em meu
braço, enquanto os dedos de Douglas enrolavam-se em meus cabelos. Sorrisos resplandeciam
em seus lábios — Amanda mais largamente e Douglas de forma mais recatada, embora
sincera —, embora houvessem ficado em silêncio, voltando a encarar o córrego. Eu sabia bem
o que seu silêncio representava. Na harmonia que estávamos, não precisava que nenhuma
palavra saísse da boca dos dois, para entender o que passavam em seus corações.

Nós três nos amávamos.

...

Ainda naquela noite, após o passeio com Douglas e Amanda, precisei ouvir mil
sermões sobre o que havia acontecido. Imprudente. Imaturo. E se nós estivéssemos chegado
um pouco antes ou um pouco depois, o que nós teríamos nos deparado? Nunca reclamamos
sobre quem trazia para casa, mas que ficasse no quarto! Ora, Lucas Holanda de Alencar!
Não é assim que um Holanda se comporta, e outras milhares de coisas que escutei em
absoluto e satisfatório silêncio. Nada dito poderia acabar com meu estado de espírito. Após
concordar incondicionalmente — e sem dar importância — tudo o que me avisaram, corri
para quarto e me joguei na cama inteiramente feliz, satisfeito — em completo júbilo!

Transloucado ou não, adormeci lentamente com uma música suave ao fundo,


observando o luzir nos céus janela a fora, enquanto ouvia e entendia estrelas.
Capítulo VIII — O Aniversário de Namoro

Douglas

— E então, como foi que vocês se saíram? — Natasha perguntou, olhando para nós
três.

Estávamos nós quatro no McDonald’s da Praça do Ferreira, largados na cadeira,


absurdamente exaustos depois do primeiro dia de prova. Ao ouvir sua pergunta, bufei, sendo
o barulho abafado pelo livro de matemática, que estava aberto em meu rosto como uma
bandeira de rendição.

— Tira isso do rosto! Não é assim que se aprende, e você vai acabar se machucando!
— Amanda retirou o livro do meu rosto e repousou na mesa, com um sorriso na boca. — Ou
pior: você vai acabar babando todas as páginas!

— Eca, Douglas! Que coisa feia! Eu não te trago mais para sair — fingindo irritação
com a gozação de Lucas, soquei seu braço levemente, mas o suficiente para quase fazê-lo
derramar um pouco de seu refrigerante. — Ei, cabeção, cuidado!

Ficamos implicando um com o outro, como se fôssemos duas crianças bobas,


apaixonadas, quando o riso de Natasha nos distraiu. Olhamos para ela, que logo respondeu:

— É muito lindo ver os três se dando tão bem assim! Até consigo sentir que alguma
coisa mudou, sabia? Fico feliz com isso.

— É difícil ficar bem com esse cabeção aqui — Lucas novamente gozou, revidando
meu soco —, mas a gente dá um jeito. Eu sempre compenso, você sabe como é!

— Compensa como? Com esse cabeção?! Além do mais, vocês dois até podem tentar
me esnobar, mas até parece que vocês não gostam desse corpinho aqui!

Amanda bateu o livro de matemática na mesa de forma bastante audível.

— Nada de vulgaridades na hora do almoço, Douglas — disse, tentando esconder,


fracassadamente, um sorriso. — Mas falando sério, meninos, precisamos nos apressar e
estudar.

Novamente bufei, deixando minha testa bater na mesa quase com tanta força quanto
o livro de Amanda. Junho, infeliz final de Junho. Época de provas bimestrais na Frederic
Walden, a pior época de se viver — tirando o vestibular. Com o intuito de melhor nos
preparar para o Exame Nacional do Ensino Médio — o famigerado ENEM —, a FW
preparava provas como se a gente estivesse realizando o próprio vestibular. Então, meu caro,
se você acha ruim passar pelo exame uma vez por ano, pense em como é passar por ele
quatro, cinco vezes — fora os simulados!

Era estressante e desesperador, principalmente para mim que nunca fui tão bom
assim em estudar. Sendo sincero, a própria ideia do vestibular me desencadeava crises de
ansiedade. Já estava praticamente no meio do ano e eu ainda não havia me decidido para que
curso prestar e, quando pensava nisso, parecia algo muito, muito mais difícil de encarar do
que meu relacionamento a três. Por sorte, Amanda e Lucas estavam juntos a mim, eu já não
me sentia sozinho quanto a isso. Por horas, os dois pesquisavam comigo cursos ou testes
vocacionais, ajudando-me a enfrentar as incertezas do futuro, nesse sistema que nos obrigava
a decidir a vida inteira no final do terceiro ano.

— E que tal Odontologia? Eu adoraria te ver de jaleco — Lucas insistia com essa
ideia de me ver na área da saúde, sempre que conversávamos sobre isso. — Acho que ia ser
bem sexy.

— Lucas, eu não quero passar minha vida enfiando a cabeça na boca das pessoas.
Obrigado.

Ele meneava a cabeça e dava de ombros falando: “Tá bom, mas que ia ser sexy, ia”.
Amanda era a mais centrada e séria quando o assunto aparecia em questão. Era muito fácil
para ela, pois desde cedo sabia que ia fazer Medicina, e, com a mãe psicóloga, no momento
em que assunto entrava em questão começava a reproduzir perguntas do tipo: como é que
você se vê trabalhando? Pensa em trabalhar em escritório? Gostaria de mexer com
criatividade? Gosta de pessoas?

— Odeio pessoas. Só aturo porque é o jeito!

— Trabalha com animais, então! Que tal veterinária? Eles também usam jalecos!

E assim ficávamos, por vezes, a madrugada inteira conversando. Era bom me sentir
cuidado de verdade, pela primeira vez na minha vida. Não que minha família deixasse de me
dar atenção ou cuidados, mas como eu já havia contado, sempre tive que bancar o durão da
casa, por minha mãe, principalmente. Dessa forma, por mais que não assumisse isso em voz
alta, eu gostava quando cuidavam de mim, principalmente em momentos de incertezas como
esses por que passava. Nos estudos, ter um relacionamento a três era uma vantagem. Cada um
era bom em uma área (Amanda era boa em todas, praticamente). Lucas em Linguagens e
Códigos e Ciências Humanas, Amanda em Exatas, eu em Biológicas. Acredito que nos
complementávamos bem. Em véspera de provas, dividíamos os conteúdos e nos ajudávamos.
Se um precisasse, os outros dois estavam lá.

Estudamos a tarde inteira naquele dia, na casa de Lucas. No dia anterior havia sido a
vez de Lucas nos ajudar, hoje, porém, nós é que o ajudávamos, e por mais que vez ou outra
nos desconcentrássemos, com beijos e caricias, era muito mais fácil estudar assim,
principalmente com Natasha presente — ela nos regulava para não perdemos o foco.
Por essa razão, talvez, embora o pré-vestibular fosse o pior ano para alunos do ensino
médio, eu não me sentia sozinho nessa jornada. Eu tinha os dois.
Vieram, então, as últimas provas no dia seguinte, e, enquanto respondia
nervosamente, ia notando que estava mais fácil do que havia imaginado. Claro, fácil na
medida em que noventa questões de matemática, química e física com textos imensos
permitiam ser. Tá, tudo bem, talvez não tivesse sido tão fácil assim, contudo, o importante era
que, ao findar de quatro horas que pareciam intermináveis, estávamos, os três, livres.
Estávamos de férias.

Amanda

— O que vocês querem fazer hoje à noite? — Lucas nos olhou com um sorriso
malicioso nos lábios. Estávamos no Aterrinho da Praia de Iracema — ou, como
costumávamos chamar, Praia dos Crush —, sentados na areia, mesmo que o dia não fosse
ensolarado. Douglas permanecia no centro de nós dois, com as pernas esticadas e ainda estava
molhado, com gotículas de água do mar caindo de seus cabelos pretos. O cheiro de sal e areia
era forte numa fragrância que nos envolvia em meio à leve brisa fria.
Esse era o nosso primeiro dia de férias, as quais havíamos prometido passar juntos,
aproveitando todo momento que pudéssemos. Douglas, que brincava distraidamente com a
areia parou e olhou, por cima dos óculos escuros, com uma sobrancelha levantada.
— Cabeção? — ele disse em tom desconfiado, inclinando levemente sua cabeça. —
O que você está tramando dessa vez?
Dando de ombros, Lucas olhou para toda a praia praticamente vazia com alguns
turistas, barraquinhas vendendo água de coco, e voltou a nos fitar da forma marota como
sempre costumava fazer antes de vir com alguma proposta indecente ou perigosa. Muito
provavelmente, os dois.
— Vocês poderiam... sei lá, assim, como quem não quer nada... passar lá em casa,
hoje à noite, depois do Lions... e aí acabar ficando muito tarde para voltar, e precisarem
dormir lá...? Como quem não quer nada, claro.
Douglas sorriu e o beijou no rosto.
— Seus pais vão estar em casa, não vão? — perguntei, tentada a aceitar a proposta.
— Sim, vão! — falou naturalmente, como se não fosse nada demais. — Alguém quer
água de coco?
— Então passamos para a próxima — disse Douglas —, obrigado.
— Mas vocês disseram que iriam conhecê-los!
— Quando não estivermos só de roupas íntimas ou cobertos com glíter, meu amor —
Lucas abriu a boca para retrucar, mas antes disso, concluí: — Eu sei que você fica bem só de
cueca. E que fica fabuloso com glíter! Mas eu não tenho tanta certeza assim de Douglas ou
mesmo se o seus pais concordariam!
— Quê?! — novamente Douglas parou de brincar com a areia e nos fitou de forma
alarmada. — Eu vou ter que me encher de glíter também?
Sorri com sua reação e o puxei pelos cabelos para dar um beijo em seus lábios.
— Claro que vai! Qual problema? Não tem segurança da sua sexualidade?
Douglas me deu uma pequena mordida enquanto me beijava e continuou, com tom
sarcástico:
— Eu sou muito seguro da minha sexualidade, tá beleza? — e se virou para beijar
Lucas de forma tão intensa como eu havia feito. — Viu só? Sou macho, discreto e fora do
meio. Tudo bem, nem tão fora do meio assim.
Enlaçando o pescoço de Douglas com o braço, Lucas começou a fazer um cafuné
brusco bagunçando seus cabelos negros. Era dia, como havia falado, não passava de nove
horas da manhã e, mesmo assim, lá estávamos, brincando e trocando carinhos livremente. O
medo que nos afligia anteriormente não passava de sombras que haviam ido embora com um
novo sol agora. O incidente com Patrícia e com a mãe de Lucas funcionaram como um gatilho
final para nossa aceitação — talvez mais minha do que dos outros dois, admito. Aceitar quem
éramos e que de fato teríamos que enfrentar o mundo, era a única coisa que nos restava fazer.
Afinal, já havíamos tentado ser discretos, cuidadosos, inclusive tentado não nos vermos, mas
de nada adiantava, sempre parecia que de uma forma ou de outra, deixando claro que nós
seríamos descobertos. A privação que nos impusemos só nos atrapalhou e machucou, quando
deveria nos ter protegido. Então, como eu poderia continuar convencida disso? Do que
adiantava tanto cuidado?

Preferimos a liberdade, então. Libertos, aproveitamos o restante do dia juntos.


Tomamos banho de mar, brincamos e conversamos. Fomos almoçar fora, eu pedi sushi —
meu prato favorito —, Douglas sanduíche e Lucas macarronada. Como numa brincadeira,
havíamos concordado em pedirmos pratos diferentes todas as vezes que fôssemos comer fora,
assim, poderíamos dividir e aproveitar três pratos no lugar de apenas um. O restante da tarde
foi dedicado unicamente a passear pelo Shopping em busca de roupas novas para Douglas e
Lucas. Era uma tarefa mais difícil do que poderia parecer. Se Lucas era um pouco mais
relaxado e não se importava tanto com as roupas que compraria, Douglas era mais vaidoso e
criterioso em suas escolhas. Um queria de menos o outro demais. Eu ajudava os dois e eles se
ajudavam. Trocávamos de lojas, experimentávamos roupas e nos divertíamos com isso —
porque até as tarefas mais sacais, com as companhias certas, podem se tornar festas
prazerosas.

Eu sei que poderia ser tolice, mas, naquela tarde, não agimos somente feito três
amigos como costumávamos fazer, mas como três namorados apaixonados. Isso era
importante, principalmente para mim.

...

— Vocês estão nervosos?

Estávamos dentro do Uber voltando para minha casa. Era a primeira vez que ambos
iriam me visitar. Como a festa a que iríamos seria no centro da cidade, minha casa havia sido
designada como ponto de encontro, inclusive para Natasha. Eu me sentia estranha, animada e
nervosa, tudo ao mesmo tempo. Passaríamos pouco tempo, é verdade, o suficiente para nos
arrumarmos, contudo, somente a ideia de vê-los no meu quarto, dentro da casa onde cresci,
me parecia como se, oficialmente, eu estivesse acertando os pontos das linhas partidas entre
meu passado e meu futuro. Era uma coisa íntima visitar o quarto de quem se ama, eu mesma
já havia experimentado isso antes. Todos detalhes da sua vida, de sua intimidade, as
lembranças, as fotos espalhadas — no caso de Lucas, suas roupas extremamente bagunçadas
—, os livros, os perfumes e as outras bobagens eram como pedacinhos de seu interior
expostos ao toque, e não qualquer toque. Era o toque de quem se ama — ao toque dos dois.

Os constrangimentos, porém, começaram mais cedo do que eu esperava. Ao


chegarmos, enfim, Lucas e Douglas entraram acanhados e acuados, como duas crianças no
primeiro dia de escola. O que era esperado, para falar a verdade. O que não esperávamos era
dar de cara com minha mãe, sentada na sala de estar.

— Amanda, querida, finalmente! — disse ela, repousando o livro que lia em nossa
pequena mesa de centro e se levantando de prontidão para vir nos cumprimentar. — Ora!
Quem são esses dois rapazes bonitos?

No mesmo momento eu senti os dois ficarem rígidos ao meu lado. Não esperávamos
que ela estivesse em casa e por isso não havíamos nos preparado para nada. Como se não
bastasse, somava-se a isso o fato de que Lucas sempre costumava travar em primeiros
momentos com estranhos e Douglas era ansioso por natureza. Não preciso insistir em dizer
que a cena que se formou não era nada tranquila ou relaxada de se ver, mas sim absurdamente
constrangedora e, de certa forma, denunciativa de que algo acontecia.

— Eu não vejo nenhum aqui! — brinquei, tentando amenizar o clima. Minha mãe me
abraçou e se virou para os dois, novamente. — Esses são Lucas e Douglas, meus amigos da
escola. Vieram para cá para gente se arrumar para a festa de mais tarde. Natasha também já
deve estar chegando!

Minha mãe sorriu de forma afável, embora seus olhos — esses que eu conhecia bem
— os analisassem silenciosamente. Cuidadosa, protetora, talvez estivesse reparando nos
mínimos detalhes de cada um: a forma como se vestiam, se estavam de barba feita, se
possuíam tatuagens, ou qualquer outra coisa que pudesse sinalizar para ela que representavam
uma “má influência” — por mais idiotas ou retrógados que seus critérios pudessem ser.

— Então, foram vocês que raptaram minha filha o dia inteiro? — falou, por fim,
abraçando-os também, sem deixar de sustentar o olhar analítico. — Finalmente! Achei que
não fosse conhecê-los nunca!

Alarmado e corado, Lucas falou:

— A senhora estava esperando para n-nos conhecer? — perguntou com uma voz
rouca e desajeitada. — P-por quê?

— Ora! Minha filha vai muito a casa de vocês, não é?! É mais do que comum que
uma mãe precise saber com quem anda! — ela olhou para mim, com um sorriso cortês
cravado nos lábios. — Ainda bem que meu jantar foi cancelado. Odiaria perder essa chance
de ouro! Vamos, vamos, sentem-se!

— Mas eles precisam se arrumar também — tentei falar, mas fui interrompida por
um gesto de mãos da minha mãe.
— Pode ir primeiro, querida, eu adoraria ter um tempo com esses garotos.

Douglas e Lucas se sentaram no sofá mecanicamente, de forma quase sincronizada.


Mesmo com o pedido de socorro estampado na cara de cada um deles, deixei-os com minha
mãe na sala e fui me arrumar o mais rápido que pude. Antes mesmo que eu entrasse no
quarto, já conseguia ouvir o início de um interrogatório — Então, me contem, com quem
vocês moram? — de uma mãe psicanalista e obsessivamente neurótica.

Rapidamente, tentei fazer tudo o que podia para livrar os dois daquela situação
embaraçosa. Podia imaginar milhares de perguntas que ela faria: Se moravam com os pais...
pai e mãe? Como eles eram? Namoravam? Gostam de estudar? Qual era o curso que tentariam
no vestibular? Algum de vocês dois estavam namorando minha filha? Parecia exagero da
minha parte, mas eu sei que minha mãe não pegaria leve com nenhum dos dois, por mais
constrangedor que tudo pudesse se tornar. Aliás, para ser franca, eu não sabia se os dois iriam
sobreviver a tantas perguntas. Claro, odiava o jeito conservador com que minha mãe insistia
em me tratar. Já havia discutido com ela inúmeras vezes, mas nunca, nunca parecia surtir
efeito.

— Certo, pode liberar o pescoço dos dois agora! — disse, voltando para a sala já de
banho tomado. Aliviados, os dois me olharam e seus ombros caíram relaxados. Lucas e
Douglas estavam avermelhados de vergonha e minha mãe continuava serena, como se
estivesse tendo uma conversa casual, nada constrangedora. — Seu tempo de interrogatório
acabou. Pode deixar os meninos livres.

— Mas estávamos tendo uma conversa ótima, não é, meninos? — Lucas e Douglas
assentiram, da mesma forma mecânica de antes. — Viu só?

— Eu te conheço, Dra. Marília! Então, já descobriu se algum dos dois é perverso?


Algum problema com a castração? É seguro levar os dois para o quarto agora?

— Amanda! — fingidamente, minha mãe colocou as mãos no peito de forma


caricata. — Eu não faço isso fora do consultório!

— Claro que não! Ainda bem! — puxei Lucas e Douglas pelo braço até meu quarto,
e os dois não fizeram nenhuma menção de me impedir. — Porque eu tenho certeza que Lucas
é meio perverso.

Ela se levantou, um pouco apreensiva, e ficou nos observando caminhar em direção


ao meu quarto.

— Não feche a porta, está bem?

— Mãe, precisamos de privacidade para conversar. Quando Natasha chegar, pode vir
conferir se estamos bem ou se estamos vestidos, se seu medo for esse. Beijinho! Te amo.

Fechei a porta ainda sentindo o olhar da minha mãe pesar sobre ela. Lucas e Douglas
quase desabaram no chão, relaxando depois de tanta tensão.
— Você me acha meio perverso? — perguntou Lucas, meio atordoado. — Por falar
nisso, agiu bem! Não sabia que você falava assim com a sua mãe.

— Falo assim quando ela insiste em me tratar feito bonequinha. Não sou mulher de
golpista pra ser tratada como bela, recatada e do lar!

Os dois bateram palmas, fingindo uma plateia atenta. Com um pequeno chute na
canela de ambos, eu voltei para o guarda-roupa, enquanto Douglas e Lucas analisavam o
quarto atentamente. Pareciam olhar para cada detalhe como se fossem obras de arte
importantíssimas, num museu íntimo e particular, onde se poderia interagir com as peças,
pegando objetos diversos e se divertindo com o que encontrava — principalmente com
minhas fotos.

— Olha essa aqui! — disse Douglas, pegando uma foto minha de quando era
pequena. Na ocasião, eu vestia uma roupa de índia para a escola. Estava de braços cruzados,
irritada, por alguma razão boba de criança. — A Mandy era bravinha desde novinha!

— Não zoa muito porque a família dela é de Manaus! — Lucas tomou a foto das
mãos de Douglas e levantou para mim, como se estivesse comparando o antes e o depois —
Ela pode ter arco e flecha em algum lugar por aí.

— Manauaras andam com arco e flecha da mesma maneira que Cearenses com
Peixeiras! — tomei minha foto e coloquei de volta na mesa. — E como se eu precisasse disso
pra acabar com vocês dois. Não me façam provar! Então, para o banho! Já!

Douglas foi o primeiro, assentindo apressadamente, enquanto Lucas e eu ficamos


deitados na cama, conversando aninhados e nos beijando. Quando voltou do banho, Doug não
pareceu se importar de estarmos ficando sozinhos. Já fazia algum tempo que a nossa regra de
“não ficar sem que o outro estivesse presente” vinha ficando mais flexível, frouxa, apenas por
estarmos mais seguros com o que tínhamos e conseguirmos manter o restante do ciúme bem
longe — se é que ainda existia.

Foi só quando Lucas havia terminado de se vestir que Natasha chegou, batendo na
porta do quarto. Como esperado, minha mãe permanecia parada atrás dela, só para conferir o
que andávamos fazendo no quarto.

— Esses são os dois rapazes bonitos que a senhora falou? — perguntou Natasha,
apontando para Lucas e Douglas de forma desdenhosamente falsa. — Não brinca comigo,
dona Marília! Eu quase fiquei animada achando que era verdade, mulher!

Natasha sorriu e entrou no quarto, parecendo uma pequena fada, derrubando


purpurina por onde quer que passasse. Havia glíter para todos os lados: em seu cabelo
repicado, nos seus ombros desnudos e no seu vestidinho azul petróleo. Ela estava
absolutamente linda e, pouco tempo depois de ter chegado, começou a nos encher de brilho
também.
Lucas adorava qualquer tipo de proposta que ela fizesse, sempre entrava na onda de
Natasha mais facilmente do que nós dois. Colocou glíter furta-cor nos cabelos, no rosto, nos
braços e na camisa rosa. Douglas tentou ser um pouco mais recatado, embora Natasha o tenha
coberto de purpurina da mesma forma.

— Vocês precisam tirar uma foto juntos! — disse Natasha, após terminar seu
trabalho estético, me empurrando para o meio dos dois. — Uma última antes de irmos, vai!

Sendo empurrada, fiquei no meio entre os dois e os tomei pelos braços. Parados, lado
a lado, Lucas e Douglass pareciam duas imagens completamente opostas uma da outra. Dois
anjos brilhantes que se distinguiam em seus mínimos detalhes: um louro de olhos claros e que
parecia feliz com um sorriso largo nos lábios, enquanto o outro, de cabelos e olhos escuros,
parecia tão deslocado com tanto brilho que apenas sorria inteiramente envergonhado. Ambos
lindos em sua forma de existir e amados por mim como se fossem um.

Não demoramos mais para sair e pouco tempo depois, já estávamos andando pelas
ruas desertas do Centro. A Praça dos Leões, lugar onde a festa ocorria, ficava apenas a
algumas quadras da minha casa, o suficiente para não ser tão perigoso ir a pé. Íamos
conversando, animadamente, com uma garrafa de vinho barato na mão, fazendo barulho sem
nos preocuparmos em ser ouvidos.

— Eu adoro como o Centro da cidade parece dormir à noite! — Lucas tomou um


grande gole do vinho que carregava em suas mãos, manchando sua boca de vermelho. — Eu
já vim aqui pela manhã, é tudo tão cheio de vida, tão abarrotado... já ouvi algumas pessoas
falarem que o Centro morre a noite, e acho uma definição completamente equivocada. Ele não
morre, ele... — Lucas fechou seus olhos e sorriu, como se escutasse algo que ninguém mais
ali ouvia — ressona!

— Eu quero isso que você tomou! — Douglas falou, tomando a garrafa para si. —
Passa pra cá, cabeção!

Enquanto andávamos, íamos apresentando algumas coisas para Lucas, que ouvia
atentamente. Cada vez que nos aproximávamos da praça dos Leões, mais pessoas iam
aparecendo: todas coloridas e cheias de brilho. Mulheres e homens vestidos de todas as
formas, de todas as cores e todos os jeitos. Era uma experiência rica, diversa e absurdamente
linda!

— Lucas, Lucas! Olha! Esse é o Palácio da Luz, onde fica a academia Cearense de
Letras! — Natasha apontou para um prédio antigo pintado de amarelo na lateral da praça.

— Meu Deus, como ele é lindo! — os olhos de Lucas brilhavam como uma criança
no parque. — Charmoso, até! Ele tem um ar meio misterioso, né? Meio...

— Mágico?! — completou Natasha, ao que ele assentiu intensamente. — Acredita


que eu penso da mesma forma?!
A música já tocava alto e as pessoas já estavam se divertindo quando chegamos.
Bebemos e brincamos a noite inteira, encontramos alguns conhecidos da escola, conhecemos
pessoas novas. Natália, melhor amiga de Lucas, também estava lá conosco, ficando com uma
colega nossa de colégio, Tandara. Não nos importamos com sua presença, muito menos nos
acanhamos com o fato. Um universo acontecia à nossa volta, aproveitávamos cada pedaço
dele como aventureiros e aproveitávamos um ao outro como completos amantes.

— Vocês estão percebendo que dia dez é depois de amanhã? — perguntou Lucas, já
meio bêbado, abraçado a nós dois, enquanto estávamos escorados na estátua de um grande
leão que brigava com uma cobra que o enroscava. — Vocês sabem que dia é dia dez, não
sabem?

— Dia de lutar contra o governo? — brincou Douglas, dando uma pequena piscadela
para mim. — Tô dentro!

— Não, seu cabeção! É o nosso aniversário de três meses de namoro.

— Aniversário é de ano! — prosseguiu ainda. — No máximo é um “mesversário”!

— Foda-se, não quero saber como se chama! — retrucou, com a língua meio
enrolada. — Só sei que precisamos comemorar de verdade! Precisamos fazer algo importante!

— Mais importante do que lutar contra o golpe?!

— Deixa o menino, Douglas! O que você pensa em fazer, Luquinhas?

— Não sei, algo íntimo, sei lá! Só nós três: podia ser um filme, um sarau, um luau!
Qualquer coisa íntima o suficiente para eu ficar agarrado com vocês dois e não largá-los até o
amanhecer! — Lucas respondeu, dando um grande beijo no meu rosto. Ele ficava bem mais
solto e carinhoso quando bebia. Além de, vez ou outra, berrar, sem motivo aparente, que
havia algo de podre no reino da Dinamarca. — Vamos, por favor! Vamos passar a noite
juntos, por favor, por favor, por favor! Pode ser lá em casa! Eu faço o que vocês quiserem!

Douglas riu e me olhou, segurando minha mão.

— Ignorando o fato perigoso de que Lucas quer acender uma fogueira no meio da
sua sala, eu acho uma ótima ideia — disse, acariciando minha mão, cuidadosamente. — Aliás,
poderíamos dormir na minha casa! Minha mãe e a Thaís vão viajar. E nada de fogueiras,
Lucas, embora eu vá cobrar esse seu “faço qualquer coisa”.

Bebadamente, Lucas balançou os braços numa imitação caricata de alguém que


expõe um prêmio. Havia séculos que esperávamos uma chance de dormirmos juntos, e então,
finalmente esse dia chegara, logo em nosso aniversário de namoro. Como se tivéssemos
colhido frutos de tanta espera, era uma oportunidade que não podíamos passar.

— Eu topo! — disse, com um sorriso brilhoso nos lábios. — E vou aceitar a


massagem, obrigada.
Animado, Lucas pulou e veio até mim, levantando-me e beijando minha boca
enquanto rodopiávamos. Quase caiu ao fazer esse movimento bêbado e perigoso, mas não nos
importamos ou paramos.

— Eu te amo, nossa pequena! — falou suavemente, acariciando meu rosto com a


palma da mão. — Eu te amo demais.

Lucas

O dia amanheceu com um tempo de fortes pancadas de cabeça, temperaturas


máximas infernais e altos índices de desidratação. Era dia e o raios do sol penetravam meu
quarto, com feixes de luz incidindo bem nos meus olhos, fazendo-os doer como se fossem
perfurados por estacas. Ainda vestia as mesmas roupas da noite anterior, havia glíter e
purpurina por todos os lados, desde a cama até o chão. Além de eu estar com muita, muita,
muita ressaca.

A festa fora épica, em todos os sentidos, e havíamos nos divertido como nunca na
vida! Talvez tivesse sido vinho demais, mas algo naquele lugar, naquela festa, exalava uma
magia própria, cheia de luminosidade e brilho. Cada um poderia ser o que quisesse, que
ninguém presente parecia julgar, no máximo, encontraria mais pessoas para fazer-lhe
companhia na embriaguez coletiva que pairava sobre a praça. Até o final da madrugada, já
tínhamos feito amigos, cantado desesperadamente, tropeçado em troncos de árvore, ajudado
uma colega que havia torcido o pé a achar o caminho de volta para o carro, subido em um dos
leões para tirar foto e o melhor de tudo: Amanda e Douglas havia aceitado minha proposta!

— Eu vi suas fotos naquela praça, Lucas — disse minha mãe, sentada na sala de
jantar com meu pai, no momento em que apareci para almoçar. Minha cabeça doeu
duplamente ao ouvir sua voz em tom de repreensão. — Eu não quero que você ande lá, ouviu
bem?

Sentei à mesa com a boca desidratada demais para retrucar. Em vez disso, apenas
falei:

— Lá é tão mágico, por que você não quer que eu volte lá?

Catarina parou de mexer em seus talheres e me olhou com nariz em pé, com postura
quase militar, assemelhando-se ao quadro de uma mulher que diziam ser nossa parente
distante atrás dela. Seus lábios estavam franzidos. O anil gélido nos seus olhos me mirava
com rigor absoluto de quem julgava um criminoso por um ato absurdamente hediondo e não
um filho adolescente — maior de idade! — que tivera uma das melhores festas de sua vida.

— Escute bem, Lucas, porque eu não quero repetir — começou ela, lentamente. —
Eu não quero que você se misture com o tipo de gente que anda lá. Sou sua mãe e sei o que é
melhor para você, por isso, faça o que eu digo e não me desobedeça!
— Como assim tipo de gente que anda lá, mãe? Eu sou o tipo de gente que anda lá!
— estarrecido, essas foram as únicas palavras que pularam para fora de minha boca.

— Ora, não seja ridículo! — Catarina bateu o talher na mesa, fazendo os copos
balançarem e os utensílios tilintarem. — Você não sabe o que está falado. Você não sabe que
tipo de gente anda lá!

Eu já estava prestes a retrucar novamente, quando meu pai me interrompeu com a


mão levantada.

— O que sua mãe e eu queremos dizer — falou, com tom de voz mais ameno,
embora sério —, e, sim, eu concordo com ela em partes, Lucas, é que o centro costuma ser um
lugar perigoso e você chegou muito tarde essa noite. Por favor, não queremos que você repita,
está bem? Ficamos verdadeiramente preocupados com você.

— Mas eu sou maior de idade! — tentei prosseguir, embora tenha sido rapidamente
interrompido pelo meu pai.

— E é somente por essa razão que não está de castigo. Agora, podemos ter um
almoço em paz, por favor?

Sem responder, minha mãe voltou a comer, com o rosto inteiramente antipático.
Ainda achando difícil de acreditar no que acontecia, precisei de alguns minutos olhando para
os dois, comportando-se de forma esquisita — até mesmo meu pai, que costumava amenizar
nossas discussões, não parecia ter o menor interesse em fazê-lo, continuando com as feições
inexpressivas, quase apáticas. Acredite, não era o fato de eu ir para festas que os incomodava,
pois, desde que não metesse os pés pelas mãos e fosse responsável, não ralhavam comigo.
Davam-me a chance de ser responsável e cobravam-me isso, sem serem excessivos em suas
broncas. Logo, algo mais existia naquele silêncio constrangedor, que apenas eu não conseguia
entender. O que havia acontecido com os dois, então?

— Aqui, beba isto — disse meu pai, após o almoço enquanto eu lavava os pratos na
cozinha. Em suas mãos, ele trazia um copo com algum de seus chás, dessa vez esverdeado. —
Vai melhorar da ressaca.

Sem questionar, bebi de um só gole sentindo o gosto amargo descer por minha
garganta e esquentar meu peito. Seus chás, por mais horríveis que pudessem parecer, davam
resultado na maioria das vezes. Alexandre se recostou no balcão e me olhou de braços
cruzados, como costumava fazer quando queria conversar comigo alguma coisa séria — seu
jeito costumava ser mais suave que o de minha mãe em tudo, principalmente em suas
abordagens.

— Lucas, existe alguma coisa que você queira conversar com a gente? Ou comigo?

Quase deixei escapulir o prato de minhas mãos ensaboadas, deixando o clima


estranho demais para que pudesse pensar em negar alguma coisa. A verdade é que eu não
queria mais negar para os dois, e muito menos era necessário dizer que havia dias em que eu
esperava esse momento chegar, mais do que tudo. Contar para meus pais sobre Amanda e
Douglas era um plano, uma ideia fixa que me rondava todos os dias desde que começamos a
namorar. Entretanto, quando a ocasião enfim chegou, tudo pareceu soar... errado, de alguma
forma. Como versos poéticos sem rima ou métrica num soneto. Cada indício, desde o almoço,
apontava para que existia alguma coisa errada no ambiente, algo que os dois pareciam saber,
mas não queriam acreditar. E vendo-o assim, sem jeito, deslocado enquanto se sustentava no
balcão, estava mais do que claro que Alexandre tinha medo de minha resposta. Será que, de
fato, eles sabiam de alguma coisa? Foi essa incerteza que me fez hesitar e ponderar.
Resignadamente, de forma silenciosa, apenas balancei a cabeça, voltando a lavar os pratos
como se nada estivesse acontecendo. Ora! Eu sabia muito bem que meu pai nunca acreditaria
naquela negativa — não existia ninguém que me conhecesse mais do que ele. Mas,
compreensivo como era, deixou-me sozinho, com um toque afetuoso no ombro, logo após.

Não preciso dizer que minha cabeça ficou a mil depois dessa situação. Rapidamente,
ajeitei minhas coisas como alguém que deseja fugir do país desesperadamente. Naqueles
longos minutos em que embolava minhas roupas para dentro da mochila, encontrar com
Douglas e contar-lhe tudo parecia ser a única coisa certa a se fazer no momento. Íamos nos
encontrar em sua casa, só nós dois, para planejarmos o jantar de namoro para a Amanda que,
em algum momento da noite, combinamos ser nosso presente surpresa para ela e, para isso, eu
iria dormir na sua casa para não perdermos tempo na manhã do dia dez.

O crepúsculo já caía, com um misto de violeta e laranja — como se aquarela


houvesse sido derrubada sobre uma tela natural —, quando toquei a campainha de Douglas.

— Lucas, meu filho, que bom ver você!

Tia Silvana abriu a porta, recebendo-me com um abraço apertado e maternal. Sim,
acredito que maternal seja uma das melhoras palavras que eu poderia usar para descrever o
abraço e quem abraçara: uma grande mulher, simpática e maternal, que parecia fazer questão
de adotar todos os amigos do filho como se fossem os seus.

— Como você está querido? Douglas está no quarto, vou chamá-lo para você... —
deixando-me entrar, ela sorriu de forma doce e carinhosa, antes de pôr-se aos berros, quase
ensandecidos — DOUGLAS!!! O LUCAS CHEGOU! VEM CÁ, AGORA!!!

Douglas apareceu no corredor, visivelmente aturdido, sem camisa e com os cabelos


completamente bagunçados, como se tivesse pulado rapidamente da cama com os berros de
sua mãe, a qual agora sorria com a suavidade de quem acabara de sussurrar faceiramente,
ainda segurando minha mão.

Tia Silvana e seu filho eram categoricamente opostos, sem mais. Enquanto a mãe era
mais extravagante e espaçosa, o filho era retraído e introspectivo. Fisicamente, não havia
praticamente nada que pudesse fazer reconhecê-los como parentes: Douglas era alto — mais
do que eu — e esguio, já tia Silvana, baixa e corpulenta, de rosto redondo, avermelhado e
simpático que se iluminava com os cabelos castanhos encrespados. Talvez, a única coisa em
que ambos se assemelhavam era na cor amendoada que lhes tingia deliciosamente os olhos.
— Fico muito mais tranquila em saber que você vai passar esses dias com Douglas,
porque pelo menos vou saber que vai ter alguém pra ficar de olho nele — falou,
afetuosamente, apertando mais forte minha mão, como se quisesse me abraçar —, mas ainda
acho que vocês dois deveriam vir com a gente.

— Já disse que temos planos, mãe! Importantes. Vamos ficar, não adianta insistir.

— Tudo bem, tudo bem... Planos! Que planos são esses?

Douglas revirou os olhos, enquanto me arrastava para o quarto sem responder. Se sua
mãe estranhara a imagem do filho, só de pijama, arrastar o coleguinha de escola para dentro
do quarto e fechar a porta, pareceu não se importar. Talvez já estivesse acostumado com
minha presença na casa...

— Ou talvez ela ache que eu sou gay e estamos namorando — Douglas se jogou na
cadeira do computador, cruzando as pernas e abrindo seu sorriso de boca vermelha. — O que
faz dela, em partes, certa. Ainda não tive coragem para falar de nós três. Não que ela fosse
achar ruim, mas daqui que entendesse todo o conceito... eu tô sem saco para isso.

— Por falar nisso...

Contei-lhe, então, com detalhes de um escritor romântico, o que havia acontecido


com meus pais: minha mãe brigando comigo mais pelo local onde estava do que o que fazia;
meu pai retraído e receoso ao conversar comigo, fazendo perguntas cuja resposta temia...

Douglas apenas ouvia com uma de suas sobrancelhas arqueadas, completamente


atento à minha narrativa, embora eu desconfiasse que parecia achar exagero de minha parte.
Assim que terminei, ele respirou profundamente, como se fosse falar um longo discurso, o
qual, antes de poder começar, foi interrompido por sua mãe que entrou no quarto e o levou
para ajudar com as bagagens da viagem. Como eu era visita — de acordo com ela — a única
coisa que me restou naquele momento, foi ficar pensando no que havia acontecido mais cedo.
E por estar assim, absorto em meus devaneios, não notei a figura que entrava no quarto até o
momento em que ela enfim falou:

— Oi, Lucas, podemos conversar um pouquinho?

Envergonhado por não ter notado a entrada da irmã de Douglas no quarto, apenas
assenti apressadamente.

— Tudo bem? — falou sorrido, com os mesmos lábios vermelhos do irmão. —


Nunca tivemos a chance de conversar sozinhos, né? Então, tenho que aproveitar esse
momento para dizer: Obrigada.

Ao ouvir suas palavras, meu rosto deve ter se transformado em alguma coisa confusa
ou desnorteada, deixando claro que não havia entendido, pois logo depois, balançado a cabeça
e sorrindo, Thaís continuou:
— Obrigada por cuidar do meu irmão. Ele nunca deixou que eu ou minha mãe
cuidássemos dele. Sempre fez questão de levar o mundo sozinho nas costas e bancar o durão,
se fechando o máximo que podia. Eu nunca o vi chorar depois dos oito anos, sabia disso?
Desde que meus pais se separaram ele passou a agir assim... Quando tinha medo, Douglas
ficava a noite em claro, mas não chamava nem por mim, nem por minha mãe, só sabíamos
disso porque ele costumava dormir na sala de aula no dia seguinte. Talvez por isso minha mãe
goste tanto de você, porque ela sabe que ele deixa ser cuidado por você. Isso a conforta, é
claro, porque ela o ama demais. E ele é forte, claro, mas finalmente aceitou que alguém
cuidasse dele. Por isso eu queria agradecer... agradecer a vocês dois.

— Você sabe?

— Claro que sei, ou eu seria uma péssima jornalista, e vocês, pessoas discretas! —
disse, recostando-se na cama com as mãos de forma relaxada. Em seus olhos, um brilho de
sagacidade misturava-se com a amêndoa da família. — Sabemos que pelo menos uma das
afirmativas está errada, não é? E não, minha mãe não sabe. Quero dizer, ela sabe que rola
alguma coisa entre vocês, mas ela não sabe da Amanda. Ah! Douglas não sabe que eu sei,
nunca falei nada porque gostaria que ele sentisse à vontade para me contar, por isso, não
quero que você conte nada para ele.

— Tudo bem... então, foi Patrícia quem te contou?

Pega de surpresa, Thaís se endireitou e me olhou como se não entendesse o que eu


havia acabado de falar.

— Patrícia sabe de vocês?

— É... acho que isso é um não.

Thaís franziu os olhos quase que imperceptivelmente, como se enfim lembrasse de


alguma coisa que havia deixado passar. Sobre o que pensava, no entanto, ficou escondido em
seu espírito, pois logo depois ela balançou a cabeça e voltou a sorrir com a boca vermelha,
como Douglas, pondo-se de pé para me abraçar.

Essa sim, parecia deixar claro em todo os detalhes de seu corpo, que era irmã de
Douglas, parecendo uma versão feminina dele. Tinha os mesmos fios cor de breu que desciam
até a altura do queixo e era mais bronzeada que o irmão, mas o tom vermelho de seus lábios
ainda se destacava na pele. Os olhos, no entanto, brilhavam muito mais do que o de Douglas,
com sagacidade e, embora também brilhassem com juventude, possuíam um luzir de adultez
séria e experiente, de quem já havia vivido muita coisa para sua idade.

Douglas chegou logo depois que Thaís me soltava de seu abraço, e ficou nos olhando
desconfiado.

— O que vocês estão fazendo? — perguntou, meio envergonhado, meio desconfiado.


— Conferindo se o gatinho aqui está solteiro! — disse Thaís, piscando para mim e
saindo do quarto. Antes que se fosse por completo, porém, virou novamente para mim: — Me
liga.

E saiu, deixando Douglas de cenho franzido, braços cruzados e inteiramente


aquarelado de rubro.

— Fazer o quê? Eu arraso corações...

Douglas

— Você não acha que a gente deveria contar para ela o que estamos fazendo?

Lucas terminou de vestir seu pijama, jogando a toalha molhada que havia usado
pouco tempo antes para mim.

— Claro que não, cabeção! — ele se deitou na cama, repousando a cabeça em minha
barriga. — Qual é a graça se contarmos agora? Vamos lá, Douglas, ela vai amar!

Desisti, jogando a cabeça sobre o travesseiro, continuando a fazer cafuné em Lucas.


Desde que havíamos ficado sozinhos, era o primeiro o momento em que descansávamos de
fato. A casa já estava inteiramente bagunçada com os preparativos do jantar do dia seguinte,
papéis, fotos, balões, até as roupas que usávamos sujas de tinta estavam jogadas no canto do
quarto.

Pouco tempo passou, em troca de carinhos, até que Lucas começou a ficar esquisito e
um clima estranho tomou conta de nós dois. Sem saber exatamente o que era, eu já estava
prestes a falar, quando ele se adiantou:

— Precisamos dormir, está ficando tarde — Lucas pigarreou, se levantou e se sentou


na cama ereto, tenso. — Onde eu durmo?

Finalmente a tensão ganhou forma e nome: estávamos juntos, sem Amanda.

Sim, estávamos sozinhos essa noite por causa de Amanda e do jantar que faríamos
para ela no dia seguinte. Por dia dez ser domingo, não arriscaríamos perder tempo, para não
haver possibilidade de algo dar errado e, por essa razão, começamos os preparativos mesmo
no sábado. Mas boa intenção nenhuma mudava o fato de que estávamos sozinhos e sem ela —
isso seria uma quebra em nosso código?

Não... talvez houvesse muito mais do que somente isso. Era uma tensão mais pesada
e intensa. Era uma tensão sexual, também. Estávamos juntos e estávamos sozinhos, mas esse
não era o verdadeiro problema. Acredito que, naquele momento, o verdadeiro problema é que
estávamos a poucos momentos de cair na tentação de ficarmos ainda mais juntos fisicamente,
sexualmente. O que não poderia acontecer sem Amanda.
Nos momentos em que ficamos separados de Amanda, Lucas e eu demos muitos
passos, sexualmente falando, principalmente. Fomos com calma, era claro, parte por
sentirmos falta de nossa companheira, parte por ser uma descoberta diferente para mim. Ora,
eu nunca havia ficado com nenhum homem em minha vida e nem sequer pensara em como
isso poderia ser... gostoso... excitante! Muitos tabus que por anos cultivei em minha cabeça
iam sendo pacientemente quebrados por Lucas — e posteriormente com Amanda. Beijar outro
homem era esquisito, mas eu gostava. Tocar o corpo de Lucas, sentir sua barba em meu
corpo, ou seus músculos contra os meus, tudo isso me trazia sentimentos que nunca achei que
um dia iria desejar, amar, pois eu amava. Me excitava com Lucas mesmo quando eu achava
que nunca seria capaz. Então, por isso, embora muito caminho tivesse sido trilhado, nós nunca
chegamos a transar, de fato. E, de certa forma, aquele fantasma pairava sobre todos nós —
afinal, éramos, os três, adolescentes em plenos hormônios! E ali, com Lucas, eles pareciam
enlouquecer.

— Você não quer dormir na cama comigo?

Lucas se levantou, esfregando as mãos no rosto corado, caminhando de um lado para


o outro no quarto, apreensivo, ansioso.

— Claro que quero! Eu tô pra pular em cima da cama com você, mas...

— Não vamos fazer isso sem Amanda — disse, com sinceridade. — Eu sei, porque
eu também não quero vivenciar isso sem ela.

Lucas se sentou na cama mais uma vez, bufando fortemente.

— Você acha que Amanda iria se importar se nós dormíssemos na mesma cama?
Juntos?

Pensativo, não respondi de primeira, permitindo-me pensar com cuidado na pergunta


que ele me fazia. Se nos encontrássemos há dois meses, eu não teria medo em falar que: sim,
Amanda iria se incomodar. Qualquer um de nós se incomodaria com o fato de os outros dois
estarem juntos, sozinhos. Essas inseguranças e medos — em grande parte, minhas
inseguranças e medos — foram responsáveis pela criação de nosso código, mas ambos eram
sentimentos tão estranhos e estrangeiros agora, que não faziam mais sentido.

Comecei, então, a lembrar de um episódio em que estávamos os três juntos:

“— Se amor é fogo que arde sem se ver, eu não acredito que ele esteja numa tocha,
queimando e consumindo tudo pela frente, porque isso é paixão — dizia, certa vez, Lucas,
para nós dois, num dia quando estava meio bêbado e de rosto avermelhado, em que começava
um de seus monólogos sobre as suas constatações poéticas da vida. — Não, não, não... Amor
é o fogo que arde na fogueira, que conforta, protege, aquece, recebe. Sim, é claro que pode
queimar aqueles demasiadamente tolos de se aproximar sem cuidado, é bem verdade que pode
ser sufocado pelos mais possessivos e ansiosos, assim como pode apagar sem ser alimentado
pelos desinteressados e apáticos, e nem sempre é eterno, posto que é chama. Mas o amor é
sóbrio, enquanto a paixão é loucura. E eu bem sei que podemos ser loucos de paixão e ser
seguros de amor, ao mesmo tempo, mas só o amor é lar, é segurança. Aos apaixonados, então,
Eros; aos Amados, Héstia!”

De início, eu não entendi muito bem aquele discurso bêbado de Lucas. A veracidade
e o significado de cada palavra falada por ele, vieram apenas com o tempo. O amor que sentia
pelos dois tornava-se sóbrio, cuidadoso e reconfortante. Era ele que me impelia a cuidar dos
dois, como eu sabia que era o que me fazia ser cuidado, vulnerável. É preciso ter muita
coragem ou muita confiança em despir-se, mostrar-se em suas inseguranças para quem se
ama. Quando eu o fazia, era mais pela segunda do que pela primeira justificativa.

Se amor era, de fato, segurança, então, nunca estivemos tão seguros.

— Eu não me importaria — disse, por fim, acariciando suas costas. — O amor não é
segurança? Estou seguro com vocês dois.

— E eu amo vocês dois! — Lucas respondeu, abobalhado.

— Eu sei. Nos amamos, cabeção. Vem cá...

Apagando a luz com um toque, puxei o pulso de Lucas para fazer com que deitasse
ao meu lado, lentamente. E ficamos apenas nos olhando, sentindo a pele um do outro com o
toque das mãos — de novo, eu me surpreendia ao saber e sentir que adorava o corpo de outro
homem — na completa penumbra.

— Estou aqui do seu lado, tá bom? — ele sussurrou, em algum momento da noite, já
grogue de sono.

— Eu sei, e amo isso.

...

— Ai, droga!

O resmungo de Lucas me despertou junto com o barulho de panelas sendo


derrubadas. Levantei, meio ressacado, olhando a cama e o restante do quarto, que estavam
vazios.

— Lucas?

— Droga! — gritou, da cozinha. — Eu te acordei?

— Não, deve ter sido o terremoto.

— Engraçadinho!
Meio trôpego, fui me arrastando até a cozinha para ver a imagem de Lucas apenas de
cueca samba-canção, preparando algo no fogão que parecia ser omeletes. O balcão estava
todo arrumado para um café da manhã: pães, café, leite.

— Por que você não me chamou? — perguntei, dando um beijo de bom dia em seu
rosto e arrastando os pés até o balcão. — Onde foi que você arrumou tudo isso?

— Eu saí para comprar. Me perdi um pouco, mas no fim, tudo acabou bem! E eu não
ia te chamar para preparar meu presente de aniversário de namoro, não é? Cabeção!

Lucas trouxe os omeletes, que cheiravam surpreendentemente bem para algo que
havia sido ele a preparar — apesar de gostar, não cozinhava muito bem, na verdade. Com
cuidado, foi preparando meu café da manhã, mesmo com meus protestos iniciais. Apoiando-
me nos cotovelos, fiquei apenas olhando para ele ajeitar tudo.

— O que foi? — perguntou, ao perceber que eu o fitava.

— Só estou vendo o quanto você é lindo. Lindo e nosso.

Visivelmente envergonhado, Lucas balançou a cabeça, sentou-se à minha frente e


mergulhou em seu imenso copo de café. Rapidamente comemos tudo e começamos a arrumar
o restante da casa. Pelo WhatsApp, conversávamos, nós três, como se nada estivesse sendo
preparado — iríamos pedir Sushi e iríamos assistir algum filme. Amanda estava ansiosa e se
desconfiava que estávamos juntos ou que tramávamos alguma coisa, não parecia demonstrar.

Já era praticamente noite quando terminamos e olhamos o resultado final, vitoriosos


e levemente exaustos, com uma garrafa de cerveja nas mãos, largados no sofá.

— Ela não deve demorar. Precisamos ir tomar banho, vai primeiro, está bem?

— Agora? — Lucas se deitou no sofá, protestando preguiçosamente. — Você é o


anfitrião, vai você primeiro! Ou poderíamos tomar banho juntos, que tal?

Levantando-o a força, eu o arrastei até o banheiro e ajudei a tirar sua camisa lá


dentro, mas saí antes que alguma coisa a mais pudesse rolar.

— Não teria graça se fosse rápido! — falei, fechando a porta e deixando-o sozinho.
— Quem sabe mais tarde?

Amanda

Anoitecia lá fora e eu não via a hora de encontrar meus dois namorados, quando já
estava inteiramente arrumada, pronta para sair, no entanto, fui interceptada por Guilherme,
ainda na sala.

— Para onde você vai? — perguntou, no momento em que passei pela sala.
Parei na porta, segurando as chaves já prestes a sair. Atrás de mim, Guilherme estava
de pé, na sala de braços cruzados.

— Sair — disse, somente, estranhando a reação do meu primo.

Ele balançou a cabeça, contrariado, apontando o indicador para mim e para forma
como estava vestida.

— Sair toda arrumada assim? É alguma festa? — e apontando enfim, para o pacote
que trazia em minhas mãos. — E esse presente? É festa de aniversário? Vai voltar para casa
hoje?

Com cenho franzido, fuzilei Guilherme de forma intensa. A sala estava escura, e
embora a TV mostrasse um filme de terror pausado, a pior de todas as figuras que poderiam
estar presentes no cenário, permanecia fora da tela: Patrícia. Ela nos olhava com interesse,
segurando um riso nos lábios, achando divertido tudo que acontecia. Eu pirei! Talvez tivesse
sido sua presença, mas o sangue me ferveu dentro do corpo, em chamas intensas. Nunca havia
admitido ser controlada e não iria ser agora que aconteceria. Eu odiava mais do que tudo ser
interrogada, principalmente sem saber o motivo. Vendo que não iria responder, Guilherme
pigarreou, se escorando na parede de forma desajeitada e envergonhada.

— Eu estou perguntando porque eu poderia te deixar, sabe? — falou, corando de


vergonha. — Para você não ir sozinha.

— Eu não vou sozinha. Vou de Uber, obrigada.

— Você não vai gastar dinheiro com isso! Eu vou te deixar, vamos.

— Guilherme — comecei, entredentes —, somente eu decido o que fazer com minha


vida e consequentemente com meu dinheiro, está bem? Se eu digo que vou de Uber, então
homem nenhum vai me fazer mudar de ideia. Eu vou de Uber.

Meu tom de voz saiu ríspido e bateu em Guilherme como se fosse um tapa, que o
assustou, fazendo-o arregalar os olhos. Nervosamente, abriu a boca para retrucar, quando
Patrícia se levantou e veio até nós, tocando o rosto de Guilherme como se desse suporte a ele
nessa discussão.

— Meu amor, deixa a menina ir, ela não quer que você vá deixá-la! Não insista! — o
tom de Patrícia era casual, como se fôssemos íntimas ou parecesse me defender, quando, na
verdade, eu sabia o que aquilo significava para ela: finalmente havia encontrado uma
oportunidade para jogar seu veneno no ambiente. Guilherme fez novamente menção de falar,
quando ela, prosseguiu, ainda balançando a cabeça. — Ela é grandinha, meu bem, já sabe o
que faz e com quem faz.

Guilherme olhou por alguns segundos em silêncio. Até por fim, assentir para Patrícia
e voltar para o filme de terror.

— Cuidado, está bem? — foi somente o que falou, depois disso.


Normalmente eu teria ficado cismada por algum tempo, mas estava tão ansiosa para
a noite que teríamos, que mal liguei para Patrícia, esquecendo de tudo assim que entrei no
Uber. Nervosa, conferia as horas, para saber se estava atrasada, ou a janela, para saber se
demoraria a chegar. Era a primeira noite que passaríamos inteiramente juntos, desde que
começáramos a ficar ou namorar. Isso me animava e me deixava inquieta, não querendo
desperdiçar nenhum segundo sequer. No celular, fazia algum tempo que nenhum dos dois me
respondia: desde ontem, Douglas e Lucas se comportavam de forma estranha o suficiente para
me fazer desconfiar de que tramavam alguma coisa, mas não falei nada para não estragar o
que quer que fosse, e, por essa razão, fiz questão de avisar todos os meus passos: que estava
saindo, que estava passando pela Avenida Treze de Maio, que estava chegando e, finalmente,
que havia chegado.

Entre... — foi resposta de Douglas em meu celular.

A porta estava entreaberta, e entrei com cuidado, sem saber o que iria encontrar. Não
acho que saber que tramavam algo teria feito diferença para a surpresa que eles prepararam
para mim. No momento em que entrei, a sala estava em profunda penumbra, iluminada por
algumas pequenas velas espalhadas ao redor e uma luz na parede que eu não identificava do
que se tratava. Sem ver nenhum dos dois, entrei mais um pouco... Como se saíssem das
sombras, Douglas e Lucas pularam para perto de mim, e começaram a cantar a música Tango
do Covil, de Chico Buarque, dançando e pulando sozinhos e depois comigo, cantando de
forma tão atrapalhada, abobalhada, que não me restou outra reação que não achar graça de
tudo aquilo.

— Eu disse que ela ia achar ridículo, cabeção! — Douglas estava com o rosto
inteiramente avermelhado e ofegante, depois da pequena tentativa de número musical.

— Não era esse o objetivo? — perguntei, brincando, dando um beijo em sua boca. —
Mas não fiquem tristes, vocês também foram levemente engraçados. E lindos. Mas isso foi só
pela intenção!

Douglas riu, me abraçou apertado, de forma amorosa.

— É impossível fazer algo com o Douglas sem parecer ridículo! — disse Lucas,
vindo até mim, também dando um abraço e me trazendo para perto de seu corpo. — Feliz
aniversário de três meses oficiais, nosso amor!

Um barulho estridente de isqueiro acompanhou mais um pequeno brilho na sala, até


dar forma às chamas de um conjunto de velas que estavam sobre o balcão da cozinha. Pouco a
pouco, sem estar distraída com dois adolescentes pulando de forma boba e atrapalhada, eu fui
sorvendo cada detalhe da sala que os dois haviam preparado para mim.

Pequenas velas violetas iam sendo acesas por Douglas em toda a sala. No balcão,
pratos e talheres haviam sido preparados para um jantar, com guardanapos dobrados
cuidadosamente. Em uma das paredes, imagens passavam sem som, em uma espécie de
cinema pequeno, mas acolhedor, improvisado com puffs, almofadas coloridas e lençóis,
ladeado por um balde com pipoca e outro com pedaços de chocolate. Também havia balões de
hélio amarrados com fitilhos decorando o teto, assemelhando-se a estrelas que brilhavam
violeta num céu imenso. De repente, ao toque de Lucas no aparelho de som, uma música
inundou todo o restante do ambiente: The Violet Hour — uma das minhas músicas favoritas,
que agora parecia ter sido feita como uma espécie de trilha sonora, especialmente para esse
momento.

Para todos os outros, aquele jardim de cores poderia estar equivocado. Afinal, não
era vermelho a cor dos amantes? Mas aquela era a nossa cor. Para nós três, cada detalhe
arrumado com carinho parecia ser diferente o suficiente para que possuísse uma espécie de
assinatura, mostrando que aquele recanto pertencia a nós, unicamente a nós e ao nosso
namoro, e não a quaisquer amantes, os quais punham regra em tudo, até na hora de escolher
uma cor para amar. Amávamos um ao outro de forma violeta. Da nossa forma violeta.

Por muito tempo, ficamos deitados no cineminha, assistíamos The Rocky Horror
Picture Show, abraçados, entrelaçados, nos desgrudando apenas para Douglas ir até o fogão,
conferir o que estava preparando, que cheirava muito bem.

— Está pronto — sussurrou, em algum momento do filme, o qual pausamos para ir


sentar ao balcão.

— Eu não acredito que vocês cozinharam para mim...

— Não se preocupe, ainda poderemos pedir sushi caso você não goste.

— Fico mais aliviada! — brinquei, jogando o guardanapo que Lucas havia


arremessado para mim. — O que eu quis dizer é que cresci numa família absurdamente
machista em que lugar de homem é muito longe da cozinha. Guilherme mal sabe fritar um
ovo, e vocês... — parei, um segundo, admirando o que os dois tinham preparado: um frango
gratinado com tomates e manjericão. — Eu prometi a mim mesma que ficaria longe de
homens como ele, e aí, vendo o que prepararam para mim... só, sei lá... me faz lembrar que
estou no caminho certo com vocês dois.

— Alguém precisa cuidar da casa enquanto você trabalha, não é? — Lucas sorriu,
segurando a garrafa de vinho que eu desconfiava ser caro, servindo nossos copos.

O restante da noite foi inteiramente maravilhoso, uma das melhores noites da minha
vida, mesmo que estivéssemos apenas conversando e bebendo, como sempre fazíamos.
Naquela noite, porém, existia algo diferente, uma fragrância no ar, algo que nos separava da
forma costumeira.

— Ótimo! Já podemos parar de fingir que somos adultos, largar esse vinho chato que
o Lucas trouxe e pular para nossa vodca barata?

Douglas trouxe um restinho de vodca do estoque nada secreto de sua mãe, o que me
fez lembrar imediatamente do presente que não tinha podido entregar, por ter sido distraída
antes disso.
— Temos algo para você também! — falei, pondo-me de pé e indo buscar o pacote
de papel brilhoso que havia trazido para entregar a Douglas. — Eu e Lucas que preparamos
para você.

Olhando desconfiado para o pacote, Douglas ainda chacoalhou algumas vezes a


caixa em suas mãos, nos fitou com as sobrancelhas erguidas, antes de abrir e voltar a nos
lançar um olhar incrédulo.

— “O Não-Submarino”? — leu e, ansiosamente, folheou o pequeno álbum que


havíamos preparado. — Vocês fizeram isso para mim?

Como um menino que se orgulhava de uma proeza, Lucas sorria e assentia


categoricamente a cada página virada. Ainda incrédulo, Douglas folheou o livro atentamente,
analisando cada detalhe de suas páginas, que traziam fotos que havíamos tirado, trechos de
músicas, poemas, mensagens.

— É para você lembrar que estamos aqui com você — falei, acariciando seu braço
—, nos momentos de dificuldades, em suas crises de ansiedade... estaremos aqui com você ao
seu lado e do seu lado. Nunca se esqueça disso.

Douglas ainda tentou abrir a boca para falar, embora estivesse claro que as palavras
não queriam lhe simbolizar. A forma que melhor encontrou foi um beijo, dado intensamente,
bebadamente, ainda com gosto de vinho na boca, primeiro em mim, que estava mais perto,
depois em Lucas, até perder o fôlego quase por completo.

— Sua vez, cabeção! — ele falou para Lucas, que, de forma animada, apoiou os
cotovelos sobre o balcão, com grandes olhos ansiosos.

E teríamos dado nosso presente, mas enquanto Douglas cruzava a sala, uma batida
forte na porta o interrompeu... Assustados, olhamos, juntos, para o relógio, que marcava 2:13
da madrugada em números luminosos em meio à penumbra das velas.

— Amanda!!! — gritou uma voz, entre batidas grosseiras. — Amanda, eu sei que
você está aí!

Ficamos encarando, sem reação alguma, a porta, enquanto ainda era esmurrada
loucamente, até que Douglas, com meu aceno de cabeça, abriu. Tudo pareceu ocorrer em
câmera lenta.

Guilherme entrou aturdido olhando para todos os lados à minha procura, até que, por
fim, me encontrou e partiu para cima de mim. Douglas, no entanto, se meteu entre mim e ele,
com as mãos em seu peito, afastando meu primo de onde eu estava, e foi socado com força
por isso.

Lucas enlouqueceu.

Num segundo, ele voou de encontro a Guilherme, que, pego de surpresa, foi
derrubado no chão, depois, montou em cima dele, esmurrando-o de maneira descontrolada,
explosiva. Não sei por quanto tempo ficariam assim, esmurrando um ao outro se não fosse por
Douglas e eu termos conseguido puxá-lo de cima do meu primo. Ao ficar de pé, Guilherme
ainda quis revidar, mas parou, em meio a uma gritaria absoluta entre nós quatro.

— Vocês estão malucos?! — gritei, entre os xingamentos dos meninos. —


Guilherme, o que infernos deu em você para vir aqui e fazer isso? Que droga!

— Você vem comigo! — respondeu, tentando me puxar pelo braço. — Vem comigo
agora!

Douglas e Lucas avançaram novamente contra meu primo e eu, mas, conseguindo
me desvincular de suas mãos, pedi para que se calassem e se acalmassem. Todos ainda
estavam exaltados, espumavam pela boca, feito cães raivosos. O maxilar de Douglas estava
inteiramente rígido, enquanto Lucas mantinha um brilho assustador no olhar.

— Não é você quem decide o que eu faço ou deixo de fazer, já te disse isso! Que
merda deu na tua cabeça, Guilherme?

— Que merda deu na minha cabeça, Amanda?! — gritou em resposta, apontando


para os dois meninos afastados. — O que é que VOCÊ está fazendo com esses dois
veadinhos?! Hein?! Não responda, porque eu sei: ESTÁ SENDO UMA VAGABUNDA!

Nesse momento, meu sangue, que já borbulhava dentro de minha pele, esquentou
todo o meu corpo, e, um segundo depois, minha mão estalou contra o seu rosto, com toda a
forma que eu tinha. Verdadeiramente surpreso, Guilherme tocou o lugar em que acabara de
receber o tapa, com olhos incrédulos, fixos em mim, enquanto minha mão latejava de dor.

— EU NÃO VOU ADMITIR QUE VOCÊ ME TRATE ASSIM, NEM HOJE, NEM
NUNCA, OUVIU BEM, SEU MOLEQUE?! — eu berrava como nunca na vida, com a voz
engasgando, trêmula. Na garganta, pouco a pouco um nó se formava apertado, porém, eu
nunca deixaria que algo assim me atrapalhasse. Respirando fundo e tentando voltar ao
mínimo de compostura, tornei a falar. — Se eu sou vagabunda ou não, o problema é meu, e
não seu. Mas eu nunca, nunca vou deixar você vir tentar me desrespeitar. Ouviu bem? Nunca!
Agora, Lucas e Douglas, por favor, vocês podem nos deixar a sós?

— Nem pensar! — disseram, quase em coro.

— Fiquem no quarto se se sentirem melhor, mas eu preciso ter uma conversa com
Guilherme. Por favor, eu preciso desse espaço.

A contragosto, os dois saíram, encarando ridiculamente meu primo, como animais


territorialistas, ou somente homens tolos numa disputa inexistente de poder. Sozinhos, ainda
precisamos de alguns minutos em completo silêncio pesado, antes de estarmos prontos para
pronunciar palavra qualquer. Guilherme olhava com desprezo para cada detalhe na sala: as
velas, as almofadas, os presentes, andando impaciente de um lado para o outro.

— Você não deveria ter vindo aqui e feito o que fez.


— Eu não deveria ter feito? — Guilherme mantinha o mesmo tom desdenhoso de
antes, embora falasse de forma contida. Ao me fitar, eu podia jurar que seus olhos estavam
marejados. — Se você não estivesse aqui com esses dois... O que você está fazendo da sua
vida, Amanda?!

— O que eu pareço estar fazendo?

— Se eu falar, você vai me bater novamente.

— Ainda bem que você é um garoto que aprende rápido.

Transtornado, Guilherme chutou as almofadas do pequeno cinema, balançando a


cabeça, como se pudesse espantar o que acontecia com esse movimento repetitivo.

— Por que você está fazendo isso, Amanda? — perguntava debilmente. — Por quê?!

— Porque eu amo os dois, Guilherme. Amo de uma forma que não consigo descrever
e nem sei se ao certo um dia eu conseguiria, mesmo que tentasse. Eu sei que não é comum,
mas...

— Comum? — perguntou, elevando a voz em algumas oitavas, mas tornou a manter


a calma, quando o fuzilei com o olhar. — Ficar com dois caras não é comum! É...

— É o que me faz feliz, seja o que você vá dizer. Porque, vamos nos poupar,
Guilherme, não me importa o que você vá dizer, ou o que acha certo! Eu nem mesmo me
importo com o que vá tentar fazer quanto a isso, porque nada irá mudar o fato de que eu amo
dois homens e estou disposta a lutar por eles. Lutar por nós! Posso parecer uma menina que
acabou de se apaixonar e que promete mundos por esse sentimento, mas eu nunca fui assim, e
você sabe. Eu os amo, Guilherme, essa é a verdade. Por isso você pode me apoiar, como um
irmão, que você sempre disse que era, ou ir embora da minha vida. A decisão é sua.

Eu podia sentir que ele buscava retrucar, xingar talvez, mas ficou calado, apenas
olhando para mim, como se enxergasse outra coisa em meu lugar, alguma coisa repugnante,
repulsiva, algo que não compreendia ou de que não gostava, mas que o súbito incômodo que
revirava suas entranhas não o deixava desviar o olhar.

— Sua mãe e papai vão pirar com isso, você sabe, não sabe? — falou, por fim.

Apenas assenti, compassivamente.

— Você vai contar para eles?

Sem responder, Guilherme apenas deu de ombros e saiu, batendo a porta com toda a
força que podia.

— Você está bem? — atrás de mim, os dois estavam de volta, escorados no vão da
porta do quarto. Uma mancha roxa se estampava no rosto de Douglas, bem embaixo do seu
olho. — O Babaca já foi?
Com o coração ressacado, assenti, passando levemente os dedos pelo hematoma em
seu rosto. Douglas se encolheu ao meu toque de uma forma vulnerável que dificilmente eu
via, um pequeno gesto que me fez encolher também, temendo machucá-lo.

— Não se preocupe com isso — falou, tocando meu rosto ao me ver preocupada. —
Você precisava ver o outro cara, meu namorado acabou com ele!

— Desculpem por ter me descontrolado... — o tom de Lucas soou ressentido, como


sempre acontecia depois de uma de suas explosões. — Eu não deveria ter agido dessa forma
com seu primo.

— Nada de se desculpar! Esse babaca não deveria ter vindo aqui na minha casa para
fazer esse tipo de coisa. Você é o mocinho aqui.

Em silêncio, observava o diálogo dos dois, como se, a cada palavra, um peso
estivesse saindo de meu coração. Ainda não era capaz de acreditar que um episódio assim
havia acabado de se desenrolar, logo num dia que deveria ser um dos mais especiais para nós
três. Mas lá estavam Lucas e Douglas, buscando fazer piadinhas ou se desculpando
inutilmente, somente para tentar desfazer o clima melancólico que se instalara. E
conseguiram, para falar a verdade. Conseguiram por me fazer entender que eu não estava
sozinha, que havia tomado a decisão certa em lutar pelas pessoas que amava, ainda que os
inimigos morassem dentro de minha própria casa, meu próprio lar.

— Douglas, vem cá deitar, deixa a gente cuidar disso no seu rosto?

— A feiura? — Lucas brincou, com um sorriso maroto nos lábios. — Isso é


impossível.

Dando-lhe um pequeno soco, Douglas deitou no pequeno cinema sem questionar, me


olhando atentamente fazer uma pequena trouxa de gelo para seu hematoma. Lucas ligou
novamente o som e a música começou a inundar o ambiente em que estávamos, tentando nos
trazer novamente ao paraíso anterior à interrupção.

— Você ainda não me respondeu... — Douglas me fitava com preocupação intensa e


sincera, mesmo depois de começar a sentir queimar o gelo contra sua pele. Seu rosto estava
sendo iluminado suavemente pelo reflexo das imagens na parede branca e pelas velas da sala.
— Você está bem?

— Agora, com vocês ao meu lado, sim. Por ser quem sou e ser aceitada por isso.
Vamos nos focar nisso, está bem?

Douglas assentiu e se deixou ser cuidado, fechando os olhos enquanto eu recolocava


o pacote de gelo improvisado em seu rosto. Ao seu lado, Lucas fazia um pequeno cafuné, com
os dedos brancos se enrolando nos fios pretos.

— Vou acabar mal-acostumado assim — balbuciou sorrindo e retribuiu o carinho em


nós dois.
À medida em que o tempo ia passando, íamos nos aninhando uns aos outros,
procurando aquele espaço comum entre nós três, afastando o pequeno frio que se instalou com
o começar da chuva.

— O que eu disse para ele é verdade — falei, entre carícias. Ao me ouvir, Douglas e
Lucas me olharam desconfiados, como se fingissem não entender o que eu falava. — Eu sei
que vocês me ouviram, e tudo bem. Pedi o espaço mais por ele do que por mim. Enfim, o que
ia dizendo é que foi verdade tudo o que disse: sobre como nunca me senti assim como
nenhum outro garoto. Eu realmente não conseguiria descrever, porque apenas é. Somos.

Lucas sorriu, beijando meu pescoço demoradamente, de forma quente e terna. Com a
chuva, nos abrigávamos uns nos outros contra o frio, deixando ser aquecidos pelo calor de
nossos corpos e das mantas no cinema improvisado. Na parede, imagens passavam
aleatoriamente, de forma muda, pois a música vinha do aparelho de som, que competia com o
respingar da chuva e o retumbar dos trovões. Entrelaçados, novamente a sensação de febre
parecia se apoderar do corpo dos dois, agora sem camisa, como num fogo invisível — o qual
eu acolhia com prazer.

— Eu já havia lido em livros, poemas e prosas, todos foram incompetentes,


equivocados. O amor, o nosso amor, é só nosso, e mais ninguém parece ser capaz de falar,
apenas nós de sentir.

O hálito de Lucas esquentava meu pescoço enquanto sussurrava, audível o suficiente


apenas para que nós dois pudéssemos ouvir. De olhos fechados, eu sentia a música Glory
Box, que acabava de começar, e os murmúrios de Lucas ecoarem por meu corpo, como uma
pedra faria ao se chocar com um lago, vibrando, vibrando, vibrando. A pele quente no toque
de seus dedos deslizava por minhas pernas, ritmicamente.

Lentamente me pus de pé, assustando os dois, que me encararam alarmados.

— Desculpa, eu não queria... — Lucas começou a falar, como se seus carinhos


tivessem me causado algum incômodo.

— Não, seu bobo! Eu só quero dançar! — interrompi suas palavras com as minhas,
começando a mexer meu corpo na ondulação da música. — O que vocês ainda estão fazendo
sentados? Eu já não ensinei que não devem me deixar dançar sozinha?

Recuperados do espanto, os dois se puseram de pé, Lucas à minha frente e Douglas


atrás de mim, colando seu corpo no meu, e como sempre, aquela gravidade íntima, particular
e voraz nos impeliu a ficarmos cada vez mais juntos.

Nossos corpos se entrelaçavam e remexiam numa harmonia singular. As mãos de


Lucas desciam e subiam por meu quadril, suave, em contraste com a barba áspera de Douglas
em minha nuca e ombros nus. Intensificando-se os passos, como a força do mar feroz e
ressacado, comecei, então, a retirar as alças do meu vestido preso aos braços, com a ânsia de
me afogar.
— Você tem certeza disso? — Douglas arfou entre beijos em minha nuca. Seus
dedos seguravam minhas mãos que tentavam retirar a última alça do braço, como quem
quisesse me impedir de fazer algo que não queria.

— Desde que seja com vocês, sim. Já perdemos muito tempo com o não, e estou
disposta a não perder mais um segundo sem dizer sim.

Os dedos de Douglas cederam e continuei, sentindo o tecido cair do meu corpo e se


precipitar para o chão... e eu para o mar. De fôlego acelerado, tornamos a deitar nas almofadas
do pequeno cinema, com a luz das imagens vindas do projetor iluminando parcialmente
nossos corpos sem roupas, de forma artificial, quase cinematográfica. E assim, sem conhecer
as fronteiras entre os gêneros e os números, nossas mãos se aventuravam ávidas. Sob meus
dedos, eu sentia os músculos de Douglas, em sua barriga, em seus braços... A sensação dos
pelos de seu corpo se misturava com os de Lucas, de pele quente, de seus lábios macios, suas
mordidas... Os dois se beijavam, nós três nos acariciávamos, mordiscávamos.

Eu havia pensado por muito tempo sobre como seria minha primeira vez, e quais
seriam os detalhes da noite em que enfim ficaríamos juntos. Todavia, o que de fato acontecia
ali entre nós três, entre nossos corpos ávidos e aventureiros, os beijos, os toques, o sentimento
de pertencimento e de poder, de estar com as duas pessoas que amava era simplesmente
impossível de simbolizar...

E mesmo sem simbolizar, continuamos a viver e experienciar o prazer que habitava


no real. No nosso real.

Lucas

A chuva ainda tamborilava no telhado da casa de Douglas, com a fragrância comum


que trazia — a qual eu adorava e sentia falta. De olhos entreabertos, podia ver a claridade
acinzentada iluminando a sala, mas, ao meu lado, onde deveriam estar Amanda e Douglas,
não havia ninguém.

— Bom dia, minha bela adormecida! — sussurrou Douglas, aproximando-se e


beijando meu rosto de forma carinhosa, acolhedora. — Temos algo para você! Vamos, nada
de preguiça! Vamos, cabeção!

Com muitos protestos, consegui ficar sentado e permanecer de olhos abertos para ver
a pintura de Amanda e Douglas parados à minha frente, arrumados casualmente, com sorrisos
estampados nos lábios. No balcão da cozinha, uma imensa caneca de café fumaçava, com o
vapor dançando no ambiente frio.

— Depois que Guilherme quase estragou a noite, nós esquecemos de te dar o nosso
presente! — disse Amanda, num tom de voz doce.
— Achei que acordar ao lado de vocês tivesse sido o presente!

— Ninguém é tão príncipe assim, Cabeção! Deixa de ser chato e nos deixa dar nosso
presente, sim?

Com um movimento de cabeça de Douglas para o balcão, eu finalmente percebi que,


ao lado da caneca de café, havia um baú envolto em algum tipo de fita verde.

— Feliz aniversário de namoro! — disse Amanda, puxando-me com muito esforço


para me pôr de pé e, abraçando-me por trás, foi comigo até o presente. — Vamos lá, abra!
Espero que você goste.

De fato, era um baú de tamanho médio, envelhecido, todo feito de madeira. O nome
que se lia — numa caligrafia que eu desconfiava ser de Amanda — era: Espólios dos
Aventureiros. O lado de dentro era inteiramente revestido com um tecido bordô e continha
pouquíssimos objetos. Logo reconheci o primeiro deles: a garrafa de vinho que utilizamos na
festa na Praça dos Leões, ou, pelo menos, era uma garrafa igual.

— É a mesma garrafa! — inferiu Douglas, ao me ver segurando-a nas mãos,


antecipando meu questionamento. — Fizemos questão de guardar essa para você.

— Olha o resto!

Pondo a garrafa seca de lado, comecei a bisbilhotar novamente as miudezas que


havia dentro do baú. Havia um mapa dobrado, uma espécie de caderno pequeno com capa de
couro e um livro, como o que Amanda e eu preparamos para Douglas. Meus dedos
escolheram, fisgado pela curiosidade, o tal livro, cuja capa estampava a mesma inscrição do
local que o guardava. As primeiras páginas pareciam ser informações que eu precisava
preencher, como numa agenda. Folheei rapidamente. As próximas páginas envelhecidas
continham gravuras de prédios e praças que eu não reconhecia, até que, por fim, meus olhos
encontraram algo familiar: a Praça dos Leões. No meio da folha havia nossa foto em cima do
leão, e o restante dela estava decorado com o nome da praça e algumas outras fotos diversas,
além de espaços em branco, como num álbum de figurinhas pronto para ser completado. Todo
o livro seguia a mesma lógica, com nomes de lugares e espaços em branco.

— Você ama tanto o Centro de Fortaleza, que resolvemos fazer isso para você —
disse Amanda, ainda agarrada ao meu corpo, explicando à medida que eu folheava. — Aí
estão todos os pontos turísticos do Centro que achamos que você iria adorar conhecer: Passeio
Público, Theatro José de Alencar, Cineteatro São Luiz, Parque das Crianças...

— Tem também alguns lugares de fora da cidade, como a Vila de Jeri! E, assim
como a garrafa — prosseguiu Douglas, apoiado no balcão. — Você pode pegar coisas
importantes para guardar! Estávamos combinando de te levar para visitar alguns desses
pontos hoje, mas a chuva não deixou.

— Esse deve ter sido o presente mais incrível que eu já recebi em toda minha vida!
— falei, sentindo meu peito desejar explodir em júbilo. — Não acredito que vocês fizeram
tudo isso para mim! — Amanda apertou seu abraço e Douglas abriu seu sorriso de boca
vermelha, soltando um beijinho para mim. — E tudo bem, podemos aproveitar hoje essa
chuvinha para ficarmos debaixo das cobertas! Temos as férias inteiras para isso, não é?!

E de fato aproveitamos, não só aquele especial dia em especial, como o restante das
nossas férias. Aproveitávamos como amantes ébrios correndo contra o tempo, tragando cada
segundo, cada momento em que estávamos juntos, cada pedaço um do outro.

Embora as férias tenham sido um período de verdadeira plenitude em nosso namoro,


talvez nossa gana fosse resultado de uma desconfiança, um pressentimento de nossos
espíritos, de que algo muito ruim estava para nos acontecer...

... Um momento de calmaria antes de intempéries...

... Um momento de paz, antes da guerra...

Um momento de vida, antes da morte.


Capítulo IX — A Descoberta

Amanda

— Não acredito que meu aniversário já passou e estamos no meio de setembro! —


Falei, sentindo o desespero tomar conta do meu peito. — Meu Deus, o vestibular já tá tão perto!

— Não é o vestibular, Mandy! É só a cara feia do Douglas!

Dando de ombros, sem se importar com o sarro de Lucas, Douglas apenas continuou
a comer o bolo que eu havia trazido do meu aniversário, da noite anterior.

— É verdade — disse, com a boca suja de glacê.

Meu aniversário... O infeliz episódio que foi meu aniversário! Geralmente, eu seria
uma garota que adora aniversário, que fica a semana inteira ansiosa pelo dia, mas, desde minha
briga com Guilherme na casa de Douglas, não havia nada de que desejasse fugir mais do que
interações familiares.

Na noite de nossa discussão, duas alternativas existiam para meu primo: aceitar quem
eu era, respeitar com quem queria estar e principalmente, aceitar minha felicidade ou podia
simplesmente sair da minha vida.

Evidentemente, Guilherme escolheu a segunda opção.

Logo no dia seguinte, quando cheguei em casa, ele foi a primeira pessoa com quem
topei em minha casa. Como se quisesse deixar clara sua decisão, me ignorou completamente.
Após uma tentativa de cumprimento acanhada, que não surtiu efeito algum, ele apenas passou
por mim, como se eu fosse algo transparente, sem importância. Descartável. Assim, algo que
no início poderia parecer apenas um não-cumprimento no café da manhã, passou a se tornar um
completo desprezo, uma apatia absoluta e uma imensa lacuna que era preenchida por um
constrangimento esmagador que impregnava todo o ambiente.

O meu aniversário, então... Já é possível imaginar o humor que se abateu sobre mim,
o tamanho do suplício que foi ser acompanhada por Guilherme — que não falava comigo
devido aos meus dois namorados —, Patrícia — a causadora de tudo isso —, meu tio — um
militar rígido — e minha mãe — uma mulher absurdamente conservadora. Parecia uma ceia
improvável e completamente explosiva, com o próprio Judas, além de Romanos e Fariseus
como convidados. Uma fagulha, e tudo, catastroficamente, iria para os ares. Era esse o clima
festivo quem imperava em meu aniversário.

— Você não deveria sofrer tanto por ele, sabia disso? — falava Natasha, sempre que
me reparava cabisbaixa por Guilherme. — É muito melhor festejar aqueles que ficam, que
querem estar perto, do que sofrer por quem teve a chance de ficar e simplesmente partiu.

Eu sabia que residia uma verdade preciosa nas palavras de Natasha, mas, ao mesmo
tempo, estava machucada demais para prestar atenção ou sequer tomá-las como certas.
Guilherme era a imagem mais próxima de irmão que tive em toda minha vida, e chegou num
momento crítico, após a morte de meu pai, em que eu e minha mãe mais precisamos de suporte
e do acolhimento familiar... Era difícil dar adeus assim, sem se importar, como ele fizera
comigo. Nem mesmo conseguia odiá-lo, pois Guilherme não tinha aberto a boca para ninguém
sobre o que descobriu. Isso eu sabia, porque, caso contrário, minha mãe e meu tio já teriam
enlouquecido.

Ter meu segredo protegido deveria ser o suficiente para me deixar mais tranquila, é
verdade, contudo, não passava de uma subtração tola de problemas em meio a tantos que
existiam, uma pequena trégua do destino... Porém “tranquilidade” era inexistente para qualquer
adolescente do ensino médio ansioso com o vestibular tão próximo.

Parecia não haver mais nenhuma interação, dentro ou fora da escola, que não se
resumisse ao ENEM e a faculdades. “Você está estudando o suficiente? Que curso vai fazer?
Para onde vai prestar? E se não der certo?!” — era uma ansiedade generalizada entre todos os
alunos e familiares. Como se não bastasse, os professores insistiam em deixar claro que a data
estava chegando. “Faltam X dias!” — diziam — “Faltam mais X”. José era o único que buscava
ser mais brando, flexível com o famigerado exame que estava para chegar. Com tranquilidade
inumana, buscava ponderar o outro lado da insanidade em que os professores e a escola
pareciam nos colocar.

— Eu sei que todos vocês devem estar sendo bombardeados pelos outros professores...
— disse, certa vez, no dia em que nos levou, para uma aula de campo, até a casa do escritor
José de Alencar. — Achei que fossem precisar de ar fresco, sem nenhum urubu ficar
sobrevoando a carcaça de vocês. Lembrem-se que a vida é muito mais do que isso! Estudem,
claro, mas saibam ponderar, caso contrário, se continuarem nessa pilha de estresse, o mais
próximo da universidade que vão chegar é uma conversa com residentes de Medicina para lhes
receitar ansiolíticos, sim?

Por mais que tentasse fazer coisas diferentes — saraus, aulas de campo, seminários
divertidos —, sozinho, José não conseguia abater a angústia que nos tomava com a aproximação
do vestibular. Douglas ainda não estava certo do que faria, e, por essa razão, nem nosso mundo
privado e particular parecia ser imune a esse evento. Sempre que estávamos sozinhos, ou
mesmo acompanhados de outras pessoas, o assunto aparecia.

— E então, Douglas, você já tem ideia do que fazer? — Perguntou Natasha, em um


dos nossos almoços para as costumeiras aulas no contraturno.

Levemente devastado, Douglas suspirava e se amuava na mesa, melancólico.

— Acho que na área da Saúde, ou Biológicas, não mais do que isso... E você?

— O que eu quero fazer não existe em nenhuma universidade comum... — respondeu,


naquele seu jeito leve que todos nós invejávamos, principalmente tão perto do ENEM. —
Existem mais coisas por aí que não encontramos em nenhuma faculdade. Além do mais, sou
descolada demais para isso, vocês não acham?! O importante é que você já tem uma ideia, isso
é bom!
Sem se importar, ele meneava a cabeça e permanecia para baixo o restante do dia.

A quantidade de aulas dobrou. Estudávamos, praticamente, em regime integral, de


forma desgastante e demasiadamente estressante. Eu era a mais afetada com todos esses
eventos. Nossas brigas também aumentaram. Nem Lucas sabia mais como apaziguar a situação.
A cobrança de Medicina que recaía sobre meus ombros pesava muito mais do que a dos outros
dois. E ainda tinha que aturar Guilherme e o restante da minha família...

Não sei quanto a vocês, mas não me parece justo colocar tamanha responsabilidade
nas mãos de adolescentes, enchê-los de preocupação, angústia, estresse e ainda lhes cobrar
sanidade. Todos nos cobravam assertividade em nossas decisões: precisávamos acertar de
primeira e passar no vestibular, necessitávamos, ainda, que essa decisão fosse a correta. Erros
de percurso não poderiam ser admitidos. Nunca se tinha tempo a perder. Nunca parecia ser
possível fraquejar. Era desgastante, quase abusivo! Eu estava a um passo de pirar com tantas
cobranças, que, para todos, pareciam ser normais. Talvez, se me dissessem que o que aconteceu,
teria sido por minha causa, eu acreditasse. Afinal, eu é quem estava desequilibrada, estressada,
briguenta... mas o que aconteceu, da forma que aconteceu... não havia nenhuma aula que
pudesse ter-nos preparado para isso, nem em escola nem em faculdade, embora pais e
professores não parecessem desconfiar que existia alguma coisa além disso.

A vida acontecia, simplesmente acontecia.

Lucas

Tenho certeza que poderia lembrar de cada detalhe do final de semana, com uma
clareza inimaginável. Foram dias de sol intenso, sem nenhum indício de nuvem no céu,
nenhuma intempérie estava prevista para aqueles dias — ledo engano! A pior das tempestades
se aproximava, e nós nem desconfiávamos.

Tudo começou numa sexta-feira. Normalmente passávamos a tarde presos nas aulas
de contraturno na Frederic Walden, naquele dia, porém, não tivemos o último tempo.
Geralmente, quando esse milagre divino acontecia, ficávamos um pouco mais no Nosso Lugar,
namorando, trocando carinhos e afagos, mas, como Amanda estava uma pilha, devido aos
estudos, quis sair rapidamente — nós dois fizemos o mesmo. Na saída, no lado de fora, deparei
com uma figura deslocada, de cabelos crespos e volumosos, entre tantos estudantes.

— Natália! — gritei para minha amiga, que se virou, demorando alguns segundos até
identificar quem, enfim, chamava. Ao me ver, seus olhos brilharam e ela sorriu, vindo me
abraçar. — O que você tá fazendo aqui?!

Acanhada, pude ver seu rosto contrair, tentando esconder, inutilmente, um urso de
pelúcia que trazia na mão.

— Tandara... — disse, envergonhada.


Deixe-me explicar esse comportamento de minha amiga. Natália nunca foi uma garota
que gostava de namorar, preferia viver uma vida boêmia, cheio de festas, mulheres e bebidas
— Principalmente muitas mulheres e muitas bebidas. Todavia, desde que conhecera nossa
colega de sala, na festa do Lions, ela parecera mudar. Vivia em devaneios, insegura, temerosa...
Como nunca aprendera a lidar com esses sentimentos, não parecia saber como agir, agora que
finalmente estava apaixonada.

— Vou pedi-la em namoro, hoje! — falou novamente, para minha surpresa. — Esse é
o plano, pelo menos... mas não sei se consigo...

— Precisa conseguir! — exclamei, tentando dar algum suporte, massageando seus


ombros. — Olha, uma coisa que aprendi com os meus DOIS namorados, é que se não lutarmos
por aqueles que amamos, acredite em mim, ninguém mais vai. Dá medo, eu sei, mas vai com
medo mesmo, o que está em jogo vale muito mais do que essas barreiras tolas. Natália, o
mínimo que podemos fazer por nós mesmos é lutar pela nossa felicidade. Além do mais... —
prossegui, parando meu carinho para dar-lhe um abraço apertado, desses que desejam tocar-se
as almas — duvido que Tandara caia na besteira de te dispensar. Eu sei que vocês se gostam!
Vamos comemorar, nós cinco, assim que der, tudo bem?!

Assentindo, como uma criança faria ao receber uma lição importante, Natália, de rosto
avermelhado, despediu-se de mim e foi até a sua futura namorada. Não fiquei para observar o
que aconteceria, parte por saber o resultado, parte por entender que existem momentos que só
devem ser presenciados por aqueles que se amam.

Veja, tudo conspirava para que fosse uma excelente tarde! Por isso eu nunca teria
desconfiado do que me aguardava horas depois... Aquela cena, a luta de Natália para ficar perto
de quem amava fizera brotar em meu peito um sentimento caloroso, otimista. Um drink
delicioso, o qual rapidamente se espalhara por meu corpo, colocando um sorriso no meu rosto,
que durou o caminho inteiro até minha casa. Vendo o trânsito, eu não conseguia parar de pensar
nos dois, em nós três. No quanto havíamos progredido, amadurecido desde nosso primeiro beijo
naquela festa. Era bem verdade que vivíamos uma fase estressante, nunca estivéramos tão
sólidos. Tão confiantes uns nos outros. Poderíamos batalhar contra o mundo inteiro, se
precisássemos, mas continuaríamos juntos, sem perecer.

Por ironia, ou quiçá um tear perverso das Moiras, o cenário em que eu testaria essa
hipótese aconteceria naquela tarde mesmo, no exato momento em que entrei pela porta do
apartamento.

— Lucas Holanda de Alencar? — foi o prelúdio do desastre entoado pela voz rígida
de minha mãe. No momento em que a ouvi, sabia que algo estava muitíssimo errado.

Sentada na sala de jantar, Catarina, a Mãe, estava sentada com o notebook aberto à sua
frente, as mãos apoiadas na mesa de vidro, numa postura de mármore: dura e absurdamente
fria. Atrás dela, novamente, estava o quadro de nossa parente, sentada praticamente com a
mesma postura de minha mãe. Havia uma familiaridade inegável entre as duas, não fisicamente,
mas a forma como pareciam ser rígidas, disciplinadas, com olhos que desejavam o mundo de
mim. “As Mulheres Holanda sempre foram as mais fortes” — dizia meu pai, nos episódios em
que minha mãe se portava dessa forma.

Um calafrio tortuoso irrompeu por minha espinha, sentido os olhares das duas em mim.

— Sente-se, meu filho, sua mãe e eu precisamos conversar com você... — disse
Alexandre, repousado no balcão da cozinha, de braços cruzados. Até seu olhar, mais brando
que o de minha mãe, demonstrava que algo sério estava por vir.

— Que reunião do A.A. é essa? Vocês não precisam de tanta cerimônia só para decidir
o que vamos jantar — falei, meio incerto, tentando amenizar o clima sufocante que estava
aquele lugar. — Eu confio na sabedoria culinária de vocês.

— Esse não é o momento para piadinhas, Lucas — cortou minha mãe, com seu tom
ríspido feito navalha. Embora fosse ela uma mulher rígida, poucas vezes eu a vira dessa
maneira. — Quando é que você pretendia nos contar sobre o que você anda fazendo?!

— Droga! Vocês souberam das minhas notas, não foi? Ah, qual é! Ninguém precisa
de Trigonometria na vida... nem Química Orgânica... talvez Física entre um pouquinho nessa
categoria de “ruim para provas, inútil para a vida”... mas elas não são tão importantes ao ponto
de uma intervenção familiar!

Novamente, minha tentativa de fazer piada teve o mesmo resultado de sementes


jogadas no asfalto quente. Infrutíferas, na verdade, só serviram para intensificar mais ainda a
gravidade das coisas. Minha mãe e meu pai, fitavam-me, ainda esperando minha resposta. O
que você anda fazendo? O desdém, a rigidez, a frieza... todas essas dicas só poderiam se dirigir
para um ponto... Ora! Não precisava que se dissesse mais coisa alguma. A trama da ópera
explicitava-se por si só, na abstinência das palavras — que, como eu mesmo já dissera, são
capazes de revelar muito mais.

— Quando pretendia nos contar, Lucas? — retorquiu novamente, em tom inquisitorial.

— Como vocês sabem?

— Importa?

— Claro que importa! Vocês nunca toparam com Amanda e Douglas, como sabem da
existência deles?

Tal qual um monte de pólvora reagindo a uma fagulha, o olhar de minha mãe
incandesceu de fúria. Franzido a boca para baixo e levantando o nariz para cima, como se
carcaças pútridas estivessem sob ele, prosseguiu no mesmo tom desdenhoso e ríspido:

— Então você admite que esse romancezinho sórdido existe!

— Romancezinho sórdido?!

— Catarina! — Alexandre tentou intervir. — Não era isso que queríamos conversar.
— Ah, Alencar, não me venha com defesas nesse momento! — Catarina praticamente
gritava, batendo exacerbadamente nas teclas do computador. — Por você ser tão brando e
pacífico é que ele é assim! Um moleque que não respeita nem a nossa casa!

Nesse momento, numa espécie de grito final, minha mãe deu um pequeno tapa no
notebook, forte o suficiente para fazê-lo virar até mim e foi aí que eu vi. Na tela minúscula,
uma imagem congelava-se, tão nítida e indistinta, que era impossível não entender no momento
em que se meus olhos a vislumbrou: era uma imagem de nós três, na sala de minha casa.
Douglas e eu estávamos usando cuecas, apenas, e Amanda vestia uma camisa de botões que
pegara em meu guarda-roupa. Do ângulo que havia sido gravado, alguma câmera deveria ter
sido posta no painel da TV na sala. No canto inferior, em letras e números brancos, o dia em
questão: 10 de setembro de 2016, 15:45.

Eu não precisava de data para lembrar desse dia, nem mesmo fazia tanto tempo assim.
Amanda e Douglas vieram à minha casa, enquanto meus pais viajavam. Praticamente, eles
passaram o final de semana inteiro comigo, vindo para cá todos os dias bem cedo, saindo apenas
já demasiado tarde. Nesse dia, resolvemos assistir a um filme qualquer: podia-se ver pipoca e
brigadeiro sobre a mesa de vidro no centro da sala. Claramente, por estarmos sozinhos, os
carinhos foram aumentando, esquentando até que... Minha mãe parara a gravação no momento
em que Amanda começava a tirar a camisa que vestia.

Nunca, em toda a minha vida, em nenhum momento de raiva, senti meu corpo queimar
como naquela tarde. Minha pele parecia ter entrado em combustão segundos atrás, sem que eu
tivesse percebido. Eu sentia a fúria se espalhar por cada centímetro do meu corpo, cada
músculo. Sentia ódio por tudo aquilo. Não acreditava no que se desenrolava diante dos meus
olhos: ser espionando dentro da minha própria casa! Gravado, pela minha mãe?!
Completamente humilhado, eu olhava a cena sentindo asco de tudo naquela casa. Exposto.
Enojado.

— Você me gravou?! — vociferei em resposta, ensandecido pela cólera a qual se


abateu sobre meu espírito. Sem conseguir falar mais nada, as palavras se amontoavam em minha
boca, querendo sair todas de uma só vez, fazendo-me gaguejar de forma patética. Sem saber se
conseguiria falar mais alguma coisa, tomado completamente por aquele sentimento voraz, meus
dedos bateram no computador, avançando as imagens, num ato de protesto extremamente não-
pacífico — Isso é doentio! É sádico! Mas toma, você queria tanto ver o que estávamos fazendo!
Olha, tá tudo aí! Olha só como teu filho manda bem!

Ainda sem ponderar, empurrei de volta o computador, com cenas do nosso sexo
passando. O rosto de minha mãe, que também se contorcia de fúria, mudou rapidamente para
incredulidade com o que eu havia acabado de fazer. Sem querer olhar para a tela do seu
notebook, novamente tomada pela raiva vil, empurrou o seu computador para o chão com muita
força e veio até mim, dando-me um tapa que, embora eu nem tenha sentido, o barulho denunciou
o quão forte havia sido. Praticamente um segundo depois, Alexandre se pôs entre nós dois e
segurou suas mãos, antes que pudesse repetir as investidas. Todavia, já não eram as mãos que
agrediam naquele momento. Catarina e eu estávamos aos berros, ensandecidos.
— Catarina! Catarina! Pare com isso! — meu pai tentava se fazer ouvir, entre nossos
gritos e trocas de xingamentos. — Lucas, você também. Vá para o seu quarto agora! Vá!

Ainda pude ouvir os gritos dos dois, abafados, por muito tempo depois de ter me
trancado em meu quarto. Furioso, ainda com o ímpeto de destruição tomando meu peito,
comecei a chutar as coisas que atravessavam meu caminho. Cama, guarda-roupa, estante de
livros... Mais do que somente fúria, eu me sentia humilhado por tamanha exposição! Um nó se
formou em minha garganta, as lágrimas ameaçaram transbordar. Contudo, estava decidido a
não as deixar rolar, não daria esse gosto ao sadismo de Catarina. Ao invés disso, peguei uma
mala e comecei a jogar roupas lá dentro, sem pensar no que fazia, minhas mãos simplesmente
se moviam sozinhas, como se, em meio a tanta impotência, quisessem fazer qualquer coisa
naquele momento. Meu corpo tremia, minha respiração não queria voltar ao normal. Nervoso,
nem mesmo havia tido coragem de pegar o celular e falar aos dois o que acontecera. Afinal,
como contaria? Imagine só, ser filmado dentro da sua própria casa, por sua mãe?!

Devia ainda estar praguejando os demônios com a fúria dos deuses, quando algumas
batidas se fizeram soar na porta do meu quarto. Através da porta entreaberta, meu pai entrou
com o semblante pesado, exausto. Constrangido, ficou alguns segundos segurando a maçaneta
da porta, sem saber o que falar, ou como se portar, parecendo um imigrante num país de cultura
absurdamente estranha e hostil.

— Podemos conversar? — disse, depois de um longo pigarro. — Só eu e você,


varanda, cervejas, como fazemos. Que tal?

— É uma conversa só com você ou preciso me preparar para uma coletiva de


imprensa? Se for, você precisa me dar tempo de me arrumar, tenho ótimos nudes que combinam
com aquelas gravações!

Alexandre balançou a cabeça, repousando as mãos na sua cintura. Permanecendo


calado, limitou-se apenas a me olhar de forma intensa, paternal. Sua postura era, de fato, forte,
decidida, impunha-me o dever de respeitá-lo, embora em nada o fizesse parecer ameaçador
naquele espaço, diferentemente de minha mãe. Quando ele se portava assim, feito um objeto
imóvel, em meio às minhas fúrias imparáveis, parecia uma costa que não fraqueja frente à
violência do mar — por mais devastadora que pudesse ser a força marítima, tanto o mar quanto
a costa sabiam quem iria perder aquele infeliz conflito. E, de fato, meu pai ficara assim, parado,
olhando-me com austeridade patriarcal, até que eu dei de ombros e o segui calado, meio
envergonhado.

— Você não precisa agredir os outros só porque está de mau-humor — falou,


cansadamente. — Um vulcão não é saudável para ninguém.

— Filmar a intimidade dos filhos, é?

— Lucas, chega! Eu nunca teria concordado com as loucuras de sua mãe, se soubesse...
— voltou a falar, novamente no mesmo tom, como se as palavras gastas já tivessem cansadas
de serem repetidas. — Eu não sabia o que sua mãe estava planejando, se soubesse, claro que
teria impedido. Já discuti isso com ela e ainda vou discutir por muito tempo, pode ter certeza.
Agora, nós dois... — Alexandre parou por alguns segundos, olhando a cidade ao fundo, antes
de tornar a me olhar — nós dois precisamos conversar.

Abrindo uma garrafa de cerveja e me passando, deu início ao nosso velho ritual —
sempre tomávamos uma garrafa de cerveja quando tínhamos alguma conversa séria pela frente.
Foi assim que aconteceu quando contei sobre minha bissexualidade, ou quando minha avó
faleceu, ou mesmo quando íamos nos mudar para Fortaleza. “Se não podemos mudar a
necessidade ou a urgência da conversa, podemos mudar a forma como iremos levá-la” — dizia.

— Então... dois namorados? — começou Alexandre, após alguns momentos em


silêncio, durante os quais, por certo, escolhia com cuidado diplomático, as palavras que usaria.
— Ter dois namorados não é...

— Errado? — interrompi-o, quase que na mesma hora em tom desdenhoso.

Balançando a cabeça, meu pai completou:

— Muito? Eu ia dizer muito, não errado. Eu já falei, Lucas, não precisa se armar contra
mim. Sou seu pai, não seu juiz, ou seu inimigo.

Envergonhado, tentei relaxar um pouco mais os ombros que começavam a querer me


estrangular de tanta tensão. Era verdade o que dizia. Alexandre sempre fora a persona
compreensiva, atenciosa e, acima de tudo, ética. Nunca teria concordado com a palhaçada de
minha mãe. De fato, não deveria ser contra ele que minhas armas deveriam se voltar. Assim,
com imensa dificuldade, tentei colocar minhas defesas de lado, para ter uma conversa franca,
sem ataques — por mais irritado que ainda estivesse.

— Por que não nos contou sobre eles?

Reminiscências começaram a fervilhar em minha mente, no instante em que suas


palavras tocaram meu espírito. Todo o suplício vivenciado de forma velada queria, por fim, vir
à tona, junto com os meus temores e receios, a coragem e o desejo de contar... Finalmente
chegara o momento que há tempos esperava. Mas, de todas as lembranças, de todos os dias,
nenhuma pesou mais do que aquela após a festa na praça dos Leões. O dia em que minha
confiança havia sido defenestrada, ao vê-los se comportar de forma estranha, cheios de dúvidas,
receios... Definitivamente, aquele dia fora decisivo para meu silêncio.

— Acredito que tenha sido por medo... eu acho... — comecei — Olha, vamos encarar
os fatos: eu só estou com vocês porque alguém nesse mundo não me quis. Eu fui abandonado.
Rejeitado. Claro que sem esse fato, não teria tido vocês, e agradeço infinitamente por alguém
ter feito isso. Vocês sempre foram pais incríveis, sempre me amaram, eu sei!... — pausa e um
grande suspiro — Justamente por saber que me amavam, temi perder esse amor. Posso viver
com o fato de estranhos me rejeitando, mesmo sendo aqueles que me geraram, mas, a dor de
ser rejeitado por vocês... eu simplesmente... — minha voz quis embargar, no entanto, não
desejando chorar na frente de meu pai, apliquei uma força inumana para continuar minhas
palavras: — simplesmente não queria correr o risco de ser rejeitado pelos meus verdadeiros
pais... Bom, eu estava certo em partes, não é? Pelo menos um de vocês me rejeitou.
Ao fim das minhas palavras, eu já podia sentir meus olhos afogando-se em um mar de
lágrimas, mas pigarreei, buscando focalizar a cidade ao fundo, limpando-as com a manga da
minha camisa. Em silêncio, Alexandre tocou minha mão, num gesto grandiosamente paternal,
que só fez com que as lágrimas desejassem sangrar ainda mais de minha represa. Sem olhar
para ele, no entanto, continuei inutilmente a esconder meu rosto, fitando os prédios e os carros
logo abaixo.

— Eu nunca te rejeitaria, Lucas, nunca — sussurrou, com a voz embargada também.


— E sua mãe? Você a conhece. Ela é controladora, ranzinza, até louca as vezes, mas te ama.
Ela só precisa de um tempo para digerir tudo isso, você vai ver...

Assenti, bebendo o restante da minha cerveja com praticamente um gole. Por algum
tempo, continuamos em silêncio, apenas bebendo a segunda rodada, até que meu pai começou
a fazer perguntas sobre os dois. Inicialmente, foram perguntas genéricas e tímidas, as quais eu
presumia serem feitas por educação: Qual era o nome dos dois? De onde eu os conhecia?
Lentamente, foram se transformando em perguntas mais específicas e enérgicas, cheias de
interesse sincero. Sem perceber, conversávamos animadamente sobre os mínimos detalhes do
meu namoro: como contei para os dois que estava gostando deles, nosso primeiro beijo, o
código... contei-lhe tudo que ficara velado, enquanto Alexandre encarnava o espectador
atentíssimo, um aluno ávido que perguntava algo quando uma dúvida lhe brotava à mente:
Vocês ainda sentem ciúmes um do outro? As famílias deles sabem? Você sabe de quem gosta
mais?

— Impossível! — exclamei animadamente ao ouvir a última pergunta. — O que nós


temos, pai, esse sentimento... Não somos uma competição, somos uma complementariedade.
Como um quebra-cabeça! Não há maneira de avaliar qual peça é mais importante do que a
outra, somos partes de uma coisa só... tire um de nós e todo o resto ficará incompleto. Esse é o
nosso namoro. Esse é o nosso amor!

Levamos mais quase uma hora vendo nossas fotos, os presentes. Alexandre parecia
perceber meu júbilo a cada nova informação apresentada. Uma emoção nostálgica deve ter
tomado conta de nós dois, pois esses momentos a sós, mostrando coisas um para o outro,
costumavam acontecer quando eu era criança. Naquela época, eram meus rabiscos disformes,
meus brinquedos, que apresentava orgulhoso. Agora, no entanto, como um quase-adulto, o que
estava à luz eram meus sentimentos, meus planos para o futuro, e meu pai parecia estar contente
com isso, satisfeito com a mudança. Seu interesse paternal ainda se estendeu ao seu ápice, num
convite para conhecê-los:

— Um almoço — disse. — Eu cozinho!

— Mas e a Catarina? — perguntei, sendo arrastado do júbilo para a realidade voraz


das desventuras acontecidas em segundos.

Alexandre hesitou um pouco, coçando a curta no queixo, antes de responder:

— É a nossa casa também, não só dela, ela não pode me impedir de dar um almoço
para os... namorados? — parou, aguardando minha confirmação, que veio logo após. — Ok.
Para os namorados do meu filho... nunca pensei que diria isso... O almoço acontecerá e estou
ansioso para conhecê-los. Não posso prometer nada mais do que isso e que farei a melhor
comida possível. Mas isso já estava implícito, não é? Sou um ótimo cozinheiro... e um homem
modesto.

Com uma bagunçada nos meus cabelos, Alexandre se despediu e saiu com um sorriso
no rosto. Aquilo que acontecia, o gesto de afeto, a compreensão, o convite! Tudo me pesava
com uma força inefável. Sei que muitos podem não compreender como um convite poderia ser
tão importante, algo tão corriqueiro na vida de muitos namorados... Contudo, não éramos
namorados comuns — muito longe do comum, na verdade —, e, ainda assim, eu estava sendo
aceito pelo meu pai! Era gesto de aceitação sincero, sem farsas ou leviandades. Ele gostaria de
participar da minha vida, de conhecê-los, de dar suporte! Não houve julgamentos, não houve
repressão. Houve amor, antes de tudo. Dava-me, então, por satisfeito, mesmo depois de uma
tarde catastrófica com a minha mãe!

Animado, corri até o celular — que havia esquecido desde o início da briga — para
deixar meus dois namorados a par dos acontecimentos. Algumas ligações perdidas, muitas
mensagens — Douglas e Amanda enlouqueciam com o meu desaparecimento. Omitindo o
detalhe das filmagens, contei-lhes o que se passara. A briga com minha mãe, a conversa com
meu pai, o convite para almoçar! Ambos ficaram atônitos com cada nova informação da
narrativa. Temerosos, inclusive, não queriam aceitar o convite a princípio, mas depois de um
tempo argumentando, os dois aceitaram

Ratificando seu convite como não sendo uma ação leviana, Alexandre fizera questão
que o almoço acontecesse no dia seguinte mesmo. Acordou-me cedo e me deixou responsável
por fazer as compras. Saí com a longa lista e, na volta, não encontrei mais minha mãe em casa.
Claro que eu não esperava que ela participasse do almoço, mas, quando enfim aconteceu, sua
ausência pesou mais do que presumi que sentiria. Desconfiado de que isso poderia me
entristecer, meu pai não me deixou parado um segundo sequer, sempre me fazendo novos
pedidos para ajudá-lo no preparo do almoço.

Em meio ao corte de verduras e ao aroma da comida já sendo cozinhada, foi que os


dois, enfim, chegaram, lá por volta das onze horas. Juntos — suspeitava que haviam combinado
o horário para não enfrentarem o front de batalha sozinhos —, cada um parecia mais nervoso
que o outro. Douglas vestia uma bermuda branca de praia com sua camisa favorita, preta de
gola V, enquanto Amanda usava um vestidinho solto e florido, o qual reconheci de nosso
aniversário de namoro.

— Estamos bem? — cochichou Douglas, ainda do lado de fora do apartamento, dando-


me um rápido, e desconfiando, beijo nos lábios. — Eu não sabia o que vestir e resolvi vir casual.

— Eu pensei o contrário! Será que eu exagerei? — completou Amanda, também


apreensiva, conferindo o vestido. — Ah! Não sabíamos o que trazer e resolvemos comprar
vinho. É isso que os adultos se dão de presente, não é?
A imagem dos dois, abobalhados, nos detalhes para agradar meu pai, fez com que um
sorriso brotasse largamente em minha boca. Tanto por meu romantismo achar beleza na cena
de ambos acanhados e sem jeito, como pelo próprio fato, meu peito se enchia de felicidade: não
esperava vê-los apreensivos por causa de um jantar de família tão cedo, e, no entanto, aquilo
realmente acontecia.

— Vocês estão perfeitos! — falei com sinceridade, apertando-os, ao mesmo tempo,


contra meu corpo num abraço apertado. — E o presente também. Vem, vamos entrar para
conhecer meu pai!

— São eles? — a voz de Alexandre soou animada, da cozinha, ecoando por


praticamente toda a casa. — Traga-os aqui!

Excessivamente retraídos, os dois entraram feito soldados inimigos em um campo


minado: como se cada passo em falso pudesse levar tudo pelos ares. Eu costumava encher os
dois de histórias sobre meu pai: de como nos dávamos bem, de como ele era o cara mais
relaxado e flexível... talvez por essa razão, a imagem que ostentava, escorado no balcão com o
cenho franzido, deve tê-los causado espanto.

— Então, vocês são os namorados do meu filho? — começou a falar, num tom grave
e sério, em que cada palavra dita com rigor mais parecia pertencer à minha mãe. Amanda e
Douglas se entreolharam assustados, antes de me ver dar de ombros. Por certo não era assim
que esperavam encontrar meu pai, ranzinza, vestindo um avental rosa de babado, questionando
sobre nossa relação... de todas as formas, a imagem parecia pitoresca e inusitada demais. —
São ou não são? — perguntou novamente, da mesma maneira imperiosa. Os dois assentiram
mecanicamente no segundo seguinte. Foi então que um sorriso suavizou suas feições duras,
trazendo a verdadeira face marota de meu pai — Ótimo! É um prazer conhecê-los! Achei que
nunca fosse ter alguém pra quem contar as histórias embaraçosas do Lucas!

Os dois relaxaram os ombros e, em seguida, foram cumprimentados por Alexandre


com um forte abraço.

— Culpem o Lucas por esse susto! — tornou meu pai, após as devidas apresentações.
— Ele me deixou dar esse susto em vocês!

— Bom saber disso! — respondeu Amanda. — Iremos nos vingar, com certeza.

— Eu ajudo! — respondeu Alexandre.

O almoço não poderia ter sido melhor! Não foi trabalho nenhum entrosá-los. Meu pai
tinha uma habilidade incrível, que eu muito invejava, em lidar com pessoas, causar boas
primeiras-impressões. Rapidamente, fez Douglas e Amanda se sentirem confortáveis com a
situação que, normalmente, seria embaraçosa. Não parecia um almoço constrangedor em que
se tem vontade de procurar o primeiro fricassê para se esconder de vergonha. Não, não, bem
longe disso, foi divertido, tranquilo, relaxado... foi acolhedor.
Histórias constrangedoras sobre mim, no entanto, pareciam ser o principal tema, tudo
para tirar sarro de mim. Meu pai falava de todos os micos possíveis, que eram sorvidos com
animação e mais gozações por parte dos dois.

— Certa noite, quando eu havia acabado de colocar Lucas para dormir — dizia
Alexandre, praticamente sem parar sendo encorajado por Douglas e Amanda a cada história
mais constrangedora —, eu escutei barulho de spray e um cheiro forte vindo do quarto. Entrei
apressado e ele estava inteiramente empestado de inseticida. Havia incensos também! Estava
um pandemônio ali dentro! Quando perguntei o motivo de tudo aquilo, Lucas disse que estava
com medo da família do gafanhoto que havia matado mais cedo, porque seu amigo dissera que
eles viriam à noite para vingar a morte do ente querido.

— O Marcos disse que eles iriam comer minha cara! — protestei, rindo do episódio.
— Todo mundo sabe que gafanhotos são vingativos!

— Claro, Lucas, claro! O fato é que esse menino teria se matado com tanto veneno se
eu não tivesse notado.

— E quantos anos esse cabeção tinha quando fez isso?

— Onze! Onze anos!

Houve muita gozação com a minha cara depois dessa história, principalmente da parte
de Douglas. Inutilmente, Amanda ainda tentou me defender, mas desistiu nos primeiros
segundos:

— Desculpa, Lucas, mas achar que gafanhotos vão se vingar com onze anos... assim
não tem como te defender!

O almoço prosseguiu com mais frivolidades sendo postas à mesa. Estava claro que
meu pai os adorara, e era perceptivelmente recíproco. Era o primeiro almoço oficial em família
que acontecia, e com sucesso invejável!

— Meninos, eu gostaria de falar sério agora — Alexandre parou e aguardou até que
nós três estivéssemos prestando atenção. — Eu quero dizer que estou muito contente por
conhecer vocês dois, saber que são pessoas ótimas e, o mais importante, que agora eu tenho
aliados fortes para zoar com a cara do Lucas. Mas preciso ter um momento sério com vocês:
esse caminho que estão trilhando, eu já imagino que vocês devam ter notado que não é nada
fácil. Não deixa de ser um caminho, mas é um caminho estreito. Ainda vivemos numa sociedade
hipócrita e moralista. Todo mundo fala por aí de moral e bons costumes, da família tradicional
brasileira, e, enquanto passam a noite com suas amantes, repudiariam o que vocês têm sem peso
na consciência. O nariz do vizinho é o único que deve ser apontado, nunca o próprio. Se já não
encontraram, vão encontrar pessoas que irão desmerecer o que vocês têm, que irão humilhá-
los, mas não deixem que façam isso. Não se deixem abater por essas bobagens, porque o
relacionamento de vocês é lindo! Se tem uma coisa de que estou muito orgulhoso, nesse
momento, é que estão lutando por quem são e pelo o que vocês sentem. Não é fácil se despir e
mostrar ao mundo quem se é de verdade, a coragem de vocês é invejável. Estou contente pelo
caminho que vocês escolheram, por isso, desejo força e boa sorte. E podem contar comigo nesse
caminho.

Durante algum tempo, nós três ficamos atônitos demais com o discurso de Alexandre
para responder alguma coisa. Foi Amanda quem tomou a frente para responder.

— Obrigado, Sr. Alexandre. Não sabe o quanto isso é importante para nós. Não iremos
desistir do que temos, pode deixar.

Meu pai assentiu com um sorriso satisfeito nos lábios. O restante da tarde continuou a
se desenrolar de maneira indescritivelmente prazerosa. O sorrido de Douglas e Amanda, a
aprovação do meu pai... a imagem de todos nós ao redor da mesa, depois daquele discurso de
apoio e suporte, foi uma das lembranças que mais me estraçalharam o espírito quando os tempos
sombrios vieram. O que deveria simbolizar amor, tornou-se uma desgraça dolorosa para mim,
que via tudo escorrer por entre meus dedos...

Estou falando do início do fim, quando tudo começou a desmoronar: pedaço por
pedaço, sentimento por sentimento. A nossa ruína, que começara, assim, logo no dia seguinte...
Capítulo X — A Mensagem
Douglas

Somente ingênuos dirão que a vida é justa, que só se colhe o que se planta... Veja que
só estou dizendo ingênuos, porque não quero falar em estúpidos. Palavras como essas não
passam de porcarias de autoajuda, ditas somente para acalentar os desamparados que procuram
uma ordem cósmica para os acontecimentos. Signos... carma... destino... ordem divina...
porcaria! Não, meu caro, a vida não é justa, e, quando você menos espera: ela fode com você.

— Lucas, onde é que você está? — Amanda segurava o telefone, escutando


atentamente o que era dito. — Enxaqueca? Podemos ir te ver? — silêncio. — Sua mãe está em
casa, certo. — suspiro. — Tudo bem, então... eu mando sim, pode deixar... beijo.

Amanda desligou o telefone e se virou para me olhar preocupada. Não era necessário
ter ouvido o outro lado da conversa para saber o resultado: Lucas nos daria mais um bolo. O
terceiro em uma semana.

— Ele disse que estava com crise de enxaqueca — falou, batendo os dedos
impacientemente no celular —, e que não podemos ir visitá-lo, porque a Catarina está em casa.

Sem conseguir me controlar, apenas bufei fortemente, deixando que alguns


xingamentos saíssem entre eles. Ainda preocupada, Amanda me abraçou e ficamos em silêncio
no quarto escuro, sozinhos. Era sábado à noite, o único momento que possuíamos somente para
nós três, o qual, deliberadamente, estava sendo jogado janela afora.

Tudo, entre nós três, andava muito esquisito, diferente. Por muito tempo, aquela noite,
Amanda e eu conversamos sobre o que poderia estar acontecendo — Será que havíamos feito
alguma coisa de errado? —, todavia, mesmo com muito esforço, não encontrávamos nenhuma
resposta para o comportamento estranho Lucas. O almoço com seu pai havia sido incrível, tudo
parecia que iria dar certo depois dali. Eu até havia cogitado contar para minha mãe sobre o
nosso namoro, de tão inspiradora que aquela tarde havia sido! Mas não... Depois daquela tarde,
daquele almoço, as coisas começaram a sair do eixo — se existia alguma razão, era certo que
não nos dávamos conta. Era irritante, angustiante. Tentar consertar algo que não sabia onde
havia quebrado era impossível!

Logo na segunda-feira subsequente ao almoço, Lucas adoeceu de alguma coisa grave,


passando a semana inteira em casa. Não queria receber visitas.

— O vestibular está chegando, vocês não podem adoecer agora — era a desculpa que
nos dava.
Sem dar mais detalhes do que sentia, sumiu, nos deixando preocupados. Quando
tentávamos ligar, ele não atendia. Quando mandávamos mensagem, demorava horas para
responder.

De início, eu e Amanda não quisemos fazer nenhum tipo de alarde. Afinal, ele estava
doente, precisava descansar. Por essa razão, embora preocupados, continuamos firmes, como
se nada de mais estivesse acontecendo. Para ser franco, teríamos conseguido não nos deixar
afetar, se esse sintoma não houvesse persistido até o final daquela sua “doença”. Mesmo
recuperado, Lucas continuava a evitar nossas ligações e nos deixava sem resposta por horas
inteiras!

— É o estresse lá em casa, sobre vocês e o vestibular! — confessou, numa conversa


na escola, quando tivemos uma DR sobre o assunto. — Minha mãe anda fazendo um inferno
comigo. Desculpem, não quero que vocês se preocupem com isso. Eu vou melhorar —
Prometeu.

Não melhorou. Na verdade, tudo começou a piorar ainda mais depois dessa conversa.
Lucas começou a nos dar bolos, desmarcava de última hora ou sequer desmarcava. Como disse,
só nessa semana, já havia sido a terceira vez que ele fazia isso conosco. Amanda ensandecia.
Não bastava estar estressada com o vestibular — estávamos no início de outubro, faltando
pouco menos de um mês para o ENEM — a displicência de Lucas nos afetava de uma forma
intensa, íntima. Brigávamos, os três, praticamente todas os dias em que subíamos para o Nosso
Lugar, ou todas as noites por telefone, até que as ligações noturnas pararam de acontecer. As
vozes voltaram a soar em minha cabeça — Relacionamentos amorosos nunca dão certo!
Relacionamentos amorosos nunca dão certo! Relacionamentos amorosos nunca dão certo! —
sem misericórdia ou trégua. Entretanto, nós dois ainda tentávamos consertar as coisas, de forma
inútil, e sabíamos disso. Era horrível, principalmente porque sabia aonde aquele caminho iria
levar: ao fim definitivo. Sim, lentamente, eu via nosso relacionamento afundar... como um
maldito submarino.

Em algum momento da displicência e descaso do Lucas, mentimos para nós mesmos


que era o estresse o responsável por tudo aquilo. Se não havíamos feito nada de errado, essa era
a única explicação, certo? Assim, apesar de saber que tudo desmoronava, continuávamos a levar
essa chama, mesmo com toda a lama. Mas, a cada dia que passava, uma nova merda acontecia.

— Vocês andam tão desgrudados! — Letícia comentou, num intervalo, quando Lucas
não estava. Todos os colegas na roda de conversa, de repente, pararam e voltaram as atenções
para quem mais a queria. — Vocês e o Lucas, estou dizendo.

— Como assim? — perguntou Amanda, sendo fisgada pelo comentário.

— É, mulher... desgrudados! Nunca víamos vocês separados, e agora, parece que


andaram brigando, não é, Jéssica?! Estou dizendo isso porque me disseram que sábado ele
estava no Órbita.... — continuou, como se aquela informação fosse desimportante, embora,
todos nós soubéssemos que uma fofoca para Letícia nunca deixava de ter importância. — Me
disseram que o Lucas tava lá, todo animado, curtindo e bebendo. Ele, a Tandara e uma outra
menina. Por que não foram?

— Precisávamos estudar — mentiu Amanda, claramente abalada com a informação.


Dando de ombros, Letícia mudou de assunto, não antes de sorrir com satisfação, dando entrada
para uma outra fofoca “desimportante”.

Sábado. Órbita. Animado. Curtindo. Bebendo. Brigados. As palavras de Letícia


impregnaram o restante do dia, de modo que Amanda e eu não conversamos muito depois disso.
Por certo, ela também pensava sobre a informação que havia sido jogada sobre nós dois e sobre
o que faríamos com ela. Porque, claro, alguma coisa precisava ser feita. O silêncio, bandeira de
nossa resiliência, só poderia significar uma resposta em comum.

Entenda: uma coisa era continuar, mesmo com todas as dificuldades e descasos, porque
um de nós estava estressado, instável, devido a uma mãe louca e um vestibular que se
aproximava. Suportávamos o mau humor de Lucas, tentávamos manter erguido, a duras penas,
um relacionamento que desfalecia, é verdade, mas fazíamos por nós três. Até aquele comentário
venenoso, ainda nos iludíamos de que Lucas precisava de nós. Somente por isso, continuamos
a lutar com uma paciência absurda — que nem mesmo eu sabia que possuía. Mas não se tratava
disso, não é? Lucas não estava instável, estressado, precisando de ajuda... Não, claro que não!
Não percebíamos que, aquele a quem tentávamos ajudar, era o único que não precisava de ajuda.
“Estava todo animado” — foi o que Letícia nos falou. Animado?! Enquanto Amanda e eu
lutávamos, Lucas curtia às nossas custas — com a nossa cara!

— Precisamos acabar com isso — falei para Amanda, no final da aula, que assentiu
sem pestanejar. — Precisamos terminar com Lucas.

Amanda

— Esse trânsito tá um inferno! — reclamou o motorista do Uber, no caminho para


casa de Lucas.

— Se fosse só o trânsito estaríamos ganhando, meu caro — Douglas respondeu,


secamente, exterminando qualquer tentativa de conversa naquele momento.

O motorista, percebendo o humor que se abatia sobre nós, não quis retrucar,
deixando que o restante do percurso fosse dominado por um silêncio devastador. Não
queríamos falar um com o outro e o motivo era claro: simplesmente não sabíamos o que falar.
Estávamos calados, como familiares se encontram numa sala de espera, prontos para
receberem as piores notícias — remoíamos as nossas dores da forma que mais nos convinha,
nos preparando para o luto. No banco de trás, cada um olhava por uma janela, presos nas
próprias ponderações sobre a desventura que se desenrolava. Um enorme espaço permanecia
entre nós dois no banco, o lugar que Lucas costumava ocupar. De forma inconsciente
reproduzimos as mesmas condições, talvez já nos preparando para vazio com o qual teríamos
que aprender a lidar — e que se estendia a muito mais do que semente o banco de um carro. À
medida que nos aproximávamos, o incômodo aumentava, não havíamos planejado o que
iríamos falar — era certo, nos dias que passaram, que esse momento chegaria, mas nunca
havíamos nos preparado de fato. Apenas seguíamos, assim, em silêncio, ao som de buzinas
frenéticas, até o final do nosso destino.

— Você não acha que deveríamos ter ligado para ele antes? — Douglas perguntou,
no momento em que saímos do Uber.

— Não — respondi com convicção. — Se tivéssemos ligado antes, ele poderia fugir
mais uma vez. Sem mais fugas, Doug. Eu não aguento mais isso.

Silenciosamente, Douglas confirmou, enquanto parávamos em frente ao prédio de


Lucas. Rapidamente, disquei seu número. Chamou algumas vezes, até que, enfim, ele
atendeu.

— Oi, Amanda.

— Você está em casa? — falei, sem cumprimentá-lo, com o tom de voz saindo
carregado o suficiente para deixar evidente a gravidade da situação. — Precisamos conversar.

— Conversar, agora? Olha, eu não estou muito bem...

— Não estou brincando, Lucas. Estamos aqui em baixo. Você desce ou nós subimos?

Lucas precisou de um longo momento em que demorou a responder, do outro lado da


linha, pude ouvir sua respiração pesada. Ao meu lado, Douglas me olhava ansioso, com as
linhas do maxilar rígidas e os braços cruzados sobre o brasão da FW — havíamos saído tão
apressados, que nem mesmo pensamos em parar para trocar a farda da escola.

— Certo, podem subir.

Assentindo para Douglas, entramos em seu prédio e fomos diretamente para seu
apartamento, ainda em silêncio, com a ansiedade exalado de cara poro de nossos corpos. Do
lado de fora, Lucas já nos esperava de braços cruzados, escorado no vão da porta. No
momento em que nossos olhares se cruzaram, uma onda de eletricidade percorreu minha
espinha, como acredito que deva ser para aqueles que percebem uma colisão iminente —
talvez essa fosse a melhor descrição para aquele momento: íamos, de encontro um ao outro,
pronto para colidir. Para nossa surpresa, Lucas estava produzido da cabeça aos pés: vestia
uma calça jeans e uma camisa xadrez vermelha e preta, eram roupas novas, isso pude logo
perceber. Ele, que nunca se dava ao trabalho de se arrumar para sair, naquele momento,
parecia a completa definição de vaidade.

— Então, vejo que você realmente não está se sentindo bem — Douglas
praticamente rosnou, carrancudo, ao perceber também suas roupas novas.
Dando apenas de ombros, Lucas entrou, deixando a porta aberta para nós. Sem nos
cumprimentar, ou mesmo nos olhar, seguiu para seu quarto sem parar até o momento em que
se sentou na cama, quase que despreocupadamente. Aquilo, aquele gesto, começou a me fazer
sentir ridícula de tanta raiva e vergonha por ter aturado essa sua nova displicência, que se
fazia presente até mesmo no momento final. Parados, Douglas e eu não nos sentamos ou
fizemos menção de relaxar, mesmo depois de Lucas ter apontado, duas cadeiras à sua frente.

— O que foi que aconteceu? — perguntou, revirando os olhos, percebendo que não
sentaríamos. — Por que estão se comportando dessa maneira?

Douglas se remexeu ao meu lado, piorando sua carranca.

— Qual é o teu problema, Lucas? — falou, num tom de voz aborrecido. — Tu tem se
comportado de forma estranha o mês inteiro e ainda pergunta o porquê de estarmos nos
comportando assim? Tu tá se fazendo doido, é?

Douglas passou as mãos pelo rosto e se virou num gesto exasperado. Se Lucas, por
acaso, deixou-se afetar, não transpareceu nem por um segundo, continuando com a expressão
tranquila, mexendo no celular e evitando olhar para nós. Era estranho vê-lo assim, longe,
apático, cínico. Mais parecia que, por todos esses meses, havíamos namorado duas pessoas
distintas: aquela calorosa, a qual nos ensinava formas diferentes de amar, sempre disposto a
lutar por aquilo que construímos, e essa outra carcaça, que não parecia se importar nem
mesmo se nos magoava ou não.

— Por que você mentiu? — perguntei somente, para a outra pessoa, sentada na cama
que dizia ser nosso namorado. — Por que você tem mentido para nós?

Lucas levantou o olhar desinteressado e deu de ombros, como se falar fosse um item
valiosíssimo para ser gasto com um momento tão banal, sem importância. Douglas ainda
continuava tenso ao meu lado, com praticamente todos os músculos do corpo tensionados,
fitando uma parede azulada. O ar que pairava sobre nós parecia empestado de metal, sujo,
frio, denso demais para ser respirado sem moderação. Era horrível, completamente diferente
do que estávamos acostumados...

— Eu sei que tem algo que você não quer nos contar — continuei, novamente,
sentindo meu corpo começar a tremer. Lucas quis mexer no celular, mas antes que o fizesse,
prossegui: — Não ouse desviar o olhar, Lucas, estamos falando com você. Se quer se
comportar feito um moleque, faça isso depois que formos embora. Enquanto estivermos aqui,
eu quero que você olhe nos nossos olhos. E então, me responda: por que você tem mentido
para nós? Nos evitando esse tempo todo, dizendo que estava doente, quando, na verdade,
estava por aí em festas? O que infernos está acontecendo com você que não está nos
contando?

Lucas se levantou e nos fitou de forma entediada e apática, piorando o nó que se


formou em meu peito e que apertava a cada segundo daquela conversa. Como aqueles olhos,
que antes foram tão calorosos e cheio de sentimentos, podiam estar tão frios e metálicos?
Seria possível que estivesse fingindo esse tempo todo e agora é que víamos quem realmente
ele era?

— Falta de interesse, eu acho — Lucas respondeu, enfim, com um suspiro, com o


tom de voz monótono.

— Falta de interesse?! — Douglas se virou, abruptamente, finalmente para encarar


Lucas.

— Não, Douglas — interrompi, segurando seu braço. Sob meus dedos gélidos, sua
pele incandescia. — Deixe que ele termine. Quer nos explicar o que isso quer dizer, Lucas?

Novamente, com aquele desinteresse nauseante, com o qual nunca o vira tratar nem
estranhos, Lucas deu de ombros, indo se escorar perto da janela de seu quarto. Antes que
pudesse nos responder alguma coisa, olhou, demoradamente, a cidade janela afora como
costumava fazer para recuperar a calma — pelo menos uma ação conhecida, que era tão
Lucas, no meio dessa nova persona completamente grotesca e ilegível.

— Desculpem, pessoal, eu sei que deveria ter falado com vocês, mas admito que não
tinha coragem. Eu perdi o interesse, essa é a verdade — o tom de Lucas saía com
naturalidade, casualidade, sem emoção, pondo os olhos novamente em nós dois. Cada palavra
dele, fazia meu peito se revirar, queimar em brasas vivas. — Para mim, só era bom enquanto
era proibido. Vão me dizer que vocês continuam da mesma forma de antes? Então, depois que
recebi a aceitação do meu pai só pareceu... Sei lá, inútil continuar.

Lucas parou, exibindo um sorriso cínico no rosto, dando de ombros como se as


palavras ditas não passassem de amenidades, tais como aquelas ditas sobre o tempo com
estranhos. Douglas, ao meu lado, olhava-o inteiramente consternado, as linhas de seu maxilar
rijas como uma estátua de mármore a um passo de quebrar. Certamente, eu não estava melhor
com aquele momento grotesco em que se eram despidas as mentiras de nosso namoro,
trazendo a verdade crua, infame. Então, no final, o que tínhamos não passava de uma afronta
aos pais? Uma aventura sexual peculiar de um adolescente esnobe? Era ridículo... não, nós
éramos os únicos ridículos nessa situação em que nos encontrávamos.

Entretanto, antes que algum de nós pudesse retrucar alguma coisa, algo de estranho
aconteceu. Nossos celulares, os três, assoviaram, anunciando uma mensagem. Nem Lucas,
nem Douglas, fizeram menção de olhar do que se tratava, encarando-se num duelo frio,
mórbido e silencioso. Como se tentasse fugir daquele cenário horrível, dei as costas aos dois e
abri meu celular, deparando-me com algo ainda mais fora do comum.

Você tem uma nova mensagem de: Patrícia — alarmava o celular.

No mesmo momento, uma onda fria subiu e desceu pelo meu corpo. Eu sabia que
aquilo não poderia ser um simples acaso ou uma mensagem amigável. Não, claro que não.
Não nos suportávamos, evitávamos nos falar o máximo que podíamos... Se eu recebia uma
mensagem de Patrícia, sem sombra de dúvidas, era um conteúdo que pioraria o que já estava
horrível no nosso dia. Trêmulos, meus dedos foram até o aplicativo, abrindo-o de uma vez:
“Eu não sabia que o clubinho da Suruba estava aceitando novos membros! Não
posso dizer que estou surpresa, mas, o que vocês acham disso?!” — dizia, sem
mais alguma explicação. Logo abaixo, uma série de fotos estavam anexadas.

Com meu coração martelando feito um louco, querendo fugir de sua cela, abri
rapidamente a primeira foto. As primeiras imagens não passavam de borrões escurecidos,
quase disformes com pessoas desfocadas sob as luzes de uma boate. Rapidamente, sem saber
exatamente o que procurava, mas com uma péssima intuição se apoderando de mim, meus
dedos continuaram a passar para o lado, para as outras novas fotos, borrando-se e definindo-
se... Mais gente. Mais borrões... Mais luzes... Até que, a partir da quarta ou quinta, elas
começaram a ficar claras, nítidas — claras e nítidas o suficiente para que qualquer um
pudesse perceber que a intenção das anteriores era mostrar essa cena incomum, embora fosse
a única coisa que eu, já estilhaçada, não queria vislumbrar...

Definitivamente, era uma foto de Lucas, numa boate a qual eu presumia que fosse o
Órbita. Escorado no balcão estava ele, conversando com um rapaz, o barman, que eu não
reconhecia: era alto, corte militar, com uma grande barba. Os dois conversavam próximos,
próximos demais para ser somente uma conversa amigável... Lucas tocava seus braços cheios
de músculos e tatuagens, com o rosto inclinado para o rapaz. Como num filme em câmera
lenta, o espaço entre os dois, que já era absurdamente curto, foi diminuindo, o barman saiu
detrás do balcão, se aproximou lentamente, unindo seus corpos... As mãos do rapaz subiram,
segurando seu rosto, até que a última foto findou com o ato aguardado: um beijo.

Sem conseguir me controlar, em choque, virei para encarar Lucas, sem me importar
com o celular que escapulia de minhas mãos. Tremia, sim, eu tremia com um turbilhão de
emoções que eu não conseguia nomear: era raiva, ódio, tristeza e, acima de tudo, nojo. Nojo.
Nojo. Nojo!

— Porque você fez isso com a gente? — foi só o que consegui falar, controlando
ímpeto que me subia a garganta de gritar com ele. — Por que está sendo tão escroto com a
gente? Você não podia esperar até terminar com a gente para sair beijando outras pessoas por
aí?!

Percebendo que alguma coisa de muito errada acontecia com a mensagem recebida,
Douglas se apressou a pegar seu próprio celular no bolso, desajeitadamente. Lucas, por sua
vez, continuava impassível, embora sem olhar para nenhum de nós dois. Diferentemente de
nós, não pegou o celular, o que mostrava que já sabia do que se tratava.

— Mas que porra é essa?! — exclamou Douglas, ao meu lado. — Lucas, isso é...
Porra! Lucas, porra!

Douglas berrava, transtornado, indo de um lado para o outro, enquanto Lucas ainda
evitava nos encarar. Minhas vísceras queimavam. Meu corpo tremia de raiva e nojo com a
imagem que não queria sair da minha mente. Como se um botão houvesse sido acionado, as
lembranças de nós três juntos, tão lindas e intensas, dos momentos nos quais eu me entregara
completamente, agora, pareciam estar sendo todas profanadas uma a uma. As suas mãos que
já me tocaram, o seu corpo que já me abraçara, os lábios que me beijaram... Eu me sentia
profanada com aquela traição. Imunda, feito alguém que se contaminara com alguma doença
grave, e só agora se dava conta de sua fonte.

— Olhe para nós! — berrou Douglas, indo na direção de Lucas, segurando-o pelo
colarinho de sua camisa. O rosto avermelhado de fúria de um, contrastava com a imagem
pálida e lívida do outro. Dois anjos que se chocavam, um combate travado no início dos
tempos. — Eu quero ver o teu rosto quando me responder isso! — suas mãos também
tremiam, num frenesi descontrolado. — Por que você fez isso conosco? Por que nos disse
aquelas merdas pra agora nos trair?

Lucas estava estático, numa postura de completa fleuma, que não se abalava nem
mesmo com os gritos de Douglas e seus solavancos.

— Eu enjoei de vocês — respondeu, num tom frio feito aço. — Vocês querem a
verdade? Essa é a verdade: eu enjoei de vocês. Eu precisava de mais alguém! Alguém que não
fosse inseguro como vocês, que não dependesse de mim para tudo! Cansei de ser o dono de
cachorros ansiosos! Precisava de mais alguém mais seguro, vocês dois já estavam me dando
no saco com toda cobrança, por isso eu fui lá e...

Num golpe de fúria, Douglas desferiu um soco no rosto de Lucas, que cambaleou e
se chocou com sua estante de livros. Mesmo ressentida, a contragosto, me meti na frente deles
e o segurei, abraçando seu corpo em chamas.

— Saiam daqui, os dois! — Lucas berrou, derrubando os livros de sua estante e se


virando para nós dois. — Eu quero os dois fora daqui, agora!

— Nunca mais se aproxime de nós dois, ouviu, seu filho da puta?! Nunca mais! —
com um movimento brusco, Douglas se desvencilhou de mim e foi em direção a Lucas, mas,
parando na metade do caminho, arrancou o anel que ele nos dera em pedido de namoro e
arremessou contra ele — Toma! Enfia isso onde tu achar melhor.

Lucas ficou parado, olhando-me transtornado. Com o lábio inferior cortado devido
ao golpe, o sangue, rubro e vívido, já começava a escorrer por seu queixo, pingando no tapete
de seu quarto. Mesmo com tudo o que acontecia, sabia que não deveria sentir pena, mas,
ainda assim, eu senti. Não pelo golpe, não por essa pessoa a qual eu parecia não conhecer,
mas sim pelo garoto pelo qual eu achava ter me apaixonado. A imagem diante de mim não
passava de um escárnio, uma réplica malfeita que merecia muito mais do que somente um
soco. Mas o Lucas, o nosso Lucas que não existia mais, era por ele que me ressentia de pena.

— Você precisa de ajuda para encontrar a saída?

— Já sou mulher o suficiente para encontrar a saída sozinha das situações em que me
meto, não preciso que um homem, muito menos um moleque feito você, venha me mostrar
isso — com um olhar de desprezo, eu também retirei o anel frio que ainda se encontrava em
meu dedo e o coloquei em cima da mesa. — Aqui está, esse pedaço inútil de metal. Se nunca
significou nada para você, não deveria ter se dado o trabalho de fingir...
Sem olhar para trás, saí, desejando deixar para trás todo aquele sentimento inútil, que
me tomara o corpo durante o tempo em que estive com ele, com a mesma facilidade que havia
abandonado aquele anel imprestável. Saí em pedaços naquela noite, embora com a certeza de
que nunca mais tornaria a olhar para a cara daquele que um dia eu jurei amar... por quem um
dia jurei lutar.

— Adeus, Lucas.

Lucas

...
Capítulo XI — O Exame

Amanda

18 de outubro de 2016 — 18 dias para o vestibular, duas semanas desde o nosso término
com Lucas.

Era incrível como o tempo conseguia se arrastar tão vagarosamente, sem perder a sua
velocidade voraz, na qual os dias se jogavam no pequeno abismo que existia entre nós e o
Exame Nacional do Ensino Médio. Éramos obrigados a aturar a eternidade contida em cada
dia, somente para perceber que faltava um dia a menos para o vestibular, e que o mundo não
iria parar somente por nossas dores — tudo continuava, impiedosamente, sem esperar por nós.

— Lucas faltou mais uma vez... — Natasha disse entre suspiros, após conferir pela
décima vez a sala de aula por cima dos ombros. — Eu sei que vocês estão magoados, mas não
se preocupam nem um pouco com ele? Com essas faltas... Ele pode acabar reprovado!

Ao ouvir o nome “Lucas” — cuja pronúncia, desde o término, foi tacitamente


proibida — Douglas se virou, fazendo careta, fuzilando Natasha com seu olhar magoado.

— Ele não se preocupou conosco antes de fazer merda, por que nós deveríamos nos
preocupar com esse escroto?

Desanimada, Natasha encolheu seus pequeninos ombros e suspirou novamente,


voltando a prestar atenção à aula de história. Por ser nossa melhor amiga, mesmo a nosso
contragosto, parecia ser infinitamente difícil para ela não se deixar envolver no fogo cruzado
de nossa última briga, principalmente porque sempre gostou muito de Lucas.

Não conseguia me concentrar aula, que, para mim, parecia uma sessão de tortura
duplamente dolorosa. Com o desconforto do término e o ENEM se aproximando cada dia
mais, era simplesmente impossível me manter focada no que os professores falavam, mesmo
nos dias em que Lucas não estava presente.

Para compensar esses dias, eu passava boa parte da madrugada em claro, estudando
os conteúdos a que deveria ter prestado atenção pela manhã. Sem dormir direito, minha
concentração ficava abalada, dando continuidade ao ciclo repetitivo, vicioso, feito uma bola
de neve descontrolada que destruía tudo que encontrava pela frente. Douglas, por sua vez, não
estava tão melhor. Sob seus olhos, bolsas arroxeadas se formavam e saltavam, contrastando
intensamente em sua pele pálida; seu rosto, agora, mantinha sempre uma expressão de
cansaço — que só sumia quando estava emburrado —, deixando claro que também não
conseguia dormir há algum tempo...

— O que você vai estudar hoje? — Douglas perguntava, sempre, num muxoxo
tristonho, se aninhando em meu ombro quando tínhamos algum tempo livre da escola. —
Podemos passar a tarde juntos?
Era dessa maneira que ele costumava me pedir acalanto, sem tocar no proibido nome
de Lucas. Passávamos muitas tardes juntos, assim, como suporte um ao outro naqueles
momentos sombrios. Por vezes, estudávamos juntos, colocando em dia a matéria atrasada,
sem mencionar aquilo que nos abatia, ou só conversávamos amenidades, séries que não
assistíamos mais, músicas... Outras vezes, Douglas apenas adormecia, sob seus livros,
enquanto eu acariciava seus cabelos, antes de também pegar no sono. Ele sempre fora
orgulhoso demais para admitir a dor que sentia, com a falta de Lucas, mas tentávamos
suportar juntos, um dia de cada vez. Nós dois... apenas nós dois.

Devido às suas visitas constantes, acabamos por assumir o nosso namoro para minha
família — que não recebeu a informação de bom grado. Tio Roberto e minha mãe, por serem
os maiores machistas que eu já conhecera, reclamavam sempre que podiam.

— Eu já disse que não gosto quando você traz esse marmanjo e fica trancada nesse
quarto! — meu tio falava, numa ladainha cansativa, todas as vezes quando Douglas ia
embora.

— Se não gosta, é só não trazer marmanjos para o seu quarto.

— É assim que você fala com seu tio, atrevida?

— Amanda! — reclamava minha mãe, em defesa de Roberto. — Só estamos falando


isso porque queremos o seu bem...

— Pera lá, Dra. Marília! Não me venham com esse papinho para cima de mim não.
Se Guilherme pode trazer a Patrícia para cá, que aliás, é uma pessoa horrível, então eu
também posso trazer Douglas. Ele é meu namorado, vocês gostando ou não. Ah! E acreditem,
poderia ser muito pior, então, simplesmente aceitem!

Desde essa última conversa, os dois pararam de reclamar, embora fizessem questão
de não serem educados com Douglas, pondo uma cara feia sempre que ele aparecia.
Guilherme nem se dava ao trabalho de esboçar reação quando estava por perto, e Patrícia, que
jurávamos que cantaria vitória na primeira oportunidade que tivesse, passou a nos evitar tanto
quanto nós fazíamos com ela — o que, na verdade, nós dois aceitávamos muito bem. Se antes
da mensagem já éramos insuportáveis uma para a outra, depois, saindo vitoriosa do embate
que há meses era travado, não nos restava sentimento algum que não fosse ódio, porque eu
sabia bem que suas intenções nunca poderiam ter sido boas, era apenas mais um de seus
venenos. O veneno final, eu diria.

O caminho que já era torturante o suficiente, sempre parecia ficar infinitamente pior
nas raras ocasiões em que Lucas aparecia para a aula. Fosse no corredor, ou mesmo na sala,
agíamos um com o outro numa completa — e forçada — indiferença, como se nossas imagens
não passassem de vultos indesejáveis que deveriam ser evitados. Nesses momentos, em que
estávamos, praticamente, cara a cara, quando as cores dos nossos olhos se encontravam, meu
estômago embrulhava, e eu sentia no corpo, como punhais, cada cena daquela noite horrível
de nossa separação... Os olhares apáticos... As maldosas palavras... As fotos de Lucas
beijando o outro rapaz, suas mãos, sua boca... O lábio de Lucas cortado, sangrando com o
soco de Douglas... Os anéis de compromisso, que, de acordo com suas palavras, deveriam
simbolizar o elo de amor entre nós três, arrancados e arremessados... Tudo me atingia de uma
só vez, num clarão desesperador, capaz de cegar os sentidos.

... Não há como descrever a dor visceral causada pelos sonhos arrancados
brutalmente...

Mas, tentávamos seguir, da nossa forma, o caminho que apenas nós dois trilhávamos,
na eternidade vagarosa de cada dia. Eterno. Efêmero. Desperdiçado.

...

— Olá, turma! Bom dia! E que dia é hoje?! — a voz de Fernando Gonzaga, professor
de geografia, soava animada, a única voz animada que se ouvia na sala inteira. — Isso
mesmo, é a última segunda-feira antes do ENEM! Se vocês possuem alguma pendência, não
deixem de resolvê-las para não atrapalhar na hora da prova!

— Ele fala como se fosse fácil resolver alguma pendência assim, só porque
queremos — grunhiu Douglas, ao meu lado, de braços cruzados, emburrado. — Não
precisamos de alguém nos lembrando diariamente que dia é hoje, droga!

Douglas estava absurdamente certo. Em toda aula, de todo dia, todos os professores
— os principais mantedores da histeria coletiva — faziam questão de nos lembrar quanto
tempo ainda restava até o ENEM, seja falando alto num bordão idiota, seja escrevendo na
lousa. Saturno, nosso professor de física, chegava a contar as horas exatas até o dia cinco de
novembro — 112 horas e 32 minutos, de acordo com ele.

FW, na semana anterior ao vestibular, deveria funcionar como o inferno momentos


antes de receber novas almas, não existia nenhuma trégua escolar. Eram aulas e mais aulas,
questionários, revisões... Os alunos estavam numa celeuma sobre os locais de prova, os
professores eram abordados — ou simplesmente nos abordavam — pelos corredores para tirar
dúvidas que ainda existiam. Era uma intensa correria, uma completa balbúrdia, que todos nós
deveríamos aguentar sem reclamar, afinal, todo o nosso percurso escolar esteve voltando
unicamente para esse momento — como um abatedouro. Não se falava em outra coisa... Até
aquele dia, pelo menos, em que um novo boato tomou conta de toda escola.

— Vocês ficaram sabendo que Lucas foi suspenso?! — foi a primeira vez que eu
ouvi o tal boato, na voz de alunas que eu não conhecia nem de vista.

— Lucas Holanda, aquele loirinho?! — bradava outra pessoa — Fiquei sabendo que
ele se meteu numa briga.

— Briga?! Eu tinha ouvido falar que ele furou o pneu do professor de matemática!

As vozes se espalhavam pela escola epidemicamente, cada um contando uma razão


diferente, à qual sempre parecia ser adicionada uma nova informação. Douglas, como sempre
que ouvia o nome de Lucas, fechava-se, transformando o rosto numa eterna carranca. De
maneira colateral, nós dois também acabamos nos tornando alvo de novas fofocas, de modo
que os cochichos nos acompanhavam por onde quer que passássemos — o que deixava
Douglas ainda mais irritado.

— É verdade que Lucas foi suspenso? — perguntou Letícia, na primeira


oportunidade que teve. — É verdade que ele estava trazendo drogas pra dentro da escola?!

— O quê?! — berrou Natasha. — Você não percebe o quanto isso é absurdo! Lucas
nunca faria isso.

— Ah, é? — Letícia retrucou. — Então por que ele tem andado todo estranho?
Faltando às aulas! Tá supermagro! Parece que ele está sempre doente, ou de ressaca, ou de
ressaca e doente ao mesmo tempo! Sei não, isso para mim tá com uma cara muuuuito
estranha. Mas, e vocês, que eram tão amigos, sabem de alguma coisa?

Douglas estava prestes a abrir a boca, decerto, com um novo insulto, quando alguém
interveio. Vindo de maneira apressada, José, nosso professor de Literatura, se aproximou com
uma expressão preocupada no rosto.

— Amanda, Douglas! Ainda bem que encontrei vocês dois. Podemos conversar? —
percebendo que todos estavam com os olhos pregados em José, ele pigarreou fortemente,
tentando disfarçar o desconforto e prosseguiu. — A sós. Longe daqui... Parem de olhar,
curiosos! Douglas, Amanda, por favor?

Sem conseguir dizer não para José, apenas assentimos e o seguimos pelos corredores,
mesmo desconfiando sobre o que a conversa seria. Ele não havia brincado sobre desejar uma
conversa a sós, parecia estar disposto a procurar um lugar completamente vazio para a ocasião
e, por isso, continuamos em seus calcanhares até que, enfim, encontramos uma sala vazia para
conversar. Sentando-se na mesa, com o semblante preocupado, José cruzou os braços e ficou
nos olhando durante algum tempo, antes de começar a falar.

— Então, você dois... Vocês dois estão bem?

— Radiantes! — Douglas respondeu, em um tom sarcástico, quase ríspido.

— Douglas! Sim, professor, estamos bem... Por que a pergunta... e o mistério?

— Bom... — José começou, coçando a barbicha, inseguro do que iria falar. — Vocês
ficaram sabendo da suspensão de Lucas, não ficaram? Sabem o motivo?

Douglas e eu nos entreolhamos rapidamente, num gesto involuntário de confidentes


ao serem questionados por um segredo. Impaciente, ele bufou, passando os dedos em seus
cabelos negros, sua pele começava a ficar rubra.

— Olha, José, não nos leve a mal... Mas o que aquele babaca faz ou deixa de fazer
não é da nossa conta. Então, pouco nos importa se ele furou o pneu de um professor, bateu em
algum aluno, se sua família faz parte de alguma seita mágica, se ele está traficando drogas
para dentro da escola ou o que quer que estejam falando por aí, porque simplesmente não nos
importa. Está bem? Se for só isso, eu gostaria de ir embora. Podemos?

Durante todo o tempo em que Douglas foi grosseiro, José não respondeu uma única
palavra, fitando o chão de braços cruzados, em silêncio. Claro que ele poderia repreendê-lo
por isso — era seu professor, afinal! —, mas não o fez, decerto entendia que não era o alvo
daquele ataque, mas sim Lucas. Pacientemente, esperou até que a sala estivesse silenciosa
novamente, e quando levantou seu rosto, enfim, também não disse nada, apenas balançou a
cabeça, apontando para a saída. Claramente envergonhado por ter deixado sua cólera
respingar em outra pessoa, Douglas acenou rapidamente com a cabeça e saiu de sala.

Eu poderia ter me despedido e seguido junto a ele, porque eu sabia que o motivo,
embora dito em palavras rudes, estava dito: não éramos mais responsáveis pelo que Lucas
fazia, não nos importava, simplesmente. Contudo, fiquei. Talvez eu pudesse falar que foi por
pena da forma como Douglas se portou com José, ou por ser uma garota curiosa, mas toda e
qualquer desculpa não passaria de uma mentira deslavada. O fato é que fiquei, fiquei por
Lucas, mesmo sabendo que ele não merecia minha preocupação.

— O que aconteceu, José?

— Eu estou muito preocupado com Lucas... Ele sempre foi um aluno dedicado,
interessado, participativo... E agora? — suspiro. — Eu o peguei vindo alcoolizado para
escola, e não tive outra escolha que não mandá-lo para a direção... Encontrei ele com isso —
José parou, retirando um cantil de cor prata do bolso.

Como se uma descarga elétrica houvesse percorrido todo meu corpo, eu peguei o
cantil com as mãos trêmulas e o coração vacilante, olhando-o de perto, embora tivesse
reconhecido no momento em que o vi: era o mesmo objeto que tantas vezes usamos juntos,
um cantil prata com detalhes em couro marrom e, na parte de baixo, uma inscrição com o
nome do dono.

— Isso é do Douglas! — minha voz quis falhar. — Você tem certeza que Lucas
estava com isso?

— Claro que sim, onde mais eu teria conseguido? O curioso é que ele não se
importou em receber a suspensão, mas me implorou para que eu não arrancasse isso dele... —
novamente, José fez uma longa pausa pesarosa, respirando profundamente. — Eu sei que não
deveria dar a vocês, mas como já está vazio e tem o nome de Douglas nele, eu achei que fosse
melhor lhes entregar, até para que ele não volte a usá-lo. Além do mais, pensei que pudessem
conversar com Lucas, saber o que anda acontecendo...

O cantil pesava em minhas mãos feito chumbo, simbolizando o peso dos meus
próprios pensamentos, que voltaram a inundar minha cabeça de uma só vez, voraz e
avassaladora. Nada parecia fazer sentido! Naquela noite, em nosso término, Lucas havia
deixado claro que não sentia mais nenhum interesse por nós dois, que não passávamos de
objetos para causar raiva em seus pais. “Vocês perderam a graça”, disse... Agora, no entanto,
José me contava que ele não se importara em receber uma suspensão da escola, mas que tinha
implorado para permanecer com a garrafa, que não fosse impedido de se separar de um objeto
tão cheio de lembranças de nós três... O que significava aquilo?

Meus lábios quiseram se mover, pronunciar alguma coisa a respeito do


comportamento estranho de Lucas, mas, confusa, fiquei apenas olhando o cantil, parecia pesar
mais a cada segundo que passava. José, pacientemente, nada falou, até que o sinal tocou,
avisando que deveríamos voltar para a aula.

— Não diga a ninguém que eu entreguei isso a você, está bem?

Assenti de forma mecânica e saí, passando o restante do dia dessa mesma maneira:
robótica, automática, avoada, distraída, ouvindo apenas os murmúrios de alguma coisa que
deveria ser uma aula importante — principalmente às vésperas do ENEM —, lutando para
que se soassem mais altos do que os meus pensamentos, que chiavam de forma intensa em
meus ouvidos. O cantil, guardado em minha mochila sob meus pés, parecia incandescer o
suficiente para queimar minha pele, sem me deixar em paz.

Por que Lucas carregava aquilo? Será que existia alguma razão, ou não passava de
um comportamento sórdido de um moleque sem noção? Ele havia nos insultado de todas as
formas possíveis, com palavras e ações, profanara o nosso sentimento, a nossa confiança, nos
traíra sem o menor lampejo de arrependimento nos olhos! Então, por qual motivo se agarrava
àquilo? Teria mudado de ideia, se arrependido de ter nos causado tanta dor?

Mas o que eu estava pensando?! Não importava se ele havia se arrependido... A vida
não é um ensaio, em que erramos as falas e podemos voltar logo depois, como se nada tivesse
acontecido. Estava decidida a não voltar a olhar para ele, a não me aproximar o suficiente
para desconfiar que se arrependia... Esse pensamento habitava meu peito não por ser
orgulhosa, mas porque sou humana. Lucas não merecia uma segunda chance, não depois de
ter nos machucado tanto, daquela maneira displicente. Não éramos brinquedos descartáveis
nas mãos de um moleque mimado e imaturo! No entanto, e Douglas? O que Douglas acharia
de tudo aquilo? Depois da conversa, ele se remexia ao meu lado, sem encontrar uma forma
confortável de se sentar na cadeira. Quando há espinhos deixando dúvidas em nossa mente,
sempre sentimos espetar no corpo — era o que minha mãe costumava a me dizer. Será que ele
deveria saber que Lucas carregava um objeto seu por aí? Ou será que já havia coisas demais
sobre os nossos ombros para que eu lhe desse mais esse peso imensurável para segurar?

Douglas era o mais frágil de nos dois, por mais que odiasse admitir. O precipício
deixado por Lucas em seu peito era muito maior do que sua língua insistia em mentir. Eu
sabia que deveria ser forte por nós dois, todavia, agora já não sabia ao certo como agir...
Deveria mentir para ele, para protegê-lo ou deveria falar a verdade, correndo o risco de fazê-
lo sofrer ainda mais?

— Então — Douglas se aproximou no final da aula, com o semblante sério,


ajudando-me a recolher os livros sobre minha carteira e me acompanhando até a saída da
escola —, o que você e o José conversaram tanto?
— Lucas foi suspenso para estar vindo bêbado para as aulas... — foi somente o que
disse, deixando o restante da história presa em minha boca.

— O quê?! Puta merda, o que esse garoto tá fazendo com a vida? Babaca
desgraçado!

Não respondi, ficando calada até o lado de fora da escola. Nos despedimos com um
apertado beijo morno, e ele deu as costas, começando a andar para longe de mim. Em minhas
costas, os espinhos pareciam me furar mais do que nunca, naquela guerra silenciosa sobre o
que fazer. A cada passo que Douglas dava, eu percebia que ele estava se distanciando da
verdade... Quanto mais andasse, mais difícil seria contar para ele... Mais um passo... E se eu
contasse e estragasse tudo?... Mais um passo... O vestibular estava aí, eu não poderia perturbá-
lo, poderia?... Mais um passo... Se fosse eu, gostaria de saber a verdade! Mas eu aguentava,
era forte. Douglas aguentaria?... Mais um passo... E se ele descobrisse e ficasse com raiva de
mim, por ter mentido?... Mais um passo...

Depois de tantos passos, Douglas cruzou a esquina e se foi, me deixando sozinha


com aquele objeto espinhoso.

Lucas

...

Douglas

— Cada participante terá cinco horas e meia para realizar toda a prova e preencher o
gabarito e produzir a redação — disse o homem, mais uma vez, parado na frente da sala, junto
com outras tantas bobagens com as quais já estava acostumado, fazendo-me desligar logo
depois disso.

Enfim, o famigerado ENEM havia chegado, os tais dias de desespero e decisão.


Desde a véspera, todos enlouqueciam conferindo seus documentos, locais de prova, qual seria
o melhor percurso a ser feito para não que houvesse nem um mínimo atraso — porque atrasos,
nem mesmo de poucos minutos, seriam tolerados. Um deslize, apenas um erro: quarenta
segundos de demora para se levantar, cinco minutos procrastinados para sair de casa, uma rua
engarrafada, qualquer coisa poderia ser suficiente para perder, barrado por uma grade, diante
de expectadores sádicos, a sua chance de passar no tão temível vestibular. Amanda, muito
mais do que eu, estava uma pilha e, mesmo sem precisar, repassava fórmulas de física e
matemática, repetidamente. Havíamos decidido ficar juntos na sexta anterior, cuidando, quase
que inutilmente, para que nossos últimos resquícios de saúde mental não nos abandonassem...
Estar com ela, assim, nesses tempos em que a ansiedade parecia ser palpável, tornava tudo
mais fácil e suportável para mim, já quando eu estava sozinho... Ah! inferno... Sozinho era o
completo oposto! E, claro, a noite anterior ao vestibular não poderia ser diferente.

Por mais que houvesse tentado de todas as formas afastar aquela sensação de
desespero, ela insistia em me atacar — talvez pior do que nas outras noites, separados... dele.
Sempre que me deitava a cama e o escuro do quarto vencia, era simplesmente impossível
controlar as lembranças de nós três deitados, abraçados, juntos, por baixo das cobertas, por
essa razão, o sofá parecia ser uma opção cada vez melhor — que, na verdade, nas últimas
semanas, era o único lugar onde conseguia, a muito custo, adormecer.

Irônico, não? Foram necessários muitos anos depois da separação de meus pais, para
que eu enfim entendesse os motivos que afugentavam minha mãe de seu próprio quarto.
Havia lembranças demais, em cada milímetro daquele cômodo, ocupado por juras de amor
falsas, mentiras e traições, para que pudéssemos simplesmente adormecer ali, com a cabeça
tranquila. Cada móvel era testemunha da história vivida... Vivida e sofrida. Todavia, não eram
apenas os objetos que insistiam em me lembrar a nossa separação. Logo quando ele parou de
frequentar a nossa casa, minha mãe foi a primeira a reclamar de sua ausência, e fazia questão
de repetir que sentia sua falta sempre que podia. Mesmo sabendo que eu fazia errado, que não
deveria ser grosseiro, não conseguia evitar de explodir todas as vezes com ela, até que,
finalmente, parou de me perguntar.

Há quem diga que as separações ficam mais fáceis de suportar com o tempo, mas
essa é outra grande tolice que nos contam. Não se dê, meu caro, ao trabalho de se iludir com
essa falácia, por que, não, nunca melhora, nem mesmo se torna mais fácil. A separação é uma
cicatriz que se carrega para todos os lugares aonde se vai: os outros podem ser incapazes de
vê-la, no entanto, é sabido que ela está lá, incomodando, servindo de aviso para a
possibilidade de novas feridas aparecerem. Poderia não sangrar, mas, para mim, ainda doía o
inferno, apenas.

Então, lá estava eu, no segundo dia de prova, completamente dolorido, encarando


uma folha de papel que deveria decidir meu futuro inteiro, mesmo que eu não soubesse qual
deveria ser. Aquelas letras, as minhas escolhas, eram muito mais do que tintas avulsas em um
gabarito. Todos nós sabíamos disso. Aliás, não teria sido para isso que passamos tanto tempo
estudando, o único propósito com o qual nosso sistema educacional se importava? Era o peso
de todos esses anos que se empoleiravam sobre meus ombros, as expectativas de meus
familiares, meus amigos e professores, as dificuldades e sacrifícios de minha mãe que, depois
de um aborto paterno, teve de me criar sozinha e pagar todos os meus estudos até então. E,
assim como eu, existiam muitos outros! Éramos jogados feito cavalos numa raia, competindo
uns contra os outros, torcendo que aquele que estava ao nosso lado quebrasse a pata e fosse
tirado da reta, completamente. Sim, eis o ensinamento cruel e brutal que era trazido pelo
vestibular: nenhuma fórmula a mais, nenhuma regra gramatical a menos. Éramos cavalos,
apenas, cheios de apostas. E por mais que eu soubesse de tudo isso, ainda assim, não
conseguia me concentrar... a ansiedade... a falta dele... Eram fantasmas que me assombravam,
holofotes que me cegavam antes que eu pudesse ser capaz de enxergar qualquer outra coisa.
Não encontrava uma posição confortável na cadeira. Cadeiras arrastavam... provas
eram riscadas... barulhos de lanches abrindo e fechando... era como uma sinfonia pitoresca,
que não parecia faltar em nenhuma sala, em nenhuma prova. As cinco horas e meia, que antes
pareciam ser infinitas, no entanto, passaram muito mais rápido do que eu imaginava...

Quando o fim da prova foi anunciado, com as mãos trêmulas e borradas de tinta,
entreguei o gabarito e saí devastado. Se, alguma vez, teria havido a intenção edificar qualquer
participante, a prova parecia exercer em todos o movimento contrário. Não havia sorriso nos
lábios de ninguém, seguíamos todos até a saída, como num cortejo silencioso.

Depois de tanto estresse, exaustão, nada parece ter tanta graça. Amanda, Natasha e
eu, ainda tentamos: resolvemos sair depois da prova, para tentar esquecer o desastre que havia
sido para todos. Demos uma volta na cidade, mas logo estávamos de volta ao quarto da
Amanda. Claro que elas tentaram me consolar, mas eu sabia que ambas não se sentiam
melhores do que eu naquele momento. Alguém se sentia feliz e confiante, afinal?

— Então, vocês estão melhores? — perguntou Natasha, passando as mãos sobre os


nossos ombros de forma amigável, reconfortante.

— Antes eu estava péssimo, mas acredito que agora só estou ruim. Isso conta?

Incerta, Natasha deu de ombros e me abraçou com força.

— O importante é que falta cada vez menos para o ano acabar e nos vermos livres de
tudo.

— Essa é a frase mais otimista que eu ouvi em semanas — falou Amanda, meio
distante, pensativa.

Um silêncio tomou conta de nós por alguns segundos, até que Natasha tornou a falar.

— Meninos, eu sei que vocês não querem ouvir falar em Lucas, mas... Espere! — ela
disse, quando eu lancei um olhar raivoso. — Espere eu terminar. Prometo que não vou enchê-
los com isso depois dessa conversa. Mas, vocês vão mesmo terminar o ano sem falar com ele?

— Tudo já foi conversado. O teu amigo é um cretino, um desgraçado. Fim de papo


— respondi, num tom mais ríspido do que eu gostaria.

— Mas... — Natasha tentou recomeçar, no entanto, antes de falar mais alguma coisa,
suspirou, dando-se por vencida, encolhendo os ombros. — Pelo menos a formatura já está aí...
Talvez uma festa seja uma boa para todo mundo... — e, conferindo as horas no celular,
completou: — Bom, gatinhos, eu preciso ganhar o mundo. Fiquem bem, está bem? Se
precisarem de mim é só gritar.

Infernos, a formatura! Tanta coisa passou, que acabei por esquecer esse fato, que há
um tempo era esperado ansiosamente. No passado, nós três havíamos feito inúmeros planos
para a festa: como nos vestiríamos, o que faríamos... estávamos todos animados. Desde a
separação, eu não tinha conseguido pensar na maldita formatura e só a sua lembrança fez
esquentar meu peito. Natasha se despediu e Amanda foi levá-la até porta, deixando-me
sozinho em seu quarto, num silêncio exausto.

— Doug? — disse Amanda, voltando para o quarto e fechando a porta atrás de si. —
Preciso te contar uma coisa...

Lentamente, sem falar mais nada, ela se aproximou do seu guarda-roupa e, quando se
virou, trazia algo nas mãos. Era um cantil prata... Era o meu cantil! O que Amanda estava
fazendo com isso? Lembrava de ter deixado na casa d... dele e nunca ter pego de volta, nem
mesmo cogitado a possibilidade, somente para não ter nenhum tipo de contato com aquele
desgraçado. Por que infernos Amanda me aparecia com esse cantil? Sentei ereto de súbito.
Em meu rosto, um grande ponto de interrogação devia ter se formado, pois no mesmo
instante, suas mãos se levantaram, pedindo-me calma.

— Quando você me perguntou, na sexta, o que José e eu conversamos,


propositalmente escondi isso... Lucas foi suspenso por estar indo bêbado para escola e o cantil
estava com ele quando foi pego. Na verdade, o fato de ter sido suspenso não o incomodou
tanto quanto ter sido separado do cantil...

— E por que escondeu isso de mim?! — perguntei, sentindo meu peito esquentar. —
Amanda, você não deveria ter escondido isso de mim, não deveria ter mentido!

Amanda colocou seus cabelos para trás das orelhas, sentando-se na cama perto de
mim.

— Eu sei que deveria ter contado antes, mas eu temia que isso atrapalhasse sua
prova.

— Fez uma diferença grande, não é mesmo?! — impaciente, levantei, dando algumas
voltas em seu quarto, esfregando as mãos com força no rosto. — O que ele estava fazendo
com o meu cantil? Aquele maldito... Ele não tinha o direito de carregar isso por aí! Isso é
meu! É meu! Ele deixou claro que não tem mais nenhum interesse na gente, então, por que
ficar com isso? Ele não tinha o direito! Não tinha o direito!

Minha voz emperrou na garganta, e, sem pensar, chutei o pé da cama com violência.
Colocando-se de pé, também, Amanda veio ao meu encontro, parando minha caminhada
agressiva pelo quarto. Delicadamente, colocou suas mãos em meu rosto e me olhou com seus
grandes olhos verdes, esperando até que eu me acalmasse um pouco mais.

— Estamos juntos nessa, Douglas. Eu e você... Nós dois... — sussurrou, numa


tentativa de me acalmar. — Não importa o que ele estava fazendo com o cantil, você está
certo, isso não nos interessa mais. Vamos para a formatura, como havíamos planejado. Iremos
tentar nos divertir porque é o mínimo que podemos fazer por nós mesmos, está bem?

Sentindo suas mãos mornas sobre meu rosto, eu a tomei pela cintura e a puxei para
perto de mim, dando um forte abraço. Minha respiração ainda estava ofegante, meu peito
subia e descia de encontro ao seu corpo.
— Eu sei que falta um pedaço enorme de nós, eu sei que você sente o mesmo... mas
precisamos nos acostumar com esse buraco, precisamos continuar a nossa vida.

— E se nós dois quebrarmos? — perguntei em seu ouvido, com medo de soltá-la.

— Não vai ser por falta de tentativas!

Apertando ainda mais seu corpo contra o meu, curvado com a cabeça enterrada em
seus ombros, eu assenti levemente.

— Você tem razão...

— Eu sempre tenho, seu bobão! Ficaremos bem e teremos uma ótima formatura
juntos... Nós dois, juntos!

— Sim, juntos! — ratifiquei.


Capítulo XII — A Formatura

Lucas

— Ei, o que você está fazendo aqui? Vai acabar se atrasando!

Ao som de minha voz, a pequenina garota se virou, desviando as atenções do quadro


da sala, iluminando um pequeno sorriso no rosto brilhoso de glíter. Usava um vestido que lhe
descia até os joelhos pomposamente, fazendo-a parecer uma bailarina, de cor dourada com
detalhes em pedrarias pálidas, assemelhando-se a vários sois que luziam juntos num dia claro.
O rosto e os cabelos também brilhavam graciosamente em dourado e branco furta-cor.

— Você está tão... — disse, aproximando-me dela — brilhante!

— Gostou?! Coloquei um look básico para comprar o pão e passei aqui para te ver!

Mesmo com a sensação de que havia desaprendido a sorrir, meus lábios se esticaram
num sorriso fraco, frio. Natasha passou as mãos por minhas costas e virou novamente para o
quadro, encarando-o mais alguns segundos. Era o mesmo quadro de minha parente: uma mulher
de pele negra e madeixas castanhas, as quais se emaranhavam em cachos até depois dos ombros,
trajava um vestido fechado até o pescoço, muito antigo; no rosto jovem, sustentava uma
expressão imperiosa com seus olhos de avelã.

— Por que todo mundo gosta tanto desse quadro? Ele sempre me deu arrepios...

— Porque ele é curioso, talvez. Eu sei que dá arrepios, mas você simplesmente não
consegue parar de olhar para ele...

— Então esse quadro se parece com a miséria humana: por mais horrenda que seja,
não conseguimos deixar de assisti-la... Feito você aqui hoje, vindo me ver... — suspirei,
deixando que o restante das palavras saísse de forma fraca por meus lábios secos. — Não
deveria estar aqui, Natasha, não hoje...

O radiante sorriso cravado em seus lábios sumiu, crepuscularmente. Sem mais nada
dizer, Natasha me enlaçou em um abraço intenso, demorado, apertado... Um abraço de
despedida.

— Você tem certeza de que é isso mesmo? — ela perguntou, com a voz abafada em
minha camisa. — Não precisa ser assim, Lucas!

— Não faz diferença como as coisas deveriam ser, não é?


Natasha se afastou novamente, sem me soltar de seu abraço. Vê-la novamente, pronta
para a formatura, a nossa formatura, fez com que meu espírito, que já se encontrava em
frangalhos, dilacerasse em mais mil pedaços que não tornariam a se juntar. Nunca mais.

— Toma, aqui está — disse ela, colocando um pequeno papel no bolso de frente da
minha camisa, fungando. — Eu trouxe comigo na esperança que você pudesse mudar de ideia...
mas isso não vai acontecer, não é?

Sem conseguir encontrar voz para dizer tudo o que queria, a única coisa que consegui
pronunciar, num sussurro rouco e áspero, foi:

— Cuide daqueles dois por mim, está bem?

Amanda

Apreensiva, em frente ao espelho, pronta para a formatura, encavara uma imagem


completamente distinta do que estava acostumada ver. Os meus cabelos loiros ondulavam-se
sobre meus ombros desnudos até depois do busto do meu vestido. O tecido, um chiffon índigo,
fluía por meu corpo de forma suave, como se eu houvesse acabado de sair das águas e, por
alguma razão, elas tivessem ficado presas a mim, descendo em longas cascatas azuis até meus
pés. Eu não queria nada extravagante, por mais que Natasha tivesse tentado me obrigar a isso,
o que vestia agora havia sido um meio termo entre suas excentricidades e a minha timidez.
Embora ele me caísse bem, existia algo de artificial no que o espelho me refletia: a maquiagem,
a roupa, o cabelo, tudo parecia servir como uma máscara que tentava disfarçar
momentaneamente a imagem de uma Amanda exausta, a qual, embora não quisesse se mostrar,
ainda sobrevivia em meu íntimo.

— Ver a namorada antes da formatura dá azar, ou isso é só com casamentos?

Um riso me subiu aos lábios avermelhados de gloss ao ouvir a voz de Douglas.


Escorado no vão da porta, estava ele, inteiramente pronto, sem parecer ter se dado ao trabalho
de ser vaidoso: vestia um smoking de dois botões, desabotoados, num corte perfeitamente rente
ao seu corpo. O tom de preto contrastava com sua pele pálida, a gravata borboleta era vermelha,
combinando com a faixa em sua cintura, quebrando um pouco a seriedade que exalava.
Lentamente, ele se aproximou de mim e me puxou pela cintura com uma das mãos, dando um
pequeno beijo que estalou contra sua boca.

— Eu te trouxe flores — sussurrou, com uma voz sedosa, fazendo meu corpo se
arrepiar ao sentir seu hálito em minha nuca. Com a mão livre, mostrou um buquê de rosas roxas,
arranjadas de forma simples. — Apesar de essa ideia cafona não ter sido minha, mas dele...
Achei que você fosse gostar de receber algumas, então...

— São bregas, sim — respondi, sorrindo, passando suavemente o buquê por meu rosto,
sentindo a textura da cada pétala arroxeada sobre a pele —, mas são lindas. Obrigada, Doug.
Douglas abriu um sorriso morno, dando me um grande abraço, que fez com que seu
perfume me acolhesse tanto quanto seus braços em torno do meu corpo.

— Sua mãe botou cara feia de novo, sabia? Por que ela não gosta de mim, afinal?

— Ela deve ter botado cara feia, dessa vez, porque não gostou que eu fosse com você
ao invés deles, mas vai saber? Talvez ela sinta o cheiro do medo em você

Ele deu de ombros e foi se sentar em minha cama, com cuidado para não amassar o
smoking, esticando as pernas e continuando a me olhar com devoção. Irmos juntos à formatura
havia sido uma ideia de Lucas, naqueles momentos felizes antes de... antes de tudo começar a
despedaçar. Mesmo com o término, insistimos em ir juntos, talvez pelo apego ao passado, uma
espécie de tributo a quem fomos meses atrás, ou somente para aturarmos juntos aquele cenário
forçado.

— Você acha que ele vai? — Douglas perguntou, como se conseguisse ler meus
pensamentos, evitando o nome de Lucas, o qual ainda era áspero demais para ser pronunciado.
— Eu não tô com a menor vontade de topar com ele...

Como se algo dentro de mim estalasse, o peso da epifania recaiu sobre meus ombros,
fazendo-me compreender a razão pela qual eu estava tão apreensiva de frente para o meu
reflexo. Era Lucas... Será que iríamos encontrar com ele aquela noite? Essa era a habitação de
minhas inquietudes. Não era com minha aparência que estava preocupada, não era nem mesmo
o desejo de cultivar boas memórias da festa, que já parecia por demais incompleta, mas sim a
preocupação de não nos afundar ainda mais na lama de onde tentávamos sair — feito viciados,
para os quais, cada passo dado, por mais minúsculo que fosse, seria um grande feito e que,
agora, iriam ser postos à prova. Vê-lo na festa, inteiramente produzido, provavelmente
acompanhado de outra pessoa... Não sabia, mesmo com todo rancor de pessoas feridas, do efeito
que tal imagem causaria em nós dois. A obsessão com que nos enfeitávamos não passava de
uma tentativa de mascarar o que sentíamos. Não era para nós mesmos que havíamos nos
dedicado com tanto vigor nas melhores roupas e maquiagens, muito menos para os outros.
Veladamente, havíamos nos produzido para ele, para Lucas, numa tentativa de demonstrar que
a dor que nos causara já não latejava mais — mesmo que ainda doesse de forma descomunal.

Eu entendia que não deveria me importar com nada que viesse de Lucas, mas ainda
assim, mesmo com todas as forças empregadas, alguns fantasmas parecem ser impossíveis de
expurgar de nossas lembranças.

— Você sabe que é uma possibilidade, sim... Só precisamos não nos deixar abalar, está
bem? Esta noite é nossa. Devemos ficar bem. Não, iremos ficar bem! — a contragosto, Douglas
assentiu, forçando as linhas do maxilar que ressaltaram na cor pálida de sua pele. — Eu estou
indo pegar água, você quer também?

— Eu vou precisar sair e encarar sua mãe mais uma vez?

— Não, mas você vai ficar me devendo essa!


Seus ombros relaxaram e ele botou uma música para tocar que inundou suavemente o
quarto. Sem conseguir velejar na melodia suave, meus pensamentos me aprisionavam nas
desventuras futuras, e, dessa forma, por estar tão absorta, não reparei na figura que estava parada
na cozinha, até o momento de me chocar com ela.

— Ai! Você tá cega, garota?

— Cega? Não, infelizmente ainda preciso olhar para o seu rosto horrível!

Fisgada pelo comentário, Patrícia me fuzilou com os olhos intensamente. Estava


prestes a retrucar, no entanto, pareceu ter mudado de ideia no último instante. Olhar para ela,
mais atentamente, me fez dar conta do quão produzida estava naquela noite. Usava um vestido
de veludo cor vinho, tomara que caia, que ia até um pouco abaixo dos seus joelhos, as unhas
estavam pintadas, o cabelo obsessivamente arrumado naquele corte curto que ia até seu queixo.

— Para onde você vai?

— Não parece óbvio? É para sua festa do ABC, queridinha, para onde mais iria?

Patrícia se recostou no balcão da cozinha, parecendo satisfeita por ter devolvido o meu
insulto. Decidida a ignorá-la, mesmo com o sangue borbulhando em meus ouvidos no momento
em que o tom irônico de sua voz se fez soar, continuei meu caminho fingindo que não havia
nada mais interessante naquele momento do que a geladeira. Vendo que eu não daria
continuidade com nenhum ataque, novamente, falou:

— Eu precisava aceitar o convite, se negasse, iria soar estranho para o seu tio e sua
mãe, não acha? — o nuance venenoso que costumava pular de sua voz, que momentos antes
exalava feito um ácido podre, não existia dessa vez, até mesmo a postura satisfeita havia sumido
agora. Ela falava séria, pensativa, quase sinceramente preocupada. — Ou você preferia que eu
dissesse a verdade, sobre você e os meninos?

Parei no meio da cozinha, olhando para a figura preocupada que parecia ser de uma
pessoa inteiramente nova para mim.

— Engraçado, você nunca pareceu ter pudor em nos expor antes... mas de qualquer
maneira não estamos mais juntos, Patrícia, você venceu. Deveria estar feliz, não é?

Ela balançou a cabeça, mordendo os lábios em silêncio... Mais uma vez, a onda de
estranheza me tomou. Era absurdamente curioso vê-la assim, séria, silenciosa, sem querer
revidar algum ataque, sem soltar veneno algum. Também existiam muitos não-ditos no ar, isso
eu conseguia entender; era como se as palavras que desejava falar, quaisquer que fossem,
estivessem barradas em seus lábios indecisos. Embora eu concordasse que as piores cobras
eram as que não faziam barulho, não era o mesmo tipo de silêncio que Patrícia ostentava naquele
momento, reprimido, preocupado...

— Vamos ficar longe uma da outra, está bem? Ninguém briga, todos comem
salgadinhos — disse, por fim, sumindo pelo corredor, mas, voltando logo em seguida,
completou: — As coisas nunca são apenas preto no branco, Amanda, você é muito jovem ainda,
vai aprender. E... — parou novamente em silêncio, olhando diretamente em meus olhos. —
Sinto muito por tudo que aconteceu.

Precisei de alguns segundos para enfim compreender o que ela estava dizendo. Não
foi o som das palavras que me deixou confusa, pois elas foram audíveis, mas o conteúdo delas...
ter uma espécie de trégua com Patrícia, ouvi-la dizer que sentia muito por algo que acontecia,
decerto, era a cereja do bolo bizarro que me estava sendo apresentada. Claro que parecia uma
espécie de discurso ensaiado, forçado, que eu não deveria levar a sério. Por que levaria? Qual
seria a razão de se lamentar uma vitória sua? Sem dizer mais nada e aparentemente
desconfortável com suas últimas palavras, Patrícia se foi pelo corredor, apenas com um aceno
de cabeça.

Se aquelas eram palavras de consolo, na verdade, tiveram um efeito contrário. O


incômodo que sentia pareceu dobrar: agora, não só teria que aturá-la na festa, como também
seria uma Patrícia diferente, imprevisível. Isso não poderia ser bom, poderia?

Retornei ao quarto, ainda imersa em meus pensamentos. Ao entrar, me deparei com a


música que ainda o inundava feito uma doce fragrância e a imagem de Douglas sentado na
cama, inteiramente compenetrado no cantil de prata que brilhava em suas mãos. As linhas do
seu maxilar estavam rígidas, os músculos dos braços flexionados, e seu olhos... Seus olhos
miravam o velho objeto carregado com um misto de sentimentos demasiadamente intensos,
como uma pintura rica em cores: havia tons de rancor e ressentimento que gritavam à primeira
vista, mas, acima de tudo, todos aqueles que se demorassem a analisá-la, encontrariam as
imensuráveis colorações da falta e da saudade, azuis sob um mar vermelho.

— Patrícia vai para festa também, acredita?! — falei, buscando desviar sua atenção
daquele improvável amuleto. — Será que vamos precisar de um exorcista para nos livrarmos
dela?

— Ou um Pistoleiro... — completou Douglas, meio que num suspiro, sem desgrudar


os olhos do cantil, em referência a uma frase já dita por Lucas uma vez. — Por que será que ele
carregava isso? — perguntou, pegando o copo de minha mão e tomando em praticamente um
só gole a água que havia trazido. — Será que ele está arrependido de ter feito tudo aquilo?

— Eu não sei... — respondi, também entre suspiros pesados. — Queria acreditar que
sim, mas que diferença isso faria agora?

— Eu sei, eu sei — ele respondeu, jogando para o lado o cantil, pondo-se de pé,
tentando abrir um sorriso morno, sem muito sucesso, enquanto vinha em minha direção a mim.
Suavemente me tomou pelos braços, como se fôssemos valsar. Com seu rosto próximo ao meu,
novamente eu sentia seu hálito morno roçar meu rosto feito uma suave brisa, um afago natural
feito sobre a pele. Seu corpo se colava ao meu, intimamente entrelaçado. — Senhorita
Bittencourt, está pronta para dançar a noite inteira neste desastre que todos estão chamando de
Formatura?

— Achei que você nunca fosse perguntar!


Douglas balançou lentamente nossos corpos e me beijou.

— Minha mãe já está lá embaixo... — prosseguiu, forjando uma voz galanteadora. —


Podemos ir agora, mademoiselle Bittencourt?

— Oui, monsieur Albuquerque!

— Rosas, valsa, francês... — disse Douglas, abrindo, mais uma vez, um sorriso
malicioso. — Acho que já estamos chegando ao fundo do poço com esses clichês de formatura.

— Eu realmente achei o francês demais...

O sorriso cálido que Douglas havia conseguido me arrancar, no entanto, durou apenas
até o momento em que saímos juntos do quarto, de braços dados, dando, imediatamente, de cara
com minha mãe, meu tio, Guilherme e Patrícia, que nos esperavam. Como sempre que
aparecíamos juntos, Dra. Marília colocou uma cara feia, cheia de desdém, sem o menor
interesse em esconder, nem mesmo por educação.

— Então você realmente vai preferir ir com o seu namorado do que conosco? — a voz
de minha mãe, assim como sua cara, transbordava de desdém. — Eu não havia ensinado que a
família é mais importante do que namorados?

Todos já estavam prontos na sala e bem-vestidos, Guilherme e Patrícia cochichavam


entre si, sem parecer se importar conosco ou com que acontecia. Tio Roberto, com os braços
cruzados, nos encarava, como minha mãe, desdenhosamente, com aquele ar repulsivo e
estranhamente superior. Oh! a importância de uma família hipócrita... Não parecia um completo
absurdo que todos se comportassem dessa maneira, uns sem sequer notar que existíamos e os
que notavam, faziam questão de estragar o rosto com uma careta, e ainda achassem ruim por eu
não querer estar sob suas asas?

— Você dá liberdade demais para essa menina! — começou meu tio de maneira
ranzinza e autoritária. — É por isso que ela faz as coisas que faz, ela não conhece o que é
limites! Depois fica se esfregando em qualquer um e só sobra para gente arrumar a bagunça que
faz!

Suas palavras atingiram a nós dois, como um soco gratuito em no estômago. Ao meu
lado, Douglas se revirou desconfortavelmente. Sob meus dedos, eu sentia seus músculos
tensionarem. Contudo, antes que pudesse falar alguma coisa, eu o apertei, para pedir calma, e
me desvencilhei dele, tomando a frente, com o rosto ardendo.

— Já chega, isso é demais! Eu exijo respeito! — estava quase gritando, dando um


passo em direção ao meu tio. O tom de minha voz fez o ambiente da sala pesar quase
instantaneamente, até Patrícia e Guilherme pararam de conversar para grudar suas atenções em
nós dois. — Tio Roberto, quem você pensa que é para falar assim de mim? E outra coisa, limpar
a minha bagunça? Quando foi que vocês tiveram que limpar minha bagunça? — todos na sala
se entreolhavam, alarmados, embora ninguém parecesse ousar se intrometer. — Fala, Tio
Roberto, quando foi que vocês tiveram que limpar minha bagunça?
— Não vão inventar de brigar agora, no dia da sua festa de formatura! — disse minha
mãe, constrangida, tentando se colocar à frente da discussão, e, por fim: — Então, se você
quiser ir com seu namorado, vá! Vá de uma vez ou vamos chegar atrasados.

Mas eu não me movi, nem mesmo um milímetro, nem eu, nem muito menos Tio
Roberto, que me encarava de uma forma peculiar. Existia um brilho diferente em seu olhar
raivoso, algo como um tesouro escondido em águas turvas, que lá no fundo insistia em luzir,
mesmo com todos os esforços de mantê-lo escondido. A ação de constrangimento da minha
mãe, recém abatido, só acentuava minha desconfiança de que existia algo que não queriam que
eu soubesse. Porém, antes que mais alguma coisa fosse dita, Douglas se aproximou e tocou
meus braços suavemente.

— Vamos, Mandy, vamos embora daqui — sussurrou em meu ouvido, e, aumentando


o volume para que todos pudessem ouvir. — Podem seguir o nosso carro se quiserem. Amanda
e eu estamos indo agora.

A contragosto, desviei meus olhos de tio Roberto e o segui, o barulho do salto alto
ecoando no assoalho da sala, imperando sobre a pesada abstinência de palavras que dominava
aquele momento.

— É engraçado como vocês proclamam a moral e os bons-costumes, mas são


incapazes de respeitar alguém que mora sob o mesmo teto que vocês — disse, parando no vão
da porta, olhando para todos na sala, principalmente para meu tio. — Não me importa se você
é alguma coisa do meu pai, isso não lhe dá o direito de me desrespeitar, nem de se intrometer
em minha vida, ouviu bem? Esse é meu último aviso.

Bati a porta atrás de mim com força e, sem delongas, cuidamos em descer. No
elevador, Douglas não parava de me olhar, de maneira preocupada.

— Você está bem? — perguntou, apertando forte minha mão. — Que merda foi aquela
lá em cima?

Ainda demasiadamente contrariada para falar, apenas balancei a cabeça e seguimos


juntos para o carro da mãe de Douglas que já estava estacionado no lado de fora.

— Meu Deus, como minha norinha está linda! — Dona Silvana disse, no momento em
que Douglas abriu a porta e eu entrei. — Minha filha, desculpe não termos subido, mas eu fiquei
sabendo que sua família não gosta do meu filho, por isso nem fiz questão de sair do carro.

— Mãe! — Douglas e Thaís gritaram uníssonos.

— O que foi?! Eu sou sincera, ninguém mexe com filho nenhum meu, nem mesmos
os de coração, viu, Amandinha?

— Obrigada, Dona Silvana! — respondi, sorrindo sem graça e sem vontade de sorrir.
— Eu também concordo que eles não mereciam sua visita.

— Dona nada! Ou me chama de tia ou só de Silvana! Não sou dona nem de mim...
Tia Silvana gargalhou da própria piada e arrancou o carro, com os pneus cantando em
protesto contra a manobra brusca. Fomos o restante do caminho praticamente em silêncio, que
se interrompia vez ou outra com comentários animados de tia Silvana sobre a festa. Os carros
à nossa volta passavam como borrões distorcidos, nos quais simplesmente não prestávamos
atenção. No banco de trás, ainda era estranho para nós dois sentar sozinhos. Sempre nos
sentíamos minúsculos, como se o espaço que sobrava no outro acento, essa imensa lacuna
deixada pela falta de Lucas, medisse um precipício inteiro, imenso demais para duas figuras
que caminhavam tropegamente sobre os pedregulhos e escombros deixados pela nossa
separação. Douglas me acariciava suavemente, sem nada falar, carregando também o peso da
falta que insistia em nos fazer mergulhar num mar revolto e denso de pensamentos e
lembranças.

Lá fora, um tempo frio se formava, nuvens carregadas pareciam dominar o céu


estrelado, servindo para todos nós um aviso: vinha tempestade por aí.

Douglas

Enfim, apresento o insuportável dia da formatura. Chegamos quando os primeiros


pingos de chuva começaram a cair fortemente. No lado de dentro, uma melodia animada já
tocava distraindo a todos que ainda estavam chegando para aquele tão esperado dia — esperado
por todos, exceto nós dois. A cada minuto, mais pessoas se aproximavam, um mar de corpos
vestidos com trajes de gala, alunos que eu nunca tinha visto misturavam-se aos rostos
conhecidos, todos acompanhados por seus pais e uma penca de familiares nos calcanhares. O
tema escolhido para festa foi “Noite do Óscar” — não me perguntem o motivo! —, por isso,
um imenso tapete vermelho havia sido posto no meio do buffet, enfeitado com câmeras e
imensas estatuas por todos os lados. Para finalizar, sobre uma mesa de vidro ao centro, inúmeras
réplicas baratas da estatueta de ouro eram constantemente retiradas para fotos, que seriam todas
idênticas. Por razões óbvias, a única onda de tranquilidade que senti desde entrar no recinto, foi
quando percebi que as mesas da família da Amanda e da minha ficaram separadas, embora não
muito longe uma da outra.

Acredito que, devido às minhas primeiras palavras, tenha ficado claro que nunca fui
fã de cerimônias, quaisquer que fossem. Afinal, como gostar? Sempre sem graça, cheias de
maquiagem e falsidades que parecem existir apenas nos frívolos momentos que elas duram.
Formaturas não eram diferentes: não se engane, meu caro, muitos do que se sentarem à sua
mesa no dia da sua formatura, estarão lá apenas para beber e comer. Por mais melancólico que
possa soar essa é a verdade: eles não se importam com seu futuro, não com sinceridade. Aposto
que, muito provavelmente, nem sequer haviam parado para perguntar como andavam seus
estudos, ou como se sentiu no ano louco e intenso que é o pré-vestibular. Assim, não é estranho
que esses parentes relapsos, por alguma razão irônica, de repente pareçam querer estar todos lá,
com a justificativa de te aplaudir com as mãos gordurosas? Bom, justamente por acreditar nisso,
minha mãe e minha irmã foram as únicas que eu permiti estarem naquela festa em que nem eu
mesmo queria estar — na verdade, elas eram as únicas animadas para a ocasião.
— Olha só você, me matando de orgulho! — falou Thaís, ajeitando pela décima vez
minha grava, enquanto estávamos sentados à mesa. — Parece que foi ontem que eu estava
trocando suas fraudas!

— Você nunca trocou minhas fraldas!

— Ingrato!... Tá, eu sei que não troquei, mas posso fazer um discurso antiquado sobre
como você amadureceu esse ano, como sou sua irmã mais velha e me orgulho de ter sido sempre
o modelo para seus passos?! — ela propôs, sorrindo de forma marota como costumava fazer.
— Falando sério, Douglas, eu sei que esse ano não foi muito fácil para você com... Bom, todas
as descobertas... — pigarreou alto — É por isso que estou orgulhosa, pela maneira que você
amadureceu esse ano... Eu estou orgulhosa, muito orgulhosa. A festa é só um encerramento.
Agora, para de ser chato e me deixa ser carinhosa!

Sem reclamar — muito — feito um estraga prazeres, eu as deixava com sua euforia.
Minha mãe, inclusive, tirava milhares de fotos conosco, incansavelmente, igual a um verdadeiro
paparazzo — se eu não a conhecesse, diria que havia recebido inspiração da festa. Garçons iam
e vinham com bandejas cheias de comidas e bebidas, refrigerantes, sucos, além de coquetéis.
Rapidamente, uma mesa do nosso grupo se formou, meio distante dos nossos familiares.
Amanda e eu fomos nos sentar com eles. Todos riam e brindavam com refrigerantes
animadamente, congratulando-se pelo ano sofrido que havíamos passados, como sobreviventes
de um grande desastre. Letícia, Jéssica e Henrique, tomados pelo belo clichê dos filmes de High
School americana, não só fizeram questão de usar coroas de rei e rainhas do baile, como também
de vir de limusine. Em contraste, no entanto, com toda a algazarra festiva generalizada, num
canto longe das nossas mesas, existia uma completamente vazia.

— A mesa dele continua vazia — cochichei para Amanda ao meu lado, apontando
com a ponta do nariz a tal mesa.

— Eu percebi no momento que cheguei — sussurrou em resposta, olhando fixamente


para a mesa. — Mas Natasha ainda não chegou também. Nem ela, nem a Tandara... Ainda não
é o fim da festa.

Dei de ombros e continuei a brincar com os salgadinhos sobre o prato, empurrando-os


para lá e para cá, sem a menor vontade de comê-los. Até as bebidas permaneciam intocadas à
minha frente, enquanto as vozes dos meus colegas se sobrepunham umas às outras em sua
euforia.

— Meu Deus! — Letícia gritou, vindo em nossa direção com o rosto avermelhado,
muito provavelmente já levemente alcoolizada. — Vocês dois estão numa formatura ou num
velório?

— Eu já vi velórios mais interessantes — admiti, sarcasticamente. — Até mais


barulhentos. Essa não foi uma boa comparação.
Letícia balançou a cabeça apressadamente, quase derrubando sua tiara de Rainha do
Baile. Parou entre nós dois e passou os braços pesados sobre os nossos ombros, puxando-nos
para perto dela.

— Tudo isso é por causa do Lucas, não é?! — berrou novamente, sem o menor pudor
de ser ouvida. — O que diabos acontecia entre vocês, afinal? Contem, desembuchem!

Sem conseguir disfarçar a surpresa, senti automaticamente meus olhos se arregalarem


para ela, que sorriu novamente, de forma espalhafatosa. Embora anteriormente Letícia houvesse
tentado nos abordar sobre o que havia entre nós, nunca fora assim, tão descaradamente. Agora,
finalmente havia nos encurralado, sem escapatória. Os mais próximos e curiosos, pararam de
conversar, passando a olhar para nós dois, atentos. Ao meu lado Amanda estava com o rosto
inteiramente corado, e, convenientemente, olhava para um ponto imaginário ao longe enquanto
bebia seu coquetel de abacaxi.

— Vocês não vão acreditar no que eu acabei de ver! — exclamou uma voz
agradavelmente familiar atrás de nós. — Já tem uma menina passando mal no banheiro, acho
que é a Milena, da turma especial!

— Aquela Nerd?! — gritou Letícia novamente, parecendo fugir do foco


completamente. — Aquela bem quietinha?! Não acredito!

— Sim! Naquele banheiro ali, perto da cozinha, tá uma coisa terrível!

Feito um bando de hienas ao ver um pedaço suculento de carne dando sopa, Letícia e
alguns dos alunos se levantaram apressadamente e praticamente correram até o banheiro
indicado.

— Dar uma fofoca melhor do que a que não se quer responder, sempre será a saída
mais efetiva!

Sentando-se ao nosso lado com um sorriso cravado na boca, Natasha nos abraçou
apertado, ao mesmo tempo calorosamente e acolhedoramente, deixando em nós dois um rastro
de glíter.

— Natasha! Meu Deus, vamos ficar te devendo essa! — disse Amanda, relaxando ao
meu lado, aliviada. — Que demora para chegar, eu já estava preocupada. Por que você chegou
atrasada?

— Ah... eu meio que passei em um lugar antes de vir... — respondeu esquivamente,


sem jeito. Entretanto, se tentava esconder alguma coisa, tudo foi por água a baixo quando duas
outras figuras se aproximaram, estampando na cara onde ela havia estado.

Paradas atrás de Natasha, conversando inteiramente concentradas e apressadas,


estavam duas garotas, que rapidamente as reconheci: Natália e Tandara. No momento em que
as vi, uma coisa no meu estômago se revirou, e, sem que pudesse me controlar, meus olhos
saltaram para a mesa de Lucas. Todavia, para minha tranquilidade — ou quem sabe decepção,
porque de fato, eu a senti — ela continuava sem ninguém, solitária, na outra extremidade do
buffet. Depois de parecerem ter entrado em acordo, as duas sentaram-se à mesa junto a nós,
ocupando as cadeiras vagas à nossa frente

— Olá, Amanda... — falaram, juntas, quase como num coro. — Douglas!

— Olá! — respondeu Amanda, tentando abrir um sorriso desconsertado. — Tudo bem


com vocês?

As duas assentiram lentamente, envergonhadas, como se estivessem na presença de


um professor, ou alguém a quem devessem temer, deixando o clima inteiramente pesado e
bastante embaraçoso.

— Vocês vieram juntas com Natasha? — perguntei, tentando controlar meu tom
ríspido, que insistia em subir à língua. — Então você passou lá... na casa dele... — parecendo
uma criança que fora pega por alguma traquinagem, Natasha encolheu os ombros e fechou os
olhos. — Ele não veio? Ótimo, deve ser melhor pra todo mundo.

Natália, que mexia no celular, parou dramaticamente, e me olhou com o rosto


expressivamente sério.

— É melhor para quem? — falou, rispidamente, sustentando um olhar rígido. — Para


mim está sendo péssimo! Mas vocês são os únicos que importam, não é mesmo?

Visivelmente chocada, Amanda, Natasha e Tandara deixaram o queixo cair e olharam


de mim para ela. Num timing perfeito para evitar uma briga que se formava, Letícia e os demais
colegas que a acompanharam voltaram para a mesa, desapontados.

— Ela não estava lá, Natasha!

— Não?! — marotamente, Natasha deu de ombros e levantou as mãos para o alto,


aliviada. — Eu jurava que tinha visto. Meu engano!

Se, por acaso, eles se sentiram frustrados com a perda de uma fofoca, logo pareceram
esquecer, tornaram a fazer baderna e conversar frivolidades, assim que ocuparam os lugares
vazios. Mesmo que muitos não tivessem presenciado, era impossível não sentir o clima tenso
que se instaurara, o resquício da farpa lançada continuava sobre a mesa, e outras mais pareciam
estar sendo preparadas para a primeira oportunidade. Tandara cutucou Natália, cochichando
algo apressadamente de maneira inaudível, e ela tornou a mexer no celular ignorando a todos,
os olhos verdes irados iluminados aparelho. Amanda, Natasha e eu, continuávamos calados, um
ao lado do outro, parecendo três estranhos, sem saber o que falar após o ataque.

— Então... — Natasha começou, tentando quebrar o gelo. — A festa está agradável,


não é?

— Muito! — Tandara exclamou, parecendo pegar uma deixa teatral. — Acho que
deveríamos dançar. Vamos, Natália?

— Eu disse que era um erro sentar aqui. Agora você quer ir embora? Tudo bem, vamos
lá, vamos fingir que está tudo bem!
Sem se darem ao menor trabalho de se despedir, as duas se levantaram e seguiram para
a pista de dança de mãos dadas. Assim, como se nada tivesse acontecido! Antes que eu
conseguisse controlar o calor da raiva que se formou em meu peito, eu já estava de pé, com o
rosto transfigurado.

— Você não acha que tá sendo muito marrenta não?! — gritei para Natália e Tandara.
Minha voz se elevou o suficiente para se sobrepor aos concorrentes que conversavam ao redor
da mesa. — Até parece que não foi teu amigo que fez merda!

A balbúrdia da mesa cessou no momento em que as duas pararam bruscamente o seu


caminho. Pelo canto do olho, eu via o rosto rechonchudo de Letícia formar um sorriso, muito
provavelmente pelo barraco que se formava diante dos seus olhos — fofoca em primeira mão!
Natália se virou com o rosto avermelhado, retribuindo minha careta. Decidida, voltou com os
passos firmes até onde estávamos sentados. Natasha rapidamente levantou, apreensiva, e correu
até a amiga, formando uma espécie de barreira juntamente com Tandara, sussurrando algo que
não conseguíamos ouvir.

— Se eu sou marrenta, vocês dois são estúpidos, sabiam disso?! — Natália berrou em
resposta, colocando Amanda na linha de fogo também, embora o conflito fosse comigo. —
Estúpidos!

— Estúpidos?! Você tá ficando louca, menina? Foi o teu amiguinho, que tu defende
tanto, que nos traiu. Traiu! Temos fotos, provas! Queria o quê, que estivéssemos felizes com
isso?

Natália balançou a cabeça rapidamente, o rosto se contorceu como se segurasse o


choro. Natasha e Tandara tentavam abraçá-la, mas ela não queria, tentava se desvencilhar de
seus braços, incansavelmente, apressadamente.

— Vocês nunca o mereceram! — continuava a bradar em resposta, ainda tentando se


soltar do enlace das duas meninas. — Se não percebem que ele nunca teria feito isso com vocês,
talvez ele vá ficar melhor sem vocês!

— Natália! — Natasha tentou falar mais firmemente. — Não, você sabe que não deve!

— Eu não posso deixar que eles falem desse jeito do Lucas! — exclamou. — Não
depois de tudo que ele fez por esses dois!

— Natasha, pare! Deixe ela falar! — dessa vez, quem gritou foi Amanda, em pé,
olhando apreensiva para cena, com o rosto lívido. — O que você está dizendo, Natália? O que
ele fez por nós dois?

Natália parou, escapando de vez dos braços que se afrouxaram ao seu redor, e,
respirando profundamente, tentou recuperar a compostura. Ao seu lado, Natasha mantinha o
rosto coberto por uma das mãos, parecendo querer se esconder do que estava prestes a
acontecer. Meu coração martelava em meu peito. Martelava como nunca antes desde aquele
dia, na casa dele...
— Lucas nunca os traiu, não de verdade! — disse, gravemente, olhando de forma
penetrante para nós dois.

Eu poderia ter visto estrelas, como nos desenhos animados, ao ouvir as palavras de
Natália, pois a sensação que me causou, era de ter sido atravessado por um ônibus em alta
velocidade, sem a menor clemência. Os convidados que estavam em volta, não somente os que
sentavam conosco, olhavam-nos sem parecer entender o que estava acontecendo, apesar de
estarem claramente curiosos.

— O que você está falando?! — perguntei, respirando pesadamente. E o nome que há


muito pesava em meu peito, o qual eu reprimia com todas as forças, saiu, rasgando minha
garganta: — Lucas... Lucas não nos traiu?

— Não!

Para nossa surpresa, quem nos respondeu não foi Natália, mas sim Natasha, que
retirava as mãos do rosto e nos olhava seriamente. Todos os dias desde a nossa briga com Lucas
pareceram me esmagar ao mesmo tempo, de uma só vez. Sem conseguir ficar em pé, desabei
na cadeira, sentindo o desespero e a ansiedade brotarem no meu peito e se espalharem por todo
meu corpo, tomando meu fôlego por completo. Amanda parecia ainda mais abalada, lívida,
olhando para a amiga, inteiramente atenta para o que ela falava. Acima de nós, o céu desabava
em chuva, fustigando o teto de vidro com ferocidade, o barulho competindo com a música do
buffet. Natasha se aproximou lentamente de nós dois, deu um profundo e absurdamente
demorado suspiro e, com cara de quem não deveria, tornou a falar.

— Eu vou contar toda a verdade sobre o que aconteceu...


Capítulo XIII — Interlúdio

Lucas

18 de setembro, 2016 — Um dia após o almoço com meu pai, dois meses para a
formatura

O dia não poderia parecer mais leve, sem gravidade ou qualquer coisa que me
prendesse à terra. O que existia, o sentimento que se apoderava de meu espírito junto com a luz
do sol ao quarto, era puramente liberdade. Etéreo, acordei e me deixei flutuar até a sala de
jantar. Na cozinha, meu pai terminava de preparar algo que pareciam ser omeletes, o cheiro da
refeição sendo preparada dançava com o aroma do café de forma harmônica, sincrônica, como
se pertencessem um ao outro, e àquele lugar, como a nenhum outro. Sentada à mesa mexendo
em seu notebook, estava Catarina: rígida, séria, como sempre. Sem conseguir controlar a
sensação de que uma vespa me ferroara no momento em que a vi, as lembranças dos dias
anteriores — a gravação de nós três, a exposição medíocre e humilhante, seus dedos estalando
contra meu rosto — todas vieram de uma só vez, afiadas, perfurantes. Todavia, era certo que o
pior, dentre todas as imagens horríveis, estava na dura realidade de que o amor materno, esse
que sempre fora dito natural, imensurável e incondicional, não passava de uma grande mentira.
Um mito perverso. Existia, sim, um imenso porém, uma fronteira que finalmente atravessara.

Mal sabia eu que essa tal melancolia seria apenas a primeira pedra que encontraria pelo
meio do caminho, e que se prenderia em mim, machucando meu tornozelo, tornando o mundo
menos leve.

— Bom dia, Catarina! — disse, em tom seco e um tanto ríspido. — Vendo vídeos de
adolescentes em suas intimidades?

— Agora não vai mais me chamar de mãe, Lucas? — perguntou, parecendo ignorar
completamente minha farpa, sem retirar os olhos da tela do computador. — Você já é quase
adulto: supere.

— Não comecem, vocês dois — Alexandre veio da cozinha e colocou omelete em meu
prato, entre nós dois, como se construísse um muro. — Já estou cansado de vê-los brigando! —
e depois, olhando unicamente para mim: — Lucas, não vamos poder comer com você hoje, mas
voltaremos para o almoço, está bem? Tivemos um chamado de emergência de um cliente.

De fato, ambos estavam muito bem vestidos, com as roupas sociais que costumavam
usar quando iam sair a trabalho: minha mãe com seu tailleur preto, militarmente alinhado; meu
pai com a camisa azul marinho e uma calça social, embora não parecesse nada rígido como
Catarina. Mesmo sabendo que era domingo, não retruquei — eram advogados requisitados, não
era raro que isso acontecesse.

Sem se despedir, minha mãe se levantou pouco tempo depois, levando consigo seu
cúmplice mecânico que cada vez mais eu passava odiar. Alexandre, por sua vez, apertou
afetuosamente meus ombros com um sorriso cravado a boca, e saiu também, deixando-me
sozinho sentindo um emaranhado frio zanzar por meu corpo...

Eu não estava sozinho de verdade, estava?

Alguma vez você já se levantou na madrugada para ir ao banheiro ou buscar água e,


no escuro, completamente sozinho, sentiu olhares em suas costas, como se alguém — ou algo
— o espreitassem da escuridão, observasse seus passos trôpegos, descuidados, desavisados,
esperando apenas pela melhor oportunidade para emboscá-lo? Se sim, então você deve
compreender como eu me sentia naquele momento. Eu não estava sozinho, agora sabia que
existiam muitos olhos na escuridão, escondidos, esperando apenas mais alguma coisa que
pudesse ser usada contra mim. Era estranho perceber que o lugar o qual eu passara a chamar de
lar, não passava de um covil de bedéis... Ser filmado, exposto, encurralado... Tudo, qualquer
objeto, naquele momento parecia ter olhos, ouvidos ... Os olhos de Catarina, duros, mecânicos,
frios.

Com um calafrio, não demorei para comer e me levantei igualmente veloz para
afugentar aquele sentimento medonho, quando um toque de campainha se fez soar por toda a
casa.

Um toque de campainha... eis o augúrio que anunciara o fim de tudo, a destruição: um


maldito toque de campainha... simples, comum, ordinário. Momentos como esses, mais
pareciam ser uma tentativa das três tecelãs, essas que arranjam toda a ópera, de fazer escárnio
sobre a improvável e frágil grandeza dos homens. Quando se pondera sobre o fim das coisas,
mesmo que não se deseje, espera-se, no entanto, que seja algo grandioso, heroico. Mas não,
nunca o é, de fato. Olhe para a História, observe os mitos! Uma flecha foi a responsável pela
morte do grande e destemido Aquiles. Um momento de descuido, e os fios de cabelos, que
sustentavam a força imensurável de Sanção, foram arrancados. Um disco de ouro, simples,
vertera o sangue de Jacinto ao chão. Nada de monstros. Nada de grandes duelos. Nada de
grandes sons ou melopeias, apenas a tragicidade do ordinário, lembrando-nos de que não somos
nada perante o destino.

Achando que poderia ser algum dos meus pais, voltei e abri a porta sem estar preparado
para as duas figuras paradas no corredor, uma mulher e um homem, com cores hostis nos olhos.
Espantado, os detalhes de ambos foram sendo sorvidos, vagarosamente, por minhas fatigadas
retina.

O homem era alto, bem alto, com o cabelo curto e grisalho, de porte robusto, parecendo
um militar, e, embora eu tivesse quase certeza de que nunca topara com ele em minha vida, a
mulher... Sua figura me era absurdamente familiar, em cada detalhe: baixa, com as linhas do
rosto afiladas, os cabelos ondulados sobre os ombros, loiros, como uma cópia da imagem que
eu tano amava, exceto pelos olhos... em vez de um límpido verde brilhante, eram castanhos,
duros feito o tronco de uma arvore. Esse pequeno — e imenso — detalhe parecia ser a única
coisa em que se distinguia de sua filha.
— Dra. Marília?! — as palavras voaram de minha boca, soando alarmadas, atônitas.
— O quê...?

— Olá, Lucas — disse a mãe de Amanda, olhando-me desdenhosamente da cabeça


aos pés.

Como num aviso, seus olhos me fizeram perceber o quão mal vestido estava para a
ocasião: sem camisa, eu trajava apenas o short do pijama de algodão, azul, desgastado e quase
frouxo em minha cintura. Sem conseguir controlar a vergonha de uma quase nudez, escondi-
me por trás da porta, enquanto os dois passavam por mim, sem qualquer tipo de cerimônia.

— Eu acho que eu vou me vestir...

— Deve — interrompeu-me, Marília, resoluta. — Acha não, deve.

O constrangimento e o sangue subiram para meu rosto, aquarelando-o de rubro.

— Podem ficar à vontade... — declarei, antes de quase correr para o quarto, tropeçando
nos próprios pés. Ainda desnorteado, sem compreender o que estava acontecendo, vesti a
primeira roupa que encontrei jogada pelo quarto, sentindo o pulsar frenético no peito, o som do
sangue retumbando em meus ouvidos.

Quando voltei, encontrei-os sentados na sala de jantar, imponentes, ainda munidos de


olhares de repulsa para mim. Sem saber o que falar, apenas fiquei alguns segundos fitando os
dois, tentando ainda compreender a cena que se era desenvolvida diante dos meus olhos. O que
infernos eles estavam fazendo ali? Porque me olhavam daquela forma?

Eles sabiam! Essa era a explicação mais óbvia. Claro que eles sabiam, por qual outra
razão teriam vindo bater à minha porta daquela maneira?

— Então... — tentei começar, incerto, inseguro. — Vocês aceitariam alguma coisa?


Café, chá?

O homem não fez a menor menção de responder. Marília, por outro lado, esticou
macabramente um lado dos lábios em algo que parecia ser um sorriso, mas que, de alguma
forma, eu sabia se tratar de uma ameaça.

— Café, por favor — respondeu, ainda sorrindo afiadamente. — Você consegue fazer
isso, Lucas, ou nunca teve que lidar com responsabilidades?

Silenciosamente, coloquei uma xícara à sua frente e a preenchi com café, enquanto as
palavras engasgavam-se em algum lugar da garganta. Sem conseguir me controlar, minhas
mãos tremiam com o nervosismo de estar defronte de Marília, fazendo-me derrubar um pouco
de café na mesa. Após terminar de servi-la, sentei-me de maneira acuada, como uma presa
diante de um predador mortífero.

— A que devo o prazer de suas companhias nesta bela manhã?


— Poupe suas palavras para quem as queira ouvir — falou a mãe de Amanda, fazendo
uma careta como se algo pútrido estivesse sob seu nariz. — Eu não me dou ao trabalho de ouvir
perversozinhos feito você.

Recebi suas palavras como mais açoites sobre a pele, fazendo meu sangue ficar mais
quente. Em contextos normais, eu já teria colocado os dois para fora dali — como ousavam
falar assim comigo, na minha casa? —, mas o fato de ser a mãe de Amanda, minha sogra...
Contive-me o máximo que pude, mesmo sem saber que não conseguiria aturar isso por mais
tempo.

— Olha, Dra. Marília, se você não veio conversar então não acho...

— Cale a boca, seu moleque desgraçado! — exclamou, pela primeira vez o


brutamontes ao seu lado, atropelando sem clemência minhas palavras.

— Vejo que trasgos sabem falar, afinal!

O homem franziu o cenho para mim ameaçadoramente, mas quem tomou a frente
novamente foi Marília.

— Eu irei ser curta e grossa com você — declarou, levantando o queixo e o nariz,
novamente. — Termine com Amanda.

“Termine com Amanda.”

Suas palavras voaram de sua boca e estapearam meu rosto com uma força inefável,
voraz. Assustadoramente, meu coração bateu ainda mais forte, e, como se eu estivesse caindo
de um abismo, endireitei-me na cadeira e a olhei como se não tivesse compreendido o que
queria.

— Você quer que eu faça o quê?!

— Termine. Com. A. Minha. Filha. — falou, pausadamentre, como se eu fosse algum


retardado.

Sobressaltado, sentido como se chamas devorassem meu rosto, levantei de súbito,


apontando para a porta.

— Vá embora. Vá embora agora!

Mas ela não se mexeu, muito menos o desgraçado do seu acompanhante trasgo.
Continuaram a me olhar como se eu fosse alguma criatura patética, desgarrada, fazendo meu
coração martelar ensandecido no peito, e meu rosto entrar em combustão.

— Eu ficaria sentado se fosse você — falou o homem, de braços cruzados.

— Mas não é! — bradei em resposta, ainda fuzilando furiosamente os dois com meu
olhar. — Vocês pensam que podem vir na minha casa, me tratar dessa forma, e exigir que eu
termine com a Amanda? Estão malucos?! O que porra é que vocês estão pensando?!
— Estou lhe dando a escolha de não estragar a vida da minha filha, seu perversozinho.
Porque se vocês insistirem em continuar com essa porcaria em que se meteram... — Marília
parou de falar, o tom que utilizava naquele momento era de completa fleuma, nem mesmo
parecia que ambos estávamos na mesma conversa. Dando um longo suspiro, completou da
mesma maneira fria e impassível: — É exatamente o que vai acontecer.

Por um segundo minha respiração vacilou e meu queixo se deixou cair alguns
centímetros. Poucos, provavelmente, mas o suficiente para que ela percebesse a alteração no
meu rosto. Sorrindo com satisfação de um pescador ao perceber que sua pesca mordeu a isca,
ela estendeu a mão, apontando para a cadeira: — Sente-se.

Tal qual um robô que acabasse de receber uma ordem, sentei lentamente,
mecanicamente, sentindo meu estômago despencar milhares de quilômetros por hora. Ainda
satisfeita pelo efeito que me causara, Marília, propositalmente, demorou algum tempo até tornar
a falar. Ela deveria estar acostumada a fazer isso — era o que pensava, ao ver sua imagem
grotescamente contente —, a entrar na cabeça das pessoas, mexer com suas emoções, afinal,
trabalhava com isso, não era? Sabia olhar para o espírito daqueles que estavam à sua frente,
identificava onde precisaria cutucar para doer. Comigo não seria diferente: achara o ponto
perfeito onde deveria explorar.

— Bom garoto! Agora, como eu ia dizendo: termine com minha filha! — proferiu,
deliciando-se com cada palavra dita. — Acabe com essa coisa grotesca para a qual você e aquele
outro arrastaram Amanda, ou... — pausa. — Ou irei mandá-la para Manaus de uma vez.

— Você não poderia!

— Não?! — interrompeu-me de cara. — Ela é minha filha, é menor de idade, está sob
minha responsabilidade. Muito provavelmente seus pais não lhe deram cortes na vida, garoto,
mas me deixe explicar como acontece na realidade, seu pervesozinho mimado: os pais possuem
controle sobre seus filhos. Eu controlo a vida da minha filha! Não vou deixar que um fedelho
desgraçado, mimado, feito você, estrague a vida inteira dela, só por pura safadeza e
promiscuidade. Isso sem falar daquele outro pé-rapado que não tem onde cair morto...

Desamparado, meu queixo se deixou cair, embora estivesse em total abstinência de


palavras. Aquilo não poderia estar acontecendo! Ela não poderia me pedir para acabar com a
única coisa que me fazia sentir vivo, feliz! Sua postura séria, seu tom de voz, o brilho em seu
olhar, deixava claro que Marília não estava blefando: do pouco que conhecia aquela mulher,
por Amanda e pelo que vira, ela seria capaz, sim, de enviá-la para longe sem titubear, caso
achasse necessário.

— Como? — foi somente o que consegui falar, com a voz rouca e arrastada. — Como
você quer que eu faça isso?

— Seja criativo! — respondeu, num tom animado completamente destoante da cena


tensa daquela ópera. — Eu sei que vai arrumar uma forma, afinal, é a vida da minha filha que
está em jogo. Se realmente você realmente a ama, como pensa que ama, então prove: termine.
Eu juro que sentia o mundo rodar naquele momento. Meu coração — que antes pulsava
alucinado — parecia ter se perdido em seus tambores e se esquecido de sua função. As mãos,
suadas e gélidas, agarravam-se em minhas pernas com tanta força, que eu começava a sentir as
unhas cravar na pele, ameaçando sangrar.

— Não precisamos falar que você não pode dizer coisa alguma, não é? — disse, dessa
vez, o trasgo grisalho, com uma voz desgraçada. — Senão, haverá consequências para todos,
ouviu bem?

— Ah, não! — respondeu Marília. — Ele vai ser obediente, não é, Lucas? Ele sabe o
que está em jogo.

Vendo que eu nada diria, Marília e o troglodita se levantaram vitoriosos, deixando-me


em silêncio defronte ao abismo do qual era empurrado. Sem se despedir ou falar mais nada,
começaram a andar em direção a porta, numa marcha imponente.

Não sei dizer por quanto tempo fiquei catatônico na mesma posição, sentado, fitando
o assoalho do meu apartamento. Horas? Não sabia. Tudo que não fosse as palavras de Marília
parecia fugir feito borrões num lugar muito, muito longe de onde eu estava.

“Termine com Amanda”

“Se você realmente a ama, como pensa que ama, então prove: termine”

“Ele sabe do que está em jogo”

O que está em jogo...

Naquele momento, encontrava-me no dilema de Pamina em que, pelas próprias mãos,


em nome do amor, era-me dado o punhal com o qual eu deveria selar a morte daqueles que
amava. Como eu poderia fazer isso?! Como ela era capaz de me pedir tamanho desvario?! Com
que perversidade aquela mulher ditava meu destino?!

Mas e se eu não terminasse?! E se eu contasse tudo?

“Irei mandá-la para Manaus de uma vez!”

“Eu controlo minha filha”

“Haverá consequências para todo mundo”

“Ele sabe o que está em jogo”

Eu teria que terminar com os dois. Não existia outra escolha! Teria que destruir o nosso
paraíso, que, com tanto sofrimento, havíamos tentado construir...

Não poderia correr esse risco. Sim, eu sabia o que estava em jogo, os pesos
imensuráveis já haviam sido postos e ponderados. Não podia simplesmente brincar com a
possibilidade de destruir a vida de Amanda, ir para Manaus... Ela nunca gostara de lá, sempre
falava isso quando perguntávamos. Seus amigos estavam aqui. Seu passado, presente e futuro
estavam aqui. Nós estávamos aqui! Toda a sua vida estava aqui, fincada com raízes fortes, as
quais corriam o risco de serem arrancadas sem o menor cuidado.

Eu a amava, meus deuses, como eu a amava! Amava de um jeito que nunca, em toda
a prosa, em toda a poesia, parecia ser capaz de amar. Seus olhos, aquele imenso e tranquilo lago
de profundidade infinita, a luz que emitia, o tom doce de sua voz, o carinho em minha pele...
Agora eu compreendia, de fato, seu temor inicial em sermos descobertos. O mundo, essa
maldita e nefasta, criação de um Demiurgo perverso, entediado de sua plenitude, não iria parar
de tentar machucar, quebrar, queimar o sentimento que possuíamos.

Não importava o quanto pensasse, nada estava ao meu alcance naquele momento, pois
em qualquer passo que desse, qualquer movimento, eu estaria falhando com Amanda e com
Douglas! Sim, nunca conseguiríamos ficar juntos! Completávamo-nos como quebra-cabeças,
como dissera ao meu pai, e nada daquilo era apenas sofismo. Éramos três, um. E agora, eu teria
de abdicar de tudo pelo bem dos dois.

Apavorado, sem saber como conseguia andar, corri para fora do apartamento indo
diretamente à porta vizinha. Impacientemente, esmurrei-a até que alguém abriu: Natália. Minha
cara, por certo, não deveria ser a melhor naquele momento, pois, assim que me recebeu, ela me
olhou com o rosto alarmado e me puxou para dentro. Novamente, meu corpo pesou e eu me
sentei, de costas para a parede, com as mãos trêmulas e incertas.

— Lucas?! — chamou, ajoelhada ao meu lado, desesperada. — Lucas, o que houve?

— Desculpe, eu não queria vir assim! — o tom da minha voz saia urgente, rouco, sem
força, completamente desamparado. — Eu não queria vir assim, mas não sabia o que fazer. Eu
não sei mais o que fazer. Eu não queria ficar sozinho... Ela quer que eu termine, eu não posso
fazer isso. Não posso, Natália, não consigo!

— Lucas?! Pelo amor de Deus, menino, me conta, o que está acontecendo?!

Sem conseguir recuperar a razão para respondê-la, continuei apenas balançando a


cabeça, esfregando com força as mãos em meu rosto e cabelo. Percebendo que eu não
conseguiria pronunciar nada, Natália me abraçou com força, impedindo meus movimentos
repetitivos. Em acalanto, repetia que tudo ia ficar bem e que eu precisava me acalmar. Era inútil
tudo aquilo, nada iria ficar bem. Nunca mais! Tal como antes, tudo parecia vir de longe, sua
voz, a casa, enquanto as palavras de Marília afogavam meu espírito mais uma vez.

Com dificuldade, Natália me colocou de pé e me arrastou, segurando minha mão, até


seu quarto e me sentou em sua cama. Sem saber mais o que poderia fazer, correu até a cozinha
e me trouxe um imenso copo com água, entregando-me de pronto, para que eu pudesse me
acalmar.

Lentamente, fui conseguindo me recompor — o máximo que era possível naquele


momento —, enquanto ela me olhava sem parar, com a apreensão exalando de seus olhos.
— A mãe de Amanda veio me procurar hoje cedo... — disse, enfim, após muito tempo
tentando me tranquilizar. — Ela quer que eu termine com ela. Quer que acabe com o
relacionamento que nós temos.

— Meu Deus, Lucas! O que essa mulher tem na cabeça?! Você negou, não foi?

Como se meu peito estivesse sendo esmagado, eu balancei minha cabeça em negação.
No mesmo momento, suas mãos voaram até a boca, num gesto horrorizado.

— Como assim, Lucas?!

— Ela vai mandá-la embora se eu não terminar, Natália! Vai mandar Amanda para
Manaus! Disse várias vezes que não teria problemas em fazer isso, que controlava a vida da
filha... ela... essa mulher maldita! Ela vai destruir a vida da filha só para provar que pode!

— Mas e o Douglas?! Você poderia...

— Não poderia, nada! Eu não posso contar pra ele, pra nenhum dos dois, caso contrário
o resultado será o mesmo! Douglas nunca aceitaria... ele nunca conseguiria fazer o que é preciso
fazer... mas eu preciso... eu tenho que fazer...

Compreendendo, enfim, a dimensão do ocorrido, Natalia novamente me abraçou


apertado, como se tentasse segurar, inutilmente, os cacos do meu corpo, que começavam a cair.

— É o fim, Natália. Eu preciso terminar com os dois.

...

Por muitos dias depois da visita da Marília, eu não consegui pensar em nada que não
fosse aquela imensa condicional imposta por ela. Nem mesmo consegui ir à aula, era impossível
para mim olhar para cara dos dois sabendo o fardo que carregava, o futuro que nos aguardava.

Douglas e Amanda desconfiaram que algo estava acontecendo logo na primeira


semana, e foi quando o emaranhado de mentiras, essa teia pegajosa, em que, quanto mais eu
me debatia, mais se tornava impossível de escapar, começou a surgir. Primeiro, precisei dizer
que estava doente, alguma coisa grave e não podia ter os dois por perto. O celular nunca houvera
me pesado tanto, por essa razão, não o carregava por aí, nem os respondia ou atendia.

Sem conseguir olhar em seus olhos, comecei a dar bolos seguidos, desmarcava tudo
de última hora. Até quando estávamos juntos, a presença dos dois, a qual tantas vezes outrora
me fizera flutuar nesse mar revolto que chamamos de vida, agora, não passava de um peso que
me fazia afogar ainda mais na escuridão soturna. Cada sorriso que ambos davam, era como uma
flecha desferida em meu peito, com uma dor lancinante que nunca passava, apenas intensificava
a cada novo gesto de carinho.

Eu era um desgraçado! Um desperdício de parto! Não existia outra coisa que pudesse
descrever melhor. Como eu poderia trair aqueles que amava? Como eu poderia por fim no
mundo particular que tanto havíamos trabalhado para erguer? Não merecia o amor dos dois,
essa era verdade, dizia que amava, mas Marília estava certa, se eu realmente amava os dois,
como amava, precisava fazer a coisa certa. Não podia correr o risco de prejudicá-los apenas por
um capricho adolescente, pueril.

As noites se tornaram meu dia. Sem conseguir pregar os olhos, passava horas em claro
fustigando-me em minhas próprias memórias, tramando o pior dos crimes passionais que eu
deveria cometer.

Não podia simplesmente terminar, isso eu sabia bem. Amanda e Douglas nunca iriam
desistir de mim — e lá estava eu, desistindo dos dois. Dolorosamente, a cada barreira
encontrada, eu tornava a pensar num novo plano, dia após dia, hora após hora, copiosamente,
feito um lunático. Não estudava, não comia.

Meus pais também perceberam, embora esses eu também tentasse afastar. Alexandre
jamais concordaria com o fato de que eu estava desistindo daqueles dois, da minha felicidade.
Sem compreender o que se passava, tentavam ir ao meu quarto, chamar para comer. Todas as
tentativas eram inúteis.

Natália era única que sabia e, embora não concordasse com que eu estava fazendo,
tentava me ajudar, fazia-me companhia sempre que possível, e algumas de suas noites também
foram desperdiçadas ao meu lado — mesmo que fosse em silêncio, ou dormindo em minha
cama. Eu não verbalizava muito, mas agradecia por isso. Foi exatamente, numa dessas noites
que a ideia brotou em meu espírito.

— Eu preciso traí-los! — bradei, acordando Natália, com sobressalto, de um cochilo


que acabava de começar em minha cama.

— O quê?! — indagou com uma voz sonolenta, coçando os olhos inchados.

— Eu preciso traí-los, Nat, essa é a única alternativa! — enquanto falava, eu percorria


o quarto, indo de lá para cá, sendo acompanhado por seus olhos. — Eu já ponderei demais,
sobre tudo! Se eu só terminar, os dois nunca iriam deixar barato, eles iriam vir atrás de mim,
saber o que houve... essa... — disse, finalmente parando, sentando-me na cadeira, deixando
meus ombros caírem derrotados: — essa é a única forma de fazer com que eles nunca mais
olhem na minha cara: Amanda e Douglas precisam me ver com outra pessoa.

— Lucas...

— Não, Nat, por favor, não me diga para desistir, você sabe que eu não posso... Não
posso...

Num longo suspiro conformado, Natália se levantou, passando a mão pelo rosto. Dessa
vez, foi ela quem passou a caminhar de um lado para outro, assemelhando-se a um pêndulo
metódico.

— Eu nunca deixaria você fazer isso, Lucas — falou por fim, mas no momento em
que fiz menção de interrompê-la, Nat levantou uma de suas mãos, impedindo-me de falar mais
alguma coisa. Sem parar, ela continuava a zanzar de lá para cá no meu quarto. — Eu o conheço
suficiente para saber que você nunca se perdoaria, mais do que não está se perdoando agora.
Você já se olhou no espelho?! Está acabado: não dorme, não come... Se fizer isso, eu tenho
medo do que poderia acontecer...

— Natália...

— Não, deixe-me terminar. Eu sou sua amiga, dou suporte para quando você precisar,
mas não posso simplesmente concordar com isso... Então, sei lá, finja! Isso! Não traia de
verdade, só... finja!

— E como eu conseguiria fazer isso?

Nat parou de andar e me encarou com seus olhos verdes. Era engraçado como desde
que me apaixonara pelos dois, muitas coisas que nunca parara para pensar ou perceber agora
pareciam detalhes importantíssimos. Existiam outros tipos de verde, milhões! O que tingia o
olhar de Natália era denso, carregado, pesado — não de uma maneira ruim —, mais parecia
uma floresta que pouco fora desbravada; enquanto o de Amanda era como um límpido lago,
profundo e sem fim aparente. Era o verde de águas nas quais eu nunca voltaria a me banhar.

— Muito provavelmente você também não vai gostar do próximo passo: precisaríamos
encontrar alguém de confiança para explicar o que estava acontecendo... — mais uma vez, em
meio à menção de interrompê-la, Nat prosseguiu, apressadamente: — Eu sei que você quer
bancar o bandido solitário, mas não temos outra opção. Lucas, se me deixar contar para alguém,
para Tandara! Talvez tenhamos alguém perfeito para o plano.

— Nat...

— Eu não vou deixá-lo trair os meninos de verdade, Lucas, não vou! Isso só o
destruiria mais ainda. Por favor, me deixe ajudar pelo menos nisso!

Exasperado, passava as mãos fortemente por meu rosto, sem saber como lidar com
aquele momento. Não podia correr o risco de colocar mais pessoas para dentro daquela
desventura, tudo precisava acontecer em segredo! Ao mesmo tempo, eu compreendia que Nat
estava certa, mesmo que fôssemos terminar, mesmo que nossos caminhos se partissem para o
penhasco do Nunca Mais, simplesmente não poderia manchar meu amor com aquele ato vil,
mesmo que pelo próprio bem dos dois. Derrotado, apenas concordei, sendo acompanhado por
uma comemoração — não tão animada — de Natália, a qual passara algumas dezenas de
minutos desenvolvendo seu plano.

O tal sujeito com quem eu supostamente deveria trair meus dois namorados, era um
homem, primo de Tandara. Pelo que me contara, os dois eram tão próximos quanto eu era de
Natália. Ele trabalhava como barman no Órbita, que, pelo que entendi, parecia ser uma boate
bem conhecida daqui de Fortaleza. Nat me garantiu que, se falássemos com sua namorada, ela
convenceria o primo a fazer parte de toda a trama absurda que era forçadamente arquitetada.

— Mas, só há uma coisa faltando nesse plano que ainda não consegui pensar — disse,
após terminar sua explicação. — Como Douglas e Amanda vão saber de tudo isso? Como essa
conversa chegaria até eles?
— Ah... Essa é a parte mais fácil, talvez — respondi, sentindo um gosto amargo na
língua. — Eu conheço a pessoa perfeita para o papel de Iago.

1º de outubro de 2016 — um mês e meio para a Formatura

— Bom, chagamos — informou Natália, sem ânimo algum. — Você ainda pode
desistir, Lucas.

Ignorando-a completamente, eu me virei para tragar o local em que estávamos. Era


uma praça abarrotada de pessoas, homens e mulheres, de idades variadas, que bebiam e
comemoravam animadamente, suas vozes disputavam com os bares que tocavam música ao
vivo; o cheiro de cigarro e maconha parecia empestar o ar numa fragrância de boemia, além de
leve decadência, não tão agradável assim para mim. Bem diferente da Praça dos Leões, o
Dragão do Mar, embora fosse um local animado, cheio de carrinhos de bebidas e música,
parecia conter informações demais, gente demais, deixando o clima mais pesado, carregado —
ou talvez fossem apenas meus olhos que o encarassem daquela maneira.

— Ele já chegou — falou Tandara, ao nosso lado, tirando o telefone do ouvido. — O


Gustavo já está lá dentro.

Natália acertara sobre o auxílio de sua namorada. Quando soube do que acontecia,
apesar de ficar abalada e de nunca ter sido tão próxima de nós antes de começar a namorar,
topara falar com seu primo sobre o nosso plano. O bom-samaritano, no entanto, aceitou fazer
parte de tudo aquilo apenas após ver uma foto minha — Ele gostou de você! — dissera ela,
num elogio que recebi inteiramente enojado.

Sem mais pestanejar, seguimos para um prédio de arquitetura antiga de cor esverdeada
do outro lado da praça. Na calçada, uma fila enorme se fazia diante da porta, cheia de jovens e
adultos que gritavam de forma irritantemente animada. Em todo o momento, Natália ficava ao
meu lado, apertando minha mão fraternalmente, sempre de olhos preocupados. Eu sabia que
isso era uma tentativa de mostrar apoio, mas eu não aguentava a pena que recaía sobre mim —
só parecia mais um peso a carregar em meus ombros já tão exaustos.

O lado de dentro da boate se apresentava como um ambiente tomado por luzes


fluorescentes, abarrotado de pessoas que curtiam a música alta que imperava — algum funk ou
pop o qual eu não conhecia. Todavia, encontraríamos o personagem que nos interessava para a
trama num lugar mais distante da pista de dança, após subir um lance de escadas de metal.
Apontando para o bar, Tandara mostrou seu primo, Gustavo, um homem alto de cabelos curtos
e uma grande barba fechada, servindo um grupo de meninas que babavam ao vê-lo preparar
algum tipo de drink com fogo em meio a galanteios, os quais recebiam com gritinhos animados.

No momento em que chegamos, Gustavo largou sua plateia e saiu do bar, vindo em
nossa direção.
— Olá, gatinha! — disse, dando um abraço apertado em Tandara, depois em Natália
e, então, parou de frente para mim, analisando-me maliciosamente. — Você deve ser o Lucas.
É ainda mais bonito pessoalmente!

— Obrigado! — respondi, sem vontade. — Você... Parece fazer ótimos drinks.

— Quer um? Vem, vai ser por conta da casa.

Nos aproximamos do bar enquanto ele repetia os movimentos e misturas para fazer o
drink em combustão que havíamos visto há pouco. Sim, da mesma forma que antes, seus
movimentos se revezavam com alguns flertes — piscadas de olho, sorrisos maliciosos —, os
quais imagino que deveriam ser usados para qualquer um que desejasse comprar alguma bebida.
Sem me dar tempo para pensar, peguei o pequeno shot em minhas mãos e coloquei para dentro,
sentindo o ardor queimar minha garganta e peito — embora, não tenha sido capaz de abater o
frio que pesava em mim.

— Olha só, esse tem coragem! — bradou Gustavo, apoiando-se no cotovelo junto ao
bar, abrindo um sorriso malicioso nos lábios. — Gostei.

— Podemos ir logo ao que interessa?!

— Apressado, você! Cadê as preliminares?!

Sem conseguir me conter, deixei meus olhos virarem e dei as costas, saindo de perto
do balcão. No entanto, Gustavo fechou sua mão em meu pulso, impedindo que eu me afastasse
mais.

— Calma, cara, eu estava só brincando!

— Gustavo, para de gracinha! — ralhou Tandara, batendo com a mão no balcão,


olhando para o primo de cara fechada. — Por favor, você disse que ia nos ajudar.

Gustavo se empoleirou novamente nos cotovelos, exalando uma aura felina.


Normalmente, num dia comum, talvez eu o tivesse achado bonito: os curtos cabelos castanhos,
sobrancelhas falhadas e uma barba fechada e bem aparada, parecia, ser de fato, alguém que
facilmente conseguia o que desejava apenas com galanteios. Naquele momento, no entanto, o
que quer que fosse seu rosto, era apenas um esboço disforme e malfazejo.

— Eu vou ajudar! — repetiu, novamente, abrindo o mesmo sorriso malicioso. — Mas


quero saber, o que vou ganhar com isso?

— Eu posso pagar se for isso que quiser, dinheiro não é problema para mim.

— Ah, não, não, eu não sou garoto de programa! — respondeu Gustavo, balançando
as mãos. — Tandara me contou que logo, logo, você ficará solteiro, não é? Então que tal isso:
eu quero um beijo de verdade. Nada de selinho falso, um beijo! Se você gostar, quem sabe,
depois conversamos sobre um possível futuro...

— Gustavo!
Natália se aproximou de mim, seus dedos puxavam minha camisa para que eu me
afastasse dali.

— Vamos embora, foi uma péssima ideia — sentenciou.

Porém, meu corpo não obedeceu. Fiquei estático ao fitar a figura parada no balcão, a
qual continuava a me encarar, esperando ansiosamente minha resposta. Era impossível que eu
desse as costas naquele momento, já haviam se passado dias demais, precisava agir. Por mais
que odiasse, Gustavo representava a única chance de fazer tudo aquilo dar certo. Condenado,
não passava de um refém de seus caprichos — e ele sabia disso. Se eu quisesse continuar com
aquela farsa, deveria dançar a melodia que tocava, nada mais.

— Tudo bem — disse, por fim, soltando-me de Natália, voltando a me aproximar do


balcão —, mas você precisará fazer mais uma coisa por mim.

Ao meu lado, o suspiro de Natália se fez ouvir quase tão alto quanto a música que
retumbava forte. Animado com minha resposta, Gustavo saiu do bar e se aproximou de mim,
sem deixar se esvair o tom felino e malicioso que exalava. De perto, eu via que ele era um
pouco mais alto do que Douglas e mais musculoso também.

— Primeiro o beijo, depois os negócios! — foi só o que falou, antes de me puxar contra
seu corpo e me beijar.

Uma onda nauseante se abateu sobre mim no exato momento em que seus lábios
encontraram com os meus. Sentindo a rigidez de seus músculos colados ao meu corpo, seus
braços passaram sobre mim, prendendo-me junto de si; num misto de sensações pitorescas, eu
sentia sua a barba arranhar o rosto, enquanto sua pele suada, cheirando a cigarro e bebidas,
colava-se pegajosamente em minha camisa; seus dedos agarravam meu rosto com força,
tentando possuir o que, por certo, nunca seria seu, num passo errado de dança desarmoniosa,
hedionda. Eu podia tê-lo afastado no primeiro momento que pude, mas, não o fiz. Estava preso
demais naquelas águas sujas e, ao me afogar, uma voz repetia incessante em minha cabeça:
acostume-se, Lucas, esses serão seus beijos daqui para frente, porque jamais beijará os dois
novamente...

— Pronto, já temos as fotos que queremos! — exclamou Natália, puxando-me para


fora daquele poço.

Com as costas da mão, rapidamente limpei meus lábios úmidos, sentindo nojo de mim.
Sentia-me sujo, impuro, como se tivesse chafurdado de corpo inteiro na lama. Mas, eu teria que
me acostumar, não era? Aquela voz estava certa sobre meu destino, afinal. Era o fim de tudo.
Eu deveria me acostumar com essa sensação de imundície que impregnava meu corpo o quanto
antes, pois beijos como aqueles, seriam o que o futuro me guardava a partir dali.

Gustavo, no entanto, não poderia estar mais satisfeito. Tentando controlar a náusea
para voltar à lucidez, restavam agora os detalhes do arranjo para um último ato.

— Sua vez de cumprir o restante do trato.


Na pista de dança, luzes, vozes, corpos e música pareciam se misturar freneticamente.
Atentos, mirávamos todos os lugares, esperando um borrão tomar formas conhecidas.
Repousado sobre a escada, Gustavo nos fitava à espera de algum tipo de sinal.

— Você está bem? — cochichou Natália bem atrás de mim, e, mesmo de costas, eu
era capaz de sentir seu olhar preocupado.

— Importa como estou? — disse, arrependendo-me no momento em que senti meu


tom ríspido sair entredentes. — Perdão, eu não queria falar assim com você... Só quero acabar
logo com isso, Nat...

Natália assentiu, pronta para falar novamente, quando, enfim, vimos a pessoa que
procurávamos ao longe, em meio à multidão. Dançando com um grupo de amigos, a mulher de
pele negra feito avelã e cabelos curtos sorria animadamente, seu corpo se remexendo
ritmicamente ao som da música. Mesmo que anteriormente sua visão pudesse me aborrecer,
naquele momento, no entanto, foi a primeira vez que realmente senti algum tipo de alívio desde
que a noite começara.

— Ali está Patrícia — sussurrei como se alguém pudesse ouvir. Ao sinal de mãos,
Gustavo saiu de seu posto para se misturar entre os dançantes.

— Como você sabe que isso pode dar certo?

— É apenas um palpite.

Não, não era apenas um palpite, mas nunca assumiria de verdade de onde essa ideia
surgira. Já parecia estar demasiadamente no fundo do poço para ter que admitir mais alguma
coisa horrenda. Entretanto, a verdade é que, durante dias, após a catatonia por ter sido
descoberto passar, procurei pessoas para odiar, responsabilizando pela desventura que ocorrera.
Quem teria sido o responsável por Marília ter descoberto nosso namoro? A resposta parecia
clara para qualquer um que olhasse mais atentamente. Quem, desde o início de tudo, estivera
disposto a nos atrapalhar? Quem tramara contra nós três desde que soubera da nossa existência?
Aparentemente, só existia uma pessoa que desejava nos ver separados e que poderia ter enfim
aberto a boca. A resposta: Patrícia.

Sem que Natália soubesse, porque nunca concordaria comigo, comecei a persegui-la
por aí, vasculhei suas redes sociais Facebook, Instagram esperando descobrir alguma coisa que
pudesse utilizar contra ela, algo que pudesse ser explosivo o suficiente para acabar seu
mundinho medíocre. Em suas redes sociais, passei a ler seus comentários, analisar as festas que
frequentava, até o momento em que cheguei ao meu auge: semana passada, segui-a até uma
festa em alguma boate sem graça da cidade. Transtornado, eu a observava feliz, animada, sem
o menor tom de culpa pelo que nos acontecera. Era um ódio indescritível, inefável, capaz de
incendiar qualquer coisa e qualquer um que ousasse entrar em meu caminho. Seus sorrisos...
naquela maldita festa, perto do bar, eu a encarava de longe, espreitando-a feito um predador. O
tempo de espera, por fim, pareceu-me render frutos! Depois de algum tempo — e alguma
garrafas — o artifício que tanto buscava, finalmente, surgiu. Descuidadamente, Patrícia
começou a flertar com um homem de aparência extremamente tediosa e desimportante. Eram
passos que eu conhecia bem: troca de olhares, conversas de sorrisos, aproximações, toques de
mão e então... Um beijo!

Sim! Com o espírito vibrante, no momento em que aconteceu, meu primeiro ímpeto
de ira fora ir lá, confrontá-la. Se meu relacionamento iria por água abaixo, com um sorriso
cravado em seus lábios, eu a arrastaria junto comigo até as profundezas. Satisfeito com minha
visão, antes que eu fosse encontrá-la, no entanto, os dois saíram da festa — comigo em seus
calcanhares — e foram para um motel — felizmente eu não poderia segui-los até lá. Mas o que
eu precisava saber já estava claro.

Dessa maneira, na mesma noite, quando Natália me sugerira a tal farsa, encontrei a
maneira de fazer as duas coisas de que precisava: terminar com meus namorados e acabar com
felicidade suja de Patrícia.

Natália, Tandara e eu avançamos um pouco mais, cuidadosamente, no momento em


que Gustavo se aproximou do grupo de garotas e, com aquele seu jeito galanteador barato,
começou a flertar com Patrícia. Eu o achava asqueroso, claro, mas não podia negar que, para
muitos olhos, sua beleza fosse um item a ser valorizado e esperava profundamente que ela
concordasse. Durante todo o tempo em que observava os dois, meu coração não parava de
pulsar em meu peito. Em minhas mãos, eu apertava o celular com tanta força que podia sentir
as articulações doerem.

— Vamos lá, vamos lá — sussurrava, mais para mim do que para qualquer outra
pessoa. Eu não podia estar errado, não daquela vez...

Então, da mesma maneira que fizera comigo, Gustavo se aproximou de Patrícia e a


enlaçou com seus braços trazendo-a para perto de si, milímetro por milímetro, até que, enfim,
os dois começaram a se beijar de forma ávida, fáustica. Tentando conter a repulsa que senti,
trazida pela lembrança de momentos atrás, peguei meu celular e corri para mais perto, o
suficiente para que eu pudesse enquadrá-los. Precisava ser certeiro, se ela percebesse ou nos
visse ali, nossa única chance se esvairia.

Um flash, e a atenção de todos se voltou para a gente, embora Patrícia, ainda imersa
naquele... beijo, não tenha se dado conta, até que os gritos de suas amigas se fizeram soar.
Apavorada e levemente desnorteada, ela olhou em volta à procura do que poderia estar
acontecendo, até que nossos olhos se encontraram. As feições de seu rosto foram da surpresa
ao desespero e à ira em pouquíssimos segundos. Em defesa da amiga, as mulheres em volta
vieram para cima de nós três, gritando, pedindo explicações e exigindo que as fotos fossem
apagadas. As demais pessoas que estavam ao nosso lado começaram a olhar confusas e curiosas
para o que acontecia.

— Mande-as calarem a boca, Patrícia! — gritei, minha voz quase imperando sobre a
música. — Mande-as parar agora! Ou eu mando essas fotos para aquele mané que você chama
de namorado!
Houve um novo alarde, até que Patrícia se meteu entre as demais garotas e gritou que
parassem. Com a respiração descompassada, encarava-me novamente com um misto de temor
e fúria. Ah sim, temor... não podia negar que sua visão amedrontada me causava um júbilo
imensurável. Um pouco sádico, admito, mas nada que ela não merecesse.

— Que porra é essa que você tá fazendo, seu maluco?! — disse Patrícia, vindo em
minha direção, tentando tomar meu celular.

— Um truque que aprendi com minha mãe. Olhe só que irônico, acho que Catarina
ficaria orgulhosa.

— Você tá perdendo a noção das coisas, seu imbecil! Passe já para cá esse celular!

— Calada! — vociferei entredentes, de maneira brusca o suficiente para fazê-la parar


no mesmo instante. Sentindo-a sob meus domínios, prossegui, ainda desdenhoso: — Sabe que
isso é culpa sua, então, não se faça de vítima, isso me enoja! Você quer essas fotos? Pois bem,
venha comigo, precisamos conversar.

Suas amigas protestaram, embora Patrícia não tenha parecido se importar com
nenhuma delas. Ao meu lado, apenas Natália e Tandara estavam paradas, encarando-a com a
mesma seriedade. Ao que parecia, Gustavo, da mesma maneira sorrateira que surgira,
esgueirara-se entre os dançantes e sumira. Ainda transtornada, eu podia sentir as ponderações
de Patrícia a mil. Pensamentos inúteis, devo dizer, porque ambos sabíamos que não existia outra
maneira: ela teria de me seguir.

— Tudo bem, seu babaca! — falou por fim, com o cenho franzido. — Vamos logo
com isso!

Em meio a balbúrdia, Patrícia pediu para que suas companheiras ficassem onde
estavam — fiz o mesmo com Natália e Tandara — e me seguiu até um lugar um pouco mais
silencioso da boate. Sem pronunciar uma única palavra, apenas continuava a me encarar com o
rosto contorcido de fúria, respirando de forma descompassada, nervosa.

— Você perdeu a completa noção das coisas, seu riquinho mimado! — exclamou, no
momento em que ficamos sozinhos. — Acha que eu vou deixar isso barato?

— Acho! — respondi, deixando um sorriso sádico pintar meu rosto. — Do contrário,


você não teria me seguido, teria? — Patrícia cruzou os braços, impotente, fazendo-me sentir
novamente aquela satisfação brotar em meu peito. — Foi o que pensei, você não é tão durona
assim, mas não se preocupe, essa nossa conversa a beneficiará a nós dois... isto é, se você fizer
tudo direitinho, claro...

Ansiosa, mordiscava os lábios e não dava o menor sinal de que desviaria os olhos de
mim.

— O que você quer?


— Quero que você complete o que começou: quero que me ajude a terminar com
Douglas e Amanda.

Seus olhos se arregalaram, com a surpresa de minhas palavras. Endireitando seu corpo,
Patrícia colocou as mechas de seu cabelo para detrás da orelha, como se, ao não compreender
o que eu estava falando, buscasse uma maneira de não ser enganada pelos próprios sentidos.

— Você quer eu faça o quê?

— Isso mesmo que você me ouviu. Ande, me diga seu número, preciso te mandar uma
coisa!

Retirando o celular de sua bolsa, ela me falou seu número, ainda parecendo não
compreender o que se passava ali. Quando, por fim, enviei as fotos de mais cedo com Gustavo,
seu queixo caiu, novamente surpresa.

— O que é isso?

— Isso é o que eu quero que você envie para Douglas e Amanda no momento que eu
avisar. Se fizer isso, eu não mandarei essas fotos que tirei suas com Gustavo.

— Mas... — começou, meio incrédula, meio incerta: — por que você está fazendo
isso?

— Ah! poupe-me, garota! Eu já disse: estou terminando o que você começou. Fique
feliz, será através das suas mãos que nós encontraremos nosso fim. Não era isso que queria
desde o início? Faça isso ou eu mandarei um relato de suas aventuras para o Guilherme. Não
irei pedir novamente.

— Você não teria coragem! — disse, ainda, tentando soar desafiadora. — Sei que gosta
de parecer decadente, ultrarromântico, intenso, mas por dentro é um molenga... nunca teria
coragem para tanto: você é um anjo, Lucas...

— Lúcifer também era.

Sem mais nada falar, dei as costas e deixei sua figura ainda estarrecida encarando o
celular em sua mão, o punhal que eu recebera de Marília.

No momento em que Patrícia sumiu do meu campo de visão, novamente aquela


sensação de ter a alma dilacerada arrasou-me de maneira voraz. Com a garganta fechando, saí
rapidamente do Órbita, sem sequer chamar por Natália e Tandara. Estava arrasado,
desamparado — não existiam outras palavras que pudessem me definir. Toda a calma que
tentara reunir, agora, fugira-me por completo, restavam apenas agonia e culpa: era isso, então,
estava feito.

Sem saber direito para onde estava indo, meus pés simplesmente guiavam-se sozinhos
na praça de antes, ainda abarrotada de pessoas — o mesmo cheiro de cigarro, maconha e
decadência. Era isso... era o fim. O fim do nosso relacionamento. O fim do nosso sentimento.
O fim do nosso amor. O fim de nós três. Desesperado, sentei-me no banco, encolhido, com a
cabeça entre minhas mãos, tentando recuperar as forças para seguir, quando uma voz soou.

— Lucas?! — a voz era delicada, conhecida e, naquele momento, estava embargada


de preocupação. — Meu Deus, Lucas, é você?!

A imagem de Natasha foi o gatilho para que eu desabasse em pranto de uma vez. Sem
que eu conseguisse me conter, as lágrimas apenas verteram de mim, como sangue de um
moribundo, incessantes, insistentes. Apavorada, Natasha se ajoelhou de meu lado e me abraçou,
sussurrando não para que eu parasse de chorar, mas sim para que continuasse, colocasse tudo
que precisava para fora.

Como minhas lágrimas, o sangue que jorra da alma, toda a história também me escapou
entre soluços: a visita de Marília, o beijo imundo de Gustavo, a chantagem de Patrícia. Saíam,
vertiam-se! Feito um garoto órfão continuei assim, chorando, soluçando, pateticamente a ferida
aberta no peito, e, durante todo esse momento lastimável, Natasha esteve ao meu lado,
acalentando-me o pranto, acolhendo-o maternalmente.

Em algum momento de meu desvario, Natália e Tandara voltaram, alarmadas,


preocupadas. Ver meu corpo abraçado pelo de Natasha, chorando copiosamente, só fez piorar
a sensação das duas. Até aquele momento, até aquele encontro, eu não havia me dado ao luxo
de chorar, de sofrer, mas não aguentava mais segurar tudo aquilo...

Era o fim.

O fim...

...

Edgar Allan Poe uma vez disse que não existia nada mais melancólico do que a
morte de quem se ama. Do alto de toda a sua genialidade, ele nunca pôde estar mais errado.
Sim, perder o amor para a morte, A Madrasta Sombria com quem todos se encontraram um
dia, é algo doloroso, digno de pena e pranto... mas viver... viver e perder a quem se ama para
si mesmo, eis o pior de todos os cenários.

Não foi por falta de amor que tomei a desastrosa decisão de perdê-los — o que
tornava tudo ainda mais desgraçado.

Era como arrancar o coração ainda pulsante, ainda vivo, a sangue frio, sentindo a
faca serrar os próprios ossos e, uma por uma, ir arrancando as veias que o mantêm vivo,
sentindo o queimar das vísceras a cada corte, depois tomá-lo à mão, com os próprios
traiçoeiros punhos, apunhalar repetidamente, vertendo sangue e dor inefável a cada novo
golpe. Um... e mais um... e mais um... e mais um... Se me cortassem a carne com um metal
em chamas, ainda assim, por certo, a agonia pareceria mais aprazível do que aquilo. Meus
sentimentos eram dilacerados, ainda vivo, arrancados dolorosamente de meu corpo, minhas
fantasias estraçalhadas com o corte do punhal. A cada novo golpe, era uma parte de mim e de
minha vida que era retalhada, meus planos, minhas esperanças... tudo era arrancado de mim,
por minhas próprias mãos, somente para levantar os olhos e sorver a miséria que eu causara a
mim, a Douglas e a Amanda.

O dia, o fatídico episódio de nossa destruição, ficou me martirizando por todas as


horas desde então. As pinturas que tanto amava, às quais devoto fui por tanto tempo,
encaravam-me com desprezo e nojo. Eu não merecia menos, deveras, por isso, quem sabe,
tentei forçá-los a chegar ao máximo daquela cólera para que arremessassem tudo em cima de
mim. Explodissem! Maltratassem-me! O soco recebido por Douglas, por mais que me tenha
rasgado os lábios, causou uma ferida ainda pior em meu espírito. Nunca os vira daquela
maneira, com aquela cor de desdém pintada em seus olhos...

A morte, para muitos, simboliza o fim: o eterno e esmagador breu do esquecimento...


mas viver... viver sempre era o mais difícil. Viver com a culpa de ter sido o responsável por
tudo destruir, a única vez em que de fato eu fora feliz na vida, acolhido e aceito... O buraco
deixado em meu peito continuando a jorrar sangue e podridão do órgão que antes pulsava, a
cada dia, a cada respiração... Eu merecia receber o ódio dos dois. Eu era o único culpado por
aquele crime horrendo e deveria receber sozinho aquela pena. O castigo de viver, depois de
ter amado, e de ter estragado tudo, como um moleque ingrato que jogou por conta própria a
dádiva dada pelos céus, era cruel, esmagador, sufocante, o qual teria que aturar num silêncio
fúnebre, enquanto seguia meus dias sozinho.

Na angústia de não tê-los por perto, não me sobrava paz ou sobriedade. Admito, por
mais clichê que possa parecer, que tentava afogar minhas lembranças e tormentos, para calar o
maldito pássaro azul que agonizava dentro de mim. Vodca... uísque... vodca e uísque juntos...
mas nada... nada parecia ser capaz de aplacar essa melancolia, essa culpa que tingia minhas
mãos com sangue inocente, e, ao mesmo tempo, embora cada pedaço de Douglas e Amanda me
assombrasse, ainda tentava inutilmente me agarrar às coisas mais próximas que conseguia dos
dois.

Por essa razão, eu não largava o cantil de Douglas! Feito um amuleto, carregava-o para
todos os lugares, sedento, só para descobrir, com uma frustação dolorosa, que não era suficiente
para apaziguar esse suplício. Então, houve o incidente com José... eu o odiei tanto por arrancar
o único próximo que possuía deles, que perdi a cabeça! Xinguei-o feito o demônio! Como se
lesse minha alma, feito num dos poemas que nos ensinava, no entanto, nunca retrucou ou
evocou sua posição de professor, apenas me mirou com pesar e resiliência. Aturou todas as
palavras perversas que vociferei... Uma suspensão fora uma pena demasiado branda para mim
— e com a qual, para ser franco, não me importava. Contudo, novamente eu estava sozinho
sem nada a que me agarrar.

Sem o tal objeto, caí em completa abstinência. Talvez, justamente por essa gana, de
querer tragar qualquer coisa que pertencesse aos dois, foi que não me desesperei ao ser
chamado, novamente, para conversar com Marília — na verdade, apesar do quão confuso possa
soar, eu senti uma pequena satisfação por aquilo, uma ansiedade para encontrá-la.
Encontrei-a em seu consultório no centro da cidade, a poucas quadras do apartamento
de Amanda. O ressonar que o bairro produzia à noite era vividamente trocado pela balbúrdia
do dia: as ruas sempre abarrotadas, o barulho de pessoas, anunciantes de lojas, buzinas — mais
melopeias ordinárias que impregnavam momentos trágicos — acompanhou-me num cortejo até
o velho prédio no qual ela se encontrava. A sala de seu consultório não poderia ser mais caricata,
como as que se via de psicanalistas em filmes ou livros: era obsessivamente limpa, todos os
objetos meticulosamente alinhados, simétricos; nas paredes, estavam presas molduras de cores
mortas, um divã de couro amarronzado e uma escrivaninha, por detrás da qual Marília
permanecia sentada, impassível. Novamente, a semelhança entre a mãe e sua filha era tão
profunda, que degustei os detalhes com agrado: eis o mais próximo que poderia me aproximar
de Amanda naquele momento, afinal! Era alguma parte dela, algo em comum, amável, numa
cópia sádica, malfazeja.

Sem educação ou pudores, joguei-me no divã, fazendo questão de sujar o móvel com
meu tênis enlameado. Satisfeito, o franzir do rosto incomodado de Marília parecia um prêmio,
enquanto, imponente, no entanto, permanecia parada, mirando-me de maneira severa nos olhos
acastanhados.

— Ouvi em algum lugar que eu deveria ficar de costas para o analista, não se sinta
mal, mas não confio em você o suficiente para isso — declarei, ajeitando-me novamente no
divã, de maneira espaçosa, espalhando sujeira sobre o couro. — Ah! e que fique claro: não vou
pagar por esta sessão!

— Ajeite-se, você não está em casa.

— Certamente, não, ou eu já estaria pelado. Vamos lá! O que você quer, Dra. Marília?
Eu cumpri com o trato!

— Cumpriu?! — exclamou, com sua voz subindo algumas oitavas. — Amanda


continua com aquele... Aquele outro ser que está enfurnado cada vez mais em minha casa! Os
dois continuam namorando!

— E vão continuar! — falei, sorrindo de satisfação, ao ouvir que Amanda e Douglas


estavam juntos, próximos, assumindo o relacionamento para todos. — Nosso acordo foi que eu
deveria terminar com os dois, o que eu cumpri. Poupe suas forças, eles não vão terminar, porque
nós... — de repente, dando-me conta do que iria falar, interrompi o fluxo de palavras que se
amontoaram na garganta apertada. — Eles... eles se amam.

Marília bufou, com o nariz em pé. Em seus olhos, podia perceber o incômodo que
sentia por eu estar lá, a agressividade contida, o desejo de me estrangular e me colocar para fora
do seu templo imaculado. Mas não o faria, era certo — controlava-se em demasia, inclusive!
Ao vê-la assim, daquela maneira grave e contida, começava a entender um pouco mais o que
se passava naquele momento: ela havia me chamado, e por mais que me comportasse de forma
horrenda, mantinha-me ali, sem me expulsar. Não podia ser apenas cordialidade, parecia existir
algo a mais... Marília queria algo, precisava de mim.

— Você parece que esqueceu o que está em jogo, seu perversozinho mimado!
— Nunca vou esquecer as razões pelas quais cometi meus crimes... mas... e você, Dra.
Marília, sabe também o que está em jogo para você?!

Pela primeira vez, ela deixou algum sentimento transparecer abertamente em seu
semblante, além do desdém e gravidade: surpresa! Aproveitando a deixa e o efeito que minha
pergunta causara, prossegui, em tom sério, meus olhos fixos nos dela:

— Você conhece sua filha, Dra. Marília! Pode até mandá-la embora, mas se eu abrir a
boca, acha que ela um dia vai voltar a olhar na sua cara?! — apesar do tom sério em minha voz,
eu continuava deitado espaçosamente, despreocupadamente, ainda sujando o máximo que podia
do divã. — Eu nunca conheci espírito mais indômito que o dela, você já?! — ao silêncio de
Marília, continuei: — Foi o que imaginei.

Levantei-me como quem segura o mundo inteiro nas mãos, orgulhoso, satisfeito e fui
em direção a porta, deixando a imagem de Marília em silêncio atrás da mesa. Nossos papéis
finalmente haviam se trocado, desde sua visita ao meu apartamento. Não estava mais tão
indefeso ou impotente: estávamos, de alguma maneira, com cartas iguais naquele jogo sádico.
Ainda aproveitando o efeito de minhas palavras anteriores, completei:

— Se eu souber que você mexeu com Douglas ou Amanda, eu juro por tudo que me é
mais sagrado: eu dou com a línguas nos dentes e conto tudo para todo mundo, mostrarei a todos
a maravilhosa mãe que você é! Ouviu bem, Marília? Eu não tenho mais nada a perder, já você...
— deixei que minha ameaça empestasse o ar, até alcançar suas narinas. — Bom, imagino que
esse deva ser o fim da sessão?

Entretanto, eu estava sendo ingênuo demais por achar que ela me deixaria sair vitorioso
daquele encontro, e no exato momento em que minhas mãos tocaram a maçaneta, Marília tornou
a falar:

— É incrível. Você não passa de um perverso que se acha mais do que pode... — seu
tom era ácido e venenoso na fala rígida. — Você mora num apartamento, não é mesmo, Lucas?
Nunca achou estranho como apareci lá, sem permissão? Como sabia que estava sozinho? —
suas palavras me congelaram na ação, enquanto mantinha minha mão estendida, virei para
encarar seus olhos, que brilhavam de um sadismo sem fim. — Eu estou atacando outra pessoa
para preservar minha filha, mas o que você diria da mãe que entrega o próprio filho? Essa sim
deve ser uma mãe maravilhosa, não é mesmo?! — Marília, riu, triunfante, exalando desdém
como um pútrido perfume. — Foi a sua mãe quem me contou sobre vocês, Lucas: ela que o
entregou! Agora vá, pode ir. Definitivamente, este é o fim de nossa sessão.

...

— Catarina! — gritei, com a respiração descompassada, batendo com força a porta


do apartamento. — Catarina!
Meu corpo tremia num frenesi agoniante. As palavras de Marília me acertaram de
uma forma tão indescritível, que, desesperado — e absolutamente desamparado —, apenas corri
em direção à minha casa, por quilômetros sem parar, apenas meus pés me guiavam pelas ruas,
pondo-me entre os carros, enquanto meu espírito estava em outro lugar completamente distinto.
Com todos os incidentes anteriores, eu podia jurar que Catarina chegara ao seu máximo, mas
não... Filmar e me expor parecia não ter sido o suficiente. Minha mãe, que prometera me amar
incondicionalmente, me proteger, fora a responsável por me entregar à boca dos lobos de bom
grado — uma perfeita Medeia! Ao chegar em casa, o suor encharcava minha camisa, com
pingos caindo de meus cabelos grudados as têmporas; se minhas pernas pareciam queimar
devido ao trajeto, meu rosto estava em chamas ainda mais intensas.
— Catarina! — bradei novamente, enfurecido, vasculhando a casa.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou, preocupada, vindo de seu quarto.
— Por que está gritando? Aconteceu alguma coisa com você, Lucas?
— Se aconteceu alguma coisa comigo? Você aconteceu! — gritei em resposta. —
Mas por que você se dá o trabalho de fingir se importar?! Imagino que nunca tenha se importado
com ninguém além de você mesma!
Abalada, ela me olhou da cabeça aos pés, encarando a figura suada e descomposta
à sua frente, com o rosto rubro de fúria. Eu compreendia o quão insano poderia parecer naquele
momento, todo sujo e instável, mas pouco ligava. Pouco ligava para qualquer coisa. Minha mãe
havia me traído! Minha própria mãe! Seu espanto, contudo, durou pouco, e, como sempre,
vestiu-se novamente de seu ar austero, militar.
— Você é meu filho, eu exijo que tenha respeito ao falar comigo!
— É exatamente isso, Catarina! Eu sou seu filho, eu sou o seu filho, droga! Como
pode ter feito isso comigo?! Como pode ter procurado aquela mulher?!
Finalmente parecendo entender do que se tratava, Catarina, a Medeia, deu um longo
suspiro e ajeitou seus cabelos negros atrás das orelhas. Sem falar nada, apenas continuou a
encarar minha figura disforme, de respiração acelerada, ensandecida, desesperada. Não mais
demonstrava nenhum tipo de sentimento: preocupação, muito menos culpa. Eu já a havia visto
se comportar assim, era exatamente como ficava antes de alguma audiência ou julgamento: uma
máquina de sangue frio, pronta para ganhar qualquer discussão.
— Fiz o que deveria ser feito — falou, apenas, categoricamente. — Fiz o que é
melhor para você.
Descontrolado, eu caminhava de um lado para o outro da sala, repetidamente, de
maneira estereotipada. Minhas mãos esfregavam com força o rosto quente e suado, meus dedos
bagunçando os fios úmidos e sujos de meus cabelos.
— Você não decide o que é melhor para mim!
— Claro que decido, eu sou sua mãe! — retrucou, ainda em mesmo tom. — Agora,
pare de besteira e vá se lavar. Você está todo sujo.
— Pare de me dizer o que eu devo fazer! — gritei em resposta, tão alto e forte que
senti minha garganta queimar. — Você não vive minha vida, Catarina! Não pode fazer isso!
— De que serve essa rebeldia sem causa, garoto?! Está se comportando feito uma
criança mimada, Lucas!
— NÃO! NÃO ME VENHA CHAMAR DE CRIANÇA! — parei de andar e olhei
para ela. Depois de tudo o que acontecera, tudo o que passara, não seria xingado de criança
mimada! — CATARINA, VOCÊ TEM IDEIA DO QUE ME FEZ PASSAR? O QUE
AQUELA MULHER ME PEDIU PARA FAZER?! COMO PÔDE SER A CAUSADORA DE
TUDO ISSO E AINDA ME CHAMAR DE CRIANÇA?!
— Lucas, pare...
— NÃO ME PEÇA PARA PARAR DE GRITAR! NÃO ME PEÇA PARA TER
CALMA, CATARINA! — continuava, ensandecido, a bradar, parecendo rasgar minha
garganta a cada nova palavra dita — Você... você deveria me proteger...
— Mas foi o que eu fiz! — disse, aproximando-se de mim.
— Não! Catarina, não!
Catarina parou no meio da ação, estática com as traiçoeiras mãos levantadas — as
mesmas mãos que um dia juraram me acolher.
— Aquela mulher me obrigou a terminar com Douglas e Amanda... Disse que se eu
não fizesse, mandaria a filha embora, para um lugar onde ela não queria ir! Porra! O que há de
errado com vocês? Por que não podem simplesmente nos aceitar? Aceitar o que nós temos!
— Você está sendo dramático, mais uma vez, Lucas! — retorquiu revirando os
olhos — Dramático e ingênuo. O que nós fizemos foi para o bem de todos os três. O que estavam
pensando quando se meteram nessa... nessa coisa?! Achou mesmo que vocês poderiam ter algo
decente? Ter um futuro: casar, ter filhos, talvez um Golden Retriever? Ora! Isso tudo estava
fadado ao fracasso, a sociedade nunca aceitaria pessoas como vocês. Minha ação não passou de
uma profilaxia! Você acha que conhece o amor por ter lido nos livros, mas na realidade, tudo é
muito diferente, meu filho! Quando for mais velho, irá entender e me agradecer.
A cada palavra dita por Catarina, a Medeia, minhas vísceras pareciam se revirar,
queimar. A maneira como ela falava... a imparcialidade... a fleuma... a maldita fleuma! Ela não
estava falando com um filho, com o seu filho, mas sim com um indigente qualquer, um
tresloucado moribundo! Novamente, ela quis se aproximar de mim — com mais cuidado dessa
vez —, incerta, parecendo alguém que temia a fera à sua frente... Era por demais irônico que
ela pensasse assim, pois, durante todo esse tempo, a única besta desta história se encontrava à
minha frente.
— Quando eu for mais velho eu vou entender do amor? Como pode me dizer isso,
sendo que nem mesmo você parece compreendê-lo? — disse, já rouco, sentindo a garganta
apertada queimar com cada palavra. — Douglas e Amanda me fizeram sentir, pela primeira
vez, como se eu tivesse um lar. Os dois me aceitavam. Nós três nos aceitávamos! Sem os dois
eu só sou um náufrago, nada mais! Eu não acho que entendo o amor por ter lido sobre ele, eu o
compreendo por ter bebido dele, sentido em cada canto do meu corpo... Eu sei o que é amor até
mesmo em sua ausência, pois ainda sinto o buraco que me fez, essa cratera voraz que se abriu
em meu peito e não me transformou em nada mais que uma carcaça ambulante. Pode ser que,
no claro, o amor... o nosso amor... seja sempre triste, mas era algo por que estávamos dispostos
a lutar, juntos! Mesmo que todos os anjos tortos desses que vivem nas sombras nos decretassem
o pecado! Estávamos juntos! Se isso não é amor, essa vontade de lutar e viver... Bom, acredito
que nunca vá descobrir, não é? Você acabou com tudo, Catarina, com todas as possibilidades,
até mesmo as de errar... Você foi o veneno que destruiu até o amor que tinha pelo próprio filho,
só para provar que não estava errada... Então, como pode vir falar que compreende o amor mais
do que eu... Acima de mim?
— Mas eu sou sua mãe... — balbuciou, titubeante — Eu... — e parou, incompleta.
O choque foi a única cor que tingiu sua face naquele momento. Estarrecida com
minhas palavras, Catarina não parecia ser capaz de retorquir nenhuma sílaba. Calada, o peso
das consequências de seus atos parecia estar, enfim, recaindo-lhe sobre os ombros. Talvez
compreendesse o que me causara, afinal, talvez percebesse que custara a si própria, somente
para impor aquilo que achava certo... talvez estivesse, derrotada, dando-se conta que era tarde
demais para ela e para o filho, porque era: tarde demais para todos os personagens daquela
ópera.
No silêncio fúnebre que se abatera sobre nós e impregnara a sala, com o buraco em
nosso peito, vislumbrando todo os destroços causados por uma guerra inútil, sem vencedores,
éramos apenas dois estranhos — antes mãe e filho. Não aguentava mais nenhum segundo na
presença de Catarina, e, sentindo uma repugnância por sua imagem, levantei-me, fraco, com as
pernas trêmulas. Dando uma última olhada no apartamento, aquele maldito lugar que nos
trouxera tanta miséria, uma última frase saltou de meus lábios:
— Eu vou embora de Fortaleza.
Capítulo XIV — O Último Ato

Douglas

Natasha parou de falar, com um grande suspiro. Ao nosso lado, todos permaneciam
calados, sérios, atentos ao que ela estava confidenciando. Natália, vez ou outra, participava da
narrativa, fazendo adendos sobre o estado de Lucas: como ele se sentiu quando foi abordado
por Marília, o desespero em ter que mentir para nós e abrir mão da única coisa que achava certa
no mundo.
— Como vocês puderam ter acreditado tão facilmente assim que ele tinha mudado?
— completou.
A cada palavra dita, parecia que recebia um beliscão, uma ferroada, um soco! O
líquido gelado que parecia ter sido colocado em meu estômago agora se alastrava doloridamente
por meu corpo inteiro. Meu peito apertou, minha respiração faltou.
Porra! Porra! Porra!
Eu não conseguia falar nada. Nem mesmo era capaz de pensar com clareza em tudo
o que nos era dito... Era como se as palavras de Natasha e Natália fossem as peças definitivas
das lacunas que nunca conseguimos preencher, mas a imagem formada era dura demais para
que encarássemos com satisfação. As coisas estavam se completando na hora errada, da maneira
errada.
No fundo eu sabia, também, que Natália tinha razão em nos hostilizar da maneira
que fazia. Finalmente eu a compreendia por isso. Deveríamos ter percebido algo, feito algo!
Não foi isso que nos prometemos um para o outro? Lutar por nós três? Mas, não... simplesmente
preferimos acreditar que o que tínhamos não passava de mais um submarino prestes a afundar...
Nós... desistimos. Desistimos de Lucas... no momento em que julgávamos conhecê-lo tão bem,
quando tudo foi posto à prova... desistimos. Falhamos.
Porra!
— Aquele desgraçado! — gritei, sem saber se estava falando de mim mesmo ou de
Lucas. — Por que fez tudo isso?! Por que não nos procurou! Eu sei do que estava em jogo, mas
ele podia não querer bancar o herói sozinho!
Natália, agora completamente despida de sua raiva, nos olhava com algo que só
poderia simbolizar pena, balançou a cabeça, mordendo a boca.
— Lucas sempre amou vocês dois, de uma forma tão diferente, que eu nunca
entendi... — cochichou em resposta, alto o suficiente para que todos nós pudéssemos ouvir. —
Ele nunca poderia deixar que nenhum mal acontecesse com vocês, mesmo que... mesmo que...
Parou, na iminência de um choro, embora todos soubessem quais eram as palavras
que faltavam. Desamparado, meu rosto com as mãos, sem saber lidar com a sensação que se
apoderava do meu corpo: ansiedade, raiva... Raiva de mim, raiva de Lucas! Raiva dessa maldita
sociedade que nos empurrou até aquele momento! Raiva, raiva, raiva, raiva, raiva! Tudo de uma
vez só! Eu sentia o controle se afastar de mim, ir para longe, enquanto minhas mãos tremiam e
o ar faltava.
— Amanda?! — a voz de Natasha me sobressaltou. — Para onde está indo?
Levantei meu rosto para ver a imagem de Amanda parada diante de nós, segurando
com tanta força o copo em sua mão, que eu temia poder quebrar e machucá-la. A verdade, no
entanto, era que a última pessoa que parecia precisar de proteção ali era ela. Séria, como nunca
antes eu havia visto, sustentava um olhar grave, imponente em certa medida. Em nada parecia
delicada ou desamparada.
— Atrás de Lucas, não é óbvio?! — foi só o que disse, decidida. — Eu irei fazer
muitas coisas, Natasha, mas agora, a principal, é ir atrás de Lucas. Douglas, você vem?
— Claro, você está certa! — disse, levantando tão rápido da cadeira que tropecei
nas demais. — Vamos, eu aviso à minha mãe. Nós pegamos o carro, não me importo com essa
festa imbecil... Vamos buscar o Lucas!
Amanda, então, sorriu de uma maneira que há tempos não fazia. Os olhos brilharam,
sua boca se esticou prazerosamente — tenho certeza que Lucas demoraria horas para descrever
essa cena, dando inúmeros adjetivos poéticos, entretanto, isto é o mais longe que minhas
palavras conseguem ir: era belo e pronto. Mas existia algo ali, no seu olhar e na forma como
sorria, que eu conseguia compreender, e, por sentir o mesmo, conseguia traduzir: era esperança.
Como se arremessasse aquele peso de meus ombros, tomei a mão que Amanda
havia estendido para mim. Agora, em meio a todo o sofrimento, a sensação de que poderíamos
resolver, poderíamos fazer algo, também nos tomou, tão rapidamente quanto a sensação
anterior. Talvez a esperança seja uma torrente mais forte e avassaladora que o desespero.
Traríamos Lucas de volta, explicaríamos que sabíamos de tudo, iríamos lutar por aquilo que
possuíamos e, enfim, poderíamos ficar juntos, nós três, mesmo que o mundo inteiro fosse contra
nós!
Mas eu estava enganado, ridiculamente enganado. A esperança não passa de uma
correnteza tênue, que logo se dissipa.
Mal havia segurado sua mão, porém, quando Natália deu um novo suspiro, tapando
a boca com a mão. Se antes teria conseguido impedir o choro, agora, ele parecia escapar,
borrando sua maquiagem. Ainda tentou falar algo, mas, soluçando, se deixou calar.
— Natália? — perguntou, Amanda, alarmada. — Natália, o que houve? Existe algo
a mais, não é?! O que vocês não estão contando?
Novamente, a pergunta feita para a melhor amiga de Lucas, foi respondida por
Natasha. De ombros encolhidos, claramente cansados de dar péssimas notícias, ela se levantou
da mesa, e sem olhar para nós dois, respondeu:
— Meninos... Lucas foi embora — sua voz saiu falhada, exausta. — Seu voo partiu
uma hora atrás.
As palavras de Natasha nos acertaram como um mar bravo acerta uma criança
despreparada à beira-mar, num dia de sol, arrastando nós dois novamente para o fundo do mar,
de onde, desesperadamente, achamos que iríamos sair.
— Embora?! — balbuciei, desnorteado — Embora, para onde?
— Ele voltou para Santa Catarina, Douglas... ele... sinto muito, meninos... sinto
muito...
O mundo girou mais rápido do que eu parecia acompanhar. Com a respiração presa
ao peito, tudo tornou a ficar confuso, embaçado. Natasha, assim como Natália, já demonstrava
indícios de que estava chorando, mesmo que tentasse esconder virando o corpo para lado.
Aquele pranto... aquele pranto só podia significar uma coisa: luto. Estavam chorando por um
luto.
Tudo, então, aconteceu rápido demais.
Relacionamentos amorosos nunca dão certo. Relacionamentos amorosos nunca
dão certo. Relacionamentos amorosos nunca dão certo...
Relacionamentos amorosos nunca dão certo.
Ainda sem poder respirar falar ou mesmo suportar a cena que se abria perante a
mim dei as costas mecanicamente indo para bem longe de todos sabendo que nunca iria
conseguir ir para longe de mim mesmo relacionamentos amorosos nunca dão certo
relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo
Amanda veio atrás de mim me seguindo tão rapidamente que eu só podia estar correndo
relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo
relacionamentos amorosos nunca dão certo corri até as duas portas de vidro que davam para o
lado exterior do buffet relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos
nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo lá fora relacionamentos amorosos
nunca dão certo ainda chovia intensamente e de maneira quase ensurdecedora mas não liguei
relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo
relacionamentos amorosos nunca dão certo me meti no meio da chuva com os sapatos
escorregando na lama relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos
nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo meu peito doía meu corpo
queimava relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão
certo relacionamentos amorosos nunca dão certo as formas borradas eram as únicas coisas que
conseguia ver relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca
dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo desespero relacionamentos amorosos
nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca
dão certo ansiedade relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos
nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca
dão certo relacionamentos amorosos nunca dão certo relacionamentos amorosos nunca dão
certo
— Douglas, Douglas! — gritava Amanda atrás de mim, tentando me acompanhar
na chuva. — Para, por favor, para! Fala comigo! Douglas!
Amanda enfim me alcançou, e me abraçou, tão forte, que fez minha respiração —
que até aquele momento estava entalada em meu peito — conseguir sair, queimando meu
pulmão. Sem que eu demonstrasse qualquer resistência, ela me arrastou dali para debaixo de
uma árvore, grande o suficiente para que pudéssemos nos abrigar. Lá me sentei no chão,
desabei, desamparado. Assim como minha respiração, meu choro veio, sem que eu pudesse
impedir.
— Lucas se foi, Amanda! — falei, soluçando, como nunca antes havia feito. —
Lucas se foi!

Lucas

O dia se arrastou na vagarosidade de quem se afoga num mar abarrotado de


memórias. Claro, todos os dias desde a nossa separação foram horríveis, mas aquele, na
imensidão eterna dos segundos e minutos durante os quais me dedicava a arrumar minhas
coisas, era um suplício semelhante ao de Sísifo. Procrastinando até o último momento, as
roupas, livros e objetos bagunçados pelo quarto eram arrumados apenas nas — infinitas —
horas antes do voo de volta para Santa Catarina.
Estranhava-me cultivar, em meus pensamentos, a ideia de que tornar a Santa
Catarina não era voltar para casa, pois, por mais que, em meus dezoito anos, eu tenha morado
apenas em Florianópolis, em Fortaleza era o lugar em que, de fato, vivera. O resultado disso
era um sentimento cativo em meu peito, o qual denunciava que não era para casa que estava
tornando, e sim apenas mais um lugar avulso, aleatório, perdido no mapa-múndi. Poderiam me
largar por qualquer outro destino, que, ainda assim, eu sabia que nunca conseguiria chamar de
lar.
Aliás, existiria algum lar para mim?
Todavia, na lamúria silenciosa e desinteressada, pouco a pouco, as coisas iam
começando a tomar seus lugares no guarda-roupa, nas prateleiras ou na mochila minúscula de
viagem, dando a quimera de uma ordem inexistente, enquanto, na verdade, tudo ainda estava
demasiadamente bagunçado. Não dentro do meu quarto, mas de mim.
— Você não acha que está sendo cabeça-dura demais, Lucas? Ir embora assim, sem
mais nem menos, e a sua formatura? — foi uma das primeiras coisas ditas por Alexandre, em
mais uma de nossas conversas de varanda, com garrafas de cerveja na mão. Embora tentasse
disfarçar sua preocupação, a forma como falava, seu tom de voz, seus olhos, tudo denunciava
sua angústia com minha decisão. — Eu sei que vocês três terminaram, Lucas, mas o futuro é
imenso! Se você for, qualquer possibilidade, por menor que seja, de voltar com Douglas e
Amanda, pode desaparecer. Não desista, meu filho...
— Não há futuro para nós três — era só o que eu respondia, sorumbático.
Eu não sabia o que me doía mais, se era o nome dos dois na boca de Alexandre, que
parecia me cortar feito uma faca, ou se eram sua preocupação e ignorância que me queimavam
feito ferro quente a pele. Falava-me, otimista, das maravilhas da superfície, alheio à
profundidade daquele abismo, o qual ingenuamente encarava.
Sim, de nada sabia meu pai, por alguma razão tácita, eu e Catarina, a traidora,
decidimos por bem não contar as desventuras que me abateram naqueles fatídicos dias. A minha
razão era bastante clara: já me doía demais pensar nos dois e em nas minhas ações, para ter que
deixar mais uma pessoa a par do que acontecera, trovar novamente aqueles episódios seria uma
tortura a qual não estava disposto a sofrer. Já ela, entretanto, talvez silenciasse por medo,
vergonha de ter empurrado o próprio filho para o cenário dantesco em que me encontrava.
Alexandre, temendo entrar no fogo cruzado, mantinha-se distante daquela guerra-fria, ficando
cheio de dedos ao comentar sobre um de nós dois. Ao que se fazia entender, para ele, eu ainda
estava profundamente magoado com as filmagens e as palavras de minha mãe.
Depois de tantos acontecimentos, parecia, absurdamente fácil para nós dois,
ignorarmos a presença um do outro dentro do próprio teto. Orgulhosa, Catarina entendera o
recado de que deveria manter distância de mim e assim fazia, sem hesitação, embora, vez ou
outra, quando não sabia que era vista, deixasse escapar algumas leves — levíssimas —
expressões de arrependimento. Talvez até as Medeias possuíssem um coração, afinal. Mas não
me deixava levar por esse mísero recorte de humanidade, evocando sempre cada segundo de
sofrimento que ela me fizera passar.
Assim foi, até o dia de minha viagem. Quando saí do quarto, carregando apenas
uma minúscula mochila, meus pais nada argumentaram. Sabiam, por certo, que eu estava indo
embora para deixar tudo para trás. As únicas coisas que carregava eram poucas mudas de roupas
novas e um volume de Dom Casmurro, que comprara uma hora mais cedo. Era impossível levar
o restante de minhas coisas, pois tudo que os dois tocaram — sabia bem — teria um peso
inefável, impossível de carregar. Nada, no entanto, pesava mais, para mim, do que o presente
de nosso aniversário de namoro, o Espólio de Aventuras, o qual, esquecido — não, abandonado
— no canto do quarto, criara uma crosta de poeira densa sobre a tampa. Nunca consegui me
aproximar daquele objeto, repelia-me, feito o sacro ao diabo, em todos os momentos que ousava
me aproximar — alguns retratos são sempre perturbadores demais para serem vislumbrados, e
assim eram as memórias que aquela caixa me trazia. Eram memórias de uma felicidade já morta,
sepultada com os planos que programara para aqueles dois... Para nós três.
— Marcos ainda mora em Florianópolis, não mora? — tentou Alexandre, como
sempre, num tom otimista. — Vai ser ótimo pra você reencontrar um amigo quando voltar para
Santa Catarina.
— Ah! sim, claro... como deve ter sido ótimo para Dante ter a companhia de
Virgílio.
Alexandre franziu o cenho, mesmo sem compreender a referência, a rispidez
empregada em minha voz, deixava claro que as palavras ditas não eram tão otimistas quanto as
dele.
— Iremos continuar assim para sempre? — perguntou, dessa vez, mais taciturno.
— Em silêncios absurdos, farpas e rispidez? Nunca teremos um momento em família em que
estejamos todos em paz?
— Sobre isso — recomecei, tentando não descontar em meu pai a ira de minha mãe
—, não se preocupe, Alexandre. Em Santa Catarina irei procurar um emprego e sairei de casa
o quanto antes, e, assim, esses momentos vão acabar.
— Olhe só que surpresa, Lucas vai fugir novamente! — dessa vez, a resposta viera
de Catarina, em palavras amoladas, espinhentas. — Não basta irmos embora de Fortaleza, você
ainda vai continuar fugindo dos problemas, feito uma criança, não é, Lucas?
Em reação a voz de Catarina, meu sangue borbulhou dentro do meu corpo,
queimando a minha pele. Lá estava ela, novamente, mostrando as presas de uma megera!
— Engraçado citar problemas, Catarina, quando todos os meus vieram de você!
— Lucas! — Alexandre quis intervir. — Nós só queremos o seu bem!
— Vocês não cansam de tanta hipocrisia não?! — dessa vez, quase gritei dentro do
carro, socando a porta com toda a força que conseguia, fazendo os ossos da minha mão doerem
— Quantas vezes vão utilizar a frase “Só queremos o seu bem” para justificar o plano de vocês
para as nossas vidas?! Veja só o que o bem de você me causou! Parabéns, minha mãe, admire
o peso de sua obra sobre os ombros de seu filho!
Pelo retrovisor, os olhos de Catarina se encontram com os meus, pesados,
carregados daquele arrependimento que resistia em demonstrar. Todavia, calou-se, assim como
todos e novamente mergulhamos numa abstinência de palavras. Imagino que não preciso falar
que o caminho até o aeroporto foi imensuravelmente sufocante. Cada um carregava o peso de
um silêncio absurdo nos ombros, e as malas nas mãos, e seguimos em cortejo até o portão de
embarque que se abria perante a mim como os próprios portões do Tártaro. Perturbador.
Avassalador. Devorador.
A última chamada se fez soar no aeroporto, feito trombetas, de um fim eminente e
irremediável: era chegada a hora de minha partida.
— Adeus — sussurrei.

Amanda

Não podia acreditar no que acontecia diante dos meus olhos. Ali, despois de
inúmeras lutas que tivemos para ficarmos juntos, via tudo caminhar para o fim certeiro — e o
pior: eu nada poderia fazer sobre isso.

— Como isso foi acontecer? — era somente o que ouvia em meio a um choro
desamparado — E agora, o que faremos?

Não sabia o que responder, ou mesmo se existia algo para responder. Em minha
mente, cada pensamento era turvo, sombrio, como um mar de piche, doloroso e impossível de
escapar, que nos afundava lentamente. Queria desabar num choro desesperado, órfão. Queria
gritar, espernear! Queria arrancar fora o órgão que em mim pulsava em chamas no peito e cuja
dor não aguentava mais carregar. Minhas mãos tremiam, minha garganta se fechava e meus
olhos se afogavam.

É o fim. Dizia uma perversa voz em minha cabeça, compulsivamente em desumanas


repetições. Depois de hoje, nunca mais existirá os três. É o fim.

A música da formatura retumbava ao fundo. Todos de quem nos escondemos,


temendo a crucificação certeira por nossa felicidade, agora, pouco se importavam com nosso
penoso pranto. Do que tinham valido nossas máscaras e todos os esforços que mantivemos para
deixar nosso sentimento em segredo? Do que importavam os beijos não dados, os abraços
negados, os afagos extintos? Por medo, morremos, sem que nenhum desses de quem nos
escondemos viesse ao nosso enterro.

E, como em qualquer morte, só nos restava o silêncio fúnebre e a escuridão eterna.

Estava tudo acabado: não mais existia nós três.

Embaixo da árvore, Douglas e eu nos abrigávamos — mais um no outro do que na


própria árvore. Meus braços o cercavam, enquanto sua pele, agora absurdamente gelada, tremia
de frio e soluços sob meu toque. A imagem que formávamos, sabia, poderia não ser a mais bela
— na verdade, a beleza vagava muito, muito além de nosso estado —, mas era necessária. Sim,
foi necessária para mim, que finalmente, começava a compreender — em cada segundo que se
passava, em que minha dor ia se tornando ira — o que precisava fazer, de uma vez por todas.

— Doug, precisamos parar de nos lamentar e voltar para dentro — sussurrei em seu
ouvido. Assustado, ele levantou a cabeça e me olhou, com certeza não esperava que eu sugerisse
tornar a festa. — Já estou cansada de lamentar o futuro que prepararam para mim. Vamos.
Precisamos entrar. Precisamos lutar, não por Lucas, mas por nós mesmos.

Douglas passou a mão no rosto, assentindo, me deu a mão para que eu o ajudasse a
levantar. Juntos, e de mãos dadas, marchamos para dentro do buffet. Todos por quem
passávamos, olhava para nós, para a imagem de dois adolescentes vestidos a rigor,
complemente sujos de lama e bagunçados, porém, em nenhum momento, encaramos de volta
— não por temer seus olhares, mas porque eles já não mais nos importavam de maneira alguma.

— Amanda! — minha mãe e meu tio se levantaram e foram ao nosso encontro,


apressados, seguidos por Guilherme e Patrícia. — Por que você está toda suja desse jeito?!

— Você o chantageou? — foi só o que disse, indignada, sentido todo meu corpo
queimar. — Você chantageou Lucas para que ele fizesse aquelas coisas horríveis?!

Minha mãe deixou sua boca cair, escancarada, incapaz de esconder a surpresa de
ter sido descoberta pelo crime que cometera, e o mesmo aconteceu com Guilherme e Patrícia
atrás dela, o único firme era Roberto, que franzia os lábios em repúdio.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou Guilherme, não para os dois, mas
para mim, pela a primeira vez em meses, ele estava falando comigo. — O que você está falando,
Amanda, o que a Tia Marília fez?

— Não só ela, seu pai também! Os dois ameaçaram me mandar embora para
Manaus se Lucas não terminasse com a gente, até Patrícia participou disso! Foi isso, não foi,
Dra. Marília? Você não se importaria em me mandar embora, só para me ver longe dos meus
dois namorados! Isso é o mais importante para você?!

— Você realmente está perguntando o que é mais importante aqui, Amanda?! Olhe
só você, colocando tudo em risco por causa de um romancezinho desgraçado! Por causa de um
garoto perverso, promíscuo, nojento! Essa não é você, não é a garota que eu criei! — ralhou,
pegando meu pulso, tentando me arrastar para a saída do buffet. — Agora pare com isso, todos
em volta estão começando a olhar para cá!

Desvencilhando-me de seu aperto, eu a encarei bem nos olhos, como alguém que
desafia uma fera perigosíssima sem um pingo de medo e completei:

— Ainda não é o suficiente!

Sem falar mais nada, dei as costas ao grupo — que outrora chamei de família — e
saí em direção a multidão de pessoas. Nenhum deles me seguiu, exceto Douglas, com certeza
não queriam chamar mais atenção do que eu já estava causando.

— O que você vai fazer? — Douglas perguntou, ao meu lado, confuso. — Aonde
está indo?

— Aonde todos olhem para nós!


Lancei meu olhar para todos os lados, procurando alguma coisa que pudesse chamar
atenção, até que avistei o palco em que uma banda de garotos tocava. Sem demora, corri para
lá e, feito uma louca desvairada, subi, interrompendo-os em meio da música. Pegos de surpresa,
pararam na mesma hora, alarmados.

— Preciso do seu microfone emprestado!

O vocalista, um garoto que não deveria ser muito mais velho que eu e que usava
um coque samurai me olhou assustado, entregou o microfone sem resistência — acredito que
alguma coisa na imagem de uma garota toda suja, descabelada, invadindo o palco dizia que não
se deveria contrariá-la.

— Aqui, por favor! — comecei, minha voz ecoando para todos os lados, incerta do
que iria dizer. — Minha mãe não quer que vocês olhem, e por muito tempo eu também não
quis, mas agora, por favor, eu quero que todos olhem para cá, para mim, para nós!

O alvoroço foi completo. O burburinho começou no mesmo momento, vozes,


cochichos. Os que estavam distantes levantaram para que pudessem me ver melhor. Ao longe,
a imagem de minha mãe, com a mão no peito, apavorada com que eu estava fazendo, trazia um
sentimento único em meu coração: era um misto de força e satisfação em estar prestes a mudar
o curso do que ela havia planejado para mim. Era o sentimento de quem tinha o próprio futuro
nas mãos.

— Eu sei que posso estar parecendo louca, eu também estaria pensando a mesma
coisa se fosse vocês, mas a verdade é que não me importo com o que pensam. Podem me chamar
de louca, de maluca, de vadia, de puta, o que for! Mas ainda assim, eu vou falar o que eu quero
falar!

Pelo canto do olho eu podia ver os seguranças apontando para mim, e começando
a desbravar o mar de pessoas para chegar até a mim. Percebendo o mesmo que eu, Douglas
pulou para cima do palco e abriu os braços encarando-os, com um brilho perverso no olhar.
Para minha surpresa, Natasha e Natália fizeram a mesma coisa, e juntos, formaram uma espécie
de barreira contra qualquer pessoa que quisesse se aproximar de mim. Na plateia, vários flashs
começavam a acender, anunciando que os celulares estavam em punho, prontos para filmar
qualquer coisa que fosse acontecer.

Na glória ou no desastre, Douglas olhou para mim, abrindo um sorriso de suporte:


Continue — eu quase pude ouvi-lo dizer.

— Quantos de vocês vão seguir para um futuro que não querem? Quantos de vocês
estão sendo empurrados pelos pais para uma vida que odeiam? Quantos, garotas e garotos,
mulheres e homens, estão vivendo uma mentira, só por medo do que os outros vão falar?! —
Comecei, numa angústia de tentar simbolizar todos os sentimentos que me abateram
recentemente: frustração, medo, rancor, raiva e tristeza, em palavras as quais eu não sabia se
seriam ouvidas, contudo, precisava externar, pela primeira vez, sem repressão alguma. — Por
muito tempo eu também deixei de fazer coisas temendo o que os outros iriam pensar, falar,
julgar! Agora eu vejo o quanto fui covarde, o quanto vocês me fizeram ser covarde! Eu me
escondi, deixei de viver, de sentir coisas incríveis, e pior, arrastei as duas pessoas que amo para
dentro dessa caverna junto comigo. Sim, eu falei certo, duas pessoas. Porque esse foi o pecado
responsável por tudo o que aconteceu, que fez até minha própria família abrir mão de mim:
amar! Amar, amar, amar! Amei tanto que foram duas pessoas!

De frente para todos, consegui ver alguns rostos — professores, alunos, pais de
alunos — que se contorciam em meio às sombras, outros apenas me olhavam ainda alarmados.
Os seguranças começavam a subir as escadas do palco, fechando o cerco para nós quatro, não
eram muitos, embora fossem grandes e fortes o suficiente para nos deixar acuados, temerosos.
Entretanto, antes que algum deles pudesse investir contra nós, mais algumas pessoas subiram
no palco também, liderados por Letícia.

— Pois taí, que não tem nem perigo de vocês atrapalharem! Eu esperei o ano todo
pra ouvir esse babado, vocês não vão interromper a menina agora, não! — berrou,
espalhafatosa, para os seguranças daquele jeito que só ela sabia fazer, e alguns dos outros
alunos, Jéssica, Tandara, Henrique, que também subiram no palco, fizeram o mesmo, numa
espécie de motim improvisado. — Rasga, menina! Mostra quem é que manda nessa bagaça!

Temendo, talvez, que a situação saísse mais do controle do que a que já estava
caminhando, os seguranças pararam, olhando uns para os outros, sem saber o que fazer.
Aproveitando o restante de tempo que eu possuía, voltei a olhar a multidão que se revirava em
suas cadeiras, dividida entre o espanto e a reprovação.

— Eu tenho, ou tive, dois namorados que amei... amo! Nós três nos namorávamos,
eu, Douglas, esse jovem que bravamente subiu ao palco comigo — em menção ao seu nome,
Douglas se ajeitou pomposamente, ajeitando o smoking, sorrindo de maneira marota —, e
Lucas, que não pôde estar aqui graças à minha mãe, que o chantageou para ir embora e nos
separou.

— Fez a coisa certa! — uma voz masculina bradou em meio à multidão. Não era
de Roberto, nem Guilherme, nem de ninguém que eu conhecia. Era só mais um ser, em meio a
tantos outros, tentando ditar alguma coisa. — Se minha filha fosse puta desse jeito, que nem
você, eu teria feito pior! Sua mãe fez foi pouco, garota!

Outras vozes soaram em coro, homens, mulheres — até mesmo alguns jovens que
estavam entre eles —, concordando com que havia sido me dito, amontoando-se, umas às
outras, como um grande deslizamento de terra em cima de nós. Juntos a eles, mais xingamentos
eram arremessados feito pedras: vagabunda, vadia, puta, veadinhos, safados, promíscuos,
pecadores! Até mesmo ameaças eram lançadas, não só a mim, mas a quem estava no palco
comigo. Todos — inclusive os seguranças — ficaram atônitos com toda aquela balbúrdia de
ódio. Da plateia, minha mãe assistia, mais apavorada do que nunca... Quem dera puder dizer
que estava surpresa, contudo, não estava. Muito longe disso. Eu, mais do que ninguém, sabia
que esse seria o resultado do evento fatídico de nossa descoberta, desde o momento em que
aceitei beijar Douglas e Lucas. Nossa sociedade não estava pronta para o que tínhamos, era
claro que não poderíamos esperar nada menos dela, eu não seria a primeira, muito menos a
última a sofrer com aquela agressividade, filha da hipocrisia. No entanto, ao invés de me
esconder, me acuar ou mesmo temer tudo aquilo, eu não titubeei, nem por um segundo. Dando
alguns passos em direção à beira do palco, eu os encarei, segura, forte, austera e completamente
imune àquelas palavras.

— Então vocês conhecem a verdadeira face do amor, é isso? — comecei, tentando


fazer minha voz ecoar acima dos xingamentos e das agressões. — Todos vocês, todos, sabem
o que é certo a se fazer, o caminho certo e único a ser trilhado para felicidade, é isso? Estão
todos felizes com os maridos e mulheres que arranjaram, imagino! Pois bem, se é assim com
vocês, meus parabéns, mas não é assim comigo. Eu não concordo com o que vocês me
impuseram, essa forma de amar que julgam ser o certo, muito menos sou obrigada a aceitar!
Vejam o que fazem quando alguém resolve não concordar com vocês, seres honrados,
impolutos e de moral ilibada! E quando isso acontece, quando alguém está disposto a não aceitar
o que vocês fazem? — parei, apontando para a multidão — Nos xingam, ameaçam, agridem,
como se fosse apenas isso que merecemos! Somos muitos, todos os dias, xingados de veados,
por vocês. De lésbicas. Promíscuos. Putas! — parei por um segundo, para respirar, sem vacilar
em minha expressão, sentindo o rosto queimar de fúria. — Vocês me chamam de puta, é isso?
Por amar? Então eu aceito. Sou puta sim! Prefiro mil vezes ser uma puta, do que viver de
maneira infeliz, precisando agredir e controlar outras pessoas só para não ter que me sentir tão
miserável, como vocês!

As palavras simplesmente explodiram para fora de mim numa força incontrolável


e de maneira tão voraz, também pareceu atingir a plateia, que novamente ficou em silêncio.
Eles é que estavam espantados. Meu peito subia e descia numa velocidade intensa, minhas mãos
tremiam, meu coração martelava intensamente. Satisfeita, eu já estava pronta para falar
novamente, quando, uma imagem, lá no fundo da multidão, tirou minha atenção, me distraindo
por completo. A figura, que lentamente foi tomando forma, era de um garoto, cabelos loiros,
bagunçados. Sorria de uma maneira peculiar, única. O que restava de fôlego simplesmente se
esvaiu e, em um segundo depois, eu já havia arremessado o microfone no chão e entrado em
disparada, cortando a multidão, o mar de hipócritas.

A figura: era Lucas!

Lucas

— Passageiros do voo JJ 3066 com destino a Santa Catarina, por favor,


compareçam ao portão de embarque — uma voz soou fria e metálica por todo o aeroporto, feito
o juiz que anuncia o destino irremediável de um réu.
Dando um grande suspiro mórbido, levantei-me, segurando a mochila no ombro
seguindo meus pais até o local indicado. Sorumbático, de corpo pesado, a cada passo dado à
frente, parecia que o anterior se perdia na imensidão, esquecido, como se deixasse claro que
não existia mais volta a partir dali. Tentei esvaziar minha mente, afugentando qualquer
pensamento que estivesse me fazendo desejar ficar. Pensei em Marcos, o amigo que iria rever,
as praias a que poderia ir. Sem sucesso, recorri à literatura, relembrando os versos de todos os
poemas que sabia de cor, e na falha do lírico, agarrei-me à prosa, tentando-me ater aos detalhes
de Dom Casmurro: os superlativos de José Dias, as loucuras de Bentinho, aos olhos de Capitu!
Os olhos... Aqueles olhos... A quem eu queria enganar? Não adiantava que eu tentasse recolher
aquela pesada âncora, pois sabia que as únicas ressacas as quais, incessantemente, arrastavam
meu espírito e me prendiam de volta não eram as janelas de Capitu, mas as lembranças daqueles
dois: os lábios avermelhados de Douglas, seus afagos, seu cheiro, sua aura indômita,
aventureira, que parecia sempre me inebriar... Os olhos de Amanda — os mais belos que eu já
vira! —, o toque quente de sua pele sobre a minha, o gosto de seu beijo, a forma amável de me
laçar... Arrebatavam-me, sim, naqueles momentos finais, tão inefavelmente intensos, que mais
pareciam sussurrar em meus ouvidos as vozes de ambos, como se ali estivessem.
Aí vindes outra vez, inquietas sombras!
— Você é um covarde por estar indo embora, sabia disso, cabeção?! — disse a voz
grave de Douglas, causando-me arrepios por todo o meu corpo. Forte o suficiente para ecoar
em meu espírito, embora soubesse ser o único que o escutava. — Covarde.
— Lute por quem você ama, porque ninguém fará isso por você... — dessa vez, o
tom doce de Amanda, impregnou o ar em volta. — Sempre foram palavras vazias, não é?
Fechei os olhos com toda a força que conseguia empregar, com o coração frenético,
martelando feito louco desvairado, tentei focar apenas no barulho em minha volta. Vozes reais...
estalar de passos no piso... rodinhas de malas... mas, diga-me, como escapar dos cantos daquelas
sirenas que se apresentavam ali, se nenhuma cera poderia abafar os desejos incessantes do meu
espírito? Prosseguiram, assim, juntos, ao meu lado, sussurrando-me juras e palavras de ódio,
sem trégua alguma.
— Adeus — sussurrei em resposta, sem saber o que falar para os dois.
Não sabia ao certo porque havia respondido a personas que não existiam
verdadeiramente ao meu lado. A verdade é que eu nunca tive a chance de me despedir de ambos,
de contar-lhes sobre o que acontecera, de trovar o meu amor um último verso. Minhas palavras,
largadas em meio àqueles delírios, pensei, talvez fosse o que faltava para conseguir me salvar
daquele mar de reminiscências.
— Nada de adeus! — dizia um. — Você não pode ir embora!
— Isso mesmo, fica! — completava o outro. — Fica!
Em resposta, meu corpo se contraía, minhas pernas pesavam, meus passos tinham
dificuldade em prosseguir, como se o chão devorasse meus pés, enquanto as imagens do nosso
passado, escapavam da minha frágil repressão, afogando meu espírito: nosso primeiro beijo na
festa do Santo ou Pecador, nosso código, nossas alianças, a primeira vez que eu dissera que os
amava, a festa na Praça dos Leões, o aniversário de namoro e a noite em que dormimos juntos...
Tudo me pareciam notas daquela melopeia irresistível e tentadora, pesos colocados sobre meus
ombros para que eu não fosse capaz de prosseguir... não fosse capaz de desejar ir.
— Fica, meu amor, fica — repetiam, em uníssono. — Se você não for capaz de
acreditar no que temos, ninguém nunca acreditará.
Travei, abruptamente, sem que nenhum músculo do meu corpo obedecesse meus
comandos. Novamente, lágrimas vieram aos meus olhos, anunciando que meu espírito
sangrava, escancarado, ferido, dilacerado.
— Lucas?! — chamou Alexandre, vindo até mim. Ainda de olhos fechados, eu senti
suas mãos se fecharem em meus ombros, sacudindo-me de leve. — Lucas, o que houve, Lucas?!
Sem conseguir falar, apenas balancei a cabeça, desesperadamente. Minhas pernas,
ainda não me obedeciam, deixando claro que ficariam permanentemente presas ao chão, já
cansadas com o peso do mundo sobre meus ombros. Não existiam palavras que fossem capazes
de descrever o que sentia naquele momento, por essa razão, na confusão dos significantes,
apenas balançava a cabeça, desolado.
— Fale alguma coisa, Lucas, por favor! — repetiu meu pai em tom preocupado. —
Você está passando mal? Quer sentar?
— Eu... não... posso... — balbuciei soluçante, fraco, exausto. — Não posso... não
posso... Eu não posso ir embora!
Abri, enfim, os olhos, para encará-lo, ainda me apertando forte nos ombros. Para
minha surpresa Catarina estava ao seu lado, mas, diferentemente de Alexandre, preocupado,
parecia de alguma maneira contente, com um pequeno sorriso esticado no lábio esquerdo.
— Então não vá! — falou, assustando a mim e meu pai. — Estou cansada dessa sua
cabeça dura, garoto. Deixe de teimosia, não fuja. Holandas não fogem! E a quem quer enganar?
Eu sei que você nunca conseguiria ir embora mesmo, tudo isso é ridículo.
Ao som de sua voz, meu corpo relaxou, como se livrasse Atlas de seu ofício. Ela
então se aproximou, e, pela primeira vez desde a nossa briga, tocou-me o corpo, segurou meu
rosto fortemente, embora de maneira afetuosa, e mirou-me, naquele porte austero que ela
possuía, bem no fundo de meus olhos.
— Eu não concordo, não acho digna sua forma de se relacionar e nunca será o que
planejei para sua vida — dizia ela, em sussurros categóricos —, mas não posso exigir nada de
um filho, se não me porto como mãe. Como eu disse: não concordo e nunca concordarei, mas
é meu dever aceitá-lo. Essa palhaçada já foi longe demais, vamos acabar logo com isso: fique.
Novamente, as palavras simplesmente me abandonaram por completo. Catarina era
a última pessoa de quem achei que escutaria tal declaração, mas ainda assim, lá estava ela, de
pé, dizendo-me que me aceitaria, enfim, no fim.
— Vá e encontre com Bartolomeu — falou ela para Alexandre, que sorria
largamente diante da cena que há meses ansiava ver. — Encontro com vocês depois que resolver
o erro que cometi aqui.
— Tem certeza? — perguntou ele.
— É o certo a se fazer.
Alexandre assentiu, como se aquilo bastasse de justificativa, e se despediu de nós
dois com um abraço apertado — um dos mais apertados que já recebera dele —, e, sem mais
delongas, minha mãe me puxou pela mão, seguindo para a saída do aeroporto. Era estranha —
absurdamente estranha! — a forma como aquele último ato parecia se desenrolar, contudo, no
desespero, sempre devemos agarrar o mais improvável trem que nos leve aonde queremos ir,
principalmente quando se tem apenas mais uma chance para isso. Dessa maneira, não discuti
com Catarina e me deixei levar. Outro dia conversaríamos sobre aquilo, claro, porque hoje, iria
atrás de Douglas e Amanda. Iria atrás de nós três.
A visão do primeiro táxi, pulamos para dentro.
— Para onde vamos? — perguntou o taxista.
— Lutar pelas pessoas que amo! — quase gritei para o homem, animado e ansioso.
Sem entender, o taxista olhou confuso para Catarina que soltou um exasperado
suspiro.
— Não ligue, ele é dramático — respondeu Catarina, impaciente. — Diga o
endereço, garoto!
Envergonhado, demorei alguns segundos para perceber que não sabia o endereço
para onde estávamos indo, foi quando lembrei do pequeno bilhete no bolso de minha bermuda,
o qual peguei, afobado, e entreguei ao taxista. Ao meu lado, Catarina permanecia calada,
distante.
— Obrigado — disse a ela, por fim. — Você tem todos os motivos do mundo para
não me querer aqui e ainda assim...
— Estou fazendo a coisa certa, já disse — retrucou, asperamente. E, como se
lembrasse algo importante a ser dito, ela se virou e me encarou em tom sério. — Antes que eu
me esqueça: você vai precisar trabalhar para pagar a passagem que desperdiçou. Agora, se
concentre no que irá fazer mais tarde: tenha um plano.
Suas últimas palavras soaram como uma ordem militar — lá estava a Catarina, a
mãe, que eu conhecia afinal. O caminho foi apenas um borrão chuvoso em que as coisas
tomavam formas para logo após desaparecerem — prédios, carros, pensamentos. Sem
conseguir me focar no que acontecia do lado de fora, eu tentei arquitetar planos, construir frases,
discursos! Contudo, o menor planejamento nunca conseguiria criar raízes que o sustentassem
por muito mais tempo diante da avassaladora tempestade da realidade. Isso era apavorante, pois
não poderia simplesmente chegar lá, poderia? Como convenceria os dois de que tudo fora uma
farsa, que eu realmente os amava e que não existia mais nada no mundo que eu conseguisse
fazer ou desejar se não estar junto deles? Eu sabia que palavras, por mais belas que fossem,
poderiam não ser o suficiente — nem todos os clichês são eficientes. Eu abrira uma mácula
imponderável no espírito de ambos, sabia bem, pegara seus sentimentos — dos quais prometi
cuidar feito coisas preciosíssimas — e os amassara, estilhaçara... Dispusera-me a agir feito
amante, mas não passava de um carrasco! Um traidor! Não merecia o amor dos dois, merecia?
O fato é que, absorto, não consegui encontrar nenhuma resposta e, num tempo
assustadoramente curto, lá estávamos nós, sem conseguir apaziguar o que sentia. Eu, mais uma
vez, me encontrava parado em frente a uma festa onde os dois estavam, tentando encontrar uma
forma de dizer-lhes o quanto os amava, como na primeira vez que embarcamos nessa louca —
agora tão sóbria — ideia de relacionamento. Não podia contar que a Fortuna girasse ao meu
favor duas vezes, entretanto, segui para dentro, tão dormente de adrenalina, que mal conseguia
perceber o que se desenrolava ao meu redor, até ser barrado.
— Você não pode entrar na festa sem trajes adequados! — proferiu o segurança, de
feições nada amigáveis. Em suas mãos grandes, balançava, sem cuidado algum, o pequeno e
frágil exibível para mim. — O traje da festa é passeio completo.
De repente, reparando o que vestia, uma bermuda jeans escura e uma camisa de
manga longa cinza, que em nada dizia passeio completo, meu coração apertou. Não era possível
que houvesse chegado até aqui e fosse ser impedido de vê-los por conta da minha roupa! As
palavras já começavam a se formar, pronto para retrucar, quando, no entanto, alguém o fez
primeiro.
— Perdão? O que você disse? — Catarina avançou alguns passos para a frente do
segurança. Embora o movimento brusco, seu tom de voz era frio, ao mesmo tempo, ameaçador
— Você acha mesmo que vai barrar meu filho de entrar na própria formatura, porque não está
em “trajes adequados”! Diga-me, por acaso, você é formado em moda? — o pobre do homem
abriu os olhos espantados para minha mãe, e sem conseguir, ou ter a chance de se pronunciar,
balançou a cabeça. — Então, concordamos que você não tem respaldo algum para definição de
trajes adequados.
— São as normas da casa, minha senhora...
— Normas da casa? Excelente! — bradou em resposta. — Traga-me as normas da
casa para que eu possa conferir como o traje do meu filho não é adequado! Um documento
oficial escrito é o mínimo que vou exigir.
Apavorado, o segurança olhou em volta buscando suporte em seus colegas, que
pareciam evitar seus olhares de súplica. Por certo não gostariam de entrar no fogo cruzado
começado por Catarina.
— Eu vou chamar meu superior — disse o segurança, antecipando-se.
— Muito bem, quando achar seu superior, procure-nos dentro da festa. Aqui tome
meu cartão. Não ficarei na chuva por incompetência desse estabelecimento.
De nariz em pé, Catarina passou por todos os seguranças sem que nenhum
demonstrasse o menor interesse de barrá-la, nem ela olhou para trás, marchando para dentro.
— Você é amedrontadora, sabia disso? — sussurrei para ela no momento em que
consegui acompanhá-la.
— Sou sim, mas não por isso.
Entramos e caminhamos até o salão, que estava estranhamente silencioso — a
exceção de alguns cochichos e murmúrios. O estalado do salto alto de Catarina ecoava
ritmicamente, em claro contraste às batidas loucas do meu coração, que insistia em querer se
chocar contra os ossos do meu peito. No entanto, apenas quando adentramos o local principal,
onde todas as mesas estavam dispostas, foi que percebi a razão pela qual todos cochichavam.
Lá no palco, uma garota de cabelos loiros — completamente bagunçados —, molhada e com
vestido sujo de lama, estava parada; encarava a plateia à sua frente, com os olhos dos mais belos
tons límpidos de verde, segurando o microfone como uma arma, uma lâmina afiada. Ao seu
lado, de prontidão e de braços abertos contra os seguranças que se aproximavam, estava um
garoto de tez pálida e cabelos feito breu de tão escuros, e mais outras duas figuras que também
reconheci de súbito.
— Lucas! — bradou uma voz conhecida atrás de mim. — Que bom te ver, garoto!
Então chegou a tempo para o show!
José apareceu por entre a multidão e veio até mim, dando-me um forte abraço.
— O que está acontecendo?! — perguntei, sentindo meu coração bater mais forte
do que nunca.
Abrindo um sorriso, José se voltou para o palco, ostentando um ar claramente
orgulhoso com a cena que via.
— Amanda aconteceu — falou, ainda sorrindo. — Subiu ao palco e pediu a atenção
de todos. Está falando sobre vocês três, o amor secreto de vocês — animado, apertou meu
ombro com sua mão rechonchuda. — que aliás, não era segredo, se muita gente já sabia.
— Sabia?!
José apenas me olhou pelo canto do olho, um sorriso malicioso cravado nos lábios,
sem me responder.
— Se minha filha fosse puta desse jeito, que nem você, eu teria feito pior! Sua mãe
fez foi pouco, garota! — irrompeu uma voz, entre a multidão.
Meus olhos vacilaram novamente para ela, e, antes que eu pudesse fazer alguma
coisa, porém, uma balbúrdia nada agradável começou. Gritos e xingamentos explodiram por
todo o buffet, seguidos de vaias, numa insanidade generalizada. Meu ímpeto foi correr até o
palco também, juntar-me aos dois, tentar defendê-los de alguma forma daquela loucura,
entretanto, Catarina me segurou pelos ombros.
— Espere! — disse para mim e, mesmo sob meus protestos, não me soltou. — Não
faça isso, não a interrompa. Veja!
Todos no palco pareciam temerosos com aquela onda de ódio que se chocava
furiosamente contra eles, feito um mar ensandecido e violento que intensamente fustigava a
costa sem clemência. Todos. Todos, exceto Amanda. Sem sequer recuar um passo, permanecia
firme, austera, de ombros eretos, encarando de volta aquela multidão, com brilho inefável no
olhar. Não era apenas uma adolescente perdida naquelas águas, mas uma capitã forte e
experiente que nem por um ínfimo segundo iria ser submissa a elas. Prevaleceria. Tornou então
a falar, e aquele poder e aquela força, simplesmente explodiram dela contra eles, que não
esperavam nenhum tipo de réplica — os violentos esperam sempre flagelar sozinhos, até que
encontram alguém que revide.
— Corajosa... — ratificou Catarina, levemente surpresa. — E o outro, também é
assim?
Assentindo intensamente, completei:
— E está sempre do nosso lado, não importa o que aconteça.
Não obtive resposta de minha mãe, que apenas tornou a acompanhar a cena,
cruzando os braços. Foi então que tudo se silenciou, como numa surdez pós-ataque numa
guerra. Amanda, claramente vitoriosa, ainda parecia estar disposta a batalhar por mais milhares
de horas a fio, quando, ao fitar seus adversários com bravura, nossos olhares se encontraram —
e meu coração despencou. Sem falar mais nada, ela irrompeu em minha direção, correndo,
correndo, correndo, atravessando todos que pudessem estar entre nós, opondo-se a nós, até que,
pulou em meus braços.
Foi como enlaçar o mundo novamente, não aquele pesado que eu era obrigado a
carregar, mas o de belezas e maravilhas imensuráveis as quais desejava viver. Seu cheiro me
invadiu, e, juntos, rodopiamos no ar. O toque de sua pele era quente sobre minha nuca, puxando-
me para perto de si. E, tal qual os passos daquela dança que há muito havíamos cessado,
tornamos a nos beijar, como se tivesse sido ontem que nossos lábios estiveram grudados um no
outro.
— Você não foi embora! — sussurrou entre beijos. — Por quê?!
— Eu nunca poderia deixar as duas pessoas que amo, poderia?
Amanda, então, parou, sorrindo para mim, acariciando meu rosto suavemente.
Aquele sorriso trazia a trova dos amantes, em que nenhuma palavra precisava ser dita, apenas
sentida. Atrás dela, o garoto pálido de cabelos negros e de boca avermelhada, apareceu. Por
poucos segundos nos encaramos, até que ele, também veio até mim, puxando-me por meu
colarinho, como outra vez, num cenário anterior. Todavia, diferentemente da última vez em que
nos encontramos, no lugar de um soco, preferiu me desferir um beijo, quente, intenso,
avassalador, que pude sentir por todos os meus ossos. Douglas me prendia a ele, não só feito
um amante que deseja o corpo de seu amado junto ao seu, mas como quem quer deixar claro
que não mais existirá outra cais no qual atracar.
Éramos, novamente, os três.
Mas o êxtase que habitava o nosso reencontro ainda não poderia se fazer completo,
pois, momentos depois, a realidade de onde estávamos se chocou novamente contra nós três.
— Vocês realmente não têm vergonha dessa indecência, não é, seus moleques?! —
bradou uma voz rouca, desprezível atrás de nós, em meio ao alarido que se elevava, o qual
batalhava entre aprovação e escárnio. — Parem com isso, agora!
Naquele emaranhado de pessoas, Roberto, tio de Amanda, marchava em nossa
direção, encarando-nos com uma fúria sem precedentes no olhar. Atrás dele, o restante da
família vinha em seu encalço, tentando impedi-lo de prosseguir. Antes que eu e Douglas
pudéssemos nos virar contra ele, Amanda já avançara em sua direção, pronta para colidir com
aquele trasgo, se fosse preciso.
— Senão o quê?! — Amanda berrou em resposta, encarando seu tio de maneira
destemida. Mesmo com pouca iluminação eu podia ver o rubor em suas faces. — Hein? Diga!
O que você vai fazer?! Não acha que já fizeram demais, não?!
Marília se meteu na frente dos dois, assim como Guilherme e Patrícia, enquanto
Roberto e Amanda se encaravam feito inimigos de longa data. Em um segundo, todos nós
estávamos em volta deles, e, mais uma vez, se as coisas já pareciam fugir do controle, tudo
ficou ainda pior com a chegada da Tia Silvana — que já vinha aos berros — e Thaís.
— PARA, THAÍS, NÃO ME SEGURA, NÃO! — gritava a mãe de Douglas, indo
em direção a Roberto. — Quero ver se ele é doido de fazer alguma coisa! Porque ninguém é
besta de bater em filho meu! — sem resposta, ela parou bem entre mim e Amanda, passando os
braços por nossos ombros, protetora e maternal. — Em nenhum dos meus filhos — completou,
sorrindo para nós três.
— Ninguém vai bater em ninguém! — interrompeu Catarina, em tom frio e
autoritário. — Marília e Roberto já têm muito com que se preocupar, para lidar mais uma
acusação de agressão.
Suas palavras foram suficientes para cessar a celeuma que havia se instalado.
Surpresos, todos olharam para minha mãe.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Marília, apreensiva, fitando
minha mãe sem conseguir compreender o que ela estava falando.
Catarina, que até então assistia a tudo de maneira impassível, aproximou-se o
suficiente dos familiares de Amanda, e, naquele tom inquisitorial que costumava usar quando
se tratava de algum de seus casos, completou:
— Prestem bem atenção, pois eu irei falar apenas uma vez. Vocês sabem que sou
advogada, não sabem? E um tanto influente, por sinal! — a cada palavra pronunciada, seu tom
de voz parecia fazê-la aumentar de tamanho — Pois bem. O que vocês fizeram com meu filho
pode ser considerado injúria, um atentado contra a honra subjetiva de um indivíduo e provável
tortura psicológica, passível de ação judicial e pena. Mexa com ele novamente, e eu juro, juro,
que acabo com vocês!
— Isso é ridículo! — retrucou Marília. — Você não tem provas de que isso
aconteceu!
— Não? — sorriu, friamente. — Por acaso não avisaram a vocês que eu espalhei
câmeras por todos os lugares de minha casa? Sem falar de todas essas testemunhas aqui
presentes, além das ligações e mensagens no celular do Lucas... — Catarina falava com uma
naturalidade esmagadora, como se ensinasse regras simples de matemáticas àqueles que, até o
momento, não entendiam a equação básica. — Podemos não chegar aos devidos fins, mas o que
as pessoas irão achar do envolvimento de uma psicóloga num ato como esse? Sua reputação
estará acabada, minha cara Marília, antes mesmo que o juiz tenha algum veredito sobre isso.
— Eu sou Jornalista e faço questão de escrever uma matéria sobre! — completou
Thaís, ao nosso lado.
— Viu só? De qualquer maneira, eu venço. Não. Me. Desafie.
Atônitos, todos encaravam Catarina, a mãe, como se fosse um monstro de cinco
metros de altura pronto para estraçalhar qualquer um que ousasse não seguir suas instruções.
Sem falar mais nada, claramente transtornado, Roberto se desvencilhou dos braços que
tentavam segurá-lo e partiu para fora do buffet, seguido por Guilherme e Patrícia. Marília, no
entanto, permaneceu, encarando unicamente a filha, parada ao nosso lado, segurando nossas
mãos.
— Você vai trair sua família por essa coisa que inventou?
— Minha família me traiu no momento em que se dispôs a abrir mão de mim, sem
pensar duas vezes. Uma família de verdade nunca faria o que você fez, e você teve todas as
provas disso esta noite.
Marília balançou a cabeça, arrasada — se eu não a odiasse tanto, talvez conseguisse
sentir alguma coisa próxima de pena por ela —, e deu as costas também, sem se despedir, indo
embora do buffet.
Ao nosso lado, os ombros de Amanda cederam — não sei se por relaxar ou por se
compadecer da imagem da mãe daquele jeito —, mas por pouco tempo, pois Catarina se virou
e nos fitou, aproximando-se de nós três. Os dois ficaram eretos, desconfortáveis, parecendo
estar na presença de um general militar — o que na verdade, depois da demonstração dessa
noite, ainda seria uma descrição por demais insuficiente de minha mãe.
— Você lembra o que eu disse a você mais cedo, não é? — falou, diretamente a
mim, sem sequer olhar para Douglas ou Amanda, e só completou depois que eu assentisse: —
Pois bem. Além disso, você está de castigo por todo esse circo! Mas hoje — Catarina respirou
e, finalmente, olhando os dois nos olhos e dando um leve, levíssimo sorriso, continuou —,
aproveite essa vitória. Nos vemos quando eu voltar de viagem.
Douglas ainda tentou levantar a mão para se despedir de minha mãe, que
deliberadamente o ignorou e se foi.
— Sua mãe não vai processar a gente, vai, cabeção? — cochichou, meio apreensivo
para nós dois.
— Só se vocês mexerem comigo!
Abrindo um sorriso de boca vermelha, Douglas me beijou no rosto e deu um grande
abraço em mim e Amanda. Daí em diante, a única balbúrdia que existiu foi a de comemoração,
enquanto a festa, pouco a pouco, ia tomando seus ares de normalidade. Ao que parecia, Tia
Silvana estava muito contente com a descoberta de que nós dois namorávamos seu filho: —
Agora eu não preciso me sentir mal por ter que escolher meu favorito! — disse ela. Pouco a
pouco nossos amigos iam aparecendo para se juntar a nós: Natasha, Natália, Tandara, Letícia.
— Eu juro que, se você falar mais uma vez que vai embora — reclamava Natália,
enquanto me abraçava fortemente, molhando minha camisa de lágrimas e maquiagem —, vou
te quebrar inteiro, ouviu bem, seu amarelo?!
— Não se preocupe, estou exatamente onde desejo estar.
Depois de algum tempo, a banda — Abdallah, pelo que ouvi anunciarem — tornou
a nos mergulhar em músicas. E assim seguimos, noite adentro, comemorando e nos divertindo
livremente, aos olhareis alheios, tentando recuperar todos os segundos desperdiçados em nossa
separação, naquela avidez de eternidade efêmera que só apaixonados possuem.
...

— Ficaremos juntos, não é?! — perguntou Douglas, aninhando-se suavemente em


nossos corpos. — Não importa o que aconteça?
Era quase dia, os primeiros raios de sol já começavam a penetrar as janelas de
vidro do seu quarto, iluminando calidamente o cômodo e a cama. Logo depois da festa, Tia
Silvana fizera questão que dormíssemos em sua casa, e lá estávamos nós. No chão, as roupas
que havíamos usado na formatura estavam espalhadas displicentemente, ao mesmo tempo que
se exibiam feito um estandarte após uma guerra vencida.
Eu queria dizer que sim, que a qualquer custo, independente do que o futuro nos
reservasse, nós ficaríamos juntos. Mas, seria essa a melhor resposta para tal questionamento?
A dúvida que me abatia ali, enquanto sentia a pele nua dos dois colada ao meu corpo, não era
falta de amor — isso jamais seria! No entanto, as últimas desventuras abriram meus olhos
para um fato irremediável: o amor, sozinho, não é capaz de superar todas as barreiras. Até
porque o amor não é uma coisa, uma substância que possuímos, carregamos por aí, incrustada
em quem somos.
Não, essa coisa que insistimos em chamar de amor não deveria ser compreendida
como um substantivo, mas como um verbo: não é o amor, é o amar. É agir, é lutar todos os
dias para que as intempéries da vida — que existem e podem ser arrasadoras — não nos
façam naufragar, ou afundar, como Douglas sempre costumava dizer. Encarar as coisas dessa
forma, finalmente, fazia-me entender que, antes de tudo, antes de proferir falas de um futuro
inexistente, era preciso viver o presente do amar, em cada dia, em cada segundo — mesmo
que outros não concordassem, viveríamos por nós mesmos, a nossa maneira de amar.
— Eu não sei, essa é a verdade — disse, enfim. Alarmados, Douglas e Amanda
sentaram-se a cama, olhando-me sem entender o que eu dizia. Respirando profundamente,
prossegui, tocando as costas de cada um. — Eu poderia mentir para vocês dois, mas nunca
mais farei isso. Nunca mais. Então eu não sei, não sei se amanhã iremos ficar juntos porque o
futuro não existe e tudo pode acontecer. No entanto... no entanto, enquanto ainda amá-los, eu
lutarei com todas as minhas forças para que o futuro em que estaremos unidos aconteça.
Então, eu não sei se ficaremos, mas tentarei até o último momento.
Sorrindo, Amanda se aproximou de mim, beijando-me o rosto no lado esquerdo,
enquanto Douglas repetia a ação do lado direito.
— Nós tentaremos — disse ela.
— Tentaremos juntos — completou ele.
Sim, nós três,
— Juntos!

[~ FIM? ~]
Agradecimentos
Bem sei o quão solitário um escritor poderá se sentir ao trilhar esse caminho que tomei
anos atrás. Todavia, dizer que estive sozinho, seria uma mentira injusta, a qual não quero em
meus ombros. Por isso, tenho muito o que agradecer, com o sentimento mais sincero no peito,
por todo o apoio que me foi dado nessa jornada.

Primeiro, meus mais imensuráveis agradecimentos ao meu amor, Mateus Costa,


companheiro inefável que sempre acreditou em mim e nunca me deixou desistir — mesmo que
por vezes eu o implorasse para isso. Não sei se teria conseguido sem seu apoio.

A Marina Lobo, artista incrível, leitora ávida e apaixonada, cuja sensibilidade e


maestria deram forma — absolutamente linda! — a Amanda, Douglas e Lucas. Já muito lhe
repeti essas palavras, mas acho que devo ratificá-las: muitíssimo obrigado por tudo! Acostume-
se com meus agradecimentos, pois juntos, temos ainda um longo percurso pela frente, até Paris!

A Antônio Marcos, caro primo, que sempre me abordava entusiasticamente pelo


próximo capítulo e que esteve comigo até o fim. Obrigado pela paciência e pelo ânimo que
muito me foi caro durante todo esse processo!

A Marília Melo, que não só foi uma das leitoras-beta deste romance, como é a pessoa
que aguenta ouvir sobre meus sonhos de ser escritor desde 2011.

A Ananda Martins, Mariana Oliveira — XUXIS! — e Tandara Suassuna, que também


estiveram junto de mim nesse processo, tendo paciência e bondade de ler, minhas letras
inseguras, e de responder a todas as minhas perguntas de: Você tem certeza que gostou? Gostou
por quê? E isso aqui, como ficou? — Sério, foram muitas. Obrigado por isso.

À autora da terra — e da editora! — Cris Soares, que nunca deixou de me ajudar com
sua experiência no ramo editorial, dando suporte o qual muitos outros não deram — isso sempre
será lembrado, de verdade.

A Angélica, Mayara e Priscila, primas que sempre estiveram comigo desde os meus
primeiros suspiros literários.

A Átila Colaço, cuja animação e confiança em meus escritos parecem exceder minha
capacidade.

A Miguel Abdala e Beatriz Lima Verde, pela paciência acadêmica que tiveram comigo
nos momentos em que não pude me dedicar tanto em nossos trabalhos.

Aos demais amigos e familiares que estiveram junto de mim nesses momentos finais
de produção e divulgação no livro!

E, por fim — mas jamais menos importante —, a Brunna Anselmo. Bruu minha, que,
por ser minha alma gêmea literária, sabe que em todo escrito meu, existe um Kaco seu.

Meus sinceros agradecimentos — cheios de glitter — a todas e todos.

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