Você está na página 1de 132

Copyright © Zoe X, 2020

Copyright © 3DEA EDITORA, 2020

Editor Chefe Kelly Patrícia Azevedo


Produtor Editorial Daniela Soares
Assistente Editorial Géssica Fernanda
Revisão Arte do Texto
Revisão Final Jéssica Martins
Ilustração Paulo Caetano

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


(1990), em vigor desde 1° de Janeiro de 2016. Os personagens e as situações desta obra são
reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos, e sobre eles não
emitem opinião.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer forma ou por
qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos,
incluindo ainda o uso da internet, sem permissão expressa da Editora, na pessoa de seu
editor (Lei 9.610 de 19/02/1998).
Todos os direitos reservados à 3DEA Editora.
www.3deaeditora.com.br
contato@3deaeditora.com.br
Aviso:
Este é um romance dark contemporâneo. Se você não se sente
confortável com leituras que envolvam violência física, psicológica e que
tenham finais controversos, essa leitura pode não ser para você.
Epígrafe
“O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza
impossível, uma pureza que está sempre se pondo. A vida veio e me levou
com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraíso que nos
persegue, bonita e breve, como borboletas, que só vivem vinte e quatro horas.
Morrer não dói.”
Cazuza.
Prefácio
Existe uma linha tênue quando pensamos em dançar.
Eu amo dançar, mas quando tomo coragem líquida me torno mais
solta para mexer e com isso passo a não me importar com os olhos alheios ou
como estou agindo. O que quer dizer que eu corto aquela linha fina.
Quando Zoe me pediu para ler esse livro, eu vim preparada, porque a
conheço. Conheço sua cabeça, tudo o que a enfurece e tudo o que a perturba,
mas eu não estava 100% pronta para o que esse livro me mostraria. Eu
deveria ter bebido antes de ler, como faço quando danço.
A história é uma dança tímida, com notas calmas e passos escondidos.
Pelo menos até a página 2. Em um certo ponto, ele se torna furioso, e me
peguei pensando que os personagens eram reais e para meu desespero se
tornou palpável. A dança fica mais rápida, triste, acaba com um peso no
peito, mas, ao mesmo tempo, senti feliz. Talvez o sentimento seja fruto do
meu coração apaixonado por romances sombrios.
Bailando no inferno poderia ser um sopro leve, uma brisa suave, mas
não. Não teria graça se fosse. O livro mostra que a liberdade tem diferentes
formas de ser encarada. Você pula de um penhasco e se afoga ou pula e voa.
Nesse romance, em particular, a gente não se afoga e nem voa. A
gente queima.

Nana Simons
Capítulo 1
“Apenas se renda porque você sente a sensação te tomar.”
(The Greatest Show, Panic! At The Disco[1])

Nada era tão imutável e concreto quanto uma fotografia.


Devia ser por isso que aquele era um hobbie que eu não conseguia
deixar de manter.
Meus sapatos faziam barulho contra o cascalho do chão; o sol daquela
primavera conseguia me manter aquecido, mesmo contra o vento gelado que
soprava naquela tarde, em Palermo.
O Rosedal nunca me pareceu tão cheio e vivo como naquela hora, sob
as lentes da minha câmera. E, talvez, só talvez, por aquilo estar beirando a
perfeição nas minhas fotos, eu acreditava que voltar para a Argentina não
havia sido um completo erro.
Na verdade, só queria saber se ainda podia me sentir em casa em
algum lugar, já que fazia tempo demais que eu não tinha aquela sensação.
Ajustei a lente da câmera, fotografei mais uma rosa que desabrochava
e me ergui para ver o que já havia conseguido nos meus cliques amadores,
enquanto Guillermo, meu amigo de muito tempo, falava ao meu lado.
— É bom que tenha voltado, Adrian. — Ele parecia realmente feliz.
— Mesmo no meio dessa crise toda e dos problemas com o governo, nada é
tão bom quanto nossa casa, certo? — Encarei o argentino de canto e soltei
uma risada baixa como resposta. Era puro deboche, mas ele não pareceu
entender.
— Alguma coisa desse tipo. E quanto ao emprego? Seu chefe vai me
contratar? Não posso continuar pagando a pensão onde estou por muito mais
tempo. — Comentei.
Demos alguns passos, lado a lado, enquanto eu ainda tentava achar a
foto perfeita no visor da câmera. Infelizmente, mesmo as fotos sendo
realmente boas, não havia nada ali que me conquistasse.
Dei um longo suspiro, voltando a máquina fotográfica para o rosto,
procurando o alvo perfeito para minhas lentes e, de repente, como uma
surpresa oportuna e inacreditável, eu a vi.
Cabelos tão negros quanto nanquim, pele bronzeada, rosto em
formato de coração, boca de lábios cheios e grandes olhos amendoados de cor
âmbar, nunca vistos por mim antes.
A mulher que cheirava rosas roxas virou meu precioso objeto de
estudo e me fez mergulhar em transe durante vários minutos.
Capturei a seriedade em seu rosto, o cuidado de seus dedos sob as
pétalas, o contraste da cor da flor contra sua pele. Olhos fechados em sua
concentração de sentir o perfume que a flor exalava e, me pegando
completamente desprevenido, olhos abertos, quentes, intimidadores e
selvagens, encarando-me sob a lente.
Parei por um segundo, afastando a câmera do rosto e endireitando a
postura, completamente fascinado por tamanha beleza. Ela manteve o olhar
no meu, parecendo não estar nada constrangida por ser flagrada em um
momento de guarda baixa, mas, ainda sim, não satisfeita por eu a estar
observando de modo tão invasivo.
— E então, Adrian? O que me diz? — Guillermo me chamou e eu o
olhei, por sentir seu toque em meu braço.
— Sobre o quê?
— Encontrar com o chefe, fazer uma entrevista… Acredito que, pelo
seu sobrenome, a vaga é sua, mas não há como saber se você não for até lá.
— Diga a hora e lugar. Acredito que Domingos García vai adorar me
colocar entre seus músicos, principalmente por causa do meu sobrenome. —
Meu tom foi amargo, mas sempre era assim quando se tratava do meu
passado, do meu sangue.
— Amanhã, à noite, ele estará na cidade, será bem-vindo ao cassino
depois das vinte. — Ele disse, acendendo seu cigarro e dando o primeiro
trago.
— Estarei lá. Obrigado por isso. — Troquei um abraço breve com um
dos violoncelistas mais talentosos que eu já havia conhecido e voltei para
procurar a mulher de olhos ciganos, mas, para minha completa decepção, ela
não estava mais lá.

***

A última coisa que eu esperava era me surpreender com a cidade, mas


Buenos Aires havia evoluído muito e, quando cheguei aos pés do Porto
Madero, comprovei aquele fato ao ver o grande Cassino construído ali.
Foi um pequeno choque, confesso.
Parecendo um templo grego, as colunas de pedra clara e os degraus de
mármore branco já eram o bastante para arrancar o fôlego de turistas
deslumbrados. Com certeza, se a pessoa fosse muito desatenta e não lesse o
grande nome “Cassino Bellagio” gravado na pedra, confundiria a grande
estrutura com a Faculdade de Direito, onde eu só coloquei os pés um dia na
vida, para saber que aquela não era a minha vocação.
Eu era da música e, mais do que nunca, pertencia ao mundo.
Subi as escadas junto a homens bem vestidos e mulheres risonhas e
passei pelo portal, estranhando a entrada ser tão privada.
Parecia estar em um lobby de hotel, onde as luzes amenas faziam com
que a pele de todas as garotas no balcão tivesse tom amarelado. Parei em uma
das filas, estranhando toda aquela formalidade para entrar em um cassino
quando chegou minha vez, me adiantei, falando antes que a atendente de
rosto jovem e sorriso forçado pudesse falar algo:
— Olá, boa noite. Tenho hora marcada com Domingos García.
A recepcionista olhou para o meu rosto atentamente, depois, analisou
minhas roupas, me fazendo pensar que podia estar malvestido de alguma
forma na escolha de camisa, calça e suspensório.
— Seu nome? — Suas sobrancelhas expressivas demonstravam sua
pequena curiosidade.
— Adrian. — Dei um pequeno sorriso para a garota, que não devia ter
mais que vinte e um anos, e completei: — Adrian de La Vega. — Como eu
gostaria de ter um segundo ou terceiro sobrenome para usar…
Intrigada, a garota procurou alguma coisa em seu computador e,
assim que achou o que procurava, sorriu.
— Ah, claro. O senhor García o aguarda. Por favor, espere um
momento. — Ela me pediu e sinalizou algo para alguém atrás de mim.
Olhei sobre o ombro e vi o segurança mais próximo se aproximar. O
homem careca tinha quase a minha altura, mas, facilmente, dava dois, se não,
três de mim na largura.
— Pablo, leve o senhor Adrian ao encontro do senhor García, por
favor. O grandão só fez sinal de positivo com a cabeça e me olhou de cima a
baixo, antes de dizer algo:
— Siga-me. — A ordem foi clara e não houve um segundo chamado,
já que o outro virou-se e caminhou na direção das portas automáticas, de
vidro completamente escuro.
Assim que estávamos dentro, parei por um segundo para que minha
vista se acostumasse com a luz azulada que agredia os olhos. O barulho das
máquinas de caça níquel era alto, mas não tão alto quanto os gritos de
excitação dos apostadores.
Mesas de poker e outros jogos de sorte estavam espalhados pelo
salão, que era comprido horizontalmente, mas não tão comprido quanto
devia. Ao olhar para frente, conclui que não precisava perguntar o motivo, já
que o segurança me guiava para os fundos, onde uma das portas vermelhas
estava causando ansiedade e uma curiosidade que eu não sentia fazia algum
tempo.
— Preciso revistá-lo, senhor. — O segurança disse, parando em frente
à porta, apenas me informando e não pedindo minha permissão. Coloquei as
mãos para cima e deixei que ele me apalpasse, sem reclamar quando sua mão
veio em punho contra o meio das minhas pernas.
— Completamente limpo como pode ver. — Falei ao segurar a dor e
vi um pequeno sorriso surgir na cara do tal Pablo. Talvez aquela fosse a
maior emoção do seu dia de bosta e eu não o colocaria em ação, de forma
alguma. Aqueles punhos podiam, com certeza, arrancar alguns dos meus
dentes com muita facilidade.
— Sendo assim. — Ele se afastou e abriu a porta vermelha. — Pode
entrar.
Sem me despedir, passei pelo segurança e, logo que ele fechou a porta
atrás de mim, o som daquele ambiente me invadiu. Eu reconhecia a melodia,
sabia a letra e não me decepcionei com a interpretação. Quem cantava,
cantava muitíssimo bem.
Dei alguns passos para observar melhor a mulher de roupas verdes a
metros de distância, sobre um pequeno palco, enquanto a banda atrás dela a
acompanhava e, no meio daquele salão gigantesco vazio, Domingos García
estava sentado em uma cadeira, assistindo a seu espetáculo particular.
Olhei em volta, admirado pela acústica do lugar, e vi pilhas de
cadeiras de estofado vermelho por todos os lados. Havia, de cada lado do
salão, três escadarias pequenas, que levavam a camarotes largos e
confortáveis.
Era como se o palco fosse toda a área ali embaixo e os espectadores
ficassem em suas pequenas janelas, que se estendiam em cinco andares até o
teto, que, além de sustentar um grande lustre, abrigava pinturas que imitavam
as dos grandes mestres.
Depois de me recuperar do impacto que o ambiente causara, passo a
passo, caminhei com as mãos no bolso e parei bem ao lado do homem que
seria meu futuro chefe.
Domingos García era corpulento e tinha idade para ser meu pai. Com
certeza, já havia passado dos cinquenta. Apesar disso, ainda sobrevivia em
seu corpo a beleza da juventude e ele assistia à cantoria completamente
imerso, de olhos fechados, apreciando o bom som, e eu não vi outra
alternativa a não ser ficar ao seu lado e esperar.
Aproveitei o momento e contemplei, assim como Domingos, a
cantora, que parecia ter um belo alcance vocal e, assim que ela cantou a
última nota da canção, fui trazido de volta à realidade pelos aplausos ao meu
lado.
— Está vendo como eu sou cuidadoso com meus funcionários? — Ele
disse em uma pergunta retórica. Eu sabia que Domingos não queria minha
resposta. — Muito bem, Raquel. — Ele disse, se levantando e parando de
aplaudir. A cantora, que pareceu gostar muito da aprovação do velho, fez
uma pequena referência e aguardou.
— Garotos. — Ele disse para os homens da banda. — Estão
precisando de um bom violinista e, quem sabe, eu acabo de achá-lo. — Foi só
então que Domingos me olhou de cima a baixo, sorrindo como se admirasse a
nova peça de arte adquirida. — Estão todos dispensados, podem ir. — O
homem disse para os outros. — Já você. — Seu tom foi mais baixo. — Você
e eu temos algumas coisas a tratar, não?
— Espero que sim. — Contive meu sorriso; não era do meu feitio
mendigar por trabalho. Eu era o melhor, sabia disso, e era com um violino
nas mãos que provaria, não com bajulação.
— Ótimo, pegue uma cadeira, o violino que eles deixaram sobre o
palco e depois venha aqui, frente a frente comigo. Espero que você me
emocione.
Se o preço para ficar com o emprego era emoção, eu faria Domingos
García chorar feito um garotinho.
Segui para o palco, abrindo o estojo onde estava o belo violino e,
depois de passar a mão por suas cordas, ouvi um riso baixo e olhei para trás
da coxia, vendo a cantora curiosa fazer plateia junto do resto da banda, que
pareceu me olhar sem graça.
Por sorte, Guillermo não estava ali. Talvez fosse o único obediente às
regras do patrão ou, já conhecendo meu trabalho, não tinha curiosidade de
ver do que eu era capaz.
Nenhum pouco intimidado por saber que era observado por mais
pessoas do que deveria, peguei o instrumento e arrastei uma cadeira para
perto de Domingos, ignorando a ele e a todos os outros enquanto ajeitava o
violino sobre meu ombro e, com a mão no arco, fechei os olhos e respirei
fundo antes de começar. A música fluiu. Coloquei ali, como sempre, toda a
confusão que havia dentro de mim, deixando o instinto me levar, deixando
minhas emoções transparecerem por uma única e clara voz: o som do violino.
Abri os olhos assim que o arco correu sobre as cordas por uma última
vez, naquela canção triste, intensa e cheia de nuances. para encontrar com
Domingos de rosto molhado.
Abaixei o instrumento sobre o colo, depois de alguns segundos,
permanecendo em silêncio junto do outro e esperei seu veredito.
Domingos respirou fundo e, sem vergonha do seu choro, limpou a
garganta e começou a falar:
— Você sabe que seu emprego estaria garantido de qualquer forma
por toda a consideração que tenho ao seu pai, não?
— Eu não gostaria disso. — Confessei sem muitas explicações ou
demonstrações de emoção.
— Eu sei que não. Um homem tem que ter seu orgulho, certo? E,
sendo sincero, sei que não precisaria apelar ao sobrenome, mesmo sendo ele
quem te deu oportunidade de estar nessa cadeira. Não, filho. Você tem talento
e eu seria idiota de deixar você sair por aquela porta sem um emprego. — Eu
quase sorri, mas ele ergueu o dedo indicador, como se houvesse mais. — Eu
o quero na minha casa, mas existem regras que você não vai poder quebrar,
nunca.
— E quais seriam?
— A primeira delas é: o que acontece aqui fica aqui. Principalmente
por detrás daquelas cortinas. A segunda é: não me foda. Não se atreva a
arranjar brigas dentro do meu cassino, não faça nada que me arranje
problemas com a polícia. Já é um bom trabalho manter o extra que essa casa
faz. — A palavra cafetão passou pela minha mente por um breve segundo. —
E terceiro, por último, e não menos importante: Você poderá dormir com
qualquer mulher deste lugar por quem tiver interesse, menos com a minha.
— Não há nenhum problema com nenhuma das regras. Voltei para cá
e não quero depender do meu pai.
— Ah, eu sei da história, filho… — Domingos sorriu de canto, de um
jeito triste, mas conformado e eu fiquei sem saber se me sentia envergonhado
ou idiota. Fantasmas do passado sempre me assombraram, ainda mais ali, de
volta aonde tudo havia acontecido. — E sei que seu orgulho pode ser
reconstruído aqui. Seu salário será bom e, se você não for idiota como a
grande maioria, de ir gastá-lo no salão ao lado, vai ser bem-sucedido.
Duzentos dólares por noite, de quinta a sábado, com ensaios semanais de
acordo com o que a banda acertar. Você aceita? — Havia algo no olhar
daquele homem. Algo que gritava que ele era como meu pai. Algo que
reluzia de maneira duvidosa, mas seiscentos dólares por semana era o que eu
precisava para viver bem e ainda guardar um bom dinheiro para os planos
futuros.
Na pior das hipóteses, eu ficaria ali só até juntar o dinheiro necessário
e iria de volta para a Europa, quando tivesse condições.
— Caro, senhor García. — Decidi que não seria errado tratá-lo
daquela forma. — Acredito que achou o seu violinista. — Estendi a mão,
recebendo um aperto firme e forte do homem que não me parecia nada frágil
tão de perto.

***

— Hoje é dia de show, meu amigo. — Guillermo disse, batendo no


meu ombro, parecendo animado por ter a casa cheia. — Vá se sentar, assista,
aproveite. Alguma hora você será anunciado e então...
— Eu sei o que fazer. — Sorri, despreocupando meu amigo, e desci
as escadas do palco, indo me sentar em uma das poucas cadeiras que ficavam
naquele andar térreo.
A casa estava cheia. O público, em sua maioria, era masculino, mas,
ainda assim, eu via uma ou outra mulher caminhando até a entrada do
camarote. Segundo Guillermo, eu nunca havia visto algo como aquilo. Era
como estar em Paris na época da revolução do amor e eu quase ri ao vê-lo
falar com tanta paixão sobre aquele lugar.
Não demorou muito, mas as luzes logo se apagaram e um sino foi
tocado. O barulho das conversas baixas cessou. Os olhares atentos e ansiosos
para o que acontecia no palco faziam com que os pelos dos meus braços se
arrepiassem e ali embaixo, olhando para cima, por um breve momento,
entendi o que Guillermo queria dizer.
Não havia nada mais prazeroso para um artista do que um público
sedento pelo seu trabalho, e aquele público, ah, eles dissecariam qualquer
músico, cantor ou dançarino que colocasse os pés sobre a madeira do chão e
pediriam por mais.
Aproveitando secretamente aquela ansiedade, esperei até que a
primeira nota do piano fosse tocada, anunciando o começo do show, e,
quando ouvi o som, não me decepcionei de maneira alguma.
O show era uma surpresa para mim, em parte, porque eu não havia
ensaiado com as dançarinas; em parte, porque eu não estava preparado para
vê-las.
Enquanto as notas solitárias do piano cresciam, corpos femininos
adentravam o palco. Graças à proximidade e por causa do reflexo de algumas
luzes, pude ver a lantejoula vermelha dos pequenos vestidos conforme elas se
moviam para a posição que deveriam manter.
O spot de luz acendeu sobre uma delas; a bailarina que havia sido
exposta estava com uma das pernas dobradas e a outra esticada para o lado
enquanto cobria sua face com um leque. O público vibrou em aplausos, me
fazendo cruzar os braços, não acreditando que eles estavam tão animados só
com a entrada, mesmo que ela fosse divinamente perfeita. Olhei em volta, um
pouco deslumbrado e, quando voltei a olhar para o palco, a bailarina que
antes cobria o rosto começava a se mostrar conforme o som do violoncelo
começava a crescer e, naquele segundo, naquele maldito segundo, o mundo
parou quando os olhos naquele rosto me atingiram em cheio. Olhos de
cigana, da mais pura cor âmbar, quase felinos, no rosto que se relava
lentamente, exibindo o nariz arrebitado, a boca cheia e desenhada, pintada
por batom vermelho, e o queixo esculpido por um anjo.
Lá estava ela, eu não podia acreditar.
O choque foi tanto que mal percebi que minha boca havia se aberto e
que meus braços haviam caído dos lados do corpo. Por sorte, o foco não
estava em mim e, no escuro, eu me recuperei rápido. Completamente perdido
na visão dela, não consegui focar em mais ninguém ali a não ser na mulher de
olhos amarelos e reparei que, além de linda, ela se movia como eu nunca
havia visto alguém fazer antes.
O primeiro ato era rápido, exibindo cada uma das dançarinas em cima
do palco, uma força feminina esmagadora. Acompanhei pequenos
movimentos das outras quando dançaram junto dela e, no final, quando se
juntaram uma ao lado da outra, cada uma caindo em um espacate perfeito no
chão, em sequência, o público foi à loucura e eu me levantei junto deles,
batendo palmas, completamente entregue.
A música parou, as luzes se apagaram novamente e eu assisti, ansioso
por mais, enquanto as bailarinas saíam do palco em uma rapidez espantosa.
Logo em seguida, sem nenhum instrumento fazendo base, a voz da cantora
que eu já conhecia soou alto na primeira nota.
Sua voz perfeita fez todos ficarem em silêncio e ela adentrou,
andando até o centro do palco, em sua apresentação solo. Assisti fascinado,
mas ansioso para ir para trás da coxia e descobrir quem era a mulher que
havia me hipnotizado com tanta facilidade.
O show continuou. A cada novo número eu procurava por ela,
ansioso, mas só a vi novamente no quarto ato, quando ela apareceu em um
vestido preto, de cauda enorme, que abraçava suas curvas, marcando,
indiscretamente, seus seios e cintura; brincos reluzentes, visivelmente
pesados e o cabelo preso em um coque volumoso, no alto da cabeça.
Ela deslizou pelo palco, concentrada em seu parceiro de dança, que
estava do outro lado, interpretando um homem distraído. Ela era claramente
uma conquistadora, certeira em cada movimento, confiante de sua beleza,
consciente de seu poder.
Ela o envolveu para dançar e ele não pôde resistir. Quem poderia?
Ali, acolhido no escuro, completamente entregue ao que assistia,
apreciei conforme a dança crescia e eles tomavam conta de todo o salão,
girando, driblando um ao outro, em uma sintonia perfeitamente ensaiada.
Quando a dança acabou, ela estava com os braços meio erguidos,
como uma dançarina de balé, meio agachada, a perna para fora da fenda do
vestido, como se fosse correr para longe do parceiro, que estava de costas
para ela.
Era clara a mensagem: ela havia chegado como um meteoro, pegado o
que queria dele e estava partindo depois de conseguir cumprir com seu
objetivo.
Uma conquistadora, era o que ela era.
Quando dei por mim, estava de pé, aplaudindo tão forte que a palma
da mão ardia junto da multidão nos camarotes. O barulho ecoava, as rosas
voavam sobre ela e, como se soubesse que eu estava lá, ela desviou o olhar na
minha direção, me permitindo ver a entrega dela em um segundo de fraqueza.
Todos viam a beleza, eu via além. O peito subindo e descendo, a boca em um
meio sorriso falso e os olhos sedentos de algo que eu não sabia dizer o que
era.
Durou pouco nossa troca de olhares; logo, ela e o parceiro se viraram
de mãos dadas e cumprimentaram o público.
— Ei, violinista, sua vez! — Alguém perto do palco chamou e eu
corri, despertando do transe, pronto para colocar tudo aquilo que sentia e não
compreendia sobre as cordas do meu violino velho de guerra.
A cantora apareceu novamente, vestida como uma sereia, com os
seios de fora, cobertos pelo cabelo avermelhado comprido. Sua voz
hipnotizou a todos enquanto ela andava até o fim do palco, na outra
extremidade, e, assim que ela se sentou lá, em uma pedra falsa, dando tempo
de todo o resto do cenário ser ajeitado, as luzes todas do salão se acenderam.
Era a minha deixa. O silêncio absoluto do choque da plateia ao se ver
no fundo do mar, ali, naquele teatro mágico, era o que eu precisava para me
apresentar. Dominando o violino no meu canto, de forma clássica, olhei para
Guillermo até que ele me desse o aval e, assim que ele confirmou com a
cabeça, tocando sua primeira nota, eu avancei para o palco, livre, pronto para
fazer a minha mágica.
Eu não era muito convencional.
Poderia ser se quisesse, mas, no geral, ser livre combinava muito mais
comigo e foi essa selvageria que apresentei ao público sedento, que me
abraçou de imediato, quando as dançarinas entraram para completar o
espetáculo.
Toquei, dancei, girei por todos os lados do palco aberto e, no final, foi
uma nota do meu violino que encerrou o show daquela noite.
Parei em pé, de olhos fechados e braços abertos, recebendo os
aplausos todos que sabia merecer e, para minha completa surpresa, não houve
luzes apagadas, não houve um corte de ato. Em um segundo, todos estavam
sentados em suas cadeiras, no outro, o público já invadia o palco, dançando
junto das dançarinas, se misturando ao cenário, fazendo parte daquele mundo
proibido que eu não conhecia, ainda.
No meio daquela confusão, enquanto a música eletrônica que eu não
conhecia começou a tocar, virei para trás, procurando por ela, mas não havia
nenhum sinal da mulher de olhos amarelos ali e o desapontamento me
acertou.
Como alguém podia ser tão bom em fugir assim?
Eu a procurei. Juro que fiz o meu melhor, mas não consegui encontrar
nenhum indício de que ela continuava por ali e, mesmo vendo a grande festa
que acontecia no teatro, regada a álcool, drogas e devassidão nunca vista
antes, saí dali disposto a descobrir quem era ela.
Entrei no bar mais barato do porto, me sentando no balcão, enquanto
a balconista limpava um dos copos lá atrás.
— O que vai querer, rapaz? — A mulher de meia idade perguntou.
— Uma coca.
— Não temos. O único refrigerante que trabalho aqui é Seven Up[2].
Ao ouvir aquilo, quase ri. Maldita seja a volta para casa, eu realmente
estava em Buenos Aires.
— Pode ser… — Respondi contrariado, não sabendo se meu mau
humor repentino era causado por não ter o que queria ou por puro capricho de
não poder me aproximar de novo da mulher com olhos de cigana.
Capítulo 2
“Será que eu estou apenas me enganando,
achando que ela vai parar com o meu sofrimento?”
(She’s Like The Wind, Patrick Swayze[3])

Acordei vendo o relógio ao lado da cama marcar uma e trinta e três da


tarde. Como eu podia ter dormido tanto e me sentir tão cansado? Não houve
um minuto daquela noite de sono em que os olhos amarelos da dançarina não
estivessem em minha mente. Não houvera um segundo de paz dentro da
minha mente desde que soube tê-la tão perto.
O quão idiota eu era por ficar obcecado por um rosto?
Nem eu sabia dizer, só sabia que havia algo mais ali, algo que eu
precisava desvendar ou, provavelmente, enlouqueceria.
Com a intenção de resolver aquela questão, levantei, tomei um belo
banho, dei um gole no café fraco da pensão e roubei uma medialuna antes de
colocar o pé na rua, pronto para encontrar a dançarina e entender o que me
atraía tanto naquela mulher.
Àquela hora da tarde, o movimento no Bellagio era pouco, mas isso
não me livrou de uma revista antes de adentrar a parte proibida do lugar.
Assim que as portas do teatro se abriram para que eu fosse empurrado
para dentro, os rostos no salão me olharam com curiosidade. Endireitei a
postura, passei a mão pela barba, fingindo que não havia acabado de ser
quase arremessado e andei entre as bailarinas que se alongavam, ignorando
seus olhares cheios de interesse, seguindo até a parte alta do palco.
— Violinista? — Uma voz meio infantil me chamou assim que subi o
último degrau e eu me virei para encarar a menina, que, com certeza, não
tinha mais que dezesseis anos, vestida em trajes de balé, com um collant que
marcava seu corpo de seios pequenos.
Era doloroso ver uma criança ali naquele meio, mas não era a
primeira vez que eu via algo do tipo, além do que, não era da minha conta.
— Hola. — Respondi enquanto franzia o cenho, não entendendo o
que aquela menina poderia querer comigo.
— Todos estão curiosos sobre você, mas não tem coragem de
perguntar. Sou Paloma. — Ela estendeu a mão para mim e eu desci os
degraus para me aproximar dela.
— Curiosos comigo? — Sorri de canto para aquela criança.
— É, todas te acham muito bonito. — Ela disse, sem vergonha
nenhuma, e eu balancei a cabeça ao soltar sua mão do cumprimento. — E
querem saber se você pretende se mudar para o alojamento.
— Alojamento? — Perguntei sem entender, ainda processando o fato
de a minha aparência chamar atenção daquele jeito. Eu sabia que minhas
tatuagens espalhadas pelos braços e peito despertavam curiosidade, mas não
me via tão belo quanto aquela garota me fez acreditar que viam.
— É. Lá atrás. — Ela indicou com a mão, enquanto sorria e exibia
seus dentinhos tortos. — Eu posso te mostrar se quiser. Me siga. — E, sem
prestar atenção em mim, se eu iria com ela ou não, a garota passou por mim,
subindo para a parte alta do palco, indo em direção à coxia, e eu não tive
outra opção a não ser seguir.
Passei por mais gente desconhecida. Vi um ou dois rostos dos quais
me lembrava e, assim que Paloma abriu a porta de madeira pintada de
vermelho, o som alto de uma sanfona e o cheiro de álcool e mofo invadiram
meu cérebro.
Bem-vindo ao submundo, minha mente alertou, mas não antes de eu
dar o primeiro passo e me surpreender com a cidade escondida ali dentro
daquelas paredes.
Havia seis andares de quartos e eu fiquei surpreso ao ver que tanta
gente vivia ali. Paloma avançou sobre uma estrutura frágil de madeira como
se aquilo fosse tão seguro quanto a ponte mais firme do mundo e eu a imitei
com cautela, olhando para os três andares que ficavam no nível abaixo de
nós, observando a pequena rua, onde velhos, homens, mulheres e crianças se
misturavam como se aquela vida fosse normal.
Não havia luz do sol, nem vento fresco. Tudo o que tinham eram
luzes amarelas, espalhadas porcamente por aquele espaço, e um ou outro
ventilador para que o calor não os sufocasse.
Paloma me deixou observar por alguns minutos, mas logo disse um
“vem”, tocando meu braço para chamar a atenção e nós voltamos a caminhar
sobre a pequena ponte, em direção ao quarto andar daquele pequeno prédio,
que mais parecia uma favela em pé.
— Eu moro aqui desde os treze, dois andares para baixo. — Ela
contou como se fosse algo normal enquanto ia na direção de uma escada
estreita, me levando para cima. — Muitas meninas trazem os clientes para cá,
por isso os quartos são menores, para que possam dar conta de todos. —
Machucava minha alma ouvir uma criança dizer aquilo com tanta
naturalidade. — Mas venha logo, vou te mostrar o andar onde seu quarto fica.
— A certeza com que ela dizia “seu quarto” me fez calar.
Eu nunca me mudaria para um lugar tão enclausurado.
Subindo até o último andar daquele amontoado de quartos a que a
bailarina à minha frente chamava de casa, ela parou assim que terminou de
subir a escada e colocou as mãos na cintura:
— Aqui ficam os músicos; ali fica a vaca da Raquel, que é a cantora
— Quase ri daquela criança se achando adulta. — E ali fica o quarto da
Charo. Ela tem muita sorte, o quarto dela é o maior… — O tom não era
ressentido, mas um pouco magoado.
— Como você veio parar aqui? — Perguntei, me apoiando com
cuidado no parapeito de madeira, que oferecia uma segurança duvidosa.
— Ah… Minha irmã e eu fomos jogadas na rua, depois que nossa
mãe morreu. Não tínhamos comida, nem teto, nem dinheiro, então ela
começou a trabalhar na noite e descobriu que o Bellagio procurava por gente
como nós. — O sorriso dela era de gratidão, coisa que eu jamais imaginaria
ver naquela situação.
— E pra você… Como é viver aqui?
— Eu não durmo com ninguém que eu não queira, nem minha irmã, o
que é muito melhor que nas ruas. E eu posso dançar, comer, tomar banho, e
tenho um teto para dormir, violinista. O que é melhor que isso? — Os olhos
pequenos sumiram quando ela abriu ainda mais o sorriso. — Mas me diga,
quando você se muda?
— Ah… — Me ergui, passando os dedos pelo suspensório, e olhei
para a porta a qual ela indicara ser minha. — Posso entrar para dar uma
olhada? — Aquela pergunta fez os olhos da menina, que tinha aquele
muquifo como mundo perfeito, brilharem.
Paloma correu para baixo, atrás da chave do quarto, e me deixou ali
sozinho. Olhei de um lado para o outro, procurando por um rosto conhecido,
procurando por qualquer sinal daqueles olhos cor de uísque, mas nada de
encontrar o rosto que parecia tatuado no meu cérebro. Um pouco cansado,
pensando em como perguntar sobre a bailarina que eu queria finalmente
conhecer sem levantar alarde, caminhei em frente aos quartos daquele andar,
vendo que as janelas — que, na minha opinião, não serviam para nada —
estavam todas fechadas, menos uma.
As cortinas brancas, com flores cor de rosa, balançavam e chamaram
minha atenção ao ponto de eu parar em frente a elas e afastar o tecido, tudo
para encontrar um pequeno ventilador branco, ligado no quarto vazio, que
permanecia de luz acesa.
A cama era de casal, velha, coberta com uma colcha de retalhos, onde
descansavam vários bouquets de rosas. Havia um espelho em frente à cama e
uma penteadeira cheia de coisas, entre elas, uma foto, que poderia estar a um
quilômetro de distância e eu ainda conseguiria enxergar. A bailarina que eu
procurava estava abraçada a um menino de, no máximo, três anos. O cabelo
dele era tão escuro quanto o dela e os olhos… Será que ela era mãe?
Curioso como nunca, tão sedento de qualquer migalha de informação,
tomei um susto quando Paloma voltou, saltitando ao meu lado, enquanto
balançava a chave entre os dedos.
— O que você está vendo aí, violinista? O quarto de Charo não é
como o seu, pode esquecer.
Charo… O nome soou tão bem nos meus ouvidos! Olhando para a
foto, pensando no nome, ele era tão único quanto ela. Era um bom nome.
— Você pode me chamar de Adrian, sabia? — Ela ergueu as
sobrancelhas, surpresa. — É, esse é o meu nome. Agora me conte, onde
Charo está? Acho que ela esqueceu a luz acesa.
— Ah não, é costume dela. Charo nunca apaga a luz… — A garota
riu sem graça, enquanto se virava. — Ela tem medo de escuro. — E,
seguindo para a porta que deveria ser do meu quarto, dei uma última olhada
para onde a mulher dos olhos amarelados dormia.
O quarto que me era devido não passava de um cubículo, com uma
cama de solteiro, uma pia e privada, com um chuveiro precário no espaço
entre as peças. Tomar banho ali seria um desafio, além de que eu apostava
que, naquele colchão, vivia uma colônia inteira de percevejos.
— É um bom quarto.
— O seu é desse tamanho?
— Um pouquinho menor. Não temos banheiro no quarto e minha
cama e de Lia ficam muito próximas. Mas não é ruim.
— Claro… — Tentei não parecer desinteressado. — Mas eu ainda
estou pensando sobre o quarto de Charo.
— É claro que está, todos estão. — Ela riu. — Charo não está, foi até
a casa de uma amiga, na Villa 31, ver seu sobrinho, mas ela é bem… —
Paloma não continuou. — Charo não se mistura com a gente, o que é uma
pena, porque eu gosto muito dela. — Tinha verdade no tom da menina.
— É mesmo? Faz muito tempo que não vou até aquele bairro. Sabe
onde ela está?
— Não… Mas a camareira dela deve saber, posso arranjar para
você… Mas. — Por um segundo, achei que estivesse ferrado. — Por que
você quer ir até ela?
— Passei muito tempo longe e queria ir até a villa ver se ainda é como
eu me lembro, seria bom ter alguém para voltar comigo mais tarde. — Foi a
desculpa mais improvisada que podia ter arranjado, mas Paloma pareceu se
convencer pelo meu tom de desinteresse e, logo que terminei minha fala, ela
saiu do quarto, pedindo um minuto para que pudesse me ajudar.
Quando ela voltou, me entregando um papel com o endereço escrito
numa letra infantil e desengonçada, eu a agradeci e saí do Bellagio o mais
rápido que podia, pronto para entrar na favela em que toda Buenos Aires
tentava fingir não existir, me questionando o que Charo fazia num lugar
como aquele, vivendo confinada naquela vida, quando parecia merecer muito
mais.

***

Tirando o fato de que as casas pareciam ter se multiplicado em


centenas, a villa continuava a mesma. O cheiro forte por causa do esgoto não
tratado, o barulho por conta da rodovia, das crianças brincando com o pé no
chão de terra e da fofoca tardia dos moradores na porta de casa; a visão do
aglomerado bagunçado, pobre e vivo, muito vivo, que sobrevivia nos
arredores da linda e rica Buenos Aires.
O primeiro pensamento que tive quando cruzei uma das ruas com o
sol se pondo foi o de que meu pai seria o primeiro a derrubar aquelas casas
para construir algo que rendesse mais dinheiro para o seu pequeno império e,
com certeza, seu coração de pedra não se importaria com quem estivesse no
meio do caminho, eu sabia. Já havia passado pela experiência e ser seu filho
não me livrara da dor.
Suspirei profundamente, colocando as mãos no bolso, tentado a
desistir da minha busca sem pedir informação, quando, do nada, uma bola
atingiu minha cabeça.
As risadas infantis encheram o ar e eu coloquei a mão onde fui
atingido antes de me virar e ver o dono da boa mira.
— Foi mal! — O garoto de cabelos pretos, curtos, olhos amarelos e
sorriso com dentes faltando falou enquanto erguia a mão e exibia o peito nu,
e parecia orgulhoso do que os pés descalços eram capazes de fazer.
— Manuelito! O que está fazendo? — Ouvi a voz que vinha de dentro
da casa mal construída e, no segundo seguinte, ela saiu.
Vestida em uma saia de retalhos comprida e camiseta preta, de
mangas compridas e gola alta, com os cabelos presos para cima, Charo estava
linda. Duvidava que houvesse algum jeito de ela ficar menos do que isso, mas
engoli a surpresa por encontrá-la e aguardei até a hora de ela me ver.
— Foi sem querer, madrina! — O menino se defendeu do tom
acusador dela. — O homem estava passando quando eu chutei, não consegui
vê-lo.
— Aham, assim como não viu os outros seis que passaram por aqui
antes? — Ela achou graça, cruzando os braços e endireitando a postura,
virando-se para mim, enquanto um meio sorriso surgia em seu rosto. —
Conversaremos depois... — Charo disse ainda com os olhos sobre o menino,
e, então, finalmente, colocou os olhos sobre os meus.
Mantendo seu olhar, caminhei até ela, ignorando as crianças, e parei
perto do garoto que a havia chamado de madrinha.
Ela não era a mãe e aquela informação fez o pequeno pesar da dúvida
sobre o meu coração derreter.
— Sinto muito por meu sobrinho, senhor. — Ela disse. — Eu não o
conheço? — Ela ergueu uma das sobrancelhas.
— É apenas uma criança, não tem problema. — Desviei o olhar para
o garoto, que parecia me analisar. — Só cuidado com a mira, o gol era um
pouco mais para a direita e para baixo. — Pisquei para ele e baguncei seu
cabelo. — Já a senhorita? — Perguntei para confirmar e ela fez que sim com
a cabeça. — Nós já nos vimos sim. Sou o novo violinista do Bellagio. — O
reconhecimento em seu rosto foi imediato. — E eu estava te procurando.
Encontrei com você alguns dias atrás, no rosedal, você se lembra? — Ela
franziu o cenho, em um verdadeiro esforço para lembrar.
— Me desculpe, minha memória já foi melhor.
— Não há problema nisso, mas ficaria triste se você se negasse a
posar um dia para mim. Você modela e dança muito bem.
— Muitíssimo. — Ela me corrigiu.
— Como? — Perguntei com um meio sorriso no rosto, ao qual ela
correspondeu.
— Danço muitíssimo bem. — Não havia falsa modéstia ali e eu parei
de atrapalhar o jogo das crianças, me aproximando dela, enquanto via seu
olhar me medir. — Mas e o senhor? Quão bom é no violino?
Os gritos das crianças recomeçaram, denunciando que não éramos
mais alvos de olhos curiosos.
— Ah, minha cara... Existem cinco coisas nessa vida que ninguém faz
melhor do que eu.
— É mesmo? — Sua expressão era de divertimento. — E o que são
essas coisas?
— Tocar violino. — Falei, contando nos dedos, falando aquele fato
como se fosse óbvio. — Fotografar, cozinhar, fazer amor e foder. Não nessa
ordem, necessariamente.
Aquela foi a primeira vez que Charo gargalhou e sua risada era
divina.
Seu corpo até mesmo se dobrou e ela apoiou a mão em meu ombro
antes de se recuperar.
— Desculpe. — Ela disse alguns minutos depois. — Achei que fazer
amor e foder fossem a mesma coisa.
— Isso, madame, é porque você nunca fez nada disso comigo. —
Falei sério, mas ainda com o sorriso no rosto, mantendo o tom daquilo leve e
vi Charo me analisar mais friamente. Os olhos amarelos dela eram capazes de
me derreter e eu duvidava que aquela mulher tivesse noção daquilo.
— Sou Charo. — Ela me deu a mão, se apresentando.
— Eu sei. — Peguei sua mão e, ao contrário do que ela esperava, não
a sacudi. Me curvei, mantendo seu olhar e aproximando os lábios dos nós dos
seus dedos, antes de beijá-la, disse: — Sou Adrian.
E, aquele sim, foi o começo de tudo.
— O que faz aqui tão tarde? — Ela me perguntou depois de me
oferecer uma cerveja, me lançando um olhar desconfiado depois de eu
recusar.
— Faz pouco tempo que estou de volta, queria ver como estava este
lugar. Coincidência estranha essa de te encontrar aqui. — Menti
descaradamente e engatei em um pedido. — Por acaso você não tem Coca-
Cola aqui?
— Ah, sinto muito, mas acho que tem Seven Up. — Ela se virou, mas
eu a impedi de seguir.
— Não aguento mais tomar esse negócio, esquece. — Ela sorriu.
— Não bebe cerveja, não gosta de Seven Up… Tem certeza de que é
argentino, senhor?
— Não precisa de toda essa formalidade. — Disse conforme me
encostava na parede, pintada de um amarelo vivo, da casa onde ela estava
abrigada. — E eu poderia te dizer que sou um pedaço de cada um dos países
que visitei durante esses anos, mas o sangue argentino corre forte nas minhas
veias. Raízes são raízes; mesmo que você tente podá-las, voltam a crescer.
— Não posso discordar disso. — Ela suspirou e, de repente, deu um
grito. — Manuelito! Já está no banho? Está tarde!
— Estou, madrina! — Sabíamos ser mentira.
— É bom que lave as orelhas. Se eu entrar aí e o chuveiro estiver
ligado, gastando água à toa, vou te lavar com cloro!
Houve um grito vindo lá de dentro e ela parou na porta, ouvindo o
barulho da água bater contra um corpo.
— E você, o que faz aqui? — Perguntei, vendo a bailarina dar um
gole em sua cerveja.
— Meu sobrinho vem a cada quinze dias ver nossa prima, Una, que
mora aqui. Aproveito para vê-lo e o levo de volta para a cidade de Tigre.
— A esta hora? Não tem medo de navegar no escuro?
— Você tem? — Ela perguntou com seus olhos sobre os meus e eu
não sabia se aquilo era um flerte ou apenas uma indagação vazia para
esconder o medo que diziam que ela tinha.
— Isso seria um convite?
— Só um tolo responde a uma pergunta com outra e, sim, isso é um
convite. — Ela terminou sua cerveja em alguns goles, numa virada de
garrafa.
— Então não, não tenho medo e, sim, vou com você.
— Ótimo. Espere aqui. — Ela sorriu, parecendo levemente aliviada
por ter companhia, e seguiu para dentro da casa, soltando mais alguns gritos
para o sobrinho ir logo.

***

Vinte minutos depois, Charo e Manuelito apareceram: ele, de banho


tomado, cabelos penteados e o sono estampado na cara, de mãos dadas com a
tia; e ela, com a mochila que devia ser dele nas costas, uma sacola cheia de
comida na outra mão e o olhar impaciente.
— Eu não deveria ter me deixado levar pelo seu sorriso banguela,
sabia? Você sabe como não gosto de voltar tão tarde…
— Esse moço vai com a gente, não vai? Ele te protege do escuro. —
Manuelito falou e eu quase acreditei que ele fosse gostar logo de mim. — Já
testei a cabeça dele, é dura. Se um jacaré for morder, joga ele na frente.
Eu gargalhei enquanto Charo segurou o riso, surpresa por tal
comentário.
— Jacaré? Você já viu algum alguma vez nessa vida?
— Vi sim! Quando o barco da escola passou, todo mundo viu. — O
menino insistiu na sua história.
— Ok, mas acho que posso trazer sua tia em segurança, sem precisar
virar jantar de qualquer bicho no meio do caminho.
— É uma boa, já que ela te acha bonito. — O menino ganhou uma
olhada da tia e soube, na hora, que havia feito coisa errada.
Fiquei quieto, seguindo os dois, que começaram a andar quando
Charo puxou Manuelito, obrigando o menino a se movimentar antes que
falasse mais alguma coisa que não devia.
Manuelito aguentou acordado até a metade do caminho do ônibus,
então eu o peguei no colo para que Charo desse conta da sacola e da mochila
e pude ver o alívio no rosto dela.
— Gracias. Eu o carregava muito bem até os quatro anos, depois
disso, parece que ele come cimento. — Ela disse, ajeitando o capuz na cabeça
do menino, que estava apoiada no meu ombro.
— Quantos anos ele tem agora?
— Seis. Faz sete em fevereiro.
— E onde está a mãe dele? — Perguntei.
— Minha irmã morreu. O pai abandonou; somos só nós dois. — Ela
respondeu, sem olhar para mim, e deu um beijo demorado na testa do
afilhado. — Ei! — Charo olhou pela janela. — Nós descemos daqui a pouco.
Esperei ao lado dela, em silêncio, carregando o menino e a sacola de
comida para que ela pudesse alugar um barco no pequeno porto e, entre as
embarcações maiores, prontas para levar turistas para verem como era a vida
da cidade no rio, me lembrei da minha primeira vez ali.
A cidade de Tigre era primitiva na visão do meu pai e eu cresci com
aquele preconceito.
Era estranho imaginar que as pessoas viviam em casas de palafita, no
meio do rio. A polícia, a ambulância, o mercado, o lixeiro e sabe mais lá o
que, tinham sua base em barcos, subindo e descendo o rio, para atenderem a
uma população que, na minha visão, era pobre de espírito. Eu jamais
conseguiria viver daquela forma e sabia que tinha gente que vinha para a
cidade estudar e decidia voltar para o meio do nada depois disso. Era duro de
acreditar porque, no meu caso, quanto mais eu conhecia do mundo, mais eu
queria ver, mais longe eu precisava ir, porém, ironicamente, estava eu com os
pés na terra, onde eu jurara nunca mais voltar.
Pobre idiota amaldiçoado eu era, mas não havia nada que pudesse
mudar o rumo do destino.
Ali eu estava, com uma criança desconhecida adormecida no colo,
seguindo a mulher de olhos amarelos para o meio do nada.

***

— Ele está muito pesado? — Charo me perguntou, visivelmente


nervosa. Ela não conseguia parar de mexer as mãos e balançar o pé.
— Não, não se preocupe. Mas e você? — Perguntei vendo o sorriso
sem graça dela surgir, enquanto pousava as mãos no colo e firmava os pés no
chão do pequeno barco.
— Eu não gosto de trazê-lo tão tarde. Na verdade, não gosto do
escuro.
— Desde sempre? — Perguntei.
— Como? — Ela ergueu o rosto, não entendendo o que eu queria com
a pergunta.
— De onde veio esse medo?
— Ah, sim. — Ela colocou os pés na madeira onde eu estava sentado
e abraçou o próprio corpo. — Desde muito pequena. Eu caí no lago quando
tinha seis anos, quase me afoguei, mas tudo o que me lembro da morte é de
ser escuro… Desde então, todas as vezes em que fiquei no escuro, coisas
ruins aconteceram. — Charo olhava para frente, não para mim, mas para o
além.
— E como você acabou no Bellagio?
— Está querendo o que com isso, violinista? — Ela perguntou
desconfiada, mas seus olhos entregavam que eu não havia ido longe demais.
— Estou querendo ir até onde você deixar. — Confessei, curvando
um pouco o corpo na direção dela e ganhando um sorriso faceiro.
— Meu pai trabalhou na construção do Bellagio quando era vivo e,
quando todos morreram, eu não tive outra opção. É trabalhando lá que vou
garantir que esse pequeno tenha o futuro que eu não tive e, então, no dia em
que ele estiver formado, terei dinheiro o bastante para sair daqui e ir para
longe, o mais longe que puder, para algum lugar onde nunca escureça. —
Charo não sorria ao contar aquele pequeno resumo da sua história. Na
verdade, achei que tinha visto seus olhos marejarem enquanto ela acariciava
as costas do sobrinho.
— E ele? Não vive junto de você por quê?
— Porque não quero que ele tenha aquela visão de vida. Manuelito
merece mais. Merece crescer saudável, feliz e longe da confusão que é o
Bellagio. Então eu continuo a mantê-lo na nossa antiga casa, aqui no Tigre, e
todos os vizinhos me ajudam a cuidar dele.
Eu não chamaria aquilo de criação ideal, mas ela dizia, com tanta
certeza, que aquilo era o melhor, que não me atrevi a criticar.
Cada um lidava como podia com a própria merda e, se eu fosse
Charo, talvez não quisesse que meu sobrinho, a única família que parecia
restar, conhecesse o submundo que existia por trás das cortinas do Bellagio.
— E você, Adrian? — Ela disse meu nome pela primeira vez. —
Como chegou ao Bellagio?
— Acabo de voltar depois de longos anos fora. Visitei todos os países
que você possa imaginar, aprendi mais línguas do que imaginei ser possível,
toquei e dancei em todo o canto que pude, mas… — Olhei em volta, para a
água turva que mal podia ver naquela escuridão, e suspirei: — Algo me
trouxe de volta.
— E sua família? Eles devem ter ficado felizes por você ter voltado.
— Não tenho família. — Respondi rápido demais e Charo segurou a
respiração. — Não uma que eu queira perto, no caso.
— Então… — Ela continuou depois de alguns segundos me
observando. — Você tinha todo o mundo para ir e resolveu voltar?
— É isso. — Ri sem graça. — Mas em breve, quando descobrir o que
me trouxe até aqui de novo, vou embora. — Olhei para ela, quase tentado a
chamá-la para a aventura da minha vida boêmia.
— Você é livre, violinista. Eu invejo a sua liberdade. — Ela falou
antes de o barco atracar num pequeno cais, onde uma senhora esperava,
pacientemente, com uma mulher de meia idade ao seu lado e uma lanterna na
mão.
— Achei que não voltava hoje. Como está o pequeño?
— Adormecido. — A morena disse, pegando Manuelito do meu colo
e passando para a mulher ao lado da senhora. Pulando para fora do barco, ela
abraçou as duas mulheres que aguardavam ali, se demorou alguns segundos,
beijando a cabeça do sobrinho, e tentei me concentrar em outra coisa que não
fosse a conversa delas.
Foi rápido, não levou mais que quinze minutos, e lá estávamos nós no
caminho de volta.
— Você não sente falta dele? — Perguntei, me aproximando de
Charo enquanto ela se encolhia de frio.
— Sempre, mas não há o que fazer, até que o pesadelo todo acabe, até
que eu possa voar com ele para longe daqui. — O tom triste dela me doeu na
alma. Charo não era uma das meninas do Bellagio super agradecidas por um
teto e um prato de comida quente. Ela queria mais, sabia merecer mais e
ansiava pela sua carta de alforria.
Capítulo 3
“Eu queria poder fingir que não preciso de você.”
(Señorita, Shawn Mendes [4]feat. Camila Cabello[5])

Eu não conseguia deixar de olhar para ela, sentindo um queimar


diferente no peito ao ver a simplicidade com a qual nossa conversa se
desenrolava. Charo quis saber sobre os países em que estive, queria saber
qual a coisa mais esquisita que eu já havia comido e qual a pessoa mais
interessante que eu já havia conhecido.
— Estamos em processo, mas acredito que seja você, madame. — Ela
riu ao me ver repetir o apelido recente.
— Eu? — Charo me olhou sobre o ombro e sorriu sem graça,
desviando o olhar. — Não pode ser que você tenha rodado o mundo todo, em
toda a sua experiência, e que uma pobre bailarina de cassino seja a pessoa
mais interessante que já conheceu.
— Mas é, e, por acaso, você me chamou de velho? — Brinquei,
parando, colocando as mãos sobre o peito como se aquilo doesse.
— Não! — Ela colocou a mão sobre a boca, escondendo o riso. —
Não, nada a ver com a sua idade.
— Mas agora quero saber: quantos anos acha que eu tenho? —
Perguntei, olhando em volta a maioria dos comércios fechados na Avenida
del Libertador, notando o quão deserta parecia a rua.
— Não sei, trinta e… — Ela balançou a cabeça. — Agora estou com
medo de você ficar ofendido.
— Não, não ficaria. — Encorajei-a.
— Trinta e cinco? — Ela chutou com as sobrancelhas juntas.
— Quase... seis. — Ri ao vê-la se erguer, vitoriosa.
— Não fui tão mal.
— Não. Mas e você? Quantos anos tem?
— Adivinhe. — Ela me desafiou.
— Não é justo. A idade não é um problema para mim, mas já conheci
mulheres que estão fazendo aniversário de quinze anos há mais de quinze
anos. — Charo gargalhou alto.
— Eu não sou assim, violinista, mas vou poupá-lo do
constrangimento então. Tenho vinte e seis.
Como era possível? Uma menina, dez anos mais jovem, fazendo de
mim refém de seu rosto, olhos e atenção.
— Não imaginava isso. — Confessei, envergonhado.
— Não? E achou que eu teria quanto? Talvez eu me ofenda se disser
mais que trinta.
— Não… Eu não imaginei um número.
— Então não entendo. — Ela disse, olhando para frente, enquanto
caminhava devagar ao meu lado.
— É que, já ouviu que anjos não parecem ter uma idade?
— É essa a sua melhor cantada, violinista? Talvez você não tenha
trinta, mas sim sessenta e seis. — Charo não tinha vergonha de me provocar e
eu ri.
— Justo, mas a parte de estar com fome e ser uma bênção encontrar
aquele Freddo aberto é real. — Tentei desconversar sobre o que ela havia
acabado de dizer. Por que eu, que nunca me vi compelido por mulher
nenhuma, estava cheio de dedos por ela?
— Eu confesso que não saberia viver sem esse sorvete, ou então as
péssimas pizzas do Ugi’s.
— Você diz isso porque nunca comeu as pizzas do Rio de Janeiro. —
Comentei e a vi ficar espantada, tanto pelo meu comentário quanto pelo fato
de eu pegar sua mão para atravessar a rua.
Com seu sorvete de doce de leite na mão, Charo parou e olhou em
volta.
— Está muito tarde. Preciso ir…
— Se quiser, posso te levar. — Me ofereci, sedento por um sim.
— Você não precisa fazer isso, Adrian. Já te aluguei demais por hoje,
mas obrigada por ter me acompanhado.
— Não foi trabalho nenhum, madame. — Ela sorriu, dando alguns
passos e estendendo a mão para o táxi que vinha na avenida.
— Até.
— Até, Charo. — Falei quando o carro preto parou para que ela
entrasse e eu observei enquanto ela partia, erguendo todas as dúvidas que
poderiam habitar minha mente e coração.
O que é que vinha sendo despertado daquela forma?
Eu poderia dizer que era amor à primeira vista, mas a vida já havia me
ensinado que aquele tipo de coisa não existia, pelo menos, não para mim.
Tentando afastar o pensamento boêmio de amor, fiquei com a segunda opção
de que, talvez, fosse interessante demais conquistar, de graça, o sentimento
de uma mulher que era paga para fingir.
Terça era dia de ensaio e eu apareci cedo no Bellagio. Mais cedo do
que deveria, na verdade. Quando me sentei em um canto, com o violino no
colo, cuidando do meu velho e bom amigo, só as bailarinas estavam por ali,
todas se alongando e conversando baixo. Procurei algum rosto conhecido,
mas, quando não encontrei, voltei minha atenção à limpeza do meu
instrumento, me concentrando mais do que devia no estado das cordas. Não
notei quando a cantora se aproximara.
Raquel parou bem na minha frente, os cabelos longos, de um tom
vermelho forte, estavam soltos. O rosto sem maquiagem, o vestido verde de
tecido fino marcava seus seios, quase como um desenho perfeito, e mostrava
que ela não mantinha nada por baixo. Não havia como ignorar sua beleza,
mas eu não estava interessado, então evitei olhar.
— Boa tarde, Adrian. É a primeira vez que vejo um músico pontual.
— Ela disse antes de levar a garrafa d’água à boca.
— Não gosto de atrasos…
— É algo a se acostumar, principalmente quando boa parte da banda
deve estar de ressaca. — Ela sorriu e se sentou no chão, apoiando as mãos
para trás, deixando o peito em evidência, me fazendo desconfiar que ela
queria que eu a olhasse. — Mas, se quiser começar, estou pronta.
— Acho que não temos outra alternativa. Você tem as partituras do
próximo show? — Era uma regra do Bellagio nunca repetir um show no mês
e cada um dos espetáculos só ficava na agenda por seis meses, então eu
precisava decorar todos os quatro shows que estavam na ativa e incrementar,
ao meu modo, nas partes livres.
Raquel pareceu muito solícita e, tirando a parte de me tocar mais do
que o necessário e roçar o seio no meu braço quando se abaixava perto de
mim para ler a partitura ou fazer algum comentário, eu não via motivos para
reclamar. Também não houve tanto tempo para que as coisas ficassem mais
intensas, porque a banda toda chegou vinte minutos depois e isso a obrigou a
ficar longe.
O show daquela semana era mais intenso, os atos eram maiores e,
assim que eu aprendi cada uma das músicas que o show de duas horas tinha,
as bailarinas entraram para suas partes.
Era um pré-show, a única diferença eram as roupas, mas todos ali
pareciam levar a sério enquanto gritos vinham da coreógrafa idosa que
comandava o balé e de um maestro abusado, o qual eu tentava ignorar.
Foi quando, no sexto ato daquele show enorme, ela entrou.
Seu vestido de cetim preto tinha uma fenda enorme na coxa esquerda
e, com os cabelos soltos e saltos enormes, Charo parecia uma pequena
pantera: selvagem, mortal, linda como eu nunca havia visto.
Seu ato começava com o som do meu violino e eu espreitei, tocando,
procurando uma brecha de seu olhar sobre mim. Ela colocou sua mão sobre o
ombro do dançarino que era seu par e, logo, mãos surgiram em sua cintura,
vindas de trás. Charo dançou de um lado para o outro, como se estivesse
possuída, e, então, quando a canção cresceu, seu corpo girou e suas mãos
foram parar junto do dançarino, que estava em suas costas. Eu podia sentir a
vibração que emanava deles. Charo estava furiosa assim como seu parceiro
de dança; os movimentos de seus corpos eram ritmados, sedutores, mas
agressivos e fortes. Extasiado, a acompanhei dançar, admirei seus
movimentos, bebi da sua presença, hipnotizado como nunca havia me visto
ficar.
Quando o ato acabou, Charo estava quase deitada no chão, apoiada
apenas pela força do braço de seu parceiro. Seu peito subia e descia rápido,
seu cabelo estava espalhado pelo chão e seus olhos, os olhos que me
encantaram desde o início, estavam olhando na minha direção.
— Bravo! — A velha coreógrafa gritou, dando uma única palma. —
Charo, preciso de mais emoção, Munier, você precisa acompanhar melhor o
ritmo deles dois… — Ela começou a falar com o trio e Charo se sentou,
realmente prestando atenção no que lhe era dito.
Foi ali, vendo a mulher sem nenhum artefato além da sua beleza
natural, que me dei por vencido. Eu deveria dormir com ela. Meu contrato
dizia que eu tinha o direito de fazê-lo, então, por que não? Eu seria melhor do
que qualquer outro homem que já havia compartilhado sua cama e mal podia
imaginar o que seria de nós dois nus se ali, apenas com uma dança, Charo me
deixava com o desejo correndo solto pelas veias.
— Bonita, não? — Raquel comentou, apoiando o cotovelo no meu
ombro. — Pena que é intocável.
— Oi? — Perguntei, tentando ser discreto. — Como assim intocável?
— Charo é concubina do dono de tudo isso. — Ela ergueu o indicador
e o girou no ar. — É a escolhida. — O tom de inveja foi pesado naquela fala
ferina. — Isso quer dizer que qualquer sonho molhado que você venha a ter
com ela precisa sumir, querido. Não há ninguém louco o bastante para tentar
encostar no troféu do chefe.
— Longe de mim ser o primeiro. — Talvez houvesse mais raiva do
que eu gostaria de demonstrar na minha fala e o sorriso que Raquel deu ao
me ouvir comprovou que a discrição que eu estava tentando manter tinha ido
por água abaixo.
Continuei meu trabalho, tentando não olhar para nada além da
partitura à minha frente, mas parecia impossível evitar olhar para ela de vez
em quando, ainda mais quando sentia que seus olhos cor de âmbar estavam
sobre mim.
Como uma criança contrariada, sabendo que eu não deveria me sentir
tão traído, entrei no bar junto de Guillermo, que ria de mim.
— Então você achou a mulher do chefe bonita? Não é o primeiro.
— Jura? — Meu tom sarcástico foi ignorado por ele, enquanto nos
sentávamos nos pequenos bancos de tampo de madeira, de frente para o
balcão.
— Bom, cabe a mim, como seu amigo, alertar. Não se envolva com
ela, não tente nenhuma graça ou as coisas podem ser… difíceis. O último que
tentou está comendo alface pela raiz.
— O que vão querer hoje, rapazes? — O homem atrás do bar
perguntou.
— Uma dose de vodka aqui e? — Guillermo perguntou para mim.
— Uma Coca.
— Não trabalhamos com coca, só...
— Seven Up. — Completei, rindo da minha infelicidade.
— Isso não é bebida de homem. — Meu amigo comentou enquanto
seu copo era servido.
— É bebida de alguém que não quer se apoiar nessa droga de álcool
para justificar as merdas que faz. — O tom agressivo com que disse aquilo
calou a boca de Guillermo, mas me deixou com o coração pesado.
A ordem era esquecer, me afastar, ignorar a existência dela, eu sabia,
porém, dentro de mim, algo lá no fundo insistia em queimar e questionar: E
se?
E se fosse tarde demais para virar as costas?
Parecia ser, tanto que, no dia seguinte, eu não deixei por menos.
De volta ao ensaio, pronto para a parte do meu solo, andei até o meio
do palco e respirei fundo enquanto fitava as bailarinas sentadas, me
encarando com expectativa.
Meu coração batia forte e a ansiedade pelo que eu faria em seguida
me deu um leve arrepio na coluna, mas, mesmo assim, não desisti. Charo me
olhava junto das outras e, assim que ouvi o piano dar a deixa para a minha
entrada, comecei a tocar ferozmente, querendo que todas as notas da minha
música anunciassem o meu próximo ato.
Girei sobre os pés sem perder nenhuma nota e caminhei, pé ante pé,
até ela.
— Levante-se. — Eu mandei e, sem entender o que acontecia, Charo
obedeceu. Rapidamente, coloquei sua mão sobre o meu ombro e ela entendeu
o que eu queria.
Charo veio comigo para o meio da pista novamente, me rondando,
com os olhos nos meus a todo instante, então, ali, dançamos juntos, no meu
ritmo.
Girei e suas mãos firmes nos meus ombros a obrigaram seguir o
movimento. Charo deslizou as mãos pelos meus braços e veio para ficar de
frente para mim, brincando com suas pernas longas, nos movimentos que o
tango lhe exigia. Havia algo no breve sorriso escondido que via em seu rosto.
Movi o corpo para a esquerda e ela para a direita. Movi o corpo para a
direita e ela para esquerda. Charo me agarrou com firmeza, acima dos
cotovelos, e tentou me conduzir, mas eu não permiti. Obriguei-a a dançar
comigo, por metade do salão, cruzando minhas pernas vez ou outra com as
dela e, quando não a deixei com espaço para voltar a ficar em pé, terminei o
solo.
Palmas seguiram atrás de nós, mas eu só conseguia prestar atenção
nela: no aperto firme em meus braços para não cair; no cheiro doce de sua
pele; no decote revelador, que mostrava o peito subindo e descendo; na
garganta marcada pelo esforço e no olhar indagador. Aqueles olhos malditos
de cigana: grandes, amendoados, cor de ouro.
A boca de Charo se entreabriu e fechou algumas vezes e eu não soube
o que falar.
Ajudei a mulher a ficar de pé novamente e ela se afastou de imediato,
se recompondo o mais rápido que podia.
— Bravo! — A coreógrafa veio aplaudindo, parando bem na nossa
frente. — Acho que você tem mais talento do que eu imaginei, Adrian de La
Vega. — Aquela mulher idosa sabia quem eu era e seu olhar sobre mim
trouxe uma mistura de receio e orgulho. Eu não era o filho do meu pai, eu era
o violinista que ganhara o mundo.
— Gracias, señora.
— Acho que devemos deixar isso no show principal, na verdade. —
Ela se virou para as outras bailarinas. — Podemos acrescentar algumas
danças. Se importa?
— De maneira nenhuma. — Respondi.
— Bom, se me dão licença. — Charo parecia ainda estar
desconcertada e, sem trocar nenhuma palavra comigo, saiu caminhando,
batendo os saltos finos contra a madeira, sumindo para o fundo do Bellagio.
— Espero que ela não vire uma diva… — A coreógrafa comentou
conforme assistia a Charo se afastar.
— Se não se importa. — Chamei a atenção dela de volta e a mulher se
virou para mim, com a sobrancelha pintada erguida. — Sabe com quem
preciso falar para poder me mudar para o meu quarto?
Mesmo duvidando das palavras que saíam da minha boca, eu o fiz. Se
ficar perto de Charo significava morar naquele lugar, que fosse. Depois
daquela dança, não havia mais volta.
Eu a queria e não havia diabo na terra que me faria mudar de ideia.
Capítulo 4
“Quando todos nos dizem o que podemos ser,
como podemos reescrever as estrelas?”
(Rewrite The Stars, Zac Efron feat. Zendaya[6])

— E aqui está sua chave. — A camareira, que parecia intimidada por


mim, disse ao colocar o objeto sobre a pilha de lençóis e travesseiro que eu
carregava. — Tente não perder o dia da lavanderia, recolhemos as roupas de
cama toda segunda, é só deixar do lado de fora do quarto.
— Pode deixar… Obrigado. — Falei antes de virar as costas,
realmente surpreso pela organização daquele lugar tão precário.
Subi as escadas estreitas com dificuldade, carregando minhas malas e
todo o resto de uma única vez, para o último andar do alojamento, chegando
lá completamente suado por conta do esforço em um lugar tão abafado.
Abri a porta do quarto, acendi a luz e sorri ao ver um ventilador
pequeno já ligado, tentando trazer um pouco de vento para aquele cubículo.
— Pare de reclamar, você já dormiu em lugar pior. — Falei em voz
alta, comigo mesmo, enquanto analisava o quarto, agora limpo, e me sentava
no colchão, que rangera sob o meu peso. — É… não é tão ruim. — Me
convenci e suspirei antes de colocar minhas coisas no lugar, enquanto, do
lado de fora, uma sanfona acompanhava a cantoria de um coro animado.
Uma hora depois, eu já tinha pendurado as roupas, forrado a cama,
limpado meu violino e tomado banho no banheiro hiper apertado. Escovei os
dentes, realmente cansado, e deitei na cama, largando o corpo no colchão.
Tentando relaxar depois de apagar a luz, olhei pela janela aberta no pé da
cama e notei como, mesmo com o barulho lá de fora, ali parecia silencioso,
de um jeito melancólico.
Suspirei, colocando um dos braços sobre o rosto, cobrindo os olhos,
tentando me convencer de que dormir era a melhor coisa a fazer, mas saber
que Charo estava a metros de distância não permitiu que eu conseguisse
desligar, nenhum segundo sequer.
A cantoria parou, alguém quebrou uma garrafa e gritou um palavrão
antes de uma ordem de silêncio. As luzes diminuíram e eu me mantive
acordado até que não houvesse mais nada além do som do meu ventilador.
Tentado demais para me controlar, me levantei e fiquei de joelhos na
ponta da cama, espiando pela janela se havia alguém ali pelo corredor.
Olhei na direção da escada e não vi ninguém. Olhei na direção
contrária e, além da janela dela, que tinha a luz acesa, não havia nada ali.
Sem pensar muito, coloquei os sapatos, as calças e uma das regatas brancas
que eu havia pendurado no armário e saí.
A cada passo que dava, meu coração parecia ser capaz de bater ainda
mais rápido, tão rápido que, quando me dei conta, as batidas que dei na porta
dela se confundiram com as batidas dele.
— O que faz aí, violinista? — Ela apareceu na janela, os cabelos
compridos estavam soltos, cheios de ondas. Os braços apoiados para fora,
uma garrafa de cerveja na mão e o rosto sério, com os olhos indagadores
sobre mim.
— Precisava vê-la. Pode abrir? — Indiquei a porta e Charo ficou me
encarando por alguns segundos, antes de suspirar e sair da janela.
Levou um minuto inteiro até que ela finalmente abrisse a porta e,
assim que apareceu em seu robe de cetim, cheio de desenhos disformes, bem
amarrado ao corpo; pés descalços, com unhas pintadas de vermelho e olhar
decidido, ficou óbvio para mim o porquê era ela a mulher de quem Domingos
não queria que ninguém chegasse perto.
Charo era como uma musa, bela sem esforço algum.
— Não acha que vou convidar você para entrar, acha? — Achei que
Charo falava sério e quase me senti idiota por ter ido bater em sua porta, mas
logo vi um meio sorriso surgir em seu rosto e ela me deu passagem. — Só
saiba que não pode ficar muito. — Ela disse, fechando a porta, e eu me sentei
em sua cama, apoiando as mãos contra o colchão macio, enquanto olhava em
volta. — O que é?
— Belo quarto. — Comentei, voltando a olhar para ela.
— O seu também não é ruim. — Ela devolveu, caminhando para se
sentar no banquinho da penteadeira, tão próxima que chegou a roçar o pé em
mim quando cruzou as pernas. — Mas, ainda sim, achei que um quarto tão
pequeno como aquele não fosse bom o bastante para o homem que viveu pelo
mundo. — Ela tentou brincar e deu um gole em sua cerveja.
— O quarto é… Não é um problema. — Me curvei na direção dela,
querendo sentir mais do seu perfume com cheiro de cereja. — Mas como
soube da minha mudança?
— As fofocas correm, violinista, e, aqui, as paredes têm ouvidos. —
Charo não se mexeu, olhando nos meus olhos, enquanto eu ficava próximo o
bastante para ver sua íris âmbar. — Todas as mulheres, e aposto que alguns
homens, deste lugar gostariam de dividir a cama com você. — Ela disse,
abaixando o tom de voz, enquanto seus olhos desviavam para minha boca.
— Só há uma mulher aqui dentro à qual eu quero dar atenção e, no
momento, estou sentado em sua cama. — Como se saindo de um transe,
Charo fechou os olhos e balançou a cabeça de leve, para um lado para o
outro.
— Você não sabe o que diz. — Seu tom foi triste.
Ela se afastou e levou sua garrafa até a boca, entornando o líquido da
mesma cor dos seus olhos goela abaixo.
— Sei. Na verdade, nunca tive tanta certeza. — Não quis deixá-la
fugir e, num atrevimento descomunal, toquei Charo, colocando minha mão
em seu rosto, fazendo com que ela me olhasse, que visse a verdade no que eu
dizia.
— O que você quer comigo você não pode pagar. — Um tom amargo,
até então, não ouvido vindo daquela boca, fez meu peito arder.
— Eu nunca te daria um preço. — Respondi de imediato e ela deu um
meio sorriso.
— Há dentro de você um menino, Adrian. Mas, dentro de mim, não
há mais nada. — Charo tirou minha mão de seu rosto e respirou
profundamente. — Não há nada que eu possa te oferecer. — Ela sentenciou.
De repente, a porta foi escancarada, assustando a Charo muito mais
que a mim.
— O que é isso? — Ela perguntou, se afastando. — Meu quarto não é
zona!
— Ah, cale a boca. — Raquel vinha bêbada, acompanhada de mais
algumas dançarinas. — Só viemos dar boa noite para o charmoso Adrian,
mas parece que você está um passo à frente, como sempre, não? O que será
que Domingos diria se soubesse desse pequeno encontro? — O som de
risadinhas atrás dela me incomodou.
— Adrian, ao contrário de vocês, está aqui por trabalho. — Charo se
levantou, visivelmente irritada. — Estamos discutindo sobre um novo
espetáculo.
— É, Evita! — Tentei ajudá-la.
— Ah, claro. — Raquel não acreditou. — Como todo canto dessa
cidade, que não sabe mostrar outra coisa?
— Não dessa forma. Vamos expor a verdade, a trama, as
conspirações. Tudo isso no palco. — Falei, parecendo mais empolgado do
que realmente estava.
— É, ele deu a ideia e eu achei muito boa.
— Vim até aqui porque não vi mais ninguém e ela estava acordada.
— Me justifiquei, vendo o olhar de Raquel julgando nós dois como se
estivéssemos nus.
— Pode ser uma boa ideia… — Ela disse depois de algum tempo. —
Mas, só para reforçar, não sei se seria inteligente ficar tão próximo dela,
Adrian. Charo é especial. — E, soltando uma gargalhada maldosa, a cantora
se virou, levando junto dela suas seguidoras.
Assim que elas se afastaram, respirei fundo e olhei para Charo, que
ainda olhava para a porta, com uma expressão perdida.
— Está tudo bem? — Coloquei minha mão em seu ombro, mas ela se
afastou.
— Por favor. — Ela se virou para mim, os olhos âmbar marejados. —
Você pode ir? — A voz falhada denunciava que Charo iria chorar. — Por
favor? — ela pediu e, mesmo querendo muito ficar, eu saí, mas podia jurar,
mais tarde, deitado na minha cama, que, se eu ignorasse a zorra que acontecia
no quarto da cantora, conseguia ouvir o choro de Charo e ele não era nenhum
pouco silencioso.

***

Por mais de uma semana, Charo evitou falar comigo.


Ela não olhou na minha cara mais do que o necessário, até porque,
graças à mentira dela, ou nossa, eu ainda não sabia dizer, ela agora era
obrigada a discutir sobre a peça nova, que havia sido muito bem recebida
pelo resto dos artistas do Bellagio, mais do que eu imaginara, e dançar
comigo algumas dezenas de vezes, não conseguindo evitar me olhar e fazer
eu me arrepender amargamente por ainda não tê-la beijado. Charo sentia,
assim como eu, a tensão que eletrizava o ar ao nosso redor, toda vez que nos
tocávamos, mas fugia como um gato assustado toda vez que eu tentava
quebrar a barreira que ela vinha tentando erguer.
Apesar do meu drama pessoal, havia um processo trabalhoso a ser
desenvolvido e, assim que tudo estivesse montado, Domingos García
precisava dar sua aprovação para que o show fosse integrado à rotina da casa,
o que me deixou incomodado, porque ouvi os comentários sobre o chefe estar
viajando e chegar em breve para encontrar sua concubina. Depois disso, toda
vez que colocava os olhos em Charo, algo ruim corria por minhas veias, algo
que me fez querer questioná-la sobre o porquê de mentir por mim se ia me
ignorar como fazia, algo que me fez querer ser cruel e perguntar quanto ela
cobraria por uma noite. Talvez fosse isto de que eu precisava: uma boa foda,
um bom momento e, depois, o nada. Nada era o que me restava e parecia que
aquela maldição não estava prestes a se desfazer.
Saí para jantar naquela noite, me permitindo gastar um pouco mais e
ir ao el club de la milanesa, matar a saudade que tinha daquela comida.
Depois de comer bem, completamente sem esperança de conseguir tomar
uma Coca-Cola por ali, caminhei pela cidade como não fazia há muito tempo,
apreciando a beleza de Buenos Aires, a qual eu tinha feito questão de tentar
esquecer, mas não conseguira.
Sentei na praça, ouvindo, de longe, a avenida Nove de Julho ainda
movimentada, assistindo aos donos ocupados passeando com seus cachorros;
às pessoas correndo, outras se exercitando em grupos; ao vai e vem em
direção ao metrô; e eu, atemporal, parado ali, tentando imaginar como teria
sido minha vida se eu tivesse ficado, se não tivesse sido tão machucado…
O mundo era meu e eu não trocaria minha liberdade por nada neste
mundo. O violino era minha paixão e não havia nada tão belo quanto o som
que ele fazia quando estava em minhas mãos, mas Buenos Aires sempre seria
um pedaço meu, o qual eu não poderia apagar.
Era a minha verdade.
E, no final das contas, o que mais éramos todos, além de pequenos
fragmentos de verdades dolorosas? Um sopro, uma fagulha, um nada.
Com as mãos no bolso do casaco grosso que eu usava, caminhei de
volta ao Bellagio, decidido a incrementar a bendita peça mentirosa, inspirado
por aquela noite solitária. Quando entrei pelas portas dos fundos, segui, sem
problemas, para o teatro, peguei o violino e, com a luz baixa, depois de
arrastar uma das cadeiras para o centro do salão, me sentei ali e fechei os
olhos, pensando no que minha mente gostaria de trabalhar. Respirei fundo,
me concentrei e, quando comecei o movimento do arco sobre as cordas, a
música saiu.
Era melancólica, mas não triste. Era música para curar.
Toquei, repetindo o pequeno refrão mais vezes que o planejado, e,
quando meus dedos começaram a doer, percebi ser a hora de parar.
Foi depois da última nota que ouvi as palmas. Eram descompensadas,
sem ritmo e logo entendi o motivo. Para minha completa surpresa, Charo
vinha da plateia, com uma garrafa grande demais embaixo do braço. Os
cabelos negros, soltos, despenteados. No rosto, os olhos cheios de
maquiagem borrada. Ela havia bebido muito, tanto que seus passos, sempre
tão firmes, eram trôpegos e o sorriso em seu rosto era o tipo de sorriso que só
a bebida proporcionava. Eu já havia visto aquilo antes e não gostava.
— Você é bom, violinista. — Ela disse, tentando parar em pé, a
passos de mim.
Sorri, debochando daquela situação, enquanto guardava o violino.
— Mais do que isso, com certeza, madame. Há quanto tempo está aí?
— Perguntei depois de respirar fundo e ficar de pé.
— Desde muito, muito, muito... — Charo deu alguns passos na minha
direção e acabou caindo sobre mim. Sustentei seu peso, mantendo-a em pé,
tão próxima como nunca estivera, e, no meio da bagunça que ela era, vi algo
nos olhos de Charo que ainda não tinha visto: era desespero. — Muito tempo.
— Tão perto assim, minha vontade era beijá-la, mas não queria que aquele
fosse o momento. e então, deixei passar, até porque o cheiro da bebida em
seu hálito embrulhara meu estômago, mas não havia o que fazer. Ela
precisava ser cuidada.
— É, percebo. Festejando? — Indiquei a bebida e ela riu.
— Dizem que álcool é um bom solvente, estou tentando limpar o
cérebro. Acha que consegui? — A fala mole dela era engraçadinha, mas
Charo parecia à beira de um colapso.
— Se conseguiu, eu não sei, mas essa porra, com certeza, vai fazer o
seu fígado virar gelatina. — Sem conseguir fazê-la largar a garrafa e sabendo
que não era seguro, mas convencido de que era o certo a se fazer, obriguei-a a
passar a mão livre pelo meu pescoço e a arrastei para seu quarto, em um
trajeto lento, atrapalhado e cheio de paradas. Quando, finalmente, chegamos
ao destino final, Charo caiu na cama, fechou os olhos e ficou quieta, com a
garrafa contra o peito. Coloquei as mãos na cintura, preocupado com o estado
da mulher, e pensei no que fazer.
— Precisa de ajuda? — Paloma apareceu do nada. — Vi vocês
atravessando a ponte. — Ela se justificou antes de eu responder. — Charo
sempre bebe demais quando está triste.
— Então isso é um hábito, de fato? — Perguntei.
— Só quando ela precisa ir… Às vezes eu ajudo a senhora Carmen a
cuidar dela quando volta, mas nem sempre.
— Quando ela volta de onde? — Perguntei para a menina, que já
tirava os sapatos de Charo e a ajeitava na cama direito, conseguindo afastar a
bebida da mulher.
— Dos encontros… Eu não deveria falar disso e, mesmo sabendo que
ela merecia alguém como você, se tem amor a sua vida, você deveria se
afastar — Paloma disse antes de fazer carinho na bailarina apagada, saindo
logo em seguida, me deixando sozinho novamente com Charo.
Vendo que ela já dormia e não havia nada para fazer ali, deixei a luz
acesa como ela gostava e fechei a porta, esperando que o dia seguinte fosse
melhor, que eu começasse a desvendar os segredos de Charo, pelo menos, a
primeira dezena deles, já que ela parecia valer a minha vida.

***

Aquela noite poderia ganhar como a mais mal dormida do século.


Revirei os lençóis, acordei, pelo menos, vinte vezes e todas elas
achando que Charo me chamava, que precisava de mim. Ledo engano.
Quando acordei e coloquei a cara para fora do quarto, havia três pessoas
esperando para entrar pela porta do quarto dela e eu apostava que dentro
havia mais.
Ela teria os cuidados necessários para superar a ressaca e eu, vendo
que começava a ficar bitolado, tratei de me arrumar, colocar minha máquina
fotográfica no pescoço e cair na rua.
Eu precisava de folga, de distância, de tempo para entender como
aquela mulher invadia meu coração sem pedir licença, mas a vida parecia ter
outros planos para mim.
Peguei o ônibus, avisei onde desceria e me sentei depois de pagar.
Olhando pela janela, vendo o sol brilhar quando o tempo não parecia
tão quente quando deveria, apreciei Buenos Aires e suas ruas retas, seus
prédios altos e seu ar parisiense, que enganava muito bem. Foi quando desci
perto do Caminito que me lembrei de como era a realidade dos que viviam
longe da bolha, dos mais afetados pela grande crise do governo.
Fiz um caminho maior: passei pelo La Bombonera, vendo os turistas
tirando foto na fachada azul e amarela, enquanto o bar do outro lado da rua,
decorado em homenagem ao time, parecia estar a todo vapor, na hora do
almoço.
Uma dançarina de tango, acompanhada de seu parceiro, me
cumprimentou e ofereceu uma dança. Eu aceitei e os guardei na lente da
minha câmera, aproveitando para registrar a discrepância das artes daquela
cidade, já que ela dançava com pés delicados sobre a calçada onde marcas de
pés mais grosseiros estavam, registrando os jogadores, que eram heróis para
um grande grupo de pessoas.
Era um bom resumo da cidade: tango, boa comida e futebol. Era o que
os turistas vinham buscar, era o que movimentava a cidade e, pela primeira
vez, me senti excluído.
Eu não tinha voltado ali por nenhum desses motivos. Na verdade,
quando adentrara o aeroporto de Madri e vira que havia voos de volta para
casa, não resistira. Algo chamara e eu atendera, mas, até aquele momento, eu
não sabia o que tinha me carregado de volta.
Família? Com certeza não.
Amigos? Eu fui amigo de metade do mundo e os guardava no
coração, onde sabia nunca estar só.
Amores? Me apaixonei e amei cada uma das mulheres com quem me
deitei, mesmo que só tenha durado uma noite. Paguei ao casal que havia
dançado para meu deleite e saí na direção de onde queria ir, tentando não me
apegar a nenhuma razão que estragasse meu dia, e quase funcionou.
O caminito, mesmo meio deserto, era lindo. As cores, o comércio, o
cheiro da comida do trailer da esquina na qual eu passava, tudo cooperava
para a foto perfeita.
Andei por ali, olhei algumas lojas, fotografei um ou outro grupo de
turistas gringos e, depois de duas horas, sentado na pequena baía ali, com um
choripán no colo, vi crianças correndo e cantando e tratei de registrar aquilo.
Tirei três fotos e fui conferir no visor quando, de repente, reconheci
um dos rostos ali no meio. Meu instinto falou mais alto e, quando dei por
mim, já estava em pé, gritando.
— Manuelito! Ei, garoto! — O pequeno, de olhos âmbar, se virou
para mim, com o rosto vermelho, sabendo que havia sido pego fazendo algo
errado. — Venha aqui. — Eu o chamei e me sentei novamente, esperando o
garoto, que vinha quase se arrastando.
— Ei, você, o amigo da madrinha. — Ele me reconheceu.
— Adrian. — Refresquei sua memória. — O que faz aqui? Não
deveria estar na escola, ou na cidade de Tigre?
— É… — Ele coçou a orelha e olhou para baixo. — Deveria.
— E o que faz aqui? Como veio?
— Pegamos carona com o irmão do Juanito, ali. — Ele indicou um
dos meninos magricelas.
— Sua tia sabe que está por aqui?
— Não! — Ele me olhou com os olhos arregalados. — E você não
pode contar para ela!
— Mas eu deveria, ou você vai fazer isso de novo e de novo, não? —
Achei engraçado o jeito com que o garoto se impôs.
— A escola está chata… — Ele colocou as mãos no rosto,
demonstrando todo seu tédio.
— É o que é, garoto, mas, se você não quer que sua tia saiba, vamos
fazer o seguinte: eu vou te levar em casa, te ajudar com a lição de casa, que
tenho certeza que você não fez, prometo te fazer um jantar especial, com
direito a sobremesa, e ainda te conto sobre como é o mundo. Se você for
comigo, não conto para sua tia. Se você parar de matar aula e virar um bom
aluno, prometo te dar uma mesada. O que acha?
O olhar desconfiado dele me lembrou o de Charo.
— E o que você ganha com isso?
— Ganho ajudando o futuro da nação. Você aceita? É um acordo de
homens, não pode ser desfeito. — Estiquei a mão para o garoto e, depois de
alguns segundos, ele pegou minha mão.
— Feito. Mas quero ganhar em dólar. — Ele disse, sacudindo nossas
mãos juntas, me fazendo rir.
Dividi meu lanche com Manuelito, passei no mercado e o enfiei
dentro de um táxi, chegando ao pequeno porto, perto das três da tarde.
— Minha madrinha não vem? — Ele perguntou quando entramos na
embarcação.
— Não que eu saiba. — Comentei. — Por quê?
— Ela vem me ver toda semana. Tenho certeza de que as vizinhas
fofoqueiras vão ligar para ela quando verem eu chegando com você. — Ele
cruzou os braços, emburrado. — Ela vai saber que eu não fui para a aula de
todo jeito!
— Bom, a sua sorte é que eu posso te salvar desta vez. — Baguncei o
cabelo de Manuelito, que me olhou curioso.
— Como?
— Sou amigo da sua tia, ela vai me ouvir antes de te puxar as orelhas.
— Pelo menos eu acreditava que sim.
Desci do barco junto de Manuelito e, assim que coloquei os pés no
deque, parei e olhei em volta. A água do Tigre era escura e batia contra as
paredes de pedra, que eram usadas para evitar a erosão. Procurei pelo
menino, vendo ele correr na minha frente, já a uma boa distância, perto de um
casebre de madeira sobre palafitas, e respirei fundo, tomando fôlego, antes
que começasse a me perguntar que merda estava fazendo e segui junto da
criança.
Subi as escadas atrás de Manuelito, acenei para as vizinhas, que
pareciam desconfiadas, e, assim que ele abriu sua casa, entrei, acendendo a
luz, não acreditando que ele vivia ali, quase que completamente sozinho.
Só havia uma luz na casa toda: amarela, fraca, bem no meio da sala.
O sofá de dois lugares tinha uma estampa verde, cheia de flores roxas.
A televisão era antiga, a cama de Manuelito ficava ao lado dela. Havia uma
porta, que eu desconfiava ser o banheiro, uma mesa de quatro lugares bem
perto da geladeira marrom, antiga e um fogãozinho de quatro bocas, precário.
— Sabe se tem gás? — Perguntei, pensando como cozinharia sem.
— Tem sim. — O menino disse, já se adiantando para abrir as duas
janelas daquela casinha de dois cômodos, deixando a luz entrar e trazendo um
pouco de ar fresco.
— Ótimo! Eu vou arrumar as coisas. — Falei, colocando a sacola de
compras sobre a mesa. — E você vai estudar. — Manuelito não pareceu
muito animado, mas obedeceu enquanto eu ia ver o estado do banheiro.
Não era o pior do mundo, mas, depois de eu passar um belo pano e
organizar as coisas, colocando as toalhas para tomar um ar, e usar o bom
desinfetante que comprara, pensando naquela possibilidade, as coisas ficaram
melhores.
Saí sacudindo as almofadas do sofá, troquei a cama do menino e
assumi a cozinha, abrindo a geladeira, me surpreendendo por ali só ter
algumas garrafas d’água.
— Manuelito, o que você come? — Perguntei, olhando para ele.
— Não como aqui. Minha madrinha paga para eu comer na casa da
vizinha. Sempre que tenho fome, eu bato lá.
— Ah, sim… — Continuei a abrir os armários para ver o que
encontrava e achei pacotes de biscoitos, salgadinhos e todo o tipo de besteira
de que criança gosta.
— Esse é meu lanche da escola. — Ele disse.
— Ok… Então, este vai ser o seu primeiro jantar de homem, na sua
casa. — Ele pareceu animado com a ideia.
— É bom que você cozinhe melhor que minha madrinha. Ela não é
muito boa.
— Não é muito boa?
— Não. Da última vez, queimou os ovos, as batatas ficaram puro sal e
a carne virou uma sola. — Ele comprimiu os lábios, lamentando, e eu ergui
as sobrancelhas, balançando a cabeça.
— É, eu sou melhor que sua tia na cozinha, então, fique tranquilo.
Limpei a pia, ajudei Manuelito com um problema de matemática, me
senti velho e comecei a fazer o jantar.
— Essa câmera é sua? — Ele perguntou.
— É sim.
— Ah, legal.
— Quer tentar fotografar? — Perguntei enquanto experimentava o
molho de tomate.
— Posso? — Ele se iluminou pela novidade.
— Pode se prometer ser cuidadoso. — Ajustei o sal do molho, abaixei
o fogo e bati as mãos no pano de prato, antes de ir até ele.
Manuelito ficou em pé e eu me ajoelhei para ficar na altura dele,
enquanto mostrava como fazer e seu primeiro teste foi uma foto minha.
— Nada mal, garoto… Tente mais. — Disse, tendo o cuidado de
deixar a alça de pescoço um pouco mais curta caso o garoto soltasse a câmera
sem cuidado, mas Manuelito parecia fiel à promessa de ser zeloso, fazendo
um álbum inteiro de mim cozinhando para ele, naquela tarde.
Foi perto das cinco que, enquanto ele se divertia com a máquina,
ouvimos os passos firmes e fortes contra a madeira da escada e,
repentinamente, Charo apareceu na porta. O rosto pálido, os cabelos presos
em um coque no alto da cabeça, com sua saia esvoaçante e comprida e o
olhar apreensivo.
— O que está acontecendo aqui? — Ela falou com urgência,
visivelmente nervosa.
— Eu… — Não tinha pensado em uma resposta para dar, quando
Manuelito saiu na frente.
— Adrian veio me visitar, está me ensinando a fotografar e parece
cozinhar melhor que você, madriña! — O tom de animação do garoto foi o
auge, me fazendo rir antes de tirar os olhos de Charo e mexer a panela.
Ela se adiantou para o menino, o abraçou e revistou. O que ela achou
que eu faria?
— Está bem? — Ouvi ela perguntar baixinho para ele.
— Estou. Ele me ajudou com a lição também, mas senti sua falta. —
Espiei sobre o ombro e os vi abraçados. Respeitei o momento, tirei a massa
da água quente e coloquei as carnes na frigideira.
— Vocês podem arrumar a mesa para o jantar? Não vai demorar para
ficar pronto. — Avisei e, então, começaram a se mexer.
Assim que terminei a massa e deixei o bife no ponto, montei os pratos
e coloquei em cima da mesa a Coca-Cola, que havia comprado com a maior
felicidade do mundo.
— Pronto, acho que agora teremos um jantar decente por aqui, não?
E, com essa deixa, nós três jantamos, com Manuelito contando suas
aventuras da semana enquanto Charo, vez ou outra, olhava para mim como se
ainda avaliasse se eu merecia um tapa ou um beijo.
De barriga cheia, Charo colocou Manuelito embaixo do chuveiro e,
logo depois, o chamou para deitar. Me surpreendendo, o garoto veio até mim,
me abraçou e, sem dizer nada, correu para junto da madrinha e se aninhou
nela, me mostrando uma versão dela que eu ainda não tinha visto, enquanto
ninava o menino. Vulnerável, calma e cuidadosa, completamente diferente da
noite passada.
Quando Manuelito dormiu, ela saiu de fininho do lado dele e se
espreguiçou.
— Vai me contar a verdade agora? Por que está aqui? — Ela disse, se
sentando ao meu lado.
— Encontrei Manuelito matando aula, na cidade. — Ela balançou a
cabeça, desacreditada. — Mas não brigue com ele, é uma criança com
liberdade além do convencional, não?
— Se brigar adiantasse… Não quero afastá-lo.
— Bom, finja não saber de nada, porque agora fizemos um acordo de
cavalheiros. Eu o pago e ele não falta mais na escola. — Sorri e Charo
relaxou, sorrindo ao meu lado.
— Esse menino é um pequeno caso sério… Quanto te devo pelo
jantar? — Ela virou o rosto para me olhar.
— Nada… Não se preocupe. Só me deixe limpar tudo antes de irmos.
— Eu não vou me fazer de educada. Foi você quem veio na minha
casa sem convite, violinista, pode limpar tudo enquanto vou conversar com as
vizinhas, dizer que você não é uma ameaça e pedir para olharem Manuelito
mais de perto.
E, pegando impulso, Charo levantou do sofá e saiu pela porta, me
deixando com o coração quase leve por parecer voltar a me tratar com
normalidade.
Quase.
O barco da volta estava cheio e não conversamos, mas, assim que
colocamos o pé em terra firme, no pequeno porto, ela se virou para mim e,
olhando nos meus olhos, disse:
— Sei que não é a melhor hora, mas estive pensando sobre isso.
Obrigada por cuidar de Manuelito, ele é minha vida.
— E você deveria viver junto dele.
— Não é tão fácil, você já sabe disso. — Charo estava de frente para
mim, tão próxima que, se desse um mísero passo para frente, acabaria nos
meus braços.
— Pássaros foram feitos para voar, Charo. Você deveria saber. —
Falei baixo, quase perdido naqueles olhos de cor quente.
— Cortaram minhas asas há muito tempo, violinista. Você deveria
saber. — Ela tentou se afastar, mas eu não permiti. Peguei Charo pelo braço e
a trouxe de volta, já envolvendo seu corpo, e a beijei.
Foi como pular em um lago gelado no meio do inverno.
Quando minha boca tocou a dela, tudo parou, mas não havia como eu
resistir a seu cheiro, sua pele, sua boca de lábios macios, que se abriam para
mim. Charo era o convite para o incerto, o passo no escuro, o mergulho no
desconhecido e, ainda assim, eu não desistiria dela, mesmo que custasse
minha vida.
Nossas línguas se tocaram: sua boca era quente, seu beijo tinha gosto
doce, meu corpo não conseguia deixar de reagir ao fato de tê-la em meus
braços, mas, de forma abrupta, ela se afastou, me encarou com seus olhos de
águia e, no segundo seguinte, estalou os dedos na minha cara. O tapa ardeu e
eu fiquei sem reação, mas não precisei nem pensar porque, no segundo
seguinte, era ela quem me puxava para si, me beijando porque queria, num
desespero que só a boca um do outro poderia aplacar.
Charo me envolveu o pescoço com os braços; eu a envolvi pela
cintura e nuca, tentando ser cuidadoso por estarmos em público, mas
falhando miseravelmente.
Deus sabia o quanto desejara aquele beijo, o quanto ansiara e me
obrigara a recuar, mas agora, ali, sabia não ter mais volta ou, pelo menos,
pensei que não.
— Espere! — Ela disse, se afastando com a respiração irregular, os
olhos brilhando, a boca inchada pelas sugadas que dei em seus lábios. — Não
podemos. Adrian, não devemos, nunca mais. — E, antes que eu pudesse
provar que ela estava errada, Charo se desvencilhou do meu abraço para sair
correndo para longe, me deixando parado no porto, sem saber o que fazer.
Capítulo 5
“E eu não quero ficar aqui, se não puder estar com você hoje à noite.”
(Lay Me Down, Sam Smith[7])

Beijá-la havia sido sublime, mas a forma como Charo fugira de mim
logo depois me deixou abalado. Eu a queria e era correspondido, mas, só para
variar, havia algo no meio do caminho. Algo que eu não podia controlar, algo
que parecia me rasgar a carne e eu só me dei conta depois do show de quinta.
Domingos estava sentado no primeiro camarote, bebendo enquanto
assistia ao espetáculo daquela noite, fazendo meu estômago se comprimir a
ponto de doer, afinal de contas, eu descumpria a única ordem de trabalho que
ele havia me dado. Estava cada vez mais próximo da mulher que ele tinha
como sua e não tinha a menor intenção de recuar, mesmo que ela tivesse me
ignorado por todo aquele dia.
O show, como sempre, acabou com o público aplaudindo
intensamente e, quando os espectadores foram liberados para o palco, perdi
Charo de vista enquanto ela caminhava com seu vestido vermelho na direção
dele.
A agonia que atingiu meu peito só não foi maior que a tristeza.

***

Três dias se passaram. Três dias em que a luz do quarto dela ficou
apagada. Três dias em que ela não apareceu nos ensaios.
Três dias em que pensei que iria enlouquecer.
A substituta de Charo tentava, mas não conseguia acompanhar o ritmo
dela na dança, nem ser tão formosa e delicada, mas, por todo aquele final de
semana, nós não tínhamos outra opção e, apesar de ouvir burburinhos sobre
Charo estar demorando para voltar, também recebi o recado claro do maestro
quando me distraí e perdi minha entrada solo no ato.
— O show tem que continuar! — Ele disse ríspido, me fazendo tomar
ciência de que, por mais discreto que eu tentasse ser, não tinha como
esconder o quão abatido eu estava sem nenhuma notícia dela.
O sono não vinha, o calor incomodava, alguns pernilongos me
irritavam, mas nada disso importou quando, na madrugada de domingo para
segunda, eu ouvi os sons de passos apressados no corredor e vozes femininas.
— Vamos logo com isso, segure-a com mais firmeza. — A voz era de
Carmen.
— Não se preocupe, eu consigo andar. — Era a voz dela: cansada,
falhada.
— Minha filha, faz tempo que não te vejo assim. Isso tem a ver
com…
— Não. — Charo a interrompeu antes de continuar. — Isso não tem a
ver com ninguém. Só me ajude a deitar, por favor.
Eu não esperei. Levantei num pulo, calçando os sapatos e espreitando
pela janela até ter certeza de ela estar sozinha para que eu, finalmente,
pudesse ver com meus próprios olhos o estado em que ela se encontrava.
E, para o meu completo desespero, quando abri a porta do quarto de
Charo, sem convite, sem ninguém para me impedir, meu coração se quebrou
em mil pedaços ao mesmo tempo em que o ódio e a raiva por Domingos
cresceu de uma maneira absurda, dominando minha mente tão abruptamente
que, por um segundo, minha visão escureceu e eu pude assistir, dentro da
minha mente, enquanto minhas mãos esmagavam seu pescoço, fazendo o
homem sufocar até morrer.
— O que faz aqui? — O tom cansado de Charo me trouxe para a
realidade.
Ela não fez questão de se cobrir, me olhando sobre o ombro, com os
olhos injetados, cheia de vergonha. Pela primeira vez, eu a vi sem as roupas,
mal coberta da cintura para baixo, por um lençol, que escondia o restante dos
roxos em seu corpo. Seus braços, pescoço, ombros, costas e quadril tinham
marcas feias, grandes, além de lugares machucados, onde a pele não havia
resistido à clara fricção onde o corpo dela ficara amarrado, e aquilo tudo,
junto do olhar dela, me fizeram acalmar o descontrole.
Ela precisava de mim ali.
Respirei fundo, passei a mão pelo rosto e me aproximei da cama,
querendo ver mais de perto o que haviam feito com a pobre mulher.
— O que aconteceu? — Perguntei.
— Vá embora, Adrian. — O tom era quase desesperado, mas, dessa
vez, eu não obedeci. Me sentei ao lado de Charo, encarando seu rosto, vendo
a primeira lágrima dela ceder e rolar pela bochecha. — Vá embora. — Ela
pediu de novo e eu fiz que não com a cabeça.
— Eu não vou deixar você sozinha.
— Você não tem outra opção. — Ela disse entre dentes, fugindo do
meu olhar, virando a cara para o travesseiro. — Não posso deixar que você se
machuque também. — Era baixinha sua confissão, mas eu ouvi.
— Isso não é uma escolha sua.
Com cuidado, me apoiei sobre o cotovelo e me aproximei de Charo,
puxando seu rosto para cima, fazendo com que ela me olhasse nos olhos.
— O que aconteceu? Me conte. — Pedi, quase implorando, vendo a
mulher à minha frente se transformar em uma menina enquanto comprimia os
lábios, visivelmente magoada, machucada e assustada.
— É assim, toda vez, desde que eu me lembro. Quando ele está bem,
me machuca menos, mas, quando está bravo, descontente… quando eu
cometo algum erro… — E ela desatinou a chorar quase me fazendo chorar
junto.
— Shhhh. Não precisa dizer mais nada. — Acolhi Charo da melhor
forma que dava, acariciando seus cabelos, que tinham cheiro de fuligem,
beijando sua testa, tentando acalmá-la enquanto pensava em como ajudar
aquela criatura divina, presa por Hades, no mais profundo inferno.
Quando, finalmente, ela se acalmou e adormeceu, fiquei olhando para
seu rosto, ainda perfeito, e pensei em quão maldito eu era para me apaixonar
por Perséfone, sabendo que o chão poderia se abrir sob os meus pés e me
engolir a qualquer segundo.
Só quando tive certeza de ela estar bem é que saí do seu lado.
Deitado na minha cama, olhando pela janela, vendo a claridade que
vinha do quarto de Charo, a sensação de angústia diminuiu. Não era muito
melhor, mas saber que ela estava perto, que eu poderia colocá-la nos braços e
impedir caso alguém tentasse machucá-la ali já me dava algum conforto e foi
graças a esse pensamento que consegui dormir.
Os dias seguintes não foram melhores.
Entre ensaios e shows, Charo aparecia sempre com blusas de mangas
compridas e gola alta, acompanhada de uma garrafa de vinho ou gin na mão,
extremamente monossilábica, fechada, melancólica. E, infelizmente,
colocando uma barreira, a qual eu não conseguia atravessar, até que, em um
dos ensaios da semana seguinte, ela apareceu sem sua garrafa, mas tão
bêbada que mal conseguia ficar em pé.
— Olhe o estado dessa menina! — Carmen se adiantou para ela, mas
Charo grunhiu como um bicho.
— Me deixe! — Ela disse, se agarrando nas cortinas, fazendo com
que todos parassem para ver a cena. — Eu vou dançar.
— Não vai. Alguém, pelo amor de Deus, leve ela para o quarto? —
Mas ninguém se moveu, parecendo com medo de mexer em Charo.
— Eu levo. — Me ouvi dizer depois de alguns minutos de silêncio.
— Você vai se meter em confusão, bonitão. — Raquel disse, mas,
dessa vez, sem ser venenosa.
— Eu já estou no meio dela. — Foi tudo o que consegui responder
depois de largar meu violino.
Caminhei até Charo, sabendo que todos nos olhavam, e a vi como
uma criança, os olhos espertos, me fitando.
— Você não pode me levar, violinista. Eu vou dançar, é meu lugar, a
única coisa que é minha. — Ela começou a rir e, então, do nada, o choro
tomou conta e Charo se jogou nos meus braços. — Eu vou desaparecer...
— Shhh… Está tudo bem. Não vai acontecer mais nada com você. —
Falei baixo, enquanto a ajeitava nos meus braços.
— Por favor, leve ela daqui e não fique lá. — A coreógrafa foi
incisiva ao me pedir isso, mas aquela era uma ordem que eu não poderia
cumprir. Não quando ela precisava de mim.
Depois de cuidar de Charo, deixá-la limpa depois do vômito que lhe
lavou as roupas, coloquei a mulher na cama e sumi com as garrafas que
encontrei em seu quarto antes de seguir para me arrumar para aquela noite.
Eu odiava o álcool ainda mais depois de ver Charo naquele estado, mas quem
era eu para julgar? Enquanto eu pude fugir para o outro lado do mundo, ela
só tinha uma garrafa para afogar todo o tormento que vivia, sendo perseguida
dia e noite, por seus pesadelos tão reais.
Talvez aquele medo do escuro não fosse tão inocente assim.

***
O espetáculo daquela noite era um amontoado de musicais. A última
cena era um belo tango do filme Chicago e, com as cadeiras no palco, as
bailarinas dançaram e cantaram pela primeira vez, desde que eu estava na
casa. Foi muito bom acompanhar; era divertido ver como cada um daqueles
esquisitos e sequelados era aceito no palco. Eles eram como eu.
Achando tudo aquilo divertido, mas ainda preocupado com Charo,
terminei meu papel naquela noite, dispensei duas mulheres de meia idade que
vieram perguntar que serviços eu oferecia além de tocar o violino e voltei
para o meu quarto, a fim de tomar um belo banho, já que minha roupa estava
ensopada de suor, mas, assim que abri a porta e olhei para dentro do quarto,
os pelos da minha nuca se eriçaram, avisando que havia algo de muito errado,
porque, ali, no escuro, estava sentado o único homem com quem eu não
queria cruzar o caminho nunca mais.
Sentado em minha cama, com o olhar arrogante de sempre, vestido
em um terno preto, com as mãos sobre a bengala, ele não sorriu quando me
viu.
— É essa a vida que leva? — Ele perguntou, a voz ainda forte,
mesmo para o corpo envelhecido. Quantos anos eu não o via? Dez? Onze? O
tempo havia sido cruel com sua aparência.
— O que faz aqui, pai? — Perguntei em um tom zangado.
— García avisou que você estava de volta e me convidou para assisti-
lo. Você é bom, não nego.
— Melhor que isso. — Eu o corrigi e vi o sorriso surgir em seu rosto.
— É, tem razão. É muito bom, mas era sua obrigação, afinal de
contas, passou os últimos anos fazendo isso, não? Como você está? — Ele
procurava alguma brecha, mas eu não queria desenvolver aquilo. Queria ele
fora.
— Como vai Rúbia? — Falar aquele nome em alto e bom som me
machucou, mas não como antes. Fazia muito tempo que eu não pensava nela.
Fazia muito tempo que eu havia trancado aquela parte da minha
mente.
— Foi embora um ano depois de você partir.
— O efeito da bebida durou muito para vocês dois, não?
— Adrian, foi um erro, mas ainda sou seu pai.
— Deus me abençoou ao ponto de não ter filhos, assim não preciso
ser tão ruim quanto você.
— Hum… — Ele me mediu de cima a baixo e balançou a cabeça
antes de se levantar. — Vejo que ainda guarda suas mágoas.
— Aprendi com você.
Meu pai pareceu provar de algo amargo, calou por alguns segundos,
enquanto me fitava, então suspirou:
— Vim convidá-lo a voltar para casa. Achei que tinha vindo por isso
e estava com vergonha.
— Eu não tenho nada do que me envergonhar, pai. Já você, deveria
ter pensado duas vezes em aparecer aqui, achando que eu precisava de algo
vindo de você.
— O que é meu, é seu, meu filho. O tempo está passando e eu não sou
o mesmo de antes. Cometi um erro, pago por ele até hoje, quando entro
naquela casa vazia.
— Não. — Ergui a mão, com o indicador erguido. — Não comece a
se fazer de vítima como sempre. Vá embora, sua família valeu menos do que
a merda de uma garrafa de bebida e seu filho valeu ainda menos do que o
controle sobre seu pau. Agora, — dei um passo para o lado, liberando a porta.
— se me dá licença.
Eu não entendia como meu pai podia ser tão descarado. Sua feição se
transformou numa careta ofendida e, sem falar nada, ele passou por mim,
finalmente, indo embora.
O ar pesado que o envolvia sumiu segundos depois de ele desaparecer
pelo corredor e foi só então que pude respirar, me dando conta do que havia
acabado de acontecer. Bati a porta atrás de mim e me joguei na cama,
cobrindo os olhos com as mãos, me lembrando de tudo aquilo que eu sempre
tentei afastar.
Em um segundo, eu gritava, no outro, chorava feito criança e, preso
naquela maré de sentimentos conflitantes, não percebi quando ela entrou no
quarto e se deitou ao meu lado, me puxando para seu peito e acariciando meu
cabelo com a ponta dos dedos, enquanto me acalmava com seu cheiro de
cereja.
— O que foi, violinista? — Ela perguntou depois de uma bela hora,
quando eu, finalmente, havia parado de chorar.
— Você não ouviu? — Perguntei de volta, abraçado à sua cintura,
naquela cama de solteiro tão pequena.
— Só os gritos, mas não gosto de me meter no que não devo.
— Meu pai me criou para ser o tipo de homem que eu detesto e eu
tentei por muito tempo, só por agradá-lo. A gota d’água foi quando cheguei
em casa um dia e encontrei minha noiva em sua cama. Os dois colocaram a
culpa na bebida, mas era demais para mim. Eu nunca havia amado ninguém
como amei Rúbia e a dor que carreguei só pareceu diminuir depois de anos.
— Contei baixo, sem olhar para ela. — Ela poderia ter feito com qualquer
um, doeria menos por saber que o tipo de homem com quem ela me traíra é
exatamente o oposto de tudo o que eu queria ser.
— Além de ser seu pai. — Charo completou.
— É. No dia seguinte, peguei minhas coisas e caí no mundo e assim
eu estou desde então.
Ela suspirou, fazendo minha cabeça subir e descer conforme seu peito
se enchia e esvaziava de ar.
— Eu não deveria ter voltado. — Confessei baixo e ela puxou meu
rosto para o seu.
— Você voltou por algum motivo. Nos últimos dias, eu tenho
acreditado em coisas que nunca me permiti sonhar, uma delas é que você
veio até aqui por minha causa. — Eu quis desviar o olhar, mas ela não
permitiu. — Eu ainda não agradeci por você cuidar de mim.
— Eu faria de todo o jeito, madame. — Ela quase sorriu quando me
ouviu chamá-la daquela forma.
— Mesmo assim, quero fazê-lo. — E, antes que eu me desse conta,
Charo tocou os lábios nos meus, devagar, com cuidado, até que eu abrisse a
boca para que sua língua encostasse na minha, devorando qualquer dúvida,
qualquer vontade de ir embora.
E o que começou calmo, apenas como uma fagulha, se transformou
num incêndio furioso.
Tomando a devida atenção para não a machucar, pois eu sabia que seu
corpo ainda estava dolorido, me ergui sobre ela, tirando a camisa antes de me
deitar sobre Charo e envolver sua nuca com minha mão, antes de beijá-la
novamente, mostrando que não a deixaria, que não recuaria.
Ela aceitou. Suas pernas envolveram minha cintura, suas mãos
percorreram meus braços e ombros e depois desceram na direção da minha
calça, tentando me livrar dela. Não demorou para que eu ficasse nu e ela,
assim que me viu como vim ao mundo, empurrou meu peito, se sentando
junto de mim, permitindo-me ver sua respiração, que estava tão
descompensada quanto a minha.
— Se você não… — Comecei a falar, mas Charo colocou o dedo
sobre minha boca, fazendo eu me calar. Ainda me olhando, ela tirou a mão de
mim e desceu para a fita do seu roupão de seda, abrindo o nó e se despindo,
deixando o tecido deslizar sobre seus ombros, braços, seios e, de repente,
Charo estava nua sobre minha cama, em toda a sua perfeição.
— Eu quero. — Foi o que bastou ela dizer para que eu voltasse para
cima dela, deitando seu corpo quente e macio sobre o colchão, envolvendo
sua cintura em um abraço firme, enquanto minha boca passeava entre sua
boca, pescoço e seios.
Tudo daquela mulher nunca seria o bastante para aplacar minha
necessidade dela.
Charo arfava, me arranhava, puxava, beijava, chupava e mordia.
Quando me encaixei nela, parei tudo o que fazia para olhar em seus
olhos e, quando ela me encarou de volta, não aguentando se manter firme
quando eu a invadi, quase não me aguentei.
Ela era tudo o que imaginei em uma versão melhorada: quente, macia,
pequena e, agora, era minha.
Perdi a noção do tempo, cuidei de Charo e a amei do melhor jeito que
pude, sabendo que o mundo do lado de fora podia estar desmoronando, mas,
dentro daquele quarto apertado, nós dois tínhamos nosso próprio universo e
ele seria eterno.
Quando não havia mais força nos nossos corpos, ela se deitou sobre o
meu peito e começou a desenhar as tatuagens dos meus braços, ficando ali
distraída naquilo por vários minutos, enquanto eu fazia carinho em sua
cintura e dava um ou outro beijo em sua testa.
— Estamos cometendo um erro. — A voz dela estava embargada. —
Não devemos repetir.
— Mulher… — Fiz com que ela me olhasse. — Não há nada no
mundo que me afaste de você. — Ela sorriu, mas fechou os olhos e uma
lágrima rolou. Coloquei as mãos em seu rosto e a puxei para mim. — É tarde
demais para negar que eu estou completamente apaixonado por você,
madame. — E, enquanto ela chorava, eu a beijava as bochechas antes de
tomar sua boca mais uma vez, completamente certo de que, não importava o
que eu precisasse fazer, Charo seria livre, comigo, para voar para onde
quisesse ir.
Capítulo 6
“O show deve continuar. O show deve continuar, sim.
Por dentro, meu coração está se partindo. Minha maquiagem pode
estar escorrendo. Mas meu sorriso permanece.”
(The Show Must Go On, Queen[8])

Era como voltar à adolescência. Charo e eu trocávamos olhares o


tempo todo. Era o tipo de coisa que não dava para conter, mesmo tentando
ser muito discreto. Nos encontrávamos na rua, visitávamos seu sobrinho e
acabávamos no quarto de algum hotel afastado, assim como todas as vezes
em que começávamos a montar a peça que apresentaríamos.
Por um mês inteiro, todo ensaio terminou com Charo escondendo o
corpo nos lençóis enquanto amparava minha cabeça entre seus seios e eu não
podia desejar algo melhor do que aquilo.
Tocando a pele macia, com cheiro suave de cereja, beijei o colo dela,
subindo pelo pescoço, pronto para recomeçar o que havíamos acabado de
terminar, mas o riso dela, com as mãos no meu rosto, tentando me parar, me
fizeram suspirar.
— Violinista, você está ficando mal acostumado. — Ela brincou,
puxando meu rosto para o dela, selando os lábios nos meus e me afastando
novamente.
A visão da mulher com os cabelos negros soltos no meio dos lençóis
brancos era quase tão perfeita como uma pintura, mas eu ainda duvidava que
algum mestre acertaria a cor daqueles olhos, ou o modo como ela sorria
quando estava tranquila.
— É tudo culpa sua, madame. — Respondi, me aquietando, deitando
ao seu lado para poder continuar a admirá-la.
— Não sou tão pouco vaidosa para não gostar dos seus elogios,
Adrian. — Ela fechou os olhos e se aninhou contra meu corpo, puxando meu
braço para cima de si, fazendo com que eu a abraçasse.
Beijei o topo do seu ombro e pousei o rosto ali, observando Charo
enquanto ela ficava quieta, me fazendo acreditar que adormeceria a qualquer
segundo, mas, quando eu já estava quase adormecendo junto, ela suspirou
profundamente e falou baixinho.
— Eu te amaria com todo o meu coração se ele ainda funcionasse.
— Eu posso consertá-lo. — Respondi depois de processar o que ela
dizia.
Charo riu sem graça, balançou a cabeça em negativo e se virou de
frente para mim.
— Não há como consertar algo que está completamente destruído,
Adrian. — Ela tocou meu rosto, acariciando minha bochecha com a ponta
dos dedos. — Mas, ainda que seja assim: pequeno, frágil e quase morto, cada
batida que ele dá é por você.
Ela não esperou por uma resposta, apenas juntou a boca na minha e
me beijou com cuidado, com calma, tão suave quanto poderia ser.
— O que é isso? — Perguntei, sentindo algo estranho surgir. — Você
sempre foge quando falo algo do tipo. — Coloquei sua mão no meu rosto e
beijei sua palma, analisando os olhos de cigana, que entregavam ter algo a
mais escondido ali naquela declaração.
— Eu precisava dizer antes de ir, de novo. — Ela confessou e então a
tristeza tomou conta de sua feição. — Domingos vem me buscar amanhã,
mas quero que você saiba disso. Que saiba que o tempo todo, em cada
maldito segundo longe, eu vou estar pensando em estar com você,
exatamente assim como estamos agora. — Os olhos dela se encheram d’água,
mas ela não chorou. Não até eu tomá-la em um beijo desconcertante, na
minha sede de parar o tempo naquele segundo, para que ela não precisasse
nunca mais ir embora, nem ser tocada por outro homem ou machucada como
eu já havia visto.
Charo merecia mais, e eu poderia dar mais.
— Não vá. — Pedi com a boca contra a dela.
— Não posso dizer não. — Ela respondeu com dificuldade.
— Vamos fugir. Temos o mundo inteiro para conquistar, Charo. —
Falei, afastando o rosto do dela, querendo encarar seus olhos, querendo que
ela visse que minha proposta não era apenas da boca para fora.
— E Manuelito? Ele precisa comer, precisa vestir, estudar… Ele tem
uma vida aqui. Mesmo que não seja a ideal, é melhor do que qualquer outra
incerteza.
— Eu cuidarei de vocês. — Prometi.
— Você diz isso agora, mas eu não posso colocar o futuro dele em
risco por nós, Adrian. As coisas são como são. — Ela se afastou,
escorregando pelos lençóis, até se sentar na beirada da cama. — O que eu
disse é válido. Eu nunca senti isso por outra pessoa e acho que nunca mais
serei capaz de sentir. Acho que amo você, Adrian, mas ele sempre será a
minha prioridade e escolher se vou ou não amanhã não é uma opção. É
Domingos quem dá o dinheiro de que preciso para manter Manuelito e para
poder investir no futuro dele. Não há o que fazer até que meu sobrinho
cresça.
— E vale ser a puta daquele maldito? — Explodi sem pensar nas
palavras e me arrependi logo em seguida. Charo se levantou, claramente
ofendida, e seu olhar furioso sobre mim disse tudo o que ela não colocou em
palavras. No segundo seguinte, ela procurava suas roupas e, em silêncio, saiu
do quarto, me deixando sozinho, junto do arrependimento da palavra usada e
da vontade de dobrar todo o ressentimento e asco que tinha por meu pai e
suas coisas, só para poder pedir para me ajudar a ir embora com ela.

***

Apesar de saber que eu estava errado por ofendê-la, não consegui


olhar nos olhos de Charo por toda aquela noite. Sabia que ela procurava meu
olhar vez ou outra na bagunça atrás das coxias e raras vezes no palco, mas,
em nenhuma delas, eu lhe dei a oportunidade de encontrar meu olhar.
Era como se houvesse uma mão em volta da minha garganta. Grilhões
sobre os meus pulsos e tornozelos. Não poder fazer nada para impedir a ida
dela fazia-me sentir um lixo, um peso morto, um nada.
Ela tinha razão em manter sua postura e posição, afinal de contas, se
eu não podia fazer nada para protegê-la ali, como ela podia confiar que eu
faria do outro lado do mundo? Como ela podia contar que o sobrinho teria
uma boa vida sendo que eu perdi a conta de quantas vezes acabei dormindo
no chão, na rua e em lugares nem um pouco saudáveis para crianças?
Eu tinha o direito de ficar triste por saber o que aconteceria entre ela e
Domingos. O que eu não podia era querer que Charo largasse tudo para fugir
comigo. Ela tinha muito a perder; eu nunca tive, por isso sempre havia sido
fácil virar as costas e cair no mundo.
E foi ali, depois do show, vendo Charo se aprontar, que me dei conta
de que, pela primeira vez, eu tinha um motivo para ficar, tinha algo como
uma âncora que me prendia, que me fazia querer permanecer e lutar.
Era ela.
Dobrado sobre o parapeito, assisti quando Charo saiu de seu quarto
com o vestido preto pomposo, o cabelo arrumado em um coque alto, a
maquiagem perfeita.
Todos os que estavam por ali pararam para olhar enquanto a
concubina de Domingos García atravessava as pontes de madeira para seguir
em direção ao matadouro.
Passo a passo, em direção à desgraça.
Eu não sabia porque assistia, mas fiquei ali, esperando que ela me
desse um último olhar, arrependido por evitá-la antes de ela ir cumprir sua
obrigação, ansioso por qualquer migalha dela, mas Charo devia estar
concentrada demais para não fraquejar.
Ela não olhou para trás por nenhum segundo e, quando atravessou a
porta para o teatro, levou meu coração junto.
Eu tinha certeza daquilo, porque meu peito ardia como se houvesse
fogo no lugar onde o coração deveria bater e aquilo permaneceu daquele jeito
por todo o tempo em que ela esteve longe.
Esperei por um, dois, três dias. Não dormi na madrugada do quarto
dia, esperando que ela voltasse, a postos para que, se ela precisasse, eu
pudesse carregá-la, mas não houve nenhum barulho durante toda aquela
noite. Ninguém acendeu a luz do quarto dela.
Era tudo um completo vazio.
Achei, sinceramente, que fosse enlouquecer. A cada olhar que
recebia, a cada cochicho que ouvia, a cada risada maldosa que alguém
soltava, me vi encarando de volta, xingando e esbarrando em quem quer que
fosse, tudo por causa dela, tudo por ver que havia desejo e inveja sobre a
posição que ela ocupava, quando ninguém sabia quão terrível era o inferno
em que Charo bailava.
Eu duvidava que outra ali aguentaria o que ela aguentava.
Charo ia agarrada ao motivo que a mantinha viva e era só por isso que
vivia aquela vida, condicionada ao terror, ao mais profundo desespero.
Imaginei cada uma das cenas: desde Charo nua com outro homem até
o ponto em que ele machucava minha mulher, minha menina, tão
profundamente que era irreversível na alma, e ver aquilo de forma livre, na
minha cabeça, quase me deixou no limite.
Vomitei, chorei, quebrei a merda do espelho do meu banheiro e saí.
Precisava respirar, precisava me distrair, ou então, quanto mais
demorasse para ela voltar, mais insano eu ficaria.
— Ei! Aonde você está indo com tanta pressa? — Trombei com
Guillermo, dando um jogo de ombro nele, que o fez girar. Eu não havia visto
seu rosto antes, mas assim que o vi, tentei me acalmar.
— Só preciso sair, não consigo mais ficar aqui dentro… Estou
sufocando. — Desabafei.
— Eu imagino que você não seguiu o meu conselho, não?
— Sobre Charo? E eu poderia? — Comentei em um meio sorriso
triste e suspirei, vendo Guillermo balançar a cabeça de um lado para o outro,
claramente discordando das minhas últimas atitudes.
— Conversamos depois, certo? Mas se acostume. É disso para pior,
meu amigo. — E, dando um leve tapinha no meu braço, ele se afastou. — Até
mais tarde.
— Ei! — Eu o chamei. Guillermo olhou sobre o ombro e parou. — Se
ela chegar… Pode me mandar uma mensagem?
— Posso. Mas é tudo o que vou fazer, Adrian. Gosto muito de você
para ver você morrer por uma das garotas daqui.
— Ela não é qualquer uma, meu amigo.
— Quando você está apaixonado, elas nunca são. — E, depois de
dizer aquilo, ele seguiu, me deixando livre para sair pela porta, franzindo os
olhos por culpa do sol, que brilhava forte do lado de fora do muquifo sem
janelas do Bellagio.
Andei tanto que minhas pernas começaram a doer no meio da tarde. A
verdade era que eu não queria parar, não queria dar a oportunidade de todo
aquele tormento me atingir e achei que, se continuasse em movimento,
dificilmente ele me alcançaria, mas ali, vendo onde havia chegado, ri em
desespero, deixando algumas lágrimas escapar.
Estava eu de frente ao pequeno porto, em direção à cidade de Tigre,
sem nem pensar direito no motivo.
Respirei fundo, limpei o rosto e segui para o mercado mais próximo,
sabendo que, se havia alguém que poderia ser uma boa distração, esse alguém
seria Manuelito. Comprei uma boa quantidade de comida, comprei minha
passagem e me enfiei em um dos barcos para seguir até o garoto. No fundo,
acreditava que ir até lá era necessário, porque poderia ser útil. Poderia ajudar
a cuidar dele até Charo voltar e, com certeza, não haveria outro alguém que
pudesse sentir tanta falta dela quanto ele. Era mais um remendo no coração
ferido, mas deveria bastar, pelo menos, eu acreditei nisso quando o vi com
seus olhos amarelos, me vendo chegar no pequeno deque.
— ADRIAN! — Ele gritou e saiu correndo, me surpreendendo
quando se jogou contra mim, para um abraço apertado.
— E isso tudo é saudade? — Perguntei, me abaixando para poder
olhar no rosto do garoto magricela.
— Não. Claro que não. — Ele se afastou sem graça; o olhar esperto.
— Estava te esperando para ganhar minha mesada. Não faltei nenhum dia
desde que você me pegou matando aula. Agora posso cobrar, já que minha tia
não está por perto. — Ele sorriu, mostrando a nova janela, onde um dente de
leite dava falta e eu ri, bagunçando o cabelo dele.
— Vamos ver isso direito lá em cima. — Indiquei a casa dele.
— O que tem aí?
— Ah, isso? — Mostrei a sacola que carregava. — Algumas coisas.
Achei que você ia gostar de ser meu auxiliar na cozinha.
— Você vai me ensinar? — O olhar dele brilhou.
— É, vou. — E estava decidido, principalmente, quando o garoto saiu
na frente, animado, gritando para os amigos com quem jogava bola que
poderiam jantar na casa dele.
— Ainda bem que eu trouxe comida a mais… — Comentei baixinho,
ao ver os garotos de pés descalços e sem camisetas comemorando a novidade.
Depois de colocar Manuelito para tomar um belo banho e ajeitar a
casa do melhor jeito que pude, coloquei o menino em cima de um banco ao
meu lado e o ensinei a quebrar os ovos.
— Um dia eu vou ser como você. — Manuelito comentou depois de
me ver fritar os primeiros bifes.
— É mesmo?
— É. Você é bonitão. Minha tia disse que você é muito talentoso e
sabe fotografar e cozinhar! Você deve ser um garanhão! — Ouvir aquilo me
fez explodir em riso.
— Como é? Um garanhão?
— É, você sabe. As vizinhas falaram que você é isso. — Ele não
parecia envergonhado.
— E o que mais as vizinhas falaram?
— Que você vai salvar tia Charo, mas eu não entendi. Por que ela
precisa ser salva? — Manuelito, com toda sua inocência, ergueu o rosto para
o meu, me fazendo engolir a seco qualquer resposta que eu pudesse dar.
— É complicado, vida de adulto.
— Não gosto de coisas de adulto. Não quero virar adulto, na verdade.
A gente cresce, precisa trabalhar e começa a beijar meninas. Eca! — Eu ri e
baguncei o cabelo dele de novo, depois de limpar as mãos no pano de prato
em meu ombro, invejando a ingenuidade daquela criança.
Se ele soubesse como uma mulher era capaz de erguer e derrubar o
mundo de um homem, tenho certeza de que aquela afirmação dele
permaneceria igual por muitos e muitos anos. Óbvio que, para ele se manter,
precisaria de um voto de castidade eterno e eu sabia que isso, tendo herdado
as características físicas da tia, seria impossível. Quando Manuelito tivesse
seu primeiro amor, provavelmente, seria um caminho sem volta, assim como
foi para mim.
— Um dia elas não vão parecer tão nojentas. — Tentei amenizar a
coisa toda.
— Você acha minha tia Charo menos nojenta? — Ele perguntou,
arrancando mais uma risada minha.
— Nojenta? Essa é a última coisa que eu pensaria sobre Charo. — E
ali, junto do garoto, mudei o rumo da conversa e tratei de terminar o jantar
para a pequena tropa de seis garotos famintos.
Depois do jantar, os garotos foram embora e eu fui limpar as coisas,
feliz por ver Manuelito acariciar a barriga completamente satisfeito.
— É assim que a gente sabe que tá se tornando um homem grande?
Só vi na TV essa coisa de dar jantares. Quero fazer sempre. — O garoto
concluiu como se fosse fácil. — Também quero ter uma casa grandona para a
tia Charo poder viver comigo. Vou ser rico, assim ela não vai mais precisar
trabalhar e vai cuidar de mim o tempo todo.
— Você sente falta dela? — Perguntei, empilhando os pratos.
— Sinto. Não falo muito, mas não gosto de ficar aqui sozinho. Eu
reclamava mais, mas ela chorava sempre, então parei.
— Uma atitude de homem grande. — Comentei, sorrindo para o
garoto. — Sua tia estaria aqui se pudesse.
— Eu sei, ela sempre diz, mas tem que ganhar dinheiro para colocar
na poupança. Ela diz que um dia eu vou me formar e vou poder fazer o que
eu quiser.
— É, mas, até lá, tem um longo caminho, não é mesmo? — Terminei
de ajeitar a louça lavada e larguei o pano de prato.
— Tudo bem. Eu sou muito inteligente e estou acostumado a esperar.
Tia Charo não vive comigo há muito tempo e ela diz que eu sou quase um
rapaz. Além do que, as vizinhas são boas comigo.
— Desde quando você mora sozinho?
— Desde que eu era pequenininho assim. — Ele indicou com a mão
no ar e eu entendi que ele não lembrava a data exata.
— Hum… — Me sentei ao lado do menino, olhando pela janela, para
o céu já escuro, e suspirei.
— Adrian, você não quer dormir aqui? Nenhum amigo meu dorme
aqui, você podia ser o primeiro.
— Então eu sou seu amigo? — Achando graça, mas fascinado, olhei
nos olhos daquela criança.
— É sim. — E, do nada, Manuelito me surpreendeu mais uma vez,
levantando da cadeira e me dando um abraço, ao que correspondi assim que
me dei conta do que acontecia.
— Vá escovar os dentes. Vou ajeitar o sofá enquanto isso. — Falei
depois de alguns minutos e vi o garoto sair sem graça para o banheiro.
A solidão com a qual ele era obrigado a conviver era dolorosa, mas o
menino era forte. Charo fazia um bom trabalho com a condição que tinha,
talvez melhor do que eu faria.
Decidido a passar a noite ali, ajeitei o sofá pequeno, já ciente de que
acordaria dolorido, e acabei adormecendo sem me dar conta do cansaço que
havia se instalado no meu corpo e na alma.
Na manhã seguinte, acordei com o barulho de armários batendo e abri
os olhos. Em cima de mim, havia uma manta quentinha e eu precisei de
alguns segundos para me lembrar onde estava, mas, logo que vi a cama de
Manuelito desfeita, me sentei num pulo e o procurei pela casa.
— Buenos dias! — Ele disse quando me viu. — Fiz seu café da
manhã!
Em cima da mesa, havia um pão caseiro dentro de uma bacia e um
copo de leite achocolatado para cada.
— Uau! — Levantei e fui na direção dele, depois de me espreguiçar.
— Não vá dizer que você quem fez o pão? — Brinquei antes de me sentar.
— Não, né? A vizinha fez e mandou, falando para eu agradecer por
você ter feito o jantar ontem.
— E o que você fez então?
— O leite com chocolate! Vai dizer que você não gosta disso
também? — Ele colocou as mãos na cintura e eu pude ver a personalidade da
tia bem ali, o que me fez cair na gargalhada.
— Gosto sim, mas por que o também?
— Tia Charo não gosta de leite, nunca toma comigo. — Ele reclamou
antes de se sentar e pegar a faca para cortar seu pedaço de pão.
Manuelito era uma criança muito independente e eu gostei do que vi.
Ao contrário do que eu achei que ele fosse fazer, em vez de comer,
passou para mim o pedaço de pão com manteiga e eu o agradeci, esperando
por ele para começar a comer.
— Você vive perto da minha tia? Quando for embora, você pode
encontrar com ela e pedir para ela vir me ver? — Meu pão desceu
machucando a garganta.
— Sou vizinho da sua tia, mas ela está viajando a trabalho por estes
dias. — Foi a melhor mentira que pude contar.
— Ah… E dançarinas viajam?
— O tempo todo. Você não sabe que eu viajei o mundo tocando?
Reza a lenda que artistas como nós não têm raiz, porque precisamos espalhar
a arte pelo mundo. Você devia ver as dançarinas que encontrei mundo afora.
As cantoras, os bons músicos, pintores e escritores. — E, mexendo com a
imaginação do garoto, tentando afastá-lo do assunto do qual me doía falar,
levei Manuelito para uma viagem comigo, ali, naquela manhã, contando um
pouco do que eu já havia visto.
— Mentira. — Ele respondeu depois de me ouvir contar sobre minha
ida à Ásia e como fora montar sobre um elefante.
— É verdade. Juro para você. Eles são enormes, maiores que esta
casa.
— Duvido.
— E o senhor já viu um elefante?
— Na TV. Minha tia diz que não devemos ir ao zoológico, porque os
bichos são prisioneiros lá.
— Se é assim, não conto que eu montei em um desses.
— Mas o resto… — Ele me olhou desconfiado. — Você andou
mesmo de balão, lá no céu, lá no alto?
— Andei. Fiz amizade com um baloeiro e fiquei por três meses
vendendo um passeio romântico ao som de violino para casais. Todo dia
voava — Confidenciei.
— Demais!
— É, foi bom mesmo… — Olhei para o relógio da cozinha. — Mas
você não tem que ir para a escola ou algo do tipo?
— Ah, pensei que podia ficar em casa com você hoje…
— Manuelito, quer ou não quer seu dinheiro?
— Quero!
— Então vá logo se aprontar que o barco vai passar a qualquer minuto
para levar você para a escola.
E, não muito feliz, o garotinho de cabelos negros se levantou, me
deixando ali na mesa, pensando em quantas coisas aquela pequena criança
nem sonhava que existiam fora daquela cidade.
Buenos Aires era uma prisão: para ele, para Charo e, agora, de novo,
para mim.

***

— Adrian. — Manuelito me chamou enquanto estava ao meu lado, no


pequeno deck, junto das crianças vizinhas, que faziam uma pequena
algazarra.
— O que? — Perguntei, voltando minha atenção a ele.
— Você promete que um dia me leva para conhecer o mundo e andar
de balão? Mas tem que ser eu e tia Charo. Você promete?
Ouvindo o pedido, me ajoelhei para ficar na altura dele e o coloquei
de frente para mim.
— Não é uma coisa simples de se pedir, mas, se eu puder, levo vocês
comigo. — mal sabia o menino que aquele era meu desejo há semanas.
— Como vou saber que você não está mentindo? — Os olhos
amarelos, iguais aos da tia, me trouxeram a personalidade herdada por ela; a
desconfiança de Charo estava ali, nos olhos dele.
— Existe uma coisa muito séria, uma promessa que não pode ser
quebrada. São as promessas de dedinho. — Ergui meu dedo mindinho e vi o
reconhecimento no rosto dele, que logo juntou seu dedo ao meu e sacudiu
nossas mãos um pouquinho.
— Está feito! Se você não cumprir, vai perder o dedo! — Ele disse,
animado e como quem me alertava em uma ameaça real, me fazendo rir.
— Está feito. Mas só te levo se for o primeiro da turma.
— Tá bom! — Ele disse, soltando minha mão e se virando para ver de
onde vinha o barulho de motor de barco. — Quando eu voltar, você vai estar
aqui? — Ele me perguntou antes de ir para a fila, com o resto das crianças.
— Não… Preciso voltar para a cidade.
— Ah, tudo bem… Você pode deixar seu número de telefone com
alguma vizinha?
— Por quê? — Perguntei sem entender.
— Porque eu gosto de falar com meus amigos da cidade pelo telefone,
ué! — E, como se fosse óbvio, Manuelito me deu um abraço rápido, se
grudando no meu pescoço, e correu para a fila logo em seguida.
Fiquei ali na plataforma até ele sumir pelo rio acima e acenei o tempo
todo.
— Ele é um menino muito bom. — A senhora que Charo havia
encontrado outro dia disse ao meu lado, me pegando desprevenido.
— É. Eu tenho que concordar. — Tentei me recuperar do susto e
suspirei pesado. — Por acaso a senhora pode anotar meu telefone? Quero
saber como ele vai indo também.
— É claro, menino.
E, depois de cumprir o desejo dele, voltei para sua casa, coloquei tudo
no lugar e parti, de volta para a cidade, mesmo sem nenhuma vontade de
encarar o Bellagio sem ela lá.

***

— Achei que não fosse voltar. — Guillermo me encontrou no meu


quarto e apoiou o ombro na porta.
— Mas voltei.
— E onde foi?
— Ver o sobrinho de Charo. — Não menti.
— Meu amigo, em que confusão dos diabos você está metido…
Pensei que avisar logo que o último que demonstrou interesse por ela havia
sido morto abriria seus olhos, mas parece que você não me levou a sério.
Charo não é mulher para você ou qualquer outro. Ela é a boneca de
Domingos, a mulher do patrão, proibida para todos os outros mortais,
incluindo você. — Eu não gostei do tom de Guillermo e não o engoli,
respondendo baixo e de forma grosseira, querendo que ele entendesse o
recado para ir embora.
— Você não a conhece.
— Ah, conheço sim. Trabalho aqui desde antes de ela chegar e eu já
vi mais homens partidos do que poderia contar, e tudo por causa dela.
— Você acha que ela vive isso porque quer?
— Nunca disse isso, mas ela não pode fugir da vida que leva e você,
Adrian, já foi mais esperto que isso. Se não quer morrer, deixe ela em paz e
siga sua vida, fingindo que Charo não é nada além de uma boneca de pano
que não te pertence.
E, dizendo isso, Guillermo saiu, me fazendo socar a porta do guarda-
roupa, terminando de quebrar o bendito e machucando a pele do dorso na
mão.
Sem pensar muito, peguei o estojo do violino e segui para o palco,
pronto para tocar até os dedos sangrarem, até sentir mais alguma coisa além
da agonia e da raiva presa no peito, mas parecia que quanto mais eu
machucava as cordas, mais forte e grande o monstro no meu peito se tornava.
Minha música me lembrou de tudo o que eu havia passado para
chegar até ali.
Corri de uma vida que havia sido desenhada para mim e à qual eu
nunca pertenci. Parti da decepção com um pai monstruoso e da mulher à qual
eu dei tudo de mim: minha casa, meu dinheiro, minha vida e meu amor,
depois de pegar os dois na cama e saber que o poder era o que movia o
coração dela. Caí no mundo, de cidade em cidade, aprendendo, vivendo,
curtindo e toda vez em que havia oportunidade de criar raiz em algum canto,
podei minhas expectativas e parti para a próxima.
A hora de ir embora era determinada pela vontade de ficar para
sempre.
Eu nunca mais pertenceria a algum lugar, nunca mais deixaria minhas
raízes grossas o bastante para que não pudesse me mover, porque aprendi,
com muito custo, que existem sentimentos que viram prisão e eu nunca mais
seria prisioneiro, a não ser de boa vontade, a não ser que os grilhões fossem
colocados com beijos cheios de gosto de liberdade.
Minha música acabou. Eu estava suado, cansado, querendo poder
chorar para aliviar a tensão que havia crescido dentro de mim conforme eu
tocava, mas, ao abrir os olhos, vi a pequena plateia que havia se formado à
minha volta.
— Belo trabalho, violinista. Você é bom demais com esses dedos. —
Raquel disse com os braços apoiados em cima do palco.
— Obrigado. — Agradeci, tentando ser formal, ignorando o elogio de
duplo sentido dela.
— Sabe, Adrian… — Ela subiu as escadas, balançando os longos
cabelos avermelhados, que estavam soltos, e se aproximou de mim. — Você
e eu poderíamos fazer uma bela dupla, o que me diz?
— Agradeço o convite, mas não estou interessado. — Minha resposta
foi seguida de algumas risadinhas baixas das bailarinas que assistiam à cena.
Mesmo com a minha negativa, Raquel tomou o violino das minhas
mãos e o colocou no estojo. Observei sem entender até que, no segundo
seguinte, ela se sentou no meu colo.
Seu perfume era doce, bom. Seu rosto era belo, seus olhos tinham
cílios compridos e sua boca era cheia e desenhada. Era uma surpresa ela não
estar no lugar de Charo, eu diria que havia até uma pequena mágoa por não
ser a favorita do chefe, mas mal sabia ela o quão sortuda era.
— Acho que você não entendeu, querido. — Ela acariciou meu rosto.
— Eu e você, lá em cima…
— Acho que quem não entendeu foi você. — Falei baixo, mantendo o
olhar no dela. — Não tenho o menor interesse em você.
— E vai esperar por Charo voltar? Acha que vai continuar vivendo
seu teatrinho de casal proibido até quando, violinista? O final desse
espetáculo não será bonito. Eu sou livre para dar meu corpo a quem quiser e
poderia fazer maravilhas junto do seu, mas Charo é pior do que uma
prostituta, meu bem. Charo é uma escrava, da qual você nunca será o dono.
Sendo provocado ao limite, empurrei a mulher do meu colo, fazendo-
a cambalear para trás.
— Você não sabe nada a respeito disso. — Falei mais alto do que o
esperado, me colocando de pé.
— Sei sim, querido. Sei sim. Você precisa abrir os olhos logo, porque,
se morrer por causa dela, ah, isso sim, seria um desperdício. — Ela disse com
um sorriso repugnante no rosto e saiu rindo junto das outras bailarinas,
enquanto eu, sem saber o que fazer, saí desnorteado para trás da coxia,
querendo distância daquele lugar, daquela gente e de todo aquele sentimento
que me fazia refém de atitudes que eu não gostava de pensar em ter.
Capítulo 7
“A noite o chama enquanto você sonha, uma vida que nunca terá paz
enquanto você se equilibra na margem, sobre uma única corda, seu destino
talvez te derrube enquanto o mal está batendo à sua porta.”
(Awaken, Valerie Broussard[9])

Charo

Doía como nunca havia doído antes, mas eu fui forte como podia e
não olhei para Adrian antes de seguir até o meu destino naquela noite.
Eu sabia que havia ido longe demais dessa vez, sabia que seria punida
como nunca, mas não me arrependia, não quando, pela primeira vez, eu era
amada e o amava de volta.
Adrian era um erro, eu sabia, mas não conseguia fugir dele, não
quando parecia que tudo cooperava para que eu acabasse em seus braços,
quando parecia que, depois do fim, ele era o começo, o recomeço, a luz no
fim do túnel.
Mas ali, depois da última briga, vendo Domingos me olhar sem sorrir,
eu sabia que levaria muito mais tempo para que eu pudesse ver essa luz. A
escuridão havia chegado e ela me engoliria antes mesmo de eu perceber.
— Está perfeita como sempre, muñeca.
— Gracias, Senhor. — Respondi sem olhar em seus olhos, antes de
entrar no carro.
Meu estômago tremia tanto que chegava a doer. Minhas mãos
estavam geladas e havia um peso no final da minha coluna graças à tensão,
mas fingi que nada disso me machucava e segui para o lugar onde Domingos
puxava a cadeira para eu me sentar, na frente da grande mesa, cheia de
comida.
— Achei que seria bom alimentar você antes de começarmos. — Ele
disse quando me sentei.
O homem ao qual eu aprendi a obedecer empurrou minha cadeira com
gentileza e seguiu para o outro extremo da mesa, sentando-se sem tirar os
olhos de mim.
— Mal vi você nesses últimos tempos. Como vai, Charo?
— Está tudo indo bem. — Respondi quando o primeiro prato do
jantar foi servido.
Engoli minha salada mesmo sem fome, porque sabia que precisava
me fortalecer.
— É mesmo? Me contaram que você tem trabalhado em uma nova
peça… O que me conta sobre? — Domingos mandou servir o prato principal.
— É um novo musical sobre Evita, mas eu sei o que o Senhor deve
estar pensando. — Respondi depois da primeira garfada — Existem tantos
outros por aí sobre isso, não? Pensei em contar a história de uma forma
diferente.
— O que? Vai contar como a mãe do povo, a santa, era, na verdade,
uma prostituta manipuladora? — O tom ofensivo dele me fez parar com os
talheres sobre o prato.
— Não dessa forma. — Falei baixo.
— Você tem alguma experiência nisso, não? — Ele zombou. — Acho
que pode ser brilhante, ou um fracasso total.
Eu não o respondi e, por alguns minutos, comemos em silêncio, até
que, assim que os empregados recolheram nossos pratos e saíram, Domingos
se curvou, apoiando os cotovelos na mesa, e me encarou sério.
— Você ainda não disse o que eu queria saber, muñeca. Como anda
sendo foder com o violinista? — De repente, tudo à minha volta congelou.
— Eu? Não. Não, eu não estou. — Gaguejei, me embaralhando pela
maneira como ele jogou aquilo.
Domingos se levantou com um envelope na mão, vindo na minha
direção.
— Você, Charo, é minha propriedade e eu cuido do que é meu. — Ele
disse conforme se aproximava, abrindo o envelope e jogando em cima da
mesa fotos onde eu e Adrian nos beijávamos.
Balancei a cabeça, me sentindo completamente perdida, enquanto as
lágrimas surgiam por saber que a vida dele estava em risco.
— Eu que o beijei. A culpa foi minha, senhor. — Falei baixo
enquanto via as fotos, mas não consegui dizer mais nada, porque a mão de
Domingos veio pesada sobre o meu rosto.
Pela primeira vez ele me batia ali.
O choque me fez perder o ar, mas não o impediu de me bater de novo.
Dessa vez, ele colocou a mão no meu cabelo, enganchando os dedos nos fios
e batendo minha cabeça contra a mesa, sobre as fotos.
— O que é que você pensa que está fazendo, hein? Eu cuido de você,
daquele moleque fodido, e é assim que você me retribui? — Ele disse perto
do meu ouvido, em um tom tão raivoso que chegava a ser trêmulo. Dava para
sentir as pequenas gotas de saliva que voavam de sua boca para o meu rosto,
o calor de seu corpo enfurecido.
Eu não consegui falar nada, mas sabia que ele não procurava por uma
resposta, não quando ele já a tinha gravada nas fotografias...
Domingos chutou a cadeira onde eu estava sentada para longe, me
obrigando a segurar na mesa, com firmeza para não cair.
— Quantas vezes vou precisar lembrar a você de que é minha? — E,
soltando minha cabeça, ele passou a arrebentar os botões do meu vestido.
Um a um, ouvi o som deles indo ao chão, sabendo que era próxima a
hora de ele me machucar ainda mais.
Fechei os olhos, querendo sumir, enquanto as lágrimas quentes
rolavam pelo meu rosto, enquanto ele começava a puxar o vestido para
arrancá-lo de mim, e me agarrei à pequena esperança no fundo da minha
mente, vendo Adrian com seu rosto perfeito, cheiro limpo e fresco e
tatuagens bonitas: “Lute, Charo, Lute.” Ele me disse e eu abri os olhos,
pronta para tentar.
Domingos me virou de frente para si, quase nua, mas eu o empurrei,
pela primeira vez.
— Não! — Eu disse em alto e bom som.
— Como ousa? — A indignação em sua voz era brutal e, incentivado
pela minha recusa, ele voltou para cima de mim, me empurrando para cima
da mesa.
Eu bati em seu rosto; ele me bateu de volta.
Encaixou-se entre minhas pernas, mesmo eu tentando afastá-lo.
— Grite mais, sua cadela! — Ele cuspiu em mim e eu o arranhei onde
minhas mãos podiam tocá-lo.
Tentei afastá-lo, tentei machucá-lo, tentei fechar minhas pernas, mas
não consegui.
Domingos era forte, muito mais do que eu, e, quando conseguiu
imobilizar minhas mãos acima da cabeça, apertando meus pulsos com tanta
força que eu sabia que ficaria marcado, virou-me com brutalidade sobre a
mesa, colocando minha barriga para baixo, me segurando pelo pescoço, como
se eu realmente fosse um animal, e se encaixando atrás de mim. Ouvi quando
suas calças caíram no chão.
— Não! Não! — Eu gritei repetidas vezes, mas foi em vão.
— Vou lembrar você de como é quando você não me obedece. — E
ele cuspiu em algo antes de me invadir.
Doeu muito.
Eu não estava preparada, eu não queria, mas isso não o impediu de
estar dentro de mim, indo e voltando, gemendo de forma grotesca, como se
gostasse daquilo enquanto parecia me rasgar a carne por conta de toda a
minha tensão e secura.
Domingos me fodeu, machucou e levou de mim toda e qualquer força
para continuar a gritar, a lutar. Aos poucos, eu cedi. Aos poucos, me calei e
fiquei imóvel, de olhos abertos, vendo o reflexo de seu terno branco,
investindo contra o meu corpo, pelo reflexo da taça de prata polida, que havia
tombado sobre a mesa, respirando fundo a cada vez que o recebia, me
sentindo tão morta quanto poderia.
Quando ele terminou, me deu um beijo nas costas e largou meu
pescoço. Escorreguei para o chão como um objeto inanimado, sabendo que,
dali para frente, não haveria um segundo de paz.
— Pronto. Isso deve ter te lembrado sobre como as coisas são.
Mesmo assim, não se preocupe, eu vou me certificar de que você volte a ser
como era antes, minha boneca.
E, passando as mãos pelos meus cabelos, Domingos me arrastou pelo
chão, enquanto cantarolava uma das suas músicas clássicas, me lembrando
como eu era nada, só um sopro, que ele decidia para onde ir.

***

Ele sempre deixava eu me lavar, mas, dessa vez, com os resquícios


dele dentro de mim, Domingos me jogou para dentro do quarto e deu um
grito pela porta, chamando seus homens. Eu já havia sido vista nua milhares
de vezes por eles e, naquele momento catatônico, não ligava. Não protestei
quando eles me tocaram, amarrando minhas coxas, braços e cintura com uma
corda apertada; nem quando me içaram sobre a cama de Domingos, como se
eu fosse parte da decoração.
Não esperava que fosse diferente, porque, pela primeira vez,
Domingos realmente tinha alguém que o ameaçava.
Eu nunca havia me entregado a outro homem, nem aos que ele havia
matado nos dias de mal humor, por achar que tinham algo comigo. Sempre
soube das consequências, mas agora era diferente. Adrian fazia tudo valer a
pena; só era triste que ele tivesse chegado tão tarde na minha vida.
Quando içada, Domingos se aproximou, beliscando o bico do meu
seio esquerdo com força, quase me fazendo chorar, conforme me olhava
fascinado.
— Até assim você é bonita, como uma obra de arte pintada pelos
deuses… Ah, Charo, você está com defeito, como se fosse um computador
que pegasse um vírus, mas não se preocupe. — Ele torceu os dedos, me
fazendo gritar. — Eu vou curar você.
E, com isso, ele tapou meus olhos com a venda, me prendendo no
escuro só para ter o gosto de me atormentar.

***

— Acorde! — A primeira chicotada ardeu.


Acordei e ergui a cabeça, assustada, sentindo a dor dos músculos me
massacrar.
Abri os olhos, querendo ver algo, mas tudo o que tinha lá era o nada
escuro. Respirando descompassadamente, sentindo o coração na garganta por
conta da surpresa. A segunda chicotada veio e eu gemi de dor, o que fez
Domingos rir enquanto me assistia.
Eu o imaginava deitado em sua cama, com seu charuto na boca e o
chicote na mão, apenas apreciando o que podia fazer comigo.
Um dia eu desejei que os papéis se invertessem, mas eu não veria
beleza nenhuma a não ser que o seu cérebro fosse esmigalhado contra a
parede e eu, finalmente, fosse livre.
— É assim que você geme quando ele te come, cadela? Eu duvido.
Você é bem barulhenta quando gosta. Vamos, me mostre. — E ele me bateu
de novo, de novo e de novo.
Coxas, barriga, seios, pernas, tudo era atingido, tudo parecia doer
muito. Mesmo que o sangue estivesse preso pelas amarras, meu corpo parecia
extremamente sensível e ele se aproveitou disso. Domingos me machucou
tanto que só parou quando eu implorei. Por apenas um segundo, ele tirou
minha venda e eu, assustada, vi sua roupa, que era branca, tingida com
pequenos pontos vermelhos do meu sangue.
Minha carne ardia dolorosamente.
Os lugares onde o chicote havia machucado latejavam. Meus braços e
pernas estavam duros por eu tentar fazer força para fugir das chicotadas e
havia uma dor excruciante na minha coluna, por todo o esforço.
— É assim que eu gosto, minha bonequinha me obedecendo. — Ele
sorriu, largando o chicote na mão de um dos seus homens. — Desça ela. Vou
levar Charo para se refrescar...
Os capangas obedeceram, me soltaram sem nenhum cuidado e,
quando meu corpo caiu no chão, pensei ter quebrado algo. Não queria ficar
de pé, só queria ficar quieta ali no meu canto, esperando a piedade de Deus
ou algum santo para que me levasse dali.
Não deu certo. Os dois brutamontes me colocaram de pé e me
levaram para a frente de Domingos, onde forçaram minhas pernas,
obrigando-me a ficar de joelhos.
Como antes, Domingos me pegou pelos cabelos e me arrastou para o
lado de fora da casa, onde ficava a piscina.
— Sua primeira noite vai ser aqui. Você será mergulhada toda vez
que seu corpo começar a secar. Vai ficar nua, aqui fora, em pé, até eu decidir
que não é mais a hora. — Ele disse atrás de mim, me colocando bem na
borda da piscina. — Até você me responder, com sinceridade, que nunca
mais vai encontrar com o violinista.
— Eu não vou. — Falei baixo, com a voz embargada, com lágrimas
rolando pelo rosto.
— Eu não acredito ainda. — Foi o que ele sussurrou de volta, antes de
me jogar na água gelada.
Os cortes arderam; meu corpo sofreu com o choque da temperatura,
mas minha mente estava longe. Estava visitando a primeira vez em que
coloquei os olhos em Adrian.
Eu só fingi não vê-lo, mas era impossível não notar sua beleza e seu
talento.
Quando eu o vi pela primeira vez, no Bellagio, escondida depois de
uma ressaca e tanto nos camarotes superiores, e o ouvi tocar, soube que não
seria fácil expulsá-lo dos meus pensamentos.
Eu me encantei por ele logo que o vi, me apaixonei só por conhecê-lo
melhor e o amava, sem freios, como nunca me permiti antes, desde que olhei
dentro daqueles olhos castanhos, cheios de uma liberdade que eu nunca teria.
Ele era tudo o que eu desejava, tudo o que eu sonhava e, agora, eu era
obrigada a tentar apagá-lo, a deixá-lo longe.
Os bons dias se acabaram e eu me via cada vez mais imersa no terror
da minha realidade.
Fui puxada e jogada na água por toda aquela madrugada.
Senti um frio que nunca havia sentido antes, mas aguentei, aguentei
até que Domingos apareceu pela manhã e me encontrou em um estado
deplorável.
— Você vai esquecê-lo?
— Vou. — Menti entredentes, tremendo como nunca, por conta do
frio.
— Não, não vai. Não ainda. Pense bem, Charo. O futuro do seu
sobrinho está nas minhas mãos. — Ele disse com a mão no meu queixo,
provando do meu olhar de nojo. — Levem ela para sua cela, quem sabe lá
não a recorde das desvantagens de não me obedecer.
E ali, ouvindo a ordem, minha mente entrou em estado de alerta e o
medo me consumiu.
Fui guiada entre os corredores, enquanto implorava para não ser
trancada no escuro, mas não adiantou. Abriram o alçapão com o qual eu tinha
pesadelos e me largaram lá dentro, empurrando-me dos últimos degraus,
enquanto fechavam a única porta, a única fonte de luz naquele buraco úmido,
sujo e nojento.
Aquele lugar fedia muito e era o cheiro podre de cadáver que eu
sentia ali.
Com o coração batendo alto, alerta a qualquer coisa que estivesse à
minha volta, me agachei quieta, no lugar onde havia caído e me deitei contra
o chão, abraçando meu corpo machucado, tentando não entrar em desespero,
tentando enxergar naquele breu, onde os ratos, por vezes, tentavam me roer;
onde eu sabia que os mortos eram largados para apodrecer, pensando se
levaria muito tempo até que a luz voltasse a machucar meus olhos para,
finalmente, me libertar daquele calabouço.
Dormi e acordei várias vezes. Não consegui descansar, não consegui
desligar. Todo e qualquer barulho ali no escuro silencioso se tornava maior
do que era. Quando algo passou perto dos meus pés, eu gritei com medo,
para, logo em seguida, tapar minha boca e chorar o mais silenciosamente
possível.
Quis fazer xixi, mas tinha medo de levantar e, na hora em que não
aguentei mais, urinei do jeito que estava. Tive febre, vomitei e me afastei
com muito cuidado de onde eu estava. Ouvi os ratos correndo para onde eu
havia vomitado.
Chorei de novo.
Tive fome, muita fome, mas ninguém apareceu para me alimentar.
Tive sede, tentei morder a ponta da língua para produzir mais saliva,
mas não adiantou de nada.
E, quando achei que fosse morrer, quando achei que, finalmente,
pudesse descansar, abriram o alçapão.
Fui cegada pela luz e quase não me aguentei em pé quando me
levantaram. Cobriram meus olhos com uma venda, amarraram minhas mãos,
me forçaram a caminhar.
Não sei quanto andei, nem para onde andei, mas gritei quando me
molharam com água fria. Alguém com a mão calejada tentou me lavar. Tentei
me esquivar, mas tomei um soco entre as costelas e parei no lugar, deixando
a mão fazer seu trabalho. Ardia conforme o sabão lavava minhas feridas. Me
machucaram quando lavaram meu sexo, mas não reclamei e fiquei ali
tentando não me mover.
Me enxugaram e logo eu andei de novo, sendo, de repente, colocada
de joelhos, sobre algo que doía. Eu não sabia o que era, mas suspeitei que
fossem sementes.
Não seria a primeira vez.
Fiquei por horas ali, não sentindo nada além da dor daquelas
pequenas coisas entrando na minha pele.
— Ele a quer. — Ouvi alguém dizer e, logo em seguida, me puxaram
pelos cabelos para cima.
Sem dizer uma palavra, fui, mais uma vez, arrastada pela casa, até me
jogarem de novo no chão.
— Charo, minha boneca, você pensou no que te disse?
E eu havia pensado, o tempo todo, em meu pequeno sobrinho, no meu
Manuelito.
Eu o amava mais do que qualquer coisa na vida e tinha sido por ele
que eu havia aceitado a proposta de Domingos. O dinheiro que ele daria para
meu sobrinho depois dos dezoito, pelo auxílio que ele teria em todas as aulas
que eu nunca sonhei em ter, a oportunidade de ter uma vida completamente
diferente do que tinha tido até ali e, principalmente, se não fosse Domingos,
eu não teria salvo Manuelito quando a mesma doença que levou minha
família quase o levou.
— Pensei. — Respondi baixo, mal encontrando minha voz de tão
fraca que estava.
— E o que decidiu?
— Eu vou deixá-lo. Eu não o amo, senhor. — A mentira quase
pareceu verdade nos meus ouvidos. Eu parecia um animal, mal me
reconhecendo.
Ouvi passos e me encolhi com medo de ser machucada novamente,
mas, de repente, a venda foi arrancada do meu rosto.
Ajoelhando à minha frente, Domingos segurou meu rosto e, me
obrigando a olhá-lo nos olhos, perguntou mais uma vez.
— Você vai deixá-lo?
— Sim, senhor. — Falei sem conseguir manter o olhar dele enquanto
chorava.
— É bom que seja verdade, menina. Ou eu vou enterrá-lo e trarei seu
sobrinho para ser meu novo brinquedo.
Ouvir aquela ameaça fez com que tudo de bom e bonito dentro de
mim, que havia começado a se reconstruir nos últimos meses, fosse destruído
em apenas um segundo. Meu coração havia virado pó; meu sangue, água; e
meu espírito estava, de novo, enjaulado nas mãos daquele homem perverso.
— Entendido, Charo? — Ele perguntou, já se pondo de pé.
— Sim, senhor. — Respondi, tentando sentir algo, mas nem força
para sentir raiva eu tinha.
— Ótimo! — ele bateu na minha cabeça como se eu fosse um
cachorro. — Levem-na para ser cuidada e alimentada. Ela vai dormir e
voltará para me servir como nunca serviu antes, não é mesmo, bonequinha?
E eu concordei com a cabeça, sem forças para falar, sem mais
lágrimas para chorar, porque tudo dentro de mim havia apodrecido.
Capítulo 8
“Amor da minha vida, você me machucou, partiu meu coração e agora
me deixa, amor da minha vida, você não entende? Devolva-me, não
tire isso de mim porque você não sabe o que isso significa para mim.”
(Love Of My Life, Queen)

Sentado na beira da calçada, observando enquanto as dançarinas


conversavam e dançavam animadas naquela tarde de sexta, me senti um lixo.
Era como estar na sarjeta, como ser apenas um corpo vazio, cuja alma havia
há muito escoado entre os dedos do pé, para junto do esgoto.
Eu me sentia um nada, porque, depois de sete dias sem vê-la, eu
comecei a acreditar que ela não voltaria.
Foi quando, para a minha total surpresa, uma bailarina jovem, que eu
nunca havia notado, chegou até mim completamente ofegante. A garota
parou à minha frente, apoiou as mãos nos joelhos e curvou o corpo enquanto
tomava fôlego.
— Ela voltou. — Ela avisou e eu levantei num pulo. — Mas o senhor
García quer ver você, ele está no teatro. Vá logo! — Ela me ordenou e eu
pisquei algumas vezes antes de entender o rumo que deveria tomar.
Minha vontade era de subir, de vê-la, abraçá-la, sentir seu cheiro, seu
corpo, mas sabia não poder, sabia que precisava me manter firme em uma
postura a qual não queria ter, mas era questão de vida ou morte fazer com que
Domingos acreditasse que não havia nada entre eu e Charo.

***
— Olá, de La Vega. — Domingos me cumprimentou quando saí de
trás da coxia, tapando os olhos, pois o holofote estava apontado para mim,
quase me cegando pela luz forte repentina na cara. — Soube que você não
está cumprindo nosso acordo. — O velho foi direto e reto.
— Qual a parte? — Tentei me esquivar.
— A única real proibição que envolve meus funcionários: deixar
minha concubina em paz… — O tom era de ameaça, mas, por algum motivo
louco, eu não tive medo.
Respirei fundo, abaixei a mão e tentei enxergar Domingos direito.
Ele estava em pé, com as mãos no bolso da calça, me olhando como
se eu fosse nada, ou menos do que isso, se é que era possível.
— Eu não sei do que você está falando. — Menti.
— Quero você fora daqui, agora. — Domingos disse sem cerimônia.
— Você não vai encontrar trabalho em outro lugar e será obrigado a ir
embora do país, é minha gentileza a você por ser filho de quem é. Seu pai e
eu temos bons negócios, você não me pertence e eu sei muito bem como
Charo pode mexer com a mente de um homem, ainda mais com aqueles
olhos, com aquele corpo… Eu já fui jovem, rapaz, e, quando você chegar na
minha idade, vai se surpreender com as coisas que pode fazer para salvar o
que te mantém com essa essência.
— Está dizendo que Charo é seu elixir da juventude? — Questionei,
erguendo uma das sobrancelhas, achando aquele discurso ridículo.
— Estou dizendo que é bom você se afastar dela, porque Charo me
pertence e eu sou uma criança muito egoísta com meus brinquedos, apesar de
que, se eu fosse você, deixaria de lado essa fantasia de amor proibido e
seguiria em frente. Charo não o ama, rapaz, e agora ela está consciente disso.
— E você sabe o que é amor? Você não conhece isso, Domingos. Só
de ver o estado em que Charo volta depois de ficar com você: torturada,
machucada! Você não sabe o que fala. — Dei um passo na direção de
Domingos, mas parei ao ouvir sua risada.
— Não sei? Então vá, pergunte a ela. Vou te dar essa oportunidade, se
é que ela consegue falar... — E eu não pensei duas vezes, virando-me logo,
desesperado para vê-la, porque, dentro de mim, alguma coisa gritava,
denunciando que algo estava errado.
Só dei por mim quando estava no alto da escada, com o coração
batendo tão forte que poderia pular fora do peito a qualquer segundo. Havia
muita gente ali na frente da janela dela e a expressão no rosto daquelas
pessoas era de horror.
— Coitada… — Ouvi uma dizer.
— Eu não sei como ela aguenta. — Ouvi outra. Os comentários não
pararam e, por causa deles, eu tive medo do que ia encontrar.
A cada passo que eu dava na direção dela, parecia que meu coração
era comprimido contra o peito, dando a sensação de que, quando eu a visse,
ele explodiria em pequenos pedaços, impossível de serem colocados no lugar.
E eu tinha razão.
Charo parecia sedada, nua em cima da cama, as costelas à mostra
como se tivesse perdido peso, o rosto machucado e abatido. Os cortes em
seus braços, barriga e pernas eram tratados por Carmen e uma outra
camareira. Os roxos incontáveis faziam de Charo uma aquarela mal pintada e
não havia nada que partisse mais o meu coração do que saber que,
provavelmente, ela havia passado por tudo aquilo por minha causa.
— O que ele faz aqui? — A coreógrafa idosa gritou quando me viu na
porta. — Para fora, rapaz, para fora! — Ela tentou me afastar, levantando e
vindo na minha direção.
— Eu… — Minha voz saiu como um sussurro e lágrimas já
molhavam meu rosto. — Eu preciso cuidar dela. — Limpei a garganta
enquanto dava um pequeno passo para trás, evitando a mulher que tentava me
tirar dali. — Preciso falar com ela.
— Outra hora. Ela está sedada, não vai acordar tão cedo, mas, se quer
fazer um favor para essa menina e para si, esqueça Charo, rapaz! Esqueça!
Agora vá, vá logo, me deixe fazer o meu trabalho. — E, me empurrando para
fora, ela bateu a porta bem na minha cara, assim como as janelas logo em
seguida, evitando que a plateia pudesse provar mais do meu desespero e
agonia.
Olhei em volta para todos aqueles rostos, me sentindo pequeno e sujo,
e limpei o rosto, fungando alto, enquanto saía para o meu quarto, esperando
pela chance de vê-la, de ouvir sua voz, de saber que tudo ficaria bem.
E, na minha determinação de acreditar que tudo ficaria bem, comecei
a tramar meu plano de fuga, com ela e Manuelito. Cairíamos no mundo assim
que ela se recuperasse e nunca mais olharíamos para trás.

***

Charo dormiu por dois dias inteiros e não saber quando veria seus
olhos amarelos abertos de novo me consumiu o juízo. Mas foi quando saí do
palco no domingo, direto para o meu quarto, que me assustei quando abri a
porta, encontrando com ela, sentada na minha cama.
O cabelo era um ninho preso no alto da cabeça; os ombros caídos,
protegidos por um dos seus robes de seda; o rosto cansado, com uma
expressão dura, olhando para o nada mesmo quando já tinha tempo que eu
havia aparecido.
— Olá… — Falei rompendo o silêncio, que pareceu durar uma
eternidade.
— Eu não amo você. — Ela respondeu e, então, virou para me ver. —
Eu sinto muito por ter feito você acreditar, é o que mulheres como eu são
pagas para fazer. Você só teve o azar de cruzar o meu caminho. Como vou
passar alguns dias com minha família, achei que precisava te dizer antes de ir.
— Charo, não… — Eu queria ir até ela, mas minhas pernas pareciam
pesar uma tonelada cada.
— Não. — Ela ergueu a mão, me calando.
Sua frieza, distância e indiferença dilaceraram minha carne por
dentro.
— Por favor. Eu já planejei tudo! Vamos fugir: eu, você e Manuelito.
Vamos para o outro lado do mundo, onde ninguém poderá te fazer mal. — E,
me pondo de joelhos, ela se levantou. Com dificuldade, Charo se ergueu e me
olhou nos olhos, furiosa como nunca, e disse palavras que eu preferia nunca
ter ouvido.
— O que você pensa que está fazendo? O que você acha que pode me
oferecer? Eu tenho tudo o que preciso bem aqui. E eu não sou como você,
Adrian, que foge de tudo o que precisa enfrentar na sua vida! Meu destino é
este, meu lugar é aqui e não vou com você a lugar nenhum, nem hoje, nem
nunca! Eu sinto muito que as coisas chegaram nesse ponto, mas é isto: eu não
te amo, eu nunca amei, então, se quiser pegar suas coisas e ir embora, vá,
porque, de novo, o seu destino é ser abandonado por alguém que prefere a
estabilidade do que seus sonhos malucos de liberdade!
E aquele foi o grande final.
Ela passou por mim como se fosse vento enquanto eu saboreava o
gosto amargo das suas palavras, enquanto cada uma delas era absorvida pelo
meu corpo e nutria o monstro inseguro da minha mente.
Engoli todo o desgosto de Charo em um só gole e caí no chão, como
se a morte daquele veneno fosse imediata, como se meu corpo tivesse perdido
o rumo, o sentido, a vontade de continuar.
Pela segunda vez, o destino havia me derrubado e, daquela vez, eu
não sabia se conseguiria levantar.

***

Não saí do meu quarto para nada nos três dias seguidos.
Havia, dentro de mim, uma vontade de dormir e nunca mais acordar
que nunca havia sentido. Era tão doloroso, tão horrível, que, por todo aquele
tempo, sem saber como era possível, eu chorei.
Não havia um segundo sem choro, sem ouvir as palavras dela
bombardeando minha mente, sem sentir aquela dor maldita, da qual eu
precisava me livrar.
Não era possível que, depois de tudo, eu fosse só um passatempo para
ela, não mesmo, mas eu já havia passado pela situação de alguém dizer que
me amava enquanto me olhava nos olhos e, ao virar as costas, ser
apunhalado.
E foi pensando naquilo, que, talvez, longe dali, as coisas fossem
diferentes, que levantei, tomei um banho decente e tentei comer algo antes de
partir para o Tigre, antes de olhá-la nos olhos, antes de terminar de quebrar o
que restava do homem que eu era.
O passeio de barco foi agoniante: meu estômago parecia cada vez
mais enjoado, mas eu sabia ser culpa da ansiedade, tanto que, quando desci
do barco, na pequena vila, vomitei tudo o que tinha no estômago e segui,
determinado a ouvir algo de Charo, algo que pudesse me salvar, algo que
pudesse me trazer um sopro de vida.
Subi as escadas de madeira da casa o mais silenciosamente possível e,
quando abri a porta, sem convite, encontrando-a destrancada, escancarei a
mesma e pude ver a surpresa no rosto de Charo ao me ver lá.
Ela estava tão mal quanto eu.
— O que você faz aqui? — A voz não era dela, e sim, de um homem
careca e forte, que eu nunca havia visto. Ele estava de pé, ao lado do sofá,
enquanto Charo se encontrava sentada na pequena mesa de jantar.
— Não é da sua conta. — Respondi para ele, sabendo que, se fosse
preciso, eu usaria de força física para ficar e falar com ela.
— Adrian, vá embora. — Ela disse baixo. — Por favor, vá embora.
— Não, não até você dizer que realmente quer que eu suma.
— Ela quer e já te disse isso, precisa de ajuda para que sua cabeça
entenda? Vou adorar dar um chacoalhão nela. — O brutamontes deu um
passo na minha direção, mas eu não recuei.
— Não o machuque. — Charo pediu para o homem. — Adrian, vá
embora, por favor. Não há nada que você possa fazer, eu disse o que disse e é
isso. Acabou.
— Não acredito.
— POIS ACREDITE! — Ela gritou, batendo na mesa.
— Charo, por favor. — Avancei na direção dela, pronto para tocá-la,
para fazê-la me olhar, mas foi como ser impedido por uma parede.
O homem que estava com ela se meteu, me dando o primeiro soco
inesperado, fazendo minha cabeça ricochetear. Cambaleei para trás e parei
por um segundo, colocando a mão no nariz, vendo o sangue que descia junto
da dor lancinante e a vontade de chorar, que vinha junto.
Sem pensar muito, me joguei contra meu adversário, que me olhava
com um sorriso desafiador, dando a ele o que parecia tanto querer quando me
rendi à violência.
Charo gritava enquanto nós dois trocávamos socos. Meu coração
disparado espalhava a adrenalina pelo meu corpo ainda mais rápido e era
como fogo nas minhas veias. Acertei alguns socos, tomei outros e ia bem, até
que, num impulso, o homem bateu na minha cabeça com uma panela de
ferro, pesada, que estava sobre o fogão.
Minha cabeça doeu de imediato e, por um segundo, minha visão
falhou, mas aquilo foi o suficiente. O homem me pegou, me arrastando para
fora da casa, pelo colarinho, me levando em direção ao rio. Dava para ouvir
Charo gritando para ele parar, mas não adiantou.
— Não se aproxime dela, violinista. — E, com o recado dado, ele me
jogou no rio.
A água gelada me acordou pelo choque. Eu tentei me manter
flutuando, mas a vontade de deixar o rio me levar foi maior, ainda mais por
saber que não havia nada ali para mim.
Nada.
Eu havia sido iludido mais uma vez e a culpa era toda minha, ou dela.
Só dela.
Me arrastei para o primeiro deck que achei e, com muito esforço,
pulei para fora d’água, esperando até algum barco passar. Voltar para a merda
do Bellagio era a única opção que eu tinha, até que juntasse minhas coisas e
fosse embora de vez, para nunca mais voltar.

***

O ódio que sentia de mim era enorme, mas começava a perder o posto
de primeiro lugar para a quantidade de sentimentos ruins que surgiam sobre
Charo.
— Eu avisei que dormir com uma prostituta era um tiro no pé, não?
— Guillermo sentou ao meu lado, suspirando.
— Descobriu isso sozinho?
— Não. Descobri me deitando com Raquel, sendo apaixonado por ela,
por alguns anos, até perceber que o que elas amam é o dinheiro, é a ilusão
daqueles minutos cheios de luxúria.
— Veio até aqui para me dar mais uma lição de moral? Porque, se for,
eu já estou cheio dessa merda. — Falei, segurando o gelo contra a cabeça,
onde ainda doía por conta da panelada.
— Não… Infelizmente, eu venho aqui para te despedir, meu amigo.
Domingos pediu sua saída, mas pediu para dar um recado.
— Hum… eu já imaginava— Resmunguei e rolei os olhos, querendo
que o velho explodisse.
— A primeira coisa é que você saia imediatamente daqui; sua entrada
no Bellagio está proibida. A segunda coisa é que vão fazer a peça que você e
Charo montaram e ela será a primeira da temporada, assim que o feriado
passar.
— Feriado?
— É, é natal. Esqueceu?
E eu tinha esquecido completamente, mesmo.
Suspirei, cansado de lutar contra a minha vontade de desistir, e dei a
mão para Guillermo.
— Foi bom enquanto durou, amigo.
— Preferia que não tivesse começado. — Respondi, pronto para
começar a guardar as minhas coisas e cair na rua, junto da minha nova
companheira, garrafa de gin, buscando, no álcool, a resposta para a dor
daquela traição.
Porque, no fundo, era isso que era. Charo havia traído meu amor,
minha confiança e toda a minha essência, me deixando no fundo do poço,
junto de todos os restos podres das possibilidades de felicidade que teríamos
juntos.
***

O álcool era bom. Ele me dava a sensação de poder falar sobre tudo,
de chorar por tudo e não ter que me desculpar depois. O bar virou minha
casa, o barman, meu melhor amigo, e, por causa da minha insistência em
alimentar meu ódio por Charo, na tentativa de livrar meu coração da presença
dela, tentei acompanhar seus passos junto dos bailarinos que saíam do
Bellagio.
Ia onde eles iam, comia onde eles comiam, tudo para saber dela,
qualquer mísera informação que fosse e essa obsessão doentia durou por uma
semana. Até sua noite de estreia do espetáculo, em que eu havia colocado
minha paixão e agora era roubado.
Ela era uma ladra.
Roubou minha vida toda em apenas um beijo e agora eu era nada.
Um nada enorme, vivendo atrás de migalhas dela.
Eu não havia fugido, não havia partido, não havia sido fraco como ela
disse. Na verdade, estava ali, mais preso do que nunca, sem nada da liberdade
da qual ela me acusou, tudo por ter a merda do coração acorrentado aos seus
dedos de bruxa cigana, de olhos amaldiçoados.
Não, ela merecia ouvir e eu não sabia se era pela coragem que o
álcool causava ou pela minha vontade de vê-la mais uma vez que eu arrisquei
tudo o que tinha quando entrei escondido pelas portas de trás do Bellagio,
pronto para assisti-la dançar sobre o que restava da minha paixão, pisoteando
o que sobrava de mim, mesmo que aquilo custasse minha vida, porque, na
verdade, eu já estava morto.
Capítulo 9
“Já falei demais? Não há nada que eu possa pensar em dizer para você,
mas tudo o que você tem que fazer é olhar para mim para
saber que cada palavra é verdadeira.”
(Dont’t Cry For Me Argentina, Madonna[10])

Charo

Respirar era difícil. Tudo doía, mas a maior dor de todas era a da
saudade.
Ver Adrian como vi e não poder falar nada, não poder fazer nada, não
poder tê-lo perto para dizer que era tudo mentira parecia doer como a perda
de um membro. Na verdade, eu acreditava que perder um membro poderia
doer menos, porque, no momento, tudo o que eu queria era acabar com tudo.
Morrer significava liberdade e era a única que eu teria por toda a
minha vida. Domingos já havia deixado claro e eu já havia pensado na
possibilidade, mas e quem cuidaria de Manuelito? E o que Domingos não
faria com ele por raiva de perder sua boneca?
Pensar no apelido que ele me deu me dava arrepios e enjoos.
Lembrar de como havia me machucado para depois me usar, como
parecia ter prazer em me quebrar e ver que tinha todo aquele poder sobre
minha vida, fazendo de mim seu fantoche, era repugnante.
Minha vontade era de deitar e simplesmente morrer, mas nada era tão
simples.
— Vamos querida, passe mais um pouco de maquiagem nesses roxos
e não chore, vai borrar sua maquiagem. — Mama Carmen disse com seu
toque carinhoso.
Ela sabia o que eu passava, sabia o quão machucada por dentro eu
estava, sabia que eu era uma casca oca, completamente vazia, seca, cheia de
rachaduras que nunca se curariam.
— Está bem. — Tentei sorrir de volta para ela, mas não consegui e
ela, no auge de sua generosidade, apertou minha mão de leve antes de sair.
Eu já havia pego ela chorando por minha causa e sabia que não devia
ser fácil.
Caminhei para a beira do palco, esperando minha deixa, ouvindo o
novo violinista não tão bom, pensando em como Adrian estaria naquele
momento.
Eu esperava que minhas palavras o tivessem machucado o bastante
para que ele fosse o mais longe possível. Esperava que encontrasse alguém
que o merecesse e pudesse ficar com ele. Esperava que ele me perdoasse
pelas mentiras todas e que houvesse a dúvida lá no fundo de seu coração
sobre a hora em que eu disse que não o amava.
Aquela era, sem dúvida alguma, a maior mentira já dita antes.
Mas, mesmo que no meio da noite eu acordasse assustada por algum
pesadelo escuro e pensasse sobre minha decisão, logo me convencia de ter
sido a melhor. Ele era tudo o que eu nunca poderia ter, mas amaria e sentiria
falta para todo o sempre.
— Charo, é a sua vez. — A bailarina ao meu lado me alertou quando
eu quase perdi a hora da entrada, por estar distraída.
Me movi até o centro do palco, no vestido branco esvoaçante, pronta
para dar o meu máximo ali. Pronta para tentar honrar a última memória que
teria de Adrian, quando, nos ensaios, eu vira sua paixão e experimentara dela,
quando ele me contaminara dos pés à cabeça com seu jeito boêmio, honesto e
carinhoso.
No palco, a arte era, acima de tudo, o grito da sua alma.
Bem, se eu pudesse imitá-lo ali, aquele seria o grito da minha.
A música começou lenta e meu solo foi libertador. Me mover não
doía graças aos remédios que eu havia colocado para dentro, junto da bebida,
mas ainda era estranho quando alguém encostava em mim. Quando meu
parceiro de dança tocou em meu ombro, um arrepio percorreu minha espinha
e a vontade de vomitar cresceu no esôfago, mas respirei fundo e, não
deixando o público perceber que algo estava errado, virei-me para ele,
seguindo o restante da coreografia.
O público aplaudiu quando terminei o ato. Meu parceiro saiu de cena
e as luzes do palco se acenderam em vez do holofote, que ficava seguindo
meus movimentos. E foi ali, arriscando dar uma pequena olhada na plateia,
que eu o vi.
Adrian me olhava como se fosse me matar.
Sua barba estava maior do que eu me lembrava, seu olhar era furioso
e me deu medo, tanto que recuei alguns passos, o que foi, com certeza, um
erro.
O mundo todo parou quando ele se levantou e pulou do camarote para
o palco.
— O que está fazendo aqui? — Perguntei, desesperada. Ele podia
morrer!
— Vim atrás da verdade, Charo. — E a música que eu deveria dançar
com ele começou a tocar.
Suas mãos vieram firmes sobre a minha cintura e eu fechei os olhos
enquanto ele se aproximava. Sentir seu cheiro, seu calor e sua tristeza ali
parecia fazer o tempo parar.
Coloquei as mãos sobre seus ombros, aspirando tudo o que podia
dele, querendo gravar na memória, porque sabia que, depois daquilo, a
chance de vê-lo novamente algum dia, mesmo na velhice, acabava de ser
destruída.
— Por favor, vá embora. — Pedi, mas ele não me ouviu, apenas guiou
meu corpo para o primeiro movimento e eu abri os olhos, encarando seu
olhar, que, de longe, parecia furioso, mas, de tão perto, era desesperador de
tão triste.
— Você disse suas verdades sobre mim, agora, permita-me dizer o
mesmo sobre você, madame. — Havia raiva em sua voz e em cada um dos
seus movimentos, como a música pedia, em uma das brigas de Evita e seu
marido. — Você é uma mentirosa, Charo. — Ele esbravejou e me empurrou,
me fazendo quase perder o equilíbrio antes de ele me puxar de volta, contra o
seu corpo e me virar de costas. — Você me enfeitiçou e iludiu. Enganou e
roubou.
— Eu não roubei nada, não menti, mas, por favor, Adrian, vá embora.
— Implorei, me soltando dos seus braços, girando pelo palco.
Ele se adiantou, parando bem à minha frente, me puxando pela cintura
e elevando meu corpo no ar.
— Eu poderia te dar tudo, Charo; eu moveria o mundo inteiro por
você.
E, ao ouvir aquelas palavras dele, eu não aguentei.
Com as mãos sobre seus ombros, com o rosto tão próximo, eu apenas
o beijei.
Sem pensar no que fazia, sem medir as consequências. Eu beijei
Adrian como se fosse a primeira vez, envolvendo seu corpo em um abraço
firme, querendo que minha língua junto da dele pudesse traduzir todos os
pensamentos e sentimentos que ele havia trazido para a minha vida.
Querendo que, pelo meu aperto em seu corpo, ele pudesse sentir o quão
apaixonada por ele eu era e que faria de tudo, inclusive, mentir sobre meu
amor, só para salvá-lo.
A música parou, o beijo acalmou, nossos olhos se abriram enquanto o
público aplaudia em explosão.
E ele sorriu. Pela primeira vez em todo aquele tormento, ele sorriu,
me fazendo sorrir e chorar junto.
— Eu amo… — E, então, o resto da minha frase ficou presa, anulada
pelo som alto do disparo, anulada pela pontada de dor que senti na base da
coluna.
Estava acabado, eu ia morrer.
Capítulo 10
“Eu sonhei que o amor nunca acabaria.
Eu sonhei que Deus seria misericordioso.”
(I Dreamed a Dream, Les Miserables[11])

O beijo dela havia sido tudo de que eu precisava, era como receber
água da fonte da vida. Poderia ser curado de qualquer doença depois daquilo
ou erguer qualquer peso apenas com as mãos. Poderia viver para sempre ou
correr o quanto quisesse sem me cansar.
Poderia.
Até olhar em seus olhos. Até ouvir aquele barulho estupidamente alto
interrompendo suas palavras.
Até ver Charo arregalar os olhos e puxar o ar com a boca aberta pelo
choque, fazendo um barulho horrível de quem tentava sorver a vida de volta
ao corpo. Ela cambaleou nos meus braços e eu a segurei, entendendo o que
acontecia quando senti seu vestido molhado; quando olhei para baixo e vi
sangue.
O mundo parou de girar.
As pessoas corriam assustadas. Tudo parecia um daqueles sonhos em
que tudo está indo bem e, do nada, tudo muda e se torna um pesadelo.
— Charo, Charo… — Falei desesperado, segurando seu corpo
trêmulo, que parecia perder as forças.
— Adrian, meu amor. — Ela disse baixinho, enquanto escorregamos
para o chão. — Eu vou morrer.
— Não, não vai! — Tentei brigar com ela. — Fique viva! FIQUE
VIVA! — Gritei como se fosse adiantar de algo.
— Adrian, escute. — Ela pediu baixinho. — Eu o amei. Eu o amei e
menti, me perdoe, me perdoe. Você me salvou do escuro... — Charo chorava
e eu chorava tanto quanto, junto dela.
— Por favor, não me deixe. — Falei, colocando uma das mãos em seu
rosto, vendo-a procurar meu olhar em completa agonia.
— Adrian, — Sua voz era um sussurro. — nunca houve liberdade
para mim, mas eu o amei por você ser tão livre. — A mão dela subiu ao meu
rosto, com dificuldade. — Seja livre, Adrian, e viva por mim.
— Eu te amo, por favor, não morra! — Implorei, mas era tarde
demais.
A mão que estava em meu rosto caiu em um baque silencioso e Charo
se manteve de olhos abertos enquanto o sangue escorria pelo canto de sua
boca e tingia o vestido que ela usava, assim como os meus braços e as minhas
roupas.
E, ao ver que ela havia partido, eu gritei, a plenos pulmões,
desesperado.
Era um grito cheio de raiva, de fúria, de indignação, de tristeza e
aflição.
Era ali que eu colocava toda a minha amargura, toda a minha
angústia, toda a minha falta de esperança.
Agarrei-me ao corpo dela e chorei, chorei alto até o ponto de achar
que não conseguiria mais fazer outra coisa da vida.
— Erga-se, homem. — A voz de Domingos surgiu do nada, mas eu o
ignorei. — Eu disse para se erguer. Ela não era sua para que você fizesse o
que fez. E eu, como a criança egoísta que sou, quebrei meu brinquedo
favorito antes de ter que dividi-la com você.
Ouvir aquelas palavras me fizeram erguer a cabeça, cheio de ódio,
cheio de uma raiva nunca sentida antes.
— Você nunca a teve. — Rosnei, ainda segurando o corpo dela nos
braços.
— Pode até ser verdade, mas, só para garantir, aquele sobrinho dela…
Ele me pertencerá. Fique com o corpo, faça o que quiser, não me serve mais.
— E, falando aquilo, ele se virou, saindo junto de seus homens, enquanto eu
ficava para trás, com ela, perdido em uma escuridão sem fim, acabado por
não poder dizer que, se ela achava que eu a tinha salvo do escuro, ela não
tinha ideia de como havia aberto os meus olhos.
Tudo antes dela era só um borrão e agora, que eu podia ver de
verdade, não teria ela ao meu lado para seguir.
Eu fiquei ali, no chão, segurando o corpo que esfriava, em completa
agonia, até que a coreógrafa idosa se aproximou.
— Violinista, nós precisamos levá-la…
E, como se todas as luzes do universo tivessem se apagado, tiraram-na
dos meus braços e eu não tive força para lutar. Ela se foi, e não havia mais
nada a que me segurar. Não havia mais nada para me manter inteiro.
Não havia luz no fim do túnel.
Não havia esperança.
Tudo o que eu via era um abismo sem fim, escuro e frio.
Como a morte de alguém podia afetar tanto uma vida?
Como eu poderia sobreviver a uma despedida tão sofrida, tão feia, tão
cruel?
Doía tudo em mim, dentro e fora, e, no meu peito, havia um buraco
negro que nunca se fecharia.
Por dias, eu só fiquei na cama, pior do que em qualquer outra vez:
catatônico, depressivo, sem vontade de nada além de morrer junto dela. Era
vergonhoso de admitir, mas não tive nem mesmo coragem de ir até o velório.
Como eu poderia? Eu era a causa da morte dela.
Eu era o motivo pelo qual Domingos apertara o gatilho.
Eu era a razão por Manuelito estar em perigo.
Suspirei, buscando maior fôlego ao pensar no menino para o qual eu
não poderia cumprir nenhuma promessa. E foi naquele minuto, como
transmissão de pensamento, que o telefone tocou.
— É o Adrian? — A voz infantil e assustada perguntou do outro lado.
— Sou, sou eu. — Respondi com a voz fraca.
Era idiota perguntar como ele estava.
— Adrian, por que você não veio? — Ele me acusou, mas não parou
por aí. — O chefe da tia Charo quer me levar embora, mas o pessoal daqui
não quer deixar. Ele disse que volta amanhã para me levar, mas eu não quero
ir! Eu não tenho mais ninguém. — Desesperado, ele começou a chorar
copiosamente e meu coração, o qual eu achei que tinha deixado de existir,
bateu dolorosamente. Pensei em como o garoto era como a tia, nas vezes em
que compartilhamos momentos nossos e em como era injusto eu me fechar na
minha dor quando ele precisava tanto de mim.
Eu tinha como ajudar e, além disso, tinha como me livrar de qualquer
demônio que já havia se agarrado às minhas costas.
Sentei-me na cama e respirei fundo.
— Manuelito, fique tranquilo, nós vamos dar um jeito nisso. Por sua
tia, está bem?
— Por minha tia. — Ele repetiu e, assim que desligou o telefone, eu
soube o que fazer.
Eu precisava parar de fugir.
Levantei, tomei banho, ajeitei a barba e coloquei minha melhor roupa.
Joguei fora as garrafas de aguardente que eu havia tomado, jurando
nunca mais colocar aquilo na boca, paguei a pensão e parti para casa,
finalmente, depois de anos.
O portão preto era gigantesco, tanto em largura quanto altura, mas eu
já o conhecia. O interfone era novidade e, quando eu o toquei, a voz feminina
que atendeu era desconhecida.
— Residência dos de La Vega, Quem gostaria?
— Olá, meu nome é Adrian de La Vega. Meu pai está em casa? — O
gritinho que a mulher soltou do outro lado me fez rir baixo, pela primeira
vez, em dias.
— Entre, por favor! — E logo o portão foi aberto.
Estar de volta onde todo o meu tormento começara não era tão cruel
quanto eu achava que seria. Mal me lembrava de Rúbia agora e precisei que
Charo me machucasse para enxergar a verdade: eu estava correndo por todo o
tempo.
Ali, na mansão de piso lustroso, cheia de quadros pelas paredes e sem
uma família decente, meu pai desceu as escadas, fazendo barulho pelos
passos pesados, junto da bengala.
— A idade não ajuda. Se eu soubesse, teria colocado elevadores aqui.
— Ainda é tempo para uma reforma. — Comentei.
— Não, isso não é mais problema meu. — Ele disse quando desceu o
último degrau. — Espere mais uns anos, eu morro, tudo vira seu, você poderá
queimar. — Ele se ergueu da melhor forma que pôde e me mediu de cima a
baixo. — Olá, filho.
— Olá, pai. — E ali, eu o abracei e chorei.
— Como eu esperei por isso… — Ele disse.
— E como eu fui idiota. Se tivesse voltado aqui antes, se tivesse
disposto a esquecer e recomeçar… — O pensamento sobre poder ajudar
Charo vibrou na minha mente e eu chorei ainda mais. E meu pai, sem saber o
tanto de coisa que estava escondido no meu choro, me abraçou e chorou
junto.
— Você veio para me perdoar? Ah, Adrian, eu me arrependo, todo
dia.
— Eu já o perdoei, pai. — Consegui falar mesmo com a garganta
dolorida.
E era verdade.
Ninguém podia ser condenado por causa de um erro por toda a vida.
Ninguém era cem por cento anjo ou demônio e não havia nada mais
belo do que o poder do perdão, ainda mais depois de perceber o quão refém
daquele ódio todo eu fui, mesmo quando achei ser livre. Ou logo quando eu
decidia me tornar pai e entendia que tudo o que ele queria de mim, tudo o que
tinha feito por mim, era o melhor que poderia dar.
— Eu esperei por isso há tanto tempo, Adrian… — Ele confessou
quando afastou meu rosto para poder me olhar nos olhos, e ali eu vi o homem
que eu sempre julgara frio e mal, despido da capa de poder que sempre usava.
Humano, tanto quanto eu, e me reconheci.
— Eu não sabia, mas eu também… E agora que voltei, preciso da sua
ajuda. — O olhar de meu pai foi terno e ele me indicou com a mão, para as
poltronas.
— Então vamos conversar. Temos muito o que colocar em dia, não?
— É… — Sorri entre os tremores do choro. — Temos.
E, me sentando ao lado dele, depois de algum tempo em silêncio, me
acostumando com sua aparência e presença, comecei a contar um breve
resumo sobre os meus anos, sobre Charo e meus planos para Manuelito.
— É isso mesmo que você quer? — Ele perguntou quando eu
terminei. — É muita responsabilidade.
— Eu darei conta. Está na hora de deixar as raízes crescerem, mas não
é aqui.
— Mas o que eu digo é sobre esse filho. Quer mesmo adotar essa
criança?
— Como nunca quis tanto algo na vida. — Afirmei com toda a
convicção que havia em mim.
— Então… Vou mandar buscá-lo enquanto dou meus telefonemas e
você fica aqui comigo... Será uma honra conhecer meu neto antes de você
partir para a Espanha. — Meu pai disse, dando alguns tapinhas sobre a minha
mão, confirmando que eu estava seguindo pelo caminho certo.

***

Horas depois, Manuelito chegou com uma malinha pequena e o olhar


deslumbrado, logo atrás de um guarda.
— Adrian! — Ele gritou quando me viu e saiu correndo para me
abraçar. — Onde eu estou?
— Na minha casa. Estamos onde eu cresci, Manuelito. — Acalmei o
garoto.
— Adrian, — Ele se afastou um pouco. — a tia Charo, ela morreu. —
E as lágrimas começaram a brotar no rosto dele.
— Eu sei, garoto. Eu sei… — Me ajoelhei para ficar na altura dele,
vendo os olhos de Charo naquele rosto tão jovem e tão cheio de vida. — Mas
ela não morreu em vão, não é mesmo? Agora eu e você somos amigos e, se
você quiser, podemos ser mais do que isso.
— Como? — Ele perguntou, limpando os olhos.
— Podemos ser pai e filho, mas só se você quiser. — Fiz a proposta
com o coração na mão. Se Manuelito não quisesse aquilo, se me rejeitasse,
aquele seria um golpe e tanto.
— Pai? Eu vou ter um pai? — Seus olhos se arregalaram.
— E um avô. — Meu pai chegou perto de nós, sacudindo um papel
em sua mão.
— Um avô! — Manuelito disse surpreso, e eu apostava que aquele
sorriso em seu rosto era o primeiro em dias...
— Aqui está o documento. — Ele me ofereceu para que eu lesse.
— Tão rápido? — Perguntei, sabendo que os meios de consegui-lo
não eram corretos, mas que o juiz de La Vega tinha feito seu trabalho.
— Eu fiz o que tinha que fazer. — Meu pai suspirou e eu não discuti.
Era melhor ter Manuelito comigo do que nas garras de García. Eu não
colocaria em risco qualquer chance que tivesse de afastar Manuelito da fúria
de Domingos.
— Obrigado, pai. Obrigado. — Me levantei, abraçando o velho,
sabendo que aquele poderia ser o último abraço.
Era leve, cheio de gratidão, como eu nunca imaginei poder ser.

***

No aeroporto, de mãos dadas com Manuelito, olhei em seus olhos,


sabendo que ali, de algum jeito, ela estaria presente o tempo todo.
— Não podemos cumprir nossa promessa. — Ele disse depois de
algum tempo, distraído com o vai e vem daquele lugar.
— Como assim? — Perguntei, me ajoelhando ao seu lado.
— Ela não vai com a gente… — Ele fungou e se virou para mim.
— Ah... vai. Ela sempre estará aqui. — Coloquei a mão dele sobre o
meu coração. — E aqui. — E coloquei sobre o dele. — E vai ver tudo o que
vamos viver, lá de cima, do céu.
— Você vai me deixar ver os elefantes, pai? — Ele perguntou,
usando, pela primeira vez, o novo título que me pertencia.
Seu pai.
— Você vai ver tudo o que quiser, meu filho, o mundo, ah… —
Suspirei e olhei em volta, tendo noção do que dizia para ele, tendo certeza de
que faria de tudo para que ele pudesse realizar cada um dos seus sonhos. —
O mundo agora é seu.
Agradecimentos
Ao meu noivo, Guilherme, por me levar ao meio do rosedal e esperar
pacientemente enquanto Charo e Adrian gritavam toda sua história aos meus
ouvidos. Escrevi o roteiro do livro em dez minutos e ele, com toda a certeza,
é um dos meus favoritos hoje em dia.
À Bianca e a Thais, que betaram esse livro e me acrescentaram com
as opiniões sempre sinceras e coerentes. A amizade de vocês é um presente
divino na minha vida.
A toda a equipe por trás do @talitalendo, principalmente à Talita, que,
quando me ouviu falar empolgada sobre essa história, me chamou, pela
milésima vez, de capirotinho. Tali, me perdoa por ter um gosto tão macabro
para algumas coisas. Prometo que, em alguma hora, os humilhados serão
exaltados! Hahaha.
À equipe da 3DEA, por acreditar no meu trabalho e me abraçar dentro
da casa como se eu já fizesse parte antes mesmo de sonhar com essa história.
Vocês são incríveis!
À Nana Simons, minha pessoa e melhor amiga, por nunca soltar a
minha mão e me ajudar com os últimos ajustes necessários neste livro. Eu te
amo, mil milhões.
E a você que confiou em mim para ler essa história que o amor de
Charo e Adrian ecoem na eternidade dentro do seu coração, assim como no
meu.

Com amor,
Zoe X
[1]
Panic! at the Disco: é uma banda de rock norte-ameicana formada em 2004.
[2]
Seven Up ou 7 Up: é um refrigerante da PepsiCo. Usa, em 1929.
[3]
Patrick Wayne Swayze, foi um ator, dançarino, cantor e compositor norte-
americano.
[4]
Shawn Mendes é um cantor e compositor canadense.
[5]
Camila Cabello é uma cantora e compositora cubana.
[6]
Zendaya, é uma atriz, cantora, compositora, dançarina, dubladora e modelo
norte-americana.
Zac Efron é um ator, cantor, dublador e produtor executivo norte-americano.
[7]
Sam Smith, Britânico, cantor e compositor.
[8]
Queen foi uma banda britânica de rock, fundada em. Formado por Brian May,
Freddie Mercury, John Deacon e Roger Taylor.
[9]
Valerie Broussard, cantora americana.
[10]
Madonna Louise Veronica Ciccone é uma cantora, compositora, produtora
musical, atriz, escritora, dançarina e empresária americana.
[11]
Les Miserable, é um musical francês composto por Claude-Michel Schönberg
em 1980, com libreto de Alain Boublil e letras de Herbert Kretzmer.

Você também pode gostar