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sumário
aviso
prefácio
prólogo
capítulo 1
capítulo 2
capítulo 3
capítulo 4
capítulo 5
capítulo 6
capítulo 7
capítulo 8
capítulo 9
capítulo 10
capítulo 11
capítulo 12
capítulo 13
capítulo 14
capítulo 15
capítulo 16
capítulo 17
capítulo 18
capítulo 19
capítulo 20
capítulo 21
capítulo 22
capítulo 23
capítulo 24
capítulo 25
capítulo 26
capítulo 27
capítulo 28
capítulo 29
capítulo 30
capítulo 31
capítulo 32
capítulo 33
capítulo 34
capítulo 35
capítulo 36
av i s o
Prazer
meu nome é Morte
e esta é a minha história com a Usurpadora de Sangue
prólogo
Quando a conheci
ela ainda era uma menina
Ela iria me matar.
Estava irritada comigo de uma forma que eu nunca tinha visto.
Tapas não seriam o suficiente daquela vez.
Lutei para subir, desesperada por ar. Mas ela manteve suas mãos
contra a minha cabeça por um momento terrivelmente longo. Abri a boca,
mas tudo o que entrou foi água. Não saberia dizer o quanto bebi até tudo
ficar preto.
Paz inundou. Silêncio também.
Foi como um sono profundo. E, ao mesmo tempo em que pareceu
levar apenas um segundo, também pareceu uma eternidade.
Mas, então, a escuridão se transformou em um brilho prateado,
quase cegante, e eu voltei.
Pisquei várias vezes. A minha visão era turva.
Seu rosto tomou forma diante dos meus olhos. A pele clara e os
olhos gelados. Ela batia na minha bochecha e repetia o meu nome.
Demorou um instante até eu lembrar que estava na banheira.
— Cera! — Ela chamou, sua voz aguda ecoando no banheiro.
Minha madrasta parecia assustada.
Eu tossi algumas vezes antes de abraçar meu próprio corpo nu, me
encolhendo dentro da banheira.
Silêncio pairou no cômodo abafado.
Ela se manteve agachada ao lado da banheira, com as mãos
encharcadas. Encarávamo-nos, como se compartilhássemos um obscuro
segredo.
Seu toque nunca foi gentil comigo. Quando me auxiliava no banho,
esfregando a minha cabeça, nunca era um movimento delicado e relaxante.
Por isso que eu preferia Katya, a criada. Mas ela havia faltado
naquele dia. E minha madrasta odiava ter que fazer comigo qualquer coisa
que se assemelhava a algo que uma mãe faria.
Mas, daquela vez, ela havia ido longe demais. E pela sua respiração
descompassada de nervoso, ela parecia saber disso também.
Meus olhos se encheram d’água. Lágrimas quentes e salgadas se
misturavam com a água doce da banheira.
Eram em momentos como aquele que a saudade da minha mãe se
tornava fisicamente dolorosa.
Ela engoliu em seco pouco antes de eu desviar o olhar.
Queria que ela fosse embora.
— Termine de se enxaguar. — Ela mandou, com a voz tensa, ao se
levantar.
capítulo 1
Sempre me perguntei por que era a sua favorita. Talvez porque fosse
tão triste. Minha mãe adorava histórias trágicas. Ou talvez isso fosse apenas
o reflexo de como eu a enxergava. Quando eu pensava nela, uma das
palavras que me vinha em mente era tragédia. Porque por trás do seu
sorriso, ela sempre me pareceu tão... triste. Eu era muito nova para
entender, mas hoje me pergunto se algum dia ela realmente nutriu algum
afeto pelo meu pai. Ou se seus pais a obrigaram como os pais de Amory.
Porque, no final das contas, o dever vencia o amor. O caçador
arrancava o coração da amada.
Não a cantei, apenas murmurei a sua melodia familiar e calmante.
Assim que terminei, decidi que era hora de voltar. Se eu sumisse por muito
tempo, minha madrasta com certeza notaria.
Virei-me, e um grito por pouco não escapou da minha garganta ao
me deparar com algo nas sombras.
A primeira coisa que vi foi a pequena chama alaranjada do cigarro.
E, em seguida, os seus olhos. Além da chama, eles eram a única coisa que
brilhava, fazendo contraste com a escuridão.
Prendi a respiração e pisquei. E, depois do que pareceu uma década,
ele, enfim, se moveu.
Sarkian Varant, o temido Príncipe de Khrovil, deu um passo lento à
frente, deixando as sombras das folhas que cercavam a extensa sacada.
A fumaça o acompanhou ao soprar na noite estrelada.
Ele não usava máscara — ela pendia em sua mão esquerda — e seu
rosto estava completamente exposto.
E assim que a luz finalmente bateu em seu rosto, fiquei
completamente aturdida.
Seus olhos foram a primeira coisa que processei, inevitavelmente. O
prata brilhava mais do que a lua. E, sobre eles, os cílios mais escuros que já
vi em toda minha vida faziam sombra na pele abaixo dos olhos devido ao
comprimento inacreditavelmente longo. Eram tão volumosos e escuros que
ele parecia usar um delineado de maquiagem negra sobre as pálpebras. Suas
feições eram perfeitamente esculpidas, com as maçãs do rosto altas e as
bochechas profundas. Os cabelos negros, beirando a azulados, caíam em
mechas preguiçosas na sua testa.
Foi quando entendi: se havia uma única verdade sobre Sarkian
Varant, era que ele era belo. Cruelmente belo. De uma forma quase
obscena.
Eu fiz uma reverência assim que me recompus.
— Eu… Você me assustou, Alteza.
Há quanto tempo ele estava ali?
Ele estava me observando aquele tempo todo?
O príncipe tirou o cigarro de lavena dos lábios com a mão esquerda
— que estava coberta pela luva de couro — e torceu sutilmente a cabeça.
Ele demorou alguns segundos até dizer:
— Então, você sabe como se faz.
Eu pisquei. Ainda estava tentando processar a sua aparência. Não
apenas porque ele era tão belo, mas porque ele era… singular. Tinha uma
aparência extravagante, quase vulgar, como se ele fosse o produto de uma
pintura a óleo. Por um instante, eu tive que conter a vontade de tocar a sua
pele para ver se era mesmo real.
— Como?
— Você sabe como fazer uma reverência. — Sua voz era grave e
rouca, com um sutil, mas perceptivo sotaque.
Franzi o cenho.
— Sim, claro.
— Então, no dia do tratado, você simplesmente escolheu não fazer?
Eu abri a boca, mas, então, a fechei.
Do que ele estava falando?
— No dia do tratado? — Finalmente indaguei.
— Sim. — Ele deu mais um passo à frente. — Você se lembra. Eu
passei por você e você não se curvou. Fiquei me perguntando que tipo de
garota você era... — ele fez uma pausa — incrivelmente insolente ou
incrivelmente burra.
Por um momento, quando tudo se fechou e o entendimento bateu
contra mim, fiquei sem palavras.
Ele estava se referindo àquele dia, dois anos atrás, em que eu não
me curvei perante sua presença.
O príncipe se lembrava.
No primeiro instante, fiquei surpresa. Então, impressionada por ele
se lembrar de algo tão banal. E, por fim, extremamente ofendida com as
suas palavras. Olhei fixamente para aqueles olhos prateados, que esperavam
por uma resposta.
Ele queria que eu me desculpasse?
Mordi o interior da boca com força antes de finalmente indagar:
— E em qual conclusão chegou, Vossa Alteza?
Não sabia se minha pergunta o havia surpreendido, já que sua
expressão não sofreu mudança alguma. Notei apenas o brilho em seus olhos
ao piscar. Mas, por alguma razão, lá no fundo, entendi que aquele não era o
tipo de brilho que eu gostaria de estar diante.
Sarkian deu mais um passo lento à frente e levou o cigarro de volta
aos lábios ao me observar.
Eu resisti à vontade de me afastar.
Ele inspirou sem pressa antes de me responder:
— Ainda estou tentando me decidir. — Ele soprou e eu senti o
cheiro inebriante de lavena. — Seja o que for, na próxima vez que me ver,
quero seus joelhos prestes a tocar o chão. Caso contrário não os terá mais,
farren.
A última palavra foi dita no seu dialeto, o qual não
compartilhávamos. Mas era um insulto, não precisava ser um gênio para
saber disso.
Ele professara a ameaça de forma quase doce. Calmo e comedido,
como se estivesse comentando sobre o clima. A ameaça junto à sua
presença me abalou, mas não me deixei recuar.
Não sei o que deu em mim. Não sei o que me faz abrir a boca
quando eu, claramente, deveria deixá-la fechada, mas foi mais forte do que
eu. As palavras deslizaram com uma facilidade assustadora. Talvez, eu
estivesse hipnotizada pelo cheiro da lavena ou pelos seus olhos.
Eu me sentia quase tonta, e era uma mistura estranha de medo,
adrenalina e deslumbre.
— Se não sou nada, por que importa tanto para você que eu faça a
reverência ou não?
E, naquele momento, eu presenciei, talvez, a coisa mais assustadora
da minha vida.
O Príncipe das Trevas sorriu.
Ou algo como aquilo. O lado direito de seus lábios puxou
lentamente para cima.
Eu me perguntei o porquê daquele gesto me fazer ficar tão
aterrorizada, apesar de todo o rosto dele ser tão dolorosamente belo. E a
resposta não demorou para chegar. Sorrisos deveriam significar felicidade,
mas nada naquele homem fazia sentido com a palavra feliz.
Ele se aproximou um pouco mais, com a lentidão e a precisão de um
felino, até que ficou pairando bem diante de mim.
Eu engoli em seco e desviei o olhar, me arrependendo de todas as
minhas palavras. Até me arrependendo do dia, há dois anos, em que não fiz
uma maldita reverência diante dele.
Meu coração batia tão forte a ponto de eu conseguir ouvi-lo.
Perguntei-me se ele era capaz de escutar também.
O príncipe poderia me matar. Ele sabia disso. Eu sabia disso. E o
mais importante: ele sabia do quão ciente desse fato eu estava.
Quando ele abriu a boca novamente, foi bem perto do meu ouvido.
Insuportavelmente perto.
— Porque, se fosse por mim, uma plebeia de Umbra como você
nem estaria andando. — Ele soprou, a voz profunda e baixa. — Animais
deveriam rastejar.
A última frase foi pronunciada com nojo e “rastejar” dito com uma
ênfase violenta.
Eu senti o seu ódio por mim na espinha. Ele desceu por meio de
suas palavras e cruzou todo o meu corpo até chegar na ponta dos meus pés.
E foi instantâneo o reconhecimento de que aquele sentimento era
completamente mútuo.
Foi naquele dia que meu ódio por Sarkian Varant floresceu.
Vidro quebrou e um som explodiu perto de nós, assustando-me.
Ambos viramos o rosto para a criada que havia acabado de deixar
uma bandeja cair. Ela piscava em nossa direção sem parar.
— Alteza. — Ela reconheceu, curvando-se para recolher a sujeira ao
mesmo tempo em que fazia uma reverência desajeitada. — Me... me
desculpe.
Ele, sequer, piscou ao encará-la. Em vez disso, voltou a me fitar.
Sarkian levou o cigarro mais uma vez aos lábios e inspirou. Dessa
vez, profundamente.
Todos estavam cientes de que lavena era proibido no reino, mas
aquilo não impedia que algumas pessoas fizessem uso. A substância os
deixava um pouco inebriados e tontos, pelo que ouvi falar. Havia um boato
de que o próprio rei a usava entre seus aposentos particulares, assim como
grande parte da nobreza. Mas as pessoas nunca usavam daquela forma, em
público, principalmente em uma festa. Era um verdadeiro ultraje.
A fumaça bateu contra a minha pele quando ele a soltou
propositalmente no meu rosto, e eu tive que lutar contra a vontade de tossir
diante do cheiro forte.
Seu olhar não deixou o meu em momento algum enquanto me
avaliava. Eu nunca senti tanto desprezo em um olhar antes. Nunca senti que
alguém me odiava tanto sem, ao menos, me conhecer. Eu era indiferente
para muitas pessoas, mas não odiada. Não daquela forma.
— E não estou blefando quanto ao nosso próximo encontro. Já fiz
muito pior por muito menos.
Eu não tinha a menor dúvida daquilo.
Engoli em seco e observei seu rosto beirando ao divino. A pele era
muito clara em contraste com os cabelos negros, que caíam sutilmente
sobre a testa.
Mas não havia nada de divino sobre aquele homem. Muito pelo
contrário.
— Acho que, se eu tiver sorte, nunca mais estarei diante de você
outra vez. — Eu finalmente murmurei as palavras mais sinceras que já disse
em toda a minha vida.
Ele sorriu e, então, eu sabia que era algo que ele fazia antes de dizer
algo terrível.
— Se eu fosse você — ele descartou o cigarro sem tirar os olhos dos
meus e se afastou —, seria para isso que eu rezaria a partir de agora.
Depois de dizer aquilo, ele se virou. E eu observei a sua figura longa
e negra se afastar até desaparecer como uma sombra.
Sarkian Varant decidiu que me detestava no segundo em que
colocou seus olhos em mim. Ou, até mesmo, antes daquilo.
Eu achava que Sarkian Varant dera o seu primeiro suspiro na Terra
sabendo que odiava cada aspecto da minha existência.
A Usurpadora de Sangue estava certa
Antes mesmo dela se tornar uma ideia
antes mesmo dela saber quem era
ou o que gostaria de ser
o Filho das Sombras a detestava
E ela logo entenderia o que aquilo significaria para o seu destino
e quais seriam as repercussões
Porque nenhuma prece seria o bastante
Afinal
aquela não seria a última vez que ela estaria diante dele
capítulo 4
Theon estava certo. Seu pai devia ser muito persuasivo porque, dois
dias depois, eu estava arrumando as minhas coisas para a viagem. Allegra
estava me auxiliando e arrumando a sua própria mala.
Eu havia pedido ao meu pai se podia levar Allegra comigo. Sabia
que não poderia realmente protegê-la, mas, pelo menos, ela teria alguns dias
longe daquele lugar.
Já que Allegra trabalhava na cozinha e não era a minha criada
pessoal, aquilo deixaria a minha madrasta furiosa. Apenas um bônus.
Antes de sair de casa com minha mala na mão direita, trombei com
o meu irmão. O impacto foi grande o suficiente para fazer meu ombro doer.
Encontrei o seu olhar e, na mesma hora, soube que havia sido proposital.
Nicklaus sabia que eu estava ciente do que estava acontecendo.
Sabia que havia pedido ao meu pai para levar Allegra comigo e estava
irritado com a minha intromissão.
Nunca tive tanta repulsa dele.
Continuei seguindo para a porta sem dizer uma palavra.
— Para onde vamos? — indaguei, no momento em que me sentei ao
lado de Theon na carruagem.
No outro dia, ele se despediu muito brevemente e não tive tempo de
lhe perguntar para onde iríamos. Não que importasse; aquela viagem era
puramente um teste pelo qual eu estava decidida a passar,
independentemente do local.
Ele se virou para mim.
— Khrovil.
capítulo 7
Era final da tarde quando fui para a cidade pela primeira vez desde
que me casei. Passei o dia todo relendo um dos únicos livros que encontrei
na casa. Já havia explorado todos os cômodos também.
Theon havia saído cedo e eu não fazia ideia de que horas voltaria.
Pensei que, talvez, pudesse morrer de tédio. Escrevi para Rafe, marcando de
encontrá-lo na cidade. Ele me levaria alguns livros e conversaríamos
pessoalmente pela primeira vez desde o casamento. Eu estava animada.
Desci da carruagem e esperei perto de uma loja de vestidos,
observando os panos de cores vibrantes pela vitrine. Naquela temporada, a
moda em Umbra era um tom de azul terrível.
Escutei meu nome e me virei para encontrar Rafe acenando do outro
lado da rua. Mas, assim que dei um passo em sua direção, algo bateu contra
mim. Ou melhor, alguém. A pressão me jogou para o lado e, por pouco, não
perdi o equilíbrio e caí no chão. Pisquei para a garota ofegante que colidiu
contra mim.
Foi tudo muito rápido.
Talvez, em um segundo que ela parou, recuperando também seu
equilíbrio, olhamos uma para outra. Nossos rostos estavam a poucos
centímetros de distância. Seu cabelo loiro, quase branco e curto, estava
colado contra a testa suada. Sua boca entreaberta e os olhos um tanto
arregalados.
Mas não foi isso que me chamou atenção.
Foi o líquido que escorria de um corte em sua bochecha. Dava para
ver a linha perfeita do machucado. E, em qualquer ocasião, aquilo não seria
impactante de forma alguma, afinal, as pessoas se machucavam e
sangravam. Mas aquilo não podia ser sangue. Não podia ser porque não era
vermelho.
Era negro.
Eu paralisei, e aquele segundo pareceu durar uma eternizada, até
que ela recuperou o equilíbrio e correu.
Observei a sua figura pequena, porém ágil, sumir entre a multidão.
Pisquei na direção em que ela havia desaparecido, ainda sem
conseguir me mover.
Negro.
Negro como a noite.
Não podia ser...
Eles não existiam. E, se existiram, haviam sido extintos centenas de
anos atrás.
— Ei, tudo bem? — Rafe perguntou. — Aquela garota quase te
derrubou. Por que raios ela estava correndo tanto assim?
Ele tocou no meu braço.
— Tudo bem, Cera? Você está meio branca. Ela te machucou?
Balancei a cabeça, fixando o meu olhar no seu.
— Não. Só… — passei a mão no meu cabelo, me recuperando dos
últimos segundos — fui pega de surpresa.
Eu podia ter visto errado. Afinal de contas, foi rápido demais.
— Como está a vida de casa…
— Você acredita nos caídos?
— Você quer dizer..., que um dia eles existiram?
Assenti.
— Hum… Não. Acho que são só lendas. Histórias que contam para
assustar crianças pequenas.
— Por que estão em tantos livros, então? E por que tanta gente
acredita?
— Porque as pessoas gostam de lendas. De fantasiar. — Rafe se
virou para mim. — Você acredita que eles existiram?
— Não sei. Talvez.
Ele pareceu surpreso com a minha declaração.
— Se algo como Deuses existem, seres tão superiores e cheio de
poderes, por que não os caídos? Seriam como Deuses, só que na Terra.
Acho que é justamente por isso que o reino não quer que acreditemos.
Porque não gostam da ideia de ter alguém praticamente tão poderoso quanto
um Deus entre nós.
Rafe ficou em silêncio por um momento.
— Por que está perguntando isso? Por que está tão interessada nos
caídos, de repente?
Pensei em dizer que era apenas curiosidade, mas eu não gostava de
mentir para Rafe. Contei-lhe sobre a garota.
Ele me encarou com certa diversão.
— Você não deve ter visto o que pensa que viu. Foi rápido demais,
como você mesma disse.
Paramos em uma livraria naquela tarde. Esperei na porta enquanto
Rafe entrou para comprar o livro que havia lhe pedido, já que mulheres
eram proibidas de entrar. Ele me entregou o pequeno encadernado de couro
que continha o nome “Lendas e Misticismos” grafado na capa. Assim que
cheguei em casa, com o sol já se pondo, abri o livro. E depois de poucas
dezenas de páginas, confirmei o que temia.
Eles não sangravam como nós. A cor vermelha vibrante.
A grande e principal característica deles era o fato de que sangravam
negro.
Havia quase duas semanas que não via Theon. Eu não fazia ideia do
que ele estava fazendo ou, sequer, de onde estava. Ele só havia me
comunicado que ficaria alguns dias fora da cidade a trabalho. Ele já tinha
ficado alguns dias fora desde o nosso casamento, há quatro meses, mas
nunca tanto tempo assim.
Eu estava irritada, entediada e frustrada. Meus dias se resumiam em
acordar quase na parte da tarde, reler os poucos livros os quais eu tinha
acesso na casa e evitar cruzar caminho com Alba para não me estressar.
Havia parado de tentar ser legal com ela e dizia apenas o estritamente
necessário.
Sem Theon ali, a mesa de jantar mal era colocada pelos criados. A
comida era sopa praticamente todos os dias e eu me alimentava sozinha na
longa mesa da sala. Meu único momento genuíno de alegria era quando
Rafe me visitava, o que, felizmente, ele fazia com frequência. Mas não com
a frequência que eu gostaria. Se não fosse completamente fora das normas,
eu o convidaria para morar comigo.
— Você parece distante.
— E você parece bêbado — disparei de volta.
Ele olhou para a sua taça de vinho. Era a sua segunda desde que
havia chegado na minha casa, mas ele já tinha tomado algumas antes de vir.
Eu suspeitava mais de três.
— Estou sofrendo! — declarou de forma um tanto dramática.
Ergui as sobrancelhas sutilmente.
— Por quê? — Mas, antes que ele pudesse responder, emendei: —
O que ele fez?
Rafe suspirou em um misto de frustação e cansaço.
— É complicado.
— Então, me explique. Geralmente, consigo pegar as coisas
rapidamente.
Ele deu mais um gole no vinho. Longo e lento.
Quando finalmente olhou para mim, disse:
— Eu o amo.
— Eu sei, e é uma tragédia. Mas achei que isso já tivesse sido bem
estabelecido.
— Sim, é só que…
— Ele não te ama de volta? — questionei, confusa. Porque isso não
fazia sentido. Não pela forma como Vesper olhava para ele.
Rafe balançou a cabeça.
— Não, ele ama. Mas… ele não gosta de como as coisas estão.
— E como as coisas estão?
Eu estava começando a me estressar com a forma como ele estava
falando. Como se estivesse hesitando em me contar. Escondendo algo de
mim.
— Furtivas.
Deixei o meu próprio copo de vinho na mesinha de centro. Eu não
gostava muito de beber, o meu problema maior sempre foi com o gosto do
vinho. Mas, recentemente, notei que estava bebendo com uma frequência
surpreendente.
— Mas como as coisas seriam? Ele sabe que não poderia ser de
outra forma.
Rafe suspirou longamente.
— Ele quer fugir.
— Fugir?! — indaguei mais alto do que planejava. — Como assim,
fugir? E para onde?
— Fugir para algum lugar onde poderíamos ficar juntos.
— Para outro reino, você quer dizer?
Ele assentiu com a cabeça.
— Isso é loucura.
— Eu sei.
— Você seria deserdado. Seu dinheiro, seu título...
— Eu sei.
— Você poderia ser… morto.
— Você acha que eu não sei disso tudo, Cera?!
— Não! Acho que não. Porque, se realmente soubesse, não estaria
considerando essa ideia estúpida.
— Quem disse que estou considerando?
— Não está?
É claro que estava. Se não estivesse, ele não teria me dito.
Seu silêncio o entregou e ele desviou o olhar. Acreditava que nunca
tinha visto seu rosto com uma expressão tão triste.
— Você não pode fazer isso. — Eu disse.
— Eu sabia que te contar seria um erro. Ele me pediu para que eu
não o fizesse.
— Ah, claro que pediu.
Aquele imbecil.
— Qualquer pessoa sã diria a você o que estou dizendo agora. Sabe
disso. — Inspirei fundo. — Eu só me preocupo com você.
— Isso é só sobre mim, então? Com a minha segurança?
Eu o encarei, confusa.
— Com o que mais seria?
— Com o fato de que eu iria embora. E você ficaria sozinha, sem
seu único entretenimento semanal.
Aquilo foi como um tapa. Sua voz nunca havia soado tão venenosa.
— Meu único entretenimento semanal?! É a isso que está resumindo
a nossa amizade? Quem te disse isso? O imbecil do Vesper?
Ele passou as mãos pelo cabelo, frustrado.
— Não, não foi. E eu não quis dizer isso, é só que… Eu só precisava
de um pouco de apoio. Parece que o mundo todo está contra nós. E você
não tem ideia de como isso é difícil.
É verdade, eu não tinha. Mas aquilo não deixava de ser uma loucura.
Extremamente perigoso. E eu não podia, ao menos, imaginar perdê-lo.
— Eu não vou apoiar um plano que pode acabar com a sua vida.
— Não, você está certa. — Ele colocou seu copo vazio na mesinha e
se levantou. — Eu deveria fazer como você. Me casar com alguém que me
desse segurança e que me fizesse completamente infeliz.
Eu recuei, surpresa e muito ofendida. Suas palavras perversas me
pegaram completamente desprevenida. Rafe era gentil e quase nunca se
irritava daquela forma. Ele nunca tinha me insultado daquele jeito. Com a
intenção de magoar.
Precisei de alguns segundos para conseguir encontrar minhas
palavras.
— Eu não estou infeliz.
Rafe me encarou por mais um momento, o rosto em um misto de
mágoa e irritação, mas não disse nada. Era óbvio que não acreditava em
mim.
Ele se virou para sair, mas, assim que deu seu primeiro passo em
direção à porta, Theon apareceu diante de nós.
Meu marido parou ao vê-lo na sala de estar. Encarou Rafe por um
momento antes de dizer, com o rosto sério:
— Boa tarde, Rafe.
Meu amigo devolveu o cumprimento seco e, então, se retirou
apressadamente, sem ao menos me lançar um último olhar.
— Ele de novo? — Theon questionou, assim que ficamos a sós.
Ele não gostava de Rafe por alguma razão.
Mantive-me sentada ao encará-lo. Eu deveria me levantar para
cumprimentá-lo, já que esse era o tipo de decoro esperado quando o marido
chegava em casa, mas não o fiz. Primeiramente, porque não queria, e
segundo, porque estava um pouco tonta por conta do vinho.
— Ele veio tomar uma taça de vinho comigo antes do jantar.
— Ele está vindo aqui todos os dias agora? — Havia clara repressão
em seu tom à medida que desabotoava o casaco.
— Não. Ele vem às terças e sextas, geralmente. — Hesitei por um
momento e peguei a minha taça que estava repousada na mesinha. — Você
saberia disso se estivesse aqui.
Odiei a forma frustrada com que a minha acusação saiu, mas eu
estava irritada. Comigo, com Rafe e com Theon.
Eu não queria ser o tipo de esposa que reclamava com o marido
sobre seu tempo fora. Estava ciente de que ele trabalhava e que não podia
ficar em casa todos os dias, mas a questão era que ele quase nunca estava.
Suas viagens eram cada vez mais longas e, o pior, ele parecia não se
importar com isso. Nem meu pai ficava ausente por tanto tempo e seu
trabalho exigia muito mais dele.
— Adoraria. Mas, então, como manteríamos a vida que temos, se eu
não trabalhasse? — Ele deu um passo em minha direção e me encarou de
cima. — Seus vestidos, seus luxos... Você acha que esse tipo de coisa cai do
céu, querida?
Ele fazia isso com frequência agora, falava comigo como se eu fosse
uma criança. Explicava-me as coisas como se eu não entendesse.
— Luxos?! Que tipo de luxos estou exigindo?
Era quase engraçado ele mencionar “luxos” quando, na verdade, não
havia comprado nenhum vestido ou joia desde que tínhamos nos casado.
Depois dos presentes de casamento, a única coisa que ganhei dele foi um
par de brincos de rubi que era de sua mãe. Não que eu estivesse
reclamando, já que tinha mais do que o suficiente, mas, definitivamente,
não poderia ser taxada como uma esposa cara. Se fôssemos analisar bem,
minha vida quando morava com meu pai era mais ostensiva do que
atualmente.
— Não vou ficar escutando isso. — Ele se virou, ofendido. — Peça
à criada para arrumar as suas malas, vamos viajar amanhã cedo.
Levantei-me do sofá. Um misto de curiosidade e felicidade se
apossou do meu corpo. Uma viagem seria perfeito. Não aguentava mais
rondar pelos mesmos cômodos.
— Para onde? — indaguei.
Ele já estava perto da escada quando respondeu:
— Khrovil.
Eu parei. Meus pés fincando no chão de madeira da sala.
Sarkian.
O rosto dele inundou a minha mente da mesma forma que fez em
meus pesadelos diversas vezes nos últimos meses.
— Por quê?
Ele parou com a mão no corrimão da escada, parecendo cansado.
— É o aniversário de sessenta anos do Rei Zagreus.
— E por que precisamos ir? — Aproximei-me dele, agitada. — O
rei teve outros aniversários antes.
Eu sabia que aquilo era algo idiota para se dizer. O aniversário de 60
anos era um marco importante e, agora que estávamos em paz, não seria
incomum sermos convidados para esse tipo de evento. Mas não consegui
evitar uma única e última súplica. Era ingênuo da minha parte pensar que
eu teria o poder de impedir aquele desastre de acontecer.
Theon parecia irritado em ter que explicar.
— A Família Real não vai poder comparecer, então fomos
convocados com alguns outros para representar Umbra. — Ele fez uma
pausa, me encarando com mais atenção dessa vez. — É uma honra, Cera.
Você deveria ficar feliz de estar casada com o tipo de homem que
comparece a tais eventos.
Meu marido, por fim, se virou e foi em direção às escadas, me
deixando na sala terrivelmente silenciosa.
E eu não sabia o que havia doído mais naquele momento: a infeliz e
tardia compreensão de que eu havia casado com um homem que não
conhecia ou de que, muito em breve, estaria diante de Sarkian Varant mais
uma vez.
E, em ambas as questões, não havia absolutamente nada que eu
pudesse fazer.
Naquela noite
depois que seu marido se terminou dentro dela e se virou para
dormir
a usurpadora encarou o teto e se perguntou como faria para evitar
reencontrá-lo
Sarkian
Seu nome pulsava de forma incômoda
Ela pensou em simplesmente dizer que não queria ir
Imaginou que Theon não daria falta dela
de qualquer maneira
Já estavam acostumados a ficarem muito tempo separados devido às
suas viagens
Mas ele insistiria
afinal
era seu trabalho como esposa acompanhá-lo naquele tipo de evento
Então
ela pensou em fingir doença
Acordar no dia seguinte e falar que estava passando muito mal
Talvez até iria ao banheiro e forçaria sons de vômito
Acreditou que aquilo poderia dar certo
apesar de ser suspeito
já que ela estava muito bem de saúde quando Theon chegou em casa
naquela tarde
Mas as doenças podiam chegar de forma surpreendente e
arrebatadora às vezes
ela se convenceu
Assim que ela fechou os olhos
teve um pesadelo
A máscara negra era tudo o que ela podia ver
enquanto uma dor afiada a fazia gritar
e gritar
mas ninguém a escutava
Ninguém poderia salvá-la dele
muito menos ela mesma
Mas
no dia seguinte
assim que abriu os olhos e o marido a perguntou sobre suas malas
ela apenas disse
está tudo certo
E de forma quase automática
e com as palmas das mãos suando
ela entrou na carruagem a caminho de Khrovil
Porque
mesmo com o horror e aversão que sentia em relação a ele
lá no fundo
na pequena parte mais obscura de si
algo a atraía até àquela sensação horripilante que sempre a tomava
quando estava diante do Filho das Sombras
capítulo 14
— Com fome?
Coloquei o copo de suco na mesa suja do estábulo e o prato de
torradas logo ao lado.
Milo se assustou com a minha presença, virando o rosto
rapidamente.
Ele desceu do banquinho onde usava para poder escovar o cavalo, já
que o animal era grande demais comparado a ele.
— Sim, senhora. — O menino disse finalmente, encarando a
comida.
Eu sorri.
— Então, coma.
Encostei-me em uma mesa de madeira ao passo que o observava.
Ele bebeu dois terços do copo sem, ao menos, parar para respirar.
— Você gosta de cuidar dos cavalos? — perguntei, quando ele
abaixou o copo.
— Gosto. — Milo deu uma mordida furiosa e, depois de engolir,
completou: — Só não gosto da parte da limpeza.
— E você faz isso com muita frequência?
Ele assentiu com veemência.
— Todos os dias, senhora.
— E seu tio costuma… te castigar demais?
O menino parou de mastigar por um momento e, então, desviou o
olhar do meu. Quando engoliu, senti que a comida desceu com dificuldade.
— Só quando faço besteira, senhora.
Milo encostou as costas na parede, e uma careta surgiu em seu rosto
delicado e sujo.
— Suas costas não melhoraram?
Ele não respondeu.
Era para estarem melhores. Pelo menos, boas o suficiente para que
ele não fizesse aquela careta.
— Ele te castigou novamente, não foi?
Aproximei-me dele.
— Me deixe ver as suas costas.
Ele não se moveu.
— Milo, você…
Ouvi passos se aproximarem e, então, a voz de Allegra:
— Senhora.
— Agora, não. — Eu disse, ainda encarando o menino fixamente.
Ele havia apanhado mais. Aconteceu depois da minha intervenção.
Aquele monstro descontou no pobre garoto. Eu devia ter previsto isso.
Eu só tinha piorado as coisas.
— Senhora. — Allegra chamou de novo, agora mais alto.
Quando levantei o olhar, ela me encarava com os olhos frenéticos e
sem fôlego, como se tivesse corrido até ali.
No mesmo instante, eu soube que aquilo significava algo ruim.
Muito ruim.
— O que houve?
Ela inspirou fundo uma vez.
— É o seu amigo, o Senhor Rafe. — Ela engoliu em seco em uma
pausa que me deixou à beira da loucura. — Ele foi preso.
Depois de um momento longo e entorpecente de choque, eu fui
capaz de abrir a boca.
— Onde ele está?!
— Me disseram que foi levado para a contenção.
— Qual foi o crime?
Algo me dizia que eu já sabia a resposta daquela pergunta.
Mas eu torcia para que estivesse errada.
Por favor, Deuses...
— Não sei, senhora.
— Onde Theon está?
Comecei a andar em direção à casa.
— No escritório. — Ela respondeu, me seguindo.
Subi as escadas correndo para o segundo andar da casa.
Abri a porta sem me importar em bater. Theon estava sentado à
mesa com um papel e uma caneta de pena nas mãos.
— Cera. — Ele me encarou irritado e surpreso com a interrupção.
— Rafe foi preso — declarei em completo pânico.
Esperei uma reação, mas ela não veio.
— Eu sei.
— Sabe?!
Ele assentiu.
— E por que não me contou?
— Soube hoje de manhã.
Em qualquer outro momento, aquele fato me irritaria. Mas eu estava
muito preocupada com Rafe para me importar com o fato de meu marido ter
omitido uma informação tão crucial de mim.
— Por quê?! — indaguei. — O que aconteceu?
Meu marido desviou o olhar e, antes de falar, seu maxilar torceu em
uma linha dura.
— Pecado lascivo.
Senti as minhas pernas fraquejarem.
Não.
Minha boca estava seca e a minha cabeça girava. Estava difícil até
para falar.
— Co… como?
Conforme o choque foi passando, a profunda e dolorosa tristeza
começou a tomar meu corpo. Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Não sei dos detalhes.
— O que vai acontecer?! — perguntei, apesar de já ter uma boa
ideia do que ocorria em casos como aquele.
— Ele vai ser punido de acordo com a gravidade da ofensa.
— Ele vai ser…
Executado.
Não consegui proferir a palavra.
Theon ficou em silêncio, mas seus olhos confirmaram aquilo que eu
não queria ouvir.
Não.
Aquilo não podia acontecer.
— O que pode ser feito? Tem que haver um jeito!
— A única chance dele é se seu próprio pai intervir. Ele pode pegar
a segunda pena, caso tenha o apelo do pai. Mas duvido que isso aconteça.
— Você não pode fazer nada?!
As lágrimas escorreram. E notei que aquela era a primeira vez que
chorei na frente do meu marido. Ele ficou desconcertado por um momento,
mas muito breve.
— Ele pecou, Cera. Um pecado… — Theon desviou o olhar com
desgosto — imperdoável. Mesmo que pudesse, não o faria. Sei que ele é
seu amigo, mas precisa pagar pelo que fez.
E então
eu o levei
capítulo 18
Eu tinha pesadelos.
Pesadelos em que via Rafe novamente naquele palco. O soldado
levantava a espada sobre a sua cabeça. E eu corria para tentar alcançá-lo.
Mas eu sempre chegava tarde demais.
Eu acordava suando. Então, chorava até dormir novamente.
— O que está acontecendo? — Theon perguntou na primeira noite
em que dormimos juntos desde a morte de Rafe.
Era madrugada e eu chorava silenciosamente.
— Nada — murmurei no escuro.
Preferia dormir sozinha, sem me preocupar com que alguém me
ouvisse chorando.
Alguns segundos depois, eu o ouvi voltar a ressonar.
Conforme os dias se passaram, eu o evitei. Se já era difícil olhar
para ele depois da morte de Rafe, era impossível agora que eu sabia da
verdade. Eu ficava me perguntando se cada momento antes do casamento
foi calculado. E, então, me castigava por não ter notado.
Certa noite, depois de se deitar, ele começou a me procurar embaixo
das cobertas. Fazia bastante tempo que não fazíamos sexo. Não que eu
sentisse falta, estava deprimida demais para pensar nesse tipo de coisa. E,
mesmo antes, sexo era algo que parecia dar muito mais satisfação a ele do
que a mim. Minha satisfação costumava vir do fato de vê-lo contente e me
desejando. Mas, agora, era uma tarefa irritante e tediosa. Eu apenas me
deitei lá e esperei que terminasse logo.
Quando acabou, virei de costas para ele com o maior vazio que senti
em toda a minha vida.
E foi quando o entendimento, por fim, me acertou.
Eu estava sozinha.
Sem minha mãe e, agora, sem Rafe. Eu estava completamente
sozinha.
— Está grávida?
A pergunta direta me pegou totalmente de surpresa. Estávamos no
enterro e aquela foi a primeira coisa que o pai de Theon havia falado para
mim.
O velho não parecia muito emotivo diante da situação. Não havia
derramado, sequer, uma lágrima durante o processo todo. Ele parecia mais
irritado e preocupado do que qualquer outra coisa. Só tinha filhas agora.
— Não, senhor.
Obviamente, eu não tinha contado ao Theon — ou a ninguém, na
verdade —, mas estava tomando precauções para não ficar grávida. No
começo, simplesmente porque não queria um filho com uma idade que
considerava precoce, apesar de que maioria das garotas na minha faixa
etária já tinham filhos com os maridos. Mas depois, conforme conhecia
Theon mais e mais, a precaução se tornou uma necessidade simplesmente
porque não queria ter um filho com ele.
O velho assentiu e desviou o olhar, e, por um momento, achei que o
assunto havia sido encerrado. Era um homem de poucas palavras e, durante
todo o meu casamento e noivado, lembro de termos tido cerca de quatro
breves conversas. Não que eu estivesse reclamando, não tinha nenhum
interesse em discutir qualquer assunto com aquele homem.
— Não ache que vai ficar vivendo à minha custa pelo resto de sua
vida. — Ele declarou, de repente. — Você só tem direito ao que já era do
meu filho no papel. E só passei a sede em que moram e as terras em volta
para o nome dele. É tudo o que tem direito.
Não foi a grosseria que me surpreendeu, nem mesmo o conteúdo de
suas palavras, mas sim o local em que ele escolheu dizer aquilo. Seu filho
mal havia sido enterrado.
Minha família também estavam lá, como era socialmente esperado.
Meu pai tinha a expressão neutra de sempre, meu irmão parecia entediado e
minha madrasta parecia... satisfeita.
Eu nunca me tornaria condessa. Nunca estaria acima dela na escala
da nobreza. Era um dia bom para ela.
Foi uma tarde longa e cansativa. Tive que me esforçar para parecer
uma esposa desolada durante todo o processo. Fingir tristeza e desespero
podia ser bem exaustivo. A pior parte foi na hora em que me vi diante do
corpo dele, me despedindo. Tive que forçar as lágrimas a descerem. Pensei
em Rafe, e elas escorreram com tanta violência que pessoas vieram me
consolar.
Andar pelo centro da cidade não era algo tão divertido de se fazer
sem Rafe.
Eu procurava por novos vestidos, já que, nos últimos tempos, havia
ganhado o peso que perdi antes do meu casamento. Apesar de estar em uma
rua lotada, nunca me senti tão solitária. A saudade de Rafe beirava ao
insuportável. Eu sabia que jamais conseguiria encontrar alguém como ele.
Jamais teria um melhor amigo novamente.
Minha atenção abandonou as vitrines ao avistar uma garota que
estava sentada no beco de uma rua sem saída. Estatura pequena e fios quase
brancos escapando do gorro surrado.
Era ela.
Estava sentada em um banquinho e, à sua frente, havia uma pequena
mesa de madeira. Suas mãos estavam repletas de cartas enquanto
conversava com um homem mais velho.
Esperei o homem se distanciar para me aproximar.
— Olá.
A garota levantou o olhar. Reparei que sua bochecha já estava
curada.
— Quer jogar? — perguntou, sem mostrar qualquer tipo de
reconhecimento.
Aparentemente, ela não se recordava do nosso encontro. O que era
interessante, porque pensei nela por muitos dias depois daquilo.
— Sim.
A garota começou a embaralhar as cartas.
— São dois chins para começar.
Peguei as moedas na bolsa e as soltei na palma de sua mão.
— Eu vou embaralhar as cartas, e você vai escolher uma —
explicou. — Se eu errar, devolvo o seu dinheiro. Se eu acertar, fico com as
moedas.
Assenti.
Ela me mostrou o baralho de cartas e, então, o estendeu para que eu
pegasse uma. Seus olhos estavam fechados quando eu o fiz.
A Deusa da Natureza.
— Agora, quero que pense na carta que está na sua mão.
Ela me encarou.
Fixamente.
Seus olhos eram tão intensos que, por um segundo, jurei que haviam
cintilado.
— Deusa da... Natureza — disse, finalmente.
Podia ser um truque, claro. Mas, lá dentro, eu sabia que não era.
Não depois de ter visto o seu sangue.
Eu havia lido sobre os poderes dos caídos. Havia lido sobre alguns
que tinham o poder da telepatia.
A garota lia mentes.
No segundo em que cheguei àquela conclusão, ela se levantou
abruptamente, derrubando a mesinha. A garota começou a correr. E eu não
sabia exatamente o que havia dado em mim, mas me vi correndo atrás dela.
— Ei! Espere! — exclamei.
Ela era extremamente ágil e, em poucos segundos, já havíamos
passado por duas ruas distintas. Felizmente, não estavam muito
movimentadas, então nós duas não atraímos tantos olhares. Ela cruzou um
beco e, assim que eu fiz o mesmo, trombei com alguém.
Era Vesper.
— Que porra está faze… — Ele começou, confuso.
Mas eu não parei de correr.
— Ela! — soltei, ofegante. — Pegue ela!
Não estava pronta para desistir da perseguição, não enquanto ainda a
tinha em minha linha de visão. Não sabia ao certo o que esperava que
Vesper fizesse, mas me surpreendi quando ele começou a correr também.
Ele tinha pernas compridas e não demorou muito para que a
alcançasse.
Vesper segurou o seu punho, obrigando-a a desacelerar. Mas ela se
debateu, lutando contra seu aperto. Estava prestes a escapar — já que
Vesper não usava muita força —, quando me juntei a ele e a segurei
também. A garota parecia um animal raivoso. Quando acertou meu olho
com um dos dedos, perdi completamente a paciência. Eu a empurrei, e
ambas caímos no chão, eu por cima dela. Sentei-me em seu estômago e
lutei contra seus braços finos, porém, rápidos.
— Me solte! — Ela berrou.
Os fios brancos estavam espalhados pelo seu rosto de forma
selvagem, assim como os meus.
— Eu só quero conversar! — Tentei explicar, gritando de volta.
Consegui segurar seus braços e os prendi sobre o chão.
— Hum… Posso saber por que está atacando uma garota? — Ouvi
Vesper atrás de mim.
— Segure os pés dela!
— Eu não vou…
— Segure os pés dela! — gritei novamente, ao virar meu rosto em
sua direção.
Eu estava ofegante e suando.
Devia ter soado assustadora, porque ele fez o que pedi. Ou melhor,
ordenei.
Voltei-me para ela, que ainda se debatia. Começou a gritar
loucamente, e eu fiquei com medo de que chamasse atenção.
— Se não parar, vou te dar um soco! — avisei.
— Eu acho melhor a gente se acalmar… — Vesper começou a dizer,
atrás de mim.
Ela continuou exclamando a plenos pulmões. Meus ouvidos doíam.
Levantei meu punho direito e a acertei. Não usei toda a minha força
porque não queria machucá-la de verdade, apenas chocá-la o suficiente para
que se calasse.
Mas, provavelmente, devido à adrenalina correndo dentro de mim, o
impacto foi mais forte do que eu planejei, porque, além se calar, ela parou
por completo.
A garota desmaiou.
— Caralho! — Vesper exclamou. — Você é completamente louca?!
Soltei seus braços e recuei ao passo que observava seu rosto. Saí de
cima dela, para que Vesper enxergasse também.
— Veja.
Assim que viu o sangue negro escorrendo de seu nariz machucado,
o rosto de Vesper passou de confuso para totalmente chocado.
— Puta merda... — murmurou em um suspiro. Ele piscou e,
finamente, olhou para mim. — É o que estou pensando?
— Não sei, não leio pensamentos.
Ela, por outro lado…
— Um… caído — A palavra deixou a sua boca em um sopro
sombrio. — Não é possível.
Apontei para o seu rosto.
— Não está enxergando?! — indaguei, frustrada.
— Sim, mas…
Olhei para ela, que ainda não havia acordado. Comecei a ficar
preocupada.
— Acho que eu bati muito forte.
— Você acha?! Ela está respirando?
Aproximei o meu rosto do dela.
— Acho que sim.
— Como assim, acho que sim?! — Ele perguntou, alto e estressado.
— Ela está ou não está?
— Tá! Ela está respirando!
O som de conversa vindo do fim do beco me deixou ainda mais
nervosa e em alerta.
— Vamos, pegue os pés dela — pedi, ao me levantar. — Eu fico
com os braços.
Vesper não se moveu.
— O quê?! — Piscou. — Você não pode estar falando sério.
Eu limpei o suor da minha testa, irritada.
— Eu pareço estar brincando? — indaguei entredentes.
— Sabe o que é isso? Sequestro! — Ele se levantou e deu um passo
para trás. — Eu não vou sequestrar uma garota.
— Ela não é uma garota — rebati. — Além do mais, não está
curioso?
Vesper a encarou por um longo momento. Ele estava, era claro que
estava.
Um caído. Em carne e osso.
E sangue negro.
— Não vamos machucá-la, só…
— Até porque, você já fez isso. — Ele interrompeu.
— Só vamos fazer umas perguntas — completei, tentando manter o
fio de calma que ainda me restava.
Precisava de ajuda. Não conseguiria movê-la sozinha.
— Sabe, já pensei muitas coisas sobre você. Mas nunca achei que
fosse um covarde.
O desafio estava claro em meus olhos. Sua feição mudou e demorou
menos de dois segundos para que ele tomasse uma decisão.
— Cale a boca e pegue os braços dela antes que alguém nos veja.
Sou bonito demais para ir para a cadeia.
Não podíamos carregá-la por tanto tempo sem que ficasse suspeito,
ela era pequena e muito leve, porém, com o corpo mole, era um peso morto
e difícil de transportar. Felizmente, sua carruagem estava por perto. Vesper
se afastou um pouco e, então, assoviou para o criado.
A carruagem parou ao nosso lado e a colocamos para dentro. O
criado nos lançou um olhar estranho ao ver a garota desacordada.
— Nossa amiga está passando mal — expliquei, numa tentativa um
tanto patética não parecer uma criminosa.
— Não se preocupe com o Albert. — Vesper comentou, se
acomodando no estofado. — Já viu coisas bem piores trabalhando para a
minha família.
A carruagem começou a se movimentar.
— Eu nunca achei que estaria, um dia, cometendo um crime.
Especialmente com você.
Ela se mexeu um pouco ao meu lado. Eu não tinha certeza se era
devido ao balanço da carruagem ou se estava despertando.
— Droga. O que eu faço se ela acordar?
— Acho que você vai ter que socá-la de novo.
Eu lhe lancei um olhar.
— O que foi? A gente já está ferrado mesmo.
Felizmente, ela ficou desacordada pelo resto do caminho.
Fomos para a minha casa, já que Vesper morava com os pais. Mas,
em vez de entrar na sede, a carregamos direto para dentro do celeiro. Não
podia arriscar que algum criado me visse arrastando uma garota desmaiada
por aí.
Amarramos suas mãos e pés, e a colocamos sentada em uma cadeira
nos fundos do celeiro.
— Vamos colocar algo em sua boca, para o caso de ela voltar a
gritar.
Vesper me encarou em um misto de desconfiança e admiração.
— Você é estranhamente boa nisso.
Colocamos uma mordaça em sua boca e a observamos por um
momento em silêncio. O sangue em seu rosto havia secado.
— Talvez, haja uma explicação. — Vesper soltou, pensativo.
— Para o sangue dela ser negro?
— Pode ser uma doença.
— Sobre qual doença você já ouviu falar que deixa o sangue negro?
E fora que ela não parece nada doente.
Muito pelo contrário, pensei. Debateu-se como como um se fosse
um homem de cem quilos.
— Ela acordou. — Vesper avisou.
Olhei para ela. A garota movimentava a cabeça conforme piscava.
Até que, por fim, processou sua situação.
Ela arregalou os olhos em nossa direção e começou a gritar. Mas o
barulho não passava de um som abafado e estrangulado.
— Não queremos te machucar!
Não adiantou, ela continuava tentando pedir por ajuda.
— A gente só vai tirar esse troço da sua boca, se você calar a boca!
— Vesper se adiantou.
Aos poucos, ela parou.
Aproximei-me com certa cautela e abaixei a mordaça. No mesmo
segundo, ela voltou a gritar.
— Socorro!
— Eu vou socá-la de novo — sibilei para Vesper.
— Não vou te impedir, já estou com dor de cabeça.
Coloquei o pano em sua boca de novo e esperei até que se
acalmasse.
— Eu vou tirar isso de novo, ok? — anunciei, tentando me
controlar. — E você tem duas escolhas. Ficar quieta e nos ajudar ou gritar a
ponto que alguém descubra você aqui. A questão é... Imagino que não
queira que saibam quem você é, certo?
A ameaça foi necessária.
Tirei o pano e, em vez de gritar, a garota falou:
— Não sei do que está falando.
— Não vamos perder tempo com mentiras. — Indiquei para seu
rosto. — O sangue.
Ela engoliu em seco.
— Quem são vocês?! O que vocês querem?!
— A gente faz as pergun…
— Somos espiões. — Vesper deu um passo à frente, com um certo
tom dramático na voz.
Virei-me para ele, que apenas me lançou um olhar que parecia dizer:
“ah, vamos lá... Entre no jogo!”.
— Não devem ser muito bons, então. Espiões não costumam admitir
que são espiões.
— Já conheceu algum espião antes, por acaso? — Ele rebateu.
— Não.
— Então, pronto.
Um sorriso zombeteiro quebrou em seus lábios.
— Tudo bem. São espiões, então.
— O que é engraçado? — Vesper indagou, frustrado.
Eu suspirei. Com os olhos fixos nela, falei:
— Ela lê mentes, Vesper.
O sorriso da garota deixou seus lábios ao ouvir as palavras que
saíram da minha boca. E aquilo apenas confirmou a minha suspeita.
— O que vocês querem? — Ela repetiu, mas com a voz baixa e um
tanto sombria.
— Só queremos saber algumas coisas.
Ela ficou em silêncio, como se esperasse que continuássemos.
— Há mais de você? — perguntei.
— Acha mesmo que encontrou o último caído da Terra?
Tive vontade de socá-la de novo, mas me contive.
— Você conhece muitos iguais a você?
Ela se remexeu na cadeira.
— Muitos, não.
— Ler mentes é a única coisa que você faz?
— Se eu cuspisse fogo ou algo assim, já teria te queimado viva.
Respire, Cera.
Você a socou e, então, a amarrou. Ela tem motivos para ser babaca.
— Sorte minha, então. — Cruzei os braços. — Por que trabalha nas
ruas? Com um poder desse, poderia estar rica.
A garota pareceu ofendida.
— Não posso usá-lo de forma que fique óbvio demais. É fácil
simplesmente dizer que é um bom e velho truque de mágica amador. Fora
que é um dinheiro rápido.
— Os outros que conhece, o que fazem?
Ela hesitou, claramente desconfiada. Não queria entregar os outros,
e eu respeitei sua lealdade.
— Não quero prejudicar você ou qualquer outro caído. Não tenho
nenhum problema com a existência de vocês. — Fiz uma pausa e notei que
ela não parecia convencida. — Você lê mentes, certo? Sabe que não estou
mentindo.
Ela me encarou por um momento em silêncio, até que respondeu:
— Basicamente, o mesmo que eu. Se escondem e tentam usar seus
poderes de forma discreta para ganhar a vida. Mas alguns não usam nunca,
acham arriscado demais.
— Você não acha?
— Não nasci em um berço de ouro como você. Preciso comer. —
Ela retrucou.
— O que estou pensando neste exato momento? — Vesper
perguntou, de repente. Estava quieto até agora. Observava a garota ainda
em completa fixação.
Ela permaneceu com o olhar nele por um momento. E, então,
franziu o cenho.
— Molho de páprica. — Ela parecia tão incerta quanto confusa.
Vesper olhou para mim com os olhos arregalados e a boca
entreaberta.
— Caralho!
Eu o lancei um olhar tão confuso quanto o dela.
— Molho de páprica?
Ele deu de ombros.
— Eu precisava de algo bem específico — ele justificou —, para
realmente testá-la.
Virei-me para a garota.
— Pode ler a mente de qualquer um?
Ela assentiu.
— Desde que me concentre na pessoa.
Ponderei sobre aquilo. O poder que aquela garota tinha era de uma
magnitude imensurável. Havia tantas possibilidades.
— Como é isso? — indaguei, um tanto perplexa.
Ela desviou o olhar do meu e, quando voltou a me encarar, vi seu
rosto vulnerável pela primeira vez.
— Uma maldição.
— O rei sabe sobre a existência de vocês? — Vesper perguntou.
— Sabe. Mas ele abafa os casos. Creio que o imbecil não queira
criar caos ou medo no povo. — Raiva atravessou seu olhar. — Nos caçam
em silêncio. O ponto positivo é que acham que somos menos do que
realmente somos.
— Vocês são muitos?
— Não muitos. Mas já ouvi falar que há reinos onde existem
comunidades.
Aproximei-me dela. E, obviamente, a garota já sabia o que eu estava
prestes a fazer porque se adiantou:
— Não, eu já respon…
Tapei a sua boca antes que ela pudesse continuar falando. Lancei um
olhar para Vesper e indiquei para que deixássemos o cômodo.
— Espiões, sério? — comentei.
Ele deu de ombros.
— Não podia perder a oportunidade.
Encostei-me na parede e cruzei os braços. Encarei o chão conforme
pensava em todos os acontecimentos recentes.
— Já pensou em como seria se as coisas fossem diferentes? —
quebrei o silêncio.
— Como assim?
— Se não precisasse temer pela sua vida e pela vida de quem ama.
Seu rosto se tornou frio. Ele desviou o olhar.
— Isso é impossível aqui.
— Mas, e se não fosse?
Ele me observou por um momento.
— Do que está falando?
Demorou um tempo para que eu reunisse coragem. Para que pudesse
verbalizar algo que, de certa forma, eu mesma achava loucura.
— Estou falando de tomar o poder. O trono.
Vesper riu. Mas parou assim que notou que eu não o acompanhei.
— Ah, você está falando sério. — Ele franziu o cenho. — Perdeu a
cabeça?!
— Eu sei que parece loucura, mas já foi feito antes. Não é
impossível.
Recordei-me de Sarkian ao lado do trono, a máscara do pai nas
mãos.
— E como nós faríamos isso?
— Bem, não seria de imediato... Precisaríamos de tempo para criar
um plano. Um bom plano.
— Tem mais gente nessa?
Desviei o olhar e troquei o peso dos pés.
— Não. Ainda não.
— Ah, então seriamos só eu e você contra um reinado inteiro? Um
time e tanto.
— E ela.
Vesper olhou para onde a garota estava amarrada e, então, voltou a
me encarar.
— Ela?
— A garota lê pensamentos, Vesper! Tem noção disso? Não há nada
mais poderoso do que o conhecimento. E ela sabe de tudo que se passa na
cabeça de todo mundo. Com ela e um bom plano, temos uma chance real
nisso.
Vesper pensou por um momento, encarando o chão da mesma forma
que eu tinha feito há alguns minutos.
— Você está falando sério mesmo, não é? — perguntou, ao voltar a
olhar para mim.
Engoli em seco. Não havia mais volta agora, eu tinha tomado a
minha decisão.
— Estou.
— Nem sabe se ela vai concordar.
— Não se preocupe, deixe que eu cuido disso.
Ele sorriu em meio a uma careta conturbada e passou ambas as
mãos pelos cabelos escuros. Quando voltou a me encarar, indagou:
— Tem noção de como você soa insana falando isso tudo?
Eu sabia.
Talvez, eu estivesse mesmo louca. Talvez, todas as últimas tragédias
da minha vida haviam me enlouquecido. Mas, dentro do meu peito, por
alguma razão, eu sentia como se estivesse enxergando com clareza pela
primeira vez na vida.
Descruzei os braços e tirei as costas da parede.
— Você não sente raiva, Vesper? — Aproximei-me dele. — A cena
não fica repassando centenas de vezes em sua mente?
Não precisava dizer sobre o que me referia. Ele sabia muito bem.
Vesper desviou o olhar, e notei seus olhos ficarem marejados. Sua
mandíbula tensionou.
— Nunca deixa a minha cabeça. — Ele admitiu.
Fiquei de frente para ele.
— Eu quero vingança, Vesper. Quero olhá-los de cima enquanto os
faço se arrependerem — assumi. — Está comigo nessa?
Ele pensou por apenas um momento. A dor refletiu em seus olhos
com torturante clareza.
— Não tenho muito mais a perder.
capítulo 24
Era a última lua cheia do mês, o que queria dizer que aconteceria o
evento tradicional a céu aberto para louvar aos Deuses. A cerimônia era
basicamente uma festa cheia de comidas e apresentações. Só que, em vez de
ser em algum dos salões do palácio, era a céu aberto. Segundo o rei, era
para que os Deuses pudessem nos ver melhor.
Além de não ser no palácio, como todas as outras cerimônias, outro
diferencial era que a entrada era permitida para todos os cidadãos, até
mesmo os mais pobres. Obviamente, com uma certa separação de lugares,
principalmente da Família Real.
Era uma das poucas cerimônias que eu realmente gostava, já que a
festa não exigia apenas conversas e danças. Ao longo da noite, aconteciam
várias apresentações, algumas delas bem interessantes.
Mas eu fui, acima de tudo, porque queria Willow e Sarkian no
mesmo recinto. Precisava saber exatamente o que se passava na cabeça
dele. Era só naquilo em que eu conseguia pensar.
— Como é isso, exatamente? Você precisa estar a cerca de qual
distância da pessoa? — Eu questionei, conforme andávamos pelo gramado.
Apesar de ser a céu aberto, havia toda uma estrutura preparada para
a festa, que costumava se prolongar até o amanhecer. Tendas eram erguidas
ao longo da terra — a maioria delas era particular, de nobres que vinham de
mais longe e desejavam ter um local para descansar ao fim da festa. Outras
eram comerciais, principalmente de bebidas e alimentos.
— Eu preciso ter a pessoa na minha visão periférica e me concentrar
nela, e é isso.
— Ótimo — respondi, ao pegar a sua mão e arrastá-la pela multidão
de pessoas.
Sarkian estaria perto do rei, em frente ao círculo e com vista
privilegiada para onde as apresentações aconteciam.
— Dá para irmos mais devagar? — Ela reclamou. — Estou com
fome.
Não respondi e também não diminui o passo.
— Veja! Aquele cara está vendendo sanduíche de bacon!
Parei e me virei tão abruptamente que ela quase se chocou contra
mim.
— Depois que você ler a mente dele, pode ter quantos sanduíches
quiser.
Ela franziu o cenho.
— Por que quer tanto saber o que se passa na mente dele?
Recuei, soltando seu braço.
— É uma questão estratégica — argumentei com a voz mais tensa
do que pretendia. — Ele é um rei.
Ela me encarou fixamente e torceu a cabeça.
— Não — disse. — Não é só isso.
— Pare — alertei, porque já sabia o que ela estava fazendo. Sabia o
que aquele olhar significava.
— Você o odeia. — Ela concluiu. — Mas é pessoal.
— Pare! — repeti, dessa vez entredentes.
Não suportava aquela invasão. E, quanto mais eu pensava em
Willow vasculhando a minha mente, mais eu pensava no que mais gostaria
de esconder.
— Ok. — Ela suspirou. — Vamos acabar logo com isso, para eu
comer meus sanduíches.
Voltamos a andar e não demorou muito para que estivéssemos perto
do círculo. Foi fácil de achar, já que várias pessoas o cercavam e, logo em
frente, havia uma plataforma com cinco poltronas. Ali, se encontravam o
Rei de Umbra, a rainha, o príncipe, a princesa e…
Sarkian.
No momento, encarava o homem que se equilibrava e dançava em
um pedaço de madeira fino e longo com uma expressão de tédio. Pelo
menos, era isso que eu supunha, já que, devido à máscara, só conseguia ler
a sua expressão corporal.
Virei-me para Willow.
— Consegue vê-lo?
Ela ficou na ponta dos pés e franziu o cenho. Willow era
consideravelmente mais baixa do que eu.
— Não. Precisamos chegar mais perto.
Nós nos aproximamos, abrindo caminho entre o mar de gente.
Depois de nos espremermos e esbarrarmos em várias pessoas, conseguimos,
por fim, chegar na borda do círculo.
— E agora? — perguntei, me virando para trás.
Mas a pergunta ficou no ar, porque Willow não estava ali.
Olhei ao meu redor e só vi rostos desconhecidos. Chamei o nome
dela mais uma vez.
Não estava acreditando naquilo. Estávamos tão perto.
No momento em que entendi que jamais a acharia novamente
naquela confusão, me virei de volta para Sarkian.
E, ao fazer aquilo, o encontrei já com os olhos em mim.
Merda.
Estava na expectativa de que ele não me visse naquela multidão de
corpos.
Sustentei o seu olhar por vários segundos torturantes, até que, por
fim, desviei. Observei o artista no centro do círculo, tentando ignorar o
olhar que queimava a minha pele.
O que eu daria para ter Willow aqui e saber exatamente o que se
passava na cabeça sinistra dele...
Quando pensei que a apresentação havia acabado, fogo acendeu no
centro do círculo, esquentando os arredores. O homem fez um cobertor de
chamas logo abaixo da travessia de madeira suspensa.
Notei a mudança de interesse dos espectadores com os aplausos
animados.
Naquele momento, as coisas estavam bem mais intrigantes, já que,
caso ele se desequilibrasse da madeira, cairia direto nas chamas.
O artista subiu na plataforma e fez uma impressionante dança, muito
bem equilibrada. Era muito claro seu talento e anos de treinamento.
Aplausos explodiram no segundo em que ele desceu.
— Alguém se atreveria? — O homem perguntou em desafio.
O público se agitou quando ele olhou ao redor, procurando um
voluntário. Não era incomum certos artistas incluírem algum espectador no
seu número.
— Vamos lá! — Ele gritou, com um sorriso nos lábios. — Deve
haver, pelo menos, uma pessoa corajosa por aqui. E não se preocupem, irei
auxiliar quem se atrever.
Vi uma mão se levantar no lado oposto do círculo. Logo depois,
mais duas.
O artista sorriu, analisando suas opções. Quando ele deu um passo
em direção a um dos possíveis participantes, a voz reverberou pelo círculo.
— Pare.
Todos os olhares deixaram o centro do círculo para irem direto até a
plataforma real.
Até Sarkian.
O apresentador e o público esperaram, confusos e surpresos com a
interrupção.
Meu coração começou a bater mais rápido. Um pressentimento ruim
atravessou meu corpo assim que sua voz chegou aos meus ouvidos.
Sem pressa, o olhar de Sarkian se arrastou até encontrar o meu.
Não.
Ele levantou o braço direito e, com a mão enluvada e banhada em
brilhantes, apontou na minha direção.
— Ela.
Não. Não. Não.
Todos os olhares, de repente, estavam em minha direção. As pessoas
ao meu redor se viraram para mim. A mulher, que antes tinha o braço
imprensado na minha costela, se afastou.
Engoli em seco.
Aquilo não podia estar realmente acontecendo.
O apresentador deu alguns passos hesitantes em minha direção. A
multidão à minha volta se distanciou, abrindo caminho.
Senti-me terrivelmente exposta.
— Eu não quero participar — disse, com a voz arranhando a minha
garganta.
Ele parou e, então, se virou para os reis.
— Alteza, ela disse que…
— Eu ouvi. — Sarkian interrompeu, sem tirar os olhos de mim. —
Infelizmente, não foi um pedido.
O Rei de Umbra parecia tão confuso quanto todos ali. Ele virou o
rosto para Sarkian e murmurou alguma coisa. Sarkian desviou o olhar do
meu para dizer algo de volta. O Rei de Umbra assentiu sutilmente e eu
entendi que Sarkian havia conseguido o que queria, como sempre.
Dei um passo para trás.
— Não vou participar — pronunciei-me, dessa vez olhando
diretamente para Sarkian.
Ouvi arfadas e suspiros de choque.
Eu tinha acabado de dizer não ao Rei de Khrovil.
Ele tamborilou os dedos no braço da cadeira enquanto tinha os olhos
fixos nos meus.
— Você prefere que os meus guardas te arrastem? — questionou,
com a voz calma e congelante.
Com um sutil e quase imperceptível movimento da cabeça, os
soldados mascarados que o cercavam deram um passo à frente.
Não havia outra opção.
Tomei a minha decisão e comecei a andar para dentro do círculo.
Não queria de jeito nenhum ser arrastada, então, pelo menos, faria aquilo
com certa dignidade.
Fechei as mãos em punhos para que ninguém visse como elas
estavam tremendo.
— Não se preocupe — o artista disse, ao caminhar para o centro do
círculo ao meu lado —, vou segurar sua mão para ter apoio.
Eu olhei para ele de forma extremamente agradecida ao assentir.
Senti o calor das chamas conforme me aproximava da travessia.
— É melhor tirar os sapatos. — Ele avisou.
Tirei meus saltos, ficando descalça.
O silêncio me deixava ainda mais nervosa. A consciência de que
todos estavam olhando para mim — principalmente ele — era
desconcertante.
Sarkian conseguiu o que queria; me fez a atração principal.
Suor já escorria da minha testa ao subir na travessia de madeira. O
artista tinha a mão firme na minha, me estabilizando, mas mantendo o
corpo o mais afastado possível das chamas no chão. A madeira era fina, tão
fina que cabia exatamente a largura de um pé. Estava quente, mas não era
insuportável.
Eu tremia, o que piorava a situação.
Mas eu acreditava que podia fazer aquilo. Afinal de contas, há
menos de cinco minutos, o homem estava dançando e fazendo rodopios na
madeira. Obviamente, ele era um profissional talentoso. Pelo menos, eu não
precisaria dançar. Eu só precisava atravessar. E, com o suporte de sua mão,
era bem mais fácil para manter o equilíbrio.
Assim que dei o primeiro passo, a voz reverberou mais uma vez.
— Solte a mão dela.
Eu congelei, parando no meio do segundo passo.
Ergui meu olhar, encarando-o pela primeira vez desde que adentrei o
círculo.
Sarkian me observava com atenção e, sem dúvidas, extrema
satisfação.
— Mas, Vossa Alteza… — O artista disse ao meu lado.
— Solte. — Sarkian interrompeu antes que ele pudesse terminar o
apelo.
Meus olhos começaram a lacrimejar de medo, mas, principalmente,
de raiva.
Meu corpo fervia mais por causa do ódio do que pelas chamas logo
abaixo de mim. Sabia que Sarkian foi capaz de sentir, porque a sombra de
um sorriso atravessou seu rosto.
Eu vou matá-lo.
Um dia, eu vou matá-lo, prometi a mim mesma naquele instante.
— Você o ouviu. Obedeça. — O Rei de Umbra finalmente se
pronunciou.
Senti a mão do apresentador lentamente deixar a minha e eu o
encarei ao passo que me esforçava para me estabilizar.
— Sinto muito, senhorita. — Ele disse de forma realmente
lamentável.
— Tudo bem — murmurei com a voz tão baixa que não sabia se ele
tinha sido capaz de ouvir.
Suor escorria pela minha testa. O meu vestido, de repente, parecia
pesar toneladas. E era bem mais complicado de me equilibrar com aquela
saia longa.
Ergui os braços lentamente, tentando me equilibrar sem ajuda.
Esqueça as chamas.
Esqueça Sarkian, repeti a mim mesma.
Dei mais um passo, lento e hesitante. Então, o segundo. E mais um.
Meus braços continuavam no ar, estabilizando o peso do meu corpo.
As chamas pareciam crescer embaixo de mim, mas, provavelmente,
era imaginação minha causada pelo medo e pelo pânico. Sentia meu vestido
fino de verão ficando molhado de suor.
Eu conseguia me imaginar caindo. O choque contra o fogo, as
chamas lambendo a minha pele e as queimaduras instantâneas e
permanentes. A dor seria insuportável. Poderia até ser fatal.
No sexto passo, me desequilibrei. Meus braços fizeram movimentos
bruscos para cima e para baixo na tentativa desesperada de me reequilibrar.
Ouvi uma arfada coletiva do público.
As minhas pernas tremiam terrivelmente.
Eu vou cair!
Puta merda, eu estou prestes a cair!
Mas, por algum tipo de milagre, consegui me reequilibrar.
Inspirei fundo e, depois de um longo momento, voltei a me
movimentar. Dei mais dois passos, finalmente encontrando o meu ritmo.
Depois disso, ficou um pouco mais fácil. Foquei na madeira e apenas na
madeira, ignorando os sons ao redor, o calor das chamas e a presença de
todas aquelas pessoas. Cerca de cinco passos depois, eu havia atravessado
toda a madeira.
Com o auxílio do homem, pulei da plataforma, para longe do
cobertor de chamas. Os aplausos começaram assim que meus pés quentes
encontraram a grama.
Minhas pernas tremiam e eu estava completamente molhada. A
adrenalina ainda pulsava.
Levantei o olhar, fitando Sarkian fixamente.
Não havia um sorriso ou nenhum resquício de diversão em seus
olhos. Provavelmente, estava decepcionado por eu não ter caído.
Meu vestido estava colado contra meu corpo. Eu era capaz de sentir
o material molhado em minha pele e, como o tecido era branco, se tornou
um tanto transparente, expondo muito mais do que gostaria.
Vento soprou, amenizando o calor e movimentando alguns fios dos
meus cabelos. Mas, com a brisa, senti meus mamilos endurecerem contra o
tecido e fiquei muito ciente de tudo o que estavam vendo.
Senti-me verdadeiramente nua. Completamente exposta.
Engoli em seco, mas não fiz nenhuma tentativa de me cobrir.
Sustentei o olhar de Sarkian com a cabeça erguida.
E, apesar dos aplausos do público, não me sentia nem um pouco
encorajada. Sentia-me humilhada. Um brinquedo que se contorcia de
acordo com a vontade daquele monstro.
Meus olhos começaram a lacrimejar.
Não chore.
Não na frente dele.
Seu olhar desceu lentamente pelo meu corpo, os lábios em uma
linha dura.
Não conseguia ver seu rosto direito, muito menos ler sua expressão
corporal, já que ele não movimentou, sequer, um dedo. Apenas suas pupilas
me percorreram até voltar ao meu rosto.
Mas eu podia apostar que era nojo. Ver-me daquele jeito
provavelmente o ofendia mais do que me deixava desconfortável.
— Satisfeito, Alteza? — indaguei, sentindo o caroço se formar em
minha garganta.
Sarkian tensionou a mandíbula e levantou a mão direita. Com um
sinal mudo e sutil, ele fez com que seus soldados se aproximassem, com a
intenção de me escoltar para fora.
O comando era tão claro que eu podia escutar, mesmo sem palavras
ditas.
“Tirem-na da minha frente.”
Não dei oportunidade para que me tocassem. Virei-me e deixei o
círculo.
capítulo 28