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sumário

sumário
aviso
prefácio
prólogo
capítulo 1
capítulo 2
capítulo 3
capítulo 4
capítulo 5
capítulo 6
capítulo 7
capítulo 8
capítulo 9
capítulo 10
capítulo 11
capítulo 12
capítulo 13
capítulo 14
capítulo 15
capítulo 16
capítulo 17
capítulo 18
capítulo 19
capítulo 20
capítulo 21
capítulo 22
capítulo 23
capítulo 24
capítulo 25
capítulo 26
capítulo 27
capítulo 28
capítulo 29
capítulo 30
capítulo 31
capítulo 32
capítulo 33
capítulo 34
capítulo 35
capítulo 36
av i s o

Este livro é violento. É uma distopia passada diante do reflexo de


uma sociedade arcaica. Há diversas cenas contendo machismo e homofobia
da parte da sociedade em que nossa protagonista vive, os quais podem ser
difíceis para certos leitores.
O romance contido neste livro é um bully romance, o que quer
dizer que os personagens fazem “bullying” um com o outro por alguma
razão. São cruéis e violentos em vários momentos. É completamente
ficcional e não deve ser tirado como exemplo em forma alguma.
Trata-se da primeira parte de uma história, então termina em
cliffhanger.
Alerta de gatilhos: violência física e verbal (incluindo violência
doméstica), abuso sexual, distúrbios alimentares, crimes de ódio como
homofobia e feminicídio.
a todas as garotas
que já foram ditas que não eram capazes
p r e fá c i o

Este não é um livro sobre a garota prometida


ou sobre a garota com o sangue nobre
nem mesmo sobre a garota com o coração de ouro

Este não é um livro sobre uma heroína


é sobre uma traidora
que consegue
poder
louvor
e respeito
através de sangue

Prazer
meu nome é Morte
e esta é a minha história com a Usurpadora de Sangue
prólogo

A nossa história é longa


Nos encontramos algumas vezes no decorrer dos anos
Houve momentos em que cheguei muito perto
mas a conheci de fato
antes mesmo de ela ser a usurpadora

Quando a conheci
ela ainda era uma menina
Ela iria me matar.
Estava irritada comigo de uma forma que eu nunca tinha visto.
Tapas não seriam o suficiente daquela vez.
Lutei para subir, desesperada por ar. Mas ela manteve suas mãos
contra a minha cabeça por um momento terrivelmente longo. Abri a boca,
mas tudo o que entrou foi água. Não saberia dizer o quanto bebi até tudo
ficar preto.
Paz inundou. Silêncio também.
Foi como um sono profundo. E, ao mesmo tempo em que pareceu
levar apenas um segundo, também pareceu uma eternidade.
Mas, então, a escuridão se transformou em um brilho prateado,
quase cegante, e eu voltei.
Pisquei várias vezes. A minha visão era turva.
Seu rosto tomou forma diante dos meus olhos. A pele clara e os
olhos gelados. Ela batia na minha bochecha e repetia o meu nome.
Demorou um instante até eu lembrar que estava na banheira.
— Cera! — Ela chamou, sua voz aguda ecoando no banheiro.
Minha madrasta parecia assustada.
Eu tossi algumas vezes antes de abraçar meu próprio corpo nu, me
encolhendo dentro da banheira.
Silêncio pairou no cômodo abafado.
Ela se manteve agachada ao lado da banheira, com as mãos
encharcadas. Encarávamo-nos, como se compartilhássemos um obscuro
segredo.
Seu toque nunca foi gentil comigo. Quando me auxiliava no banho,
esfregando a minha cabeça, nunca era um movimento delicado e relaxante.
Por isso que eu preferia Katya, a criada. Mas ela havia faltado
naquele dia. E minha madrasta odiava ter que fazer comigo qualquer coisa
que se assemelhava a algo que uma mãe faria.
Mas, daquela vez, ela havia ido longe demais. E pela sua respiração
descompassada de nervoso, ela parecia saber disso também.
Meus olhos se encheram d’água. Lágrimas quentes e salgadas se
misturavam com a água doce da banheira.
Eram em momentos como aquele que a saudade da minha mãe se
tornava fisicamente dolorosa.
Ela engoliu em seco pouco antes de eu desviar o olhar.
Queria que ela fosse embora.
— Termine de se enxaguar. — Ela mandou, com a voz tensa, ao se
levantar.
capítulo 1

O céu amanheceu cinza no dia em que o vi pela primeira vez. Nas


últimas semanas, fez um sol excruciante acompanhado de um céu limpo e
azul, mas, naquela manhã, estava quase escuro de tantas nuvens negras.
Particularmente, eu sempre amei dias com promessas de
tempestade.
— Bom dia, senhorita.
A voz de Mira era suave ao abrir a porta.
Virei o rosto para ela. Eu estava deitada, mas já havia acordado há,
talvez, meia hora. Quase não tinha dormido durante a madrugada.
— Bom dia — respondi.
Ela abriu a boca mais uma vez, porém fui mais rápida em completar:
— Eu sei, já vou começar a me arrumar.
Tinha certeza de que Nusa, minha madrasta, a havia mandado para
me acordar e fazer com que eu me preparasse. Todos teríamos que estar
perfeitos naquele dia. Mais do que o usual.
Mira assentiu, grata por não ter que pedir.
— O seu vestido está sobre a poltrona. — Ela completou, antes de
sair.
Eu voltei a olhar para o teto por alguns instantes.
Estava ansiosa, não de uma forma excitante e animada, e sim
nauseante e desconfortável.
Teoricamente, era um dia feliz. Um dia de celebração entre dois
reinos que viviam em guerra e que, finalmente, entraram em acordo e
estabeleceram a paz. Mas, por alguma razão, eu não me sentia desse jeito.
Sentia um retorcer estranho na base do estômago.
Mas me convenci de que aquilo não era muito anormal. Nas últimas
semanas, desde que o tratado fora anunciado, ouvi muita gente expressando
sentimentos negativos diante da situação. Havia desconfiança entre o nosso
povo. Os otimistas estavam felizes em juntar as casas e viver em paz. Mas
os pessimistas não tinham certeza se não poderia ser algum tipo de golpe.
Os selke não eram confiáveis.
Eles eram do mal.
Cruéis.
Depois do banho, coloquei o vestido que foi separado para a
cerimônia. Era de um tom de azul muito claro. Um belo vestido, mas azul
nunca fora a minha cor, ainda mais naquele tom aberto, quase branco.
Quando desci as escadas para o salão de entrada, meu pai e meu
irmão já estavam do lado de fora, no meio do caminho até a carruagem.
Nusa estava falando com a sua criada particular, enquanto esta, ajoelhada,
ajustava algo em seu sapato. No vestido cor de creme justo, sua barriga
ficava predominante. Ela estava com quatro meses no momento. Dali a
cerca de cinco meses, eu teria mais um irmão ou uma irmã. Eu esperava que
fosse uma menina, só porque tinha certeza de que meu pai gostaria de um
menino.
O caminho foi feito na maior parte em silêncio, com Nicklaus, meu
irmão, e meu pai trocando algumas palavras sobre negócios,
esporadicamente. Minha madrasta parecia entretida o suficiente em afagar
seu vestido e observá-los.
Eu fitava a janela enquanto fazíamos nosso caminho até a entrada do
palácio. A energia do povo era palpável. Aquele dia não era um como
qualquer outro; estava muito claro.
Apesar do céu cinza, Umbra continuava muito verde e viva. A base
da nossa economia se dava graças ao clima e ao solo favoráveis para
colheita. Muitos acres de terras planas e férteis. E, por mais que fizesse frio
no inverno, nunca nevava.
As ruas estavam muito cheias. Várias carruagens seguindo em filas
e os mais pobres lotando as calçadas. Ninguém queria perder. Por mais que
muitos não pudessem, de fato, ver a cerimônia, tentariam chegar o mais
próximo possível para, pelo menos, vê-los entrar. Eu seria uma das que teria
o privilégio de vê-los cara a cara. De observar a interação dos dois reis e
rainhas de perto. Avaliar e especular cada movimento.
Há mais de mil anos, dois príncipes irmãos brigaram. O rei estava
muito doente, e o reino escolhera seus respectivos lados. Apesar do irmão
mais velho ser, tradicionalmente, o “correto” para o reino, o mais novo
tinha muitos aliados e ideais que eram adorados por uma parte do povo.
Quando o rei finalmente falecera, a nação se dividira. Foram anos de
guerra, até que os dois criaram seus próprios reinos, dividindo a terra e o
povo em dois.
O irmão mais velho ficara com a parte sul e fundara Umbra, meu
reino. O irmão mais novo, o rebelde, tomara a parte norte e fundara
Khrovil. Ao longo de todos aqueles anos, guerras por terras e desavenças
políticas foram travadas diversas vezes, direta ou indiretamente. Nós
aprendemos desde novos, na escola, como o povo de Khrovil era profano e
impiedoso. Eles eram o inimigo. Eu sabia daquilo desde garota.
Mas, recentemente, começaram os boatos de uma reconciliação. Eu
não achei que fosse possível; a maioria de nós estava desacreditada. Mas,
pensando bem, fizera certo sentido: há muitos anos, não fora travada
nenhuma guerra entre as nações. E nosso rei atual era mais compreensivo e
tolerante do que os anteriores.
Talvez, fosse a hora de finalmente parar de derramar tanto sangue.
Assim que atravessamos a grande muralha do palácio, eu comecei a
procurar por Rafe no mar de pessoas, mas parecia impossível encontrá-lo
ali. Todos estavam se apertando o mais próximo possível da frente do
palácio. Os guardas reais estavam protegendo o caminho de entrada até as
portas enormes do palácio para que não houvesse ninguém no caminho
quando as carruagens reais passassem. Desisti de procurar e esperei um
pouco. Rafe era um nobre, o que queria dizer que logo estaria por perto do
lugar que fora separado para nós.
A nossa carruagem parou em frente ao palácio, ao lado de uma fila
de outras carruagens tão impressionantes e luxuosas quanto a que nos
encontrávamos.
Eu olhei para o meu pai, que ajeitava o colarinho em um ato de
apreensão. Suas sobrancelhas estavam franzidas; ele quase sempre as tinha
assim. Aquilo, infelizmente, fora herdado a mim, e eu me esforçava para
relaxar o cenho sempre que notava que estava parecendo demais com ele.
Depois que descemos, fomos posicionados abaixo das escadarias da
entrada do palácio. Meu pai um pouco mais à frente, junto a todos os outros
homens de influência do reino. Eu fiquei um pouco mais para trás, junto aos
filhos daquelas pessoas. Entre nós, os guardas abriram espaço para a longa
passagem que se estendia até as muralhas — era por onde o Rei de Khrovil
e sua família iriam atravessar.
Era um desfile, aquilo era claro. Simbólico.
Aquele acordo de paz era o começo de uma nova era.
— Grande dia, hum? — A voz familiar soprou em meu ouvido.
Eu me virei para encontrar Rafe vestido todo de branco, com
exceção do colete verde-claro. Seu cabelo vermelho-alaranjado estava,
como sempre, perfeitamente penteado.
— Para quem?
— Para a nação, é claro. — Ele respondeu com uma voz casual e
um tanto sarcástica.
Ele estava animado, no entanto. Era perceptível. E eu já tinha uma
ideia do porquê.
— Você está linda. — Ele disse, como sempre e, também como
sempre, eu tive dificuldade em aceitar o elogio.
Nunca fui boa em recebê-los. Aparentemente, sorrir e agradecer era
complicado demais para mim. Mas, como Rafe era meu amigo há muito
tempo, eu tinha a liberdade de simplesmente torcer o rosto em uma careta.
Ele me deu um beijo rápido na testa e começou a se distanciar.
— Ei! Você não vai assistir? — indaguei, levemente decepcionada.
Queria fazer comentários maldosos sobre as roupas ou a aparência
da realeza, há pouco inimiga, em seu ouvido.
Ele balançou a cabeça e sorriu.
— Vou aproveitar que estão todos muito concentrados nessa união
de paz.
Eu assenti, entendendo o recado.
— Cuidado — sibilei em um sopro.
Ele não respondeu, mas eu sabia que havia escutado. Observei suas
costas se perderem entre a multidão e logo avistei Murry mais distante, com
os olhos em nós.
Ele sorriu em minha direção; aquele seu irresistível sorriso doce. Eu,
definitivamente, entendia o apelo. Dei um pequeno aceno de volta antes de
me virar.
As trompas soaram e, logo depois, as enormes portas do castelo se
abriram. O Rei e a Rainha de Umbra, assim como seus dois filhos,
apareceram no topo das escadas. Como de costume, trajavam vestimentas
brancas e longas. O material era largo em seus corpos, esvoaçando assim
que o vento bateu contra eles.
Estava claro a importância daquele momento devido aos ornamentos
prata e dourado que enfeitavam seus trajes. Pulseiras, gargantilhas e até
coletes de metal brilhavam graças às várias pedras preciosas. Eles pareciam
anjos enviados diretamente pelos deuses. E sabiam disso.
A Rainha Netania sorriu e acenou. Era conhecida pela simpatia,
mas, principalmente, pela beleza. Longas tranças brancas como a neve
fazendo contraste com a pele negra. Era esbelta, mas não muito alta.
A princesa era praticamente seu clone, com exceção do cabelo
castanho-claro, que havia herdado do pai. O Rei Baron era alto, corpulento
e tinha a pele em um tom bronzeado. O filho era mais parecido com ele;
não era feio, mas, definitivamente, não belo. Era um garoto reservado,
porém doce. Doce demais para um futuro rei, alguns diziam.
Os aplausos terminaram quando outra trompa soou. Cabeças se
voltaram na direção oposta assim que carruagens surgiram no outro
horizonte do castelo. Pretas e com detalhes em cinza adornando a estrutura.
Bandeiras balançavam nas hastes, exibindo o brasão do reino vizinho.
As pessoas se calaram e um considerável silêncio se instalou. A
ansiedade e a curiosidade nos deixaram mudos. A maioria ali estava prestes
a vê-los pela primeira vez. Daríamos um rosto aos nomes que tanto
comentavam.
De acordo com o meu povo, os deuses mais malignos os amavam.
Eram protegidos pelo Deus da Mentira, pelo Deus da Luxuria e pelo Deus
da Ganância.
Assim que as carruagens pararam, os soldados começaram a sair.
Todos usavam máscaras pretas e lisas, que cobriam seus rostos
completamente, com exceção dos olhos. Dezenas daqueles homens se
organizaram, formando uma barreira entre todos nós e as carruagens reais.
Assim que a formação acabou, a porta da carruagem mais impressionante
foi aberta.
O Rei Zagreus saiu primeiro.
Ele era exatamente como eu esperava. Exatamente como haviam me
contado. Alto e grisalho, ele usava trajes escuros e uma impressionante
máscara negra com chifres da mesma cor. Nada dava para ver, além de sua
boca, que estava em uma linha reta, e o queixo. A Rainha Visha desceu em
seguida; tinha o cabelo castanho preso em um coque apertado e o rosto
escondido pela máscara. O item que cobria sua face também era negro, mas
tinha detalhes em pedras preciosas e velava apenas a metade superior do
seu rosto. Seu vestido vermelho-vinho arrastava no chão e marcava a
cintura devido ao corset preto.
Havia rumores sobre as máscaras também, claro. Especulações do
porquê exibiam máscaras em vez de coroas. Pouquíssimos reinos tinham tal
tradição. Eles a tiravam apenas em ambientes muito particulares; em
celebrações como aquela, eram sempre usadas.
Logo depois da rainha, um dos príncipes desceu. Era alto como o
pai e tinha o mesmo tom de cabelo da mãe. Seu rosto também estava
coberto por uma máscara negra, um pouco maior do que a da mãe, porém
com a aparência bruta da do pai, sem os brilhantes.
Eu não sabia qual dos príncipes era, mas, felizmente, duas mulheres
ao meu lado estavam conversando alto o suficiente para que eu fosse capaz
de escutar.
— Esse é o príncipe mais velho, não é?
— Acho que sim. Parece normal, bonito até, e dizem que o mais
novo tem uma aparência... — ela fez uma breve pausa — exótica.
Então, aquele era Zalic, o futuro Rei de Khrovil. O futuro líder do
povo selke.
Observei os três, assim como todo mundo, conforme eles
começaram a andar em direção à realeza de Umbra.
No momento em que me perguntei onde estaria o segundo príncipe,
meu olhar foi levado de volta para a porta da carruagem.
Ele estava, finalmente, descendo.
Sarkian.
Ouvi falar muito dele não só nos últimos dias, mas nos últimos anos.
Ele era conhecido pela personalidade especialmente maléfica. Havia
rumores terríveis sobre ele, mais do que sobre qualquer um daquela família.
E eu nunca tive certeza se eram verdadeiros ou apenas invenção do meu
povo, mas, olhando para ele, senti, por alguma razão, que provavelmente
havia mais verdades do que mentiras nas histórias. A mais ridícula e fictícia
era sobre o fato de o rei não ser realmente seu pai. Em Umbra, alguns — os
mais crentes — afirmavam que a rainha havia se deitado com o Deus da
Morte e o concebido.
Primeiro, vi a bota de couro pisar no chão de pedra.
Os próximos segundos pareceram durar uma eternidade. E foi
apenas devido àquele fato que notei quão curiosa eu realmente estava.
E, então, em um piscar de olhos, lá estava ele.
Usava preto dos pés à cabeça, das botas até a longa capa que cobria
quase todo o corpo esbelto. Com os ombros largos como os do pai, Sarkian
era um príncipe imponente. Era dois anos mais novo que o irmão, mas era
tão alto quanto o mais velho.
Seus cabelos eram mais escuros do que qualquer um da família, tão
negros que pareciam brilhar em um tom azulado contra a luz. E aquilo fazia
um contraste violento com a sua pele muito pálida. A pele que tínhamos
acesso apenas na parte inferior da face, porque a máscara negra tapava parte
do seu rosto.
Eu já tinha ouvido falar de sua aparência. De seus cabelos cor de
carvão e pele cor de neve intocada. Alguns diziam que, por trás da máscara,
ele era um monstro, um verdadeiro demônio. Outros diziam que era tão
belo quanto um anjo caído. De qualquer forma, era, de fato, impressionante
ao vivo.
Hipnotizante, mas não de um jeito bom.
Ele também usava luvas e gola alta, deixando quase nenhuma pele à
mostra. Cobria-se mais do que qualquer um da família.
Seu rosto era impassível ao colocar os pés no solo de Umbra. Ele
ajeitou, sem pressa — diria até que com uma lentidão beirando a arrogância
—, a luva conforme o soldado fechava a porta da carruagem atrás dele. E,
então, depois do que pareceu uma eternidade, ele levantou o rosto
sutilmente e, por fim, reconheceu o povo em volta.
Mas, assim que o fez, assim que ele levantou o olhar, alguém entrou
na minha frente. Fiquei na ponta dos pés e me arrependi de não ter colocado
um sapato de salto tão alto quanto os das garotas ao meu redor.
O Rei Zagreus, a Rainha Visha e o príncipe mais velho já
atravessavam a passarela a caminho da entrada do castelo. Fizemos a
devida reverência, um leve torcer de joelhos e uma sutil inclinação de
cabeça conforme passavam em nossa frente.
Um pouco mais atrás, Sarkian começou a acompanhá-los. Ele não
andava só com confiança, ele andava com um senso de superioridade. Tinha
os olhos à frente, sem encarar o povo, à medida que passava,
diferentemente do irmão, que lançou breves olhares pela multidão.
Novas reverências começaram, como uma onda que seguia o
príncipe esbelto conforme andava.
Ele passou por mim, ficando a não mais de um metro de distância. E
era palpável a tensão que se formou nas pessoas ao meu lado.
O som de uma trovoada, prometendo chuva, afastou alguns olhares
para o céu, mas não o meu. Porque, no exato momento em que aquilo
aconteceu, Sarkian virou o rosto. Ele olhou para a sua esquerda, um pouco
mais para trás.
Exatamente em minha direção.
O prata cintilou por trás da máscara. E eu fui arrebatada pela cor ao
mesmo tempo assombrosa e deslumbrante. Nunca tinha visto algo parecido.
Seu olhar foi como um choque.
Por um breve instante, Sarkian Varant desacelerou o passo, como se
algo tivesse chamado a sua atenção.
Eu.
E foi só depois do segundo mais longo da minha vida, que notei o
porquê.
Eu não tinha feito reverência. Todos se moveram conforme ele
passou, menos eu. Simplesmente o encarei, estática.
Era tarde demais agora, então apenas sustentei seu olhar penetrante,
até que ele o desviasse.
Só percebi que estava segurando a minha própria respiração quando
alguém entrou na minha frente, impedindo-me de observá-lo se afastar.
Eu não sabia o porquê não havia feito a reverência. Talvez, fosse
pelo fato de que nem olhando para nós ele estava. Se ele mal nos
reconhecia, então qual era o sentido de reverenciá-lo?
Ou, talvez, pelo fato de estar concentrada demais.
Hipnotizada demais.
Porque, agora, depois de ter seus olhos diretamente nos meus, eu
tinha a mais plena certeza de que tudo o que haviam dito de ruim sobre ele
era a mais pura verdade.
Encarando o mal naqueles olhos
alguma parte silenciosa
porém
pulsante
da Usurpadora de Sangue
entendeu
que o Príncipe das Sombras
teria algo a ver com o seu fim

E ela estava certa


capítulo 2

Fui acordada por gritos.


Pisquei algumas vezes antes de me sentar na cama, confusa. Notei a
movimentação no corredor e as vozes dos criados ao acender as luzes.
Mais um grito agonizante soou antes que eu me levantasse e,
daquela vez, reconheci que os sons vinham da minha madrasta. Era quase
um uivo desesperado. Nunca ouvi algo parecido saindo dela; ou de
ninguém, na verdade.
Comecei a pensar que, talvez, alguém tivesse invadido a casa e
estivesse tentando matá-la, mas, então, finalmente me recordei. Ela já havia
passado dos nove meses de gestação. O momento havia chegado.
Deitei-me novamente, apenas por um minuto, e inspirei fundo
algumas vezes, perguntando-me o que deveria fazer. Como sabia que não
iria conseguir voltar a dormir com aquela comoção toda, levantei-me. A
noite estava gelada, então coloquei uma manta sobre meus ombros antes de
sair do quarto.
Os gritos continuaram, mas um pouco mais espaçados e com
gemidos acompanhando-os. Uma criada esbarrou em mim assim que fechei
a porta do meu quarto. A água do balde que ela carregava espirrou pelo
chão e molhou parte da minha camisola.
— Me desculpe, senhorita! — Allegra disse, ao mesmo tempo em
que continuava andando apressada.
Eu não cheguei a responder porque ela já estava virando no corredor
em direção ao quarto dos gritos horrendos.
Eu a segui até parar em frente à porta.
A cena era um tanto caótica. Exatamente o que se esperava de um
parto. Minha madrasta estava deitada, contorcendo-se no centro da cama,
enquanto duas criadas a cercavam. Seu cabelo loiro estava por todo lugar e
suas pernas, escancaradas. O rosto estava muito vermelho, como se todo o
sangue de seu corpo estivesse concentrado ali, e suas mãos agarravam os
lençóis.
Era fascinante vê-la daquele jeito; ela estava sempre tão contida e
rígida. Acho que imaginei que ela daria à luz em silêncio e em completa
compostura.
A criada particular dela estava ao seu lado, ajeitando os travesseiros
para melhorar a sua posição.
— Senhorita.
Olhei para o lado ao ouvir a voz de Mira, minha criada, parada junto
à porta. Depois de me cumprimentar, ela cravou os olhos na cena à nossa
frente, também impressionada.
— O especialista já foi chamado? — perguntei.
— Sim. — Ela assentiu, depois de piscar e desviar o olhar da minha
madrasta. — Seu pai acabou de mandar o criado buscá-lo.
— Onde está meu pai?
— No quarto dele.
Claro. Aillard Novak não perderia uma noite de sono para assistir à
esposa dando à luz. Ele não fizera aquilo com nenhum dos outros filhos.
Provavelmente, só sairia quando a criança estivesse nos braços da mãe. E,
claro, se fosse um menino.
A maioria dos homens esperava do lado de fora do quarto. Já ouvi
dizer até que alguns ficavam próximos à cama das esposas. Eu quase senti
pena de Nusa. Mas, então, me lembrei de que a odiava quase tanto quanto
odiava o meu pai.
Ela gritou mais uma vez um palavrão engasgado em choro. Ergui
sutilmente as sobrancelhas, recordando-me das vezes em que ela me
estapeara quando eu dizia uma palavra como aquela. Seus olhos se voltaram
para a porta, encontrando os meus instantaneamente. Seu rosto estava
selvagem. Havia suor por toda parte e seu olhar era feroz. E acreditava que,
quando ela olhou para mim, pôde ver o poder das lembranças que me
faziam ser indiferente à sua dor, até porque, não tentei esconder.
Ela engoliu em seco antes de cerrar os dentes e desviar o olhar.
Distanciei-me da porta e voltei ao meu quarto.
Senti os passos da minha criada me seguindo.
— Você precisa de alguma coisa, senhorita?
Neguei com a cabeça quando encostei na maçaneta.
— Não, vou voltar para a cama — respondi. — Você parece
cansada. Faça o mesmo, já tem gente o suficiente auxiliando-a.
Ela assentiu, com os olhos pesados.
Assim que estava sozinha em meu quarto, cruzei-o em direção ao
armário. Tirei o pijama e coloquei a roupa mais escura que tinha lá dentro.
Por cima, joguei uma capa preta que deixava escondida em um
compartimento abaixo da madeira.
Depois de prender os cabelos em uma trança única e comprida,
olhei-me no espelho, pensando na reação do meu pai, se me visse assim.
Roupas pretas costumavam ser vistas de forma negativa. Nunca se
via alguém da realeza ou da nobreza com aquela cor; e a maioria das
prostitutas usavam preto e cores mais escuras em geral.
Era com isso que eu estava contando: estar semelhante à uma
mulher que vendia o seu corpo. Não seria difícil, ainda mais naquela hora
da noite. E, além disso, aquela não era a primeira vez que fazia isso.
Escrevi uma mensagem para Rafe na pedra lisa e esperei pela
resposta assim que terminei de assinar com o brasão da família. Rezei para
que estivesse acordado, caso contrário, não veria a mensagem se acender
sobre sua própria pedra.
Cerca de quinze segundos depois, minhas preces foram atendidas. O
que escrevi desapareceu diante dos meus olhos e novas palavras acenderam
em pequenas chamas pela pedra.
Estarei lá.
Foi tudo o que surgiu. Satisfeita, passei a mão sobre a planície e a
resposta de Rafe se apagou tão rapidamente quanto surgiu.
Ele estava na esquina escura, próxima à minha casa. Estava de
costas, os braços cruzados enquanto me esperava. Provavelmente tenso, o
que não era incomum para ele.
Eu o vi primeiro, então aproveitei a oportunidade.
— Bu!
Ele pulou.
— Puta que pariu! — Rafe me encarou com os olhos arregalados e
colocou a mão sobre o peito. — Puta. Que. Pariu.
A risada escapou da minha garganta.
— Foi impossível resistir, sinto muito.
— Não sente. — Ele acusou, irritado.
Eu ainda sorria.
— É, não sinto — respondi, e começamos a caminhar noite adentro.
— Tá com medo ou algo assim? — provoquei, na tentativa de
esconder o meu próprio receio. Estava muito tarde e, naquela hora, só havia
pessoas com más intenções acordadas.
Com exceção de nós, claro.
— Não tô com medo, sua megera.
Ele ainda estava irritado por conta do susto, mas passaria dali alguns
minutos. Diferentemente de mim, Rafe nunca guardava qualquer tipo de
rancor.
— Talvez, esbarremos com um caído — sugeri, com sarcasmo.
— Espero que sim. Te jogaria na direção dele e ganharia tempo para
correr.
Os caídos eram seres que viveram entre nós centenas de anos atrás.
Tinham aparência similar à humana, mas com poderes divinos. Por isso
que, na época, muitos acreditavam que eles eram os escolhidos. Foram
superiores um dia. Eram reis e rainhas. O mais alto e prestigioso da
sociedade. Eles mantinham o poder na ponta dos dedos. Reinos como
Umbra acreditavam que os deuses os enviaram para fazer de sua força na
Terra. Mas a coisa saiu do controle. Alguns foram tiranos demais, e depois
de muitas mortes e caos causados pelos poderes grandiosos, viram que, na
verdade, eles eram um castigo. Foi entendido que eles, na realidade, caíram
do céu por serem pecadores. Os deuses não os queriam entre eles, então
caíram como punição. Os humanos se rebelaram e o jogo virou.
Houve uma guerra de muitos anos na Terra. Eles eram
extremamente poderosos, mas em menor número, se comparados a nós.
Eles foram caçados até sua completa extinção.
Pelo menos, foi o que me contaram. Tudo o que ouvimos sobre eles
eram histórias antigas. Algumas pessoas acreditavam, inclusive, que eles
eram apenas isso: histórias. Lendas que muitos contavam para assustar
crianças.
Assim que chegamos no bar, fui inundada pelo cheiro familiar de
lavena, a folha que tinha um odor cítrico e forte. Eram fumadas porque
tinham efeitos alucinógenos.
Eram proibidas em Umbra, claro.
Mas, em um lugar como aquele, as regras não eram seguidas. E era
por essa exata razão que era tão errado eu estar ali. A lavena, as apostas, a
promiscuidade... Eram todas proibidas por lei, algumas puníveis até por
prisão.
Rafe entrou primeiro, guiando-me em direção a uma das mesas e
tomando cuidado para escolher uma em que não houvesse nenhum
conhecido do meu pai. No entanto, mantive o capuz da minha capa sobre a
cabeça, só por precaução.
Sentamo-nos, e Rafe pediu para entrar na rodada, apesar de odiar
qualquer tipo de jogo. E ser terrível também. Mas aquilo era só uma
desculpa para me colocar na mesa como sua acompanhante.
Hekim era um jogo tanto de sorte quanto de estratégia. Recebíamos
cinco cartas no começo de cada jogada. No baralho, estavam estampados
todos os deuses nos quais acreditávamos. Cada um tinha certo valor,
baseado em quão poderoso o Deus era.
Podíamos analisar nossas opções, tentar a chance e trocar duas
cartas no baralho central.
O intuito era ter duplas, trios ou até mesmo quatro cartas com o
mesmo Deus.
Na terceira rodada, apenas observando, peguei as cartas que foram
colocadas na frente de Rafe.
— Você quer jogar, gracinha? — indagou um homem velho,
acompanhado do que, com certeza, era uma prostituta.
Seu decote transbordava, e ela acariciava o homem ao seu lado de
uma forma nada casta.
— Sim — respondi, tirando os olhos da carta apenas por um
segundo.
— Tem certeza? — Ele abriu um sorriso que me deu nojo. — Não é
um jogo fácil.
— Ela disse que quer tentar — reforçou Rafe ao meu lado.
Dois dos homens na mesa pareciam confusos, e o resto se mostrava
entretido.
Ah, deixe a garotinha boba tentar uma jogada.
— Tudo bem. — Ele colocou as mãos no alto e fez uma menção em
meu sentido. — Dê as fichas a ela.
O baralho total era dividido em dois, os Deuses da Escuridão e os
Deuses da Luz. E o ideal, além de fazer as combinações dos seres divinos,
era sempre ter uma mão com cinco cartas com o mesmo elemento.
Eu apostei errado nas duas primeiras jogadas. Tinha apenas duplas
fracas e coloquei dinheiro mesmo assim. Eles riram quando fiz caretas
confusas e decepcionadas. Levaram todas as minhas moedas.
— Não fique triste, é realmente complexo. Não é um jogo para
mulheres.
Na terceira, eu quase ganhei. Daquela vez, tinha duas duplas, mas de
elementos diferentes. Mas o velho na mesa tinha um trio forte.
— Ai, meus Deuses...!
Fingi estar impressionada e surpresa com a minha jogada de sorte.
Eles me aplaudiam, enquanto eu sorria com uma excitação ensaiada. Eles se
divertiam com a imagem de uma garota pensando que sabia jogar.
Começamos a quarta. Eu coloquei todas as minhas moedas, com um
sorriso infantil nos lábios. Para eles, estava bêbada com a adrenalina da
última quase vitória. Era imprudente. Estúpida.
Eles me encaravam em meio à diversão e, alguns, certa pena.
— Se eu fosse vo… — Um deles começou, o menos idiota, mas foi
interrompido pelo amigo, que bateu em seu braço.
Ele não queria que ninguém me aconselhasse. Era um dinheiro fácil
demais para simplesmente deixar a oportunidade passar, e ele perdera
muitas moedas nas últimas rodadas. Era um terrível jogador, talvez até pior
do que Rafe.
Quando ele murmurou alguma coisa no ouvido do outro — com um
sorriso nos lábios —, ao passo que me lançava um olhar, o amigo se calou.
A excitação na mesa era grande. Não porque achavam que eu tinha
alguma chance de ganhar, mas porque estavam curiosos em saber quem
levaria o dinheiro todo da garota ignorante.
O moreno, que tentou me impedir de apostar toda a mão, foi o
primeiro a sair, frustrado. O imbecil ao seu lado entrou. Com um sorriso
satisfeito, colocou duas duplas na mesa, uma da Deusa da Água e outra do
Deus da Luxúria.
Bom, mas longe de ser impressionante.
O velho foi o seguinte. Estava confiante; eu podia ver pela forma
com que seus olhos brilhavam sobre as próprias cartas. Certo de que não
tinha como perder de mim, também colocou todo o seu dinheiro na mesa.
Ele olhou diretamente em meus olhos.
— Eis o seu primeiro erro como jogadora — ele começou a expor as
suas cartas na mesa, uma por uma, fazendo grande espetáculo —, um erro
que todos aqui já cometemos. O vício da primeira vitória.
Por fim, deixou exposto um trio de luz, da Deusa da Natureza, e
uma dupla de escuridão, do Deus da Gula. Um gritinho de comemoração
deixou os lábios da sua acompanhante.
A mão dele era muito boa. Ele tinha certeza de que estava prestes a
ganhar.
Dei um gole na taça de vinho antes de colocar as cartas na mesa.
Não fiz tanto suspense quanto ele, mas não tive pressa ao colocar a minha
jogada na superfície de madeira.
Eu tinha 5 cartas, todas de escuridão. Uma dupla da Deusa da
Cobiça e um trio de cartas do maior ser divino da escuridão, o Deus da
Morte e da Dor.
Por um segundo — um breve, mas precioso segundo —, todos
ficaram em silêncio.
E era por aquele exato — e precioso — segundo que eu fazia aquilo.
Eu gostava do dinheiro fácil, claro. Também gostava do jogo em si.
Mas amava ver os rostos deles ao perderem para uma garota.
Eu me deliciava em ferir, nem que fosse apenas um pouquinho, seus
egos.
— Um rank dark. Ela tem um… — um deles levantou o rosto para,
finalmente, me encarar — rank dark.
O moreno imbecil socou a mesa, fazendo as fichas balançarem.
— Ela só pode ter roubado!
O velho continuava em silêncio, encarando minhas cartas como se
tentasse entender.
— Não, não. Estávamos todos aqui, vendo, e ela venceu de forma
limpa. — Rafe se pronunciou, fazendo seu papel na batalha idiota de
testosterona.
— É. — O velho finalmente falou, saindo do transe. Todos olhamos
para ele, e ele olhou para mim. — Ela venceu.
Havia desgosto em sua voz, mas aceitação.
A derrota não lhe caía bem; toda a luz deixou seu corpo.
Claramente, não estava acostumado com a sensação. E eu estava feliz em
poder lhe proporcionar aquilo.
Eu me inclinei para recolher as moedas da mesa, basicamente
limpando a superfície. Quando tive todas em mãos, sorri para meus
parceiros de jogo, que me observavam com feições impagáveis. Aquilo
valia mais do que qualquer quantidade de moedas.
— Sorte de principiante.
Com isso, Rafe e eu deixamos a mesa. Uma boa jogadora precisava
saber a hora de parar. E com aquela última jogada, eu havia feito mais do
que a maioria dos bons jogadores faria a semana toda.
Às vezes, ser subestimada podia ser extremamente lucrativo.
— Deuses, você não se cansa disso, não é? — Ele murmurou para
mim, conforme seguíamos para a saída.
Rafe não se divertia tanto quanto eu nessas saídas. Mas isso se dava
pelo fato dele ter muito mais liberdade para fazer aquele tipo de coisa. Por
mais que fosse proibido, os jogos eram bem comuns entre os homens. Mas
para mim, aquele era meu único momento de rebeldia e liberdade genuína.
Eu fazia tudo o que me era ordenado. Eu seguia as regras. Desde pequena
eu seguia muito bem o papel que me era imposto como uma garota nascida
em Umbra e de uma família prospera como a Novak. Se eu não saísse para
viver naquelas raras noites, eu enlouqueceria.
Eu sorri.
— Claro que não. Você viu a cara deles?
Rafe abriu o mesmo sorriso conspiratório ao admitir:
— Foi realmente uma visão e tanto. Mas, o que você vai fazer com
isso? — Ele perguntou, como em todas as outras noites.
E eu também respondi como em todas as outras noites:
— Não sei ainda.
A verdade era que eu não precisava daquele dinheiro. Pelo menos,
não agora. Não precisava pagar pela minha comida, moradia e nem os
vestidos caros que enchiam meu armário. Tudo era provido pelo meu pai,
mas eu não tinha nenhum controle sobre ele. Minha madrasta precisava
aprovar todos os vestidos que comprava e, basicamente, todo o resto. E
sabia que, no fundo, ela amava aquilo.
Aquela dependência me corroía aos poucos.
Olhei para as moedas em minhas mãos. Mesmo que fossem
insignificantes perto da riqueza da minha família, elas queriam dizer
liberdade, mesmo que fosse uma centelha dela. O meu mundo parecia
apertar em volta de mim, e eu não tinha saída, porque tudo se resumia a
dinheiro. Porque dinheiro era poder. E, por mais que fosse pouco, ainda
significava um pedacinho de independência.
Dentro de mim, por alguma razão, eu sabia que um dia precisaria
daquele dinheiro. De um plano b. De uma saída. Ainda não sabia o porquê
ou quando, mas sentia dentro do meu peito. Era uma sensação estanha e
inquietante.
Coloquei as moedas no bolso. Eu as juntaria com o resto no pequeno
compartimento secreto do meu porta joias assim que chegasse em casa.
— Você está cego?! — Ouvi alguém reclamar em um tom hostil,
tirando-me a atenção das moedas.
Quando olhei para o lado, Rafe estava diante de um homem com um
rosto conhecido e abominável.
Não que o rosto de Vesper Fairley fosse abominável, muito pelo
contrário, mas sua personalidade era asquerosa.
Era o único filho de um barão. Rico e mimado. Gostava de beber e
jogar, e era por isso que frequentemente o víamos em noites como aquela.
— Não o vi aí. — Rafe respondeu em tom baixo, porém firme.
Fiquei orgulhosa por ele, pelo menos, não ter se desculpado.
Mas não foi o suficiente para o idiota arrogante. Vesper olhou para a
bebida em sua mão e indicou para o chão com um movimento um tanto
dramático.
— E olha a bagunça que você fez!
— Foram apenas algumas gotas, Vesper. Não vai morrer por causa
disso. Aqui — abri a minha bolsinha e coloquei uma moeda no bolso de sua
capa —, resolvido.
Sorri de forma debochada. Ele me encarou. A expressão em seu
rosto mostrava que o sentimento que eu supria em relação a ele era mútuo.
Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, peguei a mão de Rafe e
comecei a arrastá-lo para longe dali. Mas, como Vesper adorava fazer das
nossas vidas um inferno, não permitiu que fôssemos de forma tão simples
assim.
Rafe estava do meu lado e, então, em questão de milésimos de
segundos, estava no chão.
Parei abruptamente ao ver meu amigo cair. E, ao olhar para Vesper e
sua expressão satisfeita, não precisava de muito para chegar à conclusão de
que ele havia colocado o pé no caminho para que Rafe tropeçasse.
As pessoas olhavam a partir daquele momento.
Eu queria quebrar todos os dentes da boca de Vesper.
Rafe se levantou, estava vermelho de raiva e vergonha. Eles se
encararam por um momento. Rafe avançou um passo, suas mãos fechadas
em punhos. Já o tinha visto daquele jeito, talvez duas vezes em toda a
minha vida.
— O que vai fazer? — Vesper provocou. — Qual é? Todos aqui
sabemos que você não tem culhão.
Um longo segundo passou, e segurei em seu pulso, por mais que
soubesse que Rafe não avançaria.
Rafe não era um lutador. Nunca fora. Ele era gentil, calmo e tímido.
Vesper acabaria com ele, caso chegasse a tanto.
Felizmente, meu amigo se virou e eu o puxei para fora dali. Tomei
cuidado para não deixar o meu capuz cair diante de tantos olhares. Tinha
medo de que alguém pudesse me reconhecer naquele lugar. Fazer uma cena
ali, definitivamente, era a última coisa que eu desejava. Maldito Vesper.
— Deuses, ele é um idiota. — Eu murmurei, quando, por fim,
saímos de lá.
Rafe não respondeu. Observei seu rosto fechado e entendi que não
queria conversar.
Eu odiava homens como Vesper, que achavam que podiam pisar em
quem bem entendessem. E eles escolhiam justamente pessoas dóceis e boas
demais, como Rafe, porque sabiam que sairiam triunfantes de alguma
forma.
A casa estava silenciosa na chegada. Tomei cuidado para não fazer
barulho. Não que eu achasse que alguém notaria qualquer coisa sobre mim
naquela noite, mas, ainda assim, já havia se passado muito tempo do meu
toque de recolher. Entrei pela porta de evacuação de emergência e subi as
escadas até o meu quarto. Estava prestes a entrar quando vi a sutil luz no
meio da escuridão.
Minha criada estava me observando do final do corredor. Ela não
fez nenhum comentário sobre a minha escapada, nem mesmo seu rosto
demonstrou surpresa. Fiquei aliviada por ser ela; dificilmente iria se dirigir
ao meu pai para me dedurar.
— O que é? — Eu indaguei. Ela hesitou, e fiz menção na direção do
quarto da minha madrasta. — A criança.
Ela trocou a vela de mãos.
— Um menino.
Eu desviei meu olhar do dela e balancei a cabeça antes de entrar no
meu quarto.
— É claro.
Ela só o pegou no colo 22 dias depois de seu nascimento
Ele já tinha aberto os olhos por completo
e a encarava fixamente enquanto ela o balançava com suavidade
pela sala
Ela gostou do peso em seus braços
e do cheiro do perfume infantil
mas nada além disso sentiu
A usurpadora aproximou o rosto do dele
e sussurrou
você ainda não sabe da sorte que tem
por ter nascido com o que tem entre as pernas
Vai ter o pai que nunca tive
e oportunidades que jamais terei
porque eles podem não te amar
mas vão te valorizar
capítulo 3

Meu vestido prateado era tão ridiculamente brilhante que eu estava


começando a ficar preocupada com a possibilidade de cegar alguém. Eu o
odiei no minuto em que o coloquei. Parecia um lustre, iluminando qualquer
cômodo por onde eu atravessava. Sem contar que era completamente
desconfortável; as pedras de cristal que adornavam o decote pareciam
perfurar a minha pele. Não dava para dizer que era um vestido feio, mas ele,
definitivamente, chamava atenção demais. E eu não me sentia bonita nele.
O material não cobria nada do meu colo, que era uma parte do meu corpo
que me incomodava consideravelmente.
Minha madrasta me fez vesti-lo de propósito. Ela queria que eu
chamasse atenção. Fiz 18 anos no mês passado, o que queria dizer que
estava na idade ideal para me casar. Sabia que ela estava louca para que eu
me tornasse o problema de outra pessoa. Antigamente, ela gostava de ter
alguém que pudesse controlar, mas, depois que o bebê nascera, parecia
satisfeita em tê-lo como único foco para passar o tempo.
— Você está enorme nesse vestido. — Foi a primeira e única coisa
que ela me disse quando entrou no quarto. — Precisa mudar.
Eu estava usando um vestido de mangas longas num tom de um azul
um pouco mais fechado, quase marinho. Eu gostava de como aquela cor
ficava em contraste com o meu tom de pele.
— Obrigada — murmurei, com sarcasmo. Fui pega de surpresa
tanto por sua presença quanto por sua declaração e foi o máximo que
consegui fazer.
Eu não costumava discutir com ela, e sim ignorá-la. Com o meu pai
era outra história, já que, por sua vez, eu era a ignorada.
E então, lá estava eu entrando no salão com o vestido que não havia
escolhido. Meu pai andava na frente e nós o seguíamos. Ficamos diante da
Família Real e fizemos a reverência, assim como todos os convidados que
chegavam. O rei só devolveu o olhar ao meu pai.
— A festa está esplêndida, Majestade. — Meu pai comentou,
olhando para a rainha.
Ela ficou visivelmente lisonjeada e sorriu. Ao abrir a boca para
responder, o bebê — que estava no colo da minha madrasta — soltou um
gemido agudo. Sabendo que aquela era a promessa de um choro, minha
madrasta pediu licença e se retirou. Aproveitei a deixa e fiz o mesmo. Eu
odiava me dirigir à Família Real. Sentia-me tão pequena e insignificante.
Sentia medo de dizer algo que meu pai considerasse estúpido e aquilo
piorasse ainda mais a imagem que tinha de mim. Por mais que desgostasse
do meu pai e o ressentisse, havia uma parte minha, extremamente
inconveniente e incomoda que desejava o orgulhar.
Era devido àquela ansiedade que nunca havia dito mais de duas
palavras para o rei, apesar de estar em certo convívio com ele desde bebê.
Quando eu era pequena, eu e a princesa éramos amigas, se era que se podia
usar a palavra quando se referia a uma relação entre duas crianças de cinco
anos.
Nós tínhamos a mesma idade e, com algumas crianças privilegiadas,
tínhamos aquele tipo de interação social durante as festas. Eu não lembrava
daquilo, apenas me fora contado.
O tempo passara e a princesa crescera. Por fim, ela não tinha mais
alianças com qualquer garota, nem mesmo uma rica. A princesa era da
realeza, então ela só se misturava com a nobreza.
Meu pai e meu irmão ficaram lá, conversando com a Família Real e
tentando sugar qualquer pequena e insignificante atenção.
Eu deixei o enorme e barulhento salão principal para ir até o
banheiro. Eram vários e localizados em diversas alas do palácio. Sabia
daquilo porque já fui em festas reais o suficiente para conhecer cada um
deles. Escolhi ir ao mais distante para poder ter mais tempo sozinha, longe
da festa.
No fim de um dos corredores mais escuros e abandonados, vi duas
pessoas. Avancei mais um pouco até notar que estavam muito próximas.
Estranhamente próximas.
Continuei andando para chegar até o banheiro no final do corredor,
apesar de estar um pouco desconfortável em me intrometer na intimidade
do casal.
Eles não notaram a minha presença; tinham os olhos um no outro.
E foi quando estava a cerca de dez passos deles que, finalmente,
consegui ver com mais clareza.
Eram dois homens.
Desacelerei o passo, pega em um misto de surpresa e tensão.
Talvez, eles só estivessem conversando. Talvez, fossem apenas
amigos.
Mas, então, um dos homens ergueu a mão e a colocou no rosto do
outro. Era tão suave. Era tão íntimo. Dolorosamente belo.
Aqueles homens, definitivamente, não eram apenas amigos.
Quando dei mais um passo, desesperada para passar por eles e entrar
logo no banheiro, finalmente reconheci os rostos. Na minha frente, estava
Rafe e, ao seu lado, ninguém mais e ninguém menos do que Vesper.
— Rafe. — Minha voz saiu em um tom estranho de surpresa e
repreensão.
A mão de Rafe deixou o rosto de Vesper como se sua pele tivesse
sido queimada, e os dois se afastaram abruptamente. Vi o pânico em seus
olhares até notarem que era eu.
— Graças aos Deuses, é você. — Meu amigo deixou escapar com
um longo suspiro.
Eu olhei para os dois lados do corredor escuro.
Mas, se não fosse…
— Olá, Cera. — Vesper sorriu de uma forma nada convincente. — É
um prazer vê-la.
— Vesper. — Reconheci com certa irritação ao me aproximar. — O
que vocês estavam fazendo?
— O que acha? — O idiota abriu um sorriso sugestivo.
— Ei. — Meu amigo interveio, tentando amenizar. Ainda parecia
nervoso com a sensação de quase ter sido pego. Aquilo poderia ser
desastroso. Poderia ser fatal. E ele sabia. — A gente não estava fazendo
nada demais.
— Ah, não? — indaguei, erguendo as sobrancelhas. — Porque,
definitivamente, não pareciam estar discutindo sobre política ou o clima.
O sorriso de Vesper ficou maior.
— Definitivamente, não.
— Ei. — Rafe repetiu, daquela vez mais alto.
Desviei o olhar do imbecil para encarar meu amigo.
Eu passei por eles e, quando saí do banheiro, Rafe estava me
esperando do lado de fora, sozinho. Ele tinha os braços cruzados e um olhar
distante.
— Você precisa ter mais cuidado — comentei, assim que
começamos a andar de volta para o salão.
— E você precisa relaxar.
— Desde quando você me diz para relaxar?
— A gente não estava fazendo nada demais. — Ele repetiu, como se
aquela tentativa fosse me convencer.
— Aquilo é o suficiente e você sabe disso.
Rafe jogou a cabeça para trás e suspirou. Quando voltou a olhar para
mim, sorriu de um jeito cansado e… realizado.
— Eu tô feliz, ok? Você não pode ficar contente por isso?
Claro que eu queria a felicidade dele. Era a única pessoa com quem
eu realmente me importava. Eu queria que ele tivesse tudo o que quisesse.
Sempre.
Mas não era assim que as coisas funcionavam por ali. Relações
entre pessoas do mesmo sexo eram proibidas no nosso reino. Segundo o rei,
era pecado e, por isso, punível.
— Eu só não quero que você esqueça do que aconteceu com Elvi.
Elvi era um garoto que havia estudado com Rafe. Nós mal o
conhecíamos, mas havíamos trocado algumas palavras em eventos ao longo
dos anos. Era inteligente e gentil.
E, na semana passada, o vimos ser decapitado no palco de Adalo por
ter sido pego com outro garoto.
Meu amigo me encarou por um instante e, então, desviou o olhar.
Qualquer brilho que havia em seu rosto foi apagado pelo peso das
lembranças. A cena fora horrível para mim, mas eu não podia imaginar
como devia ter sido para ele. Lembrava de segurar a sua mão, enquanto Elvi
gritava por misericórdia, e de como ela tremia violentamente.
— Acredite em mim, eu não esqueci, Cera.
Eu me senti uma sem coração por trazer aquilo à tona. Óbvio que
ele se lembrava. Era algo que ficaria em nossas mentes para o resto da vida.
Mudei de assunto.
— Tinha que ser ele? — Fiz o comentário descontraído e
provocante. — Você lembra de como ele era um imbecil com você? Ou a
paixão te causou perda de memória?
Seus ombros relaxam um pouco.
— Pessoas mudam.
— Raramente. E não tão rápido.
— Mas você precisa admitir, ele é lindo.
Ele, de fato, era. Lábios cheios em um rosto anguloso. Pele negra e
impecável, como se ele se banhasse em sangue de bebês todas as manhãs
para evitar qualquer mancha e imperfeição.
Eu não queria dar aquela satisfação ao Rafe, jamais reconheceria a
beleza de Vesper em voz alta. E não tinha tanta facilidade em esquecer — e
perdoar — como meu amigo.
— Eu realmente acredito que beleza não compensa caráter. — Eu
disse. — Mas, aparentemente, você não pensa o mesmo.
Ele deu um gole no vinho e ficou um momento em silêncio.
— Aquele... — ele apontou para o murmurinho de pessoas no centro
do salão — é um ótimo exemplo de que beleza que não compensa caráter.
— Quem?
— O cruel. — Ele olhou para mim. — Ele está aqui. Não sabia?
— Não. Acabei de chegar — respondi, confusa.
— Bem ali. — Ele apontou novamente e, daquela vez, eu o vi.
Sarkian Varant estava no centro do salão, cercado por alguns nobres
e, um pouco mais afastados, vários guardas com os trajes típicos dos selke.
Basicamente, toda a atenção da festa estava nele. As outras pessoas comiam
e conversavam entre si, mas os olhares constantemente vagavam até o
príncipe vestido de preto da cabeça aos pés.
Nos últimos dois anos, desde o contrato de paz, seu pai, sua mãe e
seu irmão mais velho vieram algumas vezes até o reino. Uma das ocasiões
fora no aniversário de 40 anos da rainha, no qual eu estava.
Nosso rei também fizera viagens até Khrovil em alguns momentos.
Aquele tipo de presença era necessário para mostrar para o povo a união
entre os reinos.
Mas o curioso era que Sarkian nunca os acompanhava. Ele só viera
até Umbra no dia do tratado e depois, nunca mais ninguém do Reino o vira.
As pessoas notaram aquilo. E falaram sobre aquilo.
Estava começando a parecer que as pessoas amavam falar sobre ele
e aquele era só mais um motivo. Os rumores sobre a sua reputação
pareciam aumentar. Já era de conhecimento público que Sarkian era letal
com uma espada. Também era muito comentado o fato de ele ser o
encarregado de torturar pessoalmente os inimigos do rei. Seus apelidos
aumentaram ao longo dos últimos anos: Príncipe das Trevas, ceifador cruel,
filho das sombras...
Mas o mais impressionante de tudo era o fato de que sua aparência
era muito discutida pelo sexo feminino. Mesmo com tudo o que diziam
sobre ele, algumas mulheres pareciam não se importar. Achavam-no
deslumbrante. Outros diziam que era um monstro. Eu não saberia dizer,
claro. Nunca o tinha visto sem a máscara.
— Eu sei. Mas, para algumas, parece que a beleza compensa. — Eu
indiquei um grupo de garotas muito bem-vestidas, que o encaravam
fixamente.
Provavelmente, só estavam curiosas. Eu mesma estava, então não as
culpava.
Havia um mistério, algo que puxava nossos olhares na direção dele.
Talvez, fosse toda a maldade que nos intrigava.
— Tipo, o cara é claramente um sádico. — Ele franziu o cenho. —
Não é meio brochante, não?
Aquela era a segunda vez que via o príncipe, mas fui tão arrebatada
pela crueldade que encontrei em seus olhos na primeira ocasião que ignorei
todo o resto. Porém, agora, encarando-o do lado oposto do salão, era
inevitável não notar como ele havia ficado ainda mais impressionante. Seus
ombros se alargaram ainda mais e ele cresceu alguns centímetros.
— Eu ouvi dizer que ele mata as mulheres depois que dorme com
elas.
Encarei meu amigo com choque misturado ao ceticismo.
— Isso é rumor. Não é possível.
— Sério, eu não duvido. Falam que ele anda coberto assim para não
expor as tatuagens que cobrem o corpo inteiro.
As tatuagens eram marcas das vidas que havia tirado. Em Khrovil, a
tradição era a realeza se marcar depois de derramar sangue inimigo em
batalha. Quanto mais marcado, mais fatal era.
Nossa conversa foi interrompida quando minha madrasta me
chamou. Ela me apresentou a um casal mais velho com dois filhos, um
deles já com a idade para casar-se. O mais novo parecia extremamente
entediado com a conversa e o mais velho me encarava da cabeça aos pés,
como se estivesse avaliando um cavalo de corrida. Ele não pareceu muito
impressionado, mas se demorou alguns segundos a mais — do que o que
seria cordial — no meu decote. Ele tinha espinhas no rosto e um corte de
cabelo deplorável, sem contar que não devia ser nem cinco centímetros
mais alto do que eu. Estava quase ofendida por minha madrasta considerá-
lo bom o bastante para mim. Mas seu pai era um visconde, então fazia
sentido, pelo menos na cabeça dela.
A noite continuou assim. Ela me apresentou para, pelo menos,
outras três famílias diferentes.
Eu sorri sem achar graça, fiz perguntas das quais não me importava
com as respostas e participei de conversas com as quais não tinha o menor
interesse. Fiz tudo aquilo enquanto tentava ignorar a presença do Príncipe
das Sombras do outro lado do salão. Observei-o por alguns instantes
brevemente ao passo que me perguntava o motivo de ele estar ali.
Por que aparecer do nada dois anos depois do tratado?
Ele, definitivamente, era uma figura enigmática. Não ajudava o fato
da maioria das pessoas ter a mesma curiosidade. Inclusive, em algum
momento da conversa, a mãe de algum dos meus possíveis pretendentes fez
um comentário sobre ele, e eu pude virar a minha cabeça e observá-lo um
pouco mais longamente sem ser inapropriado.
Talvez, eu estivesse esperando o momento em que conseguiria,
finalmente, ver seus olhos prata outra vez.
Ou, talvez, eu estivesse simplesmente muito entediada.
Eu odiava aquelas conversas, odiava aquelas pessoas que minha
madrasta estava me apresentando e, acima de tudo, odiava a promessa de
um futuro meu escolhido por outra pessoa.
Mas, quando Amory Lanch, uma garota da minha idade que conheci
na escola, passou ao nosso lado de mãos dadas com o Conde de Bashirt, eu
coloquei um sorriso maior no rosto ao encarar um dos pretendentes.
O Conde de Bashirt tinha quase 60 anos, uma barriga considerável e
o início de uma calvície. E, ainda assim, os pais de Amory acharam que ele
era bom o bastante para ela. Simplesmente porque ele tinha dinheiro e um
título.
Lembrei-me de uma conversa que tive com ele quando era mais
nova e fomos apresentados. E, especialmente, me lembrava de seu hálito.
Ele era conhecido pela necessidade das pessoas de se manterem um pouco
distantes dele durante uma conversa.
Olhei bem nos olhos da pobre Amory no instante em que ela passou;
uma jovem ruiva, pequena e delicada. Era de cortar o coração. Ela estava
miserável, dava para ver claramente pela sua expressão vazia e o corpo
curvado em derrota. Tinha a memória dela sorrindo timidamente depois que
agradeci por me ajudar a terminar uma tarefa na escola. Éramos apenas
meninas na época, mas não fazia tanto tempo assim.
Meu estômago embrulhou e, de repente, senti o salão gigante ficar
apertado.
— Me deem licença. — Saí o mais rápido que pude.
Atravessei o salão e me distanciei do barulho de conversas, música e
taças batendo. Só parei quando cheguei até a enorme sacada que dava para
o jardim dos fundos do palácio. Estava escura e vazia. Dali, eu só escutava
o som abafado e distante da música e das vozes. Inspirei a noite agradável e
cruzei a sacada até ter as mãos no parapeito de mármore. Senti uma brisa
gelada em meus braços expostos, mas percebi que, finalmente, poderia
relaxar.
Em um mundo perfeito, garotas como Amory poderiam escolher seu
destino. Não dependeriam de uma figura masculina para sobreviver. Eu
queria, naquele momento, mais do que qualquer coisa, pegar a mão de
Amory e sair correndo daquele salão. Daquela cidade. Daquele reino
inteiro. Mas para onde iríamos? Não se corria do próprio destino.
Eu sabia que, um dia, poderia ser eu no lugar de Amory. Meu futuro
dependia unicamente do meu pai e ele nunca me amara para desejar que eu
fosse remotamente feliz.
A grande ironia era que eu poderia acabar sendo uma daquelas
garotas que eu desejava salvar.
Se eu tivesse muita sorte, me casaria com alguém mais ou menos da
minha idade e ligeiramente decente, que não controlasse cada aspecto da
minha vida e me deixasse escolher o que vestiria e o que comeria. Que não
fosse agressivo e que não usasse seu poder contra mim sempre que eu
elevasse um pouco a voz.
Aquela era a melhor das hipóteses.
Sabia que feliz eu jamais seria. Entendi aquilo assim que
compreendi como a nossa sociedade desprezava as mulheres. Entendi assim
que a noção do casamento me fora explicada.
Torcia apenas para que eu não fosse miserável. Imagens de como a
vida de Amory com o Conde de Bashirt provavelmente era atravessaram a
minha cabeça e eu precisei fechar os olhos com força para afastar aquilo da
mente.
Eu queria ir embora, mas não havia para onde ir. Tudo parecia uma
gaiola. Então, em vez daquilo, fiquei no parapeito, olhando para as estrelas
e respirando fundo.
A música derramou pela minha mente como um banho morno.
Minha mãe costumava cantar para mim antes de dormir e, no momento, era
uma das poucas coisas das quais me recordava com clareza sobre ela, além
dos grandes olhos verdes e o cheiro de lavanda. Lembrava de sua voz rouca
cantando baixinho em meu ouvido, enquanto eu pegava lentamente em um
sono seguro e pesado. Não era a única que ela cantava, mas era a que eu
mais gostava. Era sobre um caçador, que no final da grande guerra, havia se
apaixonado perdidamente por uma caída, a qual ele fora ordenado a matar.
Depois que a doença a levou, eu cantava para mim mesma antes de
adormecer.

Havia um caçador de magia,


força bruta nos braços
e calos nas mãos.
O peso de dezenas de vidas em suas costas.
Obedecia cegamente às ordens de um rei tirano.

Havia uma garota


com cabelos brancos
e magia nas pontas dos dedos.
Seus destinos se cruzaram
quando o rei tirano ordenou que ele lhe arrancasse o coração.

Havia um amor proibido


repleto de angústia e dor.
Suas almas estavam entrelaçadas
em um combate de certo e errado.

Havia uma decisão a ser tomada,


o dever chamava.
Eram amantes fadados à ruína.

Havia um caçador quebrado,


segurando o coração ensanguentado
da sua garota mágica.

Sempre me perguntei por que era a sua favorita. Talvez porque fosse
tão triste. Minha mãe adorava histórias trágicas. Ou talvez isso fosse apenas
o reflexo de como eu a enxergava. Quando eu pensava nela, uma das
palavras que me vinha em mente era tragédia. Porque por trás do seu
sorriso, ela sempre me pareceu tão... triste. Eu era muito nova para
entender, mas hoje me pergunto se algum dia ela realmente nutriu algum
afeto pelo meu pai. Ou se seus pais a obrigaram como os pais de Amory.
Porque, no final das contas, o dever vencia o amor. O caçador
arrancava o coração da amada.
Não a cantei, apenas murmurei a sua melodia familiar e calmante.
Assim que terminei, decidi que era hora de voltar. Se eu sumisse por muito
tempo, minha madrasta com certeza notaria.
Virei-me, e um grito por pouco não escapou da minha garganta ao
me deparar com algo nas sombras.
A primeira coisa que vi foi a pequena chama alaranjada do cigarro.
E, em seguida, os seus olhos. Além da chama, eles eram a única coisa que
brilhava, fazendo contraste com a escuridão.
Prendi a respiração e pisquei. E, depois do que pareceu uma década,
ele, enfim, se moveu.
Sarkian Varant, o temido Príncipe de Khrovil, deu um passo lento à
frente, deixando as sombras das folhas que cercavam a extensa sacada.
A fumaça o acompanhou ao soprar na noite estrelada.
Ele não usava máscara — ela pendia em sua mão esquerda — e seu
rosto estava completamente exposto.
E assim que a luz finalmente bateu em seu rosto, fiquei
completamente aturdida.
Seus olhos foram a primeira coisa que processei, inevitavelmente. O
prata brilhava mais do que a lua. E, sobre eles, os cílios mais escuros que já
vi em toda minha vida faziam sombra na pele abaixo dos olhos devido ao
comprimento inacreditavelmente longo. Eram tão volumosos e escuros que
ele parecia usar um delineado de maquiagem negra sobre as pálpebras. Suas
feições eram perfeitamente esculpidas, com as maçãs do rosto altas e as
bochechas profundas. Os cabelos negros, beirando a azulados, caíam em
mechas preguiçosas na sua testa.
Foi quando entendi: se havia uma única verdade sobre Sarkian
Varant, era que ele era belo. Cruelmente belo. De uma forma quase
obscena.
Eu fiz uma reverência assim que me recompus.
— Eu… Você me assustou, Alteza.
Há quanto tempo ele estava ali?
Ele estava me observando aquele tempo todo?
O príncipe tirou o cigarro de lavena dos lábios com a mão esquerda
— que estava coberta pela luva de couro — e torceu sutilmente a cabeça.
Ele demorou alguns segundos até dizer:
— Então, você sabe como se faz.
Eu pisquei. Ainda estava tentando processar a sua aparência. Não
apenas porque ele era tão belo, mas porque ele era… singular. Tinha uma
aparência extravagante, quase vulgar, como se ele fosse o produto de uma
pintura a óleo. Por um instante, eu tive que conter a vontade de tocar a sua
pele para ver se era mesmo real.
— Como?
— Você sabe como fazer uma reverência. — Sua voz era grave e
rouca, com um sutil, mas perceptivo sotaque.
Franzi o cenho.
— Sim, claro.
— Então, no dia do tratado, você simplesmente escolheu não fazer?
Eu abri a boca, mas, então, a fechei.
Do que ele estava falando?
— No dia do tratado? — Finalmente indaguei.
— Sim. — Ele deu mais um passo à frente. — Você se lembra. Eu
passei por você e você não se curvou. Fiquei me perguntando que tipo de
garota você era... — ele fez uma pausa — incrivelmente insolente ou
incrivelmente burra.
Por um momento, quando tudo se fechou e o entendimento bateu
contra mim, fiquei sem palavras.
Ele estava se referindo àquele dia, dois anos atrás, em que eu não
me curvei perante sua presença.
O príncipe se lembrava.
No primeiro instante, fiquei surpresa. Então, impressionada por ele
se lembrar de algo tão banal. E, por fim, extremamente ofendida com as
suas palavras. Olhei fixamente para aqueles olhos prateados, que esperavam
por uma resposta.
Ele queria que eu me desculpasse?
Mordi o interior da boca com força antes de finalmente indagar:
— E em qual conclusão chegou, Vossa Alteza?
Não sabia se minha pergunta o havia surpreendido, já que sua
expressão não sofreu mudança alguma. Notei apenas o brilho em seus olhos
ao piscar. Mas, por alguma razão, lá no fundo, entendi que aquele não era o
tipo de brilho que eu gostaria de estar diante.
Sarkian deu mais um passo lento à frente e levou o cigarro de volta
aos lábios ao me observar.
Eu resisti à vontade de me afastar.
Ele inspirou sem pressa antes de me responder:
— Ainda estou tentando me decidir. — Ele soprou e eu senti o
cheiro inebriante de lavena. — Seja o que for, na próxima vez que me ver,
quero seus joelhos prestes a tocar o chão. Caso contrário não os terá mais,
farren.
A última palavra foi dita no seu dialeto, o qual não
compartilhávamos. Mas era um insulto, não precisava ser um gênio para
saber disso.
Ele professara a ameaça de forma quase doce. Calmo e comedido,
como se estivesse comentando sobre o clima. A ameaça junto à sua
presença me abalou, mas não me deixei recuar.
Não sei o que deu em mim. Não sei o que me faz abrir a boca
quando eu, claramente, deveria deixá-la fechada, mas foi mais forte do que
eu. As palavras deslizaram com uma facilidade assustadora. Talvez, eu
estivesse hipnotizada pelo cheiro da lavena ou pelos seus olhos.
Eu me sentia quase tonta, e era uma mistura estranha de medo,
adrenalina e deslumbre.
— Se não sou nada, por que importa tanto para você que eu faça a
reverência ou não?
E, naquele momento, eu presenciei, talvez, a coisa mais assustadora
da minha vida.
O Príncipe das Trevas sorriu.
Ou algo como aquilo. O lado direito de seus lábios puxou
lentamente para cima.
Eu me perguntei o porquê daquele gesto me fazer ficar tão
aterrorizada, apesar de todo o rosto dele ser tão dolorosamente belo. E a
resposta não demorou para chegar. Sorrisos deveriam significar felicidade,
mas nada naquele homem fazia sentido com a palavra feliz.
Ele se aproximou um pouco mais, com a lentidão e a precisão de um
felino, até que ficou pairando bem diante de mim.
Eu engoli em seco e desviei o olhar, me arrependendo de todas as
minhas palavras. Até me arrependendo do dia, há dois anos, em que não fiz
uma maldita reverência diante dele.
Meu coração batia tão forte a ponto de eu conseguir ouvi-lo.
Perguntei-me se ele era capaz de escutar também.
O príncipe poderia me matar. Ele sabia disso. Eu sabia disso. E o
mais importante: ele sabia do quão ciente desse fato eu estava.
Quando ele abriu a boca novamente, foi bem perto do meu ouvido.
Insuportavelmente perto.
— Porque, se fosse por mim, uma plebeia de Umbra como você
nem estaria andando. — Ele soprou, a voz profunda e baixa. — Animais
deveriam rastejar.
A última frase foi pronunciada com nojo e “rastejar” dito com uma
ênfase violenta.
Eu senti o seu ódio por mim na espinha. Ele desceu por meio de
suas palavras e cruzou todo o meu corpo até chegar na ponta dos meus pés.
E foi instantâneo o reconhecimento de que aquele sentimento era
completamente mútuo.
Foi naquele dia que meu ódio por Sarkian Varant floresceu.
Vidro quebrou e um som explodiu perto de nós, assustando-me.
Ambos viramos o rosto para a criada que havia acabado de deixar
uma bandeja cair. Ela piscava em nossa direção sem parar.
— Alteza. — Ela reconheceu, curvando-se para recolher a sujeira ao
mesmo tempo em que fazia uma reverência desajeitada. — Me... me
desculpe.
Ele, sequer, piscou ao encará-la. Em vez disso, voltou a me fitar.
Sarkian levou o cigarro mais uma vez aos lábios e inspirou. Dessa
vez, profundamente.
Todos estavam cientes de que lavena era proibido no reino, mas
aquilo não impedia que algumas pessoas fizessem uso. A substância os
deixava um pouco inebriados e tontos, pelo que ouvi falar. Havia um boato
de que o próprio rei a usava entre seus aposentos particulares, assim como
grande parte da nobreza. Mas as pessoas nunca usavam daquela forma, em
público, principalmente em uma festa. Era um verdadeiro ultraje.
A fumaça bateu contra a minha pele quando ele a soltou
propositalmente no meu rosto, e eu tive que lutar contra a vontade de tossir
diante do cheiro forte.
Seu olhar não deixou o meu em momento algum enquanto me
avaliava. Eu nunca senti tanto desprezo em um olhar antes. Nunca senti que
alguém me odiava tanto sem, ao menos, me conhecer. Eu era indiferente
para muitas pessoas, mas não odiada. Não daquela forma.
— E não estou blefando quanto ao nosso próximo encontro. Já fiz
muito pior por muito menos.
Eu não tinha a menor dúvida daquilo.
Engoli em seco e observei seu rosto beirando ao divino. A pele era
muito clara em contraste com os cabelos negros, que caíam sutilmente
sobre a testa.
Mas não havia nada de divino sobre aquele homem. Muito pelo
contrário.
— Acho que, se eu tiver sorte, nunca mais estarei diante de você
outra vez. — Eu finalmente murmurei as palavras mais sinceras que já disse
em toda a minha vida.
Ele sorriu e, então, eu sabia que era algo que ele fazia antes de dizer
algo terrível.
— Se eu fosse você — ele descartou o cigarro sem tirar os olhos dos
meus e se afastou —, seria para isso que eu rezaria a partir de agora.
Depois de dizer aquilo, ele se virou. E eu observei a sua figura longa
e negra se afastar até desaparecer como uma sombra.
Sarkian Varant decidiu que me detestava no segundo em que
colocou seus olhos em mim. Ou, até mesmo, antes daquilo.
Eu achava que Sarkian Varant dera o seu primeiro suspiro na Terra
sabendo que odiava cada aspecto da minha existência.
A Usurpadora de Sangue estava certa
Antes mesmo dela se tornar uma ideia
antes mesmo dela saber quem era
ou o que gostaria de ser
o Filho das Sombras a detestava
E ela logo entenderia o que aquilo significaria para o seu destino
e quais seriam as repercussões
Porque nenhuma prece seria o bastante
Afinal
aquela não seria a última vez que ela estaria diante dele
capítulo 4

Fui capaz de ouvir o som de um punho batendo contra a carne do


lugar onde estava. Meu assento era privilegiado, e eu quase conseguia sentir
os golpes em minha própria pele.
Os lutadores não usavam nada além de calças de couro gastas. O
peito impressionante de ambos estava à mostra, e a pele já suando devido
ao esforço físico e ao sol do começo da tarde.
As pessoas observavam com atenção o espetáculo que havia
começado há pouco tempo. Havia muito dinheiro em jogo. A maioria dos
nobres já havia apostado em um dos lutadores. Meu pai colocara o seu
dinheiro no loiro mais baixo e parrudo. Automaticamente — e secretamente
—, eu estava torcendo pelo homem de pele parda mais esbelto.
Infelizmente, parecia que eu estava sem sorte, porque meu lutador
estava levando mais golpes do que dando.
Quando o primeiro turno finalmente terminou, ambos os homens
estavam sangrando. O mais baixo tinha o nariz quebrado e o mais alto
mancava, além das várias outras lesões ao longo dos corpos de ambos. Mas
o embate estava só na metade. As lutas aconteciam a cada dez dias e eram
extremamente populares entre os nobres. Era mais um espetáculo do que
um esporte. Às vezes, até a Família Real comparecia.
Eu, meu pai, minha madrasta e meu irmão deixamos os assentos da
arena assim que o anunciador declarou o tempo. Fomos, assim como a
maioria dos espectadores, comer e conversar, enquanto esperávamos o
segundo turno.
Parei em frente à longa mesa de madeira repleta de todo o tipo de
petisco.
— Eu não comeria isso, se fosse você.
Virei-me com o pedaço de pão doce no meio do caminho até a
minha boca. Um moreno, alguns centímetros mais alto do que eu, estava
parado e me encarando. Seu rosto me era levemente familiar, mas eu não
conseguia encaixar em minha mente exatamente quem ele era.
Eu pisquei e, então, olhei para o pedaço de comida na minha mão.
— Hum… Por quê?
Ele fez um aceno sutil com a cabeça antes de falar em um sussurro
conspiratório:
— Sir Golen deixou cair há cerca de dois minutos e colocou de
volta.
— Oh. Por que ele faria isso? — indaguei, olhando na direção em
que ele estava apontando.
Sir Golen, um homem extremamente baixo e de proporções
estranhas, conversava com uma senhora. Suas pernas eram roliças e seus
ombros eram bizarramente estreitos.
— É uma ótima pergunta.
— Ele é meio estranho. — Foi a única coisa que eu consegui
concluir enquanto encarava a figura um tanto curiosa que era Sir Golen.
— Ele é.
Voltamos a nos encarar, e eu abaixei o pãozinho.
— Obrigada, de qualquer forma.
— Claro, poderia ter alguma bactéria no chão. — Ele ergueu uma
das sobrancelhas. — Quem sabe, algo mortal.
— Está insinuando que salvou a minha vida? — Foi a minha vez de
arquear as sobrancelhas.
— Possivelmente.
— Acho que sou eternamente grata, então — zombei. — Tão
heroico da sua parte.
— Foi um prazer. — Ele estendeu a mão direita. — Meu nome é
Theon.
Finalmente, me recordei de quem ele era. O único filho do Conde
Bauer. Eu já tinha sido apresentada a ele há muito tempo, mas tinha mudado
bastante. Precisava admitir que ele havia ficado um tanto atraente.
— Cera Novak.
— Posso te fazer uma proposta?
Hesitei por um momento.
— Fazer, você pode. — Dei de ombros.
Seu olhar tomou um brilho diferente.
— Apesar de que eu deva te lembrar que acabei de salvar a sua vida.
Então, tenha isso em mente. — Ele sorriu. Tinha um sorriso muito bonito,
notei. — Estou fugindo de uma conversa entediante entre meu pai e vários
de seus amigos da mesma idade... avançada. Preciso parecer ocupado
conversando com outra pessoa.
— E suponho que eu seja essa outra pessoa?
Ele assentiu.
— Sim, essa é a proposta.
— Então, é o seu dia de sorte — respondi. — Estou evitando a
minha madrasta que está me apresentando para todas as famílias de
pretendentes em potencial.
— Acho que somos o par perfeito, então.
As suas palavras me surpreenderam e me deixaram um pouco sem
graça. Assim como a forma que seus olhos verdes me encaravam.
Ele estava flertando comigo?
Engoli em seco, nervosa.
— É. Acho que sim.
— Aqui, experimente este. — Ele pegou outro petisco da mesa e me
entregou. — É o mais gostoso e ninguém deixou cair no chão, posso
garantir.
Analisei o docinho.
— Você é o encarregado por vigiar a mesa de petiscos ou algo
assim?
Ele sorriu de novo.
— Só quando o Sir Golen está por perto. Vamos, experimente.
Assim que o alimento tocou a minha língua, eu soube que não iria
gostar. O gosto era estranho e forte demais. E a textura… Meus Deuses.
— E aí? — Ele indagou com expectativa. — Incrível, não é?
Assenti enquanto mastigava.
— Claro. — Consegui dizer, ainda com aquela gororoba rolando
pela minha boca. — Hum, uma… delícia.
Finalmente engoli. E eu devo ter feito uma careta, porque ele logo
disse:
— Você odiou, não é?
Assenti, balançando a cabeça. Peguei uma taça de uma bebida
rosada qualquer e tomei para ajudar a descer.
— Por um momento, achei que não fosse conseguir… — tossi
algumas vezes antes de ser capaz de completar — engolir.
Ele riu. Uma risada suave que iluminou seu rosto bonito. Aproveitei
o copo em minha mão e dei mais uma golada na bebida, já que não sabia
mais o que dizer. Sua presença me deixava nervosa. Era uma sensação nova
e... excitante.
— Você falou sobre sua madrasta estar te apresentando a
pretendentes. Está na idade de se casar?
— Sim, fiz 18 recentemente. — Como ele apenas assentiu, indaguei:
— E você?
— 20.
Passamos os próximos minutos conversando e, em nenhum
momento, eu torci para que aquilo acabasse, diferentemente da maioria dos
diálogos que eu tinha naqueles eventos. Eventualmente, ele pediu
licença, pois seu pai o chamou.
— Não há mais escapatória. — Ele parecia genuinamente chateado
em ter que ir. — Foi um prazer conhecê-la.
Ele fez uma sutil reverência com a cabeça, apesar de não ter
necessidade alguma, já que eu não tinha título.
Uma sensação boa preencheu meu peito quando me peguei
analisando os últimos minutos.
Aquele era o primeiro garoto que não me havia sido apresentado
pela minha madrasta em muito tempo. Acho que era o que eu gostava mais
sobre ele. Era claro que sua aparência um tanto agradável e sua conversa
casual e interessante não eram nada mal também.
Mas a sensação não persistiu por muito tempo, pois a minha
madrasta finalmente me encontrou. Ela falou sobre o último casal que havia
conhecido e que tinham um filho na idade para se casar. Eu ouvi em
silêncio, ainda pensando em Theon. Até que Ophelia Peron atravessou o
jardim diante de nós.
— Ophelia está linda, como sempre. — Ela ponderou ao observar a
garota passar, então me encarou. — Você deveria fazer amizade com ela.
Tê-la como influência seria benéfico para você.
A garota tinha longos cabelos escuros e olhos azuis. Seu nariz se
assemelhava ao de uma boneca. Na verdade, toda ela, já que sua figura era
pequena e delicada.
Ophelia Peron era tudo o que eu não era: linda, extremamente magra
e nobre. E a minha madrasta a idolatrava. Comentara algumas vezes como,
na minha idade, ela própria se assemelhava à Ophelia.
Particularmente, eu não tinha nada contra a garota, mas era difícil
ouvir aquele tipo de comparação constantemente. Comecei a ressenti-la um
pouco. Não gostava de me deparar com Ophelia naqueles eventos, sempre
tão deslumbrante. E tinha certeza de que a minha madrasta fazia de
propósito.
— Não tão linda quanto a Condessa Bethany. Que penteado
impecável.
A Condessa Bethany era a Ophelia Peron da minha madrasta.
Mesma idade, mas ainda mais bonita, rica e o mais importante: nobre.
Meu comentário teve o efeito que eu desejava e minha madrasta
fechou a cara quando avistou a condessa. Diferentemente dela, eu gostava
bastante de Bethany. Era uma das poucas mulheres que não havia me
perguntado sobre casamento ou pretendentes depois que fiz aniversário.
O sino bateu um par de vezes, anunciando o fim da pausa. A
próxima luta estava prestes a começar.
Voltei para o meu lugar, mas, em vez de me deparar com o homem
com cerca de 40 anos que antes ocupava a cadeira ao lado da minha, vi-me
diante de Theon.
Ele sorriu, notando a minha surpresa.
— Pedi para trocar de lugar. Espero que não se importe.
Era claro que eu não me importava. E eu tinha a leve impressão de
que ele sabia muito bem disso. Sentei-me com um sorriso satisfeito no
rosto.
Theon narrou algumas partes da luta, dizendo-me qual golpe o
lutador havia feito e o porquê o havia escolhido. Explicou certos
movimentos e estratégias. Eu não disse nada, apesar de já saber exatamente
do que ele estava falando. Cresci vendo aquelas lutas porque era uma das
poucas coisas realmente interessantes na nossa sociedade que era permitido
para mulheres. Eu não gostava muito do teatro, principalmente das óperas,
então não sobrava muito entretenimento.
Toda aquela aula foi um pouco prepotente e irritante, mas gostei de
estar sentada ao lado dele. Gostei de seu cheiro e, acima de tudo, de sua
atenção. Também acreditava que ele estava tentando me impressionar,
então, de certa forma, me senti lisonjeada.
Assim que a luta terminou, ele me encarou e disse que esperava me
ver de novo em breve.
Eu esperava também.
Quando minha madrasta se aproximou ao entrarmos na carruagem,
ela indagou:
— O que você estava conversando com o filho do Bauer?
Seu semblante era curioso, surpreso e com um toque de indignação.
— Nada que valha a pena compartilhar — respondi secamente.
A viagem para casa foi feita em completo silêncio.
Eu estava feliz.

Passei as últimas horas da noite lendo e revivendo em minha cabeça


a conversa que tive com Theon. Perguntava-me se ele estaria no próximo
evento de luta. Também me perguntava se ele iria falar comigo. Talvez, eu
estivesse dando importância demais para a nossa conversa ou, talvez, ele só
estivesse, de fato, tentando matar o tempo enquanto evitava o pai. Mas,
então, eu me recordei da forma que ele sorrira para mim e fizera questão de
mudar de lugar para ficarmos lado a lado durante a luta.
Ele estava flertando.
Talvez, fosse cedo demais para afirmar que ele estava me
cortejando, afinal, um garoto atraente e influente como ele devia ter opções
impressionantes demais para me ver como uma pretendente. Mas ele estava,
sim, interessado, convenci-me.
Tentei voltar a me concentrar na minha leitura pela milésima vez. Eu
gostava de ler. Era um privilégio e eu tirava proveito disso. A escola era
limitada para as garotas. Parávamos de estudar aos doze anos e não nos
ensinavam a ler ou escrever. Apenas garotas da nobreza ou com muito
dinheiro tinham a oportunidade de aprender, contratando um professor
particular depois que eram obrigadas a deixarem a escola.
Mas, às vezes, nem os nobres queriam que suas filhas aprendessem.
Eu tive sorte que a minha mãe fez questão de que eu aprendesse desde
nova. Quando ela morrera, eu já sabia o suficiente para pegar os livros da
estante e ler por conta própria. Meu pai não tivera nenhuma objeção quanto
a isso, mas a minha madrasta sempre me lançava olhares estranhos quando
me via na biblioteca ou com um livro nas mãos.
Eu estava prestes a desistir da leitura e fechar o livro quando ouvi
uma porta bater e passos um tanto frenéticos no corredor. Aquela
movimentação era estranha, considerando que já era muito tarde e o resto
da casa toda estava completamente silenciosa.
Peguei meu robe depois de me levantar e abri a porta do meu quarto.
Coloquei o rosto para fora bem a tempo de ver a sombra de alguém virando
no corredor, mas não consegui identificar a quem pertencia. Franzi o cenho
e comecei a fechar a porta novamente, deduzindo que, provavelmente, não
era nada demais. Talvez, a minha madrasta tivesse feito algum pobre criado
preparar um prato para ela comer no meio da noite. Mas, então, assim que
comecei a fechar a porta outra vez, ouvi um som distante.
Parecia um miado.
Não.
Um choro.
Mas não era o bebê. Era um choro contido, como se a pessoa não
quisesse ser ouvida. Saí do quarto e segui o som baixo, porém, contínuo.
Era um choro feminino, deduzi conforme me aproximava.
Atravessei o corredor longo e escuro, com o som me levando para um dos
aposentos das criadas. Comecei a me perguntar se havia, de fato, algum
perigo. Meu pai tinha uma quantidade considerável de inimigos. Acreditava
que muitos deles gostariam de nos machucar. Mas, ao mesmo tempo, a
segurança da nossa casa era um tanto reforçada.
E eu já estava muito longe do meu quarto e perto demais do que
quer que estivesse acontecendo. Então continuei andando até parar de frente
à porta.
Era a porta do banheiro da criadagem.
Assim que empurrei, vi-me diante de uma garota encolhida contra a
parede de ladrilhos. Ela levantou o rosto ao ser surpreendida pela minha
presença.
Era Allegra.
Ela esfregou os olhos e a bochecha, sem me encarar diretamente.
— O que aconteceu? — perguntei baixinho, e me aproximei.
Ela fungou.
— Nada. — Sua voz era quase inaudível.
— Alguém te machucou? Allegra, o que houve?
Estava escuro no banheiro, e eu precisei chegar mais perto para
notar que havia algo de errado com seu vestido.
Estava rasgado.
Engoli em seco. O silêncio era insuportável, mas as palavras tiveram
dificuldade em deixar a minha boca.
— Quem fez isso, Allegra? — Finalmente indaguei.
A jovem criada se encolheu.
— Senhorita, por favor. — Ela ajeitou o seu vestido em um
movimento frenético. As suas mãos tremiam. — Eu estou bem. Nada
aconteceu. Se me der licença...
Abri a boca, mas ela passou por mim antes que eu pudesse falar
qualquer coisa. Ela saiu para o corredor, e eu fui atrás.
— Allegra! — chiei, tentando não acordar ninguém.
Mas ela entrou no quarto antes que eu pudesse alcançá-la.
capítulo 5

Ele havia me mandado uma mensagem pela pedra na noite seguinte


da luta. Pisquei algumas vezes ao ver a assinatura de seu brasão queimar na
pedra. Não esperava por aquilo. Esperava, no máximo, encontrá-lo
novamente no próximo evento importante do reino.
Depois de algumas trocas de mensagens, marcamos de nos
encontrar no parque. Disse à minha madrasta que ia encontrar Rafe, já que
tinha medo de que ela não permitisse que eu fosse. Seria delicioso demais
para me negar algo como aquilo pelo simples prazer de tirar algo de mim.
Mesmo que ela quisesse se livrar de mim com algum casamento arranjado,
sabia que queria que fosse com alguém de sua escolha e não da minha.
Estávamos sentados sobre o gramado, debaixo do sol escaldante,
quando Theon perguntou sobre a minha mãe.
— Não quero ser invasivo, mas o que aconteceu com a sua mãe? —
Talvez, eu tenha demonstrado certa surpresa devido à pergunta inusitada,
porque ele logo se adiantou: — É que você mencionou uma madrasta, então
supus que…
— Ah, sim — assenti. — Eu tinha seis anos quando ela faleceu.
— O que aconteceu?
— Pneumonia.
— Sinto muito.
Desviei o olhar para pegar um dos morangos que ele tinha levado.
— Faz muito tempo.
— Às vezes, eu sinto como se não tivesse mãe também.
Eu olhei para ele. Estava deitado de lado sobre a toalha azul, a
cabeça apoiada pelo cotovelo enquanto me encarava.
— Ela mora no campo com as minhas irmãs. Meu pai e minha
mãe... — Ele fez uma pausa, como se procurasse as palavras certas, até que
suspirou. — Eles não se dão muito bem. A última vez que os vi juntos foi
no enterro do meu primo.
Não era tão incomum marido e esposa morarem em casas separadas.
Separação não era uma opção muito viável na nossa sociedade e a maioria
dos casamentos entre nobres era arranjado, então, raramente, havia amor
envolvido, de qualquer maneira. Depois que os filhos nasciam, muitos
homens mandavam as suas mulheres para suas casas no campo, em geral
com as filhas. Os filhos, claro, ficavam com os pais.
— Você a vê com frequência?
— Não tanto quanto gostaria. — Ele fez uma careta. — Não suporto
o campo.
— Sente falta dela?
— Às vezes. Mas me acostumei. Moro com meu pai tem quase dez
anos.
Meus pais moraram juntos até a morte da minha mãe, mas não
lembrava muito bem deles na presença um do outro quando era mais nova.
Mas duvidava que houvesse algum amor.
Estávamos terminando os deliciosos morangos no momento em que
Theon se inclinou um pouco mais em minha direção.
— Você já foi beijada, Cera?
Engoli o morango que estava em minha boca com bastante
dificuldade antes de responder:
— Não — menti.
Não era uma grande mentira, afinal, só havia sido beijada um par de
vezes. Garotas que circulavam pela alta sociedade como eu não podiam ser
vistas com homens que não fossem seus maridos. Quando ouvíamos sobre
certos casos de paixões entre jovens, geralmente, a história não acabava
bem e era sempre pior para a garota.
Eu não era uma pessoa que gostava de tomar riscos desnecessários
e, para ser bem honesta, nenhum garoto havia despertado um interesse
verdadeiro para que eu violasse alguma regra.
Meu primeiro beijo foi com ninguém mais e ninguém menos do que
Rafe. Acredito que ele estava tentando entender quem era na época. Já
éramos bem próximos, e ele simplesmente segurou os meus ombros e
enfiou a boca no meu rosto. Foi terrível. Talvez, só não tivesse sido tão
ruim para mim quanto foi para ele. Rafe chegou a fazer uma careta quando
recuou. Eu dei um tapa no rosto dele; não sabia se estava mais ofendida
pelo beijo em si ou pela sua reação depois de colar os lábios nos meus. Hoje
em dia, ríamos daquilo, mas, na época, fora uma catástrofe.
O segundo foi cerca de um ano depois. Estávamos brincando de
esconde-esconde em volta da mansão de algum de nossos antigos colegas
de classe. Dividimo-nos em grupo e, em algum momento, me vi escondida
em um armário apertado no sótão na companhia de Marki Buvelar, um
garoto ruivo, filho de um dos amigos do meu pai.
Também não foi uma experiência muito agradável. Só não foi tão
terrível quanto a primeira.
Um sorriso cresceu lentamente nos lábios de Theon.
— Fico feliz que serei seu primeiro, então.
E, com aquilo, ele aproximou os lábios dos meus e me beijou.
Seus lábios tocaram os meus com delicadeza, e eu não recuei, apesar
de imaginar que deveria. Mas estávamos praticamente a sós, afastados
demais das outras pessoas para que prestassem atenção na gente.
E eu queria.
Pela primeira vez, quis ser beijada daquela forma. Fechei os olhos e
senti sua língua acariciar o interior da minha boca. Meu coração galopava, e
eu não movia um músculo do pescoço para baixo. Sua mão tomou a lateral
do meu rosto um pouco antes de ele recuar e, assim que nossos olhos se
encontraram novamente, eu decidi que amava aquele tom de verde.
Theon sorriu e eu também. Pelo menos, acho que o fiz; estava
inebriada e surpresa demais.
O meu terceiro beijo, definitivamente, havia sido melhor do que os
anteriores.
Ele estava interessado em mim, isso era óbvio.
Mas por quê?
Não me perguntava isso de maneira autodepreciativa. Eu sabia que
não era feia, nem burra e não me considerava entediante. Era mais uma
questão prática. Eu não era nobre, isso era um fato, e ele podia ter
praticamente qualquer garota nobre das redondezas.
O que aquele beijo significava? Ele estava me cortejando?
As mensagens na pedra e se sentar ao meu lado em um evento
público me soavam como cortejo. Mas ele também podia estar apenas se
divertindo.
Eu já havia sido alertada várias vezes sobre garotos nobres
seduzindo garotas apenas por diversão. Precisava ter cuidado. Se alguém
tivesse visto aquele beijo, minha reputação seria um tanto abalada. Aquilo
não podia ocorrer de novo. Pelo menos, até eu entender suas verdadeiras
intenções.
— A senhorita deseja mais chá? — Allegra perguntou na manhã do
dia seguinte, tirando a minha mente de Theon.
Estava tomando café na mesa principal. Éramos apenas eu, minha
madrasta e o bebê. E ele resmungava à medida que a criada de minha
madrasta tentava convencê-lo a comer frutas.
Seus finos cabelos louros estavam por toda parte agora. Ele nasceu
careca e ficou por muito tempo assim. Uma bola pelada e barulhenta.
Agora, ele era apenas barulhento.
Neguei o chá, mas mantive meus olhos em Allegra. Ainda pensava
na outra noite em que a vi chorando. Não insisti no assunto, visto que era
muito claro que ela não desejava falar sobre aquilo, mas a situação ainda
me incomodava. Ela estava chorando por causa de alguém. Vi a sombra de
quem quer que tenha sido.
Allegra parecia acanhada. Sempre fora uma garota tímida, pelo
menos com base nos meses que vinha trabalhando com a gente. Mas parecia
ainda mais fechada do que o normal. Ela me olhava de forma diferente
também. Parecia vergonha, como se compartilhássemos um segredo
obscuro.
A porta da frente bateu e meu pai e meu irmão entraram, juntando-
se a nós para a refeição. Eles usavam roupas formais, meu pai deveria levá-
lo consigo para o trabalho. Meu pai era dono de grandes plantações de trigo
e de arroz, e frequentemente precisava checá-las. Esses acres foram
passados de meu avô para ele e, consequentemente, meu pai estava
preparando Nicklaus, para um dia, administrá-los sozinho. Eu não teria
posse nem de um metro quadrado dessas terras depois da morte dele.
O silêncio se instalou depois de breves palavras. Nossas refeições
conjuntas eram sempre assim. O bebê balbuciando suas primeiras palavras e
resmungando era a maior parte do que se ouvia.
Terminei a minha refeição e estava pronta para me levantar. Meus
olhos recaíram sobre Allegra novamente.
Ela estava levemente inclinada, servindo chá para o meu irmão, que
estava sentado bem à minha frente. O que me fez parar, no entanto, foi sua
mão, que tremia. Era sutil, mas notável para quem estava prestando atenção.
Meus olhos procuraram o seu rosto e o que encontrei ali foi a
mesma garota acanhada e nervosa da noite anterior. Allegra estava tensa
como eu nunca tinha visto.
O ar deixou meus pulmões conforme meus olhos se arrastaram até o
meu irmão. Seu rosto estava impassível, apenas observava o chá cair dentro
da xícara. Tive dificuldade para puxar o ar de volta para dentro.
Não.
Não pode ser.
Mas, então, quando tentei me convencer de que Nicklaus não seria
capaz de tal coisa, falhei, porque esse era o problema: eu não conseguia me
convencer de que ele nunca faria algo do tipo. Eu mal o conhecia, para ser
honesta, e o pouco que, de fato, conhecia não era positivo.
Além de que estava terrivelmente claro. A fisionomia desesperada
de Allegra, como se quisesse fugir dali o mais rápido possível, deixava
óbvio.
O meu choque foi quebrado pelo barulho de vidro se chocando.
O bule tinha escapado da mão trêmula de Allegra e chá foi
derramado. Meu irmão se remexeu na cadeira ao se ver diante do líquido e
levantou o olhar para Allegra, mas ela tinha a cabeça abaixada e os olhos
focados nas próprias mãos.
— Me desculpe. — Foi a única coisa que ela disse antes de pegar o
bule e sair apressada.
Assisti ao meu irmão pegar um guardanapo e limpar algumas gotas
de chá que caíram em seu colo por alguns segundos e depois me levantei.
Antes de deixar o cômodo, o meu olhar se cruzou com o dele por apenas
um instante. Desviei, com medo de que o nojo e a fúria estivessem
estampados no meu rosto.
Só tinha Allegra na cozinha no instante em que entrei. Ela estava de
costas para mim, colocando mais chá no bule. Suas mãos tremiam ainda
mais.
Aproximei-me.
— Foi Nicklaus, não foi? — Ela não se virou, mas seus movimentos
congelaram ao passo em que permaneceu em silêncio. — O que ele fez,
Allegra?
Esperei mais um pouco, e ela lentamente se virou. Seus olhos
estavam marejados.
— Eu… Eu não sei do que você está falando, senhorita.
Dei um passo, quebrando a distância e olhando diretamente em seus
olhos castanhos, que se encontravam molhados.
Eu só precisava do mínimo de confirmação porque queria acreditar
que meu irmão não faria aquilo. Gostaria de acreditar que havia alguma
outra explicação.
— Não minta para mim. O que ele fez, Allegra?
Ela desviou o olhar do meu e sua voz saiu em um sopro:
— Ele… Ele me… tocou. — A última palavra deixou seus lábios de
forma tão baixa que quase não fui capaz de ouvir, mas não era preciso. —
Por favor, não conte a ele que eu te contei. Ele não pode saber.
Ela estava com medo. Era terrivelmente visível. Aquilo me fazia
imaginar o que ele havia feito e dito para deixá-la naquele estado.
O café da manhã deu uma volta no meu estômago.
— Está tudo bem, Allegra. — Tentei acalmá-la, mas aquilo me soou
estúpido. Nada estava bem. Então, tentei mais uma vez: — Vai ficar tudo
bem.
As palavras deixaram a minha boca como uma promessa. Eu não
pretendia conscientemente fazê-la, mas foi natural.
Ela me observou por um momento. Vi uma faísca de esperança em
seus olhos, mas ela piscou e logo desapareceu. Sua expressão se
transformou em uma melancolia vazia. Ela não acreditava que eu pudesse
ajudá-la. Afinal, o que uma garota como eu poderia fazer?
Allegra se virou e pegou o bule novamente. Limpou os olhos com a
palma da mão vazia e pediu licença antes de deixar a cozinha.

Dois dias se passaram, e eu ainda pensava no que poderia fazer.


Dois dias se passaram, e eu odiava o meu irmão silenciosamente.
Ele e meu pai haviam partido para uma viagem de negócios pouco
tempo depois do café da manhã quando conversei com Allegra. Eles
voltariam naquela tarde, e eu havia decidido que falaria com o meu pai.
Somente a ideia de ter uma conversa como aquela com ele me assustava. Eu
odiava como me sentia covarde diante dele, mas cresci assim. Não cresci
amando-o, cresci temendo-o.
Não havia diálogo entre nós, além do básico. Ele me tratava como
se eu fosse um acessório: para ele, eu só precisava estar calada, bem
arrumada e no lugar certo. E, ainda assim, sempre me senti um acessório
substituível e quebrado para ele. Mas falar com o meu irmão não era uma
opção. Ele iria negar e, muito possivelmente, descontar em Allegra mais
tarde. Além do mais, ele não me respeitava ou me temia. De nada
adiantaria.
Bati na porta da sala do meu pai no final da tarde, algumas horas
depois de sua chegada. Escutei a sua voz grave permitindo a minha entrada
e girei a maçaneta.
Ele estava sentado atrás de sua grande mesa de mármore. Escrevia
em alguns papéis e não levantou a cabeça quando fechei a porta atrás de
mim.
Fiquei em pé diante de sua mesa, visto que não havia outras
cadeiras. Ele abaixou a caneta de pena e finalmente levantou o olhar.
— Senhor, eu preciso falar com você. — Eu disse, com dificuldade
de encará-lo nos olhos.
— Fale, então.
Ele soava impaciente.
— É sobre o meu irmão e… Allegra.
Como iria dizer que seu filho era um monstro?
— Quem? — Ele indagou, voltando os olhos para os papéis em sua
mesa.
— A criada que trabalha na cozinha. — Meu pai não disse nada, o
que me obrigou a continuar. — Eu a vi chorando certa noite e... meu irmão
era a razão. Ele a... — hesitei, e ele levantou o olhar para me encarar
novamente — abordou de forma… inapropriada.
Eu não conseguia falar explicitamente. Mal conseguia falar. As
palavras travavam diante de meu pai e um assunto como aquele era pior
ainda.
Apenas esperei, e ele me observou por mais alguns segundos até
voltar os olhos para os papéis.
— Não vejo o que eu tenho a ver com isso.
— Seu filho… machucou a criada que trabalha nesta casa. Acredito
que possa resolver isso.
Ele suspirou fundo e juntou ambas as mãos sobre a mesa.
— Há coisas sobre homens que você não entende. — Ele explicou.
— E que não são da sua conta.
Eu engoli devagar.
A acusação nem, ao menos, o abalou. Era quase como se ele já
esperasse.
E não desse a mínima.
— Não me parece justo com a Allegra.
— A vida não é justa. — Foi o que disse ao pegar a caneta mais uma
vez e voltar a encarar os documentos.
Eu abri a boca de novo, mas fui interrompida:
— Feche a porta depois de sair.
Apesar de desprezar, sempre entendi qual era o meu lugar. Sempre
entendi o quanto era insignificante diante da minha sociedade.
Mas foi naquele dia, depois daquela conversa, que eu entendi a
verdadeira proporção da minha insignificância. Eu não era capaz de mudar,
ao menos, o meu destino, quem diria o de outra pessoa.
Ao passar por Allegra mais tarde, tive vergonha de encará-la.
capítulo 6

Três semanas depois de nos conhecermos, Theon começou a falar


em casamento.
Ele ainda não havia me pedido oficialmente, mas eu sentia que
aquilo estava por vir. Ele me perguntava sobre meu futuro, minha família,
outros possíveis pretendes... Mas ele realmente mencionou a palavra
“casamento” quando nos encontramos na praça comercial naquela tarde.
Eu caminhava pelo lugar lotado, fazia sol e o céu estava
completamente azul.
— Então, isso é sério mesmo? — perguntou Rafe.
— Nessas últimas três semanas, nos encontramos cinco vezes.
Vesper se intrometeu:
— Está contando? — Ele indagou com um ar zombeteiro. Ignorei-o.
Passávamos pelas lojas, mas não estávamos realmente prestando
atenção em nenhum item em particular.
Ir às compras era um evento comum para pessoas como nós, então
era mais uma desculpa para nos encontrarmos e conversarmos do que, de
fato, adquirir alguma coisa.
E era um evento público, ideal para Rafe e Vesper serem vistos
juntos e não levantarem suspeitas, ainda mais acompanhados de uma
garota.
Não tinha dúvidas de que Rafe gostava da minha companhia, mas
também sabia que me chamava para aquele tipo de encontro com Vesper
para não gerar nenhum tipo de rumor. Não havia outra explicação, já que
ele estava muito ciente de que mal nos suportávamos.
Eles vinham ficando muito na companhia um do outro e, por mais
que a sociedade, muito provavelmente, os via apenas como dois bons
amigos, era necessário somente uma pequena suspeita para gerar um rumor.
— Ele me beijou — confessei.
Ambos olharam para mim.
— Na boca?! — Rafe indagou.
— Na bochecha — respondi com sarcasmo. — Claro que foi na
boca. Que pergunta.
Meu amigo abriu um meio-sorriso curioso.
— Foi bom?
Eu desviei o olhar, mas devolvi o meio-sorriso.
— Melhor do que o nosso.
Vesper, de repente, parou de andar.
— Vocês se beijaram?!
— Ah, você não sabia? — devolvi inocentemente.
Deliciei-me com o choque em seu rosto.
— Fale baixo! — pediu Rafe, puxando-o pelo braço para voltar a
andar. — E foi há muito tempo.
— Quanto tempo? — Vesper insistiu.
— Anos. — Então, completou: — Muitos anos.
Eu suspirei.
— Muitos é um exagero…
Rafe me lançou um olhar que dizia claramente: você não está
ajudando. E o meu respondia: é essa a intenção.
— Como foi? — Vesper quis saber.
Meu amigo não demorou nem um segundo para responder:
— Traumatizante.
— Dá licença. — Eu ergui as sobrancelhas, levemente ofendida. —
Estou bem aqui.
— Você sabe que é verdade. — Ele se virou para Vesper — Ela me
deu um tapa depois.
O assunto se deu por encerrado assim que Vesper se viu convencido
de que o momento que compartilhamos não havia sido nada romântico.
Depois de passarmos por várias lojas, Vesper avistou algo do qual
gostou. Sem pestanejar, ele entrou, e ficamos apenas eu e Rafe na porta da
loja.
— Então, foi bom? — Ele instigou.
Estava curioso. E eu não podia culpá-lo, aquilo raramente acontecia
comigo.
— É, foi. Muito bom — assumi.
Rafe me observou por um momento longo demais.
— Você gosta dele. — A frase soou como uma acusação.
Dei de ombros.
— Como eu poderia não gostar? Ele é bonito, gentil...
— Nobre. — Ele me interrompeu ao adicionar.
— Sim — concordei simplesmente, ignorando seu tom. — Ele é
nobre. E é exatamente por isso que é o tipo de pessoa com a qual meu pai
aprovaria a união.
— Você quer se casar com ele?
Às vezes, Rafe parecia se esquecer da minha posição. Ele era um
homem, então podia, de certa forma, escolher com quem se casar. Não
podia ser qualquer um, muito menos aquele quem realmente amava, mas ele
tinha voz para vetar certas garotas. Eu temia acabar como Amory Lanch.
— Sim — respondi honestamente. — Ele é o único homem, até
agora, que eu gostei e que meu pai também aprovaria. Eu teria muita sorte
se ele fizesse o pedido, você sabe disso.
Um futuro com Theon me parecia melhor do que aceitável. Parecia-
me muito bom. Passei as últimas três semanas com ele na minha cabeça,
repassando cada momento que compartilhamos e cada conversa que
tivemos. E eu não via a hora de vê-lo novamente.
— A gente poderia se casar. — Rafe comentou perto do meu
ouvido, fazendo uma tentativa ridícula de romantismo.
Rolei os olhos.
— Não poderíamos.
Já era algo que havíamos discutido, e ele sabia disso. Os pais de
Rafe queriam uma garota nobre para o único filho homem. Por mais que
seus pais aprovassem nossa amizade, já que eu fazia parte da alta sociedade,
de certa forma, não me aprovariam como família.
— Se eu pudesse me apaixonar dessa forma por uma mulher, seria
você. Sabe disso. — Ele disse baixinho e sem brincadeiras dessa vez.
Encarei os olhos azuis do meu amigo e um sorriso pequeno, porém,
sincero, cresceu em meus lábios. Casar-me com Rafe seria a melhor união
para ambos. Amávamo-nos, mesmo que não daquela forma. Ele não estaria
preso a um casamento falso com alguma garota da qual não gostasse, e eu
não estaria à mercê de um marido controlador e com o dobro da minha
idade. Não seria um casamento cheio de paixão, mas seria seguro,
agradável e muito divertido. E isso seria mais do que a maioria das garotas
do reino conseguiam.
Era a minha melhor opção.
Pelo menos, fora isso que eu pensei por muito tempo.
Até Theon.
— Pronto — anunciou Vesper, aproximando-se de nós. — Estou
bonito?
Ele já vestia o que havia comprado. Um lustroso sobretudo de tom
púrpura que batia no seu joelho, combinava perfeitamente com a calça preta
que usava e a blusa de botões aberta até a metade.
Ele se vestia muito bem. Às vezes, víamos nobres com as mais
ridículas roupas, mesmo com todo o dinheiro e a assistência de costureiras.
Não era o caso de Vesper, entretanto. Ele sempre sabia escolher as cores que
melhor realçavam sua pele e o corte que mais favorecia sua figura esguia.
Era ousado com as suas escolhas e, de alguma forma, sempre parecia
funcionar.
Rafe o analisou e respondeu com um sorriso. Seu olhar era terno e…
apaixonado.
— Sabe que está. — Ele murmurou, e Vesper devolveu o olhar.
O afeto se estendeu por tanto tempo que me senti, de certa forma,
desconfortável, como se estivesse interrompendo um momento íntimo.
Aquilo me assustava. Olhei para os lados sutilmente. Não sabia
como as pessoas não enxergavam o que estava estampado na cara de
ambos, e eu esperava desesperadamente que continuasse assim. Nos últimos
tempos, Rafe parecia tão inerte no feitiço do amor que não se preocupava
com o resto. E eu temia por ele.
Antes que eu voltasse o meu olhar para os dois, deparei-me com
Theon. Ele estava do outro lado da rua, conversando com dois homens.
Nossos olhares se cruzaram, e ele sorriu. Já estava me perguntando o que eu
deveria fazer naquela situação, até que ele acenou e logo veio em minha
direção.
— Olha aí, seu namorado pomposo! — provocou Vesper
desnecessariamente alto. — Acho que essa é a nossa deixa.
Rafe sorriu e se afastou junto a ele.
Assim que parou diante de mim, Theon pegou a minha mão e me
levou para longe da rua principal. Colocou as palmas nas laterais do meu
rosto e se aproximou.
— O que você está fazendo?! — indaguei, afastando-me.
Ele hesitou, suas mãos ainda repousadas em meu rosto.
— Estava prestes a te beijar.
— Não pode. Alguém pode nos ver.
— Não tem ninguém aqui.
Ele olhou em volta, e eu fiz o mesmo. Algumas pessoas passavam
no final da rua, porém, longe e extremamente desinteressadas em nós.
— Mas alguém pode aparecer.
Ele tirou as mãos do meu rosto, mas sorriu.
— O que de pior poderia acontecer?
Eu teria fama de ser uma garota promíscua, pensei.
— Com você? Nada — respondi seriamente.
Sua expressão descontraída se desfez lentamente conforme ele
entendeu as minhas palavras. Theon suspirou.
— Eu sei, sinto muito.
— Tudo bem. — Senti-me culpada ao ver a sua expressão. Não
queria que pensasse que estava rejeitando-o. — Eu… quero te beijar, é só
que…
— Eu sei. — Ele fez uma pausa e, então, me lançou um olhar quase
conspiratório. — Se fôssemos casados, poderíamos.
Pisquei.
— É... — disse, antes de morder o lábio inferior em um ato ansioso.
— Poderíamos.
— Eu estava pensando… — Ele pegou a minha mão e acariciou
minha pele. — Tenho uma viagem para fora do reino a trabalho, meu pai e
alguns tios vão comigo. Sei que só falou com o meu pai uma vez
brevemente, então achei que seria interessante para se conhecerem.
O convite me deixou sem fala por um momento. Sabia que aquilo
não era qualquer viagem. Se Theon queria que eu conhecesse melhor seu
pai, era porque queria ver se ele me aprovava.
— Eu adoraria, mas não sei se meu pai vai deixar.
— Meu pai vai conversar com ele. — Ele disse despreocupado, e
sorriu. — Vai falar sobre como minhas intenções são boas e das mais puras.
E ele pode ser muito persuasivo.
Quando ele se distanciou para entrar em sua carruagem, notei o
olhar de duas garotas observando-o também. Ele era bonito e nobre. Theon
chamava a atenção das mulheres e, ao mesmo tempo que aquilo
incomodava-me um pouco, lisonjeava-me. Só provava quão bom partido ele
era e, ainda assim, havia me escolhido. Entre todas as garotas, ele havia
demonstrado interesse por mim.
Tentei tirar o sorriso estúpido de meus lábios e falhei
miseravelmente.

Theon estava certo. Seu pai devia ser muito persuasivo porque, dois
dias depois, eu estava arrumando as minhas coisas para a viagem. Allegra
estava me auxiliando e arrumando a sua própria mala.
Eu havia pedido ao meu pai se podia levar Allegra comigo. Sabia
que não poderia realmente protegê-la, mas, pelo menos, ela teria alguns dias
longe daquele lugar.
Já que Allegra trabalhava na cozinha e não era a minha criada
pessoal, aquilo deixaria a minha madrasta furiosa. Apenas um bônus.
Antes de sair de casa com minha mala na mão direita, trombei com
o meu irmão. O impacto foi grande o suficiente para fazer meu ombro doer.
Encontrei o seu olhar e, na mesma hora, soube que havia sido proposital.
Nicklaus sabia que eu estava ciente do que estava acontecendo.
Sabia que havia pedido ao meu pai para levar Allegra comigo e estava
irritado com a minha intromissão.
Nunca tive tanta repulsa dele.
Continuei seguindo para a porta sem dizer uma palavra.
— Para onde vamos? — indaguei, no momento em que me sentei ao
lado de Theon na carruagem.
No outro dia, ele se despediu muito brevemente e não tive tempo de
lhe perguntar para onde iríamos. Não que importasse; aquela viagem era
puramente um teste pelo qual eu estava decidida a passar,
independentemente do local.
Ele se virou para mim.
— Khrovil.
capítulo 7

Foram dois dias inteiros de viagem. Paramos em uma estalagem no


caminho apenas para dormir.
Era meio da tarde quando nos aproximamos do castelo. O tempo
nublado tornou complicado avistar a construção inicialmente, mas,
conforme nos movimentávamos, o castelo começava a surgir por de trás da
neblina. Uma imensa e sombria construção, aos poucos, se revelando. Ela
se encontrava no alto de uma enorme colina, era repleta de torres com
pontas agudas e imponentes.
Paramos em frente ao enorme e escuro portão, e descemos das
carruagens. Senti o vento frio assim que pus os pés no chão.
Ouvi um som agudo distante e olhei para cima. Corvos
sobrevoavam as torres e um deles pousou em uma das várias estátuas
ligadas à construção gótica. A maioria delas eram de felinos, alguns
sentados, outros mostrando os dentes em um silencioso rugido feroz. As
estátuas, apesar de belas, estavam gastas, como se a chuva tivesse as
corroído ao longo do tempo.
Na verdade, o castelo todo tinha essa aparência, quase como se
estivesse abandonado.
Era muito diferente do castelo de Umbra, que tinha a pintura sempre
em dia e tudo tão lustroso.
Aquele era majestoso, porém, um pouco assustador.
Levaram-nos várias escadarias acima, onde ficavam nossos
respectivos quartos. Observei cuidadosamente cada detalhe enquanto
vagamos pelos corredores gelados. O interior do castelo, apesar de mostrar
bem o peso de todos os seus anos, era muito bonito e repleto de quadros e
lustres impressionantes.
— O que deseja usar para essa noite, senhorita? — Allegra
perguntou, depois que ficamos a sós no quarto.
Nos foi avisado que haveria um jantar de recepção mais tarde. Eu
estava exausta da viagem, mas não tinha opção, a não ser ir.
Minha cabeça voltou ao Príncipe Sarkian. Ele provavelmente estaria
lá e nós nos encontraríamos novamente, disso eu tinha certeza. Não haveria
escapatória. A não ser que ele estivesse em alguma viagem para fora do
reino, mas seria muita coincidência, e eu não tinha esse tipo de sorte.
— Algo discreto — respondi.
Cerca de duas horas depois, eu estava no salão, usando um vestido
cinza com decote quadrado. Era bonito e simples. O colar de diamantes que
era da minha mãe brilhava em minha pele exposta. Era a única coisa que
chamava atenção em meus trajes.
— Você está linda — disse Theon, assim que nos encontramos.
O salão estava repleto de comida. Na mesa ao centro, estava sentada
a Família Real, com exceção do Príncipe Sarkian.
Olhei em volta.
Ele não estava em lugar algum.
Várias pessoas circulavam ao redor, algumas delas comiam
sentadas. Aparentemente, havia povos de outros reinos. Notei pelo físico
das pessoas e a diferença das vestimentas. O povo de cada reino tinha uma
assinatura, olhos maiores ou menores, narizes achatados ou longos, trajes
mais ousados ou discretos.
Ao olhar para o teto, me deparei com o mais impressionante lustre
que já tinha visto. Era feito de ouro e diamantes, e seu brilho refletia em
todo o extenso cômodo. Era hipnotizante.
As pedras preciosas, principalmente os diamantes, eram o que
movimentava a economia em Khrovil. Bem no início de sua civilização,
eles conquistaram — por meio de muito sangue derramado — um solo
repleto de minas.
Apesar de estar cansada, a noite não foi entediante. Eu estava
fascinada demais com as diferentes culturas. Estranhei a comida, mas
acabei gostando de algumas coisas. Também fiquei impressionada com o
fato de que não havia nenhum tipo de oração antes da refeição. As pessoas
simplesmente comiam. Em Umbra, todas as refeições em eventos do
palácio eram introduzidas por uma longa oração apresentada pelo rei.
O povo de Khrovil, os selke, era um povo sem deuses, diziam em
meu Reino.
Durante a sobremesa, a entrada de uma mulher ruiva chamou a
minha atenção. Ela não era uma rainha ou princesa, mas se portava como
uma. Seus trajes também eram um tanto chamativos. Um vestido preto
repleto de brilhantes da mesma cor e fendas que deixavam pouco para a
imaginação. Ela gritava sensualidade.
— Despinna, como sempre, tão exibida. — Ouvi a garota sentada ao
meu lado comentar com outra.
— Eu sei. — A amiga concordou com o mesmo tom hostil. — E ela
ama atenção. Se não fosse amante dele, ninguém olharia duas vezes para
ela.
Eu duvidava disso. A garota ruiva era bem impressionante. Seus
cabelos cor de fogo batiam na metade das costas e seus lábios carnudos
estavam tingidos de um tom de vermelho vibrante.
— No final das contas, há benefícios em se deitar com o homem
mais temido do reino. — A garota concluiu, ainda observando a ruiva.
Despinna tinha a cabeça erguida conforme passava, como se
soubesse muito bem qual era o seu lugar. E duvidava muito que se
importasse com o que aquelas duas garotas pensavam dela.

A criada estava aprontando o meu banho quando um gato apareceu


na janela. Sua pelagem escura quase se misturava à noite do lado de fora,
apenas em uma de suas patas havia uma mancha branca. O felino observou
o quarto por um momento, quase desinteressado. Seus olhos pararam em
mim por apenas um instante antes de pular para o chão, com a graça que
apenas um felino possui.
— Olá — murmurei baixinho.
Tirei meu colar e o coloquei na mesa ao passo que fitava o animal.
Levei as mãos até meu cabelo para soltá-lo. Não suportava ficar com ele
preso.
Em um piscar de olhos, o animal estava em cima da mesa, diante de
mim. Recuei um passo, surpresa.
— Que susto, colega!
Ele olhou para mim. Seus olhos eram de um tom âmbar profundo.
Estava debatendo se deveria arriscar acariciá-lo ou não. Ele parecia
amigável, mas eu realmente não queria ser arranhada.
Antes que eu pudesse tomar uma decisão, o gato abocanhou o colar
que estava na mesa e correu.
— Não! — Eu exclamei, ao vê-lo disparar em direção à porta
entreaberta.
Fui atrás dele pelo corredor com o coração na boca.
O colar da minha mãe.
Atravessamos todo o longo corredor e descemos um lance de
escadas.
Isso não pode estar acontecendo.
— Para! — Eu pedi, como se ele pudesse me entender. Ou se
importar.
Perdi a conta de quantas vezes nós viramos. Passamos por um ou
dois criados que pareciam estar recolhendo o que havia sobrado da festa.
Pensei em pedir ajuda para algum deles, mas não quis parar para explicar a
situação, tinha medo de perder o gato de vista.
Ele desceu mais uma escada e, por pouco, não tropecei nos degraus.
A escada era escura e irregular, parecia ser a entrada do subsolo. Segui o
animal pela escuridão e comecei a escutar sons vindo de lá de baixo.
Quando a escada terminou, só havia uma direção a tomar, um
estreito corredor à esquerda. As paredes eram de rochas e eu me senti
entrando em uma caverna.
Perdi o animal para a escuridão e precisei apoiar minhas mãos nas
paredes rochosas para me guiar. O som ficou mais alto, mais assustador.
Música?
Eu queria voltar, mas não podia. Precisava pegar aquele gato.
Precisava recuperar o colar da minha mãe.
Mas, assim que adentrei o cômodo, tudo sumiu da minha mente.
Congelei na entrada, com o coração batendo rápido e sem fôlego. Pisquei
algumas vezes, tentando absorver tudo o que estava acontecendo.
Parecia uma festa. Mas as pessoas estavam quase todas seminuas,
algumas completamente nuas.
O lugar era mal iluminado, só algumas poucas tochas espalhadas
pelo salão, que mais parecia ser uma caverna luxuosa e sombria.
Havia um pequeno palco no centro e era ali que se concentrava a
maior parte da limitada iluminação do ambiente. E, naquele momento, uma
garota de cabelos longos se despia lentamente em uma dança sensual.
Pessoas assistiam deitadas ou sentadas sobre almofadas espalhadas pelo
chão.
Fiquei em choque ao ver um grupo reunido em volta de um homem
transando com uma mulher em quatro apoios. Outras pessoas bebiam e
conversavam casualmente, como se aquele tipo de situação fosse normal.
Estava quente e havia um sutil cheiro de suor misturado com algum
tipo de aroma floral.
Eu nunca vi algo parecido. Nunca vi tantas pessoas nuas se
comportando daquela forma. Eu devia estar sonhando. Era a única
explicação plausível para aquilo.
Dei um passo para trás quando uma mulher usando unicamente
saltos passou por mim com uma bandeja, me tirando do torpor.
As conversas sussurradas e os gemidos eram um pouco mais altos
do que a música sutil que soava. Voltei a olhar para o palco, onde a bela
mulher tinha os seios expostos. O vestido repleto de pedras pendia em sua
cintura agora. Ela olhava fixamente para os fundos do salão, para uma
cabine mal iluminada.
Durante toda a dança sensual, seus olhos permaneciam ali, como se
ela estivesse se apresentando para alguém em especial. E foi só quando ela
moveu seu rosto levemente que a reconheci.
A ruiva da festa.
Despinna.
Eu pisquei, tentando associar todos aqueles corpos diante de mim.
Avistei o Príncipe do Reino de Trecia a menos de três metros de
mim, pegando uma taças de uma das garçonetes nuas. Não muito longe, o
Conde de Bingham — o homem que, há menos de duas horas, estava
discutindo assuntos sérios com várias outras pessoas igualmente poderosas
— lambia o torço de outro homem.
Despinna estava completamente nua àquela altura. Passava as mãos
pelos fartos seios e as escorregava pela barriga. Quando ela estava prestes a
chegar em seu centro, parou.
E, então, se virou para mim.
Diretamente para mim.
Mas levou apenas um breve instante para ela voltar a olhar para a
cabine escura. Seus movimentos ficaram um pouco mais hesitantes e a sua
feição, quase aborrecida.
Fitei a cabine novamente, tentando ver quem estava nas sombras.
Em meio a uma das várias performances ao redor, um homem sem camisa
soprou em uma tocha perto do local onde eu tentava enxergar.
E, no meio das chamas, o rosto mascarado se iluminou.
Sarkian Varant era o espectador nas sombras.
Mas o problema era que ele não estava olhando para ela.
Ele olhava para mim.
Meu primeiro instinto foi recuar e ir embora. Mas, então, ele se
levantou. Estava vindo em minha direção e, naquele ponto, era tarde demais
para recuar. Eu não queria fugir.
Bem, eu queria. Mas não me permitiria correr como uma garota
assustada.
O príncipe atravessou as sombras e os corpos se curvaram conforme
ele passava. A atenção das pessoas se dividiu entre o palco e o caminho que
ele fazia.
Como sempre, estava trajado de preto dos pés à cabeça. Ele era, sem
dúvidas, a pessoa com mais roupas no recinto, apenas parte da pele do seu
rosto estava exposta.
— Aqui estamos nós novamente. — Ele disse, ao parar diante de
mim. — Vejo que não rezou o suficiente.
Então, ele esperou. E eu sabia exatamente pelo quê.
Aquele era o momento em que eu deveria me curvar.
Reverenciá-lo.
Mas o meu corpo não parecia funcionar. Era como se meus joelhos
fossem fisicamente incapazes de se dobrarem. Minhas pernas haviam
congelado, como se o meu orgulho tivesse paralisado todos os meus
membros.
Os segundos se passavam com lentidão conforme ele tinha os olhos
fixos em mim.
Havia algo no cintilar do prata que me dizia que ele quase desejava
que eu não o fizesse. Ele queria que eu o desafiasse. Queria que eu lhe
desse um motivo para retaliação.
Engoli em seco e, finalmente, fiz uma reverência. Dolorosa e
hesitante.
— Impressionante. — Ele avaliou com sarcasmo. — Andou
praticando?
Mordi o interior da boca, mas não consegui evitar.
— Todos os dias, Vossa Alteza.
Ele sorriu. Demorou um instante, mas eventualmente o fez.
— Não sei se estou satisfeito ou decepcionado. Parte de mim queria
um motivo para cumprir a ameaça.
Um grito estrangulado soou, e eu desviei o meu olhar para uma
mulher que se encontrava de quatro e estava sendo chicoteada por outra. A
mulher com o chicote nas mãos usava algo parecido com uma lingerie que
deixava muito pouco para a imaginação e a outra estava completamente
nua.
E ambas pareciam estar gostando do momento que estavam
compartilhando. Continha dor nos sons que a mulher no chão deferia, mas
também havia desejo e excitação.
— Gosta do que vê, farren?
O príncipe me observava fitar a cena com uma das sobrancelhas
levemente arqueada.
Aquele apelido. De novo.
Não respondi, apenas corei. Perguntei-me se ele era capaz de notar
naquela escuridão. Torci para que não.
— O sexo por diversão ofende vocês, não é? É muito sujo para os
seus Deuses aprovarem. — Havia claro desprezo em seu tom.
— Você não sabe nada sobre os nossos Deuses — retruquei. — E
não… não me ofende.
Eu achava, pelo menos. Nunca tinha presenciado algo parecido.
Aparentava errado, mas, ao mesmo tempo, todos ali pareciam achar a coisa
mais natural do mundo.
— Então, gosta do que vê — concluiu.
Troquei o peso dos pés.
— Não disse isso.
— É por isso que está aqui? Curiosidade? — Ele perguntou. —
Porque não lembro de tê-la convidado.
— Eu me perdi, foi um...
Parei de falar quando uma garota nua, segurando uma bandeja,
parou diante dele. Uma coleira de couro adornada por brilhantes e saltos
eram as únicas coisas que ela usava. Só que, em vez de apenas se curvar, ela
se ajoelhou e se inclinou lentamente até que seus lábios tocaram os pés
dele. Uma das mãos segurava graciosamente a bandeja, enquanto a outra
tocava uma de suas pernas.
Como se estivesse reverenciando um Deus.
Eu mal pude acreditar no que estava vendo.
Era nojento. Enervante. Fascinante.
Levantei o olhar para Sarkian e ele a observava com o rosto neutro.
Com a mão direita envolvida pela luva de couro, ele a passou no topo da
cabeça dela. A cena me lembrou alguém acariciando um animal de
estimação.
Não consegui evitar a careta em meu rosto.
Por fim, ele pegou uma das taças da bandeja e a dispensou.
Sarkian Varant deu um longo gole enquanto me fitava. E, com
certeza, foi capaz de notar o horror em meu olhar.
— Entrei aqui por acidente — conclui, me recompondo.
— Engraçado, porque me parece muito curiosa.
Meu rosto esquentou de novo.
Talvez, fosse verdade. Estava um tanto enjoada, mas,
definitivamente, estava curiosa.
— Não quero estar aqui.
Ele inclinou a cabeça para o lado e a promessa de um sorriso
mordaz atravessou seus lábios.
— Então, o que ainda está fazendo parada aí?
Estava prestes a abrir a boca quando Despinna parou ao nosso lado.
Ela não usava absolutamente nada, apenas saltos, e andava com uma
confiança impressionante. Nunca vi alguém tão desinibido em toda a minha
vida.
Ela disse algo a ele em sua língua que não consegui compreender.
Mas a resposta dele fui capaz de entender:
— Uma keld.
O nojo atravessou a face dela no mesmo segundo e seus olhos
percorreram meu corpo de cima abaixo. Senti-me mais exposta do que ela,
mesmo estando completamente vestida e ela, nua.
— É verdade o que dizem sobre as mulheres keld? Que vocês têm
muitos pelos? — Ela provocou, agora em minha própria língua. Seu sotaque
era forte e a voz preguiçosa. Tinha um sorriso doce demais nos lábios
vermelhos, e se aproximou lentamente. — Talvez, devêssemos dar uma
olhada.
Ela levantou um braço como se fosse me tocar.
— Não encoste em mim. — Eu praguejei, recuando um passo.
Despinna sorriu ainda mais e, então, franziu o cenho.
— Você está vestida demais. — Ela fez uma menção para o resto do
cômodo. — Veja como todos estão.
Olhei para Sarkian. Ele observava a interação, sem dúvidas,
apreciando o meu desconforto.
Despinna deu a volta por mim e pude sentir o aroma de seu
perfume. Ela me circulou com a clara intenção de me intimidar. E odiava
admitir que ela estava conseguindo. Quando sua mão se ergueu novamente,
não fui eu quem falei.
— Não toque.
Ambas olhamos para o príncipe. O rosto de Despinna foi tomado
pela surpresa e por um toque de mágoa devido à repreensão.
— Por quê? — indagou, suave e sem toda aquela confiança de
segundos atrás.
Sarkian me fitou. Notei o desprezo brilhar em seus olhos.
— Não quero suas mãos em sujeira keld.
Satisfeita com a resposta, Despinna obedeceu, indo em sua direção.
Ela colou o corpo na lateral dele, seus seios roçando o traje negro. O
príncipe deu um grande gole no vinho, ainda me observando. Distanciei-
me, lançando um último olhar pelo chão do lugar antes de ir.
Eu o havia perdido.
O gato.
O colar da minha mãe.
Senti algo roçar as minhas costas e quase pulei quando dei de cara
com uma feição monstruosa. Levei um momento para entender que era um
homem nu usando uma máscara tenebrosa de algum animal com chifres.
— Se eu fosse você, iria embora. — Ouvi o Príncipe das Sombras
comentar. — Talvez, alguns deles não se importem em se sujar.
A monstruosidade passou uma das mãos pelo meu braço, fazendo
com que todo o meu corpo tensionasse, e foi quando eu finalmente saí dali.
Na mesma noite
a usurpadora abriu um dicionário antigo
da língua que pertencia ao povo selke
Ela procurou pela palavra
seus dedos correndo pelas folhas
até encontrar
Farren
insignificante
inferior
capítulo 8

— Descreva para elas. E diga que, caso encontrem, haverá


recompensa — instrui à Allegra para que pedisse aos criados do castelo
para procurarem pelo meu colar.
Havia grande possibilidade de que, caso algum deles achasse,
simplesmente o manteria para si, já que era um colar um tanto caro. Mas eu
não tinha muitas opções, jamais encontraria o colar naquele castelo enorme
sozinha.
Logo depois, deixei meu quarto para encontrar Theon.
— Deuses, eu não suporto esse frio. Não vejo a hora de voltarmos.
— Ele comentou, conforme passeávamos pelos jardins do castelo.
Eu usava um vestido azul de mangas compridas devido ao frio da
manhã. Dava para notar o gelo derretendo na ponta da grama que foi
congelada durante a madrugada. O jardim era extenso, porém, não tão
colorido e vibrante quanto os de Umbra. As únicas flores que cresciam
naquele clima e solo eram as das árvores de ipê. Havia centenas delas, todas
floridas. Parte das pétalas cobria o chão, formando um cobertor branco. Era
belo, de uma forma fria e quase melancólica.
— É, eu também não vejo a hora de voltar.
Mas não por causa do frio. Eu gostava do frio.
Theon olhou para mim.
— Também não gosta daqui?
— Não. — Pensei por um momento antes de falar. — Não me
sinto... bem-vinda.
— Porque não somos. — Ele balançou a cabeça e bufou. — Esse
tratado é uma besteira. O ressentimento é claro de ambos os lados. O
Príncipe Sarkian nem foi, ao menos, na recepção de ontem. É uma tremenda
falta de respeito. Um absurdo.
Ele nos despreza, pensei.
— Ele não gosta do nosso povo — murmurei.
— Ele é um animal. — Theon abaixou o tom. — Eles todos são.
Olhei em volta para me certificar de que ninguém tinha ouvido.
Aquele era o tipo de afirmação que levava alguém para a forca. E,
aparentemente, os selke tinham bastante criatividade quando o assunto era
punição.
— Você acha que seu pai gosta de mim? — perguntei, mudando de
assunto.
Eu havia trocado poucas e superficiais palavras com Senhor Bauer
durante a viagem. Era um velho roliço e de poucas palavras. Nunca o vi
sorrir.
Theon me encarou, levemente surpreso.
— Claro. Por que não gostaria?
— Não tenho um título.
— Eu não me importo.
— Mas ele se importa?
— Não. — Ele respondeu depois de um momento e, então, desviou
o olhar. — Ele sabe o que você significa para mim.
Aproveitei que ele não me fitava e permiti que meus lábios se
transformassem em um sorriso.
— A grande questão é: seu pai me aprova? — Theon perguntou.
— Por que não aprovaria? — rebati da mesma forma.
Ele suspirou e balançou os ombros, conforme passávamos por
outras pessoas no jardim.
— Você é sua única filha, ele deve ficar preocupado em te combinar
com o melhor.
Desviei o olhar.
Ele estava certo, mas não pela razão que imaginava. Meu pai
desejava o melhor casamento, mas não devido à minha felicidade e
proteção, e sim pela sua reputação e o que isso adicionaria à nossa família.
Mas não disse isso, claro. Não precisava que Theon soubesse que
meu pai não poderia se importar menos comigo.
— Você é o melhor — afirmei.
Ele sorriu ao me observar.
— Então, não há outros pretendentes? Posso ficar tranquilo?
Pensei em todos os pretendentes em potencial que a minha madrasta
vinha me apresentando.
Com certeza.
— Pode.
Ele parou de repente. Então, passou uma das mãos ao meu redor, me
puxando para perto. Seu rosto desceu para o meu.
Hesitei.
— Theon…
— O quê? — indagou, olhando para a minha boca.
— Não podemos.
Olhei em volta, mas ninguém nos observava.
— Não estamos em Umbra. Aqui, eles não se importam. Ontem, vi
um homem agarrando os seios de uma mulher contra a parede do salão.
Durante a festa. E eu tenho quase certeza de que aquela não era a esposa
dele.
Abri minha boca, mas nada saiu.
Ele não tinha a menor ideia do que eu tinha visto ontem. E eu ainda
não tinha certeza se iria contar. Era difícil colocar em palavras. E, de
qualquer modo, não queria falar sobre o meu encontro com o Príncipe
Sarkian. Tinha vergonha e raiva de como fui tratada.
Theon me beijou, e eu permiti.
— Não podemos fazer isso lá — censurei, assim que seus lábios
deixaram os meus.
Estavam corados e úmidos. Ele cheirava a canela. E eu amei o fato
de que esse aroma estava começando a me parecer familiar.
Theon sorriu.
— Vamos aproveitar, então.

Eu estava perdida. Isso era um fato.


Estava a caminho do meu quarto. Já eram quase nove horas da noite,
eu estava me recolhendo para dormir e até conseguia imaginar o banho que
pediria à Allegra para aprontar. Mas, então, virei em algum corredor que
não devia e, agora, não sabia onde estava e nem para onde deveria ir para
chegar aos meus aposentos.
Tentava encontrar algum criado para me auxiliar quando ouvi um
som estranho. A princípio, ignorei o distante e irreconhecível barulho, mas,
conforme me aproximei de uma escada, ouvi de novo. Dessa vez, mais alto
e mais claro. Era um grito abafado. Um grito desesperado.
Olhei para o final do corredor vazio e, então, para a escada ao meu
lado. Em dúvida do que deveria fazer.
Talvez, houvesse uma explicação. Talvez, fosse mais uma daquelas
festas sombrias e promíscuas.
Só que ouvi de novo. Dessa vez, não pude ignorar o desespero na
voz. Era alguém pedindo por ajuda.
Desci as escadas lentamente, cada degrau era uma hesitação
diferente.
Duvidava que eu, em minha posição, poderia fazer muita coisa para
ajudar alguém naquele castelo. E, por mais que eu gostasse de acreditar que
estava descendo puramente à socorro de alguém, não era uma total verdade.
A curiosidade me movia mais do que o altruísmo.
Desci e me deparei com mais um longo corredor. Todas as portas
estavam fechadas, apenas uma estava entreaberta. E era de lá que o barulho
vinha.
Agora, alto.
Era um homem. O som saía de sua garganta. Gritos agonizantes.
Mas havia mais.
Uma voz baixa e rouca, que foi ficando mais alta conforme eu me
aproximava.
Pensei em subir novamente, mas meu corpo parecia ter vontade
própria, porque eu me aproximei lentamente, até parar ao lado do batente.
O corredor era escuro e eu esperava me misturar às sombras para
não ser pega. Aproximei o rosto apenas o suficiente para que pudesse
enxergar parte do interior do cômodo.
Fiquei instantaneamente chocada com o que vi.
Um homem nu estava pendurado no teto pelos punhos. Suas costas
sangravam devido aos machucados, e ele parecia ter os olhos e a boca
vendados. A cabeça pendia para baixo, como se estivesse exausto.
Derrotado.
E, atrás dele, também de costas para mim, uma figura longa e escura
carregava um chicote.
Eu não precisava ver mais do que suas costas para reconhecê-lo.
Era Sarkian Varant.
Ele tinha uma das mãos atrás das costas e a outra arrastava o chicote
pelo chão. Dois soldados mascarados observavam a cena dos fundos do
cômodo.
Sarkian falou alguma coisa, mas não entendi o quê. Escutei apenas o
som rouco de sua voz ecoando no cômodo tenebroso. Havia uma parede
repleta de utensílios estranhos, e não demorou para que eu chegasse à
conclusão de que eram ferramentas feitas unicamente para ferir.
E eu sei que deveria me afastar e dar o fora dali, mas não conseguia.
Estava hipnotizada.
Havia tantas perguntas.
Quem era aquele homem?
O que ele tinha feito?
Por que o príncipe estava fazendo aquilo?
Alguns segundos depois de dizer o que quer que tenha dito, Sarkian
levantou a mão e o chicote estalou nas costas já brutalmente feridas do
homem.
Segurei a respiração ao ouvir o som do couro batendo contra a pele.
Todo o corpo do homem tensionou e o som que deixou os seus
lábios foi difícil de ouvir. Sangue pingava no chão, se juntando a uma
pequena poça na madeira.
O chicote estalou novamente. E, então, mais uma vez. O homem
gritava.
Até que ficou em silêncio.
Sarkian circulou o homem lentamente com o chicote arrastando pelo
piso. Afastei-me um pouco mais da porta, com medo de que me visse.
Ele, por fim, entregou o chicote para um dos homens que observava
em silêncio e foi até a mesa. Demorou para que eu conseguisse entender
qual objeto que havia em suas mãos agora.
Uma faca.
Sarkian se aproximou com a lâmina em mãos e arrancou a venda
dos olhos do homem. O desconhecido, que eu achava que já estava morto,
começou a se chacoalhar desesperadamente assim que notou o objeto. Ele
balançava a cabeça e os braços, e os barulhos que deixavam a sua garganta
não paravam.
Foram interrompidos apenas quando o príncipe enfiou a faca em sua
barriga.
O ar deixou os meus pulmões e tudo ficou muito silencioso.
Fechei os olhos com força por alguns segundos e, quando voltei a
abri-los, Sarkian deslisava, muito lentamente, a lâmina para fora do corpo
do homem. Ele fitava fixamente os seus olhos. Bebia sua dor. Alimentava-
se de seu desespero.
Conseguia imaginar o brilho em seus olhos pratas observando a vida
deixar o corpo do homem.
Ele era um monstro.
Um sádico.
Gostava daquilo.
— Não quer assistir mais de perto, farren?
O meu coração parou. E, então, começou a galopar violentamente
contra o meu peito.
Sarkian levantou os olhos da faca para me encontrar. Nosso olhar se
cruzou, e uma onda gelada e nauseante atravessou meu corpo inteiro.
Dei um passo para longe da porta, instintivamente tomando
distância. Mas, com um sutil movimento de sua cabeça, seus guardas
vieram em minha direção.
Não.
Virei-me e comecei a correr, mas não cheguei nem até as escadas
quando me agarraram.
— Me soltem! — exigi, me debatendo.
Eles pegaram os meus braços e me ergueram como se eu não
pesasse mais do que uma boneca de pano. Fui arrastada pelas mãos brutas
até o meio do cômodo. Até estar de frente a ele e ao lado do homem ferido.
Ao me soltarem, me recompus. Não havia saída, de qualquer forma.
Tentar fugir era inútil, então tentei, pelo menos, manter alguma dignidade.
Sarkian cortou as cordas que prendiam o homem, e ele caiu no chão,
a cerca de centímetros dos meus pés. O barulho de seu corpo batendo contra
o piso me fez estremecer.
Dei um passo para trás.
O sangue do homem se espalhava lentamente pelo piso.
— Gostou do show? — Ele indagou, devolvendo a faca para a mesa.
Ele olhava para suas mãos enquanto tirava as luvas sujas de sangue.
Sarkian puxou o couro de cada um dos seus dedos meticulosamente e a luva
escorregou pela sua pele. E aquela foi a primeira vez que vi as tatuagens.
As marcas negras subiam pelos seus dedos, fazendo contraste com a pele
pálida.
Continuei parada, observando-o com o coração batendo
rapidamente. Sarkian não parecia ter nenhuma pressa para o que quer que
fosse. Sabia que o suspense me torturava.
— É a segunda vez que está onde não deve. — Ele derramou uma
bebida no copo e, quando terminou, finalmente levantou o olhar para me
encarar. — Me diga, está se esforçando para me irritar? Não há necessidade
disso, sabe.
Sarkian cruzou o cômodo, passando pelo homem, e se sentou no
sofá de couro.
Ele não usava máscara. Aquela era a segunda vez que estava diante
de seu rosto exposto e era quase tão arrebatador quanto da primeira vez.
Não de uma forma positiva, longe disso. Eu associava aquele rosto à pura
maldade.
— Não. Me…
— Se perdeu? — Ele interrompeu. — Imaginei. Alguém precisa te
dar um mapa deste castelo. Tem certas coisas que não deveria ver.
— Não me perdi. Escutei um barulho e o segui. Achei que alguém
estivesse precisando de ajuda.
Sarkian fez uma careta sarcástica.
— Uh. — Ele lançou um olhar ao homem no chão e fez uma
expressão falsa de pesar. — Acho que você chegou um pouco tarde.
O homem tremeu em um espasmo no chão. Ele ainda respirava,
lutando pela vida. Agora que eu o via mais de perto, consegui notar os
ferimentos em sua lateral e em sua barriga. Queimaduras.
O sangue se espalhou ainda mais pelo chão e precisei dar mais um
passo para trás para que o líquido não tocasse meus pés.
Eu não conseguia tirar os olhos do corpo.
Já tinha visto a morte de perto, mas não como daquela forma.
Execuções públicas eram rápidas em Umbra. Forca. Decapitação. A espada
descia e a cabeça rolava. E, então, acabava. Não havia tortura.
O homem tossiu, me fazendo piscar.
— Assim é mais devagar. — Sarkian explicou. — Ele vai se afogar
no próprio sangue.
A sua voz me fez tirar os olhos do homem ferido e encará-lo. Não
havia nada em seu olhar. O prata era simplesmente vazio. Imperturbado.
Ele deu um gole na bebida.
— Você quer saber o que ele fez para acabar assim?
Cerrei os dentes dentro da boca. Ele estava provocando.
— Tenho certeza de que você teve uma boa razão para fazer isso.
— Mas é claro. Jamais faria algo tão cruel se não houvesse um
excelente motivo. Algum palpite? — Ele sorriu. — Vamos lá. Já que está
aqui, me entretenha.
Minha garganta estava seca e lutei contra a vontade de engolir.
— Ele não se curvou?
A provocação fez com que o sorriso mordaz permanecesse em seus
lábios.
— Ele disse algo do qual não gostei. Tinha uma língua afiada, não
soube a hora de parar. — Ele apoiou o copo na cômoda ao lado do sofá. —
Ele me lembra um pouco você.
— Sente prazer nisso?
— Em torturar?
— Em me ameaçar.
A diversão lentamente deixou sua feição e, de repente, ele me
pareceu muito sincero. Sarkian se levantou e andou até estar diante de mim.
Prendi a respiração.
Não recue.
— Tenho prazer em vê-la desta forma.
— Como? — Minha voz soou como um sopro distante.
— Com medo. — Ele inclinou a cabeça até estar com o rosto
próximo do meu ouvido, mas sem que sua pele tocasse um fio do meu
cabelo. — Você fede a pavor, farren. É patético.
Agora que eu sabia o sentido do apelido, as palavras ecoavam em
minha mente sem parar toda vez que ele o repetia.
Inferior. Insignificante.
Quando ele se afastou, pude puxar ar o suficientemente para
perguntar:
— O que eu fiz para te ofender?
— Você é uma keld. — Ele respondeu, se referindo ao povo de
Umbra, como se fosse óbvio. — A sua mera existência me ofende.
— Você deveria se acostumar, Vossa Alteza. — Derramei sarcasmo
nas últimas palavras. — O seu pai fechou um tratado, então creio que ele
não pense o mesmo.
Sarkian não respondeu, apenas se afastou e suspirou, quase como se
estivesse entediado. Colocou as mãos nos bolsos quando voltou a me
encarar.
— Ouvi dizer que perdeu algo.
— Como sabe disso?
— Esse é o meu castelo, farren. Sei de tudo o que acontece por aqui.
— Ele fez uma pausa e deu de ombros sutilmente. — É um belo colar.
— Você o encontrou. — A frase deixou a minha boca como uma
acusação.
Ele não respondeu, nem mesmo se moveu.
— Me devolva — ordenei.
— Uhm… — Ele fingiu pensar, até que, por fim, respondeu: — Não
posso.
— Por quê?
Ele podia estar só blefando, pensei. Talvez, soubesse que eu havia
perdido o colar, mas não o tinha. Talvez, ele só estivesse jogando comigo.
Mas algo me dizia que ele não estava.
— Gostei dele — respondeu simplesmente. — O diamante é um
pouco pequeno para o meu gosto, mas não deixa de ser belo.
Dei um passo à frente.
— É meu.
— Era seu. — Ele corrigiu, inabalável.
Estava se divertindo.
Fechei as mãos em punhos. Queria acertá-lo.
— Você não pode pegar o meu colar.
— Por que não?
— Não te pertence. Isso te faz um ladrão.
Afinal de contas, ele era um maldito príncipe, e não um qualquer.
Era o príncipe do reino em que mais havia pedras preciosas. Ele podia ter o
diamante do tamanho do seu polegar, se desejasse.
O comentário o divertiu.
— Já fui chamado de muito pior do que isso. Vai ter que se esforçar
para me ofender.
Qual era o problema dele?
Aquele colar não significava nada para ele. E, em contrapartida,
significava tudo para mim.
— Você não tem nenhum escrúpulo?
— Estou surpreso que levou tanto tempo para notar.
Meu coração batia forte em pura frustração e raiva. Havia desespero
também.
— Eu não vou embora sem o colar — declarei.
Foi uma declaração estúpida, soube assim que deixou a minha boca.
Mas estava desesperada.
— Então, talvez, não vá embora daqui de forma alguma. — Sua
ameaça chegou aos meus ouvidos como uma brisa de inverno.
A raiva era tão grande que senti meus olhos começarem a
lacrimejar. Mas eu não podia chorar. Não na frente dele.
— Era da minha mãe. Tem grande importância.
O homem sem alma sorriu e, com a voz mais baixa, em desafio,
indagou:
— O que vai fazer, então?
Eu sabia o que Sarkian queria.
Ele queria a minha humilhação. Ele queria que eu implorasse.
Vamos lá, Cera.
Pense nela.
— Por favor — pedi, com cada célula do meu corpo queimando em
orgulho ferido e ódio.
Sarkian balançou a cabeça e desviou o olhar. Fingiu ponderar e os
segundos decisivos seguintes duraram uma eternidade. Até que, por fim, ele
se voltou para mim.
— Ajoelhe-se.
Pisquei.
— O quê?
— Ajoelhe-se — ele repetiu —, e, talvez, eu considere abrir mão da
minha nova aquisição.
Foi quando entendi que não recuperaria aquele colar nunca. Ele
apenas me empurraria mais e mais. E, no final do seu jogo de humilhação,
me deixaria sem nada.
Raiva eclodiu.
Eu não podia acreditar nele. Não podia acreditar que alguém tão
miserável existia.
— Você acha que isso te faz assustador? Isso só te torna um
covarde. — Eu sabia que deveria parar, mas fiz exatamente o oposto disso.
O ódio queimava quando dei um passo à frente. — Por que é assim? É
porque é o segundo filho? A segunda opção? Jamais será um rei, então
passa o seu tempo se distraindo da própria miséria tornando a vida dos
outros infeliz?
Eu reconheci meu erro assim que fechei a boca.
Mas era tarde demais.
Seu rosto vazio e impenetrável se tornou perverso. O prata de seus
olhos brilhou, aquele brilho que me causava arrepios.
Ele deu um passo à frente. Dessa vez, eu não consegui, recuei.
Com apenas um movimento da cabeça de Sarkian, os homens
voltaram a me segurar, mas, dessa vez, um deles ergueu meus braços até as
cordas que antes seguravam o homem ferido. Eu me debati, mas, antes que
pudesse fazer qualquer coisa, me vi com os pés chutando o ar e as mãos
amarradas.
Consegui acertar um dos soldados, mas o golpe não pareceu fazer
efeito algum. Meu vestido balançava conforme eu me debatia
desesperadamente.
— As pernas também. — Sarkian ordenou com a voz calma.
Chutei de novo, mas o homem habilmente lançou a corda em volta
dos meus tornozelos.
— Me solte! — Eu exigi, olhando diretamente para ele.
Meu peito subia e descia de forma violenta.
Em um movimento fluido, Sarkian puxou a espada de sua cintura.
Parei de me mover. Meu coração foi para a boca.
Ele deu dois passos à frente e ergueu a lâmina em direção ao meu
rosto. A ponta fria tocou o meu queixo e ele a deixou ali.
Meu peito subia e descia com força enquanto encarava o prata
assombroso.
— Eu acho que preciso te lembrar quem sou. — Sarkian desceu a
lâmina pelo meu pescoço em um movimento lento mas sem empurrar. — E
o mais importante: quem você é.
Eu movi meu rosto, tentando me afastar da lâmina.
— Quietinha. — Ele alertou. — Não quer que eu te corte por
acidente, não é?
Parei de me mover.
Sarkian, por fim, tirou a espada do meu pescoço e eu soltei o ar
devagar. A pele sensível por onde ele havia arrastado a lâmina formigava.
Ele recuou, me contornando até que eu não o tivesse mais em minha
linha de visão.
— Consigo sentir o seu cheiro. — Ouvi a sua voz. — Você fede a
medo, farren.
Eu abri a boca, mas nada saiu.
Ouvi o som dos passos quando ele se aproximou.
Prendi a respiração.
E o que aconteceu em seguida foi tão rápido quanto um piscar de
olhos. Senti a brisa na pele exposta das minhas costas assim que a minha
roupa rasgou em um movimento ágil e rápido da lâmina.
Eu não conseguia falar. Não conseguia acreditar que aquilo estava
acontecendo.
Sarkian recolheu a lâmina na cintura e pegou o chicote. Ainda havia
sangue no couro.
Não!
— Você não pode fazer isso! — Eu gritei.
Os olhos pratas encontraram os meus assim que se virou. Diversão
perversa brilhou em suas íris.
Ele não pode, repeti a mim mesma.
Mas, conforme ele se aproximava, eu comecei a entender que ele
iria.
O chicote arrastou pelo chão conforme ele me contornou devagar.
Meu coração batia tão forte que eu o sentia martelar contra meu
peito. O desespero era tão grande que a pressão na minha cabeça me
deixava tonta. A minha garganta doía com a angústia, como se eu tivesse
gritado sem parar por um dia inteiro.
— Você está me subestimando com relação ao que posso ou não
fazer. — Ele parou atrás de mim. — Acho que você vai se surpreender com
a quantidade de coisas que posso fazer com você.
Fechei os olhos e uma lágrima involuntária escorreu pela minha
bochecha. Eu nem havia notado que estava chorando.
Aquilo estava mesmo acontecendo.
Eu seria chicoteada.
Torturada.
Não iria implorar nem gritar. Não iria me humilhar ainda mais.
Notei o movimento atrás de mim, a sombra de seu braço se
erguendo. Engoli em seco, pronta para o golpe.
Mas não veio.
Os segundos se arrastaram por uma eternidade e nada aconteceu.
Ouvi os passos até que sua voz grave ecoou pelo cômodo:
— Não a soltem até o amanhecer. E, se ela gritar demais, matem-na.
Era mais um jogo.
A antecipação era quase pior do que o golpe em si, e ele sabia disso.
Mas também era um aviso do que ele poderia fazer comigo, caso desejasse.
Eu fiquei presa com o cadáver de um homem a menos de um metro
dos meus pés até o primeiro raio de sol surgir pela pequena janela. Meus
braços estavam dormentes e todo o resto do meu corpo doía.
Durante a noite, a única coisa que eu via quando fechava os olhos
era o rosto dele.
Não foi a dor que me manteve acordada.
Foi o ódio.
Na madrugada fria e angustiante
uma faísca se acendeu
no peito da Usurpadora de Sangue
Com as mãos atadas
e o corpo suspenso
as chamas de revolta antes brandas
se tornaram mais fortes
O Príncipe das Sombras não fazia ideia
do incêndio que acabara de causar
capítulo 9

Eu escolhi um vestido de mangas longas para a última festa da


estadia, a fim de esconder as marcas em meus punhos.
E, quando Allegra disse que ficou preocupada comigo e me
perguntou onde eu havia passado a noite, disse que não era de sua conta.
Sua expressão ferida fez com que eu me sentisse um lixo, mas era a única
forma de não estender o assunto.
O que eu poderia fazer?
Para quem eu poderia contar o que o príncipe havia feito comigo?
Nada poderia ser feito, de qualquer forma. Eu não era importante o
suficiente para causar um dano a ele e acabaria sendo mais prejudicial para
a minha reputação do que para a dele.
E, claro, ao entrar no salão naquela noite ele foi a primeira coisa que
vi.
Ele estava ao lado do seu irmão mais velho. Do outro lado, estavam
sentados seu pai, no trono do centro, e a mãe, na ponta oposta. Sarkian tinha
um copo de vinho na mão direita e as pernas cruzadas de forma quase
desleixada. Acho que se ele não fosse tão esbelto e gracioso, aquela
maneira de se sentar seria inapropriada para a realeza. Talvez fosse sua
aparência ou talvez seu magnetismo, mas qualquer coisa que ele fazia
parecia sofisticado. Seu irmão estava sentado de forma idêntica ao pai.
Mãos vazias e apoiadas nas laterais dos assentos.
O olhar de Sarkian estava escondido atrás da máscara negra, mas, se
prestasse muita atenção, era possível reconhecer a sua familiar expressão
sutil de repúdio misturado com tédio.
Bastardo arrogante.
Naturalmente, andamos até a Família Real para fazer as reverências.
Cada passo que eu dava na direção dele parecia uma sentença de morte.
Meu corpo todo queria fazer justamente o contrário.
Tentei fixar meu olhar apenas nos outros membros da família, mas
foi impossível. Minhas íris se voltaram para ele como se sua presença
pulsasse ao redor.
Não houve reação ou nenhum tipo de reconhecimento. Por trás da
máscara, seu olhar apenas se fixou no meu por um segundo a mais,
conforme eu me curvava em reverência. Seus dedos enluvados e repletos de
anéis da mão livre, que antes tamborilavam no braço do trono, pararam por
um milésimo de segundo. Até que desviou com desdém e desinteresse.
Nós nos sentamos para jantar. Os pratos foram postos pelos criados
ao soar do sino e, mais uma vez, estranhei a falta da oração antes da
refeição. Era essencial em Umbra, principalmente nos eventos dentro do
palácio. Mas o Rei Zagreus apenas fez um brinde sem muitas cerimonias e
nos mandou comer.
Lancei um olhar para o trono, mas Sarkian tinha o olhar vazio e
distante de mim. Consegui comer, apesar de não ter muito apetite. De vez
em quando, levantava o meu olhar para encará-lo.
Ele estava agindo como se fosse um dia qualquer. Mal reconhecia a
minha existência, como se ele não tivesse me deixado amarrada a
madrugada toda.
Esfreguei os meus pulsos em um movimento nervoso e desviei o
olhar. Eu já havia chorado o suficiente naquelas horas em que estava presa.
Em silêncio, as lágrimas escorreram até que não sobrasse nenhuma em meu
corpo.
O pior de tudo era saber que eu nunca conseguiria me vingar. Ele
era um príncipe. Sarkian era intocável. Destrui-lo era um desejo pulsante,
porém, distante.
Virei-me para comentar com Theon sobre a aparência um tanto
inusitada do segundo prato que foi posto, mas ele tinha os olhos fechados e
a cabeça levemente inclinada.
— Está tudo bem? — Eu indaguei, observando-o.
Theon ergueu o olhar, mas demorou um momento para responder.
— Não… não estou me sentindo muito bem.
— O que está sentindo?
Ele colocou a mão contra a testa e inspirou.
— Uma dor aguda na cabeça.
— Talvez, tenha sido algo que comeu. Está muito ruim?
— Mais ou menos. — Ele piscou com força e deu um gole no vinho.
— Mas vai passar.
Assim que a sobremesa foi posta, o sino soou novamente. E, dessa
vez, a majestosa porta do salão foi aberta e uma dúzia de garotas com
roupas vermelhas entraram dançando. Elas se posicionaram no meio do
salão e começaram a fazer uma apresentação bem ensaiada.
Não demorou muito para que eu reconhecesse a garota que dançava
no centro, a que guiava o movimento das outras.
Era Despinna.
Não se movimentava em uma dança erótica como na outra noite,
mas era bem sensual e sugestiva. Ela se contorcia de forma graciosa e a sua
roupa era justa ao corpo, despertando a curiosidade de todos os homens no
recinto, tenho certeza.
A música ficou mais alta conforme a dança ficava mais intensa. Ela
movia seus quadris e jogava a sua cabeça para trás. Seus olhos se dirigiam
ao trono, e eu já sabia em direção de quem.
Ela não deixava tão óbvio como naquela dança erótica que estava
dançando para Sarkian. Naquela noite, ela queria que todos soubessem.
Agora, não. Ela lançava sutis olhares, mas poderosos. Ela queria apenas que
ele soubesse.
Como a maioria, Sarkian também tinha a sua atenção na dança. Em
Despinna. Mas, às vezes, o seu olhar vagava.
E ele vagou até o meu em dado momento, me pegando encarando-o.
Foi rápido demais e não tive tempo para desviar. Havia sido pega no flagra.
Ele arqueou uma sobrancelha em minha direção, soube pelo
movimento sutil da máscara. Resisti à vontade avassaladora de ceder e
desviar, mas sustentei seu olhar por vários segundos. Como se não me
sentisse desconfortável com isso. Como se ele não me abalasse nem um
pouco.
Não sei por quanto tempo nos encaramos, mas me pareceu séculos.
Ele também não parecia disposto a desviar. Aquilo, de alguma forma, se
transformou em uma competição.
Meu rosto esquentou diante do prateado intenso. Olhar para ele era
doloroso. Em suas íris, eu via tudo o que odiava em mim mesma. Era um
lembrete da minha fraqueza e do meu status inferior. Era a lembrança da
noite anterior.
Acabei desviando, com o rosto vermelho de humilhação e,
principalmente, raiva.
Theon se movimentou ao meu lado. Estava afastando a cadeira.
Fiz menção de levantar também, mas ele me impediu, colocando a
mão sobre a minha.
— Não, está tudo bem. — Ele assegurou ao ficar de pé. — Acho
que só preciso fugir do barulho um pouco. Vou ficar bem.
— Tem certeza?
Ele assentiu.
A dança terminou pouco depois que ele se retirou. Durante todo o
resto do tempo, me neguei a olhar na direção de Sarkian. E podia estar
louca, mas tinha quase certeza de que senti, uma ou duas vezes, seu olhar
queimar sobre mim.
Depois do jantar, o sino bateu de novo. Uma orquestra se posicionou
próxima ao trono. Senti o salão se agitar. Aparentemente, era a hora de nós,
os convidados, tomarem a pista.
— O que é isso? — perguntei, quando uma mulher se agachou na
minha frente com um pote prata.
— As garotas solteiras tiram um papel que pode ou não conter o
nome de um dos príncipes — explicou. — Se você pegar o nome de algum
deles, vocês dançam juntos.
Dançar com algum dos príncipes?
Meu estômago embrulhou quando olhei para o pote.
— Não, obrigada.
Ela piscou e, então, olhou para mim como se eu fosse um animal de
sete cabeças.
— É um privilégio. Você precisa pegar um papel.
Eu hesitei e, quando a minha mão se estendeu, ela tremia.
O rosto da mulher se transformou de modo sutil. Ela se aproximou
e, quase gentilmente, disse:
— Não precisa ter medo. E pode ser que você tenha a sorte de pegar
o Príncipe Zalic. Ele tem fama de ser mais… agradável.
Eu passei os olhos pela extensa mesa em que me encontrava. Havia,
pelo menos, cinco garotas da minha idade com um papel nas mãos. Fora as
dezenas de outras nas mesas ao redor.
As chances estavam a meu favor.
Enfiei a mão no pote e peguei o maldito papel.
Ela instruiu para que eu o abrisse apenas no momento em que nos
fosse avisado.
Olhei para Sarkian; ele tinha a taça de vinho nos lábios e o olhar
distante.
Não iria acontecer. Os Deuses não me odiavam tanto assim.
Deram-nos o sinal para que abríssemos todas em conjunto. A minha
mão tremia quando desdobrei o papel.
E aconteceu que os Deuses deveriam me desprezar. Porque o nome
dele estava escrito em uma bela caligrafia negra.
Meu corpo congelou.
Levantei o olhar e o encontrei já me observando fixamente. Parecia
quase tenso ao passo que a pergunta pairava em sua expressão. E ele teve a
sua resposta porque o pavor estava estampado em meu rosto quando nossos
olhares se cruzaram.
Sua mandíbula tensionou e essa foi a última coisa que eu vi antes do
papel em minha mão, de repente, pegar fogo. A pequena chama queimou os
meus dedos e eu levei um susto, soltando-o. Ele virou cinzas antes de cair
sobre meu colo.
A mesma coisa aconteceu com uma garota na mesa ao lodo. Notei
os olhares divididos entre mim e ela. Mas, diferentemente de mim, ela
parecia feliz. E as pessoas que a fitavam pareciam ter inveja. Enquanto as
pessoas que me fitavam pareciam ter… pena ou, talvez, até mesmo
simpatia.
Não havia escapatória. Não havia como mentir ou negar. Os papéis
premiados eram os únicos que pegavam fogo.
Os príncipes se levantaram, e nos foi indicado fazer o mesmo.
Sarkian e eu nos encarávamos conforme ele se encaminhava para o centro
do salão. Quando a outra garota se afastou do seu assento, me obriguei a
fazer o mesmo. Não havia escapatória. Meu corpo funcionava em piloto
automático.
Ele me esperava parado no extenso e praticamente vazio salão. E,
assim que me percebi diante dele, apenas a alguns metros de distância, notei
que nunca tinha visto um homem tão descontente em toda a minha vida.
Seus lábios estavam em uma linha reta e seus olhos...
Bem, eles deixavam muito claro o seu nojo por mim.
Sarkian não queria dançar comigo. Uma keld. Vi o desgosto em seus
olhos porque ele não tentou esconder. Mas a sua repulsa em relação àquela
dança só não era maior do que a minha. Queria correr dali. E acreditava que
ele sentiu isso. Porque, assim que parei em sua frente e ele notou a tensão
em meus ombros e o desespero em meu olhar, suas íris mudaram.
Foi sutil, e o resto de seu rosto permaneceu neutro. Mas eu vi certa
satisfação sádica atravessar seus olhos.
O prazer de me ver com medo era maior do que sua repulsa de me
tocar.
A música começou. Do outro lado do salão, a garota e o Príncipe
Zalic começaram a se movimentar, fechando a distância entre si.
Eu não me movi, pelo menos não instantaneamente. Por causa da
máscara, eu não podia ver seu rosto todo, mas tinha certeza de que ele me
encarava com desafio. Podia imaginá-lo falando perfeitamente palavras
cruéis.
Vamos lá, farren.
Está com medo?
Foram apenas alguns segundos, mas aquele impasse me pareceu
uma eternidade. As pessoas observavam com expectativa.
Quando ele, finalmente, deu o primeiro passo, me vi forçada a fazê-
lo também.
Encontramo-nos no centro do salão. E, antes que eu pudesse fazer
qualquer movimento para aproximar as minhas mãos, ele as tomou. O
choque do material de sua luva contra a minha pele me pegou de surpresa.
Eu quis recuar, mas seu aperto, apesar de não violento, era firme. Ele trouxe
os meus braços para perto de si mesmo, posicionando-os como queria. A
minha mão direita ficou no seu ombro e a esquerda, ele segurou erguida.
Senti o frio do material de seus anéis na minha pele. Sua mão livre foi até as
minhas costas.
Detestei-me por usar aquele vestido. Eu sentia o seu toque
diretamente na pele nua das minhas costas.
Sarkian podia me tocar. Mas eu não podia tocá-lo devido às grossas
camadas de roupa e luvas. Sentia-me em desvantagem e exposta. Mais um
ponto para ele.
Ele não me puxou em sua direção, e foi estabelecida a maior
distância possível nas devidas condições. Aquela foi a primeira vez que
fiquei feliz por ele ter tanto desdém de mim.
— Não mova a suas mãos. — Ele ordenou com a voz firme, porém
baixa. — E não chegue mais perto.
Fiquei tentada a dizer “ou o quê?”, mas preferi não arriscar. Em vez
disso, ironizei:
— Vou tentar me conter.
Estava começando a entender que ele até suportava ironia, mas não
desafios ou ameaças. Conversar com ele era como me equilibrar em uma
corda bamba. Precisava ter muito cuidado e escolher bem meus
movimentos. Caso contrário, o tombo seria feio.
Começamos a nos mover. Ele comandava os passos e eu tentava os
seguir da melhor forma. Nunca fui uma dançarina exemplar. E tensa do
jeito que estava naquele momento, pensei que me sairia pior ainda. Seu
corpo tão próximo deixava todos os meus membros em alerta e travados.
Mas Sarkian tinha os movimentos tão fluidos e sofisticados que me fazia
parecer mais do que decente.
— Eu espero que isto esteja sendo tão doloroso para você quanto
está sendo para mim.
— Pode ficar tranquilo, então.
— Como foi a sua noite? — Ele quis saber, com doçura nas palavras
venenosas.
Ele me deixou amarrada por mais de 5 horas. Cerrei os dentes
dentro da boca.
Seja indiferente.
Não lhe dê essa satisfação.
— Excelente, senhor.
— Que bom. — Ele disse. — Não vai me perguntar como foi a
minha?
— Se eu me importasse, talvez.
A corda tremeu sob meus pés.
Cuidado, Cera.
— Também dormi como um bebê. — Ele contou, me ignorando.
Imaginei-me estrangulando-o. Colocando as mãos em seu pescoço e
apertando com força. A imagem preencheu a minha cabeça e isso ajudou
um pouco.
— Eu nunca dancei com alguém tão inferior antes.
E eu nunca havia dançado com um príncipe. Se alguém me dissesse
há cinco anos que eu estaria dançando com alguém da realeza, nem
acreditaria. Eu me sentiria estupidamente honrada. A ironia chegava a ser
engraçada.
— Como está sendo? — Entrei no seu jogo.
Ele moveu tão sutilmente os ombros que quase me perguntei se foi
fruto da minha imaginação.
— Tão ruim quanto imaginei.
— Passaria mais rápido, se ficássemos em silêncio. — Eu comentei
com a voz neutra.
Ele torceu levemente a cabeça, de forma cínica.
— Mas, aí, qual seria a graça para mim?
Sarkian queria tornar aquela dança pior para mim do que era para
ele. Ele queria me castigar simplesmente por ter que me tocar. Mesmo que
aquilo não fosse escolha minha, e sim culpa do destino.
— Torturar é a sua única forma de prazer? — questionei com
curiosidade genuína.
— Eu diria que sim. Minha única e verdadeira paixão.
Não falei mais nada.
Deuses, aquela música parecia eterna.
— O que aconteceu com o seu namorado?
— Não é da sua conta. — As palavras escaparam da minha boca.
Merda.
— Talvez... — ele desviou o olhar para os nossos braços
conectados, então, arrastou o polegar pelo meu pulso, em um movimento
lento e quase gentil, bem onde se encontravam os machucados causados
pelas cordas. Eu engoli em seco e frio atravessou a minha espinha. Sarkian
voltou a me encarar por entre os longos cílios —, eu deva te lembrar do que
acontece quando não toma cuidado com o que fala.
A ameaça foi o suficiente para me fazer abrir a boca. Ele já havia
me ferido uma vez. E eu sabia que ele o faria novamente se tivesse a
oportunidade.
— Ele não estava se sentindo bem — respondi com dificuldade,
evitando o seu olhar.
— Ele já te fodeu?
Congelei, fazendo com que quase tropeçasse nos seus pés. Sarkian
precisou forçar o aperto para que não perdêssemos o ritmo. Seus dedos
fincaram nas minhas costas, e tive certeza de que deixariam uma marca.
— Suponho que não — concluiu, já que não obteve uma resposta.
— Fazendo com que ele espere é a única forma de ter uma chance que se
case com você. Ele tem um título, certo? — Ele me encarou fixamente. —
O que você tem?
Desviei o olhar para os músicos tocando a melodia que estava, aos
poucos, se tornando insuportável. Meu rosto estava vermelho com as
conturbadas emoções. Preferi me manter em silêncio porque eu sabia que,
se abrisse a boca, me arrependeria.
— Nada. Exato. Você é o lixo de Umbra.
Meu sangue ferveu. Senti meus olhos marejarem. E isso me causou
ainda mais revolta porque eu odiava o fato de ele, tão facilmente, conseguir
me fazer querer chorar.
— As pessoas não costumam te contradizer por aqui, não é? Acho
que esse é um dos privilégios de ser príncipe. Mas acho que isso também
pode ser uma maldição. Você fica muito envolto na sua própria bolha de
privilégios e ignorância. — Eu sabia que deveria parar, mas continuei
mesmo assim. As palavras simplesmente flutuaram da minha boca. — Não
consegue suportar a ideia de uma ninguém de um outro reino não se curvar
perante a você. Deve ser difícil ter um ego tão frágil assim.
Só tive coragem de dizer isso porque estávamos em público. Ele não
poderia fazer nada. Pelo menos, não ali, não naquele momento.
A sua resposta levou cerca de cinco batidas do meu coração. Sabia
disso porque era capaz de contar, já que o som era tão alto em meus
ouvidos.
— Torça para não estarmos a sós novamente, farren.
As suas palavras tiveram um efeito poderoso em meu corpo todo.
Eu senti o frio subir pela minha espinha, especialmente na parte em que
seus anéis encontravam as minhas costas.
— Você não pode se livrar de mim. Não sou sua súdita. Não pode
me matar.
Seus movimentos se tornaram mais lentos, quase paramos de nos
mover quando ele abaixou a cabeça. Nossas cabeças ficaram extremamente
próximas quando ele indagou com a voz baixa:
— Tem certeza disso?
Eu realmente acreditava que sim, mas não tinha tanta certeza quanto
gostaria.
— Tenho — menti. — Posso não ter título, mas meu pai tem alguma
influência na corte de Umbra. Me matar seria um insulto ao rei e,
automaticamente, isso colocaria o tratado em posição delicada —
justifiquei, tentando soar ao máximo de confiante com o que falava. — É
por isso que te ofendo tanto, não é? Não pode se livrar de mim.
— Você está certa. — Sarkian suspirou com o olhar distante. —
Talvez, não possa te matar. — Inclinou seu rosto levemente e falou mais
baixo: — Mas posso fazer coisas muito mais interessantes e agonizantes.
A música finalmente terminou. E Sarkian me soltou antes mesmo da
última nota soar.
Com o corpo próximo de dormente, voltei para a mesa. Bebi o resto
do meu vinho em dois grandes goles e estava prestes a pedir uma nova taça
quando Despinna entrou no salão novamente.
Ela tinha trocado a roupa da apresentação e, agora, usava um vestido
verde-escuro com um vantajoso decote.
Mas não foi isso que me chamou atenção.
Foi o colar que cintilava em seu colo.
O colar da minha mãe.
Por pouco, não quebrei a taça vazia em minha mão com a pressão
com que a apertei. Meus olhos desviaram diretamente para o trono. Para
ele.
Seus dedos tamborilavam nos braços da cadeira e seus olhos já
estavam fixos em mim.
Sarkian sorriu.
capítulo 10

Eu o afastei quando senti sua língua em meu pescoço. Theon me


observou com os lábios inchados ao passo que me remexi sobre o colchão.
Ele tinha cruzado o corredor e entrado no meu quarto na madrugada.
Começou com apenas um breve beijo de boa-noite, mas progrediu e, agora,
estávamos espalhados na cama.
Seu polegar acariciou a minha bochecha e ele fitou a minha boca.
— Cera... — Ele murmurou, antes de avançar outra vez.
Ele tomou a minha boca e seu peso me empurrou para baixo.
Minhas costas encontraram o colchão de novo.
Aquilo estava avançando rápido demais.
— Pare... — Eu pedi, apesar de meu corpo não concordar
completamente.
Só que eu não poderia ceder. Não ainda. Precisava pensar em longo
prazo.
As palavras de Sarkian pendiam na minha mente.
Ele já te fodeu?
Fazer com que ele espere é a única forma de ter uma chance que se
case com você.
Por mais grotesco e cruel ele fosse, eu sabia que havia certa verdade
em suas palavras.
Se eu não jogasse as cartas certas, Theon poderia perder o interesse.
E eu acabaria me casando com alguém como o Conde de Bashirt.
Mas ele não parou. Sua mão escorregou para o interior das minhas
coxas.
— Theon, pare!
Empurrei seu peito, e ele se afastou. Sentei-me no colchão e desviei
o olhar por um momento.
Theon esperou em silêncio.
— Eu queria — disse. — Realmente queria. Mas não posso antes de
estar…
— Casada. — Ele completou, com um suspiro pesado. — Você está
me matando, sabia?
Eu gostava daquele olhar. Gostava de saber que causava aquilo nele.
O senso de poder era ainda melhor do que o beijo em si.
Suspirei de uma forma um pouco mais dramática do que pretendia e
me aproximei. Coloquei a mão na lateral de seu rosto ao observá-lo.
— É difícil para mim também.
O silêncio pairou por alguns segundos ao passo que nos fitávamos.
Aquele pequeno espaço de tempo pareceu uma década inteira, até ele falar:
— Casa comigo, Cera?
Eu pisquei e afastei a minha mão.
Sorri, mas apenas por dentro.
— Isso… é um pedido de verdade?
— Sim. Meu pai já está de acordo. Ele vai conversar com o seu
quando chegarmos em Umbra. — Ele fez uma pausa e sorriu. — Se você
aceitar, é claro.
Ele se remexeu na cama e levou a mão direita até o bolso de sua
calça.
— Ele já até me deu o anel da família.
Theon estendeu a joia em minha direção. Era dourada e repleta de
pequenas pedras, formando o brasão da família.
Não era o anel mais bonito do mundo. Eu mesma tinha alguns anéis
mais bonitos e delicados do que aquele, mas nunca quis tanto colocar uma
joia em meus dedos.
Ela não representava a minha liberdade, mas representava uma
gaiola um pouco maior.
— Você não respondeu.
Levantei o olhar e hesitei apenas por um momento. Apenas alguns
segundos, para não demonstrar a premeditação.
— Sim. — Então, sorri. — Eu caso.

Pouco antes do sol levantar-se, as carruagens já estavam prontas do


lado de fora para a nossa partida. Eu estava tão ansiosa que mal havia
dormido; não via a hora de sair daquele castelo. Mas também precisava
colocar a culpa da minha insônia na conversa que tive com Theon na
madrugada.
Eu mal podia esperar para chegar em casa e resolver o que faltava
para a oficialização do noivado.
Olhei para a janela por um momento antes de, finalmente, deixar o
quarto com as malas. Apesar de tudo, sentiria falta daquela vista extensa e
da sensação da brisa gelada contra a minha pele.
— Está tudo pronto, senhorita. — Allegra disse, tirando a minha
atenção do lado de fora.
Ela pegou a sua pequena mala e deixou o quarto depois que eu
assenti. Segui a ela e os dois homens que carregavam as minhas malas.
Já estávamos próximos ao salão principal quando uma porta larga se
abriu no corredor. Nosso olhar se encontrou assim que Sarkian passou por
ela.
Eu realmente achei que não teria que ver seu rosto novamente antes
de ir embora. Estava contando com isso.
Todos nós — eu, Allegra e os dois homens que carregavam as
minhas malas — paramos instantemente para fazer a reverência. Eu, claro,
hesitei por um momento a mais. Era inevitável. Toda vez que eu o
reverenciava, algo dentro de mim morria um pouquinho.
No fundo, antes que a porta se fechasse atrás dele, consegui ver uma
longa mesa repleta de homens, na qual parecia acontecer uma reunião. O
Rei Zagreus estava na ponta oposta, observando as costas do filho, e não
parecia feliz.
Eu mantive meus olhos longe de Sarkian quando fiz a reverência,
torcendo para que aquilo fosse breve. Mas era claro que ele não deixaria
que fosse tão simples assim.
Ele lançou um olhar para as malas.
— Parece que nosso tempo juntos terminou, farren.
Seu rosto estava neutro, mas havia o familiar tom de crueldade em
sua voz.
Ele dispensou Allegra com um olhar. Achei que a pobre garota fosse
chorar diante da ordem silenciosa.
— Imagino que esteja tão devastado quanto eu — disse, assim que
ficamos a sós.
Sarkian não respondeu. Em vez disso, deu dois passos em minha
direção.
— Caso haja uma próxima visita, fique sabendo que sua estadia não
será tão agradável quanto esta. — A ameaça soou quase doce deixando seus
lábios cruéis.
Aquela era a sua maneira nada sutil de dizer que eu não deveria
voltar.
Forcei um sorriso.
— Obrigada, mas não pretendo voltar.
Ele entortou a cabeça sutilmente, fazendo-a pender um pouco para a
direita, ao passo que me fitava.
— Talvez, você não seja tão estúpida, afinal de contas.
Torci para que aquela fosse a minha deixa, mas, em vez de se
afastar, seus olhos caíram para minha mão direita.
Para o anel.
Eu o experimentei na noite anterior e o tamanho havia ficado
perfeito. Havíamos combinado de que eu tiraria e o devolveria na
carruagem, antes de chegarmos em Umbra. Afinal, não era oficial ainda.
Pelo menos, não até nossos pais conversarem.
Sarkian fez uma pausa, encarando a joia em meu dedo. Seu rosto
permaneceu o mesmo, até que ele ergueu o olhar.
Havia uma faísca de divertimento em seus olhos, como se ele
estivesse ciente de uma piada da qual eu não fazia parte.
— Parabéns. — Sarkian inclinou o rosto e colocou a boca na lateral
da minha cabeça, próxima ao meu ouvido. As palavras murmuradas
deixaram a sua boca como uma sentença. — Desejo ao novo casal uma
longa e miserável união.
Com isso, ele, finalmente, se distanciou.
Entrei na carruagem depois de sair daquele maldito castelo. Assim
que ela começou a se movimentar, nos distanciando dali, consegui respirar
direito pela primeira vez em três dias.

Na manhã seguinte em que cheguei da viagem, acordei com a


notícia de que meu pai havia aprovado o casamento. O que não foi uma
surpresa, mas, ainda assim, tomei-a com um delicioso alívio.
Ele me chamou até a sua sala e anunciou o casamento. Seu rosto era
contido e sério ao dar a notícia, como sempre. Ele não me perguntou como
eu me sentia ou se era aquilo que eu desejava, o que também não foi uma
surpresa. Apenas me comunicou que ocorreria a cerimônia e deixou claro
como aquela união era extremamente benéfica para mim.
As suas exatas palavras foram:
“É uma ótima notícia. Não poderíamos conseguir uma união
melhor. Espero que saiba dar valor para este fato. Você será uma condessa,
eventualmente.”.
A minha madrasta, no entanto, tinha muito mais a dizer em relação
ao noivado.
— Como fez? — Ela perguntou, ao entrar no meu quarto pouco
depois que saí do escritório do meu pai.
Ergui meu olhar da mensagem que escrevia para Rafe.
— Como fiz o quê?
— Para que se casasse com você.
Ela não estava contente, isso era muito claro. Nusa sempre quis que
eu me casasse e desse o fora de sua casa, mas me casar com Theon me faria
uma condessa um dia. Eu seria melhor do que ela. E isso estava matando-a.
Eu sorri.
— Talvez, ele simplesmente goste de mim.
Ela sorriu também, mas o sorriso não atingiu os olhos. Seu
semblante era amargo.
— Talvez, eu a tenha subestimado. Deve ter algum talento para tê-lo
convencido. — Ela me encarou de forma venenosa.
— Foi assim que convenceu meu pai a se casar com você?
Foi como se eu tivesse lhe dado um tapa.
— Seu pai se interessou por mim no minuto em que me viu. — Ela
cuspiu com raiva. — A promiscuidade deve ter sido herdada de sua mãe, eu
presumo.
Larguei a pena e girei na cadeira. Quando queria me atingir, ela
mencionava a minha mãe. E funcionava toda maldita vez. Raiva rompeu.
Eu me levantei e dei alguns passos até estar diante dela.
— Eu tomaria mais cuidado como fala comigo daqui para frente.
Está falando com uma futura condessa.
Ela rangeu os dentes dentro da boca e, então, engoliu em seco.
Era delicioso ver a raiva e a angústia em seu olhar. Ela queria me
bater. Sabia que sua mão estava coçando para me estapear, como já havia
feito algumas vezes.
Mas ela não era estúpida. As coisas haviam mudado.
— Garota insolente.
Nusa se virou e, quando estava prestes a atravessar a porta, eu falei:
— E se meu pai já se interessou por alguma mulher na vida, foi pela
minha mãe.
Eu não sabia se aquilo era verdade. Talvez, era algo que gostaria que
fosse. Mas, acima de tudo, eu queria atingir Nusa.
Ela não me fitou ao deixar o quarto, mas senti a sua postura
tensionar.

— Você está viva… e bem. — Rafe declarou em um misto de


surpresa e estranha frustração, assim que colocou os pés dentro do meu
quarto.
Levantei-me da cama.
— Por que não estaria?
Rafe fechou a janela atrás dele com a respiração acelerada por causa
do esforço.
— Imaginei que só poderia estar morta, ou quase, para me fazer vir
até aqui a essa hora e escalar até a sua janela. Você sabe que mora no
segundo andar, não é? E que eu não sou muito atléti…
— Tenho uma notícia — interrompi.
Estava extremamente ansiosa para compartilhar com ele.
— Que precisava ser dada pessoalmente? E a essa hora da…
— Estou noiva!
Rafe foi a primeira pessoa em quem pensei quando Theon me pediu.
Meu amigo piscou. Ainda parecia um pouco afoito pela escalada.
— Quê? De quem?
— De quem você acha, imbecil?
Rafe assentiu quando finalmente se tocou.
— Ah... Theon.
Analisei sua expressão por um momento.
— Você parece surpreso.
— Estou surpreso.
— Por quê? — indaguei. — Não achou que ele iria pedir alguém
como eu para se casar?
Minha voz saiu mais ressentida do que pretendia.
— Não, não é isso… — Meu amigo se aproximou.
Porque era isso o que todos estavam pensando, aparentemente.
— Cera, você é… — Ele balançou a cabeça e colocou as mãos na
cintura. — Você é a garota mais incrível que eu conheço.
— Você não conhece muitas garotas — rebati.
— Pare de menosprezar meu elogio. Sabe que estou falando sério.
Você é bonita, inteligente, engraçada de um jeito meio estranho, e tem um
ótimo gosto para amigos.
— Eu só tenho você de amigo.
Ele assentiu antes de se jogar de costas na minha cama.
— Exatamente.
Eu não consegui evitar de sorrir.
Rafe olhou para mim fixamente.
— É sério. Ele é o sortudo, não você.
Gostaria de acreditar nisso, mas eu não era ingênua. Um título era
tudo o que importava, e Theon o tinha. Eu não. Mas amava que Rafe
realmente acreditava no que dizia.
Juntei-me a ele, me deitando ao seu lado.
— Você está feliz? — Ele perguntou. — Não achei que quisesse
tanto se casar.
— Não quero. Bem, não queria, mas... — suspirei —, sabemos que
teria que acontecer, não há como fugir disso. E Theon é uma opção melhor
do que eu poderia pedir.
— Se ele te machucar, eu o mato.
Eu sorri.
Rafe era a pessoa mais pacífica e tolerante que eu conhecia. Era uma
das várias coisas que eu amava sobre ele.
— Não vai. Você não machucaria nem uma mosca.
Ele se virou para mim.
— Se essa mosca encostasse um dedo em você, sim. Eu a mataria
lenta e dolorosamente.
— Claro.
Ele suspirou e ficou de lado, apoiando o cotovelo no colchão ao me
fitar.
— Como foi a viagem?
— Foi... — pausei porque Sarkian Varant foi a primeira coisa que
apareceu em minha mente — terrível.
Rafe franziu o cenho.
— Você ficou noiva. Como pode ter sido ruim?
Suspirei de novo, encarando o teto.
— O príncipe. — Foi tudo o que eu disse.
— Sarkian?
Assenti.
— Ele é mesmo tudo o que dizem?
— Pior. — Lancei-lhe um olhar sincero. — Ele é a pior pessoa que
já conheci na vida.
— Isso vindo de alguém que tem Nusa como sua madrasta.
— Exatamente.
— O que ele fez? — A voz de Rafe, de repente, parecia tensa.
Sentia vergonha demais em dizer. Talvez, um dia, eu contasse a ele.
Mas não naquele momento. Não queria deixá-lo preocupado de qualquer
forma. Sarkian não havia me machucado. Pelo menos, nada além das
marcas ao redor dos meus pulsos.
— Ele roubou o colar da minha mãe — respondi, o que não deixava
de ser uma verdade.
— Como assim? Por quê?
— Basicamente, eu perdi o maldito colar e ele o encontrou. Mas não
quis me devolver.
Meu amigo piscou.
— Você pediu de volta?
— Claro. Cheguei a implorar! — respondi com certa vergonha.
— Por que ele faria isso? Ele não é a porra de um príncipe? Não tem
joias o suficiente?
— É exatamente por isso que ele o fez. Porque ele é um maldito
príncipe. Ele pode, simples assim.
— Sinto muito. Sei como aquele colar é importante para você.
Era.
Fechei os olhos por um momento e a imagem de Despinna com o
colar brilhando em seu pescoço pálido me atingiu com força.
— Queria estar lá.
Olhei para meu amigo.
— Iria matá-lo também?
Ele sorriu.
— Lenta e dolorosamente.
capítulo 11

Estava nervosa no dia do meu casamento, claro.


Afinal, eu o conhecia há menos de quatro meses.
Mas a maioria das garotas na minha posição nem mesmo suportava
seus maridos, quem diria gostar deles. Então, apesar de tudo, sabia que
estava em um lugar de privilégio.
Casei-me em uma tarde ensolarada usando um longo e brilhante
vestido dourado. Havia cerca de 500 pessoas no extenso salão matrimonial.
Todas muito bem relacionadas, claro. Até a princesa compareceu,
representado a família, o que foi uma grande honra. Mas, afinal, o próximo
Conde Bauer estava se casando com a filha rica de um comerciante rico. Já
era esperado certo prestígio.
— Não acredito que você realmente está se casando. — Rafe disse,
pouco antes da minha entrada.
As criadas estavam ajeitando os últimos detalhes do meu cabelo e
vestido enquanto escutávamos a sinfonia romântica tocando no salão.
— Sabíamos que isso aconteceria eventualmente — murmurei, me
encarando no espelho.
O vestido estava meio apertado, mesmo depois de eu ter perdido
cerca de três quilos no último mês. Os comentários de minha madrasta
sobre a minha aparência ficaram mais sutis, porém, mais constantes ao
longo das últimas semanas. Não queria estar fora dos padrões no dia do
meu casamento. Mas ossos que antes não apareciam, agora saltavam
sutilmente da minha pele. Eu não lembrava da última vez que tive uma
refeição completa e satisfatória. Estava cansada e faminta.
— É, acho que estava em negação.
Eu o fitei.
— Eu também.
— Estou feliz por você.
— Não parece.
Rafe suspirou.
— Estou mesmo — ele fez uma pequena pausa —, mas estou um
pouco triste por mim.
— Por quê?
Ele deu de ombros e desviou o olhar.
— As coisas vão mudar. Você vai estar muito ocupada com seu
novo marido.
— Assim como você está sempre ocupado com Vesper — alfinetei.
— Pelo menos, Theon não é um babaca.
Seu rosto se contorceu em uma expressão de dúvida.
— Não tenho certeza se gosto dele. — Meu amigo admitiu, e, então,
completou quando lhe lancei um olhar: — Ainda.
— Foi tudo muito rápido... Vocês vão se conhecer melhor. E vai ser
melhor assim. Serei uma mulher casada, terei minha própria casa, você vai
poder me visitar a hora que quiser.
— Eu sei.
— Nada vai mudar. Pelo menos, não para pior. — Olhei para ele. —
Eu te amo.
Rafe foi a única pessoa, desde a minha mãe, para quem pronunciei
aquelas três pequenas e poderosas palavras.
Ele me observou por um momento, seu rosto era sério e um tanto
melancólico.
— Eu também. E, talvez, eu esteja com um pouco de ciúmes por
não ser o único homem que você ama mais.
— Eu não o amo. — Fui rápida em dizer.
— Ainda.
Fiquei de frente para ele. As garotas tinham terminado de ajeitar
meu cabelo e, logo, eu precisaria entrar. Minhas mãos tremiam de ansiedade
e a única coisa que me passava qualquer tipo de calmaria e familiaridade
era Rafe.
— E jamais vou amá-lo dessa forma — confessei, fitando-o, e
completei: — Ou qualquer outra pessoa.
A cerimônia levou cerca de quatro horas. Repetimos as palavras do
cerimonialista. Eu lhe jurei obediência. Ele me jurou proteção.
Quando saímos, oficialmente casados, o sol estava se pondo.
Ao entrar na carruagem, a onda de adrenalina ainda se apossava do
meu corpo, mas não como antes. Eu havia bebido algumas taças de vinho e
me sentia mais relaxada. Afinal, já tinha acabado. Agora era apenas eu e
Theon.
Ele estava muito bonito em seu terno detalhado de dourado.
Ao contrário de mim, Theon não pareceu nervoso em momento
algum. Inclusive, parecia muito seguro e satisfeito durante toda a cerimônia.
Agora, ele tinha os olhos sonolentos. Acreditava que era devido ao
vinho; ele havia bebido bem mais do que eu. E eu mesma me sentia um
pouco pesada.
— Veja o que eu achei no bufê.
Eu o mostrei, assim que finalmente ficamos a sós. Durante toda a
cerimônia, ficamos cercados de pessoas e olhares. Não houve muito
romantismo ou um momento íntimo. Mas guardei o doce em um
guardanapo assim que o vi.
Theon olhou para a minha mão. Ele hesitou, parecia mais confuso
do que qualquer outra coisa. Não era a reação que eu esperava.
— O doce de menta. O melhor doce de todos os tempos, de acordo
com você. — Abri um pequeno sorriso. — E que eu quase cuspi no dia em
que nos conhecemos. Trouxe para você.
Theon piscou.
— Ah. Sim, claro. — Ele assentiu, e se remexeu no banco. — Estou
com muito sono, vou tirar um cochilo até lá.
Não respondi e achei que ele não esperava que eu dissesse mais
nada mesmo, porque virou o rosto, desviando sua atenção de mim. A
adrenalina, de repente, pareceu menor, dando lugar a outro sentimento.
Algo distante, mas incômodo, que eu não sabia dizer exatamente o que era.
Só sabia que não era nada bom.

A casa era grande assim como a da minha família, porém, mais


envelhecida e um pouco mais tradicional. Provavelmente, foi a casa de
muitos condes antes de ser do pai de Theon. Mas não consegui reparar
demais na minha nova moradia porque meu coração batia rápido de
nervosismo.
Estávamos no quarto. A sós.
Theon parou em frente à cama e começou a desabotoar a camisa. Eu
cruzei os braços porque não tinha ideia do que fazer com eles.
Ele fixou o olhar em mim e o desceu pelo meu corpo.
— Venha aqui — pediu com a voz baixa.
Eu me aproximei lentamente. Já tinha ouvido falar que aquela era
uma experiência ruim para muitas mulheres, algumas até a temiam. Mas eu
não tinha medo. Gostava de Theon e de como o meu corpo reagia a ele. Só
não sabia o que fazer. E eu odiava não saber o que fazer.
— Você sabe como funciona? Sua madrasta conversou com você?
— Ele questionou.
— Sim — menti. Tecnicamente.
Minha madrasta não tinha conversado comigo, mas eu já tinha o
conhecimento básico.
— Que bom.
Theon ficou sem camisa, e eu notei pela primeira vez a pele
bronzeada e os músculos sutis de seu torso. Quis tocá-lo, mas, antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa, ele pediu para que me virasse.
Ele desabotoou o meu vestido com certa agilidade, mas menos
delicadeza comparada a como a minha criada fazia.
Meu coração batia tão rápido que eu o ouvia no silêncio do quarto.
Theon abaixou o meu vestido, e eu senti o frio na pele exposta.
Levei minhas mãos até o meu corpo, instintivamente tentando me cobrir.
Nunca nenhum homem havia me visto nua.
Sua mão foi até a lateral do meu braço e ele girou o meu corpo até
que estivéssemos de frente um para o outro. Seus olhos descerem, me
observando atentamente, e eu me remexi desconfortavelmente.
Ele não disse nada, mas, pelo seu rosto, pareceu satisfeito. Ou, pelo
menos, não parecia desapontado ou frustrado.
— Sua vez. — Eu disse, lançando um olhar para o resto da sua
roupa.
Assim que tirou as calças, ele me empurrou para a grande cama.
Quando me beijou, percebi que seu hálito tinha um forte gosto de álcool,
mas não me importei.
Gostei da sensação de pele contra pele, do seu corpo nu contra o
meu. Mas não consegui aproveitar muito tal sensação. Tudo aconteceu
muito rápido. Depois de um par de beijos no meu pescoço e seios, ele
afastou as minhas pernas com o joelho. Theon estava dentro de mim com
apenas um movimento.
Ele deve ter notado a dor em meu olhar porque disse entre suspiros:
— É normal... Depois, fica melhor.
Eu inspirei fundo, segurando suas costas com força.
— Tudo bem.
A dor não durou muito tempo. Depois de algumas estocadas, ele
deixou seu peso cair sobre mim. Eu suspirei aliviada enquanto observava o
teto e esperava.
Theon finalmente se retirou de dentro de mim e rolou para o outro
lado da cama.
Observei o seu perfil, parecia cansado.
— Isso foi ótimo. — Ele murmurou, com os olhos quase fechados.
Eu não sabia o que dizer, então levei a minha mão até onde sentia a
umidade. Eu estava suja. Havia sangue. Meu sangue.
Levantei-me para me limpar. E, quando voltei do banheiro, Theon
parecia já estar dormindo. Seus olhos estavam fechados e sua respiração,
pesada.
Não pude evitar a decepção que se instalou. Pensei que iríamos
conversar um pouco, falar sobre o dia que tivemos.
Nada daquela noite estava sendo como eu esperava. Mas, talvez,
isso fosse um problema meu, havia criado muitas expectativas. Expectativas
irreais.
No final das contas, deveria estar agradecida por não ter sido tão
ruim quanto algumas mulheres diziam ser.
Deitei-me, abraçando meu próprio corpo debaixo das cobertas.
Assim que fechei meus olhos, a compreensão do que poderia acontecer em
seguida me bateu.
Eu poderia estar grávida agora.
Fiquei tanto tempo tão focada em me casar e sair da casa do meu
pai, que não pensei muito sobre o que viria em seguida. Era claro que eu
sabia que eventualmente teria filhos, mas o eventualmente ainda me parecia
muito distante. Aconteceu que ele havia chegado.
E eu não estava preparada.
Passei a mão na minha barriga lisa e torci para que ficasse assim por
um longo tempo.
capítulo 12

Despertei com o movimento suave do colchão. Deparei-me com as


costas nuas de Theon se levantando da cama.
Meus olhos estavam pesados, demorei muito para dormir.
Acreditava que só consegui entrar em sono profundo quando o sol já estava
nascendo.
Estava prestes a dizer algo como “bom dia” quando notei que não
estávamos sozinhos. Levei um susto ao me deparar com a mulher diante da
nossa cama. Uma senhora de, talvez, cinquenta anos e miúda. Seus olhos
estavam fixos em mim. Olhei para Theon, que esfregava o rosto, e, então,
voltei a olhar para ela.
— Bom… dia — murmurei com a voz rouca, porque não sabia mais
o que dizer.
Ela me cedeu um pequeno aceno de cabeça.
— Essa é a Alba. — Theon se virou para mim. — Ela vai te mostrar
a casa e como as coisas funcionam.
Eu assenti, e ele se virou para ir em direção ao banheiro.
Voltei a olhar para a senhora, que continuava lá, me encarando.
Como se estivesse me esperando. Pensei que ficaria mais um tempo na
cama, mas, aparentemente, não era o que haviam planejado para mim.
— Eu só vou me vestir — disse, tirando as cobertas de cima de
mim. — Um momento.
Ela assentiu e, por fim, deixou nossos aposentos. Quando terminei
de colocar um simples, porém bonito, vestido de verão, Theon apareceu
novamente. Ele já estava completamente vestido e andava em direção à
porta do quarto.
— Já está saindo? — indaguei.
— Sim, vou trabalhar. — Ele ajeitou o casaco e me lançou um olhar.
— Alba vai servir o seu café da manhã.
Cheguei a abrir a boca para responder, mas ele já estava muito
próximo da porta.
Engoli o indício de um caroço na minha garganta e calcei os meus
sapatos antes de sair também.
Alba me esperava do lado de fora, as mãos cruzadas atrás das costas
e a coluna perfeitamente ereta.
— Pronto. Por onde iremos começar?
— Pelos quartos.
Ela me mostrou tudo em completo silêncio. Em momento nenhum,
deu algum sorriso ou, até mesmo, a sugestão de um. Não levei para o lado
pessoal, afinal, governantas costumavam ser severas. E eu era a sua nova
senhora. Uma completa intrusa. Teria que conquistá-los.
A casa em si era bonita, mas antiga. Grande, mas não enorme. Para
mim e Theon, juntamente dos criados, era do tamanho perfeito. Notei
apenas algumas mudanças que poderiam ser feitas, pequenas reformas que
deixariam o lugar mais bonito e agradável. Pintar algumas paredes e trocar
alguns móveis antigos que não combinavam com certos cômodos.

Era final da tarde quando fui para a cidade pela primeira vez desde
que me casei. Passei o dia todo relendo um dos únicos livros que encontrei
na casa. Já havia explorado todos os cômodos também.
Theon havia saído cedo e eu não fazia ideia de que horas voltaria.
Pensei que, talvez, pudesse morrer de tédio. Escrevi para Rafe, marcando de
encontrá-lo na cidade. Ele me levaria alguns livros e conversaríamos
pessoalmente pela primeira vez desde o casamento. Eu estava animada.
Desci da carruagem e esperei perto de uma loja de vestidos,
observando os panos de cores vibrantes pela vitrine. Naquela temporada, a
moda em Umbra era um tom de azul terrível.
Escutei meu nome e me virei para encontrar Rafe acenando do outro
lado da rua. Mas, assim que dei um passo em sua direção, algo bateu contra
mim. Ou melhor, alguém. A pressão me jogou para o lado e, por pouco, não
perdi o equilíbrio e caí no chão. Pisquei para a garota ofegante que colidiu
contra mim.
Foi tudo muito rápido.
Talvez, em um segundo que ela parou, recuperando também seu
equilíbrio, olhamos uma para outra. Nossos rostos estavam a poucos
centímetros de distância. Seu cabelo loiro, quase branco e curto, estava
colado contra a testa suada. Sua boca entreaberta e os olhos um tanto
arregalados.
Mas não foi isso que me chamou atenção.
Foi o líquido que escorria de um corte em sua bochecha. Dava para
ver a linha perfeita do machucado. E, em qualquer ocasião, aquilo não seria
impactante de forma alguma, afinal, as pessoas se machucavam e
sangravam. Mas aquilo não podia ser sangue. Não podia ser porque não era
vermelho.
Era negro.
Eu paralisei, e aquele segundo pareceu durar uma eternizada, até
que ela recuperou o equilíbrio e correu.
Observei a sua figura pequena, porém ágil, sumir entre a multidão.
Pisquei na direção em que ela havia desaparecido, ainda sem
conseguir me mover.
Negro.
Negro como a noite.
Não podia ser...
Eles não existiam. E, se existiram, haviam sido extintos centenas de
anos atrás.
— Ei, tudo bem? — Rafe perguntou. — Aquela garota quase te
derrubou. Por que raios ela estava correndo tanto assim?
Ele tocou no meu braço.
— Tudo bem, Cera? Você está meio branca. Ela te machucou?
Balancei a cabeça, fixando o meu olhar no seu.
— Não. Só… — passei a mão no meu cabelo, me recuperando dos
últimos segundos — fui pega de surpresa.
Eu podia ter visto errado. Afinal de contas, foi rápido demais.
— Como está a vida de casa…
— Você acredita nos caídos?
— Você quer dizer..., que um dia eles existiram?
Assenti.
— Hum… Não. Acho que são só lendas. Histórias que contam para
assustar crianças pequenas.
— Por que estão em tantos livros, então? E por que tanta gente
acredita?
— Porque as pessoas gostam de lendas. De fantasiar. — Rafe se
virou para mim. — Você acredita que eles existiram?
— Não sei. Talvez.
Ele pareceu surpreso com a minha declaração.
— Se algo como Deuses existem, seres tão superiores e cheio de
poderes, por que não os caídos? Seriam como Deuses, só que na Terra.
Acho que é justamente por isso que o reino não quer que acreditemos.
Porque não gostam da ideia de ter alguém praticamente tão poderoso quanto
um Deus entre nós.
Rafe ficou em silêncio por um momento.
— Por que está perguntando isso? Por que está tão interessada nos
caídos, de repente?
Pensei em dizer que era apenas curiosidade, mas eu não gostava de
mentir para Rafe. Contei-lhe sobre a garota.
Ele me encarou com certa diversão.
— Você não deve ter visto o que pensa que viu. Foi rápido demais,
como você mesma disse.
Paramos em uma livraria naquela tarde. Esperei na porta enquanto
Rafe entrou para comprar o livro que havia lhe pedido, já que mulheres
eram proibidas de entrar. Ele me entregou o pequeno encadernado de couro
que continha o nome “Lendas e Misticismos” grafado na capa. Assim que
cheguei em casa, com o sol já se pondo, abri o livro. E depois de poucas
dezenas de páginas, confirmei o que temia.
Eles não sangravam como nós. A cor vermelha vibrante.
A grande e principal característica deles era o fato de que sangravam
negro.

Allegra colocou uma toalha ao lado da banheira e se levantou para


sair.
— Pode ficar?
Ela parou, se virando para mim. Parecia surpresa, mas se sentou ao
lado da banheira. Eu costumava gostar de tomar os meus banhos sozinha.
Havia trazido Allegra comigo. Foi o único pedido que fiz ao meu
pai antes de sair de casa, quase como um presente de casamento. Ele nem
hesitou. Estava tão satisfeito com sua futura filha condessa que eu duvidava
que hesitaria em me dar qualquer coisa que fosse.
Minha madrasta devia estar furiosa. Só não tanto quanto meu irmão.
Allegra sorria agora. Nunca a tinha visto sorrir na casa do meu pai.
Nos últimos meses, uma vez ou outra, a havia pegado cantarolando
enquanto trabalhava.
Movi as mãos pela água quente, ouvindo o barulho sutil e calmo
ecoar pelo banheiro.
— Eles não gostam de mim — murmurei depois de vários segundos
em silêncio.
— Quem, senhora?
Allegra me chamava de senhora agora, não senhorita. Era
engraçado, mas meio estranho ainda. Não me sentia uma senhora, muito
menos uma futura condessa.
— Os criados.
Ela não respondeu de imediato.
— Tenho certeza de que está equivocada — disse finalmente.
Ela estava tentando ser gentil, me agradar. Basicamente, fazer o
trabalho dela. Mas haviam se passado meses que estávamos ali e a verdade
era um tanto óbvia.
Levantei meu olhar para encará-la.
— Não estou, e você sabe disso.
Allegra desviou o olhar e ficou em silêncio por um momento.
Encarou as saias de seu vestido cor de creme e suspirou suavemente.
— Se serve de consolo, também não gostam muito de mim.
Franzi o cenho.
— Eles fizeram alguma coisa com você? Te trataram mal?
De certa forma, eu entendia a hostilidade em relação a mim. Eu era
sua nova “senhora”, tradicionalmente alguém de fora que chegou para
mudar e comandar as coisas. Mas Allegra era só mais uma criada fazendo
seu trabalho, como eles.
— Nada demais. — Ela deu de ombros. — Só recebo as menores
porções nas refeições e falam comigo de forma um pouco mais hostil.
Aquilo me incomodou. Talvez, até mais do que com a forma que me
tratavam ali. Observei seu pequeno e delicado rosto, mas não encontrei
nenhum indício de chateação.
— Você não parece se importar.
— Não me importo. — Allegra confessou. — A maior parte do meu
trabalho é cuidar de você, o que, honestamente, é bem melhor do que
trabalhar na cozinha ou na limpeza da casa. Além do mais, eu… — ela fez
uma pausa e desviou o olhar de novo — gosto muito daqui, senhora.
É claro que ela gostava mais dali. Qualquer coisa seria melhor do
que a sua situação na casa do meu pai.
— Obrigada por me trazer.
Engoli em seco ao observá-la. Ela não me encarava e seu rosto
estava de um leve tom de vermelho.
— Não precisa me agradecer. — Eu me ajeitei na banheira,
desconfortável. — Além do mais, você está fazendo um excelente trabalho.
O comentário a fez voltar o olhar para mim e abrir um tímido
sorriso.
Estava me erguendo para deixar a banheira quando Allegra, de
repente, falou:
— Alba cuspiu no seu suco naquele dia em que você falou sobre o
modo como estavam limpando os copos.
Eu parei no meio do movimento, com as mãos segurando as laterais
da banheira. Pisquei e abri a boca, mas não sabia o que dizer. Eu não
deveria estar surpresa, mas estava.
— Não se preocupe, joguei no vaso de plantas do corredor antes de
entregar a você. — Ela adiantou, e parecia envergonhada. — Depois,
peguei outro.
Inspirei fundo, finalmente me levantando. Pensei no rosto enrugado
de Alba e raiva atravessou o meu corpo. Eu não havia feito nada para a
maldita mulher. O que mais ela teria feito? Quantos sucos Allegra não pôde
salvar? Ou pior…
— Desculpe por não ter contado antes. — Allegra interrompeu meus
pensamentos. Ela ergueu uma toalha para mim. — Eu fiquei…
— Não se preocupe. E obrigada pelo... que fez.
Enrolei-me na toalha e saí da banheira. Quando atravessei a porta
para meu quarto, já sabia que as coisas teriam que mudar. Bancar a
boazinha, claramente, não estava funcionando.
capítulo 13

Havia quase duas semanas que não via Theon. Eu não fazia ideia do
que ele estava fazendo ou, sequer, de onde estava. Ele só havia me
comunicado que ficaria alguns dias fora da cidade a trabalho. Ele já tinha
ficado alguns dias fora desde o nosso casamento, há quatro meses, mas
nunca tanto tempo assim.
Eu estava irritada, entediada e frustrada. Meus dias se resumiam em
acordar quase na parte da tarde, reler os poucos livros os quais eu tinha
acesso na casa e evitar cruzar caminho com Alba para não me estressar.
Havia parado de tentar ser legal com ela e dizia apenas o estritamente
necessário.
Sem Theon ali, a mesa de jantar mal era colocada pelos criados. A
comida era sopa praticamente todos os dias e eu me alimentava sozinha na
longa mesa da sala. Meu único momento genuíno de alegria era quando
Rafe me visitava, o que, felizmente, ele fazia com frequência. Mas não com
a frequência que eu gostaria. Se não fosse completamente fora das normas,
eu o convidaria para morar comigo.
— Você parece distante.
— E você parece bêbado — disparei de volta.
Ele olhou para a sua taça de vinho. Era a sua segunda desde que
havia chegado na minha casa, mas ele já tinha tomado algumas antes de vir.
Eu suspeitava mais de três.
— Estou sofrendo! — declarou de forma um tanto dramática.
Ergui as sobrancelhas sutilmente.
— Por quê? — Mas, antes que ele pudesse responder, emendei: —
O que ele fez?
Rafe suspirou em um misto de frustação e cansaço.
— É complicado.
— Então, me explique. Geralmente, consigo pegar as coisas
rapidamente.
Ele deu mais um gole no vinho. Longo e lento.
Quando finalmente olhou para mim, disse:
— Eu o amo.
— Eu sei, e é uma tragédia. Mas achei que isso já tivesse sido bem
estabelecido.
— Sim, é só que…
— Ele não te ama de volta? — questionei, confusa. Porque isso não
fazia sentido. Não pela forma como Vesper olhava para ele.
Rafe balançou a cabeça.
— Não, ele ama. Mas… ele não gosta de como as coisas estão.
— E como as coisas estão?
Eu estava começando a me estressar com a forma como ele estava
falando. Como se estivesse hesitando em me contar. Escondendo algo de
mim.
— Furtivas.
Deixei o meu próprio copo de vinho na mesinha de centro. Eu não
gostava muito de beber, o meu problema maior sempre foi com o gosto do
vinho. Mas, recentemente, notei que estava bebendo com uma frequência
surpreendente.
— Mas como as coisas seriam? Ele sabe que não poderia ser de
outra forma.
Rafe suspirou longamente.
— Ele quer fugir.
— Fugir?! — indaguei mais alto do que planejava. — Como assim,
fugir? E para onde?
— Fugir para algum lugar onde poderíamos ficar juntos.
— Para outro reino, você quer dizer?
Ele assentiu com a cabeça.
— Isso é loucura.
— Eu sei.
— Você seria deserdado. Seu dinheiro, seu título...
— Eu sei.
— Você poderia ser… morto.
— Você acha que eu não sei disso tudo, Cera?!
— Não! Acho que não. Porque, se realmente soubesse, não estaria
considerando essa ideia estúpida.
— Quem disse que estou considerando?
— Não está?
É claro que estava. Se não estivesse, ele não teria me dito.
Seu silêncio o entregou e ele desviou o olhar. Acreditava que nunca
tinha visto seu rosto com uma expressão tão triste.
— Você não pode fazer isso. — Eu disse.
— Eu sabia que te contar seria um erro. Ele me pediu para que eu
não o fizesse.
— Ah, claro que pediu.
Aquele imbecil.
— Qualquer pessoa sã diria a você o que estou dizendo agora. Sabe
disso. — Inspirei fundo. — Eu só me preocupo com você.
— Isso é só sobre mim, então? Com a minha segurança?
Eu o encarei, confusa.
— Com o que mais seria?
— Com o fato de que eu iria embora. E você ficaria sozinha, sem
seu único entretenimento semanal.
Aquilo foi como um tapa. Sua voz nunca havia soado tão venenosa.
— Meu único entretenimento semanal?! É a isso que está resumindo
a nossa amizade? Quem te disse isso? O imbecil do Vesper?
Ele passou as mãos pelo cabelo, frustrado.
— Não, não foi. E eu não quis dizer isso, é só que… Eu só precisava
de um pouco de apoio. Parece que o mundo todo está contra nós. E você
não tem ideia de como isso é difícil.
É verdade, eu não tinha. Mas aquilo não deixava de ser uma loucura.
Extremamente perigoso. E eu não podia, ao menos, imaginar perdê-lo.
— Eu não vou apoiar um plano que pode acabar com a sua vida.
— Não, você está certa. — Ele colocou seu copo vazio na mesinha e
se levantou. — Eu deveria fazer como você. Me casar com alguém que me
desse segurança e que me fizesse completamente infeliz.
Eu recuei, surpresa e muito ofendida. Suas palavras perversas me
pegaram completamente desprevenida. Rafe era gentil e quase nunca se
irritava daquela forma. Ele nunca tinha me insultado daquele jeito. Com a
intenção de magoar.
Precisei de alguns segundos para conseguir encontrar minhas
palavras.
— Eu não estou infeliz.
Rafe me encarou por mais um momento, o rosto em um misto de
mágoa e irritação, mas não disse nada. Era óbvio que não acreditava em
mim.
Ele se virou para sair, mas, assim que deu seu primeiro passo em
direção à porta, Theon apareceu diante de nós.
Meu marido parou ao vê-lo na sala de estar. Encarou Rafe por um
momento antes de dizer, com o rosto sério:
— Boa tarde, Rafe.
Meu amigo devolveu o cumprimento seco e, então, se retirou
apressadamente, sem ao menos me lançar um último olhar.
— Ele de novo? — Theon questionou, assim que ficamos a sós.
Ele não gostava de Rafe por alguma razão.
Mantive-me sentada ao encará-lo. Eu deveria me levantar para
cumprimentá-lo, já que esse era o tipo de decoro esperado quando o marido
chegava em casa, mas não o fiz. Primeiramente, porque não queria, e
segundo, porque estava um pouco tonta por conta do vinho.
— Ele veio tomar uma taça de vinho comigo antes do jantar.
— Ele está vindo aqui todos os dias agora? — Havia clara repressão
em seu tom à medida que desabotoava o casaco.
— Não. Ele vem às terças e sextas, geralmente. — Hesitei por um
momento e peguei a minha taça que estava repousada na mesinha. — Você
saberia disso se estivesse aqui.
Odiei a forma frustrada com que a minha acusação saiu, mas eu
estava irritada. Comigo, com Rafe e com Theon.
Eu não queria ser o tipo de esposa que reclamava com o marido
sobre seu tempo fora. Estava ciente de que ele trabalhava e que não podia
ficar em casa todos os dias, mas a questão era que ele quase nunca estava.
Suas viagens eram cada vez mais longas e, o pior, ele parecia não se
importar com isso. Nem meu pai ficava ausente por tanto tempo e seu
trabalho exigia muito mais dele.
— Adoraria. Mas, então, como manteríamos a vida que temos, se eu
não trabalhasse? — Ele deu um passo em minha direção e me encarou de
cima. — Seus vestidos, seus luxos... Você acha que esse tipo de coisa cai do
céu, querida?
Ele fazia isso com frequência agora, falava comigo como se eu fosse
uma criança. Explicava-me as coisas como se eu não entendesse.
— Luxos?! Que tipo de luxos estou exigindo?
Era quase engraçado ele mencionar “luxos” quando, na verdade, não
havia comprado nenhum vestido ou joia desde que tínhamos nos casado.
Depois dos presentes de casamento, a única coisa que ganhei dele foi um
par de brincos de rubi que era de sua mãe. Não que eu estivesse
reclamando, já que tinha mais do que o suficiente, mas, definitivamente,
não poderia ser taxada como uma esposa cara. Se fôssemos analisar bem,
minha vida quando morava com meu pai era mais ostensiva do que
atualmente.
— Não vou ficar escutando isso. — Ele se virou, ofendido. — Peça
à criada para arrumar as suas malas, vamos viajar amanhã cedo.
Levantei-me do sofá. Um misto de curiosidade e felicidade se
apossou do meu corpo. Uma viagem seria perfeito. Não aguentava mais
rondar pelos mesmos cômodos.
— Para onde? — indaguei.
Ele já estava perto da escada quando respondeu:
— Khrovil.
Eu parei. Meus pés fincando no chão de madeira da sala.
Sarkian.
O rosto dele inundou a minha mente da mesma forma que fez em
meus pesadelos diversas vezes nos últimos meses.
— Por quê?
Ele parou com a mão no corrimão da escada, parecendo cansado.
— É o aniversário de sessenta anos do Rei Zagreus.
— E por que precisamos ir? — Aproximei-me dele, agitada. — O
rei teve outros aniversários antes.
Eu sabia que aquilo era algo idiota para se dizer. O aniversário de 60
anos era um marco importante e, agora que estávamos em paz, não seria
incomum sermos convidados para esse tipo de evento. Mas não consegui
evitar uma única e última súplica. Era ingênuo da minha parte pensar que
eu teria o poder de impedir aquele desastre de acontecer.
Theon parecia irritado em ter que explicar.
— A Família Real não vai poder comparecer, então fomos
convocados com alguns outros para representar Umbra. — Ele fez uma
pausa, me encarando com mais atenção dessa vez. — É uma honra, Cera.
Você deveria ficar feliz de estar casada com o tipo de homem que
comparece a tais eventos.
Meu marido, por fim, se virou e foi em direção às escadas, me
deixando na sala terrivelmente silenciosa.
E eu não sabia o que havia doído mais naquele momento: a infeliz e
tardia compreensão de que eu havia casado com um homem que não
conhecia ou de que, muito em breve, estaria diante de Sarkian Varant mais
uma vez.
E, em ambas as questões, não havia absolutamente nada que eu
pudesse fazer.
Naquela noite
depois que seu marido se terminou dentro dela e se virou para
dormir
a usurpadora encarou o teto e se perguntou como faria para evitar
reencontrá-lo
Sarkian
Seu nome pulsava de forma incômoda
Ela pensou em simplesmente dizer que não queria ir
Imaginou que Theon não daria falta dela
de qualquer maneira
Já estavam acostumados a ficarem muito tempo separados devido às
suas viagens
Mas ele insistiria
afinal
era seu trabalho como esposa acompanhá-lo naquele tipo de evento
Então
ela pensou em fingir doença
Acordar no dia seguinte e falar que estava passando muito mal
Talvez até iria ao banheiro e forçaria sons de vômito
Acreditou que aquilo poderia dar certo
apesar de ser suspeito
já que ela estava muito bem de saúde quando Theon chegou em casa
naquela tarde
Mas as doenças podiam chegar de forma surpreendente e
arrebatadora às vezes
ela se convenceu
Assim que ela fechou os olhos
teve um pesadelo
A máscara negra era tudo o que ela podia ver
enquanto uma dor afiada a fazia gritar
e gritar
mas ninguém a escutava
Ninguém poderia salvá-la dele
muito menos ela mesma
Mas
no dia seguinte
assim que abriu os olhos e o marido a perguntou sobre suas malas
ela apenas disse
está tudo certo
E de forma quase automática
e com as palmas das mãos suando
ela entrou na carruagem a caminho de Khrovil
Porque
mesmo com o horror e aversão que sentia em relação a ele
lá no fundo
na pequena parte mais obscura de si
algo a atraía até àquela sensação horripilante que sempre a tomava
quando estava diante do Filho das Sombras
capítulo 14

Não seria tão difícil assim, eu apenas precisaria me manter longe


dele. Apenas o observaria do outro lado do salão lotado, com várias
testemunhas por perto. Sarkian não poderia fazer nada.
Foi isso o que repeti em minha cabeça diversas vezes durante o
percurso de dois dias até Khrovil.
Mas claro que não foi isso o que ocorreu. Faltando alguns minutos
para a festa começar, eu estava à procura de Theon — que havia deixado o
quarto em que estávamos pouco antes de mim.
— Bem que eu estava sentindo um cheiro desagradável. — A voz
grave me fez congelar no meio do corredor. E eu não precisava nem me
virar para saber a quem ela pertencia.
Girei devagar, meu corpo resistindo como se ainda não fosse tarde
demais para evitar aquele encontro.
Eu o avistei parado a cerca de três metros de mim.
Fiz uma reverência dolorosa. Ele girou o cigarro nos lábios ao passo
que me fitava.
— Você está ficando muito boa nisso.
— Fico muito contente por impressioná-lo.
Sarkian fez um breve movimento com a cabeça e tirou o cigarro da
boca logo depois de sugar.
— Impressionante mesmo é você estar aqui. — A fumaça saiu junto
de suas palavras. — Você se esqueceu do que eu te disse caso voltasse ao
meu castelo?
— Não. Infelizmente, minha memória é espetacular — respondi. —
Não estou aqui porque gostaria, pode acreditar. Mas não se preocupe, não
planejo ficar muito tempo.
Seu olhar desceu até a mão que carregava o meu anel.
— Fazendo o trabalho de boa esposa? — Ele se aproximou mais um
passo e, com a voz dois tons mais baixos, indagou: — Me diga, quão
miserável já está?
— Não é da sua conta.
Ele pareceu satisfeito.
— Foi o que eu imaginei. — A sombra de um sorriso atravessou seu
rosto. — Extremamente miserável.
— Você deve estar projetando. Não é porque você se sente assim
que todos ao seu redor também se sentem da mesma forma.
Seus lábios se movimentaram de forma perigosa. Ele sugou no
cigarro novamente e, quando voltou a falar, a fumaça acompanhou as suas
palavras.
— Tome cuidado. Você não quer estar no meu lado ruim hoje.
— Algo me diz que já estou.
— Cera, estava te procu…
Virei-me ao ouvir meu nome e encontrei meu marido a alguns
metros de nós. Ele tinha acabado de entrar no corredor.
Theon parou assim que viu quem estava presente.
Seus lábios se abriram em surpresa e ele se aproximou com uma
expressão diferente.
— Vossa Alteza. — Ele parou ao meu lado e fez uma perfeita, e um
tanto demorada, reverência.
Levantei meu olhar para Sarkian, que o encarava com o rosto
completamente neutro.
Meu marido, que sempre considerei ter uma altura considerável,
parado diante de Sarkian, era pequeno. Não só pelos dez centímetros ou
mais de diferença, mas pela forma como a presença intimidadora do
príncipe se erguia sobre nós.
Sarkian mal se moveu e, em vez de fazer algum tipo de
reconhecimento, até mesmo um aceno, se manteve em silêncio. Fitou o meu
marido por um momento e, com completa indiferença, voltou o olhar para o
meu. O príncipe inspirou o cigarro casualmente uma última vez e se virou, a
fumaça o seguindo.
— Que escroto. Quem ele acha que é? — Meu marido murmurou,
assim que Sarkian desapareceu no corredor. — Eu sou o filho de um conde.
Ele fez aquela afirmação quase para si mesmo. Seu rosto estava
vermelho e notei, pela primeira vez, que ele não ficava muito bonito
irritado.
— Ele é um príncipe.
Ao virar o rosto para mim, seu cenho estava franzido.
— O quê?
— Você perguntou quem ele achava que era — expliquei. — Ele é
um príncipe.
Theon ficou em silêncio por um momento. Raiva atravessou seu
olhar e, dessa vez, estava direcionada a mim também.
— O segundo. — Ele sibilou. — E ele anda por aí como se, um dia,
fosse virar rei. Até o irmão dele me cumprimentou como deveria. Ele, sim,
é um príncipe de verdade.
Assenti mesmo que sem muito entusiasmo. Não suportava a
arrogância de Sarkian. Ou melhor, não o suportava por completo. Pelo
menos, eu e Theon podíamos concordar nisso. Ambos odiávamos Sarkian
Varant. Era bom, finalmente, concordar em algo com o meu marido.
O salão estava lotado. Notei pessoas de vários reinos aliados.
Reconheci a Rainha de Idrah pelas roupas cheias de estampados feitos à
mão muito característicos. Também notei algumas pessoas importantes do
Reino Central, o qual comandava indiretamente todos os outros reinados. O
reino que mantinha o verdadeiro poder entre as terras e os mares.
A Família Real de Khrovil, como sempre, estava alguns degraus
acima. Sarkian agora usava a sua máscara negra, tornando impossível tentar
ler o que se passava em sua cabeça doentia. Também não conseguia ver o
rosto do rei por causa da máscara, mas, pela forma como levantava sua taça
a cada dez minutos, parecia genuinamente feliz naquela ocasião.
Havia muita bebida e a noite começou com uma apresentação. A
primeira envolvia belas mulheres dançando de forma sensual. Agora, eu
sabia que era algo normal para o povo selke, apesar de ainda não estar
acostumada com tanta nudez pública. Cresci com um povo que entendia
que, quanto mais roupa o indivíduo usava, mais rico e nobre ele era.
Despinna era uma das garotas, notei rapidamente. Como sempre, ela
surfava pelo piso de forma graciosa. Tentei ignorar a sensação ruim que me
causou ao vê-la. Levei a mão direita ao meu colo e a lembrança da perda do
colar da minha mãe me atingiu com força.
Ela, como sempre, dançava para Sarkian. Não de forma tão óbvia
como naquela noite em que roubaram meu colar, mas o suficiente para que
eu — e, com certeza, algumas outras pessoas ali — notasse. Sarkian tinha
os olhos na apresentação e os dedos cobertos com a luva de couro e anéis
tamborilando nos braços do trono. Estava sentado mais ereto daquela vez,
talvez impaciente. Provavelmente, não via a hora de toda aquela festa
acabar para ir embora. Poderia apostar que havia uma de suas festas no
subsolo esperando por ele.
A segunda apresentação envolvia fogo. Os dançarinos faziam
movimentos ágeis com tochas balançando nas mãos. Seus torsos suavam
devido ao calor, e o salão todo esquentou assim que a apresentação se
iniciou. Fiquei fascinada com o fogo e a forma fácil como o manuseavam.
Era lindo. Quase me esqueci de onde estava ou da presença ao meu redor.
Assim que a apresentação terminou, os criados começaram a colocar
os pratos nas longas mesas.
Cheguei a pegar meu garfo para dar a primeira mordida quando, de
repente, o salão ficou mais escuro. Olhei para cima, para as tochas próximas
ao teto alto que se apagavam, uma atrás da outra e muito rapidamente. Não
demorou nem dez segundos para que todo o salão estivesse em um
completo breu. A luz da lua que entrava pelas janelas não era suficiente
para que pudéssemos enxergar.
Primeiro, por talvez um segundo, silêncio instalou-se diante da
surpresa, já que todos pairavam confusos.
— Que porra está acontecendo? — Ouvi Theon ao meu lado em um
murmúrio.
Pensei que poderia fazer parte de uma apresentação e estava prestes
a dizer isso. Cheguei a abrir a boca para respondê-lo, mas, então, ouvi o
som das espadas.
E, rápido assim, a escuridão e o silêncio tornaram-se puro pânico.
No momento em que todos entenderam o que estava acontecendo,
os gritos começaram.
O som de espadas batendo e objetos quebrando era a trilha sonora
daquele caos. Levantei-me, e alguém esbarrou em mim, quase me
derrubando. Pisquei várias vezes, tentando enxergar, pelo menos, o
suficiente para correr em direção à saída.
Chamei o nome de Theon, mas não ouvi resposta. Os gritos e o som
das espadas colidindo eram altos demais. Decidi que a melhor coisa a se
fazer era me abrigar debaixo da mesa, assim, evitaria espadas e todas
aquelas pessoas correndo às cegas. Mas, antes que eu pudesse me agachar,
fui empurrada aos tropeços pela multidão que corria.
Era difícil de respirar. Fui golpeada no ombro e o impacto foi tão
grande que quase caí.
Imagens horrorosas do meu corpo sendo pisoteado atravessaram a
minha mente.
Não caia, Cera.
Faça qualquer coisa, mas se mantenha de pé.
Mas, então, como uma intervenção divina, a luz voltou. Tão
rapidamente quanto tinha ido. Os gritos diminuíram consideravelmente ao
passo que todos recebiam a sua visão novamente.
Só que o salão no qual eu estava há menos de cinco minutos não era
nada parecido com aquele.
Corpos estavam espalhados pelo salão, sangue jorrando deles e
manchando o chão de vermelho. Os homens mascarados que sobraram
erguiam suas espadas ainda em posição de luta, uns contra os outros.
Pisquei, em choque e sem entender.
Os guardas de Khrovil estavam lutando entre si?
Mas não demorou muito para que eu assimilasse. Notei que as
pessoas ao redor voltaram o olhar para um mesmo ponto específico. Todos
pareceram congelar diante de algo. O som das espadas, aos poucos, se
silenciou. Virei-me, meus olhos seguindo em direção ao núcleo de
petrificação de todos ali: o trono.
Perdi o fôlego assim que vi.
Sarkian pairava no centro da plataforma. Apenas ele estava de pé.
Seu irmão e mãe estavam caídos ao lado de seus respectivos tronos. Sangue
escorria de seus corpos.
Seu pai, o Rei de Khrovil, estava sentado no trono com os olhos
arregalados e a garganta cortada.
Uma espada ensanguentada pendia na mão direita do príncipe. E a
outra estava apoiada, quase gentilmente, no ombro do seu pai morto.
Sarkian largou a espada, fazendo um barulho que ecoou por todo o
ambiente. E, então, ele tirou a máscara preta do próprio rosto. Seus dedos
mancharam a sua bochecha de sangue no processo, a mancha fazendo
contraste com a pele muito branca. Observei seu rosto, com a respiração
presa. Acreditava que ninguém naquele salão era capaz de respirar.
A expressão em sua face era neutra, mas havia um brilho no prata.
Um brilho sádico de um homem que havia acabado de matar a família
inteira. Uma satisfação violenta de um príncipe que acabara de se tornar rei.
Ele largou a máscara com a mesma facilidade que fez com a espada.
E, então, olhou para o pai e lhe tirou a máscara do rosto desfalecido.
Sarkian olhou para ela apenas por um momento antes de trazê-la até o
próprio o rosto.
E ela encaixou perfeitamente.
A grande máscara preta adornada em prata e finalizada com chifres
assombrosos modelaram seu rosto, deixando apenas o brilho de seus olhos
exposto.
Sarkian olhou para baixo, para os soldados que ainda pendiam as
suas espadas. Aquele era o momento em que decidiriam se o aceitariam
como rei ou morreriam.
Havia tanta tensão no ambiente que chegava a ser insuportável. O
silêncio pesava sobre nós e eu era capaz de ouvir as batidas do meu
coração.
Aos poucos, os soldados de seu pai que ainda estavam vivos
recolheram as suas espadas e se curvaram diante do novo rei. Eles foram
pegos de surpresa, não estavam prontos para um ataque. E, no final das
contas, o Rei Zagreus já estava morto. Não havia mais o porquê de lutar.
Os soldados de Sarkian, ao notar a rendição, finalmente abaixaram
as suas armas e fizeram o mesmo.
Rápido assim, violento assim, o Príncipe das Trevas se tornou o Rei
das Trevas.
Ele passou os olhos pelo resto do salão, para os serviçais e nobres
ainda petrificados. E, assim que seu olhar parou inevitavelmente em minha
direção, roubou todo o ar que tinha em meu corpo.
Devido à majestosa máscara, não tinha como saber, de fato, se era a
mim que ele observava.
Mas eu não tinha dúvidas. Sentia o prata queimando diretamente em
mim.
E foi aí que entendi.
Ele me mataria.
Ele mataria todos nós.
Quão decisivo foi aquele momento para a humanidade
quando o Príncipe das Trevas
se tornou rei
Quantas mortes
foram destinadas
no segundo em que ele colocou a nova máscara

Eu teria muito trabalho pela frente


capítulo 15

Estou me sentindo um merda.


Não quis dizer as coisas que disse sobre você. Sabe como é
importante para mim, e eu, honestamente, não sei o que faria se não a
tivesse em minha vida.
Te amo e sinto muito.
O bilhete de Rafe me foi entregue assim que cheguei em casa da
viagem. Um pequeno papel dobrado duas vezes e fechado com a tinta
marcada pelo brasão da sua família. A cozinheira disse que foi deixado
horas depois que saí para Khrovil.
Mas o dia em que voltamos foi tão intenso e assustador que acabei
esquecendo de lhe responder, então me sentei à escrivaninha naquela manhã
para fazê-lo. Escrevi na pedra que também sentia muito e lhe pedi para que
viesse até a minha casa assim que pudesse. Estava com saudades e
precisava contar o que havia acontecido em Khrovil. Obviamente, Rafe já
sabia. Aquele tipo de notícia corria rápido. Todo mundo sabia e todo mundo
temia. Mas nem todos viram com seus próprios olhos.
Os gritos soando do lado de fora me assustaram. Levantei-me da
escrivaninha e parei em frente à vidraça da janela.
No jardim, próximo ao estábulo, havia um homem grande e parrudo
ao lado de um garoto. Ele tinha um chicote nas mãos e o usava contra o
garoto magro, que se encontrava de joelhos. O homem gritava coisas
ininteligíveis ao passo que o garoto se encolhia, parecendo estar chorando.
Meu primeiro impulso foi tentar abrir a janela, mas não consegui
abrir a maldita coisa, então saí do quarto e desci as escadas.
— O que está fazendo?! — indaguei, assim que coloquei os pés para
fora da casa e comecei andar rapidamente até eles.
O chicote parou erguido no ar e o homem virou o rosto na minha
direção. Seu rosto estava molhado de suor e vermelho de uma raiva brutal.
Ele fixou os olhos em mim por um longo momento, me avaliando. A
expressão raivosa não deixou seu rosto.
— O que está fazendo?! — perguntei novamente, já que ele não
havia respondido.
Agora, parada em sua frente, o reconheci. Era o criado encarregado
de cuidar dos cavalos e do estábulo.
— Estou castigando-o por ter deixado um dos cavalos se soltar hoje
de manhã. É o cavalo do senhor.
— Não me importo! Não justifica chicoteá-lo.
Ele piscou e, como se fosse possível, seu rosto ficou ainda mais
vermelho.
— E como vou castigá-lo, então, senhora? — Ele pronunciou a
última palavra com sarcasmo e desprezo.
Olhei para baixo, para o garoto que permanecia encolhido. Suas
roupas estavam sujas e molhadas de suor.
— Não deveria! — Voltei a encará-lo. — É só um menino!
— Ele trabalha para mim. É o bastardo do meu sobrinho. Posso
fazer o que quiser com ele.
A raiva começou a crescer dentro de mim a ponto de eu acreditar
que estava da mesma cor que ele.
— Não na minha casa!
Não esperei por uma resposta.
— Levante-se. — Eu disse ao garoto.
Ele me encarou — o rosto sujo — e hesitou por um momento.
Olhou para o tio, que o encarava de forma repressiva, muito claramente
com o intuito de intimidá-lo ainda mais.
— Venha comigo — pedi novamente, mas, dessa vez, mais alto e de
forma autoritária.
O menino, finalmente, ficou de pé. Era pequeno, não devia ter mais
de onze anos. Coloquei a mão sobre ombro ossudo dele e o guiei para
longe.
— Ei, não pode fazer isso!
Virei-me para encarar o homem.
Ele torceu os dentes dentro da boca e apertou o chicote com força.
Estava louco para usá-lo contra mim, eu sabia disso.
Mas não iria.
Ele não ousaria machucar a mulher de seu patrão. Uma futura
condessa. Possivelmente, perderia a mão por isso. E esse fato me enervou.
— E o que você vai fazer? — Olhei para o chicote em sua mão. —
Usar isso contra mim?
Ele engoliu em seco e, por um momento, achei até que não iria
responder, mas, então, abriu a boca.
— Não deveria se meter em assuntos que não tem conhecimento,
senhora. Não sabe como as coisas funcionam por aqui.
Sua voz era mais controlada dessa vez, quase como uma ameaça
serena.
Virei-me, sem lhe dar uma resposta, e segui com o garoto para
dentro da casa.
— Está tudo bem? — indaguei, assim que entramos.
O menino me encarou com grandes e molhados olhos castanhos, e
assentiu.
— Me deixe ver as suas costas.
Ele hesitou um momento antes de se virar e levantar a camisa
surrada. Suas costas não sangravam, mas havia marcas vermelhas por todo
lugar e algumas cicatrizes também. Notei, com pesar, que aquele tipo de
castigo acontecia com frequência.
— Pode abaixar... — disse baixinho, e ele se virou novamente para
me encarar. — Qual é o seu nome?
— Milo.
— Milo, vou pedir à criada para passar algo nas suas costas, para
doer menos. Tudo bem?
Ele assentiu com a cabeça.
— E o que acha de um suco com torradas?
Seus olhos brilharam e eu sorri, por mais que, por dentro, me doesse
um pouco notar a tamanha felicidade do menino diante da menção de uma
simples refeição.
Olhei para a janela, para o homem lá fora. Eu sabia muito bem que o
comportamento dele não iria mudar com uma reclamação minha, mas,
vindo de Theon, seria muito provável que sim. Então, esperei meu marido
chegar em casa para ter aquela conversa.

— Ele estava batendo no garoto.


Estávamos na sala e havíamos acabado de jantar. Esperei um tempo
para abordar o assunto porque ele me pareceu muito irritado quando
chegou, então sabia que uma reclamação pioraria o seu humor
consideravelmente.
— E daí?
Franzi o cenho.
— O menino não tem nem doze anos.
Meu marido pareceu confuso e incomodado.
— Ele estava repreendendo-o por ter feito algo errado.
— Chicoteando-o? — sibilei.
Theon desviou o olhar, indo até o armário de bebidas.
— Não quero que ele trabalhe aqui mais — disse finalmente.
Achava que aquela foi a primeira coisa que pedi desde o casamento.
Foi a primeira vez que tive coragem de exigir alguma coisa.
Ele olhou para mim de forma surpresa e, então, seu rosto se
transformou em uma careta quase entretida.
— Não vou demitir Doyel. — Ele declarou, ao abrir a garrafa de
vinho.
— Por quê? — indaguei, me remexendo no sofá. — Podemos
arranjar outro criado para cuidar dos cavalos. Um que não chicoteie
crianças.
— Porque ele trabalha para o meu pai desde que eu era pequeno. —
Ele falou bem sério dessa vez e, então, fez uma breve pausa ao colocar a
bebida no copo. — E essa não é uma decisão sua para tomar.
— Mas por que…
O barulho da garrafa batendo contra a mesa fez com que eu me
calasse. Theon se virou para mim, irritado.
— Dentre todos os dias, você tinha que escolher hoje para vir com
essas reclamações? Eu só queria chegar em casa, jantar e descansar um
pouco depois de um dia exaustivo de trabalho. Seria muito para pedir,
Cera?!
Inspirei fundo.
Eu não ganharia aquela discussão naquele momento, isso já estava
muito claro.
Levantei-me a fim de me aproximar dele.
— Não sabia que estava tendo um dia difícil — disse com a voz
suave, encarando-o fixamente. — Não precisamos demiti-lo. Mas pode,
pelo menos, conversar com ele? Mandar que não faça novamente?
Theon não respondeu, então aproveitei para suplicar. Como uma
idiota.
Mas não via outra opção. Pensei no menino, pensei no chicote... E
naquele homem nojento.
Gostaria de ter o chicote em mãos e ele ajoelhado.
— Por favor — pedi suavemente, ficando ainda mais próxima.
Theon hesitou por um momento e, então, respirou fundo.
— Tudo bem. — Ele passou a mão pelos cabelos com um suspiro
dramático. — Vou conversar com ele.
— Obrigada. — Suspirei e, então, mudei a direção da conversa. —
E o que aconteceu? Por que está tão estressado? — indaguei, tentando soar
doce e paciente. Tentando parecer me importar.
Ele não respondeu, apenas deu um gole na bebida com o olhar longe
do meu.
— É algo com o seu pai?
Meu marido balançou a cabeça.
— O que é, então?
Ele abaixou o copo.
— Estão dizendo que a guerra vai realmente acontecer. — Ele
desviou o olhar para a janela. — Sarkian vai atacar. Aquele bastardo sádico.
Nos últimos dias, era basicamente apenas sobre isso que se falava
em Umbra. Todos sabiam da reputação de Sarkian e, agora como rei,
tinham medo do que ele poderia fazer com todo o poder. E já era sabido que
ele não era particularmente afeiçoado ao nosso povo. Eu, mais do que
ninguém, sabia disso. Ele nos odiava.
Pequena e insignificante keld.
Era por isso que não fiquei surpresa diante da notícia. No minuto em
que o vi parado no centro do trono e com o sangue da família sujando a sua
espada, sabia que isso aconteceria.
Eu passei todos os dias, desde o ocorrido, pensando no porquê ele
havia nos deixado ir.
Me deixado ir.
Ele não matou ninguém além dos próprios guardas que foram contra
ele.
E foi apenas recentemente que entendi.
Sarkian queria testemunhas. Queria que houvesse pessoas para
espalhar pelos reinos afora que, agora, ele era o novo Rei de Khrovil.
Essa era a única razão pela qual eu respirava naquele momento.
— Tentaram reafirmar o acordo? — indaguei.
— O acordo, aparentemente, morreu junto ao antigo rei. Sarkian
mandou a cabeça decapitada dos dois negociadores que foram enviados
desde a tomada do trono.
Uma sensação ruim atravessou meu corpo diretamente para o meu
estômago.
— E o Grande Rei não vai interferir?
Todos os reinos respondiam ao Grande Rei. Caso ele interferisse, a
guerra poderia ser impedida. Éramos pequenos reinos em volta do Reino
Central, que comandava tudo. Todos nos curvávamos perante a ele. Apesar
de sermos independentes de certa forma, o Grande Rei tinha a maior parte
das terras e um exército inigualável. Sua palavra era sempre a última no
final das contas.
— Ele está pouco se importando. Não muda em nada, para ele, essa
guerra.
— Você acha que temos boas chances de ganhar?
Theon colocou mais vinho na taça.
— Temos um exército maior. Mas eles têm um exército melhor. Eles
começam a ser treinados com oito anos. Alguns chegam a morrer no
treinamento, de tão intenso.
Observei o rosto do meu marido, que estava conturbado. Eu podia
entender, ele tinha muito a perder. Theon era o filho de um conde e, caso
perdêssemos, ele não seria apenas rendido, seria morto.
E eu também.
Apesar de que, muitas vezes, no final de guerras, os selke eram
conhecidos por fazerem das mulheres nobres, criadas das rainhas
vencedores, ou pior, escravas sexuais.
Porque era tudo sobre humilhação. Sobre acabar com qualquer tipo
de dignidade humana até não sobrar mais nada.
Engoli em seco.
— Pelo menos, estamos cientes da vontade dele. Não teremos o
elemento surpresa em vantagem. Acredito que temos grandes chances de
ganhar — afirmei mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Eu
realmente queria acreditar nisso.
Meu marido olhou para a taça de vinho por um tempo e, com um
olhar distante — e quase para si mesmo —, murmurou:
— Aquele demônio quer sangue.
O rosto de Sarkian me veio em mente. O prateado me encontrando
no meio da multidão desesperada e dos corpos caídos no chão. Um arrepio
percorreu o meu corpo.
Eu não cheguei a responder, mas, naquilo, concordávamos
completamente.
Sarkian Varant queria sangue.
E, no fundo, algo me dizia que, dentre a maioria dos keld, ele
apreciaria especialmente o meu.
capítulo 16

— Com fome?
Coloquei o copo de suco na mesa suja do estábulo e o prato de
torradas logo ao lado.
Milo se assustou com a minha presença, virando o rosto
rapidamente.
Ele desceu do banquinho onde usava para poder escovar o cavalo, já
que o animal era grande demais comparado a ele.
— Sim, senhora. — O menino disse finalmente, encarando a
comida.
Eu sorri.
— Então, coma.
Encostei-me em uma mesa de madeira ao passo que o observava.
Ele bebeu dois terços do copo sem, ao menos, parar para respirar.
— Você gosta de cuidar dos cavalos? — perguntei, quando ele
abaixou o copo.
— Gosto. — Milo deu uma mordida furiosa e, depois de engolir,
completou: — Só não gosto da parte da limpeza.
— E você faz isso com muita frequência?
Ele assentiu com veemência.
— Todos os dias, senhora.
— E seu tio costuma… te castigar demais?
O menino parou de mastigar por um momento e, então, desviou o
olhar do meu. Quando engoliu, senti que a comida desceu com dificuldade.
— Só quando faço besteira, senhora.
Milo encostou as costas na parede, e uma careta surgiu em seu rosto
delicado e sujo.
— Suas costas não melhoraram?
Ele não respondeu.
Era para estarem melhores. Pelo menos, boas o suficiente para que
ele não fizesse aquela careta.
— Ele te castigou novamente, não foi?
Aproximei-me dele.
— Me deixe ver as suas costas.
Ele não se moveu.
— Milo, você…
Ouvi passos se aproximarem e, então, a voz de Allegra:
— Senhora.
— Agora, não. — Eu disse, ainda encarando o menino fixamente.
Ele havia apanhado mais. Aconteceu depois da minha intervenção.
Aquele monstro descontou no pobre garoto. Eu devia ter previsto isso.
Eu só tinha piorado as coisas.
— Senhora. — Allegra chamou de novo, agora mais alto.
Quando levantei o olhar, ela me encarava com os olhos frenéticos e
sem fôlego, como se tivesse corrido até ali.
No mesmo instante, eu soube que aquilo significava algo ruim.
Muito ruim.
— O que houve?
Ela inspirou fundo uma vez.
— É o seu amigo, o Senhor Rafe. — Ela engoliu em seco em uma
pausa que me deixou à beira da loucura. — Ele foi preso.
Depois de um momento longo e entorpecente de choque, eu fui
capaz de abrir a boca.
— Onde ele está?!
— Me disseram que foi levado para a contenção.
— Qual foi o crime?
Algo me dizia que eu já sabia a resposta daquela pergunta.
Mas eu torcia para que estivesse errada.
Por favor, Deuses...
— Não sei, senhora.
— Onde Theon está?
Comecei a andar em direção à casa.
— No escritório. — Ela respondeu, me seguindo.
Subi as escadas correndo para o segundo andar da casa.
Abri a porta sem me importar em bater. Theon estava sentado à
mesa com um papel e uma caneta de pena nas mãos.
— Cera. — Ele me encarou irritado e surpreso com a interrupção.
— Rafe foi preso — declarei em completo pânico.
Esperei uma reação, mas ela não veio.
— Eu sei.
— Sabe?!
Ele assentiu.
— E por que não me contou?
— Soube hoje de manhã.
Em qualquer outro momento, aquele fato me irritaria. Mas eu estava
muito preocupada com Rafe para me importar com o fato de meu marido ter
omitido uma informação tão crucial de mim.
— Por quê?! — indaguei. — O que aconteceu?
Meu marido desviou o olhar e, antes de falar, seu maxilar torceu em
uma linha dura.
— Pecado lascivo.
Senti as minhas pernas fraquejarem.
Não.
Minha boca estava seca e a minha cabeça girava. Estava difícil até
para falar.
— Co… como?
Conforme o choque foi passando, a profunda e dolorosa tristeza
começou a tomar meu corpo. Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Não sei dos detalhes.
— O que vai acontecer?! — perguntei, apesar de já ter uma boa
ideia do que ocorria em casos como aquele.
— Ele vai ser punido de acordo com a gravidade da ofensa.
— Ele vai ser…
Executado.
Não consegui proferir a palavra.
Theon ficou em silêncio, mas seus olhos confirmaram aquilo que eu
não queria ouvir.
Não.
Aquilo não podia acontecer.
— O que pode ser feito? Tem que haver um jeito!
— A única chance dele é se seu próprio pai intervir. Ele pode pegar
a segunda pena, caso tenha o apelo do pai. Mas duvido que isso aconteça.
— Você não pode fazer nada?!
As lágrimas escorreram. E notei que aquela era a primeira vez que
chorei na frente do meu marido. Ele ficou desconcertado por um momento,
mas muito breve.
— Ele pecou, Cera. Um pecado… — Theon desviou o olhar com
desgosto — imperdoável. Mesmo que pudesse, não o faria. Sei que ele é
seu amigo, mas precisa pagar pelo que fez.

Eles não me receberam.


Fui até a casa de Rafe na esperança de que pudesse conversar com
seu pai. O pai de Rafe sempre foi um homem sério, mas bondoso. Um pai
descente. Bem melhor do que o meu, pelo menos.
Mas nem passei da porta de entrada. A criada me dispensou, mesmo
depois das minhas súplicas inúteis.
O pânico cresceu ao entender que Rafe não tinha o apoio do pai.
O filho dele estava em perigo de vida.
E ele não iria fazer absolutamente nada.
capítulo 17

Rafe estava algemado.


Foi a primeira coisa que eu vi. As algemas.
Preso como se fosse um animal. Como se a pessoa mais gentil do
mundo fosse capaz de ferir alguém.
Seu cabelo sempre bem arrumado e lustroso estava ensebado e
bagunçado. Fitava o chão, com as costas curvadas.
Havia certas penas que não permitiam visitas, como era o caso de
Rafe. Mas eu havia subornado o guarda. Coloquei um saco repleto de
moedas que havia juntando nos jogos em suas mãos.
— Você tem quinze minutos — avisou o guarda.
Corri na direção de Rafe.
E foi só quando me viu que sua expressão mudou.
Eu o abracei e notei que estava consideravelmente mais magro. Ele
havia perdido peso demais para apenas alguns dias preso. Cheirava mal
também, como se não tomasse banho há bastante tempo. Havia apenas um
toque suave de seu cheiro que eu pude reconhecer.
— Eu não acredito que isso está acontecendo... — murmurei, com a
cabeça colada em seu peito e os olhos fechados com força.
— Cera... — Foi a única coisa que deixou seus lábios. Meu nome
soou como um suspiro de alívio.
Não queria soltá-lo nunca mais. Porém o guarda me repreendeu,
exigindo que eu me afastasse.
Sentamo-nos na mesa de pedra, um na frente do outro. Segurei as
suas mãos porque precisava segurá-lo de alguma forma.
— Eu vou te tirar daqui. Escrevi para o seu pai e…
— Ele vai não fazer nada.
Sua mandíbula estava tensa, mas a dor em seus olhos era maior do
que a raiva. Não o retruquei porque, no fundo, sabia que era verdade.
— Como eles têm te tratado? — indaguei, mudando de assunto. —
Têm te dado comida?
— Às vezes. — Ele desviou o olhar. — Mas não tenho fome.
Segurei suas mãos com mais força e fitei seu rosto tão familiar. Rafe
sempre foi sinônimo de casa para mim. Era o que diziam: “lar não é um
lugar, e sim uma pessoa”. Depois da minha mãe, me vi completamente
perdida.
Até Rafe.
— O que é essa vermelhidão na sua têmpora? — indaguei, notando
a mancha na pele clara.
Ele hesitou por um momento.
— Eu bati.
— Não minta.
— Não importa, Cera.
— Rafe…
— Como Vesper está?
A simples menção do nome me fez retrair.
— Como ele está?! — indaguei com a voz tensa. — Bem, livre.
Rafe desviou o olhar do meu, parecendo perdido em pensamentos
por um instante. Poderia apostar que estava pensando nele.
— Ele deveria estar aqui. Não você.
Seu olhar voltou para o meu. Magoado e derrotado.
— Não diga isso.
— É culpa de…
— Pare, Cera! — interrompeu, afastando as mãos das minhas. Ele
balançou a cabeça. — Só pare, por favor… Você não entende.
— O quê?! — perguntei, frustrada e tentando controlar a minha
indignação. — O que eu não entendo, Rafe?
— Eu o amo! E a única coisa que me traz alguma paz é o fato de ele
não estar passando pela mesma coisa. Se houvesse qualquer possibilidade
de trocar de lugar com ele, eu não o faria. Jamais.
Fiquei muda.
Já sabia que Rafe estava apaixonado. Mas pensei que era apenas
isso. Uma paixão. Eu não conseguia compreender aquele tipo de altruísmo.
Como ele podia estar em uma situação como aquela e se importar mais com
outra pessoa do que consigo mesmo? Para mim, era uma estupidez, um
delírio. Rafe não parecia estar vendo as coisas com clareza.
— Você só vai entender isso quando sentir. — Ele pegou as minhas
mãos de novo. — Espero que, um dia, você sinta. E que, no seu caso, não
seja visto como um pecado. Eu desejo isso a você mais do que qualquer
outra coisa. E quando isso acontecer, sei que você vai me perdoar.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Não fale assim...
— Como?
— Como se estivesse se despedindo. Vamos encontrar uma solução.
— Eu passei os últimos dias e noites pensando em todas as
possibilidades, Cera. Não há solução.
Dessa vez, eu recuei, soltando as suas mãos.
— Você não pode simplesmente desistir.
— Não é desistir, Cera. É aceitar.
— O tempo acabou. — O guarda anunciou, nos encarando.
Pânico cresceu em meu peito.
Rafe se levantou.
Não.
— Não torne isso mais difícil para mim. — Ele pediu, parado na
minha frente. — Não vou suportar ir embora com você assim.
As minhas pernas estavam fracas, mas me levantei. Lágrimas
escorriam sem parar agora. Coloquei meus braços ao seu redor e o apertei
com força.
— Eu te amo.
Minha voz soou rouca e sufocada de emoções.
— Te amo. — Ele devolveu. — Sempre vou te amar, do lugar onde
eu estiver.
Um soluço deixou a minha garganta.
Não conseguia soltá-lo, apesar de saber que deveria.
O guarda começou a puxá-lo. Rafe aproximou os lábios do meu
ouvido antes de ser levado.
— Tome conta dele.
Essa foi a última coisa que disse para mim.
Rafe já estava no palco quando a usurpadora chegou
amordaçado e com os pulsos amarrados
A multidão estava reunida para o espetáculo
Centenas de pessoas sedentas para me assistir em ação
A usurpadora se juntou a eles
O seu era um dos poucos corações que não batia em excitação
mas sim em completo desespero
Ela ainda tinha dificuldade de acreditar que aquilo não era um
completo pesadelo
O velho de branco começou a rezar
e a multidão o acompanhou em uníssono
Quando o soldado começou a levá-lo para o centro do palco
a usurpadora tentou chegar até lá
Ela sabia que não poderia salvá-lo
mas isso não importava
Ela precisava tentar
Quando o colocaram de joelhos
ela gritou o seu nome pela primeira vez
mas o apelo foi abafado pelas vozes ao redor
No momento em que ela viu a lágrima escorrendo no rosto dele
gritou o seu nome pela segunda vez
Seu braço direito se ergueu
como se ela pudesse
de alguma forma
alcançá-lo
Assim que o soldado ergueu a espada acima do pescoço da única
pessoa que amava
ela gritou seu nome pela terceira vez
A garganta queimava conforme ela empurrava os corpos para longe
de seu caminho
mas ela sabia que era tarde demais
Ela sabia que jamais o alcançaria
Quando a espada do soldado desceu em direção ao pescoço dele
ela gritou seu nome pela quarta
e última vez

E então
eu o levei
capítulo 18

Eu estava sendo carregada.


Pisquei várias vezes, tentando entender o que estava acontecendo. O
rosto de Vesper apareceu diante de mim.
E, então, a lembrança dos acontecimentos voltaram com tudo.
Eu empurrei seu peito e ele me soltou.
— Não!
Voltei a chorar. Voltei a gritar.
Olhei em volta, à procura de Rafe. As lágrimas embaçavam a minha
visão.
Aquilo só podia ser um pesadelo.
O palco estava a dezenas de metros de distância. Eu já não
conseguia ver Rafe.
Comecei a correr de volta para lá.
Foi um pesadelo ruim. Quando eu voltasse, Rafe não estaria naquele
palco. Eu precisava daquela confirmação.
Senti braços em volta de mim novamente.
Lutei contra seu aperto. Comecei a gritar.
— Me solte! Preciso ir até ele!
Eu estava sufocando. O ar que entrava não era o suficiente.
— Preciso do Rafe!
— Ele está morto, Cera!
Congelei por um segundo, meus membros dormentes.
O desespero se transformou em raiva em um piscar de olhos.
Virei-me para Vesper.
Bati nele.
Soquei seu peito. Empurrei-o.
— É tudo culpa sua! Você o deixou vulnerável! Deixou que ficasse
descuidado! — gritei, as palavras arranhando a minha garganta dolorida. —
Você o matou!
Usei toda a força que tinha. Queria que ele sentisse a mesma dor que
eu estava sentindo.
Ao contrário de revidar, Vesper segurou meus braços.
Contorci-me contra seu aperto.
Sentia vontade de vomitar.
— Você matou a única pessoa que eu já amei!
Ele não disse nada. Em vez disso, me puxou para perto. Seu aperto
ficou muito forte, e eu já estava muito cansada. Muito fraca.
Vesper me envolveu em seus braços enquanto eu lutava
desesperadamente para sair dali. Mas, aos poucos, meus membros foram
cedendo. Minha cabeça descansou em seu peito e minhas pernas
fraquejaram. Ele me aparou quando escorreguei até o chão.
E ficamos ali, abraçados, até que os meus soluços se tornaram mais
silenciosos.
Somente quando parei de tremer foi que consegui levantar a cabeça
para encará-lo. E foi só vendo seu rosto de perto que, finalmente, consegui
enxergar como estava inchado. Lágrimas parecidas com as minhas desciam
pelas suas bochechas.
Nunca vi alguém tão desolado na minha vida.
Talvez, apenas se me encarasse no espelho.
— Eu sinto muito... — disse baixinho.
Vesper fixou os olhos nos meus, com a sua tristeza refletindo a
minha.
— Também sinto. — Ele devolveu, sem me soltar.
capítulo 19

— Você precisa comer alguma coisa, senhora.


Eu não respondi, o que fez com que ela entrasse no quarto.
Allegra iria insistir. Agora, fazia isso com frequência. Conforme os
dias se passaram, ela foi se tornando cada vez mais persistente em me fazer
comer alguma coisa.
Se eu tivesse forças, gritaria para que me deixasse em paz.
— Fiz suco e bolo de laranja, seu favorito.
Ouvi quando ela colocou a bandeja ao meu lado, na cama. Continuei
de costas para ela, torcendo para que fosse embora.
— Vou deixar aqui, senhora.
Quando ela finalmente deixou o quarto, voltei a chorar. Um choro
comedido agora, silencioso. As lágrimas caíam gordas, mas lentas. Não era
mais como o choro histérico e desesperado do começo. Naquela altura, era
um choro irritante e cansativo, que parecia não querer me abandonar. Meu
rosto estava permanentemente inchado. Não que eu estivesse me olhando
muito no espelho.
Tudo o que eu andava fazendo era dormir, ir ao banheiro e chorar.
Quando meu estômago machucava, eu comia um pedaço de pão e bebia um
copo de água que Allegra deixava sempre ao meu alcance. Caso contrário,
não comeria.
Não via Theon há quase uma semana. Pelo menos, eu achava. A
noção de tempo escapou de mim e os dias começaram a se difundir. Mas
acreditava que eu não via meu marido há uma quantidade considerável de
tempo. Não que eu me importasse. Talvez, era até melhor assim, já que eu
desejava, acima de tudo, ficar sozinha. Também porque eu me ressentia.
As suas palavras continuavam voltando para a minha cabeça.
Ele pecou, Cera. Um pecado… imperdoável. Mesmo que pudesse,
não o faria. Sei que ele é seu amigo, mas precisa pagar pelo que fez.
É. Era melhor mesmo que ele ficasse longe.

Levantei-me pela primeira vez naquele dia para ir ao banheiro.


Quando me olhei no espelho, quase não me reconheci. Meu cabelo estava
embolado de todas as formas possíveis. O rosto inchado e grandes olheiras
marcavam minha pele.
Mas o pior de tudo era que eu fedia.
Meu último banho havia sido há, talvez, 3 dias, então me obriguei a
pedir para que Allegra aprontasse a banheira para mim.
Saí do quarto apenas de camisola. Era começo de noite e ela deveria
estar ajudando com o jantar na cozinha. Parei no meio do corredor ao ouvir
a voz do meu marido. Não sabia que ele tinha chegado em casa.
Aproximei-me da porta do escritório, que estava apenas encostada.
— Você não entende, Theon! — exclamou seu pai tão alto que fui
capaz de escutar perfeitamente. — As reservas acabaram, não há de onde
tirar dinheiro para pagar.
— Mas e o dote de Cera? — Meu marido indagou, e eu me
aproximei mais um pouco ao escutar o meu nome. — Foram mais de mil
salins.
— Não sobrou quase nada. Como acha que pagamos as últimas
carruagens de trabalho? E as terras perto do rio?
Houve uma pausa e, quando Theon falou, foi com um tom de
frustração.
— Aquele velho podia ter dato um dote melhor. É podre de rico.
Demorou um instante para que eu entendesse que estavam falando
do meu pai.
— Não conseguiríamos um dote melhor do que esse, sabe disso. —
O velho rebateu, irritado. — Não havia melhor opção do que ela. Foi mais
do que farto, mas não o suficiente para cobrir tudo. Vamos precisar vender a
sede de Panenton para aquele barão miserável.
Afastei-me da porta quando escutei o barulho da cadeira arrastando
dentro do escritório. Deixei o corredor às pressas e voltei para o meu
quarto.
Eu não podia acreditar no que tinha ouvido.
Sentia-me uma idiota. Pensei que estivesse enganando-o para que se
casasse comigo, que eu precisava fisgá-lo porque era uma oportunidade
única. Mas, na verdade, foi o contrário. Eu fui a manipulada da história.
Chorei de raiva. Raiva de Theon por me manipular e, acima de tudo,
de mim mesma por ter sido tão estúpida.
Era quase apaziguante chorar por outra razão que não fosse Rafe.
Mesmo que, por um breve instante, era bom sentir raiva em vez de tristeza
cortante.
capítulo 20

Eu tinha pesadelos.
Pesadelos em que via Rafe novamente naquele palco. O soldado
levantava a espada sobre a sua cabeça. E eu corria para tentar alcançá-lo.
Mas eu sempre chegava tarde demais.
Eu acordava suando. Então, chorava até dormir novamente.
— O que está acontecendo? — Theon perguntou na primeira noite
em que dormimos juntos desde a morte de Rafe.
Era madrugada e eu chorava silenciosamente.
— Nada — murmurei no escuro.
Preferia dormir sozinha, sem me preocupar com que alguém me
ouvisse chorando.
Alguns segundos depois, eu o ouvi voltar a ressonar.
Conforme os dias se passaram, eu o evitei. Se já era difícil olhar
para ele depois da morte de Rafe, era impossível agora que eu sabia da
verdade. Eu ficava me perguntando se cada momento antes do casamento
foi calculado. E, então, me castigava por não ter notado.
Certa noite, depois de se deitar, ele começou a me procurar embaixo
das cobertas. Fazia bastante tempo que não fazíamos sexo. Não que eu
sentisse falta, estava deprimida demais para pensar nesse tipo de coisa. E,
mesmo antes, sexo era algo que parecia dar muito mais satisfação a ele do
que a mim. Minha satisfação costumava vir do fato de vê-lo contente e me
desejando. Mas, agora, era uma tarefa irritante e tediosa. Eu apenas me
deitei lá e esperei que terminasse logo.
Quando acabou, virei de costas para ele com o maior vazio que senti
em toda a minha vida.
E foi quando o entendimento, por fim, me acertou.
Eu estava sozinha.
Sem minha mãe e, agora, sem Rafe. Eu estava completamente
sozinha.

Na primeira vez que saí de casa em quase duas semanas, choveu.


Choveu tanto que eu resolvi voltar com Allegra apenas dez minutos depois
de ter chegado na cidade. Já estava indisposta de qualquer maneira, então
era uma bela desculpa para voltar para a minha cama.
Pingos de chuva caíam sobre o chão de madeira conforme eu
atravessava o corredor do primeiro andar. Subi as escadas para ir direto ao
meu quarto, mas parei quando ouvi sons estranhos vindos de uma das
portas.
Abri a porta do escritório de Theon sem me importar em bater.
Meu marido estava sentado no sofá e, em cima dele, repousava uma
mulher seminua. Seu vestido estava aberto e seus seios, no rosto dele.
Eu os assustei com a minha chegada, fazendo com que ambos
encarassem a porta.
Os cabelos de Theon estavam uma bagunça e seus lábios, inchados.
Eu congelei com a mão na maçaneta.
Depois de um segundo, talvez, Theon começou a movê-la de seu
colo.
— Cera. — Ele murmurou em um reconhecimento tenso.
A garota loira olhava para mim, confusa.
— Quem é essa?
Como ele não falou nada, eu mesma respondi:
— A esposa dele. — Minha voz soou estranhamente controlada.
Ela olhou para ele e, então, olhou para mim novamente, como se
estivesse indecisa sobre o que deveria fazer em seguida. Mas
provavelmente devido ao que encontrou em meus olhos, tomou uma
decisão e começou a ajeitar as roupas para sair.
Era uma cena tão feia, tão imunda e errada, que me senti
momentaneamente enjoada. Eu tive vontade de me sentar, mas meu corpo
parecia ser incapaz de se mover. Se fosse, eu me viraria e sairia dali. Em
situações como aquela, em que eu sabia que estava muito perto de perder o
controle, preferia me afastar do que quer que fosse para me recuperar.
Theon abotoou as calças ao passo que ela se retirava. Não sabia
exatamente o que eu estava esperando. Provavelmente, um pedido de
desculpas. Algo patético e clichê, e que não faria diferença nenhuma. Mas
não foi o que eu recebi.
— Você não vai fazer um escândalo, né?
Eu pisquei.
Uma vez. Duas vezes.
— O quê?!
— Não vai surtar de ciúmes ou algo assim, certo? — Ele
questionou, ajeitando casualmente o cabelo. — Eu só estava liberando o
estresse dos últimos dias.
Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
Minha pulsação começou a acelerar. De repente, tudo o que eu ouvia
eram as batidas do meu coração.
Porque não era o fato de tê-lo pegado transando com outra mulher,
chegava a ser desconcertante o quanto eu realmente não me importava com
isso como provavelmente deveria. Era o fato de que ele tinha tão pouco
respeito por mim que nem se deu ao trabalho de se desculpar.
Foi isso o que me fez explodir.
— Eu não consigo acreditar que fui estúpida o suficiente para me
casar com você! — Meus lábios formaram um sorriso amargo. — Eu só não
me odeio mais do que te odeio.
Ele hesitou por um momento antes de responder. Achava que aquela
era a primeira conversa sincera que tínhamos desde que nos conhecemos.
Nenhum de nós estava fingindo agora, mostrando uma versão melhor do
que a original. Não havia mais o porquê de jogar aquele jogo.
— Bem... Tarde demais para arrependimentos, querida esposa.
Eu dei um passo à frente.
— Não é tarde demais. Vamos nos separar.
A exigência o pegou desprevenido. Sabia disso porque ficou mudo
por um momento.
Separações eram raras e só aconteciam caso o marido quisesse. E
isso quase nunca ocorria, era extremamente malvisto. Mas, naquele
momento, enquanto meu coração batia forte com ódio, eu preferia essa
opção a passar o resto da minha vida com ele.
Theon finalmente reagiu. Uma risada zombeteira ecoou pelo
cômodo tenso.
— Realmente engraçado.
— Não foi uma piada.
Seu rosto fechou. Ele avançou um passo.
— Perdeu a cabeça? Isto não é uma opção!
— Claro que é! Você não quer estar casado comigo e eu não suporto
olhar para você. Quem dirá, dividir uma casa.
Ele avançou mais um passo. Seu rosto estava vermelho agora.
— Você vai calar a boca — ele sibilou entredentes — e ser uma
esposa obediente.
Theon nunca havia falado daquele jeito comigo, e estaria mentindo
se dissesse que seu tom não havia me assustado. Mas não recuei.
Fechei as mãos em punhos, focando na raiva.
— Tudo bem. Eu não me importo com o que você faz ou deixa de
fazer. Mas eu nunca mais quero ver você com outra mulher em minha casa
de novo. Eu não vou ser motivo de piada.
Seu rosto atingiu um tom de vermelho ainda mais assustador.
— Quem é você para me dizer o que fazer?!
— Parece que sou a esposa de um homem patético de merda!
Houve apenas um segundo de completo silêncio antes que
acontecesse.
O tapa em meu rosto veio tão rápido e tão forte que me fez
cambalear.
Levei as mãos ao rosto conforme processava o choque. E, enquanto
encava o chão de madeira, tentava me lembrar de respirar. O golpe
formigava e eu não sentia nenhuma parte do corpo além da lateral da minha
face.
Quando eu finalmente ergui a cabeça, Theon já não estava mais no
cômodo.
Aquela foi a primeira vez que um homem me bateu.
E aquela também foi a primeira vez que decidi matar alguém.
capítulo 21

Ganhei um propósito depois que decidi matar meu marido.


Aquilo era enervante, saudável até, eu diria. Ao contrário de estar
consumida pela depressão pesada causada pela morte de Rafe, estava
consumida pela raiva e sede de retaliação. Mas também pelo nervosismo,
não poderia mentir. Nunca havia matado alguém e nunca achei que o faria.
Mas lá estava eu, pensando na melhor forma de assassinar alguém
sem ser pega. Porque, em hipótese alguma, eu poderia ser descoberta. Caso
acontecesse, eu seria morta no mesmo palco que meu melhor amigo, com
várias pessoas assistindo e me xingando de todos os nomes terríveis e
inimagináveis.
Eu odiava pensar nisso, então simplesmente evitava.
Eu não vou ser pega, repetia diversas vezes.
Com um plano bem executado, tudo dará certo.
A ideia de como eu faria me veio duas tardes depois da decisão. Eu
não estava com pressa. Sabia que a pressa era a inimiga da perfeição, e eu
precisava que fosse perfeito. A minha vida dependia daquilo.
Allegra havia colocado o café da manhã para mim, como sempre
fazia. Mas, daquela vez, pôs um pequeno vaso com plantas de enfeite na
bandeja. A ideia me veio no momento em que vi as pequenas e delicadas
folhagens. Foi como um estalo.
Ervas.
Envenenamento.
Era perfeito. Limpo, silencioso e rápido.
Eu já havia pensado em várias outras formas mais manuais e que
exigiam certa força física e habilidade, mas descartei todas. A ideia de
enfiar uma faca em seu coração ou sufocá-lo com um travesseiro me
assustava. Era violento demais. Eu sabia que havia fortes chances de me
acovardar na hora. O veneno era mais passivo e bem menos incriminador.
Imaginava que seria bem mais fácil acobertar um assassinato por
envenenamento do que uma facada no coração.
A escolha do veneno não foi difícil.
Não poderia escolher algo óbvio, já que arriscar ser vista comprando
plantas venenosas dias antes da morte do meu marido não era uma opção.
Eu já tinha lido um livro de biologia sobre plantas. Havia uma em particular
e que, aparentemente, era inofensiva. Podia ser encontrada em praticamente
qualquer lugar. Mas, misturada com outra substância, era fatal.
Lembrava de já tê-la visto em um dos meus passeios pelas terras
assim que cheguei na nossa nova casa. Separei uma manhã em que fingi
observar os cavalos para colhê-las. Eu as coloquei no bolso do meu vestido
e voltei para casa para preparar a substância. O outro produto do qual
precisava, encontrei na cozinha, já que era algo relativamente comum de ser
usado. Certifiquei-me de que não havia ninguém por perto quando abri o
armário acima do fogão.
Levei um susto ao entrar no meu quarto e encontrar Allegra.
A pequena garrafa caiu das minhas mãos e, por pouco, não quebrou.
— Achei que fosse a sua hora de almoço. — Eu disse, ao passo que
me agachava rapidamente para pegar a garrafa.
Ela avançou, como se quisesse me ajudar a recolher. Mas fui mais
rápida.
— A Senhora Alba postergou o meu almoço. — Ela justificou, não
olhando para mim, mas sim para as minhas mãos.
Era tarde demais para tentar esconder.
Nossos olhos se encontraram e havia uma clara dúvida em seu rosto.
Por que eu estaria levando aquele condimento para o meu quarto?
— Você precisa de alguma coisa, senhora?
Balancei a cabeça.
— Não — respondi, e levantei a pequena garrafa. — Eu só ouvi que
isso aqui faz maravilhas para a pele, aí, resolvi testar.
Seu rosto continuava confuso, mas ela não fez mais perguntas. Se
ela acreditava ou não, eu não saberia dizer.
Allegra foi em direção à porta, para se retirar.
Uma sensação ruim inundou meu peito.
Estava tudo acabado. Eu não podia arriscar que alguém soubesse
que eu havia levado aquele produto para o meu quarto dias antes do meu
marido ser envenenado por uma mistura que o continha.
Pessoas seriam interrogadas depois do que acontecesse e isso
incluiria Allegra.
— Senhora.
Virei-me para encará-la. Ela estava próxima à porta, mas havia se
virado.
— Funciona melhor se deixar as ervas no sal antes de misturar.
Pisquei.
— O quê? — perguntei, com a boca repentinamente seca. — Do que
está falando?
Seu rosto corou e ela desviou o olhar por apenas um instante.
— Eu a vi passeando perto dos pomares.
Perto dos pomares era o local onde as ervas cresciam. E, pelo seu
olhar, era claro que Allegra sabia muito bem disso.
— Eu gosto de maçãs. — Foi tudo o que consegui dizer.
Demorou um instante, mas ela assentiu.
— Claro.
Ela se virou.
— Allegra — chamei. — Acha que alguém mais notou?
Meu coração batia rapidamente. Eu ainda não havia feito nada, mas
o medo de ser pega, de repente, se tonou muito real.
Ela franziu o rosto delicado.
— O quê? — Ela indagou. — Que a senhora gosta de maçãs?
Eu a encarei fixamente até que um pequeno sorriso quebrou em
meus lábios.
Allegra não contaria para ninguém.
O plano ainda estava de pé.

Eu esperei pelo momento em que faríamos uma refeição juntos.


Dois dias depois, estávamos sentados e jantando. Apenas nós dois.
— Como foi no trabalho? — indaguei com a voz suave.
Eu estava sendo gentil com ele nos últimos dias. Não queria que as
pessoas notassem que havia algo de errado entre nós. Tinham que achar que
nos amávamos ou, pelo menos, nos gostávamos.
Theon estava satisfeito com a minha nova atitude. Eu estava sendo a
esposa obediente que ele tanto desejava. Perguntava-me quão estúpido ele
devia ser para acreditar que eu seria genuinamente doce depois do que fez
comigo. Ele, realmente, não me conhecia.
— Bom. — Ele respondeu, depois de dar um longo gole no vinho.
— Cansativo, mas produtivo.
Era tão prepotente. Soava como se tivesse acordado às seis da
manhã e feito contas sem parar, quando, na verdade, muito provavelmente
apenas seguiu o pai como um cachorrinho o dia todo.
Os pratos foram postos pela Senhora Alba, como o usual.
Minha boca estava seca, então dei um grande gole de vinho. Só
notei quão nervosa estava quando a taça tremeu em minha mão. Eu a
devolvi rapidamente à mesa.
Encarei meu prato fixamente, mais especificamente o purê, que jazia
ao lado do peixe branco.
O veneno estava no purê.
Pelo menos, era esse o combinado que havia feito com Allegra.
Como estava sempre na cozinha, ela mesma sugeriu que colocasse
no prato dele antes que a Senhora Alba os servisse. Afinal, faria mais
sentido do que eu própria fazê-lo, já que raramente ia à cozinha. Decidimos
que, caso algo desse errado, como se não conseguisse colocar o veneno, ela
me avisaria, entrando na sala de jantar e tocando na orelha.
Era frustrante colocar tanta confiança assim em alguém. E perigoso.
Mas não havia motivos para que Allegra quisesse me prejudicar.
Muito pelo contrário.
Theon pegou o garfo.
Por um instante, tive o estranho impulso de impedi-lo. Gritar
alguma coisa ou tirar o talher de suas mãos. Não porque, lá no fundo, tinha
certo apresso a ele ou algo assim, mas porque achei que não pudesse viver
com o fato de que matei alguém. Com a culpa.
E também com as consequências. Eu podia ser pega. Allegra
também. Já conseguia me imaginar sendo levada para prisão, as pessoas
falando sobre mim... Minha família. O horror no rosto da minha madrasta
quando, na verdade, estava mais do que contente em poder dizer: “eu
sempre soube que havia algo de errado com ela”.
No entanto, permaneci em completo silêncio, conforme ele colocava
a comida na boca. Eu o observei mastigar segurando o meu talher com tanta
força que, se não fosse metal, tinha certeza de que teria partido.
Já era tarde demais. Eu havia selado o meu destino. E o dele
também.
Eu não tinha apetite algum, mas me obriguei a comer. Era difícil
engolir quando, na verdade, a minha vontade era de regurgitar qualquer
coisa em meu estômago.
Quando tempo isso vai levar?
Eu não sabia exatamente quanto tempo demorava para que o veneno
fizesse efeito. Ouvi dizer que era rápido, mas não quão rápido. Segundos?
Minutos? Horas?
— O purê está com um gosto diferente.
Encarei Theon.
Raspei a garganta numa tentativa de encontrar a minha voz.
— Está? — indaguei com a voz estranhamente fina. — Não notei.
Ele continuou comendo.
Entornei a taça de vinho em duas grandes goladas, tentando fazer a
comida descer.
O tempo passou.
E nada aconteceu.
Olhei para o prato dele, já quase limpo. Ele tinha comido
praticamente todo o purê. Então, olhei para o meu, que estava pela metade.
A assustadora ideia de que Allegra pudesse ter trocado os pratos
surgiu em minha cabeça.
Senhora Alba sempre preparava uma porção maior para Theon,
então era visível qual era o meu prato e o dele. Mas Allegra podia ter se
confundido pelo nervosismo.
Gelo percorreu pelo meu corpo, começando pela base do meu
estômago. Por um momento, achei que fosse vomitar em cima da mesa.
Mas, então, Theon tossiu.
No começo, foi uma tosse de leve. Ele deu um gole no vinho com o
cenho franzido. E, então, tossiu de novo, mais forte dessa vez.
Theon largou o garfo e me lançou um olhar com o cenho franzido,
parecia confuso com o que estava ocorrendo em seu corpo.
— Tudo bem? — indaguei.
— Eu…
Theon não terminou a frase porque tossiu de novo. Levou a mão no
peito e bateu algumas vezes. Seu rosto estava vermelho agora, os olhos
lacrimejando.
Ele olhou para mim com a expressão ainda mais confusa e
começando a aparentar desesperada. Chamou meu nome em meio às
tossidas.
— O que foi? — indaguei de novo.
Meu marido pegou a taça de vinho novamente, mas não com
conseguiu engolir. Líquido voou da sua boca conforme ele tossia. Gotas
escorriam de seus olhos, descendo pelas bochechas escarlates.
Sua mão esquerda foi em direção à sua garganta e a direita pegou o
meu braço, que estava sobre a mesa.
Ele me encava fixamente com agonia no olhar. Theon abriu a boca,
mas nada saiu.
— Você quer que eu chame alguém? — perguntei com voz baixa e
suave. — Me peça, então.
Ele apertou sua mão em meu braço, mas continuei parada,
observando o pânico crescer em seus olhos.
Theon não tossia mais, pelo contrário, apenas sons estranhos como
rugidos deixavam a sua garganta.
Eu me inclinei suavemente sobre a mesa, me aproximando de seu
rosto.
Porque algo dentro de mim precisava que ele soubesse.
— Eu não vou chamar, a não ser que você peça. — Eu disse
docemente. — Pois sou uma esposa obediente, querido.
Observei fascinada num espaço de, talvez, um segundo sua
expressão de pânico se misturar com completo choque.
E foi quando meu marido finalmente entendeu.
Achava que aquela foi a primeira vez que Theon me enxergou de
verdade.
E era uma ironia que também seria a última.
Sua mão afrouxou no meu braço conforme seu rosto se tornava
roxo.
Até que seu corpo parou, ficou completamente congelado. E, no
momento seguinte, caiu sobre a mesa. Seu rosto pousou direto no prato
quase vazio.
Foi aí que eu comecei a gritar. Levantei-me abruptamente,
derrubando a minha cadeira no processo.
Eu o chacoalhava desesperadamente quando eles começaram a
entrar.
— Alguém chame um médico! — gritei para os rostos chocados de
Alba e Allegra.
O médico local era praticamente nosso vizinho, chegou em menos
de cinco minutos. E a polícia, em menos de quinze. Mas era inútil, ele já
estava morto.
Não demorou muito para que descobrissem que foi envenenamento.
— Eu pensei que ele estivesse se engasgando! — expliquei, em
meio às lágrimas desesperadas.
As lágrimas eram reais. Não pelo motivo que acreditavam — que eu
chorava de tristeza pela morte do meu marido —, mas sim pelo nervosismo
e adrenalina.
Allegra me consolava no canto da sala de jantar, já que tinham me
tirado de perto do corpo do meu querido marido à força. Precisavam
examinar o corpo.
Segurávamos as mãos. Ambas tremiam.
Naquele ponto, vizinhos cercavam a nossa casa, curiosos pela
movimentação de carruagens.
— Senhora, a razão da morte foi envenenamento — anunciou o
detetive. — Sabe quem poderia ter feito isso com o seu marido?
Eu coloquei as mãos no rosto, em completo choque.
— Não... — Respirei com dificuldade. — Quero que revistem
todos! — anunciei alto, conforme passava os olhos pelos criados da casa.
Eu me sentei com um copo de água que me foi entregue assim que
as buscas começaram. Minha mão tremia, balançando o copo.
Estava ansiosa, apesar de já saber o que iriam encontrar. O detetive
iria achar um pequeno frasco com resquícios de veneno no bolso do casaco
de Doyel, o cuidador dos cavalos. Aquele de couro surrado que ele sempre
deixava pendurado no celeiro enquanto trabalhava.
Sabia disso porque eu mesma havia colocado ali no fim daquela
tarde, antes do jantar.
Eu não podia arriscar ser suspeita. E a única forma de fazer isso era
lhes entregando um culpado.
E foi exatamente isso o que aconteceu. Cerca de meia hora depois,
Doyel foi levado aos berros pelos policiais. Ele gritava que não havia sido
ele, que aquilo era um erro. Estava desesperado porque sabia exatamente o
que um crime daquele significava.
Forca.
O corpo de Theon já estava duro quando finalmente o levaram.
Eu pedi para que me dessem um momento antes que o tirassem de
mim. Encarei seus olhos arregalados. E a emoção com a qual me observou
em seu último suspiro ainda estava em suas pupilas, eterna agora.
Medo.
Foi a primeira vez que causei aquele tipo de emoção em alguém.
Foi a primeira vez que alguém me temeu.
E eu comecei a entender o porquê de grandes conquistadores
roubarem reinos e destruírem exércitos.
Por causa daquele exato olhar.
A usurpadora me entregou uma vida pela primeira vez
Eu o levei de forma angustiante
exatamente como ela pretendia
E aquele poderia muito bem ser o fim de toda a dor
e o início de um futuro de paz
mas havia um pequeno problema

Ela havia gostado


capítulo 22

— Está grávida?
A pergunta direta me pegou totalmente de surpresa. Estávamos no
enterro e aquela foi a primeira coisa que o pai de Theon havia falado para
mim.
O velho não parecia muito emotivo diante da situação. Não havia
derramado, sequer, uma lágrima durante o processo todo. Ele parecia mais
irritado e preocupado do que qualquer outra coisa. Só tinha filhas agora.
— Não, senhor.
Obviamente, eu não tinha contado ao Theon — ou a ninguém, na
verdade —, mas estava tomando precauções para não ficar grávida. No
começo, simplesmente porque não queria um filho com uma idade que
considerava precoce, apesar de que maioria das garotas na minha faixa
etária já tinham filhos com os maridos. Mas depois, conforme conhecia
Theon mais e mais, a precaução se tornou uma necessidade simplesmente
porque não queria ter um filho com ele.
O velho assentiu e desviou o olhar, e, por um momento, achei que o
assunto havia sido encerrado. Era um homem de poucas palavras e, durante
todo o meu casamento e noivado, lembro de termos tido cerca de quatro
breves conversas. Não que eu estivesse reclamando, não tinha nenhum
interesse em discutir qualquer assunto com aquele homem.
— Não ache que vai ficar vivendo à minha custa pelo resto de sua
vida. — Ele declarou, de repente. — Você só tem direito ao que já era do
meu filho no papel. E só passei a sede em que moram e as terras em volta
para o nome dele. É tudo o que tem direito.
Não foi a grosseria que me surpreendeu, nem mesmo o conteúdo de
suas palavras, mas sim o local em que ele escolheu dizer aquilo. Seu filho
mal havia sido enterrado.
Minha família também estavam lá, como era socialmente esperado.
Meu pai tinha a expressão neutra de sempre, meu irmão parecia entediado e
minha madrasta parecia... satisfeita.
Eu nunca me tornaria condessa. Nunca estaria acima dela na escala
da nobreza. Era um dia bom para ela.
Foi uma tarde longa e cansativa. Tive que me esforçar para parecer
uma esposa desolada durante todo o processo. Fingir tristeza e desespero
podia ser bem exaustivo. A pior parte foi na hora em que me vi diante do
corpo dele, me despedindo. Tive que forçar as lágrimas a descerem. Pensei
em Rafe, e elas escorreram com tanta violência que pessoas vieram me
consolar.

As pessoas estavam agitadas com o anúncio da chegada do novo Rei


de Khrovil. Ao que parecia, ele viria a Umbra para a realização de um
possível novo acordo.
Parecia só haver duas opções para os dois reinos: paz ou completa
retaliação.
Sua vinda foi uma surpresa para mim. Não entendia as intenções de
Sarkian. Acreditava que ele iria declarar guerra no momento de sua posse.
Ele odiava nosso reino e povo com violência, por isso, não fazia sentido,
para mim, que estivesse vindo para cá em paz. E muitas pessoas pensavam
como eu. O povo estava tenso, com medo. Muito mais do que comparado
com quando seu pai veio selar o acordo. Seu pai podia ser conhecido como
cruel, mas Sarkian era conhecido como a personificação do mal. O príncipe
que matou toda a sua família a sangue-frio.
Mas eu estava mesmo curiosa.
Foi por isso que não pensei duas vezes antes de decidir comparecer
ao evento de recepção. Queria ver de perto a interação. O possível caos.
— Não há necessidade de fazer o jantar — avisei à Groselin, a nova
governanta, antes de sair.
Mandei Alba embora pouco depois da morte de Theon. Também
havia contratado outro cuidador de cavalos. Milo continuava auxiliando
com o trabalho, mas, agora, era pago por isso. Eu lhe dava algumas moedas
pelo serviço e seu rosto brilhava em choque e puro êxtase em todas as
vezes. Era o melhor momento da minha semana.
A dinâmica havia mudado bastante em casa. Para melhor, claro.
Com a colheita do trigo e das maças, eu fazia dinheiro o suficiente
para manter a casa e os empregados. Não era muito, mas o suficiente. Pelo
menos, eu tinha liberdade e era dona do meu próprio nariz.
O salão do palácio nunca esteve tão vazio de nobres e tão cheio de
soldados.
Era muito claro o receio diante daquela vinda. A maioria dos nobres
preferiu não comparecer, com medo de um possível golpe, como na noite
em que Sarkian tomou o trono no meio de uma cerimônia.
Mas eu não acreditava que ele faria aquilo de novo. Sarkian podia
ser muitas coisas, mas não era previsível. Ele não repetiria aquele ato.
Mesmo assim, prendi uma adaga na costura por baixo do meu
vestido. Apenas por precaução.
Eu usava um vestido preto, já que ainda estava de luto. Só poderia
usar outras cores um mês depois da morte de Theon. Não que eu estivesse
reclamando, gostava de como ficava na cor. Mas ela, definitivamente,
chamava atenção. Em Umbra, era uma cor que refletia tudo que existia de
negativo, e eu me vi como um ponto negro no meio de uma confusão de
cores pastéis.
Ele entrou quando eu estava prestes a pegar uma taça de vinho.
Parei no meio do caminho porque foi como se toda a atenção do
local tivesse sido sugada. Era inevitável não olhar.
Suas vestimentas eram as mesmas. A longa capa preta, as botas e as
luvas de couro. A única diferença era a majestosa — e um tanto sinistra —
máscara que modelava seu rosto. A máscara de um Rei.
A trompa soou, anunciando a sua chegada. Não que fosse
necessário, já que todos os olhos estavam nele assim que surgiu na entrada
do salão.
Ele estava acompanhado de apenas dois soldados mascarados. O
que era irônico, tendo em vista que havia dezenas de soldados de Umbra
próximos ao nosso rei.
Sarkian andou — sem pressa alguma — até o rei, que havia se
levantado do trono com a chegada do possível inimigo.
Foi a caminhada mais longa que presenciei. Acreditava que todo o
salão prendeu a respiração no processo, como se os passos de Sarkian
fossem uma contagem regressiva para o completo terror.
Eles pararam um de frente ao outro. O Rei de Umbra fez o
tradicional cumprimento de baixar suavemente a cabeça. O que se seguiu
foram dois segundos que pareceram duas décadas.
Até que Sarkian, finalmente, devolveu o cumprimento.
Foi como se todo o salão tivesse dado um suspiro de alívio coletivo.
Eu precisava desesperadamente de uma bebida. Virei-me, voltando a
fazer o meu caminho até a mesa de vinhos.
— Senhora Hellish.
Demorei um segundo para entender que era a mim que estavam
chamando. Hellish era o sobrenome de Theon, e eu ainda não havia me
acostumado com ele. Na minha cabeça, nunca deixei de ser Cera Novak.
Com uma taça na mão, me virei para a mulher de cabelos ruivos. A
bela Condessa Bethany havia se aproximado com o marido e a filha
adolescente. Eu os cumprimentei de volta.
— Queríamos lhe conceder nossos pêsames pelo ocorrido com o seu
falecido marido.
— Ah, obrigada.
— Também queríamos nos desculpar por não termos comparecido
ao...
No meio da frase, a condessa parou de falar e os olhares dos três
pararam fixados em algo atrás de mim. Ou melhor, em alguém.
Confusa com a repentina mudança de atenção, me virei para ver o
que estavam fitando.
É claro. Já deveria ter imaginado. Ninguém roubava a atenção de
um cômodo como ele.
Sarkian Varant estava cruzando o salão.
E vinha em nossa direção.
As pessoas se afastavam e se curvavam conforme passava, mas ele
só olhava para frente. Olhava para mim.
E já estava perto demais quando pensei em sair dali.
Assim que parou diante de nós, os três fizeram uma reverência
longa. Estavam nervosos. Mas não havia com o que se preocupar. O
problema do Rei das Trevas era unicamente comigo.
Ele me encarou de cima a baixo, desde os meus saltos negros, ao
longo do meu vestido da mesma cor, até meu rosto. E, de repente, eu fiquei
muito ciente de que éramos os únicos no salão com vestimentas negras.
Estávamos combinando.
— Sinto tanto por sua perda.
Pisquei ao ouvir o som grave de sua voz. Não havia me esquecido
dela — jamais poderia —, porém, foi tão impactante como se eu a estivesse
ouvindo pela primeira vez.
— O quê?
— Ouvi dizer que está viúva.
Para qualquer outro, o sarcasmo em sua voz pareceria um tanto sutil,
mas para mim, era bem claro. Estava me provocando.
— Ouvi dizer que você matou a própria família — retruquei.
A condessa se engasgou na própria saliva e tossiu.
Sarkian lançou um breve olhar para ela antes de se voltar para mim
e comentar:
— Notícia velha. E não desvie do assunto.
— Não estou. Não há o que falar. Ele faleceu.
— Não consigo imaginar tamanha dor — disse. — Ele era tão
jovem, não é?
O conde e a condessa, claramente desconfortáveis com a tensão,
aproveitaram para se retirar com a filha. Depois de uma apressada
reverência, os três se foram, nos deixando a sós.
— Sim — respondi.
Eu não era capaz de enxergar, mas, pelo sutil movimento, podia
apostar que ele havia franzido o cenho.
— Estranhamente jovem — comentou. — Quantos anos ele tinha?
Dei um gole longo no meu vinho.
— Eu suspeito que você já saiba a resposta. — Ele sustentou o olhar
no meu, então, eu finalmente cedi. — Vinte e um.
— Qual foi a causa da morte?
A apresentação da orquestra se iniciou no meio do salão, mas os
olhares ainda se fixavam, na maior parte, em nós.
— Envenenamento — respondi, com a boca seca.
Dei mais um gole no vinho. Aproveitei a apresentação para desviar
de seu olhar e encarar os músicos. Ao meu lado, Sarkian fez o mesmo.
— Trágico — comentou, depois de um momento.
— É, estou devastada.
— Posso ver. Pegaram o culpado?
— Sim.
— Que bom. Não posso imaginar perder alguém que amo dessa
forma.
Voltei a encará-lo.
— Não posso imaginar você amando alguém.
Ao observar seu perfil, conseguia ver a única e pequena parte da
pele de seu pescoço exposta. Tatuagens negras destoavam na pele branca.
Aquilo o divertiu em vez de ofender.
— Parece que é uma dor da qual serei poupado, então.
— Está orgulhoso disso?
— Do quê?
— Do seu coração de pedra? Da sua crueldade impiedosa?
Ele moveu a cabeça, a inclinando sutilmente para a direita ao me
fitar, e então respondeu parecendo um tanto sincero:
— Não estou envergonhado.
Nesse ponto, eu já havia desistido de fingir me interessar pela
apresentação. Meu corpo estava virado para os músicos, mas meus olhos
estavam nele, e somente nele.
— Por que está prolongando isso?
Ele piscou.
— Especifique.
— A guerra. Todos sabem que vai acontecer.
— Sabem?
— Sim. Só se for idiota para achar que você, de fato, está
interessado em um tratado. E o nosso povo não é ignorante — alertei.
— Então, não deveria se preocupar.
— Não estou — menti. — E não vejo a hora de te ver perdendo o
posto de rei que mal conquistou. Seria até algum tipo de recorde. — Um
pequeno sorriso tomou o meu rosto. — O rei que foi rei por, apenas, dois
meses e meio.
Talvez, tivesse sido o vinho. Ou, talvez, o fato de que eu havia
ganhado uma confiança tremenda depois da matar o meu marido e
conquistar a minha liberdade.
O que quer que fosse, não fez com que eu me arrependesse de
minhas palavras.
O Rei das Trevas sorriu, os olhos à frente outra vez. Ele tirou do
bolso um cigarro de lavena, bem no meio do salão lotado. Bem na presença
do Rei de Umbra.
Mas não importava. Ninguém faria nada. Ele podia fazer o que bem
entendesse e estava muito ciente disso.
— Oh, farren... — Ele acendeu o cigarro casualmente e puxou a
fumaça. — Você está tornando isso tudo muito mais interessante.
E, então, se afastou.
Mesmo pelo tom descontraído, ou por suas palavras aparentemente
inofensivas, eu sabia que aquilo não poderia ser algo positivo. Não vindo
dele. Porque, o que quer que fosse interessante para Sarkian Varant,
definitivamente, não era para mim.
Ele desapareceu entre as pessoas e, por fim, deixou a festa que foi
dada para ele.
Eu dei mais um gole no vinho, me voltando para o trono.
Para o rei que permitiu o assassinato do meu melhor amigo. Para o
rei que negava que garotas aprendessem a ler. Para o rei que condenava
mulheres a um futuro de angustia ao lado de maridos cruéis.
Ele tinha a taça erguida e fazia algum discurso prepotente que,
obviamente, envolvia Deuses e o caminho da luz.
Ele e a família se exibiam com arrogância. Olhando para nós de
cima, como se fossem os próprios Deuses na Terra.
Eu o odiava. Odiava todos eles.
Às vezes, eu sonhava que atiçava fogo no palácio. Eu observava as
chamas lamberem todos eles. O reino, finalmente, livre da realeza tirana.
A ideia me veio assim.
De repente.
Na verdade, não foi bem uma ideia. Foi mais uma vontade. Algo
que provavelmente sempre esteve ali, no fundo, escondido, mas presente.
Porém, agora, era pulsante. A cada batida, um pouco mais alto.
Um pouco mais violento.
capítulo 23

Andar pelo centro da cidade não era algo tão divertido de se fazer
sem Rafe.
Eu procurava por novos vestidos, já que, nos últimos tempos, havia
ganhado o peso que perdi antes do meu casamento. Apesar de estar em uma
rua lotada, nunca me senti tão solitária. A saudade de Rafe beirava ao
insuportável. Eu sabia que jamais conseguiria encontrar alguém como ele.
Jamais teria um melhor amigo novamente.
Minha atenção abandonou as vitrines ao avistar uma garota que
estava sentada no beco de uma rua sem saída. Estatura pequena e fios quase
brancos escapando do gorro surrado.
Era ela.
Estava sentada em um banquinho e, à sua frente, havia uma pequena
mesa de madeira. Suas mãos estavam repletas de cartas enquanto
conversava com um homem mais velho.
Esperei o homem se distanciar para me aproximar.
— Olá.
A garota levantou o olhar. Reparei que sua bochecha já estava
curada.
— Quer jogar? — perguntou, sem mostrar qualquer tipo de
reconhecimento.
Aparentemente, ela não se recordava do nosso encontro. O que era
interessante, porque pensei nela por muitos dias depois daquilo.
— Sim.
A garota começou a embaralhar as cartas.
— São dois chins para começar.
Peguei as moedas na bolsa e as soltei na palma de sua mão.
— Eu vou embaralhar as cartas, e você vai escolher uma —
explicou. — Se eu errar, devolvo o seu dinheiro. Se eu acertar, fico com as
moedas.
Assenti.
Ela me mostrou o baralho de cartas e, então, o estendeu para que eu
pegasse uma. Seus olhos estavam fechados quando eu o fiz.
A Deusa da Natureza.
— Agora, quero que pense na carta que está na sua mão.
Ela me encarou.
Fixamente.
Seus olhos eram tão intensos que, por um segundo, jurei que haviam
cintilado.
— Deusa da... Natureza — disse, finalmente.
Podia ser um truque, claro. Mas, lá dentro, eu sabia que não era.
Não depois de ter visto o seu sangue.
Eu havia lido sobre os poderes dos caídos. Havia lido sobre alguns
que tinham o poder da telepatia.
A garota lia mentes.
No segundo em que cheguei àquela conclusão, ela se levantou
abruptamente, derrubando a mesinha. A garota começou a correr. E eu não
sabia exatamente o que havia dado em mim, mas me vi correndo atrás dela.
— Ei! Espere! — exclamei.
Ela era extremamente ágil e, em poucos segundos, já havíamos
passado por duas ruas distintas. Felizmente, não estavam muito
movimentadas, então nós duas não atraímos tantos olhares. Ela cruzou um
beco e, assim que eu fiz o mesmo, trombei com alguém.
Era Vesper.
— Que porra está faze… — Ele começou, confuso.
Mas eu não parei de correr.
— Ela! — soltei, ofegante. — Pegue ela!
Não estava pronta para desistir da perseguição, não enquanto ainda a
tinha em minha linha de visão. Não sabia ao certo o que esperava que
Vesper fizesse, mas me surpreendi quando ele começou a correr também.
Ele tinha pernas compridas e não demorou muito para que a
alcançasse.
Vesper segurou o seu punho, obrigando-a a desacelerar. Mas ela se
debateu, lutando contra seu aperto. Estava prestes a escapar — já que
Vesper não usava muita força —, quando me juntei a ele e a segurei
também. A garota parecia um animal raivoso. Quando acertou meu olho
com um dos dedos, perdi completamente a paciência. Eu a empurrei, e
ambas caímos no chão, eu por cima dela. Sentei-me em seu estômago e
lutei contra seus braços finos, porém, rápidos.
— Me solte! — Ela berrou.
Os fios brancos estavam espalhados pelo seu rosto de forma
selvagem, assim como os meus.
— Eu só quero conversar! — Tentei explicar, gritando de volta.
Consegui segurar seus braços e os prendi sobre o chão.
— Hum… Posso saber por que está atacando uma garota? — Ouvi
Vesper atrás de mim.
— Segure os pés dela!
— Eu não vou…
— Segure os pés dela! — gritei novamente, ao virar meu rosto em
sua direção.
Eu estava ofegante e suando.
Devia ter soado assustadora, porque ele fez o que pedi. Ou melhor,
ordenei.
Voltei-me para ela, que ainda se debatia. Começou a gritar
loucamente, e eu fiquei com medo de que chamasse atenção.
— Se não parar, vou te dar um soco! — avisei.
— Eu acho melhor a gente se acalmar… — Vesper começou a dizer,
atrás de mim.
Ela continuou exclamando a plenos pulmões. Meus ouvidos doíam.
Levantei meu punho direito e a acertei. Não usei toda a minha força
porque não queria machucá-la de verdade, apenas chocá-la o suficiente para
que se calasse.
Mas, provavelmente, devido à adrenalina correndo dentro de mim, o
impacto foi mais forte do que eu planejei, porque, além se calar, ela parou
por completo.
A garota desmaiou.
— Caralho! — Vesper exclamou. — Você é completamente louca?!
Soltei seus braços e recuei ao passo que observava seu rosto. Saí de
cima dela, para que Vesper enxergasse também.
— Veja.
Assim que viu o sangue negro escorrendo de seu nariz machucado,
o rosto de Vesper passou de confuso para totalmente chocado.
— Puta merda... — murmurou em um suspiro. Ele piscou e,
finamente, olhou para mim. — É o que estou pensando?
— Não sei, não leio pensamentos.
Ela, por outro lado…
— Um… caído — A palavra deixou a sua boca em um sopro
sombrio. — Não é possível.
Apontei para o seu rosto.
— Não está enxergando?! — indaguei, frustrada.
— Sim, mas…
Olhei para ela, que ainda não havia acordado. Comecei a ficar
preocupada.
— Acho que eu bati muito forte.
— Você acha?! Ela está respirando?
Aproximei o meu rosto do dela.
— Acho que sim.
— Como assim, acho que sim?! — Ele perguntou, alto e estressado.
— Ela está ou não está?
— Tá! Ela está respirando!
O som de conversa vindo do fim do beco me deixou ainda mais
nervosa e em alerta.
— Vamos, pegue os pés dela — pedi, ao me levantar. — Eu fico
com os braços.
Vesper não se moveu.
— O quê?! — Piscou. — Você não pode estar falando sério.
Eu limpei o suor da minha testa, irritada.
— Eu pareço estar brincando? — indaguei entredentes.
— Sabe o que é isso? Sequestro! — Ele se levantou e deu um passo
para trás. — Eu não vou sequestrar uma garota.
— Ela não é uma garota — rebati. — Além do mais, não está
curioso?
Vesper a encarou por um longo momento. Ele estava, era claro que
estava.
Um caído. Em carne e osso.
E sangue negro.
— Não vamos machucá-la, só…
— Até porque, você já fez isso. — Ele interrompeu.
— Só vamos fazer umas perguntas — completei, tentando manter o
fio de calma que ainda me restava.
Precisava de ajuda. Não conseguiria movê-la sozinha.
— Sabe, já pensei muitas coisas sobre você. Mas nunca achei que
fosse um covarde.
O desafio estava claro em meus olhos. Sua feição mudou e demorou
menos de dois segundos para que ele tomasse uma decisão.
— Cale a boca e pegue os braços dela antes que alguém nos veja.
Sou bonito demais para ir para a cadeia.
Não podíamos carregá-la por tanto tempo sem que ficasse suspeito,
ela era pequena e muito leve, porém, com o corpo mole, era um peso morto
e difícil de transportar. Felizmente, sua carruagem estava por perto. Vesper
se afastou um pouco e, então, assoviou para o criado.
A carruagem parou ao nosso lado e a colocamos para dentro. O
criado nos lançou um olhar estranho ao ver a garota desacordada.
— Nossa amiga está passando mal — expliquei, numa tentativa um
tanto patética não parecer uma criminosa.
— Não se preocupe com o Albert. — Vesper comentou, se
acomodando no estofado. — Já viu coisas bem piores trabalhando para a
minha família.
A carruagem começou a se movimentar.
— Eu nunca achei que estaria, um dia, cometendo um crime.
Especialmente com você.
Ela se mexeu um pouco ao meu lado. Eu não tinha certeza se era
devido ao balanço da carruagem ou se estava despertando.
— Droga. O que eu faço se ela acordar?
— Acho que você vai ter que socá-la de novo.
Eu lhe lancei um olhar.
— O que foi? A gente já está ferrado mesmo.
Felizmente, ela ficou desacordada pelo resto do caminho.
Fomos para a minha casa, já que Vesper morava com os pais. Mas,
em vez de entrar na sede, a carregamos direto para dentro do celeiro. Não
podia arriscar que algum criado me visse arrastando uma garota desmaiada
por aí.
Amarramos suas mãos e pés, e a colocamos sentada em uma cadeira
nos fundos do celeiro.
— Vamos colocar algo em sua boca, para o caso de ela voltar a
gritar.
Vesper me encarou em um misto de desconfiança e admiração.
— Você é estranhamente boa nisso.
Colocamos uma mordaça em sua boca e a observamos por um
momento em silêncio. O sangue em seu rosto havia secado.
— Talvez, haja uma explicação. — Vesper soltou, pensativo.
— Para o sangue dela ser negro?
— Pode ser uma doença.
— Sobre qual doença você já ouviu falar que deixa o sangue negro?
E fora que ela não parece nada doente.
Muito pelo contrário, pensei. Debateu-se como como um se fosse
um homem de cem quilos.
— Ela acordou. — Vesper avisou.
Olhei para ela. A garota movimentava a cabeça conforme piscava.
Até que, por fim, processou sua situação.
Ela arregalou os olhos em nossa direção e começou a gritar. Mas o
barulho não passava de um som abafado e estrangulado.
— Não queremos te machucar!
Não adiantou, ela continuava tentando pedir por ajuda.
— A gente só vai tirar esse troço da sua boca, se você calar a boca!
— Vesper se adiantou.
Aos poucos, ela parou.
Aproximei-me com certa cautela e abaixei a mordaça. No mesmo
segundo, ela voltou a gritar.
— Socorro!
— Eu vou socá-la de novo — sibilei para Vesper.
— Não vou te impedir, já estou com dor de cabeça.
Coloquei o pano em sua boca de novo e esperei até que se
acalmasse.
— Eu vou tirar isso de novo, ok? — anunciei, tentando me
controlar. — E você tem duas escolhas. Ficar quieta e nos ajudar ou gritar a
ponto que alguém descubra você aqui. A questão é... Imagino que não
queira que saibam quem você é, certo?
A ameaça foi necessária.
Tirei o pano e, em vez de gritar, a garota falou:
— Não sei do que está falando.
— Não vamos perder tempo com mentiras. — Indiquei para seu
rosto. — O sangue.
Ela engoliu em seco.
— Quem são vocês?! O que vocês querem?!
— A gente faz as pergun…
— Somos espiões. — Vesper deu um passo à frente, com um certo
tom dramático na voz.
Virei-me para ele, que apenas me lançou um olhar que parecia dizer:
“ah, vamos lá... Entre no jogo!”.
— Não devem ser muito bons, então. Espiões não costumam admitir
que são espiões.
— Já conheceu algum espião antes, por acaso? — Ele rebateu.
— Não.
— Então, pronto.
Um sorriso zombeteiro quebrou em seus lábios.
— Tudo bem. São espiões, então.
— O que é engraçado? — Vesper indagou, frustrado.
Eu suspirei. Com os olhos fixos nela, falei:
— Ela lê mentes, Vesper.
O sorriso da garota deixou seus lábios ao ouvir as palavras que
saíram da minha boca. E aquilo apenas confirmou a minha suspeita.
— O que vocês querem? — Ela repetiu, mas com a voz baixa e um
tanto sombria.
— Só queremos saber algumas coisas.
Ela ficou em silêncio, como se esperasse que continuássemos.
— Há mais de você? — perguntei.
— Acha mesmo que encontrou o último caído da Terra?
Tive vontade de socá-la de novo, mas me contive.
— Você conhece muitos iguais a você?
Ela se remexeu na cadeira.
— Muitos, não.
— Ler mentes é a única coisa que você faz?
— Se eu cuspisse fogo ou algo assim, já teria te queimado viva.
Respire, Cera.
Você a socou e, então, a amarrou. Ela tem motivos para ser babaca.
— Sorte minha, então. — Cruzei os braços. — Por que trabalha nas
ruas? Com um poder desse, poderia estar rica.
A garota pareceu ofendida.
— Não posso usá-lo de forma que fique óbvio demais. É fácil
simplesmente dizer que é um bom e velho truque de mágica amador. Fora
que é um dinheiro rápido.
— Os outros que conhece, o que fazem?
Ela hesitou, claramente desconfiada. Não queria entregar os outros,
e eu respeitei sua lealdade.
— Não quero prejudicar você ou qualquer outro caído. Não tenho
nenhum problema com a existência de vocês. — Fiz uma pausa e notei que
ela não parecia convencida. — Você lê mentes, certo? Sabe que não estou
mentindo.
Ela me encarou por um momento em silêncio, até que respondeu:
— Basicamente, o mesmo que eu. Se escondem e tentam usar seus
poderes de forma discreta para ganhar a vida. Mas alguns não usam nunca,
acham arriscado demais.
— Você não acha?
— Não nasci em um berço de ouro como você. Preciso comer. —
Ela retrucou.
— O que estou pensando neste exato momento? — Vesper
perguntou, de repente. Estava quieto até agora. Observava a garota ainda
em completa fixação.
Ela permaneceu com o olhar nele por um momento. E, então,
franziu o cenho.
— Molho de páprica. — Ela parecia tão incerta quanto confusa.
Vesper olhou para mim com os olhos arregalados e a boca
entreaberta.
— Caralho!
Eu o lancei um olhar tão confuso quanto o dela.
— Molho de páprica?
Ele deu de ombros.
— Eu precisava de algo bem específico — ele justificou —, para
realmente testá-la.
Virei-me para a garota.
— Pode ler a mente de qualquer um?
Ela assentiu.
— Desde que me concentre na pessoa.
Ponderei sobre aquilo. O poder que aquela garota tinha era de uma
magnitude imensurável. Havia tantas possibilidades.
— Como é isso? — indaguei, um tanto perplexa.
Ela desviou o olhar do meu e, quando voltou a me encarar, vi seu
rosto vulnerável pela primeira vez.
— Uma maldição.
— O rei sabe sobre a existência de vocês? — Vesper perguntou.
— Sabe. Mas ele abafa os casos. Creio que o imbecil não queira
criar caos ou medo no povo. — Raiva atravessou seu olhar. — Nos caçam
em silêncio. O ponto positivo é que acham que somos menos do que
realmente somos.
— Vocês são muitos?
— Não muitos. Mas já ouvi falar que há reinos onde existem
comunidades.
Aproximei-me dela. E, obviamente, a garota já sabia o que eu estava
prestes a fazer porque se adiantou:
— Não, eu já respon…
Tapei a sua boca antes que ela pudesse continuar falando. Lancei um
olhar para Vesper e indiquei para que deixássemos o cômodo.
— Espiões, sério? — comentei.
Ele deu de ombros.
— Não podia perder a oportunidade.
Encostei-me na parede e cruzei os braços. Encarei o chão conforme
pensava em todos os acontecimentos recentes.
— Já pensou em como seria se as coisas fossem diferentes? —
quebrei o silêncio.
— Como assim?
— Se não precisasse temer pela sua vida e pela vida de quem ama.
Seu rosto se tornou frio. Ele desviou o olhar.
— Isso é impossível aqui.
— Mas, e se não fosse?
Ele me observou por um momento.
— Do que está falando?
Demorou um tempo para que eu reunisse coragem. Para que pudesse
verbalizar algo que, de certa forma, eu mesma achava loucura.
— Estou falando de tomar o poder. O trono.
Vesper riu. Mas parou assim que notou que eu não o acompanhei.
— Ah, você está falando sério. — Ele franziu o cenho. — Perdeu a
cabeça?!
— Eu sei que parece loucura, mas já foi feito antes. Não é
impossível.
Recordei-me de Sarkian ao lado do trono, a máscara do pai nas
mãos.
— E como nós faríamos isso?
— Bem, não seria de imediato... Precisaríamos de tempo para criar
um plano. Um bom plano.
— Tem mais gente nessa?
Desviei o olhar e troquei o peso dos pés.
— Não. Ainda não.
— Ah, então seriamos só eu e você contra um reinado inteiro? Um
time e tanto.
— E ela.
Vesper olhou para onde a garota estava amarrada e, então, voltou a
me encarar.
— Ela?
— A garota lê pensamentos, Vesper! Tem noção disso? Não há nada
mais poderoso do que o conhecimento. E ela sabe de tudo que se passa na
cabeça de todo mundo. Com ela e um bom plano, temos uma chance real
nisso.
Vesper pensou por um momento, encarando o chão da mesma forma
que eu tinha feito há alguns minutos.
— Você está falando sério mesmo, não é? — perguntou, ao voltar a
olhar para mim.
Engoli em seco. Não havia mais volta agora, eu tinha tomado a
minha decisão.
— Estou.
— Nem sabe se ela vai concordar.
— Não se preocupe, deixe que eu cuido disso.
Ele sorriu em meio a uma careta conturbada e passou ambas as
mãos pelos cabelos escuros. Quando voltou a me encarar, indagou:
— Tem noção de como você soa insana falando isso tudo?
Eu sabia.
Talvez, eu estivesse mesmo louca. Talvez, todas as últimas tragédias
da minha vida haviam me enlouquecido. Mas, dentro do meu peito, por
alguma razão, eu sentia como se estivesse enxergando com clareza pela
primeira vez na vida.
Descruzei os braços e tirei as costas da parede.
— Você não sente raiva, Vesper? — Aproximei-me dele. — A cena
não fica repassando centenas de vezes em sua mente?
Não precisava dizer sobre o que me referia. Ele sabia muito bem.
Vesper desviou o olhar, e notei seus olhos ficarem marejados. Sua
mandíbula tensionou.
— Nunca deixa a minha cabeça. — Ele admitiu.
Fiquei de frente para ele.
— Eu quero vingança, Vesper. Quero olhá-los de cima enquanto os
faço se arrependerem — assumi. — Está comigo nessa?
Ele pensou por apenas um momento. A dor refletiu em seus olhos
com torturante clareza.
— Não tenho muito mais a perder.
capítulo 24

Depois que o punho acertou seu rosto com uma força


impressionante, o homem caiu no chão, desacordado.
Allegra estremeceu ao meu lado.
— Senhora, tem certeza de que essa é uma boa ideia? Ele não me
parece muito... equilibrado.
Nós nos aproximávamos dos fundos do bar, onde a luta tinha
acabado de terminar. O homem no chão não se movia, e eu comecei a me
perguntar se ainda respirava.
O brutamontes que o havia derrubado se chamava Bax Huffus, um
dos melhores lutadores que eu já tinha visto em arena. Ele havia se
aposentado recentemente, mas parecia sentir falta das lutas porque estava
sempre arrumando alguma briga nos fundos de bares.
— Ele é o melhor que temos, Allegra. — Lancei um olhar para o
homem de um metro e noventa. — Equilibrado ou não.
As pessoas, que antes observavam a confusão, começaram a se
afastar. Assim que Bax ficou sozinho, me aproximei.
— Impressionante — comentei.
Ele se virou e encarou a mim e a Allegra de cima a baixo. Era
completamente careca e tinha uma cicatriz enorme na lateral direita do
rosto.
— As lojas de roupas são para aquele lado. — Indicou com a cabeça
para a rua oposta.
— Não estou aqui para fazer compras — esclareci, em tom seco. —
Quero contratá-lo.
Ele já tinha se virado novamente, mas, então, voltou a me encarar.
Passou a mão na testa suada e franziu o cenho.
— Para o quê?
— Me ensinar a lutar.
Ele riu, uma risada grossa e alta. Notei que lhe faltavam dois dentes
da frente.
— Lutar? — indagou.
— Sim. Alguns golpes para me defender.
— Por que alguém como você precisaria saber disso?
Comecei a me irritar.
— Isso não vem ao caso. Está interessado ou não?
— De quanto estamos falando?
Eu lhe estendi a minha bolsa repleta de moedas. Ele olhou para o
dinheiro e, então, para os meus olhos.
— Quando começamos?

— Isso vai dar merda. — Vesper cantarolou ao meu lado, conforme


nos misturávamos entre os nobres.
Ele estava se referindo à Willow que, à minha direita, ficava
puxando o próprio vestido de cinco em cinco minutos.
Eu precisava introduzi-la à nobreza. Ela só me traria informações
importantes se estivesse na presença de pessoas importantes. Então, eu
precisava dela no palácio.
E eu não poderia mentir. Estava especialmente ansiosa para usar
suas habilidades em Sarkian.
— Pare de mexer no seu vestido — murmurei entredentes.
Ela nunca havia colocado os pés em um palácio, isso era muito
claro. Só não podia arriscar que alguém notasse esse fato. Havia pedido à
Allegra para arrumar seu cabelo e maquiagem. Emprestei um dos meus
vestidos e fizemos alguns ajustes, já que ela era consideravelmente mais
baixa.
— Esse troço pinica! Seria possível ter me dado um vestido mais
desconfortável?
— Como a convenceu disso mesmo? — Vesper questionou.
Ele pareceria estar se divertindo com toda a situação.
— Eu vou pagar por seus serviços.
— E ela aceitou? Deve estar dando uma bela grana a ela.
— Bem... — aproximei meu rosto ao abaixar o tom —, também
ameacei revelar sua identidade, caso não ajudasse.
Vesper assentiu, sorrindo.
— Agora, sim, faz sentido.
Mas não era apenas isso. Ameaçar alguém como Willow era
perigoso. Ela poderia muito bem mentir para mim e dar informações
erradas sobre o que as pessoas estavam pensando, e eu jamais iria descobrir.
Além do dinheiro e da — sutil — ameaça, eu a relembrei de como o Rei
Boran odiava os caídos. Ele caçaria pessoas como ela pelo resto de seu
reinado. Ela queria tirá-lo do trono também. E nada formava alianças
melhores do que ter inimigos em comum.
— Cale a boca.
Sarkian trouxe Despinna com ele. Soube disso naquela manhã
porque, enquanto estava no centro da cidade com Allegra, a vi fazendo
compras em uma das lojas de vestidos mais caras.
E ela usava o colar da minha mãe.
E, então, lá estava ela no centro do salão, cercada por homens.
Alguns a olhavam de forma preconceituosa; não estavam acostumados com
aquele tipo de vestimentas entre os nobres. Já outros, pareciam querer
engolir seu decote.
Mas não foi isso que me chamou atenção, foi o fato de não estar
usando nenhuma joia além de brincos de rubi agora.
Sarkian estava na mesa principal, junto ao rei.
O colar teria que estar guardado em seus aposentos então, deduzi.
Se eu pudesse conseguir o colar da minha mãe de volta, aquela era a
única chance.
— Fique de olho nela — pedi, ao me virar para Vesper. — E comece
a introduzi-la para as pessoas.
Vesper franziu o cenho.
— O que vai fazer?
— Volto logo — prometi, já me distanciando.
Subornei um dos criados com algumas moedas para saber onde o
Rei de Khrovil estava hospedado.
Obviamente, a porta estava fechada; mas não trancada, o que me
surpreendeu. Olhei para o corredor vazio, a fim me certificar de que
ninguém me veria entrando, antes de girar a maçaneta.
O cômodo estava escuro, a única fonte de luz vinha de uma janela
aberta nos fundos do quarto. Meu coração batia forte ao entrar. Deixei a
porta encostada para poder ouvir o corredor.
O cômodo era enorme, com uma cama dossel no centro. Fui direto
até a mesa de madeira repleta de gavetas.
Um movimento na cama me fez congelar. O grito agarrou em minha
garganta ao encarar o colchão. No começo, era apenas um movimento nas
sombras.
O que é isso?!
Foi, então, que, no meio da escuridão, vi um par de olhos brilhar.
A sombra preta se movimentava lentamente, como se estivesse se
levantando. De repente, estava de quatro na cama.
O que quer que fosse, não era humano.
Foi só quando ela colocou uma pata no chão que eu entendi o que
era.
Um felino.
Não pode ser.
Meu primeiro instinto foi correr, mas, por alguma razão, eu sabia
que aquilo não seria uma boa ideia.
O animal desceu da cama com a lentidão e a cautela de um caçador
diante da presa. Seus olhos — da cor mais fascinante de âmbar — em mim
o tempo todo, sem, ao menos, piscar.
Eu vou morrer.
Não há dúvidas.
O animal começou a se aproximar. Minhas pernas fraquejaram.
O silêncio era ensurdecedor. Pensei em gritar, mas tinha a sensação
de que, no momento em que o fizesse, o animal atacaria.
Quando a aproximação se tornou insuportável, dei um passo muito
lento para trás.
Daquela maneira, eu conseguia vê-lo com mais clareza. O animal
era negro como o céu à noite, com uma longa e lisa calda.
E era assustadoramente grande.
Eu dei mais um passo para trás e, dessa vez, as minhas costas
bateram na mesa.
O animal continuou avançando.
Nunca achei que morreria tão jovem. E jamais imaginei que seria de
forma tão trágica e violenta. Imagens de suas garras rasgando a minha pele
atravessaram a minha mente.
— Deixe-me adivinhar... Perdida de novo?
A voz ecoou suavemente, mas o susto foi tão grande que quase me
fez pular. O que me impediu foi a total consciência de que, se fizesse
qualquer movimento brusco, eu seria devorada.
Virei meu rosto na direção da porta.
Ele estava parado com a lateral do corpo apoiada no batente. Mãos
nos bolsos da capa escura.
Acredito que aquela tinha sido a primeira vez que não senti algo
negativo ao ver Sarkian Varant. Senti algo que nunca achei que sentiria
diante de sua presença.
Alívio.
A besta ainda me encarava fixamente, mas havia parado de se
movimentar. Estava a cerca de dois passos de mim.
Foi difícil de encontrar a minha voz.
— Que… porra é essa?
— Não estudam biologia em Umbra? — questionou, sem se mover.
— Se chama pantera, é da família dos felinos.
— Ela não deveria... — engoli em seco, minha garganta parecia uma
lixa — estar em uma jaula?
A pantera emitiu um som rouco vindo da garganta e deu mais um
passo à frente.
Fechei os olhos com força.
Ela iria me devorar.
E ele iria assistir.
— Chega. — Apesar de baixa, sua voz soou grave dessa vez,
ecoando por todo o cômodo.
Quando abri os olhos, a pantera havia parado. Havia congelado onde
estava, com a pata dianteira ainda erguida, como se estivesse pronta para
avançar. Ela me encarou fixamente por um longo momento antes de,
finalmente, recuar. Deu as costas para mim e voltou para a cama, como um
doce animal de estimação.
Soltei a respiração devagar.
— O que veio fazer aqui?
Voltei a olhar para ele. E, por um momento — muito estúpido —,
pensei em lhe agradecer.
— Entrei sem querer.
Sarkian jogou a cabeça para trás e um grunhido em meio a um
suspiro deixou a sua garganta. Notei seu pescoço marcado pelas tatuagens
negras — que subiam pela sua pele — antes que voltasse a me encarar.
Ele tirou as costas da madeira, empurrando seu corpo para frente de
forma preguiçosa.
— Não estou com paciência para mentiras hoje, farren — disse, ao
adentrar no cômodo. — Acabaram de invadir o meu quarto. Não estou no
melhor dos humores.
Como se o meu corpo lentamente tivesse descongelado, voltei a
mover meus músculos há pouco tempo petrificados. Desencostei a base das
costas da mesa e lancei um olhar para a pantera antes de falar.
— Vim pegar o que roubou de mim.
— Sua confiança? — provocou. — Sua dignidade?
— Para quem afirmou estar de mau humor, está fazendo
comentários bem cômicos.
Sarkian torceu sutilmente a cabeça.
— Isso foi um elogio?
— Eu sei que o colar é insignificante para você.
— Isso é presunção sua.
— Podemos fazer uma troca — sugeri.
Isso chamou a sua atenção, vi pela forma como o brilho sádico
refletiu em seus olhos. Ainda com as mãos nos bolsos, ele parou de frente
para mim.
Tive a sensação parecida de poucos minutos atrás, com a pantera.
Como se estivesse sendo encurralada.
— O que você poderia ter a oferecer que me interessaria?
Havia um tom claro de escárnio em sua voz.
Arranhei a garganta e, infelizmente, o que deixou a minha boca foi
algo bem estúpido. Culpei o fato por ter quase — literalmente — morrido
de susto segundos antes.
— Eu tenho dinheiro.
Isso o divertiu. A sombra de um sorriso tomou seus lábios.
— Já sou um homem rico.
— Não gostaria de ficar mais?
— Na verdade, não.
Tentei imaginar o que ele mais desejava no mundo. Mas,
provavelmente, era algo que eu jamais poderia oferecer. Ele era um rei e
eu… Bem, eu não era nada.
— Eu saio do seu caminho — declarei. — Nunca mais terá que me
ver, se me devolver.
Ele franziu o cenho.
— E, então, quem eu iria torturar?
— Aposto que tem um leque de opções — retruquei. — Não sou
especial.
— Não, não é.
Por alguma razão, aquilo doeu mais do que deveria. Talvez, tivesse
sido a forma como ele falou. Tão sincero e cru, como se fosse um fato.
Sarkian já havia me dito tanta coisa pior, mas aquelas palavras me
incomodaram no mesmo nível. O que era ridículo.
— Você o matou, não foi?
— O quê?
Ele me fitou por entre os cílios obscenamente longos.
— Seu marido, farren.
Pisquei ao franzir o cenho.
— Eu não sei do que…
— Não se faça de estúpida, não combina com você.
— Isso foi um elogio? — atirei.
Sarkian me observou por um momento e, então, sorriu — um
movimento extremamente sutil e quase imperceptível dos lábios. O silêncio
se tornou desconfortável. Para mim, claro. Nada parecia deixá-lo
desconfortável. Isso me dava nos nervos.
Ele se virou.
— Diga e, talvez, eu te devolva o colar.
Troquei o peso dos pés e lancei um olhar para a pantera, que nos
observava. Seu rabo balançava preguiçosamente. Chegava a ser irônico que
Sarkian tivesse uma pantera. Porque, se ele fosse um animal,
definitivamente, seria um felino. A semelhança do olhar e dos movimentos
era assustadora.
— Dizer o quê?
— A verdade — exigiu, sem olhar para mim. Parou em frente a uma
mesa e pegou uma garrafa de vinho. — Matou, não foi?
— Por que faz tanta questão de saber?
Sarkian derramou o vinho na taça sem pressa. Então, me fitou.
— Porque gosto de estar certo sobre as pessoas.
Analisei as minhas opções e decidi que valia o risco assumir o
crime. Para Sarkian, a vida de Theon não tinha diferença, de qualquer
forma. Sem contar que, se ele quisesse me incriminar por alguma razão,
podia simplesmente fazê-lo. Não precisava da minha confissão para isso.
— Sim — admiti, encarando-o. — Eu o matei.
Sarkian sorriu. Aquele sorriso perverso e cheio de satisfação pessoal
que eu não suportava.
— Está satisfeito? Ou quer saber o que senti também? — indaguei
entredentes. — Se gostei?
Sarkian levantou a taça até os lábios e deu um longo gole antes de
falar:
— Não é preciso. Já sei a resposta dessa pergunta.
Eu abri a boca, mas não cheguei a emitir nenhum som.
— Sempre soube que havia algo de perverso em você.
Ele começou a fechar a distância entre nós novamente.
Sorri.
— Veja quem fala.
Sarkian parou de frente para mim, sua voz saiu um pouco mais
baixa e rouca ao dizer:
— Pelo menos, eu não finjo.
Tive vontade de mandá-lo ir à merda, mas estava bem ciente de que,
com apenas uma palavra, ele poderia mandar sua besta de estimação me
devorar.
— Meu colar — lembrei.
Eu só queria pegar o que era meu e dar o fora daquele quarto.
— Ah... — Sarkian colocou a mão no bolso direito. — Este aqui?
Ele ergueu o colar entre nós e os diamantes brilharam diante dos
meus olhos.
— O que tem ele? — indagou quase inocentemente, antes de dar um
último gole na taça de vinho.
Cerrei os dentes e voltei a encará-lo.
— Disse que me devolveria, se dissesse a verdade.
— Eu não sou conhecido pela minha integridade, farren. — Ele
comentou, com o colar balançando suavemente em suas garras. — Já
deveria saber disso.
A joia estava tão perto, ainda assim, tão longe.
Em um impulso, dei um passo à frente e fiquei na ponta dos pés,
esticando a mão para alcançar o colar. Mas Sarkian foi mais rápido e ergueu
ainda mais o braço, deixando o objeto inalcançável.
Meu peito roçou em sua capa, mas só quando meus olhos deixaram
o colar que notei em qual posição eu havia nos colocado. Quão próximos
estávamos agora. Terrivelmente próximos.
Nossos rostos estavam a cerca de centímetros de distância.
Ele cheirava a vinho, lavena e um sutil toque de couro.
Sarkian não se moveu. E, por um momento que durou uma
eternidade, eu também congelei.
Meus olhos caíram para sua boca.
Engoli em seco ao notar seus olhos fazerem o mesmo trajeto. Minha
visão se tornou turva e o mundo pareceu congelar.
Então uma sombra assustadora atravessou a sua expressão.
— Se eu fosse você, iria embora. — Sarkian quebrou o silêncio ao
soprar, sem mover um músculo sequer. A pantera emitiu um rugido da
cama. — Ela ainda não jantou.
capítulo 25

A notícia do ataque contra Roquilon veio por meio de um


comunicado real.
Era sobre o que todos estavam falando naquela tarde. O Rei de
Umbra e o Rei Sarkian juntariam exercícios para derrotar Roquilon, um
reino relativamente pequeno, mas rico em terras excelentes para colheita.
Eu já deveria saber que havia segundas intenções vindo de Sarkian.
Ele não estava disposto a ficar em paz com Umbra pelo simples bem das
nações. Ele precisava de Umbra. A única questão é o que aconteceria após a
guerra contra Roquilon. Caso eles ganhassem, e Sarkian já tomasse o que
ele precisava de nós, temia o que aconteceria em seguida.
Enquanto isso, eu estava aprendendo a bloquear golpes.
— Mãos erguidas em frente ao rosto! — exclamou Bax, ensaiando
ataques contra mim. — Você precisa proteger seu nariz.
O suor escorria pela minha testa. Estávamos naquela dança há horas
e ele não me deixava parar. Dizia que alvos parados eram mais fáceis de
serem acertados. Então, eu precisava estar em movimento conforme
bloqueava seus ataques.
Eu usava calças, já que o vestido atrapalhava muito a agilidade.
Adoraria poder usar esse tipo de roupa em ocasiões sociais, mas os nobres
não tirariam seus olhares pasmos de cima de mim. E a última coisa que eu
queria agora era chamar atenção.
Bax mal ofegava.
Por mais que eu tentasse desviar, ele conseguiu avançar em direção
ao meu rosto. Bax deu um peteleco na ponta do meu nariz, me fazendo
recuar. Eu o fitei meio ofendida, meio frustrada. Não havia nada mais
desmoralizador do que um peteleco no nariz.
— Uma pancada forte no nariz pode te deixar desacordada por
horas. — Ele comentou. — Escute de alguém que já o quebrou mais de
cinco vezes.
O nariz de Bax era predominante e torto em várias direções, então
eu não duvidava nem um pouco daquele fato.
Depois de quase duas horas de aula, encerramos. Era meu terceiro
dia aprendendo com Bax e, apesar de ser extremamente cansativo, era
enervante.
— Você está progredindo bem para uma garota.
Ele não disse aquilo como um insulto, foi um elogio. Bax era um
brutamontes grosseiro, mas de bom coração.
Mesmo assim, fiz questão de retrucar:
— E você não está tão mal para um aposentado.
Allegra me preparou um banho logo depois. Meus músculos tensos
relaxaram um pouco na água quente.
— Senhora, por que está fazendo isso tudo?
— Como assim?
— Os treinos com aquele homem, trazer a garota desconhecida para
ficar aqui...
Allegra sabia que eu estava tramando alguma coisa, isso era óbvio.
Mas não sabia exatamente o quê. Não era que eu não confiasse nela; depois
do ocorrido com Theon, criamos certa parceria. A questão era que, mesmo
para mim, o plano ainda parecia muito absurdo e assustador. Não imaginava
qual seria a reação dela.
Eu a encarei por um longo tempo, analisando todas as minhas
opções e decidindo se valia o risco.
Tomei a minha decisão.
— Quer mesmo saber?
Allegra nem hesitou, assentiu firmemente. Depois que se aproximou
da banheira e me ouviu falar por cerca de cinco minutos, ela indagou:
— Como posso ajudar?

Os exércitos estavam em posição de partida. Os soldados de Khrovil


chegaram em nossa cidade aos montes, manchando nosso reino com
sombras pretas e mascaradas. Muitos civis estavam descontentes com
aquilo, mas Umbra foi o ponto de encontro porque era mais perto do mar
que precisavam cruzar para chegar a Roquilon.
Como tradição antes de uma guerra, o povo aplaudia e desejava
sorte aos reis e soldados. O Rei de Umbra lançava acenos ao povo, se
embebedando da glória e da promessa de uma vitória. Sarkian permanecia
em silêncio, encarando meu povo como se fôssemos os próximos.
Aproveitei a minha posição privilegiada próxima das escadarias do
castelo para me aproximar. No instante em que Sarkian desceu o último
degrau para seguir em direção à carruagem real, parei em sua frente.
Estávamos praticamente no mesmo lugar em que nos vimos pela primeira
vez.
— Veio me desejar boa sorte? — perguntou com claro sarcasmo em
sua voz.
Parecia calmo demais para alguém que estava prestes a entrar em
uma batalha.
Eu o fitei por um longo momento antes de me aproximar. Meu rosto
se aproximou de seu ouvido. Pensei que, talvez, ele fosse recuar, mas
permaneceu parado, sem movimentar um músculo sequer. Se o peguei de
surpresa pela aproximação, não fui capaz de ver devido à máscara.
Com a mais completa e crua sinceridade que havia em mim,
murmurei:
— Espero que morra.
Demorou um instante, conforme ele processava as minhas palavra,
até que eu recuei e Sarkian alinhou o olhar no meu.
Um sorriso perverso, porém, genuíno atravessou seu rosto.
— Ah, farren... — Fui capaz de ouvir o prazer em sua voz. — Acha
mesmo que eu te daria tamanha satisfação?
O Rei das Trevas avançou pelo campo de batalha
derrubando corpos a cada passo que dava
De forma letal
e graciosa
Ele tomava vidas
com a mesma facilidade em que homens se levantavam pela manhã
Em sua cabeça
só havia uma coisa
voltar para Umbra para vê-la
Porque ele
definitivamente
não lhe daria aquela satisfação
capítulo 26

A guerra durou cerca de três semanas.


Roquilon foi massacrada.
E Sarkian não foi morto, infelizmente.
Muito pelo contrário. Disseram que ele passou pelo campo de
batalha derrubando homens a cada passo que dava. Por mais que eu
estivesse decepcionada, não estava muito surpresa.
Durante o tempo em que os soldados tiravam a vida uns dos outros
em campo, eu arquitetava para ter o meu próprio exército.
Não seria capaz de recrutar um batalhão sozinha e tão depressa.
Então, a ideia era tomar um. Mandei Allegra se informar com os criados do
castelo sobre os generais. Precisava de qualquer segredo ou rumor que me
desse alguma vantagem.
Os soldados de Umbra eram divididos em sessões e comandados por
generais. Desde o recrutamento, eles cresciam sob as ordens do mesmo
homem. Eram fiéis a ele, alguns mais até do que ao próprio rei.
O general DeLarosa estaria no palácio para a recepção dos reis e do
exército vitorioso. De acordo com o que Allegra havia ouvido dos criados,
ele vinha tendo alguns desentendimentos com o nosso rei ultimamente.
Suas ideias estavam divergindo, o que queria dizer que, talvez, ele não fosse
tão contra outra pessoa no poder.
Agora, só precisávamos de alguma informação crucial.
— Geralmente, só a menção da palavra segredo faz a pessoa
instantaneamente pensar em seu segredo mais valioso. — Willow me
instruiu, logo antes de encurralarmos o general em um dos salões. — Então,
tente inserir isso na conversa.
O general DeLarosa estava ao lado da mesa de petiscos, com um
copo nas mãos. Era fácil identificá-lo, já que era a única pessoa naquele
salão que usava um tapa-olho. Uma das várias lembranças deixadas pela
guerra.
— Boa noite, general.
— Boa noite. — Ele não nos olhou ao responder, tinha o olhar fixo
nos pães salgados.
— Esta é a minha grande amiga Moura — apresentei Willow
cordialmente, não usando seu verdadeiro nome. — E queríamos te
parabenizar pelo seu feito na batalha.
— Obrigado. — Foi tudo o que disse.
Era difícil manter uma conversar com alguém monossilábico. Ele
não estava me dando muito material para trabalhar, mas continuei.
— Imagino que deva ser desafiador entrar na batalha com alguém
que não conhece, como o Rei Sarkian.
Ele finalmente escolheu um salgado e o enfiou na boca. Depois,
olhou para nós pela primeira vez.
— Desafiador seria um eufemismo — disse, ainda com resquícios
de pão na boca.
— É difícil confiar em alguém que parece tão… misterioso —
lancei um olhar para Willow, em busca de apoio —, não é?
— Ah, sim. — Ela concordou com firmeza. — Com certeza.
Ele olhou para mim e assentiu com a cabeça apenas por um segundo
antes de voltar a se inclinar sutilmente sobre a mesa, completamente
desinteressado.
— Bem — eu lhe lancei meu melhor sorriso descontraído —, mas
acho que todos nós temos nossos segredos, certo?
Seu olhar deixou a comida e se estreitou em minha direção. Ou
melhor dizendo, um olho se estreitou em minha direção.
Soube no mesmo instante que havia sido abrupta demais.
— Se me dão licença. — O general avisou, e começou a se afastar
para o final da longa mesa.
Ele parou na parte dos doces, claramente tentando se afastar de nós.
Eu me virei no mesmo instante para Willow.
— E aí? — indaguei em expectativa.
— Ele está dormindo com a mulher de outro general.
Prendi a respiração.
— Quem?
— Uma tal de Belinda.
O nome foi como um instalo em minha mente. Eu reconheci pelo
fato de ser a esposa do general preferido do rei. Basicamente, seu braço
direito.
Sorri.
— Perfeito.
— E ela está grávida.
— Puta merda! Dele? — Quase falei alto demais. Uma senhora que
pegava um salgado ao meu lado me lançou um olhar feio.
— Não sei. Nem ele sabe.
Segui até o fim da mesa, mal conseguindo conter o sorriso no meu
rosto.
— General DeLarosa, será que podemos ter um minuto a sós?
Ele levantou o olhar da mesa de novo ao som da minha voz.
Suspirou fundo, sem se preocupar em disfarçar a irritação.
— Estou ocupado, senhorita.
— Acho que vai querer ouvir sobre o que tenho a dizer.
— Duvido muito — rebateu, ao pegar um doce da mesa.
Ele começou a se virar para me dar as costas.
— Mesmo se for sobre a Belinda?
O general parou. Depois de alguns segundos, ele largou o doce de
volta na mesa e se virou lentamente até fixar o olhar no meu.
Eu, finalmente, tinha a sua completa atenção.
— O que você quer?
Eu sorri.
— Algo que pode resolver o meu problema e o seu.

— Comemore! Temos um exército. — Vesper constatou, ao


terminar o seu champanhe.
— Fale baixo! — alertei. Ele já estava meio bêbado. — E temos um
pelotão. Basicamente, um décimo de um exército.
Depois de uma longa conversa com o general, eu o convenci de que
ficar ao meu lado seria menos prejudicial do que o contrário. Ameacei
contar para o general Corkiman — marido de Belinda — sobre o caso e
salientei como seria destrutivo se fizesse isso. O rei tinha um apresso muito
grande pelo marido de Belinda e não iria permitir que a traição passasse
impune, sem contar com o fato de que a relação entre o rei e DeLarosa já
não estava muito boa ultimamente. O general era um dos maiores
opositores em relação à aliança com Sarkian. Prometi a ele o posto de braço
direito quando ganhássemos e permissão de fazer o que bem entendesse
com o general Corkiman.
— Ainda assim! — Vesper pegou mais um copo, animado.
Resisti um pouco. Já tinha feito o que precisava fazer e queria sair
do palácio antes que encontrasse Sarkian. Tive sucesso em fugir dele a noite
toda; grande parte devido ao fato de que ele estava no salão principal e eu
ainda não havia entrado lá. E não pretendia. Não queria ver o seu olhar
satisfeito e presunçoso de vitória. Possivelmente, estragaria a minha ótima
noite.
Mas Vesper me empurrou uma taça.
E, enquanto as pessoas comemoravam a vitória da guerra contra
Roquilon, nós começamos a comemorar a promessa de outra.
Depois de três taças de champanhe, meia de vinho e de ter perdido
Vesper, tentei não cambalear até a saída. Já estava tarde e eu havia
exagerado na bebida. Estava louca para tirar aqueles saltos e me jogar na
cama.
Mas, ao virar no último corredor até a saída, dei de cara com
ninguém mais e ninguém menos do que o maldito Rei de Khrovil.
Ele usava sua máscara, mas soube que me viu no mesmo momento
em que o vi.
Eu quase deixei escapar um gargalhada. Os Deuses me odiavam
mesmo.
— Oh, veja só quem é! — exclamei, logo antes de parar de frente a
ele. — Vossa Alteza. — A minha voz escorria sarcasmo ao fazer uma
reverência belíssima e um tanto longa. — Aprovou a minha reverência? Ou
vou perder as minhas pernas?
Sarkian não respondeu instantaneamente. Demorou alguns segundos
até que murmurou:
— Ainda não.
— Que bom! Eu as aprecio demais. — Ele não disse nada, apenas
piscou uma vez em minha direção, o que me fez dar um passo à frente. —
Seus cílios são obscenamente longos, sabia? É realmente um desperdício.
Sarkian me observou.
Será que eu o havia deixado sem palavras?
Quase dei um soco vitorioso no ar. Mas me contive.
Seus olhos deixaram os meus apenas por um momento para encarar
a taça quase vazia na minha mão direita.
— Está comemorando a minha volta a salvo com vinho?
— Estou lamentando-a com vinho — corrigi.
A sombra de um sorriso atravessou seus lábios.
— Talvez, não tenha rezado o suficiente — zombou.
— Para você morrer? — Fiz um movimento com a mão direita e só
não derramei vinho no chão porque havia muito pouco líquido no copo. —
Não gastei meu tempo. Tenho a impressão de que o Deus da Morte tem um
apreço especial por você.
Sarkian torceu a cabeça.
— E por que diz isso?
— Por causa de todas as vidas que já tirou.
Presenciei mais um rastro de um sorriso.
— E qual Deus te protegeria — ele deu um passo à frente —, caso
eu erguesse a minha espada agora e a empurrasse contra você?
Sua voz soou mais rouca. Mais perversa.
— Nenhum — respondi honestamente. — Mas não vai fazê-lo.
— Ah, é? E por que não?
Descansei a mão livre na cintura, sustentando o seu olhar.
— Se quisesse me matar, já o teria feito.
De repente, me toquei de que aquilo soava muito como um desafio.
E, pelo que conhecia do Rei das Trevas, suspeitava de que ele não gostava
muito de ser desafiado. Pela primeira vez, fiquei consciente de que
estávamos em um corredor vazio.
Com mais um último movimento, ele fechou a distância entre nós.
Debati recuar, mas, por alguma razão, não o fiz. Talvez, estivesse fascinada
pelo seu olhar. Era a primeira vez que via aquela expressão nele. Havia
perversidade e desprezo no prata, mas também uma faísca inusitada de
tormenta.
O silêncio estava começando a se tornar insuportável.
Sarkian levantou a mão direita e, com um movimento muito suave,
tocou meu queixo com o dedo indicador enluvado. O choque foi
instantâneo e percorreu meu corpo inteiro. Ele nunca havia me tocado dessa
forma. A não ser em nossa dança – da qual nenhum de nós tinha escolha –
ele nunca havia me encostado.
Ao erguer meu rosto, alinhou-o ao seu, e eu precisei de tudo o que
tinha para não engolir em seco.
— Quão repugnante eu teria que ser... — Seus olhos percorreram
todo o meu rosto até pararem na minha boca e se manterem ali. — Para
querer alguém como você?
Não acho que ele esperava por uma resposta, era quase como se
estivesse falando consigo mesmo. Assim que seu olhar deixou a minha
boca, seu dedo abandonou meu rosto.
Eu só notei que estava segurando a minha respiração quando ele,
finalmente, se afastou.
O Rei das Trevas teve um pesadelo naquela noite
O pesadelo tinha cabelos escuros
traços finos
e sobrancelhas grossas
Tinha voz também
Um som feminino e rouco
quase aveludado
que escapava de lábios pequenos
porém cheios
Deveria acabar logo com isso
pensou o Rei das Trevas
ao rolar pelos lençóis na madrugada
Ela estava se tornando uma distração
capítulo 27

— Mande a esquisitona parar, antes que eu rasgue a garganta dela!


Ignorei Vesper e continuei encarando o papel que o general
DeLarosa havia me dado com detalhes importantes sobre o exército. Nele,
tinha a quantidade exata de cada pelotão e seus turnos.
Ouvi a voz fina de Willow, antes de Vesper chamar meu nome,
irritado.
— O quê? — indaguei, sem encará-lo.
Teoricamente, estávamos ali para ajustar o nosso plano, mas Vesper
e Willow não pareciam conseguir trabalhar em sintonia.
— Mande que ela pare de ler os meus pensamentos! — Vesper
exigiu, da poltrona.
— Willow, pare de ler os pensamentos dele — murmurei, arrastando
a ponta da caneta de pena no meu queixo conforme analisava o papel.
— Claro. — Willow respondeu com a voz doce demais.
— Ela não vai parar. — Vesper retrucou. — Já ouviu falar de
privacidade?
Inspirei fundo, tentando bloquear a discussão deles e me concentrar.
— Ah, sinto tanto.
— Consegue ler isso?
De repente, Willow se levantou.
— Seu merda! — Ela exclamou.
Levantei o olhar.
— Ei…! — comecei.
Ela apontou para Vesper, que jazia na poltrona um tanto satisfeito.
— Ele acabou de me chamar de vadia!
— Não, não. — Ele corrigiu, bem enfático. — Eu pensei nisso. Foi
você que leu.
— Dá para vocês pararem?! — interrompi, irritada. — Vocês têm
noção do que estamos prestes a fazer? Da magnitude disso?
Levantei-me, encarando o meu time de confiança para tomar o
trono. Dois jovens adultos que estavam agindo como crianças.
— Vocês têm noção das consequências, se não tivermos sucesso?
Ambos me encararam em silêncio. Bufei, me jogando no sofá ao
lado de Willow.
Estávamos perdidos.
— Você está com medo de não conseguirmos. — Ela falou, me
fitando.
Eu a encarei. Ela tinha aquele brilho estranho no olhar.
— Pare de ler os meus pensamentos.
— Irritante, né?! — atirou Vesper.
Não era só irritante, era terrível ficar na presença de Willow. Não
havia como esconder nada. Você estava completamente exposto perto dela.
E, como sempre fui uma pessoa muito reservada, aquilo era uma tortura.
Não poder mentir, nem em relação às pequenas coisas, era extremamente
frustrante.
— Então, seja honesta. — Ela devolveu.
Olhei para Vesper, que também me encarava como se esperasse que
eu dissesse algo.
Eu suspirei, me sentindo encurralada.
— Acho que, se continuarmos assim, temos grandes chances de
falhar — desabafei sinceramente. — Estava vendo o relatório do general e
terão soldados demais de tocaia.
O silêncio se instalou.
— Precisamos tirar os soldados de perto do rei — concluiu Willow,
como se estivesse pensando em voz alta.
Vesper tomou um gole de vinho e eu lancei um olhar feio em sua
direção.
— O que foi? — Ele indagou, na defensiva. — Me ajuda na
concentração.
Revirei os olhos e joguei a cabeça no encosto do sofá, encarando o
teto.
— Precisamos de uma distração — disse.
O silêncio permeou por cerca de dez segundos antes de Vesper
anunciar:
— Puta merda, tenho uma ideia!

Era a última lua cheia do mês, o que queria dizer que aconteceria o
evento tradicional a céu aberto para louvar aos Deuses. A cerimônia era
basicamente uma festa cheia de comidas e apresentações. Só que, em vez de
ser em algum dos salões do palácio, era a céu aberto. Segundo o rei, era
para que os Deuses pudessem nos ver melhor.
Além de não ser no palácio, como todas as outras cerimônias, outro
diferencial era que a entrada era permitida para todos os cidadãos, até
mesmo os mais pobres. Obviamente, com uma certa separação de lugares,
principalmente da Família Real.
Era uma das poucas cerimônias que eu realmente gostava, já que a
festa não exigia apenas conversas e danças. Ao longo da noite, aconteciam
várias apresentações, algumas delas bem interessantes.
Mas eu fui, acima de tudo, porque queria Willow e Sarkian no
mesmo recinto. Precisava saber exatamente o que se passava na cabeça
dele. Era só naquilo em que eu conseguia pensar.
— Como é isso, exatamente? Você precisa estar a cerca de qual
distância da pessoa? — Eu questionei, conforme andávamos pelo gramado.
Apesar de ser a céu aberto, havia toda uma estrutura preparada para
a festa, que costumava se prolongar até o amanhecer. Tendas eram erguidas
ao longo da terra — a maioria delas era particular, de nobres que vinham de
mais longe e desejavam ter um local para descansar ao fim da festa. Outras
eram comerciais, principalmente de bebidas e alimentos.
— Eu preciso ter a pessoa na minha visão periférica e me concentrar
nela, e é isso.
— Ótimo — respondi, ao pegar a sua mão e arrastá-la pela multidão
de pessoas.
Sarkian estaria perto do rei, em frente ao círculo e com vista
privilegiada para onde as apresentações aconteciam.
— Dá para irmos mais devagar? — Ela reclamou. — Estou com
fome.
Não respondi e também não diminui o passo.
— Veja! Aquele cara está vendendo sanduíche de bacon!
Parei e me virei tão abruptamente que ela quase se chocou contra
mim.
— Depois que você ler a mente dele, pode ter quantos sanduíches
quiser.
Ela franziu o cenho.
— Por que quer tanto saber o que se passa na mente dele?
Recuei, soltando seu braço.
— É uma questão estratégica — argumentei com a voz mais tensa
do que pretendia. — Ele é um rei.
Ela me encarou fixamente e torceu a cabeça.
— Não — disse. — Não é só isso.
— Pare — alertei, porque já sabia o que ela estava fazendo. Sabia o
que aquele olhar significava.
— Você o odeia. — Ela concluiu. — Mas é pessoal.
— Pare! — repeti, dessa vez entredentes.
Não suportava aquela invasão. E, quanto mais eu pensava em
Willow vasculhando a minha mente, mais eu pensava no que mais gostaria
de esconder.
— Ok. — Ela suspirou. — Vamos acabar logo com isso, para eu
comer meus sanduíches.
Voltamos a andar e não demorou muito para que estivéssemos perto
do círculo. Foi fácil de achar, já que várias pessoas o cercavam e, logo em
frente, havia uma plataforma com cinco poltronas. Ali, se encontravam o
Rei de Umbra, a rainha, o príncipe, a princesa e…
Sarkian.
No momento, encarava o homem que se equilibrava e dançava em
um pedaço de madeira fino e longo com uma expressão de tédio. Pelo
menos, era isso que eu supunha, já que, devido à máscara, só conseguia ler
a sua expressão corporal.
Virei-me para Willow.
— Consegue vê-lo?
Ela ficou na ponta dos pés e franziu o cenho. Willow era
consideravelmente mais baixa do que eu.
— Não. Precisamos chegar mais perto.
Nós nos aproximamos, abrindo caminho entre o mar de gente.
Depois de nos espremermos e esbarrarmos em várias pessoas, conseguimos,
por fim, chegar na borda do círculo.
— E agora? — perguntei, me virando para trás.
Mas a pergunta ficou no ar, porque Willow não estava ali.
Olhei ao meu redor e só vi rostos desconhecidos. Chamei o nome
dela mais uma vez.
Não estava acreditando naquilo. Estávamos tão perto.
No momento em que entendi que jamais a acharia novamente
naquela confusão, me virei de volta para Sarkian.
E, ao fazer aquilo, o encontrei já com os olhos em mim.
Merda.
Estava na expectativa de que ele não me visse naquela multidão de
corpos.
Sustentei o seu olhar por vários segundos torturantes, até que, por
fim, desviei. Observei o artista no centro do círculo, tentando ignorar o
olhar que queimava a minha pele.
O que eu daria para ter Willow aqui e saber exatamente o que se
passava na cabeça sinistra dele...
Quando pensei que a apresentação havia acabado, fogo acendeu no
centro do círculo, esquentando os arredores. O homem fez um cobertor de
chamas logo abaixo da travessia de madeira suspensa.
Notei a mudança de interesse dos espectadores com os aplausos
animados.
Naquele momento, as coisas estavam bem mais intrigantes, já que,
caso ele se desequilibrasse da madeira, cairia direto nas chamas.
O artista subiu na plataforma e fez uma impressionante dança, muito
bem equilibrada. Era muito claro seu talento e anos de treinamento.
Aplausos explodiram no segundo em que ele desceu.
— Alguém se atreveria? — O homem perguntou em desafio.
O público se agitou quando ele olhou ao redor, procurando um
voluntário. Não era incomum certos artistas incluírem algum espectador no
seu número.
— Vamos lá! — Ele gritou, com um sorriso nos lábios. — Deve
haver, pelo menos, uma pessoa corajosa por aqui. E não se preocupem, irei
auxiliar quem se atrever.
Vi uma mão se levantar no lado oposto do círculo. Logo depois,
mais duas.
O artista sorriu, analisando suas opções. Quando ele deu um passo
em direção a um dos possíveis participantes, a voz reverberou pelo círculo.
— Pare.
Todos os olhares deixaram o centro do círculo para irem direto até a
plataforma real.
Até Sarkian.
O apresentador e o público esperaram, confusos e surpresos com a
interrupção.
Meu coração começou a bater mais rápido. Um pressentimento ruim
atravessou meu corpo assim que sua voz chegou aos meus ouvidos.
Sem pressa, o olhar de Sarkian se arrastou até encontrar o meu.
Não.
Ele levantou o braço direito e, com a mão enluvada e banhada em
brilhantes, apontou na minha direção.
— Ela.
Não. Não. Não.
Todos os olhares, de repente, estavam em minha direção. As pessoas
ao meu redor se viraram para mim. A mulher, que antes tinha o braço
imprensado na minha costela, se afastou.
Engoli em seco.
Aquilo não podia estar realmente acontecendo.
O apresentador deu alguns passos hesitantes em minha direção. A
multidão à minha volta se distanciou, abrindo caminho.
Senti-me terrivelmente exposta.
— Eu não quero participar — disse, com a voz arranhando a minha
garganta.
Ele parou e, então, se virou para os reis.
— Alteza, ela disse que…
— Eu ouvi. — Sarkian interrompeu, sem tirar os olhos de mim. —
Infelizmente, não foi um pedido.
O Rei de Umbra parecia tão confuso quanto todos ali. Ele virou o
rosto para Sarkian e murmurou alguma coisa. Sarkian desviou o olhar do
meu para dizer algo de volta. O Rei de Umbra assentiu sutilmente e eu
entendi que Sarkian havia conseguido o que queria, como sempre.
Dei um passo para trás.
— Não vou participar — pronunciei-me, dessa vez olhando
diretamente para Sarkian.
Ouvi arfadas e suspiros de choque.
Eu tinha acabado de dizer não ao Rei de Khrovil.
Ele tamborilou os dedos no braço da cadeira enquanto tinha os olhos
fixos nos meus.
— Você prefere que os meus guardas te arrastem? — questionou,
com a voz calma e congelante.
Com um sutil e quase imperceptível movimento da cabeça, os
soldados mascarados que o cercavam deram um passo à frente.
Não havia outra opção.
Tomei a minha decisão e comecei a andar para dentro do círculo.
Não queria de jeito nenhum ser arrastada, então, pelo menos, faria aquilo
com certa dignidade.
Fechei as mãos em punhos para que ninguém visse como elas
estavam tremendo.
— Não se preocupe — o artista disse, ao caminhar para o centro do
círculo ao meu lado —, vou segurar sua mão para ter apoio.
Eu olhei para ele de forma extremamente agradecida ao assentir.
Senti o calor das chamas conforme me aproximava da travessia.
— É melhor tirar os sapatos. — Ele avisou.
Tirei meus saltos, ficando descalça.
O silêncio me deixava ainda mais nervosa. A consciência de que
todos estavam olhando para mim — principalmente ele — era
desconcertante.
Sarkian conseguiu o que queria; me fez a atração principal.
Suor já escorria da minha testa ao subir na travessia de madeira. O
artista tinha a mão firme na minha, me estabilizando, mas mantendo o
corpo o mais afastado possível das chamas no chão. A madeira era fina, tão
fina que cabia exatamente a largura de um pé. Estava quente, mas não era
insuportável.
Eu tremia, o que piorava a situação.
Mas eu acreditava que podia fazer aquilo. Afinal de contas, há
menos de cinco minutos, o homem estava dançando e fazendo rodopios na
madeira. Obviamente, ele era um profissional talentoso. Pelo menos, eu não
precisaria dançar. Eu só precisava atravessar. E, com o suporte de sua mão,
era bem mais fácil para manter o equilíbrio.
Assim que dei o primeiro passo, a voz reverberou mais uma vez.
— Solte a mão dela.
Eu congelei, parando no meio do segundo passo.
Ergui meu olhar, encarando-o pela primeira vez desde que adentrei o
círculo.
Sarkian me observava com atenção e, sem dúvidas, extrema
satisfação.
— Mas, Vossa Alteza… — O artista disse ao meu lado.
— Solte. — Sarkian interrompeu antes que ele pudesse terminar o
apelo.
Meus olhos começaram a lacrimejar de medo, mas, principalmente,
de raiva.
Meu corpo fervia mais por causa do ódio do que pelas chamas logo
abaixo de mim. Sabia que Sarkian foi capaz de sentir, porque a sombra de
um sorriso atravessou seu rosto.
Eu vou matá-lo.
Um dia, eu vou matá-lo, prometi a mim mesma naquele instante.
— Você o ouviu. Obedeça. — O Rei de Umbra finalmente se
pronunciou.
Senti a mão do apresentador lentamente deixar a minha e eu o
encarei ao passo que me esforçava para me estabilizar.
— Sinto muito, senhorita. — Ele disse de forma realmente
lamentável.
— Tudo bem — murmurei com a voz tão baixa que não sabia se ele
tinha sido capaz de ouvir.
Suor escorria pela minha testa. O meu vestido, de repente, parecia
pesar toneladas. E era bem mais complicado de me equilibrar com aquela
saia longa.
Ergui os braços lentamente, tentando me equilibrar sem ajuda.
Esqueça as chamas.
Esqueça Sarkian, repeti a mim mesma.
Dei mais um passo, lento e hesitante. Então, o segundo. E mais um.
Meus braços continuavam no ar, estabilizando o peso do meu corpo.
As chamas pareciam crescer embaixo de mim, mas, provavelmente,
era imaginação minha causada pelo medo e pelo pânico. Sentia meu vestido
fino de verão ficando molhado de suor.
Eu conseguia me imaginar caindo. O choque contra o fogo, as
chamas lambendo a minha pele e as queimaduras instantâneas e
permanentes. A dor seria insuportável. Poderia até ser fatal.
No sexto passo, me desequilibrei. Meus braços fizeram movimentos
bruscos para cima e para baixo na tentativa desesperada de me reequilibrar.
Ouvi uma arfada coletiva do público.
As minhas pernas tremiam terrivelmente.
Eu vou cair!
Puta merda, eu estou prestes a cair!
Mas, por algum tipo de milagre, consegui me reequilibrar.
Inspirei fundo e, depois de um longo momento, voltei a me
movimentar. Dei mais dois passos, finalmente encontrando o meu ritmo.
Depois disso, ficou um pouco mais fácil. Foquei na madeira e apenas na
madeira, ignorando os sons ao redor, o calor das chamas e a presença de
todas aquelas pessoas. Cerca de cinco passos depois, eu havia atravessado
toda a madeira.
Com o auxílio do homem, pulei da plataforma, para longe do
cobertor de chamas. Os aplausos começaram assim que meus pés quentes
encontraram a grama.
Minhas pernas tremiam e eu estava completamente molhada. A
adrenalina ainda pulsava.
Levantei o olhar, fitando Sarkian fixamente.
Não havia um sorriso ou nenhum resquício de diversão em seus
olhos. Provavelmente, estava decepcionado por eu não ter caído.
Meu vestido estava colado contra meu corpo. Eu era capaz de sentir
o material molhado em minha pele e, como o tecido era branco, se tornou
um tanto transparente, expondo muito mais do que gostaria.
Vento soprou, amenizando o calor e movimentando alguns fios dos
meus cabelos. Mas, com a brisa, senti meus mamilos endurecerem contra o
tecido e fiquei muito ciente de tudo o que estavam vendo.
Senti-me verdadeiramente nua. Completamente exposta.
Engoli em seco, mas não fiz nenhuma tentativa de me cobrir.
Sustentei o olhar de Sarkian com a cabeça erguida.
E, apesar dos aplausos do público, não me sentia nem um pouco
encorajada. Sentia-me humilhada. Um brinquedo que se contorcia de
acordo com a vontade daquele monstro.
Meus olhos começaram a lacrimejar.
Não chore.
Não na frente dele.
Seu olhar desceu lentamente pelo meu corpo, os lábios em uma
linha dura.
Não conseguia ver seu rosto direito, muito menos ler sua expressão
corporal, já que ele não movimentou, sequer, um dedo. Apenas suas pupilas
me percorreram até voltar ao meu rosto.
Mas eu podia apostar que era nojo. Ver-me daquele jeito
provavelmente o ofendia mais do que me deixava desconfortável.
— Satisfeito, Alteza? — indaguei, sentindo o caroço se formar em
minha garganta.
Sarkian tensionou a mandíbula e levantou a mão direita. Com um
sinal mudo e sutil, ele fez com que seus soldados se aproximassem, com a
intenção de me escoltar para fora.
O comando era tão claro que eu podia escutar, mesmo sem palavras
ditas.
“Tirem-na da minha frente.”
Não dei oportunidade para que me tocassem. Virei-me e deixei o
círculo.
capítulo 28

Era o fim da manhã quando chegamos ao palácio. Estávamos lá com


apenas uma coisa em mente: mapeá-lo. Precisávamos achar o lugar perfeito
para a grande noite. Essa, que aconteceria em menos de 48 horas.
— Ele realmente te odeia, né?
Encarei Vesper, que andava ao meu lado pelos corredores do
palácio. Pessoas como eu e Vesper podiam entrar no palácio na parte da
manhã ou da tarde quando bem entendessem. Claro que havia diversas
áreas restritas, mas, num geral, os nobres e as pessoas influentes podiam
circular por vários salões sem problema algum. Inclusive, muitas mulheres
de título iam tomar café da tarde com amigas no belo e extenso jardim real.
Não me virei para Vesper e nem perguntei a quem estava se
referindo pois sabia muito bem. Haviam contado a ele o que tinha
acontecido na noite anterior.
—Sim. — Foi tudo o que respondi.
— Imagino que seja recíproco.
— Sim — repeti, e demorou alguns segundos até que confessei: —
Vou matá-lo. Na primeira oportunidade que tiver, eu o matarei.
Vesper me encarou impressionado e, talvez, um pouco assustado.
— Sabe que ele é um rei, não é? E não é qualquer rei.
— Ele é um rei, não um Deus. Não é intocável — rebati, e abaixei
um pouco o tom de voz ao passarmos por um criado real. — Fora que, se
fizermos tudo direito, quando tudo isso acabar, eu serei uma rainha.
Ainda era estranho dizer aquilo. Pensar naquilo já era um tanto
surreal. Era como se eu estivesse sonhando com algo tão distante e
intocável.
Mas, em menos de 48 horas, descobriríamos se o sonho se
concretizaria ou se aquilo se tornaria um completo pesadelo.
Os exércitos de Sarkian haviam deixado Umbra na noite anterior.
Ele só tinha a sua escolta pessoal para acompanhá-lo de volta a Khrovil no
dia seguinte. Era por isso que o momento perfeito seria na última noite, no
jantar em que todas as pessoas importantes estariam reunidas e,
basicamente, apenas os soldados de Umbra estariam presentes. Eu não teria,
sequer, uma chance, se os soldados de Sarkian ainda estivessem ali. Ambos
os exércitos se juntariam contra o meu pequeno pelotão e nem o melhor
plano do mundo seria capaz de me conceder a vitória.
— O que você fez?
— Como assim?
— Você deve ter feito alguma coisa para ele te odiar tanto assim.
— Ele é um sádico, Vesper — retruquei, levemente ofendida. —
Não precisa de um motivo.
— Mas, se fosse assim, ele poderia infernizar a vida de qualquer
um. Não precisava ser você a atração principal ontem.
Suspirei fundo e desviei o olhar.
— Nós tivemos... — pensei em todas as nossas interações e
discussões — desentendimentos.
Ele riu, o que me pegou de surpresa.
— O que foi?
— Você é completamente diferente do que achei que fosse.
— Como assim?
— Matar o Rei das Trevas é um plano um tanto… ousado. Trair a
coroa também. Não sei se você é ambiciosa ou suicida.
— Bem, não pretendo morrer fazendo nenhuma dessas coisas.
— Sempre achei que você era só uma megera irritante.
Ergui as sobrancelhas ao encará-lo.
— Mudou de ideia, então?
Ele me fitou e, por fim, sorriu.
— Você ainda é uma megera. Mas é uma megera ambiciosa.
Sorri de volta.
Depois de uma ronda pelos principais corredores do palácio, nos
separamos. Vesper acharia um jeito de ir para o subsolo, a área essencial
para o nosso plano. E eu descobriria em qual salão seria o jantar da noite
seguinte e, então, memorizaria cada saída.
Cerca de meia hora analisando cada aspecto necessário depois,
comecei a andar de volta para onde eu havia combinado de reencontrar
Vesper.
Mas a voz vinda de trás de uma porta fechada me fez parar.
Era a voz do rei.
Olhei para os dois lados do corredor para confirmar que estava vazio
antes de me aproximar. A voz do Rei de Umbra ficou mais clara, mas ainda
não compreensível. Colei a lateral do rosto na porta, já que aquela era uma
oportunidade muito única para ignorar. Ele só podia estar falando de
negócios ou estratégias, visto que aquela era uma sala de reuniões.
E, por mais que Willow tenha sido extremamente útil nos últimos
dias, ela ainda não tinha conseguido extrair nada de importante do Rei de
Umbra. Aparentemente, quando ele estava naquelas cerimônias e festas, as
únicas coisas em sua mente eram o bufê e as jovens garotas.
Não foi exatamente uma surpresa saber que o rei tinha amantes —
homens poderosos faziam aquilo com uma frequência avassaladora. Mas
ele sempre pregava com tanto afinco sobre a importância sagrada do
casamento, que tornava tudo bastante irônico.
— O que pensa que está fazendo?
Eu pulei ao ouvir uma voz. Antes que pudesse me virar, senti o
aperto no meu braço.
Quando ergui o olhar, dei de cara com um dos generais. O homem
careca e de cerca de quarenta anos me fitava com o rosto sombrio e duro.
Merda.
— Eu só estava…
— Espionando. — Ele me interrompeu, entredentes.
— Não! — exclamei, com os olhos arregalados. — Claro que não!
Antes que eu pudesse inventar qualquer coisa, ele colocou a mão na
maçaneta e abriu a porta com violência. Com um aperto forte em meu
braço, ele me empurrou para dentro do cômodo.
Meu coração parecia prestes a sair pela boca.
Vi-me diante de uma mesa comprida. Nela, estavam o Rei de
Umbra, alguns de seus generais e um par de nobres.
E, claro, Sarkian.
Não demorou nem um segundo para encontrar seu olhar entre todos
aqueles homens. Ele estava sentado ao lado oposto do Rei de Umbra, em
uma das pontas da mesa. Não usava máscara e, ao me fitar, não mostrou
nenhuma expressão. Se estava surpreso em me ver ali, não demonstrou.
— General Kreis, o que é isso? — indagou o rei, claramente
surpreso com a intromissão.
— Eu a encontrei no corredor, com o ouvido na porta.
Meu coração batia descontrolado em meu peito.
Eu seria enforcada ou até mesmo decapitada. As cenas atravessaram
em minha cabeça.
O Rei de Umbra me encarou por um momento, pensativo.
— Uma espiã, então.
— Não, senhor! — retruquei, com desespero.
— Então, por qual outro motivo estava ouvindo nossa conversa?
— Eu não sabia que era o senhor aqui dentro! Pensei que era uma
conversa qualquer e…
— É mesmo?
O rei não parecia convencido.
Ele passou os olhos pela mesa, por todos os homens que me
encaravam em silêncio.
— O que acham que devo fazer?
— Enforcá-la — disse o homem mais próximo do rei. — É a
punição para espionagem.
Alguns dos homens concordaram, assentindo. Parte deles parecia
quase entretida.
Senti-me tonta. Um caroço se formou em minha garganta.
— Acho que seria um desperdício — disse o general ao meu lado,
me apertando com mais força. Ele estava tão próximo que eu sentia seu
hálito em meu rosto. — Não é uma espiã ruim de olhar. Talvez, devêssemos
dar um trato nela antes de matá-la. Eu não teria problema algum em cuidar
disso, Alteza.
Meu corpo ficou gelado. Dormente.
— Você gosta da sua mão, General Kreis? — A voz serena, porém
grave, fez com que todos se virassem para o lado oposto da mesa, inclusive
eu.
Sarkian tinha as mãos descansando nos braços da cadeira e o rosto
completamente neutro.
— Você gosta? — Ele insistiu.
Confuso, o general assentiu.
— Então... — Ele disse lentamente, com os olhos fixos em Kreis. —
Eu sugiro que a mantenha longe dela.
O homem ao meu lado não fez nenhum movimento. Nem mesmo
piscou. Quando finalmente processou aquelas palavras, olhou para mim.
Seu olhar era nebuloso e surpreso.
Silêncio se instalou no cômodo. Se uma pena caísse no chão,
seríamos capazes de ouvir.
O aperto no meu braço, por fim, suavizou e o general me soltou.
Eu fitei Sarkian fixamente, como todos ali. Mas ele não olhou para
mim em momento algum.
— Tem alguma ideia melhor, Varant? — O Rei de Umbra indagou,
depois de um momento.
Parecia interessado e curioso com a mudança de acontecimentos.
— Acho forca um tanto extremo. Afinal, não acho que seja uma
espiã. — Sarkian ponderou e, então, finalmente me encarou. — Olhe para
ela, não passa de uma vagabunda insignificante.
Os sentimentos dentro de mim eram tão conflituosos que eu não
tinha certeza se queria pular naquela mesa para enforcá-lo ou abraçá-lo.
— O pai dela tem muitas terras de plantações importantes. — O rei
ponderou. — Realmente... Forca, talvez, não seja a melhor opção.
O general ao meu lado se agitou.
— Mas, Alteza, eu a vi espiando. — Ele se voltou para mim, com os
dentes cerrados. — Admita, sua cadela mentirosa!
Engoli em seco.
— Não sei do que está falando. Não sou uma espiã.
Ele avançou e, por um momento, pensei que fosse me acertar.
— Toque nela.
A voz de Sarkian ecoou de novo — dessa vez, mais alta e grave —,
fazendo o general congelar no meio do movimento.
— Eu o desavio. — Sarkian disse, com o olhar fixo nele. Havia algo
no prata. Um brilho que eu já tinha visto algumas vezes. Acreditava ser o
equivalente a ver a morte de frente. A sombra de um sorriso maléfico
tomou seus lábios. — Vamos lá.
A ameaça era clara, e eu senti o corpo inteiro do general tensionar.
Lentamente, ele recuou.
Eu finalmente voltei a respirar, apesar de o meu coração ainda bater
desesperadamente contra o meu peito.
Os olhares se movimentavam entre o Rei de Umbra, Sarkian e eu.
Estavam todos confusos. Ninguém mais ousou opinar.
Alguns me encaravam com certo fascínio agora.
— Tudo bem, então. Ela é problema seu, Varant. — O Rei de
Umbra fez um movimento com as mãos. — Faça o que quiser.
Sarkian me lançou um olhar. Um que eu daria tudo para conseguir
ler, mas, como sempre, ele era um enigma. Então, se levantou da cadeira e
fez um movimento com a cabeça em direção à porta. Eu o segui até a saída
com passos lentos e hesitantes, apesar de estar desesperada para deixar
daquele cômodo.
Minha cabeça estava um caos com o turbilhão de pensamentos
conflitantes.
Tinha algo errado. Sarkian não havia feito aquilo por bondade ou
piedade. Ele desconhecia essas duas palavras.
Assim que passei pela porta e saímos para o corredor, indaguei:
— Que tipo de jogo é esse?
— De nada. — Ele disse, me ignorando.
— Por que fez aquilo?
Sarkian desviou o olhar e colocou as mãos nos bolsos da longa capa
negra. Suspirou ao voltar a me encarar.
— Se você morrer, a minha diversão acaba — justificou
simplesmente.
Ah, claro.
Eu sorri. Um sorriso amargo.
— Então, só você pode me torturar?
Ele era mesmo doente.
— Essa é a ideia.
— Eu não sou o seu brinquedo.
— Não. — Foi a sua vez de sorrir; aquele sorriso terrível que
frequentemente me visitava em pesadelos. Ele se aproximou a ponto de eu
sentir as suas palavras na pele da minha bochecha. — Você é o que eu
quiser que seja. Não se esqueça de quão frágil a sua vida é, farren. Ou serei
obrigado a te lembrar.
capítulo 29

Na volta para a minha casa, Vesper e eu estávamos repassando pela


milésima vez cada passo que daríamos. Cada margem de erro possível e
como resolveríamos, caso algo inesperado ocorresse.
— Isso é insano.
— Eu sei.
Ficamos em silêncio por um instante, pensando na mesma coisa.
Nos riscos. Nas consequências.
— Ainda dá tempo de dar para trás. — Ele virou o rosto em minha
direção. — Sabe disso, não é?
Aquilo era a última coisa que eu desejava que saísse de sua boca.
Parei no meio da calçada vazia. Vesper notou que eu não o estava
acompanhando e fez o mesmo, virando o corpo para me fitar.
Estávamos praticamente em frente ao portão da minha casa.
— Não faça isso.
Ele franziu o cenho, sem tirar os olhos de mim.
— O quê?
— Não hesite. E não tente me convencer a voltar para atrás.
Soei firme ao dizer aquelas palavras, até mesmo confiante, mas a
verdade era que eu precisava que ele obedecesse justamente porque eu
estava hesitante. Era assustador. Houve dias naquelas últimas semanas que
eu achava que tinha perdido a cabeça, e tinha medo de que, se Vesper
compartilhasse as suas inseguranças, isso seria o suficiente para que eu
desistisse.
— Não estou hesitando, só estou falando que ainda é possível que…
— Não, Vesper, não é possível! — Eu o interrompi, sentindo as
emoções afloradas das últimas semanas borbulharem dentro de mim. —
Nós vamos nos vingar e mudar as coisas. E não posso ter você hesitante. —
Ele chegou a abrir a boca, mas não lhe dei oportunidade para retrucar. —
Para que isso dê certo, preciso da sua lealdade e confiança. Nós vamos
seguir o plano, matar o rei e tomar o maldito trono.
Por fim, me calei e esperei por sua resposta. Estava até sem fôlego.
Era hora de ele entrar de cabeça ou dar para trás de vez. Mas Vesper
não fez nenhuma das duas coisas.
Ele não disse nada.
Na verdade, não estava nem olhando para mim.
Tinha os olhos em algo por cima dos meus ombros. E parecia…
aterrorizado.
Apenas uma palavra deixou seus lábios:
— Merda.
Quando me virei, estava diante de uma garota de cabelos escuros
carregando uma cesta nas mãos. Ela estava a menos de três passos de nós na
calçada e tinha os olhos castanhos arregalados. Olhos que entregavam o
fato de que ela tinha acabado de ouvir as últimas palavras que deixaram a
minha boca.
Houve um momento de completo silêncio, em que nós a encaramos
e ela nos encarou de volta. Nenhum de nós se moveu. O tempo pareceu
congelar. Minha cabeça girava, e a mesma palavra que Vesper tinha
acabado de dizer martelava na minha mente.
Merda. Merda. MERDA.
Porque ela sabia o que aquela informação significava. Tanto para
nós, quanto para ela.
E ela agiu.
A cesta caiu no chão, e a garota começou a correr.
Então, sem nem um segundo de hesitação de nossa parte,
começamos a correr também. Eu avancei em sua direção com o tipo de
desespero que torna qualquer um capaz de qualquer coisa.
Não havia ninguém além de nós na calçada, mas eu sabia que, se ela
conseguisse virar a esquina, que dava para a rua principal, haveria grandes
chances de uma plateia.
E, caso isso acontecesse, estaríamos perdidos. Se ela conseguisse
alcançar uma viva alma, estaria tudo acabado.
Seríamos condenados. Seríamos acusados de conspiração e traição.
Morreríamos antes mesmo de tentar.
Vesper tropeçou. Não chegou a cair, mas perdeu alguns passos
preciosos.
Ela era rápida para uma garota de pernas curtas. Estava chegando à
esquina, estava tão perto, que meu coração ameaçou a sair pela boca. Eu
conseguia escutar os falatórios a distância. Testemunhas.
Seríamos pegos.
Acabou, pensei.
Desesperada, fiz um último esforço e me joguei em sua direção. Ela
caiu no chão por baixo de mim, a, talvez, dois passos da esquina.
Foi uma corrida breve, mas pareceu uma eternidade. Meu coração
galopava no peito, tanto pelo esforço físico quanto pelo pânico.
Ela começou a gritar e a se debater.
— Soco…!
Vesper tapou a boca dela com a mão. O movimento foi tão bruto que
fez um estalo no ar, mas, pelo menos, funcionou.
— Rápido! — disse, me levantando. — Antes que alguém veja!
Arrastamos a garota pela calçada em uma velocidade
impressionante. Segurei suas pernas desajeitadamente enquanto Vesper a
segurava pelo tronco e ainda abafava seus gritos desesperados como uma
das mãos. Foi um sequestro confuso e desastrado. Ela me chutou um par de
vezes, mas não a soltei em momento algum.
Abri a porta de casa, e a empurramos para dentro.
Olhei para trás, para a rua, antes de entrar. E continuava vazia.
Por algum milagre, conseguimos sequestrar a garota sem nenhuma
testemunha.
Do lado de dentro, a garota continuava a se debater.
— Ai! — Vesper exclamou, a soltando de repente. — Ela me
mordeu!
Seus gritos agudos preencheram o ar. E, por mais que estivéssemos
dentro de casa, eram altos o suficiente para serem ouvidos, caso alguém
passasse por perto.
Eu saquei a minha faca e a apontei a um centímetro do seu rosto.
Seu corpo congelou, e ela fechou a boca, engolindo o grito.
Por fim, silêncio.
— O que está acontecendo?!
Nós três nos viramos ao som da voz.
Era Allegra. Estava na porta da sala com o semblante confuso e
chocado.
Voltei a encarar a garota, aproximando a lâmina do seu rosto.
— Grite mais uma vez, e eu arranco a sua língua.
Era uma ameaça vazia, claro. Jamais seria capaz de arrancar a língua
de alguém, ainda mais de uma menina. Porém foi extremamente eficaz.
— Tem alguma outra pessoa aqui? — perguntei à Allegra, sem tirar
os olhos da garota.
— A… A senhora Groselin foi à feira comprar as coisas para o
jantar.
Suspirei, aliviada. Menos uma testemunha para aquela confusão.
— Ótimo. Preciso de cordas e uma mordaça.
Allegra não fez perguntas, apenas piscou um par de vezes e sumiu,
apressada.
Nós amarramos os pés e as mãos da garota, e amordaçamos sua
boca. Trancamos a porta da cozinha para que Groselin não entrasse
desavisada e se deparasse com a cena caótica.
— É a segunda vez que sequestro uma garota desde que te conheci
— murmurou Vesper, conforme a amarrava. — Estou começando a me
perguntar se somos mesmo os mocinhos.
Nós a colocamos no sofá, de onde ela nos observava com os grandes
olhos molhados.
Paramos os três em sua frente.
— O que vamos fazer? — indagou Allegra.
Observando a garota de perto e com calma, eu tinha a estranha
sensação de que já a tinha visto em algum lugar. Os cachos castanhos na
altura dos ombros e os lábios finos não me pareciam desconhecidos.
— Qual é o seu nome? — indaguei, depois de tirar a mordaça.
— Por que isso importa?!
— Cala a boca! — Eu rosnei para Vesper.
— A gente está tão fodido... — Ele murmurou, ao andar de um lado
para o outro pela sala, em passos frenéticos.
— Qual é o seu nome? — perguntei de novo para a garota, mais alto
dessa vez.
Além de assustada, ela parecia indecisa, sem saber se deveria me
contar a verdade ou não. Demorou um instante tenso até que falasse.
— Felicity Stunt.
Precisei de apenas um segundo para ligar os pontos e, quando
aconteceu, tive vontade de gritar. Mas não o fiz, em vez disso, rosnei um
palavrão e levei a mão ao rosto.
— O que foi? — indagou Allegra ao meu lado.
— Ela é filha de um dos conselheiros do rei. Uma das amigas mais
próximas da princesa.
Era por isso que eu já a tinha visto. Ela sempre frequentava o castelo
ao lado da princesa em festas e eventos reais.
Vesper passou as mãos pelo cabelo.
— Tão fodidos.
— Meu pai tem muito dinheiro, ele pode… — A garota começou a
balbuciar, em pânico. Mas não processei nenhuma palavra do que ela disse.
Nós nos afastamos um pouco dela.
— Podemos soltá-la... — sugeriu Allegra em um sussurro. —
Podem não acreditar nela.
— Ela é uma nobre, vão acreditar nela. Ou, pelo menos, vão
procurar investigar.
Logo atrás de nós, Vesper soltou o que parecia ser um gemido de
dor. E Felicity se remexeu no sofá.
— Eu não vou contar para ninguém. Juro! Juro pelos Deuses!
Eu a encarei por um longo momento. Mas claro que ela diria isso,
diria qualquer coisa para sair dali.
Virei-me para Allegra.
— Precisamos da Willow.
Willow estava em uma confeitaria não tão longe dali. Chegou em
menos de quinze minutos com glacê ainda nos lábios e mal pestanejou ao se
deparar com a cena que se desenrolava ali. Não pareceu nada abalada ao
nos indagar o que estava acontecendo.
— Então, vocês a sequestraram?
— Precisamos.
— Vocês estão tornando isso um hábito — alfinetou.
E, depois que explicamos, ela não demorou nem cinco segundos
encarando a garota até responder:
— Ela vai contar.
O silêncio pairou entre nós. A percepção da confusão na qual
havíamos nos colocado assentando em nossas cabeças.
Eu me joguei na poltrona perto da lareira e enfiei o rosto entre as
mãos.
O estresse consumia o meu corpo inteiro.
Odiava o fato de que já estava dando tudo errado. Estávamos
falhando sem mal termos começado.
— Vamos matá-la.
Eu levantei o rosto para Vesper. Ele tinha as mãos na cintura e o
rosto em uma mistura bizarra de pânico e determinação.
— Não! — A garota voltou a soluçar e implorar. — Pelo amor dos
Deuses, eu juro…! Juro que não vou contar!
— Não! — interveio Allegra, o encarando com olhos arregalados.
— Não podemos!
Colocamos a amordaça de volta em sua boca, e seu choro se tornou
abafado e frágil.
Allegra gesticulou para garota.
— Não podemos matá-la. Isso é um absurdo!
Ela dirigiu o olhar para Willow, como se buscasse apoio. Mas
Willow só deu de ombros. Então, Allegra voltou a nos encarar com
descrença e angústia na expressão.
— É errado.
— É nossa única opção! — Vesper atirou de volta.
— Temos que pensar em alguma coisa…
— Não vamos matar ninguém — disse, finalmente. Os dois pararam
de discutir e me encararam. Arranhei a garganta e reformulei a frase: —
Não vamos matar ninguém inocente.
Vesper jogou as mãos para cima.
— Isso fodeu com tudo! Não tem como a gente seguir com o plano
agora.
— Como assim? A nossa única opção é seguir com o plano. Se
dermos para trás, o que faremos com ela? Mantê-la aprisionada pelo resto
da vida? — Levantei-me da poltrona e fiquei de frente para ele. — Nossa
única opção é mantê-la aqui até realizarmos o ataque. Depois disso,
podemos soltá-la, porque não vai mais importar.
— Ou podemos matá-la.
— Não iremos matá-la! — Dessa vez, a minha voz saiu vários tons
acima.
— Por que não? Estamos prestes a matar várias pessoas! Um plano
desse exige fatalidades, ela é só mais uma.
Balancei a cabeça em discordância.
— É diferente.
— Por quê?
— Porque a morte dela não é necessária. Podemos evitar. Podemos
mantê-la aqui até que tudo aconteça. — Eu pausei por um momento e,
depois de um suspiro cansado, completei: — E porque ela é inocente.
— E se alguém encontrá-la antes? Ouvi-la gritar? Tem certeza de
que ninguém irá descobrir que ela está aqui?
— É só uma menina, Vesper.
— Que pode muito bem ser a causa da nossa morte.
Eu me calei, exausta da discussão e de sua teimosia. Sabia que ele
não iria abrir mão tão facilmente. O medo e o desespero o estavam tornando
irracional, eu conseguia ver no brilho de pânico em seus olhos.
Estendi a minha faca para ele.
— Muito bem, então.
Vesper olhou para a faca e, então, para mim, confuso.
— O quê?
— Quer matá-la, não é? — Empurrei a arma em sua direção. —
Então, aqui está a faca. Termine logo com isso.
A garota gritava desesperadamente, o som abafado de terror
preenchia o cômodo inteiro. Não olhei em sua direção.
— Não! Cera, não podemos fazer isso! — Allegra implorou ao meu
lado.
Mas não respondi, tinha os olhos apenas em Vesper.
Ele hesitou, pego de surpresa. Piscou um par de vezes.
— Por que eu?!
Dei de ombros.
— Sua sugestão. Vamos lá, não é a única solução?
Ele finalmente pegou a faca.
Eu conhecia a sua índole e sabia muito bem que matar alguém, na
teoria, era bem mais fácil do que realmente enfiar uma faca em seu coração.
E Vesper não era um assassino.
Ele se aproximou dela.
Felicity começou a se debater no sofá. Os olhos arregalados presos
na faca se aproximando. Ela estava vermelha de tanto chorar, o rosto estava
ensopado e o nariz, escorrendo.
Allegra pegou meu braço, me obrigando a encará-la.
— Cera. Por favor!
Sua feição era puro desespero e incredulidade. A garota doce me
fitava como se eu tivesse perdido a cabeça. Como se, de repente, não me
conhecesse.
E doeu.
Mas apenas afastei meu braço e desviei o olhar de volta para Vesper.
Allegra, depois de alguns segundos, se virou, finalmente entendendo
que eu não iria ceder. E, para minha sorte e, talvez, sua desgraça, sua
confiança e respeito a mim eram mais fortes do que seus princípios. Ela
fechou os olhos e tapou os ouvidos com as mãos.
Já Willow observava a cena, mais curiosa do que qualquer outra
coisa.
O corpo de Vesper estava tenso e os dentes, cerrados. Sua mão
tremia e suor escorria por suas têmporas.
Ele ficou a dois passos dela e levantou a faca.
Inspirou profundamente.
E parou.
Então, depois de alguns segundos que pareceram uma eternidade,
fechou os olhos e jogou a arma contra a parede.
— Merda. — Ele levou as mãos ao rosto. — Merda!
Devagar, soltei o ar que estava preso em meus pulmões e me virei
para Allegra.
— Vamos mantê-la no quarto de hóspedes no andar de cima.
Tranque com chave para que Groselin não entre.
Allegra piscava várias vezes, tentando assimilar o que tinha acabado
de acontecer e o que eu tinha acabado de dizer, até que finalmente assentiu.
Parei na porta da sala antes de sair. Olhei para a garota indefesa e
soltei um suspiro.
— Talvez, possamos usá-la. Ela é amiga íntima da princesa, aposto
que esteve em cômodos do castelo que jamais tivemos acesso. Também
deve conhecer a rotina da Família Real melhor do que muita gente. — Dei
de ombros. — Pode ser útil.
Saí pela porta da frente e me sentei na varanda de pedras. Inspirei o
ar devagar até que as batidas do meu coração se acalmassem.
O que eu estava fazendo?
Eu nunca fui uma garota a desafiar as regras, por mais que as
odiasse. Nunca fui alguém que procurava aventuras e muito menos
problemas. E lá estava eu, prestes a arriscar a minha vida e a de pessoas
com as quais eu me importava.
E por quê?
Para ter a esperança de um mundo melhor?
Talvez, eu estivesse sendo ingênua demais. Uma garota não era
capaz de transformar o mundo. Talvez nos contos de fada, mas a realidade
era outra.
— Tudo bem, senhora?
Levantei a cabeça. Milo estava na minha frente, suado e trajando as
roupas surradas de trabalho nos estábulos.
— Tudo... Por quê?
— Parece triste.
— Pareço?
Ele assentiu, e nos fitamos por um momento.
— E você? — devolvi, mudando de assunto. — Parece feliz.
Às vezes, eu o pegava sorrindo, principalmente quando estava com
Bodih, um dos cavalos, e quando Groselin o chamava para comer bolo de
milho no chá da tarde.
Milo assentiu firmemente.
— Estou muito feliz, senhora.
Um pequeno sorriso quebrou em meus lábios.
— Que bom. — Ajeitei meu cabelo, tentando me recompor ao me
levantar.
— Por sua causa.
Olhei para ele de novo, que agora fitava o chão.
— Minha mãe disse que temos muita sorte. Pediu para agradecer à
senhora por me pagar para trabalhar aqui. — Ele trocou o peso dos pés, em
um movimento tímido, e voltou a me fitar. — Ela disse que você poderia
contratar qualquer cavalariço com mais experiência, mas juro que eu estou
fazendo tudo o que a senhora pediu direitinho.
Tive a repentina e inoportuna vontade de chorar. Talvez fosse o
cansaço, talvez o medo, talvez a expressão agradecida de alguém tão
inocente. Talvez fosse tudo isso. Saber que eu era a responsável por mudar
significantemente a vida daquele menino era uma sensação inexplicável, o
tipo de sensação que começava bem lá dentro e esquentava o peito.
E, por um momento, aquilo me lembrou do porquê eu estar fazendo
tudo aquilo.
Se o plano desse certo, eu poderia mudar a vida de milhares de
garotos como ele. Eu tinha consciência de que não seria nada fácil e
também não seria ideal. Não conseguiria tornar o mundo perfeito.
Mas eu definitivamente iria tentar.
Não podia voltar atrás. Não apenas porque agora havia uma
testemunha, mas porque eu jamais ficaria satisfeita. Se não, pelo menos,
tentasse realizar aquilo, teria para sempre uma sensação assombrosa de
fracasso e amargura.
Eu passaria o resto da vida me perguntando: mas e se eu tivesse
conseguido? E eu simplesmente não suportaria a ideia de viver com essa
pergunta até o fim dos meus dias.
— Eu sei que está. — Eu finalmente respondi ao Milo.
— A senhora é uma pessoa muito boa.
Já estava me virando para voltar para dentro quando o ouvi. A
afirmação inesperada me fez parar abruptamente. Eu não sabia o que dizer.
Um cavalo relinchou ao longe, e eu aproveitei para indicar com a
cabeça.
— Acho que o trabalho te chama, Milo.
O garoto assentiu e não hesitou um segundo ao correr de volta para
o estábulo, cheio de energia e confiança.
“A senhora é uma pessoa muito boa.”
Foi um elogio, sem dúvidas. Mas, em vez de me deixar feliz, as
palavras me deixaram com um gosto ruim na boca e uma sensação estanha
na base do estômago. O pequeno Milo me via como alguém que havia
mudado a sua vida completamente. Mas ele não me conhecia. Pelo menos,
não por completo.
Porque parte de mim estava blefando e esperava que Vesper desse
para trás. Mas a outra parte de mim, aquela que, às vezes, me assustava,
queria que ele realmente acabasse com aquilo de uma vez.
capítulo 30

Nunca estive tão tensa em toda a minha vida.


Aquela noite só poderia terminar de duas formas:
Eu sendo rainha.
Ou eu sendo morta.
Ambas as possibilidades eram um tanto assustadoras.
O jantar foi mais elaborado do que imaginei. A orquestra tocava e o
centro do salão estava liberado para dança. Dizer que nosso rei adorava
cerimônias era eufemismo, já que qualquer motivo era razão para uma festa
cheia de ostentação e glamour.
— O general está firme? — perguntei à Willow.
Precisava saber se ele não estava se acovardando ou pensando em
me trair na última hora. Ele era uma parte essencial para aquilo dar certo.
Willow olhou fixamente para o general, que conversava casualmente
com um barão, e torceu a cabeça.
— Sim. Ele está tenso, mas está firme.
Naquele exato momento, Sarkian finalmente adentrou o salão,
sugando a atenção de praticamente todo o cômodo. Ele estava
acompanhado de Despinna que, muito claramente, apreciava os olhares.
Ambos se juntaram à mesa do Rei de Umbra.
Sarkian não reconheceu a presença de ninguém, com exceção do
nosso rei. Ambos trocaram palavras breves.
— O que ele está pensando? — questionei.
Willow tinha uma visão de Sarkian muito clara no momento, e eu
precisava saber o que se passava na cabeça dele. Aquela poderia ser a
última noite em que eu teria a chance de descobrir.
Ela o fitava fixamente e semicerrou seus olhos por segundos que
pareceram décadas. Eu a encarava em expectativa.
Até que Willow franziu o cenho.
— Não sei.
— Como assim não sabe?!
— Tem pessoas que são mais difíceis de ler do que outras. Ele é…
— balançou a cabeça — um tanto desafiador.
Suspirei.
Claro.
— Bem, tente com mais afinco — pressionei.
Voltei a encará-lo, mas Sarkian não parecia notar a minha presença.
Se havia notado, não parecia se importar.
Mas, então, Despinna me pegou encarando, e nossos olhares se
encontraram por uma fração de segundo, até que eu desviei.
Tentei disfarçar, mas conseguia sentir seu olhar queimando em mim.
— E aí? — indaguei outra vez.
— Pare de me pressionar! — Willow chiou. — Deixe-me
concentrar.
Eu tentei, realmente tentei não olhar em sua direção novamente.
Mas meu olhar percorreu o salão até estar nele de novo.
E, dessa vez, Sarkian tinha os olhos em mim.
— Uau... — A garota suspirou ao meu lado, me fazendo, com certo
esforço, desviar o olhar do dele para encará-la.
— O que foi? — indaguei em expectativa.
Ela me encarou e, então, anunciou:
— Ele te odeia.
Suspirei, frustrada.
— Não é preciso ler mentes para saber disso.
— Não. — Ela disse, estranhamente séria. — Eu… nunca vi esse
tipo de ódio antes.
Resisti à vontade de engolir em seco e me remexi na cadeira.
— Por quê? O que mais pode ver?
Willow voltou a olhar para ele.
— Não sei. — Ela piscou várias vezes. — Mas é conflitante. A
mente dele é muito… nebulosa. Acho que só teria clareza, se ele estivesse
interagindo diretamente com você.
Droga.
Tomando uma decisão um tanto precipitada e insana, eu me levantei.
Não havia muito o que perder, de qualquer forma. Em cerca de algumas
horas, eu poderia muito bem estar morta.
Ele notou assim que comecei a cruzar o salão.
Eu usava branco naquela noite, um vestido de alças finas que
modelava o meu corpo. Uma fenda começava no meio da minha coxa
direita, deixando exposta bastante pele na minha perna toda vez que eu dava
um passo. Apesar de ser um vestido simples, era um tanto ousado para
Umbra devido à exposição de pele. Mas aquele vestido não era, nem de
longe, a coisa mais impactante que aconteceria naquela noite.
Meu cabelo estava solto e apenas alguns fios, que costumavam cair
no meu rosto, estavam presos atrás da minha cabeça.
Finalmente, parei diante da mesa dos reis.
Fiz uma reverência antes de indagar:
— Me concede uma dança, Alteza?
Sarkian permaneceu parado por vários segundos, apenas me
observando por trás da máscara. Uma faísca de surpresa e confusão
atravessou seus olhos por um momento, mas, então, seu olhar voltou para o
gelado hostil e enigmático de sempre. Na verdade, foi tão breve que me
perguntei se havia sido apenas fruto da minha imaginação.
Despinna me encarava fixamente e, se olhares pudessem ferir, eu
tinha certeza de que cairia morta bem ali.
Troquei o peso dos pés, imaginando como seria humilhante se
Sarkian negasse ao meu pedido. O que eu não duvidava nada que o fizesse,
já que só a ideia de estar tão próximo a mim já o enojava. Mas ele, por fim,
se levantou.
Eu o segui até o centro do salão e, assim como na primeira vez que
dançamos, ele posicionou minhas mãos em si, tomando completo controle e
estabelecendo os limites. Chegava a ser engraçada a forma cautelosa que
ele me situava para que eu não o encostasse além do necessário.
Como se eu quisesse tê-lo tão perto. Como se eu quisesse dançar
com a personificação da morte.
— Agora, estou intrigado — disse próximo do meu ouvido, ao
começar a guiar os passos. — E poucas pessoas me despertam esse
sentimento.
— Por quê? — indaguei, fingindo inocência.
Apesar dos membros e da postura tensa, Sarkian se movimentava
com uma suavidade e habilidade invejável. E eu precisava me esforçar para
acompanhar e não fazer papel de idiota ao tropeçar.
— Vai me dizer por que resolveu nos torturar com esta dança?
— É a sua última noite aqui.
— Ah... — Apesar de não estar encarando-o, fui capaz de sentir o
começo de um sorriso sarcástico. — Está devastada?
Ignorei a declaração irônica.
Precisava de uma razão plausível para tê-lo chamado para dançar e
aquilo não parecer suspeito, então indaguei:
— Não tem nada planejado para hoje?
— Então, está preocupada — concluiu, quase satisfeito.
— Poderia, pelo menos, ter a decência de me dizer. — Olhei para
ele e tentei não soar desafiadora ao indagar: — Vai, finalmente, me matar
hoje à noite?
Sarkian me girou no meio da pista, me pegando de surpresa. E se
sua habilidade na dança não fosse tão boa, aquele passo teria falhado e eu,
sem sombras de dúvidas, teria tropeçado. Quando voltei do rodopio, a
lateral do meu corpo bateu e imprensou contra seu peito, meu ouvido
ficando a centímetros da sua boca.
Minha respiração travou.
— A expectativa faz parte da diversão, farren. — Seu hálito quente
causou um arrepio incomodo no meu pescoço
Então ele soltou o aperto e nos reposicionou de volta a uma
distância segura.
Busquei Willow pelo salão, mas havia muitos casais dançando ao
nosso redor. Perguntava-me se ela já havia conseguido o suficiente. Eu não
aguentava mais estar tão perto dele.
Era sufocante.
Me vi contente pela presença de sua máscara, já que adicionava
mais uma barreira entre nós. Mas ainda assim não era o suficiente. O calor
de seu corpo irradiava, seu cheiro emanava e sua presença sugava.
— O que está aprontando, hum? — Ele indagou, interrompendo a
minha busca.
Voltei a encará-lo.
Tomar o trono.
Te matar.
O prata por trás da máscara me fitava com curiosidade
desconcertante.
— Está com medo? — provoquei.
— Só preocupado com a possibilidade de alguém te matar antes que
eu possa fazê-lo.
— Talvez, eu te mate antes. — Sorri.
Sarkian sorriu de volta. Aquele sorriso que não alcançava o prata
sombrio de seus olhos.
A música, por fim, terminou. Ele me soltou como se eu o queimasse
e eu me afastei com semelhante repulsa.
Atravessei o salão em direção ao banheiro; precisava me refrescar
para me recompor. Faltava pouco e não poderia haver distrações.
Apoiei as mãos na pia, fechei os olhos e respirei fundo.
Vai dar tudo certo.
— Está tudo bem?
A voz doce ecoou pelo banheiro.
Assustei-me e abri os olhos para encontrar Despinna no reflexo do
espelho. Nós nos encaramos por um longo momento.
O vestido de tom púrpura com um decote avantajado lisonjeava as
suas curvas.
— Está — murmurei.
Ela começou a andar em minha direção. Estava claro que tinha ido
até o banheiro atrás de mim.
Não me movi, apenas esperei.
— Ele é fascinante de se olhar, eu sei — disse com a voz casual,
porém, eu sabia que não havia nada de casual naquela conversa. Ela parou
ao meu lado na pia.
Virei o rosto em sua direção.
— Do que está falando?
Ela sorriu, os lábios tingidos de vermelho subindo lentamente.
— Não se faça de estúpida. Sabe muito bem do que estou falando.
Tirei as mãos da pia e me virei para ela.
— O que você quer?
Ela ficou repentinamente séria.
— Ele é meu.
Pisquei diante da declaração.
Ela estava com ciúmes. Aquilo era realmente hilário.
Foi a minha vez de sorrir.
— Sou uma ameaça para você? — provoquei.
Sua mandíbula tensionou.
— Ele jamais se interessaria por alguém como você. Sabe disso, não
é? — Ela deu um passo à frente. — Não é só a sua aparência medíocre ou
sua personalidade entediante. Seu sangue é inferior. Ele não te foderia nem
se fosse a última mulher do mundo.
Fechei as mãos em punhos e tentei ignorar as suas palavras. Eu
sabia que seu único intuito era me afetar, mas isso não queria dizer que não
ofendia.
— Você é o brinquedo dele.
Eu não conhecia e jamais entenderia a relação dos dois. Mas de uma
coisa eu sabia, ele não a amava. Simplesmente porque ele não era capaz de
amar.
Ela cerrou os dentes.
Aquilo a ofendeu. Talvez porque ela soubesse que era a mais pura
verdade.
— E você não é absolutamente nada.
— Então, por que está aqui?
— Porque você não parece ser capaz de tirar os olhos, e nem as
mãos, dele. — Um brilho perverso atravessou seus olhos. — E eu já cortei a
garganta de outras por muito menos do que isso.
Eu não desejava ter problemas com Despinna. Não tinha
absolutamente nada contra a sua pessoa, muito pelo contrário, na verdade.
Impressionava-me com sua confiança e indiferença à opinião alheia.
Mas ela era extremamente possessiva com aquilo que amava. E se
havia algo um tanto claro, era que ela amava Sarkian Varant.
Aquilo quase me fazia sentir pena dela.
Amar um monstro devia ser algum tipo de maldição.
Despinna estava disposta a se livrar de qualquer um que estivesse
em seu caminho.
Tive vontade de deixar bem claro que não estava nem perto de ser
um problema para ela como imaginava — já que Sarkian me odiava e o
sentimento era completamente mútuo. Mas também não iria me explicar
para uma mulher que estava me ameaçando. Havia decidido que não iria
mais abaixar a minha cabeça.
Despinna se virou e seguiu a caminho da porta.
— Eu tomaria cuidado com as ameaças, Despinna — avisei. —
Pode se surpreender com as consequências delas.
Ela se virou para me lançar um último olhar.
— Eu não tenho medo de você, garota — afirmou, antes de ir.
Ainda não.
Deixei o banheiro e voltei para a mesa, me sentando do lado de
Willow. Vesper havia chegado e tinha um copo na mão direita.
— Tem certeza de que quer beber nesta noite? — indaguei.
— É essencial que eu beba nesta noite. — Ele rebateu, quase
ofendido. — Tenho que acalmar meus nervos de alguma forma.
Olhei para Willow, que estava quieta demais. Na verdade, ela mal se
movia.
— O que foi?
— Consegui — anunciou com a voz estranhamente baixa e, então,
olhou para mim. — Consegui ler a mente dele.
Meu coração pulou uma batida.
— E aí?!
Willow hesitou antes de falar, parecia… perplexa. Isso estava me
matando. Remexi-me na cadeira.
— Consegui ver duas coisas muito claras. — Ela disse. — Ele te
odeia.
Cerrei os dentes dentro da boca, contendo a vontade de estrangulá-
la.
— Já estou bem ciente disso, Willow.
— Mas o ódio só não é maior do que…
Ela parou por um momento e voltou a olhar para ele, quase como se
estivesse tentando confirmar o que havia lido.
— Do quê...? — insisti, tensa.
Ela abriu a boca e, quando voltou a me encarar, a pele de suas
bochechas corou.
E nada poderia ter sido tão chocante quanto o que Willow falou em
seguida.
— Do que a vontade de arrancar o seu vestido.
Ele tentou resistir a ela
tanto que a frustração se tornou ódio
Ele queria destruir
já que não podia ter
capítulo 31

Não podia ser.


Eu olhei para Sarkian, que conversava com o Rei de Umbra agora.
Havia um zumbido em meu ouvido e eu me senti repentinamente
tonta. Se estivesse de pé, achava que poderia desmaiar.
— Puta que pariu! — Vesper exclamou alto demais. — Que
reviravolta! Ele gosta dela?
— Não, ele não gosta dela. — Willow respondeu. — E fale baixo,
animal!
Eu pisquei, saindo da minha hipnose, e encarei Willow.
— Tem certeza disso? Tem certeza de que leu isso?
— Sim, tenho. — Seu rosto ficou repentinamente muito sério ao
voltar a analisá-lo com atenção meticulosa. Ela parecia quase
desconfortável quando retornou a falar. — Fica muito claro toda vez que ele
olha para você. É… pulsante.
Pulsante.
Minha cabeça girava.
— O quê? — A minha voz saiu rouca. — O desprezo ou o desejo?
Ela engoliu em seco. Então, olhou para mim.
— Ambos.
Observei o outro lado do salão. Meu pesadelo. O homem que fazia
da minha vida um inferno. Eu o encarei por tanto tempo que ele me pegou
fitando-o. Mas não desviei daquela vez, apenas o observei.
Será que havia uma parte de mim que já sabia?
Porque, ao mesmo tempo em que estava em completo choque…,
não estava.
Não sabia como aquilo era possível. Talvez, houvesse um
pressentimento que tentei negar, porque a ideia era absurda demais. Porque
o seu ódio era violento demais.
— Cera, você está bem? — Vesper perguntou. — Sua cor está um
pouco… preocupante.
— Estou bem.
Mas eu não estava.
Não depois daquela informação.
— Isso não muda nada nos planos, não é?
Eu me virei abruptamente na direção de Willow.
— Claro que não.
Bebi o meu copo inteiro de vinho em dois goles. O líquido queimou
a minha garganta e a ardência foi mais do que bem-vinda.
— Talvez, isso deixe até mais fácil — murmurei, sem saber
exatamente para quem estava fazendo aquela afirmação.
Sarkian finalmente se levantou.
— É agora, Cera. — Vesper avisou, fazendo o mesmo.
Assenti. Ou, pelo menos, achei que o fiz. Era como se o meu corpo
e o meu cérebro estivessem com dificuldade de trabalhar juntos.
— Tomem cuidado — pedi, ao ficar de pé.
Esperei um pouco até começar a me movimentar em sua direção.
Não sentia as minhas pernas conforme o seguia até a sacada.
De repente, sua capa preta se misturou com as sombras do corredor
vazio. Só o avistei novamente sob a luz da lua ao chegar na sacada.
Minha nuca e costas suavam. Adrenalina pulsava em meu sangue.
Ele parou no meio da sacada, contemplando o jardim extenso, e
tirou o cigarro do bolso. Observei enquanto ele acendia a lavena.
Em dado momento, Sarkian sempre deixava as festas para fumar.
Não sabia exatamente se era para fugir da cerimônia e de todas aquelas
pessoas que ele claramente detestava ou se era pela necessidade da
substância.
Provavelmente, ambos.
Parei um passo antes de adentrar a sacada, a cerca de três metros de
distância dele.
Aproveitei o fato de ele estar de costas para fitá-lo por mais uns
instantes.
Sarkian tirou a máscara e tragou. Jogou a cabeça para trás antes de
soprar a fumaça em direção ao céu. Ficou daquela forma por alguns
segundos, e eu o observei paralisada e um tanto hipnotizada enquanto
criava coragem.
— Procurando por problema, farren? — Sua voz quebrou o silêncio
quando virou o rosto para direita, me dando a visão de seu perfil.
De alguma forma, eu já sabia que ele tinha consciência da minha
presença. Ele sempre tinha. Mas, ainda assim, retraí ao som de sua voz.
— Por que as luvas? — indaguei. As palavras surpreendendo, até
mesmo, a mim.
Eu sempre tive essa curiosidade, mas nunca pensei em verbalizá-la,
principalmente a ele. Talvez, fosse o nervosismo. Ou, talvez, a necessidade
desesperadora de tirar o máximo dele antes de lhe tirar a vida.
Porque eu odiava Sarkian Varant com todas as minhas forças, mas
isso não eliminava o fato de que eu era completamente fascinada por ele.
Ele se virou, ficando de lado para mim, e me encarou amplamente.
Sarkian levantou a lavena até bem próximo de seus lábios, mas, antes,
perguntou:
— Me seguiu até aqui só para perguntar isso?
Aproximei-me com cautela, me juntando a ele na extensa e vazia
sacada. Dei de ombros, tentando soar casual.
— Sabe... — Ele disse, ao me observar com atenção. — Para
alguém que diz me odiar, você não parece querer ficar longe de mim nesta
noite.
— Talvez, no final das contas, eu seja mesmo incrivelmente
estúpida — justifiquei, me referindo à nossa primeira conversa, a qual
tivemos meses atrás naquela mesma sacada. — Vai me responder ou não?
Ele ficou um silêncio por alguns segundos antes de, por fim,
responder:
— É útil para evitar que eu toque em coisas desagradáveis. Por
exemplo, foi extremamente útil na nossa dança agora há pouco.
Ele sugou mais uma vez, sem tirar os olhos de mim. Seu rosto era
completamente neutro e enigmático conforme soprava a fumaça no ar.
Agora que eu sabia da verdade, encará-lo era toda uma nova
experiência. Cada movimento e expressão tinha um novo significado.
Quão forte ele me desejava?
E será que o desejo chegava perto do tamanho do seu ódio por mim?
“A vontade de arrancar o seu vestido.”
As palavras de Willow ecoavam em minha cabeça como uma
melodia sombria.
Dei dois passos em sua direção. Vento bateu contra nós, fazendo
meus fios escuros se movimentarem em volta do meu rosto e calafrios
assolarem a minha pele exposta.
— A ideia de me tocar é tão repugnante assim?
Sarkian se manteve parado, com os olhos fixos em mim. Pensei que,
talvez, a pergunta o levasse a soltar uma risada maldosa ou um comentário
igualmente perverso, mas não foi o que aconteceu. Seu rosto não se moveu,
apenas seu olhar se tornou sombrio.
O que aconteceria se eu me aproximasse mais um pouco?
Se eu o tocasse?
Meu corpo fervia com a ideia de descobrir.
Então, foi o que eu fiz.
Fiquei a cerca de um passo de distância dele. Daquela maneira, eu
conseguia ver a guerra em seus olhos com clareza. O seu desprezo por mim
lutando contra o desejo.
Era violento.
Que azar o meu, concluí. Era um perigoso campo de batalha para se
estar bem no centro.
Mas estaria me enganando terrivelmente se afirmasse que não estava
absolutamente me deliciando com aquilo. Era quase viciante.
Nunca senti tamanho poder em toda a minha vida.
A lavena caiu de seus dedos; a pequena chama se apagando ao
encontrar o chão. Ele inclinou o rosto, aproximando a boca da minha
orelha, mas sem me tocar.
Senti o calafrio novamente, mas, dessa vez, não era devido à brisa.
Seu hálito bateu contra a pele da minha bochecha.
— Ah, farren... — Ele murmurou com a voz rasgada. — Você não
faz ideia.
Minha respiração ficou presa.
E foi quando eu soube que aquele era o momento.
Aproveitei a aproximação e o fato de ele não ter visão do meu corpo
por completo para retirar a navalha presa à minha coxa, que eu tinha acesso
pela fenda do vestido.
Assim que ele começou a afastar o rosto, puxei o objeto e o ergui
em sua direção. A lâmina ficou a cerca de um centímetro de sua garganta.
Os olhos de Sarkian brilharam em minha direção ao reconhecer o
objeto e o que eu estava prestes a fazer com ele.
Apesar de estar extremamente nervosa, saboreei o momento. Nunca
teria outro tão satisfatório quanto aquele.
Mas, então, ele fez a última coisa que eu imaginei que faria.
Sarkian riu.
Uma risada rouca que ecoou pela noite e gerou calafrios por todo o
meu corpo.
O braço erguido que segurava a lâmina tremia. Meu coração batia
descontrolado ao observá-lo.
Agora. Empurre, Cera.
Empurre.
Seus olhos pratas zombavam de mim. Havia uma mistura perversa
de desafio e diversão.
Vamos, farren. Faça.
E, então, eu fiz. Movimentei a lâmina para frente.
Mas, no instante antes que ela tocasse a sua pele, Sarkian se
movimentou também. Foi tudo tão rápido que não compreendi o que estava
acontecendo.
Antes que eu pudesse piscar, ele tinha uma de suas mãos no meu
punho, afastando a lâmina. Sua outra mão agarrou meu pescoço, fechando
seus dedos contra a minha pele.
O ar deixou os meus pulmões.
Naquele momento, eu entendi que Sarkian Varant me tinha sob
completo controle.
Ele girou e me empurrou contra a parede da varanda. Minhas costas
se chocaram contra o cimento com violência. A lâmina soltou da minha
mão e caiu, fazendo um barulho agudo ao bater contra o chão.
Fechei os olhos quando senti a dor atravessar a minha espinha.
Quando voltei a abri-los, encontrei o prata me fitando. Suas íris
nunca estiveram tão escuras.
Tentei engolir em seco, mas seu aperto não permitia.
Ele iria me matar.
Sarkian Varant, finalmente, faria aquilo que havia prometido.
Ele apertou mais, inibindo a minha respiração.
Levei a minha mão livre em direção ao seu punho, desesperada para
aliviar seu aperto, mas seu braço era sólido como o cimento no qual ele me
imprensava.
O rastro de um sorriso sádico ainda pendia em seus lábios, mas a
diversão não alcançava seus olhos. O prata nunca me pareceu tão
aterrorizante quanto naquele instante.
Eles queimavam.
Meus olhos lacrimejaram.
Foi quando entendi que seu rosto iluminado pela luz suave da lua
seria a última coisa que eu veria.
Tão belo. Tão cruel.
Pisquei lentamente e uma lágrima grossa escorreu pela minha
bochecha.
Sarkian a observou descer pela minha pele; o sorriso, aos poucos,
deixando seus lábios. Sua mandíbula tensionou conforme ele me analisava
com uma atenção desconcertante.
Era eu que estava sendo sufocada, mas era Sarkian que parecia estar
sentindo dor.
Quando achei que estava prestes a desmaiar, muito vagarosamente
seu aperto suavizou.
Mas ele não me soltou.
Com a mão ainda em meu pescoço, Sarkian inclinou seu rosto. Senti
a sua respiração na minha pele e, então, com suavidade extrema, seus lábios
tocaram a pele do meu rosto. Foi como um choque, que causou arrepios por
todo o meu corpo.
Mesmo com pouquíssimo ar, prendi a respiração.
Sem qualquer pressão, ele arrastou os lábios pela minha bochecha,
seguindo o caminho que a lágrima há pouco havia feito.
Fechei os olhos.
Foi um toque tão angelical e quase sem nenhum contato, que me
perguntei se realmente havia acontecido. Mas foi tão elétrico que decidi que
não podia ter sido apenas imaginação.
Abri meus olhos.
Por um instante que durou uma eternidade, achei que ele fosse
recuar.
Mas ele não o fez.
Sarkian arrastou a ponta do nariz com a mesma suavidade dolorosa,
até ficar emaranhado contra meus fios. Ele inalou.
E, naquele instante, foi como se ele tivesse sugado toda a minha
alma. Senti-me violada, como se ele a tivesse roubado de mim.
Quando soltou a respiração contra o meu pescoço, senti mais um
calafrio percorrer o meu corpo. Meu coração batia com tanta violência
contra meu peito, que eu podia ouvi-lo. Perguntava-me se ele podia sentir
minha pulsação, já que sua outra mão repousava logo acima do meu peito.
— Você é a criatura... — Sarkian arrastou os lábios de próximos à
minha têmpora até parar a cerca de um centímetro da minha boca e, quando
soprou, foi como se eu bebesse as suas palavras — mais desprezível que já
conheci.
E aquela foi a última coisa que ele disse antes que eu me
aproximasse e colasse meus lábios nos seus.
Porque
para o Rei das Trevas
a ideia de tocá-la era aterrorizante
Mas não o fazer era ainda pior
capítulo 32

Foi suave, mas, ao mesmo tempo, como uma colisão desastrosa.


Porque, no momento em que senti nossos lábios juntos, uma explosão
eclodiu dentro de mim.
Um encontro tão violento e tão suave na mesma proporção, que
pensei que, talvez, morrer fosse algo parecido com aquilo.
Um toque conflitante de paz absoluta contra um arredor de caos.
Houve um fio de dor, quase como um choque. Começou nos meus
lábios e cruzou até cobrir todo o meu corpo.
Durou um segundo em que nenhum de nós se moveu. O mundo ao
redor de nós também congelou. O silêncio da noite era absoluto.
Naquele um segundo breve e, ao mesmo tempo, eterno, toda a
minha vida cruzou em minha mente, como se todo o meu passado se
resumisse àquele momento.
Até que os lábios de Sarkian Varant se moveram.
Sua mão ainda jazia no meu pescoço, mas, agora, não era um aperto
violento.
Sua boca entreabriu, pegando o meu lábio inferior. Senti a sucção
antes de sua língua se arrastar.
Minhas pernas fraquejaram.
E, agora, seu aperto era mais do que bem-vindo.
Era necessário.
Eu queria mais dele.
Porque, da mesma maneira que minha mente queria empurrá-lo,
meu corpo o puxava.
Eu estava prestes a erguer a minha mão livre para tocá-lo, quando
senti seus dentes contra o meu lábio inferior. Ele mordeu a carne com força.
A dor atravessou a minha espinha, se fundindo com a onda de
desejo que ainda emanava. Um som rouco e quase inadiável deixou a minha
garganta.
Do mesmo jeito que a dor foi um choque, não fiquei surpresa.
Porque Sarkian não sabia não me machucar.
Ele estava me punindo por me querer. Estava me punindo por me
querer ainda que, há menos de um minuto, eu havia tentado matá-lo.
Senti meus olhos lacrimejarem assim que ele soltou.
Coisas belas demais tendiam a machucar. Você precisaria tomar
muito cuidado com os espinhos ao pôr as mãos em uma rosa.
Quando a sua língua invadiu a minha boca com uma fome
devastadora, permiti a sua entrada. Nossas línguas travaram uma batalha
sincronizada.
Mas não esqueci do ferimento. Retribui a mordida, pegando seu
lábio entre os dentes na primeira oportunidade que tive. Apertei até ouvir o
som rouco deixando a sua garganta, mas ele não se afastou.
Porque, no final das contas, eu também não sabia não machucá-lo de
volta.
Sarkian apertou um pouco mais a mão contra o meu pescoço, mas
seus lábios não deixaram os meus. Minha mão esquerda agarrou a base de
seu pescoço.
Até que senti o gosto metálico inundar a minha boca.
Sarkian estava sangrando.
Naquele exato momento, como se tivesse tomado consciência do
fato ao mesmo tempo que eu, Sarkian recuou. Ele me soltou e seu corpo me
abandonou de forma tão repentina que o vazio foi quase insuportável.
E foi quando vi.
Ao fitá-lo, meus olhos foram diretamente até sua boca, que
sangrava.
O choque foi tão grande que, por um momento, achei que realmente
minhas pernas fossem me deixar na mão. A respiração ficou presa quando o
entendimento bateu.
Sarkian Varant sangrava escuridão.
O líquido metálico que escorria de seu lábio inferior e que eu ainda
podia sentir em minha própria boca era negro como a noite.
Sarkian notou o choque em meu rosto e o analisou com uma atenção
desconcertante.
Eu abri a boca, mas foi difícil fazer as palavras saírem.
— Você é…
Mas não cheguei a terminar a frase. A minha voz foi silenciada pela
explosão.
Os grilos cantavam
e as estrelas reluziam
Mas
no momento em que os lábios da Usurpadora de Sangue
tocaram os do Rei das Trevas
até a lua parou para observar
capítulo 33

três horas antes

— Você tem certeza de que isso vai dar certo? — perguntei,


agachada ao lado de Vesper.
Estávamos no subsolo do palácio, uma passagem apertada e um
tanto precária que foi construída para casos de emergência, como se a
Família Real e pessoas importantes num geral precisassem evacuar o local
às escondidas em algum momento.
Mal dava para ouvir a movimentação lá em cima; dos criados
preparando o salão para o grande jantar.
Vesper estava concentrado nos explosivos espalhados pelo chão e
não me encarou ao responder:
— Tenho 85% de certeza.
— Ah, ótimo. E o que acontece na margem dos 15%?
Aquela seria a nossa distração. Cerca de cinquenta litros de uma
substância amarelada altamente inflamável e corrosiva que, ao encontro dos
explosivos, destruiria parte do castelo.
A ideia havia sido de Vesper. A maior parte da fortuna de sua
família vinha de minas. Desde garoto, ele via os homens do seu pai
adentrarem os solos da mesma forma para explorar. Havíamos roubado todo
aquele material do armazém dele.
Ele olhou para mim e para Willow, que estava encostada na parede.
Mantendo-se afastada, como se aqueles passos de distância fossem fazer
alguma diferença, caso Vesper ferrasse com as coisas.
— Todo mundo aqui explode.
Willow soltou um palavrão e eu apenas murmurei:
— Excelente.
Ele trabalhava com cuidado, os dedos longos e ágeis mexendo nos
fios com uma delicadeza cirúrgica.
— O que eu daria para ter um copo de uísque agora... — Ele
comentou, logo antes de limpar uma gota de suor que escorria pela testa.
Quando terminou, eu e Willow soltamos em conjunto um longo
suspiro de alívio.
Nós três nos afastamos dos explosivos, até pararmos na pequena
porta que separava o subsolo do primeiro andar do castelo. Virei-me para
eles antes de tocar na maçaneta.
— Ok. — Encarei os dois e respirei fundo. — Recapitulando. Assim
que Sarkian sair para a sacada sozinho, vou segui-lo. Enquanto isso, Vesper
vai descer para acionar o primeiro explosivo abaixo do salão de joias.
Imaginando que é uma tentativa de roubo, grande parte dos soldados virá
até aqui verificar. Mas grande parte também irá cercar o rei, para protegê-lo
de qualquer perigo. Como o planejado, parte desses soldados serão os de
DeLarosa. E o segundo explosivo que Vesper acionar será a deixa para que
eles ataquem os outros soldados que ainda estiverem por lá. Assim que o
fizerem, Willow e eu iremos fechar as portas do salão para evitar a entrada
dos outros guardas que souberem do ataque ao rei. Porque, até lá, eles
provavelmente já vão entender que não era um roubo, e sim uma distração.
Dentro do salão, eu vou me aproximar da Família Real e, quando tiver
algum tipo de abertura, irei matar e roubar a coroa do rei.
Saindo da minha boca, aquilo parecia uma completa loucura.
Mesmo que tivéssemos ensaiado e planejado por semanas.
Nós nos encaramos por um longo momento, como se estivéssemos
digerindo as palavras ao mesmo tempo em que tomávamos coragem.
— Moleza — comentou Vesper, quebrando o silêncio tenso.
Willow suspirou fundo.
— E se algo der errado? — indagou ela.
— Nós continuamos, como o planejado.
Tínhamos elaborado “planos B” para cada passo.
Porque era isso que tornava um golpe bem-sucedido: estar
preparado para qualquer falha no caminho.
— E se, mesmo assim, der errado... Bem... — Fiz uma pausa, com
dificuldade de falar o que todos nós já sabíamos.
— Nós morremos. — Vesper fez questão de concluir.
Willow riu.
Mas foi uma risada nervosa e estranha, que tornou seu rosto
delicado em uma careta.
— Puta que pariu, que loucura.
Vesper e eu nos entreolhamos e, de alguma forma, uma risada
também escapou de nossas bocas. Foi um momento triste, porém
engraçado, em que decidimos rir do nosso terrível — e possivelmente fatal
— destino.
Até que, por fim, os sorrisos deixaram nossos rostos, nos obrigando
a encarar o que viria em seguida.
Virei-me, mas Vesper segurou o meu pulso antes que eu empurrasse
a porta. Girei a cabeça para encontrar seu olhar.
— Sabe que sua família provavelmente vai estar lá, não é?
Ele se referia ao momento de ataque. O salão viraria um campo de
batalha do qual muitas pessoas sairiam feridas e mortas.
Eu pisquei apenas uma vez antes de responder:
— Sim, eu sei.
Mas a verdade era que eu não tinha família. Não mais.
Ao adentrar o salão, eu estava morrendo de medo. Eu não disse a
eles, mas a parte que mais me aterrorizava não era trair a coroa.
Não era prender os nobres no salão, nem mesmo enfiar uma lâmina
no Rei de Umbra.
O que mais me aterrorizava era a ideia de matar Sarkian Varant.
E, ironicamente, era também a parte pela qual eu mais ansiava.
capítulo 34

O barulho, assim como o sutil tremor do piso, me fez sair do estado


de choque.
Eu pisquei em direção ao Sarkian parado em minha frente, ainda me
fitando. A explosão o pegou de surpresa, mas seus olhos não deixaram os
meus por muito tempo.
Passei a mão pelos meus próprios lábios, ainda sentindo o seu gosto
em minha boca. Encarei a ponta dos meus dedos, como se estivesse me
certificando de que eu não estava completamente louca.
Eu não estava.
Minha pele estava manchada com sangue escuro como a noite.
Sarkian Varant era um caído.
Ao mesmo tempo em que aquilo era chocante, de alguma forma,
explicava muita coisa. Sua aparência, seu magnetismo, até mesmo sua
forma de se mover... Ele nunca foi comum, soube disso no instante em que
botei meus olhos nele pela primeira vez. Sempre houve algo a mais sobre
ele, algo beirando ao divino.
Sarkian fez menção de dar um passo à frente. Não sabia ao certo
com qual intenção, mas não fiquei para descobrir.
Eu corri.
Distanciei-me dele e atravessei o corredor às pressas.
Um caído.
Ele era um caído.
Não parei. Olhei para trás, para ver se Sarkian estava me seguindo,
porém, estava sozinha no longo corredor.
Foco, Cera.
Você tem um trono para tomar.
Conforme me aproximava, o barulho do caos ficava mais alto.
Eu precisava chegar lá antes da segunda explosão, para poder fechar
as portas antes que os reforços chegassem até o rei.
Você tinha que tê-lo matado, Cera.
Você falhou.
Assim que virei no corredor, avistei os soldados correndo em
direção à explosão.
Ótimo, a distração havia dado certo. Pelo menos, uma parte do
plano tinha sido um sucesso.
— Cera!
Willow surgiu no meu campo de visão, parada ao lado de uma das
portas altas.
Ela começou a puxar antes que eu chegasse até lá.
Assim que os homens começassem a lutar no salão, as pessoas iriam
fugir, tentando atravessar as grandes portas principais e nos
impossibilitando de fechá-las.
Parei ao lado de Willow no momento em que a segunda explosão
ocorreu. O impacto foi mais forte do que eu imaginei que seria, chegando a
fazer o chão tremer. Pensei em Vesper e torci para que ele tivesse feito tudo
certo e estivesse longe o suficiente da explosão.
As espadas se ergueram no salão. Escutei o barulho metálico, mas
não parei para observar. Agarrei a outra porta e comecei a puxar. A madeira
era pesada e longa, e tive que jogar o meu peso contra ela. Pela visão
periférica, notei que Willow fazia o mesmo.
Conseguimos fechar. Agora, precisávamos tornar impossível de
abrir novamente.
— Rápido, Willow! — gritei, ao me virar e notar dezenas de nobres
desesperados correndo em nossa direção, tentando fugir.
— Abram as portas! — Um deles ordenou.
Willow tirou o frasco do bolso e jogou o líquido corrosivo nas
maçanetas. Quando eles chegaram até nós, o ácido já queimava a única
forma de abrir as portas.
— O que estão fazendo?! — Ouvi, ao me virar.
Já estava correndo em direção ao caos do salão quando eles
começaram a empurrar as portas.
— Socorro! Nos tirem daqui!
Mas eles demorariam, pelo menos, cerca de dez minutos até
conseguirem derrubá-las. O que teria que ser o suficiente para que eu
chegasse até o rei.
Os gritos tomaram conta do lugar.
Eu não conseguia ver a Família Real. Soldados os rodeavam,
formando um círculo de proteção contra os ataques dos homens de
DeLarosa. Alguns corpos já jaziam no chão.
Uma mulher me empurrou conforme corria em completo desespero.
Desequilibrei-me e caí no chão. Decidi que o mais seguro a se fazer naquele
momento era me esconder debaixo da mesa até conseguir avistar o rei.
Arrastei-me até estar sob a longa mesa de madeira e notei outras pessoas
escondidas ali também. Senti uma pontada aguda no joelho ao me cortar em
um pedaço de vidro conforme engatinhava.
Os soldados lutavam bravamente para defender o rei, mas os
homens de DeLarosa estavam em maior quantidade e o mais importante:
tiveram o elemento surpresa a seu favor. Ninguém esperava aquela traição.
Poderia apostar que muitas vidas foram tiradas antes mesmo de entenderem
o que estava acontecendo.
Eu os observei cair um após o outro; o círculo se tornando mais
estreito.
Um dos soldados desabou a cerca de centímetros de mim.
Engatinhei até seu corpo. Ele ainda lutava para respirar, mas sangue
espirrava de sua garganta.
Subi a base de sua calça até encontrar uma adaga presa ao interior
da bota. Todos os soldados, além da espada, tinham a segunda arma presa
na base da perna. Era menor e bem mais leve, porém igualmente afiada.
Puxei para fora da bota de couro e estava prestes a me virar quando
senti o aperto em meu braço.
Olhei para a sua mão e, então, para o rosto do homem.
— Me ajude...! — Ele apelou com dificuldade.
Sangue jorrou de sua boca ao dizer as palavras. Tentei me afastar,
mas seu aperto não cedeu. Ele usou suas últimas forças para me puxar
contra seu corpo. Caí em seu peito encharcado de sangue e fiquei tão perto
de seu rosto, que o líquido que espirrava de sua artéria tocou o meu. Senti o
gosto metálico pela segunda vez naquela noite.
Com o braço livre, afundei a adaga que havia roubado em sua
costela.
— Sinto muito — murmurei com verdade em minha voz.
Seus olhos azuis arregalaram e ele arfou uma última vez.
Disse a mim mesma de que estava fazendo um favor a ele ao voltar
engatinhando para debaixo da mesa, com a adaga ensanguentada em mãos.
Ele iria morrer de qualquer jeito.
Apenas acelerei o processo, poupando-o da dor.
De alguma forma, eu não temia. Achava que era devido à
adrenalina. Não sentia nenhum membro do meu corpo conforme ela pulsava
em minhas veias.
Era como se nada pudesse me ferir ou derrubar.
Eu estava tão perto agora.
Observei o centro do salão. Eu já era capaz de avistar a Família
Real. Era visível o pavor em seus rostos conforme se apertavam no centro
do círculo.
Eu tinha que me atentar ao tempo. O instante tinha que ser perfeito.
Porque precisava ser eu a matar o rei. Com as minhas próprias
mãos. Precisava do seu sangue em meus dedos ao tocar a coroa. Só assim,
eu seria uma rainha legítima. Se eu esperasse demais, alguém poderia fazer
antes. Duvidava muito que qualquer um daqueles soldados não tinha algum
nível de desejo de se tornar um rei dada a oportunidade.
Um impacto forte quase derrubou a porta do salão.
Mais soldados.
O reforço havia chegado para proteger o rei. E eles estavam muito
próximos de conseguir entrar.
O suor colava o vestido fino ao meu corpo. Posicionei-me e, no
momento em que o Príncipe Wilmot caiu no chão com uma espada enfiada
no coração, eu soube que era o momento de agir.
Porque o próximo seria o rei.
Engatinhei para fora da mesa e me ergui. Tropecei em corpos no
caminho conforme avançava em direção ao rei.
Eu precisava chegar nele antes que o círculo de proteção se
desfizesse e os homens de DeLarosa o alcançassem. Eu não confiava em
nenhum deles, não sabia de suas intenções e ambições. Dada a
oportunidade, qualquer um deles ali poderia resolver matar o Rei Boran
com as suas próprias mãos. E, assim que a lâmina entrasse, quem quer que a
estivesse segurando se tornaria rei. Era a tradição. Era a religião. Era a
única forma de alguém se tornar rei sem que fosse pela sucessão.
De repente, fui puxada tão brutalmente que tropecei. Só não caí
porque o mesmo soldado que me puxou ainda tinha seus dedos fortemente
presos em meu braço.
— O que está fazendo?! — Ele indagou, com o rosto extremamente
próximo ao meu.
Era alto e forte. Seu nariz estava sangrando e havia suor em sua
pele. Sem dúvidas, tinha acabado com alguns homens antes de chegar até
mim.
— Me solta! — exclamei, puxando meu braço de volta.
Ele não cedeu. Muito pelo contrário, apertou mais forte e me
arrastou consigo.
— Por que está indo em direção ao rei com essa adaga?!
Abri a boca para responder, mas sabia que era inútil. E meu tempo
estava acabando. Ele era um obstáculo do qual eu precisava me livrar.
Dei um chute entre suas pernas. Não sabia se tinha acertado
exatamente onde pretendia, mas o golpe foi o suficiente para surpreendê-lo.
O soldado soltou a minha mão do braço que eu segurava a faca e me deu
uma oportunidade. Finquei a lâmina em seu ombro, e o rugido que deixou
seus lábios foi de arrepiar. Ergui a lâmina novamente, mas, dessa vez, ele
bloqueou com a própria espada. Com o impacto forte, a adaga caiu da
minha mão. E, antes que eu pudesse tentar recuperá-la, fui empurrada pelas
costas de outro soldado que batalhava.
Por pouco, não caí. Mas a colisão deu a chance para que o meu
oponente me acertasse. Ele me deu um soco tão forte, que perdi o
equilíbrio. Pensei que fosse cair, mas suas mãos estavam em meus ombros
antes que eu fosse de encontro ao chão.
Ele me fitou com sangue no olhar.
— Quem é você?! — Ele exigiu tão alto e tão próximo, que sua
saliva atingiu meu rosto. — Faz parte desse ataque?!
Pisquei algumas vezes e engoli em seco.
A dor que irradiava do meu nariz era cegante.
— Faz parte desse ataque?! — Ele repetiu, ainda mais alto dessa
vez.
Ofegante, fiz uma tentativa:
— Sou apenas uma dama tentando… fugir dessa confusão!
Ficou claro que ele não acreditou. O homem me observou por,
talvez, dois segundos antes de me jogar por cima do seu ombro como se eu
pesasse menos do que um saco de arroz.
Com isso, meus pés deixaram o chão novamente e me vi nas costas
do soldado. Ele se afastou do núcleo da batalha, me carregando consigo.
Óbvio que suspeitava de mim e estava me levando para que mais tarde
fosse interrogada.
Debati-me e contorci-me desesperadamente, mas nada funcionou.
Estava me afastando do meu alvo, já não tinha mais o rei à minha vista. E, a
cada segundo que se passava, estava mais próxima de falhar.
Por mais que eu tentasse de tudo, era em vão. Estava desarmada, e o
homem era uma parede de músculos treinada para matar.
Espadas batiam e gritos ecoavam ao nosso redor. Corpos caíam e
destinos eram selados.
Fui carregada para longe.
Para longe do rei.
Para longe da guerra que eu mesma comecei.
Para longe da esperança.
Estava tudo acabado.
Naquele momento
ela estava tão perto de se tornar a Usurpadora
e ao mesmo tempo
tão perto
de perder
absolutamente
tudo
capítulo 35

Senti um golpe seguido de um som estranho deixando a boca do


homem que me carregava.
Em um momento, eu estava nos ombros do soldado e no outro,
estava no chão. Caí com parte do peso do homem sobre minhas pernas,
ofegante e estupefata. Ao olhar para cima, encontrei o rosto familiar me
fitando.
— Feliz em me ver, hum?
Vesper segurava o que parecia ser um candelabro de ouro na mão
direita, o qual eu suspeitava que havia sido a arma usada para acertar o
soldado. E bem forte, pelo jeito, já que o homem ainda não havia se
movimentado.
Vesper se inclinou e me ajudou a ficar de pé.
Tive a esmagadora vontade de abraçá-lo e chorar. Talvez, já
estivesse chorando e não sabia. A adrenalina anulava qualquer sensação que
tinha em meu corpo.
De fato, acreditava que nunca tivesse ficado tão feliz em ver alguém
como naquele instante.
Mas, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvimos:
— Ei!
A cerca de dez metros de nós, havia dois soldados do rei nos
fitando. Eles olharam para o homem que Vesper acabara de acertar e
avançaram em nossa direção.
Vesper pegou a minha mão, e nos viramos em disparada. Olhei ao
redor, tentando ver se conseguia avistar o rei por entre os corpos. Talvez, já
fosse tarde demais.
— Por aqui! — Vesper me puxou pela mão.
Eu conseguia ver a saída e pensei que era para lá que Vesper
estivesse nos levando mas, de repente, ele parou. Vesper me puxou, e eu
estanquei de forma tão abrupta que levei um susto.
— O que está fazendo?! — indaguei, confusa.
Olhei para os homens atrás de nós. Eles estavam muito perto.
Vesper se virou na direção dos soldados que nos seguiam e tirou a
espada da cintura.
Pisquei, confusa e chocada.
— Vesper! Está maluco? São cinco deles e dois de nós!
Contudo, ele não olhou para mim, apenas se manteve com a espada
em posição. Mas eu conseguia ver o suor que escorria por sua têmpora,
também conseguia notar seu peito subindo e descendo violentamente
devido à respiração descompassada.
Agachei-me e peguei a espada de um soldado caído ao meu lado.
Droga, já estávamos mortos mesmo. Pelo menos, morreríamos
lutando.
Deparando-se com o alvo encurralado, os soldados pararam e nos
fitaram com as espadas erguidas.
— Acabou! — Um deles falou. — Abaixem as espadas!
Vesper e eu não obedecemos, e começamos a recuar conforme eles
foram se aproximando. Aos poucos, mais soldados se juntaram a eles.
— Vesper... — Eu murmurei em um sopro que soou muito como um
apelo.
Agora, eram oito deles contra dois de nós.
Estávamos completamente acurralados. Atrás de nós, só havia
tijolos.
Estava desesperada para que Vesper me dissesse que tinha algum
plano milagroso porque eu não tinha a menor ideia de como nos tirar dali
vivos. Mas tudo o que ele disse foi:
— Espera.
— O quê?!
Porém ele não respondeu. Com a mão livre, Vesper pegou a minha,
e nós recuamos devagar, ainda com as lâminas erguidas, conforme eles nos
cercavam como animais. Mas não havia para onde ir. Em breve, nossas
costas encontrariam a dureza da parede.
Meu coração batia tão alto que o nosso arredor barulhento se tornou
um som distante.
Eles estavam a menos de quatro metros de nós.
— É a sua última chance! — anunciou o soldado à frente do grupo.
Ele estava tão perto agora, que eu conseguia ver perfeitamente o verde de
seus olhos. — Abaixem as espadas!
Minhas mãos tremiam e meu corpo estava exausto. Daquela forma,
eu mal conseguiria lutar contra um soldado. Quem diria oito deles.
Eu não podia acreditar que havia chegado tão perto para morrer
daquele jeito. Perguntei-me se havia valido a pena. Perguntei-me se aquele
dia seria lembrado pelas próximas gerações.
Pensei em Rafe. Pensei em minha mãe.
— Só… — ao meu lado, a voz de Vesper saiu em um sopro —
espera.
— Esperar o…?!
De repente, eu estava caída no chão outra vez. A explosão repentina
fez meu ouvido zumbir e, por um instante, eu não conseguia ouvir e nem
enxergar nada. Pisquei várias vezes, tentando entender o que havia
acontecido.
Quando finalmente minha visão se ajustou, notei que parte do
castelo simplesmente havia… caído.
Parte da torre em que estávamos, ao sul do salão, explodiu. E os
soldados… Eu conseguia ver dois deles caídos sobre o piso que ainda não
havia cedido, mas o resto tinha simplesmente desaparecido. E eu poderia
apostar que, se olhasse para baixo, os veria. Ou, pelo menos, o que havia
sobrado deles.
Virei para meu lado direito, onde Vesper se encontrava segundos
atrás, mas me deparei com vazio. Eu estava sentada sobre uma fina porção
de piso que, por pouco, não havia cedido. E estava completamente sozinha.
Um bolo se formou na minha garganta, e eu estava prestes a gritar
seu nome quando ouvi:
— Cera!
O som vinha de baixo. E, ao procurar, a primeira coisa que avistei
foram seus dedos. Vesper estava agarrado à parte do piso que havia
rachado; estava suspenso no ar, com apenas os braços o sustentando.
Murmurei seu nome em meio a um suspiro de choque e estiquei a
minha mão para pegá-lo.
Seu olhar arregalado era puro desespero.
— Não olha para baixo! — Eu exclamei.
Se ele o fizesse, veria os corpos destroçados dos soldados metros
abaixo.
Naquela posição, e já exausta, Vesper parecia pesar toneladas para
mim. Por sorte, ele colocou todas as suas forças nos braços e, em um
impulso, eu consegui puxá-lo.
Ele se jogou no chão, ofegante e com uma das mãos sobre o peito.
Seu rosto estava todo sujo e parte da sua camisa tinha rasgado.
Segurei seu rosto em minha mãos, e ele tossiu um par de vezes.
— O que foi isso?! — Eu indaguei, de joelhos ao seu lado.
Ele respirou algumas vezes antes de finalmente falar e, quando o
fez, havia um brilho arrogante em seus olhos.
— Explosivos estrategicamente posicionados. Me agradeça mais
tarde.
Eu pisquei, incrédula.
Foi por isso que ele havia me arrastado até ali. Ele atraiu os
soldados para onde havia posto mais explosivos. Quase nos matou junto,
mas, definitivamente, se livrou daqueles homens.
Vesper se sentou ou, pelo menos, tentou. Uma careta de dor tomou
seu rosto com o esforço, e ele colocou a mão sobre a perna direita.
Eu estava prestes a abrir a boca, quando um barulho quase tão alto
quanto a explosão eclodiu. Levantei a cabeça e olhei para o lado oposto do
extenso salão.
Os soldados do rei haviam arrombado a porta e só não estavam
entrando aos montes, porque a porta caiu sobre os nobres que se
encontravam do outro lado, tentando sair. Eu conseguia ver os corpos no
caminho sendo pisoteados na tentativa desesperada de os soldados de
chegarem até o rei.
— É agora ou nunca! — Vesper apontou, me fitando.
Por um milagre, o Rei Boran ainda estava de pé. Eu sabia disso, pois
um minúsculo círculo de soldados ainda resistia no centro do salão.
Eu ainda tinha chances de chegar até ele antes que algum outro
homem o fizesse.
Mas as chances eram pequenas.
Se alguma outra pessoa o matasse, seria tarde demais. E se os
soldados que arrombaram a porta retomassem o controle e o salvassem,
estaria tudo perdido.
— Você vai ficar be…? — Comecei a perguntar, mas ele me
interrompeu.
— Vai logo!
Levantei-me e atravessei pela fina camada do piso que havia
resistido até a outra parte do salão que não tinha sido afetada pela explosão.
Lá, no centro do salão, os homens lutavam e caíam uns por cima dos outros.
Peguei uma adaga que estava caída ao lado de um dos soldados sem
vida. E, quando comecei a correr, precisei desviar dos corpos que jaziam ao
chão. Havia poucos homens de pé agora.
A rainha estava morta, consegui ver pelo cabelo longo e branco
espalhado pelo piso. E o círculo de homens que protegia a Família Real
rachou, permitindo que um dos homens de DeLarosa avançasse em direção
ao rei.
Os soldados que arrombaram as portas também estavam cada vez
mais próximos do rei.
Apertei o passo.
O homem o golpeou, mas o rei se protegeu com os braços. O
impacto o fez tropeçar. Ele caiu no chão, levando o soldado consigo. Os
dois rolaram pelo piso, e eu parei, sem fôlego e com o coração quase saindo
da boca quando o soldado o dominou e ergueu a espada.
A adaga estava em minha mão, mas ainda não se encontrava
erguida. Eu não queria ser considerada uma ameaça ao me aproximar.
A intenção era que me vissem como uma cidadã qualquer,
desesperada.
Porque me subestimar seria o último erro que iriam cometer.
Agachado e com os olhos sedentos no rei, o soldado não me viu
chegar por trás. Finquei a faca próxima à sua nuca. Assim que a tirei, o
corpo despencou ao lado do rei.
Os olhos do rei encontraram os meus. Surpresa e alívio tomaram sua
expressão ao me ver. Era claro seu o agradecimento. A genuinidade quase
me fez hesitar.
Quase.
O momento levou cerca de dois segundos, mas pareceu uma
eternidade. O rei começou a se movimentar. Eu lhe ergui a mão, como se
fosse para ajudá-lo, e ele a pegou sem pestanejar.
Naquele instante, não senti tanto pavor quanto acreditava que
deveria. Aquela sensação me surpreendeu.
Eu nunca me considerei alguém especialmente corajosa. Pelo
contrário, na verdade. Muitas vezes, sentia que o medo me travava. Mas
tudo bem, afinal, era o medo que nos mantinha vivos. Era por isso que
heróis corajosos demais tendiam a morrer muito cedo.
A questão era: eu não era uma heroína.
Eu era uma traidora.
Com a mão direita, eu o puxei até que estivesse de pé. E, com a
esquerda, enfiei a lâmina em sua barriga.
Assisti seus olhos se arregalarem em puro choque. Depois de um
espasmo, ele caiu sobre mim, como em um abraço de morte. Sustentei seu
peso por apenas o tempo em que levei para sussurrar em seu ouvido:
— Que os Deuses que tanto ama te façam pagar por tudo o que fez.
Os sons dos gritos e das espadas se chocando, de repente, cessaram.
Eu arranquei a lâmina de seu estômago no instante em que dezenas
de soldados nos cercaram.
Mas já era tarde demais.
Com a mão direita, tirei a coroa de sua cabeça antes de deixar o peso
de seu corpo escorregar até meus pés.
E, quando me virei, me deparei com um salão paralisado.
O chão estava repleto de corpos. Mesas viradas e sangue escorrendo
até das paredes.
Mas não foi isso que me fez engolir em seco, foi o fato de que os
olhos de absolutamente todos os homens que ainda estavam de pé estavam
fixados em mim.
Eu segurava a coroa na mão direita com tanta força que sentia as
pontas metálicas machucando a pele sensível da minha palma.
Soltei a lâmina e, com ambas as mãos, ergui a coroa até a minha
cabeça.
Encontrei os olhos dele assim que senti o peso do objeto no topo da
minha cabeça.
Sarkian se encontrava nos fundos do salão, as costas apoiadas na
parede e as mãos nos bolsos da capa preta. Ele usava a máscara e, apesar de
não conseguir ver a sua expressão, sentia seu olhar queimando conforme
me fitava.
Os soldados mascarados de sua guarda pessoal estavam lá, ao seu
lado, prontos para qualquer coisa.
Ele poderia muito bem mandá-los atacar os poucos homens que
sobraram de DeLarosa. E eu poderia fazer o mesmo com ele.
Mas nenhum de nós se moveu.
Foi apenas quando uma gota escorreu pela minha testa e manchou a
minha visão de vermelho que tive consciência de como eu estava.
Olhei para baixo.
Meu corpo todo estava banhado de sangue; meus braços, roupa,
cabelo.
Meu vestido, antes branco, agora vibrava em escarlate.
Quando ergui o olhar, os nobres e os soldados restantes começaram,
um a um, como em um efeito dominó, a se ajoelhar diante de mim.
Ao encarar o fundo do salão, onde há pouco Sarkian estava
encostado, me deparei com vazio.
Ele não estava mais lá.
capítulo 36

Assim que souberam sobre a tomada do trono, o restante dos


soldados e vários cidadãos se posicionaram em frente ao palácio.
Havia um barulho alto vindo da multidão do lado de fora.
— Você precisa se apresentar a eles — explicou DeLarosa. Um
corte feio sangrava em sua mandíbula, mas ele parecia muito satisfeito.
Eu ainda nem havia me sentado no trono. Sentia frio e calor ao
mesmo tempo.
O sangue em meu corpo havia começado a secar e eu estava
descalça.
Vesper e Willow tinham acabado de se juntar a nós. Ambos intactos.
Willow havia se escondido embaixo da mesa e esperado tudo acabar.
Vesper, felizmente, não havia se detonado junto aos explosivos. Estava
apenas imundo e um tanto amarrotado.
Eu segui até a sacada central. Atravessei a divisória entre o palácio e
o exterior.
O sol estava começando a nascer.
Assim que coloquei as mãos na base da sacada e encarei o povo, o
barulhou quase cessou completamente.
Os olhos me encaravam em expectativa. Havia um misto de
confusão, euforia e choque.
Arranhei a minha garganta, tentando não engolir em seco.
— Meu nome é Cera Novak. — A minha voz saiu rouca, mas alta o
suficiente. — Não sou uma herdeira, não sou uma nobre. Sou a mulher que
roubou a coroa do seu antigo rei. Sou uma usurpadora. — Eu pausei por um
momento, segurando o parapeito com força. — Não espero que todos me
amem, nem mesmo que gostem de mim. Mas uma coisa eu prometo: irei
respeitar cada um de vocês contanto que façam o mesmo comigo. Serei
benevolente, mas não fraca. Serei implacável, mas não cruel. Serei
confiante, mas não arrogante. Não sou uma herdeira, não sou uma nobre...
— Engoli em seco e minha voz saiu um pouco mais alta ao exclamar as
últimas palavras: — Sou a sua rainha.
Vento soprou, fazendo voar alguns dos meus fios de cabelo ainda
secos.
Esperei por, talvez, dez segundos, avaliando os rostos que me
encaravam da mesma forma atenta que eu fazia.
Estava prestes a me virar quando comecei a escutar. Iniciou como
um cochicho; eles deferiam as palavras me encarando. Não consegui
entender de primeira. Talvez, fosse o nervosismo ou o sangue que havia
escorrido para dentro do meu ouvido.
— O que estão dizendo? — perguntei ao DeLarosa, que estava logo
atrás de mim.
— Seu título como conquistadora. Não é você quem o escolhe, é o
povo.
Mesmo não entendendo completamente, compreendi que era algo
positivo. Porque, ao mesmo tempo em que estavam gritando em uníssono,
estavam fazendo reverências.
Estavam me aceitando.
Batizando-me.
No instante em que finalmente entendi, ele confirmou.
— Usurpadora. — Ele disse, por fim. — Usurpadora de Sangue.
E agora, rainha?
perguntou Vesper
Ela se virou
O povo ainda exclamava o seu nome
A Usurpadora de Sangue sorriu ao fitá-lo
Um sorriso que dizia
que ela mal havia começado
livro 2 em breve

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