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Copyright © 2021 por Lys Silva

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa
anuência da editora. Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

CRÉDITOS

Edição de texto Ana Mendes @arquelanalivros


Projeto Gráfico Matheus Costa @mcosta.dg
Ilustração Capa Marcos Chavier @chavier_marcos
Apoio @amplifik

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(CÂMARA B RASILEIRA DO LIVRO, SP, B RASIL)
ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

PENNA, Luiza
Todas as vidas possíveis / Luiza Penna.
ePub

978-65-00-27157-7

1. Ficção brasileira 2. Ficção romântica I. Título


21-3003
CDD-B869.8

Tel.: (+55 11) 98309-6886 | @amplifik


Sumário
Nota da autora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Epílogo
Carta aos leitores
Agradecimentos
NOTA DA AUTORA
Olá! É um prazer imenso dividir essa história com você. Para uma experiência ainda melhor com
a história, temos uma playlist! Há uma música para cada capítulo.

E uma informação importante: a história tem um marco relevante que divide duas fases, e com
isso temos uma mudança de narrador.
CAPÍTULO 1

— Sara Campana, tem 5 minutos para descer ou vamos nos atrasar. E você sabe que eu amo me
atrasar — gritei do pé da escada.
— Tô indo, mãe! Fez leite com chocolate para mim?
— Criatura, que dia que eu deixei de fazer? — falei enquanto minha filha descia as escadas.
— Você quer que eu comece uma retrospectiva a essa hora da manhã? — Debochada, irônica,
tipo eu?
— Que drama matinal! Toma logo esse leite. — Ela fazia uma cara sapeca enquanto tomava o
leite. Como eu amava essa menina.

Já no carro, a caminho da escola, Sara tagarelava sobre sua mais nova paixão: hard Rock. Era
horrível, uma gritaria sem fim, mas ela ficava feliz e cada vez mais parecida com pH.
— Eu quero fazer uma tatuagem.
— Sara… Já conversamos sobre isso.
— Ok, meu corpo, minhas regras, mas só depois dos 18 — ela falou num suspiro.
— Só quero que você não se arrependa, você muda tanto o tempo todo, se todas as vezes que
você pediu eu tivesse deixado, você estaria toda rabiscada.
— Como o pH. – Eu, mesmo sem olhar, podia sentir sua cara emburrada.
— Você sabe que não tem nada a ver com isso.
— Eu te amo, sabia? — ela falou e me abraçou quando paramos na porta da escola. — Arrasa
nessa reunião, ok?
— Ok, quando chegar em casa a gente conversa. E eu já desconfiava que você me amava. Te
amo mais que tudo nesse universo — dei um beijo em sua bochecha e a vi sair do carro e
encontrar com suas amigas numa rodinha animada.

Eu a amava demais, e só por isso ia me submeter a essa experiência. Porque ela queria isso.
Depois que a Sara nasceu, passamos por momentos difíceis. Maravilhosos, mas muito duros, em
especial para mim. Ela era uma menina que, por sua maturidade, eu custava crer que só tinha
quase dez anos. Ela realmente não parecia ter sua idade quando conversávamos, mas sua
aparência dizia ser até mais nova e frágil, coisa que ela odiava.
Segui para o meu destino com as mãos suadas. Não ficava nervosa desse jeito desde a
inauguração do Ruiz, meu restaurante. Sou uma pessoa extremamente reservada, não saio da
cozinha do meu restaurante em hipótese alguma. No entanto, convencida por Sara — sim, eu me
deixo convencer por uma menina de quase dez anos com quem me aconselho e é sinceramente um
poço de sensatez — eu, Marcela Campana, aceitei um convite para participar de um programa de
TV, o Bestchef.
Sara, era apaixonada, via edições de outros países, e quando soube do convite ficou
enlouquecida. Me fez ensaiar diversas vezes, me treinou e a cada etapa que eu avançava, ela
ficava mais radiante. Não havia nada nessa vida que eu não faria por ela. Passados todos os
testes, chegamos ao dia da reunião de elenco.
Parei meu carro na emissora, e dez minutos antes da reunião começar já estava na sala
reservada. Passados uns minutos, entrou Clara Modesto. Sara me fez ler tudo sobre ela. Mulher
forte e encantadora, que começou despretensiosamente visitando restaurantes e postando em um
blog e com críticas divertidas, mas sérias, e alcançou um respeitado lugar dentre os críticos de
gastronomia, quero ser amiga dela. Engatamos numa conversa sobre amenidades e logo depois
chegou Eliot Fragalli, um crítico mais famoso que fazia mais uma linha clássica, já o conhecia
junto com Carvalheiro, nosso diretor.
Já passavam das oito, hora marcada para reunião quando Carvalheiro dizia aguardar apenas
pelo outro jurado. Odeio atrasos.
— Se fossemos um avião, teríamos partido sem ele — eu comentava com os meus possíveis
futuros colegas de trabalho.
— Eu só conheci uma pessoa que falava isso sempre para mim.
Mesmo estando de costas, eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Mesmo tantos anos
depois.
— Pelo visto, nada mudou. — Virei a cadeira giratória e dei de cara com ele. Hugo Coelho.
Ele estava pálido, como se tivesse visto um fantasma, lê-se, eu.
Eu sempre acreditei que o veria de novo. Em algum momento na minha vida isso seria
inevitável. Eu estava preparada, não achei que seria hoje. Não achei que seria assim.

Eu estava atrasado, como de costume, e ouvir gracinhas sobre isso fazia parte da rotina, mas
aquele ditado com aquele sotaque? Não podia ser.
Mas era.
Há mais de dez anos não ouvia isso, mas ouvi muitas vezes. Me trouxe uma lembrança boa, que
aqueceu meu coração, mas não tanto quando eu vi que essa frase era dita pela mesma pessoa de
antes. Parecia que haviam se passado muitos minutos em que eu fiquei sem respirar e meu
coração nem mais batia.
Ela estava sorrindo, aquele sorriso lindo... Conseguiu ficar ainda mais maravilhosa. Olhava
diretamente nos meus olhos, como se lesse minha alma, como sempre fez.
— Vocês se conhecem? — perguntou o diretor.
— Sim, sim. Hugo foi meu estagiário há uns mil anos. Te adianto que na época estava sempre
atrasado. Marque com ele sempre meia hora antes e não terá problemas.
Eu não conseguia reagir, ainda estava parado na porta. Um turbilhão de lembranças invadiu
minha memória.
CAPÍTULO 2

ABRIL DE 2004
— Hugo, se fossemos um avião, já teríamos partido sem você — ela me disse sorrindo. — Você
me perturbou durante semanas por essa vaga de estágio, não faça com que eu me arrependa.
— Pode deixar, chef — falei meio sem graça, já constrangido pelo atraso.
Eu a havia conhecido por conta de uma aula que ministrou na faculdade. Chipas. Deliciosas.
Ela e os chipas. Quando descobri que uma das minhas amigas estava fazendo um estágio lá, a
perturbei muito, precisava estar próximo dela. O jeito que ela cozinhava me encantava:
cozinhava sorrindo, com os lábios, olhos, todo seu corpo emanava uma felicidade e amor pelo
que se fazia.
Profissionalmente, eu conseguia tudo o que eu queria dela, nunca havia visto tamanha
disponibilidade e desprendimento. Era uma excelente professora, excelente chef, excelente
cozinheira, era a essência de quem ela era.
Fora os momentos de trabalho, ela parecia indecifrável, uma barreira intransponível. Não
conversava conosco e não aceitava os convites que fazíamos. A primeira a chegar, a última a
sair. Quando não estava na cozinha estava em seu escritório e jamais ia ao salão do restaurante;
mesmo quando solicitada enviava a subchefe.
Eu estagiava no Sara há quatro meses e já não conseguia disfarçar os olhares; todos faziam
comentários. As meninas da cozinha até haviam desistido de mim. Só tinha olhos para a chef. A
chef nem mesmo me olhava a não ser que fosse um assunto da cozinha. Parecia alheia a qualquer
assunto que não fosse sobre o trabalho.
Um final de tarde, quando já tínhamos terminado o mise en place1 do jantar, como de costume
eu estava fazendo minhas palhaçadas e todos riam, fazendo um verdadeiro escândalo.
— Hugo?! Pode vir aqui um minuto? — A chef me chamava da porta de seu escritório. A cara
dela não era boa. Repassei na minha cabeça várias vezes o que eu poderia ter feito de errado. As
palhaçadas não atrapalharam o serviço. Refleti enquanto subia as escadas. Ao entrar na sala, ela
pediu que me sentasse. Engoli seco.
— Semana que vem há um evento ao qual prometi ir e estou terrivelmente arrependida por isso.
— Ela parecia nervosa. Mexia as mãos sem parar.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Prometeu?
— Ah — suspirou pesadamente. — Eu não sei mentir, nem quebrar promessas.
— Precisa aprender, pode ser útil — falei, dando ombros e rindo um pouco. — E por que está
arrependida? — Ela olhou nos meus olhos.
— Não quero ir.
— Por que não quer ir? — Não entendia bem o porquê de ela estar tendo essa conversa
comigo, mas queria aproveitar, nunca a tinha visto tão aberta.
— Porque…
— Não precisa aprender agora como mentir, deixa para treinar em outro momento — eu disse
na tentativa de relaxá-la e deu certo. Ela gargalhou, eu nunca a tinha visto rir daquele jeito.
— Porque eu morro de vergonha.
— De quê?
— De cozinhar na frente das pessoas. — Soltei uma gargalhada sem querer e me arrependi
automaticamente quando vi que seu semblante mudou.
— Desculpa, mas sua cozinha é aberta, todo mundo te vê cozinhando todos os dias.
— Nunca cozinho durante o serviço.
— Nunca?
— Nunca. Pelo visto não presta tanta atenção em mim quanto dizem — ela falou quase em um
sussurro.
— Oi?!
— Nada, Hugo. Bom, a questão aqui é a seguinte: gostaria de saber se pode me acompanhar…
— Claro — interrompi.
— Eu nem terminei de falar, criatura. Calma, Coelho.
— Desculpa, chef.
— O evento é no Rio de Janeiro, sairíamos na quinta à noite, depois do serviço. Na sexta
faríamos alguns preparos, no sábado é o evento e voltaríamos no domingo.
— Sem problemas. Mas por que eu?
— Não posso atrapalhar o funcionamento da cozinha. — Acho que não consegui disfarçar
minha cara de decepção. — Hugo, você é um excelente aprendiz, não vai me deixar passar
vergonha. Sabe há quanto tempo não pico uma cebola? E além disso, com sorte prestam mais
atenção em você do que em mim — disse enquanto foi diminuindo o tom de voz e abaixando a
cabeça, de modo que eu quase não pude ouvir o final.
— Por que prestariam mais atenção em mim do que em você, Marcela? — Nunca a havia
chamado pelo primeiro nome.
— Você é uma figura bem interessante — disse encarando as mãos, extremamente
envergonhada.
— Você me acha interessante, Marcela? — Eu estava me divertindo, ela olhou nos meus olhos.
— Hugo, você é cheio de tatuagens e tem cara de mau, mas faz coisas com delicadeza, digo
comida. Não se engane, por favor. Pode não parecer, mas eu ouço tudo.
— Pode deixar. — Queria parecer não estar decepcionado, mas falhei. — Estarei pronto para
partirmos quinta após o serviço.
— Obrigada, Hugo.

1. Termo francês que significa deixar tudo no lugar, ou seja, tudo pronto para confecção dos pratos do restaurante.
CAPÍTULO 3

2004
A semana passou voando, minha ansiedade estava ao máximo. Já era quinta-feira.
Odeio deixar minha cozinha.
Odeio cozinhar fora da minha cozinha.
Odeio me sentir assim.
Chovia horrores. Olhei na internet: aeroporto fechado, sem previsão de abertura.
O serviço estava quase no fim e em meu escritório consigo imaginar tudo dando errado. Uma
batida na porta e Hugo coloca a cabeça para dentro do escritório.
— Oi — Tentei disfarçar minha cara de preocupação.
— Preocupada? — Ele me lê tão bem.
— Os aeroportos estão fechados, sem previsão para abrir. Eu pensei em ir de carro… — Estou
exausta.
— Eu posso dirigir, você parece cansada.
— Não posso pedir isso a você.
— Você não pediu, eu ofereci. — Ele sorriu para mim e não pude evitar sorrir de volta mesmo
que fracamente.
— Você dirigindo é mais responsável que andando de skate? — Há uns dias tinha chegado todo
ralado. Ele gargalhou.
— Sim, muito mais. — Ele sorriu largo. Era bonito.
— Ok. Obrigada. — Eu realmente estava agradecida, um pouco preocupada e exausta.

Serviço encerrado, todos foram embora. Sinto cheiro de molho de tomate. Desço as escadas e
o vejo cozinhando.
— Você não comeu hoje — ele disse, tirando a massa da água. — A mocinha não vai viajar
sem comer.
— Mocinha? Tem milênios que ninguém me chama assim. Obrigada, estou com fome — falei, e
me sentei na bancada.
— Oh, mocinha, se eu fosse você descia daí, a chef não deixa sentar na bancada — ele falou
rindo, trouxe um prato para mim. Gargalhei.
— Não conta para ela, por favor. Gracias — falei, pegando o prato da mão dele, um pequeno
choque percorreu meu corpo quando nossas peles se tocaram. Acho que ele percebeu, sou
péssima em esconder reações.
— Por mim, assim que terminarmos de comer podemos ir — ele falou, servindo-se. — Olha,
eu vou sentar na bancada, e você não conta para a chef, ok? — Apenas concordei com a cabeça
sorrindo. Ele estava tentando me relaxar. Estava conseguindo.
— Sabe, até que você cozinha direitinho, mocinho — eu disse, desci da bancada, indo até a
pia, onde lavei meu prato e as panelas que Hugo usou. O senti atrás de mim, ele se projetou
sobre mim colocando o prato dentro da pia.
— Lava para mim?
— Ligeiramente abusado, no? — falei, virando-me para ele e me encostando na pia. Ele estava
extremamente perto, ouso dizer, perigosamente perto. Sua mão veio em direção ao meu rosto. Eu
estava em pânico e ele ria. Ria do meu pânico.
— Calma, mocinha. Vou só limpar um pouquinho de molho que tem aqui — disse, enquanto
passava o polegar perto dos meus lábios.
— Hugo… — Cheguei a ficar na dúvida se realmente tinha falado ou só pensado de tão baixo
que saiu.
— Não vou fazer nada que você não queira. Pode ficar tranquila.
— E-eu não quero nada. — Engoli seco.
— Você definitivamente precisa aprender a mentir — ele disse, afastando-se com um sorriso
sacana. — Vou colocar as coisas no carro.
Ele me deixou lá com a respiração irregular. Que raios estava acontecendo comigo? Como ele
conseguia me provocar assim? Esperei uns minutos, peguei minha bolsa e fui para o carro.

Chovia muito, a visibilidade era baixa e raios cortavam o céu.


Eu dirigia da forma mais atenta possível, chovia para caralho com direito a raios e trovões.
Marcela ao meu lado estava em pânico.
— Marcela, você está bem? — perguntei, sem desviar meus olhos da estrada.
— Sim. – Foi o que ela disse, mas não me convenceu.
— Eu já sei que você não sabe mentir, conversa comigo. — Olhei para ela rapidamente.
— Acho que a gente podia voltar, eu mando um e-mail dizendo que não vamos poder
comparecer. Eles vão entender, o aeroporto está fechado. É perigoso. Isso! É perigoso! Vamos
voltar. — ela falava sem parar, totalmente descontrolada.
Parei no acostamento. Tirei meu cinto, tirei o dela. Ela me olhava confusa.
— Ei, mocinha, vira aqui para mim — eu disse, pegando na mão dela. — O que está
acontecendo? Não consigo acreditar que é assim que você é fora da sua cozinha. — Achei que ia
fazê-la rir.
Me enganei.
Logo seus olhos encheram de lágrimas e em poucos segundos ela chorava copiosamente. A
abracei e ela encostou a cabeça em meu ombro. Ela estava sofrendo, e muito, eu podia sentir em
cada soluço que ela dava. Passava a mão em seus cabelos macios e cheirosos, enquanto minha
outra mão acariciava suas costas. Nunca imaginei vê-la numa posição tão vulnerável. Alguns
minutos se passaram e ela foi se acalmando, se afastou de mim limpando o rosto que estava
muito vermelho.
— Desculpa e obrigada — disse visivelmente envergonhada.
— Não foi nada, está tudo bem. Eu não sei o que te apavora nisso tudo, mas eu estou aqui, ok?
Ela apenas assentiu com a cabeça, colocou o cinto e fitou a janela. Coloquei meu cinto, liguei o
carro e prossegui com nossa viagem. Não demorou muito e Marcela pegou no sono. Confesso
que fiquei assustado, preocupado e curioso. Não sabia bem o que fazer, mas queria descobrir o
que a descontrolava desse jeito.

Assim que saímos de São Paulo a chuva praticamente parou, o que me deu mais tranquilidade
para dirigir. Dirigi até uma parada. Cutuquei Marcela que apenas resmungou e nem mesmo se
mexeu. Estava, de fato, exausta. Desci, estiquei as pernas, fui ao banheiro, comprei um lanche e
um refrigerante para mim, e um chá e uma salada de frutas para ela. Quando voltei a encontrei
encostada no carro, cara inchada e de poucos amigos.
— Você me deixou trancada no carro. — Achei que estaria furiosa, mas estava mais para
manhosa.
— Eu tentei te acordar. Está melhor? Comprei um chá e uma salada de frutas para você. —
Sem nem pensar, coloquei umas mexas do cabelo dela atrás da orelha. Ela se arrepiou.
— Obrigada. Vou ao banheiro. Já volto.

Eu não poderia estar mais constrangida. Perdi completamente o controle. Só pensava no clima
esquisito que ficaria no carro. No banheiro lavei o rosto inchado; os olhos vermelhos, uma cara
péssima.
— Eu acho que você pode descansar agora. Eu dirijo.
— Eu não vou deixar você dirigir. — Eu não precisava de uma discussão àquela hora, já
passavam das 3 horas da madrugada.
— Hugo, eu estou bem. Me desculpa por mais cedo. — Tentei transparecer o máximo de calma
possível.
— Não precisa se desculpar, só fiquei preocupado com você. Me conta o que está acontecendo
para eu poder te ajudar. — Eu via a preocupação nos olhos dele.
— Depois — falei, pegando as chaves da mão dele.
Eu queria falar, precisava falar, mas a minha vida toda sofri em silêncio, nem sabia como
compartilhar qualquer coisa. Mas eu estava sufocada.

Hugo estava dormindo quando chegamos ao Rio de Janeiro. A madrugada já estava no fim, em
breve o sol nasceria. Sabia exatamente onde eu queria estar para testemunhar o sol nascendo.
Parei em frente à praia. Hugo dormia. Desci do carro e fui em direção à areia. Me sentei para
contemplar o nascer do sol.
Sempre relacionei o nascer do sol com a nossa pequenez frente aos acontecimentos do
universo. Não havia nada que acontecesse no mundo que fosse capaz de impedir o sol de nascer
e dar início a um novo dia, assim como nada o impediria quando desse a hora de se pôr. Viva o
meio, não há nada para impedir o início ou o fim.
CAPÍTULO 4

Acordei com o céu já dando indícios do sol que em breve nasceria. Estávamos na praia. Saí do
carro, me espreguicei, e fui em direção a ela que sentada na areia fitava o horizonte.
— Você me deixou trancado no carro — falei, utilizando a mesma frase usada por ela.
— Eu tentei te acordar. — Ela deu ombros.
— Você realmente não sabe mentir. — Ela riu. Eu ri.
— Não. Não mesmo. Já esteve no Rio antes?
— Nunca saí de São Paulo.
— Agora já.
— E você?
— Hugo, yo soy filha de um paraguaio com uma uruguaia, nascida no chile e criada na
Argentina, óbvio que já saí de São Paulo.
— Eita! Está dormindo, Marcela? Estou perguntando se você já veio ao Rio.
— Ah, sim. Já, algumas vezes — ela suspirou.
— É um visual do caralho.
— Você tem um jeito estranho de elogiar.
— É sincero, sem medir, falo o que sinto.
— É bom. Eu queria ser assim.
— Falando nisso. Você ficou…
— É o casamento do meu ex. — Ela me interrompeu, já imaginando o que eu ia perguntar.
— Por que diabos você prometeu cozinhar no casamento do seu ex? Que doideira, mano!
— Eu não sabia. Ele não me ligou falando “Oi, Marcela, que saudade, quer vir no Rio de
Janeiro cozinhar no meu casamento?” — ela falou num tom indignado.
— Desculpa, não foi isso que eu quis dizer.
Ela riu. Gargalhou.
— Parece que eu estou aprendendo a mentir. — Gargalhou novamente.
— Não estou acreditando. — Ela estava mais leve. Ri parecendo indignado.
— Ok. Ele realmente não ligou dizendo isso, mas é verdade. É o casamento dele. Eu só não
estou indignada com você. Só com a situação atual mesmo.
— Também, né! Que mancada! Como você caiu nessa?
— Ele me ligou há um tempo dizendo que estava de volta ao Brasil e me convidou para vir ao
Rio, mas eu no podia deixar o restaurante e fui adiando. Aí ele disse que precisava muito de mim
para um evento. Me fez prometer que viria. Depois me mandou o convite do casamento.
— Que babaca! Na moral, Marcela, se tu quiser, eu dou umas porradas nele.
— Se não fosse o casamento dele, eu aceitava. — Ela riu.
— Aposto que ele fez uma péssima troca. — Ela fez uma cara confusa — Não tem como ser
melhor que você. — Ela ficou muito vermelha.
— Hugo — ela suspirou, balançando negativamente a cabeça.
— Sério! Mesmo! Você é linda, inteligente, talentosa, é engraçada, mas aparentemente é um
segredo. Tu é um mulherão da porra! Mas você não acredita nisso. Então vou repetir até você
acreditar. — Mais do que tudo eu queria puxar Marcela para meus braços e beijá-la, mas apenas
contemplei sua face ruborizada iluminada pelo sol nascente.
— Acho que obrigada, então. Vamos, vou te levar para tomar café.
— Eu não saio daqui sem um mergulho.
— Então você vai a pé. No vai molhar meu carro.
— Ah! Vamos, Marcelinha... — Fiz minha melhor cara de gatinho do Shrek.
— Usted no acha que sou muito grande para ser Marcelinha? — Ela ria.
— Ok, Marcelinda, melhorou? Pequena você realmente não é, mas linda é com certeza. — Ela
corou.
— Hugo…
— Na programação do dia põe umas horas de prática de cara de paisagem! Não dá para ser tão
transparente assim no casamento do seu ex.
— Eu sei fazer cara de paisagem. Faço todo dia quando vocês ficam falando besteira, — ela
falou, olhando nos meus olhos.
— Então você só fica vermelha quando eu digo que é linda? — Ela ficou mais vermelha e
desviou o olhar. — Hein, Marcelinda? Vai conseguir mentir?
— Você é muito chato! — ela falou depois de abrir e fechar a boca várias vezes para formular
outras frases, mas não conseguia negar. — Tchau, Hugo. Estou te esperando no carro. — Se
levantou, limpou a bunda com as mãos e saiu batendo os pés em direção ao carro. Nervosinha.
— Vai ficar me devendo um mergulho! — gritei, me dando por vencido e indo atrás dela.

Marcela dirigiu por um tempo, enquanto eu admirava a cidade ela apontava locais pelos quais
estávamos passando. O Rio de Janeiro era muito bonito, havia beleza em todos os lugares.
— Hoje e domingo vamos ter um tempo livre, você pode sair para conhecer melhor a cidade.
— ela falou, estacionando o carro
— E você vai ficar fazendo o quê?
— Chorando no quarto. — Ela gargalhou, mas não me convenceu. Realmente acho que ela
ficaria chorando no quarto. E ela percebeu.
— Nada disso, Marcelinda. Você vai me mostrar a cidade. Você me arrastou para essa furada.
Depois que você me alimentar, acertar os detalhes com os fornecedores e conhecer o local do
evento, nós vamos curtir a cidade e isso inclui um banho de mar, você está me devendo. — Ela
revirava os olhos.
— Só se você não me chamar de Marcelinda quando voltarmos para São Paulo. — falou,
estendendo a mão para um aperto.
— O que acontece no Rio de Janeiro fica no Rio de Janeiro? — falei e estendi a mão. Uma
manobra arriscada. Era melhor ter ela aqui do que nunca ter. Ela não me daria essa chance em
São Paulo, voltaríamos a ser chef e estagiário.
Tentava de maneira rápida ponderar todos os prós e contras daquela proposta. Não havia
contras. Apertei a mão dele e um sorriso largo de satisfação se desenhou em seu rosto.
— Ok, Marcelinda, me alimente.
— No sou tua mama. Abusado. — Ele revirou os olhos.
— Não poderia ter os pensamentos impuros que eu tenho com você se fosse minha mãe — ele
sussurrou no meu ouvido e eu me afastei rapidamente. Pelo calor que sentia na minha face, tinha
certeza que estava vermelha, provavelmente prestes a explodir.

Sem nem conseguir me olhar, Marcela andava rápido em direção a uma padaria no final do
corredor. Estávamos num mercado de produtores; vários peixes e frutos do mar lindos chegando
e o cheiro do pão sendo assado era irresistível. Chegando na padaria, Marcela se sentou e logo
se escondeu atrás do cardápio, permaneceu de cabeça baixa durante vários minutos, inclusive
falando comigo.
— Oh, Marcela, o negócio é o seguinte — eu disse, tirando o cardápio de sua mão e revelando
seu rosto — Se for para você não olhar na minha cara, eu digo que penso em você como penso na
minha vó.
— Pelo amor de deus, no — ela falou quase miando. Ela parecia nem ter pensado no que disse
e voltou a ficar vermelha. Eu gargalhei. Ela me olhou incrédula. — Você tem noção das coisas
que fala para mim? Você é meu estagiário. É tão errado.
— Eu não vou te agarrar, mas também não vou negar que gostaria. Não quero que se arrependa
de nada. O primeiro movimento é seu. Não vou fazer nada que você não queira. Mas não abusa.
Não sou de ferro. Sobre eu ser seu estagiário: não estamos no Sara. Combinamos que o que
acontece aqui, fica aqui. Agora, pela última vez, me alimenta, Marcelinda — falei, aproveitando
um duplo sentido. Ela, que tinha uma cara séria, gargalhou.
— Que guloso! — ela respondeu com um olhar safado que eu ainda não tinha visto. Sinto o
tesão correndo pelo meu corpo.
Nossos pedidos chegaram e falamos de trabalho. Fechamos o menu do jantar de amanhã,
conversamos com os fornecedores e, por fim, fomos para o hotel.
CAPÍTULO 5

— Pelo menos seu ex não é pão duro — falei enquanto fazíamos o check-in. O hotel era luxuoso
em frente a praia.
— Ah, não. Ele é um bon vivant. Economizar nunca foi o perfil dele. — Ela deu ombros.
— Foi por isso que acabou? — Me arrependi assim que as palavras saíram da minha boca. —
Me desculpa. Não quis me intrometer.
— Tudo bem. Não foi isso. Não só isso. Nós queríamos coisas diferentes, apenas. Ele queria
casar e ter filhos. Eu queria apenas cozinhar e ter um restaurante.
— Não dá para ter os dois?
— Você já deve ter reparado quantas horas eu trabalho. Que horas um filho e um marido
entram?
— Mas você quer?
— Eu no sei. Às vezes acho que si. Mas é uma puta responsabilidade. Eu fui criada sozinha.
Não ia querer isso para um filho meu. E você?
— Ah. Claro que quero. Quero muito. Não agora, tem muita coisa para acontecer. Muito ainda
para viver.

Andamos até o elevador e depois até os quartos. Lado a lado, conversávamos sobre os planos
para mais tarde. Já passava das dez e meia da manhã. Estava exausto. Combinamos de descer
para almoçar a uma e meia da tarde e depois sairíamos para conhecer um pouco a cidade.
Tirei minha camisa, minha bermuda e apenas de cueca box me joguei na cama. Decidi tomar um
banho. Levantei e abri a porta que eu achava que era do banheiro.
Melhor engano. Era o quarto de Marcela.
Eu estava com um misto de constrangimento e desejo. Marcela de pé, apenas de calcinha e
sutiã. Pretos. Simples. O sutiã abraçava seus seios de forma graciosa. E sua calcinha, pequena,
talvez um fio dental.
Ao contrário de mim, ela não parecia constrangida. Apenas olhava diretamente em meus olhos
como se pudesse ver minha alma. Senti calor, meu coração acelerou, pude sentir meu pênis
pulsar dentro da cueca. Não era possível. Eu precisava fazer algo.
— Me desculpe. Achei que fosse o banheiro — falei, gaguejando. Mas não conseguia me
mover. Os olhos de Marcela me impediam.
Senti seus olhos percorrendo todo o meu corpo e pararem no volume em minha cueca.
— Acho que se enganou — ela disse, quebrou o contato visual e continuou seu caminho, que
parecia ser o banheiro. Ela tinha acertado a porta, me deixando sozinho no quarto dela. Pouco
tempo depois volto para o meu.

Ainda estou tentando organizar meus pensamentos, o que não é fácil com meu membro pulsando
loucamente dentro da minha cueca. O barulho da porta se abrindo me resgata. Ao virar me
deparo com ela. Marcela. Estava vestida da mesma forma. Me permiti dessa vez analisar cada
centímetro de seu belo corpo. Meu olhar encontrou o dela.
— O quê? — disse, mordendo o lábio inferior.
— Você é ainda mais linda do que eu imaginava.
— Obrigada. — Depositou um selinho em meus lábios.
Ela pousa as mãos sobre meu peito e desliza vagarosamente até o cós da minha cueca. Não
consigo me mover, mas ela sem o interromper contato visual se agacha ficando com o rosto na
altura da minha virilha. Eu não consigo acreditar no que está acontecendo e nem consigo pensar.
Eu tento falar alguma coisa, mas ela deposita o indicador nos meus lábios e depois o desliza
pelo meu pescoço, depois meu peito, meu abdome e acaricia meu pênis por cima da cueca, ele
pulsa, e depois a abaixa.
— Senta! — ela ordena, apontando para a cama. Eu sou incapaz de fazer qualquer outra coisa a
não ser olhá-la.
Ela vira de costas, posso analisar suas costas e sua bunda, que bunda. A propósito, acertei, era
um fio dental que ela usava. Eu estou hipnotizado. Ela volta com uma camisinha na mão. Anda
até mim. Admirando o corpo dela não fui capaz de encontrar nenhum defeito.
Se aproximando novamente, ela segura meu rosto com as duas mãos e com seus olhos
penetrando minha alma, sela nossos lábios mais uma vez e me empurra levemente. Caio sentado
na cama. Ela se ajoelha e toma meu pênis na mão. Com a língua faz o trajeto da cabeça até o saco
e por fim coloca todo meu membro na boca. Não consigo manter meus olhos abertos de tanto
prazer enquanto ela me faz sexo oral. Não sei dizer quanto tempo passou estando em completo
êxtase. Ela desenrola a camisinha e quando abro os olhos está se posicionando para sentar em
meu colo. Move a calcinha para o lado, posiciona meu pênis na entrada de sua vagina e com
aquele olhar que transpassa minha alma, senta em mim. Sua vagina estava quente, molhada e
pulsava tanto quanto meu membro. Com movimentos ritmados, subia e descia sobre mim
segurando em meus ombros. Ela intensificou o ritmo sem parar de olhar nos meus olhos, mas ao
sentir que vou chegar ao orgasmo fecho os olhos; ainda assim posso ouvir que a respiração dela
fica cada vez mais ofegante até dar um suspiro, em seguida eu gozo. Me mantenho com os olhos
fechados e ela apoia sua cabeça sobre meu ombro e finalmente sinto seu delicioso cheiro. Eu
repouso a mão sobre suas costas e sinto um arrepio percorrer seu corpo; ela imediatamente se
levanta e vai para seu quarto. Encarando a porta, tento entender tudo que acabou de se passar
quando pude ouvir a porta que interliga nossos quartos se trancar.

Me deito, fecho os olhos e tento recuperar o fôlego enquanto reorganizo meus pensamentos. Foi
a melhor e mais louca transa que já tive. Tento gravar cada minuto do que aconteceu.
O plano de dormir foi um fiasco. Não conseguia parar de pensar em Marcela. Eu, pela primeira
vez, não fazia ideia do que fazer. Me sentia um adolescente. Antes do horário marcado eu já
estava no corredor esperando por ela.
Pontualmente, ela deixa o quarto, um vestido coral esvoaçante com um decote considerável que
me permitia ver que ela estava de biquíni. Apesar de passar dos joelhos na parte de trás, na
frente não passava das coxas. Para completar: óculos escuros, chapéu e um sorriso maravilhoso.
Será que ela está realmente se movendo em câmera lenta, ou esse é um efeito que ela causa em
mim?
— Vamos? Estou morrendo de fome! — ela diz enquanto passa por mim.
Eu não sei como me comportar. Ela parecia continuar a vida como se não tivesse invadido meu
quarto, me levado a loucura e ido embora sem falar uma palavra.
— Terra chamando Hugo! — Ela estalava os dedos na direção da minha orelha enquanto
aguardávamos o elevador.
— Você falou alguma coisa?
— Perguntei se estava tudo bem, você está estranho. — Ela ria.
— Eu… — Não consegui formular uma frase.
— Hugo, você disse que o primeiro movimento era meu. Já fiz. — Ela deu ombros e entrou no
elevador que tinha acabado de abrir as portas. Estava parado olhando para ela. — Hugo, as
portas vão fechar. — Entrei correndo.
— Não estou conseguindo pensar.
— No precisa pensar. —Ela pegou em meu queixo e me deu um selinho rápido. E se voltou
para porta enquanto o elevador se movia.
Ok, Hugo, sem pensar. Num movimento rápido, aproveitando que estávamos sozinhos, eu
pressiono Marcela contra a parede, ela solta um gemido pelo susto e com uma mão firme em sua
cintura e outra em sua nuca, inicio um beijo encontrando certa resistência e depois uma
verdadeira batalha por dominância. Suas mãos passeiam pelas minhas costas e posso sentir a
pressão de seus dedos. Necessitando de ar, e pouco antes das portas se abrirem, nos separamos.
— Vamos subir? — pergunto ofegante, sentindo os efeitos daquele beijo caloroso e do olhar de
luxúria que ela me lançava.
— Nada de sobremesa antes do almoço — ela sussurrou no meu ouvido e deixou o elevador.
Se virou para mim que novamente estava estático. — Hugo, me alimente!
Essa mulher vai me deixar louco.
— Nós vamos a pé? — falei, incrédulo.
— Vamos! Para de preguiça! Você nem sabe para onde estamos indo! — ela falou com um
sorriso no rosto. Estava leve.
— Eu sei para onde eu queria estar indo — falei em tom provocativo. Na mesma hora ela
corou. Como pode depois daquela transa de hoje de manhã ela ficar com vergonha?

Por fim, depois de andarmos muito, Marcela confessou que não fazia ideia de onde estava indo.
O restaurante no qual ela me levaria havia fechado. E com isso entendi que lidar com uma
Marcela faminta era péssimo.
Nota mental: ao menor indício de fome, alimentar a Marcela.
O humor era péssimo, aquele sorriso sumiu, um bico enorme se formou e eu tinha a impressão
de que a qualquer momento ela se sentaria no chão e começaria a chorar.
Depois de falar mal de todos os restaurantes que passamos, com muito custo consegui
convencê-la a entrar em um que servia feijoada. Já se aproximava das três da tarde e o
restaurante estava cheio.
— Dios! Que delícia! Que fome que eu estava!
— Viu só, Marcelinda? Te alimentei. E nunca mais vou ignorar esse pedido. Mano, tu com
fome, não dá, não — falei e ela gargalhou.
— Desculpa, mano — ela falou, me imitando.
— Pior que criança! Quase te deixei lá com aquela criança se esperneando no chão — falei,
provocando e rindo.
— Hugo, eu estava com muita fome. Eu fico com muita fome depois de transar. — Ela corou.
Eu gargalhei. Ela gargalhou. Gargalhamos juntos.
— Já entendi o recado, vou abastecer o frigobar. Você vai ter bastante fome — insinuei e ela
corou. — Agora me diz uma coisa. Como é que você invade meu quarto, abusa de mim e depois
fica com vergonha? — Ela parecia que ia explodir de tão vermelha.
— Eu? Você invadiu meu quarto primeiro! E eu não abusei de você.
— Foi um acidente. Um belo acidente. E um excelente primeiro movimento. Eu estava
esperando um beijo, sei lá. Me surpreendeu.
— Você provavelmente tem uma fantasia muito errada sobre mim.
— Você tinha más intenções me trazendo para o Rio de Janeiro? — falei, fingindo estar
ofendido.
— Não, só boas. Eu queria te dar motivos para realmente não tirar os olhos de mim enquanto
trabalha. “Nossa, sonhei com ela cozinhando nua!” — ela falou, imitando minha voz e agora eu
estava vermelho, com certeza, sentia o calor na minha cara. — Quando eu falo que eu ouço tudo
vocês não acreditam. Bom, agora você já tem material para trabalhar melhor nas suas fantasias.
— Eu não te vi nua. Ainda. Falando nisso, já está na hora da sobremesa? — Encarei com um
sorriso safado.
— Estou muito cheia para sobremesa agora. Mas vamos que estou te devendo um mergulho e
gostaria de voltar para São Paulo com um tom de pele menos fantasmagórico.
Pagamos a conta e saímos. Andamos em direção à praia do Arpoador que Marcela garantiu ser
o melhor ponto para ver o pôr do sol.
CAPÍTULO 6

Marcela estendeu a canga sobre a areia e retirou o vestido. Apesar de já a ter visto, agora pude
analisar com calma cada milímetro do seu corpo sendo banhado pela luz do sol. Seria possível
que ela ficasse ainda mais bonita cada vez que meus olhos pousassem nela? Ela se deita sobre a
canga e nossos olhares se encontram. Ela me encara por longos segundos.
— O quê? — pergunto.
— Você é bem bonito, mas está na frente do sol. — E riu.
— Ah! Desculpa. Eu vou para a água. — Tirei minha camisa. Ela olhava fixamente para mim.
— Você não deveria usar protetor solar?
— Não trouxe. — Dei ombros.
— Eu tenho, se você quiser.
— Eu quero que você passe em mim — falei em tom provocativo.
— Você é muito abusado — ela disse, sentando-se e mexendo na bolsa. Ao pegar, fez sinal
para que eu me sentasse à sua frente. — Você não acha que vou levantar, né?
Me sento entre suas pernas e ela passa filtro solar em minhas costas, ombros e braços. Queria
poder ver seu rosto para saber se a delicadeza daquele toque era provocação, porque se fosse,
estava funcionando. Meu membro pulsa dentro da minha sunga e agradeço mentalmente por não
ter retirado a bermuda ainda.
— Prontinho.
— E a mocinha não vai passar?
— Depois eu passo.
— Deixa eu passar nas suas costas — eu disse, passando a mão pelas suas coxas. Sinto a pele
dela se arrepiar. — Passa aqui para frente.
— Você que passa aqui para trás.
— Marcelinda, a praia está cheia, você não vai querer que eu passe aí para trás. — Peguei a
mão dela, que estava apoiada sobre sua perna, e coloquei sobre meu membro.
— Você realmente precisa ir à água — ela disse, rindo. Não podia acreditar que ela estava
rindo. Ela fez de propósito.
— Isso é culpa sua. Vai ter volta. Você vai na água comigo!
— Mas não vou mesmo. — Ela ria, estava se divertindo. Ia ter troco.
Ela já estava deitada, então me virei deitei sobre ela juntando nossos quadris de modo que meu
pênis ereto estivesse em contato com o fino tecido do biquíni. Com meus braços apoiados um de
cada lado de seu corpo, comecei a distribuir beijos pelo seu pescoço e fui descendo pela
clavícula. A respiração de Marcela começava a pesar.
— O que pensa que está fazendo? — Marcela sussurrou, em um misto de pânico e tesão.
— Te convencendo a ir à água comigo. — Nesse momento solto meu peso sobre seu corpo
pressionando ainda mais nossos sexos. Mordi seu ombro e ela soltou um gemido.
— Não podemos transar na praia às quatro horas da tarde. — ela falava enquanto minha mão
subia pela face interna da sua coxa a arrepiando e descompassando cada vez mais sua
respiração. Passei meu dedo sobre seu biquíni. Encharcada.
— Eu mal consigo contar cinco pessoas até onde meus olhos alcançam — eu disse, deslizando
seu biquíni para o lado. — Vamos, Marcelinda, você também quer.
— Hugo, no… — Antes que ela pudesse completar a frase eu coloquei dois dedos dentro dela
e abafei seu alto gemido com um beijo.
— Agora vamos? — Ela apenas consentiu com a cabeça, acho inclusive que ela não estava
respirando.
Num impulso me levantei e logo a puxei para os meus braços, nossos quadris juntos sentindo a
pulsação um do outro.
— Eu vou matar você! — ela falou e mordeu o lábio.
— Só se for de prazer. Já passou da hora da sobremesa — disse, virando-a de costas para
mim, pressionando meus pênis contra sua bunda.
Assim andamos até a água. Muito gelada.
— Puta que pariu — falei ao sentir a água gelada.
— Tadinho, vamos esquentar. — Ela mergulhou e parecia uma sereia. Que visão. — Vamos
Hugo, a água está muito gelada.
Caminhamos um pouco mais para o fundo. Marcela entrelaçou as pernas em minha cintura,
braços em meu pescoço e travamos uma batalha de línguas por dominância. Com uma mão
apoiando suas costas, com a outra apertei seu seio direito antes de descer até meu pênis e retirá-
lo da sunga. Apenas deslizei o biquíni de Marcela para o lado e a penetrei sem delongas.
Paramos o beijo e apenas nos olhamos nos olhos por um tempo até começarmos a nos
movimentar tentando não chamar atenção. Apesar de não achar que fosse possível.
— Vai demorar? Eu estou com frio?
— Nossa, Marcela, com essa animação eu não vou gozar nunca. Eu também estou com frio e a
gente tentando disfarçar não está ajudando.
— Então vamos parar de disfarçar. Porque, né? Olha para a areia. Todo mundo sabe que
estamos transando. — Realmente estávamos sendo observados, as pessoas tentavam disfarçar.
— Ok, então — Ataquei seu pescoço, agora salgado, e em resposta ela gemeu alto, certamente
ficaria uma marca. Suas mãos passeavam entre minha nuca e minhas costas depositando pressão
com as pontas dos dedos. Com uma das mãos fui até o biquíni de Marcela e massageei seu
clitóris, pude ouvi-la gemendo no meu ouvido. Uma bela sinfonia. Sua respiração pesa conforme
sua movimentação aumenta.
— Marcela, eu acho…
— Sim, nós vamos — ela falou num suspiro.
Atingimos o auge juntos, calando nossos gemidos com um beijo intenso, porém calmo. Quando
fiz menção de sair de dentro dela ela me prendeu mais forte com as pernas.
— Ainda não, espere um pouco.
Ela me deu um selinho e deitou com a cabeça em meu ombro. Depositei um beijo em seus
cabelos e permanecemos abraçados por alguns minutos até ela descer do meu colo e nos
ajeitarmos para voltar à areia. Recebemos alguns olhares de reprovação e de brinde um sermão
de Marcela sobre eu ter a convencido, por meios sórdidos, a estrelar um atentado ao pudor. Me
desculpei, achei que só era proibido transar na areia. Logo recolhemos nossas coisas e nos
direcionamos a pedra para, por fim, ver o pôr do sol.
Contemplamos aquele espetáculo da natureza, eu sentado com Marcela entre minhas pernas,
recostada em meu peito nu. Não quero que isso fique no Rio de Janeiro. A não ser que a gente se
mude para cá.
— Hugo
— Sim?
— Eu estou com fome.
— Claro que está.
Gargalhamos. Rio de Janeiro, eu te amo. Com o sol já posto, seguimos nosso caminho para o
hotel, mas não sem antes da Marcela comer milho cozido, pipoca e churros. Conversamos sobre
coisas aleatórias e rimos muito. A Marcela do Rio de Janeiro era leve, livre e divertida. Em
nada se parecia com a Marcela do Sara.

Paramos na recepção para pegarmos as chaves, Marcela também recebeu uns pacotes e uma
caixa de presente. Estávamos rindo e caminhando para o elevador quando ouvimos o nome de
Marcela e seu sorriso desapareceu. Nós viramos e demos de cara com um homem, alto, magro e
com cara de engomadinho. Deve ser o ex.
— Felippo, no esperava te ver hoje. — Ela parecia incomodada.
— Pois é, linda. Pensei em te levar para jantar. — Agora até eu estava incomodado.
— Obrigada, mas estou acompanhada — Ela direcionou o olhar para mim. — Esse é Hugo
Coelho.
— Prazer. — Apertamos às mãos. — Esperava colocar o papo em dia.
— Poderia ter ido a São Paulo.
— Hugo não vai se incomodar se eu te roubar por umas horinhas.
— Irmão, para você roubá-la de mim ela teria que ser minha. Ela não é uma propriedade, é
uma pessoa, uma mulher e não precisa de autorização minha para fazer nada.
— Tem razão. Me desculpe.
— Tu não entendeu. A desculpa é para ela. Não para mim.
— Me desculpe, Marcela. Podemos jantar?
— Já te disse que estou acompanhada. Sobre amanhã, alguma coisa não ficou clara no e-mail?
— Não, tudo perfeito como sempre. Amei o cardápio. Você me conhece tão bem. Só queria
conversar mesmo.
— Nos conhecemos bem o suficiente para saber que não tem propósito este jantar hoje. Boa
noite. Até amanhã.
Ela me deu a mão e seguimos até o elevador. Toda aquela leveza havia sumido. Parecia agora a
Marcela que chorou copiosamente no carro. Eu realmente achava que ela poderia chorar a
qualquer minuto. E isso me sufocava. O trajeto foi todo feito em silêncio, ela apenas encarava as
mãos. Chegando ao seu quarto, deixei as coisas em sua cama e me dirigi ao meu.
No meu quarto, deitado na cama, ainda incomodado porque esperava um outro tipo de fim de
noite, Marcela me preocupava. Depois de um bom tempo segui para o banheiro. Agora já sabia
onde era. Sem enganos. Tomei um banho demorado. Saindo do banheiro apenas de toalha,
encontro Marcela sentada na cama usando um roupão e uma toalha no cabelo como se fosse um
turbante, para variar ela estava linda. Haveria algum modo em que pudesse não estar? Mas lá
estavam eles, olhos vermelhos. Conforme eu havia previsto, ela chorou.
— Tudo bem?
— Si. Obrigada e desculpa por mais cedo.
— Eu não fiz nada. — Dei de ombros.
— Fez sim. É uma forma muito interessante de se pensar numa mulher, ou pessoa.
— Eu sempre falo isso para minha irmã, então é meio natural para mim.
— Sua irmã tem muita sorte.
— E você estava chorando?
— É que Felippo as veces é tão…
— Babaca?
— No era, mas serve. Ia falar insistente.
— Então você estava chorando porque ele é insistente? Fala comigo.
— Aí, Hugo. Esquece isso. No tem importância ahora. Eu tenho um presente para você.
— Ótima tentativa para mudar de assunto. Vou ver o presente, mas a conversa ainda não
acabou, mocinha.
Reconheci a caixa que pegamos mais cedo na recepção do hotel. Abri e havia um dólmã e uma
faca. Ambos com meu nome.
— Que foda! Obrigado, Marcelinda!
— Um subchefe precisa de um dólmã.
— Subchefe?
— Amanhã com certeza, no Sara, só estagiário, temos uma hierarquia. Eu falei sério quanto aos
motivos para ter te escolhido para vir comigo ao Rio.
— Fornecer material para as minhas fantasias?
— Cazzo! Falei várias coisas e usted só lembra disso?! — ela falou, rindo.
— Não, tinha algo sobre não atrapalhar o andamento da cozinha. — Eu fazia um bico.
— Para Hugo! Tenho certeza de que eu fiz um elogio. Se esforça aí.
— Só para constar, você me trazer aqui para usar meu corpinho é um elogio.
— No estou te usando. Talvez um pouco. — Ela cora.
— Podia ter me usado em São Paulo. Aliás pode me usar em São Paulo, até deve na verdade.
— Hugo, combinamos que o que acontece aqui, fica aqui.
— Eu vou aguardar um primeiro movimento. Vou falar que você elevou minhas expectativas,
não vou aceitar qualquer coisinha.
— Mas você é muito abusado.
— Você me acostumou mal, Marcelinda.
— Eu vou dormir, amanhã café às oito e meia, ok? — disse, dando-me um selinho.
— Ok — disse, puxando-a pela cintura. — Não pensa que eu esqueci da conversa. Preciso
saber os motivos para dar ou não uns socos naquele babaca. — Ela riu e me deu mais um
selinho.
— Amanhã a gente conversa. — E deixou meu quarto.

Deitado na cama enquanto recapitulava os eventos das últimas 24 horas. Tinha sido intenso.
Meus pensamentos são interrompidos por batidas fortes na porta. Em alguns instantes percebo
que é na porta de Marcela e me aproximo da porta que separa nossos quartos para ouvir.
— Felippo, o que está fazendo?
— Marcela...
— O quão bêbado você está?
— O suficiente para pedir você em casamento de novo.
— De novo essa história? Já disse que no. Quem deixou você subir? Eu preciso dormir.
— Eu posso te colocar para dormir.
— Não! Vá dormir com tua noiva. Amanhã eu vou cozinhar no teu casamento, homem. Você
seguiu adiante. Você não precisa de mim. Você me chamou. Se a sua intenção era me fazer sofrer,
está dando certo. Mas no vou me casar com você. Eu nem te amo mais.
— Mas você me amava.
— Amava. De verdade. Mas você me pediu para fazer uma escolha. Eu fiz. Não me arrependo.
Você se arrepende de ter me colocado na parede e não ter a resposta que queria? Ok. Entendo.
Mas não é justo você transformar minha vida num inferno. Não era esse o combinado. Por favor,
não faça isso. — Marcela chorava e eu não sabia se deveria entrar e pôr um fim aquilo, mas
parecia só uma conversa exaltada. — Você queria casar e ter filhos. Você pode agora.
— Eu queria com você. Mas você só pensa no Sara. Aquilo não é um filho. Você escolheu o
Sara no lugar do nosso filho. Você se recuperou tão rápido.
— Nunca mais repita isso. Nunca mais. Você sabe que eu não fiz isso. Ninguém teve culpa. Já
tem dois anos, não posso sofrer para sempre. Não faça isso comigo. Não faça isso com você.
Vai embora, por favor. Por favor.
— Marcela, me desculpe.
— Só vai embora, por favor. Eu preciso estar bem para amanhã. E você também.
Ouvi a porta se fechar e voltei para cama, sem saber o que fazer. Queria perguntar se ela estava
bem, mas aposto que ela não gostaria que eu tivesse ouvido nada daquilo. Era tão pessoal.
Encarando o teto ouvi a porta abrir.
— Hugo?
— Oi. Tudo bem?
— Si. Você ouviu?
— Eu fiquei preocupado. Pensei em ir lá, mas achei que estava tudo mais ou menos bem.
— Bom, agora já sabe o que queria saber. — Ela voltou a chorar e eu a acolhi em meus braços,
sua cabeça apoiada no meu peito nu.
— Desculpa ter insistido. Eu não fazia ideia.
— Eu nunca falei para ninguém.
— Se precisar conversar e se quiser, eu estou aqui.
— Não foi minha culpa.
— Claro que não.
— O Sara tinha acabado de abrir, eu trabalhava muito mais do que hoje, eu nem mesmo
percebi.
— Tudo bem. Às vezes não entendemos bem o porquê das coisas. Muitas vezes só não era para
ser. Mas não faz doer menos. Você vai ficar bem?
— Posso dormir aqui?
— Pode. Claro que pode. — Depositei um beijo no topo de sua cabeça.
CAPÍTULO 7

Um peito, nu, liso, definido e babado.


Eu babei no Hugo.
Alguns pouco raios de sol invadiam o quarto enquanto eu tentava secar minha baba do peito do
Hugo sem que ele acordasse.
Que vergonha, senhor! Que vergonha!
Queria me livrar das provas, mas não queria sair do seu abraço seguro. Fiquei pensando nos
últimos acontecimentos.
Que influência esse homem exerce sobre mim que vai de sexo a tarde em uma praia quase
deserta a falar sobre uma experiência tão dolorosa que eu não havia compartilhado com ninguém,
exceto meu terapeuta, e que terminava comigo dormindo e babando sobre seu peito?
— Você sempre baba quando dorme? — A voz mais rouca que o normal fez percorrer um
arrepio pela minha espinha.
— No babei.
— Vai mentir logo para mim? E com essa marca de baba aí. — Minha cara pegava fogo. —
Não é como se fosse a primeira vez que você me baba. Foi só a primeira sem querer.
— Hugo! — Dei um tapa em seu ombro.
— Você fica tão bonitinha vermelha. Se serve de consolo, eu babei também. No seu cabelo.
— No acredito! — Queria fazer cara de brava, mas não consegui.
— Ah, não foi de propósito, mas significa que eu dormi muito bem.
— Eu também dormi muito bem. Obrigada. Por ontem. Tudo. Menos o sexo na praia, foi bom,
mas constrangedor.
— A culpa foi sua, né, mocinha?
— Você não se controla e a culpa é minha? Eu só quis ser gentil passando protetor solar em
você! Você precisa cuidar melhor das suas tatuagens.
— Você gosta delas?!
— Não tenho coragem de fazer, nervosinho de agulha, mas acho bonito de olhar… — falei,
passando o indicador levemente pelo seu peitoral como se desenhasse.
— Marcela, não começa o que a gente não vai poder terminar.
— Acho que dá tempo de um banho rapidinho, acredita que babaram no meu cabelo?
— Mentira?! Vamos logo então, minha chefe briga comigo o tempo todo quando eu me atraso.
— Ela diz que se fosse um avião partiria sem você? — ele concorda com a cabeça e um
sorriso bobo.
— Foda é que ela é mesmo um avião, gostosa para um caralho — ele falou, apertando minha
bunda. Soltei um breve gemido e foi inevitável morder meu lábio.
— Melhor não atrasar então – falei, já me levantando e indo em direção ao meu quarto. — Não
esquece a toalha.
Já estava debaixo do chuveiro quando Hugo se juntou a mim com uma pegada precisa em meus
seios e mordiscando minha orelha. Com seu corpo colado ao meu e sua ereção pressionando
minha bunda, gemer foi inevitável.
— Bom dia — ele sussurrou em meu ouvido e um calafrio me arrepiou.
— Muito bom dia.
Eu me virei e iniciamos um beijo intenso com uma guerra de línguas. Faltando o ar, Hugo
desceu explorando meu pescoço, meu colo e ao chegar em meus seios nossos olhares se
encontraram e ele lançou um sorriso de satisfação, desejo e safadeza.
Ao abocanhar meu seio não tive como manter os olhos abertos. Era leve e intenso. Como ele
conseguia? Ainda sem abrir os olhos sinto suas mãos passearem pelo meu corpo. Posso senti-lo
em cada centímetro da minha pele a sensação é que ele tem mais de duas mãos. Posso sentir seu
toque quente e preciso em todos os lugares. Eu achava que estava em todos os lugares. Sua boca
ao largar meus seios traça um caminho pelo meu abdome e conforme vai descendo o ar fica
rarefeito. Ele levanta minha perna direita e a põe sobre seu ombro. Me falta ar. Quando ele
abocanha meu sexo, sinto que vou desfalecer.
Eu ainda estou viva? Será que eu morri de prazer? Tenho medo de abrir os olhos e estar dentro
de um caixão. Mas ao abrir meus olhos encontro os dele queimando de pura luxúria e devoção.
Isso foi um orgasmo? Respira, Marcela. Ok, não tem oxigênio nesse banheiro. Ainda com minha
perna levantada o sinto entrar em mim sem aviso. Um gemido sai de minha garganta. Eu estava
com um gemido preso e por isso não conseguia respirar? Ele apenas permaneceu em mim
enquanto eu desesperadamente buscava ar.
Ele permanecia depositando beijos e chupões que iam do meu pescoço à minha clavícula
enquanto minhas paredes internas pareciam se ajustar em torno de Hugo. Abro os olhos
novamente com medo. E se for um sonho? Encontro novamente aquele mesmo olhar, mas ele
aguarda aprovação e a única reação que eu consigo esboçar é um piscar de olhos, recebo em
troca um sorriso safado. Hugo começa a se mover de forma lenta e vai aumentando o ritmo
gradativamente. Novamente não sinto minhas pernas, mas suas mãos pressionando minha cintura
e me pressionando contra a parede me impedem de cair.
Quanto tempo tem que eu tive um orgasmo? Estou tendo outro ou estou num estado de
glorificação tal que ainda estou desfrutando do primeiro? Eu não sabia. Não sabia de nada. Não
sentia nada ou estava sentindo tudo? Hugo aumentou a velocidade e a força com que entrava em
mim e me sinto flutuando enquanto um calor absurdo toma conta do meu corpo. Seria possível
uma pessoa entrar em autocombustão? Ao mesmo tempo que eu parecia me desfazer, eu nunca
tinha me sentido tão inteira. Eu o sinto, com uma última e precisa estocada, jorrar em mim e
então, de fato, explodo. Minhas pernas envolvem sua cintura. Nossas testas coladas, respirações
descompassadas, olhares em êxtase. Ainda do jeito que estávamos, Hugo se senta num banco que
havia no box.
— Preciso de um minuto — ele suspirou e sorriu.
— Só um? Eu vou precisar de uns quinze. — Gargalhamos.
Permanecemos na mesma posição: troncos nus colados e cabeças repousadas nos ombros
enquanto nossas respirações se regularizavam. Hugo saiu de mim e nunca me senti tão vazia. Ele
se levantou e me deixou sentada no banco. Eu o observei tomar banho. Quantas tatuagens teria?
Que horas ele malha para manter aquele corpo definido? Nunca tinha reparado na bunda dele. É
tão bonita.
— Gostando da vista, Marcelinda?
— Hugo, não estou sentindo minhas pernas, o que você fez?
— Meu movimento — ele sorriu safadamente. — Deixa que eu te dou banho então.
Ele puxou o banco para perto da água e lavou meus cabelos cuidadosamente. Mas eu não
conseguia parar de ficar excitada. O toque desse homem me deixa louca.
— Cheirosinho, sem vestígios de baba.
— Você lava cabelos muito bem para um careca.
— É a prática.
— Claro. — Um incômodo. Ele deve lavar vários cabelos por aí? Ciúmes, Marcela, sério
mesmo?
— Eu lavava os cabelos da minha avó. — Fofo e eu pensando besteira — E aí? Você vai
levantar ou vou precisar fazer o serviço completo?
— Vou levantar, não posso ter outro orgasmo desse, preciso das minhas pernas para trabalhar.
Ele gargalhou, me deu um selinho e saiu molhando todo o banheiro. Homens. Termino meu
banho e ao voltar para o quarto encontro a mesa posta para o café. Só de roupão e toalha na
cabeça vou até o quarto de Hugo e o vejo colocando seu dólmã em frente ao espelho, fico
admirando a cena e nem percebo que ele me viu. Nossos olhares se encontraram pelo reflexo e
sorrimos.
— Você pediu café?
— Eu sou um pobre estagiário, não tenho dinheiro para isso.
— Hoje você é subchefe até as nove, depois, você não precisa aceitar, ok, mas gostaria de me
acompanhar no casamento?
— Eu não trouxe roupa para isso. Acho que nem tenho.
— Eu também não tenho roupa.
— Vamos fazer maior sucesso pelados no casamento do seu ex.
— Não se preocupe, eu providencio.
— Não vou deixar você pagar uma roupa para mim.
— Muito machista da sua parte, mas quem vai pagar é o Felippo.
— Não sei, não. Está me cheirando a treta.
— Se você não for, eu não vou.
— Por que você quer tanto ir?
— Por que eu não iria querer? Tem algo de errado querer aproveitar uma festa para a qual eu
fui convidada?
— Quais as chances de dar merda?
— Cinquenta por cento.
— Porra. Não quero estragar o casamento de ninguém.
— Se eu quisesse estragar era só não aparecer para cozinhar. Ou contar para noiva a cena de
ontem, ou outras tantas coisas. Sério que você acha que eu sou essa pessoa?
— Claro que não, mas pô. Sei lá. Sei não. Eu não me sinto bem no meio de um monte de ricaço.
— Eu também não, mas estaremos juntos. Pode ser muito divertido. Se estiver ruim vamos
embora. Por favor?!
— Ok, ok!
— Eu vou tomar café, estou morrendo de fome!
— Por que será? — Aquele sorriso safado. Me quebra.
— Nem te conto. — Dei uma piscada para ele. — Me acompanha?
— Você vai deixar? Sei que sua fome é enorme.
— Está me chamando de gulosa?
— Gulosa não. Insaciável, talvez?
— Hugo, tira esse dólmã para não sujar.
— Viu, insaciável, sim. Quer ver meu corpo nu. Quer abusar de mim. — Fazia-se de vítima.
— Me poupe Hugo. — Eu queria parecer brava, mas eu não conseguia.
Voltei para o meu quarto e parei admirando a mesa. Claro que era coisa de Felippo. Eu pegava
algumas uvas quando, ainda de pé, sinto Hugo perigosamente atrás de mim.
— Tá muito cheio aqui e por isso você tem que ficar tão colado em mi?
— Estou aproveitando esses últimos momentos em que posso encostar em você. — Enquanto
ele falava quase sussurrando em meu ouvido, eu sentia sua respiração em minha nuca, senti suas
mãos precisas em minha cintura. Minhas pernas já não estão tão firmes e eu começo a sentir um
calor generalizado. — Minha chefe é muito brava.
— Hugo… — Ele me vira em um movimento rápido. Apenas milímetros nos separam, mas eu
não resisto e o puxo para um beijo. Calmo, tranquilo, sem pretensões. Finalizo o beijo, dou um
selinho e me sento à mesa. — Estou morrendo de fome. Hoje, até as nove da noite, sem contato,
ok? Trabalho é sério. Sagrado. Não preciso de mais motivos para o Felippo me infernizar.
— Sim, chef — ele falou e se sentou ao meu lado.
— Não precisamos disso aqui — disse, esticando a perna e apoiando o pé sobre a coxa de
Hugo. Com o movimento meu roupão se abre deixando minha coxa a mostra. Sinto olhar de Hugo
e minha pele pega fogo.
Ele começa a massagear meu pé. É bom. Continuo comendo, fingindo, provavelmente sem
muito sucesso, que aquilo não me afetava. Mas é claro que ele não pararia por aí. Apenas com o
dedo indicador e com uma lentidão torturante ele traçou um caminho dos meus pés até minha
pelve. Quando ele passou do joelho, eu já tinha prendido a respiração e estava pronta para
morrer asfixiada.
— Sem calcinha, Marcela...
— Hugo... — Nem tenho certeza se falei ou só pensei.
— Uma pena mesmo que a minha chefe odeie quando eu me atraso — ele disse, levantando-se
com um sorriso provocador irresistível.
Deixou o quarto e me largou lá. Encharcada, ardente de desejo. Depois de comer quase tudo,
realmente estava faminta. Aquele sexo matinal no chuveiro despertou um monstro em mim.
Hugo me esperava no corredor e seguimos conversando sobre os planos para o dia mantendo
uma distância segura. Com a ajuda de outros cozinheiros excelentes contratados por Felippo
terminamos a mise en place.
O local do casamento era uma mansão em Santa Teresa com uma bela vista do Pão de Açúcar.
Realmente um cenário lindíssimo e não consigo evitar pensar que eventualmente seria eu me
casando ali.
Eu não estava arrependida de ter escolhido minha carreira. Só não achava que era o momento
para ter uma família. Ter perdido aquele bebê sem nem mesmo tê-lo sentido foi só a confirmação
que eu precisava. Como ser mãe se eu nem mesmo cuido direito de mim? Não saber de sua
existência não fez doer menos, fez doer mais, porque me fez sentir culpada ao mesmo tempo que
me trouxe um certo alívio.
As crises começaram seis meses antes do Sara abrir, quando durante uma de nossas viagens ao
Rio de Janeiro Felippo me pediu em casamento, eu pedi para pensar e não respondi. Não disse
que sim nem que não. Deixei o anel na gaveta e segui pensando no Sara que estava prestes a
inaugurar.
Engraçado que antes disso vivíamos em eterna lua de mel. Nos conhecemos assim que eu
cheguei ao Brasil. A convite dos meus chefes, e depois de muita insistência, fui a uma festa de
Ano Novo só com pessoas riquíssimas. Não gosto, não faz parte de meu mundo, mas naquele
momento talvez tivesse que fazer. Eu não podia ficar para sempre sem ver ninguém. Lá estava
ele, sem dúvidas o homem mais bonito da festa, quilômetros de meninas em volta dele, mas ele
veio falar comigo, e eu tinha certeza de que minha mão cheirava a alho. Daquele primeiro beijo
na virada do milênio não nos largamos mais. Enfrentou comigo a abertura do restaurante para o
qual tinha sido contratada para chefiar a equipe desde a inauguração, foram meses chegando em
casa chorando. Quando meu contrato estava próximo do fim, me deu força para perseguir o sonho
do meu próprio restaurante. Até que ele começou a se tornar realidade.
O mês que antecedeu a abertura do Sara foi de caos e desespero. Felippo tinha ido para o Rio
de Janeiro e não compreendia o porquê de eu não poder ir. Faltando um mês para abrir um
restaurante? O meu restaurante, como ele havia vivido parte desse drama na época do outro
restaurante esperava que fosse mais compreensível. Ele chegou no dia da inauguração, ou
melhor, na inauguração, direto no restaurante. Bebi bastante para falar com toda aquela gente. De
tanto que bebi, não disse não a Felippo e transamos depois de meses sem nos tocar.
O relacionamento com Felippo, que eu achava que não tinha como ficar pior, ficou. Apenas três
meses depois que o Sara abriu ele sugeriu que eu deixasse a cozinha do restaurante que eu tanto
sonhei e que ele tinha apoiado. Um restaurante recém-inaugurado tem uma carga de stress
altíssima. Eu estava sempre nervosa, com um humor péssimo, não me alimentava, não conseguia
dormir direito e por isso estava sempre com um sono infinito.
Todos os dias. TODOS OS DIAS. Todos os dias ele me esperava acordado para reclamar que
eu estava chegando tarde. Quando eu levantava reclamava que eu saía cedo. Aquela mínima
convivência era perturbadora. A ideia de voltar para casa era torturante. Quando foi que ele tinha
se tornado tão egoísta? Ou a egoísta seria eu? Acreditei que precisávamos ceder um pouco,
reconheci meu erro e deixei de abrir o Sara às segundas. Ficava deitada o dia todo pensando no
Sara. Víamos filmes, ouvíamos música e só. Todo final de segunda era péssimo. Ele já começava
a reclamar da minha ausência, de como todo dia podia ser segunda. “Como vamos ter filhos
assim?” Filhos? Quem falou em filhos? Nós nem transamos. Não existe a menor chance de
termos filhos. Eu só pensava no Sara. Não era a hora de ter filhos. Eu nem mesmo tinha
respondido o pedido de casamento.
Numa segunda, eu, como de costume, estava exausta, porém disposta a tentar salvar aquele
relacionamento, me levantei e fui fazer o café. Me sentindo pior do que nunca, preparei com
capricho uma bandeja para levar para a cama. Antes de chegar ao quarto vomitei sobre ela. Me
sentei no chão e apenas chorei até que ele acordou e agradeceu o esforço, mas obviamente não ia
comer ovos mexidos vomitados. Sugeriu irmos até um restaurante, mas eu não tinha forças.
Pedimos comida, não comi. Depois de verificar que eu estava com febre, com muito custo, me
convenceu, lê-se: chantageou, a ir ao médico, era isso ou não ia me deixar sair para trabalhar no
dia seguinte.
Na emergência, perguntas de praxe. “Última menstruação?” Não soube responder. “Quais as
chances de gravidez?” Nenhuma, a gente nem transa. Era o que eu queria responder, mas nos
poupei desse constrangimento. Exame de sangue feito e no soro para hidratar, passaram-se, uma,
duas, três horas até que o resultado saísse. E no lugar de um médico, agora tinham três.
— Valores altos de beta HCG, indicam uma gravidez, mas…
Eu parei de ouvir tudo mais que estava sendo dito e as lágrimas apenas corriam pelo meu rosto,
sem que eu nem as sentisse. O sorriso no rosto de Felippo aos poucos foi se desfazendo, estava
tão na cara que eu não estava nem um pouco feliz com a notícia? Fiquei pensando em quando isso
tinha acontecido. Me lembrei da inauguração do Sara, mas tinha tanto tempo, eu não tinha
nenhuma barriga, não era possível. Ou era? Revivi momentos dos últimos meses; e se tudo que
eu colocava como culpa do Sara, não fosse? Agora eu estava em pânico. Fui desperta dos meus
pensamentos quando um gel hiper gelado foi jogado em meu abdome.
Felippo segurava minha mão com tanta força que eu achava que ele queria quebrá-la. Todos
falavam coisas que eu não entendia, olhei para a tela e aquelas imagens antes confusas agora
tomavam forma. Era um bebê. Todas as conversas pausaram. Um silêncio mortal. Felippo soltou
minha mão e saiu do quarto.
— O que houve? — Foi o máximo de reação que eu consegui esboçar.
— Senhorita Campana, você está entendendo? Não há batimento. O bebê está morto.
— Não entendi. O que aconteceu? — Felippo agora parado na porta apenas me encarava, havia
mágoa em seu olhar.
— A senhorita estava grávida. Várias coisas podem ter acontecido: situações de stress, má
nutrição, entre outras coisas. É relativamente comum o aborto até doze semanas, mas o seu está
retido.
— Desculpe, não estou entendendo.
— Você matou nosso filho, Marcela.
— Mas eu não sabia. — Minha cabeça começou a girar e eu podia ao longe ouvir coisas
desconexas que Felippo proferia aos berros antes que tudo se tornasse um breu o vi sendo levado
para fora do quarto.

Breu. Total escuridão e eu estava sozinha. Sozinha também permaneci quando abri os olhos. Ao
ser perguntada se havia alguém para ser chamado, além de Felippo, não havia ninguém. Não no
Brasil.
Numa conversa mais calma e explicativa com a médica, finalmente entendi tudo. Apesar de ter
sido recomendada uma curetagem, um procedimento cirúrgico para retirada do bebê, recusei.
Não queria ficar de repouso, não podia ficar sem cozinhar, não agora. Precisava do meu refúgio.
Combinamos que se não houvesse expulsão de maneira natural até domingo, faríamos a
curetagem.
Cheguei em casa naquela noite. Felippo não estava, nem a mala dele. Estávamos sozinhos. Eu,
uma sacola de remédios e um bebê morto dentro de mim. Eu era um túmulo ambulante. Passei a
semana toda sem voltar para casa, trabalhando quase o tempo todo. Uma angústia crescente. Ele
não vai sair. No fundo, eu sabia. Eu estava sendo castigada. Com a angústia, cresciam também as
dores e os episódios de febre. Ele estava apodrecendo dentro de mim. Acreditei que merecia
passar por tudo aquilo. No auge dos delírios de febre, simplesmente tentei pegar com a mão um
tabuleiro dentro do forno a lenha, na mesma hora me despacharam para o hospital.
Com uma infecção grave, após a curetagem, fui mantida no hospital por três dias e no total
foram sete dias distante do Sara. Torturante. Nenhum sinal de Felippo. E assim nos mantivemos,
até ele voltar há pouquíssimo tempo para o Brasil. E agora estamos aqui. Eu cozinhando no
casamento dele.
Desperto dos meus pensamentos. Nem fodendo eu ia querer me casar com ele. Voltando para a
cozinha vejo Hugo trabalhando concentradíssimo. Gosto de ver ele trabalhando, é de uma
delicadeza que não se imagina quando se encara aquela postura de bad boy. Nossos olhares se
encontram e sorrimos.
— O alfaiate chegou, precisa fazer uns ajustes no seu terno.
Não tinha certeza se nossa presença no casamento era uma boa ideia, mas eu tinha sido
convidada e estava muito a fim de ir.
CAPÍTULO 8

A imprensa começou a chegar. Foram à cozinha, fotografaram a equipe, entrada, prato principal e
sobremesa. A contragosto, dei uma minientrevista falando sobre o cardápio escolhido. Por que
alguém ia querer saber sobre isso? Após muita insistência e um incentivo de Hugo, deixei
tirarem uma foto. Depois ainda tirei uma com ele, afinal, era o subchefe.
A cerimônia estava marcada para o pôr do sol. Tudo estava lindo. O dia estava lindo, quente,
porém agradável. Da varanda superior eu e Hugo acompanhamos a cerimônia. Foi uma cerimônia
muito bonita.
— Talvez ele tenha feito uma boa troca — comentei, lembrando da nossa conversa na praia.
— Não foi uma troca, você não quis ficar com ele. O nome disso é prêmio de consolação. Um
bom prêmio de consolação.
— Então, você quer o prêmio de consolação?
— Não mesmo! Prefiro você. Estou doido para saber qual roupa eu vou tirar hoje à noite.
— Hugo! Fala baixo! — Dei um tapa em seu ombro — Pode ser que não tenha muito para tirar.
— Marcelinda, que ousada, mal posso esperar para ver — Ele me devorava com os olhos.
Gosto disso.
De volta a cozinha aprontávamos tudo para que nada saísse fora do previsto. Entradas às
19:30h, prato principal às 20h, sobremesa as 20:30h e às 21h curtir a festa.
Assim que soltamos a sobremesa eu deixei a cozinha sob o comando de Hugo, que arregalou os
olhos com a notícia. Sabia que ele daria conta. Agradeci a equipe da cozinha pelo excelente
trabalho e fui me arrumar.

Mais cedo combinei com a maquiadora da noiva uma maquiagem leve, algo que apenas
disfarçasse que eu estava trabalhando até poucos minutos atrás. Durante a manhã tinha
experimentado uns vestidos levados por uma loja que eu conhecia e amava, resquícios do meu
relacionamento com Felippo. Tinha sido uma escolha no mínimo ousada.
Eu fazia os últimos ajustes em frente ao espelho e de costas para a entrada da sala que me tinha
sido disponibilizada, até que ouvi batidas na porta.
— Hugo? Se for você, pode entrar.
Pelo espelho vejo a porta se abrir lentamente, nossos olhares refletidos se encontram
rapidamente e trocamos um sorriso. Depois vejo seu olhar passear pelo meu corpo. Às vezes,
tenho a impressão de que ele é o Ciclope, aquele personagem do X-Men que tem laser nos olhos.
A cada trecho de pele que seus olhos tocam, eu sinto esquentar.
Aproveitando para observá-lo, ele também está com o terno bem ajustado em seu corpo, seus
braços musculosos em destaque. Quando volto minha atenção a seu rosto novamente, ele está de
boca levemente aberta. Objetivo concluído. Ele passa os dedos no colarinho como se tentasse
afrouxar a gravata, parecia sufocado.
— Tá calor aqui, né? — ele falou, rindo.
— Não estou sentindo, não. — Lancei meu melhor olhar sedutor.
Caminhei até ele e o puxei pela gravata, selei nossos lábios rapidamente e quando ia me afastar
ele me segurou pela cintura e colou nossos corpos. A distância era mínima, o desejo máximo.
— Não tão rápido, quero verificar uma coisa — ele falou enquanto sua mão deslizava da minha
cintura para minha bunda. — Sem calcinha, Marcelinda?
— Eu falei que não teria muita coisa para tirar. — Um gemido escapa da minha boca quando
ele aperta com vontade minha bunda.
— E se a gente começasse a festa aqui? — sussurrou no meu ouvido e depois mordeu minha
orelha.
— Eu não me arrumei toda para você tirar minha roupa. Não agora. — Outro selinho. —
Vamos que eu tenho que arrasar na Alta Sociedade Carioca.

Deixamos a sala e nos dirigimos para área da festa. Na entrada pegamos champanhe e logo
fomos parados pelos fotógrafos. Tiramos algumas fotos e seguimos para um espaço como um
lounge. A mão de Hugo parecia um imã na minha cintura. Passamos sorrindo para as pessoas.
Nos posicionamos numa dessas mesas altas e conversávamos sobre coisas aleatórias quando
Felippo e a noiva, Anastácia, vieram até nós. Fomos apresentados e eu podia jurar que ela não
sabia quem eu era.
— Hoje eu entendi o porquê da única exigência do Felippo no casamento todo ser sua
presença. Sua comida estava divina e além de tudo você é maravilhosa!
— Obrigada! Felippo tem muito bom gosto. Você é linda. A cerimônia foi muito bonita e a festa
está uma delícia.
— Quando formos a São Paulo, quero ir ao Sara. Sempre quis ir, mas ele sempre dá uma
desculpa.
— Ele no gosta muito do Sara. Mas você será muito bem-vinda.
— Claro que eu gosto, mas sempre há tantas opções em São Paulo. — Ele estava muito
constrangido.
— Imagino que si. A comida é boa né? Tanto que me quis aqui.
— É premiado. Acho um máximo. Ainda mais comandado por uma mulher jovem, lindíssima.
— Acredita que um ex-namorado queria que eu largasse o Sara?
— Que absurdo! Ridículo! Quem faz esse tipo de coisa?! Ainda bem que é ex. Eu estava
observando vocês antes de vir aqui. Super apaixonados. São um lindo casal.
— Obrigada! — Não ia me dar o trabalho de negar.
— Aproveitem a festa!
— Pode deixar. — Vi eles se afastarem e dei um suspiro. E sinto Hugo me puxar para um
abraço.
— Ela não sabe quem você é.
— Talvez seja melhor assim. — Dei ombros.
— Quer dizer então que somos um casal?
— Você viu que ela mandou a gente aproveitar a festa, né? Então vamos dançar —
desconversei.
— Eu não sei dançar, Marcela.
— Eu também não sei. Vamos passar vergonha juntos.
— Você está bêbada?
— No o suficiente.
— Vou precisar de algo mais forte que champanhe para me fazer dançar. Vou pegar uma dose de
whisky.
— Quero uma também!
— Precisa não, está bem felizinha já.

Eu estava louco para tirar a roupa da Marcela e ela queria dançar. Nada mais de álcool para
ela. Quero ela muito consciente mais tarde.
Com muita resistência ela conseguiu me arrastar para pista de dança e a competição para ver
quem dançava pior estava acirrada. Mas estávamos nos divertindo muito e a partir de um dado
momento, parecia que estávamos em um universo particular, em outra frequência. Era assim que
eu me sentia com ela. Era difícil explicar, muito mais fácil sentir.
Quando eu estava com ela, tudo funcionava de forma diferente. Eu realmente não sei explicar,
mas era leve, intenso, era algo que eu sentia pelos poros. Não posso voltar para São Paulo e
deixar isso no Rio de Janeiro.
Quando a música lenta começou, Marcela se pendurou no meu pescoço e sem tirar nossos pés
do chão com meus braços entrelaçados em suas costas e minhas mãos repousando em seus
quadris enquanto ela alternava entre me olhar nos olhos cantarolando ou enterrar a cabeça em
meu pescoço; apenas nos balançávamos de um lado para o outro. Hora trocando beijos, carinhos,
ou apenas sendo. O que quer que a gente fosse.
Sentados, no que restou do altar da cerimônia, vimos o Sol nascer. Eu vi mesmo, Marcela
estava cochilando. E ficar até aquele momento tinha sido ideia dela.
— Marcela — Passei levemente o dedo em sua bochecha, tentando um despertar tranquilo. Ela
apenas resmungou. Passado um tempo, eu tentei novamente.
Desisti, quando nosso carro chegou. Num sono profundo, a peguei no colo e a coloquei no
carro. O trajeto até o hotel levou quase 30 minutos e confesso que também cochilei com Marcela
em meus braços.

Chegando ao hotel, o motorista tentou nos acordar, só obtendo sucesso comigo. Me restou levar
Marcela no colo. Achei que não fosse conseguir, mas a ponho na cama, tiro suas sandálias e
ajeito sua coberta. Quando vou sair do quarto…
— Hugo, aonde você vai? Fica aqui.
— Você não estava dormindo? — Não podia acreditar.
— Estou, mais ou menos — falou sonolenta, mas riu.
— Marcela, você é pesada sabia?
— Tá me chamando de gorda? — Ela fazia uma cara indignada. Mas sorriu.
— Não! Jamais! Ossos densos, apenas. — Ela revira os olhos.
— Depois conversamos sobre isso. Deita aqui comigo.
Marcela tinha a maior cara de cachorro abandonado. Não havia como dizer não. Tirei meus
sapatos, a camisa e me deitei ao lado dela, porém com certo afastamento.
— Você não queria tirar meu vestido?
— Eu quero. Quando você acordar ainda vai estar com ele. Aí eu tiro.
— Tira agora — ela disse, montando em mim.
— Marcela, — falei sério — você não está bem. Não vamos fazer isso agora.
— Eu não estou bêbada. Só cansada.
— Eu também estou cansado, vamos dormir. — Ela fez a cara emburrada mais linda que eu já
vi. — Deita aqui — falei, batendo no meu peito. — Vem babar em mim, eu sei que você gosta.
— Ela sorriu.
Fingindo ainda estar brava desceu de cima de mim e se deitou de lado, de costas para mim, um
pouco afastada. Puxando-a para perto de mim nos encaixei numa conchinha.
— Só para você não ter dúvidas. — Aproximei ainda mais nossos corpos fazendo que ela
sentisse minha ereção. — Não há um segundo em que eu não te deseje.
Adormecemos abraçados. Acordamos babados. Ainda abraçados.
— Precisamos parar de babar um no outro. — Dei um selinho longo em seus lábios.
— Bom dia — ela riu — Que dor de cabeça.
— De onde eu venho se chama ressaca.
— Engraçadinho. Como viemos parar aqui?
— Você fingiu que estava dormindo e eu te carreguei no colo até aqui.
— Ah, sim, naquela hora em que você me chamou de gorda. — Ela fez um biquinho fingindo
estar brava.
— Não chamei, não. Ossos densos.
— É a desculpa mais deslavada que eu já ouvi. E depois?
— Você tentou se aproveitar de mim. Mas eu resisti.
— Eu fiz algo tipo isso? — ela disse, sentando-se sobre meu quadril.
— Exatamente assim. Mas parecia que iria vomitar em mim.
— No ia! Que mentiroso! — falou indignada, batendo em mim.
— Preferi não arriscar. Mas eu falei que iria fazer uma coisa quando você acordasse.
— O que? — Ela tinha o olhar mais provocador que eu já tinha visto na minha vida.
— O que estou esperando desde o momento em que coloquei meus olhos em você usando
apenas esse pano enrolado.
— Não fala assim do meu vestido. Ele é lindo.
— Mas você sem ele é ainda mais bonita. Eu quero tirar esse vestido de você.
— Podia ter tirado ontem. — Deu ombros.
— E correr o risco de você não lembrar do orgasmo que vai ter? — Ela imediatamente corou.
Num movimento rápido, troquei nossas posições e encarando seus olhos cheios de desejo dei
início a um beijo calmo, mas Marcela estava com pressa. Muita pressa. Entendi o recado.
Separei nossos lábios e pelo seu pescoço trilhei um caminho de beijos, mordidas e chupões até
chegar em seu colo. Com as mãos tateava o vestido procurando o fecho. Onde diabos estava o
fecho dessa merda? Marcela ria e estava se divertindo.
— Está rindo? Se você não me disser como se tira esse vestido, eu vou simplesmente rasgar.
— No! Aqui do lado.
— Porra, estou desde ontem esperando para tirar esse vestido!
Vestido finalmente retirado e eu tinha aquela visão na minha frente! Que mulher! Parecia um
banquete. Eu estava faminto.
— Ok, agora sim! Vamos começar de novo!
— Hugo… — Eu não entendia bem se era uma reclamação ou uma súplica.
Um beijo. Sigo para sua orelha; uma mordida leve. Novamente desço fazendo minha trilha de
beijos, mordidas e chupões seguindo bem lentamente pelo pescoço e colo, até chegar neles.
Aqueles seios que me fazem querer morar ali. Beijo cada um, os cumprimentando, afinal, acabei
de chegar, sou muito educado. Com a ponta língua lambo um de cada vez, como se fosse um
sorvete de casquinha. Decido me dedicar exclusivamente ao direito enquanto trabalho o
esquerdo com a mão. Um trabalho coordenado alternando a pressão dos meus dedos e da minha
boca. As mãos de Marcela apertando meus braços me davam indícios de que eu estava indo bem.
Quando passo a me dedicar com a boca ao seio esquerdo a ouço gemer e se contorcer.
— Hugo… Eu...
— Pode gozar que eu estou só começando.
Com a mão livre percorro bem devagar a lateral de seu corpo e subo pela face interna de sua
coxa. Posso sentir a respiração descompassada de Marcela e antes que eu pudesse, de fato,
chegar a tocar seu sexo, a sinto se contorcer.
Ela puxou minha cabeça e me deu um beijo calmo. Precisava de um tempo. Deitei minha
cabeça sobre sua barriga enquanto aguardava liberação. Quando sua respiração voltou ao
normal, voltei a distribuir beijinhos, agora por seu abdome.
Segurando em seu quadril, a viro de bruços na cama. Uma risadinha de susto, ela se espreguiça
e me olha por cima dos ombros, morde o lábio. Me provoca, Marcela.
Começando pelos seus pés, traço uma nova trilha de beijinhos e chupões. Sim, eu amo trilha de
beijinhos e chupões. Sigo pelas pernas, chegando naquele acontecimento que é a bunda dela, não
resisto e dou uma leve mordida. Recebo um gemido como resposta. Sigo subindo e chego em
suas costas. Quantas pintinhas será que tem aqui? Quero um dia poder contar e beijar todas elas.
Chego em sua nuca e defino com área sensível. Cada beijo um arrepio. Estando tão perto de sua
boca roubo um beijo rápido.
No caminho de volta, mais uma mordida na bunda, agora do outro lado, para ninguém ficar com
ciúmes. Mantendo-a deitada afasto um pouco suas pernas de forma que minhas mãos tenham
acesso livre a parte interna da coxa. Distribuo leves carinhos, até sua virilha, sem tocar em seu
sexo. Assim permaneço, quase lá. Pode ser que configure tortura, mas aquele tipo bom de tortura.
Marcela, impaciente, começa a se mover em direção às minhas mãos. Finjo que não é comigo e
continuo o que estava fazendo, apenas esperando o sinal. Ela empina o quadril, tentando me
alcançar. O sinal que eu queria.
— Hugo, por favor…
Pegando Marcela pelos quadris, a coloco de forma que seus joelhos estão apoiados na cama.
Beijinhos e mordidas naquela bunda divina. Mais gemidos. Com uma ampla visão de onde vou,
literalmente, cair de boca, lambo os beiços. Quente, úmida e agridoce. Deliciosa. Ao sentir que
ela está ao ponto, retiro de uma vez a calça junto da cueca e eu apenas me posiciono em sua
entrada. Quanto tempo será que ela resiste?
— Hugo, pelo amor… No me torture — ela suplica.
Sinais, ler todos os sinais. Sem mais delongas, segurando firme em seus quadris, entro
lentamente nela. Aguardo para que ela se molde em mim e começo com movimentos lentos que se
intensificam até que juntos atingimos o ápice.
Agora éramos apenas corpos suados, embalados e extasiados num fim de manhã de domingo no
Rio de Janeiro. Eu quero mais que isso.
— Hugo?! — ela fala, levantando sua cabeça que estava apoiada em meu peito e me olha.
— Sim? — Suspeito do que vem a seguir.
— Estou com fome.
— Sério que vai ser sempre assim? — Não podia deixar de implicar, mas ganhei um tapa. —
Roubei uns bem-casados ontem. Quer? — Quero esse sorriso todas as manhãs.
Tardes e noites também.
CAPÍTULO 9

— Marcela, vamos! Eles disseram que só servem o brunch lá até uma hora da tarde — falei
deitado, já pronto, mas esperando a beldade se arrumar.
— Calma! Já estou indo — ela gritou do banheiro.
— Acabou sua pressa, né? Comeu tudo que eu trouxe ontem. Não deixou nada para mim!
— Eu achei que fosse tudo para mim!
— Tinha sete bem-casados! Sério que você achou que eram todos para você?
— Hugo, já pedi desculpas. Eu estava realmente com muita fome.
— Ok, Marcela. Só vamos, por favor.
— Depois fala do meu humor quando eu estou com fome. Já viu o seu? Caramba!
Ela sai do banheiro linda. Um vestido floral e cabelos presos num coque. Pegou a bolsa e os
óculos e ficou parada na porta. Como ficar bravo com essa mulher? Que sorriso!
— Vamos?
Batidas na porta a assustam, eu não resisto e gargalho. Ela abre a porta e vem até mim com um
jornal e uma revista.
— No creo! Que mierda!
— Que foi?!
— “Ontem, no casamento do ano, quem roubou a cena foi o casal de chefes de São Paulo: a
argentina, Marcela Campana, chef do Sara Bistrô, e seu subchefe, Hugo Coelho. Após servirem
um excelente jantar, arrasaram na pista de dança com muita animação, paixão e cumplicidade. O
casal levou o destaque de casal mais animado e mais romântico. Marcela ainda ganhou o
destaque de mais deslumbrante, com um vestido Mariú.”
— Deixa eu ver. — Marcela praticamente arremessou a revista. E se sentou de costas para
mim. — Estamos bonitos nas fotos! — falei, rindo.
— Não estou achando graça.
— Qual o problema, Marcela?
— O problema é que nós não somos um casal! — Ela se vira para mim.
— É só isso?! Podemos ser um casal.
— Hugo, não estou brincando!
— Eu também não!
— Eu sabia que isso ia dar errado.
— O que deu errado?! Tudo isso é porque a gente saiu numa revista? Quem liga se a gente é um
casal ou não? Não éramos ontem? E antes de ontem? E hoje de manhã? Não somos casados, não
somos namorados, mas aposto que existe alguma definição para casal no dicionário que explica
isso aqui. Não precisa surtar.
— Yo no estou surtando! — Ela levanta, abrindo os braços. Claramente surtando.
— Só digo uma coisa: a gente é tão, mas tão casal, que estamos tendo uma DR — falei,
abraçando-a por atrás e dando um beijo em seu ombro. — Quer coisa mais casal que isso?
— Te odeio sabia?!
— Duvido! Agora, nós como um casal não casal, podemos comer?
— Eu estou há horas te esperando! — Me deu um selinho.

Um brunch na Confeitaria Colombo do Forte de Copacabana. Programa clássico, me garantiu.


O Rio de Janeiro não tinha um defeito. Todos os lugares eram lindos, o clima agradável e o
principal, Marcela estava comigo. O único problema era que nós íamos embora hoje.
Aguardando o bondinho para subir ao Pão de Açúcar, Marcela parecia inquieta, pensativa.
— Marcelinda, o que tanto você pensa? Tá quase saindo fumaça da sua cabeça.
— Hugo sei que eu falei que íamos embora hoje, mas eu quero ficar, quero ir a um lugar e só dá
para ser na segunda. Posso comprar uma passagem para você…
— Eu posso ficar? Quer dizer, eu teria que ver com a minha chefe se ela me libera… — disse,
abraçando-a por trás e beijando seu pescoço.
— Acho que se você pedir com carinho e prometer recompensar, ela deixa.
— Sei de uma recompensa à altura. Posso saber o que você quer fazer na segunda?
— Acho que não faz seu estilo, mas vou a um samba.
— Você samba?
— Não decentemente, mas amo ouvir. A alegria das pessoas e o lugar é maravilhoso.
— E eu posso ir?
— Você quer ir ao samba, tatuado? Achei que você fosse do rock.
— Eu sou, só quero aproveitar ao máximo o Rio de Janeiro. Ter o que contar para família
quando for no Natal.
— Quem disse que tem folga no Natal?
— Ué?! O pessoal do Sara. É mentira?
— Que fofoqueiros! É verdade!
— Isso é bem legal da sua parte. Acho um feriado muito família. A minha sempre passa junta.
— É bem família mesmo. Por isso dou folga. Gostaria de dar mais tempo, sei que nem todo
mundo tem família perto. No dá tempo de ir à Argentina e voltar. Até dá, mas é muito cansativo.
— Você já foi?
— Já, algumas veces. Para jantar. No Natal. Aniversários.
— Você saiu de São Paulo só para jantar na Argentina?
— Si. Família é importante para mi. A minha está lá. Um jantar e posso aguentar mais alguns
meses.
— Por que está em São Paulo, então?
— No foi algo que planejei. Aconteceu. Não estava feliz na Argentina, se era para ser infeliz,
que pelo menos conhecesse outro lugar.
— Você é infeliz?
— Ninguém é feliz o tempo todo — ela suspirou.
— Não foi isso que perguntei.
— Eu tenho meu restaurante, pelo qual sonhei e lutei muito, mas estou longe da minha família e
amigos.
— Você não tem amigos em São Paulo?
— Depende.
— Do que, Marcela? Tem ou não tem?
— Depende de várias coisas.
— Se você estiver passando mal. Estiver no hospital. Para quem você liga? — A cara que ela
fez me mostrou que eu havia tocado num ponto delicado e eu imediatamente queria poder retirar
as palavras.
— Eu ligo…
— Para mim, ok? Liga para mim.
— Hugo…
— Seu amigo, Marcela, amigo. Contato de emergência. Você não pode não ter com quem
contar.
— Ok.
— Agora tenho outra pergunta.
— Ah, não. Chega. Você faz muitas perguntas difíceis.
— Sou seu contato de emergência. Preciso saber.
— No quero mais. Eu ligo para o Paulo.
— Quem é esse mané? — Eu fico indignado e Marcela gargalha, me deixando mais indignado.
— Com ciúmes do contador do Sara. Que fase, tatuado…
— Você prefere ter o contador como contato de emergência do que eu? Que fase, Marcelinda?!
— Eu não te conheço.
— E conhece o contador?
— Bom, eu confio nele. Eu confio meu único bem a ele. Tudo o que sou a ele.
— O Sara não é você e não precisa ser tudo que você é. Eu descobri isso aqui, no Rio. Você é
muito mais que o Sara, tem muito mais Marcela fora do Sara. E ela é bem legal. — Encurtei a
distância entre nós, apenas para colocar uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. — Vamos
fazer o seguinte. Um jogo. A gente faz uma pergunta sobre algo que quer saber do outro. Mas
também temos que responder à pergunta.
— Ok.
— Você começa.
— Por que a cozinha?
— Eu trabalhava num escritório, comia mal, não era feliz. Queria comer a comida da minha vó.
Liguei para ela. Pedi a receita. Ficou uma merda. — Não pude evitar de sorrir com a lembrança
e Marcela se divertia. — Tentei no dia seguinte e não parei mais. Aí eu estava de bobeira na
faculdade e me chamaram para ver uma aula de chipa. Juro. Achei que era para fazer chips em
geral. — Marcela gargalhou — Nunca nem tinha ouvido falar sobre chipas, mas já estava lá, né.
Você falando foi um desastre, estava muito nervosa mandando um portunhol bem enrolado, e eu
não entendi uma palavra. Mas, você começou a cozinhar. Eu queria que você pudesse se enxergar
cozinhando. É mágico. Parece uma dança, uma música que só você escuta, e tudo o que a gente
pode fazer é admirar. Se um dia eu conseguir passar o que você passa sem falar nada, apenas
saindo pelos poros, eu vou ter certeza de que encontrei meu lugar no mundo.
— Acho que obrigada, então — ela falou, corada.
— Sua vez!
— Eu aprendi a cozinhar pelos poros, como tu dices. Minhas abuelas sempre cocinaram e eu
estava por perto. Nunca pareceu tão certo. A única coisa que tenho certeza.
— Só isso?
— Eu respondi sua pergunta, no?
— Que má vontade.
— No é simples para mi como é para você falar de minha vida. Yo sou um bicho do mato. Por
isso estou na cozinha.
— Qual a diferença entre a Marcela do Rio de Janeiro e a Marcela de São Paulo?
— Essa é sua pergunta?
— Sim.
— No existe passado nem futuro. Só presente. No tem restaurante, no tem sócio, nem contador.
No tem preocupações — ela deu ombros.
— A Marcela aqui do Rio é mais leve, feliz e acessível.
— Então concordamos.
— Na verdade, em parte, acho que você poderia ser mais acessível em São Paulo, o resto é
consequência.
— Eu sou acessível! Não fico trancada no escritório, todos podem falar comigo.
— Você poderia conversar com a gente de vez em quando, sair com a gente.
— No acho adequado.
— Só as vezes, nos aniversários, por exemplo. Vá só aos aniversários. Sexta tem a
comemoração da Iza.
— Tenho que dormir, trabalho cedo no sábado.
— Vai ter que arranjar outra desculpa, todo mundo sempre aparece para trabalhar no sábado,
as vezes de ressaca? Sim. Mas ninguém nunca fez uma grande merda.
— No dia que você chegou ralado, que caiu de skate, você estava de ressaca?
— Na verdade… — Cocei minha barba. — Minha vó sempre dizia que quem fala a verdade
não merece castigo, espero que ela esteja certa, porque, na verdade, eu não estava de ressaca. Eu
ainda estava bêbado.
— Eu sabia! Você estava muito estranho naquele dia.
— Primeira e última vez que aconteceu. Juro, nem adolescente eu fiz aquilo. Mas foi um dia
muito difícil. Um dos mais difíceis.
— Por quê?
— É a sua pergunta? — Ela parece pensar.
— É, mas eu não vou responder a minha agora. Então tudo bem se você não responder a sua
agora. — Ela olhava minha alma através dos meus olhos.
— Vamos fazer o seguinte — eu disse, colocando uma mecha atrás de sua orelha — Eu não vou
responder a minha agora. Vou responder em outro momento qualquer e você responde quando
você quiser, ok?
— Ok.

Já no Pão de Açúcar, novamente, nenhum defeito. O Rio era realmente uma cidade
maravilhosa. Passamos muito tempo apenas admirando a paisagem em silêncio com nossas peles
se tocando. Tomamos sorvete ao pôr do sol.
Cansados, optamos por comer pizza no quarto. O combinado era: descansar muito já que
iríamos embora direto do samba. Falhamos miseravelmente. Transamos a noite toda. Com uma
fome gigante pós-sexo, Marcela me convenceu a de novo sair para um café da manhã, dessa vez
no Parque Lage. Rio de Janeiro mais uma vez não decepcionou. Depois fomos andando para
Lagoa Rodrigo de Freitas, mais uma vez Marcela falou que era perto. Nem tanto, mas ok. Lá
andamos de bicicleta e tomamos água de Coco.
— Pronto, agora já tem bastante coisa para contar para sua família no Natal. Só vai ficar
faltando o Cristo Redentor, uma pena estar tão nublado hoje.
— Tudo bem, na próxima a gente vai.
— Que próxima, Hugo? — Ela me olhou, cruzando os braços e arqueando as sobrancelhas.
Queria parecer brava, mas falhava lindamente.
— Próxima vez que a gente voltar no Rio.
— Quem disse que “nós” vamos voltar? — Fazendo aspas com as mãos.
— Eu! Aquele artigo na revista vai trazer a gente várias vezes para cozinhar na Alta Sociedade
Carioca.
— Não vou sair da minha cozinha tão cedo. E você, nada de gracinha no Sara. Melhor ninguém
ficar sabendo, inclusive.
— Da gente?
— Não existe a gente, Hugo. Estou falando sobre ser subchefe.
— A gente existe aqui no Rio, sempre vamos existir aqui, pelo menos. Pode até não rolar de
novo, mas não sei se vai ser possível fingir que não aconteceu.
— Vai ter que dar, mocinho.
Checkout feito. Malas no carro e partimos para o tal samba. O Samba da Pedra do Sal,
patrimônio imaterial da Cidade do Rio de Janeiro, acontecia tradicionalmente todas as segundas
ao pôr do sol com a vista para Baía de Guanabara.
Sentado na pedra, apenas observava Marcela em máxima felicidade. Realmente não sambava
decentemente, mas mantinha movimentos graciosos, típico de quem está feliz com o que está
fazendo e nada mais importa. De vez em quando ela vinha e me roubava um beijo. Cada beijo
inevitavelmente era uma despedida. Eu sentia. Acho que ela também. Era o que eu queria que ela
sentisse, para que, de fato, ela percebesse que não havia necessidade de “nós” só existirmos no
Rio de Janeiro.
Chegada a hora de irmos embora, um bico gigante se formou nos lábios de Marcela.

A dor da partida. Amo o Rio de Janeiro com todas as minhas forças. Talvez, meu lugar favorito
no mundo. Apesar de tentar disfarçar, e ter consciência de estar falhando, estar aqui com Hugo
tinha sido maravilhoso. Mas a fantasia acabou e precisamos voltar para São Paulo. Não existe
Hugo e eu em São Paulo. O que acontece no Rio, fica no Rio. Era o combinado. Repito para ele
ao longo de nossa estadia e pode parecer que quero lembrá-lo disso, mas parte de mim precisa
ser lembrada também: não existe “nós” em São Paulo.
Caminhamos para o carro em silêncio: mão dadas e passos lentos. Extremamente lentos. Quero
adiar a partida. Sinto que ele também. Nos olhamos. Nos beijamos. Nos olhamos. Nos beijamos.
Nos abraçamos. Ninguém fala nada. Não tinha jeito. Chegou a hora.
— Eu dirijo.
Ele falou com muito pesar. Queria que ele dissesse que não vamos, ou que dirigisse para outro
lugar. Qualquer um. Onde não teria fim esse universo particular. Entramos no carro, colocamos
os cintos de segurança. Ele deu partida. Não nos movemos, apenas olhávamos para frente vendo
ao longe um futuro inevitável. “Desliga o carro” eu queria gritar, mas como nada saía, liguei o
rádio. I Don’t Wanna Miss a Thing, do Aerosmith começava. Merda. Ele engatou a marcha e
saímos.
De volta para casa. São Paulo. Não era o nosso lar, pensei. O Rio de Janeiro era. Que espécie
de pensamento é esse, Marcela? Desde quando você ficou melosa e apaixonada? Efeitos
colaterais de altas doses de Hugo Coelho.
— Prontinho. Entregue, chef Marcela. Até amanhã — ele disse, já descendo do carro.
— Hugo, são três e meia da madrugada. É perigoso.
— Pode deixar. Estou acostumado — disse, abrindo a mala do carro e retirando sua bolsa.
— Hugo, não precisa ser assim. — Segurei-o pelo braço, mas ele se soltou.
— Precisa. Não gosto de despedidas.
— Nos veremos amanhã, e depois e depois. Não tem despedida.
— Se o que aconteceu no Rio fica no Rio, amanhã temos chef Marcela e Hugo estagiário. Logo,
é despedida.
— Quando eu disse que daria errado era sobre isso que eu estava falando.
— O que você quer, Marcela? Me diz o que quer de mim? Porque o que a sua boca diz não
combina com o que você demonstra.
Ele me olhava nos olhos. Mesmo sem me tocar eu podia sentir seu corpo me pressionando
contra a lataria do carro. Estávamos tão próximos. Eu queria tanto beijá-lo. Abraçá-lo. Amá-lo.
— Meu contato de emergência — suspirei. Não era o que eu queria falar ou fazer, mas foi o
que saiu. Como eu amo me autossabotar. — Eu não vou conseguir dormir se você for embora.
Vou ficar preocupada e eu realmente preciso dormir. Fica, por favor — supliquei.
Ele não conseguia esconder o desapontamento. Não o culpava. Até eu estava decepcionada.
CAPÍTULO 10

FEVEREIRO DE 2015
Quase duas horas de reunião e eu não fazia ideia do que estava sendo falado. Não conseguia tirar
os olhos de Marcela.
Já tinha perdido as esperanças de vê-la novamente. Tantos anos depois, depois de caçá-la por
São Paulo inteira. Ela tinha desaparecido. Nenhuma notícia em mais de dez anos. E agora ela
está aqui, sentada na minha frente há apenas uma mesa de distância. E eu não sei como agir.
Parece como antigamente, eu ao lado de Marcela me comportando como um adolescente.
Hora ou outra nossos olhares se cruzam e ela não parece desconfortável, já eu achava que a
sala estava pouco oxigenada.
Terminada a reunião, vejo Marcela se afastar com Clara. O diretor me chama e sou impedido
de ir atrás dela. A conversa leva mais tempo que o esperado e quando estou liberado não há mais
sinal de Marcela. Saio e vou até a moto. Quando percebo, estou na frente do Ruiz.
Apesar de já ter ouvido falar várias vezes sobre o restaurante, nunca tinha me interessado por
ele. Fiquei na porta parado por vários minutos, ponderando se deveria ou não entrar. Tudo que se
repetia na minha mente era a voz de Marcela e ela dizia “trabalho é sagrado”. Decidi que agora
não era um bom momento. Preciso colocar meus pensamentos no lugar. Não há lugar melhor para
fazer isso do que a cozinha. Sigo para o Malagueta e chego com o restaurante lotado, no meio do
almoço. Tudo que eu precisava.

Um serviço bem cheio no almoço era exatamente o que eu precisava.


Mas não teria.
Não daria essa sorte.
O serviço, de fato, estava movimentado. Que inveja. Inveja de quando tudo que eu tinha que
fazer era cozinhar. Mas eu tinha acabado de me livrar de quatro embustes que tinha como sócios.
Era libertador e aterrorizante ao mesmo tempo. Tudo dependia de mim. Exceto a cozinha, o lugar
onde mais queria estar. Mas estou atrás de uma mesa, tentando me encontrar nessa pilha de papel.
Não é uma reclamação. Apenas uma constatação. Faz parte do processo. Faz parte do processo,
Marcela. Repito para me convencer.
Mas sabemos que esse não era o meu maior problema. Ele tinha nome, sobrenome e muitas
tatuagens: Hugo Coelho. E numa disputa acirradíssima pelo primeiro lugar, também tinha nome,
sobrenome e queria muitas tatuagens: Sara Campana.
Falhando em me concentrar na papelada, desço à cozinha na intenção de, pelo menos, pegar o
fim dos executivos. Mas ter uma equipe boa tem suas desvantagens. Tudo sob controle, não havia
nada para eu fazer. Então decido fazer um prato surpresa para o jantar.
Me vejo pega por uma armadilha da memória que me leva de volta a época do Sara Bistrô.
Cardápios diferentes todos os dias no almoço e no jantar. Que loucura. Deliciosa loucura.
Com o fim do Sara e a chegada da Sara não era prudente manter o mesmo esquema no Ruiz.
Quem precisa de imprevisibilidade no cardápio quando se tem um bebê num cercadinho dentro
da cozinha que pode chorar a qualquer momento por qualquer motivo?
Quase todos os funcionários em algum momento exerceram seu papel de tios e tias de Sara:
seja dando uma mamadeira, fazendo as mais diversas papinhas para uma criança que só ingeria
alimentos em tons de laranja (ela ficou com a pele laranja por meses), ajudando-a a engatinhar,
brincar com tampas de panela, dar seus primeiros passos nessa cozinha e tantas outras coisas que
eu listaria se não tivesse sido interrompida.
— Por que você não foi me buscar? — Sara estava com os braços cruzados e sobrancelhas
arqueadas em indignação. Aquela postura… tinha que ser igual? Enfim.
— Boa tarde, cozinha? Oi, mãe? Ninguém te deu educação? — Voltei a olhar o prato que eu
montava. E ouvi ela bufar.
— Boa tarde, cozinha. — Um “boa tarde, Sara” foi ouvido quase em uníssono. — Oi, mãe. —
ela falou manhosa, me abraçando por trás e apoiando a cabeça nas minhas costas. Lá vem.
— Oi, mi amor. Tudo bem?
— Por que você não foi me buscar?
— Precisava resolver umas coisas aqui. Como esse prato. O que acha?
— Não provei, não posso emitir opinião. O que é?
— Primeiro prove, depois te falo.
— Sabe que não vai me pegar com esse papinho.
— Bom, vai ficar sem saber, então. Por que não me esperou em casa?
— Você sabe por quê.
— Verbalize, por favor — ela bufa — Sara, preciso que você fale comigo para saber o que
você quer. Não posso ficar tentando adivinhar.
— Quero saber como foi a reunião.
— Vamos conversar sobre isso quando chegarmos em casa. Por que não me conta como foi na
escola hoje?
— Tudo certo.
— Desenvolve, Sara.
— Que saco. Foi tudo bem, na aula de ciências falamos sobre astronomia. Acho que quero ser
astronauta.
— O que te faz querer ser astronauta?
— Não ter que falar com as pessoas.
— Não dá para escolher uma profissão se baseando nisso.
— Falou a pessoa que está há anos escondida na cozinha…
— Como você pode ver não está dando certo. Tenho que falar com várias pessoas. E estou
prestes a fazer minha estreia na TV. Se você trabalhar isso desde cedo o sofrimento será menor.
— Ok. Vai demorar? Eu quero ter logo a conversa de quando chegar em casa.
— Ainda tenho que resolver algumas coisas no escritório. Aproveite para trabalhar sua
ansiedade. Você pode ficar e me esperar ou ir para casa como eu tinha combinado com a Isabel.
— Não briga com ela.
— Deveria brigar com você, né, mocinha? Faço ideia do quanto você perturbou a pobre Isabel
para ela resolver te trazer aqui.
Ela saiu em retirada ao escritório. Dispensei Isabel que aguardava no salão e voltei para a
cozinha. Terminando o prato apresentei para a equipe. Passei instruções ao subchefe enquanto
Sara fazia seu dever de casa no escritório. Aproveitei para enfrentar uma parte da papelada e
fomos embora antes que começasse o serviço do jantar.

O trajeto foi silencioso. Apenas o rádio bem baixinho no fundo. A tarefa de fazer Sara lidar
com a ansiedade dela sem me deixar maluca tem sido desafiante.
Eu nem tinha fechado a porta e ela me atacou.
— Pronto, estamos em casa.
— Sara, que tal um banho? E vamos fazer o jantar. Conversamos enquanto preparamos. Pode
ser?
— Mas mãe... — ela falou chorosa, jogando-se no sofá.
— Bom, eu vou tomar banho.
Subi e a deixei com um bico gigante no sofá. Eu que precisava de preparação para o que estava
por vir. Falava da ansiedade da Sara, mas tentava dissipar a minha com um banho quente.
— Pensei numa massa rápida com pesto, o que acha? — Ela estava no sofá já de pijamas.
— Acho que você pode parar de enrolar.
— Que bom que você concordou com o cardápio. Vai fazendo o pesto que eu faço a massa —
Ela não se moveu. — Sara, vem, vamos conversar aqui — ela bufou. — Gostaria muito que você
anulasse o hábito de bufar, parece que estou falando com um ruminante.
— Excelente início de conversa. Me chamando de vaca.
— Menos, Sara. O que quer saber?
— Tudo — ela falou e colocou os ingredientes para o pesto no pilão.
— Para começar, eu aceitei. Vou ser jurada.
— Amém, Marcela Campana. Amém. Posso ir um dia na gravação? Prometo que não conto
nada para ninguém.
— Aí talvez tenhamos um probleminha. Os meus colegas… — Sou interrompida
— Quem são? São legais?
— Como eu estava falando... tem a Clara Modesto, como você já sabe, o Fragalli; aquele
crítico de aparência fofinha, mas que faz críticas bem malvadas. Acho que você lembra quem é.
— Me lembro, mais ou menos. E o outro. Quem é o outro chef?
— Hugo Coelho. — falei tão baixo que Sara não pôde ouvir.
— Quem, mãe? Não entendi.
— Hugo Coelho, Sara.
A cara de espanto, lágrimas correndo. As dela e as minhas. O silêncio. Continuamos
trabalhando em silêncio. Coloquei a massa na água. Escorri, juntei ao molho, servi os pratos e
nos sentamos à mesa.
—Você o viu hoje? — falou, levantando os olhos do prato e encontrando os meus.
— Sim.
— Como ele estava?
— Atrasado, para não perder o costume. — Não pude deixar de sorrir e com certo alívio no
peito, consegui arrancar um de Sara também.
— Sobre o que vocês conversaram?
— Na verdade nós não conseguimos conversar.
— Como não conseguiram? Você fugiu?
— Não é como se eu tivesse saído correndo. Mas como ele se atrasou, precisou ficar
resolvendo umas coisas depois da reunião. Eu fui saindo e conversando com a Clara, cheguei no
carro e ele ainda não tinha aparecido. Aí fui para o Ruiz e o resto você já sabe.
— Não acredito que você foi embora.
— Sara, não vão faltar oportunidades. Vamos trabalhar juntos de novo. Vou vê-lo todos os dias.
— suspirei. Nem eu mesma queria acreditar nisso.
— Eu não estou pronta — ela falou quase num sussurro.
— Vem aqui — chamei-a para meu colo e ela logo se aninhou. — Eu acho que eu também não
estou, mas você sabe que eu não vou mentir. Eu sei que você achava que ia ter mais tempo e sei o
quanto você quer isso e o quanto tem medo. Eu vou te dar o máximo de tempo que conseguir. Mas
isso significa que nada de gravação para você, a não ser que você tenha decidido que é a hora,
ok?
Ela apenas concordou com a cabeça e permanecemos assim até que ela pegou no sono. Eu a
levei para o quarto e segui para o meu. Me joguei na cama e permiti que as lágrimas corressem
sem controle. Como se não bastasse administrar o Ruiz, dar conta da Sara, tentar não esquecer de
mim mesma no processo agora ainda tinha que lidar com o Hugo. Totalmente fora dos meus
planos para agora. Só mais um recado do universo para me lembrar que embora eu tente ter o
controle sobre tudo, não controlo merda nenhuma.
Abro os olhos e um par de olhos me encara a milímetros de distância no escuro.
— Sara! Já não pedi para você não fazer isso? Quer me matar do coração?
— Desculpa. Mas você não pode trabalhar no Bestchef.
— Sara, são três e quarenta e cinco da madrugada. Amanhã a gente conversa. Deita aqui. —
Abri espaço para ela que tão logo se deita começa a chorar.
Eu ainda estou aprendendo a lidar com tudo isso. Sara sempre foi uma criança diferente.
Apesar de não ter referências eu sempre pensava que não era daquele jeito que as coisas
deveriam ocorrer. Ela era no mínimo peculiar. E eu que nunca tinha convivido com uma criança,
percebi.
Mas sempre foi ok, tudo previsível. Tudo dentro do padrão Sara de normalidade. Mas agora
tínhamos mudanças constantes de humor. E isso me apavorava. Ela que nunca chorava, agora
chorava por qualquer coisa. Hipersensível. Com essa nova Sara eu ainda estou aprendendo a
lidar.

— Sara, seu leite está pronto — gritei em direção a escada.


— Não quero.
— Por favor, Sara. Já conversamos sobre isso. Não é uma possibilidade. Você precisa tomar o
leite para tomar o remédio. Só o leite. Por favor.
Silêncio. O tratamento do silêncio. Agora ela faz isso e espera que eu adivinhe as coisas.
— Sara, preciso que você verbalize. Me diz o que você precisa. Você precisa de um horário
extra com a Mari? Quer que eu ligue para ela agora? Sara, me ajuda. Por favor.
Ela pegou o leite, tomou e em seguida o remédio. Abriu a porta de casa e saiu. Tudo que eu
pude fazer foi ir atrás dela. No trajeto para escola silêncio total, até o rádio que eu liguei, ela
desligou. Tentei falar com ela várias vezes. Sem sucesso. Deixando-a na escola, ligo para Mari,
a terapeuta. Nada a fazer por hora. Só aguardar. Aguardar é foda.
A caminho da emissora me preparo mentalmente para passar as próximas seis horas com Hugo.
Passando pelos corredores encontro meu camarim, meu e de Clara. A animação matinal em
pessoa.
— Bom dia, Marcela. Animada?
— Não consigo ser animada antes das dez da manhã.
— Parece algo em comum com vocês da cozinha. Falei com os meninos e por lá é a mesma
coisa. Mas Coelho…
— Só depois de meio dia. — Involuntariamente completei. Me arrependi imediatamente.
— Então, eu ia esperar para perguntar, mas mediante esse comentário, ele não foi só seu
estagiário, né?
— Bom, de cara, já digo que não sei mentir. Logo, não. Nós tivemos um caso.
— Um caso? — Ela não parecia convencida, tinha sobrancelhas arqueadas, óculos de grau
repousados sobre a ponta do nariz e um olhar desconfiado. — Você realmente não sabe mentir.
— Um breve namoro. Bem breve. Juntando tudo, nem seis meses.
— Posso perguntar o que aconteceu? Porque ele não tira os olhos de você um minuto. E você
não parece nem um pouco incomodada.
— Responderia se eu soubesse. Até hoje eu não sei. De verdade. — Dei ombros.
Nossa conversa é interrompida pelas meninas da produção que chegam para nos arrumar. Meia
hora depois estamos na van que nos levaria para uma gravação externa. Eu estava sentada na
janela, com Clara ao meu lado, quando os meninos chegaram e se posicionaram no banco da
frente. O trajeto foi rápido e, Carvalheiro, nosso diretor, apenas passou algumas instruções sobre
como ocorreriam as gravações. Chegando lá nos acomodaram numa salinha. Nos sentamos os
quatro em volta da mesa. Hugo sentado à minha frente tinha o olhar desesperado de quem queria
muito falar comigo, e eu fingia não ver. E realmente outras coisas me preocupam, falar com Hugo
não fazia parte dos meus planos.
— Marcela, o que tanto você olha esse celular, mulher? — Clara pergunta curiosa.
— Esperando uma ligação que pode não acontecer.
— En attente de l’appel de Michelin, mademoisselle? — “Esperando uma ligação do
Michellin, Senhorita?”, falou Fragalli.
— Non, mon ami. Attend l’appel de l’école de ma fille — falei em francês mesmo com
Fragalli, dizendo que estava esperando uma ligação da escola de minha filha.
— Filha? Ou meu francês tá enferrujado? — Clara perguntou.
— Seu francês está bom, Clara, é filha mesmo — Hugo respondeu.
Eu falei em francês porque achava que Hugo não saberia, tinha me esquecido completamente
que ele com certeza sabia. E agora estava rezando para que não me fizessem muitas perguntas.
— Qual o nome dela? — Clara perguntou animadíssima, e eu mentalmente comecei um mantra
para que ela não me pedisse uma foto ou perguntasse quantos anos ela tinha.
— Sara.
— O mesmo nome do restaurante?
— Pois é, Clara. Não sou muito original. O Sara, a Sara.
— O próximo filho é Ruiz, então?
— No tem próximo. Sou viúva.
— Ah, mas você é muito nova, dá tempo de encontrar um novo amor, ou um velho mesmo.
Clara soltou essa bomba. Assim. Sem mais nem menos. Queria desaparecer. Comecei a beber
uma água para disfarçar que quase morri engasgada.
— Bem que eu vi uns olhares tatuados para você, Marcela — Fragalli completou.
Eu não tinha coragem de levantar o olhar e dar de cara com Hugo. Eu podia sentir seu olhar
queimar minha pele. Rezei para que meu telefone tocasse, uma bomba explodisse ou até mesmo
que um meteoro caísse. Zero sucesso. Não havia saída para aquela situação constrangedora em
que Clara havia me colocado.
— Então, Coelho? — Clara começou. — Marcela não me disse o que houve. Você pode? Estou
curiosa. — Clara estava totalmente fora do controle.
— Se ela não falou, não sou eu que vou falar — ele respondeu, dando ombros.
— O que eu deveria falar, Hugo? — eu falei, olhando nos olhos.
— Onde você esteve nos últimos dez anos, Marcela?
— Faz diferença?
— Eu te procurei.
— Você sabia onde eu estava e não falou comigo quando teve chance.
— Você me odeia?
— Já passei dessa fase faz tempo. Não sinto absolutamente nada por você. Nem de bom nem de
ruim. Você é indiferente para mim.
Silêncio. Foi assim que todos permanecemos até que meu celular tocou. Aquela ligação.
CAPÍTULO 11

Quase dez anos sem vê-la e sem qualquer notícia dela, nem para saber se estava viva, para ouvir
dela que é indiferente a mim.
Doeu. Muito mais do que eu esperava. Não era assim que eu imaginava uma primeira conversa
com ela.
Eu sempre pensei numa Marcela tomada de raiva, arremessando objetos na minha direção,
gritando que me odiava. Mas tudo que eu recebi foi indiferença. Talvez eu realmente mereça.
Mas já não faz diferença como eu me sinto agora. Porque ela estava sofrendo. Posso ver em sua
expressão corporal, eu ainda sei lê-la. De longe posso enxergá-la falando ao telefone enquanto
enxuga algumas poucas lágrimas. Seus ombros estão levantados e os dedos nervosos me fazem
lembrar que é assim que se comporta quando o choro está reprimido.
Passando direto pela salinha em que estamos eu e Fragalli ela se dirige direto até Carvalheiro,
Clara e algumas outras pessoas da produção. Uma breve conversa, um abraço em Clara e
Marcela desaparece.
— O que houve Clara? — eu pergunto no instante em que ela volta à sala.
— Uma emergência com a Sara. Vamos atrasar um pouquinho a gravação até Marcela voltar.

Um surto.
Minha filha de nove anos teve um surto.
— Oi, Marcela. Não sabemos o que aconteceu. Ela chegou, não ficou com as amigas na rodinha
como de costume e sentou-se ali. O sinal bateu, mas ela não entrou e quando a inspetora
perguntou se estava tudo bem ela simplesmente começou a chorar.
— Tudo bem.
— Já faz quase três horas que ela está chorando na mesma posição. Isso não é típico da Sara.
Por isso demoramos a ligar.
— Não, fizeram bem. A terapeuta dela já deve estar chegando.
“Não se aproxime, deixe que ela venha até você. Sente-se a uma distância que a deixe
confortável, mas que ela perceba que você está lá para ela.” Foi o que Mari, a terapeuta de Sara,
tinha recomendado.
Assim o fiz apesar do meu coração simplesmente me mandar correr até ela e com meus poderes
mágicos de mãe retirar toda sua dor.
Aguardar.
Aguardar.
Aguardar.
Quinze minutos se passaram, mas pareciam horas até que ela veio até mim e se aninhou no meu
colo. A sensação era de alívio e angústia. Alguns minutos e Mari se juntou a nós.

O caminho para casa foi silencioso. Isabel que chegou logo depois de mim e dirigia enquanto
eu ia no banco de trás com Sara que ainda chorava, de maneira mais contida, mas sua blusa
encharcada denunciava o quanto ela havia chorado.
Em casa segui para dar um banho nela e a deixei dormindo. Uma conversa com Mari e voltei
para a gravação.

Ela não estava ali. Eles não a conhecem o suficiente, mas não era a Marcela ali.
As gravações atrasaram duas horas. Marcela se limitou a dizer e fazer o necessário. Ela é
muito profissional e queria se entregar mais, mas seus pensamentos com certeza estavam em sua
filha. Em todas as pausas se afastava e fazia ligações. Voltava tomava seu chá em silêncio.
Eu queria muito falar com ela. Mas nem sei o que. Eu não sei o que é ter um filho doente. Eu
nem sei o que é ter um filho. Eu sempre quis ter filhos. Esperava tê-los com Marcela.
Minha vida existia antes da Marcela, com a Marcela e nos últimos dez anos, “quando eu estiver
com a Marcela”. Agora estou e não estou. Tudo que eu tinha planejado para fazer quando
estivesse com ela agora não parecia ter muito sentido. Casar, ter filhos, ser feliz ao seu lado, ter
uma casa de praia no nosso Rio de Janeiro. Estive nos últimos dez anos procurando por ela.
Esperando por ela.
Ela seguiu em frente. Se casou. Teve uma filha. Ficou viúva. Ficou indiferente a mim. Se ela ao
menos me odiasse, sentiria algo por mim e então saberia que ela nunca me esqueceu. Que ao
menos nesses dez anos ela teria me odiado. Me consideraria um privilegiado. Porque hora ou
outra seu pensamento vagaria até mim. Quantas vezes ela pensou em mim? Eu pensei nela todos
os dias.
Ao final do trabalho, Carvalheiro informou que as gravações só retornariam em três dias.
Agradeceu a Marcela o esforço, mas que ela precisava desse tempo.
Eu queria falar com ela. Mas faltou coragem, ou sobrou respeito pelo momento. Ela não
precisava de mim.
Chegando no Malagueta, uma notificação no celular me avisa que eu fui adicionado no grupo
“Eu, tu e eles” no WhatsApp. Verifico os integrantes: eu, Fragalli, Clara e Marcela. Eu tenho o
telefone de Marcela.
Por diversas vezes escrevo e apago mensagens para ela. Não sei o que dizer. Melhor não dizer
nada.

A vontade era de sair correndo para casa. Nunca tinha deixado Sara sozinha quando ela
precisou. No fundo, eu achava que precisava mais dela do que ela de mim, porque em todas as
ligações ela estava dormindo. Ela não precisava de mim. Eu que precisava estar com ela.
Eu sabia o que era isso.
Culpa.
Culpa era o que eu sentia.
No caminho para casa ligo para Luís, meu terapeuta. Precisava que ele me lembrasse mais uma
vez.
“Não é sua culpa, Marcela. Repita até se convencer. E você não é a primeira nem será a última
mãe que deixou sua filha doente em casa e foi trabalhar. Na verdade, você é privilegiada de
nunca ter precisado fazer isso antes. Você vai sobreviver. Sara vai sobreviver.”
Uma chorada básica no carro. Uns minutos para me recompor. E ao entrar sou informada por
Isabel que Mari e Sara estão conversando. Um banho. Preciso de um banho.
Ao sair do banheiro, ainda de roupão, encontro Sara sentada em minha cama.
— Desculpa — ela sussurrou.
— Está tudo bem — eu disse, me sentando ao seu lado. — Na verdade, eu queria pedir
desculpas por não ter ficado hoje. Por não termos conseguido conversar direito antes da escola.
Mas as coisas mudaram agora. Não é como antes quando só tinha o Ruiz que funciona sem mim.
Eu agora tenho um trabalho que eu preciso estar lá quando precisam.
— Eu sei.
— Sara, eu preciso que você converse comigo. Entende agora? Se você não quiser falar
comigo, fale com a Isabel, fale com a Mari, mas eu preciso que você fale. Ok?
— Ok. Como foi lá hoje?
— Não foi muito bom. Eu estava preocupada com você. E estava muito nervosa. Mas dá
próxima vez vai ser melhor. Eu vou ficar uns dias em casa com você e depois vai ser muito
melhor.
— Você falou com pH?
— Si.
— E…?
— Não foi muito bom, foi estranho, meio fora do controle. E agora ele sabe que eu tenho uma
filha.
— Você falou o que aconteceu?
— Não. Ninguém sabe. Nem precisa saber, por hora.
— Eu vou ter que ir ao médico?
— Si. Vamos amanhã. Você vai se sentir melhor tomando os remédios. Demora um pouco. É
chato, mas depois fica melhor.
— Para sempre?
— Si. Para sempre. O que vamos jantar hoje?
— Ajo Branco.
— Ok.
Jantamos e vimos um documentário sobre acasalamento de pinguins. Sara viu. Eu dormi. Chato
demais.
Acordei de madrugada com meu celular vibrando. Duas e trinta e sete. Ainda estamos no sofá.
Óbvio que estamos. Quem levaria a gente para o quarto? Tomo um susto quando a imagem de
Hugo se forma em minha mente. Olhando novamente para o celular, noto que não o olhava desde
que cheguei em casa.
Mensagem de Lucas, meu subchefe, provavelmente me informando, como de costume, que
estava tudo bem. Um novo grupo ao qual fui adicionada: “Eu, tu e eles”, não faço ideia do que se
trata, depois eu olho. Ninguém merece. Mari, falando sobre a consulta de Sara amanhã.
“Marcela, me perdoe por hoje, meu alter ego jornalista tomou conta de mim.
Está tudo bem? Posso fazer uma visita? Melhoras para Sara.”
“Clara, não precisa pedir desculpas. Sara vai ficar bem. Tenho que levá-la ao
médico amanhã pela manhã. Pode vir almoçar se quiser. Ou para o café.”
A mensagem que chegou por último, a que me acordou, número desconhecido. Quem que eu não
tenho o número me manda mensagem às duas e trinta e sete da manhã?
“Nem sei quantas vezes escrevi e apaguei essa mensagem. Ensaiei por 3347 dias o
que dizer para você e no dia que eu finalmente tive a chance de falar alguma coisa fui
um babaca. Especialidade da casa, pelo visto. Me desculpe. Gostaria de uma chance
para conversar de verdade com você. Sei que o timing é péssimo. Que sua cabeça
está cheia, consigo sentir de longe o quão tensa você está. Não posso imaginar o que
é ter um filho doente. Espero que ela esteja bem. Espero que tudo fique bem. Quero
que você fique bem. Como costumava ser, aguardo seu movimento.”
Fico pensando se devo responder. O que responder?
“Você é mesmo um babaca, filho da puta, desalmado. Está tão arrependido que contou até os
dias, né? Agora você quer conversar? Foda-se! E depois de todos esses anos você ainda me
conhece tão bem?! Como cometeu um erro tão grotesco? No que estava pensando? Que péssima
escolha! Idiota. Não consegue imaginar por que fez escolhas erradas! Ela vai ficar bem, apesar
da sua parcela de culpa. Eu sempre fico bem no final, mesmo que tenha que ficar muito mal antes.
Meu movimento vai ser voltar no tempo e continuar enfiada na minha cozinha. Nada de
Bestchef.”
Inadequada essa mensagem. Não posso mandar. Apaguei.
“Discordo que seja especialidade da casa. Está desculpado. Obrigada pelos
votos.”
CAPÍTULO 12

SETEMBRO DE 2004
Acordei. Exausta e atrasada. Procurei por Hugo por todo apartamento. Sei que assim parece que
ele é grande, mas não. Eu só não queria crer que ele tinha ido embora.
Chegamos do Rio de Janeiro de madrugada. Um clima horrível e eu pedi que ele ficasse.
Talvez eu tenha suplicado.
Ele se deitou no sofá. Eu tomei um banho e me deitei na cama. Agora ele não está mais aqui.
Me arrumo apressadamente e parto em direção ao Sara. Ao chegar lá, como era de se esperar,
os cozinheiros já estavam na mise en place do almoço. Vejo Hugo ainda de costas e meu coração
palpita. Merda.
Cumprimento todos e recebo um bom-dia uníssono. Exceto dele. Subo ao escritório e arrumo
alguns papéis que chegaram durante minha ausência, resolvo também algumas pendências
administrativas. Nada legal.
— Hugo, pode vir aqui, por favor? — chamei-o da porta do escritório.
— Sim, chef.
Ele subiu as escadas olhando para baixo; abri espaço para que ele entrasse e fechei a porta
atrás de mim.
— Fiquei te procurando hoje de manhã! Por que não me acordou?
— Eu fui embora assim que você dormiu.
— Por quê?
— Por que eu ficaria?
— Por quê disse que ficaria.
— Você queria dormir tranquila. Conseguiu. Até se atrasou. — Ele riu, usando um tom irônico.
— Por que você está agindo assim? O que houve com querer ser meu contato de emergência?
Se eu quisesse um babaca como contato de emergência eu colocava o Felippo. Vai embora,
Hugo. Adios.
— Você está me demitindo?
— Não. Estou me dando folga de você. Até amanhã!
Eu o vi deixar o escritório em silêncio. Nenhum protesto. Ainda estava na dúvida se era bom
ou ruim.

Aguardei um pouco e desci para o serviço. Os olhares de todos recaíam sob mim. Está tão na
cara que eu e Hugo transamos? Parece que sim. Na verdade, sabiam. Percebi quando vi a revista
com a reportagem sobre o casamento de Felippo na bancada. Senti minha cara pegando fogo.
Quem ali lia revista de fofocas? Não fazia mais diferença.
O serviço do almoço logo começou e eu estava imersa em trabalho quando alguém grita,
inclusive me atrapalhando enquanto cantava a comanda, que tinha uma pessoa falando espanhol
no telefone. Obviamente era para mim. Fico um pouco irritada, já havia falado para não me
ligarem pois sempre o fazem em horário inconveniente, como agora.
Não sei dizer quem era. Só registrei a notícia.
Tento me mover mas tudo está em câmera lenta. Vozes distantes. Sinto minhas pernas
fraquejarem, lágrimas correndo pelo meu rosto, minhas costas encontram a parede e deslizo com
meu peso em direção ao chão.

Talvez eu realmente estivesse sendo um babaca, mas estar perto de Marcela e não a ter era
enlouquecedor. Ela queria e estava se fazendo de difícil.
Por um breve momento achei que ela tivesse me demitido. Ainda bem que não. Mas saí meio
revoltado. Tirar folga de mim? Do jeito que estava, saí e fui andando sem direção. Quando me
dei conta estava longe, sem dinheiro, sem as chaves de casa e de avental. Não havia opção a não
ser voltar ao Sara.
No restaurante as coisas estavam fora do controle. Havia gritos, ânimos exaltados e nenhum
sinal de Marcela. Mas eu não tinha nada a ver com isso. Estou de folga forçada. Entro no
vestiário para pegar minhas coisas e partir, mas dou de cara com Rafa e Aline, estagiária e chef
da praça de sobremesas, abanando alguém deitado no chão.
— Quem está passando mal? Precisam de ajuda?
— Hugo, que bom que você chegou! — Aline realmente parecia muito grata em me ver, meio
desesperada — A Marcela! A gente não sabe o que aconteceu. Você pode ficar aqui com ela,
preciso voltar para cozinha! — Ela nem esperou a resposta e saiu do vestiário.
— Rafa, o que houve? — Me aproximei de Marcela que estava gelada e coberta por uma fina
camada de suor.
— Estava tudo bem. Eu atendi o telefone e era para ela, estavam falando em espanhol. Ela
atendeu, desligou, começou a chorar e desmaiou. Os meninos a trouxeram para cá.
— Pega vinagre e álcool, por favor. E um pano limpo.
Rafa volta rapidamente com as coisas que pedi. Molho o pano com um pouco de álcool e
vinagre e aproximo do nariz dela. Ela resmunga um pouco e começa a abrir os olhos. Nossos
olhares se encontram e eu posiciono uma mecha de cabelo atrás de sua orelha.
—Tudo bem? — falei, ajudando-a a se sentar. Ela volta a chorar e esconde o rosto entre as
mãos. — Rafa, você pode trazer um pouco de água com açúcar?
Rafa assentiu e nos deixou. Puxei Marcela para um abraço e aí ela desaba de vez.
— Tudo bem. Tudo bem. Quer me contar o que houve? — Nenhuma resposta. — O que posso
fazer para te ajudar?
— Me leva para casa, por favor. — Sua voz saiu baixa. Uma súplica em tom de sussurro.
— Claro. Consegue levantar?
Ajudei Marcela a levantar-se e a deixei tomando uma água com açúcar, observada por Rafa
enquanto segui para seu escritório para pegar sua bolsa e a chave do carro.
O trajeto foi silencioso. Ela não parou de chorar um segundo.
— Por que não toma um banho? Vou fazer um chá.
Ela apenas seguiu se arrastando para o banheiro. Na cozinha tentava achar onde as coisas
estavam. Coloquei água para ferver e achei camomila no armário. Minha barriga ronca então
decido fazer uma massa ao pesto, coisa rápida, já que ela não deve ter comido porque só come
quando o serviço do almoço termina.
Tudo estava pronto. O chá já estava frio. Nenhum sinal de Marcela. Queria dar espaço, mas
agora já estava ficando preocupado. Fui até a porta do banheiro tentei escutar, nenhum barulho. E
se ela tivesse desmaiado de novo?
Bati na porta, nenhuma resposta. Chamei por ela, nenhuma resposta. Coloquei a mão na
maçaneta, e abri a porta com cuidado.
Marcela estava sentada no chão, pernas cruzadas, ainda com a roupa do Sara. Lágrimas
descendo sem cerimônia pelas suas bochechas vermelhas. Me sento ao seu lado e ela apoia a
cabeça em meu peito enquanto faço carinho em seus cabelos e assim permanecemos por um bom
tempo até que seu choro cessa.
— Acho que o chá que eu fiz esfriou.
— Desculpa.
— Não é para se desculpar. Está tudo bem. Além do chá, fiz uma massa ao pesto. Eu estou com
fome, vou comer, me acompanha?
— Vou só tomar um banho. Me espera?
— Claro.
Me levantei, ajudei Marcela a se levantar e depositei um beijo no topo de sua cabeça. Voltando
a cozinha coloco a água para ferver confiando que desta vez ela realmente vai tomar banho.
Quando eu estou misturando a massa ao molho ela aparece. Linda como sempre.
— Bem na hora!
— O cheiro está bom. Obrigada.
— Desculpa não ter ficado hoje. Eu não…
— Você está aqui agora — me interrompe e dá um sorriso fraco.
— E vou ficar. Até quando você quiser. De verdade. Se você quiser, é claro.
— Eu preferia não ficar sozinha hoje.
— Você está com sorte. Minha chefe resolveu tirar folga de mim hoje — eu disse, arrancando
um pequeno sorriso.
— Eu já iria te dar folga, antes da sua malcriação. Você veio dirigindo do Rio. Queria que
você descansasse, pelo menos de manhã. Falando nisso, por que você voltou?
— Ah, eu saí meio puto, né? Do jeito que eu estava, sem nada, e de avental. Fui obrigado a
voltar.
— Que bom.
— Sim, que bom. Eu ia falar para a gente ver um filme, mas não achei a TV.
— Eu não tenho TV. Já tive, mas quebrou. Não comprei outra.
— Como você vive sem TV?
— Passei uma boa parte da vida só com ela. Mas eu só venho aqui para dormir basicamente.
— E o que você faz na sua folga?
— Durmo, leio, ouço música, vou ao parque... Depende.
— O que você quis dizer com passar uma boa parte da vida só com a TV?
— Meus pais se separaram quando eu era bem pequena. Minha mãe trabalhava muito e eu
passava muito tempo sozinha. A TV era minha companhia. Eu via programas de utilidades
domésticas. Cozinhava os pratos que aprendia para minha mãe. Foram muitos anos eu e a TV.
Marcela tinha o semblante triste e eu achei que não deveria insistir no assunto. Um silêncio se
instaurou. Não era desconfortável. Apenas estávamos ali.
— Minha vó morreu — eu disse.
— Hoje?! — Ela tinha os olhos arregalados.
— Não! É que eu me lembrei que te devia uma resposta. Sobre o dia mais difícil.
— O que você foi trabalhar bêbado?
— Isso.
— Você podia ter me dito, eu teria te liberado. Você não foi ficar com sua família?
— Eu não gosto de despedidas.
— Ah, si.
— Mas o que eu queria dizer é que antes de vir para São Paulo, ela já estava bem doente, eram
os cabelos dela que eu lavava, ok? Sei que naquele dia você pensou várias maldades, mocinha!
— Marcela sorriu. — Bom, eu comecei a cozinhar e ela me incentivou, junto com a minha mãe, a
fazer a faculdade. E eu vim, sem me despedir de verdade. Eu disse que voltava para vê-la, mas
no fundo eu sabia que era a última vez. Bom, recebi a ligação dizendo que minha vó tinha
morrido. Fui para o Sara...
— Cortou o dedo duas vezes, queimou a farofa, quebrou dois pratos…
— Você lembra?!
— Si, te achei estranho naquele dia. Você é sempre tão concentrado.
— Mas eu só pensava em uma coisa. Eu não lembrava da voz dela. Eu tenho fotos. Mas eu
queria lembrar da voz dela. E eu não conseguia. E aquilo estava me atormentando. Fui para casa
e não conseguia dormir. Eu queria beber para esquecer que eu não me lembrava. Não deu certo,
quando vi estava quase atrasado, aí peguei o skate para ir mais rápido e me estabaquei. Por fim,
cheguei ralado para trabalhar e bêbado.
— Eu pensei em te mandar embora naquele dia, mas uma pessoa que se dá ao trabalho de ir
trabalhar naquele estado…
— Nós já estávamos com duas pessoas a menos. Eu não podia deixar todo mundo na mão.
— Sua avó morreu, você estava sofrendo. Gostaria que tivesse me falado.
— Eu não me lembrei da voz dela até uns dias atrás quando você me perguntou sobre o porquê
de cozinhar. Quando eu lembrei que eu ligava para minha vó. Me veio a voz dela na ligação. Eu
lembrei. Você me fez lembrar. E eu não tive chance de agradecer. Foi muito importante para mim.
De verdade. Muito obrigado.
— Fico feliz que tenha lembrado. Mas eu não fiz nada. Não precisa agradecer.
— Eu não sei o que houve hoje, e você não precisa me contar, nem falar sobre seu dia mais
difícil. Também não quero tornar o seu dia mais difícil, mas acho que se eu não falar posso
morrer sufocado a qualquer momento. — Ela me encarava com um olhar que eu não sabia se era
assustado ou desconfiado, mas no fundo acredito que ela sabia sobre o que eu ia falar. — Eu
ainda não consegui entender bem o que é, talvez seja cedo, mas eu tenho uma coisa com você. Eu
quero cuidar de você, quero te ver sorrindo, quero te fazer feliz. Eu quero estar aqui para você,
mesmo que seja como amigo, mesmo que seja como contato de emergência. Mas não posso mais
ser apenas o estagiário do Sara. Sei que hoje mais cedo eu te decepcionei e eu não gostei da
sensação. Não vou fazer de novo, eu prometo. Você pode confiar em mim.
Silêncio.
Silêncio.
Um pouco mais de silêncio. Eu me levanto, vou até os vinis e começo analisá-los. Só música
pode me salvar do momento constrangedor onde eu me declaro e ela fica em silêncio. Vejo ela se
levantando e indo até a janela.
— Meu pai se matou.
— No seu dia mais difícil?
— Hoje. No dia mais difícil minha mãe se matou.
Eu não fazia ideia do que falar.
— Eu, hoje, preciso que você seja meu amigo. Meu pai era maníaco-depressivo. Você sabia
que é genético? Eu venho ignorando isso, mas eu também posso ser. Meus filhos podem ser. Isso
é tão assustador. E eu não sei se eu aguento.
CAPÍTULO 13

“Clara, já estou voltando para casa. Quer sair para almoçar?”


“Podemos almoçar aqui em casa? Estou num bad hair day.”
“Claro. Me passa o endereço.”
Saímos do médico de Sara e foi tudo ok. Ela me pediu um tempo sozinha para processar.
Queria meditar e falou que eu atrapalho porque pergunto se está tudo bem o tempo todo. Essa é
minha filha. Esse é o padrão Sara Campana, minha mini adulta.
Sair para pensar em outra coisa ia me fazer bem. Até pensei em ir ao Ruiz, mas a papelada que
me aguarda por lá me desanimou.
— Olá! Bem-vinda ao meu lar! — Clara me recebe animadíssima, como de costume.
— Esse é seu bad hair day? — O cabelo dela não tinha um fio fora do lugar. — Espere para
ver o meu.
— Aí, Marcela, você vai em breve ser uma pessoa pública. Vai ver que isso é sim um caso de
bad hair day. Olha, queria pedir desculpas por ontem. Não sei mesmo o que deu em mim.
— Tudo bem, de verdade.
— Mas… eu estou muito curiosa.
— Vai, Clara. Pergunta logo!
— Foi você que pôs fim?
— Nós não terminamos. Bom, eu não terminei. Ele simplesmente foi embora. Eu não sei até
hoje o que aconteceu. Mas não faz diferença.
— Ele parece arrependido.
— Um pouco tarde para arrependimentos, não? Já se passaram mais de dez anos.
— Vocês nunca mais se viram ou se falaram?!
— Nunca. Ele me procurou, depois, mas aí eu que no queria ser encontrada. Sabia que fazendo
Bestchef ia ser fácil para ele me encontrar, mas no esperava tão rápido.
— Você sente alguma coisa?
— Nada. Orgulho talvez. Ele era uma pessoa muito boa. Merece estar onde está.
— Você que é uma pessoa muito boa, Marcela! Se um cara some eu não iria querer vê-lo nunca
mais.
— Eu tive essa fase, mas passou.
— Nem um pouquinho de raiva ou mágoa?
— São muitos anos, senti tudo isso, mas não podia ficar remoendo, fazia-me mal. Muito mal.
Eu precisei seguir em frente. Sofrer não era mais uma opção.
— Quando eu crescer quero ter sua elevação espiritual!
A campainha toca.
— Eu iria cozinhar, mas não tinha nada decente em casa, então pedi comida.
— Eu poderia ter trazido alguma coisa, Clara.
— Pode ir servindo vinho?
— Claro.
A casa tem conceito aberto e uma grande ilha separa a cozinha da sala, de forma que tenho
ampla visão de todo primeiro andar. Tudo lindamente decorado, mas meus olhos estão presos na
porta. Não no objeto em si, mas quem está parado à frente dela com olhos também presos em
mim. Hugo Coelho.
— Olha, sei que depois de ontem fica difícil convencer vocês de que eu não planejei isso. Mas
eu não planejei. — Clara ria de nervoso. — Quando o Hugo disse que eu podia pedir comida do
Malagueta a hora que quisesse, jamais pensei que era ele que ia entregar.
— Olá, Hugo.
— Oi, Marcela. Tudo bem? — Ele estava nervoso. Parecia o Hugo da primeira semana de
estágio do Sara.
— Tudo ótimo e você?
— Tudo bem. Clarinha, você falou que estava esperando alguém especial do almoço, trouxe o
purê de mandioquinha e o carré de cordeiro para finalizar aqui, para não esfriar.
— Estamos esperando mais alguém? — Achei que o almoço seria só eu e Clara.
— Marcela, você é a pessoa especial.
— Nossa, obrigada. Vai almoçar com a gente? — Até me esqueci que não estava em casa.
Tinha esquecido da Clara ali, do lado dele. A dona da casa.
— Coelho, fica, almoça com a gente!
— Eu já comi, como antes do serviço do almoço, especialmente hoje para poder fazer essa
entrega especial para você, Clarinha, mas posso acompanhar vocês.
A vida e seus encontros inesperados. Hugo se posicionou na cozinha enquanto eu e Clara
estávamos do outro lado da bancada.
—Vinho, Hugo? — Clara ofereceu.
Eu estava concentradíssima vendo-o cozinhar. Tinha me esquecido do quanto gostava.
— Marcela?! Terra chamando? — Ela passou a mão na frente do meu rosto me chamando
atenção.
— Oi, desculpa! O que vocês estavam falando?
— Para você me servir vinho. — Hugo tinha aquele sorriso bobo de quem sabia que eu estava
admirando-o. — Por favor.
— Claro. — Me atrapalhei e quase derrubei a garrafa de vinho. Mas o servi e deu tudo certo.
Tentei focar em Clara, mas logo era traída pelos meus pensamentos e quando notava estava, de
novo, olhando o Hugo.
— Acabou que o Hugo chegou e eu esqueci de perguntar como está a Sara?
— Está bem. Dentro do possível. Vai ficar tudo bem.
— O que ela teve? É grave?
— Bom, ela já vinha dando sinais de que as coisas não estavam boas: humor alternando muito,
mas até o surto de ontem não tínhamos um diagnóstico fechado.
— Surtou? Como assim? — Clara não estava acompanhando, mas Hugo tinha entendido.
— Não é nada grave, ela só ficou chorando muitas horas seguidas.
— Você também chorava horas seguidas — Hugo falou tão baixo que eu acho que era um
pensamento que escapou sem querer.
— Quando tinha motivo? Com certeza.
— Então fecharam um diagnóstico?
— Si. Hoje de manhã. Transtorno bipolar.
— E você? — Hugo perguntou enquanto Clara parecia processar as informações.
— Se eu sou bipolar?
— Não! Como você está?
— Excluindo o fato de que é culpa minha, tudo perfeito.
— Sua culpa? — Clara parecia confusa.
— Tem traços genéticos, Clara. O pai da Marcela tinha.
— Nossa, amiga. Sinto muito. Hugo, quando uma pessoa diz que é culpa dela, a gente como
amigo diz que não.
— É que você não conhece a Marcela direito — ele falou, rindo.
— E você me conhece? — Fitei-o por longos segundos até que ele desviou seu olhar do meu.
— Conhecia, pelo menos — falou, logo após um suspiro pesaroso.
— Hugo, vai passar o ponto desse cordeiro.
— Marcela, eu sei fazer cordeiro.
— Hugo, você disse que me conhecia, logo, não posso confiar que você sabe fazer um
cordeiro.
— Marcela, você disse que não me odiava.
— Não odeio e vai passar do ponto.
— Não vai passar. E desculpas, eu quero me explicar.
— Não existe explicação. Portanto nos poupe do desgaste. — Clara fez menção de levantar-se.
— Não se mova, Clara. Tão logo o Hugo erre o ponto do cordeiro e nós vamos almoçar.
— Tão logo eu termine o cordeiro no ponto certo, eu sirvo. Não vai demorar, Clara. Para quem
não me odeia você está com a língua bem afiada.
— Você estar estragando um corte de carne é bastante ultrajante para mim. Quando terminar de
arruiná-la, deixe um bilhete. Ou seria antes? Bom, siga seu modus operandi. Não vou mais
atrapalhar.
— Marcela, não faz isso. Não se você não vai deixar eu explicar. Bom, está pronto. No ponto.
Já vou indo, Clara.
— Não, Coelho, fica. Eu não queria me meter nessa história de vocês dois, mas pelo visto já
estou afundada dos pés à cabeça. E eu acho que vocês precisam conversar, de verdade. A gente
almoça, e depois vocês conversam.
— Clara, obrigado de verdade, mas a Marcela não quer conversar. Não sei como isso é
possível. Esperei tanto por esse momento. E Marcela, de verdade, eu entendo toda sua mágoa,
me coloco no seu lugar e meu, estou impressionado com seu autocontrole. Eu no seu lugar nem
sei o que faria. Eu decidi que te daria o tempo que fosse necessário, mas o universo não está
colaborando e está nos colocando juntos e a gente vai ter essa conversa, não vai ter como
escapar dela. A gente vai se ver todo dia, por um bom tempo e eu não quero estar brigado com
você.
— Você foi embora. Minha mágoa não é por você ter ido. Você fugiu de mim. Você me
abandonou!
— Você mesma disse para eu buscar meus caminhos. Que a França seria uma ótima escola.
— Eu estava errada?!
— Não, de maneira alguma.
— Um bilhete, Hugo, tudo que eu mereci foi um bilhete. Frio, num pedaço qualquer de papel.
Queria que você tivesse me contado, queria que você tivesse se despedido. Eu queria ter ido
com você.
— Mas e o Sara? Você ia largar tudo? Não era justo.
— Eu deveria fazer essa avaliação. Você tirou de mim essa possibilidade. Você tirou da gente
essa oportunidade.
— Marcela…
— Você me tirou a escolha. O bem mais precioso que eu tinha. Eu sempre tive escolha. Nunca,
Hugo. Nunca. Nunca ninguém tinha me tirado o poder de escolha. Você fez uma escolha para
minha vida. Eu demorei muito para aprender a viver com a sua escolha. Nós não estarmos juntos
foi sua escolha. Conviva com ela.
— Me escolhe agora. Eu ainda te amo, eu sempre te amei.
— Você me magoou de maneiras que eu nem sabia que eram possíveis. Doeu demais. Durante
um ano eu revi e revivi todas as escolhas que eu fiz na minha vida. De todas as vidas possíveis
que eu poderia viver, a única que nós não estávamos juntos, foi exatamente quando eu não tive a
escolha. Não havia um só cenário em que eu não escolhia você.
— Me perdoa, Marcela.
— Eu já te perdoei, há muitos anos. E eu nem tinha certeza de que você tivesse se arrependido.
Mas eu precisei te perdoar para seguir em frente. Nós não temos por que brigar. Nós não vamos
brigar. E não vamos ter essa conversa. Me faz muito mal reviver aquela época e eu não quero te
odiar de novo. Então esquece isso.
— Eu não posso esquecer o que a gente viveu.
— Faça o que quiser com as suas lembranças. As minhas estão enterradas a sete palmos. Você,
hoje, para mim só existiu como meu estagiário e agora colega de trabalho. E de coração, eu te
adoro, tenho muito orgulho do que você se tornou e odiaria que toda essa história atrapalhasse a
gente hoje. Você uma vez me disse que estaria aqui para mim para o que eu precisasse e apesar
de tudo, quero acreditar que isso ainda é verdade. Se for, eu adoraria que você fosse meu amigo,
não dá para ficar esse clima estranho entre a gente, nós não somos assim. Fica para almoçar? O
cordeiro passou do ponto, mas deve dar para comer.
— Porra, Marcela. Já falei que tá no ponto. Mano, você é chata para um caralho!
— Bem melhor así.
— Olha, digo e repito, quando eu crescer quero ter a elevação espiritual da Marcela — Clara
falou e todos rimos.

O almoço seguiu conversando sobre amenidades. Muito vinho, besteira e Hugo contando sobre
seus restaurantes, banda e planos.
— Oi, mi amor. Estou demorando, eu sei, já vou para casa — eu falava ao telefone, sendo
observada por Clara e Hugo — Era si só um almoço com a Clara, mas o Hugo chegou e
acabamos conversando muito.
— Manda um beijo para ela — Clara falou e Hugo fez sinal de que ele também mandava um.
— Clara e Hugo mandam beijos.
— Quando vamos conhecer a Sara? — Clara perguntou enquanto terminávamos a última taça
de vinho.
— No sei. Vai ser uma fase chata de ajuste de remédio. Bom, muito obrigada pelo convite,
Clara. Obrigada pelo almoço, Hugo. Nos vemos depois de amanhã. Não morram de saudades.
Abracei Clara e Hugo. Tinha esquecido da sensação do abraço de Hugo. Um manto protetor.
Segui para casa me preparando para quantidade de perguntas que a criança faria sobre esse
almoço.

Mal entrei em casa e fui atacada.


— Preciso saber de tudo!
— Olá? Tudo bem? Como foi sua meditação? Como foi seu dia? — falei, jogando-me no sofá.
— Ai, tudo bem. Tudo bem. Por que não falou que ia almoçar com pH?
— Porque eu não fui. A Clara pediu comida do Malagueta e ele que foi levar.
— O que ele cozinhou?
Contei como foi o almoço, ocultando alguns detalhes que não precisavam ser ditos, enquanto
fazia carinho em sua cabeça repousada em meu colo.
— Então ele já sabe que eu sou bipolar? — ela perguntou e o receio era perceptível em seu
tom de voz e sua expressão.
— Sim, e Clara também. Mas não se preocupe. Ele já sabe algumas coisas sobre o assunto.
— Por causa do vovô?
— Si. Ele é uma pessoa incrível, não precisa se preocupar. E isso não precisa, nem deve ser
um segredo. Algumas pessoas precisam saber. Pessoas que podem te ajudar quando você
precisar.
— Tudo bem. Então, vocês são amigos agora?
— Acho que ainda não, mas podemos ser. Seremos, muito provavelmente. Nos dávamos muito
bem.
— Ok, mas tem uma coisa que você não falou…
— O quê?
— Afinal, ele acertou ou errou o ponto do cordeiro?
— Ele acertou.
Gargalhamos.
CAPÍTULO 14

SETEMBRO DE 2004
— Bora, Marcela. Já chega! — falei, puxando as cobertas.
— Sai, Hugo! Eu estou nua.
— Não tem nenhuma novidade para mim aí. Já vi tudo. Levanta logo e já para o banho,
mocinha.
— Catzo!
Três dias inteiros deitada. Tentei respeitar o máximo que deu o momento. Não sei como é
perder os pais, mas há limites.
Eu estou terminando de fazer os ovos quando ela volta só de toalha, fico na dúvida se ela está
querendo me provocar.
— Não quero trabalhar.
— Quer sim! O restaurante é seu. E está uma zona. Tem uma pilha gigante de papel na sua
mesa. Os fornecedores estão ligando para cobrar. Se seu sócio aparecesse...
— É melhor quando ele não aparece.
— Então é contigo mesmo. Vai se vestir porque vamos nos atrasar. E eu tenho que fazer pão
hoje.
— Você que está fazendo o pão?
— Estou, né? Até a beldade aí resolver voltar a trabalhar. Está sobrando para mim.
— Por que você?
— Nada não, Marcela, só vai, mano.
— Não até você me contar. — Ela sentou e cruzou as pernas. Lentamente. Ela está me
provocando.
— Porque se sou subchefe no Rio, posso assumir suas funções aqui.
— Quem disse isso? — Ela parecia indignada.
— Veio por telegrama. O sócio que mandou.
— Você verificou o nome?
— Só me mostraram a folha de dentro. Marcela, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Mas estou dando conta, por mim pode ficar tranquila, mas com o sócio vai ser treta.
— Pode ter certeza de que vai. Se vai. Uma treta bem grande porque quem manda na minha
cozinha sou eu.
— Então, faz um favorzão e põe uma roupa. Para você poder ir lá mandar na sua cozinha.
— Vou só comer primeiro.
— Na moral, Marcela. Facilita aí para mim. Vai botar uma roupa.
— Ué, não tem nada aqui que você não tenha visto. — Ela deu ombros.
— Mas eu não sou de ferro, Marcela. E tu é gostosa para caralho. —Ela corou. — Antes estava
sem banho há três dias, maior inhaca, agora está cheirosinha, fica mais difícil.
— O que é inhaca?
— É tipo fedor, cheirinho não agradável.
— Ah, Hugo, duvido. Eu nem corri no sonho.
— Isso é desculpa de criança.
— Nunca funcionou com a minha mãe.
— Com a minha funciona.
— E eu tomei banho todos os dias. Se quer saber. Não sou porquinha.
— Sei. Já pode colocar a roupinha agora?
— Tá bom! — Ela saiu batendo o pé.
— Não sabia que você era uma criança pirracenta.
Antes de sumir no corredor ela soltou a toalha e já entrou no quarto nua. Ela está me
provocando. Se é um jogo, eu vou jogar. E eu sou bom para caralho nesse jogo.

Esperei que ele viesse até o quarto. Nada. Tive que me vestir. Talvez ele não tenha me visto
jogar a toalha, literalmente.
— Agora você guarda a toalha no chão do corredor, mocinha? Vou ter que te colocar de
castigo? — Ele viu.
— Depende do tipo de castigo...
— Limpar a câmara fria. — Ele deu um passo na minha direção.
— Com ou sem companhia? — Eu diminuo ainda mais a distância entre nós.
— Sem. É castigo, não recompensa — ele falou, aproximando-se e eu senti sua respiração na
minha pele, mas se afastou rapidamente.
Merda. A aproximação chegou a me deixar ofegante. Mas eu não vou ceder assim tão fácil.
Vamos ver quem ganha esse jogo.
O ouço buzinando pela minha demora, como correndo e desço onde ele já me espera no carro.
No banco do carona.
— Não vai dirigir? — eu pergunto, encarando-o ainda do lado de fora do carro na esperança
que ele dirigisse.
— Sou teu motorista não, meu!
— Que grosseria!
— Você não quer ser minha amiga? Melhor ir se acostumando.
— É assim que você trata seus amigos?
— Amigas! Se você fosse meu amigo eu já tinha te dado umas porradas.
— Agressão faz parte do seu conceito de amizade?
— Tirar a roupa para provocar o outro faz parte do seu conceito de amizade? Eu te avisei que
não seria nada fácil resistir ao meu charme.
— No sei do que você está falando — falei, tentando focar no trânsito, mas eu queria rir.
— Sobre você deixando a toalha deslizar sobre seu corpo no meio do corredor para me
provocar.
— Ah, aquilo. Olha, eu moro sozinha, estou acostumada a andar nua.
— Sei. Queria só dizer que depois do seu primeiro movimento no Rio de Janeiro, minhas
expectativas foram elevadas. Não vou aceitar uma simples jogada de toalha.
— Te odeio, sabia?

Caos.
Era o estado da cozinha.
Da minha cozinha.
Do meu restaurante.
A mise en place do almoço já tinha começado, mas eu estava trancada na câmara fria
conferindo as entregas.
— Espero que agora você leve bem a sério as coisas que eu falo — Hugo falou e eu me
assustei.
— Credo, garoto. Quer me matar do coração? Agora, realmente, que boca maldita.
— Falando assim até parece que você não gosta das coisas que eu faço com a minha boca —
ele disse, vindo em minha direção.
— Hugo, pelo amor... — A cada passo que ele dava eu recuava.
— Sabe que eu nunca transei na câmara fria?! — Bati na parede, não teria para onde correr.
— Não posso dizer o mesmo.
— Que, Marcela?!
— Eu já transei na câmara fria, em várias na verdade.
— Não estou ouvindo isso. — Parece que o jogo virou...
— Quer que eu repita?
— Não, Marcela. Tem coisa que é melhor não saber.
— Tem coisa que é melhor não perguntar. Você pode não gostar da resposta.
— Ok, Marcela. Já entendi.
— Você fica bem bonitinho com ciúmes. A título de curiosidade, essa nunca foi usada.
— Boa dica, vou ver se providencio uma estreia.
— Isso é um convite?!
— Não mesmo. Amigos não transam. É apenas um comunicado.
— Você não está falando sério.
— Você fica bem bonitinha com ciúmes. Bom, se você quiser ser a escolhida para estrear a sua
própria câmara fria já sabe o que fazer.
— Tchau, Hugo. Volta para cozinha.
Ele me tira do sério. Que ultraje! Querer estrear minha câmara fria com outra?

O serviço do almoço começou e não nos cruzamos novamente. Durante a tarde, encarei a
papelada do escritório enquanto ouvia o mise en place do jantar e todos bem animadinhos para
comemoração do aniversário de Iza mais tarde. Especialmente Hugo. Podia ouvir suas gracinhas
em tom de voz alto e rouco lá de cima e por várias vezes não puder evitar de sorrir.
O serviço do jantar passou voando e assim que terminou acompanhei a movimentação de todos
se arrumando para ir ao tal bar enquanto testava algumas coisas para usar nos pratos da próxima
semana.
Todos vão embora. Vou ao escritório. Ir ou não ir. Fico pensando no que Hugo me falou. É um
aniversário. Você não precisa ser tão antissocial assim.
Ok. Eu vou. Na mochila que arrumei depressa hoje pela manhã só tem uma calça justa de couro
e uma blusa branca de frente única. Ok. Esqueci os sapatos, mas não ficou tão ruim de all star. O
cabelo molhado não era ideal e a falta de maquiagem evidenciava meu cansaço, mas é o que
temos para hoje.
Já fazia um pouco mais de uma hora que todos haviam saído. Quais as chances de eu chegar e
todos estarem bêbados? Eu tentava imaginar a reação do pessoal do restaurante com a minha
chegada e nenhuma das opções me animava. Mas a reação que eu queria prever era a do Hugo.
Opções que povoavam minha mente.
(a) Ele vai ficar surpreso e vai gostar. Eu vou provocar ele um pouco mais, ele não resiste e a
gente transa. Estou cheia de vontade e cansada dessa história de amigos.
(b) Ele vai ficar surpreso e vai gostar. Eu vou provocar um pouco mais e ele vai me provocar
mais ainda. No final vai cada um para o seu lado com ainda mais tesão.
(c) Ele vai ficar surpreso e vai cagar para minha presença. Tudo seguirá normalmente.
Uma opção não passou pela minha cabeça, mas foi a real.
(d) Eu vou chegar lá ele vai estar de papinho ao pé do ouvido com uma loira de cabelos
brilhantes, ondas perfeitas, com peitos gigantes mal sendo cobertos pelo pouco pano que ela usa
e que nem poderia ser chamado de vestido.
Bom, ninguém me viu e pondero ir embora na mesma hora. E decido quando Hugo e a loira se
beijam. Uma ânsia me sobe. Não é possível. Me dirijo a saída, mas dou de cara com Aline e
Rafa.
— Chefinha!? Milagres de Coelho — Aline falou. Claramente mais alegre que o normal, ah, o
álcool.
— Já estou de saída.
— Mas você acabou de chegar! Está tudo bem? Você está meio pálida. — Rafa, minha
estagiária fofíssima.
— Um pouco enjoada, mas bem, acho que foi o cheiro daqui. Eu já vou indo, mandem um beijo
para Iza. Até amanhã.
— Tem certeza?! Fica um pouco! Ela nem vai acreditar que você veio. — Ela tinha uma cara
tão fofa. Como dizer não.
— Ok, só um pouco.
Seguimos para mesa onde todos estavam, os cumprimentei e seguiu um clima de surpresa e
desconforto. Quem mandou ser a chefe que não interage? Todos bebiam cerveja. Credo. Eu
queria ir até o bar pedir uma caipirinha, mas a ideia de ter que passar por Hugo, que ainda não
tinha me visto, me desanimava.
—Vamos de tequila, chef?! — perguntou Pedro, outro estagiário, que parecia ter quinze anos,
mas na verdade tinha vinte e três.
— Marcela, Pedro, Marcela. Não estamos no restaurante. E sim, vamos de tequila.
Com o tempo todos ficaram mais confortáveis com a minha presença e as conversas fluíam
mais naturalmente. Mas eu já não aguentava mais ver o Hugo de papinho com aquela garota.
— Vou pagar uma rodada para todos e vou embora. Tenho que estar bem para garantir que
ninguém de ressaca ponha fogo no meu restaurante.
A comemoração foi tão grande que finalmente chamou atenção de Hugo que veio até a mesa
arrastando a moça e ao dar de cara comigo se assustou.
A rodada demorou chegar e a troca de olhares entre mim e Hugo era tão evidente que a loira se
incomodou.
— Gato, estou atrapalhando alguma coisa? — falou a loira um pouco irritada. Gato?! Sério?!
— Não, não. Tudo certo. Desculpa. — Ele parecia bem desconfortável.
Não querendo favorecer a cena que ela parecia disposta a armar eu decidi ir embora. Me
despedi de todos e me dirigi ao caixa para pagar.
— Ei, também não precisa ir embora. — Hugo me segura pelo braço e seu toque dispara um
choque que percorre todo meu corpo.
— É muita petulância sua achar que eu estou indo embora por sua causa — disse, recolhendo
meu braço. — Eu já estava de saída, apenas aguardando essa última rodada.
— Você quase não ficou.
— Eu cheguei há bastante tempo, mas você parecia bem ocupado. E levando em consideração
que eu nem vinha já foi mais que suficiente. Boa noite, Hugo. Até amanhã.
— Fica — ele falou enquanto pegava minha mão e massageava meus dedos. Ele quer acabar
comigo.
— Alguém precisa estar bem acordado e sóbrio amanhã. As apostas estão em mim. Vai, sua
acompanhante está te esperando. — falei enquanto deixava o bar. Talvez eu não tenha conseguido
controlar muito bem minhas emoções que estão bem conflituosas no momento.
— O que é, Marcela? O que você quer?
— Por que você veio atrás de mim? Você está fazendo isso para me provocar!?
— Eu nem sabia que você vinha! E se eu realmente quisesse te provocar eu estaria
pegando uma das meninas do restaurante para esfregar ela na sua cara. Mas eu não sou assim.
— Você vai transar com ela?
— Você está se ouvindo?
— Responde, Hugo!
— Provavelmente. Mas acho que ela não vai querer. Depois dessa cena.
— Eu não estou fazendo cena.
— Eu queria muito que você se visse.
— Por que você provavelmente transaria com ela e não comigo?
— Caralho, Marcela! Óbvio que eu quero transar com você.
— Por que está fugindo então?
— PORQUE EU ESTOU APAIXONADO POR VOCÊ! Não é possível que você não esteja
entendendo isso. Mas se não estava, agora eu falei bem alto. Espero que dessa vez você tenha
entendido. Não quero só transar com você. Eu quero fazer amor com você, quero cuidar de
você, quero fazer você feliz. Quero dividir a vida com você. E eu tenho coragem de assumir isso.
Mas desculpa, não posso simplesmente transar com você estando apaixonado. Você tem um alto
potencial para desgraçar minha vida e no momento eu não estou podendo correr esse risco.
Eu acabei de me declarar para ela aos berros.
No meio da rua. E tudo que ela fez foi andar.
Na direção contrária à minha.
Talvez nem amigos nós possamos ser.
CAPÍTULO 15

Eu a vi caminhar até desaparecer da minha vista.


Nenhuma olhada para trás.
Segui andando para casa.
Como vou olhar para ela amanhã? E depois de amanhã?
Paro na porta de uma boate. Compro um cigarro. Falha tentativa de esquecê-la.
Meu celular apita, um SMS.
Dela.
Quando vou abrir, meu celular descarrega.
Maldito.
Corro para casa. Literalmente.
Preciso colocá-lo para carregar.
Em casa. Quase meia hora até o celular finalmente ligar.
Enquanto isso milhões de possibilidades passam pela minha cabeça.
Nenhuma delas era a correta.
“Preciso que venha me encontrar, mas não sei onde estou.”

Ela saiu andando e se perdeu. Queria minha ajuda e eu não respondi.


Outro apito.
“Estou no Hospital Samaritano.”

Meu coração para de bater. Fico longos segundos sem respirar.


Eu só quero que ela esteja bem. Eu só quero que não seja minha culpa. Eu preciso que ela
esteja bem.
Fito o nada por alguns minutos, pego as chaves, moto e capacete.

Não é como se eu não estivesse desconfiada.


Mas era certamente o que eu mais temia.
E ao invés de correr para os braços dele, eu simplesmente andei na direção contrária.
Autossabotagem.
Especialidade da casa.
Como é que eu vou olhar para ele amanhã? E depois de amanhã?
Andei tanto tentando pensar no que fazer que meu subconsciente me deu a resposta.
Quanto tempo eu andei? Apesar de não fazer ideia de onde estou, sinto que estou exatamente
onde deveria estar.
Preciso achar um táxi. Não é tão simples às três e quarenta da madrugada. Não serei ninguém
amanhã. Ninguém.
Mandei um SMS para Hugo.
“Preciso que venha me encontrar, mas não sei onde estou.”

Talvez não tenha sido uma boa ideia.


Andei um pouco mais. Achei um bar. Desse bar, com auxílio das listas amarelas liguei para o
bar em que estávamos.
Hugo não voltou depois que eu saí. Rafa me informou.
Merda.
O bar ia fechar.
Merda.
Andei um pouco mais.
Outro SMS.
“Estou no Hospital Samaritano.”

Vou esperar até a hora de ir para o Sara.


Acho que estava cochilando ou em transe, sei lá, quando ele entrou correndo pela recepção.
— Por favor, minha namorada, Marcela Campana, está aqui, ela me mandou mensagem — ele
falou desesperado antes mesmo que eu pudesse interrompê-lo.
— Hugo — eu o chamei timidamente, ainda processando que ele havia dito que eu era
namorada dele.
Ele se virou e nossos olhares se encontraram e tudo além de nós desapareceu.
Permanecemos ainda um tempo apenas nos olhando a distância. Foi Hugo que se aproximou a
passos largos e me tomou num abraço apertado.
Tinha sabor de casa. Lar. Proteção. Amor.
Depositou vários beijos em minha cabeça.
— Você está bem? O que houve? Aconteceu alguma coisa? — ele falou enquanto tomava meu
rosto em suas mãos.
— Eu estou bem. Você demorou. Achei que você não vinha. Desculpa se te preocupei.
— Minha bateria acabou, vim assim que vi sua mensagem. Desculpa ter demorado.
— Tudo bem.
— Vamos, eu te levo.
— Na verdade eu quero te mostrar uma coisa.
— O quê?
— É um lugar na verdade.
— Ok. Eu estou de moto. Mas trouxe outro capacete.
— Eu queria ir a pé.
— A pé? Você? A essa hora? Com certeza é furada. — Ele coçava a cabeça.
— Por favor. Juro que não. E é perto. Perto mesmo.
— Sei.
O caminho que durou mais ou menos cinco minutos foi em silêncio. Lado a lado.
— Pronto. Aqui estamos — falei, parando numa esquina.
— Eu deveria saber onde estamos? — ele falou, olhando em volta.
— Na verdade não. Não ainda. Bom, depois que você…
— Que eu disse que estava apaixonado por você. Olha, Marcela, você não precisa falar nem
dizer nada. Eu te devo descul…
— Shii. — Eu depositei meu dedo sobre seus lábios. — Eu realmente não estava esperando
por aquela declaração. Eu fui hoje porque queria estar com você. Você cuidou de mim a semana
toda. Fez de tudo para mim. Nunca ninguém cuidou assim de mim, então não sei como agir. Eu
estava tentando me convencer de que eu queria ser só sua amiga, mas quando eu cheguei e te vi
com aquela menina, fiquei enjoada, eu queria matar você. Eu me senti traída. E eu fiquei olhando
para vocês a noite toda enquanto meu sangue fervia. Eu queria fazer um escândalo. Hugo, eu
estava com ciúmes. Eu queria estar no lugar dela. Mas não sabia o que fazer com tudo o que eu
estava sentindo. E aí você resolveu se declarar gritando no meio da rua. Meu, o que você estava
pensando?
— Eu não pensei. Marcela, eu estou medindo palavras e atitudes respeitando seu espaço, mas
eu vi que você estava sentida. Não queria que você se enganasse a respeito do que eu sinto. Eu
só não esperava você saindo sem rumo e sem esboçar nenhuma reação.
— Eu esbocei várias, você só não viu. Ok, dei uma leve surtada. E andei aparentemente sem
rumo. Até chegar aqui. Eu nem sou muito de acreditar em sinais, mas tudo fez tanto sentido. Olha
— eu falei, apontando para placa com o nome da rua. — Se existe uma Rua Rio de Janeiro bem
no meio de São Paulo, pode ser que também exista Hugo e Marcela em São Paulo!
A expressão de confusão na cara dele deu lugar a um meio sorriso.
— Você está falando sério? — Ele parecia uma criança muito empolgada com seu presente de
Natal.
— A única promessa que eu faço é que eu vou tentar, porque eu também estou apaixonada por
você.
Ele me puxou pela cintura e selou nossos lábios de maneira calma. Tinha sentido falta desse
toque, mesmo que tenha se passado poucos dias. Menos de uma semana separados foi o
suficiente para declarar a abstinência que senti. Minhas mãos na nuca de Hugo aprofundaram
mais o beijo, ainda calmo, mas com intensidade. Uma gentil disputa por dominância. Ah, a
saudade. Quebramos o beijo e permanecemos de testas coladas.
— Então quer dizer que eu sou sua namorada?
— Sim, minha namorada.
Andamos de mãos dadas até pegarmos a moto. O trajeto que deveria ser rápido demorou, pois
paramos várias vezes para nos beijar. Na frente do hospital ele me passou o capacete. Olhei o
relógio, quase cinco horas. O Sol já dava indício de que ia nascer. Apoiado na moto e me
segurando em sua frente pela cintura, ele disse:
— Marcelinda, para sua casa ou para a minha?
— Câmara fria — sussurrei em seu ouvido.
— Danadinha!
Subi na garupa e fomos em direção ao Sara. Abraçada a Hugo e com a cabeça repousada em
suas costas refletia sobre as últimas horas. E sobre a conversa que precisaríamos ter.
Ainda meio sem acreditar com o desenrolar da noite, seguia com Marcela, minha namorada,
agarrada a mim. Eu não conseguia parar de sorrir.
O trajeto foi rápido e, mal fechamos a porta do Sara e já fomos nos agarrando. Era um misto de
saudade, desejo, necessidade e paixão. Mãos e bocas explorando os corpos como se fosse a
primeira vez.
Coloco Marcela sentada na bancada e dou uma leve mordida em seu ombro. Ela inclina a
cabeça para trás me dando ainda mais acesso ao seu pescoço, a quem me dedico enquanto seus
dedos passeiam pelas minhas costas.
Ela tira minha camisa e eu sua blusa. Sem sutiã é covardia. A visão do colo dela é uma das
coisas mais linda que existem. Marcela interrompe meu transe de admiração me puxando para um
beijo. Minhas mãos massageiam seus seios enquanto as mãos dela trabalham em meu cinto.
Os olhos de Marcela transbordam luxúria. Ela abre minha calça que desliza pelas minhas
pernas. Marcela desce da bancada e se encarrega de tirar a própria calça.
— Sem calcinha? Tinha más intenções para hoje?
— Só boas. Quero que meu namorado me foda.
O tom de voz que ela usou fez um arrepio percorrer minha espinha. Eu a vi entrar nua na
câmara fria e logo a segui. Seus pelos estavam todos arrepiados já que o termômetro na parede
marcava oito graus.
Eu a puxei para meus braços e nossos corpos quentes se chocaram. Marcela acaricia meu pênis
ereto ainda dentro da cueca box. Seu olhar transpassa minha alma. Sua mão passa para dentro da
cueca e eu instintivamente fecho os olhos. Uma das minhas mãos deixa sua cintura, acaricio sua
bunda. Uma apertada e com dois dedos penetrei sua intimidade hiper lubrificada. Ela abafa seus
gemidos na curva do meu pescoço.
— Preciso de você dentro de mi, ahora — sussurrou em meu ouvido em tom de súplica. — Me
fode, Hugo.
— Seu pedido é uma ordem!
Num movimento rápido eu a viro enquanto ela apoia as mãos em uma das prateleiras e sem
cerimônia eu a penetro em um movimento rápido, único e preciso. O gemido dela é música para
meus ouvidos. Aguardei alguns instantes para que ela se acostumasse comigo dentro dela e então
dou início a um ritmo intenso. Minhas mãos se alternam entre a cintura e os seios de Marcela
enquanto minha boca passeia pelas suas costas entre beijos, mordidas e chupões.
Nossas respirações alteradas sinalizam o que está por vir e sem muita demora chegamos ao
ápice. Dois corpos quentes e satisfeitos em meio ao frio. Um beijo calmo e deixamos a câmara.
Eu visto minha box e vejo Marcela caminhar em direção ao vestiário. Decido fazer uma
omelete, pois já conheço a peça. Uns minutos depois ela volta já de uniforme e se senta na
bancada. Ela está um pouco pensativa.
— Tudo bem?
—Tudo ótimo, meu namorado está cozinhando só de cueca na cozinha do meu restaurante, o que
poderia estar errado?
— O ponto da omelete?
— Aí teria que te demitir. Como estagiário. Como namorado é perdoável.
— Seria um péssimo momento para ser demitido.
— Ah, si. Seu novo brinquedo.
— Como...?
— Presto atenção em tudo. Não que eu tenha alguma coisa a ver com isso, mas no é muito
dinheiro numa moto?
— Estou juntando dinheiro há um bom tempo, o dinheiro do Rio tornou possível agora. É sonho
de moleque.
— Está bom mal passado mesmo essa omelete. Vamos, estou com fome.
Entreguei a omelete a Marcela, depositei um selinho em seus lábios e enquanto ela comia fui ao
vestiário tomar um banho.
Quando saí do chuveiro minhas roupas estavam dobradas sobre o banco. Na cozinha tudo
limpo. Ainda não sabendo ao certo a dinâmica do relacionamento subo e bato na porta.
— Vem. Deita aqui comigo, ainda dá tempo de um cochilo. Estou morrendo de sono.
Me deitei ao lado dela que logo se acomodou em meu peito.
— Está tudo bem mesmo?
— Depois precisamos conversar — ela falou em meio a um bocejo. — Depois.
E pegou no sono. Eu fiquei com a frase em looping na minha mente.
Precisamos conversar
Precisamos conversar
Precisamos conversar
Precisamos conversar
CAPÍTULO 16

Acordei com o barulho da cozinha a pleno vapor. O relógio na parede marcava 10:15h da
manhã.
Status: atrasadíssima.
Nota mental: Lembrar ao Hugo, meu namorado, que ele não pode ter pena de me acordar.
Ao pensar em Hugo eu automaticamente sorrio, mas logo um estágio de tensão me sobe a
mente.
Precisamos conversar.
Desço, comprimento a todos na cozinha.
Status: zumbis de ressaca.
Hoje vai ser difícil.
Ao passar por Hugo, ele nem desvia atenção do que estava fazendo. Eu adoraria um beijo de
bom dia, mas dadas as circunstâncias, aceitaria um olhar.
Precisamos conversar.
Mas como? Que horas? Como não chamar atenção?
Na velocidade em que todos trabalhavam, o serviço teve início sem a mise en place completa,
mesmo eu tendo ajudado.
O restaurante estava lotado e o serviço foi meio desastroso. O clima era péssimo.
— Não me lembro a última vez que tivemos um serviço tão ruim — falei bem séria a todos
reunidos no salão. — Eu sei que foi uma semana difícil, fiquei praticamente a semana fora do
restaurante, e todos ficaram sobrecarregados, eu entendo. Mas acho que todos sabemos de quem
é a culpa. — Todos se entreolham, nervosos, clima de suspense. Uma pausa dramática. Todos
segurando a respiração. Iza tinha lágrimas nos olhos. — Da tequila. — falei séria, mas não
consegui manter e comecei a rir, logo todos me acompanharam. E nos mantivemos rindo por um
tempo. — Mas falando sério, precisamos mover as comemorações para domingo para podermos
curtir a ressaca dignamente. Agora, se vocês me prometerem que dão conta da mise en place em
duas horas, podem voltar mais tarde. — Entreolharam-se e concordaram. — Ok, sumam da
minha frente!
Rapidamente fui abandonada por todos no salão. Inclusive por Hugo. O que me deixou um
pouco frustrada.
Sigo para o escritório e o encontro sentado no sofá.
—Achei você! — falei, sentando em seu colo. Depositei um selinho em seus lábios. — Bom
dia! Você devia ter me acordado.
— Você estava dormindo tão gostoso.
— E a cozinha com vocês bêbados, ou de ressaca ou dormindo. Nenhunzinho para salvar. Não
posso sair com vocês se no dia seguinte vou ter privilégios. Não é certo.
— Você está certa. Desculpa — ele falou, apoiando a cabeça sobre meu peito, como se fosse
dormir.
— Você parece tão cansado. Dormiu mal? — falei, fazendo carinho em sua cabeça.
— Não dormi na verdade. — Ele bocejou.
— O que houve?
— Você disse que a gente precisava conversar e isso não saiu da minha cabeça. Fiquei pilhado.
Sei lá, está bom demais para ser verdade.
— Ei — falei, pegando seu rosto em minhas mãos — é de verdade, sim, precisamos conversar
sobre algumas coisas, mas eu estou aqui. De verdade. — Dei início a um beijo calmo e breve.
— Ok. Então, o que precisamos conversar?
— Regras referentes ao restaurante.
— Tipo transar na câmara fria? — Ele fazia carinho nas minhas costas por baixo da minha
blusa, me deixando arrepiada.
— Especialmente isso. Não pode acontecer de novo. Nem lá, nem em lugar nenhum aqui no
Sara. O restaurante é sagrado. Trabalho é sagrado. Eu não posso arriscar, mas principalmente,
você não pode arriscar. Você viu o que te rendeu a história do Rio.
— Qual é a desse sócio aí?
— Ele é o sócio majoritário, só dois por cento mais dono do que eu e acha que pode mandar
em tudo. O que chega na seguinte questão. Ou melhor, questões. A questão número um é: eu sou
sua chefe. É completamente inadequada nossa relação. Ele vai pedir uma declaração sua dizendo
que é consensual.
— Mas é?
— Hugo, eu estou falando sério. Ele morre de medo de processo.
— Diz para ele que não precisa se preocupar que eu nunca vou me separar de você.
— A outra questão — eu emendei, rapidamente desconversando —, seu contrato de estágio
termina em dezembro. Eu não posso renovar, nem te promover, por estar romanticamente
envolvida com você. Ele poderia, mas não vai.
— Aposto que tudo isso foi ideia sua.
— Culpada, não sabia que eu seria alvo dela um dia. Jamais pensei. Hugo, você acabou com
meu juízo. Eu me comportava direitinho antes de você!
— Então eu vou ser demitido porque minha chefe não consegue resistir a mim?
— Não é que eu não consiga resistir. Eu só não quero mais resistir. Mas, Hugo, muito sério
agora. Você não precisa aceitar. Você pode escolher o Sara.
— Eu prefiro a Marcela. Tem milhões de restaurantes no mundo. Só tem uma de você.
— Na verdade eu tenho uma irmã gêmea. — Ela gargalha.
— Você não sabe mentir.
— Não era mentira, era uma brincadeira! Você é tão sem graça! — Cruzei meus braços e fiz um
bico.
— Vou te irritar mais vezes, esse bico é tão fofinho. — Me deu um selinho e beijinhos pelo
meu rosto até nossas bocas se encontrarem novamente dando início a um beijo intenso e quente
que termina quando precisamos respirar.
— Essa, infelizmente, é uma das coisas que não vai mais se repetir durante o expediente. Ok,
mocinho? — falei, dando um selinho a cada palavra.
— Só um beijinho de despedida?!
— Ok, só um.
O beijo começou calmo. Sem pressa. Mas ainda assim com notas de intensidade. Meus braços
envolviam seu pescoço enquanto uma de suas mãos apertava minha bunda e a outra que passeava
pelas minhas costas desabotoou meu sutiã. Um leve suspiro de liberdade. E sob minha perna
sentia o volume na calça de Hugo dar sinais. Ele interrompeu o beijo e procurou meu olhar. Era
uma súplica para que eu o permitisse continuar.
Eu não deveria.
Ele não deveria.
Nós não deveríamos.
Eu quero.
Ele quer.
Nós queremos.
Nós vamos.
Eu retiro a camisa dele e passo as mãos sobre seu peitoral definido. Em seguida ele retira
minha blusa e desce as alças do sutiã já aberto pelos meus braços. O olhar dele sempre que vê
meus seios é como se testemunhasse um grande acontecimento. Êxtase. Seu toque firme neles faz
escapar um gemido que logo é calado por um beijo. Preciso ser silenciosa. Estamos no meio do
expediente com todos a poucos metros.
Ele me retira de seu colo me deitando no sofá, retira sua calça, depois a minha. Me beija,
desce com sua boca pelo meu pescoço. Depois o ombro. Depois meus seios e com muito esforço
tento me manter silenciosa. Depois desce para meu abdome e ao chegar na barra da minha
calcinha ele para.
— Seu eu continuar aqui, você se comporta? — ele me pergunta com o olhar mais sedutor do
mundo.
Eu apenas concordei com a cabeça, mas não fazia ideia da resposta. Eu estava completamente
entregue. O poder que Hugo exerce sobre mim era algo que eu nunca tinha vivido antes e ia além
da luxúria. Não era só uma coisa carnal. Entorpecia todo meu ser.
Ele passou a língua sobre meu sexo mesmo sem tirar minha calcinha e percebi que a missão de
me comportar seria mais difícil do que imaginei e deixei escapar um gemido, baixo mas deixei.
Esse homem me enlouquece. Ele retirou lentamente minha calcinha. Se ele tinha decidido pelo
caminho da tortura, eu faria um escândalo. Uma passada de língua em meu clitóris e a sensação
de que eu poderia explodir já habitava em mim. Ao me chupar eu já estava totalmente fora de
controle, me contorcendo e tendo a mão de Hugo tapando minha boca numa tentativa não muito
bem-sucedida de me manter em silêncio. Mas eu já não aguentava mais e ao chegar ao orgasmo
acabei mordendo a mão de Hugo.
— Desculpa, mi amor — falei com a respiração ainda entrecortada e dando beijinhos em sua
mão mordida enquanto ele a tinha cabeça apoiada em meu abdome. Fiz um pouco de carinho em
sua cabeça. — Vamos. No me tortures más. Quero te sentir en mi. Callame con tus besos.
Ele veio até mim e iniciou um beijo calmo, porém quente, e quando eu menos esperava entrou
em mim com uma estocada firme, precisa, que até me fez perder o ar. Como é delicioso tê-lo em
mim. Alternando o ritmo das estocadas e abafando todos os nossos gemidos com beijos
chegamos juntos ao orgasmo.
Do jeito que terminamos, permanecemos. Hugo pegou no sono deitado sobre mim e dessa vez
eu que não tive coragem de interromper um sono gostoso.
CAPÍTULO 17

MAIO DE 2015
— Você poderia tentar se vestir menos como a bisa.
— No exagera!
— Você tá muito senhorinha com esse vestido!
— Mas eu sou uma senhorinha.
— Você deveria estar tentando conquistar um parceiro.
— Eu não preciso de um parceiro.
— Você ainda tá em idade fértil.
— Eu já estou suficientemente ocupada.
— Você deveria estar sexualmente ativa.
— Chega, Sara! Você ganhou.
— Agora só falta você colocar a roupa que eu escolhi. — Ela comemorou.
— Não há necessidade. É só um jantar para vermos a estreia do programa na casa do Fragalli.
No é uma festa.
— Mas pH vai estar lá.
— Sim.
— Então…
— Então o que, Sara?
— Ué?! Você deveria estar sexualmente ativa. — Olha as ideias.
— Já falei para a mocinha parar com isso. Já te disse que somos só amigos.
— Não tô falando para você se casar com ele.
— Maldito dia em que te falei que não precisava amar alguém para transar com ela.
— Então?!
— Não é justo com ele. Ele me ama. Não posso fazer isso com ele.
— Você tem certeza de que não o ama?
— Tenho.
— Como você pode ter tanta certeza?!
— Tendo, Sara.
— Você podia pelo menos beijá-lo.
— Não.
— Eu li sobre uma teoria…
— Não vou testar nenhuma teoria.
— Você é muito chata.
— Pelo menos nisso você puxou a mim.
— Você sabe que não é uma qualidade, né?
— Sara, já deu né? Já passou da hora de você dormir. Você tem aula amanhã!
— Mas e o programa?
— Qual tinha sido o combinado?
— Se você fosse ao jantar, veríamos amanhã, juntas, depois da escola.
— Então, mi amor, qual a dificuldade? Estou cumprindo minha parte. Que tal cumprir a sua?
Se você mudou de ideia eu posso ficar e ver com você! Só estou indo porque você insistiu muito.
— Eu quero que você vá — ela falou pausadamente, encarando as mãos.
— Você quer ir, né? Então, vamos!
— Não! Eu não consigo. — Seus olhos arregalados demonstravam o quão apavorante ela
considerava essa possibilidade.
— Claro que consegue. Mas impossível ir sem ver o Hugo. Impossível ir sem que te vejam
com essa cara de Coelhozinha. Você não acha que já está na hora? Já tem dois meses que você
falou que iria esperar um mês.
— Eu não sei onde estava com a cabeça quando achei que um mês era um prazo razoável.
— Mas já se passaram três. O programa vai estrear. As pessoas podem perceber.
— Não me pressiona.
— Não estou. É apenas uma conversa.
— Eu vou bolar um plano.

Acabei cedendo e colocando a roupa que a Sara escolheu: uma calça jeans ultrajusta, não era,
mas essa coisa de ficar experimentando mil pratos me engordou um pouco, e uma blusa branca
com um decote gigante nas costas, que devo ter comprado sob efeito de drogas. Um all star de
solado duplo para dar um efeito mais despojado. Sara me fez secar o cabelo e passar
maquiagem. Desnecessário.
Coloquei ela na cama e percebi que estava bem atrasada. Táxi. Para poder tomar meu vinho a
vontade.
O apartamento de Fragalli não era distante e logo cheguei, com 15 minutos de atraso.
— Marcela, achei que não vinha.
— Quase não venho — falei, abraçando Fragalli.
— Cadê a pequena?
— Dormindo, mon ami.
— Caralho, Marcela. Tá muito gostosa — Hugo gritou da varanda.
— Oi, Hugo. Eu vou bem e você?
— Oi, Marcela. Hugo já chegou meio calibrado — Clara me alertou enquanto me abraçava.
— O que houve? — eu perguntei.
— Não conseguimos descobrir, talvez você tenha mais sorte.
— Ah, me vê uma taça de vinho, então. Estou muito sóbria para lidar com um Hugo bêbado.
Cumprimentei Carvalheiro, Drica, esposa de Fragalli, mais algumas poucas pessoas da
produção que também estavam por lá e com minha taça de vinho segui ao encontro de Hugo na
varanda.
— Não sabia que você fumava.
— Eu não fumo — falou, soltando a fumaça calmamente.
— Já ouvi isso outras vezes, vindo de você.
— Você não acredita em nada do que eu falo mesmo. — Ele coçou a barba.
— Claro que acredito!
— Por que não acredita quando digo que te amo?
— Quem disse que não acredito?
— Então por que não dá uma chance para a gente?
— Porque eu não te amo.
— Como pode ter certeza?
— Tendo, Hugo. Credo, parece a Sara.
— Eu tenho uma teoria.
— E eu estou tendo um deja vú. No tinha como ser mais parecidos — resmunguei.
— Do que você está falando?
— Nada, Hugo. Só pensando alto demais. Alto demais.
— Casal, o programa vai começar! — Fragalli gritou da sala.
— Não somos um casal.
— Marcela não quer que a gente seja um casal.
— Impossível ser um casal se uma das partes não está interessada, certo? Impasse resolvido.
— Tirei o copo de whisky da mão de Hugo. — Sem mais bebida para você, mocinho.
Nos acomodamos para ver o programa. Eu me sentei no sofá ao lado de Clara, onde não havia
espaço para Hugo, logo, ele se sentou no chão apoiando as costas em minhas pernas.
Era muito estranho me ver na TV. Todos tentavam me convencer de que nos próximos episódios
eu estaria mais tranquila. No intervalo voltei à varanda. Essa história de Bestchef era um erro tão
grande. Não era para mim.
— Você estava preocupada com a Sara.
— Oi?
— Não fica se martirizando. Só seu corpo estava lá. Não avalie sua participação hoje. Nem
veja o que a crítica tem a dizer sobre você, não reflete a realidade. Não é você.
— Por que está bebendo tanto? Não é você, Hugo. — Ele tinha outro copo na mão.
— Porque eu preciso esquecer.
— Sabemos bem que isso não funciona com você.
— Quero tentar de novo.
— O que você quer esquecer? Sabe que pode falar comigo, certo?
— Falar com você não vai resolver meu problema.
— E o que vai? — Ele parecia refletir.
— Agradeço, mas vou continuar na companhia do meu whisky.
— Cadê suas chaves?
— Para que você quer minhas chaves?
— Para a gente poder terminar essa conversa em outro momento. Com você vivo. Você vai
embora de táxi.
Meio a contragosto ele me entregou as chaves da moto e retornou à cozinha para pegar mais
uma dose.
O intervalo acabou e voltamos todos para a sala. Quase todos, Hugo permaneceu na varanda.
De tantas vezes ir ao bar, por fim o vi levando a garrafa. Além da garrafa, fazia companhia a ele
um dos charutos de Fragalli.
— Descobriu o que houve? — Clara cochichou.
— Não. Mas estou preocupada. Ele não bebia assim. Só uma vez, quando a vó dele morreu.
Mas agora eu nem sei.
— Será que morreu alguém?
— Tomara que não.
O programa acabou e Hugo estava bêbado como um gambá. Não era típico dele.
— Marcela, leva seu namorado antes que ele acabe com meus charutos, porque com o whisky
ele já acabou.
— Não sei se quero saber quanto whisky tinha na sua casa. A propósito ele não é meu
namorado.
— A gente pode deixá-lo em casa — Clara falou.
— Ok. Drica, você pode pedir um táxi para a gente?!
Não foi a missão mais fácil do mundo entrar com o Hugo no táxi. Mas tão logo conseguimos ele
dormiu com a cabeça em meu colo.
— Acho melhor me deixar primeiro, moro mais perto — Clara falou.
— Você sabe onde o Hugo mora?
— Você não sabe?
— Por que eu saberia?
— Eu achei que…
— Não acredito, Clara, o que eu faço com esse corpo?
— Eu sei lá. Hugo, acorda! Fala para a gente onde você mora! — Ela o sacudia, mas não
movia nem uma pestana.
— Catzo!
— Marcela, eu não posso levar ele para minha casa.
— E eu posso, Clara?! Isso foi ideia sua!
— Vai ser melhor ele ir para sua casa, vocês têm mais intimidade.
— Que intimidade?! Porque a gente transou há dez anos?! Clara, vocês planejaram isso?
— Amiga, eu sou blogueira e não roteirista. Não tenho criatividade para me meter na história
de vocês dois, não. Tchau, boa sorte! — falou, descendo do carro.
— Clara!
O motorista me encarava. Eu encarava Hugo desmaiado e encarava o motorista. Não havia
outra saída a não ser levá-lo para minha casa.
Eram quase duas da manhã quando, com a ajuda de Isabel, consegui colocar um Hugo
desmaiado no sofá.
— Virgem Santíssima, dona Marcela, mas é a cara da Sara. Mas todo rabiscado. Por isso que
essa menina fica com essas ideias doidas.
Gargalhei, meio de nervoso, mas o jeito que ela se expressou era, de fato, engraçado.
— Si. Como é mesmo que tu dices?
— Troço que não parece com o dono é roubado.
— Isso. Agora o que a gente faz? — perguntei enquanto encarávamos o corpo sobre o sofá.
— Eita! A senhora tem a ideia de girico de trazer o homem para cá e agora me pergunta o que
fazer?
— Isabel, não foi ideia minha, mas eu também não podia deixar ele na rua bêbado e
abandonado.
— Sarinha está é certa. Mas eu duvido que a senhora não ame esse homem.
— Até você, Maria Isabel?!
— Se a senhora pudesse ver o brilho nos seus olhos, dona Marcela, ah se pudesse. Vá lá falar
para Sara não sair do quarto que eu irei socar paçoca no homem.
— Você vai fazer o quê?
— Dar paçoca para ele acordar. Se não funcionar, só hospital ou então é caixão e vela preta.
— CREDO, MARIA ISABEL! O HUGO NÃO PODE MORRER AQUI EM CASA!
— Mas o plano é deixá-lo vivo.
— O pH tá aqui?! — Uma voz sonolenta surgiu do pé da escada.
— Não se mova, mocinha — falei, encarando Sara que já descia correndo as escadas. Foi em
vão.
— O que houve? Ele tá morto?
— Mais ou menos — Isabel falou e Sara começou a chorar.
— ISABEL! — eu chamei sua atenção.
— Ele vai morrer?
— Todo mundo vai morrer, Sarinha.
— ISABEL! Pelo amor vai fazer o negócio lá da paçoca.
— A senhora diz para não mentir para menina e fica chateada. Vai entender.
— Calma, Sara, ele só está bêbado.
— Calma, Sara? O consumo excessivo de álcool é o responsável direto e indireto por milhares
de mortes por ano.
— Eu tenho certeza de que você tem estatísticas interessantíssimas sobre o assunto, mas eu
preciso que você vá para o seu quarto.
— PH... — Ela se aproximou dele. — Não morre hoje, não. — Passou a mão em seu rosto. —
Eu ainda tenho que conhecer você. Por favor. — Ela terminou chorando abraçada a ele.
Maria Isabel voltou com paçocas e eu subi com a Sara se debulhando em lágrimas para o
quarto. Eu queria fazer uma fogueira para matar Hugo, Clara e Maria Isabel de uma só vez.
Consegui acalmar a Sara com muito custo. Mas não sem antes ouvir recomendações sobre
verificar a glicemia de Hugo, garantir que ele não bronco aspirasse, sim, ela usou esse termo
para me dizer que não era para deixá-lo morrer sufocado no próprio vômito e outras informações
que ela arranja, sei lá, onde.
Voltando para sala encontro Hugo com a cara enfiada num balde. Esse negócio da paçoca
funciona mesmo.
— Vamos, coma mais uma e beba mais água.
— Eu não consigo mais.
— Na hora de se embriagar estava dando conta.
— Ok, Bebel, acho que assumo por aqui. Muito obrigada.
— Marcelinda, aqui é o céu?
— Está ótimo já, vou chamar um táxi para te levar então.
— Desculpa. Porra. Caralho. Aqui é sua casa?
— Si.
— Você é rica?
— Você só está bêbado. Muito bêbado.
— E como eu vim parar aqui?
— Eu te trouxe. Vamos conversar depois, ok. Você consegue subir as escadas?
— Claro.
Gargalhei ao vê-lo subindo de quatro as escadas e falando como se estivesse sussurrando,
porém, usando um volume normal. A noite ia ser longa. No chuveiro do quarto de hóspedes o
deixei sentado debaixo da água fria enquanto desci com suas roupas para lavar. Programei a
máquina para lavar e secar. Quando acordássemos estaria tudo pronto. Passei um café bem forte
e coloquei bastante açúcar. Certeza absoluta que ele odiaria, mas era do que precisava agora.
Ao subir as escadas lembro de Sara falando sobre a bronco aspiração e me bate um desespero
que me faz correr até o banheiro onde o pego dormindo em posição fetal no chão do box. Fofo e
preocupante. O acordo, o enxugo, o coloco em um roupão e ajudo-o a se acomodar na cama.
— Vamos, bebe!
— Mas está com muito açúcar.
— Eu sei que você bebe sem, mas hoje você precisa de muito açúcar. Talvez da próxima vez
você pare de beber quando eu te falar.
— Eu só queria…
— Esquecer? Funcionou? — Ele negou com a cabeça sem me encarar. — Alguém morreu,
Hugo? — Novamente ele negou com a cabeça, ainda sem me olhar. — Hugo, olha para mim. —
Com uma certa relutância ele finalmente me olha, chorando. — O que houve? Você disse que eu
não posso resolver, mas posso te ouvir, posso te ajudar, eu sou sua amiga. Fala comigo.
Ele apenas chorou com o rosto entre as mãos durantes alguns minutos.
— Eu só quero ser pai, Marcela, não pode ser tão difícil assim.
Eu engoli seco e um calafrio percorreu minha espinha. Eu não sabia se iria aguentar. O abracei
e deixei que as lágrimas corressem soltas pelo meu rosto. Lágrimas pesadas. Cheias de culpa
porque eu podia dar fim àquele sofrimento, mas não daria. Ele deitou a cabeça em meu colo.
— Eu me envolvi com uma menina há uns meses. Ela ficou grávida e tal. Eu estava muito feliz.
Você sabe que eu sempre quis ser pai. Acontece que ela me falou que o filho não é meu. Se
enganou. Eu queria que ela estivesse errada, mas fizemos o DNA. Não é meu. Eu falei para ela
que não tinha problema, mas o cara quer assumir... Eu só quero ter um filho.
Meu coração estava apertado e a sensação que eu tinha era de que ele pararia de bater a
qualquer momento. Eu não podia acreditar que eu estava fazendo isso com ele. Mas ao mesmo
tempo não poderia trair a confiança da Sara.
Fiz carinho em sua cabeça até que ele pegou no sono. E tendo me certificado disso me pus a
falar.
— Você tem uma filha. Ela é linda, inteligente e tem tanto de você. Eu quero muito que vocês se
conheçam logo. Me desculpa por hoje, espero que um dia você entenda.
O deixei no quarto de hóspedes logo que o ajeitei na cama e depositei um beijo em sua testa.
Ao chegar no meu quarto todo meu autocontrole foi embora e eu chorei como há anos não
chorava. Esperei que o banho quente me relaxasse, mas passei toda madrugada que restou, que já
não era muita, em claro.

Acordei com tudo meio girando. Não reconheci nada em volta. Na mesa de cabeceira um
recadinho.
“Bom dia, sua roupa está na poltrona. Tome os remédios e a água de coco. Toalhas limpas no
banheiro caso queira mais um banho. Fui levar Sara na escola, já volto. MC.”
Há quanto tempo eu não recebia nenhum bilhete com essa caligrafia. Aqueceu meu coração,
mas eu não fazia ideia do que estava fazendo ali. É a casa de Marcela? Sigo à risca as
instruções. Parece ter um festival de música eletrônica acontecendo na minha cabeça.
Eu tinha acabado de sair do banheiro, ainda só de toalha, quando ela me vê.
— Ops, desculpa, volto depois — ela falou.
— Ei, Marcela, volta aqui com esse café.
Ela me entregou o café e tentou sair do quarto novamente.
— Alguém, pouco provável que tenha sido eu mesmo, tirou minha roupa.
— Você vomitou nela. E no meu sofá. E no meu tapete. Eu deveria te dar um sermão agora
mesmo, mas vou esperar sua ressaca passar.
— Obrigado, então?
— De nada. Estou te esperando para o café da manhã no jardim. Não demore.
Ela se retirou do quarto. Vestia uma calça jeans simples, uma regata, pés descalços e cabelos
molhados. Não havia um momento na vida em que ela não estivesse deslumbrante.
Depois de me vestir, desço e vou a seu encontro, sentada num banco de madeira que fazia
conjunto com uma mesa lindamente posta no jardim.
— Achei que eu estaria de castigo.
— E está, mas eu não. Hoje é quarta. Minha manhã de folga. Você não vai atrapalhar.
— Claro. Me desculpe e obrigado de novo. Eu nem sei como vim parar aqui.
— Você precisa parar de beber para tentar esquecer as coisas. Não dava certo antes, continua
não dando.
— Eu te contei?
— Si. E eu sinto muito. Mas no é desculpa para agir com tanta irresponsabilidade. Você me
assustou. De verdade. Nunca mais faça isso.
— Pode deixar. E desculpa pelo sofá e o tapete. Pode mandar a conta para mim.
— Hugo, eu tenho uma criança em casa. Tudo é a prova de vômito, xixi e suco. — No momento
em que falei me arrependi. — Desculpa.
— Sabe, eu sonhei que a gente tinha uma filha.
— Hugo…
— Eu sei, Marcela, mas foi bom. Só isso.
— Às vezes as coisas acontecem do jeito que a gente menos espera.
— Eu sei.
— Aqui, dona Marcela, sua tapioca. Bom dia, seu Hugo, aceita uma tapioca?
— Tu que é a bruxa de ontem, né!? Me enfiando paçoca goela abaixo.
— OXI, estava semimorto homem, não venha se fazer de abestado. Vai querer ou não?
— Sem paçoca, por favor.
Marcela gargalhava de uma forma que eu ainda não tinha visto desde que nos reencontramos.
— Que figura!
— Você não faz ideia! Não sei o que faria da minha vida sem ela.
— Ela está com você há muito tempo?
— Si, desde que Sara começou a correr pelo restaurante. Uns bons anos. — Ela lembrava
daquilo com ternura. — Ela trabalhava no Ruiz e percebeu que no ia dar certo. Veio para me
ajudar enquanto eu procurava alguém e nunca mais foi embora.
— Aqui, seu Hugo.
— Obrigada Isabel. Pela tapioca e por ontem.
— Tem nada não. Dona Marcela, a senhora vai a feira?
— Vou.
— Pois tome então a lista de Sara. E não esqueça nada. Não quero essa menina aperriando
meu juízo não.
— Sim, senhora. Algo mais?
— Ele tomou toda água de coco da Sarinha.
— A água de coco não é da Sarinha. Ela que beba água. Ela não está bebendo água?
— Olha…
— Maria Isabel!?
— Coitada, ela não gosta, a senhora sabe. Água de coco é bom também.
— O que mais ela não está fazendo? Foi só eu ficar um pouco mais ocupada para ela tomar
conta da casa? Vou ter uma conversa séria com as duas hoje mais tarde.
Eu apenas observava com medo de que pudesse sobrar para mim também. Meu medo não era
em vão.
— E o senhor da próxima vez vai ficar na rua!
— Sim, senhora!
— Anda que eu vou te levar.

No carro, Marcela devolveu minhas chaves. Minha moto tinha ficado com Fragalli, mas eu não
estava com pressa de buscá-la. Eu pretendia aproveitar a manhã com ela.
— Eu ainda vou àquela feira que você me apresentou.
— Eu sei. Por isso parei de ir.
— Credo, Marcela! Precisa me evitar tanto assim?
— Precisei, agora não tem mais jeito. Até bêbado na minha casa você já foi parar. Não vou me
livrar de você nem tão cedo. Já aceitei. — Ela deu ombros.
— Como assim?
— Eu estive por quase dez anos longe de você. Agora trabalhamos junto e até meu endereço
você já sabe. Todo trabalho que eu tive foi em vão.
— Isso porque você insiste em dizer que não me odeia.
— E não odeio mesmo. Você acha que eu teria te levado bêbado para minha casa se te odiasse?
Sério mesmo, Hugo?
— Tem razão, me desculpe.
— Eu sabia da probabilidade de ter que te ver quando aceitei fazer o Bestchef e nem tinha me
passado pela cabeça ser sua colega de trabalho. Mas só de estar na TV, só de todos saberem que
eu sou a chef do Ruiz, era um risco. Eu comando um restaurante há anos sem ninguém saber só
para você não saber. Não porque eu te odiava, mas porque doía. Mas não dói mais.
Eu não poderia só ter ficado quieto, na minha? Quando eu acho que as coisas estão indo bem,
eu vou lá e meto uma fora.
Porra, Hugo!
Marcela me deixa na casa de Fragalli em meio a um clima péssimo no carro.
— Obrigado, de novo. E desculpas.
— Tchau, Hugo.
CAPÍTULO 18

— PH tá vivo? — Sara perguntou, entrando no carro.


— Oi, filha! Como foi na escola? Tudo bem? Está tudo ótimo comigo, obrigada por perguntar.
— Você não respondeu a minha pergunta.
— E você não faz uso da educação que eu te dei!
— Oi, mãe! — falou com desânimo. — Como foi sua quarta da paz?
— Não teve paz. Não teve. Faltou, Sara! Está em falta. Vocês me tiram do sério!
— Mas o que eu fiz?!
— É o que você não anda fazendo.
— Mas o pH tá vivo?
— Eu quis, muito, matá-lo, mas não matei. Então acho que sim.
— Por que ele estava daquele jeito? Ele é alcoólatra?
— Não é alcoólatra. Só alguns problemas pessoais.
— Você por acaso sabe do que se trata? — Mesmo sem olhá-la eu sabia que ela estava me
encarando.
— Sei.
— E…? — Ela aguardava um complemento.
— Não é da sua conta.
— O que houve com a nossa regra de não esconder coisas e/ou sentimentos e etecetera?
— Não se aplica.
— Como não? Sua defesa?
— O assunto em questão não é meu, é do Hugo. Ele não está envolvido na nossa negociação.
— Se o assunto é ele ter filhos acho que sou parte interessada, não?
— Sara, quantas vezes já te falei para não ouvir a conversa dos outros?! Isso é tão feio!
— Você não ia me falar? — Ela estava desapontada.
— Não ia. Eu não quero que você se sinta pressionada. A culpa por ele se sentir miserável eu
já estou carregando. Não precisa se preocupar, ok?
— Mas você contou para ele. Eu ouvi.
— Você é muito fofoqueira! Eu só falei porque achava que ele não ia lembrar… — ela me
interrompeu.
— Ele lembrou?! — Ela tinha olhos arregalados.
— Ele achou que tinha sido um sonho. Eu ia dizer que não tinha sido… — Me interrompeu de
novo.
— Traição! Traição, Marcela Campana! Te acuso de traição.
— Mas você foi salva por essa mania insuportável que vocês dois tem de me interromper
quando eu estou falando! Mas que saco. No sei se dou conta de vocês dois abalando meu juízo
não, hein! Inclusive, prepare-se que hoje tem sessão de esporro antes do almoço.
— Não pode ser depois? Tô com tanta fome! — Ela fez uma cara de gatinho do Shrek.
— Não pode. Não vou conseguir gritar tudo que eu quero estando de barriga cheia.
Eu nem tinha desligado o carro quando Sara desceu e saiu correndo para dentro de casa. Se ela
estava achando que ia escapar, estava muito enganada.
— Maria Isabel e Sara compareçam à sala imediatamente. O não comparecimento é passível
de punição severa. O tribunal entra em sessão em dois minutos.
— Maria Isabel se apresentando. Ande logo Sarinha que sua mãe tá braba hoje.
— Tô indo. — Pudemos ouvir ao longe ela gritar.
Uns minutos se passam e ela aparece com uma blusa escrita: “Minha mãe é a melhor do
mundo”.
— Sara se apresentando.
— Ótima tentativa — eu falei, apontando para blusa — mas não vai funcionar.
— Eu precisava tentar. — Deu ombros.
— Eu vou começar na acusação. Sara, hoje, sua cúmplice Maria Isabel, sem querer, isso é
importante, sem querer, te dedurou. Quer dizer então que a mocinha não está bebendo água?
— Claro que tô. Óbvio que tô. — Eu apenas uso meu olhar inquisidor. — Água de coco não é
água? O nome já diz. Também possui eletrólitos e é amplamente recomendado para reposição
hídrica.
— H2O! Sara! Não é um bom dia para testar minha paciência e inteligência.
— Colocando assim, dessa forma, de fato, eu diminuí meu consumo.
— Alguma confissão?
— Invoco o princípio “nemo tenetur se detegere”, mãe! Ninguém é obrigado a produzir provas
contra si mesmo.
— Também está proibido mentir sob juramento, certo? — ela concordou. — Sara, você tem
usado pasta de dente?
— Então, estudos dizem…
— Só responde, Sara.
— Não é ruim assim. Apenas a escovação mecânica, sem aditivos químicos, provou que
quando associada ao uso de fio dental tem eficiência de noventa e nove por cento.
— Sara! Já tínhamos conversado sobre isso!
— Mas, mãe! Pasta de dente é horrível!
— Sara, você está tomando seu remédio?
— Claro. Tô super de boas. Tá tudo sussa.
— Eu também achava que estava tudo sussa com a pasta de dentes e a água. Sara, você sabe
que isso é muito sério, não sabe?
— Eu sei. Eu tô bem. De verdade, e tô tomando o remédio.
— Maria Isabel, algo que eu deveria saber?
— Acabou o açúcar? — Ela me deu um sorriso amarelo. Haja paciência.
— Sobre a Sara, Isabel.
— Tem a coisa da água, desculpa, Sarinha.
— Da água eu já sei, e a comida?
— A mesma coisa né? Aquele sacrifício, mas come. Ela gosta mais da sua comida.
— Sei. Dispensadas.
— Nada disso! Marcela Campana, agora eu estou na acusação! — Sara falou, ficando em pé no
sofá.
— Primeiro, desce do sofá. Quais são as queixas?
— Abandono de incapaz.
— Quando foi que eu te abandonei, criatura?
— Você deixou pH sozinho no chuveiro.
— Foi rapidinho! Eu tinha que colocar a roupa dele para lavar!
— Então, ele estava pelado?!
— Deus, o que eu fiz para merecer isso?!
— Responde!
— Sim, estava.
— Danadinha!
— Sara!
— Não falei, Bel. Sabia que tinha rolado alguma coisa.
— Sara, não rolou nada.
— Mas você está apaixonada!
— Não, Sara, não estou.
— Sarinha, você tinha que ver quando eles chegaram ontem. Apaixonada ela não está não, mas
ela ama seu Hugo, com certeza. Os olhinhos brilhavam. Eles até tomaram café juntos no jardim.
— Eu sabia!
— Muito obrigada, Isabel. Excelente contribuição. Estou liberada? Estou com fome.
— Não! Mais uma acusação! Negligência!
— O que foi agora?!
— Meu aniversário!
— Você me disse que não queria festa. Estou esperando me dizer o que quer.
— Eu não quero festa.
— O que quer então? Falta um pouco mais de um mês. Não vai deixar para cima da hora! Estou
trabalhando muito. Preciso de tempo para me organizar.
— Eu tenho um plano.
— E eu tenho medo dos seus planos.
— Saberás no momento certo.
— Podemos almoçar agora?

Nós estávamos deitadas no chão vendo Bestchef, com a Sara criticando toda minha atuação,
quando a campainha tocou.
— Oxi! — Ouvi Isabel exclamar na porta.
— Quem é? — eu perguntei.
— A senhora encomendou isso aqui?
Ela tinha um romanesco em uma das mãos e uma caixa de paçoca na outra. Eu comecei a
gargalhar enquanto as duas me olhavam sem entender.
— Tem um cartão, dona Marcela.
— Eu já sei de quem é.
Sara foi até Isabel e pegou o cartão. E já ia abrindo.
— Por acaso está escrito seu nome aí, mocinha?
— Não.
— Então deixa que eu abro. — Ela com um bico enorme me entregou o cartão.
— Bel, tem um para você — Sara falou, entregando para ela.
— Lê para mim, tô sem óculos.
— “Querida bruxa da paçoca, obrigado pela ajuda. Estou repondo seu estoque. Posso precisar
de novo. HC.”
— Eu gostei dele — Bel falou.
Eu li e reli o cartão várias vezes e fui invadida por deliciosas memórias.
— Sarinha, chega aqui. Dá uma olhada nesse brilho nos olhos de sua mãe. Não é a coisa mais
linda?
— Quer parar, Maria Isabel?
— Mas o que é isso? — Sara olhava o romanesco como se fosse um alienígena.
— Um romanesco. É uma mistura de brócolis com couve-flor.
— Por que pH te daria isso?

2004
— É meu único dia de folga, Hugo!
— É meu único também! Minha chefe é uma bruxa.
— Muito engraçado! — Forço uma gargalhada bem malfeita — Nenhuma chance de você me
arrastar para esse show do que você acha que é música, mas é só uma gritaria eterna.
— Eu quero a companhia da minha namorada, apresentá-la aos meus amigos — ele disse,
abraçando-me por trás e depositando beijos em minha nuca. Mas eu não cederia.
— Hugo… isso é golpe baixo! — falei, tentando me soltar de seus braços. Ok, não fiz nenhum
esforço para sair na verdade. — Eu tenho que ir à feira.
— Quem tem que ir à feira? Você nem come em casa!
— Não se compra só comida na feira. Preciso pegar um vinil que encomendei. A vendedora só
participa na primeira segunda do mês, mas da última vez estávamos no Rio.
— O que me lembra que eu fui a um samba com você! Viu?
— Você se convidou.
— Nossa, quanta delicadeza.
— Desculpa! Olha, eu sou do rock, com certeza vamos achar um show que os dois vão curtir,
ok? — Comentei enchendo-o de beijinhos.
— Só vou agora aos lugares em que você me convidar.
— Vamos à feira comigo?! Te compro um paxtel.
— Paxtel, mano? Pastel.
— Aprendi com um carioca. Paxtel de feira.
— Me comprar com comida é golpe baixo.
— Coisa mais fácil, e eu nem vou precisar fazer.
Andamos até a feira que ficava a quatro quarteirões de casa. Caminhar de mãos dadas, rindo
pelas ruas. Definitivamente era como reviver os dias de Rio de Janeiro.
— Marcela, tem certeza de que não vai querer?
— Eu achei que iria querer mas não quero.
— Você não quer comer? — Ele estava incrédulo.
— Não. Estou meio blé. — Fiz uma careta, colocando minha língua para fora. — Sei lá.
Esquisita. Vou ali nos vinis.
Dei um selinho e saí de lá, o cheiro embrulhava meu estômago. Passei o tempo olhando os
vinis e escolhendo vários. São meus pontos fracos. Já estava com um de Tom Jobim, Tim Maia e
a encomenda.

— Dire Straits? — perguntei vendo o vinil nas mãos de Marcela.


— Si.
— Clássico. Faz qualquer mulher se derreter.
— Era exatamente o que eu queria saber. — Sério?
— Sempre dá certo.
— Pois é! Sempre funciona comigo. Se citar Dire Straits eu tiro minha roupa na mesma hora!
— Você está sendo irônica, né?
— Olha, eu até estava, mas você não estava entendendo e eu estou sem paciência, então parei.
— Em que momento você parou?
— No momento em que você provavelmente desejou que eu estivesse sendo irônica mas eu não
estava.
— Ei, o que está acontecendo? Por que você está estressada?
— Porque você me estressa! — Ela pagou e saiu andando.
Fiquei até com medo de me aproximar, e de longe vi ela estender uma canga no gramado, se
encostar numa árvore e abrir um livro. Estou parado em frente a uma barraca de flores. Eu não
faço ideia se Marcela gosta de flores. A verdade é que mal nos conhecemos.
E faz parte. Eu acho.

Eu estou de TPM? É assim que uma TPM em um relacionamento sério parece? Eu nem me
lembro.
Eu observo de longe Hugo em frente à barraca de flores. Por favor, não compre rosas. Decido
parar de olhar e me concentrar em meu livro.
— Marcela?
— Sim? — respondo, sem retirar os olhos do meu livro.
— É um pedido de desculpas, por favor.
Olho para Hugo e ele tem um milho cozido nas mãos.
Milho cozido.
Mi-lho co-zi-do.
— Achei que você fosse comprar flores.
— Eu iria, mas fiquei na dúvida se você gostava. Bom, de milho tenho certeza de que você
gosta.
Eu queria muito ficar brava com ele, mas era tão fofo.
— Eu gosto de flores, plantadas, não cortadas. Gosto de girassóis. Jamais me dê rosas, a não
ser que me odeie. Se for para me dar uma flor cortada me dê um brócolis, uma couve-flor, ou
melhor, um romanesco que é mais bonito. Pelo menos poderei comer depois.
— Não é muito romântico.
— Milho cozido também não. Mas eu gostei. — Dei um beijo nele que agora sentava ao meu
lado. — Credo, qual o recheio do paxtel que você comeu?
— Palmito.
— E estava bom?
— Sim.
— Tem certeza?
— Ah, era só o que faltava, vai dizer que eu não tenho paladar?
— Depois eu que estou estressada…
— Você está esquisita demais.
Resolvi ignorar o comentário e voltei a atenção para meu livro. Eu podia ouvir as engrenagens
da cabeça de Hugo. Ele pensando em alguma coisa. E aguardando um momento para falar sem
que eu fosse agredi-lo.
— Eu sei que você quer falar alguma coisa. Fala logo.
— Você toma remédio?
— Que remédio?
— Tipo anticoncepcional.
— Não. — A cara dele foi impagável. Meio susto, meio desespero. — Só agora você veio se
preocupar com isso?
— Preocupado mesmo eu não estou, se você não estiver.
— Eu não estou.
Ele continuava pensando.
— O que mais Hugo?
— Vocês não ficavam todas de TPM ao mesmo tempo?
— Agora você é fiscal do ciclo menstrual?
— Sério Marcela, só estou tentando entender.
— Sim, ficamos.
— Marcela, eu posso estar muito louco aqui, mas você está toda esquisita. E sei lá, mas eu
acho, que as meninas estavam de TPM há umas duas semanas.
— Claro que não, Hugo. Não pira.
— Ok. — ele disse, levantando.
— Aonde você vai?
— Para casa. Para minha casa. Não quero te estressar.
Eu pensei seriamente em deixá-lo ir. Na verdade, eu deixei. Pensei em não ir atrás dele. Mas
só a ideia de ficar sem vê-lo até amanhã já me deixou com saudades.
— Desculpa. — Pedi quando parei ao lado dele, que esperava o sinal fechar para atravessar.
— Essa TPM está foda.
Ele me deu um selinho, entrelaçou nossos dedos e encostou nossas testas.
— O que eu posso fazer para melhorar esse humor?
— Pode começar escovando os dentes. — Ele gargalhou. — E depois nunca mais comer esse
paxtel de palmito.
— Sim, senhora.

MAIO DE 2015
— Ele te deu um milho cozido e você aceitou? — Sara estava incrédula.
— Ah, foi fofo.
— Ih, Sarinha, isso é coisa de gente apaixonada, um dia você vai entender.
— Tá. E então, por que você está fazendo essa cara se disse que não está apaixonada pelo pH?
— Porque esse romanesco me fez lembrar da época em que eu era apaixonada por ele.
— Ele te deu algum antes?
— No. Mas me deu um girassol plantado.
— Posso ler o cartão?
— Pode.
“Quando pensei em lhe mandar flores de agradecimento e desculpas, o cidadão da
floricultura disse que com rosas eu estaria perdoado, mas ele não conhece Marcela
Campana, se enviasse rosas, seria guilhotinado.
Lá não havia flores plantadas, somente cortadas, até pensei em mandar umas roubadas
já que são toleradas.
Não pelo teor, mas sabemos que um romanesco tem muito mais valor. Bom apetite. HC”
— Por que tem mais valor?
— Foi muito mais difícil de encontrar do que um girassol plantado. E eu posso comer.
“Obrigada pelo lindo romanesco! E pelo poema. MC.”
CAPÍTULO 19

— Amiga, eu estou falando muito sério. É só olhar no Twitter. A voz do povo é voz de Deus.
— Cala a boca, Clara! Nem deixa o Hugo ficar sabendo disso.
— Eu super shippo vocês, você sabe?
— Eu não estou entendendo nada do que você está falando, pode traduzir?
O que aconteceu foi que depois do episódio de ontem, em que a Carolina foi eliminada, o Hugo
me consolou e uns loucos que há tempos vinham achando que éramos um casal por conta dos
olhares de Hugo e da nossa intimidade e química, agora tem certeza de que somos um casal. E eu
nem me lembrava. Eu nem assisti ao episódio. Pior, vou assistir com a Sara, que também já anda
cismada com isso, porque sempre nego. Mas gente, não tem nada para assumir. É passado.
É passado.
Ponto final.
Mas o público não precisa ficar sabendo. Imagina o inferno na minha vida se eles souberem?
Acabamos as gravações do dia, mas hoje à noite faríamos uma participação ao vivo.
Ao vivo.
Ao vivo.
Ao vivo.
Ao vivo e estou em pânico. Principalmente por causa dessa história de casal e o fato do
apresentador deste programa não conhecer o significado da palavra limites.
Segui direto para casa, onde Sara já me esperava com tudo no esquema para vermos Bestchef.
— Dona Marcela, está difícil a senhora e seu Hugo disfarçarem. Só não vê quem é cego. —
Isabel falou quando o episódio acabou.
— Mãe, você é cega? — As duas caíram na gargalhada.
— Que bom que vocês estão se divertindo bastante.
— Que dia você fez essa viagem?
— Fomos muito cedo e voltamos no mesmo dia, mas muito tarde. Foi o final de semana no qual
você ficou com o Pipo.
— Ah, tá. Por que você não me disse?
— Provavelmente o motivo pelo qual você não me disse que o Pipo não estava, só Ana e o
Guido.
— Eu não queria que você ficasse triste com ele.
— E eu não queria que você ficasse triste por eu estar viajando sem você.
— Você foi só trabalhar, não tem problema. E foi bem rapidinho.
— Não deu nem tempo de sentir saudades, né? Estava se divertindo com o Guido.
— Nosso aniversário está chegando.
— Sim.
— Eu queria ir para o Rio de Janeiro.
— Eu acho que eles estarão por lá. E eu tenho que ver se terei gravação, você se importaria se
tivéssemos que ir em outro final de semana?
— Não.
— E no dia do seu aniversário? É uma quinta, já fez a programação?
— Ainda não.
— Ok. Preciso me arrumar para voltar a emissora. Não vá dormir tarde, ok? Você tem prova
amanhã. Quando chegar da escola vemos o programa juntas, ok?
— Ok.

— Hoje aqui no programa vamos receber o quarteto do Bestchef. Aplausos para: Clara
Modesto, Eliot Fragalli, Hugo Coelho e Marcela Campana.
Após os comprimentos, nos sentamos na mesa redonda dispostos em meia lua. Hugo, Fragalli,
o apresentador, Clara e eu.
— Vamos conversar um pouco sobre esse sucesso que é o Bestchef. Vocês já se conheciam?
— No cenário gastronômico todo mundo conhece o Fragalli, Coelho estava começando a se
destacar e Marcela tinha feito muito sucesso com seu primeiro restaurante no Brasil, mas estava
escondida dentro da cozinha — respondeu Clara.
— No exagera.
— Vai Marcela, explique-se.
— Eu tive alguns problemas que acabaram levando ao fim do Sara; depois passei uma
temporada fora de São Paulo e até mesmo do Brasil. E quando retornei, bom, sou tímida, não
gosto do salão, prefiro a cozinha mesmo.
— Eu fui ao Ruiz e a Marcela nunca me recebeu.
— Mon ami, sabe que teria colocado um tapete vermelho para você.
— E para o Coelho?
— Ele nunca foi.
— Até hoje?— Si.
— E aí Coelho, quer se explicar?
— Pô, mano. Se eu soubesse que era da Marcela teria ido com certeza. Fui estagiário dela e
ela é uma puta cozinheira.
— Você tem um jeito interessante de elogiar.
— Marcela sempre diz isso. Mas é isso mesmo. Ela é do caralho.
Tenho certeza absoluta de que estou vermelha, provavelmente muito, em rede nacional.
— Ah, então vocês já se conheciam? Tem muito tempo isso né?
— Sim, uns dez anos.
— Ela era uma boa chef?
— Excelente. Era não, é.
Ele tinha que fazer essa cara?! Se eu estava na dúvida sobre o que aquele “excelente”
significava, imagina o público. Imagina aquele grupo de fãs que juram que nós temos um caso.
— Muito legal. E você tem uma filha, né, Marcela?
— Sim, Sara. Inclusive, beijo filha, mas está na hora de dormir, amanhã você assiste! Bel, Sara
na cama agora, amanhã tem aula.
— Que fofura!
— Muita, mas não vai me obedecer.
— Personalidade forte?
— Fortíssima.
— Puxou a você ou ao pai?
— 70% o pai, o resto é meu mesmo.
— Então, você é casada?
— Viúva.
— Que mancada, desculpa, Marcela.
— Sem problemas.
— Então, aí mora a questão que todo mundo quer saber. Na internet, tem um grupo que jura que
você e o nosso tatuado, solteiro convicto, tem um caso. Procede?
— No.
— Coelho?!
— Mano, se ela estivesse mentindo todo mundo saberia. Ela não sabe mentir.
— Vixi, tenho uma péssima notícia então. No próximo bloco vamos brincar de eu nunca.
— Ah, não mesmo. — Ok, aí já era demais.
Malditas sejam as cláusulas em letras miúdas nos contratos. Não teria escapatória.
— Então, o jogo funciona assim: temos aqui as frases e nosso assistente lerá; quem já fez bebe
um shot. Infelizmente nem todos serão tequila, ou a produção não quer embebedar ninguém ou o
orçamento do programa estava baixo. Quem beber mais, ganha.
— Vamos lá, primeira: eu nunca fiz massa fresca.
Todos bebem menos o apresentador.
— Poxa, Clara, achei que teria sua companhia nessa.
— Desculpa, não sou nenhuma chef mas já fiz, sim.
As perguntas seguiram-se sobre comidas e amenidades.
— Agora o clima vai esquentar.
— Calma aí. Sara — falei, olhando para câmera —, vá dormir agora, eu sei que você está aí.
Maria Isabel, coloque esta menina na cama já.
Todos riram.
— Mais alguém quer mandar os filhos para cama?
— Meu filho não mora no Brasil e é adulto.
— Eu não tenho filhos. — Clara levantou o braço em rendição.
— Sou do time da Clarinha.
— Eu duvido, Coelho! Deve ter pelo menos um Coelhozinho solto pelo mundo — ele falou,
rindo. Ele estava brincando, ou não. Fiquei gelada na mesma hora.
— Me deixaria muito feliz. Sempre quis ser pai mas ainda não aconteceu, que eu saiba. —
Fiquei nauseada, minha cabeça latejava.
— Ok, vamos lá. “Eu nunca transei na praia”.
Merda. Tomara que todos bebam. Hugo e Danilo tomaram, Clara e Fragalli passaram. Todos
me encaram. Ah, se eu soubesse mentir. Tomei. Hugo precisa parar de me olhar assim.
— “Eu nunca dormi com ninguém na primeira noite”. — Todos beberam.
— Marcela danadinha — Danilo falou.
— Vocês fazem um julgamento bem errado de mi. — Achei que seria mais difícil.
— A última pergunta. Rufem os tambores!!! “Eu nunca transei com ninguém dessa mesa”.
Hugo na mesma hora bebeu e começou a rir. Obviamente todos olharam para mim.
— Marcela, não precisa nem beber porque a sua cara está te entregando. Meus queridos, é real.
— É não! Pode ter sido em algum momento no passado distante. Mas no é agora.
— Verdade. Marcela não quer nada comigo.
— Tu fez merda no passado distante, né?
— Gente, não é sobre isso a brincadeira né? Por favor — Clara falou, nervosa.
— Tem razão, Clara, em meia hora vou saber de tudo no Twitter. Então é isso, pessoal, não
percam Bestchef todas às quintas às dez e meia, neste mesmo canal.

Tão logo fomos liberados eu praticamente saí correndo. Nem mesmo passei no camarim. Já no
carro percebi que ainda estava com o microfone. Eu não voltaria. Minhas mãos tremiam
apoiadas sobre o volante. Eu me sentia sufocada e com frio, mas também me sentia quente. Fecho
meus olhos e tento me acalmar, regularizar minha respiração. É inútil. As lágrimas brotam dos
meus olhos. Meu coração está apertado. Minha cabeça dói. Minha boca está seca. Nauseada.
Batidas na janela do carro me assustam. É Clara. Mesmo sem abrir o vidro posso ouvi-la
perguntando se está tudo bem. Eu não consigo responder. Eu não consigo me mexer. Ao longe
vejo Hugo parado a me olhar. Ele fala alguma coisa com Clara mesmo sem se aproximar, mas eu
não consigo entender.
Clara vai até seu encontro e conversam por um tempo. Ela volta e entra no banco do
passageiro.
— Amiga, posso fazer algo por você? Hugo quer saber se pode vir aqui? Estamos
preocupados, você já está aqui há mais de meia hora.
— Eu… Sara.
— Quer que eu ligue para saber da Sara? — Eu apenas concordei com a cabeça — Ok, vou
ligar aqui do seu celular. Para Maria Isabel?
Minutos de silêncio.
— Isabel? Não, aqui é Clara, eu trabalho com a Marcela. Ela quer saber da Sara. Está
dormindo? Ótimo. Foi dormir às 22h. Perfeito. A Marcela deve demorar um pouco. Ainda
estamos aqui na emissora. Não se preocupe.
Ela desligou o celular. Segurou minha mão.
— Está tudo bem com Sara e Isabel. O que posso fazer por você?
— Estou com muita dor de cabeça. Não consigo dirigir. Quero ir ao hospital.
— Hospital?!
— Samaritano.
— Ok. Vou lá dentro buscar minha bolsa. É rápido, já volto.
Eu a vejo se afastar do carro e falar com Hugo que fica extremamente inquieto. Ensaia
várias vezes sua aproximação. Ele busca meu olhar como se pedisse autorização para vir até o
carro. Ver ele de um lado para o outro me deixava mais enjoada e após um breve aceno ele corre
até meu carro.
— Ei. Vamos, eu te ajudo.
Com a ajuda de Hugo passei para o banco do carona.
— Hugo, por favor. Vamos.
— Não vamos esperar a Clara?
— Eu preciso ir agora. Depois eu falo com ela.
— Ok.

Arranquei com o carro e o trajeto curto foi feito em silêncio. Marcela se manteve de olhos
fechados todo o tempo, mas isso não impedia que as lágrimas descessem pelo seu rosto sem
parar.
Na porta da emergência eu a ajudei a desembarcar e quando já estava sendo atendida voltei
depois de estacionar o carro.
Quando estou chegando na recepção encontro Clara.
— Ei! Vocês nem me esperaram!
— A Marcela quis vir logo.
— Falarei com alguém amanhã. Não sei quem ainda, mas que sem noção aquele cara.
— Ele não tinha como saber.
— Independente da relação entre vocês dois, nem todo mundo quer se expor dessa forma. A
Marcela não sabe mentir, ficou super vulnerável.
No balcão fomos informados que Marcela estava fazendo exames. Algum tempo depois, que
pareciam ser horas mas foram apenas alguns minutos, fomos chamados e nos levaram até uma
baia.
— Ei, amiga! Está melhor?
— Si. Desculpa não ter te esperado. E obrigada Hugo. Vocês podem ir. Eu já estou bem.
Obrigada.
— Está louca se acha que eu vou te deixar aqui, né? Tu veio comigo, vai embora comigo.
— Eu estou sem pressa. — Clara deu ombros.
— Eu só vou terminar essa medicação e estou liberada.
— Marcela Campana, quanto tempo! — O médico falou, beijando a mão de Marcela — Combo
ansiedade e enxaqueca. Como está a Sara?
— Está ótima!
— Te vi na televisão outro dia.
— Si. Inclusive, Clara Modesto e Hugo Coelho.
— Prazer! Está faltando um, não foi convidado para festa?
— Pois é, Fragalli está perdendo a melhor parte — Ela sorriu fraco para o médico
engraçadinho.
— Deixarei sua alta assinada. Vi que você tem consulta segunda, aí olhamos com bastante
calma os exames e colocamos o papo em dia. Qualquer coisa você ainda tem meu telefone,
certo? — Ele piscou para ela? Qual é a desse comédia?
— Com certeza. Muito obrigada.
O médico se retirou e quando Marcela terminou a medicação fomos embora. Deixamos Clara e
seguimos para a casa de Marcela.
— Eu sei que está ficando repetitivo, mas desculpa.
— Não foi culpa sua.
— Mas eu podia ter aliviado.
— Não sei se resolveria. Eu tinha que ter aprendido a mentir. Você bem que me avisou.
— Você vai ficar bem?
— Não é como se eu tivesse opção.
— Você não precisa se cobrar tanto.
— No dia que você conhecer a Sara, vai saber por que eu me cobro tanto. Hugo, não existe
nenhum problema em saberem que nos envolvemos há dez anos. É verdade, não fizemos nada de
errado, não ferimos ninguém e provavelmente vão querer saber o que aconteceu, mas paciência.
Faz parte. E eu estaria até me divertindo com esses loucos que ficam fantasiando sobre a gente na
internet. Mas tudo tá saindo de controle e se aproximando muito da Sara. Eu já nem me lembrava
mais como era ser só Marcela. Eu sou a mãe da Sara há tanto tempo. Eu não posso ficar
simplesmente bem quando eu sei que tem o risco de alguém chegar nela amanhã e fazer uma
gracinha.
— E quando eu vou finalmente conhecer a Sara?
— Em breve. Muito em breve.
CAPÍTULO 20

— Mãe, o que aconteceu? — Sara falou, enfiando-se debaixo das minhas cobertas. Tinha os
cabelos bagunçados e coçava os olhos. — Por que eu faltei a escola hoje? Eu tenho prova.
— Eu sei, mi amor, mas eu preciso ficar com você hoje.
— Mãe, no meu aniversário... Eu quero, muito mesmo, ok? — Quando ela falava assim,
manhosa, era de lei: pedidos que dificilmente seriam atendidos. — Eu quero ir ao Malagueta.
— Sara… Você pode ir, mas você sabe que eu não vou, quer marcar com umas amigas? —
Odiava fazer isso, mas realmente nós duas no Malagueta seria demais.
— Eu queria ir com você. — Lágrimas brotavam dos olhos da minha filha fazendo meu coração
apertar.
— Filha, senta aqui no meu colo. — Fiz sinal para acolhê-la em meus braços e apesar de se
julgar muito madura no auge de seus quase dez anos, ela não resistia a um colinho de mãe — Na
verdade a gente precisa conversar. — Eu queria me segurar para não chorar, mas não consegui.
— Que foi?
— Desculpa, filha. Me desculpa. Mas acho que seu tempo acabou.
— Mas por quê? Eu ainda não estou pronta.
— No programa as coisas aconteceram de uma forma que eu não esperava. Todo mundo sabe
que eu e o Hugo nos envolvemos. Tem umas pessoas na internet que são muito empolgadas.
— As que shippam você e pH?
— Sabe que não vai demorar para elas ligarem os pontos. E ele tem que saber por nós.
— E se ele não gostar de mim?
— Sara, isso é impossível, você é o ser mais encantador do universo. Linda, inteligente e
tantas outras coisas que eu poderia ficar uma vida aqui dizendo e você sabe disso. Sim, ele pode
ficar assustado, quem não ficaria? É uma notícia e tanto e pode levar um tempo para as coisas
acontecerem do jeito que você imagina. Filha, olha para mim — eu disse, pegando seu pequeno,
vermelho e encharcado rosto em minhas mãos — Eu te amo mais que tudo nessa vida, não
importa o que ele vai achar, ou o que você acha que eu acho. Eu sei que quer conhecer o Hugo, e
não só vê-lo, eu sei que você quer que ele saiba. Sei também que você acaba adiando isso
porque quer que as coisas fiquem bem entre a gente. Tudo que eu mais quero é que a gente se dê
bem. Se ele ficar sabendo por outra pessoa, eu não sei. Eu quero que você siga seu coração e
não se importe comigo. Seu pai vai te amar, ele nunca teve essa chance.
— Ele vai te odiar?
— É uma possibilidade, mas acho que ele vai ficar magoado na verdade. E eu entendo. Eu
ficaria. Comigo, não com você.
— Eu quero vê-lo de perto, mas não sei se quero contar.
— Tudo bem. Olha, tive uma ideia, quer que eu marque um jantar aqui, só nós: Fragalli e
Drica, Hugo e Clara. Aí você fica de olho na gente e, se quiser, dá uma passada aqui por baixo.
— Boa ideia. Você é muito esperta!
— Qualquer coisa para fazer você feliz.

A campainha tocou e eu estava atrasada, ainda me vestia.


— Sara, abre para mim. Deve ser a Clara — gritei do meu quarto.
— E se for ele? — ela falou quase em um sussurro.
— Você vai deixá-lo do lado de fora? — Nunca tinha visto minha filha tão nervosa. — Meu
amor, se quiser pode desistir, não vai ter problema.
— Não, mãe. Vou abrir a porta, deve ser a Clara mesmo.
Ela saiu do quarto e eu do pé da escada a observei rezando antes de abrir a porta. Era a Clara.
— Olá, essa é a casa da Marcela?
— E minha também. — Não contive o riso, minha filha era uma figura. — Oi, Clara, sou a
Sara.
— Você é a famosa Sara. Prazer.
— Minha mãe já vai descer.
Observei por mais alguns segundos a recepção de Clara à casa e logo voltei a me arrumar.
Quando desci cumprimentei minha amiga e a levei para a cozinha onde servi uma taça de vinho.
— A Sara é encantadora, por que não fomos apresentadas antes?
— Ela não quis.
— Ela é linda. É impressão minha ou ela parece muito com…
— O pai dela. — Cortei.
— Me desculpa por falar que ela parece muito com o Coelho.
— Mas foi exatamente o que eu falei: uma Coelhozinha — disse calmamente e vi Clara cuspir
o vinho. — Sempre que eu penso na reação dele, é algo desse tipo, mas depois tem gritos.
— Marcela, o homem anda chorando pelos cantos porque quer ter um filho e você não contou a
ele? — Clara estava chocada.
— Não tive a chance de contar.
— Marcela, como não? Já tem quase 6 meses que vocês se reencontraram.
— Não agora, na época. Hoje não é sobre mim, não é minha decisão. Estou aqui apenas para
servir de ouvido, ombro e eventualmente saco de pancadas.
— Estou tentando processar aqui. — Vi Sara entrar na cozinha. Uma pilha de nervos.
— Mãe, tô bem estressada — ela falou super séria e olhou para Clara que tentava disfarçar. —
Vou tomar um pouco de vinho. — Pegou a garrafa e uma taça.
— Hoje não, mocinha. Você não tem por que ficar estressada. E não vai conhecer as pessoas
com bafo de vinho. O que vão pensar de mi?
— Que você é uma mãe maravilhosa que sabe que a naturalização do consumo de bebida
alcoólica em níveis sociais evita em 80% futuros casos de alcoolismo.
— Mas você ama uma estatística, dona Sara! Tenho uma nova para você: 90% das decisões
tomadas sobre o efeito de álcool são passíveis de arrependimento. Não quero você se
arrependendo de nada hoje, deixa essa parte para mim — falei, levando a minha taça à boca.
Observei Clara que encarava o nada. — Tudo bem, Clarinha?
— Ainda processando, muita informação.
A campainha tocou novamente.
— Caraca, mãe, não sei por que você deixou a lista lá na portaria. Eu nunca sei quem está
chegando, mano — Reclamou fazendo uma careta.
— Mano, desculpa. Vai lá abrir a porta — respondi com outra careta.
— Mas é realmente uma mini Coelho. — Clara riu.
— Só faltou vir tatuada… — suspirei, terminando minha taça e enchendo-a novamente.
— Desculpa, amiga, mas como você consegue?
— Eu não tive opção. Fragalli chegou! — eu falei — Depois explico tudo melhor. Mas acho
que já bebi bastante, então quando todos sobrevivermos a esta noite, eu conto tudo.
— Mãe, ele não vem, não é? — Ela veio com uma carinha de choro.
— Vem sim, ele só está atrasado, como sempre. Pontualidade não é um forte de vocês.
— Chega de vinho para você, Marcela Campana. Se eu não posso, acabou para você também
— ela disse, repreendendo-me e jogando meu vinho na pia.
— Tá vendo só, Clara? Eu não sou mãe dela, ela é que é minha mãe. Tudo bem, vamos para
sala, você quer que a Clara ligue para ele?
— Eu? — Clara arregalava os olhos.
— Sim, para saber se ele está chegando, enquanto eu levo essa mocinha lá em cima para dar
uma palavrinha com ela. — Passando pela sala. — Fragalli e Drica, mon amis. Que bom que
vieram!
— Cadê Coelho? Só mandou representante? — disse, apontando para Sara.
— Essa mocinha aqui é a Sara, minha filha, ela não se apresentou quando abriu a porta? Que
mal-educada! — disse, quase rebocando Sara escada acima — Clara, introduza o assunto ao
Fragalli, por favor, e abra a porta quando o Hugo chegar. Estou pressentindo que esse jantar vai
desandar.

Entrei com Sara no quarto que desatou a chorar. Com ela em meu colo fazia carinho em seus
cabelos e enrolava seus cachos que teimavam em colar em suas lágrimas. Eu odiava toda aquela
situação. Me sentia ligeiramente culpada, mas a certeza de que eu nunca havia mentido para
ninguém me dava tranquilidade. Ouvimos a campainha não muito tempo depois. Ela me olhou
apavorada.
— Você não precisa descer, faça o que seu coração mandar, mas eu preciso ir, ok? Se precisar
de alguma coisa me chama, tudo bem?
Meu coração estava apertado. Do topo da escada senti o clima de enterro. Fragalli, Drica e
Clara sem saber o que fazer enquanto Hugo fazia gracinhas sem a menor ideia do que poderia
acontecer.
Cheguei na casa de Marcela atrasado, já esperando uma gracinha, mas quem abriu a porta foi a
Clara. Fragalli e Drica já haviam chegado e todos estavam estranhos.
— Eita gente, que desânimo! Cadê a Marcela?
— Ela foi lá em cima resolver umas coisas, já volta.
— Atrasado como de costume — ela falou e eu não pude deixar de sorrir.
— Bonita casa, Marcela. — E ela estava maravilhosa. Descia as escadas graciosamente,
descalça e com um vestido liso e folgado. — Boa noite para você também.
— Boa noite, no te serviram vinho? Caramba, que falha. O que bebe hoje?
— Vou ter que dispensar, estou de moto.
— Queridos, venham, vou servir o jantar.
Todos se encaminharam em silêncio para mesa muito bem posta. Para seis pessoas. Tudo
estava muito estranho.
— Estamos esperando mais alguém?
— No tenho certeza — Marcela respondeu dando ombros.
— Qual é gente? O que está acontecendo? Está todo mundo estranho.
— Vamos ter torta de climão para sobremesa. — Fragalli fez uma graça. Todo mundo riu,
aparentemente de nervoso.
— Vamos comer logo, vai esfriar — Marcela disse, servindo os pratos.
O clima ficou um pouco menos tenso com o decorrer do jantar, mas Marcela estava nervosa, as
vezes aérea. Por várias vezes encarava as escadas e trocava olhares com Clara. Eu estava
ficando desconfortável.
— Chega! O que vocês estão aprontando? — eu disse, já irritado.
— Nada — Fragalli respondeu, Clara olhava para as mãos, Drica tomou um gole de seu vinho.
E Marcela estava de olhos fechados.
— E você, dona Marcela?
— Eu? Nada!
— Eu vou embora. Você nem sabe mentir, Marcela!
— Enxergo isso como elogio e aceito. Fica para sobremesa, vai? — O olhar dela era quase
uma súplica. Eu apenas concordei com a cabeça.
— Mãe. — Ouvi uma voz manhosa atrás de mim.
— Oi, mi amor. Não vai dar boa noite ao Hugo? Você não o viu.
A menina estava agarrada ao pescoço de Marcela, quase escondida e tinha um olhar
desconfiado. Ela cochichou algo no ouvido de Marcela.
— Um minutinho, por favor, vamos servir a sobremesa, foi a Sara que fez.
— Que legal, princesa! E o que você fez? — perguntei, mas ela ainda estava escondida atrás
de Marcela.
— Torta de limão. É a favorita do meu pai — ela disse num sussurro.
— A minha também — eu disse empolgado.
Ela saiu de trás de Marcela e deu um sorriso. Que sumiu quando minha expressão mudou. Foi
inevitável, eu estava assustado. Ela correu para a cozinha e busquei o olhar de Marcela, que
tinha lágrimas nos olhos e foi atrás da menina. Olhei para meus amigos à mesa e todos estavam
em choque. Clara e Drica também tinham lágrimas nos olhos. Fragalli parecia que ia explodir de
tão vermelho.
— Era isso então essa palhaçada. Todo mundo sabe menos eu! — Não consegui não me exaltar,
me levantei e segui em direção à cozinha, mas Clara mesmo pequena fez uma barreira.
— Ei, Hugo! Espera. Fica calmo. Nós só soubemos hoje, porque é inevitável — ela falava
baixo e passava as mãos nos meus braços. — Vocês vão ter tempo para conversar. Tenho certeza
de que você vai se arrepender de ir lá agora. Sara está lá, ela está tão assustada quanto você.
— Sara… — Inevitavelmente as lágrimas começam a descer. — Clara, eu tenho uma filha. A
Marcela escondeu isso de mim.
— Eu sei meu amigo, eu sei. — Clara me abraçava e acariciava minhas costas quando Marcela
saiu da cozinha com Sara no colo. Ela tinha o rosto enterrado no pescoço de Marcela.
— Eu preciso só de um minuto. Eu já servi a sobremesa. Clara você pode vir comigo, por
favor? Só um minuto, eu já volto.
Eu vi Marcela de afastar e ao passar por mim eu ouvi o choro baixinho de Sara. Elas já
estavam no meio da escada, quando eu senti que precisava fazer alguma coisa.
— Sara. — Marcela parou na escada, mas nenhuma movimentação de Sara. — Foi um prazer te
conhecer. — Foi então que ela levantou a cabeça e deu um tímido sorriso. Marcela seguiu o
caminho e logo sumiu no corredor.
— Mon ami, meus parabéns. Eu e Drica vamos embora. Acho que você e Marcela vão precisar
conversar.
— Fragalli, eu tenho uma filha.
— Sim, su cara, mas ela é bonita, sua versão bonita porque você é muito feio. — Não aguentei
e gargalhei.
— Minha filha é minha cara e é linda.
Minha filha, minha filha, minha filha. Sara, minha filha. Eu tenho uma filha. Eu tenho uma filha
com a Marcela. Sara, minha filha com a Marcela. Minha filha. Minha filha tem quase dez anos e
eu não sei nada sobre ela, nem sabia da existência dela até poucos minutos. Eu tenho tantos
questionamentos, como Marcela pôde.
CAPÍTULO 21

NOVEMBRO DE 2004
— Para de fazer essa cara.
— Que cara?
— É só uma indisposição.
— Mano, eu estou aqui só segurando seu cabelo para você não vomitar nele. Trazendo água.
Dando apoio moral.
— Mas sua cara não diz isso. Tem até fumaça saindo da sua cabeça.
— Porque eu estou preocupado.
— Já disse para não se preocupar. Esquece essa história.
— Porra, falei que estou preocupado com você, não se você está...
— Não termine essa frase.
— Você diz que não está preocupada, mas eu não posso nem falar a palavra.
— Você está fantasiando com isso.
— Se você não estivesse passando mal, eu iria embora, porque estou sentindo que vamos
brigar. Essa sua TPM aí está desde cedo cavando uma briga.
— Você sabe que isso é culpa daquele paxtel podre que você comeu.
— E você está vomitando por causa de um pastel que eu comi? Não era eu que deveria estar
passando mal? Sério mesmo, Marcela? Você consegue se ouvir?
— Você só não está passando mal porque está acostumado.
— Olha, Marcela. Nem eu sabia que eu era tão paciente.
Eu o vi sair do banheiro enquanto permaneci abraçada à privada, minha confidente no
momento.
— Marcela?
— Me deixa.
— Ah, mano, pelo amor de deus! Não vou deixar você ficar dormindo no chão do banheiro.
Eu me sentia exausta, com um sono eterno e uma moleza sem fim. Com o maior carinho e
cuidado, Hugo me pegou no colo e me levou até a cama.
— Marcela, você precisa comer alguma coisa. Você não comeu nada desde ontem.
— Eu comi o milho.
— E vomitou ele todo em seguida.
— Não estou com fome.
— Deixa eu te dar um banho, fazer um chá e colocar você para dormir. Me deixa cuidar de
você.
Ele me levou ao banheiro e me despiu. Não havia sensualidade no ato, mas havia devoção e
cuidado. Ao tirar meu sutiã pude sentir o quão sensíveis meus seios estavam e tive vontade de
chorar. Não consegui segurar. Eu não quero acreditar que isso está acontecendo. Não quero
pensar que Hugo esteja certo. Mas a bagunça hormonal que habita em mim me deixa na dúvida. E
se ele estiver? E se eu realmente estiver...
— Não precisa chorar, vai ficar tudo bem. Eu não vou a lugar algum.
Juntos tomamos banho, ele lavou meus cabelos, depois os penteou e os secou. Eu aguardava
sentada no sofá enquanto ele fazia o chá. Tentava me lembrar das sensações de estar grávida, mas
não conseguia pensar em nada além de dor e delírios. Essa era a memória de gravidez que eu
tinha.
— Estou com medo — falei sem encarar Hugo ao pegar a xícara de suas mãos.
— Tudo bem, eu acho. Eu também estou.
— O que a gente faz?
— Acho que é cedo para comemorar, não?
— Você pode falar sério?
— Eu falo sério. Queria gritar pela janela.
— Você é maluco. Você acabou de falar que estava com medo.
— Pode ter a minha cara, é um ótimo motivo para ter medo.
— Hugo, estou tentando ficar brava com você. Não me desconcentra.
— Vai dar tudo certo; eu saio do Sara porque não dá para ter um filho sendo estagiário. Volto
para o escritório e vendo a moto.
— Você não vai voltar para o escritório, eu não vou deixar. Você tem um futuro brilhante na
cozinha. Era para você estar planejando ir à Paris, e não pensando em fraldas. Na verdade, você
deveria ir. Eu não vou à lugar nenhum. Não ia antes, ainda mais agora.
— Eu não vou deixar você aqui sozinha.
— A gente nem sabe se vai dar certo, não crie expectativas.
— Ei, não pensa assim. Mais um motivo para eu não te deixar sozinha.
— Hugo, a gente nem sabe se é verdade.
— Não muda nada. Eu não vou à lugar nenhum.
Ele me deu um beijo cheio de ternura. Depois se levantou e foi até a vitrola.
— Nesse vinil do Tim Maia que você comprou hoje, tem uma música que meu pai dedica
sempre a minha mãe e que agora eu vou dedicar a você.
A música começava a tocar quando ele se aproximou e me estendeu a mão.
— Dança comigo.
Nós nem mesmo movíamos nossos pés. Nossos corpos colados, minha cabeça recostada no
peito de Hugo e seus braços entrelaçados em minha cintura. Estávamos entregues ali. Ao
momento. Um ao outro. E nada mais importava. Até que ele, acompanhando a música, começou a
sussurrar em meu ouvido e eu não consegui conter as lágrimas. Malditos hormônios.
— Eu amo você, menina — ele sussurrou em meu ouvido.
— Eu amo você — falei antes de selar nossos lábios em um beijo calmo.
— Eu sou o homem mais feliz do mundo e vou te fazer a mulher mais feliz do mundo.
— Pode ser amanhã? Estou com tanto sono.
— Você acabou de matar todo o romantismo.
— Você me deu um milho cozido.
— Precisamos trabalhar esse aspecto da relação. Vamos deitar.

Já deitados, nossas mãos se encontram sobre o ventre de Marcela.


— Marcela? — Eu não tinha certeza de que ela ainda estava acordada.
— Hum.
— Você acha que é menino ou menina?
— Eu ainda não pensei nisso. — Ela estava quase dormindo.
— Eu acho que são gêmeos.
— Não inventa, Hugo.
Ela logo pegou no sono e eu, refletindo sobre esse dia, peguei também.

— Eu vou em casa e volto para te buscar.


— Hugo, se você ficar me tratando assim, no vai dar certo.
— Mas você nem comeu nada.
— Eu comi!
— Não conta por que você vomitou tudo. Come um pouco mais e eu fico tranquilo.
— Não! Estou muito enjoada. Quando chegar no Sara eu tento de novo. Hugo, vai logo. Você
vai acabar se atrasando.
— Poxa, chef, alivia aí?! — A cara dela era de quem claramente estava perdendo a paciência.
— Ok, ok! Então, eu passo em casa rapidinho, pego umas roupas, passo na farmácia, compro o
teste e te encontro no Sara.
— Isso.
— Te amo, Marcelinda. Amo vocês.
— Também te amo.
Eu a vi entrar no carro e ir em direção ao Sara, depois subi em minha moto na direção
contrária para cumprir todo o combinado com Marcela, não quero estressá-la de forma alguma.
Com minha missão cumprida chego ao Sara e não encontro o carro de Marcela no
estacionamento. Fico apreensivo. Entro e minha suspeitas são confirmadas: ela ainda não
apareceu. O trajeto não leva mais que dez minutos, ela já deveria estar aqui há, pelo menos, meia
hora. Um turbilhão de pensamentos passa pela minha cabeça e nenhum deles me agrada. Pego
meu celular para ligar para ela e na mesma hora ele toca. Não reconheço o número.
— Senhor Hugo Coelho?
— Sim.
— O senhor está listado como contato de emergência de Marcela Campana.
CAPÍTULO 22

JULHO DE 2015
Ok. Eu já tinha pensado em cenários piores e melhores e por mais que nos últimos meses eu já
tivesse fantasiado essa conversa na minha cabeça, agora era real e eu estava entrando em pânico.
Deixei Sara com Clara vendo aquele mesmo documentário sobre rituais de acasalamento de
pinguins. Era insuportável, muito chato, já tinha visto uma centena de vezes. Sara não cansava.
Do pé da escada vi Hugo sentado no sofá, comendo torta de limão e não pude deixar de sorrir.
Meu coração estava apertado. Ele estava chateado e eu não podia culpá-lo.
— Estava boa? — Tentei quebrar o gelo enquanto me sentava na mesa de centro bem em frente
a ele. Estávamos a uma distância em que eu podia tocá-lo. Ele apenas concordou com a cabeça.
— Ela fez para você.
— Marcela… — Ele balança a cabeça em negação.
— Hugo, preciso pedir duas coisas antes dessa conversa. Uma é que você me ouça e a outra é
que, dentro do possível, você não grite. Eu vou responder tudo que quiser.
— Nossa, que legal você está sendo. — Ele foi irônico. — Ela sabe? — perguntou, olhando
em meus olhos pela primeira vez.
— Claro que sim. Ela fez torta de limão porque é a favorita do pai dela, porque é a sua
favorita. Ela sempre soube. Sempre não, desde o aniversário dela de cinco anos. Então tem
quase cinco...
— Quando é o aniversário dela?
— 20 de julho.
— Você sabia? Quando eu… — Aguardei que ele terminasse a frase, mas ele não o faz.
— Quando você me deixou um bilhetinho dizendo que estava indo para Paris e não deixou
nenhum contato? — Não consegui esconder minha mágoa. — Não, eu não sabia.
— Marcela, eu não… — Ele tentou tocar minha mão, mas eu recolhi não permitindo.
— Hugo, nada disso é importante agora. Não faz diferença. Eu nunca a deixei pensar que você
a abandonou, porque você não fez. Tenho certeza de que seria incapaz, nunca tive dúvidas quanto
a isso. Gosto de pensar que estou certa.
— Eu mandei um cartão postal para o Sara e tentei ligar, mas eu não consegui.
— Eu vendi o Sara logo depois que você foi embora. — Eu mal podia sentir meu coração
bater, me doía tanto falar sobre isso. Não conseguia mais olhar para Hugo.
— Eu tentei te encontrar quando voltei para o Brasil, mas não tinha rastro seu.
— Eu não queria ser encontrada por você.
— Então por que o Bestchef?
— Sara é apaixonada. — Não pude evitar de sorrir. — Ela andava desanimada com algumas
coisas e achei que isso poderia deixá-la feliz. Apesar de saber de toda a exposição que isso
traria, e você sabe que essa não sou eu, não há nada nesse mundo que eu não faça por ela. Não
estava nos meus planos encontrar você por lá. Sentamos e conversamos e ela insistia porque
queria te conhecer.
— E por que você não me contou?
— Ela não quis. Entenda, Hugo, toda essa história deixou de ser sobre mim há tempos e foi
muito difícil enxergar essa mudança. Essa história é sobre vocês dois, eu sou só coadjuvante. Eu
fiz tudo que eu podia. Eu contei tudo que eu sabia sobre você, sou obrigada a ouvir hard rock a
caminho da escola, faço relatório de tudo que acontece quando estamos juntos, já assistimos a
todas as entrevistas e participações em programas na internet milhões de vezes, temos todas as
revistas em que você apareceu, ela me fez imprimir um pôster seu, tentou me convencer a ir em
um show seu, mas graças a Deus era para maiores de dezoito anos. — Ele que tinha um sorriso
bobo deu uma gargalhada. — Ela tenta me convencer a deixá-la fazer uma tatuagem há uns quatro
anos. Eu deixei pistas. Quis muito que você perguntasse sobre a minha filha, mas você é muito
burro!
— Naquele dia aqui na sua casa eu disse que tinha sonhado que a gente tinha uma filha.
— Não foi um sonho. Eu te contei. Sara te abraçou chorando porque achou que você estava
morrendo. E quando você falou, eu ia te falar que não tinha sido um sonho, mas você me
interrompeu! Eu estou despedaçada, ver você daquele jeito acabou comigo, mas eu não podia
fazer isso com a Sara. Estou vivendo esse suspense há cinco malditos meses e pensando se “é
hoje ou não que eu vou contar para o Hugo que a gente tem uma filha”. — Eu estava me
exaltando.
— Mas por que você não me contou?!
— Eu prometi que não contaria até que ela estivesse pronta. Mas também não mentiria. E aí ela
me chega chorando porque quer ir jantar no Malagueta no aniversário dela e eu me recusei a ir.
Imagina essa cena? Pessoas filmando. Jornais falando sobre isso amanhã. Eu não posso expô-la
dessa forma. Desde que o programa começou eu não saio com ela com medo de ser fotografada.
Aí para piorar teve aquela merda daquele programa de entrevistas. Chegamos a um ponto em que
não dava mais. Então marquei esse jantar aqui, para, pelo menos, estarmos na zona de conforto.
Ela me perturbou o dia todo, uma ansiedade sem limites e a noite foi chegando e ela ficando
apavorada. E aí eu fui ficando também porque ao mesmo tempo em que ela está sempre tão
decidida sobre as coisas, ela tinha medo de te conhecer. Quando a Clara, Fragalli e Drica
chegaram, eu nem contei a eles, como se precisasse.
— Ela é minha cara. Como o Fragalli disse: minha cara, só que bonita.
— Só faltou vir tatuada porque o temperamento é seu também.
— Então deve ser maravilhoso — ele brincou.
— Ah, é sim. — Fui irônica. — Mas eu não mudaria nada nela, é a pessoa mais incrível que eu
conheci na minha vida.
— Ela está bem?
— Sim, está vendo pela milésima vez um documentário sobre acasalamento de pinguins. É
horroroso. Muito chato. Coitada da Clara.
— Eu gosto de pinguins.
— A culpa é sua então. — Rimos. Até que não foi tão ruim.
— Marcela, será que eu posso subir?
— Por favor, Hugo! É claro! Vocês precisam de tempo. Eu só não quero que ela perca aulas e
vou me esforçar para não ter ciúmes. Pode ser que ela esteja dormindo, já é tarde.
— Tudo bem.

A conversa com Marcela tinha sido boa. No início eu queria matá-la. Óbvio que estou
magoado, mas agora eu só queria recuperar o tempo perdido com Sara.
Chegamos ao quarto e encontramos Clara e ela deitadas. Pareciam estar dormindo. Marcela se
aproximou e acordou Clara. E deu um beijo na cabeça de Sara e ajeitou sua coberta. Eu ainda
estava na porta quando Marcela passou por mim e sussurrou.
— Ela está fingindo que dorme, então finge que acredita. Te espero lá embaixo. — Marcela
saiu, mas deixou a porta ligeiramente aberta.
Eu não sabia direito o que fazer ou o que dizer, me sentar ou ficar em pé. Decidi por me deitar
no chão ao lado da cama dela.
— Oi, filha, eu sei que você está dormindo e é por isso que eu estou aqui. Antes você estava
nervosa, mas agora eu que estou. Desculpa por ter me assustado mais cedo. É que eu nunca tinha
visto uma versão bonita de mim. Sabe, eu conversei com a sua mãe e ficou tudo bem, ok? Vou
combinar com ela para almoçarmos juntos amanhã, ela pode ir também se você quiser. E se você
não estiver pronta tudo bem, também. Não precisamos ter pressa. Eu já vou, mas antes vou te dar
um beijo.
Me levantei, fiz um carinho em sua cabeça, senti o cheiro de seus cabelos e depositei um beijo
em sua testa.
Desci as escadas tomado de felicidade e encontrei Marcela na cozinha.
— Eu a convidei para almoçar amanhã. Tudo bem? Quer dizer, eu nem sei se ela vai querer ir.
— Assim que você sair ela vai aparecer e não vai me deixar dormir, mas tudo bem. — Ela riu.
— É para você ir também, se quiser. Na verdade, eu não faço ideia do que fazer. O que ela
come?
— Comida. De verdade. Nada de porcaria, por favor. Hugo, no vá estragar minha filha. Nossa
filha. É estranho falar isso. Se me permite, cozinha com ela. Ela adora.
— Eu queria de verdade que você fosse. Eu estou nervoso para caramba. Me ajuda. — Fiz
minha melhor cara de cachorro abandonado.
— No faz essa cara de Sara.
— A cara originalmente é minha. Ela é uma versão aprimorada.
— Dei umas boas contribuições.
— Mãe — uma vozinha manhosa. Me virei e vi Sara, cabelos bagunçados e cara de sono.
— Mi amor, está acordada? Já se! Fome. — Sara apenas concordou com a cabeça. Passou
quase correndo e praticamente se escondeu atrás de Marcela. — O que você quer? — Ela fez
sinal para que ela abaixasse e falou algo no ouvido dela. — Sara, pede você. — Marcela piscou
para mim.
— Pode pedir — incentivei.
— Você pode fazer leite com chocolate para mim?
— Claro, filha! — Tentei me controlar, mas meus olhos se encheram d’água. Olhei para
Marcela e ela também tinha os olhos marejados. — Como você gosta? Onde ficam as coisas?
Ela chegou até mim e me puxou pelas mãos até a dispensa; voltamos com cacau, canela e mel.
Depois pegamos o leite. Marcela apenas observava encostada na bancada, os braços cruzados,
sorriso nos lábios e olhos marejados. Eu amo essa mulher. A descoberta de Sara só me faz
querê-la mais. Eu quero a família que eu nem sabia que existia. Fui tirado da minha hipnose por
bracinhos me puxando. Minha filha. Sara, minha filha. Minha filha com a Marcela. Sara, minha
filha com a Marcela. Nossa filha. Eu amo esse mantra. Sara me instruiu como fazer seu
chocolate. Quando ela provou eu fiquei apreensivo. Caras e bocas: filha de Marcela.
— É. Não é o melhor… — Deu ombros. — Mas você aprende. — Eu e Marcela nos olhamos e
gargalhamos.
— Ok, vou treinar mais, pode deixar, mocinha.
— Minha mãe me chama de mocinha também — disse ela com um bigodinho de chocolate.
— Eu a chamava assim também.
— Por que não chama mais? — Fiquei tenso. Olhei para Marcela, seu olhar tinha mudado, já
não tinha a mesma ternura: mágoa. Talvez ela nunca me perdoasse.
— Porque agora ela está velha. — Eu e Sara rimos, enquanto Marcela fazia uma fazia uma cara
indignada. Arremessou um pano de prato que acertou minha cabeça fazendo Sara rir ainda mais.
Sua gargalhada era como a de Marcela. Agora as duas riam. As duas mulheres da minha vida.
— Ok, já chega. Já fui humilhada. Hora de dormir, mocinha. Vamos, vamos, dê tchau para o
Hugo que eu vou te colocar na cama.
— Não pode ser ele?
— Tem meia hora que vocês se conhecem e já estou perdendo feio. Pode ser, né? — Marcela
deu ombros, mas estava com ciúmes, eu sabia. — Então vou tomar banho, depois passo lá para te
dar um beijo.
Eu não cabia em mim de tanta felicidade. Chegando ao quarto ouvi atentamente às instruções de
Sara.
— Eu vou deitar aqui. E depois você deita aí. Tem que tirar o tênis. Você não tem chulé não,
né? — Não pude evitar rir.
— Eu não, você tem?
— Não. Tá! Agora vem desse lado e me cobre até o pescoço. — Fui seguindo as instruções.
Ligeiramente controladora, igual a Marcela. — Isso, muito bem! Agora deita. — Ela esperou que
eu me deitasse. — Chega mais perto. Com essa mão você faz carinho na minha cabeça e com
essa você segura minha mão, dá um beijo na minha testa e diz “Boa noite, bons sonhos”.
Muitas instruções. Depois do beijo e do “Boa noite, bons sonhos” me pus a fazer carinho na
cabeça de Sara e segurar a mão dela. Ela praticamente estava deitada sobre meu peito e mantive
o carinho até não sei quando.

Apesar de ter dito que ia tomar banho, me sentei no chão do corredor ao lado da porta, queria
ouvir tudo. Ri algumas vezes em silêncio. Sara era uma figura. Assim que o silêncio se
estabeleceu me levantei e fui ao quarto tomar banho. Com a água quente caindo sobre meu corpo
chorei em silêncio. Um misto de alívio, mágoa e felicidade. Ao sair do banho fitei o relógio, já
passavam das quatro da manhã. Vesti uma camisola e um robe. Chegando ao quarto de Sara me
deparo com os dois dormindo, ela tem a cabeça apoiada no peito de Hugo e os braços dele a
envolvem num abraço. Abri o armário com cuidado, peguei uma coberta, cobri Hugo, dei um
beijo em Sara e outro nele e saí deixando que os dois desfrutassem desse momento.
CAPÍTULO 23

Acordei com cheiro de comida. Já passava um pouco das dez da manhã, não me lembro da última
vez que tinha dormido até essa hora. Provavelmente antes de Sara nascer. Saio do quarto e
quando penso em descer as escadas ouço a voz de Sara.
— Anda, ela vai acordar! — Controladora. — Café não! Chá, ela não toma café.
— Eu tomo Sara, vamos tomar café todo mundo junto na cama, né? — Coelho respondeu.
— Ah, tá. Vou guardar essa informação. Tá faltando meu leite, então.
— Já fiz, pega ali.
— Pega aquela caixa grande, por favor.
— Quanto remédio!
Silêncio. Ouço passos se aproximando e volto para debaixo das cobertas, não quero ser estraga
prazeres.
— Mamãe! Acorda você já dormiu muito.
— Nossa, que horas são? — Me esforcei fazendo meu melhor teatro. Posso ter enganado, Sara,
mas não Hugo.
— Tarde, a gente fez o café! — ela disse, olhando na direção da porta onde Hugo aguardava a
uma certa distância da cama — Vem pH.
— Bom dia. — Ele se aproximou meio tímido com uma bandeja na mão. Seus olhos
percorreram meu corpo. Eu estava sentada sobre as cobertas, vestindo apenas uma camisola, ou
seja, muita pele à mostra, eu conhecia aquele olhar: desejo.
— Bom dia, meus amores. Que coisa mais linda. Vamos comer? Estou com muita fome. —
Hugo colocou a bandeja sobre a cama e ficou parado me olhando. — Senta Hugo! Quer que eu
ponha uma roupa?
— Não, desculpa. Eu só dei uma mãozinha, Sara que fez o café!
— Sua sorte é que a Bel toma café.
— Imagina eu tomando chazinho? Cê loko. — Todos rimos.
— Mãe, eu trouxe o remédio.
— Come primeiro.
— Depois confere, tinham muitos remédios.
— São da minha mãe. — Ela me entregou. Ele parecia refletir sobre o assunto.
— Esses ovos estão ótimos.
— PH que fez.
— Ok, o que é pH? — Hugo estava confuso. Eu e Sara rimos. — Que bom que as mocinhas
estão se divertindo. Não vão me contar? — Ele fingiu indignação.
— Fala, filha.
— Pai Hugo. É que eu tinha outro pai, mas ele morreu. Quando ele estava vivo eu chamava ele
de pai e para não confundir, eu e a mamãe passamos a te chamar de pH. Mas agora acho que
pode ser só pai, né? — Ela olhava para mim e para Hugo, ambos com olhos marejados, ele com
um sorriso bobo. Ela buscava aprovação.
— Eu amaria. Hugo respondeu e ela buscou meu olhar de aprovação, eu apenas concordei com
a cabeça já que estava com um choro engasgado. E então ela pulou no colo de Hugo que foi pego
de surpresa. E logo havia lágrimas e sorrisos. Seguimos o café rindo das bobeiras de Sara,
esparramados pela cama quando meu celular tocou.
— É Clara. Olá, bom dia. Estamos no viva voz. Chegou bem ontem?
— Sim! Como ficaram as coisas?
— Estamos tomando café na cama — Sara falou toda empolgada.
— Nós três, Clarinha — Coelho complementou.
— Os três? — Ela parecia incrédula — Mas vocês…
— Não, Clara, pelo amor, não — interrompi. Não acredito que ela estava cogitando a
possibilidade de ter rolado alguma coisa entre nós dois, eu e Hugo estávamos muito
constrangidos. — Clara, quer vir almoçar? Vou ligar para o Fragalli e Drica também, estamos
devendo um encontro normal a vocês. Hugo e Sara vão cozinhar.
— Ah, vamos? Não estava sabendo, dona Marcela — Hugo falou, indignado.
— Vamos, pai, vai ser legal! — Sara comentou empolgada.
— Avançamos mesmo! — comentou Clara.
— Ok, te esperamos aqui! Vou ligar para o Fragalli.
Ligamos para Fragalli que ficou aliviado por não termos nenhuma torta de climão no menu de
hoje.
— Ok, vocês já decidiram o menu de hoje, então vão cozinhar enquanto eu tomo um banho.
— Vou trocar de roupa! — Sara saiu empolgada do quarto. Me levantei da cama e fui em
direção ao banheiro. Durante o curto trajeto pude sentir o olhar de Hugo me acompanhando.
Fazia minha pele queimar.

Qual a necessidade de uma camisola tão curta e transparente? Sério! Qual o ponto de usar uma
peça de roupa que não cobre nada direito? A camisola champanhe era levemente transparente e
me permitia ver a sombra de seus mamilos. O comprimento era muito, ou melhor, pouco, mal
cobria sua bunda. E que bunda! Não consegui desgrudar os olhos enquanto ela desfilava para o
banheiro. Mais de dez anos depois e eu ainda me sentia como um adolescente perto dela. Efeitos
imediatos em meu membro. Ela estava me provocando.
— Hugo, quer tomar um banho?A voz dela veio do banheiro e eu pensei estar sonhando, mas a
dor do meu pênis pulsando na minha calça me trouxe a realidade. Levantei-me rapidamente,
passando pelo closet e chegando ao banheiro que era interligado e não tinha porta. Ao entrar,
Marcela estava de costas tirando a camisola. Nua, ela estava nua. Na minha frente, depois de
tantos anos. Pelo reflexo do espelho ela me viu parado perto da entrada. Percorreu os olhos pelo
meu corpo e viu minha ereção marcada na calça.
— O que pensa que está fazendo? — Sem se mexer, apenas me olhando pelo espelho.
— Você perguntou se eu queria tomar banho. Ela gargalhou e se virou cruzando os braços
enquanto se encostava na bancada da pia me dando uma visão completa daquela obra de arte. Eu
engoli em seco.
— Não comigo, homem. Não seja ridículo.
— Ridículo? — Percorri os olhos por todo corpo dela, sem pudor.
— Ah, não é como se você já não tivesse visto nada aqui.
— É melhor do que eu me lembrava.
— Eu me esforço. — Ela andava na minha direção. No meio do caminho parou e se abaixou em
um dos armários, de onde pegou uma toalha; andando para o outro lado, abriu uma gaveta e
pegou uma camisinha. Ela estava brincando com fogo.
— Para você não sujar toda a minha casa quando for resolver isso aí — ela falou, olhando para
minha ereção que, ao contrário do que parecia possível, a cada movimento dela fica mais dura.
Ela entrou no box e ligou o chuveiro.
— Porra, Marcela!
— É exatamente o que eu não quero por aí! E olha o seu linguajar perto da Sara. Vai logo
Coelho, você não parece muito confortável — ela disse com um sorrisinho.
— Vai ter volta, Marcela — disse, pegando a toalha e a camisinha.

Me dirigi ao banheiro com raiva e tesão percorrendo meu corpo. Controlei-me o máximo
possível para que meus gemidos não fossem ouvidos, mas pensar em Marcela e não gemer era
impossível. Depois de gozar na camisinha como recomendado, amarrei-a e joguei no lixo.
Saindo do banheiro após tomar meu banho, ouvi risadas das duas mulheres da minha vida vindo
do andar de baixo. Parecia música para meus ouvidos. Durante o café da manhã quando nós três
apenas estávamos sendo nós mesmos, rindo e brincando eu decidi que era aquilo que eu queria
para minha vida. Eu queria poder aproveitar uma manhã qualquer na cama com a minha família.

— BORA, SARA! MAIS RÁPIDO COM ESSA MISE EN PLACE.


— No grita, Hugo. E não pede para ela ir mais rápido. No estamos no Malagueta, nem no
Bestchef. Faz no seu tempo, Sara.
— É, pai. É para se divertir em família.
— Tem razão, filha, desculpa. Força do hábito.
— Tudo bem. Depois você se acostuma. Aqui não se grita. Vou te ensinar comunicação não
violenta e disciplina positiva.
— É o que?
— São técnicas de comunicação que não agridem e promovem uma boa relação interpessoal.
— Quantos anos ela tem mesmo?
— Faz cinquenta e três na semana que vêm. — Ela riu. Tão linda.
— Já que estamos falando sobre o meu aniversário... Faltam só cinco dias e eu terminei a
programação.
— Uma programação de aniversário?
— Sara leva muito a sério datas comemorativas.
— Muito mesmo. Eu quero uma festa. E a programação. E ir para o Rio de Janeiro. Com vocês
dois.
— Nenhuma chance — Marcela respondeu prontamente.
— Mas, você disse que a gente podia ir.
— Não estou falando sobre a viagem. Você disse que não queria festa.
— Mas agora eu quero.
— Agora não dá tempo, Sara. Eu te avisei!
Elas começaram a discutir em espanhol e a impressão que eu tinha é que elas nem lembravam
que eu estava ali. Eu até queria interromper, mas não sei qual é a dinâmica.
— Seu Hugo — Isabel falou, puxando-me para fora da cozinha. — Nem pense em se meter, se
não sobra para o senhor também. Olhe, sempre que Sarinha falar espanhol o senhor foge. Só dona
Marcela para dar conta mesmo.
— Você estava aqui o tempo todo?
— Eu estou sempre aqui. Mas dona Marcela não sabe, não vai contar hein!
— Mas isso acontece sempre?
— É fase. Acontece sempre perto do aniversário de Sara, quando ela vai para o Pipo. É
quando ela quer controlar as coisas. Dona Marcela não deixa, aí já viu. Mas fica tranquilo que
dá tudo certo. Já, já acaba.
— Eu não posso fazer nada?
O silêncio repentino se estabeleceu. Eu e Maria Isabel nos encarávamos quando Sara passou
pela gente batendo o pé e uma cara nada boa, bem vermelha. Subiu as escadas e sumiu de vista.
Maria Isabel subiu atrás de Sara e eu segui para a cozinha. A encontrei bebendo vinho direto da
garrafa. Extremamente sexy. Não quis encarar mas foi inevitável.
— Olha, sua filha me tira do sério.
— Então é culpa minha?
— Nenhuma dúvida.
— Engraçado que não sou eu quem gosta de controlar as coisas. Não foi de mim que ela puxou
isso.
— Não vamos discutir isso hoje. Eu prometi um almoço sem climão para o Fragalli.
— E você combinou isso com a Sara? A cara dela não estava nada boa.
— Ela só precisa de uns minutos. Hugo, a Sara tem um comportamento muito peculiar. Vai ser
difícil no início, mas você vai conseguir.
— Quem é Pipo? — Marcela é tão transparente que não conseguiu disfarçar a surpresa com a
minha pergunta. Muito menos a gratidão quando a campainha tocou e ela podê fugir com o intuito
de abrir a porta.

— Clara! Que bom que você chegou! — Não poderia expressar nesse momento o quão grata
estou. Dei um abraço apertado nela.
— Oi, tudo bem? — Ela estranhou já que não sou muito do time do abraço.
— Você acabou de me salvar de uma conversa! Mas estou muito feliz mesmo que tenha vindo.
Preciso recompensar por ontem. E agradecer por ter ficado com a Sara.
— Então, aquele negócio que ela assiste é bem chato, né? Acho que dormi nos primeiros cinco
minutos.
— Muito chato.
— Clarinha! — Coelho apareceu e até retirou Clara do chão durante o abraço!
— Parabéns, papai! Grande reviravolta!
— Porra, Clara! Estou feliz para caralho! — Seus olhos brilhavam.
— Olha a boca Hugo! — repreendi-o.
— Tem que dar exemplo, papai! Cadê a Sara?
— Está meditando. Daqui a pouco aparece.
— Meditando?
— Clara, eu tenho uma filha que medita! Dá para acreditar nisso?
— Só dá para acreditar porque é filha da Marcela também, né? Eu ainda estou meio chocada
com isso. Vocês dois tem um bebê! Eu queria contar isso no Twitter.
— Eu não sou um bebê. Oi, Clara. Eu faço dez anos em cinco dias.
— E vamos ter festa? — Clara falou animada.
— Não. Vamos ter jantar. Aqui. Você vem?
— É um convite?
— Sim.
— Então eu venho.
Clara e Sara continuaram conversando enquanto eu e Hugo voltamos a cozinhar.
— Marcela?
— Sim?
— Eu liguei para minha mãe mais cedo.
— E?
— Eu contei sobre a Sara.
— E? Nossa, parece que estou falando com a Sara. Você no era assim. Desenvolve, Hugo.
— Ela quer conhecê-la.
— Tudo bem.
— Ela quer que a gente vá lá amanhã.
— Sara tem opiniões muito fortes. Sempre que desejar fazer alguma coisa com ela, fale com
ela. Não adianta falar comigo. Mas acho que tudo bem. Ela quer conhecer sua mãe.
— Quando eu digo a gente — ele fez uma pausa — isso inclui você.
— Vocês precisam aprender a viver sem mim. Eu prometo ficar atenta ao celular. Vocês vão
ficar bem. A Sara não morde, Hugo. Na verdade, me mordeu uma vez, mas já tem muitos anos.
— Acho que você não entendeu, ela quer que você vá.
— Não, Hugo.
— Ela só quer conversar com você! Ela te adora. Você sabe!
— Ela me adorava há dez anos, antes de eu esconder a neta dela durante todo esse tempo e
fazer o filhinho dela sofrer.
— Marcela, por favor?! Eu tenho zero de segurança. A última criança com que eu tive contato
já tem mais de vinte anos.
— Eu tenho que voltar amanhã, tenho médico segunda, cedo.
— Ok. Fragalli não demorou a chegar e pudemos almoçar. O clima era agradável e ríamos o
tempo todo de Sara e Hugo. Os quatro celulares que se encontravam sobre a mesa acenderam ao
mesmo tempo.
“Reunião de elenco. Urgente.”
Nos entreolhamos, todos desconfiados do que se tratava. Desde nossa participação naquele
maldito programa, a internet estava surtada com a confirmação de que eu e Hugo tivemos um
caso no passado, mas que eles garantem que está acontecendo agora.
— Melhor avisar ao Carvalheiro que estamos aqui, e só falta ele, se importa se eu pedir para
ele vir, amiga? — Clara falou.
— Mas avisa que bebemos, bastante.
Em meia hora, mais ou menos, Isabel abria a porta para Carvalheiro. Que logo se juntou a nós
no Jardim.
— Veja se não é o casal, que me garantiu que não era um casal, que mais me dá trabalho?
— Mas nós não somos um casal! — eu repeti pela milionésima vez. — Achei que tinha
deixado claro em rede nacional.
— É bem chato, toda vez que vocês falam sobre isso eu me sinto esnobado. Abala tanto minha
autoestima. A mulher da minha vida não quer nada comigo e nessa insistência de vocês ela fica
repetindo isso. Vocês não percebem o quanto isso me magoa? — ele falou sério e eu cheguei a
me sentir ligeiramente culpada, mas logo em seguida ele soltou uma gargalhada e todos
acompanharam, exceto Carvalheiro.
Talvez tivéssemos passado um pouco do limite.
— Então vocês me garantem que não tem nada hoje?
— Só tem eu, né? — Sara falou antes que pudéssemos responder.
— Possivelmente esse é um ótimo momento para saber que nós temos uma filha — eu falei sem
conseguir parar de rir. Foi uma péssima ideia trazer o Carvalheiro aqui.
— Isso. Só temos uma filha, mais nada. Um pouco de mágoa e raiva, talvez.
— Vocês não pensaram em mencionar que tem uma filha antes? — Carvalheiro estava
transtornado.
— Eu não sabia! — Hugo levantou as mãos em rendição.
— Se eu não contei para o pai da criança, não era para você que eu iria contar, né?
— Eu acho melhor a gente marcar outro dia, em que todos estejam mais sóbrios — Clara
comentou.
— Eu acho melhor mesmo — Carvalheiro falou nada satisfeito — Até lá, todos vocês,
mantenham distância das redes sociais. Especialmente o casal não-casal.
— Podexá, chefinho! — Hugo falou e Carvalheiro apenas revirou os olhos e foi levado a porta
por Isabel.
Não demorou muito e Fragalli e Drica foram embora. Hugo via algum show de hard rock com
Sara e eu e Clara estávamos apreciando o pôr do sol nas espreguiçadeiras.
— Quais são os planos?
— Que planos, Clara?
— Amiga, em algum momento o Brasil vai ficar sabendo. Vocês vão deixar a Sara trancada
para sempre?
— Claro que não. Inclusive vamos na mãe dele amanhã.
— Conhecendo a sogra?!
— Indo ver a avó da Sara. Eu já conheço a Maria Lúcia. Mas quanto a Sara, não sei mesmo o
que fazer. Eu queria fazer isso da forma mais tranquila possível. Não sei o que fazer.
— Emite uma nota. Não muito fria. Por que vocês não dão uma entrevista?
— Não, Clara. Não ficaria confortável. Você sabe como eu sou.
— Não quero soar oferecida, mas eu posso fazer. A gente publica na revista, faz um ensaio
legal com vocês três.
— Não sei, preciso falar com a Sara, porque o Hugo com certeza vai adorar. É a cara dele.
— Conversa com eles e me fala.
— Eu queria tanto que ninguém soubesse. Queria voltar a ser anônima e isso seria apenas um
problema nosso. Sem nota para imprensa, sem entrevista, sem fã clube surtando.
— Com certeza vão surtar.
— Elas precisam saber que é um passado muito distante e não tem volta.
— Não tem mesmo?
— Até você, Clara?!
— Eu estou sempre do lado do amor.
— Eu não amo o Hugo, não mais. Amei muito, mas não sinto mais nada, as vezes queria até
odiá-lo, mas não consigo.
— Tem que quebrar a casquinha de pedra que surgiu nesse coração aí. Tem que ser feliz,
amiga!
— Eu sou feliz!
— Tem certeza? E se for, não poderia ser mais?
— Chega, Clara, se você fizer esse tipo de pergunta na entrevista eu te mato. — Jamais faria
isso.
CAPÍTULO 24

— Por favor, Sara, sem drama!


— Por que ele não pode dormir aqui?
— Sara, eu preciso ir para casa. Tenho que trocar de roupa, e estou de moto. Tenho que pegar o
carro para irmos amanhã na sua avó.
— Volta para dormir aqui, por favor? — Sara falava, agarrada a minha perna.
Marcela parecia ter desistido. Já sem argumentos, ou paciência, ou sem os dois. Massageava as
têmporas com os olhos fechados enquanto estava sentada no último degrau da escada.
— Tudo bem, Marcela?
— Estou com dor de cabeça. Você pode resolver tudo com a Sara e a Isabel? Leva ela para sua
casa, vai e volta, fica com ela lá, ou dorme aqui. Tanto faz, ok? Mas eu preciso de um banho e
dormir.
Marcela me deu um abraço, um beijo em Sara e a acompanhei com o olhar até vê-la sumir no
corredor do andar superior. A casa era muito grande, jamais diria que aquela casa era de
Marcela, meio que não combinava com ela. A estrutura em si, mas conseguia enxergar a Marcela
em cada detalhe. Cada peça de decoração, cada cantinho.
— Pai, já sei o que vamos fazer.
— Fala aí, se eu achar uma boa ideia pode ser, ok? Mas não prometo nada.
— A gente pega o carro da minha mãe, vai na sua casa, pega suas coisas e você dorme aqui. Aí
a gente sai amanhã cedo.
— Então, você quer ir à minha casa?
— Eu posso?
— Claro que pode, está meio bagunçada, mas pode.
— Oba!
Sara saiu correndo e pegou as chaves sobre o móvel, foi até o escritório e voltou com o
documento do carro nas mãos. Demos tchau a Isabel e saímos.
— Eu posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você odeia minha mãe?
— Claro que não.
— Ela falou que seria uma possibilidade. Especialmente se você não soubesse que eu existia
pela gente.
— Eu fiquei e ainda estou um pouco chateado. Com ela, não com você. Mas nada muito grave.
— Ela queria ter falado antes, mas eu não deixei.
— Por que você não deixou?
— Ah, eu tinha, tinha não, eu tenho medo de você não gostar de mim.
— Mas isso é impossível, Sara. Eu te amo. O amor é uma coisa muito doida. Até ontem a
pessoa que eu mais amava no mundo era sua mãe. Eu não a amei de cara. Mas aí eu conheci
você. Pode até parecer mentira, mas eu já te amo tanto. É a maior loucura. Amar alguém tão
rápido assim. Eu nem sabia que era possível.
— Eu já te amo há um tempão.
— Filha, assim eu não aguento. Eu tenho essa pose de mal, mas eu sou a maior manteiga
derretida. — Eu sentia lágrimas brotarem dos meus olhos. — Quero tanto conhecer você. Saber
tudo sobre você.
— Ué, é só você perguntar. Tem coisa que eu não sei né, aí só perguntando para minha mãe.
— Eu ainda tenho que conversar muitas coisas com ela.
— E vocês vão brigar? Minha mãe falou que tem assuntos sensíveis.
— Sua mãe durante muito tempo tomou as decisões sobre você sozinha, mas agora eu estou
aqui e vou participar. As vezes isso gera desentendimento.
— Ela toma as decisões comigo. Mas você pode participar também. Eu deixo. — Não resisti e
gargalhei
— Muito obrigado, mocinha. Chegamos.
— Você mora em que andar?
— Décimo oitavo. Tem medo de altura?
— Não mesmo. Mas tem tela? É muito perigoso.
— Não tem, mas vou providenciar. Pode deixar. — Parei na porta antes de abrir — Olha, eu
não esperava receber visitas, muito menos a sua. Então, está muito bagunçado. A Ritoca, que
cuida das coisas para mim, só vem às segundas.
— Para de enrolar. Eu vou te julgar só um pouquinho. Sou filha da Marcela Campana, né? —
ela disse dando ombros e eu tive que rir. Muito filha da Marcela mesmo.
Abri a porta e Tapioca saiu correndo para o corredor e Sara se escondeu atrás de mim.
— Você tem medo?
— Não, só tomei um susto. Eu queria ter um cachorro, mas minha mãe não deixa. Qual o nome
dele?
— Viu só, agora você tem. Essa aqui é a Tapioca — eu disse, fazendo carinho nela e logo Sara
me acompanhou.
— Uhuuuul. Mas olha, sua casa é muito bagunçada. Eu sei que eu disse que ia julgar só um
pouquinho, mas tá difícil.
Era impossível me manter sério.
— É feio ficar julgando os outros.
— Eu sei, mas as vezes é inevitável. Mas sabe o que é pior que julgar os outros?
— Não.
— Era uma pergunta retórica, mas tudo bem. Fumar. Eu não acredito que você fuma, Hugo
Coelho! Que coisa feia! — ela falou com as mãos na cintura enquanto olhava o cinzeiro sobre a
mesa de centro.
— Eu só fumo as vezes, mas vou parar.
— Você sabia que o cigarro contém mais de 4500 substâncias tóxicas, inclusive radioativas
como polônio 210 e urânio, dentre as quais 43 são, comprovadamente cancerígenas. E pode
causar hipertensão arterial, infarto do miocárdio, aterosclerose, bronquite crônica, angina
pectoris, tromboangeíte obliterada, enfisema pulmonar, cânceres de pulmão, boca, laringe,
esôfago, estômago, pâncreas, bexiga, rim, faringe, colo de útero, mama, reto, intestino e próstata.
Diabetes, otite, amigdalite, osteoporose, acidente vascular cerebral, aneurisma da aorta,
estomatite, aborto, linfoma, catarata, periodontite, tuberculose, deslocamento precoce da
placenta e sinusite. Acho que eu tô esquecendo de alguma coisa.
— Garota, onde foi que você aprendeu isso?
— É notório saber. Todo mundo deveria saber disso. Ah, lembrei: impotência sexual. Vai ver
que foi por isso que você não estava conseguindo ter filhos. Ainda bem que eu já nasci. — Ela
deu ombros.
— Sua mãe te falou isso?
— Claro que não! Eu ouvi atrás da porta. Mas pode deixar, ela já brigou comigo.
— Tem mais alguma coisa que a mocinha não devia saber?
— Um monte, né? Mas eu não sou obrigada a produzir provas contra mim mesma.
— Quem disse?
— A Constituição Brasileira de 1988, oras.
— Acho que já tenho informações suficientes por hoje. Vou pegar umas coisas. Pode ver TV.
— Eu não vejo TV. Tem algum livro?
— Só de culinária.
— Tudo bem. Eu vou trazer uns da próxima vez. Vou ficar vendo seus CDs.
— Ok. Não demoro.
Fui para o quarto arrumar uma mochila com poucas coisas. Nem tão poucas. Não tenho pressa
de voltar para casa. Do quarto, ouvia Sara cantarolando. E depois gargalhadas. Quando voltei
para sala com tudo pronto ela estava deitada no chão com Tapioca lambendo seu rosto.
— Vamos? Já está tarde. Vamos sair muito cedo amanhã. É longe.
— Eu sei. Me lembro que demorou duas vidas para chegar.
— Você já foi à Piracicaba?
— Sim, minha mãe me mostrou a casa. A gente até viu a vovó na rua.
— Entendi. Depois eu falo com ela sobre isso.
Na volta para casa fomos ouvindo AC/DC. Que orgulho dessa menina! Em casa ela saiu
correndo para o quarto de Marcela e eu segui direto para o quarto de hóspedes, quando ouvi
Marcela me chamando. Fui até o quarto, onde Sara estava deitada ao lado dela e o cômodo
estava com uma penumbra.
— Entra, Hugo.
— Está melhor?
— Um pouco. Obrigada. Quero saber que horas vamos amanhã.
— Bom, minha mãe gostaria que a gente chegasse para o almoço, se possível. Então, seria bom
sair umas cinco horas?
— Eita! Vou tomar banho para dormir então — Sara falou e já deixou o quarto saltitando nos
deixando sozinhos.
— Senta, Hugo. Sara disse que você queria falar comigo.
— Você a levou em Piracicaba. Vocês viram minha mãe.
— Sim. Sara é muito insistente, você viu.
— Como você pode ser tão fria?
— Poderia ter feito a mesma pergunta a você anos atrás. Se era isso que queria conversar, acho
que acabamos por aqui.
— Você não vai poder ficar fugindo disso para sempre. Eu quero saber, eu tenho direito de
saber.
— Você vai saber, mas não quer dizer que a gente vá conversar sobre isso.
— E qual a sua sugestão?
— Seja direto no que quer saber e eu julgo se é pertinente ou não. Perguntas sobre a Sara,
obviamente.
— Marcela, por favor. Eu preciso saber o que aconteceu.
— Aconteceu que você foi embora Hugo. E se não fosse pela Sara você jamais iria ouvir falar
de mim de novo. E eu já te falei que não quero, não faz sentido nenhum ficarmos nos aborrecendo
com isso à essa altura do campeonato. Você entende agora por que não faz sentido te odiar? Olha
para Sara, olha nossa filha, como eu vou te odiar? Eu te perdoei. Mas eu não esqueci. E eu não
quero reviver. E, principalmente, Sara acabou de conquistar a chance de ter nós dois em sua
vida, não vamos estragar isso. Por favor.
— Ok, me desculpa. Só sobre a Sara.
— Pai, você pode me colocar para dormir?
— Claro, vamos lá.
— Vem aqui primeiro, né? Já nem liga mais para mim. — Marcela fez uma cara triste.
— Acho que tem alguém com ciúmes, Sara...
— Mãe, se você quiser, podemos dormir nós três aqui juntinhos.
— Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece. Tchau, Sara. Boa Noite. Boa noite,
Hugo.

— VIAGEM DE CARRO EM FAMÍLIA!!!!


— Sara! Não são nem 5h da manhã. Quer me deixar louca? — Quem merece tanta empolgação
a esta hora da madrugada?
— Bom dia, Marcela Campana — ela disse e me deu um beijo. — Bom dia, Pai. — Deu um
beijo em Hugo.
— Marcela Campana para mim e pai para o Hugo? — Eu estava indignada. Quanta ingratidão.
— É pai, ela tá morrendo de ciúmes. — Os dois riram. Se merecem mesmo — Bom dia,
Bebel.
— Bom dia, Sarinha.
— Sara Campana, não se esqueça que em algum momento, o Hugo vai embora e é de mim que
você vai precisar.
— Credo, Marcela, está ameaçando a menina?
— Não é ameaça, não, pai. Aqui trabalhamos como o Ministério da Saúde. Com advertências.
— Filha, lá em casa tem lugar para você. Sem advertências.
— Só depois que você arrumar aquela bagunça, parar de fumar e colocar tela de proteção.
— É, Hugo, acabou de ganhar sua primeira advertência. Parabéns!
A cara de Hugo era impagável. Terminamos de comer e fomos para o carro. Me sentei no banco
do carona e Sara atrás.
— Ué, eu que vou dirigir?
— Se você confiar o suficiente na Sara, pode ser ela.
— Alguém está com mau humor matinal, hein Sara?
— Pai, não tem como minha mãe ter bom humor antes das oito da manhã. Nunca vi.
— Obrigada, Sara.
— E o que a gente vai ouvir, copiloto? — Hugo perguntou, abaixando meus óculos escuros.
— Bowie — falei, colocando meus óculos no lugar.
— Pai, eu fiz uma lista de curiosidades sobre mim para te ajudar.
— Que ótimo, filha, vai me contando.
— Se você tiver alguma dúvida é só perguntar e se eu não souber, minha mãe responde, né
mãe? — Ela estava muito empolgada.
— Se eu estiver acordada.
— No é para dormir, Marcelinda — Sara falou e na hora eu me amaldiçoei por um dia ter
contato esse apelido a ela. — É nossa primeira viagem em família. Vamos colaborar!
— É, Marcelinda.
— Você, — Apontei o dedo para Hugo — não me chama assim, por favor.
— Ok, desculpa.
— Podemos começar?
— Siiiim! — Hugo respondeu super empolgado e eu não pude deixar de rir das duas crianças.
— Meu nome é Sara Campana, e só, pelo menos por enquanto né, o que é meio óbvio, mas
achei importante.
— Por que seu nome é Sara?
— Por causa do restaurante da minha mãe em que vocês se conheceram. Mas citando a fala de
Marcela Campana — Ela finge limpar a garganta — “Porque você é a personificação dos
momentos incríveis vividos nele, por causa dele e através dele.”
— No sabia que você lembrava disso — falei, olhando para trás e fazendo carinho no rosto de
Sara com a minha voz embargada.
— Eu anotei para não esquecer nunca.
— Tudo no seu nome é lindo, filha. — Nossos olhares se encontraram e se abraçaram. Hugo
também tinha os olhos marejados.
— Não precisa chorar, gente. Vamos continuar. Eu nasci no dia vinte de julho de 2005, uma
quarta-feira de muito sol que acabou com um dilúvio no Rio de Janeiro.
— Por que no Rio?
— Ué?! Era onde minha mãe estava e eu estava com pressa.
— Primeira e última vez que você teve pressa para alguma coisa, né, dona Sara?
— Nada a ver esse comentário, mãe! Voltando... Eu estava com pressa. Minha mãe estava
voltando de Nova Iorque, sem meu outro pai, para abrir o Ruiz, mas antes passou no Rio para
falar com o Pipo. Aí eu quis nascer bem antes da hora. Um mês e meio antes, o que rendeu
cinquenta e sete dias de UTI neonatal e cinco dias de enfermaria. E mais vinte e sete dias no Rio
de Janeiro. Eu fui batizada no hospital, sem nome.
— Você batizou a menina sem nome?
— Ela tinha medo de que eu morresse. Por isso me batizou e por isso não me deu um nome.
Mas eu ganhei padrinhos. Pipo e Ana e um quase irmão gêmeo, o Guido, que nasceu um dia antes
de mim.
— Marcela, depois a gente vai conversar sobre essa história de batizado.
— Não tem nada para conversar, Hugo.
— Você nem acredita nisso.
— Quando sua filha está quase morrendo você não acredita em nada, mas se agarra em tudo.
As crianças morrem o tempo todo na UTI neonatal. Se tivessem me sugerido um banho de pipoca
para ela eu teria dado. Porque eu estava lá.
— Calma, gente, eu tô vivíssima. Acho que esse é um assunto sensível. Vamos para o próximo
tópico. Eu fiquei meses laranja, porque eu só comia coisas dessa cor. Eu aprendi a andar com
dois anos e aí eu não podia mais ficar o dia todo no Ruiz e foi quando a Bel nos salvou. Eu
comecei a ler e escrever com três anos, mas só falei com quase cinco anos e desde então eu falo
sem parar. Ou não falo nada.
Parei para observar Hugo enquanto Sara falava, ele devia ter mil perguntas, mas não faria a
ela. Ele reparou que eu estava olhando. Fiz um sinal discreto para depois falarmos sobre isso.
— E qual foi a primeira palavra que você falou?
— Na verdade foi uma frase. Quem é Hugo?
— Sério?! — Ele me olhou assustado e eu apenas confirmei com a cabeça. — Hugo, eu?
— Sim, minha mãe e meu outro pai estavam falando sobre você. Aí depois de ter passado a
comoção por eu finalmente ter falado alguma coisa, o que levou uma semana, eu só falava a
mesma frase, até que minha mãe finalmente respondeu. E começou a explicar e contar tudo sobre
você.
— Entendi.

No momento em que fizemos uma pausa começou a tocar Starman e eu não pude deixar de
cantarolar uma das minhas músicas favoritas. Fui acompanhada por Sara e Hugo. Quando a
música acabou, Sara dormia.
— Ela dormiu?
— Si.
Ele tirou a mão direita do volante e a repousou sobre a minha coxa com a palma virada para
cima. Eu tomei um susto, mas entendi que ele queria que eu desse a mão para ele. Pensei
seriamente em recusar, mas de que adiantaria? Ele não me deixaria em paz. Cedi e repousei
minha mão sobre a sua, e entrelaçamos nossos dedos. Ele levou minha mão à boca e depositou
um beijo.
— Obrigado por ter criado tão bem nossa filha. Não posso imaginar o quão difícil foi passar
por isso sozinha.
— Eu não estava sozinha, eu só não estava com você.
O resto do trajeto foi feito em silêncio, as vezes quebrado por uma ou outra música. Conforme
íamos nos aproximando eu ficava mais tensa. Essa história da Maria Lúcia querer falar comigo
estava totalmente fora dos planos.
— Já chegamos? — Sara falou sonolenta enquanto coçava os olhos.
— Quase, filha. Dez minutinhos para conhecer sua vó.
CAPÍTULO 25

DEZEMBRO DE 2004
— Eu não sei em que circunstâncias você achou que eu te deixaria passar o Natal sozinha.
— Eu sinceramente não achava que você me obrigaria a vir.
— Estou te obrigando a passar o Natal comigo. Se eu soubesse que era tão sacrificante assim
tinha te largado com o porteiro em São Paulo!
— Não foi o que a gente tinha combinado!
— Você só se esqueceu de combinar com o médico. Não fui eu quem a proibiu de ir para
Argentina.
Ela olhava emburrada pela janela, o bico quase tocava o vidro, de tão grande, enquanto a
chuva fina caía.
— Por que quando você está com medo, você fica em negação?
— Eu não estou com medo.
— Então eu te conheço melhor do que si mesma.
— Do que eu estou com medo, Hugo?
— De conhecer minha família.
— Eu deveria ter medo de conhecer sua família?
— Pois é. Não. Mas conhecer minha família torna a gente bem real.
— Hugo, nós estamos namorando. Quer mais real que isso?
— Você contou a alguém que nós estamos namorando? Não precisa responder. Eu já sei a
resposta. Você não acredita na gente. Por isso você não quer conhecer minha família. Mas
preciso te avisar. Você vai casar comigo. Você está indo conhecer sua família, na verdade.
— Não me lembro de ter sido pedida em casamento. Muito menos de ter aceitado.
— Eu não pedi. Ainda. Cenas para os próximos capítulos.
— Nem brinca com isso, Hugo.
— Eu não estou brincando. Você é a mulher da minha vida.
— Eu nem comprei nada para ninguém! Minha mãe me mataria pela audácia de aparecer de
mãos vazias na casa de alguém. Ainda mais no Natal.
— Podemos passar no shopping se fizer você se sentir melhor.
— Me deixar na rodoviária faria com que eu me sentisse melhor.
— Pode esquecer. Sem chance.
Ela não desamarrou o burro e acabou pegando no sono. Eu a acordei quando chegamos. Ainda
estávamos descendo do carro quando minha mãe apareceu na varanda.
— João, venha, Hugo chegou! — minha mãe gritou.
Peguei nossas bolsas no porta-malas do carro, e de mãos dadas seguimos até meus pais que nos
esperavam na porta.
— Que emoção finalmente te conhecer! — minha mãe exclamou — Você é ainda mais bonita
pessoalmente.
— Obrigada! Muito obrigada por me receber. — Marcela parecia que nunca tinha falado com
ninguém na vida, de tão tímida que estava.
— Imagina, minha filha, há meses que esse garoto só fala de você! Estava louca para te
conhecer. Como está se sentindo?
— Estou quase cem por cento.
— Rezei muito pela sua recuperação. Hugo me deixou tão preocupada. Eu queria ter ido até
São Paulo cuidar de você.
— Obrigada.
— Venham! Estou terminando a ceia. Imaginem só, eu cozinhando quando tem dois cozinheiros
profissionais em casa? Quanta responsabilidade!
— Não se preocupe, tenho certeza de que estará tudo delicioso. Posso ajudar em algo?
— Não acha melhor descansar? Foi uma viagem longa.
— Estou bem, dormi maior parte do tempo.
— Hugo, vá ajudar seu pai. Deixe que nós meninas nos entendemos.
Marcela estava em pânico e seu olhar suplicava para que eu não a deixasse sozinha com a
minha mãe, mas não havia nada que eu pudesse fazer.
— Hugo me falou que você ficou chateada de não poder ir à Argentina.
— Si, esperava que já pudesse ir. Preciso ver meus avós.
— Ele falou que você valoriza muito a família. Sua família é grande?
— No. Pequena. Só tem meus avós agora.
— Eu sinto tanto que sua família não esteja por aqui. Se precisar de um colinho pode vir aqui.
Sempre tem espaço para mais um. Ainda mais para moça que finalmente conquistou o meu Hugo.
Tenho, por anos, esperado esse menino me apresentar alguém. Demorou, mas caprichou.
— Obrigada.
— Sabe, assim que ele começou a trabalhar com você, ele me ligou e disse: “Mãe, conheci a
mulher da minha vida. Ela só não sabe ainda”. Quando vocês foram para o Rio de Janeiro eu vi
aquelas fotos da revista! Que casal mais bonito e apaixonado! Ele voltou do Rio dizendo que vai
se casar com você! Não sabe quando, mas vai.
— Ele deveria estar preocupado com a carreira dele. Ele tem só mais cinco dias como
estagiário. A senhora deveria tentar colocar algum juízo na cabeça daquele menino!
— Você acha que eu já não tentei? É só o que eu tenho feito a vida toda, minha filha. Mas ele te
ama tanto.
— Eu também o amo muito. Mas não quero que ele se arrependa de nada. Algumas
oportunidades não voltam. Esse é o momento dele de arriscar.
— As coisas acontecem quando devem acontecer e as vezes só depois de muito tempo
entendemos.

Voltei a cozinha e as duas conversavam sobre receitas. Meio óbvio.


— Marcela, posso falar com você?
— Si.
Terminei de mostrar a ela o resto da casa e depois seguimos para o quarto.
— Quero te entregar seu presente.
— Não tínhamos combinado sem presentes, Hugo?
— Mas eu mudei de ideia.
— Você vai mudar de ideia também quando pedir para casar comigo?
— Jamais.
— Como posso ter certeza se em todas as vezes você não cumpre o combinado?
— Porque eu te amo.
— Sei...
— Será que eu não escapo de um esporro nem mesmo quando quero te dar um presente? — eu
disse, abraçando Marcela.
— Não!
— Mas é Natal! — eu disse, beijando seu pescoço e ela logo amolece.
— Não começa. Estamos na casa dos seus pais.
— Qual o problema? Eles também transam.
— Essa é definitivamente uma imagem que eu não precisava ter na minha cabeça.
— É só ser silenciosa — eu disse, subindo minha mão por dentro da blusa dela e apertando seu
seio por cima do sutiã. Ela gemeu baixo.
— Sabemos que esse não é meu forte. — Soltei seu sutiã. Mais um gemido.
— Eu ponho uma música. Bem alta. Porque você vai precisar — sussurrei para ela antes de
morder seu lóbulo.
Me afastei de Marcela e fui até o som onde coloquei o CD.
— Golpe baixo, Hugo — ela falou, mordendo o lábio.
— Cientificamente comprovado — falei, puxando-a para um beijo quente e urgente.
Minhas mãos deslizaram da nuca de Marcela até sua bunda que, ao apertar, acabei trazendo seu
quadril para mais perto de mim, o que fez com que ela sentisse minha ereção e soltasse um
gemido. Minha boca explorava cada milímetro de pele exposta, desde sua boca até seu colo. Sua
cabeça pendia para trás dando livre acesso ao pescoço.
Com uma mão eu apoiava as costas de Marcela, a mão livre encontrava sua calça ainda
fechada e meus dedos descobriram uma Marcela extremamente lubrificada. Não resisti; introduzi
dois dedos e ela se impulsionou para frente, nossos lábios se encontraram a tempo de abafar o
grito que ela dera. Retirei meus dedos e levei-os a boca. Deliciosa como sempre.
As mãos de Marcela trabalhavam com urgência para abrir minha calça e logo ela pendia
juntamente da minha cueca sobre meus tornozelos. Enquanto eu tirava sua blusa e seu sutiã ela
mesma se encarregou de retirar a própria calça e a calcinha.
— Eu quero você em mim. Agora — ela suplicou.
Eu ia atender seu pedido, mas ela me jogou na cama e montou em mim. Marcela me cavalgava
plenamente enquanto eu massageava seus seios. Ela imprimia um ritmo incrível e eu não ia
aguentar por muito mais tempo. Ela estava quase lá, mas eu não conseguiria manter. Num
movimento rápido mudamos de posição. Segurando uma de suas pernas para cima eu trabalhava
com estocadas firmes e lentas enquanto massageava seu clitóris. Ela estava pronta. No ponto. Foi
então que eu aumentei o ritmo e juntos atingimos o auge.
Relaxei meu peso sobre o dela e ela entrelaçou as pernas sobre meu corpo enquanto nossos
órgãos ainda pulsavam juntos, com Dire Straits tocando ao fundo.
— Dire Straits nunca falha.
— Eu te amo.
— Também te amo.

JULHO DE 2015
— Não me pressiona, Hugo! Eu só preciso de uns minutos. Por favor.
Ela estava uma pilha. Tantos anos depois. Nada mudou.
— Você quer mesmo que eu acredite que você se esqueceu de me avisar que hoje é o almoço
de aniversário de quarenta anos de casamento dos seus pais? Sério, Hugo? — Ela estava uma
fera.
— Estamos atrasando o almoço. Estão só nos esperando. Por favor, Marcela.
Não teria jeito. Minha mãe sempre diz que corajoso não é quem não tem medo, é quem não
deixa que o medo impeça de fazer o que deseja. E eu estou morrendo de fome. A comida está lá
dentro. Eu vou entrar.
Abri o portão com facilidade. As pessoas que moram em cidades pequenas aparentemente não
se preocupam muito com segurança. Olhei para trás e meus progenitores discutiam ainda do outro
lado da rua. Achando que estavam falando baixo. Nem se deram conta do que eu estava prestes a
fazer. Nesses momentos que crianças se perdem ou são raptadas. Quanta irresponsabilidade!
Seguindo as vozes das pessoas, eu segui por um corredor que parecia uma garagem, mas
terminava em um gramado e ao fundo havia uma grande árvore com um balanço. Conforme ia me
aproximando das vozes, mais minhas mãos suavam.
Só consegui dar o primeiro passo na grama. O medo tomou conta de mim. Ninguém estava me
vendo, eu poderia voltar dali mesmo. Mas ele me viu.
— Ô gente, por que aquela menina tem a cara do tio Hugo? — Ele era pequeno, mas conseguiu
chamar atenção de todos.
Eu achava que iria morrer. Meu coração sairia pela boca. Eu não sabia o que fazer. Eu não
conseguia dizer ou fazer nada. Eu só fiquei ali. Até que ela apareceu. Ela era exatamente como eu
me lembrava, talvez um pouco mais fofinha. Será que essas lágrimas que saem dos olhos dela
tem o mesmo significado das que saem dos meus olhos?
Ela veio se aproximando e logo atrás vinha um homem, parecia meu pai, mais velho. Eita, eu
também tenho a cara dele. Deve ser meu avô.
— Sara?
— Oi, vó.
— Estamos tão felizes de ter você aqui com a gente. Podemos te dar um abraço?
— Sim.
Era bom. Apertado. Não gosto de abraços frouxos.
— Onde estão seus pais? — meu avô perguntou.
— Meu pai tá tentando convencer minha mãe que ele não se esqueceu de propósito de avisar
que era aniversário de casamento de vocês. Mas eu tô com muita fome e resolvi entrar.
Todos riram.
— Vamos comigo, temos bruschettas, você gosta? Sua vó vai lá buscar aqueles dois — meu
avô falou me estendendo a mão.— Ok.
Seguimos e meu avô me dizia o nome das pessoas. Inclusive do menino que me denunciou:
Pedro, filho do meu tio Gustavo, irmão do meu pai.

— Vocês não querem continuar essa discussão depois do almoço?


Minha mãe estava parada na varanda de casa e nos encarava de braços cruzados. Marcela
olhava para o chão. Ela estava pronta para me matar. Eu tinha o sorriso mais amarelo possível.
— Hugo, cadê a Sara? — Marcela falou, olhando ao redor.
Eu olhei a minha volta e nada também. O olhar de Marcela era de pânico.
— Sara está aqui. Disse que estava com fome.
Eu tive que rir enquanto Marcela estava um pouco mais relaxada, mas ainda não tinha olhado
para minha mãe. Eu estendi minha mão para entrarmos juntos, oferecer algum apoio já que ela
estava tão nervosa, mas ganhei um tapa na mão. Ingrata.
Ela seguiu na minha frente, passou pela minha mãe e a cumprimentou com um beijo e um abraço
apertado. Eu, antes de ganhar um abraço, ganhei vários tapas. Ingratas. Todas umas ingratas.
Adentramos o jardim e Sara conversava animadamente com os primos. Cumprimentamos todos
e por fim o almoço foi servido. Sara estava na mesa das crianças e fez uma cara meio emburrada
por conta disso, mas que se dissipou apenas com um olhar de Marcela. Para nós reservaram
lugares lado a lado obviamente.
Nos comportamos bem, eu e Marcela, enquanto conversávamos sobre amenidades com os
demais a mesa e observávamos Sara de longe. Dois bobos observando a cria. E ficaríamos assim
se a minha mãe não tivesse me chamado.

Eu estava tranquila ao lado de Hugo, observando Sara brincar com os primos. Ela, que
normalmente se acha adulta demais para estar com as crianças, estava bem entrosada.
Maria Lúcia chamou o filho e eu sabia que minha hora estava chegando. Ela me chamou e eu
gelei. Hugo me levou até seu ateliê. Pediu que eu ficasse tranquila. Eu já tinha estado lá antes.
Ela fazia pinturas lindas.
— Hugo pediu que eu pegasse leve com você. Até parece que eu ia te dar uma surra quando
quem causou isso tudo foi ele.
— Você nunca contou para o Hugo que eu estive aqui. — Eu ainda não estava pronta para
encará-la.
— Você me pediu que não contasse. Mesmo sabendo que você estava grávida mantive minha
palavra.
— Você sabia? — Eu a fitei.
— Nem toda dor e sofrimento pelo que passava foi capaz de apagar o brilho de uma grávida.
Gostaria que tivesse me contado.
— Não fazia sentido contar. Eu estava tão confusa, eu não sabia o que faria com ela.
— Por isso mesmo eu gostaria que tivesse me contado. Eu fiquei tão preocupada com você.
Você não precisava ter passado por tudo sozinha. Você poderia ter usado meu colo de mãe.
— Eu quis minha mãe tantas vezes. — Já não conseguíamos controlar as lágrimas. — Mas eu
não queria que isso fosse um peso para mais ninguém.
— Hugo me contou que foi muito difícil.
— Foi, mas passou. Sara é incrível e fez e faz tudo valer a pena.
— Tenho certeza que sim. Quando ele me ligou dizendo que tinha te encontrado fiquei bastante
apreensiva. Não sabia o que tinha acontecido. Ele te procurou tanto.
— Eu sei. Sempre soube. Foi muito difícil me manter longe dele todo esse tempo.
— Eu apoio sua decisão enquanto mãe e enquanto mulher. Mas preciso dizer o que se sente e o
que a quilômetros de distância qualquer um pode perceber: vocês foram feitos um para o outro. E
se amam demais. Quarenta anos com o João e acho que não chega aos pés desse amor de vocês.
Parece o mesmo amor daquele Natal.
— Eu não consigo. Eu o perdoei. Eu precisei. Porque ele me fazia odiar a Sara com aquela
cara de Coelhozinha. Mas eu não consigo esquecer. Eu achava que tinha esquecido. Mas ver o
Hugo todo dia é como se ele fosse um vinho. É o meu preferido, mas me dá uma ressaca que
parece que vai me matar. Não tenho mais idade para isso. Não posso mais tomar desse vinho.
— Há quem diga que um ótimo remédio para ressaca é manter-se bêbado. Vinho só fica melhor
com o tempo! — Ela piscou para mim.
— Não tenho como ficar bêbada se nem mesmo consigo pensar em me servir uma taça. Eu o
amo, mas não consigo. Seria injusto com ele. Seria injusto com a Sara.
Somos interrompidas por batidas na porta. Era a Renata, irmã de Hugo avisando sobre a hora
das fotos. Eu e Maria Lúcia nos entreolhamos com cara de choro e rimos. Fomos ao quarto dela
dar um jeito na maquiagem.
Saímos de dentro da casa e logo fui ao encontro de Sara e Hugo, que comia sorvete.
— Sara falou que não sabe como eu como esse sorvete cheio de açúcar. — Hugo fingia estar
indignado.
— Tem muito açúcar mesmo. Anos trabalhando nesse paladar. Felicidade em saber que você
não vai estragar tão facilmente. — Eu dei língua para Hugo.
— E aí, foi tudo bem?
— Si. Sua mãe é um amor.
— Ama mais você do que eu. Aposto que você não ganhou nenhuma bronca, já eu...
— Quem mandou ter sido um menino mau...
— Ela falou mal de mim?
— Nós só falamos a verdade. A verdade não te favorece. Não é nossa culpa...
— Hugo, Marcela e Sara! Vocês são os próximos na foto! — Alguém gritou.
— Não tem nada a ver eu sair nessa foto. Vai só você e a Sara.
— Ela vai fazer você passar vergonha, melhor ir logo.
— Foto de família, mãe. Colabora, vai. — Sara me repreendeu.
Na foto acabamos ficando um de cada lado o que me deixou mais confortável, Sara ficou à
frente de Maria Lúcia e João. Acabado o momento fotos, não sem antes rolar uma com toda a
família, da qual não consegui escapar, muito menos ficar longe de Hugo, logo cantamos o
parabéns.
— Há 44 anos eu dedico essa música à mulher da minha vida. Obrigada, Maria Lúcia, por
dividir esses maravilhosos momentos; por nossos filhos e por nossos netos.
Só de pensar na música um calafrio percorreu minha espinha. Pensei em me esconder, mas
Hugo me encontrou antes mesmo que eu pudesse me mover. A música iniciou e o casal de
aniversariantes dançava com todos em volta.
— Dança comigo? — Hugo estendeu a mão em minha direção.
Dez anos depois, o mesmo convite para dançar aquela mesma música que ele usou para se
declarar. Para me dizer que eu era sua menina e que me amava. Eu não ia conseguir fazer isso
novamente.
— Está usando drogas, Hugo?
— Mãe! — Sara chegou correndo até a gente — A música que você sempre canta para mim.
Por que você não dança com meu pai? — Essa garota me põe em cada uma.
— Por que você não dança com seu pai? Ele quer dançar.
— Me concederia uma dança, mademoiselle? — Hugo fez uma referência espalhafatosa que fez
Sara gargalhar.
— Oui, Monsieur — Sara respondeu.
Foram para pista de dança e eu peguei pela primeira vez meu celular. Muitas notificações. O
que tinha se tornado normal desde que todos ficaram sabendo que eu e Hugo já tínhamos nos
envolvido; ignorei, pois queria registrar o momento. Não consegui gravar muito, minha bateria
acabou. Apenas fiquei observando.
Sara e Hugo vieram até mim e me arrastaram para a pista. Sara no colo de Hugo e eu
abraçando Sara.
Dançamos os três juntos até o final da música. E assim que nos separamos eu pude limpar
algumas teimosas lágrimas que escaparam.
— Hugo, precisamos ir. Está ficando tarde.
— Sim, vamos nos despedir e já vamos.
Assenti com a cabeça. Nos despedimos de todos e seguimos de mãos dadas um de cada lado de
Sara pelo corredor da garagem.
Chegando ao final do corredor fomos recebidos por uma gritaria e uma chuva de flashes.
CAPÍTULO 26

— Mas como foi que esse mundo de gente veio parar aqui? E esses jornalistas?
— Hugo, você pode não gritar, por favor. Não faz mais diferença. Você tem bateria?
— Desculpa. Estou sem também.
— Ótimo. Bom, a gente vai ter que sair. Em algum momento.
— Cadê a Sara?
— Está com a sua mãe.
— Ela percebeu?
— Ela não é idiota. Você a pegou e saiu correndo.
— E o que eu deveria ter feito?
— Calma, você não fez nada de errado. Ela vai ficar bem. Só ficou um pouco nervosa. Um
pouco de meditação e fica tudo bem.
— E se a gente for lá fora?
— Fazer o que lá fora? Uma coletiva?
— Não sei.
— Vamos analisar as opções: vamos lá e vão perguntar se estamos juntos; vamos negar porque
é a verdade; eles não vão acreditar. Até aí tudo bem, posso superar tudo isso. Toda a questão é a
Sara. Eles já viram a Sara. Lembra que eu te falei que temia o quanto isso se aproximava dela.
Chegou nela e não sei como ela vai lidar com isso tudo.
— Eu consigo.
— Mi amor, tudo bem?
— Sim.
— Filha, eu e sua mãe não queremos você envolvida nisso. Queremos preservar você.
— Acho que não deu muito certo, né?
— Algumas coisas saíram do controle.
— O controle é um delírio coletivo da humanidade, pai.
— O que você quer fazer Sara? — Marcela perguntou.
— Ir para casa. Agora.
— Isso significa passar pelos repórteres.
— Não inventaram o teletransporte ainda? — Sara revirou os olhos.
— Não me olha com essa cara de indignada, não, Marcela, esse deboche todo aí ela puxou de
você.
— Sem falar nada. Vocês com certeza piorariam tudo. Vocês precisam de uma assessoria de
imprensa.
Sara era a pessoa mais sensata entre os três. Dez anos incompletos e um poço de sensatez.
— Você acha que eles vão simplesmente abrir a espaço para gente passar? — Hugo questionou.
— Não. Vai chover em breve. Ninguém vai esperar vocês na chuva. Vocês não são tão famosos
assim. Tem uma cumulus nimbos há uns 3 km, chega em, no máximo, quinze minutos.
— Eu aposto que tem uma excelente explicação para você saber isso.
— Minha mãe me deu uma assinatura de cinco anos de um algoritmo de previsão do tempo no
ano passado. Eu tive que insistir bastante.
— Com certeza é o sonho de toda criança de nove anos. — Hugo comentou irônico.
— Aposto que você preferia que eu tivesse pedido uma boneca.
— Acho que é o que crianças normais da sua idade pedem. — ele concluiu.
— Claro. Crianças normais. — Ela se retirou da sala.
— Sara, desculpa filha, não foi o que eu quis dizer. — Hugo foi atrás dela.
— E o que queria dizer então? — ela o confrontou. Mas ele não tinha uma resposta para dar. —
Foi o que eu pensei.
Hugo olhava para mãe e para Marcela sem saber o que fazer.
— Ninguém vai me ajudar?
— Eu vou tomar um chá? Aceita, Marcela?
— Aceito.
— Vocês só podem estar de sacanagem.
Elas foram para cozinha e Coelho as seguiu.
— Marcela, por favor! Me diz o que fazer!
— Vocês dois vão precisar resolver isso sozinhos.
— Isso não é justo.
— Concordo. Tão injusto que o universo te presenteou com uma filha anormal.
— Não fala assim.
— Ficou incomodado? É mais difícil ouvir do que falar.
— Marcela, eu cometi um erro. Me ajuda a consertar.
— Você está no caminho certo. Não precisa da minha ajuda.
— Custa me ajudar? Você está sendo egoísta!
— Eu não tinha ninguém para me ajudar, Hugo. A Sara não veio com um manual de instruções
que eu estou escondendo de você. Você acha que eu não cometi erros? É só o que eu tenho feito
nos últimos dez anos. Essa é só a primeira vez que você decepciona sua filha, quer uma
medalha? Você foi estúpido. Ela está te testando e você caiu.
— Eu só vou piorar as coisas. Eu não queria ter falado aquilo.
— Óbvio que não! Mas falou, porque é o que você pensa. E está tudo bem. Ela não vai te amar
menos por isso. Dá um tempo para ela.
Passados alguns minutos realmente começou a chover. E boa parte das pessoas realmente foram
embora. Sobraram alguns poucos jornalistas.
— Não está muito tarde para ir? Está chovendo tanto. — Maria Lúcia demonstrava
preocupação.
— Eu realmente preciso ir. Sara, dê tchau a seus avós — Marcela falou.
— Vocês vão ao meu jantar de aniversário?
— Não perderíamos por nada! — Maria Lúcia falou, abraçando a neta.
Terminaram as despedidas e por conta da chuva e dos poucos jornalistas que ainda resistiam,
Hugo entrou com o carro na garagem para pegar Sara e Marcela.
A volta para casa foi sem conversa. Apenas a música tocando no fundo. Na parada em que
fizeram nenhuma palavra foi trocada entre Hugo e Sara. Marcela decidiu assumir o volante já
que sentia Hugo cansado, o qual tão logo teve oportunidade, tirou um cochilo.
— Hugo, chegamos. — Marcela cutucava Hugo na porta de casa.
— Que horas são?
— Duas e meia. — Marcela se preparava para pegar Sara adormecida no colo.
— Ei, deixa que eu pego.
— É o costume. — Deu de ombros.
Marcela abriu a porta para que ele entrasse e voltou para trancar o carro. Estava na cozinha
bebendo água quando Hugo apareceu.
— Eu já vou. Boa noite, Marcela — ele falou, encaminhando-se para porta.
— Fica. Está muito tarde, eu vou ficar preocupada.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Hugo, não precisa ficar assim! Ela ficou cinco anos sem falar comigo.
— Que animador!
— Você não sabe o quão frustrante foi esperar cinco anos por uma palavra e ela perguntar
quem era você.
Eles riram.
— Ela é apaixonada por você. Sempre foi. Ela falou que te amava. Sem te conhecer. Hugo,
essa garota ingrata só disse que me amava ano passado. — Ele riu — A sensação de que você
não faz nada certo é um sintoma normal de paternidade. Eu dei aquela merda de licença para o
tal algoritmo de previsão do tempo. Cinco anos de licença. Hugo, ela reclamou porque a licença
que eu comprei só serve para América do Sul. Ela queria ver a previsão do tempo do mundo
inteiro. Eu nunca faço nada certo. Está sempre faltando alguma coisa. Óbvio que poderia ser que
eu comprei a boneca com o vestido errado, mas aí não seria a Sara.
— Ela nem olhou na minha cara, você viu na hora que a gente saiu da minha mãe? Ela nem quis
me dar a mão.
— Eu preciso te lembrar que apesar de tudo na situação ela é a criança e você o adulto? Você é
pai dela.
— Eu vou conversar com ela amanhã.
— Bom, você já é de casa, se vira por aí, né? Vou para cama, estou morta.
Marcela se aproxima de Hugo para se despedir e ele a segura pela cintura.
— Não pense que eu esqueci da sua provocação ontem.
— Não sei do que você está falando.
— Do banheiro — ele sussurrou no ouvido de Marcela e depois mordeu seu lóbulo.
— Não faça isso, Hugo — Marcela já sentia seu coração acelerar e o corpo ficar mole.
— Isso, o quê? — Ele distribuía beijos pelo pescoço de Marcela.
— No me provoca, por favor — ela suplicou já com a respiração irregular.
— Está com medo de não aguentar? — falou enquanto passa o nariz pelo rosto de Marcela.
— Eu não posso. — A voz de Marcela já saía fraca.
— Não pode ou não quer? — Suas bocas estavam a milímetros.
Lábios roçando um no outro. Marcela acabou com a distância que não existia e inicialmente
deu apenas um selinho, mas ao sentir as mãos firmes de Hugo deslizarem de sua cintura para sua
bunda, soltou um leve gemido e deu a abertura que Hugo tanto esperava.
Era um beijo calmo e intenso. Sabor de saudade e desejo. Era incrível a sensação de apesar de
terem ficado tanto tempo separados, ainda assim parecer que foi ontem que estavam juntos. Os
braços de Marcela que antes pendiam ao lado de seu corpo agora se encontravam em torno do
pescoço de Hugo. A excitação dele já era evidente quando interromperam o beijo. As mãos de
Marcela estavam apoiadas sobre o peito de Hugo e os braços dele entrelaçados na cintura dela.
Testas coladas, olhos fechados, batimentos cardíacos sincronizados.
— Eu não posso. — Depositou um selinho nos lábios de Hugo, se desvencilhou de seus braços
e seguiu em direção a seu quarto. — Boa noite, Hugo.
Hugo permaneceu mais um tempo na cozinha refletindo sobre o que tinha acabado de acontecer.
Até pensou em ir embora, mas já passavam das três da madrugada e precisava conversar com
Sara no dia seguinte. Subiu as escadas e ao passar pelo quarto de Marcela percebeu as luzes
ainda acesas e a ouviu chorar baixinho, o que fez seu coração apertar. Sua vontade era de entrar
no quarto e consolá-la, mas desistiu ao considerar que ele era a provável causa do choro.
Continuou seu caminho até o quarto de hóspedes e tomou uma ducha fria. Depois se jogou na
cama, mas seus pensamentos não saiam do beijo. Ela quer, por que não pode?
CAPÍTULO 27

Estou na cozinha preparando uma omelete quando vejo Sara passando. Vai até o jardim, ao
escritório, ao quarto de Isabel, passa por mim e me ignora.
— Bom dia Sara, acho que não me viu aqui.
Ela sequer olhou para mim.
— Sara, você precisa comer para tomar seu remédio. Senta aí.
Ela se sentou com uma cara meio emburrada. Eu servi sua omelete e depois seu leite. Ela
comia em silêncio. Continuava sem olhar para mim. Coloquei a caixa de remédios sobre a mesa.
E me sentei. Ao terminar de comer ela pegou o remédio e ia se retirando da mesa.
— Você pode até não falar comigo, mas eu quero falar com você. Então, pode se sentar aí.
Aguardei para ver se ela iria me olhar, e ela olhou. O mesmo olhar da mãe dela. Aquele que
transpassa a alma.
— Eu quero pedir desculpas por ontem. Você tinha razão. Eu falei o que eu queria falar, era o
que eu sentia. Mas eu pensei, bastante, e você é uma criança normal.
— Não sou. Eu sei que eu não sou. Mas eu não preciso ouvir isso de você também.
— Você é uma criança normal. Sabe o que você não é? — Eu podia ver Sara pensando uma
enormidade de respostas. — Comum, você não é uma criança comum. — Ela agora parecia
refletir sobre minha resposta. — Normal e comum são coisas diferentes. Você é uma criança
normal, mas não é comum. Quer dizer, para mim é super comum, 100% das crianças de nove
anos, que são minhas filhas, querem licenças de algoritmo de previsão do tempo. — Ela riu.
— Qual é a amostragem?
— Está me testando, né? Fique a senhorita sabendo, que eu, por acaso, achei um livro, no
quarto de hóspedes: “Estatística para idiotas”. Eu espero que a mensagem seja para aprender
estática e não para me chamar de idiota. Já sei o que é amostragem, ok? A amostragem é um.
Bem normal e super comum. Você não vai se livrar de mim tão fácil assim, mocinha.
— Desculpa.
— Não fica mais sem falar comigo, ok? Foi horrível. Eu vou errar para caramba, mas eu te
amo demais. — Ele abriu os braços de forma convidativa.
— Eu também te amo pai — Sara falou e o abraçou, ele aproveitou e a encheu de beijos. —
Pai, eu não sou muito fã de beijos.
— Ok. E abraços?
— Só os fortes.
— Forte assim? — ele falou, espremendo Sara entre os braços enquanto ela gargalhava.
— Olha, Sara, da próxima vez que você ficar mais de doze horas sem falar comigo eu vou te
dar uma surra! — Marcela falou pegando a gente de surpresa. Ela nos observava de braços
cruzados.
— Chegou a ciumenta — comentei e Sara riu. — As Campanas não conseguem resistir ao meu
charme. — Eu pisquei para Marcela que me fuzilou com o olhar. Muito cedo para gracinhas.
— Sara, precisamos conversar sobre sua programação de aniversário.
— Não vou abrir mão de nada.
— Talvez flexibilizar?
— Mas, mãe... — Ela falou miando.
— Eu sei que é importante para você, mas é que as coisas estão meio agitadas, não sei se é um
bom momento para almoçarmos no Malagueta...
— E...
— Talvez tenhamos que adiar nossa ida ao Rio.
— Ah, não! Você combinou comigo.
— Eu sei, meu amor, mas não posso ir. Porém, está tudo planejado: na quinta, Ana e Guido vem
para o seu jantar e na sexta vocês iriam para um resort, o que acha? — Marcela falou.
— Então eu vou com meu pai.
— Filha, eu também não posso ir. Marcamos de ir depois.
— Que parte da história vocês estão enrolando para me contar?
— Conversamos com a Clara e uma assessoria de imprensa, como você sugeriu. A melhor
coisa a ser feita agora é nós não sermos vistos juntos — Hugo falou.
— E não queremos que você fique trancada aqui suas férias inteiras.
— Eu não quero ir.
— Mas você adora viajar com o Guido!
— Eu só pedi duas coisas no meu aniversário. — Sara tentava segurar as lágrimas.
— Eu sei, mi amor. Me desculpa.
— Nos desculpe, a culpa é nossa. Não sua.
— Cadê a Bel?
— Ela precisou de uns dias, mas volta para o seu aniversário.
Sara passou por nós com uma cara nada feliz.
— Viu, todo dia uma bola fora. — Ela riu.
— Marcela, não tem graça. Não tem nem dez minutos que ela voltou a falar comigo.
— Vai fazer o que para o almoço?
— A casa é sua e eu que vou fazer o almoço?
— A casa é da sua filha e ela precisa ser alimentada. Eu como as sobras.
— Vai lavar a louça depois?
— Ah, não. Eu cozinho e você lava a louça.
— Você cozinha com a Sara?
— O jantar, normalmente. Sempre antes do Bestchef. É uma rotina meio tranquila. Acordamos,
eu tomo café, a Sara no curte muito comer pela manhã, geralmente só o leite mesmo; depois
remédio e escola. Eu fico no Ruiz até umas seis horas da tarde e depois venho para casa. Ela é
meio ruim de rotina, eu tento mexer o mínimo possível, mas agora não vai ter jeito.
— Por que não?
— Porque eu espero que um dia você vá embora daqui.
— Nossa, me expulsando. Eu já estava pensando em me mudar.
— Imagina se eu vou deixar você ficar todo dia abalando meu juízo. Tenha dó.
— Não ia mexer na rotina da Sara.
— Hugo, você sabe que isso não vai dar certo. — Ela apontava para nós dois.
— Olha, eu nem iria falar nada.
— Mas acho que depois de ontem precisamos.
— Por que você tem tanta certeza de que não vai dar certo?
— Eu não tenho. E esse é o problema.
— Estou confuso.
— Qual o ponto de tentar algo que você tem certeza de que vai dar errado?
— Então você acha que pode dar certo?
— Acho que poderia dar se tentássemos, mas não vamos.
— Qual é, Marcela? Você quer e eu também. — Eu me aproximei.
— Mas não podemos. — Ela se afastou — Inclusive, respeite meu espaço físico, não posso
ficar ao alcance das suas mãos. Você é muito perigoso.
— Por que resistir? — Dou mais um passo em direção a ela.
— Porque eu não quero te odiar de novo. E é o que vai acontecer na primeira merda que você
fizer. Eu vou lembrar que eu te odeio. E não vou querer nunca mais olhar na sua cara. E não vou
poder simplesmente pegar a Sara e ir embora e também não vou deixá-la e ir sozinha.
— Você não acha que está pensando demais?
— Eu pensei tanto sobre isso nos últimos dez anos. Eu não posso fazer isso com a Sara, nós
não podemos fazer isso com ela.
— Por que você acha que eu vou fazer merda?
— Porque é normal. Relacionamentos são assim. Faz parte. Sério Hugo, nem mais um passo.
— Aí eu não posso chegar perto de você?
— Se você for me provocar, não. Eu não estou morta, nem sou de ferro.
— Ok. — Me afastei levantando as mãos em rendição.
— Então, voltando a rotina... — ela falou enquanto abria a massa — Sara falou que não vai
para sua casa enquanto não colocarem tela e você parar de fumar.
— A tela já está sendo colocada. Quanto ao cigarro, eu não fumo.
— Você com esse papinho antigo que não fuma. Não vou nem me meter nisso, você que resolva
com ela. Então, segunda e quarta a tarde ela tem mandarim. E claro que foi uma escolha dela.
Terça e quinta tem natação, ela odeia, mas não é negociável. Sexta tem terapia. Antes do
Bestchef, Isabel a pegava na escola e a almoçávamos no Ruiz. Agora ela almoça em casa e
estamos nos aborrecendo.
— Eu posso pegá-la na escola e levá-la para o Malagueta para almoçar, depois Isabel pode
buscá-la lá?
— Pode. Algumas coisas muito importantes: os remédios, tem anos que ela toma sozinha, mas
eu sempre confiro. É muito comum que pessoas com bipolaridade parem de tomar o remédio
porque estão ótimas; água, ela tem que beber água. Não água de coco. Se deixar ela fica o dia
todo sem beber nada além do leite. Parece um cacto. Já tivemos episódios de infecção urinária
até com internação; e por último, a pasta de dente. Ela vai te apresentar milhões de alternativas
para não usar pasta de dente, não aceite nenhuma.
— Remédio, água e pasta de dente. Ok.
— Depois te passo os contatos dos médicos e da Mari, a terapeuta.
— Ok.
— Quer ir lá em cima convencer a bonita a vir almoçar?
— Por que eu?
— Porque você além de novidade, é o preferido.
— Marcela...
— Hugo, eu estou acostumada a estar em segundo plano. Eu sei que ela me ama. Não tem
problema. De verdade.
Eu saí da cozinha e antes de ir ao quarto de Sara passei no jardim. Bati na porta e aguardei
resposta.
Nada. As Campanas são duras na queda.
Bato mais uma vez e nada. Abro a porta devagar.
— Ei, não combinamos que você não ia mais ficar sem falar comigo?
— Não tenho visão de raio x.
— Opa, vamos devagar aí com a grosseria. Tenho certeza de que sua mãe te deu mais educação
que isso.
— Oh, distinto senhor, a que devo a honra dessa visita em meus aposentos? — ela falou.
Deboche exalando pelos poros.
— Bom, se é assim que vamos fazer, desce para almoçar, agora.
— Eu não quero.
— Eu não perguntei. Anda, sua mãe está esperando.
Ela passou por mim bufando, com um bico de 5 km e saiu batendo o pé. Arranquei a flor do
jardim para nada.
— E não bate o pé que não estamos na aula de sapateado.

Acabou a lua-de-mel. A tromba que os dois tinham era enorme. Eu queria rir de tão iguais. Um
Coelho e uma Coelhozinha de burro amarrado. Todos meus esforços para melhorar aquele clima
foram em vão. Sara tão logo terminou o almoço pediu para se retirar. Hugo estava frustrado. Eu
tentava não rir, mas era tão fofinho.
Hugo precisou sair para conferir a colocação da tela e disse que depois passaria no Malagueta
“para dar uns gritos” como ele mesmo falou. Segui para o escritório para também trabalhar um
pouco.
— Meu pai foi embora? — Sara estava parada na porta e tinha lágrimas nos olhos.
— Ele foi trabalhar e ele também ia para casa...
— Ele não vai voltar? — Ela me interrompeu.
— Eu não sei, mi amor. Liga para ele.
Ela veio até mim e sentou no meu colo. Encontrou o número de Hugo na agenda e ligou.
Chamou.
Chamou.
Chamou.
Nada.
Caixa postal.
Sara chorava de soluçar.
— Calma, ele pode estar dirigindo, pode estar ocupado.
Mais alguns minutos e meu celular tocou.
— Pai? — ela soluçou.
— Oi, filha. Você está chorando? Está tudo bem?
— Você não disse tchau.
— Eu achei que você não queria falar comigo.
— Mas tem que dar oi, tchau, beijo, bom-dia, boa-noite. Não pode ser mal-educado, é contra
as regras.
— Poxa, Sara, me desculpa, ninguém me falou sobre essas regras.
— Você vem para casa?
— Não sei. Você quer eu vá?
— Sim.
— Então eu vou, ok?
— Ok.

Sara saiu do escritório já recuperada e eu segui no trabalho; mais tarde, quando fui nos fazer
um lanche, a encontrei sentada no chão em frente a porta.
Para o convite do lanche um sonoro não. Entendi. Coloquei um copo de suco e uma garrafa
d’água do lado dela. Ela não vai se levantar enquanto ele não chegar. Mando uma mensagem para
Hugo para saber que horas ele vem. Nada.
Seis e meia e nenhum sinal de Hugo. O convite para fazer o jantar comigo nem mesmo mereceu
resposta. Para jantar nem me dei ao trabalho de convidá-la. Liguei para Hugo, nada.
Às oito e meia, Sara começa a chorar. Eu consigo convencê-la a se juntar a mim no sofá.
Onze e meia e nada de Hugo. Eu vou partir ele ao meio. Sara pegou no sono. Decido ligar para
o Malagueta e fui informada que ele já saiu.

No Malagueta pegado no serviço nem vi o tempo passar, quando me dei conta já eram mais de
onze da noite. Puts. Esqueci completamente que agora tem gente me esperando em casa. Celular
descarregado. Mancada. Mais cedo troquei a moto pelo carro e peguei mais roupas. Segui para
casa de Marcela.
Ao parar o carro na garagem vejo Marcela fora de casa. A leitura corporal dela é: sentei na
graxa.
— A minha vontade é de mandar você voltar daí mesmo.
— Marcela, me desculpa! Eu nem vi o tempo passar.
— Hugo, você não tem que pedir desculpas para mim. É para Sara. Ela está te esperando desde
às duas e meia da tarde. Caramba! Ela te ligou chorando! Olha a hora que você chega! Ela é uma
criança! Não esqueça disso. Se vai demorar, liga.
— Minha bateria acabou. Eu me desliguei. Não estou querendo aliviar minha barra, mas eu não
tinha preocupação de hora para sair do Malagueta até menos de uma semana.
— Eu sei, mas não pode se repetir. Você tem uma filha, não pode ficar sem bateria, e se
acontecer uma emergência? Você também é responsável por ela. Eu preciso confiar em você para
isso. Eu preciso ter certeza de que ela pode contar com você. Que eu posso contar com você. —
Ela tinha lágrimas nos olhos.
— Me perdoa. Não vai se repetir. Ela pode contar comigo. Você pode contar comigo. — Eu
abraçava Marcela quando a porta da casa se abriu.
— Você esqueceu de mim. — Ela tinha os olhos cheios d’água. E meu coração estava apertado.
Eu de novo magoando minha filha.
— Eu não me esqueci de você. Mas eu me esqueci do tempo e que você estava me esperando.
Me desculpa? — eu falei agachado ficando na altura dos olhos dela.
— Não sei. Mãe, posso dormir com você hoje?
— Si. No está com fome? Quer leite? Toma um banho enquanto eu faço.
Eu a vi concordar com a cabeça e entrar em casa. Fiquei parado sem acreditar. Marcela passou
por mim e me deu um beijo na bochecha.
— Tome um banho também, vou falar com ela.
Como Marcela sugeriu, tomei um banho e chorei pensando em quantas vezes eu consegui
decepcionar Sara em tão pouco tempo. Ao terminar coloquei uma calça, e automaticamente fui
até o quarto de Sara para dar boa noite, mas estava vazio. Passando pelo quarto de Marcela, ouvi
a voz das duas e bati na porta.
— Pode entrar — Marcela respondeu.
— Eu queria dar um beijo de boa-noite na Sara, posso?
Sara concordou com a cabeça. A cama de Marcela era enorme, e Sara estava bem no meio. Me
sentei na cama, coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da orelha e depositei um beijo em sua
testa.
— Boa noite e bons sonhos. Boa noite, Marcela. — aguardei que Sara respondesse, mas
apenas Marcela respondeu.
Eu já estava fechando a porta do quarto quando ouvi finalmente Sara falar.
— Pai, você pode me colocar para dormir?
Eu mal conseguia conter minha empolgação. Marcela piscou para mim.
— Claro, vamos lá.
— Aqui, pai — falou, batendo no espaço vazio ao lado dela na cama — Eu vou dormir com a
minha mãe hoje.
A cara de susto de Marcela era impagável, certamente não esperava por isso. Fiquei
aguardando autorização e por fim ela deu de ombros. E então pude começar o exigente ritual de
sono de Sara.
CAPÍTULO 28

— Hugo? — Nada. — Hugo? — ele apenas resmunga. — Nós não tínhamos combinado de
manter distância? Não acho que acordar dormindo de conchinha com você e uma ereção enorme
colada na minha bunda seja a definição correta de distância.
Seu braço me envolvia pela cintura. Eu podia sentir a respiração tranquila dele na minha nuca.
Ele realmente está dormindo. Ao mesmo tempo em que preciso sair daqui eu quero ficar. Tento
sair, mas ele está deitado sobre as duas pontas do lençol. Excelente. Que horas devem ser? Cadê
a Sara que deveria estar no meio da gente? Cadê meu autocontrole? Por que estou ficando tão
molhada? Que tesão é esse?
Preciso dormir de novo. Mas me sinto pegando fogo. E se eu me virar? Aos poucos consigo e
fico cara a cara com Hugo. Analiso sua feição serena. Rugas que antes não residiam aqui. E
quando me dou conta estou passando a ponta do dedo em seu rosto, acariciando os novos
contornos feitos por linhas de expressão. Ele abriu os olhos. Eu tento fechar os meus. Em vão.
— Eu sei que você está acordada.
— Desculpa, não queria te acordar.
— Cadê a Sara?
— Também queria saber.
— O que você estava fazendo?
— Observando marquinhas que não existiam. — suspirei pesadamente e mordi meu lábio. —
Essa aqui — eu disse, passando o indicador levemente — Te deixou mais maduro, acabou com
sua cara de moleque. Isso aqui? Acho que você andou se aborrecendo muito. Essa cicatriz não
existia, caiu de skate?
— Fui separar uma briga. Atravessei uma porta de vidro. Cento e sessenta e sete pontos
espalhados por aí. Não dá para ver por causa das tatuagens, mas dá para sentir.
Ele pegou minha mão que estava em seu rosto e começou a descê-la pelo peito, abdome e
parou em uma grande cicatriz próxima de seu quadril. No caminho feito com minhas mãos pude
sentir vários pequenos relevos e pude sentir também meu juízo indo embora. Acho que ele
também podia sentir. Encostei nossos lábios e Hugo me puxou para mais perto apenas para que
eu aprofundasse o beijo. Separei nossos lábios e ficamos nos olhando o que parecia uma
eternidade.
— Estou aguardando seu movimento. Não quero que você se arrependa.
A ereção de Hugo pulsando contra minha barriga não me deixava pensar claramente.
— Não fala mais nada, só me fode, Hugo.
O sorriso de satisfação que ele deu fez correr um calafrio em minha espinha. No segundo
seguinte ele está sobre mim. Segura minhas mãos acima da minha cabeça enquanto ataca meu
pescoço, depois segue para meu colo. Sua mão livre massageia meu seio ainda coberto pelo fino
tecido. Ele desce as alças da camisola de forma que meus seios ficam desnudos. É o mesmo
olhar de fascínio e adoração de tantos anos atrás.
O toque de seus lábios em meu mamilo, de imediato me rouba o ar, e depois me faz gemer
baixinho. Eu o observo entrar debaixo do edredom. Minha ansiedade aumenta ao passo que ele
nada faz, mas posso sentir sua respiração quente em meu clitóris. Ele está tão perto.
— No me tortures, Hugo — eu suplico.
Ele passa a língua e pego um travesseiro para abafar meus gemidos pois eu já estava fora de
controle. Mantenho meus olhos fechados tentando me concentrar e controlar minhas reações
conforme ele, com habilidade, massageia meu clitóris e me chupa. Quando ele decide, além de
tudo, introduzir dois dedos em mim, não aguento e tenho um incrível orgasmo.
Quando retiro o travesseiro do rosto dou de cara com Sara parada na porta. Cabelos
bagunçados, coçando os olhos que não estavam abertos. Com o reflexo natural fecho as pernas
prendendo Hugo com o rosto no meu sexo.
— Oi, mi amor. Tudo bem? Foi dormir no seu quarto?
— Meu pai se mexe muito. — Lembro-me de que devo estar sufocando-o. — O que ele está
fazendo?
A esperança de que ela não desse falta dele ou reparasse seu sumiço por não estar totalmente
acordada, morreu quando ela notou o incomum volume sob o edredom. Ele me belisca e eu o
solto. Ele tira a cabeça debaixo do edredom.
— Cosquinha filha, estou fazendo cosquinha na sua mãe. Você é a próxima. É um campeonato,
para ver quem aguenta mais tempo sem rir. Sua mãe está ganhando. Vai se preparar.
Eu fico na dúvida se ela caiu na historinha de Hugo, mas ela sai do quarto sem contestar.
— Nunca na minha vida achei que fosse morrer sufocado por uma buceta. Quase me matou. —
Ele ria e depois me beijou.
Seu pênis pulsa sobre meu clitóris durante o beijo.
— Hugo, não sei se a Sara está convencida. Acho que ela estava pensando. Sara pensando é
sempre perigoso.
— Você quer que eu pare?
O pênis dele estava na portinha. Ponderei por alguns segundos e minha resposta veio em forma
de atitude quando o puxei para mais perto ao colocar minhas pernas em torno da sua cintura.
Aquele encaixe perfeito.
Suspirei quando ele começou a se movimentar de forma intensa com estocadas firmes e
ritmadas. Utilizávamos nossos beijos para abafar os gemidos. Eu gozaria de novo, já conseguia
sentir. Nos olhávamos. Analisando a alma um do outro. Gemidos baixos sendo gerados a todo
instante.
— Ai, Hugo! — Mais um orgasmo.
— Minha mãe não sente cosquinha. — Lá estava Sara de novo na porta.
— Marcela! — Hugo gritou meu nome. Ele gozou? E ficou em silêncio. — Eu não acredito!
Você está desclassificada! Sara é a campeã.
— Eu não acredito, Hugo! — Eu estava incrédula. Sara olhou para nós dois e saiu do quarto
novamente. — Eu não acredito que você gozou — eu falei sussurrando enquanto estapeava seu
braço.
— Marcela, eu tomei um susto com a Sara!
— Eu não disse que você ia fazer merda em algum momento? Não esperava tão cedo — disse,
já indo para o banheiro.
— Ei, desculpa. Não é o fim do mundo. Da próxima vez a gente tranca a porta. — Ele veio
atrás.
— Não vai ter próxima vez, Hugo, você não tá entendendo, eu não uso nenhum método
contraceptivo a não ser camisinha.
— Não usamos camisinha.
— Sério, gênio?
— Ei, calma, cara. — Ele tenta me abraçar. Mas eu me afasto. — Não pode ser tão ruim assim.
— Calma, cara? Não pode ser tão ruim assim? O que você sabe da minha vida? Some da minha
frente, Hugo!

— Mas que família linda! — Clara falou quando os três entraram atrasados na sala de reunião,
onde Carvalheiro, Fragalli e algumas pessoas da produção já esperavam.
— Bom dia, Clarinha! — Hugo cumprimentou empolgado.
— Bom dia. — Curto e grosso de Marcela.
— Oi, Clara.
— Tudo bem aí, gente? — Clara perguntou, apontando disfarçadamente para Marcela. Hugo
deu ombros.
— Tudo ótimo! — Marcela comentou, irônica. Sentando-se à mesa.
— Meu pai estava fazendo cosquinha na minha mãe, mas acho que minha mãe acabou se
machucando. Foi desclassificada. E aí ficou chateada.
— Quê? — Clara respondeu. Hugo segurava o riso enquanto Marcela parecia estar em choque.
— Então, meu pai estava fazendo cosquinha na minha mãe quando eu entrei no quarto, ela
estava fazendo caras e bocas para não rir. Aí, eu saí do quarto para não atrapalhar a brincadeira.
Mas depois acho que meu pai pegou pesado, minha mãe ficava falando “ai”, mas ele não parou.
Aí teve uma hora que minha mãe gritou bem alto “Ai, Hugo!”, aí eu me lembrei que minha mãe
não sente cosquinha, então fui avisar para o meu pai que não tinha como ele ganhar a brincadeira.
Aí eles brigaram.
— Realmente... — Foi só o que Clara conseguiu comentar enquanto os outros alternavam entre
choque ou risos contidos.
Marcela escondia o rosto com as mãos.
— Chega, Sara — Marcela gritou enquanto batia com a mão na mesa.
— Ok, filha, todo mundo já entendeu. Obrigado pela excelente explicação — Coelho falou.
Marcela estava possessa e Sara tinha os olhos arregalados, assim como todos a sua volta. Ela
se levantou e saiu da sala. Ninguém ousou quebrar o silêncio que se instaurou.
Ela voltou e apontou para Hugo e Sara.
— Vocês dois, comigo.
Eles saíram da sala e seguiram Marcela até o camarim.
— Você — Ela apontou para Sara — sente aí e não se mova até eu falar que pode e eu não
quero ouvir sua voz, nem seu pensamento. — Sara tinha lágrimas nos olhos. — E não adianta
chorar.
— Ei?! Marcela?! O que tá acontecendo aqui? — Hugo interveio — A gente pode falar ali fora
rapidão — ele falou, já levando-a lá para fora.
— Que foi, Hugo?
— Eu é que te pergunto o que foi? Está descontrolada, até tremendo. Por que você está gritando
assim com a Sara? Ela é criança, não esquece. É a nossa filha. Você não a trata assim. Você não é
assim.
— Isso é culpa sua. — Ela deixou algumas lágrimas escaparem. Tentou se afastar de Hugo, mas
ele a segurou.
— Então grita comigo, não com ela. Você não pode colocar a culpa, que eu nem sei do que é,
em mim e ir embora. Vamos conversar.
— Não quero. Me solta.
Ele a soltou e a observou sumir pelo longo corredor. Voltando para o camarim encontrou Sara
abraçada as próprias pernas, encolhida num canto, chorando bem baixinho.
— Oh, filha, vem aqui — ele falou, pegando-a no colo. — Vai ficar tudo bem. — Fazia carinho
nos cabelos de Sara. — Sua mãe está chateada comigo, não com você. Você não fez nada.
Batidas na porta.
— Oi, Clarinha.
— Oi, Carvalheiro cancelou a reunião. É para você ficar com a Sara.
— Cadê a Marcela?
— Ela precisou sair. Disse que encontra vocês em casa mais tarde.
— Hum. Ok. Sara, o que você acha de ir ao Malagueta comigo?

Ela apenas concordou com a cabeça, com zero animação. Já no Malagueta, chegamos enquanto
rolava a mise en place; antes passamos na livraria e comparamos um livro para Sara. Mostrei
todo o restaurante e a apresentei para todo mundo. Ela até que se animou um pouco, mas na hora
do serviço preferiu ficar no escritório. Passei lá a cada cinco minutos até ela dizer que estava
atrapalhando a leitura dela. No final do serviço tentei falar com Marcela, sem sucesso. Sara não
queria ir para casa. Já ofereci quinze mil tipos de programação. No início ela até respondia não,
depois só negava com a cabeça sem tirar os olhos do livro.
— Você quer aprender a andar de skate? — Ela finalmente olhou para mim.
— Acho que seria imprudente sem equipamento de proteção.
— Nós podemos providenciar, se você quiser, é claro.
Ela parecia pensar em alguma coisa. Agora eu entendia quando a Marcela disse ser possível
ver as engrenagens da cabeça de Sara se movendo.
— Que foi?
— Acho que não é uma boa ideia.
— Por quê?
— Eu acho que eu estou de castigo. Então não posso fazer nada divertido. — Tem como ela ser
mais fofa e responsável?
— Você não está de castigo.
— Tem certeza? — Eu queria rir.
— Sim.
— Então vamos.
No caminho tentei falar com Marcela de novo. Nada. Liguei para o Ruiz e ela não tinha
aparecido lá hoje. Onde ela se meteu?
— Por que a gente está fazendo isso na garagem do seu prédio?
— Estou tentando evitar que sejamos fotografados. Já andamos muito pela rua.
— Não podemos piorar a enxaqueca da minha mãe.
— Não mesmo.
— Onde ela está?
— Eu não sei.
— Ok.
— Ela está só tirando um tempo para pensar. Enquanto isso a gente se diverte.
— Sim!
Depois de muitos tombos e risadas ao longo das horas estávamos exaustos. Na minha casa nada
além de água, cerveja e manteiga na geladeira. Tenho uma filha, preciso ter comida em casa. Ligo
para o bar e peço para adiantarem alguns hambúrgueres para levarmos para casa. Chegamos em
casa com Sara dormindo. Já passava das dez da noite e fracasso em acordá-la. Ela estava
imunda, mas eu desisti do banho e a deixei do jeito que estava, na cama, apenas tirei seu all star,
depositei um beijo em sua testa e ia sair do quarto quando vi Marcela encostada na porta.
Ela seguiu até Sara, passou a mão por seu cabelo e seu rosto, depois depositou um beijo em sua
testa. Veio até mim, depositou um beijo em minha bochecha e foi embora. Por alguns instantes
fico parado, mas consigo alcançá-la antes de fechar a porta do quarto.
— Marcela, tudo bem?
— Si.
— Podemos conversar?
— Amanhã. Boa noite, Hugo.
CAPÍTULO 29

— Quer dizer então que você não sente cócegas?


— Nem me lembra disso.
— Ah, que isso, Marcela, foi super engraçado. Assim que vocês três saíram da sala todos
riram.
— Era uma reunião para tratar da complicada revelação da Sara e terminou com uma narração
lúdica da minha transa com o Hugo.
— Isso porque vocês não tinham nada.
— Não temos nada.
— Só uma filha e transas sem trancar a porta.
— Eu não planejei isso, Clara. E estou bastante arrependida se quer saber.
— Foi ruim?
— Meu sonho que tivesse sido. Pelo contrário, foi melhor do que me lembrava. Mesmo com a
participação especial da Sara. — Eu ri.
— Então qual o problema mulher?! Vocês realmente brigaram?
— Ele tomou um susto com a Sara e gozou.
— Não é o fim do mundo, ou é?
— Clara, eu não posso ficar grávida a essa altura do campeonato. Eu me cuido tanto, mas o
Hugo abala meu juízo. Eu tenho um estoque de camisinha e nem pensei nisso.
— Você tomou pílula do dia seguinte?
— Eu não posso tomar, me faz muito, muito mal.
— Então Sara vai ganhar um irmãozinho?
— Bom, eu não estou no meu período fértil. Estou me agarrando a esse fato.
— Mas passada essa crise, e vocês dois?
— Temos que manter uma distância segura. Eu conheço a Sara. Ela está com ciúmes. Eu não
posso fazer isso com ela.
— E tudo bem para você?
— Clara, foi ótimo. Maravilhoso. Mas eu posso transar com qualquer um. Sara é minha
prioridade sempre.
— Falando em Sara, o que eu compro para ela? É amanhã, né?
— Si. Amanhã. Não acredito que ela já está fazendo dez anos. Passou tão rápido. Ela era tão
pequena. Saudades dela pequenina.
— Pode ser que venha um baby por aí.
— Pelo amor de deus, Clara, nem brinca com isso. Hugo nem pode saber.
— Você não está pensando em esconder outra gravidez dele não, né?
— Eu não estou grávida. Mas só pela possibilidade Hugo vai desalinhar todos os meus
chacras. Já tivemos essa experiência e não foi nada boa.

NOVEMBRO DE 2004
Na minha moto ia o mais rápido possível. As lágrimas tiravam as coisas de foco.
— Marcela Campana, minha namorada, eu sou o contato de emergência, vocês me ligaram. —
Eu disparo afobado ao chegar ao balcão.
— Acalme-se rapaz, qual seu nome?
— Hugo Coelho.
— Ótimo, Hugo. No sexto andar aguarde na recepção do centro cirúrgico, tão logo seja
possível te chamarão, ok?
Pego o adesivo com meu nome de qualquer jeito corro até o elevador. Aperto o botão várias
vezes na esperança que fosse mais rápido. Desisto e subo as escadas desesperado.
1 hora.
2 horas.
3 horas.
Eu podia sentir o chão ficando mais fundo de tantas vezes que eu fiz o mesmo trajeto.
Sentei.
Levantei.
Fui correndo até a porta todas as vezes que ela se abriu.
Eu estava emocionalmente esgotado. Sentado novamente com cotovelos apoiados nas pernas e
o rosto enterrado nas mãos eu começava a chorar novamente.
— Acompanhante de Marcela Campana.
Eu me levantei, não consegui falar nada. A médica era jovem tinha e uma expressão séria, mas
agradável. Por favor, Deus, que esteja tudo bem com a Marcela.
— Tivemos algumas intercorrências por isso a cirurgia levou mais tempo que o esperado, mas
o resultado foi um sucesso. Ela teve muita sorte.
— O que houve?
— Ninguém veio falar com o senhor antes?
— Não. Cadê a Marcela? Está tudo bem com nosso bebê?
— Eu sinto muito. Gostaria de ter melhores confirmações para lhe fornecer agora. — Eu
começo a chorar — Vou buscar o prontuário com todas as informações e te levo para vê-la, ok?
Eu apenas concordei com a cabeça. Ela se retirou e voltou tempo depois com uma prancheta.
Caminhávamos enquanto ela me explicava:— Ela deu entrada hoje de manhã. Chegou lúcida,
com quadro de dor abdominal e febre muito alta. Solicitou sua chamada. Desmaiou na recepção.
Eu sinto muito, não foram encontrados batimentos na ultrassonografia. Uma tomografia foi
realizada e diagnosticada a apendicite. Ela foi encaminhada a cirurgia com urgência. No meio
tempo entre diagnóstico e cirurgia o apêndice rompeu. Por isso levamos mais tempo que o
esperado. Alguma dúvida?
— Eu posso entrar?
— Claro. Ela pode ficar sonolenta por mais algumas horas. Ela pode estar gelada também, é
efeito da anestesia.
Entrei no quarto e me aproximei da maca centralizada no quarto. Marcela estava extremamente
pálida, lábios quase sem cor. Sua feição era tranquila. Ajeitei seus cabelos com a mão e
depositei um beijo em sua testa. Ela estava gelada. Puxei uma cadeira, coloquei ao lado da cama.
Repousei minha cabeça a seu lado e coloquei a mão sobre meu rosto.
— Eu te amo.
— Eu também te amo.
— Como está se sentindo?
— Sono.
— Dorme, meu amor.

Eu abro meus olhos e imediatamente os fecho. Malditas luzes. Com olhos semiabertos tento me
localizar. Hospital. Hugo todo torto numa cadeira com a cabeça ao meu lado, ele segura minha
mão sobre seu rosto. Mexo meu polegar de leve e ele lentamente abre os olhos.
— Oi.
— Oi.
— Você me deu um baita susto.
— Desculpa.
— Não precisa se desculpar.
— Hugo.
— Sim.
— Eu não estou grávida. Eram sintomas de apendicite.
— Eu sei. Tudo bem.
Ele beijou minha mão e sorriu com um olhar triste. Ele estava muito triste. Ele, ao contrário de
mim que estava apavorada com a ideia de ter um filho agora, estava muito animado. Eu agora
aliviada e ele devastado.
Nem mesmo as ameaças de demissão fizeram Hugo sair do meu lado. Uma semana depois eu
voltava ao Sara. Sem liberação médica e com Hugo como cão de guarda atrás de mim. Me sentia
a própria Rapunzel presa no meu escritório. Era isso ou a mãe do Hugo vinha cuidar de mim.
— Hugo, pode vir aqui?
— Oh, Rapunzel, jogue suas tranças.
Gracinhas em meio a mise en place. Especialidade de Hugo. Todos riem, inclusive eu, mas não
sem antes revirar os olhos. Estamos assumidíssimos no Sara.
— Chegou isso para você.
Entreguei a ele um envelope dourado. O nome dele estava escrito em prateado.
”Réveillon, 2005 — Morro da Urca — RJ. Convidamos o senhor Hugo Coelho a acompanhar a
Chef Marcela Campana, como subchefe em nossa festa.”
— Que legal, mano! Não falei que a gente ainda voltava para o Rio.
Ele se aproximou de mim e deu início a um beijo alegre. Minhas mãos que antes estavam em
sua nuca, agora passeavam por dentro de seu dólmã. O beijo esquenta e ele se afasta.
— Hugo! Por favor! Eu não aguento mais.
— Marcela, o médico não liberou. Se comporta vai...
— Mas que saco!
— Só mais cinco dias.
— Foi o que você falou da outra vez. Já faz mais de um mês. Trinta e três dias.
— Eu sei que você está contando.
— Eu vou para Argentina.
— Vamos perguntar para o médico sobre isso.
— Te odeio.
— Eu te amo mesmo assim.
— Hugo, eu já sou quase virgem de novo.
Ele gargalhou.
— Duvido.
— Está me chamando de larga?
— Ah, não vou cair na sua, não. Eu não falei isso. Eu conheço essa armadilha de TPM. Não
vou cair. Não vamos brigar.
— Mas sexo de reconciliação é tão bom. — Eu tentava me aproximar, mas ele fugia de mim.
— Então brigamos em cinco dias para podermos fazer as pazes.

JULHO DE 2015
As gravações duraram o dia todo, foi super cansativo. Não via a hora de um banho quente e
relaxante.
Sara está me dando um merecido gelo e está só amores com Hugo. Talvez, mas só talvez, eu
esteja tomada de ciúmes.
Combinamos de conversar hoje à noite.
— Filha, toma um banho enquanto eu e sua mãe fazemos o jantar.
Acompanhei Sara subir as escadas, e desaparecer da minha vista, e suspirei. Quase 24h sem
falar comigo.
— Eu vou falar com ela. Ela vai falar com você.
— Eu sei. Que horas seus pais chegam?
— Eles devem chegar um pouco depois do almoço.
— Eles ficarão na sua casa?
— Acho que hotel.
— Eles podem ficar aqui. Se quiserem.
— Onde, Marcela?
— No quarto de hóspedes.
— E eu fico com você? — Ele riu.
— Hugo, eu falei sério.
— É agora o momento em que a gente conversa?
— Fala, Hugo.
— Você que tem que me dizer o que aconteceu ontem.
— Qual parte, né. A que eu perdi o juízo e transei com você ou a que você achou que enganou a
Sara ou a que a Sara manipulou você?
— Que bom que você perdeu o juízo mas já achou né? Fala sério, Marcela, não pode ter sido
tão ruim assim.
— Eu falei que foi ruim? Se a sua preocupação era sua performance na cama, pode ficar
tranquilo, sua dignidade está mantida.
— Marcela, eu já pedi desculpas. Não era minha intenção gozar naquela hora.
— Merdas cagadas não voltam ao cu.
— E?!
— E o que?
— Você disse que só usa camisinha, mas a gente não usou. Quero saber o que você fez. Porque
ontem você surtou e hoje está de boa.
— Não é da sua conta.
— Meu filho, minha conta.
— Não vai ter filho, Hugo. Pode esquecer. Pode tirar esse sorrisinho da cara.
— Aposto que a Sara ia adorar um irmãozinho.
— Fica à vontade em dar um para ela. Com outra mulher. Ou adota. Porque comigo você não
vai ter filho nenhum.
— Por que toda essa aversão a ter um filho comigo? A Sara é incrível.
— As decisões da minha vida não giram em torno de você. Eu não quero ter filho. Eu nunca
quis ter filho. E no fundo eu acho que você sempre soube disso. Eu não quero ficar grávida, nem
de você nem de ninguém. Eu fui o suficientemente clara ou preciso desenhar para você entender
que eu não vou ter filho nenhum?
Ele me olhava assustado. Aposto que para quem ouviu, eu sou a própria bruxa.
— Hugo, eu amo a Sara. Ela é minha vida, mas eu não a planejei. Ela jamais aconteceria de
forma planejada e ela sabe disso. Não existem segredos entre a gente.
— Nem todas as coisas precisam ser ditas.
— Hugo, eu não consigo pensar em uma situação em que a Sara não seja a pessoa mais
inteligente. Para ela todas as coisas precisam ser ditas. Você nunca mais tente enganá-la. Ela é
mais inteligente que você. Que todos nós. Todo mundo achou fofo e engraçada a narração lúdica
da nossa transa, todo mundo sendo manipulado por ela. Abre seu olho, essa garota vai jantar
você.
— Impossível, Marcela. Você está louca. Está dizendo que ela fez de propósito?
— Ela está com ciúmes.
— Eu acho que você que está.
— Ok. Só observa. Chama ela aqui para conversarmos nós três.

Ele está achando que eu sou louca.


— Sara, seu pai estava fazendo cosquinha em mim?
— Não. Não precisava se dar ao trabalho de inventar uma historinha.
— Você sabia que era mentira, o tempo todo? — Ele estava incrédulo.
— Voltei só para ter certeza.
— Então você falou aquilo tudo na emissora de propósito?
— Sim. Você mentiu para mim.
— E você mentiu para mim também.
— Não. Só manipulei. Eu não minto. Eu usei as suas palavras. Quem mentiu foi você.
— Você me manipulou para te tirar do castigo também.
— Ora, ora parece que temos um Sherlock Holmes aqui — ela ironizou.
— Sara, chega. Pode subir, quero você aqui em meia hora para o jantar. Bom, eu devia ter
apostado dinheiro com você, Hugo.
— Por que você deixou chegar a esse ponto?
— Você pode ser mais claro?
— Você sabia que ela estava me manipulando e deixou.
— Eu contei que ela tinha te manipulado e você não acreditou. Mas calma, ela faz de propósito
mas não tem noção das proporções e consequências. O que você precisa é não fornecer material.
Se você não tentar enganá-la, ela não te manipula.
— Eu a tirei do castigo.
— Eu deixei uma brecha para ela usar. Seja claro: “ Você está de castigo”. Não dê brechas, ela
é especialista em usá-las.
— E quais são os possíveis castigos?
— Depende, nem todas as manipulações são gravíssimas. O que eu tinha te dito sobre beber
água e usar pasta de dente são as manipulações mais frequentes. Se eu falar para ela beber água e
tiver água de coco na geladeira, ela vai manipular dizendo que eu não especifiquei. E a punição
nesse caso é só beber a água mesmo.
— Marcela, como eu vou saber? Me parecia normal. Nada demais.
— Parecia normal. Se parece normal, não é a Sara. Provavelmente foi a primeira vez que você
a achou normal. O nome disso é máscara social.
— E por que ela não usa o tempo todo?
— Porque cansa. Ela fica exausta. Na sua mãe, coitada, foi um sacrifício enorme parecer típica
tanto tempo. Ela dormiu praticamente o caminho todo, chegou em casa parecia que estava morta e
dormiu até tarde no dia seguinte. É muito cansativo parecer algo que não é.
— Por que você vai me contando as coisas aos poucos?
— Para você não desistir. Toda essa carga não caiu no meu colo de uma hora para outra. As
coisas foram acontecendo aos poucos. Fomos descobrindo aos poucos.
— O que ela tem, Marcela?
— É o que eu sou. O termo correto. Eu sou autista, pai.
CAPÍTULO 30

Talvez Marcela estivesse certa. Não sobre a parte de desistir. Não posso nem acreditar que ela
cogitou que eu pudesse fazer algo do tipo.
Mas era muita coisa.
Para processar. Para aprender. Para entender. Para perdoar.
Eu acho que estou vivendo nesse momento o auge da minha mágoa com a Marcela. Ela ao me
dizer que nunca quis ter filhos destruiu toda uma vida possível que eu tinha criado para a gente se
há dez anos tivéssemos feito escolhas diferentes.
Eu vivi os últimos anos da minha vida em espera. Esperava a chance de ser feliz ao lado dela.
Nenhuma mulher era boa o suficiente. Marcela elevou muito minhas expectativas. Ninguém era
ela. Os planos não faziam sentido se não fossem com ela.
Nossos restaurantes. Nossos discos. Nossos bichos. Nossos filhos. Nosso quintal. Nossa horta.
Nosso amor.
E agora ela me confirmou que eu sonhei sozinho. Eu queria me convencer que ela só não tinha
tido tempo de sonhar. Mas na verdade ela sonhou com outra coisa. Ou simplesmente não sonhou
com nada.
Enquanto eu sonhava, ela vivia parte da vida que eu sonhei. Com a nossa filha. Com outro cara
que eu nem sei quem foi. Com amigos que eu não sei quem são. Fazendo coisas que eu nunca fiz.
Passando por situações que eu nunca imaginei. Vivendo dores que eu não preciso viver porque
ela viveu e só me conta como foram. Recebendo pancadas que eu não vou sentir porque ela
amorteceu. Chorando lágrimas que eu não vou verter porque aquele momento já passou.
E eu estou puto. Porque nada disso volta. E ela me impediu de viver isso com elas. De sofrer
com elas. Rir com elas. Apenas estar com elas.
Eu me sinto matriculado num supletivo em outra língua. Estou atrasado com a matéria, não
entendo uma palavra do que elas falam, tem prova semana que vem e eu não faço ideia do que eu
estou fazendo.
— Hugo, se a Sara te ver com esse cigarro, ela surta.
— E eu estou fumando para não surtar.
Eu estava no jardim, em paz, mandando um pouco de nicotina para dentro e Marcela vem só de
camisola aqui fora. Está um frio do caralho e eu não consigo tirar os olhos dos peitos dela. Eu
não tenho um segundo de paz nessa casa. Que inferno! Meu pau chega a latejar.
— Eu sei o que vai te relaxar. Me espera no meu quarto. Sobe. Eu já vou.
Olho desconfiado para ela. Não é possível. Essa mulher é maluca. Fez um discurso, de novo,
dizendo que não ia transar comigo, e agora quer me relaxar no quarto dela. Puta que pariu. Me
diz como é que faz para não surtar.
No quarto não faço ideia do que fazer. Decido me deitar na cama e fico olhando meu celular.
Ela entra e tranca a porta. Vai no banheiro e mexe na gaveta. Aquela gaveta. A das camisinhas. É
hoje, Brasil! Me posiciono no meio da cama e fico aguardando por ela. Ao me ver ela fica
parada na porta.
— Eu amo que nada abala sua autoestima, Hugo. Sai da minha cama.
— Ué?
— Eu não vou transar com você. Achei que já tínhamos superado essa parte.
— E o que a gente vai fazer para relaxar no seu quarto? — eu falei, e sentei na cama.
Eu não posso acreditar no que tem em sua mão. Ela se senta na minha frente.
— Desde quando você é maconheira?
— Me respeita, Hugo. E fala baixo, Sara está dormindo. É medicinal.
— Sei.
— Tenho receita e tudo. — Nem fumou e já está rindo.
— Você está morrendo por acaso?
— Todo mundo está morrendo, uns mais rápido que outros.
— Você é muito ágil para uma usuária de maconha medicinal — falei enquanto ela bolava.
— Não te ensinei que para saber a resposta é só fazer a pergunta certa?
— Você já foi maconheira?
— Eu já fui adolescente. Das bem rebeldes e inconsequentes.
— Marcela! — Eu fingia espanto.
— Bobo. — Ela bateu no meu braço.
Ela terminou de apertar o baseado e eu presenciei a passada de língua no papel de seda mais
sexy da minha vida.
Fechou. Selou. Acendeu. Puxou. Segurou. Soltou. Passou.
E eu nem pisquei. Nem um segundo de paz. Quem é sexy assim usando maconha medicinal? Eu
sempre penso em pessoas moribundas, fim de vida. Dei meu trago.
— Por que você usa?
— Dores de cabeça exorbitantes. — Ela deu mais um trago. — Que tipo de doidão é você?
— Filósofo risonho. E você?
— A tarada sem filtro. — Engoli seco. Nem um segundo de paz.
— Onde você foi ontem?
— Ao hospital, tomar remédio. Depois na terapeuta da Sara. Fumei maconha, transei com meu
ex-namorado. Vocês demoraram tanto.
— Não sabia que você tinha namorado.
— Você não sabe muitas coisas. Mas é meu ex. Possivelmente atual. Indeterminado. — Ela
divagou sobre o assunto.
— Qual é o nome do seu ex?
— Hugo.
— Esse é o meu nome.
— Você não é meu ex?
— Foi comigo que você transou ontem?
— Não foi?
— Você não está tão doidona assim, cê loko! — Ela gargalhou.
— Leo.
— Por que vocês terminaram?
— Porque ele, que já tinha um pé atrás com você, surtou depois que viu o programa e sua cara
e a da Sara. Só ligou os pontos.
— Você não tinha falado sobre mim?
— Falei que a gente tinha tido um caso. Só não mencionei o fato que você é o pai dela, mas é
uma coisa que está literalmente na cara.
— E por que ele talvez seja seu atual?
— Porque eu falei para ele que apesar dos orgasmos maravilhosos eu não senti mais nada. Foi
só uma transa boa. Muito boa.
— Então você realmente não me ama?
— Não do jeito que você me ama. — Ela tinha um sorriso triste. Eu acho que ela não queria se
sentir assim. Mas não escolhemos o jeito que nos sentimos.
— E o que ele achou disso?
— Bom. Mas não entende por que eu não posso ficar transando com você.
— É um bom ponto. Ele é sensato.
— Eu não me dei ao trabalho de explicar para ele.
— Por que você quer voltar para ele?
— Porque eu preciso fazer alguma coisa com a crescente tensão sexual nessa casa. Eu não
aguento mais. Eu não estou dando conta sozinha.
— Me usa.
— Não faria isso.
— Mas você vai usar o Leo.
— Ele não me ama. Você sim. E temos a questão Sara, já conversamos mil vezes sobre isso.
Você precisa falar com a terapeuta dela, já que não me leva a sério.
— Eu levo.
— Sei. Hugo?
— Hum.
— Já sei qual o castigo da Sara. Acho que você não vai curtir.
— Por quê?
— Ela vai ficar fora de casa, dez dias.
— Temporada no reformatório?
— Ela vai fazer todo mundo acreditar que sim.
— Para onde ela vai?
— Acampamento de habilidades sociais. Ela odeia.
— Se você acha necessário. Eu vou ficar com saudades.
— Eu também. Hugo?
— Oi.
— Você já transou doidão?
— Isso é um convite?
— É uma recomendação. É muito bom. Já disse que não transo mais com você.
— Você tinha falado antes também.
— Mas agora é sério.
— Antes não era?
— Era. Sabe o que eu quero?
— Putz, não faço ideia.
— Eu quero uma rotina leve com você. Quero que você sinta que pode ficar o tempo que
quiser. Que é bem-vindo. Que a casa da sua filha também é sua. Quero que você passe o máximo
de tempo possível com a Sara. Que nós três possamos aproveitar momentos juntos. Que a gente
ria, chore, se zoe e brigue, porque também faz parte. Eu quero fazer isso com você. Quero criar
nossa filha com você. Quero que a gente fique à vontade na presença um do outro. Que a gente
possa deitar junto e acordar abraçado e que esteja tudo bem. Que a gente beba até cair e cuide da
ressaca um do outro. Quero que a gente conte um com o outro, não só quando se tratar da Sara.
Não quero clima chato. A gente se ama. A gente ama a Sara. Eu acho que a gente merece isso. A
Sara merece isso.
Me diz como faz para não amar essa mulher? Onde foi parar toda aquela mágoa?
— De acordo.
— Ufa. Agora, última coisa: eu preciso te pagar um boquete. Cara, você está há muito tempo
com essa ereção. Estou com medo do seu pau gangrenar.
Eu gargalhei! Não achei que ela estivesse falando sério. Mas quando dei por mim ela já estava
tirando minhas calças.
— Que isso, Marcela?! Você disse que não iríamos mais transar — eu falei, tentando segurar
minhas calças, mas ela estava determinada a tirá-la. Nenhum segundo de paz.
— Não seja careta, Hugo. Boquete não é transar. É só um favorzinho. — Ela já estava me
masturbando.
— Marcela, pelo amor de deus. Você vai se arrepender disso amanhã.
— Com certeza, mas ainda é hoje. Então cala a boquinha e aproveita.
Ela põe todo meu membro na boca e eu desisto de tentar resistir.
A boca dela desliza graciosamente pela minha glande. Ela alterna ritmo e pressão. Posso sentir
sua língua passear, seus dentes a me arranhar. Ela massageia meus testículos e sinto que não vou
aguentar por muito tempo.
— Marcela, eu estou quase... — Eu mal consigo formular uma frase.
Ela intensifica o ritmo e eu gozo na sua boca.
Engoliu. Arrotou. Riu.
— Prontinho. Agora sim você parece relaxado.
Ela se levantou, destrancou a porta, apagou a luz, deitou-se ao meu lado e repousou a cabeça
em meu peito
— Boa noite, Hugo.
— Boa noite, Marcela.
CAPÍTULO 31

JULHO DE 2005
— Eu agradeço de coração, eu te amo profundamente, mas aqui não é meu lugar.
— Marcela, não faz o menor sentido, não seja cabeça dura.
— Eu não sou a mulher que fica em casa. Não sou eu. Eu não aguento mais passar o dia todo te
esperando.
— O bebê vai nascer, tudo vai mudar. Você não vai se sentir sozinha.
— Eu não teria tanta certeza.
— Você não tirou essa ideia da cabeça? Já conversamos tanto sobre isso.
— Mas a decisão é minha. Eu vou voltar para o Brasil. Vou abrir outro restaurante.
— Marcela...
— Eu já assinei o contrato, já tenho um lugar em mente, é só o tempo das obras, o bebê nasce e
logo depois eu inauguro. Te mando o convite.
— Pensa melhor!
— Pensar é só o que eu faço durante as dezesseis horas em que eu fico trancada nesse
apartamento. Eu sinto muito.
— Você está indo agora?
— Si, meu voo é hoje. Para o Rio de Janeiro, preciso resolver algumas coisas lá antes de ir
para São Paulo.

JULHO DE 2015
— Buenos dias, mi amor.
Marcela falou enquanto retirava furiosos cachos negros do rosto de Sara.
— Bom dia, filha.
Hugo tinha um bolinho com uma vela nas mãos.
— Já é meu aniversário? — falou sem abrir os olhos.
— Si, dez anos.
— Já nasci?
— Ainda não.
— Então posso continuar dormindo.
— Que horas ela nasceu? Vai cair cera no bolo.
— Às oito e cinquenta e três. Eu falei para você não acender! Se você prestasse atenção no que
eu falo...
— Você podia ter me avisado que tinha um horário muito específico.
— Vocês podiam não brigar. A filha de vocês nasce em dois minutos. Comportem-se!
— Hugo, vem aqui fora dois minutinhos — Marcela disse, rebocando Hugo para fora do
quarto, fechando a porta quando saíram. — Por favor, hoje não é dia de contestar nada. É muito
importante para ela. Por favor.
Do lado de fora, eles ouvem Sara imitando um choro de bebê.
— Parece que a sua filha nasceu — Marcela comentou rindo antes de entrar no quarto — Feliz
compleaños, mi amor!
— Feliz aniversário, filha!
— Mãe, pai, eu tenho dez anos! — ela gritou enquanto pulava na cama.
— Si, diez años! Eu te amo tanto! Obrigada por ser tão incrível!
— Vai mãe, pode começar — disse, deitando-se novamente — Sem resumo. Meu pai não
conhece a história. Pai, deita aqui porque vai demorar.
— Eu estava voltando para o Brasil, para abrir o Ruiz. Você veio meio surtada no voo. Estava
bem irritada. Não me deixou dormir um segundo. Eu não podia ficar sentada que você acertava
minhas costelas. Os tripulantes estavam preocupadíssimos porque eu fiquei andando para lá e
para cá o tempo todo, só de meia já que eu estava tão inchada que podia explodir a qualquer
momento. Eu cheguei de madrugada e, apesar de ser julho, a noite estava muito quente. Era só o
Rio de Janeiro sendo Rio de Janeiro. Eu deixei as malas no hotel. E fui para praia. Para ver o sol
nascer. Minhas costas estavam me matando e eu achava que era cansaço do voo, muitas horas em
pé, barriga pesada... Eu me deitei na areia. Eu só queria descansar um pouco. Fechei meus olhos
e peguei no sono, mas acho que não durou cinco minutos. Porque eu acordei com muita dor. Eu só
pensava no quão irritante você era.
— Mãe!
— Eu tentei me levantar, mas não consegui. Eu estava sem celular, sem documentos. Toda
errada. E bom, o sol não tinha nascido. Só tinha eu na praia. Então, eu fui engatinhando para o
calçadão. Um casal que estava correndo me ajudou a voltar para o hotel. No hotel tinha um
médico. Ele me contou que você estava nascendo e eu ri, afinal, faltava muito ainda. E ele falou
que a senhorita não só estava nascendo, como estava com muita pressa. Na maternidade, tentei te
convencer a ficar de boa no forninho, mas foi só primeira vez que você ignorou o que eu disse.
Tudo dentro do padrão Sara de normalidade. Você não deixou nem a anestesia fazer efeito. Aí
você nasceu, muito, muito pequena. Muito, muito vermelha. Mas não chorou. E todo mundo ficou
nervoso, correndo para lá e para cá porque alguém teve tanta pressa em conhecer o mundo, mas
não sabia respirar.
— Não é para me criticar, é só para contar a história. Seja isenta. — Hugo riu.
— Sara, eu sou parte envolvida. A única testemunha. Só tem meu ponto de vista disponível.
Pronto. Acabou.
— Não, conta quando você foi me ver, quando você me segurou.
— Bom — Marcela suspirou, ela parecia desconfortável, a história mexia com ela. — Eu
estava muito cansada e acabei dormindo muito. Mas depois fui te ver.
— Depois que o Pipo te mostrou minha foto né? Eu tenho a foto. Quer ver, pai?
— Claro, filha!
Ela correu até o armário e o que ela procurava estava tão no fundo que ela quase desaparecia.
Voltou com um álbum nas mãos.
— Que da hora esses óculos aí! Maior estileira!
— Pode continuar, mãe!
— Por que você não conta, mi amor?
— Porque não é a tradição. Conta agora do dia em que você me pegou no colo.
— Você já tinha treze dias quando fui te ver; a enfermeira falou que tinha prescrito colo para
você. Você às vezes esquecia de respirar e isso deixava os médicos muito preocupados. Aí a
solução era colocar você no meu colo, coração em cima de coração, pele na pele. Eu tinha tanto,
mas tanto medo, você era tão pequena e molinha. Quando te colocaram no meu peito, seu coração
bateu junto com o meu. — Marcela tinha os olhos marejados.
— Olha pai, essa foto é desse dia.
— Coisa mais linda, vocês duas. — Hugo também tinha os olhos marejados.
— Não precisa chorar, gente. Eu estou bem — ela disse, acariciando o rosto dos dois.
— Eu sei, mi amor, eu sei, mas é que dói lembrar como você sofreu. Mas passou.
— Seu amor me fez ficar boa — Sara falou, limpando as lágrimas de Marcela.
Permaneceram na cama mais algum tempo vendo outras fotos de Sara bebê. Depois almoçaram
comida do Malagueta que Hugo pediu para entregarem e depois ficaram agarradinhos vendo
vídeos da infância de Sara, como ela aprendendo a andar, engatinhando no chão do Ruiz, fazendo
caretas para papinhas etc. Já no fim da tarde receberam os pais de Hugo.
— Vocês vieram! — Sara falou, correndo em direção aos avós que tinham acabado de entrar.
— Mas é claro! Eu já estava com saudades!
— Eu também, vó.
— Nós trouxemos um presente para você. Qual sua princesa favorita?
— Muito possivelmente Elizabeth I. Ela foi uma grande incentivadora das artes. O período
elisabetano produziu Shakespeare, por exemplo; eu amo Macbeth é uma de minhas obras
preferidas de literatura inglesa. Pipo me deu uma versão em inglês de capa dura em couro, que
eu simplesmente amo.
— Acho que sua avó está falando de princesas da Disney, mi amor — Marcela falou, juntando-
se a eles, com Coelho logo atrás.
— Marcela, muito obrigada por nos receber em sua casa! É muito gentil da sua parte.
— Imagina, é um prazer.
— Mesmo que para isso ela tenha me desalojado — Hugo comentou.
— Você mora há quinze minutos daqui, querido. Ou pode dormir com a Sara.
— Ou continuar dormindo com você, né mãe? — Sara falou em tom de reprovação, olhando
para Marcela. — Sabe, vó, eu não ligo muito para as princesas da Disney, de maneira geral, são
muito bobas e caem em papos muito duvidosos. Mas eu com certeza escolheria a Bela porque ela
gosta de ler e é minimamente sensata. Apesar que eu jamais me entregaria para salvar meu pai,
só se eu já tivesse acesso irrestrito a biblioteca.
— Você não me salvaria?! — Coelho se sentia ofendido.
— Pai, eu te amo. Mas não desperdiçaria toda minha capacidade cognitiva e com alta
expectativa de vida em um calabouço para salvar um fumante. Inclusive, vó e vô, vocês
poderiam pensar em sanções para coibir esse hábito asqueroso no filho de vocês.
— Que isso, mano, essa menina só me esculacha!
— Que coisa feia, Hugo! Vou te colocar de castigo! Alguma sugestão, Sara?
— Olha, quando eu estou de castigo não posso fazer coisas que eu gosto. Então acho que não
cozinhar, seria adequado. Mas só a partir de amanhã, porque eles estão fazendo o jantar.
— Sara, por que não mostra a casa para os seus avós? Temos que adiantar o jantar antes de
sair.
— Sair?
— Vamos buscar o Guido no aeroporto.
— Ah, Pipo e Ana não vêm?
— No. E por isso temos que chegar antes dele.
— Gente doida, deixar o filho de dez anos andar sozinho de avião — Hugo comentou.
— Não chama minha mãe de doida.
— Não, filha, estou falando dos pais do seu amigo.
— Eu ando sozinha de avião desde os cinco anos, logo, minha mãe é muito doida. — Sara deu
de ombros.
— É, Hugo, muito, mas muito doida mesmo. Cuidado comigo. — Marcela o fuzilou com o
olhar — Inclusive acho que você pode terminar o jantar sozinho.
— Marcela...
— Sara, vou só tomar um banho e a gente vai.
— Pai, você precisa aprender a pensar antes de falar. Mãe, o Leo vem hoje?
— Você quer que ele venha?
— Acho que sim. Depois a gente liga para ele.
Todos saíram e restaram apenas Hugo e Isabel.

— Isabel, o que a gente acha desse Leo?


— O senhor eu não sei, mas eu o acho um gato. Oh, homem bonito, seu Hugo, o senhor precisa
de ver.
— Não era a resposta que eu queria.
— Deve ser porque o senhor não está fazendo a pergunta certa.
— Vocês e essa história de pergunta certa.
— Alguma vez a pergunta certa gerou mal-entendidos?
— Estamos indo, me liguem se precisarem de alguma coisa.

O trajeto não era longo, mas o trânsito de São Paulo é um desafio a paciência de qualquer ser
humano.
— Mãe.
— Filha.
— Eu esqueci de ficar triste.
— Você não esqueceu. Não dá para esquecer. Você estava feliz. Está. Não teve tempo para
ficar triste.
— E se eu me esquecer dele?
— Por que você não lembraria?
— Você lembra da vovó e do vovô?
— Si.
— A saudade passa?
— Não. A gente aprende a viver com ela. A saudade aperta quando eu estou muito triste e
queria um abraço para me consolar, mas aperta também quando eu estou muito feliz e queria um
abraço para comemorar.
— E de doer, para?
— Às vezes dói mais, as vezes dói menos. Mas não acho que vá ser assim com ele. Foi
diferente. Ainda dói muito em você?
— Eu acho que eu parei de sentir. Será que não tem espaço para dois pais?
— Não deve ter espaço para dor. Você está tão feliz.
— Você sente falta dele?
— Quase todo dia.
— Eu também.
— Eu sei, mi amor. Eu sei. Não tem problema sentir falta de um e estar feliz com o outro. Os
dois entenderiam. Você merece ser feliz. Nunca deixe ninguém te convencer do contrário.
— Tá bom.
— Sabe, eu também esqueci. Porque voltei a ter alguém para ter orgulho de você comigo.
— Mãe, você também merece ser feliz. Nunca deixe ninguém te convencer do contrário. Nem
eu. Pode ser com o Leo, com meu pai ou com quem você quiser. Ou só comigo mesmo, eu
prefiro.
— Te amo, garota.
— Também te amo, mas não chama o Leo não.

A volta para casa foi animada como sempre é com a presença do Guido. Ele é a pessoa que
torna Sara mais criança e mais leve. Eles são primos, irmãos e melhores amigos. Só me aperta o
coração morarem longe um do outro.
Eu não tinha como ficar indo toda hora ao Rio levar Sara, então no dia do seu aniversário de
cinco anos, ela me falou sobre viajar como menor desacompanhado. Ela me perturbou. Muito.
Exatos trinta e sete dias repetindo a mesma frase. Gritando.
“EU QUERO IR SOZINHA PARA O RIO DE AVIÃO”.
Eu simplesmente desisti. Queria ver o Hugo passar por isso e não deixa-la ir sozinha!
O trânsito estava tão bosta que quando chegamos todos já haviam chegado.
— Amiga, essa coisa de jantar de aniversário é coisa para nossa faixa etária.
— Sara é quase da nossa faixa etária. Ela não queria festa, quando quis já não dava mais
tempo. Mas ela está de castigo, então...
— Hugo já deu uma reclamada sobre esse castigo. Dez dias, Marcela? Você não tem coração?
— Você acha que eu não vou sofrer? Mas ela precisa.
— Se você diz... Já que você vai estar sem filha, vamos sair!
— Depois que eu passar a tarde toda chorando e me sentindo uma péssima mãe.
— Você é excelente! Para de drama. Sara é incrível e eu sei que vive dizendo que ela é o
próprio Coelho, mas eu enxergo muito de você nela.
— Obrigada, amiga.
— Menos a cara de Coelhozinha. Essa forma aí que é tudo igual. Filha, pai e avô.
Elas riram e depois o jantar foi servido. Tudo seguiu com tranquilidade. Estávamos prontos
para cantar parabéns.
— Eu queria agradecer a presença de todos que vieram para comemorar o aniversário do meu
ex-bebê. Porque agora ela tem dez anos, é minha melhor amiga e meu maior orgulho. Quer falar
alguma coisa, Hugo?
Estavam os três posicionados atrás do bolo, com Sara no meio deles.
— Bom, é a primeira vez que eu falo como pai da Sara. E nossa, vocês já me viram chorar?
Essa menina acaba com a minha fama de mau. Ela desperta o que há de melhor em mim. Coisas
que eu nem sabia. Eu te amo, filha. É só o primeiro aniversário de muitos.
As pessoas secavam as lágrimas. Todos muito emocionados.
— Então, vamos cantar parabéns? — Marcela falou na tentativa de animar o clima.
— Não! Eu quero falar! — Sara exclamou, pegando Marcela de surpresa.
— Ai, desculpa.
— Eu queria dizer que eu estou muito feliz hoje. Eu sempre amei meu aniversário. Porque
nesse dia eu sou especial para todo mundo. As pessoas de perto, as pessoas de longe vem para
me ver. Nesse dia ninguém diz que eu sou esquisita, ou me olha estranho ou diz que eu não sou
normal. Há três anos eu perdi quem me fazia sentir a pessoa mais especial do mundo. Não só no
meu aniversário. Todo dia. Ele também amava aniversários, principalmente o meu. Foi dele que
eu herdei tradições de aniversário. Mas sem ele não fazia mais muito sentido. Minha mãe é um
máximo. Uma deusa. Uma rainha. Mas não era ele. Bel é minha cúmplice, mas não era ele. Estar
presente é muito mais importante do que um presente. Mas, eu gosto de ganhar presentes,
qualquer um, só pelo fato de vocês terem pensado em mim para comprar. Ele morreu uma semana
antes do meu aniversário. Ele já tinha comprado meu presente. E eu recebi o presente. Mas no
dia do meu aniversário ele não estava. Fazer oito anos foi horrível. Fazer nove anos foi pior
ainda. E eu estava preparada para ser muito ruim fazer dez anos. Mas eu ganhei um presente. Ou
melhor uns presentes. O presente é estar presente. Meu pai está presente. Meus avós estão
presentes. Novos amigos estão presentes. Velhos amigos estão presentes. Alguns ausentes. Então,
me parece que ter dez anos vai ser muito bom. E eu não sou muito boa lendo emoções então
espero que vocês não estejam chorando de tristeza.
— No, mi amor. É de felicidade. Estamos emocionados.
— Então agora podemos cantar parabéns.
Todos riram e cantaram parabéns. Comeram bolo e riram mais. Aos poucos foram indo embora.
Com tudo arrumado, Marcela estava jogada no sofá e tomava vinho direto da garrafa.
— Quanta classe! — Hugo falou, jogando-se ao lado dela.
— Todas as taças foram lavadas. Não quero fazer mais nada. — Ele estendeu a mão e ela
passou a garrafa.
— Justíssimo.
— Tudo certo com as crianças?
— As crianças já estão na cama. Estão vendo um tal de Sinfonia da Natureza, meio hipnótico,
não?
— Muito! Quando a Sara está vendo eu evito ficar olhando, acabo esquecendo da vida.
— Obrigado — ele disse, pegando a mão de Marcela levando à boca e depositando um beijo.
— Pelo que?
— Por me dar uma filha tão incrível. Nem nos meus melhores sonhos ela era tão maravilhosa.
— Então também preciso te agradecer. Ela é um presente na minha vida que eu só tenho por
causa de você. Vou dormir, você vem?
— No seu quarto?
— Conversamos sobre isso ontem. Somos adultos. Sabemos nos comportar, certo?
— Aí depende. Se eu vou dormir com a Marcela ou com a tarada sem filtro.
— Cazzo! Eu bem que merecia, estou acabada, mas com duas crianças e seus pais em casa,
nenhuma chance.
— Melhor mesmo.
— Vamos porque o drama amanhã vai ser duro.
CAPÍTULO 32

— E aí amiga, como foi?


— Foi ótimo. Minha filha me odeia, o Hugo está com raiva de mim porque fiz a Sara odiá-lo,
meus sogros acham que eu não tenho coração. Isabel está me olhando atravessado porque eu fui
malvada com a Sarinha. Tudo perfeito.
— Nossa! Seus sogros?! Interessante!
— Eu falei isso? Não falei avós da Sara ou pais do Hugo? Eu sempre fico confusa em como
chamá-los. Eu estou mentalmente exausta. Faltou falar que o padrinho da Sara me chamou de
bruxa.
— Poderia ser pior, tipo se a patrulha da mãe perfeita da internet soubesse.
— Agora parece que meio que esqueceram da gente.
— Você não esqueceu que vamos sair hoje, né?
— Clara, estou exausta. Acabei de chegar no Ruiz, mais de uma semana que eu nem piso aqui.
Está um caos. Estou morta. Acho que vou furar com vocês.
— Não vai mesmo, pode se animar.
— Eu vou pensar, eu e Hugo temos uma ligação de vídeo às 19h com a Sara. Dependendo de
como for, eu vejo se tenho ânimo para isso. Mas estou tendendo a ficar em casa.
— Vai ficar em casa sozinha, Marcela? Que deprimente.
— No disse que ia ficar sozinha.
— Se você for se acertar com o Hugo eu te libero.
— Eu e Hugo já nos acertamos. Somos amigos, melhores amigos, pais da Sara, colegas de
trabalho e só.
— Vai ficar com quem então, posso saber?
— Com o Leo.
— Quem é Leo?
— Meu namorado, teoricamente.
— Você inventou um namorado para afastar o Coelho?
— Clara, eu não tenho treze anos para ter namorado imaginário.
— Eu vou aí e você vai me contar essa história direitinho. Como é que você tem um namorado
e não me conta nada, Marcela?
— Clara, eu estou ocupada.
— Se vira. E eu quero comer polvo no almoço. Chego em meia hora. Tchau.
Marcela sonhava com o serviço, mas não conseguiria escapar. Adiantou algumas burocracias,
pediu para adiantarem o prato de Clara, escolheu um vinho porque acreditou merecer e precisar.
Pontualmente ela entrou como um furacão no escritório.
— Para quê esse Leo? Qual a necessidade disso?
— Nossa, parece que eu estou falando com a Sara. Oi, tudo bem?
— Tudo bem. Qual é a desse cara?
— Que isso, Clara? — Marcela riu da amiga.
— Anda, Marcela, não enrola! De onde você conhece esse cara?
— Da escola da Sara.
— Pai de aluno? Professor?
— Não.
— Você agora é pedófila?
— Clara! Ele não é aluno! É irmão de uma aluna — ela falou, encarando as mãos.
— Quantos anos ele tem, Marcela?
— Eu acho que 23 ou 26, não lembro ao certo. Eu evito pensar nisso.
— Quem diria que você se interessa por novinhos?! Me conta como foi isso!
— Ah, nos encontramos algumas vezes na escola por conta de comemorações etc. Ele é super
educado e sempre me cumprimentava. Um dia ele me chamou para jantar e eu fui.
— Tem quanto tempo isso?
— Pouco mais de um ano.
— Marcela, você nunca falou desse cara.
— Eu sou discreta. Nós somos. Não planejamos isso e eu fui bastante relutante em assumir essa
relação. Qualquer uma. Eu não sou criança, quase quarenta anos e sou viúva, trabalho para
cacete e tenho uma filha que me dá muito trabalho. Eu não me importo sobre o que falam sobre
mim, só me importo em como isso afeta Sara. E estávamos muito bem, obrigada, namorando em
casa e vendo filmes cult, até o Hugo aparecer. E isso mexeu com ele.
— Como não mexer, né?
— Exato. Ele ficou inseguro. Até eu ficaria. Nós assistimos os programas e às vezes até eu
desconfio se não tenho alguma coisa com o Hugo. Ele acreditou em mim, mas não se sentiu
menos incomodado; as pessoas comentam muito na internet. Depois daquele programa, ficou
meio insustentável e depois que ele percebeu que o Hugo é o pai da Sara acabamos dando um
tempo.
— E vocês voltaram?
— Não sei. Conversamos um pouco uns dias atrás; contei que eu tinha transado com Hugo e
que não tinha sentido nada. Para ele não se preocupar, mas, sinceramente, não sei se ele dá conta.
No lugar dele... eu não sei. Não iria querer a internet toda me chamando de corna. Isso porque
ninguém nem sabe dele. Imagina se souber?
— Não dá para esconder o cara para sempre.
— E honestamente não achava que eu ficaria tão exposta. Ele não precisa concordar com isso.
Eu vou entender se acabar.
— E vai ficar triste?
— Eu gosto dele. Ele é muito gentil, inteligente, maduro na maior parte do tempo. Uma
excelente companhia e um sexo incrível.
— Leva ele hoje à noite então. Vamos no novo bar do Hugo.
— Não sei se é uma boa. Vou falar com ele. Mas, Clara, todos vocês precisam se comportar,
não quero que o Leo fique magoado.
— Ok! Amiga, te espero mais tarde. Obrigada pelo almoço. Ah, a Sara te ama, tenho certeza de
que ela sabe que é o que precisa ser feito. E odiar um pouco os pais é normal.
— Obrigada, Clarinha.

Ela vai embora e Marcela retorna a pilha de problemas para serem resolvidos. Ela fica tão
absorta em números e papéis que nem repara o tempo passar e é surpreendida pela presença de
Hugo.
— Não queria te assustar.
— Imagina se quisesse. Teria caído dura. Chegou cedo — falou, verificando o relógio.
— Não queira correr o risco de me atrasar. Você acha que ela vai falar com a gente? — Hugo
se jogou no sofá.
— Falar mesmo, eu não sei, mas a gente vai vê-la. — Ela se sentou do lado dele.
— Marcela, eu não fiquei bem. Ela chorou muito. Você tem certeza de que ela não vai nos odiar
para sempre? — Ele coçava a cabeça.
— Tenho certeza. Ela nem nos odeia. Só está frustrada. Ela chora assim porque ela não sabe o
que fazer com tudo que está sentindo e é por isso que ela está lá. Para trabalhar isso melhor. Mas
vai se animar. Ela há umas semanas escolheu o presente dela de aniversário e só agora a resposta
chegou.
— O que ela pediu?
— Assistir a aurora boreal na Groelândia.
— Na Groenlândia? Eu nem sei onde fica isso.
— Eu espero que você tenha um passaporte válido para poder descobrir.
— Eu vou?
— Parece que sim. Ela incluiu você no pedido há três dias. Uma viagem de oito dias, no início
de setembro. — ela verificava as informações no celular.
— Não é por nada não mas quanto custa essa brincadeira?
— Dez mil dólares.
— Cê loko! Não acredito que você vai gastar tudo isso.
— Você acha que esse dinheiro é meu? E ainda tem coragem de dizer que me conhece...
— Tenho medo de perguntar de quem é o dinheiro.
— Da Sara, que ideia...
— Ah, desculpa, como foi que eu não desconfiei que minha filha de dez anos tem dez mil
dólares para gastar numa viagem para Groenlândia.
— Ela é uma excelente investidora. Deixei que ela investisse minha parte e pude me livrar dos
meus sócios e agora o Ruiz é só meu.
— Sua parte?
— Da herança — Marcela falou quase como um sussurro.
— Tudo bem se não quiser falar agora. Ele parece ter sido um cara incrível.
— Sim, incrível.
— Você pode me contar?
— Logo depois que eu fechei o Sara — ela suspirou pesado —, primeiro fui à Argentina. Lá eu
encontrei o Octávio; éramos amigos de infância. Chegamos a ter um breve relacionamento na
adolescência, mas ele queria namorar e eu estava mais para beijar todo mundo. — Ela sorriu e
ele riu. — Mas lá no fundo, mesmo na época, eu tinha certeza de que iria me casar com ele. Bom,
ele estava de mudança para Nova Iorque e me chamou para ir junto. E eu fui e fiquei até a
véspera do nascimento da Sara. Eu voltei com a gente meio brigado, ele nem mesmo soube que a
Sara nasceu. Não fiz de propósito, foi tudo tão louco e ..., bom ele só ficou sabendo vinte dias
depois e no dia seguinte já estava aqui. E nunca mais foi embora. No início ele viajava muito,
afinal ele trabalhava em Nova Iorque. Era horrível. A Sara não gostava de mim e deixava isso
muito claro.
— Você está exagerando, né?
— Adoraria, mas é sério, eu era só uma vaca leiteira. Um verdadeiro fracasso como mãe. Ela
só o queria. Tudo era ele. Quando ele não estava era um inferno, tudo dava errado, até doente ela
ficava. Um belo dia, depois que ela vomitou em todas as minhas roupas, descobri que se eu
usasse uma roupa com o cheiro dele ela me tolerava. — Ele gargalhou. — Você acha engraçado
né? Eu me sentia muito mal. Ela não me olhava. Nunca. Depois, bem, depois eu entendi, mas na
época? Eu me sentia culpada o tempo todo.
— Por quê?
— Eu estava cuidando das obras do Ruiz que estavam mega atrasadas, montando cardápio,
vendo fornecedor, dando satisfação a sócios malas que não entendiam a situação, tantas coisas.
Quando ele estava aqui, ele ficava com ela, ali ao meu lado, mas quando estava sozinha, ela
ficava amarrada, literalmente, a mim. Ele ficava, mais ou menos, uma semana nos Estados
Unidos e duas aqui. Quando ela fez seis meses, ele disse que precisaria ficar dois meses fora.
Não havia roupa o suficiente para deixar com o cheiro dele, só para três semanas. As roupas
duraram exatos treze dias porque a pediatra disse que não poderia esperar ele voltar para fazer a
introdução alimentar e obviamente ela não comeu nada e jogou tudo em mim. Não só em mim,
mas em todo mundo que tentou. As roupas acabaram e nós duas choramos nove dias seguidos.
Ele me mandava e-mail para saber se estava tudo bem e eu mentia. É muito humilhante não dar
conta da sua própria filha por dois meses.
— Mas por que você decidiu abrir o Ruiz nessa época?
— Eu jurava que ainda teria um mês e meio para deixar tudo organizado e que depois que ela
nascesse, eu... errei. Foi uma péssima ideia. Mas eu tinha quatro sócios que não estavam nem aí.
Os dois meses acabaram e o Octávio voltou com tudo. Pediu demissão, porque não aguentava
ficar longe da Sara. O Ruiz abriu quando ela estava com dez meses; com seis meses de atraso,
meus sócios me amavam, como pode imaginar. Ele ficava com a Sara aqui no escritório,
trabalhando, e eu na cozinha, toda hora eu subia para amamentar porque nem ele tinha conseguido
o milagre da comida ainda. Logo depois que ela fez um ano, ele comprou nossa casa e alugou um
escritório. Não tinha mais como ele trabalhar daqui. A Sara sempre teve muita rigidez com
relação a comida, por causa de textura. Desde que ela nasceu, nos primeiros dias ela estava na
sonda, mas quando tiraram ela perdeu muito, muito peso. Eu achei que ela não fosse conseguir
até que eu passei a amamentar e não consegui parar ou ela morreria de fome. A única coisa que a
Sara comia até dois anos de idade era um prato enorme de um purê muito liso de abóbora e
cenoura, só uma vez por dia.
— Foi nessa época que ela ficou laranja?
— Do jeito que ela fala até parece que ela era toda laranja.
— E não era?
— Toda não, quase toda. — Ela riu. — Era mais o nariz, pés e mãos. A nossa rotina consistia
em vir para cá. Tinha um cercadinho ao lado do forno. Ela sempre amou lugares quentinhos. As
18h Octávio passava aqui, nós três jantávamos, eu ficava para o serviço do jantar e ele ia para
casa com ela. Eu nunca tive referências de crianças, a Sara foi o primeiro bebê que vi na minha
vida. Alguns atrasos eram compreensíveis e até esperados porque ela era prematura; mas aos
dois anos sem falar, sem andar e sem comer direito a pediatra falou que estava muito
preocupada. Então nossa rotina mudou: de manhã eu Sara íamos para a fonoaudióloga, terapia
ocupacional, fisioterapia, psicóloga, qualquer coisa que sugerissem. Eu chegava no restaurante
para o serviço do almoço e o resto do cronograma se manteve. Até que ela começou a andar e
ficou perigoso ficar por aqui, aí a Bel entrou em cena para nos salvar. Depois, com todas as
terapias, ela foi melhorando vários aspectos; começou a comer mais coisas, passou a olhar mais
para a gente, o livro de comunicação então, nossa, foi o grande acontecimento.
— O que é isso?
— Era um fichário, na verdade, que tinha ações, tipo beber água, ir ao banheiro, ler, brincar...
E ela apontava o que queria fazer; ela ainda não falava. Ela fez tanta coisa antes de falar.
Aprendeu a ler, a escrever, a fazer conta. Octávio lia o jornal todo dia com ela no colo. Um dia
ela não deixou que ele passasse a página. Achamos que ela estava olhando a figura. Depois ele
passou a página, quando ia passar de novo, ela não deixou. Eu falei brincando que ele
atrapalhava a leitura dela. Ele achou que era verdade e perguntou a ela se estava atrapalhando.
Ela concordou com a cabeça. Continuei achando que era brincadeira. Aí ele falou que a Bovespa
tinha fechado em baixa e eu não entendi por qual motivo ele tinha falado aquilo. Ela bateu a mão
na mesa, mexeu nas folhas de jornal e apontou exatamente onde estava escrito que a Bovespa
tinha fechado em alta.
— Então ela lia a página de economia?
— Lia, guardava informação, discutia do jeito dela e achávamos que ela não estava nem aí
para o mundo. Comprávamos uns livros infantis para ela, mas ela queria os dele. Parte dos
interesses dela são dele.
— O que ele fazia?
— Ele era economista, e curioso, muito curioso. Gostava de saber das coisas e a Sara sempre
quer saber o porquê das coisas, como elas funcionam. Eu nunca sabia as respostas e ele sabia
todas. Eles eram muito grudados, melhores amigos. Eu podia ficar uma semana fora; eu uma vez
perguntei se ela ficou com saudades, tomei um belo não. Se ele ficasse um dia fora de casa era
um mau humor eterno. Então não precisa se preocupar comigo, estou acostumada a estar em
segundo plano. Eu fiquei tão surpresa com o discurso dela. Ela nunca falou nada do tipo para
mim. Me emocionou muito, de verdade. Ela não fala sobre as coisas que ela sente. Ela nunca
falou tanto sobre ele.
— O que aconteceu com ele?
— Um aneurisma. Eles dois estavam em casa sozinhos. Ele passou mal, Sara ligou para
ambulância, foi com ele para o hospital. Eu só fiquei sabendo seis horas depois. Ela me ligou,
perguntando se eu poderia ir ao hospital para liberar a doação de órgãos, porque ela era menor
de idade e não a deixaram assinar a papelada. A assistente social, a psicóloga, o médico, todos
tentaram convencê-la a fornecer meu número, por seis horas. Ela ignorou todo mundo e me ligou
do celular dele só quando finalmente precisou de mim. Eles achavam o tempo todo que ela não
entendia o que estava acontecendo. Eu tive tanta raiva da Sara naquele dia. E fiquei magoada por
um bom tempo. Ela não sente as coisas da forma que a gente sente, não era a intenção dela, mas
ela foi de uma insensibilidade. Nenhuma lágrima, só ficava falando o tempo todo que ele já tinha
morrido. E não sossegou enquanto eu não assinei a merda do papel. Ela só começou a sentir de
verdade no aniversário dela. E aí foi ladeira abaixo. Ela não falava mais comigo. Mal falava
com a Bel. Ficava horas trancada no escritório. Era o jeito dela de viver o luto. Um dia eu
acordei de madrugada e ela, para variar, não estava dormindo no quarto dela. Fui até o
escritório, para onde ela ia praticamente todo dia e pegava no sono no chão, de onde eu a levava
para o quarto de novo. Quando cheguei lá ela estava chorando. Hugo, tinham tantos anos ela não
chorava. Ela nunca mais tinha chorado. Partiu meu coração. Ela estava chorando porque não
tinha mais o cheiro dele no escritório. Eu sentia que todo dia perdia um pouquinho dela. — As
lágrimas brotavam dos olhos de Marcela. — Foi nesse dia que surgiu o ritual do sono. O jeito
ao qual ela se liga as pessoas é pelo ritual dela. Ela era cheia de rituais com ele. E aí criamos
muitos. Fazer o jantar, ver Bestchef. Mas ela ainda não estava bem de verdade. E eu sabia o que
faltava.
— O quê?
— Você. Faltava o pai dela. Ela cada vez mais começou a falar de você, procurar coisas sobre
você. No primeiro dia dos pais, assim que ele morreu, ela não sentiu, ela ainda parecia um robô.
Mas no ano passado ela surtou. E foi por isso que eu aceitei fazer o Bestchef. Eu precisava que
você me encontrasse. Porque eu não tinha coragem de ir até você. Foi por causa dela. Eu não
podia deixar minha filha mergulhada em tristeza por falta de um pai que ela tem.
— Você podia ter me procurado.
— A única coisa que eu tenho certeza sobre a Sara em relação a mim é confiança. Ela confia
em mim. Eu assumi o risco de talvez perdê-la, mas era melhor que a certeza de perdê-la. Se eu
fosse atrás de você, ela não iria me perdoar. Só eu e Bel sabemos o quanto ela mudou desde que
vocês se conheceram. Você está trazendo a Sara de volta. Obrigada.
— Você se diminuiu o tempo todo na vida dela. Como se fizesse uma participação especial. Foi
você que a colocou no mundo, foi você que a manteve alimentada por tanto tempo, foi você quem
fez o sacrifício de se diminuir para que ela ficasse com quem você achava melhor. Não era
egoísmo, era altruísmo. Marcela, o quanto você fez? O quanto você abriu mão? Sempre pensando
na Sara primeiro. Não tenho dúvidas que o Octávio foi um ótimo pai para Sara e queria muito
agradecê-lo por ter cuidado tanto de vocês, mas não se diminua assim frente aos feitos dele. Não
se diminua frente a mim. Você é uma mãe foda. Uma mulher foda. Uma profissional foda. E você
não iria perder a Sara, mas também não precisava passar por tudo sozinha. E que bom que você
decidiu que a Sara precisava de mim. Eu sempre soube que precisava dela, só não fazia ideia de
que ela já existia. Nunca mais se diminua assim, me promete? — ele terminou de falar limpando
as lágrimas dela.
— Prometo.
— Eu confio em você para qualquer coisa, especialmente em relação a Sara. Você é a mãe
dela, uma rainha, uma deusa, a pessoa em quem ela mais confia. Se você me disser que ela
precisa passar um mês na lua, eu vou morrer de saudades, mas eu confio. Mesmo que depois eu
venha perguntar se você tem certeza de que ela não odeia a gente, mas é porque eu confio na sua
resposta. Agora precisamos parar de chorar. Está quase na hora de ficar cara a cara com a nossa
filha.
— Si.
Marcela lavou o rosto, tomou uma água e esperaram a chamada de vídeo. Não demorou muito e
Sara apareceu na tela.
— Ih, filha, está com frio? — Coelho falou animado, tentando puxar conversa.
Cri, cri.
— Mi amor, tudo bem? Bel mandou um beijo.
Cri, cri.
— Quantos graus está fazendo aí? Esse seu casaco é tão quente.
Cri, cri.
— Marcela, tem certeza de que ela está ouvindo a gente? Parece que a imagem está congelada.
Sara revira os olhos e bufa.
— Está aí sua resposta, Hugo.
— Poxa, filha, a gente não tinha combinado de não ficar mais sem se falar?
Do outro lado da tela uma lágrima correu no rosto de Sara.
— Já que estamos estrelando um monólogo. Beijo, tchau, a gente te ama, estamos com
saudades. Até amanhã, mi amor.
Marcela encerra a chamada.
— Que isso, Marcela? Ainda tínhamos sete minutos!
— A menina ia explodir, Hugo, de tanto fazer força para não responder. Caiu até uma lágrima.
Sara aprendeu a fazer pirraça. — Marcela tinha um sorriso largo.
— Somos o tipo de pais que comemoram quando o filho faz pirraça?
— Não! Mas ela se controlou muito para não fazer uma coisa que ela queria muito. Por acaso
foi uma pirraça. A motivação realmente não era boa. Por isso eu desliguei, para poder
comemorar e ela não morrer sufocada. Você não reparou que ela nem estava respirando?
— Não!
— Por favor, passe a prestar atenção nisso. Falando sério, ela as vezes prende a respiração.
— Ok. Você vai lá no bar hoje, né?
— Si.
— Quer que eu te pegue?
— No precisa, eu vou com o Leo.
— Quero ver seu namorado imaginário.
— Hugo, lembra do que a gente combinou! No vai implicar com ele, por favor. Ou eu não vou!
— Podexá.
— E se comporta! Já dei o mesmo recado para dona Clara e para o seu Fragalli!
CAPÍTULO 33

— Eu juro que pedi para eles se comportarem, mas aviso que eles são adeptos ao bullying, então
se puder relevar algumas coisas...
— Fica tranquila. Eu estou de boa. Se teu ex ficar de boa também.
— Hugo. Ele tem nome. Ser meu ex não é um cargo, nem atual.
— Ok.
Marcela estava atrasada e sabia que todos aguardavam por ela; mais por Leo, na verdade.
Entrando no bar, foi avisada pela hostess que seus colegas de trabalho os aguardavam numa
mesa reservada no fundo da casa.
— Marcela, não sabia que você tinha outro filho! Se soubesse tinha trazido Edu para brincar
com ele — Fragalli falou enquanto apontava para Leo.
Clara, Drica e Fragalli riram. A cara de Hugo era impagável. Provavelmente não esperava
alguém tão jovem.
— No tenho idade para ser mãe dele — falou, revirando os olhos.
— Tem sim, gata — Leo comentou, arrancando gargalhadas de todos na mesa, inclusive Hugo.
Mas logo se corrigiu ao receber um olhar fuzilante de Marcela e chegou a engolir seco. — Sendo
mãe na adolescência, é claro.
— Bom, — ela suspirou fundo — esse é o Leo, meu namorado. Leo, Hugo, Fragalli, Drica e
Clara.
Eles acenaram na direção do casal que se acomodou entre Hugo e Clara. Marcela entre o ex e o
atual. A noite promete.
— Vão beber o que? Estamos no whisky — Hugo indagou enquanto fazia referência a Fragalli.
— Vou passar, mano — adiantou Leo.
— Esqueci que tu é menor de idade — Hugo falou, implicando com ele.
— Na verdade, eu não só sou maior de idade como sou responsável, não vou beber porque
estou dirigindo.
— Pode beber, eu no vou beber mesmo, eu dirijo.
— Tem certeza, gata? — Leo falou enquanto colocava uma mecha de cabelo de Marcela atrás
da orelha dela.
— Si.
Leo deu um beijo em Marcela, sob o olhar atento e incomodado de Hugo que se mexia sem
parar na cadeira. Ele nunca havia presenciado esse acontecimento na vida. Marcela beijando
outro. Preferia ter continuado assim.
— Vou querer um negroni. Água com gás e limão para você?
Marcela confirmou. Como todos já haviam chegado, Hugo aproveitou para fazer as
recomendações do cardápio de acordo com o perfil de cada um. Fizeram os pedidos e logo o
garçom voltou com mais uma rodada de bebidas. Fragalli e Hugo no whisky, Drica na gin tônica
e Clara na caipirinha.
— Só para saber o quão alcoolizados vocês estão, que rodada é essa?
— Quinta! — Drica exclamou.
— Mas gente me atrasei menos de uma hora. Vocês estão muito animados!
— Se atrasou por quê? Aposto que foi culpa desse gatinho aqui — Clara falou enquanto
acariciava o braço de Leo — Nossa! Que braço forte! Você malha, lindinho? — Clara
claramente já estava mais para lá do que para cá.
— Eu sou adepto da calistenia — Leo respondeu, um pouco sem graça. E pela reação confusa
de Clara prosseguiu — Exercícios que usam o peso do próprio corpo. Sem equipamentos.
— Nossa! Está de parabéns. — Ela complementou apertando seus braços
— Para você já deu, né, Clara? — Marcela lançou um olhar reprovador. — Já bebeu demais.
— E você de menos, Marcela! Não vai beber por quê, amiga? — Clara comentou.
— Marcela está grávida — Fragalli prontamente respondeu.
Leo se engasga com seu drink, Hugo gargalha enquanto Marcela esconde o rosto entre as mãos.
— Parabéns amiga! Já sabe quem é o pai?
— Eu não estou grávida, Clara! Isso é palhaçada do Fragalli. Alguém tem que ficar sóbrio para
dar conta de vocês, né?!
— Amiga, olha o tamanho da mão do seu boy! Sabe Leo, com mais de 18 cm eu só quero
amizade, com uma mão desse tamanho, você tem mais! Amiga, como é que você dá conta?
— Do que você está falando, Clara?
— Do equipamento do Leo, amiga. Deve ser muito grande, iria me arrombar. Não te machuca?!
— Não estou acreditando nisso, Clara! — Marcela estava incrédula com o rumo da conversa.
— Com jeitinho cabe tudo — Leo fala, dando uma piscadela para Clara.
Coelho empurra a cadeira para trás e deixa a mesa coçando a cabeça.
Status: transtornado.
— No é para cair na pilha da Clara, Leo! — Marcela repreendeu o namorado.
Marcela se levanta e vai atrás de Hugo. O segue pela cozinha e o encontra lá fora, pela saída
de serviço.
— Achei que você no fumasse — ela disse, aproximando-se dele que estava de costas.
— O que você quer, Marcela?
— Que você volte lá para dentro.
— Pode esquecer. Não vou ficar ouvindo as coisas que seu namoradinho tem a dizer sobre a
vida sexual de vocês.
— Eu também não. Estou extremamente desconfortável com a minha vida sexual em pauta, mas
ninguém colabora. A Clara o provocou.
— E ele é criança?
— Olha, Hugo, está difícil saber quem é mais criança naquela mesa, acho que a Sara se
comporta melhor que vocês. Tenho certeza, para ser bem sincera.
— Por que você está com ele? Não te entendo.
— Que parte você não entende? A que eu tenho direito de ser feliz?
— Não foi isso que eu quis dizer. Por que ele?
— Por que não ele? Só porque ele é bem mais novo que eu? Sabemos que não faz diferença a
idade dele, não é esse o problema. Não muda a forma como você se sente.
— O que ele te oferece que eu não posso te oferecer?
— Para de fazer isso ser sobre você! Você quer ser o protagonista da minha vida? Eu, viúva,
livre, muito bem resolvida não posso ter direito a escolher com quem eu quero estar? Não tem a
ver com o que pode ser oferecido. Eu não estou em disputa, não sou um troféu para um ou outro
ostentar. Eu sou uma pessoa. Que tem sentimentos e que só queria conversar com um adulto, sem
ser sobre a Sara, ter companhia para ver um filme e tomar um vinho. Eu só quero ser a Marcela
às vezes. Sem Sara, sem restaurante. Só Marcela. Ele faz isso por mim. Mas ele se sente
ameaçado por você.
— Não é minha culpa se ele é imaturo!
— Você o acha imaturo? Eu falei para ele que transei com você e ainda assim ele veio hoje,
mas é você que está tendo uma crise de ciúmes. Sério que ele que é o imaturo? Vai dizer que ele
não tem motivos para se sentir ameaçado? O jeito que você me olha, seu comportamento, o
Brasil inteiro dizendo que temos um caso, nós temos uma filha e você enfiado lá em casa.
Gostaria que se colocasse no lugar dele. Não precisa nem ser quando você tinha vinte e poucos
anos, pode ser hoje mesmo. — Ela finalizou indo em direção à porta.
— Porra, Marcela, calma aí, se põe no meu lugar também.
— Que lugar, Hugo?
— Eu te amo e tenho que ficar vendo você com esse cara e fingir que estou gostando?
— Não. Não precisa fingir, pode não gostar. Sinto muito. Mas tem que respeitar. Experimenta
se colocar no meu lugar. Do quanto você me fez sofrer e eu aqui, me preocupando com você. Eu
não aprendo mesmo.
— Desculpa. Me perdoa.
— Você precisa parar de pedir perdão e começar a pensar um pouco mais suas atitudes. Afinal,
você não tem mais vinte e poucos anos.
Marcela voltou para o restaurante. Hugo terminou o cigarro e voltou para a mesa. Antes passou
no banheiro e lavou o rosto. Encarou-se no espelho e refletiu mais uma vez sobre o que estava
fazendo. Sobre como estava conduzindo as coisas e temeu perder Marcela mais uma vez. Ter
Marcela como amiga era melhor do que não a ter de forma alguma. Eles precisavam manter uma
boa relação por causa de Sara.
Na mesa, todos conversavam e comiam, e assim seguiram conversando sobre amenidades,
rindo das palhaçadas de Fragalli que tirou a vida da Marcela de pauta e colocou a de Clara, que
não se lembraria no dia seguinte por motivos de estar bêbada demais.
Marcela, motorista da rodada deixou Clara, Drica e Fragalli em casa. Hugo dispensou a carona
pois fecharia o bar, mas prometeu ir embora de táxi.
Marcela e Hugo combinaram de se encontrar cedo na casa dela para fazerem a chamada de
vídeo com Sara.

Marcela acordou e Leo não estava ao seu lado. No banheiro também não estava. Ouvia ao
longe barulhos na cozinha. Desceu as escadas e deu de cara com Hugo fazendo uma omelete
enquanto Leo cortava as frutas.
Ambos sem camisa. Lado a lado. Na cozinha dela. Fazendo café da manhã. Mesa posta.Ela não
sabia se daria conta.
— Bom dia?
— Bom dia! — responderam juntos.
— Senta aí gata, está quase pronto o café.
— Precisam de ajuda?
— Só senta aí, Marcela.
— Ok. — Levantou os braços em rendição. — Não queria ofender.
Acomodou-se na mesa e observava os dois. Não sabia o que dizer, aparentemente o clima
estava tranquilo, não queria ser a responsável por acabar com ele. Eles seguiram trabalhando em
silêncio por alguns minutos e se juntaram a Marcela na mesa.
— Chegou cedo, Hugo?
— Então, estava a fim de dar uma corrida, mas não daria tempo de ir e voltar para casa, então
vim correndo para cá. Depois você me leva para emissora.
— Meio abusado, no?
— Até parece que você não vai para lá.
— Dirige você, vai? Eu tinha planejado pedir carona primeiro.
— Depois eu que sou abusado.
— Você acordou cedo — ela falou para Leo.
— Lia me ligou, eu esqueci que tinha combinado de levá-las no clube hoje.
— E elas sabem que você está aqui?
— Falei agora de manhã. Lua não acredita que Sara não está.
— Leo tem irmãs quase da mesma idade da Sara: Lia e Lua, e elas tem ciúmes da Sara.
— E para piorar você marcou com elas e esqueceu? Difícil te ajudar, mano.
— Estou ciente. Bom, eu já vou, gata. Manda um beijo para Sara.
Leo depositou um beijo nos lábios de Marcela, apertou a mão de Hugo e foi embora deixando
apenas os chefes.
— Mano, desculpa, eu acho que eu fui meio sem noção de aparecer sem avisar. Mas na hora
parecia genial. — Ele riu tímido.
— Não tem problema. Só fiquei muito impressionada em ver vocês dois fazendo o café da
manhã juntos.
— Então, eu estava aqui fazendo, ele chegou e perguntou o que podia fazer. Aí fez o suco e
cortou as frutas.
— Foi bonitinho. Obrigada.
— Está na hora, né?
— Si, vamos para o escritório.
A vídeo chamada com Sara foi melhor do que no dia anterior. Ela falou um pouco com eles mas
ainda fazendo um jogo duro. Eles aproveitaram para contar que a viagem a Groelândia tinha sido
marcada o que arrancou um sorriso, ainda que contido, dela.
Depois da vídeo chamada ambos foram tomar seus respectivos banhos. Num par ou ímpar,
perdido por Coelho, ficou decidido que ele iria dirigir.
— Que foi que você está toda inquieta aí?
— Dor de cabeça. Nada demais.
— Marcela...
— Você achou a Sara estranha?
— Não. Não sei.
— Esquece. Coisa da minha cabeça.
— Você a conhece melhor do que ninguém. Se você acha que ela estava estranha, eu acredito.
— Não tem cabimento eu achar que ela está com febre a vendo por um vídeo, tem?
— Sei lá. Por que você acha isso?
— Ela estava tão agasalhada, não acho que esteja tão frio assim por lá e achei o olhar dela
meio caído, ela meio mole. Sei lá.
— Você quer ir lá? Quer ligar? Quer que eu ligue?
— Eu acho que estou exagerando.
— Ok, entendi, vou ligar lá. Que daí você fica mais tranquila, não?
— Si. Obrigada, Hugo. — Marcela deu um sorriso sem muito ânimo.
Já na área de gravação do estúdio, depois de passarem em seus camarins para se arrumar, se
juntaram a Fragalli e Clara para dar início a agenda de gravação do dia.
— Ela está terminando uma atividade em dez minutos, aí vão levá-la ao posto médico e me
retornar. Mas me falaram que ela não reclamou de nada.
— Ela nunca reclama. Só quando já está insustentável.
Terminada mais uma rodada de provas, os dois cozinheiros passam pelas bancadas
experimentando todos os pratos. Terminada essa etapa eles conversam e indicam quais pratos
Fragalli e Clara devem avaliar . Marcela deixa o meio de seus colegas às pressas indo para trás
do painel e deixa todos confusos.
No ponto eletrônico todos ouvem Carvalheiro perguntar se Marcela estava bem e se precisava
de ajuda. Alguns momentos de silêncio enquanto os três se entreolhavam. Carvalheiro anunciou
trinta minutos de pausa.
Hugo e Clara foram ao encontro de Marcela. Ela estava sentada e recebia atendimento da
bombeira que auxilia nas gravações.
— O que houve, amiga?
— Acho que aquele peixe com molho muito esquisito me fez mal.
— Está ruim assim, Coelho? Eu ainda não comi.
— Não achei, não. Cadê o Fragalli?
— Que foi careca feioso?
— Você já comeu aquele peixe lá?
— Achei bom. Marcela está é grávida.
— Lá vem você com essa história de novo! Vamos gravar logo. Já estou bem, Carvalheiro.
Marcela levantou rapidamente e voltou a se sentar quando tudo escureceu. Sua pele ficou
pálida. Carvalheiro decidiu seguir a gravação com a parte de Clara e Fragalli enquanto Marcela
tiraria mais um tempo para se recuperar. A sugestão era que ela fosse ao posto médico da
emissora.
Marcela, no posto médico da emissora, estava de olhos fechados repousando sobre uma maca
quando Clara se juntou a ela.
— Amiga, o que houve? Você está melhor?
— Si, foi só uma queda de pressão. Deram o recado do meu celular? Acabei deixando meu
celular no estúdio.
— Sim, está com Coelho. Ele está no meio de uma ligação lá fora.
As mulheres conversavam sobre os acontecimentos da noite anterior quando Hugo entrou.
— Finalmente homem! Dá-me meu celular. Te ligaram de volta do acampamento?
Marcela falou com o braço esticado em direção a Hugo e viu a expressão dele mudar ao
perguntar sobre o acampamento e lágrimas brotarem dos olhos dele.
— O que houve com a Sara, Hugo? O que aconteceu com a nossa filha?
CAPÍTULO 34

O mundo para.
Não para todo mundo.
Para ela.
Para ele.
Para eles.
A filha deles.
Não foram horas, mas era essa a sensação.
O coração descompassa.
A respiração falha.
Lágrimas dão conta de transmitir o que as palavras, que faltam no momento, deveriam fazer.
Lágrimas passam a mensagem quando o silêncio persiste.
Lágrimas aliviam a pressão que sufoca.
Lágrimas não aliviam a dor.
Lágrimas não aliviam a alma.
Lágrimas, apesar de límpidas, não são suficientemente claras.
Lágrimas são suficientes para expressar com totalidade a situação?
Não essa.
Ela sabia que havia algo de errado quando se falaram de manhã.
Ele não estava chorando porque a Sara estava com febre, estaria?
Ah, a febre.
Sinal de alerta.
Beira o mágico.
A biologia é quase uma ciência exata.
Quase.
A febre é um sinal de alerta.
Quando tinha seis anos, Sara teve uma infeção urinária.
“Sara, você não é um cacto!”
Foi o que o médico a disse depois dela exclamar com muito orgulho o contrário. Ficou cinco
dias internada. Muitas perguntas e ninguém para responder. O livro de fisiologia humana que ela
pediu não foi o suficiente. Depois de devorar o livro de imunologia. Começaram as
intermináveis discussões com os médicos, contestando tudo que era feito.
Tudo.
A biologia é uma ciência lógica.
A biologia é quase uma ciência exata.
Quase.
O sistema imunológico ao se deparar com algo que não pertence ao nosso corpo inicia uma
missão.
A missão consiste em aniquilar o inimigo. Mas antes de ser aniquilado ele é apresentado a
todos para que ninguém se esqueça de como ele é e lembrarmos de como conseguimos vencer.
Esse processo demanda aumento de temperatura, então pasmem, o estado febril, que é a faixa
de temperatura que vai de 37,3° até 37,8°, é produzida pelo nosso organismo por ser a
temperatura em que eles trabalham melhor. Até 37,8° o recomendável é que não se faça nada
para abaixar a temperatura.
A casa dos 39° é um perigo, apenas 1,2° de onde está tudo sob controle e a menos de 1° de
onde as coisas ficam extremamente perigosas.
Um banho frio, um antitérmico, hidratação e roupas frescas.
Perfeito.
Se funcionar.
Quando o sistema imunológico percebe que está em desvantagem, ele se desespera. No
desespero ele pode perder o controle da temperatura.
Chegar aos 40° é motivo de desespero. Nessa temperatura, os processos metabólicos já não
funcionam da mesma forma.
Quando a enfermeira checou a temperatura de Sara a pedido de Coelho, o termômetro marcou
37,7°C. Ela se recusou a tomar o remédio.
Durante a gravação, sem celulares a mão, não viram quando mandaram mensagem avisando que
ela estava com febre.
Nem viram a ligação uma hora depois avisando que a febre tinha subido para 39,7°C.
Nem a que chegou depois de mais uma hora avisando que iam levá-la para emergência.
Nem a que chegou depois de mais duas horas avisando que ela estava sendo internada.
Nem a que seria necessário sedá-la.
Hugo, quando ia ao encontro de Marcela, atendeu a ligação que chegava no celular dela, vinda
do acampamento. E então ficou sabendo de tudo isso.
Quando já faziam quase seis horas da primeira ligação.
— Hugo, por favor, fala alguma coisa — Clara interrompeu o silêncio.
— Você está bem, Marcela? — ele fala depois de um suspiro.
— Me diz como ficar bem se eu acabei de te perguntar se te ligaram do acampamento e você
começa a chorar? — ela responde pausadamente, tentando transparecer calma. — Vou perguntar
de novo, Hugo, o que houve com a Sara?
— Ela estava com febre. — ele falou bem rápido.
— Não está mais? — mantendo um tom baixo.
— Está.
— Hugo, pelo amor de Deus, fala tudo de uma vez. É uma péssima hora para enrolar. Por pior
que seja, só fala. Tudo de uma vez. Por favor.
— Ela está internada, sedada. A Sara não está bem.
— Tudo bem. — ela falou calmamente, levantando-se, mas foi traída pela falta de equilíbrio.
Foi amparada rapidamente por Clara, e logo foi alcançada por Hugo.
— Não, amiga, você não está bem — Clara falou, segurando a mão de Marcela.
— Eu preciso ver a Sara, Hugo. — Ela tinha um olhar de súplica.
— Ela está sendo transferida para o Sírio Libanês, de helicóptero.
— Mas quem...
— O contato de emergência dela — ele a interrompeu — está vindo com ela na transferência.
— Hugo... — ela falou ao perceber o tom de mágoa na voz dele.
— Depois a gente conversa sobre o contato de emergência, ok? Depois. — Ele beijou o topo
da cabeça de Marcela. — Eu vou buscar o carro, tudo bem? Vai devagar com a Clara, pode ser?
Hugo deixou o posto médico em direção ao estacionamento. No caminho aproveitou para
liberar em forma de lágrimas toda frustração, medo, impotência. No carro aproveitou para socar
o volante repetidamente. Aguardou que as lágrimas parassem de correr pelo seu rosto, e por fim
sua respiração voltasse ao normal e foi ao encontro de Marcela e Clara.
No trajeto até o hospital, Marcela se informou melhor sobre tudo que estava acontecendo.
Sara está com uma infeção ainda não identificada, porém de evolução rápida. Ela tinha uma
febre altíssima, que a fez delirar. Foi preciso sedá-la, pois ela retirava o acesso e impedia a
realização de exames.
Na recepção do hospital foram informados que o helicóptero trazendo Sara havia pousado há
poucos minutos.
Algumas coisas não precisam ser ditas.
Algumas coisas estão nas entrelinhas.
Ali.
Para qualquer um ver.
Para qualquer um sentir.
A tensão.
O ar pesado.
O desconforto era palpável.
A resposta para pergunta que não foi respondida.
Ele desconfiava.
Ela suspeitava que ele desconfiava.
Ela planejou uma conversa sobre, mas tudo acontecia tão rápido.
Ele tentou começar a conversa, mas ela sempre fugia.
Mas acabou.
Não havia mais conversa a ser planejada.
Não havia mais perguntas que cabiam nesse momento.
Aquele momento que vinha sendo adiado.
Todas as suspeitas sendo confirmadas.
Ele estava ali no corredor conversando com o pediatra da Sara.
O padrinho da Sara.
O contato de emergência da Sara.
O Pipo.
O Felippo.
As mãos, que sem ambos perceberem, estavam entrelaçadas, fizeram-se notar quando Hugo
parou ao vê-lo e ela seguiu.
Era uma âncora impedindo seu prosseguimento.
Mas Marcela passou confiança a ele quando apertou sua mão e lançou um olhar compreensivo,
mas ao mesmo tempo incentivador. E assim voltaram a caminhar na direção de Felippo.
O corredor parecia ficar cada vez mais longo conforme iam andando. Ele tinha percebido a
presença deles. Parecia igualmente desconfortável com a situação.
— Nossa, Marcela! Fiquei preocupado! Como você some seis horas?
— Estávamos trabalhando, e eu passei mal. Não ficamos com os celulares durante a gravação.
Mas muito obrigada pela ajuda e julgamento. — Ela não escondeu a irritação em seu tom de voz
e logo desviou a atenção de Felippo e dirigiu a palavra ao médico. — Esse é Hugo Coelho, pai
da Sara, e esse é Giovanni Improta, pediatra da Sara.
— É um prazer finalmente conhecer o pH — disse o médico, gentilmente estendendo a mão e
recebendo um aperto firme de Coelho. — Então, a suspeita é meningite bacteriana, a febre está
bem alta e evoluindo rápido, ela está em banho para ver se conseguimos diminuir um pouco a
temperatura, e já pedi para retirarem a sedação, preciso ver como ela está.
— Meningite?! Mas ela está vacinada!
— Vou citar uma paciente muito inteligente que me deixa maluco: “biologia é quase uma
ciência exata, quase”. Vocês vão precisar passar pela desinfecção. A princípio, ela está em
isolamento. Vamos colher líquido da medula espinhal para confirmar o diagnóstico. Marcela,
sabemos como ela se comporta depois da sedação, não vai ser fácil, mas precisamos manter ela
parada, consegue?
— Si.
— Marcela, você mal estava se aguentando em pé até agora pouco. Eu estou aqui, você não
precisa fazer tudo sozinha. Eu a seguro.
— Ótimo, Hugo. Ela tem tendência a ficar agressiva e muito manipuladora, mas você vai dar
conta. Você luta, né? Pode ser tipo imobilização de luta, só que ela é bem menor, mas vai ser
rápido. Encontro com vocês na desinfeção em cinco minutos, pode ser?
Eles concordaram e viram o médico seguir para o posto de enfermagem. Agora estavam apenas
os três e um clima pesado. O silêncio se estendeu pelo que parecia uma vida.
— Eu vou ligar para minha mãe. Já volto — Hugo falou, afastando-se. — Me espera?
— Si. — Ela o viu se afastar — Muito obrigada pela ajuda, por tudo, Felippo. Depois eu
mando notícias.
— Eu vou ficar. Você e a Sara podem precisar.
— O Hugo vai ficar, você ouviu.
— Quem garante? Ele já foi embora antes.
— Você também — ela falou num tom calmo, mas firme. — Agradeço a oferta, se eu precisar
da sua ajuda eu aviso. Mas pode voltar para o Rio, estamos bem assistidas agora. Mande um
beijo para o Ana e para Guido.
— Vou ficar em São Paulo.
— Não posso te despachar, no é mesmo? A cidade é pública. Eu só peço uma coisa, não venha
sem ser chamado ou sem avisar. Não precisamos de aborrecimentos.
— Agora tudo vai mudar porque ele chegou? Você nem me deixou ir ao aniversário dela!
— Felippo, eu não sei se você já reparou na cara da Sara e do Hugo, mas ele é o pai dela. A
prioridade é dele e eu não vou deixar você atrapalhar.
— Você é bem ingrata.
— Não sou, eu agradeci. Agradeço quantas vezes forem necessárias, mas com você fora daqui.
Você está sendo inconveniente. Por favor, Felippo. Vai embora!
Hugo vinha se aproximando e Felippo foi embora com uma cara de poucos amigos.
— Tudo bem, Marcela?
— Si — ela suspirou.
— Marcela...
— Dor de cabeça, Hugo, Enxaqueca.
— Sei..., enfim, não vamos conversar sobre isso agora. Vamos lá, o médico deve estar nos
esperando. — Começa a andar.
— Hugo, olha para mim. — Ela aguarda ele voltar seu olhar para ela. — A Sara será cruel, vai
jogar baixo, vai manipular, será agressiva, ela estará com muito medo. Não deixe te afetar, ok?
— Finalizou com um sorriso fraco que não foi suficiente para disfarçar sua preocupação.
— Tudo bem. E você?
— Eu o quê?
— Não vai se afetar? Eu já chorei para caramba. Você não precisa ser forte o tempo todo.
— A Sara precisa que eu seja. Vamos? — ela falou, encerrando a conversa.
Eles passaram por uma sala onde vestiram trajes hospitalares e ganharam máscaras e toucas.
Acompanhados do médico e de mais alguns profissionais entraram no quarto extremamente
gelado.
Marcela e Hugo se aproximaram de Sara.
— Mi amor? — Marcela falou, fazendo carinho no rosto de Sara e sentindo a pele dela quente
contra sua.
Sara vagarosamente abriu os olhos, piscou algumas vezes para se ajustar a claridade e
reconhecer onde estava.
— Oi, filha — Hugo falou enquanto ela o encarava.
— Sara, pode olhar para mim um pouquinho? — o pediatra falou. Levou um tempo até que ela
voltasse sua atenção a ele. — Como se sente? — Perguntou enquanto direcionava a lanterna nos
olhos de Sara.
— Tô com frio. Podemos ir para casa? — falou, voltando a sua atenção para os pais.
— Filha, você está doente, vai ter que ficar aqui um pouco, mas eu e sua mãe vamos ficar com
você.
— Eu estou mesmo com meningite? — pergunta ao médico.
— Vamos fazer o teste para confirmar.
— Não mesmo.
— Mi amor, você sabe que precisa.
— ISSO É CULPA SUA! QUE ME MANDOU PARA AQUELE ACAMPAMENTO MALDITO!
— ela gritou na direção de Marcela.
— Ei! Abaixa o tom, mocinha! Nada de falar assim com a sua mãe.
— E SUA QUE DEIXOU QUE ELA ME MANDASSE PARA AQUELE REFORMATÓRIO
JUVENIL — falou dessa vez na direção de Hugo, que chegou a se assustar com tamanha ira.
— Sara! Aqui, vamos conversar um pouco sobre o que vamos fazer, o que acha? — o médico
chamou a atenção da menina.
— EU ACHO QUE VOCÊ SÓ PODE ESTAR DE SACANAGEM SE ACHA QUE EU VOU
DEIXAR VOCÊ ENFIAR UMA AGULHA DE 11 CENTÍMETROS NAS MINHAS COSTAS!
COM TODO RESPEITO, NEM FUDENDO!
— SARA! — Marcela e Hugo exclamam em uníssono.
— Eu vou avisando passo a passo do que vai acontecer, seu pai vai te segurar. Você vai estar
segura, eu prometo.
— EU NÃO QUERO QUE ELE ME SEGURE. EU QUERO O PIPO! CADÊ O PIPO!?
— Ele foi embora, Sara — Marcela afirmou.
— VOCÊ MANDOU ELE EMBORA?!
— Si.
— POR QUÊ?
— Eu e seu pai estamos aqui, não tem por que ele ficar.
— EU PREFIRO O PIPO NO LUGAR DELE. ELE NÃO É MEU PAI. MEU PAI MORREU.
ELE ME ABANDONOU. EU NÃO QUERO ELE, EU QUERO O PIPO!
Ela será cruel.
Ela vai jogar baixo.
Ela será agressiva.
Não deixe te afetar.
Foi um baque.
Foi como um murro no peito.
Roubou todo o ar do peito de Hugo.
Na mente dele ecoava em repetição o que Sara gritou a plenos pulmões.
Ele não é meu pai.
Ele me abandonou.
Não fazia diferença se era verdade ou não.
Ela estava com medo e ela quer a ele.
— Nunca mais repita isso! Sara, você sabe que isso não é verdade! Ele nunca abandonou você!
Nunca! Você sabe disso! Não faça isso com seu pai!
Hugo parecia se afogar no ar. Tentava puxar o ar, mas ele não vinha. Se afastou o quanto podia
da maca localizada no centro da sala.
— Hugo! Hugo, olha para mim por favor! — Marcela falou enquanto tinha o rosto de Coelho
em suas mãos e mantinha seus olhos na altura dos dele. — Hugo, ela tá fora de si. Não é verdade.
Ela não acha nada daquilo. Você sabe que não. Ela te ama. Por favor.
— Eu acho que eu não consigo, Marcela — ele responde com o olhar perdido, enquanto
lágrimas correm pelo seu rosto. — Desculpa.
— Vamos, Hugo, você consegue. Eu não vou conseguir, por favor. É a nossa filha. Por favor —
Marcela suplicava. — Eu confio em você!

Hugo se aproxima da maca e imobiliza Sara. O rosto dela sobre o ombro dele. O frágil corpo
dela chegava a queimá-lo de tão quente.
— NÃO DEIXA, MÃE! POR FAVOR! ELES VÃO FURAR MINHAS COSTAS! POR FAVOR,
MÃE! POR FAVOR!
Hugo usava de toda força e delicadeza que tinha para segurar Sara naquele momento. Seus
gritos de desespero o faziam chorar mais a cada segundo.
Ela estava apavorada.
Ele estava apavorado.
Marcela estava apavorada.
Hugo já se sentia fraco quando disseram que ele podia finalmente soltar Sara. Foi amparado
por um abraço de gratidão de Marcela.
E choravam juntos quando as máquinas apitaram e encontraram Sara se contorcendo na maca.
Uma convulsão.
Biologia é uma ciência lógica.
Biologia é quase uma ciência exata.
Quase.

Não há no mundo um livro sobre paternidade que prepare pais para presenciar tal sequência de
eventos.
Um monitor no hospital mede vários parâmetros. Temperatura, oxigenação, pressão arterial e
batimentos, por exemplo. Ele faz apitos alternados que indicam que tudo está dentro dos limites
aceitáveis. Isso evita que a equipe médica tenha que, de minuto em minuto, verificar ou
simplesmente ter um profissional para ficar vigiando cada paciente em situação crítica 24 horas
por dia, sete dias por semana.
Toda equipe médica se movimenta como num balé ao redor de Sara. Todo seu pequeno corpo
ainda contraído numa forma contorcida se debatendo.
Ao longe como se estivesse distante ouvimos comandos, apitos e instrumentos, mas aqui
só posso ouvir as batidas de nossos corações. Acho que mais lentas que o recomendável.
Eu não sei bem o que está acontecendo, é tudo muito confuso. Sabe aquelas cenas de filmes de
ação em que os personagens se movem tão rápido que você não consegue perceber quem está
ganhando a luta?
Essa é a sensação. Até todo mundo parar. Essa cena eu conheço. Todo mundo que é cinéfilo já
viu essa cena.
Todos parados olhando para tela.
Um monitor num hospital mede vários parâmetros, temperatura, oxigenação, pressão arterial e
batimentos. Ele faz apitos alternados que indicam que tudo está dentro dos limites aceitáveis.
Todo mundo sabe o que significa o apito contínuo.
Ninguém vai fazer nada?
Quando queremos verificar se uma pessoa está viva, é comum tentar sentir as batidas do
coração ou se a pessoa está respirando.
Obviamente, se não estiverem, é bem possível que a pessoa esteja morta.
Não é decisão do coração bater.Não é decisão dos pulmões respirar.
Cabe ao cérebro decidir quando, como e o porquê de tudo que acontece. Inclusive garantir que
o coração bata e os pulmões respirem.
A meningite é a inflamação das meninges. Meninges são camadas de proteção do cérebro. Elas
garantem isolamento do cérebro do resto do corpo para que ele possa funcionar corretamente
sem maiores interferências, afinal, ele precisa comandar todas as outras coisas.Se as meninges
estão inflamadas, elas não estão exercendo bem o seu papel. Ao não exercerem seu papel,
permitem que desequilíbrios como o que resultou na convulsão acontecesse. E que depois fez o
coração parar. E que por isso não vai respirar.
Como viemos parar aqui fora da sala?
Sentados e abraçados no corredor.
Chorando.
Vivendo a angústia.
— Marcela? Hugo? — o médico chamou a atenção de ambos que passaram a olhar ansiosos
para ele — A Sara foi estabilizada, a febre muito alta levou a convulsão e o coração dela não
deu conta, mas ressuscitamos ela com sucesso. Eu induzi o coma, vamos dar tempo para os
remédios agirem e reavaliamos isso em dois dias. O resultado do exame sai em algumas horas e
aí poderemos começar um tratamento mais específico.
— Podemos entrar? — Hugo perguntou.
— Sim.
Sara estava conectada a inúmeros aparelhos.
— Isso é realmente necessário? — Marcela perguntou ao médico, enquanto apontava para o
tubo acoplado a boca e que descia pela garganta de Sara.
— Sim, o coma induzido a faz perder a capacidade de respirar sozinha, mas é seguro.
— Ok. — A tranquilidade de sua voz não foi suficiente para tirar o foco da sua postura
corporal. E o médico percebeu. Ele acompanha Sara há tanto tempo que conhece as angústias de
Marcela.
— Marcela, é totalmente diferente da situação em que ela nasceu. Ela estava respirando
normalmente, apenas faz parte da estratégia. Vamos reavaliar tudo em dois dias, mas é o melhor
para ela agora. Para ter tranquilidade em se recuperar — falou em tom amigável e confiante, o
que de certa forma tranquilizou Marcela. Ao se voltar para Hugo percebeu que não havia sido o
suficiente para ele. — Hugo, você me parece ter muitas dúvidas, me acompanha num café?
Ver Sara daquela forma estava machucando a ele. Sair parecia ser uma excelente ideia. Logo
concordou com a cabeça. Andaram em silêncio até uma cafeteria que tinha algumas poucas
pessoas.
— Eu não sei nem por onde começar. Minha vida mudou tanto nas últimas semanas. Eu só
quero que a Sara fique bem. Eu preciso na verdade.
— Eu entendo. Deixa que eu começo então. A Marcela disse que era para eu aguardar para uma
conversa com você, mas acabamos nos encontrando nessa emergência. A Sara chegou para mim
quando o diagnóstico de autismo ainda não estava fechado. Foi uma época bem difícil para
Marcela e para o Octávio, mas em especial para Marcela, ela sempre se culpa muito pelas
coisas, coloca-se como se não fosse importante para vida da Sara.
— Conversamos sobre isso esses dias.
— O autismo não é uma doença. É uma condição médica que diz muito mais sobre como a Sara
vai se relacionar com o mundo do que qualquer outra coisa. Claro que temos efeitos colaterais
disso quando ela tem infecção urinária porque não bebe água. Mas de maneira geral a Sara é
extremamente saudável.
— Eu não preciso me preocupar?
— Seria irresponsabilidade minha dizer que não. A situação é grave, inspira cuidados, mas
acho que em breve teremos tudo sobre controle. O resultado do exame sai em uma hora e com os
remédios corretos a Sara deve evoluir bem. Na verdade, eu queria que você se preocupasse com
a Marcela. Ela não come, perde peso, as dores de cabeça aumentam e por aí vai. Não deixe a
culpa consumi-la.
— Não vou deixar.

Finalizaram a conversa e Hugo voltou para o quarto. Encontrou Marcela com um olhar perdido
fitando a janela que mostrava o sol se pondo. Ela nem mesmo percebeu a presença de Hugo, só
quando ele lhe tocou o ombro ela foi desperta do transe.
— Tudo bem?
— Si. — Ela olhou para ele com um sorriso fraco e voltou a olhar a janela.
— Trouxe uma salada de frutas e um chá para você. Trouxe um sanduíche também. Eu acho que
você deveria comer, não é “uau que delícia”, mas é bem bom.
— No estou com fome, mas obrigada.
— Marcela, come alguma coisa. Você só tomou café da manhã, não estava se sentindo bem...
— Vou tomar o chá.
— Chá não é de comer. Salada de frutas ou sanduíche?
— Eu estou enjoada, Hugo — falou baixo, quase inaudível.
— Você não quer ver o médico, fazer um exame? — indagou, demonstrando preocupação.
— Não começa.
— Não começa o que, Marcela? Estou só preocupado com você!
— Não precisa, eu não estou grávida. — Ela foi ríspida.
— Eu nem falei nada sobre isso! Eu só posso me preocupar com você se estiver grávida?
— Verdade. Só se preocupa se for alarme falso. — A ironia era evidente.
— Não vou cair na sua. Você está de TPM, né? Vou relevar a injustiça que você tá fazendo
comigo dada a situação. Quando você falou sobre ser cruel não falou só da Sara. Só me avisa se
é para te ignorar ou nutrir ódio.
— Faça o que quiser — falou com desdenho.
— Você pode falar direito comigo? Nessa história não fui só eu que errei. Eu posso ter
cometido um erro, mas eu não escondi um filho de ninguém por dez anos.
— Estamos numa competição de quem fez mais merda?
— E advinha só? Você está na frente. Disparada na minha frente.
— Claro a culpa é minha agora.
— Eu não disse que é sua, mas também não é só minha. PORRA MARCELA! TEM DEZ DIAS
QUE EU CONHECI MINHA FILHA E AGORA OLHA ONDE ELA ESTÁ! Para de jogar toda
culpa em mim, especialmente porque toda vez que eu quero me explicar você não deixa!
— Não grita! Que inferno! Já te falei que não faz diferença. Já foi.
— Já foi porque não foi você que perdeu dez anos de vida da Sara, já foi porque é sempre a
sua versão da história que é a válida, já foi porque você pode sempre dizer o quão canalha eu fui
e eu tenho que ouvir calado e aceitar todo ódio e raiva e frustração em mim. Mas tudo o que eu
sinto eu tenho que guardar porque você não quer ouvir. Você é muito egoísta! Eu venho tentando
entender, relevar tudo, tudo, mas quer saber? Cansei de me preocupar com você! Faça o que
quiser da sua vida. Agora só me preocupo com a Sara.
Coelho se sentou no sofá, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e coçou a cabeça. Tinha
acabado de falar com o médico que ia cuidar de Marcela e acabou de ter possivelmente uma de
suas brigas mais feias.
Ouviu Marcela fungando baixinho. Era uma merda essa situação. Esse misto de sentimentos. A
montanha-russa que era amar e odiar a Marcela. Isso porque ainda nem haviam chegado no
assunto Felippo, esse sim iria desandar de vez as coisas.
Ele pensou em se desculpar, mas ele precisava colocar tudo aquilo para fora e não estava
exatamente arrependido, talvez não fosse o melhor momento, mas quando seria? Decidiu
permanecer em silêncio até a entrada do médico. Logo ele percebeu o clima tenso no ar e tinha
uma cara de quem queria saber o que estava se passando.
— O exame confirmou o que já havíamos suspeitado. Sara está com meningite bacteriana, já
vamos iniciar com os antibióticos corretos e esperamos ter uma melhora em breve. Vocês têm
alguma dúvida?
Ambos negaram com a cabeça. E o médico os deixou. O clima permaneceu estranho entre eles.
E todas as visitas que recebiam percebiam o clima, que ia além da preocupação com Sara. Clara
tentou arrancar da amiga alguma coisa, mas não teve sucesso, assim como Maria Lúcia não teve
sucesso tentando com Hugo.
Os dois dias dados para reavaliação passaram devagar para Hugo e rápido para Marcela.
Hugo vez ou outra saía do quarto para comer e tomar um banho em casa. Já Marcela se recusava
a deixar o quarto e fazia as refeições, ainda que poucas, por lá mesmo e tomou banho com as
coisas que Maria Isabel trouxe.
Resultado da reavaliação: mantida sedada. Não respondendo bem aos antibióticos. Nova
avaliação em dois dias.
A notícia deixou todos decepcionados. O clima entre Hugo e Marcela não melhorou. Pelo
contrário. Era pesado. Não mais conversaram depois da discussão e falavam somente o mínimo,
sempre sobre o estado de Sara. A aparência dos dois não era das melhores. Cansaço, abatimento
e tristeza. Como não estar? A filha deles, de dez anos, não estava nada bem.
E ficou pior.
Antes de completarem os dois dias para reavaliação, a febre de Sara, que havia diminuído,
voltou a aumentar. O quadro de sepse, quando a infecção era sistêmica, havia se instaurado. Um
novo protocolo foi iniciado e parecia estar indo bem, mas maltratou os rins de Sara que passou a
fazer diálise.
Marcela revivia seus piores dias, da época em que Sara estava na uti neonatal e ela nada podia
fazer. Sempre viveu a sensação de que tudo tinha sido tão sofrido por conta da ausência de Hugo.
Pois vejam só, estavam os dois ali, porém separados. E acredite. Doía muito mais. Antes ela
tivesse sozinha de verdade. Vê-lo sofrendo era bem pior do que estar sem ele.
Hugo por sua vez refletia bastante sobre como sua vida havia mudado em tão pouco tempo. A
rapidez com que as coisas aconteceram o assustava. Nos últimos seis meses tinha reencontrado a
mulher da sua vida, a visto dizer que era indiferente a ele; lembrado de como só a presença dela
já o tornava mais feliz, e sofrido por mais uma tentativa frustrada de finalmente ter um filho. E
eis que nas últimas semanas sua vida sofreu uma reviravolta com a descoberta de Sara e tudo que
a envolvia.
O susto.
O encanto.
A paixão.
A decepção.
O perdão.
A insegurança.
A confiança.
O desconhecido.
O êxtase.
O medo.
De tudo, o que tomava conta era o medo.
E se Sara for só um lampejo em sua vida?Se tudo que lhes foi reservado foram alguns dias?
Havia tanto que ele queria que eles vivessem juntos.
Havia tanto que queria saber sobre Sara.
Será que tudo termina e a última lembrança que eu tenho dela é ela dizendo que eu não sou o
pai dela?
O universo não faria isso comigo, faria?
Sempre reavaliando a situação de Sara a cada dois dias, chegamos a dez dias. O atraso nas
gravações de Bestchef fez com que a emissora soltasse uma nota informando sobre o afastamento
dos chefes. O público logo se preocupou e foi necessário que Marcela e Hugo também soltassem
uma nota explicando a situação, sem muitos detalhes, mas o suficiente para receberem o carinho,
as orações e vibrações positivas do público.
Sara apresentava significativa melhora e por isso retiraram a sedação. Só faltava ela acordar.
Só isso.
Os reflexos estavam sendo monitorados. Todos ok.
É só abrir os olhos, por favor.
Quatro dias.
Quatro dias esperando.
Quatro dias e nada.

— Marcela?!
— Oi — ela boceja. — Desculpa, não estava prestando atenção. Você entrou e eu nem vi.
— Tudo bem, querida. Como está nossa menina? — Maria Lúcia depositou um beijo no topo
da cabeça de Marcela.
— Nada mudou. Pode conversar com ela, o médico disse que ela ouve.
— Olá, Sarinha, tudo bem, querida? Vovó veio tirar sua mãe desse quarto para dar uma volta,
ok? Daqui a pouco voltamos.
— Eu não posso deixá-la sozinha.
— Ela não vai ficar sozinha, Hugo vai ficar aqui. Eu vim hoje por sua causa. Vamos, querida,
existe um mundo fora desse quarto.
— Hugo, me liga se alguma coisa acontecer.
— Pode deixar.
Elas andaram em silêncio até chegar à capela. Maria Lúcia entrou e Marcela ficou parada na
porta.
— Vamos, Deus não morde.
— Eu e Deus não nos damos muito bem.
— Tem certeza?
— Si.
— Encare como uma sala qualquer, só precisamos dos bancos e da privacidade, na verdade.
Você não está bem. Hugo está preocupado.
— Minha filha está em coma há duas semanas, acho que é normal não estar bem.
— Ah, sim, mas eu estou falando da culpa. Queria saber o porquê de tanta culpa.
— Eu que inventei de mandá-la para o acampamento.
— Não é só isso. Eu vim para te dar colo. Acho que é disso que você precisa. Um colo de mãe.
Para chorar e ser consolada. Me conta, filha, o que te aflige? — Ela fez sinal para que Marcela
se deitasse com a cabeça no colo dela, e assim ela fez. Maria Lúcia acariciava os largos cachos
de Marcela.
— Eu quis que a Sara morresse.
— Toda mãe já quis que seu filho morresse. Eu inclusive já quis matá-los eu mesma.
— Quando Octávio morreu foi horrível. Mas o pior foi o comportamento da Sara. Eu fiquei
com muito medo. Primeiro com a frieza com a qual ela lidou com tudo e depois o quão mal ela
ficou. Isso me apavorou e é horrível porque toda mãe espera morrer antes dos filhos, mas desde
então eu só pensava que ela precisava morrer antes de mim. Não podia deixar ela sozinha ou
com o Felippo. Éramos só nós duas. E eu estava bem com isso. Venho me preparando para isso.
— E o que mudou? Você estava bem, mas não está mais.
— O Hugo. Eu tive dez maravilhosos e difíceis anos com a Sara. Hugo teve menos de um mês.
O quanto ele sofre me fez perceber o quão egoísta eu estava sendo e isso vem me consumindo.
Eu estou tão arrependida. Eu não estou pronta para ver minha filha morrer. Ela não vai mais ficar
sozinha. O pai dela estará aqui. Eles se amam tanto. No é justo.
— Ela vai ficar bem, querida. Mas sinto que não é só isso.
— Eu fui tão cruel com Hugo, ele não merecia.
— Então peça desculpas. Vocês são dois cabeças-duras. Ele me falou a mesma coisa. A Sara
vai acordar. Vocês não podem ficar assim. Você está tão magrinha. Sara vai tomar um susto
quando te vir. Ainda com enjoos?
— Si.
— Já não está na hora de fazer um teste, meu bem?
— Eu não posso ficar grávida agora.
— Não vai ser o teste que vai te deixar grávida, querida. Se você estiver, já está. Mas se não
estiver, precisa saber o que está acontecendo. Eu sei que pode ser muita coisa ao mesmo tempo,
mas você precisa estar bem para quando Sara acordar. Você não está bem. Você quer que eu vá
com você? Estamos em um hospital, em menos de uma hora teremos o resultado.
Marcela concordou e seguiram para o andar dos laboratórios. Aguardava apenas seu curativo
no local onde haviam retirado seu sangue quando seu telefone tocou e num salto ela se levantou
da cadeira ao ver o nome de Hugo na tela do celular.
— O que houve?! — ela falou, apreensiva.
— Tem uma mocinha acordando.
— No tem graça, Hugo!
— Eu não estou brincando, jamais faria isso. Ela está me olhando agora. Vem logo. Nossa Sara
acordou.
CAPÍTULO 35

Durante dias não ela não deixou o quarto.


Durante dias não tirou os olhos de Sara.
— O que aconteceu, querida? — Maria Lúcia perguntou apreensiva.
— A Sara acordou.
Marcela nem mesmo deixou que finalizassem o curativo e muito menos esperou Maria Lúcia.
Saiu correndo pelos corredores em direção ao quarto.
Parou na porta e seus olhos mal podiam crer.
Ela realmente acordou.
O médico a examinava e Sara olhava para Hugo, que tinha o olhar mais bobo possível.
Marcela se aproximou dele para que Sara a visse. Hugo percebendo a aproximação de Marcela a
puxou para um abraço e passaram juntos a aguardar para falar com a filha. Tímidas lágrimas
escorriam pelos olhos de ambos. Parecia que toda tensão que tinha se instaurado nas últimas
semanas se dissipou naquele momento. Ali, a única coisa que importava era saber se a filha
deles estava bem.
E ela estava.
— Como se sente? — o médico perguntou.
— Com fome? — Marcela e Hugo sorriam ainda mais bobos.
— Fome?! Interessante! E o que quer comer?
— Para entrada, ajo branco da minha mãe; para o prato principal, purê de mandioquinha com
carré de cordeiro do meu pai; e sorvete de doce de leite de sobremesa.
— Só isso?! — o médico perguntou enquanto todos riam.
— Por hora só.
— Acho que seus pais podem providenciar essa refeição para você, mas só dessa vez, Sara.
Você sabe que não pode ter comida de fora aqui no hospital, ok? Bom, aparentemente está tudo
bem, mais tarde eu volto para saber como você comeu.
O médico deixou a sala junto com sua equipe e Marcela e Hugo finalmente se aproximaram de
Sara. Um de cada lado da maca, sentaram-se e a envolveram num abraço triplo.
— Vocês brigaram? — Eles não se encaravam e desviaram os olhares. Como explicar para
Sara? — Por que vocês brigaram? — Eles permaneciam sem saber o que fazer. — Foi minha
culpa, não foi?
— Claro que não, filha! — Hugo falou, olhando Sara.
— Foi minha culpa, mi amor. Foram minhas decisões, nós já tínhamos conversado que isso
poderia acontecer.
— Mas foi por causa do que eu falei? — Pela primeira vez na conversa eles se olharam. —
Desculpa, pai.
— Tudo bem, eu fiquei triste na hora, mas já passou. O que importa é que você está aqui. Que
você está bem. Eu tive tanto medo de te perder. Eu sei que você não queria falar aquilo.
— Se eu falei, foi porque eu queria.
— Sara, não... — Marcela falou em tom de súplica, fazendo Hugo desviar a atenção de Sara
para Marcela, ele estava confuso.
— Não o que, Marcela?!
— Eu quero saber por que você foi para Paris.
— Não, Sara! — Marcela falou firme, mas em tom baixo.
— Eu não aguento mais essa história de assunto sensível. Esse suspense se vocês vão se dar
bem ou não. Pai, você não me abandonou. Eu sei. Você me ama, eu sei. Eu também te amo. Mas
você magoou minha mãe e isso ainda dói muito nela. Eu amo minha mãe também. Eu preciso que
vocês conversem de verdade. Preciso que a gente seja uma família de verdade.
— Eu já tentei, Sara. Sua mãe não quer. Não posso forçá-la. Não quero fazer isso com vocês
duas. E no fundo, acho que é como sua mãe diz, não faz diferença. Não mais. Já faz muito tempo.
Não podemos mudar o passado. O que foi feito já está feito.
— Se não faz diferença, não faz diferença eu saber.
— É um bom ponto.
Marcela se levanta da cama e vai rapidamente até o banheiro. Sendo acompanhada pelos
olhares atentos de Sara e Hugo.
— Sua mãe não está bem, alivia um pouco. A gente conversa sobre isso depois. Em casa, com
calma. Outro momento.
— Você não a amava mais?
— Eu nunca deixei de amar sua mãe. Nem um pouco.
— Eu não entendo. Por que você foi embora? Por que você só deixou um bilhete?
— O que sua mãe te falou?
— Não muito, ela não gosta de falar disso. Mas eu estou cansada de todas essas coisas que não
são ditas. E agora vocês brigaram.
— Esse assunto também me machuca bastante. Mas eu respeito a decisão da sua mãe de não
falar sobre isso. Desde que a reencontrei eu quero conversar, mesmo antes de saber de você. E aí
eu entendi por que ela evitava tanto. Eu tentei de novo, mas ela não quer.
— E se ela realmente estiver grávida? Vocês vão continuar brigados?
— De onde você tirou isso?
— Você não contou para ele, mãe?! — Hugo desviou a atenção para porta do banheiro onde
Marcela estava estática. — Vocês me falaram várias coisas quando eu estava dormindo. Eu me
lembro.
— Você está grávida, Marcela?!
— Eu tinha certeza que não, mas eu não sei mais, Hugo — ela suspirou pesadamente. — Mas
saberemos em breve. Eu estava fazendo o exame quando você me ligou.
— Por que você não me contou? Mania de querer sofrer sozinha.
— Ah, não! É claro que a culpa é minha. Não vamos brigar de novo. Eu não tenho cabeça para
isso. — Ela deixou o quarto logo sendo seguida por Hugo.
Na saída, Hugo passou pela mãe e fez sinal para que ela ficasse com Sara. Ele se colocou a
seguir Marcela pelos corredores do hospital parando num jardim.
— Marcela...
— Hugo, por favor, eu quero ficar sozinha.
— É isso que eu falo de você querer sofrer sozinha. Eu estou aqui. Estamos há duas malditas
semanas trancados naquele quarto e você foi incapaz de me contar.
— Eu não acho que estou grávida.
— Tínhamos combinado de ser amigos. Esse é exatamente o tipo de coisa que você conta aos
amigos. Que você desabafa para os amigos.
— Ela não pode saber...
— Ela quem? Não pode saber o que? — Hugo estava confuso e apenas recebeu silêncio e
muitas lágrimas de Marcela. — Você não quer ter esse filho — ele falou, fazendo Marcela chorar
ainda mais, o que levou Hugo a acolhê-la em seus braços. — Tudo bem. Eu respeito sua decisão.
Mas eu queria que você soubesse, caso ainda não esteja claro, que eu estou aqui. Não vou a lugar
nenhum.
— Ela não pode saber, Hugo. A Sara não pode saber.
— Eu não vou contar.
— Ela não pode saber sobre o Felippo, por favor. Ela não vai aguentar. Vai magoá-la demais.
— Saber o que, Marcela? Você está grávida dele?
— Não! Pelo amor de Deus, Hugo! Sobre Paris.
— Você sabe?! — ele disse, afastando-se incrédulo e Marcela apenas concorda com a cabeça,
sem nem mesmo encará-lo. — Você sabe e ainda assim me manteve afastado da Sara?!
— Só tem um mês que eu sei. Hugo, por favor — ela falava baixo em tom de súplica.
— E você continua colocando a culpa em mim?
— Muda as coisas, mas não tira sua culpa. Não fui só eu a não dizer o que tinha que dizer. Se
eu tenho mania de sofrer sozinha você tem mania de me proteger. Você tinha que ter falado
comigo. Ele armou para você e você caiu. E isso não é minha culpa.
— Eu caí porque você escondeu de mim.
— Nós dois erramos.
— Eu não quero esse cara na vida da Sara.
— Eu não posso fazer isso com ela. Ela já perdeu o pai.
— Eu sou o pai dela. Eu estou aqui.
— Você entendeu, Hugo.
— Eu entendi que tudo bem ficar passando pano para o babaca do Pipo. O real culpado de
termos ficado separados, de eu não ter visto minha filha crescer e da mulher que eu amo não me
amar mais. E eu ainda tenho que ver esse cara?!
— Eu não gosto de vê-lo também. Assim como também não gostava da ideia de te ver. Mas
fazemos sacrifícios pelos filhos. Uns doem mais e outros menos.
— Que sacrifício.
— Você deve ter esquecido o que Felippo fez comigo. E eu o tolerei durante todos esses anos.
— Eu não entendo por quê! Por que você deixou esse cara fazer parte assim da vida da Sara?
Da sua vida?
— Eu não deixei. Ele estava lá. Eu não sabia o que fazer. Ele foi importante. Eu não teria
conseguido sem ele. A Sara não teria conseguido sem ele. A Sara não estaria aqui se não fosse
por ele.
— Ela estava internada em Campinas, foi um exagero trazê-la de helicóptero!
— Ela não estaria viva! Ela teria morrido. Eu não tinha dinheiro. Você não sabe quanto
custaram os 62 dias de internação da Sara. Ela não tinha absolutamente nada. Nenhuma roupa.
Nenhuma fralda. Nada. Nem a mim ela tinha. Ela só teve ele nos primeiros dias. Ele foi lá todos
os dias. Eu só fui ver a Sara porque ele me obrigou. Ele me mostrou a primeira foto dela. Ele me
apresentou ela. Me convenceu a não odiá-la como eu te odiava. Claro que hoje eu sei que era
culpa, mas durante anos eu aceitei tudo como gratidão. E ainda sou grata. Ele me tirou você, mas
me deixou a Sara.
— Que generoso ele.
— Você não vai precisar encontrá-lo. Eles só vão se ver quando a Sara for para o Rio sem nós
ou se eles viajarem juntos.
— Eu não quero! Nunca mais.
— Boa sorte em contar para Sara. Eu não vou falar. E se minha filha ficar mal por isso eu não
vou te perdoar. Quase a perdemos, passamos duas semanas horríveis. Quero ver quanto tempo
você aguenta vê-la miserável. Porque é assim que ela vai ficar — ela falou, deixando o jardim.

Ela prontamente foi seguida por Hugo. O caminho foi feito em silêncio. Cada um com seus
pensamentos. Marcela num mantra para que Hugo deixasse tudo para outro momento, de
preferência nunca. Hugo tentava controlar todo o misto de sentimentos para agir da melhor forma
possível. Marcela não mentiria para ele. E se isso realmente acabasse com Sara?! Se ela ficasse
com raiva dele por causa de Felippo?
— Espero que vocês tenham feito as pazes. — Marcela e Hugo se entreolham mas logo
desviam seus olhares para o chão e são incapazes de olhar para Sara. — Era para vocês
conversarem e não brigarem mais! Eu quase morri, agora estou aqui e vocês dois com essa cara
de enterro?!
— Enterro?! Eu vim porque fiquei sabendo que minha Sarita tinha acordado!
— Pipo! — Sara falou, empolgada ao vê-lo parado na porta.
— Eu falei para você não vir sem ser chamado! — Marcela falou com os dentes trancados.
— Sara me chamou! — ele disse, já se aproximando da cama.
— Por que o Pipo não podia vir?! — Sara perguntou confusa.
— Na verdade, foi uma ótima ideia, filha — Hugo falou. — Você queria tanto saber por que eu
fui para Paris e só deixei um bilhete para sua mãe. Acontece que o Pipo conhece bem a história,
não é mesmo, Felippo?! Conta para Sara o porquê de eu ter ido para Paris.
CAPÍTULO 36

DEZEMBRO DE 2004
— Hugo, nós vamos acabar perdendo o voo!
— Eu acho que deveríamos ir de carro!
— Não dá tempo, não inventa. Assim a gente pode aproveitar melhor as poucas horas livres
que temos no Rio.
— A gente podia estender essa estadia uns dias...
— Hugo, eu preciso trabalhar e você procurar um trabalho.
— Com o dinheiro dessa festa eu posso ficar um tempinho procurando com calma. Ou você me
contrata de novo.
— Já conversamos, você sabe que eu não posso. O táxi chegou. Vou te deixar aí.
— Calma, estou saindo — ele falou, batendo a porta enquanto Marcela segurava a porta do
elevador. — Se alguém te falasse, no dia que você me chamou para ir para o Rio, que estaríamos
namorando, você acreditaria!?
— Óbvio que não. Tenho dificuldade de acreditar ainda.
— Vá se acostumando. Na verdade, é melhor não.
— Vai me dispensar?!
— Não, vou me casar com você!
— Ah, verdade. Sua mãe me falou.
— O que me diz?
— Que você é muito convencido, no acha?
— Não sou convencido, só acredito muito na gente. Logo, não imagino outro futuro para nós.
Daqui a dez anos: nossos filhos, nossos restaurantes...
— Filhos?! No plural?
— Restaurante também no plural.
— Eu no tenho que parir um restaurante.
— Vamos planejar ter um filho, depois os outros podem ser acidente.
— Um planejado e outros, no plural? Você só pode estar muito louco.

— Quartos separados?! — Hugo falou incrédulo.


— Si. Felippo é mesmo um amor — ela falou, sendo irônica — Teria como a gente trocar os
dois quartos por um upgrade?!
— Vou verificar, senhorita Campana. — A recepcionista falou enquanto verificava no
computador e fazia uma ligação — Nós temos uma suíte. Faturo no mesmo cartão?
— Si, por favor.
— Não vai dar merda? — Hugo perguntou quando eles já se encontravam no elevador.
— No se preocupe.
Apenas deixaram as coisas no quarto e foram direto ao Pão de Açúcar, local da festa, onde já
eram aguardados pela mesma equipe com que trabalharam no casamento de Felippo.
As preparações corriam de acordo com o planejado. Diferentemente do que ocorreu no
casamento, todos os pratos ficavam prontos e livres para degustação na mesa da ceia durante
toda festa, logo, Hugo e Marcela não precisariam ficar na cozinha, apenas garantir que tudo
estava seguindo como planejado e, portanto, curtindo a festa.
— Eu fico chocado como você consegue sempre ficar mais linda.
— Você também está charmosíssimo — ela falou com sotaque carregado e em seguida
depositando um selinho nos lábios dele. — Você conferiu o ponto do pato antes dele ir para
mesa?
— Sim, chefe. As pana-cotas já chegaram no ponto e o creme brulée já está esfriando.
— Ótimo. Vamos então?
— Por favor — ele falou, cedendo o braço másculo como apoio.
Adentrando a mais uma festa na alta sociedade carioca. O casal de cozinheiros posou para os
fotógrafos e logo foi abordado pelos anfitriões, Ana e Felippo.
— Marcela, como sempre um acontecimento — Ana comentou, cumprimentando-a — Hugo
igualmente elegante.
— Obrigada, Ana e mais uma vez obrigada pelo convite — Marcela respondeu de maneira
cortês.
— Sei do seu talento, quero comer sempre sua comida, ainda mais agora, esses desejos me
deixam louca — falou, passando a mão pela barriga e evidenciando uma gravidez ainda discreta.
— Oh, meus parabéns! — Hugo falou, quebrando o silêncio que se instaurou. — Imagino ser
um momento incrível.
— Sim, estamos muito felizes, especialmente Felippo. Ele sempre quis ser pai. Vocês querem
ter filhos?
— Com certeza — Hugo respondeu prontamente.
— Eu teria mais cuidado em relação às certezas que você tem sobre Marcela, o tombo pode ser
grande.
— Bom, enquanto casal, temos nossos pensamentos alinhados, agradeço a preocupação. Quem
sabe não encomendamos um bebê a cegonha hoje mesmo, né, Marcela?
— Com licença, preciso ver uma coisa na cozinha — Marcela falou, retirando-se da presença
de Felippo e Ana e logo sendo seguida por Hugo.
— Ei, tudo bem? — Hugo falou, tocando no braço de Marcela, que parecia admirar a vista.
— O que deu em você?
— O que eu fiz?
— Vamos encomendar um bebê hoje, Hugo? Que mierda de ideia é essa?
— Calma, foi uma brincadeira.
— No tem a menor graça. Nenhuma graça. Já conversamos sobre isso.
— Me desculpa.
— De todas as pessoas do mundo você tinha que falar sobre isso logo com o Felippo?
— Eu estava só tentando manter uma conversa com a única pessoa que não fazia ideia do que
se passou, já que você e o Felippo não falaram nada. Eu deveria deixar a mulher falando
sozinha?
— Você pode verificar se está tudo certo na mesa e na cozinha? Eu já vou — ela falou.
Ele entendeu o recado. Ela queria ficar sozinha. Seguiu o que foi pedido, afinal, ela não
deixava de ser sua chefe. Hugo queria dar espaço a Marcela e por isso se manteve ocupado com
seu cargo de subchefe.
Já próximo da meia-noite, ao procurar por Marcela a avistou ao longe numa discussão
acalorada com Felippo. Mais uma vez optou apenas por observar, não queria se intrometer, mas
não queria também que a situação saísse do controle. Ele não sabia há quanto tempo a conversa
tinha começado, mas não assistiu por muito tempo, pois logo alguém veio chamar Felippo.
A deixou sozinha por mais um tempo até se aproximar assustando-a.
— Carajo, Hugo! Quer me matar? — falou, dando um tapa no ombro dele enquanto a outra mão
estava sobre o coração acelerado.
— Calma, Marcelinda! — Ele a abraçou por trás, depositando beijos na nuca exposta e
repousando o queixo sobre o ombro dela. — Já é quase meia-noite.
— Si. Vamos pegar as taças e esperar para ver a queima dos fogos?
— Vim te buscar para isso.
Hugo sabia que não havia porquês para perguntar a Marcela naquele momento sobre a
discussão que ele ao longe presenciou. Faltavam apenas três minutos para virada do ano.
Ano esse que se encerrava; um ano de tantas mudanças. Largar de vez o escritório, que por um
tempo conciliou com a faculdade, para dedicar-se integralmente a gastronomia. Conhecer
Marcela por um erro, e que produziria o melhor acerto. Não havia nenhuma dúvida, era ela. A
mulher da vida dele. Com quem ele queria passar o resto dos seus dias. E fazê-la feliz era a
missão que ele assumiu. E ter uma linda família com ela.
Não era tão diferente assim para Marcela. Mal podia acreditar que finalmente tinha se aberto
para alguém novamente, dado uma nova chance ao amor. Quebrou regras e barreiras internas
para permitir que isso acontecesse. Como era bom amar, ser amada e amar de volta. Hugo havia
mostrado que estava lá para ela, nos momentos mais difíceis, e não foram poucos: a morte do pai
dela, o casamento de Felippo, a suposta gravidez e a maldita apendicite.
Ao fundo se ouvia a contagem regressiva, mas os dois estavam mergulhados nos infinitos
reproduzidos pelo olhar da pessoa amada.
O quão profundo pode ser o mais raso espelho d’água?
Dentro de um olhar cabe todo um universo de sentimento.
Não são necessárias palavras, as vezes elas nem cabem, não dimensionam todo o poder, são
incapazes de traduzir o entrelace de almas que ocorre.
O barulho dos fogos os retirou do transe e eles agora sorriam, não aquele sorriso tímido, mas
também não era aquele sorriso para mostrar os dentes. Aquele sorriso que movimenta todos os
músculos da face e que só pelos olhos somos capazes de perceber. Aquele sorriso que não dá
para segurar.
A queima de fogos é linda, mas o espetáculo em si é estar com quem se ama. As cores são
outras, os sons são outros, as sensações são outras. A vida é outra.
— Está pronta para esse novo ano?
— Acho que si e você?
— Estou. Está pronta para casar comigo? — ele perguntou com tom despretensioso.
— Si.
— Você ouviu a pergunta? — Ele pegou uma das mãos de Marcela e depositou um beijo.
— Si, ouvi.
— É sério isso? Não brinca com meu coração, Marcela! — ele falou, não sendo capaz de
controlar o sorriso e levando a mão de Marcela ao seu coração.
— Era séria a pergunta? — Ela passou a mão livre pelo rosto de Hugo.
— Claro, pô!
— Então era séria a resposta — ela fala e finaliza com um sorriso que desmonta qualquer ser
humano.
— Calma, preciso confirmar. — Ele se afasta dela. — Caralho! — Ele anda em círculos na
frente de Marcela. — Estou nervoso. — Para na frente dela é a encara enquanto coça a barba. —
Você aceitou se casar comigo, Marcela?
— Si, homem! Si, Hugo. Eu, Marcela, aceito me casar com você. — Marcela gargalha da cena.
Lágrimas corriam pelo rosto de Hugo e brotavam tímidas nos olhos de Marcela. Com passos
firmes ele encurtou a distância entre eles. Acariciou com fascínio o rosto de Marcela, como
quem quisesse gravar para sempre aquele momento na memória. Depositou um beijo na testa dela
e depois traçou um caminho até seus lábios, onde deu início a um beijo lento, carregado de
sentimento. Finalizando com um beijo casto.
— Meu Deus, obrigado! Calma, eu tenho uma coisa para você. Cadê? — Ele apalpava todos os
bolsos da roupa. — Meu Deus! Me ajuda!
— Calma, Hugo. Você vai acabar passando mal! — Ela ria das reações desesperadas dele.
— Você disse sim! Eu já estou passando mal. Não achei que você fosse aceitar.
— Quer que eu diga não?
— NÃO! Por favor, não! ACHEI!!! — Ele tinha um saquinho de veludo preto na mão. — Você
não precisa aceitar. Bom, eu ficaria feliz se você aceitasse, mas vou entender se não quiser. Esse
anel era da minha avó e eu pedi a ela para te dar.
— Sua avó não morreu?!
— Porra, Marcela! Está me atrapalhando. Eu pedi na semana em que eu comecei no Sara. Eu
sabia que era você. Eu falei para ela que eu tinha conhecido a mulher da minha vida. Eu queria
tanto que vocês tivessem se conhecido.
— É lindo. Eu amei. Eu sinto muito por não a ter conhecido. Sei que ela era muito especial
para você.
— Sim, era. Eu comprei essa corrente porque sei que você não usa anel, mas se não quiser usar
nem um nem outro, tudo bem também... — ele falava de forma acelerada.
— Hugo! — Ela falou num tom mais alto e firme, capturando imediatamente a atenção dele. —
Calma. — Ela se aproximou, tomando o rosto dele em suas mãos — Eu amei tudo, que você
pensou em tudo. Eu te amo.
— Eu te amo. Te amo demais.

AGOSTO DE 2015
— E aí, família? — Clara recebeu Hugo, Marcela e Sara no estúdio.
— Oi — Sara respondeu em tom baixo, sem nem mesmo retirar os olhos do livro que devorava
e seguiu para o canto, onde sentou-se no chão.
— Nada ainda? — ela perguntou aos pais.
— Não, Clarinha, Sara ainda não está falando com a gente.
— Estou preocupada com o ensaio de Dia dos Pais. É em dois dias.
— Tinha me esquecido. Não sei se vai rolar... — Ele coçou a barba — O que você acha,
Marcela?
— Não sei por que você quer saber o que eu acho se vai ignorar o que eu falo.
— Ei, a Sara é criança, mas vocês dois podiam lidar melhor com a situação. Vocês têm que
passar por isso juntos!
— Vão falar com ela. Vocês dois. Eu não tenho absolutamente nada a ver com isso — Marcela
falou com certa impaciência, já andando em direção ao camarim.
— É, amigo, a situação não está fácil para você — Clara falou, dando tapinhas no ombro de
Hugo. — Achei que a situação entre vocês e a Sara iria melhorar depois dos dias com a sua mãe.
— Ela estava bem em Piracicaba, estava feliz, o problema é com a gente mesmo. Mas meu pai
ficou doente e a Sara ainda não tá 100%, o pediatra achou melhor trazê-la. Eu também esperava
que ela voltasse mais de boa com tudo, mas você conhece as Campana.
— Eu vou conversar com as duas, não prometo nada. Não aguento mais vocês assim, nesse
sofrimento. Eu planejei um ensaio tão lindo, não estou acreditando que isso tudo está
acontecendo por causa daquele ridículo do Pipo.
— Nem me fala desse verme, Clarinha. Eu estou reconquistando a família que esse cara roubou
de mim.
— Eu sei, amigo, eu sei. Vá se arrumar.
Hugo seguiu pelo corredor e sumiu de vista ao entrar no camarim. Clara se aproximou de Sara.
— Dona Sara, como foram esses dias na sua avó?
— Bons.
— Seus pais sentiram sua falta.
— Tô sabendo. Eles falaram.
— Você ainda vai ficar chateada com eles por muito tempo?
— Não estou com pressa.
— Entendi. Bom, lembra daquele ensaio e entrevista para o Dia dos Pais?
— Sim, depois de amanhã. Pode deixar. Eu vou.
— Sabe que não fica bom se você não quiser estar lá. E eu entendo, tudo bem se você não
quiser.
— Eu não posso fazer isso com meu pai. Apesar dele merecer. Em parte.
— Muitas pessoas erraram nessa história e estão sofrendo com a consequência disso até hoje.
— Clara, eles precisam conversar, não dá para seguir assim.
— A senhorita não está ajudando não falando com eles. Marcela não vai falar com Hugo
enquanto você estiver sem falar com eles.
— Eu sei.
— Eu sei que você entendeu que por mais que eles tenham suas parcelas de culpa nisso tudo,
sabemos quem é o maior culpado.
— Sim, infelizmente ou felizmente, depende da perspectiva.
— Você não tinha que passar por nada disso, eu sinto muito, de verdade. Mas seus pais te
amam. E estão sofrendo muito com isso.
— Eu sei. Eu só preciso de um pouco mais de tempo.
— Tudo bem. Bom, agora vou falar com a sua mãe. Se precisar de qualquer coisa pode contar
comigo, ok?!
— Obrigada, Clara.
Clara seguiu até o camarim.
— Precisamos conversar, Marcela.
— Se você veio defender o Hugo, nos poupe.
— Mana, você não está sendo muito dura?
— Clara, eu falei para ele o que aconteceria, que a Sara ficaria mal. Minha filha não está
falando comigo porque ele não podia ficar quieto.
— Eu só tenho a versão dele. Você não quis me dar a sua. Com o que eu tenho de informação
estou do lado do Hugo. Sou sua amiga, sou amiga dele, amo a Sara, quero vocês bem. Os três
merecem isso.
— Eu não aguento mais. De verdade. Eu preciso de paz na minha vida. Preciso que as coisas se
resolvam. Estou cansada. Com dor de cabeça. Não consigo comer de tanto enjoo.
— Conversa comigo. Eu quero ajudar. Me conta como foi.

POUCOS DIAS ATRÁS


— Na verdade, foi uma ótima ideia, filha — Hugo falou. — Você queria tanto saber por que eu
fui para Paris e só deixei um bilhete para sua mãe. Acontece que o Pipo conhece bem a história,
não é mesmo, Felippo?! Conta para Sara o porquê de eu ter ido para Paris.
— Eu não faço ideia do que você está falando — ele respondeu na defensiva. — Sarita...
— Pipo, o que você sabe sobre isso? — Ela o interrompe. Seu tom de voz é baixo, porém
firme.
— Isso tem tanto tempo... Eu já nem me lembro mais.
— Você quer ajuda para lembrar?! — Hugo falou incisivo.

06 DE JANEIRO DE 2005
— Hugo?! — Ela o cutucou – Vamos! Levanta!
— Calma aí, Marcela. Estou de férias.
— Que férias, garoto?! Você está desempregado. É diferente. Vamos!
— Pior que a minha mãe...
— Talvez eu te devolva para ela antes mesmo de assinar qualquer coisa...
— Nem brinca com isso, Marcela! — ele falou, sentando-se na cama.
— Ok. Bom, já que você não quer passar uma temporada em Paris, fiz algumas ligações e você
tem uma entrevista com o Frederic Nantes hoje, em 2h. Por favor, não atrasa?!
— Com o Nantes?! Pode ter certeza que não!
— Ok. Estou saindo. — Ela deu um selinho nele, que logo agarrou sua cintura e aprofundou o
beijo, mas logo foi interrompido por Marcela. — Eu tenho que ir. Boa sorte.
Ela saiu do apartamento e ele ficou jogado por mais alguns minutos na cama, mais
precisamente até seu estômago roncar. Foi até a cozinha e fazia ovos mexidos quando ouviu a
campainha.
— Você mora aqui?!
— Não acho que eu tenho que responder essa pergunta.
— Ok, cadê a Marcela?
— No Sara.
— Ela te banca?
— Mano, não sei qual é o seu problema comigo. Mas já que tem, por que me chamou para ir à
festa de ano novo?!
— Não fui eu. Eu nem sabia, foi minha esposa.
— Aí é um problema de vocês dois. Falta comunicação nesse relacionamento.
— Nós não somos o único casal com falta de comunicação.
— Não sei do que você está falando?
— Bom, já achou um novo estágio?
— Como você sabe disso?
— Como dono do restaurante eu sei todos que trabalham para mim. Sendo assim, Felippo
Cavangiolli, sócio majoritário do Sara Bistrô.
— Marcela teria me contado.
— Assim como Anastácia teria me contado que chamou vocês dois para minha festa de
Réveillon. Bom, tenho certeza de que você pode confirmar isso com qualquer colega mais antigo
do restaurante. Especialmente os que já estavam aqui quando Marcela matou nosso filho. Aposto
que ela não contou isso.
— Ela não fez isso, eu sei que não fez.
— Bom, é só a versão dela. Mas no fundo ela não passa de uma egoísta interesseira. Vai ficar
arrasada quando perder o restaurante.
— Está falando isso para mim por quê?
— Porque você pode resolver o problema.
— Bom, qualquer problema que ela tenha, também é meu.
— Pois bem. Eu estou achando que ela está muito feliz. Tudo indo bem no restaurante. Está
apaixonadinha por você. Não estou gostando. Ela muito feliz começa a me dar problema.
— Você sabe que isso se trata na terapia, né?
— Acontece que eu tive uma ideia mágica. Eureka! Eu vim disposto a tirar o restaurante dela.
Mas conversando aqui com você, vou deixar você escolher. Ou ela fica com o restaurante ou com
você.
— Não sou eu quem tem que fazer essa escolha.
— Eu estou dando a opção a você. Você pode salvar o Sara. Suma da vida da Marcela e ela
fica com o restaurante. Se ela tivesse que escolher, você sabe o que ela escolheria, né? Não tem
nada mais importante no mundo para Marcela Campana do que o Sara Bistrô.
— Eu não posso simplesmente sumir.
— Não, você vai embora. Deixa um bilhete, frio; e vai embora. Sem contato, sem despedida.
Agora.
— Eu não posso.
— Tudo bem; avise a Marcela para encerrar as operações no Sara até o final do mês.
— Você é um filho da puta.
— Um filho da puta com dinheiro.
— Eu não tenho como sumir.
— Eu te ajudo, pelo seu amor a Marcela. Vai investir na sua carreira. Marcela ficaria feliz da
vida se você fosse para Paris.
CAPÍTULO 37

— Hugo, espero que você tenha um bom motivo para não ter ido na entrevista com o Nantes. —
Marcela falou, entrando em seu apartamento.
Percorreu os cômodos do local que não era grande. Não o achando resolveu tomar um banho.
Após o banho, ainda de roupão e com uma toalha enrolada em seus cabelos molhados, se
colocou a ligar para o celular de Hugo. Sem sucesso, checou se havia algum SMS perdido, mas
não encontrou nada.
Decidida a vestir uma roupa e fazer algo para comer, andou até o armário e foi quando
percebeu que alguns cabides e a gaveta, antes ocupados por roupas e coisas de Hugo, agora
estavam vazios. Exceto por um pequeno pedaço de papel.
“Fui para Paris! Até!”
Sorriu. Hugo sempre cheio de gracinhas. O que ele estaria apontando dessa vez...?
Mandou um SMS para ele:
“Estou fazendo o jantar, aguardando você chegar de Paris.”
Vestiu apenas uma camisa larga e foi até a cozinha. Estava com muita vontade de comer massa,
pesto ou carbonara, ponderava enquanto a massa descansava e abria um vinho. Hugo vai gostar
mais de carbonara, ela pensou ao decidir. Molho pronto, a água para massa já fervia. Nenhum
sinal de Hugo. Já passava das onze da noite. Mais uma tentativa de ligação que parou direto na
caixa postal. Ficou preocupada, afinal, ele não era de sumir assim.
Deitou-se no sofá para ler enquanto o aguardava. Pegou no sono e acordou com raios de sol
entrando pela janela. Nenhum sinal de Hugo.
Aguardou.Aguardou.Aguardou.
Nada. Precisava ir ao restaurante. Estava com uma fome absurda. Quantas horas fazia desde
que tinha feito a última refeição? Decidiu comer ovos mexidos. Que azar! Um ovo podre e todo
conteúdo de seu estômago na lixeira. Desistiu. Tomou uma ducha, escovou os dentes e seguiu
para o restaurante.
O dia seguiu lento. Nenhum sinal dele. Pensou em ligar para a polícia, mas o que falar?
“ Oi, boa tarde, meu noivo sumiu.”

UNS DIAS ATRÁS...


— Por que você não começa pela visitinha que você foi fazer a Marcela e só me encontrou?
— Ah, esse dia. — Felippo engoliu seco.
— O que você queria com a minha mãe? — Sara foi incisiva.
— Eu precisava conversar coisas sobre o Sara. Você sabe que o Sara era nosso, Sarita.
— O que você disse que faria com o Sara? E sem enrolação porque a Sara não gosta de
mentira e está bem ansiosa para saber da história.
— Que eu estava pensando em fechar, estava dando muito problema.
— Não foi isso, não. Você me disse que a Marcela tinha que encerrar as operações do Sara até
o final do mês.
— Por que você queria fechar o Sara? — A menina parecia confusa.
— Felippo, só conta logo. Não aguento mais — Marcela falou enquanto massageava as
têmporas de olhos fechados.
— O que, Marcela? — Ele se exaltou.
— A verdade. Já que você levou dez anos para me contar uma mentira, pelo visto — ela disse
de maneira calma, mas firme.
— Que verdade, Marcela? É para contar a verdade?
— A verdade é que ele não podia ver você feliz demais. O restaurante estava ótimo e nos
casaríamos — Hugo completou.
— Por que minha mãe não podia ser feliz demais? Se o Sara ia bem, por que você iria querer
fechar?
— O Sara não ia bem, quer dizer, ia, mas o Felippo estava desviando dinheiro. Ele mentiu para
você, Hugo.
— Fiz uns investimentos errados e eu precisava do dinheiro, a Ana estava grávida, estávamos
reformando a casa. — Felippo passava os dedos de forma nervosa pelos cabelos.
— Mas qual era o problema da minha mãe ser feliz? Você gostava dela? — Ela realmente
estava confusa.
— Eu era apaixonado por ela. Ela não quis casar comigo e iria se casar com ele?! Um
estagiariozinho que não tinha onde cair morto.
— Vocês namoraram? Mãe, isso é verdade? — falou incrédula.
— Si, mas... —
— Por que você nunca me falou?
— No tinha importância, quando eu conheci o Hugo, já tinha dois anos que eu e Pipo tínhamos
terminado.
— Por que vocês terminaram?
— Na época que eu estava abrindo o Sara a gente começou a se desentender, não daria certo.
Queríamos coisas diferentes.
— Você só pensava no Sara, tanto que matou nosso filho!
— Filho?!
— Eu já falei para você mil vezes, Felippo. Não adianta, você não vai voltar a me torturar com
isso. Eu não matei filho nenhum! Eu quero que os dois fiquem calados, agora mesmo! — Marcela
falou exaltada e se dirigindo para Hugo e Felippo.
— Por que você não me contou? — Sara claramente segurava o choro, coisa que Marcela já
não conseguia fazer com maestria.
— Mi amor, são coisas que aconteceram muito antes de você nascer, e doem, não fazia sentido
em te dizer antes. Sim, eu e Pipo fomos namorados logo que eu cheguei no Brasil e ele me ajudou
a abrir o Sara. Ele achava que eu seria dona de restaurante, mas eu sou cozinheira e meu lugar é
na cozinha. Eu trabalhava muito, e nos primeiros meses de funcionamento do Sara eu fiquei
grávida, mas eu não percebi a tempo, quando eu soube já era tarde.
— Você não fez de propósito, não é? — Sara perguntou enquanto secava lágrimas de Marcela.
— No, yo no sabia — Marcela respondeu, também secando as lágrimas do rosto de Sara.
Não havia segredos entre elas, mas também não quer dizer que Sara soubesse de todos os
detalhes. Havia partes omitidas. O romance entre Marcela e Felippo era uma delas. A menina
sempre soube que eles tinham sido sócios no Sara.
Sara sabia que a mãe tinha decidido fechar o restaurante e com a parte dela abriu o Ruiz com
outros sócios.
— Mãe, por que você quis fechar o Sara?
— Porque eu não confiava mais no Felippo.
— Marcela, a decisão de fechar o Sara foi sua? — Hugo estava em choque.
— Si. E Felippo já sabia quando te encontrou naquele dia. Eu contei para ele no ano novo.
— Por isso vocês discutiram? Por que você não me contou?
— Eu não queria que isso interferisse nas suas decisões. Queria que você tomasse as decisões
pensando em você. Eu pensava em fazer uma surpresa, eu ia sugerir que a gente passasse uma
temporada em Paris.
— Mas você me arranjou uma entrevista com o Nantes.
— Si. Um mês de estágio, foi o que eu pedi a ele. Para dar tempo de organizar tudo. Mas você
foi sem mim. E não ligou, não voltou.
— Eu voltei.
— Voltou tarde demais. Eu levei uma semana inteira para acreditar. Porque não fazia sentido.
Como o cara que tinha me pedido em casamento uma semana antes vai embora e deixa só um
bilhete “Fui para Paris! Até!”?
— Eu não queria. Eu juro. Eu queria você feliz. Eu sabia que o Sara era importante para você.
— Não diga que tomou a decisão pensando em mim. Você pensou em você. Foi melhor ter
escolhido por mim. Melhor ser herói do que vítima.
— Do que você está falando?
— Me diz que você não teve medo de que eu escolhesse o Sara a você? Me diz que não foi por
isso que você decidiu não me contar? Me diz por que não me perguntou sobre a briga com o
Felippo na noite de ano novo? Porque eu sei que você viu.
— Marcela...
— Você teve medo. E é por isso que eu sempre te falei que não fazia diferença. Tanto faz o que
te levou a ir para Paris: se foi você pedindo ajuda ao Felippo ou se foi o Felippo te
chantageando para ir. Você foi e eu fiquei. Eu fiquei meses sem ter uma notícia sua. Grávida. E eu
não tinha ninguém. Nem mesmo meu contato de emergência. Foi horrível o que o Felipo fez, mas
você escolheu ir. Você escolheu me deixar. Você teve medo do que eu escolheria? Você não
hesitou em me deixar. Eu achei que seria diferente com você, mas não foi, afinal. O Felippo me
fez escolher e você não me deixou escolher.
— Mãe? Quando você ficou sabendo que o Pipo tinha ligação com a ida do meu pai para
Paris?
— Um mês mais ou menos.
— Por que você não me falou?
— Porque eu queria te poupar disso — ela fala abrindo os braços — Disso tudo. Até que eu
soubesse de toda a história, uma que me convencesse.
— Eu estou há meses tentando conversar com você sobre isso, Marcela!
— E você acha que eu estou curtindo esse momento? Que era exatamente o que eu tinha
planejado para o meu dia? Lavação de roupa suja no hospital?! Eu não queria falar porque me
faz mal. Me dá náuseas. Me tortura falar sobre isso. Porque você me pediu para casar com você
e foi embora menos de uma semana depois. Eu disse sim e você me deixou. Você acha que eu
gosto de lembrar disso? Você acha que é algo sobre o qual eu queira conversar? Eu disse sim por
que eu te amava. Você foi embora porque achou que eu não te amava o suficiente.
— Desculpa, Marcela. Eu já não sei mais o que fazer ou falar.
— Você pode começar me ouvindo. Porque olha para nossa filha. Olha para Sara que acabou
de acordar de duas semanas de coma. Nossa filha quase morreu. Pensa para que serviu essa
cena, além de acariciar a porra do seu ego.
— Eu quero que vocês saiam — Sara falou baixo, quebrando o silêncio que tinha se
instaurado. — Todos. Quer dizer, vó, você pode ficar?
— Claro, Sara.
— Marcela Campana? — O mensageiro do hospital.
— Si?!
— O resultado do seu exame — falou, entregando a ela um envelope.
— Cereja do bolo. — Arrancou o envelope da mão do homem, pegou sua bolsa e saiu do
quarto.
— Marcela?! Me espera — Hugo a chamou, enquanto ela andava apressadamente pelo
corredor. Ela estava dentro do elevador, a porta já estava fechando, mas ele a alcançou e
conseguiu entrar.
— Marcela...
— Não quero te ouvir. Não quero te ver. Gostaria que fosse para sempre, inclusive. Mas temos
uma filha que eu não sei se um dia vai falar conosco de novo e trabalhamos juntos. Facilita as
coisas. Se não for para falar da Sara ou de trabalho, esquece que eu existo.
— Eu achei que o combinado era sermos amigos.
— Isso era antes de lembrar o quanto eu te odiei. Eu fiquei anos para me livrar disso. Meses
evitando que a gente chegasse a esse ponto. Mas parabéns, você conseguiu. Eu te odeio de novo.
— Não faz isso com a gente.
— Sabe que as vezes eu acho que “nós” — Ela faz aspas com as mãos — fomos um sonho/
pesadelo ou surto coletivo? Só tenho certeza de que não foi porque a Sara existe e tem sua
maldita cara.
Ela saiu do elevador e andou até seu carro no estacionamento.
— Marcela...
— Ele segura a porta do carro, impedindo que ela a feche.
— Por favor, Hugo, me deixa ir embora.
— E a Sara?
— Agora você ficou preocupado com ela? Ela está com a sua mãe. Se o hospital precisar de
mim eles vão ligar.
— Tem mais uma coisa — ele falou, olhando para o envelope sobre o banco.
— Claro que tem. Nada mudou. Sabe, — ela falou, abrindo o envelope — as vezes eu me pego
pensando se você algum dia me amou ou só amou a ideia de uma família comigo — Ela termina e
entrega o papel a Hugo que larga a porta.
Ela fecha a porta e sai com lágrimas nos olhos ignorando Hugo que corria atrás do carro.
CAPÍTULO 38

— Olha, Marcela, sinceramente eu estou tentando decidir aqui. Toda a situação é muito difícil.
Não sei em quem eu daria a surra primeiro.
— Clara?!
— Clara o cacete! Eu não aguento mais vocês! Vocês são burros?! Vocês precisam se colocar
no lugar um do outro.
— Me colocar no lugar dele? Se eu estou aqui hoje é por causa de muita terapia. Eu me
coloquei no lugar dele tantas vezes. Se eu não me colocasse ele jamais saberia da existência da
Sara enquanto eu estivesse viva. Me diz o que você teria feito no meu lugar?
— Marcela, não há justificativa no mundo para você ter escondido a Sara por tanto tempo.
Você sabia que ele procurou por você. Procurou não. Ficou procurando. E você tanto sabia disso
que se manteve escondida.
— Eu não estava pronta! Depois a Sara não queria.
— Para de transferir isso para conta da Sara para limpar sua barra! Você não podia ter privado
os dois da convivência que seria uma coisa natural. Você mesma diz o tempo todo, e garantiu que
a Sara entendesse que isso não tinha a ver com ela, o que é ótimo, mas não o suficiente. Vocês
precisam se entender. Não tem mais cabimento essa briga de vocês. Não pode mais respingar
nela. Sejam adultos. Os dois. E antes que você reclame, eu já tive essa conversa com o Hugo e
não peguei mais leve do que com você.
— E o que você falou para ele?
— Que ele é ridículo.
— Também acho.
— Marcela, ele é ridículo porque te ama cegamente. Você o fez e faz sofrer demais. E ele
deixa. Sempre correndo atrás de você. Engolindo tudo quanto é sapo. Para de ser bruxa. Não
precisa ficar com ele, só não esquece que ele é o pai da sua filha. Você escolhe como vai ser
essa relação. E espero que dessa vez você tome a decisão certa e não se esconda. Para de fugir,
mulher.
A gravação ocorreu de forma estranha. O clima não era favorável. A tensão chegava a ser
palpável. Fragalli e Clara cortaram um dobrado para fazer com que tudo parecesse normal na
frente das câmeras. Marcela estava furiosa, irritadiça, enquanto Coelho tinha um semblante triste
e estava introspectivo.
Durante os intervalos, Hugo se sentava ao lado de Sara e tentava puxar conversa, mas foi
ignorado todas as vezes. Marcela não chegou a ir nenhuma vez, mas acompanhou atenta a
movimentação. Era perceptível a frustração de Hugo.
— Clara, no próximo intervalo você leva a Sara para comer no camarim? — Marcela pediu a
Clara.
— Tem comida no camarim? — Clara demonstrou surpresa.
— Vai ter Clara. Vai ter.
Conforme combinado, Clara levou Sara ao camarim para comer chipas quentinhas que tinham
chegado. Estavam se deliciando quando Marcela entrou com outra caixa de chipas na mão.
— Clara, você pode levar essas chipas para os meninos? — As palavras direcionadas a Clara
eram simples, mas pelo olhar de Marcela, Clara entendeu tudo. Ela queria conversar com Sara.
— Claro, eles vão adorar. Eu também! Já comi aqui, agora como lá. Me dei bem. — Pegou a
caixa das mãos de Marcela e saiu.
— Sara, eu sei que você não está falando comigo. E você sabe que eu sempre respeito seu
tempo, mesmo que isso me faça sofrer. Te ver sofrendo acaba comigo. Ver o seu pai sofrendo
acaba comigo. Eu não posso mais ser responsável por isso. Faz comigo, mas não faz com ele. Eu
sei que você não quer que eu fique triste e eu não vou ficar. Eu prometo. Volte a falar com seu
pai, por favor. O Dia dos Pais está chegando. É o primeiro da vida dele. Ele não merece isso.
Vocês não merecem isso. Foi meu erro. Minha culpa. Ele não te abandonou. Ele sempre te quis.
— Mas ele magoou você.
— Si. Muito. E dói muito. Mas eu que tenho que cuidar de você e não o contrário. Você ama
seu pai. Você idolatra seu pai. Está punindo a ele e a você mesma. Os dois estão sofrendo. Eu
quero que você fale com ele. Peça desculpas. E principalmente, não se preocupe com a gente. Só
viva sua vida normalmente.
— Viver minha vida normalmente é morar com meu pai.
— Tudo bem. — Marcela respirou fundo, não esperava por essa. — Você pode morar com ele.
Aposto que ele vai ficar muito feliz com a notícia. — Ela terminou segurando as lágrimas.
— Mãe. — Sara foi até Marcela e sentou em seu colo — Eu não quero ir morar com meu pai.
— disse secando as lágrimas que corriam pela bochecha de Marcela. — Eu quero que ele vá
morar com a gente.
— Sara...
— Mãe, eu não posso escolher um ou outro. Não quero. Não vou. Por isso eu fui para minha
avó. Eu preciso que vocês se deem bem. E aí posso viver minha vida normalmente.
— Ok — Marcela suspirou — Tudo bem. Converso com ele hoje. Convida ele para jantar lá
em casa.
— Sério?!
— Si.
— Foi fácil.
— Essa é a parte fácil. Mais tarde é a parte difícil.
— Te amo, mãe. Desculpa.
— Eu também te amo, mi amor. Eu que devo desculpas eternas a você.
— A eternidade pode ser muito longa ou muito curta. Você não precisa se desculpar por tanto
ou tão pouco tempo. Já foi suficiente. Talvez você devesse pedir desculpas a si mesma.
— A mim mesma?
— Sim. Ninguém pode sentir falta do que nunca teve. Eu queria conhecer meu pai, mas não
sentia falta dele. Ele sentia sua falta, mas não a minha, ele não sabia que eu existia. Quem mais
sofreu nisso tudo foi você. Você sofreu por você e por mim. Você sofreu pela ausência dele na
sua vida e na minha vida. Depois sofreu por ansiedade do encontro com ele e depois do meu
encontro com ele. Você não acha que já sofreu demais? — ela disse, já na porta pronta para sair.
— O que quer dizer, mocinha?
— Que é melhor ser herói do que ser vítima. Bom, foi o que você disse para o meu pai.
Sara saiu saltitante do camarim e deixou Marcela com mais reflexões a serem feitas. Lá
permaneceu até que foi chamada pela produção para voltar ao estúdio. No caminho encontrou
com Clara, com quem trocou rápidas palavras antes de seu olhar cruzar com o de Hugo. Parecia
confuso. A gravação seguiu com um clima menos tenso e ao final Coelho se aproximou de
Marcela.
— Marcela, posso falar com você um minutinho?
— Si.
— Bom, a Sara acabou de me convidar para jantar na sua casa. Eu tentei convencê-la de ser em
outro lugar, mas ela insistiu muito, você sabe, né? Quando coloca uma coisa na cabeça...
— Si. No te preocupes. Estou ciente. Te aguardo às 20h.
— Ok, então.
Despediram-se e cada um foi para seu lado. Sara tinha um comportamento completamente
diferente. Mais alegre, mais solta. A Sara do aniversário estava de volta e isso trazia certa paz e
conforto a Marcela que em breve faria o sacrifício não só de jantar com Hugo, mas fazer as
pazes e de quebra voltar a morar com ele. O que um filho não pede sorrindo que uma mãe não faz
chorando?
A empolgação de Sara era o que motivava Marcela naquele momento. Por conta do tempo
curto, o cardápio foi um nhoque que Marcela faz de olhos fechados, apenas na manteiga de ervas,
uns cogumelos salteados e com bastante parmesão.
Às sete e quarenta e sete, Sara se plantou à porta. Em um mantra, Marcela repetia em sua
cabeça que Hugo não se atrasasse. E não se atrasou. Às sete e cinquenta e seis, ele abriu a porta.
Então Marcela se lembrou que ele tinha uma cópia da chave que Sara tinha dado para ele.
— Oi, pai. Que bom que você chegou. Estou morrendo de fome. — Ela o abraçava e ele, que
tinha um sorriso bobo, depositou um beijo no topo de seus cabelos negros.
— Nem passei no Malagueta, filha, estava com muitas saudades suas. Só fui em casa tomar um
banho e pegar um vinho para sua mãe.
— Para mi? — Ela que observava a cena de longe, surpreendeu-se com a declaração.
— É. Boa noite, Marcela — ele respondeu meio sem graça.
— Boa noite, Hugo. Obrigada. No precisava.
Ambos não sabiam o que fazer. Trocaram olhares, mas não sabiam o que dizer.
Ele estava tão cheiroso.
Ela estava tão bonita.
Sara fingiu tossir para tira-los do transe.
— Nada contra vocês ficarem se olhando por horas como se eu não estivesse aqui, mas eu
estou com fome, né.
— Canceriana dramática. — Marcela revirou os olhos — Abre o vinho, por favor, você já
sabe onde fica o abridor — ela falou com Hugo sem olha-lo novamente. Imagina se perder
naquele olhar de novo?
— Claro.
— Sara, já colocou os pratos na mesa?
— Sim, Marcela. Tudo está na mesa. Até eu. Falta só o casalzinho.
Ok. Estava entendido. Sara tinha um plano.
Hugo seguiu para a mesa com a garrafa de vinho e Marcela com a travessa com a comida. Já à
mesa, comeram basicamente em silêncio, exceto por Sara, que tagarelou sem parar sobre os dias
que passou na casa da avó. Eles riam de suas gracinhas e o clima estava leve.
A campainha tocou e Marcela se assustou, o que fez Sara e Hugo gargalharam.
— É para mim! — Sara falou, retirando-se da mesa.
— Como assim para você, Sara?! — Marcela olhava desconfiada para filha, já abrindo a
porta.
— Oi, Clara. Vou só pegar minha mochila.
— Quer contar o que está acontecendo, Clara? — Marcela encarava a amiga.
— Sara pediu resgate. Disse que vocês precisam conversar. Pode deixar que eu a deixo na
escola amanhã de manhã.
— Não acredito que você faz planos com uma criança de dez anos.
— Todo mundo sabe que ela é mais sensata que vocês dois. Aproveitem a chance. Já conversei
com os dois. Já passou da hora de vocês conversarem. De verdade.
— Tchau, mãe, tchau, pai, conversem e se comportem, ou não. Bom, façam as pazes. Por mim.
Amo vocês.
Saiu e bateu a porta, deixando Marcela e Hugo incrédulos e em silêncio.
— Eu não sabia de nada. Eu juro. — Levantou os braços em rendição.
— Eu falei para ela te chamar. Só não sabia que ela nos deixaria sozinhos.
— Você queria que eu viesse? — Ele estava surpreso.
— Acho que querer não é a palavra, mas sim, eu precisava que você viesse — ela falou,
deixando a mesa. — Eu preciso de mais vinho, você me acompanha ou quer algo mais forte?
— Eu vou precisar de algo mais forte? — falou, acomodando-se em um dos bancos altos que
ficam no entorno da ilha da cozinha.
— Espero que não.
— Por que precisava que eu viesse?
— Precisamos conversar.
— Sobre?
— Sara.
— Eu não quero tirá-la de você se é isso que está pensando, mas preciso de mais tempo com
ela.
— Minha vida seria muito fácil se esse fosse meu problema. — Uma pausa, um gole no vinho.
— Ela quer que você venha morar aqui.
Novamente os olhares se encontraram e o silêncio se estabeleceu. Novamente perdidos na
profundidade do olhar um do outro.
— Imagino que não é o que você quer.
— Se eu quero dar de cara com você andando pela casa? Bom, certamente não estava nos meus
planos. — Ela fazia desenhos imaginários na superfície da ilha, sem encará-lo.
— Eu não sei o que dizer.
— Diz que sim. — Ela olhou nos olhos dele.
— Marcela... — Ele coçou a barba.
— Hugo, não se preocupe comigo.
— Você falou que me odiava. Eu não iria querer morar com a pessoa que odeio. — Ele tinha o
olhar triste.
— Não é sobre mim. É sobre a Sara. Ela é a prioridade. Tanto faz o que eu sinto ou deixo de
sentir.
— Entendi. — Aquela cara de cachorro abandonado.
— Por que você está fazendo essa cara de Sara?
— Bom, não vou mentir que eu esperava que você dissesse que não me odeia. — Deu ombros.
— Minha vida não gira ao seu redor. Não tenho tempo nem energia para ficar te odiando o
tempo todo, não mais. Fazia muito mal a mim, fez mal a Sara. Não posso mais. Mas daí ficar
feliz com sua presença, são outros quinhentos. Digamos que no momento você é — ela parou
para pensar — tolerável.
— Eu acho que prefiro que você me odeie a ser tolerável.
— Não pode controlar como eu me sinto, acostume-se, nem eu posso. Bom, somos adultos.
Podemos nos comportar. Pela nossa filha.
— Podemos — concordou.
— É só seguir as regras.
— Que regras? — ficou confuso.
— Bom, as regras... — Que regras, mesmo?
— Vamos criá-las agora?
— Algumas já existem, como: ultra processados são proibidos. Quarta é minha manhã de folga.
Não ouse estar em casa. Tente mexer o mínimo possível na rotina da Sara. Não andar seminu...
— Defina seminu.
— Use roupas. Camisa, Hugo. Não ande sem camisa. — Ele gargalhou. — Não ri. Estou
falando sério.
— Você acabou de confessar que se sente atraída por mim. — Ele tinha um sorriso bobo, mas
ao mesmo tempo malicioso.
— Nunca escondi — ela falou, olhando as mãos, tinha certeza de que estava corada.
— Então não seria melhor a gente conversar? De verdade. Não me parece ser muito inteligente
morar com quem você odeia, mas está sexualmente atraída.
— Nós já conversamos.
— Aquilo não foi uma conversa, você sabe.
— Já sabemos de tudo. Tudo já foi dito, não há mais o que falar sobre.
— Eu acho que tem! Eu sei, te machuca e entendo de verdade você não querer falar sobre, mas
até hoje você não me ouviu. Eu só quero que você me ouça. Não precisa mudar de ideia, não
precisa passar a me amar. Só quero uma conversa civilizada. Acho importante. Vai ser a última
vez que tocamos no assunto. Eu juro.
— Eu não quero passar por isso de novo. Me desculpa. — Passou as mãos bagunçando o
cabelo, como se aquilo pudesse aliviar o stress dela.
— Todos os dias eu me coloquei no seu lugar. Todos os dias eu rezei para que você entendesse
quando a gente se encontrasse. E eu sei que errei. Eu tive medo de você escolher o Sara, você
estava certa. Mas eu tinha mais medo de não ser o suficiente para te fazer feliz.
— Era só você ter falado comigo.
— Felippo não me deu essa opção. E ele parecia tão convincente, enquanto você não tinha nem
me dito que ele era o tal sócio. Você me julgou em todas as oportunidades que teve, me
crucificou. Não acho que existem grandes vilões nessa história. Nem mocinhos. Eu, você,
Felippo, todos jogaram com as armas que tinham.
— Você está defendendo o Felippo?
— Claro que não. Mas ele apenas se aproveitou das nossas falhas como casal. Se você tivesse
me contado, se eu tivesse falado com você, se, se, se... poderíamos perder anos das nossas vidas
ponderando todas as escolhas que fizemos. Eu escolhi ir para Paris, você escolheu não me contar
tudo sobre o Felippo, eu te procurei, você se escondeu.
— Eu escondi a Sara de você, isso não tem perdão.
— Mas eu quero te perdoar.
— Você não pode.
— Claro que posso. Se você me perdoou a ponto de se deixar ser encontrada, eu posso te
perdoar por ter escondido. Não te perdoar não vai me fazer sentir melhor, não faz você se sentir
melhor, não vejo como ajudaria a Sara. Por que eu faria isso com a gente?
— Por que você não pode simplesmente me odiar de volta?
— Você sabe o porquê. Eu não consigo te odiar. E olha que eu tentei. De verdade, eu tentei. Eu
tentei te esquecer também, mas não consegui. O máximo que eu consegui foi ficar com raiva de
você, e nem durou muito. Até esporro da Clara eu tomei por conta disso.
— Começa falando em voz alta para você mesmo, na frente do espelho. Repete até se
convencer. Depois vira verdade.
— Até parece. — Ele riu.
— Foi assim que eu deixei de te odiar. Depois de te amar.
— E se você disser o contrário?
— Eu não quero te amar. Só não quero te odiar, e isso eu já estou fazendo.
— A gente não escolhe quem amar.
— Não. E por isso que vou pedir para que você não tente fazer isso. Eu quero que essa história
de morarmos juntos pela Sara dê certo. Eu preciso que dê. Eu me sinto culpada por ter roubado
dez anos da convivência de vocês. E eu já te disse como não podemos atrapalhar a vida da Sara
com nossas confusões.
— E se a gente estiver junto? Vai dar tudo certo.
— Hugo. Por favor. Eu estou falando sério. Pensa no sofrimento das últimas semanas. Eu não
quero passar por isso de novo. Eu não aguento mais. Só quero dias de paz na minha vida, mesmo
que eu tenha que dar de cara com você todos os dias.
— Então não vamos dar um irmão para Sara?
— Pelo amor de Deus! Não, não vamos. Já demos muita sorte.
— Eu diria azar.
— Porque não foi você que ficou grávida.
— Essa é outra conversa que você evita. Foi tão ruim assim?
— Não vamos falar sobre isso. Não mesmo. Não hoje. Eu te conto um dia.
— Posso só fazer uma pergunta?
— Quantas quiser, só não garanto respostas.
— O seu marido nunca quis ter filhos?
— Quis. Muito. Mas eu não queria. Eu nunca quis.
— Eu até hoje não entendi como...
— Também não vai ser hoje. Viveu até hoje sem saber.
— Mas...
— Mas nada, Hugo! Vamos voltar ao que interessa. Sara. Bom, a rotina dela não deve mudar,
podemos manter os almoços dela com você no Malagueta e jantar em casa, só não espere que eu
cozinhe sempre para você. Não sou sua escrava. E você vai ter que se acostumar a chegar cedo.
Sara tem hora para dormir.
— Ela estava me esperando na porta?
— Sim, estava. Já sabe que eu não quero me aborrecer com isso. Se disser que vai chegar em
um horário, respeite. Se não vai poder chegar, avise. Se não tem hora, avise também.
— Ok. Eu tenho outra pergunta — disse, passando para o mesmo lado da ilha em que Marcela
estava.
— Por que está invadindo meu espaço físico?
— Para perguntar se você não quer aproveitar que a Sara deixou a casa só para a gente...
— Não. Não precisa nem terminar a frase. Você está maluco? Eu acabei de falar com você. De
pedir para você!
— Você pediu para eu não tentar fazer você me amar. Pode acreditar. Não é minha intenção. —
A cada passo que ele dava em direção a ela, ela recuava.
— Pelo amor de deus...
— Eu nem falei o que eu quero e olha você, toda arrepiada — falou, passando a ponta dos
dedos ao longo do braço de Marcela provocando um calafrio
— Você sabe que eu não vou fazer nada. — Ele aproximou seus rostos de forma que poderia
sentir a respiração dela em seus lábios
— Nada além de te provocar. O primeiro movimento é sempre seu.
— Meu primeiro movimento vai ser quebrar sua cara, já, já.
— Agressiva ela. Bom, então vou indo. Você sabe que eu vou estar sempre disponível para
você.
— Indo para onde, Hugo? Você bebeu. Só vai embora se for de táxi.
— Até me esqueci que agora eu moro aqui — falou, tirando os sapatos, os deixou no meio da
sala e se jogou no sofá.
— Deus, o que eu fiz para merecer isso? Você não vai bagunçar minha casa inteira. Concentre
sua bagunça no seu quarto, por favor. E já que você mora aqui: como eu cozinhei, a louça é sua.
— Golpe baixo.
— Boa noite, Hugo — ela falou, já subindo as escadas.

Marcela correu para o banho com a certeza de que essa história de morar com Hugo não daria
certo. É colocar a raposa para tomar conta do galinheiro.
Banho frio.
Talvez seja melhor ver se o Hugo precisa de alguma coisa, pensou ela. Marcela, Marcela...
olha bem essas ideias.
Atravessou o corredor e ponderou um pouco antes de bater à porta.
Ele abriu apenas com a toalha enrolada na cintura, mal estava seco. Uma singela gota d’água
escorria pelo seu peitoral tatuado.
Merda.
— Eu não falei para não ficar seminu? — ela falou com certa dificuldade.
— Bom, eu tomo banho pelado, né? Complicado, acabei de sair e você bateu na porta, rude não
abrir.
— Ah, sim — ela engoliu seco.
— Você vir ao meu quarto só de roupão está nas regras?
— Eu, eu, vim só ver se precisava de alguma coisa.
— Eu na verdade estou precisando de ajuda para lidar com essa tensão sexual que está me
sufocando. Você também está sentindo?
— Vai a merda, Hugo!
— Não sei por que você se dá ao trabalho de tentar mentir, quando nós dois sabemos o que
você veio fazer aqui. — Ele se aproximou de Marcela e falou no ouvido dela — É só você pedir
que eu te fodo gostoso.
— Hugo... — um Gemido, uma súplica.
— É para parar ou continuar? É só você pedir. Seu movimento pode ser só me pedir.
— Por fabor...
— Por favor o quê?
— Me fode.
Num piscar de olhos ele já estava sobre ela na cama.
Seus lábios travavam uma batalha por dominância enquanto as mãos dela arranhavam a nuca
dele e as mãos dele passeavam por todo o corpo dela. Seus lábios deixaram os delas e seguiram
pelas orelhas, descendo pelo pescoço, passando pela clavícula e chegaram finalmente nos seios
que ele tanto ama. Sempre tão lindos. Abocanhou um com vontade enquanto seus dedos brincam
com o outro. Ah, esses gemidos, são sinfonia para os ouvidos dele.
Ao alternar de seio, uma mão de Hugo seguiu a passear pelo corpo de Marcela e logo
encontrou sua intimidade já pronta, quente, úmida e deliciosa. Introduziu dois dedos enquanto
com o polegar massageava seu clitóris. Sob o corpo dele era possível sentir o corpo dela
respondendo aos estímulos, ela logo chegaria lá. As mãos de Marcela agarravam com força os
lençóis.
A mudança na respiração e o repentino relaxamento denunciavam seu primeiro orgasmo
conquistado com sucesso. Ela puxou o braço de Hugo e levou os dedos a sua boca, os chupou de
maneira tão sensual que fez o membro de Hugo latejar. Passado esse momento de transe, ele
seguiu os trabalhos chegando com sua boca ao clitóris de Marcela. Ele alternava entre leves
mordidas e vigorosos chupões enquanto seus dedos entravam e saíam dela e rapidamente o
segundo orgasmo foi alcançado.
Distribuindo beijos por sua coxa e virilha, Hugo deu tempo para que Marcela se recuperasse e
quando ela menos esperava, a virou de bruços a fazendo soltar um gritinho de susto. Mordiscou o
lóbulo de sua orelha e seguiu depositando chupões em sua nuca. Um caminho de beijos pelas
suas costas e chegando àquele acontecimento que era sua bunda. Separou levemente suas pernas
e novamente foi com a boca a intimidade de Marcela.
Abriu o pacote de camisinha, desenrolou sobre seu membro e deslizou para dentro dela. Iniciou
com movimentos lentos e foi aumentando o ritmo. Como era bom ouvi-la gemendo. A respiração
de ambos anunciava que estavam próximos do ápice. Com estocadas firmes e ritmadas chegaram
juntos ao orgasmo.
Ele permaneceu dentro dela, apenas largou seu peso por alguns minutos e depois rolou para o
seu lado, a puxou para os seus braços e depositou beijos sobre seus cabelos.
Estava quase pegando no sono quando a sentiu escapando de seus braços.
— Ei, fica.
— Não podemos fazer isso. Eu sinto muito.
Ela se retirou sem nem mesmo olhar para ele. E ele sabia o porquê. Ela estava chorando.
CAPÍTULO 39

— Puxa vida. Achei que tinha se esquecido de mi. — Fez cara de choro.
— Olha lá, tua mãe com ciuminho...
— Mãe, era um ensaio de Dia dos Pais...
— Ok. Tudo bem. Ninguém gosta de mi mesmo. — Ela deu ombros enquanto fechava o livro.
— Eu te amo, meu pai também — Sara falou e se jogou sobre Marcela que estava no sofá.
— Se divertiram? — ela falou, beijando e abraçando a filha.
— Sim! Foi bem legal. Eu estou com fome, o que vamos comer?
— Seu pai falou para não me preocupar com isso...
— Sim, temos hambúrgueres chegando em breve. Vai tomar um banho para adiantar, Sara. Já
está tarde.
— Se vocês querem conversar sem minha presença, é só pedir — ela levantou emburrada.
— Queremos conversar? — Marcela perguntou a Hugo.
— Não que eu saiba — Hugo complementou.
— Viu?
Ela não melhorou a cara e subiu as escadas batendo o pé. Eles se entreolharam e riram.
Hugo se sentou na outra ponta do sofá e passou a mexer no celular; e Marcela voltou a ler seu
livro.
Não que o silêncio fosse desconfortável, mas sabiam que algo precisava ser dito.
— Estamos bem? — ele perguntou, olhando para Marcela que encarava o livro.
— Si. — Sem nem tirar os olhos do livro.
— Mesmo? Você poderia dizer isso olhando para mim, só para eu ter certeza?
— Por que não estaria? — ela falou, levantando a cabeça, mas não diretamente para ele.
— Você saiu chorando ontem...
A campainha tocou. Ele a olhou e ela entendeu que a conversa tinha sido apenas adiada e não
encerrada.
— Sara, chegou, bora! Você não estava com fome? — Hugo gritou e assustou Marcela.
— Calma, pai. Não grita — ela falou, descendo as escadas. — Assustou minha mãe.
— Sua mãe sempre se assusta. Que nem no Bestchef...
— Verdade. É engraçado.
— Que bom que os dois se divertem com meus sustos — falou e depois deu um risada fingida.
Enquanto comiam, Sara contava como tinha sido o ensaio com Hugo.
— Vocês não vão perguntar como foi na casa da Clara?
— Ela falou que foi tudo bem — Marcela logo respondeu.
— Vocês não me enganam. Não perguntaram para eu não perguntar sobre como foi a noite de
vocês.
— Você é muito criativa, mi amor.
— Cada ideia que você tem, Sara.
— Eu vou perguntar de qualquer jeito. — Ela deu ombros. — Então progenitores, como foi a
noite de vocês?
— Conversamos.
— Definimos regras.
— Foi tudo bem.
— Si. Tudo bem.
— Vocês transaram?
— Sara! — Marcela e Hugo falaram juntos.
— Vocês deveriam ver a cara de vocês. Não sabem nem disfarçar.
— Não estamos disfarçando.
— Já te falei que é indelicado perguntar isso.
— Pessoas transam. Tudo bem, gente!
— Si, mas nem todas as pessoas gostam de falar abertamente sobre a vida sexual.
Especialmente com crianças.
— Você tem problema com isso, pai? Porque minha mãe não tem.
— Você conversa sobre sua vida sexual com a Sara, Marcela? — Ele estava em choque.
— Eu não sei mentir e a Sara é muito curiosa, chegou um momento em que já não tinha mais o
que eu fazer. Mas, conversar sobre isso não é o termo correto. Eu apenas respondo perguntas
com olhar técnico. Prefiro que ela ouça as coisas de mim do que de qualquer outra pessoa, ou
pior ainda, da internet.
— Ela só tem dez anos!
— E ela quer saber. Você quer saber se eu estava preparada para isso? Não, não estava, mas a
vida é assim.
— Pai, a gente pode não falar disso na sua frente. Desculpa. — Fez uma cara de arrependida
que até poderia colar para Hugo, mas não convenceu Marcela.
— Não, sua mãe está certa. Melhor ouvir da gente do que de estranhos na internet — falou,
coçando a barba e ainda refletindo sobre o assunto.
— Ok. Então como foi?
— Nananinanão. Você sabe que essa pergunta não é permitida. Para de ser curiosa, garota —
Marcela a repreendeu.
— Vai acontecer de novo? — ela perguntou após ponderar.
— Se você quer saber se estamos namorando ou algo do tipo, a resposta é não — Marcela
respondeu.
— Não é disso que eu estou falando.
— Sara, eu e sua mãe nos sentimos de forma diferente em relação um ao outro. Estamos aqui
juntos por você. Apenas. — Hugo explicou de forma calma e firme.
— Eu agradeço o esforço. Sei que você ama minha mãe e ela não te ama de volta, mas não
precisa amar alguém para transar. Ter uma vida sexualmente ativa é bom para saúde física e
emocional. Considerem como uma atividade recreativa, como jogar tênis.
— Chegou a hora de dormir, mocinha. Já deu por hoje. Vamos subir que eu vou te colocar na
cama enquanto seu pai arruma as coisas aqui e depois sobe para te dar um beijo — ela falou, já
tirando Sara da cadeira impedindo que ela pudesse argumentar.
Enquanto Hugo jogava coisas fora e lavava a louça; elas subiram e foram diretamente para o
quarto de Sara.
— Mãe, você não ama mesmo meu pai? — ela perguntou enquanto Marcela penteava seus
cabelos.
— Não do jeito que vocês queriam.
— Como então?
— Ele é uma pessoa muito especial para mim, por causa dele eu tenho você. Como não amar
quem me deu a coisa mais importante da minha vida?
— Mas você não é apaixonada por ele? Então é tipo amar um amigo?
— Si.
— E é por isso que você não pode transar com ele?
— Não é não poder. É não achar certo. Dá falsas esperanças. Ele é apaixonado por mim, não
quero magoá-lo ainda mais.
— Você não pode se apaixonar por ele?
— Não funciona assim.
— Você me disse que não escolhemos por quem nos apaixonamos.
— Não escolhemos.
— Então você pode se apaixonar por ele de novo.
— Eu não escolhi, por isso me apaixonei uma vez, mas agora... Eu não estou com coração
aberto para que isso aconteça. Não quero que você também esteja com esperanças de que isso
aconteça. Se essa era sua intenção pedindo para ele morar aqui, vou te decepcionar.
— Não. Só quero aproveitar os dois.
— Tudo bem, então. Vamos para cama, que está muito tarde.
— Você vai ficar triste se eu quiser que meu pai faça o ritual hoje? Amanhã você faz...
— Claro que não. Vou só te dar um beijo. Boa noite e bons sonhos.
Marcela saiu do quarto e no corredor passou por Hugo, de banho recém-tomado, extremamente
cheiroso e vestido.
— Sara pediu para você fazer o ritual hoje com ela. Eu vou tomar um banho e te espero para
continuar a conversa.
— Ok.

— Eu fui o eleito hoje? — Hugo falou, entrando no quarto de Sara.— Sim, mas eu quero falar
com você antes.
— Ah, é? — ele perguntou, deitando-se ao lado de Sara.
— É sobre minha mãe. Na verdade, é sobre vocês. — Ela se ajeitou para poder olhar para
Hugo.
— Lá vem.
— Você ama minha mãe?
— Você sabe que sim.
— Você precisa fazer ela se apaixonar por você de novo.
— Não é assim. Ela não quer.
— Você já conseguiu uma vez.
— Filha, amar alguém é bom, mas implorar para ser amado é horrível. Eu já tentei tudo que
estava ao meu alcance. Eu cansei. Cada vez que eu acho que estou quase conseguindo, acontece
alguma coisa. Ela se fecha, se afasta. Eu prefiro não ter sua mãe e vê-la feliz do que ter
pedacinhos dela e vê-la angustiada por aí. Eu errei. Errei feio com ela. E por causa disso perdi
anos da sua vida. Estou aqui, agora, para recompensar o tempo que a gente perdeu. Estou aqui
para ser seu pai e só, ok?
— Tudo bem. Obrigada.
Seguiram para o ritual e logo Sara estava adormecida. Saindo do quarto dela foi até o de
Marcela. Uma leva batida na porta e ele a ouviu autorizando sua entrada.
— Vamos conversar aqui?
— Pode sentar na cama, não vou te agarrar. — Ela tentou quebrar o gelo.
— Bom, se quiser também. — Ele deu ombros.
— Eu tive uma conversa com a Sara, antes de colocá-la na cama.
— Eu também tive. Você está certa. Não podemos fazer isso com ela. Ela acha que nós
podemos ficar juntos.
— Si. Não podemos envolvê-la nas nossas confusões.
— Não sou eu que estou confuso. Eu sei exatamente o que eu quero. E você, Marcela, sabe o
que você quer?
Ela não falou nada, apenas olhou para as próprias mãos que depois foram aos cabelos e os
bagunçaram.
Silêncio.
— Eu vou ficar com o que você tem dito e repetido ao longo desses meses de convivência.
Você não me ama. Tudo bem. Eu não acredito muito nisso, mas posso aceitar. Eu não quero mais
transar com você e fingir que está tudo bem. Não está. Não quando você sai chorando.
— Me desculpa — ela falou num tom quase inaudível enquanto lagrimas corriam timidamente
pelo seu rosto. — Eu não queria...— ela falou entre soluços.
— Você não queria? Por favor, Marcela. Não diga isso. Você foi até mim. Pior que não te ter
por completo é ver você despedaçada depois. Eu não quero isso. Me magoa demais.
— Eu não queria que fosse assim. Mas eu não consigo. — Ela não consegue encará-lo.
— Eu não posso amar por nós dois. Eu não posso fazer você me amar. Eu não posso mais amar
sozinho. Eu não quero mais implorar pelo seu amor.
— Hugo...
— Eu entendi, Marcela, você me perdoou, você não me odeia, mas você também não me dá
uma chance. Você não está se permitindo viver nosso amor de novo.
— No é tão simples así.
— Então me explica? Eu quero entender. De verdade.
— Yo no consigo.
— Então eu quero que você me diga se é para eu desistir. Se é para eu desistir de você. Se é
para eu desistir da gente. Para sempre.
— Eu sinto muito, Hugo.
Ele se levantou da cama e foi até ela. A ajeitou na cama, cobriu-a com o edredom e deu um
beijo no topo de sua cabeça.
— Boa noite, Marcela.
Ele se retirou do quarto e seguiu para o dele, onde antes era o quarto de hóspedes. E então
desabou, finalmente teve um fim. Depois de tantos anos. Ele precisava seguir em frente. Chorou.
Chorou por ter fracassado.
Chorou por ter fantasiado.
Chorou por ter amado.
Seria tão mais simples se ele tivesse seguido em frente como ela fez. Mas a culpa o impediu.
Pelo menos seu choro abafava o dela. Não existia possibilidade de dormir ouvindo Marcela
chorar. Era cruel demais.
Ele não aguentou. Voltou ao quarto de Marcela, deitou ao lado dela na cama e a puxou para
seus braços. Ela não resistiu e apoiou sua cabeça sobre o peitoral de Hugo, agora encharcado
pelas lágrimas.
— Me perdoa. É difícil para mim também. Mas não podemos continuar assim. Nos
machucando. Temos que parar. Pela gente e pela Sara.
E assim pegaram no sono.

— Ei, acordem. Eu trouxe o café — Sara falava, segurando uma bandeja.


— Bom dia, filha. Que coisa linda!
— Buenos dias, mi amor. Vem. — Ela abriu espaço para que Sara pudesse subir na cama,
ficando no meio dos dois. — Obrigada pelo café.
— Maria que fez, e subiu as escadas com a bandeja.
— Mas foi ideia sua, não?
— Foi. — Sara não parecia animada.
— Aconteceu alguma coisa, mi amor?
— Por que vocês choraram ontem à noite?
— Porque nós conversamos e foi doloroso.
— No temos futuro como casal, mas somos amigos e o mais importante de tudo: somos seus
pais, estamos fazendo isso por você.
— Não tem jeito mesmo?
— Filha, é o melhor para todo mundo.
— Tem certeza?
— Claro! A gente vai poder zoar sua mãe a vontade.
— Até parece que eu vou permitir tal coisa.
— A gente pode ser os três mosqueteiros. Eu sou do D’artagnan — Hugo falou, empolgado.
— Pai, ele não é um dos três mosqueteiros.
— Acho que não sou eu quem vai ser zoada...
— Como não, Sara?
— O livro “Os três mosqueteiros” de Alexandre Dumas, narra a história de D’Artagnan
tentando entrar para a guarda do rei quando conhece os inseparáveis Athos, Porthos e Aramis,
que dela fazem parte. Originalmente ...
— Acho melhor ir comendo, no, mi amor?
— Estou falando demais?
— Acho que seu pai já entendeu. Você já deu a informação mais importante, mas aposto que ele
adoraria ler a obra completa com você... — Hugo tinha uma cara impagável.
E assim passaram o resto do dia. Um dia leve de quem acabou de encontrar o equilíbrio. Pelo
menos parece...
CAPÍTULO 40

— VIAGEM DE CARRO EM FAMÍLIA!


— Rio de Janeiro, aí vamos nós!
— Vocês poderiam falar baixo? Minha cabeça agradece.
— Porra, mãe! Tá foda essa dor de cabeça, hein?!
— Como é que é, Sara?! — Marcela se vira o banco traseiro do carro para encará-la.
— Poxa, mãe! Tá fogo essa dor de cabeça, hein?!
— Ah, bom! Pensei ter ouvido outra coisa.
Hugo segurava o riso.
— Não ri não, seu Hugo! Você sabe que isso é culpa sua.
— Desculpa. Sua mãe está certa, filha. Não é legal ficar falando palavrão.
— Vocês dois falam.
— Mas a gente não tem dez anos, Sara. — Hugo se defendeu.
— Qual a diferença? Falar palavrão sendo criança ou adulto? — ela contestou.
— No é bem-visto nem um nem outro. Já conversamos milhões de vezes sobre regras de
convivência em sociedade, eu sei que você discorda de várias coisas, eu também discordo, seu
pai também, mas é melhor seguir para conviver bem. Você é muito inteligente e sabe do que
estamos falando.
— Eu sei me controlar. Você confia em mim?
— Mais do que devia... Eu as vezes esqueço que a mocinha tem só dez anos.
— Oh, copiloto, cadê a música? Vou te demitir — Hugo falou, cutucando-a.
— No sabia que era uma opção, quero me demitir. Onde assino?
— Caramba, mãe! Nem disfarça... se você vai ficar com esse ânimo todo, prefiro ir só com
meu pai...
— Desculpa, mi amor, você tem razão. Eu tomei meu remédio. Já, já fico boa. Vamos fazer o
seguinte, vem aqui na frente com seu pai e eu vou atrás descansando um pouquinho, depois
trocamos.
Elas trocaram de lugar e do banco de trás do carro, Marcela observava pai e filha. Eles se
davam tão bem, tão felizes. Agradeceu ao universo pelo maravilhoso encontro. Por tanto tempo
teve medo de como as coisas seriam.
Das tantas vezes ao longo desses dez anos da vida de Sara em que pensava em Hugo, fantasiou
como seriam as coisas, jamais pensou em um cenário assim. Juntos. Criando a filha deles.
Claro que não deixou de pensar na sua relação com Hugo. De certo ponto as coisas haviam
melhorado entre eles. Após a conversa definitiva. Como ele falou, ele havia desistido deles.
Desistido dela. A sensação era de alívio, a convivência ficou mais leve, mais despretensiosa. O
desejo não tinha sumido. Eles não eram de ferro e as vezes se pegavam em situações em que
tiveram de fazer extremo esforço para resistir um ao outro.
Os efeitos do remédio chegaram e logo ela foi tomada pela sensação de relaxamento e pegou
no sono.
Sara e Hugo falaram sem parar e só perceberam Marcela dormindo quando pararam para
comer e ir ao banheiro.
— Foi exatamente aqui que eu e sua mãe paramos quando fomos para o Rio. — Ele falou
enquanto andavam de mãos dadas pelo estacionamento.
— E você a trancou no carro, igual a gente está fazendo agora.
— Então você conhece a história?
— Algumas coisas. Ela não fala tudo. Relações de amor e ódio. É difícil para ela.
— Vocês iam muito ao Rio?
— Não tanto quanto gostaríamos.
— Marcela falou que vocês não vêm juntas há um tempo.
— Desde que meu pai, meu outro pai, morreu — ela falou baixinho, olhando para o chão.
Hugo parou de forma que Sara não podia continuar andando e foi puxada para trás. Ele agachou
para que seus rostos ficassem da mesma altura.
— Filha, você não precisa fazer isso. Eu gosto de ouvir você falar sobre o Octávio. Das
histórias de vocês. Se é importante para você, é importante para mim! Eu não quero tomar o
lugar dele. Ele te criou, te protegeu, cuidou de você, foi seu amigo. Eu fico muito feliz que você
tenha tido um pai tão legal, mesmo que não tenha sido eu. Você sempre pode falar qualquer coisa
comigo.
Ela apenas respondeu com um abraço bem apertado, e vindo da Sara, era melhor que qualquer
discurso. Sua cabeça apoiada em seu ombro oferecia o cheiro delicado e infantil de seus
cabelos.
Se suas feições não deixavam dúvidas de que ela era filha de Hugo, aqueles cabelos negros e
perfeitas ondas furiosas não deixavam dúvidas de que ela era filha da Marcela. Quanto à
personalidade, ela tinha tanto deles. O suficiente para levar ambos a loucura. As dores e delícias
de se ter uma filha tão incrível como Sara.
Acabando com o momento fofo Marcela passou por eles correndo.
— Quem chegar por último paga a conta!
Eles se entreolharam, riram e saíram correndo atrás de Marcela.
— Eu no acredito que saí antes de vocês e ainda assim perdi... Eu sou uma decepção.
— É mesmo — Sara e Hugo falaram rindo enquanto Marcela pagava a conta.
Voltaram para o carro de mãos dadas, rindo. Conversando. Apenas sendo eles. Qualquer um
que passasse por eles não teria dúvida que se tratava de uma família feliz.
Assumindo novamente seu lugar no banco do carona, o resto do caminho até o Rio se resumiu a
cantorias, risadas e Marcela reclamando sempre que surgia uma música de hard rock.
— Você já pode dar o endereço do hotel, Sara?
— Nós vamos para casa.
Marcela se voltou para o banco de trás a olhando surpresa.
— Tá tudo bem, mãe. De verdade. O endereço tá no GPS pai.
Marcela tentava disfarçar o desconforto da notícia sem muito sucesso. Hugo queria saber do
que se tratava, mas não ia perguntar. Não queria estragar esses dias. Sara tinha uma programação
intensa; finalmente a viagem do aniversário dela estava saindo do papel e com bônus “meu
primeiro dia dos pais”, como ela mesma disse.
Seguindo o caminho indicado pelo GPS havia uma pequena e estreita estrada cercada de verde
cheirando a terra molhada. Rio de Janeiro e seus encantos. Em nossas costas a mata fechada, e
em nossa frente o mar.
Com o carro já na garagem da casa, Hugo e Sara, empolgados, rapidamente saíram do carro e
entraram na casa que ela ia apresentando.
Marcela, ao contrário, parecia tomar coragem para fazer tal ato. Nunca passou pela cabeça
dela que seria tão difícil. Ainda perdida em seus pensamentos não reparou que Hugo já estava
bem próximo e sem a intenção de assustá-la. Mesmo assim, recebeu um tapa como reação.
— Agressiva! — Ele tentou parecer ofendido para quebrar o gelo. — Tudo certo? Quer
conversar?
— Eu só não estava esperando vir para cá.
— Você deixou os planos na mão da Sara, qualquer coisa pode acontecer.
— Ela me implorou para vender a casa. Disse que nunca mais queria vir aqui.
— Parece que ela mudou de ideia. E você, como se sente? Vindo aqui.
— É estranho, não é ruim. Apenas estranho. Acho que fui pega de surpresa, só isso.
— Ok. Vou tirar as coisas do carro. Leve o tempo que precisar.
— Obrigada. Não demoro.
Essa foi a casa que ela e Octávio compraram juntos. A casa que eles moravam em São Paulo,
ele comprou e hoje pertencia a Sara. Quando finalmente a vida de Marcela e Octávio se
estabilizou, o Ruiz ia muito bem e o banco de investimentos dele também, Sara já tinha pouco
mais de três anos.
Marcela tinha acabado de pagar a Felippo a dívida da internação do nascimento de Sara e
finalmente sobrava dinheiro. Ela compraria algo mais modesto, mas Octávio quis algo com mais
luxo e ela cedeu. A casa incrustada na pedra, cercada pela mata e com uma vista incrível para o
mar e em dias de céu azul como de hoje, mal dava para ver no horizonte onde acaba um e tem
início o outro.
A relação de Marcela com o Rio sempre foi especial. A conexão com seus espaços, memórias
e sentimentos. Desde a primeira vez que veio, ainda com Felippo, em que a energia da cidade a
contagiou.
Mas a viagem com Hugo lançou um novo olhar sobre os espaços onde tudo invocava uma
memória. Memórias felizes e leves dos momentos por eles vividos naquele que era o Rio de
Janeiro deles.
Após a ida de Hugo para Paris, a primeira vez que Marcela voltara ao local sem ele, foi
justamente quando Sara, de surpresa, decidiu nascer bem antes da hora. E pensar que meses
antes, Hugo tinha escolhido a noite de ano novo e utilizou o Pão de Açúcar como palco para lhe
jurar amor eterno, promessa essa que descumpriu uma semana depois.
O Rio de Janeiro passou então a ser um lugar de memórias no mínimo dolorosas para serem
revividas. Mas a vida nos prega peças e por ironia do destino, ou não, Sara tinha uma fixação
pela cidade. Será que ela pelos poros sentia tudo o que aquele lugar significava para história que
culminou na existência dela?
A necessidade de fugir um pouco de São Paulo, de todo aquele concreto e de nos conectarmos
com a natureza, com o calor, com toda beleza natural, arquitetônica e poética nos fez cada vez
mais frequentar a cidade.
O Rio fazia tão bem a Sara que fazia todo sentido ter uma casa lá. E assim fizeram. Apesar de
todos os momentos que Marcela, Octávio e Sara tiveram tanto na cidade quanto na casa, Marcela
nunca deixou de sentir como se estivesse traindo o lugar e suas memórias. Daquele que era o
lugar dela e de Hugo e sempre se pegou pensando se tudo que foi vivido não seria ainda melhor
se ele estivesse com elas. E agora está.
Marcela, Hugo, Sara no lugar que era deles, o Rio de Janeiro.
Reunindo forças e coragem Marcela deixou o carro pronta para ter as novas melhores
lembranças do Rio de Janeiro, e dessa vez se sentia completa.
Ao entrar na casa sentiu aromas vindo da cozinha e encontrou Hugo e Sara fazendo omeletes.
— Mãe, sua programação — a menina falou, apontando um papel sobre a bancada.
— Viagem da família Campana-Coelho. No é muita coisa? — ela falou, analisando o papel.
— Tá tudo no esquema, Marcela Campana.
— Sim, senhora, Sara Campana Coelho. É assim que você já está assinando as coisas?
— Eu sei que o processo ainda não rolou, não é um documento oficial...
— Eu sei, mi amor. Estou só tentando me acostumar.
— Eu já falei com o advogado, ele vai dar entrada na papelada. Do jeito que a gente combinou.
Uma mãe e dois pais.
— Sim! Eu estava aqui pensando...
— Sempre um perigo você pensando... — Hugo falou enquanto Marcela ria.
— Mãe!
— Eu só ri. Seu pai que falou! Por que você só briga comigo? — Fingiu estar ofendida. —
Fala o que passa nessa cabecita.
— A praia em que vocês transaram foi aqui no Rio?
— Por que, Dios? — Marcela indagava aos céus fazendo Hugo e Sara gargalharem.
— Isso é um sim?
— Foi aqui sim, filha!
— Hugo!? — Marcela o repreendeu.
— Ué?! Vou mentir para ela?
— Ela não sabia!
— Não?!
— Não. Mas agora você confirmou. Qual foi a praia? Era de dia? Tinha gente?
— Você é tão inocente, Hugo! Muda de pauta, Sara, já conversamos sobre isso.
— A mocinha vai ver só. Fica me enganando! Depois eu viro uma bruxa igual sua mãe...
— Ah, pronto, estava demorando para chegar na parte que eu sou uma bruxa.
— É uma bruxa boazinha, mãe.
— É, Marcela, tipo Harry Potter. Você lembra aquela velhinha da Grifinoria.
— Velhinha é sua mãe, Hugo!
— Falar da mãe não pode, oh, Marcela...
— Pai, minha vó é velhinha mesmo.
Seguiram o dia com a programação feita por Sara e depois de um dia agradável e exaustivo o
combinado era dormir na barraca montada no quintal.
— O que você não me pede sorrindo que eu não faço chorando? — Marcela falou, deitando no
chão da barraca. — Será que amanhã eu consigo levantar? Esse chão é muito duro.
— Depois não quer que a gente te chame de velhinha...
— Hugo, vá para ponte que te partiu.
— Adoro suas versões kids para palavrões: ponte que te partiu, casa do baralho, vá se ferrar,
tá fogo, poxa... Estou enriquecendo meu vocabulário.
— Depois você diz que não sabe por que apanha...
— Ok, progenitores! Estamos numa barraca, vocês acham inteligente brigar agora?
— Você acha inteligente dormir no chão com camas maravilhosas lá dentro?
— Mãe, relaxa! Aproveita o momento!
— Ok.
— É viagem de família edição aniversário de dez anos, mais bônus Dia dos Pais, você é parte
importante, mas não é a protagonista.
— Não fala assim com a sua mãe.
— Eu não...
— Pode deixar, Sara. Já entendi. Boa noite.
— Mãe, desculpa. Você é muito, muito importante. Eu me expressei mal.
— Tudo bem, mi amor, eu sei.
— Sara me ajuda rapidinho com uma coisa aqui fora — Hugo falou, já saindo da barraca.
Ele entrou na casa e fechou a porta logo depois que Sara entrou.
— Precisamos conversar sobre sua mãe.
— O que tem ela?
— Sara, você tem que tomar cuidado com o jeito com o qual você fala com ela. Pode até não
parecer, mas ela tem coração...
— Mas eu...
— Não, eu falo e você escuta. Você sabia que ela não acha que seja importante para você?
Você precisa pegar leve com ela. Demonstrar mais que a ama. Ela é fechada, eu sei. Mas ela fez,
faz e faria qualquer coisa por você.
— Ela sabe que eu a amo.
— Mas você não pode tentar ser menos dura com ela? A viagem não é de família? Como ela
não é protagonista? Ela é menos importante na nossa família? E sim, ela sabe que você a ama,
mas você não pode falar mais, ou demonstrar de outra forma? Filha, não estou pedindo para você
mudar seu jeito, nem para fingir nada. Só queria que você pensasse se não tem uma forma melhor
de se relacionar com a sua mãe. Você não gosta de se sentir amada? Todo mundo gosta.
Entendeu?
— Entendi.
— Ok, eu te amo.
— Eu sei.
— A resposta melhor seria eu te amo também, mas ok...
— Te peguei! Eu também te amo.
— Engraçadinha! Vamos voltar...

Ao voltarem Marcela já dormia, Sara fez menção em acordá-la, mas foi impedida por Hugo.
Ficou com um bico gigante por ter seu plano estragado, mas acabou dormindo assim mesmo
depois que fizeram o ritual.
Os primeiros raios de sol batiam na barraca quando Marcela despertou deitada sobre o peito
de Hugo. Babado.
— Eu acordando no Rio com meu peito todo babado por Marcela Campana. Nada mudou e a
paz reina no mundo.
— Engraçadinho! Cadê a Sara?
— Deve estar na cama dela, né?
— Eu não sei ainda por que eu caio nesse papinho dela de dormirmos os três juntos...
— Não é tão ruim assim acordar nos meus braços. O cheiro do seu cabelo é bom. Você é toda
cheirosa né...
— Olha, esse peito aqui já foi melhor, tá meio murcho...
— Eu sendo fofo e você me detonando.
— Vamos que eu já detonei a programação de ontem à noite, ela deve estar puta.
— Ela queria te acordar, mas não deixei. Você está bem?
— Si. Vou ficar melhor depois que você fizer café da manhã.
— Eu sou muito explorado pelas mulheres Campana.
— Só existe uma mulher Campana agora. A outra é uma Campana Coelho, não ouviu?
— Podiam ser duas Campana Coelho, mas você não colabora...
— Não começa a desalinhar meus chacras logo de manhã, garoto!
Eles se levantaram e seguiram para a casa.
— No acredito que ela trancou a gente do lado de fora!
— Bom, a gente pode pensar que ela foi responsável ao trancar a casa.
— Vocês dois me formam uma bela dupla... SARA!!!!!
— Está louca!
— Eu preciso entrar!
— Até parece que você não sabe que a Sara dorme igual uma pedra. Ela não vai acordar nem
tão cedo.
— Eu preciso entrar!
— Meu Deus que desespero, mulher! Quer fazer xixi?!
— Não!
— Fome?
— Não!
— Me conta o que está te deixando desesperada para entrar em casa.
— Você!
— Eu?! Mas eu nem estou falando nada!
— Como se precisasse, se você pudesse ver sua cara. Aposto que isso é um plano de vocês
dois...
— Plano meu e da Sara para quê?
— Para a gente transar.
— Incrível você achar que eu preciso de um plano para isso, ainda mais envolvendo a Sara.
Mas fica tranquila, não vai acontecer.
— Não?!
— Ué?! É o combinado. Além do mais, as camisinhas ficaram lá dentro...
— Você trouxe camisinha?!
— Marcela, qualquer pessoa sexualmente ativa nesse país deve andar com camisinha, sua filha
não te ensinou isso não?
— Engraçadinho. Até parece que eu não sei das suas más intenções.
— Agora vai me dizer que na sua bolsa não tem camisinha?
— Claro que tem.
— Naquela bolsa que ficou no carro.
— Si.
— O carro está aberto...
— Não inventa, você mesmo disse que não ia acontecer.
— Por falta de camisinha... Você não quer dar um irmãozinho para Sara...
— Como acabar com o tesão por Hugo Coelho.
— Até parece. Está até arrepiada.
— Cala sua boca.
— Não vai rolar...
— Não mesmo.
— Marcela, você sabe que eu estou quase sem condições de resistir a você.
— Você acha que para mim é fácil?
— Caralho! Vamos resolver isso logo!
— Não sei.
— Eu te dou cinco orgasmos em vinte minutos.
— Duvido.
— Só me promete que não vai chorar depois.
— Única chance de chorar depois de cinco orgasmos em vinte minutos é de felicidade. Vai
logo buscar a camisinha.
Ele saiu correndo saltitante em direção ao carro como um garotinho que ganhou o presente que
pediu numa manhã de Natal e voltou em menos de um minuto transformado no maior tarado do
planeta. Só o olhar dele já mexia com Marcela.
Quando o avistou ao longe ela se dirigiu ao quarto da piscina. Que por sorte ou parte do plano
de alguém, estava aberto.
Assim que cruzou a porta, Hugo a trancou. Havia aprendido a lição. Sem delongas pegou de
surpresa Marcela que observava a paisagem. Sua boca encontrou a nuca dela enquanto uma mão
sua apertava seu seio e outra já sentia a umidade de Marcela, arrancando um gemido manhoso.
— Sempre pronta, vai ser mole te dar cinco orgasmos em vinte minutos.
— Veremos — ela disse, ligando o timer do celular.
Ele a virou e a beijou de maneira intensa. Ela estava entregue. Não ia dificultar. Seus lábios
abandonaram os dela e seguiram pelo pescoço onde beijos eram distribuídos. Um chupão. Tomou
um tapa.
— Vou acabar com a sua vida se isso ficar marcado.
— Relaxa, não vai — ele mentiu.
Beijou a clavícula que tanto amava enquanto com força apertava a bunda dela arrancando mais
um gemido. Tirou a blusa dela antes de deitá-la. Antes de continuar parou para admirar mais uma
vez aquela obra prima da natureza. Não havia mulher mais linda, e tinha estado com incontáveis.
Ninguém chegava aos pés dela. Reparar no rosto dela levemente ruborizado, olhar flamejante de
desejo. Desejo mútuo.
Dessa vez a beijou com calma e de maneira lenta e torturante foi cobrindo todo o trajeto da
boca até um dos seios. Ele sabia que não seria necessário muito e com pouco tempo de
estimulação, sugando com intensidade um e variando a pressão com a mão no outro, ela logo
chegou ao orgasmo.
— Primeiro conquistado.
— No percas seu tempo contando, sua boca pode ser usada para coisas melhores... — ela falou
ainda com a respiração alterada.
Ele riu e prosseguiu com a missão. Seguindo por seu abdome, brincou com seu umbigo e
depois desceu até a virilha. Deixou um mordida no interior da coxa, talvez fique marcado.
Permaneceu depositando beijos no local até que Marcela passou a movimentar o quadril em
direção a sua boca. Sempre impaciente, sempre insaciável. Manteve seu rosto quase colado a
intimidade, Marcela sentia a sua respiração em seu íntimo e sabia que ele estava provocando-a.
Ele sabia que aquilo a deixava explodindo de tesão, a expectativa de ter a boca dele se
deliciando dela e a levando ao delírio.
Ele tinha pressa e por isso não pôde torturá-la mais um pouco. Também tinha urgência de senti-
la, prova-la, deleitar-se e fazê-la se desfazer dentro do próprio prazer. Começou passando a
língua por toda sua extensão e ela já arfou. Com maestria começou a sugar seu clitóris alternando
a pressão, velocidade e as vezes dando leves mordidas. Ele a penetrava com a língua quando ao
apertar um de seus seios ela jorrou sobre seus lábios indicando o segundo orgasmo alcançado.
Para dar a Marcela um breve período de descanso dividiu com ela seu sabor doce com notas
ácidas no final. Trocaram mais alguns beijos até que a respiração dela desacelerou e ele voltou
com alegria à sua missão.
Dessa vez, manipulando o clitóris de Marcela com os dedos, com sua boca dava atenção
novamente a seu pescoço, descendo pelo colo até chegar aos seios. Alternou entre um e outro até
ela se contorcer de maneira manhosa, assim como seus gemidos. A mudança na sua respiração
dava sinais de que ela já estava quase lá. Afastou seu rosto para aprecia-la. A beleza pré,
durante e pós orgasmo. Ele queria testemunhar. Não há nada nela que não seja lindo ou
interessante. Sabendo exatamente o que precisava fazer para chegar ao terceiro orgasmo, sem ter
parado de massagear o clitóris dela, com a outra mão introduziu dois dedos que facilmente
deslizaram por tamanha lubrificação. Com movimento de vai e vem indo cada vez mais fundo, a
viu arquear as cotas, revirar os olhos e soltar um gemido gutural ao chegar lá pela terceira vez.
Era lindo e mágico. O arrepiou.
O sorriso leve e despretensioso de quem acabou sentir a melhor sensação do mundo
encantaram Hugo mais uma vez. Era uma cena que ele queria guardar para sempre, já que parece
ser impossível repeti-la todos os dias, apesar de ser seu maior desejo. Retirou seus dedos de
dentro dela e quando ia levar a boca teve sua mão desviada. Marcela pegou os dedos e levou a
própria boca e os chupou de uma maneira tão sensual. Não quebrou o contado do olhar, não
piscou e fez seu pênis latejar de tanto prazer.
— Te quiero dentro de mi. Ahora — ela falou, lambendo os lábios que sujaram tamanha a
lubrificação que os dedos dele apresentavam.
Precisou de menos de meio segundo para que Hugo retirasse toda a roupa enquanto Marcela
abria a camisinha. Ela mesma a colocou antes de se deitar novamente. O jeito que se olhavam era
único. Tinha desejo, ternura e cumplicidade.
Ele a pôs de bruços sobre a cama e ela logo arrebitou levemente a bunda. Depositou um tapa
que arrancou um gemido que se prolongou quando ele se introduziu nela. Aquele encaixe de
sempre. De quem foi feito um para o outro e conhece todas as curvas, manhas e nuances. Ele
imprimia um ritmo intenso de estocadas enquanto beijava as costas de Marcela. Pela mudança no
tom dos gemidos, ele sentiu que ela mais uma vez se aproximava de um orgasmo. Enfiou uma das
mãos nos cabelos dela e o puxou e com a outra massageava os mamilos dela e logo a sentiu
estremecer sob ele. Só falta mais um.
Ele conhecia Marcela, ela estava exausta. Mas não daria o braço a torcer. Puxou o quadril dela
para cima e a colocou-a de quatro. Uma lambida em toda extensão da intimidade de Marcela. Ele
amava o gosto dela. Amava tudo nela.
Tudo que se ouvia era o choque dos corpos, respirações ofegante e gemidos incontroláveis. Até
que o timer tocou. Marcela pensou em fazer uma gracinha, mas podia estragar o clima e se
limitou a desligar o alarme.
Com estocadas firmes e lentas ele ia cada vez mais fundo nela arrancando gemidos que o
arrepiavam. Como ele amava dar prazer aquela mulher. Ele amava ama-la de todas as formas
possíveis. E assim chegaram ao ápice. Desabaram exaustos, mas em êxtase.
— Fica — ela disse ao perceber que ele estava deitado sobre ela, se retirar de dentro dela
quebraria o contato tão íntimo. — Se você quiser e puder.
Ele apenas ficou, jamais pensou ouvir isso dela novamente. Seu pensamento vagueou e visitou
lembranças de quando ela dizia amar os corpos deles pulsando juntos. Ele beijou seu ombro,
ajeitou seus cabelos, entrelaçaram as mãos e viveram aquele pequeno e infinito momento até
pegarem no sono.
— Eu sei que vocês estão aí! E se trancaram a porta devem estar pelados! Tudo bem. Pessoas
transam. Mas temos uma programação para seguir — Sara gritava enquanto batia na porta com
força.
CAPÍTULO 41

— Já te disse que nós estávamos dormindo.


— Mas transaram antes.
— Você trancou a gente para fora de casa — Hugo falou.
— Não posso deixar vocês sozinhos dois minutos sem vocês transarem?! Parecem dois
adolescentes.
— Ei!
— Tudo bem, vocês são adultos, livres, solteiros e desimpedidos, só espero que usem
camisinha, ninguém quer mais um filho não planejado, não é mesmo?!
— Sara!
— Deixa, Hugo. Daqui a pouco ela volta.
— A gente está fazendo merda né?! Falamos para ela que não faríamos de novo.
— Si.
— Foi mal.
— Não tem que se desculpar comigo, nós temos que nos desculpar com ela. Ou não.
— Ou não?!
— Somos adultos. Sabemos o que estamos fazendo. Só não podemos bagunçar a vida dela. Mas
ela tem que respeitar nossa vida e nossas escolhas. O mundo não gira em torno dela.
— Quer dizer que vai dar uma chance para a gente?
— Não existe chance para a gente.
— Então é uma coisa tipo “o que acontece no Rio, fica no Rio”?
— Foi caindo nessa lorota que eu estou aqui discutindo minha vida sexual com uma criança de
dez anos. Você me enganou direitinho.
— Enganei não! Confiei no meu potencial conquistador.
— Você é muito convencido. Não fui eu que cheguei em São Paulo emburrado...
— Claro, você não me queria. Queria só me usar. Inclusive como está fazendo agora.
— Por isso que não vai acontecer de novo.
— A gente está sempre falando isso. Dá uma chance para a gente. Só esse final de semana.
— Não, Hugo.
— Cacete, Marcela. Para de ser cabeça-dura! Você estava entregue a mim até agora pouco.
— Você me prometeu cinco orgasmos em vinte minutos. E não cumpriu sua promessa, diga-se
de passagem...
— Ingrata. Tenho chance de réplica.
— Não dá. Sara não está bem.
— Você está arranjando desculpa. Acabou de falar que o mundo não pode girar em torno da
Sara e agora está usando-a como desculpa. Queria saber o porquê de você negar tanto.
— Você quer que eu te diga de novo?! Posso repetir quantas vezes você quiser.
— Tá. Não precisa. Mas e a Sara?
— Vamos conversar com ela. Entender o que se passa naquela cabecinha. Vou subir, trocar de
roupa e desço com ela. Você termina aí, ou precisa de ajuda para mexer esses ovos?
— Vá a merda, Marcela. Não me provoca. Tu acha que eu preciso de ajuda para fazer ovo
mexido?
— Grosso!
— Fresca!

Marcela subiu, vestiu o biquíni, saída de praia, óculos, chapéu e foi atrás de Sara.
— No vai se arrumar? Vamos nos atrasar.
— Façam o que vocês quiserem.
— Ah, é? Ok!
— O que vocês vão fazer?
— Não é da sua conta.

Marcela desceu as escadas e encontrou Hugo só de sunga. Respirou fundo e se sentou à mesa.
— Você não ia descer com a Sara?
— Ela está fazendo pirraça.
— A gente ainda tem que ficar feliz com isso?
— Não, mas eu agora só falo com ela aqui. Ela já desce.
— Falando na Margarida... — falou, quando Sara apareceu com um cara de pouco amigos.
— O que tem de malcriada tem de fofoqueira...
— O que está acontecendo? Com as duas? — Hugo perguntou assustado.
— Conta para o seu pai o que está acontecendo. Ou melhor, deveria dizer o que não está
acontecendo.
— Nada a ver?!
— Então eu sou louca? Me diz que eu estou errada, Sara!
— Não estou entendendo nada! Vocês podem me explicar o que está acontecendo?
— Eu estou de olho na senhorita desde ontem. Agora eu tenho certeza.
— Certeza do que, Marcela?
— Sara, se você não contar, eu conto. Tem cinco segundos.
— Tá bom!
— O que está acontecendo, filha?
— Eu...
— Ela não está tomando o remédio.
— Por que, filha?!
— Eu tô bem, pai. Eu não preciso do remédio.
— Você não está bem, mi amor.
— Claro que tô. Não tô, pai?
— Lembra que eu falei com você ontem sobre como você tratou sua mãe? Você normalmente
não fala com ela daquele jeito. Nem do jeito que você falou com a gente hoje de manhã.
— Vocês são irresponsáveis e querem jogar a culpa em mim.
— Calma, mocinha, vamos conversar. Senta aí.
— Mi amor, eu entendo o porquê de você parar com o remédio. Eu te avisei que iria acontecer.
Nós confiamos em você.
— Eu estou me sentindo bem. Eu juro.
— Eu sei, mi amor. Mas você precisa confiar na gente, pessoas que te amam. Você não está.
Você estava bem. Bem porque estava tomando seu remédio. Mas ele não estava bem ajustado, ou
não teria parado de tomar.
— Desculpa. — Ela começou a chorar.
Hugo a puxou para o colo e ela enterrou a cabeça em seu pescoço.
— Oh, filha! Não precisa se desculpar. Está tudo bem, vai ficar tudo bem.
Marcela se aproximou deles de modo que conseguisse abraçar os dois. Deu um beijo na cabeça
de Sara.
— A gente no é tão irresponsável assim. Nós usamos camisinha.
— Só 98% responsáveis. O DIU de cobre 99,3% de eficácia, e ainda assim, tenho dez anos.
— Tem razão. Mas nós somos adultos, sabemos dos riscos e estamos assumindo o risco pelos
nossos atos. Podemos e vamos arcar com as consequências.
— Por isso adolescentes não devem ser sexualmente ativos.
— Isso, filha. Continue pensando assim!
— Mas não era disso que eu estava falando. Nós falamos para você que não aconteceria de
novo, mas aconteceu.
— E vai continuar acontecendo? — Eles se entreolharam. — Vocês não sabem?
— Como se sente em relação a isso?
— Acho que seria bem bom vocês juntos, de verdade, não só sexo casual, sabe?
— Mas...
— Se não der certo? Se vocês brigarem? Como eu fico? Eu estou gostando muito de ter os
dois. Do jeito que nossa família é. Não quero ficar com um ou outro.
— Tudo bem. Sem problemas.
— Mas também não vou impedir vocês.
— Você pode também não usar olhar inquisidor e não fazer perguntas constrangedoras caso
aconteça de novo? — Hugo falou e elas riram. — Sério, filha! Parece até que eu estou sempre
sendo pego no flagra pela minha mãe.
— Minha mãe geme muito alto, difícil não saber quando está acontecendo...
— Cala a boca, garota! Que vergonha! — Marcela escondia o rosto com as mãos.
— Ué?! Mas quer dizer que estava bom, né?
— Chegaaaa!
— Vai logo trocar de roupa, filha. Estamos atrasados para programação!
— Já volto. Dez minutos.
Sara saiu saltitando escada acima e sumiu.
— Como você sabia que ela não estava tomando o remédio? Por que não me contou?
— Você percebeu, só não sabia o que era. Agora já sabe.
— O que a gente faz?
— Agora nada. Temos que ficar de olho e leva-la ao médico assim que voltarmos para casa.
— Estou falando da gente.
— Sério mesmo?
— Vai ter que achar outra desculpa, essa da Sara não vai mais colar...
— Você escutou o que ela falou?
— Que ela não vai impedir.
— Mas tem medo. Sério que vamos deixar o tesão pesar mais na balança do que a felicidade
da nossa filha?
— Se você não gemesse tão alto...
— Cala a boca! — ela falou, distribuindo tapas nele.
Ele a segurou e seus rostos ficaram tão próximos que suas respirações se misturavam. Pelo que
pareceu uma eternidade apenas se olharam.
— Estou atrapalhando alguma coisa? — Sara falou e tirou os dois do transe.
— Nada, mi amor. Podemos ir?
— Podemos.

Seguindo o plano de Sara, foram para a praia. Marcela passava protetor em Sara enquanto
Hugo tentava arranjar uma prancha para surfar.
— Mãe, passa protetor no meu pai.
— Passa você.
— Eu não alcanço.
— Ele abaixa.
— Vocês não podem nem se tocar? A coisa está feia mesmo.
— Quê?!
— Tensão sexual palpável.
— Eu mereço.
— Pai, que bom que você voltou. Minha mãe precisa que você passe protetor nas costas dela.
— Claro.
— Não preciso, não.
— Qual foi, Marcela? Está com medo de mim?
— Não deveria?
— Eu deixo você passar em mim depois.
— Vai sugerir também que a gente deixe a Sara na areia e vá transar na água?
— Claro que não. Vou matricular ela na aula de surfe para garantir que ela estará ocupada para
não atrapalhar a gente.
— Não preciso de protetor nas costas. Obrigada. Vou ficar de barriga para cima mesmo.
— Sua bunda está precisando pegar sol.
— Vai se foder, Hugo.
— Eu queria mesmo era foder você, você sabe né? — sussurrou no ouvido dela. — Bora para
água, Sara?
Marcela os observava brincando na água e se imaginou vivendo todos os dias assim. Seria
maravilhoso. Eles três no Rio de Janeiro. Acabou pegando no sono. Ao acordar uma sombra
sobre si.
— Você está tampando o sol, Hugo.
— Eu deveria ficar ofendido com o comentário.
— Não é possível, que assombração!
— Você vem até minha cidade...
— Não sabia que tinha comprado a cidade para você. Achei que a praia ainda fosse pública.
— Sempre muito simpática.
— Nossa, estou sendo incrivelmente simpática porque minha vontade era partir você ao meio.
— Eu só quero falar com a Sara.
— Não sabia que você era tão burro, Felippo.
— Você não quer que ela fale comigo.
— Eu adoraria ter evitado que você fizesse parte da vida dela. Você tem noção do que fez com
ela?
— Não acho que ele fez falta na vida dela.
— Ele é o pai dela. Você sabia. Você sabia como encontrá-lo em Paris. Você sabe como a gente
sofreu. Você poderia ter concertado seu erro ali. Mas você achou mais importante me punir por
algo que eu não tive culpa. Você não pensou nela.
— Ela tinha a mim.
— Você é doente. Procura ajuda.
— Eu sei do que eu preciso.
— Pelo visto é uma ordem de restrição. Não se aproxime da Sara ou de mim de novo. Com o
Hugo você pode tentar a sorte.
— Vocês estão juntos?
— Não é da sua conta. Vou ter que ligar para Ana vir te buscar?
— Ana pediu um tempo.
— Também quero um, de uns cinquenta anos, pelo menos. Você tem um minuto para sumir. Ou
dois para apanhar do Hugo, ele já te viu aqui e não está com uma cara nada boa.
— E você acha isso normal?
— Tratamento normal para pessoas normais. Não é o seu caso. Seu minuto passou. Estou
pegando meu celular.
— Você não teria coragem.
— Você não me conhece — ela falou, pegando o celular.
— Ok. Pede para Sara retornar minhas ligações.
— Não vou pedir porra nenhuma! Se ela quiser falar com você, ela sabe onde te encontrar,
encosto. Some.

Pouco depois de Felippo ter ido embora, Sara e Hugo se juntam a Marcela na areia.
— O que Pipo queria?
— Falar com você.
— Eu não quero falar com ele.
— Foi o que eu disse. Não precisa se preocupar. Vamos almoçar? Estou com fome.

Seguiram para o almoço em um dos restaurantes preferidos de Sara no Rio. Ele ficava logo
após a praia de Grumari. A especialidade do restaurante era comida caseira com frutos do mar,
os chefes não discordam de Sara. Boa comida e um lugar aconchegante. Após o almoço
cochilaram nas redes do restaurante.
— Não adianta ficar chateada. Todo mundo dormiu, inclusive a senhorita.
— Filha, a gente vem outro dia e vai. Não sei se você sabe, mas dá para viver a vida sem uma
programação cronometrada. Fazer o que tem vontade na hora que tem vontade.
— Se eu fosse uma filha normal sua vida seria mais fácil.
— Não foi isso que eu falei. Eu já entendi que para você é importante saber o que vai fazer no
dia e isso te deixa tranquila, mas a vida não é assim, a gente vai vivendo. Fazemos uns planos,
mas algumas coisas saem do controle.
— A gente pode ver um filme, deitadinhos...
— Para você dormir, né?
— A madame só quer saber de dormir...
— Que implicantes! Vocês se merecem!
— Mas você ama a gente assim mesmo... — Sara falou.
— Vou tomar banho.
— Melhor mesmo, maior inhaca — Hugo comentou e fez Sara gargalhar.
— Eu mereço...

Depois de horas para escolher um filme, Sara ganhou e colocou Sinfonia da Natureza.
Bastaram cinco minutos para Marcela apagar. Não muito tempo depois Hugo dormiu. Quando o
documentário acabou, Sara os deixou e foi para seu quarto.

Hugo despertou levemente, tateou a cama ainda de olhos fechados a procura de Marcela,
apenas encontrou uma caixa. Era azul e tinha um laço branco. Um bilhete delicadamente preso ao
presente, sorriu ao reconhecer a caligrafia de Marcela:
“Feliz Dia dos Pais!”.
Por um tempo apenas encarou a caixa. Quanto tempo esperou por esse momento? Quanto tempo
sonhou com isso? Ele havia desistido dos sonhos dele de ter filhos com a mulher da sua vida.
Agora, depois de uma reviravolta do destino, ele pode finalmente comemorar essa data, com ela.
Com elas. Queria guardar para sempre tudo na memória.
Desfez o laço com certo pesar e destampou a caixa. O conteúdo o surpreendeu a ponto de ficar
paralisado. Tinha um teste de gravidez dentro. Dois traços é positivo ou negativo? Ninguém
presenteia ninguém no Dia dos Pais com um teste negativo. Marcela não faria isso, faria?
Reparou então que na caixa ainda havia uma carta e uma caderneta. A carta era de Marcela.
“Feliz Dia dos Pais!
Calma! Por mais que você deseje, esse teste não é de agora. Sim, ele deu positivo. Dizia
para esperar por 5 minutos, mas bastaram 15 segundos para o resultado aparecer. Foi
no dia 25 de fevereiro de 2005, eu estava na Argentina. Estava na cara que eu estava
grávida, todo mundo sabia, mas eu não queria acreditar.
Eu guardei porque... bom, todas as histórias merecem ser contadas. Esta caderneta é
uma espécie de diário. Eu fiz para Sara e ela gentilmente está dividindo com você, para
que você faça parte dessa jornada. Aproveite, MC.”
Lágrimas já escorriam sobre seu rosto. Tomou cuidado para não molhar o papel e com cuidado
abriu a caderneta.
“Buenos Aires, 26 de fevereiro.
No faço ideia do que estou fazendo. Octávio está me obrigando a fazer isso. Bebê, sinto
muito. Não estou nada feliz. A culpa não é sua. Seu pai foi embora e eu o odeio. Eu não
entendo.
Buenos Aires, 01 de março.
Ouvi seu coração. É assustador. Seu pai teria amado, mas ele foi embora. Me pediu em
casamento e sumiu. Mas não faria isso com você. Nós vamos nos mudar.
São Paulo, 05 de março.
Fomos ver sua avó. Não contei sobre você. Não sei o que fazer. Devolvi a aliança que
seu pai me pediu em casamento. Não parecia certo ficar com ela. Eu perguntei pelo seu
pai. Ela também não tem notícias dele. Não sei o que aconteceu, eu ainda não entendo.
New York, 13 de março.
Chegamos ao nosso novo lar. Debaixo do nosso apartamento tem uma pizzaria. Você
odeia o cheiro. Me faz vomitar todo os dias.
New York, 18 de março.
Achei que ninguém percebia você em mim, mas me cederam lugar no metrô para eu
sentar. Também não me aceitaram numa entrevista. Mulheres grávidas não podem
trabalhar. Deprimente. Espero que você viva num mundo mais sensato.
New York, 25 de março.
Fui ao Central Park para ler e fazer uma caminhada. Não aguento mais ficar naquele
apartamento. Levantei minha blusa e deixei você pegar um sol. Estava quase dormindo
quando um cachorro lambeu minha barriga. Tomei um susto, mas você gostou. Foi a
primeira vez que te senti mexer.
New York, 01 de abril.
Hoje é aniversário do seu pai. Eu o odeio. Mas você pode se sentir como quiser. Ele só
me abandonou, não abandonou você. Você era tudo que ele mais queria. É tão difícil
fazer isso sem ele. Me sinto perdida. Ele saberia o que fazer. Desculpa.
New York, 02 de abril.
Te vi. Não parece mais um alien. Não quis saber se você é menino ou menina. Não faz
diferença. Você adora o croissant de maçã com canela da Joe’s Bakery. E fizemos as
pazes com a pizzaria que é nossa vizinha, não vomito mais todo dia.
New York, 16 de abril.
Octávio descobriu que você pode ouvir e agora só o que quer fazer é chegar em casa
para falar com você. Você gosta quando ele fala com você. Fica muito feliz. Eu tentei
conversar com você, mas não sou boa disso. Desculpa.
New York, 23 de abril.
Você gosta de Bowie. Me matriculei num curso de panificação.
New York, 17 de maio.
Adoraria que você retirasse o pé da minha costela. Já faz 3 dias. Por favor.
New York, 20 de maio.
Voltei a nadar. Você amou. Tem uma turma de hidroginástica antes do horário que eu
vou. Várias velhinhas conversam com você e fazem carinho.
New York, 27 de maio.
O que você acha de nascer no Brasil?
New York, 30 de maio.
Achei que estava bem sem seu pai. Não quero fazer isso sem ele. Não vou conseguir.
Desculpa. Não aguento mais.
New York, 04 de junho.
Larguei a aula de preparação para o parto. Lamaze é um saco.
A aula é para ser em dupla.
Seu pai está em Paris se divertindo horrores.
Octávio está ocupado.
Não conheço ninguém nessa maldita cidade.
Desculpa.
Estou com medo.
New York, 10 de junho.
Não vou mais falar mal do seu pai. Desculpa tudo que você ouviu ontem. Eu não te
odeio. Pode se mexer para mim de novo?
New York, 12 de junho.
Você não se mexeu, tivemos que ir ao médico. Aparentemente é sono ou pirraça. Amanhã
te levo ao Central Park para ver se você se anima. Ou quem sabe eu faça chipas. Você
gostou da outra vez, o que acha?
New York, 16 de junho.
Sonhei que seu pai tinha voltado. Com o que você sonha?
New York, 20 de junho.
Não conte para ninguém: talvez você nasça no Brasil. Aqui é legal, mas não é minha
casa e nem a sua. Vamos sentir falta do Octávio.
New York, 03 de Julho.
Você ganhou uma manta de tricô que a Kate da turma de hidroginástica fez para você. É
seu primeiro presente. Ela falou que vai organizar um chá de bebê para você. Não
consegui convencê-la do contrário. E seria feio eu faltar.
New York, 12 de julho.
Um chá que virou uma despedida. Contei que estamos voltando para casa. Foi um
chororô. Me senti amada. Mas preciso abrir o Ruiz. Você nasce em setembro e logo
depois inauguro o restaurante.
New York, 15 de julho.
Bebê, temos uma agenda apertada. Comporte-se. Aguente firme.
New York, 19 de julho.
Vamos ter um dia agitado e acho que você percebeu, não para quieta nem um segundo.
Eu ainda não contei para o Octávio que estamos indo embora hoje. Ele vai ficar muito
triste. Mas amanhã estaremos no Rio.
Estamos no avião. Você não está colaborando. Só faltam seis horas! O que está
acontecendo com você hoje?!
Rio de Janeiro, 20 de julho.
Chegamos! Estou indo para o hotel, só vou deixar as malas e vamos ver o sol nascer na
praia.
Eu pedi tanto, mas tanto para você aguentar um pouco mais! Desculpa não ter
entendido os sinais. Espero que você fique bem.
Rio de Janeiro, 22 de julho.
Hoje eu te vi pela primeira vez. Era só uma foto. Tão pequena. Tão frágil e tão forte ao
mesmo tempo. Me desculpa.
Rio, 02 de agosto.
Filha, te peguei no colo. Que medo! Nossos corações bateram juntos. Não sabia que era
possível amar alguém assim. Aguenta firme.
Rio, 06 de agosto.
Por favor, não posso te perder também. Aguenta firme. Te amo.
Rio, 10 de agosto.
Octávio veio de Nova Iorque só para te ver, mi amor! Você reconheceu a voz dele! Você
ficou quietinha no colo dele.
Rio, 13 de agosto.
Hoje é Dia dos Pais. Me deu muita tristeza por seu pai não estar aqui. Por você. Eu
tenho raiva dele, mas não vou permitir que sinta o mesmo. Ele era incrível e sonhou
muito com você. Você tem a cara dele. Me lembra tanto ele. Por vezes achei que não
iria conseguir. Mas você me dá a força que eu preciso. Preciso perdoá-lo para viver
intensamente meu amor por você. Fica bem, sou sua mãe e te amo demais. Vamos ficar
bem. E juntas.
Rio, 20 de agosto.
Um mês. Que mês difícil. O mais difícil da minha vida, mas o mais feliz. Ir dormir
pensando em acordar para te ver. Quero tanto você em casa! Não quero mais sair do
hospital de braços vazios. Quero ficar 24h com você, sentindo seu cheiro, te dando o
mamá que você tanto ama para ficar fortinha! O amor que eu sinto por você não é algo
que eu possa descrever em palavras. Te amo.
Rio, 25 de agosto.
Mi amor, aguenta mais um pouquinho. Eu posso estar sendo egoísta no meio de tanto
sofrimento pedindo para você ficar, mas é que eu não sei se vou aguentar viver sem
você. Eu já vi tantos bebês morrerem naquela UTI, mas vi muitos mais indo para casa.
Quero ir para casa com você. Eu te amo tanto. Tanto. Tanto. Filha, te batizei hoje.
Desculpa, você ainda não tem nome, não consegui fazer isso. Fica bem.
Rio, 27 de agosto.
Mi amor, não aguento mais te ver sofrendo. Estou tomando a decisão mais difícil da
minha vida. Estou deixando você partir, se for sua hora. Você já mudou minha vida. Já
mudou tudo em mim. Para sempre vou lembrar de você. Te amo com cada pedacinho do
meu ser. Eu precisava tanto do seu pai aqui. Eu já não sei mais o que fazer. Tive que me
despedir de você hoje sem saber se vou te encontrar amanhã. Se você for, confio que sua
avó e seu avô cuidarão bem de você. Não vou pedir para você aguentar mais um pouco,
não quero mais te ver sofrer. Fica bem, mesmo que para isso seja necessário não estar
mais aqui. Te amo para sempre.
Rio, 31 de agosto.
Não fui mais te ver. Desculpa. Não sou forte o suficiente. Octávio vai, leva meu leite,
fica o dia todo com você. Ele não é seu pai, mas te ama e te cuida como se fosse.
Rio, 02 setembro.
Recebi uma ligação do hospital. Já atendi chorando. Achei que você tinha partido. O
médico queria falar comigo. Brigou comigo por ter desistido de você enquanto você não
tinha desistido da gente. Me perdoa? Como senti sua falta. Seu cheiro. Sua pele
quentinha. De ter você só para mim na hora do mamá. Não quero nunca mais ficar
longe de você. Sara, você não está mais autorizada a partir, perdeu sua chance. Vai ter
que me aguentar até eu morrer. Eu te amo mais que ontem e menos que amanhã. Quero
você comigo todos os momentos da minha vida. Te amo. Te amo. Te amo. Aguenta firme.
Fica bem. Estou esperando seu tempo para viver nossa vida juntas.
Rio, 4 de setembro.
Hoje era o dia previsto para você nascer. Cheguei no hospital bem cedo e fui recebida
com sorrisos. Você está indo muito bem, mocinha! Até ganhou peso! Também, com a
vontade que mama! São os melhores momentos do dia. Amei poder ficar com você no
colo o dia todo. Pele na pele. Coração com coração, batendo juntinho. Senti tanta falta
disso. Te amo muitíssimo.
Rio, 11 de setembro.
Sonhei que você tinha alta e seu pai aparecia para buscar a gente. Só uma dessas coisas
que não vai acontecer. Seremos só nós duas, mi amor. Te amo.
Rio, 17 de setembro.
Você conseguiu, mi amor! Estou tão orgulhosa! Estamos indo para casa! Ok, não casa
de verdade, até porque nem temos uma, mas Octávio já foi para São Paulo encontrar
uma para a gente. Si! Não seremos só nós duas. Octávio vai com a gente. Ele te ama
tanto, sempre te amou. Não pode viver sem você. Não sei se teria conseguido sem ele.
São Paulo, 14 de outubro.
Agora sim. Finalmente em casa. Foi uma jornada longa. Você gosta mais do Octávio e
só me usa por interesse lácteos. Tudo bem, ele te faz muito feliz. Eu te amo. Agora você
acompanha sua história por vídeo.”
Hugo se debulhava em lágrimas. Conseguia dimensionar melhor agora o que Marcela passou.
Queria tanto ter estado lá por elas. Ouviu batidas na porta e logo Marcela entrou.
Ela o olhava com compaixão. Não hesitou e foi até ele e o acolheu em seus braços. Choraram
ali por alguns minutos, em silêncio.
— Eu sinto muito, por tudo. Nunca vou poder me desculpar o suficiente.
— Tudo bem. Já foi. Ela está aqui. É maravilhosa. Já passou.
Ela limpou as lágrimas dela, depois as dele.
— Ainda não acabou. Nada disso foi ideia minha. Só entra no clima.
— Ok.
— Eu tenho um roteiro, acredita? Me sinto no Bestchef. — Eles riram. — Tenho que ler coisas
para você.
“Bom dia, pai!
Feliz primeiro Dia dos Pais!
Você não esteve aqui para acompanhar de perto tudo que aconteceu então estou fazendo um
resumo.
Minha mãe, como falou no diário que eu EMPRESTEI “
— Hugo, ela colocou essa palavra em caixa alta, acho que ela quer garantir que vai ter ele de
volta, não é presente. — Eles riram mais uma vez e ela prosseguiu.
“Ela nunca me deixou pensar que você tinha me abandonado, pelo contrário, sempre me
falou tudo que eu perguntei, as coisas que ela sabia, né?! Ela é uma mãe muito maravilhosa e
sempre me fez sentir muito amada. Eu a amo muito. Devo tudo que eu sou a ela.”
Marcela pausou a leitura, seus olhos estavam embaçados pelas lágrimas. Recebeu um abraço
de Hugo e um beijo no topo da cabeça.
— Será que vamos acabar desidratados?! — Hugo perguntou.
— Tenho certeza que si. Somos pais bobos.
“Como você viu, o Dia dos Pais de 2005 foi meio chato, né? Eu ainda estava no hospital e
não me lembro de nada. Então arrisco dizer que você não perdeu muita coisa.”
— Eu deveria estar com vocês. Em todos os momentos. Sempre. Nos bons, mas principalmente
nos difíceis. — Ele interrompeu, ainda que Sara não pudesse ouvir.
Marcela tomou fôlego num suspiro longo para continuar.
“Óbvio que várias coisas aconteceram de um ano para outro, mas o foco é o Dia dos Pais,
não tem mesmo como ficar falando sobre dez anos corridos.” Hugo riu e Marcela balançava a
cabeça em negação pela forma com que Sara queria ser objetiva.
“Em 2006, minha mãe esqueceu o Dia dos Pais. Não esqueceu de verdade. Ela esqueceu de
fazer alguma coisa.”
— Eu não esqueci! — ela falou bem alto para que Sara escutasse de onde estivesse. — Eu
estava muito ocupada e não defini corretamente as prioridades.
“O Ruiz estava lotado de reservas e ela vai falar que não esqueceu, mas sabemos que sim.
Nesse ano, com atraso de uma semana, o meu outro pai ganhou a chance de ter o nome dele na
minha certidão de nascimento. Ele disse que foi o melhor presente que ele já ganhou depois de
mim. Porque teoricamente, ele já era meu pai, mas oficialmente não podia fazer nada. E para
você, pai, minha mãe tirou uma foto.”
Marcela entregou um envelope já meio amarelado. Ele abriu e viu a foto. Sara vestia um body
escrito: Pequena roqueira do papai. No verso, os seguintes dizeres: “Feliz Dia dos Pais, Hugo.
Sara, Agosto de 2006.” Mais lágrimas e Marcela prosseguiu.
“Em 2007, eu não fazia muita coisa ainda, apesar de já ter dois anos. Eu tinha acabado de
começar nas terapias e no mesmo prédio tinha um salão que cortava cabelos de crianças. O
acento era uma moto, minha mãe disse que entrou para tirar só uma foto na moto porque
lembrou de você. Até tentou cortar meu cabelo, mas eu não deixei.” Na sequência de fotos,
Sara primeiro aparece assustada, depois distraída com as luzes da moto e depois chorando
quando a cabeleireira toca seus cabelos.
“Em 2008, na terapia ocupacional, fizemos juntas presentes do Dia dos Pais. Um para o
Octávio e um para você.”
Marcela dessa vez pegou um envelope maior, de onde retirou uma folha grande. “Papai está
sempre guiando meus passos.” a frase era digitada e à mão um comentário com a letra de
Marcela “de onde estiver!”. Na folha ainda tinham marcas de pés pequeninos com tinta.
Hugo beijou as marquinhas de pé e depois a mão de Marcela.
“Em 2009, eu tinha acabado de entrar na escola. Nós nos vestimos com a roupa de trabalho
dos nossos pais. Para o meu pai Octávio eu estava de gravata, blusa e uma maleta de papel. E
para você... veja a foto.”
Mais uma vez Marcela passa a ele uma foto. Sara estava de dólmã, braços rabiscados, fazia
símbolo do rock com as mãos e dava língua.
— Você rabiscou ela?!
— Claro que não, Hugo?! Acha que eu sou louca?! Ela fazia isso o tempo todo. Tinha uma foto
sua no quarto dela. Ela estava imitando a foto.
— Tinha uma foto minha?
— Si, do casamento do Felippo. Acho que você nunca viu. Depois ela te mostra. Posso? — ela
disse, olhando para o roteiro e ele concordou com a cabeça.
“Em 2010 eu troquei de escola, é a mesma que eu estudo até hoje. Tinha uma apresentação
de Dia dos Pais, mas eu não dancei. Fiquei parada o tempo todo no meio do palco. Mas eu
escrevi um bilhete.”
Marcela mais uma vez entregou um papel a Hugo. “Pai Hugo, feliz Dia dos Pais. Beijo Sara.”
Era uma letra infantil. Sorriu ao ler e mais uma vez se emocionou, no canto da folha viu a
caligrafia de Marcela: “Agosto de 2010”.
“Em 2011 eu finalmente decidi que presentes comprar. Eu quis dar vinis, minha mãe me deu
uma vitrola no meu aniversário. Foi um vício naquele ano. Eu gostei muito desse álbum e
comprei para você.”
Agora um embrulho de presente foi entregue. Ele abriu com cuidado. E retirou um álbum do
Angra.
— Esse CD é foda! Cadê a Sara? Quero dar um abraço nela!
— Calma, mocinho! Você em breve verá a Sara.
“Em 2012 nós viemos para o Rio no Dia dos Pais. A escola parou de fazer festas. Fizemos
café na cama, e depois eu e minha mãe cozinhamos o almoço. Aqui no Rio, eu comprei seu
presente.”
De uma caixa, Hugo retirou uma pulseira de aço com uma placa gravada “Coelho” junto com a
pimenta símbolo do Malagueta. Ele logo colocou no punho.
— Que legal!
— Tem um bilhete.
— Opa, nem tinha visto. “Feliz Dia dos Pais. Te amo. Sara Campana. Agosto de 2012.”
“Em 2013 não teve Dia dos Pais. Não lá em casa, eu estava muito triste. Desculpa. Não fiz
nada.”
Marcela parou de ler porque começou a chorar, e foi consolada por Hugo. Ficaram abraçados
por alguns minutos até que ela voltou ao seu roteiro.
“Ano passado foi estranho. Eu tinha dois pais e nenhum dos dois estavam comigo.”
Marcela entrega o último envelope a Hugo.
“Pai, vivemos em mundos paralelos na maior cidade do país. Eu não sei onde você mora,
mas sei onde trabalha. Sei tudo que qualquer pessoa no mundo pode saber sobre você se olhar
na internet. Só que eu não sou qualquer pessoa. Sou sua filha. A única, ao que parece. O
quanto eu quero te conhecer é proporcional ao tanto que eu tenho medo de que isso aconteça.
É engraçado o paradoxo. Eu sinto sua falta sabendo que você existe e você sente a minha
sem saber que eu existo.
Minha mãe gosta de poesia. Ela é poesia e apesar de tudo que aconteceu acho que você
concorda. Ela não fala muito sobre vocês. Mas sempre que fala, começa com muito brilho nos
olhos e vai apagando conforme chega à parte que você foi embora. Eu não sei por que você
foi. Ela também não sabe. Você sabe? Eu queria saber. Que conjunção astrológica levou a
abrupta separação de vocês?
Voltando a poesia, ela sabe que eu ando querendo te procurar. Sabe que é uma questão de
tempo. Que estou apenas criando coragem. Você tem uma receita para criar coragem? Ela diz
para ir com medo mesmo, talvez eu vá. O poema? Já tinha me esquecido dele de novo.
“Toda vez que tenho vontade de te procurar, mas não procuro, penso se você faz o mesmo. Se
você faz, tem feito muito melhor que eu.”
É do Bruno Fontes. Compramos o livro “O Que eu faço com a saudade?” porque meu outro
pai morreu. Sentimos muita falta dele.
Será que se eu tiver você, a ausência dele vai doer menos? Mal posso esperar para
descobrir.
Feliz Dia dos Pais! Sara Campana. Agosto de 2014.”
Ao terminar de ler a carta, mais uma vez ele chorava copiosamente e mais uma vez foi
amparado por Marcela. Não que ela não estivesse chorando, mas porque, diferente dele, ela já
conhecia o teor da carta. Foi por causa dela que ela decidiu se permitir ser encontrada por Hugo.
Não podia mais deixar que Sara permanecesse mergulhada em tanta tristeza e angústia.
“Pai, finalmente chegamos ao seu primeiro Dia dos Pais presencial. O primeiro de muitos.”
— E agora? Cadê ela?
— Está lá embaixo te esperando.
— Você não vem?
— Claro que vou. Você sabe que horas essa garota me acordou? A lista de coisas que me deu
para fazer? Não espero menos no meu aniversário!
— Eu capricho no seu aniversário. Cama, mesa e banho.
— Me erra.
— Eu sei que tu gosta.
— Dieu qu’est-ce que j’ai fait pour mériter ça.
— Você consegue ficar ainda mais sexy falando francês. Mas respondendo sua pergunta: Deus
te ama, por isso você me merece. Sou um presente de Deus para você.
— Quando eu acho que não fica pior você ainda me vem com uma dessa.
— Uau! Que mesa linda! Cadê a filha mais maravilhosa desse mundo?!
— Vocês demoraram!
— Seu pai que é um chorão.
— Ah, Marcela, não mete essa! Você que toda hora parava de ler porque estava chorando.
Chorou tanto que nem enxergava!
— No é verdade! Eu só chorei um pouquinho.
— Sei...
— Sara, como é Dia dos Pais, eu tenho número ilimitados de beijos e abraços, correto?
— Não mesmo — ela falou enquanto se afastava dele — Nem vem. — Ela saiu correndo, mas
ele a alcançou e a beijava aos montes — Não, pai, por favor!! Mãe, me salva.
— Eu não! Estou com fome. Vocês que têm a mesma cara que se entendam.
CAPÍTULO 42

— Não acredito que vocês estão transando.


— Pois é, nem eu.
— Marcela!
— Clara!
— Achei que você estava comprometida...
— Eu?!
— Cadê o Leo?
— Mudou-se.
— Como assim?! Para onde?!
— Para Paris! Irônico, não?! Passou para o doutorado lá.
— Coelho não me disse nada sobre isso!
— Porque ele não sabe.
— Por que ele não sabe?
Marcela permaneceu em silêncio.
— Marcela?!
— Porque eu não quero que ele ache que há alguma chance de ficarmos juntos.
— Por que ele acharia isso, não? Será que é porque você está dando para ele igual chuchu na
Serra e com cara de apaixonada?
— Cala boca! Eu não estou apaixonada! Nem dando igual chuchu na Serra! Gostaria, mas não
estou. Rolou apenas algumas vezes.
— Vocês sabem do alto potencial que isso tem para dar merda, né? Você está grávida?
— Que obsessão vocês têm com essa história. Eu não estou grávida.
— Eu gostaria muito de entender o porquê de você não se entregar de vez.
— Porque é melhor.
— Para quem?
— Para todo mundo.
— Eu entendo que estar sob os holofotes não facilita qualquer tentativa de nada.
— Não podemos sair os três juntos sem que seja um grande acontecimento.
— Vocês têm uma cumplicidade muito bonita durante o programa, não podemos culpar as
pessoas por acharem coisas. Ver vocês três juntos dá esperança a eles. A gente...
— Clara, você e Sara não sabem o que querem...
— E você, mana? Você sabe o que quer?
— Si.
— O que é?
— Encerrar essa conversa, Clara!
— Ok, podemos marcar uma tarde na sua casa qualquer dia?
— Não é desculpa, mas eu estou com uma agenda tão cheia. Temos a final do Bestchef, eu
tenho que ir à Argentina, tenho que mudar o cardápio do Ruiz, tem essa viagem que a Sara
inventou e logo depois já tem Bestchef de novo.
— Saudades de quando você tinha tempo para mim, sabe...
— Eu vou buscar a Sara na escola, quer ir comigo? Depois vamos fazer o jantar.
— Ok. Vamos lá buscar minha amiga Sara.

Seguiram papeando sobre tudo e sobre nada. Era interessante como em tão pouco tempo tinham
construído uma amizade leve e que tinha tamanha importância na vida de Marcela e sua família.
— A final é na terça e eu já viajo na quarta — Marcela falou enquanto abria a massa.
— Eu quero ir na quarta com você!
— Já conversamos sobre isso. Você vai com seu pai na sexta a tarde.
— Mas eu vou ficar pouco tempo!
— Mi amor, você tem aulas. Já vai faltar muito por causa da Groenlândia.

Com o tanto de coisas que estavam marcadas para tão poucos dias, a semana passou voando e
quando viram já voltavam de uma curtíssima temporada na Argentina, quando Hugo finalmente
conheceu a família de Marcela, e logo emendaram na tão esperada ida a Groelândia para ver a
Aurora Boreal.
Ainda que em alguns momentos resistir um ao outro parecesse uma missão impossível, na
maior parte do tempo conviviam sem maiores problemas e se aproximaram bastante dado a
rotina e convivência. E como nunca tiveram dúvida, sempre se deram muito bem e se amavam,
ainda que não da forma esperada. Além disso, criar Sara juntos era uma dádiva.
— Vocês vão ficar aí? Não acredito que hoje já é o último dia de aurora boreal. Amo vocês.
— Estou cansadita, mi amor. Vou ficar aqui mesmo. Também amo você.
— Filha, último dia de aurora boreal! Aproveita! Vou ficar aqui com a sua mãe. Qualquer coisa
estamos aqui.
— Ok. Comportem-se e vê se não dorme para ver de novo. – Ela se afastou dos pais e se juntou
ao pequeno grupo guiado que acompanhava na viagem.
— Sara está tão feliz.
— Si. Ela nunca esteve tão feliz. Obrigada.
— Pelo quê?
— Por não me odiar e conseguirmos viver juntos e conseguirmos proporcionar esses momentos
para ela.
— Você já pensou como seria a vida se eu não tivesse ido?
— Durante os primeiros meses, nos poucos momentos em que não te odiava, em datas
especiais como natais e aniversários, mas depois parei. Não fazia menor sentido.
— Posso te perguntar uma coisa? Mesmo sabendo que você pode não responder.
— Si.
— Aquele diário, da gravidez da Sara. Ele está completo?
— Não. Arranquei algumas páginas.
— Elas existem?
— Não.
— O que tinha nelas?
— Coisas das quais me arrependo de um dia ter cogitado.
— Você pensou em abortar a Sara?
— Não era a Sara. Era um pedaço seu em mim. Do cara que me pediu em casamento e foi
embora. Eu fui na sua mãe e pedi para ela nunca te falar que eu tinha ido. Eu não contei que
estava grávida, mas ela confessou que sabia. Ela me falou uma coisa que eu vou ser eternamente
grata. Não faça nada que não possa ter volta. Eu tentei sete vezes. Não tentar de verdade, não
cheguei a tanto. Na primeira vez eu não passei do quarteirão do meu prédio. Depois consegui
pegar o metrô, mas não tive coragem de descer, depois eu consegui descer e assim foi. Até o dia
que eu me sentei finalmente na recepção com a prancheta na mão para preencher os dados. E eu
não consegui. Se eu passasse dali não teria volta. Foi o dia em que eu fui recusada para trabalhar
por estar grávida. Eu estava com tanto ódio que eu consegui chegar até aquele ponto. Era
importante. Era decisivo. Significava voltar ou não para cozinha. Eu ponderei o que tinha volta.
A cozinha teria volta em algum momento. O bebê não. Apesar de te odiar vinte e duas horas por
dia, durante duas horas eu me permitia te amar e querer que você aparecesse pedindo desculpas
e ficando muito feliz porque eu estava grávida. Se eu abortasse não teria volta. Eu não
conseguiria olhar para você. E foi nesse dia que eu decidi separar você e o bebê.
— Separar?
— Eu tentava não associar sua imagem ao bebê. Eu tinha mais cinco meses de gestação pela
frente e eu não iria conseguir odiando algo que crescia dentro de mim. Eu fiquei mais leve. A
gente se deu melhor.
— Você tem foto grávida?
— Nenhuma.
— Por que você fez o diário?
— Para o bebê saber da história dele caso eu não pudesse contar.
— Você tinha medo de morrer?
— Eu não iria ficar com o bebê.
— Como assim?
— Eu nunca tinha falado isso em voz alta para ninguém que não fosse o Octávio. Eu não queria
ser mãe. Não achei que tinha nada de bom para dar àquele bebê. E por fim eu quase o matei. Eu
não achava que podia fazer sem você.
— Por isso que você iria abrir o Ruiz tão perto do nascimento dela.
— Não precisa me julgar.
— Não estou te julgando. É que coisas que não faziam sentido na minha cabeça antes, fazem
agora.
— Eu sei como é. Eu criei tantas histórias para te desculpar ou te condenar por simplesmente
desaparecer e nenhuma delas chegava nem perto da real. Que o Felippo era uma pessoa em quem
eu não podia confiar plenamente eu já sabia, mas daí fazer o que fez com a gente, com você.
— Eu era só um cara do interior. Eu só falava português, nem inglês, muito menos francês. Você
acha que o Felippo me colocou num hotel? Ele me enfiou no avião com uma passagem só de ida
e 200 reais no bolso. Eu não sabia o que fazer. Nem como fazer. Eu não conseguia me comunicar.
Fiquei uns dias no aeroporto. Eu só tinha 200 reais. Eu nunca tinha saído do país, eu só tinha o
passaporte porque tínhamos combinado de ir à Argentina conhecer seus avós.
— Hugo...
— Todo meu dinheiro eram 55 euros, tudo o que eu tinha além de uma mochila. E pensar que
enquanto você sofria em Nova York achando que eu estava me divertindo em Paris, na verdade
eu estava era muito fodido. No aeroporto eu encontrei um brasileiro que era faxineiro. Ele me
ajudou a me comunicar e como pegar o dinheiro no banco. Mas levou mais de um mês e eu
morando de favor, fazendo bicos, até começar a trabalhar como pia num restaurante, e aí subi
rápido. Eu liguei para o Sara e para você. Mas não consegui falar. Quando eu cheguei, fiquei
sabendo que o Sara tinha fechado. E eu não entendi nada. Eu tinha ido para Paris para salvar o
Sara e não tinha adiantado nada e não consegui te encontrar.
— Eu esperei um mês. O Sara fechou. Eu não tinha mais por que ficar em São Paulo. Eu nem
sabia que estava grávida. Fui para Argentina, cheguei bem no início de fevereiro. O plano não
era ficar muito, eu iria viajar para te esquecer. Acho que não levou uma semana para minha avó
dizer que eu estava grávida. Eu queria tanto, mas tanto que ela estivesse errada. Aquele teste foi
o Octávio que comprou, ele não me aguentava mais chorando e ele estava se mudando para Nova
York. Disse para eu ir com ele, já que eu não iria ficar viajando mesmo. Não era como se eu
tivesse grande planos àquela altura do campeonato. Voltei para São Paulo, vendi minhas coisas,
devolvi as suas e fui. Mas eu não estava confortável e não era o lugar. O que eu iria fazer com
um bebê? Eu estava perdida, apavorada e não tinha coragem de fazer algo que não tinha volta.
Não que o plano fosse colocar o bebê para adoção e um dia, caso você aparecesse, pedir de
volta. O Octávio era adotado e ele nunca quis encontrar os pais biológicos, mas ele sempre quis
saber a história dele. Ele me incentivou a escrever o diário. Ele serviria para qualquer escolha.
Mas eu não estava confortável em deixar o bebê nos Estados Unidos. Foi quando me ofereceram
o Ruiz. Só que, eu não avisei que estava grávida. O plano era muito claro na minha cabeça. O
bebê nascia no início de setembro e no final do mês eu inauguraria o restaurante.
— Por isso você demorou a ir conhecer a Sara?
— Si. E foi por isso que eu não quis saber o sexo, e nem dar um nome. Era eu não querendo me
apegar. Eu tinha certeza de que o melhor para nós duas era não ficarmos juntas. E então o
Felippo apareceu. O Guido nasceu um dia antes da Sara. Ele teve icterícia, ficou internado por
uns dias. E ele viu: “Bebê de Marcela Campana, sem nome”.

JULHO DE 2005
— Não existem muitas Marcelas Campanas por aí, mas precisei vir aqui para ter certeza.
— O que você faz aqui?
— Bom, Guido, meu filho, nasceu antes de ontem, mas está amarelo, tem um nome estranho
para isso. Mas fiquei surpreso mesmo ao ver um bebê Campana lá na UTI.
— Pois é.
— É uma menina bem forte e brava só com aquele tamaninho. Nada estranho sendo filha de
quem é.
— É uma menina?
— Você não sabia?
— Eu não quis saber.
— Eu não sabia. Desculpa. Eu estou indo lá agora, você não quer ir?
— No. Obrigada, já tive alta. Eu vim ao Rio para falar com você. Quando tiver um tempo,
procure-me. Fico até o fim da semana.
— Marcela, o que está acontecendo?
— Nada, Felippo. Por favor, não demore a me procurar.
Ele saiu, mas logo voltou, não sozinho, com Ana, e então as deixou a sós.
— Oi.
— Oi, Ana. Parabéns pelo Guido. Felippo me mostrou a foto. Tenho certeza de que logo ele irá
para casa.
— Obrigada, devo falar o mesmo a você?
— Como?
— Devo te dar parabéns?
— O bebê não deveria ter nascido agora, muito cedo.
— Mas ela nasceu, e está lá sozinha. É uma menina, você já escolheu o nome?
— Ana, eu não...
— Você não precisa falar nada. Eu não gostaria que você ficasse sozinha no hotel. Vamos lá
para casa.
— Eu não acho que seja uma boa ideia, mas obrigada.
— Você não precisa passar por isso sozinha. De novo.
— Eu não quero atrapalhar.
— Bom, se você estiver por perto me poupa tempo de ir ao hotel para te ver.

Foi necessário apenas mais um dia de hospital para Guido ir para casa. Marcela ficava a maior
parte do tempo trancada no quarto, mas estava no jardim no início da manhã quando Ana e o
recém-nascido se juntaram a ela ao Sol.
— Que bom que saiu do quarto.
— Eu estava com frio.
— Frio? — Levou a mão a testa de Marcela. — Você está com febre. Seu leite está
empedrando. Talvez você devesse doar. Tem muitos bebês precisando. Eu não estou falando de
nenhum especificamente, mas certamente faria muito bem a ela. Eu li muitos livros. Vários
diziam como nosso corpo produz exatamente o que o nosso bebê precisa.
— Eu sei.
— Ela não deveria ter nascido agora, mas já nasceu e precisa de ajuda. Felippo pode passar
quantas horas quiser lá. Ela não o reconhece.
— Ele continua vendo o bebê?
— Sim, todos os dias. Você não precisa vê-la. Vá até lá, retire o leite, fará bem a vocês duas e
a muitos outros bebês. Me parece ter muito leite aí.
— Si. Toda vez que Guido chora, vaza. Se isso não acontecesse, acho que eu teria explodido.
— Pense no que eu te falei. Posso ir com você se precisar.
— Obrigada.

Era madrugada e Marcela acordou com os seios doloridos e vazando. Rotinas da madrugada
com Guido chorando. Como nas noites anteriores, tomou um banho morno e deixou que o leite
vazasse livremente enquanto trazia alívio. Mas diferente dos outros dias, Guido não parou de
chorar. Marcela saiu de seu quarto e foi até o do bebê. Encontrou Ana sentada no chão chorando
enquanto observava o bebê que se esgoelava.
— Tudo bem? Precisa de ajuda?
— Ele está com fome. Mamou tudo. Não sobrou nada.
— Cadê o Felippo?
— Foi procurar uma farmácia aberta para comprar a fórmula que o médico sugeriu. Eu achei
que daria conta sozinha.
— Você só precisa de um tempo. As coisas vão se acertar.
— Marcela, eu provavelmente estou passando dos limites. Mas meu filho está com fome. Me
ajuda.
— Não acho que seja adequado cozinhar para ele. Mas posso fazer para você.
— Marcela, amamenta o Guido. Por favor. Não aguento mais ver meu filho chorando. Só hoje.
— Eu não sei.
— Eu te suplico.
— Só enquanto Felippo não chega.
Marcela se sentou na cadeira de amamentação e Ana colocou Guido no colo dela. Tão logo
tirou o sutiã, o bebê começou a sugar seu seio. Era um misto de sensações. Alívio, admiração,
êxtase, culpa e as lágrimas foram inevitáveis.
— Você pode fazer isso por ela e ainda assim não ficar com ela.
— Eu só quero que ela fique bem e tenha alguém que possa realmente amá-la.
— Ela precisa da sua ajuda. Ela não tem ninguém agora.
— Eu não sei o que fazer. Eu não vou conseguir, não sozinha.
— Sei que não é do que você está falando, mas pode contar com a gente. Vocês duas são mais
fortes do que você imagina. Vão se bastar.
— Eu não sei.
— Você não precisa mudar de ideia, apenas ajude-a a ficar bem agora. Uma coisa de cada vez.

Depois daquela madrugada, Marcela ia diariamente à maternidade levar o leite que retirava.
Diversas vezes foi até a porta da UTI mas não teve coragem de entrar.
— Ela está bem maior, seu leite realmente está fazendo diferença.
— Que bom.
— Ela está com recomendação de colo. E o moço que vem aqui todos os dias vê-la não está
autorizado a fazer.
— Eu autorizo.
— Não é o colo dele que ela precisa. — Marcela permaneceu em silêncio. — São apenas
cinco minutos.
— Eu tenho um compromisso.
— Só cinco minutos.
Após ponderar, Marcela seguiu a funcionária até uma incubadora. O bebê tão pequeno
conectado a vários aparelhos.
— Vou buscar uma cadeira.
— Me desculpa — Marcela falou ao bebê e se afastou.
— Você já vai? — A mesma moça abordou Marcela.
— Desculpa, eu não consigo.
— Do que você tem medo? De se apegar?
— Eu não vou ficar com ela.
— Se isso está decidido, ajudá-la um pouquinho não muda nada para você, mas fará uma
grande diferença para ela. As chances de ir para uma família são maiores se ela for saudável.
— Ok. Cinco minutos.
— Ótimo. Sente-se ali. Abra sua camisa, limpe com aquele lenço com álcool.
Marcela se sentia nervosa, suas mãos suavam, suas pernas não paravam. Então uma enfermeira
veio e colocou o bebê sobre seu peito. Tantos fios e tubos conectados. Ela era tão pequena, tão
quentinha, pele enrugada e pelos fininhos. O coração acelerado.
Tão pequena.
Tão frágil.
Tão forte.
As mãos de Marcela que gentilmente apoiavam o bebê quase a cobriam por completo. Ela
aproximou o nariz da pequena cabeça e inalou profundamente aquele cheiro que era novo, porém
lhe parecia familiar. A todo momento reconhecia algo que nunca tinha visto. Como seria
possível?
Nem reparou que com o passar do tempo o bebê desceu e logo procurava por sua mama, e
tentava sugá-la por cima do sutiã. Inicialmente assustou-se, mas logo depois, de forma intuitiva, a
posicionou e o bebê logo começou a mamar. No início de forma desajeitada, chegando a fazer
cócegas, mas depois com vontade. E era incrível. Uma lágrima que brotou timidamente do olho
de Marcela, percorreu todo seu rosto e pingou na bochecha do bebê que abriu os olhos e a
encarou.
Tão pequena.
Tão frágil.
Tão forte.
Tão minha.
Minha filha.

SETEMBRO DE 2015
— Foi assim que eu desisti.
— Eu agora entendo o porquê de você ter permitido o Felippo ficar por perto.
— Se ele e a Ana não tivessem insistido tanto... Hoje eu sei o quanto de culpa que
provavelmente o corroía naquele momento; e não limpa a barra dele pelo o que fez a você, com a
gente. Mas ele poderia ter seguido adiante e eu teria deixado o bebê no hospital, sem ninguém até
que estivesse bem o suficiente para levar ela para sua mãe, mas ela teria morrido e eu me
culparia para sempre.
— Para minha mãe? Achei que você fosse dá-la para adoção.
— Eu pensei, muito, no início, mas não fazia sentido privar o bebê de ter uma família. Eu não
queria fazer nada que não tivesse volta. Era nosso filho. E se eu me arrependesse e nunca mais
pudesse encontrá-lo? E se ele fosse adotado por pessoas ruins? Eram tantos questionamentos. Eu
estava perdida. Eu não fazia ideia do que fazer. Eu só tinha uma certeza, sempre. Eu precisava
que ele ficasse bem. Deixando com a sua mãe, ele estaria com a família dele. Ela saberia o que
fazer. Talvez já tivesse te encontrado. O bebê talvez ficasse com você. Eu não queria e nem sabia
ser mãe. Você queria ser pai. Saberia o que fazer.
— Você sempre fala isso. Você foi mãe dela o tempo todo. Ainda que você não quisesse e
achando que não sabia. Você cuidou dela. Tudo que você fez, do jeito que achou melhor foi
pensando no bem-estar dela. Você não devia se culpar por isso. Você deveria se orgulhar disso.
Você foi e é uma mãe incrível. Quantas pessoas que planejaram ter seus filhos e desejaram os
filhos e não fazem nem a metade do que você faz e é? Se só metade das mães fossem iguais a
você, nós teríamos mais crianças incríveis, felizes e saudáveis como a Sara. Seu erro foi sempre
não se achar suficiente para ela e não descansar até que estivesse satisfeita? Então não tenho com
o que me preocupar.
— Bobo.
— Algumas coisas que acontecem vão além do nosso entendimento. Eu cheguei ao Rio no dia
em que a Sara nasceu. Eu podia ter continuado em Paris. Eu estava indo bem. Mas eu finalmente
tinha o dinheiro para vir embora. Eu não aguentava mais de saudades suas. E eu sentia que
precisava voltar. Mas choveu. E meu voo teve que ser desviado para o Rio. 20 de julho de 2005.
Quando a gente chegou ao hotel todos falavam da mulher que quase tinha parido na recepção.
— Lembra quando eu te falei que o Octávio ficou dois meses em Nova York? Eu não aguentava
mais. De verdade. Depois de nove dias, as duas chorando, eu botei a Sara no carro, com todas a
coisas dela e dirigi até Piracicaba. O caminho todo Sara não deu um pio. Eu cheguei e não desci
do carro. Fiquei o dia todo parada na porta da casa da sua mãe. Eu estava muito triste com a
Sara. Ridícula, eu estava chateada com um bebê de seis meses. Eu amava a Sara, mas eu odiava
você. E ela tinha sua cara, óbvio que não daria certo. Foi quando eu percebi que eu tinha que
parar de te odiar. Não tive coragem de deixar a Sara lá e voltei para casa. Meus Deus! Eu nunca
tinha contado isso para ninguém. Nem para o Octávio.
— Por que você decidiu me contar tudo hoje?
— Tantas coisas aconteceram, tivemos tantos momentos para nos encontrarmos e ficamos no
quase. Às vezes eu acho que tem coisas que perdem o timing. Fazia sentido e provavelmente
teria dado certo há dez anos. Sabe? Como se o universo não quisesse? Talvez toda nossa história
tenha sido só para Sara existir e mudar minha vida e ela mudar a sua. E de todas as pessoas.
— Nossa filha é incrível, mas me recuso a acreditar que tudo que eu senti e sinto por você foi
para viver seis meses ao seu lado e só. Eu entendo o que você disse sobre todos esses anos e os
desencontros todos, mas o que a gente faz com tudo que a gente sente hoje? Joga fora? E não me
diga que não sente nada. E se for agora o momento que a gente é feliz junto? Se o universo
colocou a gente aqui agora com tudo sobre a mesa para começar do zero?
— Não sei, Hugo.
— Dá uma chance para a gente começar de novo. Por favor. Pensa com carinho. O primeiro
movimento é seu como de costume.
CAPÍTULO 43

— Mana! Que saudades!


— Eu também! Vem almoçar comigo?
— Está no Ruiz?
— Si.
Se dias eram suficientes para se acumular uma bela papelada sobre a mesa de Marcela, que
dirá semanas. No último mês ela esteve poucas vezes no escritório. Final do Bestchef, viagem
para Argentina, troca de cardápio no Ruiz, viagem para Groelândia.
— Adoro que agora eu não preciso mais ser anunciada para subir.
— Você agora é de casa.
— Adoro! Me conta tudo!
— Tudo o que?
— Eu não me contento com aquelas fotos de família margarina que saem nos sites de notícias.
— Mas não tem nada para contar além de que estamos felizes.
— Juntos?
— Sim, moramos juntos, criamos uma filha incrível juntos.
— Marcela Campana, que vontade de te dar um soco.
— Se eu soubesse que você era agressiva assim, eu não deixaria Sara ficar de papinho com
você.
— Estou morrendo de saudades dela.
— Falando nisso, quer matar hoje?
— Ué? Tem plano para hoje?
— Se você puder ficar com a Sara hoje e leva-la para escola amanhã...
— Eu entendi bem? Você tem planos com o Coelho hoje?
— Si. Quer dizer, ele não sabe. Ainda.
— Você finalmente vai dar uma chance?
— É agora ou nunca.
— Se você quiser fico com a Sara um mês!
— Cuidado com o que você oferece!
— Sério, amiga, ela é um amor. Incrível, um papo tão bom, meio doido as vezes e que fico
pensando como foi que a gente chegou naquele ponto. Mas eu amo a Sara, amo você, amo o
Coelho. Enfim, amo essa família, do jeito que ela tiver que ser. Mas principalmente, acredito
muito na felicidade de vocês e torço muito por isso. Faço tudo que estiver ao meu alcance para
ver vocês felizes.
— Clara, muito obrigada. Jamais poderei agradecer o suficiente por tudo.
— Você está tão emotiva.
— Período fértil, amiga. Período fértil.
— Então que horas pego a Sara?
— Pode ser às 19h?
— Claro, mana!
— Posso pedir ajuda com mais uma coisinha?

Marcela explicou para Clara o que tinha em mente. Elas almoçaram, conversaram mais um
pouco sobre as recentes viagens em família e logo se despediram. Marcela foi buscar Sara na
escola e passaram toda a tarde juntas.
Conforme combinado, às 19h Clara buzinou e Marcela e Sara se despediram com um abraço
apertado.
Agora era botar o resto do plano em prática. Tomou um banho e inevitavelmente pensou em
quanto tempo se segurou para tomar tal decisão.
Escolhas.
Quanto tempo perdeu?
Quantas coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente?
O quanto teriam sido felizes se ele tivesse escolhido ficar?
O quanto poderiam ter vivido se ela não tivesse se escondido?
Se Sara não fosse prematura, ela teria realmente conseguido deixá-la na casa de Maria Lúcia?
Ela teria coragem de voltar?
E se ele não a tivesse perdoado?
Se Sara, apesar dos esforços, odiasse Hugo?
Se não fosse Octávio, elas teriam conseguido?
Se ela não tivesse ido até Maria Lúcia devolver a aliança, ela teria abortado?
Se ela tivesse contado os problemas do Sara para Hugo?
Se Hugo tivesse perguntado a ela sobre a briga com Felippo no ano novo?
Se ela tivesse contado que Felippo era o sócio do Sara?
Se ela não tivesse esquecido daquela consulta com o ginecologista no dia três de janeiro, três
dias antes de Hugo ir embora?
Ela teria contado a ele que seu DIU estava fora do lugar e o atraso na sua menstruação poderia
ser uma gravidez?
Eram tantos “se’s” e cada um gerava uma vida possível diferente, mas em todas eles estavam
juntos. A única vida possível em que estavam separados foi a que o destino lhes atribuiu.
Agora, por fim, mais uma vez um mundo de escolhas tinha sido apresentado. Com muitos “se’s”
pela frente.
O peso da escolha que antes esteve sobre Hugo, agora estava sobre Marcela.
Hoje, ela o escolheu.

“Preciso que você venha me encontrar, mas não sei onde estou.”
A mensagem recebida via SMS causou estranheza a Hugo. Era de Marcela. Mas dessa vez o
conteúdo o fez sorrir. Ele sabia exatamente aonde ir.
Incrível como certos momentos nos marcam de forma que mesmo tantos anos depois, uma breve
citação seria o suficiente para o transportar àquela madrugada.
Madrugada aquela em que Marcela finalmente se permitiu e se entregou inteiramente a ele. O
primeiro movimento. Sempre ele.
Se existe uma rua Rio de Janeiro bem no meio de São Paulo, pode ser que também exista
Hugo e Marcela em São Paulo!
O coração chega a errar as batidas.
Será?
Finalmente?
Sem hesitar, pega seu capacete e corre ao encontro da mulher da sua vida. No caminho, refletia
e lembrava do quanto teve medo de perder Marcela ao saber que ela estava no hospital.
Por quantas coisas haviam passado?
Por quantas deixaram de passar?
Por quanto tempo sonhou com esse dia?
Por quanto tempo aguardou para viver esse amor?
Ao longe consegue avistar Marcela, ao lado da placa. Seu coração dispara e seus olhos ficam
marejados. Ele mal pôde acreditar.
— Não é perigoso para uma donzela ficar aqui? — ele falou, tirando o capacete e descendo da
moto.
— Eu estava esperando ser resgatada por um nobre cavalheiro. Por acaso é você?
— Espero que sim.
— Da última vez deixei passar muito tempo, não posso mais perder um segundo.
— Se existe uma Rua Rio de Janeiro no meio de São Paulo, pode haver Hugo e Marcela?
— Aqui, — Ela encurta a distância entre os dois, toma a mão de Hugo e coloca sobre seu
coração acelerado — por mais que eu tenha me esforçado, nunca deixou de existir. Ficou apenas
adormecido.
Olhares que novamente se encontram.
Tão profundo.
Tão infinito.
Tão eles.
A mão de Hugo sobe para o pescoço de Marcela e com o polegar ele faz um carinho no rosto
dela. Mais um passo e ele anula qualquer distância que existia entre os dois. Marcela sela seus
lábios nos dele antes de se aprofundarem num beijo intenso, calmo, apaixonado e cheio de
saudade e alívio.
— Eu te amo.
— Eu também te amo. Vamos para casa.

A caminho de casa, com Marcela na garupa, seu corpo agarrado ao dele, com seus braços
envolvendo-o num abraço, sua cabeça repousada em suas costas. Custava acreditar que
finalmente teria de novo a mulher da sua vida em seus braços.
— Existe alguma chance de em algum momento aparecerem câmeras dizendo que tudo é uma
pegadinha? — disse enquanto destrancava a porta.
— Nenhuma.
— Sara está em casa? — Estranhando o silêncio e a escuridão.
— Na Clara. E ela vai leva-la para escola amanhã. — Marcela morde levemente o lábio.
— Então a casa é toda nossa? — Deu um passo na direção dela.
— Si. Maria Isabel também foi expulsa.
— Você tinha más intenções para noite de hoje, Marcelinda?
— Só as melhores, meu amor. Só as melhores.
— Então eu sou seu amor?
— O amor da minha vida.
— Que coincidência! Você também é o amor da minha vida!
— Que sorte a minha!
— Que sorte a nossa!
Iniciam um beijo quente ainda na garagem e quando falta o ar:
— Nada de sobremesa antes do jantar, mocinho.
— Temos jantar?
— Claro! Estamos num encontro! O primeiro. Nós nunca tivemos um encontro.
— Verdade. Você é do tipo que transa no primeiro encontro?
— Eu sou do tipo que invade o quarto alheio. Mas não deu muito certo da outra vez. Vamos
optar por algo mais tradicional. Vamos deixar rolar...
— Então, Marcela, né? Me diz com o que você trabalha?
— Eu sou cozinheira, tenho um restaurante, algumas casas de chipas e sou jurada de um
programa de culinária.
— Não acredito!
— Juro para você.
— Não sei se você vai acreditar, mas eu também sou cozinheiro, também tenho um restaurante
e também sou jurado de um programa de culinária.
— Quantas coincidências! Não vá me dizer que você também tem uma filha que se chama Sara
e tem dez anos.
— Se eu disser que sim, você vai achar muito estranho e ir embora?
— Eu acharia estranho se você dissesse que não, afinal, eu estou perdidamente apaixonada
pelo pai da minha filha e seria uma pena se não fosse você.
— Então acho que é meu dia de sorte, porque é só olhar para essa carinha linda que já serve
como teste de paternidade.
— Que convencido! Está com fome?
— Na verdade, não. Você que cozinhou?
— No. Clara e Sara fizeram o cardápio e pediram ao Fragalli.
— Você está com fome?
— Não exatamente. Eu estava pensado, se apesar do discurso anterior, talvez, a sobremesa...
— Não precisa nem terminar, estou de acordo.
A mão de Hugo vai até a nuca de Marcela de forma que seus dedos entrem em seus cabelos e
eles se olham como se pudessem enxergar a alma um do outro. Como esperaram esse momento.
O momento em que seriam plenamente um do outro. Sem a pressa, ou medo de Marcela desistir,
as carícias e beijos eram lentos e intensos.
— Eu pego camisinha ou a gente sobe?
— No precisamos disso hoje. Quero te sentir por inteiro. Me ame, porque eu te amo.
As palavras de Marcela soaram como música aos ouvidos de Hugo. Prosseguiu então de onde
havia parado. Queria demonstrar a Marcela toda sua devoção. Queria que ela sentisse o quanto
ele a amava de todas as formas possíveis. Que ela era o amor da vida dele em todas as vidas
possíveis.
Sua boca percorria o corpo de Marcela enquanto suas mãos a massageavam. A delicadeza e a
calma que ele imprimia no ato tornava tudo extremamente sensual e carinhoso. Nesse ritmo
seguiram juntos até atingirem o ápice.
— Eu te amo — ele falou com a cabeça repousada sobre a barriga de Marcela, que fazia
carinhos em sua cabeça. — Obrigado por nos permitir viver isso.
— Eu te amo demais. Seria tolice não me entregar a você por conta de um capricho do destino.
— Eu vou fazer tudo que estiver ao meu alcance para a gente ser feliz. Inclusive servir o jantar,
já que sua barriga está roncando. Tem coisas que não mudam, né?
— Si. Estou morrendo de fome.
Marcela apenas vestiu a camisa de Hugo enquanto ele permaneceu de cueca. Jantaram,
conversaram sobre mais amenidades, sobre Sara, lavaram a louça...
— Ok, agora que você já fez amor comigo, já me alimentou, fez eu me sentir a mulher mais
desejada da galáxia, só está faltando me foder mesmo...
— Mas que boquinha suja...
— Ops! Isso porque você ainda não viu o que ela pode fazer.
Marcela agachou na frente de Hugo que estava encostado na bancada da cozinha. Deslizou a
cueca até os tornozelos dele. O membro antes exposto agora entrava e saia graciosamente da sua
boca. Toda sua extensão sendo envolvida com alternância de pressão, arranhada com dentes e
leves mordidas enquanto seu saco era massageado arrancando gemidos guturais e palavras
desconexas. Ela seguiu até ser interrompida por ele que a puxou iniciando um beijo urgente.
— Boquinha suja e talentosa. Minha vez.
Posicionou Marcela de bruços contra a bancada e deu uma mordida na bunda dela seguida de
um tapa. Sua língua desliza por toda sua intimidade.
— Nem comecei e já tá pronta.
Hugo a chupava com maestria ao mesmo tempo que massageava seu clitóris. Ao introduzir dois
dedos, não demorou para senti-la pulsar e suas pernas tremerem. Seu gosto agridoce, era néctar
dos deuses.
— Então, como quer?
— Me fode. Fundo. Com força.
— Seu pedido é uma ordem.
Sem delongas penetrou Marcela fundo e com força como ela havia pedido e chegou a lhe
roubar o ar. Conforme o ritmo aumentava, mais fundo ele ia. A força com que segurava a cintura
dela deixava seus dedos brancos. Os gemidos já estavam fora de controle, ele puxava o cabelo
dela descolando seu corpo da bancada e pegando em seu seio; ele sentia a pressão dela contra
seu pênis.
— Segura, amor, vamos juntos.
Não demorou e ela pôde sentir o jato quente dele se misturar ao seu gozo e logo depois o peso
dele sobre seu corpo. O carinho dele retirando os cabelos grudados pelo suor da sua face
ruborizada, os beijinhos distribuídos pelos ombros dela.
— Te amo.
— Eu também te amo.
— Sala e cozinha devidamente batizados, qual o próximo cômodo?
— Acho que um banho cairia bem e depois cama. Devo lembrá-lo que preciso das minhas
pernas amanhã?
CAPÍTULO 44

Acordar com o amor da minha vida nos meus braços. Não por um descuido. Não porque a Sara
saiu do nosso meio e nossos corpos não conseguem ficar separados. Sem medo dela se
arrepender. Sem medo de perdê-la. Mal podia acreditar que depois de tanto tempo Marcela tinha
dormido novamente em meus braços após uma noite de amor.
Sentir seu cheiro, passar a mão nos seus cabelos, sentir seu coração bater, sua pele contra
minha. Ela estava ali. Comigo. Em mim. Apesar de não querer quebrar aquele momento, a
vontade de surpreendê-la com um café na cama era maior. Ao tirá-la dos meus braços ela geme
manhosamente. Que delícia. Que saudade eu senti disso!
Desci, preparei uma pequena bandeja de café com ovos mexidos, frutas cortadas, suco e chá.
Uma pena termos reunião na emissora. Adoraria um dia de preguiça, buscar a Sara na escola.
Passar o dia com a minha família.
Oh sorte!
Subi sem fazer barulho, queria acordá-la, mas Marcela não estava mais na cama. Aguardei que
ela saísse do banheiro.
10 minutos.
15 minutos.
20 minutos.
25 minutos.
30 minutos.
— Marcela, tudo bem? — Abri uma fresta da porta e coloquei minha cabeça para dentro do
banheiro. Marcela estava sentada no chão, pernas esticadas e as lágrimas escorriam sem controle
pelo seu rosto. Me aproximei e peguei seu rosto em minhas mãos. — O que houve?
— Eu achei que você tinha ido embora.
Seu olhar era vazio. A trouxe para um abraço. Sentado agora também no chão fazendo carinho
em suas costas e ajeitando os cabelos que se colavam ao seu rosto encharcado de lágrimas.
— Eu não vou embora nunca mais. Nunca mais. Eu te amo.
— Eu também te amo. — Depositou um beijo casto em meus lábios e depois apoiou sua cabeça
em meu ombro e assim permanecemos por longos minutos.
— Precisamos ir, ou vamos nos atrasar. Você quer carona? Mas tenho que dar uma passada no
Malagueta.
Adiamos o quanto foi possível nos separarmos, mas tínhamos que ir para emissora. Reunião de
início de temporada. Deixei Marcela no banho e fui em outro banheiro tomar uma ducha rápida
pois ainda precisava passar no Malagueta.
Um pouco atrasado como de costume estacionei na emissora. O carro de Marcela não estava.
Nem acredito que pela primeira vez na vida vou poder me gabar de chegar antes em algum lugar.
Cumprimentando a todo nos corredores, cheguei na sala de reunião e já se encontravam, Clara,
Fragalli, Carvalheiro e alguns produtores.
— Chegou quem faltava, podemos começar — Carvalheiro falou.
— A Marcela ainda não chegou — Clara comentou.
— A Marcela não vem — Carvalheiro respondeu.
— Como assim? Ela está passando mal? Aconteceu algo com a Sara, Coelho? Ela estava
tristinha, mas disse que estava bem. — Clara parecia estar tão confusa quanto eu.
— Não, não que eu saiba. Ela teria me ligado, não teria? Eu estava com ela até agora pouco.
— Vocês não entenderam, achei que ela já teria falado com vocês, ela pediu discrição, porque
queria falar com vocês primeiro.
— O que não estamos entendendo? — Fragalli indagou.
— A Marcela rescindiu o contrato na semana passada. Falou que não poderia continuar.
Tentamos de tudo para que ela mudasse de ideia, mas não foi possível. Ela inclusive pagou
aquela multa milionária.
— Mas ela não falou nada! — Clara chorava. — Hugo o que está acontecendo?
Eu estava completamente atordoado, assim como todos, eu tinha sido pego de surpresa.
Passamos a noite juntos e ela não pensou em me contar isso? Tentava me lembrar da manhã de
hoje, em meio a todo aquele choro, eu falei sobre virmos para a emissora.
— Eu, eu não sei, Clarinha. Eu preciso ligar para Marcela.
Liguei.
Caixa postal.
Deixei dezessete mensagens de voz.
Mensagens não chegavam.
Voltei para a sala na esperança de alguém ter tido sucesso.
Fracassamos todos.
— Eu vou para casa.
— Calma, Hugo.
— Clara eu saí e a deixei no banho agora de manhã.
— Eu vou com você — disse Clara prontamente.
— Eu vou ao Ruiz — Fragalli falou.
— Gente, nossa reunião, ela não quer fazer parte do programa. Vamos encontrar uma nova chef
— um produtor falou.
— Mano, se não tiver a Marcela eu não vou fazer — Hugo falou, já saindo da sala.
— Carvalheiro, não faz sentido sem a Marcela — concordou Clara deixando a sala e correndo
atrás de Hugo.

Dirigi alucinado até a casa de Marcela. Clara tentava me acalmar, sem sucesso.
— Clara, ela te falou alguma coisa ontem?
— Só se eu podia ficar com a Sara porque ela tinha planos com você.
Chegando lá vi o carro de Marcela, o que me trouxe certo alívio. Abri a porta desesperado e
dei de cara com Maria sentada no chão em frente a porta. Ela tinha os olhos vermelhos e
bochechas molhadas.
— Cadê ela, Maria?
— Ela foi embora, seu Hugo. Ela foi embora — ela disse, voltando a chorar.
— Como assim embora? Viajar? — Eu não queria acreditar.
— Ela disse que não volta mais, seu Hugo. — Maria soluçava.
— Para onde ela foi, Maria? Você sabe para onde ela foi? — Clara perguntou e também
chorava.
— Eu não sei. Ela não quis dizer, eu pedi para ela não ir. Ela me pediu para entregar essas
cartas.
Eu estava em choque. As lágrimas saíam dos meus olhos e eu nem conseguia sentir. Passamos
uma noite linda, estivemos juntos essa manhã. Teria eu sido prepotente ao achar que aquele choro
era de medo achando que eu tinha partido quando na verdade significava outra coisa e eu não
entendi? Olhando a mesa havia envelopes: Clara, Fragalli, Maria, a equipe do Ruiz, a equipe do
Latina, sua casa de chipas, a Benicio, seu sócio e cartas para Sara, uma para cada aniversário até
18 anos. Uma “Para quando Sara achar que está apaixonada”, “Para quando Sara não estiver
aguentando de saudades” e, por fim, a que fez minhas pernas fraquejarem: “Para o meu amor
dessa e de todas as vidas possíveis, Hugo”.
CAPÍTULO 45

“A partir do momento em que nascemos começamos a morrer. Estamos todos morrendo, uns
numa velocidade maior que outros. Por nunca sabermos exatamente quando e como vamos
morrer, por vezes deixamos de dizer e fazer o que queríamos.
Saber que eu estava morrendo mais rápido que todos a minha volta foi muito doloroso. Tanta
gente no mundo, por que comigo? Mas ao mesmo tempo me deu tempo para deixar tudo
organizado, passar tempo com as pessoas que eu amo. Dizer a elas que eu as amo. Tive tempo
de fazer cartas a mão, o que é bem vintage. Tive tempo de trocar de papel e caneta pois elas
manchavam enquanto as lágrimas teimavam em cair.
Ao longo dos anos eu fiz tudo que era possível e estava ao meu alcance para viver uma vida
normal, viver intensamente. E prolonguei até onde foi possível. Chegamos a um ponto onde
não é mais possível prosseguir e mesmo me esforçando, as pessoas já sabiam que eu não era a
mesma. Chegado nesse doloroso momento em que morrer parece ser inevitável eu precisava de
uns favores.
Cuide muito bem da nossa filha. Você é um pai maravilhoso. Nunca duvide disso. O universo
não poderia ter escolhido melhor o pai da minha filha. Garanta que ela nunca vá dormir sem
lembrar que eu a amei, mesmo quando eu achava que a odiava. Garanta que ela seja a pessoa
mais feliz possível.
Deixei o Ruiz e as Latina sobre o comando de Benicio, mas eles agora não são mais meus e
sim de Sara. Você é o responsável legal pela Sara agora (tínhamos ficado de colocar seu nome
na certidão de nascimento, você foi um pouco devagar, então eu tive que fazer. Está na pasta
com o nome dela no escritório. Todo o histórico médico dela está lá também.). Confio no Beni,
mas não se afaste. Sobre decisões gastronômicas: converse com meus colaboradores e pense
como eu pensaria, você provavelmente me conhece mais do que eu mesma.
Sobre nós, me sinto egoísta. Me desculpe por ontem, mas eu precisava lembrar como era ser
inteiramente sua. É uma ótima última lembrança para ter de você. Espero que seja recíproco.
Não podia partir sem deixar claro que te perdoei e que me manter afastada de você e não
viver nosso amor, mesmo que por pouco tempo, foi uma das coisas mais difíceis que eu fiz. Fiz
na intenção de fazer esse momento ser menos doloroso, espero ter acertado.
Te amei cada minuto desde o Rio de Janeiro, mesmo quando achei ter me convencido de que
te odiava. Consegui te amar mais ainda depois que você soube da Sara, você me deu paz para
poder partir. Te amei até doer ontem. Amei você hoje de manhã e chorei até desidratar por ter
que dizer adeus sem que você soubesse. Te amo nessa e em qualquer uma das outras vidas que
pudéssemos ter vivido. Gostaria de ter tido mais força, coragem e tempo para dizer o quanto
te amo. Para sempre sua, Marcela.”

O mundo ruiu sob meus pés.


O amor da minha vida se foi.
Só uma noite, foi o que nós tivemos.
— Clara, ela não volta mais. Ela está morrendo. Ela não deixou eu me despedir. Clara, eu não
posso viver sem ela. — Eu não conseguia mais respirar.
Em minha cabeça tinha um milhão de pensamentos, meu coração, um turbilhão de sentimentos,
uma sensação de afogamento apertava meu peito.
— Hugo! — Clara me chamava, mesmo chorando ela tinha uma expressão serena. — Eu vou
buscar a Sara na escola.
— Eu vou com você. Clara, o que eu vou falar para ela?
— Ela só precisa saber que nós vamos estar aqui para ela — ela falou, limpando as lágrimas e
me dando a mão para que eu me levantasse.
— Eu não vou conseguir. — Me sentia fraco, impotente.
— Claro que vai, nós vamos! Ela confia na gente. Confiou a Sara à gente. Não podemos
decepcioná-la.
O trajeto até a escola de Sara foi silencioso. Clara insistiu para dirigir. Durante o trajeto fui
tentando me acalmar para lidar com Sara, eu não fazia ideia de como fazer isso.
Como contar para sua filha que a mãe dela foi embora porque está morrendo?
Me colocando no lugar de Marcela, só conseguia pensar no que ela faria: contar a verdade. Ao
pararmos na frente da escola, Sara veio ao nosso encontro e antes que pudéssemos sair do carro
ela entrou.
— Oi, pai, oi, Clarinha — disse, fechando o cinto.
— Oi, filha. Como você está? — Eu não conseguia olhar para Sara.
— Pai, vai ficar tudo bem. Ela nos ama. Ela pediu para eu não deixar você esquecer — ela me
disse com um sorriso tranquilizador. Ela sabia. É claro que Marcela havia contado.
— Eu te amo. Ela pediu para eu não deixar você esquecer também. Vamos sempre lembrar do
quanto ela ama a gente.
Me desprendi do cinto, entrei no banco de trás e abracei minha filha, como se pudesse protegê-
la do mundo, como se pudesse protegê-la da dor. Com a cabeça colada em meu peito ela chorou
silenciosamente durante todo trajeto para casa.
Todos choramos: eu, Sara e Clara.
CAPÍTULO 46

Os dias viram semanas e as semanas meses. O repentino desaparecimento de Marcela não passou
despercebido. Sua ausência nas redes sociais e o cancelamento da temporada de Bestchef
levantaram suspeitas.
Assim como nós, os fãs sofriam a cada especulação e para pôr fim a todas elas e encontrar um
pouco de paz e conforto postei uma foto em que eu, Sara e Marcela estávamos no jardim e fomos
fotografados por Clara; na legenda algo que até eu custava a crer. “Marcela, não mais entre nós.
Para sempre em nossos corações.”.
A partir daí a comoção foi geral. O Ruiz e as Latinas viraram local de peregrinação, flores,
fotos e velas que lembravam sempre o quão querida Marcela era. Eu e Sara ficamos dias sem
sair de casa, pois a imprensa havia acampado em nossa porta.
As coisas só melhoraram quando num ato de bravura, Clara e Fragalli deram uma entrevista
exclusiva com as informações que nós tínhamos, que não eram muitas. Com o pouco que Isabel
sabia e somado ao pouco que Sara resolveu falar, descobrimos que Marcela, há pelo menos
cinco anos, tinha um tumor no cérebro e já havia recorrido a diversos tratamentos que não
tiveram o resultado esperado. E então comportamentos antes estranhos passaram a fazer sentido.
Em casa, segui no quarto que antes era de hóspedes e o quarto de Marcela ficou intitulado
como quarto da saudade. Por vezes eu e Sara apenas nos deitávamos na cama e conversávamos
sobre Marcela. Às vezes tomávamos café na cama dela e era inevitável não lembrar daquele
primeiro café em que tomamos na cama, no dia depois de conhecer Sara. Tanto já havia
acontecido em tão pouco tempo.
As vezes ela me animava, as vezes eu a animava e quando nenhum dos dois tinha força, Clara e
Fragalli apareciam para nos resgatar da tristeza. Por vezes peguei Sara na madrugada chorando
no closet de Marcela, algumas vezes a ouvi conversando com as paredes do quarto. Me cortava
meu coração. Aquela menina que apesar de muito forte, e que em tantos momentos me consolou,
já não mais estava bem. Em conversa com a psicóloga, ela disse que uma cerimônia funerária
ajudaria com o luto. Eu nunca tinha pensado nisso. Não tinha um corpo para enterrar ou cremar.
Como sugestão de Clara, que estava sendo essencial em todo esse processo, decidimos fazer uma
cerimônia e plantamos um girassol no jardim, a flor favorita de Marcela. A partir desse dia
combinamos que sempre que quiséssemos conversar com Marcela iríamos até o girassol.
No dia da cerimônia fez sol, ao contrário do que dizia a previsão do tempo. Juntos, eu e Sara
escrevemos um texto que lemos juntos aos presentes: colaboradores do Ruiz e do Latinas, Clara,
Fragalli e Drica, Maria, Carvalheiro e mais algumas pessoas queridas da produção do Bestchef.
“Na manhã em que eu dei um abraço nela e disse até mais tarde, eu não sabia que era o
último. Ela sabia e chorou, eu bobo, não entendi.
Sara sabia que aquele abraço que elas deram naquela tarde era o último e não foi mais
fácil.
Ela nos ensinou que a verdade sempre será dita se fizer a pergunta certa. Queria ter sabido
perguntar.
Ela nos ensinou que promessas precisam ser cumpridas ainda que sejam dolorosas. E é por
isso que estamos aqui hoje.
Eu prometi a amar para sempre. Sara prometeu que seria feliz. Eu prometi garantir que Sara
seria feliz. Eu prometi que nunca deixaria Sara esquecer que Marcela a amou em todos os
momentos. Sara prometeu que nunca me deixaria esquecer que Marcela me amou, até quando
me odiava.
Eu e Sara também fizemos promessas um ao outro. Nunca esqueceremos Marcela, como se
fosse possível o contrário. E prometemos, a partir de hoje, que seremos felizes, porque não
queremos quebrar as promessas que foram feitas a ela. E queremos também que todos vocês
prometam que não mais haverá tristeza ao pensar na Marcela, porque ela não era assim. De
hoje em diante, quando pensarmos em Marcela, pensemos como esse girassol, sua flor
favorita, iluminada como ela era. Para meu amor dessa e de todas as vidas possíveis.”
EPÍLOGO
DIA 252
— Alô.
— Clara Modesto?
— Sim.
— A senhora poderia comparecer ao Hospital Samaritano?
— Qual assunto?
— A senhora é o contato de emergência de Marcela Campana. Houve uma importante mudança
no quadro e precisamos saber como prosseguir.
— A Marcela está viva?
— Sim, senhora. Quando posso lhe aguardar?
— Eu vou agora mesmo.
— Ótimo. Tem uma instrução expressa para que a senhora não fale com Hugo Coelho, nem com
Sara Campana.
CARTA AOS LEITORES
Eu comecei escrevendo para mim algo que eu gostaria de ler. Escrever um livro é ter isso
realmente materializado – nunca foi um sonho ou ambição, mas aconteceu e foi muito bom, uma
experiência incrível, não quero mais parar!
Entendo que há uma alta carga de drama, mas é o meu jeitinho. Eu sei que (quase) todos
queriam um final feliz. Mas como devem ter percebido, eu prezo muito pelo ritmo e cadência que
nós vivemos, e na vida as coisas não se resolvem de um dia para o outro. Pessoas têm
motivações que desconhecemos. Nem sempre há vilões na história. Às vezes, tudo é uma
sucessão de desencontros.
Escrevo sobre coisas que poderiam ser reais, com sentimentos e desdobramentos que poderiam
ser reais. E na vida de verdade nem todos os finais são felizes, ou apenas não é o final.
Obrigada por tudo, de verdade.
Recomendo que releiam. Muitos detalhes, que vocês talvez não tenham percebido, agora farão
muito sentido.
Confiem em mim.
AGRADECIMENTOS
Pode até parecer muita prepotência, mas primeiro preciso agradecer a mim mesma por ter
achado que era possível e ter feito esse livro, quando o mais simples era ter ignorado.
Queria agradecer a muitas pessoas, algumas viveram o processo inteiro comigo, outras se
juntaram a mim no meio da jornada e foram responsáveis por incentivar, criticar, elogiar e
cobrar. Devo muito a elas, porque escrever esta história, apesar de ser algo feito apenas por
mim, não foi nada solitário!
Bia, Duda, Ilka, Kamilly e Louise por desde (quase) o início dividirem comigo suas
impressões e teorias. Allicia, Anajuly, Bea, Isabella, Joyce, Mari, Marta, meninas do “House of
paranoia”, do Twitter, e as mais de 400 pessoas que, de alguma forma, foram betas desta história
e dividiram surtos, risadas, angústias e amores por essa família.
Ana Clara e Bruna, que me incentivaram a sair do armário e me assumir escritora. Agradeço a
minha mãe, que foi a primeira pessoa fora da bolha a ler e trancou a porta do armário comigo do
lado de fora. Obrigada a todos os amigos e família que apoiaram de alguma forma para que esse
momento chegasse.
Obrigada, Amplifik, por me ajudar a concretizar esse projeto e me acolher de forma incrível!
Agradeço a você e a todos que leram, por testemunhar e de certa forma viver essa vida
possível comigo.
Table of Contents
1. Nota da autora
2. Capítulo 1
3. Capítulo 2
4. Capítulo 3
5. Capítulo 4
6. Capítulo 5
7. Capítulo 6
8. Capítulo 7
9. Capítulo 8
10. Capítulo 9
11. Capítulo 10
12. Capítulo 11
13. Capítulo 12
14. Capítulo 13
15. Capítulo 14
16. Capítulo 15
17. Capítulo 16
18. Capítulo 17
19. Capítulo 18
20. Capítulo 19
21. Capítulo 20
22. Capítulo 21
23. Capítulo 22
24. Capítulo 23
25. Capítulo 24
26. Capítulo 25
27. Capítulo 26
28. Capítulo 27
29. Capítulo 28
30. Capítulo 29
31. Capítulo 30
32. Capítulo 31
33. Capítulo 32
34. Capítulo 33
35. Capítulo 34
36. Capítulo 35
37. Capítulo 36
38. Capítulo 37
39. Capítulo 38
40. Capítulo 39
41. Capítulo 40
42. Capítulo 41
43. Capítulo 42
44. Capítulo 43
45. Capítulo 44
46. Capítulo 45
47. Capítulo 46
48. Epílogo
49. Carta aos leitores
50. Agradecimentos

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