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Copyright © 2024 Luiza Ranuzzi

MARCADA PELO DESTINO


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida
por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânicos sem consentimento e autorização por escrito
do autor/editor.

Capa: Camila Grivicich


Revisão: Lidiane Mastello
Leitura crítica: Heloísa Fachini
Leitura sensível: Ana Paula Ferreira
Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação da autora. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Nenhuma
parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.
Sumário

Sumário
Notas da autora
Prólogo
PARTE I, O VAZIO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 2
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
PARTE II, A AVALANCHE
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
PARTE III, LUZ E ESCURIDÃO
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Epílogo
Capítulo Extra
Agradecimentos
Para você, que viveu o luto e bateu de frente com ele, sem permitir que a avalanche de angústia
te consumisse.
Para você que persistiu, sobreviveu e viveu.
Notas da autora

Olá, leitores!
É um prazer estar de volta ao universo de Destinada para trazer a segunda parte dessa
história que amo tanto. Este livro tem um lugar muito especial no meu coração, mas antes de
começarem a leitura, gostaria de deixar alguns avisos.
“Marcada pelo Destino” é uma baixa fantasia, recheada de romance, mistério e aventura.
Neste segundo livro, Alyssa continua sendo a protagonista e, depois de muitos acontecimentos,
ela está tendo que lidar com grandes sentimentos, medos e angústias, ao mesmo tempo que tenta
se entender como pessoa. Por causa de sua jornada, acredito ser necessário deixar um aviso sobre
alguns tópicos que podem causar gatilhos.
Neste livro você vai encontrar reflexões profundas sobre o luto, ao mesmo tempo que
passa a observar como esse processo se dá em diferentes formas para Alyssa e outros
personagens. Há também algumas cenas que abordam assédio sexual (não há cenas gráficas de
estupro), físico e moral. Além disso, o livro possui cenas de violência, pensamentos que abordam
suicídio, e uma exposição do sentimento de solidão. Por fim, há também cenas de romance com
um teor mais sexual, mas sempre de modo consentido entre os personagens e respeitando os
limites de cada um. Todas essas cenas em questão são consideradas de alta relevância para a
construção da história e do crescimento do personagem, não tendo sido adicionadas ao livro
levianamente.
Apesar de abordar estes assuntos da melhor forma possível, caso você se sinta
desconfortável com qualquer menção aos tópicos, dê uma pausa na leitura e a retome apenas
quando se sentir pronta(o). Sempre preze por sua saúde mental e saiba que os seus sentimentos
são sempre válidos.
Dito isso, eu espero que a leitura deste livro alimente sua alma, como escrevê-lo alimentou
a minha.
Boa leitura!
Com amor,

Luiza.
No primeiro dia, houve medo.

No segundo dia, houve dor.

No terceiro dia, não houve nada.


Quando o mal ascender
E a escuridão ganhar poder
Na luz existe a resposta
Da luz foi criada aquela que

Pura

Equilibrará bem e mal


Fará da escuridão
Casa
Fará da luz
Poder

E protegerá os mundos
Ela há de ser sua rainha
Porque ela será salvação
Prólogo

Alyssa gostava de assistir aos pássaros.


Ela se ressentia pelo fato de não ter asas sempre que observava aquelas pequenas aves
alçarem voo. Seu pai ainda tentava convencê-la de que um dia ela conseguiria voar de uma forma
diferente, melhor, mas a menina não estava convencida. Nada podia ser melhor que aquilo.
Ainda assim, ela reservava aqueles minutos de sua manhã — quando parava na soleira da
entrada de sua casa e encarava os céus cheios de lindos pássaros sobrevoando o Lago e as
árvores — para tentar pular em direção ao céu, na esperança de que talvez, de tanto querer,
conseguisse voar.
Ao longo dos seus sete anos, a menina tinha aprendido diversas coisas, como nadar e andar
de bicicleta, ou mesmo derrubar seu melhor amigo, dois anos mais velho, no chão. Esse último,
ela se sentia incrivelmente orgulhosa sobre. Mas não ter encontrado um modo de voar, quem
sabe criar asas e se juntar aos pássaros, era algo que ela nunca compreenderia. Sua mãe sempre
dizia que, se nos esforçássemos o suficiente, podíamos fazer qualquer coisa, por isso quem sabe
ela não estava se esforçando o bastante? Talvez, se ela fosse mais resiliente, se tentasse com mais
afinco e...
Mas então, com uma guinada suave, seus pezinhos saíram do chão.
Grandes mãos agarraram a cintura da pequena Alyssa, elevando-a em direção aos céus,
onde seus amigos pássaros se exibiam lindamente. A garotinha gritou de animação, balançando
os braços e as pernas com afinco. Atrás dela, segurando-a no alto, o pai da menina gargalhava ao
vê-la tão alegre. Aquecia o coração do homem ver aquela pequena pássara, sua pequena pássara,
sentir a vida tão intensamente, empolgar-se com coisas tão simples que adultos mal percebiam.
Se ele pudesse desejar algo, seria que ela sempre fosse assim: pura, vendo a beleza em
cada pequeno detalhe da realidade. E o homem sabia o que a filha encararia em seu futuro. Sabia
de todas as coisas terríveis que esperavam por ela e por isso parecia tão importante que ela
pudesse enxergar a beleza da vida de forma mais clara. Ele sabia que viver era um empenho
diário árduo, mas também sabia que a menina era forte o bastante para lidar com isso. Sabia que,
se havia alguém capaz de superá-las, este alguém seria sua pequena pássara. Alyssa era
resiliente. Era forte como a mãe. Bondosa como o pai. E tinha aquele fogo crepitando dentro de
si que era apenas dela e de mais ninguém.
Então seu pai lutava todos os dias para que ela estivesse segura e forte, para que, quando a
hora chegasse, ela fosse tudo o que precisava ser para fazer aquele mundo tremer.
— Voe, pequena pássara — ele disse à filha —, o mundo é seu.

Aquela lembrança, o Destino sabia bem, era a coisa mais linda e viva no coração de
Alyssa, como um ponto de luz guia. Era aquilo que brilhava, agarrada à sua alma obscurecida
pelo vazio.
Era aquela lembrança que ela ainda se recusava a deixar ir.
Parte I, O vazio
CAPÍTULO 1

Eu encarei a imensidão negra à minha frente, tão parecida com o buraco em meu peito. Em
minha alma.
Era impossível determinar aquela linha em que o Lago e o céu escuro da noite se dividiam.
Não havia nem mesmo uma única estrela no céu. A lua estava encoberta por nuvens pesadas que
prometiam uma tempestade ainda naquela noite.
Todas as malditas noites desde o ataque tinham sido assim. Frias, chuvosas e sem um
único ponto de luz.
Quem sabe o universo sentisse tanto a falta dela quanto eu e estivesse de luto também.
O Lago se movimentou em resposta a um trovão que rugiu ao longe. Desde o ataque,
aquele barulho me fazia tremer. Era covardia minha, mas era a verdade. Naquela noite, quando
tudo acabou, era um trovão que anunciava nosso fim.
O fim dela.
Porra, eu não consigo nem mesmo falar seu nome.
A água tocou meus pés descalços e a imagem de seu lindo rosto se materializou à minha
frente, como o fantasma de um sonho perfeito. Ar foi arrancado dos meus pulmões enquanto
encarava os grandes olhos negros dela. A boca perfeita que imitava o formato de um coração
sempre que ela fazia biquinho. Sem pensar, ergui os dedos para tocar seus longos cabelos, tão
escuros quanto nanquim, porém minhas mãos agarraram o vento e a imagem se desfez.
Às vezes eu pensava que morreria dessa dor. Tinha dias que eu mal era capaz de respirar,
como se ela fosse uma ausência tão incapacitante que meus pulmões se recusavam a funcionar. E
todo dia a memória de seu rosto endurecido pela perda e assombrado pelo medo, dizendo que me
amava antes que desaparecesse no ar, ainda me fazia querer não ter sobrevivido àquela noite. Às
vezes eu até achava que não havia sobrevivido de forma alguma.
Mais uma vez, a água fria de início de outono tocou meus pés e eu busquei por uma
lembrança que não me fizesse querer arrancar meu coração do peito com minhas próprias mãos.
Anos atrás, quando eu tinha oito anos e ela apenas seis, nós ficamos parados como estátuas
por horas nessas águas. Ela tinha tanto medo do que não podia ver, dos animais que podiam
habitar o Lago, que quase nunca ficava na água por tempo o bastante para se molhar. Então, um
dia, nós ficamos ali, forçando o medo a tirar as garras que mantinha sobre ela.
No começo, ela tremia e lutava contra o impulso de sair da água. Mas bem a tempo,
quando ela estava prestes a desistir, alguns pássaros sobrevoaram nossas cabeças e ela se distraiu
com a visão.
Nós éramos apenas crianças naquela época, mas já éramos inseparáveis. Ela era minha
melhor amiga e eu o dela. Éramos parceiros em tudo, e por isso, quando os pássaros deixaram o
céu acima de nossas cabeças, eu contei histórias a ela. Falei sobre cada pequena história de herói
que eu conseguia me lembrar e, no final, ela ria de algum comentário meu, os olhos grandes e
negros brilhando com as imagens criadas em sua cabeça.
— Nate?
Eu havia olhado para ela, preocupado que aquilo não fosse dar certo.
— O que, Aly?
— Eu não sinto mais medo.
Lembro-me de gritar tão alto, feliz que minha ideia tinha funcionado, que ela gargalhou
por causa da minha reação.
— Nathan.
O som daquela voz me puxou de volta para a realidade. Eu conhecia aquela voz. Sabia
quem era e sabia que eu não estava pronto para lidar com ela novamente.
— Nathan — meu pai insistiu, colocando a mão sobre meu ombro. — Você precisa entrar,
a chuva está muito forte.
Chuva?
Encarei os céus turvos, a água agitada e, então, meu corpo já encharcado.
Quando havia começado a chover?
— Eu não consigo.
Eu sabia que meu pai entendia o que eu queria dizer. Não era apenas sobre não conseguir
sair da chuva, era sobre não conseguir continuar. Sobre essa dor em meu peito ser tão
incapacitante que eu pensava que nunca mais seria capaz de respirar normalmente.
Era sobre não conseguir viver em um mundo onde ela não existia.
— Sim, você consegue.
Balancei a cabeça, frustrado, os punhos cerrados.
— Não.
— Você consegue, Nathan, porque eu consegui e você é bem mais forte do que eu jamais
fui. Eu sei o que está sentindo, e sei o quanto está doendo, como nada mais parece brilhar como
antes. Mas nós continuamos. Nós acordamos, dia após dia, e vivemos porque esta é a única
opção.
Não era a única opção.
— Eu não quero.
Era assustador pensar que eu teria o mesmo destino que meu pai. Uma vida vazia. Um
coração quebrado.
Talvez a morte fosse mais bondosa.
Meu pai me puxou, forçando-me a encará-lo. Com as mãos em meus ombros, Brian me
encarou com ferocidade.
— Esta é a hora que você vive, porque é o que Alyssa iria querer para você. — O nome
dela, dito em voz alta, me quebrou por inteiro. — Você vai viver, Nathan, porque ainda tem
muito o que fazer. Nós vamos vingá-las. Vamos vingar sua mãe e Alyssa. E também todos os
Protetores mortos naquela noite, mortos nessa guerra milenar. Esta é a forma como vivemos
agora. Como continuamos.
De fato, tínhamos perdido muito mais naquela noite do que no último mês. Muitos
Protetores foram assassinados e a maioria das crianças ainda não queriam voltar aos treinos
depois do que viram. Fazia uma semana desde o ataque e a memória de Henry sendo velado e,
então, enterrado, ainda estava marcada em minha mente. Eu ainda conseguia escutar o uivo
doloroso de Jasmine quando se deu conta de que tinha perdido a filha e o marido. Ainda podia
sentir seu silêncio como uma espada cortando minha pele, enquanto se despedia do homem com
quem esperou passar a vida toda junto.
E a ausência dela... A ausência de... Alyssa... Tornava tudo ainda mais impossível. Porque
eu sabia, sabia que se ao menos tivesse ela, Jasmine sobreviveria. Eu sobreviveria.
Sabia que encontraríamos uma forma de vencermos com Alyssa do nosso lado. Mas um
mundo sem ela, era um mundo sem esperança.
E eu estava cansado.
— Venha para dentro, filho — Brian pediu novamente, mais alto, lutando contra o barulho
da chuva. — Vamos lidar com isso juntos.
Ergui meus olhos e o encarei.
Eu sabia que ele sentia falta da minha mãe todos os dias. Sabia que havia sido tão difícil
para ele lidar com a perda dela, que preferiu se enfiar em missões e viver longe de tudo o que
conhecia para não se lembrar daquele vazio que Diana preenchia. Longe de tudo e longe de mim.
E enquanto ele lidava com a própria dor, ele me abandonou. Por anos, havia sido a família de
Alyssa e Jasper quem cuidavam de mim, porque meu pai não suportava ficar na própria casa. Por
anos, Henry e Jasper tinham sido a minha figura paterna, enquanto o meu pai de verdade fugia.
Jasmine tinha cuidado de mim quando eu adoecia ou quando me machucava, até que ela
percebeu que eu era uma ameaça para sua filha e que precisava se afastar também.
— Onde você estava?
Minha voz era apenas uma entonação sem energia.
Brian me olhou, confuso, provavelmente duvidando das minhas capacidades mentais.
— Eu estava em casa quando você chegou.
Eu balancei a cabeça, tirando sua mão do meu ombro.
— Quando eu entendi que eu e Alyssa somos predestinados, eu te chamei. Pela primeira
vez em anos eu pedi sua ajuda. Eu nunca pedi nada a você. E naquela noite, quando descobri que
Aly morreria se cumprisse a profecia, mais uma vez eu te chamei. Eu precisava do meu pai.
Você nunca apareceu. Você não estava lá quando eu precisei.
Não estava lá para nos ajudar quando os Desertores invadiram.
Brian avançou um passo, mas eu recuei dois, afundando mais no Lago. Dor pintou sua
expressão com amargura.
— Eu estava vindo, Nathan, só que eu estava a um continente de distância!
Eu estava cansado de ouvir isso.
— Você sempre está, Brian. Sempre.
A chuva já havia deixado nós dois encharcados. Eu desviei os olhos do olhar machucado
de Brian, só para encontrar Zeus deitado na soleira da casa vizinha. Eu devia ter percebido que
havia algo de diferente em Alyssa logo no dia que a levei daquele estacionamento até a
floricultura. A forma como Zeus reagiu a ela era prova o suficiente. Ele a reconheceu de
imediato, aproximando-se dela como se já fossem velhos amigos. Porque eram. Alyssa estava
comigo quando resgatamos Zeus na floresta, depois que alguma família o abandonou na estrada,
ainda apenas um filhotinho. Haviam se encantado um pelo outro dentro do tempo de um olhar
trocado. E agora, Zeus sentia sua falta também, mantendo-se de guarda na casa dela, como se ela
logo fosse sair dali e deixá-lo entrar.
Eu te entendo, amigão. Sei como é querer vê-la novamente.
— Você não está sendo justo, Nathan.
— Nada disso é justo! — explodi, a raiva fluindo de mim como uma onda poderosa. Eu
precisava quebrar algo. Precisava matar. Era como uma necessidade súbita e excruciante. —
Aquele desgraçado a levou, bem na minha frente! Matou Henry com um só movimento! E eu
não pude fazer nada! Sabe como ajudei? Tirando os corpos dos Protetores de dentro do Lago e
caçando os desgraçados restantes na floresta. Mas então já era tarde demais.
Caçando era um eufemismo para o que eu tinha feito. Eu havia estraçalhado cada Desertor
que eu havia encontrado. Entalhei seus corpos com minhas espadas e arranquei membros com
minhas adagas. Alguns, matei com minhas próprias mãos. Eu parecia um animal naquele
momento. Poderia facilmente ter sido confundido com um monstro das histórias de terror que
Aly odiava.
— O que aconteceu não foi sua culpa — meu pai disse, tentando me tocar novamente, mas
dessa vez eu o empurrei. Eu não queria ser tocado. Não precisava que ele me consolasse.
— Não é assim que você se sente sobre minha mãe? Não aja como se meu papel no que
aconteceu com Alyssa tenha sido diferente. Eu deveria tê-la tirado daqui assim que senti que algo
estava errado, mas ao invés disso decidi respeitar a decisão que ela havia tomado. Decidi deixá-la
lutar, quando ela nunca deveria ter que lutar antes que chegasse a hora. Quando ela nunca
deveria ter que lutar e ponto.
— As situações foram diferentes, filho. Alyssa foi emboscada por uma guerra em um
território que deveria ser seguro. Sua mãe... Minha Diana escolheu lutar por mim.
Minha mãe. A mulher que Alyssa disse ter visto, mesmo que já estivesse morta há anos.
Isso era algo que eu ainda não havia conseguido entender e tentava não pensar a respeito.
— Por nós — eu o corrigi.
Brian desviou o olhar, a dor estampada em seu rosto, mesmo após todos esses anos.
Aquele, percebi atormentado, era meu destino: nunca ser livre da dor.
— Você sabia que ela morreria mesmo depois de receber os poderes e conseguir matar
Vicenzo? — Ele não me encarou. — Sabia que Alyssa estava condenada de qualquer forma?
Seu silêncio era resposta o suficiente. Ele sabia. Jasmine e Henry sabiam. Ravenna sabia.
Até mesmo Aly sabia.
Agarrei uma pedra em meio à areia e a joguei longe no Lago, usando aquela força marcada
em meus ossos, esperando que dispersasse aquela raiva de dentro de mim. Não funcionou. Eu
precisava caçar. Precisava matar como eu tinha feito naquela primeira noite.
Eu só precisava encontrar os desgraçados.
Brian viu minha necessidade estampada em meu olhar quando fiz menção de deixar o
Lago. Ele segurou meu braço, parando-me no meio do caminho.
— Essa não é a resposta.
Uma gargalhada assombrosa deixou meus lábios.
— Funcionou bem até agora.
E eu precisava que funcionasse novamente. Dia após dia, noite após noite, era isso que eu
fazia: matava. A única coisa na qual eu era de fato bom. Porque eu era bom em destruir, e
quando se tratava de Desertores, este era um bom dom.
Arranquei meu braço do aperto de Brian e corri pelo gramado, não deixando brecha
alguma para que tentasse me impedir. Passei pelo meu carro, mas o deixei para trás também. Eu
já não o usava mais com a mesma frequência, porque correr diminuía aquela ânsia dentro de
mim.
Não parei de correr até chegar à floresta, onde comecei a buscar pelos desgraçados. Os
Desertores começaram a passar mais tempo em nossas florestas desde o ataque, o que era
estranho já que ela não estava mais aqui e isso só podia significar uma coisa: eles estavam
pensando em atacar novamente. Haviam se tornado mais confiantes e sabiam que ainda
estávamos abalados.
Cassandra havia conseguido subir as proteções novamente, voltado a tornar aquele
território seguro, porém, agora que sabíamos que havia uma Feiticeira ao lado de Vicenzo,
quanto tempo demoraria até que ela conseguisse destruir o trabalho da Guardiã?
A presença dos Desertores era a prova de que isso era apenas uma questão de tempo.
A revelação da noite fatídica ainda corria pela minha mente. Ravenna se negava a
acreditar. Os Protetores ainda estavam tentando entender o que isso significava e as Guardiãs se
mantinham estranhamente caladas a respeito de tudo até hoje. Mas eu duvidava que Vicenzo
estivesse mentindo. O bastardo tinha os batimentos calmos quando contou que Alyssa seria a
última Fidly.
E os Desertores já deviam estar se preparando para usar esse fato contra nós.
Encontrei um dos desgraçados ao Sul do Lago, perto de uma cachoeira, a alguns
quilômetros da entrada para o Outro Lado. De repente, me tornei ciente da presença de Brian ao
meu lado, pronto para matar também. O Desertor mal me viu chegar e seu parceiro não teve
tempo de se defender de Brian.
Era incomum que eu lutasse ao lado do meu pai, mas naquele momento pareceu fazer
sentido. Havíamos sido marcados pela mesma dor, talvez aquele fosse seu jeito de sobreviver
também, mesmo que tentasse me convencer de que ficaria mais fácil.
Eu atrasei a morte do Desertor ao máximo, esperando que aquilo fosse abafar o vácuo em
meu peito. Eu destruí o maldito com minhas mãos e, só então, finalizei com minhas armas.
Era bom.
Eu era bom em destruir.
Eu destruía tudo.
Eu sabia disso.
E destruí Alyssa também.
CAPÍTULO 2

Todos os dias eu vinha até a casa do Lago de Alyssa para saber como Jasmine estava.
Foram poucas as vezes que tive coragem de entrar. Na primeira noite, depois do ataque, Jasmine
havia quebrado metade da casa, e eu e Jonnah precisamos segurá-la para que não se machucasse
no processo. Então, a visitei após o enterro de Henry e nunca mais voltei a entrar, não depois de
tê-la encontrado deitada no chão, encolhida como um animal em estresse, os olhos fixos em um
ponto vazio na parede. Ela não respondeu quando falei com ela. Não disse nada quando a peguei
no colo e a levei para o quarto de hóspedes, que eu esperava não trazer muitas lembranças
dolorosas.
Depois disso, depois de vê-la daquela forma — como se não fosse nada mais que um
fantasma — não tive mais coragem de encará-la.
Mas Jonnah não deixou Jasmine nem mesmo por um segundo durante todo esse tempo.
Mesmo quando Ravenna ameaçou bani-lo, caso não ajudasse na caça aos Desertores, ou quando
Akantha o baniu da sede dos Protetores na Grécia.
Jonnah ouviu o pedido de Alyssa naquela noite e nem mesmo por um segundo deixou de
cumprir a promessa de cuidar de Jasmine. E o Destino sabia que a mulher precisava de apoio
depois de ter perdido as duas pessoas mais importantes de sua vida.
— Você chegou cedo hoje.
Virei na soleira da casa, encontrando Jonnah no gramado, carregando algumas sacolas,
provavelmente cheias de comida. Eu não o via usar os couros dos Protetores há um tempo, mas
era tão alto e musculoso que era difícil não pensar nele como um guerreiro. Apesar disso, suas
feições confessavam seu cansaço e sua pele negra estava pálida. O luto também o havia mudado.
Ele mal havia tido tempo suficiente para conhecer Alyssa como deveria, mas o pouco que
tiveram foi o suficiente para marcá-lo profundamente.
Desci os degraus e o encontrei no meio do caminho, pegando algumas das sacolas para
ajudá-lo.
— Vou para a cidade esta noite, averiguar os desaparecimentos dos humanos pela
fronteira.
Jonnah apenas assentiu, abrindo a porta de entrada. Meus pés se fincaram na soleira,
incapazes de seguirem em frente.
Eu era um grande covarde, um merda total, mas não conseguia encarar Jasmine. Mal podia
lidar com o cheiro ainda remanescente de Alyssa pela casa. Quanto mais perto eu chegava de seu
quarto, pior era a dor em meu peito, seu perfume invadindo meu ser.
— Como ela está? — perguntei.
Jonnah já entendia como funcionavam minhas visitas. Sabia que eu nunca passava da
soleira. Ele deixou as compras sobre a mesa e voltou para pegar aquelas em minhas mãos.
— Está um pouco melhor do que na semana passada. Voltou a comer, o que já é uma
vitória, mas ela passa a maior parte do dia dormindo ou apenas encarando o teto por horas.
Assenti. Era uma pequena vitória, mas ainda assim, era válida.
O processo de luto seria lento e era importante que Jasmine soubesse que estávamos ali se
precisasse.
— Como você está? — Jonnah perguntou, encarando meus pés paralisados e minhas mãos
agarradas ao portal.
Cada dia pior.
Escolhi não responder à pergunta.
— Os Desertores têm rondado a floresta e acho que estão planejando algo.
— O que mais esses desgraçados querem?
Analisei a sala atrás dele, buscando por qualquer movimento vindo de dentro.
— Eu não sei — respondi, apesar das minhas desconfianças. Falar dela e daquele dia, não
era uma opção para mim. Não quando até pensar em seu nome parecia rasgar meu peito. E não
quando estávamos tão perto que Jasmine poderia ouvir. — Mas vou descobrir.
Parte de mim tinha certeza de que Vicenzo estava buscando um modo de encontrar o
Tesouro e pegá-lo para si. Era a última peça do tabuleiro faltando.
— Posso ir com você — ele ofereceu, observando-me de perto, como se buscasse alguma
resposta em meu rosto. Algo além do sofrimento.
No entanto, não tinha nada mais em mim.
— Está tudo bem. Jasmine precisa de você mais do que eu.
E era verdade. Eu havia aprendido a lidar com a solidão há muito tempo. Eu sobrevivia
bem sem ninguém por perto para se certificar de como eu estava. Havia sido a história da minha
vida. Pelo menos da maior parte dela, a parte onde Aly não existia.
Toquei seu ombro, como uma despedida e me afastei.
— Me avise se ela precisar de algo.
Jonnah assentiu fracamente.
Dei as costas para a casa e fui recepcionado por Zeus, esperando-me no gramado.
Eu menti quando disse que tinha estado sozinho a maior parte da minha vida. Mesmo
quando Alyssa não estava nela, Zeus nunca me deixou. Ele era meu amigo mais fiel e muitas
vezes se preocupava mais comigo do que consigo mesmo. Eu sentia pena de quem não gostava
de animais, porque apenas uma pessoa muito desumana encontraria algum problema nessas
criaturas.
Afaguei a cabeça de Zeus, deixando um beijo sobre o seu focinho.
— Fique com Jonnah e Jasmine hoje, tudo bem? — Seus olhos amarelados me encaravam
com atenção. Zeus me entendia. Era mais inteligente do que muitos humanos por aí. — Volto
amanhã para te buscar, ok?
Ele soltou um leve latido, como em confirmação.
— Nathan. Espera — Jonnah chamou. Eu me virei para encará-lo vindo até mim,
engolindo em seco. Estava claro que Jonnah tentava não deixar lágrimas rolarem. — Eu sinto
falta dela. Mas também sinto que ela não iria querer nos ver assim. Não iria querer ver você
assim.
O nó em minha garganta ameaçou me sufocar.
Eu queria dizer que estava bem, mas a mentira não saiu.
— Quando foi a última vez que dormiu?
Dormir? Deitar em uma cama e deixar a inconsciência te tomar? Eu não me lembrava
exatamente, mas sabia que tinha sido com ela. A última vez que dormi uma noite inteira havia
sido com o seu corpo ao meu lado, seu cheiro sob meu nariz, minhas mãos em sua pele.
Porra.
Eu não consigo.
Não posso.
— Não se preocupe comigo, Jonnah.
Já havia coisas demais para se preocupar.

Eu não conseguia pisar no Outro Lado. Não conseguia entrar em minha cabana, onde eu e
Alyssa passamos nossa primeira noite juntos e tantas outras. Não conseguia passar perto da
cabana dela também. Nem encarar o Lago, antes escurecido pelo sangue dos Protetores,
arruinado pelo sangue dos Desertores, muito menos pisar na praça onde minha melhor parte foi
levada de mim.
Mais uma vez, eu era a porra de um covarde. Apenas um moleque, egoísta e fraco.
Mesmo assim, havia uma grande razão pela qual eu deveria ir até lá.
Respirei fundo e abri aquele canal em minha mente, o qual mantive fechado por mais
tempo do que era capaz de me lembrar, e esforcei-me para manter todos os indesejados longe.
— Como ele está?
A voz de Serena se tornou clara em minha mente, como se falássemos pessoalmente.
— Mesma coisa de sempre. Dormindo. Ele está sempre dormindo.
Ela estava cansada e frustrada, e eu nem precisava vê-la para saber disso. Serena, como
todos os Protetores, perderam muito no ataque, mas ela ainda encontrava forças para zelar por
Roman, que desde o fatídico dia estava em coma.
Tudo aconteceu muito rápido. Em um instante, eu, Roman e Alyssa lutávamos contra
Desertores e, no seguinte, Roman estava sendo esfaqueado. O ferimento não foi superficial e me
lembrava exatamente do pânico que cresceu na boca do meu estômago quando analisei o corte
que já sangrava muito. Aly não queria deixá-lo, mas eu percebi que a única chance de Roman
seria escondê-lo e torcer para que aquele inferno acabasse logo. Ele não tinha nenhuma condição
de lutar ou mesmo andar. Então nós o deixamos escondido no banheiro e logo busquei falar com
Aisha em minha mente, pedindo que, assim que conseguissem quebrar a barreira de Desertores e
entrar no Outro Lado, fosse direto para Roman e o curasse.
Ela quase não chegou a tempo.
E eu ainda me lembrava de Roman me fazer prometer que cuidaria de Alyssa. Que a
manteria segura. E a vergonha, junto com aquela dor sufocante em meu peito, era demais sempre
que eu me lembrava como havia falhado.
— O que Aisha disse?
Seu suspiro reverberou em minha mente.
— Ela disse para termos paciência e que Roman precisa desse tempo para se curar.
Aparentemente, ele já estava meio morto quando ela chegou para ajudá-lo. Então meio que
devíamos estar felizes pela situação atual.
— Mas ela disse que ele vai ficar bem, não é?
Aquela não podia ser a forma como Roman Scott morreria. Nós éramos amigos. Ele esteve
ao meu lado quando tudo o que eu queria era deixar o Outro Lado e nunca mais voltar. Acho
que, porque ele entendia o sentimento, viu em mim algo como... um igual. Por isso, mesmo
depois que saímos rolando, desferindo socos um no outro, depois de brigarmos em um dos
nossos treinos, ainda nos tornamos amigos.
Até que Ravenna interferiu e fodeu com tudo.
Eu nunca entendi por que Roman não apareceu para deixar o Outro Lado comigo. Aquele
havia sido o plano desde o início do nosso treinamento juntos, quando ambos já estávamos
insatisfeitos demais com a vida ali. Então, descobri que havia sido Ravenna quem se intrometera
e nos manipulara a ponto de nunca nem falarmos um com o outro novamente, a raiva do que ela
havia orquestrado que pensássemos que havia acontecido ainda queimando profundamente em
nós, porém, não tinha tido tempo para acertar os erros passados.
— Ela disse para sermos pacientes. A mulher deve meditar quarenta vezes ao dia, porque
não tem lógica ela ser tão calma.
Eu me lembrava de Alyssa elogiar a Guardiã. O encontro das duas, mesmo que curto, havia
sido significante. E por isso e toda a ajuda que Aisha deu aos feridos e, principalmente, a Roman,
eu sempre seria grato. Mesmo que ela não tivesse sido rápida o bastante para salvar a mulher que
amo.
— Me avise se algo mudar.
Eu ouvi Serena suspirar.
— Espero que algo mude logo, Nathan. Precisamos de uma notícia boa.
Eu já havia falado sobre Alyssa mais do que queria. Havia pensado nela mais do que era
capaz de suportar. Eu não falaria sobre isso com Serena também. Sabia que a Protetora estava
sofrendo com a perda da amiga, mas eu não era a pessoa mais apropriada para ajudá-la com isso,
já que eu mesmo mal estava sobrevivendo àquela perda.
Então, fechei minha mente. Bloqueei aquela linha de contato com os Protetores e retornei à
minha rotina maçante: caçar e matar. E hoje, eu havia recebido um alvo mais do que interessante:
um grupo de Desertores italianos estavam na cidade. Desertores estes que, informações diziam,
eram próximos de Vicenzo.
Corri pelo gramado e entrei no meu carro, acelerando rumo à cidade. Eu quase nunca
dormia na casa no Lago, a não ser que não pudesse evitar. Para ser sincero, quase nunca dormia.
Mas preferia passar meu tempo longe do Lago, então minhas noites eram passadas em claro em
algum hotel ou na floricultura, apesar de ela ser uma lembrança constante daquela primeira noite
com Alyssa.
Foi assim que descobri sobre a movimentação dos Desertores italianos. Ouvi um grupo de
humanos comentando sobre um ataque a algumas quadras de onde a floricultura ficava, e meu
interesse apenas aflorou quando reconheci a nacionalidade dos indivíduos e o fato de que
apresentavam marcas grotescas em alguma parte do corpo.
De fato haviam Desertores de todos os lugares do mundo, que deixavam suas sedes
Protetoras, abandonavam a causa. Contudo, os italianos eram aqueles mais tentados por Vicenzo,
talvez pela proximidade. Apesar de todo nosso trabalho, Florença ainda era uma fortaleza, um
grande exemplo da influência de Vicenzo.
Agora, aqui estava eu: perambulando pela cidade pequena, praticamente vazia, devido ao
toque de recolher que os humanos haviam estabelecido após algumas mortes suspeitas. Com o
olhar atento, busquei por sombras nos parques, movimento pelas calçadas ou qualquer coisa que
indicasse onde os bastardos estavam.
Devo ter andado por mais de cinco quilômetros até eu sentir o cheiro nauseante
impregnado no ar. O cheiro de sangue e podridão.
Estacionei meu carro próximo ao parque municipal, onde eu os sentia se mover. Ajustei a
espada em minhas costas e saquei as adagas gêmeas, antes presas ao meu cinto. Era hora de
matar alguns desgraçados.
Mas não antes de eu conseguir minhas respostas.
Caminhei pelas árvores, meus passos tão silenciosos quanto uma serpente percorrendo o
chão liso. Quanto mais eu adentrava o parque, mais eu sentia aquele cheiro nauseante, que
denunciava a podridão dos Desertores. Quanto mais velhos, mais fedidos ficavam.
Ao fundo das árvores, fazendo divisa com uma colina, três Desertores se reuniam em volta
de uma fogueira. Todos estavam de costas para mim, mas eu podia ouvir o crepitar da madeira
queimando e ver os flashes de luz quente. Olhei à minha volta e optei pela melhor opção: escalar
a árvore. Eu queria ver o que diabos estavam fazendo em volta de uma fogueira.
O tronco áspero esfolou minhas mãos na subida, mas era uma sensação bem-vinda. Uma
pequena lembrança de que eu ainda era capaz de sentir algo além daquele enorme vazio. Ou
daquela fúria.
A fúria, porém, se sobressaiu a todo o resto quando finalmente consegui ver o que
queimava na fogueira. Corpos. Humanos haviam sido assassinados por aqueles desgraçados e
agora queimavam em uma fogueira no meio de um parque florestal. Como se não fossem nada,
não merecessem nada.
Desembainhei a espada presa às minhas costas e saltei, aterrissando em frente ao Desertor
maior, com metade do rosto marcado por queimaduras profundas. Aquilo não era a marca de sua
deserção, no entanto. Ele havia sido queimado. O cheiro dos corpos queimando tomou meu nariz
e o que quer que tivesse acontecido àquele desgraçado, ele merecia. O que estava fazendo com
aquelas pessoas era a prova disso. Mas pelo que pude ver, os humanos haviam lutado. Não eram
simples cordeiros para o abate como Vicenzo pregava, não é mesmo, grandão?
O homem teve tempo de erguer os olhos para mim e abrir a boca. No segundo seguinte,
sua garganta estava aberta e sangue jorrava por onde minha espada havia deixado seu rastro
mortal. Ainda de costas, bloqueei o ataque de uma Desertora, travando a lâmina de sua adaga
com a minha espada. Chutei o Desertor que avançava pela minha esquerda e, em seguida, rolei
no chão enlameado para cortar os tendões do desgraçado. Um rugido foi minha resposta.
Ah, aquilo era música para meus ouvidos.
Fui rápido, bloqueando golpe após golpe, mas também me esforçando para acertar alguns.
Afinal, eu só precisava de um deles vivo para tirar as respostas que eu queria.
Eu permiti que alguns golpes me acertassem. A dor física hoje em dia era a única coisa que
parecia cessar aquele aperto sufocante em meu peito. Dor física era melhor do que aquela dor
que ficou quando Alyssa me foi levada.
Mas logo me cansei daquela brincadeira.
Matei a segunda Desertora com um golpe rápido. O outro, com os dentes podres, me
encarou, provavelmente avaliando a possibilidade de fuga. Suas mãos seguravam suas armas
com força e ele não atacou.
Um sorriso cruel e satisfeito se formou em meus lábios.
— Com medo?
O Desertor não respondeu, mas mostrou os dentes.
Eu apontei para a fogueira, ainda crepitando.
— Por que estão matando humanos?
O idiota cuspiu no chão, na minha direção. Por sorte, apenas acertou meus sapatos, ou ele
teria perdido a língua antes da hora.
— Eu não respondo a você, garoto.
Rodei uma pequena faca nas mãos.
— Resposta errada.
Lancei a faca, que perfurou o ombro do homem. O Desertor rugiu de dor e avançou em
minha direção. Bati na faca ainda presa ao seu ombro, fazendo-a se enfiar ainda mais na carne.
Em seguida, girei o corpo e chutei suas pernas. O homem caiu como um saco de batatas à minha
frente.
— Por que estão matando os humanos? — perguntei novamente. O Desertor apenas
grunhiu, xingando. Avancei com outra faca e a cravei em sua mão. — Por que estão cercando o
Lago?
— Vai para o inferno, garoto.
Eu quase ri.
Quase.
Quebrei seu nariz com meu punho.
— O que Vicenzo está planejando?
Dessa vez, o desgraçado sorriu, o nariz sangrando e a mão arruinada. Curvou-se sobre o
corpo e riu, o som saindo mais como uma bufada. Cruzei os braços e esperei. Quando finalmente
ergueu os olhos para mim, ele disse:
— Vicenzo planeja muitas coisas, garoto. Não percebeu? Já se esqueceu do que ele fez
com a Fidly? Esqueceu do que fez ao seu povo naquele dia?
Raiva fluiu, como uma descarga elétrica pelo meu corpo. Dessa vez, quando comecei a
socar seu rosto e chutar seu corpo, parecia incapaz de parar. Imagens daquele dia me atingiram
como uma enxurrada. Minha incompetência em manter Alyssa a salvo era como um soco na
boca do estômago e não conseguia respirar. Tudo o que consegui fazer foi explodir.
Precisava me lembrar que esse desgraçado não poderia morrer antes de me dar respostas.
Eu o soltei, pulando para trás, incapaz de confiar na minha capacidade de deixá-lo vivo por
tempo suficiente. A espada de pedra de fogo deixou minhas costas e foi apontada para a garganta
do Desertor.
— Você vai responder às minhas perguntas ou vou cortar sua garganta, entendeu?
Ele bufou.
— Você vai me matar de qualquer forma.
Ponderei.
— Como vou fazer isso vai depender do que me falar.
O Desertor sorriu, os dentes quebrados e o rosto sangrando. Eu podia ver a magia em seu
sangue esforçando-se para curá-lo mais rápido do que um humano seria capaz, mas o estrago que
eu fiz havia sido grande e levaria um tempo que eu não daria a ele.
— Eu sei quem você é. Vicenzo nunca para de falar sobre o garoto Protetor que ele jurou
deixar vivo. O garoto Protetor que ele quer que venha para o nosso lado. — Ele cuspiu o sangue
que tinha em sua boca e apontou para mim. — O garoto que era próximo demais da Fidly, não é?
Minha espada pressionou contra a pele de sua garganta, mas eu não conseguia controlar o
tremor em minha mão.
— Você pode me matar, garoto, mas ainda não conseguirá voltar no tempo e pegar sua
garota de volta.
— O que Vicenzo quer com os humanos? — rosnei.
O Desertor deu de ombros.
— Muitas coisas. Se quer a verdade, é a Feiticeira com quem você deveria se preocupar
quando o assunto são os humanos. Eu não sei de mais nada, garoto, apenas sigo ordens.
A Feiticeira. Sybil. Ela havia ajudado Vicenzo, sabe-se lá por quanto tempo agora, e tinha
sido essencial para o plano dele. Sem ela, ele não teria conseguido manter os Protetores do lado
de fora do Outro Lado enquanto atacava quem estava do lado de dentro. Sem ela, eu não teria
sido um peso inútil naquela luta, com amarras invisíveis me contendo. Teríamos lutado, teríamos
conseguido tirar Alyssa de lá, se ela não tivesse mantido todos nós como reféns da sua magia.
Eu havia estudado sobre feiticeiras como ela depois do ataque. Eram chamadas assim
porque eram capazes de manipular a língua, os elementos e a energia visceral para controlar
pessoas e criar feitiços dos mais diversos. Em seu mundo, uma dimensão muito diferente desta
em que vivia, Feiticeiras como Sybil eram chamadas Hypata.
Por dias procurei nos livros antigos que Cassandra guardava para descobrir o que
realmente importava: como matar essas feiticeiras. A maioria não continha nenhuma informação
muito profunda a respeito das Hypatas, eram raras, e poucos tiveram consciência de sua
dimensão, mas eventualmente eu encontrei um livro, escrito por uma dessas feiticeiras, que havia
fugido de seu mundo, porque seu povo era cruel e manipulador. E apesar de ser uma Hypata, ela
ainda assim descreveu como alguém poderia matá-la. Até parecia esperar que alguém usasse
aquele conhecimento para livrá-la da própria desgraça. Não era algo particularmente rápido. As
Hypatas eram muito poderosas, principalmente quando absorviam energia. Não. Não qualquer
energia — me lembrei.
Observei as chamas queimando os corpos humanos e recordei: essas feiticeiras ficavam
ainda mais fortes quando absorviam a energia da morte. Quando alguém morria, havia uma
liberação energética que elas eram capazes de absorver e usar. Por isso ela estava fazendo
Desertores matarem humanos, e por isso ela estava tão forte no ataque do Outro Lado, porque
haviam Protetores e Desertores morrendo em montes.
Sybil era mais forte quando estava em contato com a morte.
E, como eu li no livro da Hypata, matar uma feiticeira requer que, primeiramente, ela
esteja fraca. Depois, arrancar sua cabeça e queimar o corpo deve resolver a questão. Se estiverem
fracas o suficiente, até pode ser possível matá-las arrancando o coração.
Apenas uma coisa ainda não se encaixava: como Vicenzo conseguiu trazer a Feiticeira para
esta dimensão. Apenas a Guardiã Freya era capaz de abrir portais, o que me fazia questionar se
outros seres, em outras dimensões, eram capazes de fazer o mesmo. E se este era o caso, estavam
perdidos, porque de onde Sybil saiu, só o Destino sabe o que mais pode ter. E o fato de Vicenzo
ter este tipo de ajuda ao seu lado, significava que ele tinha contatos mais poderosos do que
havíamos imaginado. Contatos muito fortes, dos quais não sabíamos quase nada.
— Como Vicenzo conseguiu trazer Sybil para esta dimensão? — questionei.
— Acha mesmo que eu saberia? — o Desertor retrucou.
Havia apenas mais uma coisa que eu precisava saber, mais do que precisava de ar para
respirar. Algo que me tirava o sono, o sossego, a paz.
Eu forcei as palavras a saírem, mesmo que parecessem impossíveis. Ácidas. Amargas.
Cruéis.
— Onde está o corpo de Alyssa?
O Desertor franziu o cenho.
— Alyssa? Quem diabos é...
Eles a haviam matado, mas nem sabiam seu nome.
— A Fidly! — rosnei. — Onde Vicenzo deixou o corpo dela?
Seu sorriso foi cruel, mas também havia um semblante de degustação, como se ele
apreciasse o pensamento.
— Não há corpo para você encontrar, garoto.
Nas últimas semanas, muitas coisas me fizeram querer morrer. Muito me fez querer me
enfiar em um buraco escuro e jamais sair de lá. Mas isso... Essas palavras... Elas haviam me feito
questionar o que diabos eu estava fazendo. Qual era o ponto?
Por que eu ainda respirava?
Os olhos do Desertor queimaram em minha direção.
— Se eu fosse você, iria até Florença, garoto. Vicenzo pode ter uma boa oferta para você.
Apenas o pensamento de que o desgraçado acreditava que eu fosse mudar de lado me
enfurecia tanto que eu passei a enxergar vermelho.
Minha espada era a extensão da minha frustração. Da minha dor. E ela não era
misericordiosa. A cabeça do Desertor caindo no chão, do lado oposto de seu corpo, era a prova
disso.
CAPÍTULO 3

Eu era uma folha em branco.


Estava divagando em pensamentos vazios e memórias inexistentes.
Eu não sabia meu nome. Mas ele me contou.
Eu não sabia minha idade ou minha data de nascimento. Ele se certificou de que eu
soubesse.
Eu não sabia o que havia acontecido comigo. Ele disse que era melhor que eu não soubesse
para não me aborrecer. O importante era que eu estava com ele, a salvo. O importante era que
estava sendo abençoada por sua grande misericórdia.
Eu era uma folha em branco e não sabia como me escrever. Por isso, aceitei a ajuda que me
foi oferecida. Vicenzo havia me salvado de um Destino terrível, uma possível morte, era
merecedor de minha confiança. Havia me dado casa, comida e proteção. O mínimo que eu podia
fazer, era mantê-lo feliz com esta escolha.
Então, todos os dias eu acordava, vestia os belos vestidos que deixavam em meu quarto e
tomava café da manhã com o homem de olhos de fumaça. Às vezes, durante as tardes, ele me
deixava passear pelo jardim gigantesco daquele palácio. Alguns dias, porém, a Feiticeira me
fazia sentar em uma cadeira em um quarto escuro e passava horas examinando minha mente,
meu corpo, meu sangue. Vicenzo dizia que era para meu próprio bem, para entender quem eu
era, o que havia acontecido. Quem sabe eu precisasse de ajuda? Era apenas a esperança de que,
em algum momento, alguma daquelas sessões fosse capaz de me dar qualquer resposta, que me
fazia ficar parada, em silêncio, esperando acabar.
Esta era a minha vida. Não sabia se era a vida certa. Era a única que havia, no entanto.
Ninguém procurou por mim desde que cheguei a Florença. Não havia sinal algum de que, em
algum lugar, alguém sentia minha falta ou se preocupava comigo. Era só isso. Este palácio e eu.

— Bom dia, Alyssa — Vicenzo cumprimentou, os olhos sobre seu prato cheio de pães e
geleia.
Alyssa.
Este era meu nome.
Às vezes, ele agia como se meu nome fosse algo estranho em sua língua, como se não o
compreendesse, ou não fizesse jus ao que via quando olhava para mim. Ainda assim, esta era
uma das coisas que sabia sobre mim, assim como o fato de que haviam pessoas me caçando e
que eu era especial por algum motivo que ainda iríamos descobrir.
Era por isso que eu estava aqui, porque ele me protegeria dos assassinos lá fora e me
apoiaria para lidar com qualquer que fosse aquele poder que ele acreditava estar dormente em
mim.
— Bom dia.
Um dos guardas se aproximou, o olhar atento sobre mim. Seu nome era Marco. Não devia
ser muito mais velho que eu, provavelmente não tinha mais que vinte e cinco anos. E eu podia
ver a marca em sua nuca, aquela que Vicenzo me disse ser uma tentativa de amaldiçoar seu povo.
Vicenzo estava na ponta da mesa, focado em sua comida e nos próprios pensamentos. Do
outro lado, à minha frente, Sybil me observava. Eu já estava acostumada ao seu escrutínio, sendo
este constante, por isso tentei ignorá-la, enfiando a comida na boca e mantendo os olhos baixos.
Também tentei ignorar as pessoas à nossa volta, rondando nossa mesa e as janelas do grande
salão. A mesa podia muito bem acolher todos, mas Vicenzo sempre comia apenas comigo e
Sybil, quando não sozinho. Aqueles outros estavam ali a trabalho e nada mais.
Minhas pernas balançavam descontroladamente e, em um movimento mal pensado, o garfo
entortou em minhas mãos. Inspirei. Aquele poder, afinal, não estava tão dormente assim. Às
vezes eu me esquecia que ele existia, até que algo se partisse, ou eu me movimentasse mais
rápido do que devia, ou escutasse conversas que não deveria.
Ninguém disse nada. Vicenzo nem mesmo ergueu os olhos para mim. Logo, porém, Marco
se aproximou com outro garfo e deixou ao lado do meu prato. Ele me deu as costas logo em
seguida, mais uma vez me deixando encarar aquela marca estranha, que quase parecia como uma
queimadura, em sua nuca.
Eu já havia reparado que não eram apenas Marco e Vicenzo que tinham marcas pelo corpo.
Os seguranças, espalhados pela propriedade, tinham marcas tão estranhas quanto os olhos de
Vicenzo. E eu sabia a história que moldava aquela realidade. Era cruel e surpreendente ao
mesmo tempo.
Há milhares de anos, o Destino — a entidade que regia os mundos — abençoou cinco
humanas, uma em cada continente para que mantivessem o equilíbrio da balança. "Guardiãs", era
como foram chamadas. Elas, então, escolheram outros humanos para apoiarem sua missão e um
deles havia sido Vicenzo. Estes, foram chamados de Protetores. Mas o homem ao meu lado
nunca compreendeu porque seus irmãos pereciam na luta enquanto nada acontecia às Guardiãs,
que viviam vidas imortais. Por isso ele conquistou sua imortalidade, na esperança de poder fazer
o mesmo para os outros. No entanto, as Guardiãs o baniram, transformando seus olhos em
fumaça já que não puderam lhe tirar a imortalidade, mas assim marcando seu corpo
permanentemente para que quem o encontrasse soubesse de seu crime. Mais tarde, fez o mesmo
com quem quer que o seguisse, apodrecendo alguma parte de seus corpos. Estes, por fim, foram
chamados de Desertores.
Pelo que eu via, os Desertores eram felizes com suas escolhas, mesmo com as marcas que
carregavam. Marco era um exemplo disso. Ele parecia se orgulhar por trabalhar para Vicenzo.
Talvez adorasse lutar pela igualdade que o homem tanto queria conquistar. Vicenzo prometeu
conquistar a imortalidade para todos aqueles escolhidos pelas Guardiãs e que acabavam se
juntando a ele. Não sabia bem como isso funcionaria a longo prazo, mas descobri que não era
meu papel questionar.
Os humanos não precisavam daquele dom, porque não passavam a vida lutando. Eram
fracos e ignorantes.
Eu era humana.
Só que não era.
Vicenzo disse que eu era especial. Diferente de todos eles. De fato, eu podia correr mais
rápido que humanos, era mais forte também, assim como escutava e enxergava muito melhor que
a maioria. E eu devia ser protegida por isso. Devia ser protegida porque muitos iriam querer me
destruir.
Às vezes eu me perguntava se já não tinham tentado.

— Você esteve muito calada durante o café, Alyssa — Vicenzo disse, em tom de
repreensão.
Eu havia percebido, nessas três semanas em que estive aqui, que havia três tipos diferentes
de Alyssa e ele nem sempre gostava de todas elas. A primeira era calada. Calada demais.
Vicenzo odiava quando eu parecia uma estátua, inerte e morta. Ele via meu silêncio como falta
de serventia. A segunda Alyssa, porém, falava demais. Questionava sobre o passado e o presente,
muitas vezes até o futuro. Essa foi a Alyssa que persistiu durante a primeira semana. Eu
perguntava sobre tanta coisa, querendo preencher o vácuo em minha mente, que ele se irritou e
me trancou no quarto por quatro dias inteiros. Na segunda semana, aprendi que aquela Alyssa me
traria muitos problemas. A terceira Alyssa, contudo, era de longe a sua preferida. Aquela que ele
gostaria de ver diariamente: a Alyssa articulada. Essa fazia bem ao seu ego. Ela assentia e ria
quando ele contava algo que devia ser interessante. Ela seguia suas regras e sorria o tempo todo,
como um enfeite bonito ao seu lado. Ela era perfeita dentro daquele castelo e, por isso, não era
nada humana.
Vicenzo gostava quando não era capaz de ver humanidade em mim.
— Só estou cansada. Não dormi muito bem.
Ele arqueou a sobrancelha para mim.
Ele também não gostava que eu dissesse que tinha algum problema. Vicenzo havia me
salvado de um destino terrível, me acolhido em sua casa... Eu não deveria reclamar ou ter
problemas para dormir.
Mesmo assim eu tinha.
— Sybil pode te ajudar com isso — ele disse, simplesmente. Do outro lado da mesa, a
mulher assentiu.
Sybil era uma mulher muito diferente do que eu já havia visto. Diferente das Desertoras
que eu via ocasionalmente no palácio, ou as humanas que observei na cidade. Ela havia vindo de
outro mundo e tinha dons que eu ainda não compreendia muito bem. Eu já havia ouvido Marco
chamá-la de Feiticeira mais de uma vez. Aquilo explicava as coisas que ela fazia a pedido de
Vicenzo.
— Claro. Obrigada.
Vicenzo dispensou o agradecimento com um balanço de mão. Então, ele se levantou da
cadeira escura, no centro daquela sala dourada e andou até mim. Ele era um homem muito
grande. Ombros largos e uma estatura de quase dois metros, sem sombra de dúvida. Então era
compreensível que eu ficasse ansiosa com sua aproximação, principalmente quando seus olhos
de fumaça me observavam com atenção. Tentei mascarar aquele sentimento, no entanto. Se havia
alguma Alyssa que ele odiava, era uma Alyssa amedrontada.
“Medo é para os fracos” — ele me disse uma vez. “E não há lugar para fracos ao meu
lado”.
Seus dedos frios tocaram meu rosto e um arrepio percorreu minha espinha. Eu imaginava
que aquela frieza em sua pele fosse um outro efeito da imortalidade. Ele podia não ser capaz de
morrer, mas às vezes seu corpo agia como o de um defunto.
Quando seu indicador traçou a curva do meu lábio, ele tinha um sorriso estranho nos
lábios.
— Quero que se vista bem hoje. — Encarei minhas roupas, buscando onde estava o
problema. Havia sido ele quem escolheu aquele vestido preto. — Iremos encontrar dois possíveis
aliados importantes mais tarde.
— Pensei que fosse melhor que ninguém soubesse que estou aqui. — Mesmo quando eu
caminhava no jardim atrás do palácio, eu ainda tomava cuidado para não ser vista por ninguém
que não fosse um Desertor.
A luz do sol tocou seu rosto e seus olhos ficaram quase brancos.
— Essas pessoas são de confiança. Já faz quase um mês que você está aqui. — Por um
segundo ele olhou para a Feiticeira, palavras não ditas sendo passadas entre eles. — Está na hora
de definir seu propósito para nós.
— Eu não estou entendendo...
Vicenzo me cortou com um olhar afiado. Imediatamente, calei-me. Eu estava muito
próxima de ser a Alyssa que ele menos gostava. A que fazia perguntas demais.
— Você entende que salvei você de um destino terrível, mia cara. — Sua voz não era nada
afetuosa como suas palavras tentavam ser. Ele estava tão próximo agora que eu podia sentir seu
cheiro. Era um cheiro estranho. Não exatamente ruim, mas diferente de qualquer coisa que eu já
tinha sentido antes. Era forte e intenso, como se a alma dele estivesse carregada de especiarias.
— Você não deve pensar que me arrisquei para mantê-la viva em vão.
Eu não sabia a que risco ele se referia. Tudo o que eu sabia era que os Protetores tentaram
me matar e ele havia me mantido segura. Por quê? Eu não tinha ideia. A história toda era demais,
mas eu imaginava que qualquer pequena informação para alguém sem memória alguma seria
algo significativo.
Mesmo sabendo que Vicenzo tinha motivos para me ajudar, eu ainda não conseguia deixar
de ser grata por ter me mantido viva.
A minha gratidão era o mínimo que eu podia oferecer.
Por isso, assenti para ele. Porque eu tinha uma dívida com o imortal.
— Qual é meu propósito aqui, mestre?
Os olhos de Vicenzo brilhavam quando eu o chamava assim e agora não foi diferente. Ele
era um homem — se é que podia ser chamado assim — que apreciava estar no topo da
hierarquia.
Seus dedos, frios como gelo, tocaram meu rosto, percorrendo a curva do meu maxilar
quase que com adoração.
— Você, mia cara, será minha arma mais preciosa.
CAPÍTULO 4

Sybil havia deixado outro belo vestido preto, apesar de bastante revelador, em meu quarto.
Vicenzo gostava de preto. O palácio dourado tinha muitas coisas pretas dentro: cadeiras, mesas,
estantes, armários... Ele parecia ter um apreço pela cor. Parecia gostar ainda mais quando eu as
usava. Por alguns segundos, enquanto eu vestia um daqueles vestidos esvoaçantes, decotados e
negros como o céu da meia-noite, ele me olhava com um pouco menos de incômodo e um pouco
mais de contentamento. E isso também me incomodava.
Vesti a peça sem muito entusiasmo.
Eu não era particularmente interessada em nenhum tipo de evento social. Não gostava de
me encontrar com pessoas sem saber se, em algum momento, as conheci e simplesmente não me
lembrava. Era frustrante encarar o mundo sem saber ao menos qual era meu sobrenome.
Mas parte de mim estava curiosa. Desde que cheguei, Vicenzo, Sybil e alguns Desertores
tinham sido os únicos com quem pude ter contato. Para meu próprio bem. Para minha segurança.
Porém, agora Vicenzo queria me apresentar para estranhos.
“Você não deve pensar que me arrisquei para mantê-la viva em vão.”
Eu, de fato, me perguntava por que exatamente ele havia me salvado.
Ajeitei o vestido no corpo, tentando cobrir o máximo possível dos meus seios, o que no
final das contas não foi muito. Pelo menos o tecido descia até meus pés.
Uma batida firme soou pelo quarto. Dei meia-volta, deixando o espelho para trás, e
caminhei para abrir a porta.
Marco tinha uma carranca marcada no rosto bonito. Ele sempre tinha uma carranca. Mal
parecia suportar minha presença, mas mesmo assim desceu os olhos pela minha pele exposta
pelo vestido, o que não me causou absolutamente nenhum contentamento. Vazio. Era tudo o que
eu continuava a sentir. Não que eu achasse que, de todas as pessoas, seria ele a me fazer sentir
algo diferente.
— O mestre não aceita atrasos, Alyssa.
Assenti.
Eu sabia disso.
Vicenzo havia quebrado um copo no chão, próximo aos meus pés, na minha primeira noite
acordada aqui. Eu mal conseguia sair da cama tamanha era minha dor de cabeça e quando Sybil
conseguiu me arrastar para a sala de jantar, dez minutos tinham se passado. Minha recepção?
Cacos de vidro nos meus pés.
— Estou pronta.
Marco não respondeu, virou-se e começou a caminhar, esperando que eu o seguisse. E foi
o que eu fiz, porque Marco também não era muito paciente.
Quando os corredores começaram a se estreitar e o caminho se tornou mais escuro, eu
soube onde Marco estava me levando.
— Pensei que iríamos jantar — comentei.
— Vicenzo quer te ver antes.
Por quê? — Era o que eu queria perguntar, mas eu sabia que não era uma boa hora para ser
a Alyssa questionadora.
Chegamos ao escritório de Vicenzo, uma porta de madeira negra e brilhosa destacando-se
no corredor vazio. Eu havia estado ali muitas vezes. Sabia que aquela porta não era a única coisa
escura na sala.
Marco bateu uma vez, esperando a resposta que veio em uma única ordem. Marco então
escancarou a porta, o olhar frio de Vicenzo decretando que o Desertor nos deixasse e, com um
aceno, ele pediu que eu entrasse.
Fechei a porta atrás de mim e caminhei para mais perto de onde ele se sentava atrás de uma
exuberante mesa antiga. Seus olhos de fumaça percorreram meu corpo, quase como um toque
frio de uma névoa sombria.
— Esse vestido ficou bom em você.
Não respondi. Ele realmente havia ficado, mesmo que mostrasse demais o meu corpo e
parecesse muito sério para os tempos modernos. Eu não tinha ideia de onde Vicenzo arrumava
tantos vestidos belos, mas arcaicos. Apesar de que, em sua imortalidade, ele deve ter colecionado
todo tipo de coisa. Eu no lugar dele imagino que teria, pelo menos.
— Quero que você escute bem — disse. — As pessoas que iremos encontrar são
importantes para os próximos passos do meu plano. Para finalmente libertar meu povo das garras
impiedosas das Guardiãs e seus Protetores, eu preciso que se saia bem esta noite.
Dramático. Ele sempre era muito dramático.
Plano. Ele tinha um plano e eu não tinha ideia de qual era, a não ser de que, obviamente,
era uma peça nele.
— O que espera que eu faça, mestre?
Não me esqueci de florear o vocativo como eu sabia que ele preferia.
— Quero que os encante. — Ele, então, se levantou com tal destreza e rapidez que mal tive
tempo de piscar antes que suas mãos já estivessem agarrando minha mão direita. Seus dedos
percorriam a marca em minha pele como se fosse milagrosa. — E quero que os assuste. Então dê
o seu melhor.
Eu reconhecia aquele olhar estampado em seu rosto esculpido como mármore.
Quando Vicenzo não parecia incomodado com minha presença ou entediado com a minha
humanidade, ele me olhava assim. Como se visse mais. Como se visse o prêmio.
Eu o entendia.
Ele precisava de mim para o que quer que fosse seu plano e eu precisava dele para
sobreviver.
Eu não era estúpida o bastante para imaginar qualquer coisa além. Aquela era um
relacionamento de puro oportunismo, e por enquanto tudo bem.
Seus dedos calejados traçaram a curva do meu pescoço e um arrepio percorreu minha pele.
Então, suas mãos subiram para minha cabeça e agarraram meu cabelo com força. Meu queixo foi
erguido e não pude desviar meus olhos dos dele. Aqueles olhos tão estranhos. Seu aperto
machucou meu couro cabeludo, mas então ele afrouxou o nó que segurava minhas mechas
negras onduladas em um coque, arrancando os grampos presos e soltando-as em camadas sobre
meus ombros.
Ele gostava do meu cabelo solto. Eu devia ter me lembrado.
— Eu farei isso, mestre.
Foi tudo o que eu disse.

Nosso encontro foi nas ruínas da floresta densa e enevoada atrás do palácio. O verão estava
dando espaço para o outono, mas andava chovendo muito, e o solo lamacento era a prova disso.
Eu não sabia por que havia me vestido tão bem para sujar os pés de lama.
Florença era a redoma de Vicenzo. Nada entrava ou saía sem que ele soubesse, então
estávamos seguros nesta cidade. Mesmo assim, quando avistei os convidados do homem ao meu
lado, eu soube que talvez devesse temê-los.
O mais alto tinha olhos de gato verdes como esmeraldas brutas. Era tão magro que parecia
esquelético e nada em seu rosto comprovava humanidade. Quem sabe ele tenha vindo do mesmo
lugar que Sybil. Já o outro, mais baixo e corpulento, tinha dentes afiados que se expuseram assim
que me viram — no que imaginei ser a tentativa de um sorriso, apesar de bizarro. Seu rosto era
coberto por cicatrizes profundas, como se tivesse sido atacado por um gato raivoso e demoníaco.
Nenhum dos dois era particularmente belo. Na verdade, não eram em absolutamente nada
minimamente bonitos.
— Ora ora, o que temos aqui! — olhos de gato saudou.
A mão de Vicenzo se apertou em volta do meu braço, mas seu sorriso parecia genuíno em
direção aos estranhos.
— É bom ver vocês novamente, meus amigos.
Eu talvez não conhecesse Vicenzo bem o suficiente para determinar, mas não havia
nenhuma honestidade em suas palavras. Pelo olhar do baixinho, ele também sabia disso.
— Do que se trata este encontro, Vicenzo? — Ele apontou para mim. — Como é possível
que ela esteja...
— Esta é Alyssa — meu salvador com os dedos ainda fincados em meu braço, como se
fossem algemas, interrompeu. — A garota da qual falei. Ela é a Fidly.
Fidly? Ele nunca havia dito nada sobre isso. O que diabos era isso? Era por ser a Fidly que
eu era tão importante para seus planos? Por isso havia me salvado dos Protetores?
Havia tantas coisas mal explicadas que memórias me serviriam bem.
Um olhar de compreensão, do qual eu não compartilhava, estampou os rostos daqueles
homens. Até mesmo uma leve pontada de surpresa.
— Ela é, de fato, interessante — olhos de gato ronronou.
— Quanto anos você tem, garota? — o mais baixinho questionou.
Olhei para Vicenzo, incerta da resposta, e se ao menos tinha permissão para responder.
Seus olhos de fumaça encontraram os meus por um segundo antes de se virar e responder aos
homens:
— Ela fará dezoito anos em pouco menos de três meses.
— Movimento arriscado este seu, Vicenzo. — Olhos de gato não parecia nem um pouco
convencido, ou mesmo surpreendido pela minha presença ali. Pelo menos não de uma forma
positiva. — Os Protetores não estão atrás dela?
Sim. Eles estavam. Era por isso que era tão importante que eu satisfizesse as vontades de
Vicenzo: porque ele me mantinha viva. Longe dos Protetores e a salvo de suas investidas.
— Não se preocupe com isso, meu caro. Tenho tudo sob meu controle.
— Você terá que nos perdoar, amigo, caso duvidemos de suas palavras. Este encontro está
estranhamente parecido com o nosso último, menos a figura brilhante não exatamente presente
hoje — olhos de gato respondeu, afiado.
A história entre eles pairava no ar, mas eu não conseguia juntar as muitas peças para
compreender a fundo aquele relacionamento.
— Pois peço que se lembre da razão pela qual ficou preso aqui, nesta dimensão, longe de
tudo o que conhece, tudo o que anseia, Mavon.
Eu encarei a cena, tentando ocultar minha confusão. Mavon, no entanto, tinha a língua
afiada e não deixava nada passar.
— É por lembrar as razões pelas quais estou preso a este mundo medíocre que tenho
resguardos quanto a qualquer acordo com você, Vicenzo. — Seus dedos longos e esqueléticos
apontaram para mim e, como instruída, não me encolhi. Não baixei os olhos. — Não é trazendo
uma impostora que me fará mudar de ideia.
Impostora? A quem diabos eu deveria estar tentando me fazer passar?
Vicenzo, então, buscou o apoio do mais corpulento, que me encarava com os olhos
cerrados.
Eu apostava que eles esperavam que eu desviasse o olhar, quem sabe baixasse a cabeça.
Não fiz nada disso. Se eu entendia como a mente de Vicenzo funcionava, entenderia a deles
também. Homens como estes não gostavam de fraqueza, apesar de não serem afeiçoados por
petulância. Por isso, Vicenzo havia me avisado sobre encantá-los, mas também assustá-los. Eles
não me respeitariam de outra forma. Talvez nem vissem utilidade para mim.
E se eu não tivesse utilidade, então poderia muito bem me considerar morta.
— Você vê, não é? O Destino a fez por uma razão, Belius. Olhe para ela. Isso é mais do
que uma mensagem. É um afronte.
Oh, ok. Talvez eu devesse começar a me ofender.
Belius arqueou as sobrancelhas, mas se aproximou, olhando-me de cima a baixo.
— Mostre-me.
Foi fácil entender o que ele estava pedindo. Vicenzo fez o mesmo em nosso primeiro
encontro.
Ergui a mão direita, onde minha marca se estampava. Seus olhos brilharam ao analisar os
traços fracos e desconexos em minha pele. Eu não sabia por que, mas aquela marca era
importante. Ela dizia algo que eles compreendiam. Era um símbolo.
Belius, então, me encarou e um sorriso distorcido se esparramou em seus lábios.
— O Destino é um bastardo ingrato, não é mesmo?
Apesar de suas palavras, suas feições eram puro contentamento. Vicenzo, ao meu lado,
apenas assentiu. Mas foi o olhar de Mavon que me fez puxar a mão para longe de Belius.
— Isso é absurdo — ele murmurou.
Seu movimento foi gracioso como o de um gato, mas rápido como um raio.
Vicenzo se virou para encarar o homem de olhos de gato, enquanto Belius ainda me
observava estarrecido. Mas eu vi. Eu segui seu movimento, flagrei sua mão se enfiar dentro do
casaco e puxar uma adaga retorcida, como se feita às pressas, deixada para esfriar quando o ferro
ainda estava torto. Seus olhos encontraram os meus no momento em que arremessou a arma,
bem em direção ao meu peito.
Mas eu havia aprendido uma coisa desde que acordei naquele palácio enorme: eu era forte.
Havia quebrado muitas maçanetas e entortado muitos talheres, me movimentando tão rápido que
Vicenzo havia visto a necessidade de me punir para que eu aprendesse a não fugir com aquele
poder. Aquele poder extra parecia fluir em meu sangue como uma descarga elétrica.
E eu era rápida.
Ah, eu era tão graciosa em minha rapidez quanto ele.
Minhas mãos se fecharam na adaga antes que sua ponta tocasse meu peito exposto pelo
decote do vestido. Meu sangue ferveu com a adrenalina, com o poder. Com a raiva.
Vicenzo deu um passo em frente tarde demais. A adaga já voava da minha mão de volta
para o bastardo que a atirou.
A arma se enterrou no peito de Mavon. Ele sibilou, exatamente como eu imagino que um
gato faria.
Demorou um segundo para que eu entendesse o que havia feito.
— Talvez o Destino tenha caprichado mesmo nessa aí — ele murmurou, arrancando a faca
do peito, sangue preto escorrendo pelo corte.
Arqueei a sobrancelha, observando Mavon limpar a lâmina em seu casaco e voltar a
guardá-la. Era como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de enfiar a
merda de uma adaga em seu peito. Adaga dele. Talvez não houvesse um coração ali para
perfurar, afinal.
Vicenzo cruzou os braços, parecendo ainda maior do que era. Inflado pelo seu ego, talvez
também pelo orgulho do que eu tinha feito. “Quero que os assuste”. Eu, no mínimo, os
surpreendi.
— Talvez eu devesse ter avisado que Alyssa não é nem um pouco fraca, amigo — a voz
profunda de Vicenzo ressoou pelas árvores, e Belius gargalhou, encarando-me com ainda mais
curiosidade. — Vai ser difícil matá-la. Mais do que parece. E a meu ver, também seria um
desperdício. Ela pode ser muito mais do que a presa.
— Sim — ele resmungou, ainda preocupado com a mancha preta em sua roupa. — Ela
claramente pode ser a assassina.
— Nossa assassina — Belius interferiu, como se olhos de gato não visse o óbvio.
Vicenzo se virou para me encarar. Por um segundo, algo brilhou em seus olhos de fumaça
e seus lábios se moveram, formando a palavra “minha”.
Com um meneio de cabeça, ele se virou para os convidados.
— Podemos discutir minhas ideias amanhã, durante o jantar. — Ele estendeu a mão para
mim, e eu a peguei. — A não ser que queiram fazer mais alguma estupidez antes de irmos.
Mavon não respondeu, mas Belius assentiu com avidez, garantindo que estaria presente no
próximo encontro.
Nós demos as costas aos dois, deixando-os para trás enquanto andávamos em direção ao
carro onde dois Desertores nos esperavam. Eu não disse nenhuma palavra. Talvez ele pensasse
que eu havia ido longe demais atirando a adaga. Talvez fosse me punir por isso. Ficar calada era
melhor.
Marco era um dos Desertores no carro, e ele me olhou com certa curiosidade, mas me
mantive em silêncio. Vicenzo deu ordens para que voltássemos ao palácio, e eu encostei minha
cabeça na janela, cansada.
Eu não entendia o que havia acontecido. Não entendia por que Mavon tentara me matar, ou
por que Belius queria me usar como arma. Mas decidi deixar essas preocupações para depois. A
Alyssa de amanhã poderia lidar com elas. Talvez ela tivesse alguma informação que esta Alyssa
nem imaginava ter.
Quando finalmente chegamos ao palácio, Vicenzo dispensou os Desertores e caminhou
comigo até meu quarto. Meus dedos se agarraram à marca em minha mão em um ato de
nervosismo que eu esperava não ser óbvio. Vicenzo, no entanto, não disse nenhuma palavra.
Já no corredor do meu quarto, meus passos foram ficando mais rápidos, a necessidade de
me trancar ali dentro, crescendo em mim. Toquei a madeira fria, mas suas mãos se fecharam ao
redor do meu braço. Eu ajeitei minha postura e me virei para encará-lo.
— Você fez bem hoje.
— Não queria decepcioná-lo, mestre.
Seus olhos de fumaça ficaram mais acinzentados.
— Apenas não se esqueça quem te tirou da morte certa. Não se esqueça de sua dívida
comigo. Você é minha. Independentemente do que os outros digam ou queiram.
Talvez eu não quisesse ser de alguém Talvez eu quisesse pertencer a mim mesma.
— Eu não...
Sua outra mão se fechou em meu rosto, apertando minhas bochechas, prendendo meu olhar
no seu.
— Não se esqueça do que eu disse, Alyssa. — Eu podia sentir sua respiração bater contra
meu rosto. — Sua aparência é suficiente para me entreter e, daqui um tempo, o poder que terá
será a cereja do bolo. Não preciso que me questione. Não tenho interesse em sua opinião. Apenas
me escute e obedeça. E faça como hoje: não me decepcione.
Vicenzo, então, se afastou e me deu as costas, deixando-me no corredor.
Sozinha.
Suas mãos haviam me soltado, mas eu ainda podia sentir o aperto em minha pele.
Era um sentimento estranho aquele que preencheu meu peito. Era mais que medo. Mais do
que desconforto. E era mais do que o vazio em minha mente podia compreender.
CAPÍTULO 5

O tempo passava arrastado. As semanas nem se diferenciavam. Minutos pareciam horas.


Horas pareciam dias. E eu vivia em um constante estado de entorpecimento. Mas eu havia
começado a apreciar aquela sensação de dormência, era melhor do que a dor excruciante.
Roman ainda estava dormindo, como Serena preferia chamar o seu coma. Eu não havia
visto Jasmine, mas falava com Jonnah diariamente e me certificava de que ela tinha o que
precisava. E meu pai... Bem, meu pai, por algum motivo, não estava mais enfurnado em sua
missão longe do Lago.
Agora ele havia decidido ser presente.
— Levante-se, Nathan — Brian ordenou do outro lado da porta. Ao meu lado, Zeus
pareceu acordar de seu longo sono e começou a se espreguiçar. Meu amigo mais leal também
sentia falta dela e passava boa parte do seu tempo compartilhando da minha tristeza.
No bendito dia em que decidi dormir naquela maldita casa, Brian tinha que aparecer. Ele
não podia escolher um melhor momento para tentar ser um pai?
Ontem à noite eu estava cansado demais para voltar para a cidade. Eu passava a maior
parte do meu tempo livre no apartamento, acima da floricultura, mas como esta casa — com
vista para o quintal que um dia foi habitado por Alyssa —, ele parecia marcado por ela em cada
pequeno canto daquele lugar. Na sacada onde passamos horas conversando na noite após o
ataque no estacionamento. A cama, de alguma forma impossível, ainda parecia ter seu cheiro.
Com um suspiro pesado, eu me aninhei sob as cobertas e tapei o rosto com o travesseiro.
Eu era um merda, e aquela cama quente me parecia um bom lugar para afogar as mágoas.
Brian não concordava, porém.
A porta se abriu e as cortinas foram abertas.
— Levante-se — meu pai ordenou, mais firme.
— Me deixa.
Zeus se enrolou nas cobertas comigo. Parecia protestar ao meu lado.
O travesseiro foi arrancado do meu rosto com um puxão firme. Meus olhos se estreitam
para a luz solar invadindo o quarto, não requisitada.
— Levante-se, Nathan — meu pai disse, mais uma vez. — Há Desertores rondando a
fronteira do Lago e eu posso pensar em algumas maneiras melhores do que dormir para você
extravasar.
Aquilo chamou minha atenção. Mesmo estando cansado e — vergonhosamente — ainda
dolorido pela luta da madrugada anterior quando minha espada encontrou alguns Desertores, o
mero pensamento de que outros podiam estar por perto faziam meus pelos se arrepiarem. Até que
eu pusesse as mãos em Vicenzo, aqueles vermes teriam que bastar.
Sentei-me na cama e encarei Brian.
— Onde foram vistos?
— Vista-se e vamos juntos. Não vou te dar a localização deles desta vez, Nathan. Não será
trabalho para um só homem.
Revirei os olhos e peguei meus couros no armário.
— Você me subestima.
— Não. Você é quem acha que é invencível. Ontem chegou aqui mal conseguindo andar.
— Isso é um exagero — murmurei, colocando a calça e, então, a camisa. — Eu estava
cansado.
— Jasper disse para esperar, Nathan. Ele avisou que seriam muitos e você foi sozinho
mesmo assim.
Peguei um petisco na gaveta e entreguei para Zeus, ignorando o escrutínio de Brian. Ele
devia pensar que, se me encarasse o suficiente, me assustaria o bastante para seguir suas ordens.
Fazia o mesmo desde que eu tinha dez anos. Não funcionava, mas ele era incansável. Quando eu
era criança, ainda tentava impressioná-lo, fazer exatamente o que ele queria para tentar encontrar
aquela fagulha de orgulho nos olhos dele. Apenas um relance de qualquer sentimento positivo.
Mas me cansei rápido de buscar sua aprovação e nunca realmente a ter.
— Se está tentando se matar — ele disse, baixo e firme —, pelo menos me avise e não
terei o trabalho de buscar um culpado.
Raiva aqueceu meu sangue. Brian andava falando demais. Indagando demais. Ele podia
pegar suas opiniões e voltar para onde quer que tenha estado nos últimos anos. Voltar para onde
esteve na noite em que precisamos dele.
Eu parei na sua frente, os olhos o perfurando e o punho fechado ao lado do corpo.
— Você não tem moral para me dar sermão e eu não vou escutar.
Brian suspirou, os olhos verdes escurecidos por anos de pesar.
— O caminho pelo qual está indo é perigoso, filho.
Eu quase ri.
Quase.
— Você deve saber bem, pai.

Eu corri sozinho pela floresta sentindo a chuva iminente se preparar para cair. Apesar
disso, eu sabia que Brian estava por perto. Conseguia ouvir seus passos leves tocando o solo com
rapidez e o movimentar das folhas pelo caminho. Por isso, não foi uma surpresa quando parei um
pouco atrás da linha da costa do Lago, vasculhando o perímetro em busca dos Desertores, e ele
parou ao meu lado, armas em mãos. Mas foi surpreendente perceber que Serena e Jasper também
estavam lá. Quantos Desertores eram, afinal? Serena odiava sair de perto de Roman, então isso
precisava ser uma ameaça relevante.
Jasper apertou meu ombro e eu apenas balancei minha cabeça em cumprimento. Observei
Serena desembainhando uma adaga de seu cinto e a espada de suas costas e não pude deixar de
ficar curioso. Ela não deixou o Outro Lado desde o ataque, mantendo-se ao lado de Roman
enquanto ele se recuperava. Parecia tão incapaz de falar sobre Alyssa quanto eu, e eu sabia que
ela se sentia culpada por não ter lutado ao lado da amiga. Alyssa nunca a culparia, contudo. Ela
queria que alguém ficasse com as crianças naquela noite e queria que pelo menos algum de nós
estivesse mais seguro.
Uma preocupação a menos. Uma perda a menos.
— Roman acordou? — perguntei em um sussurro, posicionando-me ao seu lado.
Serena apenas balançou a cabeça em negativa.
— Mas ele apertou minha mão.
Ela já tinha falado isso semanas atrás e era improvável que fosse verdade. Era possível que
ela estivesse começando a imaginar aquilo, porque que outra razão haveria para Roman nem
abrir os olhos, mas apertar sua mão?
No entanto, eu não seria a pessoa a destruir suas esperanças. Eu mesmo ainda me usufruía
delas. Eu havia passado anos com raiva de Roman, apenas para descobrir que havíamos sido
enganados. Era bom pensar que teríamos a chance de nos acertar. Ou pelo menos de nos vingar.
Juntos.
— Onde eles estão? — Jasper murmurou, como sempre irritado e impaciente.
Ele nem tentava fingir que perder Alyssa não tinha piorado seus hábitos irritadiços.
— Quem recebeu a informação de que estariam aqui? — questionei, os olhos percorrendo
a fronteira vazia.
— Ravenna — Brian respondeu.
Revirei os olhos.
— Espero que ela não seja tão inútil em repassar informações como é em liderar seu povo.
Todos ali concordavam, Serena nem mesmo tentava defendê-la mais. Ela soube que, se
Jasmine não tivesse interferido, teríamos lutado contra Vicenzo e sua horda sem qualquer
sincronia. Aquela noite provou a incapacidade de Ravenna em liderar e sua completa falta de
utilidade no Outro Lado. Ela sabia lutar, eu admitia, e talvez fosse teimosa o suficiente para
pertencer àquela vida de luta, mas não era nem de longe uma líder. Nunca seria.
E definitivamente não era confiável.
— Eles devem saber que estamos esperando. Por isso ainda não apareceram — Serena
argumentou, as mãos apertando o pomo de sua espada.
Um zumbido encheu meus ouvidos, como uma mosca voando por perto.
Minhas mãos foram até as minhas próprias armas, tirando a adaga de pedra de fogo do
cinto. O zumbido soou mais alto, mais claro e ao mesmo tempo menos natural.
Quando o céu, azul claro e limpo de nuvens, tremeu com um trovão, eu soube exatamente
quem estava ali.
E não eram Desertores.
Imediatamente nós nos posicionamos, um ao lado do outro, espadas apontadas para o
coração da Feiticeira que, agora, flutuava até nós. Seu rosto continuava tão assustador quanto da
última vez que a vi, e eu ainda me lembrava das amarras invisíveis que ela usou em nós. Com a
Feiticeira ao lado de Vicenzo, a luta nem ao menos tinha sido justa.
— Ora, ora. — Ela mostrou as presas. — Temos alguém nova aqui. — Ela apontou para
Serena. — Onde estava naquela noite, menina?
Dei um passo à frente, pronto para avançar contra ela, raiva inundando meu peito como
uma descarga elétrica, mas Jasper foi mais rápido. Sua adaga voou na direção da Feiticeira, mas
ela apenas a desviou com um movimento simplório da mão esquerda. Eu corri, erguendo a
espada sobre a minha cabeça e a descendo sobre o pescoço dela. Eu fui tão rápido quanto um
raio, mas mesmo assim a lâmina não chegou a tirar mais do que uma gota do sangue preto antes
do movimento paralisar no ar.
Meu corpo travou, mas ainda pude ver meu pai atacando, só para ser detido da mesma
maneira. Serena e Jasper, então, agiram juntos, atacando pelas costas da inimiga. Eu rosnei
contra aquelas amarras invisíveis, busquei mover meu corpo com toda a força em meu sangue,
mas até piscar era difícil. Ao meu lado, Brian parecia sentir o mesmo.
A Feiticeira sorriu para mim, as presas afiadas desfilando pelos seus lábios antes de
também parar Jasper e Serena.
Só a cabeça — pensei. Bastava arrancar sua cabeça e aquilo devia acabar.
Não é?
Alguém devia ter descoberto como matar esta coisa. Algo devia funcionar.
— Vocês são tão receptivos — ela ronronou. De frente para mim, nem menos um palmo de
distância, eu podia ver melhor seu rosto. Encarar seus olhos era bizarro, completamente negros,
sem esclera e sem pupila. Quando tocou meu rosto, suas unhas pareciam garras. — Pelos deuses!
Você tem os olhos mais lindos.
Dessa vez, fui eu que mostrei meus dentes a ela.
— Infelizmente não posso dizer o mesmo.
A Feiticeira colocou as mãos sobre o peito, a expressão ressentida, como se realmente
pudesse se importar. O diabo estaria rindo de sua atuação, com toda certeza.
— Vejo que ainda está bravo por causa do nosso último encontro. E eu aqui pensando que
já teria esquecido.
— Me diz quanto tempo demora para você esquecer quando eu cortar sua cabeça — rosnei
de volta.
Sua unha desceu pelo meu rosto e um rastro de sangue seguiu.
— Não terá a chance, principezinho.
— O que você quer? — Serena perguntou.
A Feiticeira se virou para encarar a Protetora. Ao meu lado, meu pai tentava alcançar a
adaga de pedra de fogo em seu cinto. Eu o encarei, seus olhos oliva encontraram os meus, então
olhei para a adaga presa ao meu cinto, muito mais próxima de onde sua mão estava paralisada.
Ele assentiu e começou a forçar as amarras invisíveis, tentando alcançar a arma.
— Eu só queria ver como vocês estavam indo depois de tudo. Já faz o quê? Um mês?
Dois?
Já fazia um mês e três semanas.
Cada dia, cada hora, estava gravada em minha pele, como uma lembrança do que havia
sido tirado de mim.
Os dedos de Brian roçaram no pomo da adaga, mas bastou um movimento dos dedos da
Feiticeira e fomos jogados para trás, caindo a pelo menos três metros de distância de onde
estávamos.
Jasper xingou, amaldiçoando toda a linhagem da Feiticeira em poucas palavras sujas. E foi
meu pai, com sua frieza habitual, que conseguiu formar uma resposta decente.
— Você não veio por isso. Não atravessou o oceano para nos afrontar. Vicenzo mandou
você vir. Quero saber por quê.
Os buracos negros que eram seus olhos se focaram em Brian.
— Ele também me avisou que você era o mais esperto. — Outro movimento de seus dedos
e ela desarmou Jasper, que se esgueirava por trás para atacá-la. — Não vamos prolongar algo tão
simples, ok?
Seu dedo comprido e ossudo apontou para mim.
— Vicenzo queria lhe entregar um presente. — Meu sangue gelou e todo meu corpo
pareceu recuar involuntariamente. Eu observei, quieto e imerso em meu horror, enquanto a
Feiticeira estendia a outra mão e a abria lentamente. Tudo o que eu conseguia imaginar fazia meu
estômago se revirar e eu juro... — Ele disse que odeia corações partidos.
Na palma de sua mão estava a pulseira de ouro branco com o topázio solitário pendurado.
A pulseira que um dia foi da minha mãe. A pulseira que dei à Alyssa naquela noite.
A prova de que ela tinha sido levada, vida ceifada, e aquela joia jamais pertenceria a
ninguém.
Vicenzo com certeza sabia muitas coisas, provindas de sua vivência longa e imortal. Mas
ser cruel devia ser, com certeza, sua maior habilidade.
Achei que a fúria me tomaria. Talvez o ódio mortal que sufocava meu peito me faria partir
aquela coisa ao meio. Quem sabe o Destino teria piedade e me desse cinco segundos de força
inabaláveis para acabar com aquilo.
No entanto, eu fiquei parado, encarando aquela pedra solitária, aquela lembrança amarga
do que eu nunca teria. Do que ela nunca teria ou seria.
Quando a Feiticeira jogou a joia aos meus pés, eu caí sobre meus joelhos.
Agarrei a pulseira, arrancando grama e terra ao mesmo tempo. Fiquei ali, curvado sobre
aquele pequeno objeto. Não me mexi mesmo quando a coisa começou a murmurar algo sobre o
Tesouro e o Vicenzo. O zumbido em meus ouvidos me impedia de ouvir direito.
Eu quase podia sentir Alyssa se ajoelhar ao meu lado, passar as mãos pelas minhas costas e
sussurrar em meu ouvido que eu ficaria bem. Ela fez isso muitas vezes quando éramos apenas
crianças e o pânico me dominava sem qualquer indício prévio. Quando a solidão era demais, eu
ainda pensava em sua voz baixa, calma, em um sussurro cálido. “Olhe, o mundo ainda está de
pé. Não acabou.”
Eu quase podia sentir seu cheiro.
Quase.
Porque ela estava morta e pessoas mortas não cheiravam a cerejas e chuva.
A morte não lembrava a casa.
Quando a Feiticeira foi embora sem matar qualquer um de nós, eu quase gritei para que
voltasse. Quase agarrei suas pernas e implorei pelo fim.
Quase.
Porque havia uma coisa que eu faria antes que o fim chegasse. Uma única coisa e então
poderia encontrar o silêncio tortuoso. E para isso eu precisava ir a Florença.
CAPÍTULO 6

Hoje, Vicenzo havia decidido que eu era mais que uma donzela em sua torre. Eu também
era um soldado. Talvez um pouco mais importante do que os Desertores ao meu redor, já que
fazia tanta questão de me exibir para seus... aliados? Eles com certeza não eram amigos.
Os Desertores ao meu redor sussurravam intensamente, fazendo o som zumbir alto em
meus ouvidos. A espada em minhas mãos era pesada, mas estranhamente familiar. Como se eu já
tivesse segurado uma arma como aquela antes. Era engraçado como o corpo parecia lembrar o
que nem minha mente lembrava.
Vicenzo, com as mãos apoiadas na base da minha cintura, se abaixou para sussurrar em
meu ouvido:
— Mate.
À minha frente, Sybil sorriu. Eu não gostava quando ela sorria. Era estranho e sombrio,
como uma tempestade fria em uma noite sem estrelas.
Eu não sabia porque Vicenzo queria tanto que eu matasse. Ele sabia que eu era capaz. Eu
sabia. Ele havia me testado antes, me feito me mutilar e mutilar um dos seus prisioneiros, apenas
para ver se eu tinha estômago. Devia ter sido óbvio que não seria a última vez.
Pesei a arma em minhas mãos. Encarei a vítima aos meus pés.
Ensanguentado. Quebrado. Talvez matá-lo fosse um ato de misericórdia. Quem sabe ele
queria isso. Seus olhos se ergueram para mim. Belos olhos, apesar de seu rosto desconfigurado.
Pareceu me olhar como... como se mal pudesse me ver. Ou acreditar no que via.
De fato, eu era bem diferente dos demais ali. Não havia nada que marcasse minha pele de
forma sombria, como os Desertores. Não era nem de longe como Sybil. A vítima provavelmente
não entendia o porquê.
Manejei a espada nas mãos. Cortei o ar. Em outra vida eu com certeza sabia usar essa
arma. A memória muscular não mentia. A mão de Vicenzo pressionou minhas costas, sua
respiração tocou minha nuca. E com um movimento fluído, límpido e mortal, eu cortei a cabeça
da vítima aos meus pés.
O corpo do Protetor, então, caiu sem vida.
Eu não sabia muito sobre mim mesma, mas aparentemente eu era uma assassina.

Naquela noite, era como se eu estivesse... dormente. Eu estava cansada. Inclusive, havia
dito isso a Vicenzo quando me convidou para jantar, mas ele fingiu não ouvir, apenas dizendo
qual vestido eu deveria usar. E que queria meu cabelo solto.
Era estranho que eu tivesse que usar vestidos longos e detalhados como se vivêssemos na
monarquia do século passado. Mesmo que a monarquia provavelmente não pudesse usar vestidos
tão... reveladores. Mas talvez fosse compreensível que ele apreciasse mais aquelas roupas do que
as modernas com as quais eu observava as italianas usarem na rua, afinal ele era de outros
tempos. Muitos desses vestidos, assim como as jóias, tinham detalhes que me faziam lembrar a
grandeza do império romano. Pelos meus cálculos, Vicenzo deve ter vivido durante o grande
Império.
— Como está a comida?
Era engraçado que ele perguntasse. Vicenzo nunca parecia realmente interessado em minha
opinião.
— Está ótima, obrigada.
Esta noite era apenas nós dois à mesa. Sybil havia voltado de uma viagem rápida para não
sei onde e devia ter recebido uma folga daqueles longos e entediantes jantares. Mas pelo menos a
comida era boa.
Eu o flagrei me avaliando, os olhos de fumaça presos em meu rosto, então baixando para
meu decote. Sangue queimou minhas bochechas, o desconforto inundando minhas veias. Eu me
contorci na cadeira, tentando me posicionar de alguma forma que aquele decote ridículo não
ficasse bem em sua linha de visão.
No fundo, eu sabia que apesar dos olhos estranhos, Vicenzo era um homem bonito. Era
alto e forte como uma muralha, seus cabelos eram sedosos e brilhosos, seu rosto era quase que
esculpido. Vicenzo era bonito de um modo perturbador, como uma lâmina afiada. Mesmo assim,
algo dentro de mim dizia que ele era mil vezes mais mortal do que belo.
— Você me impressionou hoje. Quase me lembrou de alguém que conheci.
Ergui meus olhos, encontrando a névoa que me encarava atenciosamente.
— Quem?
Um sorriso que não chegava aos seus olhos espreitou em seus lábios.
— Eu gostaria de recompensá-la por se provar a mim — ele disse, como se eu não tivesse
feito pergunta alguma.
— Não sabia que estava sendo testada.
Vicenzo estalou a língua.
— Nós sempre estamos sendo testados, mia bella. Constantemente. Não se esqueça disso.
Simples assim, a comida deixou de ser atrativa. Soltei os talheres, cruzando as mãos sobre
o colo sedoso do vestido. Minhas costas tocaram o encosto da cadeira e me forcei a encarar
Vicenzo por mais tempo do que já tinha feito.
— Posso escolher minha recompensa?
Tudo o que me deu foi um aceno para continuar. Tente. Era o que ele queria dizer.
— Quero poder sair do palácio.
Os talheres tilintaram ao serem soltos no prato, mas eu me mantive firme em meu lugar,
sem desviar os olhos.
— Você se esqueceu da ameaça que espreita lá fora? — Sua voz era cortante.
— Não, claro que não. Mas também sei que Florença é sua. Você mesmo disse que não há
nada que entre ou saia dessa cidade sem que você tenha conhecimento. Os Protetores seriam
idiotas de chegar mesmo que a um quilômetro de distância das suas fronteiras.
Era sempre bom bajulá-lo um pouco também.
— Ninguém teria a coragem de enfrentá-lo, principalmente em Florença — reforcei.
Vicenzo cruzou os braços e não respondeu por longos segundos, os quais não tirei os olhos
dos seus.
— O que quer fazer?
Eu sorri, satisfeita.
— Quero correr. A floresta atrás do palácio possui uma trilha que desce até o rio Arno.
Posso vê-la pela minha janela. Quero poder correr lá todos os dias. Quem sabe tomar um pouco
do gelato que tanto falam sobre na volta.
Por um instante, pensei que ele riria do meu pedido. Pensei que diria o quanto eu era
estúpida por querer deixar aquela redoma de ouro e que eu era apenas uma idiota sem memórias,
iludida demais para pensar certo. Talvez todos esses pensamentos tenham de fato passado por
sua cabeça, mas Vicenzo apenas me encarou, uma expressão estranha estampada no rosto, até
que assentiu uma única vez.
— Você não irá sozinha. Um dos meus Desertores irá acompanhá-la.
— Peça que fiquem longe, então.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Está me dando ordens agora?
Dessa vez, eu desviei o olhar, ou com certeza sua taça de vidro encontraria meu rosto.
— Pensei que eu poderia escolher a recompensa. Não quero precisar pensar em conversa
fiada para lidar com o silêncio na companhia de um dos seus guerreiros.
Eu quero o silêncio.
Eu podia sentir seus olhos em mim como facas afiadas me ameaçando. Ele se levantou da
cadeira e tão rápido como uma rajada de vento, parou ao meu lado. Sua mão agarrou meu rosto e
puxou para ele, fazendo-me encará-lo. Eu me forcei a não revidar, a não fugir.
Vicenzo baixou o rosto, ficou tão perto que eu pude sentir sua respiração bater no meu
nariz.
— Você terá suas corridas. Terá seu silêncio. Mas não se esqueça de quem sou. Não
confunda minhas recompensas com poder. Você não tem poder, além do que aquele que te dou.
— Ele respirou fundo, fechando os olhos, sentindo meu cheiro. — Não se esqueça do que deve a
mim e eu não me esquecerei de recompensá-la.
Minha voz custou sair.
— Sim, mestre.
Seu nariz percorreu toda a linha do meu rosto, da minha têmpora ao meu queixo.
— Eu realmente prefiro quando apenas fica calada me olhando.
Cerrei os punhos.
— Desculpe, mestre.
Seus dedos soltaram meu rosto e ele se afastou.
— Está na hora de você ir dormir, Alyssa.
Eu não esperei que dissesse mais nada. Agarrei o tecido da saia do meu vestido para não
tropeçar nele e andei para meu quarto, só não rápido o bastante a ponto de parecer uma corrida.
Eu não era burra o suficiente para achar que sair correndo seria bem visto.

— Outro livro?
A voz me pegou desprevenida, mas suspirei aliviada quando encontrei Lore parada na
porta do meu quarto. Diferente de Marco, Lore não buscava encontrar defeitos em mim, ou
delitos em minhas ações, mesmo que tecnicamente eu estivesse indo contra as regras ao pegar
este livro na biblioteca gigantesca do palácio.
— Digamos que eu o encontrei no fundo do meu armário.
Ela fechou a porta, com um sorriso divertido no rosto.
— Digamos então que você é uma mentirosa.
Touché.
Tecnicamente, eu estava proibida de ler. Bem, eu podia ler qualquer coisa que me fosse
entregue — o que era nada —, mas não podia escolher livros da biblioteca. Na verdade, aquela
era uma área restrita, apenas para Vicenzo. Mas como esperavam que eu simplesmente ignorasse
um quarto de cem metros quadrados de prateleiras e mais prateleiras infinitas de livros? Era
como pedir para alguém ignorar um pedaço de pão depois de passar fome por dias a fio.
— Se contar a alguém, direi que estava de guarda quando o roubei.
Dessa vez ela riu, seu cabelo ruivo alaranjado e encaracolado sendo jogado para trás em
um gesto soberbo.
— Por favor, Alyssa, quando foi que contei? Se eu vivesse nesse tédio como você, também
seria obrigada a roubar algo, só para manter as coisas interessantes.
Lore era jovem, nem devia ser mais velha que eu, mas havia um fogo em seu olhar que a
fazia parecer ter vivido mil anos de travessuras. Se não fosse os dedos longos e com garras no
lugar das unhas, eu facilmente a confundiria com os jovens estudantes que passeavam pela praça
em frente ao palácio.
— Vai ficar de babá hoje? — perguntei.
Ela assentiu.
— Meu trabalho favorito!
Passei a página do meu livro, mais interessada na história em minhas mãos do que no
sarcasmo de Lore.
— Ei, pelo menos eu estou te salvando de uma noite com Marco te encarando como se
fosse algum tipo de animal enjaulado.
— Eu realmente acho que ele acredita nessa teoria — murmurei.
Eu mesma acreditava.
Eu a ouvi arrancar as botas pretas dos pés, que continham garras parecidas com as das
mãos, e pular na grande cama de dossel. Arqueei as sobrancelhas para seus pés sujos sobre meus
lençóis, e ela bufou, jogando-os para o lado.
— Você é enjoada.
— Por que gosto das coisas limpas? — retruquei.
— Quem sabe você apenas não se lembra que vivia como uma porca.
Fechei o livro e me virei para ela.
— Eu vivia?
Ela jogou as mãos para cima.
— Sei lá! Mas podia ter vivido. Ou podia ter vivido em uma casa limpinha porque estava
quase sempre vazia. São muitas possibilidades.
— Sabe, estou começando a preferir o Marco aos seus comentários.
Lore colocou a mão sobre o peito, o olhar teatralmente horrorizado.
— Retire o que disse.
Encolhi os ombros, voltando a abrir o livro.
— Se não tem informações úteis, fique calada para eu ler meu livro.
Por alguns minutos, ela de fato obedeceu. Seus dedos tamborilavam pela cama ou a perna,
mas ela não abria a boca para dizer nada.
Até que seu prazo de silêncio expirou.
— Eu ouvi que Sybil ficou cara a cara com uma horda de Protetores e saiu sem nem um
único arranhão.
Deixei os dragões em meu livro de lado, prometendo a mim mesma que conseguiria chegar
até a parte onde a mocinha finalmente domava um deles antes que eu fosse dormir.
— Ela os matou?
Por que eu queria saber? Não era da minha conta. Mas se tivesse matado, haveria menos
deles para tentar me matar.
— Pelo que ouvi, não. Mas eles devem estar loucos para achar uma forma de matar ela. —
Ela riu. — Imagine, você ser provocado em seu próprio território e não conseguir nem mesmo
causar um arranhãozinho no inimigo? Patético.
— E existe alguma forma de matar alguém como Sybil? — Eu sempre tive essa
curiosidade. Sybil sempre parecia tão... intocável. Mesmo perto de Vicenzo.
Lore arqueou as sobrancelhas para mim.
— Está pensando em se rebelar, Alyssa?
Franzi o cenho.
— Por que eu faria isso?
Ela deu de ombros, balançando os pés, voltando a colocá-los sobre meus lençóis limpos.
Eu me estiquei e dei um tapa neles, murmurando para que os tirasse dali.
— Chata — reclamou. — Eu ouvi um dos Desertores dizendo que era preciso arrancar sua
cabeça. Ou seu coração. Um dos dois deve funcionar. Se ninguém fizer isso, então ela
tecnicamente é imortal. Mas sabe como é, né? Equilíbrio da balança e blá blá blá. O Destino não
pode permitir que algo seja realmente imortal, então sempre há uma saída.
— Pensei que Vicenzo era realmente imortal — comentei.
Lore ficou tensa, como se sua espinha tivesse sido prensada ao ouvir o nome de Vicenzo.
— Talvez ele seja — foi tudo o que ela disse.
Assenti.
Talvez fosse mesmo. Se o Destino tivesse errado as contas.
CAPÍTULO 7

— Ele quer o quê? — Jonnah sibilou.


De alguma forma, eu havia chegado à casa do Lago. Talvez Brian tenha me arrastado até
aqui, porque não me lembro de andar. Meus olhos ainda estavam fixos na pulseira em minhas
mãos, mas agora eu ao menos me esforçava para ouvi-los.
— Sybil disse que Vicenzo quer que os Protetores deixem o Lago ou ele irá invadir
novamente — Brian explicou.
— Feiticeira desgraçada. Precisamos descobrir como matar essa coisa antes que ela volte a
pisar em nosso território.
— Nós nem conseguimos tocar nela. — Serena murmurou.
— Ela não é invencível — Jasper disse. — Só precisamos descobrir como enfraquecê-la.
Nada é realmente imortal.
— Vicenzo é. — Minha voz saiu baixa, mas clara. Ergui a cabeça e os vi me encarando. —
Ele destruiu a única arma que poderia matá-lo. — Cerrei o punho, a pedra azul da pulseira
perfurando minha pele. — Se ele quiser invadir o Outro Lado, ele irá.
Meu pai me olhou, provavelmente sem saber o que responder. Ele sabia que eu estava
certo. Assim como Jonnah, mas que parecia incapaz de aceitar meu argumento.
— As Guardiãs vão descobrir algo — Jasper murmurou, sem muita convicção.
— Pare com essa idiotice otimista, Jasper, isso não é nem um pouco do seu feitio. Acabou.
Nós perdemos — rosnei.
— Nathan... — Serena começou, mas eu a parei com um aceno ríspido.
— Avise os Protetores do Outro Lado. Se eles não quiserem sair, é escolha deles, mas pelo
menos tirem as crianças daquele lugar.
Dei as costas a eles e caminhei em direção à minha casa no Lago. Apenas estar ali, perto de
onde Jasmine vivia como se estivesse em um coma, provavelmente escutando o que falávamos,
parecia me sufocar. Aquela porra estava tão errada. Essa merda de pulseira não devia estar na
minha mão. Sybil não devia entrar em nosso território como se fosse dona do lugar.
E Alyssa devia estar ali.
Se eu pudesse desejar uma única coisa, qualquer coisa, seria Alyssa. Pagaria o preço que
fosse por esse desejo.
Mas desejos eram ilusões infantis e já estava na hora de crescer.
Ela não ia voltar.

Em casa, eu tomei um banho, coloquei meu uniforme e fiz as malas.


Zeus, aos meus pés, parecia saber o que eu faria em seguida. Acho que concordaria com a
ideia de vingar Alyssa, mas já parecia triste me observando juntar minhas coisas.
Coloquei mais armas do que roupas na mochila preta que levaria comigo. Se eu chegasse a
Florença, o que eu estava vestindo seria o menor dos meus problemas. Até onde eu sabia, a
cidade era uma verdadeira fortaleza. Desde que Vicenzo se libertou da prisão criada para ele e
escorraçou Freya da própria cidade natal, Florença havia se tornado um território de Desertores.
Entrar seria um grande problema. Sair... bem, sair era outra história. Para que me preocupar com
expectativas ilusórias?
— O que você pensa que está fazendo?
A voz veio da porta e eu não precisei erguer os olhos para ver quem era.
— Vou viajar.
— Não, não vai.
Bufei uma risada.
Quem ele era para achar que tinha alguma autoridade ali? Fechei o zíper da mochila e a
coloquei sobre o ombro.
Brian parou em frente à porta, bloqueando o caminho.
— Você não vai a Florença, Nathan. Nós precisamos de você aqui.
Eu o encarei, os olhos verdes sempre tristes com os quais eu havia crescido. O rosto
marcado por uma dor que agora eu conhecia. Era como olhar em um espelho.
Em que momento eu me tornei a porra do meu pai?
— Sai da minha frente.
Suas mãos agarraram o batente da porta.
— Você tem trabalho a cumprir aqui.
— Trabalho? O que eu posso fazer quando a Feiticeira voltar? Ajoelhar aos seus pés?
Servir uma aguinha pra ela? — Dei um passo à frente. — Sai da frente.
— Vai conseguir fazer mais em Florença? Acha que vai chegar lá, encontrar Vicenzo e
então o quê?
Eu não era idiota o bastante para achar que eu conseguiria vencê-lo. Era por isso que
procuraria certa Guardiã para encontrar uma forma de prendê-lo novamente.
— Eu tenho um plano — respondi simplesmente.
— Um plano suicida imagino.
Dei de ombros.
— Aposto que você entende.
Sua mão pousou em meu ombro, como se ele fosse me abraçar, mas meu pai não se mexeu,
apenas me encarou.
— Nathan, eu sei o que está sentindo. Sinto essa dor todos os dias, mas ir a Florença não é
a resposta agora. Esta não é uma luta que você pode ganhar.
— Ninguém mais pode — eu disse. — Mas vou ficar satisfeito em causar algum estrago.
Quem sabe eu até não consiga atrasar o novo ataque ao Lago? — Dei de ombros. — Não se
preocupe comigo justo agora, Brian. Se tem uma coisa que não quero, de forma alguma, é viver
como você.
Tirei sua mão do meu ombro e o empurrei para o lado para conseguir passar pela porta.
Sua mão fechou em meu antebraço e ele me empurrou contra a parede.
— Não, filho.
Empurrei sua mão para longe e bati contra seu peito para afastá-lo. Meu pai era muito bom.
Muito bom mesmo no que fazia, porém, eu havia aprendido a ser ainda melhor.
— Você não vai conseguir me impedir, pai.
Ele avançou novamente. Eu desviei, mas suas mãos agarraram meu pescoço. Se eu
deixasse que ele fizesse o que queria, estaria apagado no chão em alguns minutos. Dei uma
cotovelada em suas costelas, e ele rosnou alto.
— Pare, Nathan.
— Não — rosnei de volta.
Acertei seu rosto dessa vez e ele balançou para trás com o impacto. Girei meu corpo e
chutei seus pés, fazendo com que caísse no chão. Brian parecia mais triste do que envergonhado
quando me encarou de onde estava caído.
— Não posso perder você também, filho.
Eu apenas balancei a cabeça. Em todos esses anos, ele não pareceu se importar com
qualquer merda que estava acontecendo na minha vida. Vivia em suas missões, porque não sabia
lidar com a ausência da minha mãe. Ele não tinha o direito de me julgar pelas minhas decisões
agora.
Pensando bem, o Destino era mesmo um bastardo desgraçado. Ele havia repetido a
história, havia me feito uma cópia barata de Brian.
— Eu já estou perdido, pai.

Zeus me acompanhou até o Outro Lado. Eu queria ver como Roman estava antes de ir a
Florença e pedir que Serena o levasse para um lugar mais seguro. Também estava em meus
planos avisar a todos ali o que Sybil havia prometido que faria, porque tinha certeza de que
Ravenna não informaria a ninguém. Ela já era vista como fraca desde o ataque e evacuar uma
área que devia ser o local mais seguro para os Protetores acabaria de vez com sua reputação.
Ela ainda tinha uma reputação em frangalhos para zelar.
Atravessei para o Outro Lado com Zeus.Lembranças do dia fatídico preencheu minha
mente e cegou meus olhos assim que eu entrei naquele território. Fazia um bom tempo que não
pisava naquela areia. O lugar já não parecia mais o mesmo. O brilho que o diferenciava da
dimensão original parecia fraco e opaco. Desde o ataque, aquela areia, aquele mar, estavam
profanados pela morte de Protetores inocentes, recém-iniciados. Já não tinha mais a mesma
beleza de antes.
Caminhei pela areia, o sol quase se pondo no horizonte. Eu odiava aquele lugar. Odiava
como tudo nele me lembrava coisas ruins, ou a melhor coisa que eu já tive e perdi. Era um misto
confuso entre memórias de castigos dolorosos, treinos cansativos e Alyssa. Alyssa dançando
comigo na areia. Eu prensando Alyssa contra uma árvore. Ela me derrubando nos treinos, ou
sussurrando para mim na caverna. E a primeira noite em minha cabana e todas as outras que
passamos juntos.
Eu preferia reviver os castigos dolorosos de Ravenna a lidar com a dor daquelas memórias.
Balancei a cabeça, afastando as imagens que insistiam em tomar minha mente e encontrei
Jasper caminhando em minha direção a passos largos.
— Seu pai está puto da vida.
Dei de ombros.
— Faz parte.
— Isso é a coisa mais idiota que você já pensou em fazer — ele disparou.
— Mais do que pular do penhasco para o mar com um Desertor que tinha brânquias no
pescoço?
— As brânquias eram inúteis, então sim.
Dei de ombros, mais uma vez.
— Eu tenho um plano.
Jasper bufou.
— Por que não acredito nisso?
— Você é naturalmente cético, Jasper.
Sua mão fechou em meu ombro e eu tive que parar. Virei-me para encará-lo, e Jasper subiu
a outra mão, mantendo nossos olhos travados. Eu sabia que ele queria que eu ouvisse suas
próximas palavras com atenção. Quando eu era apenas uma criança irritada e hiperativa e ele
precisava ser ouvido, Jasper pegava em meus ombros, se abaixava até o nível dos meus olhos e
só então falava o que precisava falar. Então eu fingi escutar:
— Não se mate, Nathan. Alyssa odiaria isso. Odiaria ver você desistindo assim.
— Não estou desistindo, Jasper. Estou vingando-a.
O olhar que me lançou disse que desconfiava que esse não fosse o caso. Mas era. Eu nasci
para protegê-la. Era isso que essa tatuagem em meu corpo significava. Era isso que aquele elo
entre nós dizia. Sem ela, eu não tinha propósito, a não ser aquela vingança.
E ela seria sangrenta, enquanto durasse.
Parte de mim sabia que seria quase como suicídio. Essa mesma parte não dava a mínima.
Mas eu também sabia que eu poderia causar algum estrago se fizesse direito. E isso já bastava.
Até porque, Vicenzo agora podia ser invencível, mas seus Desertores ainda não eram. Meu
objetivo, portanto, era mantê-los assim para que os Protetores continuassem tendo uma chance
de destruí-los, um a um.
A voz que nos interrompeu, porém, me fazia preferir lutar contra uma ordem de Desertores
a ter aquela próxima conversa.
— Voltou para casa, Nathan? — Aquele som não podia ser mais desprezível.
Desvencilhei-me de Jasper e encarei Ravenna. Para minha satisfação, até seus cabelos
vermelhos estavam mais opacos, provavelmente devido ao estresse envolvendo a tensão no
Outro Lado desde a última vez que estive aqui. Ela não devia estar tendo muito tempo para se
preocupar com sua aparência quando toda a elite política dos Protetores questionava sua
liderança.
Lembro muito bem de quando joguei a merda no ventilador e gritei a sete ventos como
Ravenna tinha falhado em liderar seu povo. Como tinha se encolhido como uma criança
amedrontada, incapaz de dar ordens, incapaz de levar seu povo à guerra. Na noite do ataque,
havia sido Jasmine quem liderou, quem se manteve à frente dos Protetores, guiando-os. E quem
estava lá se lembrava disso também.
— É insultante que pense que esta é minha casa, Ravenna. Seria melhor morar no inferno a
dormir tão próximo de você.
Ao meu lado, Zeus rosnou, os olhos presos em Ravenna. Esse era meu garoto.
— Mesmo que não considere este lugar sua casa, você ainda tem obrigações com o Outro
Lado.
— Engraçado dizer isso. Você também tinha a obrigação de manter esse lugar seguro, mas
ficou enviando Protetores para fora como se não houvesse ninguém aqui que deveria ser
protegida. Lembra disso, Ravenna? Lembra desse erro?
Vi seu maxilar trincar e um sentimento de satisfação completa aqueceu meu sangue.
— Cuidado, Nathan.
Dei de ombros.
— Não perca seu tempo com ameaças, Ravenna. Só vim aqui para ver Roman e logo estou
indo embora. Você pode continuar com sua liderança medíocre sem se preocupar em encher meu
saco.
Ela avançou. Teria sido um erro mesmo se Zeus não tivesse pulado na minha frente e
mordido a canela da mulher. Eu poderia tê-la parado, mas ver meu cachorro fazer Ravenna pular
e gritar de dor e, provavelmente, susto também, foi impagável. Isso só comprovava a teoria de
que animais eram mil vezes melhores que humanos. Eu não precisei de uma palavra para que
Zeus se colocasse entre mim e o inimigo. Esta lealdade era o tipo de coisa impossível de se
ensinar.
Jasper explodiu em uma risada, que logo virou uma tosse disfarçada.
— Zeus — chamei, a ordem baixa e levemente risonha. Zeus recuou, sentou-se aos meus
pés, mas manteve os olhos cor de mel grudados na Protetora.
— Esse cachorro não devia estar aqui, Nathan! — ela grunhiu.
— Claro — concordei — iríamos embora mais rápido se não tivesse me feito perder
tempo. — Estalei os dedos para chamar Zeus e comecei a andar, o cachorro ao meu encalço.
— Isso não ficará assim, Nathan. Haverá consequências para sua insubordinação.
Eu não dou a mínima, Ravenna.
Não a respondi. Mas Zeus fez questão de rosnar ao passar por ela.

Bati à porta da pequena cabana. Não demorou muito para Serena aparecer vestindo roupas
comuns, o cabelo preso em um coque no alto da cabeça. Ela estava cansada. Eu podia ver isso
nas olheiras embaixo de seus olhos e nos vincos em suas bochechas, provavelmente porque não
estava comendo direito.
Eu passava a maior parte do tempo preso na minha própria dor e no que aquela noite,
aquele ataque, significavam para mim. Tudo que eu havia perdido. Mas outros tinham perdido
tanto quanto. Serena era prova disso, que assim como Jasmine e Jonnah, havia perdido a amiga e
estava cuidando de outro amigo que nem mesmo era capaz de abrir os olhos.
A minha dor não era solitária, mas seria melhor se fosse.
— Ah, oi. — Ela olhou para o espaço vazio atrás de mim. Jasper havia ficado com
Ravenna, provavelmente tentando acalmá-la. — O que está fazendo aqui?
— Vim ver Roman.
— Ele ainda está na mesma. Aisha enviou novos remédios que parecem estar fazendo bem
a ele. Está mais corado que antes. Ela está aqui, acho que tentando algo novo.
Espiei dentro da cabana, mas não vi sinal de Roman. Eu o conhecia há mais de seis anos.
Mesmo assim, eu não me sentia nem um pouco pronto para vê-lo inconsciente em uma cama.
— Isso é bom.
Serena me encarou.
— Quer entrar?
Não.
— Sim.
Ela abriu espaço para mim e eu entrei.
— Ele está no quarto — ela disse, baixinho. Cansada.
No quarto, muito parecido com o meu — cheio de armas e alguns livros pelo caminho —,
havia uma cama com um corpo inerte sobre ela.
— Que bom ver você aqui, Nathan.
Quase pulei de susto. A voz delicada e sincera veio de trás de mim, na direção da porta do
quarto. Virei-me e encontrei Aisha parada, as mãos sobre o coração e um sorriso no rosto.
— Aisha. — Eu a cumprimentei com um aceno de cabeça.
Ela andou até mim, pousou a mão sobre meu peito e inspirou profundamente, os olhos se
fechando. Senti meu coração desacelerar, minha respiração se acalmar e aquela dor em meu peito
que nunca parecia cessar, se tornar um pouco dormente.
Pelo Destino! Aquilo era... Aquilo era como tomar fôlego após uma longa corrida.
Os olhos dourados da Guardiã se abriram e encararam os meus, um leve sorriso cresceu em
seus lábios.
— Obri... — Engoli em seco, desacostumado àquela sensação. — Obrigado.
Alívio. A sensação era de alívio, puro e completo.
Aisha tocou meu rosto.
— Por nada, querido. — Voltou seus olhos para Roman e assentiu calmamente, como se
pensasse no que faria. — Vamos cuidar de Roman agora.
Eu a observei caminhar, quase levitar, até Roman, que estava deitado na cama, a cabeça
sobre o travesseiro e o corpo coberto por uma manta. Os pés descalços de Aisha estavam
ornamentados por tatuagens tribais e adornos de ouro, o vestido branco esvoaçante até seus
tornozelos, o pescoço coberto de colares de diferentes pedras. A Guardiã tinha uma aura que
emanava paz e eu nunca compreenderia, mas era claro que sua presença era o bastante para
aliviar a tensão no ar.
Seus dedos tocaram o rosto de Roman. De canto de olho, vi Serena parar ao meu lado e
cruzar os braços, tensa e atenta ao que Aisha fazia.
— Eu dei os novos remédios a ele. Pareceu ser bom. Ele está mais corado, não acha? —
tagarelou. — Acho que está melhorando. O que você acha?
— Você está fazendo tudo muito bem, querida — a Guardiã respondeu pacientemente.
Ao meu lado, Serena expirou, trêmula.
Aisha pousou os dedos sobre as têmporas de Roman e fechou os olhos.
— O corpo dele está curado. A ferida se fechou.
— Então por que ele não acorda? — Serena questionou.
Aisha não se moveu.
— A mente está exausta. Mas está bem melhor do que antes. Posso trabalhar com isso.
— Pode fazê-lo acordar? — perguntei.
A Guardiã endireitou a coluna e ergueu as mangas do vestido.
— Vamos tentar. — Apontou para Serena. — Preciso de uma bacia de água.
Serena saiu apressada. Zeus se levantou e pulou na cama de Roman e se deitou ao seu lado,
a cabeça em seu peito. Dei um passo à frente para repreendê-lo, mas Aisha me parou.
— Animais são sempre bem-vindos em processos de cura, Nathan. São seres de luz.
Podem ajudar muito.
Recuei e assenti.
Serena logo voltou com a bacia de água e a entregou à Aisha, que molhou os dedos e a
colocou sobre a mesinha ao lado da cama. Com os dedos úmidos, tocou as têmporas de Roman
novamente e começou a entoar palavras antigas, arcaicas e melodiosas.
O corpo de Roman se contorceu da cama, as costas em um arco estranho. Zeus se esticou
para pressionar seu corpo para baixo, mantendo-o preso ao colchão. Cerrei o punho e, ao meu
lado, Serena choramingou baixinho.
— Está na hora, Roman. Já descansou o suficiente, querido — Aisha sussurrou.
Quando um resmungo saiu de Roman, Serena chorou.
Aisha entoou mais palavras, que dançavam pelo pequeno quarto como energia pura. Suas
mãos brilhavam com aquela luz amarelada e quente e, por um instante, fiquei preocupado que
queimaria Roman.
Outro resmungo saiu dos lábios do Protetor e Serena dessa vez correu para pegar sua mão.
Desviei o olhar da cena, de como ela entrelaçou os dedos nos dele ou como se esticou para
sussurrar palavras de apoio em seu ouvido.
Aisha entoou mais alto, a luz ficando mais forte.
— Che... — o som saiu fraco, mas audível — ...ga.
Todos nós paralisamos no lugar. A luz nas mãos de Aisha diminuiu a intensidade e ela
parou de entoar as palavras arcaicas. Serena estava tão tensa que mal parecia respirar. Foi Zeus
quem agiu primeiro, lambendo o rosto de Roman, esperando que abrisse os olhos.
— Chega. — A voz de Roman foi mais clara dessa vez.
E então ele abriu os olhos pela primeira vez em quase dois meses.
CAPÍTULO 8

Com os olhos abertos após semanas em coma, a primeira pessoa que Roman enxergou foi
Serena. Bem, depois de Zeus que lambia seu rosto com alegria. Eu podia ver os olhos cor de mel
de Serena cheios de lágrimas, combinando com seu rosto vermelho e lábios tremendo. Mesmo
assim ela foi capaz de abrir um sorriso que eu duvidava que eu um dia seria capaz de abrir
novamente. O sorriso de alívio, de quem não perdeu. Aquele sorriso logo após o susto.
Com a mão entrelaçada à de Serena, ele voltou seu olhar à Aisha e, então, a mim.
— Onde está Alyssa?
Aquelas palavras foram como uma adaga entrando no meu peito.
Roman ainda estava acordado quando o ataque acabou e foi socorrido, mas já delirava e
ninguém pôde contar tudo o que havia acontecido. Por isso, ele não tinha ideia de que era
impossível que Alyssa viesse vê-lo.
Eu não consegui responder. Acovardei-me a desviar os olhos.
— Não.
— Você estava quase desacordado, não conseguimos contar... — Serena explicou.
— Nós perdemos? Ele a matou? — A voz de Roman nem parecia dele. Era como um
esguicho de dor, só não sei se física ou emocional.
Eu não era capaz de encará-lo. Ele havia me pedido para proteger Alyssa. Havia me dito
tantas vezes que eu acabaria matando-a, que não faria meu trabalho direito, e mesmo assim,
naquela noite, me pediu para protegê-la. Acreditou que eu seria capaz disso.
Ele confiou em mim.
E eu fodi com tudo.
— Querido, você precisa se acalmar — Aisha pediu, provavelmente sentindo o acelerar do
coração dele.
— Nathan! Olhe para mim e me diga que não é verdade! — ele gritou.
O nó em minha garganta me sufocou.
— Eu não posso.
— Porra, não. Não — xingou.
— Se não se acalmar, vou precisar te colocar para dormir novamente — Aisha alertou.
— Roman, por favor — Serena pediu.
Ouvi um farfalhar e percebi que Roman estava tentando se levantar.
— Nós devíamos tê-la tirado daqui. Devíamos ter feito alguma coisa a mais. — Ele
arrancou os lençóis e os jogou longe, tentando controlar o corpo e se fazer sentar. Serena e Aisha
precisaram segurá-lo. — Ela... porra, ela não merecia isso.
Virei-me para ele e vi as lágrimas em seus olhos. Vi a derrota escrita em seu rosto. Se era
apenas amizade ou algo mais, Roman amou Alyssa. Eu não podia culpá-lo por isso, porque ela
era a pessoa mais fácil de se amar.
— Nos deixe sozinhos por um minuto, por favor.
— Nathan, ele não está... — Serena começou a protestar, mas eu apenas balancei a cabeça.
— Vai ser rápido — eu disse.
Aisha pegou o pulso de Roman, a outra mão sobre o peito dele, aquela luz amarelada e
quente pulsando.
— Lembre-se de respirar. Percorremos um longo caminho para trazê-lo de volta à terra da
consciência, Roman. Não destrua meu trabalho.
A Guardiã, então, o soltou e pegou a mão de Serena e a levou para fora do quarto.
O silêncio pesou no quarto. Zeus estava quieto em seu lugar, parecendo tão triste quanto o
resto de nós. Roman, com muito custo, conseguiu se sentar. Jogou a cabeça para trás, contra a
parede, os olhos úmidos presos no teto.
Eu tive quase dois meses para pensar no que havia acontecido naquela noite. Havia dias
que eu ainda parecia esquecer, esperava que Alyssa aparecesse e tudo voltasse a ser como era
antes. Roman tinha acabado de absorver a notícia.
— Eu falhei com ela — ele disse, baixo.
Franzi o cenho.
— Você estava ferido.
— Exatamente — retrucou, amargo. — Eu devia ter feito melhor meu trabalho. Devia ter
ficado ao lado dela na luta.
Respirei fundo e caminhei até a sua cama.
Eu não queria discutir como eu e ele havíamos falhado com ela. Não queria relembrar
aquela noite. Não queria cutucar aquela ferida em meu peito.
Sentei no colchão macio e anunciei:
— Eu vou vingá-la.
Roman tirou os olhos do teto e encontrou os meus.
— Como?
— Irei a Florença esta noite.
Ele apenas me encarou por um segundo, então soltou:
— Porra, Nathan, que merda de ideia.
Ele não entendia. Não tinha nem metade das informações ainda. O peso da pulseira que
pertencia à Alyssa queimava meu bolso, a prova de que o que eu estava fazendo não era tão
idiota. Aquela luta tinha acabado. Tínhamos perdido. Então por que não arriscar?
— Nós descobrimos que Alyssa era a última Fidly. Sem ela, os Protetores não têm mais
arma alguma contra Vicenzo, e ele sabe disso. Irá atacar novamente antes do que imaginamos.
A expressão de Roman era de quem tinha um nó no lugar do cérebro.
— E você espera poder fazer algo a respeito? Porque não sei se lembra, mas Vicenzo é
imortal.
— Vou descobrir um jeito de prendê-lo, como Freya fez, milênios atrás.
Roman me encarou com pura descrença.
— Começou a mexer com magia e não estou sabendo?
Para quem estava em coma, Roman estava afiado.
— Eu tenho um plano — falei, simplesmente.
Ele cerrou os olhos.
— Você vai se matar.
— Por que todo mundo fica falando isso? — resmunguei.
— Porque você perdeu o seu elo. A dor que está sentindo deve...
Eu pisquei, confuso.
— Como sabe sobre o elo?
Roman deu de ombros.
— Não sou idiota, Nathan. Alyssa ficou fascinada por você quase de imediato. E você a
olhava como se pudesse ler a alma dela. Eu não gostava, mas sabia. E as notícias correram rápido
quando descobriram sobre as memórias. Por que mais Jasmine a manteria escondida de você?
Aquilo parecia ter acontecido há uma vida. Fazia tanto tempo que eu nem mesmo sentia
seu cheiro ou seu toque... Tanto tempo desde que olhei em seus olhos. Às vezes precisava me
certificar de que ela tinha sido real.
— Bem, Vicenzo destruiu tudo naquela noite. E agora acha que pode nos atacar e fazer
demandas como se não fôssemos nada. Não representamos mais nenhuma ameaça a ele, Roman.
Ele não tem o que temer.
— E agora você espera que ele tema um Protetor suicida trabalhando sozinho?
Eu o encarei por um segundo. Porra de língua afiada.
— Vicenzo não precisa me temer. Inclusive, estou contando com seu grande ego para que
ele me subestime.
Roman não perdeu seu olhar descrente.
— Irei com você — disse, sério. — Se vai sair em uma missão suicida, vai precisar de
ajuda.
Eu quase ri.
— Hum, não quero ser cuzão, mas acho que você só me atrasaria.
Roman avançou tão rápido que nem parecia ter estado em coma por tanto tempo, socando
meu braço com raiva.
— Idiota. Agora me lembro porque não nos falávamos mais.
— Não sei se o coma mexeu com sua cabeça, mas isso foi culpa da Ravenna.
Ele pensou por um segundo, então seu rosto se transformou com a percepção.
— Ah, aquela desgraçada!
Assenti.
De fato. Ravenna havia destruído nossa amizade, nos manipulado a pensar que havíamos
abandonado um ao outro, só porque juntos representávamos uma ameaça à liderança medíocre
dela.
— E mesmo se estivesse em melhores condições, eu precisaria que ficasse aqui. Serena
não deixaria você ir sozinho e não quero colocá-la em risco. E preciso que alguém ajude ela e
Jonnah a cuidar de Jasmine.
Todo seu rosto se fechou, a dor estampada.
— Ah, pelo Destino, como ela está?
Desviei os olhos.
— Ela não perdeu só Aly naquela noite. — Engoli em seco. Luto era uma coisa estranha,
nunca parecia passar. Ficava ali, espreitando, apenas aguardando o momento em que voltaria a
lhe tirar o fôlego. — Henry foi morto também.
Roman enfiou a cabeça nas mãos e xingou. Então jogou o abajur ao seu lado no chão.
Demorou até que ele estivesse no controle de sua respiração novamente. Os olhos
vermelhos de lágrimas, o rosto marcado pelo ódio. Ele apontou o dedo para mim, o olhar preso
no meu.
— Você vai a Florença e dê um jeito de prender aquele desgraçado, me ouviu? Faça isso
por eles. Faça isso por ela.
— Eu vou.
Seria, muito provavelmente, a última coisa que eu faria, mas valeria a pena.

Jonnah estava na minha casa, ouvindo atentamente minhas explicações para o dia a dia de
Zeus. Eu estava ignorando o fato de que, provavelmente, nunca voltaria a ver meu cachorro para
conseguir explicar aquela merda sem cair no choro. Havia poucas coisas no mundo que me
fariam chorar, e Zeus era uma delas.
Eu sabia que, na minha falta, havia muitos para ficar com Zeus. Meu pai com certeza
cuidaria dele, o trataria da mesma forma que eu o tratava, mas provavelmente não ficaria muito
por perto. Jasper também iria querer se intrometer e passar pelo menos um tempo com o meu
cachorro. E agora, enquanto eu observava a atenção focada de Jonnah, eu sabia que ele também
cuidaria dele se eu nunca mais voltasse.
Pelo Zeus, eu queria voltar.
Por mim mesmo, eu não me importava de verdade.
Não contei a Jonnah sobre meus planos relacionados a Florença porque ele apenas tentaria
me impedir, argumentar para que eu ficasse, que Alyssa não iria querer isso... E eu não queria
que ele se preocupasse mais do que já se preocupava. Jonnah tinha muito em suas costas, eu não
precisava ser mais um de suas dores de cabeça.
Zeus também não seria. Meu cachorro era educado e prestativo. Era muito provável que ele
até mesmo ajudasse Jonnah e Jasmine, fosse com sua companhia, ou com ações de verdade,
como pegar sacolas de compras, buscar objetos ou mesmo proteger a casa e alertar sobre
possíveis perigos.
Zeus era perfeito. Desde que o encontrei, abandonado embaixo da chuva, largado para
morrer sozinho, ele nunca havia sido menos do que o melhor cão que eu poderia querer. Eu sabia
disso. Ele também.
— Quantas vezes devo dar banho nele?
— Enquanto está aqui ele nada muito. Se te incomodar o cheiro, fique à vontade para dar
banho sempre que quiser, ele não se importa e é educado. Mas normalmente dou pelo menos
uma vez no mês.
Jonnah assentiu.
— Ele dorme dentro de casa, certo?
Assenti. Não o queria preso do lado de fora.
— Vou deixar esta casa aberta também para quando ele quiser entrar. Há uma portinha
para ele no fundo.
Jonnah assentiu novamente, quase parecendo fazer anotações mentais.
— Tem certeza de que vai nessa missão sozinho? Tenho certeza de que alguém poderia...
— É coisa simples. Só vou demorar mais porque é do outro lado do mundo. Vou ficar bem.
Há Protetores locais também para me ajudar — menti.
Jonnah deu dois tapinhas nas minhas costas.
— Tudo bem. Leve Zeus quando estiver pronto para ir.
Balancei a cabeça, concordando.
Jonnah afagou a cabeça de Zeus, que estava sentado próximo aos meus pés, nos
observando, e então saiu. Em silêncio, agradeci pelo tempo para me despedir.
Com a garganta já meio fechada, um nó gigantesco a bloqueando, eu me ajoelhei em frente
a Zeus e me expliquei. Ele merecia uma explicação. Também merecia mais do que eu
provavelmente dei a ele.
— Eu sei que prometi que nunca te deixaria para trás, mas não posso te levar dessa vez.
Não será como nas outras. Vai ser demorado, trabalhoso e perigoso demais para você ir também.
— Zeus curvou a cabeça para mim, os olhos caramelo grudados nos meus, e eu podia jurar que
ele estava entendendo cada palavra. — Eu estou quebrando minha promessa, mas juro que é para
o seu bem. Se tudo der errado, quero que esteja perto das pessoas certas, pessoas que cuidarão de
você.
Zeus latiu.
— Eu te conheço, garotão. Você iria se meter para me proteger. E mesmo que não fizesse
isso, se as coisas ocorrerem do jeito que imagino que vão, você não pode estar lá. Não pode ficar
sozinho. — Afaguei o pelo em seu pescoço, e atrás de suas orelhas. — Aqui tem pessoas que vão
cuidar de você e, sinceramente? Eles precisam muito de um cachorro como você, Zeus.
Dessa vez, Zeus apenas soltou um ruído descrente.
— É sério. Você lembra da Jasmine. Ela poderia se aproveitar da sua companhia. Jonnah
também, porque o Destino sabe bem como ele está precisando dar uma distraída. — Zeus lambeu
meu rosto, como se perguntasse: e você? — Eu vou me virar. Você já fez demais por mim nesses
doze anos. Preciso que descanse também, aproveite um pouco sua vida sem precisar ficar me
seguindo toda vez.
Zeus choramingou.
Aquilo tava me matando mais um pouco. Eu me sentia um merda. Como aqueles pais que
abandonam os filhos, e Zeus nem era humano. Não que aquilo importasse. Zeus tinha um
coração melhor do que de muitos humanos ou Protetores que eu conhecia.
Beijei a ponte de seu focinho, como sempre fazia e como eu sabia que ele gostava.
— Você fica bem — eu disse. — E se eu não voltar... — as palavras falharam — se eu não
voltar, quero que saiba que você foi o melhor companheiro que eu poderia ter pedido. E eu te
amo.
Zeus se esfregou contra mim, se aninhando contra meu corpo. Eu abracei seu grande corpo
peludo e respirei fundo para não chorar. Ele ficava ansioso quando eu chorava.
— E se eu voltar... Voltarei por sua causa.
Pelas próximas horas, fiquei ali, acariciando seu pelo, beijando seu focinho e rezando para
que ele ainda tivesse longos anos felizes pela frente. Porque meu Zeus merecia, mesmo que eu
não.
CAPÍTULO 9

— Você não precisa ficar no meu pé o tempo todo, sabia? A ideia era que eu pudesse
espairecer — reclamei para o vento, mas sabendo muito bem que Marco era capaz de me ouvir.
Eu comecei a correr pela floresta densa atrás do palácio, que acabava em uma das pontas
do rio Arno há dois dias. Apesar do que eu havia tentado propor, Vicenzo ainda colocava
Desertores atrás de mim, como se esperasse que eu fizesse algo errado.
Não era como se eu fosse parar um desconhecido e contar tudo o que eu sabia sobre aquele
mundo oculto, onde magia, Destino e guerreiros místicos eram comuns. Não que eu soubesse
tanto assim também. Meu cérebro era como um ovo cru. Eu, por exemplo, sabia que não era
exatamente humana, era forte demais, rápida demais... Vicenzo havia usado um nome novo:
Fidly. Mas era isso. Esta era a extensão do meu conhecimento a respeito de mim mesma.
E ainda não entendi meu propósito para Vicenzo. Eu não chegava a ser tão forte quanto um
Desertor, mas ele insistia que eu seria algo mais. Algo importante para ele. No futuro.
Então eu estava aqui.
Esperando.
— Finja que não estou aqui — Marco rebateu.
— Impossível. Você fica bufando toda hora.
Eu sabia que ele devia estar a pelo menos dois metros de distância, atrás de alguma das
muitas árvores ao nosso redor. Marco me irritava mais do que o normal. Ele era arrogante e
cruel, o que o fazia muito parecido com Vicenzo e já bastava um Vicenzo para eu lidar. Não
suportaria dois.
— Que pena para você, então.
Eu parei, sem qualquer aviso prévio, pegando-o desprevenido e fazendo-o surgir de trás de
uma árvore.
— Você nunca tenta ser agradável ou é só comigo?
Seu rosto se retorceu de raiva.
— É especialmente com você. Vicenzo mantê-la aqui é uma grande idiotice e se fosse por
mim — o Desertor se aproximou, os olhos pingando ódio. Eu não entendia. Não havia feito nada
a ele —, você já estava em uma vala sem nome.
Não era uma ameaça mais do que uma afirmação, mas mesmo assim me fez recuar.
— Escolha interessante essa de Vicenzo para guarda — resmunguei.
— É interessante que ele ainda não tenha te matado.
Revirei os olhos.
— Nós dois sabemos que isso não é à toa.
Ele me encarou, o rosto contorcido de desgosto.
— E é por isso que você estar aqui é um erro.
Limpei o rosto com a barra da minha camiseta, tentando não enfiar minhas unhas em seus
olhos. Eu havia descoberto que gostava de correr. Amava o vento no rosto, principalmente agora
que estava mais frio. Amava como meu coração acelerava, quase saindo pela garganta. Amava
como meus pulmões pareciam querer explodir. Queria correr todos os dias agora. Aquele
conforto causado pela corrida me ajudou a controlar a fúria que ameaçava transbordar. Mas
Marco estava destruindo a corrida para mim.
Baixei a barra da camisa suada e encarei Marco.
— Reclame com Vicenzo então. E pelo amor de Deus, pare de bufar atrás de mim.
Comecei a correr, deixando Marco para trás. Vicenzo havia me obrigado a correr com um
guarda-costas. Tudo bem. Mas eu não era obrigada a aguentá-lo por perto. Ele podia me
“proteger” com alguns metros entre nós. De preferência, uma floresta inteira.

Às vezes eu me esquecia do que podia fazer.


Bem, esquecer é um eufemismo para mim. Eu não sabia merda nenhuma sobre
absolutamente nada. Minha mente era um papel em branco com pequenas informações jogadas.
Como um cartaz enorme preenchido por letrinhas minúsculas. Eu sabia o que haviam me
informado. Sabia que era mais forte do que humanos. Corria mais rápido que eles também. Mas
enquanto eu voltava para o palácio, buscando me manter o mais longe possível de Marco,
precisei desacelerar. Uma mulher estava perto demais, encarando-me como se eu fosse um ET.
Eu havia me esquecido que não era normal fazer o que eu fazia.
— Ei! — a turista chamou e eu parei. — Como você... Como fez aquilo?
Eu sabia que ela era uma turista pelas suas roupas e a câmera pendurada em seu pescoço.
Ela falar em um italiano pesado também era um grande indício. Isto, aliás, era algo bem
interessante referente à minha mente de ovo cru: eu entendia muitas línguas. Devo ter aprendido
antes de tudo acontecer, na vida que eu tinha antes dessa. Eu compreendia bem o italiano, o
inglês, espanhol, português e francês. Vicenzo havia me testado em cada uma dessas línguas para
ter certeza. Foi assim que eu soube que o sotaque da mulher não era de nenhuma região da Itália.
Era de alguém de fora.
A mulher estava sozinha. Apenas eu e ela em uma ruela escura. Eu podia simplesmente ir
embora, ignorá-la. Ninguém acreditaria se ela falasse algo.
— Não fiz nada — eu disse. — Tenha uma boa noite.
Ela abriu a boca para falar algo, mas não teve a chance.
Marco surgiu tão rápido atrás dela que não passou de um borrão silencioso. Suas mãos se
fecharam em sua cabeça e, com um movimento rápido, quebrou seu pescoço.
Arfei em surpresa, tapando a boca com as mãos para que o grito não saísse.
O corpo da mulher caiu no chão com um baque que reverberou pela ruela escura. Seus
olhos, ainda abertos, me encaravam sem vida, e seu pescoço estava em uma posição horripilante.
— Por que fez isso? — Eu tentei evitar, mas minha voz ainda assim saiu em um berro.
— Ela viu o que não devia ter visto.
— Ninguém acreditaria nela!
Marco me encarou, raiva descrita em suas feições duras.
— Se não quer que humanos morram à toa, não fique se exibindo perto deles.
Me exibindo? Eu queria muito quebrar o pescoço dele.
O Desertor saiu andando, trombando comigo no caminho, e eu fiquei ali, encarando o
corpo sem vida da turista inocente.
— Anda logo, Alyssa!
Minhas mãos queimaram para fazer o que tanto queriam contra Marco.
Eu queria ter tido a coragem para lhe dar o que desejavam.

— Nada de livros hoje? — Lore perguntou, quando entrou no meu quarto, sem aviso
prévio.
Eu não respondi. Não consegui ler nada, porque a imagem da turista morta ainda estava
marcada em minha mente. E se não bastasse, eu devia me arrumar para outro jantar com
Vicenzo. Na última noite, ele havia me feito sentar à sua frente enquanto comia, apenas para me
encarar. Foram duas horas. Duas horas, e ele não havia dito uma palavra. Apenas me olhava.
Claro que, se fosse me dada a escolha, teria escolhido me enterrar em uma vala qualquer.
— Mau humor?
— Preciso me arrumar.
Lore assentiu.
— Ouvi falar do jantar. Duas vezes seguidas, hein?!
— Sybil jantará também? — Talvez com ela junto fosse menos estranho. Ou pelo menos o
foco deixasse de ser eu.
— Não sei se ela está na cidade — Lore respondeu, dando de ombros.
Que ótimo.
Eu tampouco gostava da companhia de Sybil. A Feiticeira me assustava tanto quanto
Vicenzo. Às vezes até mais. Mas com ela, Vicenzo costumava ter mais assuntos a tratar, o que
me deixava mais livre para respirar em paz.
Encarei o novo vestido estendido sobre a cama. Preto, como sempre. Tão preto quanto
meus cabelos e olhos. Este tinha um decote um pouco menor, o que me fez sentir mais
confortável por dez segundos, até que o virei e vi o decote das costas.
Por pouco não mostraria minha bunda.
— Posso te ajudar a se vestir.
Balancei a cabeça, negando. Meus olhos queimando aquele pedaço de pano preto.
Eu não estava a fim de jogar conversa fora hoje.
— Pode ir. Logo estarei pronta.
Pronta para ser avaliada como um animal em leilão.

A sala de jantar, para o meu desespero, foi descartada. Iríamos jantar no jardim de seu
quarto. Sim, Vicenzo tinha um jardim particular. Dentro de seu quarto. Fazia sentido dado o
tamanho daquele palácio.
Marco me escoltou até o quarto de Vicenzo, do outro lado da ala onde o meu ficava. Como
de costume, não me direcionou nenhuma palavra que não fosse uma ordem e, a esse ponto, eu
estava satisfeita com isso.
— Entre — ordenou, abrindo a porta do quarto.
Não respondi. Inspirei silenciosamente e dei os passos necessários para encontrar Vicenzo.
Atrás de mim, a porta logo se fechou, com um baque surdo. Olhei ao meu redor, engolindo
detalhes daquele ambiente confuso. Era escuro demais.
Havia detalhes em ouro que brilhavam quando a luz da lua refletia sobre eles, mas mesmo
assim, tudo ali era preto. Até as roupas de cama eram de seda negra. Em geral, apesar dos
detalhes luxuosos, era um quarto relativamente vazio para seu tamanho, pelo menos até onde eu
conseguia enxergar. Havia um quadro na parede, mas as formas também eram escuras, e eu não
conseguia ver o esboço.
O quarto era tão grande que poderia caber uma casa dentro, e eu sabia que não estava
vendo tudo dele. Eu sabia que uma das portas dava para um banheiro. Outra, provavelmente,
levaria a um escritório. A porta maior, dava para o jardim privado. E em frente a esses limiares,
estava Vicenzo, os braços cruzados sobre o peito, os olhos de fumaça brilhando no escuro
enquanto me observavam com atenção.
— Este vestido... — ele tocou o queixo, analisando-me de cima a baixo — vire. — Seu
dedo girou, insinuando o que eu deveria fazer. Inspirei fundo e o fiz, meu estômago se revirando.
— Hum... Eu gosto desse vestido.
Com a aprovação em sua voz, fiz menção de me virar novamente para encará-lo, mas logo
senti seus dedos tocarem minhas costas nuas. Assustei-me com sua proximidade e me afastei
rapidamente.
— Estou com fome — eu disse. Afinal, ele havia me convidado para jantar, não é?
Seus olhos pairaram sobre o quadro atrás de mim, encoberto pela escuridão que não me
permitia enxergar além do contorno de sua moldura, mas ele parecia saber exatamente o que
havia ali.
— Vamos comer. Temos assuntos a tratar.
Vicenzo caminhou até o jardim, então eu o segui. Lá fora, em uma mesa redonda, pratos,
talheres, copos e comida preenchiam o espaço. Vicenzo se sentou primeiro, mas eu não demorei
a me ajeitar na cadeira à sua frente.
— Que assuntos temos para tratar? — questionei.
Estava escuro o suficiente para ser difícil enxergar a comida para me servir. Apenas a lua,
estrelas e pequenos pontos de luz ao redor do jardim iluminavam o espaço. Vicenzo nem pareceu
se importar, no entanto.
— Você sabe que eu a trouxe aqui por uma razão. — Mesmo na escuridão, pude ver seus
olhos de fumaça me inspecionarem. — Belius e Mavon aceitaram minha proposta e precisamos
começar a agir.
— Você nunca explicou o que precisa que eu faça.
— Por enquanto, tudo o que preciso é que siga minhas ordens, Alyssa. Haverá um
momento em que se tornará mais valiosa, quando atingir a maioridade, mas até lá, preciso que
me mostre que vale a pena mantê-la aqui comigo. — Parei a colher a caminho do meu prato.
Suas palavras, apesar de suaves, eram o início de uma ameaça. Vicenzo levou uma garfada à
boca e mastigou lentamente. — Os Protetores estão fechando o cerco... Muitos recursos meus
estão sendo disponibilizados para manter você longe deles.
Engoli em seco.
Eu havia escutado muitas coisas sobre os Protetores. Como o Destino os usa para manter
seus planos, ou como querem me sacrificar para o benefício desse primeiro. Eu até poderia não
me sentir muito confortável ao lado de Vicenzo, mas ele me mantinha longe daqueles que
queriam minha morte.
Era complicado lhe negar qualquer coisa quando era a razão pela qual eu ainda respirava.
Caso contrário, Protetores estariam celebrando minha morte agora mesmo.
O que quer que fosse o Destino, era um grande desgraçado. E ali residia meu ponto de
concordância com Vicenzo. Eu precisava dele, e só devia garantir que ele precisasse de mim
também.
Às vezes eu me perguntava por que estava tão preocupada com a morte. Eu não tinha
memórias de quem um dia eu fui, ou do que deveria sentir falta. Quando olhava no espelho,
ainda me surpreendia com o que via, porque nem meu próprio rosto me parecia familiar.
Ninguém veio me buscar. Eu não parecia fazer falta. Não tinha casa, nem bens. De certa forma,
muitos diriam que eu já estava morta. Mesmo assim, alguma coisa ainda me prendia, alguma
coisa ainda me fazia querer lutar para ficar viva. Talvez fosse um instinto natural.
Talvez fosse uma perda de tempo.
Mas aqui estava eu: negociando minha sobrevivência.
— Veremos seus... amigos em breve?
Vicenzo apenas assentiu, tomando um longo gole de vinho. À minha frente, uma taça se
exibia, aguardando que eu lhe desse atenção. Eu escolhi comer, no entanto.
— Devo me preocupar que tentem me matar também? — questionei, lembrando-me da
adaga arremessada contra meu peito em nosso último encontro.
Vicenzo ponderou a ideia, balançando levemente a taça em sua mão.
— Acho que causou uma boa impressão. Não devem perturbá-la novamente se mantiver as
coisas assim.
Comemos em silêncio por um tempo. Era por esses longos momentos de silêncio que
costumava me perguntar se ele realmente precisava marcar um jantar para me falar duas ou três
frases. Um breve encontro no corredor resolveria isso.
De vez em quando, flagrava Vicenzo olhando para mim, encarando-me com aquele ponto
de interrogação de sempre em seu olhar.
— Posso perguntar uma coisa?
Ele arqueou as sobrancelhas, se encostando contra a cadeira, os talheres deixados de lado,
e o vinho de volta com sua total atenção.
— Tente.
No breu da noite e com a fraca iluminação, seus olhos refletiam a escuridão ao nosso redor.
— Por que precisa daqueles homens?
Não eram bem homens, mas não tinha ideia do que eram de verdade.
— Você não iria querer aliados fortes se estivesse prestes a enfrentar uma guerra? Belius e
Mavon podem ser difíceis, mas cada um tem algo a me oferecer. — Ele observou minha
confusão estampada em meu rosto. Eu não sabia que ele planejava uma guerra. — Veja bem,
Belius e Mavon pisaram nessa dimensão muitos anos antes de mim. Apesar de suas dimensões
originais serem bem diferentes desta, eles conhecem esse mundo melhor do que muitos. E, assim
como eu, possuem uma boa razão para quererem destruir o Destino.
Talvez eu não devesse, mas perguntei mesmo assim:
— Qual motivo?
Vicenzo me encarou, mas depois de alguns segundos, respondeu:
— Eles sentem falta de casa, Alyssa. E não podem voltar para ela.
— Por que não?
Ele colocou o vinho na mesa.
— Você está fazendo perguntas demais.
— Desculpe. — A última coisa que precisava era que se irritasse comigo hoje.
Os olhos de fumaça continuaram presos em mim, enquanto Vicenzo tamborilava os dedos
sobre a mesa.
— Eles não podem voltar para casa porque o Destino os baniu, deixando-os presos a esta
dimensão. Nem mesmo Sybil pode levá-los embora.
— Eu não tinha ideia da extensão dos poderes do Destino — comentei, tentando imaginar
o que Belius e Mavon fizeram para serem banidos.
Era absolutamente inconcebível que um ser — que eu nem saberia como descrever —
tivesse esse tipo de controle sobre a vida de alguém. Eu costumava pensar que o Destino era
apenas uma força motora para alguns acontecimentos, mas agora ele parecia uma força
onisciente. Forte. Perigoso.
— Bem, você não sabe muita coisa, não é mesmo?
Era verdade, mas suas palavras me irritaram mesmo assim.
— Ajudaria se me contasse mais.
Vicenzo me ignorou, mas a raiva já havia se instalado com sucesso.
— Sabe, se ao invés de ficar me entregando meias informações apenas me explicasse seu
plano. Isso com certeza facilitaria meu desempenho.
O homem à minha frente deixou de observar a lua e se virou para mim tão lentamente que
engoli em seco. Sua mão soltou a taça de vinho e seus olhos mais claros que a lua se prenderam
em mim.
— Está questionando minha conduta, Alyssa? — Meu nome era como veneno em seus
lábios, não descia bem. — Eu não estava ciente da sua posição para me questionar.
Em um segundo eu estava abrindo a boca para me defender. No outro, estava com suas
mãos ao redor do meu pescoço, tendo meu corpo arrancado da cadeira, e minhas costas
pressionadas contra a parede de espinhos do jardim. Eu busquei por ar, ao mesmo tempo que
tentava tirar suas mãos de mim. Nem um dos dois movimentos foram bem sucedidos. Tudo o que
consegui fazer, foi encarar o ódio em seus olhos.
— Não se esqueça de quem sou, ragazza. Eu posso me esquecer muito facilmente dos
meus planos envolvendo você e acabar com isso de uma vez. — Seus dedos se fecharam mais
ainda em volta da minha garganta. — Eu não tenho paciência para crianças que acreditam saber
jogar meu jogo. Para seu próprio bem, não me tire do sério.
Eu quase não o ouvia mais. O ar não chegava aos meus pulmões e as coisas estavam
começando a ficar turvas. Por um segundo, enquanto encarava o ódio em seus olhos, eu fiquei
em dúvida se Vicenzo se forçaria a parar ou se era daquele jeito que eu morreria. Era algo
interessante, esse limiar entre controle e completo descontrole. O limiar entre vida e morte.
Mas talvez eu estivesse com sorte.
Com a força de suas mãos, minhas costas se fincaram mais ainda nos espinhos das plantas
que se erguiam na parede. Eu sibilei de dor, mas, então, Vicenzo me soltou. Acho que mesmo ele
estava surpreso por ter feito isso, por ter conseguido parar.
Caí sobre meus joelhos, o ar sendo puxado com força para os meus pulmões, os olhos
cheios de água, tanto de frustração quanto de alívio. E dor. Aquele maldito vestido se embolava
em minhas pernas e ficar em pé era infernal, mas dei meu jeito, enfiando minhas palmas
naquelas trepadeiras com espinhos e me içando para cima.
Vicenzo parecia enojado com a cena.
— Saia da minha frente, Alyssa. Não suporto olhar para sua cara mais.
Eu poderia ter saído correndo dali, com o resto do fôlego escasso que eu ainda possuía.
Mas aquela irritação havia se tornado raiva e, por isso, eu ergui o queixo e caminhei, sem pressa
até a porta, que me levaria ao corredor, longe daquele homem. Passei por ele com os punhos
cerrados e os olhos fixos no meu caminho para longe dele.
E eu poderia jurar que o ouvi grunhir.
CAPÍTULO 10

A semana seguinte ao meu jantar com Vicenzo passou rapidamente.


Ele não pediu para me encontrar mais. Talvez estivesse pensando se valia a pena me
manter viva. Naquela noite eu havia sido a Alyssa que ele mais odiava e eu sabia que as
consequências disso seriam maiores que apenas um pescoço marcado por seus dedos e as costas
arranhadas e furadas pelos espinhos.
Então, enquanto ele se decidia, eu lia meus livros roubados. Era uma lista grande demais
para finalizar antes de morrer. Eu não podia perder tempo.
Para minha felicidade, Lore estava de guarda hoje, então eu podia exibir o novo exemplar
roubado à vontade.
Deitada em minha cama, com o livro em mãos, ergui os olhos só para checar o que eu já
sabia que encontraria: Lore esticada sobre a mesma cama, pintando as garras que tinha no lugar
das unhas de vermelho vinho.
— Ótima cor — elogiei.
A garota assentiu, com um sorriso.
— Combina bem com meu estado de espírito.
— Sanguinária?
— Não. — Ela riu, mas depois completou séria: — Com tesão. O novo carinha que chegou
ao palácio é uma gracinha: negro, olhos verdes, corpo que mais parece uma muralha... Tudo bem
que um dos braços dele é coberto por cicatrizes profundas — ela balançou as mãos, mostrando as
garras —, mas quem sou eu para julgar, não é?
Eu encarei a seriedade em suas feições e então explodi em uma risada.
— Meu Deus, Lore!
— O quê? Ele é gato demais. Você vai ver.
Dei de ombros.
— Você fez alguma coisa? Chamou ele pra sair?
Lore se sentou, cruzando as pernas.
— Não. Ele é aquele tipo de homem bonito que faz a gente esquecer como se pronuncia as
palavras em nossa cabeça. Eu não quero parecer idiota.
— Isso é idiotice. Apenas fale com ele.
Ela me lançou um olhar irritado.
— Você não tem memórias. Não se lembra que é uma merda ser rejeitada.
Bem, ela tinha um ponto. Eu havia sido rejeitada alguma vez? Provavelmente sim, a não
ser que eu vivesse em uma cela isolada de tudo e todos. Porém, um pensamento foi mais
perturbador: eu tinha alguém antes de chegar aqui? Se tinha, por que não me procurou? Por que
não veio me buscar?
Por que eu continuava aqui?
Afastei o pensamento tão logo ele chegou. Não me permitia devagar sobre o porquê de não
haver ninguém aqui por mim, de nunca terem buscado por mim, me levado para casa. Eram dias
ruins quando me permitia questionar isso.
— É pior não saber se daria certo. Apenas tente. Se ele não quiser, a perda é dele.
Voltei a encarar as palavras em minhas mãos, tentando voltar a focar na história e esquecer
essa idiotice romântica. Não havia ninguém atrás de mim e ponto. Era melhor saber disso do que
ficar esperando. Eu não era ninguém. Ainda não sou. Mas estava viva, e me apegava a este
pequeno fato, como se fosse meu bote salva-vidas. Era o que me mantinha sã na maior parte do
tempo.
Eu sobrevivi.
— Eu me sentiria perdendo um pouco — ela resmungou. — Ele é tão lindo.
Revirei os olhos.
Em pouco tempo, Lore já estava pronta, as garras todas pintadas e balançando as pernas
impacientemente. A história em minhas mãos tinha acabado de chegar a uma cena que eu não
esperava e parte de mim queria tacar o livro na parede.
Respirei fundo, sentindo os olhos da Desertora em mim.
— O que você quer, Lore?
Ela fingiu seu melhor olhar pidão.
— Quero sair! Vamos andar pelo jardim, ou tomar um gelato na cidade. Qualquer coisa.
Cerrei meus olhos.
— Com uma condição.
— Qual? — ela perguntou animada.
— Você responde algumas perguntas minhas — disse. — Ah, e paga meu gelato —
acrescentei. Até porque eu não tinha dinheiro.
Lore pensou a respeito das minhas demandas, e então deu de ombros.
— Pelo menos faça perguntas interessantes.
Eu sorri, fechando o livro.
— Com certeza.
Lore pulou da cama enquanto eu escondia o livro — que havia pegado emprestado sem
permissão — embaixo do colchão. Naquele dia, o verão não parecia ter passado, e o calor estava
insuportável, então peguei um amarrador e prendi meus cabelos.
— Ah, e vê se escolhe um sabor diferente de gelato. Não aguento mais te ver comendo o
de amarena toda bendita vez.
— Ei! Eu que vou comer, então eu que escolho.
Ela revirou os olhos teatralmente.
— Há tantos outros sabores...

Nós decidimos ir à ponte abarrotada de turistas para pegar o gelato e então caminharmos
pelo jardim do palácio mesmo. Era menos tumultuado. Havia menos pessoas intrometidas e era
daquele jeito que Vicenzo preferia.
Sobre a ponte Vecchio, Florença parecia pulsar. Aquele lugar era como seu coração, e
batia fervorosamente. Século após século, ainda reunia arte, luxo e beleza de um jeito que eu não
poderia ter imaginado. Meus próprios olhos ainda não haviam se acostumado.
Enquanto eu aguardava Lore pegar nossos gelatos — que dessa vez eu havia permitido que
escolhesse um segundo sabor, algo além de amarena para mim — o sol começava a se pôr,
descendo o horizonte, já quase tocando o rio Arno. Alguns turistas paravam ao meu lado e
tiravam fotos da paisagem, algumas crianças brincavam com aquelas bugigangas pegajosas. As
vidas que eu observava eram tão completamente diferentes da minha que pareciam irreais. Os
humanos viviam em um estado de completa ignorância, e parte de mim sabia que daquela forma
era melhor. Se soubessem do mundo ordenado pelo Destino, viveriam com medo,
miseravelmente inseguros com seus próprios futuros.
Alguns Desertores queriam manter as coisas daquela forma, preferiam que os humanos não
percebessem a verdade, porque assim era mais fácil de ignorá-los. Então a maioria deles cobriam
os indícios paranormais que o cercavam, especialmente suas marcas. Lore, por exemplo, usava
belas luvas de couro sobre suas mãos em formato de garras. Mas se eu observasse bem a
multidão, encontraria outros Desertores que não davam a mínima, e caminhavam por aí exibindo
suas marcas como troféus. Os humanos, por sua vez, mantinham seus papéis de bobos. Fingiam
não ver. Fingiam nem mesmo ligar.
A ignorância era uma benção.
Ninguém gostava de sentir medo, e os humanos sabiam que para não lidarem com aquela
emoção, bastava se cegarem para todo o resto. Quantas vezes não devem ter ouvido histórias
estranhas sobre desaparecimentos inexplicáveis, sobre pessoas capazes de realizar atos
inconcebíveis, fenômenos tão fantásticos que não conseguiam compreender... Escolhiam não
acreditar na verdade, escolhiam não enxergar. Todas aquelas histórias que diziam ser mitos... Era
a maneira com que escolhiam lidar com a verdade que não podiam compreender, e mais, a
verdade contra a qual não conseguiriam lutar.
E aqueles que enxergavam, aqueles que descobriam o mundo através do véu, viviam
aterrorizados. Ou eram ousados o bastante para se infiltrar. Ou eram mortos antes de terem
qualquer outra oportunidade, como a turista morta por Marco como se não fosse nada mais que
um amontoado de ossos.
— Olha, se você provar esse gelato e não me disser que se arrepende de ter passado tanto
tempo provando o mesmo sabor, eu já não sei de mais nada — Lore começou, se aproximando
com dois cones de gelato enormes.
O meu cone estava preenchido por um gelato da cor verde. Pistache. Eu só não chutei a
canela da Desertora, porque também consegui ver o de amarena no fundo, o que provava que ela
havia de fato escolhido apenas um sabor, como combinado. Lore me olhava com empolgação,
esperando que eu provasse o doce em minhas mãos.
Provei um pouco do pistache. Era bom. Mas não chegava aos pés do de amarena.
— Então...? — Ela me encarou, ansiosa por um veredito.
— Muito bom — eu disse. — Mas o de amarena ainda é muito melhor.
A expressão de Lore murchou e ela estalou a língua em reprovação.
— Você é péssima.
Eu a ignorei e voltei a caminhar pela ponte, de volta para o jardim de Boboli.
O jardim era tão grande que era fácil se perder nele. Durante minhas corridas eu havia
percebido várias pequenas entradas, alguns pequenos esconderijos, outros cantos mais abertos
onde o sol sempre pousava por pelo menos uma hora. Era um lindo lugar, e assim como toda
essa cidade, pertencia a Vicenzo.
Enquanto seguia o caminho que me levaria de volta à redoma do imortal, comecei a me
perguntar uma coisa.
— Como Vicenzo controla quem entra e quem sai?
O Jardim e o Palácio não podiam ser visitados, mesmo sendo teoricamente um pedaço
histórico daquela cidade. Vicenzo permitia que o turismo se esbanjasse com outras partes da
cidade, e assim outros castelos foram feitos de museus e outros pontos se tornaram focos. Sua
casa, contudo, permaneceria intocada.
— Há Desertores controlando a entrada pelas fronteiras. E dependendo da proximidade,
podemos sentir quando há um Protetor por perto. — Arqueei a sobrancelha para ela, querendo
saber mais. Eu tinha certeza de que havia mais coisa. Até porque Vincenzo não desperdiçaria os
“talentos" de Sybil, bem aqui, no alcance de suas mãos. — Ok. Sybil também fez alguma merda
para controlar a nossa fronteira, assim fica mais fácil de saber quando é um Protetor ou uma
Guardiã.
Assenti.
— Muitos deles tentam entrar na cidade?
Lore negou.
— Pelo que ouvi falar quando eu ainda era uma Protetora, a Guardiã da Europa, Freya,
estabeleceu que Florença é uma cidade limite. Quando Vicenzo a tomou, muitos Protetores
tentaram tirá-la do controle dele, mas nunca tiveram sucesso, então as perdas se tornaram
maiores que os ganhos e Freya parou de tentar. Porque ela é a responsável por este continente, é
ela quem determina. Começaram a reforçar o controle sobre as outras cidades da Itália depois
disso. — Ela deu uma longa lambida em seu gelato, despreocupada com as histórias que contava.
Eu tinha certeza de que para ela, aquilo não significava nada. Era apenas mais guerra em seu
mundo abarrotado disso. — Alguns ainda espreitam nossas fronteiras, mas faz anos que nenhum
tenta entrar na cidade, pelo menos não com sucesso.
Lore nunca havia me contado sobre sua vida antes de se tornar uma Desertora. Na verdade,
não sabia de onde ela era e se ainda tinha família. Simplesmente nunca falamos de nada
realmente relevante ou pessoal. Eu, porque não tinha ideia de como era minha vida antes de
chegar aqui, e ela provavelmente porque não queria falar sobre isso.
Mesmo assim, minha curiosidade tirou o melhor de mim e eu perguntei:
— Por que decidiu deixar os Protetores para se juntar a Vicenzo?
Seu olhar afiado me disse para calar a boca. Eu comecei a me desculpar pela pergunta
quando vi dois Desertores parados nas portas do jardim. Nós percorremos o caminho mais longo,
aquele que saía da ponte Vecchio e contornava a parte de trás do jardim para não sermos
incomodadas ou interrompidas, mas claro que haveria Desertores em cada ponto dessa redoma.
Subimos a merda de um morro gigantesco que nunca acabava por nada.
Lore cumprimentou os dois Desertores rapidamente. Ambos encararam a marca em minha
mão direita antes de abrir caminho para os portões.
Não me dei ao trabalho de agradecer. Se dirigissem uma palavra sequer a mim, eu poderia
pensar em respondê-los, mas até lá o silêncio era a melhor opção. Era melhor ficar quieta do que
falar algo comprometedor.
Atravessamos o grande portão de ferro, que logo se fechou atrás de nós.
— Cuidado com o que me pergunta quando não somos as únicas ouvindo — Lore disse um
tempo depois, quando já estávamos longe o bastante do portão e, portanto, dos Desertores de
guarda.
— Eu me distraí.
Ela assentiu. Lore, então, me dirigiu um olhar estranho, recluso, talvez até sofrido.
— Minha mãe morreu lutando pelos Protetores quando eu ainda era apenas um bebê. Meu
pai ficou completamente atordoado com a perda. Acho que a alma dele nunca conseguiria se
recuperar de ter perdido a outra metade. — Ela deu de ombros. — Quando eu tinha dezesseis
anos, ele desertou. Acho que só esperou que eu terminasse meu treinamento, porque sem ele, eu
não poderia desertar também, porque Vicenzo não veria utilidade para mim. Mas meu pai não
me contou quando desertou, eu apenas descobri no dia seguinte porque todo mundo na sede
falava sobre isso. Eu não tinha ninguém, sabe? Ele era minha única família e ouvir todos falando
dele como se fosse um rato de esgoto... Eu fiquei com raiva. Me encontrei com ele uma noite e
ele me pediu pra se juntar a ele, que com Vicenzo teríamos mais poder de escolha, mais
oportunidades, que poderíamos conquistar mais poder.
Nós atravessamos a pequena campina com uma grande estátua de uma mulher com as
mãos voltadas para o céu. Lore parecia ainda mais triste agora.
— Sabe, minha família não pertencia à elite dos Protetores. Eu nasci e vivi em Roma até
meu primeiro ano. Depois, nos mudamos para a sede de Atenas, na Grécia. Foi lá que a líder dos
Protetores, Akantha, enviou minha mãe para uma missão da qual ela nunca conseguiria sair viva,
mas ela não se importava porque via minha mãe como inferior. Meu pai, obviamente, nunca
superou isso. Eu sabia disso, principalmente lá, onde o elitismo era forte, Akantha nunca deu
valor no trabalho e sacrifício dos meus pais. No fim, foi uma escolha fácil para meu pai.
— Então você desertou por causa do seu pai?
— Sim e não. A Acrópole era uma das sedes de Protetores mais importantes da Europa,
mas também era a mais elitista, a mais preconceituosa... Akantha era uma líder injusta,
demandava demais de uns enquanto facilitava a vida de seus amiguinhos, só porque tinham
séculos de descendência protetora pura em seu sangue. Minha família não tinha. Minha mãe era
filha de uma humana com um Protetor, só começou a ser treinada com quinze anos. Meu pai era
neto de um humano. Meu sangue era tão diluído quanto poderia ser, então nunca deram muita
importância para nós. Quando meu pai desertou, eu fiquei sozinha. Ele ter desertado foi uma
razão para que eu escolhesse essa vida também, mas quem sabe, se eu não fosse tão isolada na
Acrópole, eu tivesse ficado com os Protetores. — Sua última frase saiu em um sussurro e eu
entendi o porquê disso. Além dos Desertores que podiam nos ouvir, também havia aquele indício
de vergonha por ter tomado uma atitude tão drástica baseada em um sentimento tão mundano.
— Você escolheu essa vida por solidão — concluí.
— Uma escolha muito grande para um sentimento tão fútil, eu sei.
Comi o resto do cone do meu gelato e limpei minhas mãos no forro do meu jeans. Lore
andava mais à frente, o próprio gelato já derretendo em suas mãos, então eu disse:
— Não acho que a solidão seja um sentimento fútil.
Lore parou, se virou e me encarou. Os grandes olhos cor de avelã pareciam tentar
encontrar respostas guardadas em minha alma. Sua expressão era quase de preocupação.
— Você sente solidão?
O tempo todo.
— Às vezes. Mas você não me dá muito tempo para sofrer com isso.
A Desertora sorriu levemente.
— Não precisa me agradecer por isso.
— Ah, eu não ia. Você fica sujando meu edredom com seus pés imundos.
Lore me olhou feio, depois me mostrou a língua. Muito madura. Dei um tapinha em seu
braço e liderei nossa caminhada. Eu queria chegar à praça central.
— Você se sente menos sozinha com os Desertores? — perguntei.
Lore demorou para responder.
— Às vezes sim. Muitas vezes não. — Eu a vi dar de ombros ao meu lado. — Acho que
faz parte da vida. Eu aprendi a ser minha própria âncora e está tudo bem.
Ser a própria âncora. Aquele era um conceito interessante a se seguir.
— E agora tenho você para me entreter — ela completou.
Balancei a cabeça, um sorriso incômodo nos lábios.
— Por nada.
À nossa frente, a praça principal se expandia. Ela ficava logo atrás do palácio, rodeada por
uma grama tão verde quanto se era possível, e alguns degraus que levavam a esculturas
interessantes, de homens e mulheres diferentes. Havia um monumento em seu centro, alto e com
inscritos em outra língua, uma que eu não tinha ideia de qual era. Em meio à minha mente sem
muitas recordações, eu não era capaz de ao menos encontrar uma palavra que descrevesse sua
forma... Era como um... como um... Merda. Qual era o nome mesmo? Aquele monumento era
como um...
Um obelisco. Isso! Obelisco!
Era um monumento enorme, provavelmente com mais de 50 metros. O corpo era um longo
bloco, como um tronco cônico e a pirâmide em seu topo possuía alguns desenhos que de longe
eu diria parecer pontas de um estrela. Sobre a pirâmide, havia uma esfera maciça em dourado. O
que me intrigava, porém, eram os desenhos e escritos espalhados pelo seu tronco.
— É um símbolo de proteção — Lore explicou, olhando para o obelisco ao meu lado.
— E o que essas escritas querem dizer?
Ela deu de ombros.
— Nem ideia.
Tirei os olhos do obelisco quando reparei na movimentação próxima a nós, na saída do
palácio, que dava até o jardim. Sybil caminhava com os olhos fixos em mim, mesmo a metros de
distância, acompanhada por dois Desertores mais velhos.
Um arrepio se formou na base da minha espinha. De repente, fiquei muito consciente de
que dia era. Havia se passado quinze dias desde que a vi pela última vez em uma de nossas
sessões. Portanto, tecnicamente, aquele era o dia para ela dar uma nova olhada em meu cérebro.
Eu pensei em fingir que não a vi e correr para longe, mas ela estava com os olhos grudados nos
meus muito antes de parar à minha frente.
Sybil chegou rápido até mim, um sorriso estranho nos lábios quando me encarou de perto.
Os murmúrios sobre seu último encontro com os Protetores continuavam na boca dos Desertores,
atiçados pela ideia do ataque aos inimigos. Olhando para ela, eu podia dizer com toda certeza
que se ela quisesse destruir um batalhão, ela faria exatamente isso, provavelmente sem muito
trabalho.
— Saudações, Alyssa.
Havia algo em seu sorriso. Para início de conversa, nem sabia se deveria chamar aquilo de
sorriso. Era uma torção estranha dos lábios, uma exposição de dentes que eram mais como presas
amareladas. Seus olhos de órbitas completamente negras apenas tornavam aquilo mais bizarro.
Alguns Desertores tinham marcas horripilantes o suficiente para serem impossíveis de ignorar,
mas ela... Ela não tinha nenhum traço humano em suas feições.
E eu odiava como ela sempre tinha que “trabalhar” em minha mente. Como sempre tinha
que checar se algo havia mudado. Eu avisaria se algo mudasse, o que claramente não era o caso.
— Devo avaliar se há alguma mudança com suas memórias.
Eu já sabia que era sobre isso. Não era um exame rápido ou indolor. Ela usava aquela
mágica estranha em meu cérebro, que trabalhava como agulhas sendo enfiadas em minha cabeça.
Agulhas longas, grossas e que iam até o centro do meu cérebro.
Aqueles, eu tinha certeza, eram os piores dias.
CAPÍTULO 11

Eu estava há dois dias tentando despistar meu pai.


— Ele está indo para o sul agora — Roman me informou, pela ligação telepática dos
Protetores.
Ele vinha me ajudando desde que decidi ir a Florença. Nós não éramos idiotas e eu havia
contado meu plano, contudo, não podia envolver ninguém ainda. Eu deixaria as coisas
encaminhadas para o próximo ataque dos Protetores, mas até lá, eu iria sozinho. Sozinho, mas
não sem apoio.
Era por isso que agora eu estava atravessando a fronteira francesa de Menton para a Itália.
Cheguei a pensar que talvez encontraria a Guardiã que eu procurava na França ou em Portugal,
mas os dois lugares não me levaram a nada. Então precisei adentrar o ninho.
— Diga a ele que estou no Brasil.
— Por que ele acreditaria nisso? — Roman questionou, impaciente. Eu sabia, pela
aspereza em nosso diálogo, que ele estava fazendo alguma atividade física. A nossa mente
transportava nossos pensamentos da mesma forma como nossos lábios transportavam as
palavras, se estivéssemos cansados, seria perceptível.
Roman estava trabalhando bastante para voltar ao seu ritmo antigo, treinando mais do que
quando tínhamos dezesseis anos.
— Pega leve — repreendi, e ele bufou em resposta. — Tenho alguns parentes no Brasil.
Ele vai acreditar.
— Ok. Serena está mandando que você se cuide ou ela irá contar ao Brian ou ao Jasper.
Revirei os olhos.
— Fala para ela se preocupar apenas em não deixar você morrer enquanto treina como
um louco.
— Acredite em mim, estarei em Florença com você antes disso acontecer.
Ignorei suas palavras e fechei a conexão entre nossas mentes.
Os policiais humanos da fronteira começaram a se aproximar. Minhas armas estavam bem
escondidas, mas se me revistassem seria um problema. Desliguei o carro e esperei que passassem
inspecionando os veículos. Era sábado de manhã. Haviam muitos carros querendo passar a
fronteira e eu estava contando com isso para que não me parassem. Com aquela fila, não seria
viável que parassem cada veículo.
Um policial parou ao lado da minha janela.
— Identidade, por favor — pediu, em francês, observando o interior do meu veículo.
Naquele país, eles quase nunca se importavam se você falava ou não a língua deles.
Mesmo os Protetores dali conseguiam ser mais arrogantes do que os ingleses.
— Clar — respondi, meu francês com o sotaque perfeito. Procurei a identidade falsa
francesa que eu guardava em uma das mochilas e entreguei a ele.
Eu tinha muitas identidades, de diversos países, inúmeros passaportes diferentes também.
Apenas o estadunidense e o brasileiro eram verdadeiros, mas quem quer que analisasse os
documentos nem ao menos questionaria suas procedências.
— Pode ir — o policial disse, por fim.
Em três minutos eu estava em solo italiano, mostrando outro documento aos humanos.
O ar salgado da costa tinha um cheiro diferente do Lago. Era mais forte, mas o barulho das
ondas me acalmava. Mas também me lembrava dela.
Eu sempre me lembrava dela. A cada segundo do meu dia, a cada passo que eu dava, a
cada lugar que eu ia. Parte de mim não acreditava em um Deus, a outra odiava o Destino, mas
um pequeno pedaço em mim ainda queria rezar. Pedir.
Mas o que eu queria, não poderia ter. Então apenas encarei o horizonte, o sol forte apesar
do clima ameno, as ondas alcançando a costa... e falei com ela. Porque ela ainda existia em
minha mente, ainda existia dentro de mim.
Você acharia o dia bonito.
No banco do passageiro, ao meu lado, vi Alyssa me olhar e sorrir.
Sinto sua falta, Aly. Sinto tanta sua falta que dói.

De Grimaldi a Florença eu teria quase cinco horas de viagem pela frente. Mas havia um
lugar que eu precisava ir antes. E eu apenas esperava que os rumores dos Protetores italianos
fossem verdade. Queria encontrar muitos Desertores pela frente. Já podia sentir minhas mãos
formigarem pela falta de matar um dos desgraçados. Como os Protetores italianos adoravam
reclamar sempre que os víamos: ali deveria ter Desertores "caindo das árvores". E eu observava a
cidade com os olhos treinados tentando encontrar algum.
Haviam várias sedes de Protetores espalhadas pela Itália. Em toda cidade havia pelo menos
uma, menos em Florença. Mesmo não conhecendo todas, enquanto eu passava pelas cidades, às
vezes podia sentir a presença delas. Afinal as sedes eram protegidas por magia, habitadas por
Protetores, quando um de nós se aproximava, o alerta era quase imediato. Eu poderia parar em
qualquer uma delas, mas não queria chamar atenção e muito menos conversar. Todos os
Protetores da Terra sabiam o que tinha acontecido com a Fidly, minha Aly, e seus sentimentos
quanto a isso eram bem diferentes dos meus. Eles se preocupavam porque agora havia a questão
de ela ter sido a última. Mas eu morri um pouco junto com ela.
Infelizmente, não precisei parar para matar nenhum Desertor, porém, agora poderia ser
diferente. O sol começava a querer se pôr quando cheguei a Roma e os ratos sairiam de suas
tocas em breve.
Eu havia feito um longo desvio para chegar aqui. Florença ficava a centenas de
quilômetros para trás, mas havia algo aqui que poderia me ajudar. Com sorte.
Como sempre, a cidade estava pulsando de italianos e turistas. Muitos turistas. Fui em
direção à antiga cidade romana, não aquela em destroços ao lado do Coliseu. Não. Aquela era
apenas uma amostra destruída do antigo império. Para onde eu estava indo, os humanos não
tinham acesso.
Ao alcançar o monte antigo, coberto por uma densa flora e rodeado por um córrego que há
milhares de anos havia sido um rio, precisei deixar meu carro. Saí do veículo e peguei minha
mochila, jogando-a nas costas. Me certifiquei de que todas minhas armas estavam comigo e
então comecei a subir.
Depois dos primeiros trinta minutos, achei que aquela subida seria a razão da minha morte.
Mesmo usando minha velocidade sobrenatural, ainda levaria algumas horas para chegar ao topo.
Fazia sentido que ela não se importasse com a distância, mas pelo amor do Destino, aquilo devia
ser algum tipo de tortura para quem ousasse visitá-la. Ela provavelmente queria que olhássemos
para essa subida e pensasse: precisa mesmo falar comigo?
Bem, eu precisava.
Eu sabia de duas coisas sobre essa montanha. No seu setor mais baixo, próximo à base,
estava o Fórum Reparo, a sede dos Protetores em Roma. Estava pensando seriamente em parar lá
por alguns minutos e descansar. Os boatos eram que aquela era a sede mais bonita da Itália e eu
estava um pouco curioso para descobrir se era tudo isso e se...
Senti o cheiro antes de ouvir o barulho de batalha.
Aquele cheiro repugnante de quem foi marcado por Vicenzo.
Mal tive tempo de empunhar minha espada antes de um deles pular sobre mim e me
prensar contra o chão. Suas mãos asquerosas pressionaram meu pescoço e finalmente consegui
ver seu rosto. Era uma Desertora com olhos negros... Como a que Alyssa tinha descrito sobre seu
primeiro ataque.
Desgraçada.
Tirei-a de cima de mim com apenas um movimento. Ela havia fugido de Roman naquele
dia. Não haveria fuga para ela hoje.
Joguei meu corpo para ficar em pé e bloqueei sua espada a caminho da minha cabeça. Dei
uma olhada ao redor enquanto bloqueava outro avanço dela, mas não vi nenhum outro Desertor,
apesar de ouvi-los em algum lugar.
A Desertora pulou para trás quando tentei cortar seu torso e soltou uma risada que doeu
meus ouvidos.
— Você é bom mesmo. — Ela circulou uma árvore, tomando tempo para respirar. Seu
sotaque era pesado. A desgraçada devia ser da horda italiana pessoal de Vicenzo. — Ouvi falar
sobre você, filho de Diana.
— Deixa eu adivinhar... — falei, rodando uma adaga na minha mão esquerda, enquanto
apontava a espada para ela. — Vai fugir com o rabinho entre as pernas agora. Pelo que ouvi falar
de você, esse é o seu estilo, não é?
Ela circulou outra árvore.
— Hum... Eu quase matei sua garota naquele dia. Foi um erro meu, claro, mas ela acabou
morta de qualquer forma. — Suas palavras acenderam a fúria em mim. — Como a sua mãe.
Arremessei a adaga nela, mas a desgraçada se escondeu atrás de uma árvore.
— Eu estava lá quando sua mãe foi morta, sabia?
Eu avancei, enxergando vermelho, a fúria tomando cada célula do meu corpo. Ela tentou
fugir, mas fui mais rápido. Agarrei seu pescoço e bati sua cabeça contra a árvore. Seu corpo caiu
para trás com um baque oco, mas sua reação foi rir.
— Sua mãe lutou tanto! — A desgraçada gargalhou mais ainda. — Ela parecia uma
gatinha irritada.
— Cale a boca!
Eu não afundei minha adaga nela ou cortei sua cabeça com minha espada. Ainda não.
Soquei seu rosto primeiro, desfrutando do simples ato de causar dor. Tomei apenas esse segundo,
só para liberar a fúria.
— Eu estava lá, garoto, quando sua mãe foi morta pelo meu mestre. — Ela cuspiu sangue
na minha direção. — Queria ter estado quando Vicenzo tomou sua garota também.
Eu a soquei mais uma vez, então ergui minha espada. Iria cravar aquela longa lâmina em
seu peito, arrancar à força aquele sorrisinho de seu rosto. Porém, ouvi quando as folhas se
moveram e outros dois Desertores chegaram correndo. A adaga de um deles cortou meu braço,
mas não mais que um arranhão. A Desertora no chão tentou fugir, socando meu rosto, mas eu já
tinha quebrado sua mandíbula e a dor não estava favorecendo seus movimentos. Sem tempo,
agarrei a adaga lançada pelos Desertores e cravei em seu coração.
Infelizmente para meu belo rosto, não tive tempo de escapar a tempo para desviar do soco
de um dos Desertores. Por um segundo, fiquei desnorteado, sem saber onde era chão e onde era
céu. Foi o suficiente para o porco imundo agarrar meus ombros e me puxar para cima,
prensando-me contra a árvore.
— Está meio longe de casa, não acha, Nathan? — o Desertor, com marcas no couro
cabeludo disse.
Fiz uma careta para sua cara feia.
— Eu por acaso sou famoso por aqui e não estou sabendo?
Ele ia me dar outro soco, mas bati minha cabeça contra a sua primeiro. Acabei
conseguindo me livrar do seu aperto, mas os números não estavam a meu favor. Logo percebi
outros quatro Desertores à minha volta.
Sorri.
Eu adorava um desafio.
— Eu diria que ter um preço sobre a cabeça te faz famoso — o Desertor ponderou.
Arranquei outra adaga do cinto e a cruzei com minha espada.
— Vocês realmente estão tentando invadir a sede dos Protetores com ela aqui? O quão
burros vocês são?
— Não temos medo dela — um deles rebateu.
Eu ri.
— Vicenzo não tem medo dela. Porque é imortal — apontei o óbvio. Rodei minha adaga
nas mãos e mirei na cabeça de um Desertor, aquele que estava escondido no topo de uma árvore,
achando que eu não tinha notado. Atirei. Seu corpo caiu no chão sem vida. — Vocês, no entanto,
não são.
Um deles atacou, mas eu o bloqueei no caminho, antes que me tocasse. Chutei sua perna e
seu corpo foi de encontro com meu ombro quando me abaixei. Com o Desertor no chão, avancei
com minha espada, mas um dos outros me parou com a própria arma. Ferro com ferro rugiu em
meio à montanha. Meu corpo finalmente parecendo vivo depois de dias sem ação. Era a luta que
ainda fazia meu sangue borbulhar. Era isso que me mantinha em pé.
— Vicenzo sabe o que faz. É por isso que estamos aqui. É por isso que seu povo está
morrendo.
Estavam? A este ponto eu teria sentido a presença da Feiticeira, então ela provavelmente
não estava ali. Vicenzo também não. Então como os Desertores estariam vencendo uma luta
contra Protetores, ainda mais neste território?
Quebrei o nariz de um dos merdinhas com meu cotovelo e cortei o torso de outro com a
espada.
— Desculpe minha descrença, mas me parece improvável. — Encarei os três Desertores já
caídos e sorri com cinismo. — Eu mesmo não pareço estar tendo muito problema.
Percebi que havia chegado mais um Desertor. Tudo bem. Era mais um para me distrair.
Mais sangue para correr.
Os três atacaram juntos, sincronizados, quase como se tivessem treinado para esse
momento. Seria lisonjeiro se tivessem. Acertei um com um chute e outro com uma cotovelada. O
terceiro consegui prender em um gancho, meu braço ao redor de seu pescoço, e apertei até que o
osso se partisse.
Faltavam dois.
O segundo deu um pouquinho de trabalho, porque o desgraçado devia ter uns dois metros e
meio de altura, além de que, seu corpo parecia pedra. Literalmente. O amiguinho dele, no
entanto, era quase inútil, parecia mais preocupado com levar um soco do que participar da luta.
Então o deixei por último.
— Deve ser uma merda encontrar roupas que sirvam — murmurei, praticamente escalando
o Desertor para tentar derrubá-lo.
Ele me puxou pela camiseta, rasgando o tecido e me jogando no chão de novo. Rodei sobre
meu corpo e pulei para ficar em pé, armas em mãos bloqueando a espada que desceu sobre
minha cabeça.
— Ei, acontece que eu gosto das minhas roupas, seu merda.
Ele deu de ombros e quando falou, seu sotaque era forte.
— Não vai precisar delas quando estiver morto.
Avancei com a espada, golpe atrás de golpe, sem cessar. O Desertor era grande, então teria
que vencê-lo cansando-o primeiro. Ele conseguia segurar minhas investidas, bloqueando minha
espada com a própria com tanta força que meus ossos tremiam. Mas eu estava certo, seus braços
gigantes foram se tornando mais lentos, assim como seus pés ao se desviar. Quando seu peso
finalmente foi demais, seu corpo cedeu um pouco para a esquerda. Arqueei meu corpo e rasguei
sua barriga com um único movimento perpendicular. Com outro, afundei uma adaga em seu
peito.
— Para sua sorte, você também não.
Seu corpo afundou na grama.
Limpei as lâminas na calça do morto e encarei o último Desertor. Ele parecia jovem, talvez
um ano mais novo que Alyssa, o que dizia que havia Desertado há pouco tempo já que Vicenzo
não via utilidade para os Protetores que não haviam passado pelo treinamento. Pelo menos não
na maioria dos casos. Eu quase ri quando percebi suas pernas tremendo.
— Vicenzo não te avisou dessa parte quando te fez jurar com sangue?
Avancei um passo, ele recuou dois.
— Está arrependido por ter escolhido o lado errado? — tentei de novo, em italiano dessa
vez para o caso de não ter me entendido.
Ele não respondeu e minha paciência já estava se esgotando, principalmente porque eu
podia escutar os Protetores lutando mais claramente agora.
— Não me importo. Você já fez sua escolha.
O primeiro golpe foi mais leve do que deveria ter sido, admito, e o Desertor conseguiu
desviar. O segundo, com mais força, foi bloqueado por pouco por sua longa adaga. Fiquei
curioso com o olhar frustrado que ele me deu, quase como se travasse uma batalha interna.
— Vicenzo ainda pode querer te dar uma chance — ele disse entre dentes.
A fúria voltou a tomar conta de mim. Aquele desgraçado pensava que podia me tirar tudo e
ainda me ter do seu lado da luta? Eu iria matá-lo. Iria quebrar cada osso de seu corpo. Não
importava como, eu descobriria uma forma de fazer isso.
Bati minha espada mais forte contra ele, conseguindo cortar seu peito quando seu bloqueio
falhou. Ele caiu para trás, se encolhendo, o que me fez hesitar. Mas que merda? Por que eu
sempre tinha que encontrar os medrosos? Eu preferia quando me atacavam com sangue nos
olhos, sem remorso, sem medo. Ficava mais fácil matá-los.
Respirei fundo e ergui a espada para dar o golpe final.
— Não! — protestou, erguendo as mãos em rendição. — Eu sei de algo que você daria
tudo para saber.
Tenta me enganar melhor, garoto.
— Está tentando ganhar tempo, não é? — Ele começou a negar. — É sobre como matar
Vicenzo?
— Não, mas eu...
Desci a lâmina em seu peito.
— Então eu não me importo — eu disse para seus olhos que já perdiam o foco.

Encontrar a sede foi fácil. Diferente do Outro Lado, o Fórum Riparo conseguiu manter
seus invasores do lado de fora. A entrada da sede era a montanha, como eu já imaginava, a parte
mediana, metros abaixo de seu topo, mas metros acima de sua base. E ela estava abarrotada de
Protetores protegendo sua fronteira, e Desertores tentando ultrapassá-la. Mal repararam em mim
quando me aproximei.
Não perdi meu tempo e tirei sangue por onde passava, arrancando os sorrisos perversos dos
malditos que atacavam. Estranhamente, contudo, aquilo parecia uma distração. Havia uma
batalha densa ali, mas pensando bem, nada pelo que lutar. Os Protetores podiam apenas entrar na
sede, os Desertores não conseguiriam passar sem permissão e eu duvidava que houvesse um
traidor ali, como foi o caso do Outro Lado.
Era estranho que os Desertores se arriscassem assim... Então, qual era o motivo?
Olhei ao meu redor. Não havia sinal algum dela.
Encarei o alto da montanha e foquei minha audição para longe.
Passos firmes. Pesados.
Odor antigo.
Não era Vicenzo e nem Sybil. Era alguém velho o bastante para não ser humano nem
Protetor ou Desertor, e com um cheiro denso e terrível demais para ser uma Guardiã.
Deixei a luta para trás, certo de que meus irmãos saberiam se cuidar. Logo aquilo chegaria
ao fim, eu tinha certeza disso. Corri em direção ao intruso, armas empunhadas e determinação
banhada naquela fúria que estava sempre presente agora.
Parei a alguns metros de distância do estranho. E ele era mesmo estranho. Feio pra caramba
também. Baixinho e corpulento, pude ver metade de seu rosto, que era coberto por cicatrizes
profundas que o deformavam.
Não era nada como um humano. Mesmo de longe e de perfil eu pude ver. Mas também não
era como Sybil. Era outra coisa.
O homem — por falta de palavra melhor — fungou alto, cheirando o ar como um animal
farejando comida. Então, rápido como um felino, ele se virou e parou, bem com os olhos em
mim.
— Não sabia que tinha companhia.
Sua voz era estranha. Grossa, mas estridente ao mesmo tempo.
— Não sabia que as portas do inferno haviam se aberto. — Saí de trás da árvore e cruzei os
braços. Eu não sabia o que ele era, mas parecer preocupado não faria nada a meu favor. — Que
porra você é?
Ele ergueu sua sobrancelha, quase que comicamente.
— Sempre interessante a língua afiada do seu povo — sibilou.
— Isso não responde minha pergunta.
Ele estalou a língua e sorriu, mostrando seus dentes como lâminas.
— Qual seu nome, garoto?
Pelo menos alguém ali não me conhecia. Eu ainda estava curioso para entender quem era
aquele... homem, então pareceu interessante colaborar.
— Meu nome é Nathan — ofereci. — E o seu é...
— Belius. — Ele estendeu uma das mãos, e uma longa adaga surgiu, se materializando
como se alguém a desenhasse ali. Aquele era um truque interessante. — Ainda estou me
decidindo se é ou não um prazer conhecer você.
Dei de ombros.
— Provavelmente um desprazer. Mas me diz aqui, você é da onde mesmo?
Belius manuseou a arma em suas mãos, como se a pesasse.
— Você não conhece o mundo de onde vim. — Ele apontou a arma para mim. — O que
está fazendo aqui, Nathan? — Ele parecia testar meu nome, quase com repulsa.
— Perturbação na vizinhança — falei, expondo minha espada. — Achei que deveria
verificar. — Apontei para ele. — Procurando alguma coisa por aqui?
Ele assentiu.
— Algo que não é da sua conta.
— Vicenzo sempre me surpreende com seus aliados. Você pelo menos é mais direto que
aquela Feiticeira dele.
Belius arqueou a sobrancelha para mim, me inspecionando de cima a baixo.
— No meu mundo, se falasse assim comigo teria a cabeça arrancada imediatamente —
informou.
Eu abri um sorriso falso.
— Que bom que este não é seu mundo então. Seria ruim para minha reputação ser morto
por você. — Fiz um meneio para ele. Belius, nem de longe, tinha o porte de um guerreiro, mas
eu sabia que estava blefando mal. Eu podia até sentir a magia emanando dele. Magia obscura,
forte e anciã.
Belius não atirou a adaga, mas sua magia a fez chegar até mim. Eu desviei, caindo no chão
e rodando para o lado, mas a magia conseguiu fazer com que a adaga alcançasse minha
panturrilha. Sibilei de dor e raiva. Muita raiva. Pelo menos não parecia pedra de fogo, caso
contrário, eu estaria ferrado. Me senti um pouco melhor quando a ferida começou a curar quase
que imediatamente depois que arranquei a lâmina da minha pele
Quando ergui os olhos para ele, outra adaga já chegava à minha garganta. A ponta
arrancou sangue, mas consegui segurar o punho da arma antes que ela afundasse em meu
pescoço. A arma protestou contra meu aperto, tentando se soltar, a magia querendo alcançar seu
objetivo. Agarrei minha própria adaga, enquanto lutava com a de Belius e a lancei contra ele.
A minha arma foi lançada para longe, com uma investida de outra arma dele, que surgiu do
nada.
— Eu sou o deus da guerra, garoto. Não me ofenda com seus ataques insignificantes.
Ele era o quê?
Mentiroso.
Ou ele estava mentindo ou eu estava ferrado.
Infelizmente, eu não andava tendo muita sorte.
Joguei meu corpo para trás, torcendo minha coluna em um semicírculo, tirando meu
pescoço da linha de ameaça da adaga mágica — ou a merda que aquilo fosse. A arma seguiu seu
percurso com uma velocidade sobre-humana, enterrando-se no casco da árvore atrás de mim. Dei
um salto para trás e fiquei de pé, espada agora em mãos.
— Truquezinho legal esse. Mas irritante. Se você é mesmo a porra do deus da guerra,
aprenda a lutar como um guerreiro e não como a porcaria de um feiticeiro.
Ele riu.
— Não sou um feiticeiro, seu tolo.
Isso queria dizer que eu não conseguiria matá-lo arrancando a cabeça ou coração? Eu até
me daria ao trabalho de queimar o corpo se fosse o caso. Sabe como é, ter certeza de que o
trabalho foi feito.
Outra adaga surgiu em suas mãos e foi lançada, mas dessa vez minha espada a parou no
meio do caminho. Depois mais uma, e mais outra, e investida atrás de investida, percebi que a
magia dele não o cansava, não cessava.
Estou fodido.
Eu devia ter deixado ela se virar com essa merda. Matar Desertores teria sido menos
frustrante para meu ego.
Depois de quase meia hora em que ele enviava as armas e eu as desviava com minha
espada, eu já estava suando e Belius estava rindo. Até porque o desgraçado não precisava fazer
porra de esforço nenhum para atacar.
Então eu vacilei.
Meu braço fez um arco falho, muito alto, demorou demais para baixar, e a adaga já estava
vindo em direção ao meu peito. Meu primeiro pensamento — e eu me envergonho disso — foi
de que eu finalmente teria paz. A dor cessaria. O vazio não seria mais importante. Quem sabe eu
veria Alyssa novamente.
Talvez eu tenha aceitado aquela lâmina em meu peito muito rápido.
Quem sabe o Destino soubesse disso e estava me punindo.
O ar à minha frente se tornou mais denso. O vento soprou meu rosto enquanto a luz surgia
e desaparecia tão rápido que poderia ter sido fruto da minha imaginação. A arma não alcançou
meu peito, não perfurou meu coração.
Freya parou a adaga com um movimento das mãos, fazendo-a desaparecer no ar, enviando-
a para sabe-se o Destino lá onde. Então, Belius estava sendo lançado para trás, como se um vento
forte batesse contra ele.
Belius se ergueu do chão parecendo confuso e atordoado. Ele não estava contando com a
presença da Guardiã, o que era estúpido porque estava invadindo seu território.
— Você veio mesmo me incomodar em minhas terras sagradas, Belius? — Sua voz era
pura frieza, mas ao mesmo tempo como fogo ardente. Firme. Intocável. — Veio machucar meu
povo debaixo do meu nariz? Achei que era mais esperto que isso.
Ele não respondeu. Seu rosto era a clara exposição de seu desconforto. Eu entendia, porque
aquela era a primeira vez que via a mulher em carne e osso e já sentia como se ela pudesse
arrancar minha pele do corpo. Nem mesmo Cassandra tinha aquele tipo de energia.
A Guardiã da Europa era como fúria densa.
E uma abafada ventania de luto.
Eu sabia disso porque eu podia senti-lo em mim, abraçando minha própria dor.
Eu ainda encarava as costas de Freya, tentando absorver sua presença — e o fato de que
havia salvado a minha vida — quando Belius finalmente encontrou sua própria voz.
— Apenas quero aquilo de que tenho direito.
— Você não tem direito sobre nada. — Sua voz foi cortante. — Não possui nada. Não é
nada. E se Vicenzo ousar mandar mais de seus capachos para minha casa, vou mostrar a ele
exatamente ao que tem direito.
Belius recuou um passo, os olhos vasculhando a montanha. A este ponto, havíamos
percebido que o barulho de luta cessou. Os Protetores haviam, finalmente, acabado com a
ameaça dos Desertores.
— Não ameace Vicenzo, Guardiã. Você não quer perder outra cidade.
Dito isso, Belius jogou um pó no ar e desapareceu de vista, como se não passasse de nada
mais que uma ilusão.
Com o desaparecimento repentino do inimigo, finalmente pude observar de perto a
Guardiã. A mulher à minha frente era alta, corpo esbelto e magro, cabelos loiros repicados na
altura do queixo. Ao me olhar, seus olhos azuis eram como vidro e o nariz fino se enrugou em
uma careta. Ela não parecia uma guerreira, tinha traços bem delicados e usava roupas de tecido
digno de nobreza, o que pelo que me lembrava, ela foi um dia. Tempos atrás, a Guardiã europeia
havia sido uma princesa.
Freya respirou fundo, claramente irritada.
— O que veio fazer aqui, Nathan?
Bom, ela me conhecia. Já era um começo.
— Preciso de algumas informações e você é a única que poderia me dar.
CAPÍTULO 12

— Preciso da sua ajuda — insisti, enquanto Freya me ignorava.


— Estou bem ocupada no momento, garoto.
Mordi a língua. Ela era uma Guardiã — da qual eu precisava de ajuda, aliás. Eu precisava
fazer isso certo. Manter a paciência e o respeito era crucial para que essa mulher me ajudasse.
Freya começou a andar, mas eu a segui. Seus passos eram determinados, firmes, e iam em
direção ao topo da montanha, sua casa. Eu não tinha um convite até lá, mas não era como se eu
fosse tímido.
— Já pensou em prender Vicenzo novamente?
Ela bufou.
— Claro que sim.
Eu a segui mais de perto.
— Então por que não o prendeu?
Ela parou, apenas por um segundo, e me olhou.
— Porque aconteceria a mesma coisa que da primeira vez: o desgraçado fugiria.
Bem, aquilo podia ser verdade. Eu não sabia o que tinha dado errado com o feitiço de
Freya. Não tinha ideia de como Vicenzo tinha se libertado. Mas talvez se ela o tivesse prendido,
minha mãe teria tido mais tempo. Talvez Alyssa ainda estivesse viva. Não havia como saber se
ou quando ele escaparia, mas ela preferiu não tentar de forma alguma.
Nós chegamos ao topo da montanha e Freya logo caminhou até a casa que se estendia ali,
térrea e ampla, parecida com uma cabana, mas sem os detalhes triangulares. Parecia uma caixa
grande. Eu vi quando ela fez um movimento de mãos e desapareceu no ar e voltou a reaparecer
dentro da casa. Eu podia vê-la pela janela, e não ter aberto a porta para que eu entrasse poderia
ser uma dica de que eu não era bem-vindo, mas ignorei essa hipótese. Se eu tivesse seu poder,
nunca mais abriria uma porta na vida.
Estendi a mão até a maçaneta, pronto para tentar abri-la, mas Freya foi mais rápida. A
entrada foi escancarada e ela me observou de cima a baixo.
— Estou ocupada.
Dei de ombros.
— Posso esperar.
Ela bufou e saiu, deixando a porta aberta. Ali estava meu sinal de que poderia entrar sem
ser enviado para uma dimensão fria e cruel, sem passagem de volta. Seu poder era extremamente
útil, mas como não era eu que o possuía, também me assustava um pouco. Entrei na casa, meio
vazia, mas com relíquias antigas. Espelhos da época medieval. Ornamentos do antigo Império.
Pinturas de pessoas que eu não reconhecia, mas sabia que eram tão antigas quanto a Guardiã.
Não era uma casa comum. Era vazia no sentido do que se espera de uma casa normal: mesa,
sofá, televisão... Mas cheia de artefatos antigos. Era como um museu, contudo, Freya vivia nele.
Passei por um quadro excepcionalmente belo. Era um retrato de família, e pela data
marcada na borda da pintura, era de muitos anos antes do grande Império Romano. Logo
reconheci o belo rosto de Freya. Ela era muito bonita, traços delicados e um rosto angelical.
Naquela pintura, seus olhos estavam mais joviais, bem menos tristes e seu sorriso era sincero.
Ela abraçava uma garotinha menor, bem parecida com a Guardiã, e que sorria com orgulho. Do
lado de cada uma, o que eu imaginava ser o pai e a mãe delas também posavam com sorrisos
largos. Era uma pintura bonita, que representava tudo aquilo que aquela casa parecia não ter:
ternura.
Observei Freya vasculhar o lugar, abrindo gavetas de escrivaninhas de madeira cor de
ébano, até que andou até seu quarto e vasculhou cada pequeno centímetro do aposento.
— O que está procurando?
Freya não me encarou ao responder:
— Vicenzo enviou Belius para resgatar algo importante. Estou procurando esta coisa.
— Esta coisa tem nome? Ou ao menos uma boa descrição?
Ela me olhou.
— Sei que é filho de Diana. Sei o que aconteceu com Alyssa. E também sei que é
reconhecido pelo seu trabalho como Protetor, Nathan, mas não o conheço e não confio em você.
Fiz uma careta.
— Eu poderia ajudar a procurar.
— Você nem devia estar na minha casa.
Mordi a língua de novo. Paciência, Nathan. Ela é a Guardiã. É a chave disso tudo.
— Ok, procure sozinha. Mas se puder me escutar, seria ótimo.
Freya nem fingiu prestar atenção no que eu dizia. De repente, ela se empertigou, pegando
algo em uma pequena caixa ao lado de sua cama. Observei atentamente, tentando decifrar o
objeto, até que percebi que era um pequeno círculo dourado, como se tivessem trançado vários
fios de ouro e o transformado em um anel. Era um anel grande, masculino.
Uma aliança.
Vicenzo havia chegado a se casar com Freya?
Que desgraçado duas caras.
— Ele mandou um ser de outra dimensão buscar um anel? — perguntei.
Freya assentiu, mas não me explicou o porquê. E tudo bem. Eu não precisava me meter em
mais uma grande dor de cabeça, visto que eu já estava arquitetando uma gigantesca.
— Eu estou indo a Florença — declarei.
Dessa vez a Guardiã demonstrou alguma reação. Ela parou, enfiou o anel no bolso da calça
de linho longa, e se virou para mim.
— Que ideia idiota. — Revirei os olhos, e ela franziu o cenho. — Por quê?
— Porque aquele desgraçado me tirou a pessoa que eu mais amo nesse mundo. E eu vou
destruí-lo por isso.
Ela riu. A Guardiã da Europa olhou no fundo dos meus olhos por um segundo e depois riu.
Riu da minha cara, como se não fosse apenas a ideia que fosse idiota, mas eu também. Cerrei
meu punho e ergui o queixo, esperando que ela parasse.
Demorou um tempo.
Cruzei os braços.
— Ah, Nathan... — Riu mais um pouco, antes de se forçar a parar, respirando fundo. —
Não confunda bravura com estupidez. Entrar em Florença é impossível e, mesmo que consiga, é
uma sentença de morte. A cidade pertence a Vicenzo agora.
Cerrei os olhos.
— E de quem é a culpa disso? — retruquei, ácido.
Freya não recuou.
— E é porque eu sei o que fiz, o que desencadeei, que posso dizer que ir até Florença é
suicídio.
Eu não me importava. Nas últimas horas a adrenalina havia entorpecido a dor, mas o vazio
estava lá. Sempre estaria lá, afundando meu peito.
— Eu posso lidar com isso, não me importo de ser a isca. Mas preciso que tenha um
motivo. Posso ajudá-la a prendê-lo novamente. Podemos trabalhar juntos.
Ela me encarou.
— Seu luto é tão pesado assim?
Eu a encarei de volta, depois olhei para a casa que era mais um museu do que qualquer
outra coisa, cheia de memórias porque ela não podia vivenciá-las mais. Porque o que quer que
ela tenha amado o suficiente para criar seu próprio retiro de lembranças, ela não tinha mais. Era
tão sozinha quanto eu.
— O seu é?
Freya nem piscou.
— Sim. E minha raiva também.
— Pois faça algo a respeito. Você o prendeu uma vez, posso ajudá-la a fazer isso
novamente.
A Guardiã negou, balançando a cabeça.
— Ele teve anos de imortalidade para se fortalecer. E agora sem a sua garota, ele sabe que
não tem o que temer. Não há nada que possamos fazer.
Minha garota. Alyssa era muito mais do que isso. Era mais do que algo que eu tinha, mais
do que algo que eu queria. Ela era luz, força e lealdade. Se Freya soubesse que ela havia até
mesmo a defendido de sua própria burrice, talvez falaria dela com mais respeito. Talvez a visse
com mais consideração.
— Não é a coisa mais injusta que você tenha começado esse problema todo, mas somos
nós que sofremos as consequências?
— Acha que não tive que lidar com as consequências?
— Acho que não foram o suficiente para você se importar em resolver a situação.
Freya cerrou os olhos e a energia pulsou entre nós. Ela era uma Guardiã, afinal. Magia
corria em seu sangue. Apesar de ser conhecida por criar portais, ela podia fazer mais do que isso,
podia enfeitiçar coisas, criar prisões, formar dimensões inteiras — este último diziam que apenas
por tempo limitado.
— Vicenzo tem mil anos. Quantos anos você tem, garoto? Vinte? Não fale comigo como
se soubesse alguma coisa sobre esse mundo. Eu dei tudo de mim para prendê-lo, séculos atrás.
Precisei me esgotar, demorei anos para me recuperar completamente, porque o tipo de magia que
é demandada para prender alguém como ele... É como uma faca no peito.
— Posso ajudar.
— Você por acaso é mágico?
Cerrei os olhos.
— E desde quando magia é a única forma de resolver nossos problemas?
Freya revirou os olhos.
— Estou apenas dizendo que posso fazer alguma coisa. Vou me infiltrar entre os
Desertores e facilitar seu trabalho.
Ela apenas me encarou.
Então franziu o cenho, finalmente entendendo.
— É uma missão suicida.
— É uma missão. Nelas precisamos tomar decisões difíceis.
Ela cruzou os braços.
— É uma decisão difícil pra você, Nathan?
Não. Não mais.
Depois que nós descobrimos como é não estar sozinho, voltar à solidão parece como
morrer um pouco. E quem sabe na morte não houvesse aquele vazio reverberando meu peito
como um grito no vácuo.
— Eu perdi tudo, Freya, tenho certeza de que você entende como é, e diferente de você,
não tenho o peso da imortalidade em meus ombros. Meu tempo é finito e não tenho problemas
com isso. Mas Vicenzo está se tornando cada dia mais perigoso, mais ousado e arrogante. Ele
invadiu minha sede há poucos meses, invadiu a sua há poucas horas. Quem sabe o que ele fará
da próxima vez? Já percebeu a turminha com quem ele está andando? — Gesticulei para fora da
casa/museu, onde Belius estava antes, na montanha. — Eu pesquisei sobre Sybil, Freya, e não é
fácil matá-la não. E não tenho nem ideia de como matar esse outro que apareceu hoje. E metade
das nossas forças está aterrorizada com a ideia de um embate porque sabem que não há mais
promessa alguma de Fidly para milagrosamente nos salvar. Se tiver uma ideia melhor que não
acabe com nosso povo morto como aconteceu no Outro Lado, sou todo ouvidos, mas ande logo
porque Sybil já ameaçou invadir novamente, e tenho certeza de que o Destino não vai ficar feliz
se Vicenzo pegar o Tesouro.
— Minhas irmãs não falaram que a Feiticeira é Sybil — disse, mais para si mesma do que
para mim.
— Isso faz diferença?
Freya ergueu os olhos para mim.
— Qual a sua ideia?
Suspirei, sentando-me na poltrona adjacente à cama.
— Algo simples e rápido. Quero entrar, fazer o que for preciso e prendê-lo. Começar
algum burburinho entre os Desertores seria interessante também. Eles estão muito cheios de si
pro meu gosto, adoraria quebrar a bolha.
Freya foi incisiva ao falar:
— Esta não será uma missão suicida. Você entra e então sai. — Eu tinha certeza de que ela
não se importava, mas era seu trabalho como Guardiã. — Vamos começar com um plano para
que não seja morto logo de cara.
— Não serei — declarei, confiante.
— Sua arrogância é notável — ela desdenhou.
Revirei os olhos.
— Vicenzo não vai me matar assim que souber que estou na cidade porque ele me quer do
seu lado. Vai pensar que pode me manipular, fazer promessas e quem sabe talvez até me ofereça
um bom salário. — Dei de ombros. — Ele não vai me matar. Não enquanto pensar que posso ser
usado.
Ela bufou uma risada.
— Vicenzo sempre foi insolente — ela apontou para mim —, mas seu coração vai te
permitir fingir?
Eu sorri cinicamente.
— Ficaria assustada com o que meu coração tem se provado capaz de fazer.

Nós passamos o dia repassando ideias e planos, até que finalmente fomos capazes de
chegar a um que não a fizesse revirar os olhos. Eu sinceramente não conhecia muitas Guardiãs,
apenas Cassandra e Aisha, e agora Freya, mas a última era, definitivamente, a que mais me
irritava. Acho que tinha a ver com aquele ar de realeza que ela exalava, como se nada estivesse
acima dela. Ou fosse o simples fato de que ela havia sido a responsável por entregar imortalidade
de mão beijada a Vicenzo.
Eu sabia algumas coisas sobre Freya. Sabia que tinha sido a filha de um senhor poderoso,
dono de quase todas estas terras italianas, herdeira de um título que simbolizava poder. Antes de
se tornar uma Guardiã, havia crescido em berço de ouro. Era exatamente o que eu esperaria da
realeza, mas me irritava.
Freya havia me deixado, no que eu imagino ser sua sala de estar para pegar algumas coisas
em outro quarto. Acho que armas. Espero que fossem armas. De preferência algo bem legal.
Com magia também. Eu sempre quis uma arma mágica.
Quando voltou, segurava algo tão pequeno que cabia na palma da mão.
Ela era uma caixinha de decepção.
— O que é isso? — perguntei, desanimado.
— Não posso entrar em Florença. Se Sybil está lá, é porque ele já enfeitiçou a fronteira. Se
sentir que entrei em Florença no mesmo momento que você, ele não vai acreditar que pode
enganá-lo. — Ela estendeu a mão, expondo um pequeno quartzo branco. — Quartzos brancos
absorvem energia, portanto também absorvem magia. Eu o encantei. Você pode usá-lo para
entrar, e então para sair. Apenas duas vezes. Entrar e sair, entendido?
Assenti.
— Não é como se eu fosse ter tempo para dar um passeio pela Itália enquanto estou lá.
Era até improvável que eu conseguisse sair.
— Siga o plano. Tente não ficar lá por mais de duas semanas.
Assenti. Se tudo desse certo, eu não ficaria nem uma semana. Eu sabia exatamente quais
Desertores seriam mais suscetíveis aos meus encantos.
Não agradeci, mesmo que talvez devesse. Peguei a pedra e a guardei no bolso, junto com a
pulseira que havia dado à Alyssa, a qual Sybil havia me devolvido com tanta soberba — uma
lembrança do que havia acontecido com ela. Guardei aquele sentimento, aquela dor, no fundo do
peito, engoli a raiva e a deixei quieta. Por enquanto. Em breve eu teria um bom uso para todo o
ódio.
Freya caminhou comigo até a porta, mas parou no meio do caminho para agarrar uma
adaga exposta em uma das mesas de artefatos que ela tinha logo na entrada da casa-museu.
Quando ela a estendeu para mim, sorri de verdade.
— Pensei que não me daria uma arma de boa sorte.
Ela encolheu os ombros.
— Esta foi a primeira adaga de Vicenzo quando se tornou Protetor. Eu adoraria que o
esfaqueasse com ela antes de prendê-lo. — Ela deu um sorriso perverso. — Me faça esse favor.
Assenti, pegando a arma e a prendendo no meu cinto.
— Com prazer.
Lembrei-me de que precisava da pedra, então a resgatei do meu bolso.
— Como faço isso?
— Apenas a segure com as mãos fechadas e visualize o lugar. — Comecei a fechar os
olhos, mas ela me parou, falando: — Não visualize o palácio. Entre na cidade, entenda a reação
de Vicenzo e depois se aproxime.
Assenti.
Com os olhos fechados e o punho direito cerrado, visualizei a ponte Vecchio e o rio Arno.
CAPÍTULO 13

Mais um dia, mais um teste.


Eu sabia exatamente o que Vicenzo estava fazendo, só não sabia o porquê.
A noite anterior foi agitada. Aparentemente, Vicenzo queria algo em Roma, e por isso
vários Desertores acabaram tendo que lutar diretamente com inúmeros Protetores. Havia até
mesmo uma Guardiã envolvida, uma daquelas mulheres imortais abençoadas pelo próprio
Destino. Belius foi quem liderou a ação, o que eu achava uma grande novidade. Normalmente
era Sybil ou um Desertor de confiança.
O que ele queria? Alguma coisa antiga e sem graça, mas que poderia ter alguma serventia
eventualmente. Ele não me contou, apenas deduzi, dada as coisas que via e ouvia nesse palácio.
E apesar dele não ter conseguido o que queria, conseguiu algo que deixaria os Protetores
cheios de raiva: um prisioneiro. Bem, não por muito tempo, porque em breve se tornaria um
cadáver e eu tinha certeza de que seria a executora.
Testes e mais testes. Acho que havia se tornado um hobby para Vicenzo, algo que ele podia
usar para se divertir: me ver lutando contra a repulsa ou o desconforto.
Lore estava ao meu lado, mexendo nervosamente em um fio solto de sua blusa. Olhei para
ela.
— O que foi?
Ela balançou a cabeça.
— Nada. — Seus olhos pairaram em mim. — Está nervosa?
Não era minha primeira vez, e eu me recusava a deixar meu desconforto transparecer. Se
isso acontecesse, tinha certeza de que Vicenzo me faria repetir a ação mais dez vezes só para que
eu aprendesse uma lição.
— Você parece mais nervosa que eu.
Lore nunca parecia preocupada com as coisas que eu precisava fazer, mas nas últimas
semanas havia se mostrado mais ansiosa sempre que eu precisava me encontrar com Vicenzo, ou
quando Protetores eram presos. Pelo menos isso queria dizer que ela estava mais falante e soltava
mais informações do que devia. Já havia me contado que a Protetora capturada esteve em Roma
no último ataque e matou o irmão mais velho de um Desertor de confiança de Vicenzo. Também
havia dito que Sybil estava fora da cidade, o que indicava que eu teria alguns dias de sossego.
Não eram informações muito relevantes sozinhas, mas se eu soubesse o contexto de cada
uma, seria uma boa carta na manga. Da forma como Lore não parava de tagarelar, era provável
que eu eventualmente descobrisse. Acho que, finalmente, ela estava começando a me ver como
uma amiga.
— Tente não hesitar.
Ela me estendeu uma adaga. Uma espada? Não. Uma pistola? De jeito nenhum. Vicenzo
gostava que eu precisasse me aproximar mais da pessoa para matá-la.
— Eu nunca hesito.
Lore me encarou, séria, então assentiu. Porque era a verdade. Eu não podia me dar ao luxo
de hesitar, porque não queria lidar com Vicenzo.
As portas do salão dourado em que esperávamos se abriram. Vicenzo foi o primeiro a
entrar, as mangas de sua camiseta dobradas até o cotovelo, os olhos de fumaça presos nos meus.
Atrás dele, duas dúzias de Desertores entraram também, enchendo o salão.
— Espero que esteja pronta, Alyssa. — Sua voz preencheu o espaço, grossa. — Vamos
testar algo hoje.
Marco apareceu, arrastando uma mulher mais velha completamente machucada até a
minha frente. Quando seus olhos se ergueram para mim, ela pareceu surpresa, talvez até um
pouco assustada. O Desertor a empurrou, jogando-a no chão e ela, toda machucada, não fez mais
do que manter a cabeça erguida.
Belius entrou no salão neste momento. Apenas um olhar para Vicenzo e ele estendeu a
mão, criando duas pequenas facas, de lâminas finas, que com apenas um movimento rápido e
certeiro, se afundaram nas mãos da Protetora. O grito que ela deu, então, foi de destruir a
sanidade de qualquer um — mas não dessas pessoas. Aquelas deviam ser armas especiais — não
apenas pelo fato daquele homem ser capaz de criá-las com um único pensamento —, mas porque
também pareciam pesadas, pareciam mantê-la presa ao chão.
Não eram correntes, mas por mera semântica.
Lore se afastou alguns passos.
Observei a Protetora por apenas um instante. Eu sabia que era preciso deixá-los bem
machucados para que não pudessem usar o poder que tinham de se comunicar pela mente.
Quanto mais machucados, mais fracos, e por isso mais difícil era de se concentrar o suficiente
para usarem a telepatia. Mas eu tinha certeza de que os Desertores haviam exagerado na captura
dela. A mulher já tinha o rosto deformado, o corpo cheio de cortes, sangue estampado em cada
centímetro de suas roupas. Eu não tinha ideia de como ainda estava respirando.
Vicenzo se aproximou, as mãos acariciando minha nuca. Seu rosto se inclinou para mais
perto do meu. Perto demais. Meus olhos ainda estavam presos na Protetora quando ele sussurrou
em meu ouvido:
— Mostre o que lhe ensinei.
Revirava meu estômago fazer aquilo. Matar alguém em uma luta era uma coisa. Matar
alguém amarrado, já tão machucado que uma adaga no peito seria misericórdia, era outra
completamente diferente. Me fazia sentir menos humana e mais animal. E acho que este era
exatamente o objetivo de Vicenzo.
Agarrei o punho da adaga, me familiarizando ao seu peso. Meu cérebro parecia mais alerta,
como se quisesse estar mais ativo, me atualizar sobre algo que eu havia esquecido. Será que eu
matava muito antes de chegar aqui ou isto era o que eu havia me tornado com Vicenzo? Será
que, em outra vida, eu não me importaria de fazer isso?
Os olhos da Protetora me irritavam e ao mesmo tempo as rugas em pontos de seu rosto me
traziam uma estranha sensação de conforto. Eram marcas que algo em mim parecia reconhecer,
apesar de seu rosto ser completamente estranho.
Ela demorou um tempo para compreender o que estava acontecendo e erguer seus olhos
para a cena. A mulher parecia não acreditar no que seus olhos viam quando eles pousaram em
mim.
— Você devia estar morta.
Devia. Raiva escureceu minha visão. Devia estar morta porque seu povo estava me
perseguindo por algum motivo. Porque, por alguma razão estúpida, eles me queriam fora do
caminho. Eu não conseguia entender isso. Não me parecia justo, e aquela perseguição havia me
abandonado naquele lugar, buscando permissão de um homem com olhos de fumaça e impulsos
perigosos.
A mão de Vicenzo segurou minha nuca, pressionando forte demais.
— Faça.
Então eu fiz.
Se aquele era um jogo de sobrevivência, eu ganharia. Olhei para a Protetora, que me
encarou assustada, e enfiei a adaga em seu coração. Uma morte rápida. Uma morte sem muita
dor. Eu não era cruel a ponto de estender aquilo para uma moribunda estranha.
Seu corpo desmontou, sem vida, sobre o chão. Inspirei. Puxaram o corpo pelas pernas,
tirando-a da sala como se fosse um tapete velho. Um humano — que eu havia descoberto ser um
escravo por dívida — limpava o rastro de sangue. Expirei.
Eu me pegava constantemente imaginando se ser uma assassina era tudo o que eu era.
Os passos seguintes foram rápidos. Logo os Desertores encarregados sumiram com o corpo
sem vida da Protetora. No instante seguinte, Belius saiu, um sorriso satisfeito no rosto,
provavelmente pronto para se juntar ao amigo de olhos de gato, tão estranho quanto ele. Marco e
os outros Desertores saíram, assim como Lore, que apenas me lançou um olhar estranho antes de
deixar o salão. O sangue foi limpo. O salão ficou vazio. Eu continuava parada, encarando o nada,
com Vicenzo ao meu lado.
Ele inspirou próximo aos meus cabelos. Cerrei os dentes. Sua mão apertou minha nuca e
subiu até a base dos meus fios. Ele soltou o nó que os prendia em um rabo. Seu corpo se
aproximou mais, seu peito tocando meu ombro. Vicenzo era mais de uma cabeça mais alto que
eu, mas estava curvado, o nariz quase tocando meu rosto. Esta era a primeira vez que chegava
tão perto, tão deliberadamente. Sua mão livre subiu para o meu rosto, onde ele o puxou para si,
me forçando a encará-lo. Seu dedo percorreu a linha do meu maxilar, seus olhos travados nos
meus.
— Eu sabia que havia escuridão em você — disse.
Um frio se instalou no fundo do meu estômago. Isso era novo. A forma como estava me
olhando, como se visse alguém novo, alguém melhor. A forma como ousava me tocar sem estar
a ponto de quebrar meu pescoço, perdido em raiva, também era novo.
— É por isso que me faz sua assassina? — perguntei. Eu não entendia porque meu corpo
parecia correr para a direção contrária, mas era um fato. A proximidade dele me assustava. Meu
estômago se revirava com o mero toque da sua pele na minha. — Porque gosta de quando mato?
— Porque quando você mata por mim, se torna dez vezes mais interessante. Dez vezes
mais preciosa.
“Por mim.”
Eu não estava matando por ele. Estava matando por mim. Porque sem ele, eu estaria
morta. Porque para os inimigos, eu era mais útil como um cadáver. E eu não sabia bem o porquê,
já que não tinha nada nem ninguém, mas a morte não me parecia uma opção muito atrativa.
Eu era grata por Vicenzo. Mas não a este ponto. Eu poderia deixá-lo lutar as próprias
batalhas sozinho se isso não significasse colocar meu pescoço na linha.
Eu fazia isso porque ele ordenava. Não por ele. Por mim. Porque precisava deixá-lo feliz
para continuar segura ali.
Seus olhos de fumaça, falsamente cegos, me observavam com atenção.
— Já ouviu falar sobre o mito das duas faces? — Balancei a cabeça em negação, então ele
continuou: — O mito conta a história de irmãs gêmeas, que viveram em um vilarejo miserável ao
norte do mar báltico. Elas só tinham uma à outra, e quem as olhasse individualmente, pensaria
que eram apenas uma. O rosto era o mesmo. O cabelo era o mesmo. Os olhos eram os mesmos.
Às vezes, até suas vozes pareciam ter a mesma tonalidade. Eram duas faces, mas de alguma
forma, eram uma. O Destino não parecia intrigado por aquilo, mas se interessava por suas
particularidades, suas divergências. Ele então percebeu: eram duas faces idênticas, mas suas
almas eram tão opostas quanto água e fogo. Havia algo em cada uma, aquilo que as
diferenciavam profundamente, em seu âmago.
“O Destino não gostou. Não aprovava a complexidade de buscar entender duas
personalidades diferentes, com um mesmo rosto. Imagino que fosse trabalhoso para ele traçar
suas histórias, sendo tão parecidas fisicamente, mas com personalidades tão distintas.
Principalmente quando, juntas, começaram a controlar o vilarejo inteiro, trapaceando,
manipulando, logo usurpando o poder do lugar.”
— O que ele fez? — indaguei.
— As duas faces não podiam coexistir. Ele se perguntou qual delas era a mais forte, a mais
leal, a mais nobre. A resposta era clara, qualquer um com dois olhos e um pouco de atenção
poderia ver. O Destino iria salvar a gêmea mais equilibrada, que pendia mais para o bem do que
para o mal. — Um sorriso sinistro nasceu em seus lábios. — Mas a malvada foi mais rápida,
mais esperta, ardilosamente cruel. Ela, para não ser morta pelo Destino, matou a própria irmã.
Por um tempo, até conseguiu enganar a todos, fingindo ser as duas, contudo, seu maior feito foi
ter enganado o próprio Destino. O mito das duas faces não é sobre como as irmãs se pareciam, e
sim como uma delas sabia perfeitamente como usar esse rosto, de duas formas diferentes.
Por que ele estava me contando isso?
— Acho que você é como este mito. Sabe usar perfeitamente aquilo que o Destino lhe deu
— ele respondeu à minha pergunta, sem eu mesmo tê-la feito em voz alta. — Mas você não é a
mais ardilosa, apesar de fingir bem. E no jogo da vida, Alyssa, o mais esperto sempre vence.
Franzi o cenho com sua depreciação descarada, apesar de que, provavelmente, deveria ter
escondido a careta.
— O que você quer? — perguntei, baixinho, quase que com medo da resposta.
Vicenzo abriu um sorriso perturbador.
— Quero tantas coisas... Seja mais específica.
— O que quer de mim? Por que continuo matando seus prisioneiros, por que continuo
sendo exibida como um troféu?
— Porque eu quero. — Seus dedos apertaram meu queixo. Sua voz era baixa, mas dura. —
Porque esta é minha casa e você é minha convidada. Porque tive muito trabalho pra trazer você
aqui.
— Então eu te devo.
— Sim.
Bem como eu imaginava.
Tentei me afastar, mas sua mão em minha nuca me forçou a ficar onde estava. Vicenzo
chegou mais perto, seu nariz tocando o meu. Não respirei. Não pisquei. Trinquei os dentes e
esperei.
— O Destino estava tão enganado quando criou você. Ele pensou que seria minha ruína, e
olhe para nós agora. Juntos.
Por que eu seria sua ruína? — quis perguntar, mas não o fiz.
— Se ficar aqui, quieta, desse jeito, posso fingir. — Seus olhos de fumaça pareciam
engolir os meus, mesmo que na maioria das vezes eu não conseguisse ter certeza de que
realmente me enxergava. — Posso aceitar o que foi me dado como um presente, não uma
sentença. Talvez o Destino tenha me feito um favor, afinal.
Quando ele tocou sua testa com a minha, eu tremi. Não queria, me odiava por isso, mas
tremi. Por um segundo, pensei que me beijaria. Vicenzo até fechou os olhos. Não entendia como
aquilo tinha acontecido, em que momento ele decidiu que estava atraído por mim, porque
Vicenzo nunca havia demonstrado nada mais do que desgosto ou, no melhor caso,
contentamento, quando se referia a mim. Mas então suas narinas se inflaram e seu rosto se
contraiu em uma careta. Sua boca parou no meio do caminho. O vinco entre suas sobrancelhas se
aprofundou e seus olhos se abriram.
Meu corpo inteiro queria fugir dali. Queria colocar quilômetros de distância entre nós.
Eu não podia negar que Vicenzo era um homem bonito, mesmo com os olhos estranhos. O
corpo grande, musculoso e alto. Os cabelos ondulados ao redor do rosto e o maxilar bem
desenhado, a boca carnuda... Ele era bonito. Mas era aterrorizante. E não havia nada em mim que
sentia vontade de tê-lo por perto, principalmente tão perto.
Quando seus olhos focaram-se nos meus, percebi que ele também havia decidido que não
me queria por perto. Na verdade, parecia enojado pela minha presença.
— É uma boa ilusão — disse, baixo, seus dedos pressionando mais a minha pele da nuca.
— Mas é apenas uma ilusão.
Em um rompante, ele me empurrou para trás. Tropecei em meus próprios pés, no entanto,
consegui me manter em pé. Raiva irrompeu por minhas veias e eu o fuzilei. Mas isso foi um erro
estúpido. De repente sua mão estava em meu pescoço e meu corpo estava sendo empurrado com
força contra uma pilastra.
Não consigo respirar.
Não consigo respirar.
— Não me olhe assim. — Sua voz foi puro comando raivoso. — Nunca me olhe assim.
Eu o encarei, sufocando, precisando de ar. O encarei com a raiva queimando dentro de
mim, mas fazendo o melhor para aplacá-la. Em um instante ele quase me beijou, no outro, estava
me estrangulando. Com um rosnado, seus olhos de fumaça fecharam e ele me soltou, saindo de
perto de mim tão rápido quanto podia.
— Se quer encontrar um culpado para tudo isso, culpe o Destino — ele disse, caminhando
para a porta. — E a si mesma.
Quando eu o vi deixar a sala e o barulho de seus passos cessaram, saí do meu estupor e
caminhei até uma das paredes, onde um grande espelho emoldurado se estendia graciosamente.
Encarei meu reflexo. O rosto que eu precisei decorar novamente, os cabelos negros e longos, os
olhos como tinta nanquim, a pequena pinta próxima à maçã do meu rosto... Encarei aquela
imagem com raiva, porque ela estava parada, inerte.
Ninguém havia vindo por mim. Ninguém se importava. Eu era sozinha e, por isso,
dependia de Vicenzo.
Que tipo de pessoa eu fui, que ninguém se importou em me procurar?
Talvez o tipo de pessoa que merecia o que estava passando agora.
Cerrei meu punho e, com as vistas turvas de raiva e lágrimas que eu não derramaria, soquei
o espelho, que se rachou por completo. No começo, apenas um fio se estendeu por diversos
caminhos diferentes, rachando a superfície, até que o espelho se tornasse apenas pedaços
espalhados pelo chão.
Era exatamente como eu me sentia. Despedaçada. E sem propósito.
CAPÍTULO 14

Florença era um pesadelo. Mas era um pesadelo bonito.


Materializei-me na cidade com o estômago revirando, protestando contra o teletransporte
ou fosse lá que merda tinha acontecido para eu chegar até ali. Garanti que a pedra que eu usaria
para deixar a cidade caso eu tivesse a chance estivesse bem segura no meu bolso, junto à pulseira
da Aly, e comecei a andar. Quanto mais eu me movimentasse, mais difícil seria para que os
Desertores me rastreassem, mas claro que ainda assim era uma questão de tempo.
Eu deveria ter repulsa daquele lugar porque a cidade pertencia ao desgraçado de Vicenzo,
mas mesmo assim, Florença tinha sua beleza inquestionável. O sol começava a pousar, caindo
sobre o Rio Arno, e o vento soprava as árvores ao redor como se cantasse uma canção. Mas o
cheiro... porra, o cheiro era terrível. Cheirava a queimado, era um cheiro denso e rançoso.
Desertores. Eram tantos, que eu podia sentir o odor no ar, mesmo que eu não estivesse vendo um
por perto agora.
A cidade era bonita, mas muito mal frequentada.
Pelo menos aquele cheiro ajudaria a mascarar o meu.
Caminhei pela ponte, atravessando para o sul da cidade, onde eu sabia que estava o palácio
de Vicenzo. Eu não tentaria entrar hoje, precisava estudar o perímetro, pelo menos tentar formar
um plano de escape. Eu devia isso a Zeus.
Por sorte, o clima já estava frio, então um cara de moletom e com o rosto coberto pelo
capuz não chamaria tanta atenção. Por isso, andei com atenção pelas ruas abarrotadas de turistas
completamente alheios aos monstros ao seu redor, buscando por qualquer inimigo a menos de
dez metros de distância.
Não ousei chegar perto demais do palácio. Parei assim que o vi ao longe. Então, circulei o
perímetro, indo até a floresta, que se estendia até uma área mais elevada, que me daria melhor
visão do todo. Não havia chegado a fronteira delimitada por árvores antes de ser interrompido.
— Você tem uma espada saindo da sua mochila!
Eu me virei e encontrei um garotinho, não mais de doze anos, com os olhos arregalados, o
dedo indicador apontado para mim. Seus cabelos eram pretos como os meus, mas a pele era
escura. Olhei ao redor e não encontrei nenhum adulto que parecia responsável por ele. Arqueei
uma sobrancelha.
— Você é observador — comentei também em italiano.
O garoto assentiu.
— Eu gosto de espadas. Você também?
Dei de ombros.
— São úteis.
— Para quê? — perguntou, os olhos levemente arregalados.
Cerrei os olhos. Não era exatamente adequado falar para uma criança as coisas que eu fazia
com minha espada.
— Hum... Cadê seus pais?
— Não tenho.
Como assim não tem?
Cadê a porra do adulto pra tirar ele da minha cola?
— Não tem ninguém?
— Tenho uma amiga. Ela também não tem pais. Moramos no mesmo orfanato.
Assenti, a dor involuntária atacando meu peito apenas com a menção de uma amiga, que
eu nunca mais teria. Não da forma como tive com Aly. Nunca haveria a mesma conexão que
houve com ela.
— Acho que talvez devesse voltar para seu orfanato. Não é seguro para uma criança ficar
andando sozinha.
— Por que posso encontrar um cara com uma espada?
Engoli uma risada. Menino atrevido.
— Entre outras coisas — eu disse. Você pode encontrar um Desertor.
— Eu não quero voltar. Linda não quer falar comigo. Preciso levar algo para ela me
perdoar. Algo bonito, como sua espada. — Seus olhos brilharam para o cabo da minha arma, que
saía da mochila.
Estalei a língua.
— Não vou te dar minha espada, garoto.
Ele apontou para meu calcanhar.
— E a faca?
Estreitei os olhos. Como diabos ele sabia que eu tinha uma faca ali? Ele viu a pergunta em
meus olhos e deu de ombros.
— Quando não se tem pais, é preciso ser esperto. Quando você anda, o cabo da faca
pressiona sua calça.
Eu estava impressionado. Isso rendeu a ele uma recompensa. Abri minha mochila,
percebendo seu olhar animado. Eu obviamente não daria uma arma ao garoto humano,
provavelmente nem saberia usá-la com segurança, mas havia uma coisa ali que talvez pudesse
lhe ajudar a fazer as pazes com a amiga. Pelo menos a minha gostava bastante.
— O que é isso? — ele perguntou, imediatamente perdendo aquele brilho de animação ao
ver que não era uma arma.
Eu ri.
— Isso é um chaveiro.
— Mas eu não tenho chave!
Eu ri. Bem, eu não tinha pensado naquilo. Apenas me lembrei do chaveiro que Aly havia
deixado no meu chalé, em uma das noites que passou lá. Era de quando ela havia morado em
Nova York. Ela comprou o chaveiro da estátua da liberdade, porque achava uma boa metáfora
para sua vida, que precisava de um pouquinho de liberdade também. Ela nunca o usou com uma
finalidade. Apenas guardava em sua bolsa. Era um lembrete.
Um lembrete inútil agora. A amiga do garoto poderia fazer melhor uso dele.
— Eu tenho uma amiga também — eu me recusava a usar a conjugação no passado. Não
em voz alta e não para ele — , quem sabe tão próxima quanto a sua. E ela gostava bastante desse
chaveiro. Nem tudo precisa ter uma finalidade. Pode apenas ter um significado. Ou ser bonito.
O garoto pegou o chaveiro e o analisou de perto, o olhar atento aos detalhes em brilho.
— Linda gosta de coisas brilhosas.
Assenti.
— Vai para casa ganhar seu perdão.
Ele levantou a cabeça e sorriu para mim.
— Ela é teimosa, mas é sempre melhor que eu me desculpe antes de levar um chute no
meio das pernas.
Dessa vez eu ri.
Alyssa deve ter me dado um ou dois desses chutes quando éramos crianças.
— É a coisa esperta a se fazer, com certeza.
Ele assentiu, veementemente.
— Obrigado. Ela adora coisas bonitas.
Comecei a me virar. Eu não podia me dar ao luxo de ficar batendo papo com um garotinho
órfão no território inimigo.
— Ei, espere! Sua amiga não vai sentir falta disso? Linda ficaria muito brava se eu desse
algo dela para um desconhecido.
Engoli o nó em minha garganta.
Alyssa não se importaria de dar algo seu para uma criança, principalmente uma criança
órfã, que aparentemente não tinha nada. Ela era esse tipo de pessoa, que queria ver a outra feliz.
— Ela ficaria feliz de saber que o chaveiro está em boas mãos.
O garotinho sorriu e balançou a cabeça, em concordância.
— Da próxima vez, você me dá a arma.
Eu o encarei com um olhar divertido.
— Vai sonhando.
Dessa vez, me virei para deixá-lo. Olhei para trás apenas uma vez para me certificar de que
ele também estava seguindo seu próprio caminho. Satisfeito, adentrei a floresta, aquela que
ficava atrás do palácio e do jardim. Eu tentaria encontrar um ponto alto o bastante que pudesse
me permitir analisar as entradas do palácio e qualquer detalhe relevante.
A floresta era densa, mas eu vi marcas de sapato logo de cara. Os Desertores
provavelmente andavam por ali, mas não senti o cheiro de nenhum por perto, além daquele
costumeiro que pairava no ar. Continuei caminhando, adentrando mais ainda em meio às árvores
e estando sempre atento a qualquer barulho, qualquer cheiro, qualquer perturbação ao redor.
Parei em frente a uma das grandes árvores, o tronco largo, os galhos longos e firmes. Seria
uma escalada de pelo menos oito metros, mas uma subida segura. Em poucos segundos eu estava
no topo. Dali, o jardim era mais claro, apesar de me lembrar bastante a porra de um labirinto,
cheio de árvores e estátuas estranhas e velhas. Algumas clareiras. Um pouco de floresta fechada
também.
Contei pelo menos quinze Desertores andando pelo perímetro. Dois guardas no portão de
trás e com certeza pelo menos uns cinco no portão principal, porque ali o fluxo de pessoas era
maior.
Parte de mim queria fazer alguma entrada triunfal. Quem sabe explodir algo que Vicenzo
gostava. Mas teoricamente ele deveria acreditar que eu poderia mudar de lado. Devia ser o garoto
de luto, facilmente manipulável. Talvez eu pudesse quebrar uma de suas janelas e ainda manter a
fachada facilmente vulnerável.
Mentalmente, anotei cada detalhe visível do jardim. Eu estava muito longe, mas ainda
conseguia traçar um mapa do lugar, mesmo que não fosse completamente fiel. Coloquei a
mochila que estava em minhas costas sobre um dos galhos largos, e puxei meu celular de dentro.
Tirei algumas fotos e respondi a uma mensagem de Brian, avisando que ainda estava no Brasil.
Ele nunca contactaria a família restante de Diana para confirmar. Brian não estava feliz, mas
aposto que Ravenna segurou suas rédeas e não permitiu que viesse atrás de mim. Ela sempre
controlava onde ele ia, era seu maior poder sobre meu pai, porque ainda usava aquela culpa de
anos que ele guardava em relação à morte da minha mãe.
Aproveitei aquele momento, metros acima do chão, sem a ameaça de um Desertor na
minha cola para abrir a mente para apenas duas pessoas.
— Adivinhem quem está em Florença?
O suspiro de Serena foi alto e dramático.
— Você não estar morto ainda é um bom sinal — Roman respondeu.
— Me dá um pouquinho de esperança — Serena concordou.
Revirei os olhos. Observei um guarda se afastar um pouco do portão, provavelmente para
mijar em algum canto.
— Isso me faz lembrar que encontrei o mais novo ajudante de Vicenzo. Carinha
interessante.
— Me diz que não é outro feiticeiro — Serena pediu.
— Talvez seria melhor se este fosse o caso — falei. — Mas é algo diferente. Ele conseguia
criar armas com apenas um pensamento e controlá-las com a mente. O cara nem se mexia na
luta. Ah, e ele era feio pra caralho.
— Ele criava a merda das próprias armas? — Serena sibilou.
— Onde o encontrou? — Roman perguntou.
— Roma — falei. — Aliás, Freya é adorável.
— Dizem que ela é fria como gelo. Não acredito que conheceu a Guardiã da Europa. Ela
nunca é vista!
— Ela realmente não pareceu satisfeita em me ver, Serena. Mas a parte importante não é
essa. Quando cheguei a Roma, fui até o Fórum Riparo e haviam Desertores atacando o lugar.
Encontrei a desgraçada que havia atacado Alyssa no dia em que você a salvou, Roman, e depois
o pseudo-monstro apareceu.
— Ela te ajudou — Roman concluiu, provavelmente um sorrisinho nos lábios. — Pensei
que era melhor que isso, Cross.
Estalei a língua.
— Não seja babaca,ou vou colocá-lo de volta no coma se eu voltar.
— Quando você voltar — Roman me corrigiu.
— Onde está agora, Nathan? — Serena indagou.
— Em uma árvore, encarando o Jardim Boboli. Agora entendo porque Vicenzo fica se
gabando desse lugar. É bonito.
Observei o guarda voltar ao seu posto, bons minutos depois. Seus olhos começaram a
encarar a floresta, e eu me enfiei em meio aos galhos.
— Deem uma pesquisada para mim. O nome da nova aquisição de Vicenzo é Belius. Ele
afirmou ser o deus da guerra, então desconfio que seja alguém importante. Em breve volto a
falar com vocês.
— Ok — Roman concordou.
— Tome cuidado — Serena pediu.
Peguei a mochila e a coloquei de volta nas costas. Passei as pernas sobre o galho e então
pulei. Mal toquei o chão antes de me curvar, de dor.
Por um segundo, pensei que estava tendo um infarto.
Agarrei meu peito como se pudesse sentir meu coração inflar tanto que não cabia no tórax.
Fiquei sem ar por uns bons segundos, antes que eu finalmente conseguisse puxar uma inspiração
profunda. Era como se houvesse algo puxando meu peito, perturbando meu ritmo cardíaco.
Como se, de repente, eu estivesse morrendo e logo em seguida ressuscitando.
Então eu senti.
Uma lufada de ar bateu no meu rosto, a brisa fria misturada àquele odor terrível de
Desertores impregnado na cidade e algo mais. Algo melhor. Algo que eu nunca pensei que
sentiria novamente, enquanto respirasse.
O cheiro de Alyssa.
Minha primeira reação foi olhar ao redor, buscar uma vala, onde Vicenzo poderia ter
enterrado Alyssa, mas eu sabia que se ela estivesse morta, aquele cheiro não estaria mais
presente. Meu próximo pensamento foi que eu estava enlouquecendo. Era bem provável que a
falta que ela me fazia pudesse estar começando a enganar meu cérebro. Tentando, de alguma
forma, preencher aquele vazio, confundir meu coração.
Mesmo sabendo que era impossível, eu corri. Meus pés batiam com tanta força contra a
terra a ponto de reverberar por toda a floresta. Corri tão rápido, que mal respirava. Segui aquele
cheiro. O cheiro dela.
Até que meus olhos também estavam tentando me enganar.
Parei de correr, escorregando em meus próprios pés enquanto freava de uma vez. Estava
perto demais do portão. Perto demais dos guardas, mas não me importava.
Eu só podia ver.
Era impossível.
Impossível.
Era impossível, porra!
Mesmo assim, a poucos metros, encarando uma estátua de mármore quebrada, dentro dos
portões do Jardim Boboli, estava Alyssa. Os braços cruzados, os cabelos negros ainda mais
longos, a testa franzida, o rosto tão lindo que eu não conseguia me lembrar como respirava.
Eu estava louco. Tinha perdido minha cabeça porque era incapaz de viver sem ela.
Pisquei e pisquei, mas ela continuava ali, a metros de distância, ainda respirando.
Eu precisava tocá-la. Precisava ter certeza de que era real. Não seria a primeira vez que
minha mente a teria materializado.
Observei-a tocar a mão da estátua e depois os olhos. Ela parecia encantada pelo
monumento, completamente alheia aos demais à sua volta. Mal se importava com os Desertores
perto do portão de entrada.
Por enquanto seu cheiro poderia confundir o meu, deixando os Desertores inconscientes da
minha presença, mas não duraria muito. Eu precisava tirá-la dali. Precisava ter certeza de que era
realmente ela, não minha cabeça.
Ela respirou fundo. Eu dei dois passos à frente.
Não é real.
Não pode ser real.
Ela rodou o corpo, e só então percebi que ela usava um vestido longo e escuro, um tecido
esvoaçante. Dei mais dois passos. O outro Desertor fez sua pausa. Eu poderia matar o Desertor
restante e chegar até ela. A jogaria por cima do portão se ela realmente fosse real.
Mas então Alyssa bateu a palma das mãos e uma Desertora se aproximou, um sorriso sem
graça no rosto.
— Você realmente não para de me seguir. — Sua voz... porra, sua voz era como um feitiço
para mim. E era real, mesmo longe e baixa, eu sabia que era sua voz.
— Vicenzo mandou... — a Desertora começou, mas Aly só ergueu a mão para pará-la.
— Não quero falar dele. Vamos embora.
A Desertora apenas assentiu, e a escoltou de volta para o interior do jardim, em direção ao
palácio.
— Você pode descontar a frustração amanhã em sua corridinha matinal — a Desertora
zombou.
Corrida matinal.
Que porra?
Quando perdi Alyssa de vista, tudo o que eu podia fazer era lutar para respirar.
Cambaleei para trás, confuso, nervoso, desacreditado. Incapaz de respirar. Incapaz de
pensar.
Porra, eu estava tendo um ataque de pânico.

Eu não deixei aquela floresta. Não fui capaz de fechar os olhos, temendo que eu
descobrisse que aquilo era um delírio, um sonho, a porra de uma visão. Passei a noite acordado,
contando os segundos para a corrida matinal de Alyssa e rezando para que, de manhã, quando eu
a visse novamente, fosse real.
CAPÍTULO 15

Hoje eu corria com ódio. Ódio queimava minhas veias, aquecia minha pele, impulsionava
minhas passadas. Cada vez que eu me lembrava de Vicenzo, das suas palavras e da forma que
me tocou, o ódio parecia se tornar quase incontrolável. Por isso, eu corria como nunca tinha
corrido antes: como uma deles.
Eu quase cheguei ao limite da floresta. Eu havia decidido que, depois de ontem, eu merecia
sair para além dos portões daquele palácio e espairecer um pouco. Graças aos céus, era Lore
quem estava de guarda hoje, e ela me deixava em paz para correr como eu bem entendia.
Eu devia ter corrido por quase uma hora quando finalmente parei.
Tomei um minuto para respirar, o coração batendo tão forte no peito que parecia querer
sair pela boca. A raiva ainda queimava, mas meu corpo parecia estar na frequência certa agora.
Meus sentidos estavam ainda mais aguçados, aquela força dentro de mim pairava à superfície...
O poder que Vicenzo queria que eu tivesse, mas ao mesmo tempo parecia temer que fosse real,
era quase palpável. Quase concreto.
Passos soaram atrás de mim. Mas logo se afastaram novamente.
Lore devia estar com receio de se aproximar. Ela odiava quando eu estava ansiosa.
Virei-me para voltar a correr, mas ouvi um galho estalar no chão, e pássaros saíram voando
pelo céu. Observei, embasbacada, enquanto suas asas batiam com força contra o vento,
impulsionando-os para cima. Era hipnotizante.
Eu adoraria poder voar.
Ouvi outro passo se aproximando, mas ignorei, voltando a correr. Logo, porém, senti que
alguém estava correndo comigo. Era a terceira vez. Terceira vez em que eu ouvia algo se
aproximando, como se quase estivesse incerto do caminho. Mas dessa vez não parou. O som foi
se aproximando. Freei de uma vez, fincando os calcanhares no chão e me joguei contra uma das
árvores ao meu redor.
Não era Lore. Ela não estaria incerta, não se aproximaria dessa forma.
Por um instante, os passos pararam. As folhas secas no chão farfalhavam junto ao vento e
eu aproveitei para inspirar fundo. Eu não era boa sentindo cheiros como Vicenzo e os outros no
palácio, mas eu saberia identificar o cheiro de um Desertor facilmente. Era... forte. E ainda que
eu odiasse ser seguida, poderia ser apenas algum dos homens de Vicenzo mantendo os olhos em
mim. Mas o cheiro que voou junto ao vento não era forte ou pegajoso. Também não era antigo
como o do homem que me esperava envolto pelas paredes do enorme palácio.
Era diferente.
O movimento foi tão rápido quanto um raio caindo do céu. Mas eu fui mais. Em um piscar
de olhos eu interceptei o intruso, batendo suas mãos para longe e girando o corpo, ficando frente
a frente com ele, mãos em sua garganta.
Eu não era indefesa. Sabia disso. Vicenzo sabia disso e os Desertores também. Mas esse
homem à minha frente parecia não ter ideia.
Por um segundo, perdi o fôlego.
Seus olhos azuis estavam focados nos meus. Uma expressão estranha no rosto. Ele nem
mesmo tentou revidar ou se proteger, seus braços estavam caídos ao lado do corpo, minha mão
em seu pescoço nem parecia incomodá-lo.
Ele apenas me olhou.
Uma lágrima escorreu de seus olhos e, involuntariamente, afrouxei um pouco o aperto em
seu pescoço.
— Por que está me seguindo?
Ele apenas me encarou, os olhos cheios de lágrimas não derramadas. Mas que porra é essa?
Empurrei-o, dando dois passos para trás. Tirei o grampo comprido e pontiagudo que
Vicenzo me fazia usar no cabelo — porque, de acordo com ele, era o que uma dama deveria usar
— e apontei para o estranho. Eu poderia fazer algum estrago com aquilo se necessário.
— Alyssa.
Meu nome saiu de seus lábios em um sussurro, uma surpresa inconcebível. Por um
segundo, meu nome sendo dito por ele me desestabilizou. No fundo, a garotinha assustada que eu
tentava não ser, queria acreditar que alguém havia vindo por mim. Mas havia se passado meses
desde que Vicenzo me acolheu. Talvez tenha sido anos esquecida. Não parecia seguro confiar em
alguém que apareceu no meio de uma floresta e me emboscou como um criminoso.
— Como sabe meu nome? — Consegui me forçar a perguntar, saindo do estupor inicial.
Suas mãos subiram para me tocar, mas com um impulso de autopreservação, baixei o
grampo, arranhando sua pele, deixando um corte em sua mão. Ele recuou, os olhos me fitando
com ainda mais surpresa e um pouco mais de desconfiança.
— Não toque em mim — rosnei. — Agora me diga quem é você e como sabe meu nome!
Ele apenas me encarou por longos segundos.
— Nathan — disse, e algo como dor manchou suas palavras. — Meu nome é Nathan. O
que aquele desgraçado fez com você?
O nome não me causou lembrança alguma.
— Seja mais específico, Nathan.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. Encarou meu grampo apontado para sua garganta e
depois meus olhos. De repente, pareceu chegar a uma conclusão.
— Vicenzo mexeu com a sua cabeça.
Cerrei meus olhos. Ele conhecia Vicenzo?
— De onde me conhece?
Ele quase riu. Quase. No entanto, seu desgosto parecia maior, brilhava em seu olhar. Seu
ódio era quase palpável.
— Vou estripá-lo. Vou arrancar a pele do corpo daquele desgraçado.
Cheguei mais perto, o grampo pressionando sua pele agora, e rosnei:
— Responda minha pergunta!
Seus olhos consumiram os meus, o azul cristalino engolindo a imensidão negra dos meus.
— Conheço você minha vida toda, amor.
Suas palavras me atingiram como um tapa. Amor. Amor. Amor. Eu não era amor de
ninguém. Não era filha. Não era irmã. Não era amiga. Com certeza não era o amor de alguém. Se
eu fosse, não teria sido esquecida aqui.
Quem quer que Nathan fosse, era uma mentira.
— E devo acreditar que só agora sentiu minha falta? Só agora pensou em me procurar? —
questionei, amarga.
Outra lágrima escorreu pelo seu rosto, mas ele não fez menção de escondê-la ou limpá-la.
Apenas continuou me olhando, quase como se ainda não tivesse certeza de que eu estava ali. Sua
mão subiu para meu rosto e, por apenas um segundo, permiti sentir seus dedos trêmulos tocarem
minha pele. Queria ver se aconteceria algo, se atiçaria alguma memória. A forma como me olhou
então... Ele era um ótimo mentiroso.
— Senti sua falta todos os dias. Senti tanta sua falta que era melhor estar morto.
Bati sua mão para longe do meu rosto, recuando um passo.
— E por que não me procurou? Por que agora?
— Porque pensei que estava morta, Aly. Se eu soubesse... — Sua voz falhou. — Se eu
soubesse teria atravessado o oceano em meio pensamento por você.
Vicenzo havia me dito que me encontrou inconsciente e machucada, Protetores me
procurando como se eu fosse um animal para o abate. Sem família. Sem amigos. Sem ninguém.
E ele disse que, por semanas, tentou encontrar a quem eu pertencia, se alguém ao menos sentia
minha falta ou buscava por mim. Não houve ninguém.
Mas se Nathan não sabia... E se a forma como estava me olhando agora fosse verdade? E
se houvesse alguém que realmente sentiu minha falta?
— Aly! Precisamos voltar! — a voz de Lore chamou, e percebi seus passos se
aproximarem.
Nathan se moveu tão rápido, que meus olhos mal registraram o movimento. Ele agarrou o
grampo em minha mão e o arremessou. Um grito soou pela floresta, seguido por Lore gritando
“que porra?!”. Nathan me puxou contra ele, colocando-se à minha frente e estendendo o braço
para pegar uma faca em seu tornozelo. Lore estava correndo em nossa direção agora e Nathan já
estava armado à sua espera.
— Não! — gritei, empurrando-o para o lado e chutando sua mão.
Nathan me encarou, o rosto franzido.
— Aly! — Lore gritou. — Vem!
Encarei o estranho, mas ele mal reparou em mim quando a Desertora finalmente apareceu
à nossa frente. Com a expressão furiosa, Nathan atacou, e enquanto Lore reparava em sua
presença, apenas surpresa tomou seu rosto. Foi quando o garoto se moveu com rapidez e destreza
inumanas contra uma Desertora que eu percebi: ele era um Protetor.
— Porra — Lore grunhiu, quando Nathan acertou um soco em seu rosto.
Fosse ele um antigo conhecido ou não, Nathan era um Protetor, e eu sabia que não podia
acreditar em um deles. Ataquei com a mesma velocidade, então. Meus braços foram para o
pescoço do Protetor e, por algum motivo, ele não revidou. Nem Lore tentou lutar contra ele.
— Alyssa, por favor, eles não são quem você pensa.
— Não vou deixar que machuque minha amiga.
Ele soltou um som de horror.
— Amiga?
Lore olhava de mim para ele e dele para mim, sem parecer saber o que fazer. Ela devia
matá-lo, ou prendê-lo para Vicenzo. Mas ela não fez nada disso.
— Vamos embora, Alyssa. Agora — disse.
— Vai para o inferno! — Nathan rosnou para ela.
Com um único movimento, ele saiu dos meus braços, imobilizando-me com apenas uma
mão enquanto a outra tirava uma espada das costas e apontava para Lore.
— Você não quer fazer isso, Nathan. Mais um movimento e grito e então os outros estarão
aqui antes que possa pegar outra espada, da qual com certeza precisará se este for o caso.
Nathan parecia um animal encurralado. O braço estendido à minha frente, os olhos
queimando em fúria mal contida para Lore.
— Vocês vão pagar por isso.
— Não — Lore disse, quase a contragosto, me dando uma pequena olhada. — Nós não
vamos. Mas se eles te pegarem, você com certeza vai. — Lore me deu um pequeno meneio de
cabeça. — E ela será a executora. Quer mesmo isso?
Esta última parte não foi para o homem de olhos azuis. Foi para mim. Eu havia perdido as
contas de quantas vezes havia sido o carrasco de Vicenzo. Mal me lembrava de metade dos
rostos que precisei matar. E mesmo que talvez Nathan fosse um mentiroso e o inimigo, eu ainda
assim não gostava da ideia de matar por Vicenzo mais uma vez. Não com o ódio que corria em
minhas veias toda vez que lembrava do homem de olhos de fumaça. E não quando me lembrava
das lágrimas de Nathan enquanto me encarava.
Eu entendi o recado de Lore.
Ergui meu braço e desci o cotovelo na nuca de Nathan, que desabou no chão, já
desacordado.
Eu não iria matá-lo, então o tiraria do meu caminho.
CAPÍTULO 16

— Você está mentindo para mim — eu disse à Lore, enquanto me afastava dos portões do
jardim e deixava os Desertores para trás, que ainda não sabiam a respeito do Protetor intruso.
— Fique quieta — ela sibilou, me lançando um olhar afiado. — Falamos sobre isso depois.
— Sobre o fato de haver um Protetor atrás de mim, que não parece em nada querer me
matar?
Lore parou tão rápido que trombei em suas costas. Ela se virou e me olhou, como nunca
tinha olhado antes.
— Cale a boca, Alyssa.
Eu me calei, mas porque Marco surgiu do nada, nos encarando com aquele olhar frio e
desconfiado. Ele apontou para mim.
— Vicenzo quer que você se encontre com Sybil — então, apontou para Lore —, e você
não tem trabalho para fazer?
— Estou fazendo meu trabalho.
Ele estalou a língua.
— Para os portões, Lorena. — Ela começou a protestar, mas Marco a parou. — Agora.
Lore me encarou, irritada e também com receio, mas me deixou sem dizer uma palavra,
indo em direção aos portões como Marco havia ordenado. Eu havia aprendido algo muito
importante aqui em Florença. Quando alguém como Marco ou Vicenzo ordenavam algo, sua
única resposta segura era a concordância. Você seguia a ordem. Não havia espaço para
questionamentos, nem para recusas.
Mas eu não estava no meu melhor momento.
— Por que preciso encontrar Sybil?
Marco me encarou, desinteressado.
— Porque Vicenzo mandou, garota.
Garota. Como se ele fosse muitos anos mais velho que eu.
— Onde ela está?
— No salão de reuniões, na ala leste.
Assenti e logo me afastei deles. Eu não queria passar mais tempo do que estritamente
necessário com Marco. Principalmente hoje, quando minha mente estava agitada demais para
raciocinar, ou me lembrar que devia cumprir um papel.
Então percebi meu infortúnio: se eu estava prestes a encontrar Sybil, isso queria dizer que
eu estava prestes a ter minha mente revirada para encontrar qualquer coisa que pudesse indicar
que minhas memórias ainda estavam aqui, presas em algum lugar, assim ela poderia ajudar a
trazê-las à tona.
Mas se ela fizesse isso agora, ela com certeza veria o estranho na floresta.
Eu não me importava com ele. Não o conhecia, ou não me lembrava quem era, mas Sybil
saber sobre ele queria dizer que saberia que Lore e eu o deixamos vivo, mesmo sabendo que era
um Protetor, um inimigo.
Vicenzo mataria Lore por isso, e com certeza me puniria de alguma forma também. E
sabe-se lá o que faria com o estranho.
Merda.
Decidi enrolar, pegando o caminho mais longo, que adentrava o labirinto de flores. Eu
precisava pensar. Por que Lore não tinha matado Nathan? Ela o conhecia? Como diabos ele me
conhecia? Ou melhor, por que eu não me lembrava dele?
O vazio em minha mente ecoava, sufocando o vazio em meu peito.
Ele havia me chamado de amor.
Eu havia pedido isso. Havia pedido que meu passado aparecesse. Eu só não sabia que seria
assim.
— O que está fazendo em meu jardim, Alyssa?
A voz fria me fez tremer. Respirei fundo para me acalmar, ergui o queixo, e me virei para
seu dono.
— Estou indo encontrar Sybil, como pediu.
Vicenzo cerrou os olhos pra mim.
— Então decidiu passar pelo meu labirinto?
Ele estava parado ao lado da estátua de uma mulher, o rosto já erodido, como a maioria das
estátuas aqui, mas os cabelos longos e o corpo curvilíneo era distinguível, assim como o belo
colar em seu pescoço. Seu vestido até lembrava um pouco um que Vicenzo me deu.
— Eu gosto daqui.
Vicenzo tombou a cabeça, me observando da cabeça aos pés. As roupas de corrida — que
nem deviam ser consideradas esportivas, porque era uma calça e blusa ambas de linho — com
certeza não eram suas favoritas, mas eram as que havia me permitido ter e lhe dava uma dica do
que eu andava fazendo.
— Esteve fora do palácio?
Assenti.
— Sim, mestre. Apenas pela floresta, acompanhada, claro.
— Claro.
Reparei em sua mão direita, tocando o pé da estátua.
— É uma estátua de alguém que conheceu?
Ele demorou para responder, mas quando o fez, olhava para a figura de pedra.
— Quando olha para mim, Alyssa, vê alguém capaz de amar? — indagou.
Dificilmente.
— Acho que todo mundo deve ser capaz de amar — respondi.
Um meio sorriso surgiu em seus lábios.
— A mulher que inspirou esta estátua dizia o contrário. Dizia que o amor era um luxo, um
acontecimento raro e improvável na melhor das hipóteses.
— Isso é bom ou ruim?
Vicenzo voltou seus olhos para mim.
— É perigoso.
Pensei a respeito. Ele claramente havia sentido algo por alguém, muito provavelmente a
mulher que inspirara aquela estátua, mas o que havia acontecido? Ela não era imortal como ele?
Talvez fosse apenas humana — o que pensando bem era improvável dado sua repulsa pelos
humanos. Era possível que a mulher houvesse morrido e ponto.
Dei de ombros.
— Muitas coisas são. — Apontei para a estátua. — O que aconteceu?
Ele claramente não queria falar sobre isso, mas eu não podia ter minha mente escaneada
agora. Lidar com Vicenzo era a opção menos pior.
— O Destino se intrometeu. — Seus olhos engoliam os meus. — Você sabe que, um dia,
fui como os Protetores, até que percebi que a organização deles era injusta e cheia de falsos
moralismos. — Assenti em confirmação. Eu já havia ouvido aquela história. — Por que as
Guardiãs deviam ser mais fortes, abençoadas com todo tipo de poder, quando éramos nós quem
ficavam na linha de frente da batalha? Quando era eu que lutava para manter a balança, como o
Destino bem desejava? Não acha injusto, Alyssa?
Ponderei.
— De fato parece questionável.
— E eu questionei. — Seus dedos deixaram de tocar a estátua quando ele deu alguns
passos em minha direção. — Sabe a resposta que recebi?
Eu apenas o encarei, aguardando sua resposta.
— Séculos de reclusão, preso nesse mesmo Jardim, enclausurado em uma estátua.
Preso em uma estátua?
Havia um lugar no Jardim que eu nunca me aproximava muito, ficava mais distante, meio
escondido. Parecia uma pequena gruta escavada, e uma estátua residia em seu interior, atrás de
grades de ouro. Teria sido ali sua prisão? E como aquilo era possível?
Mas eu sabia que ele não responderia qualquer uma dessas perguntas.
— Mas você conseguiu sua imortalidade.
Ele ponderou, arrancando uma rosa do jardim.
— O custo foi alto, pode ter certeza.
Eu o observei. Nossa última interação não tinha sido a melhor, e eu ainda não queria estar
tão perto dele, mas estava curiosa para saber mais sobre sua vida e como chegou aqui. Então eu
continuei:
— É por causa dos seus olhos?
Ele deu de ombros, colocando a rosa sobre os pés da estátua.
— Meus olhos foi uma jogada de vaidade de uma das Guardiãs, mas não me importo. Teria
sido mais eficiente se tivesse tirado minha visão.
Eu sabia que ele era capaz de enxergar, mas enxergava como nós?
— Não mudou nada na sua capacidade de ver?
Vicenzo ergueu os olhos para mim.
— Posso ver que você tem olhos negros como a noite e cabelos tão escuros quanto ébano.
Posso ver que seu rosto é oval, mas marcado por traços fortes. Mas eu não vejo cores.
— Nenhuma?
— Apenas preto e branco. Mas tudo bem, sempre preferi o mundo nessas cores.
Eu o observei.
— Então poderia ter sido pior — sugeri.
— E foi. Perdi mais do que a capacidade de ver cores, Alyssa.
Eu sabia que a Alyssa questionadora era a que ele menos gostava, mas não fui capaz de me
impedir.
— E o que mais perdeu?
Vicenzo me encarou, os olhos me engolindo como se ele me visse pela primeira vez após
anos.
— Talvez eu tenha perdido tanto quanto você.
Eu apenas o fitei, tentando compreender suas palavras. Ele sabia o que eu havia perdido,
além da porcaria da minha identidade, das minhas memórias? Eu não sabia se poderia confiar
que Vicenzo me diria a verdade quanto a saber quem eu era. Agora, com um estranho
aparecendo e dizendo ter me conhecido a vida toda, ter me chamado de “amor”... Uma parte
muito grande de mim queria poder acreditar que Nathan estava dizendo a verdade. Era uma
verdade mais bonita que a que Vicenzo me apresentava.
Ergui os olhos para a estátua, observando a forma deteriorada de uma mulher e finalmente
concluindo o óbvio.
— Você perdeu alguém que amava.
Ele se aproximou como um raio, parando a poucos centímetros de distância.
— Chega dessa conversa.
Engoli em seco.
— Tudo bem. Vou encontrar Sybil, como pediu. — Na verdade, eu não iria, nem que
precisasse me esconder nos jardins para sempre.
Comecei a dar as costas para ele, mas ele agarrou meu braço e me puxou de volta. Meu
corpo bateu contra o dele e eu prendi a respiração, o medo já crescendo em mim.
— Eu já estava saindo — sussurrei. — Não precisa fazer isso.
Senti seu peito subir e descer em uma respiração pesada, o ar raspando minha nuca. Seus
dedos provavelmente já deixavam marcas na minha pele. Meu coração trovejava em meu peito,
ecoando até meus ouvidos.
— Me deixe ir, Vicenzo.
Eu jurava que o tinha ouvido rosnar.
— Cale a boca.
Suas mãos me forçaram a virar e quando encarei seu rosto, realmente senti medo.
Vicenzo era imprevisível e assustador, mas agora eu sentia como se devesse ter corrido.
— Você nunca cala a boca — ele rosnou.
De repente, minhas costas estavam prensadas contra um dos mármores que formavam um
círculo em volta da estátua. Ele me olhou apenas uma vez e então me beijou. Sua boca bateu
contra a minha com força e eu tentei empurrá-lo, porém, seu corpo era como mármore e ele nem
se mexeu. Eu pensei se talvez devesse ficar quieta, deixar acontecer que logo terminaria, mas eu
não conseguia fazer meu corpo cooperar, a voz em minha mente gritava em puro ódio,
determinada a se livrar, a lutar. E mesmo sabendo que eu seria punida por não querer aquilo,
ainda assim não aceitaria que ele me forçasse. Tentei formular as palavras necessárias para dizer
que parasse, mas era impossível, e minha vontade estava bem clara pelas minhas mãos tentando
afastá-lo e minha boca inerte na dele. Ele sabia que eu não queria aquilo. E não se importava.
Então não me importei em fazer exatamente o que eu queria.
Mordi seu lábio com força, e recolhendo todo aquele poder dentro de mim, empurrei
Vicenzo para trás o suficiente para que eu pudesse afastar minha boca da dele. Com o coração
martelando contra o peito, dei uma joelhada forte bem no meio de suas pernas e pulei para longe
dele, derrubando uma das colunas de mármore pelo meu caminho.
Vicenzo me fuzilou, mas eu o fuzilei de volta com o dobro da intensidade. Eu tinha o
dobro da raiva. Ele podia ter me tirado das ruas, podia ter salvado minha vida e me mantido
segura dos outros até agora, mas naquele momento ele havia se tornado o inimigo imediato e eu
acreditava ter sobrevivido por uma razão e não seria para ser assediada por um imortal estúpido.
— Eu invejo sua situação. Não se lembrar de nada deve ter seu lado positivo — ele disse,
como se não tivesse acabado de me agarrar à força.
O bom de não ter memórias? Você não se lembra do porquê deveria dar a mínima. Você
não se lembra do porquê deveria ter medo. Agorinha? Eu não dou a mínima!
— Seria conveniente para você esquecer que está tão apodrecido por dentro por causa de
uma mulher que não tem mais, que precisa se forçar para cima de outra!
Seus lábios se contorceram em um sorriso estranho.
— Continue falando comigo assim e ficará nos túneis por longas noites.
Trinquei os dentes.
— Continue agindo como se eu fosse uma boneca sem opinião e talvez eu vá preferir viver
nas ruas a viver aqui.
Seu tapa foi tão inesperado e forte que deixou minha bochecha ardendo, e me
desequilibrou, quase me jogando no chão. Fúria rugiu dentro de mim e eu revidei. Não havia
mais espaço para medo quando me joguei contra ele, socando seu rosto. Normalmente eu era
quieta, aceitava o que estava me sendo oferecido, mas hoje era como se tivesse acordado uma
revolta dentro de mim.
Vicenzo me acertou mais uma vez, dessa vez cortando meu lábio inferior, mas eu consegui
acertá-lo no olho e mesmo com a dor cortando minha pele, satisfação cresceu em meu âmago.
Ele riu quando o soquei novamente, e quando o empurrei para longe, fazendo-o recuar, seus
olhos de fumaça se prenderam nos meus e ele disse:
— Você não é capaz de me vencer, Alyssa. — Ele ergueu as mãos. — Mas juntos podemos
ser mais fortes.
— Você acabou de me agarrar e então me bater, Vicenzo. Não venha me falar que
podemos ser parceiros quando você é o único que toma e eu sou a única que cede.
Ele deu de ombros.
— Estou vivo há mais tempo do que você pode contar, Alyssa. Estou bastante acostumado
a ter exatamente o que quero, quando quero. Não se engane com esse beijo, porque ele foi apenas
um teste — disse, se aproximando. Eu me forcei a ficar imóvel enquanto ele tocava meu lábio
cortado, limpando o sangue dali. Se eu reagisse como uma presa, então ele me engoliria. — Não
se esqueça do que estou oferecendo aqui. Pode manter seu fogo, sua fúria, eu não me importo.
Mas eu posso te tornar forte, posso fazer de você alguém que irão temer. Você tem a opção de
lutar nesta guerra contra o Destino comigo. Você precisa se decidir logo. — Seus dedos
pressionaram o hematoma em minha bochecha, me fazendo engolir um gemido de dor. —
Porque se não estiver ao meu lado, estará contra mim.
Bati sua mão para longe do meu rosto.
— Vá se limpar, Alyssa, e coloque a cabeça no lugar. A próxima vez que me atacar,
arrancarei sua mão.
Eu o ataquei?
Eu estava comprando uma briga que não poderia ganhar, mas ele também não me venceria
tão facilmente. Dois podem jogar este jogo.
— Claro, mestre. — Sorri cinicamente. Dei um passo para trás e fiz uma pequena
reverência para ele. — Ficarei reclusa para pensar no que fiz.
Reclusa e o mais longe possível de Sybil.
Dei as costas para Vicenzo, que voltou a olhar a bendita da estátua. Quando eu sabia que
ele não podia mais me ver, corri para meu quarto, os olhos segurando lágrimas que eu não
derramaria.
CAPÍTULO 17

Ela está viva.


Ela está viva.
Ela está viva.
Alyssa estava viva.
Vicenzo não a matou, mas tirou toda e qualquer memória que tinha.
Ela não se lembrava de mim, mas estava viva.
E ela também me nocauteou para conseguir ajudar uma Desertora. Uma Desertora que
dizia ser sua amiga.
Mas que porra?!
Massageei minha nuca, onde ela havia acertado para me fazer apagar. Porra, isso doeu.
Mas, caramba, quem se importa? Alyssa estava viva! Minha Aly estava viva! Dessa vez
massageei meu peito, sentindo meu coração bater mais aliviado agora. Na verdade, ele parecia
bater de verdade depois de semanas dormente.
Se ela estava viva, então isto não tinha acabado. Vicenzo não tinha ganhado e eu não era
melhor morto.
E porra, ela estava viva pra um caralho! Eu senti sua respiração, senti seu coração bater e
senti a porra da sua pele contra a minha quando me prendeu e me ameaçou com a porcaria de um
grampo. Um grampo! Ela havia aprendido direitinho.
Eu senti Alyssa respirar. Seu cheiro preencheu meus sentidos. Seu rosto ficou marcado em
minha mente.
Ela estava viva. Mas Vicenzo havia feito algo com sua cabeça.
Acordei algumas horas depois do nocaute, intocado e escondido no meio dos arbustos da
floresta. Ela não havia me entregado a Vicenzo, mesmo sem memórias, o que apenas provava
que seu coração nunca a trairia e que ele não havia conseguido manipulá-la o suficiente para
transformá-la em alguém completamente diferente.
Alyssa e a Desertora que não me matou haviam deixado minhas armas ao meu lado. Eu
obviamente não confiava na garota estranha com garras bizarras, mas precisava admitir que
talvez ela fosse um pouco melhor que os outros se havia me deixado vivo. Se foi Aly quem pediu
ou não, não tinha como saber, mas de qualquer forma apenas reafirmava o que Alyssa amava
dizer: o mundo não era preto e branco, e as pessoas não eram só más ou só boas.
Mas era só fechar os olhos e pensar no que podia ter lhe acontecido durante todas essas
semanas que ela passou no Palácio, com Vicenzo por perto, que o desespero ameaçava tirar meu
foco. Eu precisava lembrar que ela não parecia machucada. Não havia nenhuma cicatriz ou
ferimento à mostra, mas seu corpo estava bem coberto e as piores cicatrizes eram sempre... Não.
Eu tinha um plano, que agora ganhou um propósito ainda maior. Iria tirar Alyssa dessa cidade e
levá-la a salvo até o Outro Lado ou qualquer sede que pudesse mantê-la segura.
O Destino havia me guiado até ali por um motivo, e eu não falharia. Não importava o que
fosse preciso ser feito, eu a tiraria das garras do desgraçado imortal. Essa era minha prioridade.
Esse era meu plano.
Quando a vi naquele dia, eu não acreditei, jurei que meus olhos estavam me enganando.
Até cheguei a cogitar que Vicenzo poderia estar usando a Feiticeira para me enlouquecer, me
enganar, me torturar. Mas seu cheiro era tão real, que quando a persegui na floresta —
acompanhando sua corrida, até que a Desertora se distanciou o suficiente para eu tentar o
primeiro contato —, eu pareci ter ressuscitado. Era como se ao vê-la, eu finalmente pudesse
respirar.
Mesmo odiando o Destino, eu não podia deixar de me sentir um pouco grato. Seja lá quais
fossem os seus planos, havia me dado mais uma chance. E eu não pretendia desperdiçá-la.
E, para isso, eu precisaria de ajuda.
Meu coração batia tão forte, tão rápido, que era difícil me concentrar em qualquer coisa,
mas de alguma forma fui capaz de abrir a mente e chamar por Roman, Serena, Jasper e Jonnah.
Não tentei falar com meu pai, apesar de ter certeza de que ele já sabia onde eu estava.
Também não tentei avisar Jasmine e pediria que continuasse assim. Não queria lhe dar
esperanças se não conseguisse tirar Alyssa daqui viva. Claro, esta não era uma opção, mas
mesmo assim. Parecia cruel avisá-la quando ainda não poderia ver a filha. E o Destino sabia que
aquela mulher, pela filha, caminharia até Florença se fosse preciso e eu não podia expô-la a risco.
Nenhum deles, na verdade. Alyssa chutaria minha bunda, e eu sabia que quando ela voltasse para
casa, ela precisaria de todos eles presentes.
— Nathan? — Serena foi a primeira a falar.
— Ela está aqui. — Porra, acho que até pensei em voz alta.
— Quem? — Jasper perguntou.
— Alyssa — soltei, em meio a uma respiração.
— O quê? — Jonnah parecia sem fôlego.
— Nathan, onde você está? — Jasper perguntou, a voz séria.
— Em Florença, e Alyssa está aqui. Vicenzo não a matou. Ela não está morta. Alyssa não
está morta — eu disparei a falar. — Eu a vi. Com meus próprios olhos. A toquei. Senti seu
cheiro. É ela. Não é um truque.
— E onde ela está? — Jonnah me interrompeu, a voz embargada de emoção, descrença e
ao mesmo tempo esperança.
— Ela... Ela está no palácio.
— Eu sabia que não podia ser assim que ela acabava! — Roman rugiu, e eu podia
imaginá-lo batendo no peito.
— Nathan, isso não faz sentido. E se você a viu, se tocou nela, porque ela não está com
você agora? — Jasper questionou. — Eles pegaram você?
Balancei a cabeça, desesperado. Caramba, como eu explicava isso? Então me veio o óbvio
à cabeça: podia mostrar, essa era exatamente a melhor coisa da telepatia. Fechei os olhos e me
concentrei nas memórias. Mostrei a eles o momento em que a avistei, além dos portões, e seu
cheiro quase me derrubou. Então continuei, mostrando o momento em que a segui pela floresta,
observando-a fazer sua corrida matinal, e a encurralando, pronto para levá-la dali, até perceber
que na verdade ela nem se lembrava de quem eu era. Mais uma vez. O Destino tinha um humor
de merda e parecia estar sem muito repertório para escrever o nosso roteiro. Mostrei quando ela,
em sua graciosidade assassina — que secretamente me enchia de orgulho — me nocauteou para
ajudar uma Desertora, entre tantas malditas pessoas no mundo.
— Caralho. — Acho que foi a voz de Roman.
Mesmo que baixinho, eu podia ouvir o soluço de Serena.
— Ele tirou a memória dela — Jasper apontou o óbvio.
— Imagino de onde Vicenzo teve a ideia — falei, amargo.
— Ah, pelo Destino, precisamos tirar ela daí imediatamente! — Serena falou, em
desespero.
Fechei os olhos, o barulho de suas vozes se misturando enquanto iniciavam um longo
debate sobre como fazer isso.
— Preciso contar para Jasmine — Jonnah disse.
— Precisamos informar aos Protetores — foi Serena dessa vez.
Por incrível que pareça, Jasper se adiantou no meu lugar na hora de negar.
— Não.
— Como não? — Jonnah questionou, irritado. — Jasmine é a mãe dela, precisa saber. Isso
pode ajudá-la.
— Não iremos contar a Jasmine até que tenhamos tirado Alyssa deste palácio em
segurança. Não quero Jasmine nessa luta, não da forma como ela se encontra agora — falou
Jasper. Graças aos céus! Eu também não queria. — E não iremos falar com nenhum outro
Protetor até termos controle da situação. As coisas estão tensas desde o ataque e a elite dos
Protetores estão completamente descontrolados, disputando quem será o primeiro a trazer a
solução para todos nossos problemas. E quando souberem que Alyssa está viva, a missão de
tirá-la de Florença será concebida por idiotas que não se importam de verdade com seu bem-
estar, mas sim com a glória da missão. E Ravenna... Não confio nela.
— Também não dá para saber como reagiriam ao descobrir que ela não tem mais
memória. Se achariam que um resgate vale a pena — Roman apontou.
Eu não havia pensado nisso, mas conhecendo certos Protetores, eu apostaria em reações
não muito favoráveis a nós.
— Akantha com certeza usaria disso para defender uma execução, ao invés de um resgate.
Neta ou não. Ainda caberia bem em seu discurso de porque precisam dar imortalidade aos
Protetores, já que não haveria mais Fidly. Até ouvi falar que ela já usa esse argumento para
movimentar a elite da Europa — Jonnah disse, e todo meu corpo travou. — Sem a Fidly, o
argumento se torna mil vezes mais sólido.
Eu poderia mesmo imaginar Akantha fazendo algo assim, mas será que a apoiariam?
Seriam tão incrivelmente indiferentes à vida de Alyssa?
— Precisamos pensar — Serena voltou a falar. — Nathan não pode fazer tudo sozinho
também.
— Você acha que Freya ajudaria até chegarmos aí? — Roman perguntou.
— Acho perigoso demais vocês virem. Nem sei como Vicenzo ainda não me encontrou. Eu
tenho a pedra de Freya para me tirar rapidamente daqui, mas vocês não teriam... — Parei de
falar de repente, a boca ficando amarga com o reconhecimento. — Ah, não.
— O quê? — Serena pareceu preocupada.
— Freya me deu apenas uma pedra. Estou supondo que ela sirva apenas para uma
pessoa.
— Por isso você não pode fazer isso sozinho! Posso estar aí amanhã mesmo, Nathan.
Trabalharemos juntos — Roman argumentou.
Parte de mim realmente queria aceitar sua proposta. Mesmo que eu não admitisse em voz
alta, eu estava apavorado com a ideia de tirar Alyssa dali. Não seria fácil. Vicenzo devia ter
olhos sobre ela vinte e quatro horas por dia, Desertores imundos seguindo todos seus passos. E
não demoraria muito para que soubesse que eu estava ali, principalmente não com seus
amiguinhos de outras dimensões andando por aí como se estivessem em casa. Ajuda era bem-
vinda. Mas trazê-los aqui apenas colocaria mais de nós em perigo, e mesmo que lutar ao lado de
Roman novamente me fizesse lembrar dos bons momentos que tivemos anos atrás, quem sabe
uma oportunidade de reviver uma amizade que achei estar perdida, ele ainda nem havia se
recuperado completamente dos dias em coma.
Não. Eu faria isso sozinho até onde fosse possível. E eu tinha uma pedra. Era o suficiente
para tirá-la dali.
Eu só precisava fazê-la lembrar por que deveria fugir.
— Não quero vocês aqui. Preciso que organizem tudo para nossa chegada. Dividam-se
entre os que irão se certificar que Aly esteja protegida quando deixar Florença, e os que irão
garantir que os Desertores nesta cidade sofram o máximo possível até sairmos. — Eu olhei ao
redor. — Vicenzo recebe cargas de fora. Florença não é autossuficiente e suas fronteiras não
são muralhas. Inicie o maior embargo que já fizeram. Falem com Freya sobre isso e comecem
imediatamente. Quero esse desgraçado não tendo nem mesmo gelato em suas ruas. E quanto
pior ficar, mais pessoas deixarão a cidade, e os humanos estarão em menor perigo.
— Um embargo não irá tirar Vicenzo daí, Nathan — Jasper relembrou.
— Não, mas fará do reinado dele um inferno. Quero ele fraco. Quero que os Desertores se
arrependam da deserção. Enquanto isso estarei fazendo meu próprio inferno por aqui.
Ninguém parecia ao menos respirar.
— Porra de plano idiota.
— Ele sempre cria essas merdas heróicas.
— Pode ser razoavelmente inteligente se soubermos como operar.
— Eu só quero minha amiga de volta.
Suas vozes se misturavam em minha cabeça, já me causando uma enxaqueca, quando todo
meu ar pareceu ser arrancado dos meus pulmões quando uma lufada de vento — que prometia
dias de outono mais frios — me trouxe o cheiro dela. Pulei da árvore em que estava e olhei ao
redor, tentando distinguir de onde ela vinha.
— Ela está aqui.
— Onde? — alguém perguntou, mas eu nem distinguia suas vozes mais.
— Na floresta, atrás do Jardim. Posso sentir seu cheiro.
— Ele a deixa sair? — acho que foi Serena quem perguntou.
— Ele está tentando ganhar sua confiança. Sua lealdade. Ela se sente mais livre, enquanto
ele nunca esteve tão no controle — Jasper concluiu.
— Se ela está aí, há Desertores por perto. Cuidado, Nathan — Jonnah alertou.
— Porra, vocês falam demais. Aviso se algo acontecer. — Ouvi o que parecia uma
respiração tensa a alguns metros de distância. Passos rápidos. — Vou tirá-la daqui. Vocês nos
encontram em Roma.
Não defini data. Não queria trazer nenhum azar. Fechei a mente e o barulho finalmente
cessou. Eu tiraria Alyssa dali muito antes de seu aniversário, que ocorreria em menos de um mês.
Era essa minha missão, e eu não falharia. A pedra era um problema, porque como faria Alyssa
usá-la, se ela nem mesmo se lembrava do motivo pelo qual deveria estar fugindo? Porra, ela até
havia feito uma “amiga”. Uma Desertora, porra!
Eu ficaria para trás se isso garantisse que ela se salvasse, mas iria pensar em um jeito de ir
junto. Não pretendia desistir da vida que poderia ter com ela, logo agora que descobri que isso
ainda era uma possibilidade de se viver.
Os passos foram se tornando mais fortes, mais rápidos, e eu soube que ela estava chegando
mais perto. Interceptei seu caminho, apenas esperando que chegasse até mim. Dessa vez, eu
torcia para não ser recebido com uma arma em meu pescoço.
Mas fui recebido com uma visão pior.
A primeira coisa que notei foi o lábio cortado. A segunda foi o rosto coberto por lágrimas.
Raiva aqueceu meu estômago e meu coração pareceu bater dez vezes mais rápido, eu só não
sabia dizer se pela antecipação de vê-la ou de vê-la assim. Eu ia matar Vicenzo. Ia matar quem
quer que tivesse feito aquilo com ela.
Alyssa demorou mais tempo do que antes para me perceber parado ali. Ela freou de uma
vez, os pés se afundando na terra. Seus olhos encontraram os meus, e sua mão logo subiu para o
rosto, secando as lágrimas. Então, ergueu o queixo e me encarou com cautela, provavelmente
imaginando o que fazer em seguida: me degolar ou correr de volta para o palácio. Eu mostraria
que nenhuma das opções era a certa.
— Oi, amor — fui eu quem quebrou o silêncio.
Ela nem piscava.
— O que está fazendo aqui?
Apontei para um canto mais ao sul da floresta.
— Você me nocauteou e escondeu bem ali. Depois vim andando até aqui. Só apreciando a
paisagem e tentando entender por que a minha namorada fugiu com nossa inimiga.
Alyssa quase pareceu horrorizada. Seus olhos já eram naturalmente grandes, mas de
repente ficaram ainda maiores.
— Namorada? Você acha que sou idiota? Se eu tivesse um namorado, ele não demoraria
meses para vir me encontrar. — Suas palavras eram ríspidas. Eu podia ver que aquilo a
machucava, sentir como se estivesse sozinha no mundo, como se não fosse importante para
ninguém. Aposto que Vicenzo havia explorado esse sentimento.
— Mas isso não é verdade. Eu te disse que pensei que estava morta. — Apontei para o
castelo. — Vicenzo a levou deixando implícito que a mataria.
Seus dedos, inconscientemente, tocaram o lábio. Ah, então foi ele. O desgraçado perderia a
mão por isso. E a cabeça por todo o resto.
Será que, sem a cabeça, ele ainda continuaria respirando? Como aquilo funcionaria?
— Por que então ele me daria um lugar seguro para ficar?
Suspirei.
— Segurança é um termo subjetivo. Você pode estar cercada por guardas e ainda estar em
perigo. Pode ter um quarto em um palácio e ainda assim não se sentir em casa. Pode estar,
inclusive, sob o teto do inimigo acreditando que ele é um amigo.
Ela bufou.
— Eu sei que ele não é meu amigo. Mas ele me dá um propósito. Vicenzo ao menos me
promete um futuro. Eu não tenho nada além disso.
Raiva pulsou e eu precisei me lembrar de ter paciência. Era preciso lhe mostrar, não
apenas falar. Alyssa não se lembrava, não era culpa dela. Mesmo assim, suas palavras me faziam
querer gritar tamanha era minha frustração.
— Você tem muito. Tem a mim e amigos. Tem mãe e um cachorro que não pode esperar
para te ver de novo. Você tem uma família, Alyssa, que vai muito além de laços sanguíneos.
Muito além de promessas ilusórias. — Dei um passo à frente, testando-a, vendo se correria ou
atacaria. Quando não fez nenhum dos dois, apenas continuou me encarando, senti que podia
ganhar essa luta. Podia vencer aquele vazio em sua mente. — Você tem a mim.
Uma lágrima solitária escorreu, tocando o corte em seu lábio, espalhando o sangue até seu
queixo. Eu queria tanto limpar aquele rastro que quase me fazia sentir dor física. Mas fiquei
parado. Me forcei a ir com calma.
— É uma história conveniente, não é? — ela disse. — Eu não ter memórias e você
aparecer meses mais tarde alegando ser alguém importante. Você pode ser qualquer um, e eu
nem saberia.
Engoli em seco.
— Ouça seu coração, Aly. Analise os sinais. Você se sente em perigo comigo?
— Você machucou minha amiga — acusou.
— Uma Desertora.
Ela empinou o nariz. Como eu senti falta de vê-la assim, petulante. Mesmo agora, com
medo e raiva, ainda adorava cada movimento que ela fazia.
— Onde eu moro, Protetores são os inimigos — retrucou. — E não importa o que Lore é.
Ela não é minha inimiga.
— Eu não sou nem nunca serei seu inimigo — afirmei. — E se tivesse suas memórias,
saberia muito bem que importa. Ou você agora se afeiçoou por todos os Desertores?
Ela parou para pensar, e eu a conhecia o suficiente para entender que havia quem a
perturbava naquele palácio.
— O mundo não é preto e branco. Há Desertores muito ruins, assim como tenho certeza de
que há Protetores ainda piores.
Bem, eu não podia discordar disso. Poderia citar alguns Protetores que de fato deviam ser
piores do que sua amiguinha Desertora. Mas isso não é sobre um lado ou outro. É sobre eu e ela.
Sobre Alyssa e sua família, seus amigos. Sobre com quem ela deveria estar. De quem ela foi
roubada. Sobre como ela foi tirada de si mesma.
Dei mais um passo à frente. Ela não fugiu, então dei mais outro. E outro. E outro. Até que
eu pudesse tocá-la se erguesse o braço. Seu peito subia e descia em sucessivas respirações
profundas, seus olhos desconfiados presos nos meus. Eu queria tanto tocá-la. Queria tanto sentir
o calor na sua pele, apenas me certificar de que ela era real, de que não era um delírio meu, e de
que ela não foi tocada pelo beijo frio da morte. Era fisicamente doloroso olhar para Alyssa e não
a tocar.
Ergui minha mão, mas ela falou:
— Não toque em mim.
Sua voz não foi tão forte quanto deveria ter sido. Não foi uma exigência, foi um pedido, e
aquilo doeu ainda mais.
— Por quê?
— Porque... — seus olhos estavam presos nos meus — porque eu não saberia como agir.
Você... — Ela franziu o rosto. — Seus olhos são tão azuis.
É sério? Segurei um sorriso com os dentes. Depois de tudo o que aconteceu hoje, era nisso
que ela estava pensando? Em meus olhos? Porra, eu odiava o Destino, mas nesse momento eu
não poderia estar mais feliz pelos seus intermédios divinos, porque não havia chance nesse
mundo que eu conseguiria viver uma vida inteira sem essa mulher.
— E os seus são tão escuros como a noite. Como a escuridão completa.
Em outra vida, o que parecia tanto tempo atrás, apesar de terem se passado apenas meses,
eu havia dito o mesmo para ela, enquanto treinávamos. Eu observei seu rosto se iluminar, e então
suas bochechas parecerem coradas, e com um impulso de coragem, toquei seu rosto.
Era só isso, apenas um toque e eu poderia voltar a ficar em paz. Aly não me afastou
quando avancei. Na verdade, nem se mexeu, mal parecia respirar agora. Desci meus dedos,
roçando o sangue já coagulado em seu lábio. Alyssa estremeceu levemente, e se eu fosse capaz,
aquele palácio teria virado cinzas. Vicenzo teria virado cinzas.
— Apenas veja, Aly. Olha o que ele fez.
— Como sabe que foi Vicenzo? — ela retrucou.
— Não foi?
Ela não negou, porém.
Respirei fundo, me mantendo firme, porque a gravidade parecia não me puxar para o
centro da Terra, mas sim para ela. Como se fôssemos dois polos opostos que se atraíam e eu a
beijaria agora mesmo. A beijaria pela eternidade se isso explicasse a ela que a amava, e que
havia outras pessoas que a amavam, e que nunca a machucaríamos como ele a machucava.
Mostraria que ela não estava sozinha e não foi esquecida. Mas era preciso calma. Muita calma.
— Não pode confiar em alguém que te machuca.
— Eu nunca disse que confiava nele — sussurrou, como se soubesse que poderia estar
sendo vigiada.
— Então vamos embora. Comigo. Vamos voltar para casa, Aly.
Seus olhos se encheram de lágrimas e eu peguei uma que escorreu por sua bochecha.
— Eu não posso. — Era apenas um sussurro incerto.
— Você pode — eu disse. — Vicenzo não é seu dono.
Ela balançou a cabeça, como se lutasse uma guerra interna, buscando memórias que
claramente não chegavam à sua mente. Com certeza imaginava que o que eu dizia poderia ser
meras mentiras, mas será que Vicenzo havia feito algo que a prendesse ali?
Eu demorei demais para perceber meu erro, no entanto. Eu sempre errava com Alyssa,
sempre distraído demais para perceber o que se aproximava, o perigo que nos encurralava.
Demorei para ver naquele estacionamento escuro durante o festival da cidade, e então no Outro
Lado. E demorei de novo. Agora, os passos de Vicenzo estavam inquestionavelmente próximos e
seu cheiro enjoativo já enchia minhas narinas. Ao seu lado, eu podia prever que haviam pelo
menos meia dúzia de Desertores.
Alyssa congelou, a coluna ficando tão dura que parecia que se quebraria.
— Somos mais como parceiros de negócios, Nathan. — Sua voz preencheu a floresta, e
Aly se afastou de mim rapidamente, cruzando os braços como se tentasse se proteger, ao mesmo
tempo que passava a estampar uma máscara de indiferença. — Vejo que finalmente aceitou meu
convite de vir a Florença.
Aly cerrou os olhos para mim, absorvendo as palavras de Vicenzo e entendendo tudo
errado. Tentei tocá-la novamente, mas ela se afastou. Respirei fundo e me virei para encontrar
Vicenzo, acompanhado por seus cachorrinhos como um bom covarde que era. Suas feições eram
de puro divertimento. Ele soube usar as palavras, intensificar a desconfiança de Alyssa, como se
eu não tivesse vindo antes porque não queria. Porque não me importava.
— Deveria ter avisado que não tinha matado Alyssa, e eu teria vindo muito antes.
Dessa vez, ele sorriu expondo todos os dentes.
Desgraçado.
— Não vamos falar loucuras, Nathan. Eu nunca machucaria minha querida Alyssa. —
Seus olhos pararam sobre ela. — Temos muito o que fazer juntos. E agora quem sabe você
também pode fazer parte dos meus planos.
Trinquei os dentes, raiva fervorosa e quente fluindo por mim como uma onda gigante.
Ele havia feito de propósito. Havia usado Sybil e a pulseira como uma isca. Ele sabia que
atiçaria meu ódio, sabia que eu não tinha nada a perder indo até ali, não depois de passar tanto
tempo acreditando que Aly estava morta.
Vicenzo havia arquitetado tudo. Provavelmente soube que eu estava em Florença no
mesmo segundo em que cheguei. Esperou até que eu a encontrasse. Ele queria que eu a
encontrasse.
Observei os seis Desertores que nos rodearam, cercando-nos. Estes eram mais sérios, não
tinham aquele olhar perdido ou louco dos que eu costumava encontrar por aí. Estes, percebi,
eram os Desertores que haviam sido escolhidos a dedo por Vicenzo, e que haviam desertado com
prazer.
Era o alto escalão.
Dei um sorriso para eles.
Eu amaria quebrar o alto escalão de Vicenzo.
— Está na hora de decidir, Nathan. Você merece ficar em minha cidade? — o desgraçado
falou. — O que você acha, Alyssa?
Aly não ergueu o olhar para Vicenzo, mantendo-se calada. Entrei na sua frente,
protegendo-a do escrutínio de Vicenzo.
— Você já devia saber a resposta para isso, Vicenzo.
Mentalmente, calculei meus movimentos, quanto tempo eu demoraria para derrubar os
Desertores, antes que tocassem em Alyssa ou tentassem usá-la contra mim. A pedra em meu
bolso pesava com a expectativa de ser usada, mas como Aly poderia usá-la se não lembrava onde
era sua casa?
Abri a mente, apenas um segundo. Se eles me pegassem, me machucariam o suficiente
para que eu não conseguisse manter a mente limpa para usar a telepatia, então aquela era a hora
de fazer isso.
— Encontrem Freya e a faça nos tirar daqui.
Eu não sabia quem havia escutado primeiro. Talvez Jasper. De qualquer forma, os quatro
estavam avisados.
Olhei para o imortal, lembrando-me de cada momento daquela noite do ataque.
Lembrando-me de como ordenou que matassem nossos iniciantes, como quebrou o pescoço de
Henry como se ele fosse um animal, como levou Aly embora como se ela fosse nada mais que
um objeto de seu desdenho.
— Eu vou queimar sua cidade, seu desgraçado.
Então eu ataquei.
CAPÍTULO 18

Eu mal tive tempo de compreender a ameaça de Nathan antes que ele já estivesse
empunhando uma espada que tirou da sua mochila e atirando uma adaga em um dos Desertores.
Ofeguei em choque quando observei todos os seis guardas de Vicenzo atacarem ao mesmo
tempo. Nathan não venceria essa luta. Não tinha como.
Procurei por Vicenzo, esperando que intercedesse, mas seus braços estavam cruzados
sobre o peito, observando enquanto Nathan desviava de um golpe mortal e cravava sua espada no
estômago de um dos Desertores. Vicenzo não ergueu um dedo, porém parecia entretido pela luta,
provavelmente curioso para ver até onde o Protetor iria. Mas não era de seu interesse que Nathan
se aliasse a ele? Matá-lo não ajudaria em nada seus planos, sejam eles quais fossem.
E por que diabos eu me importava? Eu realmente acreditava em Nathan? Realmente
achava possível que o que ele dizia fosse verdade?
Os olhos de Vicenzo me pegaram olhando, e sua sobrancelha se ergueu, como em um
desafio. Se intrometa. Atreva-se — era o que dizia. Cerrei as mãos e me mantive firme,
esperando que ele parasse aquilo.
Ele pararia, não é?
Porque apesar de agora serem cinco contra um, e não mais seis, Nathan estava tendo
trabalho para se proteger contra os golpes mortais. Vi quando seu corpo girou e suas mãos se
estenderam em direções opostas, tentando acertar os dois Desertores que atacavam pelos lados.
Ele feriu um com sucesso, que precisou recuar, mas o outro lhe deu um soco no rosto e chutou
suas pernas. Nathan não caiu, porém. Impulsionou o corpo para cima e chutou o Desertor que se
aproximava pela frente. O último, voou até os pés de Vicenzo.
Meus próprios pés se movimentavam nervosamente, as unhas cravadas nas palmas da
minha mão.
Tudo bem. Estava tudo bem, porque Nathan parecia estar no controle. Inferno, por que eu
queria que ele estivesse no controle?
Mas ele estava contra Vicenzo. Não havia como vencer. Em todo tempo em que estive
aqui, nenhum Protetor foi capaz nem mesmo de lhe causar um arranhão. Ao contrário, Vicenzo
me fazia executá-los.
Quatro Desertores ainda atacavam, e eu podia ver que Nathan já estava ferido: sangue
escorrendo dos cortes em seu rosto, e claramente mais fraco em seu lado direito, que eu percebi
ser o dominante. Mas ele não parava. Era como um tornado, e a energia, a força, o poder, parecia
fluir dele. Por um segundo, questionei se todos os Protetores eram assim ou se ele que na
verdade era fora do comum.
Nathan derrubou o terceiro, partindo os ossos do braço do Desertor em dois pedaços, e o
grunhido de dor foi tão grotesco, que me vi segurando a respiração. Mas eu não era capaz de
desviar o olhar. Principalmente não quando flagrei Marco surgindo por trás de Vicenzo, espada
em mãos, então caminhando até Nathan. Ele não parecia ter pressa. Nathan estava ocupado
demais tentando desarmar um dos Desertores que agora o sufocava para perceber o outro se
aproximando. Eu conhecia Marco. Ele não hesitaria, não tentaria desarmar ou subjugar o
Protetor. Eu sabia que ele tinha repulsa completa pelos Protetores e iria acabar com Nathan na
primeira chance que surgisse.
Eu não sabia por quê.
Não tinha ideia do que esperava conseguir com isso.
Mas eu gritei.
O nome do Protetor saiu dos meus lábios tão rápido quanto a consciência de que, agora,
Vincenzo saberia que eu não era cegamente leal a ele. E eu não era. Nunca seria. Acreditava que
lealdade cega a qualquer um seria uma idiotice, e mesmo que eu estivesse em dívida com
Vicenzo, eu não poderia apenas observar enquanto Marco matava Nathan, porque... E se ele
estivesse falando a verdade? E se eu não pertencesse a este lugar, mas houvesse uma casa para a
qual voltar?
Vicenzo era capaz de me prometer poder, mas será que me daria um lar?
Nathan olhou para mim, preocupado, mas logo percebeu o novo indivíduo naquela luta. Eu
vi, completamente abismada, quando Vicenzo abriu um sorriso para mim. Não era um sorriso
feliz. Era um sorriso satisfeito, como se estivesse certo o tempo todo. Então, Marco não foi até
Nathan, não ergueu sua espada em direção ao intruso. Não. Ele veio caminhando até mim.
Percebi quando Nathan se desconcentrou da luta e dois Desertores puxaram seus braços
para trás, o derrubando no chão. Ele rapidamente se desviou de uma espada que desceu em sua
direção, os olhos ainda grudados em Marco, que se aproximava de mim.
Encarei a nova peça naquele tabuleiro, seus olhos raivosos presos em mim com uma
determinação louca. Vicenzo deixaria que ele me machucasse? Quando busquei a resposta nos
olhos de fumaça a alguns metros de distância, eu soube que não deveria confiar. Pude ouvir
Nathan gritar meu nome, apesar do zumbido crescente em meus ouvidos, a adrenalina me
deixando cada vez mais consciente de que aquilo não acabaria bem.
Dei um passo para trás no momento em que Marco apontou a espada para meu peito. Um
leve ar de divertimento passou por suas feições.
— Alyssa! — Nathan gritou. E algo em sua voz... algo na forma como chamou meu nome
fez com que um arrepio percorresse a minha espinha.
Ouvi o som de um osso quebrando, mas Marco agora bloqueava minha visão e eu não
podia ver quem era a vítima da vez.
— Alyssa irá fazer exatamente o que eu mandar, não vai? — Vicenzo questionou.
— Vai me machucar? — perguntei, não sei se para Marco ou Vicenzo. Nenhum mentiu
para mim. Nenhum negou.
Vicenzo queria saber onde estava minha lealdade? Pois bem. Minha lealdade estava em
mim mesma. Porque não importava o que me aconteceu no passado ou o que me deram no
presente. Eu lutaria por mim. Por enquanto, era tudo o que me lembrava, e tudo o que sabia
fazer.
Ele queria força? Me queria como sua arma?
Bem, aqui estava eu.
Então ataquei.
Graciosamente rodei meu corpo com uma destreza que eu sabia, em outra vida, havia me
sido ensinado. Chutei a espada da mão de Marco, que não conseguiu prever o movimento a
tempo. Seu olhar se tornou assassino, e ele avançou, mas estava lutando contra a garota errada.
Eu tinha meses de raiva acumulada e agora tinha a oportunidade de expô-la. E melhor, descontar
em Marco, o desgraçado arrogante que fez questão de mostrar o quão indesejada eu era ali.
Soquei seu rosto com força, sentindo seu nariz ceder em meu punho. De alguma forma,
agora Nathan estava ao meu lado, me puxando para trás e me encarando com um olhar estranho,
sangue manchando sua pele.
— Senti falta de ver você chutar a bunda de homens adultos.
Eu quase ri com seu comentário. Foi a visão de Sybil se aproximando que me fez parar.
— Ah, merda.
Nathan olhou para a Feiticeira.
— Eu teria vivido feliz sem encontrar essa coisa de novo.
Eu também.
— Você devia ter ido embora depois que te nocauteei.
Senti seus olhos em mim, mas não tive coragem de tirar minha atenção de cada movimento
de Sybil. Eu sabia muito bem do que ela era capaz de fazer com apenas um movimento de mãos.
Depois de mim, ela era o carrasco preferido de Vicenzo.
— Não vou a lugar algum sem você, Aly.
Suas palavras tocaram um lugar vazio dentro de mim, que ignorei, porque obviamente
aquilo não duraria. Pelo olhar de Vicenzo, um de nós iria para algum lugar sem o outro,
provavelmente o inferno.
Observei os Desertores recuarem, alinhando-se a Vicenzo.
— Vejo que finalmente veio nos fazer uma visita, garoto. — A voz de Sybil era quase
como um ronronado.
— Não fique animadinha. Pretendo dar o fora o quanto antes.
Ok, então ele também era um idiota. Acabaria sendo morto por conta da língua grande.
— Receio que não irá, Nathan — Vicenzo se intrometeu. — Contudo, te dou uma escolha
aqui: fique e lute ao meu lado, ou fique e morra.
Nathan estalou a língua e, por um segundo, quis beliscá-lo. Ele não sabia como fazer o
mínimo para manter a cabeça sobre o pescoço?
— Opções muito ruins, meu caro. Que tal eu e Aly darmos o fora daqui, e você pode
continuar bancando o rei por mais um tempinho.
Ele tava barganhando? Com Vicenzo?
— Bancando o rei? — Apesar da voz calma, seu olhar era cortante. — Eu construí essa
cidade, garoto. Fui eu quem despertei o maior império que estas terras já viram. Fui eu quem deu
o nome aos reis e rainhas que você conhece em sua história. — Ele apontou para o Palácio a
longos quilômetros de nós. — Os Médici podem ter levado a fama, mas fui eu quem ditou cada
palavra narrada nessa história. Eu criei uma dinastia, garoto.
Nathan sorriu ao perceber o grande ponto fraco de Vicenzo: seu ego.
— Dinastias morrem. As que você criou com certeza ruíram.
Vicenzo dispensou suas palavras em um movimento de mão indiferente.
— Elas morrem quando eu quero que morram.
Mexi-me, desconfortável, observando-os tagarelar sobre assuntos irrelevantes ao momento.
O que diabos eu precisava saber sobre aquela discussão, além de que Vincenzo tinha um grande
ego — nenhuma novidade —, e que Nathan não tinha muito medo de morrer?
— Mestre — comecei, respirando fundo —, seus soldados estão sangrando. — Apontei
para os Desertores caídos, apesar de ter certeza de que pelo menos um já estava morto.
Eu particularmente não me importava com nenhum deles, mas quem sabe faria as coisas
andarem mais rápido. Eu estava exausta daquilo, minha cabeça doía e a tensão em meus ombros
estava ficando insustentável. E apesar de ver Vicenzo lançar um olhar de puro desinteresse aos
Desertores, esperei que ele fizesse algo, que terminasse aquele encontro de uma vez. Se era para
eu ser punida, pelo menos que fosse rápido. Indolor eu bem sabia que não seria.
O olhar de Nathan sobre mim queimava.
— Quando o encontrou pela primeira vez? — Vicenzo questionou, e eu sabia a quem ele
se referia.
— Hoje — omiti propositalmente que aquela havia sido a segunda vez.
— Sozinha?
Assenti.
— Sim — menti novamente.
Pelo menos Nathan não disse nada.
— Iria me contar?
Pensei a respeito, e Sybil soltou uma risada.
— Ah, como isso é interessante!
— Você iria permitir que ele invadisse o meu território e não me falaria nada? — A voz de
Vicenzo se elevou.
— Ela não te deve lealdade — Nathan interferiu. — Você...
— Eu a levei das suas mãos? Eu a roubei de seu precioso castelo encantado, garoto? —
Seus olhos de fumaça passaram de Nathan para mim. — E se eu tivesse feito isso? E se eu
tivesse tirado você do buraco em que os Protetores queriam enfiá-la? Sabe qual seria seu fim
com eles? Morte. Eles te sacrificariam para tentar me destruir. Fui eu quem te livrou disso! Fui
eu quem te deu um propósito!
— Eu nunca permitiria que isso acontecesse! Não finja que a trouxe aqui por algum
motivo altruísta! — Nathan protestou.
— Eu não preciso de altruísmo, garoto. — Ele então apontou para mim. — Fique ao lado
dele, Alyssa, e irá morrer. Ao meu lado, você terá o que realmente importa: poder. Não seja um
peão qualquer quando pode ser a rainha.
Senti Nathan agarrar meu braço, tentando chamar minha atenção, mas minha mente estava
a mil, enquanto a ameaça e, ao mesmo tempo, proposta, de Vicenzo ecoavam em minha cabeça.
A voz em minha cabeça, aquela que por semanas, Sybil aos poucos conseguiu desvendar, me
dizia para não ser estúpida, para seguir a proposta de Vicenzo, porque ela ao menos era sólida.
Mas algo em meu peito doía.
— Não escuta o que ele está dizendo. Ele está te usando — o Protetor pediu.
No entanto, eu não o conhecia. Talvez ele estivesse dizendo a verdade e eu não me
lembrava. Mas enquanto eu pesava na balança minhas opções, Vicenzo me ofertava a única coisa
que, um dia, poderia me dar total liberdade: poder. Não era por isso que eu havia assentido e
feito exatamente o que ele me dizia? Não foi por isso que aceitei que me usasse como sua arma?
Porque no fundo eu queria ser poderosa. Era a única forma de nunca mais depender de
ninguém.
Depois de acordar sem lembrar nem mesmo meu nome, eu havia compreendido uma coisa:
não importa como você conquista seu poder, ele ainda é a única forma de garantir que você
esteja seguro. Eu poderia lidar com o fato de estar sozinha no mundo, mas não aceitaria estar
indefesa.
— Quando?
Vicenzo arqueou a sobrancelha para mim, e Nathan pareceu prender o fôlego.
— Quando fizer dezoito anos terá o que precisa para sentar-se ao meu lado.
Mas a que preço?
— O que faria com ele? — Não ousei encarar Nathan, mas Vicenzo sabia a quem eu me
referia.
— Isso dependerá somente dele.
Dei um passo incerto à frente, e Sybil comemorou, batendo palmas, um sorriso arrogante
contorcendo suas feições. Atrás de mim, Nathan protestou, mas não permiti me importar. Eu
havia passado meses com Vicenzo, sabia muito bem do que ele era capaz, mas era tudo que eu
sabia. Quando vasculhava minha mente, era ele quem eu via, era ele quem havia me acolhido e
me dado um propósito, mesmo que não claro.
Ele é seu mestre por um motivo. A vozinha em minha cabeça dizia.
— E se ele quiser ir embora? — insisti.
— O que quer que eu faça? Te darei esta escolha em retribuição à sua lealdade. Me diga o
que quer que eu faça com ele.
— Aly, por favor. — Nathan agarrou minha mão, mas não o encarei. Meus olhos estavam
fixos em Vicenzo. — Por favor, olhe para mim.
— Quero que o deixe ir — eu disse a Vicenzo. — Ele não representa uma real ameaça a
Florença ou a você. Deixe que volte para os Protetores e diga que esta cidade é sua e isso não
mudará.
Porque não quero matá-lo.
— É isso que quer, Nathan? — Vicenzo perguntou ao Protetor, que rosnou em resposta,
tirando uma gargalhada de Sybil.
Desvencilhei-me de suas mãos e dei outro passo à frente. De repente, meu corpo já não
estava sob meu próprio controle e Sybil me arrastava para seu lado através de sua magia. Nathan
gritou. Tentei expulsar seu domínio sobre mim, mas até minha mente pareceu desacelerar
gradativamente. O que ela estava fazendo? Mesmo quando parei ao seu lado, as amarras
permaneceram, me segurando como se para ter certeza de que eu cumprisse minha escolha.
— Solta ela! — o Protetor gritou mais uma vez, e eu quis berrar de volta para ele parar de
se preocupar comigo, mas a magia de Sybil caiu sobre ele também, o forçando se ajoelhar. —
Bruxa dos infernos — ele rosnou.
— Não exatamente de lá — ela murmurou.
— Diga, Nathan — Vicenzo insistiu. — O que quer?
Os olhos azuis de Nathan pousaram sobre mim. Tão azuis como... Como algo que senti já
ter visto antes. Eles brilhavam. Raiva, frustração e dor pulsando claramente. Engoli em seco, mas
me mantive firme. Eu havia feito minha escolha. Havia decidido o que era certo porque... Porque
era.
— Não vou a lugar algum sem você — ele me disse. Suas mãos agarraram a terra sob elas
enquanto ele trincava os dentes.
Comecei a protestar, mas Vicenzo me cortou:
— Diga, Nathan. Seja claro para que ela entenda que estou respeitando seu desejo.
Eu poderia jurar que Nathan estava esquartejando Vicenzo em seus pensamentos.
— Se ela fica, eu fico — afirmou, os olhos presos em mim. — Então aceito seu convite
para conhecer Florença.
CAPÍTULO 19

Ele estava aqui há três dias.


Eu só não tinha certeza de onde.
— Ainda não descobri onde estão mantendo ele — Lore comentou, me puxando para um
corredor vazio. — Mas talvez assim seja melhor. Talvez você não devesse se envolver.
Lancei um olhar irritado para ela.
— Ele está aqui por minha causa. Eu devia pelo menos saber se ele ainda está vivo.
Lore estava claramente nervosa, as garras em suas mãos se curvando em um tique nervoso.
Ela estava escondendo algo, não sobre o paradeiro do Protetor, mas algo além. Algo que, no
fundo, acho que ela gostaria que eu soubesse.
— Fala logo.
Lore mordeu os lábios, encarando-me com certa... preocupação.
— Vicenzo tem tentado recrutá-lo há anos.
— Sei disso.
Ela inclinou a cabeça, me fitando como se eu estivesse deixando algo importante passar.
— Se Vicenzo está mantendo ele preso em algum lugar desse castelo, é porque ele ainda
não desertou.
Desconforto cresceu em meu estômago.
— Ele está torturando o Protetor. Eu já imaginava isso.
— Certo. Mas por que o Protetor está permitindo que isso aconteça? Você deu uma opção
a ele, e Vicenzo teria deixado ele ir para cumprir o que te prometeu.
— Ele ficou por mim. A gente já sabe disso.
Ela bufou.
— Pensa um pouco, Alyssa. Por que ele faria isso? Por que Vicenzo ao menos permitiria?
Refleti sobre suas palavras, mesmo que não houvesse uma linha de raciocínio clara ali para
mim.
— Nathan criou toda essa história sobre como estávamos juntos antes e que achava que eu
estava morta. E Vicenzo... — pensei — Vicenzo quer que ele deserte.
Lore soltou um suspiro.
— Se você não acredita no Protetor, então fique longe disso, Aly. Não vai acabar bem se
você se envolver.
— Mas e se ele estiver dizendo a verdade? Mesmo que Vicenzo tenha muito mais a
oferecer, Nathan pode me dar algumas respostas.
Ela fez uma careta.
— Não seja egoísta. Ou você acredita ou não. Não há espaço para meio termo.
Suas palavras me atingiram e a raiva fluiu.
— Por que está insistindo nisso então? O que você está escondendo, Lore?
Ela desviou o olhar, encarando um ponto atrás de mim.
— Só estou dizendo que você está em um jogo muito maior do que imagina. Muito maior,
Aly. Tenha consciência das cartas que tem em mãos. Ou vai acabar se matando e levando o
Protetor junto.
Eu a encarei com desconfiança.
— Desde quando se importa com Protetores?
No entanto, Lore não teve tempo de responder antes de sermos interrompidas. Uma mão
esquelética tocou meu ombro e frio inundou meu peito, como se a simples presença de Sybil
pudesse trazer o inverno em sua força máxima.
— Boa noite, crianças. — Seus dedos apertaram minha pele. — Temos um encontro
marcado. Você se esqueceu, Alyssa?
Engoli em seco.
— Eu já estava indo encontrá-la.
Os buracos negros que eram seus olhos apenas me encararam, certa desconfiança velada no
seu tom.
— Tenho certeza de que estava.
Lore pigarreou, fazendo uma leve reverência à Feiticeira antes de se afastar alguns passos.
— Vou deixá-las, mas volto para encontrá-la mais tarde, Alyssa, caso queira caminhar pelo
jardim.
Eu apenas assenti, incapaz de me preocupar com o que eu faria dali algumas horas quando
meu futuro imediato envolvia uma sessão falha e angustiante de buscar por memórias que já não
estavam mais em minha mente.
Sybil veria que eu omiti o fato de que havia visto Nathan antes, assim como Lore também
sabia de sua presença e não o denunciou a Vicenzo.
Quem sabe, aquele fosse um bom momento para tomar as rédeas do meu próprio cérebro.
Se eu pudesse controlar o que Sybil veria, eu poderia... Não, eu nem era capaz de controlar
minha mente o suficiente para lembrar do passado, como poderia manter a Feiticeira longe da
minha cabeça?
Eu a segui, cegamente, através dos corredores, até que chegamos ao quarto onde
normalmente Sybil inspecionava minhas memórias, buscando trazer algo à tona. Era um quarto
nada comum, dado a luxuosidade daquele Palácio, mas longe de ser tão majestoso como o meu
ou o de Vicenzo. Havia apenas um longo divan de couro preto, tão lustroso quanto os detalhes
em ouro pelas paredes. O diferencial daquele quarto, contudo, era seu teto aberto, dando vista
para o céu. Estando no último andar do palácio, em uma das elevações da área leste, o céu ali era
uma visão e tanto. Apesar da iluminação confortável do quarto, a escuridão acima de nós poderia
nos engolir, se não fosse os pequenos pontos de luz. Estrelas. Eu gostava de estrelas.
Alisei a saia do meu vestido longo e sedoso, e caminhei até o divan. Ombros para trás.
Queixo erguido. Eu não sabia se já era o caso antes, mas agora eu havia me tornado uma boa
mentirosa. Ótima até. Não deixava transparecer desconforto. Nem dor. Nem medo. Muito menos
medo.
O único sentimento que ainda me desafiava era o ódio.
Sentei-me com a graciosidade que Vicenzo havia me obrigado a desenvolver. Cruzei as
pernas e aguardei, finalmente erguendo os olhos para Sybil. Ela, porém, já tinha os dela fixos em
mim.
— É impressionante como algo pode ser transformado, não acha, Alyssa?
Uma de minhas sobrancelhas pulou para cima, curiosidade explícita em minhas feições.
— Não acho que sei do que está falando.
Suas presas se exibiram em um sorriso estranho. Mas até aí parecia fazer sentido, porque
tudo nela era estranho. Lembrava-me de que este foi meu primeiro pensamento quando acordei e
a vi pela primeira vez. Vicenzo ter estado logo ao seu lado, com aqueles olhos de fumaça
estranhos, me deixou ainda mais confusa. E levemente amedrontada.
— Muitas coisas podem ser criadas. Em meu mundo, por exemplo, eu mesma criei seres
para servirem a um propósito. Seres majestosos, devo dizer. Mas criar e transformar nunca é a
mesma coisa. Criar algo do zero é... — ela pensou, chegando mais perto — um ato de
criatividade. Requer talento, imaginação e poder. Mas transformar algo que já existe, Alyssa...
Demanda ainda mais. Requer talento, imaginação e poder sim, mas exige paciência também.
Exige um certo nível de cuidado. Porque transformar algo é, muitas vezes, corrompê-lo de suas
ideias. É mudar o eixo.
Desconfiança borbulhou em meu peito e eu me empertiguei para frente.
— O que te fez pensar nisso?
Seu sorriso se ampliou. Agora estava tão próxima que eu era capaz de enxergar as
rachaduras em sua pele, não como rugas de velhice, mas como... Como se Sybil estivesse
secando. Como terra que não vê chuva há anos. Mesmo seus lábios finos eram secos e sem cor.
— Não é óbvio? — Quando não respondi, ela continuou: — Vicenzo prefere transformar
que criar. É por isso que seu povo são desertores. É por isso que ele agora tem sob seu teto o
garoto Protetor de língua grande. É por isso, Alyssa, que você está aqui. Mas assim como
demanda muita paciência de seu mestre para que aguarde até que você se torne o que ele quer,
tanta paciência não é infinita. Eu sugiro que faça sua parte.
— Eu estou fazendo minha parte. Faço exatamente o que ele me pede, aceito que preciso
aguardar meus dezoito anos e tenho me mantido quieta este tempo todo, respondendo aos seus
comandos.
Sybil estalou a língua.
— Garotinha estúpida. — Choque seguiu suas palavras e eu a encarei boquiaberta. — Se
você pensa que tem sido tão boa, então deve existir mais fogo dentro de si do que eu imaginava.
Esqueceu das mentiras que contou? Esqueceu do Protetor preso à ala oeste deste castelo?
Oeste.
Então o Protetor está preso na ala oeste. Eu podia imaginar onde.
— Não sou estúpida.
Seus dedos subiram para minha cabeça, e ela tocou minha têmpora. Reprimi o desejo de
fugir.
— É sim. E ambiciosa também. Alguma dessas duas coisas irá destruir essa sua fachada
mentirosa. — Suas unhas cortaram minha pele, e o sangue pareceu esquentar dez graus mais. —
Se quer minha opinião — eu com certeza não queria —, a estupidez será o seu fim. Você não
nasceu para um destino bonito, criança.
Não.
Não. Eu havia... Dor explodiu atrás dos meus olhos ao mesmo tempo que Sybil começou
um canto em sua língua natal. Tentei me concentrar. Forcei meus olhos a ficarem abertos. Eu não
havia nascido com um destino ruim. Não. Eu não aceitava isso. Eu... Meu Deus, essa mulher vai
estourar minha cabeça. Finquei os dentes nos lábios para não gritar. Resisti, vez após vez, ao
impulso de lutar contra Sybil.
Por longos segundos, eu não pude ver nada mais que luz. Luz branca, forte e reluzente,
como o brilho de uma estrela que se recusava a morrer. E tudo em que eu conseguia pensar, era
que meu destino não podia ser ruim. Não quando sobrevivi mesmo sem minhas memórias. Não
quando sobrevivia dia após dia neste palácio. Não podia ser ruim, porque eu sentia... No fundo
eu sentia como se eu fosse...
Dor excruciante explodiu, tomando todo meu corpo dessa vez, e eu me curvei. Uma voz se
esgueirou pelo meu subconsciente, mas eu não a reconheci. Você tem medo. E deveria — a voz
disse. Então imagens se formaram, como um quebra-cabeça que se alinhava, e eu via Vicenzo
me levando para o palácio. Eu estava desacordada em seus braços e ele prometeu que me
manteria viva. Que eu estaria a salvo. Ele nunca pareceu tão cuidadoso quanto naquela memória
borrada.
Quando pensei estar acabando e meus olhos começaram a se focar nas roupas cinzentas de
Sybil, mais luz explodiu e me cegou novamente. Eu quase podia vê-la se ondular, como se
pudesse estar revoltada. E eu pensei, por um breve instante, por algum motivo estúpido, que eu
era mais do que uma arma de Vicenzo, mais do que um destino inconveniente... Eu era...
A luz se extinguiu e os dedos de Sybil deixaram minha pele.
Eu abri os olhos, incerta, e respirei fundo, me preparando para ficar em pé.
— Viu algo? — perguntei.
Sybil fez um gesto desdenhoso.
— Nada que eu já não soubesse.
Ela provavelmente havia visto Vicenzo, como eu. E já sabia das minhas mentiras. Em
breve eu pagaria por elas, eu imaginava.
Sequei o sangue das minhas têmporas com a manga do vestido e me levantei.
— Posso ir?
Sybil assentiu, e eu me apressei a deixar a sala, mesmo ainda estando meio tonta. Ainda
assim, consegui ouvir quando ela disse: “por enquanto”. Não pensei muito sobre isso, porque por
algum motivo, uma palavra se repetia em minha cabeça, como se eu tivesse acabado de aprendê-
la. Como se ela voltasse à minha mente depois de muito tempo banida e exilada.
Era uma palavra bonita.
Esperança.
A ala oeste do palácio era mais quieta. Enquanto os quartos ficavam na área central, e ao
leste ficavam salas de reunião, bibliotecas e outras coisas mais interessantes, eu havia visto
pouco da oeste. Mas eu sabia onde estaria a sala de tortura. Havia matado um dos traidores de
Vicenzo nela. Minha primeira vítima, pelo menos aqui.
Era óbvio que eu não devia estar buscando essa sala. Eu sabia disso. Os guardas também
saberiam, então me fiz o favor de esgueirar por entre os corredores como um fantasma, evitando
ser vista. Por sorte, já era madrugada, e aparentemente nenhum Desertor se deu o trabalho de
monitorar o Protetor. Quando entrei na sala escura e liguei a luz fraca que iluminava um dos
lados do cômodo, entendi o porquê. Nathan não poderia dar muito trabalho no estado em que
estava.
O Protetor, inclusive, demorou para me escutar. Deitado no chão da sala, as costas meio
apoiadas na parede e a cabeça pendendo para o lado, Nathan estava muito machucado. Suas
roupas estavam ensanguentadas e o rosto inchado e manchado de sangue. Quando finalmente
ergueu a cabeça ao me ouvir se aproximar, vi que um de seus olhos estava meio fechado devido
ao ferimento recente.
Engoli o nó que cresceu em minha garganta.
— Alyssa.
Ele ainda pronunciava meu nome como se fosse uma oração.
E aquela palavra de momentos antes continuava a se repetir em minha mente.
— Eu te falei para ir embora. Vicenzo teria deixado você ir.
Eu não conseguia explicar a raiva que eu sentia.
O Protetor se mexeu, buscando apoio para se levantar. Não ousei ajudá-lo. Tocar nele
seria... ruim. Depois de um tempo, ele finalmente conseguiu.
— Eu disse. — Ele forçava a voz a ficar mais forte. — Não saio daqui sem você.
— Não quero sair daqui.
Ele bufou.
— Juro que não sou um babaca, Aly, mas você não tem ideia do que quer agora.
Cerrei os olhos.
— Isso vindo do cara que escolheu ficar e ser torturado ao invés de ir para casa —
retruquei.
A ansiedade parecia raspar minha pele como lixa. E quando ele deu um passo em falso,
minhas mãos voaram para segurá-lo. Ele se apoiou em mim, os olhos azuis me engolindo.
— Casa é um conceito engraçado. A minha, por exemplo, é você.
Para. Eu queria pedir. Quase implorar. Aquilo já estava ficando cruel. Eu o soltei e Nathan
precisou de alguns passos até conseguir se manter em pé sozinho.
— Peça a Vicenzo para te deixar ir embora. Imediatamente.
Ele riu.
— Tão mandona...
Não era engraçado. Pelo amor de Deus, olhe para ele! O garoto estava todo machucado,
mal conseguindo se sustentar em pé! Um dos olhos dele mal se abriam, e haviam escoriações por
toda a pele exposta.
— Eu não quero você aqui. Você só vai me atrapalhar — eu vociferei, irritada.
— É por isso que está aqui? — Nathan deu um passo cambaleante à frente, chegando mais
perto. — Por que estou te atrapalhando?
Eu não respondi, mas isso não o deteve de continuar.
— Quer saber o que eu acho? — Ele ergueu a mão, percorrendo a curva do meu rosto com
um toque suave. — Acho que está aqui porque, no fundo, mesmo que não se lembre, sabe que
não pode me deixar. No fundo, seu coração lembra.
Soltei uma risada amarga.
— Se depender de lembranças, meu coração está morto e enterrado.
Ele estalou a língua, a mão agora descendo pela minha clavícula. Não o afastei. Não
quebrei sua mão pela simples audácia. E, finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, seus
dedos se estenderam e sua mão pousou sobre meu peito, bem onde estaria o coração morto.
— Seu coração está bem vivo — sussurrou. — Pelo menos agora, está batendo muito forte.
Nem um pouco morto.
Trinquei os dentes.
— Vai embora — rosnei.
Nathan não se abalou, os olhos presos nos meus.
— Venha comigo.
— Não — bradei, e senti meu coração acelerar.
Ele sorriu.
— Viu? Ele sabe a verdade. Sabe que não quer ficar e que você virá comigo. — Mais um
passo e ele estava com a boca tão próxima que sua respiração ofegante tocava meu nariz. — Ele
sabe que amo você. E que você me ama. O desgraçado do Vicenzo não teria a menor ideia de
como apagar isso.
— Pare com isso.
Seu sorriso me pareceu frágil.
— Eu não posso, Aly.
A minha intenção era tirar sua mão do meu peito e deixar pelo menos dois metros entre
nós. Mas assim que toquei sua pele, uma estranha sensação se apossou de mim, e não consegui
soltar. Não conseguia me mexer. Não conseguia respirar. E ele me olhava... O Protetor me
olhava com tanta esperança, como se eu fosse me lembrar de tudo o que ele disse a qualquer
momento. Como se eu fosse fugir com ele dali porque o amava e sabia disso.
E isso era sufocante.
— Eu posso ajudar você a se lembrar. Acredite em mim, já passamos por essa merda antes.
Posso te contar tudo, posso listar todos os motivos pelos quais vou matar Vicenzo, e todos os
motivos pelos quais eu amo você. Posso te contar tudo até que se lembre.
Como um choque de adrenalina, finalmente dei um pulo para trás, me afastando dele.
Desviei o olhar e caminhei pelo cômodo, buscando alguma pista do que Vicenzo queria. Eu sabia
que ele esperava que Nathan desertasse, mas por que se esforçar tanto para isso? Por que torturá-
lo e não só matá-lo por não fazer o que ele quer? O que há de tão importante no Protetor?
— Vicenzo te disse o que quer?
Ouvi o Protetor respirar fundo.
— Ele quer que eu deserte.
Eu o analisei. Os braços agora soltos ao lado do corpo, o tronco meio curvado,
provavelmente pela dor que sentia.
— E você não vai desertar.
Ele balançou a cabeça, concordando em silêncio.
— Você ao menos tem um plano?
Nathan deu de ombros.
— Um não muito bom agora. E todo meu plano envolve você indo embora comigo, então
entende como está sendo irracional?
Eu estava sendo irracional? Ele tinha se entregado para ser torturado! Ele ignorou todas as
vezes que eu disse para ir embora.
— Nathan, mesmo que eu acredite em você, não posso ir embora.
Ele fez uma careta.
— Por que não?
Respirei fundo, e tentei clarear minhas razões, mas eu não conseguia expressar uma com
clareza. Parte de mim só sabia que eu não podia ir. Não podia trair Vicenzo. A voz irritante em
minha cabeça sempre me lembrava que eu tinha uma dívida a pagar e que meu lugar era ali,
servindo Vicenzo até que eu pudesse ter o que merecia.
Nathan viu a incerteza exposta em meu rosto e tentou mais uma vez:
— Olhe para mim, Aly, por favor. — Sua voz estava mais baixa, mais calma, mas ainda
repleta de dor, que eu não sabia dizer se era emocional ou física. Quem sabe fosse os dois tipos.
— Eu não sei o que fizeram com sua cabeça, mas prometo que iremos consertar isso. Prometo a
você. Mas eu preciso que você lute. Preciso que tente se lembrar.
Ele achava que isso não era tudo que eu vinha tentando fazer desde que acordei sem saber
ao menos meu nome? Aliás, o fato de que o nome que Vicenzo me disse e o nome que Nathan
me chamava eram os mesmos, apenas provava que o primeiro não estava mentindo sobre tudo.
Ao menos não sobre tudo.
— Eu estou tentando!
— Porra, Alyssa! — ele explodiu. — Não é possível que você realmente fique ao lado do
homem que mata e destrói tudo o que bem entende. Olhe para mim! Olhe para as pessoas ao seu
redor!
— Eu não sou tão diferente dele, Nathan! Não sei qual Alyssa você conheceu antes, mas eu
matei em nome de Vicenzo. Talvez você só precise aceitar que está insistindo em algo fadado ao
fracasso. Vicenzo vai quebrar você antes mesmo que eu consiga lembrar meu sobrenome.
Nathan parou ao som da minha explosão. Seus olhos azuis agora pareciam opacos. Seu
peito subia e descia em respirações longas e rápidas. O punho ao lado do seu corpo permanecia
cerrado. E ele não disse nada. Ficou em completo silêncio, apenas me encarando, talvez tentando
desvendar essa nova pessoa à sua frente. Essa pessoa que, se uma vez conheceu, quem sabe não
conhecia mais.
— Já está decepcionado? Eu te dei a chance de ir embora. — Estalei a língua e joguei para
ele uma barrinha de cereal que tinha guardado mais cedo no bolso do vestido. Quem sabe quando
foi a última vez que comeu, ou mesmo quando comeria novamente. — Não espere que eu salve a
sua bunda outra vez.
Dei as costas para o Protetor, que apenas encarou a barrinha no chão. Eu já estava na porta
quando o ouvi dizer:
— Monroe.
Eu me virei para ele.
— O quê?
— Seu sobrenome — disse. — É Monroe.
Por um instante eu só o olhei. O nome preso em meus lábios, como se eu quisesse testá-lo.
Entretanto, eu não o repeti. Não falei nada. Dei as costas para o Protetor, sabendo que eu
provavelmente não voltaria a vê-lo.
Deixei o quarto em silêncio, imaginando se poderia acreditar no que ele dizia.
Imaginando se voltaria a vê-lo.
CAPÍTULO 20

Eu vi Lore ao mesmo tempo em que ela me viu. A Desertora me puxou para dentro de uma
sala cheia de obras de arte no momento em que ouvi vozes se aproximando. Meu coração
acelerou e eu escutei atentamente os passos se afastarem, até que tive certeza de que não estavam
entrando na sala de tortura do Protetor.
Permiti-me fechar os olhos e respirar fundo. Um segundo. Apenas um segundo e eu estaria
bem novamente. Se eu me permitisse sentir todos esses sentimentos que estavam prestes a me
sufocar, apenas por pouco tempo, conseguiria sobreviver a eles.
Iria sobreviver.
Iria sobreviver.
Mesmo se meu sobrenome fosse Monroe, e mesmo se Nathan fosse quem dizia ser. Mesmo
se um dia eu conheci amor. Eu iria sobreviver. Mesmo que fosse aqui.
— Você se decidiu?
Abri os olhos e encarei Lore. Seus olhos castanhos me analisavam com atenção, mas não
respondi. Ela suspirou.
— Do que você precisa?
Dei de ombros.
— Memórias, basicamente.
Ela soltou uma risada engasgada.
— Basicamente — concordou. — Vamos, preciso te deixar no seu quarto antes que algum
Desertor a encontre vagando por aí.
Assenti e a segui para fora da sala, mas parei quando percebi algo pela minha visão
periférica. Dei meia-volta e encarei a estátua no canto da sala, entre outras obras de arte. Esta
escultura de gesso em questão me parecia bastante familiar. Porque eu a havia visto em pelo
menos outros dez cantos deste lugar.
A pose era diferente, sentada, as mãos sobre o colo, e um sorriso ardiloso nos lábios, as
pernas quebradas devido a algum acidente, mas todo seu torso estava perfeito. O rosto, meio
erodido pelo tempo, tinha seus contornos mais claros do que aquelas espalhadas pelo jardim. Eu
me aproximei, encarando a estátua, tentando decifrar aquele rosto.
— O que foi? — Lore perguntou.
Apontei para a mulher de pedra negra.
— Ela não te parece familiar?
— Hum. — Lore analisou. — É uma estátua de pedra. De uma mulher. Tem várias por aí.
— Mas é a mesma mulher.
— Deve ter sido a musa de algum artista.
— Era a musa de Vicenzo — soltei, lembrando-me da conversa estranha que tivemos no
jardim, sobre a mulher que o ensinou que o amor era um luxo, raro e improvável. — Ele
comentou sobre ela.
Lore fez uma careta.
— Estranho pensar em Vicenzo com uma mulher.
Muitas coisas eram estranhas naquele palácio. Mas pensar que Vicenzo já amou alguém o
suficiente para querer seu palácio inundado de imagens dela... Bem, não parecia em nada com
Vicenzo. Ainda assim, aquilo não era o que mais me chocava naquela estátua.
— Tem certeza de que ela não te lembra ninguém? — insisti.
Lore deu de ombros.
— O rosto está todo danificado, Alyssa. Não dá pra ver direito.
De fato estava, mas mesmo assim, parecia me lembrar alguém. Suspirei. Não fazia
diferença quem ela era ou quem me lembrava. Não importava, porque não resolveria nenhum dos
meus problemas imediatos. E eu tinha muitos.
— Vamos embora então.

Na manhã seguinte, os corredores estavam silenciosos e não havia nenhum sussurro a


respeito do Protetor. Lore me encontrou para o café da manhã e, mais tarde, Vicenzo almoçou
comigo, em um silêncio ainda maior e alguns olhares furtivos. E enquanto ele fingia não me
notar, eu o analisava atentamente, tentando desvendar se ele poderia mesmo ser um aliado ou se
não passaria de um vilão. Minha mente tentava me dizer que eu poderia confiar, que ele me
colocaria ao seu lado assim que eu fizesse dezoito anos. Aquela voz estranha em minha mente
era insistente. Meu coração, no entanto, estava implorando para que eu corresse, afinal, meu
rosto ainda tinha a marca fraca de seu ataque.
Durante a tarde, descobri que ele sairia para encontrar com Belius e Mavon assim que o sol
se pusesse. Racionalmente, a ideia que eu tive então era de uma estupidez sem tamanho. Visto a
necessidade de respostas as quais eu não podia confiar que ninguém me desse de mãos beijadas,
até que era uma ideia razoável. Razoavelmente estúpida e por mim tudo bem.
Aproveitei que Vicenzo não estava no castelo e coloquei uma das únicas calças em meu
armário, de alfaiataria preta e um suéter tão preto quanto. Um pouco de conforto, ao menos. E
correr com calças era bem mais fácil do que vestidos longos e esvoaçantes.
Abri a porta do meu quarto, e encontrei Lore de guarda.
— Boa noite, Aly.
Mordi o lábio, repassando as inúmeras mentiras que eu poderia tentar.
— Hum, preciso que finja que estou no meu quarto. — Já era tarde para mentir justo para
Lore.
Ela cerrou os olhos.
— Você não deveria ir ver o Protetor de novo.
— Eu não vou.
Seu cenho franziu ainda mais.
— Então por que precisa que eu finja que está no seu quarto?
Dei de ombros.
— Porque vou procurar algumas respostas.
— Alyssa...
— Se não quiser mentir, tudo bem. Mas pelo menos fique quieta caso ninguém pergunte.
Fechei a porta do meu quarto e segui em frente. Lore não me impediria. Ela era minha
amiga, mesmo que não exatamente no sentido convencional.
— Espera — ela pediu. Me virei para encará-la, impaciente. Eu não sabia quanto tempo
Vicenzo ficaria fora. — Tome cuidado. Vai ter Desertores caminhando por aí. Vicenzo deve ficar
fora até bem tarde, mas também nunca se sabe. Apenas, mantenha seus sentidos aguçados. —
Ela voltou a guardar a porta, os braços cruzados e o rosto impassível. — Se me perguntarem,
você estará dormindo.
Mordi um sorriso, esperando que ela soubesse o quanto eu era grata pelo que estava
fazendo.
— Obrigada.
Ela não me olhou, apenas balançou as mãos, me enxotando dali.
Rapidamente, atravessei até a ala onde ficava o quarto de Vicenzo. Eu havia ido lá apenas
uma vez, mas me lembrava bem do caminho. Precisei me esconder em salas aleatórias quando
ouvia um Desertor se aproximar, mas logo alcancei o quarto e, para minha sorte, a porta não
estava trancada. Afinal, quem ousaria invadir os aposentos do mestre, não é?
Entrei no quarto escuro, fechei a porta em silêncio absoluto e, então, me virei para encarar
o espaço. Muito escuro. Não só porque a luz ainda estava apagada, mas porque tudo ali era preto.
Cadeira, cama, lençóis, quadros, paredes... Com exceção do ouro no teto, tudo que eu via era
embebido pela cor preta. Estiquei o braço para acender a luz com os olhos ainda presos aos meus
arredores, enquanto a desconfiança consumia minha coragem.
A luz não era tão forte como a dos outros cômodos. Era possível que Vicenzo não só
gostasse da cor preta, mas também preferisse a escuridão em geral.
As portas que davam para o jardim, onde havíamos jantado uma vez, estavam fechadas,
mas eu duvidava que houvesse algo lá que pudesse ser interessante. A cama dele estava feita. A
mesa até brilhava, imaculada. Mas foi a pintura acima do móvel que me fez engasgar.
Porque era eu.
Exceto que não podia ser.
Eu nunca posei para pintura alguma, pelo menos não desde minha chegada aqui. Contudo,
a mulher que me encarava, pintada a óleo tão perfeitamente que até os menores detalhes eram
visíveis, tinha o meu rosto, meu cabelo, meus olhos, minha boca e minha pele. Era como olhar
uma foto minha. Ao mesmo tempo, porém, havia algo muito diferente, estranho até.
Ali, naquela pintura, eu estava sentada e usava um vestido negro como obsidiana, que
combinava com meus olhos. O tecido era leve, mas as muitas camadas o faziam parecer
trabalhoso. O colo dos meus seios estavam à mostra, emoldurado por um decote baixo de recorte
quadrado. As mangas eram longas, fechando-se na base do meu punho. Minhas mãos estavam
sobre minhas pernas, a postura impecável que eu duvidava ter. Um anel de fios de ouro trançados
marcava minha mão esquerda. Olhei para minha própria mão, só para garantir que ele não estava
ali de verdade. Não estava. Voltei a encarar a pintura, minha cabeça doendo para tentar
compreendê-la, e percebi uma diferença significante: não havia marca.
Na minha mão direita existia uma marca meio desbotada, sem forma concreta, quase como
uma queimadura. Na mão direita da mulher da pintura, não havia nada.
— Não sou eu.
Ou era e só haviam esquecido de pintarem aquele detalhe? Era possível, não era? Até
porque eu não tinha uma irmã gêmea. Não que eu me lembrasse, pelo menos.
A mulher na pintura não sorria. Os olhos negros pareciam sérios só que estranhamente
sedutores. Como se ela encarasse algo que apreciasse muito. Ou como se fosse sedutora por
natureza. Eu dificilmente me referiria a mim mesma dessa forma.
Bufei. Eu queria respostas, não mais perguntas.
Comecei a abrir as gavetas da escrivaninha, buscando por qualquer coisa. Qualquer coisa.
E dessa vez, pelo menos, o Destino respondeu. Logo na primeira gaveta havia um celular. Peguei
o aparelho e apertei no botão de ligar. Alguns segundos mais tarde, eu tinha quase certeza de que
o telefone era do Protetor. Na tela de bloqueio havia uma foto. Uma foto minha, abraçando um
cachorro marrom grande e peludo, com um lago do azul mais lindo que já vi ao fundo.
Precisei de um minuto para voltar a respirar. Voltar a pensar.
Nathan tinha falado a verdade.
Por sorte, não havia senha no celular, e eu consegui entrar com facilidade. A primeira coisa
que fiz foi abrir a câmera. Haviam poucas fotos, mas todas envolviam o cachorro ou eu. Meu
rosto estampava muitas delas. Eu com o lindo cachorro. Eu com os pés na água. Eu sorrindo para
a câmera. Eu lendo. Eu abraçada com Nathan. Eu. Eu. Eu.
Havia também a foto de uma foto. Eu me reconheci logo de cara, apesar de ser bem mais
jovem quando ela foi tirada. Ao meu lado, uma mulher e um homem me abraçavam, e Nathan —
também ainda menino — aparecia correndo ao fundo, em direção à cena.
Encarei os rostos que não me traziam nenhuma lembrança. Seriam meus pais? Os olhos
escuros do homem lembravam um pouco os meus, e seu sorriso... Seu sorriso era como um
abraço caloroso. A mulher, por sua vez, tinha a postura reta, mas as mãos eram protetoras sobre
meus ombros, e o sorriso era verdadeiro.
Eu tinha pais.
“Você tem muito. Tem a mim e amigos. Tem mãe e um cachorro que não pode esperar
para te ver de novo. Você tem uma família, Alyssa, que vai muito além de laços sanguíneos.
Muito além de promessas ilusórias.” — Nathan havia dito. Eu não havia acreditado.
“Você tem a mim.” — Olhando para uma das fotos, onde seus olhos estavam em mim com
tanta admiração... Eu acreditei.
Respirei fundo, tentando acalmar a mente, e deixei aquelas imagens de lado. Por enquanto.
Busquei pelas chamadas, mas eram poucas registradas, a maioria das perdidas estavam no nome
de um tal de Brian. Nas mensagens, nada relevante apareceu. Finalmente desisti do celular e
voltei minha busca nas gavetas. Quando avistei o caderno de couro preto, eu soube que seria
interessante.
— Bingo.
Um diário.
Ou quase.
Folheei as páginas, preocupada em compreender aquela bendita letra, e ainda em italiano.
Senti quando algo se desprendeu do caderno e tocou meus pés. Me abaixei para pegar a folha, só
para então descobrir que era uma outra pintura, desta vez bem menor e comigo em pé. Havia
mais um motivo pelo qual aquela na imagem não poderia ser eu: era uma pintura tão antiga, que
suas bordas estavam se deteriorando e o papel já estava bem amarelado. Era velho. Muito mais
que eu.
Virei o papel.
Nixya. — O que imaginei ser um nome estampava a margem do papel, em letras bonitas e
de aspecto quase arcaico.
Em uma das páginas do diário, Vicenzo escreveu, datado de mais de mil anos atrás:
Eu amei Nixya logo que meus olhos encontraram a imensidão negra dos seus. Tudo nela
era escuro como a noite, mas ainda assim, parecia iluminar minha alma. E, assim como eu, ela
queria mais. Víamos o mundo da mesma forma e ela não queria que eu passasse o resto dos dias
lutando contra as aberrações que invadiam nossa dimensão sem qualquer reconhecimento. Ela
também via que os Protetores tinham um potencial muito maior.
Mesmo assim, o Destino a destruiu, e as Guardiãs — falsas moralistas que eram — me
desertaram. Mas eu não acabo aqui. Por Nixya, eu vou me tornar exatamente o que ela idealizou.
E quando o Destino for transformado em cinzas esquecidas ao vento, o nome de Nixya será
honrado.
Nixya.
Encarei a pintura em minhas mãos, então o quadro enorme na parede negra. Não era eu.
Era Nixya — quem quer que fosse.
Corri para as portas que davam ao jardim e irrompi por elas com urgência discriminada. Eu
sabia o que veria, mas precisava confirmar mesmo assim.
Lá fora era possível enxergar a estátua ao centro do jardim, aquela com as mãos erguidas
que agora pareciam clamar pela lua. Coroa na cabeça. Cabelos longos caídos, a leve impressão
de que eram soprados pelo vento. Era ela. Por isso aquelas estátuas — inúmeras espalhadas pelo
palácio — me pareciam tão familiares. Porque eram ela. E ela era exatamente como eu.
Como diabos isso era possível?
E o que isso significava? Era por isso que Vicenzo tinha me acolhido em seu Palácio? Ou
por isso que tinha me roubado dos Protetores? Porque de alguma forma acreditava que eu
poderia preencher o vazio deixado pela mulher que amava?
— Um velho conhecido dizia que a mentira era apenas uma verdade mascarada.
A voz veio de trás de mim e eu senti meu coração subir até minha garganta em resposta.
Ele não devia estar aqui.
Eu me virei para encará-lo. A pintura de Nixya em minhas mãos denunciava minha
ousadia de invadir seu quarto. Ele ainda vestia seu casaco preto e percebi que, obviamente, não
esperava me encontrar aqui. Vicenzo desceu os olhos para a prova em minhas mãos, depois
observou suas gavetas abertas e o diário sobre a mesa.
— E nem sempre uma verdade mascarada é ruim — disse, por fim.
— Eu não...
— Não estava invadindo os meus aposentos e espionando as minhas coisas? Uma verdade
mascarada não é ruim, Alyssa, mas vamos tentar evitar as mentiras descaradas, tudo bem?
Fechei minha cara. Ele não queria brincar? Tudo bem então.
— Você mentiu para mim. Precisei descobrir a verdade por conta própria — expliquei,
sem muita emoção.
Ele sorriu.
— O problema não foi minha mentira, ragazza, ela foi bem conveniente para você por um
tempo. Foi a verdade que seu Protetor trouxe que te incomodou.
Ah, por favor, isso era semântica. Nathan expôs a mentira de Vicenzo. Mas mais uma vez,
foi Vicenzo quem o fez ficar. E eu tinha certeza de que ele tinha um plano para isso. E eu estava
cansada de ser uma peça no jogo. Ou eu jogava ou não, sem terceira opção.
— Quem é Nixya?
Seus olhos de fumaça ficaram sombrios.
— Nixya foi uma deusa. — Seus dedos percorreram a extensão de madeira da
escrivaninha, os olhos presos nos meus como duas adagas afiadas que cortavam a pele. — Maior
do que qualquer um que você já tenha ouvido falar. Maior até que o Destino.
— E é a mulher que amou — concluí.
O que uma deusa fazia ali, em solo mundano?
Vicenzo não expressou reação, mas de repente — como um raio — estava tão perto de
mim que eu poderia sentir sua respiração tocar meu rosto.
— A deusa que amo. A coisa engraçada sobre o amor é que ele não é como uma gripe que
eventualmente passa. É uma cicatriz profunda que não desaparece. Não importa o tempo, ou que
o próprio Destino seja contra. Pergunte a Nathan, já que ele não tem a sua sorte de não ter
memórias. Pergunte o quão profunda é a cicatriz dele.
Engoli em seco, sua aproximação repentina me deixando tão alerta quanto amedrontada.
Eu não seria capaz de lutar contra ele. Ninguém era, aparentemente. Por isso Florença continuava
intocada pelos Protetores. E suas palavras... elas se afundavam rápido na consciência do meu ser.
Uma sensação amarga de puro desespero me tomava, enquanto aos poucos eu ia compreendendo
o que isso significava. O que ele fez.
— Você fez isso comigo.
Um milímetro de um sorriso.
— Salvei você de um destino patético? Você tem muito mais potencial e me pareceu
injusto deixar os Protetores desperdiçarem isso.
Minhas mãos se fecharam em punho, as unhas perfurando a pele, enquanto eu queria estar
perfurando ele. Vicenzo tinha me usado como a porra de uma boneca.
— É culpa sua que não tenho memórias, não é? — O tom acusatório em minha voz era
inegável.
— Eu te dei um novo começo, Alyssa. É melhor do que o que você teria com eles.
Memórias nem sempre são um presente. Mas confesso que é interessante ter um papel em branco
para eu poder usar. Facilita meu trabalho.
Meu dentes estavam tão apertados que pensei que quebrariam.
— Me devolva.
Sua cabeça tombou um pouco, um olhar falso de preocupação. Ele era um bom ator, eu lhe
daria isso. Um ótimo de um fodido ator.
— Nós não acabamos, Alyssa. Você deve trabalhar comigo. A outra opção é eu te entregar
em pedaços para seu querido Protetor. Claro, eu te garanto o poder de escolha.
Desgraçado.
Eu mal percebi o que fazia até que estava me lançando contra ele, pronta para arrancar sua
pele do rosto. Suas mãos agarraram meu pescoço com tanta facilidade que eu quis gritar de
frustração. Bati minhas mãos contra ele, minhas unhas tentando cortá-lo como se fossem uma
arma de verdade. Seus dedos se apertaram em volta do meu pescoço, e eu engasguei por ar, mas
satisfação cresceu em mim quando vi seu rosto se contorcer levemente e um fio de sangue pingar
de sua bochecha até seu queixo, uma prova do que eu havia conseguido fazer com ele.
— Me solta — eu exigi, a voz baixa, meio falha.
Ele sorriu.
— Faça sua escolha.
— Vai pro inferno.
Vicenzo bufou, o corte em sua bochecha já fechado e curado.
— Pense bem, Alyssa. Já estamos nele.
Seus dedos alisaram a pele em meu pescoço e seus olhos perderam um pouco do foco,
quase como se uma lembrança tão antiga quanto ele tomasse sua memória. Um arrepio percorreu
minha coluna.
— Por que me pareço com ela, Vicenzo? — exigi saber.
— Porque o Destino queria me punir. Ele achou que olhar para você me torturaria o
suficiente.
Ele já não me sufocava mais, no entanto, minhas costas estavam presas contra a porta de
vidro e sua mão continuava em meu pescoço, me mantendo presa.
— É por isso que me trouxe para cá?
— Como eu disse, matá-la logo de cara era um desperdício. Soube disso quando a
encontrei na floresta, antes da Protetora traidora do seu povo te encurralar. — Do que ele estava
falando? Que Protetora? — A semelhança, claro, foi o que me fez recuar inicialmente. Mas veja
bem, toda a sua origem é interessante, a Fidly nascida de uma Protetora e um humano. — Ele
deu de ombros. — Eu fiquei curioso.
Filha de uma Protetora e um humano. Traidora que me atacou. Tudo eram memórias que
ele me tirou.
Simples assim, eu queria cutucar sua ferida com mais força ainda.
— Você me beijou por isso? Por que estava curioso? Ou por que sente tanta falta da sua
deusa morta, que não pode evitar tentar encontrar em mim o que tinha com ela?
Isso fez com que seus dedos voltassem a me estrangular, indo tão fundo em minha pele que
nenhum ar chegava aos meus pulmões.
— O Destino pode ter feito seu rosto como uma cópia fiel de Nixya, mas você não chega
aos pés dela. Nunca chegará. Ela foi uma deusa. — Sua voz era como ácido em meus ouvidos
enquanto eu implorava por ar. — Você é apenas uma arma.
Vicenzo me puxou e, com apenas um empurrão, meu corpo estava voando pelo quarto,
minhas costas batendo contra a parede. Caí sobre um dos móveis e meu corpo o quebrou com o
impacto. Eu tinha quase certeza de que tinha quebrado algum osso também.
— Você não ganha esta guerra, Alyssa. Você sabia disso meses atrás quando se entregou.
Está me entendendo? — Ele agora caminhava pelo quarto. Parou em frente à sua escrivaninha e,
com paciência dissimulada, colocou seu diário de volta, junto com o celular de Nathan, e então
fechou a gaveta. Tentei me erguer, mas meu corpo pareceu precisar de mais um tempo. Ótimo.
— Preste atenção na oportunidade que estou lhe dando.
— Não estou interessada em ser sua arma, Vicenzo. — Minha voz custou a sair.
Vicenzo me encarou, a expressão indecifrável.
— Eu imaginei que você diria algo do tipo.
CAPÍTULO 21

Eu não sabia quanto tempo tinha passado desde a última vez que Vicenzo esteve aqui para
me torturar, entretanto, eu ainda sentia os efeitos nos meus ossos. Ele havia deixado determinado
que só ele tocaria em mim, o que não foi em nada um ato de misericórdia. O desgraçado sabia
infligir dor, mas imagino que com um milênio de vida — ou mais, quem diabos estava contando?
— isso fosse natural dado sua natureza sociopata. Era muito tempo para treinar.
Toda a porra do meu corpo doía. Pensar doía.
Mesmo assim, quando eu pensava, pensava nela. Ela havia vindo aqui, tinha me visitado,
mesmo com a certeza de que não deveria e isso me deu esperança, mesmo que ela não tenha
aparecido novamente desde então.
Mas foi só seu rosto tomar minhas lembranças, que o Destino decidiu me ferrar mais uma
vez. O desgraçado não parecia ter outro interesse.
A porta se abriu com um chute, mas eu não me movi, certo de que em algum momento, o
tempo de tortura acabaria, porque eu sabia que Jasper e os outros estavam pensando em algo
para invadir essa merda de cidade. Eu sabia. Jasper, Roman, Serena... eles não me
decepcionariam. Eu poderia aguentar mais um tempo nesse inferno.
Porém,Vicenzo apareceu arrastando Alyssa pelos cabelos para dentro da sala, e meus ossos
encontraram a motivação necessária para me fazer ficar em pé. Um rastro de sangue seco
marcava um lado do rosto do desgraçado, mas como esperado, não havia nenhum ferimento.
Alyssa, por outro lado, estava com as mãos sobre o punho fechado de Vicenzo em seu cabelo,
provavelmente tentando aliviar o aperto, enquanto ele a arrastava para mais perto de onde eu
estava. Consegui ver marcas em seu pescoço e um ódio puro e amargo me sufocou. Forcei meu
corpo a atacar, mas Vicenzo me parou, puxando Aly para cima e fechando a mão em seu
pescoço.
— Faça alguma idiotice e eu quebro o pescoço dela como eu faria com um passarinho.
Eu parei, analisando a situação. Havia lágrimas não derramadas nos olhos da minha garota,
e eu queria poder arrancar os olhos estranhos de Vicenzo da porra da cabeça dele.
— Você não vai matá-la. Teria feito isso há muito tempo se quisesse.
Vicenzo me deu um meneio de cabeça.
— Você acabou atrapalhando meu plano.
Eu precisava pensar em algo, porque ele não parecia estar blefando.
Alyssa foi mais rápida. Seu cotovelo subiu em direção ao queixo de Vicenzo no mesmo
instante em que seu pé chutou o joelho dele. Foi apenas um segundo, mas o leve recuo do
Desertor lhe permitiu se soltar do seu aperto e se virar para um soco bem dado no meio do nariz
do idiota.
Eu poderia ter dado risada, em outra situação.
Avancei, meio manco, para empurrá-lo. Para que eu fazia isso? Eu não tinha chegado a
uma conclusão, já que eu não podia matá-lo. Mas talvez se eu arrumasse uma faca poderia cortar
as mãos dele, assim nunca voltaria a tocar em Alyssa.
Vicenzo, contudo, soltou uma risada, nos observando com diversão. Então eu fiz a coisa
menos idiota possível: recuei. Puxei Alyssa pelo pulso e a coloquei atrás de mim.
Ele nos encarou e logo uma risada maquiavélica preencheu a sala, me deixando ainda mais
tenso. O brilho nos olhos dele não era normal e eu sabia que o desgraçado tinha perdido a porra
da cabeça de vez. A mão de Alyssa na minha tremia levemente, e eu a ouvi sussurrar baixinho
para mim: “Sinto muito.”
— Ah, como o amor é lindo, não é? O casal que, mesmo sem memórias, continua a se
encontrar. — Ele caminhou pelo quarto, os olhos em nós dois. — Eu admito que quando roubei
Alyssa, a ideia de apagar suas memórias não foi exatamente minha. — Olhei de relance para Aly,
que encarava Vicenzo com fogo nos olhos. Ela sabia, de alguma forma havia descoberto a
verdade. — Cassandra me deu a ideia ao fazer exatamente o mesmo com vocês anos antes.
Claro, eu aperfeiçoei o plano, como sempre, mas aquela Guardiã sempre foi particularmente
astuta, posso admitir isso.
— Cansou de fingir ser o bonzinho da história? — cutuquei.
Ele me deu um olhar cético.
— Por favor, quando o mundo for dividido entre bem e mal, a balança já não será um
problema para o Destino. — Ele apontou para Alyssa, atrás de mim. — Vamos falar sobre
história, tudo bem?
Ela não respondeu, mas os olhos não deixaram de fuzilá-lo.
— Vocês devem saber sobre a infame história de como me tornei um Desertor — disse,
mas então deu um meio sorriso. — Bem, você, querida ragazza, não se lembra, obviamente. Mas
tudo bem. Provavelmente não tinha escutado a versão correta. A verdadeira é um tanto
interessante.
Vincenzo jogou um papel em minha direção e eu o agarrei ainda no ar. Quando encarei a
imagem, meu cérebro deu um nó. Era Alyssa.
— Não — ele pareceu ler meus pensamentos —, esta não é Alyssa. Alyssa é uma cópia
barata da mulher nessa foto. Seu nome — disse — era Nixya. Eu a conheci depois de ser
abençoado pelas Guardiãs e, bem, você deve entender o apelo desse rosto. Não demorou para
que eu me apaixonasse por ela, principalmente porque Nixya era uma mulher um tanto quanto
incomum. Uma deusa.
Isso era impossível. Eu ainda estava tentando entender como a mulher na foto era igual a
Alyssa, ao mesmo tempo em que a confissão de Vicenzo sobre um dia ter estado apaixonado
parecia absurda. Era uma afirmação no mínimo cômica.
— O Destino não gostou quando ela começou a se intrometer nos assuntos dos Protetores,
ao mesmo tempo em que eu cada vez entendia mais que nosso papel aqui não deveria ser o de
lutar e morrer. Sem glória. Sem marcas na história — Vicenzo continuou, absorto em memórias
antigas. — Nixya era muito mais visionária do que o Destino jamais seria. A deusa da escuridão.
— Ele me encarou. — Sabia que tudo se origina de completa escuridão?
— O que isso tem a ver com Alyssa? — rosnei, irritado e ansioso por respostas que de fato
me interessassem. Eu não me importava com a paixãozinha dele.
Aly apertou ainda mais minha mão.
— Você é muito inquieto, garoto. Escute com atenção e entenderá. — Seus dedos rodaram
um pequeno anel de ouro no dedo mindinho, e percebi, em completo silêncio, que era uma
versão mais feminina daquele que Freya mantinha. Devia ter pertencido a tal Nixya, enquanto
que o dele deve ter sido roubado pela Guardiã. — Eu queria o que Nixya queria, mas obviamente
o Destino achou que isso ia contra o equilíbrio. Claro que ele só percebeu quando era tarde
demais, e a idiota da Freya já havia me garantido imortalidade.
— Já ouviu dizer que não é muito certo enganar uma mulher apaixonada?
Seu sorriso era frio como gelo.
— Passei bons anos preso em uma estátua em meu jardim para entender isso — deu de
ombros —, mas são meios para um fim.
— Continue — Alyssa exigiu, entre dentes.
Ele a olhou, a fumaça em seus olhos parecendo se dissipar enquanto se concentrava nas
feições de Aly. Algo primitivo em meu peito rugiu e eu bloqueei sua visão com meu corpo.
Minha. Ele não podia olhar para ela assim, só porque sua ex-amante tinha o mesmo rosto.
— Ficar preso em uma estátua foi minha punição mais misericordiosa, ragazza. Quando
Freya finalmente conseguiu me prender, o Destino já havia me punido de forma muito mais
cruel.
Aly inspirou.
— Ele matou Nixya.
Vicenzo assentiu.
— Só um deus pode matar uma deusa.
Ok, eu não dava a mínima para a história triste dele.
— Você ainda não chegou no ponto que realmente importa aqui — eu disse, irritado. — O
que isso tem a ver com Alyssa?
O primeiro Desertor da história, imortal e cruel, teve a reação mais mundana possível: ele
deu de ombros. Cerrei meu punho, desejando estar mais forte e menos machucado, para quebrar
a porra dos seus ossos.
— Alyssa é apenas um peão neste jogo. Sempre foi, e temo que se não escolher certo,
sempre será. — Ele se aproximou devagar, nos encurralando contra a parede. — Para começo de
conversa — ele apontou para a marca na mão direita de Aly — esta marca é a prova de que o
Destino não a criou com o propósito de ser livre para escolher. Seu destino foi traçado muito
antes de nascer, mia cara. Mas claro, admito que você é especial. Veja bem, quando eu desafiei o
Destino e, mais tarde, quando ele me avisou que haveria luz nesse mundo que seria capaz de me
destruir, ele ainda precisou manter o equilíbrio. Milhares de garotas nascendo eternamente com o
propósito de me matar não estaria certo para a balança. Então ele sabia que haveria um limite. E,
bem, chegamos nele.
— Então você realmente acha que ela é a última — eu murmurei.
— Eu sei — Vicenzo me corrigiu. — Sua origem é excepcional, filha de uma Protetora,
manchada apenas por metade de seu sangue humano. E seu rosto... Seu rosto foi minha resposta,
porque é tão do feitio do Destino ser tão ridiculamente dramático! Ele a tornou interessante
demais para que eu matasse de uma vez.
A mão de Alyssa soltou a minha e eu não consegui pará-la quando ela deu um passo à
frente, desafiador.
— Eu ainda estou aqui. — Vicenzo abriu um sorriso viperino para sua ousadia. — Então
ele não estava tão errado. Se o que você diz é verdade e eu poderia matá-lo, então o meu rosto
com certeza te impediu de me matar.
— Eu não sou um homem que desperdiça oportunidades, Alyssa.
— E também não é burro — ela retrucou. — O que quer dizer que você tem um plano.
Mas eu não vou mais trabalhar para você, mestre. — Sua voz parecia veneno. — Não serei sua
arma, então eu diria que está na hora de você dar o próximo passo, porque eu juro pelo Destino
que, se eu chegar aos dezoito anos, vou matá-lo. — Surpresa corroeu o rosto de Vicenzo, mas eu
estava preocupado demais com sua reação para aproveitar a vista. — Eu sei juntar dois mais dois
— Aly continuou. — Você esteve falando muito sobre meu aniversário, sobre como só então eu
poderia servir de verdade para você.
Por um segundo, ele apenas a encarou. No próximo, sua risada preenchia a sala.
— Você não é nada idiota, mas é um pouquinho cega — ele disse. — Eu poderia ter te
ensinado a melhorar isso, se você não estivesse tão empenhada em me desafiar. — Vicenzo
ergueu as mãos e, ainda sorrindo, bateu uma palma. Logo a porta se abriu em resposta e seis
Desertores entraram. — Eu tenho planos, Alyssa. Você pode ser uma peça importante, mas não é
a única. — Então ele me olhou. — Há muito o que pode ser corrompido nesse mundo, mia cara.
Você não é a única.
Eu já estava estendendo minha mão, ignorando o peso do meu corpo para puxar Aly de
volta para mim, mas Vicenzo ordenou:
— Pegue-a.
Um Desertor avançou, me dando um soco no nariz, enquanto outro puxava Alyssa para ele.
Mas ela não foi em paz, e lutou com unhas e dentes contra o desgraçado, até que ele se irritou e,
com um único movimento, quebrou sua mão.
O seu urro de dor pareceu me ensurdecer e, por um instante, achei que fosse a minha mão
quebrada. Chutei as pernas do Desertor que me segurava e me joguei na direção de Alyssa, mas
era como lutar em um terreno lamacento. Meu corpo não respondia aos meus comandos, de tão
machucado que estava. O desgraçado usava lâminas de pedra de fogo também, e os ferimentos
da última sessão de tortura não haviam se curado ainda.
— Não toque nela! — eu gritei, os olhos negros de Alyssa cheios de lágrimas procurando
os meus.
Vicenzo foi até ela com a graça de somente alguém que não acreditava poder conhecer a
morte teria. Seus dedos tocaram o rosto de Alyssa e ela tentou recuar para longe. Ele baixou a
boca para seu ouvido, mas ainda pude escutar quando sussurrou: “observe o meu plano agora”.
Vicenzo deu apenas um olhar para a Desertora mais velha que estava atrás de Alyssa, e
então ela já estava tirando a adaga do cinto e a passando pelas costas de Alyssa, cortando tecido
e pele pelo caminho. Logo o cheiro férrico de sangue preencheu minhas narinas. Dessa vez,
porém, a minha garota engoliu a dor com dentes trincados.
— Pare com isso! — eu rugi.
Os olhos do homem que eu sonhava em matar caíram sobre mim.
— Ou o quê? — desafiou. — Você falhou, Nathan. Veio aqui para tentar me matar, e
falhou. Seus amigos não vão conseguir atravessar minha fronteira, então pode parar de esperar.
Eles haviam falhado então? Jasper, Roman e Serena haviam vindo apenas para bater contra
a parede? Freya não podia fazer nada? Porra, juntasse todas as Guardiãs, todos os Protetores e
nos tirasse daqui!
— Você tem que se lembrar de uma coisa, Nathan. Alyssa é importante para eles, isso é
um fato, mas ela não é maior que a balança. — Ele me encarou. — Não para eles, pelo menos.
Alyssa me olhou, as lágrimas escorrendo, mas suas feições firmes, sérias. Ela me deu
apenas um aceno de cabeça. Um “não” claro, mas que eu não aceitei. Ela não se lembrava, mas
havia se sacrificado por mim e agora era a minha vez de fazer o que fosse necessário por ela.
— Se vai me matar, ande logo — Aly rosnou, mesmo sabendo que não era isso que
Vicenzo queria.
Porém, ele agarrou sua outra mão, a que tinha a marca, e quebrou o dedo mindinho. Ela
xingou tão alto que senti em meus ossos.
— Para com isso, porra! — eu gritei.
Vicenzo me olhou com desdém.
— Você atrapalhou meus planos, Nathan, e agora Alyssa não quer mais fazer o que preciso
que faça. Você entende como isso não vai funcionar para mim? — Com um olhar para Aly, ele
quebrou o seu dedo anelar. Sua outra mão já estava pendendo ao lado do corpo em um formato
estranho. — Eu posso pensar em um jeito de resolver esse problema, já que vocês parecem
sempre buscar proteger um ao outro. Mesmo sem memórias, acredito que o elo é forte. — Seus
olhos prenderam os meus. — Você sente quando a machuco?
— Me diga o que você quer. — Forcei a minha voz a não ser tão fraca a ponto de ele ver
que eu estava implorando.
Mas, pelo Destino, se ele me forçasse a implorar, meus joelhos estariam no chão em um
piscar de olhos.
— Não vale a pena, Nathan — Aly disse, com dentes trincados enquanto tentava suportar a
dor.
Ela não tinha ideia do quanto valeria a pena. Porque ela valia a pena. Eu andaria por cima
de brasas por ela e poderia muito bem dançar com o diabo se fosse o caso.
Eu sabia que Aly estava cada dia mais próxima do seu aniversário, e também sabia que
isso de alguma forma influenciava no seu gene Protetor. Eu podia ver seu corpo tentando se
curar, mas sem o auxílio correto, seus dedos se curariam apenas para terem que ser quebrados
novamente, assim como a sua mão. Vicenzo me olhou e ele agarrou a nuca de Alyssa, que tentou
recuar inutilmente. Ele quebraria seu pescoço em seguida.
— Meu próximo passo, Nathan, será fatal. Já perdi tempo demais com ela.
— Me diga o que quer!
Ele me olhou.
— Você sabe o que quero.
— Nathan, não faça isso — Aly implorou.
Eu inspirei fundo, a adaga de um dos Desertores estava apontada para minhas costas, eu
sentia seu espetar. Eu assenti, quase imperceptivelmente, e me ajoelhei. Eu faria isso por ela e
daria um jeito de tirá-la dali, só precisava de mais tempo. Só mais um pouco de tempo, e eu
descobriria um jeito de tirá-la dessa cidade. Se esse era o preço, eu pagaria.
Olhei para a imensidão negra dos olhos de Alyssa e rezei para que ela soubesse, mesmo
que não se lembrasse, que eu sempre estaria ao seu lado, não importava o que eu tivesse que
fazer para mantê-la viva. Não importava em quem eu precisasse me tornar.
Então, olhei para Vicenzo com tamanho desprezo que esperava que ele pudesse sentir em
seus ossos, e disse, a voz firme:
— Eu deserto.
CAPÍTULO 22

Eu assisti, completamente imóvel, enquanto Nathan se ajoelhava e proferia sua própria


sentença: deserção. Eu queria gritar, espernear e arrancar a cabeça de Vicenzo do corpo, mas eu
mal conseguia respirar. A dor dos meus ossos quebrados e dos cortes era apenas uma fração do
terror que eu sentia agora.
O sorriso de Vicenzo me fazia querer vomitar. Ele tinha planejado tudo isso. Desde o
início, seu plano ia além de me ter do seu lado, ele também queria o Protetor, e havíamos sido
manipulados como fantoches em seu jogo.
Eu honestamente não me lembrava, mas duvido ter me sentido tão burra em toda a minha
vida.
— Já era hora, não é? — A voz de Vicenzo agora parecia um ronronado. — É muito
interessante ver o que fazemos em nome do amor. Em toda a sua vida, sua mera existência era
me destruir, Nathan. Afinal, eu matei sua mãe, invadi sua casa e roubei sua namoradinha. Por
anos, eu estive te oferecendo esta mesma posição. E foi só preciso ameaçar Alyssa e aqui
estamos nós.
Fúria estava estampada no olhar de Nathan. Mal contida, borbulhante, como um poço de
lava que logo encontraria algo para queimar.
— Eu sei que você adora o som da própria voz, mas podemos ir logo com isso?
Eu não esperei Vicenzo responder. Forcei a dor para dentro, guardando-a em uma caixinha
que eu abriria quando pudesse lidar com ela propriamente. Respirei fundo e bati meu cotovelo
contra o rosto da Desertora atrás de mim, sua espada me cortando mais profundamente, e com a
mão que não estava completamente quebrada, peguei uma outra arma de seu cinto e a apontei
para Vicenzo.
— Deixe ele ir.
Quando olhou para mim, o sorriso ainda estampava seu rosto.
— Viu? Idiotices que fazemos por amor...
Eu afundei com a espada, mas sua mão agarrou a lâmina. Enquanto carne era cortada e
sangue escorria, Vicenzo apenas forçou o aperto até que meus dedos quebrados não fossem mais
capazes de segurar a espada. Ele, então, bateu com o punho da arma contra meu estômago, e eu
voei pela sala. Minhas costas bateram contra a parede e caí no chão.
Exausta. Machucada. Humilhada.
Ali, bem na minha frente, estava Marco, me olhando com pura diversão.
Idiota.
— Se vou fazer isso — Nathan rosnou —, você nunca mais irá tocar nela.
Vicenzo ponderou.
— Então trate de mantê-la sob controle. E do meu lado.
Eu trinquei os dentes, desejando poder queimar todos ali.
— Já devia ter percebido que dificilmente um homem terá sucesso em controlar uma
mulher — Nathan provocou e, por isso, eu o teria tirado dali antes de atear fogo em todos os
outros.
Vicenzo não respondeu, apesar de eu ter visto um músculo de sua mandíbula torcer.
— Onde está sua tatuagem?
Nathan puxou a bainha da camiseta e a tirou do corpo. Eu vi as chamas subirem pelo lado
direito de seu abdômen, sobre o V que marcava o fim de sua cintura, até mais em cima, perto de
seu umbigo. Como uma ramificação. Como se chamas fossem raízes em um mar de fogo.
Vicenzo se abaixou, e com um movimento lânguido, cortou o abdômen de Nathan, de uma
extremidade até a outra. Sangue fluiu da ferida, mas Nathan não se moveu.
— Levante-se.
Meu coração batia tão rápido que pensei que poderia sair pela minha boca. A voz em
minha cabeça gritava: Não, não, não. Porém, Nathan não podia escutar, e ele se levantou, a mão
tocando o corte em seu abdômen. Quando estava cara a cara com Vicenzo, seus olhos não se
desviaram do inimigo que logo teria sua vida nas mãos.
Eu havia ignorado muitas coisas desde que cheguei a este palácio. Havia desviado os olhos
para o que os Desertores faziam e para o que Vicenzo me forçava a fazer, porque era a única
verdade que eu tinha, a única proteção que achei ser ideal. E minha ambição me forçou a ver
Vicenzo como um meio para um fim, assim como eu sabia que era para ele. Eu não me importei
quando percebi que os Desertores viviam sob o comando de Vicenzo e tranquei os sentimentos
confusos que eu tinha em relação ao que Lore precisou se tornar apenas para não ficar sozinha.
Mas agora, enquanto observava Nathan prestes a desertar, eu soube que este momento seria o
fim de sua liberdade.
E eu odiava isso.
— Estenda sua mão direita.
Nathan obedeceu a ordem de Vicenzo, seus olhos agora sem vida, como se, aos poucos, ele
estivesse percebendo o que estava fazendo. Ele não me olhou. Não parecia enxergar ninguém de
verdade. Vicenzo pegou a bela adaga com a pedra negra em seu pomo, e com a ponta da lâmina,
cortou a palma do Protetor.
— Diga o que quer — Vicenzo disse novamente.
— Desejo desertar — Nathan respondeu, a voz estranha.
Vicenzo cortou a própria palma. O cheiro de sangue no ar era mais do que o cheiro de
ferro, era mais forte, mais marcante. Era magia, percebi. O que quer que Nathan fosse, quem
quer que ele fosse, seu sangue era tão forte quanto o de Vicenzo. Magia preencheu o ar como
uma nuvem pesada antes da chuva cair. E quando as duas palmas sangrando se tocaram, tensão
fluiu pelo ar, e a magia pulsou mais forte, quase de forma rebelde.
Não era para isso acontecer e a própria magia sabia.
— Repita — Vicenzo ordenou. — Meu sangue agora é seu. Minha força é sua. A partir de
agora sou uma arma a ser empunhada por você.
Nathan não moveu um músculo, mas repetiu:
— Meu sangue agora é seu. Minha força é sua. A partir de agora sou uma arma a ser
empunhada por você.
— Jura ser leal? — Vicenzo continuou.
Não.
— Sim.
— Jura fazer o que lhe é dito?
— Sim. — Havia raiva em sua voz.
Vicenzo retirou a mão da dele e a levou até os lábios, onde bebeu seu sangue e o de
Nathan, misturados como um só. Um juramento de sangue completo.
Nathan havia acabado de fazer um juramento de sangue a Vicenzo.
O Protetor havia estendido a mão e aceitado as correntes de Vicenzo. Por mim.
— Bom — disse, lambendo os lábios —, pois agora seus olhos são meus olhos, seu sangue
meu sangue e sua vida é minha.
Vicenzo esticou a mão e um de seus dedos tocaram o peito de Nathan. Foi apenas um
toque, mas Nathan se dobrou, um rugido preso na garganta, e as mãos agarraram sua pele como
se Vicenzo tivesse colocado fogo onde tocou. A dor parecia insuportável porque logo o grito saiu
de seus lábios e ele caiu no chão, se enrolando como um animal em sofrimento.
— O que você fez? — eu perguntei, nervosa. Vicenzo não respondeu, então eu falei mais
alto: — O que você fez?
Ainda assim, nenhuma resposta. Eu me arrastei para perto de Nathan e nenhum deles me
parou. Minha mão já começava a sarar em uma posição estranha, mas me forcei a engatinhar até
poder tocar no Protetor, que ainda agonizava no chão.
— Ele desertou! — gritei. — Por que está machucando ele?
Puxei a cabeça de Nathan para o meu colo, sentindo seu cabelo molhado de suor. Seu rosto
contorcido de dor e os olhos azuis agora opacos, me olhando como se eu pudesse ser sua
salvação. Mas eu não sabia o que fazer. Não sabia como ajudar. Pousei minha mão menos
machucada em seu peito. Seu corpo tremia. Seu peito subia e descia em respirações curtas e
desesperadas.
— Você vai ficar bem — sussurrei para Nathan.
Então eu vi.
Linhas negras finas, como veias, começaram a desenhar seu peito. As linhas rasgavam de
um lado ao outro, pintando sua pele branca como uma tatuagem perversa. Era ainda mais
parecido com raízes do que as chamas anteriores, e as linhas se encontravam sobre seu coração.
Demorou longos minutos até que todas as linhas fossem traçadas e, por fim, a marca
estivesse pronta. Nathan parou de agonizar por tempo suficiente para encarar o que agora
estampava seu peito, e então desmaiou em meus braços.
— Satisfeito agora? — rosnei para o Desertor mais antigo.
Ele me olhou sem qualquer emoção no rosto.
— Estou sempre satisfeito com as coisas que faço, Alyssa. — Então se virou para sair. —
Tire-a daqui, Marco.
Eu segurei Nathan mais firme, não confiando em nenhum deles para deixá-lo ali sozinho,
mas Marco veio até mim, me puxou para cima e me levou para longe. Eu esperneei, mas estava
fraca pela dor e cansada por tudo.
Antes de ir, Vicenzo tirou o cabelo do meu rosto e eu quis vomitar. Então ele sussurrou em
meu ouvido:
— Eu nunca teria matado você antes da hora, Alyssa. Eu quero que você se transforme.
Curiosidade é um dos meus poucos defeitos. Mas assim, com Nathan ao meu lado, consigo
manter você sob controle, porque espero que saiba que, qualquer coisa que faça, recairá sobre
ele. E nós dois sabemos que, com memórias ou não, o elo é muito forte e você se importa.
Então saiu, deixando que Marco me arrastasse para meu quarto.

Sybil apareceu para curar minhas mãos e dedos, porque Vicenzo disse que precisava que
eu estivesse perfeita se eu fosse trabalhar para ele. Isso significava que ela quebrou cada osso
novamente, os colocou no lugar certo, e depois murmurou algum encanto que fez com que se
curassem mais rápido. Eu não disse uma palavra, nem mesmo encarei seus olhos negros
estranhos. A este ponto eu havia juntado dois mais dois e entendido que o que quer que tenha
sido feito com a minha mente, tinha sido ela a responsável. Aquelas sessões intermináveis onde
ela parecia vasculhar cada pequena curva do meu cérebro era prova disso.
Sybil também não disse nada, até que já estava a meio caminho da porta:
— Você não se lembra, mas isso não acaba bem.
Ela não parecia nem um pouco triste.
— Então devolva minhas memórias — retruquei.
A Feiticeira sorriu, os dentes afiados apontando.
— Temo que isso não será possível.
Trinquei os dentes. Eu não iria implorar.
— Então saia do meu quarto.

Eu estava andando de um lado para o outro, incessantemente, quando Lore apareceu em


meu quarto e eu não tinha qualquer interesse em lidar com ela.
— Aly...
— Saia.
Ela não saiu.
— Eu não podia falar. Eu queria, mas não podia.
Eu a encarei, raiva queimando, sentindo a traição como um amargor em minha boca.
— Você podia. Teve inúmeras chances de me alertar. Você sabia de tudo mesmo antes de
Nathan chegar, não é? Sabia que eu tinha uma família. Sabia que eu estava do lado dos
Protetores antes de Vicenzo me sequestrar.
Lore não fingiu não saber do que eu estava falando. Todos os Desertores ali sabiam quem
eu era de verdade, e o que Vicenzo havia feito. Eles trabalhavam para ele, afinal. E, para ser
sincera, o fato de que nenhum deles ao menos tentou me contar a verdade não era tão chocante.
Mas Lore... Eu pensava que Lore era minha amiga.
— Não é assim que as coisas funcionam. Eu não posso fazer algo que Vicenzo me diz,
especificamente, para não fazer. É traição.
Soltei uma risada ainda mais amarga que o gosto em minha boca.
— Que bom que está familiarizada com o termo — eu disse. — Você poderia ter me
deixado ir com Nathan.
— Você não quis ir!
— Porque eu não sabia! — gritei. — Porque ele ameaçou você, e eu como uma idiota
tentei te proteger!
Sua mão tentou me tocar, mas eu a afastei. Eu não seria manipulada novamente.
— Aly — ela tentou novamente —, quando eu conheci você, parte de mim foi egoísta o
bastante por gostar de ter você aqui. Eu estava feliz por ter alguém com quem eu gostava de
conversar. Eu tentei, juro que tentei, da forma como pude, abrir seus olhos para a verdade.
Quando Nathan apareceu eu estava aterrorizada de que ele fosse te levar embora, mas ao mesmo
tempo, eu sabia que você deveria ir porque Vicenzo havia começado a dar sinais de
instabilidade...
— Instabilidade? — eu rosnei. — Ele me sequestrou e apagou minhas memórias para me
manipular! Ele me beijou à força e então me bateu! De que merda você está falando?
A Desertora recuou um passo, as mãos tremendo levemente enquanto ela me observava.
— Eu sei... Eu queria poder... — Ela fechou os olhos e balançou a cabeça. — Não importa.
Eu só preciso que saiba que sua amizade é importante para mim.
Cerrei os olhos.
— Eu não quero uma amiga como você.
Observei Lore engolir em seco, os olhos agora cheios de lágrimas, mas eu não me
importei. Meu coração, percebi, havia se tornado um pouco mais como ferro nos últimos meses.
— Eu vivi na sombra de Vicenzo por anos porque não conhecia nada melhor. Os
Protetores nunca tinham sido minha família de verdade, mas tampouco haviam sido os
Desertores. Vivi nesse limbo eterno de solidão até que conheci você — disse, a voz firme apesar
dos olhos marejados. — Eu nunca conheci lealdade como a sua. Nunca soube o que era ter
alguém com quem conversar. E, honestamente, nunca esperei conhecer uma realidade melhor do
que as que vivi. Protetores e Desertores sempre vão ser duas faces da mesma moeda, era nisso
que eu sempre acreditei. Mas agora eu conheço você, Alyssa. Eu vejo a luz dentro de você,
mesmo quando está presa na escuridão. Eu vi você matar, mas também vi você proteger. Os
Protetores e Vicenzo a querem por uma razão, mas eu... Eu acredito em você. Acredito que pode
mudar tudo. Você me deu esperança de que esse não precisa ser o único jeito de viver. Você só
precisa se encontrar.
Eu tranquei suas palavras em uma caixa. Não me permiti acreditar nelas. Eu era apenas
uma idiota dentro de um jogo de deuses. Eu não era esperança alguma. Nem tinha potencial para
ser uma líder. Estava presa neste palácio até o fim dos meus dias.
— Como espera que eu faça isso? — Avancei, encurralando-a próxima à porta. — Me
diga! Como esperava que eu mudasse alguma coisa presa nesse palácio?
Lore abriu a boca para falar, mas parou. Os olhos presos nos meus. Machucados. Sofridos.
Eu não me importo.
— Você disse que Vicenzo era seu meio de conseguir o poder que queria — ela conseguiu
dizer.
— Eu não sabia que era uma cópia da mulher que ele amou, morta há um milênio —
explodi. — E não sabia que eu era alguém antes de chegar aqui!
Lore franziu o cenho, me encarando com uma curiosidade recém-adquirida.
— Uma cópia? Do que você está falando?
Puta merda, eu queria gritar. Eu queria fazer minha mente descansar, ao mesmo tempo que
queria que ela trabalhasse melhor. E aquela ansiedade, aquele pânico crescendo no fundo do meu
estômago era apenas mais um motivo pelo qual eu só queria desaparecer. Só um segundo sem
pensar sobre o caos da minha vida e eu poderia voltar a lidar com ela novamente.
Mas eu não tinha um segundo. Ali estava Lore, esperando que eu explicasse o que percebi
que era uma novidade para ela. E quem sabe... Quem sabe ela pudesse me ajudar a conseguir
informações? Afinal, ela se dizia arrependida, não é?
— O nome dela era Nixya. Aparentemente era a deusa da escuridão ou algo assim —
expliquei. — E ela tinha exatamente o meu rosto. É por isso que as estátuas nesse palácio me
deixavam tão intrigada... Porque elas têm o meu rosto.
— Como isso é possível?
Dei de ombros.
— Coisa do Destino, de acordo com Vicenzo — murmurei. — Você nunca viu a pintura no
quarto dele?
Ela balançou a cabeça, negando.
— Nunca entrei no quarto de Vicenzo, Alyssa.
— Bem, não importa. De qualquer forma, é isso. Sou a cópia barata de alguém, criada
unicamente para atormentar a paz de Vicenzo.
Sua mão tocou a minha, e eu parei de andar de um lado para o outro.
— Não só para isso, Aly. Há uma profecia, você não descobriu sobre isso também?
Cerrei os olhos.
— Do que você está falando?
— Nós a chamamos de Fidly.
Fidly. Eu me lembrava desse nome. Vicenzo e seus amigos estranhos haviam usado esta
palavra, mas eu nunca soube o que significava. Até pensei que talvez fosse algo da língua de um
deles.
— Explique — eu pedi, ríspida.
Lore me puxou para a ponta da cama e se sentou. Eu não sentei ao seu lado, mas cruzei
meus braços e aguardei que ela começasse a falar.
— Quando Vicenzo desertou, o Destino criou uma arma para matá-lo. Alguém. Então, por
anos, garotas nasceram com uma marca, igual a esta em sua mão — ela apontou para as costas da
minha mão direita —, e morreram, assassinadas por Vicenzo. Isso é história antiga, nenhuma
chegou aos seus dezoito anos, ele sempre as matava antes. Até você.
— Porque eu me pareço com Nixya.
Lore deu de ombros.
— Aparentemente, sim. Mas também tem que ser mais que isso. Sua família... eu ouvi
falar que ela é diferente da família das outras Fidlys. Normalmente, até completarem 18 anos,
eram completamente comuns, humanas, de famílias humanas. — Ela me encarou, a expressão
significativa. — Você não é comum. Pelo que ouvi sobre você, sua mãe é uma Protetora. E você
tem essas habilidades que herdou dela. Mais forte do que uma Fidly comum.
Processei a informação, tentando preencher aquele vácuo em minha mente onde não havia
qualquer recordação de uma mãe. De uma família. E, acima de tudo, eu não entendia por que
Vicenzo não tinha me matado para eliminar a ameaça de vez. Mesmo que eu tenha o rosto de
Nixya, eu não era ela. Sua manipulação falhou. O que o estava parando?
— O que ele quer?
Lore deu de ombros.
— É o que todos aqui têm tentado descobrir.
Finalmente, sem poder aguentar mais o peso do meu próprio corpo, me joguei sobre a
cama, grunhindo, reprimindo a vontade de esgoelar.
— Vai dar tudo certo. Vou ajudar você.
Eu não acreditei. Lore podia ter me ajudado antes.
— Nathan desertou — falei baixinho, frustração percorrendo meu corpo como um arrepio.
— Para me proteger.
— Eu soube.
Fechei os olhos, cansada. Tão cansada. Como se eu tivesse passado a vida lutando, sem
um segundo para respirar. Culpa corroendo minha alma por todas as coisas que fiz em nome de
Vicenzo, só para descobrir que ele não seria minha salvação, nem um ponto de segurança. Muito
pelo contrário, era bem provável que fosse minha ruína e, por todo esse tempo, eu estava
trabalhando para o inimigo.
— Você conhece algum Desertor que simplesmente... deixou de ser um Desertou?
Lore não respondeu imediatamente. Quando abri os olhos, ela parecia triste.
— Não.
Engoli em seco. Nathan estava fadado a um destino em que ele odiaria cada segundo.
— Ele fez isso por mim, e eu nem consigo me lembrar o porquê eu mereceria.
Lore se esticou ao meu lado, os ombros tensos, receosa. Os pés em segurança fora dos
meus lençóis.
— Acho que você está focando na coisa errada. Não importa o porquê — disse. — O que
realmente precisa pensar agora — sua voz ficou mais baixa — é como vai dar o fora daqui.
Ninguém saía deste palácio sem permissão, assim como ninguém entrava.
— Você está pensando em ajudar ou só expor fatos óbvios?
Ela estalou a língua.
— Não seja boba, já estou planejando tudo.
CAPÍTULO 23

Agora eu tinha a porra de um quarto nessa merda de palácio estúpido.


O que eu fiz?
Jasper e os outros nunca apareceram. Eu não tinha mais tempo ou escolha. Eu fiz o que
precisava fazer.
Mas agora, olhando no espelho, eu queria vomitar.
Depois de desertar, meu corpo havia se curado. Além de cicatrizes antigas, aquela marca
era a única coisa na minha pele, e era nojenta. As veias negras sobre meu peito pareciam o
resultado de um envenenamento. E havia mais também, aquele zunindo em meu ouvido e a
quentura em meu sangue. Eu havia feito um juramento de sangue, havia entregado minha vida de
bandeja para o desgraçado de Vicenzo. Parte de mim sabia o que isso queria dizer e a outra ainda
estava em negação. Afinal, havia uma razão pela qual, depois de desertado, alguém nunca
poderia voltar atrás. Existia um motivo pelo qual os Protetores nem ao menos se davam ao
trabalho de tentar recrutar os Desertores de volta para seu lado.
Eu podia senti-lo sob a minha pele, como um parasita imundo e indesejado.
Agora eu era um deles.
Desertor.
Minha mãe deve ver agora o grande erro que foi se sacrificar para me manter seguro. Ideia
muito idiota, mãe.
Até os poderes pareciam ser diferentes, mesmo não sendo de fato. Eu ainda podia correr,
ouvir e sentir muito melhor do que qualquer um. Também podia quebrar coisas com facilidade
— meu novo quarto todo destruído era prova disso. Contudo, mesmo sem a dor cegando meus
sentidos, eu não podia mais me comunicar pela mente com outros Protetores, o que, pensando
bem, não era uma grande surpresa.
Agora eu era a porra do inimigo.
Cerrei os olhos para a marca em meu peito. Engraçado como me tornar um desertor não
havia me feito parar de odiá-los. Eu parecia capaz de arrancar meu próprio coração a qualquer
momento. O ódio de mim mesmo não era um sentimento exatamente novo, mas era mais potente.
E muito mais amargo.
Passos leves soaram lá fora. Olhei para o relógio sobre a mesinha de cabeceira. Quatro
horas da manhã. Fechei os olhos enquanto seu cheiro chegava até mim, como uma lufada de ar
fresco no deserto. Pelo Destino, eu amava esse cheiro. Podia viver por esse cheiro.
Pelo espelho, observei Alyssa entrar, olhando para trás, provavelmente checando se
alguém a havia seguido. Então ela se virou, e seus olhos pararam em mim.
— Feche a porta — pedi, e ela fechou.
Estiquei minha mão para pegar minha camiseta. Já era ruim o bastante eu ter que olhar
para aquelas veias negras, ela não precisava passar por esse desconforto também. Eu já estava a
meio caminho de enfiá-la em minha cabeça, quando sua mão me parou, segurando a minha.
Ainda me impressionava com o quão rápido ela podia se mover, em um segundo estava do outro
lado do quarto, e no outro estava parada me tocando.
— Isto não significa nada — ela sussurrou, encarando meu peito através do espelho.
Meus olhos encontraram os dela. Abaixei minhas mãos, cansado demais para lutar.
— Significa tudo.
Teimosa como era, Alyssa balançou a cabeça, negando.
— Eu vou tirar você daqui e então descobriremos uma forma de quebrar o juramento.
Não consegui conter um sorriso torcido de se esgueirar. Todo seu plano parecia fruto de
um delírio esperançoso. Não havia saída para um juramento de sangue, e eu definitivamente não
deveria ser seu problema.
— Este era meu trabalho — falei. — Tirar você daqui.
Sua mão fria tocou meu braço. Suas mãos estavam sempre frias quando estava nervosa.
— Você acabou de fazer um juramento de sangue por mim. — Deu de ombros, claramente
tentando fingir naturalidade. — Estou te devendo uma.
Eu me virei, finalmente encarando seus olhos diretamente. Olhos tão bonitos. Eu não me
importava que fossem cópias de outra pessoa. Para mim, aqueles olhos negros como a noite
sempre seriam de Alyssa e só dela. Nenhum teria o mesmo brilho, de qualquer forma.
— Você não me deve nada — eu disse, sério. Seus olhos brilharam com uma fagulha de
sentimento que eu sabia que ela não podia reconhecer. — E se eu pudesse escolher fazer um
juramento, eu o faria para você. E somente você.
Sua mão subiu para meu peito e Alyssa a pousou sobre as veias negras. Meu primeiro
instinto foi me esquivar, não porque eu não queria seu toque — eu havia passado meses ansiando
pela oportunidade de sentir sua pele contra a minha novamente —, mas sim porque eu estava
enojado pela marca e por quem eu havia acabado de me tornar. Mas Alyssa não me deixou ir, me
encurralando contra o espelho.
E eu não tinha forças para fugir dela. Não queria fugir dela.
— Essa marca não define quem você é — sussurrou.
Havia tanta fé em seus olhos, que por um momento, ela era a Alyssa que eu conhecia de
novo. A Alyssa pela qual meu coração gritava em desespero.
— O juramento define. Irá me corroer de dentro pra fora. Me tornar podre como Vicenzo.
É o que acontece. Ele tem o controle agora.
— Isso é besteira — ela insistiu. — Lore não é assim.
Escárnio estava visível em meu olhar.
— Sua amiga mentiu para você.
Alyssa engoliu em seco, mas se manteve firme.
— E mesmo assim é capaz de se arrepender desta escolha — disse, determinada. — Ela
não é apenas um fantoche. Assim como você, ela fez o que pensou que precisava fazer para
sobreviver. Isso não a torna ruim, só prova que estava desesperada. — Seus olhos perfuraram os
meus. — Como você.
— Os Protetores teriam ajudado ela.
Aly revirou os olhos, claramente mordendo a língua, antes de continuar a falar.
— Eu não me lembro de como são. Mas você deve saber melhor que eu que isso não é
verdade. Há corrupção e preconceito entre eles. Sei que Lore não mentiu sobre isso.
Eu não podia negar. Era um fato inquestionável que a comunidade de Protetores já não era
a sociedade mais correta do mundo, talvez nunca tenha sido. Eu havia visto como a elite tratava
os Protetores de sangue misto, ou mesmo aqueles dos quais a família não havia ascendido na
hierarquia falsa que criaram. Milênios de história e o nepotismo inerente ao trabalho haviam
criado uma comunidade com valores arcaicos. Aly não se lembrava, mas ela mesma era
descendente de uma família da elite, os Nephus. E sua avó era, basicamente, a personificação
mais desprezível dos Protetores. Eu não a mencionaria, porém. Às vezes não saber era melhor.
Apertei sua mão e, olhando em seus olhos, sério e irredutível, eu disse:
— Não há volta. — Eu precisava que ela entendesse isso. Eu precisava entender isso. —
Não existe uma maneira de me livrar deste juramento.
Sua mão apertou a minha, mas a senti tremer levemente.
— Sempre há um jeito.
De repente, eu estava furioso. Joguei minha camiseta de lado e a fiz encarar as veias
subindo pelo meu peito. Fúria expandiu em meu peito como fogo queimando uma floresta, e eu
agarrei seus braços, a forçando a ver. Era uma reação tão animalesca, tão explosiva, que eu não
reconheci, principalmente não com Aly tão perto. Era a porra da marca, aquela merda de
juramento. Já estava me arruinando.
Veja o que me tornei!
— Esta não é a hora para a Alyssa esperançosa dar as caras.
Ela não recuou. Nem mesmo pareceu se incomodar com meu aperto. Aquilo doeu, como
uma facada. Por que ela não se importava que eu a agarrasse assim? Por que ela não lutava
contra? Eu sabia. Era porque haviam feito o mesmo ou pior com ela no tempo em que esteve
neste maldito lugar.
— De todas as Alyssas que fui neste lugar — ela disse, a voz firme, os olhos engolindo os
meus. Ousada. Forte —, esperançosa nunca foi uma delas, Nathan.
Nathan. Ela falou meu nome e eu me senti eu mesmo novamente. Era apenas um nome,
mas acalmou um pouco a fúria. Acalmou aquela besta que parecia querer me dominar.
Fechei os olhos, os braços soltos ao lado do meu corpo agora, punhos cerrados.
— Você devia ir embora — falei. — Eu não sou... — inspirei — não sou eu mesmo. Posso
sentir Vicenzo como se ele estivesse embaixo da minha pele ou no fundo da minha mente,
espreitando. Apenas aguardando para tomar o controle.
Abri os olhos a tempo de vê-la me olhando com o rosto franzido.
— Não importa, Nathan. Ele não vai vencer.
Apertei os olhos com força, precisando me controlar para não a jogar contra a parede e
implorar que me fizesse esquecer. Que dissesse meu nome quantas vezes fosse necessário e
então me beijasse, porque eu não conseguia... Acho que se ela fizesse isso, talvez eu pudesse
respirar novamente.
— Pare com isso — murmurei. — Pare de dizer meu nome.
Senti suas mão tocarem meu rosto, os dedos correndo pela minha bochecha até o maxilar.
Um som estrangulado saiu de mim antes que eu pudesse impedir. Suas mãos hesitaram por um
segundo longo demais antes de continuar, até traçar a linha dos meus lábios. Então, lentamente,
ela agarrou meu rosto, a ponta dos seus dedos roçando minha nuca. Sem forças para me afastar,
minhas mãos seguraram as suas sobre a minha pele, enquanto um medo profundo de que eu fosse
abrir meus olhos e ela não estaria mais ali, criou um nó em minha garganta.
Abri os olhos a tempo de vê-la me observando com uma curiosidade que eu já havia visto
em seu rosto, quando tentava descobrir o que havia em mim que parecia tão familiar.
— Não sei como nos tirar dessa — confessei.
O nó em minha garganta parecia ainda maior. Eu sentia as lágrimas se formarem e tudo o
que eu queria era me encolher como um garotinho e chorar. Eu não havia chorado muito quando
criança, mas nos últimos meses em que pensei ter perdido Alyssa, eu chorei bastante. E agora,
olhando para ela, o alívio se misturava à dor e ao medo, e eu não tinha ideia de como nos salvar.
Como salvá-la.
Ela apenas assentiu.
— Tudo bem. Duas mentes pensam melhor que uma.
Dois. Nós dois. Como um time. Como costumávamos ser. Ela não sabia, mas havia
acabado de me prometer o passado.
Nós ainda estávamos com as mãos enroscadas. As minhas nas suas, e as suas em meu
rosto. Acariciei sua pele e enfiei meus dedos entre os seus.
— Não quero ser seu vilão.
Sua mão direita, ainda entrelaçada à minha, desceu até meu peito, e espalmou sobre as
linhas negras ali. Sua pupila dilatou, e meu coração acelerou. Seu cheiro inflou meu nariz,
enquanto a assisti inspirar fundo. Energia pulsou, como se houvesse um fio desencapado no ar.
Quase como colocar o dedo na tomada.
— Eu vi as fotos em seu telefone, Nathan. Não acho que você poderia ser meu vilão
mesmo que tentasse.
Eu escutei, em silêncio, temendo falar algo errado. Aterrorizado pela possibilidade de estar
sonhando.
— A forma como eu olhava para você... — Seus olhos caíram em minha boca por um
segundo antes de voltarem aos meus olhos. — A forma como você olhava para mim... Parecia
real. E as pessoas, em algumas daquelas fotos... Eu quero me lembrar delas. Quero lembrar da
minha família e amigos.
Dessa vez, o corte foi mais fundo quando a palavra “família” se assentou em minha
cabeça. Eu não havia ousado falar sobre Henry. Não aqui. Não dessa forma. Mas quando Alyssa
conseguisse recuperar suas memórias — porque ela iria —, a dor e o luto viriam como uma
avalanche. E eu estava morrendo de medo que ela se afogasse.
Medo, percebi, nunca tinha sido um sentimento tão comum para mim.
Mais uma vez, eu não disse nada. Apenas um aceno de cabeça foi o suficiente como
resposta. E Alyssa deve ter visto algo em meus olhos, talvez o desespero mal velado neles. Seus
dedos ainda em meu rosto moveram para minha nuca, e se enrolaram em meus cabelos.
Desenrosquei minha mão da dela e, como se fosse um costume maior do que eu mesmo, minha
mão direita já estava agarrando sua cintura, puxando-a para mais perto de mim.
Uma respiração fraca se soltou de mim quando ela forçou meu rosto para mais perto do
dela. Nossos narizes se tocaram, e sua própria respiração roçou meus lábios. Logo, estávamos
escorados um no outro, testas e narizes se tocando.
— Você vai ficar bem — ela sussurrou.
Eu a conhecia minha vida toda e não me lembrava quantas vezes Aly tinha repetido essa
mesma frase. Sempre muito mais preocupada comigo do que consigo mesma. Sempre tentando
me salvar do abismo em que eu constantemente me jogava.
Sua boca tocou a minha com tanta delicadeza que, por um segundo, pensei ter imaginado.
— Aly...
Ela engoliu seu nome em meus lábios. O choque e a calmaria se dissiparam. Inspiramos
fundo, juntos. E então o mundo queimou. Seu corpo se fundiu ao meu, minhas mãos agora
pareciam desesperadas para segurá-la, tocando sua pele por baixo da blusa fina que usava, e a
outra agarrando seus cabelos negros pesados.
Eu nunca pensei que voltaria a beijá-la, mas poderia me ajoelhar agora mesmo e agradecer
ao Destino por isso.
Poderia ajoelhar e rezar para ela.
Pela primeira vez em meses, fui capaz de respirar de verdade. Sua boca na minha, seu
cheiro preenchendo o espaço, suas mãos me tocando... Este era o paraíso que pensei ter perdido.
Ainda assim... Ainda assim, algo parecia errado. Confuso. Distorcido.
Você é o inimigo agora — lembrei a mim mesmo.
Afastei-me dela tão rápido que tropecei. Encarei seu rosto corado, sua boca vermelha e
suas pupilas dilatadas. Porra, eu senti falta dela. Senti tanto sua falta, que perdi parte do meu
coração a cada dia que acordava pensando que ela estava morta. E agora...
Agora eu era o inimigo.
Alyssa me encarou, pacientemente esperando.
Mas eu não era o inimigo. Não de verdade.
Enfiaria uma adaga no peito antes de machucá-la. Antes de fazer qualquer coisa contra ela.
Inspirei fundo e passei a mão pelo cabelo, tentando alinhar meus pensamentos. Um
segundo. Dois segundos. Sua cabeça tombou levemente, parecendo me analisar. O tempo ia
martelando em minha mente. Voltei a encarar os olhos negros de Alyssa com dois pensamentos
claros: um, ela não se lembrava de mim, e ainda assim havia me beijado; e dois, eu a faria
entender exatamente porque aquilo havia sido uma boa ideia. A ideia certa.
Se eu iria para o inferno, pelo menos tiraria proveito do paraíso.
Ela arregalou os olhos quando a puxei para mim, as mãos firmes sobre ela, e a prendi
contra a parede. O tipo de beijo que queria dela... Ele precisaria de um apoio. Eu senti tanto a sua
falta, estava tão louco de saudades, que tocá-la era como realizar meu maior desejo depois de
pensar que era um desejo impossível. Colei nossas bocas com força, parecendo fundir ouro e
ferro. Alyssa não hesitou em abrir a boca para mim, nossas línguas se tocaram e ela se agarrou
aos meus braços parecendo que cairia a qualquer momento.
Lembre-se que me ama — queria implorar.
Lembre-se de mim.
Suas unhas arranharam minhas costas, e ela se afastou apenas o suficiente para eu
mergulhar em seu pescoço. Beijei, chupei e mordi toda sua pele, da ponta da orelha até a
clavícula. Eu parecia um viciado finalmente retornando ao vício. E quando a ouvi gemer perto do
meu ouvido, enfiando as unhas mais fundo em minha pele, e se contorcendo em meu aperto, eu
precisei de cada fio de força em meu ser para não tirar toda sua roupa e fodê-la ali mesmo.
— Alyssa.
Seus olhos encontraram os meus, o peito subindo e descendo em compasso com o meu.
— Nathan.
Eu sorri.
— Você está tentando me distrair?
Por um breve segundo, vislumbrei a garota que ela foi antes de tudo explodir, antes de
descobrir que a marca em sua mão tinha um preço. A garota que sonhava em conhecer o mundo,
estudar e encontrar inspiração o suficiente para escrever.
Por um breve segundo, ela parecia leve.
— Estou tentando conhecer você.
Meu sorriso ficou mais largo.
— Claro. Um beijo diz muito sobre um homem.
Seu sorriso foi mais singelo, mas sincero. Suas bochechas estavam tingidas do vermelho de
sua timidez.
— Muito.
Meus dedos apertaram sua cintura, possessivos.
— Apesar de eu ter passado meses em tormento pensando que nunca mais voltaria a tocá-
la — eu disse —, ainda acho que precisamos ir devagar. — Fiz uma careta. — Bem, você precisa
ir devagar. Muita coisa aconteceu e não quero me aproveitar disso ou do fato de você não se
lembrar de nada.
Alyssa corou e suas mãos me soltaram. Ela tentou se afastar, mas a fiz ficar onde estava,
minhas mãos ainda em sua cintura.
— Você já conseguiu me irritar — murmurou.
Segurei uma gargalhada. Essa era minha Alyssa.
— É um dom.
Ela revirou os olhos, mas sua mão voltou a tocar as veias em meu peito.
— Eu nunca agradeci — disse, sem me olhar. — Obrigada por ter feito isso para me
proteger.
Não respondi. Ela não tinha motivo para me agradecer, porque eu já devia tê-la tirado
daqui há muito tempo. Agora, eu havia desertado, estava preso, e todas minhas armas, telefone e
a bendita pedra que deveria nos tirar daqui, haviam sido roubadas por Vicenzo. Honestamente,
eu havia falhado em tudo que havia me proposto a fazer. Apenas uma coisa estava certa: Alyssa
estava viva. Eu lidaria com o restante assim que possível.
— É isso que fazemos um pelo outro.
E era verdade. A vida inteira, lembrando um do outro ou não, perto ou longe, inconsciente
ou conscientemente, nós protegíamos um ao outro. Sempre.
Aly assentiu, pensativa. Será que as memórias espreitavam, tão próximas que podia
lentamente desbloqueá-las? Ou o que quer que tenha sido feito agora, era mais complexo do que
o que Cassandra fez? Afastei um fio de cabelo rebelde de seu rosto, colocando-o atrás de sua
orelha. Seus olhos voltaram a me encarar e eu engoli todas as coisas que queria dizer a ela. Eu já
havia me declarado o suficiente para que ela, sem memória, pudesse pensar que eu era um
lunático. Não era necessário reafirmar que a amava sempre que eu perdia o fôlego por ela.
Questão de sobrevivência 1.0 quando sua namorada não lembra que é sua namorada.
Respirei fundo, deixando minha mão cair.
— Precisamos pensar no que vamos fazer — eu disse.
— Acho que teremos mais chances se esperarmos até eu fazer dezoito anos. Falta apenas
uma semana e meia, certo?
Já estávamos na segunda semana de novembro.
— Você devia fugir antes. Posso encontrar a pedra e...
— Nós — ela me cortou. — Você quer dizer nós. Você não vai ficar aqui.
Desviei os olhos.
— Sou um Desertor agora.
— Foda-se!
Surpresa e uma pitada de diversão sádica me fez sorrir.
— Você se importa agora, não é? Meu beijo é bom desse tanto.
Ela agarrou meu pescoço e trancou nossos olhares.
— Pare de brincar. Estou falando sério. Se tem algo que odeio é dívidas e estou em dívida
com você. — Comecei a protestar, mas ela me calou: — Não me importo se fazemos isso um
pelo outro ou se você estava me devendo antes. Não importa. Você veio para me tirar daqui,
então sairemos juntos. — Uma sobrancelha disparou para cima. — Quer discutir mais?
Mordi os lábios, tão excitado quanto entretido.
— Não, senhora.
Ela me soltou, jogando o cabelo para trás do ombro.
— E não me chame de senhora. Pelo que entendi sou basicamente uma deusa.
Dessa vez a gargalhada saiu facilmente. A marca em meu peito quase deixou de existir.
Aquele arranhar profundo em minha alma parecia adormecido. Ela havia afastado o monstro
antes à espreita.
Não importava como, mas Alyssa Monroe era luz. E sempre seria.
— Tudo bem, deusa. — Dei-lhe uma piscadela. — Qual o seu plano?
— Hum... Não tenho um. Ainda — disse. — Tecnicamente, Lore está pensando em algo.
Ela está entre tentar contatar os Protetores, o que pode ser bem idiota já que nada é feito nessa
cidade sem que Vicenzo saiba, e a segunda opção, que é nos contrabandear para fora de
Florença.
Eu a encarei por um segundo.
— Você pretende usar um plano melhor? — arrisquei.
Ela cerrou os olhos.
— Estou aberta a ideias, Nathan.
— Hum.
— O quê? — perguntou, irritada.
— Você confia mesmo nessa Desertora?
Alyssa hesitou, o que deveria ser resposta o suficiente, mas então se apressou em dizer:
— Ela não é perfeita, mas é minha amiga, eu sei que é. E confio que esteja disposta a
ajudar. E depois de tudo... Bem, me parece certo deixá-la tentar.
Pela janela, raios de sol começavam a se exibir no céu. Estávamos prestes a ficar sem
tempo. Ela teria que voltar para seu quarto antes que algum Desertor fosse buscá-la e, em breve,
tinha certeza de que Vicenzo iria querer falar comigo.
— Quero confiar em seu instinto — falei. — Mas tome cuidado. Vou tentar descobrir onde
está a pedra que Freya me deu. Pode ser um jeito muito mais seguro de fugir.
— Freya?
— A Guardiã da Europa — expliquei. — Bem, também é a mulher traída por Vicenzo com
a tal Nixya.
Aly apertou a base do nariz.
— Muita informação — reclamou. — De qualquer forma, precisamos esperar meu
aniversário. Vicenzo nos manipulou até aqui. Ele não quer me matar, e queria que você se
tornasse um Desertor de qualquer forma. Acho que, quando eu finalmente adquirir os benditos
poderes de Fidly, ele explicará o que está tramando.
— E com poderes, você poderá assustá-lo o suficiente para que ele recue.
— Ou simplesmente posso matá-lo.
Tensão subiu pela minha espinha. Eu ainda me lembrava do momento em que descobri que
o preço de matar Vicenzo era a própria morte para Alyssa. E eu continuava com a mesma
opinião: o mundo pode queimar, mas Alyssa não iria se sacrificar.
— Não — neguei, depressa. — Você não pode matá-lo. Fazer isso vai matar você.
Confusão preencheu seu rosto.
— Você está de brincadeira?
Balancei a cabeça.
— Você já sabia disso. A balança pede por equilíbrio, por isso não pode permitir que você
viva quando é capaz de matar um imortal. Não deve haver alguém tão forte quanto Vicenzo, pelo
menos não por muito tempo.
Alyssa pareceu pensar, guardando as velhas informações em sua mente em branco. Então
ela bufou e me olhou.
— Merda de memórias.
CAPÍTULO 24

Cinco dias se passaram desde a última vez em que vi Nathan.


Eu o procurava constantemente, tentando descobrir se ele tinha tido alguma ideia, ou ao
menos informá-lo que eu e Lore havíamos chegado a um ponto sem saída. Mas todos os dias,
quando eu o via, estava cercado por Desertores ou pelo próprio Vicenzo. Seu olhar sempre
encontrava o meu, mesmo que a metros de distância e todas as vezes um arrepio percorria minha
coluna e eu me lembrava como era beijá-lo.
Naquela noite, dias atrás, fui até seu quarto porque queria ver se ele estava bem.
Obviamente, ele não estava. E de repente eu senti a necessidade de fazê-lo se sentir melhor,
movida pelo desejo de apagar aquele olhar desolado e perdido dele.
Eu o beijei porque queria. E porque queria ver se me lembraria da sensação. Não foi o
caso, mas serviu para uma descoberta tão importante quanto: eu podia não me lembrar de nós,
mas meu corpo não sofria do mesmo problema. Beijar Nathan foi como voltar para casa depois
de um longo dia. Tudo encaixou perfeitamente.
Mas estávamos no inferno, e Vicenzo não me deixaria esquecer.
Ele fazia Nathan trabalhar constantemente. Por sorte, nenhum Protetor havia sido
capturado, então o novo Desertor não precisou matar nenhum de seus antigos companheiros.
Mas Lore dizia que via Nathan carregando caixas de armas para dentro do palácio — algumas
curiosamente acabavam se perdendo pelo caminho —, cobrindo o perímetro ao redor dos muros
e sendo obrigado a servir Vicenzo por horas e horas.
Enquanto isso, diariamente, Vicenzo encontrava novas formas de me irritar. Às vezes me
enviava presentes estúpidos com recados ainda mais ridículos, fazendo a contagem regressiva
para meu aniversário. 22 de novembro. Dali a uma semana. E toda vez que eu lia um de seus
recados idiotas, compostos por uma letra cursiva insolente, a vontade de gritar a plenos pulmões
ficava ainda mais forte. Porque, aparentemente, eu não podia matar o mentiroso ardiloso. De
fato, pelo que eu havia conseguido estudar sobre os Protetores, Desertores, Guardiãs e o Destino
em um livro roubado, fazia sentido que a balança exigisse um preço a ser pago, algo que não me
tornasse a ameaça que Vicenzo havia se tornado. Mesmo assim, eu odiava saber que eu era uma
bomba relógio que, eventualmente, explodiria.
Eu poderia trabalhar com Vicenzo. Poderia fingir que as mentiras e o que ele fez não me
incomodavam, e até mesmo agir como se eu pertencesse àquele lugar. Havia feito isso nos
últimos meses e estava ficando boa nisso. Mas viver uma mentira era cansativo. E eu tinha
certeza de que, se Vicenzo não acreditasse que eu não tinha outra opção a não ser estar do seu
lado, ele encontraria uma forma de me destruir. Me levaria até a beira do precipício e esperaria
que eu pulasse.
Então eu passava meus dias pensando em como fazê-lo- pular primeiro.

A noite chegou rápido e com ela um convite indesejado: jantar com Vicenzo.
Obviamente, ele fez questão de que eu soubesse qual dos vestidos ele queria que eu usasse.
Encarei o tecido escuro — grande surpresa! — e os decotes profundos em V tanto nos seios,
quanto nas costas. Este era um vestido fluido pelo menos, não um daqueles que parecia tão
colado que mostraria minha alma. E longo. Sempre longos. Desconfio que não haviam inventado
vestidos curtos quando Nixya ainda podia usá-los, apesar que tampouco deveria ser apropriado
usar muitos daqueles em seu guarda-roupa. Bem, ela era uma deusa. Imagino que pudesse usar o
que bem entendesse e o patriarcado que fosse para o inferno.
Fitei minha imagem no espelho. Cabelos negros longos, corpo curvilíneo, pele de oliva e
olhos ainda mais escuros que os cabelos. O retrato falado de outra pessoa.
Pelo menos era um retrato bonito. Não exatamente agora, com as olheiras profundas de
noites sem dormir, mas em geral, com algum esforço, eu podia admitir ter uma beleza notável.
Nem um pouco convencional, mas agora que a via em outra pessoa, poderia admitir que o que eu
enxergava era de fato beleza.
Era engraçado como parecia mais fácil enxergar beleza no outro do que em si mesmo. No
meu caso, vinha a calhar que o "outro" em questão tinha exatamente o mesmo rosto que eu.
— Posso prender seu cabelo se quiser provocá-lo — Lore ofereceu, sentada em minha
cama, observando com os olhos atentos meu devaneio.
Era tentador fazer exatamente o oposto do que ele queria, mas eu tinha uma ideia que
poderia ser ainda melhor: obedecer.
— Não precisa. Já tenho algo em mente.
Eu me vestiria como Nixya como sempre — agora ciente disso —, mas hoje eu havia
decidido que seria ela. Pelo menos a um primeiro olhar. Me lembrava perfeitamente do porta-
retrato para saber que ela usava bastante maquiagem na área dos olhos, o que a deixava mais
sombria, com o olhar mais cerrado e inacessível. Seus cabelos caíam livres, mas na pintura ela
possuía algumas pequenas tranças nos fios. Fiz exatamente como minha memória ordenou e,
então, me vesti.
Vicenzo perderia o fôlego ao me ver. Provável que uma centelha de esperança voltasse a
queimar brevemente em seu peito. E, assim como apagar uma vela, eu o faria ver o quão
diferente eu era de Nixya.
Não importava o quanto ele quisesse, eu nunca seria ela.

Quando entrei na sala de jantar, havia pelo menos dois Desertores em cada canto do lugar,
e Marco posicionado estrategicamente atrás da cadeira de Vicenzo. Os meus saltos bateram
contra a madeira do assoalho caro. Notei vagamente os Desertores, e pensei em como quebrar os
dentes de Marco quando ele me encarou com um sorrisinho de escárnio.
A mesa de jantar era enorme e servia pelo menos vinte cadeiras. Esta noite, cinco estavam
ocupadas e uma sexta aguardava por mim. Enquanto me aproximava, comecei a distinguir os
rostos. Vicenzo ainda estava na ponta da mesa, sentado e com uma taça de vinho nas mãos, ainda
de costas para mim. Ao seu lado esquerdo, Sybil ignorava todos ao seu redor, os olhos perdidos e
desfocados, enquanto que Mavon, na cadeira seguinte, me observava com os olhos de gato
cerrados. O amigo rechonchudo, Belius, encarava com ódio mal contido o terceiro convidado.
Segui seu olhar para a figura sentada a uma cadeira de distância de Vicenzo, à sua direita.
Nathan.
Surpresa me fez parar por um segundo, observando o meu suposto namorado — do qual eu
não lembrava, mas que definitivamente valia a pena beijar — abrir um sorriso atrevido para
Belius e, então, se virar para me olhar, como se já soubesse que eu estava ali. Seu sorriso se
tornou sincero e seus olhos queimaram o caminho do meu rosto até meus pés naqueles saltos
ridiculamente altos. Não deve ter durado mais de três segundos, mas me deixou quente como eu
nunca havia me sentido e desviar o olhar foi um tanto trabalhoso.
A este ponto, eu sabia que Vicenzo já havia notado minha presença, mas ele se manteve de
costas. Pigarreei, chamando sua atenção.
— É indelicado obrigar alguém a comparecer em seu jantar e nem ao menos notar sua
presença.
Marco ameaçou avançar sobre mim, mas Vicenzo ergueu uma mão, o parando. Com a
lentidão de uma lesma velha, ele baixou a taça de vinho, deixando-a sobre a mesa, e se levantou.
No segundo em que ficou de pé, tão alto quanto um poste, eu fiquei grata pelos saltos. Mantive o
queixo erguido, enquanto ele me fitava com completo assombro. Os olhos percorrendo meu
corpo e esquadrinhando meu rosto como se ele não estivesse preparado para me ver assim. Sorri.
Eu havia conseguido. Vicenzo acabou de encarar um fantasma.
Ele limpou a garganta e o espanto se foi, dando lugar à raiva disfarçada.
— Pelos deuses, por um segundo achei que estava em frente à Nixya. — Belius finalmente
me notou.
Então ele a conhecia. Eu apostava que Mavon também. Olhando para trás agora, isso
explicava sua surpresa ao me conhecer.
Eu não respondi. Estava aguardando o próximo passo de Vicenzo.
— Você está deslumbrante, Alyssa — ele pronunciou meu nome como se fosse um insulto,
completamente em desacordo com suas palavras.
— Pensei em te dar a chance de vê-la mais uma vez — falei, dando de ombros e voltando a
andar, em direção à cadeira reservada a mim. Ao lado de Nathan. Interessante como o imortal
estava jogando. — Parece tão desesperado por isso, ultimamente — provoquei, graciosamente
colocando o guardanapo de tecido em meu colo.
Joguei os cabelos para trás dos ombros e cruzei as mãos sobre o colo. Nathan se mexeu ao
meu lado, mas eu me obriguei a fingir não notar sua presença. Eu sabia que Vicenzo não havia
colocado Nathan bem ali à toa.
O anfitrião voltou a se sentar, parecendo inabalado, mas uma energia revolta emanava dele.
— Temo que Nixya era mais do que um rosto bonito e um corpo excitante, Alyssa. — Sua
voz era ácido puro. — Certas coisas simplesmente não são copiáveis.
Servi a mim mesma de uma taça de vinho cheia. Provei o vinho tinto seco. Bom. Me
encostei contra a cadeira novamente.
— Interessante. Eu creio que esteja certo. Algumas coisas não podem ser copiadas.
Quando se vão — provoquei — é o fim. Não há nada mais do que... vazio. Luto. Um pouco de
vermes corroendo a carne. Apesar de que, bem, não sei se deusas morrem da mesma forma. O
que vocês acham? — As mãos de Vicenzo cerraram por cima da mesa e Mavon e Belius me
encararam com raiva. Um aviso. Eu não escutei. — Isso não te impede de tentar, porém, não é?
Ainda me faz usar as roupas dela, afinal.
Vicenzo bateu contra a madeira, o barulho preenchendo a sala. Ao meu lado, Nathan se
projetou sobre mim, pronto para intervir. Sybil, do outro lado da mesa, finalmente demonstrou
estar presente, soltando um risinho baixo. Os olhos do imortal faiscavam.
— Chega! — Sua voz era como um trovão. — Você é uma convidada em minha casa, mas
pode muito bem se tornar uma prisioneira. — Ele fez um movimento com a mão, e funcionários
começaram a preencher a mesa com comida. Funcionários, eu havia percebido, que pareciam
muito como escravos. Eles não erguiam os olhos para ninguém, não se mexiam mais do que
estritamente necessário. Humanos que, de alguma forma, foram parar ali para servir Vicenzo e
seus Desertores. — Quis dar esse jantar como uma cortesia a você e Nathan. — Seus olhos de
fumaça não pareceram vazios quando me encararam com raiva. — Não faça com que eu me
arrependa disso.
Abri a boca para continuar provocando-o, mas Nathan tocou minha perna por baixo da
mesa, em um pedido silencioso que eu parasse.
— Eu gosto da ideia de conhecer seus amigos — Nathan falou, passando os olhos pelos
outros convidados, e discretamente tirando sua mão de mim. — Apesar que tive o prazer de ver
um deles em ação — ele olhava para Belius — e perder para uma Guardiã bastante raivosa.
— Garoto insolente! — Belius protestou.
Nathan ergueu os braços, em rendição.
— Ei, não fui eu que chutou sua bunda para fora da minha cidade com apenas algumas
palavras. — Ele se aproximou de Belius, fingindo sussurrar, quando sabia que todo mundo ali
poderia ouvir. — Eu entendo, Freya é assustadora.
Belius ergueu sua mão em sinal de ataque, mas Vicenzo falou antes que ele pudesse fazer
alguma coisa.
— Belius realmente falhou, mas haverão outras oportunidades de mostrar o seu propósito
em estar ao meu lado.
Um rosnado baixo soou do homem.
— O que queria com Freya? — perguntei.
— Um anel — Nathan respondeu prontamente, a sobrancelha arqueada para Vicenzo. —
Não é?
O anfitrião apenas deu de ombros.
— Sou um sentimentalista.
Aquilo pareceu o fim da conversa, e Belius começou a se servir com rispidez, os talheres
batendo contra a louça enquanto a montanha em seu prato apenas crescia. A mão de Nathan
voltou a tocar minha coxa, em um gesto reconfortante. Me permiti olhá-lo, e percebi que
Vicenzo devia ter determinado o que ele usaria naquele jantar também. Suas roupas pareciam
pertencer ao século passado, uma bata branca de tecido fino enfiadas dentro do cós da calça de
alfaiataria de cintura alta. Estava lindo como os mocinhos dos livros de época.
Com um último olhar para Nathan, me virei para Vicenzo.
— Você tem preferência pelo século XVIII?
Foi Mavon que respondeu em seu lugar:
— Você não teria? Uma época em que humanos viviam sob as rédeas curtas de suas
crenças, o que em geral facilitava muito o nosso trabalho. — Olhos de gato cortou seu bife
sangrento. — Eu iria até mais longe, e colocaria mais alguns séculos na conta. Mulheres não
eram um importuno porque sabiam seu lugar. Mocinhas como você — ele apontou para mim
com a faca —, sabiam quando ficar em silêncio. E claro, havia também toda a questão cultural,
muito menos enfadonha do que a de hoje em dia.
Encarei Sybil, esperando que ela protestasse, mas ela deu um tapinha nas costas de Mavon.
— Não espere que eu discorde, menina. Sou uma Hypata, não uma mulher — disse. Era
assim que ela chamava o seu tipo? Hypata? — A verdade é que este mundo era melhor quando
humanos eram minorias e nós podíamos entrar e sair quando bem entendêssemos.
Cerrei os olhos.
— Como exatamente você veio parar aqui?
A Hypata — o que quer que isso signifique — mastigou um pedaço de sua carne
lentamente. Então, ela falou:
— Eu vim em nome de Nixya, assim que ela começou a colocar seu plano de unificar as
dimensões em prática. Quando ela foi derrotada, fiquei presa nessa dimensão como muitos
outros. Este foi nosso castigo por estar do lado certo da balança.
Bufei uma risada. Lado certo da balança? Eles estavam falando de escravizar humanos
para poder usar esta dimensão como bem queriam. Estavam falando de criar uma cúpula entre
seres perigosos, apenas para suprir suas necessidades básicas em detrimento dos seres que de
fato pertencem à essa dimensão.
— Em breve os desejos de Nixya serão honrados, Sybil — Vicenzo prometeu, o olhar
sério.
— Você não pode abrir portais — apontei. — Seus aliados são seres que estão presos aqui.
Vicenzo nem me dignou um olhar, mas seus aliados tinham os olhos afiados sobre mim.
— Estou ciente do que não posso fazer ainda. — Sua voz era cortante. — Mas também sei
exatamente o que preciso fazer para resolver isso.
Foi só então que ele me olhou. E eu não gostei nem um pouco de como seu olhar me
examinava e prometia coisas que eu não tinha ideia do que eram. Mas uma coisa estava clara: eu
era o seu peão para conseguir solucionar seus problemas. Era por isso que eu ainda estava aqui,
não era? Porque ele tinha planos para mim.
Nathan, ao meu lado, se mexeu em sua cadeira, parecendo desconfortável.
— Antes das Guardiãs, os portões para outras dimensões realmente eram fáceis de abrir?
— Nathan questionou.
Dimensões. Aquilo ainda não me parecia comum.
— Não antes das Guardiãs — Belius respondeu, ríspido. — Aquelas mulheres foram
apenas uma jogada de ego do Destino. As coisas só ficaram complicadas mesmo quando Nixya
se foi.
— Ela era a líder de vocês — deduzi. — Uma mulher.
— Nixya é uma deusa — Belius me corrigiu, como se isso mudasse algo.
Mavon estalou a língua, balançando a cabeça em concordância com o homem ao seu lado.
— Não tenho líderes, Fidly. Eu sou o líder em minha dimensão. Mas Nixya muitas vezes
tinha o papel de falar por nós. Ela pertencia a todas as dimensões, falava todas as línguas e
olhava para aqueles que o Destino queria apenas controlar e conter.
Tão boa, não é? Quase a merda de uma santa.
— Nixya sofreu a reprimenda do Destino porque tentamos burlar as regras — Vicenzo
contou, os olhos perdidos no vinho. — Eu com minha imortalidade, e ela buscando livrar as
dimensões de suas fronteiras.
— Por que iriam querer sair das suas dimensões? Por que vir para cá? — Nathan
questionou.
Sybil puxou seus talheres com magias, até que estivessem em suas mãos, depois levantou
os olhos para Nathan.
— Às vezes queríamos um local para nos reunirmos e discutirmos sobre certas coisas.
— Que coisas? — demandei.
A Feiticeira mostrou os dentes, irritada com minha insolência, tinha certeza. Eu não me
importei. Eu sabia que havia mais naquela história. Havia mais no motivo pelo qual estavam
neste mundo e porque agora se sentavam à mesa com Vicenzo.
— Guerras principalmente — disse, sem dar muita importância em saciar minha dúvida.
— De vez em quando, falávamos sobre a balança.
— Nossos reinos, muitas vezes, precisavam de mais. Seja espaço, ou força, ou bens
naturais — Mavon explicou. — Aqui, podíamos ter todas essas coisas. Podíamos abastecer
nossos reinos e ainda criar um espaço de comuna nesta dimensão.
— Mas esta dimensão pertence aos humanos — retruquei.
— Não deveria — Belius declarou. — Não agregam a nada. São um bando de seres sem
propósito, sem poderes e sem provas de seus deuses. Em mil anos, conseguiram destruir mais do
que muitas guerras que assolaram meu reino — reclamou. — Enquanto meu povo sofria com a
fome.
Cerrei os olhos.
— Você não me parece um líder que se importaria com seus súditos.
Mavon soltou os talheres com um estampido, seus olhos de gato me encarando com
desgosto.
— Liderar envolve mais que os súditos, mulher. Envolve controle e subjugação — rebateu.
— Depois de mil anos controlando o meu povo durante a ascensão e queda de deuses, abertura e
fechamento de portões, são pequenas coisas que causam desespero. Que geram caos. Os
humanos receberam tudo isso aqui, e não alcançaram nada além de alguns brinquedos
tecnológicos que, aliás, uma dimensão aliada já conhecia há mais de três séculos, e uma
infinidade de entretenimento barato em suas televisões que não possuem outro objetivo a não ser
cegá-los.
Vicenzo soltou uma risada, assentindo. Trinquei os dentes. Eu havia visto aquelas pessoas.
Havia me sentado e observado passarem por mim como se o mundo fosse tão grande, que nada
realmente podia tirar sua paz. Observei quando pais erguiam as filhas para o céu, e mães as
acalmavam e beijavam seus machucados. Eu vi casais se beijarem e também vi pessoas chorarem
por corações partidos.
E eu acho — por algum fio invisível que ainda tentava se prender às minhas memórias do
passado — que um dia fui uma dessas pessoas.
E essas pessoas mereciam respeito. Não tinham ideia do mundo que as rodeava, do perigo
que passavam, mas mereciam mais do que aquele desprezo.
— Eu penso que pelo menos essas coisinhas sabem como fazer uma guerra — Belius
murmurou, os olhos brilhando.
— Bem, eu posso ter contribuído um pouco com esses conflitos — Vicenzo se gabou.
Eu cerrei meus olhos para ele. Irritação ainda mais aflorada e esquentando meu sangue.
— O que isso quer dizer? — rosnei.
Ele sorriu.
— Você está sentada a uma mesa que um dia guardou reis e rainhas. Uma família poderosa
viveu aqui, Alyssa. E sabe o que eram? — Seu sorriso expandiu. — Fantoches.
— Vicenzo é sempre muito enfático em demonstrar como perturbou os humanos —
Mavon murmurou, quase invejoso, tomando um longo gole de vinho.
— Não aja como se não tivesse participado de grandes manipulações também, Mavon.
Afinal, você não é conhecido como deus da trapaça à toa. — Mavon sorriu, orgulhoso de si
mesmo. — Eu não diria que os perturbei. Não tenho nenhuma intenção pessoal em minhas ações
com os humanos. São meios para um fim — disse. — Mas são tão fáceis de manipular e
corromper, que meu trabalho com eles sempre foi... interessante. Acho que o mais trabalhoso
pode ter sido o império grego, mas depois deles, o império romano foi tão fácil que seus
imperadores vinham me pedir conselhos diretamente. A primeira e segunda guerra mundial? Era
como tacar uma pedrinha em um lago e esperar as ondas seguirem. Uma morte suspeita, um
soldado em território inimigo... Eu era o escritor, e eles minha peça.
Agora eu entendia seu desprezo pelo Destino. Vicenzo queria fazer o que o deus da fortuna
fazia de melhor. Manipular. Escrever a linha da vida.
— São pessoas.
Ele me olhou.
— Exatamente.
Nathan suspirou dramaticamente, se encostando contra a sua cadeira, a mão apertando a
minha perna, pedindo que eu me acalmasse.
— E você se pergunta por que o Destino criou todo um sistema para te matar — disse
Nathan.
Mas eu não me apeguei a sarcasmos. A injustiça de tudo o que Vicenzo havia criado estava
me consumindo como uma chama em campo de palha seca.
— Eles nunca fizeram nada contra você. Estão presos nessa guerra sem nem saber da
existência de Protetores e Desertores — eu retruquei. — Seus soldados — apontei para Marco
atrás dele — estão matando humanos simplesmente porque gostam.
— Já parou pra pensar porque se importa agora? — Vicenzo rebateu. — É porque sabe que
seu pai era um humano?
Era. Engoli em seco, não respondi. Não respirei. Eu não me lembrava do meu pai, mas
Nathan teria dito que ele estava morto e em seu telefone havia fotos recentes. Ele não estava
morto. Meu pai não estava morto. Ainda havia uma família pela qual voltar, ele só estava
tentando me manipular. Vicenzo queria brincar comigo, corromper minha esperança.
— Vai se ferrar.
Ele tombou a cabeça, me observando como uma onça observava sua presa.
— Você quer se importar com eles, porque sabe que deveria. Está empenhada em
preencher um papel que nem ao menos se recorda. Quer desesperadamente ser a pessoa que
Nathan se lembra. — Sua voz era um ronronado, que não fazia jus à irritação em seu olhar. —
Mas você não impediu Marco de matar a humana. E você matou Protetores porque eu pedi. Você
não é uma deles, Alyssa. Pode não querer ser uma das minhas, mas definitivamente, não é uma
deles.
Bati contra a mesa.
— Pare!
Ele não parou.
— Você, querida, é uma pária — ronronou. — Uma traidora. E uma hipócrita.
Eu me levantei, não querendo ver o olhar de Nathan ao perceber que eu havia assassinado
seus companheiros. Ou que eu não era a pessoa pela qual ele veio até Florença vingar. Agarrei a
saia do meu vestido, e comecei a andar. Ouvi a cadeira de Nathan arrastar no chão, mas a voz de
Vicenzo cortou:
— Sente-se.
Eu me virei, e vi Nathan rosnar em frustração, o seu corpo tremer e ele voltar a se sentar.
Se ele pudesse matar com um olhar, Vicenzo estaria morto agora.
Vicenzo me parou, segurando meu braço em um aperto firme. De pé, ele precisou se
abaixar para que seus lábios quase tocassem minha orelha.
— Eu havia te dito uma vez — sussurrou — que eu iria corromper você.
Pensei que poderia quebrar um dente a qualquer momento.
— Você devia ter me matado.
— Hum, acho que não. Estive me divertindo muito nesses últimos meses.
Empurrei seu corpo para longe do meu, mas ele não se moveu. Atrás de nós, um som
parecido com um rosnado veio de Nathan.
— Se mova — Vicenzo ameaçou — e eu quebro o braço dela, Nathan. Apenas obedeça.
Eu o fuzilei, esperando que ele visse toda minha raiva em meus olhos.
— Se estava tão desesperado assim para preencher o vazio em sua alma — eu provoquei
—, por que então manteve meu nome?
— Você não pode preencher o vazio — ele respondeu. — Eu não tinha intenção alguma de
me esquecer quem você era. Apenas gostava de me enganar ocasionalmente. Seu nome era a
prova que eu me recusava a ignorar.
Quando ele finalmente me soltou, eu corri para meu quarto. Raiva e vergonha me
impediam de ao menos encarar o antigo Protetor.
CAPÍTULO 25

A cada dia que passava, mais sufocada eu me sentia.


Tudo parecia errado.
Eu parecia errada. Como uma impostora dentro da minha própria mente, sob a minha
própria pele. E lentamente, como uma doença silenciosa, eu começava a me odiar.
Na noite anterior, Vicenzo havia deixado o Palácio e deveria voltar apenas dali a dois dias.
O que eu pensei que seria uma oportunidade para respirar em paz, se tornou uma prisão
dissimulada. Eu tinha pelo menos dois Desertores me seguindo a cada segundo do meu dia. Eles
me seguiam para onde quer que eu fosse, sempre apenas alguns poucos passos de distância.
E agora eu estava prestes a matar dois deles.
— Você não vai entrar no banheiro comigo.
O sorrisinho que um dos bastardos me dirigiu me fez querer quebrar seus dentes e então
fazer com que os engolisse.
— Ordens são ordens, boneca. Devemos te observar a todos momentos.
Trinquei os dentes, implorando ao Destino o mínimo de paciência para não começar uma
guerra.
— Irei tomar banho — informei. — Podem esperar aqui fora.
O outro bastardo balançou a cabeça, o olhar risonho.
— Quem sabe possamos ajudá-la. Está precisando mesmo se limpar.
Meu punho estava tão apertado que minhas unhas cortavam minha pele.
Vou matar esses idiotas.
— Repete o que disse e perderá a porra dos dentes — a voz de Nathan trovejou atrás de
mim.
Eu nem o havia ouvido entrar em meu quarto, mas todo o meu corpo idiota respondeu à
sua aproximação. Senti minha pele arrepiar quando parou a poucos centímetros de distância e eu
pude sentir sua respiração no topo da minha cabeça.
Os Desertores que bloqueavam a porta do meu banheiro se aprumaram, empinando o peito
e cruzando os braços.
— Temos ordens diretas de Vicenzo para manter os olhos nela — justificou um deles.
Estava claro que, apesar de Nathan ser novo ali e só recentemente ter desertado, ainda era
muito intimidador. Eu ouvia os Desertores falarem sobre ele, principalmente sobre sua fama
antes de desertar. Como matava sem remorso, lutava como um guerreiro milenar e era tão
cobiçado por Vicenzo que deixava até Marco inseguro.
— Aposto que isso não incluía o banho dela, seu pateta — ele rebateu. — Agora deixe ela
em paz, porra.
O outro arreganhou os dentes, comprando a briga.
— Não é porque ela costumava abrir as pernas para você que está no controle aqui,
entendeu? E se ela quiser tomar banho, irá fazer isso com nós dois observando cada maldito
movimento.
— Você é um porco — eu retruquei, enojada.
Eu ouvi Nathan inspirar, então levemente me empurrar para o lado para que pudesse
passar.
— Dois patetas — resmungou, então socou o último idiota que falou. O outro nem teve
tempo de reagir antes de Nathan bater seu nariz na porta. — Saiam da porra do meu caminho. —
Ele agarrou o pescoço do primeiro, que começou a reagir, e o apertou até que ele ficasse branco
como um papel. — E fale com ela ou dela com esse desrespeito novamente, e vai perder essa
língua imunda. — Mais um soco. — Não é porque você tem o cérebro do tamanho de uma
ervilha, que precisamos ter que lidar com sua imbecilidade. E estou te dando esse único aviso,
porque da próxima vez que ao menos olhar torto para Alyssa, vou quebrar seus dentes e fazê-lo
engoli-los. — Ele bateu a cabeça do desgraçado contra a parede, e ele resmungou, me fazendo
soltar uma risadinha.
Nathan me ouviu, se virou para mim, e me deu uma piscadela brincalhona. Os Desertores
pareciam desnorteados, os rostos machucados, com as mãos de Nathan os mantendo no lugar
quando eu tinha certeza de que queriam correr. Eu ri mais alto.
— Quer socar um deles?
Dei de ombros. Eu até achava interessante a ideia, mas estava gostando de deixar que
fossem humilhados por Nathan.
— Acho que você está indo bem.
Ele sorriu.
— A seu dispor, amor.
O vocativo me fez parar a risada, a tensão percorrendo minha espinha. Eu odiava não me
lembrar. Odiava não saber olhá-lo da forma como ele me olhava — como quem se conhecia uma
vida inteira. Odiava não saber se, em outra vida, eu o chamaria de amor também.
Ele lançou um olhar furioso para o Desertor mais quieto, que logo saiu de perto da porta.
Então ele empurrou o outro, que tropeçou para longe.
— Agora saiam do quarto. E não voltem aqui mais. Nem mesmo respirem perto dela,
ouviram?
O idiota de boca grande ainda protestou:
— E quem ficará de olho nela?
Nathan cruzou os braços.
— Me considere o segurança particular dela agora, pateta — disparou. — Dê o fora daqui,
antes que eu termine de quebrar seu pescoço.
Os Desertores olharam feio, mas saíram sem mais questionamentos.
Sozinhos no quarto, o nervosismo se instalou. Ele limpou a garganta, observando minha
inquietação.
— Você está bem?
— Ótima.
Ele assentiu.
— Vai tomar seu banho?
Arqueei a sobrancelha.
— Você vai vigiar?
Ele começou a negar.
— Não, claro que não... Eu não iria...
— Eu preferiria que entrasse. — Eu o parei. Seus olhos azuis agora pareciam surpresos.
Talvez eu estivesse brincando com fogo, mas nunca estive tão ansiosa por um pouco de calor. —
Vou me sentir mais segura se eu souber que os idiotas não vão passar por você.
Haveria mil argumentos, mas Nathan não usou nenhum deles. Ele apenas se virou, abriu a
porta do meu banheiro e entrou. Eu o segui para dentro, nervosismo e um sentimento novo
aquecendo minha pele. Excitação. Eu estava excitada. Nervosa porque minha mente não se
lembrava do porquê me sentia mais segura com Nathan, ou porque eu parecia tão interessada em
nos levar ao limite do precipício. Excitada porque ele era lindo, e estava sempre me protegendo,
e sempre que olhava para ele sentia como se eu não estivesse vazia, sozinha e muito menos era
alguém que eu odiaria.
Eu olhava para Nathan e via o vislumbre de quem eu deveria ser, a pessoa que Vicenzo
havia apagado.
E nesses momentos eu parecia menos errada. E um pouco mais longe de odiar a mim
mesma.
Comecei a desabotoar minha blusa, e ele se virou, fincando os olhos na parede, longe de
mim e da minha eminente nudez. Apesar disso, eu podia ouvir seu coração acelerar.
Tirei minha blusa e minha calça, então minhas roupas íntimas. As coloquei dobradas sobre
o mármore da pia e não disse nem uma palavra até ficar embaixo do chuveiro ligado.
— Posso ouvir seu coração batendo — eu disse, o barulho da água quase abafando minha
voz.
No entanto, Nathan me ouviu. Não se mexeu, mas respondeu:
— Faz sentido. Em três dias será seu aniversário e quanto mais perto, mais seus sentidos se
afloram.
Ele estava se desviando do ponto.
— Seu coração está batendo rápido — eu insisti.
Nathan não hesitou.
— Ele sempre bate assim perto de você, você apenas não se lembra.
Molhei meu cabelo, deixando a água me engolir, afundar meus pensamentos, limpar
minhas inseguranças.
— Pode pegar o sabonete para mim? Me esqueci que o daqui acabou. Está no armário
embaixo da pia.
Eu o vi cerrar o punho e esticar os dedos em seguida. A ansiedade dele era palpável.
Mesmo assim, Nathan se virou, os olhos ainda longe de mim e pegou o sabonete. Seu peito se
ergueu em uma respiração profunda quando se virou para andar em minha direção. No início ele
apenas encarou os próprios pés, mas quando chegou mais perto, eu me aproximei, abri o vidro do
boxe e agarrei o sabonete de sua mão. A surpresa o fez me olhar, e então eu pude ver sua
garganta travar.
Desejo.
Desejo cru banhado por um reconhecimento profundo me fez querer puxá-lo para baixo do
chuveiro comigo. Era isso que eu precisava saber. Aos poucos, a verdade ia se formando, o
quebra-cabeça lentamente tomando forma.
— Você já me viu nua antes. — Eu sabia apenas pela forma como me olhava.
— Sim.
Assenti engolindo em seco, e me virei para ensaboar meu corpo. Surpreendentemente,
percebi que eu não estava nem um pouco envergonhada pela nudez, mas meu sangue borbulhava
na expectativa, a possibilidade do simples toque. Eu queria. Eu não conseguia parar de pensar
nisso. Ele me atraía de uma forma que, até então, eu só havia lido nos meus livros roubados. Não
era aquela tensão de quando Vicenzo me agarrou, não era o nojo de agora há pouco, enquanto
aqueles idiotas me ameaçavam. Era uma sensação gostosa, que começava em meu âmago e se
espalhava pelo meu corpo como fogo se espalhava em contato com álcool.
Voltei a me virar e olhar para ele, curiosidade estampada em meus olhos, enquanto os dele
parecia lutar contra o impulso de percorrer as curvas do meu corpo. Uma coragem recém-
descoberta se apossou de mim. Era a beleza de não ter memórias, eu não temia o que eu não
conhecia. Eu não sabia o que era ser rejeitada por ele, e pela forma como me olhava, não pensava
ser algo possível. Ele me queria. Eu às vezes até me permitia acreditar que de fato me amava.
Eu me aproximei dele lentamente, os olhos trancados um no outro, meu coração batendo
tão rápido quanto o dele. Quando nossos narizes estavam prestes a se tocar, ele não recuou, não
moveu nem um músculo.
— O que mais fizemos quando me viu nua?
Sua boca era tão linda.
— Depois que te vi completamente nua, fizemos praticamente tudo o que podíamos — ele
respondeu, os olhos me queimando com uma necessidade mal contida que era tão fácil de ler
nele, já que não parecia ter o menor interesse de esconder.
Precisei me forçar a pegar o shampoo atrás dele e dar dois passos para longe. Nathan não
me impediu.
— Por que se apaixonou por mim, Nathan?
Ele pareceu surpreso com a pergunta, mas isso era algo que vinha martelando em minha
cabeça desde que o conheci. Eu não sabia quem eu era, não de verdade, então a ideia de ser
amada por alguém não fazia sentido, simplesmente porque eu não conseguia me lembrar de
nenhuma característica que me faria amável.
— Eu era interessante? Engraçada ou forte? Você se sentia atraído por mim e isso se
transformou em algo mais?
Nathan me olhou, o azul dos seus olhos quase vermelho de fogo.
— Você é tudo isso e mais. É a mulher mais linda que eu já vi em toda a minha vida. É
interessante, leal, honesta e mais forte do que qualquer um que conheci, porque sua força não se
resume à física, mas à sua compaixão e empatia — ele explicou, tanta paixão em sua voz que eu
podia sentir em meus ossos. — Era a única pessoa capaz de me fazer rir nos mais sombrios
momentos. E...
— O quê? — perguntei, incapaz de deixá-lo livre de responder.
— E é minha melhor amiga.
Nathan se virou, enquanto eu ouvia sua respiração profunda, pegou meu condicionador e
me entregou em seguida.
— Você era meu melhor amigo?
— Gosto de pensar que sim.
Só então me permiti passar o condicionador nos meus fios. Quando terminei e enxaguei o
cabelo, Nathan ainda tinha os olhos presos nos meus. Era como uma dança íntima, na qual
nenhum de nós dois queria terminar. Ele me observava com paixão e eu permitia, porque era a
melhor sensação que eu já havia sentido: me sentir querida. Desejada. Amada.
— Estava atraído por mim quando ainda éramos amigos?
Ele inspirou.
— Nós fomos amigos quando ainda crianças, e na época obviamente era algo platônico.
Era amizade em seu estado mais puro — contou. — Fomos crescendo juntos, depois separados
por anos, e então quando nos reencontramos, eu já via que além de minha amiga, você também
era linda. Linda de um jeito que tirava meu fôlego sempre que eu a via. E mesmo quando eu não
me lembrava de você, eu era tão atraído por você que precisava me controlar, manter a cabeça no
lugar para não perder o foco. Eu era seu Protetor, afinal.
Meus seios estavam duros, e quanto mais eu o ouvia falar, mais o calor descia para o meio
das minhas pernas. Era uma sensação nova, mas que eu sabia que de nova não tinha nada.
— Você não queria se sentir atraído por mim?
Eu tinha certeza de que Nathan sabia exatamente o quão atraída eu estava por ele.
— Eu queria não falhar com você. Estava desesperado com a possibilidade de que me
permitir amar você, ter você, seria demais. — Sua voz era um sussurro. — Você... Você me
consome, Aly. Honestamente, você foi mais corajosa que eu. Quando finalmente ficamos juntos,
foi você quem teve a coragem de lutar por algo que me deixava apavorado. E eu nunca, em toda
minha vida, fui mais grato pela sua coragem, porque me permitiu ter algo que, sozinho, eu seria
covarde demais para ter.
Eu parei para absorver suas palavras. A água caía sobre meus ombros e ele me observava,
os olhos fixos nos meus, enquanto eu engolia a história que me contava. A minha história. Nossa
história.
— Você não lutou por mim.
Ele pareceu envergonhado.
— Eu achei que afastá-la seria mais prudente. Achei que poderia mantê-la a salvo se eu
estivesse o mais longe possível. Pensei... pensei que amar você seria sua ruína. — Pela primeira
vez, desde que me encarou nua, ele desviou o olhar. — E eu estava certo. Eu fui sua ruína. Eu
devia ter feito diferente quando Vicenzo atacou e...
— Eu lutei por você e você não queria?
Seus olhos azuis se voltaram para os meus, agora ainda mais determinados.
— Eu estava desesperado por você, Aly. Eu queria absolutamente qualquer coisa que eu
pudesse ter de você. Saber que você me queria como eu a queria, apenas me deu desculpas o
suficiente para ignorar meus medos, ignorar meu dever. Eu escolhi você. E escolho novamente e
quantas vezes forem necessárias. — Ele fez menção de se aproximar para me tocar, mas se parou
no meio do caminho. — Eu... eu sou extremamente grato por você ter me colocado no meu lugar,
e por ter me dito exatamente o que queria, porque assim eu fui capaz de ser sincero comigo
mesmo e com você. Assim eu fui capaz de me permitir ter o que eu ansiava. — Ele sorriu
timidamente. — Você lutou por mim, Aly. E vou passar minha existência lutando por você.
Corpo, coração e alma.
Eu me senti incapaz de formular qualquer resposta. Eu senti suas palavras tocarem minha
alma em uma carícia íntima de amantes antigos.
Incapaz de falar, dei passos o suficiente para que meus pés tocassem os seus sapatos, e meu
corpo estivesse quase perto o suficiente para molhá-lo. Eu queria que ele me beijasse. Eu queria
que aquilo me fizesse lembrar, e queria tão desesperadamente voltar a ser a pessoa que ele
conhecia porque aquela garota parecia digna, parecia boa.
Eu, mais que tudo, precisava daquela conexão, que me lembrava que eu não estava vazia,
que eu não era uma folha em branco. Eu havia sido alguém. Era alguém.
— Me beija.
— Aly...
Ele ia tentar encontrar motivos para não fazer isso, para esperar até que estivéssemos longe
daqui e eu tivesse minhas memórias. Eu estava cansada de esperar pelo futuro. Então dei um
passo à frente e o beijei.
Nossas bocas colidiram com um suspiro dele que morreu em meus lábios. Foi leve no
começo, mas logo fogo consumiu tudo que nos cercava, e suas mãos estavam marcando meu
corpo, minha língua provando seu gosto, e nossos corpos colados a ponto de poder nos fundir em
um só. Meu seios nus roçando o tecido de sua camisa, minhas pernas e intimidade contra o
tecido grosso de sua calça, que ainda não era capaz de esconder o quão duro ele já estava. Por
mim. Eu havia feito isso com ele. Uma satisfação sufocante me fez pressionar contra ele com
mais vontade.
Nathan me prendeu contra a parede de azulejos enquanto água o encharcava.
— Alyssa.
Meu nome era como uma oração em seus lábios, e eu gemi quando ele desceu a boca para
meu pescoço, e então meus seios. A água havia encharcado suas roupas e seu cabelo molhado
grudava em minha pele. Puxei sua camiseta e ele ergueu os braços para se livrar dela. Eu a joguei
para o canto e afundei meus dedos em seu abdômen definido, jogando a cabeça para trás
enquanto ele chupava minha pele.
Suas mãos percorriam meu corpo, arranhavam minha pele e apertavam minhas curvas.
Cada vez que ele se afastava um centímetro sequer, eu grunhia de indignação e o puxava de
volta. Em um desses movimentos, ele soltou uma risada que fez meu coração pular uma batida.
— Eu morri quando pensei que estava morta — ele sussurrou contra a minha pele. — Juro
pelo Destino que quando a encontrei viva, meu coração voltou a bater de novo.
Em resposta, o meu coração pareceu quebrar um pouco. E as outras pessoas que eu havia
sido tirada? E meus pais? Afastei o pensamento tão rápido quanto ele chegou, e foquei em tocar
cada pedaço de pele exposta de Nathan, até encontrar o botão de sua calça.
— Mais — eu pedi.
Ele me atendeu com um beijo profundo, que me fez derreter sob ele.
Suas mãos percorreram meu corpo com adoração, apertando minha carne e deixando
arrepios por onde passava. Seus dedos percorreram o interior das minhas coxas, deixando um
rastro de fogo até tocarem o meu centro. E pelo Destino, deuses e a porcaria de todo o universo,
eu iria explodir. Iria me tornar um punhado de pó aos seus pés. Ele engoliu meu gemido com um
sorriso nos lábios, e minhas unhas se fincaram em suas costas.
— Me diz o que quer — ele sussurrou em minha boca, os olhos azuis comendo os meus.
Eu tinha a sensação de que amava aqueles olhos.
O que eu queria? Queria que suas mãos não parassem. Queria poder nos tirar dessa merda
de palácio. Queria que ele me beijasse mais. Queria que Vicenzo explodisse. Queria que Nathan
tirasse sua calça. Queria que o Destino me desse minhas memórias de volta. Queria lamber a
pinta abaixo do lóbulo da orelha de Nathan. Queria voltar no tempo e impedir que ele desertasse.
Então eu percebi que, acima de tudo, eu queria voltar a ser quem eu era antes. E eu não
sabia quem essa pessoa era, então precisava de ajuda.
— Quero que lute por mim.
Senti seu coração tropeçar nas batidas e quando sua boca tocou a minha, era mais que
desejo, era devoção. Nathan me tocou como eu nunca imaginei ter sido tocada antes, apesar que
agora estava certa de que tinha — e com ele. Então ele desceu a boca pelo meu corpo, até
substituir seus dedos por ela e, com a língua, me mostrou exatamente com quanta dedicação ele
lutaria por mim.
Uma de suas mãos seguravam minha coxa, deixando-me exposta para ele. A outra
acariciava minha cintura, subindo pela minha pele até agarrar meu seio. Agarrei sua mão, sem
saber como conter meu completo desespero pelo alívio. Gemi seu nome e ele sorriu contra mim.
A necessidade cresceu tão forte dentro do meu ventre que eu precisei puxar sua mão e
morder sua pele para impedir o grito de romper. Agarrei seus cabelos, forçando-o mais contra
mim, completamente perdida na luxúria. Eu o senti gemer sobre meu nervo sensível, e bastou
apenas mais algumas lambidas para que eu me desfizesse em um gemido longo abafado pela sua
pele.
Ele se ergueu, beijando seu caminho até a minha boca, e as mãos em meus quadris,
possessivas e firmes, me mantiveram em pé. Ele analisou meu rosto com um foco admirável que
me fez sorrir. Eu roubei um beijo de seus lábios, que ele não permitiu que eu aprofundasse.
— Teremos tempo — sussurrou, quando parou minhas mãos de desabotoarem sua calça.
— E quando fizermos isso, quando você me tocar, se lembrará exatamente quem sou e o que
sente por mim.
— Nathan...
Ele me deu mais um beijo nos lábios, e com gentileza me fez virar, enxaguando meu
cabelo, tirando o excesso de condicionador que eu mal tinha visto que havia deixado, porque
estava focada demais nele.
Nathan baixou os lábios para minha orelha e eu me arrepiei.
— Você precisa saber, Aly, que não precisa se preocupar — sussurrou. — Estou aqui. E
estou lutando.
Suas palavras liberaram uma barreira em meu peito e eu precisei engolir a vontade de
chorar. Ele havia vindo até aqui por mim, havia desertado por mim. Havia se destruído
completamente por mim. E eu nem ao menos me lembrava dele.
Eu me virei e afundei o rosto em seu peito, os braços caídos ao lado do corpo, me sentindo
indigna de abraçá-lo. Eu não merecia que ele estivesse aqui. Ele merecia mais que isso.
Suas mãos acariciaram minhas costas com tamanha delicadeza que me fez ter que engolir o
nó que se formava em minha garganta.
— Nós vamos morrer, Nathan — eu disse, o rosto enfiado em seu pescoço, enquanto eu
respirava seu cheiro. — Eu sinto muito que fiz isso com você.
Porque era minha culpa que ele estava aqui. Minha culpa que havia desertado. E minha
culpa que iríamos todos morrer.
CAPÍTULO 26

Os dias que antecederam meu aniversário, eu passei trancafiada em minha gaiola de ouro.
Literalmente. Meu quarto tinha detalhes de ouro espalhados por todo o lugar. Ninguém entrava a
não ser que fosse Marco para deixar a minha comida, e eu não tinha a chave da porta para
conseguir sair. Esta foi minha punição por ter a língua afiada.
Eu não vi Lore.
E também não vi Nathan. Depois do que aconteceu no banho, ele me guardou por horas
durante meu sono, então no dia seguinte, até que Vicenzo voltasse e o mandasse fazer algo que
não envolvia estar perto de mim.
Quebrei algumas decorações nesse meio tempo apenas para me manter entretida.
No dia 21 de novembro, Vicenzo apareceu em meu quarto junto com o pôr do sol.
Ele abriu a porta quando eu ainda estava dormindo, vestida apenas com uma camisola.
Arremessei um abajur em sua cabeça, mas ele apenas desviou e revirou os olhos.
— Levante-se e se vista. Agora.
— Pensei que teria decidido me deixar definhando aqui ao invés de me atormentar.
Ele apertou os olhos para mim.
— Em algumas horas será dia 22 de novembro. Seu aniversário.
Fiz uma careta.
— Aposto que não está me levando para uma festa. Não pode apenas me deixar em paz
nessa data? Considere como um presente.
— Seu aniversário — repetiu, como se fosse óbvio. — Pense um pouco e descubra o
porquê da resposta para sua pergunta ser não.
Meu aniversário. Teoricamente o dia em que eu me transformaria na porcaria que fosse e
ganharia incríveis e desejados poderes. Que ótimo. Incrível. Eu mal podia esperar.
Eu sorri para Vicenzo, tão falsa quanto uma nota de três.
— Já parou para pensar que hoje é o dia em que posso matar você?
Ele bufou.
— Não blefe comigo. Duvido que esteja interessada em se sacrificar para me matar.
Dei de ombros.
— Pode valer a pena.
— Morrer raramente vale. — Ele balançou as mãos para me apressar. — Agora, anda logo.
Joguei os cobertores para longe com força e me levantei. Vicenzo não saiu do quarto, nem
fez menção de se virar, então eu peguei minha roupa e entrei no banheiro, batendo a porta com
força logo em seguida.
Eu não tinha ideia para onde Vicenzo me levaria, mas se ele pensava que eu seria a Alyssa
boazinha, ele estava muito enganado. Eu estava farta de me forçar a caber em sua caixa, a me
diminuir para ter sua provação, a aceitar suas mentiras porque pareciam mais fáceis do que lutar
pela verdade. Eu não sabia quem eu era, mas esperava ser mais do que o capacho de um imortal
egocêntrico.
Quando já estava vestida com uma calça e camisa de linho pretas — que eu sabia que
Vicenzo não gostava —, saí do banheiro e o encontrei já esperando na porta. Ele não disse nada.
Muito menos eu. Eu o segui para fora do quarto e, no corredor, havia pelo menos oito Desertores
para nos escoltar. Bem, para escoltar Vicenzo, e me vigiar. Abri um sorriso satisfeito. Eu
esperava mesmo que me temessem. Esperava que aquele aniversário me desse exatamente o que
eu precisava para garantir que sempre me temeriam.
Apesar de saber que não estavam ali, ainda busquei pelos rostos de Lore e Nathan. E
quando descemos o segundo lance de escada, comecei a me preocupar. Onde ele estava me
levando? Lá fora, o sol já havia dado lugar à lua, e o palácio estava coberto pela penumbra
noturna. No terceiro lance de escada, estávamos agora andando no subsolo do palácio. Eu nunca
havia estado ali antes, era reservado apenas para os trabalhadores do lugar e para abastecimento
de armas.
— Onde está me levando?
Vicenzo não respondeu.
Continuamos andando, meu corpo querendo se estancar no meio do caminho e correr na
direção contrária. Com as passagens se tornando mais estreitas, alguns outros lances de escada a
mais e a luz cada vez mais escassa, eu percebi para onde estávamos indo. Vicenzo estava me
levando para os túneis.
Meus dedos apertaram a pele da minha mão direita, sobre a marca estranha e indecifrável.
Estava me esforçando para controlar as batidas do meu coração. Os túneis haviam sido uma
forma de ameaça desde que cheguei aqui. Era onde muitos ficavam presos, eram torturados e
definhavam até a morte. Era um lugar frio, úmido e escuro, sem muitas saídas.
O primeiro passo dentro do túnel me deixou claustrofóbica.
Quando abriram uma das celas e me fizeram entrar nela, minha respiração estava instável.
Não aqui. Não, não, não.
Eu não conseguiria sair. Não haveria para onde correr. Eu não conhecia os túneis, não tinha
ideia de até onde eles iam e já nem me lembrava do caminho de volta para o palácio. Vicenzo me
deixaria definhar aqui.
Marco, que era um dos Desertores escoltando Vicenzo, parou na minha frente e ordenou:
— Ajoelhe-se.
— Não.
Dor explodiu atrás dos meus joelhos e eu caí, batendo-os no chão. Rosnei para a Desertora
atrás de mim que bateu o cabo de sua espada em minhas pernas. Fiz menção de me levantar, mas
um outro Desertor agarrou meus ombros, me forçando a ficar no chão.
— Machucar você não é meu objetivo — Vicenzo disse, de um canto da cela que eu não
enxergava. — Tudo o que disse a você ainda está valendo. Esqueça esta ideia mesquinha de
voltar no tempo, encontrar a Alyssa que era antes de eu aparecer, e entenda o que estou te
oferecendo.
Marco agarrou meu pulso direito e o prendeu com correntes pesadas que eu observei
estarem presas ao chão, depois fez o mesmo com o pulso esquerdo. Tentei bater meu punho
contra seu rosto quando estava prestes a fechar a corrente, mas elas eram pesadas e não tive força
suficiente para o golpe. Seus olhos encontraram os meus com fúria, mas uma pontada de
divertimento os fazia brilhar.
— Você espera que eu veja essas correntes como uma boa oferta? — Cuspi em Vicenzo,
que agora andava para um ponto onde eu era capaz de enxergá-lo bem.
— Isso é apenas um meio de proteção. Não sabemos o que acontecerá quando der meia-
noite e não quero estar despreparado. — Outras correntes foram presas aos meus tornozelos. Eu
era um animal acorrentado, completamente à mercê desses desgraçados. — Depois do seu
aniversário, espero poder tirar as correntes.
— Ah, eu não recomendaria — ameacei.
Ele sorriu.
— Tão audaciosa. Nixya era assim também — comentou. — Mas pensemos juntos, ok?
Você receberá a benção do Destino em breve, se é que podemos chamá-la assim. Porque a
verdade é apenas uma, Alyssa: você é um animal para sacrifício. Se cumprir a profecia, tudo o
que receberá é a morte em retorno. E nós dois sabemos que você não quer morrer. Tudo o que
fez até hoje, foi para se manter viva. Todos os Protetores que matou em meu nome foi para
continuar viva. Porque eu posso te dar o que ninguém dará. — Sorriu. — Ir contra mim é
desperdiçar todo seu trabalho pesado.
Cerrei meus olhos.
— Pode enfiar sua proteção no...
Vicenzo estalou a língua.
— Vamos nos manter civilizados. E não estou te oferecendo apenas proteção. Estou te
oferecendo poder.
— Contanto que você sempre tenha mais.
Ele assentiu.
— Claro.
A risada cínica saiu antes que eu conseguisse evitar. Sua sinceridade era notória.
— Vai se ferrar.
Vicenzo caminhou até mim, e puxou meu rosto para cima para fitar seus olhos.
— Então vamos pensar da seguinte forma: você trabalha para mim e eu não mato Nathan.
Engoli em seco.
— Você tirou minhas memórias, lembra? — O desdém era amargo em minha língua. — Se
um dia eu o amei, não me lembro.
O imortal tombou a cabeça com um sorriso simplório.
— Você já soube mentir melhor. Mesmo eu sei que o tipo de conexão que você tem com
aquele garoto é mais forte do que memórias. Você poderia passar uma vida sem se lembrar do
nome dele, e ainda assim sentiria o impulso de pular na frente de um trem por ele.
Eu desviei o olhar. Não era verdade. Eu sentia algo por Nathan, não era estúpida a ponto de
mentir para mim mesma que não era verdade. Contudo, eu tinha controle sobre isso. Eu
precisava ter, ou Vicenzo teria a arma perfeita.
— Por que mataria alguém que se empenhou tanto para que desertasse?
Vicenzo deu de ombros.
— Porque eu posso.
— Posso te matar primeiro, então.
Ele nem mesmo hesitou.
— Então estará morta comigo, e meus Desertores terminarão meu trabalho. Farei questão
que saibam exatamente como quero que Nathan morra. Membro por membro arrancado, depois
de horas de tortura.
A imagem se formou na minha mente com tanta clareza que precisei lutar contra o impulso
de tentar rasgar sua garganta.
— Essa reação? — Ele apontou para mim. — É o motivo pelo qual fará o que eu quero. É
o motivo pelo qual deixei que o garoto entrasse em minha cidade e a encontrasse antes de
prendê-lo. E estou disposto a deixá-los em paz, uma vez que você escolha o meu lado.
Eu o encarei, observando seu rosto com atenção. O vinco no meio de suas sobrancelhas, as
mãos semi-cerradas e os ombros tensos. Ele não estava me ameaçando. Bem, estava, mas aquele
era seu modo de negociar. Vicenzo estava tão desesperado, que estava negociando comigo.
Minha risada foi tão alta, que o surpreendeu.
— Você está realmente preocupado, não é? Percebeu que todo o seu plano foi em vão,
porque não importa se eu tenho memórias ou não, você é tão completamente repulsivo que não
foi capaz nem mesmo de moldar minha mente para ser leal a você. É tão malditamente
incompetente que perdeu esses últimos meses tentando me manipular, apenas para descobrir que
foi inútil. Que continuo aqui, sem memórias, sem ninguém e ainda assim, preferindo morrer
matando você a viver mais um dia nesse palácio estúpido.
O imortal não recuou.
— E quando se tornou tão melhor que eu? Preciso te lembrar de todo o sangue em suas
mãos? Como acha que os Protetores receberão a protegida deles de volta, quando souberem tudo
o que fez e todos os Protetores que matou apenas para me agradar?
Eu havia matado tantos deles, sem mesmo lhes permitir a chance de lutar de volta. No
entanto, eu não me lembrava dos Protetores para querer suas aprovações, ou perdão. Eu poderia
prestar contas mais tarde, com o diabo em pessoa. Tudo o que eu queria, se não fosse pedir
muito, era poder me lembrar de Nathan, dos meus pais e dos amigos que deixei para trás.
Porque apesar de ter passado todo esse tempo achando que estava sozinha no mundo, eu
finalmente havia descoberto que eu não estava. Eu tinha pessoas que se importavam... que me
amavam.
E Vicenzo me arrancou delas.
— Não perca seu tempo, Vicenzo. Não vou trabalhar para você. Você sabe disso. — Ergui
uma sobrancelha. — O que me faz pensar que existe uma razão pela qual ainda não me matou.
— Não gosto de desperdícios.
Revirei os olhos.
— É, você fala muito isso.
Ele suspirou dramaticamente, virando-se para sair da cela e se sentar em uma cadeira que
algum Desertor deixou para ele. Vicenzo teria a visão perfeita a noite toda e nem cansaria as
pernas.
— Quando a hora chegar, tenho certeza de que o elo interferirá. — Ele virou a cabeça em
direção à entrada dos túneis. — E estou apostando que no fim, você escolherá Nathan, acima de
suas próprias crenças. — Seus olhos de fumaça encontram os meus. — E lembre-se quem tem o
controle sobre ele, Alyssa.
Passos rápidos soaram pelos túneis e eu fechei os olhos. Por quê? Por que ele sempre
aparecia?
Nathan quase quebrou as grades da cela ao abrir passagem, os olhos queimando os
Desertores que me rodeavam e as correntes que me prendiam.
— Que porra estão fazendo?!
Mas foi Lore quem me surpreendeu, chegando tão apressada quanto Nathan, e correndo até
mim com tanta determinação que, por um segundo, tive certeza de que se esqueceu de quem era
seu líder. Ela nunca havia interferido nos planos de Vicenzo diretamente, nem mesmo havia me
contado sobre minhas memórias. Mas agora ela estava me olhando como se bastasse apenas uma
palavra, e ela lutaria por mim.
“Eu vivi na sombra de Vicenzo por anos, porque não conhecia nada melhor. Eu vi você
matar, mas também vi você proteger. Os Protetores e Vicenzo a querem por uma razão, mas
eu... Eu acredito em você. Acredito que pode mudar tudo. Você me deu esperança de que esse
não precisa ser o único jeito de viver. Você só precisa se encontrar.”
Naquele momento, eu acreditei nela.
A risada de Vicenzo veio como um soco no estômago.
— Lembre-se de que tem o controle sobre ela também, Alyssa.
Trinquei os dentes.
— Por que a prendeu desse jeito? — Nathan questionou, irado.
— Pois logo será meia-noite, e não gosto de surpresas.
Lore me olhou, os olhos cheios de lágrimas. Não chore. Pelo Destino, não chore. Ela
limpou a garganta e disse:
— É seu aniversário de dezoito anos.
Dei de ombros, mas fiz uma careta quando as correntes apertaram minha pele ao serem
repuxadas.
— Quase — confirmei. — Parabéns para mim.
Nathan fez menção de puxar as correntes, mas Marco o empurrou para longe.
— Saia da minha frente — ele rosnou.
— Não se intrometa — Marco rebateu.
Nathan avançou tão rápido que nem Marco foi capaz de ver. De repente, seus braços
estavam em volta do pescoço do Desertor, prontos para quebrá-lo. Os Desertores restantes se
posicionaram para atacá-lo, mas foi Vicenzo quem falou primeiro.
— Nathan — era um aviso.
— Solte ela — o ex Protetor exigiu.
— Nathan, solte Marco. — A ordem era explícita em sua voz, apesar do imortal parecer
entediado. O corpo do garoto ficou tenso, mas ele ainda lutou contra. — Solte Marco e não se
intrometa novamente. — Tremores tomaram o corpo de Nathan, e ele trincou os dentes com
força. — Agora.
Com a última ordem, seus braços cederam e caíram ao lado do corpo. A fúria e a vergonha
eram emoções palpáveis e eu podia senti-las emanando dele. Fúria pelo que Vicenzo fazia.
Vergonha porque não era capaz de lutar contra.
Seus olhos azuis encontraram os meus, e eu tentei dizer que estava tudo bem. Esperei que
ele pudesse ler essas palavras nos meus olhos.
Apesar da ordem, Nathan se aproximou, e se ajoelhou à minha frente.
— Me desculpa.
Eu balancei a cabeça.
— A culpa não é sua.
Havia tanta dor nele, que eu precisei desviar os olhos para ser capaz de impedir que me
cegasse. Então ficamos assim, próximos um do outro, mas sem nos tocar e eu incapaz de encará-
lo. As horas passando, e todos aguardando.
Um tempo mais tarde, enxerguei o relógio de Lore, que havia se sentado em um canto
próximo. 23:59. Deveria começar em breve.
E eu esperava... esperava que não doesse.

Era mais de meia-noite, quando a onda me bateu. De início não foi mais que uma tontura,
nada mais que um desconforto no meu âmago. Mas então a onda se tornou um tsunami, e a
tontura se intensificou em uma dor de cabeça. Eu me mexi, desconfortável, e senti os puxões das
correntes picarem minha pele. Do outro lado das grades, Vicenzo ergueu os olhos para mim. A
poucos centímetros de distância, Nathan se mexeu, chegando mais perto, a testa franzida e o
olhar preocupado.
Então o ar foi puxado do meu peito, um zumbido alto preencheu meus ouvidos, me
deixando incapaz de escutar o que quer que Nathan começava a me dizer. E então, como se o
Destino puxasse minha alma para onde quer que ela se originava, eu tombei para trás e caí.
Depois disso, tudo o que senti foi tormento.
E queimar.
Era como se eu estivesse queimando.
CAPÍTULO 27

O corpo de Alyssa torceu para trás, como se fosse uma folha de papel sendo amassado. Sua
boca se abriu em um grito silencioso, e eu pulei em sua direção para pegá-la enquanto ela
desmaiava.
Em minhas mãos, seu corpo era como gelo.
— Aly — sussurrei, aninhando seu corpo no meu colo.
Afastei uma mecha de cabelo do seu rosto e a puxei para mais perto, desesperado para
entregar-lhe um pouco de calor. Ela parecia... parecia estar morta. A pele fria e pálida, o corpo
imóvel... Era como se estivesse morta, porém, eu sentia seu coração bater sob a palma da minha
mão. Acelerado demais para ser normal, mas bom o bastante para não me deixar em pânico.
— Deixe ele. — Ouvi Lore pedir, então encontrei Marco se aproximando para me tirar de
perto de Alyssa. Arreganhei os dentes para ele como um animal sendo ameaçado. Ele não iria me
tirar perto de Alyssa.
Eu me odiava tanto por ter me tornado um Desertor e quando Vicenzo me obrigou a parar
quando eu estava prestes a matar Marco, como se eu fosse sua marionete, eu quis arrancar o
coração do peito e consertar aquele erro. Como eu poderia ajudar Aly, como poderia estar ao seu
lado, se Vicenzo podia me controlar?
— Escute Lorena, Marco — Vicenzo disse. — Nathan não fará mal a Alyssa.
Óbvio que eu não faria.
Eu queria poder fazer algo para ajudar.
— Estou aqui, Aly — murmurei. — Estou aqui.
Seu corpo se contorceu e a agonia pareceu me cegar. O que quer que estivesse acontecendo
com ela, era mais do que um desmaio. Ela estava com dor. Apertei mais seu corpo contra o meu.
Por favor. Por favor. Se parar com isso, eu faço o que quiser. Está me ouvindo, Destino?
Faço o que quiser se a tirar dessa agonia.
Trinquei os dentes quando ela gemeu baixinho, as mãos se fechando em punho. A frieza de
sua pele apenas parecia piorar, e tudo o que eu podia fazer era abraçá-la e rogar ao desgraçado do
Destino que fingia não escutar.
— Me diz como ajudar — implorei. — Me diz como te ajudar, Aly.
Eu ainda a embalava, quando seu corpo se retesou, sua coluna ficando reta e dura, forçando
seu corpo em uma posição anormal. Com o coração trovejando, eu me afastei dela o suficiente
para deitá-la no chão, assim não ficaria com o corpo em uma posição desconfortável. Me curvei
ao seu lado, escovando seu rosto com os dedos e sussurrando seu nome. Ela poderia me ouvir.
Eu sabia que ela poderia. Alyssa iria me ouvir chamá-la e sairia do transe. Era isso o que
acontecia naqueles livros de romance que me obrigava a ler. Esta era uma boa hora para me
provar que eram realistas, que eu poderia simplesmente acreditar no poder do amor e tudo se
resolveria.
Eu ouvia alguns dos Desertores soltarem risinhos e sussurrarem sobre o quão estúpido eu
era, o quanto eu havia sido “amarrado pela oferenda do Destino” e eu me lembraria de mostrar a
eles exatamente como se comportarem dali em diante. Assim que Aly estivesse de volta ao
mundo dos despertos.
— Aly, volta. Por favor, volta.
Lore estava em algum lugar perto, porque eu podia escutar sua respiração entrecortada,
nervosa.
De fora da cela, ouvi Vicenzo se levantar e pedir silêncio. Eu não me preocupei em encará-
lo.
— Olhe sua mão direita.
Baixei meus olhos para sua mão cerrada. A marca antes um pouco mais escura que a cor de
sua pele começava a se tornar traços pretos. O desenho se iniciou nas costas da mão, sobre a
marca original, mas então as linhas continuavam a seguir caminho, pintando linhas sobre seus
dedos, até que subissem pelo seu pulso, então crescendo pelo seu braço em um desenho arcaico.
— Erga o braço dela — Vicenzo ordenou.
Marco avançou, mas eu o empurrei para longe.
— Não toque nela — rosnei e eu devia parecer enlouquecido, porque o Desertor hesitou.
Com delicadeza, peguei sua mão, entrelaçando nossos dedos e ergui seu braço. Toda a
parte interna do seu braço também estava sendo pintada pelos traços negros. Reparei que, em
meio aos traços, havia pequenos desenhos singulares, como as fases da lua, cada uma em uma
área da pele, estrelas, um triângulo de ponta cabeça e um sol, este último bem em seu bíceps.
Abaixei seu braço, ainda observando a nova marca. Aquilo devia ser parte da
“transformação”que ocorreria ao fazer dezoito anos.
De relance, observei o olhar nervoso de Vicenzo. Ele podia fingir que tinha as coisas sob
controle, mas eu podia ver que a cada segundo se questionava mais de suas decisões. E, com
Alyssa desacordada, tudo o que eu podia desejar, era que ele mantivesse seu pensamento inicial e
a achasse mais interessante viva do que morta. O que quer que ele quisesse com ela, por
enquanto, a mantinha segura.
Eu ouvi o coração de Aly desacelerar, os batimentos voltando a um ritmo normal. Toquei
seu rosto e senti sua pele um pouco menos fria.
— Aly?
Não houve resposta.
Segundos se passaram.
Meu coração trovejava.
Então um grito rompeu a cela e com um impulso, Alyssa se ergueu abrindo os olhos, ao
mesmo tempo em que uma luz branca, forte como um trovão, explodiu. Era mais que luz, porém.
Era poder. Magia crua, pesada e forte.
A explosão enviou todos nós, Desertores e Vicenzo para longe e as correntes presas ao seu
corpo se partiram. Bati minhas costas contra as grades da cela, e ouvi os Desertores ao meu redor
xingarem. A luz não se extinguiu e, apesar da dor em meus ossos, conseguia ver o corpo de Aly
brilhar como se fosse uma lâmpada acesa. Era como o brilho de uma estrela, mas com a potência
do sol. Fazia os olhos protestarem e deixava o ar carregado.
Era sua arma.
Fará da luz, poder — era o que dizia a profecia.
Porque luz, percebi, era o seu poder.
Luz. Uma luz nem um pouco inocente.
Vicenzo grunhiu agitado, lutando contra o peso daquela magia luminosa. Mas era inútil.
Mesmo inconsciente, Aly era mais forte do que o próprio sol. Era o centro da gravidade, era
capaz de tornar o ar pesado, rarefeito e quente apenas com sua luz. Havia atirado mais de dez
guerreiros para longe, sem nem mesmo abrir os olhos.
Abri um sorriso, embasbacado, observando seu cabelo negro envolto pelo brilho branco. O
contraste perfeito. E eu não achava ser possível, mas de alguma forma ela ficou ainda mais linda.
Era como vê-la em um momento celestial.
De repente, seus olhos se abriram, mais negros do que nunca, e eles se fixaram em mim.
Reconhecimento brilhou neles e eu perdi fôlego quando se ergueu sobre os joelhos, até ficar em
pé e correr em minha direção. Antes de me tocar, Alyssa voltou a cair, os joelhos batendo no
chão. Lágrimas enchiam seus olhos, mas a luz não cessou nem por um segundo. Seu peito subiu
e desceu, e então ela se jogou em meus braços, pressionando o peito contra o meu, agarrando
meus ombros como se eu fosse desaparecer a qualquer momento, e enfiando seu rosto em meu
pescoço.
Pela primeira vez em meses, eu fui capaz de sentir paz. Mesmo que um pouco. Mesmo que
inconsistente.
Meus braços se apertaram em volta dela, prendendo-a contra mim. Respirei seu cheiro.
Senti seu coração bater contra o meu. Era a primeira vez que eu a abraçava de verdade. Alyssa e
Nathan. Porque ela não havia dito nada, mas eu sabia que ela se lembrava. Sabia que o Destino
devia tê-la abençoado com suas memórias de volta.
Um suspiro fraco deixou minha respiração entrecortada, e ela me apertou mais forte.
— Nate — disse, em meio à sua inspiração.
E eu ainda o odiava, mas era capaz de agradecer o Destino por esse presente.
Aquela era a minha Aly novamente. Inteira. Mais poderosa, mas a mesma.
Luz brilhou mais forte quando eu sussurrei seu nome de volta.
Os Desertores se movimentavam nervosos, e Vicenzo estava estranhamente quieto para seu
feitio.
O aperto de Aly, porém, ficou mais fraco e ela voltou a desmaiar, agora em meus braços.
Dessa vez, eu me obriguei a ficar calmo, estável e grato. Ela estava aqui. A luz ainda brilhava e
ela ainda estava viva. E tinha suas memórias, tinha que ter. E o poder que o Destino havia lhe
reservado era uma promessa.
Alyssa era luz. E luz era Alyssa.
E eles a temeriam.
CAPÍTULO 28

Eu estava queimando.
Cada célula em meu corpo, cada veia, cada pedaço de pele, estava em chamas.
E, em minha mente, eu estava berrando. Apesar disso, eu era incapaz de me mover,
incapaz de mover qualquer músculo, dizer sequer uma palavra. Nem meus olhos eu era capaz de
abrir.
Era como estar presa dentro de si mesma, sem qualquer controle sobre seu próprio corpo.
Era agonizante. E tudo doía, especialmente meu braço direito.
— Alyssa.
A voz em minha mente era como um pedaço do tempo. E tão simples quanto um
pensamento, eu era o tempo. Estava em pé, sobre um campo escuro, observando uma balança
pender para um lado, enquanto um vulto começava a caminhar em minha direção. Quanto mais
perto, mais incerta eu estava do que se tratava. Um longo manto azul-marinho com capuz cobria
seu corpo e rosto. Tudo o que eu podia ver era a sombra de um sorriso enquanto o vulto me
encarava.
— Seja bem-vinda, filha da profecia.
Engoli a surpresa, enquanto sua identidade se fazia mais clara.
— Você é o Destino.
Ele assentiu levemente.
— É como vocês me chamam, sim.
A dor agonizante ainda estava presente, mas eu me sentia mais no poder de ignorá-la
agora, tendo minha atenção voltada para o Destino.
— Você tem outro nome?
Seu sorriso pareceu se ampliar.
— Esta não é a hora para falarmos sobre mim.
Tudo bem. O grande ser celestial não queria falar sobre si mesmo, esclarecer algumas
dúvidas... Grande surpresa.
— O que está acontecendo comigo? E para onde me trouxe?
— Você está sendo abençoada com seu poder, Alyssa. Como você já devia saber, aos
dezoito anos se tornaria mais forte — explicou com obviedade. — O processo não é indolor,
claro, como tudo na vida, mudanças causam incômodos. E quanto a onde está... Eu apenas trouxe
sua consciência para onde possamos nos entender melhor.
Revirei os olhos, então voltando a reparar no único objeto naquele lugar estranho.
— A balança é um conceito interessante.
— De fato — concordou, ignorando meu cinismo. — E você é parte fundamental dela. Por
tempo demais este momento foi preparado, zelado, aguardado. Eu esperei pacientemente por
você, Alyssa. E agora preciso que faça seu trabalho e destrua Vicenzo. Você é a única que pode.
Cerrei os olhos para ele.
— Aposto que você poderia.
— Não posso me intrometer sempre que quero — disse. — Isso seria como adicionar
toneladas de um lado da balança. Eu escrevo as alternativas, filha da profecia, mas não posso
fazê-las serem escolhidas. Há um limite para minha intromissão.
— Então espera que eu me mate para matar Vicenzo — eu retruquei, irritada.
O Destino assentiu.
— É para isso que foi criada.
Trinquei os dentes.
— Eu sou uma pessoa, não um animal para o abate.
Ele tombou a cabeça levemente, expondo um pedaço de pele pálida de seu queixo.
— E eu não lhe permiti ter uma vida? Não lhe dei tempo? Quantas vezes não te tirei da
morte iminente ou trabalhei para que pudesse encontrar seu predestinado? — Ele então parou de
falar e soltou um suspiro. — Ah, certo, Vicenzo mexeu com suas memórias. Truquezinho
covarde este.
— Deixe eu adivinhar: também não podia se intrometer nisso.
Ele não respondeu, caminhou até a balança e a analisou de perto, os braços cruzados atrás
das costas.
Dor rompeu contra minha coluna e a queimação se intensificou em meu braço.
— Faça essa merda parar de doer tanto!
— Você está mudando, Alyssa. Está se transformando — ele disse, ainda de costas para
mim. — Alguns até diriam que está renascendo.
Renascer dói pra um cacete.
Então ele se virou e caminhou até mim, mais rápido do que passadas comuns, mas ainda
assim não era uma corrida. Ele parecia muito etéreo para correr.
— E se está renascendo, quer dizer que tem direito a reivindicar suas memórias
enclausuradas.
Ele estalou os dedos e a dor agonizante se tornou o mesmo que ser atropelada por uma
carreta. Fui incapaz de manter meu corpo em pé, então caí no chão, curvada sobre meu próprio
corpo e sentindo minha cabeça prestes a explodir.
Meus dedos agarraram minha cabeça, fincando-se na pele enquanto um grito estridente
deixou minha garganta.
— Pa-re!
O Destino não se moveu, de onde estava parado me observando com atenção.
— Aceite as memórias, Alyssa. Não lute contra isso.
— É óbvio que as aceito. Eu quero me lembrar! — eu gritei.
— Quer mesmo? Porque eu acho que sua alma sabe que será destruída pelas memórias e
está tentando barrá-las. Você está tentando impedir suas memórias de voltar. Por isso está
doendo, porque elas estão lutando.
— Por que — arfei — eu faria isso? E-eu quero me lembrar!
Ele pisou forte, e eu quase pude sentir o chão tremer, enquanto ele se aproximava e parava
a menos de um metro de distância.
— Então lembre-se!
A dor rasgou pelo meu corpo, minha alma e minha mente. Era como ser rasgada ao meio e
então remendada. E quando as imagens do passado me atingiram, tudo o que eu podia fazer era
gritar. Era muito. Era uma vida de memórias.
Meu nome era Alyssa Monroe.
Meus pais se chamavam Jasmine e Henry Monroe.
Nathan era meu melhor amigo. E eu era apaixonada nele, mas me fizeram esquecer disso.
Nós dois. Nós dois esquecemos.
E então eu voltei para o Lago. Minha casa... minha casa ficava no Lago. E o Outro Lado
também estava lá. E minha mãe era uma Protetora, mas meu pai era humano. E eu... eu era uma
Fidly, assim como a mãe de Nathan, quem vi algumas vezes desde que descobri quem eu era de
verdade.
E eu tinha amigos. Serena sempre me fazia rir e Roman me fazia enxergar a mim mesma
de um modo melhor. E eu tinha um primo, Jonnah, que havia se tornado uma bela surpresa. E
Jasper era o Protetor que me treinava, e apesar dele não dizer, eu tinha certeza de que se
importava de verdade comigo.
Havia aqueles que eu não suportava, como Ravenna e Akantha, que por algum infortúnio
do Destino era a minha avó. Mas em compensação eu também havia sido surpreendida por
Aisha, que era mais do que apenas uma Guardiã, mas uma alma iluminada.
E Zeus era o cachorro de Nathan, que nós dois havíamos resgatado da floresta.
Eu e Nathan havíamos dançado sob a luz da lua, em uma Noite de Luz. E nós éramos
predestinados, tínhamos um elo de almas e eu amava isso. Amava ele.
E em um dia de iniciação, onde Protetores comemoravam sua “maioridade" dentro da
sociedade Protetora, o Outro Lado — seu refúgio — foi atacado por Vicenzo. Tudo isso porque
eu estava lá. Tudo porque ele me queria e eu havia me escondido.
E...
— Ah! — eu gritei em agonia.
A dor agora parecia rasgar minha alma e não haveria remendo para esse rasgo.
— Lembre-se, Alyssa. Precisa se lembrar o porquê de estar aqui, o porquê precisa cumprir
a profecia e matar Vicenzo, não importa o preço.
Não.
Não, não, não.
Eu gritei mais, arranhando minha própria pele, implorando ao Destino para me deixar em
paz.
E...
Não. Não quero lembrar.
Não.
Não quero.
Não quero
Não.
E... E meu pai... Meu pai... Meu pai foi morto. Vicenzo o matou.
— Por favor — eu implorei. — Não.
A imagem em minha cabeça se fez clara, e eu via a cena como se estivesse acontecendo
agora mesmo.
Vicenzo quebrou o pescoço do meu pai, que tentava me proteger.
Minha mãe ainda gritava em minha cabeça e eu queria furar meus ouvidos.
Chega. Chega. Chega.
Eu chorei. Eu implorei.
Eu me rendi. Deixei Nathan que rugia por mim. Deixei minha mãe. Deixei meus amigos e
as pessoas que esperavam que eu as salvasse.
Eu deixei o corpo do meu pai para trás.
Meu pai.
Meu pai.
Oh, Deus, meu pai! Eu sentia sua morte como se ela acontecesse de novo e de novo e de
novo em minha mente. Sentia sua alma deixar esse mundo e seu corpo se tornar frio naquele
chão ensanguentado.
Eu sentia tanta dor.
O Destino tocou meus ombros, e eu gritei. Seus dedos apertaram minha pele e ele pediu
que eu me concentrasse.
— Você precisa cumprir a profecia.
Eu o empurrei com tanto ódio que, sendo o Destino ou não, seu corpo foi arremessado para
longe.
— Você devia ter interferido! — gritei.
Ele se levantou e voltou a se aproximar lentamente.
— Havia chegado a hora de Henry.
— Mentira!
— Todos devem morrer em algum momento.
Talvez. Mas quando estivessem velhinhos. Pessoas como meu pai deviam viver vidas
longas, seguras e confortáveis. Ele devia ter morrido aos cem anos, dormindo, depois de tomar
uma boa xícara de chá e de ter lido a última página de um livro.
— Vai pro inferno.
— Veja o que pode fazer. Veja o que estou te dando, Alyssa — o Destino argumentou. —
Estou te dando poder, força. Você pode matar Vicenzo, pode vingar seu pai.
Meu pai morria repetidamente em minha mente e eu mordi os lábios para não voltar a
gritar. Aquilo era tortura. Me lembrar era tortura.
— Quero sair daqui — eu exigi. — Quero voltar a ter controle do meu corpo.
— Você o terá, assim que a transformação estiver pronta — disse. — Mas você entende o
que precisa fazer, Alyssa? Entende que preciso que o faça imediatamente? Vingue seu pai.
Vingue as outras Fidlys que morreram nas mãos de Vicenzo.
Eu não sabia que tinha força o suficiente até conseguir me colocar de pé. Eu andei até o
Destino, os punhos cerrados e o rasgo permanente em minha alma causando uma dor que eu
nunca pensei que sentiria.
— Escute o que vou dizer — avisei. — Eu não me importo com o que você quer. Não dou
a mínima para essa porcaria de balança. E o que quer que eu faça em seguida, eu quero que você
saiba que não estou fazendo para satisfazer seu ego ridículo e seus objetivos egoístas. Você
deveria resolver suas próprias guerras ao invés de colocar crianças para batalhá-las por você. As
Fidlys mortas? Elas são sua culpa. Espero que pesem em sua consciência. E meu pai? Meu pai
morreu porque você me usou como seu peão e permitiu que Vicenzo vivesse mais um dia de sua
vida imortal miserável. É sua culpa, oh grande ser poderoso. Para a porcaria de um escritor da
vida, você não é nada mais que um covarde desprezível. E estou farta de você.
Fechei os olhos, focada em me tirar daquela porcaria de realidade alternativa. Não escutei
suas próximas palavras. Visualizei meu corpo. Visualizei meu poder sobre ele.
E quando abri meus olhos de verdade, a primeira coisa que vi foi Nathan. E foi o bastante
para fazer o barulho em minha cabeça cessar por um segundo. Eu o abracei com uma mistura
enlouquecida de saudade, dor e amor.
E enquanto perdia a consciência em seus braços, eu sabia exatamente o que precisava fazer
em seguida.
Parte II, A avalanche
CAPÍTULO 29

Tudo era luz.


Abri meus olhos para um salão iluminado pela luz mais branca que eu já tinha visto. Eu
mal conseguia enxergar as pessoas ao meu redor, mas eu sabia que haviam muitas. Baixei meus
olhos para meu braço — onde eu havia sentido tanta dor em meu momento desacordada e
delirando com o Destino — e, agora, toda minha pele estava marcada por desenhos e arabescos
arcaicos. As linhas negras eram relativamente finas, mas diferente daquelas que marcavam o
peito de Nathan, estas eram mais bonitas, menos sombrias. E eu observei alguns desenhos
específicos espalhados, como luas, estrelas, um sol e um triângulo invertido.
Eu havia sido escolhida pelo Destino e, agora, eu era marcada por ele.
Mesmo antes de fazer dezoito anos, quando minha marca era apenas uma sombra em
minha pele, ainda assim representava o que meu destino seria. O que eu me tornaria.
E aquela luz toda... Ela vinha de mim. Minha pele brilhava, minhas mãos pareciam tentar
conter o avanço daquela luz e eu podia sentir a magia zumbir em meu ouvido, aquecer meu
sangue.
Eu era luz.
Mas por que então eu me sentia tão... sombria?
Ergui os olhos para enxergar as pessoas ao meu redor, apertando-os para tentar ultrapassar
aquela névoa de luz que pesava o ar. O primeiro rosto que vi foi o de Vicenzo, sério e duro, com
o olhar de fumaça me escaneando.
Ele havia matado meu pai.
Meu pai estava morto.
Um urro explodiu da minha garganta, e eu me ergui com a destreza de um leopardo e corri
para me jogar contra ele. Ninguém ao nosso redor ao menos teve tempo para reagir. Seu corpo
bateu no chão, embaixo de mim, enquanto eu o sufocava. Desertores começaram a correr em
nossa direção, mas a magia em mim arrebentou como uma onda pesada sobre eles. Vicenzo
tentava afastar minhas mãos dele, mas agora éramos inimigos páreos um para o outro, e eu tinha
a fúria ao meu lado. O sentimento era tão profundo e poderoso que eu o sentia em meu punho
enquanto socava o rosto dele. De novo e de novo e de novo.
Seu rosto sangrava e seus olhos de fumaça pareciam queimar de ódio enquanto ele tentava
conter meus ataques. Eu não parei, mesmo quando ele acertou seu punho no meu estômago.
— Você matou meu pai — eu rugi, socando-o ainda mais forte.
— Sim — ele rosnou de volta —, enquanto ele tentava salvar você.
Eu bloqueei a adaga que ele tentou enfiar nas minhas costelas e forcei sua mão até que ele
a soltasse. A adaga encrustada de pedras que por anos assombrou meus sonhos, caiu no chão
com um estampido que ecoou pelo salão. Eu me estiquei para alcançá-la, mantendo Vicenzo
preso embaixo de mim, mas alguém agarrou meus ombros e tentou me puxar para cima.
Tentei me concentrar no poder, saber como ele funcionava para que eu pudesse usá-lo com
destreza, mas minha cabeça estava enevoada pela dor, raiva e luto. Eu não conseguia me
concentrar. Girei o corpo para afastar quem tentava me puxar, só para ver que era o desgraçado
de Marco. Eu iria matá-lo. Bati em seu braço para que me soltasse, e então eu o vi sendo jogado
do outro lado quando um corpo trombou contra o dele.
— Esse idiota está sempre colocando as mãos em você — Nathan resmungou.
Nathan.
Eu encarei seus olhos azuis e inspirei fundo. Ele estava aqui. Meu Nathan. Ele estava aqui.
— Nate.
— É bom ter você de volta, amor — afirmou.
Vicenzo usou da minha distração para me empurrar de cima dele e se erguer. Eu pulei, me
posicionando para o ataque. Minhas mãos brilharam, a luz ameaçando explodir.
— Pare ela, Nathan — Vicenzo ordenou, os olhos cerrados para mim.
O quê?
Voltei meus olhos para Nathan, as mãos em punho ao lado do corpo, o corpo todo tenso
absorvendo as palavras de Vicenzo. Absorvendo seu comando. Ah, Deus, Nathan havia
desertado. Ele havia feito um juramento de sangue a Vicenzo.
Puta merda.
O controle era literal. Eu tinha visto como funcionava.
— Não — Nathan rosnou.
Vicenzo não tirou os olhos de mim.
— Vamos, Nathan, pare Alyssa. Agora.
Nathan deu um passo em minha direção, mas então parou, parecendo uma estátua, tentando
se manter no lugar.
— Vai se ferrar — ele rosnou.
Eu ataquei. A magia se concentrou em minhas mãos e, com um movimento, disparei a luz
na direção de Vicenzo. Eu observei, boquiaberta, a magia se materializar, deixar de ser apenas
luz e se tornar uma arma. O imortal conseguiu desviar por pouco, mas ela ainda assim conseguiu
cortar seu braço direito, destruindo roupa e rasgando pele. Eu apreciei o sangue encharcando os
retalhos do seu casaco. No fim das contas, ele sangrava como o resto de nós.
Vicenzo sibilou, e lançou uma faca em minha direção, que eu desviei. Normalmente ele se
curava com apenas alguns segundos, mas eu sorri ao ver que o corte causado pela minha magia
continuava ali, e mais sangue fluía.
— Nathan — ele rugiu, o comando claro em sua voz furiosa.
Nathan atacou. Seu olhar mostrava todo seu desespero quando ele tirou a espada do cinto e
a manejou em minha direção. Eu desviei uma e duas vezes.
— Aly, me faça parar!
Trinquei os dentes. Eu não sabia controlar esse poder, não sabia se eu apenas o empurraria
para longe ou se o cortaria no meio.
— Lute contra o comando, Nathan!
No último segundo, quando sua espada estava prestes a cortar meu ombro, ele a desviou
um milímetro, salvando minha pele e a fincando no chão de mármore.
— Eu estou tentando!
Os Desertores corriam para ajudar Vicenzo, que apenas rosnava para que me prendessem.
Eu sabia que Sybil não estava no palácio, e Belius e Mavon nunca ficavam ali sem um convite,
mas ainda assim eu não sabia se poderia parar toda essa horda de Desertores, impedir Nathan de
me decapitar e matar Vicenzo.
Minhas mãos eram rápidas com golpes e explosões de luz. Um dos Desertores que agarrou
meu cabelo, torcendo minha cabeça, acabou perdendo o braço com um dos cortes de luz. Eu
chutei o joelho de um deles e quebrei seu pescoço, mas meu foco continuava em Vicenzo. Eu
estava apenas abrindo caminho para chegar até ele.
De canto de olho, eu vi Nathan lutar contra um Desertor, um dos idiotas que ameaçaram
entrar no banho comigo. Sorri. Agora ele tinha uma distração do comando dado por Vicenzo.
Pelo menos teria algo que o ocupasse até que eu matasse o imortal desgraçado.
De repente, Lore estava bloqueando uma espada que cortaria meu torso. Ela grunhiu contra
o peso da arma, e com uma pequena adaga, esfaqueou o flanco da Desertora que atacava.
— Precisamos sair daqui — ela disse. — Vicenzo irá tentar nos controlar. Se estivermos
mais longe, é mais difícil que ele consiga.
Eu balancei a cabeça.
— Eu vou matá-lo.
Ela chutou a Desertora, que agora tinha outra faca no peito. Seu corpo caiu para trás como
um saco de batatas.
— Ficou louca? Você morre com ele!
Eu sabia disso. E eu não me importava.
Ele havia assassinado milhares de garotas iguais a mim. Havia me perseguido a vida toda.
Havia matado a mãe de Nathan e o feito desertar. Vicenzo havia invadido o santuário dos
Protetores e feito um massacre sobre eles. Havia tirado minhas memórias e me feito agir como
sua cadelinha por meses. E havia matado meu pai.
Eu iria matá-lo agora mesmo e se morrer era a consequência, eu estava disposta a pagar.
Quem sabe o mundo seria um lugar mais seguro para aqueles que eu amava depois que eu
não estivesse mais nele.
A imagem do pescoço quebrado do meu pai me cegava.
Eu precisava matar Vicenzo. Pelo meu pai.
Eu avancei mais entre os Desertores, cortando meu caminho com luz e uma espada
roubada. Aos poucos, eu me aproximava cada vez mais do imortal. Eu podia enxergar seus olhos
de fumaça absorvendo cada passo meu.
— Quero que a prendam agora! Usem as correntes! — ele comandou.
Marco foi o primeiro a correr para as correntes e as jogar sobre mim. Meus braços ficaram
presos e o peso era estranho, como se fosse mais do que apenas ferro.
— Vamos ver como você se sai com as correntes de Belius — o Desertor grunhiu,
forçando o aperto e me laçando como faria com uma presa.
Belius havia criado aquelas correntes. Isso explicava a magia forte sobre elas. Era para
conter outras magias.
A luz à minha volta enfraqueceu. Ao longe eu via Nathan e Lore lutar contra Desertores,
ao mesmo tempo que lutavam contra o comando de Vicenzo. Tentei erguer os braços, mas as
correntes de Belius picaram minha pele. Grunhi de frustração, e Marco puxou mais forte, me
fazendo cair de joelhos. Eu o fuzilei com o olhar. Agarrei a corrente e puxei com força. Marco
não esperava aquela força. Eu havia acabado de esmurrar Vicenzo. Era óbvio que havia ficado
mais forte. Sua burrice era quase cômica. O Desertor precisou fincar os pés no chão e empurrar o
corpo para trás para que não voasse até mim.
— Faça o seu melhor, Marco — provoquei.
Ele não teve tempo de responder. De repente, a magia explodiu, sem aviso, sem comando.
Uma onda se desprendeu de mim, como se por vontade própria, lutando aquela guerra tanto
quanto eu. Marco e os Desertores foram jogados para longe. Olhei para os lados e encontrei Lore
e Nathan também sendo arremessados. Por impulso, estiquei as mãos em suas direções, e a luz os
rodearam como uma almofada e amorteceu a queda.
— Valeu — ouvi Lore murmurar, ficando de pé em seguida.
Tentei arrancar as correntes, mas a porta do salão se abriu e mais Desertores começavam a
preencher o espaço.
— Merda — murmurei, lutando contra aquela merda de corrente idiota.
— Alguém faça a porra do trabalho e a nocauteie logo! — Vicenzo rugiu.
Eu soltei uma risada.
— Medinho já? — Seus olhos de fumaça estavam furiosos. — Eu avisei que te mataria.
Uma Desertora socou meu rosto, me fazendo cair no chão. Chutei seus pés e ela caiu
também. Bloqueei a adaga em suas mãos e forcei a luz a pressionar seu pulso para baixo, em
direção ao próprio abdômen. Ela lutou contra, mas a lâmina perfurou sua pele e um grito escapou
de seus lábios. Arranquei a faca de seu estômago e lancei contra um outro Desertor que se
aproximava pela minha direita.
Matar parecia uma reação química. E eu havia me tornado uma assassina exemplar. Era
resultado da dor, mas também de meses presa nesse palácio.
Vi Nathan e Lore tentando me alcançar, mas haviam muitos Desertores.
— Lore — chamei, mais baixo, não queria que Vicenzo percebesse. Ela me olhou e eu
meneei a cabeça, em direção à porta do salão. — Pegue as coisas.
Ela sabia o que eu queria. Nós havíamos combinado que ela roubaria as coisas de Nathan
assim que tivesse uma chance. A pedra poderia ajudá-los a sair dali. E, enquanto iam embora, eu
terminaria as coisas. Lore me deu um aceno rápido e, antes que Vicenzo a ordenasse ficar, ela
correu porta afora, tentando passar despercebida.
Um Desertor se aproximou sem que eu percebesse, e me deu um soco tão forte que me fez
enxergar pontos pretos por um longo minuto. Então, sua faca foi rápida e eu mal tive tempo de
desviar quando acertou a lâmina no meu abdômen. A faca não chegou a perfurar completamente,
mas fez um corte grande o bastante para me fazer gritar de dor. Trinquei os dentes e fiz a luz
lutar contra as correntes até que o estivesse pressionando em uma avalanche branca ofuscante,
sufocando-o. O Desertor caiu de joelhos e eu o encarei nos olhos enquanto a força da minha luz
tirava o ar de seus pulmões. Ele caiu morto em poucos segundos.
Os Desertores agora formavam uma linha estratégica, à frente de Vicenzo. Nathan se
aproximava de mim e eu podia vê-lo mais controlado agora. Parecia que o comando de Vicenzo
havia se esgotado depois de um tempo.
— Vamos, Vicenzo — chamei, ainda frustrada com aquelas merdas de correntes. — Você
já é um adulto, pare de se esconder atrás de suas marionetes.
Nathan chegou até mim e começou a tirar as correntes.
— Você está se esquecendo quem são minhas marionetes — Vicenzo ameaçou, seus olhos
caindo em Nathan, mas uma das minhas mãos já estava livre e eu a ergui, repetindo a magia de
antes, e fazendo-a prensá-lo com força, até que seus pulmões não pudessem aguentar mais.
Claro, Vicenzo era mais forte que seus Desertores, e por um momento, minha tentativa não
parecia nada mais que um incômodo para ele. Pelo menos isso o impedia de falar e comandar
que Nathan fizesse algo contra mim. Senti o peso das correntes finalmente se soltarem e ergui
minha outra mão, pressionando mais, finalmente sendo capaz de fazê-lo grunhir e lutar contra a
magia branca.
Meu pai está morto por sua causa.
Tudo o que eu enxergava era Vicenzo. Tudo o que eu pensava era em fazer mais. Mais
magia. Mais força. Mais e eu o mataria. Eu sei que podia.
— Alyssa! — ao longe, a voz de Nathan gritou, enquanto lutava contra tantos Desertores
que eu não conseguia contar. Ele estava tentando impedi-los de chegar até mim.
Apertei minhas mãos em punho, e a magia pesou como uma âncora sobre minhas costas.
Era mais do que apenas lutar, era extrair energia do meu centro, do meu âmago. Eu grunhi e a
forcei mais.
— Alyssa, pare! — Nathan gritou de novo.
Algum Desertor havia deixado um corte em seu braço, que o fazia deixar a espada pender
demais. Por apenas um segundo, e apenas em parte, deixei Vicenzo e fiz minha magia empurrá-
los para longe de Nathan.
Quando voltei a me concentrar em Vicenzo, uma adaga já voava e me atingia entre meu
ombro e a clavícula. A dor pareceu atiçar minha magia como se fosse uma cobra ameaçada, e ela
explodiu novamente, fazendo-o se curvar. Ele rugiu, o corpo enorme lutando contra a força da
minha luz.
Nathan agarrou meu rosto, mas eu não tirei meus olhos do desgraçado.
— Alyssa, pare. — Ele puxou a adaga de Vicenzo do meu ombro e pressionou a ferida. —
Pare agora. Você está forçando demais.
Senti seus polegares limparem um rastro de sangue sob meu nariz que eu mal havia
percebido. Empurrei minha cabeça para longe de suas mãos e fiz com que a magia o afastasse,
como se criasse uma barreira invisível entre nós, mas brilhosa.
Aquilo era interessante.
Pena que eu não teria tempo de descobrir todas as façanhas daquele “presente” do Destino.
Nathan começou a bater contra a parede de luz. Ele gritava, mas eu o bloqueei, não iria
ouvir. Não podia ouvir. Se eu o escutasse, se ao menos olhasse em seus olhos, eu perderia a
coragem de me vingar.

Meu pai caiu, o pescoço quebrado, os olhos inertes.


Meu pai.
Vicenzo havia matado o homem que guardava meu sono quando eu tinha pesadelos. O
homem que havia me ensinado a gostar da leitura e a sonhar em voar. O homem que via
esperança em mim. Meu pai. O homem que havia me amado tanto que se certificou que eu nunca
aceitasse amor menor. O homem que merecia mais.
Meu pai morria repetidamente em minha memória. Eu ouvia o grito da minha mãe como se
estivesse tendo a alma rasgada ao meio. E eu o via sem vida.
A memória era tão forte que fazia as lágrimas escorrerem pelos meus olhos.
— Ah, coitadinha da pequena Fidly. — Vicenzo forçou a voz a sair, apesar de estar
sufocando em magia. — Vai se matar por vingança.
Eu rosnei.
Aquilo não parecia estar funcionando. Eu o estava contendo, mas ele não estava morrendo.
Deveria ser de outra forma.
Os Desertores já haviam se recuperado — pelo menos os que ainda estavam vivos — e
voltavam a atacar. Alguns chegavam a conseguir me acertar, mas Nathan logo os tirava de cima
de mim. E eu, em momento algum, permitia que Vicenzo escapasse do meu aperto.
Mas então eu senti a mudança no ar. O leve sussurro de vento soprando minha nuca. E a
presença de cinco indivíduos preencheu o salão, o deixando completamente quieto por um
segundo inteiro.
Eu mal pude acreditar em meus olhos. Eu não esperava vê-los antes de morrer.
— Porra, vocês demoraram! — Nathan resmungou, a espada travada com outra.
Brian cortou o Desertor que ameaçava o filho com apenas um movimento. Não haveria
cura para ele.
Eles haviam vindo.
Eu quase chorei ao avistar Roman. Porque ele estava bem, estava vivo.
Seus olhos pousaram em mim com tanta intensidade, que precisei desviar para manter o
foco. Mas então eu estava encarando Serena, que chorava silenciosamente, me olhando como se
visse um fantasma. Meus amigos. Eu sentia tanta falta deles.
Então vi Jasper empalar um Desertor, mas seus olhos estavam em mim também.
— Olá, menina.
Apesar da dor consumindo minha alma, eu fui capaz de sorrir para ele.
Brian e Nathan lutavam juntos, guardando meu lado direito. Serena e Roman estavam em
sincronia, defendendo minha frente. Jasper parava qualquer um que se aproximasse demais pela
minha esquerda.
Eu tinha Vicenzo em minhas mãos, só precisava descobrir como fazer aquilo. Como matá-
lo.
Mãos frias tocaram as minhas, baixando-as com força. Minha magia tentou se rebelar, mas
ergui minha cabeça para encontrar olhos azuis tão frios quanto as mãos. Eu sentia seu poder
como se fosse uma entidade própria. Sua expressão não demonstrava nada, poderia muito bem
ser feita de mármore, mas então ela falou:
— Não faremos isso, Alyssa.
O quê?
Eu me desconcentrei e a luz se afrouxou. Vicenzo teve força o bastante para dizer, alto e
claro:
— Veio me prestar uma visita, Freya?
Então aquela era Freya.
A voz sedosa de Vicenzo era claramente uma tentativa de manipulação e um resquício de
mágoa mal contida.
Ela não lhe dignou um olhar.
— Você não irá se matar hoje, Alyssa — ela me disse. — Engula seu luto e controle sua
dor. Ele não merece tomar mais do que já tomou.
Eu trinquei os dentes tão forte que poderia tê-los quebrado.
— O que sabe da minha dor? — rosnei.
— Eu sei que perder um membro da família é uma dor cruel, Alyssa. E sei que perder a si
mesma é ainda pior. O que ele fez nesses últimos meses... — ela insistiu. — Quem você foi
durante esse período não define quem você é. Não o deixe pensar o contrário.
— Eu...
Eu não conseguia formular as palavras.
— Você sobreviveu. Não desperdice isso.
A Guardiã esperava que eu compreendesse, os olhos escaneando os meus. Era óbvio que
ela via mais do que eu ali. Estava claramente desconfortável e eu apostava que era por causa da
minha semelhança com Nixya, a mulher com que Vicenzo a havia traído. Mas mesmo assim, ela
apenas esperou.
— Precisamos dar o fora daqui agora — Lore nos comunicou, irrompendo pelas portas
com uma mochila nas costas. — Eles chamaram Sybil e aqueles outros dois estranhos.
Freya não moveu sequer um músculo.
Foi Nathan quem me fez fraquejar.
— Não faça isso comigo, Aly. — Eu não o encarei. Não podia. Eu havia bloqueado
qualquer pensamento meu a respeito de Nathan, porque se pensasse nele, eu me faria parar. Eu
me faria fugir dali e viver escondida apenas para poder viver com ele.
— Estou lutando por você, lembra? — ele insistiu. — Preciso que lute também. Não posso
lutar sozinho.
Engoli em seco.
Vicenzo, pouco a pouco, tomava mais força. Eu o havia cansado, mas ainda era forte
demais para ficar caído por tanto tempo.
— Vamos, Aly — Serena pediu.
Eu podia ver Roman mancar um pouco. Eu não podia fazê-los ficar mais.
— Tire eles daqui — eu disse à Freya.
— Não — Nathan grunhiu, mas eu já estava afastando-os com outra onda de luz, dessa vez
mais fraca. Com eles fora do meu caminho, eu poderia fazer o que tinha para fazer.
Eu devia isso ao meu pai.
Vicenzo riu, encarando a cena com certa satisfação. O desgraçado estava ganhando tempo,
eu sabia.
Fechei os olhos e tentei sentir a magia. Eu podia ouvir meus amigos gritarem meu nome,
mas eu estava imersa demais naquele poder, tentando entendê-lo, compreender seu propósito,
que suas vozes eram como ecos distantes.
Energia.
Luz fluiu de mim, como uma descarga elétrica.
As Guardiãs acham que para matar Vicenzo, você terá que usar toda sua força. Para
suprimir a força dele e, então, conseguir dar o golpe final, você terá que utilizar até a última
gota de seu poder e energia — Ravenna havia dito.
Eu precisava absorver tudo. Tudo o que eu era devia ceder àquele poder, e então eu poderia
matar Vicenzo.
— Eu sinto muito — sussurrei e, então, comecei.
Senti o poder se alastrar em meu sangue e tomar meu corpo como seu. Afinal, o poder não
era meu. Não. Eu era dele.
O ar zumbiu ao meu lado e eu senti quando Freya me agarrou, passando os braços ao meu
redor.
— Hoje não. Eu fiz uma promessa ao garoto — ela disse.
À minha volta, mãos me tocaram. Nathan agarrou minha mão direita, enquanto Freya ainda
me segurava por trás. Serena pegou a minha mão esquerda. Jasper e Brian tocaram meus ombros.
Roman pegou a mão de Serena. Eu peguei o olhar que Nathan me lançou, antes de agarrar a mão
de Lore.
Então tudo desapareceu.
CAPÍTULO 30

Quando abri os olhos e aquela sensação estranha de ser teletransportado cessou, percebi
que estávamos em um campo rodeado por árvores de troncos retorcidos. O sol brilhava, e o
cansaço da noite em claro e uma manhã agitada já pesava meus ombros. Uma montanha se
erguia ao longe e eu podia apostar que estávamos perto do mar.
As mãos de Alyssa estavam frias nas minhas.
— Todos aqui? — Freya perguntou e, finalmente, todos pareceram acordar, fitando a
natureza à nossa volta.
Alyssa pulou para longe, apontando o dedo para Freya.
— Por que fez isso? — gritou. — Eu o tinha em minhas mãos! Eu teria acabado com ele!
Eu não podia acreditar nela. Alyssa ia se matar. Ela não pararia até que Vicenzo estivesse
morto e, consequentemente, ela também. Nem mesmo pareceu se lembrar da minha existência,
ou da dos amigos, ou mesmo da mãe.
— Eu avisei que não faríamos aquilo hoje — Freya respondeu, daquele modo distante dela.
— Nós? — ela gritou mais. — Era meu trabalho. Você nem ao menos conseguiu mantê-lo
preso!
— Alyssa, você iria acabar se matando — Serena interrompeu apontando o óbvio, meio
que esperando que Alyssa compreendesse. Mas Aly sabia. Ela sempre soube. Ela só não se
importava.
Eu não disse nada.
— Aquele desgraçado vai continuar nos atormentando agora, porque você me parou! Esta
guerra precisa acabar!
— Não a este preço! — Roman rebateu. — Nathan, diga alguma coisa!
Eu não disse.
— Alyssa, você não está raciocinando. Precisa pensar em voltar para casa, para a sua mãe
— Jasper golpeou, com a única coisa que ainda poderia surtir efeito. — Ela precisa de você
agora.
— Ela perdeu meu pai por causa de mim! — Aly rebateu e luz arrebentou, nos deixando
cegos.
— Alyssa, você precisa se controlar! — Freya gritou. — Se não controlar seu poder, ele irá
consumir você!
— Pare de gritar! — ela berrou de volta.
Porra. Isso estava saindo do controle.
Aly caiu de joelhos, as mãos tapando os ouvidos. Luz saiu como um raio em direção ao
céu.
— Alyssa, respire fundo — Lorena falou pela primeira vez, quase receosa de chamar
atenção para si. Era esperto da parte dela, afinal ela estava rodeada de Protetores.
Porque ela era uma Desertora. Assim como eu.
Respirei fundo.
Isso só iria piorar.
— Nathan, faça alguma coisa! — Serena pediu.
Eu engoli meu ressentimento e caminhei até Alyssa. Ajoelhei à sua frente e toquei seus
ombros, um deles ainda tinha a marca que a adaga de Vicenzo deixou, o sangue começando a
coagular.
— Respire fundo, Aly — eu sussurrei. — Escute a minha voz e respire fundo.
Seus olhos encontraram os meus pela primeira vez desde que ela decidiu que se
sacrificaria. O primeiro momento, de verdade, que tivemos desde que ela voltou de sua
transformação com as teorias intactas. Eu não estava preparado para lidar com a dor estampada
neles. Aquilo era como um soco no estômago.
— E-eu não con-sigo.
Toquei seu rosto e puxei sua mão para meu peito.
— Respire comigo — pedi e inspirei fundo. — Sinta meu coração desacelerando e respire
quando eu respirar. Vamos.
Lágrimas escorreram de seus olhos e a luz ainda emanava forte dela. Suas mãos ainda
estavam carregadas de magia e parecia esquentar minha pele.
— Vamos, amor. Me ajude a lutar por você.
Ela soltou uma respiração irregular e as lágrimas escorreram mais. Alyssa não tirou os
olhos dos meus enquanto se forçava a inspirar fundo, em compasso comigo.
— Tá doendo — ela soltou, em meio a uma expiração.
— Eu sei — sussurrei de volta.
Ela tinha perdido meses para lidar com aquele luto. A dor daquele último dia no Outro
Lado a estava atacando de uma só vez agora. E, ainda, havia todo aquele tempo em que ela havia
vivido sem memórias, sendo manipulada por Vicenzo, obrigada a agir como outra pessoa.
Nós respiramos juntos pelo que pareceu uma eternidade. A luz dela se recusava a cessar,
mas com o tempo pareceu se cansar de seu estado ameaçador, e aos poucos se tornou apenas um
brilho ao seu redor.
— Eu sinto muito, Nate. — Sua voz era tão baixa que eu precisei me esforçar para escutá-
la.
— Está tudo bem.
Ela negou com a cabeça.
— Meu pai morreu — ela disse. — E eu fiz coisas horríveis por Vicenzo.
Eu afaguei seu rosto.
— Todos nós fizemos coisas terríveis.
Percepção brilhou em seus olhos e uma nova onda de tristeza pareceu engoli-la.
— Nathan...
Eu a calei com um selinho casto.
— Respira, amor.
Ela obedeceu e, depois de mais alguns minutos, Alyssa pareceu no controle novamente.
Então ela chorou.

O choro dela estava me quebrando. Me partindo ao meio. Era tão doído que eu o sentia em
mim. Ela havia perdido o pai, mas também havia perdido a si mesma por meses.
Serena a abraçou e todos os outros chegaram mais perto, como se preparados para consolá-
la se assim fosse preciso. Até mesmo Freya pareceu se compadecer da situação. No entanto,
ninguém realmente fez nada, não ousamos interromper. Ela precisava disso. Precisava sentir até
que pudesse colocar aquela dor em uma caixa dentro de si. Alyssa precisava passar pelo luto.
Por vezes, precisei respirar fundo para não cair em lágrimas junto com ela. Outras vezes,
eu ouvia Jasper engolir em seco, ou via Roman desviar o olhar. Meu pai nem ousava encará-la. O
único ali que parecia, talvez, compreender a dor de Alyssa como se fosse um pedaço inevitável
da vida, era Freya. Ela aguardou pacientemente, sem dizer uma palavra. Eu a observei por um
instante, apenas por curiosidade, e vi seus olhos azuis — normalmente frios — afogados em
memórias distantes.
Então eu senti a nova presença como se fosse uma lufada de ar fresco em um dia quente.
Aquele poder reconfortante fluiu pelo campo como se fosse uma coberta pesada. Até Alyssa
pareceu inspirar fundo em meio a um soluço.
Ergui os olhos para encontrar Aisha caminhando até nós.
— Desculpe chegar sem aviso prévio, Aisha. Não tivemos tempo — Freya se adiantou.
Aisha apenas sorriu.
— Não há motivo para desculpas, irmã. Você é sempre bem-vinda em minha casa. —
Aisha pegou Freya em um abraço apertado. — Eu senti sua falta.
Freya demorou alguns instantes antes de devolver o abraço. Quando se afastaram, não era
possível ler nada na expressão da italiana.
— Como pode ver, a Fidly esteve viva esse tempo todo.
Aisha assentiu.
— Sim, sim. Foi uma surpresa feliz quando me contou o que Nathan havia descoberto em
Florença, apesar das circunstâncias. — Ela caminhou até Alyssa e todos, menos eu, abriram
espaço para a Guardiã, depois de lhe darem um aceno respeitoso. Eu não me movi. As mãos de
Aly estavam agarradas às minhas. — Oh, minha criança. — Seus dedos tocaram o cabelo de Aly.
— Esta dor não é eterna, querida.
Aly ergueu os olhos para ela, desespero estampado em sua expressão.
— Faça parar. — Não foi bem um pedido. — Me faça parar de chorar. Eu não consigo. —
Aly parecia irritada consigo mesma.
Aisha assentiu, e sua mão sobre o ombro de Alyssa se iluminou daquela luz quente e
amarelada.
— Você é mais forte do que imagina, Alyssa. — Então seus olhos pousaram em mim, e
uma pontada de preocupação se expôs quando ela encarou meu peito. Ela sabia. Sabia o que eu
havia feito. — Resolveremos tudo isso — ela assegurou.
Finalmente, o choro cessou. Alyssa pareceu exultante ao conseguir se controlar o bastante
para conter as lágrimas. Seus olhos encontraram os de Aisha tão agradecidos que ela não
precisava usar palavras.
Eu me levantei, puxando Aly comigo.
— Sejam bem-vindos a Quirimbas.
Moçambique. Então Freya havia nos trazido para a terra de Aisha. Estávamos na África.
Pelo que eu sabia e podia ver, Quirimbas era uma ilha. Ali estava consideravelmente mais quente
que em Florença, mas aquela umidade e o cheirinho de mar me pareceram bom demais para ser
verdade.
— Eu sempre quis conhecer a sua sede aqui. Dizem ser muito bonita — Serena comentou.
O sorriso de Aisha cresceu mais.
— Modéstia parte, este lugar é um pedaço do paraíso.
— Temos coisas importantes para resolver antes de apreciar a localização — Brian cortou,
seco.
Eu me virei para encontrá-lo fuzilando Lorena.
E vamos lá.
Alyssa se adiantou:
— Ela é minha amiga.
As caretas de todos ali poderiam ser cômicas.
— Ela é uma Desertora — meu pai apontou, sem paciência.
— E Gaia era uma Protetora — Aly rebateu. — Uma marca ou uma tatuagem não são tão
diferentes assim.
Eu não me atrevi a falar. Logo eles perceberiam sozinhos. Só não haviam percebido ainda
porque estavam dispersos demais com a luta e, então, com Alyssa. Além disso, o cheiro de
Lorena mascarava o meu.
— Não podemos levar uma Desertora para o território dos Protetores, Aly — Roman disse.
— Principalmente não depois do que aconteceu.
— E se pensa que a garota é sua amiga, espere até Vicenzo puxar as cordinhas e ela fazer
exatamente o que ele quer — Jasper completou, os olhos fuzilando a Desertora.
Para o crédito de Lorena, ela não disse nada. Absorveu os insultos e as acusações e se
manteve quieta.
— Eu confio nela — Aly insistiu.
Brian cerrou os olhos.
— Está brincando?
Aly apenas o encarou de volta.
— Não vamos levar uma Desertora conosco — meu pai reafirmou.
Inspirei fundo.
O inferno vai queimar agora. Que grande merda.
— Então temos um problema, pai — eu comecei. Os olhos de Aly pularam para mim,
preocupados. — Um problema grande.
— Do que você está falan...
Puxei a gola da minha camiseta um pouco para baixo. O silêncio de repente pareceu gritar.
Todos me encararam com completa descrença.
— Eu desertei.
— Você o quê?! — Jasper rosnou.
— Ah, não. — Serena balançou a cabeça repetidamente.
— Que porra? — Roman soltou.
Apenas Brian me encarou em completo silêncio.
— Eu precisei desertar — expliquei. — Vicenzo me forçou ameaçando Alyssa.
Por um instante, ninguém falou nada.
Alyssa enroscou seus dedos nos meus e apertou minha mão, em um sinal de
companheirismo. Ela estava ali — ela queria dizer. Eu me perguntava como ela esperava estar ali
agora, comigo, quando tinha decidido se matar momentos antes.
Aly foi a primeira a cortar o silêncio:
— Vamos encontrar um jeito de quebrar o juramento.
Todos ali pareciam descrentes quanto a isso.
— No que você estava pensando?! — Jasper finalmente soltou, frustrado, e eu não soube o
que responder.
Todos ali haviam perdido algo para os Desertores e Vicenzo. Meu pai havia perdido minha
mãe. Jasper perdeu a filha. Roman perdeu os pais. Serena viu sua avó ser assassinada por
Desertores quando ela ainda era apenas uma criança. Alyssa perdeu o pai.
Eu não era capaz de encará-los.
Não importava que eu estivesse no controle agora. Durante a luta, eu ataquei Alyssa
porque Vicenzo havia ordenado. Esse controle era algo subjetivo e eu poderia perdê-lo a
qualquer momento. Quem sabe, se Vicenzo se concentrasse o bastante, pudesse me ordenar
mesmo à distância.
— Ele estava me protegendo — Alyssa retrucou, impaciente. — Nathan não queria isso
também.
Serena foi a primeira a tentar uma solução. Ela se virou para as Guardiãs, e questionou:
— Vocês podem fazer alguma coisa? Quebrar o juramento?
Freya não respondeu, apesar de ter os olhos frios sobre mim.
— Nunca tentamos — Aisha respondeu. — Mas pode ser possível. Sempre há uma saída.
— Não há saída para isso — meu pai cortou.
Eu finalmente o encarei. Havia dor e raiva em seu olhar, mas o que mais se sobressaía era a
repulsa. Brian estava enojado pelo que via agora. Seus olhos me esquadrinharam como teria feito
com qualquer ameaça em potencial. Eu não queria que aquilo tivesse doído tanto quanto doeu.
— Tem que ter — Jasper murmurou, os olhos tristes em mim.
Engoli em seco, e então me virei para Aisha.
— Eu entendo se não quiser que eu siga vocês até a sede dos Protetores. Eu e Lorena
podemos ficar longe o bastante para não perturbar ninguém.
Aly começou a protestar, mas Aisha a interrompeu:
— Me responda uma coisa, Nathan: com quem está sua lealdade? Não quero saber sobre o
juramento ou o controle que Vicenzo pode exercer. Quero saber sobre a lealdade em seu coração.
Com quem ela está?
Eu não hesitei em responder:
— Minha lealdade está em Alyssa.
Eu sabia que provavelmente deveria ter respondido que eu era leal à causa, aos Protetores,
às Guardiãs e ao Destino. Essa seria a resposta correta, mas eu não mentiria para Aisha. A
mulher havia me mostrado ter mais decência e compaixão dentro de si do que eu teria apostado
ser possível, e sabia que ela não tomaria minha resposta como um afronte, mas poderia caso eu
mentisse. E aquela era a minha verdade. Protetores estavam envenenando a causa com suas
hierarquias antiquadas, e o Destino podia muito bem explodir pelo que eu me importava. Mas
fosse aqui ou no inferno, eu seguiria Alyssa. Eu acreditava nela e lutaria por ela. Sabia que,
assim que Aly voltasse a si, seria uma líder melhor do que qualquer um havia sido antes,
justamente porque ela se importava, porque odiava injustiças e repudiava aquela guerra eterna.
Eu seguiria Alyssa, como Protetor, Desertor ou o que quer que fosse. E essa era a minha
verdade.
É claro que eu lutaria pelos meus amigos também, agora que eu os tinha. Roman, Serena e
Jonnah haviam se tornado meus amigos também. Jasper havia sido meu modelo de guerreiro por
anos, cuidou e me treinou como se fosse sangue do seu sangue. Jasmine havia me dado um
ombro para chorar quando eu ainda era apenas uma criança que não tinha a mãe para ser
consolado. Mesmo Brian, que agora me encarava com desconfiança. Independentemente de tudo,
eu ainda não poderia virar as costas para ele, não de verdade. Essas pessoas também receberiam
minha lealdade.
— Eu acredito em você, querido. — Aisha me deu um sorriso. — Este juramento não
quebrou sua alma, Nathan, e não irá, enquanto lutar contra ele, enquanto mantiver sua lealdade
onde ela deve estar.
— Ele pode perder o controle a qualquer momento — Brian apontou. — Devíamos
prendê-los até que encontremos uma forma de resolver a situação.
Um rosnado animalesco saiu de Alyssa e seu poder serpenteou para fora, como uma naja
aguardando para atacar.
— Ninguém irá prendê-lo.
— Também não vejo necessidade para isso — Freya se intrometeu. — O garoto se arriscou
para salvar a Fidly e, mesmo com o juramento, lutou contra Vicenzo. Ele entrou sozinho em
Florença e ficou lá, mesmo tendo como fugir, por causa dela. Eu sei que muitos Protetores não
teriam feito isso. — Seus olhos caíram em Brian. — Você deve saber como é ser predestinado a
alguém, portanto deve ter consciência de que Nathan não irá ferir Alyssa. Ou, no mínimo, lutará
contra qualquer ordem que possa machucá-la.
— E ele lutou — Lore me defendeu para minha surpresa. — Vicenzo deu ordens claras
para que Nathan parasse Alyssa e ele fez tudo que podia para não atender a ordem.
Serena observou Lore com mais atenção, a sobrancelha arqueada e os olhos cerrados.
— E você também, certo? Você ajudou Alyssa a fugir.
Lore apenas assentiu, mas não abriu a boca para se defender. Eu não acreditaria que ela
realmente tivesse se arrependido de não ter contado a verdade para Alyssa antes, se eu não
estivesse vendo a vergonha estampada em seu rosto agora. E culpa.
— Entrarei em contato com minhas irmãs e buscaremos um meio de quebrar o juramento
de sangue — Aisha afirmou, convicta. — Já devíamos ter buscado uma alternativa menos
sangrenta para esse problema há muito tempo. Não concordam?
Os Protetores apenas encararam a Guardiã. Aisha tinha os olhos esperançosos, a
expectativa de que entenderiam e aceitariam seu argumento.
Brian não me deu um único olhar. Jasper me encarava como eu imaginava que um pai
preocupado encararia o futuro obscuro do filho. Serena era quem parecia mais perto da aceitação.
E Roman... Roman encarava Alyssa.
— Você dizia que o mundo não era preto e branco. Sempre se questionou se não havia uma
saída para os Desertores, um modo de trazê-los de volta para o nosso lado — disse. — Acredita
mesmo nisso ou está se enganando porque o ama?
Alyssa o encarou de volta.
— Acredito mesmo nisso, Roman.
— Então confio em você — respondeu , então voltando seus olhos para mim. — Se tem
alguém capaz de te tirar do fundo do poço, seu grande idiota impulsivo, esse alguém é Alyssa.
CAPÍTULO 31

Eu caminhei atrás de Aisha, observando seu vestido branco balançar com o vento, e seus
pés descalços afundarem na grama, enquanto sentia o sol quente aquecer minha pele e me
concentrava em não permitir que a luz explodisse para fora novamente.
O problema era que eu parecia cada vez mais perto de implodir.
Eu estava tentando não pensar. Fazia meu cérebro mudar de percurso sempre que ele
começava a caminhar em direção às memórias do meu pai. Eu não podia pensar nele agora,
porque tinha medo de que destruiria tudo ao meu redor com a dor e a raiva. Freya estava certa,
eu não sabia controlar meu poder, e isso era perigoso.
Mas a dor estava ali, como se fosse uma ferida que ainda sangrava. E muito.
Para piorar, eu podia sentir que Nathan estava com os nervos à flor da pele. Estava sendo
julgado por algo que ele mesmo se julgava por ter feito. E neste momento, apesar de andarmos
lado a lado, ele não tinha baixado o olhar para mim nem por um segundo.
— Quirimbas é uma ilha e há um tempo os humanos marcaram estas terras como um
arquipélago — Aisha contou, enquanto caminhávamos para a sede dos Protetores. — Isso ajudou
a conter o fluxo de pessoas indo e vindo, além de ter preservado a natureza do local. São mais de
trinta ilhas ao nosso redor. — Ela meneou para extensão azul que agora víamos. O mar. — Estas
terras são de beleza única, meus queridos.
— Você nasceu aqui? — Serena perguntou.
O sorriso que Aisha abriu era de puro orgulho.
— Há muitos anos, essas terras eram de uma tribo muito poderosa. Eu fazia parte desta
tribo. O Destino me encontrou bem ali — ela apontou para um ponto na areia, próximo a onde as
ondas quebravam —, e me abençoou como sua Guardiã.
— O que aconteceu com sua tribo? — Lore perguntou, a voz incerta, como se não
soubesse que tinha permissão para falar.
Os olhos da Guardiã africana se tornaram mais nostálgicos.
— Ainda há um pequeno grupo aqui, comparado ao passado. Eles vivem comigo. Mas
muitos pereceram em um ataque pouco depois de eu ter sido abençoada. — Ela não permitiu que
a tristeza lhe trouxesse melancolia, então completou: — Hoje em dia tenho meus acólitos, que
compartilham do dom que um dia eu tive.
— Como assim? — me peguei questionando.
Aisha pareceu contente com a minha curiosidade.
— Eu fui uma jovem dotada antes de ser abençoada pelo Destino, querida. Ainda muito
pequena, a mulher que me deu à luz foi embora e, pouco depois, meu pai foi morto em um
conflito de tribos, que era bem comum naquele período de disputa de terras — contou. — O
povo de minha tribo dizia que eu havia sido beijada pela mãe natureza e, por isso, era capaz de
ajudar na cura de nossos enfermos. A curandeira de minha tribo que me deu um lar e cuidou de
mim quando me tornei órfã, me ajudou a manejar o dom que a natureza havia me dado.
— Aisha é a única de nós que já possuía seu dom antes de ser abençoada pelo Destino —
Freya ressaltou. — O Destino a escolheu justamente por isso. — Então ela deu um sorriso tímido
para a outra Guardiã. — E pelo seu coração de ouro também, claro.
Aisha sorriu ainda mais, como se aquele mero elogio fosse como um abraço apertado.
— Ah, irmã, este é um dom de todas nós.
Freya claramente discordava, mas não disse nada. Por um instante, me perguntei se ela ao
menos sentia que ainda tinha um coração.
— Por que vocês aceitaram ser abençoadas? Imagino que tivessem uma escolha, não é? —
Roman questionou, genuinamente curioso.
— Eu tinha o dom da cura antes de ser abençoada, mas não tinha a magia. Minha cura
antes era bem mais simplória, como um instinto do que fazer para lutar contra uma doença, ou
um sexto sentido para descobrir enfermidades. Não era como a minha magia hoje. Era bem mais
trabalhosa e mais crua — explicou. — Eu estava farta de não ser o suficiente para curar meu
povo. Eu era capaz de curar machucados e retardar doenças, mas nunca conseguia fazer curas
mais profundas, principalmente aquela dor em suas mentes. Quando o Destino me encontrou e
me fez a proposta, eu aceitei porque eu queria poder fazer mais pelo meu povo, não só os de
Quirimbas, mas também pelos meus vizinhos vivendo em mazelas pelas terras desse continente.
Um sorriso involuntário brincou em meus lábios.
Eu sempre gostei de Aisha, desde o primeiro momento que a conheci, mas saber um pouco
de sua história me fez gostar dela ainda mais. A mulher tinha o coração puro, e não porque havia
sido protegida de todas as tristezas e infortúnios desse mundo, mas porque havia protegido seu
coração daquela escuridão amarga.
No fundo, eu queria ser um pouco como ela.
Os amigos esperaram Freya contar a sua história também, mas ela apenas disse:
— Eu não tive outra opção.
E foi isso. A Guardiã não disse mais nada, e ninguém ali ousou buscar por mais
informações, quando estava claro que ela não queria falar sobre o assunto. Seguimos em silêncio
até que Aisha parou em frente a uma rocha alta e larga, que se erguia acima de todos nós.
Era literalmente uma rocha disposta no meio das dunas de areia. Tinha mais ou menos um
metro e meio de largura e dois e meio de altura.
— Chegamos — Aisha declarou.
Nós a observamos caminhar até a pedra e colocar suas mãos sobre ela, até que a luz
amarelada aquecesse a rocha. Demorou apenas um segundo, e então a sede estava se
materializando à nossa frente.
— Diferente do Outro Lado, minha sede não está em uma subdimensão, mas apenas velada
por uma realidade paralela — disse. — Assim que atravessarmos, o véu volta para o lugar e
esconde o lugar.
— O que eu e Lore precisamos fazer? — Nathan perguntou.
— Nada. Vocês são meus convidados.
Então ela atravessou.
Aisha não passou pelas laterais da rocha, como eu imaginei que faria. Apesar de podermos
enxergar o leve brilho da sede de Protetores, a parede de proteção ainda estava ali. Aisha, então,
passou pela rocha. Suas mãos afundaram primeiro, e então seu corpo seguiu. Freya deu um
aceno para que a seguíssemos, então um a um, meus amigos entraram. Brian, Jasper, Serena,
Roman e Lore. Nathan me olhou pela primeira vez desde que estava sendo discutido sua nova...
situação. Ele parecia incerto, mas lhe dei um aperto de mão e fui em frente.
A rocha me engoliu como a água fazia quando atravessávamos para o Outro Lado.
Nathan surgiu logo depois de mim e eu peguei sua mão quando ele hesitou. Nós demos
apenas meia dúzia de passos antes de eu estancar no lugar. Serena e Roman se aproximaram,
cercando-me como se fossem meus guarda-costas. À nossa frente, diversos Protetores, incluindo
crianças, estavam parados nos aguardando.
O escrutínio não era nada velado, e estava claro que estavam inquietos me observando.
Algumas crianças apontavam para os desenhos que agora cobriam minha mão e braço direito.
Então, como se combinado, todos se ajoelharam. Suas cabeças estavam baixas, olhos
encarando o chão, mas estava óbvio que faziam aquilo como uma saudação para mim. O poder
em minhas veias serpenteou, como se por vontade própria, seu ego agradecido pelo espetáculo.
Eu não consegui conter quando a luz caminhou para fora e minhas mãos se abriram para abrigá-
las. Meus dedos se encheram de pequenas serpentes de luzes que subiam para meus pulsos. As
cabeças se ergueram e queixos caíram. Os murmúrios aumentaram e as crianças comemoraram
como se eu fosse uma de suas ídolas. Uma garotinha pequenina ergueu os olhos admirados para
mim e soltou uma risadinha embasbacada, parecendo amar ver aquele poder em minhas mãos.
— Por favor, se levantem — eu pedi.
A mera visão de crianças ajoelhadas e alguns poucos Protetores mais velhos também com
os joelhos mais fracos no chão fazia meu estômago embrulhar. Eu não merecia tudo isso, nem
mesmo havia cumprido a profecia ainda.
Um homem jovem se ergueu primeiro, caminhando até nós com um sorriso satisfeito no
rosto. Sua pele de ébano reluzia de suor, e eu imaginava que ele estivesse treinando os mais
novos, já que parecia estar na casa dos vinte e poucos anos. O cabelo era raspado rente à pele,
mas seus olhos... seus olhos eram como esmeraldas.
— Seja bem vinda, Fidly — saudou. — Meu nome é Akin, sou líder da sede Mahali. É
uma honra receber você aqui.
Ele era enorme, como uma muralha, mas tinha a voz carinhosa como a de um agradável
senhor.
— Obrigada. Por favor, me chame de Alyssa.
Akin assentiu.
— Claro, Alyssa — logo concordou, os olhos passando a inspecionar meu grupo de
amigos. É claro que ele não deixaria passar os dois Desertores. — Vejo que trouxe convidados
interessantes para o nosso lar.
— Estes são Nathan e Lore, Akin — Aisha interferiu. — São meus convidados e não
representam perigo à sede. Juntos trabalharemos para combater Vicenzo.
Akin ainda parecia duvidoso. Ao meu lado, Nathan sustentou seu olhar respeitosamente,
mas com firmeza.
— Mas eles são da horda de Vicenzo.
A Guardiã africana colocou a mão em seu ombro, os olhos travados nas esmeraldas de
Akin. Eles pareciam íntimos. Poderia ser algo mais que a relação respeitosa entre Guardiã e
Protetor?
— Eles ajudaram Alyssa a escapar de Vicenzo. Lutaram pela nossa Fidly, então lutaram
pela nossa causa. Não se deixe enganar por meras marcas.
Atrás dele, Protetores chiaram, as conversas se misturando entre o sentimento de receio e o
de pura desaprovação.
— Eu ainda preferiria manter meu povo protegido de possíveis... rompantes — Akin
argumentou.
— Eu garanto que eles não serão um problema — me adiantei.
Seus olhos de esmeralda me observaram com atenção, então ele apenas assentiu. Akin se
virou para os Protetores que aguardavam o desenrolar da história, e lhes comunicou:
— Estes Desertores estão aqui sob proteção da Fidly, com a benção de nossa Guardiã, e
não serão um problema. Entendido?
Os Protetores não pareceram entender. As vozes se ergueram mais e o tumulto virou um
inferno. Eles debatiam entre si e com o líder, e lançavam argumentos um tanto quanto furiosos.
“Desertores mataram meus pais.” “Desertores invadiram o Outro Lado e aniquilaram inúmeros
de nossos irmãos.” “Não podemos aceitar estes traidores em nossas terras sagradas.” E por aí
vai. Os argumentos eram infinitos.
Os Protetores foram ensinados a vida toda que um Desertor era o inimigo
independentemente de quem ele havia sido antes, independentemente do porquê haviam
escolhido desertar. Se é um tio, um pai ou um irmão, isso não importava. Tudo o que viam era a
pessoa por trás, a quem os Desertores haviam jurado lealdade.
Como não eram capazes de ver que o inimigo real era Vicenzo? Como não conseguiam
perceber que havia salvação para muitos dos Desertores?
Eu não era estúpida a ponto de achar que todos poderiam ser salvos, mas sabia que assim
como havia Nathan e Lore, haviam outros. Nem todos Desertores tinham escolhido aquela vida
porque adoravam Vicenzo, muitos apenas estavam cansados da forma como os Protetores
lideravam a causa ou tinham tanto medo do imortal que escolheram se juntar a ele do que lutar
contra ele. Muitos apenas tinham sido feridos pelos próprios irmãos. Estava na hora dos
Protetores aceitarem a sua parcela de culpa no número crescente de Desertores e buscar um meio
de remediar a situação.
A voz de um Protetor chegou até mim como uma lufada de ar frio.
“Vou matá-los tão rápido que será visto como misericórdia.”
Ele provavelmente não sabia, mas eu apostava que não era páreo para Nathan.
Mesmo assim, a raiva mal contida se apossou do meu corpo e eu dei um passo à frente,
bloqueando a visão de Lore e Nathan com meu corpo. A mera menção da ameaça me fez trincar
os dentes e o poder explodiu antes que eu pudesse agarrá-lo e contê-lo. As ondas de luz saíram
de mim como flechas que, por sorte, se direcionaram ao céu e não a qualquer Protetor.
Engoli em seco. Não era o que eu tinha planejado, mas usaria a meu favor.
Os Protetores sibilaram em pura surpresa. Seus olhos pularam para mim como adagas
certeiras e ali estava exatamente o que eu queria que houvesse: medo.
Nos meses que passei com Vicenzo, sem memórias e sem rumo, uma coisa eu tinha como
certeza: eu queria ter poder o suficiente para não precisar temer ninguém. Eventualmente ficou
claro que Vicenzo nunca me daria este tipo de poder, mas isso não importava mais. O Destino
havia me dado exatamente o que eu precisava. Os Protetores ali podiam me amar ou me ver
como a profecia em carne e osso, mas eles também receberiam uma dose segura de medo, porque
eu nunca mais estaria em uma posição de subordinação, e nunca mais permitiria que alguém
importante para mim fosse ameaçado.
Eu tinha poder agora. E iria usá-lo.
Dei alguns passos em direção à multidão, que pareceu recuar com minha investida. A luz
em minhas mãos ficou mais forte.
— Eu espero que tenham entendido que Nathan e Lore estão aqui como meus amigos. E eu
não irei tolerar ameaças a eles — falei, em alto e bom tom. — Se não fosse por eles, eu ainda
estaria presa em Florença, e vocês ainda achariam que eu estava morta.
Mãos tocaram meus ombros e eu senti a quentura do poder de Aisha raspando minha pele.
— Eles entenderam, Alyssa.
Fechei as mãos e tentei controlar o poder, mas foi a luz amarelada de Aisha que me ajudou
a tomar o controle de volta. Ela era sutil o bastante para que os Protetores à nossa frente não
visse o que ela precisava fazer para que a minha luz não explodisse aquele lugar, mas meus
amigos, atrás de nós, viam tudo.
Cerrei o punho e me virei para ela.
— Me leve para um lugar onde eu possa descansar. — pedi. — Por favor.
Aisha apenas assentiu.

Aquele poder era bem parecido com aquela dor.


Eram uma avalanche.
Eu sentia o vibrar energético dele como agulhas embaixo da minha pele. Meu estômago
parecia estar caindo de um penhasco cada vez mais alto e a náusea... Eu não sabia se era por
causa do poder ou por causa de tudo o que havia acontecido.
Meu pai morreu.
Vicenzo arrancou minhas memórias e me fez seu pequeno projeto por meses.
Nathan desertou por minha culpa.
E eu não sabia controlar aquela luz.
Eu sentia que a avalanche iria me engolir.
— Respire.
Era a voz de Aisha. Ela havia me conduzido até uma grande tenda próxima ao mar. O
barulho das ondas quebrando era a única coisa que parecia me deixar um pouco menos inquieta.
A Guardiã estava sentada a poucos metros de distância, as pernas cruzadas sob seu corpo, e os
olhos atentos em mim. Eu não sabia onde estavam os outros, apesar de poder sentir que Nathan
não estava muito longe.
Era outra coisa interessante. Agora eu podia sentir sua presença com muito mais clareza,
não mais como apenas parte do meu instinto, mas como se eu tivesse uma conexão literal com a
alma dele. Seria porque agora eu era a Fidly, ou porque eu finalmente havia juntado todas as
peças do quebra-cabeça? Com minhas memórias de volta, eu parecia capaz de sentir o elo com
mais precisão.
Antes de Vicenzo me capturar, eu ainda tinha dificuldade em me lembrar da maior parte do
nosso tempo juntos, nossa amizade durante a infância, nosso reencontro na adolescência... Tudo
o que eu tinha eram alguns flashes de memória e sonhos vívidos, mas nada concreto, nada como
buscar uma memória específica e a encontrar bem ali, guardada em seu local de direito no meu
cérebro. Mas o Destino não só reverteu o que Vicenzo fez, mas também o que Cassandra havia
feito anos antes. Eu me lembrava de absolutamente tudo.
Eu sabia dizer exatamente o momento em que me apaixonei por Nathan, quando eu tinha
quinze anos, apesar de achar que o amei a vida toda e que o sentimento apenas se intensificou. E
eu tinha certeza de que, se não fossem os anos que passamos longe um do outro, eu teria me
apaixonado por ele ainda antes disso. Me lembrava de que foi ele quem me ajudou a perder o
medo do Lago. Podia me recordar de todas as inúmeras noites quando éramos apenas crianças e
ele dormia em minha casa, porque Brian nunca estava por perto e meus pais não queriam deixar
uma criança sozinha. Sabia o número exato de vezes em que ele havia dormido no chão do meu
quarto porque acreditava que assim afastaria meus pesadelos.
Eu me lembrava de cada segundo que passei com Nathan e cada mísero instante em que ele
fez o meu coração errar as batidas.
E lembrando de tudo isso, eu entendia porque havia sido tão fácil me apaixonar por ele de
novo, mesmo sem saber quem ele era.
— Isso, você está no controle. O poder pertence a você, não o contrário — Aisha disse
baixinho. Eu imaginava que a luz estava ficando mais fraca, mas meus olhos permaneceram
fechados.
Minha mente agora era tudo, menos vazia. Eu me recordava até mesmo do dia em que
meus pais decidiram deixar o Lago, quando começamos a viver como nômades pelo país, sempre
fugindo, sempre recomeçando, por causa de Vicenzo. Eu era capaz de ver os olhos vermelhos do
choro que Nathan tentava conter. Ele era apenas dois anos mais velho, então na época ele não
tinha mais de dez anos, mas quando meus pais o informaram que iríamos viajar por um tempo,
ele pareceu desolado. Porque ele estaria sozinho. Lembrava-me dele me abraçar apertado,
segurando as lágrimas enquanto eu me debulhava nas minhas, e me dizendo que nos veríamos
em breve, que ele me ligaria todos os dias e me mandaria fotos de Zeus a todo momento. Ele
tentou ser forte por nós dois, mas eu sabia que as lágrimas caíram em algum momento. Minha
mãe havia abraçado o pequeno Nathan com carinho, e se despediu com um sorriso triste,
penteando o cabelo preto rebelde para longe do rosto dele. “Você vai ficar bem”, ela havia dito.
A imagem do meu pai com o semblante triste surgiu em minha mente como uma
fotografia. Então eu o observei caminhar até Nathan e lhe dar um abraço, dizendo que voltariam
e que, até lá, o garotinho devia ser forte.
Meu pai não queria ter deixado o pequeno Nathan para trás. Esse era o tipo de homem que
ele era. Por isso ele nunca havia sido grosseiro com Nathan quando já estávamos no Outro Lado,
porque em sua cabeça, meu namorado era a criança que ele sentiu que estava abandonando. Era o
garoto que ele e minha mãe acolheram como seu, quando ninguém mais parecia se preocupar.
E agora meu pai estava morto e a dor era uma avalanche.
— Alyssa, você está perdendo o controle novamente. — Aisha apontou. — Acalme seu
coração. Sinta o poder como uma extensão de suas mãos, não de suas emoções.
Um sibilo doído cortou através de mim. Eu estava chorando. De novo. Inferno! Por que eu
não era capaz de me controlar? Eu não posso passar a vida chorando, isso não irá trazer meu pai
de volta.
Você é esperança, pequena pássara.
Eu me pareço mais com uma bomba relógio agora, pai.
As mãos quentes de Aisha me tocaram, e isso só me fez chorar mais. Abri os olhos e a luz
quase pareceu queimá-los. Os poucos móveis espalhados pela tenda balançavam como se um
terremoto estivesse acontecendo.
— Ele matou meu pai, Aisha.
Os dedos quentes dela contornaram meu rosto e limparam minhas lágrimas.
— Tome o controle, Alyssa.
A dor se transformou em raiva e a luz brilhou mais forte. Ao meu lado, a lâmpada do
abajur quebrou.
— Ele me usou por meses, Aisha! — a memória me fez sibilar. — Vicenzo me manipulou,
fez com que eu executasse Protetores, me agrediu e se forçou sobre mim! — O nojo fez minha
boca secar. Quando me lembrava que o desgraçado havia me beijado à força, juro pelo Destino
que poderia decapitá-lo com minhas próprias mãos. — Ele fez com que Nathan desertasse!
As mãos de Aisha ficaram mais quentes.
— Eu sei, querida. Eu sinto muito. Sinto muito.
Eu me encolhi como se fosse um animal. Agarrei meus joelhos e tentei me tornar o mais
pequena possível, assim como eu me sentia.
— É culpa minha. É culpa minha. É culpa minha.
Aisha escovou meu cabelo e pescou as lágrimas que continuavam a cair.
— Não é culpa sua, querida. Precisa entender isso para controlar a luz. Ela se rebela em
compasso com seus sentimentos. Se não conseguir controlá-la, ela irá te consumir.
Eu não respondi, mas tentei me acalmar. E parecia em vão.
— Eu vou te ajudar, querida. Freya também. Todos nós estamos aqui e iremos ajudá-la.
Mas precisa se ajudar também. — Sua mão parou sobre meu peito. — Precisa se perdoar, Alyssa.
Não foi culpa sua. Nada disso que aconteceu foi culpa sua.
Mas era. Era culpa minha. E de Vicenzo.
— Este poder, Alyssa, é como um poço infinito. Ele não cessa. Não se restringe. É você
quem precisa controlá-lo, ou ele tomará conta — disse. — Eu sei que é muito poder para uma
única pessoa, posso sentir a energia emanando de você como correntes elétricas. Eu sinto que é
forte e imagino que seja difícil absorvê-lo, mas você consegue. O Destino não te escolheu sem
um propósito.
A mera menção do Destino me fez partir a escrivaninha de orvalho no meio com uma das
ondas de luz. Mas foi quando percebi: talvez eu não estivesse no controle completo, mas a raiva
ajudava a direcionar o poder.
Aquele ódio podia ser meu filtro.
E vingança.
Durante toda a minha vida haviam me dito o que eu deveria ser, como eu deveria ser.
Vicenzo quis me moldar como se eu fosse argila em suas mãos. Mas agora eu tinha o poder.
Agora, era eu quem eles deviam temer.
Eu não acho que poderia ser esperança, não mais.
Mas eu poderia ser vingança.
CAPÍTULO 32

A luz finalmente cessou.


Eu passei mais de uma hora andando pra lá e pra cá na frente dessa tenda, enquanto Alyssa
estava lá dentro com Aisha. Meus pés já tinham marcado o chão. Serena, Roman e Lore também
estavam aqui, os dois primeiros sentados juntos em frente à entrada da tenda, e a Desertora
sentada em um canto mais distante.
Freya estava sabe-se lá o Destino onde. Brian desapareceu também, e Jasper havia se
afastado para tentar se comunicar com Jonnah. Agora que estávamos aqui, não demoraria muito
para que as notícias corressem pelos mais diversos círculos de Protetores, e eventualmente
chegariam à Jasmine. E quem sabe ela pudesse ajudar Aly como eu não era capaz.
Akin também estava aqui, com os olhos desconfiados em mim. Sua postura era
despreocupada apesar do olhar, escorado em uma árvore e com os braços cruzados.
— Você e ela estão juntos — ele deduziu.
Trinquei os dentes.
— Ela é o meu elo.
Eu queria que ele ficasse bem longe dela com aquele olhar curioso dele. Os Protetores
respeitavam o elo, apesar de ser uma das muitas histórias que contavam sobre a Fidly. Havia
poucos indícios de elos, porque a maioria das Fidlys foram mortas ainda muito jovens. Meus pais
foram uma surpresa tanto quanto eu e Alyssa. É claro que eu acreditava que o elo ocorria entre
outros casais também, como eu imaginava ser o caso de Jasmine e Henry. A diferença era que
com a Fidly, o elo era mais forte, mais literal, e o fato das almas serem predestinadas acaba
ficando ainda mais claro visto que o Destino acaba empurrando os indivíduos um para o outro.
Por exemplo, minha mãe, que conheceu meu pai porque deixou uma pulseira cair no chão
enquanto ele estava de guarda. Ela não sabia sobre Protetores e desconhecia qualquer informação
sobre ser a Fidly. Mesmo assim, por uma coincidência que não poderia ser coincidência alguma,
o fecho da pulseira se rompeu, e Brian não foi capaz de se conter antes de se fazer ser visto,
apenas para entregar o acessório à minha mãe. Desconfio que meu pai já estivesse apaixonado
antes disso, afinal ele teve muito tempo para observá-la. Eu nunca vou saber, contudo. Ele nunca
falava sobre isso.
Akin, porém, não pareceu surpreso com a minha resposta.
— Isso explica muito — disse simplesmente.
Finalmente, Aisha saiu da tenda e abriu um sorriso reconfortante ao me ver.
— Ela está melhor, querido.
Eu apenas assenti, sem saber o que fazer em seguida. Eu entrava e ficava com Aly? Ela ao
menos me queria por perto agora?
A Guardiã foi de encontro a Akin, lhe dando um abraço que durou mais tempo do que o
normal. Foi quando as mãos dele subiram para o cabelo dela, e ele inspirou fundo o cheiro da
Guardiã, que eu desviei o olhar com a certeza de que estava bisbilhotando o relacionamento
alheio. Parte de mim estava satisfeito, porém, já que eu imaginava que Aisha escolheria alguém
decente para nutrir sentimentos. Quem sabe, Akin não fosse ser um problema de verdade.
Ninguém além de mim pareceu notar os dois, e eu quase fui jogado no chão quando Serena
passou por mim como um jato.
— Se você não for entrar logo, eu vou!
Não que eu tivesse tempo para responder, porque Serena já desaparecia dentro da tenda.
Roman veio em seguida, parecendo menos apressado.
— Eu sabia que devia ter ido com você, seu idiota — ele atacou, apesar de não parecer
verdadeiramente irritado. Preocupado, sim. — Isso não teria acontecido se eu estivesse junto.
Desviei os olhos.
— Eu vou entender se não me quiser por perto. Eu mesmo odeio me olhar no espelho, a
mera visão dessa merda é...
Suas mãos se fecharam nos meus ombros, e eu ergui os olhos para ele.
— Enquanto você continuar sendo você, está tudo certo. Faça sua parte e não deixe aquele
desgraçado tomar o controle, e nós vamos fazer a nossa e descobrir o que diabos fazer pra te
livrar desse juramento, entendido?
Engoli em seco, o nó em minha garganta se intensificando.
— Você é o idiota mais teimoso que eu conheço, Nathan. Bem, talvez Aly ganhe de você
no quesito teimosia, mas estão bem próximos — insistiu. — E há muito tempo eu decidi que
colocaria minha fé naquela garota, então estou confiando quando ela diz que encontraremos um
jeito de resolver isso. — Ele deu uma olhada em Lore. — Quem sabe Alyssa não nos prove todos
errados, e realmente ganhe essa guerra trazendo os traidores de volta para a causa.
Lore não perdeu a alfinetada.
— Não posso garantir nada sobre a causa — resmungou. — Mas estou do lado dela,
independentemente de qual ele seja.
Roman deu um sorrisinho arrogante.
— Isso serve para mim. — Deu um tapinha em meu ombro. — E você, Cross?
Revirei os olhos.
— Você voltou dos mortos muito falador — rebati, então olhei para Lore. — Se não por
ela, não há pelo que lutar.
— Falou como um bom apaixonado — brincou a Desertora.
— Uma das muitas nuances desse idiota — Roman resmungou, abrindo caminho para a
tenda.

Dentro da tenda, alguns objetos estavam jogados e uma escrivaninha partida ao meio, e
Serena estava agarrada à Alyssa como se ela fosse seu bote salva-vidas.
— Eu sinto muito, eu queria ter estado com você. Eu devia ter ficado e lutado com você —
a garota resmungava.
Aly passou as mãos pelas tranças da amiga e afagou suas costas com tanto carinho que
estava claro o quanto ela se importava com ela, e o quanto aquele abraço que poderia estar
sufocando qualquer outra pessoa, era como um presente para a minha garota.
— Você protegeu as crianças, S. Você fez exatamente o que eu precisava que você fizesse.
Você lutou comigo, só que em um lugar mais distante.
Serena não pareceu aceitar as palavras e, por um segundo, pensei se eu, Roman e Lore não
devíamos ter esperado mais para entrar. Mas aquela conversa parecia estar ocorrendo há um
tempo, e Aly só estava repetindo as mesmas coisas até que convencesse a amiga. Finalmente,
Serena a soltou e limpou as lágrimas do rosto, voltando a colocar aquela máscara de guerreira
treinada.
— Eu amo você, Aly. Queria ter dito isso mais.
O sorriso que Aly abriu foi genuíno e fez meu coração inchar no peito.
— E eu amo você, Serena. — Ela brincou com uma das tranças. — E, pelo Destino, eu
amo seu cabelo. Ele está tão lindo, S!
A Protetora gargalhou, o clima ficando mais leve de imediato, o que eu sabia ser a intenção
de Alyssa, apesar das palavras sinceras.
— E essa super tatuagem no seu braço? — Serena apontou para os desenhos no braço de
Alyssa. — Eu nunca te imaginei tatuada, mas caramba, te deixou mais sexy.
Aly deu uma risadinha sem graça, observando os desenhos em seu braço.
— Acho que eu fui literalmente marcada pelo Destino.
Serena esfregou um dos desenhos de lua.
— Sabemos o que isso significa? — Lore questionou.
Aly deu de ombros.
— Não sei se tem um propósito.
De repente sua expressão se iluminou, e ela ergueu os olhos para Roman, parado um pouco
sem graça no canto da tenda. Aly pulou da cama como se tivesse levado um choque, e então já
estava correndo para Roman.
— Roman!
Ela pulou em seus braços e o Protetor foi rápido em abraçá-la. Uma onda de ciúme se
apossou de mim, mas eu a engoli. Eles eram amigos e eu não tinha nada a ver com isso. Claro,
Roman havia nutrido sentimentos por ela — quem sabe ainda nutria — e ele a havia beijado,
mas Aly me amava. Eu sabia disso.
Pelo menos quando ela não estava tentando se matar, me amava.
— Eu estou tão grata por você estar vivo! — Ela se soltou dele e analisou seu corpo,
provavelmente buscando por ferimentos. Sua mão apertou o local onde ele havia sido
esfaqueado, e eu desviei os olhos. — Você parece inteiro!
Eu não queria, mas me imaginei arrancando as mãos de Roman.
— Aisha me curou e Serena cuidou de mim por longas semanas — ele respondeu,
sorrindo.
Ainda na cama, Serena parecia tão desconfortável quanto eu. Talvez um pouco mais,
porque parecia odiar estar desconfortável.
Ah.
Balancei a cabeça. Roman era mesmo cego.
Aly apertou a mão de Roman e se virou para a amiga.
— Eu não tive tempo de agradecer — disse — por terem vindo por mim.
— Sempre, Aly — Serena respondeu, devota e Roman apenas assentiu em concordância.
Sempre. Estávamos mesmo criando nossa própria irmandade. Bem, não nós. Alyssa.
A minha garota se virou para mim, finalmente assimilando minha presença ali. Ela soltou a
mão de Roman, corando levemente, e caminhou até mim com certa relutância.
— Você está bem?
Eu quase dei risada.
— Eu? Está preocupada comigo?
Ela assentiu, séria.
— Brian agiu como um idiota, mas ele vai...
— Não importa — eu a interrompi. — Eu estava preocupado com você. Está se sentindo
melhor?
Aly inspirou fundo e, quando mentiu, mentiu com convicção.
— Sim.
Eu quis abraçá-la e escondê-la do mundo. Afastei uma mecha de cabelo de seu rosto e
sussurrei:
— Vai ficar melhor.
Ela apenas me encarou de volta, o brilho de reconhecimento que eu não estava acostumado
a ver em seus olhos me pegando desprevenido.
— Eu me lembro de tudo.
Arqueei a sobrancelha.
— Tudo?
Ela assentiu.
— Absolutamente tudo. Sou dona de minhas memórias novamente. Cada uma delas.
Alyssa se lembrava de cada momento nosso, inclusive o de quando ainda éramos apenas
crianças e adolescentes. Alívio encheu meu peito e eu a abracei, afundando meu rosto em seu
pescoço e inspirando fundo.
— Eles são fofinhos, né? — A voz de Lorena nos interrompeu.
Eu me afastei de Alyssa o suficiente para encarar a Desertora, mas ainda mantive minhas
mãos em volta dela.
— Você trouxe algo relevante nessa mochila, engraçadinha?
A Desertora colocou a mochila no chão e se agachou para ver o que estava lá dentro.
— Vamos ver — murmurou. — Queria suas armas de volta? Pois aqui estão. — Tirou
minhas adagas de dentro da mochila, inclusive a adaga que um dia eu usaria em Vicenzo, aquela
que Freya me disse ter sido a sua primeira. — Hum, também salvei seu celular. Pensei que não
iria querer perder todas as fotos que tem de Alyssa aqui — ela zombou, dando uma piscadela
para Aly, que mordeu um sorriso. Eu revirei os olhos. — Ah, tem essa pedra estranha e isso aqui.
— Ela ergueu a pulseira de ouro branco com o pingente de safira.
Alyssa pulou para agarrar a pulseira, com os olhos vidrados em uma mistura de surpresa e
alegria.
— Onde encontrou isso? Achei que Vicenzo tivesse destruído ela.
Inspirei fundo, limpando a garganta.
— Sybil me procurou para entregar a pulseira — contei. — Foi o estopim final que me fez
ir até Florença.
Os olhos negros de Alyssa se viraram para mim, a dor estampada neles. Sua resposta foi
me entregar a pulseira e estender seu pulso para que eu pudesse prendê-la nele.
— Viu, eu sabia que estava trazendo coisas relevantes — Lore se gabou.
Satisfeita com a pulseira agora no seu lugar de direito, Aly se virou para abraçar a
Desertora.
— Obrigada, Lore.
Jasper escolheu esse momento para surgir na tenda, os olhos cerrados para nós.
— O que as pestes estão fazendo?
— Colocando o papo em dia — Serena disse.
— Que ótimo, um grupo de vovózinhas com tempo para fofoca. — Ele observou Alyssa
dos pés à cabeça, e eu sabia que ele estava procurando ferimentos. Mas Aly estava inteira, sem
qualquer ferida física. Ter feito dezoito anos e conquistado aquele poder, também havia feito
com que ela se curasse mais rápido e apesar das roupas destruídas pela luta, os ferimentos
haviam se curado. — Acho que você tem muito o que contar, não é, menina?
Alyssa estalou a língua, debochada.
— Sentiu minha falta, Jasper, eu sei.
Ele puxou a cadeira em frente à mesinha destruída, com um olhar zombeteiro para Alyssa,
e se sentou, apoiando as mãos no joelho.
— Adorei o que você fez com o lugar a propósito — ele a provocou, com um risinho
estampado no olhar preocupado. — Agora nos conte tudo o que precisamos saber.
Estava claro que não era o que Alyssa escolheria fazer. Ela estava exausta, sofrendo e
tendo que lidar com todo aquele poder, mas mesmo assim assentiu e voltou a se sentar ao lado de
Serena. Eu, Roman e Lore também encontramos um espaço para fazer o mesmo e escutá-la.
Então Aly contou tudo. Desde o momento em que Vicenzo a levou do Outro Lado e
apagou suas memórias ainda no jardim Boboli até o instante em que apagou em meus braços,
durante sua pequena transformação. Ela falou sobre os novos amigos de Vicenzo, que de novos
não tinham nada. Confessou, completamente envergonhada, que havia executado Protetores que
eram capturados por Vicenzo. Contou sobre Nixya e o porquê ela parecia uma cópia da suposta
deusa da escuridão. Falou sobre o momento em que apareci na floresta, e quando Vicenzo me
forçou a desertar. Avisou a todos que o bastardo tinha planos mais complexos do que
imaginávamos e que ela desconfiava que ele precisaria dela para algum outro fim. Ela disse que
o intuito de Vicenzo era destruir o Destino e que acreditava que ele iria atrás do Tesouro em
breve. Eu também sabia que aquele era o caso, afinal as ameaças ao território do Lago não eram
apenas brincadeiras dos Desertores.
Alyssa contou tudo que era mais relevante para um possível planejamento estratégico, mas
eu percebi quando ela se distanciava da conversa assim que esta caminhava em direção ao que
Vicenzo havia feito a ela, o fato dele tê-la agredido e manipulado porque via Nixya sempre que a
olhava. Eu não disse nada, e ninguém a pressionou. Eu tinha a sensação de que ela precisaria
estar mais pronta para abrir aquelas feridas.
Se ela permitisse, eu estaria com ela quando decidisse enfrentá-las.
CAPÍTULO 33

Quando eu terminei de falar, todos estavam com os olhos presos em mim, esperando que
eu surtasse novamente e muito provavelmente perdesse o controle do meu poder. Mas isso não
aconteceu. A raiva fez meu poder borbulhar, no entanto, eu estive consciente dele o tempo todo e
fui capaz de contê-lo. O mesmo com as lágrimas.
Jasper então me contou sobre as coisas que eu havia perdido durante meu tempo em
Florença. Minha mãe, como eu já esperava, estava destruída, e eu precisei me conter para não
pegar o telefone imediatamente e ligar para ela. Eu queria... Eu não sei. No fundo, estava
apavorada em ter que enfrentá-la porque sabia que seria como enfrentar tudo o que a morte do
meu pai significava. E eu estava tão envergonhada. Por tudo. Pelo meu pai ter morrido para
tentar me salvar, por eu ter me entregado a Vicenzo e passado meses sendo sua escrava
inconsciente. Estava tão envergonhada por ter falhado com ela, falhado com a filha que ela
pensou ter criado, que toda vez em que ao menos pensava em ligar para ela, eu dizia a mim
mesma que seria melhor esperar até que a visse pessoalmente.
Mas me acalentava saber que Jonnah esteve com ela todo esse tempo, nunca permitindo
que ela se afundasse na solidão como se afundava na dor. Ele cumpriu sua promessa e se
manteve ao lado dela.
No Outro Lado, porém, a história era mais complexa. Muitas crianças não queriam lutar
porque haviam ficado traumatizadas demais pelo que viram naquela noite do ataque. A maior
parte dos Protetores que sobreviveram estavam em luto profundo pelas vidas perdidas. Naquele
ataque, os iniciantes foram os primeiros a cair, assassinados covardemente pelos Desertores
enquanto ainda estavam comemorando no lago. E, em meio ao luto, desespero e desesperança
daquele povo, Ravenna quem deveria liderá-los, parecia fadada ao fracasso.
Sua falta de ação durante o ataque deixou marcas profundas na confiança dos Protetores
como sua líder.
E, honestamente, eu queria que aquela mulher queimasse no inferno. Pelo que fez a mim e
aos meus pais. Pelo que fez a Roman e Nathan. E por ser uma grande inútil preconceituosa,
arrogante e cruel.
O mesmo servia para Akantha, mas eu esperava não precisar vê-la novamente tão cedo.
— E como você se sente agora? — foi Lore quem perguntou, os olhos fixos em mim, sem
entender muito bem a dinâmica do Outro Lado.
No fundo, eu sabia que ela se sentia muito traída pelos Protetores para se importar com
eles, mas também era capaz de ver seu olhar triste quando mencionávamos o ataque e o que ele
gerou aos mais novos. As vidas que perdemos. Lore não queria, mas ela se importava. Era a
parte humana dela, a parte que a maioria dos Protetores tinha, mas se recusava a mostrar. A parte
que os Desertores enterravam.
— Como me sinto? — repeti, pensativa. — Parece que esse poder vai explodir, mas estou
bem. Vou ficar bem. Não seria muito legal da minha parte explodir todos vocês como
agradecimento por ter nos resgatado. — Lancei um olhar espertinho para Nathan, mas ele estava
quieto e não reagiu à minha piadinha.
Serena pegou minha mão, apertando-a entre seus dedos.
— O que quer fazer agora?
— Dormir? — perguntei, incerta.
Ela sorriu.
— O que quer fazer depois disso? Quer voltar para o Outro Lado imediatamente ou quer
que Jonnah e Jasmine venham até nós? Podemos organizar o que você precisar.
O que eu queria? O que eu precisava?
Eu não sabia se as duas coisas eram similares. Eu queria dormir, e eu precisava que meu
pai ainda estivesse vivo. Eu queria que Nathan me olhasse nos olhos por apenas um segundo
para eu saber que estava tudo bem. Eu precisava que minha mãe estivesse bem, que ela pudesse
lidar com a dor. Eu queria vê-la, mas também queria poder me blindar das consequências
daquilo. E eu precisava matar Vicenzo por tudo o que fez.
— Eu preciso controlar esse poder primeiro. Aisha disse que ela e Freya poderão me
ajudar.
— Podemos pedir para Jonnah e Jasmine vir então — Roman disse.
Nathan balançou a cabeça.
— Jasmine está sem se alimentar direito, ou mesmo sair do quarto há mais de um mês.
Fazê-la atravessar o oceano não é a melhor opção.
Saber daquilo cortou fundo, mas eu engoli em seco.
— Ela sabe que estou viva?
Jasper negou.
— Não queríamos dizer nada até que pudéssemos te levar sã e salva para casa.
— O que quase não conseguimos — Nathan alfinetou e então eu soube qual era o
problema. Não era sobre seu juramento a Vicenzo ou o fato do pai tê-lo rejeitado. Era por minha
causa, porque eu decidi matar Vicenzo.
— Essa coisa de você morrer matando Vicenzo é verdade mesmo? — Lore questionou.
Dei de ombros.
— Aparentemente sim.
Todos os outros ali pareciam a par da informação. Roman me encarava com um olhar
preocupado e Serena apertou mais meus dedos entre suas mãos.
— Tem que haver outro jeito — Serena disse.
— Sempre tem — Jasper concordou, mesmo não podendo ter certeza. Eu apreciei a
tentativa de conforto mesmo assim.
Nathan suspirou.
— Vamos deixá-la dormir um pouco — falou, dessa vez mais gentil. — Ela passou a
madrugada em claro.
Roman e Lore assentiram, e Serena me puxou para outro abraço apertado, que tirou o ar
dos meus pulmões. Jasper, no entanto, não se mexeu.
— Queria conversar com você por um segundo antes de deixá-la descansar, Alyssa. Se não
for um problema.
Ele quase nunca me chamava de Alyssa.
Eu assenti.
— Tudo bem.
Um a um, meus amigos saíram da tenda. Nathan foi o último, me lançando um olhar que
era preocupação e traição na mesma medida. Eu queria pedir desculpas. Queria implorar que não
me olhasse daquela forma, que tentasse me entender. Mas eu sabia que, se fosse ao contrário, eu
estaria sentindo o mesmo.
Quando Jasper e eu ficamos sozinhos, ele puxou uma cadeira para mais perto de mim e se
sentou, cruzando as mãos sobre as pernas e se inclinando para me observar com um olhar sério.
— Vou fazer uma pergunta e quero que seja sincera, menina. — Sua voz era gentil, mas
firme ao mesmo tempo. Era uma das peculiaridades de Jasper: mesmo sendo gentil, ele era duro
como uma rocha. — Como você está?
Estou bem.
As palavras não saíram.
Abri a boca para tentar novamente, mas nada saiu. A mentira se recusava a tentar ludibriar
Jasper — ele a veria pelo que era: uma mentira.
Meus olhos queimaram e as lágrimas começaram a inundar. Aos poucos, voltei a me
afogar, como quando pulei do penhasco em direção ao Lago ao ser atacada por Gaia. Da mesma
forma como o Lago inundou minha garganta, meu nariz e meus pulmões, agora as lágrimas
pareciam tentar o mesmo.
Tudo isso havia acontecido porque Gaia estava tão cega pelo ódio, pela vingança, que nos
traiu e nos condenou à morte certa. Como animais para o abate. E eu a odiava. A odiava. A
odiava.
Jasper se aproximou, meio incerto, ao me ver morder o lábio para conter as lágrimas. Eu
não podia perder o controle novamente. Ele tentou me tocar, mas eu me afastei.
— Se me abraçar — falei, inspirando fundo, tentando controlar a emoção. — Vou desabar.
Não quero desabar, não de novo.
— Está tudo bem se precisar desabar, menina.
Eu o olhei, duvidosa.
— Não posso me dar a esse luxo mais. Aparentemente essa coisa que o Destino me deu
pode causar muito problema.
— Esta coisa, Alyssa, é poder. Seu. Precisa se lembrar disso.
— Este poder não é meu, Jasper. É do Destino, com o único propósito de matar Vicenzo.
Não posso fugir disso.
Ele revirou os olhos.
— Se o Destino tiver um problema com o que você escolhe fazer com o poder que te deu,
ele pode ir para o inferno.
Bufei.
— É mais provável que ele me mande pra lá.
Jasper limpou uma lágrima que escorreu do meu rosto, o olhar sério e os ombros tensos.
— Você é uma menina, Alyssa. Não é sua responsabilidade salvar o mundo.
Cerrei os olhos.
— Pensei que era o Protetor que me treinou, mas um ET deve ter te possuído.
Ele me lançou um olhar irritado.
— Estou falando sério.
— Eu também. Está escrito na profecia.
— Não importa se está escrito na porra da minha testa, menina. Eu estou com Nathan
nessa. Você não vai se sacrificar para matar aquele desgraçado.
Balancei a cabeça, desviando o olhar.
— Ele matou meu pai.
Jasper se sentou ao meu lado, afagando meu cabelo como se eu fosse uma criancinha que
ele encontrou perdida na rua.
— Vicenzo não vale sua vida, Alyssa.
Com isso eu quase chorei. Quase permiti que as ondas de tristeza que tentavam me afogar
emergisse e me tornasse uma bagunça de lágrimas, mas eu segurei. Eu me contive.
— Eu matei Protetores, Jasper. Você não ouviu o que eu fiz? Eu os executei como se não
fossem mais do insetos para eu pisar. — Desviei o olhar. — Eu mereço meu destino.
Ele me puxou para um abraço estranho, em que ele não parecia saber bem como me
consolar. Acho que não consolava alguém desde que a filha morreu, pelo menos não de uma
forma afável.
— Você não era você, menina. Não a julgaremos por isso.
Um soluço escapou, e mais lágrimas rolaram.
Eu era patética.
— Não fui eu mesma por meses — grunhi. — Eu sabia que havia algo errado, sempre
soube que Vicenzo não era uma pessoa boa, mas eu escolhi ficar, escolhi deixar que ele me
manipulasse e usasse como queria. Permiti que ele me tornasse a sua arma. Deixei que Nathan
desertasse ao invés de correr na primeira oportunidade que tive.
— Você não tinha memórias, Alyssa. Você não pode se culpar por ter reagido ao mundo
como o via — disse. — E quanto ao garoto... Nós vamos resolver isso. Nathan não será um
Desertor para sempre.
Tentei engolir a dor. Tentei conter o poder, mas minhas mãos já começavam a brilhar.
— Meu pai estaria envergonhado, Jasper. — Cerrei o punho, inspirando fundo e focando
em um ponto qualquer do outro lado da tenda, além das lágrimas, além da dor. — Meu pai
estaria tão envergonhado de mim.
— O quê? Não. Alyssa, não. Henry via você exatamente como é: uma guerreira. Seu pai
teria orgulho de vê-la aqui, viva, ainda mais forte.
Trinquei os dentes.
Eu não queria falar do meu pai. Não podia.
— Não sei como vou encarar minha mãe.
— Como sempre encarou. — Ele se afastou um pouco, os olhos preocupados em mim. —
As notícias irão correr rápido agora que estamos com outros Protetores. Em breve todos no Outro
Lado saberão, inclusive sua mãe. Precisa saber se quer que ela venha.
— Não — soltei, desesperada. — Vicenzo vai me encontrar, Jasper. Não quero que ela
esteja por perto, não a quero nessa guerra.
— Alyssa, sua mãe é uma Protetora. Ela nasceu nessa guerra.
O poder caminhou mais um pouco para a borda.
— Eu preciso que ela esteja segura.
Jasper apenas assentiu.
— E faremos tudo o que pudermos para mantê-la segura. Faremos isso um pelo outro, mas
sua mãe é uma guerreira, Alyssa. Cortará minha cabeça se souber que eu a mantive longe de
você. — Seus olhos ficaram tristes. — Se minha Clarissa estivesse viva e meus irmãos
soubessem e não me contassem, eu iria matá-los com certeza.
A dor dele era palpável ao falar da filha morta.
— Eu não sei se sou a mesma Alyssa.
— Uma mãe não se importa com isso.
Engoli em seco.
— O que aconteceu com Gaia? Alguém a prendeu?
Jasper baixou as mãos que estavam no meu cabelo.
— Sua mãe a encontrou tentando fugir depois que os Protetores retomaram o controle do
Outro Lado. Os Desertores haviam machucado a traidora e ela não conseguiu fugir a tempo. Não
era um bom momento para sua mãe e ela não estava exatamente sob controle — contou. — Não
tivemos tempo de capturar Gaia antes de Jasmine matá-la.
Eu odiava aquele sentimento de satisfação doentia que cresceu no fundo do meu estômago.
E era ainda pior que eu desejasse ter sido aquela a matar a traidora.
Parte de mim entende que a culpa era do sistema. Que Gaia se transformou naquela
traidora imunda porque os Protetores viviam naquela guerra há tanto tempo que não se
importavam com as perdas internas para salvar a Fidly. Qualquer coisa para salvar a Fidly, não
é? Foi assim que Victor foi morto. Mas este era o seu trabalho: proteger. Victor foi fiel ao seu
juramento, enquanto a irmã se tornou a responsável pela morte de inúmeros Protetores. Não foi
apenas meu pai que morreu naquele ataque. Os jovens Protetores também. Amigos, irmãos,
filhos e sobrinhos foram executados e depois mais inúmeros guerreiros morreram na luta.
Gaia havia traído seu povo, não só a mim.
No fim, ela foi só um peão no jogo de Vicenzo e acabou morta por isso.
Eu não falei nada por um bom tempo, sentindo os olhos de Jasper afiados me observando
atentamente, provavelmente se perguntando quando eu voltaria a cair.
— O que Vicenzo fez exatamente com a sua memória? Foi como o que Cassandra havia
feito? — perguntou.
— Não. Era mais do que esquecer Nathan. Eu tinha noção de conceitos básicos. Sabia que
se eu tentasse tocar o fogo, eu me queimaria, mas não conseguia me lembrar se um dia eu já
havia me queimado. Sabia o que era um celular e para o que servia, mas não tinha memória de
ter tido um. Eu tinha fluência em quatro línguas, mas não tinha ideia de como tinha aprendido
cada uma delas. — Dei de ombros. — Eu me lembrava das coisas simples e das mais específicas,
mas não sabia de absolutamente nada sobre mim mesma. Era como... — pensei — era como
estar vazia.
Jasper me observava com tanta atenção que podia ouvir as engrenagens do seu cérebro
funcionar.
— E como ele tratava você? Ele te machucava?
Desviei o olhar.
— Sabia que eu precisava chamá-lo de "mestre"? — Soltei uma risada seca. — Ele me
tratava como sua subordinada. Me machucou algumas vezes sim, quando eu não atendia às suas
ordens de imediato, ou quando me via hesitar em cumprir uma delas, ou porque minha língua foi
grande demais e acabei falando o que não devia. Eu posso ser a cópia de Nixya, mas ele não se
esquecia que eu não era ela. Acho que eu também não o deixava esquecer.
— Ele... — Jasper parecia desconfortável agora. — Ele machucou você de alguma outra
forma?
Vergonha queimou minhas bochechas e eu fui incapaz de encará-lo. Eu não havia contado
aquilo a ninguém, nem mesmo a Nathan ou Lore. Eu odiava ter sido colocada naquela posição e
sempre que me lembrava de Vicenzo me prendendo contra seu corpo e me beijando à força me
fazia querer vomitar. E depois me chutar por ter permitido que aquilo acontecesse.
— Ele me beijou à força um dia — eu contei, baixinho.
— Alyssa...
— Está tudo bem — eu o interrompi. — Eu o soquei por isso.
Ele abriu um sorriso triste para mim, mas eu pude ver o alívio por não ter acontecido nada
pior.
— Eu sabia que havíamos te ensinado bem.
Abri um sorriso como resposta, tentando o meu melhor para parecer verdadeiro.
— Preciso mesmo dormir, Jasper.
Ele assentiu.
— Certo, certo — assentiu. — Descanse um pouco e, quando acordar, treine com as
Guardiãs. Temos muito o que fazer depois que controlar seu poder, menina, e pouco tempo para
tudo isso. Enquanto descansa, irei descobrir o que o desgraçado tem feito desde que fugimos.
Balancei a cabeça, concordando. Jasper se levantou e caminhou para a saída da tenda, mas
parou antes de sair.
— Alyssa? — Eu o olhei. — Eu estou feliz por você estar viva. E eu tenho certeza de que
Henry está orgulhoso que a filha dele não parou de lutar.
CAPÍTULO 34

Acordei horas mais tarde, encontrando a tenda coberta pelo breu da noite. Meu corpo todo
parecia dolorido devido ao sono tenso e cansado, mas minha cabeça parecia um pouco mais leve.
Ergui minhas mãos e vi que não emitiam luz alguma, mas eu ainda não havia me acostumado
com os desenhos e arabescos pretos que subiam pela minha mão e braço direito.
Deixei os braços caírem de volta para a cama e suspirei.
Eu o vi quando me virei para o lado, me enroscando em uma bola, abraçando minhas
próprias pernas. Nathan estava sentado na cadeira que Jasper havia deixado ao lado da minha
cama, os olhos cansados presos em mim.
Estiquei a mão para tocá-lo, para convidá-lo a se deitar comigo e descansar. Nathan estava
machucado ainda, o rosto cheio de roxos e alguns pequenos cortes que ainda trabalhavam para se
fechar em seus braços e um em seu peito, que havia cortado a camiseta.
Ele precisava descansar.
— Vem aqui.
Eu o vi engolir em seco e seus dedos tocaram os meus. Mas suas mãos estavam frias e
incertas. Podia ouvir seu coração batendo mais rápido do que o necessário, incerto. Mesmo
assim, ele se ergueu, a mão segurando a minha, e veio até a cama. Nathan me observava com
tanta atenção que me questionei se estava preocupado se eu explodiria em luz novamente e o
machucaria. Seu joelho afundou na cama, que não era grande o suficiente para duas pessoas
ficarem confortavelmente esparramadas nela. Ele se abaixou, beijou minha têmpora e se jogou
no espaço livre em minhas costas. Seus braços me prenderam contra seu corpo, me mantendo em
um casulo de calor e conforto.
Um suspiro de puro alívio saiu dos meus lábios.
Meus dedos alisaram a pele machucada de suas mãos. Seu braço embaixo do meu pescoço
e o outro sobre meu torso. Eu sentia sua respiração roçar meu pescoço, deixando uma trilha de
leves arrepios em minha pele.
— Está melhor? — Nathan quebrou o silêncio.
— Estou no controle.
Eu o senti assentir.
— E você? — perguntei. — Como você está?
— Bem.
Contudo, nós dois sabíamos que aquilo era uma mentira.
Virei-me em seus braços, absorvendo cada detalhe do rosto mais lindo que já vi na vida.
— Pode me falar a verdade, Nathan.
Nathan fez uma careta.
— A verdade? — resmungou. — A verdade é que estou bravo e irritado e desolado. Você
ia se matar, Alyssa. — Seus dedos se apertaram em volta da minha cintura, como se a ideia de
que eu não estivesse ali fosse possível demais. — Eu vi em seus olhos. Você estava pronta para
matar Vicenzo e não se importou com o fato de que morreria junto.
Engoli em seco, desviando meu olhar para seu pescoço, onde eu não teria que enfrentar
aquele olhar irritado.
— É o que eu devo fazer.
— Ao menos pensou em como isso me afetaria? Pensou em algo além da sua vingança?
Ergui os olhos para ele.
— Não. Eu não me permiti pensar em você e em mais nada.
Dessa vez o que vi ao olhar para ele era pura tristeza. Do tipo que eu poderia tocar se
quisesse, de tão densa que era. Suas mãos se afrouxaram em volta de mim.
— Engraçado, porque tudo o que tenho feito é pensar em você.
Apertei os olhos.
— Eu sei. Eu sei. — Eu sentia o poder começar a se movimentar, inquieto. — Eu sinto
muito, Nate. Eu sinto muito. Se eu pudesse voltar no tempo, teria feito qualquer coisa para
impedir que desertasse. Eu...
— Eu não me arrependo de desertar para proteger você. Não é disso que estou falando —
ele disse. — Você me pediu para lutar por você — acusou. — Pediu, quando ainda não se
lembrava de nada, que eu lutasse. Mas não posso lutar sozinho, Alyssa.
A lágrima escorreu pelo meu rosto e eu trinquei os dentes.
Eu havia feito isso com ele. Havia destruído tudo o que ele mais prezava, sua liberdade e
seu destino. Toquei seu peito, onde eu sabia que aquela marca terrível estava e desejei poder
sugar aquela podridão de dentro dele.
— Eu sinto muito.
Seus dedos subiram para meu rosto e ele limpou minhas lágrimas.
— Não chore, amor — sussurrou. — Eu faria tudo mais mil vezes pra ter você nos meus
braços agora, mas não posso lutar sozinho. Preciso que lute comigo.
— Eu preciso matá-lo, Nathan. Eu não posso permitir que ele ande nessa terra como o deus
que pensa que é.
— Estou pedindo que espere acharmos uma outra opção. Seu pai já estava buscando um
meio que pudesse ajudar você a matar Vicenzo sem morrer no processo. Deve existir algo —
insistiu. — Estou pedindo que espere.
— Meu pai está morto, Nathan.
Ele inspirou, fechando os olhos.
— Eu sei, Aly. E no momento certo vou ajudá-la a vingar Henry, mas não pode desistir
agora, não depois de tudo o que vencemos. Não pode pensar com a dor.
— Tudo o que eu sinto é dor! — Me soltei de seus braços e me sentei. — Desde que
despertei tudo o que eu consigo sentir é dor e não há mais nada. Não há um segundo sequer em
que não pense em meu pai, naqueles Protetores inocentes, em minha mãe, em você e no que ele
fez comigo. Eu fecho os olhos e consigo ver o quão estúpida eu fui, o quão manipulável, o quão
fraca.
Suas mãos tocaram minhas costas e eu retesei.
— Você nunca foi fraca.
— Ele me bateu, Nathan. Me sufocou como se eu fosse uma boneca em suas mãos — eu
sussurrei, como se mal pudesse aceitar aquelas palavras saindo da minha boca, sabendo que as
próximas seriam ainda piores. — Ele me prendeu contra uma parede de espinhos e me beijou.
Eu não precisei olhar para ele para vê-lo enrijecer. De canto de olho podia ver suas mãos
cerradas nos lençóis.
— O quê?
Era ódio em sua voz. Me virei para encará-lo apesar da vergonha me consumindo.
— Eu não queria. Juro que mesmo sem as memórias eu não queria, tentei me afastar e o
soquei por isso, eu juro. Juro por tudo que é mais sagrado que nunca teria deixado que me
tocasse, odiava quando ele me olhava daquele jeito estranho e eu...
E não era apenas o que Vicenzo havia tentado fazer, mas tudo o que eu havia feito
enquanto estive lá. Toda a manipulação, toda a privação. Cada segundo em que passei
amedrontada, cada movimento articulado que precisei fazer apenas para que minha presença
naquele palácio fosse aceita e jamais questionada. Como me tornei alguém completamente
diferente porque ele havia me tirado tudo o que eu era, todas as memórias que me tornavam eu.
Eu não queria nada daquilo. Vicenzo tirou minha mente, minha liberdade, me violentou
fisicamente e me assediou. E eu odiava cada segundo daquelas memórias que preenchiam minha
mente sempre que fechava meus olhos.
— Alyssa — ele me cortou —, pare de se desculpar. Eu sei de tudo isso. — Ele aliviou o
aperto de seus punhos em volta dos lençóis apenas para me tocar com a maior delicadeza que
esse mundo já viu, puxando meu rosto para olhá-lo nos olhos. — Isso não é culpa sua. Eu só...
porra, o que mais ele fez? — Ele parecia aterrorizado.
Quase inconscientemente eu me estiquei para ficar mais perto dele, como se ele fosse o
meu ponto de equilíbrio e eu não queria cair.
— Foi só isso. Ele me agarrou, acho que tentava ver em mim o que ele via em Nixya. Eu
consegui afastá-lo e o soquei porque estava com tanta raiva que não me importava com as
consequências de fazer isso. Eu só o queria longe.
Antes que eu ao menos percebesse, eu estava em seus braços. Nathan me abraçou com
força, tentando me passar conforto enquanto eu podia sentir que dentro dele as emoções
pareciam espiralar.
— Vê porque não posso deixá-lo vencer?
— E não vamos — ele respondeu, convicto. — Esse desgraçado vai ter o fim que ele
merece, mas não vai levar você junto. — Nathan segurou meu rosto, prendendo nossos olhos. —
Está me ouvindo, Aly? É o fim dele, não o seu.
— Nathan...
— Se não consegue encontrar força dentro de si para fazer por si mesma, faça por mim,
Aly. Porque essa dor não vai ser eterna, eu te prometo isso. Eu prometo que viveremos até os
100 anos, e morreremos juntos e velhinhos depois de anos de felicidade. Eu te prometo que a dor
não será eterna porque te prometo um futuro com muito mais coisas para sorrir do que para
chorar — disse, tão convicto que mais lágrimas escorreram, enquanto eu via as dele brotar em
seus olhos. — Eu te prometo, Aly. Apenas lute comigo. Você pediu para que eu lutasse por você
e farei isso até meu último dia. Mas você precisa lutar também. Não posso fazer isso sozinho.
Ele havia me pedido para fugir disso com ele, por ele. Disse que me seguiria para onde
quer que eu fosse. Eu me lembrava perfeitamente de suas palavras quando soube do preço do
meu destino e, de joelhos aos meus pés, implorou. Foi quando descobri que éramos
predestinados, fato que ele já sabia, mas essa verdade não fazia a menor diferença, porque eu
estava apaixonada por ele há mais tempo do que era capaz de me lembrar. Porque era Nathan, e
ele tinha metade da minha alma presa à sua.
E agora ele me prometia ficar e lutar por mim. Comigo. Por um futuro que eu desejava
tanto que podia visualizar em meus sonhos.
Eu não fui capaz de responder. Nada do que eu falasse ao menos se nivelaria às palavras
dele. Nada que eu pudesse prometer seria melhor do que aquilo. E naquele instante, eu pude
sentir algo além de dor. Era incerto, pequeno e fraco, mas estava ali. E me aterrorizava porque
esperança era algo perigoso e o que Nathan me oferecia era exatamente o futuro que eu ansiava.
E parte de mim sabia que era estupidez ansiar por uma vida comum ao seu lado, quando
nada do que éramos era minimamente comum.
Eu não respondi, mas colei nossas bocas com força. Eu precisava que ele visse, que mesmo
com a dor preenchendo meu peito, eu ainda o amava com tudo o que eu era. Precisava saber que
eu nunca desistiria daquela vida com leviandade porque ele era parte dela. Precisava que
soubesse que ele havia trazido mais beleza para minha realidade do que toda a magia daquele
mundo secreto. E precisava que entendesse que eu não pude pensar nele, porque então nunca
seguiria em frente com a exigência do Destino. Eu não queria deixá-lo.
Não havia palavras o suficiente.
Então eu tentei fazer com que ele as sentissem.
Afundei em seu colo como eu me afundava em sua boca. Eu me agarrava a ele como se
fosse tudo o que pudesse fazer, como se ele fosse tudo o que eu tinha e tudo o que precisava.
Nossas línguas se tocaram com a necessidade de uma vida afastados. E Nathan me beijou com a
paixão que eu sonhei poder ter a vida toda, aquelas que eu lia em livros e via em meus pais, mas
que eu nunca pensei que viveria. Porque aquele amor... Era épico.
Suas mãos presas em meu quadril me puxaram para mais perto e minhas mãos correram
pelos fios do seu cabelo. Sua boca desgrudou da minha apenas para que ele beijasse cada
pedacinho do meu rosto, minha bochecha, meu queixo, a ponta do meu nariz, meus olhos e
minha testa. Eram beijos de promessas silenciosas, e era carinho e amor.
Era saudade.
Eu passei todo o tempo em que estivemos separados sem conseguir me lembrar quem ele
era, quem eu era. Mas Nathan nunca esqueceu, e viveu meses em um luto desolador que não era
real. E agora ele me beijava como se pudesse, finalmente, se livrar daquele pavor. Suas mãos me
pressionaram contra ele e eu suspirei. Nathan não tinha pressa, era quase como se gravasse a
minha imagem pelos seus lábios e mãos.
— Eu senti sua falta — ele sussurrou. — Todos os dias, a cada minuto e a cada respiração
que eu dava.
Corri minhas mãos pelas suas costas, sentindo a luz pinicar a ponta dos meus dedos e tocar
Nathan, mas o poder não o machucava. O poder não ousava agir contra ele, acho que entendia
que Nathan era tão parte de mim quanto a própria luz.
Seus olhos azuis encararam os meus com a surpresa pelo toque de luz, o brilho neles era
como uma descarga elétrica em minhas veias e, pela primeira vez desde que abri meus olhos com
a verdade em minha mente, eu sorri. De verdade. Honestamente. Nathan sorriu de volta e meu
coração deu um pulo como se dissesse: “finalmente, estamos em casa”.
— Não machuca, não é? — perguntei, baixinho. Eu precisava ter certeza.
O azul de seus olhos brilhou.
— Não. É como ser tocado com leveza pela ponta das unhas. Faz minha pele arrepiar.
Beijei sua boca e sussurrei a única verdade que nunca mudaria:
— Eu amo você, Nathan.
Ele pareceu absorver minhas palavras e relaxar em meus braços.
— Isso é um sim para minhas promessas?
— Não sabia que eram como um pedido de casamento — brinquei.
— É mais do que um. É um pedido para uma vida ao seu lado.
A parte racional e humana que ainda vivia em mim dizia que nós éramos jovens demais e
que era tolice pensar em um futuro com alguém aos dezoito anos. E Nathan não era muito mais
velho, tinha apenas vinte. Mas, majoritariamente, eu não era humana, e nem ele. No mundo em
que vivíamos, Protetores morriam cedo e Fidlys morriam mais cedo ainda. No mundo em que
vivíamos haviam vilões milenares, monstros de outras dimensões e amores predestinados. E nada
do que eu sentia por Nathan era mundano. Era um sentimento tão antigo quanto os mares e os
céus.
E uma vida com ele poderia não ser longa. Poderia não ser pacífica. Mas eu o escolhia.
— É um sim, Nathan. — Passei as mãos para dentro da sua camiseta e toquei seu peito, a
luz agora tocando a marca de Vicenzo. — Será o fim dele, não o nosso.
Amor e alívio brilhou em seus olhos e ele me beijou ainda mais determinado.
E eu queria que fosse uma promessa verdadeira. Queria que realmente não fosse nosso fim.

Na hora do jantar, eu já estava de banho tomado e com roupas limpas e leves que haviam
deixado em minha tenda.
Logo Aisha veio nos chamar para nos juntar aos outros. Nathan, claro, estava receoso e,
apesar de não saber onde Lore se encontrava naquele momento, imaginei que ela também estaria.
— Tem certeza de que isso é uma boa ideia? — Nathan questionou.
Aisha sorriu.
— Mas é claro! Vocês são meus convidados! Quero que conheçam meu santuário.
Santuário. Não sede. Os Protetores chamavam aquele lugar de Mahali, que pelo que Aisha
disse, significa “lugar importante, especial". E Quirimbas era mais do que aquela área protegida
por magia, mesmo sendo especial e bonito, aquela ilha era muito mais. Quirimbas era a casa de
Aisha e seu santuário. Talvez por isso ela tenha preferido não criar uma subdimensão, mas
apenas ocultar a sede, mantendo-a parte do lugar o qual chama de seu santuário.
Nathan ainda parecia incerto quando aceitou a mão que estendi para ele, mas nos seguiu
até onde os outros jantavam.
Eu esperava encontrar um centro comercial com um longo refeitório, como era o caso do
Outro Lado. Mas Mahali tinha as ruelas iluminadas por tochas de fogo de aparência milenar, as
tendas dos Protetores ao nosso redor e uma praça ao centro, também iluminada pelas tochas. Eu
sabia que eles tinham luz elétrica porque as tendas eram iluminadas por elas, mas a cidade em si
vivia sob a iluminação quente do fogo.
— Nós apreciamos o fogo como um corpo energético do qual podemos ser recarregados —
Aisha explicou, me vendo observar as tochas. — As chamas, o calor... são fontes energéticas que
ajudam nosso corpo a se reconectar com a nossa alma, nossa força interna. Faz bem para os meus
guerreiros.
A noite estava relativamente fria, apesar de não tanto quanto estava em Florença, mas o
vento aqui carregava a maresia que preenchia meus pulmões e fazia minha pele brilhar. Eu
estiquei meus dedos para o calor das chamas, e minha própria luz respondeu, minhas mãos
brilhando e a luz engolindo a chama. Puxei a mão de volta, assustada, e cerrei o punho tentando
conter o poder.
— Sua magia está em estado de alerta, Alyssa. É compreensível dado os acontecimentos
após sua volta à consciência, mas você precisa ensinar a ela o que é perigo e o que é segurança.
Quanto mais alerta seu poder estiver, mais difícil será mantê-lo sob controle — Aisha instruiu.
— Eu não sei se falar com meu poder vai resolver.
A Guardiã sorriu.
— Como eu disse, seu poder é você. É seu. Você precisa se certificar de que sabe quando
está segura e quando está em perigo. — Ela tocou meu ombro, o calor de sua magia aquecendo
minha pele e me deixando mais relaxada. — E garanto a você que está segura aqui, minha
querida. — Então olhou para Nathan, tenso ao meu lado. — Todos vocês.
— Obrigada, Aisha. — Peguei sua mão. — Por tudo.
Seu sorriso, sempre honesto e carinhoso, se expandiu mais.
— Não por isso, minha querida. — Ela me puxou pela mão, caminhando leve como uma
pluma. — Vamos comer, seus amigos já estão nos esperando.
Nós caminhamos pelo caminho iluminado, as estrelas brilhando acima de nós e a lua nova
se exibindo no céu escuro. A luz em minhas mãos finalmente cessou e eu me senti um pouco
mais confortável em lidar com uma multidão de Protetores curiosos.
Então, finalmente alcançamos a praça principal, um círculo enorme rodeado por tochas e
quatro árvores majestosas, de galhos longos e cheios, erguiam-se em cada um dos quatro pontos
cardeais. Dentro do círculo, os Protetores estavam sentados no chão, um ao lado do outro,
seguindo a enorme linha invisível que o formava, imersos na comida e na conversa.
Eu não vi Lore por perto, mas encontrei Serena, Roman e Jasper sentados juntos próximo à
árvore leste. Não foi muito surpreendente que Brian não estivesse ali, porque pelo que eu me
lembrava, ele não participava de eventos sociais, pelo menos não se pudesse evitar.
Quando já estávamos perto o suficiente para que nos notassem, todos os Protetores
ergueram os olhos para mim e os sussurros começaram ao avistarem Nathan.
— Boa noite, abençoados — Aisha chamou, a voz saudosa. — Que tenhamos uma bela
noite juntos.
Próximo aos meus amigos, Akin sorriu para a Guardiã e depois para mim.
— Sente-se conosco, Fidly — convidou.
Lutei contra o impulso de corrigi-lo e exigir que me chamasse de Alyssa.
Peguei a mão de Nathan e o guiei ao meu lado até nossos amigos. Os Protetores nos
seguiram com os olhos, observando cada mínimo movimento nosso, ainda atormentados pelo
fato de que éramos a Fidly e um Desertor, supostos inimigos, juntos.
Eu ignorei todos eles.
— Onde está Lore? — perguntei.
— Ela preferiu ficar descansando na tenda — Jasper disse, notando muitos dos Protetores
que agora pareciam tensos.
Descansando então era sinônimo para “fugindo dos olhares tortos dos Protetores”.
Antes que eu me sentasse, um corpinho se chocou contra o meu, bracinhos pequenos
tentando prender minha cintura, mas não alcançando mais que minhas coxas. Olhei para baixo e
encontrei uma garotinha de pele marrom sépia e cabelos crespos cheios de flores presas nos fios
encaracolados. Percebi sua mãe correr em nossa direção no intuito de conter a filha, mas eu
voltei a olhar para os olhos castanhos da menina e sorri.
— Olá — eu disse.
— Posso ver sua luz, Fidly?
Ao meu lado, Serena deu uma risadinha.
— Pode me chamar de Alyssa — falei enquanto me agachava para que ficássemos na
mesma altura. — E como você chama?
— Meu nome é Zuri, Alyssa. — Agora ela tinha um sorriso ainda maior ao pronunciar meu
nome. Sua mãozinha segurava a minha como se fôssemos grandes amigas há tempos.
Ergui os olhos para Aisha, incerta se poderia mostrar a luz para Zuri sem que saísse do
meu controle. Aisha apenas balançou a cabeça, como se dissesse: “vai em frente, querida” com
aquela voz doce e confiante. Inspirei fundo e ergui a mão tatuada entre nós. O poder borbulhou
em meu sangue e aqueceu minhas palmas.
Você é meu.
Luz começou a emanar levemente, quase como um brilho pálido de luar. Eu sentia aquele
poço de poder tentar se rebelar, tentar ser livre de uma vez por todas. Você é meu. Eu o empurrei
de volta, mantendo à superfície apenas o quanto eu queria. É meu, sou eu quem está no controle.
Luz branca brilhou em minhas mãos, mas sua forma era como chamas, tremeluzindo em
minha palma, mas completamente inocente. Zuri soltou um gritinho de satisfação e deu pulinhos
de puro êxtase.
— Angalia! Angalia! Kuna mwanga![1]

Eu não sabia o que suas palavras significavam, mas pela felicidade infantil em seus olhos,
não podia ser algo ruim. Meu sorriso se expandiu. Zuri avançou a mão livre para a luz, mas eu
fechei a minha antes que ela pudesse tocar. Eu não sabia se poderia machucá-la, mesmo que não
tivesse a intenção.
Seus grandes olhos castanhos encontraram os meus, travessos.
— Você vai salvar todo mundo com a luz, siyo hivyo?[2]
Meu coração pareceu apertado.
— Vou tentar, Zuri.
A garotinha soltou minha mão e pulou em meus braços, apertando meu pescoço com seus
bracinhos. Eu a abracei de volta, o coração cheio de um sentimento que há muito tempo eu não
sentia. Parecia gratidão.
Ela me soltou quando a mãe limpou a garganta ao nosso lado, chamando a atenção da filha.
— Tulia, mama[3] — ela disse. — Alyssa é minha amiga agora. Eu até posso chamá-la pelo
nome!
— Estou bem calma, Zuri — a mãe retrucou, contendo um sorriso.
Zuri voltou os olhos para mim, parecendo pronta para se despedir.
— Você é muito bonita, Alyssa — elogiou, passando a mão pelas mechas longas do meu
cabelo. — E sua luz é muito bonita também. E eu sei que princesas bonitas tem finais felizes. —
Ela estalou um beijo na minha bochecha e se afastou, colocando as mãozinhas nos quadris antes
de fazer uma pequena reverência. — Utukufu na heshima kwa Fidly[4].
Então ela me deu as costas e saiu saltitando, como se tivesse acabado de encontrar uma
pessoa muito importante e estivesse extremamente honrada por isso. Eu não consegui deixar de
sorrir ao observar a garotinha se afastar.
— “Glória e honra à Fidly”, foi o que ela disse — a mãe da garota traduziu, fazendo uma
pequena reverência também, e então saindo atrás da filha.
Quando voltei a encarar meus amigos, todos me observavam com variações de sorrisos em
seus rostos. Serena, Aisha e Akin expunham todos os dentes, claramente tocados pela cena.
Roman tinha um sorriso tímido, enquanto Jasper parecia sorrir, mas apenas com os olhos — seria
demais esperar que ele expusesse os dentes em um sorriso genuíno. E Nathan... Nathan tinha os
olhos vidrados em mim, o sorriso torto conhecedor, como se não esperasse nada menos vindo de
mim ou das pessoas ao meu redor, como se o carinho mostrado pela garotinha a mim devesse ser
parte comum do meu dia.
Minhas bochechas queimaram, a timidez rapidamente me deixando vermelha.
— Parem de me olhar assim — resmunguei, me sentando entre Serena e Nathan.
Minha amiga apertou meu joelho, dando uma risadinha.
— Princesas bonitas não ficam tímidas assim, Aly.
Revirei os olhos e Nathan disfarçou o som da sua risada com uma tosse estranha. Eu o
fuzilei, mas ele apenas me puxou para mais perto, deixando um beijo na minha bochecha.
— Definitivamente uma princesa bonita.
— Eu vou te chutar — ameacei.
Akin se aproximou, dando fim ao assunto, e me entregando um prato cheio de comida e
um pedaço de pão cheiroso. Aisha entregou um igual a Nathan. Aos poucos, eu ouvia o
burburinho seguir seu curso e nos deixar em paz. Pelo menos um pouco.
Eu e Nathan comíamos em silêncio, ouvindo Akin e Jasper conversarem sobre suas
respectivas sedes e o que estavam fazendo para proteger suas fronteiras dos Desertores que
tinham se tornado mais ousados desde o ataque ao Outro Lado. Akin afirmou que, apesar de o
Lago ser um alvo mais visado, uma vez que esconde o Tesouro, todas as sedes mais próximas às
Guardiãs também estavam sendo monitoradas de perto por Desertores que não atacavam, mas
que os Protetores acreditavam estarem buscando reunir informações para Vicenzo. Akin e outros
estavam trabalhando bastante em matar todos eles.
Nathan, ao meu lado, ficou tenso. Ele era um Desertor, afinal, poderia muito bem ser o
alvo de qualquer Protetor que o encontrasse vagando sozinho. E eu sabia que ele odiava ser
associado a Vicenzo. Odiava aquele vínculo que agora tinham, mas que ele nunca quis.
— Ni wakati wa hadithi.
Eu me virei para a dona da voz — uma Protetora mais velha, uma das únicas ali, com
cabelos levemente grisalhos e olhos marcados — que acendia o fogo da tocha fincada no meio
do círculo.
— É hora de uma história — Akin traduziu, os olhos sobre mim.
— Que história? — Roman perguntou.
A voz da mulher começou a ecoar em um canto bonito e antigo. Então, como se já
soubessem aquela história de cor, outros se juntaram a ela, cantando cada palavra. Os olhos da
maioria pairaram em mim e eu não sabia o que fazer a não ser encará-los de volta.
— A história da destinada — Aisha disse.

Kulikuwa na wakati ambapo anga lilikuwa giza na usiku ulikuwa wa milele.


Wakati ambapo wafalme walijisalimisha na viumbe vya giza vikachukua udhibiti.
Ilikuwa wakati ambapo upendo mkubwa ulikufa na mashujaa walipoteza.
Mizani ilinama kuelekea uovu na binadamu wakaanza kufa.
Ndipo Destiny ilipoinua Walinzi, ambao waliibua mashujaa wapya.
Baadhi ya mashujaa hawa walichagua giza kwa uzuri wake, na tena, mizani ilinama.
Kwa hivyo, Destiny akamwumba yule ambaye ataleta mwanga.

As vozes ficavam mais intensas, as batidas de palmas e tambores mais fortes.


Aisha, em voz baixa, traduziu para nós:
— "Houve um tempo em que o céu era escuro e a noite era eterna. Uma época em que os
reis se rendiam e as criaturas das trevas assumiam o controle. Foi a época em que grandes
amores morreram e heróis se perderam. A balança inclinou-se para o mal e a humanidade
começou a morrer. O Destino então ergueu Guardiãs, que ergueram novos heróis. Alguns desses
heróis escolheram a escuridão por sua beleza e, mais uma vez, a balança pendeu. Então o
Destino criou aquela que trará a luz.”
Todos eles agora tinham os olhos em mim. Cada um dos Protetores, crianças e jovens. E
meus amigos. Todos me encaravam e eu não sabia o que fazer com minhas mãos. O poder dentro
de mim parecia querer responder.
Tunamuona sasa.
Mwanga mkali.
Nyota inang'aa katika anga giza.
Yeye ni uwiano, kwa hivyo anaweza kuwa mwanga, lakini lazima adhibiti giza ndani yake.
Tunamuona sasa.
Tunamuona sasa.
Ametayarishwa kuzindua mwanga katika giza.
Ametayarishwa kuchukua udhibiti tena.
Ametabiriwa kuokoa ulimwengu, atayumba mizani.

— "Nós a vemos agora. Luz brilhante. Uma estrela brilhante em um céu escuro. Ela é o
equilíbrio, então ela pode ser luz, mas deve controlar a escuridão interior. Nós a vemos agora.
Nós a vemos agora. Pronta para iluminar a escuridão. Pronta para recuperar o controle. Destinada
a salvar os mundos, ela equilibrará a balança."
Então a história acabou.
Por três vezes os Protetores bateram duas palmas em sequência.
Por quatro vezes os Protetores bateram mais uma palma.
E então acabou.
Meu coração batia desesperadamente em meu peito e, mesmo no silêncio ensurdecedor que
se seguiu, eu mal podia escutar as ondas do mar ali perto. Tudo que eu ouvia era o meu próprio
coração bater. Mas era muito, era estranho. Então, olhando para aqueles rostos sérios que me
encaravam aguardando... qualquer coisa, eu percebi. Eu não escutava meu coração. Não apenas.
Eram o de todos eles, que batiam em uníssono.
Eu não...
Eu não sei.
O que eles esperam de mim agora?
Eu não...
Eu sabia o que eles esperavam. Esperavam que eu cumprisse a profecia. E isso significava
a minha morte.
Eu me ergui de uma só vez, quase tropeçando nos meus próprios pés. Olhei para Nathan,
nervosa, sem saber o que fazer, e ele parecia tão perdido quanto eu. Então olhei para os
Protetores. Cada um deles, um por um, inclinaram suas cabeças, em um gesto de submissão que
eu não pedi. Nunca pedi.
Você não pode querer ser normal se nasceu para fazer o mundo tremer.
Mas era eu que estava tremendo, pai. Estava apavorada com a ideia de falhar.
E mais uma vez eu me lembrei de que meu pai não estava aqui para me dar algum conselho
profundo e oferecer uma xícara de chá. E eu queria muito tomar uma xícara de chá agora.
Eu não tive tempo de perceber o poder se desenrolando antes de a luz brilhar ao meu redor.
Eu cerrei minhas mãos, mantendo-as em punho ao lado do corpo, mas eu era luz, e ela começava
a se soltar de mim como raios em direção ao céu. Não demoraria até atingir alguém.
Minha boca soltava pedidos de desculpas incompreensíveis enquanto eu me afastava e
depois corria de volta para minha tenda, onde eu poderia me afundar naquela luz em paz. Onde
eu poderia deixá-la me consumir.
Eu estava bem certa de que aquela luz, que eles tanto adoravam, podia acabar me matando.
CAPÍTULO 35

Meus passos eram determinados, firmes. Mas meu coração ainda trovejava com a memória
da história cantada. E eu sentia como se estivesse embaixo d’água. Eu ouvia Nathan chamar meu
nome, porém eu era mais rápida em me afastar dali como se eu estivesse pegando fogo.
Eu cheguei à costa tão rápido que mal percebi as ondas até elas estarem molhando meus
pés.
Então eu senti a eletricidade, a estranheza de ter energia se juntando para criar a magia que
víamos. Não era o campo de proteção em volta da sede — que era um tipo diferente de energia
pulsante —, enquanto este que eu podia sentir crescendo mais rápido, parecendo ter um
propósito específico. Eu me virei, encarando as árvores atrás de mim, a areia branca e o breu da
escuridão que agora não me atraía tanto mais.
Meus olhos procuraram, sem encontrar, por cinco longos segundos até que Freya surgiu do
absoluto nada. Suas mãos seguravam outras duas mãos, uma de pele negra e outra de pele oliva
como a minha. Então os corpos se materializaram de vez, a poucos metros de distância.
Eu vi meu primo me olhar com tanto fascínio que parecia ter medo que eu não fosse real.
Então eu encarei os olhos marcados por exaustão e tristeza da minha mãe.
Vê-la assim, mais magra e com olheiras profundas me quebrou mais uma vez. É culpa
minha. É culpa minha. A voz em minha cabeça não se cansava de me lembrar que eu havia feito
isso, eu tinha sido fraca, tinha sido insuficiente. Eu devia ter conseguido matar Vicenzo naquela
noite, antes de a morte levar meu pai. Antes que minha mãe se tornasse essa casca da mulher que
um dia foi.
Eu me sentia tão fraca.
Era demais. A história, o passado e a visão da minha mãe a poucos metros de um toque.
Meus joelhos não foram mais capazes de me segurar e eles bateram contra a areia.
— Mãe.
Jasmine Monroe correu até mim como se o mundo pegasse fogo e eu estivesse no meio
dele.
Ela caiu no chão à minha frente, as mãos me agarrando e me puxando contra si e eu nunca,
em toda a minha vida, quis tanto ser abraçada pela minha mãe. Foram muitas as noites em que o
terror me consumiu e ela me embalou, foram muitas as quedas que ela amorteceu e inúmeras as
vezes em que ela me protegeu com tudo o que tinha. Mas agora, enquanto ela me embalava
como se eu fosse novamente apenas um bebê em seu colo, eu queria poder voltar a ser um.
Queria que ela pudesse apagar toda a dor, todo o sofrimento e todo o pânico apenas com seu
amor de mãe. Queria voltar no tempo e ser sua criança de novo.
— Pelo Destino, Alyssa! — Ela me apertava contra si, e eu me agarrava a ela. — Minha
filha. Ah, minha menina. — Sua voz quebrou mais a cada frase e logo o seu choro ecoava o meu.
— Me desculpa, mãe.
Sua mão acariciou meus cabelos em um gesto de conforto que eu nunca imaginei que seria
tão eficiente.
Minha mãe segurou meu rosto, os olhos cheios de lágrimas me observando com a atenção
de uma guerreira. Eu havia visto minha mãe chorar poucas vezes em minha vida, afinal, tudo o
que ela era, tudo o que havia sido ensinada a ser era o oposto de alguém que chorava. Mas agora
suas lágrimas caíram livremente.
— Você... — Sua voz falhou e eu vi seu peito subir em uma inspiração profunda. — Você
está bem?
Eu apenas assenti, trincando os dentes.
Sua mão percorreu meu rosto com pura adoração e alívio, um alívio tão profundo em seu
olhar triste que eu podia sentir em meu peito. Ela balançava a cabeça absorvendo cada detalhe,
observando minha mão e braço marcado pelo Destino, e parecia que ela podia ver meu coração
partido. Desesperado.
— Você vai ficar bem, filha. Você vai ficar bem. — Ela voltou a me envolver em seus
braços. Ela me ninava, dizendo tudo o que eu precisava ouvir.
Dizia que eu não estava sozinha. Dizia que nunca foi mais agradecida ao Destino quanto
quando descobriu que eu estava viva. E que iria lutar comigo, que eu não precisava segurar
aquele peso sozinha, que ele não precisava ser somente meu.
E eu chorei. Chorei porque ainda tinha minha mãe, mas eu não conseguia preencher aquele
vazio, aquele completo desespero por saber que eu nunca mais veria meu pai. Que ela nunca
mais o veria. Jasmine havia perdido para sempre o seu elo e eu me desesperava ao pensar em sua
dor. E era terrível pensar que ela não teria seu “felizes para sempre”, que havia passado grande
parte de sua vida ao lado do meu pai fugindo para me manter segura.
Chorei porque todos precisavam que eu fosse um tipo de salvação que, se eu fosse,
significava que eu não poderia ser nada além. Chorei porque, mesmo ali, quente e segura em
seus braços, eu ainda sentia aquele poço profundo de poder querer se rebelar, querer queimar
aquele mundo.
Chorei porque eu não era eu.
E porque talvez Vicenzo tivesse vencido e ele tivesse mesmo conseguido me corromper.

Eu e minha mãe passamos um longo tempo segurando uma à outra, os joelhos fincados na
areia e as ondas leves do mar nos molhando. Foi somente quando consegui controlar as lágrimas
que nos soltamos e voltamos a encarar o mundo.
Jonnah esperava por nós pacientemente. Freya havia se afastado um pouco e nos observava
de uma distância segura, encostada em uma árvore. A novidade ali era Nathan, que nos
observava de longe, mas ao ver que nós havíamos levantado, se aproximou de Jonnah.
Eu limpei as malditas lágrimas do meu rosto. Eu precisava mesmo ter um plano de
contingência para essa merda. Chorar o tempo todo não era o ideal.
Então, surpresa, eu vi minha mãe soltar a minha mão e caminhar com determinação até
Nathan. Ele a olhou, parecendo envergonhado ou preocupado. Então ela o puxou para um abraço
que uma mãe daria a um filho e eu ouvi quando ela sussurrou:
— Obrigada.
Eu sabia que ela sabia. Pude ver quando ela colocou a mão sobre o peito dele e fez um
meneio curto de cabeça, como se dissesse: “vamos resolver isso”. Naquele momento, Jasmine
agradecia Nathan por me tirar das garras de Vicenzo, mas também prometia o mesmo que havia
prometido a mim: “você não está sozinho, essa luta é nossa”. E meu coração inflou de orgulho e
contentamento, porque finalmente minha mãe poderia voltar a ser a figura materna que Nathan
tanto precisava. Os anos separados não queriam dizer que ela não se importava, mas eu sempre
fui sua maior preocupação. Agora, eu era praticamente invencível, se não fosse por um pequeno
detalhe. Minha mãe podia finalmente abrir espaço em sua vida para se preocupar com o
garotinho que ela aprendeu a amar quando ainda era um bebê.
Eu me lembrava de como ela o protegia quando éramos crianças. Como o ninava como se
fosse sua própria mãe, porque Diana não tinha o privilégio de fazer o mesmo. Jasmine Monroe
amou a Fidly e amava o seu filho também. Ela só tinha estado com muito medo para perceber
que o amor não era uma fraqueza.
Nathan parecia sem palavras para a demonstração de afeto. Ele não estava acostumado
com aquilo. Nunca se sentia bom o bastante ou merecedor de amor, e o amor paterno era o tipo
que ele menos havia vivenciado. Mesmo agora, depois de tudo, Brian estava enfurnado sabe o
Destino onde, porque não podia encarar o filho. Mas Nathan ergueu os braços e abraçou minha
mãe de volta, se permitindo ser consolado e agradecido.
Eu os deixei terem aquele momento e corri para abraçar Jonnah, que me recebeu de braços
abertos.
— É surreal e incrível ver você, Alyssa. — Ele me apertou em seus braços, a voz rouca de
emoção. — Nunca fui tão grato ao Destino por uma surpresa.
Quando nossos olhos se encontraram eu disse, e esperava que ele pudesse ver o quão grata
eu era:
— Obrigada por cuidar da minha mãe, Jonnah. Nathan me contou como esteve ao lado
dela por todo esse tempo e eu não tenho como agradecê-lo o suficiente por isso.
Jonnah apenas sorriu.
— Ela é minha família também, Aly. Não há o que agradecer.
Mas havia. Havia muito. Jonnah deixou tudo de lado para cuidar da minha mãe. Foi
escorraçado por Akantha e mal falado por Ravenna. Ignorou todas as suas obrigações porque não
deixaria minha mãe sozinha nem por um segundo. Ele fez exatamente o que eu pedi, e eu sabia
que nem toda família era uma família boa, mas Jonnah era. Jonnah, que foi criado pela tirana
Akantha, que cresceu sem saber o que era ser amado e sem entender quem seus pais haviam sido
de verdade, mas que mesmo assim tinha o coração puro.
O reencontro se estendeu em longos abraços e palavras de conforto. Nathan me observava
em silêncio, como se esperasse que eu caísse a qualquer momento e estivesse ali para me
segurar. E minha mãe me tocava o tempo todo, como se parecesse tentar fazer o cérebro
assimilar que eu era real.
Ainda encostada em uma árvore, Freya me observava com um olhar estranho no rosto. Seu
nariz fino estava meio franzido e os olhos azuis pareciam turvos, e eu não sabia dizer se era
tristeza ou surpresa que a marcava.
— Freya disse que Aisha iria nos deixar usar uma das tendas — minha mãe disse, sua voz
parecendo muito mais viva agora. — Está tarde. Tenho certeza de que precisa descansar.
Eu desviei o olhar da Guardiã.
— Vão na frente. Nathan pode levá-los até ela. Preciso falar com Freya.
Minha mãe me olhou, incerta. A emoção estampada no rosto, a confirmação de seu pânico.
— Eu estou bem, mãe. Te encontro em breve.
Nathan me observou por um instante antes de se aproximar da minha mãe e tocar seu
ombro.
— Vamos, vou arrumar algo para você e Jonnah comerem também.
Estava óbvio que ela não queria, mas precisava se acostumar com a ideia de que ela não
poderia ficar vinte e quatro horas por dia de olho em mim. Este era parte do processo e ela
precisava se libertar do medo. E, pelo Destino, ela precisava mesmo comer alguma coisa.
Jonnah concordou, puxando-a pela mão, que soltou um suspiro cansado, mas seguiu os
garotos para longe.
Eu voltei a olhar para Freya e caminhei até ela.
A Guardiã da Europa era uma grande incógnita. Por fora ela parecia bastante com uma
princesa dos desenhos animados. Traços finos e delicados, olhos azuis e boca rosada, como se
tivesse inspirado a própria boneca Barbie. Mas por dentro ela parecia um caos. Eu podia ver o
peso em seus ombros e estava claro que essa dureza em seu olhar foi resultado de uma vida tão
dura quanto.
Mesmo assim, sem que eu ao menos pedisse, ela saiu daqui e foi até minha mãe. Trouxe-a
até aqui para que eu tivesse família por perto. Antes mesmo disso, ela ajudou meus amigos a
invadirem o palácio de Vicenzo e me resgatar. Foi ela quem me impediu de matá-lo e me matar
no processo. Sem ela, meus amigos nunca teriam atravessado a fronteira de Florença, muito
menos invadido o palácio com tanta facilidade.
Tecnicamente, as Guardiãs deveriam interferir o menos possível para que a balança não
pendesse demais, mas Freya ignorou as regras e nos ajudou mesmo assim.
— Obrigada por trazê-los. Eu não sabia o quanto precisava disso.
Ela deu um sorriso fraco, que não chegou aos seus olhos.
— Nunca subestime o poder da família.
Eu a encarei, tentei ler o que ela não falava, mas que seus olhos deixavam escancarados.
Freya parecia de luto, como se o mundo fosse tão vazio agora que não tinha cor alguma. Ela
desviou o olhar do meu, encarando as ondas quebrando na costa.
A mulher havia sido enganada pelo homem que havia amado, enquanto ele amava outra
que tinha o mesmo rosto que o meu. Ela havia cedido parte de seu poder para lhe garantir
imortalidade, então foi apunhalada pelas costas. Eu podia entender se ela não quisesse me
encarar mais do que estritamente necessário.
— Você pode me odiar um pouco por me parecer com ela. Eu não a julgaria por isso.
O azul pálido de seus olhos encontraram os meus.
— Olhar você não é meu passatempo favorito — disse, a voz fria de sempre —, mas
mesmo um cego que tenha conhecido Nixya saberia a verdade. E a verdade é que você não é
nada como ela.
Eu queria poder saber quem Nixya foi de verdade para ao menos entender essa bagunça em
que me enfiaram.
— Todas as Guardiãs a conheceram?
— Nixya era uma deusa importante. Nós sabíamos quem ela era, algumas de nós a
havíamos visto vez ou outra. Mas meu continente era significativamente mais atraente para ela.
— Ela revirou os olhos. — Pode imaginar o porquê disso, claro.
Vicenzo.
— Falar dela, no entanto, foi estritamente proibido pelo próprio Destino. Depois de tudo o
que aconteceu, ele queria que sua história morresse junto com ela. — Os dedos longos e finos
passearam pelo tecido das suas belas roupas de alfaiataria escura. Freya parecia se vestir como
uma monarca moderna. — Cassandra percebeu algo logo que você nasceu, mas só absorveu a
semelhança quando você já era mais velha. E eu só a conheci pessoalmente há poucos dias. Há
segredos que somos obrigadas a manter, e há segredos que acabam nos guardando.
— Não me surpreende que o Destino não deixe as coisas claras nem mesmo para vocês.
Seu sorriso foi ácido, ressentido.
— Não, não surpreende.
Freya deu um passo em direção à floresta, provavelmente para voltar para sua própria
tenda. Ela não me parecia o tipo que ficaria para aproveitar as comemorações com os Protetores.
Estava claro que, para ela, mesmo aquela conversa havia chegado ao fim, mas eu me antecipei e
falei:
— Obrigada por ter me parado. — Engoli em seco quando ela voltou a se virar para mim,
me encarando com aquela profundeza oceânica gélida que pareciam seus olhos. — E por ter nos
tirado do palácio.
— Mudou de ideia sobre se matar, Alyssa?
Gelo puro pareceu preencher minhas entranhas.
— Sou grata por ter tempo para pensar — disse, simplesmente. — De qualquer forma,
acho difícil fazer algo sem saber controlar essa luz primeiro.
Freya pareceu mudar de ideia e voltou a se aproximar, os braços agora cruzados sobre o
peito.
— Vai precisar controlar suas emoções se quer controlar seu poder. Aisha já deve ter dito
isso, mas a luz é uma extensão sua, quanto mais descontrolada você está, mais descontrolado o
poder está.
Assenti.
— Eu sei. Só está... — desviei o olhar — difícil.
Eu poderia estar delirando, mas pensei ter visto um pouco do seu gelo quebrar.
— Perder sempre é difícil. — Assim como o olhar duro, sua voz não tinha emoção. — Eu
ficarei com Aisha para ajudar você a aprender como controlar seu poder. É o mínimo que posso
fazer por ter criado todo este caos.
O pequeno vestígio do gelo quebrando em seu olhar? Agora eu percebia que era culpa
misturada à dor que ela tão claramente carregava. Algo me dizia, porém, que a dor era bem mais
profunda, bem mais complexa, do que a traição de Vicenzo.
— Eu não a culpo por nada disso. — Desviei os olhos dela, porque apesar de
racionalmente não a culpar, eu me pegava pensando que meu pai estaria vivo se ela nunca tivesse
dado a imortalidade a Vicenzo. — Seu erro foi amar. — Respirei fundo, tentando apagar os “e
se” da minha mente. — Há erros piores.
A brisa do mar balançou meus cabelos e eu senti quando Freya parou ao meu lado. Agora,
encarando o mar, nós duas devíamos ser imagens tão opostas uma da outra fisicamente, quanto
parecidas naquela frieza que parecia começar a endurecer meus ossos e que já a havia petrificado
inteira.
Fisicamente, todas as Guardiãs, ou pelo menos as que conheci, pareciam imortalizadas nas
idades em que foram abençoadas, que não pareciam chegar aos trinta anos. Das três, Cassandra
era quem parecia relativamente mais velha e Aisha, a mais nova. Olhando para Freya, ela não
parecia ter mais de 25 anos, apesar de saber que havia vivido milênios inteiros. Com um arrepio
frio, a lembrança de Vicenzo inundou minha mente. Ele também não parecia ter mais de 28 anos,
mas havia vivido pelo menos mil vezes essa idade.
— Às vezes eu fico pensando se eu estava tão desesperada por amor que me ceguei para
todos os outros sinais que ele deu. — Sua voz era baixa, mas eu podia escutá-la perfeitamente.
— Eu nem sempre fui assim, sabia? Diferente de Aisha e das outras, eu estava satisfeita com a
vida que eu levava antes de me tornar uma Guardiã. Meus pais eram líderes do vilarejo em que
morávamos, tínhamos tudo o que precisávamos e mais. Eles eram bondosos e minha irmã era
como um raio de sol em nossa casa, sempre trazendo aquele calor reconfortante, sabe? — Eu
nunca tive uma irmã, mas podia imaginar alguém como ela descrevia. Meu pai foi assim, como
um raio de sol, caloroso e capaz de trazer conforto. — Minha vila não sofria com ataques, sejam
eles humanos ou vindos de outras dimensões. Nós vivíamos seguros, o que eu não posso dizer
que era o caso das minhas irmãs em seus respectivos continentes, que precisaram proteger suas
casas antes mesmo de serem abençoadas pelo Destino. Mas eu era feliz. Há milênios, eu fui feliz.
Eu podia ouvir seu coração bater em sintonia com as memórias que faziam seus olhos
espelharem a água daquele oceano à nossa frente.
— O que te fez aceitar a benção?
A Guardiã abriu um sorriso estranho ao ouvir a palavra “benção”.
— O Destino já havia me procurado, mas eu havia negado. Não queria ser imortal. Queria
viver uma vida humana simples e segura ao lado da minha família. Pensava que um dia me
casaria, teria meus próprios filhos, então envelheceria e morreria. Era nisso que eu acreditava,
não em destino, mundos em guerra e bestas raivosas. — A energia provinda da sua magia agora
havia se intensificado para um zumbido. Ela estava sob o seu controle, era óbvio, mas também
estava à margem, pronto para se deixar ir. — Mas então minha irmãzinha adoeceu. Letzia tinha
uns dez anos e contraiu uma gripe muito forte e nem eu e nem meus pais tínhamos muito o que
fazer para ajudar. Então eu recorri ao Destino. — Seus olhos me encontraram por um segundo.
— Todas as minhas irmãs foram escolhidas, como eu, mas nenhuma barganhou. Elas aceitaram
ou porque se encantaram com o que poderiam fazer ou porque poderiam usar essa benção como
uma forma de proteger seu povo. Mas eu não. Eu teria sido egoísta caso fosse o povo em minha
vila quem estava em perigo e precisava do meu sacrifício. Mas não pude ser egoísta vendo minha
irmã definhar. Ela era apenas uma criança.
A tristeza em seus olhos era tão palpável que tive medo que a barganha tenha sido só mais
uma mentira do Destino.
— Ele a curou?
Para meu alívio, Freya assentiu.
— Depois que fui abençoada e me tornei uma Guardiã, ele curou minha irmã e reescreveu
seu destino. — Sua mão rodava um dos braceletes em seu braço, uma joia bela e antiga. —
Minha irmã viveu uma longa vida e meus pais também. Eu garanti que estivessem seguros, assim
como todo meu vilarejo. Mas enquanto o tempo passava para eles, ele permanecia estagnado
para mim. As pessoas, mesmo eu fazendo de tudo para impedir que as bestas chegassem até
nossa casa, me olhavam torto pelas ruas. Algumas vezes... — ela inspirou — algumas vezes,
quando ainda estava aprendendo a lidar com o que o Destino havia me dado, cheguei a perder o
controle e causar algumas, bem, perturbações. Nunca cheguei a machucar ninguém, mas a
maioria naquela época era facilmente impressionado. Aposto que se eu abrisse um portal no
meio da Times Square até o Coliseu os humanos atuais nem mesmo ergueriam os olhos de seus
celulares. Ou apenas passariam um bom tempo buscando o melhor ângulo para uma boa
filmagem.
Aquilo parecia algo que alguns humanos que eu havia encontrado fariam.
— Mas você ficou com sua família até... — mordi os lábios — o fim?
Freya não demonstrou nenhuma reação.
— Praticamente. Eu viajava bastante, mas os portais facilitavam muito meus percursos
então eu estava quase sempre em casa ao anoitecer. Meus pais faleceram primeiro, já bem
velhos. Mas foi durante as Grandes Invasões, quando as dimensões começaram a colidir e eu e as
minhas outras irmãs tivemos muito trabalho para manter o equilíbrio. Minha mãe morreu
dormindo e meu pai não demorou muito até que partisse também, ansioso para reencontrá-la no
pós-vida.
— Eu sinto muito — sussurrei.
Ela me dispensou com um leve movimento da mão.
— Não sinta. Eu ainda era a mesma jovem que sentia precisar dos pais como se nenhum
tempo houvesse passado, mas eles já estavam bem velhos. Era a hora e foi natural — disse. —
Eu estava ocupada buscando por humanos que pudessem ser bons Protetores, porque
precisávamos de ajuda àquele ponto, e eu tive pouco tempo livre para sofrer em meu luto. O que
de certa forma imagino ter sido uma coisa boa.
Pensei naqueles meses com Vicenzo em que eu não me lembrava de nada, e não sabia que
eu deveria estar de luto, e como ao me lembrar, o luto pareceu me engolir com dez vezes mais
força, muito mais potente do que deveria. Eu não sei se estar ocupada gerava o mesmo efeito
quando, sozinha, o luto finalmente pudesse te encontrar, mas eu esperava que não. Eu esperava
que ela realmente tenha lidado melhor com isso do que eu estava lidando agora.
Porque perder um pai era bem parecido com perder uma parte de si.
Quem sabe ocupada, ela não tenha tido tempo de perder nada.
— Foi quando conheci Vicenzo. — Imediatamente minha expressão se fechou e a
amargura preencheu minha boca. Apenas pensar sobre o desgraçado me fazia querer poder
atravessar continentes e matá-lo com minhas próprias mãos. — À primeira vista ele parecia
bastante com um herói. Eu o observei por algumas semanas antes de convidá-lo para a causa e
ele era sempre muito prestativo. Ajudava as pessoas que viviam em sua cidadela, trabalhava
incansavelmente como ferreiro e tinha um gosto particular por armas, que era seus objetos
preferidos de confeccionar. Por esse vislumbre, parecia que seria um bom Protetor.
Bufei.
— Maravilhoso.
Freya se virou para mim.
— Será que as pessoas nascem más, Alyssa? Ou será que a vida as transforma? Em meus
mais de mil e trezentos anos de vida, nunca consegui chegar a uma resposta: se é transformado
pelo meio ou simplesmente há mais mal do que bem dentro de si? — Ela realmente parecia
contemplar seu questionamento. A lembrança de meu pai me dando aulas de filosofia sobre
temas parecidos foi mais uma apunhalada em meu peito, que eu precisei buscar por ar para não
cair. — Honestamente, Alyssa, eu não sei. E naquele momento eu acreditei no que via. Vicenzo
se tornou um Protetor habilidoso, e seu charme não era um mito, porque logo havia se
estabelecido como o líder.
— Difícil imaginar que não havia ninguém melhor — murmurei.
— Com certeza deveria haver. Mas Vicenzo não carregou uma horda consigo quando
deixou os Protetores à toa. Ele é bom em manipular — disse, os olhos enevoados. — Eu fui
suscetível o bastante e acreditei quando me cortejou, quando buscou minha aprovação, se tornou
meu amigo e então meu amante. — Fiz uma careta com a mera ideia do último. — Eu... Eu acho
que estava desesperada por algo. Já se sentiu tão sozinha, tão incrivelmente distante de tudo e
todos, que amor parecia um mero tópico de histórias distantes?
Sim.
Por todos os anos que vivi afastada de tudo e todos, enquanto meus pais fugiam comigo, eu
me senti exatamente assim: sozinha.
— Minha irmã tinha seu marido, seus filhos já crescidos e viviam a vida simples que eu
havia imaginado para mim. Ela era tão feliz, e eu era feliz por ela. Mas eu queria ser feliz por
mim também.
— E você se apegou ao que Vicenzo parecia lhe prometer. — Cheguei a conclusão por ela.
A Guardiã assentiu.
— Ingenuidade e estupidez em demasiado, não é? — Seu sorriso era mais sombrio que a
noite que se estendia no horizonte acima do mar. — Eu não sabia que ele havia conhecido Nixya.
Acreditei quando ele disse que queria se casar, que não poderia aceitar a possibilidade de uma
vida sem mim. — Seu riso então pareceu uma bufada. — Ele falou todas as baboseiras que eu
queria ouvir, e eu acreditei em cada uma delas. Tanto que, quando ele voltou completamente
machucado de uma missão, eu quis poder garantir que nunca viveria uma vida sem ele. Foi
Vicenzo quem teve a ideia de eu ceder imortalidade a ele, mas fui eu quem pensou nisso
primeiro. Acho que ele viu em meus olhos, naquele dia, que eu faria.
— O Destino não tentou te impedir? Ele nunca nem se opôs ao relacionamento?
Ela deu uma olhada para o céu.
— Ah, claro que se opôs. Um de nossos juramentos é que nunca nos permitiríamos amar
alguém mais do que amávamos nossas obrigações — falou, com escárnio. — Por isso somos
inférteis, sabia? Para que nunca gerássemos uma vida que passaríamos a amar mais do que nosso
compromisso com a balança.
Engoli em seco. Isso era cruel. Uma vida imortal sem a possibilidade de amor era de fato
uma vida mais segura e menos imprevisível, mas era uma vida solitária e muito possivelmente
triste. Solitária.
— Mas o Destino não teve tempo de fazer algo quando eu realizei todo o feitiço e tornei
Vicenzo imortal. Às vezes acho que nem mesmo podia interferir, não em algo tão grande. Os
fios estavam traçados e eu só os puxei. — Ela não sorria mais. — Vicenzo acordou em seguida já
muito certo de quem era. Nem fingiu mais que me amava ou que ao menos gostava de mim. E
então o caos se instalou e o resto é história: Protetores desertando, dimensões colidindo,
humanos sendo atacados pelas bestas destas dimensões, minhas irmãs tentando me ajudar a
resolver o erro que eu havia cometido... — suspirou — minha burrice causou um grande
alvoroço.
Eu queria poder confortá-la, mas eu não sabia como, então apenas busquei saber mais:
— Nixya agiu então?
— A desgraçada já estava agindo há tempos. Você precisa entender, Alyssa, que o Destino
não é tão íntegro quanto gostaríamos, mas Nixya... Nixya era indomável, cruel e com uma
determinação ferrenha para conseguir o que queria.
— E o que ela queria?
Freya deu de ombros.
— Nunca descobrimos exatamente, mas me pareceu óbvio que ela queria mais poder para
si e entregar este mundo de bandeja para seus amiguinhos de outras dimensões faria com que ela
tivesse um exército leal — disse. — Não me peça para entender as motivações de uma deusa.
Deuses são seres estranhos. Quem sabe ela até amava Vicenzo, quem sabe me usou para que ele
tivesse imortalidade porque queria uma vida ao lado dele, mas aquela mulher tinha planos
próprios. Parte de mim até mesmo a respeita por isso. Ao menos não se deixou levar pela
promessa vazia de amor.
Franzi o cenho para seu comentário.
— Ela ainda assim morreu.
Freya me olhou.
— Mas morreu pelos planos dela, não de outra pessoa. Nessa história, eu diria que Vicenzo
foi mais peão do que rei, até porque eu duvido que houvesse espaço suficiente para um rei
quando ela era a rainha.
O barulho de conversas indistintas e um pouco distantes a parou. Nós nos viramos em
sincronia para as árvores e percebemos, apesar de não ver ninguém, que a noite dos Protetores ali
estava acabando e eles estavam se retirando para suas tendas. Eu mesma sentia o peso deste
último dia como se meus ossos fossem feitos de concreto.
— Por que me contou tudo isso? — perguntei, baixo para que ninguém que estivesse por
perto pudesse nos ouvir.
A Guardiã me encarou por um segundo, então deu de ombros e se virou para o mar.
— Porque acho que te devia uma explicação. Não é uma muito boa, mas pelo menos agora
você sabe um pouco do que aconteceu e das coisas que levaram até você e ao destino que lhe foi
traçado — disse. — E porque... — sua voz agora era bem mais baixa — porque eu prendi
Vicenzo por anos antes que ele conseguisse se libertar e tomar a minha cidade. Então eu o assisti
matar minha irmã, seu marido, seus filhos e os filhos de seus filhos para que o meu sangue,
minha herança, morresse em mim. E eu quero que saiba que eu entendo sua raiva, entendo seu
luto e sinto seu desespero, porque eu também os sinto. E eu sinto muito que eu tenha causado
tudo isso, voltaria no tempo e mudaria tudo se fosse possível, mas como não é, quero que saiba
que luto com você.
Meu coração trovejava em meu peito. Minhas mãos suavam e minha respiração parecia
rasa.
A Guardiã da Europa prometia a mim sua lealdade. Seu apoio. Ela não precisava, eu nunca
acreditei nos comentários maldosos que alguns Protetores faziam ou na mera possibilidade de
que ela poderia voltar a ficar ao lado de Vicenzo. Mas ouvir sua história, ouvir tudo o que
Vicenzo tirou dela, e como ela entendia a minha dor, fazia com que eu me sentisse um pouco
menos sozinha. Ou um pouco mais amparada.
E a dor que ela dividia... Eu podia senti-la também. Vicenzo matou sua família restante, a
irmã pela qual ela havia aceitado os termos do Destino para conseguir salvar. O motivo pelo qual
ela havia deixado seus sonhos de lado e se tornado quem se tornou. O desgraçado tomou sua casa
e levou sua honra. No entanto, ela continuava em pé.
Peguei sua mão, apertando-a na minha. Eu não tinha palavras.
— Você chegou até aqui, Alyssa — disse, apertando minha mão de volta. — Pode ir muito
além.
CAPÍTULO 36

O fim do dia 22 de novembro foi consideravelmente mais agradável que o seu início.
Mesmo assim, a noite começava a querer dar espaço para o crepúsculo e eu nunca tive a
oportunidade de parabenizar Alyssa como deveria. Era seu aniversário, afinal. Mas, apesar de
tudo, ela pelo menos recebeu uma coisa boa: a mãe estava com ela.
Aisha havia dado uma tenda para Jasmine, porém, ela e Alyssa ficaram na nossa
conversando até bem tarde, depois que Aly voltou de sua conversa com a Guardiã europeia.
Então, por exaustão, acabaram adormecendo juntas e abraçadas. E eu deixei que aproveitassem
esse reencontro em paz. Os últimos meses foram um inferno para mim, mas mal posso imaginar
como foram para Jasmine.
A essa hora da madrugada, todos os outros já deviam estar dormindo, apesar de eu não ter
a menor ideia de onde estava Brian. Ele não apareceu para o jantar, ou em nenhum outro
momento, e era bem possível que nem estivesse mais na África.
Um filho que lhe causou a perda da mulher que amava já era difícil de engolir. Um filho
que se tornou aquilo que havia matado essa mulher? Insustentável.
Acho que eu não o culpava. Parte de mim sentia o mesmo.
Parei em frente à tenda de Jasper. Eu poderia dormir lá esta noite. Tecnicamente eu não
tinha uma tenda, a minha era a de Alyssa, mas não iria interromper o encontro de mãe e filha,
principalmente não dada as circunstâncias deste encontro.
Eu senti a presença antes de escutar o passo incerto que deu. Me virei para encontrar a
Desertora de cabelo ruivo-alaranjado me observando com os olhos cerrados e um sorriso
travesso nos lábios.
— Também preocupado com a possibilidade de cortarem sua garganta enquanto dorme?
Não havia ninguém por perto, os Protetores já dormiam há um bom tempo e apenas os
guardas em ronda deviam estar acordados.
— Não seria assim tão fácil se tentassem.
Ela bufou uma risada.
— Arrogância — murmurou. — Disfarça bem suas emoções mais fortes.
Minha sobrancelha pulou para cima. De que porra ela estava falando?
Lorena havia chegado mais perto e agora eu podia vê-la sob a luz de uma tocha flamejante.
— Como você conquistou a minha amiga é um grande mistério — zombou.
Cruzei meus braços, irritação aquecendo meu sangue. Eu não gostava de Lorena. Ela tinha
a língua grande e, apesar da hipocrisia em meu julgamento, ela era uma Desertora e eu
simplesmente me irritava com sua presença. Mas ela, pelo menos, havia se provado leal à Alyssa
e isso bastaria. Se ela conseguisse manter a língua sob controle.
— Posso entender porque teria gente querendo cortar sua garganta.
Ela deu uma risadinha.
— Claro que pode. — Ela apontou para a tenda atrás de mim. — Está indo dormir?
— Era o meu plano.
Ela assentiu, de repente parecendo ansiosa. As garras em suas mãos se fecharam e depois
se esticaram. Lore deu um passo para mais perto. Quando falou, sua voz estava mais baixa:
— Está preocupado? Digo, preocupado que Vicenzo possa nos forçar a fazer algo, ou que
ele possa aparecer aqui a qualquer momento? — Ela deu uma olhada para trás e depois voltou a
me encarar, o olhar nervoso. — Sybil e aqueles outros dois estranhos são bastante...
— Perigosos? — ofereci.
— Eu ia dizer "aterrorizantes pra cacete”, mas isso aí funciona também.
É óbvio que eu estava preocupado. Caramba, eu estava apavorado com a ideia de que
aquela merda de juramento poderia me forçar a fazer algo contra Alyssa. Se eu parasse para
pensar sobre isso, provavelmente iria embora e manteria uma distância de pelo menos mil
quilômetros entre nós. E era por isso que eu não me permitia pensar demais. Me afastar dela
poderia muito bem me matar.
— Não acho que Vicenzo vai tentar um ataque tão óbvio. Claro, o bastardo deve estar
traçando pelo menos cinco planos diferentes, mas não irá fazer nada precipitado, até porque
agora Alyssa é uma ameaça tão grande quanto ele.
— Mas ela morre se matá-lo.
Engoli em seco.
— Ela não demonstrou se importar com isso no último embate. Vicenzo provavelmente
não conta mais com essa carta na manga.
Lore soltou um suspiro. Daqui eu podia ver o cansaço exposto em seu rosto.
— É demais, Nathan. Alyssa vai enlouquecer antes que esta guerra acabe.
— É nosso trabalho ajudá-la para que isso não aconteça — eu disse. — Quando ela estiver
na beira do abismo, somos nós que precisamos puxá-la para a segurança.
A Desertora soltou um suspiro tenso.
— Ela parece estar nos tirando de abismos mais do que nós estamos tirando ela.
Não era uma mentira. Se não fosse Alyssa, teríamos sido vencidos hoje.
— Então precisamos melhorar.
Aquele era o único fato que eu podia oferecer. Seus olhos encontraram os meus e Lorena
abriu um sorriso hesitante.
— A sua devoção é bonita. — Pareceu refletir, então seu rosto ascendeu com uma nova luz
de percepção. — Vocês são... São predestinados?
Eu tinha certeza de que, de todas as mil coisas que eu não queria conversar com Lore, falar
sobre meu relacionamento com Alyssa definitivamente entrava na lista. Além do mais, ser ou
estar predestinado a alguém não era algo do qual eu saiba muito a respeito além do fato de que
eu e Alyssa tínhamos o elo e que o universo sempre dava um jeito com que encontrássemos um
ao outro. Era isso. Este era todo meu saber.
Então eu apenas assenti em resposta.
— Caramba. A gente escuta falar sobre, né? Mas eu nunca imaginei que fosse real. Quer
dizer, há todas essas lendas e mitos e histórias das quais os Protetores contam desde que somos
criancinhas, mas eu nunca tinha visto ninguém ter certeza de ser predestinado a outra pessoa —
disse. — Como... como você percebeu?
Precisei segurar um suspiro de frustração. Já devia ser por volta das três da madrugada.
Como eu percebi que eu e Alyssa tínhamos o elo e que nossas vidas estavam ligadas uma à
outra? Como eu percebi que éramos destinados a nos encontrarmos?
Porra, eu só senti.
— Acho que eu percebi na noite em que ela foi atacada ao sair do Outro Lado buscando
por mim. Eu estava a caminho do Brasil porque tinha decidido que ficar longe dela seria a
melhor escolha, porque eu não conseguia me concentrar em ser apenas seu Protetor — contei,
sentindo a ansiedade borbulhar no fundo do meu estômago com aquela memória. — Eu iria
encontrar outro Protetor e iríamos juntos em seu avião, mas de repente eu não conseguia entrar.
Era como se meu corpo tivesse travado e simplesmente não aceitava dar o próximo passo que me
levaria até dentro daquele avião, que então me tiraria de perto dela. Eu simplesmente não
conseguia me livrar da sensação de pânico que eu sentia sempre que pensava que estaria a
quilômetros de distância de Alyssa. Então eu percebi que era mais que atração física. Era mais do
que simplesmente gostar da companhia dela.
— Podia ser amor — Lore me interrompeu.
— É amor — eu disse. — Já era amor quando éramos adolescentes. Mas quando eu corri
de volta para o Lago e encontrei meu pai dizendo que ela havia se machucado... Foi como ter o
ar arrancado dos meus pulmões. Foi desespero como nunca havia sentido antes. E eu lembro de
correr e atravessar para o Outro Lado para encontrá-la viva, acordada e me encarando com
aqueles grandes olhos de nanquim e eu senti. Como se fosse um fio invisível que pareceu mais
claro quando a olhei. Um fio que unia nossas almas e que eu daria a vida para manter intacto.
Lorena me encarou com brilho nos olhos e seu sorriso se expandiu.
— Isso é bem romântico, Cross.
Revirei os olhos.
— Você perguntou.
Ela apenas balançou a cabeça, caminhando de um lado para o outro.
— Posso ir dormir agora ou tem mais alguma pergunta profunda?
Lorena parou.
— Se você conseguiu sentir o fio então, por que não conseguiu sentir que ela estava viva
quando foi levada por Vicenzo?
Eu havia me questionado a mesma coisa milhões de vezes desde que a encontrei em
Florença. Como simplesmente não soube que ela não podia estar morta, que o fio continuava
intacto?
— Acho que o desespero me cegou. Eu o vi levando-a. Na minha cabeça estava claro que a
mataria — memórias daquela noite inundaram minha mente e eu senti o impulso involuntário de
querer correr de volta para a cabana de Alyssa. — Eu e outros Protetores a procuramos por todo
lugar depois, buscamos qualquer resquício que ela possa ter deixado, mas nunca encontramos
traço algum de Alyssa. Talvez Sybil tenha usado sua feitiçaria, não sei. Mas onde quer que eu
procurasse, eu não encontrava nada. E aquele fio... eu pensei que seria parte constante da minha
vida. Pensei que mesmo com ela morta, eu o sentiria porque Alyssa era parte da minha alma. Eu
não o entendia como um pedaço de vida apenas.
— É, acho que eles não te entregaram um manual, não é mesmo?
Quase ri com sua resposta.
— Não, não entregaram.
Lorena se aproximou e deu dois tapinhas em meu ombro. Eu a encarei, a sobrancelha
arqueada, o olhar atento.
— O tempo leva a perfeição. Aposto que de onde esse “fio” vem, há mais coisinhas
interessantes — disse. — E se eu fosse predestinada a alguém, gostaria de saber cada detalhe.
Eu não tive tempo para pensar sobre isso. Nem mesmo conversei com Alyssa para tentar
entender como ela sentia o elo. Na noite em que falei sobre isso, foi tudo muito caótico, foi
quando descobri o preço da profecia e quando houve o ataque. Eu nunca parei para pensar que o
elo podia ser algo mais do que simbólico. Mas se o fio existia e se eu quase conseguia sentir o
que Alyssa sentia... Então poderia haver mais.
Parte de mim pensou em perguntar a Brian, mas isso não parecia possível agora. Meu pai
não falaria comigo, eu tinha certeza. Na verdade, ele nunca estava disposto a falar sobre a minha
mãe. Então cabia a Alyssa e eu descobrir.
Soltei um suspiro exasperado.
— Vai para sua tenda dormir, Lorena. Esta guerra está só começando e não preciso de
aliados dormindo em combate.
Ela levou a mão ao coração, a boca em um O e o olhar falsamente chocado.
— Aliados? Pelo Destino, Nathan, você acabou de me incluir ao seu clube pessoal?
Bufei.
— Não abuse.
A Desertora gargalhou.
— Ah, seremos bons amigos, sabia?
Ela não esperou resposta, saiu saltitando em direção à própria tenda, finalmente me
deixando em paz.

Jasper roncava como um trator.


Não sabia como não me lembrei disso. Eu poderia ter dormido no chão da tenda que
Roman e Jonnah estavam compartilhando. A porra do chão frio era melhor que passar a noite
ouvindo Jasper roncar o suficiente para que a tenda tremesse.
— Bom dia, garoto.
Ergui os olhos para Jasper.
— Seria se eu tivesse dormido sem você.
— Ei, eu não te convidei para o meu quarto. Você veio por conta própria.
Revirei os olhos.
Vesti o casaco de couro e saí da tenda. Akin havia nos entregado alguns uniformes dos
Protetores para usarmos e a ironia de colocar aquela roupa sobre meu peito marcado não me
passou despercebida. Claro que tampouco passou para os Protetores que me encaravam ao passar
por mim. Um dos homens armados pareceu trombar comigo apenas para não enfiar a adaga em
meu pescoço.
— Olha por onde anda, irmão — Jasper o recriminou.
— Olha com quem anda, irmão — foi tudo o que o Protetor respondeu.
Precisei de todo meu autocontrole para ignorar o homem e os outros Protetores que
passavam por mim com repulsa nos olhos. Talvez Lorena estivesse certa e tenha sido mesmo um
milagre que não tenhamos acordado com nossas gargantas rasgadas.
Encontramos Roman, Serena e Jonnah comendo pães com ovos e salmão fresco, que me
fez imediatamente salivar. Por sorte, Roman me cumprimentou, estendendo um embrulho que
logo percebi ser um pão igual ao seu. Serena fez o mesmo por Jasper. A primeira mordida já me
levou direto para o céu. Eu poderia considerar passar um tempo aqui se ainda fosse Protetor.
Dias ensolarados, natureza, mar e comida boa? Era como estar no Brasil.
Eu havia passado muito tempo lutando em sedes no Brasil, em especial no estado de Minas
Gerais de onde meus avós maternos vieram, e muitas vezes pensei em me estabelecer por lá. A
comida era a melhor, os humanos eram agradáveis e, apesar do trabalho intenso, a vida era
interessante e os líderes que conheci não eram narcisistas estúpidos.
— O que estamos esperando aqui? — perguntei.
À nossa frente, vários Protetores entravam na fila para pegar comida. Em Mahali, a sede
funcionava como uma grande comunidade. O refeitório não era como um restaurante ou mercado
como era no Outro Lado. Aqui, as refeições eram servidas para todos em horários pré-definidos e
você poderia se servir em uma longa mesa disposta em uma das tendas abertas.
Serena apontou para a fila.
— Estamos de olho enquanto Lore pega comida.
Busquei pela Desertora, encontrando-a meio encolhida na fila, as mãos unidas em frente ao
corpo, provavelmente tentando cobrir as garras. Eu sabia que Lore era provavelmente um ou dois
anos mais nova que Alyssa, mas naquele momento ela pareceu uma criancinha.
— Por que a menina parece prestes a se encolher no chão e chorar? — Jasper perguntou.
— Um Protetor jogou uma casca de banana nela quando chegou — Jonnah disse,
parecendo incomodado. — Não pareciam muito felizes com a ideia de ela estar aqui.
Novidade.
Vivíamos assim por milênios, odiando Desertores desde que aprendemos a falar. Lutando
contra eles e morrendo em suas mãos. Em todos os meus anos de vida, nunca ouvi falar de um
Desertor que tentou se redimir com os Protetores. E Lore era da guarda especial de Vicenzo,
vivia dentro do palácio. Eu não gostava disso, mas entendia a aversão. Eu tinha sentido a mesma
aversão quando a conheci. E ser um Desertor não mudava nada disso. A única coisa que podia
compreender era que poderia haver alguns poucos de nós por aí dispostos a abandonar Vicenzo
na primeira oportunidade que tivermos.
— Ela precisa se recompor ou eles vão engoli-la viva — Serena disse.
Aquela nem mesmo parecia Lorena. A garota era sempre tão irreverente e irônica, eu
esperava que ela pelo menos fosse lidar com o desprezo dos Protetores com um pouco de
deboche.
Mas olhando para ela eu entendi: ela sentia culpa e não conseguia debochar da situação.
— Isso está doloroso de assistir — Roman murmurou.
Dei um passo à frente, mas Serena me impediu de seguir. Me virei para encará-la e ela
apenas balançou a cabeça.
— Se interferimos, ela se torna um alvo ainda maior.
Ela podia estar certa, mas pensei em ignorar o aviso quando uma Protetora mais velha deu
um tapa no pão da garota, que voou para longe. Ao meu lado, mesmo Serena pareceu repensar
sua própria recomendação.
Mas nenhum de nós nos movemos antes de a luz branca arrebentar dentro da tenda. Eu me
virei para sua dona e encontrei Alyssa marchando até a amiga. Uma corrente branca se
materializou e arrebentou contra o prato da Protetora. O prato se partiu, mas a luz agarrou a
comida ainda do ar, fazendo com que o pedaço de pão recheado flutuasse até Lorena.
Não houve um único som na tenda quando Alyssa se aproximou da amiga. Ela mesma
pegou o pão e colocou na mão de Lorena, que apesar do meio sorriso de gratidão, mantinha os
olhos baixos. Mas Aly nem mesmo pareceu notar aquele sorriso, a expressão fechada e o olhar
queimando. Ela se virou para a Protetora, luz emanando dela como se fosse um escudo.
— Eu pensei que havia sido clara quando cheguei. — Sua voz era fria como gelo. — Lore
está aqui sob minha proteção. Este tipo de tratamento é inadmissível.
A Protetora tinha os olhos no chão, em sinal de respeito à Fidly à sua frente, mas ela não
hesitou ao dizer:
— É inadmissível o que os Desertores fazem com o nosso povo, mesmo assim você traz
dois deles para nossa casa sagrada.
Eu podia perceber Aisha e Jasmine se aproximando, mas meus olhos estavam presos em
Alyssa. Desde que saímos do palácio ela parecia... Como se pudesse explodir a qualquer
momento.
— A partir do momento que estes Desertores arriscaram a vida para me ajudar, e lutaram
ao meu lado contra Vicenzo, contra o próprio juramento, eles deixam de ser meus inimigos. E
você deveria ver isso tão bem quanto eu.
Akin surgiu de repente, tentando parecer que não corria, mas caminhando tão rápido até o
meio da confusão que não parecia nada natural.
— Samahani[5], Alyssa — o líder interferiu. — Meus Protetores não cometerão o mesmo
erro duas vezes. É claro que a estadia de Desertores em nossa sede é algo incomum, mas aos
poucos aprendemos um meio de trabalharmos juntos.
Alyssa nem piscou.
— Esta guerra já é difícil demais sem que ataquemos nossos aliados. Não me importo que
marca eles têm, se lutam ao nosso lado, são nossos aliados.
Poucos Protetores ao seu redor assentiram, em uma concordância silenciosa.
— Posso concordar com você, Fidly. — Akin fez uma pequena reverência, da qual Alyssa
tomou consciência com o rosto franzido. Eu sabia que ela odiava aquilo. — Tempo é tudo o que
precisamos.
Alyssa inspirou fundo. A Protetora à sua frente não disse nada, mas manteve a cabeça
baixa. Eu observei enquanto Aly esquadrinhou a tenda, buscando por Protetores que
concordavam, procurando esperança de que seus aliados compreenderiam. Mas eram poucos.
Eu senti sua frustração daqui.
— Nós não temos tempo — ela murmurou, antes de pegar na mão de Lore e caminhar para
fora da tenda.
Aly deixou os Protetores seguirem com suas refeições em silêncio, mas alguns a seguiam
com o olhar, tão respeitosos quanto desconfiados. Quando nascemos Protetores, crescemos com
as histórias sobre a Fidly e como ela seria nossa salvação. Como nossas vidas estavam ao seu
dispor porque ela era a única capaz de acabar essa guerra, de impedir que Vicenzo abrisse os
portais das dimensões e o caos se instalasse. Crescemos admirando a criatura que o Destino nos
prometeu e agora eles podiam encará-la nos olhos. E Alyssa estava lutando por bem mais do que
a salvação desta dimensão. Estava lutando pela sua família e a verdade era que uma Desertora
havia se tornado um dos seus membros.
E agora os Protetores tinham que redefinir suas expectativas sobre a Fidly. Precisavam
enxergá-la pelo que ela era, não pelo que queriam que fosse.
Apesar de não ter demonstrado nos notar antes, Alyssa caminhou direto até nós, parados
ainda afastados da tenda.
— Por que não foram com ela até lá? — ela perguntou assim que nos alcançou.
— Esperávamos que ela pudesse conquistá-los sozinha — Roman disse, sem graça.
— É, eu senti as energias positivas — Lore murmurou.
Aisha e Jasmine nos alcançaram então, e Freya surgiu de repente, depois de um clarão de
magia zumbir em nossos ouvidos. Aquele poder devia ser bem útil. Eu me tornaria um grande
preguiçoso, porque não daria nem dois passos se fosse capaz de me teletransportar.
— Vocês sabem que não temos tempo para nos reunir no recreio para fofocar, não é? —
Freya nos cumprimentou muito agradavelmente.
— Bom dia, irmã. — Aisha lhe deu um sorriso.
Freya se aproximou da outra Guardiã, a carranca ainda no rosto, e deu um leve beijo em
sua bochecha. Depois, se virou e apontou para Alyssa.
— Você — disse e Aly pareceu surpresa —, você precisa aprender a domar essa luz. Não
pode andar por aí brilhando como uma lâmpada. — De fato, Alyssa ainda brilhava, a aura branca
ao redor do seu corpo se mantendo intacta. — E enquanto nós treinamos — Freya se virou para o
restante de nós — vocês precisam se organizar. Vicenzo com certeza não está sentado esperando
nosso próximo passo, então vocês não podem deixar de planejar o que faremos a partir daqui,
porque ficar escondidos em Mahali não resolverá nossos problemas.
Jasper limpou a garganta.
— Hum, e devo acrescentar que Ravenna está, digamos, ansiosa para o nosso retorno. As
notícias de Alyssa estar viva estão se espalhando rápido e o Outro Lado nos quer de volta o
quanto antes.
Freya estalou a língua.
— Bem, não conheço essa mulher e não posso me importar menos com o que ela quer —
disse, então olhou para Alyssa. — Mas precisamos de um plano. Rápido.
Então todos desataram a falar ao mesmo tempo. Os olhos de Alyssa pararam em mim,
agoniados com toda a falação. Jasper e Jonnah pensavam em estratégias de proteção. Roman e
Serena discutiam sobre o que fazer ao voltar para o Outro Lado. Lore perguntava a Aisha sobre o
que poderia ser feito para conter o avanço do trio da pesada — Sybil, Mavon e Belius. E Jasmine
e Freya debatiam a melhor forma de Aly aprender a lidar com seus poderes.
Puxei Aly para mais perto, passando meus braços ao seu redor. Eu senti quando ela soltou
o ar que prendia e relaxou dentro do meu abraço. Inspirei seu perfume e deixei que aquele
pequeno momento com ela em meus braços fosse o segundo de paz que eu merecia.
Os outros continuaram a falar e eu observei a falta de uma pessoa.
— Onde Brian está?
Já fazia um tempo que eu queria saber.
Jasper se virou para mim.
— Saiu com dois Protetores para averiguar uma possível ameaça no mar entre a ilha e o
resto de Moçambique — respondeu. — Deve voltar em breve.
Claro. Ele deve estar ansioso para voltar.
Senti a mão de Alyssa acariciar meu braço e sua mão direita se enrolar na minha.
— Parem de falar um pouco — Aly pediu. — Eu, Freya e Aisha iremos treinar meus
poderes e enquanto isso vocês tentam descobrir o máximo possível sobre o que Vicenzo tem
feito desde que fugimos do palácio.
Todos eles assentiram imediatamente e eu flagrei o sorriso orgulhoso nos lábios de Jasper
quando ele olhou para a garota em meus braços.
Alyssa se virou para mim quando eles começaram a se afastar para fazerem o que
precisavam fazer e, desconfio, que para nos dar um minuto a sós.
— Você está bem? — perguntou em um sussurro. — Não dormiu no quarto.
— Não queria atrapalhar seu momento com Jasmine.
Sua mão apertou a minha e seus dedos percorreram o caminho até meus ombros e, então,
meu rosto.
— Sinto muito que Brian desapareceu, mas dê tempo a ele. Vocês vão se acertar.
— Eu não carrego essa ilusão, Aly. Por vinte anos Brian nunca demonstrou querer acertar
nada e agora não será diferente — comentei. — E eu não posso culpá-lo, não dessa vez.
Seu olhar era descrente, mas ela não disse nada. Seus dedos traçaram o formato dos meus
lábios e ela se inclinou para deixar um beijo suave neles. Minhas mãos apertaram sua cintura e
eu precisei me esforçar para não a puxar para um beijo muito mais profundo e nada adequado
para um local tão público.
Quando ela se afastou, foi como ter um pedaço de mim levado junto com ela.
— Ele está perdendo muito com isso — disse, sua respiração tocando meus lábios. —
Qualquer um que não veja o privilégio de ter você por perto está perdendo muito e é um idiota
por isso.
Minha respiração ficou presa e meu coração lutou contra as batidas. Porra, essa mulher
sabia me tocar sem nem mesmo estender a mão. Passei tantos anos sozinhos, tanto tempo
pensando em todos os motivos pelos quais meu pai não podia ser um bom pai, ou por que o
Destino havia levado minha mãe tão cedo, ou o fato de que eu merecia tudo isso porque havia
sido eu quem decretou o fim de sua vida. Mesmo assim, a parte dentro de mim que se odiava, se
odiou um pouco menos ao ver o brilho nos olhos de Alyssa, ao sentir que ela realmente queria
dizer cada palavra.
Era engraçado como ser amado por ela fazia com que eu me amasse um pouco mais
também.
Limpei minha garganta e finalmente disse:
— Tive uma conversa interessante com Lore ontem. — Uma sobrancelha dela pulou para
cima, surpresa. — Aquela garota tem muitas perguntas. — Aly soltou uma risadinha que fez meu
coração encher de satisfação. — Ela me perguntou sobre o elo entre nós e eu fiquei curioso.
— Sobre sermos predestinados?
— Isso. — Por que eu estava nervoso? — Nós nunca tivemos tempo para falar sobre isso.
Ou sobre como você se sentiu quando descobriu.
Seus olhos pretos estavam ainda maiores.
— Como me senti? — indagou. — Quer saber se ter o elo com você me incomoda,
Nathan?
Mais ou menos. Sim e não. Se a resposta fosse que ela se incomodava, definitivamente não
queria saber. Mas também queria entender se ela percebia algo no elo que eu ainda não percebi.
Se isso entre nós poderia ser usado de alguma forma prática. Porque eu sentia aquele fio, agora
mais do que nunca, enquanto ela estava em meus braços. Podia lembrar dele pulsar como batidas
de coração quando dormimos juntos pela primeira vez. Só queria saber... se era mesmo real. Se
era tão real para ela quanto parecia ser para mim.
— Agora que posso me lembrar de tudo — começou —, acho que o elo sempre existiu.
Quer dizer, tenho certeza de que fomos predestinados antes mesmo de nascer e por isso nos
separar foi tão difícil. Eu me importo em dividir este elo com você, Nathan. — Sua voz estava
mais firme, mais determinada, e um frio se instalou em meu estômago. — Me importo porque o
elo garante que, independentemente de tudo, encontraremos um modo de voltar um para o outro.
Eu sou grata por dividir este elo, mas mesmo sem ele, sinto que ainda me apaixonaria por você.
Se ele faz as coisas oficiais, então melhor ainda.
O ar saiu de meus pulmões com alívio provindo de suas palavras.
— Eu sei... — Minha voz falhou por um breve instante, mas me recompus. — Eu sei que
não tivemos tempo para entender o elo, mas acho que ele pode ser mais do que simbólico. Acho
que consigo senti-lo.
Seu olhar era tão intenso que ela parecia capaz de ver minha alma.
— Como se fosse um fio?
Assenti. Exatamente como um fio, mas ao mesmo tempo muito menos literal, e sim real.
— Acho que já senti isso. E tenho certeza de que já soube exatamente como você estava se
sentindo, porque pareciam minhas emoções — contou.
Como quando eu quase caí de joelhos ao sentir seu luto, enquanto ela se encolhia e chorava
como se tivesse tido o coração arrancado do peito.
— Sim. — foi tudo o que saiu.
Por exemplo, agora, se eu me concentrasse o bastante, podia ouvir a rachadura em seu
coração tentando abrir mais. A dor que, mesmo que ela tentasse ocultar, ainda estava ali
guardada.
Puxei sua mão para meu peito, as batidas do meu coração ecoando sob sua palma. O elo
entre nós regozijando pelo mero contato.
— Eu estou aqui, amor. Fale comigo — pedi — Divida a dor.
Alyssa apenas desviou os olhos dos meus quando os seus encheram de água.
— Se eu falar, acho que vou desmoronar. — Eu abri a boca para argumentar, mas ela
continuou: — E nós não temos tempo para isso, Nate. — Seus dedos se enrolaram em minha
camisa. — Vamos descobrir como o elo funciona e vamos encontrar uma forma de acabar com
essa guerra antes que ela vá longe demais. Depois eu desmorono.
Meus dedos correram pela curva de seu rosto e eu quis saber o que dizer. Eu queria ter
todas as respostas, queria ser capaz de fazer tudo melhorar. Para ela. Por ela.
— Eu estou lutando, Aly — eu disse. — Você está?
A imensidão negra de seus olhos engoliu os meus e eu me vi afundando na mais pura e
concreta escuridão.
— Estou tentando.
CAPÍTULO 37

Moçambique era bem mais quente que a Itália nesta época do ano. A maresia parecia
carregar meu corpo e o sopro do vento em meus cabelos presos aliviava um pouco o calor.
Mas eu estava queimando.
Serena, Roman e Jonnah haviam saído para averiguar os arredores da ilha, apenas para
garantir que nenhum Desertor ou o próprio Vicenzo havia nos seguido até aqui. Brian ainda não
havia dado as caras, então Jasper e minha mãe conversavam em um canto com Lore sobre um
plano de defesa, afinal ela sabia mais sobre os Desertores do que qualquer um ali. Enquanto isso,
Aisha e Freya estavam me explicando sobre seus próprios poderes a fim de tentarem me ajudar a
entender o meu. E Nathan havia voltado a me treinar em combate. Todos preocupados em serem
úteis de alguma forma. Desesperados para aliviarem o peso em meus ombros, mesmo que no fim
das contas, para acabar com aquela guerra, o sacrifício final teria que ser meu.
“É para isso que foi criada.” — havia dito o Destino.
Agora, eu estava com uma espada de pedra de fogo em uma mão, e a outra tentando
controlar a luz que saía dela. Nathan avançava com golpes comedidos, porque havia percebido
rapidamente que eu não tinha ideia se controlava o poder ou se controlava a espada.
— Pense na luz como se fosse uma outra arma, Alyssa, apenas mais uma espada — Freya
orientou.
Eu sempre tive uma imaginação particularmente fértil, mas aquilo parecia complicado. Luz
não era um objeto, nem mesmo era algo que eu pudesse tocar. Mas eu forcei minha mente a ver
aquele poder como uma arma tão real quanto a espada em minha mão direita.
Nathan avançou com a própria arma, cortando o ar em minha direção e gritando para que
eu bloqueasse sua investida. Eu me movi tão rápido quanto um raio, mais fluída que água, de
uma forma que eu nunca havia visto nenhum Protetor ou Desertor se mover. Meu corpo pareceu
ceder ao instinto, e eu me tornei parte do vento, parte da água, parte de uma tempestade. Dobrei
meu corpo e desviei para a minha esquerda. Quando ergui minha arma para bloquear a de
Nathan, protegendo minha lateral e costas, não foi a mão direita que avançou primeiro. Foi à
esquerda.
Uma espada de luz branca bateu contra a pedra de fogo de Nathan. Ela não fazia barulho
como quando pedra batia contra pedra, era perturbadora, puramente silenciosa, mas ainda assim
eu ouvi quando a pedra de fogo estava quase rompendo. Por um instante, a surpresa o fez hesitar,
e minha nova espada fez com que a pedra de fogo sibilasse. Nathan recuou e nossas espadas se
soltaram.
— Essa é uma boa forma de visualização — Freya murmurou, satisfeita.
O sorriso que Nathan me deu brilhava.
— Será que posso pegar emprestado? Eu ficaria espetacular com uma arma dessa.
Um sorriso se insinuou em meus lábios.
Ao lado de Freya, Aisha deu uma risada leve e gostosa. Um rápido olhar para o canto da
praia me disse que Jasper, Lore e minha mãe estavam me observando com olhares exultantes.
Talvez levemente admirados.
Encarei a espada de luz. Era bonita. Sua ponta era irregular, como se a luz se dispersasse
levemente, soltando-se da ponta que deveria ser afiada. Aproximei o indicador para tocá-la e
uma picada fez minha pele arder, e logo vermelho vívido pintou meu dedo. Bem ali, onde a
espada havia me cortado, uma pequena queimadura se formava.
— Isso é interessante. — Aisha se aproximou, analisando a arma com olhos ávidos. — A
luz de Alyssa toma a forma que se fizer necessária. Isso é o que estou pensando, Freya?
Ergui os olhos para as Guardiãs, esperando uma explicação, mas nenhuma delas prestava
atenção em mim, completamente focadas na espada de luz brilhante que eu exibia.
Nathan havia se aproximado e agora tinha minha mão direita na sua, enquanto ele limpava
o sangue em sua própria camiseta. Meu olhar caiu para o meu dedo. A pele já estava intacta. Ser
a Fidly também me garantia uma cura mais rápida que a de Protetores e Desertores.
— Forza creatrice — Freya murmurou, mais para si mesma do que para qualquer outro.
— “Fará da luz, poder” — cantou a profecia. — Aparentemente é de uma forma literal.
— Isso é bom, não é? — Nathan perguntou. — Quer dizer que o poder dela não é
limitante.
Freya me observou, uma sobrancelha arqueada.
— O poder em si não possui limite pelo que podemos ver. — Uma gota de suor escorreu
da minha têmpora, sentindo a luz que formava a espada pulsar. — Mas Alyssa não é uma fonte
inesgotável. Sua magia é forte, mas a consome. — Ela me olhou. — Por isso estamos aqui.
Porque se não a controlar, se não entender que ela se alimenta de você tanto quanto você se
alimenta dela, esta guerra chegará ao fim muito mais rápido do que esperávamos.
Porque eu estarei morta — era o que ela não dizia, mas sabíamos.
— Suponho que este seja o peso oposto para a balança, certo? Para manter o equilíbrio.
Afinal, se eu pudesse fazer o que bem entendesse com este poder, qual seria o limite? No
que eu poderia me tornar?
— Precisamos descobrir como matar Vicenzo sem que Aly morra no processo — Nathan
declarou. — Você viveram mais de um milênio — disse às Guardiãs —, não é possível que
nunca tenham ouvido falar em uma saída, uma forma de enganar a balança.
— Não seria algo que o Destino permitiria — Freya rebateu, mas seus olhos azuis frios
como gelo pareciam me olhar com uma compaixão que ela não se permitia demonstrar com
facilidade. — Mas sempre há algo.
— Como o fato de eu ser a última Fidly — murmurei, concluindo aquilo que eu ainda não
havia tido tempo para pensar demais. — Se eu morro, então não há nada que mantenha o
equilíbrio, porque Vicenzo será imortal.
Eu jurava que podia ouvir um rosnado baixo vindo de Jasper.
— Esta não é uma opção, menina. Acabamos de te trazer de volta dos mortos e vamos
mantê-la assim.
Desviei o olhar quando vi a mão da minha mãe subir para o próprio peito, como se as
lembranças estivessem tão vívidas em seu cérebro que ela precisasse ter certeza de que seu
coração não havia sido arrancado. De novo.
— Henr... — sua voz falhou e ela limpou a garganta antes de continuar — Henry passou
anos procurando um meio para que Alyssa não precisasse ceder toda sua energia vital para matar
Vicenzo. Ainda tenho as pesquisas guardadas em casa. Mas ele não tinha chegado a uma
conclusão. — Eu não podia encará-la, mas tinha certeza de que ela estava segurando as lágrimas.
Minha mãe, a guerreira fria como gelo, impiedosa, determinada. Mas também a mulher
apaixonada pelo marido que partiu. Afogando no luto, como eu. — Mas ele... Henry havia
sentido esperança quando descobriu que energia pode ser compartilhada, que ela não é inerente
ao seu dono.
— Assim, Alyssa poderia usufruir de uma fonte energética para suprir a demanda
necessária para matar Vicenzo — Aisha concluiu.
Aquilo era exatamente o que precisávamos para continuar: uma chance. Uma
possibilidade. Um fiapo de esperança. E saber dessa mera perspectiva me fazia acreditar que,
talvez, minha vida pudesse ser mais do que era: lutar e morrer. Ainda assim, ter esperanças era
perigoso, e normalmente decepcionante.
Engoli em seco. Meu pai era o responsável por esta descoberta. Meu pai, que havia
passado a vida tendo que fugir por minha causa. Que nunca pôde realmente ser o que queria,
estudar ou trabalhar com o que queria. Que passou anos lidando com o terror deste mundo, com
as ameaças constantes, e ainda assim havia encontrado tempo para tentar me salvar do meu
próprio destino. Este era o homem que Vicenzo matou. Corajoso, leal, inteligente.
Este era o homem que eu havia perdido.
— Só precisamos descobrir o que teria energia o bastante para suportar a reivindicação do
poder dela — Freya disse.
— Pelo que meu marido havia lido, era um pouco mais complicado do que apenas
encontrar uma fonte. É necessário que esta fonte tenha uma ligação com a pessoa que a usará,
uma conexão, uma semelhança... Qualquer coisa que possibilite a partilha.
— Soa como uma absorção mais do que com um compartilhamento... — Jasper começou a
dizer, mas eu não prestava mais atenção. Tudo o que eu via era a ausência ali evidente. Tudo o
que eu sentia era o vazio tentando se expandir.
Por meses eu me sentia como uma folha em branco, porque não havia nada em mim. Não
havia uma única memória, um único resquício de quem eu era, de onde eu havia vindo, quem eu
havia amado e por quem eu havia sido amada. Nada. Eu estava vazia como uma folha intocada.
Esquecida.
Mas agora, o vazio parecia um grito no vácuo. Como um soluço angustiante em meio a
uma respiração entrecortada pelo choro.
Agora, o vazio parecia vivo.
Podia ser uma corda em volta do meu coração, se apertando a cada segundo que passava.
Podia ser uma dor de cabeça que me impedia de sair da cama. Podia ser um choro desesperado. E
era. Era tudo isso e mais. Era saber que eu não veria meu pai mais, era entender que a última vez
que o toquei foi quando seu pescoço já estava quebrado. Era compreender que, não importava o
que acontecesse, ele não estaria por perto para me oferecer uma xícara de chá e dizer que eu
poderia ser capaz de voar se eu quisesse, se eu ao menos tentasse.
— Alyssa.
Eu não sabia de onde vinha a voz. Meus olhos estavam turvos pelas lágrimas, minhas mãos
estavam cerradas ao lado do corpo e meu coração estava quebrado.
Como posso voar, pai? Como posso sair do chão se estou acorrentada a ele?
É como se meu corpo pesasse mil quilos, e as correntes que Vicenzo havia usado ainda
marcassem meus pulsos, ainda me prendessem.
Mãos tocaram meus ombros, mas logo me soltaram. Ouvi Nathan sibilar e eu me odiei,
porque, de alguma forma, eu o havia queimado. Olhei para meu corpo e vi a luz expandindo,
tremeluzindo. Viva.
Desculpa.
Me desculpa.
Alguém tentou me tocar novamente, mas a luz agora quente como fogo o afastou.
— Aly! Respire!
Eu nunca mais o veria.
Como poderia haver esperança em um mundo sem ele? Como poderia haver um final feliz?
A luz parecia queimar minha própria pele, agora. Como labaredas de fogo alastrando por
mim. E aquele poço profundo, infindável e cheio de possibilidades do que aquele poder poderia
ser, estava me puxando para dentro. Estava me queimando viva.
— Alyssa, você está permitindo que a luz te consuma! — Aisha gritou. — Precisa tomar o
controle ou você irá sucumbir!
Controle? Eu não tinha o controle de nada.
Eu era a grande falha desse universo. O grande erro do Destino — aquele serzinho
estúpido, apostando todas suas fichas em mim. Colocando o equilíbrio da balança em meus
ombros. Me enfiando em uma guerra muito maior do que eu mesma. Me fazendo perder a mim
mesma.
— Filha, você precisa parar. Apenas respire fundo. Se controle!
— Menina, se concentre em algo além da sua tristeza!
— Aly, respire e volte para nós. Você consegue, se concentre.
Era como ouvir embaixo d’água.
Quem era esta garota queimando a si mesma e a todos ao seu redor? Meu pai ao menos a
reconheceria? Fraca demais para controlar seu próprio poder. Fraca demais para se proteger das
manipulações de Vicenzo. Fraca demais para lidar com o luto.
Fraca. Fraca. Fraca.
Eu não consigo voar, pai, não consigo nem sair do chão.
As lágrimas me cegavam, mas não escorriam. A dor era silenciosa em meu âmago e
tempestuosa ao redor.
E eu estava fraca. Era fraca. E aquela luz iria me consumir.
Meus joelhos cederam e bateram contra a areia da praia. Ao meu redor, eles começaram a
falar mais alto. Minha mãe já gritava.
Um canto suave e distante me fez erguer a cabeça para o céu. Detrás da linha das árvores,
um bando de pássaros avançavam pelo céu em fileiras sincronizadas e belas.
Pequena pássara.
Eu quase podia ouvir sua voz.
Um único pássaro voou atrasado, ficando para trás, mas tomando o céu como se fosse sua
própria tela. Era lindo. Era livre.
Era saudade.
Uma lágrima escorreu. A luz cessou. E então tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 38

Eu sentia uma dor estranha no peito. Um desconforto inquietante. E eu suspeitava que


tivesse algo a ver com a garota dormindo na cama à minha frente. Estendi a mão e arrastei uma
mecha de cabelo para longe de seu rosto. Ela inspirou e se mexeu levemente e a dor em meu
peito pareceu silenciar por um instante.
Desde que ela desmaiou na praia, dias atrás, depois de perder o controle de seus poderes,
ela esteve se esforçando ainda mais para controlar aquela luz que ainda não parecia responder
aos seus comandos — ou respondia aqueles mais inconscientes.
Alyssa acordava todos os dias antes do sol nascer e treinava exaustivamente com as
Guardiãs. Eu, Jasper ou Jasmine sempre cuidávamos dos treinos físicos, e ela aceitava cada
ordem como se fosse uma oração, respondendo com perfeição cada ataque, cada defesa. A cada
dia que passava, ela ficava mais forte, se movimentava com mais precisão, lutava com mais
força. E todo dia ela voltava para sua tenda, sem nem mesmo comer seu jantar, e apagava,
completamente exausta.
Não importava o quão bem ela ia nos treinos, ou quanto mais controle sobre a luz ela
ganhava. Alyssa estava afundando.
Ela não falava mais do pai. Evitava ficar sozinha com a mãe a todo custo, apesar de sempre
se certificar que Jasmine estivesse bem. Não passava tempo com Serena ou Lorena apenas para
se distrair. Fugia de cada Protetor que tentava se aproximar, principalmente aqueles que já a
abordavam se curvando. E, mesmo que nunca falasse, eu sabia que ela odiava cada vez que o
nome de Vicenzo surgia em um assunto.
E a noite, completamente exausta, ela se virava para mim, dizia que iria dormir, e
desaparecia antes que eu pudesse segui-la. Quando eu a encontrava em nossa tenda, ela já estava
apagada, dormindo como uma pedra, às vezes sem nem mesmo ter tomado banho ou trocado de
roupa. Algumas vezes eu a encontrei dormindo, enrolada em uma toalha e com os cabelos ainda
encharcados.
Quando expressei minha preocupação com as Guardiãs, Aisha disse que iria tentar ajudar
de alguma forma com sua magia, mas que Alyssa estava passando por diversas emoções
angustiantes e o luto, somado ao seu poder, estavam deixando-a esgotada. Eu entendia, mas
odiava não poder ajudá-la. Odiava apenas assistir enquanto ela sofria. Freya disse para dar-lhe
tempo. Para permitir que Alyssa passasse por isso, para poder sair daquilo mais forte, mais
resiliente. Mas o quão resiliente aquela vida exigiria que ela fosse?
Puxei a coberta para cima, cobrindo seu corpo. Hoje ela havia conseguido tomar banho e
vestir uma camiseta minha antes de apagar.
Deixei um beijo leve em sua têmpora e me virei para tomar banho. Fui o mais rápido que
pude, logo secando meu corpo limpo e colocando uma roupa para poder descansar um pouco
também. Deitar ao seu lado acalmaria aquele incômodo em meu peito. Precisava acalmar.
Quase xinguei quando encontrei Serena parada na porta da tenda, os braços cruzados sobre
o peito e o olhar preocupado na amiga. Quando me notou, ergueu os olhos para mim.
— Preciso falar com você, Nathan.
Franzi o cenho. Já devia ser mais de meia-noite. O que ela precisava falar comigo que não
podia esperar até amanhã?
Com um suspiro, a segui para fora.
— Aconteceu alguma coisa?
Serena parecia tensa.
— Encontrei algo hoje — disse. — Pode não ser nada, mas acho que seria uma
coincidência grande demais se esse fosse o caso.
Frio se instalou em meu estômago, o aperto no peito se intensificando até quase o limite do
insuportável.
— O que encontrou?
Ela estendeu uma mão e a abriu.
— Me diz que estou ficando louca. — Serena me olhou, esperando. — Me diz que estou
paranoica.
Eu não podia.
— Onde?
A Protetora xingou.
— Perto da fronteira, no porto.
Porra.
Ela não estava paranoica.
Sobre a palma de Serena estava uma pedra. Uma pedrinha que poderia nem chamar
atenção, se não fosse exatamente o tipo de pedra que preenchia a costa inteira do Lago. Não era
uma pedra comum. Era bonita, quase como um cristal escurecido. Eu nunca encontrei uma
dessas em qualquer outro lugar no mundo que não fosse o Lago. Lendas diziam que aquelas
pedras pertenciam somente ao Lago, e que surgiram na costa apenas após o Tesouro ter sido
escondido lá.
— Há algum Protetor do Outro Lado aqui?
Era estúpido. Cada justificativa que meu cérebro criava era estúpida.
— Só nós — Serena respondeu, o vinco entre suas sobrancelhas mais profundas.
Merda.
— Encontrou algum Desertor?
Ela negou.
— Roman e Jonnah nem viram nada suspeito. Eu... eu vim falar com você porque sabia
que reconheceria se esta fosse uma pedra do Lago. Ainda nem falei com eles. Com ninguém.
Não queria preocupar Jasmine ainda mais se não fosse algo sério.
Peguei a pedra. Era fresca ao toque, exatamente como pedras que tinham contato direto
com a água costumavam ser.
— É ele.
— Por que ele deixaria uma pedra?
— Porque o filho da puta é um sádico desgraçado. Ele quer que a gente saiba que está
chegando perto.
— Então ele foi até o Lago e logo em seguida veio aqui? Ele é um sádico burro.
Eu me lembrei de um detalhe importante.
— Ele quer o tesouro, Serena. Os Desertores estão rondando o Lago desde o ataque. Ele
está nos dando um recado óbvio: sem Alyssa, o tesouro é o seu foco agora.
— Mas por que ele avisaria? Parece... — então ela percebeu — é uma isca.
Claro que era uma isca.
Ele queria atrair Alyssa para o Lago, enquanto tentava encontrar o bendito do Tesouro.
Com o Tesouro e Alyssa, ele teria todas as peças que queria. Para fazer o quê? Não tinha ideia.
Sabia que ele queria destruir o Destino, mas como esperava fazer isso e por que precisava de
Aly?
Apertei a ponte do nariz, grunhindo de raiva.
Nem a porra de um segundo de paz.
— Amanhã falamos com todos. Aly precisa descansar, não vou acordá-la apenas para falar
de uma porcaria de pedra — eu disse, então repeti: — Amanhã decidimos o que fazer.
Serena assentiu.
— Vou avisar aos Protetores que estão de guarda esta noite para redobrarem a atenção.
Assenti. Também era uma boa ideia. Eu duvidava que Vicenzo ou algum Desertor fosse
idiota o suficiente para atacar uma sede com duas Guardiãs dentro dela, mas nunca se sabe. Até
porque, eles tinham dois deuses feiosos ao seu lado e uma Feiticeira dos infernos. Talvez
estivessem um pouco confiantes demais.
— Obrigado, Serena.
A garota tocou meu ombro, me dando um sorriso curto, sem muita vida.
— Descanse também, Nathan. Essa merda está só começando.

Eu voltei para a tenda em silêncio. Alyssa ainda dormia pesado, o rosto contorcido em uma
expressão tensa, as mãos agarrando o cobertor em punhos fechados. Me apressei até ela,
deitando ao seu lado e puxando seu corpo para o meu. Ainda assim, ela não acordou, mas
pareceu relaxar um pouco em meus braços.
— Você está bem — sussurrei em seu ouvido. Ela resmungou algo incompreensível e eu a
abracei mais forte. — Shh. Está tudo bem, amor. Estou aqui com você.
Aly tinha pesadelos desde pequena. Quando éramos crianças, às vezes eu me esgueirava
para sua casa e dormia no chão de seu quarto porque ela tinha pesadelos tão vívidos que
acordava aos berros. Então eu passava a noite no tapete, ao lado da sua cama, e estava pronto
para quando os gritos começavam. Ela dizia que eu ajudava a espantar os monstros e eu me
sentia como a porra de um herói.
Por longos minutos apenas acariciei seu braço e sussurrei em seu ouvido quando ela
resmungava algo ainda inconsciente, até que finalmente caiu em um sono profundo e sem
perturbações. Eu precisei de um pouco mais de tempo para acalmar meu próprio coração,
silenciar meu próprio medo. Alyssa estava aqui, em meus braços, e ela não seria levada
novamente. Ninguém a tiraria dali, e eu a manteria segura, custe o que custar.
Eu respirei seu cheiro, que fazia minha pele arrepiar. Senti as batidas do seu coração contra
a minha palma e sua respiração contra o meu pescoço quando ela se virou e se aconchegou com a
cabeça em meu ombro.
Ela estava aqui. Alyssa estava aqui.
CAPÍTULO 39

Eu não conseguia respirar.


Meus olhos se abriram sobressaltados, enquanto eu sufocava. Então, encontraram Nathan,
os olhos azuis normalmente tão expressivos, completamente frios, sem foco. Suas mãos
apertavam meu pescoço, mas eu sabia que, se ele quisesse, poderia tê-lo quebrado com apenas
um movimento.
— Nathan! — Sufoquei.
Suas mãos ficaram tensas, mas não deixaram meu pescoço. Uma lágrima solitária escorreu
de seu olhar desfocado.
Não havia luz alguma em seus olhos azuis.
Ele estava em transe e não tinha mais o controle. Era Vicenzo. Vicenzo estava fazendo isso.
Agarrei seu pulso, tentando afastá-lo. Tentando quebrar o transe. Qualquer coisa.
— Nathan, pare.
“Faça alguma coisa.”
Surpresa esquentou meu sangue. Era a voz dele. Era a voz de Nathan em minha mente.
“Me faça parar, Alyssa. “
Como...? Como ele estava fazendo isso? Seus olhos não me enxergavam de verdade, suas
mãos se agarravam ao meu pescoço e seu braços estavam tensos, assim como o resto de seu
corpo, mas sua mente estava... consciente. E estava falando com a minha.
A cada segundo que passava e eu não conseguia afastar suas mãos do meu pescoço, ficava
mais difícil de respirar.
— Nathan!
“Quebre a porra do meu braço. Enfie uma lâmina em meu coração se for preciso. Apenas
pare isso, Alyssa. Agora!”
Eu já sentia que o oxigênio que entrava em meus pulmões não era suficiente. Se eu
desmaiasse, então estaria morta e Nathan nunca se perdoaria por isso.
Impulsionei meu corpo, meu quadril jogando seu peso para cima. Empurrei seu pulso para
o lado e o impulso fez com que ele se desequilibrasse, mas não foi o suficiente para fazer suas
mãos me soltarem. Ele me puxou consigo, e meu ombro bateu contra a lateral da cama. Nós
caímos no chão e ele tentou me puxar contra si, querendo me colocar embaixo de seu corpo
novamente.
“Há uma adaga no canto do quarto.”
— Eu não vou enfiar uma adaga em seu peito!
Chutei seu abdômen, e ele grunhiu de dor. Suas mãos enfraqueceram, e consegui afastá-las
do meu pescoço a tempo. Pulei para longe dele, tomando um segundo para respirar fundo, o ar
finalmente preenchendo meus pulmões e chegando ao meu cérebro.
No entanto, Nathan não parou. Ele se movimentava estranho, como se seu eu consciente
tentasse se parar, mas fosse apenas um boneco preso por cordas invisíveis que se movimentava
como seu mestre queria. Era terrível de ver, como se ele não fosse dono de si mesmo. Quando
ele avançou, eu desviei, mas ele mergulhou em direção à adaga, exatamente onde ele havia me
dito que estaria.
“Alyssa!”
Merda, merda, merda.
Como paro isso? Como o faço voltar ao controle?
Chutei sua mão que avançava em direção à adaga e então a joguei para longe do alcance de
nós dois. Ela não teria serventia para mim de qualquer forma.
Nathan se virou para mim, o corpo se torcendo de uma forma não natural, como um zumbi
com super força. Ele se jogou em minha direção e eu desviei novamente, mas não vi quando suas
pernas cortaram o ar em direção às minhas. Em minha mente, sua voz gritou em alerta, mas não
reagi a tempo. Caí no chão e rolei para o lado antes que ele chutasse meu rosto. Merda. Dei um
impulso para cima e fiquei em pé. Quando ele avançou novamente, chutei seu peito e Nathan foi
jogado para o outro lado da tenda, caindo sobre a cadeira e quebrando-a.
— Não quero te machucar — falei. — Você precisa recuperar o controle.
“Estou tentando! Eu posso senti-lo dentro de mim, como se tivesse me possuído. É o
juramento, Alyssa. Ele tomou o controle.”
Eu assisti quando Nathan quebrou uma das pernas da cadeira e se virou para mim.
“Precisa me prender, me matar... Qualquer coisa. Não posso... Porra, não posso fazer
isso.”
Sua mão tremia. Seu corpo todo tremia. Era a luta. Era o quão forte Vicenzo possuía o
controle e o quanto Nathan estava determinado a lutar contra ele. Porém, não adiantava. Ainda
assim, ele se moveu em minha direção. O olhar sem foco, o rosto contorcido.
Nathan não chegou mais perto. Ele parou, e então lançou o pedaço de madeira quebrado
em minha direção. Eu me abaixei e a arma improvisada dele cortou a parede da tenda.
Meu poder gritava para que eu o usasse, mas eu engolia a necessidade como se tivesse um
nó em minha garganta. Eu havia melhorado consideravelmente minha capacidade de controlar a
luz, mas não arriscaria usá-la contra Nathan quando ele claramente era uma ameaça. A luz tinha
o hábito de me proteger contra qualquer que fosse a ameaça e, nesses momentos, era quando a
empunhar se tornava ainda mais difícil.
Ele correu em minha direção, o braço erguido, a mão fechada em punho.
— Desculpa, Nate.
Quando ele estava perto o bastante, fui mais rápida que um raio. Girei meu corpo
deixando-o desnorteado e então meus braços o prenderam, envolvendo seu pescoço. Nathan
lutou contra meu aperto, nos empurrando contra a cama. Seu corpo caiu sobre o meu, mas eu
mantive meu aperto, passando minhas pernas em volta de seu torso para tentar conter ainda mais
seu movimentos.
“Precisa apertar com mais força, Alyssa.”
— Eu estou!
“Se ele me obrigar a usar mais força, posso simplesmente jogá-la contra o chão ao invés
de uma cama macia. Aperte mais! Me apague logo!”
Rosnei e coloquei mais força no aperto. Eu queria queimar o desgraçado do Vicenzo.
Queria esquartejá-lo e então jogar seus restos para tubarões famintos. Queria destruí-lo com
minhas próprias mãos. E eu iria. Eventualmente, seríamos eu e ele em uma luta até o fim — não
eu e seus seguidores cegos, não eu e Nathan usado como sua marionete. Apenas eu e Vicenzo. E
ele perderia.
Nathan começou sufocar.
— Desculpa, desculpa, desculpa.
“Está tudo bem, amor.”
Seu corpo fazia o oposto de suas palavras em minha mente. Suas mãos tentavam me
afastar, arranhavam meus braços e seu corpo tomava impulsos para frente, em uma tentativa de
nos levantar, mas eu nos forçava para trás, de encontro à cama. Finalmente, depois de segundos
que martelaram em minha mente como se fossem eternos, ele começou a perder a consciência.
— Me desculpa, Nate.
Desculpe-me por tê-lo feito desertar. Me desculpe por ter te colocado no meio desse caos.
Vicenzo tinha o controle porque Nathan queria me proteger, porque mesmo quando eu não era
nada mais que uma garotinha estúpida e sem memórias seguindo Vicenzo como se ele fosse
minha salvação, Nathan escolheu ficar ao meu lado e lutar por mim.
Quando o homem que eu amava finalmente desmaiou e eu senti seus batimentos
desacelerarem como se fossem os meus próprios, o corpo pendendo sem força sobre o meu, eu
chorei.

Tentei contar para o mínimo de pessoas possível sobre o incidente com Nathan. Jonnah e
Roman foram os primeiros que encontrei, entrando em suas tendas com garrafas vazias em mãos.
Eles pareciam levemente alcoolizados, mas eu os chamei mesmo assim para ajudar com Nathan.
Eu não sabia o que fazer, e ele ainda estava desacordado.
— Ele é pesado — Roman grunhiu, ajeitando-o na cama. — E olha que posso erguer o
tronco de uma árvore.
— Você ergueu um tronco mediano, uma vez e não para de falar disso — Jonnah
murmurou.
Revirei os olhos.
— Podemos focar no que realmente é importante aqui? — falei. — Eu não sei se ele vai
acordar no controle de novo. Acho que preciso perguntar a Lore. Ela provavelmente pode ajudar,
deve saber como isso funciona ou como...
Jonnah me parou, colocando as mãos sobre meus ombros e me encarando com os grandes
olhos cor de mel.
— Você está surtando.
Bufei.
— Meu namorado fez um juramento de sangue com o desgraçado do Vicenzo, perdeu o
controle sobre si mesmo, e tentou me matar — expus. — Acho que está na hora de surtar.
— Pelo menos você luta melhor agora do que quando chegou no Outro Lado — Roman
murmurou, observando Nathan desacordado. Eu o fuzilei e vi quando suas bochechas ficaram
vermelhas. — O quê? Foi um elogio.
Meus pés batiam freneticamente contra o chão.
— Eu não sei o que fazer. E se ele perdeu o controle dessa forma, Vicenzo deve estar mais
perto do que imaginávamos.
De repente a entrada da tenda se abriu e Lore e Serena entraram, os olhares passando por
nós até encontrar Nathan desacordado na cama com curiosidade e preocupação.
— Ele esteve — Serena disse, o rosto tenso enquanto me encarava. — Ontem a noite
encontrei uma pedra do Lago no porto da ilha. Eu e Nathan pensamos que foi ele quem a trouxe,
como um recado.
Ela o quê? E Nathan sabia e não disse nada?
— Por que não me contaram?!
— Que tipo de recado uma pedra passaria? — Jonnah questionou.
Serena não tirou os olhos de mim.
— Nós decidimos que não valia a pena te acordar, você precisava descansar. Te
contaríamos de manhã — se explicou. — Nós não pensamos que Vicenzo pudesse tentar algo
hoje.
Eu estava irritada, mas eu sabia que era mais pela situação do que pela omissão. Desde que
acordei naquele chão frio do palácio estúpido de Vicenzo vinha me sentindo cansada demais. E o
cansaço me tornava mais irritadiça. Agora, observando o peito de Nathan subir e descer, o
cansaço disputava espaço com o pânico e esta era uma combinação fadada aos caos.
— Como souberam que estávamos com problema? — perguntei, exasperada.
Serena bateu o dedo contra a própria têmpora.
— Jonnah avisou e pediu para buscar Lore.
Meu primo apenas deu de ombros.
— Você disse que ela poderia ajudar.
Meus dedos pressionaram a ponte do meu nariz, enquanto eu inspirava fundo.
— Não quero que isso saia desta tenda. Se os Protetores ao menos imaginarem o que
Nathan tentou fazer, eles deixarão de agir com o mínimo de civilidade e o caos se instalará — eu
disse. — Então mantenham a mente de vocês fechadas.
Meus amigos apenas assentiram e eu expliquei para Serena e Lore o que havia acontecido.
Contei como acordei sendo sufocada e então sobre todo o ataque, e como Nathan conseguiu falar
em minha mente, me alertando para me proteger e pará-lo.
— Vocês se comunicaram pela mente? — Serena elevou.
— Mais ou menos — respondi. — Ele falou, eu ouvi.
Jonnah tinha um sorriso enorme nos lábios.
— Eu sabia que você poderia abrir a mente como os Protetores fazem.
Contudo, não parecia como abrir a mente para uma conversa. Não foi como se eu estivesse
ao menos consciente dessa possibilidade. Apenas... Pareceu mais como uma voz interna do que
uma comunicação de dois lados. Como se Nathan fosse parte da minha mente, e quando ele se
esforçou para falar, eu apenas ouvi.
— Pode ser por causa do elo — Roman considerou.
Podia ser uma das coisas as quais Nathan havia dito que precisávamos descobrir. Como o
elo entre nós poderia ser mais literal do que imaginávamos.
Dei de ombros.
— De qualquer forma, mentalmente, Nathan ainda era Nathan. Mas fisicamente, era como
se Vicenzo estivesse controlando as cordas e ele — apontei para meu namorado desacordado —
fosse a marionete.
Lore tinha dois vincos profundos entre as sobrancelhas quando se aproximou da cama onde
ele estava deitado.
— Vicenzo não tentou me controlar esta noite, o que me faz pensar que ele queria que
fosse Nathan. E, claro, a logística era mais simples já que ele estava dormindo bem ao seu lado
— disse. Ela estalou os dedos sobre o rosto de Nathan, que se mexeu, franzindo o cenho, mas
não chegou a abrir os olhos. — Normalmente, os Desertores não são manipulados como se
fossem marionetes. Poucas vezes vi o juramento de sangue ser usado de forma tão literal.
Costuma ser mais simples. Vicenzo ordena e nós simplesmente sentimos o impulso nato de
apenas fazer o que ele quer.
Eu balancei a cabeça.
— Não. Dessa vez ele não era nem capaz de falar.
Lore estalou o dedo de novo, e Nathan resmungou, mas ainda assim não acordou.
— O quão forte bateu nele?
Eu não... Será que eu revidei forte demais?
— Ah, ele pode aguentar uma porrada — Roman murmurou, e Serena soltou uma
risadinha.
Bufei.
— Vocês não estão levando isso a sério.
Lore parecia determinada a acordar Nathan e Jonnah se aproximou de mim, apertando meu
ombro em um gesto fraterno.
— Não saberemos o que fazer até ele acordar — disse Jonnah. — Se Vicenzo esteve aqui
em algum momento desta madrugada, ele não está mais, ou com certeza estaria forçando Lore a
fazer algo também.
Mas eu não conseguia me acalmar. Nem mesmo quando Nathan sibilou um palavrão
depois que Lore lhe deu um tapa no rosto. Isso fez com que ele abrisse os olhos.
— Que porra?! — grunhiu.
Certamente não era calma, mas uma pancada de alívio me atingiu quando ele soou
exatamente como o meu Nathan. Lágrimas encheram meus olhos e eu grunhi de raiva. Eu
preciso parar de chorar! Eu estava parecendo uma criança desesperada, chorando a cada
percalço no caminho. Se eu levasse isso como um hábito, estaria chorando a porcaria da vida
inteira.
Nathan se sentou, coçando a cabeça e então se virou para nós. Quando seu olhar finalmente
me encontrou, culpa pungente parecia amargar sua boca. Ele franziu o cenho, e então desviou o
olhar.
— Eu... — ele começou, mas se interrompeu. — Me desculpe. Eu não sei o que aconteceu.
— Seus olhos voltaram a buscar por mim, mas ao encontrarem os meus ele logo os desviou
novamente. Parecia incapaz de me encarar. Parecia odiar me encarar. — Me perdoa, Aly. Eu
nunca, nunca, machucaria você.
E mais do que ver o seu tormento, eu podia senti-lo.
Em um piscar de olhos, eu estava ao seu lado, minha mão enroscada na sua.
— Eu sei disso, Nate. Não é sua culpa.
Como sempre, quando se tratava de si mesmo, Nathan sempre tinha dúvidas. Ele parecia
não conseguir se enxergar, não conseguir se entender. Eu sabia que ele nunca me machucaria
intencionalmente, sabia que preferiria enfiar uma adaga no peito a fazer isso, mas ele se
questionava se um dia meu sangue estaria em suas mãos.
E ao ver nossos amigos ali, a vergonha dele pareceu crescer.
— Eu precisei chamá-los.
Nathan apenas assentiu.
Ninguém falou nada, até Lore finalmente quebrar o silêncio.
— Hum, ok. E como você está se sentindo agora, Nathan? O que aconteceu antes de
Vicenzo te controlar?
Eu o senti inspirar fundo. Sua mão suava frio sob a minha.
— Acho que estou bem agora, pareço ter o controle — afirmou. — Eu não sei como
aconteceu. Eu estava exausto, quando peguei no sono, eu apaguei. — ele parou e pareceu pensar
no assunto —, mas... Não sei. Eu estive nervoso a noite toda, preocupado, um pouco angustiado.
Depois que peguei no sono, acordei já sufocando Alyssa. Eu não conseguia controlar meus
movimentos, não conseguia falar absolutamente nada e até minha visão parecia um pouco
embaçada.
Os olhos de Lore pareceram brilhar com a compreensão.
— Foi isso. Vicenzo conseguiu tomar o controle dessa forma porque você estava
dormindo. Estava inconsciente, completamente alheio à ameaça. Deve ter facilitado as coisas.
— Então ele não pode mais dormir? — Roman indagou, descrente.
Lore deu de ombros.
— Até pode, mas seria preferível que não fizesse isso na mesma cama que Alyssa.
Eu a fuzilei, o desconforto crescente de Nathan preenchendo meu âmago. A mão dele
soltou a minha e minha coluna endureceu.
— Saiam, por favor — pedi.
— Alyssa... — Serena começou, receio estampado em seu olhar, mas eu logo a interrompi.
— Está quase amanhecendo e os Protetores desconfiarão desta comoção toda na minha
tenda — eu disse. — Preciso que um de vocês avise a guarda sobre a possível aproximação de
Vicenzo e preciso que mantenham as bocas fechadas sobre o que aconteceu aqui esta noite. —
Encarei cada um deles, esperando que entendessem a seriedade do que eu pedia. Lealdade. Eu
precisava que fossem leais a mim, e não ao sistema. Porque o sistema estava quebrado. — Lore,
vamos iniciar a busca por uma forma de quebrar o juramento imediatamente. Procure em livros
sobre magia e sobre a história desta dimensão desde a criação dos Protetores, aposto que Aisha
tem vários. Precisa haver algum indício de um rompimento no juramento.
Lore assentiu veementemente.
— Lerei todos esses livros chatos com grande afinco. — Ela me deu uma piscadela. —
Nada como um bom desafio.
Minha risada saiu quase como um suspiro.
— Agora saiam, por favor.
CAPÍTULO 40

Eu poderia tê-la matado.


Se ela não tivesse acordado, se eu não tivesse conseguido lutar minimamente contra o
controle de Vicenzo, Alyssa estaria morta. E olhar para ela agora doía.
— Não é culpa sua — ela sussurrou.
— Eu sabia que isso poderia acontecer — eu disse. — Ficar no mesmo quarto que você foi
estúpido. Eu tomei o risco sem pensar nas consequências.
Eu vi quando ela engoliu em seco.
— Eu precisava de você aqui, Nathan.
Não, ela precisava do antigo Nathan. Ela precisava do Protetor. E eu não era mais ele.
— Não. — Suas mãos agarraram as minhas e ela se sentou ao meu lado. — Eu precisava
de você. Preciso de você. Do meu amigo. Do meu parceiro.
Ah. Mais uma novidade. Em meio ao desespero em tentar me comunicar e alertá-la, de
alguma forma eu consegui abrir minha mente o suficiente para alcançar a dela. Faria sentido que
ela fosse capaz de se comunicar mentalmente com os Protetores, visto que ela mesma possuía o
sangue Protetor, mas eu não era mais um deles, então isso só podia significar que esse tipo de
comunicação era parte do elo.
Soltei um suspiro.
— Não era minha intenção falar isso em sua mente.
Porque apesar de tudo, eu odiava que esta fosse a verdade. Eu odiava que da noite para o
dia eu houvesse me transformado na ameaça, me tornado aquilo que ela deveria temer. E me
dava náuseas apenas pensar que ela poderia, de fato, ter medo de mim.
Seus dedos estavam frios quando tocaram meu rosto. A escuridão de seus olhos
encontraram os meus e eu inspirei como se ela fosse uma lufada de ar fresco. Às vezes eu
pensava que, se eu estivesse afogando, Alyssa poderia muito bem ser meu oxigênio.
— É prático. Espero aprender a fazer o mesmo logo. Há coisas mais fáceis de pensar do
que falar — disse.
Toquei sua mão na intenção de tirá-la do meu rosto, me afastar o mais rápido possível
porque quanto mais eu postergava o inevitável mais impossível se tornava a mera ideia de ficar
longe. Mas a frieza de sua pele me fez querer aquecê-la, e minha palma se estendeu sobre seus
dedos, pousou sobre sua marca e ficou ali. A imensidão completamente negra de seus olhos fez
com que eu fechasse os meus.
Passei meses perdido em luto, porque achei que nunca mais encararia aquela mesma
escuridão. Então eu a encontrei, sem memórias e tudo o que eu podia fazer era lutar para trazê-la
de volta para si mesma. E o preço que paguei por isso valia cada segundo em que ela respirava,
em que ela se lembrava, mas ainda assim eu gostaria que houvesse tido outra forma. Queria
poder dormir ao seu lado sem que ela acordasse comigo a sufocando.
Pela primeira vez na vida, me peguei desejando ser humano e completamente alheio àquele
mundo em que o Destino ditava as regras.
Seria uma boa vida, ser humano ao lado de Alyssa.
— Eu preciso ir, Aly. Devia me manter afastado, pelo menos até que tudo se resolva.
Ela devia ter se aproximado porque agora eu podia sentir sua respiração bater contra meu
rosto.
— E quando é que as coisas se resolvem? — indagou. — Eu acho que nunca vivi em um
momento em que as coisas estivessem “resolvidas”.
Quando finalmente abri os olhos, os dela queimaram os meus. Eu queria viver uma vida
ininterrupta em que ela apenas olhasse para mim. Seria fácil. Seria bom.
Raios de luz do amanhecer começavam a invadir a tenda e, sob aquele brilho eu podia ver
cada detalhe no rosto dela. A roxidão sob seus olhos, o vinco em suas bochechas, a proeminência
de seus ossos. Ela havia perdido peso durante seu tempo no palácio, mas esta última semana
parece que havia começado a definhar. Como eu poderia me afastar? Como eu a deixaria, se
havia prometido que estaria ao seu lado, que lutaria por ela, com ela? Como poderia
simplesmente ir, mesmo que fosse o mais sensato, se ela parecia estar morrendo um pouquinho a
cada segundo que passava?
E como eu a ajudaria?
— Vou ficar na tenda com os garotos, pelo menos para dormir. Vai ser mais seguro.
Um vinco se formou entre suas sobrancelhas.
— Eu não sou uma donzela, Nathan. Posso chutar sua bunda se for necessário.
Eu quase sorri com a lembrança de uma das nossas primeiras conversas no Outro Lado, em
como eu havia insistido para que ela lutasse com mais afinco para que não me fizesse a tratar
como uma donzela indefesa. Parecia tanto tempo atrás... Uma vida em que nos reencontrávamos
sem nem saber que de fato era um reencontro.
Mas a seriedade da situação me fez insistir:
— Não se eu a matar enquanto dorme.
Ela revirou os olhos.
— Olhe para mim — disse —, nem estou mais machucada. Me curo bem mais rápido
agora.
Eu olhei. Olhei bem. E ainda assim só vi as sombras em seu rosto, a dor mal dissimulada.
Ela desviou o olhar quando a intensidade do meu foi demais, quando eu tinha certeza de que ela
se sentiu exposta demais. Sua mão caiu para meu ombro e sua postura fraquejou, perdendo
aquela aparência altiva.
— Não se afasta, Nate. Não agora — sussurrou. — Não nunca.
Foi a vez das minhas mãos puxarem seu rosto para o meu. Eu estava no controle. Sabia
disso. Não havia sinal de Vicenzo sob a minha pele ou no fundo da minha mente. Nossas testas
se tocaram e quando inspiramos, inspiramos juntos, como um.
— Eu vou estar aqui, apenas dormindo a algumas tendas de distância.
Seus dedos se fecharam sobre a minha camiseta.
— Lembra quando dormia aos pés da minha cama para tentar afastar os pesadelos? —
sussurrou, os lábios quase tocando os meus.
— Lembro.
— E se eles voltarem a perseguir minhas noites porque você não está aqui?
— Então vou passar as noites em claro para mantê-los longe.
Ela balançou a cabeça, o nariz roçando no meu.
— Isso não é uma alternativa.
— É a única segura.
Sua mão direita tocou meu peito, sobre o coração, sobre a marca miserável do juramento.
— Se eu pudesse, arrancaria essa marca de você. Quebraria o juramento eu mesma —
disse. — Livraria você disso.
— Eu sei.
— Lembra quando me disse que lutaria por mim? — murmurou, os lábios quase tocando
os meus. Tudo o que eu queria era beijá-la, afogar os medos em sentimentos que eu queria sentir,
mas eu esperei e apenas assenti. — Eu luto por você também, Nathan. Vicenzo pode trazer o
inferno à Terra e tentar nos colocar em lados opostos nessa guerra, e eu ainda irei lutar por você.
Dessa vez eu não consegui me conter e tomei seus lábios nos meus. Engoli seu suspiro e
absorvi aquele sentimento de paz que vinha sempre que eu a tocava, como se fosse meu segundo
de sossego. Eu a beijei com amor, mas também com saudade. Talvez até um pouco de medo. No
entanto, quando ela aprofundou o beijo e grudou seu peito no meu, passou suas pernas sobre as
minhas e eu enterrei meus dedos em sua pele, eu acreditei que o inferno podia invadir a Terra e
ainda assim venceríamos. Porque não importava o que o Destino tenha escrito, eu ainda lutaria
por ela, mesmo se não pudesse enxergar, se não pudesse falar ou me mover.
Podia ser pensamentos utópicos de um estúpido apaixonado. Podia ser loucura. Podia ser
tolice. Mas eu havia experimentado uma vida na ausência de Alyssa e me recusava a voltar para
ela. O vazio era assustador demais.
Aly aprofundou o beijo, grudando seu corpo ao meu, como se precisasse sentir as batidas
do meu coração para se certificar de que o seu ainda batia. Aos poucos, porém, eu desacelerei o
beijo, mudei o ritmo até que estava deixando selinhos em sua boca, bochecha, queixo e pescoço.
Ela precisava sarar primeiro. Precisava que o luto parasse de ecoar em sua alma e que o trauma
de meses passados naquele palácio deixassem de perturbar sua mente.
Porque havia um fato inegável. Memórias nem sempre eram uma benção. Mais vezes do
que gostaríamos de admitir, se lembrar de algo era quase como se torturar um pouco. Muitas
lembranças ruins eram uma sina pesada para carregar.
— Lembra quando disse que era minha melhor amiga?
Ela soltou uma risadinha contra meu pescoço, a lembrança abrindo espaço em sua
memória. Eu amava isso. Amava saber que ela se lembrava de cada segundo que passamos
juntos, desde crianças até segundos atrás.
— Lembro do meu ultimato, sim.
Alyssa devia ter uns cinco anos. Nós tínhamos tido uma briga porque eu queria brincar no
Lago, mas ela queria brincar de espiã na floresta. Então eu virei as costas para ela e fui nadar,
enquanto ela ficou emburrada e foi brincar sozinha em meio às árvores densas acima de nossas
casas. Nem havia passado pela minha cabeça que poderia ser perigoso que ela fosse, porque
mesmo naquela época ela irradiava uma força sobrenatural. Sua alma parecia forte. Naquele dia,
Jasmine havia se assustado porque não a encontrava em lugar algum e, pela primeira vez, assisti
ao desespero de uma mãe que sabia que a filha estava sendo caçada.
Quando a encontramos, sã e salva, eu estava tão preocupado que minha reação foi ficar
com raiva. Raiva porque não tinha concordado em ir brincar na floresta com ela, raiva porque ela
era mais nova e não havia cuidado dela, raiva porque, por um segundo, eu estive com tanto medo
que não a encontraria que mal podia respirar. E, com sete anos, eu apenas corri para casa. Mais
tarde, Aly bateu à minha porta e, sem nem esperar que eu a convidasse para entrar, ela logo
soltou: “eu sou sua melhor amiga, não pode parar de falar comigo, porque você também é meu
melhor amigo. Melhores amigos conversam e são amigos para sempre”.
— Somos melhores amigos, Aly. Pode falar comigo. Sobre tudo.
Quando seus olhos encontraram os meus, sua boca se curvou em um sorriso sem graça.
— Acreditaria em mim se eu dissesse que tudo o que eu queria era poder silenciar minha
mente? Acreditaria se eu dissesse que você não quer me ouvir falar sobre tudo?
— Sim. E mesmo assim diria que manter o silêncio sobre as dores que carrega é apenas
uma forma de alimentá-las.
Seu suspiro roçou meus lábios, como uma carícia.
— Você gosta de alimentar suas dores.
Meus braços percorreram sua cintura. Lá fora, eu começava a escutar o burburinho de
Protetores acordando. O dia logo começaria e nosso momento seria interrompido e quando
voltássemos a ficar sozinhos, ela já estaria exausta demais para ao menos tentar falar.
— Acho que eu falo com propriedade então.
Aly bufou uma risada sobre meu peito, os dedos percorrendo as veias sobressaídas em
meus braços, deixando arrepios pelo caminho.
— Eu só preciso de tempo, Nate — sussurrou. — Vou ficar bem de novo. Você vai ver.
Eu me perguntava se ela podia ouvir meu coração rachar.
Alyssa não precisava se sentir pressionada a parecer bem, a se sentir bem. Ninguém,
nunca, poderia absorver suas dores e deixá-la livre, elas pertenciam à garota em meus braços e
apenas a ela. Mas eu queria que ela lutasse contra a avalanche, que ela sobrevivesse à dor. Não
porque eu precisava que ela estivesse bem, ou porque faria a mãe dela mais feliz, ou
demonstraria força aos Protetores. Mas porque ela merecia paz.
— E quando quiser conversar, eu estarei aqui — eu disse, os lábios em seu cabelo. —
Porque amigos falam um com o outro. E eu conheço sua dor, amor. — Ela ergueu a cabeça para
me encarar, os olhos segurando lágrimas que ela precisava saber que poderia derramar se
quisesse. Ela podia sofrer. Tinha esse direito. — Porque ela é minha também.

Aquela foi a primeira noite desde a última semana em que dormi longe de Alyssa.
A tenda dos garotos não tinha o cheiro de Alyssa e, para ser honesto, já cheirava a meia
velha, mas pelo menos nem Roman nem Jonnah roncavam como Jasper.
Mesmo assim, dormir longe de Alyssa era uma tortura.
Na primeira noite eu passei horas tentando pegar no sono sem sucesso, apenas me
concentrando naquele elo entre nós para ter certeza de que o coração dela batia e que ela não
estava tendo nenhum pesadelo. Na segunda noite eu fiquei ao seu lado durante todo o dia e
apenas a deixei quando caiu no sono em meus braços. Só então caminhei para a tenda na qual
agora eu dormia. E foi na segunda noite que Roman me acordou, porque eu estava tendo um
pesadelo. Porém, não era bem um pesadelo, era Vicenzo. Como se ele tentasse controlar meu
subconsciente enquanto eu ainda dormia, mas minha mente estava altiva o suficiente para tentar
impedi-lo. Talvez, ao me acordar, Roman tenha impedido que o desgraçado tomasse o controle
mais uma vez.
Na terceira noite eu acordei com a angústia de Alyssa embrulhando meu estômago e corri
para sua tenda, e a encontrei tendo um pesadelo sobre o pai. Quando consegui fazê-la acordar,
ela não abriu a boca para falar nada, mas seus olhos derramavam lágrimas pesadas e, pela
primeira vez, sua voz soou alta o bastante em minha mente: eu sinto falta dele.
Eu sabia que sua mente foi capaz de dizer aquilo que seus lábios não conseguiam, e apesar
de grato pela oportunidade de ouvi-la, a dor dela era como uma onda pesada batendo contra meu
peito. Eu não entendi como ela aguentava. Aos poucos, quanto mais tempo passávamos juntos,
agora ambos com nossas devidas memórias e conhecimento sobre o que éramos um para o outro,
mais eu conseguia sentir. E era desesperador.
Abracei-a por horas dentro da madrugada, sentindo-a chorar baixinho. Quando falava, era
em minha mente. Coisas como: “ele não merecia, Nate”, ou “meus pais mereciam mais tempo
juntos” e — a que me quebrou em pedaços — “ele me dava esperança e agora eu não sinto
nenhuma”.
Naquela noite, mesmo quando Aly finalmente se acalmou e voltou a dormir, eu passei a
noite em claro. Não tinha a coragem de fechar os olhos e adormecer perto dela, mas também não
tinha força o suficiente para deixá-la.

— O que está acontecendo? — Serena perguntou, adentrando a tenda mais afastada de


Mahali, que pertencia à Aisha.
A Guardiã havia reunido todos nós porque havia recebido informações “importantes”.
Apesar de afastada do burburinho da sede, a área de treinamento dos mais jovens não estava
muito longe, e o barulho das ondas aqui era mais intenso. Apenas alguns passos para fora da
tenda e se chegava à costa. Alyssa foi a última a entrar, depois de Jasmine. Elas haviam passado
a manhã treinando combate — eu desconfiava que mais para ajudar Jasmine a entrar em forma
do que Alyssa. Por meses, a mulher mal saiu da cama, então fazia sentido que precisasse
trabalhar para voltar ao ritmo pelo qual era reconhecida.
E para o que estava por vir, precisaríamos mais do que de Jasmine, precisaríamos da lenda.
Observei Aly caminhar até nós com o olhar perdido, a mente em algum outro lugar. Ao
parar ao meu lado, sua mão tocou a minha, seus dedos roçando os meus com leveza. Ela mal
parecia perceber o toque, era uma reação automática.
Aisha sorriu para nós, nos dando um leve aceno de cabeça.
— Espero que vocês estejam tendo uma boa hospedagem em Mahali.
— Ótima, obrigada — Lore disse prontamente, mas eu sabia que não era verdade. Hoje
mesmo um Protetor a empurrou quando ela estava pegando seu café da manhã.
— Mahali é estonteante, Aisha — Jonnah disse. — Tanta natureza...
Os panos que criavam a porta da tenda balançaram e então mais uma figura preencheu o
espaço. Uma figura grande, musculosa e de cabelos escuros e olhos verdes frios.
Eu não via meu pai desde que revelei a verdade sobre o que eu havia me tornado durante
meu tempo em Florença. E agora ele estava ali, os ombros tensos e o mesmo olhar gelado de
sempre — o mesmo que ele não direcionou a mim.
— Infelizmente, o que tenho para dizer não é nada agradável — Aisha começou e, ao meu
lado, Alyssa ficou tensa. — Eu e minhas irmãs temos ouvido muitas conversas entre os
Protetores a respeito de um tópico sensível: vitalidade.
O ar ficou mais denso, a energia de magia pulsando, e então Freya se materializou a apenas
dois passos à frente.
— Tenho novidades — disse, tão feliz quanto uma porta.
— Estamos cheios de novidades hoje — murmurei. Aly apertou minha mão.
— Más notícias, irmã? — Aisha questionou, o rosto franzido.
Freya deu de ombros.
— Não as melhores.
— Quem vai lançar a bomba primeiro? — perguntei, impaciente.
Freya me deu um olhar cortante. Abri um sorriso afável.
— Há indícios de um levante dos Protetores, iniciado no Outro Lado — Aisha anunciou, o
olhar triste. — Receio que... certas forças tenham usado a vulnerabilidade dos Protetores de lá
como meios para um fim.
— Forças? — Jasmine indagou.
— A elite, especialmente Ravenna e Akantha.
— Akantha nem deveria estar no Outro Lado! — Jasmine estourou. — Ela é líder da sede
na Grécia, pelo Destino!
— Justamente. No momento, o Outro Lado é a sede mais influente e, pelo que passaram
meses atrás, também é a mais vulnerável.
— O que Akantha está tentando fazer? — A voz de Alyssa foi ouvida pela primeira vez
desde que chegou, mais fria do que era de seu costume.
— Akantha e outros Protetores da elite têm defendido por anos limitar o contato de seu
povo com humanos, principalmente para que estes não entrem em um relacionamento romântico
— Aisha explicou. — Defendem que a união entre Protetores e humanos dilui o poder, o que,
claro, não há qualquer indício de ser verdade. Mas desde o ataque e com a morte de Alyssa sendo
uma certeza por muito tempo, muitos Protetores ficaram apavorados com a ideia de não haver
outra Fidly.
Porque era isso que Vicenzo havia dito. Alyssa era a última Fidly. Uma barganha entre o
desgraçado e o Destino havia determinado que haveria uma última Fidly, uma que o Destino
pensou que Vicenzo não seria capaz de matar, porque tinha o mesmo rosto que a antiga amante
do psicopata. Se ele pedisse minha opinião, eu diria que era um plano preguiçoso.
— Eles querem imortalidade — Jasmine deduziu.
Aisha assentiu e, pelo olhar colérico de Freya, eu diria que se dependesse dela, mais
ninguém seria imortal neste planeta.
— Há uma grande confusão a respeito do que é ser imortal — a Guardiã africana apontou,
com pesar na voz.
Freya bufou.
— Apenas diga que isso está fora de cogitação — Brian ofereceu a solução mais óbvia.
A Guardiã europeia o olhou de cima a baixo. Se fosse possível, eu imaginava que ela teria
sugado a alma do homem e então cuspido no chão à sua frente.
— Você é o Protetor que engravidou a última Fidly, não é? — Havia uma pitada não muito
saudável de raiva em sua voz e a menção à minha mãe fez um aperto desconfortável se formar
em meu peito. Ela apontou para mim. — O pai daquele ali? — Meu corpo ficou tenso, mas eu
engoli a amargura que preencheu minha boca quando Brian desviou o olhar e não respondeu. —
Bem, pelo que eu ouvi falar de você, mal passou tempo suficiente em casa para cuidar do próprio
filho, então também não deve ter tido muita experiência em liderar os Protetores, estou errada?
Nem um pouco.
Brian era bom na luta, um guerreiro excepcional e que havia conseguido se nivelar à
guerreira que era Jasmine. Mas o homem nunca, nem por um instante, foi material para um bom
líder. Ele era nervoso demais, contrário demais a qualquer tipo de socialização e, de modo mais
prático possível de explicar, Brian era um lobo solitário. Os dias em que lutamos juntos quando
eu afundava em luto, e ele, pela primeira vez na vida, tentava agir como meu pai, foi uma das
únicas vezes que o vi escolher lutar ao lado de alguém.
Eu não tinha ideia do que havia feito minha mãe se apaixonar por Brian, uma vez que tudo
o que me falavam sobre ela dizia que Diana havia sido o exato oposto dele. Cheia de compaixão,
amigável e com uma força de ferro, eu só posso imaginar que o elo tenha sido mais forte.
— Se negar algo ao povo fizesse com que descartassem a ideia imediatamente, Brian, nós
nem estaríamos nesta guerra para começo de conversa — Freya apontou.
— Não estaríamos nesta guerra se você não tivesse dado a Vicenzo exatamente o que ele
queria — Brian rebateu, carrancudo.
Um olhar para Freya e qualquer um chegaria a conclusão de que aquela foi a coisa errada a
se dizer. Muito errada.
Magia fluiu como uma ventania, que se espiralou até que se tornou um tornado. Então, um
buraco negro surgiu a apenas alguns passos de distância de Freya, bem em frente a Brian. A
fissura ia contra qualquer lei da física, abrindo uma porta entre esta dimensão e alguma outra
nada atrativa. Ao meu redor, os Protetores e Lore arfaram, mas Aly se esticou para observar o
interior do buraco. Agarrei seu pulso e a puxei de volta, mantendo-a perto de mim e longe de
onde quer que aquele negócio levava.
— Abra a boca novamente, Brian, e talvez eu faça exatamente aquilo que você tanto
deseja: te envio para a morte certa — Freya sibilou. — Mas sinto que sua amada não estará neste
lugar em especial para encontrá-lo.
Brian trincou os dentes. Ele odiava que mencionassem minha mãe, e esta já era a segunda
vez. Por um instante, eu pensei que ele retrucaria, mas o guerreiro obediente em si falou mais
alto e, então, meu pai apenas manteve a boca fechada.
— Irmã, feche o portal antes que ele chame atenção de indesejados — Aisha pediu, mas
sua voz tinha um tom sério que eu ainda não havia ouvido. Fiquei levemente impressionado
quando, depois de fuzilar Brian, a Guardiã europeia obedeceu ao pedido da irmã.
Eu podia jurar que Jasper soltou um suspiro aliviado.
— Para acabar com esses burburinhos, que pode muito bem nos levar a um levante,
precisamos agir juntos — recomeçou Aisha. — Os Protetores já sabem que Alyssa está viva, mas
está na hora de mostrar também do que ela é capaz.
— Podemos também nos atentar a um fato: — Freya se intrometeu, observando as unhas
— imortalidade é uma penúria e você mais perde do que ganha.
Ninguém na tenda teve coragem de questioná-la.
— Precisamos voltar para o Outro Lado, então — Alyssa concluiu, quase a contragosto.
Eu sabia que ela gostava de estar aqui mais do que apreciava a mera ideia de voltar para o
Outro Lado. Tudo o que ela perdeu estava marcado naquela terra como um rastro de queimada
em uma floresta. Pessoalmente, eu não me importava com onde eu estava, mas queria encontrar
Zeus logo. Jane, uma humana amiga de Jasper e prima de sua falecida esposa, estava cuidando
dele e, apesar de confiar no julgamento do Protetor, eu ainda sentia muita falta do meu
companheiro de sempre. Será que Zeus se importaria com minha nova condição? Com certeza
perceberia meu cheiro estranho, mas será que se afastaria de mim?
Preocupações para o futuro. Que eu esperava que chegasse logo. Sempre que Aly
perguntava sobre Zeus, eu sentia como se tivesse o abandonado um pouco. E eu sabia que, se
Zeus tivesse um poder, este era de fazer as pessoas se sentirem melhores e eu tinha certeza que
ele ajudaria muito Alyssa a lidar com tudo.
— Certamente — Freya concordou. — Mas antes de irem, tenho algo que pode ser do
interesse de vocês. — Ela encarou Alyssa. — Especialmente para você. — Eu a observei com
interesse renovado. — Meus Protetores me informaram de mortes suspeitas de humanos na
fronteira de Florença. Fui averiguar eu mesma e percebi a mesma coisa em todos os corpos que
encontrei: pescoços, pulsos e tendões cortados. Os humanos sangraram até morrer, como se fosse
um ritual. Quinze deles, espalhados pela fronteira.
— Por que um massacre interessaria Alyssa? — Lore questionou.
— Há um ser em Florença que não se importa com discrição — Freya continuou. —
Poderosa, cheia dos feitiços interessantes, provavelmente a razão de Vicenzo ter se reconectado
com Belius e Mavon, e terrivelmente feia. — Sybil. Ao meu redor, todos ficaram em silêncio, a
expectativa de finalmente entender onde aquele assunto iria parar porque nos vingar de Sybil
seria monumental. — Fiz algumas pesquisas e conversei com alguns conhecidos por aí.
Feiticeiras como Sybil se alimentam de força vital, o que justifica os sacrifícios. Matar os
humanos é o que a têm tornado tão forte. Apostaria que, antes de atacar o Outro Lado, quebrar as
proteções e controlar corpos como fez, a mulher deve ter sacrificado pelo menos uma centena de
pessoas.
— O poder dela vem da morte? — Serena perguntou.
— Não exatamente — Aisha respondeu, o cenho franzido —, as Feiticeiras da dimensão de
Sybil eram reconhecidas por seus poderes notórios. Mas neste mundo não é preciso de magia
para explodir toda uma cidade. — É, humanos fizeram porra de bombas pra isso. — Por isso
Sybil deve se sentir obrigada a se precaver e consumir o máximo de energia possível. — Aisha
apontou para as mãos de Alyssa, que brilhavam levemente com a sua luz branca. — Você é a
fonte de seu poder, Alyssa, e drena a si mesma para usá-lo. Mas não as Feiticeiras. Estas
absorvem o poder de outro ser.
Então as Guardiãs explicaram tudo sobre como as Feiticeiras eram, ou pelo menos o que
descobriram sobre. Sybil era a segunda a ser encontrada nesta dimensão em cento e dez anos. A
boa notícia? Cassandra matou a primeira arrancando sua cabeça. Eu sabia que algo funcionaria.
— Você está dizendo que, se conseguirmos impedir as mortes dos humanos para alimentar
essa porcaria de poder, então pouco a pouco Sybil estará tão fraquinha quanto um vampiro sem
as presas — Alyssa ofereceu, pensativa. — E então cortamos a cabeça dela.
Freya abriu um sorriso viperino, os olhos brilhando para Alyssa.
— Exatamente.
Havíamos chegado a duas conclusões: um, Sybil estava sacrificando humanos para ficar
mais forte, e, dois, iríamos cortar sua cabeça.
CAPÍTULO 41

Apesar das notícias vindas das Guardiãs não serem as melhores, pelo menos uma coisa boa
surgiu delas: saber que havia um meio de enfraquecer Sybil e assim facilitar nosso trabalho na
hora de matá-la. A grande dúvida então era: quantos humanos já haviam morrido nas mãos de
Sybil e quanto poder agora ela tinha por isso?
Belius podia criar armas com um pensamento e Mavon era... — o que ele fazia mesmo? —
Bem, Mavon era assustador. Mas Sybil estava em outro nível de ameaça. A Feiticeira era astuta e
perigosa, seu poder se desenrolava em muitas habilidades e temê-la era quase uma reação sábia.
Saber o que ela andava fazendo com os humanos embrulhava meu estômago — saber que ela
fazia isso enquanto eu estava ao seu lado, sendo manipulada para acreditar que eles eram os
heróis desta guerra? Era ainda pior — e eu sentia a urgência de agir, como se algo dentro de mim
rugisse e se debatesse com a ideia de lutar, proteger e vencer.
E para vencer eu precisava descobrir uma forma de intensificar meu poder, como carregá-
lo o suficiente para que Vicenzo não me levasse junto quando eu finalmente o matasse. Enquanto
isso, também seria preciso que eu voltasse ao Outro Lado, lidasse com os Protetores idiotas
elitistas e ajudasse a manter o Lago protegido.
Dedos estalaram quase na ponta do meu nariz. Ergui os olhos e encontrei Serena me
observando com o rosto franzido.
— Achei que tivesse entrado em um transe.
— Só estou pensando.
Ela pegou a fruta esquecida em meu prato e mordeu.
— Precisa começar a comer toda sua comida, Aly — repreendeu. — Você parece estar
precisando de todas as forças que puder conseguir. Desse jeito vai perder todos os músculos que
trabalhou para conquistar.
Eu não respondi. Não sentia vontade alguma de comer. Ou de falar. Ou de sorrir. Ou de
respirar.
Contudo, eu precisava acabar com esta guerra, já havia feito o Destino esperar demais e
sabia que logo ele começaria a enviar mensagens, e duvidava que seriam do tipo boas. Pelo que
ouvi falar, muitos terremotos por aí não foram simples ocorrências naturais. Quando o Destino se
incomodava com atitudes humanas que poderiam ameaçar a balança, seus métodos de mandar
avisos não eram nem um pouco simples ou inofensivos.
— Argh! — Lore bateu as mãos na mesa, o som frustrado saindo estrangulado. — Não há
nada de útil nesses livros velhos. Tudo o que estou conseguindo dessas porcarias é uma bela
alergia e eu nem sabia que podíamos ter alergia!
Serena esticou o pescoço para espiar a página que Lore encarava com raiva.
— As letras são minúsculas.
Lore fez uma careta.
— Acho que preciso de um óculos. E eu também não sabia que seria possível ter miopia
sendo uma Desertora. — Ela me olhou. — Acho que o Destino está me punindo.
Revirei os olhos.
— Você é muito dramática para o próprio bem.
Ao mesmo tempo, Serena falou:
— Pode ser que ser uma Desertora seja uma merda em todos os sentidos.
As garras de Lore tamborilaram pela madeira da mesa e ela se virou para encarar a
Protetora ao seu lado.
— Você acha? — Apontou para o peito de Serena, onde uma pedra verde pendia de um
cordão de ouro. — A esmeralda é o símbolo de uma família na sede parisiense. Durant, não é?
Família notória francesa — comentou. — Você com certeza viu o melhor que os Protetores tem
a oferecer. Mas quer um segredo? Não é assim para todos.
Eu abri a boca para interferir, para dizer que Serena vinha de uma família influente, mas
que havia estado por conta própria por muito tempo, criando as próprias concepções, tomando as
próprias decisões. Ela não era apenas mais um símbolo de uma elite preconceituosa. Mas minha
amiga foi mais rápida.
— Eu não sou minha família, Lore. Assim como você não é o seu juramento. — Ela bateu
contra a página do livro nas mãos da Desertora. — Preste atenção nesta última frase.
Lore a encarou por um segundo longo, antes de desistir de qualquer que fosse o comentário
espumando em sua boca e voltou a encarar o livro. O meu próprio, esquecido em minhas mãos,
já que não era de grande ajuda. Eu o escolhi pensando que, ao discorrer sobre energia e como ela
gerava tudo o que víamos e sentíamos, haveria algo sobre “compartilhamento” ou “absorção” do
mesmo, mas ainda não havia lido nada de relevante.
— “Energia está no sangue, corre pelas veias. Por isso a morte significa o fim da energia
vital. E por isso que a vida só é possível quando o sangue corre. E se energia está no sangue e
este é compartilhado, um dos lados tende a absorvê-lo” — Lore leu. — “Juramentos de sangue
seguem a premissa de energia compartilhada pelo sangue. Aquele que jura cede sua força,
muitas vezes sua vontade própria. O que absorve pode usufruir da energia como bem deseja.”
— ela parou — aqui não fala sobre quebrar o juramento. Nós já sabemos disso.
Pode ser que soubéssemos como o juramento funcionava, mas nunca parei para pensar no
fato de ser o sangue o poder vital. Por isso Vicenzo se tornou um imortal tão perigoso, mesmo
não tendo nenhum poder como as Guardiãs, porque quanto mais Desertores se juntavam a ele e
faziam o juramento, mais energia ele recebia — mais poder ele absorvia.
— Energia é poder — sussurrei, pensativa.
Era disso que eu precisava. Mais energia. Eu tinha esse poço de poder em meu âmago, essa
luz que fervia e ameaçava me consumir, mas apesar de sua força, minha energia vital não era
suficiente. Não era pra ser suficiente. Nunca foi o plano do Destino que eu sobrevivesse. Mas ele
nem pensou em tudo o que Vicenzo poderia fazer, no aliados que poderia usar e como ter apenas
a energia necessária para matá-lo fosse, na verdade, o motivo pelo qual ele vencia a guerra. Se
ele se tornasse mais forte, com aliados mais fortes, a chance de eu esgotar esse poço de poder em
meu âmago seria grande demais para ignorar.
E agora eu precisava de mais. Para vencer. Para sobreviver.
Levantei-me da mesa, a cadeira batendo contra o chão. Puxei o livro das mãos de Lore e
comecei a andar. Eu precisava falar com as Guardiãs.
— Ei! Eu estava lendo essa porcaria! — Lore gritou.
— Alyssa deve estar em um momento de realização — Serena lhe disse.
— Porra, toda vez que ela pega em um livro é isso! — a outra resmungou.
No tempo em que passei naquele maldito palácio, Lore sempre comentava sobre minhas
caretas enquanto eu lia, ou a descarga criativa que alguma cena gerava. Antes disso, quando eu e
Serena éramos apenas meninas na cidade grande — bem, ela também já era uma guerreira, mas
isso não vem ao caso —, passávamos horas comentando sobre leituras e criando finais
alternativos, ou apenas tentando entender como os personagens estavam anos após o fim.
Diferente de Lore, Serena também gostava de ler e por isso entendia essas epifanias aleatórias
durante a leitura. Já Lore gostava de comentar sobre a leitura alheia.
Deixei as duas para trás, então corri para fora da tenda e pelas ruas cheias de areia
carregada pelo vento vindo do oceano, apenas balançando a cabeça para os Protetores que me
direcionavam alguma palavra. Eu precisava encontrar as Guardiãs. Eu havia tirado o dia para
pensar em uma possibilidade para solucionar meu problema, e agora podia ter alguma ideia de
como fazer isso.
Irrompi pela tenda de Aisha, sem nem me anunciar, e precisei tapar a boca para conter o
susto. Aisha estava sentada à sua mesa — na qual ela trabalhava —, agora com Akin no meio de
suas pernas, enquanto se beijavam. Comecei a dar meia-volta, tentando garantir que eu não
fizesse parte alguma daquela cena, mas Aisha abriu os olhos e me encontrou ali, parada e
chocada. A Guardiã empurrou Akin, que se soltou dela confuso, apenas para compreender a
interrupção ao pôr os olhos em mim. A boca do Protetor abriu, mas nenhum som saiu. Ele baixou
os olhos e soltou Aisha.
— Me desculpem. Eu posso voltar mais tarde. Eu não queria interrompê-los, estava apenas
vindo falar com você e Freya e...
Graças aos céus Aisha me parou, pondo-se de pé e ajeitando o vestido. Com o sorriso de
sempre, mas um pouco tímido dessa vez, ela disse:
— Não se desculpe, querida. Você está ansiosa para discutir o que quer que esteja em sua
mente. — Ela provavelmente sentia aquilo com seu poder da mesma forma como era capaz de
amenizar os sintomas. A Guardiã se virou para o Protetor. — Akin, imagino que tenha algumas
coisas para resolver.
O homem, em resposta, assentiu veementemente, e se apressou para sair da tenda, me
dando uma leve reverência antes de desaparecer.
— Me perdoe, Aisha, eu devia ter avisado que estava vindo.
A Guardiã, pela primeira vez desde que a conheci, corou.
— Bobeira, querida. Eu não devia estar agindo de modo tão frívolo. — Se virou, ajeitando
os papéis sobre a mesa. — Sabe, eu nunca tive um relacionamento de verdade com nenhum
homem, e nem mesmo faz sentido porque não há chance de futuro, mas Akin...
— Você não precisa se justificar para mim — ofereci. — Não há o que justificar.
Quando voltou a me encarar, seu sorriso havia voltado ao normal. Caloroso e intenso.
— Quando fomos abençoadas pelo Destino, Alyssa, ele ordenou a nós cinco que nunca
colocássemos nada acima do equilíbrio e nossos papéis em manter a balança equilibrada —
disse. — Por isso não podemos engravidar e por isso não deveríamos amar. Mas uma vida
imortal sem amor é solitária. Eu e minhas irmãs tentamos ser presentes umas para as outras, mas
temos nossas próprias responsabilidades, nossos próprios continentes. E, às vezes, a solidão é
demais. Akin... Akin apareceu em minha sede há menos de dois anos e se mostrou valioso para
meus Protetores aqui, mas também me fez sentir menos sozinha. Eu sei que eu não deveria
insistir em algo assim, mas me encontro incapaz de interromper o que começamos há um tempo.
Incapaz de voltar àquele sentimento de solidão que ele espantou. É egoísmo, eu sei, mas temo
que também seja real.
Eu entendia. Sabia tão bem quanto ela o quão difícil era apenas aceitar estar sozinha e
entender que o destino foi traçado muito antes de você ser capaz de fazer escolhas. Eu quis tanto
ficar com Nathan que ignorei cada pessoa que dizia não haver futuro para nós, cada um que dizia
que seria perigoso. Eu ignorei o próprio Destino.
Mas eu não me arrependia de ter escolhido amar.
A pele marrom dourada de Aisha poderia muito bem pertencer a uma deusa. Nada em
Aisha demonstrava humanidade, porque nada humano era tão simetricamente perfeito. Seus
longos cabelos volumosos, cachos grossos e cheios, seus olhos de ouro líquido. Adornada por
tantas pedras preciosas brutas e um vestido branco fluído simples, eu entendia porque Akin se
deixava levar pelo desejo, pela paixão e, quem sabe, pelo amor. Porque, tanto quanto era linda
por fora, Aisha era extraordinária por dentro.
Seus olhos encontraram os meus, e a lembrança correu livre pelo meu cérebro sem
barreiras agora.
— Egoísmo seria não permitir que seu coração seja honesto — disse, as mesmas palavras
que, meses atrás, a Guardiã dizia para mim. — Aqueles destinados a se encontrarem, sempre se
encontrarão. — Seus olhos brilharam, o ouro líquido se tornando uma joia preciosa. — Você me
disse isso um tempo atrás e eu engoli suas palavras como se fossem nutrição pra minha alma.
— Sabe, minha querida, todos os seres vivos possuem o elo. Todos, sem exceção. Alguns
elos aparecem na forma de amor entre mãe e filha, ou amigos que se entendem como ninguém,
ou mesmo na forma de um companheiro animal — contou. — O elo é muito mais do que esse
amor profundo e enlouquecedor. Pode ser tão simples quanto um encontro entre almas amigas.
Mas apesar de todo ser ter seu elo, nem todos o encontram. O mundo é grande demais e nem
sempre o Destino leva as pessoas a se encontrarem, ou suas vidas não são interceptadas no
momento correto. — Seus olhos vagaram, perdendo o foco. — Claro, há aqueles sortudos que se
encontram independente de qualquer coisa, como você e Nathan. Sua condição de Fidly
contribuiu para isso, da mesma forma como ajudou Diana a ver Brian antes que seu tempo nesta
dimensão acabasse. Mas como Guardiã, o Destino estabeleceu que meu elo é com a balança e
nada mais. — Seus olhos encontraram os meus, de repente tristes. — Acho que Freya se ressente
tanto disso porque nunca pôde ter a família que sempre sonhou. E eu sei que ela teria sido uma
mãe maravilhosa. E às vezes... Às vezes me pergunto como seria se amar fosse um dos meus
deveres.
Sua confissão apertou meu peito. Eu sabia que o elo era algo difícil de encontrar ou mesmo
determinar, principalmente se não uma Fidly, mas nunca havia imaginado que era um direito de
todo ser vivo. Todo ser vivo, menos uma Guardiã. E sabendo disso, eu apenas pude pensar em
como deveria ser terrível viver uma eternidade imaginando como seria ser amado. E amar
livremente.
— Não importa o que o Destino quis, você ainda é merecedora de amar. — Eu a encarei,
observando o ouro líquido em seus olhos tremeluzir. — Acho que aquelas suas palavras para
mim, meses atrás, eram liberdade de alguma forma. E constantemente me pego pensando que as
pessoas não devem se encontrar por acaso, Aisha. Acho que, mesmo sem querer, o Destino não
pode evitar nos levar às coisas que devem ser nossas.
Sua mão, adornada por símbolos em tinta vermelha e dedos cheios de anéis com mais
pedras brutas, subiram para o peito e ali pousaram, sobre o coração.
— Seus olhos veem além do véu — disse, baixinho. — É por isso que sei que mudará este
mundo, Alyssa. Por isso vejo que o luto e a dor podem tentar consumi-la, mas você não irá cair.
Você foi criada da luz, e nela permanecerá. — Meus olhos se encheram de lágrimas, mas quando
ela se aproximou e tocou meu rosto, a dor em meu peito aliviou. — Obrigada por suas palavras,
minha querida.
Eu sorri, o alívio em meu peito se alastrando pela minha alma. Era tão bom respirar e não
sentir o vazio ecoar, ou a angústia adoecer meu âmago, atormentar as batidas do meu coração.
Era como um segundo de paz.
Magia encheu o ar como a de Aisha não fazia. Esta era mais sólida e fria. Eu procurei sua
origem e me deparei com Freya se materializando a apenas alguns passos atrás de mim. A
Guardiã nos encarou, a sobrancelha arqueada e o olhar astuto.
— Akin disse que você queria falar comigo, Alyssa. — Seus olhos de gelo encontraram os
calorosos da irmã. — Esta é uma reunião emotiva? Porque eu odeio estas.
Revirei os olhos e Aisha estalou a língua.
— Besteira, irmã! Eu e Aly ficamos perdidas em uma conversa, mas ainda não chegamos
ao ponto principal. — Ela se voltou para mim. — O que veio falar inicialmente?
Puxei o livro que estava segurando embaixo do braço e abri na página sobre energia e
sangue. Apontei para o último parágrafo e mostrei a elas.
— Lore estava buscando alguma informação que pudesse ajudar a entender como quebrar
um juramento de sangue, mas quando li isso achei que também pudesse ser uma solução para o
meu problema — eu disse. — É possível que Vicenzo seja tão forte por causa dos juramentos e
não só a imortalidade?
Freya passava os olhos pela página, mas Aisha já assentia.
— Juramentos de sangue são poderosos.
— Aquele bastardo de duas caras! — Freya grunhiu, soltando o livro. — É por isso que ele
tem tentado manipular os melhores dos nossos Protetores. Quanto mais forte o Protetor é, maior
o seu ganho com o juramento.
Ah, meu Deus.
Nathan.
Vicenzo sempre quis que Nathan desertasse, mesmo antes de me capturar. Tentou fazer
com que Nate visse todas as possibilidades de uma vida ao lado dele e longe dos Protetores por
diversas vezes, não contando com o fato de que ele nunca se uniria ao homem que matou a mãe.
Não sem uma boa razão. E Vicenzo me usou assim que teve a oportunidade.
— Por isso ele queria tanto que Nathan desertasse — sussurrei.
A Guardiã europeia bufou.
— Nathan é filho de uma Fidly e de um Protetor que demonstrou sua gama de habilidades
quando mal havia recebido sua tatuagem — disse. — E assim como o idiota do pai, provou que é
muito habilidoso em combate. Óbvio que Vicenzo o queria. É como ter uma descarga elétrica
potente.
— Mais um motivo para encontrarmos uma forma de quebrar o juramento — Aisha
completou.
Assenti.
— Mas eu estou aqui pensando também se... seria possível usar a energia vital de outra
pessoa para intensificar meu poder? Como uma bateria extra?
Aisha pareceu tensa ao ouvir a pergunta e Freya me encarou como se eu estivesse
caminhando para um lado muito complicado de uma história que ela já odiava.
— Seria como drenar a pessoa, Alyssa. Não é como o juramento em que você tem acesso a
energia do outro, mas como absorver cada resquício dessa energia. Em um juramento, aquele que
jura se torna parte do outro, como se dois vivessem em um só corpo. Mas o que você está
pensando é mais como drenar energia e absorvê-la para si. Te torna bem mais forte do que em
um juramento, claro, mas é bem provável que mate aquele que está cedendo energia — a
Guardiã de olhos gelados explicou.
Não. Eu não queria isso.
Recusava-me a ser como Vicenzo, atando pessoas a mim como se fossem chaveiros em
minha bolsa e tampouco queria ser a razão pela qual morriam.
Mas então eu lembrei.
Vicenzo estava fechando o cerco em volta do Lago. Passou uma vida imortal buscando um
meio de se vingar do Destino e sabe que havia algo nas águas azuis cristalinas daquele Lago que
pode lhe dar exatamente o que quer. Seja o que fosse que estivesse lá, era importante, era forte e
era exatamente o que o Destino desejava que ninguém tivesse em mãos.
— O Tesouro — falei. — O que ele é?
Aisha balançou a cabeça.
— Nós não sabemos. Quando o Destino nos entregou, estava em uma pequena caixinha de
madeira e tudo o que disse foi para que escondêssemos no Lago e o protegêssemos com feitiços.
Ninguém poderia ter o Tesouro, seja lá o que for.
— Vicenzo fará de tudo para tirá-lo do Lago. Já tem tentado há tempos — eu disse. — Só
preciso fazer isso antes dele. O Tesouro é um objeto e, se o Destino se importa tanto com ele,
deve ser poderoso. Posso usá-lo como bateria, uma nova fonte de energia para sustentar meu
poder quando eu precisar matar Vicenzo.
Minha mãe havia me contado que, durante as pesquisas do meu pai, ele sabia que energia
poderia ser compartilhada, só nunca chegou a pensar que havia algo poderoso a poucos metros
de distância, enterrado em um Lago mágico.
— Isso é exatamente o que o Destino exigiu que não fizéssemos, Alyssa — Aisha falou. —
Não podemos usar o Tesouro.
Lancei um olhar cético.
— O mesmo ser “todo poderoso” que criou uma profecia para punir você — apontei para
Freya — matando crianças por puro capricho? — Então encarei Aisha. — O mesmo que me fez
a cópia da deusa da escuridão apenas para tentar manipular um psicopata, porque ele havia feito
uma barganha idiota? — Minha voz saiu áspera, amarga. — Por mim, o Destino pode ir para o
inferno. — Peguei o livro e caminhei para a saída da tenda. — Se ele quer brincar de escrever, eu
posso brincar de criar o plot[6].
Ele podia ter a caneta, mas era eu quem estava vivendo. Era eu quem estava aqui.
E eu estava cansada de seguir suas ordens.
CAPÍTULO 42

Eu preciso descobrir como tirar o Tesouro do Lago. Sabia que Cassandra havia colocado
um feitiço sobre ele, mas feitiços podiam ser revertidos o tempo todo. E esta era uma ótima
solução para o meu problema: pegar o que quer que estivesse naquelas águas e usar para
intensificar meu poder. Muito melhor do que drenar uma pessoa de carne e osso.
Voltando para a tenda, eu encontraria minha mãe e buscaria pelos outros para formular um
novo plano. Era um fato que precisávamos voltar para o Outro Lado, por isso Nathan e os outros
haviam ido buscar mais informações sobre o que Akantha e Ravenna estavam planejando, para
entender se era seguro voltar. Mas agora, voltar para o Outro Lado podia ser apenas uma
desculpa para buscarmos pelo Tesouro. Mesmo se Cassandra não ajudasse, eu encontraria um
meio.
— Jambo, Fidly! — A criança da noite em que contaram a história sobre a Fidly me parou,
os olhos grandes brilhando para mim.
Zuri.
— Olá, Zuri. — Ela se curvou para mim, as mãozinhas subindo para a cintura. — Não
precisa disso, por favor.
— Mas eu quero! — ela falou, o sotaque forte. Crianças Protetoras cresciam aprendendo a
falar muitas línguas, assim podiam se comunicar com seus irmãos ao redor do mundo. — Estou
indo treinar agora mesmo para poder lutar ao seu lado em breve, Fidly! — disse animada.
De fato, a garota usava o uniforme dos Protetores, só que estes em tamanhos bastante
reduzidos.
Saber que ela estava indo aprender a matar, a lutar em uma guerra que não devia existir,
não me dava qualquer conforto. Mesmo assim, eu tentei sorrir para a garota.
— Faça um bom treino, Zuri.
Eu esperava que ela não precisasse lutar de forma alguma. Ela era uma criança. Crianças
não deveriam se preocupar com estas coisas. Mas Zuri seguiu seu caminho saltitante, me
lançando um beijo assoprado antes de desaparecer na rua.
Então eu me virei apenas para me deparar com o Protetor de olhos talvez mais frios que o
da Guardiã europeia.
Ótimo. Já fazia um tempo que eu queria bater um papo com ele.
Os olhos de Brian me encontram no meio do caminho e eu percebi quando ele pensou em
dar meia-volta e sumir, mas eu não lhe dei essa oportunidade. Apressei meus passos para
encontrá-lo antes que conseguisse fugir. À nossa volta havia poucas tendas, já estando perto do
mar o suficiente para menos Protetores rondarem por aqui na mesma quantidade que mais ao
centro de Mahali.
— Brian — chamei.
Seu corpo ficou tenso, mas ele voltou a se virar para mim. Seu olhar percorreu a marca em
meu braço. A marca que Diana teria se tivesse sobrevivido.
— Alyssa. — Sua voz não era nada mais que um suspiro exasperado.
Observei a mochila em suas costas.
— Está indo embora?
Ele balançou a cabeça, negando.
— Aisha pediu que eu ficasse até que você tenha ido para o Outro Lado. Ela acredita que
Vicenzo ainda possa agir e realizar um ataque. — Ele ajeitou a mochila nas costas. — Estou indo
me acomodar em uma das tendas.
— E onde esteve? — perguntei, incisiva.
Brian arqueou a sobrancelha.
— Isto é um interrogatório, Alyssa?
Dei de ombros.
— Curiosidade. Porque desde que seu filho foi honesto o bastante para contar o que foi
obrigado a fazer enquanto tentava me tirar do palácio de Vicenzo, você desapareceu. — Seus
olhos ficaram sombrios, mas eu não me importei. Eu me sentia sombria. Com raiva de que ele
sempre virava as costas para o filho quando as coisas ficavam difíceis. E com ódio porque ele o
fazia se sentir indigno. — Nathan foi torturado pelo desgraçado psicopata em Florença e, ao
invés de estar grato que ele saiu de lá vivo, você se ressente dele por ter feito o que precisava
fazer para me manter viva.
— Alyssa, o relacionamento meu e do meu filho não te diz respeito e...
— Você não teria feito o mesmo por Diana? — me adiantei, interrompendo-o.
Brian fechou a cara.
— O que eu faria ou não por Diana não é da sua conta — rebateu. — As escolhas de
Nathan têm consequências muito mais profundas do que você entenderia e mesmo que...
Ergui um dedo, pedindo silêncio.
— Eu pedi a você, Brian. Naquele dia, depois que atravessei o Outro Lado para ir atrás de
Nathan, eu pedi que você engolisse seu medo, sua dor, o que quer que fosse, e o ajudasse porque
ele estava sozinho! — A raiva era amarga e talvez um pouco injusta, mas eu odiava o que ele
fazia com Nathan. Meu pai nunca teria virado as costas para mim, mesmo que eu tivesse me
tornado o diabo em pessoa. — Ao menos esteve presente quando ele achou que eu estava morta?
Ao menos tentou ser um pai decente?
Eu podia ver a dor em seus olhos, mas a de Nathan era maior. Não importava o que havia
acontecido no passado, quais haviam sido as circunstâncias, mas Nathan era uma criança que
perdeu a mãe muito novo. E acabou perdendo o pai também. E crianças não deviam se culpar
pelas dores dos adultos, especialmente quando tinham suas próprias.
— Eu tentei ajudá-lo todos os dias desde que você foi levada e todos achavam que estava
morta. Enquanto Nathan estava se afogando no luto, eu tentei manter sua cabeça erguida. Eu
estava lá, mesmo que ele não quisesse!
— Então esteja aqui, agora! — A frustração elevou o tom da minha voz, e eu vi quando
um ou outro Protetor nos lançaram olhares curiosos. — Seja o pai dele agora. O pai que ele
precisa.
Brian cerrou o punho e deu um passo para trás.
— Isso não é da sua conta.
Bufei.
— Você sabe o que é ter o elo, Brian. Foi predestinado à Diana, não foi? — Eu não falava
da falecida Fidly para machucá-lo, mas era como se eu tivesse. O mero nome dela parecia fazer
querê-lo arrancar a própria pele. — Sabe que a dor dele é a minha. Agora mais do que nunca,
posso sentir o quanto ele odeia a marca em seu peito, o juramento de sangue que fez em meio ao
desespero. Ele odeia isso muito mais do que você, Brian.
— Você sabe o que é ter o elo — ele repetiu minhas palavras —, mas não tem ideia do que
é senti-lo se silenciar. O que é deixar de sentir aquela voz no fundo da sua mente que pertence à
outra metade da sua alma. Você, Alyssa, não tem ideia do que é perder sua outra metade. E eu
não suporto encarar meu filho e ver que ele se tornou exatamente o que levou minha alma.
Eu me lembrava do olhar de Nathan quando ele me encontrou na floresta. Naquele
momento, sem memórias, eu não entendi a dor em seus olhos, o porquê chorava enquanto eu
tinha minha mão em seu pescoço, mas ainda não lutava contra mim. Hoje, porém, eu podia ver o
luto, a completa descrença em me encontrar viva depois de semanas tentando lidar com a minha
suposta morte. Eu podia não entender a dor de perder o elo, mas Nathan compreendia. Nathan
sentiu essa dor. E agora Brian escolhia olhar apenas uma parte da história, apenas um lado da
realidade.
— Ele não escolheu isso, Brian. Nunca foi algo que ele quis.
— Mas é o que ele é.
A luz em mim estava borbulhando, querendo sufocar Brian ou queimá-lo vivo. Se eu
cedesse, o homem estaria arruinado, porque ela ecoava minha raiva três vezes mais. Precisei
cerrar o punho a ponto das minhas unhas cortarem minhas palmas para conter a explosão.
— Ele é o homem que ficou naquele palácio, sendo torturado pelos inimigos, porque não
me deixaria para trás. Porque se recusava a desistir de mim, mesmo quando eu nem sequer me
lembrava de quem ele era. Este é quem Nathan é. — Eu o olhei. — E você é muito cego por não
enxergar. Por escolher não enxergar. Todos aqui que o conhecem, que lutaram ao seu lado, não
usam o juramento contra ele, mas o acolhem, o ajudam a buscar um meio de lidar com isso.
Mesmo minha mãe, que nunca colocou nada acima da minha vida e segurança, vê que Nathan
pode ter feito o juramento, mas nunca será um Desertor. Não use a morte de Diana para justificar
suas atitudes, porque não há justificativa. Ao invés de apontar o dedo para ele, seria melhor se o
ajudasse a encontrar um meio de quebrar esse maldito juramento. Eu vi um resquício de dúvida
em seu olhar, que logo foi encoberto por desgosto, por desesperança. Às vezes as pessoas
simplesmente não querem mudar, muito menos olhar ao seu redor, sair da bolha que os
cercavam.
Às vezes a miséria era a única coisa confortável para quem não conseguia ver além do
sofrimento.
— Não há saída para o que ele fez. Não tem como voltar atrás.
Respirei fundo, forcei a luz para o fundo, longe do alcance das minhas mãos.
— É uma pena que ache isso — falei. — É uma pena que Diana nunca terá a chance de
conhecer o filho, de estar ao lado dele, enquanto você age com tanta leviandade, e não aprecia a
oportunidade que tem.
— Não coloque Diana nessa conversa! — ele rosnou.
— Ela pertence a essa conversa. É o filho dela! — A voz da falecida Fidly ainda era uma
memória vívida em minha mente. — E ela o ama, Brian, mesmo que você não o faça direito. E
ela se orgulharia dele.
Ele soltou uma risada amarga.
— Você não a conheceu, Alyssa. Não sabe nada.
Mas sabia. Eu havia conhecido.
— Diana apareceu algumas vezes para me alertar, quando Nathan estava em perigo e
quando o Outro Lado foi atacado, foi ela quem me avisou e me apontou a culpada — contei, seus
olhos se arregalaram e a descrença tomou suas feições. — Eu a conheço, Brian. E em todas as
vezes que ela apareceu para mim, sua preocupação, seu amor e lealdade, estavam com Nathan,
com o filho.
— Está mentindo. — A voz dele quase não saiu.
— Não estou. E se precisa culpar alguém pelo que Nathan precisou fazer, culpe a mim —
eu disse, observando enquanto ele parecia quebrar. Pensei que o ver assim me traria algum tipo
de satisfação, mas apenas ampliou meu pesar. — Se encontrar em si o homem que merece ser pai
de Nathan, faça com que ele acorde antes que seja tarde demais — pedi. — Porque isso é uma
guerra — a memória do meu próprio pai rasgou meu peito — e nem sempre há tempo para
despedidas.
Eu deixei Brian ali, próximo de onde as ondas quebravam, ignorando o fato de que eu
parecia tê-lo quebrado um pouco mais.

Naquela noite, eu sonhei com Diana.


A Fidly me observava de longe, o Lago inteiro entre nós. Quando abria a boca para falar,
nenhum som chegava até mim. Eu tentei falar, mas ela nunca parecia capaz de escutar. Ela tentou
mais algumas vezes, até que pareceu perceber que era inútil. Estava longe demais. Sem voz, sem
força para chegar até mim.
“Eu sinto muito” — eu queria dizer, me desculpar pelo que havia acontecido com o filho
dela por minha culpa.
“Eu tentei protegê-lo.”
Ela me olhava com os olhos azuis que eu via no rosto de Nathan todos os dias. Diana
assentiu uma única vez, então colocou uma mão sobre o peito. Era uma mensagem, uma
promessa, quem sabe. Mas eu não entendia, queria que ela pudesse falar comigo como antes.
Diana bateu a palma contra o peito duas vezes, então se virou e desapareceu.
Quando acordei, Nathan estava na cama comigo, os braços ao meu redor me abraçando
com a determinação cega de um Protetor. Eu me virei de encontro ao seu corpo, observando seus
belos olhos azuis, então passei meus braços ao redor do seu pescoço e me deixei afundar no
conforto de seu abraço. Em resposta, Nathan me apertou mais contra ele, beijando minha
têmpora e sussurrando que estava ali, que não deixaria que pesadelos me atormentassem mais.
E eu sentia tanta falta de poder dormir ao seu lado, tanta falta de vê-lo dormir. No entanto,
eu sabia que ele passaria a noite em claro para me manter em paz, mesmo que isso custasse seu
descanso. E eu me pegava prometendo mais uma vez a mim mesma que não deixaria que ele
acordasse com meus pesadelos, mas temia que ele os sentiria mesmo assim, mesmo que eu não
quisesse.
— Vá dormir, Nate — sussurrei contra sua garganta. — Vá descansar.
Seus braços não me soltaram.
— Não se preocupe comigo, Aly — murmurou. — Durma e me deixe estar aqui.
Engoli o bolo em minha garganta.
Ajude-o — pedi ao deus que pudesse escutar. — Deixe-o ser livre desse juramento.
Meus dedos se enroscaram nos seus e eu o segurei com tudo o que eu tinha. Com tudo o
que eu era, prometia ser dele.
E me deixe amá-lo mais. Nos dê mais tempo.
Se o Destino pudesse ouvir, eu esperava que ele entendesse. Esperava que escolhesse nos
dar uma chance. Porque eu lutaria por isso, e era melhor que ele estivesse ao meu lado e não
contra mim.
CAPÍTULO 43

Havia se tornado uma rotina: Alyssa dormia, então eu acordava com a sensação de que ela
estava tendo um pesadelo e corria para sua tenda, onde eu a abraçava durante a noite inteira para
que pudesse dormir em paz. Eu permanecia acordado durante todo esse tempo, preocupado
demais sobre o que poderia acontecer se eu ousasse perder a consciência perto dela. Quase
sempre, Alyssa acordava antes do amanhecer e começava a se arrumar para treinar, ela vinha
mostrando resultados diariamente, tendo mais controle da luz, criando ataques muito mais fortes
e passando a usar seu poder como se fosse uma extensão de si mesma. Pouco a pouco, ela se
tornava mais forte.
Ao deixar a tenda todas as manhãs, Aly exigia que eu dormisse pelo menos até que o sol
alcançasse seu lugar no céu. Não era uma boa ideia discutir com Alyssa Monroe, então eu
dormia ali mesmo, na cama que ainda cheirava a ela.
Naquele dia, acordei com Roman me sacudindo como se eu fosse um saco de batatas em
seu caminho. Ao abrir os olhos, ele estalou os dedos bem na frente do meu nariz e exigiu que eu
me arrumasse porque Aisha queria nos reunir antes que fôssemos embora.
Nos últimos três dias, Alyssa havia chegado à conclusão de que precisava encontrar o
Tesouro antes de Vicenzo. Claro, “encontrar” talvez não fosse bem a palavra certa já que nós
sabíamos onde ele estava, só não sabíamos como tirá-lo de seu esconderijo. Enquanto as
Guardiãs tentavam convencer Alyssa de que esta ideia não era prudente, explicavam que o feitiço
que Cassandra criou não permitia que ninguém retirasse o Tesouro do Lago. Claro que isso não
seria motivo suficiente para Aly e agora ela queria ir até Cassandra entender melhor a magia
usada e, obviamente, descobrir uma forma de quebrá-la.
Eu não era exatamente contra a ideia de usar o Tesouro, especialmente porque isso
significava irritar o Destino e, ainda, impedir que Vicenzo tivesse o que queria. Era como vencer
duas vezes. O que me preocupava era a preocupação das Guardiãs. Ninguém sabia o que era o
Tesouro, mas com certeza teria energia o suficiente para ajudar Alyssa, então qual o problema?
Era por que o Destino deu ordens expressas para nunca o usar ou elas tinham algum outro
motivo para temer o que quer que o Tesouro fosse?
E enquanto isso, nem Lore nem eu encontramos qualquer informação decente sobre quebra
de juramentos de sangue. Quanto mais tempo se passava e nada parecia minimamente uma
solução, eu me perguntava se matar Vicenzo era a única forma de se ver livre dessa marca em
meu peito. E se fosse, eu preferiria viver com ela do que arriscar a vida de Alyssa. O que me
levava a pensar que usar o Tesouro não podia ser a pior coisa do mundo. Não queria viver uma
vida sem poder confiar em mim mesmo.
De um jeito ou de outro, o caminho seria longo e árduo. Lutar era parte intrínseca da minha
vida, sempre havia sido. Mas às vezes eu fechava os olhos e imaginava uma realidade onde tudo
isso não seria problema meu. Eu teria o controle e não o inimigo. Eu seria forte, esperto. E as
pessoas ao meu redor não me encarariam com tanto desgosto.
Ignorei a pontada de angústia. As coisas eram como eram. Aquela marca não desapareceria
do meu peito como que por milagre. O que eu podia fazer era enfrentá-la.
Ouvi uma bufada a alguns passos de distância, onde Roman caminhava carrancudo.
— Você está irritadinho hoje, Roman — zombei, quando o Protetor chutou uma pedra que
estava em seu caminho.
Ele me fuzilou.
— Fica na sua.
Soltei um suspiro dramático, e Roman bufou.
— Estou aqui pensando se isso tem algo a ver com o que quer que você e Serena estavam
discutindo ontem à noite, antes de eu e Jonnah chegarmos na tenda.
— Ela não quer que eu fique fazendo muitas rondas porque acha que ainda preciso me
recuperar — resmungou. — Eu estive em um coma por mais de um mês, já descansei o bastante,
obrigado.
Cerrei os olhos para ele, tudo isso parecendo muito mais óbvio para mim do que para ele.
— Você sabe que ela gosta de você, né?
Ele revirou os olhos.
— Claro que sei. Ela cuidou de mim durante todo o tempo em que estive apagado, é uma
boa amiga.
Eu parei e o puxei pelo braço.
Pelo Destino, às vezes nós homens éramos realmente muito cegos.
— Roman, ela gosta de você do tipo quer beijar a sua boca, andar de mão dada por aí, e
provavelmente fazer ainda mais coisas sórdidas.
Ele me encarou por um segundo, então seus olhos se arregalaram em descrença.
— Não, ela não quer nada disso.
Juro que a careta que fiz foi involuntária.
— Porra, você tem dois olhos, faça o favor de usá-los. — Soltei seu braço e voltei a
caminhar. Eu não tinha tempo para isso. — Ah, e se não percebeu — acrescentei por cima do
ombro —, você também está a fim dela.
Roman demorou um segundo longo demais para perceber que eu já havia voltado a andar.
Ao nosso redor, Protetores me encaravam com desprezo enquanto eu tentava não olhar
para nenhum deles. Eu odiava isso. Nunca fui particularmente querido no Outro Lado,
desprezava a forma como a sede era regida e, para ser sincero, não me importava em pertencer.
Mas a forma como eu era olhado agora era diferente. Para eles, eu havia me tornado o que eu
odiei a minha vida toda: um Desertor. E agora era um traidor tanto quanto Vicenzo.
Quando Roman me alcançou, já estávamos chegando à trilha entre o mar e a floresta, onde
Aisha estaria nos esperando.
— Eu não estou interessado em Serena. Nem mesmo tive tempo para pensar a respeito —
murmurou, mas a tensão em seus ombros o denunciava.
— Então durante o tempo em que ela estava sendo sua babá, ficando ao seu lado vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana, apenas para ter certeza de que sua bunda voltaria a
rebolar por aí como antes, você não sentiu nada? — De canto de olho, eu podia vê-lo considerar
minhas palavras. — E umas duas noites atrás quando eu o escutei voltar de uma longa
caminhada com... Ah, é mesmo, com Serena. Se me lembro bem, o “boa noite” de vocês foi bem
longo.
— Nós saímos como amigos, nós não...
Eu deveria ficar contente com a abrupta interrupção da ladainha de Roman, mas a visão do
meu pai junto à Jasmine e Jasper me fez preferir ficar ouvindo as negações do Protetor ao meu
lado eternamente.
Meu pai me encarou e, quando pensei que faria aquela careta para deixar claro o quanto
minha mera visão o enojava, Brian apenas desviou o olhar do meu. As coisas com meu pai
sempre foram assim. Ele nunca havia sido violento, nunca me agrediu, mas seus castigos
pareciam ainda piores porque eram baseados em silêncio. E mesmo quando não era uma punição,
sua indiferença era gritante. Agora, ele voltava a me tratar da mesma forma. Seja como for, não
importava. Não mudava o que ele pensava de mim. E não apagava anos de mágoa. Se um dia eu
quis a aprovação dele, eu já não sentia necessidade alguma de tê-la mais. E não importava o
quanto ele me odiasse, eu ainda odiaria aquela marca mil vezes mais.
Era engraçado como uma criança podia crescer fazendo de tudo para o pai lhe dar um mero
olhar, uma única migalha de atenção apenas para ter certeza de que o via, então se tornar um
adulto que prefere não ser visto de forma alguma.
Jasmine e Jasper nos cumprimentaram e seguimos para encontrar Freya parada encostada
em uma árvore. Olhei ao redor, mas não encontrei Alyssa, então esperei. Poucos minutos depois,
Aly chegou com Jonnah e Serena ao seu lado, enquanto Lore e Aisha vinham juntas um pouco
atrás.
A visão de Alyssa me desconcertou. Eu a conhecia a vida toda, mas parecia que cada vez
que eu colocava os olhos nela, me deparava com algum novo detalhe que eu amava. Apesar de
mais magra — e eu e Serena estarmos revezando para garantir que ela estivesse comendo o
suficiente — seus corpo já mostrava estar mais definido com a volta dos treinos da última
semana. Os cabelos negros estavam mais longos e a pele mais pálida. A marca que subia por
todo o seu braço até o ombro a fazia parecer ainda mais extraordinária, como se os olhos negros
que eram como se afogar no espaço já não fossem o suficiente.
— Que bom que estamos todos aqui! — Aisha nos saudou. — Como partem de Mahali
amanhã, gostaria de lhes mostrar o melhor que minha casa tem a oferecer.
Havia sido decidido no último jantar que eu, Alyssa, Serena, Lore e Roman iríamos até o
Brasil para encontrar Cassandra. Enquanto isso, Jonnah, Jasmine, Jasper e Brian voltariam para o
Outro Lado para preparar a volta de Alyssa e, especialmente, tentar conter a idiotice iniciada por
Akantha e Ravenna. Se conseguissem mandar Akantha de volta para Grécia, melhor ainda.
Jasmine havia insistido em ficar com Aly, mas ela fez questão de lembrar que a mãe havia
passado meses mal se alimentando e que ela precisava voltar à ativa antes de ficar percorrendo
dois continentes em menos de um mês. Olhando para a mulher, era claro que ela estava bem
melhor que a última vez que ousei encará-la no Lago, mas havia emagrecido bem mais do que
Alyssa e seu semblante era de uma pessoa exausta. Eu esperava que, além de voltar à ativa
fisicamente, um dia Jasmine pudesse ter o coração remendado, um pouco mais inteiro.
— Divertido. Eu acho que não teria desertado dessa sede — Lore murmurou, abraçando a
floresta com um olhar encantado.
— Não dá para te culpar sobre essa escolha sabendo que vivia na sede grega liderada por
Akantha — Jonnah declarou. — Se eu for honesto, eu mesmo pensei algumas vezes em desertar.
O olhar de Brian foi incrédulo, sem acreditar que o primo de Alyssa estava mesmo
confessando algo assim. Mas nem todos eram robôs frios e sem emoções, e ser liderado por
Akantha poderia sim ser um motivo plausível para, no mínimo, considerar desertar. Se a
alternativa não fosse ainda pior — ser controlado por Vicenzo — eu nem mesmo questionaria a
escolha.
— E por que essa mulher é a líder mesmo? — Aisha questionou.
— Política — Freya respondeu, nada entusiasmada. — A família dela é influente há anos
entre os Protetores europeus, então eles continuam votando nela. A mãe foi líder, o avô antes
disso e muitos outros da mesma linhagem. — Deu de ombros. — Se quiser culpar alguém, culpe
Naomi que iniciou toda essa coisa de deixar os Protetores se organizarem entre si. Algumas
pessoas são estúpidas demais para isso, irmã.
Aisha ponderou.
— Naomi estava pensando no melhor dos Protetores, tenho certeza.
Freya deu as costas à irmã, mas eu pude ver quando ela revirou os olhos.
— Defensora de irmãs — murmurou.
Aisha sorriu e bateu uma palma.
— Vamos! Hoje é nosso dia livre. — Ela deu uma olhada em todos nós, demorando um
pouco mais em Alyssa. — O Destino bem sabe o quanto vocês estão precisando.
Lore lhe deu um olhar debochado.
— Será que sabe mesmo?
Serena soltou uma risada alta e Roman ergueu a cabeça para ela, embasbacado. Pelo
maldito Destino, que panaca cego! Alyssa percebeu o olhar de Roman, e arqueou uma
sobrancelha para mim. Balançando a cabeça levemente, ela sussurrou algo no ouvido de Serena e
veio até onde eu estava parado, seus dedos se enroscando nos meus.
— Vou levá-los pela trilha mais bonita de Moçambique — Aisha falou, iniciando o
passeio. Ao mesmo tempo, Freya e Brian resmungaram algo sobre estarem ocupados, mas a
Guardiã africana os ignorou graciosamente. — A África em geral é um continente cheio de
belezas exuberantes, mas esta ilha guarda pequenos pedaços que tocam a alma.
O caminho começou como uma trilha comum, parecida com algumas que tínhamos no
Lago, apesar da flora ser diferente.
Roman havia ficado para trás, conversando baixinho com Serena. Lore e Jonnah
conversavam sobre como gostariam de tirar um tempo sabático e viver ali, enquanto Jasmine e
Jasper andavam lado a lado com Aisha, a primeira observando cada detalhe como se tentasse
absorver a beleza e a pacificidade do local e guardá-lo em sua alma. Parecia muito com um
doente procurando seu remédio.
Alyssa me cutucou, apontando para onde Freya ficava para trás do grupo, caminhando tão
lentamente que era cômico. Então ela se enfiou entre as árvores e desapareceu. Mais tarde,
percebi que Brian fez o mesmo, desaparecendo em uma das curvas da trilha e, provavelmente,
seguindo por conta própria.
— Estou louca ou Roman está corando? — Aly sussurrou para mim.
Virei-me para flagrar o Protetor com as bochechas vermelhas, enquanto ouvia Serena
discursar sobre o tempo que passou no Congo com os pais, tentando controlar as desavenças
entre os humanos provocadas pelas manipulações dos Desertores. A história de como os
Desertores manipulavam o povo e criavam conflitos graves entre si apenas para conseguirem
acesso às pedras preciosas era interessante. Vicenzo fazia muito disso ao redor do mundo, porque
eram essas riquezas roubadas bem debaixo do nariz dos humanos que pagavam seus luxos. Mas
definitivamente não era conteúdo complexo o bastante para fazer alguém corar.
— Acho que Roman está passando por um momento de descobrimento.
Quando Aly sorriu, foi uma tentativa válida de se mostrar feliz.
— Espero que ele perceba logo o que está bem na frente dele — sussurrou para mim. —
Eles seriam felizes juntos.
Assenti, puxando-a para mim, meus braços sobre seus ombros e a pele de sua têmpora em
meus lábios.
— Roman não é dos mais espertos, mas lhe dê um tempinho e pode impressioná-la —
zombei e, como resposta, recebi um soco contra as costelas. — Ei, olhe pelo lado bom: ele já não
fica babando em você como antes — pensei um pouco — apenas às vezes.
Aly apenas revirou os olhos.
Aos poucos nós nos dispersamos um dos outros. Jasmine e Aisha andavam juntas mais à
frente. Jasper havia sumido, provavelmente ido atrás de Brian — passavam-se os anos, mas ele
não deixava de ao menos tentar trazer o homem de volta para a vida real e isso, vindo de Jasper,
que já sofreu tanto quanto ou mais, era muito o que se dizer. Serena e Roman eram os últimos, a
alguns metros atrás, enquanto que Lore e Jonnah riam de alguma coisa que a Desertora falou, um
pouco à nossa direita.
Alyssa e eu caminhamos juntos no centro, ela dispersa com a paisagem, a mão firme na
minha, e eu me disperso nela. Aquele aperto em meu peito continuava presente e eu sabia que
ela não estava bem. Mas também não sabia como fazê-la melhorar.
Então um suspiro atônito escapou de uma Alyssa sem fôlego. Encarei o horizonte como ela
fazia e me deparei com o motivo de sua surpresa. A trilha se estendeu e formou uma clareira
entre as árvores e uma cachoeira. Um grande espaço de folhagem seca esverdeada caía dentro do
pequeno Lago formado pela água da cachoeira. O sol batia contra a água e tudo ao redor
brilhava, como o reflexo de mil diamantes esculpidos e de corte perfeito.
Era irreal.
A mão de Alyssa apertou a minha, os olhos brilhando enquanto observava os pássaros
cantarem nas árvores ao redor.
A queda d’água caía pesada, mas ainda assim ouvimos o farfalhar da folhagem quando
uma elefante surgiu, caminhando calmamente até a água, sendo seguido de perto por seu filhote
meio manco. Sua tromba enorme se enrolou para tocar o filhote, mas logo voltou seu foco para a
água, completamente desinteressado em nossa presença ali. O marfim de suas presas reluziam e
se contorciam no reflexo da água. Era um animal muito maior do que eu havia previsto e parecia
dez vezes mais imponente. Sua calmaria, contudo, era o mais surpreendente.
Aly avançou em direção ao bicho, parecendo querer tocá-lo, mas parou. Os braços presos
ao lado do corpo como se precisasse se forçar a mantê-los assim.
— Uwepo mtakatifu! — Aisha celebrou, do outro lado da clareira, então traduziu: — Esta
é uma presença sagrada.
— É lindo — ouvi Alyssa sussurrar.
A elefante maior, provavelmente mãe do filhote, se abaixou, a tromba afundando na água e
então levando o conteúdo até a boca. Repetidas vezes, o animal enorme fez isso, sem se
perturbar com nossos olhares ou mesmo com a luz amarelada que Aisha agora emitia. A magia
cercou os dois animais e eu vi quando o menor balançou a pata de trás, como se pudesse senti-la
novamente. A maior percebeu, se virou para Aisha e baixou a cabeça, como em sinal de
agradecimento.
Sorri ao ver Alyssa morder os lábios para conter a própria felicidade. Ela parecia inquieta
como uma criança.
A mãe elefante continuou bebendo a água, mas o filhote saiu do Lago e caminhou até
Alyssa com uma destreza recém-descoberta, a tromba erguida e o olhar suave. A pequena figura
— não tão pequena assim — balançava a cada passo e, quando estava quase aos pés de Alyssa,
ele tropeçou em um galho e caiu. A mão de Aly foi rápida em sua direção, mas foi a luz que
tocou o animal primeiro. Ela ficou tensa, mas o poder não feriu o animal, pelo contrário, se
enrolou em volta do corpo dele e o puxou para cima, finalmente conseguindo colocá-lo de pé.
Aly gargalhou quando o animal esfregou a cabeça em seu quadril. Gargalhou. Ela nunca
tinha ao menos dado uma risada sincera desde que a encontrei, e agora, aquele pequeno animal
milagroso, a havia feito gargalhar. Eu poderia muito bem beijar sua cabeça gorda e suja de
barro.
A elefante mãe percebeu a movimentação do filhote e começou a ir na direção deles. Não
demonstrava ser uma ameaça, mas eu me mantive atento. O olhar de Alyssa, no entanto, brilhava
enquanto tocava o filhote e observava a mãe se aproximar. Aly estendeu uma mão, querendo
tocar a mãe também, mas quando a elefante estava a poucos centímetros de distância, ela
ajoelhou as patas da frente. Dessa vez, foi mais do que baixar a cabeça em agradecimento, foi
como se curvar em respeito.
— Os elefantes são atraídos por almas puras — Aisha disse em voz baixa, mas todos ali
eram capazes de ouvi-la. — Minha tribo dizia que eles enxergam com a alma. E, com mais
frequência do que imaginamos, eles vão até as pessoas que precisam deles.
Eu sabia que Aly podia escutá-la. Seus olhos estavam cheios de lágrimas quando tocou a
elefante e sua luz os envolveu, como um cobertor quente. A elefante mãe voltou a se erguer e
Aly finalmente a tocou. Uma lágrima silenciosa escorreu de seus olhos, mas havia um sorriso em
seus lábios.
O aperto em meu coração pareceu ceder um milímetro muito necessário.
Fiquei ali, parado, em silêncio, observando enquanto aquele animal parecia tentar juntar os
pedaços do coração de Alyssa. E, ainda em silêncio, eu o agradeci.
Eu admirava a cena, ciente de que nossos amigos faziam o mesmo.
Mas não foi suficiente.
Havia sempre calmaria antes da tempestade, não é? E o Destino com certeza não pensava
que precisávamos de um tempo livre.
Primeiro eu senti a aproximação de pelo menos duas dúzias deles. Depois, a elefante mãe
soltou um rugido de dor quando uma estaca de ouro já perfurava seu torso. Eu vi quando a
confusão e o desespero se apossaram de Alyssa e ela tentou, inutilmente, segurar a elefante antes
que ela caísse. O peso do animal a teria prensado no chão, se não fosse a luz branca formando
uma parede entre ela e a elefanta. Nós olhamos para a floresta ao mesmo tempo.
— Não estamos no solo protegido de Mahali mais — Aisha anunciou, já sacando duas
adagas gêmeas do cinto em suas vestimentas. — Não pensei que viriam até aqui, mas acho que
subestimei a audácia dos falsos deuses.
Ela mal terminou a frase e Belius e Mavon surgiram das árvores, adentrando a clareira com
um sorriso perverso. Eu corri para Alyssa, mas uma flecha voou em direção ao meu peito. Mal
tive tempo de desviar, e ela se fincou em meu ombro. Aly não estava olhando para mim, mas ela
sentiu. Assim como também viu quando outra flecha era lançada em direção ao pequeno filhote
choroso sobre o corpo da mãe que morria. Ela conseguiu subir um escudo para proteger o animal
a tempo de impedir que a arma o perfurasse.
Outras duas flechas voaram e não havia como fugir delas. Uma, puxando minha espada das
costas, eu consegui cortar ainda no ar, mas a outra vinha pelo lado oposto e... Brian cortou a
outra flecha com sua própria espada, revelando-se como um raio às minhas costas.
Eu não soube o que dizer. Talvez um “obrigado” fosse adequado, mas eu apenas o encarei,
pensando em todos os motivos pelos quais ele simplesmente não deixou aquela flecha me matar
e acabar com seu tormento. Contudo, assim como eu, Brian não disse nada, apenas sacou uma
adaga do cinto e a rodou as mãos, voltando a encarar os Desertores à nossa volta.
— Estamos atrapalhando o passeio? — Mavon ronronou, os olhos de gato cerrados.
Então Alyssa explodiu. A nova flecha bateu contra o escudo formado pela luz, e o filhote
ficou intocado. Quando ela ergueu os olhos para Mavon e Belius, e depois observou Desertores
se aproximando por todos os lados, o ódio em seu olhar era apenas uma faísca para o mar de
cólera em seu interior. E ela rugiu.
Não só um grito. Uma promessa.
CAPÍTULO 44

Eu vou matar todos eles.


A elefanta que agora agoniava em meus pés havia confiado em mim, havia me respeitado
e, com apenas um olhar, tentou curar minha alma. E agora ela estava morrendo. Agora, seu
filhote era órfão também.
Olhei para trás, segurando o escudo sobre o filhote para ver se Nathan estava bem. Seus
olhos encontraram os meus e ele apenas assentiu, depois arrancou a flecha que perfurou seu
ombro. Não perdi tempo agradecendo Brian, mas notei sua presença. Rapidamente procurei
meus amigos, encontrando-os prontos para a luta que ocorreria, armas em mãos, sangue nos
olhos. Assim como Brian, Jasper havia aparecido bem na hora, provavelmente viram os
Desertores chegando antes mesmo de nós, mas Freya não estava por perto. Preocupação
preencheu meu peito quando observei minha mãe sacar sua própria adaga. Ela não estava pronta.
Mesmo nos treinos comigo, parecia cansada. Porém, ela ainda era uma guerreira e não recuaria
da luta. Aisha apenas assentiu quando lhe lancei um olhar que dizia basicamente “cuida dela”.
— Querida Alyssa! — Belius saudou. — Não chore por seres inferiores, afinal você tem o
rosto de uma deusa.
Eu não respondi, mas minha luz sim. Ela explodiu como estacas, lançando-se contra os
Desertores e os dois inumanos. Eu havia treinado aquele mesmo movimento repetidamente por
uma semana inteira. Por dias, eu me esforcei para tornar aquele poder meu amigo, para obedecer
aos meus comandos, ao mesmo tempo em que eu aprendia escutar seu impulso. A luz sabia o que
fazer, eu só precisava permiti-la, e controlar seu alcance.
Belius e Mavon desviaram facilmente das estacas, mas pelo menos metade dos Desertores
caíram.
Ao mesmo tempo, abri o escudo que mantinha o filhote preso e ele correu para a floresta,
sua mãe já morta em meus pés.
— Não se preocupe, Belius — eu grunhi. — Quando eu te matar não irei chorar.
Encarei cada um dos Desertores, decorando suas feições.
— Estou dando a vocês uma chance de recuar — eu disse. — Vejo que Vicenzo não teve a
coragem de vir, então talvez devessem pensar em que tipo de líder estão seguindo. — Minhas
mãos queimavam com a magia a consumindo, o desejo intenso de retalhar. — Fiquem e vão
morrer.
— Não a escutem, está apenas tentando ganhar tempo. Vamos acabar com isso antes que
os outros idiotas naquela sede cheguem aqui.
Então o pandemônio começou. Nenhum Desertor ao menos hesitou. As palavras de Mavon
foram lei e quando avançaram, estavam determinados a matar. Um deles desceu sua arma sobre
mim, mas a espada de luz se materializou em minhas mãos, bloqueou seu golpe e, com um único
movimento, seu torso estava aberto e sangue fluindo.
“Atrás da sua mãe” — Nathan falou em minha mente, e minha luz correu na direção dela,
mas Aisha já estava protegendo suas costas.
Nós havíamos demorado horas para chegar aqui, os Protetores demorariam, pelo menos um
terço disso para chegarem se corressem. E isso era tempo demais.
Corri em direção às duas maiores ameaças, deixando meus amigos acabarem com os
Desertores. Aisha deve ter pensado o mesmo, porque agora Jasper lutava ao lado da minha mãe,
enquanto ela corria em minha direção. Até agora eu não havia visto muito da magia de Mavon,
seja o que fosse, mas o desgraçado lutava bem. Ele avançou primeiro sobre mim e, de alguma
forma, ele conseguiu se desvencilhar da magia quando eu tentei prender seus braços. Sua adaga
acertou de raspão meu rosto e eu grunhi com a dor do corte. Em resposta, lancei duas em sua
direção, uma acertando seu peito.
Mas Mavon sorriu. Sangue negro jorrando.
— Esqueceu que eu não tenho coração, garotinha?
— Eu posso sempre mirar na cabeça — rosnei.
Empunhei a espada de luz e cortei o ar sobre sua cabeça. Mavon desviou, mas deixei um
rastro negro em seu pescoço. Tentei mais uma vez, Aisha protegendo minhas costas do ataque de
um Desertor.
Onde estava Belius?
Infelizmente, logo eu tive o desprazer de descobrir.
Correntes se fecharam ao redor do meu corpo e eu fui puxada para trás, a luz se
extinguindo em minhas mãos. As correntes de Belius. Aisha tentou me alcançar, mas Belius
lançou várias pequenas adagas, como espinhos, na direção dela. A magia da Guardiã africana era
cura e mesmo sendo excepcional na luta, não havia muito o que fazer quando pelo menos
cinquenta adagas perfuravam seu corpo. A força do impacto a jogou longe e ela grunhiu de dor.
Ainda assim, ela estava viva, consciente e fumegando de raiva.
“Alyssa!”
Foi o meu aviso para encontrar uma espada descendo em minha direção. Rodei o corpo na
grama seca, fugindo da lâmina. As correntes eram pesadas e eu não conseguia me esquivar
muito.
“Estou indo” — Nathan dizia em minha mente.
Busquei uma adaga. Eu estava tão admirada pelo meu poder, que não havia me lembrado
de carregar outras armas comigo, exceto a que Nathan disse que Freya havia lhe dado. Tateei
minha panturrilha e puxei a calça para pegar a adaga presa no meu calcanhar. Só tive tempo de
erguê-la antes que Belius descesse sua própria arma sobre ela. O barulho da luta perfurava meus
tímpanos, ferro contra ferro, grunhido e gritos — todos estavam ocupados e Aisha ainda
trabalhava para tirar todas as adagas em seu corpo. E uma lâmina pequena contra a porcaria de
uma espada era um jogo desleal e meu braço já tremia com o esforço.
— Não é tão impressionante sem sua magia, não é? — o gorducho zombou.
Sarcasmo encheu minhas feições.
— Disse o homem usando as correntes mágicas — debochei. — Tá com medo, Belius?
Não era você o deus da guerra?
Seus olhos brilharam de ódio puro e ele forçou mais a espada. Em um movimento
arriscado, deixei sua arma ganhar da minha adaga e, quando a lâmina quase tocou minha pele,
girei o corpo e chutei seus pés. A espada ficou no chão ao meu lado, mas Belius caiu de cara no
chão.
— Alyssa! — ouvi Serena gritar. Virei o rosto para ela e ergui a mão a tempo de agarrar a
espada que ela me lançava. — Mata esse desgraçado.
A espada veio a calhar, mas agora era dois contra um. Mavon me cercava, enquanto Belius
se levantava. Magia pesada e antiga fez o ar ficar mais denso, e então Belius estava criando
adagas que encontravam seus alvos sozinhos. Várias delas. Mais do que eu podia contar. E elas
só paravam quando atingiam um alvo. Eu desviei de uma, que atingiu uma árvore a alguns
metros atrás. As correntes estavam presas ao meu redor e precisava tirá-las, poderia criar um
escudo em volta dos meus amigos se essa porcaria não estivesse inibindo meu poder.
Eu vi quando Nathan desviou de uma das armas e ela se fincou em um Desertor. Vi quando
Jasper e Lore não tiveram a mesma sorte e foram atingidos. Eu gritei, tentando arrancar as
correntes, mas Belius já estava na minha frente e avançando. Eu não sabia quem mais estava
ferido. O quão ferido estavam.
— Posso contar um segredo? — ele ronronou. — O poder de Nixya nunca seria contido
por um par de correntes.
— Faz diferença? Ela continua morta.
Quando sua espada me cortou, rasgou a pele entre minhas costelas e umbigo, mas antes
que ele pudesse causar mais estrago, Nathan estava se chocando contra ele e derrubando-o no
chão. Então, tudo que eu via, eram adagas voando em sua direção. A magia as controlando sem
precisar de um comando preciso, apenas o querer de Belius era suficiente. Eu tentei me mexer
mais rápido, tentei fazer a luz agir, mas eu não conseguiria.
Não. Não. Não.
Nathan não.
Então o ar virou matéria visível e, de repente, um buraco negro engoliu todas as adagas. Eu
levantei os olhos, o choque ainda me fazendo tremer, a iminente perda me desestabilizando. Ali,
com as mãos estendidas para o buraco negro, o rosto fechado e frio, estava Freya, mandando
aquelas malditas armas mágicas para algum lugar distante.
— Não aprendeu a não mexer com uma Guardiã ainda? — ela rosnou, encarando Belius.
Naquele momento, eu pude ver o que a luta havia se tornado, porque nem Mavon nem
Belius sabiam como reagir a chegada de Freya. Eles não sabiam que ela estava ali. Ainda havia
Desertores vivos, apesar de poucos. Aisha estava no chão, sangue em suas roupas, e as mãos
trabalhando nos ferimentos de Jasper, Lore e Jonnah. Minha mãe, Brian, Serena e Roman
lutavam com os cinco Desertores remanescentes, mas os dois homens estavam claramente
feridos. Eu trinquei os dentes, raiva e uma sensação angustiante de impotência me afogando.
Meus olhos encontraram Nathan, sangrando em diversos lugares, mas o brilho selvagem
nos olhos que só alguém criado para matar poderia ter. A luta não o desgastava. Ela quase o
recarregava.
— Você não deveria estar aqui — um deles balbuciou.
Freya tombou a cabeça e fechou o portal.
— Ah, não?
— Este é o continente da curandeira.
Aisha nem mesmo ergueu a cabeça com o claro desdém.
— Não importa — Mavon grunhiu. — Nós somos deuses, mulher. Vivemos mais anos que
até mesmo uma imortal como você.
A Guardiã deu risada.
— Interessante. — Forcei meus braços para cima da corrente, tentando passá-la para baixo
e tirá-la pelos pés. — Realmente interessante como um deus como você precisa ser subordinado
de um qualquer como Vicenzo.
Mavon fumegou de raiva e, quando ele avançou contra Freya, os braços da Guardiã
abriram e um novo portal se abriu, dessa vez, vermelho como fogo. Ele não conseguiu se afastar
a tempo, porque a força daquela fissura já o puxava para dentro.
— Faça um bom passeio, Mavon — Freya murmurou. — Desculpe se eu tiver errado a
dimensão.
O terror nos olhos dele era inquestionável quando percebeu o que estava acontecendo e
para onde iria. O fogo o engoliu e então não havia sinal dele. Antes que Mavon pudesse tentar
voltar, Freya fechou os braços novamente e o portal sumiu.
Belius rugiu, raiva e dor estampados em seu olhar. Ele estendeu as mãos, mas eu fui mais
rápida. As correntes já em meus pés foram jogadas sobre ele, o dispersando de seu objetivo final.
Elas não tinham o mesmo efeito nele e não impediam sua magia, mas eram pesadas o bastante
para jogá-lo no chão — até porque ele não contava com uma estatura muito forte. Nathan o
chutou e desceu a espada em seu peito. Belius não morreu, mas estaria ocupado até conseguir
tirar a lâmina fincada ao chão.
— Aisha! — Freya chamou. — Você precisa ir. Eu consegui conter Sybil, mas ela vai vir
para cá sabendo que não há o que atacar em Mahali. Vá para a sede e defenda os Protetores se
necessário. — Ela encarou as roupas sangrentas da irmã. — Vou levar Alyssa para longe.
Nenhum deles ficará se souberem que ela já não está mais aqui.
Aisha assentiu uma única vez.
Eu encarei os dois Desertores que ainda lutavam, já na retaguarda, vendo que até Sybil
chegar com reforços não haveria muito o que fazer. Eu lhes dei uma saída. Eles não a
escolheram. A luz ricocheteou como um chicote e, então, perfuraram os Desertores como
lâminas.
Eu os avisei.
— Venham! — Freya estendeu as mãos e nós corremos para ela. — Imbecil, você
também! — ela gritou para Brian.
— Vou ficar para ajudar Aisha. Encontro vocês depois — ele respondeu quase em um
grunhido, já puxando Aisha pelo pulso para que ela ficasse de pé.
Jonnah, Jasper e Lore eram ajudados pela minha mãe, Roman e Serena.
Freya encarou a irmã, e então assentiu.
— Vamos — chamou de novo.
Nathan me puxou e pegou a mão de Freya. Os outros fizeram o mesmo, todos tocando um
pedaço de pele exposta.
— Entrarei em contato — Aisha prometeu, então correu, Brian em seu encalço.
Eu vi quando Nathan demorou um segundo longo demais observando o pai se afastar.
Então ele desviou o olhar, engoliu em seco e o foco de sempre já estava no lugar.
Freya exibiu os dentes para Belius, que erguia seu corpo mesmo com a lâmina que o
perfurava presa ao chão.
— Isso vai doer — ela zombou dele, e então olhou para nós. — Prontos?
Alguém respondeu que sim, mas eu observei Belius rasgar seu peito para se livrar da
espada, então eu disse:
— Diga a Vicenzo para da próxima vez, não mandar seus garotos de recado.
CAPÍTULO 45

A náusea de ser teletransportado nunca melhorava.


Verde intenso e úmido nos rodeava agora. Árvores grossas e de picos altos, folhagem
densa e um rio escuro correndo a poucos metros de onde nos materializamos. A floresta lendária
que assistiu Cassandra crescer. Dizem as histórias que muitos tentaram invadir e tomar a
Amazônia ao longo dos milênios e muitas tribos foram dizimadas tentando proteger a floresta,
até que Cassandra foi abençoada pelo Destino e este lugar se tornou intocável. Mesmo o governo
brasileiro não conseguia acesso a diversas áreas e a Guardiã era muito cuidadosa em lhes dar o
mínimo para mantê-los satisfeitos, mas escondendo todo o grande sistema natural embaixo de
escudos e mais escudos mágicos. O mundo todo brigava pelo território sem nem ter noção de
toda sua grandeza. E sem saber que, se dependesse de Cassandra, a Amazônia continuaria
pertencendo a si mesma.
Senti a mão de Alyssa escorregar da minha e então ela estava tocando meu ombro,
tentando conter o sangramento. Freya estava se aproximando do rio, buscando por algo e
Jasmine ajudava Jasper que devia ter sido o mais ferido no combate.
— Já vai curar — sussurrei, vendo a preocupação de Alyssa com as mãos ensanguentadas.
— Está demorando.
Eu sorri.
— Você se esqueceu como funciona o processo de cura agora que é uma deusa, amor.
Ela ergueu os olhos negros para mim e um pequeno sorriso despontou de seus lábios.
Um farfalhar de folhagem quebrou nosso contato visual. Me virei para encontrar Lore
jogada de bunda no chão com uma carranca no rosto.
— Aquele filho da puta me esfaqueou! Duas semanas atrás ele estava tomando café da
manhã comigo!
Serena, que se certificava que a cura de Aisha havia curado os ferimentos de Roman, parou
e olhou para Lore por cima do ombro.
— Você esperava que eles fossem te dar abraços e beijos porque sentiram sua falta?
O olhar descrente de Lorena era cômico.
— Eu esperava que tivessem a decência de não me esfaquear pelas costas!
O grunhido de Jasper fez com que todos nós o encarássemos.
— Sem querer ofender, garotinha, mas Desertores não costumam ter muita decência. —
Seus olhos caíram em mim. — Bem, pelo menos a maioria. Ainda estou me acostumando com os
vira-casacos.
Bufei.
— Engraçado.
— Hilário — Lore concordou, revirando os olhos.
Aly pegou minha mão e colocou no lugar da sua, sobre meu ombro.
— Mantenha pressão nisso. — Então se virou para Freya. — Acha que Aisha e os
Protetores estão seguros?
Freya não se virou para responder.
— Aquela Feiticeira dos infernos não iria perder tempo e energia tentando quebrar o feitiço
que protege Mahali. — Ódio escorria de suas palavras. — E aquele outro bestalhão, Belius, deve
estar chorando de saudades do amiguinho que eu não lembro o nome agora. Não há moral para
continuar o ataque. — Ela finalmente se virou. — E eles querem você, então seria uma perda de
tempo continuar lá.
— Como isso aconteceu? — Jasmine interferiu. — Como eles nos encontraram em
primeiro lugar?
Silêncio se estendeu, marcando cada segundo que se passava, até que Lore falou:
— Acho que ouvi dizer que Sybil consegue fazer feitiços de localização.
— Então estamos ferrados.
— Não sejamos pessimistas. — Uma voz surgiu do outro lado do rio, e então assistimos
Cassandra cruzá-lo flutuando por cima das águas, as mãos posicionadas para baixo e os lábios
sussurrando seu encanto. — Aquela Feiticeira não vai mais conseguir quebrar meus feitiços. E
você — ela apontou para Freya — não devia entrar em meu território sagrado sem aviso.
O revirar de olhos que a loira deu foi o ápice do dramático.
— Me perdoe por não te mandar uma mensagem antes de ter que trazer todos eles para cá
para que nossa querida Fidly não fosse acorrentada e levada de volta para Vicenzo.
Ao colocar os pés descalços na terra, Cassandra observou cada um de nós por um segundo,
então puxou a irmã para um abraço. Nada como o de Aisha, este foi rápido e quase mecânico.
Quando elas se soltaram, pareciam levemente aliviadas por este simples fato.
— Já que estão aqui, imagino que ficarão por um tempo — a Guardiã americana disse. —
Breve, creio — acrescentou. — De qualquer forma, imagino que Alyssa tenha muito o que me
contar. — Seu olhar fez parecer que suas palavras seguintes eram sinceras: — É bom vê-la viva e
finalmente transformada, Fidly.

Alyssa contou tudo. Cassandra já estava a par de muitas das informações, como o fato de
Aly ter estado presa no palácio com Vicenzo este tempo todo e como eu a encontrei sem querer.
Também sabia sobre minha nova situação e, apesar do longo segundo que passou me
observando, não fez qualquer comentário, e nem mesmo citou o fato de Lore estar entre nós.
Depois, quando Aly contou sobre o que aconteceu em Moçambique, a Guardiã ferveu de ódio
pensando em todo o transtorno que aquilo teria criado para Aisha que, segundo ela, “prezava
pela paz em sua essência”.
Caminhamos pela floresta lentamente, Jasper ainda recuperando suas forças. Jasmine lhe
dava suporte sempre que preciso, mas pouco a pouco ele recuperava o vigor. Aly andava à minha
frente, entre as Guardiãs, ouvindo atentamente enquanto elas comentavam entre si o que
pensavam ser o próximo passo de Vicenzo.
— Há mais nessa história — a europeia murmurou. — Ele esperou dezoito anos. Não teve
pressa, não agiu por impulso. Não é apenas a aparência de Alyssa, tem que ser mais que isso.
— Talvez ele queira algo dela — Cassandra concordou, e minhas mãos queimaram,
querendo tocar a garota a poucos passos de mim.
— O que ele pode querer com ela? — Jasmine se intrometeu.
A tensão dentro de mim ameaçou explodir meu peito, então eu disse:
— Não importa. Ele nunca mais vai encostar um dedo nela.
Ninguém protestou.
O caminho parecia não acabar nunca. O calor denso e úmido nos faziam suar e eu tinha
quase certeza de que Cassandra fazia algo para repelir os animais selvagens, porque eu estava
certo que ouvi o barulho de alguns deles.
— Eu havia me esquecido como sua casa é... — Freya resmungou, limpando o suor da
testa — quente.
Cassandra não perdeu o tom crítico da irmã.
— E eu havia me esquecido como era ser visitada pela princesinha europeia.
O silêncio entre nós que assistíamos às duas chegava a ser barulhento. Ninguém ousou
comentar, mas Serena se mostrava ansiosa com a interação das Guardiãs e Alyssa, no meio delas,
parecia prestes a se jogar no rio Amazonas. Mas Freya só lançou um olhar feio para a Guardiã
americana e não disse nada. Então o assunto morreu, e o silêncio foi nossa companhia pela
floresta tropical.
Passamos tanto tempo andando que meu ombro se curou. Em certo momento, Jasper ousou
questionar por que Freya simplesmente não nos teletransportava direto para a sede, e Cassandra
disse que suas barreiras não permitiam esse tipo de acesso, então apontou para mim e depois para
Lore e completou: “e Desertores só entram se eu permitir e levá-los para dentro, e imagino que
queira que o grupo todo entre”.
Então não questionamos mais.
Pouco mais tarde foi quando as árvores começaram a se abrir, permitindo que houvesse um
corredor. Percebi que estávamos chegando à sede.
Famosa por sua grande discrição, a sede amazônica era cercada por histórias, muito
vinculada às tribos de origem. Cassandra abençoou os povos originários para se tornarem
Protetores, guerreiros e guerreiras que conheciam aquela terra como ninguém. A Guardiã
americana e a africana eram parecidas em alguns quesitos e, talvez, suas origens fossem o que
tinham mais em comum. Ambas amavam sua terra natal, mas diferente das outras, Aisha e
Cassandra tinham uma conexão real com o local em que cresceram. Suas relações com a terra
eram muito mais profundas. Por terem vivido como humanas em suas próprias tribos, crescendo
assistindo à violência que seus povos sofriam, como precisavam defender seu direito ao território
de maneira tão ferrenha, quando foram abençoadas, souberam o quanto queriam manter suas
histórias vivas, porque assim seu povo viveria.
Pelo menos era isso que os Protetores contavam sobre seus passados.
Havia uma pedra no meio do corredor de árvores. Era alta, talvez tanto quanto eu e, além
dela, não havia nada. Um vazio estranho se apossava de um espaço que não poderia ter sido
tocado pelo homem, mas de fato parecia ter sido.
Cassandra fez um sinal para que Alyssa a seguisse e, com um movimento rápido e prático,
ela pegou sua mão e colocou sobre a pedra. Então Alyssa desapareceu. Pouco a pouco, todos
faziam o mesmo, até sobrar apenas eu e Lore.
— Não abusem da minha hospitalidade, crianças.
Tudo o que eu fiz foi assentir. Ao meu lado, Lore parecia mais ansiosa que eu para
confirmar suas ideias sobre o local.
Então, duas frases pequenas saíram da boca de Cassandra, entre elas as palavras: “tupy
guarani” que eu sabia significar “grande pai guerreiro” além de ser o nome de uma das famílias
linguísticas mais importantes e resistentes do Brasil. Quando Cassandra pegou minha mão, a sua
estava quente e, em menos de um segundo, estavam longe de mim e eu estava encarando um dos
lugares mais lindos que já havia visto em toda a minha vida.
Eu conhecia histórias sobre o Pico da Neblina. Os brasileiros o conheciam como o local
místico e o ponto mais alto do estado do Amazonas. Ninguém, contudo, parecia se aproximar
demais. Agora eu entendia o porquê. O Pico da Neblina é, na verdade, a sede dos Protetores na
Amazônia. Mais do que isso, era a casa de Cassandra. Os feitiços que envolviam este lugar eram
tão fortes que eu podia ouvir o zumbido constante, que não parecia apreciar minha presença, mas
acatava a decisão de sua criadora.
No ponto mais alto do Pico, neblina se acumulava como um escudo que se expandia pouco
a pouco, à medida que os segundos passavam. À nossa frente, duas longas fileiras de Protetores
— alguns vestidos em seus trajes comuns, outros em seus couros — se alinhavam e, com os
joelhos no chão, baixavam a cabeça para Alyssa. A Fidly. Sua promessa.
Nenhum deles ao menos abriu a boca para se opor à minha presença ou à de Lorena. Era
provável que nenhum gostaria de questionar a Guardiã. Havia muitas coisas pelas quais
Cassandra era conhecida, e uma delas era a ordem. Sua sede seguia seus comandos à risca e,
quem sabe por isso, se mantém tão afastados dos humanos e tão corretos em seus desígnios para
apoiar a balança.
— Bem vindos à Guaracy, a sede da Amazônia — Cassandra disse, então fez um gesto
para que os Protetores se levantassem. — Tragam um pouco de caxiri[7] para meus convidados.
— Ela nos lançou um olhar. — Eles estão precisando.
Logo alguém se aproximou com copos com um líquido de tom claro. Freya foi a primeira a
agarrar o copo e virar o conteúdo, engolindo tudo em um só gole. Então, Jasper fez o mesmo.
Pouco a pouco, alguns com mais moderação do que outros, todos beberam o conteúdo, que eu
descobri ser bastante alcoólico.
Alguns Protetores se aproximavam de Alyssa para falar, pedir ou contar algo. Quando
estava prestes a interferir, ela apenas me deu um aceno negativo, engoliu o líquido em seu copo
como Freya havia feito minutos antes, e voltou a dar atenção aos guerreiros, em especial às
crianças.
— Akin disse que está tudo certo em Mahali. — Me virei para encarar Jasper que franzia a
testa, entre a conversa em sua mente e esta à sua frente. — As barreiras continuam firmes e os
Desertores já desapareceram, junto com Sybil e o outro lá.
— Como eu disse. — Freya deu de ombros.
Cassandra enxotou seus Protetores, ordenando que eles continuassem seus deveres do dia
normalmente, finalmente dando alguma paz para Alyssa que parecia cansada e suja da luta, então
voltou a falar conosco.
— Talvez este seja um bom momento para discutirmos o fato de Vicenzo estar mandando
seus Desertores para rondar o Lago como um cachorrinho querendo resgatar o osso — disse. —
Criei alguns feitiços a mais, e eles não conseguem chegar ao Lago, mas ainda assim perturbam
os arredores. É como se buscassem pela brecha que vai permitir que consigam tocar aquela água.
— Vicenzo quer o Tesouro — afirmei.
— Tanto quanto precisa de uma terapia — ouvi Lore murmurar.
— Não importa — Aly respondeu, e eu me perguntei se a sua voz parecia a mesma ou
havia algo diferente. — Eu vou pegar o Tesouro.
Por um instante, Cassandra pareceu não ter ouvido bem. Freya apenas fechou os olhos, os
dedos subindo para apertar a ponte do nariz. Jasmine e Jasper observavam a determinação de
Alyssa com receio. Mas eu, Serena, Roman e Lore compreendíamos. Era a melhor ideia buscar
por algo que não fazíamos ideia do que era e o que fazia? Não. Tínhamos outra opção? Também
não.
A não ser que quiséssemos sacrificar Alyssa.
Mas então Cassandra ergueu o olhar para a garota marcada pelo Destino e disse:
— Certas coisas não valem a miséria que podem trazer.
CAPÍTULO 46

Cassandra falou sobre como era uma “idiotice sem tamanho” — palavras dela —, eu
querer usar o Tesouro. Disse que já estava fazendo muito garantindo que seu feitiço sobre o Lago
“aceite” a presença de Nathan e Lore quando chegássemos lá. Freya não disse nada, mas parecia
concordar. Por outro lado, eu fiz o que devia ter feito há muito tempo: decidi seguir o meu
desejo. E o que eu queria era a porcaria desse Tesouro.
— Me fale como pegar o Tesouro.
Cassandra me encarou por um segundo, mãos sob o queixo, olhar inexpressivo. Sentada à
sua mesa de ébano, ela lembrava uma monarca.
— Não.
Diferente de Mahali, aqui em Guaracy haviam cabanas, não muito diferentes das do Outro
Lado, apesar de ostentar alguns tipos de runas, que minha mãe disse ser símbolos de proteção da
tribo de origem de Cassandra. E ela carregava as runas como carregava seus mortos, usava-os
como pedaços de sua armadura, partes de sua força.
Se eu pudesse enxergar a morte como apenas uma passagem, quem sabe eu pudesse viver
como ela, usando meu luto como armadura.
— Não temos tempo para que eu encontre uma fonte energética do seu agrado.
— Não seja petulante.
Eu sorri.
— Estou cansada, Cassandra, então terá que me perdoar se não tenho disposição para essa
conversa — falei. — Entre fugir de Florença, treinar meus poderes, e lutar contra esses estranhos
que o Destino permitiu viver nessa dimensão como se não fossem nada perigosos, não tive tempo
de dormir muito. — Ao meu lado, nenhum dos meus amigos disse nada. O silêncio era seu modo
de concordar comigo. — Estamos todos exaustos. E sem tempo. Vicenzo vai atacar de novo.
— Quando escondi o Tesouro no Lago, fiz um feitiço que garantiria que ninguém nunca
conseguiria levá-lo. Ninguém além de seu dono: o próprio Destino — afirmou, sem se abalar. —
Enquanto o Destino quiser manter o Tesouro no Lago, é lá que ele ficará. Não importa se
Vicenzo sugar toda a água. E não importa se você quer usá-lo.
Trinquei os dentes.
Óbvio que as coisas não seriam simples. Claro que o maldito Destino teria mais uma carta
na manga para manter as coisas como ele queria. E o que ele desejava era que eu morresse assim
que Vicenzo fosse mandado pro maldito inferno de onde ele deve ter saído.
Estava exausta.
Levantei-me. Os olhos vidrados, o corpo doendo, o coração cansado.
E então saí em direção à floresta.

Caminhei pela mata fechada sem mal ver. Eu não tinha um plano funcional, mal tinha um
grupo de guerreiros unidos. Os Protetores estavam criando intrigas entre si, tinham lideranças
falhas e lidavam com o mundo como quem criava uma receita — tudo em doses e medidas pré-
determinadas. Ao menos lutariam ao meu lado? Ao menos seriam o que eu precisava que
fossem: uma frente unida?
Ao menos eu poderia ser o que eles precisavam?
Eu sentia agora que, apesar da cura potencialmente mais rápida, o cansaço não era algo do
qual essa marca poderia me livrar. O braço tatuado do qual eu muitas vezes mal reconhecia como
minha própria pele era apenas uma lembrança do que eu era, do que eu sempre seria: uma peça
no tabuleiro. Uma cópia barata de alguém que eu nunca conheceria, um peão em um jogo e
também uma assassina.
Eu havia matado pelo que eu amava e não me arrependia. Mas eu também havia matado
por ele e me odiava por isso. E odiava como o tempo não parecia capaz de me fazer esquecer
seus rostos. Como eu vivia com a constante lembrança de suas mortes e meu papel nelas. Como
eu era tudo, menos inocente.
— Aly!
Eu parei, mas não encarei o ponto de origem da voz.
Estava cansada demais. Derrotada demais.
Sua mão, sempre quente, tocou meu braço levemente, como se testando minha reação.
Esperando. Paciente.
Enquanto crescíamos, Nathan nunca havia sido paciente. Ele era uma força da natureza,
agitado, nervoso e ranzinza. Era uma criança com determinação de ferro, mas completamente
incapaz de apenas sentar e esperar. Nathan normalmente agia. Não era receoso, não era calmo.
Na maioria das vezes era imprudente.
Mas por mim, ele sempre era exatamente o que eu precisava. Quando eu desabava, ele
estava em pé para me ancorar. Quando era eu quem estava impaciente, ele era calmaria.
Nathan era calmaria e estabilidade quando tudo o que eu podia ser era caos. E às vezes eu
pensava que não o merecia, que tudo o que eu tinha feito foi ser fraca.
— Vamos encontrar outro jeito.
Não, não vamos.
— Alyssa — chamou. — Vamos sair dessa chuva, por favor.
Quando ao menos começou a chover?
— Estou cansada, Nate. — Minha voz era menos que um sussurro sendo carregado pelo
vento. — Cansada de perder.
— Não estamos perdendo essa guerra ainda, Aly. Se não com o Tesouro, haverá outra
forma.
Não. Não haverá.
Não podia haver.
— Há uma grande chance de perdermos. — A chuva abafou minha resposta.
Sua mão tocou a minha, e então ele estava na minha frente, os olhos azuis buscando os
meus. Eu finalmente conseguia sentir a chuva encharcar minha roupa, finalmente era capaz de
ouvir seu barulho e enxergar a lama se formando sob meus pés. E podia ver os olhos
preocupados de Nathan enquanto ele me observava com atenção.
— Você costumava ser a otimista da relação, amor.
— Eu não costumava ter todas as informações.
O sorriso que ele tentou me dar não era convincente.
— Vamos sair da chuva. Você pode tomar um banho e dormir um pouco. Vai acordar
melhor.
Não havia força em mim para ao menos formular uma resposta. Suas mãos corriam pelos
meu braços, como se tentando me aquecer, e um rastro de calor ficava por onde elas passavam.
— Eu quero que isso acabe logo. Eu quero paz.
Ele assentiu.
— Se quiser fugir, vou com você. Sabe disso, não é? — disse. — A balança não vale sua
vida. Nada vale.
Eu sabia que ele pensava assim. Ainda ecoava em minha mente a lembrança de vê-lo se
ajoelhar e implorar que eu fugisse de tudo isso com ele quando descobriu o preço para a morte de
Vicenzo. Se eu tivesse escolhido fugir, meu pai teria sobrevivido? Nathan teria desertado?
A única certeza que eu tinha era que, se eu fugisse, humanos continuariam morrendo,
Protetores continuariam lutando até a morte e o assassino do meu pai sairia ileso.
Meu pai teria morrido por nada.
Meu pai. Meu pai.
Eu queria vingá-lo, mesmo que vingança nunca tenha sido algo que ele apoiaria. Queria
poder honrá-lo mesmo que eu fosse apenas um peão assassino nesse tabuleiro estúpido. Queria
que ele soubesse que eu o amava com toda minha alma, e tinha em meu coração um pedaço que
seria sempre dele. Mas ainda não conseguia pensar em uma forma de vencer essa guerra se a
cada passo que eu dava parecia me fazer retroceder três.
E eu estava exausta. Completamente exausta.
— Não posso fugir.
Não havia um pingo de força em minha voz, nem uma mísera faísca. Mas Nathan levou
minhas palavras como uma afirmação determinada, irrevogável. Ele não queria fugir mais,
porque entendia. Afinal queria vingança tanto quanto eu.
— Então lutamos juntos — disse — e vencemos.
A chuva fazia meu corpo molhado parecer mais pesado, e lavava minhas lágrimas antes
que pudessem escorrer. Nathan via, porém. Cada pedaço de mim era transparente como água
para ele. Sua alma estava ligada à minha. Ele sentia, ele ouvia. E a cada passo que eu dava em
direção ao abismo, a cada segundo que a avalanche parecia me soterrar mais fundo, eu tinha
medo que ele seguisse em minha direção e fosse soterrado comigo.
Quando suas mãos se fecharam em volta de mim, eu cedi. Cedi para a dor. Para a raiva.
Para o medo.
Para o desespero.
Mas quando eu caí, suas mãos estavam lá para me segurar. Sempre estavam.

Meu tempo para desabar havia vindo e ido embora com a mesma velocidade que a chuva
tropical de verão. Me permitir mais tempo seria como admitir derrota e essa guerra só acabaria
quando um de nós, eu ou Vicenzo — ou os dois —, estivesse morto. E se fosse para eu morrer,
com certeza estaria levando Vicenzo comigo. Aquele bastardo não venceria, mesmo que eu
perdesse.
E por isso, estava na hora de ir.
Não havíamos passado nem um dia inteiro em Guaracy, apesar do fuso horário e já iríamos
embora. Antes do anoitecer, estávamos prontos para partir para o Lago. Cassandra fingia não
saber que eu continuaria tentando usar o Tesouro, e eu fingia que acreditava que não havia uma
forma dela me ajudar. Nós duas, porém, tínhamos consciência de que eu não pararia. Entre matar
humanos como Sybil fazia e outra opção nem um pouco favorável, usar o bendito Tesouro era da
minha preferência.
Protetores nos abasteciam com armas e objetos que sua cultura acreditava poder me manter
protegida. Eu agarrava esses objetos com a mesma devoção que agarraria um bote salva-vidas,
porque dado as circunstâncias, proteção nunca era demais. Nenhuma das armas, porém, eram
entregues a Nathan ou Lore, e o olhar enojado era comum entre os guerreiros, mas assim como
quando chegamos, nenhum deles se atreveu a falar nada. Um único olhar de Cassandra e se
calavam. Um único olhar meu e suas cabeças estavam baixas em sinal de respeito. Eu não havia
conquistado seu respeito, o Destino o havia me entregado na forma dessa marca em meu braço e
uma profecia, contudo, era útil mesmo assim.
— Alyssa.
Virei-me para encontrar Cassandra e Freya me olhando. A Guardiã americana tinha os
braços cruzados sobre o peito e o olhar fixo em mim. Tudo o que me deu foi um breve aceno,
indicando que eu a seguisse, então entrou em sua cabana, Freya ao seu encalço.
Agradeci a Protetora à minha frente e entreguei os objetos para Serena guardar, então segui
as Guardiãs.
Logo que entrei na cabana, magia fluiu como vento e fez a porta atrás de mim se fechar.
Cruzei os braços e Cassandra se adiantou.
— Minha irmã, Aisha, nos fez perceber a importância de lhe dar certas... informações —
disse. — Nem uma de nós é especialista no assunto, mas talvez devemos compartilhar o que
sabemos sobre Nixya. Afinal, você tem seu rosto.
Involuntariamente, ao mero som daquele nome, minhas unhas fecharam sobre minha pele.
Uma deusa ou não, viva ou morta, foi Nixya quem começou tudo isso. Ela trouxe monstros de
outras dimensões para a Terra. Era possível que ela não fosse culpada pelo que Vicenzo se
tornou, muito provável que ele já possuísse a maldade e ambição desenfreada dentro de si, mas o
que quer que tenha acontecido, Nixya o fez confiante de quem era, e do que queria ser. E eu
odiava ter o mesmo rosto que ela tinha.
— Nunca fomos apresentadas propriamente — Freya começou. — Mas as histórias sobre
ela pareciam pairar no ar. “A deusa da escuridão que fazia as dimensões colidirem” — citou. —
“A deusa que ria da balança”. O Destino não era um fã.
Claro, o infeliz odiava que seus planos para a balança fossem frustrados.
— Posso imaginar o porquê.
— Mais do que os problemas que ela trazia para o Destino, Nixya era adorada por seres
das mais diversas e cruéis dimensões — Cassandra disse. — Seres talvez muito piores que
Mavon e Belius. Quem sabe mesmo piores que Sybil.
— De que isso importa? — interrompi. — Ela está morta.
Freya balançou a cabeça, parecendo inquieta.
— Assim como Vicenzo ainda é obcecado por ela, outros seres espalhados por dimensões
têm Nixya em tão alta conta. Eles a veem como um mártir até hoje e são obcecados pelo seu
legado. E Belius e Mavon são apenas um indício de que Vicenzo está buscando reuni-los.
— Quantos desses seres exatamente o Destino permitiu que ficassem na Terra? — Minha
voz com certeza transpassava toda minha irritação.
— Ele os baniu para cá. Milhares deles — Cassandra respondeu.
Cerrei os olhos.
— Isso não é literalmente fazer com que as dimensões colidam? Não é exatamente isso que
ele quer impedir que aconteça e afete a balança?
— Quando Nixya morreu e Vicenzo foi preso, ele me fez fechar os portais remanescentes
— Freya contou. — Manter esses seres aqui foi uma forma de puni-los, mas as dimensões
continuam seguras porque não é possível acessá-las.
Eu não podia acreditar nisso.
— E como fica os humanos no meio disso?
Cassandra inspirou fundo.
— Como sempre ficaram.
— Sem saber de qualquer coisa e presos em meio a uma guerra que não começaram —
concluí.
— Para ser sincera, eles começaram muitas guerras... — Freya murmurou. — Claro que
sempre com um empurrãozinho de terceiros, mas mesmo assim...
— O que vem ao caso, Alyssa — Cassandra interrompeu —, é que você tem o rosto dela,
mas não é ela. Se Vicenzo conseguir reunir esses seres e convencê-los a lutar ao seu lado, não
importa se faremos com que todos os Desertores mudem de lado, não será uma guerra
equilibrada. — Tensão parecia pesar seus ombros. — E se Sybil conseguir força o suficiente para
abrir as dimensões... Então não haverá guerra. Haverá um massacre.
E Sybil ficava cada dia mais forte matando humanos inocentes. Talvez, agora que Mavon
havia sido excluído da história, Vicenzo daria um passo atrás e replanejaria tudo. No entanto,
ainda havia a possibilidade dele mandar tudo para o inferno e atacar com tudo o que tinha.
Olhei para Freya.
— Você não pode fazer nada? Tentar bloquear portais ou fechar as dimensões com algum
feitiço mais forte?
Ela balançou a cabeça.
— Portais não funcionam assim. Tudo o que posso fazer é fechar um quando for aberto.
Mas se Sybil conseguir abrir muitos de uma vez, então não serei capaz de fechar todos.
— Isso são apenas suposições para o futuro — Cassandra interferiu. — Uma possibilidade
real, mas não está acontecendo agora. Apenas quero que entenda, Alyssa, onde está se enfiando.
Muitos seres de muitas dimensões lutaram por Nixya e irão continuar lutando mesmo agora. Mas
além disso, passou pela sua cabeça que ela era uma deusa, extremamente poderosa, e ainda assim
foi derrotada pelo Destino porque interferiu em seus planos? — Algo me dizia que Cassandra
podia quase enxergar minha alma pela forma como me olhava. — Já parou para pensar no que
ele fará quando você o enfrentar? Quando você decidir que quer tomar exatamente aquilo que ele
deixou claro para nunca ser tocado?
O Tesouro.
Eu não me importava. O Destino esteve brincando comigo antes mesmo de eu nascer.
Esteve traçando meu futuro como um autor esfomeado por tormento. Eu podia ter o rosto de
Nixya e ser a sua escolhida, mas ele descobriria que, acima de qualquer coisa, eu era minha.
E ele não me dava medo.
CAPÍTULO 47

Freya nos deixou entre as árvores e o Lago antes de voltar para Roma na intenção de
garantir que estava tudo certo por lá e descobrir o que Vicenzo vinha fazendo em Florença. Se
ela fosse bem-sucedida, Sybil teria muita dificuldade em sacrificar humanos até que
conseguíssemos matá-la.
Jasper, Roman e Serena decidiram atravessar para o Outro Lado, mesmo que nem eu nem
Alyssa estejamos prontos ainda. Eles querem ir avisando a todos o que aconteceu desde Florença
e tentar reunir o máximo de informação possível a respeito das investidas de Ravenna e Akantha.
Lore, claro, não tinha muita opção a não ser se hospedar na casa do Lago de Alyssa. Eu duvidava
que qualquer Protetor no Outro Lado aceitaria um Desertor em suas terras, não depois do que
aconteceu. Então eu, Aly, Lore, Jonnah e Jasmine voltamos para a casa do Lago.
Ao meu lado, Alyssa estava estranha e eu podia sentir sua tensão como ondas pesadas.
Seus dedos se enrolavam no tecido da calça bege que Aisha havia emprestado a ela. Quando
começou a coçar as costas da mão direita, em um tique que eu já conhecia bem, puxei sua mão
para a minha e enrosquei nossos dedos.
— Não sei se consigo fazer isso — sussurrou, tentando impedir que sua mãe ouvisse.
"Você pode” — falei em sua mente.
Seus olhos encontraram os meus, e a devoção silenciosa que ela parecia depositar em mim
me fez querer protegê-la do que viria a seguir. Eu sabia que ela estava nervosa por estar de volta
aqui. Sabia que dentro de si um turbilhão de emoções se embaralhavam enquanto ela tentava
lidar com as memórias. Seria a primeira vez que ela veria a casa do Lago desde a morte do pai. A
primeira vez que seria confrontada por sua perda em um local onde tudo podia lembrá-la dele e
do que perdeu.
A alguns metros de distância, Jasmine andava rápido, o rosto erguido sem se desviar do
caminho à frente. Ela havia passado meses dentro daquela casa, imersa em seu luto, afogando na
dor, mas estava de pé agora. Estava de olhos abertos. E parecia estar lutando com afinco para se
manter assim.
Um suspiro deixou Alyssa, e luz percorreu nossas palmas. Era quente, levemente elétrica,
mas não machucou. Era o poço de poder tentando se manter controlado, garantindo que ela não
se sufocaria nele.
"Você é uma guerreira, Alyssa. Pode fazer isso. Isso não te destrói."
Sua mão livre subiu para o peito, coçando a pele como se algo a incomodasse. Os olhos
presos nos passos que dava. Quando falou, sua voz era menos que um sussurro e pouco mais que
a brisa gelada que passava por nós.
— Parece que está destruído.
As árvores se abriram e deram espaço para as duas casas que ocupavam o grande terreno
da costa norte do Lago. A minha costumava ser a mais triste, com apenas o jardim sempre
florido como parte alegre do lugar, enquanto a de Alyssa era sempre clara, cheia e com aquela
sensação de “lar”. Mesmo quando a casa esteve fechada por anos, a luz ainda entrava nela de um
jeito que não fazia na minha. Agora, porém, os dois lugares eram igualmente tristes, escuros e
frios.
Mas então Zeus saiu trotando da casa à esquerda — a minha — e, ao nos avistar, começou
a correr em nossa direção com toda a força que ainda tinha em seus quase doze anos. A humana
amiga de Jasper vinha sempre nas manhãs e ficava por um tempo, mas eu não ouvi nenhum
movimento dentro da casa, o que indicava que ela já devia ter ido embora.
Zeus correu e correu. Parou rapidamente em Jasmine, lhe dando as boas-vindas, então
seguiu para Jonnah e Lore. Mas ele foi rápido, correndo na minha direção e de Alyssa, a boca
aberta, a língua para fora, o corpo todo demonstrando sua animação. Flagrei o sorriso da mulher
ao meu lado com satisfação. Zeus soltou um latido e eu soltei a mão de Alyssa para abrir os
braços para ele, que correu e pulou contra meu peito. Eu o segurei enquanto ele lambia meu
rosto. O cheiro dado a minha nova condição não pareceu incomodá-lo. Para ele, eu continuava
eu.
— Também senti sua falta, amigão.
Eu lhe havia prometido que tentaria voltar, por ele, porque naquele momento eu não
acreditava que havia nada mais pelo que lutar. Mas agora eu estava de volta, e ainda havia
trazido Aly de presente.
Alyssa tocou Zeus, que de repente parou com a demonstração de afeto e pulou do meu
colo. Seus olhos esverdeados confusos encontraram Alyssa e ele se aproximou com cautela,
farejando o ar. Aly se ajoelhou para ficar cara a cara com o animal e, depois de mais algumas
farejadas, Zeus soltou um ruído emocionado e pulou sobre ela, enchendo Alyssa de lambidas.
— Você foi bem cuidado, Zeus? — Aly questionou, abraçando o cachorro e afagando seu
pelo, os dois agora jogados no chão. — Está feliz? — Sua risada fez meu coração bater duas
vezes mais rápido. — Eu senti sua falta, lobinho. Senti muito sua falta.
Então Aly estava chorando, em silêncio, apenas lágrimas escorrendo de seus olhos
enquanto ela abraçava Zeus como se ele fosse seu ponto de luz em meio à escuridão.
Foi Aly quem viu Zeus primeiro, anos atrás, em meio à floresta. Ela só não podia ficar com
ele porque Jasmine já desconfiava que precisaria viver se mudando e não queria ter que fugir
com um cachorro ao seu encalço. Eu nunca fui tão grato por estarmos no lugar errado na hora
certa quando encontramos Zeus e sabia que, não importava quanto tempo Alyssa ficasse longe
dele, para Zeus, ela era sua família tanto quanto eu.
E era Zeus quem, agora, mesmo que apenas um pouquinho, salvava Alyssa.

Alyssa parou na frente de sua casa e engoliu em seco. Jasmine passou seu braço sobre os
ombros da filha, mas não pareceu surtir efeito. Seu olhar ainda era de quem havia sido quebrada
em pedaços pequenos demais para serem remendados.
"Pode ficar na minha casa comigo” — eu disse em sua mente. — “Você não precisa lidar
com isso agora se não estiver pronta.”
Seus olhos encontraram os meus e ela apenas assentiu.
— Vá tomar um banho, filha. Descanse por um minuto — Jasmine disse, percebendo a
nossa troca de olhares. — Tenho certeza de que Jasper voltará com demandas do Outro Lado.
Aly assentiu levemente, mas não seguiu em frente, não caminhou em direção à sua casa.
Ela se virou e foi rumo à minha.
— Posso pegar uma roupa pra ela — Jonnah ofereceu. — Deixo em sua porta, Nathan.
Concordei com a cabeça e o garoto Nephus, que era muito mais como um Monroe, foi em
busca das roupas.
Jasmine continuava ali, parada entre as duas casas, incerta do que fazer em seguida. Engoli
em seco.
— Tudo bem?
Seus olhos cor de mel encontraram os meus.
— Passei tanto tempo dentro daquela casa nos últimos meses sem ser eu mesma, sem
parecer estar viva... — Sua voz falhou. — Tenho medo de cair no transe novamente. Medo de
que aquela onda me derrube.
Eu me aproximei e toquei seu ombro. Enquanto eu crescia, Jasmine havia cuidado de mim
como se eu fosse parte de sua família, até o dia em que precisou ir embora. Por minha culpa. Por
medo. Porque ela temia meu elo com Alyssa. Mesmo assim, por anos ela e Henry foram a
família que eu não tinha. E eu sabia que ela havia feito Jasper ficar de olho em mim, sabia que
não importava o quanto ela me temesse, ela ainda me amaria. E eu havia falhado com ela.
— Desculpe por não ter estado ao seu lado. Eu... acho que não sabia o que fazer. Alguns
dias eu mal me lembrava como se respirava. Era muita...
— Dor — completou por mim. — Muita dor. Eu sei. — Sua mão pousou sobre a minha. —
Ter Alyssa de volta me fez aceitar que meu coração ainda batia. Porque a minha menina está
aqui, viva. Eu teria definhado até o fim se não fosse por isso. E agradeço você por trazê-la de
volta mais do que posso expressar em palavras. — Seu rosto se contorceu ao voltar encarar a
casa. — Mas ainda assim, sempre que me deparo com esse vazio que ele deixou — sussurra —,
é como ser cortada ao meio. Como se agora eu vivesse pela metade. Meio eu. Meio o que partiu
com ele.
O ar deixou meus pulmões exasperados. Eu entendia Jasmine. Por pouco mais de dois
meses eu havia me sentido assim. Como se eu estivesse meio vivo e meio morto. Como se a
partida de Alyssa fosse a minha.
No entanto, eu havia tido sorte enquanto Jasmine viveria imersa no vazio deixado por
Henry.
Não havia palavras que pudessem ampará-la. Nenhuma promessa mentirosa poderia
enganá-la. Nada seria suficiente para contornar a dor. Nós dois sabíamos, porque ela havia
perdido seu predestinado. As lendas diziam que o elo se mantinha intacto, mas que a outra ponta
simplesmente não respondia, não se fazia presente. Porque o elo era inquebrável, mas o ser não.
Então eu a abracei e rezei para que ela fosse mais forte que Brian. Mais forte que eu.

Alyssa saiu do banho depois de um bom tempo, com o cabelo molhado e uma toalha em
volta do corpo. Eu devia mesmo ser um bastardo, porque me peguei encarando suas pernas
enquanto vinham em minha direção. Limpei a garganta e ergui os olhos para ela, mas então foi
um erro ainda maior porque então eu estava encarando seus olhos negros e o rosto lindo,
contornado pelas mechas pesadas de seu cabelo molhado.
Um sorriso tímido se abriu em seu rosto e — pelo bendito Destino! — minhas bochechas
queimaram. Eu corei. Estava corando porque uma garota me pegou encarando.
Bem, não uma garota, Alyssa, mas mesmo assim.
— Você está encarando.
Dei de ombros.
— Não pode me culpar por isso, afinal tinha um espelho naquele banheiro.
Ela balançou a cabeça, os cabelos espirrando água.
— Também tinha o sabonete que eu uso. — Aly me olhou. — E o shampoo e
condicionador.
Desviei o olhar. Eram tempos sombrios.
— Eu queria manter seu cheiro em mim.
Mesmo que seu cheiro fosse muito mais do que o aroma daqueles itens. E não importava
quanto eu tentava, ainda faltava algo importante. Algo só dela.
A cama se afundou ao meu lado e então seu braço nu e frio estava contra o meu. As suas
roupas já estavam na cama, mas ela parecia tão cansada que nem se esticou para pegá-las. Por
um instante, nem se moveu.
— Aly...
Sua mão agarrou a minha, apesar dos seus olhos fixos na parede.
— Eu odeio pensar no que você sentiu. Toda vez que penso consigo sentir a dor em mim
porque seria como eu me sentiria se eu perdesse você. — Seus dedos apertaram os meus e luz
começou a aquecer as nossas palmas, como se ela respondesse à intensidade de suas emoções. —
E quanto mais lutamos, mais parece real a possibilidade de perder você.
Eu me virei para ela e puxei seu rosto. A escuridão bateu contra mim como uma lufada de
ar fresco. Percorrer meu dedo pelo contorno de sua mandíbula e seu lábio inferior foi
involuntário.
— Chegamos longe demais para perder — falei, sentindo sua respiração bater contra meu
rosto. — Você literalmente voltou dos mortos para mim. — Ela soltou uma bufada, e eu sorri. —
Sabe por que iremos vencer?
— Por quê?
Aproximei meu rosto do dela um pouco mais.
— Porque temos pelo que lutar — eu disse. — Enquanto Vicenzo é submisso ao seu
próprio ego, nós lutamos porque não queremos perder as pessoas que amamos.
Aly fechou os olhos, mas assentiu. Toquei seus lábios com os meus, apenas uma leve
carícia, apenas o suficiente para que meu coração se lembrasse que ela estava aqui, que era real.
A dose mínima diária para me manter são.
Mas a garota em meus braços me beijou de volta, não parecendo satisfeita com a dose
mínima. Sua boca se perdeu na minha como se fosse a primeira vez, como se ela estivesse me
descobrindo de novo.
Quando ela se afastou, ainda tão perto que eu podia sentir suas respirações, pousou a mão
em meu peito. Repulsa preencheu meu estômago quando me lembrei o que estava ali, sob a
camiseta. A marca de Vicenzo, a prova do juramento que eu abominava.
— Eu amo você. E luto por você.
Eu não merecia. Caramba, como eu não merecia! Minha vida toda, ela havia sido luz
demais para mim, boa, leal, cheia de empatia pelo mundo. Eu não merecia sua amizade quando
éramos apenas crianças e não merecia seu amor quando roubei seu beijo em uma noite chuvosa.
Não a mereci anos mais tarde, quando fiz tudo que podia para ficar longe dela, para mantê-la a
salvo de mim. Não a merecia agora, quando havia jurado minha alma ao inimigo.
Porém, eu a amava tanto quanto era indigno dela. Mais. A amava com corpo, alma e
coração.
Então eu lutava por ela também.

Chegamos à fronteira com o Outro Lado junto a Jasper e Jasmine. Jonnah ficou para trás
com Lore e Zeus. Quando avistei a cabeleira avermelhada, quis ter escolhido ficar em casa
também.
Ravenna se virou para nós e sua careta demonstrava seu descontentamento.
— Não, não. — Apontou para mim. — Saia dessas terras imediatamente, seu moleque
estúpido!
Jasper se enfiou entre nós, interrompendo Ravenna. Alyssa, por outro lado, parecia estar
prestes a explodir a cabeça da Protetora dos infernos.
— Ele tem permissão da própria Cassandra para estar aqui — Jasper disse.
— As nossas leis não funcionam assim. Sou eu quem decido quem entra no Outro Lado.
Esta é a minha sede — ela rebateu.
Nem uma única saudação para Alyssa. Nada como um “fico feliz que não esteja morta”. O
único indício que tínhamos de que ela ao menos notou a presença da Aly era porque lhe lançou
um olhar frio e disse:
— Já adianto que não me importo com o que você quer. — Ravenna apontou para mim. —
Ele é um Desertor agora e não irá entrar em minha terra sagrada.
Os olhos negros que encararam de volta nem tremeram. Nada na expressão de Alyssa ao
menos demonstrava uma mísera emoção. Era como gritar sobre o completo vácuo. Não surtia
efeito. Quando ela falou, sua voz era forte, mas fria como gelo:
— Você pode ser a líder do Outro Lado, por enquanto, mas o Lago não é o seu domínio. E
Nathan não é o inimigo.
Alyssa deu um passo à frente, pronta para contornar Ravenna, mas a líder do Outro Lado a
parou, bloqueando sua passagem.
— Meu povo não o quer aqui — sibilou.
Aquilo era estúpido. Eu nunca havia sido particularmente apreciado pelos Protetores, a
maioria comentava sobre minha mera existência pelas minhas costas, assim como faziam com
meu pai, mas eu nunca havia sido proibido de entrar no Outro Lado. Mas também nunca havia
sido um Desertor antes.
— Sugiro que saia do meu caminho, Ravenna.
— Sugiro que conheça o seu lugar, Fidly.
Jasper e Jasmine estavam a postos, prontos para interferir quando Ravenna agarrou o braço
de Alyssa. Eu estava a um passo de cortar sua mão pela audácia em tocá-la, mas Alyssa foi mais
rápida do que qualquer um de nós. Ela ergueu o punho, luz enrolando sua mão como uma
serpente. Um único movimento, sem nem chegar a tocar Ravenna, e a miserável estava sendo
jogada pelos ares e caindo de bunda na água.
Ravenna rugiu de raiva e pulou da água com uma adaga em mãos. Imediatamente eu estava
na frente de Alyssa e Jasmine estava empurrando a outra para longe.
— Está louca? — gritou. — Machuque minha filha e eu mato você.
Atrás de mim, luz começou a expandir como se a bomba estivesse prestes a explodir.
Observei Ravenna com atenção e a cada respiração que ela dava, minha fúria crescia. Aquela
mulher havia me torturado quando mais novo, destruído minha amizade com Roman, mas ela
não chegaria nem perto de tocar Alyssa antes que eu tivesse seu coração na ponta da minha
espada.
— Devemos lembrar a necessidade de manter a civilidade aqui? — Jasper, de todas as
pessoas, foi quem interveio diplomaticamente. — Você não pode atacar a Fidly, Ravenna. Ela
está acima de nossas leis.
Ela sabia disso. O problema é que não se importava.
— Nathan não está acima de nada, sendo o elo real ou não — ela retrucou, os olhos
brilhando de ódio. Eu quase sorri com sua falta de controle. Ela realmente nunca havia gostado
muito de mim, mas costumava conseguir controlar as explosões. — E agora ele é o inimigo.
Eu não queria ser. Nunca seria se pudesse evitar. Não seria aliado de Vicenzo, inimigo de
Alyssa. Entretanto, o Outro Lado havia sido atacado e a vida de muitos ceifadas por Desertores
que, assim como eu, fizeram o juramento. Crianças se recusavam a lutar, recentemente órfãs ou
aterrorizadas demais para se sentirem seguras o bastante dentro da própria casa. Homens e
mulheres sofriam a perda de seus parceiros, filhos, familiares...
Virei-me para Alyssa antes que a sua luz despedaçasse Ravenna.
— Os Protetores daqui não estão prontos para me encarar, Aly. Perderam demais e a dor é
recente.
— Mas você não fez nada.
Não. Pelo contrário, lutei ao lado deles.
— Nós odiamos Desertores desde que nascemos, amor. Isso não vai mudar do dia pra
noite, principalmente não depois de um ataque como o que aconteceu aqui.
Ela franziu o cenho, tentada a discordar.
— Não é justo.
— Poucas coisas são — dei um beijo em sua testa —, mas você precisa ir pro Outro Lado e
ver o que aquela mulher louca ali está tentando fazer. Nós bem sabemos que liderar não é seu
forte.
Eu podia sentir que ela não queria me deixar para trás. Podia ver o quanto eu ser
responsabilizado pela minha escolha a deixava irritada, porque ela sabia que não havia de fato
sido uma escolha. E, como tinha o hábito de fazer, Alyssa estava sempre se culpando por coisas
das quais não tinha responsabilidade alguma. Havia sido minha escolha. E agora era a minha
consequência. Pelo menos até Lore encontrar algo útil na montanha de livros em que se via
enfurnada recentemente.
Quando Aly atravessou a água para adentrar o Outro Lado, ansiedade aqueceu meu
estômago porque eu queria estar lá para protegê-la.
Mas se eu pensasse bem, era mais provável que quem ousasse entrar em seu caminho que
precisasse de proteção.
CAPÍTULO 48

O Outro Lado não brilhava mais.


O lugar parecia opaco e sem vida. Triste. Pesado. Do extremo leste da costa do Lago,
conseguia observar os Protetores com suas tarefas diárias. Alguns abasteciam o refeitório, outros
planejavam a guarda pelo território, e outros treinavam crianças e adolescentes. Mas alguns
perambulavam como se fossem zumbis, como uma mulher da idade da minha mãe, que
caminhava pela costa, os pés descalços afundando na água e o olhar perdido sobre o horizonte
azul. O azul que, no dia do ataque, ficou vermelho.
— Ainda acha que seu namoradinho desertor merecia estar aqui? — Ravenna cutucou.
Eu poderia tê-la matado com meu olhar.
— Ele não teve nada a ver com isso. Lutou mais do que você naquele dia.
Seus olhos faiscaram.
— Sim, lutou tanto só para desertar mais tarde. Mas imagino que você seja a culpada por
isso, não é?
Eu iria queimá-la viva. Ou arrancar membro por membro seu. Ou afogá-la no Lago. As
ideias fluíam pelo meu cérebro em um amontoado bastante criativo. Senti uma mão agarrar a
minha e percebi ser minha mãe.
— Não perca seu tempo com Ravenna. Ela não vale a pena. — Apontou para os Protetores
que agora pareciam começar a me notar. — Foque neles.
Já a alguns passos na frente, Ravenna murmurou:
— Isso, Alyssa. Coloque seu foco nas pessoas que estão aqui.
Eu inspirei fundo. Luz deixou minhas mãos estendidas e forçou uma barreira contra
Ravenna, fazendo-a se afastar pelo menos dois metros de nós. Jasper e minha mãe me encararam
com certo espanto.
— Se ela não quiser morrer hoje, vai entender o recado.
À nossa frente, os Protetores já se reuniam. Eles sabiam que eu estava viva. Deviam saber
já há um tempo, mas ainda pareceram surpresos ao me ver em carne e osso. As crianças
sussurravam umas para as outras e apontavam para mim. Os adultos apenas observavam, de olho
na luz que emanava das minhas palmas. Fechei minhas mãos na tentativa de conter o poder, mas
havia muita ansiedade em mim, muito nervosismo para impedir que ele se esgueirasse pelos
meus dedos. O poço era profundo e cheio demais.
Serena surgiu do meio do aglomerado ao lado de Roman, e foi a primeira a se curvar.
Diferente das outras sedes, que pareciam mal poder esperar por demonstrar seu respeito frente à
Fidly, o Outro Lado parecia quase relutante. Claro, eu não esperava que todos me tratassem
como Mahali ou Guaracy trataram, e sabia que todo o alvoroço envolta do fato de eu ter sido a
escolhida do Destino era um pouco desnecessário, afinal a maioria ali havia lutado por bem mais
tempo que eu. Mas a relutância dos Protetores daqui era quase como um insulto.
Contudo, enquanto eu os observava, finalmente entendi: o ataque mostrou a força de
Vicenzo e deixou claro qual era o potencial daquela guerra. E, ao mesmo tempo, expôs a nossa
fraqueza. O quão suscetíveis estávamos para o ataque, o quanto teríamos que nos fortalecer para
ter uma chance real. E, naquele dia, eles viram a Fidly ser derrotada e não sabiam se poderiam
confiar em mim para cumprir a profecia.
Pouco a pouco, porém, eles foram se curvando, a mão sobre o peito. "Juramos com sangue
e fogo”. Essa era a promessa: me proteger para que eu cumprisse a profecia, me manter viva para
matar Vicenzo. E eu o faria.
Por mim mesma, por Nathan, pelo meu pai e minha mãe. Mas também por eles. Pelos que
caíram lutando. Pelos jovens iniciados, brutalmente assassinados nas águas deste Lago. Pelas
crianças que me encaravam desconfiadas, mas com aquela faísca conhecida de esperança. Por
Freya e sua honra. Por Aisha e Cassandra. Por Diana e todas as outras Fidlys. Pelas outras duas
Guardiãs que eu ainda não conhecia. Pelos humanos.
Eu o mataria porque o mundo seria melhor sem Vicenzo nele.
Encarei cada um dos Protetores à minha frente. Vincent, o homem que sempre colocava
mais comida em meu prato e um pedaço de sobremesa a mais em toda refeição. Clara, a mulher
que sempre me mostrava as melhores armas do arsenal do Outro Lado. Um grupo de crianças
que sorriam sempre que eu me aproximava, e colocavam as mãozinhas sobre o peito em
saudação. E, na ponta extrema dos Protetores reunidos, eu vi Lirya me observando com atenção.
Quando me pegou encarando, desviou o olhar.
No começo eu a odiei. Odiava como falava comigo e como tentava me provocar sempre
trazendo Nathan para a conversa. Mas odiava odiá-la. E no dia do ataque, Lirya não questionou
minha posição, não relutou em lutar e, contra todas minhas expectativas, foi uma das primeiras a
se posicionar e atender às ordens da minha mãe. Ela cumpriu seu dever, gostando ou não de mim
e isso me confirmava a única coisa que realmente importava: ela era leal.
Quando Lirya voltou a me encarar, lhe dei um leve aceno com a cabeça. Ela pareceu
surpresa com o gesto, então colocou a mão sobre o peito e se curvou levemente.
— Estamos felizes que você esteja viva, Fildy — alguém falou. — Esperamos poder
honrá-la na luta.
Inspirei.
Palavras não resolveriam nossos problemas, mas elas tinham o poder de inspirar. De
aquecer multidões, motivar seus ouvintes. E depois de tudo o que aconteceu, os Protetores do
Outro Lado precisavam me ouvir. Precisavam saber que eu estava de volta e que lutaria ao lado
deles.
— Nós perdemos muito no último ataque — eu disse. — Perdemos família e amigos, mas
nós resistimos. Nós permanecemos em pé e continuamos lutando. O Outro Lado não caiu quando
Vicenzo invadiu, apesar dos guerreiros que perdemos. O Outro Lado continua em pé, continua
lutando, porque isso é quem somos. Luta corre em nossas veias, e apesar de eu desejar tempos de
paz para todos nós, Protetores não fogem, não se escondem. — Todos ali me olhavam, uma
pequena multidão com o foco completo em mim. — Juntos vamos acabar com essa guerra. Eu
luto ao lado de vocês. Luto por vocês.
Com a mão no peito, eu me curvei para eles.

— Belas palavras.
Virei-me para encontrar Lirya caminhando em minha direção, os braços cruzados e a
coluna ereta. A visão de uma guerreira que não baixaria a cabeça.
Eu havia passado a última hora conversando com os Protetores, ignorando Ravenna e
perguntando para as crianças como elas se sentiam por estar no Outro Lado e como eu poderia
ajudar. Até aquele momento, quando consegui me esgueirar pelas ruelas e alcançar a caverna em
que eu e Nathan havíamos treinado e onde instruí Serena a esconder as crianças durante o ataque.
Parei com as mãos na pedra, tentada a apenas entrar na caverna e fingir que eu não havia
escutado Lirya se aproximar. Entretanto, isso seria intensificar uma animosidade entre nós que
não queria que existisse.
Que o Destino me dê forças.
— Bom ver você de novo, Lirya.
— Eu quem o diga. — Ela me estudou. — Passamos um bom tempo pensando que você
estava morta.
Balancei a cabeça.
— Foi o que ouvi dizer. — Bati o indicador contra a têmpora. — Fiquei sem memórias por
um tempo.
Ela disfarçou o sorriso.
— Desculpa, mas é engraçado como essa é sempre a solução das pessoas que querem te
controlar. — Então apontou para minha mão, onde a luz tentava se esgueirar em busca da
liberdade. — Esse é o famoso poder da Fidly?
Assenti.
— Achou engraçado também?
Lirya não sorriu.
— Não é exatamente a palavra que eu usaria.
— Certo.
Fiz menção de me virar de novo e voltar para o que estava fazendo antes, mas ela me
parou.
— É verdade o que andam dizendo sobre Nathan? — questionou. Eu a encarei, a
sobrancelha arqueada. — Sobre ele ter desertado.
A essa altura do campeonato não fazia sentido mentir. Ainda assim, eu sentia a urgência de
defender Nathan.
— Ele não teve escolha. — Seu olhar pareceu entristecer com a confirmação. — Nós
estamos procurando uma forma de quebrar o juramento.
Lirya suspirou.
— Nathan não teria desertado por escolha própria, sei disso — disse. — Sinto muito. Diga
isso a ele.
Trinquei os dentes, o ciúme irracional fazendo meu sangue queimar e a angústia querendo
me fazer confessar em um grito. A culpa é minha. A culpa é minha.
Engoli as emoções e apenas assenti.
Desisti de entrar na caverna e dei meia-volta. Eu havia feito o possível para evitar a praça
onde tudo aconteceu, mas aquele lugar inteiro parecia pesado, como se prendesse pedras aos
meus pés e então me jogasse nas profundezas do Lago. E eu precisava respirar.
Passei por Lirya, mas ouvi quando inspirou fundo e então soltou o ar.
— Eu fui muito idiota com você — falou, me fazendo parar. — Eu estava com ciúmes, ok?
E sinto muito por isso, eu devia ter agido com mais maturidade.
Virei-me, encarando seus olhos esverdeados que pareciam relutantes. Ao lado de seu
corpo, seus punhos estavam cerrados e eu sabia que ela estava se esforçando muito para falar
tudo isso.
— Por anos eu ouvi Nathan falar sobre você. Como essa amiga dele era tão incrível,
inteligente, forte e voltaria para o Lago em breve — disse. — Por anos eu desejei que você nunca
voltasse e que ele nunca mais te visse. Eu gostava dele, ok? Não queria nenhuma competição,
porque a memória que ele tinha de você já era o suficiente para impedi-lo de me enxergar. Ele
não falava com ninguém sobre você, mas falava comigo porque eu perguntava, acho que porque
eu precisava de um motivo para ele não me querer. — O desabafo caiu entre nós como um
segredo íntimo. — E então você apareceu no Lago quando ele havia acabado de receber a
tatuagem e de repente ele te viu mais do que como uma amiga e eu odiei vê-lo perceber que
estava apaixonado por você. E mais tarde, quando ele voltou para o Outro Lado como se você
nunca tivesse existido, eu sabia que havia algo errado, mas não me importava.
— Você sabia das memórias — deduzi.
Ela deu de ombros.
— Depois de um tempo eu cheguei à conclusão de que deviam ter feito algo, e era suspeito
que Cassandra tivesse estado no Outro Lado justo quando Nathan parou de falar sobre você —
contou. — E eu me aproveitei do fato de que, pela primeira vez, ele parecia livre. E sinto muito
que, quando você apareceu aqui eu não falei nada sobre isso. Parte de mim queria ver se eu teria
alguma chance com ele.
— Você teve.
Ela soltou uma risada fraca.
— Não, não tive. Mesmo sem memória, Nathan nunca quis ninguém de verdade. Eu
consegui levá-lo pra minha cama, sim. Mas e aí? Tudo o que tive foi uma noite e você teve tudo.
— Lirya desviou os olhos dos meus. — Ele não conseguia dar seu coração, porque já pertencia a
você.
Por mais triste que ela parecesse, a confissão aqueceu o lado possessivo em mim. Aquele
que às vezes pensava em tudo o que Nathan havia vivido enquanto eu estava longe, tudo aquilo
que eu havia perdido.
Mas eu me simpatizava com sua dor, porque eu não conseguia me imaginar sem Nathan ao
meu lado. Ele era o tipo de pessoa que fazia falta. O tipo de pessoa que você rezava à noite para
encontrar, e então nunca perder.
A memória piscou em minha mente como um pedaço de cena que finalmente se encaixava
nos eixos.
— Naquele dia que encontrei vocês... Você estava contando a ele.
Ela assentiu.
— Nathan começou a se lembrar e me questionou o que eu sabia, então contei tudo. Depois
ele sumiu de novo.
No dia em que fui atrás dele na dimensão original e brigamos, quando ele disse que não
conseguia ficar ao meu lado. Era porque já estava se lembrando de tudo e havia ficado
aterrorizado com a possibilidade de que estar comigo me colocaria em perigo. A memória
parecia fresca, tudo o que aconteceu naquele dia, e depois, quando Nathan me contou a verdade.
Eu me lembrava. Me lembrava de pensar que eles haviam passado a noite juntos.
Obrigada pela verdade. Meu coração agradece.
Lirya pigarreou.
— Prometo não permitir que meus sentimentos mesquinhos se coloquem à frente da minha
missão, Alyssa — ela disse, me estendendo a mão. — Juro com sangue e fogo que lutarei ao seu
lado nessa guerra e vamos destruir aquele desgraçado italiano.
Eu sorri e peguei sua mão.
— Nós vamos.
Ela assentiu, colocando a mão sobre o peito em seguida. Com uma leve reverência, ela se
afastou. Prestes a me deixar sozinha, ela parou e disse, baixinho:
— Sinto muito pelo seu pai, Alyssa. — Sua voz estava diferente. — Perder um pai nunca é
fácil.
Então ela foi embora. E foi assim que eu soube que Lirya também era órfã.

Eu cheguei ao centro do Outro Lado um pouco depois de Lirya. Procurei minha mãe ou
meus amigos, mas não encontrei nenhum de imediato. Então os sussurros chegaram até mim:
“No que ela está pensando indo pra cama com um Desertor?”
“Ela não pode continuar com Nathan ou vai comprometer tudo pelo que lutamos”.
“Eu sempre soube que aquele garoto seria problema um dia”.
E pelo que eu lutei? Como se esse desertor em questão não tivesse lutado ao lado deles
poucos meses atrás e, mais ainda, ajudado a me tirar do palácio de Vicenzo. Como eles ousavam
agir assim quando Nathan estava aqui no ataque, lutando por este lugar, lutando por mim e sendo
o Protetor que a maioria deles mantinha distância porque escutavam apenas o que Ravenna tinha
a dizer?
E claro, no meio do murmurinho, estava ela, abrindo um sorriso ao me ver encarando-os.
Os demais também me viram e cessaram a conversa rapidamente. Luz irradiava do meu corpo
inteiro, ameaçadora.
— Controle-se, menina — Jasper pediu, aparecendo ao meu lado.
— Eles não sabem do que estão falando.
O Protetor assentiu. Eu sabia que ouvir aquelas coisas também o machucava. Jasper tinha
um carinho de filho por Nathan e eu o amava por isso. Porque mesmo que Brian não o fizesse,
Jasper estaria do seu lado agora.
Mas eu era incapaz de ficar ali e escutar todos aqueles ataques sem me pronunciar, sem
rebater.
— Vou voltar para o Lago — falei para ele. — Me avise se precisar de mim.
CAPÍTULO 49

Senti que podia ir para qualquer lugar, menos para casa. Eu não conseguia me fazer entrar
nela.
Sempre que eu tentava dar o passo à frente, meu corpo travava e se recusava a ir. Se
recusava a encarar a verdade.
Meu pai não está aqui.
Meu pai nunca mais vai estar aqui.
Engoli em seco. O nó em minha garganta era enorme e parecia queimar enquanto eu
tentava conter as lágrimas. Eu nunca me despedi. Ele foi tirado de mim e, então, eu fui tirada de
mim mesma. E todos os dias desde que recuperei minhas memórias eu me perguntava se ele
ainda estaria morto se eu tivesse me rendido antes. Eu poderia ter impedido? Poderia tê-lo
mantido seguro?
Você é esperança, pequena pássara.
Não, pai. Eu sou destruição.
— Alyssa. — A mão em meu ombro fez com que uma lágrima escorresse. — Quer se
despedir dele, filha?
Ao encarar minha mãe, toda a força que eu tinha para conter as lágrimas foi por água
abaixo quando vi as dela molhando seu rosto. Sem conseguir falar, eu apenas assenti. Ela pegou
minha mão e começou a me guiar.
— Lembra quando você era apenas uma criança e queria procurar pelos pássaros? —
indagou. — Você queria encontrar aqueles azuis que de vez enquanto voavam sobre o Lago.
Então você e seu pai começaram a buscar seus ninhos.
Eu me lembrava. Passávamos horas caminhando pela floresta em busca dos ninhos. Até
que o encontramos em uma árvore alta e centenária, galhos ramificados extensos que tocavam
outras árvores. Em um dos galhos mais altos estava o saí-bicudo, um lindo pássaro azul de
barriga branca e alaranjada. Quando o encontramos, os olhos do meu pai brilharam e ele colocou
o indicador sobre os lábios para que eu não fizesse muito barulho. Eu mal podia conter minha
animação e estendi meus braços para que ele me erguesse e pudesse ver melhor. Meu pai me
pegou e me colocou sobre um galho próximo ao ninho e, pela primeira vez, eu vi um saí-bicudo
de pertinho.
Eles têm filhotinhos, papai.
O sorriso do meu pai era fresco em minha memória.
A vida não é extraordinária, Alyssa?
Porque para ele era sempre assim. Não havia tristeza no mundo capaz de cegá-lo para as
coisas belas. Nada que uma xícara de chá não pudesse resolver.
— Eu o enterrei sob aquela árvore — minha mãe disse, as palavras parecendo ácidas em
sua boca. — Pensei... Pensei que ele gostaria de descansar em um lugar como aquele.
Minha mãe nos guiou pela costa do Lago até que essa ficasse emparedada por uma linha de
árvores espessas. Nós adentramos a floresta, meu coração se recusando a assimilar o que viria
em seguida. Eu mal percebi quando chegamos ao local. A bela árvore continuava a mesma, mas
agora raios de sol adentravam pelo topo da folhagem e banhavam a terra. Uma terra marcada por
um túmulo.
Não.
— Vou deixar você se despedir — ela falou, se afastando como se não pudesse suportar
estar ali.
Meus joelhos bateram contra a terra úmida. Havia uma corrente de água fina que passava
ali perto, saindo de uma nascente próxima. Sobre a terra levemente desnivelada, estava uma larga
pedra que estampava o nome do meu pai. A lápide dizia:
Henry Monroe.
Amado marido e pai.
Nos encontraremos nas próximas vidas, pois nossas almas estão entrelaçadas.
Dor cortou meu peito, resultando em um soluço quebrado. As lágrimas desciam
livremente, sem se importar com o que eu queria, focadas demais em aliviar a angústia. Eu não
tinha ideia de como fazer isso. Como poderia me despedir da pessoa que me criou? Que segurou
minha mão quando eu temia cair. Que sempre me oferecia uma xícara de chá ao me acordar de
um pesadelo? O homem que me mostrou que o amor existia e que qualquer coisa menos que isso
era inaceitável.
E que o mundo era bom. Podia ser bom. Devia ser bom.
Só é possível ver beleza se estiver com os olhos abertos, filha. Só se querermos ver.
Mas meus olhos estavam abertos e tudo o que enxergava era seu túmulo.
— Eu não sei como lidar com o fato de que nunca mais verei você — sussurrei, o vento
carregando minhas palavras embora. — Não faz sentido, pai. Nunca em toda a minha vida eu me
preparei para perder você. Devia ter sido eu. Mamãe ainda precisa de você. O mundo precisa de
você.
Vento soprou meu rosto, jogou meu cabelo para trás e eu inspirei fundo. Eu queria poder
fechar os olhos e vê-lo ali. Queria que ele pudesse aparecer para mim como Diana havia
conseguido. Mas eu fechei e abri meus olhos e o lugar continuou vazio.
— Passei um tempo sem me lembrar de você e do que aconteceu naquele dia, mas eu
estava vazia. Não me lembrava nem de mim mesma. Eu... — Minha voz falhou e eu precisei
recomeçar: — Eu fiz coisas terríveis, pai. Matei pessoas inocentes, me tornei a arma do meu
próprio inimigo e fui... terrível. Mas, pai, eu juro que não queria. Eu não era eu.
Vento soprou mais forte.
Eu entendo — em minha mente ele falava. — Eu sei que minha menina não faria aquelas
coisas.
Minha mente criava as palavras que eu gostaria de ouvir, mas eu as aceitava de bom grado.
— Minha marca se tornou um tipo de tatuagem agora. — Estiquei meu braço. — Grande
demais, eu sei. Não estou certa se gosto dela, mas estou me acostumando. Às vezes olho para a
pele marcada e tudo o que vejo é o Destino me dizendo que o tempo está acabando, que preciso
agir logo. E parece... Parece mais que uma tatuagem, não é? — Revirei os olhos. — Tenho
certeza de que ele a fez grande desse jeito só para me perturbar, porque não fui exatamente legal
com ele. Mas olha, é tão ruim que eu não queira simplesmente me sacrificar? Minha mãe não
aguentaria mais essa perda, você deve ter visto como ela esteve nos últimos meses. E Nate... —
Encarei os resquícios de céu acima. — É fisicamente doloroso pensar em deixá-lo, pai. Dói de
verdade.
Em algum lugar, um pássaro cantou e todo meu corpo se arrepiou. Meu pai amava ouvi-los
cantar mais do que apreciava vê-los voar.
Fechei os olhos e me lembrei de quando ele costumava me encontrar na soleira de casa,
olhando para o céu sobre as águas do Lago, tentando pular em direção àquela imensidão azul.
Como ele me pegava e jogava para cima e dizia: Voe, pequena pássara. O mundo é seu.
— Eu quero lutar, pai. — Olhando para o topo das árvores, em busca do pássaro que ainda
cantava, desejei que Henry Monroe, onde quer que estivesse, pudesse me ouvir. — Quero honrar
você e não me render. Você disse para eu ser esperta, lembra? Para eu lutar como a guerreira que
eu era e não me render. Estou tentando, pai. Juro que estou. — Mordi o lábio, tentando me
explicar, mas eu não conseguia juntar as palavras certas. — Às vezes só é difícil não pensar em o
quão mais fácil seria se eu apenas desistisse. Porque eu não consigo voar, pai. Não consigo. —
Engoli o nó em minha garganta e forcei a confissão para fora: — Estou pesada. Minha alma está
pesada. Meus pés parecem presos à terra e não importa o quanto eu tente, não posso voar.
Tento ajeitar uma flor sobre o túmulo, mas minhas mãos tremem. Não era capaz de me
aproximar mais do que aquilo. Era antinatural. Meu corpo e meu coração não aceitavam, porque
meu pai não estava ali de verdade. Não, para onde quer que sua alma tenha ido, ela não estava
em um buraco escuro.
Olhei para cima. Se havia um lugar ali em que ele poderia estar, seria nas árvores.
Eu não sei o que ser sem você ao meu lado, pai.
Não tinha ideia.
E eu queria pensar que não era fraca porque sentia tanto, mas na maioria das vezes estava
ocupada demais me lembrando que não podia desmoronar para simplesmente aceitar a dor. E
esse luto... era tudo o que tinha, mas não queria que fosse. Queria lembrar do seu sorriso, da sua
voz e do seu olhar carinhoso. Queria poder tomar uma xícara de chá e não pensar em me afogar
nela. Queria conseguir aceitar a morte como apenas uma etapa e queria acreditar que iria voltar a
vê-lo. Mas a dor ensurdecia todo o resto.
— Estou presa ao chão e estou exausta. Mas estou lutando e não vou me render —
prometi, e agora mais um pássaro começou a cantar. — Por você, pai. Porque me ensinou que a
força nos encontra quando mais precisamos dela.
Foi nesse momento em que encontrei o saí-bicudo junto a um filhote no topo da árvore
centenária, no mesmo ninho que eu costumava observar. Então outro cantou e me virei para
encontrá-lo do lado oposto. E depois mais um atrás de mim. E outro na árvore mais baixa. E
outro e outro e outro.
Um bando inteiro desses pássaros cantavam ao meu redor.
Sem perceber, sem nem mesmo procurar direito, aquele sentimento maciço, caloroso...
sereno, preencheu meu peito e quando inspirei fundo, foi como respirar pela primeira vez depois
de um mergulho.
Esperança.
Porque não importava como, naquele momento, quando um pequeno pássaro azul pousou à
minha frente, sobre o túmulo do meu pai, eu soube que, de alguma forma, Henry Monroe havia
me escutado. De alguma forma, meu pai havia vindo até mim.
Eu sorri em meio às lágrimas, o peito encontrando o alívio que não esperava.
Esperança, pequena pássara. É assim que eles voam. A cada viagem nos céus, esperam
por algo melhor.
O pássaro cantou e então voou. Junto dele, os outros alçaram voo e eu fiquei ali, no chão,
observando o espetáculo com a mão no coração.
Eu vou lutar, pai. Prometo a você.
Parte III, Luz e Escuridão
CAPÍTULO 50

Eu acordei com a cama afundando e o corpo de Alyssa se aproximando do meu. Já devia


ser mais de duas da manhã. Seu peito pressionou minhas costas, suas pernas enlaçando as minhas
e seus braços me envolvendo. Sua respiração roçou meu pescoço e eu precisei fechar os olhos
para raciocinar. Inspirei fundo, seu cheiro inundando meus pulmões e me tornando
completamente incapaz de simplesmente me levantar. Eu viveria naquele abraço pelo resto dos
meus dias. E viveria bem.
O suspiro que saiu de seus lábios quando se ajeitou no travesseiro, ainda grudada em mim,
fez com que todo meu corpo respondesse à sua proximidade. Porra, ela nem precisava tentar.
— Vou dormir no outro quarto, amor — sussurrei, mas ela não pareceu ouvir.
Eu não podia arriscar dormir com ela tão perto. Se Vicenzo tomasse o controle não dava
para ter certeza de que eu não a machucaria. Mas, por tudo que era mais sagrado, não havia uma
única célula em mim que parecia capaz de se mexer. De se afastar.
— Amor — chamei de novo, mas quando toquei sua mão, foi para enlaçar nossos dedos
—, não é seguro.
Aly se mexeu levemente, e me prendeu mais contra seu corpo.
— Você está bem — ela resmungou. — Nada vai acontecer.
Virei meu rosto, conseguindo roçar meus lábios em sua têmpora.
— Nós não sabemos disso.
Apesar da escuridão, a luz da lua que entrava pela janela me permitia enxergar seus traços,
os olhos inchados e a pele mais pálida. Eu sabia que visitar o túmulo de Henry a deixaria
deprimida, mas Jasmine disse que era algo que ela precisava fazer sozinha, então eu lhe dei
espaço. Porém, havia mais. Sua pele nunca era tão pálida e as maçãs de seu rosto nunca eram tão
proeminentes. Era quase como se, desde que fez dezoito anos, ela estivesse sendo drenada. Como
se o poder e o luto se alimentassem pouco a pouco dela.
— Por favor, Nate — sussurrou, os lábios roçando meu queixo. — Sinto falta de dormir
com você. É quando eu durmo melhor. Prometo que consigo me proteger se algo acontecer.
Maldita fosse a marca em meu peito.
Aquele desgraçado iria pagar por isso.
Aly passou os braços pelo meu peito e deixou um beijo casto em minha nuca.
Se eu não morrer antes.
— Aly...
— Por favor, Nate — pediu de novo, a voz mais sonolenta. — Por favor, só fica.
E como eu poderia dizer não? Como eu poderia deixá-la quando parecia estar sofrendo?
Não era isso que eu havia prometido a ela no que parecia uma vida atrás? Ficar? Nunca fugir.
E quem sabe, talvez, ficar a ajudasse a se remendar.
Então eu não me movi. Não ousei fechar os olhos até que sua respiração estivesse regular,
o sono tranquilo. Olhei para o relógio. Quatro e meia da manhã. Seus braços estavam frouxos ao
meu lado, sua perna já esticada sobre o colchão. Só então me levantei. Devagar, com delicadeza
para não a acordar. Fui para o outro quarto dormir mais um pouco, deixando Zeus nos pés da
cama onde Alyssa dormia. Ele a manteria protegida dos pesadelos, mesmo que estivesse
roncando em seu sono profundo agora.

Acordei subitamente, com o céu ainda escuro e três vultos na ponta da cama. Minha mão
alcançou a adaga tão rápido quanto um piscar de olhos, mas algo bateu contra a minha cabeça
com força o suficiente para que meu movimento se estancasse. Enquanto a inconsciência me
tomava, tudo o que consegui pensar foi se Alyssa ainda estava segura no quarto ao fim do
corredor.

Meus olhos se abriram para o breu da noite, sentado em uma cadeira dura e mãos e pés
amarrados. Cordas. Porra, que idiotas, cordas não iam me segurar. No entanto, eu me mantive
quieto, tentando descobrir o máximo de informações possíveis antes de dar o fora dali. Primeiro,
onde eu estava? Olhei ao redor e as paredes frias pareciam me recepcionar. Não era o breu da
noite que deixava tudo escuro. Era simplesmente porque estávamos no subsolo.
Ah, filha da puta.
A segunda pergunta, quem havia me nocauteado e prendido? Bem, eu tinha uma aposta
segura.
— Sai da porra do seu esconderijo e vem aqui me encarar — chamei.
Uma risadinha preencheu o espaço, e eu a reconhecia. Havia escutado essa risadinha
diversas vezes enquanto fazia meu treinamento aqui. Parte de mim pensava que Ravenna poderia
ser sádica. Ela me tirava dos treinos, me trazia aqui para baixo e testava todas as formas pelas
quais eu poderia ser diferente, ou mais forte, ou mais habilidoso. Ela nunca estava satisfeita com
o fato de eu me sobressair dos demais. Não podia ser porque eu me matava de treinar todo santo
dia. Não podia ser porque havia crescido com guerreiros extremamente eficientes me ensinando
a lutar. Precisava ser por causa da minha linhagem. Precisava ser porque minha mãe era uma
Fidly.
Dois Protetores saíram da escuridão, se aproximando. Luz acendeu e queimou meus olhos
até que se acostumassem com a claridade. Então, Ravenna surgiu de um canto, se aproximando
com um olhar entretido.
— Boa noite, Nathan.
Eu odiava sua voz. Odiava seu rosto. Eu a teria matado antes se isso não me fizesse um
traidor, mas agora... Agora eu era um traidor de qualquer forma.
— Que porra você está fazendo?
Ela deu de ombros.
— O que sempre fazemos. Se encontramos um Desertor, nós o prendemos. Talvez o
usamos para alguma informação, mas sempre terminamos matando-o — disse. — Já se esqueceu
como nosso trabalho funciona, querido?
Desprezo transbordava do meu olhar e minhas palavras saíram ácidas:
— Você tem ordens.
— Da sua querida namoradinha? Por favor! Ela é uma criança. Vocês dois são. Não sigo
ordens de crianças.
— Ela é a Fidly. Nessa hierarquia que você tanto defende, ela está acima de todos —
retruquei. — Mas se quer algum motivo maior, lembre-se de que Cassandra permitiu que eu
ficasse no Lago. Ela é uma Guardiã e tem mais de mil anos. Velha o bastante para você?
— Quando tomam decisões insensatas, preciso interferir — murmurou. — Vamos ser
sinceros aqui, que tal? Nós dois sabemos que fora Alyssa, ninguém sentirá sua falta. Nem mesmo
seu pai, que pelo que ouvi falar não está contente com sua decisão.
Não havia como negar aquele fato. Brian nem me olhava nos olhos desde que descobriu
que eu havia desertado. Confesso que eu já esperava por isso, mas o fato de ele nem tentar apoiar
eu e Lore a buscar uma forma de quebrar o juramento ainda me incomodava. Talvez eu tivesse
um pouco mais de esperança nele que isso. Não que eu devesse.
Eu ainda me perguntava se, quando bloqueou a lâmina do Desertor em Moçambique, ele
sabia que o alvo era eu.
Ok. Foda-se.
Girei meus pulsos e os calcanhares e forcei para arrebentar as cordas. Algo se prendeu em
minha nuca, olhei para trás e encontrei um Protetor segurando um objeto que eu já conhecia.
Tentei soltar os pulsos antes que ele apertasse o dispositivo, mas antes que eu pudesse exercer
força o suficiente, o imbecil apertou o botão acoplado e uma descarga elétrica percorreu meu
corpo. Trinquei os dentes, esperando a descarga passar, mas ela percorria minhas veias de novo e
de novo e de novo, até que um grunhido deixou meus lábios.
— Você... — inspirei, cerrando o punho — nunca... muda o... repertório.
— Por que eu mudaria se são efetivos?
Quanto mais descargas percorriam meu corpo, mais meus olhos ficavam pesados e minha
cabeça enevoada.
— Me conte o que aconteceu em Florença — ela exigiu. — O que Vicenzo te ofereceu?
"Me deixe entrar."
A voz em minha cabeça me assustou mais que as amarras e a eletricidade atacando meu
corpo. Eu sempre o sentia, mas nunca o havia escutado. Balancei a cabeça, tentando afastar o
desgraçado da minha mente. Saia. — eu queria gritar. — Dê o fora da minha cabeça, Vicenzo!
— Fale, Nathan! — Ravenna gritou. — O que Vicenzo te ofereceu para desertar?
Eu não conseguia distinguir o que era choque e o que era Vicenzo tentando me controlar.
De qualquer forma, meu corpo repelia.
— Ele não me prometeu nada, sua idiota — rosnei. — Ele ameaçou matar Alyssa.
Ela riu, e um dos Protetores me observou com um olhar estranho no rosto. Eu conhecia
todos eles. Eram todos do círculo íntimo de Ravenna, mas dois deles haviam me visto crescer e a
outra havia praticamente crescido comigo. Ainda assim, eu era o inimigo, não importava há
quanto tempo viveram ao meu lado.
"Vamos brincar, garoto. Vamos."
Minha mão direita rasgou a corda com um movimento. Um movimento que eu não havia
ordenado. Atrás de mim, o Protetor pressionou o dispositivo mais vezes, correntes elétricas me
atacando e deixando minhas pernas dormentes, mas mesmo assim, Vicenzo forçou meu corpo a
reagir, como se eu fosse uma marionete e as cordas de controle estivessem em suas mãos. Meus
dedos agarraram a ponta que perfurava minha nuca e, com um puxão, arranquei o dispositivo da
minha pele e o lancei para longe do alcance dos meus captores.
Ele iria matá-los. Vicenzo me faria matá-los.
Soltei meu outro pulso, enquanto os Protetores avançavam. Então, o que estava atrás de
mim se aproximou, desviei do soco que lançou, e quebrei a cadeira, libertei meus pés e quebrei
um pedaço da madeira na cabeça do Protetor, que imediatamente caiu duro no chão. Mas não
morto. Porra, eu esperava que não.
— Saiam — eu consegui dizer. — Vicenzo vai me fazer matá-los.
Ravenna escutou as palavras saírem da minha boca com dificuldade, seu olhar
demonstrando preocupação. Porém, ela não recuou. Com um estalo de dedos, os outros dois
Protetores avançaram e mais cinco vieram correndo escada abaixo.
Filha da puta idiota!
Manter a consciência era quase impossível. Eu já começava a enxergar embaçado, e não
era capaz de reconhecer os movimentos que fazia. Eu não estava no comando. Assim como das
outras vezes em que Vicenzo conseguia me obrigar a agir de determinada forma, agora eu me
movia de acordo com sua vontade. Mas diferente de quando ataquei Alyssa, eu ainda podia
pensar. Minha mente era minha.
Pelo menos por enquanto.
A luta passava como um borrão e eu mal assimilava aqueles que me atacavam. Sentia
alguns golpes e, um deles, conseguiu me colocar de joelhos. Mas meu corpo era um hóspede
persistente para o ataque de Vicenzo. Eu não parei no chão. Bati contra cada um deles como se
fosse um touro enjaulado e tudo o que eu conseguia assimilar era o quão não humano eu devia
parecer agora.
Se Vicenzo conseguisse matar algum deles, então os Protetores nunca me aceitariam. Isso
daria apenas mais munição para Ravenna criar uma narrativa na qual todo e qualquer Desertor
seria sempre o inimigo, mesmo se não quisesse. E era exatamente isso que Vicenzo queria.
Quanto mais ódio entre Protetores e Desertores, menos opções haveria para ambos. Protetores
seriam sempre os mesmos, lutando contra o mesmo mal. E Desertores nunca enxergariam a
possibilidade de voltar atrás, desfazer o erro, e se alinhar a algo diferente.
Se Vicenzo me fizesse matar qualquer um desses Protetores, ele incitava o fim de uma
brecha que ainda nem existia.
Se depender de mim, seu bastardo, seu plano não vai pra frente.
Então, mesmo que matar Ravenna fosse mais que tentador, ao invés de lutar contra os
Protetores, precisei lutar contra mim mesmo. Forcei meus pés no chão quando meu corpo tentava
deferir um chute. Desviei diretamente na direção de socos que poderiam me deixar mais fraco.
Lhes ganhei tempo para que finalmente se organizassem e me rodeassem.
Então todos estavam sobre mim. Caí no chão e recebi chutes e socos, mas o pior era o peso
sobre meu corpo. Eu mal era capaz de respirar. Mal conseguia erguer meu rosto o suficiente para
inspirar. Eu estava sufocando.
E enquanto a inconsciência me levava para longe, eu ouvia um tum, tum... tum, tum...
Podia jurar que era o coração de Alyssa batendo.
CAPÍTULO 51

Tudo o que eu via era azul. O Lago azul brilhando, o céu azul claro cheio de pássaros e
olhos azuis me encarando.
Eu não a via há um bom tempo, desde o ataque ao Outro Lado. Naquele dia, pensei que
nunca mais a veria, que o Destino teria encontrado uma forma de banir seus aparecimentos,
interromper sua comunicação. Mas não. A mulher estava ali, desafiando o deus da fortuna.
Em meu sonho, Diana sorriu.
— É bom vê-la de novo, Alyssa.
Suas palavras me atingiram como um tapa. Agora eu era aquilo que ela nunca teve a
chance de ser: a Fidly com poderes. Eu permanecia viva e seria, para sempre, mais velha que ela.
Mesmo assim, seu olhar não demonstrou nada que não fosse gratidão e eu nem sabia pelo quê.
Diana havia perdido a chance de ver o filho crescer, de viver seu amor e de simplesmente viver.
Mas, mesmo no que deveria ser sua eternidade de paz, ela continuava lutando.
Mal percebi o que estava fazendo antes de abraçá-la. Imaginei que, no sonho, isso seria
possível mesmo que não tivesse sido quando a encontrava como um fantasma, na vida real. E,
por muito tempo, eu quis tocá-la.
Os braços de Diana envolveram meu corpo e ela pareceu surpresa, mas me abraçou
apertado de volta.
— Você tem sido muito guerreira, Alyssa — ela sussurrou.
E era como estar de novo na presença de alguém que entendia. Entendia de verdade. O
peso de ser a escolhida, o desespero de ser caçada, o medo do que o futuro guardava... Diana
entendia tudo. Havia vivido isso.
— Me desculpe.
Ela me olhou, limpando uma lágrima que escorreu pelos meus olhos.
— Pelo quê, querida?
— Você pediu que eu cuidasse dele, que o mantivesse longe de Vicenzo. — Eu balancei a
cabeça, vergonha me fazendo desviar o olhar do dela. — Eu não consegui proteger o Nathan e
agora ele é um Desertor e eu não sei quando vamos conseguir resolver isso. E eu sinto muito,
Diana. Nunca quis machucar seu filho.
Quando ela me olhava daquela forma, eu sabia que ela não era a garota de dezesseis anos
mais. Como se, mesmo na morte, ela tivesse crescido e amadurecido. Seu rosto podia ser o de
uma garota jovem, mas sua alma havia evoluído, envelhecido.
Diana passava aquela aura de mãe. Como se tivesse nascido para ser uma.
— Minha querida, você está cumprindo sua promessa — falou. — Se sacrificou pelo meu
filho na noite do ataque para que Vicenzo não o machucasse. Lutou contra a própria mente para
entender quem ele era quando não conseguia se lembrar. E o ama, Alyssa. Você o ama da forma
como eu sempre sonhei que meu filho fosse amado um dia. Os outros problemas iremos
resolvendo aos poucos.
— Eu amo — afirmei.
— Eu sei. Por isso mantive o olho em você. Sabia que seu Destino estaria entrelaçado com
o do meu filho. — Ela me deu um sorriso brilhante que se desvaneceu. — E eu sinto muito pelo
que aconteceu com seu pai, Alyssa. Eu devia ter descoberto o plano daquela mulher antes.
A dor atravessou meu peito como uma faca afiada. Eu havia me despedido ontem, tentando
deixá-lo descansar em paz, mas viver em um mundo onde meu pai não existia era como viver em
um espaço sem oxigênio. E a saudade pesava meu peito.
Engoli em seco, o nó em minha garganta aumentando.
— Ele lutou por mim. Não só aquele dia, mas a vida toda.
Diana assentiu.
— É o que um bom pai faz. — E quando disse isso, eu podia ver um indício de tristeza
talvez regada de amargura, e imediatamente eu soube em quem ela pensou.
— Você nunca me perguntou sobre Brian.
Suas mãos me soltaram e ela se afastou, desviando o olhar.
— Não preciso perguntar sobre ele — disse. — O elo continua firme mesmo na morte,
Alyssa. Tudo o que ele sente é um vácuo vindo do elo, porque não estou no mesmo plano que
ele, mas eu sinto tudo. E não teve um dia desde que parti que deixei de procurar por ele. —
Quando me olhou, os olhos azuis estavam marejados. — Acho que nunca imaginei o que o luto
faria com ele.
— Acho que ele tenta sobreviver à dor da melhor forma que pode.
Nem sabia por que tentei defendê-lo. Eu mesma queria socar seu rosto bonito por virar as
costas para Nathan. Mas algo em mim parecia querer trazer um pouco de sossego para Diana.
— Por muito tempo ele fugiu do Nathan — continuou. — Quando você foi levada por
Vicenzo, eu tentava me comunicar, tentava fazer qualquer coisa, mas simplesmente não
conseguia. O Destino havia drenado minhas forças para que eu parasse de interferir. Mas
enquanto Nathan sofria sua perda, Brian esteve presente. Depois de anos se afastando, ele
finalmente encontrou algo em comum com o nosso menino. Só que Nathan precisou desertar e
tudo desandou novamente.
— Eu tentei falar com ele, Diana.
— Eu sei — confirmou —, mas Brian sempre foi meio cego, duro demais com o mundo.
Você sabe como criam os Protetores e Brian perdeu os pais tão novo que viveu enclausurado no
Outro Lado, vivendo pela guerra, sendo criado por ela. Mas não posso ficar parada observando
enquanto eles se distanciam mais e mais. Não é pra ser assim. Nunca quis que fosse assim.
— Lore está tentando buscar uma forma de quebrar o juramento agora mesmo. Vamos
encontrar algo.
Tínhamos que encontrar algo.
Diana balançou a cabeça, em afirmativa.
— É por isso que estou aqui. Quero ajudá-los. Não consegui recuperar força o suficiente
para te buscar fora do sonho, mas ouvi algumas conversas...
— Conversas? De quem?
Mais importante, onde? Diana não podia encontrar paz? Estava sempre fadada a viver no
limbo? E como era?
— Onde estou tenho acesso direto ao Destino e algumas outras Fidlys. A maioria são
crianças, mas são crianças espertas. — Seu olhar era cúmplice. — Francesca, a primeira Fidly,
disse que uma vez escutou que “a chave pro Tesouro será a Fidly”. Foi tudo o que ela escutou,
mas seja lá o que o Destino guardou naquele Lago, você é a chave para encontrá-lo.
— Como eu seria a chave? — perguntei, confusa. — Cassandra disse que somente o
Destino poderia pegá-lo.
— Não tenho ideia, querida. Estou tentando descobrir algo, mas o Destino tem estado mais
recluso e com bem menos paciência. — Ela revirou os olhos e, nesse momento, eu vi a garota de
dezesseis anos vindo à tona. — Você pode ver se as Guardiãs têm alguma noção do que isso
pode dizer.
Assenti.
— E sobre a condição de Nathan — continuou —, Freya tem um livro em sua biblioteca
pessoal. Este livro conta a história de uma mulher de outra dimensão. O nome dela é Hilina. Peça
que Freya o entregue e, se ela não puder, roube o livro.
— Por que ela não poderia simplesmente entregá-lo?
— Porque pode significar que ela esteja interferindo na balança. As Guardiãs não deveriam
interferir. — Ela deu de ombros. — O Destino não permitiria.
— O desgraçado gosta de complicar as coisas — resmunguei.
Quando a encarei, havia raiva mal velada expressa em seu rosto.
— Você nem imagina — disse, encarando o Lago.
Ah, eu podia imaginar.
Mas ali, dentro daquele sonho, um pensamento me atingiu forçando uma centelha de
esperança aquecer meu peito.
— Diana... — chamei, e ela se virou para me encarar. — Acha que meu pai poderia tentar
se comunicar comigo dessa forma também?
A incerteza em seu olhar foi resposta o suficiente.
— Onde eu estou, nunca o encontrei. Não acho que todos ficam nesse limbo como eu e
outras Fidlys. Desconfio que consigo me comunicar com você por sermos versões diferentes da
mesma criação do Destino. Mas eu nunca consegui me comunicar com Nathan ou Brian, por
exemplo — disse. — Eu sinto muito, Alyssa, mas ele pode ter encontrado paz. Talvez isso seja
até melhor.
Ele poderia ter encontrado paz? Seria tão fácil depois de tudo o que aconteceu, de como
aconteceu? Enterrei a esperança no fundo do meu ser, a engoli como uma pílula amarga.
— Você não pode encontrar paz? — indaguei. Ela havia dito que apenas algumas Fidlys
estavam no limbo com ela. O que dizia que outras encontraram paz.
Seu sorriso era triste.
— Não, ainda não. — Ela tocou a pedra azul em minha pulseira. A pulseira que havia sido
dela. Abri a boca para me justificar, mas ela apenas balançou a cabeça. — Fico feliz que ele te
deu esta pulseira. Fico feliz que ainda vivo dentro dele.
— Você vive — afirmei. — Ele se lembra de você o tempo todo, Diana. E deseja que
tivessem tido mais tempo.
O sorriso cresceu, mas continuava triste.
— Eu também queria ter tido mais tempo com meu menino. Mas tempo é um privilégio
que nem sempre temos.
Ela tocou meu rosto, mais uma vez limpando lágrimas que eu nem havia percebido ter
derramado.
— Vou encontrar paz, quando Nathan e Brian encontrarem as deles — falou. — Quando
não precisarem mais de mim.
— Sempre precisarão de você.
Diana negou.
— Não. Sempre me amarão. Mas um dia irão aprender a viver sem precisar que eu esteja
aqui.
Será que um dia isso aconteceria comigo, e eu viveria sem precisar do meu pai?
Antes que meu pensamento pudesse ser vocalizado, seu rosto se fechou, e uma expressão
dura se colocou no lugar do sorriso triste.
— Alyssa...
— O quê? — Nervosismo afundava meu estômago.
— Precisa acordar — disse. — Estão levando Nathan.
O quê?
Suas mãos pegaram meus braços e me sacudiram.
— Acorde agora!

Acordei subitamente, o ar preso na garganta. O quarto estava escuro, mas não havia
barulho algum na casa e ao meu lado, o espaço estava vazio. Aos pés da cama, Zeus havia
acordado também e agora encarava a porta com atenção. Então ele soltou um latido e eu pulei
para ficar em pé. Corri porta afora, atravessando o corredor a passadas largas e rápidas.
Encontrei o quarto de hóspedes, a porta aberta e o interior vazio.
Desde que saímos de Florença, evitávamos usar o celular para que não nos rastreassem.
Porém, Nathan nunca deixava o dele para trás, caso precisasse usá-lo em uma emergência. E ali,
ao lado da cama, estava o celular desligado. Os lençóis estavam amarrotados, e o cobertor jogado
no chão.
Merda.
Corri de volta para o quarto e troquei de roupa com pressa, caminhando enquanto enfiava
as botas no pé.
— Eu volto em breve, Zeus — murmurei para o cachorro que me seguia, então fechei a
porta, mantendo-o do lado de dentro.
Corri pelo Lago, adentrando a trilha conhecida. Nenhum Desertor teria invadido o Lago
sem causar uma confusão, o que queria dizer que, quem quer que tivesse levado Nathan era um
Protetor. Eu até mesmo poderia apostar em um nome.
E se a filha da puta tivesse tocado em um fio sequer de cabelo dele, ela iria pagar.
Pulei na água assim que avistei o portal, e logo emergi do Outro Lado. Era bom estar
usando os couros novamente, porque quando disparei em corrida, eles se adaptavam
perfeitamente à velocidade. Cada sentinela que caminhava pelo Outro Lado me reconheceu e não
me deteve. Nem tive tempo de reconhecer suas presenças. Meu foco estava todo em não explodir
aquele lugar em luz. A raiva era ameaçadora dentro de mim e eu tinha certeza de que iria causar
um estrago se não a controlasse. E pior, sabia que se não a liberasse em breve, ela iria me
consumir.
Encontrei um grupinho de Protetores do lado de fora da cabana principal, a que Ravenna
usava. Quanto mais eu me aproximava, mais eu conseguia ouvir as conversas, que apenas
garantiram que minha suspeita estava certa. Ravenna foi quem trouxe Nathan para cá.
— A Fidly — alguém disse e apontou para mim.
Eu não tinha o menor interesse em ficar de papinho com eles.
Atravessei o grupo e encontrei Ravenna com um sorrisinho estampado no rosto, saindo da
cabana. Quando seus olhos pousaram em mim, uma faísca de preocupação se acendeu, mas ela
logo tratou de escondê-lo.
— Eu te avisei.
A ameaça estava implícita na minha voz e a raiva também.
— Não sei do que está falando — a víbora respondeu.
— Solte Nathan agora — demandei.
— É protocolo que, se encontramos um Desertor, nós o prendemos e, então, quando
estivermos satisfeitos com as informações que tirarmos dele, o matamos — disse. — Todos
sabem disso, Fidly.
Ela não ousaria matá-lo!
O poder borbulhou e eu o deixei livre. Luz bateu contra Ravenna como uma onda, a
jogando para trás, presa contra a porta da cabana. Ela caiu no chão, mas logo se levantou, meio
transtornada. Não lhe dei tempo para reagir, estiquei a mão e a luz seguiu, dedos brancos
agarrando o pescoço dela e a sufocando.
— Você vai soltá-lo, Ravenna. Ou vou cumprir a promessa que fiz há algum tempo e vou
matá-la.
O verde em seus olhos tremeluziu, o poder tirando seu oxigênio e extinguindo suas forças.
Meu punho se fechou e então ela começou a bater as mãos, tentando me alcançar. Eu sorri para
ela, a satisfação preenchendo meus ossos.
— Aly? — Uma voz conhecida me chamou. Olhei para o lado e encontrei Serena
observando a cena sem entender nada. Balancei a cabeça e ela apenas assentiu, recuando. Ao
longe, eu via Jasper e Roman se aproximando.
A maioria dos Protetores que assistiam não tinham a coragem de intervir, mas uma foi
idiota o suficiente de se aproximar. Ergui uma barreira de luz entre nós e a Protetora se chocou
contra ela.
Aliviei o aperto do meu punho, permitindo que ela inspirasse e falei novamente:
— Faça o que estou mandando e saia do meu caminho, antes que eu a mate aqui mesmo.
— Você não pode! — ela gritou, a voz rouca.
Um rosnado rasgou minha garganta.
— Me teste.
— Ravenna, ela é a Fidly! — alguém do grupo atrás de mim avisou, a voz aterrorizada.
Ótimo. Quem sabe assim eles me respeitariam.
Ameacei quebrar seu pescoço, mas ela ergueu a mão, pedindo que eu parasse.
— Ele está lá dentro — disse. — Ele é um Desertor, Fidly, foi tomado por Vicenzo e quase
matou meus guerreiros. Vá atrás dele e prove do próprio veneno, porque na primeira
oportunidade que tiver, ele vai te matar.
Balancei minha mão, e o poder ricocheteou, jogando-a para o lado.
Virei para Serena, vendo que Jasper e Roman já estavam aguardando ali também.
— Não deixe ninguém entrar até que eu tenha saído. — Apontei para Ravenna. — E não
me deixe vê-la quando eu sair.
Abri a porta da cabana e a bati com força em seguida. Corri para o cômodo conhecido e,
assim que entrei no escritório, mexi em um dos livros na estante, abrindo a passagem. Desci as
escadas rapidamente, e acendi uma das luzes ao alcançar o porão.
Nathan estava sentado em uma cadeira, cabeça baixa e braços e pernas acorrentados.
Destroços de madeira e corda estavam no chão ao seu lado, o que me dizia que ele lutou. Os
hematomas em seu rosto e braços diziam o mesmo.
Déjà-vu me atingiu em uma pancada que me fez engolir em seco. Tempo atrás ele esteve
aqui, drogado e com um Desertor à sua frente. Anos antes disso havia passado horas sendo
torturado para que Ravenna identificasse alguma força que não vinha dos Protetores, mas sim do
sangue que herdou de Diana.
O ódio era tão forte que precisei deixar a luz se espalhar pelo espaço, liberando um pouco
da tensão. Eu devia ter matado aquela desgraçada.
Aproximei-me dele e toquei seu rosto. Quando seus olhos abriram, não havia luz no azul.
Mas então Nathan piscou, e o opaco estranho deixou seu olhar, o brilho retornando aos
poucos.
— Alyssa.
Sua voz era um suspiro cansado. Exasperado.
— Estou aqui, Nate — eu disse, erguendo seu rosto. — Eu sinto muito. Não ouvi quando
te levaram.
Ele balançou a cabeça, e eu comecei a puxar suas correntes. As arranquei de suas pernas,
mas ele me parou quando subi para as mãos.
— Pare.
Ergui meus olhos para ele, as mãos estáticas no ar. Sua mandíbula estava travada, os dedos
agarrados à cadeira, o azul perdendo o brilho novamente. Era Nathan acorrentado a amarras que
não conseguíamos ver, mas lutando contra elas mesmo assim.
— Você está bem — afirmei. — Esse desgraçado não te controla.
Rezei que as palavras tivessem efeito, que expulsassem Vicenzo de sua cabeça. Porque sua
alma era minha e de mais ninguém, assim como a minha era dele.
— Não é seguro agora — ele rosnou.
Eu o ignorei e peguei suas mãos. Quando eu estava prestes a soltar uma corrente, ele a
arrebentou, então sua mão estava agarrando meu punho e, com um único movimento, me lançou
longe.
Bati contra a parede de vidro da redoma e resmunguei um palavrão.
— Porra — ele grunhiu e bateu contra a própria cabeça. — Me desculpa, Aly. Me
desculpa. Por favor, saia antes que ele me force a fazer algo pior.
Nathan começou a agarrar as correntes e tentar voltar a se prender, mas suas mãos tremiam
e ele simplesmente não conseguia controlá-las. Eu me levantei, observando-o com o coração
apertado, sentindo seu desespero em mim.
— Por favor, Aly. Por favor — ele suplicou. — Saia. Ou me mate. Não posso aguentar
isso. — Ele bateu as mãos contra a cabeça novamente. — Não! Não farei nada disso! — ele
gritou para a voz em sua mente.
Quando eu finalmente matasse Vicenzo, o desgraçado sofreria. E sofreria muito.
Agarrei sua mão, impedindo que ele continuasse se batendo, e seus olhos marejados
encontraram os meus.
— Respire — sussurrei e inspirei, como se o instruísse. — Respire.
— Por favor, Aly. Eu odeio... — seu rosto se contorceu — odeio isso.
Seus dedos agarraram os meus com força, como se eu fosse seu bote salva-vidas.
Finalmente, ele respirou fundo, os olhos azuis presos nos meus. Eu amava aquele azul. Era
facilmente a minha cor favorita.
— Estou aqui.
— Não deveria.
Eu abri um sorrisinho.
— Não seja medroso, Nate. Nós lutamos juntos. Sempre. — Bati um dedo contra sua
têmpora, e me estiquei, minha boca alcançando seu ouvido. — E Vicenzo não vai te controlar. O
desgraçado pode parar de tentar.
Seu corpo tremeu ao escutar minhas palavras e ele trincou os dentes.
Suas mãos tentaram se soltar e agarrar meu pescoço, mas antes que elas chegassem a me
tocar, luz se enrolou em seus pulsos e os puxaram para baixo, prendendo-o novamente contra a
cadeira.
— Pare de tentar me salvar!
A voz não parecia sua, era forçada, desesperada demais. Era Vicenzo fazendo seus
joguinhos.
— Não — respondi simplesmente.
Nathan me encarou com raiva.
— Vou tentar ser o mais clara possível, Vicenzo, porque sei que está ouvindo — comecei.
Agarrei seu lindo rosto e fiz Nathan me encarar. — Eu não desisto do Nathan. Eu não o
abandono. Vamos encontrar uma forma de quebrar esse juramento e vou vingá-lo por isso. Vou
chutar a sua bunda italiana para o inferno e vai ser incrível. — Seu olhar pareceu se suavizar
enquanto me ouvia. — Porque eu amo você, Nate. E não desisto de você.
Vicenzo queria nos testar. Estava desesperado para nos levar ao limite. Queria fazer com
que Nathan desistisse, que aceitasse o juramento, e só conseguiria isso se o fizesse perder o
controle comigo. No entanto, eu não permitiria. Ele já nos tirou muito. E não tiraria mais nada.
— Estou tentando, Aly.
Eu sei.
Em um movimento rápido, passei minhas pernas de cada lado de seu corpo. Nathan me
encarou horrorizado, com medo, não de mim, mas do que ele poderia tentar fazer. Do que eu
nunca faria para pará-lo.
Eu o encarei com determinação, tentando amenizar seus medos, tentando fazer sua mente
parar de batalhar. Lentamente, abaixei meu corpo até que eu estivesse sentada sobre ele. Percorri
seu rosto com minhas mãos até cruzá-las atrás do seu pescoço.
— Eu sei que não vai me machucar, Nate.
— Eu não quero — sussurrou.
— Eu sei.
Minha mão direita, marcada pelo Destino, desceu lentamente pelo seu ombro, até parar em
seu peito.
— Você me ama, Nate.
— Mais do que minha própria vida — confirmou.
— Então essa é a sua resposta. Vicenzo não pode controlar seu coração. — Passei os dedos
pelo seu rosto machucado pela luta. — Sinto muito pelo que fizeram com você.
Nathan fechou os olhos, ouvindo minha voz, e abaixou a cabeça até que sua testa tocasse a
minha. Ele estava cansado, eu sabia disso. Podia sentir pela forma como respirava, a forma como
seus ombros estavam tensos e como suas pálpebras tremiam. O quanto ele já não lutou? Quantas
vezes impediu que Vicenzo tomasse o controle? Eu não podia nem começar a mensurar o quão
exaustivo aquela luta devia ser.
— Eu amo você — sussurrei, aproximando minha boca da dele. — Amo você e não posso
fazer isso sem você do meu lado.
Sua resposta foi escovar os lábios nos meus. Uma carícia tão pequena, tão leve, que era
quase como ser tocada em um sonho. Algo queimou dentro de mim, aquecendo partes antes
adormecidas. E eu queria mais. Apertei meus lábios contra os dele com mais força, um
movimento de pura necessidade crua. Ele grunhiu meu nome, me beijando de volta.
Nathan puxou a cabeça para trás tão rápido que quase bati a minha contra seu peito.
— Não quero perder o controle.
Puxei seu rosto para mim e respondi, beijando sua boca novamente:
— Você não vai. — Seu corpo estava tenso embaixo do meu, mesmo que respondesse a
mim daquela forma primitiva. — Relaxe. Você está preso e eu não sou uma donzela. — Ele
soltou uma risada que era quase um suspiro. — Agora me beije, Nathan.
Quando seus lábios tocaram os meus, alívio inundou meu peito. Seu beijo não foi um
simples toque, não foi casto. Ele me beijou com vontade, profundamente. Poderiam ter acertado
meu coração com uma adaga e eu mal seria capaz de perceber, porque eu estava perdida nele. No
homem que me tocava como se eu fosse oxigênio. Ou água. Ou comida. Qualquer coisa
inquestionavelmente essencial.
Desejo inundou minhas veias, queimou meu sangue. Meu corpo buscou por ele
instintivamente e eu me afundei em seu colo, mal percebendo que me esfregava contra ele
enquanto a necessidade crescia dentro de mim. Fazia tanto tempo que eu não o sentia dessa
forma. O que ele me proporcionou no banho ainda em Florença foi controlado, e ele fez mais por
mim do que o contrário. Aqui não. Aqui nós dois estávamos completamente perdidos em desejo,
em necessidade, em saudade. E em meio a tanto desespero, a tanta dor e medo, aquele momento
poderia ser nosso escape.
Nós éramos apenas jovens e já carregávamos o peso de milhares de vidas em nossos
ombros. Éramos apenas jovens, mas perdíamos constantemente. Éramos apenas jovens e não
tínhamos tempo para viver.
E, que o Destino exploda, mas eu queria viver com ele.
Seu corpo tentava se aproximar do meu, lutar contra as correntes de luz, quase sem
perceber. Percorrendo minha mão pelo seu peito até seus cabelos eu podia sentir seu coração
batendo desesperadamente. Afundei meus dedos em seus fios espessos e sedosos e suspirei em
seus lábios quando arranhou minha boca com os dentes.
Eu precisava disso como precisava de ar para respirar.
Afundei mais em seu colo, sentindo-o duro contra mim. Ainda parecia surreal como seu
corpo respondia ao meu com tanto ímpeto, com tanta prontidão.
— Porra, Aly. Tenha um pouco de piedade — ele grunhiu em um misto de tortura e
satisfação quando desci minha boca para seu pescoço e chupei sua pele.
Eu não queria ser piedosa. Eu o queria. Queria de volta o tempo que haviam nos tomado.
Queria muitas coisas, mas aquela era a única que talvez eu pudesse de fato controlar. Porque ele
me queria também.
Mas de alguma forma, mesmo que fosse a coisa mais absurdamente sexy vê-lo preso
enquanto eu estava em cima dele, parecia errado que não pudesse me tocar. Eu queria ser tocada.
Queria que ele me tocasse.
Ainda com a boca em seu pescoço, chamei a luz de volta, soltando-a de seus pulsos.
— Não — ele protestou.
Eu me afastei, buscando seus olhos.
— Eu quero que você me toque, e não pode fazer isso se estiver preso.
Eu tinha certeza de que aquela voz racional em sua mente tentava dissuadi-lo, tentava
lembrá-lo que minha segurança era mais importante que qualquer coisa. Mas seu corpo foi mais
rápido que a mente e suas mãos se fecharam em minha cintura, me pressionando mais
firmemente contra ele. Um gemido alto deixou meus lábios e eu queria me lembrar de me
importar que os Protetores lá fora talvez pudessem me ouvir. Mas eu não dava a mínima. Eu me
esfregava contra sua rigidez como se não pudesse me controlar — o que a esse ponto eu diria ser
um palpite seguro. Sua boca travava uma guerra com a minha e suas mãos percorriam todo meu
corpo, me apertando, me acariciando, me sentindo. E eu queria mais. E mais. E mais. Quando
seus lábios deixaram os meus e desceram pela linha da minha garganta, lambendo minha pele, eu
empinei meu corpo para que ele tivesse acesso mais facilmente. Quando suas mãos agarraram
meus seios e puxaram os couros para baixo, a língua tocando minha pele arrepiada e as mãos
agarradas à minha bunda, eu me desfiz sobre ele. Ele beijou seu nome em meus lábios e grunhiu
em minha boca, como se meu clímax fosse o seu próprio.
— Eu não ia conseguir viver sem isso — ele disse. Ergui os olhos para encontrá-lo me
olhando como se não pudesse acreditar no que os olhos viam. — Ver você se perder assim é
provavelmente a razão da minha ruína, mas eu amo mesmo assim.
Dessa vez eu sorri de verdade.
— Está poético hoje, Cross.
— Você me inspira, Monroe.
Mordi o sorriso em seus lábios enquanto puxava sua blusa. Ele ergueu os braços, assim
consegui tirar sua camisa e jogá-la tão longe que seria difícil demais vesti-la de volta. Iria fazer o
mesmo com suas calças.
Tão rápido quanto o pensamento, Nathan se ergueu comigo em seu colo, minhas pernas
enroladas em sua cintura. Um único impulso e ele tirou minha jaqueta de couro, depois puxou
meus cabelos para que eu lhe desse uma boa visão da minha garganta. Meu corpo bateu contra a
parede de vidro e ele pressionou contra mim.
Beijos e mordidas e suspiros.
Então ele rosnou.
Meu corpo ficou imóvel com o som e a tensão nele. Não eram mais aquelas reações
gostosas e primordiais. Agora era a porra da luta novamente.
— Nate — chamei.
Ele fechou os olhos e uma mão agarrou meu pescoço. Mesmo assim não me movi.
— Nate, está tudo bem. — Tentei tocar seu rosto, mas sua mão se apertou contra minha
pele.
— Sai da porra da minha cabeça! — grunhiu para o desgraçado que tentava controlá-lo.
Toquei a mão em meu pescoço. Não tentei tirá-la dali, não tentei lutar contra ele. Apenas o
toquei, só para que pudesse sentir o calor da minha pele contra a dele.
Ele venceria. Era forte o suficiente para isso.
Seus olhos se abriram e Nathan me encarou. O fogo estampado neles era de pura
determinação.
Com as mãos ainda em volta do meu pescoço, o aperto leve demais para ser qualquer coisa
além de excitante, Nathan me beijou. Sua boca engoliu a minha, nossas línguas travaram uma
batalha ferrenha, e seu corpo se esfregou no meu.
Ele estava lutando. Lutando por mim.
E Nathan se afogava em meus beijos porque eles pareciam capazes de lhe devolver a
sanidade.
Com as mãos no meu pescoço, ele chupou a pele logo abaixo do lóbulo da minha orelha.
Antes eu estava no controle, mas agora o controle era completamente dele. E eu amava isso. Eu
não temia. Sabia que ele era forte o suficiente para lutar contra Vicenzo e sabia que, quanto mais
ele se perdia em mim, menos sua mente ficava livre para ser controlada pelo bastardo italiano.
O desejo era tão forte, a atração tão intensa, que eu demorei para pensar no óbvio: para
expulsar Vicenzo, eu só precisava entrar em seu lugar. Preencher as lacunas pelas quais o imortal
tentava se esgueirar. Enquanto Nathan me tocava, me beijava e pressionava o corpo contra o
meu, aquele elo, o laço vermelho, brilhava tão intensamente que era como se pudesse se
materializar na minha frente. Eu busquei ouvi-lo através daquela ligação e abri minha mente
como se abrisse uma caixa.
Eu te amo.
Nada.
Eu te amo!
Nathan ainda tinha os ombros tensos, a mão em meu pescoço ainda trêmula, não sabendo
se me sufocava ou se me acariciava.
"Eu te amo." — pensei, esperando ser alto o suficiente para ele ouvir.
Nathan parou. Seus lábios pairaram sobre meu pescoço, suas mãos travaram em minha
pele. Mesmo sua respiração estancou, pelo que me pareceu longos segundos.
Quando o azul bateu contra minha escuridão, eu podia enxergar tudo. A completa confusão
misturada com devoção. Aquela centelha brilhosa de satisfação. E então ele sorriu, o dedo
indicador traçando a linha da minha garganta, os olhos presos nos meus.
"Eu te amo" — repeti, apenas para garantir que ele tivesse escutado.
CAPÍTULO 52

Alyssa Monroe havia dito que me amava. Havia dito que me amava em minha mente. Era a
primeira vez que ela conseguia fazer isso, anteriormente eu havia conseguido ouvir seu
pensamento sem que ela tivesse intenção que eu ouvisse. Mas não agora. Agora Aly havia feito
por querer. E o deleite em meu peito era o meu lado animal respondendo ao seu contato, à
ligação que nos unia.
Eu a encarei, completamente embasbacado, inegavelmente perdido em sua beleza. Sua voz
havia sido clara quando a escutei pela primeira vez, e cristalina na segunda. E com o som de sua
voz ecoando em minha mente, Vicenzo desapareceu. O controle era completamente meu de
novo.
E, porra, eu faria bom uso disso.
Olhando para ela, eu não sabia listar o que era mais atraente. Seus olhos, sua boca, sua voz
ou a porra do seu corpo inteiro. Alyssa sorriu e eu me derreti inteiro. Se essa mulher me pedisse
a lua em um espeto, eu daria um jeito de conseguir entregar seu desejo.
— Vai ficar só me olhando?
Eu pisquei.
— Estou tentando me recuperar.
Ela cerrou os olhos.
— Não fizemos nada ainda, Cross.
Uma risada escapuliu da minha boca.
— Você não tem ideia, Monroe.
Então eu a beijei e falei, em sua mente, exatamente o que eu faria com ela.
Detalhadamente.
Alyssa era o pedaço de mim que eu mais amava, a única parte brilhante, a única que me
manteve são durante todos esses anos, que me manteve nos trilhos. Mesmo quando não me
lembrava dela, ainda havia algo em mim que clamava seu nome. Mesmo quando achei que
estava morta, ainda era por ela que meu coração batia, e por isso estava tão cansado.
Eu fui seu primeiro amigo, seu primeiro amor. E seria seu último se ela me permitisse.
Seria seu para sempre se ela quisesse.
Minha mão ao redor de seu pescoço finalmente estava ali por escolha minha. Minha mão
em sua bunda a puxou para cima, suas pernas se enrolaram em minha cintura e eu pressionei
contra ela. Eu já estava tão duro que doía. Queria me enterrar nela e esquecer a merda de noite
que tive. A merda de mês. Alyssa gemeu em meus lábios e arranhou minhas costas. A regata
branca que ela usava estava tentadora demais e a fricção do tecido já estava me enlouquecendo,
porque eu queria sua pele.
— Tire minhas roupas — ela ordenou, séria.
Eu sorri maliciosamente.
— Sempre muito mandona, amor.
Alyssa não respondeu, mas ergueu os braços. Mordi o lábio enquanto arrancava sua regata,
as suas pernas presas à minha cintura e as costas contra a parede de vidro. Não hesitei em tirar
seu sutiã assim que a blusa estava no chão. Seus seios pesados ficaram livres e minhas mãos o
agarraram de ímpeto. Porra, eu amava aqueles peitos. Amava tudo nela. Cada fio de cabelo.
Cada traço em seu rosto. Cada curva em seu corpo.
Suas mãos me agarraram em resposta, envolvendo meu membro e grunhindo de frustração
com a calça.
— Tire isso.
Se essa mulher me pedisse para tirar a porra do meu coração e entregá-lo, eu estaria com a
mão dentro do meu próprio peito em segundos.
Eu a soltei, seus pés se fincando no chão, e arranquei minhas calças junto com a cueca. Eu
que não iria gerar mais uma frustração para ela. Ela observou cada movimento, os dentes
fincados no lábio inferior, e pelo amor do maldito Destino, eu precisei desviar o olhar daquela
cena, porque ela parecia uma deusa. Muito acima de mim. Muito mais do que um dia eu poderia
querer.
Mas ela era minha.
Suas mãos começaram a abrir o botão da própria calça, mas eu a parei. Prendi suas mãos
atrás do corpo e beijei sua clavícula, antes de sussurrar:
— Eu tenho toda a intenção de fazer isso. — Depois meus olhos me traíram e se
prenderam nela, o desconforto crescendo na base da minha espinha. Porra, eu me recusava a
chegar lá sem nem mesmo tocá-la direito. Fiz uma careta. — Você é linda demais pro meu
próprio bem.
Seu sorriso era ferino.
— Já se olhou no espelho recentemente, Nathan?
Bufei uma risada, e me abaixei, puxando suas calças. Calcinha de renda preta. Ótimo.
Porra do caralho de ótimo. Não é como se eu precisasse me controlar.
Minha língua desceu pela sua barriga e ela gemeu alto, recebendo um olhar meu. Suas
mãos agarraram meus cabelos e eu grunhi satisfeito. Então empurrei suas pernas abertas, e passei
minha língua pela curva da calcinha, pelo interior de suas coxas. Seus dedos se apertaram em
meu cabelo e eu precisei de cada pedaço de força interior em mim para não me perder ali mesmo,
no chão, e com meu rosto entre suas pernas.
— Nathan, por favor — ela pediu, a voz fraca de desejo.
Eu prendi nossos olhos.
— Por favor, o quê, amor?
Seus olhos se fecharam com força e seu quadril se jogou para frente. Agarrei suas coxas e a
mantive quieta. Ela abriu os olhos, ansiedade e uma pitada de raiva enquanto me encarava.
— Levanta e me fode — ela ordenou, fazendo meus ossos tremerem, todo meu corpo
querendo responder imediatamente a ela. Ela normalmente era tímida, e eu estava amando vê-la
se tornando mais confiante, mais determinada em definir seus desejos. Mas eu me mantive firme,
um sorriso torto nos lábios e arqueei uma sobrancelha. Ela revirou os olhos, os dedos puxando os
meus fios de cabelo. — Por favor.
Sorri, satisfeito.
— Claro, amor.
Então eu estava de pé, suas mãos se agarrando aos meus ombros, mas a minha se fincou
em sua cintura e a outra a segurou pelo pescoço. Nós queríamos libertação. Precisávamos
daquela distração, porque mais um segundo infernal nesse mundo não valeria de nada se não
pudéssemos aproveitar isso. E eu queria mostrar para ela, queria que ela conhecesse aquela parte
da vida, onde tudo era prazer, diversão e amor.
Seus olhos encontraram os meus, surpresa passando pelo seu rosto, mas um sorriso
malicioso crescendo quando ela encontrou a fome nos meus.
Porra, não tenho preservativo.
Seus olhos se arregalaram, provavelmente ouvindo meu pensamento em sua mente, mas
então relaxou.
— Tenho um no bolso da minha calça.
Franzi o cenho, dando uma risada.
— Por que você tem uma camisinha na sua calça, Alyssa?
Ela deu de ombros, corando um pouco.
— Coloquei lá uma vez, quando iria te encontrar na caverna.
Porra, e por que infernos não a usamos? Mas pensando bem, isso vinha a calhar agora.
Sua mão direita gesticulou e luz puxou o pacote do bolso da calça, onde ela disse que
estava. Lentamente, envolto de luz branca, o pacote veio até mim.
— Um poder de muitas facetas — brinquei.
Quando peguei o pacote e o rasguei com os dentes, logo o pondo para utilidade, eu flagrei
seu sorriso, antes que a luz se enrolasse no meu pescoço.
— Você nem imagina — ela sussurrou, se aproximando para beijar minha boca. Apesar da
minha mão em seu pescoço, eu permiti seu movimento.
Então era assim que íamos brincar? Ótimo, eu amava quando ela estava no controle, mas
essa seria uma briga gostosa.
Minha boca tomou a sua com urgência, com necessidade animalesca. Não havia delicadeza
em nenhum de nós dois. Tudo o que havia era desejo cru, saudade cortante, e ali, nos braços um
do outro, tudo o que éramos capazes de fazer era se perder completamente. Eu nem teria forças
para ser delicado, e graças aos deuses ela não parecia querer isso. Suas unhas me arranhavam,
me marcando, seus dentes se prendiam em minha pele.
Já estou marcado — eu queria dizer. Mas eu queria mais era que ela me marcasse infinitas
vezes.
Eu faria amor com ela, e faria forte, determinado, perdido, porque naquele momento, não
haveria mais nada. Nenhuma guilhotina em nossas cabeças. Nenhum controle que não fosse
nosso.
Puxei suas coxas e ela se esfregou contra mim, as costas arqueadas tocando o vidro. Eu não
sabia qual parte dela eu queria tocar mais, então usava minhas mãos desesperadamente para tocar
tudo. Quando encontrei o meio de suas pernas com meus dedos, estava úmido e pronto.
— Você... Porra, Alyssa — grunhi, olhando para seu corpo.
Em seus olhos travessos eu conseguia ver que ela amava me fazer perder as palavras.
De repente, sua mão estava em meu membro, me puxando para si, me direcionando. Eu
tentava me controlar, tentava de verdade, mas ela não ajudava.
— Não me faça pedir — ela ronronou, mordiscando meu pescoço. — Perca o controle
comigo.
Eu não precisava de mais nenhum incentivo.
Meu corpo se arqueou e eu impulsionei para frente, me enterrando nela. Alyssa soltou um
grito, meio prazer, meio dor e eu quis me xingar. Ela não fazia isso há um tempo, precisava se
acostumar. Abri minha boca para me desculpar por ser um idiota, mas ela colocou dois dedos
sobre meus lábios e se empurrou contra mim.
"Estou pronta" — sua voz falou em minha mente.
A escuridão em seus olhos brilhava como uma Noite de Luz. E eu aceitei seu comando
sem questionar. Isso era o que ela precisava tanto quanto eu, e eu faria ser memorável.
Meus dedos percorreram sua garganta e minha língua a traçou, enquanto eu me retirava
levemente e arremetia de volta contra ela. Ela sussurrou meu nome, e eu beijei sua boca. Mal era
capaz de raciocinar. Tudo o que eu sentia era desejo e amor, minha pele parecia estar dez vezes
mais sensível, meu coração batia desesperado e quando eu olhava para ela, tudo o que eu queria
era que aquilo durasse para sempre.
Agarrei seus cabelos, e ela arranhou minhas costas. E então perdemos o controle.
Eu me movi rápido, e ela se esfregou contra mim, completamente perdida na sensação.
Minutos se passaram, mas parecia uma eternidade em que estávamos ali, à mercê das sensações
prazerosas, dos olhares apaixonados. E se aquilo era uma proposta de imortalidade, eu a aceitava.
Toda vez que eu me enterrava dentro dela, ela me puxava contra si como se quisesse mais, como
se nunca quisesse que eu me afastasse. Seu corpo batia contra o vidro e seus sussurros apenas me
incentivavam mais e mais, a ir mais fundo, a ir mais rápido. A ir para sempre.
Eu não era capaz de conter minha própria satisfação. Seu nome e os gemidos saíam dos
meus lábios enquanto eu perdia o controle e o entregava a ela.
Quando ela se derreteu sob mim, a mão em meu peito, a boca entreaberta, os olhos
fechados, acho que perdi um pedaço de mim, que ela guardou para si. Era sempre assim, ela
colecionando pedaços meus enquanto eu os cedia de bom grado. Em resposta, ela me dava os
seus.
"Eu amo você" — falei em sua mente.
Sua resposta veio com um sorriso genuíno.
"Eu amo você."
Eu não parei até que ela tivesse alcançado um segundo orgasmo, gritando meu nome. Por
sorte estávamos no porão ou o Outro Lado inteiro a teria escutado. Ou escutado meu próprio
rugido quando me enterrei uma última vez nela, sendo assolado pela minha própria libertação.
Eu a agarrei contra mim, meu rosto enterrado em seu pescoço. Nossas respirações pesadas
se embaralhando. Beijei seu pescoço, sua bochecha, sua têmpora, suas pálpebras e sua boca.
Beijei tudo o que alcançava enquanto as ondas de prazer deixavam meu corpo, e me abaixei com
ela até o chão porque a porcaria das minhas pernas pareciam bambas. Ela se agarrou a mim, não
parecendo disposta a me largar. E, pelo Destino, eu queria lhe agradecer por isso. Queria
agradecer ao universo porque aquela mulher em meus braços parecia me amar tanto quanto eu a
amava, o que deveria ser impossível.
Por um longo tempo ficamos ali, completamente perdidos um no outro, apenas respirando,
apenas nos tocando. Então, quando percebi que ela parecia pronta, me retirei de dentro dela, e
apenas a abracei por um segundo longo demais.
— Eu senti sua falta — ela sussurrou, os olhos presos no meu peito, como se fosse difícil
fazer aquela confissão. — Não me lembrava de você, mas meu coração sentia sua falta mesmo
assim.
Escovei seus cabelos para longe de seu rosto e puxei seu queixo, seus olhos finalmente
encontrando os meus.
— Eu também senti sua falta, amor — eu disse. — Mas não importa o que aconteça,
seremos eu e você, sempre — prometi.
Ela assentiu, mil promessas em seu olhar.
Depois de um tempo eu me ergui, tentando nos deixar apresentáveis de novo. Puxei suas
roupas e entreguei à Alyssa, ajudando-a se vestir. Então eu me virei e procurei pelas minhas,
espalhadas pela cela.
Quando me voltei para ela, passando a blusa pela cabeça, a flagrei me encarando como se
tivesse água na boca. Eu sorri amplamente, tão satisfeito quanto um homem das cavernas estaria
porque a mulher que eu amava me olhava como se precisasse me devorar.
— Você está babando em mim ou é impressão minha?
Ela bufou.
— Você é ridiculamente lindo.
Eu sorri, puxando-a pela cintura até que estivesse em meus braços.
— Ridiculamente lindo... Meu novo elogio favorito.
Alyssa revirou os olhos, e eu beijei sua boca, sussurrando para ela:
— Você é ridiculamente perfeita. E às vezes acho que foi feita para mim, assim como
tenho certeza de que fui feito para você.

Eu e Alyssa subimos as escadas e então atravessamos a cabana em silêncio, as mãos


entrelaçadas. Estávamos saindo pela porta quando ela sussurrou:
— Preciso te contar uma coisa.
Meus olhos encontraram os dela, a pergunta expressa neles.
Mas então Serena estava ali, Roman logo atrás, nos olhando com um sorriso travesso no
rosto.
— Vocês demoraram.
O rosto de Alyssa ficou mais vermelho que um morango.
— Eu...
— Nós precisávamos de um tempo — falei por ela.
Serena deu uma piscadinha para a amiga.
— Eu imaginei — disse. — Jasper saiu correndo daqui assim que você não voltou depois
de dez minutos lá dentro.
Aly enfiou o rosto nas mãos.
— Podemos mudar de assunto? — murmurou.
Atrás de Serena, Roman parecia sem graça, tentando não encarar muito. Mas não parecia
como se quisesse estar no meu lugar, o que já era a porcaria de um grande alívio.
Serena puxou Alyssa e passou o braço sobre seu ombro.
— Aquilo que fez com Ravenna foi bem fodona.
— O que você fez? — perguntei, curioso.
Ela me olhou, mas Roman quem respondeu:
— Alyssa a sufocou com o poder — contou. — E foi bem incisiva ao falar que iria matá-la
se não saísse da sua frente. Acho que nunca fiquei tão feliz em ser acordado de madrugada,
apenas para assistir à Ravenna correndo com o rabinho entre as pernas.
— Eu devia tê-la matado — Aly resmungou.
— Não deveria — discordei. — Teria gerado muito mais problemas para a gente.
Serena balançou uma mão, descartando o assunto.
— Tenho certeza de que alguém eventualmente fará isso por nós.
Roman riu, talvez um pouquinho demais. Dei-lhe uma olhada, e ele pareceu engolir em
seco. Quando seus olhos focaram nas costas de Serena, não havia muito o que ele pudesse fazer
para fingir que não estava de quatro pela garota. O desenrolar daquilo seria interessante.
— Roman ficou te fazendo companhia todo esse tempo, Serena?
Ela deu um sorriso para o Protetor.
— Depois de Alyssa pedir para ficarmos de olho para que ninguém entrasse no caminho
dela, achamos sábio ficar por perto caso houvesse algum burro por aqui.
— Humm. — Aly me deu um cutucão, mas eu a ignorei. — E acordaram de madrugada
juntos?
Roman me fuzilou.
— Nossas cabanas ficam perto uma da outra.
— Aham.
Serena me lançou um olhar confuso, e depois outro para Roman, que apenas balançou a
cabeça.
— Aposto que poderiam fazer bom proveito disso.
Aly escondeu um sorriso, que Serena flagrou, então arregalando os olhos. Quando ela
voltou a olhar Roman, parecia nervosa, um pouco tímida — o que não era nada do feitio de
Serena —, e logo desviou o olhar de novo.
— Você é um idiota, Cross — Roman murmurou.
— Ou muito inteligente. — Dei-lhe uma piscadela.
— Ok, se já acabaram com os enigmas de quinta série — Aly interrompeu —, há algo que
precisamos fazer.
— O quê? — Serena parecia tentada por uma mudança de assunto.
— Preciso contatar Freya antes que ela retorne para o Outro Lado — disse. — Ela tem um
livro que pode nos ajudar.
— Como sabe disso? — Roman questionou.
Aly deu de ombros e continuou andando.
— Vamos, em breve haverá Protetores por todos os cantos e eu não quero estar aqui
quando isso acontecer. Se eu identificar qualquer um que trouxe Nathan para cá, vou quebrar
seus dentes.
Eu segurei minha risada, mas era estranhamente satisfatório ouvi-la me defender.
CAPÍTULO 53

Ao chegar ao Lago, puxei Nathan para a casa, enquanto Serena e Roman iam até a minha
tomar café da manhã — pela primeira vez a casa da minha infância voltando a ter alguma
animação desde a morte do meu pai — e contei a ele sobre o sonho. Quando terminei, seus olhos
estavam marejados e ele engoliu em seco. Eu sabia que ele queria poder ver e falar com a mãe,
mas também sabia que ouvir as minhas experiências com ela era tanto reconfortante quanto
doído.
Ele escutou cada um dos avisos de Diana e pareceu tocado quando contei que foi ela quem
percebeu que alguém o havia levado. Decidi não falar as coisas que ela me contou em
confidência, sobre como se preocupava com Brian e Nathan. Eventualmente eles se acertariam
— assim como ela, eu acreditava nisso.
Depois, conseguimos o telefone de Freya em Roma e precisamos ligar umas dez vezes até
alguém finalmente se dignar a atender. Eu tinha certeza de que ela não tinha o costume de usá-lo
e quando atendeu, sua voz era assassina, até perceber que éramos nós ligando. Quando pedi o
livro, mencionei a tal Hilina, imediatamente soube que Freya se lembrou de qual exemplar se
tratava. Por um longo tempo, a linha ficou muda e eu temi que ela fosse se negar a interferir na
balança, mas então ela apenas suspirou e garantiu que entregaria o livro em breve.
Nathan e eu tomamos um longo banho, enquanto continuávamos a falar sobre tudo.
Divagamos sobre o que o Tesouro poderia ser e como tirá-lo do Lago, e ele me contou sobre
como foi levado e o que fizeram com ele nesse meio-tempo. Orgulho encheu meu peito quando
eu entendi que ele poderia ter permitido que Vicenzo o controlasse e matasse todos eles, mas
lutou contra isso para se manter inocente. Porque ele não seria o assassino do italiano e queria
que soubessem disso.
Nathan lavou meus cabelos com esmero e foi o banho mais íntimo da minha vida que não
envolvia absolutamente nada de sexo. E me deixou mais relaxada e segura do que qualquer outra
coisa poderia.
Então nós saímos de casa com Zeus ao nosso encalço para nos encontrarmos com os
outros. Quanto mais eu me aproximava da casa dos meus pais, mais ansiosa eu ficava. Eu tinha
tantas memórias felizes com meu pai ali e agora precisava entrar nela sabendo que elas eram as
únicas que eu teria. Nathan pegou minha mão, me dando um leve sorriso encorajador.
— Estou aqui com você.
Inspirei fundo, e abri a porta.
A casa estava exatamente como eu me lembrava. Minha mãe nem mesmo moveu o livro
que meu pai estava lendo de cima da mesa de centro na sala. A inanição era ilusória. Por um
instante, fiquei tentada a fingir que ele chegaria em breve, que eu não precisava me doer por sua
falta, porque ela não era real. Ele parecia tão presente em cada pedacinho daquela casa, que eu
poderia fechar os olhos e pensar que ele apenas não havia se juntado a nós ainda.
Eu podia criar toda uma história convincente. Ele não estava aqui porque ainda estava
dormindo, já que havia ficado até tarde da madrugada lendo o livro que estava na sala. Ou ele
estava viajando, buscando por respostas sobre como usar meu poder para matar Vicenzo sem que
eu morresse no processo. Ou quem sabe ele estivesse arrancando folhas da horta agora mesmo
para fazer um chá. Eram tantas possibilidades muito mais atraentes. Histórias que eu poderia
aceitar. Uma saída para a dor.
Contudo, se eu fingisse demais, nunca conseguiria lidar com a verdade. E se eu escolhesse
uma ilusão, eventualmente ela se provaria apenas uma mentira. Haveria um ponto em que não
haveria desculpas o suficiente para justificar sua ausência. E, então, depois de tanto me enganar,
depois de tanto fingir, a verdade iria me destruir.
Eu tive meses de mentira, sem saber nem mesmo qual era meu nome, e se eu fosse honesta,
às vezes me via ansiando por aquele vazio em minha mente e meu coração, onde o luto não me
perseguia. Mas meu pai merecia ser lembrado, e sua partida merecia ser lamentada.
Então absorvi aquele espaço e a sua falta, esperando que a dor fosse sufocante, mas eu
consegui mantê-la sob controle, permiti que a saudade apertasse meu peito, mas também me
lembrei de ser forte como ele havia me ensinado. Eu seria a mulher que ele havia me criado para
ser. Eventualmente eu conseguiria fazer isso sem querer arrancar meu coração do peito.
Então eu desviei o olhar do livro sobre a mesinha e caminhei para a cozinha, onde todos se
reuniam.
Minha mãe parecia satisfeita com as companhias, sorrindo levemente porque agora a casa
não estava completamente silenciosa. Mas algo no olhar dela nunca mudaria: um pedacinho de
tristeza que provava que ela nunca voltaria a ser inteira.
— Bom dia, filha! — Ela se levantou e beijou minha bochecha. — Serena já me colocou a
par dos ocorridos, e fiquei feliz que conseguiu lidar com tudo apesar de Ravenna.
Quando percebi Jasper ali, olhando de mim para Nathan e de Nathan para mim, eu voltei a
corar. Eu sabia que Serena não havia contado tudo, mas mesmo assim era estranho.
— Sim — murmurei, me sentando. — Também já falei com Freya e ela enviará o livro em
breve.
Lore assentiu.
— Tentei encontrar algo na internet sobre alguém chamado Hilina, mas tudo que apareceu
foi fotos de pessoas aleatórias e uma correção para o nome “hialina”. Quem quer que essa pessoa
seja, os humanos não têm ideia sobre sua existência — ela contou.
Eu imaginava. Desde que descobri sobre o mundo dos Protetores, eu raramente usava
internet. Parecia sem sentido. Humanos não tinham quase nenhuma informação relevante para
nós, e as que tinha eram habilmente manipuladas por interesses de terceiros. E ficar olhando o
Instagram, por exemplo, parecia sem graça quando eu não poderia compartilhar com meus
seguidores que estava lutando contra um vilão imortal.
Jonnah puxou um frasco do aparador atrás de sua cadeira e estendeu para Nathan.
— Um Protetor de Mahali apareceu aqui mais cedo para entregar esse elixir — disse. —
Aisha fez um frasco para você e outro para Lore. Ela espera que uma dose diária dele ajude a
impedir que Vicenzo entre na mente de vocês e controle suas vontades.
Nathan olhou o frasco meio desconfiado.
— Você já testou? — perguntou a Lore.
— Tomei assim que me entregaram. — Deu de ombros. — Vicenzo não tem tentado me
controlar ultimamente, mas se acontecer, espero que essa coisa nojenta funcione.
Nathan me olhou, então tomou sua dose diária, fazendo uma careta ao engolir.
— Porra, que horror.
Meus amigos riram em resposta à careta de Nate, mas Lore continuou séria quando disse:
— Eu avisei. Estamos definitivamente pagando todos nossos pecados.
Ele cerrou os olhos.
— Foi arrancada da cama por um bando de Protetores hoje? — Ela balançou a cabeça. —
Então não está tendo muito motivo para reclamar, Lorena.
Como resposta, minha amiga lhe mostrou a língua e voltou a rabiscar palavras em um
livro.
— O que está fazendo? — questionei.
— Se a dica do além não funcionar — ela olhou Nathan de esguelha —, com todo respeito
à sua mãe. — Bateu o indicador no livro velho que lia. — Pode ser que essa porcaria tenha algo a
ajudar.
— É o livro que estava lendo na Amazônia? — Serena perguntou.
— Sim. Chato pra cacete.
Minha mãe estalou a língua.
— Vocês estão com a boca muito suja — replicou. Então ela se virou para Jasper. —
Conseguiu descobrir algo sobre a movimentação da elite?
Ele balançou a cabeça, tomando um gole de café. Seu cabelo estava um pouco maior que o
de costume e, devido ao frio, sua pele estava mais pálida, deixando a linha de cicatriz em seu
pescoço mais exposta. Toda vez que eu a observava, me lembrava de sua história e era
consumida pela vontade de abraçá-lo.
— Descobri que sua mãe e Ravenna estão fazendo tempestade em copo d’água. Agora com
o retorno de Alyssa, grande parte da elite voltou a ter esperanças na guerra através das vias
tradicionais, ou seja, a Fidly lutando na linha de frente e matando Vicenzo, assim cumprindo a
profecia. — Quando ele me olhou, parecia receoso. — O problema é que agora estão tentando
usar seu relacionamento com Nathan contra você e a favor da ideia de que os Protetores precisam
se tornar páreos para Vicenzo.
— Por isso precisamos descobrir como quebrar o juramento o mais rápido possível —
Serena concluiu. — Se mostrarmos aos Protetores uma saída, e uma saída que um Desertor está
disposto a tomar, nem mesmo Akantha conseguirá argumentar o suficiente para manter Nathan
como vilão.
— Estou lendo o mais rápido que posso! — Lore avisou, e Jonnah deu dois tapinhas em
suas costas.
— Honestamente? A movimentação da elite é o menor de nossos problemas — falei. — As
Guardiãs não irão conceder imortalidade independentemente dos argumentos que usarem.
Ravenna e Akantha podem criar um burburinho, mas nunca passará disso.
— O problema não é conseguirem ou não a imortalidade, Aly — Roman argumentou —,
mas o que podem fazer se levarem Protetores demais a defenderem a ideia. Para deixar seu ponto
claro, poderiam simplesmente parar de lutar.
— E quanto mais seres banidos de outras dimensões se unirem a Vicenzo, mais difícil essa
guerra fica e mais argumentos elas criam — Jonnah completou. — Akantha é ardilosa.
— Então talvez devêssemos parar de dar palco à elite — minha mãe interferiu. — Essa
organização não é justa. Os Protetores vivem em uma sociedade completamente preconceituosa
que, na maioria das vezes, empurra Protetores considerados inferiores a desertar. Se cortarmos a
influência da elite, podemos ressignificar toda a estrutura hierárquica.
— Mas a elite é elite desde que os Protetores foram criados. Começou com os herdeiros
diretos dos guerreiros originais, então os herdeiros de sangues-puro — Serena argumentou. —
Nos anos que vivi em Paris, não lembro de ter havido um único líder que não pertencesse a uma
das famílias tradicionais.
— Isso é porque não ensinamos que qualquer Protetor pode liderar — mamãe respondeu.
— Se considerarmos os mais habilidosos ou os mais inteligentes, e não as indicações, a liderança
pode ser muito mais útil. E para isso, começamos com as crianças. As ensinamos a lutar, mas
também a tomar a frente. Caso contrário, continuaremos nesse ciclo eterno.
Isso queria dizer mudar toda a estrutura. Começar do zero sem realmente poder começar
do zero. E isso levaria tempo.
— As Guardiãs não podem interferir diretamente, mas podem legitimar certos avanços —
propus. — Podemos procurar meios democráticos para defender a ruptura da elite.
Os olhos cor de mel da minha mãe brilhavam ao me encarar.
— Seu pai teria dito algo assim.
Acho que ela não poderia ter me feito um elogio maior.

Nathan, Jasper e Serena saíram para averiguar o perímetro e ter certeza de que não haviam
Desertores por perto. Jasper estava estranhando que, desde que voltamos ao Lago, ele tem sido
bem menos atacado, enquanto dias atrás, haviam Desertores tentando quebrar a barreira de
Proteção o tempo todo.
Jonnah, minha mãe e Lore estavam buscando informações que pudessem me ajudar na
hora de canalizar energia para matar Vicenzo em alguma das anotações do meu pai. Eu me
esquivei dessa tarefa, dizendo que queria dar uma olhada no Lago, ver se eu “sentiria” alguma
coisa. Tudo baboseira para não precisar encarar a letra cursiva refinada de Henry Monroe. Eu
não tinha ideia como minha mãe estava conseguindo fazer aquilo sem desmoronar.
O Lago estava calmo, recuando e avançando languidamente. O ar estava frio e o vento
cortava meu rosto. Já era dezembro, perto das festividades humanas, e em breve deveria começar
a nevar. Por sorte, os couros dos Protetores eram isolantes, e apenas uma blusa térmica por baixo
já fazia milagres.
— Eu odeio o inverno.
Eu não me virei para encarar o dono da voz, mas sorri levemente.
— Você e Nathan são tão parecidos em certas coisas que não faz sentido terem se odiado
por tanto tempo — eu disse.
— Talvez eu esteja me sentindo um pouco insultado — Roman retrucou. — Nathan é
sinônimo de caos.
Lancei um olhar para ele.
— Roman deveria ser de calmaria?
Seus cabelos balançaram com o vento, mas Roman não os prendeu. Enquanto no verão ele
vivia com os fios presos, agora no inverno parecia se amparar no comprimento mais longo para
se proteger do frio.
— Talvez sensatez — ponderou, rindo.
Concordei levemente.
— Ele não está perdendo uma oportunidade para te cutucar sobre Serena, não é?
Seus olhos se arregalaram e ele se virou para mim.
— Puta merda, até você?
Ergui minhas mãos, em sinal de paz.
— Ei, eu falei para ele ser mais discreto.
— Nathan não conhece essa palavra. — Revirou os olhos. — Mas de qualquer forma, eu
nem sei se é real.
— Seus sentimentos ou os dela?
Ele deu de ombros.
— Os dois, acho. — Seus olhos vasculharam a imensidão azul. — Agora que estou
voltando a ter completo controle do meu próprio corpo desde que acordei do coma, e sinto que às
vezes ela se preocupa tanto porque passou todo o tempo em que eu estava desacordado cuidando
de mim. E não sei... Acho que ela fez muito, enquanto eu não pareço fazer nada.
— Para gostar de alguém você não precisa dividir a carga pela metade para cada um.
Enquanto eu estava em Florença, Nathan carregava pelo menos 98% dos nossos problemas
porque eu não tinha ideia de quais eles eram — falei. — É sobre estar presente e disposto, mais
do que equiparado.
Por um longo tempo, Roman apenas me encarou.
— Eu estava errado sobre ele — disse, sério. — Quando tentava te dissuadir a ir atrás dele,
eu não sabia a verdade. — Ele se sentou nas pedras, encarando o Lago. — E a verdade é que
Nathan é leal, e mesmo que não faça muita questão de demonstrar, ele é bom. — Então ele
estalou a língua, franzindo o cenho. — Bem, quase sempre é bom.
Eu sorri, me sentando ao seu lado.
— Fico feliz que vocês sejam amigos novamente.
— Eu sinto vontade de matar ele? Em muitas ocasiões. Mas vou me acostumar com a
tentação.
Dessa vez minha risada foi alta e até me surpreendeu. De repente, ele começou a rir
comigo. Quando o riso cessou, tudo o que sobrou foi o barulho do vento e das pequenas
ondinhas.
— Consegue sentir alguma coisa? — perguntou.
Balancei a cabeça.
— Só o de sempre. Consigo sentir a magia que rodeia esse território e como ela não está
exatamente contente com a presença de dois Desertores aqui. E posso sentir que há algo no Lago.
Forte.
Roman franziu o cenho.
— Não consigo sentir nada vindo do Lago.
— Nada?
Ele negou.
— Nada.
Observei o movimento da água com atenção redobrada. Quem sabe aquela era a
informação que eu precisava para confirmar o aviso de Diana: eu poderia conseguir encontrar o
Tesouro porque era a Fidly. Será que eu poderia rastrear o objeto a partir daquela energia que
parecia pulsar?
Estiquei as mãos, lançando duas cordas de luz que deveriam seguir o rastro de magia que o
Tesouro deixava. Elas flutuaram por metros e metros à frente, espiralaram uma ou duas vezes,
mas então retornaram com pressa, sem que eu ao menos as convocasse.
O que quer que fosse o Tesouro, não estava ansioso para deixar seu esconderijo.
CAPÍTULO 54

Eu estava voltando para o Lago sozinho — Serena e Jasper ficaram encarregados de ver
como estava o Outro Lado desde que eu e Alyssa o deixamos —, quando o ar pareceu ficar mais
denso de magia. Detive meu passo e olhei para os lados, procurando a fonte, uma adaga em
mãos, já pronta para ser usada.
Então Freya se materializou à minha frente.
— Você é rápida — comentei, baixando a arma.
A Guardiã me lançou seu típico olhar afiado e estendeu um livro que parecia mais velho
que ela. Avancei para pegá-lo, mas ela hesitou.
— Estou quebrando muitas regras te entregando este livro, garoto.
Cerrei os olhos.
— Eu vejo isso mais como você entregando algo que pedimos sem ter ideia do porquê
queremos.
Seus olhos azuis viraram linhas finas enquanto ela me analisava. Eu poderia vê-la como
aquelas princesas feudais de séculos e séculos atrás. Bonita, mas fria como gelo. Contudo, eu
arriscaria dizer que essa frieza toda e o olhar assassino eram características que havia herdado
após ser abençoada como Guardiã. Princesas, mesmo de feudos, deviam ser tão doces quanto as
dos filmes da Disney.
— Você não é tão esperto quanto finge ser.
— Ei, este é um encontro com o simples objetivo de me ofender?
Ela estalou a língua.
— Por favor, garoto, tenho muito mais o que fazer. — Ela entregou o livro, batendo-o
contra meu peito. — Aliás, Vicenzo ainda está em Florença, mas meus Protetores tem tentado
interferir na movimentação dos Desertores. Todos os dias muitos deles deixam ou chegam à
cidade.
— Nenhum Protetor conseguiu se infiltrar?
A Guardiã negou.
— Não sem que me enviassem suas cabeças de cortesia.
Estava muito claro que o único motivo pelo qual eu consegui entrar naquela cidade era
porque Vicenzo queria que eu entrasse. Mesmo tendo Alyssa presa e sem memórias, ele ainda
queria me usar. Eu não entendia aquela obsessão e às vezes eu pensava ser tudo por causa da
minha beleza, porque não havia qualquer outra razão lógica.
— Ele está planejando algo.
— Obviamente — respondeu, amarga.
Arqueei uma sobrancelha.
— Vai descobrir o que é?
Ela bufou.
— Faça sua parte e descubra como quebrar a porcaria do juramento para que você não seja
um problema para nós — murmurou. — E deixe os planos de Vicenzo comigo.
Eu queria rir. Em anos de avanços e ataques, Freya nunca pareceu fazer nada para impedir
Vicenzo, fosse por causa da balança ou apenas porque não faria porcaria nenhuma mesmo. Era
quase cômico ouvi-la falar assim agora, mas eu segurei minha língua. Eu não estava interessado
em irritá-la. A mulher era assustadora.
Balancei a cabeça e comecei a me virar para seguir em direção ao Lago, mas ela me
interrompeu:
— Nathan. — Eu me virei. — Esse livro é enorme, mas há uma parte especialmente
interessante a partir da página 319. O mito de Hilina deveria ser conhecido por todos — disse,
sugestivamente. — Nunca se sabe quando será preciso se inspirar em uma mulher que fugiu da
opressão.
Eu sorri, satisfeito com suas dicas.
— Claro. Mulheres lutando contra sistemas opressores é de longe meu tipo de história
favorito. Alyssa me apresentou a muitas dessas — comentei vagamente. — Você não vem para o
Lago?
Freya negou, magia começando a fluir de suas mãos enquanto ela começava a se
desintegrar no ar.
— Tenho um plano para descobrir na Itália — disse. — E uma Feiticeira para enfraquecer.

— Estou em dúvida se minha Guardiã favorita é Freya ou Aisha — Lore murmurou, se


ajeitando ao lado de Alyssa, que folheava o livro. — Aisha é tão fofa e educada e mística... Mas
Freya é bem entojada e tem aquele ar de fodona.
Revirei os olhos. Lorena não tinha a porcaria de um filtro.
— Cassandra também é fodona. Aliás, Aisha é fodona pra caramba — Alyssa retrucou.
Lorena bufou.
— Claro, mas Aisha é fodona de um jeito super carismático e, talvez seja o poder dela, mas
eu me sinto impelida a abraçá-la. É estranho — disse. — E Cassandra é fodona, mas facilmente
me mataria enquanto durmo.
Bufei uma risada.
— E Freya não?
Lorena pareceu genuinamente pensar no assunto, mas antes de responder, Aly soltou um
gritinho de triunfo e bateu o dedo no papel.
— Aqui! Achei.
Eu e Lorena nos aproximamos para espiar sobre seu ombro. O livro era tão grande que a
página custava ficar aberta propriamente sem a mão de Alyssa sobre ela. E tão velho que as
letras estavam um pouco desbotadas em algumas palavras. Mesmo assim eu consegui desvendar
o título escrito em latim:
“O mito de Hilina”.
— Você fala latim? — Lore questionou, surpresa.
Eu e Aly balançamos a cabeça em concordância ao mesmo tempo.
— Meu pai me ensinou — ela respondeu, melancolia presente em sua voz.
Henry me ensinou um pouco também, mas depois um dos Protetores do Outro Lado
terminou o trabalho. Para Brian era importante que eu soubesse a língua morta para caso um dia
eu me deparasse com ela. Em vinte anos de vida, foram poucas as vezes que usei aquele
conhecimento. Mas conhecimento era poder e sempre vinha a calhar eventualmente.
— Ótimo, sou a mais burra do recinto — a Desertora murmurou. — Vamos, traduzam.
Então Aly começou, sem nem mesmo vacilar nas palavras mais estranhas:
— “Hilina era a mais bela do reino da perdição. Sua pele cor de âmbar não era pálida como
a dos outros, e seus olhos verdes-água eram tão vívidos quanto o deus que respirava embaixo da
montanha que energizava toda a dimensão. Mas nem sua beleza poderia lhe salvar da sua maior
sina: Hilina era uma mulher.”
Nenhum de nós disse nada enquanto Aly continuava a ler, os olhos vidrados nas letras, a
história se aconchegando entre nós como se fôssemos velhos amigos.
— “Hilina foi trancafiada no castelo do rei Draco desde o momento em que começara a
andar. Sua mãe, escrava de um macho poderoso daquela dimensão, não pôde fazer nada quando
o homem vendeu a filha. Então, por anos, Hilina cresceu trancafiada e subjugada pelo rei
maldito.”
“Draco era a força mor de Valáquia. Em Valáquia, seus reis subiam ao trono devido à força
de seu sangue, sendo sangue o artefato mais valioso daquela dimensão. Machos como Draco,
passavam a vida cultivando aquele artefato, bebendo e subjugando sua fonte para serem mais
fortes, mais poderosos, mais influentes. E as fêmeas passavam eternidades etéreas tendo suas
veias drenadas, seus corpos escravizados e suas mentes assombradas. E por isso, ser uma mulher
em Valáquia era uma sentença pior que a morte.”
— Isso é real? — Lore perguntou, parecendo assustada. — Há mesmo uma dimensão onde
exista vampiros e as mulheres são escravizadas pelos homens?
A mão de Alyssa estava cerrada sobre o livro, o rosto fechado.
— Mulheres sendo subjugadas por homens não me surpreende tanto quanto o fato desses
homens beberem sangue — murmurou. — Não é muito diferente do que esta dimensão já viu e
vê frequentemente.
Ela não estava errada. Havia tantos absurdos feitos por homens, fossem humanos,
Protetores ou Desertores, contra mulheres mesmo nessa dimensão que devia ser mais difícil
imaginar um mundo em que houvesse igualdade entre ambos os gêneros. Se eu pensasse muito
na subjugação, na violência, no abuso... eu me sentiria profundamente envergonhado. Mesmo
Aly, tão protegida quanto havia sido, ainda acabou sofrendo nas mãos malditas de um homem,
que lhe tirou mais que a liberdade, mas sua própria mente.
Em certos momentos eu me questionava como as mulheres simplesmente não haviam
criado um muro entre elas e todos os demais homens do mundo.
Mas Aly inspirou fundo e continuou lendo:
— “Quando Hilina completou seus dezesseis anos, Draco a convocou pessoalmente e, não
pela primeira vez, a fêmea foi humilhada e completamente destruída. Nas manhãs, quando ela
era jogada de volta em sua cela e tinha certeza de que não havia mais sangue e nem mesmo mais
força em si mesma, Hilina contemplava a beleza da morte. Mas morte não é, de modo algum,
comum àquele povo.”
“Após ter certeza que queria Hilina por, pelo menos, os próximos séculos seguintes, Draco
a fez jurar com sangue, em seu nome e sua honra — a qual ninguém realmente esperava que ele
possuísse — que estaria ligada a ele, e que faria de seus dias do seu total usufruto. Naquele
momento, Hilina sentiu que havia morrido.
“Noite após noite, ano após ano, década após década, Hilina se tornou mais como uma
casca e menos com um ser vivo. A escravidão e o abuso faziam isso, lhe tiravam a mais singular
das características: sua essência. Ela observava as demais fêmeas que encontrava de vez em
quando e sentia nelas a completa falta de esperança que Hilina sentia em si mesma. Mas,
enquanto olhava aquelas fêmeas completando séculos de abuso, os olhares perdidos sobre pontos
vazios, Hilina tentou encontrar força dentro de si. Tentou.
“Quando a deusa da escuridão, de olhos e cabelos negros como a noite e um sorriso etéreo
nos lábios surgiu do mais completo vazio, e encontrou-se com o rei sádico, Hilina sentiu o peito
se inundar com algo que nunca havia sentido antes: esperança. Seria ela a deusa que finalmente
viera para salvá-las? Não aquele deus maldito, adormecido sob a montanha, mas os deuses bons,
aqueles que lutavam contra o poder opressor em Valáquia. Seria ela a salvação? Hilina só podia
pensar que sim. Enquanto observava as vestimentas pretas e fluídas da deusa, e as armas
incrustadas de joias em sua cintura, Hilina acreditou que ela destruiria o patriarcado e libertaria
as escravas.”
— Espera — Lore interrompeu. — Esta é Nixya? Nixya vai ser a salvação de Hilina e
como quebrar a porcaria do juramento?
— A descrição é bastante parecida — murmurei.
— Não — Aly nos cortou, os dedos passando pelas linhas seguintes, enquanto ela lia
rápido e silenciosamente. Seu olhar sobre as páginas era sombrio. — Ela não vai salvar ninguém
— então ela continuou: — “Hilina, porém, foi decepcionada quando tudo o que a deusa fez foi
um acordo com Draco, pedindo-lhe apoio em uma guerra que um dia chegaria. Pedindo-o
exércitos e lhe dando uma nova dimensão para usufruir.”
— Que filha da puta — Lorena rosnou.
— “Hilina então soube que não poderia contar com ninguém. As fêmeas que poderiam
querer o mesmo que ela estavam tão fracas, tão cansadas, que mal podiam erguer os próprios
corpos. Hilina queria fugir, mas o juramento não permitia, e ela sabia que nunca conseguiria
matar Draco naquelas condições. Naqueles dias sombrios, deixar aquele mundo nunca lhe
pareceu tão boa ideia. Mas sempre que via uma das fêmeas caírem de exaustão, ou finalmente,
depois de séculos, partirem para o além-mundo, Hilina redescobria sua coragem e prometia a si
mesma: ela não cairia sem lutar.”
“Um dia, enquanto Draco a drenava viva, veio-lhe à cabeça: o pacto de sangue funciona
porque o sangue representa a força vital e se não há vida, não há pacto. Se não há sangue, não há
força. Hilina sabia mais do que tentar privar Draco de sangue, mas também sabia que se seu
coração não bombeasse, então não haveria juramento algum que a prendesse.”
— Ela vai se matar? — Que porra de solução minha mãe pensava que isso seria?
— “Hilina encontrou, depois de muito buscar, uma forma de parar o próprio coração e,
assim, se viu livre pela primeira vez na vida.” — Aly parou de ler, os olhos correndo pelo texto,
buscando algo mais. Então ela parou e apontou para uma linha. — “Hilina, de alguma forma,
sobreviveu. Seu coração parou, mas voltou a bater e, dessa vez, livre. Dizem que desapareceu
com o sol em seu pico, atravessando um dos portais que Nixya havia deixado de presente para
Draco. Com ela, Hilina conseguiu levar algumas fêmeas, mas para aquelas que ficaram para trás,
a mulher deixou um aviso: elas poderiam se erguer. E se erguer livres.”
— Como diabos ela não morreu? — Lore perguntou, em uma voz irritantemente estridente.
— Não sei. Aqui não fala.
Aly não disse nada, mas continuou encarando as páginas, e eu quase podia escutar as
engrenagens do seu cérebro se moverem.
— A história não está completa — murmurou. — Há algo que o autor desse livro deixou
para trás.
Lorena se jogou em uma cadeira, bufando.
— Estamos fodidos, Nathan.
Não, ainda não.
— O livro diz que Hilina atravessou um portal deixado por Nixya — eu disse. — Nós
sabemos que Nixya estava fazendo parcerias com outras dimensões para tornar a Terra uma
espécie de Suíça, neutra e de fácil acesso a todos. O portal pelo qual Hilina passou muito
provavelmente a trouxe até aqui.
— Nós nem sabemos a data dessa história — Lorena retrucou.
— Mas sabemos que Hilina não envelhece como nós ou os humanos — insinuei.
Os olhos de Alyssa encontraram os meus.
— Você quer tentar encontrá-la — constatou.
Dei de ombros.
— Pelo bem da história.
CAPÍTULO 55

— Aparentemente, Hilina pode estar em uma ilha no Atlântico, próximo às Bahamas. É o


único local que Freya conhece que teve um portal em algum momento no milênio passado —
minha mãe informou. — Freya disse que pode buscá-lo antes do amanhecer e levá-lo até lá.
Nathan estava certo que encontraria a mulher do mito e descobriria o que o livro não nos
contou: como Hilina se matou para quebrar o juramento e ainda assim voltou à vida em seguida.
Mas enquanto eu olhava para ele e ouvia seu plano, tudo o que eu queria era pedir que ficasse,
que não seguisse com essa ideia absurda. Será que ninguém aqui entendia que o principal passo
para quebrar o juramento de sangue de acordo com Hilina era literalmente se matando?!
Havia ficado claro que eu não poderia ir junto, porque havia muito o que resolver aqui. Até
agora eu não tinha a mínima ideia de como pegar o Tesouro e sem ele, essa guerra continuaria se
estendendo. Mas eu não queria deixá-lo ir sozinho também.
Puxei Nathan pela mão, nos afastando um pouco dos nossos amigos que discutiam as
informações que havíamos recolhido sobre a ilha.
— Não precisa fazer isso — eu disse, a voz baixa apesar de ter certeza de que meus amigos
poderiam escutar se quisessem. — Talvez não seja a melhor estratégia nos separarmos agora.
Principalmente deixar o Lago pode ser arriscado considerando a movimentação dos Desertores.
Aqui você está seguro.
O azul em seus olhos parecia me consumir.
— Aly, aquele elixir terrível que Aisha fez está funcionando, mas não vai durar para
sempre — falou, parecendo dividido entre ir e ficar. — Eu odeio isso. Odeio essa porcaria de
marca horrenda em meu peito e odeio ser chamado de Desertor. E estou apavorado com a
possibilidade de acordar novamente sendo possuído por aquele desgraçado.
Não parecia certo que ele saísse nessa busca sem mim. E se o atacarem? E se o elixir
acabar ou não fizer efeito e Vicenzo o controlar? Mesmo os Protetores eram uma ameaça, porque
sem ordens diretas, eles não hesitariam em atacar Nathan. Se eu ao menos pudesse ir com ele, eu
poderia garantir que ninguém o tocaria.
— Eu vou matá-lo, Nate — eu disse, determinada. — Você não precisa fazer isso. Mesmo
que ela tenha uma forma de voltar a vida, você teria que morrer. Eu não acho que vale o risco.
Quando eu matar Vicenzo, o juramento será quebrado de qualquer forma.
Ele ergueu a mão e tocou meu rosto. O mais leve dos toques, devoto, carinhoso. Seus
dedos percorreram minha pele deixando uma trilha de eletricidade pelo caminho, até que sua
outra mão também encontrou minha pele e ele puxou meu rosto para junto do seu. Testas se
tocando, sua respiração roçando meus lábios.
— Acha que eu arriscaria minha vida sabendo que tenho você pra quem voltar? —
sussurrou, e eu precisei lutar contra as lágrimas e o pânico desesperador que começava a me
tomar. — Acha mesmo que eu arriscaria perder isso?
— Nate...
— Eu vou atrás de Hilina porque ela tem a resposta para o que a gente precisa. Porque não
quero que você precise correr contra o tempo para matar Vicenzo e acabar se matando no
processo — explicou. — Vou atrás de respostas, amor, porque quero poder dormir uma noite
inteira ao seu lado em paz.
Sua boca encontrou a minha no mais leve dos beijos. Um beijo que selava uma promessa.
"Vou voltar para você, amo." — ele disse em minha mente e a certeza em sua voz, em seus
olhos, me fez confiar um pouco mais que isso não seria um adeus. "Eu prometo."
Eu o puxei, meus braços se prendendo em volta dos seus ombros e meu rosto se enterrando
na curva de seu pescoço enquanto eu inspirava fundo e tentava aceitar sua decisão. Ele teria
aceitado a minha.
— Você não ouse quebrar essa promessa.
Senti seu peito vibrar quando ele riu, me abraçando apertado de volta.
— Nem nos meus piores pesadelos.
Quando nós nos soltamos, ouvindo alguém se aproximar incerto, eu ainda tinha aquele
peso no peito que me forçava a inspirar profundamente para não sufocar.
Nós encaramos Lore que nos olhava com certa preocupação.
— Hum, obviamente eu vou com Nathan — ela falou. — Já que estamos no mesmo barco
e tudo mais.
Eu sorri, agradecida. Se eu não poderia ir junto, me acalentava saber que alguém iria.
— Eu vou com vocês também — Roman afirmou, um pouco atrás de Lore. — Nunca
visitei o Caribe, vai ser interessante.
Nathan revirou os olhos, empurrando Roman enquanto passava por ele.
— Foco na missão, Scott.
Roman sorriu.
— Focado pra caramba em salvar a sua bunda, Cross.
Eles continuaram trocando farpas animadas, enquanto nossos amigos se dispersavam. Eu
reparei no olhar aflito de Serena para Roman, mas ela não disse nada. Suspirei e passei meus
braços sobre seus ombros, seguindo os garotos para o Lago. O dia estava frio pra caramba, mas
eles estavam determinados a tentar sentir a energia mágica vindo do Lago — provavelmente
vinda do Tesouro — que eu havia sentido antes.
— Eles vão ficar bem — Lore disse ao nosso lado. — Não vou deixar que façam nada
muito idiota.
Apertei sua mão, agradecida. Dentre todas as coisas terríveis que eu fiz em Florença, sua
amizade foi a única boa.
O tempo passou rápido entre brincadeiras estúpidas e conversas sérias e quando me dei
conta, já havia anoitecido.
Traçamos planos e Jasper instruiu Nathan, Roman e Lore para a missão no Caribe. O
Protetor estava determinado a garantir que todos os três voltassem são e salvos, o que já dizia
muito visto que ele mal conhecia Lore e odiava Desertores tanto quanto um cristão odiava o
pecado. Eu sabia que era difícil para ele ver Nathan com aquela marca, mas sabia que ele o
amava como amaria um filho e, por isso, virar as costas para ele — quando claramente ainda era
o mesmo e se mantinha leal aos Protetores — nunca foi uma opção. Mas o fato de não tratar Lore
com a aversão que normalmente dirigiria a um Desertor dizia muito sobre seu caráter. E, às
vezes, eu me pegava pensando se algo na garota não o lembrava da própria filha. Lore não era
muito mais velha do que Clarissa devia ter sido quando foi assassinada. De qualquer forma, ele
demonstrava maior decência do que eu esperava.
Quando a lua já estava alta no céu escuro, eu e Nathan nos despedimos dos outros e
levantamos junto com Zeus para ir para sua casa. Ele foi tomar banho e, depois de alguns
segundos, eu me juntei a ele. Enquanto eu tentava memorizar cada pedacinho dele, e tentava
guardar seu cheiro, seu toque, sua presença em mim, fiz com que prometesse que não demoraria
e que ficaria a salvo. Que viria embora assim que tivesse sua resposta e só então decidiríamos o
que fazer e como fazer.
E, enquanto me beijava e se perdia em mim, Nathan prometeu que faria isso. Que voltaria.
E que passaria noites em claro comigo depois que voltasse. Aquilo me fez sorrir e arfar, porque
tudo o que ele fazia parecia aquecer partes de mim que eu nem imaginava existir. Cada toque era
um acordo em nossa promessa. Cada beijo era uma despedida que não foi feita para durar.
E pouco antes do sol nascer, nós ouvimos Freya bater à nossa porta. Nathan se levantou já
pronto para ir. Se despediu de Zeus, e então novamente de mim. Talvez ele tenha me beijado por
um minuto longo demais, mas eu poderia ter pedido por pelo menos mais trinta.
Quando Nathan deixou a casa, ela pareceu vazia demais e meu coração angustiado não
parava de criar ideias do que poderia dar errado. Este era o problema do amor. Quando se ama, o
medo passa a ser seu companheiro. Tudo te apavora porque, de repente, você entende que amar é
sofrer com a dor da partida.
Minha mãe era exemplo disso. Se recusava a dormir em qualquer lugar que não a cama que
dividia com meu pai, porque era onde ela podia ter parte dele. E vivia, mas vivia perdida na
saudade porque amava. E amar era, uma hora ou outra, sofrer com o ausente.

Eu não podia ficar parada enquanto Nathan e os outros se arriscavam para encontrar uma
forma de quebrar o juramento. Eu tinha trabalho a fazer. O Lago não havia se tornado um
enigma menor, então decidi enfrentar a pior opção disponível: dar uma espiada no Outro Lado.
Literalmente.
Eu iria, literalmente, espiar.
Atravessei para o Outro Lado com destreza, encontrando Serena a menos de dois metros da
costa.
— Você demorou — saudou.
Serena estava toda vestida nos couros dos Protetores, as tranças presas em um rabo de
cavalo alto que deixava o contorno de seu rosto ainda mais nítido. Minha amiga tinha um rosto
de uma modelo, mas a postura de uma aristocrata que poderia muito facilmente arrancar suas
tripas do corpo.
— O seu humor me diz que não vou me divertir aqui hoje.
Ela estalou a língua, uma careta estampada no rosto.
— Você não esperava se divertir — resmungou.
Bufei uma risada.
— Eles vão ficar bem, Serena.
Ela cruzou os braços, tensa. Preocupada.
— Não tem como saber disso. É um plano arriscado.
— Como todos são. — Eu me aproximei, observando os Protetores que caminhavam pela
praça me encarando com curiosidade. — E eu sei que se preocupa com Roman, mas eles vão
cuidar um do outro.
— Roman está em uma missão com dois Desertores, Aly. — Franzi o cenho e ela percebeu
meus desagrado com sua escolha de palavras. — É verdade. Isso é o que são por enquanto. Eu
entendo, juro que entendo que Nathan e Lore estão lutando ao nosso lado independentemente de
suas condições. Mas ainda é um fator relevante, e se Vicenzo conseguir controlá-los...
— Ele não vai — eu a cortei. — O elixir está funcionando e essa missão vai nos dar uma
forma de quebrar o juramento. Tudo vai se resolver.
Minha amiga assentiu, tentando parecer mais otimista do que de fato estava.
— Eu espero que sim. — Ela se aproximou e ajeitou a espada presa às minhas costas. —
Só estou preocupada.
Assenti.
— Claro, você está apaixonada pelo Roman.
Seus olhos se arregalaram, sua boca se abriu um pouco como se estivesse prestes a falar
algo, mas nada saiu. Arqueei minha sobrancelha e esperei o momento de compreensão.
— Eu não sou apaixonada por ele! — conseguiu balbuciar. — Caramba, Alyssa, você
bateu com a cabeça em Florença?
Cerrei meus olhos.
— Você está apaixonada por Roman — reafirmei. — Inclusive, desde antes de eu ser
levada para Florença.
— Não estou.
Revirei os olhos. Porra, que difícil!
— Está sim, Serena.
— Eu apenas disse que ele é gostoso! Isso é um fato, não uma declaração de amor eterno.
— Cuidar dele enquanto estava apagado é. E olhar para ele da forma que olha, também é.
Não precisa ser eterno, mas pare de mentir para si mesma — reclamei. — Aliás, vocês dois
deveriam tomar um pouquinho de coragem e agir. Uma guerra está vindo bem em nossa direção,
Serena — avisei —, faça o favor de aproveitar enquanto pode.
Por um segundo, ela pareceu pensativa, mas logo estava balançando a cabeça de novo e me
dispensando com uma mão.
— Não vamos falar disso. Estamos aqui a trabalho, lembra?
Dei-lhe um sorriso de quem sabia muito bem. E que também sabia que ela não queria falar
sobre seus sentimentos porque eles eram tão reais que a assustavam. Serena era esperta, em
breve chegaria a essa conclusão.
— Tudo bem. — Alguns Protetores começavam a se aproximar e, ao me ver observar,
apenas se curvavam e seguiam seu caminho. — Onde estão as crianças?
Não havia nenhuma por perto, apenas os adolescentes que em breve receberiam a
tatuagem.
— Jasper os levou para uma atividade na floresta — Serena contou. — Ele quer fazê-los
perder um pouco do medo enquanto voltam a treinar o básico.
Assenti. Boa sorte a Jasper. Mesmo que fossem guerreiros e estivessem familiarizados com
a dureza desse mundo, fazê-los esperar que eles não sentissem medo era demais, principalmente
depois de terem tido o único lugar em que poderiam se sentir seguros destruído pelo inimigo.
Essas crianças haviam visto seu santuário ser invadido e seus amigos e parentes serem
assassinados. Ensiná-los a lidar com aquelas memórias era uma história completamente diferente
de ensiná-los a lutar. Esperar que controlassem o medo com tão pouca idade era uma aposta
ousada. Eles haviam perdido muito e eram apenas crianças.
E a verdade é que nós aprendíamos a perder, mas perdíamos para aprender.
Atravessei a praça para as ruelas, Serena ao meu encalço.
— Aonde vamos?
Observei a ruela se abrir para a base da montanha e outra ruela contornando o entorno da
cabana principal, designada ao líder.
— Vamos espiar um pouco.
Serena sorriu.
— Eu já falei que senti sua falta?
Estendi minha mão em direção à cabana liberando o poder, incerta do que queria que ele
fizesse, esperando que pudesse me guiar de alguma forma até Ravenna e o que ela tramava.
Serena havia me dito mais cedo que a mulher estava sumida desde o dia em que a ataquei e, para
ser honesta, eu estava curiosa para saber o que estava fazendo desde então.
Fui surpreendida quando a luz manteve uma linha clara e ininterrupta que deixava a minha
palma e seguia um caminho entre as árvores, do lado oposto à cabana. Decidi confiar no poder
que agora era parte de mim mesma, e o segui através das árvores.
— Você sabe o que a luz está fazendo? — Serena questionou em um sussurro.
Fechei as mãos, mas a luz continuava ali, estendida como uma corda.
— Está nos guiando.
Os olhos de Serena pareceram brilhar com a compreensão e eu sorri um pouco. Ela
assentiu rapidamente e observou nossos arredores com mais atenção ainda, vasculhando cada
ponto na floresta pronta para encontrar aquilo que a luz gostaria de apontar.
O poder nos guiou por mais alguns metros adentro da floresta, e então nos deparamos com
uma agitação entre as árvores.
— Isso é absurdo! Há seres de outras dimensões se aliando a Vicenzo. Não podemos
apenas sentar e esperar sermos aniquilados! Precisamos de mais! Precisamos de uma garantia
nessa guerra.
A voz me atingiu como um tapa bem dado. Meus pés se estancaram no chão e raiva, pura e
irracional, fez meu sangue borbulhar.
— O que ela está fazendo aqui? — rosnei.
— Eu não sei — Serena respondeu, mais baixo. — Não a vi chegar.
Protegida por duas árvores, eu me esgueirei para mais perto, tentando ver o tamanho do
grupo que haviam conseguido reunir. Trinquei os dentes ao observar a mulher que carregava o
mesmo sangue que eu.
Akantha parecia ainda mais mortal que o comum. Os olhos marcados por um delineado
forte e os cabelos grisalhos curtinhos pareciam ter sido aparados recentemente, um dos lados
com um uma linha larga raspada. Sua expressão era séria, encarando o grupo de mais de seis
Protetores, além de Ravenna, que tinha um grande roxo próximo à sua mandíbula — cortesia
minha, eu imaginava.
— Nós estamos a um passo da completa destruição — Ravenna disse. — E quem precisa
nos proteger está ocupada demais tentando defender o inimigo.
Precisei cerrar os punhos para que a luz não se tornasse uma lâmina direcionada para a
garganta da ruiva.
— Ela ainda assim é a Fidly, Ravenna, e mostrou ter consciência de seu dever — um
Protetor que eu não reconheci interferiu. Eu tinha a impressão de que ele era um dos que vivia
em missões, como Brian. Não muito mais velho que Nathan, mas cheio de cicatrizes pelos
braços.
— Alyssa é a Fidly e, acima disso, é uma Nephus. O problema é a criação que teve.
Jasmine errou em dormir com um humano, mas mantê-lo por perto? Foi uma estupidez absurda e
fez a menina mais rebelde. Ela simplesmente não foi preparada para seguir nossas regras.
Aquilo foi o meu estopim. Saí de trás da árvore ao mesmo tempo em que luz explodiu na
exata forma de rebeldia que Akantha julgava que eu tivesse. Mas eu deixaria bem claro de quem
era a culpa.
Quando finalmente assimilaram minha presença, os Protetores recuaram e baixaram a
cabeça, mas não Ravenna e Akantha. Mesmo com o rosto machucado e a memória viva,
Ravenna apenas me encarou, cruzando os braços, mas se eu fosse apostar, apostaria que estava se
preparando para correr. Akantha, por outro lado, ergueu o queixo e me analisou de cima a baixo,
observando cada novo detalhe que poderia encontrar em mim. A luz espiralou no ar até encontrar
seu alvo. Ela circulou Akantha, pronta para estrangulá-la.
— Coloque o nome do meu pai nessa boca suja sua mais uma vez, Akantha, e eu quebro a
porcaria do seu pescoço!
Ela nem mesmo se mexeu, mas seu olhar era insolente, quase descrente da minha ameaça.
— Por favor, Alyssa, saiba se portar. Você não é uma adolescentezinha mais.
Meu punho erguido se fechou e a luz respondeu, apertando o pescoço de Akantha. Eu a
mataria. Eu poderia matá-la. Pelo que disse sobre meu pai ela bem que merecia. A velha
começou a engasgar, as mãos finalmente agindo e tentando se proteger do aperto, mas não eram
nada comparadas ao poder que fluía tão livremente de mim, alimentado pelo meu ódio.
— Fidly, ela é a líder da sede em Atenas — um Protetor se intrometeu, mas logo se calou
ao encarar meu olhar gélido.
Eu estava pouco me ferrando para o que Akantha era.
— Alyssa, eu ordeno que pare! — Ravenna gritou.
Bufei uma risada, a dispensando com um olhar enojado.
— Você não me dá ordens. — Me aproximei de Akantha, que tentou agarrar meu rosto,
mas foi bloqueada por uma parede quase invisível. — Vamos, vovó, fale. Abre a boca e fale
mais.
Ela bem que tentou.
— Não consegue, não é? — eu disse. — Vou falar por você, então preste atenção. Você,
Akantha, junto daquela ali — apontei para Ravenna —, são a própria escória dos Protetores.
Talvez mesmo se comparado a alguns Desertores, e devo dizer que conheci muitos deles nos
últimos meses. Mas você se esconde atrás de um papel que não lhe convém, e se autointitula elite
entre pessoas que foram abençoadas igualmente. Possuem a mesma tatuagem que você, e
provavelmente trabalham e se arriscam mais. — A luz cortou sua nuca, rasgando a tatuagem
marcada ali. Ela gritou, mas o som saiu esguichado. — E os humanos, Akantha, são bastante
diversos. Alguns são tão terríveis quanto você. Mas meu pai era mil vezes superior a você.
Mesmo em seu pior momento, Henry Monroe ainda era melhor que você. Porque ele era
humano, mas mais que isso: porque ele era honesto, e leal, e corajoso. E amor. Ele era sinônimo
de amor.
— Alyssa, você vai pagar por isso — Ravenna ameaçou, me interrompendo mais uma
maldita vez.
Luz forte, como a porra de uma avalanche, a arremessou para longe.
— Está entendendo, Akantha? — Tudo o que a velha fazia era me olhar com ódio.
Serena se aproximou, me chamando, mas eu não me virei para ela. Meu foco estava no
rosto de Akantha perdendo a cor.
— Aly, ela é a líder de Atenas. Você não pode matá-la sem colocar sua integridade na
linha.
A minha? Tudo o que aquela mulher fazia era destruir, corromper, quebrar. Ela não
merecia porcaria nenhuma. Havia criado os filhos como se não fossem nada mais que soldados.
Afastou minha mãe do próprio irmão. Quando o filho se voltou contra ela, Akantha o
desmoralizou e, mesmo depois da morte, o julgou por escolhas que fez ao amar uma humana.
Tirou Jonnah da própria mãe, porque não queria que ele fosse criado por uma humana, mas
nunca o tratou como neto de verdade. E ainda virou as costas para a minha mãe, a filha que até
então vivia para agradá-la, porque ela se apaixonou por um humano e se recusou a deixá-lo. E
julgou esse humano, meu pai, simplesmente porque não havia nascido fadado a lutar pela
balança.
Se Akantha fosse a personificação de uma história humana, poderia muito bem ser de
algum ditador maldito que encaminhou a humanidade para o completo caos. Fascista, elitista e
completamente desprovida de compaixão.
E por isso eu nunca seria uma Nephus, e sim sempre uma Monroe.
Serena tocou meu ombro, e eu fechei os olhos, tentando trazer um pouco do controle de
volta, ordenando à luz para obedecer meu comando. Recue. O poder mal parecia acreditar na
minha ordem, uma vez que não era realmente o que eu queria.
— Não vou matá-la, Akantha, porque não merece o fôlego que me faz perder. Mas toque
no nome do meu pai mais uma maldita vez, e eu juro que não vou recuar novamente — rosnei.
Erguendo um dedo, a cor voltando ao seu rosto enquanto minha luz recuava. — Mais uma vez,
Akantha, e mato você, porque não irá sujar o nome do meu pai com essa sua boca imunda.
Quando finalmente a soltei, ela caiu de joelhos. Ravenna hesitou em ajudá-la, mas logo
estava ao seu lado a puxando para ficar em pé. Eu as ignorei por um instante para focar nos
Protetores à minha frente.
— Realmente há novas peças no tabuleiro e essa guerra não será vencida facilmente. Isso é
um fato. Eu vi cada uma dessas peças e sei que há novas prontas para se unir a Vicenzo — os
informei. — Mas isso não quer dizer que Akantha e Ravenna estão certas. Imortalidade é o que
tornou Vicenzo no que é, e viver uma infinidade de vidas não nos fará vencer essa guerra. Eu
entendo a necessidade de se sentir mais seguro, mas esta não é a resposta.
— Nós entendemos, Fildy... — uma Protetora começou, mas eu a interrompi.
— Eu farei minha parte e vou matar Vicenzo. E Nathan, quem ela — apontei para Ravenna
— está tão empenhada em apontar como o inimigo, está em busca de uma forma de quebrar o
juramento que o faz um Desertor porque esta nunca foi sua escolha. Então vamos encontrar uma
saída para o juramento e há Desertores lá fora que irão querer usá-la tanto quanto Nathan e Lore,
porque desertaram por causa de pessoas como Ravenna e Akantha. — Respirei fundo, tão
cansada de tentar fazê-los ver o que estava bem à sua frente. — Olha, eu não conheço vocês,
quem sabe são pessoas tão ruins quanto elas, mas eu fui ensinada a acreditar no melhor até que
me provassem o contrário, então estou confiando na chance de que vocês são diferentes e possam
realmente escutar. — A Protetora assentiu e eu continuei: — Não há bem e mal dividido
simplesmente pelas marcas que carregam. E ir contra as Guardiãs não trará nada além de
problemas para todos nós. Apenas... lutem. Mas lutem pelo que é certo, pelo que vale a pena.
A Protetora parecia convencida, mas os outros Protetores nem tanto.
— Você está indo contra séculos de nossos costumes, nossas regras — um falou.
Balancei a cabeça, achando a situação quase cômica.
— Séculos de costumes e regras que não fizeram nada para acabar com essa guerra.
Costumes que empurram Protetores contra si mesmos, e regras que não permitem que evoluam.
Regras que você mesmo está pensando em quebrar ao seguir a ideia dessas duas aqui. — Apontei
para as mulheres que me enojavam. — Apenas seja fiel ao seu juramento, não à sua ganância.
— Se não o fizermos, irá nos matar como quase fez com Akantha agora? — outro
questionou.
Sorri.
— O erro de Akantha foi ofender meu pai — avisei. — Mas dependendo de suas escolhas,
essa guerra pode se tornar muito mais que uma luta contra Vicenzo. E é por isso que estou aqui,
tentando convencê-los a olhar para as coisas com mais bom senso.
Um dos homens abriu a boca para falar, mas a Protetora o cortou:
— Nós apreciamos sua honestidade, Fidly. E sentimos muito pela ofensa deferida ao seu
pai.
Eu aceitei aquilo como uma pequena vitória, talvez um pequeno motivo para acreditar que
havia razão entre eles e que nem tudo estava perdido. Eu inspirei e assenti, demonstrando meu
agradecimento. Ao deixá-los para trás, com Serena ao meu lado, não me dei ao trabalho de olhar
para a velha ou a cobra.
Mais tarde, assim que cheguei ao Lago, a primeira coisa que saiu da minha boca quando
minha mãe apareceu na soleira de casa foi:
— Você precisa tomar o lugar que era para ser seu — declarei. — Precisa ser a líder do
Outro Lado, como deveria ter sido, antes que Ravenna consiga causar tantos danos que não
haverá reparação.
Minha mãe me encarou, os olhos brilhando, o cenho franzido.
Ela havia recuado e deixando a liderança para Ravenna, porque eu e meu pai éramos sua
prioridade e humanos nem mesmo tinham permissão para viver no Outro Lado. Ela havia
resignado porque era sua única alternativa, não porque não era apta.
Mas agora as prioridades mudaram.
— Alyssa...
Agora, novamente, só tínhamos uma alternativa.
— Se Ravenna continuar na liderança, o Outro Lado vai rachar — afirmei. — E essa
guerra se tornará dez vezes pior.
Pela forma como minha mãe me olhava, eu sabia que ela entendia esse fato tão bem quanto
eu.
CAPÍTULO 56

A ilha caribenha era tão estonteante que eu gostaria que Alyssa pudesse vê-la comigo.
Assim que nossos sapatos pousaram na areia, a brisa do mar balançou os fios do meu cabelo e eu
senti o cheiro de sal, água e sol.
— Vou dar a vocês três dias para encontrá-la — Freya falou. — Se a encontrarem antes,
Roman pode se comunicar mentalmente com algum dos meus Protetores para que eu venha
buscá-los. Caso isso não aconteça, estarei aqui daqui dois dias, neste exato lugar.
Assenti, analisando os arredores.
A ilha era quase deserta, se não fosse pelo som característico dos humanos em algum lugar
perto da costa. Não havia prédios e nem uma estrutura urbana, mas havia humanos. E se Hilina
estava ali, alguém saberia informar.
— Obrigada — Lorena disse, um pouco sem graça como sempre parecia perto da Guardiã.
Freya não respondeu, apenas balançou a cabeça e desapareceu no ar.
— Ela me odeia — a garota resmungou.
— Ela odeia todo mundo.
Lore me deu uma olhada.
— Ela com certeza odeia nós dois mais.
Dei de ombros.
— Contanto que não me odeie mais que odeia Vicenzo, considero uma vitória.
Nós andamos por horas. Paramos para comer alguns lanches que Jasmine enviou quando a
fome foi insistente, e então voltamos a desbravar a ilha.
Apesar do barulho que indicava haver pessoas na ilha, quanto mais andávamos, mais longe
parecíamos estar delas. E aquilo já estava me deixando nervoso. Quando o sol caiu no horizonte
e começou a escurecer, Roman sugeriu que procurássemos um local para dormir. Felizmente,
havíamos nos preparado para a possibilidade de estarmos indo para um local longe da civilização
e trouxemos sacos de dormir. Infelizmente, o céu estava carregado de nuvens pesadas e eu
duvidava que passaríamos a noite secos.
— Ela precisa estar aqui — Lore murmurou, observando as árvores ao nosso redor e o mar
alguns metros à frente.
— E se a gente acender uma fogueira? — Roman sugeriu.
Cerrei os olhos.
— Quer chamar a atenção da ilha inteira? Nós não conhecemos esse lugar nem essas
pessoas.
Ele deu de ombros.
— Eu quero ir embora daqui o quanto antes, Nathan, e ser a isca me parece a forma mais
rápida.
Porra, a ilha era bonita, mas eu também queria ir embora para Alyssa o quanto antes. E
queria fazer isso sabendo como apagar essa porcaria de marca em meu peito.
Bufei, levantando e buscando galhos que pudéssemos usar para o fogo.
— Essa porra não vai durar nem três horas com a chuva que vai cair — resmunguei.
Vinte minutos depois, tínhamos uma fogueira e, após comermos mais um pouco, Lore e
Roman dormiram e eu fiquei de guarda. Depois de três horas, o céu ainda estava prometendo
uma chuva que ainda não havia dado as caras e, então, eu pude dormir enquanto Roman fazia a
guarda.
Nem duas horas depois, quando devia ser Lore a acordar para que Roman voltasse a
dormir, a chuva começava a encharcar nossos sacos de dormir. Nós nos levantamos para recolher
as coisas, mas então vi pontos vermelhos brilhar entre as árvores a poucos metros. Pontos que
piscavam. Precisei ajustar minha visão para enxergar melhor. Então eu percebi: eram olhos
vermelhos. Pelo menos cinco pares nos assistiam através da escuridão.
Cutuquei a perna de Roman que ainda estava meio adormecido. Lore, que fechava seu saco
de dormir e tentava salvar nossas comidas da chuva, parou de se mexer de repente, então ergueu
a cabeça para a floresta.
— Hum... gente?
Ergui-me com cautela, tentando demonstrar ser tão indefeso quanto a merda das árvores.
Ao meu lado, Roman parecia finalmente ter consciência da presença dos nossos hospedeiros.
— Aquilo são olhos? — questionou, baixinho.
— É o que parece — sussurrei.
Estávamos tão atentos aos seres em meio às árvores, que não notamos o que vinha pelo
mar, até uma lâmina cortar o braço de Lorena. Ela sibilou, virando o corpo em direção à ameaça,
o braço pingando sangue na areia.
Agarrei minha espada do chão e desembainhei uma adaga em meu cinto, virando em
direção ao mar. Havia um barco grande ancorado a poucos metros da costa e uma dúzia de
Desertores entravam na água ou já alcançavam a areia.
Porra de merda do caralho.
Como esses porcos nos acharam?!
— São muitos — Lore alertou.
Eu e Roman compartilhamos um sorriso cínico.
— Mais para matar — falamos em uníssono.
Agora que sabíamos que estavam atacando, era mais fácil de desviar das adagas que uma
Desertora de rosto cheio de cicatrizes lançava. Quanto mais adagas eram perdidas na areia, mais
seu sorriso apodrecido diminuía. Girei o corpo para minha lâmina encontrar o torso de um
Desertor que tentava cortar Lorena e, quando ele caiu, outro já avançou. Lâmina batia contra a
lâmina, o barulho ressoando pela praia.
Eram muitos. Pelo menos doze Desertores para três de nós. Claro, eu e Roman poderíamos
contabilizar por mais, e Lorena me surpreendeu, tendo muito mais destreza na luta do que eu
imaginava, mas Vicenzo havia previsto isso e enviou Desertores enormes e mortais. E a chuva
não ajudava, deixando a areia lamacenta e a visão turva.
Quanto mais ataques eu bloqueava, mais os Desertores pareciam nos encurralar. Eu
precisava atacar. Suor e chuva se misturavam, encharcando meu corpo. Uma Desertora
conseguiu cortar meu braço, e tentou me prender, mas meu joelho encontrou seu rosto e minha
adaga seu pescoço. Alguns deles já haviam caído, mas seu número ainda era bem maior que o
nosso.
E Roman ainda estava se recuperando dos ferimentos que o deixou em coma por dois
meses.
Um Desertor conseguiu agarrá-lo pelo pescoço. Eu e Lore tentamos alcançá-lo ao mesmo
tempo, mas o bastardo puxou Roman para mais perto, o braço enorme quase engolindo a cabeça
do Protetor.
O idiota sorriu e, por um instante, a luta cessou.
— Eu tenho um recado, garoto. — Com uma adaga, ele apontou para mim. — Vicenzo
quer saber se você não está curioso para saber porque ele aceitou poupar sua vida quando sua
mãe implorou. Com certeza sabe que não foi pela simples bondade em seu coração.
Trinquei os dentes. Vicenzo amava usar minha mãe como moeda de barganha, sempre
tentando me manipular, me convencer que suas intenções eram mais profundas do que de fato
eram.
— Não estou interessado em histórias de ninar.
O Desertor me encarou.
— Deveria.
Ele forçou o aperto no pescoço de Roman ao mesmo tempo em que eu lancei minha adaga
e o Protetor baixou o corpo. Mas o Desertor era mais esperto do que eu o havia dado crédito e se
jogou no chão com Roman embaixo de si. Os Desertores voltaram a se mexer e, mesmo tentando
alcançar Roman, eu e Lore tínhamos pelo menos quatro deles para se proteger.
Desespero fechou minha garganta. Eu não podia deixar Roman morrer. Serena iria me
matar, Alyssa ficaria arrasada e eu nunca conseguiria ter uma consciência limpa novamente.
Quando consegui ter um relance da luta de Roman, foi um alívio ver que ele ainda estava
lutando.
— Lore, tenta chegar até Roman!
A garota me encarou, desorientada, bloqueando investidas de todos os lados. Agora havia
dois sobre Roman.
Porra.
Corri. Ignorei o ferimento em meu braço e a adaga que se alojou em minha panturrilha.
Corri o mais rápido que pude, desviando do máximo de golpes possível. Mas então olhos
vermelhos piscaram na noite e cinco mulheres atravessaram a areia. Elas eram estonteantes, tão
exóticas que a única certeza que tive era que não eram humanas. Não com aqueles olhos
carmesim.
A surpresa dos Desertores foi notável e eu queria comemorar, mas estava esperando ver
em qual lado elas lutariam.
Então uma delas avançou primeiro. De cabelos cor de mel queimado e olhos vermelhos
como sangue, a mulher, com uma única mão, jogou um dos Desertores sobre Roman — um que
não deveria ter menos que dois metros e duzentos quilos — para longe, com uma força
inacreditável. Em seguida, ela puxou o outro e fincou os dentes em seu pescoço.
Um único movimento, e a garganta havia sido completamente estraçalhada.
As outras entraram na briga com determinação, alinhadas como se fossem uma frente de
guerra, e eu imaginava que haviam sido treinadas para momentos como este. Elas não usavam
armas, usavam os dentes. Finalmente, estávamos em maior número. Sem tantos Desertores me
atacando de uma vez, eu conseguia matá-los com mais rapidez. Lore e Roman também. Com a
ajuda das aliadas desconhecidas, eventualmente, todos jaziam sem vida na areia encharcada.
Agora, todas as mulheres de olho carmesim se reuniam em uma linha sobre a areia, a
chuva ainda caía pesada sobre nós. Observei com atenção enquanto a que havia salvado a vida de
Roman nos avaliava de cima a baixo, então se aproximou apenas alguns poucos passos, em
direção a Lorena. A Desertora parecia sem saber o que fazer, assim como eu e Roman.
— Quem são vocês e o que fazem em minha ilha? — a mulher questionou.
— Nós...
Ela ergueu um dedo em minha direção, me interrompendo. Então apontou para Lore.
— Você responde — disse.
Lore me fitou sem saber como prosseguir. Balancei a cabeça, indicando que ela
continuasse. Depois do que vi essas mulheres fazendo hoje, era melhor não as desrespeitar sob
hipótese alguma.
— Meu nome é Lore, estes são Nathan e Roman — apontou para nós —, estamos
procurando uma mulher chamada Hilina.
Ao ouvir aquele nome, as mulheres deram um passo à frente, provavelmente se
questionando se seríamos os próximos a ter seus dentes rasgando nossas jugulares.
— O que querem com Hilina? — uma perguntou.
— Nós apenas queremos...
Mais uma vez elas me cortaram com um movimento de mãos, e apontaram para Lore.
— Não falamos com você, macho.
Mordi a língua e tentei manter a porra da boca fechada. Roman quase riu da situação, me
olhando como se eu fosse idiota.
— Eu e Nathan fizemos um juramento de sangue do qual nos arrependemos e queremos
quebrá-lo o mais rápido possível — Lore explicou. — Encontramos um livro em que contava a
história de Hilina e fomos levados a pensar que, talvez, não seja mito algum, mas a verdade de
uma mulher que viveu em outra dimensão. — Apesar de todas parecerem concentradas no que
Lorena tinha a dizer, a de cabelos cor de mel queimado tinha os olhos vidrados. — Sabemos que
a deusa da escuridão havia deixado um portal aberto para esta ilha, então vir aqui foi nossa
primeira reação.
— Esta ilha não recebe visitantes — outra mulher avisou. — Vocês precisam ir embora.
— Você não entende... Esse juramento faz com que nós não tenhamos controle sobre nós
mesmos. Se Vicenzo quiser nos controlar, ele pode por causa do juramento de sangue — Lore
insistiu.
A mulher de cabelos cor de mel queimado me encarou por um segundo, antes de passar a
analisar Roman. Por fim, voltou a olhar para Lore.
— Machos não são bem-vindos nesta ilha.
Lore franziu o cenho.
— Hum, eles são meus amigos.
— Duvido muito — retrucou.
— É verdade — tentei me intrometer porque aparentemente era burro. — Nós viemos
juntos porque somos amigos e queremos encontrar uma forma de quebrar esse juramento o
quanto antes.
A mulher cerrou os olhos vermelhos para mim.
Lorena se adiantou:
— Nossos outros amigos, que estão em casa, estão lidando com uma guerra que não
podemos vencer se não controlarmos a nós mesmos. Por favor, se Hilina está nesta ilha, nos leve
até ela.
As mulheres protestaram, mas a de cabelo cor de mel queimado se manteve quieta por um
instante. Pensando. Analisando. Ela parecia ser a líder ali, e o que ela determinasse, seria dado
como lei para as outras. Se nos mandasse embora, nossas bundas estariam quicando naquele mar
antes de conseguirmos criar uma defesa. Na pior das hipóteses, perderíamos os pescoços ali
naquela areia mesmo, os corpos sendo esquecidos ao lado dos Desertores.
— Romper um juramento de sangue não é fácil — disse. — Vocês estariam arriscando
muito.
— Não importa — falei.
Tinha certeza de que pensou em me despedaçar quando me fitou com os olhos cerrados.
— Importa, mas um macho nunca tem noção de sua estupidez porque sua arrogância é
sempre maior — disparou, me dispensando ao se virar para Lore. — Mas vou ajudar você.
Lore sorriu, esperançosa.
— Vai me levar até Hilina?
A mulher balançou a cabeça.
— Eu sou Hilina.
CAPÍTULO 57

Foi difícil dormir durante a noite. Os problemas borbulhavam em minha mente, cada vez
maiores, cada vez mais iminentes. E Nathan não havia tentado contato desde que deixou o Lago.
Nós havíamos combinado de não usar o celular para o caso dos Desertores o rastrearem, mas não
ter notícias estava me matando, e a angústia em meu peito só parecia se intensificar à medida que
a madrugada corria.
Cansada de rolar na cama de Nathan, me levantei assim que vi alguns raios de sol tingir o
céu.
Eu e minha mãe havíamos passado horas na noite anterior apenas planejando como ela
tomaria seu lugar de direito no Outro Lado. Ela queria? Não exatamente. Mas se desejávamos
que as coisas mudassem, precisaríamos ser parte da mudança. Depois de muita conversa, minha
mãe começou a ver a liderança do Outro Lado como um projeto que poderia preencher seus dias,
que pareciam vazios demais desde a morte de meu pai. Não supriria sua falta, mas pelo menos
preencheria sua mente.
Quando terminei de tomar banho, trocar de roupa e alimentar Zeus, Jonnah e minha mãe já
estavam me esperando na soleira da casa de Nathan.
— Acordaram cedo — comentei.
Jonnah arqueou a sobrancelha para mim, adivinhando que eu estive acordada por ainda
mais tempo.
— Se vamos fazer isso, precisaremos de todo o tempo disponível — minha mãe falou. —
E talvez um litro de café.
Aquela pontada de dor conhecida incomodou meu peito. Meu pai odiava o vício da minha
mãe na cafeína e sempre trocava seu café por chá quando ela não estava olhando.
Suspirei.
— Boa sorte para nós — Jonnah murmurou. — Se Akantha ainda estiver no Outro Lado,
nosso dia vai ser infernal.
— Ah, pois o dela será ainda pior — avisei.
Eu havia prometido a mim mesma que, enquanto Ravenna e Akantha continuassem a andar
na Terra, elas pagariam pelo que haviam feito. Ravenna iria perder a liderança e Akantha iria ser
o primeiro membro da elite dos Protetores a cair de seu pedestal. E, com o tempo, todos que
eram como elas, iriam para o mesmo caminho.
Então nós seguimos em frente.
Quando atravessamos o Lago para o Outro Lado, havia uma comoção de Protetores
esperando. Foi preciso duas horas para que eu explicasse o que havia me levado a atacar
Akantha e afirmar que meu poder não seria uma ameaça aos Protetores. Pelo menos não
Protetores decentes. Por duas horas, eu e minha mãe tentamos apagar o fogo que Akantha e
Ravenna muito graciosamente iniciaram. Por duas horas eu tive certeza de que gostaria de matá-
las.
Havia ficado claro que o Outro Lado estava dividido entre aqueles que acreditavam em
Ravenna e Akantha e me viam como uma bomba relógio, e aqueles que queriam ficar ao meu
lado, independentemente de qualquer coisa. Afinal, eu era a Fidly. Era a escolhida do Destino.
Havia sido marcada por ele. Era da natureza dos Protetores acreditar em mim, e no que eu faria,
nas coisas que eu mudaria.
Mas ao mesmo tempo também me odiavam por ainda não ter feito nada.
Minha mãe, depois de finalmente conter os ânimos na praça, abriu caminho para dentro da
cabana principal. Alguns Protetores nos seguiram — como Jasper, que liderava os treinamentos;
Nina, que organizava todas as rondas e missões; e Nicole, que cuidava daqueles que chegavam
ao Outro Lado necessitando de ajuda médica. Eu havia ouvido falar de todos eles. Obviamente,
Jasper era o que eu conhecia melhor, mas Nina era famosa pela delegação de atividades e pelo
fato de ao menos tentar questionar Ravenna em seus comandos, enquanto que Nicole também
era muito importante para o sistema, uma vez que nem todos os ferimentos dos Protetores se
curavam com rapidez mágica.
A cabana era uma das mais antigas, e também uma das mais belas. Era a maior, com várias
paredes de vidro e uma entrada ampla. Logo na sala nos deparamos com Ravenna e Akantha
sentadas com dois Protetores mais velhos.
— Pensei que sua sede ficava na Grécia, mãe, não aqui — Jasmine apontou, ácida,
encarando Akantha que ainda tinha roxos no pescoço, causados pela minha luz. A luz que nesse
momento estava louca para dar as caras.
Akantha mal pareceu notar a presença da minha mãe, os olhos cerrados fixos em mim.
— Essa é a sede mais importante do momento, querida, porque Alyssa está aqui — disse.
— E eu estou onde é relevante e onde claramente precisam do meu trabalho.
Coloquei a mão no peito, fingindo lisonjeio.
— Ah, por favor, não se sinta obrigada a ficar por mim.
Akantha pareceu um animal quando me mostrou os dentes.
— Posso saber o que estão fazendo em minha cabana? — Ravenna interferiu.
Minha mãe se adiantou.
— Esta é a cabana para a liderança. Não necessariamente pertence a você — sugeriu,
cínica. — Vim informá-la que eu e Jonnah voltamos aos trabalhos e que vou ajudar Nina com as
separações das funções dos Protetores já iniciados.
— Este não é o seu trabalho, Jasmine.
— Bem, aparentemente você não consegue fazer o seu, então as pessoas nesta sede estão
precisando preencher lacunas causadas pela sua incompetência.
Silêncio se alastrou pela sala como uma praga, enquanto os Protetores encaravam minha
mãe completamente atônitos. Ravenna ficou vermelha de raiva, os olhos cerrados prometendo
ofensas pesadas.
Então Akantha caiu na gargalhada.
— Finalmente o seu fogo voltou! — Aplaudiu. — Eu estava cansada de ver você se
prestando àquele papel de boazinha.
Minha mãe trincou os dentes, o punho cerrado ao lado do corpo.
— Nina já concordou com meu apoio, e Jonnah e Alyssa ficarão com Jasper nos
treinamentos hoje — minha mãe afirmou.
— Jonnah é um garoto grande demais para ficar treinando crianças. Deveria estar indo em
missões — Akantha retrucou.
— Jonnah faz parte da minha missão e ficará por perto enquanto fizer sentido para nós dois
— me intrometi.
Ravenna revirou os olhos.
— Sua missão — ponderou, cinicamente. — Jonnah passou meses enfurnado em casa ao
lado da sua mãe. O único motivo pelo qual continua tendo nossa tatuagem é porque eu lhe dei
uma brecha por ser um Nephus.
Ele esteve enfurnado em casa porque estava cuidando da minha mãe. Jasmine parecia
prestes a estourar, irritada com a conversa e as alfinetadas. Ao meu lado, Jonnah parecia querer
negar o sobrenome, e reafirmar sua posição, mas ele era um bom soldado, foi criado a vida toda
para ser obediente, um guerreiro que seguia ordens sem questionar seus superiores. O próprio
fato de ter ido contra as exigências de Ravenna para ficar com minha mãe devia ter sido o
primeiro e mais insurgente ato que já cometeu.
— Estamos em uma guerra — Jasper elevou a voz, entediado com aquela discussão. —
Um ataque é iminente e inevitável. O mínimo que devemos fazer é unir forças para treinar os
mais jovens e preparar os mais velhos para o estopim de uma guerra que, até então, era apenas
briguinhas perto do que está prestes a vir. A ajuda de Jasmine e Jonnah é muito bem-vinda.
— Eu concordo. Não temos tempo para discutir entre nós quando há uma horda inteira de
Desertores lá fora.
O Protetor sentado ao lado de Akantha me olhou.
— E como está o seu Desertor, Fidly?
Sorri.
— Muito bem, obrigada.
A mulher na outra poltrona parecia horrorizada.
— Você é a Fidly. Não pode se relacionar com um Desertor! As coisas que está fazendo...
vai contra tudo o que pregamos!
Dei de ombros, parecendo despreocupada, mas com uma tempestade dentro de mim. A luz
parecia esmurrar as portas que tentavam contê-la.
— Não me deram um manual, para ser sincera.
A Protetora fechou a cara para mim.
Alguém pigarreou para chamar atenção.
— Já que estamos todos informados, devemos ir — Nicole chamou. — Tenho alguns
Protetores para cuidar antes que possam voltar para suas missões.
Assenti, ignorando o olhar frio de Ravenna e os outros sobre mim. Nós nos viramos para ir
em direção à porta, minha mãe ficando por último, um pouco mais atrás.
Jonnah, Nicole e Jasper saíram. Nina parou a poucos metros da soleira, parecendo estar em
uma conversa mental com alguém. Então os outros Protetores também deixaram a cabana.
Eu estava de costas para elas, mas atenta ao que acontecia atrás de mim. Eu ouvi Ravenna
reclamar com minha mãe e Akantha provocá-la, dizendo que finalmente estava voltando a ser
quem era de verdade. Quem deveria ter sido todo esse tempo.
Para a grega, a filha só tinha serventia enquanto agia como uma guerreira fria e desprovida
de sentimentos. Nada meramente humano em minha mãe era bem visto por ela, e nunca seria
motivo de orgulho. Para Akantha, dureza, apatia e um tanto de crueldade eram o que agregavam
valor a um Protetor. E, claro, seu sangue puro. Minha mãe havia tido os dois por muito tempo,
até conhecer meu pai. Eu queria quebrar Akantha por considerar que, agora que ele havia
partido, Jasmine poderia finalmente voltar a ser quem era, finalmente tendo seu valor.
Não importava quanta dor minha mãe precisasse suportar. A pessoa que ela era quando
estava com meu pai era simplesmente quem era. Simplesmente Jasmine em sua mais pura
essência. Ele havia trazido aquela pessoa à tona, aquela humanidade. E por causa dele, ela jamais
seria qualquer coisa que não seu eu verdadeiro novamente.
E foi Jasmine em sua essência real, cheia de defeitos e virtudes, cheia de força e dor, cheia
de medo, mas também cheia de coragem, que virou para Ravenna e disse, em baixo e bom tom:
— Eu permiti que fosse a líder por tempo demais. — Sua voz tinha uma pontada de júbilo
que me fez sorrir de canto. — Agora eu volto para pegar o que era para ser meu. Se eu fosse
você, me despediria dessa cabana.

O dia correu rápido. Minha mãe parecia uma política em época de eleição. Se comunicava
facilmente com todos e estendia a mão a quem quer que precisasse ou pedisse. Ela estava
fazendo sua parte: ganhando a confiança do Outro Lado, tentando controlar as difamações que
lançavam sobre nosso nome e me protegendo dos olhares tortos. E fazia tudo isso, se doava
completamente, mesmo com o coração destroçado. E, enquanto eu a observava, me veio a
epifania de relembrar o porquê meu pai havia se apaixonado por ela logo de cara: resiliência. Ele
sempre apreciou pessoas fortes, e minha mãe com certeza era uma delas.
Nicole me apresentou aos Protetores sob seus cuidados e, mais tarde, Nina me mostrou a
divisão de tarefas daqueles Protetores que estavam saindo do Outro Lado em missões. Muitos
ainda ficavam na sede por questão de proteção e, ainda mais, ficavam rondando o Lago, mas
outros iam mais longe, em missões de espionagem ou de execução. Desde o ataque, o número
havia diminuído bastante, mas novos Protetores migravam para a sede mensalmente para tentar
suprir a demanda.
Por fim, encontrei Jonnah na sala de treinos de Jasper. O enorme ginásio parecia lotado de
crianças e adolescentes e ser observada por eles parecia um pouco menos sufocante que ser
analisada pelos adultos. Apesar da curiosidade, eles me encaravam com um pouco mais de
empatia, viam um vislumbre da Alyssa e não só da Fidly.
Jasper percebeu as crianças dispersas do treino por minha causa, então gritou para que eu
subisse ao ringue. Eu não queria lutar com crianças, e também não tinha a intenção de apanhar
de Jasper, mas contra todo meu bom senso, segui sua ordem.
— Alyssa! — uma garotinha que não podia ter mais de dez anos chamou quando subi ao
ringue. — Mostre a luz!
Eu quase me assustei quando vi Jasper abrir um meio sorriso. Um sorriso. Jasper estava
voluntariamente sorrindo.
— Posso fazer isso? — sussurrei para ele.
Ele assentiu.
— Vá em frente.
Agora todas as crianças haviam parado seus treinos e se agrupado em volta do ringue
principal. Jonnah e os outros Protetores que as treinavam haviam se unido a elas para observar.
Eram muitos olhos sobre mim, mas mais que isso: eram muitos olhos impressionáveis sobre
mim.
As crianças aguardavam um espetáculo e tudo o que eu tinha era um jogo de luz para lhes
apresentar.
Inspirei. Estiquei as mãos e a luz fluiu. Percorreu o céu e então rastejou pela terra, entre os
pequenos pés. Suave como uma brisa, o poder me obedeceu apenas a se mostrar, não ferir.
Obviamente, aquilo não foi o suficiente para crianças guerreiras.
— Mostre o que ela pode fazer contra nossos inimigos! — um garoto no início de sua
adolescência pediu.
Olhei Jasper, incerta, mas ele apenas voltou a assentir, os braços cruzados sobre o peito.
— Eles querem ver o poder, não a luz.
Observei o ginásio, procurando um alvo seguro e inanimado para usar. Próximo às facas,
havia um boneco de treino, que deveria imitar o tamanho de um Desertor, onde as crianças
poderiam treinar os pontos de ataque. Puxei as mãos, trazendo a luz de volta, reunindo-a em meu
interior, carregando-a de energia, então a joguei em direção ao boneco, que se partiu no meio ao
ser atingido.
Aquele tipo de golpe cobrava seu preço, porque necessitava de muita energia, me deixando
meio ofegante, cansada. Quando o alvo era um ser vivo, parecia ainda pior.
Era por isso que eu precisava do Tesouro. Porque matar Vicenzo seria mil vezes pior que
aquilo.
As crianças deram gritos de guerra, os punhos batendo contra seus peitos. Naquele
momento estava claro que não tinham idade, não tinham tamanho, mas eram guerreiros. E era
desesperador que o fossem.

Depois da comoção, Jasper voltou a organizar os pequenos para o treino, cada Protetor
seguindo com seu grupo, e ordenando golpes e o manejo de diferentes armas. Uma das crianças
— provavelmente uns treze anos — tinha uma porcaria de foice nas mãos. Uma foice!
Jasper me deu meu próprio grupo e pediu que eu os ensinasse a manejar as adagas. Eu era
boa com adagas, bem melhor que com espadas, apesar de que, usá-las demandava uma
proximidade com o inimigo que não era da mais confortável. Tentei lhes mostrar o que eu sabia,
aquilo que haviam me ensinado. E o foco que essas benditas crianças tinham para aprender a
serem assassinas era invejável.
O sol estava quase descendo o horizonte quando Brian surgiu. Eu o observei de canto de
olho. O vi caminhar até Jasper e falar com ele por uns minutos antes de o segundo lhe dar um
tapinha nas costas e apontar para as crianças treinando.
Eu vi quando Brian engoliu em seco e pegou duas espadas antes de caminhar até o meu
grupo. Vi quando ele pareceu tão desconfortável quanto um animal fora de seu habitat. Quando,
com muito custo, me olhou nos olhos.
— Olá, Alyssa.
Eu apenas balancei a cabeça em cumprimento.
Brian começou a explicar alguns movimentos usando duas espadas para meu grupo de
crianças, que observaram com os olhos arregalados e brilhando, o famoso Protetor dar dicas de
como lutar. Quando elas começaram a repetir seus movimentos, ele voltou a parar do meu lado,
as mãos cruzadas na frente do corpo, as espadas descansando suas pontas no chão.
Ele limpou a garganta, então perguntou:
— Como está Nathan?
Irritação pinicou minha pele.
— Não sei.
Ele franziu o cenho.
— Como não sabe?
Eu o encarei.
— Nathan deixou o Lago para seguir uma pista sobre como romper o juramento de sangue.
— Trinquei os dentes. — Não tive notícias dele desde então, mas Freya prometeu que os
buscaria em até três dias.
O semblante de Brian fechou.
— Quem está com ele?
— Roman e Lore.
— Roman que está se recuperando de um ferimento sério e Lore a Desertora?
Dessa vez eu o olhei de cara feia.
— Sim, pessoas que estavam aqui e se ofereceram para ir com ele, já que eu precisei ficar.
Ele engoliu em seco.
— Deviam ter me avisado. Eu poderia ter ido junto.
Dei de ombros.
— Me desculpe, mas a esse ponto nós não sabíamos se você se daria o trabalho.
Eu lhe dei as costas e me despedi das crianças, que me fizeram prometer que logo voltaria
para treiná-los novamente.
Enquanto eu deixava a área de treinamento, as costas queimando sob o olhar pesado de
Brian, não pude deixar de me perguntar se um dia Diana encontraria sua paz. Porque eu não
podia imaginar como.
CAPÍTULO 58

Hilina estava me olhando com olhos de águia.


E olhos vermelhos, não verdes como dizia o mito.
Eu estaria mentindo se dissesse que ela não me apavorava. A mulher parecia capaz de
matar com apenas um movimento do mindinho.
Aquele vermelho-escuro de suas íris também não ajudava. Nem os caninos alongados que
percebi que todas as mulheres daquela ilha tinham. Os humanos tinham histórias e um nome
sobre seres assim: vampiros. Mas enquanto em suas histórias eles costumavam ser homens ou
mulheres que foram transformados de alguma forma no monstro sugador de sangue, estas
mulheres tinham uma realidade completamente diferente. Elas vinham de outra dimensão e eu
não estava certo de quais eram as regras lá.
Elas nos guiaram até uma vila que mantinham no coração da ilha, protegida por montanhas
de todos os seus lados. Era quase uma prisão, mas elas pareciam satisfeitas.
Agora, sentados em uma grande mesa de carvalho rústica — provavelmente feita por elas
—, Hilina me observava com atenção, enquanto Roman também era analisado pelas outras
mulheres — ou fêmeas, como elas diziam.
— Por que fez seu juramento? — Hilina finalmente perguntou.
Eu não hesitei.
— Porque pensei ser a única forma de salvar a mulher que amo.
Ela cerrou os olhos.
— Não sabia que machos podiam amar.
— Nesta dimensão podemos.
Com certa relutância, ela voltou os olhos para Roman.
— E você?
Roman demorou um segundo longo demais para responder.
— Eu não fiz juramento algum. Estou apenas tentando ajudá-los.
Devo dizer que o Protetor demonstrou um controle exímio, não desviando o olhar de
Hilina até que ela tenha feito isso primeiro.
— E você, fêmea? — Hilina questionou Lore, que engoliu em seco.
— Temo que minhas razões não foram tão altruístas quanto as de Nathan — disse. — Eu
estava sozinha depois que meu pai fez o juramento para se tornar um Desertor. Então eu fiz o
mesmo.
Hilina balançou a cabeça, desacreditada.
— Você cedeu a sua liberdade por livre e espontânea vontade?
Lore pareceu genuinamente envergonhada.
— Quando Vicenzo fala sobre o juramento, não fala sobre ceder ao seu total controle. As
promessas são bonitas, um futuro fantástico, a possibilidade de se tornar uma guerreira lendária...
O discurso é bem atrativo.
As mulheres bufaram.
— Machos mentem, fêmea — Hilina a repreendeu. — Acreditar em suas palavras é
estupidez.
— Você não entende... — Lore tentou se defender, mas a mulher estalou a língua, a
silenciando.
— Ao longo dos séculos eu ouvi falar desse Vicenzo e de seus Desertores. Nunca
havíamos encontrado nenhum dos dois até hoje, com a chegada de vocês e daqueles outros que
jazem na areia da praia. E nada do que ouvimos parece o suficiente para um juramento de
sangue.
Lore apenas baixou a cabeça, aceitando as palavras afiadas de Hilina.
Então a mulher do mito voltou a me observar, o cenho franzido.
— Nada, se não amor. Se esta coisa realmente existir.
Apontei para as mulheres ao seu redor.
— Não ama suas amigas?
— Elas são minhas irmãs e sou devota a cada uma delas — disse. — Mas em minha
dimensão, garoto, nunca ousamos usar a palavra amor. Ela não cabe no espaço de onde viemos.
Eu, honestamente, sentia muito por elas. Se o que lemos naquele livro for ao menos um por
cento do que estas mulheres passaram, então eu podia entender porque amor não era uma palavra
a ser usada em seu mundo.
— Desculpe perguntar, mas no livro que conta parte de sua história, dizia apenas que você
havia fugido — Roman apontou. — Não citaram outras mulheres.
Hilina deu de ombros.
— Quem quer que tenha escrito seu livro nunca soube de toda a história.
— E qual é a história? — perguntei.
— Por que devo contar a você?
Ponderei. Ela não precisava me contar. Obviamente não era obrigada nem me devia nada.
Contudo, estávamos ali agora e eu precisava da resposta para quebrar aquele juramento. Saber o
que a levou até ali parecia fazer sentido.
E eu estava curioso.
— Porque você sabe a razão que me trouxe aqui, e o motivo pelo qual meu peito carrega a
marca do meu inimigo — aleguei. — E, mesmo que não tenha motivos para confiar em mim,
sabe que estou sendo sincero.
Ela me deu um sorriso viperino, os olhos vermelhos brilhando.
— Macho esperto — cantarolou. — Posso ouvir seus batimentos cardíacos. Temos
audições muito boas. Por isso sei quando está mentindo ou não. — Ela se encostou na cadeira,
cruzando os braços. — E esta fêmea que diz amar, onde está?
— Ela está em casa, tentando resolver outros problemas — respondi de prontidão.
— E por que pensa que a ama?
Apesar da estranheza de seu questionamento, fui rápido em responder:
— Não penso. Eu sei. Porque daria minha vida pela dela da mesma forma como moveria
céu e mar pra viver cada um dos meus dias ao seu lado.
Hilina não respondeu. Por um longo minuto nem mesmo se moveu.
Ao meu lado, Roman se mexeu na cadeira, desconfortável, observando uma das mulheres
lamber os caninos afiados.
Antes que eu encontrasse palavras para convencê-la a me contar o que eu precisava saber,
Hilina apontou para Lore.
— Eu me prometi, há muito tempo, que seria sempre honesta com as fêmeas que eu
encontrasse pelo caminho, e tentaria ajudá-las. — Ela me deu um olhar de puro desdenho. —
Claro que isso não cabe a você, mas vou abrir uma exceção desta vez — disse para meu grande
alívio.
Lore assentiu, um sorriso tímido nos lábios.
— Sim, por favor.
Uma das mulheres bufou.
— Se prepare, porque nossa história não é nada como a que as pessoas dessa dimensão
contam.
— De fato não é — Hilina afirmou. — Em minha dimensão, como devem ter lido em seu
livro, os machos controlam todo o sistema e, consequentemente, nos controlavam também. Os
machos lá são o que chamamos de kâhin, e eles se alimentam de sangue desde que nascem, por
isso são mais fortes. Quando atingem certa idade, se transformam em kâhin verdadeiros. Nós,
fêmeas, nunca pudemos nos tornar kâhin, e sangue nos era proibido. Éramos a fonte e apenas
isso — contou.
“Apesar disso, nós envelhecíamos devagar. Um século era o mesmo que uma década para
nós, o que só tornava nosso tormento pior. Não tínhamos poder sobre nada, nem direito sobre
nós mesmas. Vivíamos como escravas do kâhin. Até que um dia eu me cansei de não ser nada.
De não ser ninguém.”
— Nós sabemos que você se matou para quebrar o juramento de sangue — disse Lore. —
Só não entendemos como está aqui. — Ela olhou as outras mulheres. — Como estão todas vivas.
Hilina passava o indicador sobre o carvalho, mal parecendo escutar.
— Meus olhos nem sempre foram vermelhos — ela disse. — Eles costumavam ser verde-
azulados. — Quando ergueu o rosto, o vermelho parecia mais intenso. — Não foi uma escolha
consciente quebrar o juramento. Obviamente eu queria, mas não pensei ser possível. Tudo o que
eu sabia era que, na morte, eu seria livre. Eu estava cansada demais, sem forças, sem propósito.
E, uma noite, quando Draco me levou para seu quarto, eu soube que não aguentaria mais.
Enquanto sugava meu sangue depois de sugar minha alma, eu percebi que quanto mais fraca pela
perda de sangue eu ficava, mais livre eu me sentia. Apenas uma faísca, apenas uma pequena
amostra de como seria se sentir livre. Então eu entendi a correlação com o sangue. — Ela
suspirou, as memórias parecendo encher seus olhos. — Na noite seguinte, ao ser levada para
Draco, também levei veneno nos lábios. E quando me largaram de volta em meu quarto, pouco
antes do desgraçado sentir os efeitos que certamente não o mataria, mas lhe tiraria o conforto, eu
cortei toda veia minha em que pudesse colocar os olhos.
— Você precisou drenar o sangue — Lore murmurou, a voz sem vida, aguardando o
momento em que Hilina nos daria aquilo que realmente precisávamos: como morrer sem morrer.
— Era uma questão simbólica. Meu povo não morre facilmente, fêmea — disse. — Nós
temos vidas longas e poucas formas de morrer. Então eu me drenei na falsa esperança de já ter
vivido o suficiente e dos deuses estarem prontos para me levar. — Ela sorriu levemente, os olhos
sobre a mesa. — Eles não estavam, no entanto.
Ansiedade corroía meus ossos, e me deixava inquieto, mais impaciente.
— Como quebrou o juramento e continuou viva?
— Não está ouvindo? Meu povo não foi feito para morrer. Nós fêmeas não fomos feitas
para definhar por séculos e então morrer. — Seu punho cerrou, e o vermelho em seus olhos se
tornou um fogo ardente, perigoso, ameaçador. — Nunca haviam nos contado, mas nós também
poderíamos nos tornar kâhin se quiséssemos. Era nosso direito tanto quanto era dos machos.
Nenhuma de nós tínha permissão de ver a transformação deles, então nunca entendemos como se
tornavam kâhin em primeiro lugar — falou. — Naquele dia, eu descobri. Enquanto todos
dormiam com o sol ardente queimando lá fora, e eu lentamente sentia meu sangue correr das
minhas veias para o chão, eu entendi. Depois que dei meu último suspiro, e logo mais tarde
acordei de repente, eu soube que havíamos nascido para o sangue tanto quanto os machos, e que
ele me daria força dali para frente. — Ela me olhou. — Eu não morri, macho, porque eu me
transformei. Parte de se tornar uma kâhin, envolve perder cada gota de sangue em seu corpo.
Não, não, não.
Porra, não!
— Eu gostaria de ter conseguido trazer mais das minhas irmãs comigo, mas quando tentei
voltar, o portal daquela deusa infernal já estava fechado.
Eu já não escutava mais. Se o que ela dizia era a verdade, então não havia como quebrar o
juramento sem morrer no processo. Não se você não fosse um ser de outra dimensão capaz de se
transformar na porra de um vampiro.
— Deve ter outra forma — Lore sussurrou.
Hilina deu de ombros.
— Eu tentaria parar o próprio coração se fosse vocês — disse. — O coração é a bomba que
impulsiona o sangue, então pará-lo é, literalmente, fazer seu sangue parar de correr, perder todo o
propósito. Pode dar certo.
Levantei-me da cadeira. Não era isso que eu esperava. Eu pensei que ela teria uma resposta
mágica, algo específico que tivesse feito para sobreviver. Uma poção, ou um feitiço ou a porcaria
de um pedido a uma estrela cadente. Qualquer coisa.
— Então sua ideia é parar nossos corações? — grunhi.
Ela deu de ombros.
— Os humanos têm formas de fazê-lo voltar a bater.
Sim, eles têm. Na maioria das vezes não funcionava.
A não ser...
Olhei para Lore, ela parecendo chegar à mesma conclusão que eu.
Se drenássemos nosso sangue, com certeza não haveria saída e estaríamos mortos e ponto
final. Mas parar o coração era outra história. Humanos de fato conseguiam ressuscitar uns aos
outros usando sua medicina. Mas nós tínhamos algo muito melhor do nosso lado: Aisha.
— Aisha pode ajudar! — Lore gritou.
Se a Guardiã da África nos ajudasse, se participasse do processo de parar nossos corações
e, então, reiniciá-lo, poderíamos sobreviver e quebrar o juramento ao mesmo tempo. Assim, Aly
teria tempo para conseguir o que quer que precisasse para matar Vicenzo. E, porra, se não
encontrasse uma fonte energética que pudesse usar, compatível com sua essência e forte o
bastante ao mesmo tempo, poderíamos fugir dessa merda toda. Eu, de muito bom grado, a
esconderia do mundo se fosse o necessário para mantê-la viva. Bastava ela querer.
Virei-me para Hilina, sorrindo como um idiota, e estendi minha mão. Ela a pegou, com
certo desgosto explícito em seu olhar carmesim.
— Obrigado, Hilina — agradeci. — De verdade. Muito obrigado.
— Não lhe dei nada além da verdade.
Assenti.
— E agradeço por isso. Até ler sobre você, nunca tinha passado pela minha cabeça um
meio de quebrar o juramento — confessei. — E até dois minutos atrás, eu não tinha muitas
esperanças. Mas agora eu tenho.
— Bem — ela mostrou os caninos —, não me faça arrepender de ajudá-lo.
Eu assenti veementemente, então olhei para as outras mulheres. Esperava que pudessem
ver honestidade em minhas palavras, porque eram o mais verdadeiras possíveis.
— Eu sinto muito pelo que fizeram com vocês. Sinto mesmo. E, caso um dia consigam
encontrar os desgraçados que fizeram isso, me chamem e lutarei ao seu lado para vingá-las. E
vingar suas irmãs que não conseguiram fugir.
CAPÍTULO 59

Roman conseguiu se comunicar com um Protetor em Roma, que avisou a Freya que
estávamos prontos. Pouco tempo depois ela apareceu na ilha caribenha.
Hilina não a convidou para conhecer o coração da ilha, e eu entendia seus motivos. Uma
ilha intocada havia tido dois longos dias e mais visitantes do que seria recomendado. Apesar
disso, o encontro foi amigável. Eu não duvidaria da possibilidade de, eventualmente, aquelas
mulheres trabalharem juntas no futuro. E, depois da minha promessa a elas, acho que tampouco
me descartariam de uma parceria se precisassem, mesmo que eu as lembrasse daqueles que
abusaram delas.
E, honestamente, eu esperava que o dia de vingá-las chegasse em breve. Sugadores de
sangue ou não, seria um prazer destruir Draco e os todos os outros desgraçados.
Quando me despedi de Hilina, uma pequena parte dela parecia um pouco menos avessa a
mim.
Freya, então, nos teletransportou para o Lago.
Abri os olhos, engolindo o enjoo da viagem e encontrando o céu escuro e cheio de estrelas.
E frio. Aqui estava mais frio do que na ilha. Em poucas semanas, provavelmente começaria a
nevar.
Roman e Lore se despediram, indo procurar os outros, mas Freya me parou.
— Vicenzo não vai demorar muito mais para atacar.
— Impossível. Ele sabe que ela pode matá-lo.
A Guardiã pareceu preocupada.
— Há muita movimentação na fronteira, Nathan. O quer que ele esteja fazendo lá, está lhe
dando confiança o suficiente para se preparar para um ataque.
Mas nós precisávamos de mais tempo.
— Tente segurá-lo — falei. — Mantenha ele em Florença o máximo que puder.
Ela assentiu.
— Vou tentar. Estou conseguindo impedir Sybil de fazer seus sacrifícios e isso pode
atrasar Vicenzo. Mas está na hora de começarmos a reunir as lideranças para planejar nossa
defesa.
Franzi o cenho.
— Você não acha que isso vai ser uma luta entre ele e Aly.
— Não, não acho. — Ela olhou o Lago, límpido e quieto, guardando um enigma. — Isso
nunca foi sobre Alyssa. Isso é vingança.
Pois nós tínhamos vingança o suficiente para uma eternidade.
— Nos mantenha informados — pedi, e Freya apenas assentiu antes de desaparecer.

Entrei em casa com passos leves porque Alyssa parecia estar dormindo. Zeus apareceu na
cozinha para me cumprimentar, balançando o rabo e lambendo meu rosto. Aproveitei para tirar o
elixir da mochila e tomei a dose diária. Infelizmente, ele estava acabando, daria para talvez mais
um ou dois dias, e não havia sinal de que Aisha estaria enviando outro em breve.
Pelo menos eu poderia dormir em paz sabendo de seu efeito. E melhor: dormir ao lado de
Alyssa.
Corri para tomar um banho e limpar o sangue e a terra em minha pele. Meus ferimentos
estavam fechados, apesar de ainda um pouco sensíveis. Eu estava fazendo um curativo sobre um
corte no braço, que ainda parecia meio aberto, quando ouvi a porta do banheiro abrir.
Virei-me e encontrei Alyssa vestindo apenas uma camiseta minha, me olhando como se eu
fosse a porcaria de uma miragem. Se ela continuasse me olhando assim, não tinha chance
alguma que eu fosse dormir em paz esta noite. E, puta merda, eu estava contando com isso.
— Você voltou — ela disse, a voz quase um sussurro.
O sorriso em meu rosto foi uma resposta involuntária.
— Sentiu minha falta, amor?
Ela não respondeu com palavras, mas correu para pular em meus braços.
— Você não deu notícias — falou com o rosto enfiado em meu pescoço.
Apertei-a contra meu peito, sentindo seu cheiro e seu coração batendo contra minha pele.
— Desculpa. Foi uma viagem meio intensa.
Ela se afastou, me encarou por um segundo, então desceu os olhos para o ferimento que
ainda se curava em meu braço.
— O que aconteceu?
Passei os dedos pela curva do seu rosto. Eu poderia passar anos olhando para Alyssa e
ainda me surpreender com sua beleza. Eu sabia que o Destino a fez cópia de uma deusa qualquer,
mas ele acabou criando a perfeição para mim.
Desci os lábios para os dela em um beijo casto, que eu desejava aprofundar, mas logo me
afastei para contar tudo o que aconteceu na ilha. Falei sobre o ataque dos Desertores e a
provocação de Vicenzo, e com ódio nos olhos, Alyssa pegou as faixas da minha mão e começou
a enfaixar a ferida. Eu beijei sua têmpora, entretido com seu olhar concentrado. Ela precisou me
cutucar para que eu continuasse. Eu disse o que Hilina havia feito para quebrar o juramento e
como havia continuado viva, mas quando desesperança preencheu seu olhar, me apressei para
falar da outra possibilidade. Com Aisha, poderíamos fazer meu coração parar e então fazê-lo
voltar a bater. É válido dizer que ela odiou o plano e me pediu para esperar até podermos discutir
isso mais a fundo com Aisha. Porque eu não queria que ela se preocupasse demais com isso, falei
mais sobre Hilina, deixando-a ainda mais interessada em conhecer a mulher, completamente
encantada com o fato de ela ser um ser totalmente diferente do que já havíamos visto — e bem
parecido com personagens de livros que ela já havia lido.
— Ela parece ser uma mulher bem interessante.
Assenti.
— Honestamente, ela me deu medo.
Aly riu suavemente, passando a mão pelo meu peito agora que havia terminado o curativo.
— Coitadinho de você.
Fingi uma cara triste.
— Fiquei pensando seriamente em te chamar para me proteger — murmurei. — Ver ela
rasgando um pescoço com os dentes foi bem chocante.
Ela revirou os olhos, me dando um tapinha no ombro.
— Da próxima coloco você debaixo da minha saia.
Dei um sorriso malicioso.
— Mesmo? — Passei as mãos pelas suas costas até descer para sua bunda. — Posso fazer
isso agora? — perguntei, beijando seu pescoço.
— Está com medo de alguma coisa, Nate?
Mordi levemente seu pescoço.
— Apavorado.
Suas mãos percorreram meus ombros, seu peito pressionando o meu, as unhas marcando
minha pele.
Sua boca percorreu meu ombro e subiu pelo meu pescoço até minha boca.
— O que está te apavorando, amor?
Porra. E eu acho que gostava de ouvi-la me chamar de "amor" um pouco mais do que
deveria. Passei a língua pela sua pele, meu corpo respondendo às suas palavras quase tanto
quanto respondia ao seu corpo.
— Você — sussurrei, beijando seus lábios. — Você me apavora.
Ela sorriu na minha boca.
— Por que apavoro você?
Beijei sua boca, as respostas brigando em minha mente.
Porque estou tão apaixonado por você que às vezes sinto que não sou capaz de respirar
quando não está perto. Porque acho que você mora em mim.
Seus olhos brilharam, seu corpo se pressionando mais contra o meu, a toalha em minha
cintura se tornando obsoleta.
Não foi minha intenção falar em sua mente, mas mesmo assim ela ouviu.
— Então você também me apavora.
Eu sorri, percorrendo os dedos pelo interior da sua coxa. Ela se arrepiou e a porcaria da
toalha já estava me incomodando, minha excitação pressionando o tecido.
— Aly — chamei, então ela abriu os olhos, a escuridão batendo contra as ondas —, me faz
um favor?
— Fique à vontade para entrar embaixo da minha saia — ela ofereceu.
Dei risada, minha mão finalmente alcançando o seu ponto sensível. Seu corpo foi para trás,
batendo contra a pia, e sua cabeça caiu, a boca aberta.
— Me chame de amor de novo — pedi, quase implorei.
Ela abriu os olhos, como se só agora percebesse o que eu havia pedido.
— Amor — sussurrou. — Você é meu amor.
Porra.
Eu era. E seria para sempre.
Puxei Alyssa, colocando-a em cima da pia e baixando minha boca pelo seu corpo, abrindo
sua camiseta com uma mão, até que minha língua encontrasse meu dedos. Seu gosto preencheu
minha boca e eu a fiz se sentir tão bem que seus dedos estavam puxando meus cabelos com tanta
força que soltei um gemido abafado pela sua pele. Aly sussurrou meu nome, o corpo
estremecendo, e então ela estava me puxando para sua boca e arrancando minha toalha.
Sua mão tocou minha ereção, e eu perdi a porra da cabeça, mal conseguia raciocinar,
encostando meu rosto contra seu peito e apenas tentando respirar, enquanto ela me destruía. Ela
deslizou para baixo, então sua boca estava me envolvendo e eu não era mais capaz de respirar.
Minha mão se enrolou em seu cabelo e eu grunhi seu nome. Seus olhos encontraram os meus e
eu precisei me concentrar para não me desfazer. A tortura devia estar clara em meu rosto, porque
a endiabrada sorriu.
Mordi o lábio e me forcei a dizer:
— Levanta.
Ela balançou a cabeça, ainda sorrindo.
Grunhi, prazer percorrendo meu corpo.
Puxei seu cabelo, forçando-a a se levantar,, enroscando suas pernas em volta da minha
cintura. O ângulo era de matar.
— Ei! Eu estava aproveitando meu momento.
Beijei sua boca com força, nos levando até meu quarto o mais rápido que pude.
— E eu estou tentando aproveitar o meu momento — grunhi, mordendo seu lábio inferior.
Alyssa devia ter um plano secreto para me matar, porque a mulher se mexeu no meu colo e
se abaixou sobre minha ereção, jogando a cabeça para trás enquanto gemia. Eu precisei fincar
meu pé no chão para não cair, minha mão em sua bunda sustentando seu corpo já conectado ao
meu.
— Eu amo sentir você — ela sussurrou.
Inferno do caralho. Eu não duraria muito. Mas eu queria tanto acabar com ela como ela
estava acabando comigo.
— Você quer me matar — rosnei. — Está me matando.
Ela sorriu, se mexendo e beijando minha boca.
— Bom jeito de morrer, não acha?
Meu pé tocou a cama e eu a joguei nela, caindo por cima do seu corpo e puxando sua perna
para cima. Ela enrolou as pernas na minha cintura e enfiou o pé na base das minhas costas,
exigindo que eu me movesse. Acho que nunca coloquei uma camisinha tão rápido em toda a
minha vida. Bati contra ela, vendo-a revirar os olhos. E de novo. E de novo. E de novo.
— Porra de jeito perfeito de morrer.
Ela soltou uma risada que se perdeu em um gemido.
— Olhe a boca, amor.
Passei a língua pelos seus seios, depois beijei toda sua pele.
— Essa boca?
Eu devo ter feito algo especialmente bom, porque ela arqueou as costas e fincou as unhas
nos meus braços.
— Sim — gemeu.
Sim, sim, sim.
Ela se segurava em mim e eu me perdia nela. Tudo o que eu via era ela, tudo o que eu
sentia era ela, e tudo o que eu queria era ela. Pelo que pareceu horas, nós nos perdemos juntos, e
nos encontramos... e nos perdemos, e nos encontramos de novo. Pelo que pareceu horas, eu a
amei com toda a minha devoção e aproveitei cada maldito segundo.
Sua pele suada era como a minha: corada, quente. Eu podia sentir seu coração batendo. O
elo me dava uma prévia de como ela se sentia, como o prazer percorria o seu corpo e como ela
amava cada movimento que eu fazia. Eu senti quando o prazer explodiu em seu corpo e ela caiu,
pela terceira vez. E só então me permiti cair junto, perdendo a porra da cabeça no processo.
Se a morte fosse aquilo, eu queria morrer todo dia.

Nós acordamos com a chuva batendo contra a janela, em uma manhã cinzenta e fria. Puxei
o cobertor sobre o corpo nu de Alyssa e beijei seu ombro, pedindo que me contasse o que ela
havia feito enquanto eu estava fora.
Aly contou tudo, desde seu encontro com Akantha até o treino em que meu pai apareceu e
disse que poderia ter ido comigo buscar por Hilina. Eu não sabia o que pensar em relação a
Brian, mas em relação à Akantha e Ravenna, eu aguardava ansiosamente o momento em que
poderia vê-las caindo do pedestal que achavam ser seu lugar de direito.
Alyssa falava, eu sentia que algo havia mudado, e não era apenas o fato de estarmos
descansados e satisfeitos depois de noites dormindo separados. Enquanto me contava o que havia
feito nesses últimos dias, ela parecia um pouco mais com a Alyssa do passado: determinada. Não
havia relutância ou hesitação, apesar de haver muito mais ódio do que eu jamais a vi sentir. Mas,
de alguma forma, Alyssa parecia ter engolido seu luto ou ao menos o deixado guardado dentro
do peito, e agora estava focada em buscar um meio de acabar com essa guerra de uma vez por
todas.
Infelizmente, ela ainda não havia chegado a lugar algum com o Tesouro, mas sentia que
havia conseguido mobilizar pelo menos alguns Protetores a ficar do seu lado e, assim, contra
Ravenna e Akantha.
— Nate.
Olhei para Alyssa.
— Não faça nada até conversarmos com Aisha sobre essa ideia de parar seu coração. Até
lá, às vezes nem vamos precisar fazer isso.
— Eu prometo que não vou fazer nada estúpido.
Ela cerrou os olhos.
— Só para você saber: eu odeio esse plano.
Eu a puxei para meu peito.
— Eu sei.

Eu e Alyssa decidimos averiguar o perímetro depois que Roman contou que um dos
Protetores do Outro Lado achou ter visto uma movimentação estranha na parte norte da floresta.
Vestimos nossos couros e seguimos por uma trilha que eu já conhecia bem.
Aly não parava de encarar o Lago, que quanto mais subíamos pela trilha, mais visível se
tornava. Eu sabia que ela estava tentando ter qualquer ideia para tirar o Tesouro daquela água e
se a ruga entre suas sobrancelhas fosse um indício, ela não estava tendo muito sucesso.
Liderei a caminhada porque ela parecia meio distraída, e eu tinha certeza absoluta de que
havia Desertores naquela floresta. Dificilmente um Protetor encontrava pistas onde não havia
nada. Eu segui pela trilha, espada em mãos, tentando escutar alguma coisa que apontava a
presença de Desertores. Contudo, foi Alyssa quem parou, segurando meu braço para que eu
fizesse o mesmo.
Quando a olhei, ela não disse nada, então apontou para o chão a menos de um metro de
distância. A um primeiro olhar, não parecia nada de mais. Mas um segundo a mais de atenção me
mostrou o pequeno dispositivo preso embaixo das folhagens.
Não era bem uma bomba, mas fazia um estrago parecido. Os Desertores passaram a usar
este tipo de arma durante a Segunda Guerra Mundial humana, que foi iniciada por eles próprios.
As histórias dizem que, enquanto os Desertores criavam guerras e matavam humanos e
Protetores, Vicenzo tomava seu tempo para invadir o território da Guardiã asiática. Foi a
primeira vez que ele chegou perto de conseguir as informações que precisava para abrir os
portais que tanto queria e, a terceira vez em que Protetores se depararam com monstros de outras
dimensões.
“Eles estão aqui” — falei, na mente de Alyssa.
“Isso é uma bomba?”
Assenti.
Ela ficou tensa, vasculhando a área em busca dos Desertores.
Então, como um raio, adagas voaram em nossa direção e pelo menos quatro teria nos
atingido se Alyssa não tivesse se enfiado na minha frente e criado um escudo de luz. As mãos
esticadas sobre a cabeça emitiam o poder que nos mantinha em um casulo.
— Ali! — Ela apontou para o meio das árvores, onde um Desertor corria.
Alyssa baixou o escudo assim que eu estava pronto para arremessar uma adaga, que atingiu
o inimigo nas costas.
Mal vi o outro Desertor correr em nossa direção com sua espada erguida, mas Alyssa o
interceptou com uma espada de luz. O aço ficou contido no ar e o Desertor grunhiu de raiva.
Chutei a mão de outro que vinha em minha direção com uma adaga, e então estávamos travando
uma briga justa. Espada contra espada.
Mas com Alyssa ali, não era realmente uma luta em pé de igualdade. Assim que ela
conseguiu jogar a espada do Desertor longe, luz explodiu jogando os dois para trás, fazendo-os
cair como sacos de batata no chão. Eu estava pronto para terminar o serviço, quando sua mão em
meu ombro me fez parar.
— Quero lhes dar uma chance — ela disse.
Assim, ela se aproximou dos Desertores que tentavam se erguer, mas tinham uma manta
pesada de luz sobre eles.
— Eu sei que estão aqui a mando de Vicenzo, mas quero que saibam que não precisam
segui-lo apenas porque fizeram o juramento de sangue — ela disse. — Quero que saibam que há
uma saída.
Os dois olhavam para ela, desconfiados.
— Assim como Nathan e Lore, vocês podem escolher deixar de seguir Vicenzo nesta
guerra estúpida e ficar ao meu lado, lutar contra todo o caos que ele deseja soltar nesse mundo.
Um dos Desertores bufou uma risada.
— Você não sabe do que está falando, garota.
Aly não hesitou.
— Sei que, quando eu matar Vicenzo, vocês estarão livres do juramento, mas ainda serão
vistos como os inimigos e cada Protetor nos cinco continentes irão caçar vocês até a morte —
continuou. — Estou dizendo que não precisa ser assim.
— Não vamos voltar a trabalhar para as Guardiãs para morrermos lutando enquanto elas
vivem pela eternidade — outro sibilou.
Aly parecia genuinamente confusa.
— Vocês acham que imortalidade é uma benção? Acham que não há um preço a se pagar?
— Acho que o preço vale a pena.
— Então é por isso que lutam ao lado de Vicenzo?
O Desertor cuspiu, fuzilando Alyssa.
— Ele com certeza nos oferece mais que você, sua vagabundazinha.
Trinquei os dentes, a espada implorando para ser usada no pescoço daquele idiota.
Contudo, inspirei fundo e deixei que Alyssa fizesse o que queria fazer. E satisfação me encheu
quando vi a luz parecer pesar e os Desertores sufocarem.
— Pense bem antes de falar assim comigo. — Sua voz era firme como a montanha que nos
observava ao longe. — Esta é a última vez que lhes ofereço a chance de mudar de lado.
Um Desertor mostrou os dentes e grunhiu:
— Enfie sua proposta no rabo.
O outro concordou:
— Quando Vicenzo finalmente te matar, os Protetores não terão chance alguma.
Aly assentiu, o olhar inexpressivo. Lentamente, luz envolveu o pescoço dos dois
Desertores, que apenas a encararam com ódio.
Então ela cerrou o punho e seus ossos foram esmagados.
CAPÍTULO 60

Às vezes eu me questionava se havia me tornado exatamente quem Vicenzo queria.


Às vezes eu não me sentia nada mais do que uma assassina.
Eu estava cansada de matar. Cansada de ver morte por todos os lados. Mas isso era uma
guerra e guerras eram vencidas em cima de carcaças podres. Eu não podia ter deixado aqueles
Desertores vivos, porque isso significaria na eventual morte de um Protetor. Assim como eu não
pude virar as costas e me recusar a matar os Protetores que Vicenzo capturava, porque resultaria
na minha morte. Ou assim eu pensava. Assim eu preferia pensar.
No fundo, porém, eu sabia que tinha sido fraca, covarde e devia pagar por isso. Com
memórias ou não, eu sabia que o que eu fazia não era certo. Mesmo assim eu fazia. E era quando
eu me permitia lembrar dessas coisas, me lembrava de que havia aceitado todas aquelas coisas,
que eu queria arrancar aquelas visões da minha cabeça. Queria voltar no tempo e reescrever a
história.
Assim como eu queria voltar no tempo e abraçar meu pai, nem que fosse pela última vez.
Não sabia se ele amaria a pessoa que eu era agora.
Muitas vezes eu mesma não amava.
E porque eu queria me lembrar da menina que Henry criou e amou, eu me esgueirei pelo
corredor da minha casa, que levaria até os quartos, enquanto os outros comiam à mesa em uma
tarde de domingo. Nathan havia questionado, silenciosamente, se gostaria que ele fosse comigo,
mas eu neguei. Eu não sabia o que iria fazer exatamente, no entanto, sabia que deveria fazer
sozinha.
Chegava a hora em que era preciso ter coragem. A covardia só te leva até certo ponto —
normalmente ao ponto bem no fundo do poço.
Avistei o quarto dos meus pais, a porta entreaberta, e por um segundo pensei em entrar.
Então eu tive um vislumbre de um dos livros do meu pai na mesinha ao lado da cama, junto aos
seus óculos, e uma tristeza que eu não era capaz de dimensionar se apossou de mim.
O luto era pesado. Profundo. Persistente. Parecia uma ferida que se recusava a sarar. O
sangue pulsava, e o corte sangrava.
Entrei no quarto. O lado da cama que meu pai costumava usar estava intocado. Permanecia
o mesmo como se ele tivesse acordado de manhã e arrumado a cama, mas o da minha mãe estava
todo bagunçado.
Agarrei seu travesseiro e inspirei fundo, o perfume dele ainda se fazendo presente. Eu
quase podia senti-lo ali, deitado com as costas contra a parede, folheando sua nova leitura. Eu
temia o momento, no futuro, em que seu rosto começaria a se desfazer em minha mente,
desfocado, meio turvo em memórias de um passado distante.
Eu temia que um dia eu não conseguisse me lembrar exatamente qual era seu perfume e
como soava sua voz.
Temia que um dia ele fosse um livro do qual eu não me lembrava toda história.

Não estava frio.


O Lago estava brilhando sob os raios fortes do sol. Parecia o ápice do verão e o calor
aquecia minha pele. Olhei para baixo. Eu usava um vestido que amava, branco com bordados
azuis. Se não me engano, havia ganhado de presente de aniversário um ou dois anos atrás, dos
meus pais.
Pássaros passaram voando acima da minha cabeça em direção ao céu sobre o Lago.
Observei a cena sorrindo.
— Algumas coisas nunca mudam.
A voz veio de trás de mim, mas todo meu corpo travou. Eu não era capaz de me mexer,
não podia procurar por seu dono. Então senti seu toque em meu ombro e soltei uma respiração
entrecortada.
Isso era impossível.
— Os pássaros sempre te deixaram admirada, não é, filha?
Era impossível.
Impossível.
Mas quando me virei, eu o vi. Parecia o mesmo, cabelos escuros e óculos sobre o nariz
reto. Rosto bonito. Muitos centímetros mais alto que eu. As mesmas rugas nos olhos quando
sorria, e a outra insistente em sua testa sempre que franzia o cenho.
Meu pai.
Ele tocou meu rosto, secando uma lágrima silenciosa, então voltou a dizer:
— Você tem sido forte.
Balancei a cabeça, os dentes cortando meu lábio porque eu não sabia o que dizer. Não
sabia por onde começar. Mas mesmo sem saber o que falar, eu sabia o que fazer. Joguei meus
braços em volta dele, como eu fazia quando era criança, e enterrei meu rosto em seu peito,
abraçando-o como se não houvesse amanhã. Porque para ele não havia.
— Minha pequena pássara — sussurrou, afagando meu cabelo. — Não chore mais.
Era impossível. Como não chorar por sua falta? Como não querer que o mundo mudasse
suas regras e o trouxesse de volta?
— Eu sinto sua falta. — Minha voz era como um vidro se quebrando.
Ele se afastou, os braços ainda me segurando, mas os olhos agora encarando os meus.
— Eu também sinto sua falta, mas eu sigo com você — disse. — E quero ajudá-la.
Balancei a cabeça, secando os olhos.
— Não quero que se preocupe comigo, pai. Quero que encontre paz.
Ele sorriu.
— Eu não seria um pai muito bom se não me preocupasse. — Apertou meu nariz, como
costumava fazer. — E eu gosto de pensar que sou um ótimo pai.
— O melhor de todos — sussurrei.
Sua mão apertou meu braço carinhosamente, então ele puxou meu pulso direito. Ele
encarava a marca deixada pelo Destino com atenção.
— Um pouco radical para o meu gosto, mas bonito — falou, analisando os desenhos.
As fases da lua desciam desordenadas pelo meu antebraço. Estrelas formavam constelações
desconhecidas por toda a pele. Um sol envolto de um círculo estampava o meio do meu bíceps.
Tudo isso contornado por arabescos de traços finos.
— Não tive muita escolha quanto ao tamanho. Ou qualquer coisa, na verdade.
Ele assentiu.
— Pai... — tentei falar, seus olhos ainda analisando a marca, e as palavras presas no nó em
minha garganta. — Pai, eu sinto muito. Me perdoe pelo que aconteceu. Me perdoe por não ter
impedido. Eu prometo...
Seus olhos escuros dessa vez me encararam com dureza.
— Nunca sinta que precisa se desculpar. — Sua voz era firme. — Alyssa, jamais, pense
que minha morte é culpa sua. Não é.
— Você estava tentando me proteger.
Eu não conseguia conter as lágrimas. Era uma criança chorona que não conseguia lidar
com a verdade. Desesperada por perdão, por redenção. Incapaz de voltar ao passado e refazer a
história.
— Alyssa — chamou, puxando meu rosto para encará-lo. — Eu sabia o que estava
fazendo. Desde que conheci sua mãe eu soube que meu futuro seria recheado de perigo e que eu
era apenas um humano em uma guerra de seres muito mais poderosos. E eu soube, desde o
momento em que Jasmine contou que estava grávida, que você seria o maior presente em nossas
vidas e que eu faria qualquer coisa para mantê-la segura — disse. — Você nunca foi meu fardo,
filha. Foi minha razão.
Não havia nada que eu soubesse fazer além de chorar. Por longos minutos ele apenas me
segurou, voltando a me ninar como quando eu era apenas uma criancinha assustada pelos
pesadelos.
— Lembre do que sua mãe sempre diz, passarinha — ele tocou meu rosto, me fazendo
encará-lo —, o que deve acontecer vai acontecer. Não há controle sobre isso.
Mas eu odiava aquilo. Odiava pensar que havia um único caminho e ele já estava traçado.
Que em todas as circunstâncias, meu pai ainda teria morrido.
Ele sorriu levemente, sabendo o que eu pensava.
— Encontramos exatamente as pessoas que precisamos nessa vida, Aly. Por bem ou mal,
cada um que passa por nós deixa alguma marca e nunca é por acaso. Eu não sou seu pai por
acaso. Não sinta tristeza ao pensar em mim, porque sinto gratidão sempre que penso em você.
Gratidão.
Eu era grata por Henry Monroe, e mais que isso, era grata por tê-lo tido como meu pai.
Mas ainda queria mais tempo. Ainda o queria vivo.
Então eu me agarrei a ele pelo tempo que aquele sonho permitisse.
— Filha — ele voltou a chamar —, você está procurando o Tesouro porque quer sua
energia. Por quê? Por que não usa outra fonte?
Franzi o cenho, confusa. O que ele sabia sobre isso?
— Eu tenho pressa e o Tesouro está logo ali. — Apontei para o Lago. — É o meio mais
óbvio.
Meu pai balançou a cabeça.
— Não é o mais óbvio.
Eu o encarei por alguns segundos, então eu percebi. Ele sabia.
— Não.
— Apenas me diga por que não? Ou por que não outra forma, outra fonte?
Trinquei os dentes, nervosismo embrulhando meu estômago. Eu nunca havia dito isso a
ninguém. Nunca havia ao menos permitido que chegassem àquela conclusão, porque nunca seria
uma opção para mim. Mas, olhando para meu pai, eu soube que ele conhecia todas as
possibilidades, até porque havia pesquisado fontes energéticas por anos.
Eu era muito nova quando li suas anotações na borda de um livro sobre misticismo e
energia. A capa era bonita e eu era curiosa. Folheei as páginas, ávida por descobrir porque meu
pai se interessava tanto por aquela história, e quanto mais eu lia, menos eu entendia. Não era
sobre protagonistas fortes e histórias de conquista ou amor. Era um livro quase didático. Em uma
das páginas, meu pai havia feito anotações por toda a sua borda, sobre como haviam pessoas
naquele mundo que eram conectadas por um fio profundo, eterno, que ia contra toda ciência,
toda razão, mas que ainda assim estabelecia uma fonte energética forte. Uma das coisas que
escreveu foi: akai-ito. Foi quando li sobre o mito do fio vermelho pela primeira vez.
E por anos, meu pai nunca agiu, porque aquela maldita opção era a única que havia
conseguido formar. E não era boa o suficiente.
— Não vou usar Nathan como minha fonte energética — afirmei. — Quando estava em
Moçambique eu juntei algumas peças do quebra-cabeça. O fato de você ter pesquisado sobre
fontes energéticas e como elas precisam ser compatíveis de alguma forma. Lembro de algumas
anotações que li em um dos seus livros quando mais nova. Tudo fez sentido então. E eu me
mantive calada por uma boa razão. — Desviei o olhar. — Eu sei que você sabia que eu poderia
usar Nathan como fonte de energia e sei por que você nunca trouxe isso à tona.
— Nunca cheguei a uma conclusão concreta, filha.
— E eu não estou disposta a arriscar para descobrir como isso funcionaria — eu disse, em
definitivo. — Usar Nathan como minha fonte energética quer dizer usar sua força vital. Seria
como ser um parasita que sugasse sua vida fora. Isso não é uma opção.
— Ele tem o sangue da Fidly e possui o elo com você — meu pai alegou. — Duas formas
de ligação, filha. Isso quer dizer que seria uma fonte segura.
— E o Tesouro é algo super-poderoso que pertenceu ao Destino — apontei. — E eu sou
uma criação do Destino. Temos a mesma origem.
Meu pai balançou a cabeça.
— Não é bem assim.
Balancei a cabeça, coçando a nuca.
— Vai precisar bastar.
Meu pai me encarou.
— Esta é sua escolha final?
— Arriscaria a vida da minha mãe para vencer uma guerra, pai? — Ele não respondeu. —
Foi o que eu pensei.
Ele suspirou.
— Eu não gostaria que Nathan viesse a sofrer de qualquer forma — afirmou. — Mas
entendo que não queira arriscar. Eu só precisava ter certeza de que você tinha conhecimento de
todas as suas opções.
— Eu sei minhas opções — confirmei. — E apenas uma é viável.
A ruga em sua testa se aprofundou. Era engraçado como, em minha cabeça, a morte não
havia lhe tirado isso. Sua humanidade na forma mais crua.
— Eu sei como te ajudar — finalmente falou. — Eu sei como chegar ao Tesouro, mas
precisa me prometer que terá cuidado, filha.
— Como? Como você sabe?
Ele franziu o cenho.
— Alyssa, por favor, prometa que usará o Tesouro com cuidado. E assim que matar
Vicenzo, você irá voltar a enterrá-lo no Lago e nunca mais tocá-lo.
Como ele sabia? Ele tinha acesso a informações como Diana?
— Pai, como você descobriu? O que preciso fazer?
— Alyssa — dessa vez ele falou mais duro. — Prometa.
Eu encarei a preocupação em seus olhos que tanto pareciam os meus — apesar de eu saber
que não eram realmente os mesmos.
— Eu prometo.
Meu pai inspirou fundo, então soltou o ar.
— A marca é o mapa — afirmou. — E você é a chave. — Ele apontou para os desenhos
em meu braço. — Cassandra não mentiu sobre ter usado um feitiço para esconder o Tesouro
onde apenas o seu dono poderia recuperá-lo — disse. — Mas seu dono não é o Destino. É Nixya.
— O Tesouro pertencia a Nixya?
Ele assentiu.
O Destino era mesmo um bastardo de duas caras. Mentiu até mesmo para as Guardiãs.
— O Destino não queria que ninguém soubesse disso e não sei dizer ao certo o porquê,
talvez por medo que outros seres que a seguiam viessem em busca do Tesouro — considerou. —
Não sei. Mas passei anos pesquisando sobre o Tesouro porque eu tinha curiosidade. Eu descobri
a quem ele pertencia e que a marca em seu braço é um efeito colateral. Quando atingiu a
maioridade, a marca se formou porque a balança entende que, como Nixya, você deve ser unida
ao Tesouro, e tem direito a ele.
— Porque seja como for que o Destino tenha feito, ele fez com que eu fosse uma versão de
Nixya. — Entendi. — E isso quer dizer que o Tesouro me pertence, tanto quanto pertenceu a ela.
Meu pai assentiu, tenso.
— O que quer que seja o Tesouro, pertenceu a uma deusa de milhares e milhares de anos.
Então tome cuidado — voltou a pedir. — Você pode ter o mesmo rosto que ela, Alyssa, mas não
é ela.
Olhei para a marca, tentando tirar alguma conclusão dos desenhos.
— Como isso é um mapa?
Ele apontou para o sol.
— O Sol é o centro. Acho que está relacionado ao local exato do Tesouro. Eu chutaria que
onde o Sol toca o Lago em seu ápice. — Ele analisou as luas. — Acho que as luas representam a
força energética do Tesouro. E são muitas estrelas, e me vem à mente que podem ser uma
indicação da profundidade em que o Tesouro está enterrado.
Puta merda.
— Vou ter que mergulhar para pegá-lo?
— Não. Os arabescos costumam representar o vínculo. Se reparar bem, eles unem todas as
luas, representando o poder do Tesouro, enquanto que contorna o Sol e as estrelas, que são
indicações mais geográficas — explicou. — Percebe como os arabescos contornam seu pulso? É
como se estivessem se prendendo a você. Porque estão tentando ligar as luas, ou seja, o Tesouro,
a você.
— O que isso quer dizer, pai?
— Acho que não precisa realmente pegar o Tesouro com as próprias mãos. Acho que
precisa invocá-lo.
Meu pai ergueu os olhos para o céu, franzindo o cenho.
— Estamos ficando sem tempo, filha. Preciso que tente entender o que estou dizendo e
preciso que prometa que será muito cuidadosa ao usar o Tesouro.
Não. Não. Não.
Eu precisava de mais tempo. Precisava falar mais com ele. Precisava me despedir de
verdade.
— Vou voltar a vê-lo, pai?
Ele sorriu, tristeza disfarçada em seus lábios curvados.
— Não sei, filha. Eu gostaria de poder vê-la sempre, mas não acho que eu possa escolher.
Por alguma razão, o universo está colaborando agora, mas não sei quando terei a mesma sorte
novamente — respondeu. — E preciso que saiba viver sem a minha presença física.
Balancei a cabeça. Nada mais parecia importar, a não ser tentar mostrar a ele que o mundo
nunca seria suficientemente completo novamente. Não sem ele.
— Eu não quero.
Ele me puxou para um abraço tão apertado quanto os que ele costumava me dar quando eu
tentava fugir de seus braços quando pequena.
— Pais se vão antes que os filhos, Alyssa. É o sentido natural das coisas — sussurrou, a
voz embargada, que só me fez querer chorar mais. — Eu queria mais tempo com você, mais
tempo com sua mãe. Queria muito. Mas às vezes coisas acontecem e o mundo continua a girar.
Você terá uma bela vida pela frente, filha. E vai viver bem. E vai viver feliz. E vai viver
completa.
— Pai.
Eu podia senti-lo chorando, apesar de como tentava não demonstrar sua dor.
— Eu sei que acha que está presa e que nunca será capaz de voar. Mas não é verdade,
Alyssa. Veja onde chegou e não deixe de se concentrar em onde ainda irá chegar — pediu. — A
vida é feita de dores, filha. Mas também é feita de alegrias. E é tudo sobre equilíbrio. Encontre o
seu e será capaz de viver entre os altos e os baixos sem se perder no caminho.
Algo parecia me puxar para longe, mas eu me agarrava a ele. Lentamente, o Lago e a casa
se tornavam mais desfocados, mas eu fechei os olhos e me neguei a abandoná-lo.
Não quero acordar. Não quero acordar.
Não quero deixar meu pai.
— Eu amo você, Alyssa. E não mudaria absolutamente nada em quem você é. — Meu pai
beijou minha têmpora, e eu agarrei sua cintura com mais força, meus dedos começando a agarrar
o vazio. — E lembre sua mãe que vou amá-la sempre e em todas as nossas próximas vidas. E na
próxima, irei me agarrar a ela com tanto afinco que viveremos juntos até os cem anos de idade,
um ao lado do outro, até o fim.
— Por favor, pai. Por favor. Fica.
Eu não queria abrir os olhos. Não queria vê-lo se perdendo na minha mente como eu o
havia perdido em vida.
— É hora de ir, passarinha. — Ele inspirou. — Não esqueça de voar.
Eu amo você.
Amo você, papai.
E porque o amava, me agarrei a ele até o fim. Até que meus braços não estivessem em
volta de nada que não fosse o vazio. Até que meu rosto não tocava mais seu peito e até que sua
voz se perdia no vácuo.
— Eu amo você — eu sussurrei.
Até que eu acordasse, na cama dos meus pais, com minha mãe chamando meu nome.
CAPÍTULO 61

Depois que minha mãe me acordou do sonho, eu apenas deixei sua casa e me escondi na de
Nathan até o dia seguinte. Em silêncio. Nem mesmo Nathan conseguiu me fazer falar.
No dia seguinte, porém, Jonnah discutia as tarefas do dia com Jasper. Lore me contava
algo que queria fazer assim que conseguisse se matar e voltar à vida como uma mulher livre. E
eu tentava ouvir. Me esforçava para ignorar o aperto no peito enquanto eu observava minha mãe
concentrada no que Nathan dizia sobre a estratégia de tomada da liderança. Eu a assistia tentar
ser forte, sabendo que muito provavelmente só queria se enfiar em sua cama e dormir por longos
dias.
Eu sabia que estava sendo egoísta em me fechar como uma caixa, tentando me proteger das
emoções iminentes que me derrubariam. Sabia que o certo seria contar sobre o sonho, e falar
para minha mãe o que meu pai havia pedido que ela soubesse: que ele a amava e sempre amaria
por todas as próximas vidas. Porque ela sentia a falta do meu pai, mas não pôde vê-lo como eu
pude.
Mas eu não conseguia fazer as palavras saírem.
Horas mais tarde, quando os Protetores seguiram para o Outro Lado, e Serena e Lore foram
averiguar o perímetro, Nathan se sentou ao meu lado e me observou, esperando que eu falasse.
Ele sabia que algo havia acontecido. Podia sentir pelo elo e podia ver estampado em meu rosto.
Então eu engoli em seco o nó em minha garganta, e lhe contei sobre o sonho. Obviamente não
falei sobre ele poder ser usado como fonte energética, mantendo o foco no que realmente era
importante e útil.
— Tem certeza de que não foi seu subconsciente? — ele perguntou, a voz suave e
preocupada, o olhar preso em mim.
— Sim. Eu já falei com fantasmas e já sonhei com fantasmas antes... No caso, todas as
vezes foram com a sua mãe, mas mesmo assim... Foi real. Por algum motivo, de alguma forma,
eu vi meu pai.
Ele assentiu.
— Então sabemos que na verdade o Tesouro pertenceu à Nixya e, por isso, você pode
pegá-lo.
Inspirei.
— Aparentemente sim.
Nathan me analisou por um segundo.
— E você quer buscá-lo.
Assenti.
— Sim. Quero acabar com isso logo.
— Ok — concordou. — Me diga por onde começamos.

O Lago era enorme. Centenas de quilômetros de água se estendendo sobre o solo, entre
montanhas e floresta. O óbvio a se fazer seria tentar encontrar seu centro, através da posição do
sol, mas além do tempo nublado e frio, já estava tarde demais para isso. Então eu precisava
confiar que meu pai estava certo, que o Tesouro realmente pertencia à Nixya e por eu ter o
mesmo rosto que ela, ele seria atraído por mim.
Olhei para a marca em meu braço e mão. Isso era a marca. E eu era a chave.
— O que vai fazer? — Nate perguntou.
Encarei o azul brilhante do Lago, as águas calmas e profundas.
— Eu posso sentir o Tesouro. É uma energia forte. Tenho sentido desde que voltei para cá,
mas acho que mesmo quando era criança sentia que este Lago não era como os outros — eu
disse. — Talvez eu consiga puxá-lo de alguma forma.
Estendi minha mão e a luz imediatamente correu em direção à água. Dei alguns passos à
frente até meus pés ficarem molhados e forcei o poder ir mais longe, a encontrar a fonte de toda
aquela energia que pulsava sobre o Lago.
A luz ia avançava e espiralava sob a água como uma serpente em busca de seu alvo. Mas
parou quando atingiu certa distância e voltou até mim com pressa.
— Precisamos mudar de lugar — Nathan disse. — Talvez ir pela trilha ao leste. — Ele
apontou para a linha de árvores entre uma montanha e a água.
Mudar o ângulo poderia ajudar. Ou não. Eu não tinha a mínima ideia. Mesmo assim,
corremos até o outro lado como dois raios atravessando o céu.
Naquela parte do Lago, longe de nossas casas, a costa era larga e preenchida por pedras.
Meu coração acelerou quando a luz avançou mais, parecendo mais determinada, mais forte. Mas,
de novo, pairou sobre o Lago e então retornou. Cerrei os olhos para o espaço para onde a luz
havia apontado. Talvez ali fosse o ponto onde o sol alcançava seu ápice.
Algo se moveu na floresta, tirando meu foco. Eu e Nathan nos viramos ao mesmo tempo
para procurar o intruso, mas não vimos nada.
— Algo está errado — murmurou, tirando a espada presa às suas costas.
— Esta área não é protegida pelo feitiço de Cassandra?
Ele não tirou os olhos da floresta.
— Deveria ser.
Então um arrepio atravessou meu corpo. Um aviso. Um mau presságio.
Era o tipo de arrepio que eu sentia sempre que Sybil estava por perto.
Comecei a correr em direção a Nathan, que rondava a fronteira das árvores mais à frente.
— Nathan...
Um trovão rugiu no céu.
Nathan estava com o palavrão na boca, quando foi jogado para trás por uma pancada de
poder. Eu observei, incapaz de reagir, enquanto seu corpo era lançado metros acima do chão, tão
forte que a queda quebraria pelo menos metade de seus ossos. Gritei, minhas mãos tentando
alcançá-lo, mas foi a luz que se libertou por conta própria e amorteceu sua queda bem a tempo.
Neste momento, Sybil surgiu entre as árvores, acompanhada de Belius que esboçava um
sorriso maldoso.
— Olhe bem se não encontrei os pombinhos! — Sybil comemorou.
Cruzei as mãos, luz se formando como um escudo à minha frente. Eu podia sentir Nathan
se aproximando.
— O que querem aqui? — rosnei.
Belius deu um passo à frente, adagas de ouro se formando em suas mãos.
— Nós viemos cortar o mal pela raíz.
Então ele lançou as adagas, que atingiram o escudo e caíram no chão.
— Aprendi alguns truques também — falei, cheia de deboche.
“Abaixe o escudo.”
A voz de Nathan foi clara o suficiente e eu baixei o escudo no mesmo instante. Ele lançou
duas adagas em direção a Belius, então girou o corpo para tentar acertar o pescoço de Sybil. O
primeiro foi atingido, mas Sybil se moveu como um vulto, deixando Nathan desnorteado.
Nos dias que passei em Moçambique, treinando meu poder com Freya e Aisha, eu entendi
que ele era parte de mim, e que obedeceria se o comando fosse claro o suficiente. Se eu tivesse
controle o suficiente, então seria todo meu. Visualização era o mais prático para que eu
conseguisse fazer a luz agir como eu queria, mas havia muitas outras nuances. Um corte era
rápido, apesar de demandar uma concentração específica. Mas uma arma que visa prender mais
do que matar rapidamente? Essa demandava força. Eram duas maneiras de manuseio da luz que
me cansavam de formas diferentes, e quanto mais forte o adversário, mais potente a luz precisava
ser e, por isso, mais energia demandava. Mais me sugava.
Respirei fundo e me concentrei na luz espiralando em minhas mãos, imaginando uma
corda grossa e pesada até que ela respondesse à minha imaginação. Quando a corda de luz estava
pronta, arrastando pelo chão enquanto eu me aproximava da Feiticeira, a lancei contra ela. O
peso pendeu sobre o corpo de Sybil, mas ela apenas deu risada.
— Garotinha ousada. — Seus olhos eram dois buracos negros profundos me encarando
com irritação. — Aproveite para brincar enquanto ainda pode.
Magia pulsou como uma bomba querendo explodir. Apesar do aperto de luz contornado
Sybil, ela ainda conseguia desviar dos golpes de Nathan.
Grunhi de dor, sentindo algo cortar meu ombro. Ergui uma parede de luz antes que Belius
conseguisse enfiar uma adaga em minhas costas. Entre tentar restringir o avanço de Sybil e me
proteger dos ataques repetitivos de Belius, eu estava me cansando rápido demais. Os dois eram
muito mais fortes do que eu havia imaginado.
E eu sabia — tinha certeza — que eles não haviam vindo sozinhos. Em breve, Desertores
apareceriam e eu não conseguiria nos proteger.
Nathan tentava golpe após golpe cortar a cabeça da Feiticeira, enquanto eu tentava impedir
que ela o matasse. Belius não parava de lançar suas armas mágicas e algumas pareciam raspar o
escudo. Meu braço sangrava, manchando as pedras, enquanto meu corpo tentava se curar.
“Precisamos ir.”
Se ficássemos, iríamos morrer.
Mas como se o Destino gritasse para aqueles desgraçados que aquele não seria o nosso dia
final, minha mãe surgiu ao lado de Jonnah e Lore. Eu queria acreditar que o número era o
suficiente para nos favorecer, mas havíamos visto do que Sybil era capaz, e eu estava
aterrorizada.
Freya havia dito que estava trabalhando para que Sybil não conseguisse fazer os sacrifícios
humanos que a fortalecia, mas eu não tinha certeza do quão bem-sucedida ela estava sendo até
então.
Jonnah e Lore avançaram em Belius. Minha mãe avançou contra Sybil, o ódio estampado
no rosto, a raiva se tornando seu combustível.
“Alyssa, encontre o Tesouro!” — Nathan gritou em minha mente.
Eu formava escudos, adagas e cordas com a luz. Tentava proteger meus amigos, enquanto
atacava os inimigos. Mas Nathan estava certo. Sem o Tesouro, os Desertores venceriam. Vicenzo
venceria. E eu sabia que o desgraçado ia dar as caras quando menos esperássemos.
Tentei manter o maior número de escudos possível, mas eu já me sentia fatigada. As ondas
de magia de Sybil eram como ser atingida por um trem repetidas vezes.
Corri para o Lago, molhando minhas pernas, e enviei a luz para buscar pelo Tesouro. A
água era gelada, mas tudo o que eu conseguia ver era aquele ponto onde a luz pairava. Olhei
sobre os ombros. O caos havia se instalado. Desertores e Protetores avançavam na luta, mais
rostos do que eu imaginava ser possível em tão pouco tempo. O que quer que tenha acontecido,
houve indícios e estávamos relativamente prontos. Porém, ainda eram dois seres de outras
dimensões e uma horda de guerreiros assassinos contra os Protetores. Nathan protegia minha
retaguarda, impedindo que chegassem até mim, enquanto um grupo de uns dez Protetores
liderados pela minha mãe tentavam abater a Feiticeira. E estava claro que Jasmine Monroe estava
de volta, e não estava para brincadeira. Minha mãe lutava como uma guerreira nascida na luta,
alguém acostumado a vencer e seus movimentos eram tão perfeitos quanto poderiam ser. Ver
aquilo aliviou levemente o desespero em meu peito.
Em menos de minutos, o céu escureceria completamente e eu duvidava que a luz fraca da
lua conseguiria iluminar muito. E sem luz, a luta seria dez vezes mais difícil, mesmo que
Protetores pudessem enxergar melhor que um humano.
Eu precisava ajudá-los. Precisava fazer mais.
Meu sangue manchou a água e eu fechei meus olhos para focar naquele pulso que tentava
se comunicar comigo. Estendi o braço marcado pelo Destino. O sol, a lua e as estrelas eram
como amuletos em minha pele e eu clamei pelo Tesouro.
Você pertence a mim.
Você é meu.
Cerrei o punho. Fazendo a luz afundar na água e buscar seu alvo.
Venha até mim.
Minha luz desapareceu por um segundo, imersa na água já turva pela noite. Mas então eu
senti. Meu braço direito pareceu pinicar, e os arabescos brilharam, parecendo ter sido banhados
em tinta prateada.
Então, escondido nas profundezas do Lago, o Tesouro me puxou. Foi tão forte que afundei
na água, precisando agarrar as pedras no fundo da água para conseguir impedir que fosse levada.
Com um impulso, ergui meu corpo, finalmente voltando a respirar ar fresco, e tossindo a água
que aspirei.
Não. Você é que vem até mim.
Em minha mente, eu gritava os comandos. Meus pés se fincaram no chão lamacento e
cheio de pedras do Lago, e estendi minhas mãos para que a luz soubesse que eu a estava
chamando de volta.
O rastro de luz sobre a água era claro em meio ao crepúsculo, mas ele desaparecia em
algum ponto no meio do Lago. Eu podia sentir a luta se passando ali embaixo.
Você é meu — avisei ao Tesouro. — Pertence a mim.
Ele não parecia entusiasmado em me obedecer. Algo em minha luz parecia deixá-lo
arredio, e por vezes eu senti o puxão tentando me levar até onde se escondia. Mas a luz não
descansava, e eu era insistente. O comando em minha mente era claro e o repetia como um
mantra. Venha. Venha até mim. Repetia as palavras até que elas estivessem marcadas em minha
mente. Pouco a pouco, eu dava passos de volta para a costa, sentindo a altura da água baixar em
meu corpo, até que meus pés quase tocaram a costa seca, o fio de luz esticado e minhas mãos o
agarrando com toda a determinação que eu tinha.
O crepúsculo chegou ao fim e a noite nos abraçou.
“Você é meu. Meu. Meu. Agora venha até mim.”
Então a escuridão foi afastada por uma explosão de luz.
Estendi as mãos, pronta para agarrar o Tesouro. A luz era tão intensa que eu mal conseguia
enxergar. Atrás de mim, gritos rasgavam a luta.
Algo pousou em minhas mãos, a luz se enfraquecendo. Havia uma pequena caixa de
madeira e eu puxei sua tampa para cima. Finalmente fui capaz de ver o que era: um colar.
Lembrava-me um amuleto ancião de ouro queimado e não parecia que havia passado
séculos no fundo daquelas águas. Todo esse trabalho, tanta comoção, por um colar.
Havia um fecho no pingente de formato redondo. Eu percebi que os mesmos arabescos em
minha pele estavam desenhados sobre o ouro em minhas mãos. Tirei o colar da caixa e a joguei
atrás de mim. Engoli em seco e abri o fecho do colar, querendo ver o que estava lá dentro,
esperando que me desse a resposta de como usá-lo como fonte energética.
Mas eu nem precisei tentar.
A força energética contida ali foi como um tsunami, me derrubando no chão. Sem fôlego,
eu observei o conteúdo do amuleto serpentear minha mão, tocando minha pele marcada como se
a reconhecesse. O conteúdo, que não era nada mais que escuridão.
Então, a escuridão, densa, profunda e intensa, me engoliu completamente.
CAPÍTULO 62

Eu vi quando a escuridão envolveu Alyssa. Foi nesse momento que o desespero se apossou
de mim.
Estávamos em um campo de batalha inexplorado, despreparado e incompleto, lutando
contra Desertores que enchiam nossa costa como uma praga e dois seres que não pertenciam
àquela dimensão.
“Alyssa!”
Eu tentava correr até ela, tentava falar com sua mente, mas tudo o que eu recebia em
resposta era o silêncio. Os Desertores bloqueavam meu avanço, apesar de parecerem
preocupados com a enorme nuvem negra a poucos metros de distância. E Aly estava lá, embaixo
dela.
“Alyssa! O que está acontecendo?”
Nada. O elo não me entregava nada em retorno, mas pelo menos ainda pulsava. Cortei meu
caminho entre os Desertores. Ao meu lado direito, Serena e Roman faziam o mesmo, costas com
costas, protegendo a retaguarda um do outro, enquanto Lore e Jonnah lutavam à minha esquerda.
Eu estava quase chegando até onde a nuvem escura engolia Aly, mas todo meu corpo ficou
tenso.
Sybil surgiu à minha frente. Havia algo diferente nela, parecia mais opaca de alguma
forma. Eu avancei com minha espada, vendo Jasmine correr para fazer o mesmo. A Protetora
tinha fogo nos olhos, e a cada golpe que dava, parecia uma horda de guerreiros lutando, não
apenas uma. Ela fazia jus à sua fama, afinal. Jasmine era mesmo uma guerreira mais que
talentosa. Ela era quase onisciente dentro do campo de batalha. E o que quer que Freya tenha
feito, havia funcionado, porque Sybil usava sua magia, mas não usava o controle corporal como
tinha feito no ataque ao Outro Lado.
E aquilo nos dava uma chance melhor naquela luta.
Cortei o ar em sua direção, um sorrisinho se abrindo no meu rosto.
— Você está mais fraca, Feiticeira.
Pulsos de magia eram sua maior arma, e toda vez que eu recebia um, parecia que quebraria
uma costela minha. Jasmine caía no chão quando não era capaz de desviar, mas se erguia tão
rápido que parecia um raio, voltando a atacar.
— Posso matá-lo com um mero pensamento.
Cerrei os olhos, dessa vez conseguindo cortar sua pele, sangue negro escorrendo.
— Será que pode mesmo? Por que não fez isso ainda?
Dessa vez, ela passou as unhas como garras no ar, e apesar de não ter tocado minha pele,
eu senti o rastro do corte em meu peito. Profundo. Ardido como o inferno. Meu sangue agora
escorria, manchando minha roupa.
— Não posso tirar esse prazer de Vicenzo.
Meus olhos foram rapidamente para a nuvem negra.
“Aly, por favor, diga alguma coisa.”
Uma dúzia de Protetores lutavam contra Belius, mas não estavam nem de longe vencendo.
Os demais que sobravam, lutavam contra os Desertores.
Avistei Jasper correndo. Ele me lançou um olhar e eu soube o que fazer. Agarrei uma
espada perdida no chão, provavelmente de algum Protetor morto, e a joguei para ele. Jasper a
agarrou no ar, então girou o corpo, caindo em direção à Feiticeira. Ela riu como uma bruxa,
desviando no último segundo possível do corte que seria mortal.
— Sim! Vamos brincar! — ronronou.
Éramos três, até que Brian surgiu. Seu olhar parou em mim por um segundo, então eu
gritei:
— Proteja a retaguarda da Aly! — Apontei para a nuvem negra.
Ele pareceu não entender bem, até perceber os Desertores observando a nuvem com
atenção, tentando decidir se atacaria ou não.
“Aly, apenas dê um sinal que está bem!”
Ainda nenhuma resposta. O elo pulsava e eu tentava conter o pânico embrulhando meu
estômago.
Como se por uma bondade do Destino, Cassandra surgiu no céu, magia brilhando em tons
esverdeados em sua mão, mantendo-a flutuando. Nesse momento, eu quis gritar por puro alívio.
Ela observou o caos se instaurando, o olhar duro e indecifrável. Todos perceberam sua presença,
mas os Desertores ainda assim não recuaram.
Jasmine e Jasper correram para o meu lado, então batemos as espadas. A poucos metros de
nós, Cassandra começou a descer e quando seus pés tocaram as pedras, Sybil se virou e a
cumprimentou com um sorriso. A Guardiã americana assentiu uma única vez para nós,
ignorando completamente a Feiticeira.
Então Jasmine rugiu o grito de guerra dos Protetores, e todos a seguiram, batendo os
punhos contra o peito.
— Vamos acabar com essa desgraçada — rosnou.
A Feiticeira que havia contribuído para a morte de seu marido. Que havia levado sua filha
e apagado as memórias. Ela queria vingança. Tinha urgência por sangue. E se dependesse de
mim, ela teria exatamente o que desejava.
O ar pesou quando Sybil e Cassandra movimentaram suas magias, mas a de Cassandra foi
um furacão perto da brisa leve da Feiticeira.
— Tendo problemas com seus sacrifícios humanos, Feiticeira? — Cassandra provocou.
Era por isso que ainda estávamos vivos. Se eu duvidei de Freya um dia, eu não me
lembrava. O que quer que ela tenha feito, prejudicou Sybil e estava salvando nossas bundas
agora.
Sybil mostrou os dentes podres, sentindo a magia de Cassandra prender seu corpo.
A espada de Jasmine estava inquieta, mas Cassandra ainda não havia dado o sinal.
Meus pés batiam contra a terra, nervosos. Tudo o que eu queria era saber se Aly estava
bem. Eu sabia que ela havia pegado o Tesouro, vi quando o objeto estranho flutuou até suas
mãos. Mas minutos inteiros já haviam se passado, e ela continuava em meio à completa
escuridão.
— Minhas irmãs me avisaram sobre os ataques aos seus continentes — Cassandra contou,
o olhar frio preso em Sybil.
Então os outros continentes também estavam sendo atacados?
— Elas não são suas irmãs — Sybil rosnou, tentando se libertar, a magia prendendo seus
braços, e suas pernas.
Cassandra a ignorou.
— Quatro ataques. Quatro continentes — a Guardiã murmurou. — Eu sabia que o quinto
seria o meu, assim como sabia que os outros quatro eram meras distrações criadas por Vicenzo
para que minhas irmãs não pudessem se reunir aqui.
Sybil rugiu, magia sendo lançada para todos os lados, em uma tentativa desesperada de se
libertar. Fomos empurrados pela explosão, mas Jasmine, Jasper e eu caímos preparados.
Desertores atacaram, tentando proteger a Feiticeira, mas Jasper abriu o caminho, matando cada
um que avançava em nossa direção. Um dos Desertores conseguiu chutar a espada das mãos de
Jasmine, mas eu enfiei a minha em suas costas antes que ele pudesse feri-la.
— Está na hora de aprender, Feiticeira, que ninguém toca em minhas terras sem sofrer as
consequências disso.
Nós continuamos correndo em direção à Cassandra, que dessa vez sinalizou para que
agíssemos. Jasmine estava mais perto e, para ser honesto, aquela morte deveria ser dela. Ela
merecia aquela morte.
— Aqui! — gritei para Jasmine. Joguei minha espada, e ela pulou, agarrando a arma ainda
no ar.
Jasmine pulou, girando o corpo — Sybil ainda tentando se livrar das amarras de Cassandra
—, e cortou o ar em direção ao pescoço da Feiticeira. Sybil viu a lâmina se aproximando, mas
não havia nada que ela pudesse fazer.
Sua cabeça rolou e os Protetores soltaram um grito de guerra mais forte. A comoção foi
geral. Desertores não sabiam se recuavam ou não, buscando suas ordens que não vieram de
imediato, e nesse meio-tempo, muitos caíram sobre as lâminas de fogo dos Protetores. Mas
Belius não recuou e um mau pressentimento me dizia que a ordem vinha de Vicenzo.
O desgraçado estava por perto.
No entanto, isso não importava mais. Não importava nem um pouco, porque sua voz estava
de volta em minha mente.
Nathan.
Sua voz parecia cansada, mas era clara. Alívio encheu meu peito. Eu finalmente pude
respirar.
Cassandra se aproximou de mim, o olhar sério sobre as sombras que encobriam Alyssa. A
Guardiã nunca quis que ela usasse o Tesouro. Mas até então, ela também não iria participar
ativamente da guerra.
— Pensei que não pudesse interferir na balança — murmurei.
— Chega uma hora que é preciso escolher um lado da balança e sair do seu centro —
disse. — Eu e minhas irmãs percebemos isso agora.
Todos pareciam assistir à nuvem negra se expandir. Por um segundo, Desertores recuaram
e mesmo os Protetores deram um passo atrás. Brian, que protegia Alyssa de qualquer ameaça que
ousasse se aproximar da escuridão, encarou sem entender a cena. Como aquela escuridão parecia
estar viva?
— Lembre-se que tudo tem um preço — Cassandra sussurrou, os olhos ainda presos na
nuvem negra que aos poucos se dissipava.
Então Alyssa se ergueu em meio à escuridão densa. E a nuvem negra agora parecia
pertencer a ela, obedecer a ela, como um manto que descia por seus ombros, e envolvia suas
mãos.
O aviso da Guardiã me fez engolir em seco.
— E que aquela garota é uma tempestade silenciosa.
Aly abriu os olhos, o negro de suas íris e cabelo eram iguais à escuridão ao seu redor. Ela
não parecia pertencer àquele mundo. Enquanto eu a olhava, tive certeza de que ela era uma
deusa.
E quando Alyssa olhou para o céu e escuridão explodiu ao nosso redor, caindo sobre o
inimigo como uma tormenta, eu também tive a certeza de que deuses não eram piedosos.
CAPÍTULO 63

A escuridão entrou em minhas veias como um veneno audaz.


Apesar de saber que o Tesouro pertencia à Nixya, eu nunca imaginei que seria um pedaço
de seu poder. Ao pegar o colar nas mãos, a primeira coisa que pensei foi: ok, um objeto velho,
que deve carregar séculos de energia, provavelmente um objeto mágico. Era a opção mais
simples. Mas então a energia foi mais forte que uma fonte de recarga. Era poder cru, milenar e
potente. A escuridão me engoliu. Se infiltrou em mim como se fosse eu quem pertencesse a ela, e
não o contrário.
E se aquilo fosse apenas um resquício de magia deixada pela deusa da escuridão, eu não
podia nem imaginar o que era o seu todo. E o mundo era um lugar bem mais seguro sem ela.
Foi preciso lutar contra a intensidade daquele poder para não sucumbir a ele, e mesmo
minha luz parecia incomodada com aquela súbita invasão. Luz e escuridão, afinal, não deviam
ser uma boa combinação. Uma apaga a outra. Uma ilumina a outra. Não eram semelhantes, mas
sim completas opostas. E enquanto aquela nuvem densa de pura escuridão me envolvia, eu não
podia ver nem escutar nada, nem mesmo a batalha se desenrolando a poucos metros de distância.
Demorou para que eu conseguisse pegar a rédea daquele poder. Era mais do que eu
esperava que fosse, afinal. Não era uma mera fonte de energia, mas sim energia em si. Mas
quando minhas mãos passaram a controlar as sombras e minha mente começou a comandar seus
movimentos, eu abri um sorriso. Então soltei o inferno sobre meus inimigos.
A escuridão arrebentou contra o céu estrelado, então desceu sobre os Desertores como se
fosse chuva em uma tempestade. Eles corriam, tentavam se proteger de alguma forma, mas a
escuridão ainda os encontrava. Por um longo segundo eu apenas observei, completamente
perplexa. A escuridão não os atingiu como a luz costumava fazer, rápida e mortal. Ela era mortal,
mas não matava rapidamente como um raio.
Eu vi a escuridão invadir o corpo do inimigo como se o possuísse. As veias se tornando
visivelmente negras, então seus olhos e, por fim, seu corpo cedendo, caindo sem vida.
Engoli a visão daquelas mortes sentindo o gosto amargo em minha boca. Porque aquilo era
diferente de tudo o que eu já havia feito. Diferente de qualquer coisa que eu pensei ser capaz.
Mas quando eu via os Protetores mortos no chão, eu não me importava em como venceria aquela
guerra. Apenas me importei em vencê-la.
Meus olhos vasculharam o campo em busca de Nathan, minha mãe e meus amigos. Os
Desertores que haviam conseguido se proteger dos raios de escuridão mortais recuavam
lentamente, o olhar confuso, buscando pelo comando que definiria seus destinos. Minha mãe,
Nathan e Cassandra me observavam com o corpo de Sybil aos seus pés. Eu sorri para aquela
visão: a desgraçada sem a cabeça jazendo sem vida sobre as pedras. Corri o olhar pelos outros,
encontrando todos eles vivos. Brian, o mais próximo de mim, me encarou por um segundo, então
voltou sua atenção para Belius que hesitava.
— Onde está Vicenzo, Belius? — Minha voz era clara, mesmo à distância.
Belius não debochou como costumava fazer.
— Esse poder não pertence a você, garota.
Estalei a língua, movimentando a escuridão com meus dedos.
— Parece pertencer — rebati. — Agora me responda: onde está Vicenzo?
Belius mal piscou.
— Ele está onde deve estar.
Se havia algo que eu odiava, era quando as pessoas não colaboravam comigo.
Minhas mãos manejaram a escuridão, então eu a joguei contra Belius. O homem bloqueou
o ataque com suas espadas douradas, que surgiram na frente de seu rosto, mas quando a
escuridão bateu contra elas, o dourado se tornou negro, e elas caíram no chão, como se de
alguma forma perdessem a vitalidade. Não serviam mais a Belius, porque a escuridão as havia
tornado obsoletas.
— Onde está Vicenzo? — rosnei.
Mas então os Desertores pararam de recuar. Os corpos enrijecendo e se virando para mim.
Eu sabia que Vicenzo estava por perto.
— Alyssa — Serena chamou, em aviso.
Tirei meus olhos de Belius e me virei para seu alerta. Nathan e Lore também estavam
rígidos, as mãos contra o corpo. Então eles atacaram. Brian correu para segurar o filho, e Jonnah
se esquivou do ataque de Lore, que parecia cega, agindo por impulso, irracionalmente.
Brian prendeu os braços do filho, e Cassandra se virou para conter Belius que usou a
distração para voltar a atacar. Todos voltaram a lutar imediatamente, Desertores avançando,
seguindo ordens diretas de Vicenzo. O desgraçado podia não dar as caras, mas estava por perto.
E eu precisava encontrá-lo para acabar com aquele pandemônio.
Minha mãe correu até mim, Jasper ao seu lado.
— O que fazemos?
Observei Nathan se debater contra Brian, enquanto pelo elo eu o sentia lutar contra
Vicenzo. Ele mal parecia consciente, mas mesmo assim tentava se manter leal a mim. A nós.
— Eu preciso encontrar Vicenzo. Ele está por perto, tenho certeza disso — falei. — Se eu
encontrá-lo, posso matá-lo e dar fim a isso.
Jasper me observou.
— Posso ir com você para ajudar.
Neguei, com um aceno curto.
— Preciso que ajudem Cassandra e os outros. Não deixem que Nathan e Lore façam algo
que se arrependerão.
Minha mãe assentiu e Jasper foi obrigado a concordar. Ao longe, ouvimos um burburinho
com a chegada atrasada de Ravenna, seguida por Akantha e outros Protetores.
— Elas realmente esperaram até o último segundo — murmurei.
Minha mãe cerrou os olhos, observando a própria mãe empunhar uma espada com uma
destreza inegável.
— Não deve ser uma coincidência — resmungou, então se virou para mim. — Tome
cuidado, filha. Você não parece precisar de nossa ajuda, mas não subestime Vicenzo.
Assenti, então ela correu para ajudar Jonnah a se esquivar de Desertores, enquanto tentava
conter Lore.
— Acho que sua mãe está certa — Jasper disse, observando a escuridão que me rodeava e
a luz em minhas mãos. — Você não precisa de ajuda. Mas quero que tome cuidado, menina.
Sorri levemente.
— Preocupado com a Fidly?
Ele balançou a cabeça, a cicatriz em seu pescoço se movimentando como um alerta
silencioso.
— Preocupado com você, Alyssa. — Ele tocou meu ombro. — Lembre-se quem você é, e
não se perca na busca por vingança.
Nesse momento, ele soou como meu pai. Eu inspirei fundo, tentando controlar as emoções
que poderiam me fazer perder o foco que levei tanto tempo para adquirir.
Eu não tinha tempo.
Jasper viu a relutância em meu olhar e saiu para enfrentar os Desertores que sobraram. Eu
observei a linha de árvores, esperando encontrar alguma pista que me levasse a Vicenzo. Lancei
a luz em direção às árvores e esperei que me guiasse ao imortal. Ela avançou alguns metros,
antes que meu foco a deixasse e se voltasse para o homem vindo em minha direção.
De alguma forma, Nathan havia se livrado de Brian.
E agora ele caminhava em minha direção com uma espada em mãos. O azul em seus olhos
não continham aquele brilho habitual.
“Nate” — chamei em sua mente. — “Lute contra o controle.”
Eu o vi trincar os dentes, o punho se cerrando ao lado do corpo, mas não parou de se
aproximar.
Tentei ver se a luz continuava a me guiar, mas ela parecia confusa, sem saber por onde
seguir.
— Ele quer que eu mate você — disse, a voz estranha. — Ele sabe que não vai lutar contra
mim.
Engoli em seco. Eu realmente não iria. Nunca o machucaria. Poderia matar em um piscar
de olhos, como já havia feito hoje, mas não o mataria nem em um milhão de anos.
— Ele não controla você.
— O elixir acabou ontem — me informou.
— Lute contra ele mesmo assim.
Porém, minhas palavras se perderam no ar quando sua espada desceu sobre mim. Luz
bloqueou o golpe, mas ele manejou uma adaga com a outra mão, conseguindo cortar minha pele.
"Me perdoa." — Sua voz em minha mente parecia desesperada. — "Lute contra mim."
Tentei conter a escuridão e bloqueei seus ataques com a luz, enquanto ele se esforçava para
ser atingido por ela. Criei um escudo e virei minhas costas para ele, correndo para adentrar a
floresta e encontrar o desgraçado do Vicenzo.
Contudo, dor irrompeu meu corpo, minha visão ficou turva e meu corpo voou pelos ares.
Minhas costas bateram contra as pedras e a água e eu senti o oxigênio ser expulsado dos meus
pulmões.
Olhei para baixo. Uma espada dourada — uma das de Belius — perfurava meu estômago.
Um golpe mortal, porque eu tinha certeza de que apesar dos poderes, o Destino não havia me
feito imortal. Sangue começou a se acumular em minha boca, e eu precisei tossir para não
engasgar. Atrás de mim, Nathan rugiu, o olhar de puro ódio, banhado em desespero, enquanto
corria até mim.
Ele ergueu a espada sobre mim, lágrimas escorrendo pelos olhos, o rosto franzido. Sofrido.
Ele estava sofrendo, e eu odiava isso. Não podia permitir que acabássemos assim, mas
simplesmente não tinha forças para lutar. O sangue já escorria do corte, a luz tão fraca quanto
uma pequena chama branca, e a escuridão me rondando como se já me velasse.
Fechei os olhos.
"Amo você. Não é sua culpa."
Mas o golpe final nunca veio. Abri os olhos e encontrei o azul de Nathan me observando
como se seu coração batesse fora do corpo e estivesse em minhas mãos. Como se o mundo de
repente fosse completamente escuro e eu fosse seu único ponto de luz.
Então ele desceu a espada sobre sua própria coxa, enterrando-a em carne e osso.
Nathan caiu nas pedras ao meu lado, o grito de dor contido nos seus lábios. Ele não se
moveu para arrancar a espada da própria coxa. A dor pareceu fazê-lo voltar a si mesmo, e sair do
transe de Vicenzo. Ele esticou a mão para me tocar.
— Aly...
Seus dedos tocaram os meus e eu os apertei. Ele começou a gritar para que alguém
ajudasse, mas estávamos longe do burburinho da luta. Apenas segurei sua mão e inspirei fundo,
cuspindo sangue na água que molhava meu corpo.
Eu não havia planejado cair daquela forma. Morrer sob o olhar enlouquecido de Nathan,
com inimigos lutando em minhas terras, com amigos e família a poucos metros de distância. Eu
não havia esperado aquela morte. Tão simplória. Tão ingrata.
Era para eu cair lutando. Era para eu levar Vicenzo comigo.
Eu odeio você, Destino. Odeio você. Odeio. Odeio. Odeio.
O Destino devia ter me escutado. De repente, a escuridão parou de me velar. Ela se
acumulou sobre meu corpo, então envolveu o punho da espada e a arrancou com um único
puxão. Soltei um grito, sentindo o sangue escorrer como uma fonte para fora do meu corpo.
Então a escuridão se infiltrou em mim, adentrou minhas veias, e conteve o sangramento que me
mataria. Aquela coisa negra e densa pareceu preencher meu corpo como ataduras, aos poucos se
transformando no sangue que corria em minhas veias, preenchendo as batidas do meu coração, e
fechando cada corte, selando meu corpo.
Ergui meu corpo, sentindo o sublime alívio da dor.
Estiquei-me para tocar Nathan que tinha os olhos arregalados.
— Você... — sussurrou. — Você está bem?
Sorri.
— Aparentemente a escuridão gosta de mim.
Arranquei o cinto da minha calça e amarrei na coxa de Nathan.
— Sabe, quando eu matar aquele desgraçado, vou me certificar de que a perna dele seja
estraçalhada.
Ele não riu, ainda me olhando parecendo levemente transtornado.
— Achei que esse seria nosso fim — sussurrou. — Achei que ia perder você de novo.
Eu também.
— Não vai ser tão fácil assim, amor.
A luta ao longe parecia estar chegando ao seu fim, e Belius parecia espreitar perto das
árvores, pronto para fugir, enquanto Cassandra trabalhava em um feitiço de proteção. Eu fuzilei o
baixinho com o olhar, aguardando que recuasse para eu saber exatamente onde Vicenzo estava se
escondendo. Quando ele encontrou meu olhar, eu jurei ter visto medo no seu.
Puxei Nathan para a costa, deixando que ele descansasse sobre as pedras, enquanto seu
corpo trabalhava na cura. Provavelmente precisaríamos de Aisha para facilitar as coisas. Gritei
para que Cassandra chamasse a Guardiã africana, mas ela não respondeu.
Algo pareceu atiçar minha luz e provocar minha escuridão. Voltei meus olhos para o Lago,
completamente encoberto pela noite. Havia algo ali. Algo que não devia estar ali.
Apertei os olhos e estendi minha mão para que a luz iluminasse a extensão.
E olhos negros como a noite me encararam de volta.
Olhos negros como os meus.
Meus pelos se arrepiaram em alerta, enquanto eu observava a mulher me encarando de
volta. Era como olhar em um espelho. Seus cabelos eram pretos como os meus, assim como suas
sobrancelhas eram grossas e o nariz era reto. O contorno do rosto era o mesmo. Seu corpo era
exatamente igual, desde a estatura até a cor da pele.
A deusa da escuridão me encarava com um sorriso mordaz.
Demorou longos trinta segundos para que meu cérebro assimilasse o que via: Nixya estava
viva. E estava aqui.
Atrás dela, um portal estava aberto. Não era possível ver o que estava além dele, mas eu
podia ver flashes de cores e corpos lá dentro. Então Mavon atravessou o portal e parou ao lado
da deusa da escuridão. Seus olhos de felino me encararam com um olhar perverso que fez minha
coluna se enrijecer.
Não, não, não.
Nixya devia estar morta. Ela estava morta. A deusa da escuridão não podia estar flutuando
no meu Lago, a minha casa. Não fazia sentido. O Destino a havia matado e escondido seu poder
no Lago. E Freya havia mandado Mavon para uma dimensão escura e triste, onde ele deveria
apodrecer.
Não, não, não.
Eu recuei um passo.
Aquela era a deusa que as histórias me avisaram. A mulher que queria usar a minha
dimensão como um ponto neutro para os monstros de todas as outras dimensões usarem. A deusa
que havia feito Vicenzo acreditar que podia mudar todo um sistema e que trair seus irmãos seria
uma escolha honrável. A mulher que milhares de seres cruéis de outras dimensões tentariam
proteger.
E ela estava me olhando como se soubesse exatamente quem eu era, vestindo seu vestido
preto e cheio de ornamentos dourados, tão arcaicos quanto seu título.
A deusa da escuridão me encarava e via a impostora.
Mas eu era a impostora que sua escuridão protegia.
Recuei outro passo quando vi um novo ser sair de dentro do portal. Ele parecia feito de
gesso, completamente pálido, grande e musculoso. Então outra de cabelos vermelhos e olhos
ferozes atravessou. Então mais um. E mais um.
Nesse momento, eu já estava ao lado de Nathan, puxando-o para se erguer e ficar atrás de
mim. A luz se soltou dos meus dedos acompanhada da escuridão, trabalhando por conta própria,
criando um escudo tão grande que parecia almejar tocar o céu.
Nixya nunca tirou os olhos de mim. Nem pareceu piscar.
Mais e mais seres estranhos atravessavam pelo portal, preenchendo o horizonte, flutuando
sobre o Lago. “Poder só é poder quando você o exerce em alguém” — eu me lembrava de meu
pai falar. E eu podia ver que Nixya o exercia em muitos.
Eu podia ver suas mãos erguidas ao lado da cintura, como se mantivessem todos eles sobre
as águas. O que queria dizer que o poder que eu havia tomado, aquele garantido pelo Tesouro
que ainda estava preso ao meu pulso, não era tudo o que ela tinha. Nixya ainda possuía muito
mais a seu dispor. Talvez possuísse o suficiente para destruir todos nós.
Atrás de mim, Nathan pareceu sibilar e outros começaram a se aproximar. Eu tinha certeza
de que Belius já havia corrido atrás de Vicenzo para lhe contar a novidade. Quanto mais seres
passavam pelo portal, mais Protetores notavam Nixya.
Então o portal se fechou de repente, fazendo Mavon franzir o cenho, como se não
esperasse isso. Mas a deusa da escuridão nem pareceu notar ou se importar.
Ela apontou para mim, o olhar pesado e cínico.
— Acho que você tem algo que me pertence, Alyssa.
EPÍLOGO

O Lago havia visto a história ser escrita.


Nos arredores daquelas águas azuis cristalinas, Cassandra guardou o Tesouro que pensou
pertencer ao Destino e, naquele mesmo Lago, o Destino observou duas de suas criações serem
destruídas.
Primeiro, Diana — a Fidly brasileira que viveu mais que todas as outras que vieram antes
dela — teve seu filho ali e morreu sob o testemunho daquelas montanhas. Depois, Alyssa, a
Fidly escolhida pelo Destino — que conseguiu atingir os dezoito anos e ser marcada pelo deus da
fortuna, duplicata da deusa da escuridão — foi destruída naquele Lago. Mas enquanto Diana
encontrou seu fim ali, Alyssa encontrou seu recomeço.
O Lago viu a história ser criada e reescrita. E viu quando a deusa da escuridão voltou dos
mortos e tomou suas águas.
Para piorar, a desordem tomava aquela dimensão. Vicenzo tinha dentro dos muros de seu
palácio roubado, o obelisco. O Destino sabia que, com Nixya e o obelisco, Vicenzo tinha peças o
suficiente em seu tabuleiro para vencer o jogo. E naquele momento, as peças no tabuleiro do
Destino pareciam perdidas. Desertores que não queriam desertar, Protetores questionando
hierarquias e ordens, uma Guardiã completamente fora de si após os recentes desdobramentos e
uma Escolhida imersa em escuridão.
Por longos anos o Destino se perguntou o que faria quando aquela guerra explodisse.
Quando todo o caos se instalasse, as verdades fossem reveladas e o livro aberto. Ele nunca
pensou que voltaria a ver a deusa da escuridão tocar as águas do Lago sagrado. Não esperava ter
que reescrever a história mais uma vez.
E agora, o Destino assistia à balança pesar para um lado, enquanto seres de outras
dimensões invadiam o Lago para se juntar à Nixya. A deusa que, para todos os efeitos, estava
morta.
Alyssa Monroe foi escolhida pelo Destino. E então, marcada por ele. E apesar de criada
pela luz, havia abraçado a escuridão. E apesar do que a profecia dizia, agora ele temia que Alyssa
estivesse próxima demais das sombras que havia roubado da deusa do outro lado do Lago.
O Destino observava a Escolhida caminhar de um lado para o outro enquanto seu
predestinado era cuidado pelas mãos mágicas da Guardiã africana. Ele nunca entendeu aquela
manobra do universo, que fez duas almas serem conectadas e dois seres se amarem além da
razão e da vida. Parecia uma jogada estranha, um erro de cálculo talvez. Mas ele assistiu
predestinados se encontrarem e se perderem ao longo dos milênios, e via agora a garota tão
ansiosa que as sombras que viviam ao seu redor estavam agitadas.
Alyssa só descansou quando Aisha disse que estava tudo certo e que Nathan ficaria bem,
mais rápido do que imaginavam. E enquanto a maioria dormia, a Escolhida vigiava sua redoma,
o olhar nervoso vendo o que a deusa da escuridão prometia: guerra. E aquela era uma ameaça
que mesmo o Destino não sabia como lidar.
As Guardiãs temiam aquele conflito iminente, porque apesar de imortais, seus povos não
eram, e em um conflito como aquele que estava para estourar a qualquer momento, vidas seriam
perdidas. Vidas valiosas. Vidas estrategicamente adicionadas pelo Destino naquela história com
um propósito específico, uma razão concreta. E todo seu enredo estava ameaçado, porque a
deusa havia conseguido ressurgir nas águas sagradas do Lago.
Do outro lado da redoma criada pela Escolhida, o Destino observava em silêncio a deusa
da escuridão trabalhar em sua vingança. Seres de outras dimensões preenchiam seu lado até que,
finalmente, os portais se fecharam e Nixya parecia incapaz de abrir novos.
E o Destino assistiu ao reencontro de Vicenzo e Nixya.
O primeiro Desertor correu para sua amada, como se corresse para encontrar água em meio
ao deserto. Deixou seu esconderijo em meio às árvores e seguiu para aquele amontoado de
monstros que se juntavam agora próximo às montanhas. O Destino não entendia muito sobre
sentimentos mundanos, mas poderia dizer que havia desespero e amor deturpado no olhar que o
traidor deu a Nixya.
— Você estava morta.
A deusa da escuridão sorriu como a víbora que era.
— Nem mesmo o Destino pode matar uma deusa, querido.
Foi um golpe baixo, o Destino bem sabia, mas não deixava de ser verdadeiro. Prendê-la em
uma dimensão da qual nunca deveria ter saído era tudo o que ele havia sido capaz de fazer. E,
mais uma vez, a Guardiã inconsequente da Europa havia destruído seus planos ao enviar aquele
serzinho dissimulado e manipulador que chamavam de Mavon para a mesma dimensão que
servia de prisão para Nixya.
Aquela Guardiã nunca parecia aprender com seus erros. Impulsiva demais. Com raiva
demais dentro de si. Perdida em todo seu luto estúpido. O Destino lhe havia dado poder,
imortalidade e força, mas ela teria escolhido ser comum pelo resto de seus dias.
Um grande desperdício.
As palavras de amor trocadas entre o traidor e a deusa foram ignoradas pelo Destino.
Aquele bobo apaixonado era um idiota se pensava que Nixya faria tudo isso pelo amor que
proclamava, mas em seus muitos anos de escrita, o Destino havia descoberto que se havia uma
coisa em que adoravam acreditar era em no amor.
Foi apenas quando voltaram a falar sobre o que realmente importavam que o Destino
voltou a ouvir.
— O que faremos agora? — o idiota traidor perguntou. Sempre apenas o peão da grande
deusa da escuridão.
Nixya observava com atenção cada movimento da Escolhida. Por dentro estava espumando
de raiva, odiando como havia uma cópia de si mesma caminhando com seu poder por aí.
— Agora nós recuperamos meu poder, e depois tomamos essa dimensão. — Seu olhar se
voltou para os muitos seres que acampavam ali. — Eu vim preparada para a guerra, querido. E
não vou perder dessa vez.
O Destino sabia que aquela não era uma promessa vazia. Mas também sabia que seria uma
longa guerra, porque ele havia escolhido certo e marcado a pessoa que não permitiria Nixya
vencer essa guerra sem uma luta. Ele havia se certificado de que a garota se tornasse mais dura,
mais determinada. E agora ela era exatamente o que ele precisava que ela fosse.
Alyssa Monroe iria ser o inferno da deusa da escuridão.
CAPÍTULO EXTRA

O Lago havia visto a história ser escrita.


Nos arredores daquelas águas azuis cristalinas, Cassandra guardou o Tesouro que pensou
pertencer ao Destino e, naquele mesmo Lago, o Destino observou duas de suas criações serem
destruídas.
Primeiro, Diana, a Fidly brasileira, que viveu mais que todas as outras que vieram antes
dela, teve seu filho ali e morreu sob a testemunha daquelas montanhas. Depois, Alyssa, a Fidly
escolhida pelo Destino — que conseguiu atingir os dezoito anos e ser marcada pelo deus da
fortuna, duplicata da deusa da escuridão — foi destruída naquele Lago. Mas enquanto Diana
encontrou seu fim ali, Alyssa encontrou seu recomeço.
O Lago viu a história ser criada e reescrita. E viu quando a deusa da escuridão voltou dos
mortos e tomou suas águas.
Há algum tempo Cassandra se perguntava o que faria com aquela nova realidade. Com a
guerra. A escolhida do Destino havia criado uma solução temporária que havia garantido que
tivessem tempo para recuar. Mas quanto mais dias passavam, mais a deusa da escuridão parecia
avançar. E para piorar, dentro dos muros daquele palácio roubado, Vicenzo possuía o obelisco.
Com Nixya e o obelisco, ele tinha peças o suficiente em seu tabuleiro para vencer o jogo.
E naquele momento, as peças no tabuleiro de Cassandra pareciam perdidas. Desertores que
não queriam desertar, Protetores questionando hierarquias e ordens, uma Guardiã completamente
fora de si após os recentes desdobramentos e uma Escolhida imersa em escuridão.
Alyssa Monroe foi escolhida pelo Destino. E então, marcada por ele. E apesar de criada
pela luz, havia abraçado a escuridão. Quem sabe isso já fazia parte dos planos, afinal a profecia
falava sobre a escolhida fazer da escuridão, casa. Mas Cassandra temia que Alyssa estivesse
próxima demais das sombras que havia roubado da deusa que aos poucos tomava o Lago.
Cassandra observava a Escolhida caminhar de um lado para o outro enquanto seu
predestinado era cuidado pelas mãos mágicas da Guardiã africana. Cassandra nunca entenderia
aquela angústia de aguardar por um homem que amava, porque simplesmente não confiava em
homens o suficiente para se apaixonar por eles. Mas a garota parecia tão ansiosa que as sombras
que viviam ao seu redor estavam agitadas.
Alyssa só descansou quando Aisha disse que estava tudo certo e que Nathan ficaria bem,
mais rápido do que imaginavam. E enquanto a maioria dormia, a Escolhida vigiava sua redoma,
o olhar nervoso vendo o que a deusa da escuridão prometia: guerra. E aquela era uma ameaça
que mesmo a Guardiã americana temia, porque apesar de imortal, seu povo não era, e em um
conflito como aquele que estava para estourar a qualquer momento, vidas seriam perdidas. Vidas
valiosas.
Cassandra sabia que a Escolhida não dormia pensando nisso.
— Isso não deveria estar acontecendo. — A voz de Aisha não surpreendeu a Guardiã. —
Nosso trabalho era previnir justamente isso.
Ela observou os seres estranhos que enchiam a costa do outro lado do Lago. Em breve, os
Protetores precisariam recuar. Sua magia não seria páreo para conter os seres que Nixya havia
libertado. Por sorte, a deusa parecia estar com problemas para abrir novos portais, pelo menos
por enquanto.
— Nosso trabalho me parece contraprodutivo a esse ponto — resmungou.
Aisha a observou por um instante.
— Não podemos nos dar ao luxo de pensar assim, ou nossos problemas com os Protetores
irão apenas se agravar e o Destino não ficará feliz.
A Guardiã americana quase debochou.
— O Destino mentiu sobre o Tesouro e mentiu sobre Nixya. Talvez seja hora de tomar as
rédeas de nosso trabalho e o fazer como bem entendermos.
— Você já fez isso ao interferir no último ataque e ajudar a matar a Feiticeira — Aisha
apontou. — Nós todas fizemos.
Cassandra deu de ombros.
— Então acho que já nos decidimos.
Nesse instante, a Escolhida do Destino se virou, os olhos queimando de raiva. Suas
passadas foram largas até um grupo que reclamava em um canto do acampamento. Algo sobre
Desertores, especificamente a garota com garras nas mãos. Alyssa chegou até os Protetores tão
rápido que eles mal a viram se aproximar. Suas mãos se fecharam na arma que um deles afiava,
então quebrou a pedra de fogo em um único movimento. Não havia sinal da luz quando ela se
ergueu sobre os homens que a encaravam assustados, e nem mesmo um resquício do poder que o
Destino havia lhe dado quando ela exigiu respeito.
Apenas escuridão a envolvia. Sombras negras pesadas e ameaçadoras.
O burburinho ao redor do acampamento se intensificou. Os Protetores não sabiam se a
temiam ou se a respeitavam. Mas parecia um consenso que não deveriam entrar no caminho de
Alyssa Monroe.
— Ela está diferente — Aisha comentou.
Cassandra balançou a cabeça, em concordância. Então ela repetiu a mesma frase que havia
dito a Nathan ao ver a garota rodeada pela escuridão. E a Guardiã esperava que entendessem a
gravidade do que via.
— Ela é uma tempestade silenciosa.
AGRADECIMENTOS

Eu sempre amei escrever. Nunca pensei que trabalharia com a escrita, no entanto. Para ser
sincera, eu sonhei com isso, mas não imaginei que se tornaria realidade. Meu lado romântico está
em constante luta com meu lado realista e isso aqui? Ser autora? Publicar meus livros e ter
pessoas lendo minhas histórias? Isso era uma ideia romântica, não realista.
Mas aqui estamos nós. Meu segundo livro. Que as pessoas leem. Que vocês leram. (Eu
inspirei fundo aqui, porque, por Deus, isso é loucura). E é tão real que tenho Escolhida pelo
Destino na estante. Tão real que recebo mensagens incríveis de leitores (por favor, continuem,
porque amo cada uma delas).
É real!!!!!
E acho que não há ninguém que eu gostaria de agradecer mais do que a vocês, leitores, que
chegaram até aqui depois de lerem tantas páginas contando a história de Alyssa Monroe, nossa
Escolhida. Quero agradecer a quem entrou nessa história de coração e alma, e absorveu cada
palavra como se fosse oxigênio ou imaginou cada cena como se fosse um filme. Sempre que
imagino vocês lendo minhas histórias, imagino que as leia com essa intensidade, porque é
exatamente como eu leio quando me apaixono por uma história.
Sinto que Marcada pelo Destino foi um livro denso de escrever, repleto de sentimentos e
traumas, e espero que você tenha tirado alguma lição dele. Quem sabe tenha lido algo que
precisava ler, que precisava saber. E espero que entenda que, assim como meus personagens,
vocês não estão sozinhos em suas dores, em seus amores e em seus traumas. Nós atravessamos
aquela ponte entre caos e calmaria, e ficamos bem. E prometo que Alyssa também ficará. Cada
pedra em seu caminho, cada dor, é apenas a sua jornada, apenas parte de sua história, coisas que
ela precisa viver para chegar do outro lado mais forte. Assim como nós. E se você sente que está
perdida em sua dor, se lembre que nenhuma dor é eterna.
Também quero agradecer as leitoras (es) e parceiras (os) que foram tão boas para mim com
o lançamento de EPD (vocês sabem quem são), e que se mantiveram presentes durante todo esse
tempo de espera para MPD. Sim, eu sei que me atrasei com esse livro, mas juro, a vida não
estava colaborando. Então, obrigada por aguardarem, e obrigada por serem fiéis a essa história.
Obrigada por cada mensagem, cada avaliação, cada curtida e comentário nos posts do Instagram.
Obrigada por repassarem a palavra de EPD para amigos e outros leitores. Obrigada por tudo isso
e mais. Vocês são minhas Destinetys favoritas.
Além disso, eu não posso deixar de mencionar as pessoas incríveis que estiveram comigo
durante a escrita e publicação de Marcada pelo Destino. Mais uma vez, minhas betas entregaram
tudo e mais um pouco. Júlia e Laura estavam presentes com EPD e quando se disponibilizaram
para MPD, eu não pude ficar mais feliz, mas elas ainda fizeram mais. Se tornaram minhas
amigas, me apoiam sempre que podem com tudo que envolve o meu trabalho no Instagram e
com parceiras. E as duas, junto com meu amigo João Vitor, viveram comigo uma das
experiências mais incríveis que eu já tive: Bienal RJ 2023. Eles me acompanharam e estiveram
do meu lado como eu não esperava que ninguém estivesse. Muito obrigada a vocês por isso.
Além da Ju e da Laurinha, ainda tive mais três betas incríveis: Leticia, Aline
(@pandalendo) e Bia (@bybiagon). Todas elas me trouxeram tantos comentários positivos e
relevantes para a narrativa. Me apoiaram tanto, mesmo cada uma tendo suas demandas pessoais.
Sou muito grata por vocês, amigas. Muito mesmo.
Para as revisões, mais uma vez, a Helô foi simplesmente incrível. Ela me ajudou a
encontrar qualquer erro no enredo e, juntas, conseguimos fazer MPD ter linearidade e propósito.
E eu já te agradeci antes, Helô, mas vou agradecer novamente por ter me dito o que eu precisava
ouvir sem nem perceber: “esse livro está melhor que o primeiro”. Vocês não imaginam meu
medo de MPD não ser uma sequência digna, e por ter estado com tantas outras responsabilidades
na minha vida, eu temia perder o “fio da miada” com essa história. Helô me ajudou a ver que eu
continuava no caminho certo e que continuava evoluindo.
Ana (@ferreirareads) foi minha leitora sensível e eu acertei em cheio! Eu queria uma
profissional da psicologia para ver se tudo o que eu andava abordando em MPD estava correto e
seguro para meus leitores lerem. Ela garantiu que estivesse. Obrigada pelo seu cuidado com a
intensidade dos pensamentos dos meus personagens nesse livro.
E para revisar meu texto, contei com o apoio da Lidiane Mastello, que tem uma conduta de
trabalho exemplar e foi super rápida em me entregar o arquivo (visto que eu estava correndo
contra o tempo, eu sou muito grata por isso). April Kroes (@imaginare_d), mais uma vez, fez a
diagramação desse livro e deixou ele exatamente como eu sempre sonhei: lindo, estruturado e
profissional! Muito obrigada!
A Camila (@camilagrivicich) talvez tenha recebido o trabalho mais difícil, porque foi meu
pedido mais audacioso. No início do ano de 2023 eu descobri que a Fernanda, quem ilustrou o
primeiro livro, não poderia fazer o trabalho para este, e então saí na minha empreitada em busca
de uma artista tão talentosa quanto. Entra, então, a Camila. Ela foi tão aberta para o meu pedido,
tão cuidadosa com esse trabalho… Sério, eu tive muita sorte. Eu não queria refazer a capa do
primeiro livro, mas também queria que as sequências se comunicassem, então a Cami aceitou o
desafio de criar a capa de MPD tentando seguir a ideia de EPD, permitindo que as ilustrações se
comunicassem. E claro, são trabalhos diferentes por serem de artistas diferentes, mas a Camila
conseguiu criar algo novo, porém familiar. Eu agradeço muito sua paciência em atender cada
pedido e detalhe que eu passava. Foi muito bom me sentir segura com nossa parceria.
Quanto à Tati (@imaginattadigital) eu tenho mil e um agradecimentos diferentes a fazer,
mas há algo que eu gostaria de expor: essa mulher genial me ajudou a sair do bloqueio. Eu estava
presa no meio da história, quando são tantas possibilidades, mas nada parece fazer sentido. Ela
indicou que eu resumisse o que deveria acontecer em cada capítulo para eu chegar no final que
queria, e foi por fazer isso que fui capaz de finalizar esse livro a tempo de publicá-lo no início de
2024, mesmo enterrada em trabalho e estudos. Obrigada, Tati. Por isso e todo o resto. (Essa
mulher é um gênio!).
Não posso deixar de agradecer, também, algumas pessoas que mantiveram minha cabeça
erguida quando se tratava de escrever. João Vitor, meu amigo tão querido, que me acompanhou
na loucura da Bienal e me fez ver que, sim, eu sou uma escritora, e sim, mereço reconhecimento
pelo meu trabalho. Obrigada, João, por levar isso a sério e me fazer ver que eu não poderia
aceitar nada menos. À Nicole, minha amiga/irmã, que sempre se mostrou interessada no que eu
tinha a dizer. Obrigada por ter sido uma companhia perfeita em um ano tão louco. À Natália
(@theabbeyread) que começou a trabalhar com meus posts e sempre me entrega coisas incríveis,
além de ser uma amiga que de fato entende a ânsia da escrita. Obrigada, Nat. E obrigada à minha
amiga Anaclara, que sempre me ajuda a ver que estou no caminho, que estou dando meu melhor,
e que se sentir ansiosa é normal. Obrigada, amiga.
E, claro, obrigada aos meus pais, Juliana e Luis Henrique, que dão o seu melhor para que
eu seja o meu melhor. Minha mãe nunca me disse que eu não seria capaz de conquistar algo,
independente da nossa situação financeira ou do quão louco meu sonho parecia ser. Pelo
contrário, ela sempre me ensinou a ser forte, a ter persistência, e a sempre olhar para frente e
nunca para trás. Meu pai me disse uma vez que eu precisava aprender a ser mais leve. Eu
continuo tentando, mas meu pai continua me mostrando como ser grato pelas grandes, mas
também pelas pequenas vitórias.
E a todos meus amigos e familiares que sempre me apoiam, sempre comentam meus posts,
compram ou divulgam o livro, e tem palavras de carinho para me oferecer: eu agradeço por ter
vocês comigo.
Para finalizar, esse livro fala muito de luto e eu também gostaria de aproveitar para lembrar
aqui pessoas amadas que se foram. Meu avô, Adelino Ranuzzi, se foi em 2011, mas deixou sua
memória viva em minha mente, assim como nas dos meus primos (obrigada por todas as balas de
hortelã, vô). Meu padrinho, Adauto Oliveira, a quem sempre lembro com grande carinho, se foi
em 2017, mas deixou seu legado vivo junto com os filhos, Luan e Laís. Meu tio, Marco Piccolo,
que perdemos em 2020, durante a pandemia, mas que eu sempre sinto vivo ao olhar para o João
Marcos, seu filho. E ao meu avô, Geraldo Luís, que partiu em 2023, mas que deixou de herança
uma família unida e memórias felizes (obrigada por todas as rosquinhas do Toin, vô). Eu levo
todos vocês comigo, vivos no meu coração, vivos dentro de todos os que ficaram e te amam.
Levo vocês em memória, mas também levo vocês em ações.
Esse livro é pra vocês que não puderam ficar mais, mas que também nunca partirão de
verdade. E esse livro também é para quem ficou, e não tem ideia de como lidar com o luto que
nunca de fato vai embora. Acho que, no fim das contas, nós continuamos e guardamos todos eles
no peito, para que a dor da saudade seja um pouco menos pesada. E nos apoiamos na fé de que,
um dia, voltaremos a nos ver.

[1]
Olhe! Olhe! É luz!
[2]
Não é?
[3]
Calma, mãe
[4]
Glória e honra à Fidly.
[5]
"Samahani" significa “Desculpa" na língua Swahili, falada em Quirimbas.
[6]
“Plot” em inglês significa “enredo”, “trama”. Na linguagem literária atual, “plot” também é usado para se referir a um momento de clímax da história, um
momento de mudança importante.
[7]
O caxiri é uma bebida alcoólica milenar dos povos indígenas, feito à base de mandioca. A produção é manual, mas rica em rituais durante o processo de
produção.

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