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ALIANÇA DE FOGO
Sequestro. Cativeiro.
As duas palavras ecoavam na mente de Mahara enquanto ela deixava o
emaranhado caótico de vozes da ala para trás e cruzava o corredor ladeado de
paredes geladas.
A ida do príncipe André para Alignis do Sul em missão de paz era a
última tentativa frágil para forçar a rendição dos terroristas, libertar o povo
oprimido pelo poderio do medo e das armas, e, talvez obter uma chance de
unificar os dois territórios outra vez. Entretanto, aquele ato desmanchava a
todas as expectativas.
Continuaremos esperando por uma solução, mesmo contra todas as
esperanças?
Mahara recostou as costas à parede, a temperatura corporal
contrastando com a temperatura da superfície lisa. Um discreto tremor se
insinuou pelas pontas dos dedos, instigado por sombras de memórias que ela
forçou para o vale escuro do seu interior.
As luzes ameaçaram tremeluzir no teto.
Podia jurar que estava escutando a batida melancólica de How deep is
your love, do Bee Gees, e não sabia se a canção provinha do rádio de algum
soldado ou das cenas tons de sépia que habitavam o passado.
Com um agitar de cabeça, seguido de uma ordem mental incisiva,
inspirou fundo, endireitou os ombros, ajeitou os cabelos e se recompôs,
seguindo para o consultório onde trabalhava no quartel quando não estava
treinando com o batalhão ou atendendo no Posto de Saúde da cidade próxima
à base.
Como um túnel escuro e bloqueado, algumas portas deveriam
permanecer sempre fechadas; pois, por mais que uma melodia carregasse
uma efervescência de sonhos eternos, também escondia uma ressonância
perturbadora, que jamais poderia ser entoada outra vez.
◆◆◆
Atualmente
ALIGNIS DO SUL
DOMÍNIO TERRORISTA
ALIGNIS DO NORTE
O calor das chamas era insuportável. Ela não conseguia enxergar quase
nada em meio a fumaça. No chão, o soldado gemia.
Extração do ferido, repetiu. Preciso terminar e fazer a extração do
ferido.
O som alto de uma bomba tremeu por todas as células do corpo.
As mãos estremeceram, vacilaram. Flashes dispararam nos olhos.
“Mahara! Mahara, cuidado! Fique! É perigoso!”
Ela recuou, não conseguindo completar o passo para a extração.
Uma voz ordenou para que o fogo simulado fosse cessado.
— Que porra de falha é essa, Sartori?! — o general Visco berrou. —
Vai cavar um buraco no chão e se esconder?! Vai deixar seus companheiros
perderem a vida?!
— Perdão, senhor. Erro meu.
— É claro que é erro seu! Meu é que não é! Pretende continuar para
sempre como médica de posto ou quer ser uma médica de combate?!
— Uma médica de combate, senhor.
— Então trate de melhorar o desempenho na próxima simulação!
— Sim, senhor.
Assim que ele a dispensou para gritar com o colega ao seu lado que
também falhara, Mahara deixou o campo para trás.
O Exercício Operacional de atendimento pré-hospital tático, para os
médicos do exército, havia sido iniciado antes do romper do sol e finalizado
com simulação prática em um cenário hostil.
Mahara sabia que aquela não era a rotina comum dos treinamentos para
os médicos, contudo, o sequestro do príncipe e a aproximação do dia da
chegada da Família Real havia alterado toda a organização do exército. O
general Visco optara por adiantar o Exercício Operacional para poder se
dedicar exclusivamente ao preparo dos soldados para a missão.
Ela apanhou uma toalha e enxugou o suor do rosto. O ar frio das
primeiras horas da manhã contrastava com o corpo quente.
Os operacionais ocorriam uma vez a cada vinte dias, para que os
médicos de combate aprendessem a superar as hostilidades e fazer um
atendimento de forma rápida e segura, com exercícios que exigiam o cuidado
de se proteger e proteger o soldado sobrevivente em meio ao fogo inimigo.
Sabia que estava melhorando a cada simulação, mas precisava
reconhecer que não havia se concentrado e dado seu máximo naquela manhã.
— Médicos! — o general gritou. — Todo o foco é agora para o resgate
do príncipe! Apesar da não obrigatoriedade, vocês também podem se alistar
com os demais soldados para competir por uma vaga na missão! Mas, pelo
que vi hoje, vocês são um bando de frangos que morreriam assim que
pisassem do outro lado da fronteira! Dispensados!
O grupo bateu continência para o general.
As coxas de Mahara pareciam prestes a se dissolverem. Estava
esgotada. Não havia dormido nas poucas horas de sono que lhe foram
permitidas. Pesadelos com a fronteira, bombas, gritos dos seus pais, homens
mascarados e prisões de pedras geladas a fizeram rolar pela cama, e
consequentemente afetaram seu desempenho no operacional.
Preciso me esforçar mais. Falhar é inadmissível. Vidas dependem de
mim.
— Ei, Mahara!
Ela olhou por cima do ombro, encarando com pouca animação o
soldado que se aproximava.
— Oi, Miro.
— Fiquei sabendo que o exame foi bem puxado. — O sorriso altivo
dele era algo que embrulhava o estômago dela. — O meu começa em quinze
minutos. O irritante é compartilhar terreno com esses estrangeiros nojentos e
com essas mulheres fracas. Meu pai já falou que me quer na equipe de
qualquer jeito, e que vou me arrepender se não for um dos escolhidos. O
velho é um chato que não confia nas minhas habilidades.
Por que será?, a pergunta enrolou na ponta da língua de Mahara, e ela
precisou recorrer a um autocontrole perturbador para ficar quieta.
— Mas e aí... — Sem deixar a expressão desdenhosa de lado, Miro deu
um passo em sua direção; ela sentiu o ar ficar desagradável com aquela
proximidade. — Vai se voluntariar para tentar pegar uma das vagas?
— Não sei, Miro. Seu pai conversou comigo ontem, mas... — Os
lábios dela se apertaram em uma linha fina; não estava com a mínima
vontade de partilhar aflições tão íntimas com ele.
— Pelo menos, você tem noção de qual é o seu lugar.
Mahara encrespou o cenho.
— “Meu... Lugar...?” — repetiu as palavras lentamente, o canto da
boca franzindo para ele.
— Sim, prefere ficar quieta fazendo uma tarefa digna de mulher,
diferente dessas garotas que estão tentando pegar os lugares dos homens em
uma das missões mais importantes que este exército já recebeu. Gosto disso.
Você sabe reconhecer o lugar certo de uma mulher.
O choque que a abateu impediu que seu cérebro processasse e reagisse
à imbecilidade daquela fala.
— Mudando de assunto, querida, quando vai aceitar o convite para sair
comigo? — Ele ergueu o braço na direção dela. — Vai me deixar esperando
por uma resposta até quando?
— Antes de eu te responder, quero que me responda uma coisa
primeiro. — Mahara se desvencilhou da mão que tentava tocar seu ombro e
seus cabelos. — Você se esforça ou é naturalmente desprezível? Porque você
não parece ser filho do Coronel Lucate.
O rosto de Miro se fechou em sombras ácidas. Ela deu as costas para
ele, escutando-o chamá-la de vadia e outros adjetivos que preferiu ignorar;
caso contrário, pegaria um dos jipes e passaria por cima dele.
Assim que girou o corpo por completo, seus olhos se depararam com
uma expressão fechada e afiada no rosto de Ricardo.
— Que cara desprezível. Ontem, eu estava tranquilo. Hoje, quero
quebrar os dentes dele.
— Entre na fila. Ela é bem longa.
— A forma como ele te tratou é inadmissível.
— Assim como a forma que ele te tratou ontem. — Ela bufou. — É o
tipo que acha que o lugar de uma mulher é na cozinha.
— Bom, também acho que o lugar de uma mulher é na cozinha. Assim
como o lugar de um homem é na cozinha. Na verdade, o lugar de todo mundo
é na cozinha. Afinal, é na cozinha que tem comida.
Ela falhou na tentativa em se manter séria. Uma brisa mansa soprou
sobre seus cabelos. Sob as luzes primitivas do amanhecer, o uniforme militar
se moldava ao corpo dele de uma forma harmônica marcante.
— Soldado Werneck, pensei que você havia dito que não era do tipo
engraçadinho.
— E na flertada em que falhei miseravelmente, devo ter dito também
que algo em você deixa todo o ambiente descontraído. — Ele esboçou um
sorriso leve antes de retomar seu olhar denso. — De qualquer forma, você
não deve permitir que um cara desse tipo te ofenda.
Suspirou.
— Acho que sou aquela pessoa que defende os outros, mas acaba não
sabendo como agir em situações em que sou o alvo.
— Posso te ajudar com isso. Erga a mão.
— Direita ou esquerda?
— Esquerda. Você é canhota, certo? Dá para perceber.
Ela o obedeceu. A mão dele se encaixou sobre a dela, quente e rígida,
auxiliando os dedos de Mahara a se fecharam em um punho. Um arrepio
suave beijou a nuca dela.
— Passo seguinte: se ele te ofender outra vez, você acerta a cara dele
com este punho fechado. Acredite. Dá resultado.
Um riso baixo escapou da boca dela enquanto suas mãos se afastavam.
Notou como as matizes da pele aprazível da manhã enchiam os olhos dele em
um jogo que quebrava a rigidez do inverno.
— É tentador, mas pode me trazer problemas com o coronel.
— Bom — ele deu de ombros —, pode ser que, durante o treinamento
de hoje, algo enrosque no pé do soldado Miro e o derrube no chão. Essas
coisas acontecem.
— Sim — Mahara fingiu concordar, partilhando a cumplicidade da
ideia. As tormentas da memória haviam suavizado na mente como nuvens
sopradas pelo vento. — Principalmente em terrenos irregulares.
Ricardo deu uma piscada para ela e acenou, juntando-se ao grupo que
seguia para o treinamento para a missão de resgate.
O coração dela se aqueceu sem que esperasse enquanto o assistia partir,
mas, assim que ficou sozinha, as nuvens voltaram a fechar o céu.
Forçando uma expressão serena no semblante enquanto passava pelos
funcionários do quartel, Mahara deixou a área de treinamento e seguiu para o
estábulo. Por conta do exame operacional, todos os atendimentos no quartel e
no posto de saúde haviam sido desmarcados. Esfregou o braço coberto pela
jaqueta. Havia um ardor ali que ela ignorou.
Empurrou a portinhola, escutando os relinchos baixos. Os cavalos eram
usados para treinamentos específicos e celebrações da Família Real em datas
comemorativas do país. Cruzou as baias, parando diante de uma égua
formosa, de pelagem amarronzada.
— Oi, garota. — Acariciou a cabeça dela, seu próprio peito se
contraindo sob a voz sussurrada. Queria se convencer de que aquela angústia
era culpa das provocações de Miro, mas sabia que era uma mentira da mente
para proteger a alma. — Está tristinha, não é mesmo? Também não dormi
direito essa noite. Muitos pensamentos. Muitas memórias.
A égua moveu as orelhas. Mahara suspirou. Atena, como fora batizada,
havia tido um parto difícil semanas atrás e o filhote não sobrevivera. E desde
então, uma aura melancólica parecia pairar sobre a égua, emaranhada no
invisível que poucos podiam captar.
— Nós duas entendemos sobre perdas, não é? Mas te prometo que
vamos ficar bem.
Fazendo um carinho brincalhão nela, como se pudesse arrancar um
sorriso de Atena, Mahara recostou o rosto ao focinho dela. Estava há muito
tempo trabalhando no batalhão. Qual era seu propósito ali? Seu verdadeiro
propósito? Pensou no príncipe sequestrado, em seus pais, na fronteira, no
cativeiro, no...
Piscou com força.
Ela já possuía um propósito. Atender e cuidar dos seus pacientes. E
queria superar as falhas e se oficializar como médica de combate para prestar
socorros para os soldados nas batalhas.
Então por que a sensação de ter uma lança no peito, roubando a
respiração e a vontade, ainda se marcavam sob sua pele? Por que os ventos
sussurrantes, que rompiam as janelas altas do estábulo, a faziam naufragar em
si mesma, como se algo ainda não estivesse acabado?
Já acabou. Aquela que um dia fui não existe mais. Do passado
restaram apenas os cortes feitos pelos espelhos quebrados.
A estrada que percorria era uma linha dianteira, pois não havia mais
motivos para olhar por cima do ombro e voltar.
Outra pontada angustiou seu peito; algo que a fez imaginar um peixe
preso em um anzol, se contorcendo e se revirando inutilmente para escapar
do metal cravado na carne.
Mahara puxou o ar, acariciando as orelhas de Atena mais uma vez.
— Falhei com meus pais, garota. E não há mais como pedir perdão.
Um som externo captou sua atenção. Ela se afastou da égua; por uma
das janelas, teve a impressão de ver o contorno de uma silhueta a observando
do lado de fora.
Em alerta, Mahara tocou a arma escondida nas roupas e contornou o
estábulo, o vento frio levantando seus cabelos. Uma onda de adrenalina tensa
e estranha comungava com o agitar do sangue nas veias, feito o chamado de
algo inominável.
O ritmo das pernas diminuiu, e as botas pararam sobre a terra batida.
Puxou a gola da jaqueta, olhando em volta. Um pouco mais ao longe, alguns
guardas patrulhavam a área.
Mas ali, onde jurara ver a silhueta de alguém, não havia mais nada;
apenas o sussurro do vento e borrões que pareciam marcas de pegadas.
5
Onde há fumaça
Atualmente
Ivy girou quando algo passou atrás dela, quase roçando suas costas.
— Vlad? — chamou pelo companheiro, empunhando o fuzil. O ar saía
de seus pulmões em um assovio doloroso. — Encontrou a merda dessa caixa?
Estou cansada de fazer cobertura.
Escutou alguma coisa cortar o ar, atingindo sua perna.
Porra! Algum inseto a picara? Odiava a floresta, amava a oficina.
Checou o local, praguejando ao ver que um dardo de caça havia atingido sua
panturrilha. Arrancou-o, sentindo uma vertigem subir pelas pernas.
Merda, é dos fortes.
Ela lutou para não desmaiar.
A vista turvou. Teve a impressão de ver a folhagem à sua frente ser
afastada. Forçou os olhos embaçados. Seria um dos seus colegas? Não, quem
vinha na sua direção não estava com os uniformes militares. Era uma pessoa
vestida de preto, com o rosto coberto.
Ela tentou segurar o fuzil e atirar; a força das mãos falhou. Ofegou
quando o sujeito veio em sua direção e a chutou, fazendo-a cair de joelhos.
Ivy tateou a terra. Não vai me vencer, filho da puta. Agarrou uma pedra e a
jogou para cima. Ouviu-o grunhir de dor.
Toma essa.
O sujeito rosnou, e sem que Ivy esperasse, ele agarrou seus cabelos e a
arrastou pela floresta. Ela escutou o som da correnteza do rio. Tentou chutá-
lo, se debateu, em vão; o efeito do tranquilizante era forte.
— Aceite seu batismo — a voz rosnou, aproximando seu rosto da água.
— Aceite a porta que Cerberus escolher.
Ivy não conseguiu gritar quando sua cabeça foi afundada na água. A
sensação era de que os pulmões queimavam. Ela se rebateu, fazendo de tudo
para se soltar, para acertá-lo.
De súbito, o sujeito largou seus cabelos. Ivy teve a sensação de que ele
estava fugindo. Tentou se erguer; os braços falharam. Uma mão agarrou sua
jaqueta, puxando-a para fora da água.
— Ortiz! — Era Vlad. — Ortiz, está me ouvindo? Está bem?!
Ivy puxou o ar, tossindo a água.
— Precisamos achar cobertura, Ortiz. Tem alguns malucos disparando
dardos nessa escuridão. Quero pegá-los. Precisamos achar um ponto no alto
das árvores.
— Vlad... Fui atingida... Minha panturrilha...
Com um movimento, Vlad ergueu Ivy do chão e a jogou sobre seus
ombros, o fuzil dela pendurado na bandoleira. A vista dela borrava. Sentiu
que ele estava escalando o tronco de uma árvore.
Por que estão atirando tranquilizantes? Por que tentaram me afogar?
— Vou te amarrar aqui para você não cair, Ortiz. Ficarei no outro
galho, posicionado para atirar.
— Se esse filho da puta vestido de preto aparecer de novo — Ivy
balbuciou, lutando para manter as pálpebras abertas enquanto Vlad a
amarrava no galho da árvore —, faça o favor de estourar os miolos dele.
◆◆◆
Atualmente
— Sartori?
Ricardo deixou o “posto de vigia” que havia montado perto da janela, e
se aproximou de Mahara. Ela estava deitada no tapete, e adormecera sem que
ele percebesse. O anoitecer ainda era um véu sobre a floresta.
— Sartori?
Olhou-a; ela parecia inquieta, os olhos fechados, ofegando como se
estivesse com uma dor horrível. Um pesadelo? Tocou o rosto dela com
cuidado, e se assustou ao ver o quão terrivelmente gelada ela estava.
Merda. Merda. Merda.
Seu primeiro pensamento foi acender a lareira, mas ainda temia chamar
a atenção de quem os caçara na floresta. Tirou a bandoleira que segurava o
fuzil e se abaixou. Sentado no tapete, ele a ergueu e a envolveu em seus
braços. Foi um choque de temperatura. Ela estava congelando, tremendo; e
Ricardo não sabia se era só por causa das roupas úmidas, ou se o pesadelo
que aparentava atormentá-la no sono era o responsável também.
— Acorde, Sartori. É só um sonho ruim. — Com as mãos, esfregou os
braços dela, as costas; uma tentativa de dar a ela um pouco de calor. —
Precisamos voltar. Você quer ser classificada, certo? Eu também. Tenho que
provar para mim mesmo que consigo passar por tudo isso.
Não devíamos ter pulado no rio. Não devíamos ter pulado no rio.
Ela estremeceu em seus braços, como se estivesse deixando o pesadelo
para trás. Envolveu as mãos dela com a suas, os dedos roçando pelas
cicatrizes desbotadas que riscavam a pele.
— Mahara — o nome saiu em um murmúrio abafado dos lábios dele, a
boca quase colada aos cabelos dela.
Ricardo a trouxe para mais perto, o olhar vagueando para a janela
embaçada com o frio. Os uivos haviam parado há quase vinte minutos e
ninguém se aproximara da cabana; um sinal de que talvez estivesse seguro
para retornar ao ponto de encontro. Fechou os olhos por um momento,
concentrando-se naquilo que não podia ser esquecido.
Em todos os motivos que o conduziram até ali.
— Tenho que cumprir uma promessa, Mahara — sussurrou baixo;
quase a reverberação de um pensamento muito profundo, que apenas ele
podia escutar. — E você é parte disso também. Mesmo que não se lembre.
Ela continuava quieta, mas um pouco mais quente, e ele sentiu os
dedos dela roçando nos seus pela brevidade de um instante.
“Às vezes o mundo parece estar contra você, e a jornada pode deixar
cicatrizes”, Ricardo escutou a voz familiar do passado deslizando por entre
as frestas da madeira, comungando com o lamurio do vento como um guia.
“Mas cicatrizes se curam e te mostram onde você está. Aonde você quer
chegar”.
O vento pareceu soprar ainda mais alto, misturando-se no tempo atrás
dos seus olhos.
“Então, garoto, me responda: quem é você e aonde quer chegar?”.
— Ei, o que você está fazendo? — A voz rouca de Mahara quebrou
suas lembranças; Ricardo sentiu o corpo dela se movendo, viu os olhos âmbar
se abrindo aos poucos. — Eu...
— Não se mexa. — Ele a segurou ao perceber que ela tentava se
afastar. — Ninguém está matando ninguém aqui. Você estava congelando, e
eu fiquei sem saber o que fazer. Como médica, você é excelente. Como
paciente, é teimosa e relapsa consigo mesma.
— Então vai seguir o manual de sobrevivência e aquecimento à risca,
especialista? — ela murmurou; havia uma nota de ironia na pergunta, um
sinal que o aliviou. — Porque, pelo que notei, ainda estamos vestidos.
— Ora, não costumo tirar as roupas de uma garota sem permissão,
Sartori. — O pálido brilho do luar iluminou o sorrisinho no canto da boca
dele. — Pelo contrário, as garotas imploram para eu fazer isso.
Sob a baixa luminosidade, ele a viu revirar os olhos.
— Você disse que era uma pessoa séria, que não era do tipo
engraçadinho ou que ficava flertando em momentos inoportunos. Acho que
não acredito em você.
— Me dê um crédito, Sartori. Salvei sua vida.
Ela balançou a cabeça em negação.
— Te salvei primeiro. Atirei naquela sombra, que ainda não sei se era
animal ou humana, e que ia te atacar.
— Eu estava com tudo sob controle.
— Sei... Vi como você distinguiu muito bem inimigo e aliado.
Ele não conseguiu segurar um riso. Mahara se remexeu outra vez e se
soltou devagar dos braços dele. As mechas molhadas dos cabelos dela caiam
emaranhadas pelo rosto. Ricardo comprimiu os dedos para conter a vontade
de mantê-la por perto; um desejo atordoante, abrupto, que esmagava a razão.
— Tudo bem — ele decretou, lutando em silêncio para empurrar
aquela onda para longe. Precisava de foco total. — Acho que desta vez
estamos quites, Sartori. O que aconteceu aqui morre aqui.
— Combinado, Werneck. Como está a área? — Apontou para a janela
com um gesto de cabeça.
— Limpa. Quer seguir em frente?
Mahara assentiu e se levantou. Apesar de ela aparentar ter recuperado a
força para prosseguir, Ricardo não deixou de notar como seus olhos estavam
embaçados. Pensou em perguntar sobre o pesadelo que ela provavelmente
havia tido; abriu a boca, soltou o ar.
— Sartori? — Ela virou o rosto para ele enquanto ajeitava o fuzil e a
bandoleira. A sensação do corpo dela contra o seu ainda formigava pela pele
dele. — Você está bem?
— Sim. E você? — Mahara esticou a mão, apontando para o punho
enfaixado. — Está doendo?
— Tranquilo. Está em condições de seguir em frente? Minha jaqueta é
suficiente para você? Ainda está frio do lado de fora.
Mahara abriu a porta, o vento ríspido fustigando seus cabelos.
— Vão precisar me enfiar embaixo da terra para me impedirem de
concluir essa prova e ser classificada. Perder não é uma opção.
Sem baixar a guarda, eles deixaram a cabana, os sentidos em alerta.
Nenhum sinal de lobos ou qualquer outro movimento. As rajadas de vento
eram fortes, e eles se mantiveram próximos um do outro para obter um pouco
de calor. Contornaram o rio, buscando a trilha que os levaria de volta para o
ponto de encontro. Ricardo analisava o chão, a vegetação; sua mente e olhar
experientes haviam marcado detalhes do caminho.
De soslaio, captou Mahara esfregando a garganta discretamente.
Um gosto amargo amarrou a boca dele ao se lembrar de sua mão
apertando o pescoço dela, do olhar assustado que a sombreou ao ter o corpo
imobilizado pelo seu. Tinha certeza de que havia deixado marcas ali.
— Sartori, de verdade, eu não queria ter...
— Sei que foi um acidente. Só... Nunca vi nada parecido. Não consigo
parar de me perguntar onde você aprendeu essas táticas e...
Escutaram o farfalhar dos arbustos atrás deles.
Mahara se calou, endireitando os ombros.
Trocaram um único e silencioso olhar.
E então, no mesmo compasso, Mahara e Ricardo giraram e ergueram
os fuzis, os apontando para os dois homens que se aproximavam.
— Não atirem! Não vou atacar nem roubar! Já estamos com uma caixa!
— Miro bradou, gesticulando com a cabeça para as mãos de Igor Scaramal.
Seu braço passava por baixo do braço do outro soldado, fornecendo
sustentação para ele. — Scaramal quebrou o pé.
— Como isso aconteceu? — Mahara abaixou o fuzil e avançou até o
colega ferido, o semblante de combatente dando lugar à sua postura médica.
Prontamente, tirou uma gaze de dentro da caixa de suprimentos e limpou o
corte ensanguentado na testa de Igor.
— Fomos emboscados. Escapamos, mas Scaramal se machucou.
Mahara encrespou o cenho.
— Vocês também?
Ricardo girou quando um rugido alto ecoou pela clareira. O quarteto
trocou olhares confusos, assustados.
Só tiveram tempo de ver um urso de quase dois metros de
comprimento avançando feroz na direção deles.
Miro gritou, escorregando para trás, derrubando Igor em cima de
Mahara, Ricardo preparou o fuzil; e antes que pudesse apertar o gatilho, um
tiro foi disparado de um ponto alto acima deles.
O animal caiu para trás com um grunhido.
— Mas que merda...?
Os quatro ergueram os olhos.
Vlad estava alojado em um galho alto, com Ivy ao seu lado, a mira do
fuzil apontada para o urso morto.
— De nada. Este é o segundo que pego nessas redondezas.
Enquanto Vlad descia da árvore com Ivy, Ricardo soltou o fuzil e
andou até Mahara, oferecendo ajuda para ela se levantar, gesto que foi
educadamente negado. Miro esfregou o braço, encarando o urso e engolindo
em seco.
— Vocês estão bem? — Vlad indagou para o grupo.
— Sim, e você? — Os olhos de Mahara se estreitaram em cima do
semblante apático de Ivy. — Vlad, ela está bem?
— Ortiz foi atingida por um dardo enquanto eu apanhava nossa caixa.
Está sedada. Não consegui encontrar os responsáveis. Fiquei horas em cima
da árvore esperando por um sinal deles, mas eles desapareceram.
— Será que eram soldados do Sul? — Ivy balbuciou, zonza, os braços
pendurados em Vlad.
— Não sei. Pareciam conhecer a região. Esta área está longe da
fronteira, e é de difícil acesso para o pessoal do Sul.
Os lábios de Ricardo secaram. Encarou os demais. O que diabos estava
acontecendo ali? Aquilo era parte do teste? Não fazia sentido.
— Precisamos voltar — Mahara falou, comprimindo a caixa contra o
peito. — O tempo da prova está esgotando. Se nós seis formos juntos,
teremos mais chances de nos defender caso mais algum animal apareça.
Com um consentimento conjunto, o grupo seguiu pelo restante da
trilha. Ricardo foi à frente, junto de Vlad, que carregava Ivy nas costas,
enquanto Mahara e Miro forneciam cobertura por trás, ao mesmo tempo em
que seguravam Igor.
O céu aos poucos empalidecia, se preparando para a chegada de mais
um amanhecer de cores invernais.
A trilha se abriu, e a vegetação espessa foi diminuindo, abrindo-se para
a planície que ladeava o pântano.
— Mais seis voltaram, general Visco!
— Avisem o coronel Lucate que o filho dele voltou!
A maior parte do grupo já estava ali; algumas duplas com as caixas,
outras sem. Como um impulso magnético, os olhos de Ricardo foram para o
chão, onde dois soldados estavam deitados imóveis.
O general Visco limpou a garganta.
— Foram sedados e afogados. Estão mortos.
— Afogados? — Ivy grunhiu, esfregando os olhos. — Um filho da
puta tentou me afogar também. Disse que estava me batizando.
— Esses ataques não eram parte do teste, correto, general Visco?
— Correto, Vlad. Não sabemos quem atacou vocês.
Ricardo encarou os dois colegas mortos. A primeira era uma mulher do
grupo de recrutas do qual ele fazia parte. O segundo era um soldado negro
veterano, que se destacava muito nos treinamentos.
— General, o que está acontecendo aqui? — Mahara indagou; o ar
parecia não encontrar o caminho para os pulmões dela.
— Já solicitei uma investigação, Sartori. Sei que tudo é chocante e
repentino, mas não podemos perder o foco. A vida do príncipe André está em
risco. O prazo está esgotando, e logo a Família Real chegará. Descansem por
algumas horas. O treinamento será retomado em breve.
◆◆◆
Os passos ritmados dele ecoavam pelo corredor. Ele parecia não ter
pressa enquanto andava, as mãos guardadas no bolso do terno preto, o
sobretudo escuro rodando às suas costas. Em um ritmo silencioso, os criados
saíam do seu caminho sem que uma ordem precisasse ser proferida.
Parou diante de uma porta ornamentada. Não bateu. Entrou no salão
iluminado pelos primeiros sinais do sol. Localizou o homem de costas para a
entrada, parado diante de uma pintura na parede central.
— Mandou me chamar, senhor?
— Sim, Edmund. Já faz dez dias que o príncipe está conosco, e o
regente Hector não deu sinais de que abrirá a fronteira. Pensei em ajudar o
regente a tomar uma decisão mais rápida. Pode cuidar disso?
Com uma reverência, Edmund abriu um sorriso costurado de gelo.
— Com o maior prazer, lorde Królu.
11
Uma brasa quieta
Atualmente
Mahara despertou com a pressão suave e quente das cobertas sobre seu
corpo. Entreabriu os olhos vagarosamente; através da janela, o dia se abria
em mais um amanhecer nevoento.
Ela se virou na cama, procurando por Ricardo, mas encontrou o lado
dele vazio. Olhou outra vez para a janela. Pelas cores do céu, ainda era muito
cedo. Julgou que ele havia se levantado para acertar os últimos detalhes da
partida para a base de Królu. Aquele seria um dia decisivo.
Virou de novo, os cabelos se abrindo em um leque escuro sobre o
travesseiro enquanto encarava o teto do quarto, deslizando as pernas ao longo
dos lençóis, um sorriso perdido no rosto.
Caramba.
O cheiro de Ricardo estava espelhado por tudo; na cama, na pele, como
uma marca permanente feita pelo mais ardente dos fogos. Se ela fechasse os
olhos, conseguiria imergir na ternura cálida daquela noite, nas mãos dele
tracejando suas curvas, no corpo inteiro formigando ao seu toque, nos lábios
se encontrando repetidas vezes.
“Desejei isso. Em todos os momentos de todas as horas em que estive
com você.”
Mahara puxou as cobertas, escondendo do dia que nascia o sorriso
tingido de rubor. Admirou a aliança no dedo. Tinha meio sonhado, meio
revivido tudo de novo. Havia adormecido na completude dos braços dele, em
um vilarejo do temível território do Sul, e nenhum pesadelo com o ataque na
fronteira, com o cativeiro ou com Edmund ousou assolá-la.
Era quase como se pudesse se esquecer de tudo.
Quase.
A porta do quarto se abriu com um rangido nas dobradiças. Mahara
ergueu a cabeça e segurou as cobertas contra o corpo; não estava vestindo
absolutamente nada. Ricardo sorriu ao vê-la acordada e encostou a porta.
Estava com uniformes militares, semelhantes aos do exército sulista, e trazia
nas mãos mais peças de roupa da mesma cor.
— São para você — explicou, colocando-as sobre a cama. — Para você
usar durante a missão na base.
— Obrigada. Hum, bom dia?
Ricardo sorriu outra vez, sentando-se no colchão ao lado dela e
depositando um beijo gentil em sua testa.
— Bom dia.
— Você levantou bem cedo.
— É um hábito que adquiri com o senhor Werneck no tempo em que
morei na Moldávia. Estou acostumado. — Ele segurou o rosto dela entre as
mãos, a coberta ameaçando escorregar no espaço ínfimo entre eles. — E eu
tenho certeza de que poderia me acostumar facilmente a acordar com você,
desse jeito que está agora, todos os dias.
Um rubor divertido manchou suas bochechas. Mahara inclinou a
cabeça para frente, acomodando-a na curva formada pelo ombro e pescoço de
Ricardo. Um cheiro agradável de sabonete vinha dele. Não conseguindo se
conter, ela afastou a gola do uniforme, roçando a boca em seu pescoço,
beijando-o, mordiscando-o. Com um sorriso escondido, sentiu a pele dele
arrepiar. Continuou com os beijos, alternando as mordidas leves,
provocando-o. Os dedos de Ricardo se fecharam com mais pressão em seus
cabelos, o hálito quente próximo à sua orelha.
— Pare com isso, Sartori, a não ser que queira que eu te possua
novamente até te ouvir gritar o meu nome.
O ruído abafado que saiu da garganta dela entregou que ela estava
muito favorável àquela ideia.
— Diga que temos tempo.
— Hum... — Ricardo suspirou a contragosto. — Infelizmente, não
temos tempo. E quando estou com você, não quero ter pressa ou qualquer
outra preocupação. Mas se continuar me beijando desse jeito, vou ignorar o
que acabei de dizer.
A contragosto também, Mahara se afastou usando um autocontrole que
não sabia que tinha até aquele momento.
— A que horas sairemos? — ela perguntou.
— Daqui a pouco. Você precisa se trocar e se alimentar.
— Farei isso. Mas preciso saber de uma coisa. Sei que o foco dessa
missão é resgatar o seu primo, contudo, eu vim para cá para levar minha mãe
para casa também. Só que, pelo que sei, ela está na região das minas de
exploração, nos postos médicos. Quero ir até lá. Não volto para o Norte sem
ela.
Ricardo baixo o rosto, o maxilar se contraindo, o olhar espelhando a
neblina que cobria a floresta do lado de fora.
O coração de Mahara acelerou de um jeito que gelou os ossos.
— O que foi, Ricardo? O que aconteceu?
— Mahara... — Ela não gostou do jeito que seu nome saiu da boca
dele, na forma hesitante como segurou suas mãos. — Durante a madrugada,
Leonel deixou o vilarejo e foi até a região das minas. Ele consegue atravessar
o território sem levantar suspeitas, por ser um mercenário local.
— Ele foi atrás da minha mãe?
— Sim. Leonel queria avisá-la sobre você, sobre o resgate. Facilitar
uma rota de saída para ela, mas...
Os olhos de Mahara aumentaram.
— Mas o quê, Ricardo? Você está me deixando nervosa!
— Sua mãe não estava lá. Ele não a encontrou em lugar nenhum. Nem
nos postos, nem nas minas, nem nas casas dos escravos. Leonel está lá
embaixo, acabou de retornar ao vilarejo para nos contar isso, e...
O ar fraquejou desesperado nos seus pulmões. Mahara se levantou num
pulo, correu para o banheiro, tomou um banho rápido, vestiu o uniforme
sulista; logo estava descendo as escadas, os pés batendo contra os degraus,
seguida por Ricardo.
Deparou-se com um grupo de pessoas reunido na sala principal do
casarão; Natasha, Ivy, Vlad, Leonel e alguns homens do vilarejo que não se
recordava dos nomes agora. Todos estavam uniformizados, e portavam nas
mãos direitas a aliança-símbolo da união feita na noite anterior.
— Minha mãe está desaparecida, Leonel?! — Mahara jogou a pergunta
ofegante, sem se preocupar em cumprimentar os demais. — O que está
acontecendo? Você disse que ela é uma prisioneira vigiada das regiões das
minas.
— Sim, ela é. Como é médica, os soldados a mantém no local para
cuidar dos feridos, já que quase não temos médicos aqui.
— Então onde minha mãe está?!
— Não sei. Voltarei para as minas. Em todos esses anos, a senhora
Elena Sartori jamais saiu de lá. Vou procurá-la outra vez, conversar com
pessoas de confiança, irei atrás da minha irmã, se for preciso.
— Vou com você.
— Não, Mahara — Ivy interveio. — Você tem que ficar conosco. Pela
sua própria segurança. Sabe disso. E pela missão. Todos nós somos
necessários no resgate do príncipe. Se um de nós estiver faltando, o plano
pode ser comprometido.
Os tendões vibravam, o ar mal chegava aos pulmões. Queria protestar,
gritar, fazê-los recordar de que era a vida de sua mãe em jogo. Da mãe que
acreditou que havia perdido dez anos atrás.
Ao virar o rosto, seu olhar colidiu com o de Vlad. Bastou um gesto
empático e silencioso dele para amansar o fogo corrosivo das veias dela.
Ela sabia o que era. Sabia a razão de estar ali.
Ela era parte do exército de Alignis do Norte, e tinha que agir como
todo soldado agiria naquela situação.
A missão acima de tudo.
— Consegue nos manter informados enquanto estivermos na base,
Leonel? — a voz dela tremeu, e Mahara se forçou a não ceder ao desespero.
— Ficarei monitorando a região o dia inteiro. Consigo ser furtivo e
discreto. Assim que eu achar a senhora Elena Sartori, ou descobrir qualquer
coisa sobre seu paradeiro, te avisarei. Se eu e minha irmã estamos vivos, é
por causa dela. Farei de tudo para honrar esta dívida.
— Há uma rota entre a base de Królu e as minas — Natasha
acrescentou. — Se sua mãe estiver lá, meus homens mostrarão o caminho
assim que o príncipe André for resgatado.
— Conseguiremos sair a salvo daqui do Sul?
— Sim. O plano é não cruzar a fronteira de Alignis do Norte, pois ela
está sendo muito vigiada. Vocês serão levados para um dos países vizinhos
do Sul. — Natasha apontou a localização no mapa. — De lá, poderão viajar
por esta outra rota e retornar a salvo para o Norte.
Mahara ouvia as explicações de Natasha, mas era como se a voz da
líder do vilarejo rebelde batesse em uma redoma invisível e ecoasse para
longe. Parecia que carvão em brasas haviam se alojado em suas entranhas.
Tudo o que conseguia enxergar era o rosto de sua mãe.
— Vocês mencionaram um transporte específico que nos levaria até a
base, e que só o teriam em posse hoje de manhã — Vlad tomou a palavra. —
Ele já está aqui?
— Sim. Venham comigo.
Seguiram Natasha para fora do casarão. Contornaram a construção e
atravessaram uma viela. Os olhos de Mahara se arregalaram quando ela
entrou em um galpão e se deparou com um caminhão militar do exército do
Sul. No chão, distante do veículo, estavam dois soldados sulistas, amarrados
e amordaçados.
— Faz muito tempo que estamos monitorando a movimentação na
base, entradas e saídas de veículos. Em dias específicos, um caminhão
sempre sai para buscar barris de óleo diesel, e retorna pela estrada vicinal.
Como é uma tarefa rotineira, a segurança é mais baixa — Natasha explicou.
— Há um ponto cego no caminho. Durante a madrugada, abordamos o
caminhão e rendemos os dois soldados. Com o veículo e a documentação
deles, vocês conseguirão entrar na base.
Vlad deslizou o polegar pelo queixo.
— É um plano arriscado, mas consigo enxergar as vantagens. Quem irá
dirigindo? Ivy e Mahara não podem se passar pelos soldados, e o príncipe
Ricardo, apesar de estar longe dos holofotes, pode ser reconhecido. Os caras
aí são brancos, o que dificulta, para mim, assumir qualquer uma das
identidades.
— Costin e Felix irão com vocês. Gostaria de dispor de mais pessoas,
mas como disse ontem, poucos aderiram à causa. — Natasha sinalizou para
que dois rapazes se aproximassem. — Eles são especializados em fuga e
extração. Cuidarão do transporte.
Ricardo apanhou uma prancheta e algumas folhas.
— A chegada do caminhão à base está marcada para daqui duas horas.
Temos que sair em breve. Se a entrega atrasar, poderão suspeitar de algo e
barrar nossa entrada.
— Em quinze minutos, finalizaremos os últimos ajustes, e vocês
poderão partir. Resgatar o príncipe André será o primeiro ato da aliança entre
Norte e Sul para tirar o poder de Królu.
Sem perder tempo, o grupo se dispersou para assumir suas funções.
— Você precisa comer alguma coisa. — Ricardo colocou a mão no
ombro de Mahara. — Temos pouco tempo, e você precisa de toda a energia
possível para prosseguir.
— Eu...
— Ele está certo, garota — Vlad disse, ajeitando as armas no cinto. —
Além disso, você vai precisar estar em pé para abraçar sua mãe, não é?
Mahara assentiu. As palavras dele foram como um sopro de
persistência e resiliência. Precisava dar o seu melhor para concluir o trabalho.
— Venha comigo. — Ivy segurou o braço dela. — Tem uma comida
muito boa esperando por nós na cozinha.
Ricardo se colocou ao lado de Vlad, observando Mahara seguir para
fora do galpão com Ivy.
— Vocês dois se entendem muito bem, Vlad. Ela me contou o quanto
você a ajudou no passado.
— Sim... Essa garota já experimentou o próprio inferno, sobreviveu, e
desconhece a força que tem. A carreira militar e meu cargo como atirador de
elite me afastaram da escolha de formar uma família, mas Mahara é como
uma filha para mim. Então, se você quebrar o coração dela, quebrarei a sua
cara. — Vlad fez uma reverência, ignorando a expressão chocada de Ricardo.
— Com todo o respeito, Alteza.
◆◆◆
Lito conseguia sentir a tensão vibrante que pairava pela ala principal do
quartel. A agitação. A dúvida. As garras da incerteza.
Aquele era o décimo quinto dia desde o sequestro do príncipe.
A data final imposta por Królu.
— Não aguardaremos por um sinal do príncipe Luís Ricardo, Vossa
Alteza? — o coronel indagou. Apesar do inverno trepidante, gotas de suor
borravam sua testa.
— Meu sobrinho não entrará em contato. Optamos por proceder desta
forma, para evitar que alguma torre de vigia de Królu captasse o sinal.
Seguiremos o plano dele. Quero que o exército marche até a fronteira. Se
Królu decidir atacar, estaremos preparados.
Lito prendeu o ar. Estava mesmo acontecendo. A possibilidade de uma
invasão eminente. A chance da guerra ultrapassar a fronteira. Ele só
conseguia pensar em seus amigos, na segurança de Mahara, Vlad, Ivy.
Implorou outra vez em silêncio para que sua estrela da sorte cuidasse de Ivy.
— Esta é minha ordem final — o regente declarou. — Minha esposa
Marlene deseja retornar ao palácio, pois lá se sente mais segura para ficar
com nosso filho até que tudo se resolva.
Marlene permanecia em silêncio, com o príncipe Nicolas nos braços.
Lito ainda não havia encontrado uma palavra para definir a jovem rainha.
Algo na cor claríssima dos olhos dela o fazia pensar em um lago com buracos
imprevisíveis.
— Como desejar, Alteza.
General Visco deu um passo à frente do batalhão.
— Seguiremos para a fronteira imediatamente! Zabalza. Lucate.
Scaramal. Demantova. Vocês e os soldados da ala norte permanecerão aqui
no quartel, para auxiliarem no monitoramento e na comunicação.
Lito, Miro e os demais consentiram, batendo continência para o general
e para o coronel. Lito não se importava em ficar ali enquanto os outros
seguiriam para a luta, mas não negou a satisfação que sentiu ao ver que Miro
também havia sido deixado na geladeira.
Olhou para o soldado, esperando ver uma expressão desgostosa no
rosto dele. Entretanto, se deparou com um semblante neutro, ilegível, como
se Miro estivesse dentro de um pensamento muito particular.
— Alteza — o general Visco se virou para Hector —, nenhum sulista
atravessará aquela maldita fronteira. Tem minha palavra.
— Estou contando com seu batalhão para proteger Alignis do Norte.
Ofereço também mais da metade da guarda real para acompanhar seus
homens e mulheres até lá.
— Será uma honra para nós tê-los ao nosso lado.
Com um gesto respeitoso e solene, Lito assistiu o general se despedir
do regente. Hector ofereceu o braço para Marlene, que carregava o filho
pequeno no colo.
— Retornarei ao palácio com minha esposa e meu filho. Tenho certeza
de que Luís e André estarão conosco em breve.
— Façam uma boa viagem, Alteza.
Por mais imponente que Hector fosse, Lito conseguia perceber a
aflição que pairava nos olhos do regente. Como governante, precisava se
manter firme para inspirar o povo e os soldados. Contudo, como pai, a alma
despedaçada era um reflexo pulsante do ar que inspirava e expirava.
— Soldados, em formação!
Enquanto se alinhavam, Hector e Marlene se viraram, escoltados pelos
guardas para fora do quartel. E talvez fosse coisa da sua cabeça cheia de
preocupação, mas não passou despercebido por Lito um fugaz e estranho
olhar trocado entre Marlene e Miro.
22
Operação resgate
Atualmente
Mahara sabia que Edmund jamais faria a troca que ela havia pedido.
Tinha certeza de que ele se enfureceria ao vê-la querer abrir mão da
liberdade pelo amor que sentia por Ricardo, pois, na cabeça dele, ela era sua
posse, única e exclusivamente.
Tinha certeza de que ele a faria se arrepender por amar Ricardo, e a
levaria para dentro do palácio sem hesitar.
E foi naquele plano que Mahara se agarrou.
Enquanto Edmund a arrastava pelos corredores, sua mente ágil
marcava cada detalhe do caminho. Estavam na parte térrea. Passaram diante
das escadarias laterais. Ela viu a falsa biblioteca. Era ali que a passagem
secreta ficava. Nem Edmund, nem os soldados pareciam saber daquilo.
Deixou que ele a forçasse a subir as escadas enquanto traçava seu
próximo plano. Podia sentir a respiração feroz dele em seus cabelos.
O mundo girou quando ele a socou no estômago e a empurrou para
dentro do quarto. Mahara arquejou, quase sem ar; vozes mistas, lendárias,
involuntárias, atravessando a confusão dançante dos pensamentos.
“A cada brado, Cerberus ficava mais próximo de derrotar o dragão.
Testemunhando aquilo, a fênix deixou seu lugar ao lado da batalha e voou
até eles. Sem que esperasse, a terra se abriu em um uivo trepidante, e de
dentro dela, Íncubo emergiu, atacando-a, tentando tomá-la para si”.
— Isso é por ter se deitado com outro homem, princesa.
Mahara tentou contra-atacar, mas Edmund a segurou com força,
prendendo-a de encontro ao seu corpo.
“‘Não me terá, demônio’, a fênix revidou, ‘nem que eu precise ir das
cinzas ao fogo uma vez mais’”.
A mão dele desceu por sua blusa, apertando seu seio.
— Estava com saudades, princesa? Acho que estava. Foi por isso que
você veio até mim.
“Das cinzas ao fogo, uma vez mais”.
Ela arfou de nojo e olhou para a entrada do quarto; não se controlou
para esconder o sorriso raivoso da boca.
— Nossa, agora você precisa manter soldados na porta para conseguir
transar comigo? Acho que você ficou velho.
O soco seguinte fez Mahara se desequilibrar, cair e rolar pelo chão.
Aproveitou para puxar o ar e não perder os sentidos enquanto Edmund
berrava para os soldados desaparecerem dali e os deixarem sozinhos.
Pronto. Caminho limpo.
Havia algo no âmago dela que achava assustador o fato de conhecer
Edmund tão bem, a ponto de prever suas atitudes e reações.
— Sua língua está afiada. Você vai precisar se lembrar de que me deve
obediência, princesa.
Em um movimento brusco, ele a puxou e a jogou de bruços contra a
cama, apoiando o braço em suas costas, enquanto a outra mão puxava a roupa
dela para baixo.
— Você vai se esquecer completamente do príncipe assim que eu
estiver dentro de você.
Mahara controlou a ânsia que subiu por sua garganta, o tremor gelado
do corpo; precisava apenas de uma brecha.
— Vai ser a minha princesa obediente outra vez, que fica quietinha e
que sabe me respeitar.
Sentiu o braço dele se afastar, escutou o barulho do cinto sendo aberto.
Mahara não teve dúvidas; a mente agiu rápido, e assim que se viu
parcialmente livre do peso de Edmund, agiu.
Ergueu-se e projetou o tronco para trás, acertando-o com uma
cabeçada, seguido de uma cotovelada na garganta. Edmund arfou e
cambaleou atordoado para o lado.
— Não me subestime! Não sou mais aquela garota indefesa que você
capturou dez anos atrás!
Ela pulou rápido da cama, ajeitando as roupas e disparando através da
porta sem olhar para trás. Como previra, não havia soldados no corredor,
entretanto, não podia abusar da sorte.
Escutou Edmund vociferar.
Acelerou ainda mais.
O coração parecia prestes a estourar as paredes do peito.
Usando todo o treinamento que tinha do exército, Mahara se escorou
pelas colunas, dobrou os corredores, os sentidos em alerta, mantendo-se fora
dos radares dos soldados. Faltava pouco para chegar às escadas. O ar entrava
e saía dos pulmões como se fosse feito de facas afiadas.
Mais um pouco. Só mais um pouco.
Ela se virou, e então, seus olhos aflitos colidiram com os olhos
inchados e sem brilhos de Marlene, que vinha na direção oposta.
O corpo congelou.
Foi uma eternidade, foi um segundo.
Mahara se preparou para atacá-la, impedi-la de gritar; Marlene apenas
suspirou e voltou a andar, desviando dela, como se não a tivesse visto.
Não entendeu nada, e decidiu que não havia tempo para entender.
A maior parte da tropa estava se posicionando diante do portão
principal do palácio; uma estratégia de distração enquanto o grupo mais
especializado se infiltrava pelo túnel subterrâneo.
E o sucesso do plano estava nas mãos dela.
Desceu as escadas, pulando os degraus, correndo até a biblioteca falsa.
O andar do relógio era um inimigo impiedoso. Procurou pelo livro-alavanca
descrito por Presmane.
Aqui!
Ela pressionou a alavanca, e, feito uma cena de filme, a biblioteca se
abriu diante de seus olhos, revelando o bunker. Avançou para dentro; o local
havia sido decorado para se assemelhar a um escritório clássico, caso fosse
encontrado por alguém, com estantes, candelabros e espelhos.
Onde está o painel digital? Onde está? Aqui!
— Vadia! Acha que pode me enganar? — Edmund urrou, surgindo
pela passagem, pegando-a de sobressalto. — Quem você pensa que é?!
Ele foi em direção a ela; Mahara jogou o primeiro candelabro que
conseguiu pegar para cima dele. Edmund desviou, e a peça atingiu o espelho
fino, fazendo uma chuva de cacos cair sobre eles.
Cada pedaço cintilou uma memória, uma lembrança, uma certeza,
desde o dia em que seus pais avisaram que iriam para a fronteira até o
momento decisivo onde agora se encontrava.
Edmund avançou, Mahara enganchou a perna na dele, e eles rolaram
pelos estilhaços.
“O Íncubo elevou as garras, rasgando uma das asas da fênix, que
gritou com a dor dilacerante. Sangue e fogo os circundavam, sangue e fogo a
formavam, e com sangue e fogo ela o derrubaria”.
A mão de Mahara se fechou furiosa sobre um dos cacos afiados; a pele
foi cortada na hora, mas ela não se importou. Enfiou o pedaço do espelho na
garganta dele. Edmund ofegou e se contorceu. Ela se arrastou para longe,
assistindo à cena com uma mistura de choque, horror e deleite.
Teria chorado; de ódio, de alívio, de saber o quanto ele havia ferrado
com sua mente e corpo, mas não era hora para aquilo.
Mahara inspirou fundo, ignorou o cheiro do sangue, se ergueu, correu
até o painel digital e inseriu a senha de Presmane. Houve um estalo de travas
sendo liberadas. Procurou pelo piso falso; era uma espécie de portinhola de
um alçapão.
Abriu-a, revelando a escada vertical que descia para o túnel
subterrâneo. Ergueu o rosto, decidida; era uma questão de tempo até que seus
aliados estivessem dentro do castelo.
E ela precisava fazer de tudo para encontrar Ricardo antes que fosse
tarde demais.
32
Coração ardente
Câmeras.
Então era assim que Tersius Królu prosseguiria com as execuções em
“praça pública”.
Eles não sairiam do palácio. Eles morreriam lá dentro, com Alignis do
Norte inteiro assistindo pela televisão enquanto Królu discursava.
Ricardo soltou o ar, esvaziando a mente para pensar com clareza.
Analisou a situação. Ele e André haviam sido levados para a sacada
principal do castelo, onde câmeras sintonizadas com os canais do país tinham
sido instaladas. Estavam sentados cada um em uma cadeira, com os braços
amarrados para trás. Além de Królu, havia mais dois soldados armados ali,
fazendo a guarda.
— Então, para preservar a nação forte que um dia Alignis foi e que
minha família sempre ansiou preservar, meu reinado cuidará da manutenção
do idioma, das manifestações culturais, das miscigenações, da imigração e de
tudo que possa destruir nossa pura identidade. — Królu encarou uma das
câmeras, o semblante impassível. — O Fractal é o meu presente para os
verdadeiros cidadãos que querem restaurar a glória de Alignis.
Ricardo precisou bater os dentes para não elevar a voz e gritar diante
das câmeras; tinha a impressão de que aquilo apenas adiantaria sua morte.
Olhou de soslaio para o primo; André estava pálido, com um aspecto
de quem vomitaria a qualquer instante.
— Espero que esteja satisfeito — rosnou para ele. — Olhe só onde sua
ambição nos trouxe.
André não respondeu. Ricardo imaginou que o primo estaria esperando
por alguma intervenção de Marlene, mas não havia sinais da jovem rainha em
lugar nenhum, tampouco do pequeno Nicolas.
— Nicolas é seu filho, não é? — O silêncio de André confirmou a
pergunta de Ricardo. — Ela deve ter feito um acordo pela vida do menino.
Ela não vai impedir o irmão de te matar. De nos matar.
Apesar da falta de resposta do primo, não passou despercebido aos
olhos de Ricardo o jeito nervoso como André engoliu em seco.
— Para marcar o início do Fractal, a dominação do meu sangue e o
ressurgimento de uma nação com líderes fortes, hoje, diante de todos vocês,
os príncipes e herdeiros das duas primeiras linhagens reais serão executados.
— Com um sinal de Królu, um dos soldados se aproximou de Ricardo e
André, colocando cordas em volta de seus pescoços. — Eles serão atirados
desta sacada e, pela sentença, morrerão enforcados, como um símbolo de
tudo aquilo que contamina nossa pátria.
O sangue correu mais rápido por suas veias.
Ricardo remexeu os braços, buscando não chamar a atenção dos
soldados enquanto tentava se livrar das amarras; o senhor Werneck o havia
ensinado a sair de uma situação como aquela, mas a vigilância de Królu era
constante, uma marca que o fazia buscar nos cantos da mente pela forma
como os fios do destino ansiavam encerrar aquela história.
“Enquanto a fênix se ergueu e revidou o ataque do Íncubo, o dragão
rugiu, cuspindo fogo na pata de Cerberus que o prendia. Apesar do ganido, o
cão lutou e se manteve firme sobre ele, proferindo: ‘agora encontrará o seu
fim junto aos teus’”.
— Pois, é enaltecendo os dignos e segregando os inferiores — Królu se
voltou para a câmera — que encontraremos o caminho da...
A fala dele foi cortada por um soar distante, um eco que pulsou por
todos os limites do castelo.
A estrutura da sacada pareceu tremer.
“Quando todas as esperanças estavam minguando, eis que os homens e
as criaturas mágicas avançaram em sincronia pelo campo de batalha, como
se fossem uma única entidade forjada de fogo e luz”.
Ricardo entreabriu os olhos, encarando o céu, reconhecendo a marcha e
os disparos ecoantes.
“E nas chamas ardentes, a aliança fulgurou uma vez mais”.
◆◆◆
Fim
Notas da autora & Agradecimentos
Esta obra não foi baseada em nenhum caso concreto ou história real.
Todos os eventos narrados aqui são fictícios. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência.
Até a próxima!
BÔNUS - A lenda do dragão e da fênix
No enlace dos braços da noite, mais uma jovem corre sem olhar para
trás. Em vão.
Esvanecerá entre o suplício e o tormento. Pois o erro foi cometido. Ela
não deveria ter confiado em ninguém.
Uma falha crítica na missão que a levaria para fora do país obriga a
agente de infiltração Ariadne Dangelo a voltar para a cidade de sua sede de
trabalho, confrontando o furacão que deixou para trás em sua última partida.
Contudo, a difamação dos colegas é apenas uma faísca perto do conflito com
o investigador Henrique Moreto, com quem o acerto de contas do passado
nunca foi feito.
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