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Livro I – Duologia mr
Bia Carvalho
Copyright© Bianca Carvalho
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Todos os personagens desta obra são plenamente fictícios. Qualquer semelhança
com a realidade é mera coincidência.
Quando escrevi a dedicatória deste livro, alguns dias atrás, o seu nome foi
citado, porque não poderia ser diferente. Você fez parte de cada momento, de
cada linha, surtando e vibrando a cada avanço da história. Apaixonou-se por
Arthur e Christine tanto quanto eu e me deu vários preciosos conselhos durante o
processo de escrita.
Quem diria que você não estaria aqui para vê-lo ganhar o mundo?
A gente nunca pensa que vai perder alguém. Quando abrimos as portas do nosso
coração para uma pessoa, temos a esperança de que a amizade florescerá e se
tornará cada dia mais forte, seguindo um curso normal. Hoje, pensando nisso, eu
entendo muita coisa.
Foi por isso que eu e você nos entendemos tão rápido. Por isso me apeguei a
você na velocidade da luz... porque tinha que ser assim... Não teria muito tempo
para aproveitar sua estadia na minha vida, porque você partiu. Cedo demais...
Já faz alguns dias que você se foi, mas ainda está muito difícil. As coisas mais
simples se tornaram extremamente dolorosas. Acordar sem o seu bom dia de
todos os dias é a parte mais complicada. Ouvir uma música que você gostava é
quase impossível. Escrever o livro que tanto amava e do qual nunca poderá ler o
fim é cruel.
Pouco antes de você partir, tivemos uma conversa com as nossas meninas,
falamos sobre alguns assuntos sérios e agradecemos por termos umas às outras
para compartilhar experiências e nos darmos apoio. Quando você se foi, nós
apoiamos uma à outra, viu? Porque sei que era isso que você iria querer. Nosso
elo continua forte, e assim continuará por você. Você ainda está entre nós, de
alguma forma. Incentivando-nos e nos dando força para seguir. Fizemos
promessas novas, Thamy. Promessas de não desistirmos dos nossos sonhos e de
deixarmos você muito orgulhosa, de onde quer que esteja.
Então, amiga... orgulhe-se de Arthur e Christine. Por favor. Porque este livro é
seu, assim como todos os próximos que eu escrever. Todos terão um pedacinho
de você. Todos serão, de alguma forma, para você.
EM MEMÓRIA DE THAMIRES SILVIA
“It well may be / That we will never meet again / In this lifetime / So let me say
before we part / So much of me / Is made of what I learned from you / You'll be
with me / Like a handprint on my heart / And now whatever way our stories end /
I know you have re-written mine /By being my friend”
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um
monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
(Nietzsche)
Prólogo
ARTHUR
OUTUBRO DE 2014
***
CHRISTINE
***
CHRISTINE
***
CHRISTINE
***
CHRISTINE
Dias depois
Eram quatro da tarde — horário em que a cafeteria sempre ficava mais
vazia. Pessoas entravam e saíam, pegando seus cafés ou guloseimas, apressadas
para continuar seus afazeres. Enquanto meus dois funcionários conversavam
entre si e lidavam com os clientes que eventualmente surgiam, eu passava o
tempo no meu canto favorito, lendo um livro. Ou relendo, na verdade. Era a
terceira vez que devorava Christine, de Stephen King, a maldita história que dera
aos meus pais a ideia para me batizarem. Por causa disso, era um dos meus
favoritos, sem dúvidas. Não que eu gostasse muito de servir de homenagem a
um carro assassino, mas o nome, ao menos, era bonito.
Um sol discreto se destacava no céu azul lá fora, mas o calor ainda não
tinha dado as caras, felizmente. Dentro da cafeteria, o cheirinho de café fresco
me proporcionava uma deliciosa sensação de paz, e meu coração parecia um
pouco mais confortado, embora uma preocupação nunca me abandonasse.
Naquela tarde, em especial, estava me sentindo bem. As pessoas ao meu
redor chegaram a perceber isso, comentando da minha aparência, e eu planejava
me manter assim. Até que algo na televisão chamou a minha atenção.
A reportagem era de um daqueles programas que falavam sobre
celebridades e pessoas que eles acreditavam serem relevantes para a mídia. Com
certeza não seria algo que despertaria o meu interesse, tirando o fato de que o
nome Arthur Montenegro foi mencionado.
Larguei o livro imediatamente, quase derrubando-o no chão, e voltei
meus olhos ansiosos para a tela.
A cena que se desenrolava mostrava Arthur saindo de um carro e
tentando entrar na mansão dos Montenegro, enquanto repórteres de vários
veículos de imprensa o seguiam, empurrando uns aos outros para terem acesso
ao melhor ângulo. Selma e Cléo também saltaram do mesmo veículo e se
apressaram em agarrar os braços dele, cada uma pendurando-se em um, com
olhos chorosos e emocionados. J.J. seguia logo atrás, acompanhado de Sidney,
criando uma espécie de comitiva. Não pude deixar de reparar na expressão de
desdém do rapaz mais jovem, embora devesse estar feliz e igualmente aliviado
pelo reencontro com o irmão.
Um jornalista mais efusivo conseguiu se aproximar de Selma, e ela, sem
escolha, uma vez que um celular fora praticamente colado em seu nariz, deu seu
depoimento:
— É uma bênção de Deus ter meu filho de volta. Estamos muito felizes,
mas queremos manter nossa privacidade... — ela disse, deixando bem claro.
Porém, o jornalista, sentindo-se vitorioso por ser o único a conseguir alguma
declaração, insistiu:
— Por que o Sr. Arthur Montenegro ficou afastado por tanto tempo, sem
dar notícias?
Daquela vez, quem se intrometeu, colocando-se na frente da mãe, foi
Cléo, muito menos paciente:
— Dá para pararem com isso? Estão enchendo o saco! Meu irmão
voltou, é isso o que importa, e vocês não têm nada a ver com isso.
Em seguida, ela deu um empurrão no repórter, que se mostrou indignado,
mas abriu espaço para que passassem.
Quase sem ar por ver aquela cena se desenrolar na TV, como se não fosse
parte da minha vida, levantei-me de onde estava sentada e desliguei o aparelho
sem nem perguntar para os meus colegas se queriam ver mais alguma coisa. No
mesmo instante, uma mão em meu ombro e uma voz conhecida me fizeram
sobressaltar, porque ainda não tinha me dado conta de sua presença ali. Devia ter
chegado enquanto eu estava abobalhada olhando para Arthur.
— Chris, você precisa tirá-lo da cabeça. E da sua vida. Ele é outra pessoa
agora — Maiara sussurrou em meu ouvido, não permitindo que os outros
escutassem. Enquanto falava, guiava-me até uma mesa para que nos
sentássemos.
— Mas você não viu que eu desliguei a televisão? O que acha que estou
tentando fazer? Exatamente tirá-lo da cabeça.
— E toda essa irritação? Qual seria o motivo?
— Minha indignação com a imprensa brasileira. Não podem nem deixar
uma família em paz? — Tentei enganá-la, mas pela forma como ergueu a
sobrancelha em desafio, eu podia perceber claramente que não engolia minha
resposta. — Tá, Mai, eu estou um pouco chateada por ele não ter sequer me
avisado que ia revelar que estava vivo. Ele veio aqui há quase uma semana,
entrou na cafeteria, disse que sentia muito, falou um bando de coisas que não
saem da minha cabeça, mas não teve a menor decência de voltar para...
— Para quê, Chris? — ela me interrompeu. — Para te dar satisfações de
cada passo? Para que possa continuar incluída na vida dele como era antes? Já
passou da hora de entender que esse cara não é o Arthur que você conheceu.
Respirei fundo, sabendo que muito provavelmente Maiara estava certa.
Tivera a chance de tirar minhas próprias conclusões quando ele surgiu na
cafeteria naquele dia como um gatuno, não falando coisa com coisa. Era melhor
que aceitasse isso o quanto antes.
— Podemos mudar de assunto, Mai? Esse está começando a me dar dor
de cabeça.
— Claro. Eu acho, aliás, que você deveria aproveitar que amanhã é
sexta-feira e dar uma saída. Espairecer e se divertir.
— Faz um bom tempo que não sei o que é isso...
— E eu? — Maiara bufou, apoiando o cotovelo na mesa e sustentando a
cabeça de cachos perfeitos, negros, pouco mais escuros do que a sua pele, com a
mão. — Vesti a capa de mãe, esposa e médica, e nunca mais tirei.
— Não vou nem te convidar a sair comigo, porque sei que você não
pode. Mas o que acha de ir lá para casa no sábado para jantar? Pode levar a
Betinha e o maridão.
— Não podemos. Vamos a um jantar beneficente da empresa onde o
Paulo trabalha. Vamos deixar a neném na minha mãe. Mas domingo podemos
marcar um almoço, o que acha?
— Acho ótimo — respondi, sentindo-me animada pela primeira vez
naqueles últimos malditos dias. — Olha, mas pelo menos você vai se divertir.
Uma festa é sempre uma festa.
— Que nada! Vai ter leilão e um bando de outras coisas super
entediantes. Ainda bem que é para caridade, vai valer de alguma coisa o meu
sacrifício. Ando tão estressada com o trabalho que estou mais na vibe de chegar
em casa e capotar. — Ela deu uma olhada no relógio. — Aliás, tenho só mais
cinco minutos antes de voltar. Fui almoçar quase agora, acredita? Vim aqui só
ver com você estava.
— Muita correria?
— Como sempre. Estamos com um paciente que chegou há alguns dias,
sem documentos, todo arrebentado. Alguém lhe deu uma surra daquelas.
— E ninguém foi procurá-lo?
— Até agora, não. É um cara novo, deve ter uns trinta e cinco anos,
grandão... estava todo de preto, sem nada que pudesse nos ajudar a identificá-lo.
— Pobre homem. Acha que vai sobreviver?
— Não temos como saber. Está reagindo bem, parece forte, mas
pacientes em coma são sempre uma incógnita. Ele sofreu traumatismo craniano.
Se acordar, pode apresentar sequelas. — Ela suspirou ao terminar de falar a
levantou-se. — Bem, deixa eu me mexer. Confirmado domingo, então?
— Claro. Vai ser ótimo. Estou com saudade da Betinha.
— Imagino que sim. Eu estou com saudade dela e não a vejo há algumas
horas — brincou. — Mas vê se dá uma saidinha amanhã.
— Vou pensar nisso.
— Pense com carinho — dizendo isso, Maiara deu um beijo em meu
rosto e saiu, acenando para os outros dois.
Provavelmente eu iria mesmo pensar. Iria refletir sobre os prós e contras
de sair e provavelmente os pontos negativos venceriam. Eu poderia chamar
Telma, poderia ligar para alguma outra amiga ou simplesmente sair sozinha.
Pegar uma sessão bem tarde no cinema, pagar a mim mesma um bom jantar em
um restaurante caro ou sair para um barzinho com música ao vivo e conhecer um
cara para dar uns amassos por uma só noite. Qualquer uma dessas opções
poderia ser sensacional, mas todas me davam a maior preguiça. Se combinasse
com outra pessoa naquele mesmo instante, onde minha cabeça ainda estava
quente, seria mais difícil desistir.
Nem pensei muito. Peguei o celular e encontrei o telefone de Edgar. Um
cara bonito e rico como ele, com certeza deveria ter algum programa para a noite
seguinte, mas decidi arriscar. Dependendo do que fosse, ele poderia me incluir,
talvez?
Surpreendi-me quando ele atendeu no primeiro toque.
— Chris? Que surpresa! — Devia ser mesmo. Ele já tinha me dado
aquele número há quase um ano, e eu nunca havia lhe telefonado.
— Pois é. Acho que vai ficar ainda mais surpreso quando eu explicar o
motivo da ligação.
— Você está bem? Precisa de alguma coisa?
Que tipo de mulher eu me tornava quando a única explicação
aparentemente plausível para ligar para um cara atraente seria um problema?
— Não, está tudo bem. Só quero perguntar se você tem planos para
amanhã à noite. — Céus, de onde eu tinha tirado coragem para aquele convite?
— Nossa… isso é inesperado. Eu tinha alguns planos, sim, mas nada que
eu não possa desmarcar para sair com você. — Ele parecia muito animado. Até
demais. Imediatamente me arrependi, porque não queria lhe dar esperanças
equivocadas.
— Ah, se você já tinha alguma coisa, não desmarque por minha causa.
Podemos deixar para outro dia.
— E te dar oportunidade para fugir de mim novamente? Nem pensar.
Sabe há quanto tempo estou querendo sair com você? Eu desmarcaria com o
Papa, se fosse preciso.
Sua determinação me fez sorrir. Não podia negar que fazia bem para o
ego ouvir aquele tipo de coisa.
— Então tudo bem. Você me pega às oito?
— Por mim está perfeito. O que tem em mente?
— Nada muito frenético, porque tenho que trabalhar no sábado. Jantar e
cinema? — indaguei insegura. — Faz tanto tempo que não faço isso que estou
um pouco fora de prática.
— O que você não faz há muito tempo, Christine? Sair com um amigo?
O tom em sua voz era provocador. Eu poderia deixar por isso mesmo e
apenas assentir, mantê-lo na categoria de amigo, o que seria bem mais seguro.
Contudo, queria deixar as coisas bem claras, não apenas para ele, mas para mim
também. Nada de subterfúgios, de joguinhos ou indecisões.
— Não, Ed. Sair em um encontro.
A primeira resposta de Edgar foi o silêncio. Talvez eu o tivesse chocado
de alguma forma, porque era um imenso contraste com meu comportamento
usual, tão reservado e discreto.
— Você acabou de deixar o meu dia muito feliz.
Eu também queria estar me sentindo plenamente feliz. Talvez, no fundo,
fosse apenas uma mal agradecida, sem decência suficiente para valorizar o que
tinha bem na palma da minha mão. Estava dando uma chance ao destino.
Esperava que ele não me decepcionasse.
— Nos vemos amanhã, então.
Edgar também se despediu, parecendo muito ansioso. Não consegui
conter um sorriso, pensando no quanto poderia ser legal aquela noite. Por mais
que ainda não me sentisse pronta para um algo mais do que um encontro casual,
queria relaxar, divertir-me e, quem sabe, trocar alguns beijos inocentes com um
cara muito atraente.
A ideia começou a me deixar um pouco mais animada, tanto que
conforme retornava à minha leitura, voltando ao meu cantinho preferido da
cafeteria, peguei-me cantarolando uma música de rock antiga, que minha mãe
gostava. Isso provocou uma sensação cálida no meu peito, algo muito agradável.
No entanto, essas emoções positivas duraram muito pouco, pois assim
que me acomodei e voltei meus olhos para o lado, observando através da janela,
o homem misterioso estava de volta, na mesma posição, com a mesma expressão
sombria, observando-me, como se apenas estivesse esperando pelo momento
certo de atacar.
Capítulo Cinco
ARTHUR
Era muito irônico sair da minha própria casa para dormir. Mais irônico
ainda era pensar que o sofá desconfortável de Mário me fazia pegar no sono
mais facilmente do que a cama enorme da mansão da minha família. Cheguei ao
apartamento dele às sete da manhã, acreditando que estaria dormindo — já que
acordava muito tarde —, mas encontrei o local vazio. Estranhei um pouco, mas
decidi ignorar e esperá-lo na sala. Contudo, peguei no sono e só acordei no susto
quando senti uma mão pousar sobre meu ombro, sacudindo-o. Imediatamente
despertei sem me dar conta dos meus arredores e, assim como tinha feito com
Christine no dia em que cheguei em sua casa ferido, agarrei o punho da pessoa
que me chamava, pronto para imobilizá-lo com algum golpe.
— Ei, porra! — Mário gritou, e eu imediatamente o soltei. — Caraca,
cara! É uma puta aventura te ter por perto. Nunca sei quando vou levar um soco
ou um mata leão.
— Desculpa. Eu acabei pegando no sono...
— Percebi. Aliás, achei que agora que você se revelou para sua família ia
me deixar em paz e devolver a chave da minha casa. Não esperava te encontrar
aqui hoje.
— Eu deveria ter avisado... — falei enquanto me colocava sentado,
esfregando o rosto, tentando afastar o sono. Olhei para a mesa de jantar do
pequeno apartamento e vi algumas sacolas de compras. Não precisava nem olhar
dentro delas para adivinhar que deveriam estar cheias de besteiras como batatas-
fritas, biscoitos, chocolate, refrigerante e hambúrguer.
— Deveria mesmo. — Ele se sentou ao meu lado. Estava um pouco
ofegante e vermelho, fazendo-me deduzir que estivera correndo, mas também
deveria haver um pouco de nervosismo por conta da minha reação violenta. —
Mas me diz... por que não está em casa com a sua família? Eu vi a matéria na
TV, e eles pareciam muito felizes por te terem de volta.
— Sim, aquilo foi filmado hoje de manhã. Almocei com eles, e minha
mãe e irmã não paravam de chorar. Também fui ao túmulo do meu pai e...
adivinhe?
— Choraram mais ainda? Já entendi a treta.
— O problema também é que eu não sou mais o Arthur que elas
perderam. Às vezes acho que olham para mim como se eu fosse um
extraterrestre, procurando o mesmo homem que conheceram. Mas não vão
encontrar — desabafei.
— Não, claro que não. Depois de tudo pelo que você passou.
— Sim. Mas não posso contar para elas. Quanto menos souberem,
melhor.
— Isso não vai mudar o fato de que vão usá-las para chegarem até você.
Talvez se souberem a verdade poderão se proteger — Mário opinou, enquanto
esfregava o rosto, parecendo preocupado. Estava levando problemas de mais
para aquele garoto.
— Eu vou protegê-los. A todos eles. Mas no momento tenho duas
preocupações maiores.
— Sua amiga e a missão que eles te deram. Certo? — Balancei a cabeça,
assentindo. — Você não deveria ter ido atrás dela ferido.
— Não, não deveria — afirmei. — Mas ela foi a opção mais óbvia.
Sempre que precisava de ajuda, Christine era quem eu procurava. Não foi
diferente dessa vez, porque meu inconsciente falou por mim.
— Ela deve ser muito importante para você.
Desviei os olhos, não querendo que Mário percebesse minha expressão
diante daquela pergunta. Eu lhe daria uma resposta, é claro, mas que não seria
condizente com nem um terço do que eu verdadeiramente carregava no peito.
Ninguém podia conhecer minhas emoções, principalmente quando se tratavam
de Christine. As merdas pelas quais passei fecharam meu coração para quase
tudo, menos ela. Até pensei que poderia lidar com esse sentimento, trancá-lo a
sete chaves dentro de mim, mas era mais forte do que eu.
— Sim. É minha melhor amiga. — Só isso. Era o que eu podia me
permitir responder.
Por mais que confiasse em Mário — e eu realmente precisava confiar
nele, já que as opções não eram exatamente muito vastas —, ainda não
conseguia abrir as portas da minha alma tão facilmente. Se é que ainda havia
uma alma dentro de mim. Por vezes, quando tentava acessar minhas emoções
mais profundas, encontrava um corpo vazio, uma casca oca, apenas com
objetivos. E o maior deles era a vingança.
— Não tenho muitas amigas mulheres. — Mário soltou a informação de
forma inocente, como se quisesse iniciar uma conversa trivial, enquanto remexia
as sacolas e retirava as compras. Era uma pena que estivesse interessado em
dialogar logo comigo, alguém que carregava um milhão de silêncios presos aos
lábios. Minhas palavras eram estrelas que eu achava melhor manter apagadas.
No meio da escuridão em que me encontrava, elas eram apenas grãos de areia
perdidos em um deserto infinito. Falar de menos era sempre a melhor escolha.
Como continuei calado, ele prosseguiu: — Para ser sincero, eu não tenho muitos
amigos, seja do sexo que for.
Eu não queria me apiedar dele. Mário não merecia isso; era um cara
inteligente, um dos poucos seres bons que restavam naquele mundo de merda.
Mas a forma como ele escolheu para expressar-se me deixou incomodado. Não
apenas pela afirmação triste, também pelo olhar perdido e abandonado que
lançou em minha direção.
O que eu poderia fazer, além de continuar em silêncio, mesmo me
achando o maior filho da puta por isso? Por sorte, ele pareceu não se incomodar,
mas também não disse mais nada, apenas começou a levar as compras para a
cozinha, guardando-as na geladeira e na despensa. Contudo, ainda não ficou
calado.
— Mas me diz uma coisa... tenho certeza de que não entrou na minha
casa só para me observar realizando tarefas domésticas.
— Não, é claro que não. — Levantei-me do sofá, sabendo que tinha
chegado a hora da decisão. Se Mário quisesse realmente entrar naquela roubada
comigo, aquele era o momento. Não podia mais alongar meus dias de folga,
afinal, não era uma porcaria de colônia de férias. Aproximei-me dele, portanto,
colocando-me bem no meio, entre a cozinha e a sala, uma vez que ele continuava
indo de uma a outra sem parar. — Preciso que pesquise um nome para mim —
joguei a informação.
Mário finalmente parou o que estava fazendo para me dar total atenção.
— O cara que fazia parte da sua missão?
— Exatamente. Eu o conheço de nome, por causa de sua família, com
quem meu pai mantinha contato, mas quero saber mais.
— Cara, você tem certeza disso?
— Eu tenho. E você? Ainda pode desistir, se quiser.
— Não quero e não posso. Fiz uma burrada e agora estou nas mãos deles.
Não vou permitir que mais ninguém que conheço perca a vida por algo do meu
passado. Por uma imprudência.
Balancei a cabeça, concordando, mas não disse nada. Não queria
influenciá-lo de forma alguma.
— Vamos lá, 48, vou ligar o PC para começarmos os trabalhos. E foda-se
se você não gosta que eu te chame assim. Foi como nos conhecemos, e essa
porra de número não te define.
Definia, sim, mas achei melhor não discutir. Se aquilo se tornasse um
apelido, minhas memórias seriam acionadas cada vez que ele me chamasse, mas
talvez Mário estivesse certo. Era apenas um número. Meu nome era Arthur
Montenegro. Eu estava de volta à vida real.
Chegamos ao escritório dele, onde entrei tantas vezes enquanto era um
clandestino naquela casa, para usar o computador e a internet, mas jamais toquei
na coleção de videogames, nem nas action figures ou nos pôsteres de filmes
antigos que coloriam as paredes. Livros de RPG e famosos títulos de ficção
científica preenchiam as estantes, não deixando a menor dúvida de que aquele
cara era um nerd com orgulho.
— Nome do sujeito — ele pediu, chamando a minha atenção, sendo que
nem tinha percebido que o computador já havia inicializado.
Informei-lhe o nome e esperei. Apesar de tudo, eu o conhecia. Sabia que
era um playboy, filhinho de papai, cheio da grana e herdeiro de uma empresa de
importação avaliada em bilhões no mercado de ações. Com essa descrição, eu
poderia muito bem estar falando de mim mesmo, embora minha família estivesse
no ramo das construções.
Todos esses dados eu já tinha e poderia facilmente adquirir em qualquer
site de pesquisa, se apenas buscasse pelo nome dele. Porém, era exatamente por
isso que precisava de Mário. O que eu queria era o que a imprensa e as
publicações sobre business não contavam. Eu queria a podridão, queria ir mais
fundo e encontrar o motivo pelo qual aquele cara era tão importante para a MR,
ao ponto de mandarem matá-lo.
Concentrado, Mário fazia sua pesquisa, enquanto eu aguardava
impaciente. A principio, não parecia haver nada de absurdo, mas eu sabia que era
impossível. Toda família muito rica tinha sua sujeira debaixo dos tapetes.
Empenhado, meu mais novo amigo digitava no teclado com uma rapidez
impressionante, invadindo sites e bancos de dados, de uma forma que eu preferia
que nem me revelasse. Ele era bom no que fazia.
Eu estava analisando pela terceira vez a estante de livros quando fui
chamado. Virei-me em sua direção, e ele tamborilava os dedos na tela do
monitor, querendo me mostrar alguma coisa.
— Acho que encontrei algo. Um funcionário saiu da empresa há alguns
anos e deu queixa na polícia, só que o caso foi arquivado na surdina. Pode não
ser nada, é claro, mas…
— Mas pode ser um começo também. Como descobriu isso?
— Um hacker que se preze nunca revela suas fontes. Só posso dizer que
talvez eu seja realmente muito foda e consiga invadir alguns bancos de dados
governamentais, inclusive o da PF, como é o caso aqui.
— Polícia Federal? Por que um funcionário iria acionar a PF contra a
empresa na qual estava trabalhando? — indaguei curioso e confuso.
— É isso que você vai ter que descobrir, bonitão.
— Tem o nome dele? — Mário assentiu. — Consegue também o
endereço?
Diante dessa pergunta, ele apenas revirou os olhos, ofendido pela minha
dúvida. Não havia nada que permanecesse oculto perante a inteligência do meu
parceiro.
***
ARTHUR
***
CHRISTINE
***
ARTHUR
***
ARTHUR
Entrei no carro e, com as mãos no volante, ainda hesitei. Talvez não fosse
uma boa ideia cutucar uma onça com vara curta, mas eu precisava saber. Em
uma festa não haveria uma chance concreta para pedir explicações, porque ele
poderia se esquivar. Precisava vê-lo em um ambiente sem testemunhas.
Parti para a mansão dos Montenegro, esperando não encontrar ninguém,
apenas o alvo da minha conversa.
O portão foi aberto para mim, e eu entrei com o carro, estacionando-o na
minha vaga de sempre. Maria abriu o portão para mim pelo interfone e me
esperou com a porta da casa aberta. Quando me aproximei, ela me deu um
abraço gostoso, que me fez sorrir.
— Bem-vinda, menina! — exclamou, satisfeita por me ver. — Pelo visto
agora vai voltar a frequentar esta casa.
— Ainda não sei. Ainda é muito recente...
— Verdade. Tanta coisa aconteceu de um dia para o outro! Ainda bem,
né? Veio falar com o Sr. Arthur? — ela perguntou. Era um tantinho enxerida,
mas um amor de pessoa.
— Vim. Ele está?
— Sim. No quarto dele. — Ela usou a cabeça para apontar para dentro da
casa, mas deu de ombros, acrescentando: — D. Cléo também está, se quiser falar
com ela.
— Não, Maria. Só com Arthur. Pode me fazer o favor de não avisá-lo
que estou aqui? — Não queria que ele escapasse de mim de forma alguma. Seria
muito capaz de negar minha presença, principalmente se tivesse algo a esconder
em relação à noite passada. — Ah, menina, aí você me complica, né? O Seu
Arthur tá tão diferente... não sei como poderia reagir. Ainda é educado comigo,
mas tem alguma coisa nele... Não é mais aquele garoto brincalhão e risonho.
— Não vou deixar que brigue com você. Pode abrir essa exceção para
mim? — Não queria fazer aquele pedido à mulher, porque não pretendia deixá-la
entre a cruz e a espada, mas quando ela balançou a cabeça em afirmativa,
resignada, fiquei satisfeita.
— Tá, tudo bem. Vá logo falar com ele. Espero que o anime um pouco.
Ele sempre gostou tanto de você... — ela disse com um ar sonhador. —
Deveriam ter se casado. Talvez ainda haja tempo, agora que ele voltou. Pode
estar estranho, mas está bonito. Muito mais bonito do que antes, e olha que ele já
parecia um príncipe. Agora... bem, está mais homem. Você não acha?
Se bem a conhecia, ela continuaria tagarelando pela eternidade se eu não
a ignorasse — com gentileza, é claro. Por isso, sorri e segui em frente, correndo
pelas escadas antes que continuasse tentando me convencer a conversar.
Fazia muito tempo que eu não seguia pelo corredor do segundo andar, na
intenção de pegar à última porta à esquerda. Desde o desaparecimento, todas as
vezes em que voltei à casa de Arthur, minha visita se restringiu ao ambiente da
sala e do jardim, porque nunca mais tive coragem de subir e me aventurar a olhar
para suas coisas, que Selma insistira em manter intactas, enquanto não perdia a
esperança. Ela estava certa em fazer isso, no final das contas.
Cheguei a precisar de um momento para respirar, com a mão na
maçaneta, antes de abrir a porta, porque não tinha muita certeza se estava
preparada para o que iria enfrentar. Vivemos muitas coisas naquele quarto,
muitas risadas, trocamos muitas confidências e sonhos, durante todos aqueles
anos de amizade. Foi lá também onde fizemos amor pela primeira e única vez.
Desde então, nunca mais entrei naquele cômodo.
Jamais pensei que me veria ali novamente, ainda mais frente a frente com
ele. Mas era hora.
Abri a porta sem nem bater, como já tinha feito tantas outras vezes. No
entanto, se no passado era recebida com um sorriso e braços abertos, agora o que
encontrei foi o silêncio, embora o quarto não estivesse vazio.
A enorme cama de dossel — algo que ele sempre odiou — se destacava
no meio do quarto masculino, em tons de cinza e azul marinho, e um Arthur sem
camisa, vestindo apenas uma calça jeans, dormia sobre ela. Não parecia nem um
pouco sereno, em uma posição mais meditativa do que confortável, com a
barriga para cima, os dois braços sob a cabeça e as pernas longas esticadas e
entrelaçadas.
Aproximei-me sem fazer barulho, não sabendo exatamente como deveria
agir. Tive provas, naquele dia na minha casa, que acordá-lo de supetão não era
uma boa ideia, já que ele parecia ter reflexos muito rápidos e uma incrível
desconfiança no mundo inteiro. Então, teria que me manter longe até que
despertasse por completo. Mas não podia negar a mim mesma a chance de
contemplá-lo quase sereno, um pouco mais parecido com o homem que eu
conhecia.
Seu peito musculoso subia e descia em movimentos ritmados, e eu podia
ver algumas cicatrizes pequenas e discretas, que ele não tinha antes de sumir. A
estranha tatuagem também se destacava em seu ombro, com o número 48,
permanecendo muito misteriosa, sem que eu soubesse seu significado. Para ser
sincera, temia profundamente descobrir, já que isso implicaria em conhecer todo
o resto. Algo me dizia que a história não era nada bonita.
Precisei me controlar ao máximo para não tocá-lo, já que provavelmente
seria uma chance em mil. Cheguei a estender a mão em sua direção, quase
encostando os dedos em seu novo abdômen trincado, mas meu punho foi
novamente agarrado, repetindo a cena da minha casa. Contudo, ele não o fez
com violência, mas com delicadeza.
Ainda de olhos fechados, falou:
— O que está fazendo aqui, Christine? — Também não havia nenhum
traço de grosseria em sua fala, era apenas uma pergunta justa. Era a casa dele, o
quarto dele, e eu era a intrusa.
— Talvez eu esteja pagando na mesma moeda, já que também entrou na
minha casa sem autorização.
Ele abriu os olhos muito lentamente, como se a acusação não o tivesse
afetado. Soltou minha mão, enquanto levantava-se, colocando-se sentado em um
movimento elegante.
— Não sei do que está falando. — Pôs-se de pé, indo em direção à porta
para fechá-la, e por mais ridículo que fosse, o fato de estar trancada ali com ele
me deixava levemente desconfortável. Embora o conhecesse por toda a minha
vida, sentia-me intimidada. Ele tinha o dobro do tamanho de três anos atrás,
além daquela expressão violenta que muito me assustava.
Apesar de tudo isso, eu ainda podia apostar minha vida como não
ergueria um único dedo para me machucar.
Ainda assim, quando deu um passo na minha direção, eu recuei por puro
instinto. Isso fez com que erguesse uma sobrancelha, surpreso.
— Está com medo de mim, Christine? — Sua voz profunda e grave falou
em um tom baixo que provocou calafrios pela minha espinha. Não sabia
distinguir se por receio ou desejo.
Qual era a porra do meu problema? Eu estava ali para confrontá-lo, não
para alimentar minha paixonite estúpida.
— Não sei, Arthur — respondi com sinceridade. — Não sei mais quem
você é.
— Nem eu sei quem sou. — Sua expressão desolada e o tom doloroso da
resposta fez com que meu coração se apertasse por ele.
Apesar disso, não permitiria que me ganhasse com aquele semblante de
menino abandonado. Por mais que o amasse, não poderia deixar que meu
julgamento ou meu discernimento fossem afetados.
— Quero que me conte o que aconteceu ontem... Não adianta negar, eu
sei o que vi.
Ele permaneceu calado, apenas cruzando os braços enormes contra o
peito e erguendo o queixo, desafiador.
— Vai mesmo ficar em silêncio? Acha que eu mereço isso?
Senti seu peito novamente se inflar, em uma respiração profunda, mas
quando ele soltou o ar, percebi que ainda planejava manter-se calado.
Isso provocou uma imensa raiva dentro de mim. Quem ele pensava que
era para me fazer sentir daquela forma? Exposta, vulnerável, confusa? Acima de
qualquer outra coisa, ele era o meu melhor amigo. Ou fora. Por mais que alguma
coisa muito bizarra tivesse virado sua cabeça do avesso, eu ainda conseguia ver
resquícios do antigo Arthur ali, e eu sabia que nutria sentimentos por mim.
Fossem quais fossem, indiferença não era um deles.
Por isso, deixei que todo o desespero explodisse de uma vez e parti para
cima dele, com as mãos cerradas em punho, socando-o no peito. Ele mais
parecia uma rocha, e eu sabia que acabaria machucando apenas a mim, mas não
me importei. A ira deixava o meu corpo quente, imune contra a dor.
De início ele apenas descruzou os braços, deixando-se livre para que eu o
golpeasse. Porém, contra a minha vontade, meus olhos se encheram de lágrimas,
e meus socos começaram a se tornar mais e mais frenéticos, como se eu
precisasse extravazar todos os sentimentos reprimidos daqueles três anos; toda a
frustração, a dor e a saudade que senti.
Arthur permitiu que eu continuasse a avançar contra ele até certo ponto,
quando agarrou meus punhos com força. Embora fosse uma briga desleal, ainda
continuei tentando lutar contra ele, que decidiu me segurar com mais empenho,
passando os dois braços ao redor dos meus, em um abraço imobilizador,
deixando minhas mãos amassadas contra seu peito.
Mantendo-me assim, arrastou-me até a cama, onde me jogou, prendendo
meus pulsos contra o colchão, pondo-se em cima de mim.
Ainda tentei me debater, completamente irritada, ansiando que me
soltasse, mas seria em vão. Estava rendida.
— Se continuar agindo assim vai acabar se machucando — ele afirmou
convicto, mantendo um tom de voz muito sereno, quase inalterado apesar da
situação. Como ele conseguia?
— Já estou machucada. Só não fisicamente.
Apesar de não ter me soltado, nem afrouxado o aperto em meus punhos
ou saído de cima de mim, algo em seu semblante mudou. A forma como franziu
o cenho fazia com que eu jurasse que minhas palavras o tinham atingido
profundamente. Precisava começar a aprender a interpretar suas novas
expressões se quisesse lidar com ele.
Minha respiração estava fora de controle, não apenas pelo recente
esforço em lutar contra um homem que era quase um armário, mas também pela
proximidade. Nossos rostos estavam a uma distância quase inexistente, e para
que nossos lábios se tocassem seria necessário um movimento muito sutil. Os
olhos de Arthur estavam fixos nos meus, oscilando entre eles e minha boca,
como se pensasse na mesma coisa. Era quase insuportável.
— Eu nunca seria capaz de te ferir — ele sussurrou. — Não
intencionalmente. Nunca.
— Então me conte o que aconteceu ontem.
Ele respirou fundo, mas, ainda assim, não saiu de cima de mim. Apesar
disso, estava sustentando todo o peso de seu corpo nas pernas, cujos pés
permaneciam firmes no chão.
— Não posso... — ele provavelmente ainda iria dizer mais alguma coisa,
mas não permiti, interrompendo-o para tentar novamente me desvencilhar de
seus braços. — Christine... olhe para mim — pediu, enquanto eu ainda me
remexia. E o fez com tanta doçura, apesar daquela aparência selvagem, que não
consegui não ceder. Assim que me sentiu mais calma, ele continuou: — Só uma
única pessoa sabe de tudo o que aconteceu comigo. Essa pessoa está me
ajudando, e é alguém para quem não precisei dar explicações, porque já sabia
muitas coisas. Se eu pudesse contar para mais alguém, seria para você.
Isso conseguiu me comover de alguma forma, porque me senti relaxar
involuntariamente.
— Parte meu coração imaginar que você pode ter sofrido. — Ele não
respondeu ao meu comentário, fazendo-me crer que realmente tinha passado por
maus bocados. Não era algo difícil de concluir, afinal. — Mas preciso que me
conte o que aconteceu. Tenho direito de saber, porque me afetou de forma direta.
— Não. Não posso. — Foi novamente a resposta dele. Por mais que
estivesse um pouco menos irritada, sua negação me enfureceu outra vez, e eu
novamente comecei a tentar me soltar de suas mãos, que mais pareciam
correntes aprisionando-me àquela cama.
— Então vá para o inferno! — falei sem pensar.
— Já estou lá, Christine... — Outra vez senti meu coração derreter-se,
mas ele logo acrescentou algo que o fez congelar mais uma vez, como se sua
intenção fosse me manter puta da vida para que não me aproximasse: — Não sei
o que aconteceu com você, o motivo pelo qual veio aqui pedir explicações, mas
seja o que for, não teve nada a ver comigo. — As frases que disse provavelmente
não me afetariam tanto se não tivessem sido cuspidas em uma tentativa tão
esforçada de soarem arrogantes.
— Que merda, Arthur, dá para me soltar?
— Só se você prometer que vai embora.
Ele realmente me queria longe. Realmente queria me afastar a qualquer
custo. Isso doía mais do que qualquer soco que ele pudesse me dar.
Por mais que me odiasse por isso, acabei deixando uma lágrima escapar e
deslizar pelo meu rosto.
— É claro que eu vou. Não quero te aborrecer com a minha presença. —
Ele ainda demorou para me largar, como se aquela minha resposta também o
tivesse acertado em cheio. Poderia ser uma forma muito idiota de se ver as
coisas, mas eu sabia que não estava falando nada do fundo do coração. Havia um
motivo, que com certeza tinha ligação com aqueles homens estranhos que me
visitaram no café.
Assim que soltou minhas mãos, eu me apressei em me levantar,
colocando-me o mais longe possível dele, dentro daquele quarto imenso. Já perto
da porta, ainda me virei em sua direção para dizer:
— Só lamento que talvez tenhamos que nos encontrar mais tarde. Vou a
um evento beneficente e me disseram que você também foi convidado.
Finalmente provoquei alguma reação naquele rosto impassível. Seus
olhos arregalaram-se muito discretamente, mas rapidamente voltaram ao normal.
— Não costumo ir a esse tipo de festa. Com essa não será diferente, mas
espero que se divirta.
Lá estava o ódio novamente avolumando-se no meu peito, e antes que
pudesse partir para cima dele mais uma vez, decidi ir embora. Contudo,
novamente hesitei ao colocar a mão na maçaneta, voltando-me para Arthur uma
última vez assim que me lembrei de uma coisa importante.
— E a minha chave?
— Que chave, Christine?
— Você sabe muito bem do que estou falando. Da minha chave reserva,
que você roubou quando me sequestrou — falei só para provocar, esperando que
caísse na teia, mas ele apenas deu de ombros. Não havia sequestro nenhum, já
que eu fora levada para minha própria casa.
— Realmente não sei do que está falando...
— Acha mesmo que sou idiota, não acha? — perguntei por entre dentes.
— Não é muita coincidência você saber exatamente onde eu guardava a chave
reserva?
— Ainda a guarda na caixinha sobre o rack?
— Você sabe muito bem que sim.
— Então não é de se admirar que a tenham achado facilmente. É um
lugar bem óbvio.
Ele continuava agindo como um ser arrogante, e algo dentro de mim
dizia que era apenas uma faceta para me irritar e me afastar. Mas se era a sua
vontade, eu iria concedê-la.
— Tudo bem, Arthur. Pode ficar com essa merda de chave. Vou chamar
um chaveiro o quanto antes. Adeus...
Tentando não vacilar, saí de seu quarto, fechando a porta atrás de mim
sem olhar para trás. Segurei o choro o quanto pude, segui pelo corredor correndo
e mantive o mesmo ritmo nas escadas. Assim que atingi o último degrau, ouvi a
voz de Cléo me chamando, mas não virei para olhá-la. Tudo o que queria era sair
dali e não voltar nunca mais.
***
CHRISTINE
A vontade de correr para casa e não sair mais por aquele dia só não era
maior do que minha convicção em manter minha palavra. Não com Edgar, mas
com Maiara, que já tinha me enviado mais de dez mensagens demonstrando o
quanto estava animada porque comigo o evento não seria tão enfadonho. Mal
sabia ela que eu seria uma péssima companhia.
Apesar disso, enquanto fazia compras, para tentar encontrar alguma coisa
apresentável para aquela noite, tentei esvaziar minha mente em relação a Arthur,
por mais que fosse difícil. Chorei o máximo que pude no carro, enquanto dirigia,
cheguei chorando no shopping e queria sair de lá um pouco mais calma. Sendo
assim, tomei um sorvete cheio de calda de chocolate e comprei até mais coisas
do que o planejado só para me mimar. Quem precisava de homens quando se
tinha um cartão de crédito e doses de glicose para sobreviver?
Cheguei à casa de Maiara me sentindo melhor e decidida a não
demonstrar o quanto aquela tarde fora terrível. Meus olhos estavam bem menos
inchados depois que joguei um pouco de água fria no rosto e pinguei algumas
gotinhas de colírio, então, não havia marcas do sofrimento. A não ser as do
coração, mas essas seriam muito mais difíceis de apagar.
Passamos um final de tarde e um início de noite ótimos. Se Maiara não
fosse médica, ela certamente deveria abrir um salão de belezas, pois seus
conhecimentos de cremes, maquiagens e estética eram infinitos. Deu-me um
verdadeiro tratamento de princesa, enquanto seu marido cuidava de Betinha para
que pudéssemos nos divertir como meninas.
Assim que ela terminou de me enfeitar como uma boneca, olhei-me no
espelho e quase tive um ataque apoplético. Não que não me achasse bonita ao
natural. Eu não era esse tipo de mulher de falsas modéstias e costumava
agradecer minha boa genética todos os dias, embora não fosse presunçosa. Mas o
que ela fez comigo... Céus, era um milagre.
— Será que eu posso ficar assim para o resto da vida? — indaguei,
tocando minha pele perfeitamente maquiada, sem uma única marca indesejada,
embora o aspecto fosse extremamente natural. A sombra bem escolhida,
esfumada, em um tom degrade de preto, os contornos desenhados do meu rosto e
o batom nude, sensual. Tudo era perfeito.
Maiara deu uma risadinha satisfeita.
***
ARTHUR
Tudo era movido a dinheiro. Já fazia mais de duas horas que só ouvia
sobre números, e isso estava me enchendo o saco. Minha vontade era escapar
dali o mais rápido possível, mas não queria desgrudar meus olhos de Christine.
Em nenhum momento acreditei que ela iria me acompanhar e realmente afastar-
se de Edgar Queiroga, mas tive algumas esperanças. No entanto, com sua recusa,
não poderia me permitir abandoná-la, sabendo que estava caminhando
desprotegida e desavisada em um ninho de ratos.
E tinha a minha mãe naquela confusão toda também, é claro. Porém, para
a minha sorte, ela foi embora do evento um pouco mais cedo, como já havia
avisado que faria, porque não era muito paciente com leilões. Ajudara no que
pudera, mas sua estratégia era escapar antes do final dos lances, antes que a festa
começasse. Ela odiava música alta e a falsidade das conversas que, sem dúvida,
viriam a seguir. Levei-a, então, até o carro, recebendo um beijo terno, que eu
tentei retribuir com o máximo de sentimento que consegui, e voltei para o
jardim.
Contudo, esse breve tempo de ausência foi suficiente para que Christine
desaparecesse.
Merda!
Eu não fazia ideia se tinha ido embora, ao banheiro ou se estava dando
uma volta pela casa, mas o fato era que não podia perdê-la de vista. Não era uma
questão de paranoia, mas de segurança. Aquele tal de Edgar era um bandido, e
eu não queria que ficasse muito perto dela. Não podia acreditar que um homem
que tinha coragem de vender mulheres para prostituição pudesse nutrir qualquer
intenção honrada para com alguém.
E mesmo que tivesse... que ele se fodesse. Não queria que colocasse
aquelas mãos imundas e criminosas na minha Christine.
Aproximei-me de sua amiga — que fora apresentada à minha mãe, mas
não a mim —, tentando descobrir sobre seu paradeiro.
— Onde está Christine? — indaguei com cautela, uma vez que éramos
praticamente desconhecidos um para o outro.
Exatamente como supus, ela não pareceu muito simpática em relação a
mim. Não era para menos, de fato, já que desde que voltara só levara desgosto
para sua amiga.
— Ela foi ao banheiro. — Essa resposta deveria me bastar, então,
agradeci e fui me afastando, mas a mulher segurou minha mão. — Por favor,
deixe-a em paz. Você não tem noção do quanto ela sofreu com seu
desaparecimento e como tem sofrido desde que voltou. Se não quer retomar a
amizade de antes, afaste-se.
A dor que senti com aquelas palavras poderia ser comparada à de uma
ferida profunda aberta salpicada de sal. Odiava pensar no sofrimento que estava
causando à melhor pessoa que eu conhecia, mas não tive coragem de dizer nada.
Apenas saí de perto daquela moça, embora seu sermão não houvesse me
convencido a deixar Christine em paz. Não naquela noite. Não enquanto não a
visse em casa, em segurança. Não enquanto aquele filho da puta não estivesse
preso ou morto, bem longe dela.
O primeiro passo eu daria em breve. Assim que a encontrasse, tentaria
convencê-la a sair daquela festa, nem que eu tivesse que agir como um troglodita
e tirá-la de lá à força. Odiaria tomar tal atitude, mas meus instintos me diziam
que alguma merda iria acontecer sem demora.
A casa era enorme, e eu não a conhecia, já que era minha primeira visita
àquela família, portanto, precisei pedir informações para um garçom a respeito
da localização do banheiro mais próximo.
Assim que recebi a informação, parti para lá e percebi que a porta estava
trancada, mas eu não tinha como saber se era mesmo Christine lá dentro. Sendo
assim, montei guarda do lado de fora e esperei.
Esperei bastante, diga-se de passagem, até que a moça saiu. E não era
Christine.
Com o tempo que perdi, concluí que ela já poderia ter retornado ao
jardim, mas quando voltei lá, nem sinal dela. Isso novamente me preocupou.
Iniciei uma busca pela casa, passando por corredores intermináveis e
tentando abrir portas, em sua grande maioria trancadas. Soquei algumas,
chamando o nome dela, mas não recebi resposta. Sabia que estava fazendo uma
baita confusão e barulho, mas não me importava. Achá-la era prioridade.
Foi nesse momento, então, que ouvi o primeiro tiro, vindo exatamente do
jardim.
Os outros não demoraram a soar, fazendo-me correr desesperadamente
em direção ao som.
O pânico já havia se instalado. Pessoas tentavam correr, alguns se
empurravam, outros caíam, mas toda a desordem foi interrompida por mais um
disparo. Um homem, usando uma máscara de esqui, de pé sobre uma cadeira,
apontava um fuzil AK-47 e uma Glock G25 para o alto, enquanto mandava que
todos ficassem parados.
— Vamos fazer uma brincadeira enquanto estamos aqui para ganhar
tempo. Tiro ao alvo, o que acham? — o cara indagou, com uma voz desdenhosa,
enquanto olhava de um lado para o outro, para se certificar se todos estavam
mesmo parados. — Vamos começar. Uni, duni, tê... — conforme ia cantando, ele
ia apontando a Glock para algumas pessoas que ainda restavam, que não tinham
conseguido fugir. Dentre eles, eu reconhecia Maiara e o marido, embora não
houvesse nem sinal de Christine.
De onde eu vinha, tinha uma posição privilegiada em relação ao atirador.
Ele estava de costas para mim, o que facilitaria um ataque surpresa. Estava
duplamente armado, mas o treinamento que sofri teria que servir para alguma
coisa.
Infelizmente, precisava agir com cautela, sem pressa. E eu sabia que isso
custaria a vida de alguém. Contudo, quando o homem apontou a arma para
aquele que fora apresentado à minha mãe como Paulo, não pensei duas vezes e
me joguei sobre o atirador. O tiro foi dado, mas na hora da adrenalina, não pude
parar para ver onde atingira. Um grito feminino o seguiu, mas não tive tempo de
olhar para as pessoas, pois precisei iniciar uma luta com o bandido.
Ele não era dos piores, mas um pouco lento e previsível. Esquivei-me de
dois socos e levei um chute na costela, para começar, mas nem sequer cambaleei.
Parti para cima dele com um gancho de direita, que o acertou bem no maxilar, e
um golpe bem forte no estômago. Nem deixei que se recuperasse e parti com
tudo em outro soco e outro chute. A roupa que usava era um pouco incômoda
para os movimentos, mas não podia me deixar levar por isso.
Depois de mais alguns golpes, o filho da puta caiu de joelhos, e eu não
pensei duas vezes, deixando-o apagado. Queria matá-lo, mas meu lado racional
me indicava que iria me trazer complicações. Então, tirei minha gravata e o
amarrei ao fino caule de uma árvore do jardim.
Peguei a Glock, só para ter outra forma de me defender, e voltei-me para
as pessoas rapidamente. Todos pareciam muito assustados, então, fiz um gesto
para que saíssem dali, agora que não eram mais reféns. Apenas duas delas
permaneceram: Maiara e Paulo. Este, caído no chão, sangrando.
Aproximei-me, temendo que o tiro tivesse pegado em algum lugar
perigoso, mas ao tirar seu paletó e rasgar a blusa social que usava, constatei que
fora no ombro. Estava, inclusive, consciente. Cacei o celular no bolso para ligar
para a emergência, mas a mão ensanguentada de Maiara me impediu.
— Chris... eles a levaram — ela me disse, com a voz embargada pelo
choro, muito apreensiva.
Balancei a cabeça em afirmativa, tentando não demonstrar o quanto
aquela informação me deixara desnorteado. Se tinham pegado uma pessoa tão
específica, sem dúvidas o problema era comigo. Tinha tudo a ver com a MR.
Corri o mais rápido que pude, esperando ainda conseguir algum rastro
para seguir, mas para a minha surpresa, um grupo de cinco homens estava
parado diante do portão da casa dos Queiroga, com três seguranças abatidos ao
seu redor. Um dos bandidos imobilizava Christine, encostando o cano de uma
arma em sua cabeça. Era um recado muito claro para mim.
— Abaixe a arma, 48 — um dos mascarados falou, e eu tentei me
concentrar para ouvir sua voz e tentar reconhecê-la.
Hesitei um pouco, mas pela forma como ele estreitou os braços ao redor
da cintura da refém, fazendo-a retesar-se de medo ainda mais, não tive escolha.
Ergui ambas as mãos e levei a arma ao chão, pousando-a sobre a grama. Estava
completamente rendido naquele momento. Enquanto tivessem Christine em seu
poder, eu faria qualquer coisa que me ordenassem.
— Soltem a garota. Ela não tem nada a ver com isso... — falei, em uma
vã tentativa. Sabia que não haveria conversa. Eu teria que encontrar uma forma
de abatê-los, ou só sobrariam duas alternativas: entregar-me ou deixar que
levassem Christine. A segunda nem era uma opção. E eu também não queria
voltar para aquele inferno, ainda mais depois de ter escapado. As punições
seriam severas, isso se não acabassem me matando.
— Podemos soltá-la, se vier conosco sem lutar.
Ainda de mãos erguidas, tentei passar confiança e calma.
— Eu vou. Mas precisam soltá-la primeiro.
Claro que eles não fariam isso. Não eram amadores, embora eu
suspeitasse que a MR não enviaria seus melhores homens para uma operação
arriscada como aquela. Era a casa de uma família milionária. Se fossem pegos,
precisariam ser descartados. Além do mais, não eram tantos assim. Meu melhor
palpite era que aquele atentado serviria apenas como um aviso, uma ameaça para
mostrarem que Christine era um alvo.
E por falar nela, meus olhos não a abandonavam um único segundo.
Enchia-me de orgulho por seu controle. Imaginava que deveria estar morrendo
de medo, mas segurava a onda muito bem. Além disso, demonstrava que
confiava em mim, de alguma forma. Eu não pretendia decepcionar essa
confiança.
— Não está em posições de negociar. Só permaneça calmo que a
soltaremos. — Enquanto um dos homens falava, outros dois aproximavam-se de
mim. Tentei estudar todo o cenário ao meu redor, conforme era segurado por
eles. Apenas uma arma estava apontada para Christine, havia outros dois homens
me mantendo em sua mira, à perfeita distância de um chute, enquanto outros
dois agarravam meus braços.
Esse, portanto, foi seu erro. Apenas dois homens não poderiam me
conter. Não quando a mulher que eu amava estava sendo ameaçada pelo cano de
um revólver.
Precisava agir rápido e sem pensar, pois eu sabia que não tardaria para
me apagarem de alguma forma. Por isso dei um chute bem forte em ambas as
mãos que seguravam as armas que me ameaçavam e consegui me soltar dos
braços que me prendiam. Assim que fui liberto, abaixei-me e peguei uma das
armas, atirando certeiramente na testa do homem que mantinha Christine como
refém. Ele era uma cabeça mais alto do que ela, e eu confiava plenamente na
minha pontaria.
Agora era um contra quatro, e claro que dois deles recuperaram as armas
rapidamente, enquanto outros dois vieram para cima de mim, me desarmando.
Olhei de soslaio para Christine, gritando para ela:
— Fuja!
Felizmente ela me obedeceu, e eu pude ficar um pouco mais tranquilo.
Não queria que me levassem de volta para a corporação, mas era um cenário
melhor do que vê-la ferida ou morta.
Esperava que não atirassem em mim ali. Talvez tivesse algum valor para
a MR. Sem dúvida haveria um belo de um castigo para um fugitivo, redobrariam
a segurança, mas eu poderia ser ainda mais interessante para eles depois de ter
escapado. Era um feito, sem dúvidas, o que significava que era mais forte do que
esperaram que eu me tornasse. Serviria perfeitamente o propósito para o qual me
criaram.
Embora soubesse de tudo isso, não podia baixar a guarda. Esforcei-me
para desarmar logo um dos homens — o mais desatento — e chutei sua arma
para bem longe daquela vez. Os outros vieram para cima de mim, e eu os
empurrei, jogando-os no chão só para ganhar tempo. O último armado atirou,
mas uma vez que eu estava em movimento, o tiro não me atingiu, e eu apenas
ouvi o som da bala rasgando o ar, passando muito próxima à minha cabeça.
Foi quando eu entendi que aqueles homens poderiam me querer vivo,
mas me matariam se fosse necessário.
Com muito custo consegui dar alguns passos acelerados e pegar a Glock
que havia levado comigo. Se aquele cara errava tiros, eu não cometeria o mesmo
erro. Dei mais um certeiro, desta vez bem no meio da garganta do sujeito,
espirrando sangue para todos os lados.
Faltavam apenas dois. Desarmados. Estava em vantagem.
Eu era bom de briga. Tão bom quanto com uma arma, e ainda bem,
porque infelizmente a que estava em minhas mãos não tinha mais balas.
Parti para cima dos dois sem remorso, jogando o revólver vazio no chão.
Esquivei-me de socos antes de também atacar. Meu primeiro golpe foi um chute
no estômago de um deles. Um bem dado, que o fez cambalear. Aproveitando o
momento de desconcentração do segundo, lancei-lhe um soco bem no ouvido,
que eu sabia que com a força que usei iria deixá-lo zonzo.
Nesse meio tempo, o primeiro que acertei voltou para cima de mim, e
pudemos nos encarar num mano a mano mais justo. Ele não era de todo ruim,
apenas um pouco afobado, e ainda conseguiu me acertar um soco na mandíbula
que doeu para cacete. Em seguida, fez o feito de me derrubar no chão com uma
rasteira, o que foi seu erro. Aproveitei a posição e lhe chutei bem no meio do
joelho esquerdo, ouvindo o barulho do osso sendo quebrado. Com um urro de
dor, ele caiu, o que me deu a chance de golpeá-lo no rosto, fazendo-o apagar.
Voltando-me para o último, percebi que ele agora sustentava um pequeno
canivete na mão. Era uma puta covardia, eu sei, mas aqueles homens não foram
treinados para lutarem de forma justa. Eles não eram soldados da MR, eram
funcionários, pagos para recrutarem homens como eu. Eram filhos da puta
caçadores de recompensas.
Ele ergueu a mão, pronto para me apunhalar na jugular, mas eu consegui
impedi-lo, segurando seu punho e aproveitando a guarda baixa para socá-lo no
estômago, o que o fez se contrair. Ainda segurando seu braço, eu o torci,
colocando-o nas costas, pronto para quebrá-lo, mas o puto tinha outro canivete
na outra mão e conseguiu abrir um talho na minha perna esquerda. Nada muito
profundo ou grave, mas suficiente para me fazer soltá-lo, principalmente pelo
elemento surpresa. Não esperava por isso e me condenei por ter sido tão
descuidado.
O homem veio investindo contra mim cortando o ar com o canivete, e eu
fui me esquivando, sabendo que precisaria desarmá-lo imediatamente. Ele estava
muito decidido a me matar, e pessoas assim eram muito perigosas.
No entanto, ouvi três tiros. Não consegui imediatamente enxergar o que
tinha acontecido, porque minha vista estava obstruída pelo oponente. Só vi que
ele simplesmente parou, e uma mancha de sangue começou a se abrir em sua
camisa branca. Apenas um tiro fora certeiro, os outros dois foram dados no ar.
Quando despencou no chão, vi Christine logo à minha frente, ainda empunhando
a arma, congelada na mesma posição, com os olhos arregalados.
— Chris... — sussurrei seu nome, desolado, sabendo o quanto aquele
pequeno ato iria lhe custar. Ela não era uma lutadora, era uma garota comum.
Quando, em sua vida pacata, poderia imaginar que um dia seria obrigada a atirar
em ser humano?
Ainda perplexa e imóvel, ela deixou o revólver cair no chão, e eu
apressei-me em sua direção. O ferimento da minha perna apenas ardia, não
dificultava meus movimentos. Acho que dei sorte.
Assim que cheguei perto dela, com um pouco de receio sobre como
deveria agir, ela se jogou de encontro a mim, abandonando-se em meus braços,
como se fosse o lugar mais seguro para estar naquele momento.
Tudo o que eu queria era corresponder àquela entrega, protegendo-a e
mantendo-a comigo, mas precisava tirá-la dali. O mais rápido possível, antes que
mais pessoas surgissem ou a polícia. Não queria que precisasse dar depoimentos
ou ficar encrencada de alguma forma. Eu poderia assumir a culpa por tudo.
Peguei a arma que ela usou do chão e guardei-a presa ao meu cinto.
— Vem, Chris, vamos sair daqui — falei bem baixinho em seu ouvido.
— Eu preciso saber se ele... Se está...
Eu entendia o que queria dizer. Odiava ter que fazer isso, mas era pior do
que permitir que ela mesma fosse checar. Portanto, aproximei-me do homem e
chequei sua pulsação. Nada. Estava morto.
Virei-me para Chris e apenas balancei a cabeça, respondendo-lhe com
uma negativa.
Apavorada, senti-a cambalear e jogar-se de joelhos no chão. Voltei para
perto dela, tirando meu paletó e envolvendo-a com ele, já que tremia
descontroladamente. Ajudei-a a levantar-se e, sem olhar para trás, comecei a
conduzi-la para fora daquela casa e daquele pesadelo.
Capítulo Nove
CHRISTINE
Eu só queria desaparecer.
Talvez estivesse agindo apenas como uma menina mimada, uma mulher
fraca sem instinto de sobrevivência, mas isso pouco importava. Meus olhos
focavam o nada, como se estivesse hipnotizada, perdida em um universo apenas
meu, onde nada poderia me atingir, nem mesmo as mais terríveis memórias
daquele dia.
De todas as coisas desprezíveis que jurei que faria um dia, matar um ser
humano não era uma delas. A cena ia e vinha em minha cabeça, sendo repetida
em um looping constante, que eu sabia que iria me atormentar por muito tempo.
Talvez eu jamais me sentisse livre daquela mácula.
Um cheiro de erva doce veio em uma névoa de fumaça, atingindo meu
nariz, no momento em que Arthur voltou para a sala estendendo a xícara na
minha direção. Eu ainda estava sentada no mesmo lugar onde ele tinha me
deixado, envolta em seu paletó, tremendo de frio, como uma garotinha assustada
— algo que eu odiava —, com Kibe deitado bem ao meu lado.
Paciente, ele se abaixou na minha frente, apoiando-se em um joelho e
deixando outro flexionado. Eu segurava a xícara com as duas mãos, temendo que
não pudesse sustentá-la de tão trêmula que estava, enquanto mantinha minha
cabeça baixa. Não conseguia encará-lo. Não conseguiria nem sequer encarar a
mim mesma em um espelho, se fosse obrigada a me colocar diante de um.
— Chris, fale alguma coisa. Desabafe... — ele disse bem baixinho. Eu
não sabia se o amava ou odiava naquele instante. Tudo o que estava acontecendo
era culpa dele. Mas, ao mesmo tempo, sabia que havia muita coisa por trás de
uma história mal contada e que ele devia ter sofrido muito.
— Eu matei aquele homem — foi tudo o que consegui falar, porque era a
única coisa que pulsava em minha mente.
— Sim, matou. Para me salvar. — Como se isso fizesse alguma
diferença. Os fins não justificavam os meios naquele caso. Por mais que não me
arrependesse de tê-lo feito, já que provavelmente faria de novo se fosse
necessário para mantê-lo vivo, ainda era difícil lidar com a situação.
Com muita gentileza, Arthur pegou a xícara de volta e a pousou na
mesinha ao lado do sofá. Tomando uma das minhas mãos na dele, usou a outra
para erguer meu queixo, obrigando-me a olhá-lo.
— Você não tem que se martirizar por isso. Eram pessoas ruins, que não
mereciam viver.
— Não cabe a nós julgar esse tipo de coisa. Não somos Deus — afirmei
indignada.
— Nem sempre Deus está disponível para olhar pelas pessoas que
merecem. Às vezes o mal está prestes a vencer, e não podemos permitir. Se
temos a possibilidade de fazer justiça, não devemos fechar os olhos.
Franzi o cenho, analisando-o com cuidado, quase sem acreditar que ele
poderia estar falando aquilo. Ficava cada vez mais difícil reconhecê-lo no meio
daquela nova fachada.
— Eu não sou uma justiceira, Arthur! Sou uma frouxa, que não consegue
matar nem uma barata. Não faço ideia de como encontrei coragem para puxar
aquele gatilho.
Arthur segurou ambas as minhas mãos com ainda mais força.
— Encontrou porque era o certo a fazer.
— Você nunca vai me convencer disso. Não importa que use palavras
bonitas, frases feitas. Não importa o que fizeram você acreditar no lugar para
onde foi. — Abaixei a cabeça, envergonhada do que iria dizer a seguir, mas as
palavras estavam prestes a escapar, e eu não poderia refreá-las. E nem queria, na
verdade. Tinha o direito de abrir meu coração. — Desde que voltou para a minha
vida... — hesitei. Caí na asneira de olhar para ele, e só aquela pequena frase já
foi capaz de proporcionar uma expressão de profunda dor em seu semblante,
porque ele já deveria saber aonde aquela conversa iria parar. Apesar disso,
continuei: — Desde que voltou, minha vida parece um pesadelo. Há pessoas me
perseguindo, sofri um acidente, fui feita de refém em uma festa... O que mais vai
acontecer? Estou assustada.
Eu o vi balançar a cabeça muito sutilmente, concordando e aceitando o
golpe que tinha acabado de levar. Senti meu coração se despedaçar por precisar
ser tão dura com alguém que amava tanto, mas infelizmente era a mais pura
verdade.
— Vou te deixar em paz, Chris. Você não merece o que está
acontecendo... Não deveria... — Mal conseguiu terminar a frase, mas foi logo se
levantando para ir embora. Eu pretendia permitir, porém, muito discretamente,
ele levou a mão à perna, com uma expressão de dor, fazendo-me lembrar de seu
ferimento.
— Espera... — pedi, também me colocando de pé, enquanto tirava seu
paletó dos meus ombros e indo até ele, passando rapidamente pelo rack da sala e
pegando uma tesoura em uma das gavetas.
Abaixei-me à sua frente e fiz um pequeno corte em sua calça,
encontrando exatamente a ferida.
— Vai, senta no sofá... vou desinfetar isso aqui...
— Chris, acho melhor eu ir embora... — ele falou, mas mal dei tempo
para que insistisse, apenas peguei sua mão e praticamente o arrastei até o
assento, empurrando-o lá. Puxei a poltrona para me acomodar em frente a ele e
me preparei para cortar mais do tecido. Antes, voltei meus olhos em sua direção.
— Vou ter que cortar um pouco mais, tudo bem?
— Esse corte que você já fez não está exatamente na moda, então, não
vai fazer muita diferença... — Arthur deu de ombros, e eu comecei a trabalhar.
Já estava quase concentrada, quando ele disse algo que foi bastante inesperado:
— Não será a primeira vez que você tira a minha roupa...
Filho da puta!
Já bastava toda a situação na qual estávamos inseridos, ele ainda decidia
fazer a primeira piadinha desde que tinha retornado à civilização exatamente a
respeito de algo que eu queria esquecer. Bem... não exatamente esquecer, mas
pensar no quanto era apaixonada por ele em um momento como aquele não
parecia a melhor escolha. Contudo, nem respondi nada, porque eu sabia que fora
uma tentativa muito mal sucedida de amenizar o clima sombrio.
— Desculpa, estou agindo como um idiota...
— Está — respondi sem encará-lo. — Mas foi a primeira vez que sequer
chegou perto do Arthur que eu conheço.
Tentei olhá-lo pelo canto do olho, para verificar se tinha ao menos
sorrido, mas nem chegava perto disso, o que muito me assustava.
Abri um buraco decente no tecido da calça e fui ao banheiro pegar o kit
de primeiros socorros, que, aliás, não era a primeira vez que usava com ele.
Quando voltei, peguei-o inclinado para a frente, passando a mão no tapete, cuja
mancha de sangue, feita dias atrás, ainda não havia desaparecido por completo.
— Acho que te devo um tapete novo — ele comentou assim que me
sentei à sua frente outra vez.
— Você me deve três anos da minha vida, Arthur. O tapete é o de menos
— falei sem pensar. Decidi aproveitar o ensejo e tocar no assunto que tanto
desejava: — Falando nisso, agora você sabe atirar e luta como um demônio.
Acabou de abrir a porta da minha casa com um cartão de crédito, porque eu
perdi a minha bolsa. Fora o seu corpo que está completamente diferente. Poderia
jurar que passou esse tempo todo em uma academia de cross-fit ou treinando
para uma apresentação de fisiculturismo.
Ah, ele quase sorriu. Estávamos progredindo.
— Quase isso — ele respondeu de forma econômica, ainda sorrindo, e eu
novamente cometi o erro de olhar para seu rosto.
Aquele sorriso... Arthur sempre tivera um sorriso daqueles impossíveis
de serem descritos perfeitamente. Se eu tentasse, diria que era um tanto quanto
sacana, endiabrado, de um moleque travesso que sabia muito bem que era capaz
de conquistar qualquer coisa — ou qualquer uma — sem se esforçar. Para mim,
ele sempre guardou um sorriso diferente. Um mais puro, sincero e gentil,
exatamente igual ao que me lançava naquele momento, embora um pouco mais
desanimado.
Continuei minha tarefa em silêncio, desinfetando a ferida, satisfeita por
não ser tão profunda quanto parecia. Talvez fosse melhor ele ir a um hospital,
mas imaginava que a sugestão não seria muito bem-vinda. De qualquer forma,
ele era forte, iria se safar sem maiores danos.
Quando terminei o curativo, ele foi se preparando para levantar-se.
— Obrigada mais uma vez, Christine. — Antes, porém, que ele pudesse
se despedir, segurei sua mão, com os olhos baixos, tristonhos, porque sabia que o
que iria dizer e fazer eram a coisa errada, mas era o que eu queria e precisava.
— Fica — pedi. — Não me deixa sozinha. Não esta noite.
Eu não sabia se era seguro pedir que ele ficasse. Provavelmente estava
me colocando em perigo, mas não faria a menor diferença. Não poderia permitir
que se afastasse, porque não importava o tipo de problema que ele trazia
amarrado às suas costas, eu sempre o amaria. De todas as formas.
***
ARTHUR
***
ARTHUR
“Minha Wendy, poucas coisas são tão lindas quanto você dormindo.
Infelizmente, precisei te deixar para resolver algumas pendências. Por favor,
me mande mensagem dizendo se está bem. Segue o número do meu celular
novo logo abaixo.”
ARTHUR
***
ARTHUR
***
CHRISTINE
***
ARTHUR
Eram muitos nomes. Muitas vidas que possivelmente tinham sido
roubadas pela MR. A cada momento que passava, meu ódio se intensificava mais
e mais.
Um deles, porém, não me passou despercebido. Santiago Marinho. Ele
pulsava em minha mente, como se não fosse novo dentro das minhas
lembranças, mas estivesse preso à teia do esquecimento.
Deixei Christine e Mário ainda analisando as ocorrências e me afastei
discretamente, tentando me esforçar ao máximo para recuperar algum resquício
da memória que parecia querer vir à tona, mas que se mantinha escondida.
Voltei, então, inconscientemente ao maldito dia do meu sequestro,
quando me vi preso à maca, pouco antes de ser marcado com a tatuagem de 48.
Minha consciência ia e vinha, e eu ainda não havia aberto os olhos; não tinha me
encontrado na sala quase cirúrgica nem me deparado com a mulher jovem e o
filho da puta que me tatuou. Foi antes. Antes de eu acordar para o meu pesadelo.
Na escuridão, discerni as vozes de dois homens, que falavam algo sobre
uma fuga. Não consegui ligar uma coisa à outra no momento, mas o nome
Santiago Marinho foi proferido.
Era o tipo de lembrança que poderia ter ficado guardada dentro da minha
cabeça por toda a minha vida, se não tivesse sido acionada por algum gatilho. O
fato de estar dopado a nublava e a tornava irreal. A insistência na informação de
que nunca nenhum dos soldados fugira, que era impossível escapar, deve ter
corroborado para que eu tivesse tanta certeza de que era o único a alcançar esta
proeza. Mas agora a dúvida havia surgido.
Aproximei-me de Mário e Christine, sentindo-me quase eufórico.
— Mário, você não se lembra de nenhum soldado chamado Santiago
Marinho? — indaguei.
— Cara, você sabe que era o único que eu conhecia pelo nome. Todos
eram números lá dentro. Por quê?
— Acho que talvez eu tenha ouvido alguma coisa sobre este homem.
Algo sobre uma fuga — assenti, e Mário pareceu perder o ar.
— Não, ninguém nunca fugiu de lá. Só você.
— Talvez isso tenha sido o que tentaram nos fazer acreditar. Só que
surgiu uma memória meio perdida aqui quando eu li o nome dele. Uma de
quando estava dopado, no dia do meu sequestro. Acho que vale investigar, não
vale?
— Claro que vale! — foi Christine quem respondeu, parecendo animada.
Finalmente agindo, Mário começou a fazer sua mágica tecnológica e
buscar informações sobre família, contatos ou qualquer coisa que pudesse nos
levar a Santiago Marinho, o “soldado” misterioso.
— Tem uma esposa. Quando ele desapareceu, em 2012, eram recém
casados. Talvez seja interessante dar uma olhada nela, não acham? — Mário
indagou sem tirar os olhos da tela do computador.
— Sim, pode ser. Se ele voltou para algum lugar, foi para ela — concluí.
— Podemos fazer uma visita... eu posso fazer algumas perguntas e...
— Não. Vai com calma com isso. Um cara do seu tamanho não pode
chegar na casa de uma mulher para interrogá-la. Vai deixá-la intimidada. Por que
não deixa que eu fale com ela? Posso contar a sua história, sem mencionar o seu
nome, ganhar compaixão e conversar. Talvez ela se abra comigo — Christine
sugeriu.
Eu e Mário nos entreolhamos, cada um parecendo ter uma opinião
diferente, enquanto Christine tentava interpretar nossas expressões. A minha
deveria ser a mais óbvia possível; eu não concordava muito com a ideia de
envolvê-la ainda mais naquela história, mas pela forma como Mário inclinou a
cabeça e ergueu uma sobrancelha, percebi que estava perdido. Seria voto
vencido. Ele, definitivamente, concordava com ela. Tinha perdido meu aliado.
— Tudo bem, Chris, a ideia é realmente boa. Só me prometa que vai
tomar cuidado... — finalmente respondi, embora achasse que aquilo só poderia
gerar mais confusão.
***
CHRISTINE
Christine tinha algo de muito valor nas mãos. Não que houvesse qualquer
coisa naquela mulher que não valesse o mundo para mim, mas aquele pequeno
papel poderia significar muitas coisas... principalmente a minha liberdade.
Era uma forma muito otimista de ver as coisas, levando em consideração
que se tratava apenas um nome, mas uma vez que prendêssemos o rei em xeque,
ficaria mais fácil destruir os peões e as outras peças. Naquele caso, a estratégia
de destruir primeiro os peixes pequenos para chegar por último no chefão, como
aconteceria em um videogame, não funcionaria. Não havia tempo para isso.
Hans Balzer.
Hans Balzer.
Hans Balzer.
As duas palavras rolavam na minha língua com o gosto amargo do desejo
de vingança, enquanto eu as repetia em voz baixa, como se fossem um mantra
para aplacar a raiva que sentia. Não que quisesse amenizar aquele sentimento,
odiá-lo menos, pelo contrário, queria apenas acostumar-me com a ideia de que o
mataria, de que aquele nome seria apagado do universo, para me sentir mais
indiferente.
Assim que chegamos do Centro da cidade, voltamos direto para a casa de
Mário, e a primeira coisa que fizemos foi checar aquele nome na Internet. No
exato momento em que uma foto surgiu na tela — um retrato formal, em uma
reportagem enaltecendo aquele monstro por seus feitos —, eu senti o meu
estômago inteiro se revirar. Tratava-se do filho da puta que desenhou a maldita
tatuagem no meu ombro, que me marcou para sempre. O rosto que eu jurei
jamais esquecer.
Fazia horas que estava ali sentado, na frente do computador do quarto de
Mário, olhando para aquela foto. Tínhamos lido a notícia, e ela falava sobre a
tentativa de uma implantação de um programa militar ao qual voluntários iriam
se oferecer. Por ser uma matéria datada de dez anos atrás, Balzer — que tinha
descendências alemãs, pelo que pude ler — estava participando de uma coletiva
de imprensa, onde todos pareciam muito impressionados com sua estratégia,
principalmente porque ele alegava que o treinamento, oferecido em vários países
para profissionais das mais diversificadas agências de inteligência mundiais,
prepararia aquelas pessoas para defenderem a pátria, tornando-a exemplo de
segurança, dando vários passos em direção a uma nação de primeiro mundo.
O problema encontrava-se na palavra voluntários. Outra matéria, muito
menor e sem tanto destaque, informava que seu feito falhara miseravelmente,
pois não houve nenhuma convocação. Em um país como o Brasil, poucas
pessoas estavam dispostas a perderem anos de sua vida sem receberem nada em
troca, principalmente porque o treinamento exigia muita dedicação, disciplina,
além de perfis muito específicos de pessoas.
O que não era revelado nos jornais era a forma como aquele homem
decidira resolver seu empecilho. Cometendo sequestros. Encontrara seus
soldados, mas os transformara à força.
Ainda com o coração fervendo de ira, virei a cadeira giratória na direção
da cama, deparando-me com Christine adormecida. Já passava das nove da noite,
e por mais que ainda fosse cedo, eu sabia que ela tivera uma noite conturbada e
precisava dormir.
Fiquei alguns minutos olhando para ela, o que foi suficiente para que o
ódio se dissipasse um pouco. Lembrei-me do beijo, de ouvi-la dizendo que me
amava, e tudo o que eu conseguia era me perguntar o que eu tinha feito para
merecer uma mulher tão maravilhosa em minha vida? Ela não desistira de mim
em nenhum momento, nunca perdera as esperanças, mesmo quando eu não
soube valorizá-la... Pensar nisso me feria, mas a vida estava me dando uma
segunda chance. Mesmo sob uma profunda tormenta, saber que ela me amava
me confortava e me dava forças para seguir em frente.
Odiava ter que tirá-la do que parecia ser um sono tranquilo, mas precisei
aproximar a cadeira da cama de Mário, onde ela dormia encolhida como um
bebê, e cuidadosamente afastei algumas mechas de cabelo do rosto. No exato
momento em que a ponta do meu dedo tocou sua bochecha, ela se remexeu e
abriu os olhos bem devagar, lânguidos e, por um momento, pareceu um pouco
fora de órbita.
— Oi... — falei bem baixinho, com certa doçura, ainda remexendo em
seu cabelo, não conseguindo tirar os olhos dela. — Não queria te acordar, mas
acho melhor irmos embora...
Ela não respondeu nada, apenas assentiu com a cabeça e não demorou a
aprontar-se para sair. Despedimo-nos de Mário, que já estava jogando
novamente, no meio de uma partida de qualquer que fosse o jogo, e mal nos
olhou ao dizer tchau.
Pegamos o carro e seguimos para a casa de Christine. Para quebrar o
silêncio, ela ligou o rádio, e estava tocando uma música que fez com que
encostasse a cabeça no banco e suspirasse. Começava com um pianinho, depois
uma voz masculina bonita entoava a primeira estrofe e logo um rap mais
animado preenchia todo o ambiente.
— Acho que preciso me atualizar um pouco mais nas músicas... Faz um
bom tempo que não ouço rádio. — Ela deu uma risadinha, como se soubesse de
algo que eu não sabia. — O que foi?
— Essa música se chama “See You Again”. Ela tocou em uma das
reuniões que sua família fez em homenagem à sua morte.
Se aquilo não era estranho de se ouvir, eu não sabia mais o que poderia
ser.
— Não quero nem imaginar o que tocou no meu velório... — comentei
com as sobrancelhas erguidas. — Por que eu tive um, não tive?
— Teve, sim — ela respondeu gargalhando, mas logo cobriu o rosto com
as mãos, parecendo envergonhada. — Eu não deveria estar rindo disso, mas a
situação é tão bizarra...
Não pude me conter e acabei acompanhando-a, embora não com tanto
entusiasmo.
— E, afinal, o que tocou no meu velório?
Daquela vez, o sorriso de Christine desapareceu por completo. Não
precisava me esforçar muito para perceber que aquela pergunta teria uma
resposta um pouco mais pesada.
— Não sei. Eu não fui — ela disse, com a cabeça baixa, como se
estivesse envergonhada por algo. Aproveitando que estávamos parados em um
sinal, estendi a mão e coloquei-a sob seu queixo, forçando-a a olhar para mim.
Sem me dar chance de dizer qualquer coisa, ela foi logo acrescentando: — Não
pude, Arthur. Eu mal conseguia levantar da cama naqueles dias. Quando a
polícia desistiu de continuar te procurando e todos decidiram te dar como morto,
eu... eu... — gaguejando, a voz de Christine falhou, como se ela simplesmente
não conseguisse continuar falando. — Eu não quis aceitar. Se visse um caixão
vazio sendo velado, acabaria não suportando. Todas as reuniões de condolências
que sua mãe começou a fazer em seguida foram muito difíceis.
— Eu estou aqui... — sussurrei, embora me sentisse muito idiota por
fazê-lo. Tal constatação não mudava em nada o quanto ela tinha sofrido durante
todo aquele tempo.
— Sim. Você está... — Ela se permitiu mais alguns segundos de
melancolia, mas logo forçou um sorriso a surgir em seus lábios, como a mulher
forte que era. — Mas essa música realmente é muito bonita, e você precisa se
atualizar — voltou ao assunto anterior, apontando para o rádio. — Não só com
músicas, mas filmes também. Aliás, See You Again está na trilha sonora de
Velozes e Furiosos 7.
— 7??? — exclamei indignado. — Quantos eu perdi, afinal?
— Dois. O último foi ótimo, aliás... Tem uma cena em que o The Rock
desvia um míssil com a mão.
— O quê? Cara, isso deve ter sido épico! Não quero nem pensar em
quantos outros filmes legais eu perdi, principalmente de heróis.
— Pois é... saiu Liga da Justiça.
Levei a mão à cabeça, lamentando, quase me sentindo como o Arthur de
antes. Olhando na direção de Christine, percebi que ela também me fitava
fixamente, quase como se pensasse a mesma coisa. Era nosso primeiro momento
realmente descontraído desde que retornei, e pela primeira vez senti que, algum
dia, conseguiria deixar todo aquele pesadelo para trás e voltar a viver uma vida
normal. Jamais seria quem fui por completo, mas queria tentar. Por mim e por
ela.
Peguei sua mão, que estava pousada na coxa, por sobre o tecido da calça
jeans, e a levei aos meus lábios sem dizer nada. O que eu poderia dizer? Não
havia pedido de desculpa suficiente que pudesse amenizar tudo o que acontecera
e que ainda poderia acontecer. Estávamos ali, fazendo planos de dias leves, com
direito a música e a sessões de cinema — como costumava acontecer antes —,
mas ainda nem sabíamos o que seria de nós dali em diante. Se dependesse de
mim, ela ficaria intacta. Estava pronto para me entregar, para trocar minha vida
pela dela se fosse preciso, mas isso implicaria em novamente sermos separados,
em mais sofrimento. Eu queria poupá-la de tudo, portanto, sentia, bem lá no
fundo, que passava a valorizar ainda mais a minha integridade para
simplesmente ter a chance de ficar com Christine. Estava disposto a lutar com
todas as minhas forças para sair ileso daquela situação e conquistar o meu final
feliz com a mulher que amava.
Seguimos o resto do caminho calados, com apenas o rádio falando por
nós, até que chegamos ao prédio de Christine. Parei o carro em uma vaga na rua
mesmo, e sem que ela percebesse, peguei a arma que tinha escondido dentro do
carro, guardando-a outra vez no cós da calça, só por precaução. Segurei sua mão
assim que saltamos e começamos a andar em direção ao portão.
Novamente me senti muito incomodado com o fato de não haver um
porteiro por lá no turno da noite, principalmente quando Christine precisou
vasculhar a bolsa em busca das chaves, no meio da noite. Seria muito fácil
alguém surgir ali e rendê-la, sendo da MR ou não. Além de estarmos vivendo
uma situação complicada, ainda tinha o fato extremamente relevante de
morarmos no Rio de Janeiro, uma cidade conhecida pela violência.
— Você deveria ficar com as chaves na mão quando está andando em
direção ao seu prédio. É perigoso...
— É que normalmente eu entro na garagem subterrânea e só mexo na
bolsa dentro do elevador... — Sim, até fazia sentido, mas eu ainda estava um
pouco agoniado de permanecer ali fora, à vista de qualquer um, mas ela acabou
encontrando a chave e abriu o portão, por onde entramos.
Seguimos pelo hall, subimos no elevador e chegamos ao seu
apartamento. No exato momento em que pisamos no andar, eu reparei, com
minha percepção aguçada, em uma estranha mancha no chão, apesar do escuro.
Christine pareceu não notar nada, mas assim que me dei conta de que se tratava
de uma gota vermelha, que muito provavelmente era de sangue, agarrei seu
braço e a puxei para trás de mim, imprensando-a na parede.
Cobri sua boca com a minha mão e sussurrei em seu ouvido:
— Fique aqui e não faça barulho.
De olhos arregalados, ela parecia não entender nada, por isso, apontei
para o sangue, e ela entrou em pânico, mas, por sorte, conseguiu manter o
controle o suficiente para não gritar.
— A luz está apagada. Espere cinco minutos, se eu não acendê-la, você
foge. Sem pensar duas vezes. — falei, ainda em um tom de voz muito baixo.
Como ela não respondeu nada, eu insisti: — Ouviu, Christine?
Ela balançou a cabeça de forma quase frenética, e eu esperei que
estivesse dizendo a verdade.
Deixei-a ali e me aproximei do apartamento. Exatamente como previ, a
porta não estava trancada. Saquei a arma e entrei.
O local era um completo breu, e eu comecei a andar pé ante pé, sem fazer
barulho, mas logo concluí que estava vazia. Quem quer que tinha entrado ali já
havia escapado e deixado um imenso caos de coisas reviradas, como se um
furacão tivesse passado.
Acendi a luz, pronto para sair e chamar Christine, mas me deparei com
algo que me impediu. Uma cena que ela não mereceria ver.
Havia pegadas dentro da casa, e todas guiavam a um corpo estendido em
frente à varanda, no chão. Começava a tentar ponderar o que poderia fazer para
poupar Christine daquela visão, mas não tive tempo, porque a porta se abriu, e
ela entrou.
— Você acendeu a luz... eu achei que... — Christine mal conseguiu
terminar a frase, pois sua reação foi arregalar os olhos e levar a mão à boca, em
desespero, abafando um grito.
Eu simplesmente não soube o que fazer. Ao menos não naquele primeiro
momento. Christine mal reagia, apenas continuava ali parada, olhando para a
mulher idosa morta bem no meio de sua sala.
— Arthur... ela... ela... está... Ah, meu Deus! Claro que está... —
Continuei sem dizer nada, mas comecei a me aproximar com cautela, com a mão
estendida, enquanto a observava tremer dos pés à cabeça, incontroladamente.
Pousei a mão em seu ombro com o máximo de delicadeza que consegui,
tentando confortá-la, porém, o que precisava dizer logo em seguida com certeza
não seria nada agradável, principalmente porque ela não parava de olhar para a
arma em minha mão.
— Christine, preciso tirar você daqui. Se a polícia aparecer, eles podem
te culpar...
— A mim? — ela indagou estarrecida, com os olhos vítreos e
arregalados, finalmente direcionados a mim. Estava em choque.
— Sim. Ela está na sua casa e não tem nenhum sinal de arrombamento.
— Mas e essa bagunça?
— Podem alegar que você criou o cenário para desviar as suspeitas. —
Fiz uma pausa e tentei soar um pouco mais incisivo, embora não pretendesse
perder a calma, já que ela precisava de conforto e não de mais nervosismo. —
Vamos sair daqui. Vou te levar para a mansão. Você vai ficar segura lá.
Christine apenas balançou a cabeça, um pouco fora de si, mas
rapidamente algo pareceu despertá-la, como se alguém tivesse acionado um
interruptor dentro de sua mente.
— Kibe! Meu gato! — exclamou em desespero, virando-se para mim. —
Meu gatinho... Eles não podem tê-lo machucado, Arthur. Pelo amor de Deus...
— Christine já começava a chorar, e eu temia o pior. Se tivessem ferido seu
bichinho de estimação, ela ficaria ainda mais destruída.
Segurei-a pelos braços e olhei em seus olhos.
— Calma, Chris, eu vou te levar e volto para...
— Não! — ela gritou. Foi a primeira vez que se alterou naquela noite,
embora a situação fosse mais do que propícia a isso. Soltou-se das minhas mãos
em uma reação muito passional e afastou-se. — Não vou sair daqui sem o meu
gato!
Com decisão, ela foi em direção ao corredor que levava aos quartos, e eu
fui atrás. Eu a ouvia chamar pelo bichano, com a voz chorosa e em desespero.
Por mais que eu não tivesse coragem de pedir que desistisse e
compreendesse sua angústia, acabaria tendo que tirá-la dali de qualquer jeito —
carregada, se fosse preciso —, antes que as coisas se complicassem.
Para a nossa sorte, porém, eu ouvi algo que Christine provavelmente não
escutou. Um miado bem baixinho, lamentoso, que parecia servir apenas para nos
alertar que o bichinho estava vivo e que não queria ser abandonado.
Ele se manifestou apenas uma vez, mas foi suficiente para que eu
deduzisse onde estava, um local que Christine já havia olhado, mas para o qual
não dera a devida atenção.
Dirigi-me ao banheiro e no exato momento em que entrei, ouvi
novamente o leve miado, abafado, e vi a tampa da lixeira se movimentando
muito discretamente. Apressei-me em abri-la, antes que ele sufocasse lá dentro,
embora suspeitasse que era tão inteligente que estava usando as patinhas para
abrir frestas e poder respirar.
Encontrei-o todo encolhido, camuflado, quase como um contorcionista
profissional, e peguei-o no colo com carinho e cuidado, sentindo-me aliviado e
feliz por vê-lo bem. Não apenas por Christine, mas porque eu também gostava
de animais o suficiente para não querer ver um deles ferido ou morto. Já me
bastava aquela senhora, caída no chão da sala, que perdera a vida de forma tão
estúpida. A imagem dela não saía da minha cabeça, e era suficiente para que
sentisse o ódio correndo pelas minhas veias.
Aconchegando Kibe contra meu peito, levei-o até Christine. Quando ela
o viu, aninhado nos meus braços, correu em minha direção e o pegou do meu
colo, arrancando-o de mim, e abraçando-o, enchendo-o de beijos na cabecinha
preta. Ele parecia assustado, tanto que permaneceu quieto com a dona, mesmo
não sendo um grande apreciador de abraços.
— Precisamos ir agora, Chris — informei muito sério. Ela assentiu, e eu
tinha a impressão de que depois de ter encontrado seu companheirinho, seria
capaz de me seguir aonde eu fosse e de acatar todos os meus pedidos.
Quando passamos pela sala, em direção à saída, ela ainda deu uma
olhada no corpo da velha senhora, com uma expressão lamentosa. Tirei a bolsa
do seu ombro e peguei lá dentro a chave, que ela tinha guardado outra vez,
provavelmente na hora do susto por ter a casa invadida, e assim que saímos,
tranquei a porta. Odiava fazer isso, mas naquela mesma noite voltaria ali para
cuidar da mulher. Prometendo a mim mesmo que tentaria ao máximo lhe dar um
fim digno, por mais que tivesse que tirá-la do apartamento, guiei Christine por
todo o corredor, afastando-a de mais aquele pesadelo. Eles não pareciam ter fim.
***
CHRISTINE
Eu não sabia exatamente quem era Carlos Vidal, mas tinha uma vaga
ideia. Aquele filho da puta me cercava de todos os lados e mexia de formas
diferentes com as mulheres que eu amava. Agora que Christine estava comigo,
protegida, ele tentara atacar Cléo.
Minha irmã.
A porra da minha irmã caçula.
Ele ousara flertar com ela, provavelmente usando técnicas de persuasão
que aprendera nos treinamentos da MR. As mesmas que eu também aprendi, mas
que jamais ousaria usar com uma garota de vinte anos para seduzi-la.
As armas foram escolhidas a dedo. Com Christine, ele usara a força,
perseguindo-a, ameaçando sequestrá-la, invadindo seu apartamento e matando
uma pessoa para assustá-la. Com Cléo, ele se aproveitara da carência de uma
garota jovem, que ficara tempo demais sem o irmão, perdera o pai e precisava
desesperadamente de amor. Essas eram evidências que comprovavam que ele me
conhecia. Não era um inimigo qualquer. Sem dúvida estava sendo muito bem
treinado pela corporação, que lhe fornecia aquele tipo de informação para
facilitar na minha caçada.
A raiva me tomava de várias formas, avolumando-se dentro do meu peito
quase até o ponto de eu senti-la prestes a explodir. Quando dei por mim,
voltando à realidade, a porta do meu quarto estava sendo aberta, e Christine
entrava. O gato dela saiu correndo desesperado, movimentando o colchão e
jogando-se no chão, começando a roçar em suas pernas.
Ela lhe deu um pouco de atenção, afagando a cabecinha de pelos negros,
mas logo se voltou para mim.
Havia algo de estranho no olhar que me dirigiu. Não algo ruim. De forma
alguma... mas uma espécie de intensidade que jamais demonstrara.
Tive vontade de perguntar se estava bem, se tinha acontecido alguma
coisa com Cléo depois que saí, mas não demorei a perceber o que passava dentro
de sua cabeça. Não havia dúvidas de que eram pensamentos muito parecidos
com os meus em relação a ela.
Christine foi se aproximando, e pela forma como seu peito subia e descia,
em uma respiração incerta, e pela lentidão de seus passos, eu sabia que estava
insegura, temendo o que parecia tão decidida a fazer. Levantei-me também,
tentando facilitar as coisas, embora não tivesse qualquer ideia do que ela poderia
estar prestes a fazer.
Mas nem de longe imaginei que teria tal atitude.
Ela sempre foi uma mulher doce e gentil, sempre pronta para me receber
e conversar, para me dar os melhores conselhos. Era com ela que eu dava minhas
melhores risadas e por quem eu sempre me esforcei para ser uma pessoa melhor.
Pensamentos a respeito dela como mulher não eram raros em minha cabeça, e
por várias vezes me peguei admirando-a com desejo antes de tudo acontecer. Só
que ela era a minha melhor amiga, e eu, um tremendo babaca, não poderia
corromper esse relacionamento. Porque eu sabia que acabaria estragando tudo.
E foi o que quase aconteceu. Se não tivesse desaparecido, muito
provavelmente eu e Christine teríamos nos afastado depois de fazermos amor. O
pior era o fato de não me lembrar de quase nada daquela noite, embora soubesse
exatamente o que tinha acontecido. Não me lembrava da textura de sua pele
contra a minha nem da sensação de estar dentro dela. Era quase uma maldição,
porque eu a desejava tanto... de uma forma tão dolorosa... e não tinha nenhuma
memória à qual me agarrar.
Por isso, quando ela simplesmente se colocou na minha frente, passou os
braços ao redor do meu ombro e encostou seus lábios nos meus, eu soube que
queria tudo o que eu pudesse lhe dar.
Céus, e eu queria lhe dar tudo.
Inclinei-me para frente, abaixando-me e tentando ao máximo ficar de um
tamanho equivalente ao dela, embora houvesse uma grande diferença de altura
entre nós. Começamos um pouco tímidos, com nossas línguas explorando uma a
outra bem devagar, dançando em um ritmo lento e sensual. Poderíamos ter
continuado assim por algum tempo, porque — puta merda — estava
maravilhoso, mas queríamos mais.
Estava disposto a permitir que Christine ditasse as regras, que tomasse o
controle da situação e a cadência do que iria acontecer, mas não demorei muito a
perder a cabeça, ouvindo-a gemer docemente contra minha boca, enquanto nosso
beijo se intensificava. Sentindo meu sangue começar a correr mais acelerado,
coloquei os braços sob suas coxas e a icei do chão, levando-a até a parede mais
próxima e encurralando-a lá, mantendo suas pernas entrelaçadas na minha
cintura.
Com ela nessa posição, tive mais liberdade para explorar outras partes de
seu corpo, traçando uma linha de beijos por seu pescoço, descendo até o colo
macio, onde me demorei por mais tempo. Estava desesperado para chegar aos
seus seios, arrancando aquela blusa que ela usava, mas não sabia até onde podia
ir; não sabia se ela queria que chegássemos a extremos, depois de tudo o que
tinha acontecido naquele dia.
— Chris... — sussurrei sentindo a palavra escapar da minha boca pesada,
ofegante. Ela estava me consumindo aos poucos. — Chris... se você quiser que
eu pare avise logo, porque... — continuei falando entre beijos — acho que não
vou conseguir se avançarmos mais do que isso.
— Não ouse parar. Eu... — ela também estava ofegante, e um gemido
escapou de sua garganta, interrompendo sua própria fala, no exato momento em
que toquei com a língua quente um ponto sensível na curva onde seu pescoço
encontrava o colo. — Eu quero você... Quero muito...
Eu também a queria...
Porra, como queria.
De todas as formas. Queria tê-la naquela parede, no chão, na cama.
Depois poderia levá-la para a banheira da minha suíte, e em seguida faria amor
com ela no chuveiro.
Minha imaginação corria solta, e isso só me deixava mais e mais
selvagem.
Agarrei os dois lados da gola rendada de sua blusa branca e a rasguei em
um puxão, agradecendo aos céus por seu sutiã ter uma abertura frontal, pois eu
dificilmente teria discernimento para abri-lo nas costas.
Fazia três anos que eu não tocava o corpo de uma mulher. A última fora
Christine. E eu esperava que o jogo continuasse dessa forma. Não queria mais
ninguém. Somente ela.
Assim que tirei o sutiã, seus lindos e pequenos seios foram revelados, e
eu me perguntei como poderia ter esquecido o quão lindos eles eram? Como
poderia ter me permitido amar aquela mulher embriagado, fora do meu estado
normal? O quanto eu tinha perdido? O quanto de beleza meus olhos
testemunharam naquele dia e minha memória falha ousou deixar para trás?
Tomei um deles na mão, deleitando-me com a maciez contra meus dedos.
Seu mamilo estava rijo e muito quente, pegando fogo, chamativo. Inclinei-me
um pouco mais para levá-lo à boca, sugando-o e mordendo-o bem de leve,
puxando-o entre meus dentes apenas o suficiente para que ela sentisse prazer e
não dor. A reação foi exatamente a que eu esperava — Christine arfou e teria
gemido bem alto, se eu não tivesse coberto sua boca com a minha novamente,
beijando seu prazer e bebendo-o como se fosse meu.
Posicionando minhas mãos novamente sob suas coxas, mas sem parar de
beijá-la, levei-a até a cama, onde a depositei, deitando-me por cima de seu
corpo, apoiando meu peso nos cotovelos para não sobrecarregá-la.
As ávidas mãos de Christine chegaram à barra da minha camiseta,
erguendo-a sobre pelo meu peito, passando-a pela cabeça, e eu me afastei só por
tempo suficiente para tirá-la e jogá-la no chão. Sem perder tempo, ela também se
ocupou da calça de moletom — uma que encontrei na gaveta de seu
apartamento, e eu novamente a ajudei, porque, assim como ela, não estava
interessado em perder tempo.
Completamente nu — já que não usava cueca —, observei quando ela
rapidamente começou a despir o resto de sua roupa, levando as mãos à própria
calça jeans, mas eu a impedi, segurando-a.
— Não, por favor. Me deixa fazer isso... — quase implorei, em um
sussurro estrangulado, desesperado de desejo. Daria a cada segundo daqueles
momentos toda a minha atenção.
Ela não disse nada, apenas tirou as mãos de onde estavam e me deu livre
acesso aos botões de sua calça. Decidi abri-los com calma, enquanto, inclinado,
beijava-lhe a barriga plana. Eu me refestelava em cada sensação, com cada toque
e, principalmente, com cada reação de Christine aos meus beijos. Era sensível e
receptiva, e mais uma vez me peguei pensando como poderia ter me esquecido
de tantas coisas? Pequenos flashes de nossa primeira vez me atingiam em cheio,
mas eu ainda me condenava por não tê-los frescos e perfeitos na minha memória.
Mas isso não deveria importar naquele momento. Eu era um homem de
muita sorte por receber uma nova chance e ter a oportunidade de construir novas
lembranças. Aquelas, sem dúvida, eu saberia preservar.
Vê-la completamente nua fez o meu sangue entrar em ebulição. Tocá-la
provocava reações muito selvagens em cada parte do meu corpo. Precisava tê-la,
tomá-la como minha e entregar-me a ela também, em uma troca perfeita.
Voltei a beijá-la, enquanto explorava seu corpo por inteiro com uma das
minhas mãos. Comecei pelos seios, demorando-me um tempo em cada mamilo,
esfregando o polegar em ambos, friccionando e fazendo-a arquear o corpo e
estremecer. Depois, deslizei os dedos por sua barriga, bem lentamente, pois
imaginava que isso serviria como uma espécie de tortura para ela, que sabia
exatamente onde eu queria chegar.
Assim que alcancei o exato ponto onde queria chegar, senti o corpo de
Chris retesar-se, em total expectativa. Quando usei meus dedos para penetrá-la,
ela já estava molhada e quente, o que quase me fez perder a cabeça. Ela estava
pronta para mim, mas eu queria lhe dar tudo. Ela merecia tudo.
Posicionando um braço sob suas costas, icei-a do colchão, deixando-a
sentada na cama, montando sobre meus dedos, que ainda estavam dentro dela, e
chegando o mais fundo que conseguia chegar. Fazendo-a ficar de joelhos sobre a
cama, tive livre acesso para masturbá-la, deliciando-me com cada reação
passional de seu corpo. Sua cabeça tombou em meu ombro, e ela chegou a
mordê-lo para abafar os gritos e gemidos. Isso apenas me incentivou ainda mais,
usando a mão livre para continuar acariciando seus seios, esfregando os mamilos
até deixá-los duros como pedras.
— Arthur... — ela sussurrou como um choramingo, e eu imaginei que
poderia estar querendo dizer alguma outra coisa, mas as palavras não saíram.
Além disso, a voz soou abafada, porque seu rosto ainda estava afundado no meu
ombro.
Deus, eu queria vê-la. Queria olhar para ela enquanto se derretia de
prazer. Queria olhar em seus olhos enquanto gemia meu nome daquela forma.
Soltei seus seios e agarrei seus cabelos, puxando sua cabeça para trás,
fazendo todo esforço para não machucá-la, embora tudo dentro de mim incitasse
selvageria e um desejo absurdamente primitivo. Precisava manter em mente o
quão delicada ela era e a nossa diferença de tamanhos, principalmente agora, que
eu mal tinha noção da minha força depois de tanto explorá-la em um treinamento
severo.
Tendo livre acesso ao seu rosto, levei meus lábios aos dela,
deliciosamente inchados, e a beijei. Ou tentei, porque ela mal tinha coordenação
para movimentar a língua de encontro a minha, enquanto eu a penetrava com
meus dedos, que se umedeciam cada vez mais.
Afastei-me para olhá-la, e a visão de seu rosto transfigurado em uma
expressão de puro desejo quase me levou à insanidade. O que aconteceu em
seguida, mais ainda.
O corpo de Christine começou a convulsionar muito levemente, e eu
senti suas paredes se fechando ao redor dos meus dedos. Capturei seu longo
gemido com um beijo, não apenas porque ela seria capaz de acordar a casa
inteira — e eu não queria que J.J. fosse testemunha daquela entrega, de forma
alguma —, mas porque queria beijá-la enquanto ela chegava ao orgasmo.
Tendo-a novamente despencada sobre meu corpo, tirei o dedo de dentro
dela e a deitei delicadamente na cama, mantendo-me sobre ela, observando-a,
ainda de olhos fechados, um pouco grogue e fora de si, enquanto afastava
mechas de cabelo castanho que haviam se grudado à sua testa por causa do suor.
Tê-la ali, sob mim, quase desfalecida de prazer sobre a minha cama, era
uma dádiva. Principalmente quando senti que se recuperou e entrelaçou as
pernas em meus quadris, prendendo-me e me levando ainda mais em direção a
ela.
— O que você quer, amor?
Era a primeira vez que a chamava assim. E por mais que ao longo dos
anos eu já a tivesse chamado de inúmeros apelidos diferentes, desde baixinha —
quando éramos pequenos —, passando por Chris — que era o mais óbvio — até
chegar a Wendy — nosso favorito —, não havia nenhum outro que mais
combinasse com o que eu sentia por ela. Ela era meu amor, minha melhor amiga,
minha salvação... minha promessa. Eu seria capaz de tudo por aquela mulher.
Não existia nada dentro de mim que não lhe pertencesse.
Os olhos de Christine se encheram de ternura quando ouviram essas
palavras saírem da minha boca, e eu decidi confirmar o que já havia dito antes,
mas que era importante repetir, principalmente naquele momento.
— Eu te amo, Wendy. Amo... tanto... — cheguei a ficar sem ar pela
forma como meu coração acelerou no momento em que as palavras se moldaram
na minha boca.
— Eu também te amo, Pan. Faça amor comigo...
Era quase uma ordem, embora tenha soado da forma mais doce e
delicada possível. Não havia nada que eu quisesse mais naquele momento do
que nos unir em um só, mas precisava esclarecer algumas coisas.
— Olha, eu não tenho camisinha comigo. Você está tomando
anticoncepcional?
— Sim. Eu ainda tomo...
— Bom. Em relação a outras preocupações, eu era obrigado a fazer todos
os tipos de exames naquele lugar, de seis em seis meses. Estou limpo.
— Eu não estive com mais ninguém depois de você...
Aquela declaração me chocou.
Por mais que Christine sempre tivesse sido uma mulher mais reservada,
acabei por imaginar que ela pudesse ter namorado ou saído com alguém, afinal,
foram três anos. Além do mais, não tínhamos nenhum relacionamento quando eu
desapareci — novamente, porque eu era um babaca para perceber como me
sentia de verdade. Mas, ainda assim, ela se mantivera sozinha por todo aquele
tempo.
Provavelmente percebendo a confusão e a curiosidade em meus olhos,
ela acrescentou:
— Nunca houve ninguém para mim como você. Outros relacionamentos
foram apenas formas de tentar te esquecer. Mas depois que ficamos juntos
daquela vez... — ela abriu um sorriso brincalhão, e eu sabia que viria com
alguma gracinha. — Acho que você me estragou para os outros homens...
— Uau... posso ficar convencido com isso? — tentei brincar,
principalmente para disfarçar o quanto o meu coração estava afundado no peito
depois daquela declaração. Como fui tão idiota em não perceber o quanto ela me
amava? E mais ainda... por não perceber o que eu também sentia?
— Pelo fato de você ser imbatível na cama? Bem, acho que depois do
que acabou de acontecer aqui, você já deve estar com o ego nas estrelas.
— Não, de forma alguma. Estou maravilhado... Não por esse motivo. —
Deslizei minha mão novamente por sua barriga, chegando ao cerne de sua
intimidade, sentindo-a retesar-se de leve, já esperando pelo que aconteceria. —
Mas posso fazer muito mais. Quero fazer muito mais. — Enquanto falava, meus
dedos a abriam, dando passagem para que eu a penetrasse. Quando o fiz,
introduzindo meu membro completamente rijo e ereto dentro dela, ela abafou um
grito com a própria mão, e eu arfei.
Ela estava muito molhada, muito apertada e muito quente. Levando em
consideração a quantidade de tempo que fui privado de sexo e o quanto eu a
desejava, sabia que não conseguiria me segurar. Com apenas algumas investidas,
já sentia minha cabeça ficando mais leve e minha visão escurecer, sentindo o
orgasmo chegando. Mas eu me segurei, prolongando ao máximo nosso
momento, esperando que ela também gozasse.
Quando chegamos ao clímax, juntos, despenquei ao lado dela, em
silêncio, mas logo a puxei para os meus braços, querendo sentir o calor de seu
corpo contra o meu.
Beijei-a no alto da cabeça e abri um sorriso, sentindo que me recuperava
aos poucos.
— Você é minha esta noite, Christine. Eu nem comecei a fazer com você
tudo o que tenho em mente.
Eu a senti estremecer em meus braços, e logo compreendi que minha
frase teve o efeito que eu esperava — ela também estava pronta para passar a
noite inteira sobre aquela cama, mas sem nenhuma pretensão de dormir. Não
pretendia deixá-la pegar no sono...
***
ARTHUR
Gêmeos.
Se já seria complicado lidar com um problema, dois, sem dúvida,
consistia em uma situação completamente inesperada. Principalmente uma que
envolvia minha irmã.
E a merda conseguiu feder ainda mais, porque depois da revelação me vi
obrigado a contar algumas coisas a ela sobre a MR e minha divertida estadia por
lá. Isso a deixou compelida a ajudar, além de tê-la horrorizado, é claro.
Foi mais uma conversa difícil, assim como fora com Christine, embora
eu tenha suavizado muito mais as coisas com minha irmã. Não porque duvidasse
de sua força, mas porque tive uma péssima experiência da primeira vez e não
queria repeti-la. Acho que poderia poupar ao menos uma das mulheres que
amava de todo aquele drama. Isso, sem contar que ainda precisaria repetir toda a
história para a minha mãe um dia.
Um dia... e eu esperava que ele chegasse apenas quando todo o pior já
tivesse terminado.
A expressão decidida e indignada que Cléo sustentava no rosto não me
agradava em nada. Por mais que estivesse praticamente em silêncio depois de
ouvir toda a história, eu sabia que aquele cenho franzido não indicava
passividade. Também imaginava que nenhuma das minhas recomendações para
que se afastasse daquele homem e deixasse que eu tomasse as rédeas da situação
iriam surtir muito efeito.
— Raio de Sol... — sussurrei baixinho, chamando-a e puxando-a para
mim, encostando sua cabeça em meu peito. Ela suspirou ao ouvir o apelido. —
Tudo o que aconteceu já passou. Estou aqui, não estou?
— Por quanto tempo? — ela indagou, afastando-se do meu peito para
poder me olhar nos olhos. — Essa gente te maltratou, Arthur! Tiraram você de
nós e ainda estão te perseguindo. Quando esse pesadelo vai ter fim?
— Vou pará-los... eu juro.
— Um homem sozinho contra toda uma organização? Vocês mesmo
disseram que eles são perigosos e que não sabem o tamanho de tudo isso. Vai
acabar morrendo! — Cléo estava desesperada, mas eu conseguia entendê-la. Era
muito para processar. — Você precisa de pessoas que poderão te ajudar. Precisa
ir à polícia!
— Não quero envolver ninguém em nada disso, Cléo. Eles têm algum
tipo de ligação com o governo, e não sei até que ponto a polícia também está
envolvida.
Isso a fez arregalar os olhos e ficar boquiaberta. Odiava preocupá-la
nesse nível, e foi exatamente por isso que tanto relutei em lhe contar a verdade,
mas fora inevitável.
Depois de se recompor, ao menos aparentemente, ela levou a mão aos
olhos, secando-os, e mais uma vez voltou-se para mim.
— Posso usar o banheiro?
— Claro — Mário afirmou, apontando a direção do cômodo. O rapaz foi
seguindo-a com os olhos, e eu deixei que a admirasse por algum tempo, até que
ele mesmo se virou para mim e comentou: — Você é um cara de sorte. As
garotas da sua vida são corajosas e te amam de verdade.
— Elas são mesmo. — Foi nesse momento que eu reparei uma expressão
de tristeza nos olhos de Mário e me dei conta de que nunca me aprofundei na
vida pessoal dele. Se analisasse como um todo, principalmente esse tempo que
começamos a conviver, ele não me parecia ter família ou pessoas que se
importassem com ele. Ainda precisaria fazer algumas perguntas e descobrir
algumas coisas, mas fiz questão de colocar a mão no ombro dele e dizer: —
Você é parte da família agora, garoto.
— Espero que sim... cunhado...
Filho da puta! Aquele sorrisinho malicioso me dava muita vontade de lhe
dar um murro na cara por ele estar falando da minha irmã, mas eu não poderia
negar que Mário seria um pretendente que eu aprovaria. Isso, é claro, se
conseguíssemos nos livrar de toda a confusão e ter um pouco de paz.
Cléo retornou, e meu coração se apertou ao ver seus olhos vermelhos
com resquícios de um choro recente. Estava cansado de fazer as pessoas
sofrerem, mas tinha fé que aquilo em breve acabaria.
Sabendo que a noite seria difícil para ela, levei-a para a praia, que eu
sabia que ela adorava, assim que saímos da casa de Mário. A ideia de ficarmos
expostos não seria algo muito inteligente, por isso sugeri que permanecêssemos
dentro do carro, apenas admirando a paisagem pelo vidro. Não era o passeio dos
sonhos de uma garota de vinte anos, mas eu poderia compensá-la um dia.
Comprei água de coco no quiosque mais próximo e ficamos em silêncio
por um tempo, apenas apreciando a vista e compartilhando aquele momento.
Porém, eu sabia que não demoraria muito para que tentasse iniciar uma
conversa.
Com os olhos fixos no coco à sua frente, ela começou a falar, sem me
encarar.
— Me desculpa... Pela forma como eu venho te tratando desde que você
chegou. Eu não sabia... eu...
— Ei... — Coloquei a mão sob o queixo dela, fazendo-a olhar para mim.
— Você não precisa se desculpar por nada. Eu devo explicações aqui.
— Mas depois de tudo que você sofreu, eu ainda piorei tudo.
— Não, Raio de Sol. Não se culpe por nada. Vamos resolver tudo, e eu
vou te compensar pelos três anos que te fiz sofrer.
Ela engoliu em seco e novamente voltou os olhos para longe de mim.
— Sabe... a última coisa que o papai falou no leito de morte foi o seu
nome.
Aquilo era uma novidade e tanto. Claro que eu não era idiota de imaginar
que meu pai não me amava, só que sua forma de demonstrar era muito
insuficiente. E eu sabia que para Cléo também, tanto que ela sempre foi muito
apegada a mim, uma vez que éramos mais parecidos. Por mais que minha mãe
fosse um pouco diferente e soubesse ser carinhosa quando preciso, meu pai
sempre a podara, incentivando-a a não nos mimar demais ou acabaríamos sendo
um grupo de fracos. Ele acreditava em disciplina e trabalho duro, duas coisas nas
quais eu — preciso confessar — nunca fui muito bom, embora estivesse disposto
a mudar isso assim que minha vida se resolvesse. J.J. esforçava-se ao máximo
para agradá-lo, enquanto eu não media esforços para provocar sua ira. Isso era
sempre um motivo de atrito entre nós, e pouco antes do meu desaparecimento,
nós tínhamos brigado seriamente. Ouvir o que Cléo tinha acabado de contar
fazia com que meu coração se retorcesse no peito, sensibilizando-se pelo
poderoso Jorge Montenegro.
— O meu nome? — Esforcei-me muito para que minha voz não saísse
estrangulada e falha, e esse foi o meu ato mais covarde de todos: não querer
demonstrar à minha própria irmã o quanto estava emocionado pelo que ela
acabara de me contar.
— Sim. Ele sofreu muito com o seu desaparecimento, Tuco. Tanto
quanto todos nós. Ele foi o que mais relutou em aceitar que você tinha morrido.
Bem... ele e Christine. — Ela fez uma pausa e engoliu em seco. — Não foi fácil
para ninguém, nem para J.J., mas acho que papai foi o que mais perdeu a cabeça.
Ele mudou muito depois disso, tornou-se um pouco mais carinhoso, menos
severo. E foi o único que não teve a chance de te ver vivo, voltando para casa.
Cléo chorava, e, mais uma vez, precisei me controlar ao máximo para
não fazer o mesmo.
— Nós dois éramos orgulhosos. E éramos muito diferentes. Ele sempre
foi mais parecido com J.J..
— Tirando a parte de ser um babaca, sim, eles eram parecidos. — Cléo
engoliu em seco novamente. — Quando você partiu... Meu Deus, meu mundo
desmoronou. Fiquei meio sem rumo por quase dois anos. Foi tão difícil. — Eu ia
falar alguma coisa, mas ela não deixou. Logo deu prosseguimento ao que dizia:
— É por isso que eu quero te ajudar a se vingar. As pessoas precisam saber que
essa MR existe, que estão sequestrando pessoas.
— É o que eu mais quero também, mas não posso permitir que se meta
nisso.
— Mas que droga, Arthur! Eu tenho o telefone daquele cara, dá para
marcar um encontro com ele! — Balancei a cabeça em negativa, nem sequer
cogitando aquela hipótese. — Você pode ir comigo, ficar de tocaia... vai dar
certo!
— E se ele aparecer com mais gente? — sugeri. — Cléo, essas pessoas
são treinadas, assim como eu também fui. Sei mais ou menos como pensam,
então, imagino que se você marcasse algo, ele ficaria desconfiado. Saberia logo
que se trata de uma emboscada.
— Merda! — exclamou indignada. — Você não é a porra do cavaleiro
solitário, Arthur! Não pode resolver tudo sozinho!
— Não estou sozinho. Eu tenho Mário... — falei em um tom mais leve.
Cléo revirou os olhos.
— Olha, nada contra. Ele é uma gracinha, mas aquele garoto não vai
conseguir ajudar nem a si mesmo, quanto mais você.
— Não o subestime. Aquele garoto lá é um hacker dos mais competentes.
— Isso até que é sexy, tenho que confessar, embora eu não devesse estar
confessando para o meu irmão mais velho, mas, ainda assim, acho que ele não
saberia agir em uma situação de perigo.
— Vamos ver... Vamos ver... — disse, um tanto quanto reflexivo,
esperando que ela estivesse errada.
Passamos horas ali dentro do carro e vimos o por do sol, como já
tínhamos feito tantas vezes no passado. Fomos juntos ao café de Christine, onde
esperamos sua hora de saída, e fomos todos para casa.
Não pude deixar de sentir o coração aquecer bem de leve quando
embiquei o carro na garagem da mansão, tendo em minha companhia as duas
mulheres que eu mais amava no mundo. Quando entrei em casa, deparei-me com
a outra, minha mãe, e nós quatro tivemos um agradável jantar em família,
acompanhados do meu tio, Sidney, onde pude anunciar que Chris ficaria
morando conosco ali por algum tempo. Minha mãe estranhou um pouco, mesmo
quando anunciei que estávamos juntos, mas não pareceu incomodada. Pelo
contrário, gostou muito da notícia. A casa também era minha, afinal. Christine,
no entanto, ficou levemente constrangida, mas não contestou, porque sabia que
era para sua segurança.
Cléo subiu para seu quarto, minha mãe saiu com o irmão para um evento
de caridade em nome da empresa, e eu fui deixado com Christine na sala de
estar. Esta só precisou checar se Kibe estava bem. Eu até sugeri que ela deixasse
o bichano solto, já que minha família sempre gostou de animais, mas ela preferia
mantê-lo no quarto, com comida e água, pois não confiava muito em J.J.. Nisso
eu precisava concordar.
Assim que ela voltou para a sala, afirmando que seu gatinho estava
apenas saudoso, sentou-se ao meu lado, e eu a puxei para o meu colo, sem
nenhum pudor. Exatamente como imaginei que aconteceria, ela abriu a boca para
protestar, mas eu a calei com um beijo, com uma mão firme em sua cintura e
outra em sua nuca. Claro que ela não demorou a ceder.
Por mais que tivéssemos passado a noite inteira entrelaçados um no
outro, eu ainda não estava saciado. Deus, eu queria muito mais dela, queria tudo.
Não apenas fazer amor desesperadamente por mais horas e horas, mas também
queria sua companhia, queria beijá-la bem demorado, até quase devorá-la por
inteiro, queria mantê-la ali, em meu colo, aninhada, e segurá-la contra o peito em
silêncio, só para ter o prazer de ouvir sua respiração pesada até que adormecesse.
Queria tudo que aquele relacionamento pudesse me oferecer; queria
Christine como minha... como minha mulher, minha namorada, minha amante,
minha... esposa.
A palavra cruzou minha mente como um raio, tão rapidamente que
chegou a me acometer de forma vertiginosa. Em nenhum momento parei de
beijá-la, mas o ar me faltou no momento em que imaginei aquele compromisso.
Não porque me assustasse, mas porque me pareceu tão certo quanto o amor que
eu sentia por ela. Qualquer um poderia pensar que estava apressando as coisas,
mas... pelo diabo!, eu conhecia Christine a minha vida inteira. Não havia mais
dúvidas em relação a isso. Eu sabia, dentro do meu coração, que ela era perfeita
para mim. Demorei até demais para chegar a essa conclusão. Se não fosse toda
aquela confusão que me rondava, eu também poderia cogitar que era perfeito
para ela.
Ao menos, aquilo que estávamos fazendo naquele momento era perfeito.
Eu a beijava bem devagar, como se nossas línguas dançassem em
sincronia, de forma sensual e quase indecente. Apertava-a contra meu corpo com
força, com se temesse que a realidade pudesse roubá-la de mim. Christine, por
sua vez, também entrelaçava seus dedos em meus cabelos curtos, puxando-me
para frente com força, como se precisasse me manter ainda mais perto, assim
como eu também precisava dela.
Ela gemia contra minha boca, e esse som extremamente erótico quase me
fazia perder a cabeça. Ansiava por tirá-la daquele sofá, carregá-la até o quarto e
fartar-me dela, embora aquela não fosse a ideia a princípio. Não queria que
pensasse que só estava interessado em seu corpo — embora estivesse
maravilhado com a forma como se encaixava ao meu, como se um tivesse sido
feito para o outro —; queria que ela soubesse que desejava mimá-la e lhe
oferecer todo o tipo de ternura que um monstro como eu era capaz de oferecer.
Porém, antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, a porta da frente da
casa se abriu, fazendo nós dois nos sobressaltarmos. Embora estivéssemos na
sala de TV, em anexo, e houvesse uma parede a nos separar, Chris logo se
empertigou, saindo do meu colo e afastando-se de mim. Com esse movimento,
ela acabou atingindo a mesinha ao lado do sofá com a mão e fazendo o abajur
cambalear. Por mais que não tivesse caído no chão, fez um certo barulho e logo
fomos encontrados ali.
Claro que a pessoa que chegava era J.J..
— Ah, são vocês — comentou com desdém. — Não precisam parar de se
pegar por minha causa... já estou de saída. — Virando-se de costas para nós, ele
se preparou para afastar-se, mas girou novamente para nos olhar. — A Chris vai
virar sócia da casa agora, né?
— Na verdade, ela vai ficar morando com a gente por um tempo...
— Olha! Até que a viuvinha é esperta. Fisgou o milionário bonitão e já
se mudou para a mansão. Conforto todo mundo quer, não é?
Senti o meu sangue gelar e estava pronto para dar a resposta que ele
merecia, mas Christine foi mais rápida.
— Deixa de ser babaca, J.J.. Cuida da sua vida! — Ela estava revoltada.
A cena da noite anterior ainda não tinha saído da minha cabeça, quando o vi no
chão, no meu quarto, enquanto Chris se mantinha na cama, encolhida e acuada.
Sabia que algo havia acontecido entre eles, mas não quis perguntar, porque,
dependendo da resposta, eu acabaria muito puto e perdendo o controle.
Com aquele rompante de Christine, ele gargalhou.
— Ah, viuvinha, para com a bobeira, estou brincando. Sabe que gosto de
você. Vai ser bom te ter por aqui... — Dando uma piscadela, ele finalmente saiu
de perto. Era impressionante pensar que aquele cara era meu irmão, mas que eu
não suportava ficar em um mesmo cômodo que ele por dois minutos. Por que
diabos me provocava tanto? O que poderia ter contra mim?
Percebendo o quão tenso eu fiquei depois daquela breve e inconveniente
conversa, Chris levou a mão ao meu ombro, na tentativa de me acalmar.
— Não ligue para ele, Pan... É só um idiota invejoso. Sempre foi.
— Se ele te incomodar... se passar dos limites... — Eu imaginava que já
tinha passado, e não apenas uma vez, mas dali em diante queria que ela me
avisasse e me mantivesse a par da situação.
— Eu sei me defender. Não preciso do meu príncipe encantado para
isso...
— Príncipe encantado? — Ergui uma sobrancelha, tentando me acalmar
e entrar no clima mais leve que ela se esforçava para manter. — Garanto que
nunca fui chamado de nada parecido.
Com uma expressão sensual, Christine ergueu-se do sofá, aninhando-se
novamente em meu colo, onde ela sempre era muito bem-vinda.
— Um príncipe em um cavalo negro; meio sombrio e misterioso. Sexy
como o inferno.
Deus, a forma como ela falou a última frase... sussurrada contra o meu
ouvido...
Eu estava perdido. Tanto que mal consegui me conter e a ergui no colo,
fazendo-a gargalhar.
— Eu estava planejando ser honrado com você esta noite, princesa. Mas
já que está me provocando, não me dá outra escolha — disse, enquanto a
carregava escadas acima.
— Talvez essa fosse exatamente a minha intenção...
Chegamos ao quarto, e eu apenas fechei a porta com o pé, jogando-a na
cama em seguida. Ali, nós nos perdemos novamente, sem noção do tempo e de
tudo o que nos rondava.
***
ARTHUR
Arthur ainda não chegara em casa. Ao menos não estava sozinha, pois
assim que ele saiu, liguei para Mário, pedindo que fosse me encontrar para que
estivéssemos a postos para qualquer eventualidade.
Eu só não esperava descobrir, ao atender ao telefone, que Cléo estava em
um hospital, entre a vida e a morte, vítima de uma overdose. Não fazia o menor
sentido.
Com essa informação, seguimos para o hospital informado. Segurei o
meu nervosismo como pude, mas Mário decidiu assumir o volante, embora
também estivesse apreensivo. Contudo, era dentro da minha cabeça que a voz de
Arthur, agoniada e chorosa, reverberava, contando o que havia acontecido.
Era mais do que óbvio que ele se culpava e que a maior parte de seu
sofrimento devia-se ao fato de Cléo encontrar-se à beira da morte. Essa dor
estava intrínseca em seu tom de voz, em cada palavra escolhida para me relatar o
ocorrido. Eu podia sentir seu sofrimento dentro de mim, como se fôssemos
apenas uma pessoa. E isso apenas multiplicou-se quando ele se jogou em meus
braços, no momento em que nos juntamos a ele na recepção, como se tivesse
acabado de levar um tiro fatal bem no peito.
Permiti que chorasse em meu peito, como eu fiz tantas vezes no dele.
Permiti que se alimentasse do silêncio, enquanto despejava sobre mim toda a dor
que já não cabia mais dentro de seu corpo enorme. Naquele momento, Arthur
mais parecia um animal abatido, ou um soldado vencido depois de uma guerra
lutada por anos. E talvez fosse isso mesmo. A vida do homem que eu amava
tornara-se uma sucessão de batalhas infinitas, e ele sentia que perdia cada uma
delas. Enquanto não destruísse seus inimigos, continuaria sendo derrotado uma e
outra vez. O problema era que eu tinha certeza de que o fato de terem usado
Cléo para atingi-lo iria afetá-lo de forma mais profunda. Temia sua reação
quando chegasse o veredito sobre o estado dela.
Enquanto permanecíamos na recepção, esperando qualquer notícia,
Mário encarregou-se de buscar alguma informação para nós. Já fazia uma hora
desde que tinham levado Cléo para a emergência, e eu esperava que muito em
breve viessem nos atualizar sobre sua condição.
Mário ainda retornou, sem respostas, e fomos interpelados por um
médico um bom tempo depois, quando já estávamos perdendo as esperanças —
no caso de Arthur, a paciência também. Temia que decidisse colocar todo o
hospital a baixo. Porém, o pesadelo foi razoavelmente minimizado quando
soubemos que Cléo encontrava-se fora de perigo, depois de uma lavagem
gástrica e intestinal, mas que ainda precisaria permanecer em observação por
algumas horas, talvez até por mais de um dia, dependendo de sua resposta ao
tratamento.
Foi necessário esperar mais algumas horas até podermos vê-la, e
teríamos que ir apenas um de cada vez, porém, dadas as circunstâncias, fomos
liberados os dois para subirmos. Mário precisou ficar na recepção, aguardando-
nos.
No momento em que chegamos ao quarto, a primeira coisa na qual
reparei foi a palidez do rosto de Cléo e os lábios roxos característicos. Seus
olhos sem vida estavam voltados em nossa direção, e ela parecia muito cansada,
como se sua alma tivesse se despregado do corpo e estivesse vagando sem rumo.
Arthur aproximou-se da cama cauteloso, e eu me mantive afastada,
apenas observando-os, não querendo me sentir uma intrusa naquele momento
que pertencia apenas aos dois.
Ele pegou a mão da irmã e a beijou, ainda com lágrimas nos olhos.
— Me desculpa... me... — precisou respirar fundo para continuar —
desculpa. Eu não...
— Para com isso, Arthur! — A frágil voz de Cléo soou repleta de ar. Ela
visivelmente estava usando de todas as suas forças para falar. — A culpa é
minha. Você me pediu para ficar de fora, mas... — Cléo precisou parar de falar
por um tempo, para respirar e recompor-se. — Mas não dei ouvidos. Eu que
poderia ter estragado tudo. Você poderia ter sido levado por aquele louco por
minha causa.
— Nada disso teria acontecido se...
— Se o quê? — ela falou com mais ímpeto, e isso a fez novamente
precisar de um tempo para acalmar-se. — Se o quê? — repetiu. — Se você não
tivesse sido sequestrado e mantido em cativeiro por aqueles loucos? Se não
tivesse passado os piores dias da sua vida? Pelo amor de Deus, Tuco! Você viveu
um inferno, nada do que está acontecendo é sua culpa. É culpa deles.
— Que bom que mais alguém falou isso, porque eu estava de saco cheio
de repetir a ladainha sozinha... — finalmente me intrometi, porque achei que o
curso que a conversa estava tomando merecia a minha opinião. Enfim
aproximei-me deles, colocando-me do outro lado da cama, pegando a outra mão
de Cléo. — Estamos do seu lado, Arthur, não só porque te amamos, mas porque
é a coisa certa a se fazer.
— Somos meio que os Avengers... — Uma voz masculina soou da porta.
Todos nós olhamos para Mário, e imediatamente eu me perguntei como tinha
conseguido subir, mas nenhum de nós decidiu externar o questionamento. —
Claro que o Arthur é o herói bonitão, tipo o Capitão América. Temos a Viúva
Negra, a Feiticeira Escarlate... e eu... eu posso ser o Homem Formiga, talvez...
Seguramos a risada o máximo que conseguimos, mas Cléo abriu uma
gargalhada, e isso foi a deixa para que todos nós nos sentíssemos contagiados.
Mário também se aproximou da cama e sorriu para ela, levemente sem graça,
encabulado.
— Você é uma gracinha, Mário. E é super gatinho, não precisa se
diminuir tanto assim.
Troquei olhares com Arthur, que exibia o sorriso mais desanimado do
grupo, mas não pude deixar de dar uma checada no outro rapaz, cujo rosto
parecia mais vermelho do que um tomate maduro. Apesar de todo o clima difícil,
ainda havia a luz da esperança entre nós. Estávamos juntos, éramos uma
unidade; e isso ficou ainda mais evidente quando Arthur tomou minha mão na
dele, unindo-a sobre a cama. De alguma forma, por um breve instante, acreditei
que poderíamos vencer, por mais improvável que pudesse parecer.
A tarefa que veio a seguir também não facilitou nossas vidas, muito
menos a de Arthur. Não que tivesse passado por sua cabeça a hipótese de
esconder o que acontecera com Cléo de sua família, mas uma vez que ela
precisaria passar a noite no hospital, os outros teriam que saber.
Mas como contar que a princesinha dos Montenegro havia sofrido uma
overdose?
Arthur estava decidido a falar a verdade para a mãe e J.J., por mais que
ainda fosse contrário à ideia. A partir do momento em que Cléo ficara sabendo
de tudo que lhe acontecera, fora exposta ao perigo. Isso me fez entender seu
ponto de vista e concordar que talvez fosse melhor que continuassem na
ignorância. Por isso, a solução para o problema veio de Mário, que sugeriu que
inventássemos que a moça foi atacada em uma boate ou algo assim.
Eu e Arthur fomos os últimos a concordarmos com a explicação. Mentir
sobre algo tão sério era errado, sujo, mas contar a verdade implicaria em colocar
vidas de pessoas queridas em perigo. Além disso, nenhuma outra solução
pareceu surgir.
Sendo assim, Arthur avisou à mãe, e esta surgiu no hospital menos de
meia hora depois, acompanhada de Sidney e de J.J.. Fiquei extremamente
abismada com a reação do irmão de Arthur ao saber que a caçula dos
Montenegro estava em um hospital. Eu poderia jurar que aquele merdinha não
amava ninguém, mas, aparentemente, tinha um carinho especial pela moça.
Sabendo que Cléo estaria amparada por sua família, nós três — eu,
Arthur e Mário — pudemos deixar o hospital, prometendo voltarmos no dia
seguinte para buscá-la. Partimos para a mansão, levando Mário conosco.
Arthur subiu para tomar um banho, enquanto eu e o rapaz nos jogávamos
no sofá da sala.
— Vocês têm sorte de contarem um com o outro. — Poderia ser apenas
um comentário despretensioso, apenas uma tentativa de me animar, mas havia
uma espécie de tristeza enraizada em cada palavra, algo que eu não pude ignorar.
— Você também tem a gente agora... — Dei de ombros com um sorriso
quase envergonhado. — Talvez não seja a família mais estruturada da história
das famílias, mas serve, não é?
— Eu sei, mas é diferente. Vocês são uma unidade. Eu sou só o intruso...
Na verdade, sempre fui... — disse ele com a cabeça baixa.
Tive a leve impressão de que Mário queria — ou precisava — desabafar.
Por mais que não fôssemos exatamente amigos, que tivéssemos nos conhecido
há muito pouco tempo, às vezes é mais fácil abrir o coração com uma pessoa
com quem não temos tanta intimidade, principalmente dependendo do teor da
conversa. Sabendo disso, tentei incentivá-lo.
— Você não tem família?
Ele encolheu os ombros.
— É como dizem, né? Família a gente não escolhe... — A mágoa em
suas palavras era grande. Algo me dizia que aquele menino tinha sofrido muito
mais do que havia demonstrado. Como eu não sabia se ele estava disposto a falar
ainda mais, fiquei calada, esperando que prosseguisse. O que não demorou
muito. — Meus pais... Bem, eles tinham uma condição financeira muito boa.
Não boa no nível do Arthur, mas meu pai tinha uma empresa próspera,
morávamos em um puta casarão, tínhamos propriedades... e eu sou filho único.
Ou seja... — Mário ergueu as sobrancelhas em um ato de desdém. — Altos
planos para mim.
— E você não estava disposto a segui-los.
— No início até achei maneiro. Meu pai tinha uma empresa de
desenvolvimento de software; um daqueles de contabilidade, que servem para
fazer ordens de compra, de pagamento... Pois bem, isso fez com que ele me
ensinasse muita coisa de programação, só que eu fui aprendendo rápido demais e
seguindo por outros caminhos. — Ele fez uma pausa e se remexeu no sofá,
virando-se na minha direção. — Veja bem, Chris, eu nunca tive a intenção de
prejudicar ninguém com minhas empreitadas. Eu só era muito curioso.
— Não precisa se explicar...
— Preciso. Você é uma garota legal, não quero que pense mal de mim. —
Fiz menção de dizer que isso não iria acontecer, mas ele me interrompeu. — A
verdade é que as coisas foram tomando proporções que nem eu mesmo
imaginava. Quando me dei conta, já estava acessando dispositivos e sistemas
alheios como um hobby. Eu não tinha nenhuma intenção de roubar informações
ou de prejudicar alguém, mas era... divertido. — Mário novamente deu de
ombros, e sua expressão inocente quase me fez rir. — Com isso, eu fui
descobrindo um monte de falcatruas da própria empresa do meu pai. Havia
outros como eu trabalhando lá. O sistema que ele criou era falho para as
empresas e não oferecia nenhuma segurança. Meu pai tinha acesso a dados
confidenciais, e usava isso para roubar. Eram roubos pequenos, quase
insignificantes para companhias milionárias, mas que iam enriquecendo os
bolsos da nossa família.
— Isso é muito grave.
— Sim, e eu nunca concordei. Tivemos uma discussão muito séria, e eu
decidi denunciá-lo. Meu erro foi avisar a ele uma noite antes de ir à polícia. Por
uma ocasião do destino — falou com ironia —, meus pais saíram horas depois, e
a casa foi invadida. Eu não morri por muito pouco. Acho que tive sorte, pois
consegui escapar.
Arregalei os olhos, atordoada. Seria possível que um pai realmente fosse
capaz de assassinar um filho por ganância?
— E a sua mãe? — indaguei, porque era uma coisa lógica. Como mulher,
não podia sequer imaginar que uma mãe tivesse coragem de ser conivente com
algo tão cruel, tão desumano.
Mas, infelizmente, nem todas as mulheres mereciam um título como
esse.
— Ela amava muito mais as roupas caras e as viagens do que a mim. Por
algum tempo eu fui o troféu; o futuro herdeiro da família, um garotão saudável,
que ela sonhava que iria ser tão ávido por dinheiro quanto eles. Ela queria que eu
fosse o homem engravatado e inescrupuloso, não o nerd magrelo, que gosta de
andar de chinelo e que gasta dinheiro com action figures e quadrinhos.
— Gosto bem mais dessa versão de você — falei sorrindo, e ele
retribuiu.
— Eu também. Tanto que assim que escapei de casa corri à delegacia e
fiz a queixa. Não apenas sobre as falcatruas da empresa quanto do atentado que
sofri. Depois me abriguei na casa de um amigo, porque minha família inteira
virou as costas para mim. — Ele tentava parecer indiferente, mas a mágoa estava
lá, corroendo seus sentimentos. — Precisei me sustentar, então, comecei a usar
meus conhecimentos para trabalhos dos quais não me orgulho muito. Mas era
isso ou morrer de fome.
Tomei a mão dele na minha.
— Não se envergonhe de nada disso...
— Disso, não. Só tenho arrependimento de ter entrado para a MR. Mas
eu pensei que seria a primeira coisa certa que faria em anos. Eles me contaram
mentiras de seus propósitos, e eu acreditei. Lá dentro é que fui juntando as peças
e cheguei à conclusão de que o que estava fazendo era errado.
— Todos nós cometemos burrices. Claro que a consequência da sua foi
grave, mas não deve se culpar. Você não teria como saber...
Ele sorriu outra vez. Não um sorriso animado ou esperançoso, mas um
sinal de que aprovara minha tentativa de animá-lo.
— Você é uma garota do caralho, Chris. Arthur é um filho da puta de
sorte mesmo... Com todo o respeito.
— Para de azarar a minha mulher, moleque! — Arthur surgiu, e no
momento em que me virei para ele, vendo-o de cabelos molhados e tentando
parecer um pouco mais relaxado, embora fosse visível o quanto ainda estava
abalado pela situação de Cléo. Ao sentar-se no sofá para nos acompanhar,
meteu-se entre mim e Mário, dando um tapa na cabeça dele, o que eu achei uma
graça. Pareciam dois irmãos de pura implicância.
— Já falei que se não cuidar bem dela, vou roubá-la para mim — ele
disse, mas logo franziu o cenho e balançou a cabeça em negativa. — Como se
uma gata dessa fosse dar bola para mim, tendo um cara como você como opção.
— Para de se diminuir! Até porque tem outra garota linda que me parece
bem animadinha em relação a você — comentei, e ele corou.
— Uma garota que quase morreu hoje... — Arthur comentou, o que logo
me fez engolir em seco, percebendo o quanto meu comentário fora infeliz. Ao
perceber minha expressão murchar, ele pegou minha mão e a beijou. — Não
falei isso para te cortar, é só um lembrete.
— Você não precisa usar o que aconteceu com Cléo para se martirizar o
tempo todo. Precisamos cuidar dela e não deixar que se repita.
— Não vai se repetir. Nem com ela e nem com você. — Arthur enrolou
uma mecha do meu cabelo em seus dedos, colocando-a atrás da minha orelha.
Seus olhos intensos fixaram-se nos meus, melancólicos e pensativos, e por um
momento eu temi o que poderia estar passando por aquela cabeça.
— Bem, galera, acho que eu vou para casa. Está bem tarde...
— Fica por aí. Pode usar um dos quartos de hóspedes... — Arthur
convidou.
Mário hesitou, mas balançou a cabeça em concordância.
— Vou aceitar. Não é todo dia que se recebe um convite para passar uma
noite em uma mansão irada que nem essa.
Com um sorriso, Arthur levantou-se e foi acompanhar Mário até o quarto
que ele usaria naquela noite. Assim que se afastaram, eu também me coloquei de
pé e comecei a caminhar pela casa. Não havia um único resquício de sono em
mim, e eu sabia que dormir seria um suplício. Além disso, precisava respirar um
pouco de ar puro.
Saí pela lateral da mansão, pela porta de vidro da varanda da salinha de
estar, onde eu e Arthur ficamos nos beijando na outra noite, e desci as escadas
que davam no jardim.
Segui o caminho de concreto em meio à grama, que levava até o pequeno
lago, cercado por pedras ornamentais e bromélias coloridas, em tons que
variavam desde o vermelho ao púrpura, em um posicionamento harmônico. Uma
pequena fonte de barro alimentava o lago, renovando-o, e o som relaxante da
água se movimentando me proporcionava a paz que meu coração não estava
conseguindo encontrar em lugar algum.
Sentei-me na elegante namoradeira, balançando-me para frente e para
trás, observando os peixinhos coloridos movimentarem-se dentro d’água,
enquanto os sons da noite me embalavam. Fechei os olhos, tentando imaginar
que estava em qualquer outro lugar. Não que a mansão dos Montenegro fosse um
cenário desagradável — muito pelo contrário —, mas ela parecia, naquele
momento, carregar todo o clima pesado da situação de Arthur em cada uma de
suas paredes.
Recostando-me mais, tentando encontrar uma posição um pouco mais
confortável, pensava no quanto minha vida havia mudado em pouco mais de um
mês. Era como se eu tivesse perdido tudo — minha casa, minha tranquilidade,
minha liberdade... Ter Arthur de volta compensava, é claro, mas ainda havia o
medo de perdê-lo novamente. Tudo entre nós parecia muito efêmero, com data
marcada para terminar, como um sonho, que desaparece quando apenas abrimos
os olhos pela manhã.
Era injusto. Era sufocante...
Ainda de olhos fechados, senti o balanço sob meu corpo ceder um pouco
mais. Nem precisei olhar ao redor para saber quem estava ao meu lado.
Rapidamente, braços fortes me rodearam, puxando-me de encontro ao peito
largo de um homem. O cheiro que conhecia tão bem e tanto amava me fez sorrir
e suspirar. Às vezes eu me sentia como uma boba, deixando-me levar por
emoções tão doces, enquanto o caos fazia com que o céu caísse sobre nossas
cabeças. Mas eu precisava me agarrar a qualquer coisa que me proporcionasse
sanidade em um momento como aquele.
— Quando não te vi na sala, logo concluí que estaria aqui. Sempre foi
seu lugar preferido da casa.
— E como não seria? — Sorri, ainda mantendo um traço da melancolia
provocada por meus pensamentos anteriores. Por mais que quisesse
simplesmente ficar ali com ele, precisava saber tudo o que tinha acontecido. Não
poderia haver mais segredos, e eu acreditava que era a intenção de Arthur
também. — O que exatamente houve com a sua irmã? Você não conseguiu me
contar nada até agora.
Arthur bufou, remexeu-se na cadeira e afastou-se um pouco de mim.
— Ela decidiu me ajudar e marcou um encontro com Carlos Vidal.
— Um dos gêmeos? — perguntei para confirmar, e ele balançou a cabeça
em afirmativa. — Meu Deus, Arthur! Ela ficou louca!
— Sim, sem dúvidas. Estou esperando ansiosamente que volte para casa
para que eu possa lhe dar um baita esporro... — Ele disse isso, mas eu sentia
toda a ternura e o desespero contido em cada palavra. Arthur quase perdera a
irmã, e isso ainda o corroia por dentro. — Ele injetou uma quantidade grande de
drogas na veia dela. Cléo poderia ter morrido...
— Poderia. Mas não aconteceu. Não era para ser...
— Você realmente acredita em destino, Chris? Se sim, então ele é um
maldito filho da puta. — Sua voz baixou para um sussurro. — Olha o que ele fez
com a gente...
— Ainda acho que tudo será consertado. Precisamos ter fé...
— Neste momento, só posso ter fé em mim.
Havia tanta obstinação naquele tom de voz e na expressão que ele me
dirigiu, que eu cheguei a sentir um calafrio. Sentia que a cada porrada que levava
— tanto as físicas quanto as emocionais — o sentimento de vingança tornava-se
mais e mais sólido no coração de Arthur. O que era muito perigoso. Eu sabia que
ele não teria coragem de apenas cruzar os braços e esperar a bomba explodir.
Muito menos fugir. Não, ele não era homem de abandonar seus problemas para
trás, sabendo que deixaria alvos desprotegidos. Embora sua mente fosse um
pouco diferente da do amigo que eu conheci anos atrás, a essência era a mesma.
Eu já conhecia essa nova versão o suficiente para entender, ao menos um pouco,
como pensava. E o que eu podia concluir pelas minhas observações... dias muito
tempestuosos estavam por vir.
***
ARTHUR
***
CHRISTINE
Faltavam poucos minutos para o horário de fechamento da cafeteria.
Javier já tinha ido embora, e eu estava sozinha com Telma. Ela sempre
ultrapassava um pouquinho seu expediente para me ajudar, já que eu era a última
a sair, porém, naquele dia em especial, eu sabia que ela estava esperando Roger,
que finalmente a convidara para sair.
Aparentemente, porém, ele estava atrasado. Mais de uma hora.
Eu conhecia Telma bem o suficiente para saber que isso iria atrapalhar e
muito sua visão a respeito de seu futuro pretendente. Já fazia muito tempo que
ela não se permitia aproximar-se de alguém daquela forma, desde que fora
magoada pelo ex-marido que a traíra descaradamente, e seria péssimo se outra
experiência ruim a deixasse de coração partido mais uma vez.
E se tinha uma pessoa que não merecia sofrer era aquela mulher.
— Nem uma porra de mensagem de satisfação. Telefone na caixa postal.
O que ele está achando que eu sou? — vociferava ela, andando de um lado para
o outro com o telefone na mão.
— Você não tem o telefone da casa dele? — sugeri.
— E quem é que troca telefone fixo hoje em dia? — respondeu e deu
mais uma checada no celular. — A última vez em que ele esteve online no
Whatsapp foi ao meio dia. Falando comigo, aliás. Estava tudo confirmado...
— Tenho certeza de que deve ter uma explicação. Ele era o mais
interessado nesse encontro, e você sabe disso. Já pensou que pode ter acontecido
alguma coisa?
— Pode. Ele ser um frouxo. — Irritadíssima, Telma começou a pegar
suas coisas, a tirar os sapatos de salto alto que trocara, recolocando sua sapatilha
de trabalho. — Eu vou é para casa. Se ele ainda quiser sair comigo, que vá me
buscar lá.
Bem, isso porque ela morava no Méier. O cara teria realmente que
percorrer a cidade inteira para encontrá-la.
— Tem certeza? — eu ainda tentei.
— Absoluta. E espero que ele me leve flores.
Rindo, iniciei o ritual diário para fechar a loja, apagando as luzes,
fechando janelas e persianas, e trancando a porta de vidro. Quando já estava
prestes a puxar a porta de enrolar, um carro parou diante da cafeteria. Aquele era
o horário em que Arthur aparecia para me buscar, mas não era o carro dele. Por
um momento, eu e Telma nos entreolhamos, quase acreditando que poderia ser
Roger, mas eu logo vi a carinha de Mário atrás do volante, inclinando-se na
direção da janela do passageiro.
Meu coração parou imediatamente. Ainda mais ao percebê-lo muito
sério, o que não era de seu feitio.
No exato momento em que se aproximou de mim, eu soube. Algo
acontecera com Arthur.
— O que houve? — perguntei aflita.
Mário deu uma olhada para Telma, sabendo que precisava omitir algumas
informações diante de uma pessoa desconhecida. Percebendo isso, ela mesma
pigarreou e voltou-se para mim, constrangida:
— Agora que você tem ajuda para fechar a loja, eu vou indo, tudo bem?
— Claro. Nos vemos amanhã... — Telma me beijou no rosto,
cumprimentou Mário com um sorriso e afastou-se, em um timing mais do que
perfeito.
Assim que consideramos que ela estava longe o suficiente, Mário
finalmente respondeu à minha pergunta.
— Arthur chegou em casa um pouco machucado... ele... — hesitou.
— Ele o quê? Pelo amor de Deus, fala logo! — Enquanto eu me
desesperava, meu novo amigo começava a fechar a loja para mim, o que foi de
grande ajuda, já que era bem mais alto do que eu. Apesar disso, eu sabia que se
tratava apenas de uma estratégia para adiar o que tinha para me dizer. — Que
merda, Mário! Não faz isso comigo!
— Chris, ele está bem. Está em casa, mas saiu na porrada com um cara e
chegou um pouco baqueado. Também levou dois tiros e...
— Dois tiros? Ah, meu Deus... — Levei ambas as mãos à boca, quase
preparada para abafar um grito ou uma exclamação mais desesperada.
— Foram de raspão. Calma. Ele realmente está bem...
— Então por que você está com essa cara?
Terminando de trancar a porta, ele colocou a chave dentro da minha mão
e respirou fundo, olhando em meus olhos.
— Porque estou nervoso também. Porque ele poderia não ter voltado.
Porque ele me fez um pedido hoje de manhã, para cuidar de você, caso algo lhe
acontecesse, e isso fez com que eu me borrasse de medo.
— Mas que merda de pedido foi esse?
Mário colocou a mão no meu ombro.
— Olha, Chris, deixa eu te levar para casa. Sei que você quer ver o
Arthur, e ele também está doido para te ter por perto. No caminho a gente
conversa.
Era um pedido bem razoável, por isso, balancei a cabeça e o segui até o
carro, entrando e me deixando ser guiada para aquela que agora era a minha
casa.
Mário e eu pouco conversamos, com exceção da história do estranho
pedido de Arthur para que cuidasse de mim e de Cléo, e isso fez o meu peito se
apertar. Embora eu soubesse que a vida dele estava em perigo constantemente,
que a cada esquina poderia topar com a morte, eu ainda me recusava a acreditar
que iria perdê-lo outra vez. Essa fé era tão nociva para o meu coração que eu
sabia que poderia chegar a corroê-lo aos poucos. Ouvir seus planos para mim
como forma de proteção já fazia com que eu sentisse as engrenagens do meu
corpo enferrujando, enquanto vislumbrava toda a situação; enquanto imaginava
uma vida sem Arthur.
Saltei do carro com toda a pressa, mal esperando que Mário o
estacionasse na frente da casa, e corri em direção ao quarto, subindo as escadas
na maior velocidade que minhas pernas me permitiam empregar. Abri a porta e
me deparei com Arthur cheio de companhias. Cléo, Selma e Sidney estavam
presentes, e eu cheguei a parar antes de realmente adentrar o cômodo, sem saber
o que fazer, como agir, o que dizer.
Cléo foi a primeira a virar na minha direção de forma cúmplice. Ela era a
única ali que também sabia a verdade, e a forma como conversou comigo usando
apenas o olhar me fez respirar fundo, sentindo-me um pouco mais tranquila.
Arthur estava bem.
— Ah, Chris! Que bom que chegou, querida! — Selma falou, enquanto
eu me abaixava para dar atenção a Kibe, que logo veio em minha direção. Ele
não era muito de fazer festinha ou me dar atenção assim que eu chegava em
casa, porém, devia estar um pouco assustado com toda aquela gente e,
principalmente, sentindo-se acuado por não estar em seu próprio cantinho. Quem
poderia culpá-lo? Eu também queria voltar para casa. — Arthur estava aqui
indócil querendo saber como você estava, se já tinha chegado...
— Esse garoto aqui foi assaltado e reagiu... — Sidney explicou.
— Teve sorte, isso sim. Onde já se viu, reagir a um assalto dessa forma?
Aproximei-me da cama com cautela, enquanto eles falavam, tentando
conter as lágrimas. Por mais que eu soubesse que ambos estavam preocupados,
eu os invejava. Não havia nada mais abençoado do que a ignorância em
momentos como aquele. Saber a verdade, na maioria das vezes, era muito pior.
Embora eu imaginasse que deveriam sentir algum tipo de desconfiança, depois
do incidente na casa de Edgar e das mudanças em Arthur. O olhar de Selma
falava mais do que suas palavras.
No momento em que me sentei ao lado dele na cama, ele pegou minha
mão e sorriu. Havia curativos em seu braço, ombro, além de cortes no rosto.
Estava em bem melhor estado do que eu imaginara, embora uma careta de dor
tenha transfigurado seu rosto no momento em que se remexeu para falar comigo.
— Estão me mantendo refém nesta cama. Ainda bem que você chegou...
— ele brincou, mas eu sabia que não estava com um senso de humor muito bom.
Além disso, também não era esse o motivo de tanto me querer em casa. O fato
de não ter podido ir me buscar deveria tê-lo corroído por dentro, e agora que eu
estava em segurança, finalmente poderia sentir-se aliviado.
— Bem, vou pedir que a Maria sirva o jantar — Selma falou, inclinando-
se para beijar a cabeça do filho e saindo. Sidney a acompanhou.
Mário logo chegou, e quando este entrou, pedimos que fechasse a porta
para nos dar alguma privacidade.
— O que diabos aconteceu, Arthur? — perguntei na primeira
oportunidade.
— Eu o matei. Carlos Vidal... — A resposta deveria ser para mim, mas
ele falou olhando para Cléo. Ao menos ela fora vingada.
— Mas você levou um tiro — completei.
— Dois — ele corrigiu, em um tom divertido, como se tudo não passasse
de uma brincadeira. Quando fiz menção de dizer alguma coisa, indignada, ele
acrescentou: — Foram de raspão. Eu estou bem. De verdade. Só o meu joelho
que está me matando. O filho da puta me deu um chute. Ainda bem que eu
consegui colocar no lugar.
Minhas mãos tremiam, e eu não consegui conter algumas lágrimas.
Queria gritar, quebrar aquele quarto inteiro. Aquele pesadelo nunca iria
terminar? Percebendo meu estado, Arthur apertou a minha mão com um pouco
mais de força.
— Ei... eu estou aqui, não estou? Vou fazer todo o esforço para voltar
sempre para você... — disse, com um tom tão terno que apenas serviu para
intensificar minha angústia.
— Mas poderia não ter voltado. Quantas vezes mais vai surgir ferido?
— Olha, você devia ter visto como os outros dois ficaram... — comentou
novamente em zombaria. Remexeu-se outra vez na cama, e seu semblante
apresentou mais uma careta. — Mas vamos analisar o que conseguimos com
essa nova aventura... — debochou. Em seguida, apontou para a sua cômoda, e
Mário pareceu entender o que ele queria. O rapaz, então, foi até lá e voltou para
perto de nós com um notebook em mãos. — Encontrei este laptop na casa onde
tudo aconteceu. Eu já o inicializei e o usuário é Olavo. Estou com esperanças de
conseguir algumas informações, porque os gêmeos não o manteriam consigo se
não fosse importante. — Virou-se para Mário mais uma vez. — Então, parceiro,
estou contando com você para descobrir a senha e acessar tudo o que pudermos
desse negócio.
Batendo continência, Mário colocou o aparelho debaixo do braço.
— Sim, senhor. Missão dada é missão cumprida... Mas tudo bem se eu
fizer isso da minha casa?
— Não vai ficar para jantar? — Cléo perguntou, parecendo um pouco
decepcionada. Mário corou só de olhar para ela. Ao menos uma cena fofa diante
de todo aquele pandemônio.
— Ah... é que... — Coçou a cabeça, envergonhado. — Hoje tem liga de
Overwatch para assistir. E... bem... eu...
No momento em que ele falou, eu olhei para Cléo e a vi irritadíssima,
indignada por ser trocada por um jogo. Sem nem saber, Mário estava fazendo
tudo certo. Aquela garota gostava de um desafio, e o fato de ele não lamber o
chão que ela pisava poderia lhe render muitos pontos com ela.
— Relaxa, cara. Vai lá. Obrigado por pegar Christine no trabalho —
Arthur respondeu, e Mário apenas gesticulou, como se não tivesse sido nada de
mais.
— Vou te levar lá embaixo, então... — ofereceu Cléo, e Mário abriu um
sorriso, concordando.
Antes de sair, ele aproximou-se da cama, trocando um cumprimento com
Arthur.
— Para de dar susto na gente, Robocop. Estou ficando de saco cheio.
Arthur apenas sorriu. O garoto despediu-se de mim também, fez uma
festinha em Kibe e atravessou a porta, com Cléo a tiracolo.
No momento em que ficamos sozinhos, Arthur estendeu os braços, e eu
me aconcheguei neles, deitando a cabeça em seu peito. Estava sem camisa, e eu
pude imediatamente sentir o calor de sua pele contra a minha, além do
reconfortante bater de seu coração.
— Aquele cara não vai mais te perseguir. E nem machucar Cléo — ele
sussurrou, enquanto acariciava meus cabelos.
— Você disse que lutou com duas pessoas...
— Sim, o irmão dele. O John Doe do hospital... Esse filho da puta ficou
vivo. E algo me diz que é mais calculista e mais sério do que o irmão. É bom de
briga e foi treinado pela MR, assim como eu. — Arthur fez uma pausa, mas eu
sabia que ele ainda tinha mais a dizer, por isso me mantive calada. — O Vidal
me falou que o irmão se voluntariou para a experiência. O quão louco ele deve
ser?
— Muito louco. E é isso que me apavora. — Ergui a cabeça para olhá-lo
nos olhos. — Esse cara vai vir atrás de você, Arthur. Com ainda mais ódio...
— Estou pronto para ele — respondeu, dando um beijo em meus lábios,
como se selasse algum tipo de promessa.
Eu não estava gostando nada daquilo, mas achei melhor não externar
meus pensamentos. Não quando eu também sentia que Arthur precisava apenas...
esquecer. Fora um dia infernal, ele estava machucado e precisava de um pouco
de paz. Por isso, retribuí o beijo quando este veio, cheio de sofreguidão. Era
como se quisesse aproveitar cada um de nossos momentos como se fossem os
últimos, por isso, seus braços, mesmos feridos, me apertavam contra seu corpo
com avidez, enquanto sua boca explorava a minha de um milhão de formas
diferentes, em um ritmo lento, cadenciado, como se estivéssemos travando uma
dança sensual.
Colocando ambas as mãos no meu rosto, ele se afastou por alguns
segundos, com os olhos tomados de desejo e ficou calado por um tempo. Pela
forma como seu peito subia e descia, eu acreditava que algo sério seria dito.
Só não estava preparada para o que veio.
— Casa comigo...
A reação de arregalar os olhos foi completamente involuntária, mas...
Meu Deus...
Eu não fazia ideia do que dizer, porque...
Deus!
Minha nossa...
— Acho que te assustei... — ele comentou, dando uma risadinha, sem
tirar as mãos do meu rosto.
— Não é para menos... — Lutei bravamente para levar um pouco de ar
aos meus pulmões.
— A gente se conhece a vida inteira, mas vale perguntar: acha que estou
sendo precipitado?
— Acho que você está louco. — Ajeitei-me na cama logo assim que ele
me soltou, colocando-me sentada. — Tem gente nos perseguindo. Nossa vida
está uma loucura, eu mal sei se você vai voltar para casa no final do dia... como
quer que...
Ele também se sentou e outra vez levou as mãos ao meu rosto.
— Chris, calma... não vamos nos casar amanhã. Só quero que você diga
sim ou não. Quero saber se posso ter a esperança de que você será minha esposa.
Um dia.
Era uma baita covardia que ele fizesse aquela pergunta, naquele tom. Era
muito fácil ler nas entrelinhas, tanto de seu pedido quanto da explicação. Havia
uma grande chance de ele morrer. Fosse amanhã, depois ou na semana seguinte.
Tudo o que ele me pedia era uma pequena dose de luz em meio à escuridão em
que vivíamos. Um motivo para lutar, uma razão para se proteger ainda mais.
A resposta era mais do que óbvia, não apenas pelas circunstâncias do
pedido, mas porque eu também queria. Porém, Arthur teria que esperar um
pouco mais, porque o celular dele tocou.
Bufando, um pouco contrariado pela interrupção, ele estendeu a mão na
direção do criado mudo e pegou o aparelho, atendendo-o em seguida.
Durante toda a ligação, sua expressão foi se modificando, tornando-se
mais dura, mais apreensiva, com o cenho franzido, enquanto se mantinha calado.
Quando desligou, depois de menos de dois minutos, parecia novamente tenso.
— O que foi? — indaguei aflita, no exato momento em que ele deixou o
telefone de lado.
— A ligação era de Santiago Marinho. Ele quer se encontrar comigo
nesta madrugada.
— Arthur... você está ferido... não pode ir. Não sabe o que esse cara
quer... e se for uma armadilha? — desesperei-me.
— Preciso tentar. Ele disse que tem coisas a me dizer. Não posso deixar
uma oportunidade dessas de lado. Vou ter que contar com a sorte novamente.
Capítulo Dezenove
ARTHUR
***
CHRISTINE
***
ARTHUR
Sandro Queiroga.
Assim como acontecera quando descobri o nome de Hans Balzer, eu não
parava de repetir mentalmente aquela informação, sentindo-me irritantemente
inquieto, enquanto Mário tentava acessar o computador de Olavo. Como não
estava fácil, e eu sabia o quanto meu amigo era bom nisso, suspeitei que
realmente deveria haver algo ali dentro que queriam muito manter em segredo.
Especialmente por eu ter encontrado o notebook naquela casa. Se eles o haviam
levado era porque continha algo muito importante.
Foi com um entusiasmado “Eureka” que Mário anunciou seu sucesso na
empreitada.
Bem, não apenas com essa única palavra.
— Ah, moleque! Eu sou foda mesmo! — Bateu palmas, comemorando
seu êxito, e eu sabia que precisaria cortar aquela onda de animação ou ela
duraria bem mais do que o necessário.
— Foco, Mário! Vamos ver o que tem aí dentro — disse, aproximando-
me dele, empurrando a cadeira de rodinhas até a mesa de seu computador.
Logo na Área de Trabalho era possível encontrar uma pasta nominada
MR. Claro que ela também era decodificada, o que novamente dificultou um
pouco do trabalho, fazendo com que demorássemos mais do que eu estava
disposto a esperar.
Assim que conseguimos acessá-la, descobrimos várias outras subpastas
em seu interior, cada uma com o nome de uma pessoa, precedido por um
número. Uma vez que a minha era a quadragésima oitava, suspeitei que a
numeração estava relacionada às nossas tatuagens, ao código pelo qual nos
conheciam naquele verdadeiro inferno.
Eu poderia abrir a minha, é claro, para saber quais informações eles
tinham, mas teria tempo para isso. Havia outra que chamara bem mais a minha
atenção, ao menos em um primeiro momento — 14 – Sandro Queiroga.
— Abra esta — pedi, apontando para a tela do computador.
Mário obedeceu, clicando duas vezes no ícone e abrindo a pasta. Dentro
dela, vários arquivos foram revelados, incluindo imagens, documentos em PDF,
áudio e vídeos.
Meu parceiro imediatamente afastou-se do computador, abrindo espaço
para que eu assumisse, compreendendo meu desejo de manejar por mim mesmo
aquelas informações.
Havia muitas coisas ali, mas o que mais me chocou foram os vídeos. A
maioria, retirada de câmeras de segurança, mostrava uma acomodação muito
parecida com aquela na qual fiquei por três anos — muito similar a um quarto de
hospício, com paredes acolchoadas brancas, uma cama de ferro e um banheiro
muito pequeno, no qual um cara do meu tamanho mal conseguia se movimentar.
Um ambiente monitorado, onde sempre tomavam cuidado para que não
houvesse nada ao redor com que pudéssemos machucar alguém ou cometermos
suicídio. O box era fechado por uma cortina de plástico, com um suporte do
mesmo material — nada de vidro que pudesse ser quebrado —, os talheres eram
sempre descartáveis, assim como os pratos. O colchão não possuía lençóis, e
nossas cobertas eram grossas, difíceis de serem amarradas até formarem uma
corda adequada para um enforcamento. As roupas que usávamos, sempre pretas,
simples, eram racionadas, levadas até nós diariamente. Tudo era pensado,
calculado.
Olhar para aquele local me provocou ao mesmo tempo calafrios e uma
raiva desmedida. Especialmente quando comecei a observar as reações de
Sandro, muito parecidas com as minhas quando cheguei lá. Lutava, gritava,
esperneava e acabava sempre algemado à cama, passando a noite inteira assim
como uma punição das mais leves. Em outros vídeos, ele era levado para aquela
espécie de cela, depois de uma das sessões de tortura que nos eram aplicadas por
mau comportamento. O rapaz sangrava e mal conseguia ficar de pé. Eu sabia
exatamente como era. Isso acontecera muitas vezes comigo, até aprender que de
nada adiantaria lutar, que apenas sofreria consequências.
O passo seguinte foi a apatia. Total e devastadora. Eu apenas obedecia,
servia e consentia. Comia tudo o que me entregavam, participava dos
treinamentos e tentava responder da melhor forma possível a tudo. Fiz com que
acreditassem que eu havia me tornado o soldado perfeito. E provavelmente teria
continuado assim, se não recebesse minha chance de escapar.
Contudo, com Sandro as coisas foram um pouco diferentes. Vídeo após
vídeo, nada mudava. De acordo com as datas que eram apresentadas nas
imagens, ele passara dois anos lutando, sem jamais se entregar. Fora ferido
incontáveis vezes, mas persistira. Ver tanta coragem chegou a me deixar
envergonhado. Talvez eu devesse ter feito o mesmo.
Porém, o destino dele foi o pior possível.
Não consegui terminar de assistir aos vídeos, pois eram muitos, e quase
todos mostravam as mesmas coisas. Parti, então, para os documentos. Um deles,
em especial, me chamava a atenção — um arquivo timbrado da MR,
digitalizado, com uma liberação assinada e autenticada pelo próprio Hans Balzer,
informando que os serviços de Sandro Queiroga estavam dispensados, e ele era
considerado “inofensivo” à corporação. O que não era de se surpreender,
levando em consideração que fora transformado em restos de um homem.
Vasculhando a pasta mais um pouco, encontrei uma ficha atualizada,
contendo alguns dados de Sandro, inclusive um endereço. Havia uma grande
chance de não ser absolutamente nada, mas decidi tentar a sorte.
Mário jogou as direções no Google Earth e encontramos a casa em
questão. Tratava-se de uma residência comum, discreta, localizada em Vargem
Grande, em uma área afastada. Não parecia cercada de seguranças, mas eu
duvidava muito que estivesse completamente desprotegida. Devia haver câmeras
também, mas para estas eu estava pouco me lixando. Queria que a MR soubesse
que eu estava seguindo seus passos, que continuava avançando em minha
investigação.
Por isso, decidi tentar a sorte, partindo para lá sem pensar muito no que
fazia.
Estacionei a alguns metros de distância, mas não muito longe, para o
caso de precisar escapar com pressa. Segurando a arma discretamente, dirigi-me
sorrateiramente ao portão, onde um segurança se mantinha em guarda, mexendo
em um celular.
Era muito provável que nada acontecesse por ali, porque ele parecia
realmente entretido, tanto que facilitou e muito a minha vida. Tudo o que
precisei fazer foi apontar o revólver em sua direção.
Ele também estava armado, então, movimentou-se por instinto, quase
levando a mão ao coldre, porém, eu aproximei o revólver um pouco mais,
passando o cano por um dos vãos do portão.
— Não se mexa. Não tenho intenção de machucar ninguém. Só abra o
portão. — O cara apenas ergueu as mãos em rendição, mas não me obedeceu. —
Repito: não quero machucar ninguém, mas farei isso se for preciso — disse com
uma voz baixa, que continha uma ameaça velada. Por dentro, no entanto, eu
apenas esperava que aquele homem obedecesse. Eu não iria ferir um inocente, e
isso dificultaria demais as coisas.
O homem pensou pelo que pareceu uma eternidade, mas acabou cedendo.
Afastei a arma das grades por pouquíssimos milímetros, apenas o suficiente para
que esta pudesse ser aberta.
Entrei rapidamente, sem tirar os olhos e a mira dele, e em um movimento
rápido, dei-lhe uma forte coronhada e aproveitei sua desorientação para lhe
aplicar um mata-leão, deixando-o desacordado.
— Me desculpa, amigo… — sussurrei, odiando tudo o que estava
precisando fazer.
Porém, não havia tempo a perder.
Ainda com a arma em punho, percorri a distância entre o portão e a porta
da casa com cautela. Por ser uma residência particular, imaginei que não me
depararia com outro segurança, contudo, não podia baixar a guarda.
Chegando à porta, decidi tentar a sorte e bater civilizadamente. Caso não
desse resultado, o jeito seria arrombá-la, mas também não era algo que eu queria.
A ideia de criar alarde me cheirava muito mal.
Para minha consternação, quem abriu a porta foi uma jovem de no
máximo vinte e cinco anos, usando um uniforme de enfermeira. Ao me ver, ela
pareceu um pouco confusa a princípio, mas a arma em minha mão logo lhe
chamou a atenção, e ela preparou-se para gritar.
Agarrei-a, virando-a de costas e cobrindo sua boca. Eu a sentia
estremecer, e isso fez com que eu me sentisse ainda pior.
— Eu juro que não vou te machucar. Só preciso que me leve até Sandro
Queiroga.
Não saberia dizer se ela me compreendeu, mas simplesmente não se
mexeu. Talvez fosse o medo que a mantinha inerte ou uma admirável coragem
para proteger seu paciente, mas aquela moça seria um problema. Não teria
coragem de amarrá-la e deixá-la ainda mais em pânico, mas a outra opção
também não era das melhores. Deixá-la inconsciente me pouparia não apenas do
trabalho de controlá-la, mas também a preservaria do medo que eu representava.
E foi o que fiz, tomando o cuidado de carregá-la até o sofá para que não
ficasse caída no chão.
A casa não era exatamente grande, embora fosse cercada por um terreno
amplo. Subi um lance de escadas e me deparei com quatro portas. Fui abrindo
uma por uma, encontrando um quarto com aparelhos para fisioterapia, um
banheiro, um cômodo menor, com uma cama de solteiro — onde provavelmente
a enfermeira dormia —, um quarto grande, mas vazio, e, aos fundos, uma
biblioteca. Sentado na confortável poltrona nos fundos dela, havia um homem.
Magro, de cabelos molhados, cabeça baixa, aparência cansada. Parecia doente.
Uma cadeira de rodas localizava-se bem ao lado dele.
Aproximei-me, ainda segurando a arma, colocando-me em seu campo de
visão. Conforme fui chegando perto, a primeira coisa que enxerguei foi a
tatuagem em seu ombro, cuja camiseta sem mangas que ele usava não conseguia
esconder. Lá estava o número 14. Aquele ali era Sandro Queiroga.
Havia um caderno sem pautas em sua mão, além de uma caneta pilot.
Muitos rabiscos cobriam a folha, como os desenhos de uma criança de jardim de
infância. Não me demorei neles tempo suficiente para tentar desvendá-los, pois
estava bem mais interessado no homem, no que ele poderia me oferecer.
Precisava ser breve, ou as duas pessoas que apaguei poderiam acordar a qualquer
momento.
Completamente diferente do irmão, Sandro poderia facilmente ser
comparado a um portador de câncer em tratamento. Olheiras profundas e maçãs
do rosto encovadas corroboravam ainda mais para essa percepção, além da
palidez e da apatia. Totalmente diferente do homem grande, musculoso e sadio
que vi nos vídeos que encontrei no laptop de Olavo.
Coloquei-me de frente para ele, que demorou um pouco para dar-se conta
da minha presença. Quando voltou os olhos vazios para mim, nem mesmo o
revólver pareceu provocar-lhe qualquer reação. Inerte, apenas me avaliou com
curiosidade, inclinando a cabeça para o lado, como se eu fosse uma criatura
extraterrestre. Por um momento não fiz a menor ideia de como começar a falar
com ele. Mal sabia se iria me compreender. Contudo, havia chegado até ali. Não
podia desistir.
Como se eu fosse nada mais do que uma distração passageira, que ele
poderia ignorar sem problemas, Sandro abaixou a cabeça, ignorando-me,
começando a rabiscar novamente em seu papel, onde mal havia espaço para
novos traços.
— Sandro, meu nome é Arthur Montenegro. Estou aqui para
conversarmos. Se você me entende, me dê um sinal. — Talvez eu estivesse
fazendo papel de bobo ali, porque o homem continuou sua tarefa sem
demonstrar que sequer me ouvira.
Eu entendia muito pouco de lobotomias, mas depois de fazer amor com
Christine naquela madrugada, não consegui dormir e fiquei fazendo algumas
pesquisas sobre o assunto. Sabia que havia alguns tipos diferentes e que as
sequelas tinham muito a ver com a gravidade do procedimento realizado. Havia,
sim, uma possibilidade de Sandro ainda manter uma consciência, mesmo que
fosse uma lucidez quase nula.
Com essa esperança, peguei a cadeira de uma escrivaninha que tomava
uma parede quase inteira do cômodo e a puxei, aproximando-a da poltrona,
sentando-me de frente para Sandro. Nem mesmo com esse movimento ele voltou
a prestar atenção em mim. Apesar disso, recomecei a falar:
— Você não me conhece, mas eu fugi da MR. Sou um sobrevivente e
estou tentando encontrar uma maneira de pará-los. Se puder me ajudar de
alguma forma, com alguma informação... Algum nome... — Fiz uma pausa. —
Sei que seu irmão está envolvido com eles, e depois do que fizeram com você...
Talvez eu estivesse perdendo tempo. Talvez fosse impossível arrancar
alguma informação dele e, mais ainda, havia uma grande chance de, apesar de
tudo, Sandro ainda ser leal ao irmão, especialmente porque não sabia que tipo de
lavagem cerebral tinham feito nele depois de destruírem sua mente.
Sandro continuava rabiscando o papel sem parar, mas pude perceber que
depois que mencionei a MR, os movimentos de sua mão tornaram-se mais
velozes.
Decidi tentar mais uma vez.
— Você entende o que estou dizendo, Sandro? Preciso parar a MR.
Preciso fazer a coisa certa, antes que eles machuquem mais pessoas, como
fizeram com você.
E lá estava. Assim que ouviu à menção à corporação maldita que
arruinara sua vida, novamente o ritmo de seus rabiscos intensificou-se, desta vez
tornando-se quase frenéticos. Era o meu sinal. Ele me entendia. De alguma
forma, conseguia me ouvir.
Odiava precisar pressioná-lo, incomodá-lo, mas não poderia sair dali de
mãos abanando. Fora arriscado entrar naquela casa, eu sabia que deveria estar
sendo monitorado por alguma câmera, então, tinha que fazer valer a pena.
Com certo ímpeto, agarrei a mão dele, enquanto esta ainda se
movimentava pelo papel, como se sua mente estivesse em uma guerra,
impedindo-o de continuar a rabiscar. Mesmo assim, parado, não se voltou para
mim. Usando minha outra mão livre, ergui sua cabeça, esperando ganhar sua
atenção.
Ainda segurando-o com os olhos fixos em mim, soltei seu punho e
lentamente, em movimentos calculados, ergui a mão livre na direção da minha
camiseta, afastando o tecido do exato ponto onde se escondia a maldita
tatuagem, quase igual à dele.
Assim que a viu, Sandro arregalou os olhos em uma expressão
desesperada de pânico. Podia muito bem imaginar o que aquilo representava
para ele e para sua mente perturbada — eu era um inimigo. E foi exatamente
assim que reagiu, tentando afastar-se, lutando para se livrar das minhas mãos,
começando a emitir sons estrangulados, gritos ininteligíveis, que chegavam a me
dar pena.
— Sandro, acalme-me. Não vou te machucar. Estou aqui porque preciso
de ajuda. Preciso saber se através do seu irmão consigo chegar à MR. Para
proteger pessoas. Pessoas como nós... — Mas ele continuava apenas a gritar, e
foi isso que me fez chegar à conclusão de que não podia me dizer nada. Era
apenas uma alma despedaçada presa naquele corpo. Uma vítima tão amaldiçoada
daquelas pessoas insanas; alguém que só me fazia ter ainda mais sede de justiça.
Soltei-o, portanto, esperando que assim que eu desaparecesse de sua
frente ele conseguisse se acalmar. Não era justo deixá-lo naquele estado, e
sentia-me profundamente arrependido por ter aparecido ali, perturbando a
estranha e injusta paz que tinha conseguido depois de, provavelmente, ter
passado por um inferno muito similar àquele ao qual sobrevivi. A diferença era
que eu estava ali, inteiro. Dele, restara apenas a metade.
Levantei-me da cadeira, levando-a para seu lugar de origem, enquanto
ouvia a sinfonia de gritos de Sandro ecoar por todo o quarto. Quando me virei na
direção dele outra vez, Sandro pareceu se acalmar, embora ainda respirasse de
forma incerta e me olhasse com aquele olhos vítreos como se eu fosse o próprio
demônio. Naquele momento, provavelmente eu era.
Passei por ele, indo em direção à porta, pousando a mão em seu ombro
como uma forma de pedir desculpas. Porém, meu punho foi segurado com força.
Mais força do que imaginei que ele teria.
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, eu o senti virar a palma
da minha mão para cima e deslizar o pilot por ela, escrevendo algo. Quando
terminou, tudo o que pude ver foi uma caligrafia torta e quase infantil, mas
razoavelmente legível. Tratava-se de um endereço.
Precisei de alguns minutos para analisar o que tinha ali. Poderia ser uma
armadilha, alguma lembrança sem a menor conexão com meu objetivo, ou a
primeira coisa que surgira em sua mente. Ou poderia ser algo significativo.
Talvez, no final das contas, Sandro tivesse me compreendido. Talvez aquele
endereço fosse a chave para o que eu vinha procurando.
— O que é isso, Sandro? — Sentia-me um idiota por perguntar,
principalmente porque imaginava que aquelas letras na minha mão eram um
tesouro, a única informação que conseguiria arrancar dele. Muito provavelmente
era tudo o que ele podia falar, uma vez que a maioria das suas lembranças
deveria estar perdida no limbo daquela mente prejudicada.
Mas ele olhou para mim. Não precisava dizer nada. Aqueles olhos tristes,
suplicantes, passaram-me uma mensagem silenciosa, que eu esperava estar
interpretando da forma correta. Ele queria que eu fosse até o fim, que vingasse
sua situação e a de muitos outros além de nós, que eram escravizados, mortos e
que viravam marionetes de pessoas impiedosas.
Minha reação foi assentir, sem nem saber se ele entenderia ou se eu
mesmo tinha entendido alguma coisa naquela comunicação que estávamos
estabelecendo. Poderia ser algo da minha cabeça, uma esperança, mas precisava
me agarrar em algo.
Estava preparado para sair da biblioteca, aproveitando que ele parecia um
pouco mais calmo, quando algo me impediu.
Uma dor lancinante na cabeça me deixou zonzo. Caí no chão de joelhos e
alguém me agarrou por trás, desarmando-me e retorcendo meu braço nas costas,
enquanto tentava me sufocar em um mata-leão. Fosse quem fosse, eu estava
rendido.
Capítulo Vinte e Um
ARTHUR
***
ARTHUR
Quando voltei a mim, não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado
desde que fiquei inconsciente. Tentei mexer as pernas, mas estas também foram
presas aos pés da cadeira, com cordas e nós bem dados. Não era uma cadeira de
madeira; se fosse, eu poderia encontrar uma forma de quebrá-la e tentar me
soltar. Era de ferro. Eu sentia isso pela textura do material que eu conseguia
tocar — gelado, liso e duro.
Precisei me ajustar à claridade, embora o local não estivesse assim tão
iluminado. A primeira coisa que vi foi Edgar à minha frente, sentado em uma
cadeira. Estava sozinho, com uma postura extremamente relaxada, além de uma
expressão despreocupada no rosto.
— É fácil ficar assim perto de mim sozinho e todo sorridente comigo
amarrado. Sabe que eu te destruiria em dois minutos e não iria sequer suar para
isso.
Edgar deu de ombros.
— Esse seu papinho não vai fazer com que eu me sinta mal ou que te
solte para que possamos cair no mano a mano de forma justa. Pode me achar um
covarde, mas burro eu não sou.
— Eles estão te pagando quanto para me entregar? — sibilei, sentindo o
gosto do ódio na língua.
— Você é minha moeda de troca, Arthur. Assim que chegarem para te
buscar, eu ganharei a minha alforria. Só quero ficar de boas com eles de novo.
Não é legal ser um inimigo da MR, como você mesmo já deve ter percebido.
— Eu escolho bem meus amigos e meus inimigos também... —
debochei.
— Ah, escolhe mesmo. Tanto que foi indicado por uma pessoa do seu
convívio...
Lá estava novamente aquela certeza que tanto me perturbava. O fato de
ser novamente pego pela MR já era, por si só, desconcertante, mas pensar que eu
jamais teria a chance de descobrir quem havia me entregado nas mãos do diabo
era ainda mais perturbador.
— Quem foi? Você sabe? — indaguei, embora a sensação de humilhação,
de precisar dele para obter uma verdade que eu já deveria ter descoberto, fosse
degradante.
— Não. Não faço ideia e não dou a mínima também. — Edgar levantou-
se, com uma expressão resoluta no rosto e mantendo aquele sorriso irritante.
Colocando-se bem de frente para mim, abaixou-se um pouco para sussurrar no
meu ouvido: — Quer saber o que realmente me importa? — Ele fez uma pausa,
mantendo um suspense. — A Chris... — Ele soltou um assobio de admiração e
uma risadinha. Ouvir o nome dela gelou a minha espinha. — Cara, você não tem
noção do quanto eu quero colocar as mãos nela. Há muito tempo. Juro que tentei
ser um cavalheiro para conquistá-la da forma tradicional, mas sempre tinha você
no caminho. Primeiro como uma lembrança, e depois, de verdade. Agora, vai ser
muito mais fácil trazê-la para mim. Vou usá-la, fodê-la de todas as maneiras e
depois... quem sabe? Posso entregá-la à MR também...
Soltei um urro de ódio e tentei me debater para me soltar. Consegui
libertar uma mão, depois de usar de uma força descomunal e esfolar meu punho
inteiro, mas a sensação de levar a mão ao pescoço daquele merda foi muito mais
gratificante. Principalmente ao me deparar com a cara de pavor que preencheu
seu rosto.
— Eu só preciso de uma mão para te matar.
Continuei sufocando-o, apertando seu pescoço cada vez mais, mas logo
três homens surgiram. Seria preciso muito mais do que aquilo para me fazer
soltá-lo, mas eu estava em desvantagem, e acabei sendo novamente amarrado à
cadeira.
Levando à mão ao pescoço machucado, Edgar precisou de um tempo
para se recuperar. Pigarreou, tossiu, mas logo voltou a me infernizar:
— De uma forma ou de outra, eu consigo tudo o que quero, Arthur. O
mundo é dos fortes, aqueles que sabem agarrar as oportunidades. Eu agarrei as
minhas... Por isso, infelizmente, você vai ter que rodar.
— Eu ainda vou te matar, Edgar... De alguma maneira... — novamente
falei por entre dentes, e ele intensificou a gargalhada.
— Não que você esteja em condições para fazer uma promessa dessas,
mas vou dificultar as coisas um pouquinho mais. — Indo até a entrada do
cômodo, Edgar colocou metade do corpo para fora e fez um sinal para alguém.
Enquanto esperava, retornou e sentou-se novamente na cadeira, de frente para
mim.
Ouvi passos do lado de fora e comecei a me desesperar. Eu sabia que
aquele cara tinha uma carta na manga. Claro que o fato de eu estar amarrado e
rodeado por pessoas que me matariam em um segundo já seria suficiente, mas
havia algo mais.
E eu não demorei a constatar o que era.
Arrastado por dois caras mais ou menos do meu tamanho, inconsciente,
machucado e amarrado, estava Mário.
Sem nenhuma dignidade ele foi jogado aos meus pés, e eu senti um bolo
se formar dentro da minha garganta, enquanto meu estômago se revirava.
Não! Não! Não!
Não podia ser! Não aquele garoto! Não o meu amigo...
Mário não merecia. Se ele estava ali, naquela situação, era por minha
culpa.
Puta que pariu!
— Ele não tem nada a ver com isso! — vociferei.
— Claro que tem. O rapazinho aqui não apenas trabalhou para a MR
como estava te ajudando. Não acha que eles vão adorar quando eu entregar os
dois de bandeja? — Edgar cruzou os braços e recostou-se na cadeira, apoiando o
tornozelo no joelho. Ele mais parecia estar em uma reunião de trabalho informal.
— Eles vão foder com você um dia, Edgar. Queriam que eu te matasse,
mas há outros como eu. Outros que serão menos babacas em acreditar que
podem te dar o benefício da dúvida. — Eu estava mais do que arrependido de
não tê-lo matado quando tive a chance. Naquele dia do Alto, no dia da festa, em
qualquer outra ocasião. Aquele cara não merecia estar vivo. Não merecia
respirar o mesmo ar que outras pessoas inocentes respiravam. Mas lá estava ele,
dando risadinhas debochadas enquanto uma criatura como Mário jazia ferido e
inconsciente no chão.
— Que pena que não será você. Não é mesmo? — Ele deu de ombros. —
Seja como for, essa conversa já está me enchendo o saco... está na hora de você
dormir de novo. Quando acordar, já estará no lugar de onde nunca deveria ter
saído.
Assim que ele terminou de falar, senti uma picada no braço. O homem ao
meu lado a havia aplicado, e eu sabia exatamente o que era.
Imediatamente, senti meu corpo ficar dormente, meus olhos pesados e a
cabeça girar.
Apaguei, sem nem ter chance de mandar aquele filho da puta se
foder.
Capítulo Vinte e Dois
CHRISTINE
***
CHRISTINE
ARTHUR
***
ARTHUR
Abraços.
Mário
(Que Mário?)
(Tá, parei.)
Eu precisei ler duas vezes o final do e-mail, porque meus olhos estavam
nublados demais pelas lágrimas. Ali estavam todas as respostas que tanto
precisávamos; e ainda havia um P.S. escrito com uma caligrafia masculina firme,
a caneta. Provavelmente do próprio Santiago.
“Eu tinha uma fonte na MR, lembra? Por isso, já sabia que você estava
lá dentro. Desde o nosso encontro, deixei algumas coisas prontas, algumas
pessoas avisadas, para o caso de ter que ir salvar a sua pele. Ainda estava em
dúvida sobre o que fazer, e foi o e-mail deste rapaz que abriu realmente meus
olhos. Só precisei de algumas ligações. Vocês devem suas vidas a ele. De todas
as formas.”
Somente isso. Sem nenhum rodeio, bastante direto, como aquele homem
estranho parecia realmente ser. Mas, fosse como fosse, ele tinha total razão.
Mário era o verdadeiro herói daquela história.
Eu e Arthur nos entreolhamos sem dizer nada, mas eu podia apostar, com
quase cem por cento de certeza, que conseguia imaginar o que sentia. Convivi
com Mário bem menos tempo do que ele e já sentia o coração vazio de tanta
saudade, de pesar. Por isso, fiz um malabarismo nada gracioso, pulando a
marcha e me sentando no colo dele, passando os braços ao redor de seus ombros.
Aconchegamo-nos ali mesmo, tentando confortar um ao outro, enquanto ambos
chorávamos baixinho, prestando uma última homenagem a nosso amigo perdido,
do nosso próprio jeito.
***
CHRISTINE
***
ARTHUR
Não era todos os dias que eu conseguia sair mais cedo da empresa.
Apesar de já estar trabalhando por lá há quase quatro meses, ainda havia muita
coisa para colocar em ordem, por mais que J.J. fosse um cara organizado. Meu
tio deixara muitas pendências, irritara alguns fornecedores e mexera nas contas
para se beneficiar. Como ainda não havia nenhuma pessoa de confiança para
ficar no lugar dele, como Gerente de Contas, tudo estava um verdadeiro caos.
Só que aquele era um dia especial, e eu tinha me empenhado muito para
terminar minhas tarefas até, no máximo, cinco da tarde. Também não marcara
nenhuma reunião para depois daquele horário. Não era porque estava assumindo
o lugar que um dia fora do meu pai, sentado em sua cadeira, que iria cometer
seus erros. Isso foi uma das condições para que eu aceitasse aquele cargo. Uma
condição que impus a mim mesmo. Eu jamais deixaria o trabalho destruir minha
vida pessoal. Se um dia tivesse filhos, eu nunca os negligenciaria ou deixaria de
curtir suas infâncias para me afundar em uma empresa.
E, no final das contas, diante de tais exigências, eu precisava concordar
que estava gostando do que fazia. O que era surpreendente.
Agora eu era um homem de negócios, um CEO. Acordava cedo — bem
cedo, principalmente para meus antigos padrões —, gastava algum tempo
puxando ferro — apesar de tudo, eu não pretendia perder o corpo que tinha
conquistado —, tomava um bom café da manhã, aprontava-me e saía. Em alguns
dias, conseguia fazer amor com Christine, antes que ela também saísse para o
trabalho. Como a cafeteria abria muito cedo, ela normalmente deixava a mansão
ao mesmo tempo em que eu descia para a sala de musculação.
Pensar em Christine involuntariamente proporcionou-me um sorriso
bobo.
Vesti, então, meu paletó, despedi-me do pessoal que trabalhava no meu
andar e fui até o estacionamento pegar meu carro. Antes de começar a dirigir, fiz
uma ligação.
— Ei, maninha! Tudo pronto?
— O que você acha, Tuco? — Cléo falou, levemente impaciente. — Saí
de lá agora. Deixei tudo como pediu. Agora vê se arrasa, hein?
— Você é sensacional. Amanhã será o seu dia, hein? Vê se descansa.
— E você, vê se não fica transando a noite inteira ou vai chegar exausto
amanhã.
— Desde quando sexo me cansa?
— Cala a boca que eu não quero ficar sabendo da vida sexual do meu
irmão. Agora desligue e vá buscá-la. Depois me conta tudo.
— Você acabou de falar que não quer saber sobre a minha vida sexual...
— zombei.
Por seu silêncio, imaginei que sua expressão deveria ser de puro desdém.
— Me poupe, Arthur!
Com isso, ela desligou. Não pude evitar uma gargalhada.
Enquanto começava a dirigir, pensava no quanto minha vida tinha
mudado. Não apenas naqueles três anos, mas principalmente nos últimos meses,
depois que todo o pesadelo teve fim. Às vezes ainda era difícil não lembrar, e eu
sabia que Christine e Cléo passavam pela mesma agonia que eu. A primeira, por
exemplo, demorou muito a se livrar dos pesadelos, mas tudo parecia estar
melhor agora. Então, era a hora certa de dar mais um passo.
Peguei o caminho até a Urca, dirigindo tranquilamente e ouvindo uma
música no rádio para aplacar a ansiedade. Quando cheguei, por conta do trânsito,
o sol começava a dar sinais de que iria, em breve, se pôr. Ainda estávamos no
horário de verão, por isso, Christine teimava em fechar a cafeteria mais tarde,
mas sempre que eu conseguia ir buscá-la, o local já estava vazio. Ainda que não
houvesse mais perigo em relação à MR, eu odiava vê-la lá dentro sozinha e
vulnerável, especialmente em uma sexta-feira.
Cruzei a porta de entrada, e ela logo se virou na minha direção, abrindo
um sorriso. Um daqueles levemente maliciosos que me faziam ter vontade de
jogá-la em uma daquelas mesas e perder a cabeça ali mesmo.
Não seria a primeira vez. Nem a segunda. Nem a terceira. Talvez
tivéssemos feito muito aquilo naqueles últimos meses. Porém, naquele dia era
diferente. Eu tinha uma surpresa.
Dando a volta no balcão, ela aproximou-se de mim e colocou-se na ponta
dos pés para me beijar.
— Acho ofensivo você aparecer aqui de terno, desse jeito.
— Ofensivo? Por quê? — perguntei, provocativo.
— Porque você fica um tesão dessa forma. Só penso em besteira quando
te vejo assim.
Ah, puta que pariu! Ela estava jogando sujo.
— Já terminou por hoje? — Precisei mudar de assunto para conseguir
manter o foco.
Chris estranhou.
— Sim. Já vou fechar. Você me ajuda?
— Claro.
Exatamente como ela me pediu, ajudei-a a fechar a cafeteria, trancando
tudo, puxando a porta de rolar e entramos no carro.
Ainda me mantinha em silêncio, o que ela logo percebeu.
— Aconteceu algo? — indagou preocupada.
— Se eu te pedir para fazer uma coisa, você faz? Sem perguntar o
porquê?
Ela hesitou.
— Faço. Mas você está me assustando...
— Não se preocupe. É uma coisa legal. — Fiz uma pausa. — Você
lembra que eu disse que não queria ficar morando na mansão por muito tempo?
— Claro. Mas o que tem isso?
— Quero que tenha essa informação em mente. — Apontei para o porta-
luvas. — Abra e tire um pano preto que está aí dentro. — Ela seguiu minhas
instruções. — Coloque-o nos seus olhos.
— O quê? — Christine surpreendeu-se, mas logo pude sentir que estava
começando a gostar da brincadeira.
— Quero que vende seus olhos. Tenho uma surpresa.
Novamente, ela demorou a agir, parecendo extremamente curiosa.
Contudo, acabou por obedecer.
— Espero que ninguém nos pare em uma blitz — comentou, e eu apenas
ri.
Liguei outra vez a música no rádio, para criar um clima, e segui em
direção ao nosso destino. Literalmente.
A viagem durou mais de uma hora, por conta do trânsito, e eu sentia
Christine cada vez mais ansiosa. Assim que cheguei em frente ao condomínio,
abri a janela para acionar o controle do portão, e ela se remexeu no banco ao
ouvir as vozes de algumas crianças que brincavam na área comum. Estava calor
lá fora, então, um bafo quente rapidamente entrou dentro do carro, e eu me
apressei em fechar novamente o vidro.
Ela continuou calada até que eu parei e desliguei o motor.
— Falta pouco. Mas vai ter que confiar só mais um pouquinho em mim.
Espere aqui que já venho te buscar.
Ela não disse nada, apenas sorriu. E eu não resistia àquele sorriso, por
isso, beijei-a rapidamente na boca antes de saltar. Peguei as chaves no meu bolso
e abri o portão da casa à minha frente. Voltei ao carro, abri a porta do passageiro
e a tirei de lá no colo, fazendo-a soltar um gritinho baixo de surpresa.
Fechei a porta do carro com o pé e cruzei o portão com ela nos braços.
Assim que estávamos em uma posição privilegiada, coloquei-a no chão.
— Fique de olhos fechados e só abra quando eu mandar, ok? — Ela
novamente assentiu com a cabeça.
Pondo-me às suas costas, desamarrei o pano. Dei uma olhada nela e vi
que estava mesmo de olhos fechados.
— Pode abrir os olhos.
Assim ela o fez, mas ficou confusa ao ver onde estávamos. À nossa
frente estava uma casa toda mobiliada, de dois andares, rodeada de árvores,
flores, uma piscina, churrasqueira e até uma pequena sauna. Não era uma
mansão — longe disso —, mas era uma linda propriedade, em um condomínio
fechado, com toda a segurança e liberdade.
— Arthur, o que é isso?
— É a nossa casa. — Ela ia falar alguma coisa a mais, mas eu ergui um
dedo, pedindo que esperasse mais um pouco. — Vamos terminar de vê-la antes
de qualquer coisa?
— Tá, tudo bem — respondeu confusa, e eu peguei sua mão, começando
a ficar nervoso.
Mostrei-lhe a casa toda, e, como prometido, ela não fez perguntas. Deixei
a suíte principal por último e fiz certo suspense antes de abrir a porta.
Lá dentro, centenas de pétalas de rosas estavam espalhadas pela cama e
pelo chão. Por um momento achei que pudesse considerar brega ou romântico
demais, mas ela merecia tudo que era clichê; merecia aquilo e muito mais.
— Você preparou tudo isso para mim? — indagou com os olhos
brilhando, emocionados.
— Para ser sincero, eu tive a ideia, mas Cléo a executou. Fiquei preso na
empresa o dia inteiro...
— Está tudo tão lindo! — Chris exclamou, levando a mão ao rosto e
girando em torno de si mesma para olhar ao redor. — A casa inteira é linda. Um
sonho... Mas será que agora você pode me explicar do que se trata?
Sem responder, tirei uma caixinha do meu bolso e ajoelhei-me na frente
dela. Christine prendeu a respiração e pousou uma mão no peito, sobre o
coração.
— Wendy... — Enquanto falava, abria a caixinha, revelando um belo anel
de diamantes, que havia escolhido especialmente para ela. — Sei que já pedi
uma vez, mas até hoje não tive resposta. Vivemos muitos momentos juntos. E
quando me perdi de mim mesmo, você foi a única coisa boa que ainda restou.
Por isso, quero que passemos por muitas coisas mais. Todas boas. Um dia te
chamei de minha melhor amiga, depois de minha namorada e agora quero que
seja minha esposa. Aceita se casar comigo?
— É um pedido de verdade desta vez? — ela falou, chorosa, com uma
voz doce que me fazia derreter.
— Foi de verdade na primeira.
— Mas agora tem um anel...
— Não sabia que a senhorita era assim tão fã de joias — brinquei,
sentindo-me cada vez mais ansioso.
— Não sou. Só desta aí. — Ela fez uma pausa, com o choro se
intensificando. — É claro que eu quero me casar com você.
Sentindo-me leve, peguei a mão dela, trêmula, e posicionei a joia em seu
dedo anelar da mão direita.
Coloquei-me de pé e puxei-a para um beijo. Contudo, não demorei
muito, porque ainda tinha coisas a responder.
— Eu comprei esta casa para nós. Para que possamos morar aqui quando
nos casarmos, ou a partir de hoje mesmo, se você quiser.
— Ah, meu Deus! — ela exclamou, ainda mais emocionada. — Eu posso
trazer o Kibe?
Gargalhei com aquela pergunta.
— O que acha? Não só pode trazê-lo como pode pegar mais uns cinco
gatos, se quiser. Tem espaço para todos eles aqui.
— Posso pegar um cachorro? Ou melhor... dois. Eu me contento com
dois vira-latas e o Kibe. Isso, é claro, se ele aceitar outro animalzinho como
irmão... Mas tenho certeza que depois de um tempo vai acabar se acostumando e
seremos quase uma família, então... — Com um sorriso de orelha a orelha, ela se
calou subitamente. — Acho que me empolguei e comecei a falar pelos
cotovelos.
Fazia tanto tempo que eu não a via sorrir daquela maneira que poderia
deixá-la falar até amanhã. O fato de ela estar fazendo planos para nosso futuro
me trazia uma sensação muito boa; porém, algo que disse pareceu se destacar em
meio ao resto.
— Uma família? Gostei muito de como isso soou. Você quer formar uma
família comigo? Filhos, cachorros, gatos, papagaios, calopsitas...
— Eu posso ter tudo isso? — Ela arregalou os olhos de uma forma tão
fofa e doce, que não resisti e a agarrei, beijando-a e erguendo-a do chão,
segurando-a pelas coxas e fazendo-a entrelaçar as pernas na minha cintura.
— Você pode ter tudo o que quiser. Mas sem dúvidas já tem o meu
coração...
— E ele é a coisa mais valiosa de todas. Mas acho que agora, senhor
engravatado... — Ela puxou minha gravata com um olhar quase indecente de tão
sexy. — Quero que me jogue em cima daquelas pétalas e que faça amor comigo
até amanhã de manhã...
— Seu pedido é uma ordem, futura senhora Montenegro...
Fomos parar na cama, cheios de risadas, amor e promessas. O passado
seria apenas um borrão em nossas lembranças. Ali estava o nosso futuro. E ele
vinha cheio de esperança.
Epílogo
SANTIAGO
FIM
AGUARDE A CONTINUAÇÃO DESTA HISTÓRIA
NA ELETRIZANTE SEQUÊNCIA:
“Bianca Carvalho encanta os leitores com a sua escrita e com o amor as letras
enaltece a nova literatura nacional.” Juliana Parrini (Autora de Depois do que
aconteceu - Ed. Suma de Letras)
"Bianca Carvalho é uma surpresa boa e a certeza de que nossa literatura não
deve nada aos livros estrangeiros". MARINA CARVALHO (Autora de O amor
nos tempos do ouro – Ed. Globo)
“Bia Carvalho possui a sutileza dos grandes mestres do suspense. Sabe amarrar
as tramas com fios que prendem o leitor até o final, com surpresas e resoluções
inusitadas. Além disso, tem a garra de trabalhar sua arte como pouquíssimos
autores, talento raro em tempos de necessária parceria escritor-editora".
MAURÍCIO GOMYDE (Autor de Surpreendente – Ed. Intrínseca)
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