Você está na página 1de 452

O Que Ainda Restou

Livro I – Duologia mr

Bia Carvalho
Copyright© Bianca Carvalho
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Todos os personagens desta obra são plenamente fictícios. Qualquer semelhança
com a realidade é mera coincidência.

Capa: André Siqueira


-------------------------------------------------------------
O QUE AINDA RESTOU
Bia Carvalho

Edição digital - 2018


-------------------------------------------------------------
Índice
Prólogo
CAPÍTULO UM
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Epílogo
SINOPSE:

Meu nome é Arthur Montenegro. Três anos atrás eu simplesmente desapareci,


sendo dado como morto pelos meus familiares e amigos. Porém, a verdade é
completamente diferente.
Fui sequestrado por uma corporação secreta e recebi um treinamento militar. O
objetivo era me tornar um assassino, mas eu escapei. Ao voltar para minha vida
real, já não era o mesmo.
Apenas um pensamento preservou minha vontade de lutar e sobreviver:
Christine. A mulher que eu amava e que tanto magoei antes de desaparecer.
Contudo, surgir na porta da casa dela ferido e precisando de ajuda talvez não
fosse a forma mais correta de me redimir. Muito menos colocá-la em perigo.
Aqueles que me sequestraram ainda me perseguiam. Por saber demais, queriam
me eliminar. A solução que encontraram foi usar Christine para me atingir.
Então, eu precisava protegê-la, enquanto armava um plano de vingança, sem
saber que havia muito mais segredos que colocariam a prova tudo em que eu
acreditava e todos aqueles em quem confiava.
DEDICATÓRIA:

Quando escrevi a dedicatória deste livro, alguns dias atrás, o seu nome foi
citado, porque não poderia ser diferente. Você fez parte de cada momento, de
cada linha, surtando e vibrando a cada avanço da história. Apaixonou-se por
Arthur e Christine tanto quanto eu e me deu vários preciosos conselhos durante o
processo de escrita.
Quem diria que você não estaria aqui para vê-lo ganhar o mundo?
A gente nunca pensa que vai perder alguém. Quando abrimos as portas do nosso
coração para uma pessoa, temos a esperança de que a amizade florescerá e se
tornará cada dia mais forte, seguindo um curso normal. Hoje, pensando nisso, eu
entendo muita coisa.
Foi por isso que eu e você nos entendemos tão rápido. Por isso me apeguei a
você na velocidade da luz... porque tinha que ser assim... Não teria muito tempo
para aproveitar sua estadia na minha vida, porque você partiu. Cedo demais...
Já faz alguns dias que você se foi, mas ainda está muito difícil. As coisas mais
simples se tornaram extremamente dolorosas. Acordar sem o seu bom dia de
todos os dias é a parte mais complicada. Ouvir uma música que você gostava é
quase impossível. Escrever o livro que tanto amava e do qual nunca poderá ler o
fim é cruel.
Pouco antes de você partir, tivemos uma conversa com as nossas meninas,
falamos sobre alguns assuntos sérios e agradecemos por termos umas às outras
para compartilhar experiências e nos darmos apoio. Quando você se foi, nós
apoiamos uma à outra, viu? Porque sei que era isso que você iria querer. Nosso
elo continua forte, e assim continuará por você. Você ainda está entre nós, de
alguma forma. Incentivando-nos e nos dando força para seguir. Fizemos
promessas novas, Thamy. Promessas de não desistirmos dos nossos sonhos e de
deixarmos você muito orgulhosa, de onde quer que esteja.
Então, amiga... orgulhe-se de Arthur e Christine. Por favor. Porque este livro é
seu, assim como todos os próximos que eu escrever. Todos terão um pedacinho
de você. Todos serão, de alguma forma, para você.
EM MEMÓRIA DE THAMIRES SILVIA

“It well may be / That we will never meet again / In this lifetime / So let me say
before we part / So much of me / Is made of what I learned from you / You'll be
with me / Like a handprint on my heart / And now whatever way our stories end /
I know you have re-written mine /By being my friend”
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um
monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
(Nietzsche)
Prólogo

ARTHUR
OUTUBRO DE 2014

Meus olhos se abriram e se fecharam no espaço de um segundo, afetados


pelas luzes fluorescentes vindas do teto. Tentei me mexer, mas meus punhos e
tornozelos estavam fortemente amarrados com tiras de couro a uma maca. A dor
de cabeça era lancinante, meus ouvidos zumbiam e minha boca estava seca.
Esforcei-me ao máximo para olhar ao redor e o que vi foi uma espécie de sala de
operação moderna, cheia de aparelhos e cheiro de éter.
Encontrava-me nu da cintura para cima, e minhas pernas ainda estavam
cobertas pela mesma calça jeans com a qual saí de casa, se bem me lembrava.
Como podia me lembrar disso, mas não ter qualquer memória de como
fui parar ali?
Na verdade, lembrava-me de muito poucas coisas das últimas horas,
apenas alguns flashes desorientados, como se um filme acelerado se passasse em
minha mente. Lembrava-me da bebedeira, da balada, do acidente... e mais nada.
Absolutamente nada.
Sentia meus cabelos razoavelmente longos, castanhos e lisos grudando na
testa, e o calor que me acometia nada tinha a ver com a temperatura da sala, que
mais parecia um frigorífico. Era meu medo falando mais alto. Um milhão de
cenários surgiam em minha mente, e em todos eles eu era torturado das formas
mais dolorosas possíveis por sádicos em troca de dinheiro. Isso a minha família
possuía de sobra, mas não sabia se seria suficiente. Algo me dizia —
provavelmente meus instintos desesperados — que não planejavam cobrar por
um resgate.
Um ranger de porta me fez parar de refletir. Não sabia se era pior
permanecer sozinho ou acompanhado. Se conseguisse me soltar, haveria uma
chance. Não era lá muito ruim de briga e tinha um tamanho considerável,
embora estivesse um pouco fora de forma por conta da minha vida levemente
desregrada.
Na sala, entraram duas pessoas. Um homem de meia idade e uma jovem
pequena, mais apreensiva do que eu mesmo. Ambos aproximaram-se da maca,
um de cada lado, como se me cercassem. Com ainda mais ímpeto, tentei
novamente me soltar, até sentir a mão delicada da mulher em meu peito,
tentando me acalmar. Voltei a cabeça na direção dela como um chicote, fitando-a
com toda a raiva contida em meu peito, fazendo-a recuar assustada.
— Não resista, Arthur. Você é um homem de sorte por ter sido escolhido
— disse o homem.
— Escolhido para quê? O que estou fazendo aqui? — vociferei e mal
reconheci a minha própria voz. Soava arranhada, grave e quase embolada, como
se tivesse acordado de um coma.
— Em breve você saberá. Precisa apenas se acalmar.
Eu não queria me acalmar, pois muitas coisas estavam em jogo. O fato de
saberem meu nome era prova suficiente de que não fui capturado por uma
escolha aleatória. Precisava descobrir mais coisas e pensar em estratégias para
escapar. No entanto, minha reação seguinte foi berrar como um animal e usar de
toda a minha força para tentar me soltar. No entanto, ainda abalado pelos
sedativos, me vi cansado em poucos segundos.
Nenhuma das duas pessoas presentes na sala me deu atenção. O homem
preparava alguma coisa, mas não consegui ver o que era. A garota, por sua vez,
esperava impaciente, com a respiração acelerada e as mãos trêmulas.
— Por que estão fazendo isso? O que querem de mim? — indaguei
diretamente a ela, olhando em seus olhos, esforçando-me para fazê-la me ver
como um ser humano e não como uma cobaia de laboratório.
A moça não respondeu nada, apenas virou-se na direção de seu
companheiro, que já retornava. Nas mãos cobertas por luvas cirúrgicas, trazia
uma pistola para tatuagem, já ligada, emitindo aquele som perturbador, que eu
sempre evitei, porque nunca tive o menor interesse em desenhar o meu corpo.
Agora seria obrigado a isso.
— O que vai fazer? Merda! — gritei. — O que vai fazer?
Conforme a agulha se aproximava do meu ombro, sentia-me mais e mais
apavorado. Não fazia ideia do que estava acontecendo. Pensamentos sobre seitas
satânicas secretas, grupos terroristas, campos de concentração ou qualquer coisa
do gênero se remexiam dentro da minha cabeça, misturando todas as ideias e
tornando-as cada vez mais assustadoras.
— Se continuar se mexendo, vamos sedá-lo outra vez. Isso aqui não vai
demorar nada e será inevitável. Precisamos identificá-lo.
Identificar? Mas que diabos...?
O homem tinha uma voz serena, paciente, como se já estivesse
acostumado a lidar com aquele tipo de rebeldia. No momento em que se
aproximou ainda mais de mim para fazer a bizarra tatuagem, decidi ficar parado
e fingir submissão para tentar buscar uma alternativa. Também prestei o máximo
de atenção nas feições do meu algoz, jurando que jamais esqueceria aquele rosto
vincado, inexpressivo, de olhos pequenos e negros, a cabeça calva e os óculos de
aro escuro, pendurados no nariz. Não importava o que me acontecesse dali em
diante; aquele homem, um dia, iria pagar.
Meus lábios se franziram em uma linha reta quando senti a agulha
penetrar minha carne. Naquele momento, por mais que tenha durado pouco mais
de um minuto, pude sentir cada investida da pistola como se fossem pequenos
punhais perfurando meu corpo em câmera lenta. O fato de estar apavorado
ajudava e muito.
Depois de terminar sua tarefa, o desconhecido pegou um pequeno
espelho sobre a bancada e aproximou-o de mim, mostrando-me o que fora
desenhado de forma perpétua em meu corpo: o número 48.
Eles tinham me marcado... como gado.
— Arthur Montenegro, agora você é nosso soldado número 48. Como
disse anteriormente, é um homem de sorte.
— Soldado? Mas que porra é essa? Eu quero sair daqui... AGORA! —
Não sabia mais o que dizer. Sentia-me como uma vitrola enferrujada repetindo
as mesmas coisas.
— Qual é mesmo o nome de contato dele? — Ignorando-me, o homem
dirigiu-se à garota assustada, que parecia completamente absorta em seu próprio
pânico, totalmente imóvel. Ao ser solicitada, ela sobressaltou-se, e uma voz
falha, quase sussurrada, respondeu:
— Christine Abrantes. Foi para ela seu último telefonema.
A menção daquele nome provocou um estalo no meu cérebro, como se
tivessem acionado a chave responsável por conectar todos os neurônios um ao
outro até que pensamentos coerentes começassem a se formar.
Eles não podiam estar falando de Christine... não da minha Christine. O
que poderiam saber sobre ela? Por que a tinham mencionado? Será que também
a tinham sequestrado, embora não estivéssemos juntos quando sofri o acidente?
Estaria ela presa e sendo marcada em outra daquelas salas?
Só de pensar em Christine amedrontada e nas mãos daqueles sádicos,
recomecei as vãs tentativas para me soltar, com ainda mais violência do que
antes. Mas parecia inútil. Só consegui esfolar meus punhos, que já começavam a
sangrar.
— O que tem a Christine? Vocês não vão colocar suas mãos imundas
nela. Eu mato todos vocês! — berrei novamente, e continuaria gritando até não
me sobrar um único resquício de voz. Porém, outra picada de agulha me fez
parar.
Não era mais uma tatuagem, mas um líquido com efeito praticamente
imediato. No momento em que a injeção terminou, já comecei a me sentir
letárgico. Seria apenas uma questão de segundos para que apagasse.
A visão ficou turva, e as luzes no teto, para onde minha cabeça agora
apontava, imóvel e pesada, começavam a me cegar lentamente até o ponto de
minhas pálpebras não terem mais forças para continuarem abertas. Mal
conseguia mover os lábios para protestar, mas, em um esforço que exigiu tudo de
mim, a única palavra proferida por eles foi o nome de Christine.
Algo me dizia que dificilmente a veria outra vez. E, com esse
pensamento, finalmente cedi à escuridão, entregando-me à inconsciência.
Capítulo Um
CHRISTINE
OUTUBRO DE 2017

Como se fosse uma tradição, o dia amanheceu cinza e cheio de nuvens


carregadas. Pequenas gotas de chuva deslizavam pelas vidraças das janelas, mais
parecendo beijos de fantasmas. Já passava das seis da manhã, mas a noite se
mostrava mais preguiçosa, recusando-se a abandonar o céu e recolher-se para
dormir. Algo que eu, em contrapartida, adoraria estar fazendo. Porém, como não
tinha escolha, tentava curar minha dor de cabeça e meu péssimo humor com uma
bela caneca de café, que era, sem dúvidas, o remédio para todos os males do
mundo.
Era uma pena que não fosse capaz de curar um coração partido. E disso
eu entendia muito bem.
Abri a cafeteria um pouco mais cedo do que o habitual, simplesmente
porque também saí da cama antes do horário de costume. Assim como os dias
nublados, sofrer de insônia naquela maldita semana do ano fazia igualmente
parte da minha rotina. Por isso, esperava usar o trabalho para me ajudar a
esquecer.
Porém, a solidão, combinada com a chuva e a música melancólica da
rádio, não contribuía muito para que minha mente se enchesse de pensamentos
felizes com unicórnios, borboletas e pôneis saltitantes.
Ainda sentada em meu canto favorito da Lattes, minha cafeteria — um
balcão cheio de almofadas debaixo da maior janela do estabelecimento, onde os
clientes podiam levar livros para lerem ou simplesmente se sentarem para
contemplar a vista para a mureta da Urca e o Corcovado —, abraçada aos
joelhos e segurando minha inseparável caneca em uma das mãos, tentava lutar
contra a tristeza que estava prestes a me abater. Tudo naquele ambiente atiçava
minhas lembranças mais dolorosas, principalmente a decoração estúpida de
Halloween que Telma sempre insistia em fazer. Cada maldito morcego, abóbora
e fantasminha, embora fofos, me obrigavam a reviver a pior época da minha
vida.
Já fazia exatos três anos. Três anos desde que ele se fora.
A cada aniversário de seu desaparecimento, jurava que me esforçaria
para não sofrer, como se fizesse uma resolução de Reveillon. Porém, como
sempre acontecia quando entrava o ano novo, minha determinação simplesmente
desaparecia. Não era uma melancolia diária. Havia aprendido a viver sem ele e
apenas seguia em frente, sentindo-me mais forte conforme o tempo passava. No
entanto, naquele dia em específico, baixava a guarda e deixava a tristeza me
abraçar bem apertado, ameaçando jamais me soltar.
Mas ia superar novamente... assim como a chuva sempre passava, dando
lugar a dias de sol.
Estava um pouco distraída, observando as pessoas passarem correndo,
fazendo exercícios, quando o mensageiro dos ventos preso à porta anunciou a
chegada de alguém. Da posição onde estava, não conseguia enxergar quem era,
mas a voz inconfundível fez um sorriso curvar meus lábios ao pensar que minha
fiel escudeira jamais me abandonava.
— Chris, você está aí? — Sua voz foi tornando-se mais próxima, até que
finalmente consegui ver Maiara, minha melhor amiga, ao meu lado. Olheiras
profundas e uma cara de cansaço de dar pena pintavam seu rosto; claras marcas
de que a licença maternidade estava lhe fazendo falta. — Eu te amo por ter
aberto mais cedo. Acho que morreria por um café.
Sorrindo, levantei-me, amaldiçoando a mim mesma por não ter
conseguido tomar um gole sequer da minha própria caneca. Ao passar por
Maiara, estiquei-me e depositei um beijo terno no rosto dela. A diferença de
altura entre nós sempre foi motivo de piada. Eram mais de dez centímetros,
acrescidos dos enormes saltos altos, constantemente presentes nos pés da mais
alta. E se tinha uma coisa que eu odiava era ser baixinha.
Maiara literalmente jogou-se em um dos bancos altos em frente ao
balcão, onde eu já começava a preparar o café.
— Faz três noites que não durmo. Já deveria estar acostumada a essa
altura, mas com a rotina de voltar ao trabalho, não sei como vou dar conta. —
Ela fez uma pausa, colocando os braços sobre o balcão e escondendo a cabeça
sobre eles. — É nesse momento que eu começo a me perguntar por que decidi
parar de tomar anticoncepcionais. — Sua voz saiu abafada por conta de sua
posição.
Com uma risadinha, pousei a xícara fumegante bem ao lado de Maiara,
fazendo o aroma viajar pelo ar como pequenas borboletas brincalhonas. O
propósito de provocar minha amiga foi atingido com êxito, porque ela
imediatamente ergueu a cabeça, praticamente agarrando a caneca e
aproximando-a do nariz, inspirando profundamente.
Foi quase como um ritual. Nós duas nos sentamos de frente uma para a
outra, sorvendo nossos cafés em silêncio, aproveitando o momento como se
fosse uma experiência sensorial. Fechei os olhos e comecei a me sentir
verdadeiramente bem pela primeira vez naquele dia de merda. Obviamente seria
uma sensação passageira, já que ele estava apenas começando, longe de chegar à
pior parte.
— Você não está muito diferente de mim. Sua cara está péssima. O que
aconteceu? — Meus olhos ainda se mantinham fechados quando ouvi minha
amiga perguntar.
Tentei dar de ombros, fingindo não ser nada de importante, mas era
difícil enganar uma pessoa com quem convivia quase diariamente há
praticamente três anos.
— Assim como você, também não tive uma boa noite de sono —
respondi, enquanto reunia todo o meu cabelo castanho revolto e o torcia em uma
única mecha, jogando-o inteiro para um lado só. Ainda não estava acostumada
com o novo comprimento, por mais que o tivesse cortado há algumas semanas.
Acostumada a usá-lo muito longo, quase chegando à cintura, tê-lo pouco acima
dos ombros era uma novidade.
— Por q... — Maiara estava prestes a concluir seu pensamento, mas era
fácil perceber em seus olhos que tinha se lembrado de alguma coisa.
Provavelmente a data, pois logo acrescentou: — Ah, Chris, que bosta de amiga
eu sou. Como pude esquecer que dia é hoje?
— Você não tem que ficar lembrando sempre. Nem o conhecia...
— Não importa. Sei o quanto é difícil para você; deveria mostrar no
mínimo um pouco de compaixão. — Sem nem ser convidada, Maiara deu a volta
no balcão e me apertou em um abraço de urso.
Deixando-me levar pelo apoio oferecido, acabei derramando algumas
poucas lágrimas solitárias.
Odiava isso! Odiava a fragilidade que aquelas lembranças me
proporcionavam, mais ainda a forma como me agarrava a elas, mesmo depois de
tanto tempo.
Em certos momentos, chegava até a odiar Arthur. Sentia raiva por ter me
deixado, embora ele não tivesse um único átomo de culpa — afinal, quem é que
pede para cair de um despenhadeiro em plena madrugada e ser dado como morto
para tudo e todos? Apesar de não poder responsabilizá-lo, eu o odiava
simplesmente porque precisava descontar aquele sentimento tão negativo em
alguém. E se fosse realmente sincera, deixando a parte do respeito por uma
pessoa morta de lado, assumiria que já o amaldiçoara várias vezes por ser tão
inconsequente e dirigir embriagado. Não havia provas a respeito disso, já que
nunca puderam realizar uma autópsia sem corpo, mas não seria a primeira vez.
— Está tudo bem, Mai. — falei quando nos afastamos. Enquanto usava
as costas da mão para limpar as lágrimas, acrescentei: — Estou só um pouco
desanimada, mas vou melhorar. A chuva não ajuda, né? — tentei descontrair,
mas não estava nem um pouco a fim de sorrir.
— Pode tentar enganar qualquer outra pessoa com esse papinho, mas não
a mim. — Maiara levou a mão ao meu rosto, para apagar os resquícios de
lágrimas que ainda permaneciam ali. — Ele era seu melhor amigo. Não se
supera uma perda como essa tão fácil.
— Mas vai ficando menos doloroso, não vai? Foi assim com meus pais.
— O problema é que o corpo de Arthur nunca foi encontrado. Você ainda
tem esperanças de que ele esteja vivo?
Desde que atendi àquela maldita ligação, esta pergunta vinha
assombrando a minha mente. Nunca soube por que fui escolhida para receber a
notícia, mas o policial com quem falei fora categórico ao afirmar que seria
impossível sobreviver a uma queda daquelas. O carro fora encontrado lá
embaixo, caído do alto da Grajaú-Jacarepaguá, na noite de trinta e um de
outubro de 2014, depois de uma ligação para a polícia, vinda de uma testemunha
do acidente que não quis se identificar. Exatos três anos atrás. Buscas
intermináveis foram feitas, até darem o caso por encerrado. Nós sabíamos que
não iriam procurar para sempre, mas tanto eu quanto a família ficamos
indignados quando todos resolveram simplesmente... desistir. Os pais dele ainda
bancaram o serviço por um tempo, mas logo desanimaram e também seguiram
em frente. Tudo o que restara de Arthur foram as lembranças e uma sepultura
vazia para simbolizá-lo.
Mas se ele ainda estivesse vivo...
Deus, não queria nem pensar nisso.
— Desculpa, Chris. Falei merda, não foi? — Maiara pareceu perceber o
quanto aquela possibilidade me afetava, pois logo balançou a cabeça,
repreendendo a si mesma.
— Tudo bem. Só vamos mudar de assunto, pode ser? — Ela começou a
assentir com veemência, enquanto bebia mais um pouco de seu café. — Como
vão as coisas no hospital? Já tem quase uma semana que você voltou, mas ainda
não tivemos oportunidade de conversar sobre isso. — Era uma clara e descarada
tentativa de desviar do tema anterior, mas eu nem se importava.
Maiara encolheu os ombros, erguendo as sobrancelhas.
— Como eu já imaginava que seria. Passei seis meses afastada, e um
bando de abutres apareceram tentando roubar o meu lugar. Você sabe como são
esses ambientes de trabalho; sorte a sua por ter seu próprio negócio. Não tem
nada melhor do que ser seu próprio chefe. — Assenti, concordando,
incentivando-a a continuar a falar.
No entanto, antes mesmo de Maiara poder emendar em outro assunto, o
mensageiro dos ventos soou de novo, com a chegada de mais um cliente. Um
que não precisava nem ser anunciado. Tratava-se de um pai divorciado que
levava todos os dias suas duas filhas gêmeas para comer cupcakes de avelã.
— Doces ou travessuras? — as duas pequenas berraram, entrando na
cafeteria e correndo em direção ao balcão. Por mais cansada e mal humorada que
estivesse, não pude deixar de sorrir ante a visão das garotinhas vestidas de
bruxas e pintadas de verde, como Elphaba, da peça de teatro Wicked, que um dia
lhes contei ser a minha preferida.
— Meu Deus, como vocês estão lindas! — exclamei, colocando as duas
mãos no rosto, em uma demonstração de surpresa muito exagerada.
Correndo logo atrás das crianças vinha o pai. Era um cara bem
apessoado, respeitoso e muito gentil. Sempre aparecia usando um terno bem
cortado, constantemente atrasado para levar as meninas ao colégio.
— Ei, Chris! Bom dia. Pode me servir um café e dois cupcakes, um para
cada monstrinho desses aqui? — o pai falou afobado, entrando e erguendo
ambas as filhas para colocá-las sentadas nos bancos, bem ao lado de Maiara.
— Monstrinhos, não, papai! Somos bruxinhas — uma das garotinhas
disse, corrigindo-o, com sua vozinha estridente. A outra, no entanto, estava
muito mais preocupada com o celular do pai, do qual não tirava os olhos.
— Claro, claro. — Roger, o pai das crianças, também se acomodou em
um dos bancos, deixando sua pasta e seu paletó sobre o balcão. — Desculpa
chegarmos tão cedo, mas hoje é a festa de Halloween da escola das meninas, e
elas estão muito empolgadas. Não dormiram nada, e eu, consequentemente,
também não.
— Ah, então entra para o clube, amigo. Parece que a bruxa estava mesmo
solta, porque nenhuma das pessoas neste estabelecimento conseguiu pregar os
olhos — Maiara disse, erguendo sua caneca quase vazia, como em um brinde.
Assim que entreguei o café de Roger, ele imitou o gesto antes de dar uma golada
considerável.
O lugar rapidamente foi preenchido por sons, e eu quase comecei a sentir
falta do silêncio. Funcionando no automático por causa do sono, coloquei um
cupcake diante de cada uma das meninas. Kayla, a mais agitada, agarrou o doce
e logo o abocanhou. Kelly, por sua vez, permaneceu concentrada no joguinho do
celular, que emitia barulhinhos levemente irritantes.
— Querida, por que não larga o celular agora para comer? — O pai,
extremamente paciente, tentou puxar o aparelho das mãozinhas da menina, que
logo o segurou com mais força, nem dando atenção à pergunta. Resignado, ele
desistiu.
Desligando-me da cena à minha frente, olhei através das vidraças, para
constatar se a chuva já havia cessado, mas outra coisa chamou a minha atenção.
Parado na calçada, segurando um guarda-chuva preto, que combinava com seu
terno da mesma cor, havia um homem. Calvo, levemente atarracado e usando
uns óculos pendendo no nariz, ele vigiava a cafeteria, imóvel, como uma
assombração. Não parecia querer entrar, estava apenas de sentinela, o que era
bastante incômodo.
Nem sequer vacilou quando percebeu que fora pego, e fui eu que desviei
o olhar, como se o ato de observá-lo fosse um motivo de constrangimento.
Tentei afastar a desconfiança e voltei-me para as pessoas à minha frente.
— Telma ainda não chegou? — Roger perguntou, tentando disfarçar o
interesse. Havia mais dois funcionários na cafeteria além de mim, mas ele
perguntara especificamente por uma. Não pude deixar de sorrir.
— Ainda não, mas deve aparecer a qualquer momento — respondi,
fingindo não perceber as intenções da pergunta e muito menos a forma quase
angustiada com que ele checou o relógio de pulso. Ao ver as horas, uma
expressão de desânimo se instalou em seu semblante.
— Acho que não vai dar tempo de esperá-la. Estamos um pouco
enrolados hoje. Tenho uma audiência bem cedo. Aliás, preciso ir andando... —
Ao dizer isso, voltou-se para as filhas, anunciando que precisavam se apressar.
Kayla, que já tinha terminado seu doce, levantou-se sem resmungar, mas Kelly
mal começara.
— Ah, papai... não podemos esperar um pouquinho? Tem um
morceguinho no meu cupcake. Não posso comer rápido, senão ele vai sumir... —
ela fez beicinho.
— Você pode levar seu morceguinho para a escola e comê-lo lá. Vai
deixar suas amigas morrendo de inveja por ter um cupcake de Halloween só para
você — Maiara falou, ajudando-o.
— Ah, então eu vou querer outro! Também quero mostrar para todo
mundo! — Kayla protestou.
— Nada disso. Você é comilona e não esperou. Agora só eu vou levar o
morceguinho para a escola.
Kayla começou a chorar, mas Roger não cedeu aos seus apelos. Na
verdade, nem tinha tempo para isso. Apenas tirou uma nota da carteira, pagando
pelo que consumiram e começou a andar até a porta, praticamente arrastando as
meninas. Quando a chorona recusou-se a andar, ele a pegou no colo, gerando
ainda mais berros e fungadas.
— Ufa! — Maiara exclamou quando os três cruzaram a porta, e nós nos
vimos sozinhas. — Isso faz com que novamente eu me questione por que não
continuei tomando anticoncepcionais. Se Roberta virar um monstrinho desses,
vou enviá-la para a adoção.
— Ah, elas não são assim tão ruins. São até fofinhas. — Passando um
pano no balcão, que ficara cheio de farelos de bolo de chocolate, sorri, embora
não conseguisse deixar de desviar o olhar na direção do homem misterioso. Ele
ainda estava parado no mesmo lugar.
— Acho que são mesmo duas bruxinhas. A fantasia coube perfeitamente.
Balancei a cabeça em repreensão. Teria falado mais alguma coisa, mas
fui interrompida pelo celular que começou a tocar.
Deixando a flanela de lado, coloquei a mão no bolso e peguei o aparelho,
suspirando desanimada ao ver o nome de quem ligava na tela.
Não que fosse uma pessoa indesejada, mas era exatamente aquela de
quem gostaria de poder fugir pelo dia inteiro. Só que não seria possível. Tinha
responsabilidades e promessas a cumprir. Além disso, ainda não estava
preparada para me desligar das lembranças e daquela gente. Sentia uma
dependência emocional muito grande para com aquela família, como se eles
fossem o último elo com o passado.
— Oi, Cléo. — Atendi, afastando-me do balcão e de Maiara, indo em
direção à janela. Tentei não demonstrar apatia em meu tom de voz, porque,
apesar de tudo, aquela garota era minha amiga. Assim como eu, perdera uma
pessoa muito importante e merecia meu respeito.
— Oi, Chris. Como você está hoje?
— Bem. E você?
— Levando. É estranho pensar em como uma data específica pode mudar
os ânimos de todos. Fomos dormir bem ontem, mas parece que uma maldição se
abateu sobre a casa. Agora todos estão agindo como zumbis, de luto mais uma
vez. — Era doloroso ouvir aquele relato, principalmente porque entendia muito
bem todos aqueles sentimentos. Depois de alguns segundos de silêncio, como se
nós duas precisássemos daquela pausa para absorver o que fora dito, Cléo
acrescentou: — Você vem hoje, né?
Não era uma pergunta, nem um convite. Era uma imposição, embora
disfarçada. Eu sabia que era esperada para o evento anual onde a memória de
Arthur era homenageada. Uma enorme fotografia era colocada no meio do
jardim da mansão de sua família, enquanto seus amigos mais próximos e
familiares enalteciam suas qualidades. Era irônico pensar que Arthur seria o
primeiro a zombar de tal tradição, se estivesse vivo.
Se estivesse vivo...
Cada palavra chegou rasgando meu coração, ferindo-o como pequenas
adagas envenenadas. Naqueles três anos, evitei usar a expressão “morto” para se
referir a Arthur. Era algo proibido, quase obsceno. Porém, naquele momento,
comecei a temer a possibilidade de estar aceitando o inevitável. Nunca quis
resignar-me nem me permiti seguir em frente com a certeza definitiva de que ele
jamais retornaria. Embora me sentisse uma tola por pensar dessa forma, até
aquela manhã sempre preferi acreditar que um dia ele entraria por minha porta,
com aquela cara deslavada, afirmando ser tudo uma brincadeira. Seria muito
típico de um homem que nunca levou nada a sério.
No entanto, algo mudara. E fora literalmente de uma hora para a outra.
Talvez essa fosse exatamente a explicação para meu humor irritadiço e
melancólico. Provavelmente não tinha nada a ver com a noite mal dormida.
Talvez, como sempre, tudo tivesse a ver com Arthur. Ele não era o motivo de
todas as coisas, sendo boas ou más? Chegara a hora de libertá-lo... de arrancá-lo
do meu coração de forma definitiva e prosseguir com minha vida. Aquela noite
seria a despedida.
— Vou, é claro.
— Que ótimo. Mamãe vai ficar feliz.
Cléo começou a se despedir, pedindo que eu chegasse um pouco mais
cedo para jantar com eles, pois a reunião aconteceria mais à noite e atravessaria a
madrugada. Contudo, minha atenção, de súbito, desviou-se para o lado de fora
da cafeteria, para o homem insistente, que ainda montava guarda no mesmo
lugar, como se não tivesse se movido um único centímetro desde que o vira pela
primeira vez.
Estava na hora de tomar uma atitude.
— Cléo, estou com a cafeteria cheia, podemos nos falar mais tarde? Nos
vemos na reunião de hoje à noite...
Cléo ainda falou mais alguma coisa, tentando impedir-me de desligar
imediatamente, mas nem lhe dei atenção e fui logo cortando a ligação. Deixando
o celular em cima de uma mesa, fechei o casaco em torno do meu corpo e saí da
cafeteria, pronta para tirar satisfações com o homem misterioso — por mais que
não parecesse a melhor das ideias. Queria abordá-lo e saber se precisava de
alguma coisa, se queria falar com alguém, tentando agir com cortesia e gentileza.
Porém, ele provavelmente compreendeu minhas intenções, pois finalmente
reagiu, virando-se de costas e afastando-se, atravessando a rua e seguindo seu
caminho.
Parada diante da porta da cafeteria, observei-o distanciar-se, sentindo-me
cada vez mais intrigada com sua presença. O que será que queria? Poderia ser
um louco qualquer, mas minha intuição me dizia o contrário. Havia algo de
muito estranho em seu olhar, como se tivesse passado o tempo inteiro focado
apenas em mim. Como se me estudasse, avaliasse. Assustador.
Sentindo um calafrio percorrer minha espinha, voltei para dentro da loja,
protegendo-me da garoa gelada que caía lá fora, embora já fosse primavera.
Enquanto fechava a porta, não consegui evitar dar mais uma olhada na direção
do desconhecido, mas qual não foi a minha surpresa ao perceber que tinha
desaparecido, exatamente como se fosse uma assombração.
Era realmente assustador.

***
CHRISTINE

A noite chegou rápido demais. Ao mesmo tempo, sentia como se as horas


tivessem passado em câmera lenta. Dentro do meu peito, o coração batia
descompassado, vivendo um dilema. Por mais que quisesse me livrar de meu
compromisso e despedir-me daquela história de forma definitiva, adoraria poder
adiar o momento do adeus.
Sempre soube que este dia chegaria. Sempre prometi a mim mesma que
passaria por essa fase sem sofrer ainda mais. No entanto, esse tipo de coisa não
se aprendia na teoria. Era um passo de cada vez. Haveria lágrimas, mas com o
tempo viria o alívio.
Arthur estava morto. Não apenas desaparecido. Ele jamais voltaria.
Se continuasse repetindo aquelas palavras, por mais cruéis que pudessem
parecer, acabaria resignando-me.
Embiquei o carro na entrada da casa dos Montenegro exatamente às nove
e meia da noite. Combinara com Cléo que chegaria às oito, para o jantar, mas
protelei a saída de casa ao máximo. Enquanto esperava o portão ser aberto, ergui
os olhos e contemplei a mansão tão familiar, alva, com suas colunas gregas, seu
telhado azul e o jardim no estilo italiano, com o chafariz e os pequenos labirintos
de arbustos muito bem aparados, dando boas-vindas a quem chegava.
Assim que minha entrada foi liberada, entrei, conduzindo o carro ao
pequeno estacionamento de visitantes, na lateral da casa, onde encontrei outros
veículos alinhados ordenadamente. Quando saltei, equilibrando chaves, bolsa e
uma jaqueta nas mãos, não pude deixar de reparar na discrepância ao comparar
meu carro aos outros ali parados. Eram BMWs, Audis, Land Rovers, lado a lado
com meu adorado Ethios Sedan 2015.
A realidade de Arthur sempre foi muito diferente da minha. A amizade
existia apenas porque nossos pais cresceram juntos e mantiveram o contato,
mesmo havendo um abismo entre as condições sociais de ambos. Filha de
professores, nunca me faltou nada, mas tive que aprender desde muito jovem o
valor do dinheiro e a me esforçar para ganhá-lo. Quando minha mãe se
aposentou mais cedo, por conta do câncer — que acabou por tirar sua vida —,
eles abriram a cafeteria e começaram a trabalhar juntos. Então, depois de perder
os dois, passei a cuidar dos negócios. E muito bem, aliás.
Enquanto caminhava em direção às portas da casa, pensava no quanto a
vida era irônica. Se fosse realmente sincera, chegaria à conclusão de que
tínhamos muito pouco em comum. Arthur era um aventureiro, vivia sempre no
limite, esbanjando seu dinheiro, fossem com mulheres, diversão ou presentinhos
caros com os quais mimava a si mesmo. Os Montenegro esperavam muito dele.
Era o primogênito, o filho muito desejado, o mais bonito, mais promissor,
embora nem sempre essas expectativas fossem cumpridas. Abandonara três
faculdades — direito, administração e economia — e todas as vezes que decidia
começar a trabalhar na empresa da família, desistia e prometia que retornaria no
mês seguinte. Se lhe dessem um cartão de ponto, constatariam que em um ano,
ele comparecera ao trabalho apenas seis vezes.
Sempre acreditei que Jorge — que Deus o tivesse — e Selma
Montenegro eram muito transigentes com Arthur, por isso, tentava aconselhá-lo
da melhor forma possível. Embora nunca desse certo, é claro. Além disso, todos
sempre torceram para que nós dois nos tornássemos um casal, por me
considerarem uma influência positiva, mas nunca aconteceu. Ao menos...
Bem... Uma única noite não nos tornava exatamente um casal. Ainda que
tivesse mudado tudo em meu coração.
Ele estava bêbado. Eu, não.
Atingindo o último degrau que levava à porta da casa, toquei a
campainha e esperei. Acreditei que seria recebida por Maria, a governanta da
família há mais de trinta anos, porém, deparei-me com Jorge Júnior, o filho do
meio dos Montenegro, levemente embriagado, com um sorriso torto a curvar
seus lábios.
— Finalmente chegou, pensei que não viria mais. Está cheio de cuecas
aqui dentro, precisávamos de uma garota bonita que não fosse minha mãe ou
minha irmã. — Ele se aproximou e estendeu o rosto para que eu o beijasse.
— Boa noite, J.J. — cumprimentei, tanto com as palavras quanto com o
beijo que ele esperava, embora estivesse completamente reticente.
Também não me senti muito à vontade quando a mão dele foi parar na
curva das minhas costas, para me conduzir à sala, onde os outros esperavam. J.J.
não era, definitivamente, minha pessoa preferida no mundo. Ele não se dava
muito bem com Arthur, porque eram completamente o oposto. Por mais que meu
melhor amigo tivesse muitos defeitos, sua leve irresponsabilidade era
compensada por seu charme e seu carisma, além do coração de menino grande.
Em contrapartida, o outro rapaz Montenegro era ambicioso, calculista e cheio de
olhares maliciosos que muito me incomodavam. Era como se tentasse competir
com o irmão o tempo todo, até mesmo pela minha atenção.
— Ei, galera, chegou a viuvinha do meu irmão... — J.J. anunciou quando
nos aproximamos dos outros convidados. A forma como fui apresentada me fez
respirar fundo e contar até dez. Não valeria a pena responder à altura, porque
aquele cara era um babaca e não sabia parar. Acabaria me estressando e mal
tinha chegado.
Antes que pudesse me arrepender de ter ido, Cléo surgiu ao meu lado,
vindo em meu auxílio para me tirar de perto daqueles idiotas. Havia cheiro de
cigarro e cerveja por todo lado. Mal parecia um evento de homenagem a um
homem falecido, principalmente porque aqueles caras ali não eram amigos de
Arthur, mas, sim, de J.J..
— Que bom que você chegou. Vem, vou te levar à parte decente da casa
— ela falou, franzindo o cenho para o irmão, visivelmente irritada. Assenti,
aceitando sua mão e deixando-me ser conduzida ao jardim, onde outras pessoas
estavam reunidas. Enquanto se afastavam, porém, a voz de um dos amigos
babacas de J.J. soou levemente alterada, exatamente para que eu ouvisse:
— Você tá gostosinha, hein, Christine? Não sei como o Arthur não te
comeu. Se eu fosse bonitão que nem ele, te pegava fácil.
Eu poderia ter ignorado. Poderia ter fingido não ouvir e seguido com
Cléo, porque não valia a pena. Mas o mau humor daquela manhã parecia ter
deixado sequelas, porque não me sentia nem um pouco disposta a levar desaforo
para casa. Sendo assim, coloquei-me bem de frente para o idiota que acabara de
falar e sorri maliciosamente. Abaixando-me e ficando bem na altura de seu rosto,
aproximei os lábios de seu ouvido, sussurrando, mas alto o bastante para os
outros ouvirem.
— Pois é, você está longe de ser bonitão como o Arthur. Mas mesmo se
fosse, não conseguiria me pegar. Não estou disponível para você.
Enquanto todos os outros soltavam exclamações de zombaria, levantei-
me e finalmente segui com Cléo até o jardim, sentindo-me bem pela primeira
vez naquele maldito dia.

***
CHRISTINE

Muitas lembranças ainda moravam dentro daquela casa. Sentia-as


gritando, como se cada momento passado ali tivesse uma voz específica e agora
cantassem em uníssono só para me assombrar. Era sempre assim, desde que
Arthur se fora. Evitara ao máximo pisar naquele lugar, mas às vezes era
necessário, principalmente depois que Jorge também falecera. Foi como se a
casa entrasse em um luto permanente, sendo coberta por uma névoa de
melancolia e morbidez.
Precisava compreender que todas as conexões com aquela família tinham
se extinguido como uma corrente partida ao meio. Nossos pais, que foram os
precursores daquela amizade, não estavam mais presentes. Arthur também se
fora, desfazendo o último laço entre os Montenegro e os Abrantes. Fiz todo o
possível para manter a proximidade, mas eram mundos completamente
diferentes. Embora sempre me sentisse bem-vinda ao chegar ali, como parte da
família, aquela realidade de carros caros, mansões e champanhe sendo servido
como refrigerante não me pertencia.
Esses pensamentos cruzavam minha mente, enquanto todos ouviam
Selma falar sobre o filho, com a voz embargada e os olhos se enchendo de
lágrimas. A elegante mulher encontrava-se de pé, bem ao lado do quadro com o
retrato de Arthur. Por alguns minutos, flagrei-me contemplando a imagem de
forma quase hipnótica, associando as palavras de Selma ao homem que
conhecia. Aquela fotografia não contava nem metade da história de quem ele
era. A aparência de playboy, com aqueles cabelos lisos, castanhos, os olhos
azuis, as roupas caras, o sorriso de um milhão de dólares e a expressão
levemente divertida, como se desdenhasse da vida o tempo todo, mal
começavam a caracterizar o cara justo, generoso e leal que ele era.
Era sobre isso que Selma falava, contando do menino inteligente e
questionador que se tornou um homem feito. Distraída, nem sequer percebi uma
pessoa se colocar ao meu lado, enquanto todos aplaudiam o final do discurso.
Tratava-se de Sidney, irmão de Selma, que era como um pai para Arthur.
Já sabia o que ele estava fazendo ali. Nos dois últimos encontros iguais
àquele, todos tentaram me convencer a também dizer algumas palavras, já que
eu era uma das pessoas mais próximas de Arthur. Eu sempre recusava, temendo
desmoronar, mas daquela vez a ideia me parecia muito apropriada. Se era mesmo
uma despedida, deveria exigir um ponto final definitivo.
— Já sei que vai negar, mas Selma me pediu para falar com você. Todos
adorariam que fizesse um pequeno discurso em homenagem a Arthur — Sidney
começou.
— Eu não sou da família, Sid — respondi, da mesma forma como
sempre fazia.
— Você sabe que eles não compartilham dessa opinião. Arthur, sem
dúvida, também não compartilhava. Ele a adorava.
— Não sou boa com as palavras...
— Ninguém está exigindo que declame Shakespeare ou componha um
soneto. Só queremos que diga como se sente. É uma boa forma de desabafo.
Respirei fundo, porque já estava convencida. Desde o princípio, aliás.
Sentia-me quase segura quando respondi de forma afirmativa para Sidney, mas
perdi toda a confiança quando me vi de pé, diante de todos, sozinha, apenas com
o quadro de Arthur como companhia.
Aproveitei que estava com uma taça de champanhe na mão e virei o resto
do conteúdo de um gole só, fazendo todos rirem.
— Eu precisava de muito mais álcool para colocar para fora tudo o que
tenho para falar. — Novamente todos riram, mas eu estava séria. Compenetrada.
Havia tanto a dizer... tantas coisas... mas nem sabia por onde começar.
— Abra o coração, querida... — Selma falou, abraçada ao irmão, ainda
usando um lenço para limpar as lágrimas.
— Certo... — O nervosismo começava a me tomar de tal forma que
minhas mãos geladas se uniram, esfregando-se uma à outra, enquanto meu peito
subia e descia, arfando. Falar de Arthur era fácil, despedir-se era bem diferente.
E se tinha intenções de dizer um adeus definitivo, precisava colocar na mesa
todos os sentimentos que havia aprisionado por muito tempo. — Eu amava
Arthur. Simples assim. Amava porque não saberia gostar dele de outra forma. E
acho que ele me amou também. De um jeito diferente, da maneira como ele
sabia amar. — Cheia de nostalgia, sorri de forma desanimada, dando boas-
vindas às lembranças que começavam a surgir, enquanto falava. Já não mais
olhava para as pessoas ao meu redor, apenas fitava o nada, quase presa em um
transe. — A alma dele era diferente das outras. Enxergava o mundo de uma
forma muito particular. Costumava chamá-lo de Pan, de Peter Pan, porque
brincava que ele não queria crescer, mas se eu soubesse... — Um nó se formou
em minha garganta, quase me impedindo de continuar. Lágrimas se avolumaram
em meus olhos e escaparam para deslizar por meu rosto. Em qualquer outra
ocasião, elas causariam um leve embaraço, mas não fazia diferença naquele
instante. Não quando estava desnudando minha alma em frente a pelo menos
vinte pessoas desconhecidas. — Se eu soubesse que ele iria morrer tão jovem...
acho que o teria repreendido menos.
Saindo momentaneamente do transe, observei os arredores, e meus olhos
logo encontraram Selma. A mulher parecia ainda mais devastada. Talvez devesse
parar, em respeito a ela, mas agora não conseguiria mais engolir as palavras.
Eram como uma cascata infinita, jorrando por todos os meus poros.
— Todos os que nos conheciam me consideravam uma boa influência
para ele, por ser mais responsável e mais ajuizada, mas, na verdade, ele me
ensinou muito mais coisas. — Dei uma risadinha. — E não estou falando do
óbvio como andar de bicicleta, assobiar e a roubar no Banco Imobiliário, o que,
sem dúvida, ele fez. Estou me referindo a lições de amizade e coragem. Ele me
apoiou quando perdi meus pais e me deu forças para continuar o negócio da
família. Brigou comigo quando perdi essas duas pessoas e achei que minha vida
tinha acabado. Ele me mostrou que eu não estava sozinha. Arthur nunca me
abandonou. Se sou uma pessoa melhor hoje, é por causa dessas pequenas lições,
que ele provavelmente nem sabia o quanto eram preciosas. Muitos o viam como
inconsequente. Eu o via como um menino assustado, com medo da vida e do
destino. — Eu poderia ter acrescentado o que Arthur mais temia, que era se
tornar um homem como o pai, austero, workaholic e totalmente alheio à sua
família, mas preferi não fazê-lo.Quando precisei respirar fundo novamente para
soltar o ar que vinha prendendo cada vez mais, dei-me conta de que talvez
tivesse chegado o momento de terminar. Já havia entregado muito de mim a cada
uma daquelas palavras e temia que não restasse mais nada, nem mesmo para
voltar para casa sem precisar recolher os cacos pelo caminho.
Saboreei as lágrimas, pois seriam as últimas que choraria por ele. Então,
sentindo como se fosse minha última oportunidade — e esperando que, de onde
estivesse, Arthur pudesse me ouvir — virei-me na direção do retrato, falando
diretamente para ele e não para um bando de gente que não conhecia nossa
ligação especial.
— Pan... uma vez você me disse que algumas pessoas são insubstituíveis
e que todas são únicas, desde o DNA até o que levam no coração. Eu vou levar
você no meu. Todos os dias. Para sempre... Mas chegou a hora do adeus... —
Provavelmente ainda tinha mais duas ou três palavras para dizer, porém, não
ousaria. Não quando temia desmoronar por completo. Tudo o que consegui fazer
foi erguer a mão, tocar a fotografia de Arthur e sair correndo, para bem longe de
todos.
Ouvi Cléo me chamar e senti alguém a me seguir, mas não podia parar.
Por mais importantes que aquelas pessoas fossem, não queria mais olhar para
trás. Assim como aqueles pés, que corriam e avançavam, descendo as escadas da
frente da mansão em direção ao carro, precisava seguir em frente.
Quando cheguei ao carro, rapidamente dei a partida e, como uma
fugitiva, escapei daquela casa, deixando muito de mim para trás. Meus olhos
ainda estavam embaçados pelas lágrimas, assim como o vidro que começou a ser
açoitado pela chuva, o que me transmitiu a agridoce sensação de que o céu
também estava chorando por Arthur.
O caminho até a Tijuca, onde ficava meu apartamento, serviu-me como
uma espécie de terapia. Indo contra todas as recomendações de segurança, deixei
o vidro do carro aberto para sentir a brisa gelada que vinha lá de fora. Quando
cheguei ao meu prédio, já me sentia um pouco menos devastada, embora
soubesse que a noite seria péssima.
Segui para a garagem subterrânea do edifício antigo, estacionei o carro,
agarrei a bolsa que havia jogado no banco do carona na pressa e chamei o
elevador. Quando este chegou, entrei e apertei o botão do quinto andar. Tentei
ocupar a mente enquanto aquela jeringonça subia, procurando as chaves.
Chegando em meu corredor, abri a porta do elevador e virei à esquerda,
na direção do apartamento 504. A primeira coisa que vi, da distância onde
estava, foi o corpo de um homem jogado em frente à minha porta.
Depois de tudo o que passara naquele dia, não era possível que ainda
precisasse lidar com um bêbado tentando entrar no apartamento errado. Não
duvidava que se tratasse de algum namorado da vizinha de baixo, que estava
cada dia com um novo e sempre armava escândalo em seus términos.
A melhor opção seria entrar novamente no elevador e descer, procurar o
porteiro da noite — que nunca estava na portaria — ou chamar a polícia.
Provavelmente teria feito isso, se algo naquele cara não tivesse me chamado a
atenção. Ele era estranhamente familiar, embora eu pudesse jurar que não
conhecia nenhum homem assim tão musculoso.
Apesar de não poder vê-lo, uma incerteza preencheu meu coração,
porque minha intuição me dizia que se tratava de um homem que eu
reconheceria em qualquer lugar, em qualquer circunstância. Meu coração o
reconhecia.
Não podia ser...
Não! Era impossível. Não era?
Tarde demais para voltar atrás. Precisava ver com meus próprios olhos,
constatar que não era uma miragem.
Quase cambaleante, já que minhas pernas pareciam não ter nenhuma
força, fui andando em direção ao corpo desfalecido do homem, hesitante, com
medo do que iria ver. Se estivesse enganada — e muito provavelmente estava
—, a dor seria a mesma de três anos atrás. Ou até pior.
Agachei-me diante do rapaz e inclinei a cabeça para poder ver o seu
rosto. A parca luz do corredor mal iluminado era um obstáculo, mas minhas
mãos trêmulas foram rápidas em vasculhar a bolsa em busca do celular.
Acionando a lanterna, aproximei-a da cabeça do homem e quase perdi a razão ao
me deparar com aquele rosto familiar. O rosto que eu tanto amava.
O rosto de Arthur.
Capítulo Dois
CHRISTINE

Era como ir ao inferno e ao céu em um único segundo, em uma viagem


vertiginosa. Incapaz de manter-me de pé, joguei-me no chão, apoiando as costas
na porta do meu apartamento, esperando que a onda de tontura passasse.
Demorei a encontrar coragem suficiente para olhar novamente para
aquele homem e constatar se não era apenas um engano. Talvez o fato de passar
o dia inteiro pensando em Arthur pudesse ter afetado minha coerência, plantando
ilusões cruéis em minha mente.
Porque se aquilo era uma ilusão... Meu Deus... eu não suportaria. Perdê-
lo uma vez foi insuportável. Perdê-lo novamente iria destruir o que ainda restava
do meu coração.
Fechei os olhos, contei até dez mentalmente e preparei-me para repetir o
gesto que havia realizado alguns minutos antes. Aproximei a luz do celular do
rosto do homem desmaiado e finalmente percebi que não fora um produto da
minha imaginação. Era mesmo Arthur.
Queria não me deixar levar pela emoção e fazer com que minha razão
falasse mais alto para começar a agir, afinal, era um cidadão de mais de um
metro e noventa estirado no chão, em frente ao meu apartamento. Além disso,
não fazia ideia do porquê de Arthur estar naquele estado, muito provavelmente
iria precisar levá-lo a um hospital, se ainda estivesse vivo.
Ainda tremendo, usei o dedo indicador e o médio para checar sua
pulsação, encostando-os bem em sua garganta, e quase respirei aliviada ao sentir
a vibração de seu coração... vivo.
Vivo...
Vivo...
Vivo...
Meu Deus! Arthur estava vivo.
A confirmação definitiva veio como uma poderosa flechada bem no meio
da minha testa, novamente fazendo com que eu visse tudo girar. Se não estivesse
jogada no chão, teria despencado. De tão apreensiva, tão fora de mim, esse
pensamento me fez soltar uma risada nervosa, mesmo que a ideia não fosse
assim tão engraçada. Se acabasse desfalecendo ali, seriam dois caídos no meio
do corredor do meu andar. Muito ridículo.
Mais ridículo ainda era pensar em uma coisa dessas enquanto uma
situação muito grave se desenrolava na minha frente, mas simplesmente não
sabia o que fazer.
Ainda respirava profundamente, tentando me proteger de uma
hiperventilação, quando senti uma mão se fechar em meu punho. Um sobressalto
foi a reação imediata àquele contato quase fantasmagórico. Até o momento, por
mais que o corpo enorme de Arthur, ali estirado à minha frente, parecesse bem
tangível, a forma como ele me segurou, com uma violência quase selvagem,
embora não chegasse a me machucar, tornou tudo muito real. Real demais.
— Christine... — ele sussurrou, e o som daquela voz fez misérias com
meu coração. Não que o resto do meu corpo estivesse reagindo de forma muito
normal. O estômago revirava, os pulmões falhavam e o sangue parecia
congelado, quase recusando-se a voltar a correr.
Aquela era a voz que acreditei que jamais ouviria novamente. A voz que
assombrou muitos dos meus sonhos naqueles últimos anos.
— Christine... — ele chamou outra vez, já que eu não o respondi. Nesta
segunda tentativa, sua voz soou um pouco mais forte, embora ainda rachada,
rouca e grave demais. Dizendo isso, ele também se virou de barriga para cima,
emitindo um grunhido de dor que me apavorou.
Finalmente tomando uma atitude, coloquei-me de joelhos e debrucei-me
sobre ele, pondo a mão sobre sua camisa, mas retirando-a imediatamente ao
senti-la empapada de um líquido quente, que logo concluí ser sangue.
Sentindo-me já completamente desperta, segurei os dois lados do rasgo
da blusa e a arranquei, deixando a barriga de Arthur nua. Arfei ao ver um corte
aparentemente profundo, que pegava desde seu umbigo até a virada da cintura.
— Arthur, eu preciso te levar ao hospital.
— Não! — ele exclamou desesperado, novamente agarrando o meu
braço e chegando a erguer um pouco o tronco, quase ficando sentado, mas logo
deitando-se outra vez, fraco e debilitado demais para se manter daquela forma.
— Nada de hospital. Só confio... em você.
— Mas você está muito ferido...
— Sem... — ele começou a falar, mas outra onda de dor o acometeu,
fazendo-o resmungar em um tom gutural quase assustador: — Sem hospitais.
O que, com certeza, também vetava a hipótese de uma ambulância ou
mesmo uma maca. Como faria, então, para levar aquele homem para dentro da
minha casa, já que não poderíamos permanecer ali por muito tempo antes de
alguém nos ver e acabar chamando a polícia? Precisava de um pouco de esforço
da parte dele.
— Arthur, eu vou te ajudar, mas preciso que me ajude também. Preciso
que tente se levantar nem que seja só para entrar no apartamento — supliquei,
mas ele nem se mexeu. Continuou estirado ali, imóvel, e eu temia que tivesse
apagado novamente. Sendo assim, usando de toda força que possuía, comecei a
sacudi-lo, com as mãos cerradas em punho e agarradas ao tecido da camisa que
ele usava. — Por favor... levante-se, eu não tenho condições de te levar lá para
dentro. Por favor...
Enquanto falava, tentava ao menos mexê-lo, mas havia uma diferença
considerável de tamanho entre nós. Eu jamais seria capaz de sequer arrastá-lo
por mais do que uns três metros, o que significaria que ele acabaria jogado no
chão, a uma pequena distância da porta.
Contudo, como por um milagre, Arthur pareceu voltar à consciência e,
com muita dificuldade, pôs-se de pé lentamente, escorando-se na parede da
forma como conseguia. A expressão de dor em seu rosto também feria a mim,
que não fazia ideia do que tinha acontecido. Por que ele estava ali?
Isso tudo teria que ficar para depois.
Em todas as minhas fantasias mais absurdas, por mais que sempre tivesse
sonhado com aquele retorno, nunca imaginei um cenário como aquele: ele
deitado em meu sofá, sem camisa e com um ferimento considerável, que o fazia
sangrar profusamente.
Com as mãos na cabeça, observando-o sem saber o que fazer, só tinha
uma certeza: aquele não era mais o Arthur que eu conhecia. O homem que amei
não mais existia naquele corpo quase familiar. Não havia nada do rapaz
brincalhão e divertido, que levava a vida de forma despretensiosa. Só naqueles
poucos minutos de reencontro já podia jurar que estava diferente. A começar
pelo corte de cabelo. Arthur sempre usara os fios longos, até a base do pescoço,
e agora se viam curtos, quase ao estilo militar. O corpo também era o de outra
pessoa. Ele sempre fora grande, de compleição intimidadora, porém, odiava
academias e conservava até mesmo uma barriguinha discreta. Agora, aquele cara
estirado em meu sofá era extremamente definido, cheio de músculos.
Tudo isso era muito estranho, mas nada se comparava ao número tatuado
em seu ombro: 48. Não fazia o menor sentido.
Assim como não fazia sentido o fato de eu ter comparecido a uma festa
em homenagem ao terceiro ano de sua morte, e agora ele estar ali, bem vivo —
ou quase — na minha frente.
Hesitante, como se ele não fosse o meu melhor amigo de anos,
aproximei-me, tocando seu ombro com cautela.
— Arthur, eu preciso ao menos chamar uma amiga médica para ajudar
com esse ferimento... Ela é de confiança, por favor.
— N-não... ninguém. Só v-você — ele gaguejava, em um sussurro frágil
e praticamente inaudível.
— Pare com isso! — alterei-me. — Não sei cuidar de você. Não vai
sobreviver se continuar sangrando dessa maneira. Mal sabemos se precisa de
uma transfusão... eu... eu... — Levei a mão à boca, cobrindo-a, reprimindo as
palavras que talvez não devesse dizer.
Ah, mas que se fodesse! Tudo aquilo já era absurdo demais; se não
pudesse desabafar, acabaria sufocada em meus próprios sentimentos.
— Eu não posso te perder de novo...
Talvez fosse cedo demais para dizer algo assim, porque nem sabia o que
tinha acontecido. Ainda não sabia que tipo de pessoa Arthur havia se tornado
naqueles últimos três anos, principalmente a julgar pelo ferimento que
conseguira. Porém, bem lá no fundo, sabia que isso não importava.
— Tá... — murmurou ele. — S-só essa m-mulher. Mais n-ninguém.
Imediatamente, assim que recebi o consentimento, corri para pegar o
celular em minha bolsa, que ficara jogada no chão quando entrei no apartamento,
e liguei para Maiara. Já era quase meia-noite, e ela provavelmente estava
tentando dormir antes que a pequena Roberta acordasse, mas era um caso
extremo.
No quinto toque, uma voz masculina embargada de sono atendeu.
— Paulo? Me desculpa ligar a essa hora, mas a Maiara está acordada? —
indaguei em um choramingo apreensivo.
— Não. É Chris?
— Sim, sou eu.
— Ela deitou há uma meia hora. Mas aconteceu alguma coisa? Você está
bem?
— Eu estou bem, mas preciso falar com ela com urgência — anunciei
com veemência, não dando margem para negações. E ele nem tentou exigir
explicações ou me dissuadir, foi logo pedindo um minuto e indo chamar a
esposa, que surgiu uns vinte segundos depois, com uma voz de sono que chegava
a despertar pena.
— É melhor que seu prédio esteja pegando fogo, porque eu finalmente
consegui dormir e...
— Mai... — interrompi minha amiga. Pela forma como proferi seu
apelido, com uma dor quase palpável, Maiara foi obrigada a calar a boca e ouvir.
— Arthur está aqui.
— O quê? — ela exclamou mais alto do que deveria, e um choro de bebê
irrompeu do outro lado da linha. — Do que diabos você está falando, Chris?
Você está bem? Bebeu? Está passando mal?
— Não, Mai. Ele está aqui. Em carne e osso. E está ferido. — Comecei a
chorar. — Preciso da sua ajuda, por favor. Ele não quer ser levado a um hospital,
não quer que eu chame ninguém, mas concordou com você, porque eu afirmei
que era de confiança.
— Chris, eu vou já para aí, mas ainda não estou acreditando nessa
história. Vou levar um calmante, tudo bem?
Minha melhor amiga achava que eu estava louca. Mas como julgá-la?
Não era todos os dias que um morto ressuscitava e literalmente batia em sua
porta.
— Você vai ver que eu não estou alucinando.
— Chego em vinte minutos. — Ela morava perto, a três ruas de distância,
mas tinha um bebê pequeno e estava dormindo. E, apesar de Arthur ser um
homem forte, eu precisava que ela se apressasse ao máximo.
— Chegue em dez, por favor. Não sei quanto tempo mais ele vai
aguentar.
— Vou fazer o meu melhor.
Eu confiava em Maiara. Apesar disso, cada segundo que passava poderia
significar um a menos na vida de Arthur. E talvez estivesse me tornando
repetitiva, mas... Céus! Não podia perdê-lo outra vez. Não podia...
Apesar de não entender praticamente nada de medicina, tentei fazer o
possível para melhorar a situação de Arthur, enquanto a verdadeira profissional
não chegava. Usei um pano virgem para limpar o ferimento, ignorando a
quantidade de sangue que escorria e pingava em meu tapete. Não sabia se
lamentava ou se ficava aliviada com cada grunhido de dor que Arthur soltava,
porque ao menos eles eram um sinal de que ainda estava consciente. Podia ser
uma coisa idiota de se pensar, mas parecia que enquanto se mantivesse desperto,
tudo ficaria bem.
Exatamente como prometido, Maiara chegou em pouco mais de dez
minutos, aparecendo de pijama, o que me fez amá-la ainda mais. Prontamente
aproximou-se do sofá e constatando que eu não estava alucinando.
Precisou de alguns minutos para voltar a si — quem poderia culpá-la?
—, mas logo se colocou em modo profissional e começou a verificar o
ferimento.
— Mas que diabos ele andou aprontando nesse três anos, Chris? Isso
aqui não foi um acidente. Ele foi ferido. De propósito. — Maiara estava
apavorada, e a apreensão em seus olhos era absolutamente evidente. Uma
preocupação pela possibilidade de eu estar me metendo em uma situação
perigosa. E talvez fosse esse mesmo o caso.
— Eu não sei, Mai. Ainda não falei com ele. Mas não vai fazer muita
diferença nesse momento. Precisamos salvá-lo... você entende, não entende? —
Eu sabia que, sendo médica, Maiara não poderia negar auxílio a uma pessoa
ferida, mas o tom de súplica que adotei foi inevitável. Era a minha única
esperança.
Balançando a cabeça, desaprovando o que acontecia ali, Maiara estava
prestes a recomeçar, mas voltou-se novamente em minha direção.
— Isso é errado, Chris. Em vários níveis.
— Eu confio nele — afirmei com toda a convicção. Era importante
convencê-la, pois a salvação de Arthur estava nas mãos dela.
— Você confiava no homem que ele foi um dia. Como pode ter certeza
de que não mudou? Como sabe que não voltou... perigoso?
— Não tenho nenhuma certeza de nada disso, mas sei que não importa
quem ele é agora. Quem eu vejo aí deitado no meu sofá, sangrando, é o meu
melhor amigo. Eu faria qualquer coisa por ele.
Ainda em silêncio, Maiara suspirou e tirou alguns segundos para me
observar, provavelmente tentando entender o meu lado. Mas isso poderia ser
impossível. Ninguém sabia como eu me sentia, como aqueles três anos se
resumiram a uma sucessão de horas intermináveis, de momentos letárgicos de
pura dor e depressão. Ter Arthur vivo em minha casa era como receber uma
segunda chance, a resposta para todas as minhas orações.
Trabalhando na ferida, Maiara manteve-se compenetrada, agindo com
todo o profissionalismo que lhe era característico. Apesar de reticente a respeito
de Arthur, ela foi cuidadosa, principalmente no momento em que precisou dar
pontos sem anestesia. Não pude deixar de reparar que ele nem pestanejou
durante a sutura, fez apenas uma careta, dando a impressão de estar acostumado
com a dor.
Cada minuto que passava tornava-se uma tortura ainda maior. Claro que
queria vê-lo a salvo, mas a necessidade de entender o que tinha acontecido
piorava mais e mais enquanto olhava para ele e em nada conseguia reconhecer o
homem de antes. Arthur saíra da minha vida como um jovem de 26 anos e
retornou como um homem com um semblante bem mais maduro, embora não
tivesse transcorrido muito tempo. Precisava fazer perguntas, conversar e sanar
minhas dúvidas. Talvez não tivesse mais esse direito de saber sobre sua vida;
talvez ele voltasse a si e me tratasse como uma estranha, mas o fato de ter ido
parar bem na minha porta, de me procurar em um momento de necessidade, com
certeza não fora uma coincidência.
— Chris... — Maiara chamou, libertando-me dos meus pensamentos. —
Não posso fazer mais nada por ele. Ainda acho que deveriam ir a um hospital,
mas aí é com vocês.
— Como ele está?
— É um homem forte e vai sobreviver. O corte não foi tão profundo, mas
eu não tenho como saber se causou algum outro problema. De qualquer forma, a
ferida está limpa e fechada. Vai precisar refazer o curativo amanhã de manhã. —
Enquanto falava, Maiara ia arrumando sua bolsinha de primeiros socorros e
reunindo as gazes empapadas de sangue para serem descartadas, junto com as
luvas que usara.
— Ele pode comer? Pode se movimentar? Eu não... — Nervosa como
estava, mal sabia como agir e o que perguntar. Queria muito mantê-la ali
comigo, para qualquer eventualidade, mas não seria justo. Maiara parecia
exausta e tinha uma família para cuidar.
— Seria bom se ficasse de repouso ao menos até amanhã. Não sei como
você vai fazer para lidar com um homem desse tamanho sem ajuda,
principalmente se ele for teimoso, então, não há muito que fazer. Se ele sentir
fome, tente algo leve. Eu já o mediquei, tanto um antibiótico, para o caso de a
ferida inflamar, quanto um analgésico para a dor. Vou deixar uma receita aqui
assinada para você poder comprar com os nomes e as doses corretas.
— Obrigada, Mai. Nem sei como agradecer.
Maiara não respondeu nada, continuando focada em sua tarefa,
preenchendo as receitas. Porém, quando terminou, a primeira coisa que fez foi
colocar as mãos nos meus ombros, como uma mãe prestes a dar um conselho
para sua filha.
— Tome cuidado, Chris. Por favor. Sei o quanto você gosta dele, o
quanto sofreu quando desapareceu, mas há uma grande possibilidade de as
coisas estarem diferentes. Ele foi ferido por alguém.
— E se foi um assalto? Sobre o desaparecimento, ele pode ter sido
sequestrado... — Provavelmente eu queria convencer a mim mesma com essas
palavras
Maiara deu uma olhada na direção de Arthur, com uma expressão de total
descrença.
— Ele parece muito bem nutrido e musculoso demais para quem passou
três anos em um cativeiro.
— Mas tem outros ferimentos e cicatrizes — comentei, observando seu
peitoral mesmo de longe.
— Isso pode ter várias explicações. Uma delas, inclusive, não é nada
agradável e muito me preocupa. — Maiara soltou um suspiro resignado e reuniu
suas coisas, pronta para ir embora. — Mas como eu disse, você sabe o que faz,
querida. E seja como for, estarei aqui para te ajudar, se for preciso. Só espero que
não esteja me colocando em uma enrascada também.
— Nem sei como agradecer...
— Cafés de graça até o final do ano. Já vou ficar satisfeita.
Fiz um esforço enorme para rir e me preparei para acompanhá-la até a
porta. Antes de finalmente sair, ela se virou na minha direção, com olhos
penalizados e a mesma preocupação de antes.
— Me ligue se precisar de mais alguma coisa.
— Não vou ligar. Já te importunei demais por uma noite inteira.
— Odeio pensar em você aqui sozinha com ele. Tenha alguma coisa à
mão para se defender.
Não respondi a esse conselho, porque algo dentro de mim teimava que
não precisaria de nada para me defender de Arthur. Porém, não daria a Maiara
ainda mais motivos para se preocupar. Só queria que ela fosse para casa para
descansar, então, só me despedi em silêncio, deixando um beijo cheio de
gratidão em seu rosto.
Maiara era uma boa amiga. Conhecemo-nos no meu café, há dois anos, e
as coincidências entre nós eram tantas que morávamos no mesmo bairro, na
Tijuca, e trabalhávamos muito próximas, na Urca. Essas e outras semelhanças
nos aproximaram, e agora eu a tinha como um presente na minha vida.
Depois de vê-la entrar no elevador, fechei a porta quase em câmera lenta,
e a primeira coisa que ouvi, ao me ver dentro de casa novamente, foi um
resmungo de dor vindo de Arthur. Sabendo que aquilo seria uma constância nas
próximas horas, decidi ir à cozinha passar um café para me preparar para uma
noite que tinha tudo para ser muito longa.
***
ARTHUR

Minha consciência ia e vinha, e meu corpo inteiro ardia. Ao mesmo


tempo, calafrios dançavam pela minha espinha, enquanto a febre se alastrava,
percorrendo minha corrente sanguínea. Uma febre que não tinha a ver apenas
com uma condição física, mas com meus sentimentos também. Emoções que já
não conhecia, porque não pertencia mais a mim mesmo.
Tudo acontecera rápido demais, fora apenas uma oportunidade. Uma que
eu decidi não perder. Só que com essa escolha, finalmente me tornei o assassino
que fui treinado para ser.
Minha cabeça doía e girava, e outra dor lancinante devorava meu
abdômen. Mas talvez isso não fosse o pior. Os pensamentos e as memórias eram
o que mais me assustavam. Agora que estava livre, tinha plena noção de que
jamais receberia minha total liberdade de volta. Sempre seria um fugitivo,
vivendo no limite, observando tudo ao meu redor como se estivesse em uma
caçada interminável.
Até mesmo os barulhos que ouvia naquele instante me perturbavam,
como se fossem capazes de acionar um interruptor em minha mente, despertando
meu lado mais violento e agressivo. Era como um leão enjaulado, provocado por
uma criança desavisada em um zoológico.
Tic-tac.
Tic-tac.
Tic-tac.
Um maldito e insistente relógio tiquetaqueava em algum lugar muito
próximo a mim. Um suave ronronar também penetrava meus ouvidos sempre em
alerta, atentos ao mais discreto som. A sensação era que qualquer coisa à minha
volta poderia me matar. Ou, ao menos, capturar-me novamente e me levar para
aquele pesadelo. Por isso, precisava prestar atenção.
Tic-tac.
Tic-tac.
Tic-tac.
Sem conseguir tirar o foco desse barulho infernal, abri os olhos. O susto
inicial deu lugar a uma espécie de confusão mental e um estado de paranoia.
Precisei piscar uma, duas, três vezes para tentar entender onde estava. Eu
reconhecia o lugar, mas não conseguia me lembrar... Não conseguia... e isso foi
me apavorando mais e mais.
Tentei me levantar, e foi como se um punhal em chamas perfurasse
minha barriga. Fechei os olhos com força, mas reprimi qualquer ruído, porque
ainda não sabia onde estava e quem tinha me levado até ali, pois simplesmente
não me lembrava de ter chegado com minhas próprias pernas.
Respirei fundo — embora respirar também fosse quase impossível de tão
doloroso — e voltei a abrir os olhos assim que me senti um pouco mais
recuperado. Ainda não conseguia me mexer, mas decidi tentar me situar.
Era um apartamento feminino, com uma disposição não totalmente
estranha para mim, embora não reconhecesse a decoração. Havia flores por
todos os lados, e não apenas em vasos, mas também no papel de parede. Uma
máquina de costura muito antiga logo chamou a minha atenção, pois também me
era familiar. Ela destoava um pouco do resto da decoração, por ser rústica e feia,
portanto, meus instintos dedutivos me forçaram a acreditar que se tratava de um
objeto com valor sentimental, assim como a cristaleira cafona, cheia de louças
igualmente antiquadas, posta estrategicamente na lateral da sala, em um canto.
Qual não foi minha surpresa quando me deparei com um gato bem no
topo dela? A princípio pensei se tratar de um objeto de cerâmica ou qualquer
coisa assim, mas quando o vi se mexer, lambendo a pata displicentemente, quase
pulei no sofá, principalmente porque eu era um elemento estranho naquela sala,
um intruso, um forasteiro, mas o bicho sequer prestava atenção em mim.
Ainda tentava compreender onde estava, quando meus olhos se
depararam com algo que começou a resolver todo o quebra-cabeças em minha
mente. Tratava-se de um quadro enorme de Marilyn Monroe, pendurado logo
atrás do sofá, preto e branco. Ela sorria, de forma quase hipnótica, olhando-me
nos olhos como se zombasse da minha situação. Isso teria me perturbado, não
fosse o pensamento que começava a se construir dentro do meu cérebro, muito
mais assustador do que qualquer outra coisa.
Eu sabia de quem era aquela casa. Sabia, mas recusava-me a admitir que
tinha escolhido exatamente aquele lugar para me abrigar. Recusava-me a aceitar
que em meu desespero, em um ato inconsciente, fora para ela que meu coração
rumara, sem nem hesitar.
Talvez eu acreditasse que não haveria lugar mais seguro, alguém em
quem eu confiasse mais. Porém, buscando um refúgio para mim, acabei
colocando-a em perigo.
Eu era uma bomba relógio, prestes a explodir. Passara a ser nocivo.
Ninguém que tentasse me ajudar estaria seguro. E acabei escolhendo logo a ela,
a quem eu mais queria proteger.
Tentei erguer-me um pouco no sofá outra vez e precisei de um tempo
para que tudo parasse de girar. Dei uma olhada na camisa preta limpa que vestia
e percebi que a conhecia. Era minha, ou de um antigo Arthur que eu não era
mais. Estava um pouco apertada, mas cheirava a sabão em pó, o que me
proporcionou uma estúpida sensação de conforto e aumentou minhas suspeitas
de onde eu poderia estar.
A confirmação efetiva não demorou a surgir, e eu precisei deitar-me e
fechar os olhos novamente. Uma mulher veio da cozinha, trazendo algo nas
mãos, que logo reconheci como sendo café, pelo cheiro perturbador que invadiu
minhas narinas. Eu estava faminto, depois de horas perambulando pelas ruas, e
fazia muito tempo desde a última vez em que comi ou bebi alguma coisa decente
além de uma porcaria de uma ração, que poderia muito bem ser dada para aquele
gato que dividia o ambiente comigo.
Senti quando ela se aproximou, pois além do aroma do café, outro cheiro
característico me invadiu com uma profunda nostalgia. Lembrava algodão, roupa
limpa, baunilha, flores, céu... Remetia-me a coisas boas, a uma suavidade e uma
delicadeza que quase me faziam acreditar que tudo ficaria bem, que nenhuma
outra escuridão se abateria sobre a minha cabeça. Era o aroma da esperança,
porém, isso fazia com que meu coração se apertasse ainda mais.
Uma mão pequena e fria tocou minha testa quente, checando a
temperatura. A mulher afastou-se por alguns instantes, retornando logo depois e
pousando um pano úmido nas minhas têmporas. A sensação foi de breve alívio,
o que também durou pouco.
Lentamente, ela continuou a me tocar, deslizando a mão como uma
carícia, desde o rosto, passando pelo pescoço — onde provavelmente pôde sentir
minha pulsação fora de controle — e chegando aos meus ombros. Foi impossível
permanecer imóvel no momento em que seus dedos tocaram a marca
amaldiçoada, o 48. Também senti suas digitais marcando o entorno daqueles
números, como se a tatuagem estivesse sendo feita pela segunda vez, mas de
forma ainda mais dolorosa, porque a mulher mais especial que eu conhecia a
estava analisando.
Por causa disso, tudo desandou. Meu plano era continuar fingindo estar
desacordado até encontrar uma brecha para fugir. No entanto, não conseguia
suportar seu toque naquela marca, principalmente porque a imaginava
conjecturando o que poderia ser, além do fato do meu desaparecimento por tanto
tempo. Essas ideias começaram a girar na minha mente, impedindo-me de
pensar com coerência; então, minha reação automática foi agarrar seu punho e
afastar sua mão da minha pele, abrindo os olhos, prendendo-os aos dela.
Lá estava Christine. Era o mesmo rosto, a mesma mulher que eu
conhecia desde menina. Um pouco mais magra, com os cabelos um pouco mais
curtos, mas ainda era ela.
Em um primeiro momento, meu peito se encheu de alívio ao vê-la, e meu
coração compreendeu exatamente o motivo de eu tê-la procurado naquela
situação adversa. Christine ainda era meu porto seguro, embora eu não fosse
mais o mesmo homem de antes. Ela ainda era minha escolha em qualquer
situação, mesmo que não a visse há anos.
— Arthur... — ela sussurrou, levemente assustada, e eu quase morri por
dentro por ser o causador daquele medo. Merda! Eu jamais poderia machucá-la,
nem mesmo naquela nova versão selvagem e violenta de mim.
Soltei-a de súbito, e ela permaneceu na mesma posição, paralisada,
olhando para mim com aqueles fascinantes olhos castanhos.
— Você está bem? — ela indagou, preocupada, e eu simplesmente não
soube como responder. Como dizer a ela que estava me sentindo bem, quando
tudo dentro de mim parecia tão destruído? Como responder qualquer coisa se eu
simplesmente não sabia mais como me sentia? Nem conhecia mais quem eu era
e precisava me reencontrar. Encontrava-me no fundo do poço, mas não poderia
levá-la comigo.
— Sede... — foi tudo o que consegui dizer, enquanto tentava não
aparentar o quanto o ferimento do meu abdômen doía.
— Eu vou buscar água para você... — Christine parecia muito hesitante
em relação a mim, o que não me surpreendeu, mas muito me incomodou, porque
odiava perceber que estava com medo.
No entanto, era bom que se sentisse assim, pois serviria para mantê-la
afastada e segura.
Deixei, portanto, que ela fosse à cozinha, esperando que tivesse tempo de
escapar, enquanto o gato preto me vigiava. Para isso, precisaria ignorar o
ferimento latejante para chegar à porta sem que me visse da cozinha, mantendo o
máximo de silêncio possível. Contudo, já estava acostumado a lidar com a dor,
então, a tarefa não foi das mais impossíveis. Antes que Christine retornasse,
consegui sair porta afora, deixando pedaços de mim para trás. Pedaços que
sempre pertenceriam a ela, de uma forma ou de outra.
Capítulo Três
CHRISTINE

Era um retrocesso. Como voltar vinte casas em um tabuleiro de um jogo


infinito. Todas as certezas que tinha sobre ser uma pessoa forte caíam por terra
enquanto me via brigando contra o despertador, incapaz de me levantar para ir
trabalhar.
Sentia-me novamente uma sombra, exatamente como acontecera nos dias
que sucederam o desaparecimento de Arthur. Chegava a ser uma brincadeira de
muito mau gosto que ele tivesse reaparecido depois de tanto tempo, exatamente
quando comecei a aceitar o fato de que jamais voltaria, só para escapar por entre
meus dedos mais uma vez.
Meus instintos tentavam me iludir, afirmando que fora apenas um sonho,
mas as marcas de sangue no meu tapete e em meu sofá eram a prova da qual
minha mente precisava para manter-se sã e presa à realidade. Arthur realmente
estivera ali. Só não sabia o quanto dele ainda restava naquele corpo que
encontrei caído diante da minha porta.
Levantei-me da cama na quinta tentativa do despertador. Kibe, meu gato
de estimação, ergueu a cabecinha na minha direção quando viu que me
movimentei, mas nem sequer me deu bola, voltando ao seu sono pacífico, afinal,
o sol mal tinha nascido lá fora.
Enfiei-me debaixo de um banho frio, decidida a despertar na marra, mas
levando um choque no momento em que a água gelada entrou em contato com
meu corpo quente. Por mais que os dias andassem um pouco mais frescos do que
normal para uma primavera, dentro daquela casa tudo parecia abafado,
claustrofóbico. Ao mesmo tempo, não queria sair.
Fazia quatro dias que Arthur surgira na minha porta, e desde então não
soube mais nada sobre ele. Desapareceu como um fantasma, da mesma forma
súbita com que apareceu. Eu deveria ficar irritada, magoada e frustrada... Bem,
talvez realmente estivesse me sentindo de todas essas formas, mas a parte mais
idiota de mim, aquela que ainda amava aquele homem com todo o meu coração,
queria lhe dar um voto de confiança. Havia algo de muito errado rondando-o.
Apesar de não ter nenhuma explicação para o que tinha acontecido naqueles
anos, já conseguia prever que não se tratara em uma aventura de um jovem
inconsequente que decidira escapar das responsabilidades e sumir no mundo. Os
olhos vazios e sombrios que me fitaram naquela noite contavam uma história.
Uma história nada bonita.
Aqueles olhos vinham me assombrando desde então, impedindo-me de
dormir e de pensar com coerência. Arthur precisava de ajuda, mas eu não
poderia fazer nada se ele se mantivesse longe, como pareciam ser suas
verdadeiras intenções. Então, enquanto isso, precisava primeiro ajudar a mim
mesma.
Tentando desviar minha atenção das lembranças recentes, coloquei uma
roupa bonita, caprichei na maquiagem e saí para trabalhar, decidida a extrair o
melhor daquele dia. Poderia lidar com meus pensamentos quando voltasse para
casa.
Quando cheguei, a cafeteria já estava aberta. Que Deus abençoasse
Telma por sempre me cobrir quando necessário. Naqueles últimos quatro dias,
ela vinha reparando em minha mudança de comportamento, mas associou ao
aniversário de “morte” de Arthur. Mal sabia ela... Sendo assim, começou a
chegar mais cedo para o caso de eu me atrasar.
Entrei, caminhei até ela, que já estava atrás do balcão, e lhe dei um beijo
no rosto. Javier, meu outro funcionário, também já tinha chegado e varria o
local, enquanto cantava uma música de sua terra. Era um imigrante chileno, com
uma família constituída por esposa e cinco filhos. Até onde eu sabia, passavam
por algumas dificuldades, mas ele estava sempre cantando, sempre sorridente.
Era meu quebra galho. Fora contratado para trabalhar na cozinha, mas odiava
ficar parado e fazia um pouco de tudo.
— Ah, está com uma cara bem melhor hoje, chefinha.
— Bom dia, Telma. Bom dia, Javier — cumprimentei, colocando minha
bolsa sobre o balcão. Dando uma olhada ao redor da cafeteria, percebi que já
havia duas mesas preenchidas. Uma por um casal de idosos, para quem eu
acenei, pois eram fregueses antigos, e na outra estavam dois homens de terno
que eu não conhecia; um de costas para mim e outro de frente.
— Bom dia, senhora — Javier retribuiu meu cumprimento, insistindo em
me tratar com formalidades, embora não fosse necessário.
— Começamos cedo hoje, hein! — Apontei com a cabeça para os
clientes, e Telma gesticulou, com os olhos arregalados, mostrando que tinha se
lembrado de uma coisa importante. Contudo, como estava comendo um pão de
queijo e tomando café, esperou terminar de mastigar para me dizer o que era.
— Aqueles dois ali vieram te procurar. Estão te esperando, na verdade —
ela falou baixinho, bem perto do meu ouvido, para que ninguém mais ouvisse.
Enquanto falava, apontava discretamente para os dois homens desconhecidos,
que tinham escolhido a mesa mais ao fundo da cafeteria, consequentemente,
também, a mais reservada.
Eu não fazia ideia do que poderia ser, mas imaginei que se tratasse de
alguma proposta de parceria ou até de venda do estabelecimento. Não seria a
primeira vez, já que o conceito criado ali, nos moldes de cafeterias americanas,
mas com um toque aconchegante, muito interessava aos investidores.
Isso sempre me enchia de orgulho. Quando meus pais começaram, era
apenas um ponto bom que eles herdaram de um tio. A loja estava fechada na
época e precisava de muitas reformas, pois costumava pertencer a um restaurante
especializado em frutos do mar. Sabendo que teriam muito mais trabalho com
esse tipo de negócio, optaram pelo café, principalmente porque minha mãe já
estava doente e precisava de algo que não lhe desse tanta dor de cabeça. Tudo
começou muito simples, com ares de lanchonete, até que eles se foram. Recebi
uma boa quantia com o seguro e fui economizando também ao longo dos anos.
No final, ainda contei com a ajuda financeira de Arthur, mas concretizei meu
sonho de deixar aquele lugar do jeitinho que eu queria. Os tons amadeirados,
mesclados com detalhes em marfim e cinza, as mesas confortáveis e os espaços
de leitura. Havia poltronas espalhadas pelo ambiente, além do cantinho sob a
janela, que eram convidativas para quem tinha algum tempo livre e desejava
relaxar com um bom café e um livro.
— Eles adiantaram o assunto? — perguntei para tentar descobrir alguma
coisa.
— Não. Chegaram pedindo para falar com você.
— Eles disseram o meu nome ou perguntaram pela dona?
— Disseram seu nome. E sobrenome.
Era estranho. Mas não mais do que qualquer outra coisa que andava
acontecendo nos últimos dias. Sendo assim, decidi resolver logo o problema e
me aproximei da mesa deles, tentando manter o sorriso. Contudo, este
desapareceu no exato momento em que olhei para o rosto do homem que
estivera de costas para mim até aquele momento. Tratava-se do sujeito estranho
que ficara observando a cafeteria no outro dia, como se me vigiasse.
Eu sabia que estava agindo como uma louca, mas não consegui evitar
prender meus olhos aos daquele homem. Eram vazios, assim como os de Arthur,
dias atrás. Pareciam janelas para um mundo escuro e inóspito, uma alma deserta,
sombria.
Fiquei algum tempo sem conseguir dizer nada, contudo, nenhum dos dois
parecia muito compelido a iniciar a conversa e também me observavam,
calmamente, como se tivessem todo tempo do mundo.
Pigarreei, tentando ganhar mais um pouco de tempo, e finalmente tomei
coragem.
— Bom dia. Fiquei sabendo que vieram me procurar...
— Você é Christine Abrantes? — o homem que não me era familiar
falou.
— Sim.
— Pode se juntar a nós, senhorita? Precisamos fazer algumas perguntas.
Perguntas? A forma solene com que o pedido foi feito me deu a
impressão de que estava em interrogatório policial.
Atendi ao pedido, principalmente porque não sabia do que se tratava, e
esperei que começassem a falar. De segundos em segundos, voltava-me para o
homem misterioso, que também me fitava profundamente, ainda calado,
estudando cada um dos meus movimentos com seus olhos pequenos, cobertos
pelos óculos de armação preta.
O mais falante, por sua vez, remexeu no bolso interno de seu paletó,
retirando de lá um pequeno envelope. Neste, havia uma imagem impressa, que
ele pousou sobre a mesa e deslizou em minha direção. Uma foto de Arthur.
Meu coração parou.
— Temos ciência de que você conhece este homem e que tinham uma
relação muito próxima no passado. Queremos saber se o viu nesta semana; se ele
a procurou.
Segurei a imagem nas mãos, observando-a por um minuto. Tratava-se de
Arthur naquela sua nova versão, soturna e misteriosa, de cabelos curtos, de pé
em uma postura militar, com ombros erguidos e mãos entrelaçadas nas costas.
Vestia uma blusa e uma calça pretas, simples, e olhava direto para a câmera, mas
sua expressão era impassível. Não havia nada que se pudesse ler nas linhas de
seu rosto.
Fossem quem fossem aqueles homens, Arthur estava fugindo deles. Era
algo simples de se concluir, assim como o fato de que o ferimento que ele
apresentava provavelmente tinha sido feito por alguém ligado a eles. Se isso
fosse verdade, eram perigosos, e mentir talvez não fosse muito inteligente da
minha parte. Mas se contasse a verdade, poderia prejudicar quem eles estavam
procurando.
— Meu Deus, é o Arthur? — Tentei forçar a mais genuína cara de
espanto que consegui. Não era uma boa atriz, mas anos de cinema antigo com a
minha mãe deviam ter servido para alguma coisa. — Ele está vivo?
Não poderia dizer se aqueles homens compraram minha atuação bem
mediana, mas o que vinha falando desde o início balançou a cabeça, assentindo.
O outro, por sua vez, permaneceu calado, ainda me observando, o que era
extremamente incômodo.
— Sim, Arthur Montenegro está vivo. Acreditamos que ele poderia tê-la
procurado, porque estava ferido.
— Não, ele não me procurou — falei, convicta. — Talvez tenha ido a um
hospital. Aliás, ele tem família. Já foram conversar com os Montenegro? — Foi
uma pergunta que saiu sem que eu percebesse. Odiaria colocar a família de
Arthur em contato com aqueles homens estranhos, mas eles tinham mais
condições de se defenderem do que eu. Eram ricos e em maior número.
— Temos grandes convicções de que ele procuraria a senhorita antes de
ir ver a família.
Como eles podiam supor saber tanto sobre Arthur? Eu queria fazer
perguntas, porque algo me dizia que aqueles caras eram os responsáveis pelo
desaparecimento do meu amigo, só não tinha coragem. Outro lado da minha
intuição também me fazia acreditar que não se tratavam apenas de dois homens
misteriosos, mas de algo muito maior.
— Ele não me procurou. — Mantive minha convicção, certa de que era o
melhor a fazer. Com sorte, eles me deixariam em paz. No entanto, minha
preocupação se dirigia a Arthur. Será que o ferimento tinha se curado? Será que
estava bem ou caído em alguma rua qualquer, sangrando até a morte? Esses
pensamentos me provocaram um tremor involuntário, que não passou
despercebido pelos outros dois. Isso poderia arruinar toda a minha farsa, mas
tentei me manter firme, esperando que fossem embora.
Uma mão pesada pousou no meu ombro, fazendo-me sobressaltar.
Quando me virei para ver de quem se tratava, vi Edgar Queiroga, um cliente do
café que se tornou meu amigo. Assim que se depararam com a presença
masculina, os dois homens se mostraram desconfortáveis e começaram a se
movimentar para saírem. O mais falante tirou uma nota de cinquenta do bolso,
deixando-a sobre a mesa, além de um cartão de visitas.
— Se souber de alguma coisa, entre em contato conosco. Seu amigo pode
estar com problemas e só nós temos condição de ajudá-lo. — Ao dizer isso,
ambos levantaram-se e saíram. No exato momento em que cruzaram a saída,
respirei aliviada.
— Que doidos! Saíram sem esperar pelo troco, e um deles estava te
olhando de uma forma tão estranha que achei melhor vir ver o que estava
acontecendo — Edgar falou, sentando-se de frente para mim.
— Obrigada. Mas não era nada de mais. Ao menos eu acho... —
respondi, enquanto guardava o cartão no bolso do meu jeans. Talvez pudesse
investigar alguma coisa depois.
— Eles mencionaram Arthur Montenegro? Ele não está morto? — Edgar
perguntou displicentemente, enquanto tomava seu café. Morava em uma
cobertura cinematográfica no Leblon e costumava correr todas as manhãs antes
de ir para a empresa da família trabalhar. Quase sempre passava no meu café, e
eu suspeitava que fazia isso para me ver, embora eu fingisse não reparar.
A verdade era que quase todo mundo que me conhecia sabia sobre
Arthur, não porque eu falasse muito dele, mas pelo luto no qual me enterrei por
aqueles três anos. Nunca fui cem por cento eu mesma naquele período, e por
mais que algumas pessoas tivessem me conhecido durante esta fase, sempre
ficavam curiosas com meu comportamento reservado. A história foi passando de
ouvido em ouvido, e foi assim que Edgar descobriu sobre meu amigo
desaparecido e dado como morto, que ele, aliás, conhecia, já que suas famílias
eram próximas.
— Sim, ele está — continuei com a mentira, lembrando que Arthur me
pedira para não contar para ninguém, além de Maiara, sobre seu retorno.
— Mas eu ouvi... — ele ia continuar falando, mas, notando que eu não
estava muito disposta a conversar sobre aquilo, logo se deteve. — Bem, não é da
minha conta.
Não, não era. Assim como não era da conta daqueles dois homens
estranhos. Era um absurdo pensar que precisaria dar satisfações a dois
desconhecidos que vigiavam meu café e me faziam perguntas sem nem me
conhecer. Com o olhar perdido, fixo em algum ponto aleatório do
estabelecimento, ouvi uma voz chamar meu nome, mas soou muito distante
dentro da minha mente perdida. Insistente, o chamado foi repetido.
— Chris? — Finalmente foquei meus olhos em Edgar, que era quem
estava falando.
— Me desculpa, Ed. Acho que fiquei um pouco fora do ar aqui.
— Um pouco? — ele riu, zombeteiro. — Perguntei se você tem planos
para hoje à noite.
— Hoje? — indaguei, ainda levemente desorientada.
— Sim... sexta, noite... as pessoas costumam sair, se divertir. Sei que
você é mais da vibe Netflix e pipoca, mas fui chamado para uma festa legal em
Ipanema. Pensei que pudesse topar ir comigo.
Festa em Ipanema? Não, obrigada. Naquela noite, nem mesmo a Netflix
me faria companhia. Com certeza eu teria pensamentos demais para remoer.
— Olha, Ed, não me leva a mal, mas não estou muito a fim de sair hoje.
Além de trabalhar amanhã, eu ando tendo umas noites péssimas, e o Kibe
também está um pouco molinho, acho melhor ficar com ele, caso precise levá-lo
ao veterinário.
Edgar abriu um sorriso envergonhado.
— Você já usou muitas desculpas comigo, mas o gato é a primeira vez.
— Meu gato sempre vem em primeiro lugar — afirmei, convicta e um
pouco incomodada pelo desdém utilizado.
— Isso seria compreensível vindo de uma mulher de cinquenta anos e
solteira, não de uma garota jovem e linda.
— Tem idade certa para amar um animal? Tirei aquele bichinho da rua e
prometi amá-lo e cuidar dele da melhor forma possível, mas na verdade é ele
quem cuida de mim. Nos piores momentos da minha vida, foi Kibe quem ficou
ao meu lado, então, aquele gato é, sim, prioridade. Indiscutível.
Ele estendeu as mãos em rendição, com uma cara de espanto. Eu
normalmente gostava bastante da companhia de Edgar, mas naquele dia só
conseguia pensar que era um babaca de marca maior. Talvez fosse meu humor, a
fase da lua ou o fato de ele ter desdenhado do meu gato, que era, sem dúvidas, a
parte mais relevante da discussão.
— Tudo bem, não está mais aqui quem falou. — Muito
convenientemente, ele deu uma olhada no relógio e fez uma careta. — Está na
hora de eu ir. Se mudar de ideia, me liga.
Levantando-se, deixou um beijo na minha bochecha e saiu. Odiava
descartar as pessoas daquela forma, mas não estava nem um pouco disposta a
conversar. Para ser sincera, tudo o que eu queria era voltar para casa e esquecer
que o mundo existia. Ao menos por um dia.

***

CHRISTINE

Era engraçada a forma como o cérebro costumava nos pregar peças. Há


algumas horas eu implorava para que o tempo passasse bem depressa, para poder
voltar logo para casa, mas quando terminou o expediente, que todos foram
embora e me deixaram sozinha para fechar a cafeteria, comecei a não ter a
menor vontade de ficar sozinha no meu apê. Cheguei a pensar em ligar para
Edgar, mas cada vez que cogitava sua proposta de balada, bebidas, música alta e
conversas vazias, a ideia se tornava menos atraente.
Estava sentada a uma das mesas, com meu laptop aberto em um vídeo
qualquer do Youtube, ao qual eu não estava prestando a menor atenção, quando
um pensamento insistente e inconveniente começou a martelar na minha cabeça.
Sem que eu nem me desse conta do que estava fazendo, minha mão foi parar
dentro do bolso do meu jeans, alcançando o cartão que me foi entregue naquela
manhã. Parecia fazer uma eternidade desde que a estranha conversa acontecera,
mas ainda não conseguira tirá-la da minha cabeça.
Quando, porém, me vi prestes a ler as informações no cartão, todas as
luzes do estabelecimento se apagaram, como em um passe de mágica.
Em um primeiro momento, concluí que poderia ser uma queda de
energia, mas só me bastou olhar pela janela para constatar que todas as outras
lojas ao redor estavam normalmente iluminadas. Cheguei a cogitar a hipótese de
ser um corte, por falta de pagamento, embora eu sempre fosse muito correta com
as minhas contas. Só que esse tipo de coisa podia acontecer, não podia?
Esquecer era humano.
Antes que eu pudesse entrar no site da companhia fornecedora de
energia, as frágeis luzes tipo pisca-pisca que adornavam o balcão se acenderam,
além da lâmpada de uma luminária decorativa que eu mantinha próxima ao
caixa, proporcionando uma iluminação muito deficiente ao local. Ao menos eu
conseguia enxergar alguma coisa. Ou alguém.
De pé, olhando para mim, estava... Arthur.
Depois do susto inicial, meu coração se dividiu em um misto de alívio,
por vê-lo bem, mesmo depois de um ferimento tão sério, e de raiva por ele
novamente aparecer daquele jeito, sorrateiro e envolto em tanto mistério, como
se fosse um criminoso. Mas a verdade era que eu nem sabia mais quem ele era.
Poderia muito bem ser realmente um fora da lei e eu não fazer a menor ideia.
— O que você quer aqui? — finalmente encontrei a coragem para dizer
alguma coisa, antes que permanecêssemos em silêncio por muito mais tempo, o
que era extremamente desconfortável, principalmente com ele me olhando
daquele jeito, como se eu fosse... Bem, como se eu não fosse a mesma garota
que ele conhecia por uma vida inteira. Eu não tinha mudado; ele, por sua vez,
parecia uma pessoa completamente diferente.
— Vim me desculpar por ter agido da forma como agi.
— Como? Sumir por três anos, ser dado como morto, fazer com que
todos acreditassem que jamais o veríamos e voltar dessa forma... como um
fugitivo, que não pode nem dar entrada em um hospital? — cuspi as palavras,
vomitando toda a mágoa que guardava no peito. — Eu chorei por você, Arthur.
Durante cada um dos dias em que esteve desaparecido.
Arthur abaixou a cabeça, mas essa foi a única demonstração de pesar em
seu rosto. Os olhos ainda estavam vazios. Era assustador.
— O pedido de desculpas é pela forma como agi na sua casa,
desaparecendo sem dizer nada depois de você ter cuidado de mim.
— Acho que estou começando a ficar acostumada — disse, tentando
demonstrar desdém, mas as lágrimas começavam a me denunciar. Esperava, ao
menos, que ele não conseguisse percebê-las, já que estava tão escuro.
— Não posso pedir desculpas pelo meu desaparecimento há três anos,
porque não foi minha culpa — muito sério, ele olhava outra vez para mim,
fixamente.
Até então, eu permanecia sentada à mesma mesa, com o notebook à
minha frente, sentindo-me incapaz de dar um passo para me aproximar. No exato
instante em que o ouvi eximir-se da culpa, uma fúria descontrolada tomou conta
de mim, e eu me levantei, avançando na direção dele. A cena deveria ser cômica,
uma mulher do meu tamanho, pronta para enfrentar um verdadeiro armário.
Arthur sempre foi um homem grande, alto e de ombros largos, mas naquela nova
versão, ele mais parecia um daqueles heróis de quadrinhos. Estava mais bonito
também, não podia negar, com aquela barba cheia, que o fazia parecer muito
selvagem, como um lenhador, um homem medieval, talvez. Mas nada disso
importou no momento em que minha mão foi certeira em seu rosto, estalando
com a bofetada que lhe dei.
Sua única reação foi virar a cara e fechar os olhos. Não havia nenhum
sinal de que eu o havia machucado de verdade, apenas um leve e novo rubor em
sua face, pois sua expressão continuava impassível, com exceção de um quase
imperceptível franzir de lábios que poderia ser interpretado como raiva, mas eu
sabia que não era o caso. Era outro tipo de dor. Uma que não tinha nada a ver
com uma sensação física.
Apesar de ter sido ele o agredido, as lágrimas eram minhas. Andava com
os sentimentos muito à flor da pele e odiava essa impotência, essa falta de
controle. Esperava que o formigamento em minha mão pudesse entorpecer
também o meu coração, só que isso não aconteceu.
Não sabia o que dizer. Havia mais palavras presas em minha garganta do
que estrelas brilhando no céu, mas nenhuma delas parecia caber naquele
instante. Seus olhos estavam fixos nos meus, esperando que eu desse o próximo
passo, como se estivéssemos realizando uma dança conduzida por mim. Talvez
devesse pedir desculpas, mas não havia um único átomo de arrependimento
dentro do meu corpo.
— Por que foi embora da minha casa daquele jeito? — Havia um milhão
de coisas bem melhores do que aquela para perguntar, porém, meu inconsciente
totalmente fora de órbita só conseguiu elaborar tal pensamento.
— Porque preciso te proteger. — A resposta foi direta, sem rodeios,
objetiva. Sua voz profunda e grave provocou um frio muito incômodo no meu
estômago, porque ela também parecia tão sem vida quanto seus olhos. Uma
profunda compaixão se instalou no meu peito, conforme a certeza de que ele
tinha sofrido o inferno nos últimos três anos se tornava mais e mais concreta.
— Me proteger? Era você que estava sangrando com um ferimento na
barriga.
— Você não entende...
— Não! — alterei-me. — Não vou entender enquanto não me explicar.
Onde esteve todos esses anos; o que aconteceu com você? Por que precisa
apagar todas as luzes para aparecer na minha frente? O que não quer que eu
veja?
— Não é você. Ninguém pode me ver aqui dentro.
Se eu não tivesse recebido a visita nada cordial daqueles dois homens
pela manhã, eu poderia jurar que ele estava vivendo uma imensa paranoia,
sofrendo de algum desequilíbrio. No entanto, começava a acreditar na teoria de
uma situação perigosa.
Cansada daquela conversa, levei a mão à cabeça, massageando minhas
têmporas e tentando aliviar a dor que começava a se aproximar. Aquela seria
mesmo uma noite péssima.
De olhos fechados, tentei respirar bem fundo para controlar o ritmo do
meu coração. Meu peito parecia receber uma descarga elétrica de mais de mil
voltz e disparava na velocidade da luz. A verdade era que, apesar de tudo, de
toda a escuridão que rondava o retorno de Arthur, apesar das dúvidas e do medo,
sentia-me cheia de vida. Eu era, naquele momento, uma flor que reencontrou a
primavera depois de um longo inverno de frio e solidão. Não importavam as
condições, ele estava ali, na minha frente. Isso era o que deveria mais importar.
Ainda assim, eu mal deveria abrir os olhos outra vez. Deveria deixar que
desaparecesse novamente, mas... Droga! Eu queria olhar para ele. Tocá-lo. Senti-
lo e provar para mim mesma que não se tratava de uma mera lembrança ou de
um sonho do qual iria acordar de manhã agoniada e quase sem forças.
Quase acreditei que iria olhar ao meu redor e me ver novamente sozinha,
mas ele ainda estava ali. Perto demais. Aproximara-se de mim perigosamente,
deixando nossos rostos a poucos centímetros de distância, e fizera isso de forma
tão silenciosa e discreta que sequer me dei conta. Provavelmente fora com essa
mesma habilidade que conseguira entrar na cafeteria para cortar a energia e
acender aquelas luzes fraquinhas.
Não previ nada do que aconteceu a seguir, mas isso não era novidade, já
que eu realmente não sabia mais o que esperar daquele novo Arthur. Quando sua
mão grande e áspera gentilmente tocou meu rosto, acariciando-o, eu quase me
sobressaltei de surpresa. Sem jeito de início, quase hesitante, apenas uma parte
de seus dedos entrou em contato com minha face, deslizando por ela como se
simplesmente precisasse me tocar, assim como eu desejava fazer com ele.
Era apenas um contato inofensivo, mas me deixou completamente sem
ar. Percebendo minha reação e a forma como inclinei a cabeça em sua direção,
tentando obter mais de seu toque, ele usou a outra mão também, colocando
ambas em concha em cada uma das minhas bochechas, segurando meu rosto e
fazendo-me olhar para ele.
— Não teve um único momento desses mil e noventa e cinco dias que eu
não tenha pensado em você. Tudo o que eu queria era sair de lá para vê-la e dizer
que sentia muito… Ainda sinto, na verdade.
— Sente muito pelo quê? — indaguei, quase em um sussurro, porque
simplesmente não conseguia encontrar mais forças do que isso.
— Por não ter te enxergado, enquanto você estava bem ali na minha
frente. Da forma como merecia ser enxergada. Como a mulher que você é… A
mulher que eu desejei por cada um daqueles malditos dias e não pude ter. Talvez
todos estejam certos quando dizem que só aprendemos a dar valor a algo quando
não está mais ao alcance das nossas mãos.
Cada uma das palavras ditas abriu uma pequena ferida dentro do meu
coração. Não era apenas tudo o que sempre esperei ouvir, enquanto o amava em
silêncio. Contudo, elas vinham na hora errada, porque eu sabia que funcionavam
como uma despedida. Não acreditava que fosse desaparecer por completo da
minha vida, mas já sabia que não poderia ser meu. Eu o estava perdendo mais
uma vez.
Não tive coragem de responder nada, deixei apenas que continuasse
falando. Queria ouvi-lo, eternizar aqueles momentos em minha memória, mesmo
que pudessem jamais acontecer de novo.
— Sei que algumas pessoas vieram procurá-la hoje, e lamento por isso.
Por favor, diga que não sabe de mim, que não faz ideia de onde eu esteja.
— Não é uma mentira de todo, né? Eu realmente não sei onde você ficou
nesses últimos dias.
— E não deve saber. Para sua segurança.
— Para o inferno com a minha segurança, Arthur. Você é mais
importante... — Talvez eu tenha falado demais, e quase podia jurar que o que vi
em seu rosto foi um sorriso, mas este logo desapareceu.
— E você é mais importante para mim. Mais do que tudo... Não vou
jogar o peso dos meus problemas nas suas costas. Eu não sou mais aquele
homem que você conheceu. Há coisas... — ele hesitou. — Coisas sobre o que
aconteceu comigo que precisam ser mantidas em segredo. Se eu te contar...
posso te deixar em perigo.
— Então não podemos mais ser amigos? — Só de fazer essa pergunta,
meu choro recomeçou.
— Sim, mas algumas coisas vão mudar. Nada mais será como antes.
— E sua família? Vai deixá-los continuar acreditando que você está
morto? Não é cruel demais?
— Seria a coisa certa a fazer. Mas, infelizmente, não posso me dar a esse
luxo. Preciso de recursos para uma missão, além de algumas coisas às quais só
poderei ter acesso se reaparecer... vivo.
Tudo o que ele dizia era confuso demais. Era como estar presa em uma
montanha-russa em alta velocidade sem qualquer coisa para me prender ao
assento. Sentia que se fizesse qualquer pergunta, não receberia respostas. Mas
talvez fosse melhor ficar na ignorância.
— Vamos nos ver outra vez? — não era uma pergunta, mas uma súplica.
Arthur percebeu minha dor e novamente me tocou com o resto de ternura que,
provavelmente, ainda guardava dentro de si.
— Claro. Eu tenho que voltar à vida, retomar de onde parei.
Eu me perguntava se isso algum dia seria possível.
— Só peço que tome muito cuidado. Vou continuar te protegendo, mas
preciso que não se coloque em perigo.
— Acho que não saberia dizer o que poderia me colocar em perigo. Tem
pessoas vigiando o meu trabalho! O que mais pode acontecer?
Arthur respirou fundo, franziu o cenho, e seu maxilar ficou tenso pelo
espaço de um segundo. Era uma expressão ameaçadora naquele rosto que eu
conhecia bem, mas que parecia tão novo. Não queria nem pensar no que seria
capaz de fazer quando ficasse puto — realmente puto — com alguém.
— Vou fazer de tudo para que nada te aconteça — disse em um tom de
voz suave e rouco, acrescentando em seguida: — Feche os olhos, Christine, por
favor.
— Você vai desaparecer de novo, não vai?
— Não para sempre. Vamos nos ver em breve. Só preciso me recuperar
cem por cento para voltar à vida. Não posso deixar aqueles que amo
desprotegidos.
Balancei a cabeça, fingindo que entendia, embora não compreendesse
quase nada do que dizia. No entanto, a única coisa que importava era não perdê-
lo por completo.
Fiz o que ele pediu, fechando os olhos, esperando que isso impedisse as
lágrimas de caírem. Mas não aconteceu. Elas penetraram a barreira das minhas
pálpebras e deslizaram pelo mesmo rosto tocado por Arthur há alguns minutos,
traçando um caminho que quase contava uma história, eu só não sabia se era
feliz ou triste.
Ainda sem poder ver ao meu redor, senti meus lábios sendo tocados pelos
dele de forma muito suave. Não era a primeira vez que me beijava. Muitas coisas
aconteceram entre nós antes de seu desaparecimento. Coisas que aprisionaram e
amaldiçoaram a minha mente a jamais esquecê-lo. Cada toque ainda estava
riscado na minha pele, e aquele beijo só veio confirmar isso.
Permaneci alguns minutos totalmente imóvel, não só porque ele me
pedira para ficar de olhos fechados, mas porque mal tinha coragem de abri-los.
Eu podia sentir, através da escuridão momentânea, que as luzes já haviam sido
acesas, o que me fazia concluir que a cafeteria já estava vazia. Arthur tinha
novamente desaparecido, fugindo para seu esconderijo.
Talvez esse fosse o meu maior medo: deparar-me com sua ausência.
Machucava meu coração pensar que poderia estar passando por dificuldades, e
uma parte muito infantil de mim chegava a odiá-lo por não confiar em mim o
suficiente para me contar tudo. Entretanto, eu sabia que não era uma questão de
confiança. Era receio. Proteção.
Por fim, não pude mais alimentar minha covardia e abri os olhos,
deparando-me com a Lattes completamente vazia. Nem mesmo todas aquelas
luzes acesas podiam afastar as sombras que rondavam meu coração. Dentro dele,
um profundo breu se formava.
Dei uma rápida olhada para o lado, na direção da mesa onde estava
sentada, e percebi que ele tinha levado o cartão dos homens que me interpelaram
mais cedo, como se quisesse encobrir qualquer rastro da verdade.
Precisei me sentar novamente para absorver a enxurrada de emoções que
pareciam me asfixiar naquele instante.
Jamais me senti tão confusa.
Jamais me senti tão inquieta.
Jamais me senti tão sozinha.
Capítulo Quatro
ARTHUR

Eu era um homem morto. Tudo o que me restava eram as roupas do


corpo e meu cérebro, enquanto ainda não pudesse retornar ao mundo dos vivos.
No dia em que saí da casa de Christine, ferido e sem rumo, vaguei pelas
ruas sem muita noção do que poderia fazer. Mas aquela merda de treinamento
deveria ter servido para algo, já que minha memória fora trabalhada para lembrar
de todos os pequenos detalhes que me eram oferecidos. Foi assim que o
endereço de Mário Jontessi surgiu na minha mente. Fora mencionado apenas
uma vez, em uma das conversas clandestinas que ousávamos ter quando
ninguém nos vigiava — momentos muito raros —, mas estava lá, intacto, em
alguma parte da minha cabeça, esperando ser acionado.
Provavelmente foi o primeiro destino no qual pensei, porque não ficava
assim tão distante da casa de Christine. Mário morava em Vila Isabel. Nas
condições em que eu me encontrava, caminhar por uma quadra já seria
mortificante, mas precisei suportar por quatro quilômetros. Na metade do
caminho, a dor era tanta que eu quase enlouqueci, desejando a morte. Desabei no
chão mais de uma vez, porém, assim como minha memória foi treinada para
armazenar informações importantes, meu corpo foi adestrado para suportar todo
o tipo de sofrimento físico. Eu era um soldado, afinal. Uma cobaia. Uma porra
de um rato de laboratório de um projeto insano.
Quando cheguei ao local, estava a um passo da inconsciência.
Exatamente como fiz no prédio de Christine, aproveitei um momento de
distração do porteiro, que pegou no sono, e entrei, acompanhando uma jovem
bêbada que parecia mal conseguir se manter em pé, muito menos preocupar-se
com um estranho meio grogue invadindo seu prédio. Ainda bem que estava com
uma camisa preta, pois minha ferida já começava a sangrar novamente.
Chegando ao andar, mal tinha forças para bater na porta, e quando
finalmente o fiz, quase ofegante e desfalecido, ninguém veio me receber.
Esforcei-me ao máximo para tentar uma segunda e uma terceira vez, até que me
dei conta de que a casa estava vazia. Poderia ter suposto que Mário não morava
mais ali, pois não nos falávamos há mais de dois anos, se não houvesse uma
correspondência recente, do próprio condomínio, no nome dele sobre o capacho
em frente à porta.
Olhando ao meu redor para não ser pego no flagra, bati na porta mais
uma, duas, três vezes. Teria batido mais quatro ou cinco, se não fosse o
desespero para me jogar em algum lugar e descansar. Fosse um chão ou uma
cama, não importava. Eu só precisava de um espaço seguro e privado para
dormir.
Essa necessidade era tão avassaladora que minha mente começava a girar
com várias possibilidades, cada uma mais louca do que a outra.
Eu cairia ali naquele corredor, alguém chamaria a polícia, e a MR,
corporação que me manteve cativo por três anos, acabaria me encontrando.
Eu não poderia entrar no apartamento de Mário, precisaria passar a
noite na rua, e a MR acabaria me encontrando.
Eu começaria a sangrar profusamente, alguém me levaria ao hospital, e
a MR acabaria me encontrando.
Todos os meus maiores receios resumiam-se à MR. Não importava que
fosse preso, que me tratassem como indigente, que me confundissem com um
ladrão ou que caísse quase morto no chão. Qualquer uma dessas opções era
muito mais atraente do que retornar àquele pesadelo. E eu não podia permitir a
hipótese de voltar para lá. Nem que precisasse agir de formas completamente
ilícitas.
Não havia nada em meu poder que pudesse me ajudar a arrombar aquela
porta para invadir o apartamento. Olhando ao meu redor, tentei aguçar minha
percepção, como também fora treinado, para traçar estratégias do que poderia
fazer. Nada me parecia uma boa ideia até que avistei a lixeira do andar.
Nem sequer hesitei. Abri a porta e, em seguida, fiz o mesmo com a
tampa da enorme lata laranja. O cheiro que saiu de lá me fez inclinar a cabeça
para trás, como se esse movimento pudesse me proteger da ânsia de vômito.
Ainda assim, comecei a vasculhar as sacolas. Encontrei comida podre,
embalagens sujas, lixo de banheiro... nada muito agradável. Contudo, achei
também algumas coisas que separei, porque poderiam ser úteis: um pregador de
roupa antigo, daqueles de madeira, com uma mola de arame, um clipe de papel e
o que mais me deixou animado — um cartão de passagem do metrô. Talvez a
sorte estivesse ao meu lado, afinal.
Com pressa, optei por começar usando o cartão, pois sabia que seria o
mais útil, ainda mais em uma porta de um apartamento antigo, já que nos mais
modernos aquele truque não seria possível.
Inseri o cartão na lateral da porta, deslizando a extremidade mais
comprida no espaço ao lado do umbral, bem em cima da tranca. Bem devagar,
alinhei-o de forma perpendicular à madeira e o empurrei na minha própria
direção, enquanto girava a maçaneta, tudo de forma muito minuciosa.
O barulho mágico da porta se abrindo foi música para meus ouvidos.
Literalmente corri para dentro, puxando o cartão de volta para mim.
Entrei, fechei novamente a porta e me joguei no chão, de barriga para cima,
saboreando a sensação de poder sofrer e até mesmo apagar para descansar meus
sistemas, antes que entrassem em pane.
Durante os quatro dias da minha estadia secreta, encontrei alguns
apetrechos de primeiros socorros, que me serviram muito bem para refazer o
curativo, além de uma chave reserva, que me possibilitou entrar e sair do
apartamento.
Para a minha sorte, a geladeira estava abastecida, e eu pude ter minha
primeira refeição decente em anos, que consistiu em um ovo mexido com batatas
cozidas. Por mais simples que pudesse ser, pareceu-me, naquele momento, o
maior banquete com as melhores iguarias do universo. Tudo o que eu tirava da
geladeira era anotado minuciosamente em um papel, para que eu pudesse pagar a
Mário assim que recuperasse meu dinheiro e minha vida.
Também havia um computador disponível, não bloqueado por senha,
com o qual consegui me atualizar de algumas coisas. Com a própria conta de
Mário, logada, descobri que ele estava em uma viagem, para um evento de
games, que era sua maior paixão. Acessei também algumas mídias sociais, pela
senha dele, e dei uma conferida em como estava a vida de Christine — suas
novas amizades, se havia algum relacionamento amoroso, se ainda se
comunicava com meus pais e o que andava fazendo. Descobri que ainda
trabalhava no mesmo café e parecia sair muito pouco, porque não havia
nenhuma foto de eventos de entretenimento. Aliás, havia muito poucas fotos
atuais dela.
Dei uma vasculhada na vida da minha família também, e essa foi a parte
mais difícil. Principalmente porque a notícia com a qual me deparei não era do
tipo que se engole facilmente como um comprimido a seco.
Meu pai havia morrido. Há dois anos. E eu não tivera sequer a chance de
dizer adeus.
Não éramos nem de longe melhores amigos. Tínhamos nossas diferenças,
e elas eram alimentadas dia após dia. Ele queria que eu fosse uma pessoa que eu
não era. Era irônico lembrar que tinham me levado contra a minha vontade
exatamente para me transformarem em um homem que também nunca quis ser.
Apesar de tudo, ele era meu pai. Alguém que nunca conheci de verdade e
que nunca tentou me conhecer também. Um estranho com quem convivi minha
vida inteira. Um desconhecido que eu amava, embora tivesse demorado tanto
tempo para admitir esse sentimento.
Além de suportar a dor, abrir portas e a treinar minha memória, fui
condicionado a deixar de lado minhas emoções e a enrijecer meu coração.
Qualquer tipo de amor poderia ser nocivo à minha missão, qualquer tipo de
compaixão me tornaria fraco. Pessoas facilmente tornavam-se pontos fracos, e
eu, como o soldado que passara a ser, não poderia abrir espaço para elas. A
solidão fazia com que não tivéssemos nada a perder, e eu passei a acreditar em
todas essas teorias, afinal, era o que ouvia quase todos os dias, como mantras.
Assustava-me pensar que mesmo fora daquele lugar, aquelas instruções
ainda me perseguiam. Tanto que engoli a dor por causa da morte do meu pai e
me esforcei ao máximo para esquecer.
Tudo isso acontecera ao longo de quatro dias. Quatro dias que se
passaram tão devagar que eu tinha a impressão de que o sol imobilizava-se antes
de se pôr, recusando-se a aparecer, como se estivesse preso em uma pequena
eternidade particular. Eram dias em que eu mantinha uma rotina que se
assemelhava muito à que me impuseram na corporação: acordar antes do
amanhecer, exercitar meu corpo — o que fiz com muita cautela por causa do
ferimento —, comer, tomar banho e manter a mente em movimento. Eu jamais
conseguia ficar parado. Todas as vezes em que tentava descansar, fosse física ou
mentalmente, minha cabeça era transportada para tudo o que havia acontecido
comigo. Todas as punições pela minha rebeldia, todas as privações e todas as
covardias que sofri.
Quando comecei a me sentir mais forte, fui visitar Christine em seu café,
o que acontecera na noite passada. Minha intenção era apenas alertá-la dos
perigos e avisar que estava bem, porque ela merecia saber depois do que tinha
feito por mim. Acabei, no entanto, falando mais do que devia e até beijando-a.
Sem nem saber se queria ser beijada. Invadi muito mais espaços do que deveria,
mas não era algo para se pensar naquele momento, enquanto fazia flexões no
tapete da sala de Mário e ouvia a porta se abrindo.
Imediatamente parei o treino, posicionando-me sentado sobre os
calcanhares, com as mãos nos joelhos. Era noite lá fora, e eu estava com a luz
apagada. Odiaria assustá-lo, mas foi o que acabou acontecendo. No momento em
que o apartamento foi iluminado, ele soltou um palavrão bem alto e agarrou uma
miniatura do Homem Aranha que se encontrava sobre um aparador ao lado de
algumas outras, como se aquilo pudesse defendê-lo.
— Puta que pariu! O que... quem é você? — ele indagou ainda assustado.
Fazia sentido que não me reconhecesse de imediato, porque quando nos
conhecemos eu era outro homem. Seis meses na corporação ainda não tinham
me mudado por completo, e eu conservava muito do rapaz ingênuo que ainda
acreditava que poderia escapar dali intacto. Além disso, nosso contato era muito
limitado, embora eu tenha sido o “soldado” escolhido para trabalhar com ele. Eu
o servia e o auxiliava em qualquer coisa que precisasse. Era, na verdade, a única
pessoa com conseguia conversar além dos loucos de jaleco e uniforme que me
tornaram quem sou. Jamais vi os outros recrutas, mas se eu era o número 48,
imaginava que deviam existir muitos outros.
Depois do susto inicial, Mário franziu o cenho, ainda sem se aproximar e
sem fechar a porta. Esperava que ninguém tivesse ouvido seus gritos, ou eu
estaria fodido de vez.
— 48? Puta merda... mas... Puta que pariu! — Mário finalmente fechou a
porta e jogou a mochila que carregava nas costas no chão, levando a mão à
cabeça. Atordoado, ainda não tinha largado a miniatura. Permaneci impassível,
apenas esperando que seu rompante terminasse. — Cara, como você... —
Percebi que algo estalou em sua mente, pois ele recuou mais um passo, o
máximo possível antes de colidir com a porta, assustado. — Espera aí! O que
está fazendo na minha casa? Eles te mandaram para me matar?
— Não, Mário. Eu fugi — falei com muita calma, em um tom de voz
baixo, esperando não estressá-lo ainda mais.
— Mentira. Ninguém foge daqueles caras! — Ainda apavorado, ele
ergueu um pouco mais a miniatura, pronto para atirá-la na minha cabeça.
— Eu fugi. Há alguns dias — repeti com convicção.
— Como? — ele parecia perguntar para me testar. Mário sabia muito
bem que nossa capacidade de enganar e persuadir era eficaz, mas também não
era um cara burro. Se alguém pudesse avaliar o que era verdade ou mentira no
que eu dizia, esse alguém seria ele, sem dúvidas.
— Fui recrutado para uma missão. Antes que me colocassem a
tornozeleira eletrônica, consegui me soltar e escapei.
— Simples assim?
— Simples assim. — Bem, não fora tão simples, levando em
consideração que tive que tirar algumas vidas, mas não era hora para revelar que
ele tinha um assassino no meio de sua sala.
Mário ergueu a cabeça, como se me estudasse cautelosamente. Imaginava
que sua mente deveria estar uma bagunça naquele momento — um cara que ele
mal conhecia invadia sua casa e lhe dava explicações que pareciam
completamente absurdas. Ninguém, até onde sabíamos, fugira da corporação.
Não havia nada de especial em mim para que fosse capaz do contrário.
Provavelmente era exatamente nisso que estava pensando.
— Então o que veio fazer na minha casa?
Respirei fundo e ergui a barra da minha camisa, mostrando-lhe o
curativo. Se o arrancasse para que pudesse ver o ferimento, ele teria acesso a
algo bem menos assustador do que estivera quatro dias atrás. Ainda assim, não
era nada bonito.
— Estou ferido. Não tinha para onde ir.
— Cara, você tem família, amigos... Por que eu?
— Não posso colocá-los em risco. Não enquanto estiver debilitado.
— Ah, mas o nerd babaca que você conheceu por alguns meses é
descartável? — ele indagou com raiva. Apesar disso, pousou novamente a
estátua sobre o aparador e usou a mão livre para passá-la pelos cabelos
encaracolados.
— Não, não é isso. Vim porque preciso de ajuda. Sei que você também
tem muitas coisas contra a MR, e aposto que ainda vive com medo deles mesmo
depois de tanto tempo. Precisamos pará-los.
— Cara, você ficou louco! — ele exclamou e veio em minha direção,
finalmente, jogando-se no sofá à minha frente. Eu ainda permanecia sobre o
tapete. — Por que não procura a sua família, pega todo o dinheiro que eles têm e
desaparece? Vai morar na Suíça, na Grécia... casa com uma dinamarquesa, elas
são lindas. Viva a sua vida agora que está livre.
— Eu nunca estarei livre. Você também não. Nós sabemos de mais.
— Eu estou livre. Tenho um trabalho não muito honesto, mas do qual
gosto, e ninguém nunca mais me perturbou. — Minhas habilidades em relação a
mentiras não se limitavam apenas a criá-las de forma perfeita, mas também
consistiam em identificá-las nas expressões dos outros.
— Eles não sabem o quanto você descobriu. E mesmo sem saberem, sua
casa estava toda microfonada, grampeada e cheia de câmeras.
Essa informação fez Mário pular do sofá, colocando-se de pé.
— Do que você está falando? E ainda assim você veio para cá? Eles
sabem que está aqui comigo? Estou fodido! — Novamente levando a mão à
cabeça, Mário começou a olhar de um lado para o outro.
— Ninguém está fodido aqui. Eu tomei todos os cuidados. Não acendi as
luzes e mantive silêncio antes de destruir todos os apetrechos. Vasculhei a casa
inteira, cada espaço, cada canto. Não há mais nada. Pode acreditar em mim.
— Então eles agora já sabem que eu destruí tudo e que vi que estavam
me vigiando.
— Sim. Infelizmente, sim.
— E você fala isso com essa calma, seu filho da puta? — Mário berrou,
desesperado.
Reuni toda a paciência que ainda existia dentro de mim e me coloquei de
pé, com toda a calma do mundo para não intimidá-lo.
— Mário, se você estava grampeado, eles tinham planos de pegar
qualquer falha e usar para fazê-lo desaparecer. Comentou sobre a MR com
alguém dentro desta casa durante os anos em que esteve fora dela?
Com o peito magro descendo e subindo de forma quase frenética, ele
começou a refletir a respeito da minha pergunta, com certeza vasculhando a
memória em busca de algo que pudesse tê-lo comprometido. Não demorou
muito para que fechasse os olhos bem apertados, preocupado. Claro que tinha
feito alguma merda.
— Foi só uma vez, para um amigo que estava pensando em se candidatar.
Contei tudo. Tudo mesmo. — Mário sentou-se novamente. — Cara, que merda!
Estou muito fodido.
— Falou com esse amigo recentemente?
O rapaz olhou para mim com os olhos arregalados, sabendo exatamente o
que eu queria dizer com aquela pergunta.
— Não, já faz mais de um ano. Ele nunca mais... — Dando-se conta do
que poderia ter acontecido, seus olhos azuis abriram-se mais ainda de espanto, se
é que era possível. — Será que... Ah, não! Ah, não! — Enquanto repetia a
mesma expressão incessantemente, Mário levantava-se e corria até a mochila,
tirando de lá seu celular. Com dedos trêmulos, tocou várias vezes a tela, levou o
aparelho ao ouvido e esperou. — Boa noite, me desculpe, eu sei que é tarde, mas
eu poderia falar com o João? — Segundos se passaram antes que ele fechasse os
olhos, cheio de pesar. Não precisava nem explicar o que tinha acontecido. Eu
sabia. — Tudo bem, me perdoe. Sinto muito, eu não fazia ideia...
Mário encerrou a ligação e jogou o telefone sobre o sofá, sentando-se
novamente. O nervosismo fazia com que não parasse quieto. Eu, por minha vez,
permanecia no mesmo lugar, de pé, com as mãos para trás, costas eretas, apenas
avaliando a situação.
— Ele sofreu um acidente há uns dez meses. Acabei de falar com a
esposa dele. — Chorando, Mário fez uma pausa, recuperando-se dos choques. —
Eles têm um bebezinho. Era um cara legal, não merecia.
— Você sabe que esse acidente não foi uma coincidência, não sabe?
— Sei. E agora eles sabem tudo o que eu descobri — ele disse, com a
cabeça abaixada, mas logo a ergueu, olhando para mim. — Agora eu vou morrer
também, não vou?
— Não se eu puder evitar... — Não era a forma mais sutil de consolar
alguém, mas eu não saberia fazê-lo de outra forma. Enganá-lo seria ainda mais
covarde da minha parte, principalmente porque precisava que estivesse ciente de
tudo o que nos rondava para que pudesse me ajudar.
— Você está mesmo decidido a entrar nessa guerra, 48?
— Não me chame assim. Você sabe o meu nome...
— Tudo bem... Arthur. Você vai mesmo enfrentar a MR? Não acha que
outras pessoas já tentaram antes? Mesmo lá de dentro?
— Não sei. Mas talvez eu seja o mais determinado... E estou aqui fora.
— Não duvido. Só que tenha em mente que vai ser uma batalha no estilo
Davi e Golias.
— Davi venceu. É só isso que importa. Mas vou precisar da sua ajuda —
informei cautelosamente. Apesar de tudo o que tinha lhe falado, ele ainda
poderia estar relutante e decidido a ficar fora da situação.
— Já estou no inferno, irmão. Só me resta abraçar o capeta. Por onde
planeja começar?
— Eles me deram uma missão. Eu teria que assassinar um homem, e algo
me diz que esse cara também está envolvido nisso tudo. Pode ser uma chave
para o início do nosso plano.
— Você quer que eu o encontre?
— Não. Eu o conheço. Só que preciso saber o porquê de ele estar na mira
da MR. E você vai me ajudar. Isso, é claro, se quiser... — deixei bem claro que
não o obrigaria a nada. Porém, ele só precisou pensar por alguns segundos.
— Tô dentro. E antes que pergunte, você pode ficar aqui em casa. Aliás,
acho que já se instalou muito bem... — ele falou, olhando ao redor e encontrando
um copo vazio sobre a mesa de canto, ao lado do sofá.
— Eu prometo que vou devolver tudo o que consumi. E também que
minha estadia será por muito pouco tempo. Quero ir ver minha família em breve.
— Relaxa, cara. Estamos juntos nessa. Vamos derrubar essa porra!

***

CHRISTINE
Dias depois
Eram quatro da tarde — horário em que a cafeteria sempre ficava mais
vazia. Pessoas entravam e saíam, pegando seus cafés ou guloseimas, apressadas
para continuar seus afazeres. Enquanto meus dois funcionários conversavam
entre si e lidavam com os clientes que eventualmente surgiam, eu passava o
tempo no meu canto favorito, lendo um livro. Ou relendo, na verdade. Era a
terceira vez que devorava Christine, de Stephen King, a maldita história que dera
aos meus pais a ideia para me batizarem. Por causa disso, era um dos meus
favoritos, sem dúvidas. Não que eu gostasse muito de servir de homenagem a
um carro assassino, mas o nome, ao menos, era bonito.
Um sol discreto se destacava no céu azul lá fora, mas o calor ainda não
tinha dado as caras, felizmente. Dentro da cafeteria, o cheirinho de café fresco
me proporcionava uma deliciosa sensação de paz, e meu coração parecia um
pouco mais confortado, embora uma preocupação nunca me abandonasse.
Naquela tarde, em especial, estava me sentindo bem. As pessoas ao meu
redor chegaram a perceber isso, comentando da minha aparência, e eu planejava
me manter assim. Até que algo na televisão chamou a minha atenção.
A reportagem era de um daqueles programas que falavam sobre
celebridades e pessoas que eles acreditavam serem relevantes para a mídia. Com
certeza não seria algo que despertaria o meu interesse, tirando o fato de que o
nome Arthur Montenegro foi mencionado.
Larguei o livro imediatamente, quase derrubando-o no chão, e voltei
meus olhos ansiosos para a tela.
A cena que se desenrolava mostrava Arthur saindo de um carro e
tentando entrar na mansão dos Montenegro, enquanto repórteres de vários
veículos de imprensa o seguiam, empurrando uns aos outros para terem acesso
ao melhor ângulo. Selma e Cléo também saltaram do mesmo veículo e se
apressaram em agarrar os braços dele, cada uma pendurando-se em um, com
olhos chorosos e emocionados. J.J. seguia logo atrás, acompanhado de Sidney,
criando uma espécie de comitiva. Não pude deixar de reparar na expressão de
desdém do rapaz mais jovem, embora devesse estar feliz e igualmente aliviado
pelo reencontro com o irmão.
Um jornalista mais efusivo conseguiu se aproximar de Selma, e ela, sem
escolha, uma vez que um celular fora praticamente colado em seu nariz, deu seu
depoimento:
— É uma bênção de Deus ter meu filho de volta. Estamos muito felizes,
mas queremos manter nossa privacidade... — ela disse, deixando bem claro.
Porém, o jornalista, sentindo-se vitorioso por ser o único a conseguir alguma
declaração, insistiu:
— Por que o Sr. Arthur Montenegro ficou afastado por tanto tempo, sem
dar notícias?
Daquela vez, quem se intrometeu, colocando-se na frente da mãe, foi
Cléo, muito menos paciente:
— Dá para pararem com isso? Estão enchendo o saco! Meu irmão
voltou, é isso o que importa, e vocês não têm nada a ver com isso.
Em seguida, ela deu um empurrão no repórter, que se mostrou indignado,
mas abriu espaço para que passassem.
Quase sem ar por ver aquela cena se desenrolar na TV, como se não fosse
parte da minha vida, levantei-me de onde estava sentada e desliguei o aparelho
sem nem perguntar para os meus colegas se queriam ver mais alguma coisa. No
mesmo instante, uma mão em meu ombro e uma voz conhecida me fizeram
sobressaltar, porque ainda não tinha me dado conta de sua presença ali. Devia ter
chegado enquanto eu estava abobalhada olhando para Arthur.
— Chris, você precisa tirá-lo da cabeça. E da sua vida. Ele é outra pessoa
agora — Maiara sussurrou em meu ouvido, não permitindo que os outros
escutassem. Enquanto falava, guiava-me até uma mesa para que nos
sentássemos.
— Mas você não viu que eu desliguei a televisão? O que acha que estou
tentando fazer? Exatamente tirá-lo da cabeça.
— E toda essa irritação? Qual seria o motivo?
— Minha indignação com a imprensa brasileira. Não podem nem deixar
uma família em paz? — Tentei enganá-la, mas pela forma como ergueu a
sobrancelha em desafio, eu podia perceber claramente que não engolia minha
resposta. — Tá, Mai, eu estou um pouco chateada por ele não ter sequer me
avisado que ia revelar que estava vivo. Ele veio aqui há quase uma semana,
entrou na cafeteria, disse que sentia muito, falou um bando de coisas que não
saem da minha cabeça, mas não teve a menor decência de voltar para...
— Para quê, Chris? — ela me interrompeu. — Para te dar satisfações de
cada passo? Para que possa continuar incluída na vida dele como era antes? Já
passou da hora de entender que esse cara não é o Arthur que você conheceu.
Respirei fundo, sabendo que muito provavelmente Maiara estava certa.
Tivera a chance de tirar minhas próprias conclusões quando ele surgiu na
cafeteria naquele dia como um gatuno, não falando coisa com coisa. Era melhor
que aceitasse isso o quanto antes.
— Podemos mudar de assunto, Mai? Esse está começando a me dar dor
de cabeça.
— Claro. Eu acho, aliás, que você deveria aproveitar que amanhã é
sexta-feira e dar uma saída. Espairecer e se divertir.
— Faz um bom tempo que não sei o que é isso...
— E eu? — Maiara bufou, apoiando o cotovelo na mesa e sustentando a
cabeça de cachos perfeitos, negros, pouco mais escuros do que a sua pele, com a
mão. — Vesti a capa de mãe, esposa e médica, e nunca mais tirei.
— Não vou nem te convidar a sair comigo, porque sei que você não
pode. Mas o que acha de ir lá para casa no sábado para jantar? Pode levar a
Betinha e o maridão.
— Não podemos. Vamos a um jantar beneficente da empresa onde o
Paulo trabalha. Vamos deixar a neném na minha mãe. Mas domingo podemos
marcar um almoço, o que acha?
— Acho ótimo — respondi, sentindo-me animada pela primeira vez
naqueles últimos malditos dias. — Olha, mas pelo menos você vai se divertir.
Uma festa é sempre uma festa.
— Que nada! Vai ter leilão e um bando de outras coisas super
entediantes. Ainda bem que é para caridade, vai valer de alguma coisa o meu
sacrifício. Ando tão estressada com o trabalho que estou mais na vibe de chegar
em casa e capotar. — Ela deu uma olhada no relógio. — Aliás, tenho só mais
cinco minutos antes de voltar. Fui almoçar quase agora, acredita? Vim aqui só
ver com você estava.
— Muita correria?
— Como sempre. Estamos com um paciente que chegou há alguns dias,
sem documentos, todo arrebentado. Alguém lhe deu uma surra daquelas.
— E ninguém foi procurá-lo?
— Até agora, não. É um cara novo, deve ter uns trinta e cinco anos,
grandão... estava todo de preto, sem nada que pudesse nos ajudar a identificá-lo.
— Pobre homem. Acha que vai sobreviver?
— Não temos como saber. Está reagindo bem, parece forte, mas
pacientes em coma são sempre uma incógnita. Ele sofreu traumatismo craniano.
Se acordar, pode apresentar sequelas. — Ela suspirou ao terminar de falar a
levantou-se. — Bem, deixa eu me mexer. Confirmado domingo, então?
— Claro. Vai ser ótimo. Estou com saudade da Betinha.
— Imagino que sim. Eu estou com saudade dela e não a vejo há algumas
horas — brincou. — Mas vê se dá uma saidinha amanhã.
— Vou pensar nisso.
— Pense com carinho — dizendo isso, Maiara deu um beijo em meu
rosto e saiu, acenando para os outros dois.
Provavelmente eu iria mesmo pensar. Iria refletir sobre os prós e contras
de sair e provavelmente os pontos negativos venceriam. Eu poderia chamar
Telma, poderia ligar para alguma outra amiga ou simplesmente sair sozinha.
Pegar uma sessão bem tarde no cinema, pagar a mim mesma um bom jantar em
um restaurante caro ou sair para um barzinho com música ao vivo e conhecer um
cara para dar uns amassos por uma só noite. Qualquer uma dessas opções
poderia ser sensacional, mas todas me davam a maior preguiça. Se combinasse
com outra pessoa naquele mesmo instante, onde minha cabeça ainda estava
quente, seria mais difícil desistir.
Nem pensei muito. Peguei o celular e encontrei o telefone de Edgar. Um
cara bonito e rico como ele, com certeza deveria ter algum programa para a noite
seguinte, mas decidi arriscar. Dependendo do que fosse, ele poderia me incluir,
talvez?
Surpreendi-me quando ele atendeu no primeiro toque.
— Chris? Que surpresa! — Devia ser mesmo. Ele já tinha me dado
aquele número há quase um ano, e eu nunca havia lhe telefonado.
— Pois é. Acho que vai ficar ainda mais surpreso quando eu explicar o
motivo da ligação.
— Você está bem? Precisa de alguma coisa?
Que tipo de mulher eu me tornava quando a única explicação
aparentemente plausível para ligar para um cara atraente seria um problema?
— Não, está tudo bem. Só quero perguntar se você tem planos para
amanhã à noite. — Céus, de onde eu tinha tirado coragem para aquele convite?
— Nossa… isso é inesperado. Eu tinha alguns planos, sim, mas nada que
eu não possa desmarcar para sair com você. — Ele parecia muito animado. Até
demais. Imediatamente me arrependi, porque não queria lhe dar esperanças
equivocadas.
— Ah, se você já tinha alguma coisa, não desmarque por minha causa.
Podemos deixar para outro dia.
— E te dar oportunidade para fugir de mim novamente? Nem pensar.
Sabe há quanto tempo estou querendo sair com você? Eu desmarcaria com o
Papa, se fosse preciso.
Sua determinação me fez sorrir. Não podia negar que fazia bem para o
ego ouvir aquele tipo de coisa.
— Então tudo bem. Você me pega às oito?
— Por mim está perfeito. O que tem em mente?
— Nada muito frenético, porque tenho que trabalhar no sábado. Jantar e
cinema? — indaguei insegura. — Faz tanto tempo que não faço isso que estou
um pouco fora de prática.
— O que você não faz há muito tempo, Christine? Sair com um amigo?

O tom em sua voz era provocador. Eu poderia deixar por isso mesmo e
apenas assentir, mantê-lo na categoria de amigo, o que seria bem mais seguro.
Contudo, queria deixar as coisas bem claras, não apenas para ele, mas para mim
também. Nada de subterfúgios, de joguinhos ou indecisões.
— Não, Ed. Sair em um encontro.
A primeira resposta de Edgar foi o silêncio. Talvez eu o tivesse chocado
de alguma forma, porque era um imenso contraste com meu comportamento
usual, tão reservado e discreto.
— Você acabou de deixar o meu dia muito feliz.
Eu também queria estar me sentindo plenamente feliz. Talvez, no fundo,
fosse apenas uma mal agradecida, sem decência suficiente para valorizar o que
tinha bem na palma da minha mão. Estava dando uma chance ao destino.
Esperava que ele não me decepcionasse.
— Nos vemos amanhã, então.
Edgar também se despediu, parecendo muito ansioso. Não consegui
conter um sorriso, pensando no quanto poderia ser legal aquela noite. Por mais
que ainda não me sentisse pronta para um algo mais do que um encontro casual,
queria relaxar, divertir-me e, quem sabe, trocar alguns beijos inocentes com um
cara muito atraente.
A ideia começou a me deixar um pouco mais animada, tanto que
conforme retornava à minha leitura, voltando ao meu cantinho preferido da
cafeteria, peguei-me cantarolando uma música de rock antiga, que minha mãe
gostava. Isso provocou uma sensação cálida no meu peito, algo muito agradável.
No entanto, essas emoções positivas duraram muito pouco, pois assim
que me acomodei e voltei meus olhos para o lado, observando através da janela,
o homem misterioso estava de volta, na mesma posição, com a mesma expressão
sombria, observando-me, como se apenas estivesse esperando pelo momento
certo de atacar.
Capítulo Cinco
ARTHUR

Era muito irônico sair da minha própria casa para dormir. Mais irônico
ainda era pensar que o sofá desconfortável de Mário me fazia pegar no sono
mais facilmente do que a cama enorme da mansão da minha família. Cheguei ao
apartamento dele às sete da manhã, acreditando que estaria dormindo — já que
acordava muito tarde —, mas encontrei o local vazio. Estranhei um pouco, mas
decidi ignorar e esperá-lo na sala. Contudo, peguei no sono e só acordei no susto
quando senti uma mão pousar sobre meu ombro, sacudindo-o. Imediatamente
despertei sem me dar conta dos meus arredores e, assim como tinha feito com
Christine no dia em que cheguei em sua casa ferido, agarrei o punho da pessoa
que me chamava, pronto para imobilizá-lo com algum golpe.
— Ei, porra! — Mário gritou, e eu imediatamente o soltei. — Caraca,
cara! É uma puta aventura te ter por perto. Nunca sei quando vou levar um soco
ou um mata leão.
— Desculpa. Eu acabei pegando no sono...
— Percebi. Aliás, achei que agora que você se revelou para sua família ia
me deixar em paz e devolver a chave da minha casa. Não esperava te encontrar
aqui hoje.
— Eu deveria ter avisado... — falei enquanto me colocava sentado,
esfregando o rosto, tentando afastar o sono. Olhei para a mesa de jantar do
pequeno apartamento e vi algumas sacolas de compras. Não precisava nem olhar
dentro delas para adivinhar que deveriam estar cheias de besteiras como batatas-
fritas, biscoitos, chocolate, refrigerante e hambúrguer.
— Deveria mesmo. — Ele se sentou ao meu lado. Estava um pouco
ofegante e vermelho, fazendo-me deduzir que estivera correndo, mas também
deveria haver um pouco de nervosismo por conta da minha reação violenta. —
Mas me diz... por que não está em casa com a sua família? Eu vi a matéria na
TV, e eles pareciam muito felizes por te terem de volta.
— Sim, aquilo foi filmado hoje de manhã. Almocei com eles, e minha
mãe e irmã não paravam de chorar. Também fui ao túmulo do meu pai e...
adivinhe?
— Choraram mais ainda? Já entendi a treta.
— O problema também é que eu não sou mais o Arthur que elas
perderam. Às vezes acho que olham para mim como se eu fosse um
extraterrestre, procurando o mesmo homem que conheceram. Mas não vão
encontrar — desabafei.
— Não, claro que não. Depois de tudo pelo que você passou.
— Sim. Mas não posso contar para elas. Quanto menos souberem,
melhor.
— Isso não vai mudar o fato de que vão usá-las para chegarem até você.
Talvez se souberem a verdade poderão se proteger — Mário opinou, enquanto
esfregava o rosto, parecendo preocupado. Estava levando problemas de mais
para aquele garoto.
— Eu vou protegê-los. A todos eles. Mas no momento tenho duas
preocupações maiores.
— Sua amiga e a missão que eles te deram. Certo? — Balancei a cabeça,
assentindo. — Você não deveria ter ido atrás dela ferido.
— Não, não deveria — afirmei. — Mas ela foi a opção mais óbvia.
Sempre que precisava de ajuda, Christine era quem eu procurava. Não foi
diferente dessa vez, porque meu inconsciente falou por mim.
— Ela deve ser muito importante para você.
Desviei os olhos, não querendo que Mário percebesse minha expressão
diante daquela pergunta. Eu lhe daria uma resposta, é claro, mas que não seria
condizente com nem um terço do que eu verdadeiramente carregava no peito.
Ninguém podia conhecer minhas emoções, principalmente quando se tratavam
de Christine. As merdas pelas quais passei fecharam meu coração para quase
tudo, menos ela. Até pensei que poderia lidar com esse sentimento, trancá-lo a
sete chaves dentro de mim, mas era mais forte do que eu.
— Sim. É minha melhor amiga. — Só isso. Era o que eu podia me
permitir responder.
Por mais que confiasse em Mário — e eu realmente precisava confiar
nele, já que as opções não eram exatamente muito vastas —, ainda não
conseguia abrir as portas da minha alma tão facilmente. Se é que ainda havia
uma alma dentro de mim. Por vezes, quando tentava acessar minhas emoções
mais profundas, encontrava um corpo vazio, uma casca oca, apenas com
objetivos. E o maior deles era a vingança.
— Não tenho muitas amigas mulheres. — Mário soltou a informação de
forma inocente, como se quisesse iniciar uma conversa trivial, enquanto remexia
as sacolas e retirava as compras. Era uma pena que estivesse interessado em
dialogar logo comigo, alguém que carregava um milhão de silêncios presos aos
lábios. Minhas palavras eram estrelas que eu achava melhor manter apagadas.
No meio da escuridão em que me encontrava, elas eram apenas grãos de areia
perdidos em um deserto infinito. Falar de menos era sempre a melhor escolha.
Como continuei calado, ele prosseguiu: — Para ser sincero, eu não tenho muitos
amigos, seja do sexo que for.
Eu não queria me apiedar dele. Mário não merecia isso; era um cara
inteligente, um dos poucos seres bons que restavam naquele mundo de merda.
Mas a forma como ele escolheu para expressar-se me deixou incomodado. Não
apenas pela afirmação triste, também pelo olhar perdido e abandonado que
lançou em minha direção.
O que eu poderia fazer, além de continuar em silêncio, mesmo me
achando o maior filho da puta por isso? Por sorte, ele pareceu não se incomodar,
mas também não disse mais nada, apenas começou a levar as compras para a
cozinha, guardando-as na geladeira e na despensa. Contudo, ainda não ficou
calado.
— Mas me diz uma coisa... tenho certeza de que não entrou na minha
casa só para me observar realizando tarefas domésticas.
— Não, é claro que não. — Levantei-me do sofá, sabendo que tinha
chegado a hora da decisão. Se Mário quisesse realmente entrar naquela roubada
comigo, aquele era o momento. Não podia mais alongar meus dias de folga,
afinal, não era uma porcaria de colônia de férias. Aproximei-me dele, portanto,
colocando-me bem no meio, entre a cozinha e a sala, uma vez que ele continuava
indo de uma a outra sem parar. — Preciso que pesquise um nome para mim —
joguei a informação.
Mário finalmente parou o que estava fazendo para me dar total atenção.
— O cara que fazia parte da sua missão?
— Exatamente. Eu o conheço de nome, por causa de sua família, com
quem meu pai mantinha contato, mas quero saber mais.
— Cara, você tem certeza disso?
— Eu tenho. E você? Ainda pode desistir, se quiser.
— Não quero e não posso. Fiz uma burrada e agora estou nas mãos deles.
Não vou permitir que mais ninguém que conheço perca a vida por algo do meu
passado. Por uma imprudência.
Balancei a cabeça, concordando, mas não disse nada. Não queria
influenciá-lo de forma alguma.
— Vamos lá, 48, vou ligar o PC para começarmos os trabalhos. E foda-se
se você não gosta que eu te chame assim. Foi como nos conhecemos, e essa
porra de número não te define.
Definia, sim, mas achei melhor não discutir. Se aquilo se tornasse um
apelido, minhas memórias seriam acionadas cada vez que ele me chamasse, mas
talvez Mário estivesse certo. Era apenas um número. Meu nome era Arthur
Montenegro. Eu estava de volta à vida real.
Chegamos ao escritório dele, onde entrei tantas vezes enquanto era um
clandestino naquela casa, para usar o computador e a internet, mas jamais toquei
na coleção de videogames, nem nas action figures ou nos pôsteres de filmes
antigos que coloriam as paredes. Livros de RPG e famosos títulos de ficção
científica preenchiam as estantes, não deixando a menor dúvida de que aquele
cara era um nerd com orgulho.
— Nome do sujeito — ele pediu, chamando a minha atenção, sendo que
nem tinha percebido que o computador já havia inicializado.
Informei-lhe o nome e esperei. Apesar de tudo, eu o conhecia. Sabia que
era um playboy, filhinho de papai, cheio da grana e herdeiro de uma empresa de
importação avaliada em bilhões no mercado de ações. Com essa descrição, eu
poderia muito bem estar falando de mim mesmo, embora minha família estivesse
no ramo das construções.
Todos esses dados eu já tinha e poderia facilmente adquirir em qualquer
site de pesquisa, se apenas buscasse pelo nome dele. Porém, era exatamente por
isso que precisava de Mário. O que eu queria era o que a imprensa e as
publicações sobre business não contavam. Eu queria a podridão, queria ir mais
fundo e encontrar o motivo pelo qual aquele cara era tão importante para a MR,
ao ponto de mandarem matá-lo.
Concentrado, Mário fazia sua pesquisa, enquanto eu aguardava
impaciente. A principio, não parecia haver nada de absurdo, mas eu sabia que era
impossível. Toda família muito rica tinha sua sujeira debaixo dos tapetes.
Empenhado, meu mais novo amigo digitava no teclado com uma rapidez
impressionante, invadindo sites e bancos de dados, de uma forma que eu preferia
que nem me revelasse. Ele era bom no que fazia.
Eu estava analisando pela terceira vez a estante de livros quando fui
chamado. Virei-me em sua direção, e ele tamborilava os dedos na tela do
monitor, querendo me mostrar alguma coisa.
— Acho que encontrei algo. Um funcionário saiu da empresa há alguns
anos e deu queixa na polícia, só que o caso foi arquivado na surdina. Pode não
ser nada, é claro, mas…
— Mas pode ser um começo também. Como descobriu isso?
— Um hacker que se preze nunca revela suas fontes. Só posso dizer que
talvez eu seja realmente muito foda e consiga invadir alguns bancos de dados
governamentais, inclusive o da PF, como é o caso aqui.
— Polícia Federal? Por que um funcionário iria acionar a PF contra a
empresa na qual estava trabalhando? — indaguei curioso e confuso.
— É isso que você vai ter que descobrir, bonitão.
— Tem o nome dele? — Mário assentiu. — Consegue também o
endereço?
Diante dessa pergunta, ele apenas revirou os olhos, ofendido pela minha
dúvida. Não havia nada que permanecesse oculto perante a inteligência do meu
parceiro.

***
ARTHUR

Com as informações que precisava em mãos, e podendo usufruir do meu


cartão de crédito, chamei um Uber, que levou nós dois a uma locadora de
veículos. Eu tinha meu próprio carro, já que minha mãe o guardara como uma
lembrança enquanto pensara que eu estava morto, mas preferia ter minha
liberdade, deixando um veículo na garagem de Mário para quando precisasse.
Minha família andava protetora demais em relação a mim, e eu queria evitar
perguntas.
Além disso, um dia antes de eu revelar para todos que estava vivo, Mário
solicitou a um amigo que me preparasse alguns documentos falsos, e eu pude
colocar o carro em um nome que não me pertencia. Senti que algumas pessoas
ficaram olhando para mim, curiosas, provavelmente me achando familiar, mas
não me reconheceram. Esse era o preço de se ter o rosto estampados em jornais,
embora muito raramente.
Parti sozinho para o endereço de Olavo Sobreira, o tal funcionário da
Import, decidido a obter as informações que precisava. Identifiquei-me na
portaria como sendo oficial de justiça, e o porteiro imediatamente interfonou,
dando o recado. A espera foi de pouco mais de cinco minutos, mas logo um
homem careca, magro e usando óculos surgiu, parecendo muito contrariado.
— O senhor é Olavo Sobreira? — indaguei muito sério.
— Sim. O que deseja?
Olhei ao nosso redor e comecei a falar muito baixo.
— Peço que me perdoe pela mentira, mas eu sabia que o senhor não
desceria se não fosse algo urgente. Preciso de sua ajuda.
— Mentira? Você não é um oficial de justiça?
— Não. Sou um marido preocupado. Minha esposa conseguiu um
trabalho na empresa Import, e eu fiquei sabendo que o senhor teve alguns
problemas com eles…
— Como descobriu? Foi tudo encoberto! — ele indagou entre surpreso e
preocupado.
— Um dos meus melhores amigos é policial federal, e ele me abriu o
jogo. — Era mentira atrás de mentira, e eu era muito bom nisso.
— Cara, eu não quero encrenca, me desculpe. — Ele estava prestes a
retornar ao elevador, quando o chamei de volta.
— Olavo, por favor… minha esposa é tudo o que eu tenho. Sou muito
protetor em relação a ela, principalmente depois que perdemos nosso filho. Ela
entrou em depressão e está há dois anos sem trabalhar. Decidiu voltar para arejar
a cabeça, mas quero que ela entre em um bom ambiente de trabalho, onde possa
fazer amigos e mostrar seu potencial.
Eu nem precisava me esforçar para soar convincente. Se houvesse a
necessidade de aprofundar a história ainda mais, eu o faria com facilidade e sem
esquecer nenhum detalhe. Relatos dramáticos eram sempre os melhores quando
era necessário persuadir alguém a algo. Essa teoria logo provou ser válida
quando vi Olavo baixar a cabeça e colocar a mão no meu ombro, me conduzindo
para longe do porteiro, que prestava atenção na nossa conversa.
Chegamos aos fundos do prédio, onde havia um pequeno jardim
suspenso. O local realmente era uma boa escolha para uma conversa daquela
natureza, pois parecia isolado e calmo.
— Preciso que jure que vai usar essas informações só para proteger sua
esposa. O que eu te contar aqui não pode, em hipótese alguma, chegar aos
ouvidos de outras pessoas.
— Eu entendo isso muito bem. Pode confiar.
O homem respirou fundo, preparando-se para soltar a bomba, mas
finalmente disse:
— Se realmente ama sua esposa, não deixe que ela trabalhe lá — ele
afirmou com total convicção.
— Por quê?
— A Import é uma empresa de fachada. O verdadeiro negócio da família
é tráfico de mulheres.
Aquela informação me chocou verdadeiramente, mas, na intenção de
manter o disfarce, reagi de uma forma muito mais exagerada do que aconteceria
normalmente. Por mais que a perspectiva fosse completamente podre e
assustadora, eu já não me surpreendia com o quão longe um ser humano podia ir
por ganância. Nada mais me surpreendia. Não depois de tudo que vi e vivi.
— Isso é sério? — perguntei de olhos arregalados. Olavo assentiu. —
Meu Deus! Mas como eles podem continuar impunes? Como a polícia nunca fez
nada?
— É tudo muito bem estruturado. Os funcionários não sabem, porque as
atividades lícitas da Import são realmente corretas e lucrativas; é uma empresa
muito boa de trabalhar, que valoriza seus colaboradores, mas tem seu lado
obscuro, que eu acabei descobrindo. E paguei um preço caro por isso.
— Como descobriu?
— Alguns poucos funcionários trabalham como duplos, tanto na empresa
de fachada quanto no negócio clandestino. Um deles atrapalhou-se e acabou
deixando um documento comigo por engano. Guardei e pedi demissão. Então,
fui à Polícia Federal. Mas minha rebeldia quase custou minha vida.
— Como conseguiu escapar? Poderia estar morto. Esse tipo de gente…
— continuei a conversa, mantendo meu disfarce.
— A minha sorte foi que depois de muitas ameaças, concordei em retirar
a queixa. Até hoje sou resguardado pela polícia, que aceitou suborno, diga-se de
passagem, mas com a condição de que eu permanecesse intacto, assim como
minha família. Hoje, se eu morrer de causas não naturais ou em algum acidente
suspeito, eles serão acionados.
Não quis dizer nada, mas aquele cara estava contando demais com a
sorte. Se a PF fora subornada uma vez, com certeza poderia acontecer de novo.
Ele era apenas uma marionete em um jogo muito maior, não faria a menor falta.
O fato de ele estar me contando tudo aquilo, ou o tornava muito ingênuo ou
muito imprudente. Quem poderia afirmar que eu não era um funcionário da
empresa disfarçado, pronto para me testar?
Tirei alguns segundos para analisá-lo, para decifrar se estava mentindo,
mas tudo me parecia genuíno. Provavelmente Olavo era apenas uma boa pessoa,
tentando fazer a coisa certa em um mundo extremamente corruptível.
— Só me responda uma coisa… toda a família está envolvida?
— Isso eu não saberia dizer, mas pai e filho, sem dúvidas, estão.
Principalmente o rapaz. Os documentos que recebi estavam assinados por ele.
Havia outro filho, Sandro, eu acho, mas ele morreu em um acidente há alguns
anos.
Isso era tudo o que eu precisava saber.
— Obrigado, Olavo. Você, provavelmente, salvou a minha esposa. Pode
deixar que ninguém mais saberá disso — disse, apertando sua mão e tentando
lhe passar confiança, embora ele ainda parecesse inseguro.
Despedimo-nos, e eu retornei ao carro, que deixei estacionado a algumas
ruas de distância estrategicamente. Enquanto caminhava, com as mãos nos
bolsos, óculos escuros e o rosto abaixado para não ser reconhecido, tentava
arquitetar o que deveria ser feito. Meu alvo era um filho da puta, e sem dúvidas
merecia morrer, mas antes precisava de informações.
Entrei no carro que aluguei e disquei o telefone de Mário, deixando no
viva-voz. Na pressa, peguei um aparelho emprestado com Cléo, que vivia
trocando de celular, mas queria comprar um só para mim.
Sem querer perder tempo, comecei a dirigir, ouvindo-o atender.
— Cara, a coisa é mais pesada do que imaginávamos — expliquei assim
que ele atendeu.
— Pesada quanto?
— Feia. Muito feia. Preciso de um favor seu. Pode seguir o cara por
algumas horas e tentar descobrir algum compromisso ou alguma oportunidade
onde eu possa pegá-lo desprevenido?
— Porra, não sei se sou bom nisso, 48. Sou meio desastrado. E por mais
que seja magro, sou alto demais para passar despercebido.
— Não é maior do que eu.
— Ah, mas isso ninguém é. Você é um armário, cara.
— E minha cara está marcada. Já me viram na TV com essa aparência
nova. Tem que ser você mesmo.
— Está ficando muito mandão. Não sei quem foi que te colocou no
comando dessa parada. Mas eu topo. Ele deve estar na empresa uma hora dessas,
né?
— Não sei, mas seria um bom lugar para começar.
— Ok. Saio em cinco minutos. — Mário fez uma pausa e acrescentou: —
Só uma coisa, Arthur… você vai matar o cara?
Matar. Era estranho ter esse senso de decisão sobre a vida de alguém, por
saber que teria conhecimento, precisão, força e destreza para executar qualquer
plano de tal espécie. Mas eu não era um monstro. Por mais que meu alvo fosse
um filho da puta que merecia, sim, morrer, eu ainda preferia fazer as coisas de
uma forma um pouco menos violenta.
— Não, só quero uma conversinha privada com ele para descobrir qual
sua ligação com a MR.
— Tudo bem. Vamos nos falando.
Com isso, segui para a minha casa. Precisava tomar mais algumas
decisões.

***

CHRISTINE

As manhãs eram sempre agitadas. A cafeteria fervilhava de pessoas


entrando e saindo, com pedidos rápidos e sempre na velocidade da luz, o que não
era nenhuma novidade, já que a pressa era o mal do século. Todos trabalhavam
tanto que não tinham nem tempo de apreciar um bom café com calma — uma
verdadeira heresia.
Eu costumava levar a vida de uma forma mais lenta. Mas isso só era
possível graças ao fato de coordenar meu próprio negócio, no meu ritmo, com
minhas escolhas e pessoas com quem gostava de conviver. Com esse
pensamento, abri um sorriso satisfeito, observando aquele vai e vem frenético,
enquanto ajudava meus funcionários no balcão. Qualquer um que olhasse para
mim naquele momento acreditaria que eu era uma louca fora da curva, por me
sentir tão em harmonia em meio ao caos, mas era a minha forma de encarar a
vida.
A maioria dos rostos já era conhecida, com exceção de clientes novos
que — graças a Deus — surgiam todos os dias. Naquele dia, as novidades eram
duas turistas loiras, muito bonitas, falando um inglês um pouco preso, fazendo-
me julgá-las como alemãs; um fofo casal de idosos que se mudara para o bairro
na semana anterior e um jovem sozinho, alto e magro, com fartos cabelos
cacheados e olhos azuis, que lia um livro de forma desatenta, muito mais
preocupado com o que acontecia ao seu redor. Os outros eram fregueses usuais,
que sempre me cumprimentavam com educação, mas sem muitas conversas
paralelas, com exceção de Edgar, que estava há pelo menos meia hora esperando
para falar comigo.
A verdade era que eu o estava evitando. Sem dúvidas, uma péssima
atitude levando em consideração que nos veríamos naquela noite. Contudo,
sentia um enorme constrangimento todas as vezes em que olhava para ele,
principalmente porque sabia que seus interesses naquela nossa saída eram
completamente diferentes dos meus, embora eu mesma tivesse alimentado uma
esperança ao afirmar que seria um encontro.
Entretanto, quando o balcão começou a esvaziar, não me restaram mais
desculpas para manter a distância, ainda mais quando ele abriu um sorriso de
orelha a orelha, indicando que queria atenção.
Por que diabos não esperava mais algumas horas, quando estaríamos
sozinhos?
— Ei, Edgar! Não foi trabalhar hoje? — Aproximei-me com uma
pergunta segura. Sabia que ele acabaria puxando o assunto para o campo que o
interessava, mas eu adiaria essa mudança o quanto pudesse.
— Tive uma reunião bem cedo, então, decidi demorar um pouco para
voltar ao escritório. — Assenti com a cabeça, mantendo o sorriso. Minhas mãos
trêmulas não paravam quietas, então, decidi agarrar um pano qualquer e começar
a limpar o balcão, só para mantê-las ocupadas. Comecei a desesperadamente
buscar outro tema para conversarmos, mas não encontrei nada, então, ele foi
mais rápido. — Estou ansioso por hoje à noite. Na verdade, é a primeira vez que
me sinto assim, tão na expectativa para sair com uma garota.
— Vou me sentir lisonjeada, então — respondi, com um sorriso
constrangido.
— Mas é claro que pode se sentir. Você é especial, Chris. Estou me
sentindo com sorte. — Ele fez uma pausa, e eu esperei que apenas se despedisse.
O que era horrível, levando em consideração que passaríamos a noite juntos.
Sentia-me cada vez mais uma megera por saber que aquele seria o nosso
primeiro e único encontro. Não havia interesse da minha parte, o que era uma
pena, sem dúvidas, mas não estava tão desesperada assim para me envolver em
um relacionamento sem vontade. Apesar de perceber o meu silêncio, incansável,
Edgar prosseguiu: — Já tem algo em mente?
— Como assim? — desligada, indaguei. Ed riu.
— Para nosso encontro. Quero fazer algo que você goste, mas também
posso indicar algum restaurante. Posso fazer reserva no Giorgio’s, em Ipanema.
O que acha?
— Ah, seria ótimo. Nunca fui lá. — Claro que não, já que era um dos
mais caros do Rio de Janeiro. Eu adorava massas, então, ao menos a comida
poderia me deixar mais à vontade.
— Perfeito. Se não ficar muito tarde e você não estiver muito cansada,
podemos esticar para um barzinho na beira da praia ou o cinema.
Muito provavelmente o encontro terminaria no jantar, mas eu apenas
sorri e o deixei na dúvida. Continuava agindo de forma errada com ele, mas
desmarcar depois de deixá-lo tão animado seria ainda mais cruel. Depois eu
poderia conversar com calma e explicar que não estava pronta para um
relacionamento, sem ofendê-lo. Provavelmente iria magoá-lo, porém, precisava
pensar em mim. Não era um pensamento egoísta, mas de preservação.
Concordava plenamente com a teoria de que devemos dar chances a quem gosta
de nós, mas não somos obrigados a ficar com quem não nos interessa.
— Tudo bem.
Assim que respondi, ele pegou minha mão por cima do balcão e levou-a
aos lábios em um gesto de cavalheirismo.
Ouvi alguém pigarrear, o que me fez virar a cabeça na direção do som.
Diante do balcão, um pouco mais à esquerda de Edgar, estava o rapaz dos
cabelos cacheados, com uma nota de cinquenta reais na mão, esperando para
realizar o pagamento. Foi a deixa perfeita.
— Ed, preciso trabalhar — informei.
— Claro, claro. Estou te atrapalhando... Bem, nos vemos mais tarde.
Dizendo isso, ele saiu.
Aproximei-me do garoto com um sorriso de desculpas, e ele retribuiu
dando de ombros. Se antes pensava que tinha apenas uns dezoito anos, ao chegar
mais perto concluí que estava errada, que deveria ter um pouco mais de vinte e
três.
— Me desculpe por te deixar esperando...
— Tudo bem. Eu vi que a cafeteria estava cheia, e aquele mala não te
deixava em paz. — O garoto usou um sorriso charmoso, levemente desajeitado,
mas que desenhava uma covinha muito simpática em seu rosto. Ele estava
flertando comigo?
— Ah, o Edgar é um amigo... — respondi constrangida, sem entender
exatamente qual era a dele.
— Claro, claro. — Apressei-me em contar o troco para que saísse logo
dali. Não estava sendo inconveniente, mas se eu desse bola, as coisas poderiam
ficar piores. Assim que lhe entreguei as cédulas, seu sorriso se alargou, e ele
disse: — Deve ser legal ser amigo de uma garota bonita como você... — Com
isso, simplesmente pegou o dinheiro e saiu, deixando a cantada barata no ar.
Não pude deixar de segui-lo com os olhos, porque havia algo de muito
suspeito naquele rapaz. Algo que me incomodou profundamente.
Provavelmente não era nada, mas depois de receber a visita dos estranhos
homens que me interrogaram a respeito de Arthur, eu andava com medo até da
minha sombra. E fiquei ainda mais encucada quando vi o rapaz pegar o celular,
enquanto atravessava a rua, olhando de um lado para o outro.
Sem dúvidas era muito esquisito.

***

ARTHUR

Enquanto estava preso na corporação, muitas coisas me fizeram falta.


Tantas que mal conseguiria começar a enumerar. Desde as mais óbvias como
comida caseira, café, internet, cerveja, festas, música, liberdade, pessoas... até
algumas mais complexas. Ou até mesmo doentias.
Às vezes, em meu alojamento — que mais parecia o quarto de um
manicômio —, pegava-me desejando que um inseto entrasse pelo buraco de
ventilação só para que eu pudesse ouvir algum ruído do mundo exterior, algo que
não fosse minha respiração cansada ou os gritos de revolta que permaneciam
presos em minha mente, mas que eu nunca tinha coragem de colocar para fora.
Desejava que algum enfermeiro se enganasse ao levar minha comida, deixando
qualquer utensílio afiado que pudesse ser usado para que me cortasse. Sentia dor
constantemente, nas longas horas de punição que me eram infringidas todas as
vezes em que agia fora da linha, contudo, queria ser o dono daquela decisão;
queria eu mesmo me ferir, ter o direito de governar meu próprio corpo sem que
fosse no estúpido treinamento que tencionava me transformar em uma máquina
de violência.
Faziam-me falta as estradas, aquelas de viagens bem longas e solitárias,
onde eu podia abrir o vidro do carro e sentir o vento no rosto, enquanto uma
música tocava no rádio. Sentia saudade da noite, de olhar as estrelas e a lua, de
me sentir pequeno diante da imensidão do mundo, uma vez que dentro daquela
pequena cela onde haviam me trancado, eu era enorme, gigantesco, enquanto
tudo parecia sempre diminuir e me comprimir.
Por vezes, sentia falta das lembranças. Não que elas não andassem
comigo para onde quer que eu fosse, mas no vazio daquele quarto alvo e
claustrofóbico, eu precisava me esforçar muito para recordar de muitas coisas.
Cada momento recuperado tornava-se tão valioso que por muitas vezes tive
vontade de usar a porra do caderno e da caneta que haviam me ofertado na MR
para anotar cada nova memória que surgia, mas sempre decidia que não era uma
boa ideia, já que aqueles filhos da puta poderiam usar qualquer coisa contra
mim. Desde um nome até uma informação mais pessoal. E uma vez que a
maioria das coisas que surgiam na minha mente, cobertas pelo manto da
nostalgia, tinham a ver com Christine, achei melhor preservá-la.
Na verdade, ela era o que meu coração mais desejava nos dias de cárcere.
Não menti quando lhe disse naquele outro dia, quando fui encontrá-la na
cafeteria, que ela era responsável por eu ainda estar vivo. Fora também minha
motivação para a fuga. Christine era meu milagre, o rosto que surgia em meio às
brumas do desespero me mantendo são, por mais improvável que pudesse
parecer. Era a voz dela que eu ouvia em minha mente, quando o silêncio era tão
profundo e eterno, aplacando meu ódio e me enchendo de esperança. Nas noites
insones e mais deprimentes, eu pedia a quem quisesse me ouvir — fosse Deus
ou o diabo — que me concedesse só um dia, apenas um, de volta ao mundo real
nem que fosse para encontrá-la e lhe contar o quão importante ela era e fora nos
momentos mais difíceis da minha vida. Voltaria resignado para a prisão e o
isolamento se este desejo fosse concedido.
Agora que eu estava livre, tudo o que fazia era me afastar, mas por um
bom motivo. Se deixasse meus instintos falarem mais alto, se fizesse o que
minha alma pedia todos os dias, já teria ido atrás dela e compensado por todos os
anos nos quais fui um babaca. Nem que tivesse que implorar por isso.
Enquanto minha mente divagava por todas essas certezas, outra coisa da
qual sentia muita falta se fazia presente. A luz do sol entrando pela janela bem na
hora que ele se despedia do céu.
Com um braço apoiado na parede ao lado da porta de vidro da varanda
do meu quarto, observava os últimos raios incidindo sobre a casa e,
consequentemente, atingindo meu rosto como um beijo cálido. De olhos
fechados, deixei que meu corpo aproveitasse a sensação, quase meditando e me
desligando das coisas ao redor. Aquele momento contemplativo seria primordial
para que eu me mantivesse frio para o que viria logo a seguir. Muito em breve eu
sairia para sequestrar um homem. Algo que em nada combinava com a cena
poética que protagonizava.
Naquela mesma manhã, pouco antes de meio-dia, Mário me telefonou
com informações sobre nosso alvo, e levamos algumas horas para traçar o que
precisaríamos fazer. Com tudo arquitetado, voltei à minha casa para esperar pelo
momento certo. De acordo com meu parceiro, teríamos que pegá-lo na saída de
um restaurante na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde ele pretendia ir com uma
mulher. O plano era usarmos dois carros, o meu, locado, e o de Mário, segui-lo,
emparelhá-lo, apagá-lo e levá-lo para um local que estava sendo providenciando
naquele momento — um galpão velho, que nos fora alugado por uma quantia
bem barata, só por duas noites. Deixaríamos a moça em paz, é claro, embora
também precisássemos mantê-la inconsciente. Mário a levaria para algum lugar
seguro, como um motel, por exemplo, onde poderia retornar para casa assim que
se recuperasse.
Odiava a ideia de precisar usar uma inocente para concluir meus intentos,
mas alguns sacrifícios eram necessários. Esperava que o encontro deixasse um
trauma, e a garota jamais saísse com Edgar novamente, fosse ela quem fosse.
Dei uma checada no relógio e percebi que já passava um pouco das seis.
Estava na hora de ir para a casa de Mário, pegar meu novo carro e me preparar,
então, saí da varanda e peguei um casaco de couro no armário, um que
costumava ficar muito largo em mim antes de tudo acontecer. Era uma das
poucas roupas que ainda me cabia perfeitamente, uma vez que meu corpo havia
mudado por completo. Nunca fui um homem magro ou esguio, sempre tive
ombros largos, mas agora eu parecia estar remexendo em coisas que não me
pertenciam.
Tinha acabado de ajeitar a jaqueta no ombro quando ouvi uma suave
batida na porta. Não estava muito a fim de falar com ninguém, mas quando vi
que se tratava de Cléo, não pude resistir. Embora eu tivesse mudado, precisava
me lembrar de que ela ainda era a mesma. Minha menininha, minha caçula,
minha Raio de Sol.
— Vai sair? — ela indagou com uma expressão pidona que poderia me
ganhar em troca de qualquer coisa.
— Vou. Não volto cedo.
Sem nem ser convidada, ela entrou, a passos lentos, quase dançando de
tanto constrangimento. Era estranho pensar que costumávamos ser tão próximos
há três anos, que era a mim que ela procurava quando precisava desabafar ou
contar um segredo, mas naquele momento tudo parecia muito mais difícil.
— Tuco, fala comigo... Tem alguma coisa errada, não tem? Você não
simplesmente voltou, três anos depois, de um acampamento de verão. Está todo
mudado... tem essa barba, o cabelo curto, fora os músculos. Eu poderia aceitar a
hipótese de sequestro, mas você parece mais saudável do que quando
desapareceu.
Fazia poucos dias desde que tinha surgido na porta da minha casa,
revelando que estava vivo, provocando as mais diversas reações. Minha mãe
sofreu um desmaio, minha irmã correu desesperada e em prantos para me
abraçar, e J.J... Bem, ele tentou. Sua expressão demonstrava surpresa, confusão e
uma leve decepção. E eu até podia entendê-lo. Meu irmão sempre quis cuidar
dos negócios da família; queria o status, o poder. Com a minha volta, tudo o que
havia conquistado depois da morte do meu pai lhe seria arrancado, por eu ser o
primogênito. Apesar de tudo isso, fui abraçado como mandaria o figurino.
Até aquele momento, nenhuma pergunta fora feita. Todos pareceram
entrar em um pacto de silêncio para me darem espaço. Provavelmente
acreditaram que eu me abriria quando fosse a hora certa, especialmente depois
que me contaram sobre o falecimento do meu pai. Por mais que eu já tivesse lido
sobre isso na Internet, ouvir da minha família tornava tudo ainda mais pesado,
contribuindo para que eu me fechasse ainda mais.
Por um tempo, eu poderia usar isso como desculpa para meus silêncios,
porém, como iria explicar a todos que eu tinha desaprendido a conversar, a lidar
com as pessoas, a externar meus sentimentos? Evitava-os ao máximo, e a única
vez, além do momento do meu retorno, que nos reunimos como família foi
quando eles me levaram ao cemitério para visitar o túmulo do meu pai. Todos
deveriam estar pensando que desapareci por conta própria.
E por mais que fosse uma explicação de merda, era ela que eu precisaria
manter para protegê-los. Era melhor que pensassem que eu era um babaca filho
da puta do que colocá-los em perigo com a verdade.
— Eu precisava ficar longe de tudo. Precisava de um tempo para mim
mesmo, para me descobrir, encontrar o homem que realmente queria ser.
— E esse é o homem que você quer ser? — Apontou para mim, dando a
entender exatamente o que quisera dizer. Instantes depois de fazer a pergunta,
Cléo arrependeu-se e fechou os olhos, praguejando bem baixinho. — Desculpa,
eu não...
— Tudo bem. Você tem o direito de estar magoada.
— Magoada? — Ela soltou uma risadinha de desdém. — Magoada eu
estaria se você passasse uma semana fora, com uma daquelas suas namoradas
barulhentas, sem nos avisar. Eu estou puta da vida, Arthur. Três anos! — Cléo já
estava gritando. — Três merdas de anos sem nenhuma notícia, acreditando que
você estava morto. E você volta com a maior cara lavada dizendo que tirou umas
férias? Isso não pode ser verdade, você não é assim!
— Talvez eu seja exatamente assim — foi tudo o que eu disse, já que não
andava me entendendo muito bem com as palavras.
— Não! — ela novamente berrou. Temia que a casa inteira surgisse ali
naquele momento, para alongar ainda mais aquela conversa, mas parecia que
estávamos sozinhos. — Meu irmão é um homem bom. Meio bobo, meio
imaturo, mas um cara legal, com um coração de ouro. Ele é alegre, a alma de
qualquer festa, charmoso, carinhoso... É o cara que me carrega no colo quando
eu durmo no sofá depois de uma balada, o que jura que vai enfiar a porrada em
todos os garotos por quem me interesso, mas que acaba tomando cerveja com
cada um deles, mesmo depois que eu perco o interesse. Esse é o meu irmão.
— Esse cara não existe mais, Cléo.
— É, eu acho mesmo que não. Meu irmão nunca me tratava com essa
indiferença. Ele dizia que eu era o Raio de Sol dele.
Ela estava chorando, e aquilo partia a porra do meu coração. Não podia
fazê-la acreditar que não a amava, apenas serviria para feri-la. Por isso, dei um
passo à frente, em sua direção, com a mão estendida.
— Você ainda é. Isso não mudou.
Tentei dar mais um passo em sua direção, mas ela recuou, como se
tivesse medo de mim.
Medo...
Minha própria irmã me temia. Eu devia mesmo ser um monstro.
— Não quero ouvir essas coisas. Eu tinha mais orgulho de você quando
achava que estava morto. Não quero ser irmã desse merda aí que você se tornou.
Com isso, ela deu as costas e saiu do quarto.
Permaneci parado no mesmo lugar, observando-a, sem nem tentar segui-
la. Ter Cléo me odiando era o pior castigo que eu poderia receber, talvez mais
doloroso do que todos os que sofri durante os últimos anos. Apesar disso, era
melhor que ela realmente se afastasse. Não era prudente me amar.
Passei a mão pelos cabelos curtos, respirei fundo e tentei engolir o nó
preso em minha garganta. Assim que me senti quase recuperado, preparei-me
para sair. Apesar de tudo, eu ainda tinha uma missão para cumprir.
Capítulo Seis
CHRISTINE

Sentada no sofá da minha casa, eu esperava que minha companhia


daquela noite chegasse para me buscar. Estava prestes a ter um encontro com um
cara charmoso, bonito, inteligente e gentil, mas meus ânimos deveriam ser os
mesmos de alguém que vai ao enterro de um mero conhecido. Com certeza havia
algo de muito errado comigo.
Brincava com o celular na mão, quase esperando que Edgar desmarcasse,
sentindo-me cada vez mais péssima com isso. Meu ascendente em câncer ficava
mais e mais evidente todas as vezes que esse tipo de coisa acontecia. Para não
magoar alguém, eu acabava magoando a mim mesma.
Até mesmo Kibe parecia me julgar com seus olhinhos de jabuticaba,
observando-me com um ar de reprovação.
Chequei o relógio novamente e percebi que faltavam apenas sete
minutos. Uma contagem regressiva se formava em minha cabeça, cada vez mais
acelerada, embora não houvesse um único traço de ansiedade dentro de mim.
Esperava que a campainha tocasse a qualquer momento, mas o que acabei
ouvindo foi o som do meu celular acusando uma ligação.
Por um momento quase comemorei, acreditando que meus pedidos
seriam atendidos e que Edgar iria desmarcar, mas o nome Cléo no visor indicava
o meu engano.
Eu poderia recusar, se não fosse a terceira vez que ela me ligava nas
últimas duas horas. Tinha prometido a mim mesma que iria me afastar dos
Montenegro, mas com a volta de Arthur aquela decisão caía por terra.
Acabei atendendo e imediatamente me arrependi de não tê-la respondido
mais cedo. Sua voz chorosa me deixou imensamente preocupada.
— Cléo, o que houve? — indaguei, sentindo o coração palpitar muito
forte no peito. Um lado muito egoísta meu pensou primeiro em Arthur e no
quanto eu não iria suportar se recebesse outra notícia trágica a seu respeito.
Depois, é claro, lembrei-me do resto da família, ficando preocupada.
— É Arthur... — Exatamente como eu esperava, tinha a ver com o irmão.
Rapidamente meus músculos ficaram tensos, já pensando no pior.
— O que tem ele? — perguntei aflita.
— Ele está tão diferente... Sei que é uma pergunta muito íntima, mas ele
te contou alguma coisa? Porque as coisas que me disse não fazem nenhum
sentido. De repente, com você ele poderia se abrir.
Sentindo uma onda de alívio correr pelo meu corpo, começando na
cabeça e terminando nos dedos dos pés, relaxei sobre o sofá, inclinando-me para
trás, para apoiar as costas no estofado. Apesar de nada muito pior ter acontecido,
ainda sentia um início de uma leve dor de cabeça me importunando. Levei uma
das mãos às têmporas para massageá-las, principalmente porque mais uma vez
teria que mentir por Arthur. E daquela vez para uma pessoa de quem eu gostava
muito.
— Não, Cléo, ele ainda não me procurou. Não falou comigo.
— Como não? Chris! Você é a melhor amiga dele. Se eu não tivesse te
ligado naquele dia, você teria descoberto que ele estava vivo pela televisão?
— Sim — continuei mentindo. — Mas Arthur não me deve explicações.
Ele escolheu me afastar, então, preciso respeitar a decisão. — Aquela última
parte não deixava de ser verdadeira. Depois de nosso estranho encontro às
escuras na cafeteria, ele nunca mais aparecera nem sequer me telefonara. Sentia-
me magoada, mas não podia fazer nada a respeito. Saber que ele estava vivo
deveria bastar.
— Não precisa, não. Ele veio com um papinho de que tirou esses anos de
férias, mas não me convenceu. Precisamos descobrir o que aconteceu, e você
tem que me ajudar.
Era só o que me faltava!
— Talvez seja verdade.
— Você realmente acredita no que está falando? Arthur jamais faria isso.
Por mais imaturo que fosse, ele nos amava. Tem coisas muito mal contadas nessa
história.
Naquele exato momento, a campainha tocou.
— Cléo, você tem todo o direito de querer descobrir o que bem entender
sobre Arthur, mas eu estou fora. Dá para perceber que ele quer me manter
afastada, e eu não posso impor minha presença na vida dele.
— Você nunca foi uma mulher passiva, Christine. Vai desistir?
— Desistir de quê? Não se perde o que nunca se teve. Se Arthur prefere
manter distância é porque nunca valorizou nossa amizade como eu valorizo. —
Fiz uma pausa e soltei um suspiro bem alto, esperando que ela ouvisse. — Me
desculpe, querida, mas não vou te ajudar com isso.
Tentando me manter firme, desliguei o telefone e me levantei para
atender à porta. Enquanto caminhava, ajeitei o vestido escolhido para a ocasião.
Já que iríamos ao Giorgio’s, optei por um azul caneta, que marcava o corpo de
forma delineada, valorizando as curvas, mas que não era decotado e nem curto,
porque não queria incentivá-lo a nada. Coloquei um colar de pérolas que
pertencera à minha mãe, com brincos combinando, e um scarpin preto, bem
óbvio, porque não estava com muita criatividade para escolher algo mais
elaborado. A maquiagem, assim como todo o resto, foi simples, embora elegante.
Todo o conjunto acabou me deixando bem bonita, e o efeito foi
exatamente esse em Edgar.
Como sempre me via de jeans e camiseta na cafeteria, ficou de queixo
caído ao me encontrar um pouco mais arrumada, e seu sorriso esperançoso quase
partiu meu coração. Odiava me sentir tão entediada em relação àquele encontro,
enquanto para ele parecia uma viagem à Disney. Tentaria, ao menos, fazer de
tudo para que tivesse uma noite agradável.
— Chris... meu Deus... eu nem sei o que dizer. Espero que minha cara de
bobo seja um pouco mais articulada.
— Não precisa dizer nada. — Dei de ombros, tentando não dar muita
importância ao momento. — Vou só pegar minha bolsa, um casaco e saímos,
tudo bem?
— Claro.
Exatamente como tinha dito que faria, peguei minhas coisas, retoquei o
batom e voltei à sala, onde o peguei observando alguns porta-retratos.
— Eram seus pais? — Ele já sabia sobre a morte dos meus pais, então,
perguntou com uma expressão penalizada que em nada me agradava. Mas eu
sabia que não era por mal, por isso, não me importei.
— Sim.
— Você se parece com a sua mãe.
— Obrigada. — Sorri um pouco nostálgica e coloquei a bolsa no ombro,
em um claro sinal de que estava mais do que na hora de cortarmos aquele
assunto melancólico e partirmos. — Podemos ir?
— Claro... — ele repetiu, e logo em seguida conduziu-me para fora, com
a mão em minha cintura. Caminhamos em silêncio até o seu carro, um belo Audi
A3 Sedan do ano, em uma vibrante cor vermelha. O rapaz era ostentador.
Em um gesto cavalheiresco, ele abriu a porta para mim. Deu a volta,
também se acomodou e deu a partida, rumo a Ipanema.
A noite estava bonita, e a temperatura, agradável. A voz de Marisa Monte
tocava no rádio, criando um clima gostoso. Tudo perfeito. O problema ali era eu.
Passamos todo o caminho tentando manter o assunto funcionando, e
acabamos encontrando afinidades musicais, que era um tema seguro e agradável.
Apesar de ser mais voltada para o rock, eu adorava MPB, o estilo preferido de
Edgar. Antes que chegássemos ao restaurante, por conta do trânsito, acabamos
trocando para cinema, onde descobrimos gostos distintos. Eu era fã dos
suspenses, e ele curtia ação. Indicou-me alguns títulos que eu poderia gostar, e
eu prometi fazer o mesmo, assim que estivesse em frente a um computador. Era
péssima para lembrar nomes.
Chegamos ao Giorgio’s intactos, sem nenhum dano causado pela
conversa. Estávamos indo bem até ali. Havia uma mesa reservada no nome dele,
e uma hostess nos guiou até o local. Fomos colocados em um canto mais
privado, com certeza muito concorrido, mas nada que um cara com o sobrenome
Queiroga não pudesse conseguir.
Novamente ele puxou a cadeira para mim, com gentileza, e assim que
nos sentamos, tomamos um tempo para analisar o cardápio. Ele pediu uma água
tônica, já que estava dirigindo, e eu decidi acompanhá-lo em um suco, já que não
pretendia encher meu sangue de álcool, nem mesmo para me sentir mais
confortável.
— E então, moça, o que gosta de comer?
— Comida — respondi categórica e objetiva, dando uma risadinha. —
Gosto de tudo um pouco, não sou fresca.
— Meu tipo de mulher... Mas posso fazer uma recomendação?
— Sempre.
— O Raviolli de abobrinha e frango desfiado é maravilhoso. Eu, com
certeza, vou pedir esse.
— Então peça dois. Vou adorar experimentar.
Edgar chamou o garçom e fez os pedidos. Nossas bebidas chegaram, e eu
fiquei muito feliz em poder dar uma bela golada no suco de limão siciliano para
amenizar minha boca seca do nervosismo. Não era apenas o fato de não me ver
muito à vontade no encontro, mas também a incerteza sobre o que fazer. Estava
completamente desacostumada àquele tipo de coisa.
Assim que pousei o copo novamente sobre a mesa, meu celular vibrou ao
lado dele. Era Cléo novamente. Uma vez que já sabia o assunto, não estava nem
um pouco disposta a discutir sobre Arthur durante um encontro com outro
homem.
— Não vai atender? — Edgar perguntou, depois de também tomar um
pouco de sua bebida.
— É uma amiga insistente.
— Não será importante? — insistiu.
— Já nos falamos antes de eu sair, mas ela não entendeu que não quero
conversar sobre o assunto.
Edgar coçou a sobrancelha e franziu o cenho, me fazendo acreditar que
tinha algo a dizer.
— Desculpa pela indiscrição, Chris, mas eu não pude deixar de ver a foto
da pessoa que estava te ligando e ler o nome. Era Cléo Montenegro, não era?
Sim, ele estava sendo um pouco intrometido, mas decidi relevar, afinal, o
celular estava mesmo bem debaixo do nariz dele.
— Era, sim — respondi muito séria, esperando que ele percebesse que
não estava muito a fim de falar sobre aquilo.
— Irmã de Arthur, certo? Seu melhor amigo... — Balancei a cabeça
apenas. — Eu vi a reportagem sobre a volta dele. Aliás, não tinha como não ver,
já que foi noticiado em tudo que é lugar. Como você está em relação a isso?
Merda! Eu não queria mesmo falar sobre Arthur. Por que será que ele
vivia me perseguindo, onde quer que eu fosse, com quem quer que eu estivesse?
Mesmo antes dos malditos três anos de desaparecimento, ele sempre dava um
jeito de surgir nas conversas, uma vez que saí com alguns de seus amigos. Às
vezes chegava a surgir nos locais onde eu estava, sem nem fingir uma
coincidência, alegando que só queria me proteger e vigiar se o cara estava me
tratando como eu merecia. Várias vezes tentei me iludir, acreditando que se
tratava de ciúme, mas não era nada disso, aparentemente
Por mais que não estivesse assim tão animada com o encontro com
Edgar, não queria que o fantasma do homem por quem eu ainda era apaixonada
surgisse, muito menos porque era complicado demais. Estava fazendo um
trabalho miserável em tentar esquecê-lo nos últimos dias, mas ficava difícil com
seu nome surgindo das profundezas o tempo todo.
Apesar disso, me vi obrigada a responder, tentando demonstrar o máximo
de indiferença possível.
— Estou bem. Feliz por ele estar de volta e vivo. — Só isso. Uma
resposta econômica.
Outra golada no suco.
— E vocês já se falaram?
— Ainda não — mais uma resposta seca. Outra mentira.
— Bem, eu vou encontrá-lo amanhã, muito provavelmente. — Edgar
jogou a afirmação, quase como se não quisesse que eu percebesse suas segundas
intenções.
— Você o conhece?
— Não exatamente, mas minha mãe está organizando um leilão
beneficente e vai chamar algumas amigas. Selma Montenegro é uma delas.
Descobri isso hoje mais cedo.
Então havia uma ligação entre Edgar e Arthur, mesmo que muito
pequena. Lá estava o destino gargalhando na minha cara outra vez, dando
tapinhas nas minhas costas e dizendo a assustadora frase: “você nunca vai se
libertar dele”. Provavelmente era verdade.
— É um mundo muito pequeno — falei para disfarçar.
Outra golada no suco.
O mundo era tão, tão pequeno que eu tinha certeza que esse era o leilão
beneficente ao qual Maiara iria com o marido no dia seguinte.
— Eu pensei, então, que já que terá conhecidos no jantar para não ficar
deslocada, poderia ir comigo. Não estou muito disposto a festas desse tipo, mas
com você tudo ficaria mais agradável. Talvez acabe sendo divertido, no final das
contas.
Por puro impulso, eu responderia que não. Como tinha prometido a mim
mesma, queria que aquele fosse nosso último encontro. Se insistisse em sair com
Edgar, ele poderia ficar esperançoso de um relacionamento mais sério,
exatamente o que eu não queria. No entanto... Meu coração já estava correndo a
meia maratona dentro do meu peito na expectativa de ver Arthur outra vez e de
ter a oportunidade de ficar perto dele por mais algum tempo. Poderia soar
piegas, como o pensamento de uma mulher desesperada, mas eu queria meu
amigo. Meu melhor amigo. Ao menos isso.
Era irônico e incômodo pensar que um encontro com um homem
extremamente interessado em mim não criava tantas expectativas e não
proporcionava uma única borboleta no meu estômago, mas somente a ideia de
rever Arthur era capaz de enviar calafrios por toda a minha espinha. Qual era o
meu problema?
— Acho bem provável que ele não vá. Arthur nunca foi muito chegado a
esse tipo de coisa — respondi, tentando recuperar o controle, embora eu pudesse
jurar que ele tinha lido cada emoção em meu rosto.
— Não temos como saber, mas minha mãe comentou comigo que Selma
planejava levar o filho. Parece que o cara voltou diferente. — Continuei calada.
Não podia denunciar o quanto sabia. E estava mais do que ansiosa para mudar de
assunto, mas para a minha sorte, ele não mencionou mais Arthur. — Mas então...
o que me diz? Vai me acompanhar no jantar?
— Nós acabamos de chegar ao restaurante e você já está me convidando
para um segundo encontro? E se eu for uma chata insuportável? — brinquei,
tentando aliviar o clima e ganhar tempo para decidir.
— Impossível. Estou adorando cada segundo da sua companhia.
Outra golada do suco.
— Olha, Chris, eu não quero te pressionar a nada, e sei que estou sendo
muito insistente, mas eu realmente estava querendo sair com você há algum
tempo.
— Está tudo indo muito bem, Ed. Não se preocupe. Estou me divertindo.
— Não que minha animação demonstrasse isso, mas queria, ao menos, não
deixá-lo ainda mais nervoso.
— Vamos fazer o seguinte? Deixar rolar. Ao final da noite, quando te
levar em casa, eu pergunto outra vez sobre amanhã, aí você decide. Tudo bem?
— Ótima ideia. — Sorri, feliz pela perspectiva de voltarmos a conversar
como no carro, de forma displicente e descompromissada. Finalmente.
Tudo indicava que aquela noite seria muito longa. Edgar era uma
companhia interessante, um cara agradável de se olhar, mas não tínhamos nada a
ver, nenhuma química, nenhuma conexão além de algumas raras afinidades que
em nada sustentariam uma conversa, quem dirá um romance.
Quando percebi que já passava da meia-noite, e que estávamos ali há
mais de três horas, decidi tomar uma atitude. Edgar não iria propor que fôssemos
embora se eu não lhe desse sinais de que estava querendo ir para casa.
Um bocejo não foi suficiente, então, tive que iniciar uma série deles,
chegando a interromper minha fala. Ainda assim, ele parecia não dar bola para o
meu cansaço. Portanto, tive que ser sincera.
— Ed, acho que deu a minha hora. Ainda trabalho amanhã e estou
mesmo exausta.
— Ah, sim, claro. Me desculpa por ter te segurado aqui tão tarde, mas o
papo estava tão bom...
Só se fosse para ele...
Para o meu alívio, ele pediu a conta e pagou. Deu uma última golada na
bebida e saímos, rumo ao seu carro.
— É uma pena que você esteja tão cansada. Seria ótimo esticar essa
noite.
Mais? Meu Deus, nem poderia imaginar o quão desesperada eu ficaria se
precisasse suportar mais daquele encontro. Tudo o que eu queria era a minha
casa, minha cama e sono.
Entramos no veículo, e ele começou a dirigir. Quanto tempo será que
demoraríamos até a Tijuca? Será que o aborreceria se eu fingisse pegar no sono?
Especialmente porque ele não parava de falar, contando sobre uma viagem que
fez à Suíça, onde esquiou nos Alpes — e minha compreensão parou aí, já que
não fiz muita questão de prestar atenção no resto.
Acabei fechando os olhos e lentamente percebi que ele parava de falar.
Senti-me satisfeita e ao mesmo tempo envergonhada pela mentira, mas não
estava nem um pouco arrependida.
Porém, acabei pegando realmente no sono, mas fui acordada
abruptamente quando senti o carro virar de uma forma brusca, como se Edgar
tivesse desviado de algo em uma ação instintiva. Coloquei-me totalmente
desperta, com o corpo ereto, olhando ao redor. Foi quando me dei conta de que
algumas coisas. A primeira era que estava no Alto da Boa Vista, o que não fazia
o menor sentido com o caminho que deveríamos pegar para a minha casa. Além
disso, havia dois carros, um de cada lado do de Edgar, emparelhando-nos. O da
esquerda era mais agressivo, vindo para cima de nós como se quisesse nos
atingir.
— O que está acontecendo, Ed? — perguntei assustada, enquanto tentava
ver alguma coisa por dentro dos vidros, porém, tanto os de Edgar quanto os dos
outros dois carros eram escuros.
— Não sei. Dois malucos, só pode. Devem estar querendo nos assaltar.
Aquela conclusão não me deixou nem um pouco tranquila, muito pelo
contrário. Havia algo de muito errado naquela abordagem violenta, e não parecia
em nada com um assalto comum. Não com os que normalmente aconteciam no
Rio de Janeiro.
Edgar era um bom motorista e conseguiu desvencilhar-se deles, tomando
uma dianteira, mas mesmo assim eles continuavam nos seguindo, o que era
muito preocupante. Eu estava acompanhada de um homem muito rico; se
quisessem sequestrá-lo para pedirem resgate, eu seria facilmente descartada por
ser uma testemunha.
Não demorou para que nossos perseguidores se colocassem novamente
ao nosso lado. Não era algo aleatório, eles deviam estar nos seguindo desde o
restaurante, afinal, encontrávamos em um local ideal para uma perseguição
como aquela. A preocupação por estar no Alto nem passava mais pela minha
cabeça, embora o fato de Edgar morar por ali muito me intrigasse. Isso eu
poderia resolver depois. Minha preocupação agora era outra.
Meu coração parecia prestes a sair pela boca, sem saber o que estava
acontecendo. Edgar seguia a uma velocidade insana, e a cada curva que fazia, eu
tinha sérias dúvidas se não seria melhor parar o carro de vez e nos entregarmos.
Para piorar nossa situação, a pista úmida, das chuvas que vinham caindo
constantemente, fez com que derrapássemos.
Edgar perdeu o controle do veículo, dando um cavalinho de pau e indo de
encontro ao barranco.
Minha cabeça estava zonza pela pancada que levei, quando fui de
encontro ao vidro da janela. Desorientada, mantive meus olhos fechados por um
tempo, sem muita noção do que acontecia. Talvez tivesse apagado por alguns
segundos sem nem perceber. Despertei quando me lembrei dos dois carros
estranhos e do que causara nosso acidente.
Abri os olhos com cautela, esperando que a vertigem passasse logo para
que conseguisse escapar dali. No entanto, a cena que se desenrolou na minha
frente foi o mais assustador daquela noite. Um homem pressionava um tecido
sob o nariz de Edgar, fazendo-o apagar. Quando me dei conta disso, ele já estava
quase inconsciente, se é que chegou a acordar, já que também tinha um
ferimento na cabeça, e eu nem sequer tive tempo de ajudá-lo.
Mas precisava ajudar a mim mesma. Ainda completamente tonta,
comecei a tentar tirar o cinto de segurança e abrir a porta ao mesmo tempo, para
ganhar alguns segundos, mas não fui rápida o bastante. O homem colocou-se do
meu lado, também tencionando me deixar inconsciente. Ele usava uma máscara
de esqui escondendo seu rosto, mas os olhos, que eram as únicas coisas que
conseguia ver, me eram levemente familiares.
Também tentei me defender, mas não havia um único resquício de força
em meu corpo. Tanto que o clorofórmio — ou o que quer que ele tenha usado
para me apagar — não demorou a funcionar. O cheiro forte penetrou minhas
narinas, e eu só tive tempo de enxergar um vulto andando em minha direção.
Uma silhueta masculina enorme, vinda do segundo carro, que tinha parado bem
em frente ao nosso, e que caminhava lentamente, aproximando-se.
Eu não teria a menor chance.

***
ARTHUR

Cautela era a alma de qualquer missão. Além de um plano bem traçado, é


claro.
Dentro do carro, de olhos fechados, em estado meditativo, esperei que
Mário me avisasse o exato momento em que o casal deixaria o restaurante.
Então, os seguiríamos discretamente até que chegassem em algum local onde
poderíamos interceptá-los. Para a nossa sorte, eles pegaram o Alto.
Mário não era exatamente experiente naquele tipo de trabalho, e embora
eu também não fosse, a frieza e os treinamentos militares que recebi tinham me
preparado para qualquer coisa. Eu era um homem com um objetivo, e isso
poderia ser muito perigoso.
Emparelhamos o carro, encurralando-o, e causamos um acidente. Esta
última parte não estava no script, porque nos preocupávamos com a integridade
da mulher, embora fosse uma mera desconhecida, mas acontecera sem previsão.
Queríamos apenas o babaca ao volante. Ele era o motivo de toda aquela
comoção.
Mário logo se apressou em usar o clorofórmio, seguindo exatamente o
que tínhamos combinado. Assim que me fizesse outro sinal, eu também iria até o
carro batido, para ajudá-lo a tirar a garota de lá e a colocaria no carro do meu
parceiro. Em seguida levaria o filho da puta para o meu, onde tomaríamos
caminhos separados.
Fui andando lentamente, pé ante pé, porque sabia que aquele ali era
realmente o estopim para minha nova vida. Aquele momento seria o que me
diferenciaria do Arthur de antes, tornando-me uma pessoa completamente
distinta. O homem que eu fui jamais sequestraria alguém. Jamais realizaria uma
sessão de tortura — se fosse necessário — para obter informações. O velho
Arthur não tinha aquele tipo de problema, era apenas um fanfarrão boa praça
com mais amigos do que poderia enfiar em uma festa.
Agora eu tinha um refém. E o pior: sabia exatamente o que fazer com ele.
A sorte estava do nosso lado, porque estava bem tarde e nenhum carro
passou enquanto Mário deixava o casal inconsciente. Contudo, se alguém
parasse e decidisse bisbilhotar, o combinado era fingir que os estávamos
acudindo. Com o acidente, isso ficaria mais fácil.
Coloquei-me de pé, ao lado da porta do motorista, já pronto para abri-la e
jogar o homem desacordado nos ombros para levá-lo até o meu carro. Enquanto
isso, Mário terminava sua tarefa com a garota, mantendo por mais algum tempo
o clorofórmio debaixo de seu nariz, com um pano que tampava quase o seu rosto
inteiro.
— Tem certeza que apagou os dois? — indaguei só para me certificar.
— É claro, cara. Acha que eu daria um mole desses? O cara já estava
apagado, o clorofórmio foi só para garantir, e a garota parecia um pouco grogue
quando me aproximei. Foi fácil.
— Está ferida?
— Um pouco, na testa. Mas não deve ser nada grave. — Mário começou
a afastar o pano do rosto da moça. — Ela é bonita, hein. Quando a vi hoje mais
cedo fiquei bobo. O cara sabe escolher bem suas mulheres.
Não que eu estivesse muito interessado em constatar o que ele dizia, mas
por pura curiosidade acabei dando a volta no carro para dar uma olhada na
mulher, não para checar sua aparência, mas para verificar se o ferimento era
grave. Por conta da escuridão, de onde eu estava não conseguia vê-la. Enquanto
acionava a lanterna do meu celular, virei seu rosto na minha direção.
A surpresa quase me fez cambalear.
A mulher era... Christine.
A minha Christine.
Quase deixei o celular cair no chão, em uma reação passional, por isso
decidi guardá-lo no bolso, antes que o perdesse bem na cena do crime. Há muito
tempo não sentia meu coração tão acelerado, mas a situação merecia.
Como diabos, em um mundo enorme como aquele, eu poderia dar de cara
com a mulher que amava, enquanto cometia um crime?
Nada mais pareceu importar. Mário falava comigo, mas eu simplesmente
não o ouvia, já que um enorme zumbido tomava conta dos meus ouvidos. A
única coisa coerente que minha cabeça conseguia processar era que precisava
tirar Christine dali. Em segurança. Edgar que se fodesse. Poderia resolver aquele
problema depois.
— Mário, mudança de planos — anunciei, deixando-o atordoado.
— Como assim mudança de planos? O que aconteceu? Há um minuto
você estava mantendo tudo como o combinado.
Virei-me para ele, e algo em minha expressão o fez recuar. Não sei se o
desespero, o medo ou a raiva, ou talvez a reunião de todas essas emoções, mas
Mário ficou calado esperando a explicação.
— Essa aqui é Christine — disse.
— A sua amiga? — Balancei a cabeça em afirmativa, enquanto
começava a livrar Christine do cinto de segurança. — Puta que pariu, cara.
Como pode?
— Não sei, Mário. Não sei mesmo — foi tudo o que consegui responder.
Tomei a mão de Chris na minha e senti seu pulso, por precaução, e só me
acalmei um pouco quando constatei que estava em um ritmo consideravelmente
normal para uma mulher desmaiada. Peguei sua bolsa e pendurei em meu ombro.
Com isso, tirei-a do banco, ajeitando-a em meu colo assim que consegui me
colocar de pé.
No exato momento em que a vi, desfalecida e entregue, uma bagunça de
sentimentos emaranhados me preencheu. Ciúme, por saber que ela tinha saído
com um cara — o que era extremamente ridículo, levando em consideração que
Christine era mulher linda e interessante, que não praticaria o celibato esperando
por um babaca como eu. O segundo era proteção. Só de pensar nela nas mãos
daquele louco, que vendia mulheres como se fossem mercadorias, meu sangue
começava a ferver. Terceiro, preocupação. Vê-la tão indefesa daquele jeito, por
mais que fosse nos meus braços, me apavorava. O que poderia ter acontecido?
Fui o causador de um acidente, onde ela saíra machucada, embora apenas
levemente. O pequeno ferimento que ela tinha em seu rosto tinha sido provocado
por mim, o que me causava vergonha. De quem eu era, do que iria fazer e do que
poderia me tornar.
— 48? O que está fazendo? Vai ficar segurando a garota no colo sem
fazer nada? Estamos em um lugar público. Daqui a pouco um desses carros que
está passando vai parar e nos fazer perguntas. Se for a polícia, então... — O
falatório de Mário me trouxe de volta à realidade.
— Deixe o cara aí... — disse, dando-lhe instruções.
— Deixar? Mas... Arthur! Você não ia...?
— Agora não. Ela é minha prioridade — vociferei, fazendo minha voz
soar como um grunhido. A explicação para tanta raiva era simples e não tinha
nada a ver com Mário, era apenas um instinto protetor muito primitivo que se
aguçava mais e mais a cada minuto. Eu seria capaz de matar qualquer um que
tentasse tirá-la de mim naquele momento. — Vou levá-la para casa, e você volta
para a sua — afirmei, começando a andar, levando Christine para o meu carro
alugado. — Amanhã nos falamos.
Ele falou mais alguma coisa, mas não prestei atenção. Exatamente como
havia dito, Christine era minha preocupação. Por isso, coloquei-a no banco do
carona com todo o cuidado — temendo que pudesse quebrar em minhas mãos
—, sentei-me atrás do volante e parti.
Em silêncio, enquanto a olhava de soslaio, tentando captar alguma
reação, via-me em um dilema. Queria que ela despertasse, para constatar que
estava bem, e ao mesmo tempo preferia que permanecesse dormindo ou teria que
lhe dar explicações. O que diria? Que ela estava machucada por minha causa?
Que eu iria sequestrar um homem e que ela estava no lugar errado, na hora
errada? Isso faria com que me enxergasse como um monstro, certamente.
Porra, essa era a última coisa que eu queria.
Mas simplesmente não sabia o que pensar.
Tudo estava começando errado demais, o que me fazia crer que teria
problemas maiores. Muito maiores.
Dirigi em uma velocidade considerável, e chegando à casa dela, na
Tijuca, cacei as chaves em sua bolsa, mantendo-as na mão, e saltei do carro. Abri
o portão antes de tirar Christine do carro, deixando-o escancarado para que eu
pudesse passar com ela. Para a minha sorte, não havia ninguém na portaria, o
que fazia com que eu odiasse e adorasse prédios antigos. Qualquer um poderia
invadir com um pouco de destreza e inteligência. Era muito perigoso, mas me
facilitaria a entrada, já que um cara carregando uma mulher desmaiada levantaria
muitas perguntas.
Novamente manuseei o corpo desfalecido de Christine, entrando com ela
no prédio e subindo as escadas que levavam até o hall do elevador. Este estava
no primeiro andar e não demorou a chegar. Quando as portas se abriram, eu
entrei e finalmente levei-a para casa.
Deixei-a em pé por alguns segundos, apoiada no meu corpo, para abrir a
porta do apartamento, e em seguida avancei, levando-a até o quarto. O gato
estranho veio nos saudar e me seguiu, subindo na cama enquanto eu a colocava
deitada, com cuidado. Um suave miado me fez olhar para ele, como se o bichano
realmente quisesse chamar a minha atenção. Talvez estivesse preocupado com o
estado de sua dona. Um pouco sem jeito, levei a mão à sua cabecinha preta e o
acariciei, o que ele pareceu gostar.
Tirei os sapatos que ela calçava, jogando-os em um canto do quarto e
peguei um edredom no armário, sabendo onde ela os guardava, assim como
conhecia todas as suas manias. Exatamente como constatei no dia em que estive
ali, ferido, a casa estava diferente, com uma nova decoração, mais moderna, mas
algumas coisas não tinham mudado. Cobri-a, sabendo que aquele lindo vestido
que ela usava com certeza acabaria deixando-a com frio no meio da noite.
Agora que Chris estava na segurança de seu lar, permiti a mim mesmo
um momento de revolta. Eu não podia perder o controle... não podia. Precisava
respirar fundo e manter minha mente vazia, embora ela insistisse em repetir as
imagens do acidente e do momento em que a vi, fazendo parte de tudo aquilo.
Sendo vencido pelas minhas próprias emoções, dei um soco na parede à minha
frente, causando um barulho maior do que eu gostaria. Temendo que isso
pudesse tê-la acordado, virei em sua direção, mas ela ainda estava dormindo,
serena, parecendo tão frágil que chegava a sufocar meu coração. Se é que eu
ainda tinha um.
Tentando me ocupar com alguma coisa, fui ao banheiro e peguei uma
toalha, umedecendo-a, e voltei ao quarto, com o felino sempre a me seguir.
Agachei-me ao lado da cama e me preparei para limpar o sangue do arranhão em
sua testa, mas me deparei com ela de olhos abertos, o que me fez congelar.
Ainda estava semiconsciente, débil, prestes a apagar novamente, mas o som
quase inaudível que saiu de sua boca me fez morrer por dentro.
— Arthur... — era um lamento, uma súplica. Ela pedia por mim, e tudo o
que eu deveria fazer era escapar. Fugir dali antes que as coisas ficassem ainda
mais complicadas, mas não podia.
Merda, eu realmente não podia.
Sentei-me na cama ao lado dela, com as costas apoiadas na cabeceira de
suede, e a trouxe para mais perto, deitando-a sobre meu peito, como se
precisasse protegê-la. Ainda usei a toalha para limpar seu pequeno ferimento, e
ela voltou a apagar, parecendo sentir-se segura nos meus braços, enquanto eu
pagava por cada um dos meus pecados.
Capítulo Sete
CHRISTINE

Uma série de cenas desconexas se desenrolavam em minha mente como


em um filme não linear. Era muito possível que fossem parte de um sonho com
ares de pesadelo, mas pareciam tão reais que eu quase podia tocá-las.
Minha memória também não estava passando pelos seus melhores
momentos, uma vez que não conseguia nem sequer me lembrar de como chegara
à minha cama, já que a última imagem perfeitamente formada dentro da minha
cabeça era de estar no carro com Edgar e de sofrermos um acidente. Depois
disso, tudo surgia envolvo em uma névoa muito pesada, e eu não conseguia dizer
o que era realidade ou produto do meu inconsciente. Desde o homem mascarado
nos atacando, até o momento em que vi Arthur na minha frente. O que deixava
tudo muito irreal.
Minha cabeça doía, por isso, levei a mão à testa, encontrando um
pequeno curativo. Algo que eu também não me lembrava de como fora feito.
O que estava acontecendo comigo?
Kibe surgiu ao meu lado, pulando na cama para me acordar. Aquele era
meu despertador quase diário, então, supus que estava na hora de ir trabalhar.
Tateando o criado mudo, busquei o pequeno relógio da minha mãe, do qual
jamais teria coragem de me desfazer, por mais que fizesse um barulho irritante
quando toda a casa estava em silêncio — como naquele minuto.
Abri os olhos bem devagar, esforçando-me ao máximo para erguer as
pálpebras, que pareciam pesar mais do que uma tonelada. Consegui finalmente
focar nos ponteiros, mas precisei piscar algumas vezes para me dar conta de que
o que via era real.
Duas e meia da tarde! Não era possível!
Levantei-me da cama apressadamente, mas a pressa foi em vão, porque
precisei de alguns segundos sentada, com os pés pendendo do colchão, para que
a onda de vertigem me abandonasse.
Novamente — o que estava acontecendo comigo?
Assim que me senti apta a dar alguns passos sem despencar no meio do
chão do quarto, corri para procurar minha bolsa. Ela estava cuidadosamente
pendurada em uma das cadeiras de jantar — um lugar onde eu nunca a deixava.
Tudo ficava cada vez mais e mais estranho.
Tentei focar no que era realmente importante, ao menos de início, e
arranquei o celular de lá de dentro, deixando alguns papéis caírem no processo.
Nem me importei em pegá-los.
A primeira coisa que percebi foi que o despertador não estava parado.
Eram realmente duas e meia da tarde. Além disso, havia várias ligações, tanto de
Edgar quanto de Telma e até de Maiara. As pessoas deveriam estar desesperadas
de preocupação comigo, porque eu não havia nem sequer dado sinal de vida.
Antes que eu pudesse ligar para alguém para explicar, embora sequer
soubesse o que iria dizer, uma forte batida na porta me fez sobressaltar. Era um
punho insistente, forte, e logo foi acompanhado por uma voz em um leve tom de
desespero:
— Chris, abra a porta ou vou arrombá-la.
Reconheci como sendo Edgar. Não queria vê-lo de jeito nenhum, assim
como provavelmente não queria ver ninguém, mas sabia que lhe devia isso
depois de horas de silêncio. Além do mais, se tínhamos mesmo sofrido um
acidente, talvez ele fosse a única pessoa capaz de me dar alguma explicação
sobre o que havia acontecido.
— Já vai — disse, esperando, com isso, acalmá-lo.
Comecei a procurar pela chave, mas não fazia ideia de onde estava. Com
certeza não se encontrava no local onde eu sempre a deixava: pendurada na
fechadura, o que me facilitava quando estava com pressa. Apressei-me em pegar
a reserva, que eu deixava há anos no mesmo lugar: na caixinha sobre o rack,
junto com outros documentos importantes.
Só que ela também não estava lá.
— Christine! O que está acontecendo? — Edgar insistiu, dando mais
algumas batidas na porta.
— Não estou achando a chave. Já vou abrir — informei, esperando que
ele não continuasse a fazer escândalo no corredor.
Em um ritmo frenético, que dizia muito sobre o estado mental em que me
encontrava, iniciei uma busca pela casa inteira atrás do chaveiro. Eu sabia que
possuía outras chaves reserva, mas encontrar o chaveiro principal tornara-se
quase questão de honra, porque eu começava a alimentar a desconcertante
certeza de que alguém estivera na minha casa e mexera nas minhas coisas.
Demorei mais de dez minutos para chegar à conclusão de que não tinha
olhado dentro da minha bolsa e acabei encontrando o molho lá dentro. Quando
tirei o celular, na pressa, não cheguei a reparar nas chaves.
Abri a porta quase como se precisasse sentir o ar da liberdade, por mais
que tivesse passado apenas algumas horas acordada e trancada ali dentro.
— Meu Deus, Chris! — Mal consegui soltar o ar que vinha prendendo,
nem sequer pôr meus olhos no corredor, pois Edgar me apertou em seus braços,
como se tivesse acabado de me salvar de um naufrágio.
Ficamos naquela posição por alguns minutos, até que me esforcei para
me afastar.
— Vamos entrar, por favor. — Ele balançou a cabeça em concordância e
foi entrando em minha casa, enquanto eu fechava a porta, ainda muito intrigada
pela história da chave, principalmente da reserva. Não queria nem pensar que
alguém poderia entrar em minha casa na hora que quisesse, mesmo que houvesse
uma suspeita muito forte na minha cabeça sobre quem poderia ser.
Edgar estava uma pilha de nervos. Andava de um lado para o outro, com
as mãos na cabeça, não muito disposto a relaxar.
— Chris, pelo amor de Deus, o que aconteceu? Você desapareceu
ontem...
— Eu é que pergunto. Pensei que você teria respostas para mim... Não
me lembro de quase nada — respondi, sentando-me sobre o braço do sofá. Kibe
veio atrás de mim, ignorando por completo a presença da visita, deitando-se ao
meu lado. Inconscientemente comecei a acariciá-lo, nem que fosse para manter
minha mão ocupada.
— Foi muito louco. Aqueles carros começaram a nos seguir, emparelhar
e sofremos um acidente. Eu apaguei e não vi mais nada. Acordei horas depois no
hospital, socorrido por algumas pessoas que passaram. Perguntei por você, mas
afirmaram que estava sozinho. — Ele finalmente se sentou na mesinha de centro,
bem de frente para mim, pegando a minha mão. — Não tem noção do quanto
fiquei desesperado quando descobri que ninguém sabia de você. Não foi
trabalhar, não atendia a telefonemas... uma amiga sua, Maiara, veio aqui, bateu
na porta mais cedo e nada. Resolvi vir por mim mesmo.
Era horrível pensar que tinha deixado todos muito preocupados, mas,
mais preocupante ainda era perceber que minha memória não estava tão
equivocada assim. Todo o relato de Edgar batia exatamente com o que me
lembrava.
— Eu estou bem. Também não me lembro do que aconteceu, porque bati
a cabeça, mas cheguei em casa intacta.
Edgar franziu o cenho.
— Isso é muito estranho. Jurei que você tinha sido sequestrada e que eu
não tinha conseguido te proteger. Fiquei me sentindo um merda.
De uma certa forma, a hipótese de sequestro não podia ser descartada.
Mas por que, então, tinham me devolvido à minha casa?
Eu não precisava me esforçar para pensar e chegar à única conclusão
possível de que tudo tinha a ver com Arthur. Entretanto, queria afastá-la da
cabeça, afinal, não fazia o menor sentido. Porém, eu o tinha visto, não tinha? Em
meio a flashbacks nebulosos e aparentemente oníricos, ele estava lá. Seu rosto,
transfigurado em uma expressão de preocupação, muito próximo do meu, e até o
toque de suas mãos em meu rosto, bem no local onde havia aquele curativo, me
traziam respostas que eu não queria. Porque a suspeita do que havia acontecido
não me trazia explicações.
Teria sido apenas um sonho? Um produto do meu inconsciente?
Como a dúvida ainda me atormentava, o melhor a fazer era seguir em
frente, ou, ao menos, demonstrar a Edgar que estas eram as minhas intenções.
— Acho que o mais importante é que estou bem, sã e salva — tentei, mas
ele novamente se levantou, parecendo indignado.
— De forma alguma. Preciso te levar ao hospital. Sofremos um acidente,
como vamos saber que não sofreu alguma concussão mais séria. Ou se... — ele
hesitou, mas eu sabia muito bem o que tinha em mente — ...bem... se alguém
não se aproveitou de você.
Só a hipótese já me provocava calafrios. Poderia ser uma loucura da
minha parte, mas como eu quase podia jurar que sabia quem tinha me levado
para casa, isso não me preocupava. Apesar de ter se tornado quase um estranho
para mim, Arthur jamais me machucaria.
Mas é claro que não poderia falar nada disso para Edgar, então, precisei
inventar uma desculpa plausível.
— Nada de hospital. Já disse que estou bem. Eu saberia se alguma coisa
tivesse acontecido. — Ele olhou para mim, como se analisasse minha resposta.
— Tudo o que quero é esquecer essa história.
— Mas alguém nos perseguiu ontem à noite...
— Sim, mas vou preferir acreditar que eram assaltantes, que não
conseguiram nada e que, de alguma forma inconsciente, eu cheguei em casa
sozinha.
Claro que não fazia o menor sentido, mas com a dor de cabeça que
sentia, era a melhor explicação para convencê-lo, embora soubesse que tinha
feito um péssimo trabalho. Tanto com Edgar quanto comigo mesma. Eu não
fazia ideia do que havia acontecido, ou onde Arthur poderia entrar em tudo
aquilo.
Ainda assim, embora quisesse esquecer esta história, restava uma
pendência.
— Eu só tenho uma pergunta a te fazer, Ed, e queria que você
respondesse com sinceridade. — Edgar assentiu, mas eu consegui reparar que
seu rosto transfigurou-se em uma expressão um pouco mais tensa,
provavelmente já sabendo o que eu iria questionar. — Por que estávamos no
Alto, se eu te pedi que me levasse para casa?
— Porque aqueles caras começaram a nos seguir. Comecei a desviar do
caminho e acabei indo parar no Alto, porque achei que lá eles não conseguiriam
nos pegar, por ser uma subida sem paradas nem cruzamentos. — Ele nem
hesitou ao responder. Eu deveria, então, acreditar em sua história, mas ainda não
fazia o menor sentido. A logística não batia. Aquela teoria deveria ter sido muito
bem ensaiada. Mas não era o momento de insistir, principalmente porque eu não
descobriria nada por ele.
Para a minha sorte, porém, ele logo mudou de assunto, preparando-se
para sair.
— Bem, Chris, eu preciso voltar para ajudar minha mãe com os
preparativos da festa. Depois de tudo o que aconteceu, acho que posso supor que
você não vai querer me acompanhar, não é?
A festa.
Droga, eu tinha me esquecido completamente!
Tudo bem que se tratava de uma excelente desculpa para recusar o
convite, principalmente com essa desconfiança que passara a sentir em relação a
Edgar. Além disso, depois do que acontecera, ficar em casa, segura, no
aconchego da minha cama, seria uma escolha muito prudente. Mas uma estranha
comichão me fazia desejar estar lá. Havia uma ínfima possibilidade de Arthur se
fazer presente, e eu queria muito esbarrar com ele e dar um jeito de perguntar
sobre o ocorrido. Precisava ler em seus olhos e saber se estava mentindo, embora
não pudesse garantir nada a respeito daquele homem no qual se transformara.
— Não, Edgar. Eu vou. Não estou a fim de ficar em casa pensando em
tudo o que aconteceu. Acho que meus miolos iriam fritar.
O sorriso que ele abriu foi tão radiante que fez desaparecer todas as rugas
de preocupação em seu rosto.
— Fico feliz com isso. Depois do desastre do nosso final de encontro,
achei que ia querer distância de mim. — Balancei a cabeça em negativa, em uma
mentira das mais deslavadas. Não queria magoá-lo. — Nem pude te trazer em
casa e te beijar, da forma como eu queria tanto fazer...
Ergui um par de olhos arregalados na direção dele, sentindo-me
totalmente chocada pela afirmação tão direta, sem fazer ideia de como lhe
responderia sem parecer completamente grosseira.
Só que tudo piorou ainda mais quando ele se levantou e começou a se
inclinar na minha direção, pronto para realmente me beijar. Rapidamente recuei,
e ele logo reparou que aquela não era a minha intenção. Isso o deixou muito
constrangido.
— Me desculpa, Chris, eu...
— Ed, eu não estou pronta para um relacionamento. Achei que seria legal
sair com você ontem, que poderia começar a sentir algo especial, mas não
aconteceu. E não tem nada a ver com o acidente, tem a ver com...
— Ah, Chris, não começa com essa história de que o problema é você,
não eu. — Ele revirou os olhos, tentando fazer uma brincadeira, embora
estivesse visivelmente contrariado. Não deveria ser do tipo de homem que
recebia rejeições.
— Não ia dizer isso. Só acho que o problema está em... nós. Não sei se
funcionamos bem como algo que não seja uma amizade.
— Eu acho que... — ele ia dizer alguma coisa, mas logo se interrompeu,
abaixando a cabeça em uma demonstração de derrota. — Bem, não importa o
que eu acho. Se você não quer, vou ter que entender.
— E eu também vou entender se não quiser mais que eu vá à festa...
— Não, de forma alguma. Ainda somos amigos, você é uma companhia
ótima. E eu acabei de descobrir que a sua amiga também vai estar presente. O
marido dela trabalha na empresa do meu pai. Um funcionário muito querido por
todos, aliás.
Eu estava certa. Tratavam-se dos mesmos jantares beneficentes. O que
era mais um motivo para eu me animar a ir.
Só tinha um problema: eu precisaria encontrar uma roupa adequada em
tempo recorde.
— Que bom. Não vou ficar deslocada.
— Eu jamais te deixaria deslocada. Quero te apresentar para a minha
família e... — Ele provavelmente percebeu minha total hesitação, porque abriu
um sorriso desanimado e acrescentou: — Pode ficar tranquila. Quero que
conheçam a minha amiga, melhor assim?
— Desculpa, Ed. Eu não queria te magoar.
Ele pegou minhas mãos e as beijou.
— Você jamais seria capaz. Foi sincera e não tentou me cozinhar ou
iludir. — Com isso, deu alguns passos para trás e colocou as mãos nos bolsos. —
Preciso mesmo ir. Estou atrasado. Passo aqui para te pegar?
— Não precisa. Posso ir de carona com a Maiara, embora eu nem tenha
falado com ela sobre isso.
Ele balançou a cabeça, um pouco chateado, mas era melhor assim. Havia
muitas histórias mal contadas me rondando, e Edgar era protagonista de todas
elas.
Levei-o até a porta e, depois de uma despedida rápida, com dois
beijinhos no rosto, ele pegou o elevador e partiu.
No exato momento em que fechei a porta e me vi sozinha, concluí que
foi uma ótima ideia decidir ir à festa naquela noite, porque um redemoinho de
pensamentos atingiu meu cérebro, quase causando uma catástrofe.
Ainda faltava muito tempo para que precisasse começar a me arrumar,
então, a melhor coisa a fazer era ocupar a minha cabeça. Se me esforçasse,
encontraria muitas tarefas para realizar em casa, ou até mesmo na rua, já que
poderia sair para procurar uma roupa bonita, mas ligar para Maiara também era
uma prioridade, pois ela deveria estar muito preocupada.
Essa afirmativa tornou-se uma certeza no momento em que disquei seu
número e ela atendeu no primeiro toque.
— Porra, mulher, por onde andou? Estávamos todos preocupados!
— Desculpa, Mai, mas é uma longa história. Prometo te contar tudo
quando eu mesma descobrir o que aconteceu... — expliquei, ou melhor, deixei
de explicar, não disfarçando meu tom de voz cansado e desanimado.
— Mas está tudo bem? Aquele rapaz com quem você saiu ontem disse
que sofreram um acidente e que você desapareceu. — Ao menos ele não tinha
contado a parte da tentativa de sequestro.
— Não, eu estou bem. Mesmo. Tão bem que nós duas temos uma festa
para ir hoje à noite, e eu não sei o que usar.
Maiara soltou uma exclamação do outro lado da linha.
— Ah, que bom que você vai! Conversei um pouco com o seu
pretendente, e ele é uma graça! Está bem gamado em você, fora que é um
príncipe, né? Em todos os sentidos, principalmente no império — ela falava
animada, me fazendo suspirar.
— Mai, eu estou nem um pouco interessada nele. Saímos ontem e não
temos nenhuma química. — Claro que eu também iria omitir a parte do desvio
do caminho, porque não queria preocupá-la ou assustá-la.
— Ih, que merda, amiga. Bem, ao menos vale a amizade. — Ela fez uma
pausa e logo recomeçou, igualmente animada. — Olha, eu tive que passar hoje
de manhã no hospital, mas já estou em casa. Quer ir ao shopping para vermos
alguma coisa? Posso levar a Betinha também, vai ser bom para ela dar um
passeio.
Seria ótimo. De verdade, e em vários níveis. Sair com Maiara era sempre
divertido, especialmente para fazer compras. Ela tinha um ótimo gosto e era uma
excelente companhia. Em segundo lugar, seria uma chance de relaxar antes do
evento e não ficar presa dentro de casa, tentando reviver as memórias para ver se
me lembrava de mais alguma coisa. No entanto, enquanto minha amiga falava,
meus olhos mantinham-se fixos na chave pendurada na fechadura, como se ela
fosse um pêndulo a me hipnotizar. Não conseguia tirar a ideia de que fora Arthur
quem entrara na minha casa na noite anterior. Precisava urgente falar com ele, e
a agonia era tão grande que eu não conseguiria simplesmente esperar pela festa
para que pudéssemos conversar. Principalmente porque nem sabia se ele
realmente iria comparecer.
— Eu adoraria, mas preciso fazer uma coisa um pouco urgente. Na volta,
passo em uma loja e compro alguma coisa. Claro que não vai ser nada tão lindo
quanto se você estivesse lá para me ajudar a escolher, mas vou tentar me virar.
— Tudo bem. O que acha de se arrumar aqui em casa? Posso te ajudar
com o cabelo e a maquiagem — ela ofereceu.
— Adorei. Vou sair agora para o meu compromisso, passo em uma loja e
corro para aí. Espero que dê tempo para tudo.
— Vai dar. Me liga quando estiver vindo.
Despedimo-nos, e eu me apressei em correr para o chuveiro, para tomar
um banho e me aprontar, o que fiz em tempo recorde. Saí em seguida, jogando
tudo dentro de uma bolsa maior do que a que levei na noite anterior para o
restaurante.

Entrei no carro e, com as mãos no volante, ainda hesitei. Talvez não fosse
uma boa ideia cutucar uma onça com vara curta, mas eu precisava saber. Em
uma festa não haveria uma chance concreta para pedir explicações, porque ele
poderia se esquivar. Precisava vê-lo em um ambiente sem testemunhas.
Parti para a mansão dos Montenegro, esperando não encontrar ninguém,
apenas o alvo da minha conversa.
O portão foi aberto para mim, e eu entrei com o carro, estacionando-o na
minha vaga de sempre. Maria abriu o portão para mim pelo interfone e me
esperou com a porta da casa aberta. Quando me aproximei, ela me deu um
abraço gostoso, que me fez sorrir.
— Bem-vinda, menina! — exclamou, satisfeita por me ver. — Pelo visto
agora vai voltar a frequentar esta casa.
— Ainda não sei. Ainda é muito recente...
— Verdade. Tanta coisa aconteceu de um dia para o outro! Ainda bem,
né? Veio falar com o Sr. Arthur? — ela perguntou. Era um tantinho enxerida,
mas um amor de pessoa.
— Vim. Ele está?
— Sim. No quarto dele. — Ela usou a cabeça para apontar para dentro da
casa, mas deu de ombros, acrescentando: — D. Cléo também está, se quiser falar
com ela.
— Não, Maria. Só com Arthur. Pode me fazer o favor de não avisá-lo
que estou aqui? — Não queria que ele escapasse de mim de forma alguma. Seria
muito capaz de negar minha presença, principalmente se tivesse algo a esconder
em relação à noite passada. — Ah, menina, aí você me complica, né? O Seu
Arthur tá tão diferente... não sei como poderia reagir. Ainda é educado comigo,
mas tem alguma coisa nele... Não é mais aquele garoto brincalhão e risonho.
— Não vou deixar que brigue com você. Pode abrir essa exceção para
mim? — Não queria fazer aquele pedido à mulher, porque não pretendia deixá-la
entre a cruz e a espada, mas quando ela balançou a cabeça em afirmativa,
resignada, fiquei satisfeita.
— Tá, tudo bem. Vá logo falar com ele. Espero que o anime um pouco.
Ele sempre gostou tanto de você... — ela disse com um ar sonhador. —
Deveriam ter se casado. Talvez ainda haja tempo, agora que ele voltou. Pode
estar estranho, mas está bonito. Muito mais bonito do que antes, e olha que ele já
parecia um príncipe. Agora... bem, está mais homem. Você não acha?
Se bem a conhecia, ela continuaria tagarelando pela eternidade se eu não
a ignorasse — com gentileza, é claro. Por isso, sorri e segui em frente, correndo
pelas escadas antes que continuasse tentando me convencer a conversar.
Fazia muito tempo que eu não seguia pelo corredor do segundo andar, na
intenção de pegar à última porta à esquerda. Desde o desaparecimento, todas as
vezes em que voltei à casa de Arthur, minha visita se restringiu ao ambiente da
sala e do jardim, porque nunca mais tive coragem de subir e me aventurar a olhar
para suas coisas, que Selma insistira em manter intactas, enquanto não perdia a
esperança. Ela estava certa em fazer isso, no final das contas.
Cheguei a precisar de um momento para respirar, com a mão na
maçaneta, antes de abrir a porta, porque não tinha muita certeza se estava
preparada para o que iria enfrentar. Vivemos muitas coisas naquele quarto,
muitas risadas, trocamos muitas confidências e sonhos, durante todos aqueles
anos de amizade. Foi lá também onde fizemos amor pela primeira e única vez.
Desde então, nunca mais entrei naquele cômodo.
Jamais pensei que me veria ali novamente, ainda mais frente a frente com
ele. Mas era hora.
Abri a porta sem nem bater, como já tinha feito tantas outras vezes. No
entanto, se no passado era recebida com um sorriso e braços abertos, agora o que
encontrei foi o silêncio, embora o quarto não estivesse vazio.
A enorme cama de dossel — algo que ele sempre odiou — se destacava
no meio do quarto masculino, em tons de cinza e azul marinho, e um Arthur sem
camisa, vestindo apenas uma calça jeans, dormia sobre ela. Não parecia nem um
pouco sereno, em uma posição mais meditativa do que confortável, com a
barriga para cima, os dois braços sob a cabeça e as pernas longas esticadas e
entrelaçadas.
Aproximei-me sem fazer barulho, não sabendo exatamente como deveria
agir. Tive provas, naquele dia na minha casa, que acordá-lo de supetão não era
uma boa ideia, já que ele parecia ter reflexos muito rápidos e uma incrível
desconfiança no mundo inteiro. Então, teria que me manter longe até que
despertasse por completo. Mas não podia negar a mim mesma a chance de
contemplá-lo quase sereno, um pouco mais parecido com o homem que eu
conhecia.
Seu peito musculoso subia e descia em movimentos ritmados, e eu podia
ver algumas cicatrizes pequenas e discretas, que ele não tinha antes de sumir. A
estranha tatuagem também se destacava em seu ombro, com o número 48,
permanecendo muito misteriosa, sem que eu soubesse seu significado. Para ser
sincera, temia profundamente descobrir, já que isso implicaria em conhecer todo
o resto. Algo me dizia que a história não era nada bonita.
Precisei me controlar ao máximo para não tocá-lo, já que provavelmente
seria uma chance em mil. Cheguei a estender a mão em sua direção, quase
encostando os dedos em seu novo abdômen trincado, mas meu punho foi
novamente agarrado, repetindo a cena da minha casa. Contudo, ele não o fez
com violência, mas com delicadeza.
Ainda de olhos fechados, falou:
— O que está fazendo aqui, Christine? — Também não havia nenhum
traço de grosseria em sua fala, era apenas uma pergunta justa. Era a casa dele, o
quarto dele, e eu era a intrusa.
— Talvez eu esteja pagando na mesma moeda, já que também entrou na
minha casa sem autorização.
Ele abriu os olhos muito lentamente, como se a acusação não o tivesse
afetado. Soltou minha mão, enquanto levantava-se, colocando-se sentado em um
movimento elegante.
— Não sei do que está falando. — Pôs-se de pé, indo em direção à porta
para fechá-la, e por mais ridículo que fosse, o fato de estar trancada ali com ele
me deixava levemente desconfortável. Embora o conhecesse por toda a minha
vida, sentia-me intimidada. Ele tinha o dobro do tamanho de três anos atrás,
além daquela expressão violenta que muito me assustava.
Apesar de tudo isso, eu ainda podia apostar minha vida como não
ergueria um único dedo para me machucar.
Ainda assim, quando deu um passo na minha direção, eu recuei por puro
instinto. Isso fez com que erguesse uma sobrancelha, surpreso.
— Está com medo de mim, Christine? — Sua voz profunda e grave falou
em um tom baixo que provocou calafrios pela minha espinha. Não sabia
distinguir se por receio ou desejo.
Qual era a porra do meu problema? Eu estava ali para confrontá-lo, não
para alimentar minha paixonite estúpida.
— Não sei, Arthur — respondi com sinceridade. — Não sei mais quem
você é.
— Nem eu sei quem sou. — Sua expressão desolada e o tom doloroso da
resposta fez com que meu coração se apertasse por ele.
Apesar disso, não permitiria que me ganhasse com aquele semblante de
menino abandonado. Por mais que o amasse, não poderia deixar que meu
julgamento ou meu discernimento fossem afetados.
— Quero que me conte o que aconteceu ontem... Não adianta negar, eu
sei o que vi.
Ele permaneceu calado, apenas cruzando os braços enormes contra o
peito e erguendo o queixo, desafiador.
— Vai mesmo ficar em silêncio? Acha que eu mereço isso?
Senti seu peito novamente se inflar, em uma respiração profunda, mas
quando ele soltou o ar, percebi que ainda planejava manter-se calado.
Isso provocou uma imensa raiva dentro de mim. Quem ele pensava que
era para me fazer sentir daquela forma? Exposta, vulnerável, confusa? Acima de
qualquer outra coisa, ele era o meu melhor amigo. Ou fora. Por mais que alguma
coisa muito bizarra tivesse virado sua cabeça do avesso, eu ainda conseguia ver
resquícios do antigo Arthur ali, e eu sabia que nutria sentimentos por mim.
Fossem quais fossem, indiferença não era um deles.
Por isso, deixei que todo o desespero explodisse de uma vez e parti para
cima dele, com as mãos cerradas em punho, socando-o no peito. Ele mais
parecia uma rocha, e eu sabia que acabaria machucando apenas a mim, mas não
me importei. A ira deixava o meu corpo quente, imune contra a dor.
De início ele apenas descruzou os braços, deixando-se livre para que eu o
golpeasse. Porém, contra a minha vontade, meus olhos se encheram de lágrimas,
e meus socos começaram a se tornar mais e mais frenéticos, como se eu
precisasse extravazar todos os sentimentos reprimidos daqueles três anos; toda a
frustração, a dor e a saudade que senti.
Arthur permitiu que eu continuasse a avançar contra ele até certo ponto,
quando agarrou meus punhos com força. Embora fosse uma briga desleal, ainda
continuei tentando lutar contra ele, que decidiu me segurar com mais empenho,
passando os dois braços ao redor dos meus, em um abraço imobilizador,
deixando minhas mãos amassadas contra seu peito.
Mantendo-me assim, arrastou-me até a cama, onde me jogou, prendendo
meus pulsos contra o colchão, pondo-se em cima de mim.
Ainda tentei me debater, completamente irritada, ansiando que me
soltasse, mas seria em vão. Estava rendida.
— Se continuar agindo assim vai acabar se machucando — ele afirmou
convicto, mantendo um tom de voz muito sereno, quase inalterado apesar da
situação. Como ele conseguia?
— Já estou machucada. Só não fisicamente.
Apesar de não ter me soltado, nem afrouxado o aperto em meus punhos
ou saído de cima de mim, algo em seu semblante mudou. A forma como franziu
o cenho fazia com que eu jurasse que minhas palavras o tinham atingido
profundamente. Precisava começar a aprender a interpretar suas novas
expressões se quisesse lidar com ele.
Minha respiração estava fora de controle, não apenas pelo recente
esforço em lutar contra um homem que era quase um armário, mas também pela
proximidade. Nossos rostos estavam a uma distância quase inexistente, e para
que nossos lábios se tocassem seria necessário um movimento muito sutil. Os
olhos de Arthur estavam fixos nos meus, oscilando entre eles e minha boca,
como se pensasse na mesma coisa. Era quase insuportável.
— Eu nunca seria capaz de te ferir — ele sussurrou. — Não
intencionalmente. Nunca.
— Então me conte o que aconteceu ontem.
Ele respirou fundo, mas, ainda assim, não saiu de cima de mim. Apesar
disso, estava sustentando todo o peso de seu corpo nas pernas, cujos pés
permaneciam firmes no chão.
— Não posso... — ele provavelmente ainda iria dizer mais alguma coisa,
mas não permiti, interrompendo-o para tentar novamente me desvencilhar de
seus braços. — Christine... olhe para mim — pediu, enquanto eu ainda me
remexia. E o fez com tanta doçura, apesar daquela aparência selvagem, que não
consegui não ceder. Assim que me sentiu mais calma, ele continuou: — Só uma
única pessoa sabe de tudo o que aconteceu comigo. Essa pessoa está me
ajudando, e é alguém para quem não precisei dar explicações, porque já sabia
muitas coisas. Se eu pudesse contar para mais alguém, seria para você.
Isso conseguiu me comover de alguma forma, porque me senti relaxar
involuntariamente.
— Parte meu coração imaginar que você pode ter sofrido. — Ele não
respondeu ao meu comentário, fazendo-me crer que realmente tinha passado por
maus bocados. Não era algo difícil de concluir, afinal. — Mas preciso que me
conte o que aconteceu. Tenho direito de saber, porque me afetou de forma direta.
— Não. Não posso. — Foi novamente a resposta dele. Por mais que
estivesse um pouco menos irritada, sua negação me enfureceu outra vez, e eu
novamente comecei a tentar me soltar de suas mãos, que mais pareciam
correntes aprisionando-me àquela cama.
— Então vá para o inferno! — falei sem pensar.
— Já estou lá, Christine... — Outra vez senti meu coração derreter-se,
mas ele logo acrescentou algo que o fez congelar mais uma vez, como se sua
intenção fosse me manter puta da vida para que não me aproximasse: — Não sei
o que aconteceu com você, o motivo pelo qual veio aqui pedir explicações, mas
seja o que for, não teve nada a ver comigo. — As frases que disse provavelmente
não me afetariam tanto se não tivessem sido cuspidas em uma tentativa tão
esforçada de soarem arrogantes.
— Que merda, Arthur, dá para me soltar?
— Só se você prometer que vai embora.
Ele realmente me queria longe. Realmente queria me afastar a qualquer
custo. Isso doía mais do que qualquer soco que ele pudesse me dar.
Por mais que me odiasse por isso, acabei deixando uma lágrima escapar e
deslizar pelo meu rosto.
— É claro que eu vou. Não quero te aborrecer com a minha presença. —
Ele ainda demorou para me largar, como se aquela minha resposta também o
tivesse acertado em cheio. Poderia ser uma forma muito idiota de se ver as
coisas, mas eu sabia que não estava falando nada do fundo do coração. Havia um
motivo, que com certeza tinha ligação com aqueles homens estranhos que me
visitaram no café.
Assim que soltou minhas mãos, eu me apressei em me levantar,
colocando-me o mais longe possível dele, dentro daquele quarto imenso. Já perto
da porta, ainda me virei em sua direção para dizer:
— Só lamento que talvez tenhamos que nos encontrar mais tarde. Vou a
um evento beneficente e me disseram que você também foi convidado.
Finalmente provoquei alguma reação naquele rosto impassível. Seus
olhos arregalaram-se muito discretamente, mas rapidamente voltaram ao normal.
— Não costumo ir a esse tipo de festa. Com essa não será diferente, mas
espero que se divirta.
Lá estava o ódio novamente avolumando-se no meu peito, e antes que
pudesse partir para cima dele mais uma vez, decidi ir embora. Contudo,
novamente hesitei ao colocar a mão na maçaneta, voltando-me para Arthur uma
última vez assim que me lembrei de uma coisa importante.
— E a minha chave?
— Que chave, Christine?
— Você sabe muito bem do que estou falando. Da minha chave reserva,
que você roubou quando me sequestrou — falei só para provocar, esperando que
caísse na teia, mas ele apenas deu de ombros. Não havia sequestro nenhum, já
que eu fora levada para minha própria casa.
— Realmente não sei do que está falando...
— Acha mesmo que sou idiota, não acha? — perguntei por entre dentes.
— Não é muita coincidência você saber exatamente onde eu guardava a chave
reserva?
— Ainda a guarda na caixinha sobre o rack?
— Você sabe muito bem que sim.
— Então não é de se admirar que a tenham achado facilmente. É um
lugar bem óbvio.
Ele continuava agindo como um ser arrogante, e algo dentro de mim
dizia que era apenas uma faceta para me irritar e me afastar. Mas se era a sua
vontade, eu iria concedê-la.
— Tudo bem, Arthur. Pode ficar com essa merda de chave. Vou chamar
um chaveiro o quanto antes. Adeus...
Tentando não vacilar, saí de seu quarto, fechando a porta atrás de mim
sem olhar para trás. Segurei o choro o quanto pude, segui pelo corredor correndo
e mantive o mesmo ritmo nas escadas. Assim que atingi o último degrau, ouvi a
voz de Cléo me chamando, mas não virei para olhá-la. Tudo o que queria era sair
dali e não voltar nunca mais.

***

CHRISTINE

A vontade de correr para casa e não sair mais por aquele dia só não era
maior do que minha convicção em manter minha palavra. Não com Edgar, mas
com Maiara, que já tinha me enviado mais de dez mensagens demonstrando o
quanto estava animada porque comigo o evento não seria tão enfadonho. Mal
sabia ela que eu seria uma péssima companhia.
Apesar disso, enquanto fazia compras, para tentar encontrar alguma coisa
apresentável para aquela noite, tentei esvaziar minha mente em relação a Arthur,
por mais que fosse difícil. Chorei o máximo que pude no carro, enquanto dirigia,
cheguei chorando no shopping e queria sair de lá um pouco mais calma. Sendo
assim, tomei um sorvete cheio de calda de chocolate e comprei até mais coisas
do que o planejado só para me mimar. Quem precisava de homens quando se
tinha um cartão de crédito e doses de glicose para sobreviver?
Cheguei à casa de Maiara me sentindo melhor e decidida a não
demonstrar o quanto aquela tarde fora terrível. Meus olhos estavam bem menos
inchados depois que joguei um pouco de água fria no rosto e pinguei algumas
gotinhas de colírio, então, não havia marcas do sofrimento. A não ser as do
coração, mas essas seriam muito mais difíceis de apagar.
Passamos um final de tarde e um início de noite ótimos. Se Maiara não
fosse médica, ela certamente deveria abrir um salão de belezas, pois seus
conhecimentos de cremes, maquiagens e estética eram infinitos. Deu-me um
verdadeiro tratamento de princesa, enquanto seu marido cuidava de Betinha para
que pudéssemos nos divertir como meninas.
Assim que ela terminou de me enfeitar como uma boneca, olhei-me no
espelho e quase tive um ataque apoplético. Não que não me achasse bonita ao
natural. Eu não era esse tipo de mulher de falsas modéstias e costumava
agradecer minha boa genética todos os dias, embora não fosse presunçosa. Mas o
que ela fez comigo... Céus, era um milagre.
— Será que eu posso ficar assim para o resto da vida? — indaguei,
tocando minha pele perfeitamente maquiada, sem uma única marca indesejada,
embora o aspecto fosse extremamente natural. A sombra bem escolhida,
esfumada, em um tom degrade de preto, os contornos desenhados do meu rosto e
o batom nude, sensual. Tudo era perfeito.
Maiara deu uma risadinha satisfeita.

Ela também estava muito bonita. O vestido escolhido era claro, em um


tom de marfim, que contrastava com sua linda pele negra de forma perfeita, além
de aderir ao seu corpo sarado como uma segunda pele, abrindo-se em uma saia
mais folgada até seus pés.
Vestidas como princesas e maquiadas como rainhas, saímos de casa em
companhia de Paulo, que levava cada uma em um braço, alegando que era o
homem mais sortudo do Rio de Janeiro. Betinha fora deixada com a sogra de
Maiara, que era um amor de pessoa e que fora à casa deles para que pudessem
sair sem preocupações.
Meu vestido era simples, mas elegante, bordô, com um decote profundo
nas costas, que delineava meu corpo sem marcá-lo demais. Os sapatos eram da
cor da minha pele, o que alongava minha silhueta, em um modelo meia pata
muito confortável, com um salto de mais de dez centímetros.
O caminho até a casa dos Queiroga foi tranquilo, sem trânsito, mas o
evento já estava fervilhando de pessoas. Havia fotógrafos da imprensa parados
ao redor de um tapete vermelho improvisado na entrada da bela mansão,
localizada exatamente no Alto da Boa Vista — coincidência? Acho que não.
Porém, afastei esses pensamentos ou ficaria encucada por horas.
Demos nossos nomes a um segurança e fomos prontamente liberados.
Assim que pomos os pés no hall, um garçom elegante nos serviu a primeira taça
de champanhe, e Paulo cochichou em meu ouvido que aquilo era uma estratégia
para embebedar os convidados e fazê-los aumentarem seus lances sem nem se
darem conta.
Não pude deixar de rir com seu comentário e nem de dar uma golada na
bebida, que desceu fazendo cócegas pela minha garganta. Talvez eu também
estivesse precisando entorpecer um pouco meus sentidos para esquecer os
problemas. Não era isso que muitos faziam?
Paulo e Maiara pareciam conhecer muitas pessoas, e eles faziam questão
de me apresentar à maioria. Tentei sorrir, simpática, enquanto meus olhos
escaneavam o local em busca de Edgar. Não que estivesse tão ansiosa por vê-lo,
mas era apenas uma forma de me distrair enquanto minhas companhias
conversavam com outros convidados.
Meus olhos foram atraídos para um canto da sala, mais afastado, mais
precisamente para uma pessoa. Era como um imã. Uma maldição.
Parado, encostado a uma parede, vestindo um terno que parecia ter sido
feito sob medida para seu corpo imenso, estava Arthur, com os olhos fixos em
mim, como se me espreitasse, de uma forma que seria capaz de me deixar
completamente vulnerável.
A única pergunta era: o que ele estava fazendo ali, se afirmara com
convicção que não tinha interesse naquele tipo de evento?
Capítulo Oito
CHRISTINE

Senti o champanhe descer pela minha garganta com um gosto


completamente diferente do que tivera minutos atrás. Aquele tom agridoce e
refrescante tornara-se azedo, difícil de engolir. Apesar disso, virei a taça em
poucos segundos e busquei mais uma em outra bandeja que passava bem ao meu
lado. Quem olhasse para mim concluiria que era uma louca ou estava com o
emocional em frangalhos. Provavelmente um pouco das duas coisas.
Um pedaço de mim já esperava que ele pudesse aparecer, embora tivesse
afirmado com veemência que não se interessava por aquele tipo de evento. A
verdade era que, não importava o que me fora dito, desde o momento em que
concordei em comparecer, fora para vê-lo mais uma vez. Estava magoada e
ferida, mas meu coração era um traidor e teimava em bater mais acelerado
quando ele estava por perto.
E o destino era tão filho da puta que colocava aquele homem novamente
no meu caminho, depois de uma briga acontecida há poucas horas, com uma
aparência que seria capaz de fazer qualquer mulher heterossexual e de sangue
quente sentir as pernas fraquejarem.
Seus olhos não saíam dos meus nem por um minuto, como se vigiasse
cada movimento. Pouco interagia com outras pessoas, quase não falava, mais
parecia uma sombra naquele canto afastado, um vigilante ou um guarda-costas,
se eu tivesse pedido por um.
Claro que não havia chance de eu conseguir relaxar naquela merda de
festa. Quando Edgar surgiu na minha frente, dando-me um beijo no rosto mais
demorado do que seria necessário e me abraçando muito forte — sinais de que
tinha bebido um pouco além da conta —, meu corpo imediatamente se retesou,
principalmente ao reparar a expressão quase assassina de Arthur e a forma como
ele se colocou em alerta. Só porque eu estava abraçando um amigo? Desde
quando aquele cara decidira se tornar possessivo ao meu respeito, ainda mais
depois de ter me tratado com tanta frieza e desconsideração em sua casa,
omitindo informações que diziam respeito a mim.
Felizmente Edgar não pôde ficar muito tempo conosco, já que sua mãe
exigia sua total atenção. De longe, tudo o que eu conseguia enxergar era uma
bela mulher, de meia idade, com uma aparência levemente esnobe e uma roupa
impecável, além de uma máscara cheia de pedras, que deveria valer mais do que
o meu carro. Estava o tempo todo ao lado de Selma e do Sr. Queiroga, um
homem atraente, com ares de George Clooney, com quem meu amigo era muito
parecido. Formavam uma família bonita, pronta para estampar uma capa de
revista.
As pessoas continuavam a chegar e se acomodar em suas mesas,
preparando-se para o grande evento, o leilão em si. Imaginava que muito
dinheiro estava envolvido, principalmente a julgar pelos convidados presentes.
Havia políticos, celebridades e empresários que eu não conhecia, mas Maiara
teve o prazer de me passar um dossiê completo de cada um.
Volta e meia, mesmo sem que eu desejasse isso, meu olhar se perdia na
direção de Arthur. Ele continuava parado no mesmo lugar, ainda sozinho,
dispensando as mais diversas companhias. Sempre havia uma jovem mulher ao
seu redor, provavelmente muitas das que ele levou para a cama no passado.
Todas sorriam oferecidas, mas ele apenas as tratava com educação e total
desinteresse. Nem de longe lembrava o playboy animado e mulherengo que
conheci. Era como um clone.
— Acho que você não deveria ficar olhando para ele assim... — Maiara
sussurrou no meu ouvido, aproveitando que Paulo estava entretido em uma
conversa sobre futebol com dois colegas da empresa.
— Para quem? — Tentei me fazer de desentendida, embora soubesse
exatamente de quem ela estava falando. Uma vez que Maiara revirou os olhos
por causa da minha mentira, suspirei resignada e acrescentei: — É inevitável,
levando em consideração que ele não para de olhar para mim.
— Sim, é compreensível. A forma como te olha... meu Deus, Chris, não
sei como você ainda não entrou em combustão espontânea. Preciso concordar
que ele não é a minha pessoa favorita no mundo, mas... uau! Vocês são sexy
juntos — ela brincou, mas eu não estava achando muita graça naquela história.
Ah, merda! Isso foi o suficiente para me fazer novamente voltar os olhos
na direção dele, só para vê-lo falando com a mãe, que cochichava algo em seu
ouvido. No exato momento em que os vi, Selma retribuiu meu olhar, e eu
percebi claramente seu esforço para convencer o filho a ir me cumprimentar.
Sem dúvidas também estava estranhando seu comportamento.
Praticamente arrastado, Arthur aproximou-se de nossa mesa com a mãe.
Selma parecia extremamente envergonhada pelas atitudes do filho, mas tentou
contornar a situação com o máximo de jogo de cintura.
— Chris, minha querida... você está tão linda! — ela exclamou, enquanto
eu me levantava para cumprimentá-la. Fui abraçada com muito carinho. Talvez
estivesse precisando exatamente disso. — A Chris não está linda, Arthur? — Ela
virou-se para o filho ao perguntar, e eu jurei que ele iria ficar em silêncio, de
forma constrangedora, ou apenas balançar a cabeça, mas não esperava o que veio
a seguir.
— Maravilhosa — sussurrou, fitando-me daquela forma profunda de
antes, como se dissesse muito mais palavras em apenas um olhar.
Foi inevitável que perdêssemos alguns segundos em um momento só
nosso, compartilhando um silêncio muito cúmplice, até que Selma nos
interrompeu.
— É uma surpresa te ver aqui, Chris. Conhece os Queiroga?
Voltei-me para ela quase de súbito, sendo arrancada dos meus
pensamentos.
— Ah, sim. Sou amiga de Edgar.
— Como vocês se conheceram? — inesperadamente a pergunta veio de
Arthur. Não que fosse da conta dele, e eu adoraria lhe dar uma resposta nesse
nível, mas não poderia desrespeitar a presença de Selma.
— Ele frequenta o meu café há algum tempo. — Uma resposta
econômica, mas que resumia muito bem a situação. — Além disso, por um acaso
do destino, minha amiga é casada com um funcionário da empresa da família. —
Aproveitei o ensejo para apresentar Maiara e Paulo a Selma. Poderia ter feito o
mesmo com Arthur, mas não vi necessidade, já que ele se mantinha por perto
apenas por obrigação, com o semblante fechado e as mãos dentro do bolso.
Além disso, ele já conhecia Maiara, ao menos na teoria.
Enquanto Selma apertava a mão de Paulo, depois de dois beijinhos
simpáticos em Maiara, a voz de uma mulher foi ouvida, amplificada por um
microfone, e todos nos voltamos para o palco. Tratava-se de Vânia Queiroga,
mãe de Edgar, que fazia as honras.
Ela pedia que todos os que tivessem interesse em acompanhar o leilão se
dirigissem ao jardim da casa, onde toda a estrutura fora armada, assim, tanto
esposas quanto filhos e os mais jovens poderiam permanecer no salão para
divertirem-se, beberem e dançarem, se quisessem. Como em uma debandada,
boa parte dos presentes começou a se retirar do salão, inclusive as pessoas à
minha mesa, como Selma, Maiara e Paulo. Ele, porque tinha um interesse muito
particular em um kit de pesca completo, de uma marca caríssima. A esposa, por
sua vez, queria tentar convencê-lo a abrir a carteira para alguma joia bonita.
Algo com diamantes, se estivesse com sorte.
Jurei que Arthur iria acompanhá-los, mas quando olhei para o lado,
encontrei-o parado no mesmo lugar, bem atrás de mim, como um fantasma.
Decidi ignorá-lo, esperando que estivesse apenas um pouco atrasado em seguir
os outros, e sentei-me, dando uma bebericada em meu drinque, agradecendo por
estar bem forte.
Mas ele nem se mexeu.
— Precisamos conversar — afirmou com muita convicção, muito sério,
como se aquela frase fizesse todo o sentido.
Quase em câmera lenta, virei-me na direção dele, fazendo uma volta de
cento e oitenta graus, sentada na cadeira.
— Precisamos? — indaguei com desdém. — Não sei o que pode ter para
falar comigo que não podia ter dito mais cedo, quando fui à sua casa. Horas atrás
você parecia não querer me ver nem pintada.
— Eu não sabia que você era tão amiga de Edgar Queiroga — ele falou,
sem dar qualquer atenção ao que eu lhe disse. Preferi não responder, porque
não era de sua conta. — Gostaria que acreditasse em mim e se afastasse desse
homem.
Arregalei os olhos quase em choque, boquiaberta. Como ele ousava me
fazer um pedido como aquele, depois de tudo o que tinha acontecido?
— Você deve estar brincando, não é?
— Não, não estou. Aliás, eu só vim a essa festa para falar com você e te
levar para casa em segurança.
— Me levar para casa? Você está louco se acha que vou te acompanhar
para algum lugar. Deve ter bebido muito para sequer cogitar uma coisa dessas.
Levantei-me, pronta para me afastar, mas Arthur segurou meu braço, me
impedindo de dar um único passo.
— Estou falando sério, Christine. Ele é perigoso.
— Duvido que seja mais perigoso do que você. Ainda não engoli o que
aconteceu ontem e não vou descansar até descobrir. Sei que está envolvido no
acidente, Arthur, e se eu achar que pode estar fazendo coisas erradas vou
esquecer que é meu amigo...
Eu pretendia continuar falando, mas ele me interrompeu.
— Se sair daqui agora comigo, eu prometo te contar tudo.
A cada proposta estranha, eu me sentia mais e mais desconcertada. O que
ele queria, afinal? Enlouquecer-me? Tratar-me como uma propriedade, enquanto,
ao mesmo tempo, tentava me repelia, fazendo com que eu acreditasse que não
queria ter mais nada a ver comigo. Talvez ele mesmo estivesse louco.
— Não vou com você a lugar nenhum. Dá para me soltar? — Fiz força
para arrancar meu braço de sua mão e atingi meu intento. Isso pareceu deixá-lo
um pouco impaciente, mas não me tocou novamente.
— Christine, não seja teimosa. Eu realmente preciso...
Arthur não pôde terminar sua frase, porque fomos interrompidos por
Edgar, que chegava apressado, pegando a minha mão.
— Chris, ainda bem que te achei. Preciso de ajuda no leilão. — Ele já ia
me tirando dali quando percebeu a presença de Arthur. — Ah, desculpa, eu não
sabia que você estava ocupada.
— Não. Não estou — respondi categórica.
— Arthur Montenegro? — Edgar perguntou, estendendo a mão. — É um
prazer finalmente conhecê-lo. Achei que não teria essa oportunidade, mas acho
que você surpreendeu a todos ao surgir com vida. — Estendeu a mão e esperou
que Arthur o cumprimentasse, o que demorou um pouco, mas acabou
acontecendo. Ainda bem, porque seria algo extremamente constrangedor. —
Nossos pais eram bons amigos, mas como eu passei muito tempo na Europa,
acabamos nos desencontrando. Espero que agora possamos nos conhecer
devidamente e continuarmos com a amizade de nossas famílias.
Vi Arthur franzir o cenho, analisando o homem que estava à sua frente
com uma raiva que era quase assustadora. O que ele poderia ter contra Edgar?
Mas havia algo, sem dúvidas, porque aquele sentimento tão negativo nunca
poderia ter surgido de graça. Essa certeza me fez ficar um pouco receosa. Por
mais que Arthur agora me parecesse um completo estranho, era um antigo
conhecido, meu melhor amigo. O que sabia, porém, sobre Ed? Ele poderia ser o
pior dos seres humanos, sem que eu tivesse qualquer ciência disso. Além disso,
não podia esquecer o quanto estava desconfiada da história mal contada sobre o
desvio de caminho para o Alto da Boa Vista.
— Não tenho o menor interesse em ser seu amigo — Arthur falou sem
qualquer remorso, em um tom de voz sereno, baixo e grave. O ar pareceu ser
drenado dos meus pulmões, e eu pensei que acabaria caindo no chão, sufocada,
mas me mantive firme. Virando-se para mim, Arthur começou a ignorar o
terceiro elemento daquela conversa, dizendo: — Por favor, Chris, venha comigo.
Preciso falar com você com urgência.
Foi necessário que eu me esforçasse para encontrar o ar que perdi com a
resposta mal criada de Arthur, mas quando consegui finalmente respirar, um som
muito parecido com um suspiro escapou de meus lábios. Era a primeira vez que
ele me chamava pelo apelido, e o fez de forma tão doce que quase me fez
desmoronar. Chegava a ser uma covardia, não porque eu o amava, mas porque
sentia falta do amigo que costumava ser.
Ainda assim, precisei me manter firme. Ele não iria conseguir me
manipular daquela forma.
— Arthur, eu não vou com você. Por favor, não insista. — Depois de
dizer isso, afastei-me, indo em direção ao jardim, dando a entender que iria
ajudar Edgar com o que ele precisava.
Por mais difícil que fosse, eu precisava seguir com a minha vida. Estava
cansada de tantas idas e vindas.

***

ARTHUR

Tudo era movido a dinheiro. Já fazia mais de duas horas que só ouvia
sobre números, e isso estava me enchendo o saco. Minha vontade era escapar
dali o mais rápido possível, mas não queria desgrudar meus olhos de Christine.
Em nenhum momento acreditei que ela iria me acompanhar e realmente afastar-
se de Edgar Queiroga, mas tive algumas esperanças. No entanto, com sua recusa,
não poderia me permitir abandoná-la, sabendo que estava caminhando
desprotegida e desavisada em um ninho de ratos.
E tinha a minha mãe naquela confusão toda também, é claro. Porém, para
a minha sorte, ela foi embora do evento um pouco mais cedo, como já havia
avisado que faria, porque não era muito paciente com leilões. Ajudara no que
pudera, mas sua estratégia era escapar antes do final dos lances, antes que a festa
começasse. Ela odiava música alta e a falsidade das conversas que, sem dúvida,
viriam a seguir. Levei-a, então, até o carro, recebendo um beijo terno, que eu
tentei retribuir com o máximo de sentimento que consegui, e voltei para o
jardim.
Contudo, esse breve tempo de ausência foi suficiente para que Christine
desaparecesse.
Merda!
Eu não fazia ideia se tinha ido embora, ao banheiro ou se estava dando
uma volta pela casa, mas o fato era que não podia perdê-la de vista. Não era uma
questão de paranoia, mas de segurança. Aquele tal de Edgar era um bandido, e
eu não queria que ficasse muito perto dela. Não podia acreditar que um homem
que tinha coragem de vender mulheres para prostituição pudesse nutrir qualquer
intenção honrada para com alguém.
E mesmo que tivesse... que ele se fodesse. Não queria que colocasse
aquelas mãos imundas e criminosas na minha Christine.
Aproximei-me de sua amiga — que fora apresentada à minha mãe, mas
não a mim —, tentando descobrir sobre seu paradeiro.
— Onde está Christine? — indaguei com cautela, uma vez que éramos
praticamente desconhecidos um para o outro.
Exatamente como supus, ela não pareceu muito simpática em relação a
mim. Não era para menos, de fato, já que desde que voltara só levara desgosto
para sua amiga.
— Ela foi ao banheiro. — Essa resposta deveria me bastar, então,
agradeci e fui me afastando, mas a mulher segurou minha mão. — Por favor,
deixe-a em paz. Você não tem noção do quanto ela sofreu com seu
desaparecimento e como tem sofrido desde que voltou. Se não quer retomar a
amizade de antes, afaste-se.
A dor que senti com aquelas palavras poderia ser comparada à de uma
ferida profunda aberta salpicada de sal. Odiava pensar no sofrimento que estava
causando à melhor pessoa que eu conhecia, mas não tive coragem de dizer nada.
Apenas saí de perto daquela moça, embora seu sermão não houvesse me
convencido a deixar Christine em paz. Não naquela noite. Não enquanto não a
visse em casa, em segurança. Não enquanto aquele filho da puta não estivesse
preso ou morto, bem longe dela.
O primeiro passo eu daria em breve. Assim que a encontrasse, tentaria
convencê-la a sair daquela festa, nem que eu tivesse que agir como um troglodita
e tirá-la de lá à força. Odiaria tomar tal atitude, mas meus instintos me diziam
que alguma merda iria acontecer sem demora.
A casa era enorme, e eu não a conhecia, já que era minha primeira visita
àquela família, portanto, precisei pedir informações para um garçom a respeito
da localização do banheiro mais próximo.
Assim que recebi a informação, parti para lá e percebi que a porta estava
trancada, mas eu não tinha como saber se era mesmo Christine lá dentro. Sendo
assim, montei guarda do lado de fora e esperei.
Esperei bastante, diga-se de passagem, até que a moça saiu. E não era
Christine.
Com o tempo que perdi, concluí que ela já poderia ter retornado ao
jardim, mas quando voltei lá, nem sinal dela. Isso novamente me preocupou.
Iniciei uma busca pela casa, passando por corredores intermináveis e
tentando abrir portas, em sua grande maioria trancadas. Soquei algumas,
chamando o nome dela, mas não recebi resposta. Sabia que estava fazendo uma
baita confusão e barulho, mas não me importava. Achá-la era prioridade.
Foi nesse momento, então, que ouvi o primeiro tiro, vindo exatamente do
jardim.
Os outros não demoraram a soar, fazendo-me correr desesperadamente
em direção ao som.
O pânico já havia se instalado. Pessoas tentavam correr, alguns se
empurravam, outros caíam, mas toda a desordem foi interrompida por mais um
disparo. Um homem, usando uma máscara de esqui, de pé sobre uma cadeira,
apontava um fuzil AK-47 e uma Glock G25 para o alto, enquanto mandava que
todos ficassem parados.
— Vamos fazer uma brincadeira enquanto estamos aqui para ganhar
tempo. Tiro ao alvo, o que acham? — o cara indagou, com uma voz desdenhosa,
enquanto olhava de um lado para o outro, para se certificar se todos estavam
mesmo parados. — Vamos começar. Uni, duni, tê... — conforme ia cantando, ele
ia apontando a Glock para algumas pessoas que ainda restavam, que não tinham
conseguido fugir. Dentre eles, eu reconhecia Maiara e o marido, embora não
houvesse nem sinal de Christine.
De onde eu vinha, tinha uma posição privilegiada em relação ao atirador.
Ele estava de costas para mim, o que facilitaria um ataque surpresa. Estava
duplamente armado, mas o treinamento que sofri teria que servir para alguma
coisa.
Infelizmente, precisava agir com cautela, sem pressa. E eu sabia que isso
custaria a vida de alguém. Contudo, quando o homem apontou a arma para
aquele que fora apresentado à minha mãe como Paulo, não pensei duas vezes e
me joguei sobre o atirador. O tiro foi dado, mas na hora da adrenalina, não pude
parar para ver onde atingira. Um grito feminino o seguiu, mas não tive tempo de
olhar para as pessoas, pois precisei iniciar uma luta com o bandido.
Ele não era dos piores, mas um pouco lento e previsível. Esquivei-me de
dois socos e levei um chute na costela, para começar, mas nem sequer cambaleei.
Parti para cima dele com um gancho de direita, que o acertou bem no maxilar, e
um golpe bem forte no estômago. Nem deixei que se recuperasse e parti com
tudo em outro soco e outro chute. A roupa que usava era um pouco incômoda
para os movimentos, mas não podia me deixar levar por isso.
Depois de mais alguns golpes, o filho da puta caiu de joelhos, e eu não
pensei duas vezes, deixando-o apagado. Queria matá-lo, mas meu lado racional
me indicava que iria me trazer complicações. Então, tirei minha gravata e o
amarrei ao fino caule de uma árvore do jardim.
Peguei a Glock, só para ter outra forma de me defender, e voltei-me para
as pessoas rapidamente. Todos pareciam muito assustados, então, fiz um gesto
para que saíssem dali, agora que não eram mais reféns. Apenas duas delas
permaneceram: Maiara e Paulo. Este, caído no chão, sangrando.
Aproximei-me, temendo que o tiro tivesse pegado em algum lugar
perigoso, mas ao tirar seu paletó e rasgar a blusa social que usava, constatei que
fora no ombro. Estava, inclusive, consciente. Cacei o celular no bolso para ligar
para a emergência, mas a mão ensanguentada de Maiara me impediu.
— Chris... eles a levaram — ela me disse, com a voz embargada pelo
choro, muito apreensiva.
Balancei a cabeça em afirmativa, tentando não demonstrar o quanto
aquela informação me deixara desnorteado. Se tinham pegado uma pessoa tão
específica, sem dúvidas o problema era comigo. Tinha tudo a ver com a MR.
Corri o mais rápido que pude, esperando ainda conseguir algum rastro
para seguir, mas para a minha surpresa, um grupo de cinco homens estava
parado diante do portão da casa dos Queiroga, com três seguranças abatidos ao
seu redor. Um dos bandidos imobilizava Christine, encostando o cano de uma
arma em sua cabeça. Era um recado muito claro para mim.
— Abaixe a arma, 48 — um dos mascarados falou, e eu tentei me
concentrar para ouvir sua voz e tentar reconhecê-la.
Hesitei um pouco, mas pela forma como ele estreitou os braços ao redor
da cintura da refém, fazendo-a retesar-se de medo ainda mais, não tive escolha.
Ergui ambas as mãos e levei a arma ao chão, pousando-a sobre a grama. Estava
completamente rendido naquele momento. Enquanto tivessem Christine em seu
poder, eu faria qualquer coisa que me ordenassem.
— Soltem a garota. Ela não tem nada a ver com isso... — falei, em uma
vã tentativa. Sabia que não haveria conversa. Eu teria que encontrar uma forma
de abatê-los, ou só sobrariam duas alternativas: entregar-me ou deixar que
levassem Christine. A segunda nem era uma opção. E eu também não queria
voltar para aquele inferno, ainda mais depois de ter escapado. As punições
seriam severas, isso se não acabassem me matando.
— Podemos soltá-la, se vier conosco sem lutar.
Ainda de mãos erguidas, tentei passar confiança e calma.
— Eu vou. Mas precisam soltá-la primeiro.
Claro que eles não fariam isso. Não eram amadores, embora eu
suspeitasse que a MR não enviaria seus melhores homens para uma operação
arriscada como aquela. Era a casa de uma família milionária. Se fossem pegos,
precisariam ser descartados. Além do mais, não eram tantos assim. Meu melhor
palpite era que aquele atentado serviria apenas como um aviso, uma ameaça para
mostrarem que Christine era um alvo.
E por falar nela, meus olhos não a abandonavam um único segundo.
Enchia-me de orgulho por seu controle. Imaginava que deveria estar morrendo
de medo, mas segurava a onda muito bem. Além disso, demonstrava que
confiava em mim, de alguma forma. Eu não pretendia decepcionar essa
confiança.
— Não está em posições de negociar. Só permaneça calmo que a
soltaremos. — Enquanto um dos homens falava, outros dois aproximavam-se de
mim. Tentei estudar todo o cenário ao meu redor, conforme era segurado por
eles. Apenas uma arma estava apontada para Christine, havia outros dois homens
me mantendo em sua mira, à perfeita distância de um chute, enquanto outros
dois agarravam meus braços.
Esse, portanto, foi seu erro. Apenas dois homens não poderiam me
conter. Não quando a mulher que eu amava estava sendo ameaçada pelo cano de
um revólver.
Precisava agir rápido e sem pensar, pois eu sabia que não tardaria para
me apagarem de alguma forma. Por isso dei um chute bem forte em ambas as
mãos que seguravam as armas que me ameaçavam e consegui me soltar dos
braços que me prendiam. Assim que fui liberto, abaixei-me e peguei uma das
armas, atirando certeiramente na testa do homem que mantinha Christine como
refém. Ele era uma cabeça mais alto do que ela, e eu confiava plenamente na
minha pontaria.
Agora era um contra quatro, e claro que dois deles recuperaram as armas
rapidamente, enquanto outros dois vieram para cima de mim, me desarmando.
Olhei de soslaio para Christine, gritando para ela:
— Fuja!
Felizmente ela me obedeceu, e eu pude ficar um pouco mais tranquilo.
Não queria que me levassem de volta para a corporação, mas era um cenário
melhor do que vê-la ferida ou morta.
Esperava que não atirassem em mim ali. Talvez tivesse algum valor para
a MR. Sem dúvida haveria um belo de um castigo para um fugitivo, redobrariam
a segurança, mas eu poderia ser ainda mais interessante para eles depois de ter
escapado. Era um feito, sem dúvidas, o que significava que era mais forte do que
esperaram que eu me tornasse. Serviria perfeitamente o propósito para o qual me
criaram.
Embora soubesse de tudo isso, não podia baixar a guarda. Esforcei-me
para desarmar logo um dos homens — o mais desatento — e chutei sua arma
para bem longe daquela vez. Os outros vieram para cima de mim, e eu os
empurrei, jogando-os no chão só para ganhar tempo. O último armado atirou,
mas uma vez que eu estava em movimento, o tiro não me atingiu, e eu apenas
ouvi o som da bala rasgando o ar, passando muito próxima à minha cabeça.
Foi quando eu entendi que aqueles homens poderiam me querer vivo,
mas me matariam se fosse necessário.
Com muito custo consegui dar alguns passos acelerados e pegar a Glock
que havia levado comigo. Se aquele cara errava tiros, eu não cometeria o mesmo
erro. Dei mais um certeiro, desta vez bem no meio da garganta do sujeito,
espirrando sangue para todos os lados.
Faltavam apenas dois. Desarmados. Estava em vantagem.
Eu era bom de briga. Tão bom quanto com uma arma, e ainda bem,
porque infelizmente a que estava em minhas mãos não tinha mais balas.
Parti para cima dos dois sem remorso, jogando o revólver vazio no chão.
Esquivei-me de socos antes de também atacar. Meu primeiro golpe foi um chute
no estômago de um deles. Um bem dado, que o fez cambalear. Aproveitando o
momento de desconcentração do segundo, lancei-lhe um soco bem no ouvido,
que eu sabia que com a força que usei iria deixá-lo zonzo.
Nesse meio tempo, o primeiro que acertei voltou para cima de mim, e
pudemos nos encarar num mano a mano mais justo. Ele não era de todo ruim,
apenas um pouco afobado, e ainda conseguiu me acertar um soco na mandíbula
que doeu para cacete. Em seguida, fez o feito de me derrubar no chão com uma
rasteira, o que foi seu erro. Aproveitei a posição e lhe chutei bem no meio do
joelho esquerdo, ouvindo o barulho do osso sendo quebrado. Com um urro de
dor, ele caiu, o que me deu a chance de golpeá-lo no rosto, fazendo-o apagar.
Voltando-me para o último, percebi que ele agora sustentava um pequeno
canivete na mão. Era uma puta covardia, eu sei, mas aqueles homens não foram
treinados para lutarem de forma justa. Eles não eram soldados da MR, eram
funcionários, pagos para recrutarem homens como eu. Eram filhos da puta
caçadores de recompensas.
Ele ergueu a mão, pronto para me apunhalar na jugular, mas eu consegui
impedi-lo, segurando seu punho e aproveitando a guarda baixa para socá-lo no
estômago, o que o fez se contrair. Ainda segurando seu braço, eu o torci,
colocando-o nas costas, pronto para quebrá-lo, mas o puto tinha outro canivete
na outra mão e conseguiu abrir um talho na minha perna esquerda. Nada muito
profundo ou grave, mas suficiente para me fazer soltá-lo, principalmente pelo
elemento surpresa. Não esperava por isso e me condenei por ter sido tão
descuidado.
O homem veio investindo contra mim cortando o ar com o canivete, e eu
fui me esquivando, sabendo que precisaria desarmá-lo imediatamente. Ele estava
muito decidido a me matar, e pessoas assim eram muito perigosas.
No entanto, ouvi três tiros. Não consegui imediatamente enxergar o que
tinha acontecido, porque minha vista estava obstruída pelo oponente. Só vi que
ele simplesmente parou, e uma mancha de sangue começou a se abrir em sua
camisa branca. Apenas um tiro fora certeiro, os outros dois foram dados no ar.
Quando despencou no chão, vi Christine logo à minha frente, ainda empunhando
a arma, congelada na mesma posição, com os olhos arregalados.
— Chris... — sussurrei seu nome, desolado, sabendo o quanto aquele
pequeno ato iria lhe custar. Ela não era uma lutadora, era uma garota comum.
Quando, em sua vida pacata, poderia imaginar que um dia seria obrigada a atirar
em ser humano?
Ainda perplexa e imóvel, ela deixou o revólver cair no chão, e eu
apressei-me em sua direção. O ferimento da minha perna apenas ardia, não
dificultava meus movimentos. Acho que dei sorte.
Assim que cheguei perto dela, com um pouco de receio sobre como
deveria agir, ela se jogou de encontro a mim, abandonando-se em meus braços,
como se fosse o lugar mais seguro para estar naquele momento.
Tudo o que eu queria era corresponder àquela entrega, protegendo-a e
mantendo-a comigo, mas precisava tirá-la dali. O mais rápido possível, antes que
mais pessoas surgissem ou a polícia. Não queria que precisasse dar depoimentos
ou ficar encrencada de alguma forma. Eu poderia assumir a culpa por tudo.
Peguei a arma que ela usou do chão e guardei-a presa ao meu cinto.
— Vem, Chris, vamos sair daqui — falei bem baixinho em seu ouvido.
— Eu preciso saber se ele... Se está...
Eu entendia o que queria dizer. Odiava ter que fazer isso, mas era pior do
que permitir que ela mesma fosse checar. Portanto, aproximei-me do homem e
chequei sua pulsação. Nada. Estava morto.
Virei-me para Chris e apenas balancei a cabeça, respondendo-lhe com
uma negativa.
Apavorada, senti-a cambalear e jogar-se de joelhos no chão. Voltei para
perto dela, tirando meu paletó e envolvendo-a com ele, já que tremia
descontroladamente. Ajudei-a a levantar-se e, sem olhar para trás, comecei a
conduzi-la para fora daquela casa e daquele pesadelo.
Capítulo Nove
CHRISTINE

Eu só queria desaparecer.
Talvez estivesse agindo apenas como uma menina mimada, uma mulher
fraca sem instinto de sobrevivência, mas isso pouco importava. Meus olhos
focavam o nada, como se estivesse hipnotizada, perdida em um universo apenas
meu, onde nada poderia me atingir, nem mesmo as mais terríveis memórias
daquele dia.
De todas as coisas desprezíveis que jurei que faria um dia, matar um ser
humano não era uma delas. A cena ia e vinha em minha cabeça, sendo repetida
em um looping constante, que eu sabia que iria me atormentar por muito tempo.
Talvez eu jamais me sentisse livre daquela mácula.
Um cheiro de erva doce veio em uma névoa de fumaça, atingindo meu
nariz, no momento em que Arthur voltou para a sala estendendo a xícara na
minha direção. Eu ainda estava sentada no mesmo lugar onde ele tinha me
deixado, envolta em seu paletó, tremendo de frio, como uma garotinha assustada
— algo que eu odiava —, com Kibe deitado bem ao meu lado.
Paciente, ele se abaixou na minha frente, apoiando-se em um joelho e
deixando outro flexionado. Eu segurava a xícara com as duas mãos, temendo que
não pudesse sustentá-la de tão trêmula que estava, enquanto mantinha minha
cabeça baixa. Não conseguia encará-lo. Não conseguiria nem sequer encarar a
mim mesma em um espelho, se fosse obrigada a me colocar diante de um.
— Chris, fale alguma coisa. Desabafe... — ele disse bem baixinho. Eu
não sabia se o amava ou odiava naquele instante. Tudo o que estava acontecendo
era culpa dele. Mas, ao mesmo tempo, sabia que havia muita coisa por trás de
uma história mal contada e que ele devia ter sofrido muito.
— Eu matei aquele homem — foi tudo o que consegui falar, porque era a
única coisa que pulsava em minha mente.
— Sim, matou. Para me salvar. — Como se isso fizesse alguma
diferença. Os fins não justificavam os meios naquele caso. Por mais que não me
arrependesse de tê-lo feito, já que provavelmente faria de novo se fosse
necessário para mantê-lo vivo, ainda era difícil lidar com a situação.
Com muita gentileza, Arthur pegou a xícara de volta e a pousou na
mesinha ao lado do sofá. Tomando uma das minhas mãos na dele, usou a outra
para erguer meu queixo, obrigando-me a olhá-lo.
— Você não tem que se martirizar por isso. Eram pessoas ruins, que não
mereciam viver.
— Não cabe a nós julgar esse tipo de coisa. Não somos Deus — afirmei
indignada.
— Nem sempre Deus está disponível para olhar pelas pessoas que
merecem. Às vezes o mal está prestes a vencer, e não podemos permitir. Se
temos a possibilidade de fazer justiça, não devemos fechar os olhos.
Franzi o cenho, analisando-o com cuidado, quase sem acreditar que ele
poderia estar falando aquilo. Ficava cada vez mais difícil reconhecê-lo no meio
daquela nova fachada.
— Eu não sou uma justiceira, Arthur! Sou uma frouxa, que não consegue
matar nem uma barata. Não faço ideia de como encontrei coragem para puxar
aquele gatilho.
Arthur segurou ambas as minhas mãos com ainda mais força.
— Encontrou porque era o certo a fazer.
— Você nunca vai me convencer disso. Não importa que use palavras
bonitas, frases feitas. Não importa o que fizeram você acreditar no lugar para
onde foi. — Abaixei a cabeça, envergonhada do que iria dizer a seguir, mas as
palavras estavam prestes a escapar, e eu não poderia refreá-las. E nem queria, na
verdade. Tinha o direito de abrir meu coração. — Desde que voltou para a minha
vida... — hesitei. Caí na asneira de olhar para ele, e só aquela pequena frase já
foi capaz de proporcionar uma expressão de profunda dor em seu semblante,
porque ele já deveria saber aonde aquela conversa iria parar. Apesar disso,
continuei: — Desde que voltou, minha vida parece um pesadelo. Há pessoas me
perseguindo, sofri um acidente, fui feita de refém em uma festa... O que mais vai
acontecer? Estou assustada.
Eu o vi balançar a cabeça muito sutilmente, concordando e aceitando o
golpe que tinha acabado de levar. Senti meu coração se despedaçar por precisar
ser tão dura com alguém que amava tanto, mas infelizmente era a mais pura
verdade.
— Vou te deixar em paz, Chris. Você não merece o que está
acontecendo... Não deveria... — Mal conseguiu terminar a frase, mas foi logo se
levantando para ir embora. Eu pretendia permitir, porém, muito discretamente,
ele levou a mão à perna, com uma expressão de dor, fazendo-me lembrar de seu
ferimento.
— Espera... — pedi, também me colocando de pé, enquanto tirava seu
paletó dos meus ombros e indo até ele, passando rapidamente pelo rack da sala e
pegando uma tesoura em uma das gavetas.
Abaixei-me à sua frente e fiz um pequeno corte em sua calça,
encontrando exatamente a ferida.
— Vai, senta no sofá... vou desinfetar isso aqui...
— Chris, acho melhor eu ir embora... — ele falou, mas mal dei tempo
para que insistisse, apenas peguei sua mão e praticamente o arrastei até o
assento, empurrando-o lá. Puxei a poltrona para me acomodar em frente a ele e
me preparei para cortar mais do tecido. Antes, voltei meus olhos em sua direção.
— Vou ter que cortar um pouco mais, tudo bem?
— Esse corte que você já fez não está exatamente na moda, então, não
vai fazer muita diferença... — Arthur deu de ombros, e eu comecei a trabalhar.
Já estava quase concentrada, quando ele disse algo que foi bastante inesperado:
— Não será a primeira vez que você tira a minha roupa...
Filho da puta!
Já bastava toda a situação na qual estávamos inseridos, ele ainda decidia
fazer a primeira piadinha desde que tinha retornado à civilização exatamente a
respeito de algo que eu queria esquecer. Bem... não exatamente esquecer, mas
pensar no quanto era apaixonada por ele em um momento como aquele não
parecia a melhor escolha. Contudo, nem respondi nada, porque eu sabia que fora
uma tentativa muito mal sucedida de amenizar o clima sombrio.
— Desculpa, estou agindo como um idiota...
— Está — respondi sem encará-lo. — Mas foi a primeira vez que sequer
chegou perto do Arthur que eu conheço.
Tentei olhá-lo pelo canto do olho, para verificar se tinha ao menos
sorrido, mas nem chegava perto disso, o que muito me assustava.
Abri um buraco decente no tecido da calça e fui ao banheiro pegar o kit
de primeiros socorros, que, aliás, não era a primeira vez que usava com ele.
Quando voltei, peguei-o inclinado para a frente, passando a mão no tapete, cuja
mancha de sangue, feita dias atrás, ainda não havia desaparecido por completo.
— Acho que te devo um tapete novo — ele comentou assim que me
sentei à sua frente outra vez.
— Você me deve três anos da minha vida, Arthur. O tapete é o de menos
— falei sem pensar. Decidi aproveitar o ensejo e tocar no assunto que tanto
desejava: — Falando nisso, agora você sabe atirar e luta como um demônio.
Acabou de abrir a porta da minha casa com um cartão de crédito, porque eu
perdi a minha bolsa. Fora o seu corpo que está completamente diferente. Poderia
jurar que passou esse tempo todo em uma academia de cross-fit ou treinando
para uma apresentação de fisiculturismo.
Ah, ele quase sorriu. Estávamos progredindo.
— Quase isso — ele respondeu de forma econômica, ainda sorrindo, e eu
novamente cometi o erro de olhar para seu rosto.
Aquele sorriso... Arthur sempre tivera um sorriso daqueles impossíveis
de serem descritos perfeitamente. Se eu tentasse, diria que era um tanto quanto
sacana, endiabrado, de um moleque travesso que sabia muito bem que era capaz
de conquistar qualquer coisa — ou qualquer uma — sem se esforçar. Para mim,
ele sempre guardou um sorriso diferente. Um mais puro, sincero e gentil,
exatamente igual ao que me lançava naquele momento, embora um pouco mais
desanimado.
Continuei minha tarefa em silêncio, desinfetando a ferida, satisfeita por
não ser tão profunda quanto parecia. Talvez fosse melhor ele ir a um hospital,
mas imaginava que a sugestão não seria muito bem-vinda. De qualquer forma,
ele era forte, iria se safar sem maiores danos.
Quando terminei o curativo, ele foi se preparando para levantar-se.
— Obrigada mais uma vez, Christine. — Antes, porém, que ele pudesse
se despedir, segurei sua mão, com os olhos baixos, tristonhos, porque sabia que o
que iria dizer e fazer eram a coisa errada, mas era o que eu queria e precisava.
— Fica — pedi. — Não me deixa sozinha. Não esta noite.
Eu não sabia se era seguro pedir que ele ficasse. Provavelmente estava
me colocando em perigo, mas não faria a menor diferença. Não poderia permitir
que se afastasse, porque não importava o tipo de problema que ele trazia
amarrado às suas costas, eu sempre o amaria. De todas as formas.

***

ARTHUR

Antes de tudo acontecer, quando nossa proximidade beirava o


sobrenatural, eu quase podia jurar que Christine era capaz de ler a minha alma.
Pela forma como me olhava, como me compreendia e como sempre parecia
dizer o que eu precisava ouvir, tinha quase certeza de que estávamos presos em
uma conexão perfeita. Isso sempre me assustou. Eu a desejava. Muito, de fato.
Como poderia ser diferente, se era uma mulher linda, atraente, com quem
costumava falar de sexo abertamente? O problema era que com ela eu sabia que
as coisas não parariam apenas em uma noite de prazer. Eu a amava e importava-
me com ela, tanto que a certeza de que deveria deixá-la sozinha e sair por aquela
porta, afastando-me para sempre ainda se revolvia dentro da minha cabeça,
provocando um redemoinho de ideias contraditórias, capazes de me deixar louco
em um segundo.
Amá-la não era mais suficiente. Nunca fora, na verdade. Antes, a culpa
era da minha insegurança, da minha imaturidade de não saber reconhecer que eu
tinha o que muitas pessoas procuram por uma vida inteira ao alcance das mãos e
simplesmente deixava a chance passar. Eu poderia ter sido feliz com ela. Poderia
ter até formado uma família, mas sempre tive medo exatamente disso. Agora, o
problema era muito maior. Eu havia me tornado perigoso. Pessoas me
perseguiam por toda a parte, colocando todos os que me amavam na linha de
tiro.
Talvez nós dois não estivéssemos destinados a ficarmos juntos. Talvez
uma única noite fosse suficiente e nunca mais tivéssemos a oportunidade de
tentar. Ainda assim, nada disso importava. Se ela tinha me pedido para ficar, eu
ficaria. Não era capaz de lhe negar absolutamente nada.
Com uma coragem que ainda me deixava um pouco atordoado, Chris
preparava um café para nós na cozinha — depois de alegar que chá não seria
suficiente para acalmá-la —, enquanto eu a observava da porta, ambos em
silêncio. O único som entre nós eram os do cotidiano: a água borbulhando
enquanto era fervida no fogo, uma colher tilintando dentro do potinho de vidro
do açúcar, o líquido sendo servido e leves suspiros, que ela provavelmente
acreditava serem inaudíveis, mas que meu coração simplesmente conseguia
escutar. Eu a conhecia como a palma da minha mão e sabia que estava
destroçada por dentro, tanto que no exato momento em que foi me servir a
bebida, deixou a xícara cair no chão, espatifando-se e espalhando o líquido negro
por todo o lado.
— Merda! — ela exclamou, dando um pulo para trás, para não se
queimar. Estava prestes a me aproximar, mas Chris simplesmente estendeu a
mão, impedindo-me. Então, ela foi até a área de serviço e pegou um pano de
chão pendurado no varal. Colocou-o debaixo da torneira do tanque,
umedecendo-o, e levou-o até o local onde o pequeno desastre havia acontecido.
No entanto, assim que começou a esfregar, foi que tudo veio à tona.
Eu sabia que ela estava se segurando em uma linha muito tênue, andando
em uma corda bamba, a um passo de despencar de um profundo abismo
emocional. Quando as lágrimas vieram, portanto, foi em forma de um choro
copioso, cheio de mágoas e dor. E eu era o causador daquilo.
Com toda a minha gentileza, tirei o pano da mão dela, sem receber
nenhum tipo de resistência, e comecei a limpar a pequena poça de café e a catar
os cacos de vidro. Enquanto eu fazia isso, ela se afastou um pouco da área onde
eu estava limpando e sentou-se no chão, com as costas apoiadas na parede.
Encolhendo-se, flexionou os joelhos e abraçou-os, escondendo a cabeça nas
pernas, provavelmente esperando abafar os sons de seu choro. Ela sempre foi
valente, e o fato de estar despencando ali na minha frente provava isso ainda
mais.
Terminei minha tarefa, jogando o pano sujo dentro do tanque, e os cacos,
na lixeira. Peguei uma vassoura e varri os remanescentes, recolhendo-os com
uma pá e também jogando-os fora. Em seguida, sentei-me no chão, ao lado de
Christine. Não sabia exatamente o que fazer, porque não fazia ideia se tinha o
direito de confortá-la, sendo eu o causador de tanto sofrimento. Apesar disso, ela
mesma tomou a iniciativa e deitou a cabeça em meu ombro, como se implorasse
por consolo.
Fiquei imóvel por alguns segundos, chegando a encostar minha cabeça
nos ladrilhos da parede e a voltar meus olhos para o teto, exercendo todo o meu
controle para não tomar uma atitude precipitada e invadir algum espaço. Mas —
Deus! — ela precisava de mim. E eu precisava dela mais ainda.
Passando o braço ao redor de seu ombro, puxei-a, encostando-a em meu
peito. Mantendo-a bem perto e abraçando-a bem forte, sentia seus ombros
convulsionarem com seu choro e me via cada vez mais impotente. Palavras me
faltavam, qualquer reação me parecia exagerada ou sem sentido... então, tudo o
que me restava era apenas segurá-la daquela forma, como se pudesse transferir
suas mágoas para mim. Não que já não estivesse sofrendo, mas não me
importava em levar a porrada em dobro só para livrá-la de todas aquelas dores.
Ela tinha matado um homem por mim. Guardara segredo em relação ao
meu retorno, recebera-me em sua casa todo ferido e me ajudara, estava mentindo
e enganando outras pessoas, tudo por minha causa. Isso, sem contar os anos de
amizade sincera e valiosa que me dedicou, sem pedir nada em troca. Aquela
mulher me salvara mais vezes do que eu poderia contar, e o que eu tinha feito
por ela? Minhas lembranças faziam com que eu me sentisse um baita filho da
puta, porque não conseguia me recordar de nenhum momento onde tive alguma
relevância em sua vida além de bancar o bobo da corte, com piadinhas bem
humoradas para fazê-la sorrir.
Claro que era uma visão errada, porque fui um bom amigo, mas, naquele
momento, levando em consideração o mal que nos rondava, percebia que nada
de bom que pudesse ter feito compensaria o medo e as preocupações dos últimos
três anos.
Perdi a noção do tempo, mas só saímos daquela posição depois de pelo
menos uma hora e meia. Christine foi quem levantou-se primeiro, alegando que
precisava passar uma água no rosto. Nem sequer olhou para mim, e eu
compreendia que não queria que eu visse o estado em que encontrava, com olhos
inchados e vermelhos, vestida em toda a sua fragilidade.
Levantei-me logo em seguida, decidido a aguardá-la na sala. Não sabia
se ainda queria que eu ficasse ou se preferia que a deixasse em paz, mas seria ela
a me dizer; por isso, só me restava esperar.
Quando retornou, sem a maquiagem de antes e o vestido de festa, com os
cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo frouxo, senti meu coração se
apertar. A versão mais simples de Christine era a que eu sempre preferia. Estava
acostumado a acompanhá-la em festas, boates e eventos dos mais variados tipos,
onde ela se arrumava como uma princesa, merecendo os olhares desejosos dos
homens ao redor — o que sempre acontecia —, mas era quando chegávamos em
casa, e eu a via de cara lavada, com roupas do dia a dia, que decidia que ela era a
garota mais bonita em quem eu tinha o prazer de pôr os olhos.
— Pensei que não te encontraria mais aqui quando voltasse, que teria
fugido como fez nas últimas vezes — ela falou com um leve tom de desdém.
— Quer que eu vá embora? — perguntei com toda a humildade.
Ela não respondeu imediatamente. Imaginava que havia uma batalha
entre sua mente e seu coração, tornando-a incapaz de escolher algum lado e tirar
partido.
— Quero que fique. Estou com medo... — A última frase saiu em um
sussurro estrangulado, como se fosse vergonhoso confessar aquele tipo de
sentimento.
— Você está segura aqui, mas se eu pudesse opinar em alguma coisa,
pediria que fosse passar um tempo na minha casa...
— Na mansão dos Montenegro? — ela indagou em um misto de surpresa
e indignação.
— Sim. Temos segurança no condomínio o dia inteiro, diferente daqui do
seu prédio, que não tem um porteiro noturno.
Christine revirou os olhos.
— Eu moro aqui há séculos e nunca precisei me preocupar com isso...
— Agora precisa — afirmei com convicção, embora fosse doloroso
assumir que eu era o causador daquele problema. — Eu nunca quis te colocar
nessa situação, Chris, mas infelizmente as coisas correram para esse lado. Vou
me sentir culpado por isso até o dia em que morrer, mas não vou te deixar sem
proteção. Se chegar o momento em que for necessário te tirar daqui e te levar
para um lugar mais seguro, vou fazê-lo, mesmo que tenha que usar a força.
Ela não disse nada em resposta, mas com certeza entendeu o recado,
principalmente porque se jogou no sofá novamente, enquanto eu ainda me
mantinha de pé, parecendo muito contrariada.
— Se quiser trocar de roupa para ficar mais à vontade, ainda tenho
algumas coisas suas no meu armário — ela simplesmente falou, em uma clara
tentativa de mudar de assunto.
— Você guardou roupas minhas esse tempo todo? — indaguei, mas não
estava surpreso, já que no dia em que cheguei ali, ferido, ela me vestiu com uma
camiseta que me pertencia.
Novamente Christine ficou calada, sem saber o que dizer. Depois de um
tempo em silêncio, respirou fundo e respondeu, olhando bem fundo nos meus
olhos:
— Eu sempre tive esperança. Talvez possa parecer muito idiota da minha
parte, mas sempre acreditei que estava vivo e que um dia iria voltar... para mim
— ela abaixou o tom de voz para falar as últimas palavras, constrangida, e
também desviou o olhar para o chão, para não me encarar.
Porra, ela ia acabar comigo falando aquele tipo de coisa.
— Eu estou aqui, não estou? Você estava certa o tempo todo.
— Não exatamente. Você não é o mesmo de antes. Então, não sei até que
ponto entreguei minhas esperanças a uma causa perdida.
Outro soco no estômago. Sempre soube que Christine tinha um incrível
gancho de direita com palavras, mas ela nunca precisara usá-lo contra mim.
— Vou procurar alguma roupa, então — disse, na intenção de conseguir
alguns minutos sozinho. Seria bom vestir algo limpo e mais confortável, mas não
era a verdadeira intenção daquele afastamento.
Fui até o quarto dela e procurei na gaveta onde ela sempre guardava as
minhas coisas. Aquela era mais uma prova da intimidade que tínhamos, pois
sempre que saíamos juntos e bebíamos além da conta, eu ficava por ali mesmo,
em seu quarto de hóspedes, por isso, guardava algumas mudas de roupa em seu
armário para eventualidades, além de uma escova de dentes e cuecas.
Surpreendia-me ver que ela não tinha se desfeito de nada.
Encontrei um short de elástico e uma blusa de malha preta com gola V,
que ainda serviam em mim, apesar da mudança de corpo, e joguei a calça
rasgada no lixo, junto com a camisa, que estava imunda. Provavelmente uma boa
lavanderia conseguiria tirar aquelas manchas, mas quanto mais cedo me livrasse
daquilo, melhor seria.
Voltei para a sala alguns minutos depois, e meu peito chegou a doer com
a sensação de que tudo parecia demais com o passado. Eu e Chris no
apartamento dela, ambos vestidos confortavelmente, em uma noite após uma
festa. Mas nada era como antes. Éramos como estranhos agora.
Peguei-a quase apagada, com as pernas dobradas e encolhidas sobre o
estofado, com a cabeça apoiada no braço do sofá, com o gato preto a tiracolo. A
cena era de derreter o coração. Ela estava exausta, mas assim que ouviu o
mínimo barulho da minha aproximação, abriu os olhos de supetão, levemente
assustada, e virou-se para mim, colocando-se sentada com a postura ereta
imediatamente. Como se não confiasse o suficiente em mim para se sentir segura
em dormir estando eu por perto.
Puta que pariu, como isso era difícil!
— Já disse e repito. Se quiser que eu vá embora para que possa dormir
em paz, não tem problema — afirmei, esperando lhe dar uma escolha.
— Você quer ir embora?
— Não importa o que eu quero...
— Claro que importa! — ela me interrompeu, com a voz alterada, um
claro sinal de seu cansaço. Não apenas o físico, mas o emocional,
principalmente. Eu conhecia muito bem o peso de uma morte causada por
minhas próprias mãos. Não tinha tirado muitas vidas em minha existência,
apenas as pessoas que precisei eliminar para conquistar aquela estranha
liberdade que veio com minha fuga, além dos homens daquela mesma noite, mas
cada gota de sangue em nossas mãos era um pedaço perdido da nossa alma. —
Aliás, as suas vontades são as únicas que parecem importar, não é mesmo? —
Ela se levantou, vindo para cima de mim cheia de fúria, fazendo-me recordar da
cena em meu quarto, horas antes da festa, onde ela descontou, finalmente, a
raiva que sentia.
Era bom que Christine se permitisse ter esses rompantes. Precisava
desabafar e descontar em mim o que a estava fazendo sofrer.
— Você foi embora e voltou sem explicações; sabe exatamente o que
aconteceu comigo naquele dia no Alto e a forma miraculosa como acordei na
minha própria cama, mas escolhe não me contar a verdade... Surge na festa de
hoje, luta como se estivesse em um filme do Jackie Chan, atira com uma mira
precisa e um dos caras ainda te chamou de 48. Mas, ainda assim, decide que é
melhor manter a porra da boca fechada. — Ela foi alterando ainda mais a voz
conforme ia falando e falando. Odiava o fato de tê-la deixado tão irritada, mas
mantive-me calado enquanto ela prosseguiu: — Até onde posso ver, o controle
de tudo está em suas mãos, não está? Assim como a minha vida, porque consigo
imaginar um monte de imagens de futuro, e nenhuma delas me parece muito
boa. Em quase todas ou eu estou morta ou muito fodida, agindo como a donzela
que precisa ser salva. Só que você não é uma merda de um cavaleiro andante,
Arthur. Minha intuição me diz que está bem mais para o vilão dessa história.
O que me restava fazer além de ouvir tudo em silêncio? Abaixei a
cabeça, não conseguindo conter meu constrangimento.
— O seu silêncio é o que me deixa mais irritada. — Christine levou uma
das mãos à cabeça e outra à cintura, virando-se de costas para mim, incapaz de
se manter parada. Estava à flor da pele, e eu continuava sem saber o que fazer.
Permanecemos calados até que ela balançou a cabeça em negativa. — Não. Tem
coisa pior. O que mais me deixa puta da vida é saber que mesmo assim eu não
consigo te odiar. Não consigo olhar para você e sentir raiva. Seria muito mais
fácil.
— Você nunca foi de escolher o caminho mais fácil em nada — foi a
primeira coisa que consegui dizer; a frase mais estúpida que eu poderia escolher,
pois Christine não estava propensa a aceitar qualquer tipo de brincadeira e nem
disposta a amenizar o clima.
— Não ouse fazer isso, Arthur! — Ela apontou o dedo indicador para
mim. — Não ouse tentar me amansar só porque baixei a guarda. Só porque deve
estar escrito no meu rosto o quanto eu preciso que me abrace e que me faça
sentir segura neste momento, não quer dizer que estou te dando liberdade para
isso.
Era difícil compreendê-la, principalmente porque tudo o que eu queria
era exatamente puxá-la para mim e mantê-la nos meus braços até que finalmente
adormecesse. Queria que descansasse, que tentasse esquecer aquele pesadelo,
mas sentia-me em um profundo dilema. Então, agindo como se fosse um
domador tentando acalmar uma fera, dei um passo à frente, com o braço
estendido. Exatamente como eu esperava, ela recuou. Merda, aquilo era uma
droga de um jogo, e eu era péssimo nesse tipo de coisa. Sempre fui.
— Christine, o que você quer de mim? Estou aqui, mas posso ir embora.
Tudo o que você tem que fazer é pedir — falei em um tom de voz baixo, sereno,
ousando dar mais um passo à frente.
— Eu não sei o que eu quero. Não sei o que eu deveria querer. Ter você
aqui parece a coisa certa, mas ao mesmo tempo... Estou assustada. Sei que você
representa perigo...
— Não vou deixar que nada te aconteça. — Dei mais um passo. —
Estive tentando te proteger até agora, me mantendo afastado, mas acho que isso
não deu muito resultado.
— Claro que não. Seja quem for que está atrás de você já sabe onde eu
trabalho, provavelmente também sabe onde eu moro.
— Por isso que eu gostaria muito de te levar comigo...
— Não posso ir. Eu tenho um gato... — Se eu tivesse um único resquício
de bom humor no meu corpo, teria rido pela forma como ela falou.
— Você poderia levar o seu gato — respondi com muita paciência,
novamente tentando me aproximar. Ela recuou de novo, mas felizmente eu tinha
conseguido avançar e estávamos alguns centímetros mais perto.
— Além do mais, o que sua mãe iria dizer ao me ver indo morar lá? Com
certeza acharia que sou uma aproveitadora.
— Christine, você está procurando desculpas para dizer não. Só que
nenhuma delas faz sentido.
— Não importa. Eu só não quero que minha vida vire de pernas para o
ar... — Ela deu uma risadinha sarcástica. — Tarde demais para isso, não é? Tudo
já mudou. Eu matei um homem esta noite.
— Não fique repetindo isso. Você não é uma assassina.
— Não, não sou. Ou, ao menos, é nisso que preciso acreditar. Mas, ainda
assim, não quero ir com você, pois sei que vai tentar me colocar em uma
redoma, e eu não vou suportar.
— Eu não faria isso.
— Mesmo assim, não quero ir. E ponto final.
Balancei a cabeça; não porque concordasse, mas porque era direito dela
recusar minha sugestão. Porém, exatamente como eu dissera antes, se as coisas
ficassem complicadas demais, eu teria que tomar atitudes mais drásticas. Só
preferi não repetir, não naquele momento, porque ela já estava assustada demais.
Era hora de tentar consertar as coisas e de colocá-la para dormir.
Sendo assim, tudo o que precisei fazer foi esticar um braço e segurar sua
mão, puxando-a para mim. Por um milagre, Christine não ofereceu resistência.
Pelo contrário, ela simplesmente se aconchegou em meus braços, enquanto eu a
envolvia, tentando transmitir um pouco de segurança, embora eu fosse a ameaça
ali dentro. Nosso abraço durou poucos minutos, porque um miado nos
interrompeu, e eu senti algo roçar nas minhas pernas.
Foi a deixa para Christine se afastar de mim.
— Kibe é muito ciumento... e ele não está acostumado a... Bem... Eu não
costumo trazer homens aqui para casa — ela revelou, muito envergonhada.
— O nome do seu gato é Kibe? — indaguei em um tom que quase
poderia parecer brincalhão, não fosse a tensão do momento.
— É, sim. Ele me faz companhia e esteve comigo nos dias mais difíceis.
— Christine inclinou-se e pegou o bichinho no colo, beijando-o no alto da
cabecinha preta. Ele ronronou, mas logo começou a espernear para ser colocado
de volta no chão. — Apesar de ciumento, é muito independente. Não é muito fã
de colo. Gosta de estar com os pés bem no chão.
— Assim como a dona — novamente brinquei, esperando que aquele
leve sorriso que ela tinha no rosto fosse um indicativo de que começava a relaxar
um pouco.
No exato momento em que falei, ela ergueu os olhos na minha direção,
bem abertos, embora não arregalados. A expressão era de surpresa, e eu reavaliei
minha frase para saber se havia alguma conotação diferente da que eu esperava.
Ainda que não tenha encontrado nada, preferi explicar:
— Você sempre reclamava quando eu decidia te carregar no colo.
Esperneava exatamente igual ao Kibe. Dizia que tinha medo que eu te
derrubasse no chão.
Seu sorriso tornou-se um pouco mais amplo. Aparentemente, falar do
passado fazia com que se mostrasse menos nervosa.
— O que você queria? Costumava fazer esse tipo de coisa em momentos
nada apropriados: quando estava bêbado, quando queria me jogar na piscina ou
me provocar, porque sabia que eu não gostava de ser carregada. Não tenho
muitas lembranças boas dessas ocasiões. — Sua voz adquirira um tom um pouco
mais leve, o que me fez quase suspirar aliviado. Aquela era a Christine que eu
amava e que queria que prevalecesse, embora soubesse que não seria nada fácil,
levando em consideração o carrossel de emoções no qual ela estava girando.
— Você sabe que eu jamais te deixaria cair, não sabe? — Queria que ela
compreendesse o duplo sentido da minha frase. Queria que soubesse que não
importava o que tivesse que fazer, ela sempre seria a minha prioridade, sempre a
protegeria.
— Sempre tive minhas dúvidas. Agora, com esse tamanho todo, acho que
posso confiar um pouco mais — ela falou, apontando para o meu corpo. Depois
disso, suspirou cansada e acrescentou: — Meu Deus, Pan, como eu senti a sua
falta! Você não faz ideia.
Novamente puxei-a para meus braços e a apertei com força.
— Eu também. — O apelido com o qual ela sempre me chamou ecoou
nos meus ouvidos cheio de ternura, e eu poderia ter chorado por ouvi-lo, se não
tivesse sido treinado para conseguir reter minhas emoções. Queria retribuir,
chamando-a de Wendy em resposta, como sempre fiz, mas não consegui. — Eu
também, Chris... Todos os dias... — repeti em um sussurro doloroso.
E repetiria quantas vezes fosse necessário.
Com ela ainda dentro do meu abraço, guiei-a ao sofá, onde nos sentamos
em silêncio. Havia muito a dizer, mas nada que coubesse naquele momento. Ela
precisava descansar, e tudo o que eu queria era que dormisse no meu colo, para
poder senti-la relaxada e serena. Odiava aquela palidez, as olheiras e a expressão
de medo que via em seu rosto, mas mais ainda o fato de ter sido eu a provocá-
las. Odiava vê-la chorar ou sentir raiva quando tudo o que merecia era uma vida
boa e tranquila, ao lado de alguém que a amasse e que não a magoasse. Se eu
fosse um cara decente, simplesmente me entregaria de volta para a MR, nem que
fosse para protegê-la. Mas ela já estava na mira, porque eles não sabiam o
quanto de informação fora compartilhada. Christine sempre estaria em perigo
enquanto aquela maldita corporação existisse.
Ela precisou apenas de uma meia hora para cair em um sono profundo.
Senti sua respiração tornar-se mais pesada e seu corpo praticamente despencar
sobre o meu, com a cabeça pendendo em meu ombro, sentada sobre minhas
pernas. Não deveria ser a posição mais confortável do mundo, e por mais que
para mim fosse como o céu tê-la assim tão perto e tão entregue, eu precisava
colocá-la na cama para que pudesse ter uma boa noite de sono.
Ajeitei-a nos braços, erguendo-a e comecei a andar, carregando-a com
cuidado e lentamente até o quarto. Apesar de toda a minha cautela, ela emitiu
alguns sons e abriu os olhos. Mas era apenas uma questão de segundos para que
apagasse novamente, a julgar por sua expressão sonolenta.
— Eu sabia que você ia fazer isso assim que eu me distraísse — ela
brincou, com a voz embolada do sono.
— Você disse que agora confiava em mim para a missão...
— Eu sempre confiei em você, Arthur — ela falou, com os olhos
novamente fechados.
— E eu só te decepcionei.
— Não importa o que aconteceu. Ainda confio em você. Com todo o
meu coração.
Ela não deveria confiar. Meu Deus, ela não deveria ser tão leal, porque eu
não merecia. Não depois de tanto fazê-la sofrer.
— Deixa eu te fazer uma pergunta antes que apague de vez? — disse,
ainda caminhando com ela no colo.
— Hum-hum — ela murmurou sonolenta.
— Você tem outra chave reserva além da que perdeu? — E que estava
comigo, mas eu não a tinha ali, em mãos, então, não poderia devolvê-la naquela
noite.
— Tenho. Mais de uma. Dentro da primeira gaveta do criado-mudo.
Anotei mentalmente a informação, pois precisaria usá-la para trancar a
porta ao sair. Poderia jogá-la pela fresta para que ela a pegasse no chão.
Quando a coloquei na cama, estava novamente apagada. Tanto que da
forma como a deixei sobre o colchão, ela ficou. Peguei uma coberta dentro do
armário e joguei por cima de seu corpo, parando para observá-la por alguns
minutos antes de sair. Eu tinha que ir embora, agora que Christine estava
dormindo. Por mais que a ideia de velar seu sono a noite inteira fosse tentadora,
eu precisava fazer algumas coisas e não poderia ser da casa dela.
Apesar disso, concedi a mim mesmo um tempo para admirá-la e mais
uma vez tentar entender o que eu tinha feito de bom para merecê-la em minha
vida. Como pude ser tão idiota e não ter percebido antes o quanto a amava?
Deveria ter colocado uma aliança em seu dedo quando as coisas ainda eram
simples.
Será que ainda havia uma chance de ser feliz com ela? Se sim, teríamos
um longo caminho a percorrer.

***

ARTHUR

Passava um pouco das cinco da manhã quando cheguei em casa, depois


de deixar um bilhete para Christine, trancar a porta, jogar a chave pela fresta e de
me livrar da maldita Glock que peguei na casa dos Queiroga, jogando-a na
primeira vala que encontrei pelo meio do caminho. Talvez não fosse a melhor
forma de limpar uma evidência, mas eu sabia que viriam atrás de mim o quanto
antes, e eu não poderia estar com aquele revólver.
Embora cansado, estressado e precisando dormir um pouco, sabia que
ainda tinha muitas coisas a fazer. Para a maioria delas eu precisaria da ajuda de
Mário, mas podia apostar um rim que ele não acordaria antes das nove. Sendo
assim, tomar um banho era o meu primeiro objetivo.
Segui para o meu quarto sem acender as luzes, já que me sentia tão
íntimo da escuridão. Ela estava enraizada no meu peito, e isso se tornava cada
vez mais uma certeza. Aquele dia havia provado mais e mais esse fato. O mal
não deixaria de me perseguir, assim como não deixaria de perseguir Christine.
Sabendo disso, afastar-me dela não era mais uma opção. Precisava ficar por
perto e protegê-la. O que seria ainda mais doloroso.
Mas não era o momento de pensar nisso. Precisava me deitar e descansar
um pouco, até que fosse a hora de ligar para Mário e começar a investigar o que
tinha acontecido na festa de ontem.
Cheguei ao meu quarto e estranhei o fato de ouvir alguns barulhos. Havia
alguém lá dentro.
Coloquei-me em alerta, pronto para me defender, caso fosse necessário,
mas temendo ter que tomar uma atitude que eu não queria dentro da minha
própria casa, com minha família dormindo nos quartos ao lado. Estava cansado
de manchar tapetes de pessoas inocentes de sangue.
Abri a porta, que estava entreaberta, tentando fazer o mínimo de barulho,
e me deparei com duas formas deitadas sobre a minha cama. Não eram capangas
de tocaia, mas um casal fazendo sexo.
Acendi a luz e recebi um gritinho feminino como resposta, além do som
de farfalhar de lençóis. A moça, que se encontrava montada sobre o homem, era
desconhecida. Uma loira bonita, no melhor tipo coelhinha da Playboy,
bronzeada, olhos azuis — que poderiam muito bem ser lentes de contato pelo
tom incomum — e seios avantajados. Ela tinha aquele tipo de beleza bem óbvia,
que eu costumava apreciar e muito antes de tudo acontecer. Era o tipo de garota
que eu certamente teria levado para cama depois de uma festa ou uma balada.
O homem... bem, não era nenhuma novidade. J.J. estava debaixo da
moça, suado e vermelho, assim como ela, mas sem um pingo de
constrangimento no rosto.
— Cara, foi mal... não sabia que você ia voltar hoje para casa... — foi o
que ele disse, enquanto tirava a mulher de cima de seu corpo sem nenhuma
gentileza, praticamente empurrando-a. Sorte que a cama era realmente grande ou
ela teria se esborrachado no chão.
— É o meu quarto. Até onde eu sei, você também tem um.
— Mas não é nem de longe confortável como esse aqui — J.J. falou, com
um sorriso cheio de desdém, levantando-se da cama e cobrindo seu pau com o
meu lençol. Meu. — Enquanto você esteve morto, eu tentei fazer com que nossa
mãe me transferisse para cá, mas ela guardou esse lugar como a porra de um
santuário, esperando que o filhinho preferido voltasse. — Embriagado, com
certeza iria tentar me provocar, mas eu estava disposto a não me deixar levar por
isso. Com uma risadinha, ele se voltou para a garota: — Ah, Dani, esse aqui é o
meu irmão que ressuscitou. Príncipe Arthur. Ou melhor, agora que nosso pai
morreu... Rei Arthur — gargalhou. — Não é que combina?
Ninguém falou nada. Nem a moça, que tentava se esconder com o
edredom, nem eu, que estava achando a cena totalmente patética.
— Olha, maninho, a Dani é uma delícia. Se quiser continuar o que eu
comecei, ela vai adorar. Você sempre foi muito mais bonito do que eu, e agora
que está todo bombadão... a mulherada gosta desse tipo de coisa...
— J.J.! — a garota exclamou indignada, e ele apenas gargalhou ainda
mais.
— Ah, docinho, não se faça de inocente. Meu irmão aqui tem uma baita
fama de pegador. A mulherada o adora, eu sempre peguei os restos. Tá na hora
de ele fazer o mesmo.
— Júnior, você está passando dos limites. Acho melhor ir para o seu
quarto com a garota... Vou fingir que nada aconteceu — falei bem baixo, com o
máximo de calma que consegui expressar, chamando-o pelo nome que ele odiava
de propósito.
— Que meu quarto que nada! Ela já pode é ir para casa. Já deu essa
boceta o suficiente por hoje, deve estar toda assada.
Imediatamente olhei para a cara da tal de Dani e percebi a expressão
magoada em seu rosto. Por mais babaca que eu pudesse ter sido naquela vida,
jamais havia tratado uma garota com tanta falta de respeito.
Com o máximo de tranquilidade, saí reunindo as roupas femininas que
fui encontrando pelo caminho e as entreguei à moça. Quando me aproximei,
percebi que havia lágrimas em seus olhos.
— Acho que você deveria pedir desculpas a ela — disse, virando-me
para o meu irmão. Não queria bancar o cavaleiro andante, mas a garota
realmente estava magoada.
— Não precisa... — ela sussurrou um pouco assustada, temendo o que
J.J. pudesse fazer em seu estado embriagado.
— O que não precisa é você se submeter a isso. Tem um monte de caras
aí fora que te tratariam muito melhor.
— Ah, falou o bom samaritano. Vai tomar no cu, Arthur, você sempre foi
profissional em trocar de mulheres...
— Mas nunca tratei nenhuma assim! — vociferei, e a garota encolheu-se
sobre a cama, enquanto se contorcia para vestir suas roupas com um mínimo de
dignidade.
— Claro que tratou. A melhor de todas, aliás. Acha que não sei que a
Christine sempre foi apaixonada por você? E ainda trepou com ela, sabendo
disso.
Eu não fazia ideia de como ele sabia da noite em que eu e Chris fizemos
sexo, mas ele dormia no quarto ao lado, então, provavelmente a explicação
estava ali. Não tive coragem de negar, porque ele estava certo.
— Sem contar o quanto magoou nossa mãe e Cléo, desaparecendo que
nem um doido e reaparecendo para foder com a minha vida — ele explodiu.
Continuei aguentando calado, principalmente por causa da terceira
pessoa presente, mas ela não demorou para terminar de se vestir e levantou-se,
colocando-se de frente para J.J., para despedir-se. Na hora em que ela foi beijar-
lhe na boca, ele virou o rosto. Dani tocou os lábios em sua bochecha, muito
constrangida, e depois olhou para mim.
Antes que ela pudesse cruzar a porta, eu a chamei.
— Ei... — Ela virou-se para mim. Pelo olhar assustado que me lançou,
imediatamente me arrependi de não ter explicado desde o início do que se
tratava, porque certamente pensou que eu iria fazer alguma proposta obcena. —
Eu só queria saber como você vai voltar para casa.
— Ah, eu pego um ônibus... Não tem problema... — ela falou ainda
envergonhada, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Ainda está escuro lá fora, as ruas estão vazias, pode ser perigoso.
Onde você mora?
— Na Cidade de Deus — ela baixou a cabeça para responder,
provavelmente envergonhada por morar em uma favela. Como se fosse algum
demérito...
Aproximei-me dela, pegando algumas notas de dinheiro no meu bolso e
entregando-lhe. Daquele ponto da Barra até a Cidade de Deus não deveria dar
muito mais de quarenta reais, mas deixei mais de cem com ela.
— Eu não sou uma prostituta — ela afirmou com veemência, muito
indignada.
— Claro que não é. Mas é perigoso uma garota bonita como você voltar
para casa sozinha a esta hora. Estou fazendo o que faria por uma amiga.
Ela ficou um pouco confusa, olhando de mim para J.J., sem saber o que
fazer. Percebendo que ela não iria pegar o dinheiro sem um pouco de incentivo,
coloquei-as dentro de sua mão, e ela finalmente aceitou. Na ponta dos pés, veio
até mim e também me beijou no rosto.
— Que bom saber que nessa família tem um cavalheiro. — Com isso, ela
saiu porta afora, deixando-me sozinho com meu irmão.
Logo que ela se foi, J.J. começou a gargalhar.
— Era por isso que a mulherada sempre ficava de quatro por você,
garanhão? Dinheiro sempre as deixa excitadas... Será por isso que a Chris gosta
tanto de você e nunca deu bola para mim? Será que se eu der uns presentes, ela...
Nem esperei que ele terminasse de falar e logo agarrei a gola da blusa
polo que ele tinha acabado de vestir por cima da cueca.
— Ih! Ficou putinho porque eu falei da princesa? Pois é, seu babaca, eu
morro de tesão nela, mas ela ficou de viuvinha de luto depois que você
desapareceu, e eu não consegui pegar... — Ele provavelmente iria falar mais
alguma merda, mas eu o acertei bem em cheio no maxilar. J.J. despencou no
chão como uma fruta podre, mas o sorriso não desapareceu de seu rosto.
Era exatamente isso que ele queria.
— Eu sabia que você tinha virado um animal! Dá para ver na sua cara
que tem um parafuso solto aí nessa cabeça. Quero ver se vai conseguir manter o
controle na empresa. Eu estava fazendo um bom trabalho até você aparecer, mas
agora o herdeiro voltou...
— Eu não quero tomar seu lugar na empresa. Posso trabalhar lá como seu
subordinado ou abrir um negócio para mim. Não tenho intenções de fazer disso
um drama familiar.
J.J. ficou calado, ainda com a mão no maxilar, mas o sorriso tinha
desaparecido. Ele se levantou, tentando manter alguma dignidade — apesar das
roupas que usava e do quão bêbado estava —, e se colocou diante de mim, bem
perto, como se estivéssemos em um campeonato de UFC. Ele era bem mais
baixo do que eu, então, a cena chegava a ser ridícula.
— Não se coloque no meu caminho, Arthur. Gosto de saber que está vivo
e bem, mas não vou perder as coisas que conquistei.
— É tudo seu, pode enfiar onde quiser... — respondi um pouco fora de
controle, mas ao menos palavras não eram socos.
Muito puto, ele finalmente saiu do meu quarto, depois de pegar o resto
das roupas pelo chão, e eu fiquei observando a porta, enquanto ela era batida
com um baita estrondo.
Fiquei parado no mesmo lugar por um tempo, pensando no caos que
estava a minha vida. Todos que eu amava me odiavam, era como se não
houvesse nenhum lugar ao qual eu pertencesse. Tomado pelo cansaço, arranquei
os lençóis da cama com o máximo de violência que consegui, para descontar a
raiva, e joguei-os no chão, lançando-me à cama com o colchão descoberto.
Precisava apenas dormir, afinal, o dia seguinte não seria nada fácil também.
Capítulo Dez
CHRISTINE

Eu já sabia que estava sozinha. Não precisava sequer tatear a cama ao


meu lado, às cegas para sentir que estava vazia. Não poderia dizer que era
frustrante, porque já imaginava que aconteceria. Certamente, o que tive de
Arthur na noite anterior era o máximo que ele poderia me dar — ou,
provavelmente, o máximo que ele poderia conceder a qualquer pessoa.
Apesar disso, alguns elementos que compunham a cena que encontrei ao
abrir os olhos eram bastante surpreendentes. Ele tinha ido embora, mas deixara
algo de si para mim. Uma bandeja de café da manhã sobre o criado mudo, com
um bilhete, cuja mensagem poderia facilmente ter me tirado o ar:

“Minha Wendy, poucas coisas são tão lindas quanto você dormindo.
Infelizmente, precisei te deixar para resolver algumas pendências. Por favor,
me mande mensagem dizendo se está bem. Segue o número do meu celular
novo logo abaixo.”

Merda! Eu não deveria permitir que meu coração se desmanchasse tão


facilmente diante de um simples bilhete, mas ao mesmo tempo era impossível
não sentir as lágrimas surgirem ao ler o apelido carinhoso pelo qual sempre nos
chamávamos. Era como uma prova de que o Arthur que eu conhecia e amava
ainda estava ali, em algum lugar.
A felicidade durou muito pouco. Levantar-me da cama foi quase
doloroso, porque as lembranças começaram a dançar pela minha mente, primeiro
em um ritmo vagaroso, letárgico, mas rapidamente começaram a girar de forma
frenética. Com as lembranças, imagens de todo o terror vivido começaram a
pipocar também, e a primeira coisa que me apavorou foi a ausência de notícias
de Maiara. Ela testemunhara o momento em que aqueles bandidos me pegaram,
e até agora não mandara uma mensagem sequer para saber se eu estava bem.
Isso só podia significar que tinha acontecido alguma coisa.
Pulando da cama subitamente, corri à sala, em busca da minha bolsa, mas
ela não estava lá. Lembrei que a confusão me fez perdê-la, o que não me
preocupou instantaneamente. Provavelmente isso iria me apavorar dali a
algumas horas, mas, naquele momento, meu foco era a minha amiga.
Levei a mão à cabeça, como se esse gesto pudesse, de alguma forma, me
fazer pensar com mais clareza e encontrar uma solução. Eu não sabia o celular
de Maiara de cor, muito menos o de Paulo. Era desesperador, principalmente
porque eu sentia que algo estava errado.
Lembrei, finalmente, que em minha caixa de e-mail havia várias mensagens
de Maiara, e na maioria delas eu encontraria sua assinatura com todos os seus
contatos.
Corri, portanto, para o notebook, ligando-o e esperando que inicializasse
com tamanha impaciência que não consegui parar de tamborilar os dedos na
mesa. Assim que o acessei, abri o navegador e digitei o endereço do meu
servidor de e-mails. Na pesquisa, busquei pelo nome de Maiara, encontrando
mais de cem ocorrências. Em uma delas, escolhida aleatoriamente, deparei-me
com seu número pessoal.
Arrancando o telefone sem fio da base, disquei o número que encontrei,
sentindo-me cada vez mais apavorada conforme demorava para atender. Tudo
bem que ainda era relativamente cedo, mas ela sempre madrugava, ainda mais
com a neném pequena. Quando ouvi sua voz chorosa, nem precisei de mais
informações para saber que realmente havia algo de errado.
— Chris! Meu Deus! Que bom que está bem! — Maiara afirmou,
parecendo um pouco aliviada, e eu poderia até supor que suas lágrimas eram
apenas de preocupação comigo, mas sabia que não era o caso.
— Mai, o que houve? Eu posso estar bem, mas você não está.
Ela hesitou, ficando em silêncio, deixando que apenas seus soluços
atravessassem a linha do telefone.
— Ah, Chris. É Paulo... ele levou um tiro ontem.
— Meu Deus, Mai! Onde ele está?
— Aqui na Urca. No meu hospital.
— Estou indo para aí. — Nem hesitei. Apenas desliguei o telefone, sem
esperar que ela respondesse.
Em tempo recorde entrei em um banho, vesti uma roupa qualquer e me
joguei no meu carro, aliviada por não ter voltado em casa depois do shopping, no
dia anterior, e tê-lo deixado lá, junto com as chaves, optando por partir para a
casa de Maiara de Uber.
Parti a toda velocidade para a Urca, contando cada minuto que ficava
parada em cada sinal. Ao menos era um domingo, e as ruas estavam
relativamente vazias. Aquele era o trajeto que fazia todos os dias para o trabalho,
portanto, conhecia-o de cor, o que facilitou um pouco, levando em consideração
o meu descontrole.
Assim que cheguei ao hospital, estacionei o carro e corri para encontrar
Maiara. Sendo médica, ela deveria estar acompanhando tudo muito de perto, o
que me deixava ainda mais preocupada.
Logo que a encontrei, corri para abraçá-la e fui correspondida com
entusiasmo.
— Mai, eu sinto muito. Como ele está?
— Se tivesse me dado tempo de falar alguma coisa, eu teria dito que não
precisaria vir para cá, porque ele já está fora de perigo.
Levei a mão ao peito, aliviada, embora ainda não estivesse totalmente
livre da preocupação.
— Chris, o que aconteceu ontem? Aqueles caras te levaram, e eu achei
que...
— Não, eu estou bem — afirmei, interrompendo-a, não deixando que
concluísse a frase, porque não queria ouvir as descrições das coisas horríveis que
tinha vivido. Já bastava o que guardava na memória, não precisava de mais
incentivos para lembrar. Em um gesto terno, coloquei a mão no ombro da minha
amiga, tentando tranquilizá-la. — Arthur me salvou...
Não sabia se isso era o certo a se dizer, afinal, como alguém poderia ser o
herói e o vilão de uma mesma história? Arthur tinha me salvado, mas toda a
confusão fora por culpa dele. Paulo estava em uma cama de hospital, ferido, eu
quase fui sequestrada e a casa de Edgar fora invadida. Apesar de tudo isso, o
segredo que ele guardava continuava fechado a sete chaves.
— Quanto a isso... — Maiara coçou a cabeça, parecendo um pouco
hesitante em relação ao que pretendia me falar. Olhando de um lado para o outro,
segurou meu braço, puxando-me para um canto, como se o assunto fosse
extremamente privado. — Chris, se antes eu falei que você não deveria confiar
nesse cara, agora tenho mais certeza ainda. Lembra daquele homem que
apareceu aqui no hospital e que está em coma? Acho que te falei dele outro dia,
não falei?
— Sim, lembro.
— Então... quando ele chegou, reparei em uma tatuagem estranha que
tem. Fiquei alguns dias tentando lembrar onde tinha visto uma parecida... E
ontem, enquanto esperava o Paulo ser operado, lembrei.
— Do quê?
Maiara novamente pegou minha mão.
— Vem comigo...
Sem nem me dar chance de responder qualquer coisa, ela começou a me
guiar pelos corredores do hospital, como se estivéssemos em um filme de
espionagem, perseguidas, observando tudo à nossa volta e disfarçando quando
alguém que conhecia passava ao nosso lado. Tentei perguntar alguma coisa, mas
em todas as oportunidades ela levava a mão aos lábios, pedindo silêncio.
Entramos no elevador e partimos para o quinto andar. Saltamos, e ela me
guiou até o quarto 507, onde abriu a porta sem qualquer cerimônia, entrando e
me convidando a fazer o mesmo.
Havia um homem deitado na cama. Cabelos castanhos, barba cerrada e
enorme, com uma compleição física muito similar à de Arthur. Voltei-me para
minha amiga, sem compreender, a princípio, o que ela queria me mostrar me
levando até ali.
— Este aqui é o nosso John Doe. — Ergui uma sobrancelha
questionadora. Eu sabia que esse era o nome que os americanos davam a pessoas
que surgiam em hospitais e outros lugares públicos sem documentos. Era como
se fosse o nosso “João Ninguém”, mas não entendia o porquê de um hospital no
Brasil escolher aquela alcunha. — Não me olhe assim, o povo daqui adora
americanizar as coisas. Bem, seja como for… esse cara aqui tem uma coisa que
muito me chamou a atenção…
Maiara não explicou nada, apenas afastou um pouco a camisola de
hospital do ombro do indivíduo, revelando a tatuagem que pintava a sua pele.
Eram dois números, duas casas decimais, formando um 34.
O reconhecimento foi imediato. Não que precisasse de muito esforço
para ligar uma coisa a outra. A caligrafia era a mesma, não parecendo nem um
pouco com a tatuagem de um profissional. Era uma marca, uma identificação,
como seria um código de barras para um produto no mercado. E era idêntica à de
Arthur.
— Demorei um tempo para chegar à conclusão de onde tinha visto uma
marca como essa antes, e foi então que me recordei daquele dia no seu
apartamento, quando eu cuidei dos ferimentos de Arthur. Ele tem uma parecida,
só que com outro número. — Maiara fez uma pausa, provavelmente para dar
tempo de eu absorver a situação. — Você sabe o que isso significa?
— Não. Ele ainda não me contou.
— Se é que vai contar um dia, não é? — ela falou como uma mãe falaria
com uma filha a quem precisava repreender. — Isso é muito estranho, Chris.
Está me parecendo uma coisa de seita ou… sei lá, um daqueles grupos
extremistas. Esse Arthur não é mais um cara legal. Não acha muita coincidência
ele estar naquela festa ontem e ter dado a treta que deu?
Claro que não era coincidência, e Maiara era esperta o suficiente para
identificar o xis da questão. Eu não poderia negar a verdade, porque tinha plena
certeza de que ela não iria acreditar em nada do que eu dissesse, mas também
não queria alimentar ainda mais suas certezas. Se soubesse que Paulo fora ferido
por causa de Arthur, ela o odiaria mais ainda. E eu ainda acreditava que ele não
merecia isso.
— Olha, sei que não vai adiantar muito esse conselho, porque eu te
conheço e conheço a sua lealdade. É admirável, e se você acha que Arthur a
merece, vou confiar em seus instintos. Mas, por favor, amiga, não fique
completamente cega. Não quero que da próxima vez seja você em uma cama de
hospital. Já me basta ver meu marido assim.
Senti os olhos arderem com a possibilidade da chegada de algumas
lágrimas. Refreei-as o máximo que consegui, mas uma, um pouco mais teimosa,
venceu-me na batalha e escapou. Maiara não deixou que passasse despercebida e
suspirou, penalizada.
— Ah, amiga! Não fica assim... Me desculpa por falar dessa forma... —
Enquanto falava, Maiara me puxava para seus braços e me apertava contra o
peito. Eu precisava desse abraço. Muito mais do que imaginava. Sentia-me
entorpecida pelos últimos acontecimentos, tendo a impressão de que minha vida
nunca mais voltaria ao normal. Isso me apavorava, mas eu estava tentando
segurar a onda como podia.
— Você está certa. — Afastei-a de mim. — Mas estou me cuidando.
— Não é o que parece. Ontem você quase foi sequestrada. Quem eram
aquelas pessoas?
Era exatamente essa pergunta que eu não queria responder, então, fiz a
coisa mais covarde que poderia fazer, mas que me parecia a única solução para
aquele momento — dei de ombros e mudei de assunto.
— Mai, posso tirar uma foto da tatuagem deste homem? Talvez Arthur
saiba quem ele é. Acho que poderia te ajudar a identificá-lo e buscar algum
familiar... — Era uma desculpa esfarrapada das mais vagabundas. Ela sabia
muito bem que minha intenção não era assim tão altruísta.
— Pode. Vou ficar na porta para que ninguém te pegue em flagrante.
— Tudo bem, mas vou precisar do seu celular...
— Ah, claro! — Maiara colocou a mão no bolso do jeans e pegou o
aparelho, entregando-o a mim, depois de iniciá-lo com a senha.
Assim que ela se dirigiu à porta, acionei a câmera e apontei-a para o cara,
tirando algumas fotos de ângulos diferentes. Algumas focadas na tatuagem,
outras mostrando seu rosto. Antes de chamar Maiara novamente, perdi alguns
minutos olhando para ele, pensando no que minha amiga tinha me dito. O que
aquela tatuagem poderia significar? A julgar pelos últimos acontecimentos, não
parecia ser nada de bom. Seria realmente alguma organização criminosa? Algo
ligado à máfia? Ou ao tráfico, que era muito mais comum aqui no Brasil? Deus,
eu não queria nem pensar, pois todas aquelas possibilidades me deixavam zonza.
Aproximei-me de Maiara, entregando-lhe o celular, e nós duas saímos do
quarto do homem em coma, fechando a porta, como se nunca tivéssemos estado
lá. Minha amiga imediatamente enviou as fotos para o meu Whatsapp, para que
fossem mostradas a Arthur. Contudo, eu sabia que a imagem dele não sairia da
minha cabeça. Se fosse preciso, poderia descrevê-lo perfeitamente, em detalhes.
Uma estranha sensação me provocava calafrios incômodos. Aquele homem não
me cheirava bem. Por mais que estivesse incapacitado e frágil, dava-me a
impressão de que poderia ser muito perigoso.
***

ARTHUR

Engoli dois analgésicos de uma vez só, sem a ajuda de um líquido, na


esperança de dar um jeito na minha dor de cabeça. Fazia muito tempo que uma
tão forte não aparecia, mas eu sabia que precisaria estar inteiro para aquele dia.
Tinha acabado de falar com Mário, e ele estaria me esperando dali a uma hora e
meia para começarmos a buscar informações sobre a invasão da casa dos
Queiroga na noite anterior. Mal sabia por onde começaríamos, mas tinha um
bom palpite de que juntos acabaríamos encontrando uma solução.
Não nos falávamos desde o incidente do Alto, e ele se mostrou um pouco
puto da vida pela mudança de planos, mas não demorou a demonstrar que
entendia minha atitude, porque conhecia a importância que Christine tinha para
mim. Além disso, resolvera as coisas com o galpão, devolvendo-o, embora o
dinheiro não tivesse sido ressarcido. Isso era o de menos. Grana eu tinha de
sobra.
Na tentativa de manter alguma atividade, corri para a sala de musculação
que mantínhamos em nossa casa e que eu não costumava usar com tanta
frequência antes de ir para a MR. Nunca fui um cara fitness, mas se pudesse
extrair algo positivo daquela experiência seria o gosto pela malhação. Tornara-se
uma forma de terapia, uma oportunidade de refletir, além de ter descoberto os
limites da minha força e até mesmo os da minha mente.
Corri um pouco na esteira, em uma velocidade bem considerável, para
manter meu condicionamento físico, e depois tirei algum tempo para puxar ferro
e fazer algumas flexões, além de exercícios de barra. Já treinava há pelo menos
uma hora quando percebi que não estava mais sozinho. Pelo espelho da sala
enxerguei minha mãe entrando e parando ao lado da porta, deixando-a fechada
para que o ar gelado não escapasse do ambiente climatizado. Ela ficou me
observando, e a princípio eu não me senti disposto a lhe dar muita atenção,
porque sabia exatamente qual assunto ela queria abordar, mas quando insistiu,
permanecendo por ali, mesmo sendo ignorada, decidi que era melhor cortar logo
o mal pela raiz.
— Sei que não veio aqui para ficar me olhando malhar, então, por que
não fala logo? — Tentei abrir meu melhor sorriso para que ela não tomasse
aquela pergunta como uma repreensão.
— Quem disse que não? Quando a gente faz um filho assim tão bonito,
temos que admirar nossa criação. Ainda mais um para o qual não pude olhar por
três anos. — Enquanto falava, ela ia entrando na sala, aproximando-se. Apesar
do sorriso que apresentava, havia uma tristeza muito evidente em seu rosto, que
me fez abaixar a cabeça, envergonhado. Por mais que a ausência não fosse
minha culpa, ela ainda não sabia a verdade, e eu sentia o tom acusatório em sua
fala. Assim que se colocou ao meu lado, ela suspirou e sentou-se no banco do
supino. O assunto deveria ser mesmo sério, porque havia resquícios de suor no
couro do assento, e ela nem sequer se preocupou em arruinar sua bela saia de
linho. — Podemos conversar, querido?
— Mudaria alguma coisa se eu dissesse que não? — respondi, pousando
o halter no chão e caminhando em direção a um aparelho ao lado, onde havia
deixado uma toalha de rosto e uma garrafa d’água.
— Você é quem sabe. Não posso te obrigar a falar comigo. — Ela deu de
ombros, como se não tivesse muita escolha.
Tomei um bom gole de água, como que para ajudar a encarar o que viria,
e sequei minha testa ensopada de suor.
— Vá em frente. Sou todo ouvidos.
Ela assentiu e abriu um sorriso desanimado, dando alguns tapinhas no
assento do outro banco, bem ao lado do dela, para que eu me sentasse. Não
queria tal proximidade, porque por mais que eu fosse um bom mentiroso, aquela
era a minha mãe. Ninguém no mundo me conhecia como ela, e eu suspeitava que
poderia extrair qualquer coisa da minha alma se tentasse lê-la com mais afinco.
— O que aconteceu ontem na casa dos Queiroga?
Não que me restasse qualquer dúvida, mas eu já imaginava que o assunto
seria aquele.
— Até onde eu sei, a casa foi invadida — optei por uma resposta curta,
econômica e óbvia.
Minha mãe revirou os olhos, insatisfeita.
— Isso eu sei. O que quero descobrir é o seu papel nisso tudo. Várias
testemunhas afirmam que você foi o herói da noite, mas não sei se a polícia vai
encarar da mesma forma. Pessoas foram mortas…
— Bandidos foram mortos — corrigi. — Se eu não tivesse feito alguma
coisa, eles iriam ferir mais convidados da festa.
Ela assentiu, balançando a cabeça, mas ainda não parecia muito
convencida do meu feito heroico.
— E Christine…
— Ela foi feita de refém. Não podia deixar que a machucassem. — Essa
era a resposta mais simples para mim, a única que fazia sentido.
— Claro que não. Mas você deu conta de cinco homens? O meu filho
nunca soube lutar e muito menos atirar…
Abaixei a cabeça novamente, como se estivesse muito interessado na
toalha que segurava em mãos. Meus dedos brincavam com os fiapos, em uma
tentativa de adiar a resposta ao máximo.
— Arthur, eu sou sua mãe — ela falou com um pouco mais de
autoridade. — Mereço saber o que aconteceu com você.
Finalmente ergui os olhos, encontrando os dela me observando com
atenção, como se eu fosse uma mercadoria nova e exótica, exposta em uma
galeria. Eu quase podia me ver refletido ali, naqueles lagos de água cristalina,
tão parecidos com os meus. Havia um pouco de desespero na forma como me
encarava, suplicando para que eu lhe desse qualquer coisa; qualquer migalha que
a fizesse compreender o que estava acontecendo com seu próprio filho.
— Eu tive sorte, acho. Não eram adversários muito competentes. — A
resposta chegou a doer em mim. Evasiva, cruel, fria. Mentirosa. Nem mesmo o
fato de ser treinado para contar inverdades em momentos como aquele me
preparava para ter que ferir os sentimentos da minha mãe. Ela não merecia isso.
Daquela vez foi ela quem desviou o olhar. Eu sabia exatamente por que
fizera isso, mas, ainda assim, quando se voltou para mim novamente, a lágrima
solitária que deslizava pelo seu rosto quase me derrubou. Estava me tornando
profissional em fazer as pessoas que amava sofrerem. Contudo, apesar de
destruído por dentro, não me movi, nem mesmo para confortá-la, apenas esperei
que dissesse mais alguma coisa, o que não demorou a acontecer.
Tomada por uma dignidade admirável, não ousando perder o orgulho
nem mesmo para seu primogênito, ela ergueu a cabeça, altiva, secou a própria
lágrima com elegância e continuou, abordando outro assunto que nem de longe
era um dos que eu gostaria de mencionar também.
— Seu irmão disse que você o agrediu ontem. Eu o vi hoje de manhã, na
hora do café, e ele está com um enorme hematoma no rosto.
— Claro que ele não explicou o motivo…
— Não, mas ainda tenho fé que você irá me explicar… — Sua expressão
era exatamente a de uma mãe irritada pela briga mais recente de seus dois filhos.
Quase sorri diante da normalidade daquela cena, da conversa, porque ela não
envolvia segredos nem perigo.
— Talvez seja melhor a senhora perguntar novamente para J.J.. A
explicação dele pode não ser a mais verdadeira, mas eu nunca fui o dedo duro
dos dois.
— Não, nunca. Você sempre foi um bom garoto, apesar de um pouco
irresponsável. O encrenqueiro era o J.J.. Fico triste em ver o quanto isso mudou.
— Soltou um suspiro, mas ao ver que não respondi nada, prosseguiu, pegando a
minha mão na dela. — Querido, sei que algo aconteceu com você. Não preciso
ser sua mãe para reparar as mudanças, que são mais do que visíveis para
qualquer um, mas acho que eu sou a pessoa no mundo que mais te conhece. Você
é parte de mim, viveu aqui dentro por tempo suficiente para que eu tenha o
direito de querer saber. — Ela levou a mão à barriga plana, mesmo quase
chegando aos sessenta.
Estava jogando baixo, mas eu também não andava sendo justo com ela,
andava? Então, eu também merecia sofrer um pouco.
— Você tem o direito de saber, mãe. Mais do que ninguém, mas eu
também tenho o direito de me negar a falar, não tenho? — Ela suspirou
resignada, derrotada, dando de ombros.
— Não posso obrigá-lo. Mas saiba que estou preocupada. Sei que algo
muito sério aconteceu com você, e, diferente da sua irmã, não consigo acreditar
na história de que quis escapar e se afastou. Sua conta bancária ficou intacta, não
houve registro de uso de cartões de crédito, compras no seu nome, aluguel de
casa nem de carro. Você sumiu, Arthur. Foi dado como morto. Não vai me fazer
acreditar em qualquer mentira, vai ter que se esforçar um pouco mais.
Muito magoada, ela levantou-se e começou a avançar em direção à porta
da sala, mas parando antes de sair e voltando-se novamente para mim.
— Vai ter que depor a respeito do que aconteceu na casa dos Queiroga.
Espero que tenha uma história mais convincente para contar à polícia.
Eu sempre poderia encontrar uma, mas mentir para a minha mãe mudava
tudo. Por mais profissional que fosse nessa arte, era algo que eu não queria
fazer, que não gostava, então, tudo se tornava ainda mais difícil.
Pouco tempo depois de ela ter saído, deixei a malhação de lado e fui
tomar um banho. Precisava ir à casa de Mário para começarmos nossa
investigação sobre o incidente da noite anterior, mas havia algo que eu queria
fazer primeiro. Algo que não deveria fazer, mas que me parecia imperativo.
Quando voltei do confinamento, julguei que seria impossível despertar
minhas emoções. Eu me sentia uma casca oca, vazia, como um caderno de folhas
brancas, sem qualquer anotação. Jurei que minha vida se resumiria a uma
vingança violenta e a entender o que tinha acontecido comigo; descobrir quem
foram as pessoas que me levaram e eliminá-las da pior forma possível. Não era
um plano simples, mas muito menos complicado do que a realidade que
encontrei. Proteger Christine entrou na lista de tarefas pelo simples motivo de
que agora ela também estava em perigo. Por minha causa. Teoricamente, isso
deveria ser apenas uma complicação solucionável, com a qual eu lidaria sem
maiores dificuldades. Porém, eu não contava com a forma como meus
sentimentos por ela iriam se colocar no caminho.
Em nenhum momento daqueles três anos ela saiu da minha cabeça. Em
meio aos pensamentos caóticos que era obrigado a ter e aos desejos de liberdade
que me consumiam dia após dia, ela surgia como uma promessa de momentos
melhores, incentivando-me a ser forte e não desistir. A cada noite, era o nome de
Christine que rolava em minha língua como uma oração; era a imagem dela que
se desenhava na minha mente, trazendo cores ao cinza dos meus pensamentos.
Era a voz dela que ecoava no silêncio da minha alma, permitindo que eu não me
deixasse abater. Tudo o que passei poderia ter me tornado um monstro, mas ela
me salvou. E agora estava me salvando novamente, porque era por ela que meu
coração pulsava, ao invés de ser transformado em uma pedra de gelo. Era por ela
que eu ainda me sentia um ser humano.
Exatamente por isso, precisava vê-la. Precisava saber se estava bem.
Usando a chave que ainda estava comigo, abri o portão de seu prédio,
entrei e ainda cumprimentei o porteiro, que lia um jornal sem prestar nenhuma
atenção ao que acontecia. Ele nem olhou na minha cara, não me perguntou quem
era, aonde iria. Minha vontade era agarrar a gola daquela camisa que ele usava e
obrigá-lo a ser menos negligente, porém, apenas peguei o elevador — que estava
parado no térreo — e subi.
Toquei a campainha e esperei. Por ser domingo, imaginei que estaria em
casa e me surpreendi ao não ser atendido. Tentei mais uma vez. Outra. E uma
quarta. Uma leve preocupação começou a fazer meu coração bater mais
acelerado. Provavelmente não era nada; estava um dia ensolarado lá fora, e
Christine adorava praia. Ou ela poderia ter ido caminhar. Ou fazer qualquer
coisa; sua ausência não significava que estava em perigo.
Apesar disso, só fiquei aliviado quando ouvi a porta do elevador se abrir
e ela surgir na minha frente, sã e salva. Intacta.
Assim que me viu de pé, diante de sua porta, parou no mesmo lugar,
como se tivesse congelado ali mesmo.
— Achei que ficaria um tempo sem te ver depois do que aconteceu
ontem — ela disse, enquanto caminhava em minha direção, com as chaves na
mão.
— Por quê? — Era uma pergunta bem imbecil, porque eu sabia
exatamente o motivo, contudo, queria que ela falasse e despejasse em mim suas
frustrações.
— Ah, não sei. Porque imaginei que agora você ia começar com aquele
papo de que não pode mais ficar perto de mim, para que eu não saia
machucada... Acho que ando vendo muitos seriados de super-heróis. — Sem
olhar para mim, ela avançou até a porta da casa e a destrancou. Deixando-a
aberta, entrou e seguiu pelo corredor, enquanto tirava a camisa pela cabeça.
Esse movimento me deixou um pouco desconcertado. Por mais que
estivesse com um top por baixo, senti meu estômago revirar, e as mãos chegaram
a doer de vontade de tocá-la. Chris era magrinha, e tinha emagrecido ainda mais
naqueles três anos, mas sempre a achei linda. Perfeita. Não havia curvas
acentuadas em seu corpo, os seios eram pequenos, sua cintura era mais reta, mas
o conjunto da obra a tornava a garota mais bonita, em minha opinião. Nem
mesmo as modelos com quem saí se comparavam a ela. Nada do que vivi com
essas mulheres se equivalia ao que sentia por ela.
Dei alguns passos, entrando na casa, e fiz a primeira coisa que tinha que
fazer, sozinho na sala de estar. Joguei rapidamente a cópia da chave que ainda
estava comigo na caixinha onde Chris costumava guardá-la, esperando que ela a
encontrasse em algum momento.
Quando retornou, já vestia uma roupa mais confortável, como aquela que
usou na noite anterior.
— Vai ficar para almoçar comigo? — era uma pergunta simples, uma que
já fora feita muitas outras vezes quando as coisas eram mais simples. Eu
costumava gostar muito da comida de Christine, então, sempre aparecia em seu
apartamento de surpresa, pouco antes do horário de almoço, só para que ela me
convidasse. Isso me fez sorrir.
— Hoje, não. Vim ver se você está bem.
Ela hesitou por um segundo, mas abriu os braços e abaixou a cabeça,
como se estivesse avaliando o próprio corpo. Deu uma voltinha, sem sair do
lugar, e novamente voltou-se para mim.
— Estou inteira, como pode ver. — Christine estava um pouco seca, o
que contrastava cem por cento com seu comportamento da noite anterior, quando
tivemos uma conversa muito civilizada e até demonstramos alguns de nossos
sentimentos. Claro que eu a entendia e não tencionava pressioná-la, embora o
fato de olhá-la de cima a baixo, depois da visão de boa parte de sua pele nua,
estivesse mexendo demais comigo.
— Está linda... Como sempre — soltei sem nem me dar conta do que
dizia, e ela pareceu surpresa com a afirmação tão súbita. Porém, o que eu tinha
acabado de falar era a mais pura verdade, e ela precisava saber. Não era uma
mulher com autoestima baixa, eu sabia muito bem disso, mas merecia receber
elogios, principalmente de um cara que nunca soube valorizá-la como merecia.
Antes, porém, que o clima ficasse ainda mais desconfortável, dei alguns passos
para trás e decidi que era melhor ir embora. — Preciso ir. Vai ficar bem?
— Preciso ficar — ela respondeu dando de ombros, e eu assenti.
Perdemos alguns minutos olhando um para o outro e, com um suspiro,
aproximei-me dela só para deixar um beijo em sua testa. Depois, saí, esforçando-
me ao máximo para não olhar para trás, e parti para a casa de Mário, que já
estava me esperando.
Extremamente inquieto, meu parceiro — se é que eu poderia chamá-lo
assim — abriu a porta falando pelos cotovelos.
— Você está atrasado. — Antes que pudesse responder qualquer coisa,
ele gesticulou, dando um tapa no ar, como se pedisse que eu deixasse sua
acusação de lado. — Mas foda-se. Tenho uma coisa para te contar que vai te
deixar felizão.
Fui entrando enquanto ele trancava a porta e se apressava em direção ao
escritório, puxando uma cadeira para mim e sentando-se de frente para o
computador.
— Descobri que um cara que joga comigo trabalha na empresa de
segurança que prestou serviço ontem para a festa do tal do Queiroga.
Enquanto ele digitava freneticamente, minha cabeça dava um nó com
tantas informações ao mesmo tempo.
— Peraí, cara. Como assim? De onde veio isso? Como descobriu?
Mário revirou os olhos.
— Pensei que a explicação estivesse implícita. Mas tudo bem... Vamos
por partes, como o Jack, o Estripador. — Franzi o cenho, diante da piadinha
irônica pessimamente colocada. — Cara, é por essas e outras que não sou muito
bom socializando.
— Deu para perceber... Mas, brincadeiras à parte, primeiro: você
descobriu a empresa que prestou serviços para a festa ontem, certo?
— Certo. Não foi muito difícil, já que parece ser a mesma que terceiriza
o pessoal da segurança que atua na sede da Import. — Balancei a cabeça,
incentivando-o a continuar. Mário, então, começou a digitar novamente e entrou
em uma espécie de intranet de uma empresa chamada Qualimaster Segurança.
— Você está acessando a comunicação interna da empresa? — perguntei,
levemente surpreso.
— Claro. Podem ser muito bons em proteger pessoas, mas o firewall
deles é uma merda. Ao menos contra mim, é claro. Só usei de uma troca de e-
mails e um arquivo infectado. — Mário continuou acessando páginas do website
até chegar em uma em particular. Tratava-se de uma espécie de cadastro interno
de funcionários, onde ficavam dispostas informações confidenciais a respeito da
equipe. — Pelo que eu entendi, eles têm uma central de telemarketing receptivo.
Bem, provavelmente não é assim que chamam, mas é só para você entender...
— Acelera, Mário... não preciso de detalhes.
— Tudo bem, ligeirinho. O que eu estava tentando dizer quando você me
interrompeu é que aparentemente eles prestam serviços tanto para empresas
grandes, quanto para pequenas e até para pessoas físicas. O preço é salgado, mas
pagando bem, que mal tem? — Eu estava prestes a repreendê-lo novamente
pelos comentários fora de hora, mas ele ergueu as mãos em rendição. — Já
entendi. Direto ao ponto, certo? Então... tudo o que você precisa fazer é ligar
para a Qualimaster e solicitar o serviço. As atendentes irão entrar neste banco de
dados e enviar um sinal para todos os profissionais, os que estiverem disponíveis
na data e responderem ao alerta primeiro, pegam o serviço. É como o Uber...
— Então esses funcionários não são contratados da empresa?
— Não. É uma terceirização da terceirização. Dá para entender? —
Assenti novamente e deixei que ele prosseguisse. Ainda não entendia onde
queria chegar, mas Mário era que era bastante detalhista. Suspeitava que nem
precisaria dar aquela volta toda para me explicar sua descoberta, mas adorava
contar vantagem de sua inteligência. — Daí eu também consegui acessar as
agendas, as fichas de cadastro e... — ele abriu um enorme sorriso — agora vem
a melhor parte. — Ainda voltado para a tela, abriu uma das fichas da equipe,
expandindo o retrato de um homem de cabeça raspada, usando óculos e muito
sério, exibindo uma postura militar. — Eu conheço esse cara.
— Conhece? É seu amigo?
— Ah, você sabe que eu não sou muito bom em matéria de amizade no
mundo real, mas no virtual... sou um cara popular. — Mário fez uma pausa,
tomou um gole de café, de uma caneca térmica que estava bem ao lado de seu
computador, e prosseguiu: — O rapaz aqui tem um sobrenome muito peculiar.
— Luís Alberto Anwar Bachelet — li em voz alta.
— Não poderia, então, ser coincidência que um dos caras com quem eu
jogo online use o nickname de AnwarBachelet.
— Legal, mas ainda não entendi o que isso pode nos ajudar.
— Calma, bonitão. Tudo será explicado. — Mário fez um movimento
com as mãos, como se fosse um ilusionista no auge de seu espetáculo. — O cara
não joga há muito tempo, mas eu e uma galera temos um pé atrás com ele,
porque descobrimos que é cheater. Ele trapaceia no jogo...
— Eu entendi, Mário — respondi com impaciência.
— Ah, que bom. É que tem muita gente que não entende linguagem de
jogo. Não que essa seja muito difícil, já que é só uma palavra americanizada,
com o mesmo significado e... — Percebendo meu cenho franzido e meu
descontentamento, Mário interrompeu a si mesmo e respirou fundo. Eu não fazia
ideia de como ele conseguia falar tanto e tão rápido. — Foi mal. Mas voltando...
sabendo desse defeitinho dele, acho que posso convencê-lo a nos ajudar a
conseguir imagens da câmera do dia da festa.
— Acha possível? — perguntei, sentindo-me animado pela primeira vez
desde que aquela reunião sem muito fundamento começara.
— Podemos tentar...
E foi o que fizemos.
Diante das ameaças de Mário — todas relacionadas a jogo, banimento e
conta perdida —, Luís pareceu muito solícito. Em poucas horas tínhamos as
imagens, que já estavam sendo analisadas pela empresa, em nossas mãos. Sem
dúvida a invasão da mansão dos Queiroga fora uma falha imensa da
Qualimaster, e isso iria custar sua reputação.
Nada era muito visível nem muito promissor, mas servira, ao menos, para
que pudéssemos ver como tudo aconteceu. Os homens da segurança foram
rendidos. Dois deles levaram tiros fatais, com silenciador, e um terceiro foi
obrigado a desativar o alarme da casa. Depois, também teve o mesmo fim. Os
três, então, ficaram jogados naquele mesmo local onde encontrei Christine em
perigo. Foi então que o plano se orquestrou.
Eles pareciam saber exatamente aonde ir, e quando chegaram ao local do
leilão, a primeira pessoa que procuraram foi Christine. Senti meu sangue ferver
ao vê-la sendo rendida, agarrada e levada contra vontade, com uma arma na
cabeça. Pessoas escapavam por todos os lados, nem se importando com a mulher
que era levada como refém, enquanto o casal de amigos dela tentava argumentar
e ajudá-la. Logo em seguida, poucos minutos depois, eu surgi.
Havia imagens retiradas de todas as câmeras instaladas na casa, e eu
busquei, em seguida, a dos fundos, onde me encontrei com Christine antes de ela
ser levada. Não me surpreendi ao perceber que a mantiveram ali, com certeza
para me esperar, ao invés de a tirarem da casa.
Contudo, algo chamou a minha atenção...
Não havia dúvidas de que aqueles enviados da MR invadiram a festa por
minha causa. Porém, também não havia dúvidas de que alguém facilitara sua
entrada e que eles estavam muito bem informados em relação à casa e ao evento,
além da presença de alguém que poderia ser um ponto fraco para mim, uma
moeda de barganha. Provavelmente poderiam ter feito o mesmo com minha mãe,
se ela não tivesse saído mais cedo. Então, sabendo de tudo isso, várias teorias
começaram a se formar na minha cabeça no momento em que vi um dos
bandidos que mantinham Christine como refém fazer um sinal para alguém de
dentro da casa. Alguém que estava em um dos cômodos dos fundos, em alguma
janela. Um espaço que a câmera não atingia.
Algum convidado daquela festa arquitetara toda a ação, ou, ao menos, era
cúmplice. Eu precisava descobrir. O quanto antes.
Capítulo Onze
CHRISTINE

Se houvesse um prêmio para a pessoa que andava perdendo mais coisas


ultimamente, ele seria meu, sem dúvidas. A chave reserva do apartamento, a
bolsa com todos os documentos, o celular... o sono, a sanidade, a paz... Tudo em
um combo que não parecia ter fim. Esperava não perder a vida também, embora
ela já tivesse sido ameaçada mais vezes do que pude contar.
Minha casa estava uma bagunça, mas eu não tinha a menor vontade de
arrumá-la, muito menos de ter cuidado enquanto buscava a cópia autenticada do
meu RG para levar comigo, enquanto não tirava o novo. Que, aliás, eu teria que
providenciar o mais rápido possível. Também planejava passar em um shopping
na hora do almoço para comprar um celular para substituir o antigo, morrendo de
raiva porque havia trocado o aparelho há menos de três meses.
Vasculhava bolsas, gavetas e caixas espalhadas pelo apartamento em
busca da xérox, quando me deparei com algo que me fez simplesmente parar
onde estava, quase paralisada, sem saber como agir ou pensar. Minha chave
reserva.
Não podia ser coincidência que Arthur tivesse estado na minha casa no
dia anterior, passado alguns instantes sozinho — ao menos o suficiente para
devolver a chave à caixinha sobre o rack — e que agora o que eu tanto lhe cobrei
aparecesse bem à minha frente, como em um passe de mágica.
Precisei sentar-me por um momento, para poder voltar a respirar. Não
tinha nada a ver com surpresa. E nem poderia ser, já que em nenhum momento
duvidei de que pudesse realmente ter sido ele. Era a mentira. Em todos aqueles
anos de amizade, nunca precisamos faltar com a verdade um para o outro.
Poderia até suportar suas omissões. Poderia suportar seu silêncio. Mas não suas
inverdades. Eu não merecia.
Com um suspiro derrotado, levantei-me, ciente de que aquele era o tipo
de coisa com a qual eu teria que lidar, caso decidisse permanecer ao lado dele,
insistindo naquela amizade. Apesar disso, não significava que iria me resignar
ou aceitar calada. Daquela vez, porém, não tinha forças para reclamar ou
confrontá-lo. Precisava retornar à minha vida. Ou tentar.
Parti para a cafeteria, sabendo que já estava um pouco atrasada, mas
Telma segurava bem a onda. Assim que entrei no estabelecimento, dei de cara
com Roger sem as meninas — o que eu agradeci aos céus internamente. Por
mais que as achasse uma gracinha, não me sentia muito no clima para lidar com
crianças. O pai flertava descaradamente com a minha funcionária, e ela era só
sorrisos para ele. Aquela cena me fez sorrir e deixou meu coração um pouco
mais quentinho. Ao menos alguém estava se dando bem em relação ao amor...
— Chris? — Uma mão pousou em meu ombro, fazendo com que eu me
sobressaltasse. Assim que me virei para trás, dei de cara com Edgar, que entrava
na cafeteria logo atrás de mim, como se estivesse me esperando lá fora por todo
aquele tempo.
— Bom dia, Ed — cumprimentei sem muito entusiasmo, o que era uma
baita injustiça da minha parte, mas precisava admitir que em ambas as vezes em
que o encontrei fora da cafeteria, acabei em situações adversas. Muito
provavelmente ele não tinha nada a ver com isso, mas era impossível não
associar uma coisa à outra.
Seguindo-me, ele foi entrando no estabelecimento e dirigindo-se até o
balcão, que também era meu destino. Estava prestes a cruzá-lo, para me colocar
do outro lado, mas a mão de Edgar fechou-se em meu punho, fazendo-me parar.
— Será que a gente consegue conversar por uns minutinhos? Não vou
tomar muito do seu tempo...
— Eu acabei de chegar, estou atrasada. Telma já está segurando as pontas
há horas e... — Estava prestes a falar mais alguma coisa, quando Edgar ergueu a
minha bolsa na altura dos meus olhos, a mesma que eu havia usado na festa e
que já tinha considerado como perdida. — Você encontrou?
— Um dos meus empregados. Estava no quintal, debaixo de uma das
cadeiras. Você deve ter deixado cair quando aqueles caras... — Edgar hesitou. —
Bem, quando tudo aconteceu. — Apenas balancei a cabeça, assentindo, e peguei
a bolsa quando ele a estendeu para mim. — Podemos conversar? Sobre ontem?
Suspirei resignada, sabendo que estava em uma rua sem saída. A forma
como ele me pedia para ter alguns minutos da minha atenção soava muito mais
como uma súplica, o que chegou a me incomodar. Não queria que as coisas
mudassem tanto entre nós, mas parecia inevitável. Aparentemente eu não era
muito boa em manter amizades com homens.
— Claro... — Ao dizer isso, guiei-o até uma das mesas da cafeteria e o
convidei a sentar-se. — Só preciso de alguns segundos. — Assim que ele
assentiu, concedendo-me o tempo que pedi, afastei-me e fui até Telma,
cochichando em seu ouvido que precisaria que ela me cobrisse por mais alguns
instantes, mas que não iria demorar. Claro que ela não se importou, e eu poderia
ter retornado imediatamente para a mesa, mas preferi entrar na cozinha por
breves segundos e dar uma checada na minha bolsa. Tudo parecia estar no lugar,
nada faltando.
Retornei para perto de Edgar, sentando-me à sua frente. Sem dizer nada,
voltei meus olhos em direção a ele para que compreendesse que estava pronta
para ouvi-lo. Porém, antes de começar a falar, ele pegou a minha mão por cima
da mesa, sustentando uma expressão de preocupação.
— Andei conversando com algumas pessoas, e algumas delas foram
muito reticentes ao mencionar o Arthur Montenegro. Ele teve atos de extrema
violência na festa — ele começou a falar, em um tom de voz baixo e de maneira
lenta, como se quisesse que eu compreendesse cada linha, cada palavra. —
Também fiquei sabendo que ontem ele deu um depoimento para a polícia...
— Ele foi violento com bandidos. Com os mesmos homens que atiraram
no marido da minha amiga e que me tomaram como refém. Foi legítima defesa
— afirmei, tentando parecer convicta de que confiava em Arthur e em sua
índole. O mais estranho era admitir que eu realmente confiava, embora ele
tivesse me dado várias provas de que isso seria um enorme erro.
— Sim, os policiais estão dispostos a acreditar nisso, mas muito
provavelmente tem grana envolvida. O tio dele... aquele tal de Sidney, parece ter
tudo sob controle, mesmo com a situação de Arthur ter desaparecido por tanto
tempo. Muito provavelmente vão arquivar toda e qualquer investigação contra
ele.
— Como você sabe de tudo isso, Edgar?
Ele hesitou um pouco antes de responder.
— Tenho minhas fontes. A verdade é que parece que as imagens das
câmeras realmente mostram que Arthur foi o “herói” da festa. Além do mais,
muitas pessoas, até aquelas que mencionaram toda a violência que ele usou,
deram depoimentos favoráveis a ele. Até o marido da sua amiga. — Quase sorri
ao pensar no quanto Paulo era maravilhoso e logo imaginei que deveria haver
alguma influência de Maiara na decisão. — Eu queria muito acreditar nessa
faceta de herói, Chris, mas conhecemos pessoas em comum, e fiquei sabendo
que ele também agrediu o irmão outro dia. Feio. Deixou o cara com o olho roxo.
Eu não sabia disso. Apesar da surpresa da informação, fiz de tudo para
não parecer chocada. Também tentei calar meu coração que entoava um belo de
um “bem feito”, enquanto minha cabeça me enviava mensagens de que esse era
mais um sinal para eu me manter afastada de Arthur até finalmente compreender
o que tinha lhe acontecido.
— J.J. não é exatamente o bom samaritano da história. Ele é bem
inconveniente, se quer saber. Mas vamos ao ponto, Ed. Aonde quer chegar com
tudo isso? — indaguei, cansada daquele joguinho, cruzando os braços contra o
peito.
Edgar permaneceu um tempo calado, apenas olhando para mim como se
tentasse encontrar a forma certa de mencionar o assunto. Com o cenho franzido,
havia algo de muito falso em sua expressão; algo que não me convencia. Ou
talvez sempre tivesse sido assim, mas só havia percebido naquele momento.
Decidi ignorar a impressão, ao menos naquele instante. Era algo que eu teria que
analisar com mais cuidado e mais calma depois.
— Eu me preocupo com você, Chris. — A mão dele ainda estava
entrelaçada à minha, e uma sensação de incômodo começou a se instalar dentro
de mim. Era estranho, porque eu costumava gostar dele, mas algo em minha
intuição começava a desconfiar, depois daquele alerta tão desesperado de Arthur.
E isso me assustava. — Não gosto de saber que confia cegamente em um
homem que talvez não seja mais o mesmo que você conheceu.
— Tem gente suficiente tentando me aconselhar em relação a isso. Só
que, infelizmente, eu sou do tipo de pessoa que gosta de comprovar por si
mesma. Ainda mais quando se trata de um dos meus melhores amigos. — Ele
abaixou a cabeça e decidiu não dizer mais nada, ao menos por alguns instantes, e
eu acreditei que se tratava da minha deixa para acabar com aquela conversa que
não estava me agradando em nada. — Olha, Ed, se você me der licença, eu
realmente preciso trabalhar. Se quiser tomar um café, é bem-vindo para ficar. —
Talvez fosse uma boa ideia abrir um sorriso, mas nem sequer me esforcei, com
medo de que no lugar de um curvar de lábios simpático, meu rosto adquirisse
uma bela de uma careta, que era o que eu estava bem mais propícia a fazer de tão
mal humorada.
Não querendo lhe dar oportunidade para responder e tentar me segurar ali
por mais tempo, dei-lhe as costas, tencionando seguir na direção da cozinha,
porém, a televisão chamou a minha atenção.
Um daqueles jornais sensacionalistas da hora do almoço estava passando,
e eu normalmente o teria ignorado, como sempre fazia, mas algo na notícia que
era veiculada me chamou a atenção. Poderia ser apenas mais uma dentre tantas
outras, sobre um terrível assassinato, levando em consideração o tipo de cidade
onde vivíamos, onde o número diário de vítimas da violência era contado em
dúzias, mas lá estava eu, vidrada na tela da televisão, ouvindo o jornalista falar,
enquanto imagens do local do crime eram mostradas.
Tratava-se de uma moça mais ou menos da minha idade, que fora
encontrada nua naquela madrugada, nas areias da Praia do Pontal, localizada no
Recreio dos Bandeirantes. Quando uma foto da garota foi mostrada na tela,
cheguei a me sobressaltar, porque ela se parecia demais comigo. Cabelos
castanhos na altura do ombro, levemente ondulados, olhos amendoados e a pele
branquinha. Fora estuprada e assassinada a facadas, com requintes de crueldade.
Outra foto mais chocante foi mostrada, um close de uma marca que o criminoso
deixou em seu ombro, feita com a mesma arma que a apunhalara — o número
quarenta e oito, exatamente igual ao que marcava a pele de Arthur.
Fiquei parada por um momento, olhando para a televisão sem piscar,
mesmo depois de eles terem passado para uma propaganda. Era como se meu
cérebro tivesse dado um tilt, paralisando-se, enquanto aquele número maldito
piscava na minha cabeça, parecendo envolto em luzes de Natal.
Aquela era a marca de Arthur. Mas isso não queria dizer que tinha sido
ele a cometer o crime… Certo?
Ainda assim, minha cabeça começou a girar, e precisei me apoiar na
mesa antes que caísse no chão. Por mais que ele não tivesse culpa, eu não
poderia ignorar a semelhança daquela moça comigo. Não era uma coincidência.
Era um alerta.
— Chris? — Edgar rapidamente veio em meu auxílio, segurando-me
pela cintura e me guiando até a cadeira mais próxima. — O que houve?
De forma alguma eu queria externar minhas preocupações com Edgar,
ainda mais depois da conversa que tivemos. Esperava que ele não tivesse
prestado atenção à notícia, porque algo me dizia que qualquer um seria capaz de
perceber o quanto aquela pobre garota se parecia comigo.
— Não foi nada. Acho que tive uma queda de pressão… — Era a
resposta mais óbvia, ainda mais que eu já sentia o sangue novamente correndo
pelas veias.
— Tem certeza? Você comeu?
— Não. Mas vou resolver isso agora — disse, enquanto me levantava,
sentindo as pernas mais firmes. Ainda bem, porque não estava nem um pouco a
fim de despencar ali na frente dele. — Obrigada, Ed, mas eu realmente estou
bem.
Novamente fugi dele, indo em direção à cozinha e me deparando com
Javier, que tirava alguns mini-sonhos do óleo. O cheiro gostoso preencheu
minhas narinas e quase me fez sorrir, mas estava confusa e ferida demais para
isso.
— Javier, você pode me deixar sozinha por alguns minutos?
— Claro, señorita. Necesitas algo? — ele ainda arranhava no português,
misturando-o com o espanhol, mas nos entendíamos bem.
— Não. Vai dar uma ajuda para a Telma, por favor. Deixe que eu recheie
os sonhos. Estou precisando de uma atividade para preencher minha mente.
— Como quieras, señorita. — Com um educado meneio de cabeça, ele
se afastou, enquanto tirava o avental, e saiu porta afora, e eu aproveitei para
trancá-la. Não queria que ninguém entrasse ali. Não naquele momento. Precisava
de um minuto comigo mesma.
O mundo parecia estar girando em uma velocidade vertiginosa, de uma
forma que eu não me sentia capaz de acompanhar. A prova disso tinha acabado
de me ser entregue de bandeja na reportagem da TV. Era como caminhar em um
campo minado com uma venda nos olhos, sabendo que seria apenas uma questão
de tempo para que uma das bombas sob meus pés explodisse e me levasse aos
ares.
Algo dentro de mim, por mais que fosse uma dúvida muito, muito,
pequena, ainda insistia que Arthur poderia ser o culpado pela morte daquela
mulher. Claro que não queria acreditar nisso — não podia, na verdade —, mas
era uma possibilidade. Se todos os que me alertavam sobre as mudanças que ele
sofrera e os perigos que representava estivessem certos, as consequências seriam
drásticas. Por isso, precisava me cuidar e tentar descobrir alguma coisa.
Mantendo uma ideia fixa na mente, terminei a tarefa que tinha me
proposto a concluir, conforme prometido a Javier, peguei a bolsa que Edgar me
devolvera e saí, avisando à Thelma que voltaria em algumas horas.
Caminhei até o estacionamento na rua lateral, ainda me sentindo
decidida, mas certa de que toda aquela convicção desapareceria em dois tempos.
Entrei no carro e peguei o celular. Se ia fazer o que pretendia fazer, precisava de
uma aliada. Alguém não apenas para me abrir as portas, mas também para me
pressionar caso eu desistisse.
— Cléo? — disse, assim que ela atendeu. Senti que estava um pouco
chateada comigo, pela forma como me cumprimentou, provavelmente devido ao
fato de que eu a vinha ignorando por completo, mas acreditava que minha
decisão iria compensar. — Você ainda quer que eu descubra alguma coisa sobre
Arthur? Sobre o que pode ter acontecido com ele?
— Mas é claro que quero! O que está pretendendo fazer? — Como
previsto, ela logo mudou o tom.
— Estaria disposta a fazer coisas... digamos... controversas por isso? Ou
melhor... deixar que eu faça? E me ajudar?
— Qualquer coisa, Chris. Precisamos saber o que aconteceu para ajudá-
lo. — Sua voz murchou um pouco, e meu coração se encheu de pena na mesma
hora. Ela estava tão agoniada quanto eu.
— Então, eu preciso que descubra para mim se Arthur está em casa e se
vai demorar a voltar. Depois, dê um jeito de avisar a Maria que vou pegar
alguma coisa no seu quarto. Ela precisa me dar acesso para que eu suba sem que
vocês estejam lá.
— Chris! Você vai invadir o quarto do Arthur?
— Olha, eu sei que é errado e...
— Eu adorei! Vai fundo... só não quero que se encrenque por isso. Não
sabemos qual pode ser a reação de Arthur se descobrir.
— Por isso preciso de você...
— Segura um pouco aí que eu vou definir tudo isso. Já te ligo.
Enquanto a aguardava, eu poderia ter retornado à cafeteria e voltado ao
trabalho, ocupando-me com qualquer coisa só para não pirar, mas achei melhor
estar a postos, e foi a melhor escolha possível, porque quando Cléo retornou a
ligação, uns dez minutos depois, foi com a informação de que eu deveria
aproveitar a deixa, porque Arthur estava fora e informara a Maria que talvez não
retornasse nem para jantar. Ou seja, eu teria horas suficientes para o meu plano.
Cléo também não estaria em casa, porque ainda encontrava-se na
faculdade, em uma apresentação de um trabalho importante, então, eu teria que
me virar sozinha.
Melhor. Menos testemunhas, menos cúmplices. Se alguém levasse a
culpa, seria eu.
Parti para a mansão dos Montenegro, tentando convencer a mim mesma
de que era a coisa certa a fazer. Precisava salvar a imagem que tinha do meu
amigo, encontrar qualquer sinal de que ele não havia se tornado um criminoso.
Que estava envolvido com gente muito ruim era uma certeza, mas queria
descobrir que se mantinha do lado certo.
Exatamente como Cléo prometera, Maria me recebeu sem desconfiar de
nada, deixando-me subir à vontade quando dei a desculpa de que iria pegar uma
roupa emprestada do closet imenso da minha amiga, uma vez que sua própria
patroa a deixara avisada. Porém, ao chegar no corredor, fui direto para o quarto
de Arthur.
Não tinha muito tempo a perder, então, tentei ser objetiva. Fui direto ao
laptop sobre a escrivaninha, colocando-o para inicializar, sentando-me na
cadeira. Enquanto aguardava, fui remexendo em gavetas, mas havia muito pouca
coisa dentro delas que pudesse me ajudar. Era como se ele mal tivesse estado
naquele quarto depois de sua volta.
Na tela do notebook, uma solicitação de senha. Usei, então, a padrão, que
eu sabia que era a que utilizava para todos os seus e-mails e mídias sociais:
RAIODESOL, a forma carinhosa como chamava Cléo. Contudo, deu como
incorreta.
Tentei algumas outras combinações, como a data de nascimento da irmã,
a dele, a minha, nossos apelidos e até mesmo algumas usando o maldito número
tatuado em seu ombro. Nada. Ele realmente parecia querer esconder algo muito
bem.
Levantei-me, frustrada, e comecei a vasculhar outros lugares — gavetas
do armário, seu closet, cômoda, criado mudo, dentro dos livros... Novamente,
nada.
Havia uma pequena lixeira no banheiro suíte, e eu cheguei ao cúmulo de
agachar-me no chão, ficando de cócoras, para verificá-la, sem coragem de
colocar a mão, é claro. Havia pouca coisa ali, apenas uma embalagem de
sabonete, outra de lâmina de barbear e...
— Encontrou algo interessante?
A voz soou detrás de mim, interrompendo minha busca e me fazendo
sobressaltar ao ponto de cair de bunda no chão, levando em consideração minha
posição anterior, nada favorável. Envergonhada, ergui os olhos em direção a ele,
odiando o fato de ter sido pega no flagra.
— Ainda vai me matar do coração surgindo assim… — tentei disfarçar o
constrangimento, mascarando-o como susto.
— Quando for invadir a privacidade de alguém, certifique-se de trancar a
porta — ele falou seco, com o rosto impassível, como se não houvesse qualquer
intimidade entre nós.
A passos largos, ele veio na minha direção, e eu não sei o que me deu,
mas levei o braço à altura do rosto, como que para me defender, ainda caída no
chão, acreditando que aquele novo Arthur à minha frente pudesse ser capaz de
me agredir. Foi um gesto completamente instintivo, que me deixou arrependida
imediatamente depois de tê-lo feito.
Arthur simplesmente parou diante de mim, e a expressão mortificada em
seu rosto mostrava o quanto minha reação o tinha magoado.
— Você está… se protegendo… de mim? De mim? — indagou com o
cenho franzido, como se não acreditasse no que estava vendo. Então, sem dizer
nada e parecendo ainda mais ferido do que antes, inclinou-se, agarrando meu
braço e me ajudando a me levantar do chão, colocando-me de pé. — Posso ter
me tornado um monstro para muitas coisas, mas eu ainda não seria capaz de
machucar uma mulher. Ainda mais você.
Fiquei completamente sem resposta. Claro que eu sabia disso. Claro que
nunca pensei que Arthur pudesse me agredir… mas, ainda assim… mais cedo eu
havia cogitado a hipótese de ele ter violentado e matado uma moça. O quão
desleal isso me tornava?
— Arthur, eu… — tentei iniciar um pedido de desculpas dos mais
fajutos, mas acabei interrompendo a mim mesma, sabendo que não iria adiantar.
A merda já tinha sido feita. Abaixei a cabeça, então, e foquei meus olhos no
chão, incapaz de encará-lo. Insistente, ele levou a mão ao meu queixo, erguendo-
o e fazendo-me olhar em seus olhos.
— O que está fazendo aqui, Chris? — ele perguntou com um tom de voz
bem mais suave, como se temesse me assustar.
Mas o que eu poderia lhe responder? Que estava ali para revirar suas
coisas e invadir sua privacidade, na intenção de encontrar alguma mentira? De
entender o que havia acontecido? De descobrir se existia qualquer chance de ele
ser um assassino estuprador? Eu não poderia falar nada disso, não depois de tê-lo
magoado de forma tão desnecessária. Mas também não poderia inventar uma
mentira qualquer.
— Não sei. Mas estou confusa... precisava... tentar encontrar uma
explicação.
— Você acha que se eu guardasse secreto algo aqui, em meu quarto, eu
deixaria a porta destrancada?
Claro que não. Ele estava certo. Mas eu nunca fui uma investigadora
profissional, então, esse tipo de coisa estratégica nem passava pela minha
cabeça.
Percebendo que me deixara sem resposta, Arthur afastou-se, saindo da
suíte e voltando ao quarto. Acreditei que era a hora certa de desaparecer dali
antes que tudo ficasse ainda mais constrangedor.
— Mais uma vez me desculpa... eu cometi um erro. — Depois destas
palavras fajutas, virei-me para a porta, e até achei que iria conseguir sair do
quarto sem qualquer dificuldade, mas quando coloquei a mão na maçaneta,
percebi que ele havia nos trancado ali dentro.
Sem dizer nada, abaixei a cabeça e respirei fundo, sabendo que não havia
nada que eu pudesse fazer. Teria que encarar meu erro. Ele havia se certificado
disso.
— Não cometemos os mesmos deslizes, Christine. Deveria ter trancado a
porta para me manter de fora. Eu te quero aqui dentro, então, você vai ficar. Não
vai sair enquanto não me disser o que te fez vir até aqui e vasculhar minhas
coisas. A resposta que me deu é muito vaga.
Girei-me para ficar de frente para ele, e o vi sentado na cama, com aquele
semblante impassível de sempre, observando-me com os braços cruzados contra
o peito.
Sentia-me encurralada e intimidada, mesmo que ele estivesse a uma
distância de pelo menos dois metros. Por isso, permaneci calada. O que iria
dizer? Mal conseguia formular pensamentos coerentes.
— Vou te ajudar com a explicação. — Ele se levantou da cama e
começou a vir em minha direção. Eu não queria me intimidar, mas foi inevitável
começar a recuar. — Uma garota assassinada, muito parecida com você. Essa
porra de número — apontou para o local onde estava a tatuagem, sob a camiseta
que usava — gravado nela... Claro que a primeira coisa que deve ter passado
pela sua cabeça foi: Arthur tem culpa no cartório. Não foi?
— Arthur... por favor... — falei em uma voz frágil, que era pouco mais
do que um sussurro, cheio de constrangimento. Eu poderia mentir, mas era
impossível enquanto olhava em seus olhos, que se aproximavam mais e mais,
conforme continuava aproximando-se até me encurralar em uma parede,
colocando as duas mãos, uma de cada lado do meu corpo, impedindo-me de sair.
— Vou repetir o que acabei de dizer: eu nunca machuquei mulher
alguma. Nem antes, nem agora. Tudo o que fiz de errado desde que voltei foi
para me manter vivo ou para te proteger.
Ele estava próximo demais, falando naquele tom de voz baixo, quase sem
emoção, com exceção do momento em que enfatizou o fato de estar tentando me
manter segura. Eu podia sentir sua respiração cálida açoitando meu rosto, e isso
quase me deixou sem ar. Seu corpo tocava o meu muito de leve, imprensando-
me contra a parede, deixando-me imóvel.
— Também não posso fechar meus olhos para o fato de que a garota que
morreu era parecida demais com você. Por isso fui à cafeteria... novamente para
te proteger. Quando te vi saindo no meio do expediente, logo vi que havia algo
de errado, mas não imaginei que viria para cá.
— Você me seguiu? — Ele balançou a cabeça em afirmativa. — Sei que
estou errada, Arthur, mas não quero uma sombra atrás de mim vinte e quatro
horas. — Enquanto eu falava, dei-me conta de que a respiração de Arthur
tornava-se mais incerta, mais pesada. Seus olhos estavam fixos em meus lábios.
Tentei não perder a concentração. — Não quero que fique me vigiando, porque
eu...
Foi numa fração de segundo, como um lapso de consciência. Quando eu
menos esperei, Arthur inclinou-se para que nossos lábios ficassem da mesma
altura e me roubou um beijo. Não um como no dia em que invadira minha
cafeteria. Não um encostar de lábios discreto e inocente. Não... ele veio como
quem exige algo que lhe pertence.
Minha primeira reação foi uma total imobilidade. Primeiro porque fora
completamente inesperado, e segundo porque — meu Deus! — eu mal
conseguia pensar, quanto mais me mover. Ainda assim, peguei-me
correspondendo às suas investidas com a naturalidade de quem é beijada daquela
forma todos os dias. E... sinceramente... essa era uma total mentira, porque
ninguém beijava como Arthur. Eu sabia disso, porque jamais consegui esquecer
aquela noite, que fora considerada como um equívoco por ele, mas que se
eternizou em minha memória de forma silenciosa.
Não havia nada de gentil na forma como sua língua buscava a minha,
mas, sim, um desespero, como se ele estivesse esperando por este momento há
muito tempo. O mesmo eu poderia dizer da maneira como seu braço enlaçou
minha cintura, possessiva e firme, parecendo querer me impedir de fugir.
Depois, tudo foi uma sucessão de instantes desordenados, mal
processados por minha mente inebriada. Quando vi, ele já estava me levando
para a cama e me jogando sobre o colchão, colocando-se sobre mim. Continuava
a me beijar, enquanto suas mãos experientes exploravam meu corpo, enfiando-se
por baixo da minha blusa, quase chegando ao meu sutiã.
Eu queria. Muito. Mas um resquício de consciência me fez parar.
— Arthur... não...
No momento em que ouviu a palavra não, ele parou. Afastou-se o
suficiente para olhar em meus olhos, parecendo confuso como quem volta a si
depois de uma perda de consciência.
Tirou seu corpanzil de cima do meu em um movimento apressado,
levantando-se da cama e afastando-se ao máximo, como se temesse me
transmitir alguma doença.
Droga, eu não queria que ele pensasse daquela forma. Eu o amava. Só
não podia permitir que novamente cometêssemos um erro. Fazer amor com ele
nunca deveria ser algo incorreto. Se um dia voltasse a acontecer, que fosse no
momento certo.
— Me desculpa, Christine. Eu não deveria... não queria... Eu... — ele
gaguejava. — Não queria te forçar a nada e...
— Forçar? — indaguei com um leve resquício de sarcasmo, enquanto
passava a mão pelos cabelos. — Acho que eu correspondi de forma bem
perceptível. Só não é hora para irmos mais longe. Eu estou magoada com você
pelas omissões e acabei te magoando também. — Ele assentiu, parecendo
compreender.
— Você ainda vai voltar para o café? — perguntou, mudando de assunto,
o que me fez dar graças a Deus.
— Preciso.
— Então, vou te levar. — Eu estava prestes a protestar, mas ele balançou
a cabeça. — Isso não é negociável. Vou passar lá na saída também, para te levar
para casa... E por favor, não tente me dissuadir. Preciso saber que você está em
segurança.
Como negar alguma coisa depois de ser beijada daquela maneira e de
ouvi-lo falando como se fizesse uma súplica?
Saímos, então, da mansão, e ele me levou à Lattes, prometendo que iria
retornar à noite, para me levar para casa. Quase não dissemos nada e também
não houve menção nenhuma ao beijo ou da cena completa que protagonizamos.
Apesar disso, seria difícil tirar o gosto dele dos meus lábios ou parar de sentir o
calor de suas mãos em minha pele.
Por quanto tempo desejei isso? Tê-lo para mim de forma consciente, sem
nenhum tipo de entorpecimento em sua mente para ser usado como evasiva.
Ainda assim, não era certo. Eu não o queria daquela forma. Não enquanto
houvesse desconfianças e mágoas.
O expediente terminou sem nenhuma surpresa — ainda bem —, e Javier
e Telma foram embora no horário de sempre, por volta das cinco e meia.
Combinei com Arthur de ir me buscar mais ou menos às sete, que era quando eu
realmente fechava a cafeteria, mas não lhe avisei que ficaria sozinha durante
aquele período, porque não queria um guarda-costas intimidador parado na porta
do meu estabelecimento observando quem entrava e saía com cara de poucos
amigos. Além disso, acreditava que a presença dele poderia chamar ainda mais
atenção daquelas pessoas estranhas que viviam passando por ali, fossem elas
quem fossem.
Porém, esse foi o meu erro.
Pouco depois de meus funcionários terem saído, com a loja vazia, ouvi o
mensageiro dos ventos soar, enquanto eu me encontrava de costas para a porta,
preparando um café para mim mesma em nossa máquina de expresso. Quando
me virei, deparei-me com um homem com um rosto familiar e um porte físico
semelhante ao de Arthur. Havia uma arma em sua mão. Apontada para mim.
— Feche todas as cortinas da loja. E faça isso bem quietinha. Se perceber
qualquer exaltação, eu vou te matar.
Precisei de um instante para absorver a realidade e respirar fundo,
tentando manter o controle, antes que entrasse em pânico e começasse a cometer
deslizes.
Movendo-me muito lentamente, fiz o que ele pediu, enquanto o homem
me seguia para se certificar de que realmente não faria nada impensado.
Com tudo fechado, vi-me totalmente à mercê daquela pessoa, que eu não
fazia ideia do que poderia querer.
— Tinha ordens para levá-la comigo, mas venho te seguindo o dia inteiro
e vi que o 48 te deixou aqui mais cedo e não saiu das redondezas. Tenho uma
forte impressão de que irá voltar para buscar a namoradinha, então, acho que vou
conseguir dois coelhos com uma só cajadada. Imagina quantos pontos vou
ganhar com a MR quando chegar lá com a princesa e o fugitivo?
MR? Que diabos era isso? Do que ele estava falando? Para onde
pretendia nos levar?
Mas eu não estava disposta a pagar para descobrir. Então, sem nem
pensar no que fazia, corri o mais rápido que pude em direção à porta, mas fui
agarrada pela cintura e trazida de volta. Depois, não consegui ver mais nada,
porque algo duro me atingiu na cabeça, me fazendo apagar completamente.

***

ARTHUR

Cheguei em frente à loja de Christine com uma meia hora de


antecedência. Esperava que, se estivesse vazia, conseguisse persuadi-la a sair um
pouco mais cedo. Talvez pudesse levá-la para jantar ou algo assim, para
compensar por meu comportamento indevido de horas atrás.
Não me arrependia pelo beijo. Claro que não. Como poderia me sentir
mal pela melhor coisa que me aconteceu desde que me livrei daquela maldita
prisão? Mas eu compreendia perfeitamente a escolha de Chris. Havia muita coisa
em jogo; coisas que precisavam de mais atenção do que o início de um
relacionamento entre nós.
Assim que parei o carro em frente à porta, deparei-me com as cortinas
fechadas, o que me causou certa estranheza. O combinado era eu esperá-la
dentro do veículo, com os vidros escuros fechados, para que ninguém me visse,
porém, algo dentro de mim me fez saltar e verificar. Se ela já tivesse fechado e
ido embora, eu iria ficar bem puto. Ainda assim, para não remediar, enfiei um
pequeno canivete no bolso da calça. Poderia levar o revólver, mas não queria
atrair barulho, muito menos causar um estrago desnecessário. Eu sabia me virar
muito bem com o que estava levando comigo.
A porta também encontrava-se fechada, mas não trancada, embora o
letreiro indicasse que o expediente já tinha terminado. Entrei mesmo assim e
percebi que as luzes estavam apagadas. Assim que encontrei o interruptor,
tateando a parede ao lado da entrada, acendi a luz e me deparei com um homem
sentado diante do balcão, tomando uma xícara de café, de forma totalmente
despreocupada. Meus olhos apressaram-se em averiguar os arredores em busca
de Christine, e logo enxerguei duas pernas femininas vestindo uma calça jeans,
com os tornozelos amarrados. Dei um pequeno passo para o lado e me deparei
com Chris, com os punhos presos às costas e amordaçada, com olhos assustados,
observando toda a cena. A arma depositada estrategicamente próxima da mão do
sujeito também não me passou despercebida.
Além disso, ele me era familiar. Muito. Preocupantemente.
— Que bom que chegou, Arthur. Estava te esperando.
Claro que ele era da MR. Essa não era a minha dúvida. Só queria saber
de onde o conhecia e quem era, para tentar adivinhar do que seria capaz.
— O que vocês querem com ela? — Era a minha primeira e única
preocupação. O resto podia simplesmente explodir.
— Minhas ordens eram levá-la para atrair você, mas acho que vou
ganhar pontos extras se levar os dois de uma vez.
— O problema é entre mim e a MR. Vocês não têm nada que envolvê-la.
Foi então que ele se levantou, pegando a arma, começando a vir na
minha direção, aumentando a sensação de familiaridade. Cabelos pretos curtos,
queixo proeminente, algumas cicatrizes no rosto, barba cerrada, grande como eu.
— A garota tem algum valor para a corporação. Alguém a indicou. E eu
sou pago para fazerem o que mandam.
— Para levá-la, vai ter que passar por mim primeiro.
Movimentando-me rapidamente, peguei o canivete dentro do bolso, abri-
o e joguei-o com uma mira precisa, atingindo a mão que segurava a arma,
fazendo-a cair. Assim que o sujeito ficou indefeso, parti para cima dele,
agarrando o revólver do chão e dando-lhe uma coronhada e mais alguns socos,
fazendo-o apagar. Poderia encarar como sendo fácil demais, mas ele realmente
esperava que eu surgisse ali desarmado e que fosse encurralado. Só que eu nunca
deixava de ficar em alerta.
Ainda com a arma em punho, aproximei-me de Christine e comecei a
desamarrá-la e a ajudá-la a levantar-se.
— Você está bem? — perguntei aflito.
— Sim... estou... eu...
— Precisamos sair daqui — informei, nem lhe dando tempo para explicar
qualquer coisa. Agarrei sua mão e comecei a levá-la comigo, antes que nos
encrencássemos ainda mais.

***

CHRISTINE

Mal consegui me recuperar do meu atordoamento, pois precisei colocar


minhas pernas a correrem. Nem sei como atingi esta proeza, já que elas mais
pareciam dois pedaços de gelatina de tão moles. Também não sei como consegui
ter discernimento para estender a mão e pegar a minha bolsa, que estava sob o
balcão, local onde eu sempre a deixava.
Arthur guiou-me até o local onde o bandido estava sangrando, caído no
chão, apagado, com o canivete enfiado na mão, o qual meu amigo abaixou-se
para pegar.
Fiz uma careta e me senti nauseada quando a lâmina foi arrancada da
pele do homem, mas sobressaltei-me ao ouvir um grunhido, constatando que ele
parecia prestes a acordar. Um som mais alto, quase gutural, logo seguiu, e o cara
abriu os olhos, fazendo-me gritar apavorada, enquanto minha mão era
novamente agarrada. Numa velocidade frenética fui guiada para fora da loja e
levada ao carro de Arthur, sendo praticamente jogada lá dentro.
Meu companheiro arrancou com o veículo, cantando pneus, e eu — em
um lampejo de sanidade que não faço ideia de onde veio — lembrei-me de
afivelar o cinto de segurança. Olhando pelo retrovisor, vi o homem, com a mão
ainda sangrando, vir atrás de nós, mas parar em um determinado ponto da
calçada, sabendo que não poderia nos alcançar. Só nesse momento consegui
respirar fundo, como se o ar tivesse finalmente retornado aos meus pulmões.
— Você lançou um canivete nele? Um maldito canivete? — indaguei
apavorada, mas nem sequer olhei para Arthur para ver sua expressão facial.
Meus olhos estavam presos ao vidro da frente, como se houvesse algo de muito
interessante ali, mas a verdade era que eu simplesmente não conseguia me mexer
de tão apavorada. — E se você errasse? Ele iria atirar em nós.
— Eu não iria errar. Nunca erro. Não àquela distância — afirmou com
convicção, como se estivesse falando sobre uma simples conta de matemática.
Enquanto ficávamos calados, eu tentava não desenhar teorias loucas na
minha cabeça, mas era um pouco impossível levando em consideração as coisas
que vinham acontecendo. Além de lutar como um profissional, de saber atirar
com precisão, ele também tinha uma mira perfeita ao atirar canivetes? Quem era
aquele homem ao meu lado? Será que era ainda mais perigoso do que eu queria
acreditar?
Finalmente olhei para ele e odiei perceber que estava completamente
focado no caminho à sua frente, não parecendo nem um pouco alterado, como se
o que tinha acabado de acontecer fosse apenas um percalço cotidiano.
Precisei inclinar minha cabeça para trás, apoiando-a no encosto do banco
para aplacar a onda de vertigem que me enfraquecia. Fiquei assim por alguns
instantes, apenas olhando para o teto do carro e sentindo meu coração socar o
peito como um lutador de boxe ansioso por um nocaute. Quando comecei a
senti-lo acalmar-se, ainda que muito pouco, voltei-me novamente para Arthur,
cuja expressão permanecia muito séria ao meu lado, desesperada por respostas.
— Aquele homem disse que iria me levar para um lugar chamado MR. O
que é isso? — Exatamente como eu já esperava, Arthur não respondeu nada,
apenas continuou dirigindo como se fosse um androide com apenas uma função.
— Fala comigo, Arthur, ou eu vou surtar aqui.
Uma onda de pânico começava a erguer-se dentro de mim, como se
estivesse prestes a formar um verdadeiro maremoto. As primeiras lágrimas
começaram a cair, e eu sabia que era apenas uma questão de tempo para que se
multiplicassem e se transformassem em um choro incontrolável. Não queria
fraquejar diante dele. Não queria mostrar toda a vulnerabilidade que sentia, mas
não podia controlar. Eu era apenas uma mulher comum, jogada no meio de um
fogo cruzado, e minha única culpa era amar uma pessoa que parecia ser a errada.
— Por favor, Arthur... — implorei. Não adiantava gritar, espernear ou
brigar com ele. Além disso, eu sentia que estava no meu limite. Não aguentava
mais.
Depois de respirar fundo, ele finalmente falou alguma coisa:
— MR é uma corporação. — Era uma resposta incompleta, seca, vazia,
quase desrespeitosa. Mas era um começo. Eu poderia tentar arrancar mais
informações dele.
— Corporação? De quê?
— Não sei, Christine. Eu realmente não sei.
Como ele parecia estar falando a verdade, decidi não insistir naquela
resposta, mas mudei a pergunta.
— Foram eles que te levaram? Eles que fizeram isso com você? — Eu
nem sabia o que era isso, mas também não estava pensando de forma muito
coerente para elaborar uma pergunta mais bem explicada. Contudo, ele entendeu,
porque finalmente olhou para mim, com aqueles mesmos olhos magoados de
mais cedo, quando eu tentei me proteger, acreditando que poderia me agredir.
E o que ele disse partiu ainda mais o meu coração. Se é que era possível.
— Sim. Foram eles que me tornaram o monstro que sou agora.
Queria ter forças para consolá-lo e dizer que não era bem assim, que ele
nunca seria um monstro para mim, mas a verdade era que eu não estava em
condições de defendê-lo naquele momento. Eu o amava, isso era indiscutível; no
entanto, uma parte muito pequena da minha alma começava a temê-lo e
preocupar-se com o quão ferida eu poderia sair daquela relação.
Ao invés de dar continuidade ao assunto, embora ele estivesse me
concedendo respostas — por mais evasivas que pudessem ser —, outra coisa me
preocupava mais naquele exato instante:
— Para onde está me levando? — indaguei, olhando através da janela e
percebendo que ele pegava um caminho inesperado.
— Vamos ficar em um hotel esta noite — ele afirmou novamente
convicto, como se a minha opinião não valesse de nada.
— Hotel? Que história é essa? Eu não vou para hotel nenhum com você!
— exclamei alterada. Fiquei ainda mais irada quando ele não disse nada em
resposta. — Arthur! Para o carro! Eu não vou...
— Chega, Christine! — ele vociferou, sem tirar as mãos do volante e
sem olhar para mim, já que se mantinha focado no trânsito. — Sei que as coisas
não estão fáceis para você, mas não é hora de agir com teimosia. Não posso te
levar para a sua casa e nem para a mansão, porque são lugares óbvios, e eu
acabaria colocando outras pessoas em perigo. Vamos sumir só por essa noite,
esperar que aquele cara desista por enquanto e depois vamos ver o que faremos.
— Arthur, eu não quero...
— Eu não estou te dando opção! — ele berrou, com sua voz poderosa, o
que me fez calar e recuar. — Vou te levar comigo nem que seja amarrada, à
força. Não posso te perder de vista... não posso permitir que te levem de mim...
— A última frase foi dita em um sussurro estrangulado, falho, como se Arthur
não quisesse admitir o que estava sentindo de verdade, tentando mascarar seu
medo com aquelas expressões frias e muito sérias. — Não posso permitir que te
levem para aquele lugar — ele acrescentou, e essa afirmação trouxe vários
questionamentos à minha mente.
De que lugar ele estava falando? A tal de MR? O que tinha acontecido
por lá que o deixara tão traumatizado? O que poderiam fazer comigo, caso
também me levassem?
Apesar de todas essas perguntas estarem flutuando dentro do meu
cérebro, decidi ficar calada e não contestar mais nada. Apenas deixei que ele
conduzisse em silêncio, guardando seus segredos e seus tormentos.
Capítulo Doze
ARTHUR

Ela já esfregava o cabelo com aquela toalha há mais de quinze minutos,


sem parar. Os olhos vidrados em um ponto aleatório do quarto, as mãos
trabalhando em modo automático... tudo isso me dizia que estava em choque,
apenas funcionando com seus últimos resquícios de bateria antes de desabar por
completo.
Ainda não tínhamos nos falado desde que gritei com ela no carro; apenas
ouvira sua voz quando ela telefonou para a vizinha, pedindo que pegasse seu
gatinho e ficasse com ele naquela noite. Embora me sentisse um idiota por ter
me alterado, não me arrependia. Precisava tê-la comigo, segura, enquanto
pensava com calma no que fazer. Se é que havia solução.
Que Christine era um alvo, eu já sabia desde o princípio. Nunca duvidei
disso desde que percebi que a estavam vigiando no café. Ou melhor, desde que o
nome dela foi mencionado naquela sala, enquanto o maldito número 48 era
tatuado no meu ombro. No entanto, eu não imaginava que iriam insistir tanto em
fazer-lhe mal para me atingir.
Dei mais uma olhada nela e percebi que finalmente tinha largado a toalha
de lado, jogando-a sobre uma cadeira, e que agora penteava os cabelos,
mantendo o mesmo ritmo robótico de antes. Talvez fosse uma ideia mais sensata
deixá-la em paz, não importuná-la, mas eu não suportava vê-la daquele jeito. Por
isso, aproximei-me e me ajoelhei na frente da cama onde estava sentada,
apoiando-me em um joelho e afastando uma mecha de cabelo molhado de seu
rosto. Ela não recuou, mas ainda parecia reticente em relação a mim.
Isso instintivamente me levou à recordação de vê-la se encolhendo no
banheiro da mansão, com medo de que eu a agredisse. Porra, se eu tivesse que
eleger os piores momentos da minha vida, aquele sem dúvida estava na lista. E
levando em consideração que eu não tivera muitos momentos bons nos últimos
três anos, isso deveria significar alguma coisa. Tudo o que eu não queria era que
ela me visse como um monstro. Já bastavam todos os outros da minha família
que me olhavam com cautela, como se andasse com um machado ensanguentado
nas mãos.
— Me desculpa — disse, tentando soar o mais gentil possível, sabendo o
quanto fora grosseiro com ela em apenas um dia. — Não queria falar com você
daquela maneira. Não deveria ter falado, na verdade, mas não poderia suportar a
ideia de te ver machucada ou passando pelo tipo de coisas pelas quais passei.
— Que tipo de coisas, Arthur? Por que não conversa comigo? — Assim
que fez as perguntas, ela mesma começou a balançar a cabeça, em negativa,
parecendo muito cansada. — Sério, esquece o que eu perguntei. Sei que você
não vai falar nada, e eu estou de saco cheio de ficar insistindo.
Christine tentou levantar-se da cama, mas eu não podia deixar que
fugisse de mim. Não enquanto eu não terminasse de dizer tudo o que queria
dizer. Para mantê-la ali, coloquei as mãos em seus braços, segurando-a com
gentileza e firmeza ao mesmo tempo, e ela logo voltou os olhos para mim, tristes
e exaustos.
— Já falamos sobre a garota que foi assassinada no Pontal e sobre o
quanto ela era parecida com você, não falamos? — Ela respondeu com a cabeça,
assentindo. — Eu tenho quase certeza de que aquele cara que invadiu seu café
hoje foi quem a matou. — Ela se encolheu de leve, de medo, mas concordou,
enquanto abaixava a cabeça. Provavelmente já tinha pensado nisso também. Não
deixando que perdêssemos o contato visual, ergui seu queixo, insistente. — Isso
não foi uma coincidência, Chris. Não foi uma escolha aleatória. E eu sei que
foram as pessoas que estão me perseguindo. Usaram o número que tenho tatuado
no ombro para me incriminarem. Você acredita nisso, não acredita? Não quero
que balance a cabeça para essa resposta, quero que fale comigo.
Tentei não dar confiança ao fato de ela ter demorado mais do que deveria
para responder, como se estivesse hesitando e duvidando, porque não queria nem
pensar em Christine suspeitando de mim. O que seria plenamente aceitável pelos
últimos acontecimentos, mas insuportável.
— Sim, Arthur, eu acredito.
— Bom. E também acredita que eu seria incapaz de te machucar? Que
eu... — Agora quem hesitava era eu. Covardemente, porque sabia que as
palavras que estavam prestes a sair da minha boca não eram exatamente
novidade para o meu coração, mas no momento em que escapassem da minha
garganta, teriam muito mais significado. Talvez elas não fossem assim tão
profundas, considerando a amizade que compartilhávamos antes de tudo
acontecer, mas eu sabia que as coisas haviam mudado, e esperava que Christine
também soubesse, que sentisse uma diferente intenção. — Eu daria minha vida
em troca da sua, morreria para te proteger. Você sabe disso, não sabe?
Eu queria dizer muito mais do que isso. Queria dizer que a amava,
porque era a verdade que tinha aprendido a aceitar. A verdade que percebi tarde
demais, quando não podia mais fazer nada a respeito. Porém, não era justo jogar
aquela revelação em seu colo quando a estava fazendo sofrer tanto. Não queria
que minha confissão parecesse uma chantagem ou uma forma de manipulá-la.
Queria que ela se sentisse verdadeiramente amada, especial.
Ao invés de responder, Christine fechou os olhos bem apertados e
permitiu que as lágrimas que vinha segurando escapassem, deslizando por seu
rosto. A visão era tão dolorosa para mim, que tudo o que consegui fazer foi
aproximar-me ainda mais e beijar cada uma delas, cada gota salgada que vinha
tão carregada de tristeza. E foi assim que meus lábios acabaram encontrando-se
com os dela, em um contato simples e breve, suave e inocente. Claro que eu
queria beijá-la de forma decente outra vez, como fiz em meu quarto mais cedo,
mas assim como o “eu te amo”, isso teria que esperar.
Mesmo me afastando um pouco, permaneci por perto, com nossos rostos
a centímetros de distância, e mantivemos os olhares fixos um no outro. Ousei
erguer a mão e levá-la ao seu rosto, acariciando-o, não apenas para confortá-la,
mas porque precisava senti-la, precisava tocá-la, como se fosse uma condição
para que continuasse respirando.
— Estou tão cansada...
Dei uma olhada no relógio e percebi que eram quase oito e meia da noite.
— Você precisa comer alguma coisa.
— Não estou com fome... Acho que não vou aguentar comer nada agora.
Só quero dormir um pouco.
Assenti e logo me levantei, estendendo a mão para ela. Apesar de hesitar,
Christine aceitou-a, e eu a puxei para que ficasse de pé. Segurando-a, tirei o
edredom de cima da cama, abrindo espaço. Sentei-me ali, com as costas
apoiadas na cabeceira, abrindo os braços e pernas, para que se aninhasse em
mim. Daquela vez, ela não pensou, apenas deitou em meu peito, e eu a abracei,
segurando-a contra mim como se ambos fôssemos o refúgio um do outro. Como
se eu pudesse criar um escudo com meus braços e proteger até mesmo seus
sonhos, esperando que descansasse um pouco.
Para a minha surpresa, no entanto, Christine dormiu até a manhã
seguinte. Não foi um sono tranquilo, e eu a senti estremecer várias vezes por
conta de pesadelos, mas apenas a apertei com mais força, sussurrando que estava
segura, e ela conseguiu ter uma noite relativamente boa.
Levantei-me primeiro, ajeitando-a na cama, para que permanecesse
dormindo, e estalei as costas, que latejavam pela posição ingrata com a qual
passei a noite. Apesar dos incômodos, valera a pena. Cada segundo. Porém, por
mais gentil que eu tenha tentado ser, ela acabou acordando.
Abriu os olhos devagar, sonolenta, desorientada. Ao me ver ao seu lado,
quase sobressaltou-se, mas acabou relaxando, provavelmente ao lembrar-se do
que tinha acontecido na noite passada.
— Já amanheceu? — ela indagou em um sussurro rouco, cheia de sono.
— Já.
— Eu dormi tanto assim? — Esfregou os olhos e piscou várias vezes,
como se precisasse enxergar com mais clareza. Apenas assenti, enquanto ainda a
observava, de pé, ao lado da cama. — Faz tempo que não durmo por tantas
horas.
Gostaria de pensar que eu fora o responsável por seu sono tranquilo
daquela noite, mas não queria ser presunçoso a esse ponto.
— Você está bem? — perguntei, olhando fixamente para ela, esperando
estudar suas expressões e concluir se estava ou não mentindo. Christine era do
tipo que se fazia de forte, mas que sofria calada por dentro.
— Na medida do possível, sim. Poderia estar pior, se você não tivesse
chegado — falou com uma voz suave, o que me fez erguer uma sobrancelha e
arregalar os olhos. Poderia esperar qualquer coisa, mas não aquela afirmação.
Ela realmente me considerava o herói da situação?
— Eu? Era o mínimo que poderia fazer depois de ser o responsável por
tudo o que tem acontecido. — Sei que estava soando repetitivo, mas esse era o
pensamento que ocupava a maior parte da minha cabeça.
Chris deu de ombros, como se não fizesse muita diferença. Levantando-
se da cama, começou a andar pelo quarto, com os braços cruzados na altura do
peito e sem olhar para mim. Parecia querer dizer alguma coisa, então, eu apenas
esperei.
— Eu fiquei pensando nas coisas que me disse, e a verdade é que eu
também não tenho sido a melhor amiga possível...
— Como não? Meu Deus, Chris... as coisas que você tem suportado por
minha causa...
— Deixa eu terminar, Arthur — ela me interrompeu, e meus ombros, que
estavam tensos pela discussão, caíram, como se eu me desse por vencido.
Deixei-a falar, portanto. — Tudo isso não é culpa sua. Juntando os pedaços do
quebra-cabeça, já consegui entender que essa tal de MR foi a responsável pelo
seu desaparecimento. Claro que não entendi o que fizeram com você e o que
poderiam querer, mas você foi levado contra vontade — ela continuou falando,
com aquela voz doce que era capaz de fazer minhas entranhas se revirarem.
Enquanto me concedia o benefício da dúvida e mostrava que confiava em mim,
tudo o que queria era beijá-la. Mas, novamente, achei melhor deixá-la
prosseguir. Pelo que podia perceber havia uma parte pior em seu discurso. — Só
que eu preciso confessar que o seu silêncio e seu comportamento me fizeram
duvidar de você, coisa que nunca pensei que poderia acontecer. E peço
desculpas...
— Não, Chris... Não faça isso... Eu... — tentei me aproximar, mas ela
estendeu a mão, impedindo-me de avançar.
— Peço desculpas, porque suspeitei de você quando vi a reportagem
sobre a moça morta. Porque achei, realmente, que você pudesse me machucar no
banheiro da mansão. E porque escondi uma informação... uma coisa importante
que eu deveria ter te contado assim que descobri e que tem a ver com o que
aconteceu ontem, na cafeteria.
— Que informação?
Sem dizer nada, Chris andou em direção à escrivaninha, onde tínhamos
deixado nossas coisas na noite anterior, antes de irmos deitar. Ela pegou sua
bolsa, abriu-a e tirou de lá seu celular. Começou a tocar a tela, e assim que
chegou onde queria chegar, estendeu-o para mim. Era um e-mail, cujo
destinatário era aquela amiga, a Maiara.
— Abra as fotos em anexo.
Fiz o que ela pediu, uma por uma, e analisei as imagens. Tratava-se de
um homem deitado em uma cama de hospital, ligado a aparelhos, dormindo ou
em coma — não era possível distinguir. Não precisei nem sequer me esforçar
muito para perceber que era muito parecido com o invasor da cafeteria do dia
anterior.
Continuei abrindo as outras três imagens, e uma delas mostrava um close
de uma tatuagem muito parecida com a minha, a marca da MR, só que a dele
revelava o número 34.
Porém, não foi apenas isso que eu reparei.
Muito ferido, com o rosto inchado e cheio de hematomas, ele não me era
familiar apenas por sua semelhança com o homem de quem escapamos. Eu
também o reconhecia do dia em que fugi. Ele era um dos “soldados”
encarregados de me acompanhar na missão que me fora designada. Era uma das
pessoas que eu agredi para poder escapar. Pensei que tinha matado a todos, mas
aquele sobreviveu.
Lá estava a explicação para a familiaridade que encontrei.
— Ele estava em coma? — perguntei.
— Sim. Deu entrada no hospital há algumas semanas. Deve ter se
recuperado e recebido alta ontem... não sei. Não consigo encontrar uma
explicação, já que ele parecia bem demais ao me atacar.
Respirei fundo, sabendo que precisaria dar alguma explicação a Christine
em relação àquele homem. Eu poderia permanecer calado, poderia negar-lhe
mais aquela informação, mas estava cansado de deixá-la no escuro. Precisava
começar a ser sincero.
— Fui eu que o deixei assim.
Chris prendeu o ar, assustada, mas acabou relaxando logo em seguida.
Era visível que se esforçava ao máximo para confiar em mim.
— O que aconteceu?
O fato de ela estar me dando a chance de me explicar, e demonstrando
total certeza de que alguma coisa precisaria ter acontecido para eu agredir uma
pessoa daquela forma, faziam com que eu a amasse ainda mais.
— Eu precisei fugir. Esse foi o preço da minha liberdade. — Uma
liberdade controversa, quase amaldiçoada, mas, ainda assim, uma liberdade. Ao
menos eu podia estar ali, de frente para ela, que no momento era o que mais me
importava.
Ela não disse nada, apenas fechou os olhos novamente, respirando fundo,
como se a informação fosse dolorosa.
— Sinto muito, Pan. Não sei o que foi que você passou, mas eu
realmente sinto muito.
Eu também sentia. Mais do que apenas uma lembrança ruim, tratava-se
de uma dor física. Eu me lembrava de cada punição, de cada músculo dolorido
pelos esforços em moldar meu corpo da forma como eles achavam aceitável, por
cada noite solitária, por cada dia em que tudo o que eu mais queria era morrer.
Doía lembrar o medo de não saber o que fariam comigo quando o treinamento
terminasse. No que iriam me transformar. Também era insuportável recordar de
todas as vezes que usaram o nome da própria Christine para me chantagear, para
me manter na linha, destilando ameaças que eu não ousava nem sequer proferir
para não assustá-la ainda mais.
Pensando em tudo isso, agi sem pensar e segurei-a pelo braço, puxando-a
para mim. Apertei-a forte contra o peito, sem saber direito quem confortava
quem. Encostei o queixo em sua cabeça e senti o cheiro adocicado de seus
cabelos, o que me deu uma rara sensação de paz. Imaginava que ela deveria estar
ouvindo o som incessante do meu coração, e esperava que pudesse compreender
o que ele queria dizer.
Christine foi a primeira a se afastar, e eu quase agradeci por isso, antes
que acabasse tomando outra decisão impensada, como a do dia anterior. Eu a
desejava, e isso era perigoso demais. Ao menos naquele momento, enquanto as
coisas ainda não estavam nem perto de ficarem resolvidas.
— Acho melhor eu ligar para a minha amiga para saber o que aconteceu
com o homem em coma, você não acha? — ela perguntou, e eu assenti. —
Preciso também falar com Telma. Ela deve ter se assustado com as manchas de
sangue na cafeteria...
Assenti novamente, e a observei enquanto ligava para sua funcionária.
Tentei não ouvir a conversa, enquanto checava meu próprio celular. Terminando
a conversa, Chris voltou-se para mim.
— Estranho... Telma me falou que encontrou tudo normal na cafeteria.
Fui sutil, é claro, mas eu tenho certeza de que comentaria algo.
— A explicação é simples. Aquele cara deve ter limpados as evidências.
Refletindo sobre o que eu disse, Christine fez que sim com a cabeça e
pôs-se a ligar para a amiga enfermeira, para cumprir o resto do que se dispusera
a fazer. Maiara, então, verificou para nós que o homem que eles chamavam de
John Doe ainda estava lá, imóvel, sobre a cama do quarto 507.
Sendo assim, eu precisava falar com Mário.
— Tenho que fazer uma coisa, um pouco urgente.
Ela assentiu, e eu peguei meu celular, que também tinha deixado sobre a
escrivaninha do quarto de hotel — ao lado da chave do carro e de uma pequena
carteira — e imediatamente busquei o número de Mário na agenda de contatos.
Eu sabia que ainda era cedo, que ele normalmente ia até muito tarde jogando,
mas era urgente.
— Me fala que você acabou de descobrir a cura do câncer... Porque só
esse motivo seria relevante o suficiente para me fazer acordar a essa hora da
madrugada — ele resmungou com uma voz de sono que chegava a dar pena.
— São sete e meia da manhã.
— Porra, isso não é um horário decente para alguém ser acordado. Mas
fala, 48, o que você quer?
— Um cara apareceu na cafeteria e ameaçou sequestrar a Christine. A
MR está atrás dela... — falei tudo isso olhando na direção de Chris. De frente
para a janela do quarto, ela observava a vista lá fora, mas eu imaginava que
deveria estar prestando atenção na ligação, embora tentasse não demonstrar.
— Puta que pariu! Acabei de acordar cem por cento — ele afirmou, e sua
voz realmente parecia mais alerta.
— Além disso, tem um cara, em coma em um hospital, que é muito
parecido com o que nos atacou ontem. A Christine tem uma amiga médica que
tirou algumas fotos dele. Se eu te mandar as imagens, você pode tentar
reconhecê-lo?
— Se nós tivermos nos esbarrado lá dentro da corporação, com certeza.
— Ok. Vou te enviar por Whatsapp — afirmei, já pronto para desligar,
mas Mário me chamou.
— Você quer vir para cá para tentarmos descobrir quem ele é? Talvez
com a foto... ou se eu me lembrar de algum nome...
— Estou com Christine. Se eu puder levá-la...
— Eu preciso ir trabalhar, Arthur! — ela exclamou, o que me fez
perceber que realmente estava ouvindo a conversa.
— Você não vai trabalhar hoje, Christine. Sem discussão. Vai ficar
grudada em mim essas vinte e quatro horas, porque não quero descuidar.
Amanhã procuramos outra solução.
Vi Christine bufar, parecendo bastante contrariada, mas ao menos não
contestou minha decisão. Quando voltei à linha com Mário, ele soltou a pérola:
— Cara, ainda bem que você é bonitão, porque não sabe nem um pouco
lidar com uma mulher. Elas não gostam de receber ordens assim — ele falou, e
se eu estivesse com um humor melhor teria rido de seu comentário espirituoso.
— É, mas essa aqui me conhece bem e sabe que eu não estaria fazendo
isso se não fosse para protegê-la — disse, olhando fixo para Christine, que
revirou os olhos e novamente virou a cabeça na direção da janela. — Mas, então,
Mário. Tudo bem se eu levá-la comigo?
— Claro. Se ela não se importar com uma casa bagunçada...
— Estaremos aí em duas horas.
— Beleza! Estou esperando... — ele fez uma pausa e logo acrescentou:
— Mentira. Eu vou dormir mais um pouco. Toque a campainha com vontade se
eu demorar a atender.
Daquela vez não pude deixar de rir antes de desligar.
Informei a Christine sobre os meus planos e nos preparamos para realizar
o check-out. Não havia muito o que arrumar, porque chegamos no hotel com a
roupa do corpo; então, em quarenta minutos nos vimos liberados para sairmos,
depois de tomarmos banho e finalizarmos as burocracias.
Pegamos o carro e partimos para a casa de Mário. Exatamente como ele
pontuou, ao chegarmos, precisamos praticamente socar a campainha para que
nos ouvisse e nos atendesse. Quando eu já estava quase perdendo a paciência, o
engraçadinho apareceu, destrancando-a e surgindo na nossa frente com a cara
toda amassada, os cabelos encaracolados todos desgrenhados e os olhos azuis
inchados de sono.
— Você chegou rápido demais — ele disse, em meio a um bocejo.
— Eu demorei duas horas.
— Isso não é um tempo decente para um bom cochilo... Vamos, entrem
logo... — Ele abriu mais a porta, e eu dei um passo à frente, para entrar,
pousando a mão nas costas de Christine para levá-la comigo, mas ela
simplesmente permaneceu congelada no mesmo lugar, como se seus pés
estivessem presos ao chão. Quando virei-me em sua direção para tentar entender
o que tinha acontecido, percebi que mantinha com os olhos arregalados,
apontando para Mário, que nada entendia.
— Chris? O que houve?
— Esse rapaz... eu c-conheço... — ela chegou a gaguejar, e meu corpo
imediatamente retesou-se, já sabendo o que se passava por sua cabeça. — Ele
estava na cafeteria no dia em que... Ah, meu Deus! — Levou as mãos à cabeça,
dando um passo para trás, recuando, juntando as peças do quebra-cabeça. — Foi
mesmo você... você que me sequestrou lá no Alto... — Ao dizer isso, ela se virou
para mim.
O silêncio era quase sufocante, porque eu sabia o que viria em seguida.
Eu poderia ter feito alguma coisa, adiantado um pedido de desculpas ou uma
explicação qualquer, mas preferi que ela prosseguisse; que externasse o que a
afligia, que usasse suas próprias palavras para lançar acusações. Porém, ela ainda
continuava na porta, parecendo pronta para fugir a qualquer momento, e eu
precisava fazer alguma coisa — especialmente porque Mário olhava para mim
com uma expressão apavorada.
— Chris, só entra no apartamento, por favor. Vamos conversar aqui
dentro...
Ela relutou por alguns segundos, e eu não poderia julgá-la. O incidente
do Alto da Boa Vista fora o maior erro que cometi desde que retornei — e olha
que não eram poucos, se colocássemos na ponta do lápis. Tudo fora equivocado.
Coloquei sua integridade em risco, menti e omiti, além de tê-la feito sofrer.
Apesar de tudo, ela acabou dando alguns passos para frente, entrando,
permitindo que eu fechasse a porta, protegendo-nos de olhares curiosos.
— Senta, por favor — falei em um sussurro, tentando deixá-la mais
confortável para a dura conversa que viria a seguir.
— Pare de tentar me manipular, Arthur! Eu não vou me sentar coisa
nenhuma... quero que me conte agora o que aconteceu naquele dia e que pare de
mentir ou não vai me ver nunca mais a partir desse dia. — Ela parecia decidida
ao falar. Dentro da minha cabeça, algo gritava, alertando que era exatamente isso
que eu deveria fazer, deixá-la partir e cortar aqueles laços que nos uniam. Iria
doer. Seria difícil. Porra... seria insuportável, um inferno, um pesadelo... mas ela
estaria a salvo... de mim, ao menos. Só que havia mais coisas em jogo. Ela não
ficaria a salvo, e eu não poderia ser ainda mais canalha ao ponto de lhe negar
aquela explicação.
— Fui eu que te sequestrei lá no Alto... Embora eu não tenha certeza se
sequestrar seria a palavra certa, já que te levei para casa — afirmei, proferindo
cada palavra com muita calma, esperando que isso minimizasse o impacto da
informação. Contudo, quando terminei de falar, ela permaneceu calada, parada e
olhando para mim, com a cabeça levemente inclinada e o cenho franzido, como
se estivesse analisando o que eu tinha acabado de dizer.
— Olha, você não estava sozinho, né? — Mário se intrometeu. Eu não
sabia se era a melhor hora para que ele se manifestasse, mas a intenção era boa,
de não me deixar sozinho naquele impasse.
— Por quê? — ela perguntou em um tom de súplica, como se implorasse
para que a explicação fosse boa o suficiente ou fizesse algum sentido.
Então, eu teria que envolver Edgar no meio. Já estava mais do que na
hora de Christine saber quem era seu amigo corrupto.
— Eu queria que você se sentasse antes de eu começar a falar...
Revirando os olhos, impaciente e irritada, Christine acatou o pedido e
avançou na direção do sofá de Mário, que se apressou para agarrar as roupas que
estavam em cima do estofado.
No momento em que a vi acomodada, percebi que não havia outra
desculpa para continuar adiando o inevitável.
— Há três anos eu sofri um acidente — comecei. Era bem mais difícil do
que eu poderia ter imaginado, mas precisava prosseguir. — Bati com o carro na
volta de uma balada, de madrugada, e quando acordei estava em uma espécie de
sala de cirurgia, amarrado.
— Ah, meu Deus! — ela exclamou, respirando fundo. Queria muito que
essa fosse a pior parte, mas estávamos apenas começando. — Que o acidente foi
uma farsa, eu já tinha entendido, mas a polícia disse que foi alertada por uma
testemunha...
— Alguém da MR, sem dúvidas — Mário respondeu, e eu concordei,
balançando a cabeça.
— Desculpa interromper... pode continuar... — ela pediu.
Respirei fundo e prossegui, de onde parei:
— Não me explicaram muitas coisas sobre o que estava acontecendo,
mas me fizeram essa marca — apontei para a tatuagem com o número 48 em
meu ombro. — Fui dopado outra vez e quando acordei estava dentro de um
quarto, todo branco, com a porta trancada. Por alguns instantes acreditei que
tinham me prendido em um hospício, mas não demoraram a vir me procurar.
Ela começava a chorar, mas mantinha-se calada, com toda a atenção
voltada para mim. Mário ainda estava de pé, sem se intrometer.
— Era o mesmo homem que fez a tatuagem em mim, e ele veio com a
explicação de que a partir daquele momento, eu seria treinado como um soldado
e que pertencia a eles; que seria designado para missões. Se eu não as cumprisse,
sofreria as consequências. A maioria delas incluía ataques à minha família… —
hesitei. Queria poder poupá-la de certos detalhes, mas não era possível e não
seria justo. Não quando ela fazia parte da história diretamente. — E a você...
— A mim? — ela perguntou assustada.
— Sim. Eles sabiam de tudo. Conheciam minha rotina, as pessoas que
me cercavam, e sabiam o quanto você era importante para mim. Tão importante
quanto a minha família.
— Arthur, eu... — Eu sabia que ela deveria ter muito a dizer, mas não
podia deixar que me interrompesse enquanto não terminasse.
— Nunca me disseram isso diretamente, mas fui treinado para me tornar
um assassino. Aprendi a lutar, atirar, lidar com facas, meu corpo foi modificado,
preparado para que eu pudesse usá-lo como uma arma. Além do treinamento
físico, aprendi a mentir, a exercer meu poder de persuasão e a estudar as reações
das pessoas para identificar mentiras. Técnicas de tortura foram incluídas no
pacote... e posso dizer com segurança que muitas delas funcionam de verdade.
Talvez eu tivesse pegado um pouco pesado, porque assim que ouviu a
última frase, Christine levou as mãos à boca e arregalou os olhos, aterrorizada.
— Arthur, eles te... Meu Deus, você foi t-torturado? — gaguejou,
mortificada.
— Acho que eu vou pegar um copo d’água para ela — Mário anunciou,
saindo de perto de nós e correndo na direção da cozinha.
— Sim, eu fui torturado. Mais vezes do que posso contar. — Não
querendo mais esconder nada, fazendo daquele momento quase uma confissão,
tirei a blusa e mostrei a ela as pequenas cicatrizes. Ela já as tinha visto, mas
agora sabia de onde vinham.
Sentando-me sobre a mesa bem em frente ao sofá onde ela estava
sentada, tomei suas mãos nas minhas. Já estava prestes a começar a falar, mas
Mário chegou com o copo d’água, e eu esperei que ela bebesse, enquanto vestia
novamente a camisa.
— Obrigada — ela se dirigiu a ele, devolvendo o copo.
Quando se voltou novamente para mim, sua expressão era decidida,
apesar das constantes lágrimas nos olhos.
— Não me esconda nada, Arthur. Não amenize a situação para me
poupar. — parecendo adivinhar o que se passava pela minha cabeça, ela falou
convicta. Era difícil não sorrir diante de uma atitude tão corajosa, porém,
esforcei-me para não fazê-lo, uma vez que não queria que ela pensasse que
estava zombando da situação.
— Estou te falando toda a verdade. — Fiz uma pausa, sabendo que o pior
ainda não tinha sido externado. Precisava contar a ela a parte sobre Edgar e o
incidente do Alto. — Passei por todas essas provações durante três anos. Já não
tinha a menor esperança de me salvar, principalmente porque fugir era quase
impossível.
— Mas você fugiu...
Neste momento eu finalmente abri um sorriso. Um curvar de lábios
enviesado, quase malicioso.
— Eu disse quase impossível. — Outra pausa. — Quando eles
acreditaram que eu estava finalmente pronto para ser o soldado que esperavam
que eu fosse, me deram uma missão. Eu precisaria eliminar o dono de uma
empresa acusada de negócios clandestinos, principalmente tráfico de mulheres.
— Christine encolheu os ombros, como imaginei que aconteceria. — Para isso,
eles me levariam de volta à civilização, e eu teria que usar uma espécie de
tornozeleira com um GPS, como aquelas de prisioneiros em condicional. Só que
eles cometeram um erro fatal.
— Qual? — ela indagou em um sussurro.
— Deixaram para colocá-la quando já estávamos fora da sede da
corporação. E eu não podia perder a oportunidade. Foi então que fugi.
Não queria entrar em detalhes sobre as circunstâncias da minha fuga, mas
imaginava que Christine estava ciente de que eu não teria conseguido escapar
com vida se não tivesse tirado vidas. Era matar ou morrer, e ela sabia muito bem
disso, porque sentira na pele a escolha.
Apesar de entender que ela não merecia mais ser tão magoada, precisei
continuar.
— Por mais que tenha me livrado da MR, ao menos na teoria, eu quis
saber quem era a pessoa que queriam que eu assassinasse. Queria descobrir o
motivo e entender se havia alguma ligação comigo. E... bem... havia. — Neste
momento, olhei bem fundo nos olhos dela e percebi que estava completamente
focada em mim. Tendo esta constatação, prossegui: — O homem que eu
precisaria matar é Edgar Queiroga. E acho que uma das minhas ligações com ele
é o fato de nossas famílias serem amigas. Talvez você também tenha algo a ver
com isso, mas não posso ter certeza.
— Edgar? — Ela franziu o cenho, confusa. — O meu amigo Edgar?
Não! Você só pode estar enganado. Não pode ser a mesma pessoa. — Christine
levantou-se, transtornada.
— Você o conhece assim tão bem? — Havia um pequeno resquício de
ciúme na minha pergunta, confesso, mas não apenas isso. Não queria que ela
confiasse = em um homem que claramente era um filho da puta.
Antes de responder, porém, abaixou a cabeça, provavelmente ponderando
minha colocação.
— Acho que nunca conhecemos uma pessoa o suficiente, não é mesmo?
— Por um momento acreditei que estava usando de ironia para se referir a mim
indiretamente, mas depois cheguei à conclusão que isso não fazia seu tipo.
Christine era uma mulher direta, que não fazia joguinhos nem rodeios. A
constatação ficou ainda mais forte quando ela acrescentou algo que não me
deixou desnorteado por muito pouco. — Naquele dia no Alto, eu tinha pedido
para ele me levar para casa.
— Vocês estavam em Ipanema. Como foram parar lá, então?
— Não sei. Ele disse que vocês o obrigaram a pegar um caminho
alternativo.
— Mentira. Nós só emparelhamos com vocês quando chegaram ao Alto.
— Cerrei minhas mãos em punho quando o entendimento me atingiu. — Aquele
filho da puta ia te levar para a casa dele contra a sua vontade.
Controlei minha vontade de socar qualquer coisa à minha frente, porque
não era hora para dar vazão à minha raiva. Teria outras oportunidades de dar
umas porradas naquele merda.
Respirando fundo, provavelmente me dando razão, ela passou a mão
pelos cabelos e voltou-se novamente para mim.
— E falando no Alto... O acidente teve a ver com isso? Com essa sua...
missão? — ela indagou, mas logo acrescentou, com um sorriso um tanto quanto
sarcástico: — Claro que tem. Foi uma pergunta estúpida.
— Não, não foi. Mas a resposta realmente é sim. Eu queria interrogá-lo,
então, tencionava levá-lo comigo. Por isso enviei Mário para ficar na cola dele e
descobrir onde poderíamos encontrá-lo. Quando ele me falou que Edgar tinha
um encontro, eu não fazia ideia de que era com você... — Minha voz falhou, e
eu precisei respirar fundo. — Se eu soubesse, Chris, não teria te envolvido em
nada disso. Mas só descobri lá, quando os carros já tinham batido. Quando te
vi... Deus! — Passei a mão pelo rosto, levemente desnorteado. — Você não tem
noção do remorso que senti, do quanto me preocupei. A única coisa que poderia
fazer era te levar para casa.
— Mas o que vocês fariam se fosse outra mulher?
— Nosso plano era que Mário a levaria para um hospital ou qualquer
outro lugar seguro. Jamais faríamos mal a uma inocente.
— Mas fariam a Edgar... — ela concluiu, e eu não tive coragem de negar.
— Chris, eu investiguei e realmente descobri que as insinuações são
verdadeiras. A empresa dele tem negócios clandestinos com tráfico de mulheres.
— Não, não pode ser! — insistiu ela. — O marido da minha melhor
amiga trabalha na empresa de Edgar. E ele é uma boa pessoa, jamais participaria
de algo assim!
— Ele provavelmente não sabe de nada. A Import é uma empresa de
fachada, que funciona de forma legal, com negócios legais. O problema é o que
acontece por trás dos panos e que apenas a família e mais alguns funcionários
devem saber.
Ela balançou a cabeça concordando, demonstrando que tinha entendido o
que eu queria dizer.
— Deus, e eu saí com um cara desses! Cheguei a pensar em lhe dar uma
chance! Meu Deus! — Chris novamente levou a mão à cabeça, muito nervosa.
— Quer mais água, moça? — Mário ofereceu, mas ela apenas balançou a
cabeça, negando. Meu amigo parecia extremamente desconfortável com a
situação.
— Tem algum lugar nesse apartamento onde eu possa ficar um pouco
sozinha? Eu só preciso... sei lá, de um tempo.
— Pode ficar no meu quarto... Tá meio bagunçado, mas...
— Não, tudo bem, está ótimo. Por favor... — Christine olhou para mim,
como se pedisse desculpas por aquele momento de fraqueza. Eu odiava a
hipótese de deixá-la sozinha, pois imaginava que sua cabeça deveria estar
fervilhando de pensamentos confusos, e eu queria responder a todas as suas
perguntas, mas imaginava que ela realmente precisava de um momento consigo
mesma. Eu lhe devia isso e muito mais. Portanto, deixei que Mário a conduzisse
até seu quarto e retornasse para perto de mim, depois de deixá-la lá dentro e
fechar a porta.
— Até que ela recebeu as coisas muito bem — ele comentou, enquanto
se sentava ao meu lado, praticamente se jogando no sofá, afundando o assento ao
meu lado.
— Você acha? — indaguei sem encará-lo, em um tom de desdém.
— Levando em consideração a quantidade de informações que você
jogou no colo dela... A garota é dura na queda. — Ele fez uma pausa e deu uma
risadinha. — Tudo bem que dura na queda seria algo que minha avó falaria, se
ainda estivesse viva, mas isso resume bem as coisas. E é gata, hein! Já tinha te
falado isso quando a vi naquele dia, no Alto, mas é linda. Agora dá para entender
o porquê de você estar doidão na dela.
Não achei que merecesse resposta, então, fiquei calado. Não conseguia
pensar em outra coisa que não fosse Christine dentro daquele quarto, sozinha,
possivelmente chorando. Naquele único dia, ela descobrira que eu fui torturado,
que eu mesmo a havia “sequestrado” no Alto da Boa Vista e que uma pessoa de
quem ela gostava era um traficante de mulheres. Um homem que, aliás, tinha
uma grande proximidade com ela ao ponto de atraí-la de alguma forma, fazendo-
a cogitar uma possibilidade de um relacionamento. Sem dúvida não foram
notícias muito animadoras.
— Ah, só para constar... consegui aquele negócio que você me pediu...
— Ele abriu uma gaveta do rack e tirou de lá uma caixa. Dentro dela havia um
livro, que foi aberto, revelando um fundo falso, que guardava uma arma. Ele a
entregou para mim. — Não foi fácil, mas tenho meus contatos.
— Ótimo. — Apressei-me em guardá-la escondida dentro do cós da
calça, para que Chris não a visse.
— Arthur, você só não contou uma coisa para Christine... — Lentamente
voltei-me na direção de Mário, esperando que ele prosseguisse. — Não disse o
que pretende fazer com o tal do Edgar. Que se tudo o que descobrimos for
verdade...
— Eu vou matá-lo — afirmei com convicção, completando o raciocínio
do meu amigo. — Mas ela não precisa saber disso ainda. Não quero que se sinta
cúmplice de nada.
Alguns segredos ainda teriam que permanecer escondidos, ao menos até
que sentisse que Christine estava realmente a salvo. Protegê-la agora era a
prioridade. Tanto daqueles que me perseguiam quanto de mim mesmo e minha
missão. E eu nem sabia qual dos dois era mais perigoso.
Capítulo Treze
CHRISTINE

Não saberia dizer se tomei a melhor decisão ao pedir alguns minutos


sozinha. Provavelmente o mais correto seria sair correndo dali como uma louca e
me afastar ao máximo de Arthur antes que fosse consumida por toda a sua
escuridão.
A história que ele acabara de me contar não saía da minha cabeça. Era
cruel, quase inimaginável, e eu não podia suportar pensar no quanto ele deveria
ter sofrido durante aqueles anos. Conseguia entender o motivo de ter mudado
tanto. Ninguém poderia passar por uma experiência como aquela sem cicatrizes
emocionais, sem perder um pouco de si no processo. Esperava apenas que o
pedaço que Arthur deixara para trás, naquele maldito lugar que o manteve
prisioneiro por três anos, não fosse o que costumava torná-lo uma pessoa boa.
Passei mais ou menos meia hora dentro daquele quarto, sem coragem de
abrir a porta e encará-los. Fiquei sentada durante todo o tempo na beirada da
cama desfeita de Mário, olhando para uma parede e pensando. Em nada, em
tudo, em mim, em todo aquele tempo que permaneci acreditando que o amor da
minha vida havia morrido. Mas ele estava de volta, e agora eu sabia de tudo pelo
que passara. Minha verdadeira vontade era abraçá-lo e confortá-lo, porque por
trás daquela fachada casca grossa escondiam-se um coração e uma alma
destroçados.
Já estava prestes a voltar para a sala, quando a porta foi aberta
suavemente. Um cheiro de cafeína inundou o pequeno ambiente, e eu quase
suspirei de prazer ao senti-lo. Olhei por cima do ombro, só para ver o rapaz que
me fora apresentado como Mário entrando com uma caneca nas mãos.
— Sempre achei que café era um remédio para todos os males... — foi o
que ele disse ao estender a caneca para mim. Peguei-a de sua mão sem hesitar.
Estava mesmo precisando de algo bem quente para acalmar os calafrios que
percorriam meu corpo.
— Obrigada — respondi, não encontrando outras palavras que
coubessem naquele momento.
— Arthur está usando meus computadores no escritório aqui do apê e
pediu que eu viesse conferir se está tudo bem. Ele acredita que você não quer vê-
lo nem pintado.
Enquanto falava, Mário sentou-se na cadeira da escrivaninha, que ficava
localizada bem à frente da lateral da cama, no lado onde eu estava sentada.
Movimentava-se sobre ela, fazendo-a girar, formando pequenos ângulos de 90º.
Ele parecia inquieto, e eu não pude deixar de me perguntar como Arthur decidira
colocar aquele rapaz no meio de seus problemas. Chegava a ser uma crueldade.
Era jovem demais, magrinho, com uma expressão de inocência que chegava a
comover. Os cabelos cacheados, os olhos muito claros num tom de azul e a
carinha de nerd eram grandes indicadores de que não era um lutador, não era um
“soldado”. Era apenas um garoto.
— Onde conheceu Arthur? — perguntei, ignorando seu comentário
anterior e enquanto segurava a caneca com as duas mãos, esperando que o café
esfriasse só um pouco.
Mário relutou. Provavelmente sentia-se inseguro em falar sobre aquele
assunto sem que Arthur estivesse por perto. Eu podia captar a lealdade que lhe
dirigia pela forma como hesitava e como olhava para mim, cheio de
inseguranças. Ainda assim, acabou respondendo.
— Na própria M.R.. Eu trabalhava lá — respondeu econômico, sem
entrar em detalhes.
— Trabalhava?
— Sim, mas fiquei por pouco tempo. Eles me pediam para pegar algumas
informações, acessar redes privadas e invadir bancos de dados...
— Ah, então você é um hacker? — indaguei, surpresa.
— Sou, moça. Dos bons — disse, sorrindo, com seus dentes muito
brancos em evidência, embora ainda demonstrasse alguma nota de
constrangimento e tristeza nos olhos. — Mas aquilo não era para mim. Quando
comecei a me dar conta das coisas nas quais estava me metendo, caí fora.
— Você sabe se havia outras pessoas como Arthur por lá?
— Eu acho que sim. Só que nunca entendi o que eles eram exatamente.
Via muita gente, mas não sei dizer quais eram realmente funcionários e quais
eram... bem... como Arthur, que foi quem me contou tudo depois de um tempo.
Antes disso, eu não sabia que sequestravam pessoas...
— É o tipo de coisa que você acha que só acontece em filmes... —
comentei e em seguida tomei o primeiro gole do café, agradecendo pelo líquido
descer bem quente pela minha garganta, levando consigo o nódulo que me
sufocava. — E você, Mário? Eles não te perseguem?
Essa pergunta pareceu deixá-lo desconfortável, tanto que se remexeu na
cadeira, mas não a retirei.
— Eu achava que não, mas acabei descobrindo que um amigo meu foi
assassinado por minha causa — disse em um tom de voz baixo, quase
sussurrado, de cabeça baixa, e eu pude sentir o peso que pesava em suas costas
como se fosse algo tangível.
Penalizada, pousei uma mão em seu ombro, desejando confortar aquele
rapaz que eu mal conhecia, mas que estranhamente me despertava simpatia.
— Não fique assim. A culpa não foi sua.
— Eu até sei disso. Na teoria, é claro. Mas na prática as coisas
complicam. Fico pensando que poderia ter evitado que acontecesse, mas dei com
a língua nos dentes e falei demais. — Ao dizer isso, ele novamente se remexeu
na cadeira, empertigando-se, e imediatamente mudou de assunto: — Olha,
Christine, eu sei que você não me conhece direito e que a primeira impressão
que teve de mim não foi das melhores... mas só quero te pedir para dar um voto
de confiança ao Arthur. Ele é um cara sensacional e está tentando fazer a coisa
certa. Fora que ele é louco por você. Seria capaz de matar e morrer para te
proteger.
As palavras de Mário fizeram meu estômago se remexer, enfraqueceram-
me. Imediatamente senti os olhos arderem com lágrimas iminentes, prontas para
teimarem e caírem. No entanto, fiz todo o esforço para engoli-las quando percebi
que mais alguém entrava no quarto.
Os passos quase silenciosos de Arthur quase não denunciaram a sua
presença, mas eu poderia senti-lo em qualquer lugar. Virei-me em sua direção
bem lentamente, adiando ao máximo o momento em que teria que encará-lo. Era
doloroso olhar para ele e pensar em tudo pelo que passara. Mais doloroso ainda
saber que, por mais que estivesse livre, jamais teria sua liberdade de volta. As
lembranças sempre funcionariam como correntes, prendendo-o a um passado
terrível, especialmente enquanto aquelas pessoas ainda estivessem por perto,
ameaçando-o.
Pensando em tudo isso, o que me restou fazer foi levantar-me, caminhar
em sua direção e jogar meus braços ao redor de sua cintura, encostando minha
cabeça em seu peito. No exato momento em que fiz isso, senti sua pulsação
dentro da minha cabeça, como uma voz poderosa e melodiosa. O contato a
acelerou ainda mais, e eu quase sorri, pensando que me sentia da mesma forma.
Nossos corações em uníssono me proporcionavam uma estranha sensação de
segurança, uma que eu não deveria me permitir ter. Porém, estar nos braços de
Arthur me deixava entorpecida, rendida e muito vulnerável. Não apenas pelo
fato de desejá-lo como mulher, mas porque eu sabia que, de alguma forma muito
equivocada, nós nos encaixávamos. Fosse como amigos, fosse como amantes,
fosse como o que quer que o destino nos reservasse. Nossas histórias se
entrelaçavam, foram escritas sobre uma mesma linha infinita, que se cruzava em
um determinado ponto, conectando-nos um ao outro. Exatamente por isso,
naquele momento, presa na força de seu abraço, precisei reconhecer para mim
mesma, por mais que a perspectiva me assustasse: eu jamais pertenceria a
alguém como pertencia a ele. Minha alma inteira estava em suas mãos. Era bom
finalmente admitir o óbvio. Não importava o que iria acontecer dali em diante.
Depois do que pareceu uma eternidade, Arthur afastou-se um pouco de
mim, mas sem me soltar, mantendo as mãos firmes em meus braços. Seus olhos
azuis fixaram-se nos meus, e por um breve e doce momento esses mesmos olhos
recaíram sobre meus lábios.
Eu poderia jurar que seria beijada naquele momento. E foi essa hipótese
que me deixou com a nítida certeza de que era realmente apenas uma garota
estúpida quando se tratava de Arthur. A expectativa invadiu meu corpo,
crescendo dentro de mim, acomodando-se entre meus ossos, grudando-se em
meus músculos, modificando-se e juntando-se ao meu sangue, percorrendo
minha coluna com uma força capaz de me quebrar ao meio. Cada célula idiota
do meu organismo estava atraída por aquele homem — talvez mais ainda depois
de saber todas as provações pelas quais passara e sobrevivera como um
verdadeiro guerreiro —, e eu sabia que acabaria em ruínas em seus braços, se
realmente me beijasse.
Eu era um verdadeiro desastre naquele momento.
— Er... bem... acho melhor eu dar uma volta, procurar alguma coisa para
fazer... talvez lavar um banheiro ou qualquer coisa assim... — Mário anunciou, e
isso foi suficiente para que nós dois fôssemos libertados de um transe
imaginário. Ainda bem, porque eu finalmente consegui voltar a mim e tomar
novamente o controle do meu corpo e das minhas emoções.
Ainda assim, Arthur não disse nada e permitiu que Mário saísse,
deixando-nos sozinhos. O barulho da porta sendo fechada me fez sobressaltar
muito de leve, principalmente quando minha companhia aproximou-se ainda
mais de mim. Nossos rostos estavam tão perto um do outro — tão
desesperadamente próximos — que eu podia sentir sua respiração quente
tocando a minha pele.
Ele tirou as mãos dos meus braços e ergueu-as até o meu rosto. Muito
lentamente foi se aproximando mais e mais, até que seus lábios tocassem os
meus bem superficialmente, apenas o suficiente para que eu sentisse a textura e a
maciez de sua boca contra a minha. O contato prolongou-se por algum tempo,
até que uma lágrima intrusa intrometeu-se em nosso beijo. Essa foi a deixa para
que ele se afastasse, olhando para mim com um misto de ternura e desejo nos
olhos.
— Agora você já sabe o que aconteceu comigo e algumas das coisas que
fiz. Sou um monstro para você, Christine?
A pergunta foi feita em um sussurro cheio de sentimento. Estava mais do
que claro para mim o quanto aquela possibilidade o assustava. Mais de uma vez
demonstrei não confiar nele, embora o conhecesse tanto quanto conhecia a mim
mesma. Não importava o quanto tivessem tentado mudá-lo ou torná-lo um
alguém diferente, o Arthur de sempre permanecia ali, em cada gesto, em cada
palavra, em cada reação. O mais ínfimo movimento me provava isso, então, lá
estava eu novamente condenada a amar aquele homem em todas as suas
nuances.
Com o coração partido por saber o quanto o destino fora cruel com ele —
e talvez também conosco —, imitei-o, erguendo uma mão pousando-a em seu
rosto, por sobre a barba que lhe cobria o maxilar, enchendo o tom da minha voz
de amor e compreensão:
— Você nunca poderia ser um monstro para mim, Pan. É o meu melhor
amigo e sempre será.
Ele fechou os olhos enquanto eu falava, como se precisasse absorver
aquelas palavras não com os ouvidos, mas com o coração. Agarrou minha mão
com força, demonstrando toda a intensidade que pairava entre nós, e beijou-a.
— Eu te amo, Chris. Amo de uma forma que chega a me assustar, porque
eu deveria ter percebido antes... deveria...
— Shhh... — Coloquei a mão sobre seus lábios, pedindo que se calasse.
Não era hora para aquilo. Não era sequer o momento certo para uma declaração
de amor, apesar de ela me encher de contentamento, como se tivesse valido a
pena esperar todos aqueles anos. Por mais estranho que fosse o seu retorno e
tudo o que vinha acontecendo conosco, algo me dizia que aquele amor poderia
vencer qualquer coisa. — Antes de mais nada, precisamos resolver os
problemas. Tem muitos obstáculos no nosso caminho, e eu não quero te perder
de novo.
— Você não vai se meter em nada disso, Christine. Não quero que...
Colocando-me na ponta dos pés, calei-o com um beijo. Um igual ao dele,
casto e inocente.
— Não estrague o momento, Pan. Só aceite a minha ajuda. Talvez não
seja grande coisa, porque sou só uma garota comum, mas juntos podemos pensar
em algo. A foto do rapaz em coma no hospital pode nos ajudar...
— Sim, temos que mostrá-la ao Mário — disse Arthur, como quem sai de
um transe, passando a mão pelos cabelos curtos e piscando várias vezes. Era
triste sermos arrancados de um momento terno para voltarmos a uma realidade
tão assustadora. Porém, enquanto aquelas coisas não fossem resolvidas, não
poderíamos resolver a nossa situação.

Saímos do quarto juntos e fomos procurar por Mário. Encontramos o


rapaz vidrado olhando para o computador, no outro quarto da casa, que lhe
servia de escritório, com um fone no ouvido, os dedos da mão esquerda
frenéticos apertando algumas teclas do teclado e os outros, da direta, firmes no
mouse, enquanto conversava com alguém, dando direções. Na tela, um cenário
muito colorido, com uma arma em primeiro plano, que atirava em personagens
dos mais diversos tipos.
Ao perceber que o estávamos observando, Mário estendeu a mão,
pedindo-nos alguns minutos. Continuou berrando, virado para a tela, ora
reclamando, ora vibrando e tecendo elogios. Porém, instantes depois, entendi
que tinha vencido a partida, porque pareceu muito animado. Então, apressou-se
em tirar o fone dos ouvidos. Reparei que seu mouse era diferente, com alguns
botões na lateral, assim como seu teclado, com teclas brilhantes, coloridas, assim
como o jogo que estava jogando.
— Vocês sabem que eu não estava falando sozinho, né? É um jogo.
Overwatch... a gente joga online.
Dei de ombros, sorrindo para ele, demonstrando que entendia.
— Depois você me ensina. Parece divertido... — brinquei, tentando
parecer simpática. Aquele garoto me despertava algum tipo de carinho,
especialmente por saber que estava ajudando Arthur naquela jornada tão difícil.
Com minha resposta, Mário arregalou os olhos, e um enorme sorriso
cruzou seus lábios.
— Pelo amor de Deus, 48, eu espero que você se case com essa mulher
ou eu mesmo vou fazer isso, porque ela é sensacional...
Não pude deixar de rir, com um leve toque de embaraço, principalmente
pela reação de Arthur, que focou os olhos em mim, novamente cheios de
intensidade, e sussurrou:
— É a mais sensacional de todas.
Novamente o clima ficou pesado, mas Mário pigarreou, servindo como
nosso gongo, trazendo-nos para a realidade.
Com isso, Arthur se empertigou e cruzou os braços contra o peito,
dizendo:
— Temos que te mostrar a foto do cara que está em coma. Talvez você o
conheça.
— Não quero que alimente muitas esperanças com isso, porque, como já
disse, eu tinha acesso a muito poucas pessoas na M.R.
— Mas não custa tentar, não é? — indaguei, e ele deu de ombros. Com
sua resposta, apressei-me em pegar o celular na minha bolsa e abrir as fotos que
Maiara me enviara, que já estavam baixadas.
Entreguei o aparelho a Mário, e pude ver em seus olhos uma expressão
de reconhecimento.
— Olha, ele é parecido com um cara que eu vi lá algumas vezes.
Trabalhava na segurança, mas tive muito pouco contato com ele. Chamavam-no
de Vieira, Vitar, Vidal... algo assim. Acho que não ajuda muito, né?
— Não, mas pode ser um começo — depois de dizer isso, Arthur se virou
na minha direção, acrescentando: — Sua amiga falou que o cara ainda está
internado no hospital, certo? — Assenti, balançando a cabeça. — Ele não
poderia ir e vir de um hospital com essa facilidade, sem ninguém perceber, e
ainda voltar com um ferimento novo, na mão. Tem algo de muito estranho nessa
história.
— Principalmente porque, até onde eu sei, esse cara não era um dos
soldados — Mário afirmou.
— Como você sabe? — Arthur perguntou.
— Simples... ele não tinha tatuagem. Nós nos esbarramos uma vez, no
vestiário, assim como acontecia com muitos outros funcionários. Além de um
soldado não poder frequentar as mesmas instalações que nós, eu o vi sem
camisa.
— Se era assim, como foi que você e Arthur se conheceram? Por que ele
estava preso lá, não é? Também não tinha acesso aos locais aos quais você
poderia ir.
— Mário era a pessoa responsável por me manter atualizado em relação
aos avanços tecnológicos, e eu o auxiliava em outras coisas pequenas. Ele
também estava encarregado de me ensinar algumas habilidades de hacker. Claro
que tudo superficial, apenas o necessário para o que eu poderia precisar em uma
missão — Arthur respondeu, e Mário balançou a cabeça, corroborando com sua
resposta.
— Então você também é hacker? — indaguei para Arthur, com uma
sobrancelha erguida, surpresa.
— Aprendi poucas coisas, muito menos do que pretendiam me ensinar. A
verdade era que eu e Mário conversávamos muito mais do que trabalhávamos.
Era um dos poucos momentos em que eu tinha uma companhia agradável dentro
daquele lugar... Pena que durou pouco. — Lá estava aquela expressão de dor
novamente, algo que me torturava profundamente.
— E não eram monitorados?
Mário abriu um sorriso orgulhoso.
— Nada que eu não pudesse adulterar.
Todos nós ficamos em silêncio por alguns instantes, mas logo uma ideia
surgiu. Não era nada muito mirabolante, mas algo que não havia passado antes
pela minha cabeça.
— Arthur, você acha que pode ajudar em alguma coisa irmos ao hospital
com Mário para darmos uma olhada no rapaz em coma? — indaguei, mas ele
imediatamente começou a balançar a cabeça em negativa.
— Talvez até ajudasse, mas não podemos nos arriscar dessa forma. Pode
haver pessoas de tocaia esperando que façamos exatamente isso. Não consigo
acreditar que seja coincidência que um homem tão parecido com o que você viu
no hospital tenha te seguido naquele dia.
Fazia sentido. Talvez eu realmente ainda fosse ingênua demais para não
me ligar nesses detalhes e estava na hora de tentar ser mais esperta. Minha vida
dependia disso.
Nossa estadia na casa de Mário durou mais algumas horas, enquanto eles
dois tentavam encontrar alguma informação de desaparecimento de homens com
os sobrenomes dos quais o rapaz se lembrava, por mais que fossem apenas
suposições. Nada foi relatado nos últimos anos, mas encontramos várias
ocorrências de homens desaparecidos, da faixa etária de Arthur, durante um
período de tempo que vinha de 2012 até aquele momento, já que era o ano que
Mário nos informara como sendo o de início da corporação. Muitos poderiam
não ter nada a ver, mas se analisássemos algumas características, tudo parecia
interligado.
E assustador também.

***

ARTHUR
Eram muitos nomes. Muitas vidas que possivelmente tinham sido
roubadas pela MR. A cada momento que passava, meu ódio se intensificava mais
e mais.
Um deles, porém, não me passou despercebido. Santiago Marinho. Ele
pulsava em minha mente, como se não fosse novo dentro das minhas
lembranças, mas estivesse preso à teia do esquecimento.
Deixei Christine e Mário ainda analisando as ocorrências e me afastei
discretamente, tentando me esforçar ao máximo para recuperar algum resquício
da memória que parecia querer vir à tona, mas que se mantinha escondida.
Voltei, então, inconscientemente ao maldito dia do meu sequestro,
quando me vi preso à maca, pouco antes de ser marcado com a tatuagem de 48.
Minha consciência ia e vinha, e eu ainda não havia aberto os olhos; não tinha me
encontrado na sala quase cirúrgica nem me deparado com a mulher jovem e o
filho da puta que me tatuou. Foi antes. Antes de eu acordar para o meu pesadelo.
Na escuridão, discerni as vozes de dois homens, que falavam algo sobre
uma fuga. Não consegui ligar uma coisa à outra no momento, mas o nome
Santiago Marinho foi proferido.
Era o tipo de lembrança que poderia ter ficado guardada dentro da minha
cabeça por toda a minha vida, se não tivesse sido acionada por algum gatilho. O
fato de estar dopado a nublava e a tornava irreal. A insistência na informação de
que nunca nenhum dos soldados fugira, que era impossível escapar, deve ter
corroborado para que eu tivesse tanta certeza de que era o único a alcançar esta
proeza. Mas agora a dúvida havia surgido.
Aproximei-me de Mário e Christine, sentindo-me quase eufórico.
— Mário, você não se lembra de nenhum soldado chamado Santiago
Marinho? — indaguei.
— Cara, você sabe que era o único que eu conhecia pelo nome. Todos
eram números lá dentro. Por quê?
— Acho que talvez eu tenha ouvido alguma coisa sobre este homem.
Algo sobre uma fuga — assenti, e Mário pareceu perder o ar.
— Não, ninguém nunca fugiu de lá. Só você.
— Talvez isso tenha sido o que tentaram nos fazer acreditar. Só que
surgiu uma memória meio perdida aqui quando eu li o nome dele. Uma de
quando estava dopado, no dia do meu sequestro. Acho que vale investigar, não
vale?
— Claro que vale! — foi Christine quem respondeu, parecendo animada.
Finalmente agindo, Mário começou a fazer sua mágica tecnológica e
buscar informações sobre família, contatos ou qualquer coisa que pudesse nos
levar a Santiago Marinho, o “soldado” misterioso.
— Tem uma esposa. Quando ele desapareceu, em 2012, eram recém
casados. Talvez seja interessante dar uma olhada nela, não acham? — Mário
indagou sem tirar os olhos da tela do computador.
— Sim, pode ser. Se ele voltou para algum lugar, foi para ela — concluí.
— Podemos fazer uma visita... eu posso fazer algumas perguntas e...
— Não. Vai com calma com isso. Um cara do seu tamanho não pode
chegar na casa de uma mulher para interrogá-la. Vai deixá-la intimidada. Por que
não deixa que eu fale com ela? Posso contar a sua história, sem mencionar o seu
nome, ganhar compaixão e conversar. Talvez ela se abra comigo — Christine
sugeriu.
Eu e Mário nos entreolhamos, cada um parecendo ter uma opinião
diferente, enquanto Christine tentava interpretar nossas expressões. A minha
deveria ser a mais óbvia possível; eu não concordava muito com a ideia de
envolvê-la ainda mais naquela história, mas pela forma como Mário inclinou a
cabeça e ergueu uma sobrancelha, percebi que estava perdido. Seria voto
vencido. Ele, definitivamente, concordava com ela. Tinha perdido meu aliado.
— Tudo bem, Chris, a ideia é realmente boa. Só me prometa que vai
tomar cuidado... — finalmente respondi, embora achasse que aquilo só poderia
gerar mais confusão.

***

CHRISTINE

Alguns minutos depois, vi-me dentro do carro alugado de Arthur, indo


em direção ao endereço de um contato de um site pertencente à esposa de
Santiago, que descobrimos se chamar Laila, graças à inteligência tecnológica de
Mário. Tratava-se de uma sala comercial no Centro da cidade, onde se situava a
sede da editora que ela compartilhava com uma amiga. Era um negócio pequeno,
que funcionava há uns dois anos, pelo que pudemos coletar de informações, mas
esperávamos encontrá-la lá àquela hora.
Assim que paramos em um sinal, quase na esquina da rua onde se
localizava o prédio do endereço para o qual deveríamos ir, eu coloquei a mão
sobre a dele, chamando sua atenção. Nos últimos tempos, principalmente quando
estávamos fora do que ele considerava um lugar seguro, eu o via tenso, sempre
em alerta, parecendo pronto para agir a qualquer momento, de qualquer forma.
Tanto que quando virei-me em sua direção, percebi seus maxilares proeminentes
cerrados por debaixo da barba e uma respiração pesada que movimentava seu
peitoral em um ritmo cadenciado, tornando-se mais e mais intensa conforme nos
aproximávamos do local.
— Eu acho melhor você me deixar por aqui — afirmei, tentando parecer
o máximo convicta. Contudo, a forma como ele me olhou dava pouco espaço
para argumentação. Ou deveria dar, já que Arthur era realmente um homem
intimidador. Porém, eu não me deixei abater. Nem mesmo ao ver seu cenho
franzido, nem sua carranca ou os lábios franzidos, contrariados. — Não adianta
me olhar dessa forma, porque eu estou certa.
— Não vejo como possa estar... — ele falou ainda muito calmo,
impassível.
— Não seria legal te verem rondando o prédio. Não deu muito certo
ontem, quando aquele homem invadiu minha cafeteria. O cara te viu e decidiu
nos cercar.
— Infelizmente a MR já sabe quem você é. Conhecem o seu rosto. Não
vai mudar muita coisa. — Ele deu de ombros. — Além do mais, você iria se
arriscar a toa.
— Você só está se esquecendo de uma coisa. — Ergui minha mão em
direção ao seu rosto, usando os nós de dois dos meus dedos para acariciá-lo em
um gesto divertido, tentando amenizar o clima pesado que se formou. — Esta
rua é contra mão; você vai ter que dar a volta para parar em frente ao prédio,
enquanto eu posso caminhar esses poucos metros para ganharmos tempo.
Arthur virou o rosto na direção da janela, desviando o olhar do meu, puto
da vida. Mesmo antes de seu desaparecimento, ele nunca gostou de perder uma
discussão.
— Tudo bem, Chris, mas tome cuidado.
— Estamos no centro da cidade, numa terça-feira. Não acho que alguém
vá tentar me sequestrar ou me matar na frente de todas essas pessoas. — Apontei
para a rua, desejando parecer convicta do que dizia, embora só de pronunciar
aquelas palavras meu coração já acelerasse de medo. Entretanto, eu não podia
deixar que tal sentimento me dominasse. Não podia viver em função disso.
— Vá logo, garota teimosa, antes que eu mude de ideia, te leve de volta e
não te deixe mais sair. — Eu sabia que ele estava brincando, e o leve sorriso que
curvava seus lábios, quase imperceptível, era a maior prova disso.
Esforçando-me ao máximo para sorrir também, saltei do carro, esperando
que quando me colocasse de pé as pernas não falhassem com toda a insegurança
que sentia. Não era uma missão muito complicada ou perigosa — se eu não
levasse em consideração que havia um monte de gente aparentemente poderosa
me querendo como moeda de troca —, mas, ainda assim, estava apavorada. Não
nasci para joguinhos, para mentir para pessoas, a não ser que se tratasse de uma
coisa banal e inofensiva. Daquela vez eu teria que contar uma história triste para
uma mulher que já sofrera muito, interrogá-la de uma forma sutil e tentar
arrancar o máximo de informações. Eu não era uma detetive profissional, era
uma mulher comum, mas a vida sempre tinha uma forma estranha de nos
surpreender.
Pisando firme nas ruas esburacadas do centro, virando a esquina para
pegar a Avenida Rio Branco, ergui a cabeça e deixei que uma força de vontade
que eu nem sabia que existia me guiasse. Aquilo tinha a ver com a minha
segurança e com a liberdade de Arthur. Se encontrássemos aquele cara — o
Santiago —, talvez ele pudesse se juntar a nós e nos fornecer informações que
não possuíamos para acabar com a corporação maldita antes que algo pior
acontecesse.
O que mais me apavorava era a dolorosa certeza de que a qualquer
momento eu poderia perder Arthur outra vez. E desta, seria definitiva.
Cheguei ao prédio correto e chequei mais uma vez o endereço só para
que não houvesse nenhum equívoco. Ao constatar que estava tudo certo, entrei e
me identifiquei na portaria, recebendo um crachá provisório.
Subi e cheguei à sala da editora Signia. Toquei o interfone e me
identifiquei dizendo apenas que estava lá à procura de Laila Marinho. O silêncio
veio como resposta, e eu esperei alguns segundos para ser atendida. Uma bela
mulher surgiu à porta com uma expressão de poucos amigos. Era alta e tinha
uma expressão um pouco arrogante no rosto, com uma das sobrancelhas escuras,
perfeitamente delineada, arqueada em desafio.
— Em quê posso ajudá-la?
— Você é Laila Marinho? — indaguei com firmeza, novamente não me
deixando intimidar. A outra mulher se erguia diante de mim, com seus prováveis
um metro e setenta e cinco, isso sem contar os saltos que a deixavam ainda mais
imponente.
— Não. Até porque essa pessoa nem existe há alguns anos... Se veio
procurá-la, está perdendo tempo.
Uau, ela era grossa...
— Por favor, eu preciso conversar com ela. É importante... Assim como
ela, eu também perdi alguém. Uma pessoa que desapareceu.
A morena à minha frente pareceu relaxar um pouco, e uma expressão de
compaixão surgiu em seu rosto. Ela sabia do que eu estava falando. Podia não
ser Laila, mas conhecia sua história.
Atrás da mulher que falava comigo, outra surgiu; menor, mais delicada,
loira, de cabelos cacheados e compridos. As duas eram dois opostos, mas a
forma protetora como a mais alta olhou para a segunda me fez entender que
havia um grande sentimento ali.
— Pode deixar, Gisele... vou conversar com ela — a loira falou com uma
voz muito doce, quase em um sussurro, e eu deduzi que ela deveria ser Laila.
— Mas, Lai...
— Vai almoçar. Já são quase três horas, e você ainda não comeu nada.
Visivelmente contrariada, Gisele nos deu as costas, marchando em
direção a uma salinha menor dentro da sala principal, voltando de lá com uma
bolsa Gucci nas mãos.
— Estarei por perto. Qualquer coisa me ligue. — Depois de me olhar
com uma expressão ameaçadora, a linda e irritada mulher passou por nós e saiu,
enquanto Laila me fazia entrar e me sentar.
— Me desculpe por Gisele. Somos muito amigas, e ela... Bem... ela é um
pouco desconfiada...
— Tudo bem — respondi tentando ser simpática, enquanto me
acomodava no sofá de couro que ela me apontou. Laila, por sua vez, sentou-se
atrás de uma mesa muito organizada.
— Você não me disse o seu nome...
— Christine — respondi.
— Como você já sabe, eu sou a Laila. Só não sou mais Marinho.
Aquela informação fez um rápido calafrio atingir a minha nuca. Pela
expressão melancólica em seu rosto, a primeira conclusão que tirei foi que
Santiago havia morrido. E isso fez o meu estômago revirar. Não que eu não
soubesse que Arthur estava realmente em perigo, mas essa hipótese me deixou
ainda mais assustada.
— O que quer conversar comigo, Christine? — ela perguntou como se
estivesse em uma reunião de negócios.
Eu poderia usar de rodeios, mas precisava ser bem direta.
— Tenho um amigo que foi sequestrado, assim como Santiago... — Fiz
uma pausa, preparando-me para continuar a falar, sabendo que a próxima
informação era muito mais problemática. — E que fugiu... da mesma forma.
Laila ficou lívida. Pensei que pudesse desmaiar ali mesmo, mas
recompôs-se corajosamente e empertigou-se na cadeira.
— Não sei do que está falando... — ela afirmou, tentando parecer
convicta.
Bem, além de ser direta, eu teria que contar uma mentirinha.
— Não precisa mentir para mim. Meu amigo conheceu Santiago e soube
da fuga na época em que ainda estava preso. Por isso vim até aqui para saber
onde podemos encontrá-lo. Precisamos de ajuda. Só que pela forma como você
falou...
Laila continuou calada, e eu sabia que ela temia que eu estivesse do lado
do inimigo. Precisava encontrar uma forma de fazê-la confiar em mim.
— Sei que você pode estar pensando que se trata de uma armadilha, mas
realmente preciso de ajuda. Eu e meu amigo estamos sendo perseguidos. Ontem
mesmo fui feita refém por essas pessoas. Não tenho como provar, mas...
— Christine... — ela disse meu nome, estendendo a mão na minha
direção e colocando-a sobre a minha. — Tudo bem. Estou vendo que o seu
sofrimento é sincero. Só que infelizmente não posso te ajudar. Santiago está
vivo... Só não sei onde.
Uma sensação de alívio me tomou, e eu quase suspirei, mas me contive,
porque a situação já era constrangedora demais para isso.
— O que aconteceu com ele? — perguntei, tentando ir direto ao assunto.
Laila respirou fundo e inclinou-se na cadeira, apoiando a coluna no
encosto. Só porque parecia não conseguir deixar as mãos quietas, pegou uma
caneta entre os dedos e começou a tamborilá-la sobre a mesa de madeira.
— Olha, Christine... eu até estou disposta a conversar com você, mas
realmente não sei como te ajudar...
— Meu melhor amigo desapareceu três anos atrás — eu a interrompi. —
Nunca mais ninguém soube nada dele. Reapareceu há uns vinte dias, mais ou
menos. Só que ele não é mais o mesmo... e tem umas pessoas atrás dele. E de
mim... Gostaríamos de conversar com Santiago para saber se...
— Eu realmente não sei onde ele está — Laila me interrompeu, enfática.
— As coisas são... um pouco complicadas. — Abaixou a cabeça, parecendo
envergonhada. Então, prosseguiu. — Santiago... ficou desaparecido por dois
anos. Nesse meio tempo, eu conheci outra pessoa.
Isso era... inesperado.
— Santiago foi dado como morto. Eu sofri por ele por quase um ano, e
estaria sofrendo até o dia em que ele retornou, se Hugo não tivesse aparecido.
Lutei contra, acabei me apaixonando.
— E quando Santiago voltou?
— Hugo me deu uma escolha. Não me pressionou de forma alguma.
Mas, por mais que eu ainda ame Santiago, meu amor pelo meu atual
companheiro se provou ainda mais forte. Essas coisas acontecem.
— Como Santiago lidou com isso? — indaguei, por total curiosidade.
— Não muito bem — foi a resposta econômica dela.
— E como você sabe que a MR não o pegou novamente?
Laila abriu um sorriso levemente malicioso, e eu não precisei de muito
mais do que isso para entender que ela sabia exatamente onde o ex-marido se
escondia, mas não estava disposta a compartilhar a informação.
— Eu simplesmente... sei. — Era uma resposta totalmente insatisfatória,
mas eu não estava ali para interrogá-la sob tortura, então, não poderia obrigá-la a
me dizer nada.
— Ele chegou a te contar alguma coisa? Te deu alguma informação que
possa nos ajudar?
Laila novamente hesitou, respirando fundo. Ela era expressiva, mesmo
sem querer. Não havia dúvidas de que realmente sabia de alguma coisa. Se iria
me contar, aí era outra história.
Porém, ela parecia disposta a ajudar, ao menos um pouco.
Foi então que abriu a tampa da caneta que ainda estava em suas mãos,
pegou um pedaço de papel de rascunho de um organizador e escreveu um nome:
“Hans Balzer”. Sem erguer a folha da mesa, arrastou-a na minha direção.
— Esse foi o nome que Santiago descobriu, a única coisa que me contou.
Ele é o chefe da MR. Mas não sei de mais nada. E, não me leve a mal, Christine,
entendo seu desespero, mas gostaria de pedir que fosse embora. Esta é uma parte
da minha vida que eu gostaria de esquecer.
— Entendo. — Peguei o papel que ela me entregou, levantei-me e
guardei-o no bolso da calça jeans. — Obrigada de qualquer forma.
No momento em que me virei para sair de sua sala, ouvi meu nome
sendo chamado em um sussurro cansado e resignado. Quando voltei-me na
direção de Laila, ela também estava se levantando e vindo até mim.
— Sei que mal me conhece, mas posso te dar um conselho? — Dei de
ombros, quase imaginando o que viria. — O seu amigo não é mais a mesma
pessoa. Eu sei disso, porque mal reconheci Santiago quando voltou. Era o
mesmo rosto, mas em um corpo diferente e uma personalidade completamente
desconhecida para mim. Por mais que não tenha nem sequer me tocado, muito
menos machucado, havia uma violência dentro dele que eu sabia que um dia
acabaria explodindo. Tome cuidado, Christine. Talvez seja uma boa escolha
afastar-se do seu amigo.
Ouvi-a com atenção, oferecendo-lhe todo o meu respeito, mas não pude
evitar o leve sorriso que curvou meus lábios. Era o sorriso de alguém que possui
uma certeza tão grande dentro de sua alma que qualquer coisa ao redor fica
muito pequena. Era a segurança de que não importava o que me dissessem, meu
coração sabia mais do que todas as outras pessoas. Ele era o mais sábio, ao
menos para mim.
— Obrigada pelo conselho, mas acho que vou tentar a sorte. — Eu iria
dizer apenas isso, mas ela colocou a mão no meu ombro, antes que eu pudesse
sair.
— Você vai acabar machucada. E eu não digo só fisicamente...
— Eu ficaria mais ferida se não tentasse, se desistisse. Não estou dizendo
que o que você fez é errado, mas cada um tem uma forma diferente de agir. Essa
é a minha escolha, estar com ele. Porque se eu o perder novamente, vou perder a
mim mesma mais uma vez.
Minha fala pedia uma saída triunfal, e foi o que eu fiz. Virei-me
rapidamente em direção à porta, fazendo meu rabo de cavalo alto chicotear de
um lado para o outro, e me retirei de costas retas, cabeça erguida e um
sentimento de vitória dentro do peito. Claro que era uma coisa completamente
sem sentido, porque aquela mulher não tinha feito nada de errado além de se
meter na minha vida. O problema era que ela tinha dado opinião em um assunto
sagrado. Meus amigos poderiam até tentar me dar aquele tipo de aviso, e eu
poderia fingir prestar atenção, porque lhes devia isso, porém, aquela mulher, por
mais que eu não julgasse sua atitude para com o ex-marido, não tinha o menor
direito de me aconselhar, especialmente porque ela não conhecia Arthur. Não
conhecia a mim; não conhecia a nós.
Por isso, quando saí do prédio e me encontrei com Arthur, que me
esperava do lado de fora, com o corpo apoiado em um hidrante, a minha maior
vontade foi me jogar nos braços dele e beijá-lo. Primeiro, porque — pelo amor
de Deus — aquele homem era um pedaço de mau caminho. As pernas infinitas
estavam cruzadas, e os braços, idem, contra aquele peitoral quase obsceno de tão
musculoso, e um óculos escuros cobria seus olhos, dando-lhe um ar misterioso,
como se fosse um guarda-costas. A camiseta branca de malha, de mangas
compridas, com gola V, caía-lhe tão perfeitamente quanto o jeans, que eu sabia
ser novo, porque aquele seu corpo de agora não cabia mais nas roupas de antes.
Chamava a atenção, primeiro por ser tão alto e tão lindo, com aquela barba que
estava mais do que na moda, cuidadosamente feita, além da aura de mistério e o
charme característico, e eu sabia que estava atraindo olhares de mulheres ao
redor. Só que sua aparência era tão incrível quanto a forma como me fitou
quando me viu atravessar a rua.
Com apenas um olhar, ele me dava a nítida impressão de que não havia
absolutamente ninguém à sua frente além de mim, e a forma fixa como ficou me
observando durante todo o caminho também me fazia imaginar que seria capaz
de se jogar na minha frente e me proteger de qualquer coisa que me ameaçasse.
Aliviado por me ver, ele quase abriu um sorriso. Quase. Mas este deve
ter desaparecido imediatamente quando tomei uma decisão muito impulsiva.
Sem nada dizer, sem qualquer aviso prévio, colei meus lábios aos dele, beijando-
o.
Assim como ele fizera algumas horas atrás, eu também não aprofundei o
contato, porque queria apenas senti-lo. No entanto, quase me arrependi, pois
Arthur simplesmente enlaçou minha cintura, apertando-me contra si com força,
quase me amassando contra seu peito, com uma paixão furiosa, algo que eu
nunca senti, mas que teria me feito derreter em dois segundos se não tivéssemos
parado a tempo, afinal, estávamos em um local público. Além do meu pudor,
ainda tinha o fato de que estávamos sendo perseguidos; então, a melhor escolha
era entrarmos no carro o mais rápido possível.
— Por que tudo isso? — ele indagou com os olhos pesados, fixos em
minha boca, como se não conseguisse desviá-los de lá.
— Porque eu te amo... — A resposta era a mais simples possível, porque
era a maior certeza que meu coração carregava naquele momento. E eu gostei da
reação que ela provocou no rosto de Arthur. Gostei da forma como suas
sobrancelhas se ergueram em surpresa. Claro que ele conhecia meus
sentimentos, afinal, sempre foram bem óbvios, mas a confissão em voz alta, de
forma tão displicente, era algo novo. Mas aquela era uma conversa que também
não deveria ser prolongada. — Você não deveria ficar assim, tão exposto.
— Eles sempre sabem onde eu estou, Chris. Ficar no meio das pessoas,
da rua, a céu aberto, me mantém mais protegido do que te esperar em um carro
ou em um estacionamento.
— Tá, faz sentido, mas agora vamos voltar, porque eu tenho coisas para
te contar, só que não quero falar nada aqui — disse, olhando de um lado para o
outro, preocupada. Assim que terminei, comecei a afastar-me, mas meu braço foi
agarrado, e Arthur me puxou de volta.
— Você sabe que eu ainda preciso te beijar direito, não sabe? Como você
merece ser beijada.
— Aquele beijo no seu quarto, ontem, não valeu? Porque eu achei bem...
satisfatório — brinquei, tentando disfarçar o quanto aquela frase, somada à
forma sussurrante com que ele a proferiu, tinham me deixado desconcertada.
— Não valeu, porque ainda não tinha te contado a verdade, e eu me
impus a você. Quero que aconteça de verdade, agora que está ciente de quem
sou. E porque preciso te provar muitas coisas. Que realmente quero que seja
minha... de todas as formas.
Tentei não ficar pensando no significado daquelas palavras ou acabaria
colocando tudo a perder. Teria que deixá-las para depois. Naquele momento,
havia preocupações maiores em nossas cabeças, responsabilidades e um
problema que, por mais que não fosse maior do que o nosso amor, poderia
vencê-lo se batessem de frente. Um problema que poderia arrancá-lo de mim. E
eu não pretendia permitir.
Capítulo Quatorze
ARTHUR

Christine tinha algo de muito valor nas mãos. Não que houvesse qualquer
coisa naquela mulher que não valesse o mundo para mim, mas aquele pequeno
papel poderia significar muitas coisas... principalmente a minha liberdade.
Era uma forma muito otimista de ver as coisas, levando em consideração
que se tratava apenas um nome, mas uma vez que prendêssemos o rei em xeque,
ficaria mais fácil destruir os peões e as outras peças. Naquele caso, a estratégia
de destruir primeiro os peixes pequenos para chegar por último no chefão, como
aconteceria em um videogame, não funcionaria. Não havia tempo para isso.
Hans Balzer.
Hans Balzer.
Hans Balzer.
As duas palavras rolavam na minha língua com o gosto amargo do desejo
de vingança, enquanto eu as repetia em voz baixa, como se fossem um mantra
para aplacar a raiva que sentia. Não que quisesse amenizar aquele sentimento,
odiá-lo menos, pelo contrário, queria apenas acostumar-me com a ideia de que o
mataria, de que aquele nome seria apagado do universo, para me sentir mais
indiferente.
Assim que chegamos do Centro da cidade, voltamos direto para a casa de
Mário, e a primeira coisa que fizemos foi checar aquele nome na Internet. No
exato momento em que uma foto surgiu na tela — um retrato formal, em uma
reportagem enaltecendo aquele monstro por seus feitos —, eu senti o meu
estômago inteiro se revirar. Tratava-se do filho da puta que desenhou a maldita
tatuagem no meu ombro, que me marcou para sempre. O rosto que eu jurei
jamais esquecer.
Fazia horas que estava ali sentado, na frente do computador do quarto de
Mário, olhando para aquela foto. Tínhamos lido a notícia, e ela falava sobre a
tentativa de uma implantação de um programa militar ao qual voluntários iriam
se oferecer. Por ser uma matéria datada de dez anos atrás, Balzer — que tinha
descendências alemãs, pelo que pude ler — estava participando de uma coletiva
de imprensa, onde todos pareciam muito impressionados com sua estratégia,
principalmente porque ele alegava que o treinamento, oferecido em vários países
para profissionais das mais diversificadas agências de inteligência mundiais,
prepararia aquelas pessoas para defenderem a pátria, tornando-a exemplo de
segurança, dando vários passos em direção a uma nação de primeiro mundo.
O problema encontrava-se na palavra voluntários. Outra matéria, muito
menor e sem tanto destaque, informava que seu feito falhara miseravelmente,
pois não houve nenhuma convocação. Em um país como o Brasil, poucas
pessoas estavam dispostas a perderem anos de sua vida sem receberem nada em
troca, principalmente porque o treinamento exigia muita dedicação, disciplina,
além de perfis muito específicos de pessoas.
O que não era revelado nos jornais era a forma como aquele homem
decidira resolver seu empecilho. Cometendo sequestros. Encontrara seus
soldados, mas os transformara à força.
Ainda com o coração fervendo de ira, virei a cadeira giratória na direção
da cama, deparando-me com Christine adormecida. Já passava das nove da noite,
e por mais que ainda fosse cedo, eu sabia que ela tivera uma noite conturbada e
precisava dormir.
Fiquei alguns minutos olhando para ela, o que foi suficiente para que o
ódio se dissipasse um pouco. Lembrei-me do beijo, de ouvi-la dizendo que me
amava, e tudo o que eu conseguia era me perguntar o que eu tinha feito para
merecer uma mulher tão maravilhosa em minha vida? Ela não desistira de mim
em nenhum momento, nunca perdera as esperanças, mesmo quando eu não
soube valorizá-la... Pensar nisso me feria, mas a vida estava me dando uma
segunda chance. Mesmo sob uma profunda tormenta, saber que ela me amava
me confortava e me dava forças para seguir em frente.
Odiava ter que tirá-la do que parecia ser um sono tranquilo, mas precisei
aproximar a cadeira da cama de Mário, onde ela dormia encolhida como um
bebê, e cuidadosamente afastei algumas mechas de cabelo do rosto. No exato
momento em que a ponta do meu dedo tocou sua bochecha, ela se remexeu e
abriu os olhos bem devagar, lânguidos e, por um momento, pareceu um pouco
fora de órbita.
— Oi... — falei bem baixinho, com certa doçura, ainda remexendo em
seu cabelo, não conseguindo tirar os olhos dela. — Não queria te acordar, mas
acho melhor irmos embora...
Ela não respondeu nada, apenas assentiu com a cabeça e não demorou a
aprontar-se para sair. Despedimo-nos de Mário, que já estava jogando
novamente, no meio de uma partida de qualquer que fosse o jogo, e mal nos
olhou ao dizer tchau.
Pegamos o carro e seguimos para a casa de Christine. Para quebrar o
silêncio, ela ligou o rádio, e estava tocando uma música que fez com que
encostasse a cabeça no banco e suspirasse. Começava com um pianinho, depois
uma voz masculina bonita entoava a primeira estrofe e logo um rap mais
animado preenchia todo o ambiente.
— Acho que preciso me atualizar um pouco mais nas músicas... Faz um
bom tempo que não ouço rádio. — Ela deu uma risadinha, como se soubesse de
algo que eu não sabia. — O que foi?
— Essa música se chama “See You Again”. Ela tocou em uma das
reuniões que sua família fez em homenagem à sua morte.
Se aquilo não era estranho de se ouvir, eu não sabia mais o que poderia
ser.
— Não quero nem imaginar o que tocou no meu velório... — comentei
com as sobrancelhas erguidas. — Por que eu tive um, não tive?
— Teve, sim — ela respondeu gargalhando, mas logo cobriu o rosto com
as mãos, parecendo envergonhada. — Eu não deveria estar rindo disso, mas a
situação é tão bizarra...
Não pude me conter e acabei acompanhando-a, embora não com tanto
entusiasmo.
— E, afinal, o que tocou no meu velório?
Daquela vez, o sorriso de Christine desapareceu por completo. Não
precisava me esforçar muito para perceber que aquela pergunta teria uma
resposta um pouco mais pesada.
— Não sei. Eu não fui — ela disse, com a cabeça baixa, como se
estivesse envergonhada por algo. Aproveitando que estávamos parados em um
sinal, estendi a mão e coloquei-a sob seu queixo, forçando-a a olhar para mim.
Sem me dar chance de dizer qualquer coisa, ela foi logo acrescentando: — Não
pude, Arthur. Eu mal conseguia levantar da cama naqueles dias. Quando a
polícia desistiu de continuar te procurando e todos decidiram te dar como morto,
eu... eu... — gaguejando, a voz de Christine falhou, como se ela simplesmente
não conseguisse continuar falando. — Eu não quis aceitar. Se visse um caixão
vazio sendo velado, acabaria não suportando. Todas as reuniões de condolências
que sua mãe começou a fazer em seguida foram muito difíceis.
— Eu estou aqui... — sussurrei, embora me sentisse muito idiota por
fazê-lo. Tal constatação não mudava em nada o quanto ela tinha sofrido durante
todo aquele tempo.
— Sim. Você está... — Ela se permitiu mais alguns segundos de
melancolia, mas logo forçou um sorriso a surgir em seus lábios, como a mulher
forte que era. — Mas essa música realmente é muito bonita, e você precisa se
atualizar — voltou ao assunto anterior, apontando para o rádio. — Não só com
músicas, mas filmes também. Aliás, See You Again está na trilha sonora de
Velozes e Furiosos 7.
— 7??? — exclamei indignado. — Quantos eu perdi, afinal?
— Dois. O último foi ótimo, aliás... Tem uma cena em que o The Rock
desvia um míssil com a mão.
— O quê? Cara, isso deve ter sido épico! Não quero nem pensar em
quantos outros filmes legais eu perdi, principalmente de heróis.
— Pois é... saiu Liga da Justiça.
Levei a mão à cabeça, lamentando, quase me sentindo como o Arthur de
antes. Olhando na direção de Christine, percebi que ela também me fitava
fixamente, quase como se pensasse a mesma coisa. Era nosso primeiro momento
realmente descontraído desde que retornei, e pela primeira vez senti que, algum
dia, conseguiria deixar todo aquele pesadelo para trás e voltar a viver uma vida
normal. Jamais seria quem fui por completo, mas queria tentar. Por mim e por
ela.
Peguei sua mão, que estava pousada na coxa, por sobre o tecido da calça
jeans, e a levei aos meus lábios sem dizer nada. O que eu poderia dizer? Não
havia pedido de desculpa suficiente que pudesse amenizar tudo o que acontecera
e que ainda poderia acontecer. Estávamos ali, fazendo planos de dias leves, com
direito a música e a sessões de cinema — como costumava acontecer antes —,
mas ainda nem sabíamos o que seria de nós dali em diante. Se dependesse de
mim, ela ficaria intacta. Estava pronto para me entregar, para trocar minha vida
pela dela se fosse preciso, mas isso implicaria em novamente sermos separados,
em mais sofrimento. Eu queria poupá-la de tudo, portanto, sentia, bem lá no
fundo, que passava a valorizar ainda mais a minha integridade para
simplesmente ter a chance de ficar com Christine. Estava disposto a lutar com
todas as minhas forças para sair ileso daquela situação e conquistar o meu final
feliz com a mulher que amava.
Seguimos o resto do caminho calados, com apenas o rádio falando por
nós, até que chegamos ao prédio de Christine. Parei o carro em uma vaga na rua
mesmo, e sem que ela percebesse, peguei a arma que tinha escondido dentro do
carro, guardando-a outra vez no cós da calça, só por precaução. Segurei sua mão
assim que saltamos e começamos a andar em direção ao portão.
Novamente me senti muito incomodado com o fato de não haver um
porteiro por lá no turno da noite, principalmente quando Christine precisou
vasculhar a bolsa em busca das chaves, no meio da noite. Seria muito fácil
alguém surgir ali e rendê-la, sendo da MR ou não. Além de estarmos vivendo
uma situação complicada, ainda tinha o fato extremamente relevante de
morarmos no Rio de Janeiro, uma cidade conhecida pela violência.
— Você deveria ficar com as chaves na mão quando está andando em
direção ao seu prédio. É perigoso...
— É que normalmente eu entro na garagem subterrânea e só mexo na
bolsa dentro do elevador... — Sim, até fazia sentido, mas eu ainda estava um
pouco agoniado de permanecer ali fora, à vista de qualquer um, mas ela acabou
encontrando a chave e abriu o portão, por onde entramos.
Seguimos pelo hall, subimos no elevador e chegamos ao seu
apartamento. No exato momento em que pisamos no andar, eu reparei, com
minha percepção aguçada, em uma estranha mancha no chão, apesar do escuro.
Christine pareceu não notar nada, mas assim que me dei conta de que se tratava
de uma gota vermelha, que muito provavelmente era de sangue, agarrei seu
braço e a puxei para trás de mim, imprensando-a na parede.
Cobri sua boca com a minha mão e sussurrei em seu ouvido:
— Fique aqui e não faça barulho.
De olhos arregalados, ela parecia não entender nada, por isso, apontei
para o sangue, e ela entrou em pânico, mas, por sorte, conseguiu manter o
controle o suficiente para não gritar.
— A luz está apagada. Espere cinco minutos, se eu não acendê-la, você
foge. Sem pensar duas vezes. — falei, ainda em um tom de voz muito baixo.
Como ela não respondeu nada, eu insisti: — Ouviu, Christine?
Ela balançou a cabeça de forma quase frenética, e eu esperei que
estivesse dizendo a verdade.
Deixei-a ali e me aproximei do apartamento. Exatamente como previ, a
porta não estava trancada. Saquei a arma e entrei.
O local era um completo breu, e eu comecei a andar pé ante pé, sem fazer
barulho, mas logo concluí que estava vazia. Quem quer que tinha entrado ali já
havia escapado e deixado um imenso caos de coisas reviradas, como se um
furacão tivesse passado.
Acendi a luz, pronto para sair e chamar Christine, mas me deparei com
algo que me impediu. Uma cena que ela não mereceria ver.
Havia pegadas dentro da casa, e todas guiavam a um corpo estendido em
frente à varanda, no chão. Começava a tentar ponderar o que poderia fazer para
poupar Christine daquela visão, mas não tive tempo, porque a porta se abriu, e
ela entrou.
— Você acendeu a luz... eu achei que... — Christine mal conseguiu
terminar a frase, pois sua reação foi arregalar os olhos e levar a mão à boca, em
desespero, abafando um grito.
Eu simplesmente não soube o que fazer. Ao menos não naquele primeiro
momento. Christine mal reagia, apenas continuava ali parada, olhando para a
mulher idosa morta bem no meio de sua sala.
— Arthur... ela... ela... está... Ah, meu Deus! Claro que está... —
Continuei sem dizer nada, mas comecei a me aproximar com cautela, com a mão
estendida, enquanto a observava tremer dos pés à cabeça, incontroladamente.
Pousei a mão em seu ombro com o máximo de delicadeza que consegui,
tentando confortá-la, porém, o que precisava dizer logo em seguida com certeza
não seria nada agradável, principalmente porque ela não parava de olhar para a
arma em minha mão.
— Christine, preciso tirar você daqui. Se a polícia aparecer, eles podem
te culpar...
— A mim? — ela indagou estarrecida, com os olhos vítreos e
arregalados, finalmente direcionados a mim. Estava em choque.
— Sim. Ela está na sua casa e não tem nenhum sinal de arrombamento.
— Mas e essa bagunça?
— Podem alegar que você criou o cenário para desviar as suspeitas. —
Fiz uma pausa e tentei soar um pouco mais incisivo, embora não pretendesse
perder a calma, já que ela precisava de conforto e não de mais nervosismo. —
Vamos sair daqui. Vou te levar para a mansão. Você vai ficar segura lá.
Christine apenas balançou a cabeça, um pouco fora de si, mas
rapidamente algo pareceu despertá-la, como se alguém tivesse acionado um
interruptor dentro de sua mente.
— Kibe! Meu gato! — exclamou em desespero, virando-se para mim. —
Meu gatinho... Eles não podem tê-lo machucado, Arthur. Pelo amor de Deus...
— Christine já começava a chorar, e eu temia o pior. Se tivessem ferido seu
bichinho de estimação, ela ficaria ainda mais destruída.
Segurei-a pelos braços e olhei em seus olhos.
— Calma, Chris, eu vou te levar e volto para...
— Não! — ela gritou. Foi a primeira vez que se alterou naquela noite,
embora a situação fosse mais do que propícia a isso. Soltou-se das minhas mãos
em uma reação muito passional e afastou-se. — Não vou sair daqui sem o meu
gato!
Com decisão, ela foi em direção ao corredor que levava aos quartos, e eu
fui atrás. Eu a ouvia chamar pelo bichano, com a voz chorosa e em desespero.
Por mais que eu não tivesse coragem de pedir que desistisse e
compreendesse sua angústia, acabaria tendo que tirá-la dali de qualquer jeito —
carregada, se fosse preciso —, antes que as coisas se complicassem.
Para a nossa sorte, porém, eu ouvi algo que Christine provavelmente não
escutou. Um miado bem baixinho, lamentoso, que parecia servir apenas para nos
alertar que o bichinho estava vivo e que não queria ser abandonado.
Ele se manifestou apenas uma vez, mas foi suficiente para que eu
deduzisse onde estava, um local que Christine já havia olhado, mas para o qual
não dera a devida atenção.
Dirigi-me ao banheiro e no exato momento em que entrei, ouvi
novamente o leve miado, abafado, e vi a tampa da lixeira se movimentando
muito discretamente. Apressei-me em abri-la, antes que ele sufocasse lá dentro,
embora suspeitasse que era tão inteligente que estava usando as patinhas para
abrir frestas e poder respirar.
Encontrei-o todo encolhido, camuflado, quase como um contorcionista
profissional, e peguei-o no colo com carinho e cuidado, sentindo-me aliviado e
feliz por vê-lo bem. Não apenas por Christine, mas porque eu também gostava
de animais o suficiente para não querer ver um deles ferido ou morto. Já me
bastava aquela senhora, caída no chão da sala, que perdera a vida de forma tão
estúpida. A imagem dela não saía da minha cabeça, e era suficiente para que
sentisse o ódio correndo pelas minhas veias.
Aconchegando Kibe contra meu peito, levei-o até Christine. Quando ela
o viu, aninhado nos meus braços, correu em minha direção e o pegou do meu
colo, arrancando-o de mim, e abraçando-o, enchendo-o de beijos na cabecinha
preta. Ele parecia assustado, tanto que permaneceu quieto com a dona, mesmo
não sendo um grande apreciador de abraços.
— Precisamos ir agora, Chris — informei muito sério. Ela assentiu, e eu
tinha a impressão de que depois de ter encontrado seu companheirinho, seria
capaz de me seguir aonde eu fosse e de acatar todos os meus pedidos.
Quando passamos pela sala, em direção à saída, ela ainda deu uma
olhada no corpo da velha senhora, com uma expressão lamentosa. Tirei a bolsa
do seu ombro e peguei lá dentro a chave, que ela tinha guardado outra vez,
provavelmente na hora do susto por ter a casa invadida, e assim que saímos,
tranquei a porta. Odiava fazer isso, mas naquela mesma noite voltaria ali para
cuidar da mulher. Prometendo a mim mesmo que tentaria ao máximo lhe dar um
fim digno, por mais que tivesse que tirá-la do apartamento, guiei Christine por
todo o corredor, afastando-a de mais aquele pesadelo. Eles não pareciam ter fim.

***

CHRISTINE

Havia uma letargia em mim que mal permitia que eu me levantasse da


cama. Era como se, de alguma maneira, a escuridão tivesse me tocado de forma
tão profunda, que agora eu também me sentia um pouco morta. Não uma morte
física, mas uma morte da alma, que começava a se destruir lentamente cada vez
que mais uma parte do meu mundo desmoronava.
Arthur me levou para a mansão dos Montenegro, informando que eu
poderia ficar em seu quarto até que ele mandasse alguém preparar outro para
mim. Ou talvez ele tivesse falado qualquer outra coisa, pois podia jurar que não
conseguia prestar atenção em nada do que dizia. Ele praticamente me arrastou do
carro até o segundo andar, e eu apenas me joguei na cama, logo assim que ele
saiu, agarrada a Kibe, sentindo seu pelinho escuro fazer cócegas no meu rosto.
Meu gatinho valente normalmente não ficava quieto assim quando eu o abraçava
em busca de companhia ou conforto, mas, naquele momento, como se também
precisasse de proteção, aceitou o carinho e dormiu ao meu lado.
Aconchegada sobre o colchão e os lençóis de Arthur, sentindo seu cheiro,
embalada pelo silêncio da mansão quase vazia, já que todos tinham saído e os
empregados já haviam se recolhido às suas dependências, adormeci um sono
inquieto e pesado ao mesmo tempo, como se tivesse sido sedada.
Tive sonhos terríveis, e em todos eles eu me via na mesma sala que
Arthur me descrevera, com os punhos presos a uma maca, com luzes claras
ofuscando minha visão e machucando meus olhos. Contudo, ao invés de me
marcarem como mais um soldado da tal MR, eu era morta. Apunhalada. A dor
que sentia, a cada facada que se enterrava em minha carne, parecia muito
distante das sensações de um sonho, e eu despertei berrando, como se estivesse
sendo ferida na vida real.
Demorei a ter coragem de abrir os olhos, principalmente ao sentir que
algo prendia minhas mãos de verdade, mantendo meus punhos grudados ao
colchão. Além disso, este estava afundado e alguém se mexia sobre mim. Uma
voz masculina me pedia para ter calma, e por um momento acreditei que pudesse
ser Arthur, mas essa impressão logo me abandonou, e eu tomei coragem para
olhar ao meu redor.
Sobre meu corpo, prendendo-me à cama, estava J.J.. Eu definitivamente
não esperava vê-lo ali, e por mais que ele fosse um conhecido, um rosto familiar,
não conseguia me sentir relaxada com sua presença.
— Calma, princesa. Foi só um pesadelo... — ele falou com um sorriso
levemente malicioso no rosto. O fedor de álcool atingiu minhas narinas com
cada respiração, e eu estremeci, pensando que estava ali sozinha naquela casa,
com um cara em quem não confiava e que me tinha à sua completa mercê.
— Eu estou calma. Pode me soltar agora — pedi com toda a delicadeza
possível, embora minha verdadeira vontade fosse lhe dar um belo chute no saco.
— Cheguei em casa agorinha e saí correndo quando ouvi uns gritos.
Quando percebi que vinham aqui do quarto do meu maninho, comecei a pensar
que tinha voltado à boa forma e arrumado uma gata para esquentar a cama dele.
— Depois de dizer isso, seu sorriso se intensificou. — Não que eu estivesse
errado. Tem mesmo uma gata na cama dele. Duas, na verdade. — Olhou para
Kibe, em zombaria. Em seguida, fez biquinho. — Que maldade você assim tão
sozinha! Quer companhia, viuvinha?
— Não, eu quero que você me solte! — Entrando em desespero, comecei
a lutar contra ele. Isso só fez com que começasse a rir.
— Olha! Não é que a viuvinha é boa de briga? Pensei que fosse mais
passiva, mais mansa... mas até que gosto dessa nova faceta...
Algo me dizia que J.J. só estava me provocando. Apesar de sempre ter
mandado indiretas e me cantado das formas mais toscas possíveis, ele nunca
avançara daquele jeito. Eu sabia que havia brigado com Arthur, que ambos
estavam muito putos um com o outro, e aquela poderia ser a sua vingança, mas
eu não queria ser pivô de nada. Por isso, sentia-me pronta para me defender de
qualquer coisa, de qualquer forma, mas nem precisei, porque Kibe partiu para
cima do babaca e arranhou a sua cara de safado, tirando sangue.
— Gato filho da puta! — ele gritou, levando a mão aos novos ferimentos
e se agigantou para cima de Kibe, mas eu fui mais rápida e o chutei na boca do
estômago. Não foi exatamente um golpe profissional, embora alguns anos de
Ioga tenham me deixado com a musculatura firme e com algum tipo de força nas
pernas, porém, serviu para empurrá-lo, fazendo-o cair de bunda no chão, desde
cima da cama alta de Arthur. — Vai tomar no cu, Christine! O que acha que eu
iria fazer com você? Estava só brincando.
— Brincando de quê? — A voz macia e aveludada de Arthur fez com que
J.J. ficasse em silêncio. Nós dois olhamos em direção à porta, e pela expressão
letal que carregava em seu rosto, era fácil sentir que não estava gostando nada do
que via: seu irmão jogado no chão, com a cara arranhada, e eu estirada sobre a
cama, visivelmente assustada.
— De nada. Chegou o estraga prazeres. — Recuperando-se em tempo
recorde, J.J. levantou-se do chão e saiu apressado, com a mão no estômago, onde
eu o tinha chutado, fechando a porta atrás de si.
— O que aconteceu aqui? Ele te importunou? Te machucou de alguma
forma? — indagou enquanto se aproximava de mim e colocava a mão cálida no
meu rosto, para a qual eu me inclinei de olhos fechados, cheia de ternura.
— Não, está tudo bem. — Era melhor não contar a verdade, porque eu
não queria mais confusões por aquela noite.
Ao finalmente erguer os olhos na direção dele com mais atenção, dei-me
conta de que estava completamente limpo e com os cabelos úmidos. Percebendo
minha avaliação, ele baixou a cabeça e respirou fundo.
— Está feito...
— O que está feito? Para onde você a levou?
— Para um hospital. Deixei-a na porta, enrolada em um lençol, com
todos os documentos. Por sorte ela estava com a bolsa na sua casa. Tomei um
banho no seu apartamento mesmo, espero que não se importe. Além disso,
trouxe algumas coisas suas e de Kibe.
Agradeci baixinho e fechei novamente os olhos, lamentando pela vida
perdida. Dona Edith era uma senhorinha solitária, que conhecera meus pais e que
sempre cuidara de mim depois da morte deles, levando-me comida, procurando-
me para saber se eu estava bem e bancando a babá de Kibe quando eu precisava.
Nunca me cobrou nada por isso, porque alegava ser uma distração em sua
vidinha pacata de aposentada. Nunca se casara; ficou cuidando da mãe até que
esta falecesse, e, consequentemente, não tinha filhos nem netos.
Por minha causa, ela acabara morta.
Pensando nisso, enterrei minha cabeça no abdômen de Arthur — uma
vez que eu ainda estava sentada na cama, e ele de pé, — e comecei a chorar. A
blusa que ele usava era uma daquelas que permanecera perdida em uma das
minhas gavetas, porque a branca de antes devia ter ficado encharcada de sangue.
Um sangue inocente.
Ele se sentou na cama, com as costas apoiadas na cabeceira, e me
aconchegou em seu peito, permitindo que eu chorasse.
Sentindo-me segura com ele, perdi a noção do tempo e acabei cochilando
outra vez, ouvindo o som das batidas de seu coração e embalada pelo ritmo
constante do vai e vem de seu peito, que dançava com cada respiração mais
profunda.
Fiquei indo e voltando de um sono inconstante até que um barulho me
acordou, fazendo-me sobressaltar. Vinha de um dos quartos ao lado e soava
como vidro quebrado. Meu corpo retesou-se nos braços de Arthur, e eu senti que
ele também se colocava em alerta, apertando-me com um pouco mais de força,
como se quisesse privar meus movimentos para que não fosse feito qualquer
barulho.
O medo me dominou em um instante, acreditando que o mal que se
instalara em meu apartamento poderia ter nos seguido até ali.
Arthur levantou-se, e eu novamente senti o coração parar, em um dejà vu
incômodo. Estava cansada de vê-lo afastar-se de mim para verificar se
estávamos em perigo e ouvi-lo me pedindo silêncio porque alguém com
intenções cruéis poderia nos escutar. A vida que levávamos começava a exigir
muito de mim.
Contudo, não demorei a respirar aliviada ao ouvir uma gargalhada
feminina. Eu conhecia aquela voz — era Cléo. Só que ela não parecia em muito
bom estado, porque rapidamente outro som de algo estilhaçando-se surgiu, e
Arthur adiantou-se na direção de onde ela estava. Decidi segui-lo, porque
imaginei que poderia precisar de ajuda.
Exatamente como já imaginava, nós a encontramos caída no chão, ainda
às gargalhadas, rindo de si mesma, provavelmente. Os cabelos loiros e
ondulados estavam desgrenhados, a maquiagem borrada — principalmente o
batom, como se tivesse estado aos beijos com alguém há muito pouco tempo —,
e a saia curtíssima mostrava muito de suas pernas esguias e compridas, que
permaneciam abertas com a calcinha rosa exposta.
— Cléo, o que aconteceu? — Arthur indagou muito sério, olhando para
ela de cima, enquanto a garota fazia um esforço enorme para levantar-se,
escorando-se na mesa de cabeceira.
— Olha! Que milagre! Meu irmãozinho mais velho está em casa! — ela
falou cheia de desdém e caiu novamente na gargalhada. Em sua décima tentativa
de ficar de pé, acabou cambaleando e despencando no chão, batendo com a
bunda no piso.
Sem paciência, Arthur foi até ela, colocando as mãos sob seus braços e
erguendo-a, como se fosse uma boneca de pano muito leve, deixando-a de pé.
Continuou segurando-a por um tempo, para firmá-la, até que Cléo pareceu um
pouco mais estável.
— Acho que eu bebi um pouco demais... — ela comentou, sem conseguir
parar de rir, como se tudo não passasse de uma grande piada.
— Isso nós percebemos.
— Ah, Arthurzinho, não me olhe com essa cara de irmão mais velho e
responsável. Você não tem direto a isso.
Até eu senti a bofetada em mim, mas com certeza fora muito mais
dolorosa em Arthur. Cléo era a menininha de seus olhos, sua irmãzinha caçula,
sua princesa, aquela que ele jurara proteger e cuidar para o resto da vida, mas a
vida o impediu de cumprir sua promessa. Olhei para ele e o vi cerrar os
maxilares, provavelmente esforçando-se ao máximo para não explodir e contar a
verdade ali mesmo. Em contrapartida à sua reação, ficou em silêncio,
observando-a.
Tentando dar um passo à frente, a garota cambaleou outra vez e caiu nos
braços do irmão, que a segurou com firmeza sem nem hesitar.
— Cléo, onde você estava? — ele perguntou, segurando-a, tentando
mantê-la perto e olhando em seus olhos.
— Não é da sua conta! — ela vociferou raivosa, debatendo-se como uma
gata irritada. Arthur a conteve com mais força.
— Pode não ser, mas estou te perguntando com educação e você pode me
responder.
— Vai me dizer onde esteve esses três anos? — ela cuspiu, cheia de
desprezo.
O rosto de Arthur mantinha-se impassível, mas eu podia ver que suas
faces estavam um pouco mais coradas, cheias de ira misturada à indignação.
— Eu estive no inferno. Essa é a verdade.
A dor em seus olhos não deixava muita dúvida de que o que dizia era
verdade. Nem mesmo Cléo, em sua raiva cega, pôde contestar. Tanto que ela
pareceu se acalmar ao ouvi-lo, chegando a murchar e desistindo de lutar contra
ele. Também não fez mais perguntas, mas pela forma como olhou para mim dizia
que acabaria me usando como fonte de informações.
Mas eu, definitivamente, não diria nada.
Aquele era um segredo que não me pertencia, portanto, apenas Arthur
poderia decidir a hora de compartilhá-lo.
— É que... bem... eu conheci um cara... — Cléo finalmente respondeu,
enquanto passava a mão pelos cabelos bagunçados, ainda parecendo afetada pela
resposta de Arthur. Contudo, isso não durou muito, porque ela logo acrescentou,
um pouco mais animada. — Na verdade, ele te conhece... — Deu uma risadinha,
ainda sob o efeito do álcool, referindo-se ao irmão.
— Me conhece? — Arthur indagou confuso.
— Sim! — ela respondeu entusiasmada. — Ficou me perguntando como
você estava, por onde andava...
— Ele disse de onde me conhecia?
Cléo franziu o cenho, tentando se lembrar, enquanto o álcool ainda devia
estar fazendo misérias com sua memória.
— Acho que não. Mas parecia gostar muito de você.
— Nome? — Arthur falou muito rápido, quase como em um
interrogatório militar.
— O quê? — Cléo perguntou.
— O nome dele, Cléo... Não vai me dizer que não lembra — ele estava
ficando nervoso, e eu entendia muito bem o motivo. Aquilo estava me cheirando
a uma estratégia da tal da MR.
— Carlos. Carlos Vidal.
Dando as costas para nós, Arthur provavelmente se lembrou do mesmo
que eu. Era uma das opções de nome sugeridas por Mário quando viu a foto do
cara em coma.
— Como ele era, Cléo? — indaguei eu mesma, sabendo que Arthur
deveria estar fervendo de ódio.
— Ah, tipo o Arthur. Como ele está agora. Alto, fortão, moreno, cabelo
curto. Gato... Beeeem gato. Estava com a mão enfaixada. Disse que machucou
no trabalho — ela ainda falava com a língua enrolada. Jogou-se na cama e
agarrou o travesseiro, abraçando-o contra o corpo. — A gente bem que podia
marcar uma saída de casais, hein? Ele me deu o telefone dele. Assim vocês se
reencontravam e...
Cléo nem conseguiu terminar de falar, pois Arthur aproximou-se,
agarrando-a pelos braços e sacudindo-a.
— Você nunca mais vai ver esse cara, está me entendendo? — vociferou.
— Por que está dizendo isso? O que houve? — Subitamente desperta, a
garota assustou-se.
— Arthur... — tentei chamá-lo, amenizando a situação e acalmando-o.
Cheguei a colocar a mão em seu ombro, mas não funcionou de nada.
— Prometa, Cleo! Prometa que vai esquecê-lo e que não vai telefonar
para ele! — continuou Arthur.
— Eu não vou te prometer nada! Acha que pode mandar em mim? Sou
maior de idade, não sou mais a menina que era quando você foi embora.
— Eu não fui embora! — gritou. — Eu...
Por um minuto, jurei que ele iria contar tudo. Acreditei que iria derramar
sobre a irmã todas as verdades que me revelara há pouco tempo. Não seria fácil
de engolir, assim como não fora para mim, mas ao menos ela saberia que não
fora abandonada. O que seria melhor? Eu não fazia ideia.
Contudo, Arthur não terminou a frase. Ela ficou estrangulada bem no
meio da sua garganta, como se as mãos da razão a tivessem agarrado e não
permitido que fossem externadas. Fervendo de ódio, ele soltou os braços da irmã
e cerrou ambos os punhos, cravando as unhas curtas nas palmas das mãos com
tanta força que suas articulações chegaram a embranquecer.
Sem dizer mais nada, saiu do quarto apressado, em passos decididos,
com uma expressão transfigurada em mágoa e uma tristeza tão visceral que
chegou a doer em mim.
— Não sei o que deu nele! Será que não gosta do Carlos? Ele me pareceu
tão legal... — Cléo comentou, remexendo-se na cama para se colocar deitada,
agarrada ao travesseiro. Não pude ignorar a expressão sonhadora que ela
sustentava no rosto, como se o homem a quem se referia a tivesse encantado
profundamente.
E o que eu poderia dizer? Sentia-me entre a cruz e a espada, entre minha
lealdade para com Arthur e o dever de proteger uma amiga; uma garota jovem
demais para ter discernimento suficiente para perceber que estava sendo usada.
Aliás, eu definitivamente não queria ser a responsável por lhe contar aquele tipo
de coisa.
Mas não queria fingir que nada estava acontecendo, enquanto ela poderia
terminar machucada. Seriamente machucada.
— Querida... — Aproximei-me colocando a mão delicadamente em seu
ombro. — Só tome cuidado, tá? Seu irmão só quer o seu bem...
— Ele nunca foi um babaca ciumento. J.J. é que tem essa mania.
Ouvir o apelido do irmão do meio me trouxe arrepios. Ainda não tinha
esquecido a forma como ele me imobilizara sobre a cama, como se tivesse
alguma intenção cruel. Apesar disso, tentei disfarçar ao máximo.
— Então isso é mais um motivo para que confie nele. Se pediu para você
se afastar desse cara é porque ele não deve ser boa coisa.
Muito contrariada, mas também pensativa — o que era bom —, Cléo
assentiu. Dei um beijo na testa dela e disse:
— Você deveria tomar um banho antes de dormir. Vai te fazer bem. Sorte
a sua que sua mãe não está em casa.
Ela novamente balançou a cabeça, agarrando-se ainda mais ao travesseiro
como uma menina que acabou de levar uma bronca, com direito a beicinho e
tudo. Cléo não costumava agir daquela forma, era até bem madura, mas eu sabia
que tinha a ver com a bebedeira.
Já estava prestes a sair, andando em direção à porta, quando me chamou.
Virei-me para ela, esperando o que tinha a dizer.
— Você e Arthur... — ela hesitou. — Quer dizer... você está aqui a esta
hora... Isso quer dizer que estão juntos?
Um sorriso tímido curvou meus lábios. Havia muitos outros motivos para
eu estar ali, e não podia contar nenhum deles para Cléo, mas a pergunta sobre
estarmos juntos... Bem, essa me fazia sorrir como uma boba. Eu ainda não sabia
o que estava acontecendo, mas os beijos que trocamos deveriam significar
alguma coisa. Não deveriam?
— Não sei... mas quando eu descobrir, você será a primeira a ser
informada, ok?
Ela também sorriu amplamente, o que me deixou ainda mais satisfeita.
Era bom saber que tinha sua aprovação.
Porém, quando fechei a porta de seu quarto, tinha apenas uma certeza em
mente: estava mais do que na hora de resolver aquela situação.
Havia tantas pendências em nossas vidas, tantos obstáculos muito mais
árduos a serem ultrapassados, que deixar uma pendência tão simples como
aquela perdurar chegava a ser um desperdício. Precisava saber o que estava
acontecendo entre nós. E sentia-me disposta a descobrir naquela noite, naquele
instante...
Estava na hora de tomar as rédeas de alguma coisa, já que todo o resto
parecia desmoronar ao meu redor.
Capítulo Quinze
ARTHUR

Eu não sabia exatamente quem era Carlos Vidal, mas tinha uma vaga
ideia. Aquele filho da puta me cercava de todos os lados e mexia de formas
diferentes com as mulheres que eu amava. Agora que Christine estava comigo,
protegida, ele tentara atacar Cléo.
Minha irmã.
A porra da minha irmã caçula.
Ele ousara flertar com ela, provavelmente usando técnicas de persuasão
que aprendera nos treinamentos da MR. As mesmas que eu também aprendi, mas
que jamais ousaria usar com uma garota de vinte anos para seduzi-la.
As armas foram escolhidas a dedo. Com Christine, ele usara a força,
perseguindo-a, ameaçando sequestrá-la, invadindo seu apartamento e matando
uma pessoa para assustá-la. Com Cléo, ele se aproveitara da carência de uma
garota jovem, que ficara tempo demais sem o irmão, perdera o pai e precisava
desesperadamente de amor. Essas eram evidências que comprovavam que ele me
conhecia. Não era um inimigo qualquer. Sem dúvida estava sendo muito bem
treinado pela corporação, que lhe fornecia aquele tipo de informação para
facilitar na minha caçada.
A raiva me tomava de várias formas, avolumando-se dentro do meu peito
quase até o ponto de eu senti-la prestes a explodir. Quando dei por mim,
voltando à realidade, a porta do meu quarto estava sendo aberta, e Christine
entrava. O gato dela saiu correndo desesperado, movimentando o colchão e
jogando-se no chão, começando a roçar em suas pernas.
Ela lhe deu um pouco de atenção, afagando a cabecinha de pelos negros,
mas logo se voltou para mim.
Havia algo de estranho no olhar que me dirigiu. Não algo ruim. De forma
alguma... mas uma espécie de intensidade que jamais demonstrara.
Tive vontade de perguntar se estava bem, se tinha acontecido alguma
coisa com Cléo depois que saí, mas não demorei a perceber o que passava dentro
de sua cabeça. Não havia dúvidas de que eram pensamentos muito parecidos
com os meus em relação a ela.
Christine foi se aproximando, e pela forma como seu peito subia e descia,
em uma respiração incerta, e pela lentidão de seus passos, eu sabia que estava
insegura, temendo o que parecia tão decidida a fazer. Levantei-me também,
tentando facilitar as coisas, embora não tivesse qualquer ideia do que ela poderia
estar prestes a fazer.
Mas nem de longe imaginei que teria tal atitude.
Ela sempre foi uma mulher doce e gentil, sempre pronta para me receber
e conversar, para me dar os melhores conselhos. Era com ela que eu dava minhas
melhores risadas e por quem eu sempre me esforcei para ser uma pessoa melhor.
Pensamentos a respeito dela como mulher não eram raros em minha cabeça, e
por várias vezes me peguei admirando-a com desejo antes de tudo acontecer. Só
que ela era a minha melhor amiga, e eu, um tremendo babaca, não poderia
corromper esse relacionamento. Porque eu sabia que acabaria estragando tudo.
E foi o que quase aconteceu. Se não tivesse desaparecido, muito
provavelmente eu e Christine teríamos nos afastado depois de fazermos amor. O
pior era o fato de não me lembrar de quase nada daquela noite, embora soubesse
exatamente o que tinha acontecido. Não me lembrava da textura de sua pele
contra a minha nem da sensação de estar dentro dela. Era quase uma maldição,
porque eu a desejava tanto... de uma forma tão dolorosa... e não tinha nenhuma
memória à qual me agarrar.
Por isso, quando ela simplesmente se colocou na minha frente, passou os
braços ao redor do meu ombro e encostou seus lábios nos meus, eu soube que
queria tudo o que eu pudesse lhe dar.
Céus, e eu queria lhe dar tudo.
Inclinei-me para frente, abaixando-me e tentando ao máximo ficar de um
tamanho equivalente ao dela, embora houvesse uma grande diferença de altura
entre nós. Começamos um pouco tímidos, com nossas línguas explorando uma a
outra bem devagar, dançando em um ritmo lento e sensual. Poderíamos ter
continuado assim por algum tempo, porque — puta merda — estava
maravilhoso, mas queríamos mais.
Estava disposto a permitir que Christine ditasse as regras, que tomasse o
controle da situação e a cadência do que iria acontecer, mas não demorei muito a
perder a cabeça, ouvindo-a gemer docemente contra minha boca, enquanto nosso
beijo se intensificava. Sentindo meu sangue começar a correr mais acelerado,
coloquei os braços sob suas coxas e a icei do chão, levando-a até a parede mais
próxima e encurralando-a lá, mantendo suas pernas entrelaçadas na minha
cintura.
Com ela nessa posição, tive mais liberdade para explorar outras partes de
seu corpo, traçando uma linha de beijos por seu pescoço, descendo até o colo
macio, onde me demorei por mais tempo. Estava desesperado para chegar aos
seus seios, arrancando aquela blusa que ela usava, mas não sabia até onde podia
ir; não sabia se ela queria que chegássemos a extremos, depois de tudo o que
tinha acontecido naquele dia.
— Chris... — sussurrei sentindo a palavra escapar da minha boca pesada,
ofegante. Ela estava me consumindo aos poucos. — Chris... se você quiser que
eu pare avise logo, porque... — continuei falando entre beijos — acho que não
vou conseguir se avançarmos mais do que isso.
— Não ouse parar. Eu... — ela também estava ofegante, e um gemido
escapou de sua garganta, interrompendo sua própria fala, no exato momento em
que toquei com a língua quente um ponto sensível na curva onde seu pescoço
encontrava o colo. — Eu quero você... Quero muito...
Eu também a queria...
Porra, como queria.
De todas as formas. Queria tê-la naquela parede, no chão, na cama.
Depois poderia levá-la para a banheira da minha suíte, e em seguida faria amor
com ela no chuveiro.
Minha imaginação corria solta, e isso só me deixava mais e mais
selvagem.
Agarrei os dois lados da gola rendada de sua blusa branca e a rasguei em
um puxão, agradecendo aos céus por seu sutiã ter uma abertura frontal, pois eu
dificilmente teria discernimento para abri-lo nas costas.
Fazia três anos que eu não tocava o corpo de uma mulher. A última fora
Christine. E eu esperava que o jogo continuasse dessa forma. Não queria mais
ninguém. Somente ela.
Assim que tirei o sutiã, seus lindos e pequenos seios foram revelados, e
eu me perguntei como poderia ter esquecido o quão lindos eles eram? Como
poderia ter me permitido amar aquela mulher embriagado, fora do meu estado
normal? O quanto eu tinha perdido? O quanto de beleza meus olhos
testemunharam naquele dia e minha memória falha ousou deixar para trás?
Tomei um deles na mão, deleitando-me com a maciez contra meus dedos.
Seu mamilo estava rijo e muito quente, pegando fogo, chamativo. Inclinei-me
um pouco mais para levá-lo à boca, sugando-o e mordendo-o bem de leve,
puxando-o entre meus dentes apenas o suficiente para que ela sentisse prazer e
não dor. A reação foi exatamente a que eu esperava — Christine arfou e teria
gemido bem alto, se eu não tivesse coberto sua boca com a minha novamente,
beijando seu prazer e bebendo-o como se fosse meu.
Posicionando minhas mãos novamente sob suas coxas, mas sem parar de
beijá-la, levei-a até a cama, onde a depositei, deitando-me por cima de seu
corpo, apoiando meu peso nos cotovelos para não sobrecarregá-la.
As ávidas mãos de Christine chegaram à barra da minha camiseta,
erguendo-a sobre pelo meu peito, passando-a pela cabeça, e eu me afastei só por
tempo suficiente para tirá-la e jogá-la no chão. Sem perder tempo, ela também se
ocupou da calça de moletom — uma que encontrei na gaveta de seu
apartamento, e eu novamente a ajudei, porque, assim como ela, não estava
interessado em perder tempo.
Completamente nu — já que não usava cueca —, observei quando ela
rapidamente começou a despir o resto de sua roupa, levando as mãos à própria
calça jeans, mas eu a impedi, segurando-a.
— Não, por favor. Me deixa fazer isso... — quase implorei, em um
sussurro estrangulado, desesperado de desejo. Daria a cada segundo daqueles
momentos toda a minha atenção.
Ela não disse nada, apenas tirou as mãos de onde estavam e me deu livre
acesso aos botões de sua calça. Decidi abri-los com calma, enquanto, inclinado,
beijava-lhe a barriga plana. Eu me refestelava em cada sensação, com cada toque
e, principalmente, com cada reação de Christine aos meus beijos. Era sensível e
receptiva, e mais uma vez me peguei pensando como poderia ter me esquecido
de tantas coisas? Pequenos flashes de nossa primeira vez me atingiam em cheio,
mas eu ainda me condenava por não tê-los frescos e perfeitos na minha memória.
Mas isso não deveria importar naquele momento. Eu era um homem de
muita sorte por receber uma nova chance e ter a oportunidade de construir novas
lembranças. Aquelas, sem dúvida, eu saberia preservar.
Vê-la completamente nua fez o meu sangue entrar em ebulição. Tocá-la
provocava reações muito selvagens em cada parte do meu corpo. Precisava tê-la,
tomá-la como minha e entregar-me a ela também, em uma troca perfeita.
Voltei a beijá-la, enquanto explorava seu corpo por inteiro com uma das
minhas mãos. Comecei pelos seios, demorando-me um tempo em cada mamilo,
esfregando o polegar em ambos, friccionando e fazendo-a arquear o corpo e
estremecer. Depois, deslizei os dedos por sua barriga, bem lentamente, pois
imaginava que isso serviria como uma espécie de tortura para ela, que sabia
exatamente onde eu queria chegar.
Assim que alcancei o exato ponto onde queria chegar, senti o corpo de
Chris retesar-se, em total expectativa. Quando usei meus dedos para penetrá-la,
ela já estava molhada e quente, o que quase me fez perder a cabeça. Ela estava
pronta para mim, mas eu queria lhe dar tudo. Ela merecia tudo.
Posicionando um braço sob suas costas, icei-a do colchão, deixando-a
sentada na cama, montando sobre meus dedos, que ainda estavam dentro dela, e
chegando o mais fundo que conseguia chegar. Fazendo-a ficar de joelhos sobre a
cama, tive livre acesso para masturbá-la, deliciando-me com cada reação
passional de seu corpo. Sua cabeça tombou em meu ombro, e ela chegou a
mordê-lo para abafar os gritos e gemidos. Isso apenas me incentivou ainda mais,
usando a mão livre para continuar acariciando seus seios, esfregando os mamilos
até deixá-los duros como pedras.
— Arthur... — ela sussurrou como um choramingo, e eu imaginei que
poderia estar querendo dizer alguma outra coisa, mas as palavras não saíram.
Além disso, a voz soou abafada, porque seu rosto ainda estava afundado no meu
ombro.
Deus, eu queria vê-la. Queria olhar para ela enquanto se derretia de
prazer. Queria olhar em seus olhos enquanto gemia meu nome daquela forma.
Soltei seus seios e agarrei seus cabelos, puxando sua cabeça para trás,
fazendo todo esforço para não machucá-la, embora tudo dentro de mim incitasse
selvageria e um desejo absurdamente primitivo. Precisava manter em mente o
quão delicada ela era e a nossa diferença de tamanhos, principalmente agora, que
eu mal tinha noção da minha força depois de tanto explorá-la em um treinamento
severo.
Tendo livre acesso ao seu rosto, levei meus lábios aos dela,
deliciosamente inchados, e a beijei. Ou tentei, porque ela mal tinha coordenação
para movimentar a língua de encontro a minha, enquanto eu a penetrava com
meus dedos, que se umedeciam cada vez mais.
Afastei-me para olhá-la, e a visão de seu rosto transfigurado em uma
expressão de puro desejo quase me levou à insanidade. O que aconteceu em
seguida, mais ainda.
O corpo de Christine começou a convulsionar muito levemente, e eu
senti suas paredes se fechando ao redor dos meus dedos. Capturei seu longo
gemido com um beijo, não apenas porque ela seria capaz de acordar a casa
inteira — e eu não queria que J.J. fosse testemunha daquela entrega, de forma
alguma —, mas porque queria beijá-la enquanto ela chegava ao orgasmo.
Tendo-a novamente despencada sobre meu corpo, tirei o dedo de dentro
dela e a deitei delicadamente na cama, mantendo-me sobre ela, observando-a,
ainda de olhos fechados, um pouco grogue e fora de si, enquanto afastava
mechas de cabelo castanho que haviam se grudado à sua testa por causa do suor.
Tê-la ali, sob mim, quase desfalecida de prazer sobre a minha cama, era
uma dádiva. Principalmente quando senti que se recuperou e entrelaçou as
pernas em meus quadris, prendendo-me e me levando ainda mais em direção a
ela.
— O que você quer, amor?
Era a primeira vez que a chamava assim. E por mais que ao longo dos
anos eu já a tivesse chamado de inúmeros apelidos diferentes, desde baixinha —
quando éramos pequenos —, passando por Chris — que era o mais óbvio — até
chegar a Wendy — nosso favorito —, não havia nenhum outro que mais
combinasse com o que eu sentia por ela. Ela era meu amor, minha melhor amiga,
minha salvação... minha promessa. Eu seria capaz de tudo por aquela mulher.
Não existia nada dentro de mim que não lhe pertencesse.
Os olhos de Christine se encheram de ternura quando ouviram essas
palavras saírem da minha boca, e eu decidi confirmar o que já havia dito antes,
mas que era importante repetir, principalmente naquele momento.
— Eu te amo, Wendy. Amo... tanto... — cheguei a ficar sem ar pela
forma como meu coração acelerou no momento em que as palavras se moldaram
na minha boca.
— Eu também te amo, Pan. Faça amor comigo...
Era quase uma ordem, embora tenha soado da forma mais doce e
delicada possível. Não havia nada que eu quisesse mais naquele momento do
que nos unir em um só, mas precisava esclarecer algumas coisas.
— Olha, eu não tenho camisinha comigo. Você está tomando
anticoncepcional?
— Sim. Eu ainda tomo...
— Bom. Em relação a outras preocupações, eu era obrigado a fazer todos
os tipos de exames naquele lugar, de seis em seis meses. Estou limpo.
— Eu não estive com mais ninguém depois de você...
Aquela declaração me chocou.
Por mais que Christine sempre tivesse sido uma mulher mais reservada,
acabei por imaginar que ela pudesse ter namorado ou saído com alguém, afinal,
foram três anos. Além do mais, não tínhamos nenhum relacionamento quando eu
desapareci — novamente, porque eu era um babaca para perceber como me
sentia de verdade. Mas, ainda assim, ela se mantivera sozinha por todo aquele
tempo.
Provavelmente percebendo a confusão e a curiosidade em meus olhos,
ela acrescentou:
— Nunca houve ninguém para mim como você. Outros relacionamentos
foram apenas formas de tentar te esquecer. Mas depois que ficamos juntos
daquela vez... — ela abriu um sorriso brincalhão, e eu sabia que viria com
alguma gracinha. — Acho que você me estragou para os outros homens...
— Uau... posso ficar convencido com isso? — tentei brincar,
principalmente para disfarçar o quanto o meu coração estava afundado no peito
depois daquela declaração. Como fui tão idiota em não perceber o quanto ela me
amava? E mais ainda... por não perceber o que eu também sentia?
— Pelo fato de você ser imbatível na cama? Bem, acho que depois do
que acabou de acontecer aqui, você já deve estar com o ego nas estrelas.
— Não, de forma alguma. Estou maravilhado... Não por esse motivo. —
Deslizei minha mão novamente por sua barriga, chegando ao cerne de sua
intimidade, sentindo-a retesar-se de leve, já esperando pelo que aconteceria. —
Mas posso fazer muito mais. Quero fazer muito mais. — Enquanto falava, meus
dedos a abriam, dando passagem para que eu a penetrasse. Quando o fiz,
introduzindo meu membro completamente rijo e ereto dentro dela, ela abafou um
grito com a própria mão, e eu arfei.
Ela estava muito molhada, muito apertada e muito quente. Levando em
consideração a quantidade de tempo que fui privado de sexo e o quanto eu a
desejava, sabia que não conseguiria me segurar. Com apenas algumas investidas,
já sentia minha cabeça ficando mais leve e minha visão escurecer, sentindo o
orgasmo chegando. Mas eu me segurei, prolongando ao máximo nosso
momento, esperando que ela também gozasse.
Quando chegamos ao clímax, juntos, despenquei ao lado dela, em
silêncio, mas logo a puxei para os meus braços, querendo sentir o calor de seu
corpo contra o meu.
Beijei-a no alto da cabeça e abri um sorriso, sentindo que me recuperava
aos poucos.
— Você é minha esta noite, Christine. Eu nem comecei a fazer com você
tudo o que tenho em mente.
Eu a senti estremecer em meus braços, e logo compreendi que minha
frase teve o efeito que eu esperava — ela também estava pronta para passar a
noite inteira sobre aquela cama, mas sem nenhuma pretensão de dormir. Não
pretendia deixá-la pegar no sono...

***
ARTHUR

Eu já estava de pé há pelo menos uma hora, mas ainda não tivera


coragem de acordar Christine. Ela jazia exausta sobre a minha cama,
completamente nua — com exceção do edredom que apenas a cobria na altura
dos quadris —, de barriga para baixo, com aquele estranho gato preto sobre sua
cabeça, com o pelo escuro confundindo-se em seus cabelos.
Durante toda a maratona frenética de sexo, o bichano manteve-se
adormecido, em um canto do quarto, como se estivesse com vergonha do que
fazíamos. Porém, assim que Christine pegou no sono, às cinco da manhã, ele se
empoleirou ao lado dela na cama, aninhando-se à dona e também voltando a
dormir. Olhar para eles dois me fez sorrir.
Sentei-me ao lado dela na cama, de banho tomado, depois de fazer
flexões no meio do quarto, e me dei ao direito de admirá-la por alguns minutos.
Era tão doce, tão leal, tão delicada... e ao mesmo tempo tão ardente e receptiva...
Eu poderia dizer, com toda a segurança do mundo, que o que eu sentia por
Christine não se assemelhava a nada que eu já tinha sentido em toda a minha
vida. Era um sentimento novo, que preenchia meu coração de uma forma tão
concreta e me transmitindo tanta paz, que eu quase conseguia imaginar que as
feridas que permaneciam abertas em meu corpo seriam fechadas algum dia,
porque a vida com aquela mulher prometia a cura. Passar com ela aquela noite
inteira, tendo-a segura entre os meus braços, fez com que eu me esquecesse, ao
menos por algumas horas, o pesadelo que estávamos vivendo. E isso já me deu
novas esperanças, já me trouxe uma nova perspectiva, uma nova carga de
adrenalina positiva. Era quase como um recomeço.
Chequei as horas no meu celular, que estava em cima da mesa de
cabeceira, e percebi que passava das oito. Christine já estava atrasada para o
trabalho, e eu sabia que ela me mataria por deixá-la dormir um pouco mais,
porém, não tinha coragem de acordá-la. Além do mais, sentia meu estômago
revirar de preocupação só de imaginar em ter que me separar dela com aquele
louco à solta. Um homem tão empenhado em me atingir que mostrara-se
disposto a fazer mal tanto a Chris quanto a Cléo.
Porém, por mais que eu pudesse ter a intenção de esperar mais alguns
minutos para acordá-la, o celular de Chris tocou, fazendo-me este favor.
Ela despertou no susto, algo que eu realmente não queria que
acontecesse, porque sabia que estava em um sono bem profundo, imóvel e
ressoando baixinho.
Sem dizer nada, entreguei o aparelho a ela e me afastei, pronto para me
vestir, já que estava usando apenas uma toalha amarrada à cintura.
Da suíte, pude ouvir algumas partes da conversa, embora tenha me
esforçado ao máximo para que isso não acontecesse, para não bisbilhotar, mas eu
sabia que se tratava de Maiara, a amiga de quem ela tanto parecia gostar.
Poderia ter ficado aliviado, por ser uma pessoa de confiança, mas não
demorei a perceber que a conversa tinha a ver com o homem que estava em
coma no hospital; aquele que era tão parecido com o outro que nos atacou no
meu apartamento. Sabendo disso, tive tempo apenas para vestir uma calça jeans
e logo me aproximei dela, esperando que encerrasse a ligação e falasse comigo.
E foi o que aconteceu.
— O cara do hospital sumiu — ela anunciou sem rodeios.
Coloquei-me imediatamente em alerta, sabendo que aquela era uma
notícia muito perigosa. Uma vez que possuía uma tatuagem como a minha, eu
sabia muito bem que ele era perfeitamente treinado para qualquer coisa. Um
adversário que eu não poderia ignorar ou menosprezar.
— Preciso falar com essa sua amiga, é possível? — indaguei a ela, e
Christine respirou fundo.
— Eu não queria envolver Maiara em nada disso. O marido dela ainda
está internado, embora já esteja fora de perigo, mas isso os deixa vulneráveis.
— Sei disso, mas se não tivermos informações, não vamos conseguir
parar essas pessoas e todos nós continuaremos em perigo — falei com
suavidade, sentando-me na beirada da cama, de frente para ela. Levei minha mão
ao seu rosto, confortando-a.
— Olha, fica muito difícil negar qualquer coisa a você nesses termos...
— Senti seu tom de voz relaxar.
— Que termos? — indaguei com um sorriso.
— Nós dois na sua cama, você me fazendo carinho e ainda por cima sem
camisa. Não acha que fico em desvantagem?
— De forma alguma. Eu estou em uma situação muito mais complicada
aqui... — Enquanto falava, agarrei-a e puxei-a para o meu colo. — Você está
nua, Christine. Completamente. Como acha que posso resistir a isso? Eu faria
qualquer coisa que me pedisse neste momento.
— Jura? Então acho que eu tenho uma coisa a pedir...
Cheia de malícia no olhar e no sorriso, Christine inclinou-se e sussurrou
coisas bem impróprias no meu ouvido.
Como eu poderia lhe dizer não?
Tanto que acabamos chegando um pouco mais tarde do que o previsto no
hospital, onde Maiara já nos esperava.
Em um primeiro momento, ela não me olhou com uma expressão muito
boa. Não parecia muito propensa a ser minha amiga, mas eu podia compreendê-
la. Era visível o quanto as duas mulheres se gostavam e o quanto a mais velha
era protetora em relação a Christine. Isso me agradava e já fazia com que ela
ganhasse muitos pontos comigo.
Dirigimo-nos à lanchonete do hospital, onde puxei as cadeiras para as
mulheres sentarem — o que arrancou um olhar mais simpático de Maiara — e
fiquei um pouco de pé, avaliando os arredores. Mantive uma pequena distância
de início, para ter melhor visibilidade de forma discreta, mas ainda conseguia
ouvir a conversa que se desenrolava entre as duas mulheres, por mais que ambas
tentassem falar bem baixinho.
— Não adianta negar, sua safada! Vocês fizeram sexo! E do bom, porque
você está radiante... — Tentei não rir com o comentário, mas esperei
ansiosamente pela resposta de Christine.
— Melhor impossível. Mas não vamos entrar em detalhes, nós viemos
aqui por outro motivo... — ela afirmou constrangida.
— Tudo bem, mas depois quero detalhes. Estou feliz de te ver assim... —
As duas cortaram o assunto no momento em que eu me aproximei e me sentei.
Maiara, que não perdia tempo, foi logo falando: — Entendo que quer saber sobre
o cara que sumiu, mas não sei se vou ser de grande ajuda, porque não
descobrimos nada sobre ele. Da forma como chegou aqui, também desapareceu.
— Como ele saiu? — perguntei, querendo acabar logo com aquilo.
— No meio da noite de ontem. Rendeu dois enfermeiros e dois
seguranças. Não tinha documentos, não sabemos de onde veio, mas era bom de
briga e com aquele tamanho todo, deixaram ele passar. Ninguém iria atirar em
um doente, então, se ele queria tanto ir embora... bem... isso aqui é um hospital
público, não uma penitenciária...
Eu entendi o que ela queria dizer. Não havia motivos, além da ética
profissional, para manter um homem dentro de um hospital. Se queria sair, não
havia nada que pudesse impedi-lo, além de um laudo médico. E eu sabia muito
bem que um papel de merda não iria prender um soldado da MR em um local
onde ele não queria estar.
— Alguém chegou a ter algum contato com ele? Ele falou alguma coisa?
— Eu não estava de plantão no dia, e não acho que seja uma boa ideia
você sair interrogando outros funcionários do hospital, grandão. Ainda mais que
você e aquele doido têm o mesmo porte físico, o mesmo estilo. Podem achar que
são comparsas, sei lá. E ele não deixou uma boa impressão por aqui.
Assenti. Ao menos o filho da mãe não tinha matado ninguém.
— Mai, alguém veio visitá-lo? Ou você sabe se alguma pessoa estranha
apareceu aqui no hospital, espreitando ou qualquer coisa assim — Chris
perguntou, e eu concordei com a cabeça, enaltecendo a sua boa pergunta.
— Até onde eu sei, não. E esse seria o tipo de coisa que as pessoas
comentariam, sem dúvidas. — Maiara fez uma pausa, mas tanto eu quanto
Christine entendemos que ela tinha mais alguma coisa a dizer, pela forma como
respirou profundamente e suspirou logo em seguida. Não demorou, portanto,
para prosseguir, dirigindo-se diretamente a mim: — Olha, Arthur, eu não sei em
que tipo de merda você se enfiou, mas imagino que tenha sido algo muito barra
pesada, principalmente porque tive um gostinho naquela festa na casa dos
Queiroga, mas só te aviso que a Christine não merece nada disso. Você está
colocando essa garota em perigo, e eu não gosto nada dessa história.
— Eu sei. Também não gosto disso, mas não tive culpa de nada do que
aconteceu.
— Acredito. Você parece ser um cara legal. Só espero que não termine
em tragédia. Ou em mais tragédias, já que Paulo está em uma cama de hospital.
Vivo e bem, mas poderia não ter tido tanta sorte.
— É por isso que estou tentando cuidar das coisas. Se depender de mim,
ninguém mais vai sair machucado...
Eu esperava que minhas palavras fossem a mais pura verdade, porque
não poderia suportar que mais alguém se ferisse por minha causa. Nem
Christine, nem os amigos dela, nem a minha família. Aceitaria dar a minha vida
em troca de alguma daquelas pessoas inocentes, mas não queria mais sangue em
minha consciência.
Terminamos nossos cafés e fazemos mais algumas perguntas para
Maiara, embora todas elas terminem com as mesmas respostas sem muito futuro.
O cara evaporou. Porém, ela prometeu tentar conseguir as imagens das câmeras
de vigilância, contanto que nós fôssemos embora, porque ela achava que nossa
presença ali só poderia piorar as coisas. Eu concordava. Ainda achava toda
aquela história muito estranha, e havia uma grande chance de que fosse uma
armadilha.
Deixei Christine no trabalho, com o coração na mão, prometendo que iria
buscá-la. Fiz com que prometesse que não iria sair da cafeteria para nada, nem
mesmo para almoçar, e pedi que me ligasse caso qualquer coisa fora do comum
acontecesse.
Aproveitando que estava na Zona Sul, passei na faculdade de Cléo.
Precisava dela para colocar algumas coisas que vagavam pela minha cabeça em
prática.
Assim que me vi de frente para o prédio onde estudava, peguei meu
celular e liguei para ela. Imaginei que demoraria a atender, porque deveria estar
em aula, mas a ligação logo caiu na caixa postal. Alguns minutos depois, recebi
uma mensagem no Whatsapp.
“Estou em aula. É urgente?”
Respondi em seguida, o mais rápido que pude:
“Um pouco. A que horas você sai? Queria te levar para conhecer um
amigo meu e vou precisar de sua ajuda em uma coisa importante.”
“Saio em cinco minutos. Me espera aí na frente.”
“Cléo, você não vai perder aula por minha causa!”
“Ah, essa professora é uma chata. Vai por mim, não vou perder nada
saindo agora.”
“Tudo bem. Estou te esperando no portão.”

Ela surgiu em dois minutos, abrindo a porta do meu carro e entrando ao


meu lado. Sem perguntar nada, já foi colocando o cinto de segurança.
— Para onde vamos?
A velocidade com que processava as coisas era um tanto quanto
vertiginosa para mim, mas eu, definitivamente, estava disposto a tentar
acompanhá-la. Além disso, havia um brilho em seus olhos, que eu sabia que
tinha a ver com o fato de receber a oportunidade de me ajudar em alguma coisa.
— O nome do meu amigo é Mário. Ele vai receber umas imagens de uma
câmera de segurança, e eu preciso que você dê uma olhada numa pessoa. Talvez
possa ser o homem com quem você saiu ontem à noite.
— Porra, Arthur! Você está stalkeando o cara? Tá levando mesmo a sério
esse negócio de irmão ciumento.
Respirei fundo, tentando manter a paciência.
— Quem dera fosse só isso, mas eu acho que você pode estar realmente
encrencada.
Ela ficou finalmente calada, parecendo um pouco amedrontada com o
que eu tinha acabado de falar. Odiava assustá-la, mas o medo era bom. O medo a
deixaria mais cautelosa.
Seguimos para a casa de Mário, e eu nem sequer telefonei avisando que
levaria companhia. Deveria ter feito isso, certamente, nem que fosse para
amenizar aquela cara abobada que surgiu no rosto dele ao ver minha irmã.
Completamente congelado, com os olhos fixos nela, ele sequer abriu a
porta, nem nos deu passagem. Desviando os olhos para Cléo, percebi que ela
estava gostando da atenção. Era uma garota vaidosa, e eu sabia que gostava de
ser admirada.
— Vai deixar a gente entrar? — indaguei em um tom de zombaria.
— Ah... é... hum... claro. Claro. Me dá só um minuto? — Sem esperar
pela nossa resposta, ele fechou a porta. Cléo olhou para mim confusa, mas eu já
imaginava exatamente o que ele iria fazer. Já podia visualizá-lo correndo por
toda a casa, tentando arrumar a bagunça que devia ter feito na noite passada
enquanto jogava online pela madrugada inteira. Pacotes de biscoitos vazios,
latinhas de refrigerante, roupas espalhadas... Convivi com ele tempo suficiente
para saber como funcionava sua rotina.
Contudo, quando entramos, o único resquício de algo diferente ao redor
era um Mário muito suado que veio abrir à porta, finalmente nos dando
passagem.
Cléo tomou a dianteira, olhando para todos os lados do apartamento,
especialmente para as Action Figures espalhadas, de vários personagens
conhecidos de quadrinhos, filmes e seriados.
— Cara, eu tô apaixonado... — Mário cochichou no meu ouvido quando
Cléo tomou certa distância.
— É minha irmã... não se esqueça disso...
— Ah, você é um daqueles tipos de irmãos ciumentos? Porra, então não
está mais aqui quem falou. Pelo amor de Deus, cara, se eu levar uma porrada sua
eu morro só com o vento que o teu punho vai provocar.
Eu teria rido se a situação não fosse tão ridícula e se Cléo não tivesse nos
interrompido, virando-se na direção de Mário enquanto ficava de pé, de frente
para uma imagem do Thor.
— Uau! Eu adoro o Thor. Sou super fã do Chris Hemsworth. É meu ator
favorito... — comentou, tentando visivelmente flertar com o rapaz, embora ele
definitivamente não fizesse o seu tipo. Ela só adorava ser o centro das atenções.
Eu sabia disso, e a maioria dos rapazes da sua idade alimentava esse ego. Mas
era puramente inofensivo, porque não era uma garota petulante.
Mário não tardou em se aproximar de mim de novo, sussurrando em meu
ouvido.
— É... ela continua sendo muito gata, mas perdeu alguns pontos. Chris
Hemsworth como ator favorito? O cara não é ruim, mas não tinha ninguém
melhor, não? Tipo um Harrison Ford, Will Smith... tanta gente boa, e ela vai
escolher o...
— Mário... cala a boca... — repreendi em tom de zombaria, não
conseguindo controlar uma risada, especialmente quando ele gesticulou,
fingindo fechar um zíper em sua própria boca. — Você já recebeu os vídeos? —
Levando em consideração que fazia umas duas horas que eu e Christine
tínhamos saído do hospital, achei que Maiara já poderia tê-los conseguido.
Porém, como a ação ia ser um pouco clandestina, e ela teria que depender da boa
vontade de um colega, poderia demorar um pouco mais.
— Ah, agora eu posso falar? — Revirei os olhos diante da piadinha de
Mário, e ele percebeu minha impaciência, porque ergueu as mãos em rendição.
— Tudo bem, me desculpa. É que eu achei que o clima tava meio pesado e você
sabe como eu ajo nessas situações, ainda mais que não é todo dia que uma garota
super gata entra no meu apê. — Assim que ele disse isso, Cléo se virou para ele
com um imenso sorriso no rosto. — Ai, merda, eu falei isso em voz alta!
— Mário, dá para você responder à minha pergunta?
— Sim, cara... chegaram tem uns vinte minutos. É coisa pra caramba,
porque ela mandou os arquivos inteiros, mas eu já dei uma acelerada no processo
e cheguei ao horário da fuga, pelo que a moça me informou no e-mail. —
Enquanto falava sem parar, ele ia nos guiando até seu escritório. Assim que
entramos, deparamo-nos com o monitor ligado naquele jogo colorido que ele
tanto gostava de jogar, e uma bonequinha com uma carinha meiga, gordinha e
usando óculos sorria para nós, mostrando que ela era o avatar de Mário.
Claro que ele correu desesperado em direção ao computador, dando Alt
Tab para trocar de tela. Só que isso não lhe favoreceu muito, porque pulou para
um site de streaming, onde um desenho animado impróprio para menores, com
duas garotas em estilo mangá, com seios enormes que brotavam para fora de
minúsculos tops de biquíni, estava pausado.
— Foi um colega meu que me mandou esse link... eu nem... não sei... Ah,
merda! — gaguejando cheio de culpa, Mário finalmente usou o mouse para
acessar uma pasta de Downloads, onde ele abriu um arquivo de vídeo que
deveria ser o das câmeras do hospital.
Tentando acalmar-se, ele apenas correu o vídeo para frente, chegando
mais ou menos no momento da briga.
Um homem assustadoramente parecido com aquele que invadiu a
cafeteria surgiu na tela preta e branca, agarrado a um enfermeiro, segurando um
bisturi colado à garganta do rapaz. Uma correria teve início, e dois seguranças
tentaram pará-lo, mas o cara era muito bom de briga e logo levou os dois a
nocaute. Um segundo enfermeiro veio tentar pará-lo, corajosamente, sem o uso
da força, apenas na conversa, mas este também levou um belo soco, que o
deixou estirado no chão. Ainda com o objeto afiado nas mãos, ele saiu do
hospital, usando a camisola do mesmo, e não foi mais visto.
O que eu queria conseguir com aquela imagem era apenas uma coisa —
algo que nem sequer precisei perguntar para saber a resposta. Assim que olhei
para a minha irmã, ela estava boquiaberta, com uma expressão muito assustada
no rosto.
— Meu Deus... — ela disse, mas a voz falhou antes que pudesse
continuar a frase.
— O que foi, Cléo? Conhece esse homem?
— Não sei se conheço, mas ele é muito parecido com o Carlos, o cara
que eu saí ontem. Idêntico, eu diria, mas não é ele. Não é, com certeza... porque
vejo algumas diferenças pequenas. Devem ser irmãos gêmeos.
Irmãos gêmeos...
Sim, aí estava a minha resposta.
Estávamos lidando com duas pessoas. Duas pessoas muito parecidas,
que, sem dúvidas, nos trariam problemas em dobro.
Capítulo Dezesseis
ARTHUR

Gêmeos.
Se já seria complicado lidar com um problema, dois, sem dúvida,
consistia em uma situação completamente inesperada. Principalmente uma que
envolvia minha irmã.
E a merda conseguiu feder ainda mais, porque depois da revelação me vi
obrigado a contar algumas coisas a ela sobre a MR e minha divertida estadia por
lá. Isso a deixou compelida a ajudar, além de tê-la horrorizado, é claro.
Foi mais uma conversa difícil, assim como fora com Christine, embora
eu tenha suavizado muito mais as coisas com minha irmã. Não porque duvidasse
de sua força, mas porque tive uma péssima experiência da primeira vez e não
queria repeti-la. Acho que poderia poupar ao menos uma das mulheres que
amava de todo aquele drama. Isso, sem contar que ainda precisaria repetir toda a
história para a minha mãe um dia.
Um dia... e eu esperava que ele chegasse apenas quando todo o pior já
tivesse terminado.
A expressão decidida e indignada que Cléo sustentava no rosto não me
agradava em nada. Por mais que estivesse praticamente em silêncio depois de
ouvir toda a história, eu sabia que aquele cenho franzido não indicava
passividade. Também imaginava que nenhuma das minhas recomendações para
que se afastasse daquele homem e deixasse que eu tomasse as rédeas da situação
iriam surtir muito efeito.
— Raio de Sol... — sussurrei baixinho, chamando-a e puxando-a para
mim, encostando sua cabeça em meu peito. Ela suspirou ao ouvir o apelido. —
Tudo o que aconteceu já passou. Estou aqui, não estou?
— Por quanto tempo? — ela indagou, afastando-se do meu peito para
poder me olhar nos olhos. — Essa gente te maltratou, Arthur! Tiraram você de
nós e ainda estão te perseguindo. Quando esse pesadelo vai ter fim?
— Vou pará-los... eu juro.
— Um homem sozinho contra toda uma organização? Vocês mesmo
disseram que eles são perigosos e que não sabem o tamanho de tudo isso. Vai
acabar morrendo! — Cléo estava desesperada, mas eu conseguia entendê-la. Era
muito para processar. — Você precisa de pessoas que poderão te ajudar. Precisa
ir à polícia!
— Não quero envolver ninguém em nada disso, Cléo. Eles têm algum
tipo de ligação com o governo, e não sei até que ponto a polícia também está
envolvida.
Isso a fez arregalar os olhos e ficar boquiaberta. Odiava preocupá-la
nesse nível, e foi exatamente por isso que tanto relutei em lhe contar a verdade,
mas fora inevitável.
Depois de se recompor, ao menos aparentemente, ela levou a mão aos
olhos, secando-os, e mais uma vez voltou-se para mim.
— Posso usar o banheiro?
— Claro — Mário afirmou, apontando a direção do cômodo. O rapaz foi
seguindo-a com os olhos, e eu deixei que a admirasse por algum tempo, até que
ele mesmo se virou para mim e comentou: — Você é um cara de sorte. As
garotas da sua vida são corajosas e te amam de verdade.
— Elas são mesmo. — Foi nesse momento que eu reparei uma expressão
de tristeza nos olhos de Mário e me dei conta de que nunca me aprofundei na
vida pessoal dele. Se analisasse como um todo, principalmente esse tempo que
começamos a conviver, ele não me parecia ter família ou pessoas que se
importassem com ele. Ainda precisaria fazer algumas perguntas e descobrir
algumas coisas, mas fiz questão de colocar a mão no ombro dele e dizer: —
Você é parte da família agora, garoto.
— Espero que sim... cunhado...
Filho da puta! Aquele sorrisinho malicioso me dava muita vontade de lhe
dar um murro na cara por ele estar falando da minha irmã, mas eu não poderia
negar que Mário seria um pretendente que eu aprovaria. Isso, é claro, se
conseguíssemos nos livrar de toda a confusão e ter um pouco de paz.
Cléo retornou, e meu coração se apertou ao ver seus olhos vermelhos
com resquícios de um choro recente. Estava cansado de fazer as pessoas
sofrerem, mas tinha fé que aquilo em breve acabaria.
Sabendo que a noite seria difícil para ela, levei-a para a praia, que eu
sabia que ela adorava, assim que saímos da casa de Mário. A ideia de ficarmos
expostos não seria algo muito inteligente, por isso sugeri que permanecêssemos
dentro do carro, apenas admirando a paisagem pelo vidro. Não era o passeio dos
sonhos de uma garota de vinte anos, mas eu poderia compensá-la um dia.
Comprei água de coco no quiosque mais próximo e ficamos em silêncio
por um tempo, apenas apreciando a vista e compartilhando aquele momento.
Porém, eu sabia que não demoraria muito para que tentasse iniciar uma
conversa.
Com os olhos fixos no coco à sua frente, ela começou a falar, sem me
encarar.
— Me desculpa... Pela forma como eu venho te tratando desde que você
chegou. Eu não sabia... eu...
— Ei... — Coloquei a mão sob o queixo dela, fazendo-a olhar para mim.
— Você não precisa se desculpar por nada. Eu devo explicações aqui.
— Mas depois de tudo que você sofreu, eu ainda piorei tudo.
— Não, Raio de Sol. Não se culpe por nada. Vamos resolver tudo, e eu
vou te compensar pelos três anos que te fiz sofrer.
Ela engoliu em seco e novamente voltou os olhos para longe de mim.
— Sabe... a última coisa que o papai falou no leito de morte foi o seu
nome.
Aquilo era uma novidade e tanto. Claro que eu não era idiota de imaginar
que meu pai não me amava, só que sua forma de demonstrar era muito
insuficiente. E eu sabia que para Cléo também, tanto que ela sempre foi muito
apegada a mim, uma vez que éramos mais parecidos. Por mais que minha mãe
fosse um pouco diferente e soubesse ser carinhosa quando preciso, meu pai
sempre a podara, incentivando-a a não nos mimar demais ou acabaríamos sendo
um grupo de fracos. Ele acreditava em disciplina e trabalho duro, duas coisas nas
quais eu — preciso confessar — nunca fui muito bom, embora estivesse disposto
a mudar isso assim que minha vida se resolvesse. J.J. esforçava-se ao máximo
para agradá-lo, enquanto eu não media esforços para provocar sua ira. Isso era
sempre um motivo de atrito entre nós, e pouco antes do meu desaparecimento,
nós tínhamos brigado seriamente. Ouvir o que Cléo tinha acabado de contar
fazia com que meu coração se retorcesse no peito, sensibilizando-se pelo
poderoso Jorge Montenegro.
— O meu nome? — Esforcei-me muito para que minha voz não saísse
estrangulada e falha, e esse foi o meu ato mais covarde de todos: não querer
demonstrar à minha própria irmã o quanto estava emocionado pelo que ela
acabara de me contar.
— Sim. Ele sofreu muito com o seu desaparecimento, Tuco. Tanto
quanto todos nós. Ele foi o que mais relutou em aceitar que você tinha morrido.
Bem... ele e Christine. — Ela fez uma pausa e engoliu em seco. — Não foi fácil
para ninguém, nem para J.J., mas acho que papai foi o que mais perdeu a cabeça.
Ele mudou muito depois disso, tornou-se um pouco mais carinhoso, menos
severo. E foi o único que não teve a chance de te ver vivo, voltando para casa.
Cléo chorava, e, mais uma vez, precisei me controlar ao máximo para
não fazer o mesmo.
— Nós dois éramos orgulhosos. E éramos muito diferentes. Ele sempre
foi mais parecido com J.J..
— Tirando a parte de ser um babaca, sim, eles eram parecidos. — Cléo
engoliu em seco novamente. — Quando você partiu... Meu Deus, meu mundo
desmoronou. Fiquei meio sem rumo por quase dois anos. Foi tão difícil. — Eu ia
falar alguma coisa, mas ela não deixou. Logo deu prosseguimento ao que dizia:
— É por isso que eu quero te ajudar a se vingar. As pessoas precisam saber que
essa MR existe, que estão sequestrando pessoas.
— É o que eu mais quero também, mas não posso permitir que se meta
nisso.
— Mas que droga, Arthur! Eu tenho o telefone daquele cara, dá para
marcar um encontro com ele! — Balancei a cabeça em negativa, nem sequer
cogitando aquela hipótese. — Você pode ir comigo, ficar de tocaia... vai dar
certo!
— E se ele aparecer com mais gente? — sugeri. — Cléo, essas pessoas
são treinadas, assim como eu também fui. Sei mais ou menos como pensam,
então, imagino que se você marcasse algo, ele ficaria desconfiado. Saberia logo
que se trata de uma emboscada.
— Merda! — exclamou indignada. — Você não é a porra do cavaleiro
solitário, Arthur! Não pode resolver tudo sozinho!
— Não estou sozinho. Eu tenho Mário... — falei em um tom mais leve.
Cléo revirou os olhos.
— Olha, nada contra. Ele é uma gracinha, mas aquele garoto não vai
conseguir ajudar nem a si mesmo, quanto mais você.
— Não o subestime. Aquele garoto lá é um hacker dos mais competentes.
— Isso até que é sexy, tenho que confessar, embora eu não devesse estar
confessando para o meu irmão mais velho, mas, ainda assim, acho que ele não
saberia agir em uma situação de perigo.
— Vamos ver... Vamos ver... — disse, um tanto quanto reflexivo,
esperando que ela estivesse errada.
Passamos horas ali dentro do carro e vimos o por do sol, como já
tínhamos feito tantas vezes no passado. Fomos juntos ao café de Christine, onde
esperamos sua hora de saída, e fomos todos para casa.
Não pude deixar de sentir o coração aquecer bem de leve quando
embiquei o carro na garagem da mansão, tendo em minha companhia as duas
mulheres que eu mais amava no mundo. Quando entrei em casa, deparei-me com
a outra, minha mãe, e nós quatro tivemos um agradável jantar em família,
acompanhados do meu tio, Sidney, onde pude anunciar que Chris ficaria
morando conosco ali por algum tempo. Minha mãe estranhou um pouco, mesmo
quando anunciei que estávamos juntos, mas não pareceu incomodada. Pelo
contrário, gostou muito da notícia. A casa também era minha, afinal. Christine,
no entanto, ficou levemente constrangida, mas não contestou, porque sabia que
era para sua segurança.
Cléo subiu para seu quarto, minha mãe saiu com o irmão para um evento
de caridade em nome da empresa, e eu fui deixado com Christine na sala de
estar. Esta só precisou checar se Kibe estava bem. Eu até sugeri que ela deixasse
o bichano solto, já que minha família sempre gostou de animais, mas ela preferia
mantê-lo no quarto, com comida e água, pois não confiava muito em J.J.. Nisso
eu precisava concordar.
Assim que ela voltou para a sala, afirmando que seu gatinho estava
apenas saudoso, sentou-se ao meu lado, e eu a puxei para o meu colo, sem
nenhum pudor. Exatamente como imaginei que aconteceria, ela abriu a boca para
protestar, mas eu a calei com um beijo, com uma mão firme em sua cintura e
outra em sua nuca. Claro que ela não demorou a ceder.
Por mais que tivéssemos passado a noite inteira entrelaçados um no
outro, eu ainda não estava saciado. Deus, eu queria muito mais dela, queria tudo.
Não apenas fazer amor desesperadamente por mais horas e horas, mas também
queria sua companhia, queria beijá-la bem demorado, até quase devorá-la por
inteiro, queria mantê-la ali, em meu colo, aninhada, e segurá-la contra o peito em
silêncio, só para ter o prazer de ouvir sua respiração pesada até que adormecesse.
Queria tudo que aquele relacionamento pudesse me oferecer; queria
Christine como minha... como minha mulher, minha namorada, minha amante,
minha... esposa.
A palavra cruzou minha mente como um raio, tão rapidamente que
chegou a me acometer de forma vertiginosa. Em nenhum momento parei de
beijá-la, mas o ar me faltou no momento em que imaginei aquele compromisso.
Não porque me assustasse, mas porque me pareceu tão certo quanto o amor que
eu sentia por ela. Qualquer um poderia pensar que estava apressando as coisas,
mas... pelo diabo!, eu conhecia Christine a minha vida inteira. Não havia mais
dúvidas em relação a isso. Eu sabia, dentro do meu coração, que ela era perfeita
para mim. Demorei até demais para chegar a essa conclusão. Se não fosse toda
aquela confusão que me rondava, eu também poderia cogitar que era perfeito
para ela.
Ao menos, aquilo que estávamos fazendo naquele momento era perfeito.
Eu a beijava bem devagar, como se nossas línguas dançassem em
sincronia, de forma sensual e quase indecente. Apertava-a contra meu corpo com
força, com se temesse que a realidade pudesse roubá-la de mim. Christine, por
sua vez, também entrelaçava seus dedos em meus cabelos curtos, puxando-me
para frente com força, como se precisasse me manter ainda mais perto, assim
como eu também precisava dela.
Ela gemia contra minha boca, e esse som extremamente erótico quase me
fazia perder a cabeça. Ansiava por tirá-la daquele sofá, carregá-la até o quarto e
fartar-me dela, embora aquela não fosse a ideia a princípio. Não queria que
pensasse que só estava interessado em seu corpo — embora estivesse
maravilhado com a forma como se encaixava ao meu, como se um tivesse sido
feito para o outro —; queria que ela soubesse que desejava mimá-la e lhe
oferecer todo o tipo de ternura que um monstro como eu era capaz de oferecer.
Porém, antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, a porta da frente da
casa se abriu, fazendo nós dois nos sobressaltarmos. Embora estivéssemos na
sala de TV, em anexo, e houvesse uma parede a nos separar, Chris logo se
empertigou, saindo do meu colo e afastando-se de mim. Com esse movimento,
ela acabou atingindo a mesinha ao lado do sofá com a mão e fazendo o abajur
cambalear. Por mais que não tivesse caído no chão, fez um certo barulho e logo
fomos encontrados ali.
Claro que a pessoa que chegava era J.J..
— Ah, são vocês — comentou com desdém. — Não precisam parar de se
pegar por minha causa... já estou de saída. — Virando-se de costas para nós, ele
se preparou para afastar-se, mas girou novamente para nos olhar. — A Chris vai
virar sócia da casa agora, né?
— Na verdade, ela vai ficar morando com a gente por um tempo...
— Olha! Até que a viuvinha é esperta. Fisgou o milionário bonitão e já
se mudou para a mansão. Conforto todo mundo quer, não é?
Senti o meu sangue gelar e estava pronto para dar a resposta que ele
merecia, mas Christine foi mais rápida.
— Deixa de ser babaca, J.J.. Cuida da sua vida! — Ela estava revoltada.
A cena da noite anterior ainda não tinha saído da minha cabeça, quando o vi no
chão, no meu quarto, enquanto Chris se mantinha na cama, encolhida e acuada.
Sabia que algo havia acontecido entre eles, mas não quis perguntar, porque,
dependendo da resposta, eu acabaria muito puto e perdendo o controle.
Com aquele rompante de Christine, ele gargalhou.
— Ah, viuvinha, para com a bobeira, estou brincando. Sabe que gosto de
você. Vai ser bom te ter por aqui... — Dando uma piscadela, ele finalmente saiu
de perto. Era impressionante pensar que aquele cara era meu irmão, mas que eu
não suportava ficar em um mesmo cômodo que ele por dois minutos. Por que
diabos me provocava tanto? O que poderia ter contra mim?
Percebendo o quão tenso eu fiquei depois daquela breve e inconveniente
conversa, Chris levou a mão ao meu ombro, na tentativa de me acalmar.
— Não ligue para ele, Pan... É só um idiota invejoso. Sempre foi.
— Se ele te incomodar... se passar dos limites... — Eu imaginava que já
tinha passado, e não apenas uma vez, mas dali em diante queria que ela me
avisasse e me mantivesse a par da situação.
— Eu sei me defender. Não preciso do meu príncipe encantado para
isso...
— Príncipe encantado? — Ergui uma sobrancelha, tentando me acalmar
e entrar no clima mais leve que ela se esforçava para manter. — Garanto que
nunca fui chamado de nada parecido.
Com uma expressão sensual, Christine ergueu-se do sofá, aninhando-se
novamente em meu colo, onde ela sempre era muito bem-vinda.
— Um príncipe em um cavalo negro; meio sombrio e misterioso. Sexy
como o inferno.
Deus, a forma como ela falou a última frase... sussurrada contra o meu
ouvido...
Eu estava perdido. Tanto que mal consegui me conter e a ergui no colo,
fazendo-a gargalhar.
— Eu estava planejando ser honrado com você esta noite, princesa. Mas
já que está me provocando, não me dá outra escolha — disse, enquanto a
carregava escadas acima.
— Talvez essa fosse exatamente a minha intenção...
Chegamos ao quarto, e eu apenas fechei a porta com o pé, jogando-a na
cama em seguida. Ali, nós nos perdemos novamente, sem noção do tempo e de
tudo o que nos rondava.

***

ARTHUR

A noite sorria para mim do lado de fora da janela, de onde eu a


observava. Há muito tempo eu não sabia o que era ser assim tão feliz. Tão
fodidamente... feliz. Por alguns minutos de insanidade, eu me deixava acreditar
que a vida seguia seu fluxo normal e que tudo de ruim não passava de um
pesadelo enviado à pessoa errada e que minha realidade era apenas a linda
mulher nua na minha cama, adormecida depois de praticamente desmaiar de
prazer nos meus braços.
Porém, a lucidez não demorou a me atingir em cheio, com o toque de um
telefone que espatifou meus pensamentos alegres em mil fragmentos
irrecuperáveis.
Podia ser qualquer coisa. Engano, telemarketing — embora fosse um
pouco improvável àquela hora —, trote ou até mesmo Mário para me falar sobre
qualquer descoberta. Só que algo me dizia — uma espécie de intuição muito
forte — que não seria nada de bom.
Quando vi o nome de Cléo no display... toda essa certeza triplicou.
Enquanto eu atendia à ligação, Christine começou a se remexer sobre a
cama, com certeza acordada pelo barulho do toque. Do outro lado da linha, eu
ouvia a voz da minha irmã falando comigo e um som uivante de vento, como ela
estivesse em um carro em movimento.
Não demorei a perceber que realmente estava.
— Tuco... me desculpa... eu... — Sua voz falhou.
— Cléo, o que você fez? — indaguei, em alerta, começando a me vestir,
já que estava completamente nu.
— Eu... eu marquei com ele. Com Carlos.
— Por que fez isso? Por que...
— Estou indo encontrá-lo no Windsor, da Barra. Ele está me esperando
no quarto 308. Vou dar um jeito de você pegá-lo. Aí poderá interrogá-lo e
descobrir uma forma de se livrar dessa confusão toda.
— Não é uma confusão, Cléo... é uma situação perigosa. Você não
deveria... — exclamei, enquanto continuava a me vestir, mas ela não me deixou
terminar.
— Não posso conversar agora. Estou chegando aqui, de táxi. Vou segurá-
lo, seja como for. — E desligou.
Meu Deus! O que ela tinha feito? Por que estava se colocando em perigo
daquela forma? Certamente o tal Carlos saberia como se safar facilmente sem
que eu tivesse a oportunidade de pegá-lo.
— Arthur, o que houve? — A voz apavorada de Christine me arrancou
dos meus pensamentos. Toda aquela movimentação deveria estar assustando-a
demasiadamente.
— Cléo... — foi tudo o que consegui dizer. Na verdade, estava me
arrumando com tanta pressa que mal conseguia encontrar tempo para falar, entre
colocar os sapatos e começar a pegar minhas coisas para sair.
Chris levantou-se de um pulo. Provavelmente, pelo meu tom de voz e
pela expressão no meu rosto já conseguia compreender o quão séria era a
situação.
— O que tem ela?
— Não posso te explicar agora, mas quero que me prometa que não vai
sair deste quarto. Tranque a porta, se achar necessário, para que o J.J. não te
importune. — Aproximei-me dela e deixei um beijo rápido em sua boca. — Cléo
resolveu agir por conta própria, e eu acho que pode se encrencar. Vou tentar
evitar.
— Arthur, pelo amor de Deus... — Christine suplicou, e seus olhos se
arregalaram ainda mais quando me viu prendendo a arma que Mário conseguiu
para mim no cós da calça.
— Eu tenho que ir, linda. Não posso abandonar minha irmã. — Dizendo
isso, saí sem esperar que ela tentasse me convencer a resolver o problema de
outra forma. Porque não havia nenhuma outra.
Saí da mansão correndo como um louco, e da mesma forma dirigi pelas
ruas da Barra da Tijuca, agradecendo por ser um dia de semana e estar tarde,
livrando-me de um trânsito caótico. Só queria ter a esperança de que ainda
encontraria minha irmã viva, sã e salva.
Chegando ao hotel que ela me indicou como o ponto de encontro,
estacionei com pressa e saltei na garagem, enquanto tentava contato com Cléo.
Não que esperasse que ela fosse me responder, principalmente se estivesse com
Carlos, mas se tivesse uma brecha, poderia me enviar algum sinal de que estava
bem.
Mas nada veio. Estava contando apenas com a sorte.
Cheguei à recepção e solicitei um quarto, sentindo-me mais e mais
desesperado a cada segundo que passava. Assinei, paguei, recebi o cartão e voei
pelo corredor em direção ao elevador, seguindo para o andar informado por
Cléo, sem nem olhar qual quarto fora designado a mim.
Se precisasse arrombar aquela porta, eu arrombaria, mas não queria fazer
estardalhaço para não chamar a atenção da segurança do hotel; por isso, tomado
por um nervosismo que poderia ser muito prejudicial, agi como um total
despreparado.
— Serviço de quarto... — anunciei, batendo na porta, embora soubesse
que não convenceria ninguém com aquela interpretação patética.
No entanto, para a minha surpresa, alguém abriu para mim.
A primeira coisa que vi, assim que entrei, foi minha irmã com os braços
amarrados atrás das costas e uma mordaça na boca — uma imagem que jamais
iria esquecer —, enquanto o homem cujo rosto eu já conhecia, mantinha-se atrás
dela, com um braço possessivo ao redor de sua cintura. A outra mão segurava
uma seringa, apontada para o braço de Cléo, que tremia e chorava, olhando para
mim, como se suplicasse por ajuda. Mais uma lembrança que me perseguiria por
muito tempo, mesmo que saíssemos os dois dali ilesos.
No exato instante em que me vi dentro do quarto, saquei a arma e
apontei-a para Carlos. Era uma manobra arriscada, porque eu não sabia o que
havia na seringa, mas não podia deixar Cléo completamente indefesa naquela
situação. Vê-la tão apavorada estava despedaçando minha alma em um milhão
de cacos, principalmente porque tudo tinha a ver comigo. Tudo começava e
terminava em mim. Todas as nossas desgraças recentes.
— Vejam só... não é que o nosso Rei Arthur veio buscar a irmãzinha
gostosa? — Com aquela expressão cheia de ironia, ele apertou Cléo ainda mais
contra si e deu uma lambida em seu rosto, o que a fez encolher-se de nojo e
medo. Em seguida, usando o braço que ainda a segurava, Carlos a ergueu um
pouco do chão, mantendo-a suspensa, servindo de escudo para que eu não
atirasse.
— Solte-a. Ela não tem nada a ver com isso — tentei, mesmo sabendo
que de nada adiantaria.
— Ah, ela tem, sim. Primeiro achei que poderia usá-la para chegar até
você, mas a burrinha te trouxe até mim. Foi tudo tão fácil... — Ele ria como se
ambos estivéssemos encenando uma cena de comédia. — Sabe o que eu tenho
aqui nesta seringa? — Carlos ergueu o objeto que tinha em mãos para mostrá-lo.
Não respondi, porque não pretendia entrar em seu jogo, mas minha expressão
desconfiada já deveria ser suficiente, pois ele continuou. — Uma bomba... uma
mistura de LSD, Anfetamina e outras coisinhas. Se um treco desses entrar na
veiazinha da sua irmã... é overdose na certa.
Retesei-me instantaneamente, ainda mantendo a arma na mão.
Por detrás da mordaça, ouvi Cléo gemer. O medo lhe deu coragem o
suficiente para começar a se debater dos braços de Carlos, mas eu sabia muito
bem o tipo de preparação física que ele havia recebido na MR, então, nada
daquilo surtiria efeito, ele não a soltaria. Embora fosse alta, minha irmã era
magra como uma modelo, e ele poderia segurá-la daquela forma por horas.
— Se você injetar isso nela, não vou ter nada a perder. Vou te matar sem
nenhum remorso.
— Claro. Eu sei disso... Portanto, quero que coloque a arma no chão e a
chute na minha direção.
Se eu largasse aquela arma, fazendo o que ele pedia, as coisas se
complicariam. Eu poderia dar conta dele, mas imaginava que deveria ter muitas
cartas na manga. Ele estava em vantagem ali.
— Largue a arma, ou essa vadiazinha aqui vai morrer! — ele berrou,
enquanto afundava a agulha no braço da minha irmã, arrancando um pequeno
filete de sangue e ainda mais lágrimas.
Sem escolha, precisei fazer o que ele ordenava, tentando bolar algum
plano na mente. Contudo, estava focado em encontrar uma maneira de tirar Cléo
daquele quarto. Não importava o que iria me custar, minha irmã era prioridade.
Assim que a arma foi chutada para longe, indo parar no pé de Carlos, ele
abriu um sorriso que fez todo o meu corpo gelar. Ainda com a agulha enfiada na
carne de Cléo, apenas fundou o êmbolo da seringa, injetando todo o líquido,
exatamente como prometera que não faria.
— Não! — eu gritei, enquanto um medo que jamais sentira antes, nem
mesmo quando me vi capturado por aquela corporação maldita, instalava-se em
minhas entranhas, preenchendo-me com uma sensação de náusea insuportável.
Minha irmã...
Meu Raio de Sol...
Deus, o que eu iria fazer?
— Muito em breve ela começará a apresentar alguns sintomas, mas a
morte ainda irá demorar um pouco. O que pode ser uma sorte ou um verdadeiro
azar. Se você for obediente, Arthurzinho, podemos chegar a um consenso.
Acredito que não terá coragem de barganhar pela vida da sua irmã, não é
mesmo?
— Seu filho da puta! Eu vou te matar... — falei, com os punhos cerrados
e soando por entre dentes. — Vou esmigalhar cada um dos seus dedos como se
fossem folhas de papel e arrancar seus olhos com minhas mãos. — Minha voz
baixa, quase sussurrada, nem começava a demonstrar o quanto eu estava
desnorteado.
— Você pode fazer tudo isso, e ainda assim sua irmã caçula estará morta
em algumas horas. — Cléo se remexeu novamente em seus braços, e Carlos a
jogou no chão sem nenhuma gentileza. — Mas vejam só, o cara malvado
também pode ser um herói. — Carlos começou a dar alguns passos em minha
direção, mas tudo o que eu conseguia fazer era olhar para Cléo, estirada naquele
chão, começando a estremecer muito de leve. Antes de parar de caminhar,
colocando-se a menos de um metro de distância de mim, o desgraçado passou a
mão na mesinha ao lado da cama e tirou de lá uma pequena maleta. — Eu tenho
aqui dentro um antídoto. É uma fórmula recente, chamada Naloxona. Claro que
ela vai precisar de um hospital, mas isto já irá reverter os efeitos ou até anulá-
los. A grande ironia do destino é que somente eu tenho a senha da maleta.
— O que você quer? — indaguei, convicto de que haveria uma
chantagem ali; uma barganha.
Antes de responder, Carlos tirou algo de seu bolso. De onde eu estava,
não conseguia enxergar perfeitamente do que se tratava, mas ele não demorou a
erguer o artefato, possibilitando que eu o identificasse — a maldita tornozeleira
eletrônica da qual consegui fugir da primeira vez.
— Lembra dessa belezinha aqui? A mesma que fez você deixar o meu
irmão em coma? Podemos fazer uma nova tentativa, em troca da vida da sua
irmã. Justo, não acha?
Exatamente como eu imaginei, ele me oferecia uma troca. Basicamente a
minha vida pela de Cléo. Vida ou liberdade, mas era basicamente a mesma coisa.
Não havia nenhuma dificuldade naquela escolha. Eu faria qualquer
sacrifício para salvar minha irmã, mas como confiar que ele cumpriria a
promessa?
— Como posso acreditar que há um antídoto nessa mala?
Bufando e revirando os olhos, Carlos mexeu no cadeado da mala com
muita rapidez e a abriu, mostrando que havia uma seringa lá dentro.
Por apenas um segundo... Deus, por uma porra de uma fração de
segundo, eu me imaginei voando em cima dele, enquanto a maleta ainda estava
aberta, e acabando com toda aquela história, quebrando seu pescoço sem sequer
hesitar. Mas um resquício de prudência me segurou no mesmo lugar. Seria
arriscado demais. Por mais veloz e preciso que eu fosse, era a vida de Cléo que
estava em jogo. Tudo o que eu fizesse dentro daquele quarto de hotel teria que
ser calculado, pensando nela.
— Ainda assim, não tenho como saber se o que está nesta seringa é um
antídoto ou ainda mais drogas.
Sinceramente, eu não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo em que queria
ganhar um pouco mais de tempo para me decidir, sabia que Cléo havia se
tornado uma bomba relógio. Cada segundo era crucial para salvá-la. Por falar
nela, aliás, um gemido estrangulado pela mordaça soou através do breve silêncio
que se formou. Voltei meus olhos em sua direção e a vi contorcer-se no chão,
começando a sofrer as reações do veneno que percorria seu sangue.
— Acho que vai ter que acreditar em mim, bonitão. Sua irmãzinha não
tem muito tempo...
O desespero começava a tomar conta de mim, tornando-se senhor dos
meus pensamentos e impedindo-me de formular alguma ideia com clareza.
— Porra, ela não tem nada a ver com isso! É só uma garota... seu
problema é comigo! Você quer que eu me entregue... — ergui minhas mãos em
rendição — foda-se, pode me levar. Mas não a deixe morrer...
Carlos gargalhou. Um som debochado e que faria as células mais
violentas do meu corpo entrarem em combustão, mas, para a minha sorte, os
gemidos e choramingos de Cléo, ainda jogada sobre o tapete felpudo do quarto
do hotel, atraíam toda a minha atenção.
— Deixa eu colocar a minha irmã na cama, pelo menos. — Era
insuportável olhar para Cléo amarrada e indefesa, jogada no chão.
— Nada disso. Não vai tocar nela. Vai é resolver de uma vez por todas
qual será o destino da bonitinha. Se disser que virá comigo, vamos colocar essa
tornozeleira, vou te algemar, e antes de sairmos eu vou aplicar o antídoto e
chamar uma ambulância. Se não quiser colaborar, vou sair porta afora, trancando
vocês dois aqui dentro, e você terá que lidar com a consequência da morte da sua
irmã, sabendo que não a salvou, porque escolheu sua própria liberdade.
Eu jamais escolheria isso. Jamais me colocaria acima da minha irmã, em
hipótese alguma. Teria que dar toda a luta por terminada, deixando a todos
desprotegidos. Ele poderia estar blefando. Como eu iria saber se minha irmã
estaria realmente a salvo? Como poderia acreditar que, saindo daquele hotel, ela
permaneceria viva, se aquilo que ele trazia na seringa era mesmo um antídoto?
Não podia arriscar, principalmente agora que ela sabia de algumas coisas. Se
saísse por aquela porta com Carlos, nunca mais teria a resposta sobre ela estar ou
não viva. A dúvida para sempre permaneceria em minha mente — isso, é claro,
se eu vivesse por muito tempo, se não me matassem assim que eu retornasse à
corporação.
Por causa de todas essas incertezas, fechei meus olhos por uma fração de
segundo, respirei profundamente e tomei a minha decisão. Arriscada, perigosa e
que possivelmente me deixaria arrependido, mas precisava ter fé em mim
mesmo.
— Tudo bem, Carlos. Você venceu. Estou me entregando. — Colocando
novamente as mãos para cima, parecendo convincente, fui me aproximando dele,
enquanto engolia a expressão vitoriosa que ele sustentava naquela cara de merda.
Se era mesmo um funcionário treinado da MR, deveria suspeitar de cada um dos
meus movimentos. Minha sorte era que eu fazia uma boa ideia de como pensava,
então, poderia agir com imprevisibilidade.
Quando me vi o mais próximo possível, parei, a poucos centímetros de
distância. Ainda desconfiado, ele veio até mim, com a tornozeleira na mão. Não
podia permitir que ele fechasse aquela merda em torno de mim, por isso, quando
ele se abaixou, ajoelhando-se, fingindo um movimento solene, não perdi tempo.
Assim que ele baixou os olhos, ergui uma das minhas pernas com toda a força e
o atingi bem no nariz com o joelho, fazendo-o cambalear.
Eu sabia que era apenas uma questão de tempo para que se recuperasse, o
que não podia permitir. Minha segunda reação foi aproveitar que estava com a
cabeça baixa e mirar o punho com força em sua têmpora. Por ser a parte mais
fina do crânio, eu sabia que um soco bem dado poderia lhe deixar atordoado.
Isso o levou ao chão.
Ainda não satisfeito, abri minha mão em uma linha reta, como em um
golpe de karatê, e mirei o ponto exato de sua traqueia, prestes a atingi-lo. Este
era um recurso para deixá-lo ainda mais zonzo e sem ar, no entanto, mesmo em
estado deplorável, ele conseguiu agarrar meu punho e me impedir de feri-lo
ainda mais.
Em nenhum momento subestimei-o como adversário, porque eu sabia
que fora bem treinado. Porém, por mais que naquele momento a vantagem
parecesse ser minha; Cléo começava a convulsionar no chão, e eu não pude
deixar de olhar para ela. Precisava ajudá-la, mas apenas o fato de ter desviado a
atenção de meu adversário foi suficiente para que, mesmo cambaleante e
trôpego, ele pulasse sobre mim, derrubando-me no chão.
Levei um soco, que se não tivesse sido deferido por um homem
debilitado poderia ter me feito apagar. O cara era forte, e eu precisava me manter
firme, portanto, aproveitei que o esforço feito para me golpear o deixou um
pouco fragilizado para agarrá-lo por trás, em um mata leão, usando meu
antebraço para aplicar pressão em sua carótida, sentindo sua pulsação reverberar
contra a minha pele.
Eu queria matá-lo. Queria sentir seu coração lentamente parando de
bater, perdendo forças pouco a pouco. Queria ser eu a ceifar sua vida, como ele
planejara fazer com minha irmã. No entanto, contentei-me em apagá-lo, pois
precisaria correr contra o tempo para salvar Cléo.
A mala com o antídoto estava jogada no chão, fechada, e por mais que eu
talvez fosse capaz de abri-la, ainda não podia confiar de que ali estaria a
salvação de Cléo. Minha melhor opção era levá-la a um hospital o mais rápido
possível.
Peguei minha arma, prendendo-a ao cinto da calça, e me dirigi a Cléo
logo em seguida. Tirei sua mordaça e desamarrei-a com pressa, erguendo-a do
chão e carregando-a para fora do quarto, deixando o filho da puta caído,
inconsciente. Eu sabia que era uma oportunidade perdida de pegá-lo e tentar
descobrir alguma coisa, mas a segurança da minha irmã estava acima de tudo.
Os acontecimentos seguintes foram se passando em flashes alucinados
pela minha cabeça. O carro voando pelas ruas até chegarmos ao hospital mais
próximo, enquanto Cléo convulsionava sem parar; eu entrando na emergência
carregando-a e gritando por ajuda; ela sendo colocada na maca, enquanto eu
informava as drogas que tinham sido utilizadas. Três enfermeiros vieram tentar
me segurar para que eu não a seguisse. Precisei de todo o autocontrole para não
colocar aquelas pessoas no chão, afinal, estavam apenas fazendo o seu trabalho.
Contudo, quem acabou no chão fui eu. De joelhos, sem forças nas pernas,
esperando conseguir levar minha irmã daquele hospital para casa com vida.
Esperando, também, que não tivesse feito a pior de todas as escolhas. Talvez eu
devesse ter me sacrificado por ela; ou talvez entregar-me apenas a prejudicasse
ainda mais. Eu só saberia essa resposta quando me informassem seu estado.
Enquanto isso, tudo o que me restava era rezar, para um Deus que eu nem
sabia se ainda se lembrava de mim, para que Cléo fosse poupada.
Capítulo Dezessete
CHRISTINE

Arthur ainda não chegara em casa. Ao menos não estava sozinha, pois
assim que ele saiu, liguei para Mário, pedindo que fosse me encontrar para que
estivéssemos a postos para qualquer eventualidade.
Eu só não esperava descobrir, ao atender ao telefone, que Cléo estava em
um hospital, entre a vida e a morte, vítima de uma overdose. Não fazia o menor
sentido.
Com essa informação, seguimos para o hospital informado. Segurei o
meu nervosismo como pude, mas Mário decidiu assumir o volante, embora
também estivesse apreensivo. Contudo, era dentro da minha cabeça que a voz de
Arthur, agoniada e chorosa, reverberava, contando o que havia acontecido.
Era mais do que óbvio que ele se culpava e que a maior parte de seu
sofrimento devia-se ao fato de Cléo encontrar-se à beira da morte. Essa dor
estava intrínseca em seu tom de voz, em cada palavra escolhida para me relatar o
ocorrido. Eu podia sentir seu sofrimento dentro de mim, como se fôssemos
apenas uma pessoa. E isso apenas multiplicou-se quando ele se jogou em meus
braços, no momento em que nos juntamos a ele na recepção, como se tivesse
acabado de levar um tiro fatal bem no peito.
Permiti que chorasse em meu peito, como eu fiz tantas vezes no dele.
Permiti que se alimentasse do silêncio, enquanto despejava sobre mim toda a dor
que já não cabia mais dentro de seu corpo enorme. Naquele momento, Arthur
mais parecia um animal abatido, ou um soldado vencido depois de uma guerra
lutada por anos. E talvez fosse isso mesmo. A vida do homem que eu amava
tornara-se uma sucessão de batalhas infinitas, e ele sentia que perdia cada uma
delas. Enquanto não destruísse seus inimigos, continuaria sendo derrotado uma e
outra vez. O problema era que eu tinha certeza de que o fato de terem usado
Cléo para atingi-lo iria afetá-lo de forma mais profunda. Temia sua reação
quando chegasse o veredito sobre o estado dela.
Enquanto permanecíamos na recepção, esperando qualquer notícia,
Mário encarregou-se de buscar alguma informação para nós. Já fazia uma hora
desde que tinham levado Cléo para a emergência, e eu esperava que muito em
breve viessem nos atualizar sobre sua condição.
Mário ainda retornou, sem respostas, e fomos interpelados por um
médico um bom tempo depois, quando já estávamos perdendo as esperanças —
no caso de Arthur, a paciência também. Temia que decidisse colocar todo o
hospital a baixo. Porém, o pesadelo foi razoavelmente minimizado quando
soubemos que Cléo encontrava-se fora de perigo, depois de uma lavagem
gástrica e intestinal, mas que ainda precisaria permanecer em observação por
algumas horas, talvez até por mais de um dia, dependendo de sua resposta ao
tratamento.
Foi necessário esperar mais algumas horas até podermos vê-la, e
teríamos que ir apenas um de cada vez, porém, dadas as circunstâncias, fomos
liberados os dois para subirmos. Mário precisou ficar na recepção, aguardando-
nos.
No momento em que chegamos ao quarto, a primeira coisa na qual
reparei foi a palidez do rosto de Cléo e os lábios roxos característicos. Seus
olhos sem vida estavam voltados em nossa direção, e ela parecia muito cansada,
como se sua alma tivesse se despregado do corpo e estivesse vagando sem rumo.
Arthur aproximou-se da cama cauteloso, e eu me mantive afastada,
apenas observando-os, não querendo me sentir uma intrusa naquele momento
que pertencia apenas aos dois.
Ele pegou a mão da irmã e a beijou, ainda com lágrimas nos olhos.
— Me desculpa... me... — precisou respirar fundo para continuar —
desculpa. Eu não...
— Para com isso, Arthur! — A frágil voz de Cléo soou repleta de ar. Ela
visivelmente estava usando de todas as suas forças para falar. — A culpa é
minha. Você me pediu para ficar de fora, mas... — Cléo precisou parar de falar
por um tempo, para respirar e recompor-se. — Mas não dei ouvidos. Eu que
poderia ter estragado tudo. Você poderia ter sido levado por aquele louco por
minha causa.
— Nada disso teria acontecido se...
— Se o quê? — ela falou com mais ímpeto, e isso a fez novamente
precisar de um tempo para acalmar-se. — Se o quê? — repetiu. — Se você não
tivesse sido sequestrado e mantido em cativeiro por aqueles loucos? Se não
tivesse passado os piores dias da sua vida? Pelo amor de Deus, Tuco! Você viveu
um inferno, nada do que está acontecendo é sua culpa. É culpa deles.
— Que bom que mais alguém falou isso, porque eu estava de saco cheio
de repetir a ladainha sozinha... — finalmente me intrometi, porque achei que o
curso que a conversa estava tomando merecia a minha opinião. Enfim
aproximei-me deles, colocando-me do outro lado da cama, pegando a outra mão
de Cléo. — Estamos do seu lado, Arthur, não só porque te amamos, mas porque
é a coisa certa a se fazer.
— Somos meio que os Avengers... — Uma voz masculina soou da porta.
Todos nós olhamos para Mário, e imediatamente eu me perguntei como tinha
conseguido subir, mas nenhum de nós decidiu externar o questionamento. —
Claro que o Arthur é o herói bonitão, tipo o Capitão América. Temos a Viúva
Negra, a Feiticeira Escarlate... e eu... eu posso ser o Homem Formiga, talvez...
Seguramos a risada o máximo que conseguimos, mas Cléo abriu uma
gargalhada, e isso foi a deixa para que todos nós nos sentíssemos contagiados.
Mário também se aproximou da cama e sorriu para ela, levemente sem graça,
encabulado.
— Você é uma gracinha, Mário. E é super gatinho, não precisa se
diminuir tanto assim.
Troquei olhares com Arthur, que exibia o sorriso mais desanimado do
grupo, mas não pude deixar de dar uma checada no outro rapaz, cujo rosto
parecia mais vermelho do que um tomate maduro. Apesar de todo o clima difícil,
ainda havia a luz da esperança entre nós. Estávamos juntos, éramos uma
unidade; e isso ficou ainda mais evidente quando Arthur tomou minha mão na
dele, unindo-a sobre a cama. De alguma forma, por um breve instante, acreditei
que poderíamos vencer, por mais improvável que pudesse parecer.
A tarefa que veio a seguir também não facilitou nossas vidas, muito
menos a de Arthur. Não que tivesse passado por sua cabeça a hipótese de
esconder o que acontecera com Cléo de sua família, mas uma vez que ela
precisaria passar a noite no hospital, os outros teriam que saber.
Mas como contar que a princesinha dos Montenegro havia sofrido uma
overdose?
Arthur estava decidido a falar a verdade para a mãe e J.J., por mais que
ainda fosse contrário à ideia. A partir do momento em que Cléo ficara sabendo
de tudo que lhe acontecera, fora exposta ao perigo. Isso me fez entender seu
ponto de vista e concordar que talvez fosse melhor que continuassem na
ignorância. Por isso, a solução para o problema veio de Mário, que sugeriu que
inventássemos que a moça foi atacada em uma boate ou algo assim.
Eu e Arthur fomos os últimos a concordarmos com a explicação. Mentir
sobre algo tão sério era errado, sujo, mas contar a verdade implicaria em colocar
vidas de pessoas queridas em perigo. Além disso, nenhuma outra solução
pareceu surgir.
Sendo assim, Arthur avisou à mãe, e esta surgiu no hospital menos de
meia hora depois, acompanhada de Sidney e de J.J.. Fiquei extremamente
abismada com a reação do irmão de Arthur ao saber que a caçula dos
Montenegro estava em um hospital. Eu poderia jurar que aquele merdinha não
amava ninguém, mas, aparentemente, tinha um carinho especial pela moça.
Sabendo que Cléo estaria amparada por sua família, nós três — eu,
Arthur e Mário — pudemos deixar o hospital, prometendo voltarmos no dia
seguinte para buscá-la. Partimos para a mansão, levando Mário conosco.
Arthur subiu para tomar um banho, enquanto eu e o rapaz nos jogávamos
no sofá da sala.
— Vocês têm sorte de contarem um com o outro. — Poderia ser apenas
um comentário despretensioso, apenas uma tentativa de me animar, mas havia
uma espécie de tristeza enraizada em cada palavra, algo que eu não pude ignorar.
— Você também tem a gente agora... — Dei de ombros com um sorriso
quase envergonhado. — Talvez não seja a família mais estruturada da história
das famílias, mas serve, não é?
— Eu sei, mas é diferente. Vocês são uma unidade. Eu sou só o intruso...
Na verdade, sempre fui... — disse ele com a cabeça baixa.
Tive a leve impressão de que Mário queria — ou precisava — desabafar.
Por mais que não fôssemos exatamente amigos, que tivéssemos nos conhecido
há muito pouco tempo, às vezes é mais fácil abrir o coração com uma pessoa
com quem não temos tanta intimidade, principalmente dependendo do teor da
conversa. Sabendo disso, tentei incentivá-lo.
— Você não tem família?
Ele encolheu os ombros.
— É como dizem, né? Família a gente não escolhe... — A mágoa em
suas palavras era grande. Algo me dizia que aquele menino tinha sofrido muito
mais do que havia demonstrado. Como eu não sabia se ele estava disposto a falar
ainda mais, fiquei calada, esperando que prosseguisse. O que não demorou
muito. — Meus pais... Bem, eles tinham uma condição financeira muito boa.
Não boa no nível do Arthur, mas meu pai tinha uma empresa próspera,
morávamos em um puta casarão, tínhamos propriedades... e eu sou filho único.
Ou seja... — Mário ergueu as sobrancelhas em um ato de desdém. — Altos
planos para mim.
— E você não estava disposto a segui-los.
— No início até achei maneiro. Meu pai tinha uma empresa de
desenvolvimento de software; um daqueles de contabilidade, que servem para
fazer ordens de compra, de pagamento... Pois bem, isso fez com que ele me
ensinasse muita coisa de programação, só que eu fui aprendendo rápido demais e
seguindo por outros caminhos. — Ele fez uma pausa e se remexeu no sofá,
virando-se na minha direção. — Veja bem, Chris, eu nunca tive a intenção de
prejudicar ninguém com minhas empreitadas. Eu só era muito curioso.
— Não precisa se explicar...
— Preciso. Você é uma garota legal, não quero que pense mal de mim. —
Fiz menção de dizer que isso não iria acontecer, mas ele me interrompeu. — A
verdade é que as coisas foram tomando proporções que nem eu mesmo
imaginava. Quando me dei conta, já estava acessando dispositivos e sistemas
alheios como um hobby. Eu não tinha nenhuma intenção de roubar informações
ou de prejudicar alguém, mas era... divertido. — Mário novamente deu de
ombros, e sua expressão inocente quase me fez rir. — Com isso, eu fui
descobrindo um monte de falcatruas da própria empresa do meu pai. Havia
outros como eu trabalhando lá. O sistema que ele criou era falho para as
empresas e não oferecia nenhuma segurança. Meu pai tinha acesso a dados
confidenciais, e usava isso para roubar. Eram roubos pequenos, quase
insignificantes para companhias milionárias, mas que iam enriquecendo os
bolsos da nossa família.
— Isso é muito grave.
— Sim, e eu nunca concordei. Tivemos uma discussão muito séria, e eu
decidi denunciá-lo. Meu erro foi avisar a ele uma noite antes de ir à polícia. Por
uma ocasião do destino — falou com ironia —, meus pais saíram horas depois, e
a casa foi invadida. Eu não morri por muito pouco. Acho que tive sorte, pois
consegui escapar.
Arregalei os olhos, atordoada. Seria possível que um pai realmente fosse
capaz de assassinar um filho por ganância?
— E a sua mãe? — indaguei, porque era uma coisa lógica. Como mulher,
não podia sequer imaginar que uma mãe tivesse coragem de ser conivente com
algo tão cruel, tão desumano.
Mas, infelizmente, nem todas as mulheres mereciam um título como
esse.
— Ela amava muito mais as roupas caras e as viagens do que a mim. Por
algum tempo eu fui o troféu; o futuro herdeiro da família, um garotão saudável,
que ela sonhava que iria ser tão ávido por dinheiro quanto eles. Ela queria que eu
fosse o homem engravatado e inescrupuloso, não o nerd magrelo, que gosta de
andar de chinelo e que gasta dinheiro com action figures e quadrinhos.
— Gosto bem mais dessa versão de você — falei sorrindo, e ele
retribuiu.
— Eu também. Tanto que assim que escapei de casa corri à delegacia e
fiz a queixa. Não apenas sobre as falcatruas da empresa quanto do atentado que
sofri. Depois me abriguei na casa de um amigo, porque minha família inteira
virou as costas para mim. — Ele tentava parecer indiferente, mas a mágoa estava
lá, corroendo seus sentimentos. — Precisei me sustentar, então, comecei a usar
meus conhecimentos para trabalhos dos quais não me orgulho muito. Mas era
isso ou morrer de fome.
Tomei a mão dele na minha.
— Não se envergonhe de nada disso...
— Disso, não. Só tenho arrependimento de ter entrado para a MR. Mas
eu pensei que seria a primeira coisa certa que faria em anos. Eles me contaram
mentiras de seus propósitos, e eu acreditei. Lá dentro é que fui juntando as peças
e cheguei à conclusão de que o que estava fazendo era errado.
— Todos nós cometemos burrices. Claro que a consequência da sua foi
grave, mas não deve se culpar. Você não teria como saber...
Ele sorriu outra vez. Não um sorriso animado ou esperançoso, mas um
sinal de que aprovara minha tentativa de animá-lo.
— Você é uma garota do caralho, Chris. Arthur é um filho da puta de
sorte mesmo... Com todo o respeito.
— Para de azarar a minha mulher, moleque! — Arthur surgiu, e no
momento em que me virei para ele, vendo-o de cabelos molhados e tentando
parecer um pouco mais relaxado, embora fosse visível o quanto ainda estava
abalado pela situação de Cléo. Ao sentar-se no sofá para nos acompanhar,
meteu-se entre mim e Mário, dando um tapa na cabeça dele, o que eu achei uma
graça. Pareciam dois irmãos de pura implicância.
— Já falei que se não cuidar bem dela, vou roubá-la para mim — ele
disse, mas logo franziu o cenho e balançou a cabeça em negativa. — Como se
uma gata dessa fosse dar bola para mim, tendo um cara como você como opção.
— Para de se diminuir! Até porque tem outra garota linda que me parece
bem animadinha em relação a você — comentei, e ele corou.
— Uma garota que quase morreu hoje... — Arthur comentou, o que logo
me fez engolir em seco, percebendo o quanto meu comentário fora infeliz. Ao
perceber minha expressão murchar, ele pegou minha mão e a beijou. — Não
falei isso para te cortar, é só um lembrete.
— Você não precisa usar o que aconteceu com Cléo para se martirizar o
tempo todo. Precisamos cuidar dela e não deixar que se repita.
— Não vai se repetir. Nem com ela e nem com você. — Arthur enrolou
uma mecha do meu cabelo em seus dedos, colocando-a atrás da minha orelha.
Seus olhos intensos fixaram-se nos meus, melancólicos e pensativos, e por um
momento eu temi o que poderia estar passando por aquela cabeça.
— Bem, galera, acho que eu vou para casa. Está bem tarde...
— Fica por aí. Pode usar um dos quartos de hóspedes... — Arthur
convidou.
Mário hesitou, mas balançou a cabeça em concordância.
— Vou aceitar. Não é todo dia que se recebe um convite para passar uma
noite em uma mansão irada que nem essa.
Com um sorriso, Arthur levantou-se e foi acompanhar Mário até o quarto
que ele usaria naquela noite. Assim que se afastaram, eu também me coloquei de
pé e comecei a caminhar pela casa. Não havia um único resquício de sono em
mim, e eu sabia que dormir seria um suplício. Além disso, precisava respirar um
pouco de ar puro.
Saí pela lateral da mansão, pela porta de vidro da varanda da salinha de
estar, onde eu e Arthur ficamos nos beijando na outra noite, e desci as escadas
que davam no jardim.
Segui o caminho de concreto em meio à grama, que levava até o pequeno
lago, cercado por pedras ornamentais e bromélias coloridas, em tons que
variavam desde o vermelho ao púrpura, em um posicionamento harmônico. Uma
pequena fonte de barro alimentava o lago, renovando-o, e o som relaxante da
água se movimentando me proporcionava a paz que meu coração não estava
conseguindo encontrar em lugar algum.
Sentei-me na elegante namoradeira, balançando-me para frente e para
trás, observando os peixinhos coloridos movimentarem-se dentro d’água,
enquanto os sons da noite me embalavam. Fechei os olhos, tentando imaginar
que estava em qualquer outro lugar. Não que a mansão dos Montenegro fosse um
cenário desagradável — muito pelo contrário —, mas ela parecia, naquele
momento, carregar todo o clima pesado da situação de Arthur em cada uma de
suas paredes.
Recostando-me mais, tentando encontrar uma posição um pouco mais
confortável, pensava no quanto minha vida havia mudado em pouco mais de um
mês. Era como se eu tivesse perdido tudo — minha casa, minha tranquilidade,
minha liberdade... Ter Arthur de volta compensava, é claro, mas ainda havia o
medo de perdê-lo novamente. Tudo entre nós parecia muito efêmero, com data
marcada para terminar, como um sonho, que desaparece quando apenas abrimos
os olhos pela manhã.
Era injusto. Era sufocante...
Ainda de olhos fechados, senti o balanço sob meu corpo ceder um pouco
mais. Nem precisei olhar ao redor para saber quem estava ao meu lado.
Rapidamente, braços fortes me rodearam, puxando-me de encontro ao peito
largo de um homem. O cheiro que conhecia tão bem e tanto amava me fez sorrir
e suspirar. Às vezes eu me sentia como uma boba, deixando-me levar por
emoções tão doces, enquanto o caos fazia com que o céu caísse sobre nossas
cabeças. Mas eu precisava me agarrar a qualquer coisa que me proporcionasse
sanidade em um momento como aquele.
— Quando não te vi na sala, logo concluí que estaria aqui. Sempre foi
seu lugar preferido da casa.
— E como não seria? — Sorri, ainda mantendo um traço da melancolia
provocada por meus pensamentos anteriores. Por mais que quisesse
simplesmente ficar ali com ele, precisava saber tudo o que tinha acontecido. Não
poderia haver mais segredos, e eu acreditava que era a intenção de Arthur
também. — O que exatamente houve com a sua irmã? Você não conseguiu me
contar nada até agora.
Arthur bufou, remexeu-se na cadeira e afastou-se um pouco de mim.
— Ela decidiu me ajudar e marcou um encontro com Carlos Vidal.
— Um dos gêmeos? — perguntei para confirmar, e ele balançou a cabeça
em afirmativa. — Meu Deus, Arthur! Ela ficou louca!
— Sim, sem dúvidas. Estou esperando ansiosamente que volte para casa
para que eu possa lhe dar um baita esporro... — Ele disse isso, mas eu sentia
toda a ternura e o desespero contido em cada palavra. Arthur quase perdera a
irmã, e isso ainda o corroia por dentro. — Ele injetou uma quantidade grande de
drogas na veia dela. Cléo poderia ter morrido...
— Poderia. Mas não aconteceu. Não era para ser...
— Você realmente acredita em destino, Chris? Se sim, então ele é um
maldito filho da puta. — Sua voz baixou para um sussurro. — Olha o que ele fez
com a gente...
— Ainda acho que tudo será consertado. Precisamos ter fé...
— Neste momento, só posso ter fé em mim.
Havia tanta obstinação naquele tom de voz e na expressão que ele me
dirigiu, que eu cheguei a sentir um calafrio. Sentia que a cada porrada que levava
— tanto as físicas quanto as emocionais — o sentimento de vingança tornava-se
mais e mais sólido no coração de Arthur. O que era muito perigoso. Eu sabia que
ele não teria coragem de apenas cruzar os braços e esperar a bomba explodir.
Muito menos fugir. Não, ele não era homem de abandonar seus problemas para
trás, sabendo que deixaria alvos desprotegidos. Embora sua mente fosse um
pouco diferente da do amigo que eu conheci anos atrás, a essência era a mesma.
Eu já conhecia essa nova versão o suficiente para entender, ao menos um pouco,
como pensava. E o que eu podia concluir pelas minhas observações... dias muito
tempestuosos estavam por vir.

***

ARTHUR

Eu odiava a ideia de deixá-la ali. Odiava separar-me e seguir com o dia


como se nada tivesse acontecido. Odiava cada maldito passo que demos desde o
carro, estacionado na rua perpendicular, até a cafeteria, ainda fechada. Eram
pouco mais de seis da manhã; o dia acabara de raiar, mas nenhum de nós dois
estava com sono, apesar da constância de noites mal dormidas. No instante em
que a chave girou dentro da porta de vidro, com aquele clique característico,
meu coração iniciou uma revolta dentro do peito, enchendo-me de sentimentos
errados.
Deus! Como precisei me controlar para não sair arrastando Christine
daquela droga de estabelecimento, jogá-la no carro e levá-la de volta comigo.
Isso, sem dúvidas, me deixaria muito mais tranquilo, mas igualmente
arrependido. Não podia tratá-la dessa forma; não quando a respeitava tanto como
mulher e como ser humano. Ela precisava de sua independência, e eu sabia que
já estava se esforçando ao máximo para ceder a algumas das minhas exigências,
como o fato de eu sair da Barra todos os dias para levá-la ao trabalho, na Urca,
principalmente depois daquele local ter sido invadido. Todas as vezes que
entrava ali, a imagem dela amarrada atrás daquele balcão me atormentava, e eu
imaginava que não deveria amedrontá-la também.
Por mais ridículo que pudesse parecer, pedi que Christine esperasse do
lado de fora por alguns segundos e revistei cada parte da cafeteria, retornando ao
seu lado no momento em que acreditei que estivesse tudo limpo.
— Estou namorando um CSI... isso não deixa de ser sexy. — Assim que
adentrou a cafeteria, depois de eu ter liberado sua entrada, Chris falou, jogando a
bolsa em uma das cadeiras e passando os braços ao redor dos meus ombros.
Sexy era a voz dela, levemente rouca e sussurrada.
Sexy era seu olhar, fixo no meu, cheio de más intenções.
Meu Deus, aquela mulher iria me deixar completamente louco.
Soltei-a, tomando a chave da cafeteria de sua mão, e fui até a porta,
aproveitando que as persianas ainda estavam fechadas, trancando-a novamente.
Quando virei-me para ela, Christine ainda me lançava aquele olhar malicioso,
além de sustentar um sorriso de canto, cheio de luxúria.
Não disse nada; nem sequer pensei. Aproximei-me, colocando ambas as
mãos nas curvas superiores de sua cintura e a levei suspensa até o balcão, onde a
coloquei sentada. Se ela não me impedisse, eu estaria disposto a fazer amor com
ela ali mesmo.
Porém, Christine reagiu com receptividade, o que me fez acreditar que
estava dando carta branca para fazer com ela o que eu quisesse.
Ah, e eu queria muitas coisas...
Assaltei seus lábios de forma quase imoral, violentando sua boca e
invadindo-a com minha língua possessiva, usando as mãos para amassar seu
corpo delicado contra o meu. De forma alguma eu tencionava machucá-la, mas
algo me dizia que os gemidos emitidos a cada investida mais impetuosa de meu
corpo contra o dela não eram de dor. Sua respiração ofegante era a resposta que
eu precisava para tirar a dúvida.
— Arthur... — ela murmurou quando eu abri alguns botões de sua blusa
só para tomar um seio macio na minha mão. Rocei o polegar no mamilo,
sentindo-o enrijecer ao meu toque como se desabrochasse.
Chris uniu os tornozelos nas minhas costas, prendendo-me a ela e me
aproximando ainda mais. Como se eu quisesse ou fosse capaz de escapar... Não
havia nenhum lugar onde eu desejasse estar mais do que ali.
Enquanto uma das mãos ainda ocupava-se de seu seio, a outra começou a
deslizar para baixo, chegando em suas coxas, que eu gentilmente apertei por
baixo da saia. Sutilmente, Christine abriu mais as pernas, em um gesto
convidativo, e, no momento em que introduzi dois dos meus dedos em sua
intimidade, dei-me conta do quanto estava molhada.
Ah, merda! Ela ia realmente acabar comigo.
Porém, por mais que estivesse desesperado para possuí-la ali mesmo,
sobre aquele balcão, iria me conformar em apenas lhe dar prazer. Na noite
anterior, dormimos abraçados, depois de toda a tempestade do ocorrido com
Cléo. Naquele momento, contudo, apesar de ainda estarmos abalados, eu a
desejava. Tanto que chegava a doer. Mas já me seria suficiente vê-la chegar ao
orgasmo sem qualquer pudor.
Decidido a dar-lhe tudo o que ela merecia, abaixei-me um pouco,
deixando meu rosto bem na altura de suas coxas. Comecei a desenhar uma trilha
de mordidas por toda a pele macia, indo em direção à sua intimidade, enquanto
minhas mãos massageavam outras partes de seu corpo — cintura, quadris,
braços. Cada movimento me deixava mais e mais perto, aumentando tanto a
minha ansiedade quanto a dela. Quando finalmente cheguei onde queria, ela
arfou e gemeu, um som que faria meu sangue borbulhar e explodir de tanto
tesão.
Toquei muito de leve seu clitóris com minha língua quente e úmida, e
esse pequeno contato já foi responsável por fazê-la estremecer e arquear o corpo
sobre o balcão. Quando, então, investi com mais ímpeto, penetrando minha
língua em sua fenda molhada, ela realmente soltou o grito que vinha segurando,
contendo-se por estar em um local público, mas esse detalhe apenas me deixava
ainda mais excitado. Qualquer pessoa poderia chegar ali, e eu, como um
apreciador de adrenalina, estava gostando do perigo saudável.
Continuei essa deliciosa tortura, enquanto Chris agarrava os curtos fios
do meu cabelo, puxando-me ainda mais de encontro a ela, como se nada fosse
suficiente para aplacar seu desejo. Investi com mais voracidade, agarrando suas
coxas no processo, e ela não pôde mais se conter. O orgasmo veio profundo e
quase animalesco, a julgar pelos grunhidos que escaparam de seus lábios,
mesmo que ela os mordesse para contê-los.
Coloquei-me de pé novamente, abraçando-a e fazendo-a encostar a
cabeça no meu peito antes que acabasse despencando daquele balcão alto.
Perdemos alguns minutos assim, até que senti sua respiração normalizar e ela se
remexer em meus braços. Ajudei-a a descer e a amparei um pouco quando
cambaleou, as pernas falhando.
— Acho que essa é uma boa forma de começar o dia... — ela disse com
um sorriso amplo. Seu rosto estava tão deliciosamente corado que não resisti em
tomar seus lábios mais uma vez, mas para um beijo mais rápido e casto do que
os anteriores.
Encerrando o momento, ela se afastou de mim para abrir a cafeteria e as
persianas, mas no exato momento em que ergueu a primeira cortina, da primeira
janela, eu a vi paralisar, olhando para a rua lá fora.
Percebendo sua hesitação, coloquei-me atrás dela para ver o que tanto
chamava a sua atenção e me deparei com algo que fez o meu coração bater
descompassado, alimentado por uma onda de ódio que poderia ter me cegado em
apenas dois segundos.
Não disse nada. Não conseguia sequer falar, apenas agir.
Saí da cafeteria, e no momento em que me coloquei de pé, na entrada do
estabelecimento, nossos olhares se encontraram. Ele estava lá parado, apoiado na
mureta da Urca, com aquela paisagem quase obcena de tão bonita atrás de suas
costas, mas meus olhos foram atraídos pelo seu rosto. Aquele que eu jamais
esqueceria. O dono dos dedos que me marcaram para sempre, que desenharam
aquele número maldito na minha pele.
Eu precisava colocar as mãos naquele verdadeiro demônio. Se
conseguisse pegá-lo, poderia obter informações, torturá-lo, fazer-lhe as
perguntas certas. Mesmo que não me respondesse nada, feri-lo seria um prazer
ao qual eu não me privaria.
Nem sequer pensei nas poucas pessoas que passavam naquele momento,
fazendo seus exercícios matinais, não pensei em Christine, que chamava meu
nome logo atrás de mim, tentando me trazer de volta à sanidade, apenas o
persegui. Claro que ele fugiu e começamos a correr à beira da mureta, em uma
perseguição quase ridícula.
Minha vantagem em relação ao homem era quase imoral, afinal, ele
deveria ter o dobro da minha idade ou bem mais. Cheguei a ele em poucos
minutos, mas, no momento, com a cabeça quente, nem pensei que estava fácil
demais. Se isso tivesse passado pela minha mente, teria pensado com mais
racionalidade e elaborado uma estratégia melhor. Talvez o treinamento da MR
não tivesse sido assim tão bom, porque minhas emoções estavam totalmente à
flor da pele, exatamente como eles me ensinaram a não permitir.
Consegui derrubá-lo sem dificuldades, já que, novamente, meu tamanho
me dava uma imensa vantagem. Era um homem baixo, de meia idade,
aparentemente frágil, e eu teria sentido pena se não soubesse a cobra com a qual
estava lidando.
O primeiro soco foi tão forte que eu pensei que ele tinha perdido os
sentidos — e talvez tivesse mesmo perdido por alguns brevíssimos instantes —,
mas eu não podia permitir, de jeito nenhum, porque precisava dele acordado.
Precisava olhar em seus olhos e obrigá-lo a me dar as respostas que tanto
necessitava. Que queria. Às quais tinha direito.
— O que está fazendo aqui, seu filho da puta? O que quer? — vociferei.
O homem abriu os olhos sob o meu corpo, afinal, eu o estava prendendo
na calçada, e ele olhou ao redor, abrindo um sorriso malicioso sem falar nada.
Foi então que eu fiz o mesmo e entendi o motivo de seu sentimento de vitória.
Várias pessoas estavam se aproximando de nós. Uma tinha um celular na mão,
gravando meu ataque de fúria, enquanto dois homens vinham em minha direção
com pressa, sem dúvidas para livrar o “pobre senhor indefeso” de mim.
Aquela situação poderia me causar muitos problemas. Eu imaginava que
acabariam me levando à delegacia ou chamando a polícia, complicando-me
absurdamente. Para que não acontecesse, ergui minhas mãos ao alto e o soltei,
levantando-me e permitindo que se afastasse também.
Enquanto o observava caminhar em direção a um carro, que estava
convenientemente parado a poucos metros de distância, um dos homens chegou,
colocando-se ao meu lado e agarrando meu braço.
— Cara, você deveria ter vergonha de se meter com um senhor de
idade... olha o seu tamanho e...
Ele iria continuar falando, mas eu estava totalmente sem paciência.
Apenas virei meu rosto em sua direção e lancei-lhe um olhar mortal, que
demonstrava toda a fúria que precisei conter ao invés de descontar em quem
realmente merecia. Claro que não iria sequer tocar naquele cidadão, mas isso foi
o suficiente para, ao menos, fazê-lo recuar e desistir de mim. Eu podia imaginar
o que ele deveria estar pensando — que eu era um lunático, que gostava de
agredir pessoas no meio da rua —, então, sua reação foi mais do que esperada.
Ainda bem.
Ouvi um cantar de pneus e dei uma última olhada para o carro que partia,
levando com ele mais uma esperança perdida. Aquele homem era a chave para
muitas coisas, e o fato de ele estar espreitando a cafeteria de Christine me dizia
que planejava algo muito maior do que apenas me exibir como um louco para o
mundo. Não... seus planos, sem dúvida, eram bem mais sombrios.
Sem me restar alternativa, o máximo que consegui fazer foi decorar a
placa do carro, esperando que isso me levasse a algum lugar.
Capítulo Dezoito
ARTHUR

Meus pés pareciam capazes de fazer um enorme buraco no chão, de tanto


que eu andava de um lado para o outro. O som de Mário digitando em seu
teclado mecânico começava lentamente a me irritar. Na verdade, tudo me
irritaria naquele momento, principalmente o fato de eu estar tão estressado,
descontando em coisas e pessoas que não mereciam.
O caos que se instalara dentro de mim parecia refletido no apartamento
de Mário. Era como se um furacão tivesse passado por ali e bagunçado cada
centímetro do local. A lixeira que ele mantinha ao lado de sua escrivaninha já
não comportava a quantidade de lixo produzida, mas o rapaz continuava
entulhando coisas ali, como se fosse uma cesta de basquete, embora ele não
parecesse muito bom de pontaria. Havia papéis espalhados por toda parte, além
de latinhas de refrigerante, embalagens de vários tipos de guloseimas — desde
iogurtes até um pacote de pãezinhos —, o que atraiu uma carreira de formigas
ansiosas para garantir seus alimentos da semana.
Fiquei observando os insetos em sua missão, tentando focar minha
cabeça em qualquer bobagem para não pirar, até que Mário emitiu um: “Eureka”,
que teria me feito rir se não estivesse tão estressado.
— Conseguiu? — indaguei, virando-me para ele, esperando uma resposta
satisfatória.
— Claro. O que eu não consigo com um pouco de boa vontade? —
Empurrei minha cadeira na direção da enorme tela do computador, mas quando
Mário me mostrou a informação que havia conseguido, precisei ler umas três
vezes para acreditar em meus próprios olhos. — Surpreso?
Eu não saberia responder aquela pergunta.
Sim, talvez eu estivesse um pouco surpreso, mas não pelo nome que via
na tela como sendo o dono do carro que resgatou Hans Balzer da minha própria
fúria. O que mais me surpreendia era o fato de eu não ter percebido nada; ter
chegado a sentir pena do sujeito.
Ao mesmo tempo, eu poderia dizer com segurança que nada mais me
surpreendia naquela história.
O dono do veículo era Olavo Sobreira. O que me restava descobrir era se
ele fora vítima de uma armadilha novamente, e aquela era apenas uma tentativa
de me confundir ainda mais, ou se ele realmente estava envolvido e tinha me
enganado direitinho.
— O que você vai fazer? — Mário indagou, arrancando-me dos meus
pensamentos.
— Vou atrás dele, é claro! — Enquanto respondia, ainda de péssimo
humor, levantava-me e vestia a jaqueta que estava pendurada no encosto da
cadeira.
— Sozinho? — Meu amigo também se levantou. — Posso ir com você.
— Não. Você fica. — Nesse momento, precisei respirar fundo e me
acalmar. Não deveria descontar minha raiva em uma pessoa que não merecia.
Além do mais, precisava lhe dizer uma coisa que vinha me atormentando há
tempos. — Olha, Mário, antes de sair eu queria te fazer um pedido...
— É só pedir.
Não pude conter um sorriso pela forma decidida com que me respondeu.
Ele estava ali, disposto a fazer qualquer coisa por mim. Aquela era a maior prova
de lealdade que alguém poderia me dar.
— Se qualquer coisa acontecer comigo...
— Ah, cara, não começa. Não quero ouvir esse tipo de papo...
— Não estou falando de hoje. Estou falando... — Bufei. — Nós dois
sabemos que eu ando vivendo na corda bamba. Que tem gente atrás de mim o
tempo inteiro e que estou me envolvendo cada vez mais em assuntos perigosos.
Por isso, me deixa concluir o pensamento... Se alguma coisa acontecer comigo,
preciso que cuide de Christine. De Cléo também, mas ela tem a minha família.
Chris não tem ninguém...
— Arthur... — Mário disse, em um tom indignado, odiando cada
momento daquela conversa.
— É sério, Mário. Preciso que me prometa isso. Quero que a ajude a sair
da cidade, do país. Vá com ela. Deixei um documento na gaveta do meu criado-
mudo há alguns dias, ao lado da cama, com várias informações sobre minha
conta bancária. Você vai conseguir acessá-la. Quero que faça isso e transfira o
dinheiro para Christine. Quero que vocês dois o usem para recomeçarem em
outro lugar. — Fiz uma pausa, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas só
ouvi o silêncio. — Por favor. Me prometa...
— Cara, eu prometo. E odeio o fato de estar emocionado por você
confiar desse jeito em mim. Eu não deveria ficar feliz com nada em relação a
essa conversa de merda. — Mário estava chorando. O que era surpreendente.
Havia algo em sua expressão que eu não conseguia interpretar... talvez uma
espécie de gratidão devotada, como se nunca ninguém tivesse lhe dado aquela
oportunidade.
Novamente, não consegui conter um sorriso e levei uma mão ao ombro
do rapaz, apertando-o de leve em um gesto de camaradagem.
— Pois eu confio. Pode ficar orgulhoso de si mesmo. Não vou encarar
como uma ofensa ou pensar que você quer que eu morra...
Com isso, nós nos despedimos. Não havia tempo a perder. Eu precisava
encontrar Olavo, e esperava que ele estivesse em casa, o que me parecia muito
difícil.
Voei para o endereço que já sabia de cor, amaldiçoando cada segundo
que passei parado em cada sinal. Minha arma estava comigo, no porta-luvas, e
eu imaginava que precisaria usá-la, ao menos como um mecanismo de defesa.
Ainda não sabia exatamente qual era o papel de Olavo naquilo tudo, mas, fosse
como fosse, algo não estava certo, e eu não queria novamente ser pego de
surpresa. Ao menos, daquela vez iria enfrentar a situação sozinho, sem precisar
me preocupar com alguém que amava.
Durante todo o caminho, fui conjecturando estratégias para entrar no
prédio, porque imaginava que não seria tão bem recebido como na primeira vez.
Contudo, nem em meus sonhos mais absurdos, pensei encontrar a portaria vazia.
Aquilo, por si só, já seria muito suspeito, porém, meus instintos se
aguçaram, levando-me a procurar um pouco mais.
E nem precisei ir muito longe, pois exatamente debaixo da mesa da
portaria havia um pé de sapato — um tênis branco, com uma mancha vermelha,
que eu podia apostar que era de sangue.
Sacando a arma discretamente, comecei a procurar um pouco mais pela
portaria, encontrando mais uma gotinha escarlate quase imperceptível no piso
branco, criando uma trilha que me levou até uma espécie de sala em frente à área
das caixas de correio. Esta porta estava semiaberta, e eu já sabia exatamente o
que iria encontrar ao observar o que havia lá dentro.
Só precisei abri-la um pouco para encontrar o corpo degolado do homem
uniformizado que me recebera na primeira vez em que fui naquele prédio.
Rapidamente desviei os olhos, sentindo uma onda de náusea revirar meu
estômago. Não pelo estado do corpo, já que isso não me assustava, mas pela vida
perdida. Uma vida inocente. Quantas pessoas mais seriam mortas ou feridas até
que tudo aquilo tivesse fim?
Não era hora de vacilar, no entanto. Precisava subir e dar mais um passo
naquela investigação.
Contudo, quando me aproximei do elevador, mantendo o apartamento de
Olavo em mente, deparei-me com um carro escuro parado bem de frente para a
entrada do prédio. Eu sabia que não poderia se tratar de uma coincidência, então,
continuei prestando atenção até ver duas janelas sendo abertas discretamente. A
do motorista e a traseira, do mesmo lado. Pude ver, então, Carlos Vidal sentado
atrás do volante, e Olavo logo atrás, com uma mordaça a cobrir sua boca e um
olhar assustado.
Por um momento nem pensei no fato de que poderia se tratar de uma
armadilha, pois apenas corri com todas as minhas forças para chegar ao meu
carro e segui-los. Claro que eles praticamente me esperaram, avançando bem
devagar, como se estivessem me guiando o caminho. Eles só aceleraram depois
de um bom tempo, quando eu já estava dirigindo há pelo menos uns quarenta
minutos.
Fui levado para um local afastado, perfeito para esconder um cativeiro. A
casa escolhida era pequena, mal cuidada, mas erma, com quase nada em volta
além de mato e algumas outras propriedades tão humildes quanto. Algo me dizia
que era onde os gêmeos estavam morando.
Com a arma em punho, saltei do carro e entrei pela porta entreaberta,
deparando-me com uma casa que poderia facilmente pertencer a uma família de
tão organizada e completa, com cozinha em estilo americano, sala e móveis
velhos, mas organizados.
Olhei mais ao redor e logo vi o que tinha ido lá procurar. Carlos Vidal,
estava bem à minha frente, segurando Olavo como refém, com uma faca em sua
garganta. A mesma que havia degolado o pobre porteiro, já que estava cheia de
sangue.
Olhar para aquele homem fez meu cérebro ir ao inferno e retornar à
realidade em um segundo. Ao vê-lo sorrir de forma maliciosa, sem nem se
importar com a vida que acabara de tirar e nem com aquela outra que estava
ameaçando de forma tão corriqueira, só conseguia pensar em minha irmã e no
perigo que ela sofrera, quase ficando à beira da morte.
— Olha quem está aqui! Espero que a bonitinha tenha se safado da
overdose. Esses jovens de hoje, não é mesmo? É uma pena que se entreguem às
drogas dessa maneira... — Ele estalou a língua duas vezes, em uma atitude de
repreensão. Ainda estava ferido, de nossas recentes brigas, mas nem de longe era
o suficiente e o que ele merecia. Eu podia jurar que ali, naquele momento, seria
seu fim. Nosso próximo encontro seria no inferno.
— Sabe que a situação agora é diferente, não sabe? Por mais que eu
tenha apreço pela vida de qualquer pessoa, não se trata de alguém da minha
família.
Olhei nos olhos de Olavo ao dizer isso e testemunhei sua apreensão.
Obviamente ele não queria morrer. Talvez nem sequer merecesse — eu ainda
não sabia o que pensar —, mas não podia deixar que aquele cara novamente
levasse a melhor. Não podia demonstrar que me intimidava, por mais que
estivesse decidido a proteger o refém o máximo que pudesse.
— Ah, você realmente pensa que facilitaríamos tanto as coisas para você,
48? Pensa que eu vou facilitar alguma coisa? Esse caso se tornou pessoal para
mim a partir do momento em que você enfiou a porrada no meu irmão...
— Ele estava no lugar errado, na hora errada... — falei em um ar de
deboche, mantendo o controle. Precisava pensar que nem Chris nem Cléo
estavam em perigo ali. Não podia fraquejar. — Uma pena, não é? Que isso
aconteça com algumas pessoas, como aconteceu comigo, quando fui
sequestrado. Sabendo que seu irmão também foi usado por esse povo, você
ainda...
— Tá falando merda... você não nos conhece... — ele me interrompeu.
— Meu irmão se voluntariou para o projeto. Ele concordava com os princípios
da MR, do Dr. Hans. Aliás, todos poderiam fazer o mesmo; aquele homem é um
gênio, a salvação do nosso país. Ele deveria ser eleito presidente.
A forma como Carlos falava me deixava um pouco assustado.
Fanatismos daquela espécie não deveriam ser dirigidos a nenhum outro ser
humano, principalmente um com uma mentalidade tão extremista.
— Mas você sabe que eu não sou um cara de conversa, não sabe? Está
mais do que na hora de acertarmos nossas contas. Eu não vim aqui hoje por
conta da MR. Eles provavelmente nem sabem que estou aqui, o plano era outro.
Eu deveria matar Olavo e ir embora. Só isso. Eles enviariam outras pessoas para
te pegarem, mas não quero mais te levar para eles. Quero te matar. E depois vou
matar aquela sua namorada gostosa. Você sabe que eu deixei um recadinho para
ela matando aquela garota na praia, não sabe? — Ele fez uma pausa com aquele
sorriso psicótico de sempre. Claro que eu sabia. Claro que já imaginava que
tinha sido ele, mas não iria lhe dar o gostinho de confirmar, então, apenas cerrei
o maxilar, cheio de ódio e fiquei calado. — Ah, e só para constar... esse cara aqui
estava do nosso lado o tempo todo. Mas isso você já deve ter entendido. A
maioria das informações que ele te deu são verdadeiras, mas a intenção era
apenas te fazer cumprir a missão de alguma forma.
Depois de dizer isso, Carlos nem me deu tempo para pensar, pois logo
tentou me imitar, em nosso primeiro encontro, atirando a faca que usava para
manter Olavo como refém na minha direção. Sua intenção, muito
provavelmente, era fazer o mesmo que eu fiz na cafeteria, acertando minha mão
para me desarmar, mas eu fui mais rápido e consegui desviar. Porém, ele apenas
gargalhou, o que logo me fez chegar à conclusão de que tinha outros planos em
mente.
E não demorei para compreender. Sempre em alerta, ouvi quando passos
quase imperceptíveis começaram a se aproximar. Ao mesmo tempo, enquanto eu
me preparava para lidar com a pessoa que iria tentar me surpreender, Carlos
pegou outra faca e rasgou a garganta de Olavo sem hesitar e sem tirar os olhos
de mim.
Conforme o homem agonizante era jogado ao chão, com a mão fechada
ao redor do pescoço, empapando-a de sangue, eu sentia o metal tocando a minha
cabeça. O barulho da arma sendo destravada mostrou que tudo estava
cronometrado. Ainda assim, mantive-me impassível. Era mais do que óbvio que
eles tinham um plano, mas eu não poderia perder o controle, principalmente
porque já sabia exatamente o que fazer.
— Largue a arma — a voz atrás de mim falou. Apesar da ordem bem
clara, continuei parado, apontando o revólver para Carlos. Meus olhos, no
entanto, não conseguiram afastar-se do homem convulsionando no chão. Não
havia nada que eu pudesse fazer por ele, então, a única responsabilidade que eu
tinha era sair vivo dali.
Talvez minha vida não devesse importar tanto, mas havia muitas coisas
que eu ainda queria fazer. Proteger quem eu amava era uma delas. Destruir todos
aqueles filhos da puta era outra. E se eu precisasse começar pouco a pouco... era
isso que faria.
— Largue. A. Porra. Da. Arma. — O homem repetiu de forma enfática.
Estava puto. Quem poderia culpá-lo? Mas eu também estava. Ah, como estava!
Fiz o que ele mandou, formulando um plano em minha mente. Eu não
precisava de uma arma para lidar com aqueles dois. Principalmente porque já
imaginava quem deveria ser aquele que tinha acabado de chegar. Estávamos em
família, afinal.
Joguei a arma no chão, exatamente como me ordenaram fazer,
interpretando o papel do refém submisso.
— Acho que estou tendo um dejà vú... — Carlos comentou, com aquele
seu jeito debochado ao qual eu estava começando a me acostumar. — Chute a
arma na minha direção, ajoelhe-se e coloque as mãos na cabeça! — alterou o
tom de voz, tornando-o imperativo.
Novamente, enquanto minha mente corria na velocidade da luz,
analisando todas as possibilidades, obedeci. Meus movimentos eram lentos,
calculados, e meus olhos não abandonavam o algoz à minha frente.
Eles até poderiam ter sido treinados pela MR, mas estavam cometendo
um único erro. Se Carlos estivesse com uma arma apontada para mim, tudo seria
diferente. Mas eu tinha essa pequena vantagem; e não estava disposto a deixá-la
passar.
Encostei cautelosamente um joelho no chão e nem sequer fiz o mesmo
com o outro, apenas agi o mais rápido que pude, girando trezentos e sessenta
graus, usando a perna esticada para dar uma rasteira no homem atrás de mim.
Conforme caía, avancei em direção à arma que ele portava e a arranquei de sua
mão, aproveitando seu momento de desequilíbrio. Sem nem ter tempo de pensar
ou de mirar precisamente, atirei em Carlos, enquanto este se jogava na direção
do outro revólver, aquele que eu tinha posto no chão.
Acertei-o no ombro, o que o fez recuar, porém, teve tempo de agarrar o
revólver remanescente.
Além de tudo aquele filho da puta tinha sorte.
Ficamos um de frente para o outro novamente, cada um apontando as
armas que segurávamos, imitando a cena do início. A diferença era que agora
Carlos estava ferido — embora apenas de raspão —, e eu tinha uma visão dos
dois homens, evitando surpresas.
Carlos, com o cenho franzido, provavelmente lidando com uma dor que
me era muito satisfatória, deu um pulo para se esconder atrás do sofá. E eu atirei
novamente, mais uma vez acertando-o de raspão, na altura da cintura.
— Filho da puta! — ele berrou. De detrás do sofá, apontou a arma de
qualquer jeito na minha direção e atirou também, mas, embora eu tenha sentido a
bala passar zunindo pelo meu ouvido, não me atingiu.
Apressei-me em também procurar um abrigo para me esconder e fui me
enfiar atrás da bancada que dividia a sala de estar da cozinha americana.
Enquanto eu me encaminhava para me esconder, outros dois tiros foram dados, e
um deles passou novamente muito perto. Assim que me vi protegido pela parede
de gesso, percebi que o irmão gêmeo, do qual eu não sabia o nome, também já
havia se colocado atrás do sofá, e ele também atirara. Claro que aqueles dois não
apareceriam ali para me matar portando apenas um revólver.
Eu tinha poucas balas e poucas chances. Um deles já estava machucado,
mas nenhum dos ferimentos era grave. Minha estratégia teria que ser contar com
a sorte e fazê-los darem tiros até esvaziarem o tambor.
Coloquei-me de pé por alguns segundos, apenas para que Carlos também
se erguesse e atirasse duas vezes. Fui suficientemente veloz, e nenhum dos dois
pegou em mim. Contudo, fora pura sorte.
Enquanto bolava maneiras de colocar meu plano em prática, dei uma
olhada ao redor, vasculhando a cozinha em busca de algo para me ajudar, mas
nada parecia muito promissor.
Havia duas panelas sobre o fogão e alguns talheres sobre a pia. Porém,
para chegar até esses objetos, eu teria que passar de uma parede a outra, com um
vão entre elas. Jogando-me no chão e dando uma cambalhota quase
cinematográfica, completei essa travessia, enquanto outros dois tiros, dessa vez
um de cada arma, vinham na minha direção. Um deles chegou a pegar de raspão
no meu braço, mas de forma muito superficial, deixando apenas um arranhão
dolorido em minha pele. Aproveitei para dar mais um tiro e por muito pouco não
acertei um deles bem na cabeça.
Praticamente voei em direção à pia e peguei uma das facas — a maior
—, guardando-a comigo. Coloquei-me de frente para eles quase ao mesmo
tempo em que Carlos e o gêmeo desconhecido erguiam-se para dar mais dois
tiros cada um. Um pegou na parede e outro acertou a pedra de mármore sobre a
bancada, porque consegui me movimentar rapidamente. Atirei também e
novamente acertei Carlos, assim como ele tinha me acertado, no braço, de
raspão. Em retaliação, ele tentou atirar novamente, mas estava sem balas.
— Puta que pariu! — berrou, enquanto eu novamente me escondia atrás
da parede, e ele se jogava atrás do sofá.
Só faltava o outro. Pelas minhas contas, tinha apenas mais três balas.
Então, eu precisava ser ousado.
Espiei a cena diante de mim, e ambos os irmãos estavam escondidos
atrás do sofá. Para chamar sua atenção, atirei uma faca bem em cima da cabeça
do Sem Nome, que foi suficiente para que ele se levantasse — talvez
impulsionado pelo susto — e atirasse. Duas vezes. Porém, eu já estava abaixado
atrás da outra parede, para a qual retornei.
Aproveitei para atirar também, mas ele foi mais rápido em se esconder.
Apenas mais uma bala. Novamente precisei tomar a iniciativa, dando um
tiro no estofado do sofá. Com sorte poderia acertá-lo, mas não foi o que
aconteceu. Mas funcionou, porque ele se levantou e tentou dar mais dois tiros,
porém, apenas um realmente disparou. Fui novamente atingido de raspão,
agradecendo à sorte, enquanto sentia um filete de sangue escapar do meu ombro,
o mesmo do braço já ferido.
Agora eu tinha uma bala, e eles, nenhuma. Por mais que isso pudesse ser
uma enorme vantagem, tudo o que eu queria era uma chance de enfiar a porrada
naqueles dois. Com vontade. Mas precisava resolver aquilo de alguma forma...
fosse como fosse. Apenas uma bala para dois homens não seria suficiente, então,
em algum momento, eu teria que partir para um confronto físico.
Fosse como fosse, o prazer de meter uma bala na cabeça do homem que
quase matou minha irmã era algo impagável.
Esperei um pouco, tentando ser prudente e me colocando em alerta para
ouvir os sons ao redor. Podia jurar que haveria surpresas, que eles engatilhariam
mais uma ou duas armas, porém, ninguém se mexeu. Isso me encheu de uma
confiança que eu não deveria me permitir ter em uma situação como aquela.
Contudo, o ódio era mais forte.
Aproximei-me do sofá, com a arma apontada. Dei a volta nele,
colocando-me de frente para Carlos. Ele estava prestes a se levantar, mas eu não
permiti.
— Ajoelhe-se... — ordenei, sentindo um enorme prazer em fazê-lo. Eu
sabia que não teria muito tempo para brincar, porque o outro irmão começava a
levantar-se. Enquanto Carlos me obedecia, eu abri um sorriso. — E agora, seu
merda? Está tendo um dejà vú?
— Você vai ter coragem de atirar em um homem desarmado e indefeso?
— Vá se foder! — foi a minha resposta, ao mesmo tempo em que puxava
o gatilho. À queima roupa. Bem no meio da testa.
Mal tive tempo de observá-lo despencar para trás, com os olhos abertos,
arregalados, e um buraco de bala na cabeça, pois, soltando um grito animalesco,
o outro gêmeo partiu para cima de mim, segurando a faca de carne que eu havia
lançado sobre sua cabeça.
Ele vinha com a mão estendida, com a lâmina apontada para mim, mas
eu consegui desviar e girar a tempo, antes que ele me atingisse pelas costas.
Comecei desviando de seus golpes, sentindo a faca cortar o ar, zunindo como
uma mosca inconveniente, e logo o atingi no estômago com um chute. Isso o fez
cambalear, dando-me tempo suficiente de me afastar para o meio da sala, onde
nenhum dos dois corpos que jaziam mortos no chão pudesse me atrapalhar.
Cheio de fúria ele veio para cima de mim, com a faca erguida, enquanto
eu levantava a guarda, preparando-me. Ele investiu, mas eu cruzei os braços
sobre a cabeça, bloqueando-o antes que pudesse sequer me atingir.
Ele usou de força, tentando empurrar meus braços para baixo, uma vez
que a lâmina da faca estava muito próxima ao meu olho. Continuei a bloqueá-lo,
e por um momento nossos olhares se encontraram. Eu conhecia aquele brilho.
Conhecia aquele ódio, porque o sentia em mim também. Estávamos ali por
vingança, em nome de nossos irmãos. Porém, o dele estava morto.
Depois de alguns instantes, consegui empurrar seu braço o suficiente
para me permitir recuar, colidindo com uma parede. Ele se recompôs
rapidamente e outra vez tentou me apunhalar, tentando levar vantagem pelo fato
de eu estar encurralado, mas desviei em um reflexo, e a faca cravou na parede.
Antes que ele pudesse recuperá-la, agachei-me, colocando-me na altura
de seus joelhos e os agarrei, usando meu corpo para impulsioná-lo para trás,
afastando-o de sua arma. Erguendo-o chão, lancei-o contra outra parede, fazendo
suas costas serem jogadas contra a superfície dura. Ele despencou bem em cima
de Olavo, cujos olhos ainda estavam abertos, mas vítreos.
Ergui a guarda, já esperando que partisse para cima de mim, e foi o que
aconteceu, assim que levantou. De punho fechado, veio me atingir, e eu bloqueei
um gancho de direita, mas ele logo acertou um golpe no meu estômago, seguido
de outro, um de cada lado, além de um no rosto.
Não tive muito tempo para absorver a dor, porque eu sabia que precisava
contra-atacar. Também ergui meus punhos, tentando socá-lo no maxilar, mas
acabei golpeando o ar, de ambos os lados, porque ele desviou e ainda conseguiu
me chutar bem no joelho. O que me derrubou no chão. Vendo-me assim,
rendido, novamente me acertou um soco, pegando bem na altura do meu
supercílio, onde um corte se abriu. Sua intenção era atingir o outro lado também,
mas eu o bloqueei com o braço e usei a outra mão, livre, para segurar seu
pescoço, empurrando-o até outra parede e imprensando-o lá.
Eu queria matá-lo. Não que fosse fazer muita diferença para acabar de
vez com a MR, afinal, ele era apenas uma marionete; um grão de areia em um
deserto inteiro, mas eu queria muito acabar com aqueles dois merdas em um só
dia.
Ele tentava me empurrar e chegou a acertar outro soco no meu estômago,
mas eu não afrouxei a mão. Continuava a sufocá-lo e a mantê-lo preso contra a
parede. Ainda assim, manteve um golpe atrás do outro, e isso começou a me
irritar. Tanto que coloquei a outra mão em sua nuca, abaixando sua cabeça,
enquanto erguia meu joelho, acertando-o bem no nariz duas vezes.
Afastamo-nos um pouco, e eu pude ver o sangue fluindo por suas
narinas, levemente entortadas, sem dúvidas, quebradas. No momento em que ele
se ergueu o suficiente, eu o chutei no peito, fazendo-o cair no chão. Parti para
cima sem piedade, chutando suas costelas duas, três vezes.
Porque eu não era um covarde, esperei que se recuperasse ao menos um
pouco, e ele veio em minha direção, correndo, como um mamute, acertando meu
abdômen com a cabeça. Contudo, antes que pudéssemos colidir com outra
parede, eu consegui reverter a situação, derrubando-o no chão. Montei sobre ele
e iniciei uma sucessão de socos em seu rosto, impiedosamente.
Eu poderia matá-lo. Queria matá-lo. Só que um segundo de hesitação me
custou esse prazer. Ele usou as duas mãos abertas para estapear meus ouvidos
com muita força, fazendo-me perder a consciência por um ínfimo instante.
Zonzo, apenas consegui enxergá-lo levantar-se cambaleante e sair porta afora,
enquanto um zumbido intermitente me impedia sequer de pensar e me dar conta
de que aquele filho da puta estava fugindo.
Jogando-me no chão, quase derrotado, permiti a mim mesmo alguns
breves minutos de autopiedade para me recuperar. Precisava sair daquela casa o
quanto antes, pois se a polícia aparecesse, eu estaria ferrado. Ao menos eu tinha
me livrado de um deles.
Meu joelho latejava desesperadamente, e eu sabia que estava deslocado.
Para me levantar dali, precisava dar um jeito nisso. Sozinho.
A dor de colocar meu próprio osso no lugar quase me levou às estrelas.
Cheguei a me jogar no chão, completamente ofegante e semiconsciente, mas
aguentei a barra. Só precisava de alguns minutos para me levantar e sair dali.
Assim que consegui me erguer, ainda sentindo um pouco de dor, saí
coletando todas as armas pela casa — os três revólveres e a faca na qual pus a
mão, tentando lembrar se poderia haver minhas digitais em algum outro lugar,
mas, felizmente, eu tinha tomado os devidos cuidados.
Antes, porém, que pudesse sair porta afora, com minha cabeça latejando
e um pouco desorientado, avistei um notebook em cima da mesa de jantar.
Agarrei-o, sem nem pensar no que fazia, colocando-o debaixo do meu braço,
esperando que ele pudesse iluminar minha mente em relação a alguma coisa.
Estava mais do que na hora de começar a criar o caos de verdade.

***

CHRISTINE
Faltavam poucos minutos para o horário de fechamento da cafeteria.
Javier já tinha ido embora, e eu estava sozinha com Telma. Ela sempre
ultrapassava um pouquinho seu expediente para me ajudar, já que eu era a última
a sair, porém, naquele dia em especial, eu sabia que ela estava esperando Roger,
que finalmente a convidara para sair.
Aparentemente, porém, ele estava atrasado. Mais de uma hora.
Eu conhecia Telma bem o suficiente para saber que isso iria atrapalhar e
muito sua visão a respeito de seu futuro pretendente. Já fazia muito tempo que
ela não se permitia aproximar-se de alguém daquela forma, desde que fora
magoada pelo ex-marido que a traíra descaradamente, e seria péssimo se outra
experiência ruim a deixasse de coração partido mais uma vez.
E se tinha uma pessoa que não merecia sofrer era aquela mulher.
— Nem uma porra de mensagem de satisfação. Telefone na caixa postal.
O que ele está achando que eu sou? — vociferava ela, andando de um lado para
o outro com o telefone na mão.
— Você não tem o telefone da casa dele? — sugeri.
— E quem é que troca telefone fixo hoje em dia? — respondeu e deu
mais uma checada no celular. — A última vez em que ele esteve online no
Whatsapp foi ao meio dia. Falando comigo, aliás. Estava tudo confirmado...
— Tenho certeza de que deve ter uma explicação. Ele era o mais
interessado nesse encontro, e você sabe disso. Já pensou que pode ter acontecido
alguma coisa?
— Pode. Ele ser um frouxo. — Irritadíssima, Telma começou a pegar
suas coisas, a tirar os sapatos de salto alto que trocara, recolocando sua sapatilha
de trabalho. — Eu vou é para casa. Se ele ainda quiser sair comigo, que vá me
buscar lá.
Bem, isso porque ela morava no Méier. O cara teria realmente que
percorrer a cidade inteira para encontrá-la.
— Tem certeza? — eu ainda tentei.
— Absoluta. E espero que ele me leve flores.
Rindo, iniciei o ritual diário para fechar a loja, apagando as luzes,
fechando janelas e persianas, e trancando a porta de vidro. Quando já estava
prestes a puxar a porta de enrolar, um carro parou diante da cafeteria. Aquele era
o horário em que Arthur aparecia para me buscar, mas não era o carro dele. Por
um momento, eu e Telma nos entreolhamos, quase acreditando que poderia ser
Roger, mas eu logo vi a carinha de Mário atrás do volante, inclinando-se na
direção da janela do passageiro.
Meu coração parou imediatamente. Ainda mais ao percebê-lo muito
sério, o que não era de seu feitio.
No exato momento em que se aproximou de mim, eu soube. Algo
acontecera com Arthur.
— O que houve? — perguntei aflita.
Mário deu uma olhada para Telma, sabendo que precisava omitir algumas
informações diante de uma pessoa desconhecida. Percebendo isso, ela mesma
pigarreou e voltou-se para mim, constrangida:
— Agora que você tem ajuda para fechar a loja, eu vou indo, tudo bem?
— Claro. Nos vemos amanhã... — Telma me beijou no rosto,
cumprimentou Mário com um sorriso e afastou-se, em um timing mais do que
perfeito.
Assim que consideramos que ela estava longe o suficiente, Mário
finalmente respondeu à minha pergunta.
— Arthur chegou em casa um pouco machucado... ele... — hesitou.
— Ele o quê? Pelo amor de Deus, fala logo! — Enquanto eu me
desesperava, meu novo amigo começava a fechar a loja para mim, o que foi de
grande ajuda, já que era bem mais alto do que eu. Apesar disso, eu sabia que se
tratava apenas de uma estratégia para adiar o que tinha para me dizer. — Que
merda, Mário! Não faz isso comigo!
— Chris, ele está bem. Está em casa, mas saiu na porrada com um cara e
chegou um pouco baqueado. Também levou dois tiros e...
— Dois tiros? Ah, meu Deus... — Levei ambas as mãos à boca, quase
preparada para abafar um grito ou uma exclamação mais desesperada.
— Foram de raspão. Calma. Ele realmente está bem...
— Então por que você está com essa cara?
Terminando de trancar a porta, ele colocou a chave dentro da minha mão
e respirou fundo, olhando em meus olhos.
— Porque estou nervoso também. Porque ele poderia não ter voltado.
Porque ele me fez um pedido hoje de manhã, para cuidar de você, caso algo lhe
acontecesse, e isso fez com que eu me borrasse de medo.
— Mas que merda de pedido foi esse?
Mário colocou a mão no meu ombro.
— Olha, Chris, deixa eu te levar para casa. Sei que você quer ver o
Arthur, e ele também está doido para te ter por perto. No caminho a gente
conversa.
Era um pedido bem razoável, por isso, balancei a cabeça e o segui até o
carro, entrando e me deixando ser guiada para aquela que agora era a minha
casa.
Mário e eu pouco conversamos, com exceção da história do estranho
pedido de Arthur para que cuidasse de mim e de Cléo, e isso fez o meu peito se
apertar. Embora eu soubesse que a vida dele estava em perigo constantemente,
que a cada esquina poderia topar com a morte, eu ainda me recusava a acreditar
que iria perdê-lo outra vez. Essa fé era tão nociva para o meu coração que eu
sabia que poderia chegar a corroê-lo aos poucos. Ouvir seus planos para mim
como forma de proteção já fazia com que eu sentisse as engrenagens do meu
corpo enferrujando, enquanto vislumbrava toda a situação; enquanto imaginava
uma vida sem Arthur.
Saltei do carro com toda a pressa, mal esperando que Mário o
estacionasse na frente da casa, e corri em direção ao quarto, subindo as escadas
na maior velocidade que minhas pernas me permitiam empregar. Abri a porta e
me deparei com Arthur cheio de companhias. Cléo, Selma e Sidney estavam
presentes, e eu cheguei a parar antes de realmente adentrar o cômodo, sem saber
o que fazer, como agir, o que dizer.
Cléo foi a primeira a virar na minha direção de forma cúmplice. Ela era a
única ali que também sabia a verdade, e a forma como conversou comigo usando
apenas o olhar me fez respirar fundo, sentindo-me um pouco mais tranquila.
Arthur estava bem.
— Ah, Chris! Que bom que chegou, querida! — Selma falou, enquanto
eu me abaixava para dar atenção a Kibe, que logo veio em minha direção. Ele
não era muito de fazer festinha ou me dar atenção assim que eu chegava em
casa, porém, devia estar um pouco assustado com toda aquela gente e,
principalmente, sentindo-se acuado por não estar em seu próprio cantinho. Quem
poderia culpá-lo? Eu também queria voltar para casa. — Arthur estava aqui
indócil querendo saber como você estava, se já tinha chegado...
— Esse garoto aqui foi assaltado e reagiu... — Sidney explicou.
— Teve sorte, isso sim. Onde já se viu, reagir a um assalto dessa forma?
Aproximei-me da cama com cautela, enquanto eles falavam, tentando
conter as lágrimas. Por mais que eu soubesse que ambos estavam preocupados,
eu os invejava. Não havia nada mais abençoado do que a ignorância em
momentos como aquele. Saber a verdade, na maioria das vezes, era muito pior.
Embora eu imaginasse que deveriam sentir algum tipo de desconfiança, depois
do incidente na casa de Edgar e das mudanças em Arthur. O olhar de Selma
falava mais do que suas palavras.
No momento em que me sentei ao lado dele na cama, ele pegou minha
mão e sorriu. Havia curativos em seu braço, ombro, além de cortes no rosto.
Estava em bem melhor estado do que eu imaginara, embora uma careta de dor
tenha transfigurado seu rosto no momento em que se remexeu para falar comigo.
— Estão me mantendo refém nesta cama. Ainda bem que você chegou...
— ele brincou, mas eu sabia que não estava com um senso de humor muito bom.
Além disso, também não era esse o motivo de tanto me querer em casa. O fato
de não ter podido ir me buscar deveria tê-lo corroído por dentro, e agora que eu
estava em segurança, finalmente poderia sentir-se aliviado.
— Bem, vou pedir que a Maria sirva o jantar — Selma falou, inclinando-
se para beijar a cabeça do filho e saindo. Sidney a acompanhou.
Mário logo chegou, e quando este entrou, pedimos que fechasse a porta
para nos dar alguma privacidade.
— O que diabos aconteceu, Arthur? — perguntei na primeira
oportunidade.
— Eu o matei. Carlos Vidal... — A resposta deveria ser para mim, mas
ele falou olhando para Cléo. Ao menos ela fora vingada.
— Mas você levou um tiro — completei.
— Dois — ele corrigiu, em um tom divertido, como se tudo não passasse
de uma brincadeira. Quando fiz menção de dizer alguma coisa, indignada, ele
acrescentou: — Foram de raspão. Eu estou bem. De verdade. Só o meu joelho
que está me matando. O filho da puta me deu um chute. Ainda bem que eu
consegui colocar no lugar.
Minhas mãos tremiam, e eu não consegui conter algumas lágrimas.
Queria gritar, quebrar aquele quarto inteiro. Aquele pesadelo nunca iria
terminar? Percebendo meu estado, Arthur apertou a minha mão com um pouco
mais de força.
— Ei... eu estou aqui, não estou? Vou fazer todo o esforço para voltar
sempre para você... — disse, com um tom tão terno que apenas serviu para
intensificar minha angústia.
— Mas poderia não ter voltado. Quantas vezes mais vai surgir ferido?
— Olha, você devia ter visto como os outros dois ficaram... — comentou
novamente em zombaria. Remexeu-se outra vez na cama, e seu semblante
apresentou mais uma careta. — Mas vamos analisar o que conseguimos com
essa nova aventura... — debochou. Em seguida, apontou para a sua cômoda, e
Mário pareceu entender o que ele queria. O rapaz, então, foi até lá e voltou para
perto de nós com um notebook em mãos. — Encontrei este laptop na casa onde
tudo aconteceu. Eu já o inicializei e o usuário é Olavo. Estou com esperanças de
conseguir algumas informações, porque os gêmeos não o manteriam consigo se
não fosse importante. — Virou-se para Mário mais uma vez. — Então, parceiro,
estou contando com você para descobrir a senha e acessar tudo o que pudermos
desse negócio.
Batendo continência, Mário colocou o aparelho debaixo do braço.
— Sim, senhor. Missão dada é missão cumprida... Mas tudo bem se eu
fizer isso da minha casa?
— Não vai ficar para jantar? — Cléo perguntou, parecendo um pouco
decepcionada. Mário corou só de olhar para ela. Ao menos uma cena fofa diante
de todo aquele pandemônio.
— Ah... é que... — Coçou a cabeça, envergonhado. — Hoje tem liga de
Overwatch para assistir. E... bem... eu...
No momento em que ele falou, eu olhei para Cléo e a vi irritadíssima,
indignada por ser trocada por um jogo. Sem nem saber, Mário estava fazendo
tudo certo. Aquela garota gostava de um desafio, e o fato de ele não lamber o
chão que ela pisava poderia lhe render muitos pontos com ela.
— Relaxa, cara. Vai lá. Obrigado por pegar Christine no trabalho —
Arthur respondeu, e Mário apenas gesticulou, como se não tivesse sido nada de
mais.
— Vou te levar lá embaixo, então... — ofereceu Cléo, e Mário abriu um
sorriso, concordando.
Antes de sair, ele aproximou-se da cama, trocando um cumprimento com
Arthur.
— Para de dar susto na gente, Robocop. Estou ficando de saco cheio.
Arthur apenas sorriu. O garoto despediu-se de mim também, fez uma
festinha em Kibe e atravessou a porta, com Cléo a tiracolo.
No momento em que ficamos sozinhos, Arthur estendeu os braços, e eu
me aconcheguei neles, deitando a cabeça em seu peito. Estava sem camisa, e eu
pude imediatamente sentir o calor de sua pele contra a minha, além do
reconfortante bater de seu coração.
— Aquele cara não vai mais te perseguir. E nem machucar Cléo — ele
sussurrou, enquanto acariciava meus cabelos.
— Você disse que lutou com duas pessoas...
— Sim, o irmão dele. O John Doe do hospital... Esse filho da puta ficou
vivo. E algo me diz que é mais calculista e mais sério do que o irmão. É bom de
briga e foi treinado pela MR, assim como eu. — Arthur fez uma pausa, mas eu
sabia que ele ainda tinha mais a dizer, por isso me mantive calada. — O Vidal
me falou que o irmão se voluntariou para a experiência. O quão louco ele deve
ser?
— Muito louco. E é isso que me apavora. — Ergui a cabeça para olhá-lo
nos olhos. — Esse cara vai vir atrás de você, Arthur. Com ainda mais ódio...
— Estou pronto para ele — respondeu, dando um beijo em meus lábios,
como se selasse algum tipo de promessa.
Eu não estava gostando nada daquilo, mas achei melhor não externar
meus pensamentos. Não quando eu também sentia que Arthur precisava apenas...
esquecer. Fora um dia infernal, ele estava machucado e precisava de um pouco
de paz. Por isso, retribuí o beijo quando este veio, cheio de sofreguidão. Era
como se quisesse aproveitar cada um de nossos momentos como se fossem os
últimos, por isso, seus braços, mesmos feridos, me apertavam contra seu corpo
com avidez, enquanto sua boca explorava a minha de um milhão de formas
diferentes, em um ritmo lento, cadenciado, como se estivéssemos travando uma
dança sensual.
Colocando ambas as mãos no meu rosto, ele se afastou por alguns
segundos, com os olhos tomados de desejo e ficou calado por um tempo. Pela
forma como seu peito subia e descia, eu acreditava que algo sério seria dito.
Só não estava preparada para o que veio.
— Casa comigo...
A reação de arregalar os olhos foi completamente involuntária, mas...
Meu Deus...
Eu não fazia ideia do que dizer, porque...
Deus!
Minha nossa...
— Acho que te assustei... — ele comentou, dando uma risadinha, sem
tirar as mãos do meu rosto.
— Não é para menos... — Lutei bravamente para levar um pouco de ar
aos meus pulmões.
— A gente se conhece a vida inteira, mas vale perguntar: acha que estou
sendo precipitado?
— Acho que você está louco. — Ajeitei-me na cama logo assim que ele
me soltou, colocando-me sentada. — Tem gente nos perseguindo. Nossa vida
está uma loucura, eu mal sei se você vai voltar para casa no final do dia... como
quer que...
Ele também se sentou e outra vez levou as mãos ao meu rosto.
— Chris, calma... não vamos nos casar amanhã. Só quero que você diga
sim ou não. Quero saber se posso ter a esperança de que você será minha esposa.
Um dia.
Era uma baita covardia que ele fizesse aquela pergunta, naquele tom. Era
muito fácil ler nas entrelinhas, tanto de seu pedido quanto da explicação. Havia
uma grande chance de ele morrer. Fosse amanhã, depois ou na semana seguinte.
Tudo o que ele me pedia era uma pequena dose de luz em meio à escuridão em
que vivíamos. Um motivo para lutar, uma razão para se proteger ainda mais.
A resposta era mais do que óbvia, não apenas pelas circunstâncias do
pedido, mas porque eu também queria. Porém, Arthur teria que esperar um
pouco mais, porque o celular dele tocou.
Bufando, um pouco contrariado pela interrupção, ele estendeu a mão na
direção do criado mudo e pegou o aparelho, atendendo-o em seguida.
Durante toda a ligação, sua expressão foi se modificando, tornando-se
mais dura, mais apreensiva, com o cenho franzido, enquanto se mantinha calado.
Quando desligou, depois de menos de dois minutos, parecia novamente tenso.
— O que foi? — indaguei aflita, no exato momento em que ele deixou o
telefone de lado.
— A ligação era de Santiago Marinho. Ele quer se encontrar comigo
nesta madrugada.
— Arthur... você está ferido... não pode ir. Não sabe o que esse cara
quer... e se for uma armadilha? — desesperei-me.
— Preciso tentar. Ele disse que tem coisas a me dizer. Não posso deixar
uma oportunidade dessas de lado. Vou ter que contar com a sorte novamente.
Capítulo Dezenove
ARTHUR

A noite parecia me engolir. Uma chuva fininha caía lá fora, batendo no


vidro do carro, enquanto o para-brisa proporcionava o único som ao meu redor.
Dentro do carro, parado diante do prédio onde havíamos marcado o misterioso
encontro, concedi a mim mesmo alguns minutos de hesitação.
Muito provavelmente Christine estava certa. Eu não deveria ter vindo.
Arriscar-me duas vezes em apenas um dia era burrice. E olha que ela tentou me
convencer de todas as formas, mas eu simplesmente cruzei a porta e saí. Sem
nem olhar para trás, porque seria doloroso demais ver que outra vez a tinha feito
chorar.
Com as mãos presas ao volante, apertando-o ao ponto de minhas
articulações ficarem brancas, pensei no meu pedido de casamento pouco antes de
Santiago me telefonar. Agi completamente por impulso, deixando-me levar pelo
momento. Claro que eu queria me casar com Christine. Mais do que tudo. Mas
— novamente — ela tinha razão. Não dava para pensar nesse tipo de coisa em
meio ao caos.
Ainda assim, o fato de não saber o que ela teria respondido estava me
matando. Principalmente por termos sido interrompidos. Parecia que a MR
continuaria controlando todos os aspectos da minha vida, até mesmo os instantes
mais pacíficos.
Isso me revoltava. De tal forma que, em um rompante de raiva, soquei o
volante, sentindo os ferimentos em meu braço e ombro reclamarem. Mais um
sinal de que a coisa certa a fazer seria dar a partida no carro e sair dali, voltando
para casa. Para Christine. Se precisasse lutar, poderia me virar, mas estaria em
clara desvantagem desde o início.
Mas havia uma comichão dentro de mim. Uma inquietude que não iria
me deixar em paz se eu não fosse até o fim naquela noite. Quantas coisas eu não
poderia descobrir se Santiago resolvesse realmente abrir a boca e compartilhar
comigo as informações que dizia ter?
Não, eu não agiria como um covarde. Se eu tivesse que morrer, morreria
tentando.
Decidido, dei a partida novamente e embiquei no prédio. Santiago me
informara que o porteiro estaria avisado, que eu só deveria buzinar e minha
entrada seria liberada. Não quis entrar em detalhes na hora para descobrir como
ele poderia saber tanto meu telefone quanto a placa do carro que estava usando,
mas esperava descobrir isso e muitas outras coisas naquela noite.
O prédio era alto, e nossa reunião aconteceria no terraço — um ambiente
anônimo, isolado, sem plateia, com exceção do tal porteiro que parecia ser um
aliado de Santiago.
Do vigésimo quinto andar, a cidade lá embaixo parecia muito pequena.
Por estarmos na Zona Sul, eu conseguia enxergar o Pão de Açúcar e o Cristo,
achando uma grande ironia que Ele fosse nossa única testemunha.
Por um momento achei que estivesse sozinho, mas Santiago não
demorou a surgir por uma porta, em meio a um canto escuro. O cenário, o
ambiente e o homem saindo do meio das sombras fez com que eu me sentisse
em um filme do Batman. Um pensamento ridículo, mas toda a situação era, de
fato, um tanto quanto bizarra.
Ele veio andando em minha direção com um semblante muito sério.
Cenho franzido, todo de preto... Sim, a minha teoria de que estávamos dentro de
um filme de ação ou de super-herói ainda fazia muito sentido.
Não pude deixar de analisá-lo com mais cautela, principalmente porque
havia muito de mim nele, assim como o contrário. Compartilhávamos a mesma
compleição física, o mesmo perfil, embora ele parecesse uns anos mais velho.
Talvez tivesse uns trinta e três, pelo que podia perceber. Seus cabelos eram
maiores do que os meus e estavam bagunçados, mal cortados, chegando a
enrolar nas pontas, na altura das orelhas. Era bem moreno, e sua barba era
falhada, como se estivesse sem fazê-la há apenas alguns dias. Tínhamos mais ou
menos a mesma altura, e pelo tamanho de seus ombros e largura de suas pernas,
eu poderia dizer que seria um bom adversário caso caíssemos na porrada, como
acontecera mais cedo com John Doe.
Aliás, assim que se colocou suficientemente perto, a primeira coisa que
fez foi me dar um soco. Bem no maxilar.
Puta. Que. Pariu.
Sim, o cara tinha um gancho de direita exemplar.
Quando me preparei para começar a lutar, ele afastou-se, dizendo:
— Pode baixar a guarda. Esse soco foi só um alerta para que pare de
importunar a minha ex-esposa — com uma voz que mais parecia um trovão, ele
afirmou e continuou andando na direção contrária, de costas para mim, como se
nem sequer se importasse com a possibilidade de eu revidar. Chegando à mureta
do terraço, ele simplesmente suspendeu o corpo e sentou-se, com as costas
viradas para a cidade.
Só de olhar já me dava vertigem, e eu nem sequer tinha cagaço de altura.
Aquele filho da puta, aparentemente, não tinha medo de nada.
— Não tenho intenção de importunar sua esposa. Queríamos encontrar
você.
— Agora estou aqui. Mas não pense que vim oferecer minha ajuda. Estou
te dando apenas esta noite para me perguntar o que quiser saber sobre a MR, e eu
lhe direi. Não vou negar nenhuma resposta, mas depois de hoje, não nos veremos
mais, você vai esquecer que eu ou qualquer pessoa ligada a mim existimos.
Era uma proposta razoável, embora um pouco frustrante. Seria bom tê-lo
como aliado, especialmente se ele sabia tantas coisas quanto afirmara saber.
Certamente poderia estar blefando ou me encher de mentiras, mas eu estava
prestes a descobrir.
— Como escapou? — indaguei, e isso o fez rir.
— Essa é a primeira pergunta que tem a fazer?
— É uma forma de saber se está mentindo ou não. Dependendo da sua
resposta, vou conseguir ponderar. Sei como as coisas funcionam naquela
corporação e passei muito tempo da minha vida planejando uma fuga. Qualquer
forma que não me pareça viável vai me soar como...
— Eu não sou você — Santiago me interrompeu bruscamente. — Talvez
você seja mais incompetente do que imagina para planejar qualquer coisa.
Cruzei meus braços contra o peito, também franzindo o cenho, não
entendendo qual era a dele.
— Eu estou aqui, não estou? Minha fuga também deu certo...
— Justo. Mas desde que saiu não para de fazer merda. Vai morrer desse
jeito.
— Estou fazendo a coisa certa. Não vou me esconder e deixar que
aqueles filhos da puta continuem sequestrando pessoas e tratando-as da forma
como trataram a nós. Não somos cobaias; não somos soldados, como eles
gostam de nos chamar...
Ele abriu um sorriso de canto, muito debochado, embora nenhuma
emoção tenha chegado aos seus olhos.
— Um discurso e tanto... Mas é uma ideologia muito bonita na teoria. Na
prática, as coisas são diferentes. Você é um homem só, Arthur. Talvez não possa
contra eles.
— Talvez eu esteja disposto a tentar...
Santiago balançou a cabeça, parecendo um pouco decepcionado. Seria
mesmo essa a intenção dele? Tentar me dissuadir?
— Vou responder sua pergunta, então. Quer saber como eu escapei? —
Descendo da mureta, ele colocou-se de pé. Em um movimento rápido, virou-se
de costas e tirou a camiseta preta de mangas compridas que usava, revelando não
apenas um físico impressionante, como também costas repletas de cicatrizes de
queimadura. Quando virou-se de frente novamente, tive apenas um vislumbre de
sua tatuagem, igual à minha, mas seu número era 06. Ele rapidamente vestiu-se.
— Eu fui um dos primeiros a ser levado. As instalações da MR ainda eram em
terra, não em uma ilha como são agora. — Aquela era uma informação que eu
não possuía. Como fui levado para lá dopado e trazido da mesma forma,
acordando apenas quando já estava na cidade, não fazia ideia do que ele estava
dizendo. — Eram pequenas, consideravelmente menos modernas e com menos
segurança. Passei quatro anos lá dentro até que foi anunciado que seríamos
transferidos. Tudo estava um pouco caótico por conta da mudança, e eu sabia
que se chegássemos à ilha, eu não conseguiria escapar. Era a minha chance.
— E como saiu?
— Não foi assim tão diferente do que você fez. Só que como tudo era
muito mais arcaico e menos planejado, exatamente porque era o início, fomos
levados das instalações em um caminhão pequeno, tipo um furgão. Eu
simplesmente coloquei fogo no veículo com todos nós lá dentro. Quando
abriram as portas... Bem... eu escapei, com algumas sequelas, é claro.
— Quantos soldados matou nesse processo?
— Dois — ele respondeu sem hesitar. — Era a minha vida ou a deles.
Salvei mais quatro, se isso compensa de alguma forma. Mas nenhum deles está
vivo até hoje; nenhum sobreviveu para contar a história. Só eu.
— O que aconteceu com eles?
— O que você acha que aconteceu? — Santiago ergueu uma
sobrancelha. — Foram perseguidos, levados de volta, torturados, mortos... É o
que vai acontecer com você se não desaparecer de vez; se não deixar de lado
essa vingança idiota. Não apenas com você, aliás, mas com aquela sua garota
bonita também. — Ele fez uma pausa. — Até hoje não desistiram de mim.
— Como você ainda está vivo?
— Porque sou bom em me esconder. Não apenas deles, mas de todo
mundo. Eu fiz uma escolha quando saí daquela merda de lugar, e essa escolha foi
sobreviver. Para isso, foram necessários sacrifícios. Laila foi um deles, mas fiz
muitos mais. Você jamais deveria ter voltado para casa e envolvido outras
pessoas nisso.
— De que me adianta ter a liberdade se nunca estarei livre? Você é um
prisioneiro deles até hoje.
Santiago inclinou a cabeça e franziu os lábios com um dar de ombros.
Parecia, finalmente, estar me dando razão.
— Talvez... Mas as pessoas que eu amo estão protegidas. Isso é o que
importa.
— Nunca perseguiram Laila?
Essa pergunta pareceu deixá-lo desconfortável, tanto que novamente
sentou-se na mureta, enquanto respirava fundo.
— Eles a perseguiram no início, mas o atual companheiro dela é policial
federal. Acho que isso os intimidou um pouco.
— Por que você nunca saiu do Rio?
Demonstrando certa impaciência com aquela pergunta, ele ergueu a
cabeça, olhando-me de esguelha, como se eu fosse uma criança teimosa pedindo
uma explicação difícil.
— Eu prometi que iria responder suas perguntas, mas isso não inclui as
pessoais. Foque no que é importante, seu tempo está acabando...
Eu nem fazia ideia de que ele tinha me dado um prazo, mas tudo bem...
talvez eu estivesse me concentrando em coisas sem importância. Na verdade,
naquele momento, o que mais parecia me interessar eram as histórias de como
ele tinha sobrevivido por tanto tempo e protegido a todos.
Mas, realmente, eu precisava acelerar aquela conversa.
— Como eles nos escolhem? — Era uma boa forma de começar. Ao
menos eu achava que sim.
— Eles não escolhem. Somos indicados. Levar um soldado à MR pode te
dar muitas vantagens. Sabe as missões que vocês recebem hoje em dia? Elas são
encomendadas por essas pessoas a quem a corporação “deve” favores. Claro que
muitos também fazem isso por dinheiro... — Santiago novamente pausou sua
fala. Eu até poderia pensar que estava pensando em uma forma de dizer mais
alguma coisa, mas embora o conhecesse há poucos minutos já havia percebido
que não era de medir palavras. — Quem me indicou foi alguém do meu
convívio, alguém que tinha acesso facilmente a mim. E não pense que foi
diferente com você. Talvez esteja entregando sua confiança às pessoas erradas.
Então eu tinha um inimigo ao meu lado? Era vergonhoso pensar que um
nome logo surgiu em minha mente. Meu irmão, J.J., era quem mais tinha a
ganhar com meu desaparecimento. Além disso, ele jamais demonstrara qualquer
tipo de apreço pela minha pessoa. Sendo assim, minha expressão não se
modificou muito quando recebi a informação. Se Santiago percebeu ou não,
simplesmente não me deixou perceber.
Isso me incitava a fazer outra pergunta a ele. Quem o teria indicado à
MR? Será que já havia descoberto esta informação? De qualquer forma, deixei
de lado a curiosidade, pois ele fora bem claro ao dizer que não responderia
perguntas pessoais. E, sem dúvidas, não era da minha conta.
— Qual é o principal objetivo da MR? O que eles querem, de fato?
Santiago deu uma risada. Um som estrangulado, rouco, quase gutural.
— Isso é quase como perguntar qual o objetivo da vida, de onde viemos e
para onde vamos... — ele zombou, embora não fizesse o estilo bem humorado.
— Mas o que posso te dizer, que foi o que descobri, é que a maior intenção deles
é se enfiarem em toda parte, até no governo. Exportar soldados e o método;
transformar pessoas em armas e começar novas guerras. Balzer, pelo que pude
apurar com as minhas investigações, é um louco fanático, militar por vocação,
fanático por Hitler e pelas mais absurdas ideologias. — Ele fez uma pausa, e eu
quase agradeci por isso, porque precisava de um tempo para absorver toda
aquela bosta. Porém, não demorou a prosseguir: — Essas missões que são dadas
são apenas uma forma de recompensar as pessoas que vão se afiliando a eles. A
princípio eles querem aliados. Quanto mais poderosos, melhor. E tem muita
gente grande cooperando.
— Mas pelas minhas contas, a corporação já tem alguns anos de
existência. Por que ainda não atingiram todos os seus planos? Ainda mais
levando em consideração que há muito dinheiro envolvido e que eles me
parecem bem poderosos.
— Porque eles querem comer pelas beiradas. São estrategistas, e isso é
uma guerra. Eles vão vencendo pequenas batalhas para chegar à vitória. E
quando chegarem, irmão... ninguém mais conseguirá segurá-los.
— Vai ser merda para todo o lado...
— Literalmente. — Finalmente concordávamos com alguma coisa. A
cada passo que dávamos naquela conversa, eu me sentia mais e mais assustado.
Em nenhum momento duvidei da grandiosidade da coisa, mas tudo era muito
pior. — Você escapou quando te recrutaram para uma missão...
— É uma pergunta ou uma afirmação?
— O que você acha? — Santiago cruzou os braços contra o peito, e por
um momento eu jurei que ele iria se desequilibrar e cair, mas nem sequer
bambeou.
— Acho que você sabe tudo sobre mim. De alguma forma, descobriu
vários detalhes da minha vida, inclusive meu telefone e a placa do meu carro.
Ele novamente sorriu com certa malícia.
— Você tem o seu amiguinho hacker, e eu tenho o meu. Mas é mais ou
menos isso... E eu também sei exatamente quem você tinha que matar. — Pela
cara de desdém que Santiago demonstrou, ele sabia muito mais do que apenas
aquilo.
— O que você sabe sobre Edgar Queiroga?
— Além do que eu acredito que você já tenha descoberto? Algumas
coisas. Sei, por exemplo, que o motivo de quererem apagá-lo era que ele estava
com o filme bem queimado lá na MR.
— Por quê?
— A empresa de fachada da família Queiroga tem uma espécie de
parceria com a MR. Eles têm fornecido soldados a eles há alguns anos. Um deles
foi o irmão de Edgar.
Levando em consideração que eu estava desconfiado do meu próprio
irmão, era impossível me surpreender com aquele tipo de coisa. Ainda assim,
não conseguia aceitar viver em uma sociedade onde pessoas da mesma família,
que levam o mesmo sangue nas veias, consigam alimentar tanto ódio um pelo
outro. J.J. podia ter todos os defeitos, mas eu o amava. Não conseguia entender
aquele tipo de sentimento negativo. Ainda mais chegando a tais extremos.
— E o que eles ganham com essa parceria com a MR? — indaguei,
tentando não perder o ritmo, antes que aquele cara desistisse de cooperar.
— Como eu já disse, é bom para essas empresas que a MR lhes deva
favores. Além disso, há muita grana envolvida nas transações. Há pessoas,
atualmente, que fazem grandes doações a eles. Pessoas que investem na
“pesquisa”. — Ele fez o gesto de aspas para enfatizar a palavra. — Não só
funciona como uma troca de favores, pois tem gente que paga para que os
soldados realizem missões. E pagam uma baba. A família Queiroga, sem
dúvidas, viu muitas vantagens nisso. Só que as coisas passaram a ficar
complicadas. Edgar começou a pedir mais dinheiro, fazer algumas ameaças,
chegou a pedir sociedade... Enfim, o povo não gostou dessas liberdades e...
voilà! O soldado 48 foi o escolhido para buscar a cabeça do playboy. Você há de
convir que não é das piores missões. Até eu adoraria colocar minhas mãos
naquele vagabundo.
Ignorei aquele comentário. Não porque o achasse muito absurdo, mas
porque as perguntas começavam a se formar dentro da minha cabeça na
velocidade da luz.
— O que aconteceu com o irmão de Edgar? — indaguei sem nem
perguntar se ele realmente sabia a resposta. A partir daquele momento, passei a
assumir que ele tinha todas as informações.
— Olha, Arthur... só há três opções de destino para quem é levado à MR.
E nenhuma delas é muito animadora. Ou você coopera, tornando-se um deles de
verdade; ou morre.
— Nós escapamos...
— Somos exceções — ele respondeu categórico. Eu ainda não estava
muito certo disso. Se conseguimos fugir, por que outras pessoas não poderiam
ter conseguido também? Talvez houvesse mais alguém como nós por aí,
precisando de ajuda, vivendo nas sombras.
Mas não era hora de pensar sobre isso. Havia uma informação faltando
naquela história.
— Você disse que eram três opções, mas só mencionou duas.
— Ah, sim. — Ele hesitou, mas antes de falar me olhou bem nos olhos.
— Há alguns soldados que recebem um destino pior do que a morte. Alguns que
consideram mais importantes. Eles são lobotomizados. É o caso de Sandro
Queiroga, irmão de Edgar. Todos pensam que ele morreu em um acidente, mas
não é verdade.
Lobotomia?
Nós estávamos falando de...
Meu Deus! Era tudo muito mais terrível do que eu imaginava. Quanta
maldade ainda cabia naquela história? Eles literalmente transformavam as
pessoas em zumbis.
— Foi exatamente esta cara que eu fiz quando descobri. E quer saber
outra coisa que fez com que eu tivesse a certeza de que estamos lidando com
enviados do próprio diabo? — Dei de ombros. Era difícil responder que sim, que
queria descobrir mais podridão; no entanto, era meu dever descobrir tudo o que
podia, especialmente porque fui até ali para arrancar todas as informações que
conseguisse extrair dele. — De uns tempos para cá, principalmente por
influência de Queiroga, eles têm recrutado mulheres também.
Puta que pariu.
Sim, estávamos realmente lidando com o próprio demônio. Aquele lugar
era literalmente o inferno. Exatamente por isso, mal conseguia imaginar o tipo
de crueldade que poderiam estar fazendo com mulheres por lá. Não que
acreditasse que elas eram mais frágeis; contudo, havia outro tipo de tortura
psicológica pela qual uma mulher passava ao se ver prisioneira de alguém — o
medo de ser tocada contra a sua vontade e não poder se defender.
Imediatamente me veio a imagem de Christine sendo levada para um
local como aquele, sendo aprisionada como eu fui, torturada, treinada como uma
cobaia, sendo lentamente transformada em uma arma. Meu estômago começou a
se revirar como louco, como se eu tivesse sido jogado dentro de um redemoinho
vertiginoso. A náusea veio forte, mas eu consegui contê-la, embora a raiva
ardesse como bile dentro de mim.
— As mulheres que Edgar trafica... — mal consegui terminar a frase de
tão absurda que ela me parecia.
— Sim. Ele faz uma seleção. As que ele acredita terem mais potencial
são enviadas para a MR.
— Como você sabe de tudo isso? — indaguei novamente, sentindo-me
cada vez mais intrigado. — Como posso confiar que não está ligado a eles? Que
isso não é uma armadilha para mim?
Santiago pareceu ficar ofendido. Tanto que levantou-se da mureta e
colocou-se de pé diante de mim. Sabia que estava tentando me intimidar, mas eu
nem sequer recuei. Mantive-me firme, de cabeça erguida. Se quisesse partir para
a porrada... bem... seria uma briga e tanto, mas eu estava pronto para isso,
mesmo ferido.
— Se fosse uma armadilha, você já estaria morto. Eu já teria te jogado
dessa porra de prédio. Teria voado por esses vinte e seis andares e esborrachado
essa carinha bonita de playboy no chão.
— Tente a sorte — respondi por entre dentes, principalmente porque
aquilo não queria dizer nada. Poderia ser um blefe, ainda mais que a MR não
parecia me querer morto. Estavam muito empenhados em me capturar com vida.
Ficamos nos encarando por um tempo, como se fôssemos adversários em
uma luta de UFC. O que era ridículo, eu precisava admitir, mas nenhum dos dois
parecia muito disposto a ceder, até que Santiago soltou uma risadinha de
desdém.
— Não tenho a intenção de te matar, principalmente porque você vai
fazer isso sozinho. Está prestes a se jogar dentro de um incêndio, irmão. Não vou
acelerar o processo. Poupe suas energias para se recuperar — ele apontou para
meus ferimentos —, porque vai precisar de todas elas.
Ainda não confiava nele, mas era a melhor opção que eu tinha.
Apesar disso, eu sentia que nosso tempo estava se acabando. Santiago
não se sentara novamente, e aquela perda de paciência por causa da minha
acusação parecia ter encerrado com toda a sua boa vontade de ajudar. Contudo,
havia mais uma dúvida me incomodando.
— Posso fazer uma última pergunta? — tentei.
— Vai fundo.
— Há outros como nós? Outros que escaparam? Você disse que somos
exceções, mas em nenhum momento afirmou que fomos os únicos.
Ele sorriu de canto, com uma expressão misteriosa, e com isso eu nem
precisava de uma resposta. Já sabia a verdade, embora pudesse jurar que não a
ouviria de sua boca.
— Vai ter que descobrir por si mesmo. — Dizendo isso, ele me deu as
costas e começou a caminhar na direção da porta pela qual entrou. Antes que
pudesse abri-la, porém, virou-se novamente para mim e falou: — Não me siga,
não me procure, porque não vou te ajudar mais do que isso. Você se colocou
nessa roubada, agora encare as consequências sozinho. Também não procure
mais ninguém relacionado a mim. Se souber que andou importunando Laila mais
uma vez, eu vou atrás de você. Mas não para outra conversa civilizada como
essa.
Com isso, ele se embrenhou na escuridão e desapareceu pela mesma
porta pela qual entrou, deixando-me com a sensação de que ainda havia mil
perguntas a serem feitas. Ainda assim, eu não o seguiria. Não porque tinha medo
de uma retaliação, mas porque precisava respeitá-lo. Ele fizera uma escolha
diferente da minha, e cada um de nós estava lidando com as consequências de
formas também distintas.
Talvez um dia a vida ainda proporcionasse um reencontro. Fosse como
fosse. Algo me dizia que eu ainda esbarraria naquele cara. Como amigo ou
inimigo. Só o tempo iria dizer.

***
CHRISTINE

O som da porta rangendo poderia ter me acordado de primeira, mas eu


apenas me remexi na cama, acreditando ser um sonho. Odiava me entregar ao
pessimismo, mas cada dia que passava começava a ficar mais e mais difícil
acreditar que a sorte ainda se manteria do nosso lado e que o anjo da guarda do
Arthur estaria fazendo horas extras, com trabalho enterrado até o pescoço.
Agarrada a Kibe, acabei pegando no sono, embora não conseguisse parar
de chorar, apavorada. Havia me colocado no meio da cama só para não sentir um
espaço tão vazio ao meu lado. A sensação de solidão era terrível, mesmo
sabendo que pela primeira vez em muito tempo estava morando em uma casa
onde dificilmente conseguia ficar sozinha.
Outros sons se propagaram no silêncio. Passos. Algo sendo colocado
sobre o criado mudo. Não podia ser sonho... Eu estava acordada.
Abri os olhos, então, colocando-me sentada na cama e olhei ao meu
redor, enquanto acendia a luz do abajur. Nada. O quarto estava vazio. Suspirei
angustiada e fiquei ainda mais triste quando meu gatinho me abandonou,
pulando da cama e indo se deitar debaixo dela, que parecia ser seu local favorito
no quarto.
Completamente desperta, levantei-me, sabendo que não conseguiria mais
dormir. Não enquanto ele não chegasse.
Foi então que olhei na direção da cômoda e enxerguei chaves de carro,
celular e uma carteira. O som de água corrente também chamou a minha
atenção. Havia alguém no banheiro.
Quando ele saiu de lá, surgindo à minha frente, eu nem pensei no que
fazia, apenas saí correndo na direção dele, pulando em seu colo e grudando meus
lábios aos dele, entrelaçando as pernas em sua cintura, fazendo-o desequilibrar-
se por um segundo, por conta dos machucados, embora tivesse se firmado
rapidamente. Fazia muito pouco tempo que nos havíamos visto, mas o medo de
não tê-lo comigo, de ele estar em perigo, tornavam minha reação um pouco mais
exagerada.
— Ah, meu Deus! Eu estava com tanto medo! — falei, no exato
momento em que libertei seus lábios, olhando-o nos olhos.
Arthur ajeitou os braços sob minhas coxas, segurando-me presa a ele,
como se também não quisesse que nos separássemos.
— Quer dizer então que você é o meu prêmio por ter voltado para casa
são e salvo?
— Eu deveria era te dar um gelo por me deixar tão preocupada... — Eu
estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas enquanto falava, ele ocupava-se de
meu pescoço, beijando-o de um jeito que apenas Arthur sabia fazer. Seus lábios
eram capazes de fazer amor com qualquer parte do meu corpo.
Não queria me sentir manipulada por seu jogo de sedução — no qual ele
era muito bom —, contudo, acreditava realmente que não era a sua intenção.
Pela forma como se agarrava a mim, mantendo as mãos firmes em minhas coxas,
ele estava exatamente como eu: com um baita tesão desesperado.
De fato, era quase impossível não reagir àquele homem. Sem contar o
fato de ele ser desesperadoramente sexy, ainda era capaz de fazer coisas
inexplicáveis com meu corpo. Eu me tornava facilmente um fantoche em suas
mãos.
— Não sei o que você faz comigo, Arthur... Mas é só olhar para você
que...
Ainda me segurando naquela posição, ele me carregou até a cômoda,
acomodando-me sentada sobre o móvel. Meus mamilos, já rijos só por conta dos
pensamentos poluídos que invadiam minha mente, sobre todas as coisas que
queria que ele fizesse comigo, roçavam na seda do top do meu baby doll, e só
isso já seria suficiente para me fazer estremecer, mas Arthur colocou a mão em
concha em um dos meus seios, usando o polegar para massagear o bico sensível,
friccionando-o. Não pude conter um suspiro e um gemido bem baixinho.
— O que, amor? O que você estava dizendo? — ele sussurrou em meu
ouvido.
E... pelo amor de Deus!
Deveria ser uma heresia chamar o nome de Deus em um momento como
aquele, em que eu me sentia prestes a cometer todos os pecados capitais ao
mesmo tempo, mas aquela voz... naquele tom... usada daquela forma... poderia
me deixar zonza.
— Seu dia foi cheio de emoções... Você está muito cansado e
machucado?
— Nunca estarei cansado para você — ele respondeu, e eu respirei
fundo.
Não estava muito acostumada a tomar iniciativa, o que era um total erro
da minha parte, mas — novamente — ele me incitava a fazer coisas que eu
jamais cogitaria.
— Não quero fazer amor com você esta noite. Quero que seja... intenso.
Quero compensar o medo que senti de te perder outra vez.
Arthur respirou fundo, enterrando a cabeça em meu colo, esfregando-se
em mim como se o que eu tinha acabado de dizer tivesse mexido com ele
profundamente. Eu o compreendia muito bem. Havia um desejo dentro de mim
tão cru, tão primitivo, que chegava a ser assustador. Era uma urgência de
sentimentos que me deixava cega, sem sentidos, rendida.
— Isso quer dizer, então, que você é minha? Para o que eu quiser fazer?
— sua voz soou rouca, o ápice da sensualidade.
— O que você quiser... — repeti.
Assim que eu disse isso, ele deu um passo para trás, contemplando-me.
Seus olhos, naquele tom tão cristalino de azul, pareceram escurecer, tornando-se
sombrios, pesados. Diante dele ali, eu me sentia a mulher mais linda do mundo,
feminina, desejada.
Ele me puxou um pouco para o lado e abriu uma das gavetas da cômoda.
Isso inspirou minha total curiosidade, ainda mais quando pegou uma camiseta
preta e a rasgou, criando uma tira longa. Não conseguia imaginar o que ele
pretendia fazer, mas deixei que continuasse, até que veio até mim e me vendou.
Não pude conter uma exclamação de surpresa. Não porque não
imaginasse que Arthur era um cara com várias cartas na manga quando o assunto
era sexo, mas porque... a expectativa do que planejava fazer comigo me deixava
completamente excitada.
Privada de um dos sentidos, todos os outros pareciam muito mais em
alerta. Apenas senti quando ele segurou a barra do top do meu baby doll e o
puxou lentamente pela minha cabeça, deixando-me exposta. Em seguida,
agarrou meus punhos e segurou minhas mãos presas à cômoda, cada uma de um
dos lados do corpo.
— Estou no controle agora. Apenas sinta...
Engoli em seco ao ouvi-lo, pois sua voz grave parecia ecoar ainda mais
em todo o cômodo, uma vez que eu não conseguia vê-lo. Senti seus lábios
quentes pousarem no exato ponto de divisão entre meu pescoço e o colo, o que
me fez arrepiar. Depois, ele seguiu uma trilha de beijos pelo vão dos meus seios
até chegar em minha barriga. Usando a língua, ele subiu novamente e tomou um
mamilo na boca, inesperadamente. Meu corpo se arqueou imediatamente, e eu
gemi seu nome, choramingando, suplicando.
Ainda prendendo minhas mãos contra a cômoda, ele se ocupou de meus
seios, mordendo-os, sugando-os, lambendo-os. Nenhum dos dois foi
negligenciado, e eu me sentia no céu. Sua língua quente tocava os pontos
sensíveis, enviando espasmos de prazer por cada parte de mim.
Subitamente, ele libertou um dos meus punhos e levou um dedo ao meu
sexo, afastando o short de seda, apenas checando o quão excitada eu estava. Ao
sentir a umidade, ele respirou fundo. Isso pareceu incentivá-lo ainda mais,
porque senti meus cabelos serem agarrados com violência, embora não chegasse
a me machucar, e puxados para trás, erguendo minha cabeça. Finalmente
consegui passar os braços ao redor de seus ombros, agarrando-me a ele com
braços e pernas, conforme ele usava os lábios para me deixar ainda mais em
êxtase.
Seu braço mantinha-se firmemente preso ao redor da minha cintura,
apertando-me com força, possessividade, exatamente da forma como eu queria.
Colocando-me novamente entrelaçada em sua cintura, ele começou a
caminhar pelo quarto. O fato de não poder ver o que acontecia ao meu redor era
extremamente excitante, especialmente porque eu confiava nele. Fui jogada,
portanto, na cama, e meus dois punhos foram imobilizados sobre a minha cabeça
por uma de suas mãos.
— Isso não é justo... quero tocar em você — resmunguei.
— Já disse que esta noite você é minha. — No exato momento em que
sua frase terminou, eu senti dois de seus dedos me penetrando, enquanto o
polegar massageava meu clitóris.
Seus lábios novamente encontraram meus mamilos, e ele começou a
beijá-los enquanto os dedos me masturbavam com ímpeto. Era uma doce tortura,
e eu me sentia lânguida, sublime.
Eu sentia o orgasmo se avolumando dentro de mim como um cataclismo.
Sentia que poderia explodir por inteira se não conseguisse minha liberação tão
desejada.
No entanto, quando eu estava prestes a atingir o clímax, Arthur afastou-
se, saindo de cima de mim.
A venda me impedia de ver o que estava planejando, e eu tentei tirá-la
quando breves instantes passaram sem que eu o sentisse ou fosse tocada;
contudo, ele foi rápido em novamente prender meus braços contra o colchão.
— Nada disso — foi tudo o que ele disse antes de novamente me soltar e
me fazer esperar.
Mordi o lábio inferior em expectativa e no momento em que preenchi
meus pulmões de ar, para respirar bem fundo, Arthur me penetrou bem fundo.
Gritei sem nem me importar com o que havia ao nosso redor. Arqueei o
corpo, erguendo-o um pouco da cama, enquanto o sentia afastar-se novamente só
para investir uma segunda vez. Não havia delicadeza em seus movimentos; ele
realmente não estava fazendo amor comigo.
— Arthur! — gritei em desespero e em êxtase, enquanto ele
simplesmente não diminuía o ritmo; enquanto me possuía da forma mais
selvagem possível.
E quando finalmente chegamos juntos ao clímax, um bom tempo depois,
desfalecemos ambos sobre a cama, entrelaçados um no outro, compartilhando
pulsações de corações atormentados que batiam em uníssono, cantando a mesma
melodia de nossos sentimentos.
Capítulo Vinte
CHRISTINE

Era ridículo passar a manhã inteira sorrindo como uma adolescente,


pensando na noite passada. Pensando na forma como entregamo-nos um ao
outro, sem reservas, sem limites. Eu havia esperado muito tempo para tê-lo
assim e valera a pena.
Apesar disso, nada justificava meu comportamento infantil.
Ou talvez justificasse, sim. Precisava agarrar-me a qualquer lampejo de
esperança que surgisse em meio àqueles mares turbulentos nos quais nossa vida
se transformara. Não era uma questão de escolha, mas um tipo de preservação.
Algo que me mantinha funcionando enquanto o mundo inteiro desmoronava,
girando na velocidade da luz ao meu redor.
A cafeteria estava cheia, e eu acreditava que isso era um sinal de boa
sorte. Nenhum urubu me espreitava do lado de fora; o sol despontava lá fora,
azulando o céu por inteiro, e uma das minhas músicas favoritas tocava na
Playlist que eu deixava no aleatório em dias como aquele, como trilha sonora de
nossas atividades. Tudo estaria perfeito se não fosse o péssimo humor de Telma,
que ficara esperando por Roger a noite inteira e não recebera sequer um
telefonema de explicação.
E foi exatamente por isso que eu me preocupei quando vi as meninas,
Kayla e Kelly, entrando, de mãos dadas com uma mulher que eu não conhecia.
Não era o horário de elas de passarem por ali; já passava do meio-dia, tinham,
provavelmente, acabado de sair da escola, e vieram ambas, suadas, correndo na
minha direção e me abraçando.
Eu as cumprimentei efusivamente e depois de descobrir várias coisas de
seus dias, da aula de Educação Física, na qual Kelly fora eleita a melhor zagueira
do time de futebol, e da aula de Artes, onde Kayla desenhou um elefante-
unicórnio — algo que eu não fazia ideia do que se tratava —, acabei descobrindo
que aquela mulher chamava-se Glenda e era tia das duas, irmã de Roger.
Esta, então, aproximou-se de mim, e eu percebi a expressão preocupada
evidente em seu rosto. Servi o café que ela pediu no balcão, enquanto as meninas
se acomodavam em uma mesa, esperando os quiches de queijo que seriam seus
almoços.
— Desculpa perguntar, mas está tudo bem com Roger? — indaguei,
começando a ficar realmente apreensiva. — Não sei se podemos nos considerar
amigos, mas ele vem aqui quase todos os dias...
— Olha, eu não faço ideia. Não temos notícias dele desde ontem. Venho
tentando segurar a barra por conta das meninas, mas estou desesperada. Elas
ainda não sabem, acham que o pai precisou viajar às pressas por causa do
trabalho. — Enquanto falava, uma lágrima deslizou pelo seu rosto, fazendo com
que eu me compadecesse. Olhei para Telma, que se mantinha bem perto para
ouvir nossa conversa, e ela parou tudo o que fazia, arregalando os olhos com a
notícia.
— Mas como assim? Já avisaram à polícia?
— Já. Estamos aguardando notícias. — Ela levou o polegar aos olhos,
secando as lágrimas, mas Telma rapidamente lhe ofereceu um guardanapo. —
Não sabemos absolutamente nada. Além do pessoal do escritório, a única pessoa
que falou com ele foi uma garota com quem iria sair. A secretária dele me contou
e disse que Roger pediu que ela encomendasse umas flores e um vinho. Só que
ele ia almoçar com um cliente e não voltou. Depois não o viram mais.
Novamente virei-me para Telma e a vi paralisada no mesmo lugar.
Imaginava como deveria estar se sentindo. Na verdade, eu tinha uma boa ideia,
já que havia passado pela mesma coisa.
E esse pensamento me levou a divagar um pouco, aproveitando que
Glenda pegou o café que lhe servi e começou a bebê-lo, ficando em silêncio.
A situação realmente era muito parecida. Demais, até. Um homem jovem
— um pouco mais velho do que Arthur, é claro, mas apenas uns cinco anos, no
máximo —, cheio de vigor físico e com um porte e altura consideráveis,
desaparecia do nada, sem qualquer explicação. Com certeza deveria ser uma
triste coincidência, mas precisaria conversar com Arthur sobre isso e saber o que
ele achava.
— Ele estava com problemas com algum cliente? — perguntei, tentando
descobrir mais coisas.
— Eu não estava a par de detalhes do trabalho dele, mas acho que a
polícia deve ter investigado isso também. Só não sei... — Glenda iria dizer mais
alguma coisa, mas as vozes das meninas, gritando em uma briga daquelas
rotineiras, chamaram a sua atenção, e ela se levantou, pedindo licença, indo de
encontro a elas, tentando impor algum controle.
Assim que fomos deixadas sozinhas, não pude evitar olhar para Telma
para saber o que ela achava de tudo aquilo. Não era nenhuma surpresa que
minha amiga continuava estupefata, absorvendo a revelação.
— Ai, que merda, Chris! Passei o dia inteiro xingando o coitado e olha
só... — Ela levou uma das mãos à boca, apavorada. — Será que ele foi
sequestrado? Será que está em perigo? — Arregalou os olhos novamente. —
Meu Deus! Ele estava me comprando flores! Sabe há quanto tempo ninguém me
trata assim?
Antes que ela pudesse começar a chorar, eu a abracei, tentando confortá-
la. Implorava que tivesse calma, mas a verdade era que esse tipo de pedido era
muito covarde. Como exigir controle de alguém que tinha acabado de receber
uma notícia terrível? Quando fora comigo, depois do desaparecimento de Arthur,
minha vontade era mandar todo mundo se foder. Se essa fosse a resposta de
Telma para mim, eu iria aceitar e com razão.
Mas ela nem sequer teve tempo de me xingar, pois Javier surgiu, um
pouco aflito, e eu amaldiçoei o momento em que considerei aquele dia como
promissor. Comemorar a boa sorte nunca é uma ideia muito inteligente; é, de
fato, uma forma de tentar o azar a surgir e estragar tudo.
— Señorita, tem um pessoal lá fora buscandote. São de la policía.
— Polícia? Eles adiantaram o assunto? — assustei-me de verdade.
Por um momento não fiz ideia do que poderia ser, mas logo me lembrei
de Dona Edith, de sua morte trágica em meu próprio apartamento e do fato de
isso ainda não ter recaído nas minhas costas. Eu sabia que Arthur deveria ter
limpado todas as evidências — o que me fazia estremecer só de pensar —, mas,
ainda assim, a coincidência de eu ter subitamente me mudado, sem dúvidas, não
passaria despercebida.
Javier negou com a cabeça, e eu decidi que o melhor era resolver logo
isso, agradecendo aos céus por estarem me esperando lá fora, poupando-me de
olhares curiosos dentro do meu ambiente de trabalho.
Atravessei a porta de vidro e andei até a mureta da Urca, onde dois
homens uniformizados me aguardavam. Cumprimentei-os com a cabeça,
franzindo o cenho por conta do sol de meio-dia que atingia meus olhos como um
soco bem dado. Apesar disso, não estava calor, e um vento muito bem-vindo
bagunçava meus cabelos soltos, tornando-os revoltos.
Coloquei-me diante deles, de braços cruzados, um pouco reticente.
— Boa tarde — cumprimentei muito séria, sentindo o coração acelerar
dentro do meu peito.
— Senhorita Christine Abrantes? — o mais alto deles indagou.
— Sim, sou eu.
— Boa tarde. Somos oficiais da divisão de homicídios. Sou o oficial
Monteiro, e meu parceiro chama-se Fonseca.
— Muito prazer. Meu funcionário me avisou que queriam falar comigo.
Sobre o quê seria?
— A senhora conhecia esta mulher? — o segundo oficial me mostrou
uma foto da idosa tão querida, D. Edith. Quando a peguei na mão, não pude
evitar sentir um tremor e um calafrio percorrerem meu corpo ante a lembrança
da última vez em que a vi, morta, pálida, jogada no chão do meu próprio
apartamento, nadando em sangue.
Tudo o que eu precisava era disfarçar essa sensação terrível e mentir. Não
era muito boa nisso, mas seria necessário. A última coisa que eu precisava
àquela altura era de um problema com a polícia.
— Eu a conheço, sim. É minha vizinha. Somos amigas. O que houve
com ela? — tentei parecer convicta, mas não sabia se estava fazendo um bom
trabalho. Odiava aquela situação. Odiava ser submetida a tal provação... Odiava
estar tendo aquela conversa.
— Ela faleceu, senhora. Foi encontrada morta às portas de um hospital
federal aqui na Zona Sul.
— Ah, meu Deus! — exclamei, esforçando-me para demonstrar um
espanto real. — Mas... como? O que aconteceu?
— Ela foi assassinada — o policial mais alto, que se mostrava o mais frio
dos dois, anunciou, sem cerimônias.
Arregalei os olhos e me surpreendi quando algumas lágrimas se
avolumaram em meus olhos. Claro que não era uma novidade para mim o que
eles tinham acabado de me contar, mas meu choro tinha muito mais a ver com o
pensamento do quanto ela deveria ter sofrido sozinha, assustada, sem entender o
que estava acontecendo. Muito provavelmente morrera sem nem saber o motivo.
— Viemos procurá-la, porque alguns moradores informaram que faz
alguns dias que a senhora não volta para casa — o mesmo policial, mais alto,
prosseguiu.
Apesar de ser verdade e de ter total ligação com a morte de Edith, tudo o
que eu conseguia pensar era no quanto as pessoas eram fofoqueiras. Mal falava
com a grande maioria das pessoas do meu prédio, com exceção de cumprimentos
educados em corredores ou no elevador, mas todos pareciam saber de detalhes
da minha vida que eu não estava nem um pouco interessada em compartilhar.
— Bem, eu comecei um relacionamento... tenho passado um tempo na
casa do meu namorado.
Ambos os policiais se entreolharam, e eu não fazia ideia do que passava
pela cabeça deles. Começava a ficar um pouco nervosa, o que poderia me
prejudicar imensamente, e desconfiava que aquela deveria realmente ser a
intenção deles — desestabilizar-me para encontrar alguma brecha.
— Não faz muito tempo a senhora também se envolveu em um incidente
durante um evento da família Queiroga... — o policial menos antipático divagou,
e por um momento eu não soube o que responder, mas ficar calada também não
era uma opção.
— Não entendo onde o senhor pode querer chegar com isso, policial. Por
acaso uma coisa tem ligação com a outra?
— Isso é o que queremos descobrir. Só estamos intrigados. Há outra
ocorrência com o seu nome. Foi feita uma denúncia pelo próprio Sr. Edgar
Queiroga, informando sobre um acidente que sofreu acompanhado da senhorita.
Na ocasião, ele nos alertou sobre o seu desaparecimento, mas horas depois
informou que já tinha reaparecido. — Ele deixou no ar. Não fez nenhuma
pergunta, então, eu não era obrigada a responder. Provavelmente, o certo seria
me explicar, mas não havia nada que eu pudesse dizer a respeito daquele
assunto. Nenhuma mentira coerente me surgia, nada que servisse para livrar a
barra de Arthur.
Por um momento me senti tentada a falar toda a verdade. Ter o respaldo
da polícia poderia nos ajudar a destruir a MR com mais facilidade. Ao menos era
nisso que eu poderia acreditar, mas, de fato, havia uma grande chance de nada
ser feito; não por culpa da própria organização, é claro. Se havia mesmo uma
conexão entre aquela corporação maldita e o governo, compartilhar o que eu
sabia, naquele instante, acabaria sendo muito mais trágico.
Sendo assim, mantive-me em silêncio por um tempo, temendo falar
qualquer coisa que pudesse soar errada. Eu não era boa mentindo, muito menos
inventando histórias mirabolantes. Percebendo minha hesitação, o oficial
Monteiro abriu um sorriso transigente, como se eu fosse uma criança mantendo
uma travessura em segredo.
— A senhora não precisa nos contar nada que não queira, ao menos por
enquanto, uma vez que estamos apenas em visita informal. — O “por enquanto”
dizia muito mais do que qualquer outra palavra que eles pudessem ter falado
durante toda aquela conversa.
— Não há nada para contar, policial. Eu estou passando alguns dias na
casa do meu namorado. Se quiserem averiguar essa informação, fiquem à
vontade. Não tencionava me esconder de ninguém, principalmente porque eu
não fazia ideia do que tinha acontecido. D. Edith era uma boa amiga, e eu estou
realmente sentida com sua morte — afirmei convicta, de cabeça erguida,
tentando demonstrar que não havia nada a esconder.
O policial balançou a cabeça e novamente olhou para seu parceiro. Em
seguida, voltou-se para mim mais uma vez, com um sorriso antipático no rosto.
— Obrigada por cooperar, senhora. Vamos ficar em contato se alguma
novidade surgir.
Com isso, ambos me cumprimentaram de forma discreta e se afastaram,
deixando-me parada ali mesmo, observando-os, quase temendo que se virassem
e viessem novamente ao meu encontro, acusando-me de qualquer coisa.
Quando entraram no carro e finalmente partiram, engoli em seco, mas
não consegui respirar aliviada. Por um breve instante odiei Arthur por
indiretamente ser o culpado de todas aquelas coisas. O que era injusto, é claro.
Havia apenas um culpado em tudo aquilo, e era muito maior do que nós, muito
mais perigoso. Uma corporação inteira com a qual estávamos tentando lidar e
que eu suspeitava que tinha também algo a ver com o desaparecimento de Roger.
Consternada, retornei à cafeteria sem fazer movimentos bruscos,
temendo estar sendo observada.
Meu Deus... onde iríamos parar com tudo aquilo?

***

ARTHUR

Sandro Queiroga.
Assim como acontecera quando descobri o nome de Hans Balzer, eu não
parava de repetir mentalmente aquela informação, sentindo-me irritantemente
inquieto, enquanto Mário tentava acessar o computador de Olavo. Como não
estava fácil, e eu sabia o quanto meu amigo era bom nisso, suspeitei que
realmente deveria haver algo ali dentro que queriam muito manter em segredo.
Especialmente por eu ter encontrado o notebook naquela casa. Se eles o haviam
levado era porque continha algo muito importante.
Foi com um entusiasmado “Eureka” que Mário anunciou seu sucesso na
empreitada.
Bem, não apenas com essa única palavra.
— Ah, moleque! Eu sou foda mesmo! — Bateu palmas, comemorando
seu êxito, e eu sabia que precisaria cortar aquela onda de animação ou ela
duraria bem mais do que o necessário.
— Foco, Mário! Vamos ver o que tem aí dentro — disse, aproximando-
me dele, empurrando a cadeira de rodinhas até a mesa de seu computador.
Logo na Área de Trabalho era possível encontrar uma pasta nominada
MR. Claro que ela também era decodificada, o que novamente dificultou um
pouco do trabalho, fazendo com que demorássemos mais do que eu estava
disposto a esperar.
Assim que conseguimos acessá-la, descobrimos várias outras subpastas
em seu interior, cada uma com o nome de uma pessoa, precedido por um
número. Uma vez que a minha era a quadragésima oitava, suspeitei que a
numeração estava relacionada às nossas tatuagens, ao código pelo qual nos
conheciam naquele verdadeiro inferno.
Eu poderia abrir a minha, é claro, para saber quais informações eles
tinham, mas teria tempo para isso. Havia outra que chamara bem mais a minha
atenção, ao menos em um primeiro momento — 14 – Sandro Queiroga.
— Abra esta — pedi, apontando para a tela do computador.
Mário obedeceu, clicando duas vezes no ícone e abrindo a pasta. Dentro
dela, vários arquivos foram revelados, incluindo imagens, documentos em PDF,
áudio e vídeos.
Meu parceiro imediatamente afastou-se do computador, abrindo espaço
para que eu assumisse, compreendendo meu desejo de manejar por mim mesmo
aquelas informações.
Havia muitas coisas ali, mas o que mais me chocou foram os vídeos. A
maioria, retirada de câmeras de segurança, mostrava uma acomodação muito
parecida com aquela na qual fiquei por três anos — muito similar a um quarto de
hospício, com paredes acolchoadas brancas, uma cama de ferro e um banheiro
muito pequeno, no qual um cara do meu tamanho mal conseguia se movimentar.
Um ambiente monitorado, onde sempre tomavam cuidado para que não
houvesse nada ao redor com que pudéssemos machucar alguém ou cometermos
suicídio. O box era fechado por uma cortina de plástico, com um suporte do
mesmo material — nada de vidro que pudesse ser quebrado —, os talheres eram
sempre descartáveis, assim como os pratos. O colchão não possuía lençóis, e
nossas cobertas eram grossas, difíceis de serem amarradas até formarem uma
corda adequada para um enforcamento. As roupas que usávamos, sempre pretas,
simples, eram racionadas, levadas até nós diariamente. Tudo era pensado,
calculado.
Olhar para aquele local me provocou ao mesmo tempo calafrios e uma
raiva desmedida. Especialmente quando comecei a observar as reações de
Sandro, muito parecidas com as minhas quando cheguei lá. Lutava, gritava,
esperneava e acabava sempre algemado à cama, passando a noite inteira assim
como uma punição das mais leves. Em outros vídeos, ele era levado para aquela
espécie de cela, depois de uma das sessões de tortura que nos eram aplicadas por
mau comportamento. O rapaz sangrava e mal conseguia ficar de pé. Eu sabia
exatamente como era. Isso acontecera muitas vezes comigo, até aprender que de
nada adiantaria lutar, que apenas sofreria consequências.
O passo seguinte foi a apatia. Total e devastadora. Eu apenas obedecia,
servia e consentia. Comia tudo o que me entregavam, participava dos
treinamentos e tentava responder da melhor forma possível a tudo. Fiz com que
acreditassem que eu havia me tornado o soldado perfeito. E provavelmente teria
continuado assim, se não recebesse minha chance de escapar.
Contudo, com Sandro as coisas foram um pouco diferentes. Vídeo após
vídeo, nada mudava. De acordo com as datas que eram apresentadas nas
imagens, ele passara dois anos lutando, sem jamais se entregar. Fora ferido
incontáveis vezes, mas persistira. Ver tanta coragem chegou a me deixar
envergonhado. Talvez eu devesse ter feito o mesmo.
Porém, o destino dele foi o pior possível.
Não consegui terminar de assistir aos vídeos, pois eram muitos, e quase
todos mostravam as mesmas coisas. Parti, então, para os documentos. Um deles,
em especial, me chamava a atenção — um arquivo timbrado da MR,
digitalizado, com uma liberação assinada e autenticada pelo próprio Hans Balzer,
informando que os serviços de Sandro Queiroga estavam dispensados, e ele era
considerado “inofensivo” à corporação. O que não era de se surpreender,
levando em consideração que fora transformado em restos de um homem.
Vasculhando a pasta mais um pouco, encontrei uma ficha atualizada,
contendo alguns dados de Sandro, inclusive um endereço. Havia uma grande
chance de não ser absolutamente nada, mas decidi tentar a sorte.
Mário jogou as direções no Google Earth e encontramos a casa em
questão. Tratava-se de uma residência comum, discreta, localizada em Vargem
Grande, em uma área afastada. Não parecia cercada de seguranças, mas eu
duvidava muito que estivesse completamente desprotegida. Devia haver câmeras
também, mas para estas eu estava pouco me lixando. Queria que a MR soubesse
que eu estava seguindo seus passos, que continuava avançando em minha
investigação.
Por isso, decidi tentar a sorte, partindo para lá sem pensar muito no que
fazia.
Estacionei a alguns metros de distância, mas não muito longe, para o
caso de precisar escapar com pressa. Segurando a arma discretamente, dirigi-me
sorrateiramente ao portão, onde um segurança se mantinha em guarda, mexendo
em um celular.
Era muito provável que nada acontecesse por ali, porque ele parecia
realmente entretido, tanto que facilitou e muito a minha vida. Tudo o que
precisei fazer foi apontar o revólver em sua direção.
Ele também estava armado, então, movimentou-se por instinto, quase
levando a mão ao coldre, porém, eu aproximei o revólver um pouco mais,
passando o cano por um dos vãos do portão.
— Não se mexa. Não tenho intenção de machucar ninguém. Só abra o
portão. — O cara apenas ergueu as mãos em rendição, mas não me obedeceu. —
Repito: não quero machucar ninguém, mas farei isso se for preciso — disse com
uma voz baixa, que continha uma ameaça velada. Por dentro, no entanto, eu
apenas esperava que aquele homem obedecesse. Eu não iria ferir um inocente, e
isso dificultaria demais as coisas.
O homem pensou pelo que pareceu uma eternidade, mas acabou cedendo.
Afastei a arma das grades por pouquíssimos milímetros, apenas o suficiente para
que esta pudesse ser aberta.
Entrei rapidamente, sem tirar os olhos e a mira dele, e em um movimento
rápido, dei-lhe uma forte coronhada e aproveitei sua desorientação para lhe
aplicar um mata-leão, deixando-o desacordado.
— Me desculpa, amigo… — sussurrei, odiando tudo o que estava
precisando fazer.
Porém, não havia tempo a perder.
Ainda com a arma em punho, percorri a distância entre o portão e a porta
da casa com cautela. Por ser uma residência particular, imaginei que não me
depararia com outro segurança, contudo, não podia baixar a guarda.
Chegando à porta, decidi tentar a sorte e bater civilizadamente. Caso não
desse resultado, o jeito seria arrombá-la, mas também não era algo que eu queria.
A ideia de criar alarde me cheirava muito mal.
Para minha consternação, quem abriu a porta foi uma jovem de no
máximo vinte e cinco anos, usando um uniforme de enfermeira. Ao me ver, ela
pareceu um pouco confusa a princípio, mas a arma em minha mão logo lhe
chamou a atenção, e ela preparou-se para gritar.
Agarrei-a, virando-a de costas e cobrindo sua boca. Eu a sentia
estremecer, e isso fez com que eu me sentisse ainda pior.
— Eu juro que não vou te machucar. Só preciso que me leve até Sandro
Queiroga.
Não saberia dizer se ela me compreendeu, mas simplesmente não se
mexeu. Talvez fosse o medo que a mantinha inerte ou uma admirável coragem
para proteger seu paciente, mas aquela moça seria um problema. Não teria
coragem de amarrá-la e deixá-la ainda mais em pânico, mas a outra opção
também não era das melhores. Deixá-la inconsciente me pouparia não apenas do
trabalho de controlá-la, mas também a preservaria do medo que eu representava.
E foi o que fiz, tomando o cuidado de carregá-la até o sofá para que não
ficasse caída no chão.
A casa não era exatamente grande, embora fosse cercada por um terreno
amplo. Subi um lance de escadas e me deparei com quatro portas. Fui abrindo
uma por uma, encontrando um quarto com aparelhos para fisioterapia, um
banheiro, um cômodo menor, com uma cama de solteiro — onde provavelmente
a enfermeira dormia —, um quarto grande, mas vazio, e, aos fundos, uma
biblioteca. Sentado na confortável poltrona nos fundos dela, havia um homem.
Magro, de cabelos molhados, cabeça baixa, aparência cansada. Parecia doente.
Uma cadeira de rodas localizava-se bem ao lado dele.
Aproximei-me, ainda segurando a arma, colocando-me em seu campo de
visão. Conforme fui chegando perto, a primeira coisa que enxerguei foi a
tatuagem em seu ombro, cuja camiseta sem mangas que ele usava não conseguia
esconder. Lá estava o número 14. Aquele ali era Sandro Queiroga.
Havia um caderno sem pautas em sua mão, além de uma caneta pilot.
Muitos rabiscos cobriam a folha, como os desenhos de uma criança de jardim de
infância. Não me demorei neles tempo suficiente para tentar desvendá-los, pois
estava bem mais interessado no homem, no que ele poderia me oferecer.
Precisava ser breve, ou as duas pessoas que apaguei poderiam acordar a qualquer
momento.
Completamente diferente do irmão, Sandro poderia facilmente ser
comparado a um portador de câncer em tratamento. Olheiras profundas e maçãs
do rosto encovadas corroboravam ainda mais para essa percepção, além da
palidez e da apatia. Totalmente diferente do homem grande, musculoso e sadio
que vi nos vídeos que encontrei no laptop de Olavo.
Coloquei-me de frente para ele, que demorou um pouco para dar-se conta
da minha presença. Quando voltou os olhos vazios para mim, nem mesmo o
revólver pareceu provocar-lhe qualquer reação. Inerte, apenas me avaliou com
curiosidade, inclinando a cabeça para o lado, como se eu fosse uma criatura
extraterrestre. Por um momento não fiz a menor ideia de como começar a falar
com ele. Mal sabia se iria me compreender. Contudo, havia chegado até ali. Não
podia desistir.
Como se eu fosse nada mais do que uma distração passageira, que ele
poderia ignorar sem problemas, Sandro abaixou a cabeça, ignorando-me,
começando a rabiscar novamente em seu papel, onde mal havia espaço para
novos traços.
— Sandro, meu nome é Arthur Montenegro. Estou aqui para
conversarmos. Se você me entende, me dê um sinal. — Talvez eu estivesse
fazendo papel de bobo ali, porque o homem continuou sua tarefa sem
demonstrar que sequer me ouvira.
Eu entendia muito pouco de lobotomias, mas depois de fazer amor com
Christine naquela madrugada, não consegui dormir e fiquei fazendo algumas
pesquisas sobre o assunto. Sabia que havia alguns tipos diferentes e que as
sequelas tinham muito a ver com a gravidade do procedimento realizado. Havia,
sim, uma possibilidade de Sandro ainda manter uma consciência, mesmo que
fosse uma lucidez quase nula.
Com essa esperança, peguei a cadeira de uma escrivaninha que tomava
uma parede quase inteira do cômodo e a puxei, aproximando-a da poltrona,
sentando-me de frente para Sandro. Nem mesmo com esse movimento ele voltou
a prestar atenção em mim. Apesar disso, recomecei a falar:
— Você não me conhece, mas eu fugi da MR. Sou um sobrevivente e
estou tentando encontrar uma maneira de pará-los. Se puder me ajudar de
alguma forma, com alguma informação... Algum nome... — Fiz uma pausa. —
Sei que seu irmão está envolvido com eles, e depois do que fizeram com você...
Talvez eu estivesse perdendo tempo. Talvez fosse impossível arrancar
alguma informação dele e, mais ainda, havia uma grande chance de, apesar de
tudo, Sandro ainda ser leal ao irmão, especialmente porque não sabia que tipo de
lavagem cerebral tinham feito nele depois de destruírem sua mente.
Sandro continuava rabiscando o papel sem parar, mas pude perceber que
depois que mencionei a MR, os movimentos de sua mão tornaram-se mais
velozes.
Decidi tentar mais uma vez.
— Você entende o que estou dizendo, Sandro? Preciso parar a MR.
Preciso fazer a coisa certa, antes que eles machuquem mais pessoas, como
fizeram com você.
E lá estava. Assim que ouviu à menção à corporação maldita que
arruinara sua vida, novamente o ritmo de seus rabiscos intensificou-se, desta vez
tornando-se quase frenéticos. Era o meu sinal. Ele me entendia. De alguma
forma, conseguia me ouvir.
Odiava precisar pressioná-lo, incomodá-lo, mas não poderia sair dali de
mãos abanando. Fora arriscado entrar naquela casa, eu sabia que deveria estar
sendo monitorado por alguma câmera, então, tinha que fazer valer a pena.
Com certo ímpeto, agarrei a mão dele, enquanto esta ainda se
movimentava pelo papel, como se sua mente estivesse em uma guerra,
impedindo-o de continuar a rabiscar. Mesmo assim, parado, não se voltou para
mim. Usando minha outra mão livre, ergui sua cabeça, esperando ganhar sua
atenção.
Ainda segurando-o com os olhos fixos em mim, soltei seu punho e
lentamente, em movimentos calculados, ergui a mão livre na direção da minha
camiseta, afastando o tecido do exato ponto onde se escondia a maldita
tatuagem, quase igual à dele.
Assim que a viu, Sandro arregalou os olhos em uma expressão
desesperada de pânico. Podia muito bem imaginar o que aquilo representava
para ele e para sua mente perturbada — eu era um inimigo. E foi exatamente
assim que reagiu, tentando afastar-se, lutando para se livrar das minhas mãos,
começando a emitir sons estrangulados, gritos ininteligíveis, que chegavam a me
dar pena.
— Sandro, acalme-me. Não vou te machucar. Estou aqui porque preciso
de ajuda. Preciso saber se através do seu irmão consigo chegar à MR. Para
proteger pessoas. Pessoas como nós... — Mas ele continuava apenas a gritar, e
foi isso que me fez chegar à conclusão de que não podia me dizer nada. Era
apenas uma alma despedaçada presa naquele corpo. Uma vítima tão amaldiçoada
daquelas pessoas insanas; alguém que só me fazia ter ainda mais sede de justiça.
Soltei-o, portanto, esperando que assim que eu desaparecesse de sua
frente ele conseguisse se acalmar. Não era justo deixá-lo naquele estado, e
sentia-me profundamente arrependido por ter aparecido ali, perturbando a
estranha e injusta paz que tinha conseguido depois de, provavelmente, ter
passado por um inferno muito similar àquele ao qual sobrevivi. A diferença era
que eu estava ali, inteiro. Dele, restara apenas a metade.
Levantei-me da cadeira, levando-a para seu lugar de origem, enquanto
ouvia a sinfonia de gritos de Sandro ecoar por todo o quarto. Quando me virei na
direção dele outra vez, Sandro pareceu se acalmar, embora ainda respirasse de
forma incerta e me olhasse com aquele olhos vítreos como se eu fosse o próprio
demônio. Naquele momento, provavelmente eu era.
Passei por ele, indo em direção à porta, pousando a mão em seu ombro
como uma forma de pedir desculpas. Porém, meu punho foi segurado com força.
Mais força do que imaginei que ele teria.
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, eu o senti virar a palma
da minha mão para cima e deslizar o pilot por ela, escrevendo algo. Quando
terminou, tudo o que pude ver foi uma caligrafia torta e quase infantil, mas
razoavelmente legível. Tratava-se de um endereço.
Precisei de alguns minutos para analisar o que tinha ali. Poderia ser uma
armadilha, alguma lembrança sem a menor conexão com meu objetivo, ou a
primeira coisa que surgira em sua mente. Ou poderia ser algo significativo.
Talvez, no final das contas, Sandro tivesse me compreendido. Talvez aquele
endereço fosse a chave para o que eu vinha procurando.
— O que é isso, Sandro? — Sentia-me um idiota por perguntar,
principalmente porque imaginava que aquelas letras na minha mão eram um
tesouro, a única informação que conseguiria arrancar dele. Muito provavelmente
era tudo o que ele podia falar, uma vez que a maioria das suas lembranças
deveria estar perdida no limbo daquela mente prejudicada.
Mas ele olhou para mim. Não precisava dizer nada. Aqueles olhos tristes,
suplicantes, passaram-me uma mensagem silenciosa, que eu esperava estar
interpretando da forma correta. Ele queria que eu fosse até o fim, que vingasse
sua situação e a de muitos outros além de nós, que eram escravizados, mortos e
que viravam marionetes de pessoas impiedosas.
Minha reação foi assentir, sem nem saber se ele entenderia ou se eu
mesmo tinha entendido alguma coisa naquela comunicação que estávamos
estabelecendo. Poderia ser algo da minha cabeça, uma esperança, mas precisava
me agarrar em algo.
Estava preparado para sair da biblioteca, aproveitando que ele parecia um
pouco mais calmo, quando algo me impediu.
Uma dor lancinante na cabeça me deixou zonzo. Caí no chão de joelhos e
alguém me agarrou por trás, desarmando-me e retorcendo meu braço nas costas,
enquanto tentava me sufocar em um mata-leão. Fosse quem fosse, eu estava
rendido.
Capítulo Vinte e Um
ARTHUR

— Eu sei quem você é.


A frase foi sussurrada em meu ouvido por uma voz feminina, e eu não
demorei a entender que se tratava da jovem enfermeira que deixei desacordada,
aquela mulher aparentemente frágil, que eu tanto lamentei por ter que perturbar e
que tanto tive o cuidado de não ferir. Agora ela era uma ameaça.
De fato, eu sabia muito bem o que aquela única frase que queria dizer.
Ela não me deixaria sair dali tão fácil.
Muito provavelmente sabia que eu conseguiria me soltar, por isso, não
demorou muito tempo me mantendo naquela posição. Em um movimento muito
eficiente, ela se pendurou nas minhas costas e girou, colocando-se de frente para
mim, montada no meu colo. Com uma precisão assustadora, segurou meu rosto
com as duas mãos e me deu uma cabeçada, que novamente me derrubou. Ela me
deixou cair para trás só para continuar sobre mim, com ambas as pernas presas
em meu quadril. A mão direita, aberta, esbofeteou meu rosto com força, e suas
unhas da esquerda vieram fundo no meu pescoço, abrindo arranhões que mais
pareciam cortes de faca. Eu podia sentir pequenos filetes de sangue escorrendo
de cada um deles.
Quando ela novamente se preparou para me atingir, segurei seu punho e
com o outro braço agarrei-a pela cintura, erguendo meu quadril e levando-a
junto, mudando nossas posições, colocando-me sobre ela, mas tomando o
cuidado de prender seus punhos contra o chão.
Ao nosso lado, Sandro começava a manifestar-se com grunhidos que
mais pareciam um choro compulsivo.
— Acha que vai sair dessa vivo? Acha que eles vão se satisfazer em
matar só você? Todos os que você ama estão em perigo! — ela falou por entre
dentes, enquanto ainda se debatia para soltar-se de mim.
— Eu não quero te machucar. — E não queria mesmo. Bater em uma
mulher estava totalmente fora dos meus princípios, mesmo que ela estivesse
tentando me matar.
— Mas eu quero...
Depois de dizer isso, ela virou a cabeça para a esquerda e mordeu meu
punho, quase como se estivesse prestes a arrancar um pedaço. Grunhindo de dor,
precisei soltar aquele seu braço, o que foi suficiente para que segurasse minha
cabeça, pressionando o polegar em meu olho.
Aquela filha da puta ia me deixar cego se continuasse daquele jeito.
Eu realmente não queria machucá-la, mas ela não estava contribuindo
muito para o meu bom humor.
Mesmo sentindo-me desnorteado pela dor que ela me provocava, fechei
minha mão em punho e deferi um soco em seu rosto, sentindo-me um merda por
fazer isso. Apesar de ser treinada e, visivelmente, uma lutadora muito
competente, eu ainda era muito maior do que ela. Ao menos isso fez com que
soltasse meu olho, que ardia como o inferno.
Levantei-me, levando-a junto e a imprensei contra a parede, jogando-a lá
com força e fazendo-a bater a cabeça.
— Já disse que não quero te machucar. — Ela não respondeu nada,
apenas grunhiu e ergueu o joelho, acertando o meio das minhas pernas.
Vadia!
Cambaleando de dor, precisei dar alguns passos para trás, e isso foi
suficiente para que ela partisse para cima de mim com socos e chutes. De início
fui atingido, enquanto ainda me recuperava do primeiro golpe, mas fui
conseguindo começar a me defender. Ela não me dava espaço para contra-atacar.
Era uma sucessão de investidas, até que consegui me abaixar para me livrar de
um ataque de sua perna e consegui agarrá-la, erguendo-a do chão e jogando-a
novamente contra parede, aproveitando que não pesava quase nada.
O impacto foi violento, e ela caiu inerte no chão. Mas eu sabia que era
apenas uma questão de tempo para que se recuperasse. E... merda! Aquilo já
estava durando tempo demais. Olhei de soslaio para Sandro, e ele estava
encolhido na poltrona, mas escrevia mais alguma coisa no bloco de papel.
Daquela vez, um número. 67.
Ele repetia aquela informação várias vezes, enquanto verbalizava sons
sem sentido, e logo concluí quem era aquela mulher. Peguei minha arma que
estava caída no chão e fui me aproximando dela, com o revolver apontado, mas
ela estava realmente inconsciente. Tentando tocá-la o mínimo necessário, afastei
um pouco a blusa de botão que usava e consegui enxergar a tatuagem com o
código mencionado por Sandro. Ela era uma de nós. E tinha se vendido a eles.
Meu coração se encheu de compaixão e empatia. Porém, ao mesmo
tempo, um alerta soou na minha cabeça. Ela não poderia ficar viva. Não
adiantaria levá-la comigo, para tentar interrogá-la, porque a logística seria
complicada naquele momento. Precisaria carregá-la até o meu carro e levá-la
para algum lugar, que eu não fazia ideia de onde. Além do mais, sabia muito
bem que não diria nada a não ser que a torturássemos, e eu não teria coragem de
fazer isso. Nenhuma informação do mundo valeria pela minha consciência
destruída.
Mas matá-la também não era uma opção. Muito provavelmente eu estaria
assinando minha sentença deixando-a viva, mas não tinha ido até ali para matar
ninguém.
Ouvi-a resmungar alguma coisa, então, corri em sua direção, aplicando o
mesmo golpe de antes, deixando-a inconsciente outra vez. Depois, tirei alguns
breves instantes para vasculhar a biblioteca ao meu redor em busca de algo que
pudesse usar para amarrá-la. Tudo parecia muito organizado por ali, então, tive
que apelar para outros cômodos, chegando ao quarto de Sandro e encontrando
suas roupas guardadas dentro de gavetas. Peguei uma blusa e a rasguei,
retornando ao local onde estava antes, deixando a enfermeira presa a um dos pés
da escrivaninha, com os tornozelos também amarrados. Ainda estava apagada
quando saí, mas eu sabia que seria apenas uma questão de tempo para que
despertasse e me causasse problemas.
E por falar em problemas, quase esperei que o segurança fosse me causar
alguns também, mas ele ainda estava estendido no chão, o que eu considerei uma
enorme sorte.
Caminhei até o meu carro com pressa, entrando e começando a dirigir.
Enquanto me afastava daquela casa, chequei novamente minha mão, constatando
que a anotação que Sandro fizera ainda estava ali, apesar de eu ter suado um
pouco da luta. As letras começavam a se apagar, por isso, decorei as informações
para garantir.
Quando já estava um pouco mais afastado do local, peguei meu celular e
liguei para Mário. Precisava deixar alguém avisado sobre o que pretendia fazer.
— Cara, ainda bem que você ligou. Já estava ficando preocupado —
Mário falou, dando um suspiro de alívio. — Está tudo bem? Conseguiu alguma
coisa?
— Apesar de alguns imprevistos — enquanto falava com ele, dei uma
checada no retrovisor, observando os arranhões feios que conseguira no pescoço
—, acho que posso dizer que foi uma visita proveitosa — disse, com um leve
tom de deboche. — Consegui uma informação. Um endereço. Estou indo direto
para lá.
— Ficou maluco? Venha para cá. Vamos dar uma olhada nisso juntos.
Pode ser perigoso.
— Não, Mário. Não vou mais adiar. Está na hora de cortar o mal pela
raiz.
— Puta que pariu, cara! Você ainda vai me fazer ter um infarto. E olha
que eu nem cheguei aos trinta.
— Vou acionar o GPS aqui no iPhone. Vá monitorando tudo.
Mário suspirou novamente, mas o alívio que eu havia percebido antes em
sua voz fora substituído por nervosismo e resignação.
— Te vejo mais tarde, né? — A pergunta foi feita cheia de esperança e fé.
Aquilo me comoveu.
— Claro, irmão. Fique de olho na Chris para mim, por favor. Se puder
pegá-la no trabalho...
— Farei isso. Pode ficar sossegado.
Sossegado eu jamais ficaria, mas, ao menos, poderia tentar deixar essas
preocupações de lado e focar no que precisava ser feito.
Tentando traçar uma estratégia, parei o carro no primeiro lugar que
considerei seguro e chequei o endereço no meu celular, usando o Maps.
Tratava-se de um galpão localizado em Santa Cruz, na Zona Oeste do
Rio de Janeiro, um pouco depois de Campo Grande. Eu sabia que havia muitos
por lá, principalmente depósitos de marcas famosas, então, o local era, sem
dúvidas, perfeito. Ainda mais para atividades ilícitas. Porque em nenhum
momento duvidei que se aquilo tinha alguma coisa a ver com Edgar Queiroga,
haveria muita merda envolvida.
A primeira coisa que precisava fazer era trocar de carro. Já havia usado
aquele por muito tempo e, sem dúvidas, estava mais do que marcado. Por isso,
dirigi-me à locadora para solicitar a troca, ainda usando o nome falso. Ainda
bem que minha cara não era assim tão marcada, embora tivesse aparecido
algumas vezes na TV.
Optei por um modelo completamente diferente, um Honda WRV, preto,
discreto e, mais importante, blindado.
Com o novo veículo, parti para o endereço, pegando o caminho da Grota,
demorando pouco mais de uma hora para chegar. Parei o carro no ponto mais
discreto que consegui encontrar, a uma distância razoável do galpão, esperando
testemunhar algum movimento, usando um binóculo que adquiri no caminho,
mas tudo estava muito parado. Eu sabia que poderia ter que esperar por horas
para conseguir alguma coisa, e isso se tivesse sorte.
Tudo bem... eu não estava com pressa. Apenas torcia para não sair dali de
mãos vazias. Se conseguisse pegar Edgar e fazê-lo falar alguma coisa ou tentar
alguma barganha, já me sentiria mais do que satisfeito.
Passei mais de quatro horas ali. Já começava a escurecer quando uma
ligação de Christine quase fez o meu coração parar. Talvez não fosse uma boa
ideia atendê-la, mas eu não fazia ideia do que iria acontecer... poderia ser a
última vez que ouvia sua voz, e eu não poderia perder a oportunidade. Contudo,
não planejava contar para ela onde estava e o que pretendia fazer.
— Wendy... — atendi, fazendo com que minha voz soasse o máximo
alegre possível. Ela me conhecia bem e se vacilasse ao tentar convencê-la de que
não havia problema nenhum, seria um desastre. — Está tudo bem?
— Comigo, sim... mas eu acho que um amigo meu está com problemas.
Ele... desapareceu. Assim como você.
Ela jogou a informação de qualquer jeito, como se precisasse
desesperadamente colocá-la para fora.
E eu não gostei nada do que ouvi. Não podia ser uma coincidência que
mais uma pessoa ligada à Christine tivesse sido afetada pela MR de alguma
forma. Era mais um sinal, um alerta. Ainda assim, não podia afirmar nada.
— Você sabe que pode ser qualquer coisa, não sabe? No Estado em que
moramos...
— Arthur! — ela exclamou meu nome em tom de protesto. — Não sou
idiota! Claro que sei que posso estar enganada, mas é tudo muito estranho. —
Ela fez uma pausa, e eu senti que tinha mais a dizer. — Além disso, a polícia
veio aqui hoje. Me fizeram perguntas sobre a D. Edith.
Eu sabia que mais cedo ou mais tarde aquilo acabaria acontecendo,
especialmente pelo fato de Chris estar morando na minha casa. Odiava estarmos
ao telefone e eu não poder confortá-la e não ver seu semblante ao meu contar
tudo aquilo. Era bem óbvio que deveria estar assustada e preocupada, mas
provavelmente tentava não demonstrar.
— O que você disse?
— Bem... — ela baixou a voz para um sussurro. — Tentei me mostrar
surpresa com a notícia da morte dela e aleguei que não ia ao meu apartamento há
dias, porque estava passando um tempo com meu namorado. Mas acho que eles
não caíram nessa, Arthur. Fizeram mais algumas perguntas, me ligando ao
incidente na casa do Edgar... Estou com medo.
— Não, linda... nós vamos resolver tudo. Eu... — Minha voz falhou,
porque eu não sabia o que dizer. Sabia, porém, o que eu deveria falar... que eu
era um filho da puta por ainda afirmar que aquela merda toda passaria. Era
impossível prever se meus planos iriam dar certo, principalmente porque não
eram exatamente bons. Eu estava de frente para um galpão onde Judas perdeu as
botas, esperando descobrir alguma coisa que eu nem sabia o que era. O
desespero começava a me prejudicar.
— Não precisa dizer nada... Minha maior preocupação agora é Roger,
meu amigo... Ele tem duas filhinhas. — Era bem típico de Christine esquecer-se
de si mesma e preocupar-se com os outros. Esta era uma das coisas que eu mais
amava nela.
— Se foi a MR, vou tirá-lo de lá — afirmei, esperando que cada uma
daquelas palavras se tornasse realidade.
Antes que Christine pudesse responder qualquer coisa, um carro preto,
sedan, surgiu, parando diante da porta do galpão indicado por Sandro. Era hora
de desligar e começar a ficar ainda mais atento.
— Amor, eu preciso ir... Posso pedir que você diga que me ama antes de
desligarmos?
— Onde você está, Arthur? — ela perguntou com autoridade, exigindo a
resposta. Errei feio ao fazer aquela súplica, ainda mais com tanto ímpeto. Não
seria difícil concluir que estava prestes a me enfiar em algum perigo.
— Resolvendo uns problemas... — Não queria mentir, então, isso foi
tudo o que eu consegui dizer.
— Não faz isso comigo, por favor! Volta para casa, seja lá o que esteja
fazendo. Chega de tudo isso, Arthur! Eu não aguento mais te ver machucado. —
Porra, ela estava prestes a chorar. Isso acabava comigo.
— Por favor, Chris, me prometa que vai ficar em segurança. Mário vai te
buscar no trabalho e te levar para a mansão. Fique lá.
Ela ficou calada por um tempo, e cada segundo de espera por sua
resposta derretia-se como pedaços de eternidade diante de mim. Christine sabia
que eu precisava dessa confirmação para agir, para poder me manter cem por
cento focado na missão que tinha pela frente, que ela nem imaginava qual era.
Então, essa certeza a deixava na corda bamba. Se negasse o meu pedido, me
deixaria apreensivo e passível de cometer erros; se o acatasse, estaria me dando
carta branca para ir em frente e me arriscar.
— Eu te amo... — ela respondeu, e eu decidi encarar essa prova de
condescendência como uma forma de dizer sim à minha solicitação.
— Eu também te amo... — Queria dizer que nos veríamos mais tarde,
mas não iria mais fazer promessas que não sabia se poderia cumprir.
Por isso, quando desliguei, senti a ausência da voz dela provocar um
terrível vazio no meu coração. Então, tomei um segundo para respirar fundo e
reunir a coragem que precisava para não dar meia volta e desistir de tudo aquilo.
Por ela, para ela... Mas era exatamente por Christine que eu continuava, que
estava disposto a lutar. Perder não era uma opção.
O carro preto continuava parado no mesmo lugar. Ninguém saltara, nada
acontecera, e eu suspeitava que permaneceria ali, esperando assim como eu
estava fazendo. Por isso, mantive-me em alerta.
E esperei... esperei... esperei.
Já eram quase dez da noite quando outros dois carros surgiram. Todos
pretos, todos sedan, muito parecidos. Mais parecia uma comitiva de algum
presidente ou de alguma personalidade importante, mas eu sabia que se tratava
apenas de podridão.
A parca iluminação dificultava e muito a minha visão através do
binóculo, mas consegui enxergar quando as portas traseiras dos dois últimos
carros se abriram e dois homens saltaram.
Em silêncio, de forma quase coreografada — como se fizessem isso com
constância — ambos abriram os bagageiros dos carros e tiraram de lá, sem
nenhuma delicadeza, duas moças. Amarradas, amordaçadas, feridas e
maltrapilhas.
Apesar das roupas rasgadas, era fácil ver que ambas eram bonitas, altas,
com um corpo atlético. Uma negra, e a outra, loira. Ambas ferozes e tentando
lutar com todas as forças. Uma delas acertou um dos trogloditas que as
seguravam e conseguiu afastar-se, começando a correr, mesmo com os braços
presos às costas. Eu já estava pronto para ajudá-la se fosse preciso, colocá-la
dentro do meu carro e tirá-la dali — mesmo que precisasse adiar minha missão
—, mas ela foi pega e recebeu como punição um poderoso soco no rosto, que a
apagou. Foi jogada no ombro de um dos homens, e a outra acabou tendo o
mesmo destino, sendo agredida e carregada para dentro do galpão.
Esperei até que todos entrassem e vi que um dos homens foi deixado à
porta, guardando o local. Porém, essa espera foi feita em total agonia, porque
cada minuto que passava poderia custar as vidas daquelas duas mulheres. Eu
imaginava o que deveria acontecer com elas; provavelmente seriam levadas à
MR para se tornarem soldados, exatamente como acontecera com a enfermeira
contra quem eu tinha lutado. O que significava que se tornariam marionetes
daquela corporação ou terminariam como Sandro, incapacitado e cruelmente
lobotomizado. Ou seriam mortas.
Havia quatro homens lá dentro, além do segurança do lado de fora. Eu
tinha seis balas na minha arma, além de alguma munição extra, mas precisaria,
de fato, contar com outras habilidades. Até ali, a sorte estivera ao meu lado...
mas não sabia se ela continuaria me acompanhando.
Ainda analisava o cenário e as possibilidades quando mais um carro
chegou. Igual aos outros, preto, de vidros escuros, parando exatamente atrás,
criando uma fila. Fiquei atento à movimentação, usando meu binóculo, e
enxerguei Edgar saltando do banco traseiro, acompanhado por outro homem e
mais o motorista.
Lá estava ele, o cara que eu precisava matar. O inimigo-aliado da MR,
que, de uma forma ou de outra, fora minha salvação. Por causa dele fui
libertado; para assassiná-lo. Será que o mesmo teria acontecido se o alvo fosse
outra pessoa? Será que teriam recrutado a mim?
Elegante, em um terno bem cortado, como se estivesse prestes a entrar
em uma reunião de negócios, Edgar caminhou confiante até a entrada do galpão.
Embora eu não conseguisse enxergar sua expressão, a impressão que tinha era
que estava muito satisfeito, muito cheio de si. Era nauseante olhar para ele e
pensar que saíra com Christine. Mal conseguia — e nem queria — imaginar o
que poderia ter feito se realmente tivessem iniciado um romance. Era impossível
acreditar que um homem com aquele caráter, aquela índole, conseguisse
sustentar um relacionamento saudável com alguém. Alguém que tratava
mulheres daquela forma dificilmente respeitaria uma namorada.
Apesar disso, não poderia afirmar que Chris estava em um
relacionamento muito melhor. Relacionar-se comigo não era exatamente uma
escolha muito mais segura.
Os três homens entraram, assim como os outros, com a permissão do
segurança que se encontrava na porta. Agora eu tinha oito problemas pela frente.
Oito homens que precisaria eliminar para salvar aquelas mulheres. Um deles, no
entanto, eu não queria morto. Precisava de informações, não importava a qual
custo.
Esperei um pouco, na intenção de averiguar se mais alguém iria surgir,
mas tudo ficou calmo por um bom período de tempo. Apenas os sons da noite
me rondavam, e eu podia jurar que ela me sussurrava que estava prestes a entrar
em um túnel sem saída e fazer uma escolha sem volta.
Ainda assim, saltei do carro, fazendo o mínimo de barulho possível, até
mesmo para bater a porta. Com a arma na mão, usando um silenciador, dirigi-me
ao galpão com toda a discrição que consegui. Eu sabia que as coisas ali seriam
diferentes de como fora na casa onde Sandro estava escondido. Ali, eu precisaria
matar, mantendo em mente que se tratavam de criminosos, pessoas que
compactuavam com crimes inadmissíveis.
Por isso, quando dei o primeiro tiro, apontado para a cabeça do
segurança, esforcei-me para não sentir absolutamente nada ao vê-lo despencar
no chão, sem vida.
Contudo, uma única expressão surgiu na minha cabeça: "fácil demais". A
impressão de ser uma armadilha não me abandonava, mas fosse como fosse, eu
poderia reverter a situação. Precisava fazer isso.
Segui em frente, esperando esbarrar em outro dos homens, pronto para
tirar mais uma vida. Porém, apenas deparei-me com um espaço bem escuro, uma
vez que não havia janelas, e uma iluminação muito precária. Continuei
caminhando por ele.
Dois homens surgiram na minha frente, e eu atirei em ambos, com uma
mira precisa, acertando-os também na testa.
Três já tinham sido eliminados. Faltavam cinco.
Cheguei em uma área onde havia pilhas e pilhas de caixas enormes,
como se fosse um depósito. De trás de algumas delas, outro homem saiu,
agarrando-me pelas costas e nem me dando oportunidade de me defender. Ele
me desarmou e me segurou em um mata-leão, mas não demorei a me soltar,
começando a lutar com ele.
Desviei de seus golpes e apliquei alguns. Evitei que um de seus socos me
atingisse, usando meu cotovelo como um escudo e quase pude ouvir o urro que
meu oponente tanto tentou abafar quando seu punho colidiu com o osso duro e
pontudo. Isso me deu oportunidade para lhe dar um chute no estômago e mais
dois socos no rosto, tudo enquanto avançava para frente e pegava a arma,
matando-o e terminando com aquilo.
Outro logo surgiu, atirando, e eu senti a bala passar de raspão pelo meu
ombro, o que não fora ferido na briga com os gêmeos. Antes que ele pudesse
tentar de novo, eu o atingi também na cabeça.
Enquanto voltava a avançar, levei a mão ao mais novo ferimento que
cobria meu corpo, novamente tendo a impressão de que aquelas pessoas tinham
preparado uma armadilha para mim.
Andei pelo espaço escuro até deparar-me com uma luz acesa quase ao
fundo. Provavelmente ir até lá seria a escolha errada, mas preferia arriscar. Atirei
em mais uma pessoa, recarreguei a arma e dei mais um tiro em outro sujeito,
ainda sustentando a sensação de que tudo estava simples, fácil, como se
realmente quisessem que eu chegasse até lá e que descobrisse alguma coisa. O
fato de usarem vidas para isso não me surpreendia, pois para aquele tipo de
gente, pessoas eram descartáveis.
Quando cheguei ao espaço mais iluminado, o cheiro de sangue
empesteou minhas narinas. Em meio a poças do líquido denso e vermelho,
estavam os corpos das duas moças que vi serem levadas até ali. Não havia mais
chance para elas. Em uma das paredes que cercava o pequeno cômodo, escrito
também em sangue — provavelmente o delas —, eu podia ler o número 48. Um
aviso, dos mais mórbidos possível. Tudo o que queriam era que eu acreditasse
que elas tinham morrido por minha causa, assim como acontecera com a moça
que tanto se parecia com Chris.
Enquanto eu ainda observava a bagunça e lamentava a tristeza daquela
cena, fui novamente agarrado. Desta vez, porém, dois homens me continham.
Um de cada lado. Eles me viraram na direção da entrada daquele espaço, e o
próprio Edgar Queiroga me observava, com um sorriso cínico naquela cara
odiosa.
— Que honra tê-lo em nossa presença... Arthur Montenegro. Você não é
um cara fácil de ser pego. A MR te treinou direitinho.
Eu não estava interessado em entrar em provocações. Menos ainda em
brincar ou provocar meu inimigo com piadinhas obscuras. Havia duas mulheres
mortas logo atrás de mim, uma obra daquele merda à minha frente. Por isso,
grunhindo como um animal, consegui me soltar dos dois homens que me
seguravam e parti para a briga com eles.
Claramente mais habilidoso, embora eles fossem dois trogloditas,
consegui levá-los ao chão com alguns movimentos. Contudo, partindo para a
covardia, uma terceira pessoa me atingiu na cabeça com algo pesado, me
fazendo cair no chão.
Minha vista ficou turva, e eu precisei de alguns segundos para me
orientar. A pancada foi forte o bastante para me tirar de órbita, suficiente para me
deixar rendido, que era apenas o que eles precisavam. Fui novamente agarrado
pelos dois homens com quem tinha lutado pouco antes.
— Olha, eu jurava que você iria nos dar mais trabalho... por isso
garantimos o plano B. Seja como for, vai ser um prazer te mostrar o que
conseguimos. — Ele fez uma pausa, e eu ousei erguer a cabeça, mesmo que ela
doesse como o diabo, para ver o que estava acontecendo.
Os dois homens que me seguravam me puxaram, levantando-me do chão,
me fazendo andar. Jogaram-me sentado em uma cadeira, em outro daqueles
cubículos, amarrando-me a ela. Um deles colocou o cano de uma arma na minha
cabeça. À minha frente, mais pessoas se aproximavam. Três. Mais capangas,
pelo que pude concluir.
— Vamos te deixar aqui por um tempinho, 48. Para você pensar na vida e
ficar curioso com o que reservamos para você.
Dizendo isso, um dos homens me deu uma coronhada forte, e eu apaguei.

***

ARTHUR

Quando voltei a mim, não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado
desde que fiquei inconsciente. Tentei mexer as pernas, mas estas também foram
presas aos pés da cadeira, com cordas e nós bem dados. Não era uma cadeira de
madeira; se fosse, eu poderia encontrar uma forma de quebrá-la e tentar me
soltar. Era de ferro. Eu sentia isso pela textura do material que eu conseguia
tocar — gelado, liso e duro.
Precisei me ajustar à claridade, embora o local não estivesse assim tão
iluminado. A primeira coisa que vi foi Edgar à minha frente, sentado em uma
cadeira. Estava sozinho, com uma postura extremamente relaxada, além de uma
expressão despreocupada no rosto.
— É fácil ficar assim perto de mim sozinho e todo sorridente comigo
amarrado. Sabe que eu te destruiria em dois minutos e não iria sequer suar para
isso.
Edgar deu de ombros.
— Esse seu papinho não vai fazer com que eu me sinta mal ou que te
solte para que possamos cair no mano a mano de forma justa. Pode me achar um
covarde, mas burro eu não sou.
— Eles estão te pagando quanto para me entregar? — sibilei, sentindo o
gosto do ódio na língua.
— Você é minha moeda de troca, Arthur. Assim que chegarem para te
buscar, eu ganharei a minha alforria. Só quero ficar de boas com eles de novo.
Não é legal ser um inimigo da MR, como você mesmo já deve ter percebido.
— Eu escolho bem meus amigos e meus inimigos também... —
debochei.
— Ah, escolhe mesmo. Tanto que foi indicado por uma pessoa do seu
convívio...
Lá estava novamente aquela certeza que tanto me perturbava. O fato de
ser novamente pego pela MR já era, por si só, desconcertante, mas pensar que eu
jamais teria a chance de descobrir quem havia me entregado nas mãos do diabo
era ainda mais perturbador.
— Quem foi? Você sabe? — indaguei, embora a sensação de humilhação,
de precisar dele para obter uma verdade que eu já deveria ter descoberto, fosse
degradante.
— Não. Não faço ideia e não dou a mínima também. — Edgar levantou-
se, com uma expressão resoluta no rosto e mantendo aquele sorriso irritante.
Colocando-se bem de frente para mim, abaixou-se um pouco para sussurrar no
meu ouvido: — Quer saber o que realmente me importa? — Ele fez uma pausa,
mantendo um suspense. — A Chris... — Ele soltou um assobio de admiração e
uma risadinha. Ouvir o nome dela gelou a minha espinha. — Cara, você não tem
noção do quanto eu quero colocar as mãos nela. Há muito tempo. Juro que tentei
ser um cavalheiro para conquistá-la da forma tradicional, mas sempre tinha você
no caminho. Primeiro como uma lembrança, e depois, de verdade. Agora, vai ser
muito mais fácil trazê-la para mim. Vou usá-la, fodê-la de todas as maneiras e
depois... quem sabe? Posso entregá-la à MR também...
Soltei um urro de ódio e tentei me debater para me soltar. Consegui
libertar uma mão, depois de usar de uma força descomunal e esfolar meu punho
inteiro, mas a sensação de levar a mão ao pescoço daquele merda foi muito mais
gratificante. Principalmente ao me deparar com a cara de pavor que preencheu
seu rosto.
— Eu só preciso de uma mão para te matar.
Continuei sufocando-o, apertando seu pescoço cada vez mais, mas logo
três homens surgiram. Seria preciso muito mais do que aquilo para me fazer
soltá-lo, mas eu estava em desvantagem, e acabei sendo novamente amarrado à
cadeira.
Levando à mão ao pescoço machucado, Edgar precisou de um tempo
para se recuperar. Pigarreou, tossiu, mas logo voltou a me infernizar:
— De uma forma ou de outra, eu consigo tudo o que quero, Arthur. O
mundo é dos fortes, aqueles que sabem agarrar as oportunidades. Eu agarrei as
minhas... Por isso, infelizmente, você vai ter que rodar.
— Eu ainda vou te matar, Edgar... De alguma maneira... — novamente
falei por entre dentes, e ele intensificou a gargalhada.
— Não que você esteja em condições para fazer uma promessa dessas,
mas vou dificultar as coisas um pouquinho mais. — Indo até a entrada do
cômodo, Edgar colocou metade do corpo para fora e fez um sinal para alguém.
Enquanto esperava, retornou e sentou-se novamente na cadeira, de frente para
mim.
Ouvi passos do lado de fora e comecei a me desesperar. Eu sabia que
aquele cara tinha uma carta na manga. Claro que o fato de eu estar amarrado e
rodeado por pessoas que me matariam em um segundo já seria suficiente, mas
havia algo mais.
E eu não demorei a constatar o que era.
Arrastado por dois caras mais ou menos do meu tamanho, inconsciente,
machucado e amarrado, estava Mário.
Sem nenhuma dignidade ele foi jogado aos meus pés, e eu senti um bolo
se formar dentro da minha garganta, enquanto meu estômago se revirava.
Não! Não! Não!
Não podia ser! Não aquele garoto! Não o meu amigo...
Mário não merecia. Se ele estava ali, naquela situação, era por minha
culpa.
Puta que pariu!
— Ele não tem nada a ver com isso! — vociferei.
— Claro que tem. O rapazinho aqui não apenas trabalhou para a MR
como estava te ajudando. Não acha que eles vão adorar quando eu entregar os
dois de bandeja? — Edgar cruzou os braços e recostou-se na cadeira, apoiando o
tornozelo no joelho. Ele mais parecia estar em uma reunião de trabalho informal.
— Eles vão foder com você um dia, Edgar. Queriam que eu te matasse,
mas há outros como eu. Outros que serão menos babacas em acreditar que
podem te dar o benefício da dúvida. — Eu estava mais do que arrependido de
não tê-lo matado quando tive a chance. Naquele dia do Alto, no dia da festa, em
qualquer outra ocasião. Aquele cara não merecia estar vivo. Não merecia
respirar o mesmo ar que outras pessoas inocentes respiravam. Mas lá estava ele,
dando risadinhas debochadas enquanto uma criatura como Mário jazia ferido e
inconsciente no chão.
— Que pena que não será você. Não é mesmo? — Ele deu de ombros. —
Seja como for, essa conversa já está me enchendo o saco... está na hora de você
dormir de novo. Quando acordar, já estará no lugar de onde nunca deveria ter
saído.
Assim que ele terminou de falar, senti uma picada no braço. O homem ao
meu lado a havia aplicado, e eu sabia exatamente o que era.
Imediatamente, senti meu corpo ficar dormente, meus olhos pesados e a
cabeça girar.
Apaguei, sem nem ter chance de mandar aquele filho da puta se
foder.
Capítulo Vinte e Dois
CHRISTINE

Eu simplesmente não conseguia ficar parada. Sentia como se meus pés


tivessem vida própria e se movessem no mesmo ritmo do meu coração, que
acelerava todas as vezes que eu checava o relógio.
Quando o telefone tocou, passava da meia-noite.
Cléo estava em vigília comigo e também se assustou com o som do
celular, mas ambas nos entreolhamos quando a mensagem de “número não
identificado” pipocou na tela.
Odiava o fato de deixá-la tão preocupada, mas não pude evitar. Aguentar
sozinha aquela barra toda não me faria nada bem. Ficar tentando me fazer de
forte em um momento como aquele me deixaria ainda mais nervosa.
Com as mãos trêmulas, deslizei a tela para atender à chamada e logo ouvi
a voz de Mário do outro lado. Chorosa, embolada e gaguejante. Entrei em pânico
imediatamente.
— C-Chris! — ele chamou, mas não disse mais nada em seguida. Tudo o
que eu ouvia eram sons de fundo e a própria voz de Mário dizendo: “Não, eu
não posso fazer isso... Deixem ela em paz”.
— Mário, o que foi?
— Chris, eles... eles... — Cada segundo que passava era uma tortura. —
Eles estão me obrigando a ligar para você. Querem que você venha para cá. Mas
você não pode vir, pelo amor de Deus — implorou ele, choroso.
Fazia poucas horas que ele tinha me buscado no trabalho. Como era
possível que as coisas mudassem tanto em tão pouco tempo?
— Onde você está? E Arthur? — Assim que eu falei, com aquele tom
desesperado que refletia todos os meus sentimentos, Cléo empertigou-se,
também muito assustada.
— Levaram ele. Arthur foi para a MR. Não adianta mais, Chris. Já estão
com ele. Fuja! Desapareça daqui e... — A voz de Mário foi interrompida, e outra
pessoa pegou o telefone.
— Oi, princesa! — Não reconheci a voz de imediato, mas vasculhando a
minha memória, consegui lembrar a quem pertencia.
— Edgar! — exclamei. Não surpresa, é claro. Não depois do que Arthur
havia me contado sobre a empresa da família Queiroga e sobre as coisas
reveladas por Santiago. — O que você fez com eles? Com Mário e Arthur?
— Bem... o seu Arthur já foi despachado. Mas este aqui... bem... este
aqui ainda tem uma chance. Posso devolvê-lo a você inteirinho se vier buscá-lo.
Respirei fundo, calada, sem saber o que dizer. Já imaginava o que seria
feito de Mário se eu simplesmente não aparecesse e fugisse, como ele mesmo
sugerira. Por mais útil para a MR que ele pudesse ser, era um traidor. Além
disso, sabia demais e ajudara um fugitivo uma vez, poderia fazer isso
novamente.
Eu não tinha nenhuma esperança de conseguir salvá-lo, ainda mais
sozinha. Podia apostar que mesmo se fosse buscá-lo, ainda acabaria morto.
Porém, embora soubesse de tudo isso, não poderia deixá-lo morrer sozinho.
Tentando conseguir um pouco de privacidade, afastei-me de Cléo,
esperando que ela não ouvisse o resto da conversa nem a resposta que estava
prestes a dar.
— Como posso chegar aí? — indaguei em voz bem baixa, resignada. Eu
sabia que se fosse até lá, se fosse me encontrar com Edgar, algo aconteceria
comigo. Tinha plena certeza de que ele não iria cumprir a promessa de libertar
Mário e nos deixar sair de lá intactos, sãos e salvos.
Poderia ser uma estupidez da minha parte, mas algo me dizia que Mário
faria o mesmo por mim, nem que fosse por conta de sua lealdade para com
Arthur.
— Vou te passar o endereço por Whatsapp. Mas ouça bem, Chris, se
aparecer aqui com a polícia, nós vamos saber. Temos pessoas cercando a área.
Seu amiguinho não vai durar nem até você dar o primeiro passo.
Ele desligou assim que terminou o aviso, fazendo com que o silêncio que
restou na linha preenchesse minha cabeça com um manto de escuridão, como se
meus pensamentos, além de surdos, estivessem cegos. Eu poderia encontrar uma
saída, uma alternativa inteligente, mas não tinha tempo para isso. Mário não
tinha tempo.
Além disso, outra coisa passava pela minha cabeça. Se Arthur tinha
mesmo sido levado pela MR, não havia muita escolha. Primeiro porque seria
insuportável a ideia de perdê-lo novamente. Mais ainda do que na primeira,
porque agora eu saberia o que tinha lhe acontecido. Saberia que poderia estar
vivo, sofrendo torturas horríveis ou lobotomizado em algum sanatório. Saberia
que fora tudo culpa de pessoas loucas, mas não poderia fazer nada.
Outra ideia que permeava minha mente era a certeza de que eu não seria
deixada em paz tão facilmente. Aquela maldita corporação viria atrás de mim
para uma queima de arquivo. Então, tentar me manter segura não faria muita
diferença. Poderia ser muito tolo da minha parte, mas eu sabia que tinha algum
poder sobre Edgar. Em algum momento, ele realmente se interessou por mim,
mesmo que fosse apenas uma atração sexual. De alguma forma, eu poderia tentar
ludibriá-lo ou enganá-lo e tentar salvar Mário.
Sim, era uma chance em mil. Provavelmente a coisa mais absurda
possível, mas algo que me manteria com alguma esperança.
Abri o Whatsapp e constatei que a mensagem já tinha chegado. O
endereço ficava em Santa Cruz, um lugar que eu não conhecia muito bem, mas o
GPS teria que me ajudar.
— Nem pense que vai a algum lugar sozinha. — A voz de Cléo surgiu
atrás de mim, muito decidida. Ela tinha ouvido a conversa.
— Cléo, você não tem noção do quanto isso é perigoso.
— Sim, eu tenho. Exatamente por isso não vou deixar que vá sem mim.
É do meu irmão que estamos falando. — Odiava ter que tirar suas esperanças,
mas precisava que ela soubesse a verdade para, talvez, coagi-la a ficar
exatamente onde estava.
— Arthur já foi pego, querida — afirmei com tristeza. Aquelas palavras
tinham um peso quase insuportável. Era impossível colocá-las para fora sem que
lágrimas também exigissem ser libertadas. Não podia demonstrar o quanto
estava devastada por dentro, porque não queria contaminá-la, mas não pude me
conter.
— Pego? Como assim... ele... foi levado?
Compreendendo o que ela tencionava perguntar, apenas balancei a
cabeça, assentindo. Cléo levou as mãos à boca, abafando uma exclamação de
desespero.
— Foi a MR? — Novamente assenti. — Chris, mesmo assim, não
podemos desistir dele! Precisamos avisar à polícia, ir à imprensa... eu tenho
alguns amigos jornalistas e...
Coloquei as mãos nos ombros dela para tentar acalmá-la, uma vez que
estava à beira da histeria.
— Cléo, podemos deixar isso para depois, mas agora eu preciso ajudar
Mário.
— O que tem ele? — indagou com olhos arregalados.
— Ele também foi sequestrado, provavelmente depois de me deixar aqui.
Quem está com ele é o Edgar.
— Ah, meu Deus! — Cléo também já sabia de toda a participação de
Edgar naquela história, então, compreendeu o perigo que nosso amigo estava
correndo.
— Você não tem a menor obrigação de me ajudar nisso. Sei que eu e
Mário não somos amigos tão íntimos, mas ele é uma pessoa especial e não
merece sofrer. Não merece morrer... sozinho. — A última palavra saiu em um
sussurro porque eu sabia muito bem o que ela significava. Cléo também pareceu
entender, pela forma como seu peito se estufou, como se estivesse prendendo o
ar. — Preciso que você fique aqui, em segurança. Arthur não me perdoaria se
qualquer coisa te acontecesse.
— Digo o mesmo. Ele também não ia querer que você fosse sozinha.
Então... me deixa te acompanhar... por Arthur.
Aquele era um pedido muito cruel. Nós duas sabíamos o tipo de
sacrifício que teríamos que fazer e que o resultado, muito provavelmente, não
seria nada satisfatório. A escolha de não abandonar Mário à própria sorte era
minha, somente minha, e eu não queria levar ninguém para o fundo do poço.
— Cléo... não! — tentei soar categórica, mas minhas lágrimas me traíram
novamente. — Não posso permitir que você se machuque. Não assim. Eu me
odiaria. Se por alguma ironia do destino eu acabar voltando sem você — levei
uma das mãos à cabeça, mais precisamente às minhas têmporas, massageando-as
para tentar suportar a dor —, jamais iria me perdoar.
Sem dizer nada, Cléo me puxou para seus braços. Ela também chorava,
então, ficou difícil analisar quem confortava quem naquele abraço.
Ficamos unidas desta forma por alguns minutos, até que ela me soltou.
— Assim como é uma escolha sua arriscar-se dessa forma, eu também
tenho o direito de decidir. Li o endereço do local no seu celular, então, se me
deixar aqui, vou pegar meu carro e vou atrás de você. Acho que seria mais
sensato irmos juntas.
Eu conhecia muito bem a teimosia de Cléo e tinha total certeza de que
não se tratava de um blefe. Por isso, estendi a mão, e ela a pegou, em um pacto
silencioso. Estávamos unidas naquele momento. Assim que nos tocamos, eu tive
a estranha impressão de que aquela corrente era indestrutível. Nós éramos
indestrutíveis.
Coitado de quem cruzasse nosso caminho...

***

CHRISTINE

Usando o GPS, chegamos ao endereço indicado por Edgar pouco antes


das duas da manhã. Não havia uma viva alma por perto, principalmente porque o
local era realmente ermo. Era fácil ver que a maioria das propriedades ao redor
pertencia a empresas. Muitas delas deveriam manter segurança 24 horas, mas
não poderíamos contar com isso. Em situações como aquela, era cada um por si.
Estacionamos bem à frente e logo fomos recebidas por um capanga, que
já parecia saber exatamente quem éramos. Por um momento, achei que ele
barraria a entrada de Cléo, mas foi preciso apenas passar um rádio para alguém,
uma revista, e nossa entrada foi liberada.
Ele não nos deu indicação nenhuma, por isso, quando as portas atrás de
nós se fecharam, deixando-nos dentro de um galpão muito escuro,
sobressaltamo-nos, olhando uma para a outra, embora mal conseguíssemos nos
enxergar no breu.
Cléo foi rápida em acionar a lanterna do celular, o que ajudou um pouco,
mas não totalmente. Fiz o mesmo com o meu e conseguimos iluminar o caminho
à frente, começando a caminhar. De mãos dadas. Unidas. Eu e aquela garota que
conhecia desde tão pequena, mas que me dava uma imensa prova de coragem.
Fomos em direção à única luz acesa que havia por ali, passando por
caixas e carrinhos de mão enferrujados. Só o som de nossas respirações nos
acompanhava, e eu começava a suspeitar que aquele lugar estava completamente
vazio. Mas o que Edgar poderia querer me levando até ali?
Aproximamo-nos do cubículo iluminado, e um cheiro desagradável nos
recebeu. De ferrugem. Sangue...
Sem dizermos nada, tanto eu quanto Cléo paramos pouco antes de
chegarmos à entrada; as duas com muito medo para prosseguir. Poderia ser
Mário ali, morto. Poderia até ser Arthur, se tivessem nos pregado uma peça
macabra.
Entreolhando-nos, balançamos nossas cabeças discretamente, como um
sinal de que deveríamos prosseguir. Não importava o que iríamos ver.
Precisávamos ter coragem. Era para isso que estávamos ali.
Realmente havia dois cadáveres dentro daquele espaço, mas pertenciam a
duas mulheres. Por mais que não as conhecêssemos, a cena era tão terrível
quanto teria sido se fôssemos amigas de longa data. Não apenas pelo fato de
haver sangue por todo lado e pela situação ser nauseante, mas porque nos víamos
nelas. Dali a alguns minutos ou horas, poderíamos ser nós.
Um barulho vindo do lado de fora do cubículo chamou a nossa atenção.
Agarrei a mão de Cléo, mantendo-a do meu lado, porque nossa melhor opção era
ficarmos ali, já que parecia ser o local mais iluminado do galpão. Contudo, nada
aconteceu. Minha respiração estava acelerada, meu coração parecia bater na
velocidade da luz, e aquela espera era ainda mais aterrorizante.
Depois de alguns minutos completamente inertes, Cléo aproximou-se
para sussurrar em meu ouvido:
— Não podemos ficar aqui... Se não aparecer ninguém...
Eu odiava a ideia de permanecer naquele espaço pequeno, onde a morte
pairava sobre nós. Odiava mais ainda a outra opção, que era encarar a escuridão.
Porém, precisávamos encontrar Mário. Se é que ele ainda estava ali.
Cruzamos, então, a saída e entramos em outro cômodo, um pouco mais à
frente, onde também podíamos enxergar alguma iluminação. Precária, mas era
melhor do que o escuro do corredor. Assim que cruzamos a entrada, demos de
cara com alguém. Apenas um homem. Do tamanho de Arthur. Com um rosto
estranhamente familiar.
— Carlos? — Cléo indagou confusa, e o cara abriu um sorriso
debochado.
— Ah, então você era a putinha do meu irmão? Ele me contou que ficou
com tesão em você, sabia?
Foi preciso apenas ouvir esse breve diálogo para entender do que se
tratava. Aquele à nossa frente era o John Doe do hospital, o irmão do cara que
drogou Cléo. Ou seja, estávamos encurraladas por um soldado da MR. Eu já
tinha visto Arthur em ação mais de uma vez para saber que não nos livraríamos
fácil.
— Onde está Mário? — indaguei convicta, esperando que, ao menos, ele
nos desse a resposta.
— Seu amigo já foi levado também. Assim como o seu namorado — ele
respondeu dirigindo-se a mim. — Vocês caíram que nem duas patinhas. Eu
fiquei para te levar também, mas já que a irmãzinha veio junto, vou levar as
duas.
Havia algo de muito bizarro naquela história. Por mais que não
estivessem esperando que Cléo me acompanhasse, será que a MR me
subestimava tanto assim para enviar apenas um homem para me sequestrar?
Tudo bem que nenhuma de nós duas fora treinada para lutar, nem sequer
sabíamos golpes de defesa pessoal, mas não nos entregaríamos tão fácil.
Essa especulação não demorou a tornar-se uma certeza, aliás. Em uma
fração de segundo, eu vi Cléo inclinar-se para pegar uma cadeira de ferro do
chão, partindo para cima daquele troglodita.
— VAI LEVAR PORRA NENHUMA! — Com toda a sua força, ela o
atingiu com a cadeira uma vez, bem na cabeça. Ele provavelmente não esperava
essa reação, porque ficou levemente atordoado. Depois de ser agredido,
cambaleou, mas não caiu.
Cléo preparou-se para repetir sua investida, mas John — cujo nome
verdadeiro eu desconhecia, e nem sequer me interessava —, embora ainda não
totalmente recuperado, agarrou o objeto e o jogou longe, estendendo a mão em
seguida e agarrando o pescoço da garota.
A mão dele, enorme, tomava quase todo o pescoço delgado de Cléo, e eu
sabia que pelo tom vermelho de seu rosto, ela iria sufocar muito rápido. Aquele
homem não hesitaria em matá-la. Eu era o alvo, ali. Se ela morresse e não fosse
levada para a MR, ainda assim a missão estaria cumprida.
Foi essa certeza que me apavorou e me fez correr na direção deles,
pulando no pescoço de John, prendendo-me em suas costas, com as pernas
entrelaçadas em sua cintura. Fui direto com meus dentes em sua orelha direita,
mordendo-a com força, pronta para arrancá-la se fosse preciso. Isso foi
suficiente para que ele soltasse Cléo. Apesar de não conseguir ver muita coisa
por conta da minha posição, eu sabia que meu intento tinha sido alcançado,
porque ele passou a usar as duas mãos para tentar me tirar de suas costas.
Mesmo com dor, conseguiu caminhar de costas em direção à parede mais
próxima, colidindo com ela com agressividade, fazendo-me perder o ar. Minhas
costas foram de encontro com o cimento, e eu deslizei para o chão. A queda
também foi dolorosa, levando em consideração que se tratava de um homem
muito alto.
Sem fôlego, fiquei desorientada pela dor por alguns segundos, mas logo
que me recuperei, vi Cléo segurando a outra cadeira de ferro na mão como um
escudo, tentando mantê-lo afastado. Todas as vezes que ele tentava avançar, ela
estendia a cadeira, pronta para atingi-lo.
Sabendo que precisava de ajuda, tirei forças de dentro da minha alma e
me levantei, mesmo cambaleante, tentando fazer o mínimo de barulho, enquanto
me aproximava da outra cadeira. Percebendo minha intenção, Cléo começou a
fazer barulho propositadamente, gritando para me dar cobertura:
— O que você quer com a gente, seu filho da puta? Acha mesmo que vai
conseguir nos levar tão fácil? Não vamos desistir! Vamos acabar com você!
Ela continuou falando até que eu consegui chegar próximo o suficiente
para dar com outra cadeira na cabeça dele novamente, com toda a força. Daquela
vez, ele chegou a cair no chão. Não exatamente rendido, porque conseguiu
agarrar a perna de Cléo antes que ela lhe desse um chute na costela. Porém, antes
que ele pudesse feri-la, eu lhe dei outra cadeirada na cabeça.
— Filha da puta! — ele exclamou, levando a mão ao local atingido.
Ainda assim, não apagou.
Cléo aproveitou a situação e finalmente lhe chutou a costela com força,
como quisera fazer desde o início, e eu me ocupei de seu rosto, fazendo o
mesmo.
Não previ seu próximo movimento, quando agarrou meu pé, como fizera
antes com Cléo, e me derrubou no chão, fazendo-me novamente colidir de
costas, perdendo o ar. Eu já estava machucada, então, aquela nova lesão foi
ainda mais dolorosa.
Gritando xingamentos de todos os tipos, Cléo continuou a chutá-lo, mas
ele conseguiu dominá-la, também jogando-a no chão. Contudo, ao contrário do
que aconteceu comigo, ele não a deixou solta, prendendo no chão, colocando-se
em cima dela, esbofeteando-a com força.
Eu não podia permitir... Não podia deixar que ele a agredisse daquela
forma. Precisávamos sair dali, contando com a sorte de que ele fosse o único
presente.
Chorando de dor, comecei a literalmente me arrastar na direção dos dois,
certa de que o que eu não queria fazer seria nossa única chance.
Já imaginando que poderiam nos revistar, enrolei uma tesoura de costura
que pertencera à minha mãe bem afiada em um tecido grosso e vesti um casaco
acolchoado — embora a noite não estivesse assim tão fria —, guardando a arma
dentro de um de seus bolsos internos. Se o segurança lá fora tivesse tomado um
pouco mais de cuidado, acabaria encontrando o objeto, mas, muito
provavelmente, ele nos considerara alvos fáceis. Entretanto, não seria assim.
Levantando-me do chão em um rompante, ao mesmo tempo em que
pegava a tesoura e a desenrolava do tecido, avancei na direção de John, cravando
a ponta bem em sua jugular.
A julgar por seus olhos arregalados, ele, definitivamente, não esperava
por isso. Suas mãos estavam trêmulas quando ele arrancou a tesoura de seu
pescoço, e ainda mais sangue começou a jorrar.
A visão era traumatizante. Eu já tinha matado um homem antes, e podia
jurar que em cada momento da minha vida, aquela cena vinha me
acompanhando. Claro que conforme os dias iam passando, as lembranças
começavam a desaparecer, mas eu jamais esqueceria por completo. E por mais
que tivesse sido um bandido, não deveria ter morrido pelas minhas mãos.
Exatamente como o homem à minha frente, que agonizava devagar. E eu
poderia considerar aquela morte ainda pior, mais pessoal. Um tiro fora dado de
longe, ali, eu olhava nos olhos dele, mal reconhecendo minha própria frieza.
Quando ele finalmente deu seu último suspiro, ainda precisei de alguns
segundos para me recompor. Para encontrar coragem e sair do transe onde me
encontrava, hipnotizada por aqueles olhos sem vida que me fitavam, culpando-
me. Condenando-me. Contudo, assim que consegui me mexer, aproximei-me de
Cléo, que ainda jazia jogada no chão, agachando-me e inclinando-me sobre seu
corpo. Estava prestes a checar sua pulsação, mas nem precisei, porque ela
agarrou meu punho.
— Estou viva — murmurou. Doía em mim vê-la tão machucada, mas
consegui ajudá-la a levantar-se. Não parecia haver nada quebrado, porque ela se
movimentava perfeitamente, sem reclamar de nenhuma outra dor.
De pé, a primeira coisa que ela viu quando conseguiu se estabilizar foi o
corpo de John, morto, e a tesoura ensanguentada caída logo ao lado da ferida.
Cléo olhou para mim com pesar.
— Sinto muito, Chris.
Balancei a cabeça em negativa.
— Era ele ou nós.
— Sem dúvida você fez uma ótima escolha — ela afirmou em tom de
brincadeira. Que bom que mesmo tão ferida e assustada ainda conseguia usar de
algum resquício de bom humor. — Vamos sair daqui.
Concordei, sabendo que ela estava certa. Não havia mais nada a fazer ali.
Sem Arthur e sem Mário, só nos restava fugir e voltarmos para casa. O que
faríamos depois, para tentar salvá-los, eu não poderia sequer imaginar.
Poderíamos pedir ajuda a alguém, a algum detetive, algum veículo de imprensa,
exatamente como Cléo sugerira, mas todas essas pareciam alternativas muito
falhas.
Peguei a tesoura no chão antes de sairmos, na esperança de que ela
pudesse me defender novamente, caso fosse preciso. Nenhuma de nós duas
estava em boas condições para outra luta, principalmente porque não éramos
profissionais no assunto. Tínhamos conseguido nos defender de John, e eu nem
sabia como.
Fomos avançando pelos corredores escuros, com muita cautela, cada uma
vigiando um lado e atentas a qualquer barulho, porém, o galpão parecia
realmente estar vazio.
Foi muito triste passar pelo cubículo onde as duas mulheres foram
deixadas mortas, sem poder sequer chamar alguém para lhes conceder um fim
digno. No entanto, isso não adiantava mais. Não valia de nada. Nenhuma das
duas teria uma chance.
Chegamos à porta, já prontas para enfrentar o segurança. Tentei enrijecer
meu coração e aceitar a hipótese de que para sairmos vivas dali eu talvez tivesse
que matá-lo, se conseguisse. Isso iria me destruir um pouco mais por dentro, mas
— novamente — a escolha era simples: ele ou nós.
Para a nossa surpresa — e consternação —, pisamos em algo
escorregadio, e eu teria caído se Cléo não tivesse me amparado. Viramos nossas
lanternas na direção de nossos pés e vimos mais uma poça de sangue. Logo
adiante, o corpo do homem que nos recebera e nos revistara, com um furo bem
na testa, de um tiro.
Aquilo não era bom. Não era nada bom.
Saímos porta afora, e eu estava certa de que iríamos encontrar Edgar, mas
a pessoa que nos esperava, encostada em um carro preto e de vidros fumê era
outra.
— Tio Sidney! — Cléo abriu os braços e estava prestes a sair correndo
em direção ao irmão de sua mãe, mas agarrei seu punho e a segurei. Ela não
entendeu minha reação, mas eu, sim, tinha compreendido tudo.
Ali estava o homem responsável por todo o nosso sofrimento. O traidor
de Arthur.
— Chris, você não pode... — Cléo sussurrou, sem ar. Parecia incrédula,
começando a entender o porquê de eu tê-la freado. Depois de falar comigo,
dirigiu-se a Sidney. — Tio...? O quê? — Ela ficou calada por um tempo,
digerindo os próprios pensamentos. — Foi você? Você indicou meu irmão
àquele inferno?
— Eu fiz um bem a ele. Aquele rapaz não tinha futuro. Não queria nada
com a vida! Olha o que ele se tornou! Um soldado! Um homem forte, com
habilidades!
— Louco! — exclamei, ainda segurando o braço de Cléo, porque ela
parecia prestes a voar em cima do tio a qualquer momento. — Você fez isso por
dinheiro!
Ele deu de ombros.
— Não estou aqui para justificar minhas ações. Estou aqui para levá-las à
MR.
— Cléo é sua sobrinha... Não pode entregá-la àquela gente... — falei em
um sussurro falho, quase sem forças diante do absurdo de tudo aquilo.
— Eles saberão cuidar dela. Não irão lhe fazer mal.
Isso era o que ele pensava, mas eu não queria arriscar. Ergui a tesoura,
pronta para usá-la, mas Sidney estendeu a mão, em um sinal para me impedir.
— Nada disso, minha querida. Vocês vão comigo sem lutar. —
Concluindo sua frase, ele apenas abriu a porta do motorista do carro e acionou os
vidros elétricos. Conforme a janela traseira ia se abrindo, os rostos de Selma e
J.J. eram revelados. Amordaçados e presos, eles se debatiam no banco de trás,
principalmente ao olharem para nós.
Aproximando-se, Sidney tirou a mordaça de J.J., porque ele parecia o
mais desesperado para falar alguma coisa.
— Deixe-as em paz, seu filho da puta! — o rapaz berrou. — Elas e a
minha mãe. Se entenda comigo, covarde!
Eu realmente não esperava aquela atitude de J.J., mas chegou a me
comover. Por mais que não fôssemos exatamente amigos, e ele estivesse longe
de ser minha pessoa preferida no mundo, eu não queria, de jeito nenhum, que se
ferisse ou, pior, que fosse morto.
— Não, por favor! — Cléo começou a chorar do meu lado. — Não os
machuque! Eu vou com você.
— Cléo! Não! — J.J. novamente gritou, enquanto Selma, ao lado do
filho, ainda amordaçada, apenas arregalava os olhos e emitia sons abafados de
desespero.
Enquanto toda aquela cena se desenrolava na minha frente, uma confusão
de pensamentos explodia dentro da minha cabeça, chegando a me deixar zonza.
Combinados com a dor que ainda sentia em minhas costelas, a sensação era
quase entorpecente, deixando-me praticamente dormente.
Sidney? Era quase impossível de acreditar. Ela pouco o conhecia, mas
sempre o vira como um homem tranquilo, gentil e dedicado ao trabalho. Fora o
braço direito do cunhado, e a amizade parecia forte. Mas não passava de um
traidor, uma víbora sem alma que vendera Arthur sem um único arrependimento
e que fazia mal à própria irmã e ao outro sobrinho. Agora estava vendendo
também a mim e a Cléo.
Aqueles pensamentos continuaram a se remexer na minha cabeça, bem
no olho do furacão, e eu nem me dei conta de que começava a andar até
simplesmente voar em cima de Sidney, esbofeteando-o com toda a minha força.
Ele sentiu o golpe, porque inclinou o rosto para o lado, de olhos fechados,
enquanto eu me mantinha ofegante na sua frente. Cheia de raiva, ainda cuspi
nele.
— Como pôde trair a confiança da sua própria família assim?
Sidney não respondeu, apenas voltou seus olhos na minha direção, cheios
de ódio. Mas eu não senti medo. Que fizesse qualquer coisa comigo, não me
importava mais. Eu já havia perdido Arthur novamente; também tinha perdido
Mário. A única coisa que me mantinha de pé era Cléo. Então, quando o revide
veio, a dor que me preencheu foi quase uma bênção. Ela me lembrou que eu
ainda estava viva.
Caí no chão, sentindo o sangue escorrer de meu lábio, com aquele
característico sabor de ferrugem. Contudo, não havia nada mais amargo do que
olhar para a cara daquele homem, observando-me com desprezo, como se fosse
eu o verme ali.
— Deixa ela em paz, seu desgraçado! — J.J. gritou outra vez,
surpreendendo-me.
Enquanto Sidney tinha sua atenção voltada para mim, Cléo tentava
aproximar-se do carro, provavelmente para soltar sua família. Porém, outras três
pessoas surgiram. Uma delas era Edgar.
Vendo-me no chão, ele se aproximou de mim e estendeu a mão, para me
ajudar a levantar. Ignorando-o, esforcei-me para ficar de pé sozinha, mesmo com
o corpo doendo desesperadamente.
— Estava demorando para você aparecer... pensei que já tinha fugido
como o covarde que é — cuspi as palavras, cheia de ódio.
— Acha que eu iria perder a festa? Além do mais... você vale um bocado
para a MR. A bonitinha ali também vale agora, já que sabe mais do que deveria.
— Ele fez uma pausa, apontando para Cléo, que fora agarrada por um dos
homens que chegara com Edgar. O outro veio em minha direção e fez o mesmo
comigo. Nem tentei lutar. Não iria adiantar de nada. — Vocês vão conosco por
bem ou vão querer assistir à morte daqueles dois ali?
— Eu vou. Só deixa a Cléo ir embora — pedi. Se fosse preciso,
imploraria, por mais que odiasse essa possibilidade.
— Não! — minha amiga gritou, indignada.
— Que linda a amizade de vocês. Estou comovido. Mas isso não é uma
opção, Chris. Ou vocês vêm com a gente por bem ou vão por mal, e a família do
Arthur irá morrer.
Então, eu hesitei. Não porque duvidasse da minha escolha, já que as
vidas de outras pessoas estavam em jogo, mas porque queria dar um jeito de tirar
Cléo daquela situação. Antes, porém, que pudesse chegar a alguma conclusão,
Edgar sacou uma arma do paletó e deu a volta no carro, encostando o cano bem
na cabeça de Selma.
— Mãe! — Cléo gritou. — Eu vou com vocês! Eu vou...
— Não foi isso que combinamos! — Sidney gritou, mas ninguém lhe deu
atenção.
— E você, Christine? — Edgar indagou, e eu mal consegui reconhecer
nele o cara que tanto me pareceu legal e que cheguei a considerar um amigo.
Resignada, balancei a cabeça em concordância.
— Tudo bem, Edgar. Nós vamos.
— Maravilha! — Afastou-se de Selma, o que me fez respirar aliviada. —
Podem levá-las aos carros.
Os homens que nos seguravam começaram a conduzir-nos aos carros.
Claro que iriam nos transportar separadas, e eu odiava essa ideia. Temia que
pudessem fazer algo com Cléo na minha ausência.
Assim que fomos jogadas dentro dos dois carros, colocaram-me algemas,
amordaçaram-me e estavam prestes a me vendar, mas Edgar interrompeu.
— Não. Eu quero que ela veja. As duas, aliás.
Ver o quê? De que outra forma ele iria nos torturar?
Senti a bile subir por minha garganta, começando a ficar apavorada.
Foi então que, depois de ele gesticular na direção do carro onde estavam
J.J. e Selma, uma labareda de fogo surgiu.
— Não! — Sidney gritou, mas dois homens surgiram do nada e o
agarraram, forçando-o a assistir enquanto o veículo era incendiado.
Eu podia ouvir os gritos cortando a noite. Tanto de J.J. quanto de Selma e
Cléo, que se debatia desesperada no outro carro, enquanto o capanga também
tentava amordaçá-la. Mal consegui dizer alguma coisa ou emitir um único som.
Minha mente estava em silêncio por toda aquela maldade. E quando o carro
começou a se afastar, levando-me para o que eu sabia que seria a minha morte,
só conseguia pensar em Arthur, e uma pequena esperança se manifestou em
meio ao caos.
Se estavam me levando para a MR, de alguma forma nos encontraríamos.
Eu o veria novamente, e juntos daríamos um jeito de escapar.
Durante todo o caminho, fui repetindo esta hipótese como um mantra, até
que ela virasse uma certeza.
Capítulo Vinte e Três
ARTHUR

A sensação de familiaridade me preencheu como um déjà vu. Nada ali


era novo para mim, nem as amarras de couro, nem a claridade que incomodava
até mesmo meus olhos fechados. O cheiro também era o mesmo, assim como os
sons. Não havia um único resquício de dúvida em relação ao local onde eu
estava.
Assim como na primeira vez, tive medo de abrir os olhos, mesmo já
sabendo o que iria encontrar. Conforme fui retornando à consciência aos poucos,
meu coração também começava a rugir dentro do peito, como um animal
enjaulado.
Contudo, se eu fosse sincero comigo e analisasse todos os passos que
levaram até ali, teria que admitir que sabia que isso iria acontecer mais cedo ou
mais tarde. Sabia que acabaria voltando àquele lugar, de uma forma ou de outra.
E talvez esse fosse o meu destino. Se tinha que acabar com aquele mal,
precisaria fazê-lo pela raiz. Nem que precisasse morrer tentando.
O problema era que conforme as lembranças daquelas últimas horas iam
retornando, a imagem de Mário amarrado e ferido também me atingiu. Eu não
poderia sair dali sem ele. Não poderia morrer lutando sem me esforçar, ao
menos, para salvá-lo.
E foi exatamente isso que me deu forças.
Quando abri os olhos, fui recebido — além da iluminação insuportável
— pelos olhos pequenos e cruéis de Hans Balzer. Aquele homem, que era a
própria personificação do diabo, estava ali na minha frente outra vez. Sozinho.
Observando-me, espreitando-me. Analisando cada movimento.
— Eu devo ser mesmo muito importante para que tenham se esforçado
tanto para me encontrar — sibilei, tentando manter minha voz baixa, controlada.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Algumas horas. Já amanheceu — ele respondeu, aproximando-se. Não
lutei quando checou meus olhos, conferindo meus sinais vitais. Também não
reclamei quando continuou calado, escrevendo algo em um papel preso a uma
prancheta.
— O que vai acontecer comigo? — Precisava mantê-lo falando antes que
saísse dali e me deixasse novamente sozinho. Eu teria uma boa chance de
escapar novamente se usasse aquele merda como refém.
— Nossa comissão está julgando a sua situação.
Eu imaginava, pelo que Santiago me contara, que aquela comissão
consistia nos patrocinadores da MR; os chefões de empresas como a Import, que
financiavam aquelas barbaridades cometidas ali dentro.
— Então acho que minha situação não é das melhores... — respondi,
ainda mantendo a conversa, tentando imprimir algum deboche.
— O que acha, 48? — Ele voltou os olhos para mim pela primeira vez
desde que começamos aquele diálogo que eu sabia que não tinha nenhum futuro.
— Você não é o primeiro a fugir de nós, e sabe disso. O problema é que foi
longe demais. Se tivesse escapado, pegado um avião e saído do país ou se ao
menos se mantivesse escondido, sem remexer no problema, poderíamos até tê-lo
deixado relativamente em paz. Já fizemos isso antes, e você não é um peixe tão
grande assim. Mas a partir do momento em que começou a investigar, a ameaçar
nossa corporação, precisamos tomar medidas drásticas.
— Vocês sabem que não conseguirão se manter impunes para sempre,
não sabem? Outros como eu surgirão; pessoas que não irão se calar, que não irão
se esconder.
Hans abriu um sorriso desdenhoso.
— Muitos concordam com nossos métodos. Muitos trabalham para nós
por livre e espontânea vontade. Inclusive pessoas nas quais você acreditou... —
Ao dizer isso, ele gesticulou na direção da porta. Precisei erguer um pouco a
cabeça para saber o que estava acontecendo, e o que vi me trouxe sentimentos
dúbios.
Lá estava Mário, acompanhado por um capanga, entrando de cabeça
baixa, sem me encarar. Não havia uma única marca em seu rosto, e levando em
consideração a quantidade de ferimentos que vi na última vez em que nos
encontramos, ambos amarrados, no galpão em Santa Cruz, ele deveria ter ao
menos hematomas e cortes para contar a história.
Quando ele finalmente ergueu os olhos em minha direção, a vergonha e o
arrependimento que enxerguei neles foram suficientes para que eu
compreendesse absolutamente tudo. Mário era parte de todo o plano. Estava
mancomunado com a MR o tempo todo.
A verdade era mais dolorosa do que revoltante e fez com que eu me
sentisse um verdadeiro imbecil por não ter percebido; por não ter me dado conta
de que ele não fora atacado nem perseguido em nenhum momento, mesmo me
ajudando.
Eu poderia odiá-lo. Poderia, naquele instante, encará-lo como o pior de
todos os inimigos que já tive. A pior das traições. Confiei nele; acreditei em sua
boa fé. Eu o recebi em minha casa, coloquei Christine sob seus cuidados. E
durante todo o tempo ele me enganava, provavelmente me guiando na direção
errada.
Mas foi um único detalhe que me fez segurar a minha raiva. A expressão
que ele apresentava. Parecia mais desolado do que eu.
— Que bom que conseguimos te surpreender, já que pensou que era mais
esperto do que nós. Este rapaz foi nosso aliado desde que concluímos que você
se tornaria um problema. — Hans aproximou-se de Mário e colocou o braço ao
redor de seus ombros. A forma como meu suposto amigo se encolheu, quase
evitando o contato também me enviou uma mensagem. Uma que eu estava
disposto a considerar. — Temos muito orgulho de tê-lo em nosso time.
Enquanto Hans apertava carinhosamente o ombro de Mário, este
finalmente olhou para mim mais uma vez. Fixamente. Algo se passava por
aquela cabecinha fértil. E já não importava sua possível traição. Não ali. Não
enquanto eu precisava mais uma vez de sua ajuda, se ele estivesse realmente
disposto a dar.
Quando lancei a ele um movimento de cabeça muito discreto, soube que
o recado fora compreendido. Apesar de tudo, eu confiaria nele mais uma vez.
Confiaria não apenas a minha vida, mas as de todos os que eu amava e que
estavam lá fora, em perigo. Algo me dizia — talvez minha intuição — que havia
um segundo lado naquela história. Um que pendia a favor de Mário em relação a
mim.
Soltando uma gargalhada levemente caricata, o garoto aproximou-se de
mim, colocando-se ao meu lado e afastando-se de Hans.
— Sério mesmo que você acreditou em mim, cara? E eu nem sou um ator
assim tão bom. — Enquanto falava comigo, ele tentava vigiar os movimentos de
Hans, porém, este parecia atento à conversa. — Sem ressentimentos, sabe? Mas
era a minha vida ou a sua. Além disso, o dinheiro sempre compensa.
Ele estava ganhando tempo. Então eu tinha que entrar no jogo.
— Confiamos em você! Acreditei que era meu amigo e que estava
realmente me ajudando a fazer a coisa certa.
— Pois é, mas talvez não fosse a coisa certa. O Sr. Balzer me fez ver que
esse projeto é brilhante. Talvez ele consiga te convencer também... Talvez você
ainda possa concordar em servir...
— Ele não vai ceder, Mário. O que é uma pena. — Ao dizer isso, Hans
finalmente se moveu, colocando-se de costas para nós por uma pequena fração
de segundo. O suficiente para que Mário se apressasse em desafivelar uma das
amarras que me prendia à maca. — O Sr. Montenegro tem um imenso potencial,
mas sua mente está tomada por ideias erradas, que não permitem que ele
enxergue a magnitude do que fazemos aqui.
Mário fez um sinal para que eu esperasse. Ele parecia ter um plano. Por
isso eu obedeci. Algo me dizia que poderia dar certo.
Enquanto nos comunicávamos discretamente, Balzer preparava uma
seringa. Eu sabia muito bem o que ela continha — queriam me fazer dormir
outra vez. Quando despertasse, não haveria volta. Estaria preso naquela cela, e
uma fuga seria muito mais difícil.
Entretido em sua tarefa, ele nem sequer percebeu quando Mário pegou
um objeto sobre a mesinha ao lado da maca onde eu estava deitado. Pelo que
pude ver, em um reflexo, tratava-se de um pequeno bisturi. Talvez ele não
conseguisse matar o homem com aquilo, mas poderia ser o suficiente para
escaparmos.
Ele foi aproximando-se pé ante pé, mas antes que pudesse cravar o objeto
afiado no corpo daquele louco, Hans percebeu a movimentação e virou-se,
agarrando o braço de Mário.
— Achou mesmo que eu acreditei em uma única palavra daquele seu
discurso? Acha que não desconfiamos desde o início de sua lealdade? Não
confiamos em ninguém, garoto idiota!
Frente a frente, Hans lutava para arrancar o bisturi da mão de Mário,
enquanto este, por sua vez, lutava para mantê-lo em mãos e acertar aquele filho
da puta. Eu, por minha vez, aproveitei o punho solto para terminar de me
desamarrar. Precisava ajudá-lo.
Já estava quase arrancando a última amarra dos meus pés quando ouvi
Mário soltar um urro frustrado e usar de toda a sua força para empurrar Hans
contra uma parede. Apesar de ser magrinho, ele era consideravelmente mais
jovem do que seu oponente, o que lhe dava alguma vantagem. Por isso,
conseguiu soltar-se e atacou o outro da forma como conseguiu, atingindo-o no
peito.
Eu já estava solto, por isso, apressei-me em voar em cima de Balzer e dar
alguns socos bem dados na cara daquele verme até deixá-lo inconsciente.
Claro que eu poderia e queria muito matá-lo, mas ele vivo poderia valer
mais do que morto. Poderia ser minha chave para fora daquela prisão. Então,
virei para Mário e gesticulei para que saíssemos, aproveitando que a porta estava
aberta. Assim que nos vimos fora da sala, eu a tranquei, usando a chave que
presa do lado de dentro da fechadura.
— Por aqui... — Mário me guiou, o que era lógico, levando em
consideração que trabalhara ali. Por mais que eu tivesse residido naquela maldita
ilha por anos, nunca caminhei por aqueles corredores sem uma venda ou estando
consciente. Teria que confiar nele. Provavelmente, era exatamente nisso que
estava pensando, pois logo acrescentou: — Arthur, pelo amor de Deus, me
desculpa. Eu não queria... eu não...
— Não é hora para isso. Só prove que está do meu lado fazendo a coisa
certa.
Com isso, eu o segui. Apesar de tudo, acreditava nele. Poderia estar
assinando um atestado de otário, mas queria lhe dar um voto de confiança.
— Precisamos encontrar Christine — ele falou, e a informação me fez
parar. Foi como se um caminhão tivesse passado por cima de mim.
— Christine? — indaguei apavorado, já sabendo o que aquilo
significava.
Mário abaixou a cabeça, novamente envergonhado.
— Edgar ligou para ela e me obrigou a falar. Eu não queria, mas tentei
convencê-la a não ir me buscar. Falei que de nada adiantaria, que você já tinha
sido levado... Mas acho que decidiu ir me salvar.
Em uma reação impulsiva, cerrei a mão em punho e soquei a parede ao
meu lado, controlando-me para não socar a cara dele, por mais que,
internamente, soubesse que não tinha culpa. Minha mente e meu coração
batalhavam, ambos dando suas opiniões sobre Mário. Um queria acreditar que
ele realmente era inocente ou que, ao menos, não estivera mentindo todo o
tempo; enquanto outro começava a odiá-lo. Também queria muito acreditar que
o fato de terem pegado Christine, usando-o como isca, tinha acontecido
exatamente como estava sendo contado, que ele não tivera uma participação
maior.
— Tem certeza de que a trouxeram para cá?
— Sim, tenho. A MR também colocou um preço por ela. Edgar está
muito interessado no dinheiro. Além disso...
Mário ia falar mais alguma coisa, mas eu não estava com paciência para
ouvir. Meu foco era outro. Não podíamos ficar ali parados, naquele corredor,
expostos. Agora eu tinha outra motivação para continuar vivo, outro propósito
para sair daquele lugar maldito.
— Você tem alguma ideia de para onde eles podem tê-la levado? —
indaguei enquanto retomávamos a caminhada.
— Ela deve estar presa em uma dessas salas, igual àquela onde você
estava.
Havia portas para todos os lados naquele corredor. Todas brancas e
fechadas. Se fosse preciso, eu sairia arrombando uma a uma para encontrá-la.
Quase nenhuma estava trancada. Fui abrindo uma por uma, verificando,
mas sempre as encontrava vazias. Começava a sentir o medo e a agonia
vencerem minha razão. Não conseguia parar de pensar em tudo o que ela poderia
estar passando ali dentro. As torturas, o pavor... Cada segundo que passava era
um instante a mais que ela passava sozinha, dentro de uma daquelas salas, com
pessoas cheias de más intenções.
Eu não fazia ideia do que pretendiam com ela. Se a MR estava disposta a
pagar para tê-la, eles tinham planos. Claro que usá-la como barganha contra mim
seria algo muito eficiente. Mantê-la ali, presa, faria com que eu me tornasse um
cachorrinho manso. Qualquer coisa que quisessem de mim, eles teriam se apenas
me mostrassem Christine sendo ferida. Por isso, acreditava que sua intenção era
realmente mantê-la ali por tempo indefinido ou transformá-la em um soldado; o
que eu também não podia permitir.
Continuamos andando, mas logo nossa pequena “paz” foi perturbada
pelo surgimento de uma pessoa, toda de branco, que avançava pelo corredor na
direção contrária à nossa. Antes que pudesse alertar alguém de alguma coisa,
parti para cima, socando-lhe o rosto, aproveitando seu momento de
atordoamento por me ver ali, caminhando livremente pelas instalações.
O homem rapidamente foi ao chão. Ele não era um soldado, mas um
funcionário. Provavelmente alguém que fora ludibriado por aquelas ideias
insanas de Balzer e que acreditava que o que faziam ali poderia, de alguma
forma, mudar o mundo. Agachei-me ao lado da criatura, cujo nariz sangrava
profusamente, e agarrei-lhe a cabeça, pronto para dar o golpe final, quebrando-
lhe o pescoço, enquanto cobria sua boca para que não gritasse.
Antes de fazê-lo, porém, olhei para Mário. Mesmo sem saber exatamente
quais eram suas reais intenções para mim, eu estava lhe dando um voto de
confiança. Aquele homem que tinha em meu poder poderia ser considerado cruel
como todos os outros, mas não saberia dizer quanto. Não poderia afirmar que
levantaria uma arma contra mim ou que se tornaria um problema. Portanto, não
tinha o direito de matá-lo. Não se tratava de legítima defesa ali.
Sendo assim, apaguei-o apenas e o tirei do caminho com a ajuda de
Mário, que abriu uma das salas vazias para que eu o deixasse escondido.
Assim que saímos, trancando a porta, ouvimos um grito feminino.
Agarrei o braço de Mário, parando no lugar onde estávamos, para tentar
ouvir mais alguma coisa. Primeiro fomos recebidos pelo silêncio, mas não
demorou para que o som novamente preenchesse meus ouvidos. Rapidamente
me pus a segui-los, com Mário logo atrás.
Eu reconheceria a voz dela em qualquer lugar, de qualquer forma. Vinha
um pouco abafada, por conta de uma porta fechada, mas encontramos a origem,
e eu encostei meu ouvido na madeira para constatar se estávamos no lugar certo.
Como ela continuou gritando, tivemos a prova, e eu nem sequer esperei para
tomar distância, enfiar o pé naquela porta e arrombá-la na primeira tentativa,
tamanha era a minha raiva.
E a cena que testemunhei me deixou ainda mais irado.
Lá estava ela, amarrada como um animal a uma maca muito parecida
àquela onde eu mesmo fui colocado. Debatia-se, lutava e gritava, como uma
verdadeira guerreira, digna de todo o meu orgulho. Dois homens a
acompanhavam — um a segurava, e outro preparava uma injeção, pronto para
sedá-la. Algo que eu não poderia permitir.
Voei em cima dele, enquanto Mário cuidava do outro como podia, usando
um banco da sala para agredi-lo. Rendi meu adversário, jogando a seringa no
chão e derrubando-o, atacando-o com socos. Meu momento de ser benevolente
fora com o homem do lado de fora. Aquele ali estava mantendo a minha mulher
como prisioneira. Prestes a sedá-la. Prestes a deixá-la ainda mais indefesa em
meio a uma corja de loucos que poderiam fazer com ela o que bem entendessem.
Ali, a situação era outra, e não consegui pensar com racionalidade. Eu
não podia parar.
Quando o homem perdeu a consciência, dei uma olhada no que fiz com
ele e tudo o que vi foi uma bagunça de sangue em algo que um dia fora um
rosto. Estiquei a mão para pegar a seringa e parti para o outro, para ajudar Mário
que ainda tentava se defender. Por mais que fosse um imenso prazer encher
aqueles capangas de porrada, tudo o que fiz foi enfiar a agulha no filho da puta e
pressionar o êmbolo.
Enquanto ele caía no chão, visivelmente incapacitado, eu e Mário
começamos a desamarrar Christine. Em um rompante de desespero, eu a ergui da
maca no meu colo e a beijei, uma, duas, três vezes. Pensei que nunca mais a
veria outra vez. Pensei que o destino seria cruel ao ponto de nos reunir depois de
três anos de sofrimento, fazer com que finalmente nos entregássemos ao nosso
amor, só para nos separar definitivamente. Mas lá estava ela. Nos meus braços.
De onde nunca deveria sair. Onde cabia perfeitamente.
Tendo-a assim, a certeza de que eu precisava escapar dali com vida era
cada vez mais forte. Tinha que tirá-la daquele lugar. Deixá-la em segurança.
Foi esse pensamento que me obrigou a colocá-la no chão e segurar seus
braços, fazendo-a olhar para mim.
— Você está bem? Pode andar? Está ferida? — questionei, olhando para
ela em busca de algum ferimento, mas respirei aliviado quando balançou a
cabeça em negativa.
— Estou bem. — Ofegante, depois de tanto lutar e gritar, ela precisou
respirar fundo antes de fazer um anúncio que novamente partiu meu coração e
ofuscou um pouco a alegria que sentia em tê-la novamente comigo. — Cléo
também foi trazida para cá. Ela está...
— Aqui...
Uma voz feminina interrompeu a fala de Christine, fazendo com que nós
três olhássemos na direção da porta. Lá estava Cléo; porém, não vinha sozinha.
Uma mulher a rendia, com uma arma em sua cabeça. Uma mulher que usava
uma camiseta frente única branca, exibindo uma parte de sua tatuagem no
ombro: 67. Pelo que eu já conhecia dela, era verdadeiramente obstinada.
Não havia muito o que fazer, portanto, ergui as mãos sobre a cabeça em
rendição, incentivando Mário e Christine a fazerem o mesmo. Eles olhavam para
mim em busca de orientação, e eu simplesmente não sabia o que fazer. Não por
enquanto.
— Vocês estão causando muitos problemas a nós — a mulher falou, mais
parecendo um robô treinado. Era impressionante o quanto as pessoas tendiam a
repetir discursos quando condicionadas a isso.
— E eu acho que vocês estão causando problemas à sociedade — ousei
dizer. Talvez estivesse arriscando demais, levando em consideração que minha
irmã estava ali, de refém, mas não faria muita diferença àquela altura. Era bem
provável que todos nós morrêssemos se eu não fizesse absolutamente nada.
— Problemas? Nós somos a solução!
— Roubando vidas inocentes... A sua, por exemplo...
— O sacrifício de poucos para a salvação de muitos. Nós estamos sendo
treinados para dar um jeito no país. E, consequentemente, no mundo — insistiu
ela.
— Não. Estão sendo treinados para dar dinheiro a esta corporação. Estão
tentando domesticá-los, fazendo-os acreditar em uma missão grandiosa, em
motivos altruístas, mas tudo não passa de um negócio. Eles estão vendendo
vocês. Por motivos baratos. Seria melhor fazer um pacto com o diabo.
Era um bom discurso. Na teoria, é claro. Porque para aquelas pessoas,
não importava o que eu dissesse, suas mentes já tinham sido destruídas por
aquelas ideias absurdas. Faziam uma lavagem cerebral, e eu sabia bem disso,
porque tentaram fazer o mesmo comigo. Por muitas vezes, até quase cogitei a
hipótese de me render e aceitar. Quase me deixei levar e seguir o caminho mais
fácil. Lutar sempre é a escolha mais difícil, mas também a que nos fortalece. Eu
poderia sangrar, cair e sofrer, mas minha consciência permaneceria limpa. Isso
era o que me movia, dia após dia.
— Entregue-se agora e ninguém será morto. Se resistir, sua irmã será a
primeira.
Cléo olhava fixamente para mim, como se quisesse me enviar uma
mensagem. Porém, em meu súbito desespero, não conseguia compreendê-la. A
hipótese que me vinha à mente era que queria me fazer acreditar que confiava
em mim para tirar a todos daquela situação. Era uma responsabilidade muito
grande. Todas aquelas três vidas estavam nas minhas costas. Três pessoas que eu
amava — até mesmo Mário, com quem ainda precisava ter uma conversa muito
séria. Temia não corresponder às suas expectativas, principalmente porque não
via saída.
Não apenas por conta daquela mulher. Ela era apenas uma dentre muitos
que teríamos que enfrentar. Quantas vezes mais fariam Chris, Cléo ou Mário de
refém até que chegássemos à saída? Com quantas pessoas eu teria que lutar para
escaparmos?
— Você sabe que outros como eu já estão sendo convocados. Não sairá
daqui com vida, nem mesmo me matando — ela afirmou, como se lesse meus
pensamentos.
Minha respiração acelerou, enquanto minha cabeça explodia. Meus
neurônios pareciam em ebulição, enquanto tentava encontrar uma forma de tirar
Cléo do poder daquela louca.
Cheguei a iniciar um pedido a Deus, mesmo não sabendo se tinha o
direito de fazer isso. Há muito tempo que não conversava com ele. Desde que
tudo acontecera. Passei a duvidar um pouco de sua existência, mas ele não tinha
me abandonado até ali.
E continuou não abandonando.
Reparei em um movimento muito discreto da mão direita de Cléo. Um
que nem mesmo a mulher que a mantinha como refém conseguiu perceber.
Então era isso que minha irmã estava tentando me dizer? Que ela também iria
lutar?
Fosse como fosse, teria que confiar nela.
Dei, então, um passo à frente, ainda mantendo as mãos erguidas. A
mulher empertigou-se, sem entender.
— Parado, 48! Não se mexa ou eu vou atirar nela! — vociferou, porém,
era fácil sentir que o tom de sua voz havia sofrido uma ínfima alteração. O
treinamento da MR ao menos servira para me ensinar a ler certas expressões em
oponentes. A enfermeira estava começando a ficar com medo. E isso era bom.
Muito bom.
Por isso, não parei. Dei mais dois passos até que ela segurasse Cléo com
mais força e pressionasse o cano da arma de forma mais violenta em sua cabeça.
— Eu vou atirar, eu vou...!
Mas ela nem sequer teve tempo de concluir seu pensamento, pois Cléo
agiu e fincou alguma coisa no quadril da enfermeira maluca. Não contente com
isso, minha irmã ainda retirou sua pequena arma do corpo da mulher e a
apunhalou mais duas vezes — uma na cintura e outra na perna.
Isso foi suficiente para que a soltasse, mas não parecia suficiente para
Cléo, que estava disposta a matá-la. Com a mulher estirada no chão, ela a atacou
mais vezes, e teria continuado se eu não a impedisse, arrancando-a de cima do
corpo.
— Ela está morta, Cléo — Christine anunciou, checando a pulsação da
mulher, agachada ao lado dela.
Havia sangue no rosto da minha irmã. Além daquele que saía dos cortes
que ela apresentava, algumas gotas que esguicharam das feridas da enfermeira.
Com a manga do casaco que vestia — que não estava assim tão mais imaculado
— ela tentou limpar-se, ainda olhando para o cadáver com um semblante
raivoso.
— Vadia! — soltou, como se a mulher ainda pudesse ouvir seu insulto.
Esperava que minha irmã se sentisse mal por ter tirado uma vida, e
imaginava que aquela poderia ser uma reação por conta da adrenalina, que a
mantinha entorpecida. Quando — e não se — tudo terminasse, podia apostar que
as lembranças retornariam cruéis. Eu sabia como era, porque tinha passado por
isso durante a minha primeira fuga. Matara pessoas pela primeira vez e por mais
que o tivesse feito com toda a frieza do mundo, ainda não havia esquecido seus
rostos.
Mário se apressou em pegar a arma do chão e ainda encontrou outra,
presa a um coldre no tornozelo da mulher. Era uma Taurus PT738, daquelas bem
pequenas, que nos seria muito útil. Ele estendeu as duas para mim, mas eu
balancei a cabeça em negativa.
— Fique com a maior e deixe a pequena com Christine. Eu vou ter que
me virar com os punhos mesmo — falei, em uma tentativa de humor negro.
— E eu? — Cléo perguntou indignada.
— Você vem ao meu lado. Está com sede de sangue demais para ficar
com uma arma. Precisamos usar com prudência.
— Pode até ser, mas não vou desarmada. — Ao dizer isso, ela tirou o
casaco, enquanto se encaminhava para os fundos da sala, enrolando-o no
cotovelo. Com a pele protegida, quebrou um espelho preso à parede tomando
dois dos maiores cacos nas mãos.
Eu não sabia por quanto tempo aquilo poderia defendê-la, mas não era
uma má ideia.
Mário entregou a pequena pistola a Chris, destravando-a e deixando-a em
suas mãos trêmulas.
— Tudo bem? — perguntei a ela quando passou por mim. Era uma
pergunta estúpida, eu sabia muito bem disso, mas Christine pareceu entender.
— Acho que finalmente chegamos na Terra do Nunca, não é, Pan? — Eu
sabia muito bem que aquela era uma tentativa das mais fajutas de fingir que
estava tudo bem, usando de uma brincadeira para me convencer. Ainda assim,
para não deixá-la ainda mais apreensiva, abri um sorriso, mesmo sem muita
vontade.
— Vamos acabar com o Capitão Gancho... — Deixando um beijo em sua
testa, guiei-os para sair daquele cômodo, sem deixar de perceber como Christine
olhou para o corpo da enfermeira morta e para os outros dois homens que
deixaríamos ali. Um vivo, e outro, morto. Estávamos começando a causar o
caos. Ainda pequeno, mas esperava que servisse para que saíssemos dali com
vida.
Foram precisos apenas alguns passos para que o alarme soasse. Uma
sirene insuportável, como aquelas de colégio que anunciava que o recreio tinha
chegado ao fim. Paramos no meio do caminho, olhando para cima, para os alto-
falantes que se espalhavam por todo o teto, sabendo o que aquilo significava.
Anunciavam nossa fuga. Era apenas uma questão de tempo para que não
estivéssemos sozinhos naquele corredores.
Mário tomou a dianteira, mostrando-nos o caminho, pois ele era o único
que conhecia. Começamos a correr o máximo que nossas pernas permitiam,
embora todos nós estivéssemos em péssimas condições, principalmente
emocionais.
Passamos por todas aquelas portas fechadas, retornando por de onde
viemos, até chegamos à sala onde deixamos Hans Balzer inconsciente. Estava
aberta, e eu não resisti a olhar lá para dentro, constatando que ele não se
encontrava mais lá.
Mas isso não poderia me fazer parar. Por mais que o quisesse morto,
minha família estava ali comigo. Mesmo que não conseguisse destruir a MR
naquele dia, minha prioridade era tirá-los dali. Eu poderia pensar em outra forma
de acabar com aquela corporação maldita.
As sirenes continuavam a tocar e foi apenas uma questão de tempo até
que vários soldados — homens e mulheres — se colocassem ao nosso redor,
encurralando-nos. Eram mais de dez pessoas. Imaginava que todos, ou a grande
maioria, fossem bem treinados. E o pior: estavam contra nós. Mesmo que fossem
prisioneiros naquela ilha, que tivessem sido levados para lá contra sua vontade,
iriam lutar e nos matar, se fosse preciso.
Ou talvez não, já que nenhum deles estava armado.
Mas nós estávamos. E foi Christine quem deu o primeiro tiro.
Como ela não tinha a menor experiência com armas, acabou acertando o
ombro de um dos homens, o que já foi suficiente para que eu pudesse me
encarregar dele. Sem lhe dar qualquer espaço para revidar, quebrei-lhe o
pescoço.
Então, tudo teve início. Mário atirava muito bem, pelo que consegui ver
enquanto partia para cima de outros dois homens, e eu imaginei que tivera algum
tipo de treinamento, provavelmente na própria MR, mas certamente também
adquirira alguma expertise nos jogos que jogava. Claro que não era a mesma
coisa, mas agradeci por sua habilidade, pois ele acertou a testa de dois soldados
com precisão.
Cléo também partiu para cima de uma mulher, conseguindo feri-la na
barriga com sua arma improvisada, mas não pude ver muito mais coisa, já que
precisei me ocupar dos dois adversários que partiam para cima de mim.
Girei em um chute atingindo um deles bem no rosto, caindo de frente
para o outro, em quem dei dois socos fortes no estômago. Um terceiro veio em
minha direção, e eu desviei de seu punho, tendo tempo de dar uma olhada em
meus amigos. Mário tinha acertado mais dois tiros, um no peito e outro,
novamente, na cabeça. Christine, assustada, também atirava, precisando de três
chances para acertar uma mulher bem no rosto, levando-a ao chão.
Dando dois socos no meu adversário, ouvi mais um tiro e constatei que
se tratava de Mário salvando a pele de Cléo, que fora levada ao chão, ainda pela
primeira mulher contra quem lutava.
Este breve momento que demorei olhando para meus amigos foi
suficiente para que alguém me desse um chute certeiro, que me fez cair no chão,
levemente atordoado. Lutei contra a sensação de desmaio, porque não podia me
entregar. Não podia deixar as pessoas que amava na mão. Não podia permitir
que ficassem sozinhos em meio a tanta gente que lhes queria fazer mal.
Então, fiz todo o esforço para focar minha visão, piscando muitas vezes e
tentando afastar aqueles pontos prateados que insistiam em preencher meus
olhos. Assim que consegui olhar ao meu redor, percebi que um sujeito vinha
violentamente em minha direção, com os punhos erguidos, mas me recompus a
tempo de bloqueá-lo e ainda me esquivar o suficiente para me levantar.
E foi quando a realidade me encarou de frente. Ou melhor, ela veio me
golpeando com muito mais força do que qualquer um daqueles homens seria
capaz de fazer.
Não havia chance para nós. Não quando todas as balas que tínhamos
estavam acabando. Não quando mais pessoas vinham em nossa direção.
Estávamos completamente cercados. Lutar não daria em nada, só nos deixaria
exaustos e feridos.
Talvez eu devesse me entregar. Talvez devesse me ajoelhar ali mesmo,
implorando pela vida dos outros, contanto que eles ficassem vivos. Eu suportaria
anos de torturas, lobotomia e, até mesmo, a morte, se esse fosse o preço para que
os meus amigos pudessem voltar para casa e continuarem suas vidas. Eu jamais
tentaria fugir outra vez e aceitaria meu destino com resignação.
Sim. Eu estava pronto para isso. Mas a pessoa que surgiu na minha frente
fez com que um súbito orgulho subisse à minha garganta quase fechando-a. Não
que sua visão tivesse mudado minha opinião, mas me fez adiar um pouco as
súplicas e a rendição.
Era Edgar... Sorrindo, caminhando lentamente e parecendo muito
relaxado, como se tudo estivesse ao seu favor. Como se ele fosse o dono daquela
merda de lugar.
Enquanto olhava para ele, também me dei conta do que acontecia ao meu
redor. Mário, Chris e Cléo estavam rendidos. Não havia mais armas em suas
mãos, e eles eram contidos por soldados da MR, que mais pareciam robôs sem
emoções.
— Ainda vai tentar resistir, Arthur? Podemos chamar mais pessoas para
detê-los. Quantos mais precisarão vir para que você entenda que acabou? Não
poderá fugir daqui, a não ser que queira matar seus amigos... — falou em
deboche. Ao terminar seu discurso, gesticulou para alguém atrás de mim, e eu
também foi contido.
Com um sorriso ainda mais amplo, Edgar começou a andar na direção de
Christine, parando e encarando-a. Levou a mão a seu rosto, acariciando-o e
agarrando-o com força, colando seus lábios aos dela.
— Tira a porra da mão dela! — berrei e comecei a lutar para me soltar
dos homens que me seguravam, mas levei um soco de um terceiro, bem na boca
do estômago, fazendo-me despencar no chão, com meus braços ainda presos
pelas mãos dos soldados.
Mesmo debilitado pela dor, mantive meus olhos em Christine, que se
debatia para evitar aquele beijo forçado. Contudo, não pude deixar de me
satisfazer, apesar dos pesares, quando Edgar deu um pulo nada gracioso para
trás, com a mão nos lábios que foram mordidos por ela.
— Filha da puta! — ele berrou, dando uma bofetada nela, tão forte, que a
fez cambalear.
Isso me deu forças para novamente me levantar, mas não havia chance de
fazer nada. Havia muita gente contra quem lutar, e três pessoas sem treinamento
e desarmadas. Era inútil.
Mas novos tiros interromperam meus pensamentos, abalando minhas
certezas. Ao meu lado, alguns homens e mulheres começaram a cair, libertando
meus amigos. Um a um. Inesperadamente.
Olhei para a cara de merda de Edgar, temendo que pudesse estar tudo
combinado, mas ele parecia igualmente desnorteado. Apreensivo.
Seria uma esperança?
Quando mais alguns capangas foram abatidos, finalmente pude ver quem
surgia. Homens desconhecidos, com o mesmo porte físico de todos os outros,
mas aparentemente do nosso lado. Mulheres atléticas, usando o “uniforme” dos
soldados da MR. Determinados. Certeiros. Implacáveis.
Em meio a eles, uma pessoa de rosto familiar caminhava, com uma arma
apontada para frente, vindo em nossa direção.
Santiago estava ali. Ele havia mudado de ideia. Era a nossa salvação,
nossa cavalaria.
Capítulo Vinte e Quatro
ARTHUR

Sentia-me ainda atordoado demais para compreender o que acontecia.


Santiago vinha andando em minha direção, com o cenho franzido. Ao
aproximar-se, entregou-me uma arma, enquanto ao nosso redor um caos se
instalava.
De um modo geral, eu sabia o que estava acontecendo, mas minha mente
demorava a conseguir processar. Seria possível que o destino dar uma reviravolta
tão grande ao ponto de nos conceder uma chance? Uma chance... real?
— O que está fazendo aqui? Pensei que...
— Você pensa demais, Rei Arthur. Digamos que hoje eu serei seu
Lancelot...
Dizendo isso, ele simplesmente apontou a arma por cima do meu ombro
e atirou. Virei-me rapidamente para saber o que tinha acontecido e vi um
soldado, bem atrás de mim, cair no chão, atingido na testa. Logo deduzi que ele
tinha me salvado de ser golpeado pelas costas.
Com ele ainda por perto, olhei novamente ao redor e vi uma mulher
conduzindo Mário, Chris e Cléo para algum lugar.
Fiz menção de dar um passo na direção deles, mas Santiago me impediu.
— Ela é das nossas. Vai deixá-los em segurança. São alvos fáceis no
meio dessa bagunça. Quando tudo terminar, você poderá ir buscá-los. —
Assenti, torcendo para que estivesse dizendo a verdade. Minha melhor opção era
confiar nele. Antes que retomássemos a luta, Santiago usou a cabeça para
apontar para uma determinada pessoa. — Vou deixar aquele ali para você. Tenho
certeza que vai saber cuidar dele direitinho...
Quando olhei na direção para onde Santiago apontara, enxerguei Edgar.
Com alguns pequenos ferimentos no rosto, como se alguns socos de brigas
alheias tivessem sobrado para ele, o filho da puta começava a tentar escapar, de
fininho. Mas eu não poderia deixar.
Com um meneio de cabeça para Santiago, segui o desgraçado a passos
largos. Desarmado, ele parecia estar mancando de uma perna; o que era deveras
interessante.
Começamos, portanto, um jogo de gato e rato. Sabendo que eu estava
com uma clara vantagem sobre ele, Edgar começou a acelerar os passos, em uma
quase corrida desajeitada, escorando-se nas paredes. Olhava para trás com os
olhos arregalados, visivelmente apavorados, tentando verificar o quão perto eu
estava de pegá-lo. Mas uma veia sádica começava a pulsar dentro de mim, e eu
apenas andava pé ante pé, seguindo-o sem pressa, com calma, com a serenidade
de quem sabia que iria vencer no final.
Permanecemos neste impasse até que ele caiu mediocremente no chão e
pareceu não conseguir levantar-se tamanha dor que sentia. Tentou uma vez, mas
caiu novamente, em uma posição nada graciosa nem elegante.
Virou-se de barriga para cima, na intenção de continuar de olho em mim,
e começou a arrastar-se como um caranguejo, tentando afastar-se. Para a cena
ficar ainda mais patética, ele só precisava mijar.
— Vamos continuar esse joguinho por mais quanto tempo? — indaguei
pouco depois de um de seus braços falharem, com aquele esforço desesperado, e
ele novamente cair.
— Arthur... você precisa lembrar que... — Ele parecia não ter
argumentos, é claro, mas esperei para ver o que iria dizer. Até que pareceu
pensar em alguma coisa. — Nossos pais eram amigos. Nossas mães se dão bem.
Vai ficar feio para você...
— Para mim? Eu estou pouco me fodendo para a sua família criminosa.
O que vai ficar feio é quando sair na imprensa o tipo de coisa que você faz.
A respiração de Edgar estava ofegante.
— Cara, eles me fizeram uma lavagem cerebral. Me fizeram acreditar
que isso aqui era o futuro. Depois eu me vi nas mãos deles. Você sabe bem como
é...
— Não compare a minha situação com a sua. Eu fui sequestrado. Fui
obrigado a servir a um propósito com o qual nunca concordei. Fui mantido aqui
como prisioneiro. Não tive escolha.
Edgar engoliu em seco, olhando para mim e estendendo a mão quando
apontei a arma para ele.
— Não vai me dar o direito de uma segunda chance?
— Você quer mesmo viver, não quer? — indaguei, e ele apenas balançou
a cabeça freneticamente; seus olhos suplicantes tentando me fazer reconsiderar.
— Talvez eu esteja piedoso hoje.
Sim, eu poderia exercer a empatia e me compadecer de um homem
desarmado que me rogava por sua vida. Eu poderia apenas prendê-lo em alguma
daquelas salas e deixá-lo intacto, livrando minha consciência de mais aquela
morte. Mas a cena dele agarrando Christine há poucos minutos e forçando-a a
beijá-lo trazia uma sensação de náusea ao meu estômago. Eu sabia muito bem o
que teria feito com ela se tivesse a oportunidade. Além disso, ele a levara até ali;
se estava correndo perigo, era por culpa dele. Fora todas as outras mulheres que
foram vendidas como mercadoria por suas mãos.
Por isso, um verme daqueles não merecia compaixão.
Atirei. Não em sua cabeça para uma morte rápida. Não no peito para que
seu coração parasse lentamente. Atirei bem no joelho direito, quase a queima
roupa, esperando que aquele osso explodisse e lhe proporcionasse uma dor
desnorteante.
Não satisfeito, acertei o esquerdo também, só para garantir.
Edgar berrou de tal forma, que eu poderia jurar que a ilha inteira o
ouvira. Chorava como uma criancinha assustada, e tudo o que eu sentia era ainda
mais ojeriza. Ainda mais repugnância por tudo o que ele fizera e que ainda
poderia fazer. Com mulheres indefesas. Com pessoas inocentes. Com o próprio
irmão. Ele merecia morrer, mas não antes de sentir o medo que todas aquelas
pessoas haviam sentido.
Olhei para baixo e me dei conta de que um líquido mais claro confundia-
se ao sangue que escorria de suas feridas. Ele estava se mijando.
— Filho da uma puta! Uma puta que eu tive o prazer de matar
carbonizada! — ele falou ofegante, com a voz embargada pelo choro, porém, a
informação não me passou despercebida.
Ele estava falando da minha... mãe?
— O que está dizendo?
Foi então que em meio ao choro ele gargalhou. Cada tremor de seu corpo
por conta da risada provocava-lhe mais um grito, mas ele continuava parecendo
divertir-se com o que iria me dizer em seguida.
— Eu matei aquela puta velha. Ela e o seu irmão. Aquele babaca
miserável.
Ouvindo tal revelação, ajoelhei-me no chão ao lado dele e agarrei a gola
de sua camisa, enquanto encostava o cano da arma em sua cabeça.
— Você... você... — eu mal conseguia repetir o que ele havia dito. Não
podia. As palavras simplesmente não queriam se formar em minha boca.
— Sim, seu merdinha. Pode me matar também agora, mas deixa um
recado para eu entregar para a sua família.
Minha mão cerrou-se em punho, e eu o soquei, uma, duas, três, quatro,
cinco vezes, com toda a minha força, enquanto soltava um urro de dor. Não
física, mas emocional. Quantas coisas mais seriam tiradas de mim? O quanto eu
ainda precisaria sofrer para encontrar uma paz definitiva?
Quantas pessoas mais eu precisaria perder? Com isso, meu coração ficou
ainda mais aflito em relação àqueles que estavam ali comigo, que esperavam,
assim como eu, saírem daquela ilha com vida.
Eu deveria fazer Edgar sofrer um pouco mais. Deveria enchê-lo de
porrada até que implorasse pela morte. Quebrar aqueles dentes perfeitos e deixar
seu cadáver quase irreconhecível de tanto sangue e hematomas.
Puta que pariu, eu deveria torturá-lo, transformá-lo em um saco de
pancadas e depois matá-lo ainda mais lentamente. Mas não consegui. A dor que
habitava meu peito era tão insuportável que a única coisa que pensava era que
aquele homem não merecia sequer respirar o mesmo oxigênio que eu. Nem por
mais um minuto. Não podia mais ouvi-lo sequer falar.
Foi por isso que puxei o gatilho. Sem hesitar. Acertando a cabeça dele de
olhos fechados, com lágrimas deslizando pelo meu rosto. Não por estar ceifando
aquela vida. Não, para isso eu não dava a mínima. Chorava por não ter feito isso
antes, quando tive a chance. Por ser culpa minha que tantas pessoas que eu
amava estivessem sendo machucadas ou mortas.
Ainda fiquei ali por algum tempo, ajoelhado ao lado do corpo morto de
Edgar, chorando e lamentando por minha família. A cada minuto que passava,
enquanto não conseguia sequer me mover dali, sentia-me um covarde. Os sons
da luta atrás de mim reverberavam pelos corredores da sede da corporação, e eu
queria fazer parte; escrever meu nome na destruição da MR, mas precisava de
alguns segundos. Apenas isso.
Tentava agarrar-me à esperança de que Edgar poderia ter mentido, mas
imaginava ser muito improvável. Eu tinha a arma na mão, ele estava rendido e
pedia clemência. Por que, então, me provocar com uma mentira? Odiava a
hipótese de nunca mais ver minha mãe e nunca poder tentar me acertar com meu
irmão.
Pensar em J.J. me trouxe outro tipo de pensamento: se ele fora morto,
será que tinha mesmo ligação com meu sequestro, como eu suspeitara ser
possível? Ou seria outra pessoa? Se sim, quem?
Muitos questionamentos, mas nenhum deles cabia naquele momento. Era
hora de afastar as dores e fazer o que eu precisava fazer. Destruir aqueles que
estavam me destruindo.
Coloquei-me de pé, segurando firme a arma na mão, e retornei para o
local onde estivera minutos antes.
Havia corpos espalhados pelo chão, todos amontoados sobre pequenas
poças do sangue que escorria. A maioria das pessoas já tinha largado as armas,
provavelmente sem munição, e muitos se viravam lutando no mano a mano.
Ficava difícil saber quem eram nossos adversários, já que eu não
conhecia aquelas pessoas, por isso, aproximei-me de Santiago para ajudá-lo,
uma vez que estava dando conta de três homens ao mesmo tempo.
Cheguei agarrando um deles pelo pescoço e quebrando-o, matando-o
imediatamente. Não era o tipo de abordagem que eu preferia, por me parecer
extremamente covarde, mas não havia espaço ali para ser justo ou jamais
sairíamos com vida.
Depois que cuidei do primeiro, deixei-o dando conta de um e peguei o
outro, começando com um chute em seu estômago e afastando-o de Santiago,
abrindo espaço para que ele pudesse lutar sem interrupções. Aproveitando o
momento de fraqueza daquele que eu tinha acabado de golpear, atirei em sua
cabeça, matando-o, e fazendo o mesmo com mais dois que chegavam.
Vendo-me sem balas, preparei-me para lutar e fui surpreendido por duas
mulheres. Uma delas pulou em minhas costas e antes que pudesse quebrar meu
pescoço, como parecia ser a sua intenção, consegui andar para trás e colidir com
uma parede, com força, ferindo-a. Isso a fez cair no chão, e eu pude dar conta da
outra, desviando de seus socos. Um chute, porém, atingiu-me no rosto, fazendo-
me cambalear.
Isso foi o suficiente para que as duas se colocassem na minha frente e foi
quando percebi que eram idênticas, o que explicava que John e Carlos não eram
os únicos irmãos a serem enviados para a MR. Além disso, elas começavam a
realizar movimentos combinados, espelhados, atingindo-me com chutes de
ambos os lados do estômago. Seria difícil bloquear as duas juntas, mas logo
Santiago surgiu, retribuindo o favor, agarrando uma delas como um verdadeiro
homem das cavernas, jogando-a no ombro e lançando-a contra uma parede com
total violência. A mulher imediatamente caiu desmaiada, tendo batido com a
cabeça, e ele aproveitou para matá-la sem nem sequer hesitar.
Com um meneio de cabeça voltou-se para mim, cumprimentando-me
com aquela expressão sisuda de sempre. A gêmea restante deu um berro
desesperado ao ver a irmã morta e correu na direção dele, para vingá-la, mas eu
a interceptei, agarrando seu braço e puxando-a na minha direção e encurralando-
a em uma parede, oposta àquela onde Santiago jogara a outra jovem. Fechei uma
das minhas mãos em seu pescoço, ainda sentindo o coração cheio de remorso por
estar agredindo uma mulher daquela forma.
Mas — infelizmente ou felizmente — ela conseguiu tornar o meu
trabalho um pouco mais fácil.
— Você não vai conseguir nos destruir — ela falava com a voz falha,
estrangulada por conta da pressão que eu fazia. — Somos muitos. Há muito mais
pessoas nesta ilha... Não vão... — Apertei sua garganta com mais força, e suas
palavras falharam. Seus olhos começaram a se encherem de água, por conta da
asfixia, mas ela lutou contra tudo isso para continuar falando: — Não vão
conseguir acabar com o sonho da MR.
— Sonho? Isso aqui é uma porra de um pesadelo, isso sim!
Mesmo próxima à morte, ela abriu um sorriso.
— Não importa que destruam tudo. Sempre estaremos em sua mente.
Você sempre será um número. Sempre será o soldado 48.
Não foi apenas a forma como ela proferiu estas frases — apesar de ter
praticamente sussurrado, levando em consideração a falta de ar em seus
pulmões. Foi o significado daquelas palavras. O que elas significavam para mim.
Eram reais. Quase palpáveis. De alguma maneira, ela tinha razão. Eu jamais
esqueceria o que havia acontecido comigo ali, jamais recuperaria o tempo que
perdi. Por mais que conseguisse cobrir aquela maldita tatuagem, ela sempre
estaria gravada em minha pele, queimando-a e não me deixando esquecer. Se o
que Edgar dissera fosse verdade, eu não teria minha mãe e meu irmão de volta,
nem se destruísse toda a corporação. Os danos que eles causaram eram
irreversíveis.
Ainda assim, não podia permitir que fizessem o mesmo com outras
pessoas. Por isso, mesmo que tivéssemos que matar um por um, continuaríamos
tentando.
Depois que ela caiu morta aos meus pés, outros vieram, mas aos poucos
fomos lidando com todos, até o momento em que sobramos apenas alguns
poucos — dez, doze no máximo, contando comigo. Alguns dos nossos morreram
lutando naquele corredor, e havia muita gente morta ao nosso redor. Era uma
chacina. Uma coisa terrível de se ver. Mas estávamos de pé. Prontos para mais.
Estávamos todos em silêncio enquanto eu me aproximava de Santiago.
Precisava contar a ele o que a mulher que eu matara me dissera sobre haverem
muitos mais naquela ilha e que provavelmente não nos deixariam sair tão fácil.
Contudo, fui interrompido por mais um grupo que surgia. Por um momento
fiquei preocupado em serem mais adversários, mas eles traziam alguém com
eles. Amarrado. Hans Balzer.
Havia duas mulheres e um homem muito feridos. Uma delas era
carregada por um homem que usava roupa de civil e, por mais que fosse
musculoso e alto, não parecia um dos prisioneiros da MR. A outra era amparada,
assim como o homem, que também vinha com o braço ao redor de alguém.
Pouco atrás, surgiam Cléo, Chris e Mário, também escoltados, pela mesma
soldado que os levara para um lugar seguro. Era hora de tirá-los dali.
Para a minha surpresa, assim que Chris viu o homem ferido que vinha em
nossa direção, ela correu para abraçá-lo, gritando seu nome: Roger. Não demorei
a concluir que deveria se tratar de seu amigo, aquele que ela suspeitara ter sido
sequestrado pela MR. Fiquei aliviado em ter mais este problema resolvido.
Todo este grupo aproximou-se de nós. Cléo me abraçou, e o mesmo fez
Chris, beijando-me logo em seguida, ambas aliviadas por me verem vivo. Mário,
ainda constrangido, apenas me cumprimentou com a cabeça, de longe.
Os dois homens armados que escoltavam Hans jogaram-no ajoelhado à
nossa frente, como um prisioneiro de guerra. Ele não olhava para nós, mantinha
aqueles olhos odiosos fixos no chão.
Antes de decidir qualquer coisa em relação àquele louco, Santiago virou-
se para o homem que carregava a moça desacordada.
— Leve essas pessoas para as lanchas — ele deu a ordem ao rapaz.
Olhei para ele, confuso.
— A MR tem algumas lanchas ancoradas aqui na ilha para a locomoção
de funcionários. Vamos usá-las para escapar. Eu também vim em uma com meu
amigo aqui — ele apontou com a cabeça para o homem com quem acabara de
falar. — Ele não é um soldado desta bosta de lugar, é militar e fez questão de me
ajudar desde o começo. Se não fosse por ele e alguns de seus companheiros —
Santiago apontou com a cabeça para outras pessoas —, eu não conseguiria ter
chegado aqui para te ajudar e soltar essa galera para começar a bagunça.
Muitas coisas foram explicadas com aquela frase. Santiago e seus amigos
militares surgiram e libertaram alguns soldados, que lutaram ao nosso lado. Era
uma pena que alguns estivessem mortos, mas esperava que todos os que ainda
estavam de pé saíssem dali a salvo.
— Obrigado — respondi, mas sabia que nada que eu dissesse seria
suficiente para realmente retribuir o que aquelas pessoas estavam fazendo. —
Vocês podem levar meus amigos em segurança também? — indaguei aflito,
desesperado para tirá-los dali.
— Não! — Chris exclamou. — Não vou sair daqui sem você.
— Se ficarem, podem atrapalhar — foi Santiago quem falou, com sua
peculiar indelicadeza, mas daquela vez eu quase o agradeci pela intromissão e
falta de tato.
Christine olhou para mim de uma forma suplicante, e — merda! — eu
compreendia o que ela sentia. Deixar as pessoas que eu amava para trás era
inconcebível.
— Cara, eu já fiz o que tinha que fazer aqui. Se quiser, posso levá-la
comigo... — Santiago falou dando de ombros, e eu sabia muito bem o que ele
queria dizer com isso. Se eu ainda tivesse algo para resolver ali dentro e quisesse
assegurar a integridade de Christine, ele estaria disposto a levá-la à força até uma
das lanchas.
Talvez fosse o certo. Talvez, naquele caso, levar em consideração os
pedidos dela só nos causasse ainda mais problemas. Porra, se ela ficasse ali, eu
poderia estar assinando sua sentença. Era a minha chance de libertá-la, de
garantir que voltaria para casa naquele dia, apesar de tudo parecer apontar
contra.
Porém, foi só olhar para ela. Para seus lindos olhos castanhos que eu
tanto amava e que me enviavam mensagens desesperadas. Também parecia ter
entendido o que Santiago insinuara com seu discurso, porque arregalou os olhos
e deu um passo atrás, como se temesse que eu pudesse concordar com a ideia.
— Arthur... Não temos o dia inteiro... — Santiago insistiu.
Antes, porém, que eu pudesse responder qualquer coisa, Balzer, ainda
ajoelhado à nossa frente, soltou uma gargalhada.
— Tá rindo do quê, seu merda? — Santiago indagou, dando-lhe uma
forte bofetada com as costas da mão, fazendo-o cair de lado, ainda amarrado
com os punhos para trás.
Despencado no chão, como o saco de bosta que era, ele continuava rindo
como uma hiena, chegando a convulsionar com as próprias gargalhadas.
Fervendo de ódio, Santiago agarrou a gola de sua camisa e o colocou
ajoelhado novamente.
— Você acha que está em condições de rir de alguma coisa? Já se deu
conta do quanto todas essas pessoas te odeiam?
— A morte não me amedronta, soldado 06. Mas quem deveria estar com
medo eram vocês. Não vão sair tão fácil. Ainda há muita gente aqui dentro.
Eu e Santiago nos entreolhamos, sabendo que Balzer estava falando a
verdade. Só havia um jeito de destruir aquele negócio: fogo em tudo.
Mas como?
— Levem essas pessoas lá para fora e deixem os amigos de Arthur
comigo. Eu posso guiá-los depois — Santiago indicou ao militar que ainda
esperava orientações, com a moça desacordada nos braços.
— Chris, venha com a gente, por favor — era o amigo dela falando, e eu
torci muito para que ela lhe desse ouvidos. Porém, cheguei a cerrar as mãos em
punho de frustração quando a vi balançar a cabeça em negação.
— Não posso. Mas estaremos juntos em breve. Vá ver suas filhas.
Ele tomou a mão dela dentro da dele, que estava completamente
ensanguentada, e levou-a à boca, beijando-a. Depois esforçou-se para tocar-me
no ombro, como em agradecimento ou incentivo — eu não saberia dizer.
Os feridos, então, foram guiados até as lanchas, e Santiago apressou-se
em dizer, àqueles que permaneceram lá dentro. Não eram muitos, mas todos
fitavam Balzer com uma expressão de expectativa.
— Sei que tanto eu quanto você temos muita vontade de dar uma bela de
uma surra nesse filho da puta, mas o que acha de darmos as honras aos nossos
amigos, antes que eles se juntem aos outros?
Olhei bem nos olhos pequenos de Balzer, depois de Santiago ter me feito
aquela pergunta, e tudo o que vi neles foi uma total indiferença. Ele realmente
não temia a morte. Parecia um homem com a consciência limpa, certo de que
teria entrada garantida nos portões do céu. Mais uma prova de que acreditava
que seus atos eram nobres, de que o que fazia era certo.
Ainda assim, ele merecia a morte. Merecia mais do que isso, é claro, mas
Hans era como uma doença. Se não fosse eliminado, poderia se proliferar de
forma irreversível. Muitos já acreditavam em sua ideologia, e depois de morto,
certamente se tornaria um mártir, com um potencial muito mais destrutivo.
Havia inúmeros loucos como ele que poderiam pegar aquele projeto insano e dar
continuidade, tornando-o ainda maior e mais perigoso.
Não. Não poderíamos esperar para matá-lo. Não poderíamos hesitar nem
pensar duas vezes. Teríamos que cortar o mal pela raiz antes que sua palavra se
espalhasse ainda mais; antes que fosse tarde.
Enquanto eu o analisava, ele me observava de volta, com um tom de
deboche insuportável. Isso aumentava a minha fúria de tal forma que ela poderia
facilmente me destruir por dentro. Além disso, aquelas pessoas mereciam
vingança.
Sendo assim, cerrei minha mão em punho e o golpeei no rosto com muito
mais força do que Santiago fizera, deixando-o outra vez cair no chão. Mas
consciente, é claro, porque eu odiaria que perdesse o melhor da festa.
— Façam as honras... — disse para os homens e mulheres ao meu redor,
com uma pequena reverência debochada.
Sabendo, então, que seria muito bem tratado, passei por cima dele no
chão, dando as costas para a cena. Santiago me seguiu, puxando a mim, Chris,
Mário e Cléo para um canto, parecendo ter algo a dizer. Conforme nos
afastávamos, os sons do caos preenchiam meus ouvidos. Quase sorri. A
violência, às vezes, tinha a sua beleza.
Afastamo-nos um pouco e chegamos a um ponto onde era possível
enxergar o corpo de Edgar à distância. Imediatamente segurei a mão de Chris,
esperando senti-la estremecer ou nervosa de alguma forma. Mas ela ficou firme,
apesar de tudo.
— Sinto muito — sussurrei para ela, temendo que aquela cena pudesse
fazê-la sentir-se reticente em relação a mim. Imaginava que depois de tudo pelo
que estávamos passando ela perdesse completamente a fé em nós como casal.
Era como uma contagem regressiva; apenas uma questão de tempo para que
passasse até a me odiar.
Contudo, ela era muito mais forte do que sua aparência doce e frágil
demonstrava.
— Sente pelo quê? Por ter matado aquele cara? — indagou com o cenho
franzido. Balancei a cabeça, assentindo. — Ele não teve menos do que merecia.
Não disse mais nada do que isso, mas a expressão de raiva que sustentava
dizia muito mais.
Caminhamos mais um pouco, até que Santiago parou subitamente, como
se tivesse encontrado o local perfeito para começarmos a falar.
— Você entende que não há outra forma de destruirmos isso aqui se não
for de vez, não entende? Um estrago de verdade — ele falou diretamente para
mim, como se lesse meus pensamentos. Aquela também era uma conclusão à
qual eu já tinha chegado.
— Sim, eu sei. Só não faço ideia de como. Este lugar é enorme.
— Há uma forma — ele afirmou. — Estudei o mapa desta instalação
várias vezes, conheço tudo aqui como a palma da minha mão. — Apesar da
esperança de realmente haver uma maneira de acabarmos com aquele pesadelo,
eu sentia, pelo tom de voz de Santiago, que aquela opção traria alguma
consequência que não me agradaria em nada.
— O que tem que ser feito? — Cléo, sempre ansiosa, foi a primeira a
perguntar.
Santiago hesitou, ainda olhando para mim. Quando respondeu, porém, o
fez com um grande pesar.
— Tem uma sala no último andar com sistema de destruição automática.
Uma espécie de detonador. O problema é que eu conversei com um engenheiro
que trabalhou aqui, e ele disse que, ao ser acionada, esta bomba desliga toda a
energia do prédio, inclusive os elevadores. Como consequência, todas as portas
também são seladas instantaneamente. E levando em consideração que a
contagem regressiva é de cinco minutos...
Eu havia entendido exatamente o que aquilo significava. Um sacrifício.
Alguém precisaria ficar ali dentro para subir até o último andar, acionar o
detonador e aguardar a breve contagem regressiva até que tudo fosse pelos ares.
Quem ficasse, explodiria junto com a ilha.
— Não há uma maneira desta pessoa também escapar?
— Não. Esta mesma sala do detonador possui todo o sistema de controle
das instalações da MR. A pessoa precisará subir, esperar um tempo para que
escapemos e selar as portas. Depois, terá que acionar a explosão e aceitar seu
destino.
— Se as portas são seladas nesta sala de controle, como vocês entraram?
— Cléo perguntou de forma pertinente.
— Descobrimos uma entrada de duto de ar no mapa, que conseguimos
abrir. Eu entrei, rendi o pessoal lá em cima e abri todas as portas. Quem quer que
vá subir, terá metade do trabalho feito. Tem uma galera morta naquela sala.
Enquanto Santiago se explicava, meus pensamentos giravam na
velocidade da luz. Eu sabia muito bem o que tudo aquilo significava. Não
haveria final feliz naquela história. Não que em algum momento eu tivesse
acreditado em um. Não com minha mãe e J.J. mortos. Contudo, acontecesse o
que tivesse que acontecer, o certo seria feito. Aquele lugar odioso iria pelos ares
e ninguém nunca mais iria sofrer o que sofri. Ninguém mais iria perder a família
de forma tão absurda. Ninguém mais seria transformado em um zumbi como
Sandro.
Sim, era o certo a fazer. E eu sabia qual seria o desfecho da história.
Antes, porém, que eu pudesse responder alguma coisa, senti uma mão
pequena se fechar em meu punho. Precisei fechar os olhos antes de me virar na
direção de quem me segurava, porque seria doloroso demais olhar para ela.
Ainda assim, era necessário. Precisava me despedir.
Tomei finalmente coragem para olhá-la, e seus olhos, brilhando por conta
das lágrimas iminentes, logo chamaram a minha atenção. Ela também sabia o
que iria acontecer.
— Não ouse fazer isso, Arthur! Não ouse! — ela falava por entre dentes.
— Já disse várias vezes e repito: não posso te perder outra vez. Não faça isso
comigo!
— Wendy... — sussurrei.
— Não me chame de Wendy se vai me dar uma notícia ruim! — ela
gritou. — Você não pode... — não conseguiu terminar de falar, porque sua voz
falhou.
— Você sabe que é preciso... Não posso deixar mais ninguém fazer isso
no meu lugar. Fui o causador desta guerra; então, serei eu a terminá-la.
As lágrimas de Christine finalmente começaram a cair. Minha irmã, por
sua vez, jogou-se nos braços de Mário, também aos prantos. O semblante de meu
amigo, porém, ao tomar Cléo nos braços, estava muito sério, quase solene. De
certa forma, era como assistir ao meu próprio velório. Uma ironia, já que eu
realmente tive um e não consegui estar presente, nem mesmo em cadáver.
Péssimo momento para um pensamento sarcástico.
— Amor — segurei-a pelos braços, forçando-a a olhar para mim —, eu
sempre estarei com você... sabe disso.
— Não! — ela novamente gritou e deu um soco em meu peito. — Não
fale isso! Não! Não! Por favor...
Senti lágrimas queimarem meus olhos também. Abandoná-la era a coisa
mais dolorosa que eu precisaria fazer. Ela não merecia sofrer daquele jeito.
— Arthur... não podemos perder mais tempo... O pessoal pode segurar a
barra para nós, mas não sei quantos doidos ainda podem aparecer.
— Por que você não vai, então, no lugar do meu irmão? — Cléo
finalmente se soltou dos braços de Mário, voltando-se para Santiago com raiva.
— Cléo... — chamei-a com um tom de repreensão, e ela olhou para mim.
— Foi o que eu disse para Chris; esta briga é minha. Santiago veio me ajudar. Só
isso.
Este, por sua vez, continuava parado, com os braços cruzados,
observando-nos sem qualquer reação.
Voltei-me outra vez para Christine, que mantinha a mão firme em meu
punho.
— Por favor, amor, não dificulte as coisas. Por favor... — Eu também não
conseguia parar de chorar. — Eu te amo. Esses dias que passamos juntos fizeram
tudo valer a pena.
Puxei-a para mim para beijá-la, mas ela não correspondeu.
— Não vou te beijar, porque não vou te perder. Se você fica, eu também
fico. — Ela plantou os pés no chão, decidida.
Naquele momento, eu soube o que deveria ser feito. Ela poderia me odiar
para sempre, o que talvez fosse até melhor. Por isso, olhei para Santiago, que já
estava a postos, quase adivinhando o que eu iria lhe pedir.
Com apenas um meneio de cabeça, selei nosso destino. Um movimento
rápido fez Christine ir parar no ombro de Santiago.
— Não, Arthur! NÃO! Não faça isso! — gritou ela.
— Leve-a, por favor. — Esta foi a frase mais difícil que eu tive que dizer
em toda a minha vida.
Santiago assentiu e apenas colocou a mão no meu ombro de forma
amigável. Levando em consideração o que eu já sabia sobre ele, aquele era um
gesto raro.
— Você é um homem afortunado. Esta garota te esperou por três anos.
Eu não tive a mesma sorte.
Puta que pariu! Por mais que não fosse sua intenção, ele conseguiu fazer
doer ainda mais. Conhecia muito bem a minha sorte. Sabia que qualquer homem
daria um braço para ter o que eu tinha. Mas eu estava pondo tudo a perder.
— Só... — minha voz falhou, mas respirei fundo para poder continuar. —
Só cuide dela.
Ele novamente assentiu, decidido. Indicou a nós o caminho das lanchas e
afastou-se, levando boa parte do meu mundo consigo.
Ainda consegui escutar os gritos de Christine cada vez mais baixos, mais
distantes, mais inalcançáveis, enquanto Santiago se juntava aos outros, que já
tinham acabado o serviço com Balzer, para que pudessem todos chegar até as
lanchas.
Eu não iria me fazer de durão em um momento como aquele, dizendo
que não estava com medo, que a morte não me assustava e que não me
importava de deixar tudo para trás, mas seria uma mentira.
Como se não bastasse ter que lidar com Christine, assim que me virei na
direção das duas outras pessoas que estavam comigo, vi Cléo destruída. Não que
tivesse me esquecido dela, mas esperava que fosse mais compreensiva.
— Cléo, por favor... — disse, esperando que não escolhesse jogar o jogo
da forma mais difícil. — Mário... — Se fosse preciso tirá-la dali da mesma
forma como Christine, eu pediria a ele. Eu só queria que todos estivessem em
segurança. Quando fosse deixado sozinho, poderia chorar e me lamentar.
Naquele momento, precisava ser forte.
— Não! Você não vai me tirar daqui à força, como se eu fosse
descartável. — Eu estava prestes a dizer que não fora essa a minha intenção com
Christine, mas ela ergueu um dedo, me impedindo. — Eu odeio você, Arthur!
Odeio o que está fazendo; o que já nos fez sofrer… — Fez uma pausa,
respirando fundo e acrescentando: — Mas pelo mesmo motivo que te odeio, eu
te amo. Amo que seja um herói, que esteja fazendo um sacrifício deste tamanho
para salvar tantas pessoas…
Ela era mais madura do que eu imaginava. Via em seus olhos o quanto
estava sofrendo para me dizer tudo aquilo, porém, sabendo que não conseguiria
me fazer mudar de ideia, preferia facilitar, dizendo adeus.
Quando jogou-se em meus braços, trêmula, eu a apertei contra mim,
como se fosse o último resquício de vida que me restava.
Ela não demorou a se afastar, recompondo-se e empertigando-se,
demonstrando uma imensa coragem.
— Eu vou aceitar essa sua decisão… — ela disse.
— Mas eu não.
Virei-me para Mário e o vi com uma arma estendida na mão, apontando-
a para mim. Por um momento cheguei a acreditar que estava me traindo outra
vez, mas havia lágrimas em seus olhos.
— Mário... o que...? — comecei a perguntar, apenas para ouvi-lo falar,
porque eu já compreendia o que estava acontecendo.
— Não vou deixar que se sacrifique dessa forma — ele alterou a voz.
Chorava como uma criança. — Você é o cara que precisa permanecer vivo. Ficar
com a garota e ser feliz para sempre. É assim nos filmes.
— Filmes, Mário! Isso aqui é a vida real.
— Mas não precisa ser! Eu estou aqui! Sempre fiz parte dessa merda por
espontânea vontade. Ajudei, de alguma forma, a tornar tudo isso o que é hoje.
Tenho culpa pra caralho no cartório e está na hora de provar que valho alguma
coisa. — As mãos dele tremiam, então, estendi as minhas, na intenção de tentar
desarmá-lo.
— Você vale... já deu várias provas disso. Não precisa ir a extremos.
— Nem você!
— Mário, onde você conseguiu essa arma? — perguntei, na tentativa de
mantê-lo falando, distraído.
— A moça que nos escoltou até a sala vazia deixou comigo para o caso
de precisarmos. E agora estou precisando. Vá para as lanchas, Arthur. Vá ficar
com a sua garota; ela não merece sofrer mais do que já sofreu.
Cléo, à minha frente, parecia ainda mais nervosa. Estava clara a sua
preferência. Por mais que estivesse interessada em Mário, eu era seu irmão, ela
me amava. Contudo, travava uma imensa batalha para não dizer nada e não
influenciar escolhas. Eram vidas em jogo ali.
Eu queria mais tempo para decidir, para pensar. Não podia deixar aquele
garoto morrer no meu lugar, por mais que eu quisesse viver. No entanto,
novamente a maldita sirene começou a soar. Seria uma questão de tempo para
que mais soldados surgissem e, daquela vez, estávamos sozinhos. Nossos aliados
já tinham debandado.
— Vai, Arthur! Estamos perdendo tempo! — Mário gritou, ainda
apontando a arma para mim. Ele não iria atirar, eu tinha certeza disso. Muito
menos quando a virou para Cléo. — VÁ EMBORA! Ou está duvidando de mim
outra vez? Acha que estou do lado deles? Pois não estou! Você vai entender
tudo... Agora não tenho tempo para explicar...
Do quê ele estava falando? Se o deixasse ali naquele lugar, eu nunca
saberia de nada, porque ele não poderia me contar.
— Arthur... — Cléo sussurrou, colocando a mão em meu braço.
— Tire a sua irmã daqui, porque eu não vou tirar. Não vou jogá-la no
meu ombro como Santiago fez com Christine. Se não sair agora, eu vou subir e
vamos morrer todos. É isso o que você quer? — Como eu hesitei, ele deu alguns
passos para trás.
— Espere! — foi Cléo quem falou.
Ouvindo-a, Mário parou. Minha irmã, então, aproximou-se e o agarrou,
beijando-o nos lábios com vontade. O primeiro e último beijo dos dois. Sim,
porque eu sabia que não haveria forma de convencer meu amigo do contrário.
Quando Cléo o soltou e veio a mim, Mário abriu um sorriso desanimado
em meio às lágrimas.
— Tá vendo? Até valeu a pena bancar o herói. — Limpando os olhos, ele
se voltou para mim. — Obrigada por tudo, cara. Pela confiança e, outra vez, me
desculpa.
Eu ia dar um passo à frente para tocá-lo; para tentar abraçá-lo, mas ele
não quis. Estendeu a mão, me impedindo, provavelmente com medo de que eu o
desarmasse. Então, saiu correndo, fugindo de nossas vistas, perdendo-se nos
corredores daquele lugar de merda, que seria seu túmulo.
Capítulo Vinte e Cinco
CHRISTINE

O mundo mais parecia um borrão. Mal conseguia enxergar nada ao meu


redor, e tudo o que eu ouvia eram sons indistinguíveis de pessoas falando sem
parar. Havia choro também. Muito. Aquela gente estava sendo salva de um
pesadelo; iriam voltar para suas casas, para suas famílias, e eu deveria estar feliz
por isso. Deveria estar comemorando a destruição daquele lugar que trouxe
tantas desgraças para a minha vida, mas não conseguia sequer me mexer.
Assim como eles, eu também chorava, mas em silêncio. Não pela
liberdade que ganhei, mas pelo que perdi.
Eu sabia que Santiago estava me observando. Apesar de seu jeito bruto,
fora ele quem me deitara no local onde eu ainda permanecia imóvel, com toda a
gentileza possível. Também fora ele quem colocara um cobertor sobre meu
corpo, encolhido e trêmulo, estirado na lancha. Porém, eu não sentia frio. Era
medo. Medo do momento em que ouviria a explosão, de que veria a ilha indo
pelos ares, engolindo o amor da minha vida com ela. Outra vez.
Mais medo eu tinha de quando aportássemos — aparentemente em Angra
dos Reis —, e eu precisasse me levantar e saltar em terra firme. Duvidava que
minhas pernas pudessem sustentar o meu peso. Duvidava que teria forças para
caminhar e seguir em frente. Sair daquela lancha seria o mesmo que dar o
primeiro passo em direção à vida miserável que me esperava.
Não conseguia ainda pensar no que faria. Não conseguia imaginar mais
anos como aqueles que passei sem Arthur, e agora sem nenhuma esperança de
que ele voltaria, sabendo como poderia ter sido um futuro com ele.
Pensar em tudo isso trouxe novas lágrimas aos meus olhos. Sentia que
chegaria o momento em que eu secaria por inteiro de tanto chorar.
A lancha se afastava mais e mais da ilha. Eu não queria olhar, mas era
inevitável. Não queria ter fé, mas esta não me abandonava. Por isso, quando ouvi
uma voz familiar, ao longe, a me chamar, eu nem dei atenção, porque jurei que
se tratava da minha imaginação me pregando uma peça.
Mas a voz chamou de novo. E Santiago veio em minha direção,
cutucando-me com delicadeza e apontando para alguma direção.
Levantei-me um pouco trôpega, colocando a mão nos olhos para protegê-
los do sol, principalmente por estarmos em mar aberto. Ao olhar para o lado,
demorei um pouco para conseguir enxergar direito, mas o vi.
Deus, eu realmente o vi.
De pé em outra lancha, que pareava com a nossa, enxerguei Arthur.
Primeiro pensei ser uma miragem, mas quando ele pulou em alto mar e começou
a nadar na direção da embarcação onde eu estava, lutei para conseguir respirar
de tanto desespero.
Não havia ar suficiente em meus pulmões para suportar a emoção. Jurei
que acabaria desmaiando ali mesmo, mas me segurei, porque precisava vê-lo à
minha frente antes de surtar e acreditar em meus olhos falhos. Controlei-me,
porque tocá-lo era muito mais importante do que qualquer mal estar que pudesse
estar sentindo.
Ele subiu na lancha com a ajuda de duas pessoas. Quando se aproximou,
eu tremia tanto que mal conseguia me mexer. Arthur também parecia
emocionado, com olhos vermelhos e a respiração falha pelo esforço. Precisei de
um esforço sobre-humano para erguer a mão e tocá-lo no rosto, como se quisesse
comprovar que era mesmo real.
As pontas de meus dedos sentiram sua pele gelada da água do mar, mas a
sensação foi a mais cálida possível.
— Você voltou para mim... — sussurrei, quase não conseguindo ouvir
minhas próprias palavras.
— Sim. Outra vez... E vou voltar sempre... — As mãos dele logo tocaram
meu rosto também, e seus olhos, apesar de tristes, demonstravam tanta ternura
que chegava a ser doloroso. — Você me negou um beijo de despedida...
Balancei a cabeça, assentindo, envergonhada e sentindo as lágrimas
desabarem como um verdadeiro temporal. Uma tormenta avassaladora que nem
começava a externar o quão pesada era a nuvem dentro do meu coração.
E então ele me beijou. Tomou meu rosto entre suas mãos e selou nossos
lábios. Havia muitas perguntas a serem feitas, mas eu também precisava daquele
beijo. Precisava sentir Arthur em minha pele, em minha língua, para só então
conseguir acreditar que não se tratava de uma ilusão; que não era um delírio por
conta do sofrimento. Era real.
Ainda assim, não durou muito tempo. Coisas mais importantes
precisavam ser esclarecidas.
— O que aconteceu? Quem vai acionar a bomba? Onde estão Cléo e
Mário? — Era uma pergunta atrás da outra, e eu vomitava todas elas com
desespero e uma esperança quase estúpida. Para que Arthur estivesse ali, na
minha frente, alguém tinha ficado lá.
Ele demorou para me responder. Baixou a cabeça, parecendo
constrangido. Sua reação me fez olhar para a lancha de onde ele tinha vido. Logo
avistei Cléo, sentada, encolhida. Não chorava, mas seu olhar dizia tudo.
Mário não estava em lugar nenhum.
Foi então que compreendi.
— Não! — minha exclamação saiu mais como um gemido. Como aceitar
que aquele rapaz tão doce... aquele menino... tinha se sacrificado por nós? —
Mário... ele...
Arthur balançou a cabeça em concordância.
— Eu tentei impedi-lo. Tentei, só que ele... ele apontou uma arma para
Cléo. Eu sabia que não iria atirar, mas... — Arthur começou a chorar como uma
criança, e eu o abracei, tentando confortá-lo, embora também chorasse.
Ficamos alguns minutos assim, unidos e lamentando a perda de uma
pessoa que ambos aprendemos a amar, até que, já longe de nós, por conta do
caminho percorrido pelas lanchas, vimos a ilha ir pelos ares, enquanto uma
nuvem de fumaça se erguia até o céu. Sobressaltei-me nos braços de Arthur, que
me segurou com mais força, enquanto as pessoas ao nosso redor comemoravam
a destruição de seu maior pesadelo.
Claro que eu entendia suas alegrias, mas chegava a ser um pouco
mórbido ter a coragem para comemorar algo que demandou o sacrifício de
alguém. Sendo assim, por mais que eu também estivesse satisfeita com aquela
parte do desfecho, jamais pensaria naquela explosão como uma salvação. Não
quando a vida de um rapaz tão incrível fora o preço.
Aninhei-me ainda mais nos braços de Arthur, enquanto continuávamos a
seguir para terra firme, onde o resto de nossas vidas nos esperava.
***

ARTHUR

Demoramos horas para realmente chegarmos em casa.


Aportamos em Angra dos Reis e precisamos esperar por um transporte,
que nos seria concedido pelo exército. O amigo de Santiago deu alguns
telefonemas e conseguiu esse apoio, afinal, nenhum de nós tinha dinheiro para
voltar para casa de ônibus, uma vez que estávamos com a roupa do corpo.
Alguns soldados liberados naquele dia ficariam sob tutela do próprio
exército, para acompanhamento psicológico e para poderem se reintegrar à
sociedade. Muitos, provavelmente, tinham sido dado como mortos e precisariam
de ajuda para encontrarem suas famílias e retomarem suas vidas. Eu, por minha
vez, só queria ir para casa.
Fui deixado, acompanhado de Cléo e Christine, em frente à mansão.
Precisei parar um pouco antes de cruzar os portões, temendo o que iria encontrar
ali.
Santiago, que estava no mesmo veículo que eu, saltou e colocou a mão
sobre o meu ombro. Já tinha lhe contado o que havia acontecido.
— Seja forte, amigo — ele murmurou, dando alguns tapinhas nas minhas
costas.
— Pensei que não quisesse ser meu amigo.
— E não quero. Fomos parceiros em uma missão, mas espero nunca mais
te ver. — Diante daquele aviso, que era quase uma ameaça, abri um sorriso
desanimado e troquei um cumprimento formal com ele. — É melhor para todos
nós que sigamos nosso caminho. Ou nunca iremos esquecer...
Assenti. Santiago tinha razão. Aquele cara salvara a minha vida, mas eu
sabia que dificilmente o veria de novo. E quando acenei para ele, depois de vê-lo
entrando na van do exército, soube que era uma despedida definitiva.
E, naquele momento, enquanto cruzava o portão da minha própria casa,
preparei-me para mais um adeus.
Chris amparava Cléo, que estava desconsolada. Todos nós havíamos
perdido muitas coisas nos últimos dias. Chegava a ser revoltante que ainda
tivéssemos lidar com mais sofrimento.
Contudo, antes que pudéssemos entrar pela porta principal — tocando a
campainha como se fôssemos visitas, já que ninguém ali estava com chave, nem
sequer bolsa —, Maria, nossa governanta, veio correndo nos receber.
— Ai, meu menino! — Ela me abraçou. — Que bom que está de volta...
pensei que nunca mais iria te ver outra vez... — Apertei-a contra mim também,
feliz por aquele consolo. Porém, não durou muito, pois ela logo me afastou. —
Já sabe da sua mãe e do seu irmão? — perguntou aflita.
— Sim, Maria, eles...
— Seu irmão, infelizmente... — ela hesitou, chorosa. — Mas sua mãe
está no hospital. Com seu tio. Ela está bastante ferida, mas vai sobreviver.
— Com Sidney? — Chris indagou aflita. — Arthur, precisamos ir para lá
agora! Foi Sidney! Ele te indicou para a MR e ajudou Edgar a nos sequestrar.
Sidney?
Meu tio? Meu próprio tio? Mas...
Aquilo não fazia sentido algum, tanto que minha cabeça começou a girar,
e eu me vi agindo em modo automático. Eram muitas informações dentro de um
único minuto de existência, mas uma delas era mais importante do que todas, até
mesmo do que apontar um culpado. Minha mãe estava viva.
Cléo agiu mais rápido do que todos nós, pedindo que a esperássemos. Em
seguida, entrou na casa, demorando alguns minutos para retornar. Quando
voltou, tinha em mãos a chave de seu carro e sua bolsa. Também conseguiu
pegar a carteira de Christine, que ficara em casa quando ambas saíram
desesperadas para acudir Mário. Além disso, entregou-me algum dinheiro, que
poderia ser necessário.
Com tudo o que precisaríamos, corremos para o automóvel de Cléo e
entramos, permitindo que Christine, a menos abalada pelas notícias, dirigisse.
Seguimos para o hospital informado por Maria. Aflitos, conversamos
com a recepcionista, que rapidamente nos guiou até o quarto onde ela se
encontrava. Estávamos ainda dentro do horário de visitas, mas minha mãe
dormia profundamente por conta de sedativos. Pude vê-la apenas por alguns
minutos, com ataduras e alguns curativos, e perguntei pelo médico para saber
mais sobre seu estado.
A enfermeira foi chamá-lo, enquanto aguardávamos no corredor, e ele
prontamente nos recebeu, cumprimentando-nos e pondo-se à disposição para
explicações.
— A sua mãe chegou aqui apresentando pequenas, mas profundas,
queimaduras de segundo grau nos braços e pernas. Também inalou muita fumaça
e teve as vias aéreas queimadas, então, precisamos submetê-la a alguns
procedimentos. Estava acompanhada pelo irmão, que me contou sobre o
acidente. Pelo que ele disse, ela teve sorte.
— Acidente? — foi tudo o que consegui dizer. Já sabia que era uma
mentira, porque Christine havia me contado toda a verdade. Ela vira muito
pouco do que acontecera, mas sabia que Edgar tinha colocado fogo no carro
onde estavam minha mãe e J.J.. E foi exatamente dele que perguntei logo em
seguida: — E meu irmão? O senhor sabe alguma coisa?
— Sim, infelizmente. Seu tio conseguiu tirá-lo do carro também, mas ele
permaneceu mais tempo dentro do veículo e teve uma intoxicação respiratória,
que o levou a óbito. Além disso, mais de cinquenta por cento de seu corpo ficou
queimado, porque tentou proteger sua mãe jogando-se em cima dela —
respondeu com pesar.
— Mas o que temos que fazer agora em relação à minha mãe? Ela vai
poder ir para casa? — Cléo indagou.
— Ela passou a noite aqui e não houve qualquer incidente, então, creio
que amanhã já poderemos liberá-la, depois de realizarmos mais alguns exames e
se estiver tudo em ordem. — Ele fez uma pausa, olhando para nós três de cima a
baixo. — Vocês se incomodariam de passar também por um check-up?
Principalmente você — dirigiu-se a mim. — Tem alguns ferimentos bem feios
por aí.
— Dê uma olhada nelas duas primeiro — pedi, apontando para Chris e
Cléo.
— Nada disso, Arthur. Você está em pior estado do que nós — Chris
insistiu.
— Eu tenho uma coisa a fazer antes. Vocês podem ficar aqui com a
minha mãe? Não vou demorar.
— Arthur, o que você vai fazer? — Preocupada, Chris colocou a mão no
meu braço, mas eu a segurei também, olhando em seus olhos.
— Acabou agora. Eu só preciso fechar a última ponta solta.
Ela pareceu compreender o que eu queria dizer, portanto, soltou-me,
deixando-me sair sem outra explicação. Peguei o elevador e desci até a recepção,
sendo recebido por uma enfermeira que me olhou como se eu fosse um zumbi.
Ao olhar meu reflexo no espelho logo atrás dela, percebi que realmente estava
em péssimo estado. Pálido, com os olhos inchados e com alguns ferimentos no
rosto. Não demoraria para alguém mandar me internar também.
Dei a ela os dados do meu tio, querendo descobrir se ele ainda estava
dentro do hospital. Porém, fui informado de que seu crachá de acompanhante
fora devolvido uma hora atrás, quando fora embora.
Pedi, então, para usar o telefone, explicando que se tratava de uma
urgência, e ela me autorizou.
Disquei o número da empresa do meu pai, anunciando-me com outro
nome qualquer e pedindo para falar com a secretária dele, que prontamente
atendeu. Quando pedi para marcar uma reunião, ela deu com a língua nos dentes,
informando que seu chefe tinha acabado de pedir uma passagem para Portugal
com urgência e que não tinha previsão de retorno.
Ótimo. Então, eu saberia exatamente onde encontrá-lo.
Peguei o carro de Cléo e antes de partir para o endereço de Sidney, dei
uma limpada em meu rosto em um banheiro público e troquei de roupa,
comprando qualquer coisa em um camelô. Também passei em alguns lugares
necessários e fiz uma ligação importante, de um celular barato que consegui em
uma loja de pré-pagos usando os cartões da minha irmã.
Assim que cheguei ao meu verdadeiro destino, parei um molequinho na
rua, que fazia malabarismos, chamando-o em direção ao carro.
Desconfiado, ele até obedeceu, mas permaneceu com aquela expressão
marrenta até que eu mostrei uma nota de vinte que o fez arregalar os olhos.
— Quer ganhar uma graninha extra? — perguntei. Em um primeiro
momento, ele balançou a cabeça em concordância, mas logo pareceu mudar de
ideia. Eu sabia muito bem o tipo de coisa na qual ele deveria estar pensando, o
que me deixou enojado. Era triste que menininhos daquela idade, não mais do
que doze anos, precisassem conhecer tanto o mal para se protegerem nas ruas. —
Não quero nada impróprio, amigo. Só que você vá até aquele prédio ali —
apontei para o edifício ao qual me referia — e pergunte ao porteiro se o Sr.
Sidney Gonçalves está em casa.
— Só isso? — Ele ergueu a cabeça, ainda inseguro. — Tu vai me dar
vinte pratas por uma pergunta?
— Não. Vou te dar quarenta. Vinte adiantados. — Entreguei a nota a ele,
que saiu correndo em direção ao prédio. Em dois minutos retornou com a
resposta.
— Olha, tio, ele chegou em casa há uma hora pelo que o porteiro ali
falou e num saiu mais. — Isso me fez respirar aliviado. Muito provavelmente
devia ter passado em algum outro lugar para resolver alguma pendência.
— Beleza, parceiro! — Estendi a mão para ele, que me cumprimentou.
Depois, peguei mais uma nota de vinte na carteira e já ia entregando. Porém,
quando ele fez menção de pegar, afastei-a. — Mas não é para comprar drogas,
não, hein?
— Não! Podexá, tio! Brigadão!
E saiu correndo. Eu esperava mesmo que ele não comprasse drogas com
aquele dinheiro.
Saltei do carro, portanto, e me dirigi ao prédio. Meu tio morava ali desde
que se separara de sua esposa, há uns sete anos. Eu e minha família
costumávamos visitá-lo esporadicamente, então, eu conhecia o lugar
relativamente bem.
Desde que comecei a frequentá-lo até três anos atrás, quando foi a última
vez que estive ali, sempre reparei em um defeito do portão da garagem. Mesmo
quando o botão para fechá-la era acionado, ele ainda demorava pelo quase um
minuto para começar a descer, o que me daria tempo suficiente para entrar e me
esgueirar até os elevadores. Esta ideia me veio no exato momento em que o
portão se abriu para a saída de um carro.
Em poucos minutos, eu estava dentro do prédio.
Desci a rampa de acesso à garagem subterrânea e me dirigi aos
elevadores, apertando o andar que eu sabia ser o dele. Torcia para que não
houvesse um desencontro, mas imaginava que não aconteceria, já que, pela
informação passada pelo porteiro, ele não estava ali há muito mais do que uma
hora; e seria necessário um pouco mais do que isso para juntar todas as suas
coisas, preparar uma mala, pegar documentos e resolver algumas pendências.
Cheguei ao seu andar e me coloquei de frente para a porta de seu
apartamento. Eu poderia bater educadamente, tocar a campainha, mas queria o
elemento surpresa. Apesar de estarmos a uma altura considerável, não queria
facilitar ou que ele encontrasse uma forma de escapar.
Por isso, um chute certeiro na altura da maçaneta, usando de uma boa
dose de força, me colocou lá dentro.
Meu tio, muito assustado, olhou na minha direção. Ao me ver, ele deixou
tudo o que tinha em mãos cair, incluindo um celular, o passaporte e mais
algumas coisas que não consegui identificar. Uma mala já pronta estava colocada
ao lado da porta, enquanto uma mochila menor podia ser vista, aberta, sobre o
sofá.
— Pensando em dar um passeio, tio? — indaguei com uma boa dose de
sarcasmo.
Engolindo em seco, ele ficou calado por alguns segundos, ainda me
estudando, parecendo muito surpreso por me ver ali.
— Não esperava que eu sobrevivesse para contar a história, não é
mesmo? Mas estou aqui... E vim acertar as contas.
— Arthur... eu não sei o que te disseram...
— Ah, não sabe? O que podem ter me dito que talvez seja mentira? —
Cruzei os braços contra o peito, com o cenho franzido, mantendo o deboche.
— Eu salvei a sua mãe. Aqueles caras... o Edgar... a MR...
— Sim, eu sei que salvou a minha mãe, mas foi por sua causa que ela
ficou em perigo. E J.J....
— Eu tentei salvá-lo também, mas ele estava algemado ao carro. Sua
mãe estava apenas amarrada. E J.J. se jogou em cima de Selma... Não pude fazer
nada.
— Também estou sabendo disso. Só que há uma pendência muito maior
entre nós, que nada poderá compensar. Você roubou três anos da minha vida.
— Roubei? — ele perguntou com desdém. — Eu te dei foi um futuro.
Você era um babaquinha que não prestava para nada. Só queria saber de baladas
e de gastar o dinheiro do pai. Agora você é um homem. Há certas coisas que
vêm com um preço.
Aquela ladainha arrancou qualquer resquício de paciência que pudesse
restar em mim. Por isso, diminuí a distância entre nós a passos largos e o agarrei
pela lapela do paletó.
— O que você pensa que é? O meu herói? Meu salvador? Por pouco eu
não me transformei um monstro. Um grande amigo e meu irmão morreram;
quase perdi minha mãe e minha irmã... E Christine... ela sofreu muito mais do
que merecia.
— Tudo isso aconteceu por sua causa. Eles estavam seguros até você
resolver voltar e destruir tudo.
Ainda com as mãos em seu terno, arrastei-o até a varanda do prédio,
encostando-o na grade e erguendo-o do chão, deixando-o com metade do corpo
para fora. Eu sabia que era arriscado, que alguém poderia me ver, mas não estava
conseguindo pensar com coerência.
— Está vendo, Arthur? Consegue enxergar a quantidade de violência que
existe dentro de você? — ele falava com um sorriso, mesmo diante das
circunstâncias. — Todo ser humano é destrutivo. Todos nós temos um lado cruel
que, muitas vezes, se sobrepõe à bondade. O que nos resta é saber usar isso ao
nosso favor. Você quer me matar agora, não quer? Então, este é o poder que seu
lado sombrio te dá. O poder de não sentir remorso, de não hesitar.
Mas eu estava hesitando. Por muito pouco, é claro. Porém, eu
compreendia muito bem o que ele queria dizer. Havia dois lados dentro de mim
que batalhavam incansavelmente naquele momento. Um deles me pedia
gentilmente que devolvesse o homem ao chão antes que eu realmente o deixasse
cair lá embaixo, de uma altura de oito andares, e acabasse me arrependendo
depois, pois não seria a minha verdadeira intenção. Ele era meu tio, afinal.
Sangue do meu sangue. Outra parte de mim, em contrapartida, berrava que eu
deveria matá-lo ali mesmo. Restava saber qual das duas venceria.
Respirando de forma inconstante, sentindo meu rosto inteiro queimar de
ódio, fui acalmando-me devagar, deixando que minha razão falasse mais alto.
Coloquei-o no chão e dei alguns passos para trás, com o coração
acelerado, tentando me convencer de que eu era um verdadeiro babaca por
deixar aquele merda vivo.
— Você sempre foi um fraco, Arthur. Eu sabia que não teria coragem de
me matar. Nem mesmo a MR te deu jeito.
— Acho que você tem razão... — disse, pensativo. — Ela não conseguiu
me destruir. Quando voltei de lá, acreditei que era um monstro, que só havia
escuridão dentro de mim. Mas não é bem assim. Não se pode arrancar a essência
de uma pessoa. Assim como não se pode inserir o mal em alguém. Nós sempre
pendemos para um lado. — Fiz uma pausa, novamente respirando fundo. —
Você não se arrepende, né? De nada...
— Não. Ganhei um bom dinheiro, salvei um sobrinho de se tornar um
nada e estava prestes a conseguir muito mais. Se você não tivesse voltado, tudo
estaria perfeito.
— Você passou também a ficha toda da nossa família para eles, não foi?
Mandou matar tantas pessoas... até a pobre vizinha de Christine, uma mulher
indefesa...
— Arthur, você ainda não entendeu... Eu só queria a grana... Só queria o
poder. O que precisei fazer foram apenas consequências. A velha foi apenas um
alerta, assim como a moça parecida com Christine que Vidal matou, mas nem
mesmo assim vocês desistiram.
— Bom saber! — Erguendo a mão, mostrei a ele o celular que havia
comprado, com o aplicativo de gravador de voz acionado. Dei play na gravação,
e esta repetiu basicamente toda a nossa conversa, onde ele confessava muitas
coisas. — Acho que você preferiria que eu te matasse do que ir para uma cadeia
fétida, ainda mais que não tem um diploma, não é? Meu pai te colocou debaixo
das asas dele e te ensinou tudo o que sabe hoje.
— E você acha que eu vou mesmo para a cadeia, seu moleque? Essa
gravação não prova nada. Posso alegar que foi adulterado e...
Com um timing perfeito, barulhos de mais pessoas entrando no
apartamento me fizeram me virar para trás, para ver o que tanto havia assustado
meu tio, ao ponto de deixá-lo com os olhos tão arregalados. E lá estavam
policiais armados, prontos para levá-lo em cana.
— Quem é que não vai para a cadeia mesmo, titio?
O desespero nos olhos dele era tão grande que eu pensei que fosse ter um
colapso. Não duvidava que chegasse a fingir um ali só para conseguir a
compaixão de alguém. Não a minha, é claro.
Contudo, o que ele fez foi bem mais surpreendente — uma total prova de
sua culpa e de sua agonia. Dando passos para trás, ele aproximou-se novamente
da grade da varanda e, sem pensar duas vezes, jogou-se, antes que pudéssemos
sequer nos mexermos para impedi-lo.
A maior ironia foi meu único pensamento naquele momento: lá se vai
mais um bosta deste mundo.

***

ARTHUR

Precisei permanecer no apartamento de Sidney por mais algumas horas


para prestar depoimento e só fui liberado bem mais tarde.
Voltei para o hospital e passei a noite na recepção, com Chris e Cléo, que
também decidiram não arredar pé de lá. Na manhã seguinte, ela recebeu alta.
Desde que despertara, na noite do dia anterior, ela permanecera calada,
assustada, melancólica, apenas chorando e adormecendo de tempos em tempos.
Estava deprimida, o que não era de se surpreender com tudo o que tinha
acontecido, desde a traição de seu irmão até a perda de um filho.
Chegamos, então, na mansão quase na hora do almoço e nos reunimos no
quarto dela. Pensei que continuaria inerte e apática, mas logo chamou meu nome
e abriu-me os braços. Avancei na direção deles como se fosse um menininho
assustado; como costumava fazer quando ainda era criança e voltava para casa
depois uma briga todo ralado.
— Pensei que nunca mais fosse te ver... — ela sussurrou em meu ouvido,
e eu não pude deixar de sorrir.
— Digo o mesmo...
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até eu me afastar e me sentar
em sua cama.
— Sidney está morto — falei desta forma mesmo, como quem arranca
um band-aid e sem coragem de chamá-lo de tio.
Imaginei que pudesse haver algum tipo de sentimento de piedade em
alguma das três mulheres ao meu redor — minha mãe, Chris e Cléo —, mas
nenhuma delas demonstrou absolutamente nada.
— Já foi tarde. Não importa se era meu tio, eu o odeio — Cléo falou bem
baixinho ao meu lado.
— Você o matou? — A pergunta veio de Christine, sempre mais
preocupada comigo. Ela parecia saber o quanto me afetava tirar uma vida, fosse
qual fosse.
— Não. Fiz o certo desta vez. Chamei a polícia, mas ele se jogou da
janela.
Minha mãe levou uma mão à boca, consternada por aquele fim terrível e,
principalmente, pela deslealdade do irmão que tanto amava.
— Eu usei um gravador para incriminá-lo, e ele acabou confessando
também ter sido o mandante da morte de D. Edith. — Com esta revelação, virei-
me para Christine: — Você está livre disso também. — Ela respirou fundo, mas,
por respeito, não aprofundou-se em sua discreta comemoração.
De qualquer forma, ainda que não fosse por Sidney, estávamos de luto.
Meu irmão se fora. Por mais que não fôssemos exatamente amigos, era sangue
do meu sangue, e eu sabia que minha mãe e Cléo iriam sofrer muito ainda.
Pensando nisso, segurei uma mão de cada uma delas nas minhas e
abaixei a cabeça, sem conseguir olhar nenhuma das duas nos olhos.
— Me desculpem. Eu sou o culpado de tudo isso — disse, finalmente,
tomando coragem.
— Não diga uma coisa dessas, Arthur! — minha mãe me repreendeu. —
Chris e Cléo me contaram muito por alto tudo o que aconteceu com você, e a
única coisa da qual me ressinto é não ter confiado em mim o suficiente para
compartilhar seus segredos...
— Não era uma questão de confiança. Eu não podia...
— Tudo bem, posso aceitar isso, mas vou precisar que me conte tudo.
Não agora, é claro... quando estivermos um pouco mais recuperados. Quer
dizer... vocês, porque a perda de um filho e de um irmão é uma ferida que nunca
cicatriza. Assim como a dor de uma traição — ela divagou.
— Aquele filho da mãe... — novamente Cléo se manifestou.
— Sidney estava afundado em dívidas. Seu pai descobriu que ele vinha
desviando dinheiro da empresa para o próprio bolso. Por ser meu irmão, deu-lhe
uma segunda chance, mas o fez devolver o que pegou.
— Então foi por isso que ele me entregou de bandeja para quem pagou o
melhor preço...
Minha mãe deu de ombros.
— Nunca se sabe o que se passa dentro da mente de uma pessoa. É
impossível conhecer um coração que bate fora do seu próprio peito.
Eu compreendi o que ela queria dizer. Era muito perigoso ter fé em quem
nos rodeava. A confiança é o sentimento mais profundo que existe. Quando a
entregamos a alguém, nunca mais conseguimos obtê-la de volta. E quando
partida, jamais pode ser recuperada.
Contudo, por mais estúpido que pudesse ser o pensamento, olhei para as
três mulheres ao meu redor e senti a alma leve. Qualquer uma poderia vir a me
decepcionar um dia... mas, por enquanto, meu coração lhes pertencia. Eu o havia
dividido em pedaços e distribuído essas partes para que batessem dentro do peito
de cada uma delas. E estava deveras agradecido por tê-las ali comigo, em
segurança. Esperava que a partir daquele momento, só nos restasse a paz.
Capítulo Vinte e Seis
CHRISTINE

Fosse como fosse, nossa difícil jornada acabou em morte. Em um


cemitério, velando duas pessoas. Dois enterros. Um real, com um corpo; e outro
simbólico, apenas uma homenagem. Mário e J.J. não estavam mais ali, afinal.
Era somente um rito de passagem.
Conter as lágrimas não era fácil, mas eu estava tentando ser forte por
Selma, que era amparada por Arthur, e por Cléo, que se apoiava em mim.
Já fazia dois dias desde que nos tínhamos nos livrado da ilha, mas eu
ainda acordava de madrugada com pesadelos terríveis, vendo-me presa àquela
maca, sem saber o que iria me acontecer. Esforçava-me ao máximo para não
acordar Arthur, porque sabia que depois de tudo, ele precisava descansar, mas eu
simplesmente não conseguia nem sequer ficar na cama. Levantava-me, pegava
Kibe e ia para a sacada do quarto, sentando-me no chão mesmo para esperar o
dia amanhecer.
Poderia, também, já ter voltado ao meu apartamento, uma vez que estava
fora de perigo, mas ainda não tivera coragem. Começava a cogitar a hipótese de
vendê-lo, mas era uma decisão para depois. Não conseguiria fazer escolhas com
a minha cabeça tão tumultuada. Precisava de um tempo, de serenidade. Nem
mesmo para o trabalho eu havia retornado, mas esperava fazê-lo nos próximos
dias, porque eu sabia que iria ser bom para mim.
Talvez, naquele momento, finalmente estivéssemos fechando um ciclo,
colocando um ponto final em toda aquela história. Claro que ela jamais sairia de
nossas lembranças, mas esperava que se tornasse apenas uma nuvem nebulosa
em meio a um céu azul de esperança.
Volta e meia, Arthur olhava para mim, e eu sabia que a expressão em seu
rosto era de pura preocupação. Nós dois estávamos um pouco diferentes,
abalados. Por mais que soubesse que seria apenas uma fase, minha tristeza fazia
apenas com que se sentisse ainda mais culpado por tudo. Eu me odiava por isso,
mas não conseguia agir diferente. O problema não era ele. De forma alguma. Era
só o caos no qual minha mente ainda se encontrava. Embora soubesse que o
pesadelo tinha acabado, ainda me prendia a ele. O trauma ainda me consumia.
Naquele momento, principalmente, eu precisava de um pouco de ar
puro.
Soltei Cléo por um instante e avisei-lhe que iria comprar uma água e que
iria dar uma andada, mas que queria ficar sozinha. Esperava que ela avisasse isso
ao irmão.
Comecei a me afastar da capela, buscando um lugar específico — as
lápides dos meus pais, que foram enterrados naquele mesmo cemitério, alguns
anos antes. Já fazia algum tempo que eu não os visitava e estava completamente
em falta, embora realmente acreditasse que não havia mais nada deles ali; ao
menos não o que importava, que eram suas almas.
Eu ainda me lembrava da localização das sepulturas, uma ao lado da
outra, para duas pessoas que sempre fizeram tudo juntas; que viveram uma
história de amor daquelas que quase parecem saídas de um filme.
Não que eu não pudesse dizer o mesmo de mim e de Arthur, embora
nosso filme estivesse bem longe de uma história de amor e muito mais próxima
de uma franquia de ação daquelas bem casca grossa.
Isso me fez sorrir. Um sorriso que estava engasgado há dois dias.
Lamentava não ter flores para presenteá-los, embora soubesse que isso
também não era nem um pouco importante.
Respirei fundo, tomada por um misto de emoções, mas nem sequer tive
tempo de começar a conversar com eles, pois uma mão grande e pesada foi
colocada sobre meu ombro. Por um momento acreditei se tratar de Arthur, mas
quando me virei, deparei-me com Santiago.
Apesar de ele ter dado várias demonstrações de lealdade e amizade para
conosco; que, mais do que tudo, tivesse sido nosso salvador no momento mais
difícil, eu ainda me sentia reticente em relação a ele. Era quase como um
cavaleiro sombrio, que parecia não confiar em ninguém, o que me deixava um
pouco tensa, assim como Arthur me deixara no início. A diferença era que
Santiago retornara ao mundo real há bem mais tempo, mas não perdera o ar
obscuro e misterioso. Havia algo de muito incômodo também na forma como
olhava para mim, quase com reverência, o que me deixava ainda mais assustada,
embora pudesse apostar que não me machucaria.
Permaneci de frente para ele, sem falar nada, apenas esperando que me
dissesse o que tinha ido fazer ali. Porém, assim como eu, aquele homem também
parecia um pouco deslocado, como se fosse um grande desafio conversar
comigo.
Ainda assim, ele se esforçou, trocou o pé de apoio e passou a mão pelos
cabelos já bagunçados e vastos, em vários gestos que pareciam servir apenas
para lhe conceder mais tempo.
— Que bom que encontrei você aqui sozinha. — Aquela frase tinha uma
conotação muito suspeita, por isso, ergui o queixo, encarando-o sem vacilar, por
mais que estivesse um pouco apreensiva. — Primeiro porque gostaria de me
desculpar por ter te carregado à força para a lancha.
— Foi um pedido de Arthur, não foi?
— Que eu poderia não ter acatado. Só que... — Santiago coçou a
sobrancelha, muito sem graça. — Olha, se eu estivesse no lugar dele, teria feito a
mesma coisa. Se eu tivesse alguém... — ele novamente hesitou. — Alguém
como você, que não tivesse desistido de mim, que tivesse me esperado por tantos
anos... eu, sem dúvidas, faria qualquer coisa para proteger.
Fiquei em silêncio por alguns instantes, sem saber exatamente o que
dizer, muito menos levando em consideração a intensidade de suas palavras.
— Tudo bem. Não vou guardar nenhuma mágoa — respondi finalmente,
tentando sorrir. — Mas sei que não veio aqui só para se desculpar comigo.
— Não, é claro que não. — Apressado, ele colocou a mão dentro do
bolso de sua jaqueta de couro e tirou de lá um papel, estendendo-o a mim.
Relutante, aceitei-o. — O segundo motivo por estar satisfeito de ter te
encontrado aqui sozinha é que eu precisava entregar esta mensagem para Arthur,
mas prefiro não estreitar os laços entre nós. Sei que ele acha que deve alguma
coisa a mim e não quero que fique na minha cola para tentar pagar essa dívida.
— Não vou mentir para ele. Sabe disso, não sabe? Se me perguntar quem
foi o mensageiro, vou responder — afirmei.
— Não esperava menos de você. — Ele também sorriu, igualmente
desanimado.
— E o que é? — indaguei, erguendo o papel nas minhas mãos para que
ele soubesse ao quê estava me referindo.
— Acho melhor que vocês dois leiam e descubram juntos. Tem a ver
com Mário.
Fiquei subitamente muito séria. O que aquele homem poderia saber sobre
Mário se mal o conhecia? Será que tinha descoberto mais alguma coisa sobre o
rapaz que o incriminaria?
Percebendo minha indignação e preocupação, ele se apressou em
balançar a cabeça em negativa.
— Fique tranquila que não trago más notícias. Na verdade, isto aqui irá
explicar muitas coisas. — Ele colocou a mão sobre a minha, fechando-a sobre o
papel. Depois, abriu um sorriso um pouco sarcástico e acrescentou: — Aquele
garoto era um hacker dos bons mesmo. Conseguiu descobrir meu e-mail de
trabalho, que eu só divulgo para os meus clientes.
Eu não fazia ideia do tipo de negócio no qual Santiago estava inserido,
mas imaginava que não falava abertamente sobre isso pelo tom que inseriu na
voz.
Depois de alguns instantes calado, deixou apenas um meneio de cabeça
como cumprimento e se virou, começando a afastar-se, mas logo voltou-se em
minha direção, de cabeça baixa, mãos nos bolsos da calça jeans e uma expressão
quase envergonhada, como se o que tinha para me dizer fosse constrangedor.
— Não exagerei quando disse ao Arthur que ele é um homem de sorte.
Você é valiosa, Christine. Sei que não quero aproximação, mas... — ele hesitou e
respirou fundo antes de continuar. — Se algum dia precisar de mim... de algum
tipo de proteção, de... — Ele deu de ombros, e um sorriso irônico surgiu em seu
rosto. — Bem... provavelmente não vai precisar de nada disso. O Arthur é mais
do que capaz de cuidar de você.
Novamente não soube o que responder. E quando estendeu a mão na
direção da minha, eu aceitei seu cumprimento, mas fui surpreendida quando, de
olhos fechados, ele a levou aos lábios e deixou um beijo respeitoso entre meus
dedos.
Depois disso, apressado, ele me abandonou ali, de frente para as
sepulturas dos meus pais, surpresa e, possivelmente, segurando uma bomba nas
mãos.
Todos os meus planos de conversar com meus pais foram interrompidos
por aquela súbita aparição. O papel que tinha em mãos parecia pesar uma
tonelada, e eu não poderia abri-lo sem estar perto de Arthur. Também não
conseguiria esperar muito mais para saber o que ele continha.
Voltei para a capela, e Arthur me avistou de longe, vindo em minha
direção, deixando Cléo e Selma abraçadas.
— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou preocupado. Quanto
tempo ainda levaria para que nossas paranoias desaparecessem? Para que
entendêssemos que estávamos finalmente a salvo?
— Santiago esteve aqui.
— Santiago? Onde ele está? — Arthur começou a olhar de um lado para
o outro. — O que ele queria?
— Ele nos deixou uma coisa. — Levantei o papel na altura dos meus
olhos para que ele pudesse vê-lo. — Disse que tem a ver com Mário e que
deveríamos abri-lo juntos. Podemos ir para algum lugar mais reservado?
Ele assentiu com veemência, pegou minha mão e nos guiou até o carro
no qual fomos até o cemitério, que estava parado no estacionamento. Destravou
as portas, abriu a do passageiro para mim e esperou que eu entrasse para dar a
volta e embarcar também.
Dentro da segurança do carro, olhamos um para o outro, como se
tomássemos fôlego.
— Preparado? Seja para o que for? — indaguei, antes de começar a
desdobrar o papel.
— Não sei. Mas acho melhor descobrirmos logo do que se trata.
Concordei e me apressei em acabar com nossas dúvidas.
Assim que o papel estava aberto bem à frente de nossos olhos, pudemos
constatar que se tratava de um e-mail, enviado da conta de Mário para Santiago,
impresso, o que eu já imaginava pelo que o destinatário me dissera. Ele o havia
enviado às três da manhã, na madrugada em que fomos levados à sede da MR,
naquela ilha maldita.
Com o coração na mão, começamos a lê-lo em voz baixa:
Santiago,

Primeiro de tudo, peçp que perdoe meus erros de dighitação, porque


estou digitasndo correndo de um celular de um camarada que reendontrei
aqui na MR, e eu odeio correção automárica. Estou te enviando este e-mail
para te pedir ajuda. Nem sei se tenho o dreito de pedir algo a alguém que eu
mal conhecço, mas Arthur decidiu confiar em você. E eu confio em Arthur,
apesar dos pesares.
Deixa eu explicar, da forma mais resumida possíbel, quem eu sou e o
que eu fiz.
Você vai ciomeçar se perguntando: “Mário? Que Mário?”...
Desculpa a piadinha, sério. Estou nervoso. E quando fico assim, eu
meio que faço essas idiotices.
Eu sou o maior filho da puta da história dos fgilhos da puta. Poderia
dizer que sou quase um Judas, se eu merecesse ser comparado com
qualquer personagem bíblico, seja ele quem for. Fui contratado pela MR em
um momento mujito difícil da minha vida, quando todo mundo pareceu me
virar as costas. Precisava de grana, e ela veio fácil, com uma proposta quase
obcena.
Ou talvez fosse completamente obcena, já que envolvia um bando de
coisas erradas. Mas eu vou entrar nesse assunto já, já.
O meu trabnalho, na teoria, envolvia fazer algumas transações
ilegais, invadir alguns bancos de dados, descriptografar alçguns textos,
descobrir umas senhas... E eu sou bom nisso, tanto que chegueu ao seu e-
mail. Não foi fácvil, mas eu o peguei no dia em que você e Artjur se
encontraram, pois achei que poderíamos precisar.
Bem, resumindo, você entendeu. Meu trabalho não era nada muito
diferenrte do que eu já fazia antes para sobreviver. O diferente foi que, sem
hipocrisia, eu nunca prejudiquei ninguém. Ao menos não de uma forma tão
significativa. E muito menos uma pessoa que não merecesse.
Quando entrei para a MR, eu me vendi. A partir do momento em
que pisei lá dentro, eu não pertencia mais a mim mesmo. Era um produto
deles. Vocês eram os soldados, eu era uma marionete.
Eu realmente saí de lá acrefitando que poderia continuar com a
minha vida sem nenhum problema. Pedi demissão depois que descobri os
podres e caí fora. Só que quando Arthur fugiu, fio a mim ele veio procurar,
e claro que eles ficaram sabendo. Foi apenas uma questão de horas para que
me ligassem e me fizessem ameaças. Não tive sequer tempo de curtir minha
missão com meu parciero, porque fui obrigado a traí-lo. Eles tinham vários
podres ao meu respeito e iriam usar contra mim. Não dá para lutar com
gente poderosa como eles. Ainda mais eu, um fodido da vida. Por isso,
aceitei a parada. Aceitei ficar de olho em Arthur e prometi ir guiando-o no
caminho errado.
Mas Arthur passou a ser meu amigo de verdade. Confiou em mim.
Me deu sua amizade gratuitamente. E os ideiais dele... Só queria (e quer)
fazer a coisa certa. Tão louvável que não pude não me contaminar com os
mesemos pensamentos. Então, o que eu poderia fazer, senão bancar o agente
duplo? Eu o ajudaria, de verdade, e tentaria enrolar a MR. Seria difícil,
mas eu sempre fui um cara esperti.
Até deu certo. Só esperava que, junto com Arthur, conseguisse
destrui-los antes de dar merda de verdade.
O problema é que agora estamos aqui, dew volta a esta ilha que você
conhece muito bem. Sei que está prestes a acontecer uma catástrofe, que
tudo pelo que lutamos... Não. Seria uma injustiça dizer uma coisa dessas.
Tudo pelo que ARTHUR lutou. Eu fui só um algoritmo em uma equação
muito mais complexa. Fui quase um antagonista em uma história que
PRECISA ter um final feliz. Ao menos para ele. Se eu me foder, vai ser
muito bem feito, porque sou um traidor, nada mais do que isso. Mas aquele
cara... Porra, ele merece ser feliz. E aquela garota... a Christine... ela é
incrível, a melhor. Eles já sofreram demais. Nem precisei compreender isso
para decidir mudr de time. Não que alguma vez tenha realmente pertencido
ao grupo dos vilões. Foi só uma questão de não ter escolha.
A verdade... o real motivo para eu estar escrevendo este textão todo é
que eles precisam de você. Precisam de ajuda. Sabe nos filmes? Quando o
cavaleiro solitário, que jurou não se meteer na confusão, aparece de
surpresa para salvar o dia? Cara... seja nosso Jack Bauer, Chuck Norris,
MacGyver... o que você preferir... Faça parte dessa história (sei que ficou
parecendo slogan de universidade particular, mas é sério).
Sei que você pode estar morrendo de raiva de mim, por eu ter
passado um tempo do lado da MR, trabalhando para eles por livre e
esponmtânea vontade, e eu juro que tem razão. Eu não mereço que meus
pedidos sejam atendidos. Mas pense neles... Naquela garota que você não
conhece, mas que eu juro que é a mais legal do mundo. Naquele cara foda
pra caralho, que merece sobreviver e vencer mais do que ninguém.

Abraços.
Mário
(Que Mário?)
(Tá, parei.)

Eu precisei ler duas vezes o final do e-mail, porque meus olhos estavam
nublados demais pelas lágrimas. Ali estavam todas as respostas que tanto
precisávamos; e ainda havia um P.S. escrito com uma caligrafia masculina firme,
a caneta. Provavelmente do próprio Santiago.

“Eu tinha uma fonte na MR, lembra? Por isso, já sabia que você estava
lá dentro. Desde o nosso encontro, deixei algumas coisas prontas, algumas
pessoas avisadas, para o caso de ter que ir salvar a sua pele. Ainda estava em
dúvida sobre o que fazer, e foi o e-mail deste rapaz que abriu realmente meus
olhos. Só precisei de algumas ligações. Vocês devem suas vidas a ele. De todas
as formas.”

Somente isso. Sem nenhum rodeio, bastante direto, como aquele homem
estranho parecia realmente ser. Mas, fosse como fosse, ele tinha total razão.
Mário era o verdadeiro herói daquela história.
Eu e Arthur nos entreolhamos sem dizer nada, mas eu podia apostar, com
quase cem por cento de certeza, que conseguia imaginar o que sentia. Convivi
com Mário bem menos tempo do que ele e já sentia o coração vazio de tanta
saudade, de pesar. Por isso, fiz um malabarismo nada gracioso, pulando a
marcha e me sentando no colo dele, passando os braços ao redor de seus ombros.
Aconchegamo-nos ali mesmo, tentando confortar um ao outro, enquanto ambos
chorávamos baixinho, prestando uma última homenagem a nosso amigo perdido,
do nosso próprio jeito.

***

CHRISTINE

QUATRO MESES DEPOIS

Aos poucos as coisas foram voltando ao normal. Ou melhor... à toda


normalidade que nos era possível.
O balcão da Lattes estava fervilhando às sete da manhã, como acontecia
em quase todos os dias. À minha frente, Maiara gargalhava com alguma coisa
que Kelly e Kayla diziam. Eu e minha amiga tentávamos distraí-las, enquanto eu
observava, de forma nada discreta, Telma e Roger lá fora trocando alguns beijos
apaixonados. Aquela melação era quase diária, e eles estavam tão felizes que
chegava a dar gosto.
— Ah, então quer dizer que está feliz porque trocaram sua irmã de
carteira, e ela vai se sentar longe de você? — Maiara, com a maior paciência do
mundo, ouvia Kelly explicando seu impasse. Olhava para mim de esguelha às
vezes, com um sorriso no rosto, muito impressionada com a destreza da
garotinha.
— Claro, tia. Quando colocam a gente juntas, todo mundo fica me
chamando de Kelly, e eu não sou essa chata.
— EU NÃO SOU CHATA! — Kayla começou a chorar. Era a mais
dramática das duas. Então, precisei dar a volta no balcão e me aproximar dela,
apertando seu narizinho como eu sempre fazia, de uma forma que ela adorava.
— É claro que não. Mas ainda é muito criancinha, não é? — provoquei.
— Não!!! Eu sou mocinha!
— Ah, mas mocinhas não choram assim. Muito menos quando são
chamadas de chatas.
Ela pareceu confusa, tanto que ergueu as sobrancelhas de forma
assustada.
— Mas eu não quero ser uma criancinha...
— Então tem que parar de chorar por qualquer coisa. Você é uma menina
linda, se quer ser uma mocinha, tem que começar a se portar como uma! —
Ergui o queixo, tentando fazê-la me imitar. Quando isso aconteceu, peguei um
guardanapo em cima do balcão e sequei seus olhinhos.
Percebendo que Kayla já estava melhor e que tinha se recuperado,
começando a conversar com a irmã e deixando Maiara em paz, dei novamente a
volta no balcão, passando por Javier, que sorriu. Minha amiga também não pôde
deixar de fazer um comentário:
— Quanto você quer para criar a minha filha? — ela brincou.
Sorrindo, estava prestes a respondê-la, quando a voz do âncora do
telejornal matinal chamou a minha atenção por conta da matéria que era
veiculada.
O nome da empresa Import e do Sr. Queiroga, pai de Edgar, eram
mencionados, e as imagens mostravam um homem de meia idade, cabelos
grisalho e rosto familiar, sendo escoltado até um carro por dois policiais federais
armados. Algemado e parecendo resignado, saía da mesma mansão que sediou o
evento beneficente ao qual eu fui. A casa amaldiçoada que guardava dentro de
seus muros uma das minhas piores lembranças.
O pior era saber que o homem que matei ali dentro não fora o único.
Assim que percebeu o que tinha chamado tanto a minha atenção, Maiara
também se virou para a televisão.
A repórter que acompanhava toda a cena relatava que a investigação
contra a empresa Import finalmente chegara a um resultado, depois de meses de
muito empenho da polícia, tendo se iniciado por conta de uma denúncia feita por
um de seus funcionários, que preferira não se identificar — embora eu soubesse
que tinha sido Paulo.
Além disso, informava que a esposa do diretor, Vânia Queiroga, também
estava sendo investigada como cúmplice e precisaria aguardar em prisão
domiciliar. Edgar fora mencionado, sendo dado como foragido. Só que aquela
era mais uma informação que eu, particularmente, possuía.
Edgar estava morto. Sepultado — irônica e injustamente — no mesmo
túmulo de Mário e de tantas outras pessoas que não mereciam estar ali.
Precisei respirar fundo. Mesmo depois de vários meses, aquela história
ainda me sufocava.
Foi Maiara quem me tirou daquele transe incômodo. Ainda bem.
— Finalmente aqueles filhos da puta estão tendo o que merecem! —
Assim que acabou de falar, ela se virou na direção das meninas, levando a mão à
boca por conta do palavrão, mas, para sua sorte, ambas estavam concentradas
demais brincando com os cupcakes que comiam e não ouviram nada. Em relação
ao seu comentário, apenas assenti, dando uma última olhada para a televisão,
enquanto relatavam sobre as atividades ilícitas da Import, que eu já conhecia. —
O único problema dessa história toda é que Paulo teve que se virar para arrumar
um emprego, né? Ele já está há dois meses naquela droga de pizzaria,
trabalhando de garçom.
— Está longe de ser um emprego indigno, né?
— Mas nenhum de nós dois acha isso. O problema é que não é um
trabalho desafiador, que o faça ter vontade de sair de casa. Dá pena de ver.
— Olha, o Arthur assumiu o lugar do irmão na empresa. Ele não gostava
muito no início, queria abrir o próprio negócio, mas acho que está se
encontrando por lá. Já chega em casa bem mais animado...
— Mas a situação é diferente, né, Chris? Não dá para comparar. Eu sei
que o Paulo não vai se acostumar a ser garçom, até porque...
— Não é disso que estou falando — eu a interrompi. — Estou pensando
em conversar com o Arthur e ver se ele não consegue alguma coisa para o Paulo
por lá. Não posso prometer nada, mas posso tentar.
— Nossa, só de você tentar já vai ser incrível.
— De qualquer forma, eles vão mesmo se encontrar amanhã, no desfile
da Cléo...
— E ela está animada? — Maiara sorriu, enquanto dava um gole em seu
café.
— Está uma pilha de nervos. Mas a coleção está linda, ela arrasou em
todos os modelos, e eu sei que vai dar tudo certo.
— Claro que vai! — Ela deu uma olhada no relógio em seu punho. —
Está na hora de ir. — Pegou a bolsa e inclinou-se no balcão para me dar um beijo
na bochecha. — Obrigada, amiga. Nos vemos amanhã, então.
Ela beijou a cabeça das duas menininhas, deu um tchau para Javier e
saiu, cumprimentando também os pombinhos lá fora.
Não pude deixar de dar mais uma olhada para a televisão, antes de voltar
ao trabalho. Por mais que já estivessem veiculando outra matéria, a imagem
daquele homem sendo levado preso revirou as memórias dentro da minha
cabeça. Contudo, já não sentia tanto peso em meu coração. Aquele era o
primeiro sinal de que um dia iria me curar de tudo aquilo. Um dia.
Um passo de cada vez.

***

ARTHUR

Não era todos os dias que eu conseguia sair mais cedo da empresa.
Apesar de já estar trabalhando por lá há quase quatro meses, ainda havia muita
coisa para colocar em ordem, por mais que J.J. fosse um cara organizado. Meu
tio deixara muitas pendências, irritara alguns fornecedores e mexera nas contas
para se beneficiar. Como ainda não havia nenhuma pessoa de confiança para
ficar no lugar dele, como Gerente de Contas, tudo estava um verdadeiro caos.
Só que aquele era um dia especial, e eu tinha me empenhado muito para
terminar minhas tarefas até, no máximo, cinco da tarde. Também não marcara
nenhuma reunião para depois daquele horário. Não era porque estava assumindo
o lugar que um dia fora do meu pai, sentado em sua cadeira, que iria cometer
seus erros. Isso foi uma das condições para que eu aceitasse aquele cargo. Uma
condição que impus a mim mesmo. Eu jamais deixaria o trabalho destruir minha
vida pessoal. Se um dia tivesse filhos, eu nunca os negligenciaria ou deixaria de
curtir suas infâncias para me afundar em uma empresa.
E, no final das contas, diante de tais exigências, eu precisava concordar
que estava gostando do que fazia. O que era surpreendente.
Agora eu era um homem de negócios, um CEO. Acordava cedo — bem
cedo, principalmente para meus antigos padrões —, gastava algum tempo
puxando ferro — apesar de tudo, eu não pretendia perder o corpo que tinha
conquistado —, tomava um bom café da manhã, aprontava-me e saía. Em alguns
dias, conseguia fazer amor com Christine, antes que ela também saísse para o
trabalho. Como a cafeteria abria muito cedo, ela normalmente deixava a mansão
ao mesmo tempo em que eu descia para a sala de musculação.
Pensar em Christine involuntariamente proporcionou-me um sorriso
bobo.
Vesti, então, meu paletó, despedi-me do pessoal que trabalhava no meu
andar e fui até o estacionamento pegar meu carro. Antes de começar a dirigir, fiz
uma ligação.
— Ei, maninha! Tudo pronto?
— O que você acha, Tuco? — Cléo falou, levemente impaciente. — Saí
de lá agora. Deixei tudo como pediu. Agora vê se arrasa, hein?
— Você é sensacional. Amanhã será o seu dia, hein? Vê se descansa.
— E você, vê se não fica transando a noite inteira ou vai chegar exausto
amanhã.
— Desde quando sexo me cansa?
— Cala a boca que eu não quero ficar sabendo da vida sexual do meu
irmão. Agora desligue e vá buscá-la. Depois me conta tudo.
— Você acabou de falar que não quer saber sobre a minha vida sexual...
— zombei.
Por seu silêncio, imaginei que sua expressão deveria ser de puro desdém.
— Me poupe, Arthur!
Com isso, ela desligou. Não pude evitar uma gargalhada.
Enquanto começava a dirigir, pensava no quanto minha vida tinha
mudado. Não apenas naqueles três anos, mas principalmente nos últimos meses,
depois que todo o pesadelo teve fim. Às vezes ainda era difícil não lembrar, e eu
sabia que Christine e Cléo passavam pela mesma agonia que eu. A primeira, por
exemplo, demorou muito a se livrar dos pesadelos, mas tudo parecia estar
melhor agora. Então, era a hora certa de dar mais um passo.
Peguei o caminho até a Urca, dirigindo tranquilamente e ouvindo uma
música no rádio para aplacar a ansiedade. Quando cheguei, por conta do trânsito,
o sol começava a dar sinais de que iria, em breve, se pôr. Ainda estávamos no
horário de verão, por isso, Christine teimava em fechar a cafeteria mais tarde,
mas sempre que eu conseguia ir buscá-la, o local já estava vazio. Ainda que não
houvesse mais perigo em relação à MR, eu odiava vê-la lá dentro sozinha e
vulnerável, especialmente em uma sexta-feira.
Cruzei a porta de entrada, e ela logo se virou na minha direção, abrindo
um sorriso. Um daqueles levemente maliciosos que me faziam ter vontade de
jogá-la em uma daquelas mesas e perder a cabeça ali mesmo.
Não seria a primeira vez. Nem a segunda. Nem a terceira. Talvez
tivéssemos feito muito aquilo naqueles últimos meses. Porém, naquele dia era
diferente. Eu tinha uma surpresa.
Dando a volta no balcão, ela aproximou-se de mim e colocou-se na ponta
dos pés para me beijar.
— Acho ofensivo você aparecer aqui de terno, desse jeito.
— Ofensivo? Por quê? — perguntei, provocativo.
— Porque você fica um tesão dessa forma. Só penso em besteira quando
te vejo assim.
Ah, puta que pariu! Ela estava jogando sujo.
— Já terminou por hoje? — Precisei mudar de assunto para conseguir
manter o foco.
Chris estranhou.
— Sim. Já vou fechar. Você me ajuda?
— Claro.
Exatamente como ela me pediu, ajudei-a a fechar a cafeteria, trancando
tudo, puxando a porta de rolar e entramos no carro.
Ainda me mantinha em silêncio, o que ela logo percebeu.
— Aconteceu algo? — indagou preocupada.
— Se eu te pedir para fazer uma coisa, você faz? Sem perguntar o
porquê?
Ela hesitou.
— Faço. Mas você está me assustando...
— Não se preocupe. É uma coisa legal. — Fiz uma pausa. — Você
lembra que eu disse que não queria ficar morando na mansão por muito tempo?
— Claro. Mas o que tem isso?
— Quero que tenha essa informação em mente. — Apontei para o porta-
luvas. — Abra e tire um pano preto que está aí dentro. — Ela seguiu minhas
instruções. — Coloque-o nos seus olhos.
— O quê? — Christine surpreendeu-se, mas logo pude sentir que estava
começando a gostar da brincadeira.
— Quero que vende seus olhos. Tenho uma surpresa.
Novamente, ela demorou a agir, parecendo extremamente curiosa.
Contudo, acabou por obedecer.
— Espero que ninguém nos pare em uma blitz — comentou, e eu apenas
ri.
Liguei outra vez a música no rádio, para criar um clima, e segui em
direção ao nosso destino. Literalmente.
A viagem durou mais de uma hora, por conta do trânsito, e eu sentia
Christine cada vez mais ansiosa. Assim que cheguei em frente ao condomínio,
abri a janela para acionar o controle do portão, e ela se remexeu no banco ao
ouvir as vozes de algumas crianças que brincavam na área comum. Estava calor
lá fora, então, um bafo quente rapidamente entrou dentro do carro, e eu me
apressei em fechar novamente o vidro.
Ela continuou calada até que eu parei e desliguei o motor.
— Falta pouco. Mas vai ter que confiar só mais um pouquinho em mim.
Espere aqui que já venho te buscar.
Ela não disse nada, apenas sorriu. E eu não resistia àquele sorriso, por
isso, beijei-a rapidamente na boca antes de saltar. Peguei as chaves no meu bolso
e abri o portão da casa à minha frente. Voltei ao carro, abri a porta do passageiro
e a tirei de lá no colo, fazendo-a soltar um gritinho baixo de surpresa.
Fechei a porta do carro com o pé e cruzei o portão com ela nos braços.
Assim que estávamos em uma posição privilegiada, coloquei-a no chão.
— Fique de olhos fechados e só abra quando eu mandar, ok? — Ela
novamente assentiu com a cabeça.
Pondo-me às suas costas, desamarrei o pano. Dei uma olhada nela e vi
que estava mesmo de olhos fechados.
— Pode abrir os olhos.
Assim ela o fez, mas ficou confusa ao ver onde estávamos. À nossa
frente estava uma casa toda mobiliada, de dois andares, rodeada de árvores,
flores, uma piscina, churrasqueira e até uma pequena sauna. Não era uma
mansão — longe disso —, mas era uma linda propriedade, em um condomínio
fechado, com toda a segurança e liberdade.
— Arthur, o que é isso?
— É a nossa casa. — Ela ia falar alguma coisa a mais, mas eu ergui um
dedo, pedindo que esperasse mais um pouco. — Vamos terminar de vê-la antes
de qualquer coisa?
— Tá, tudo bem — respondeu confusa, e eu peguei sua mão, começando
a ficar nervoso.
Mostrei-lhe a casa toda, e, como prometido, ela não fez perguntas. Deixei
a suíte principal por último e fiz certo suspense antes de abrir a porta.
Lá dentro, centenas de pétalas de rosas estavam espalhadas pela cama e
pelo chão. Por um momento achei que pudesse considerar brega ou romântico
demais, mas ela merecia tudo que era clichê; merecia aquilo e muito mais.
— Você preparou tudo isso para mim? — indagou com os olhos
brilhando, emocionados.
— Para ser sincero, eu tive a ideia, mas Cléo a executou. Fiquei preso na
empresa o dia inteiro...
— Está tudo tão lindo! — Chris exclamou, levando a mão ao rosto e
girando em torno de si mesma para olhar ao redor. — A casa inteira é linda. Um
sonho... Mas será que agora você pode me explicar do que se trata?
Sem responder, tirei uma caixinha do meu bolso e ajoelhei-me na frente
dela. Christine prendeu a respiração e pousou uma mão no peito, sobre o
coração.
— Wendy... — Enquanto falava, abria a caixinha, revelando um belo anel
de diamantes, que havia escolhido especialmente para ela. — Sei que já pedi
uma vez, mas até hoje não tive resposta. Vivemos muitos momentos juntos. E
quando me perdi de mim mesmo, você foi a única coisa boa que ainda restou.
Por isso, quero que passemos por muitas coisas mais. Todas boas. Um dia te
chamei de minha melhor amiga, depois de minha namorada e agora quero que
seja minha esposa. Aceita se casar comigo?
— É um pedido de verdade desta vez? — ela falou, chorosa, com uma
voz doce que me fazia derreter.
— Foi de verdade na primeira.
— Mas agora tem um anel...
— Não sabia que a senhorita era assim tão fã de joias — brinquei,
sentindo-me cada vez mais ansioso.
— Não sou. Só desta aí. — Ela fez uma pausa, com o choro se
intensificando. — É claro que eu quero me casar com você.
Sentindo-me leve, peguei a mão dela, trêmula, e posicionei a joia em seu
dedo anelar da mão direita.
Coloquei-me de pé e puxei-a para um beijo. Contudo, não demorei
muito, porque ainda tinha coisas a responder.
— Eu comprei esta casa para nós. Para que possamos morar aqui quando
nos casarmos, ou a partir de hoje mesmo, se você quiser.
— Ah, meu Deus! — ela exclamou, ainda mais emocionada. — Eu posso
trazer o Kibe?
Gargalhei com aquela pergunta.
— O que acha? Não só pode trazê-lo como pode pegar mais uns cinco
gatos, se quiser. Tem espaço para todos eles aqui.
— Posso pegar um cachorro? Ou melhor... dois. Eu me contento com
dois vira-latas e o Kibe. Isso, é claro, se ele aceitar outro animalzinho como
irmão... Mas tenho certeza que depois de um tempo vai acabar se acostumando e
seremos quase uma família, então... — Com um sorriso de orelha a orelha, ela se
calou subitamente. — Acho que me empolguei e comecei a falar pelos
cotovelos.
Fazia tanto tempo que eu não a via sorrir daquela maneira que poderia
deixá-la falar até amanhã. O fato de ela estar fazendo planos para nosso futuro
me trazia uma sensação muito boa; porém, algo que disse pareceu se destacar em
meio ao resto.
— Uma família? Gostei muito de como isso soou. Você quer formar uma
família comigo? Filhos, cachorros, gatos, papagaios, calopsitas...
— Eu posso ter tudo isso? — Ela arregalou os olhos de uma forma tão
fofa e doce, que não resisti e a agarrei, beijando-a e erguendo-a do chão,
segurando-a pelas coxas e fazendo-a entrelaçar as pernas na minha cintura.
— Você pode ter tudo o que quiser. Mas sem dúvidas já tem o meu
coração...
— E ele é a coisa mais valiosa de todas. Mas acho que agora, senhor
engravatado... — Ela puxou minha gravata com um olhar quase indecente de tão
sexy. — Quero que me jogue em cima daquelas pétalas e que faça amor comigo
até amanhã de manhã...
— Seu pedido é uma ordem, futura senhora Montenegro...
Fomos parar na cama, cheios de risadas, amor e promessas. O passado
seria apenas um borrão em nossas lembranças. Ali estava o nosso futuro. E ele
vinha cheio de esperança.
Epílogo
SANTIAGO

A porta rangeu bem mais do que eu gostaria. As dobradiças velhas não


davam outra opção. Nem mesmo sendo muito cuidadoso conseguiria entrar ali
em silêncio. Contudo, ninguém pareceu perceber. Ninguém virou-se em minha
direção, como já sabia que aconteceria. Ali dentro, o único barulho era o de um
rabiscar constante em um papel.
Caminhei pé ante pé, pondo-me de frente para a poltrona, cara a cara
com ele. Nem mesmo essa proximidade o fez olhar-me nos olhos. O homem
permanecia imerso em seu próprio mundo, perdido no vazio de uma consciência
sombria.
Até onde ele tinha noção do que acontecia? Será que, no fundo, apenas
via os dias passarem, naquela agonia sem fim? Isso, sim, era pior do que a
morte. Estremeci só de pensar.
Também não podia deixar de especular quem continuava bancando
aquele lugar, depois que a família Queiroga fora presa, julgada e condenada há
alguns meses. Mas isso, definitivamente, não era problema meu. Estava ali em
busca de informações, que sabia que seriam importantes dados os últimos
acontecimentos. Não queria perturbar Arthur, do mesmo modo como ele
cumprira sua promessa de não me procurar nunca mais. O cara seguira com sua
vida, ia se casar com a linda e doce Christine — de acordo com uma notícia em
um site — e seria feliz. Era um homem de muita sorte, mas merecia isso.
Tentaria resolver os novos problemas sozinho. Ou nem tanto, já que
precisaria da ajuda daquele homem à minha frente.
— Ei, Sandro! Já faz um tempo que não venho aqui, não é? Da última
vez, você me ajudou com algumas coisas. Sei que ajudou o 48 também.
Ele nem sequer me olhava. Continuava sua tarefa de desenhar sem parar,
coisas sem sentido.
Normalmente eu era um homem paciente. Tentava ser, aliás, uma vez que
meu temperamento era explosivo demais e podia botar tudo a perder muito fácil.
Contudo, uma dor aguda se proliferava em minhas costas, começando
exatamente na nuca, e sabia que era uma consequência da tensão que sentia.
Sabia que a merda estava prestes a feder novamente.
Não podia permitir.
Sendo assim, agarrei a mão de Sandro, fazendo-o parar de desenhar. Com
isso, ele olhou finalmente em minha direção. Por um momento, quase pareceu
um homem normal. No fundo daqueles olhos, vi leves resquícios de sanidade.
Isso me deu o incentivo que precisava.
— Sei que você me entende. Sei que, no fundo, consegue compreender o
que estou falando. Eu só quero que me responda uma pergunta com sim ou não.
Balzer era o único? Ao matá-lo, conseguimos realmente acabar com a MR?
O homem silencioso continuou olhando para mim e chegou a inclinar a
cabeça para o lado, como em um ato de curiosidade. Como se me estudasse,
analisasse, tentando chegar à conclusão do que fazer. Isso, é claro, se houvesse
pensamentos coerentes dentro daquela mente.
Demorou mais um ou dois minutos inteiros até que ele levasse
novamente a caneta ao bloco e abaixasse a cabeça.
Por um momento pensei que iria recomeçar os rabiscos, mas algumas
palavras foram tomando forma em meio às linhas confusas que parecia acreditar
serem desenhos.
A mensagem era direta e clara, o que me surpreendeu. Embora Sandro
não tivesse discernimento suficiente para erguer o bloco e me mostrar o que
havia escrito, dava para ler relativamente bem — AINDA NÃO ACABOU.
Sim, isso era o que eu temia. Poderia ser um engano de um homem
insano; o delírio de um lunático. Mas algo me dizia que era verdade. Eu não
fazia ideia de como Sandro poderia saber disso, mas, certamente, era o menor de
meus problemas.
Precisaria preparar-me para uma nova luta. E, daquela vez, esperava que
fosse a última.

FIM
AGUARDE A CONTINUAÇÃO DESTA HISTÓRIA
NA ELETRIZANTE SEQUÊNCIA:

O QUE FICOU PARA TRÁS

(Em breve na Amazon!)


SOBRE A AUTORA

BIA CARVALHO nasceu em 1986, no Rio de Janeiro, e escreve desde os 14


anos. Formou-se em marketing e atualmente dedica-se em tempo integral à
literatura, seja aos seus livros ou ao trabalho de tradutora, no qual atua
paralelamente à escrita.
É autora do best seller da Amazon, Horas Noturnas, e sua Trilogia das Cartas foi
publicada em 2017 na Argentina, pela Editora DeCiutiis. Em 2016, seu conto Ao
Anoitecer entrou na antologia O Livro Delas, publicada pela Editora Rocco,
oriunda do Projeto LitGirls BR.
Em 2013, ganhou o prêmio literário CODEX DE OURO na categoria suspense.
No segundo semestre de 2017, seu quinto livro solo, Alvorada, foi lançado pela
Editora Qualis

OPINIÕES SOBRE A AUTORA


"Bia Carvalho sabe dosar mistério e romantismo como poucos, assim como
criar histórias encantadoras." - Carina Rissi (Autora BestSeller da Série
Perdida - Ed. Verus)

“Bianca Carvalho encanta os leitores com a sua escrita e com o amor as letras
enaltece a nova literatura nacional.” Juliana Parrini (Autora de Depois do que
aconteceu - Ed. Suma de Letras)

"Bianca Carvalho é uma surpresa boa e a certeza de que nossa literatura não
deve nada aos livros estrangeiros". MARINA CARVALHO (Autora de O amor
nos tempos do ouro – Ed. Globo)

“Bia Carvalho possui a sutileza dos grandes mestres do suspense. Sabe amarrar
as tramas com fios que prendem o leitor até o final, com surpresas e resoluções
inusitadas. Além disso, tem a garra de trabalhar sua arte como pouquíssimos
autores, talento raro em tempos de necessária parceria escritor-editora".
MAURÍCIO GOMYDE (Autor de Surpreendente – Ed. Intrínseca)
Faça parte do grupo de leitores da autora Bia Carvalho no Facebook e fique
por dentro de todas as novidades com exclusividade!

www.facebook.com/groups/leitoresdebiacarvalho

Você também pode gostar