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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

FICHA TÉCNICA
Título: Este Livro Não É Sério, Tipo O Meu País
Autores: Os Mercenários (Sharrawy, Hernâni Boavida & Sara
Van-Dunem)
Sátiras Crônicas
Sem quaisquer direitos reservados. Se quiser usar alguma parte
do livro ou ele inteiro, esteja a vontade.
Monólogos Team 2021

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

Atenção!

A realidade e a ficção se encontraram diversas vezes nesse livro, se vocês o


quiserem chamar assim. Qualquer semelhança com a realidade não é
nenhuma coincidência, é mesmo o que estás a pensar. Se quiser tirar uma
parte dele para usar como você quiser esteja a vontade. Não se preocupe não
será processado por plágio. Isso tinha que ser um livro primeiro.

Boa leitura!

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

OFTALMOLOGISTA POLÍTICO
Por: Sharrawy & Hernâni Boavida

E um certo dia lá apareceu no meu consultório uma mulher.


Aparentava ter por volta de 45 anos. Seu corpo era revestido de
ouros e diamantes, tanta riqueza naquele corpo - que por sinal era
avantajado. Consegui ver pelo corpo que já tinha sido mãe várias
vezes. Apesar dos luxos no corpo, aquela senhora quase me
matava com uma coisa - o cheiro. Jesus! O cheiro mais podre que
já senti na minha vida. E vinha da boca.

— Bom dia doutor, estou com alguns problemas. — Disse ela


sentando aquele rabo gordo na cadeira.

— Nota-se que sim. Mas acredito que eu não seja a pessoa


indicada para resolver o teu problema. Antes um Estomatologista.
— Respondi afastando o ar poluído das minhas narinas com uma
das mãos.

— Ah, Doutor. O meu problema não é só da boca, desculpe lá o


cheiro é que a minha filha Luanda cozinha muito mal e me deixa
sempre de mal hálito.

— Sei...

— Doutor, eu já tenho problemas de visão a um tempo, mas parece


que estou a ficar mesmo cega. Não consigo ver quase nada,
mesmo com os óculos.

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Encostei na senhora - com uma máscara no rosto obviamente. Não


ia entrar naquele Chernobyl bucal sem proteção.

Ora bem, não eram precisas muitas análises para detectar as


cataratas nos olhos daquela senhora, e para terminar percebi que
ela também era estrambica. Do tipo que nem com óculos
conseguia manter um foco de visão.

— Quantos filhos a senhora tem? Perguntei assim que me afastei


daquele campo minado.

— Tenho 18, Doutor.

— Me fale deles.

— Nem sei de onde começar Doutor. Mas vamos lá. Tenho a


Cabinda. Muito afastada dos outros irmãos. Mas todos dependem
dela. Sem dúvida a Luanda mais que os outros. Ela é a mais
pequena. Mas é a que me dá mais dores de cabeça. Muito linda,
mas muito suja, todo mundo gosta dela, muito simpática com
amigos e vizinhos. Mas com seus irmãos é uma luta. Os meus filhos,
Uige e Zaire, são um caso sério. Meus outros filhos, muitas vezes
fazem preconceito com eles, a Luanda principalmente. Aquela
miúda é a encarnação do Satanás. Depois tenho os meus filhos
gêmeos Kwanza Norte e Kwanza Sul, bem produtivos e humildes,
têm um coração muito bom. Tenho outras filhas gêmeas a Lunda
Norte e Lunda Sul - Doutor, muito ricas, aquelas minhas filhas, essas
jóias que estou a usar são elas que me deram. Mas muito atrasadas
aquelas miúdas. São também vítimas da minha filha Luanda, lhes
chula bem. Depois tenho os meus filhos Bié e Huambo, bem grandes
aqueles miúdos, limpinhos e bonitos. Mas são bem frios. A minha
filha Benguela, é a mais linda dos 18. Tem uma pele mulata. Fruto
de uma relação que tive com um branco. Grande amiga da
Luanda. Mas, a Luanda não é amiga dela. Essa miúda só pensa
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nela. Os meus outros filhos, Moxico, Namibe, também são bem


grandes, mas também bem atrasados. O Bengo, vive bem perto da
Luanda, mas aquela miúda nem lhe dá confiança. O meu filho
Cunene, está muito doente, até nem sei o que fazer. A minha filha
Malange gosta muito da natureza. Mas também tem uns tiques aí
da Luanda.

— Já sei qual é o teu problema. volta na próxima semana, para vir


buscar o teu resultado.

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HOMENS NÃO LEIAM ISSO


Por: Sara Van-Dunem

Na minha curta vida de 23 anos se a uma coisa que eu sempre


considerei é que mulheres não podem passar a vida a dizer: "yes,
yes, yes", como se fossem atrizes pornôs.

Desculpe se feri a tua sensibilidade. Mas você já devia estar a


espera disso depois de ler a capa do livro (se isso for mesmo um
livro).

O facto é que a questão do empoderamento feminino, e a luta


que eu considero utópica da igualdade está bem longe de
terminar.

Porque nós mulheres ainda esperamos que nos dêem valor como se
fôssemos uma prova. Somos uma máquina incrível de paciência.
Talvez essa seja a maior dádiva com a qual nascemos. Somos
peritas na arte de esperar: que nos dêem, que nos aceitem, que
nos amem... Sabes, parecemos um computador compilando com
um código - sempre em espera.

Na verdade ouve por aí um homem, que está estampado em todo


lado do meu país que supostamente - sim supostamente, eu já não
acredito em nada do que dizem aqui - disse: Já não sou aquele
que espera mais de quem se espera.

Devemos ser isso, aquelas de quem se espera. De quem se espera


amor - que bem soubemos dar.

De quem se espera, isso mesmo. Se espera, nada de nos apresentar.

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Esperem que a nossa raiva acabe. Esperem que nós tenhamos


também um orgasmo antes de vocês levantarem as vossas calças.
E saírem orgulhos.

Já vivemos num mundo que precisa rotular tudo: Eu por exemplo.


Me chamam de feminista, sexista, por aí a fora. E nesse mesmo
mundos somos conhecidas como "o sexo frágil" - Se vocês
soubessem a força que existe em uma mulher jamais diriam isso,
mas enfim.

Cara leitora, entenda algo para de esperar o mundo, faça com


que ele espere por ti.

Caro leitor, obrigado por leres, agora já podes passar para outra
página. Desculpem a franqueza, mas eu não estava a falar
convosco, seus fofoqueiros!

Setúbal, Portugal

12 de Janeiro de 2021.

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DESCULPE O OLHAR DE ESPANTO, VOCÊ PARECE TANTO


O AMOR DA MINHA VIDA!
Por: Sharrawy

Certa vez Émile-Auguste Chartier disse "amar é descobrir a riqueza


fora de nós". Descobrir riqueza a merda! Desde que me apaixonei
fiquei mais pobre do que já era, inclusive agora mesmo acabei de
dar todo dinheiro que tinha na carteira para ela.

Tudo começou lá no lançamento do livro do Bruno Santos - Quando


o Sol Nasceu de Noite, a sala da mediateca estava ligeiramente
cheia, a fila para receber o autógrafo do autor movia-se com certa
fluidez. És que aquele anjo adentrou na sala deixando o seu
perfume pairar sobre os quatro cantos do recinto.

Ela era magrinha, talvez um pouquinho mais do eu – é sério, aquela


miúda precisa comer muita soja. - seus cabelos afro desfeitos em
espirais, trajando um vestido que lhe marcava toda silhueta do
corpo. O branco que o compunha invadiu meus olhos, no seu
ombro esquerdo estava uma bolsa branca enorme, me perguntei o
que teria nela? Jamais pude perceber o que tanto as mulheres
levam nas bolsas.

Kianda, a minha mochila humana como gosto carinhosamente de


a chamar - pensando bem esse não parece ser um nome tão
carinhoso - estava um lugar a frente de mim e notou a minha
concentração exorbitante para aquele anjo humano.

— Assim já se apaixonaste né? — Indagou-me ironicamente Kianda


não conseguindo esconder o sorriso em seus lábios. Jamais gostei
que a Kianda tivesse um motivo para me debochar, estava
convicto que na nossa relação o deboche era uma função minha.

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Para o meu espanto Kianda saiu da fila e dirigiu-se até ela, tentei
impedi-lá mas sem sucesso, sabia que ela estava se divertindo com
essa situação, aliás, não é todo dia que ela consegue um motivo
para me debochar.

Elas trocaram umas palavras depois as duas olharam para mim e


acenaram, demorei quase dez segundos a processar uma resposta
ao aceno, literalmente o meu cérebro tinha parado.

Um simples aceno tivera me deixado daquela forma, imagina o que


faria uma simples conversa? Era isso que a Kianda quis descobrir.

Depois de alguns segundos elas vieram até ao meu encontro, a


minha respiração alterou e meus batimentos cardíacos disparam
era possível ouvir o meu peito batendo, dentro de uma sala
climatizada comecei a suar que nem um porco preste a ser abatido.

— Martinho quero te apresentar a Yasmine, minha nova amiga, eu


disse que você queria falar com ela e tinhas vergonha – Afirmou
com o maior riso irónico no rosto.

Não podia negar que de perto ela era mais linda e seu perfume era
gostoso, nunca gostei de cosméticos, os cheiros me enjoam com
facilidade, são tantas coisas que me causam enjoôs que muitas
vezes pareço uma mulher grávida.

Fui cordial e nos cumprimentamos, compramos o livro e


continuamos a conversar, descobri que ela era estudante de Direito
na Universidade Católica e que vivia no Futungo, nunca gostei de
falar de mim, sou tão reservado sobre as minhas coisas que até hoje
apenas 30% das pessoas que conheço sabem a minha idade real.
Soube ainda que ela era solteira e que tinha terminado um
relacionamento de dois anos por traições por parte do namorado,
pensei, que idiota trairia tal anjo na terra.

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Os dias foram passando trocamos mensagens nas redes sociais e


ficávamos até tarde falando ao telefone, começamos a ter um
relacionamento virtual, como gostaria que aquilo se convertesse
logo em algo real, mas sempre que nos encontrávamos
pessoalmente ela evitava o máximo falar no assunto
"relacionamento-amor".

Então certo dia já completamente apaixonado por aquele anjo,


ela me disse que estava sem saldo e pediu para lhe enviasse um
cartão, sem pensar duas vezes mandei, daí em diante os pedidos
não pararam, pedia-me saldos, comida, roupas, calçados - e eu
cheio dessa merda que a Émile chamou de amor continuei dando
sem pensar.

Até hoje nunca provei sequer o gosto de seus lábios, o mais longe
que fui foi andar de mãos dadas com ela pela marginal de Luanda,
a Kianda que outrora fora quem nos uniu pediu que eu a deixasse
uma vez que ela apenas se aproveita de mim, mas como deixá-la
se apenas seu rosto é o único que quero ver quando acordo, se sua
voz é o remédio das minhas tensões e do peso que o mundo coloca
nas minhas costas, e então por mais que digam que sou burro e
parvo, eu não vou deixar ela - ainda que o mundo caia sobre mim.
(Essa parte era só para parecer mais poético).

Hoje de manhã quando fui depositar um dinheiro na conta dela,


deparei-me com uma jovem de cabelos afros e muito magra, com
um vestido branco marcando a silhueta de seu corpo, ela olhou
para mim e perguntou se queria alguma coisa apenas consegui
responder:

— Desculpa o olhar de espanto é que você parece tanto o amor


da minha vida!

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ENTREVISTA Á FOME
Por: Sara Van-Dunem

O Entrevistador: Olá, a todos leitores dessa coisa que ao que parece


é um livro. É com prazer que hoje vou entrevistar uma das mais bens
sucedidas artistas de todos os tempos. Ela que está em uma tournée
mundial. E hoje decidiu parar aqui em Angola. Olá, Dona Fome,
como vai?

A Fome: Eu vou muito bem, obrigada. Sinto-me lisonjeada pelo


convite.

O Entrevistador: O prazer é todo nosso. Nos conta de onde você é e


a quando começou a tua carreira?

A Fome: Eu sou de todo lado, sou uma parte de cada um. A minha
carreira começa sempre que nasce um homem.

O Entrevistador: Muito bem. Sei que és ouvida por milhões. E os teus


seguidores estão sempre a crescer. Qual é o motivo de tanto
sucesso?

A Fome: Os motivos são vários, mas sem dúvida que a pobreza é o


principal. Foi o meu álbum de estreia. Seguido pela Corrupção e a
Seca todos eles muito bem recebidos aqui em África e também na
Ásia. Rebentando recordes e ficando em primeiro lugar em vários
países.

O Entrevistador: É verdade. Somos fãs do trabalho que tens feito. E


quais são os mercados mais difíceis para ti, aonde a tua arte é
pouco consumida?

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A Fome: Como eu já disse eu estou em todo lado, mas a sítios que


realmente não sou bem recebido, como em banquetes burgueses,
em países desenvolvidos, mas felizmente esses não me fazem falta,
pois já tenho bilhões que me adoram.

O Entrevistador: E essa tua nova tournée, quais são as tuas previsões


de passagem?

A Fome: Bom, eu estive agora na Somália e fiz show de arromba por


lá. Aqui em Angola tenho shows marcados no Cunene, em bairros
periféricos em Luanda, e pequenos eventos nas demais províncias.
A seguir vou para Ásia. Tentei ir para a Europa mas fui barrado, por
agora. O meu agente está a procura de um bom local por lá
também.

O Entrevistador: Muito obrigado, pelo tempo disponibilizado.


Gostarias de deixar algumas considerações aos teus fãs e não só?

A Fome: Claro! Aos meus fãs que continuem consumindo a minha


arte. Agradeço aos políticos por serem os meus maiores promotores
apesar de me odeiarem, a todos os países aonde sou amada:
Somália, Haiti, Eritréia, Síria, etc. Muito obrigada. Beijos da vossa
amada fome.

Porto, Portugal

13 de Dezembro de 2020

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UMA CONVERSA COM O FAMOSO AMOR


Por: Hernâni Boavida

Sim! eu tenho namorada, sim eu já disse eu te amo e sim eu penso


que te conheço, mas também sei que você não é só palavra, dizer
"Eu te amo" é muito fácil mas se as pessoas soubessem realmente o
que és.

Sei que tu não és uma foto no perfil e um texto longo emoji de


coração, tu não és perguntar se já comeu ou sair para passear.

Na verdade para mim não tens definição, tu não podes ser


demostrado em gestos passageiros, como ir ao cinema ou sair para
comer uma pizza.

O que és na verdade? Para mim tu és o lado mais puro do ser


humano, o elixir da nossa existência, és a paciência do impaciente,
és a parte perfeita do imperfeito.

Não se define amor com palavras e gestos pequenos define-se


amor com o viver, o amor não surge quando estamos abraçados a
beira-mar trocando promessas que nunca vamos cumprir, não
surge nos nossos devaneios de ter um cão e dois filhos e uma casa
com piscina.

O amor surge quando você cai ele te ajudar a levantar, surge


quando nossas sonhos virão pesadelos e juntos queremos voltar a
sonhar, surge quando nasce um filho e juramos amá-lo acima de
qualquer coisa.

Garota a quem chamo de amor, desculpa mas se a definição for


essa ainda não te amo, mas calma estou aprendendo a te amar,
ainda não superei todos teus defeitos, estou a aprender a supera-los,
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esquece das palavras da hora do sexo e guarde as palavras da


hora de amargura, porque aquelas são verdadeiras.

Esquece da lua que prometi te dar e foca-te no que realmente já te


dei, algum dia vamos acordar e perceber o que é o amor, e espero
perceber contigo.

E quanto a ti amor, obrigado por existir, apesar de não te entender


realmente nem ouvindo milhões de músicas e ler um monte de
Livros que falam sobre ainda não sei quem és, mas juro que vou
descobrir.

Amesterdão, Holanda

20 de Dezembro de 2020.

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UM CRONISTA NO TRANSPORTE PÚBLICO


Por: Sharrawy

Em primeiro lugar deixa-me esclarecer algo, eu não sou um filho da


nobreza, desconheço o sentimento causado por fazer música com
o molho de chaves de uma mansão e um carro de luxo,
desconheço tanta coisa que penso que conheço.

Mas como nasci com uma anomalia na saúde sempre evitei locais
fechados com muita gente, mas aí eu virei cronista e um amigo
meu me disse certa vez "as experiências são as armas do cronista".
Profundo e verdadeiro, e apesar de viver numa Luanda caótica
existem inúmeras coisas que nunca fiz e morro de curiosidade de as
fazer.

Tarde quente de novembro, eu estava na paragem com os meus


sempre fiéis auriculares nos ouvidos a espera do táxi, não devia ser
muito tarde mas o clima ameaça "um banho de São Pedro" nunca
fui adepto de molhar (é sério, eu tenho problemas graves com o
banho), mas a chuva que se aproximava parecia terrível e levava
livros na mochila, tivera comprado dois exemplares das obras do
Sepúlveda, sempre fui fã dele e assim que comecei a ter algum
dinheiro jurei a mim mesmo ter todos os livros dele na minha estante.
Ora bem, o tempo passava rapidamente e os táxis parece que
tinham feito um trato é que nenhum ia para o meu destino, nunca
fui adepto da espera - na verdade sou adepto de poucas coisas.

Pequenas gotas de água debutaram a pender da atmosfera e a


quebrarem-se sobre o meu corpo. Senti um calafrio na espinha
quanto a primeira gota aludiu sobre o meu rosto. O tempo
passava... e os táxis não.

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Eis que pelo sestro subia um enorme veículo que travou a frente de
uma fila de pessoas no outro lado do passeio. As se empurravam
para entraram naquele veículo da Marcopolo azulado com a
estampa "Macon" escrita em seu todo.

Quão grande foi a minha surpresa ao saber que ele se dirigia ao


meu destino, até a data nunca tinha subido em um transporte
público sozinho, lembro-me que a última vez que subira em um
transporte do gênero tinha 7 anos e dentes ainda faltavam na
minha boca. Desde que me tornará cronista ou escritor se
preferirem nunca tinha experimentado tal sensação, pensei, porquê
não seguir as palavras de Kléber Santana - "As Experiências são as
armas do cronista".

Após um breve empurrão consegui subir os degraus no interior da


viatura, paguei os meus 50kzs, normalmente eu pagava 150kzs
numa viagem de certa forma foi uma aliviada na carteira, mas o
preço a pagar seria alto. Em época de pandemia ajeitei a máscara
no rosto enquanto passava pela pequena porta giratória que dava
acesso aos bancos á essa altura já lotados, o misto de suor e álcool
invadiu as minhas narinas me deixando zonzo, as pessoas
procuravam um lugar na barra metálica suspensa na parte superior
da viatura para poderem pegar e assim ganhar uma estabilidade
no decorrer da viagem. Por minha vez me sentia um completo
estranho naquele meio sempre observará um transporte público
lotado mais nunca tivera vivenciado de perto tal sensação. Umas
senhoras xingavam atrás de mim porque uma pegou aonde a outra
quis pegar, me manti imóvel no meio da viatura de certa forma
todas essas restrições sanitárias me deixaram germofóbico, passei
álcool em um guardanapo que tinha em minhas mãos e limpei a
parte da barra metálica aonde eu pegaria.

Começou a tocar Exist For Love de Aurora nos auriculares.


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A viagem então começou.

As pessoas que estavam sentadas se ajeitavam de modos a permitir


(ou a evitar) contacto com os que estavam em pé.

No meu lado direito estava um senhor sentado, quando o autocarro


iniciou a marcha me desequilibrei e quase cai em seu colo, ele fez
favas e disse para não o tocar novamente, decidi aumentar o
volume nos auriculares.

Quando Exist For Love terminou ouvi um senhor a pregar, estava em


pé, perto da porta giratória e falava do reino dos céus para um
monte de pessoas que estava nem aí para o que ele falava, dei
uma risadinha e voltei a colocar o auricular esquerdo

Começou a tocar Vete de Bad Bunny.

O senhor da cadeira direita continua a implicar com todos que o


tocavam com um certo ar arrogante, quando o Igor (nome que o
atribuí, por ser o personagem que mais se destacou nessa viagem)
disse em tom de aborrecimento

— Oi é! Papoite fica calmo você aqui também só pagou cinquenta


então para de fazer bué de beise*

Criou-se um certo alvoroço entre Igor e o senhor do banco a direita.

Não consegui evitar uma risadinha alta.

Agora em andamento o ar era mais suportável e então comecei a


ficar tonto - muita gente e pouco ar, mas me mantive seguro não
iria desistir.

Perto da sede do BNI um senhor pediu para descer - duas vezes


para ser exato, estranha não foi a reacção do motorista do
autocarro que parecia surdo com as rogações do senhor e

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passaram BNI e o carro nunca mais parava, Igor meteu-se em


gargalhadas.

— Quem te mandou pagar cinquenta? Agora vão te levar até no


Benfica!

Após muita gritaria no autocarro o senhor desceu frente a Farmácia


Central, com a fúria estampada no seu rosto.

Começou a tocar Jerusalema - Remix de Master KG, Nomcebo,


Micro TDH e Greiccy

O que me fez lembrar do senhor que pregava, fazia dois minutos


que Igor o obrigará a calar:

- Mas tio, você não tá memo* a dar conta que aqui ninguém quer
te escutar, guarda mbora* teus comícios para igreja.

Chegamos então ao Benfica, antecipei a paragem para não cair


no erro do senhor do BNI.

Desci e pude finalmente respirar ar puro, o misto de sensações que


senti dentro daquele veículo são inexplicáveis, não sei se o Igor
realmente existe ou se foi a minha voz da cabeça, mas sei de uma
coisa. Na próxima viagem trago a Kianda comigo!

Luanda, Angola

12 de Novembro de 2020

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AUTO-DESCOBERTA
Por: Hernâni Boavida

Luanda tem o poder de me tirar do sério, entre os empurrões e


palavrões consegui apanhar o táxi que me levaria até a baixa de
Luanda.

Como esquecer dos caricatos e tristes episódios que tinha acabado


de presenciar?

Minutos atrás antes de eu subir no táxi a fome assolou o meu


estômago de maneira muito repentina, por forte tinha 100 kwanzas
sobrando e se aproximou de mim uma senhora de meia idade,
vendedora ambulante vulgo Zungueira com a seu cesto na cabeça
vendendo bolinhos.

Gentilmente a chamei e perguntei quanto custava os grossos e


bem apresentados bolinhos que ela comercializava

- São 50 kzs, meu filho! exclamou a doce senhora, a forma educada


como nós angolanos nos chamamos de filho e mãe mesmo sem
pertencer a mesma família sempre me levantou uma curiosidade e
um certo orgulho, pois isso demostrava em parte que nos
consideramos todos família somente pela nacionalidade.

Enquanto a Senhora tirava os bolinhos do cesto, distrai-me olhando


as horas no telefone quando fui chamado a razão por um susto. Um
homem de estatura média forjando uma farda da Polícia Nacional
de Angola, pontapeou o cesto de bolinhos que rolaram pela
Estrada. Por segundos fiquei imóvel vendo aquele homem xingando
a Senhora, e fiquei pensando e agora? o que iria comer? "As minhas
lombrigas ficam como então?"

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Não teria coragem de pedir o reembolso do meu dinheiro á


desditosa senhora.

Por trás me mim outra vendedora ambulante implorava que o outro


policial que tinha aparecido repentinamente que esse soltasse o
seu negócio e o meu parecia estar se divertindo com a situação,
afastando a senhora com pequenos empurrões no peito.

— Eu já não costumo a vós dizer que aqui não é para vender?


Agora chama de chefe se queres que eu te devolva o negócio!
Imperou ironicamente o policial

Naquele momento me meti em gargalhadas, não sei se foi pelo o


que o policial disse, se foi pela senhora que aceitou a ordem do
policial.

Eu gargalhava com vontade, e olhava para o policial e abana a


cabeça pelo desapontamento que sentia por ele, o mesmo
permaneceu imóvel me olhando.

A minha sessão de riso foi findada por uma rasteira que o outro
policial que outrora tinha pontapeado os bolinhos me aplicou, a
seguir senti a minha pele queimar pelas dolorosas porretadas que
ele executava sobre mim.

Nesse exato momento que escrevo esse texto, me encontro no táxi,


sujo e todo machucado, acabei de descobrir que no meu país é
proibido rir na via pública!

Prefiro pensar assim, pós se eu dizer realmente o que descobri não


serão apenas porretadas que vou receber depois, até a minha
caneta tem medo de escrever esse pensamento.

Luanda, 17 de Setembro de 2019

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DINHEIRO OU RESPEITO?
Por: Sharrawy

A manhã fria de cacimbo trouxe de volta memórias de tempos idos,


a aonde o respeito e o amor eram mais importante que o dinheiro.

Enquanto aflava o vapor em minha chávena de chá, olhei de


relance pela janela e vi uma imagem curiosa, três petizes andavam
abraçados completamente inocentes do mal que assombra esse
mundo, eles estavam perdidos na sua singeleza de criança.

Não muito distante a meros metros deles um homem de cabelo


desajeitado e barba por fazer reclamava sobre os problemas que
taladam sua vida.

Queixava-se que o misério salário que recebia não lhe servia para
solver nem metade de seus gastos.

Em uma disparada desapoderada os petizes passaram pelo senhor,


quando estavam bem perto da saída da viela o garoto que ficou
para trás caiu e arranhou-se todo, o homem dos problemas olhou
para o rapaz com altivez e continuou sentado.

No seu âmago de criança meteu-se em pranto, o homem irritado


levantou-se e alinhavou o dedo em direção ao garoto e disse:

— Cala-te seu pirralho ninguém te fez nada, levanta-te e sacode


suas roupas, ou pensas que se ficares aí deitado a dor vai passar?

O homem calou-se de seguida, será que ele realmente entendeu


que era ele que precisava dessas palavras e não o pobre petiz que
agia segundo a sua natureza infantil?

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O Clímax da minha observação chegou minutos depois quando um


senhor que trajava um rico fato italiano cruzou a viela e levantou o
menino dizendo:

— Filho como você está? - não vos disse para não brincarem muito
longe?

Quão grande foi a surpresa do homem dos problemas ao


reconhecer que aquele era seu patrão antes sequer de ele poder
pronunciar uma palavra, em prantos disse o garota mirando seu
dedo indicador esquerdo nas coordenadas do homem dos
problemas:

— Pai, ele gritou comigo!

O homem do fato olhou de para o homem dos problemas e o


reconheceu. A troca de olhares foi meio demorada até que o
homem dos problemas agiu na sua natureza de serviçal e começou
a bajular o chefe.

Da minha janela, que tinha poucos metros até o local aonde eles se
encontravam pude observar que o homem do fato italiano não
parecia ter mais de 30 anos de idade, já o homem dos problemas
parecia que já rondava a casa dos 60 anos.

— Como é que é? Você gritou com uma criança por ter caído? —
iniciou lá o drama, o homem do fato italiano, não vou prolongar a
conversa só vos digo que foi recheada de boas faltas de respeito
do patrão para o serviçal.

Ora, após quase cinco minutos de ofensas o homem dos problemas


já chateado com aquilo levantou-se e disse que ao homem do fato
italiano para que esse se calasse que aquilo já era muita falta de
respeito. E o homem do fato italiano calou-se? Nem pensar, as
pessoas que tem poder, adoram usá-lo. E ele decidiu continuar a
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longa sessão de ofensas. Quase que inesperado o homem dos


problemas levantou-se e acertou um soco bem na cara do gajo do
fato italiano e Desabafou:

— Olha, quando eu era pequeno a minha mãe dizia sempre, não


importa a classe social, a cor da pele, as roupas ou qualquer outra
merda, respeite sempre os mais velhos. Agi mal com o teu filho, sim.
Perdão por isso estava com a cabeça quente, já você agiu assim
porque querias. Vocês são da geração que acham que o dinheiro
significa respeito, roupas significam estatuto e óculos significam
inteligência. Na verdade existe tanta coisa absurda na vossa
geração, mas não é a vossa que me preocupa vocês já estão
mesmo perdidos, tenho é pena do teu filho que será pior do que
você, ele viu seu pai ofendendo um mais-velho e ele gostou...

— Deusinho vêm aqui em baixo agora! – Gritou a minha mãe


interrompendo o momento.

Confissão de Cronista: Duns coro queira mesmo era ver uma boa
luta... Seria icónico ver um homem de fato italiano sendo arrastado
na poeira do meu bairro.

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UM CÃO CHAMADO DOG


Por: Hernâni Boavida

E não é que um dia, o cão chamado Dog decidiu fugir de casa -


talvez ele estivesse chateado com o seu dono, ou simplesmente
incrédulo com o nível de imbecilidade do indivíduo para chamar
um cão de dog. Também não sei porquê lhe surpreendia, se ele
sabe que vivia num país aonde tem grupos com nomes como
"Black Pretas" ou "Malta Solitária". Mas em suma não é disso que eu
quis falar.

Dog, andava calmamente. Suas orelhas vestidas de feridas


balançavam na mesma sintonia do seu corpo esguio coberto pelo
seu pelo castanho sarnento - não basta ser vira-lata, tem que ser
sarnento também. Dog, ia procurar Max. Um conhecido cão pastor
que tinha fama de meter cães de rua na política. Apesar de não ser
pastor nem nada. Max também sonhava em entrar. Quem sabe
não precisam de um rafeiro que lhes coma os restos. Levava uma
sua boca da coxa de frango que larapiou na bancada da Dona
Maria, a vendedora de franguité lá do bairro. A dona nem viu nada.
Dog foi bem rápido.

O frango era um suborno para o gajo do Max, talvez assim ele lhe
ajudasse. Conhecia bem os gajos da raça do Max, um pouco de
graxa e bajulação e caia logo.

Teve que correr de uns miúdos que nunca perdem a oportunidade


de lançar umas pedras de um cão de rua. — Iam ver só quando ele
se tornasse cão polícia, voltava e mordia a todos.

Dog chegou no beco do Max e ficou espantado com o tamanho


da fila, eram animais por todo lado, cães a até uns gatos que
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

enfrentavam destemidamente os cães. Havia um pato e duas


galinhas também. Uma das galinhas toda pintada, e não trazia
nada. Era a única que não trazia nada. Fazer o quê? Cada um tem
seus métodos.

Cinco horas depois, chegou a vez do Dog, o frango outrora


suculento e cheiroso, tinha se transformado num duro pedaço de
carne fria na boca de um cão sarnento.

— Boa tarde chefe Max e obrigado por me receberes — latiu Dog


assim que entrou naquele barril que servia de escritório do Max.

Max por sua vez apenas mexeu a cabeça em sinal para que ele
continuasse, estava visivelmente cansado.

— Chefe, uns amigos aí das corridas me falaram que o chefe tem aí


uns corredores para entrar na bófia, então vim ver se o chefe não
me arranja alguma coisa.

— Você está a brincar comigo? — latiu inquerindo Max

— Não chefe, estou mesmo interessado.

— Se olha ainda, assim rafeiro e sarnento como és, queres ir aonde?

— Chefe, isso é coisa mínima, nesse país ninguém trabalha na sua


área mesmo. Me faz só esse favor, se eu entrar. Prometo que te dou
todos os meus primeiros três salários.

— Ok, vou falar com alguém para ver se arranjo algo.

— Obrigado chefe, também trouxe esse frango pro chefe. Não é


muita coisa, mas é o que deu para arranjar.

Não é que o cão chamado Dog, conseguiu mesmo entrar na


polícia canina? E quem lhe viu e quem lhe vê! Todo fino. Pêlos bem
brilhantes. Mas a aventura do Dog durou pouco, seis meses depois
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

foi morto em campo. Aparentemente não conseguiu acompanhar


a fuga dos outros e foi baleado. Existem umas histórias que ele fez
muitos filhotes por aí, e que agora esses andam a lutar pela
herança do pai, mas essa já é outra história.

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

UMA VIAGEM A LISBOA


Por: Sara Van-Dunem

Durante o meu primeiro ano de faculdade, fiz uma viagem com um


grupo de outros colegas de classe para Lisboa para fazer uma rede
com ex-alunos. No final do dia, depois de passar horas a passar de
uma empresa para outra, vários dos estudantes falaram sobre
passear na cidade por um tempo antes de jantar.

′′ Vai ser tão divertido," disseram eles. ′′ Devias mesmo vir connosco!"

Disse que ficaria feliz em acompanhar e segui o grupo para um


comboio em direção a outra parte da cidade. Quando finalmente
chegámos à nossa paragem e saímos para a rua, de repente
encontrei-me rodeado de lojas de roupa e restaurantes tanto
quanto os olhos puderam ver.

Sentindo um poço no meu estômago, segui o grupo até uma loja


que eles decidiram entrar aleatoriamente, e andei de braços
cruzados pelo interior enquanto eu olhava para as luzes douradas,
as superfícies brilhantes, as bordas duras e as lindas roupas.

Eu vi um casaco bonito e verifiquei a etiqueta de preço. € 530.

′′ Isso ficaria tão fofo em ti!" Uma das raparigas do grupo, Melanie,
estava de repente ao meu lado, a tirar o casaco do cabide e
segurá-lo contra o meu peito. ′′ Vai com a cor do seu cabelo."

′′ Acho que estou bem, obrigado."

′′ Tens a certeza?? É totalmente fofo."

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

′′ Honestamente, estou bem." Pausei, notando as pilhas de roupas


que a Melanie segurou agarrada ao peito. ′′ Encontrou alguma
coisa que gostasse?"

′′ Oh meu Deus, sim! É uma droga viver numa cidade universitária


porque não existem lojas de roupa. Sinceramente tento vir para
Lisboa o máximo possível só para comprar."

Eu quase ri, pensando que ela estava brincando, mas quando a


Melanie se afastou para inspecionar um vestido de € 1,000
pendurado na parede, percebi que ela estava falando sério.

Os outros estudantes do grupo acabaram por gastar milhares de


euros na loja, as suas compras foram dobradas cuidadosamente e
escondidas em sacolas de papel coloridas. Foi só quando
terminaram que decidiram jantar num sítio do outro lado da rua.

No restaurante mais agradável onde já estive naquele ano,


encomendei o aperitivo mais barato que pude encontrar, e sentei-
me em silêncio enquanto os estudantes ao meu redor relembravam
as escolas privadas que tinham ido, as suas férias mais recentes
para a Europa, as coisas tontas Eles fizeram as suas empregadas
domésticas crescerem.

Quando o jantar acabou, um estudante sugeriu ver uma peça de


teatro, e um dos rapazes tirou o telefone dele e disse ao grupo que
o Cabaret estava a jogar por apenas € 250 o bilhete.

′′ Que roubo!" Melanie, usando seu casaco novo, chorou. ′′ Temos


que ir!" Ela virou-se para olhar para mim e deu-me um grande
sorriso. ′′ Queres vir?"

Sabia que não ia gastar € 250 num show.

′′ Tenho muitos trabalhos de casa," disse eu. ′′ Mas obrigado de


qualquer forma."
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

Melanie encolheu, e depois de pagar o nosso jantar, o grupo saiu


do restaurante para o frio da cidade de Lisboa para ir para o show.
Voltei sozinha para o hotel, e passei a noite a estudar para o meu
próximo exame de sociologia.

Quando terminei de estudar, deitei-me nos lençóis da cama e


imaginei como era para aqueles meus colegas de classe, que
cresceram com a capacidade de gastar milhares de euros em
roupas, para fazer viagens para grandes cidades para ver shows
caros e soprar ainda mais dinheiro em restaurantes e lojas chiques.
Quem foi para o acampamento de verão, escolas privadas, que
moravam em casas grandes com empregadas domésticas e
motoristas que foram de férias para países estrangeiros, ficando em
belos hotéis.

Para ser muito honesta, acho fascinante estar rodeada de colegas


de classe que vêm da riqueza como eu nunca experimentei. Não
me sinto envergonhada por não poder comprar as coisas que
alguns dos meus colegas de turma compram (dezenas de compras
online). Não me envergonho por crescer a dizer ′′ não ′′
repetidamente, porque a minha família simplesmente não tinha
dinheiro suficiente.

Tenho orgulho de quem sou, e de onde vim. E isso é o suficiente


para mim.

Setúbal, Portugal

18 de Abril de 2019.

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

OS DEZ MANDAMENTOS PARA NAMORAR COM A MINHA


ANSIEDADE
Por: Hernâni Boavida

Cheguei a um acordo com a minha ansiedade. Eu até diria que às


vezes somos amigos.

Mas sempre que alguém entra na minha vida, romanticamente ou


não, também tem que conhecer a minha ansiedade. A boa notícia
é que, apesar do estigma social em torno da saúde mental, muitas
vezes não é assim tão importante. Mas claro que tem coisas que eu
quero que as pessoas saibam sobre mim e como eu vejo o mundo.

Então, para o meu outro significativo, aqui estão 10 coisas que eu


quero que saibas sobre namorar comigo:

1. Eu não sou minha ansiedade.

Tenho ansiedade e lido com ansiedade - mas não sou minha


ansiedade. É simplesmente uma pequena parte de mim.
Provavelmente, apaixonaste-te pelas outras partes de mim, como o
facto de estar um pouco obcecado com teorias da conspiração
ou fico triste quando vejo um idoso a comer sozinho. Por favor,
lembrem-se dessas partes de mim, mesmo quando eu não o faço.

2. Há regalias!

Por causa da minha ansiedade, valorizo imensamente os positivos


na minha vida e dou o meu melhor para os nutrir e expressar o meu
apreço. Sou muito empático e sintonizado com como os outros
pensam ou se sentem. Farei o meu melhor para salvar-te dor e
proteger-te porque sei o quão mau pode sentir-se. Quase sempre

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

terei algumas ideias profundamente pensadas porque toda a


análise não é à toa.

3. Por favor partilhe as suas próprias dificuldades e diga-me como


posso ajudá-lo.

Isto é uma relação e eu quero estar aqui para ti tanto quanto tu


estás aqui para mim. Por favor, não sintas que não podes apoiar-te
em mim. Nada me faz mais feliz do que poder ajudar outra pessoa,
principalmente alguém que amo. Aprendi muito e recebi muito
apoio de vocês, e estou feliz por compartilhar e retribuir o favor.

4. Se eu não me sentir melhor quando você tenta ajudar, a culpa


não é sua.

Há momentos em que nada é mais alto do que os pensamentos na


minha cabeça a dizer-me que nem tudo está bem - mais alto do
que a pessoa que eu amo dizer-me que é. Sei que tens razão, e não
estou apenas a ser teimoso: os pensamentos são poderosos e às
vezes vão tirar o melhor de mim. Eventualmente, eu vou chegar lá,
então, por favor, tenham paciência comigo.

5. Se eu não me sinto melhor quando você tenta ajudar, a culpa


não é minha.

Ansiedade nem sempre é algo que podes simplesmente sugar e


seguir em frente, como críticas ou rejeição. Quando fica muito difícil
relaxar, sinto a ansiedade no meu centro: o meu coração começa
a acelerar, a minha mente fica difícil de distrair e o meu instinto
pulsa com negatividade. Como diz o ditado: ′′ É preciso confiar em
algo, e às vezes tudo o que temos é o que o nosso instinto nos diz."
Mas o meu às vezes diz-me coisas assustadoras e, sim, assusta-me.

6. Não és a minha terapeuta, e talvez tenhas de me encorajar a ver


um.
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

Existem muitos recursos agora para melhorar a saúde mental,


principalmente no fortalecimento contra a ansiedade, como
métodos de relaxamento ou quebrar padrões de pensamento
negativos. Posso ser lento a aceitar esta ajuda, mas por favor
encorajem-me e sejam honestos que nem sempre podem fornecer
a ajuda de que preciso. Não estás a tentar abandonar-me ou não
aceitar-me como um todo; às vezes preciso de ajuda para fazer
progressos reais.

7. Não há uma solução rápida para ansiedade. É um trabalho em


progresso, mas prometo que vou colocar esse trabalho.

Tenho dias bons e dias ruins, e muito provavelmente, a ansiedade


sempre fará parte da minha vida. Mas foi provado que pode tornar-
se cada vez mais controlável com trabalho árduo, consistência e
um bom sistema de apoio. Vou fornecer as duas primeiras partes e
amar-te por fazeres parte da terceira.

8. Isto é mais difícil para mim.

Para mim, a ansiedade pode afetar não só a nossa relação, mas


também tudo o resto: o meu trabalho e carreira, qualquer situação
social, e até mesmo a superar o dia. Pode ser cansativo. De facto,
provavelmente não vou dizer-te muito do que estou a viver, então o
que reparares pode ser apenas parte do que estou a trabalhar. Não
é uma desculpa, mas por favor, lembre-se se se ficar difícil com
você.

9. Seja real e honesta.

A última coisa que eu quero é que tu me ′′ manuseas ′′ com luvas de


criança ou te tornes amargo porque estás a engarrafar frustrações.
Eu preciso de honestidade. Se estou a ser um fedelho, podes
definitivamente dizer-me que estou a ser um pestinha. Posso não
conseguir controlar se a ansiedade está presente na minha vida,
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

mas sei que posso trabalhar como reajo a ela. Às vezes fico
simplesmente impressionado ou assustado e mostro isso de uma
forma difícil. Congratulo-me com qualquer lembrete para me deixar
de aterrar e, em vez disso, reagir a partir Confio em ti porque te amo.

10. Amo-te e obrigado por me amares.

Não é fácil para mim estar vulnerável contigo ou pensar se sou


demasiado ou pouco. Pode haver momentos em que te afasto só
para que não me possas afastar primeiro. Toda a gente tem o seu
conjunto de problemas para resolver e tu inspiras-me e apoias-me a
trabalhar através dos meus. Então, obrigado, e prometo que vou
retribuir o favor.

Amesterdão, Holanda

20 de Janeiro de 2021

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AS CINCO FASES DE UM RELACIONAMENTO


Por: Sharrawy

1. Apaixonar-se

Apaixonar-se é a fase em que você se encontra vivendo através de


uma nuvem de hormônios da felicidade. Este é o momento em que
projetas todos os teus desejos e esperanças para o teu parceiro. O
seu parceiro rapidamente se torna a pessoa ideal para si;
simplesmente não tem defeitos de qualquer tipo. Acreditas que ele
ou ela será sempre capaz de realizar todos os teus desejos, e
acreditas em todas as palavras que dizem. Acreditas tanto no
poder do verdadeiro amor neste momento que nenhuma voz
cética te pode fazer parar e pensar mais cautelosamente.

2. Se Tornar Um Casal

Nesta fase, o amor torna-se mais forte, e uma sucessão de datas é


eventualmente substituída por vivermos juntos. Vocês conhecem-se
muito melhor, e a sua presença começa a ter um efeito sobre todos
os aspectos da vida do seu parceiro. Este é um tempo de unidade e
alegria. Em algum momento, após muitos meses ou anos, esse
período pode testemunhar o aparecimento de crianças, que só
podem fortalecer o vínculo entre vocês. Você se sente protegido e
desejado. E acreditas que definitivamente encontraste a pessoa
para ti - que a tua relação foi decidida pelo destino.

3. Desilusão

Este é o período em que as suas esperanças começam a ser


traçadas. É quando começamos a ter a impressão de que os nossos
sentimentos podem um dia dissipar-se, para nunca mais regressar.
Que o seu parceiro está a tornar-se tão previsível, e o
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

comportamento dele aborrece-o de tantas maneiras. Começas a


sentir que queres uma pausa deles ou até dizes a ti mesmo que eles
não são os únicos para ti. O pensamento adicional ocorre que não
faz sentido torturar-se a si mesmo e ao seu parceiro numa relação
que está sem vapor.

4. Criando Amor Real e Duradouro.

Se fechares os olhos e tentares o máximo para continuar apesar da


tua relutância, podes ultrapassar a terceira fase e chegar à seguinte.
A tua mente está libertada das ilusões que projetaste para o teu
parceiro nas fases anteriores. A pessoa que está à tua frente não é
aquela com quem imaginaste estar, mas uma pessoa real. Você
aceita - e mais importante - entender suas falhas. Agora é a hora de
curar e passar para a fase final.

5. Usando o Poder de Dois Para Mudar o Mundo

Agora que percebeu que aprendeu a superar seus


desentendimentos e encontrou uma conexão profunda, forte e de
longa duração, chegará a uma conclusão mais libertadora: que
vocês os dois têm o poder de mudar algo neste mundo. Vocês não
estão apenas a seguir juntos nesta vida por causa dela, mas vivem
numa parceria por uma causa maior. Pode ser que trabalhem
juntos, escrevam juntos, criam algo juntos - pode ser qualquer coisa.
Mas é quando você começa a funcionar como um todo, tendo
transcendido todas as fases anteriores, que pode dizer com 100 %
de certeza que ′′ esta é a pessoa para mim."

Luanda, Angola

25 de Janeiro de 2021

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

IDENTIDADE FEMININA: PORQUÊ?


Por: Sara Van-Dunem

Quando tinha 5 anos, sentei-me à beira da minha cadeira com as


pernas abertas. Senti uma comichão entre elas, então baixei para o
zero, mas a minha avó agarrou o meu pulso para me parar e
gritou: ′′As raparigas não fazem isso!" Perguntei-lhe porquê, porque
eu tinha visto o meu pai a fazê-lo, eu Também tinha visto todos os
rapazes na escola a fazê-lo. Era comichão e eu queria coçar. A
resposta dela foi: ′′É exatamente como é. As raparigas não fazem
isso. Além disso, não fique aí sentada com as pernas abertas assim.
As raparigas também não fazem isso."

Quando tinha 6 anos, passei um dia na praia com a minha família.


Estava entusiasmada com o novo biquíni que a minha mãe me
comprou, mas fiquei confusa sobre o motivo pelo qual ela me pediu
para manter a parte de cima quando eu fui dar um mergulho. Ela
não me obrigou a usá-lo nos anos anteriores, mas, de repente, ela
estava muito preocupada com isso. ′′Olha, eu também tenho um
vestido.", disse ela. E eu achando que entendi: as mulheres tinham
que cobrir os seios, porque eram maiores que os dos homens. Mas
eu não era uma mulher. Eu era uma criança. Mais tarde, ouvi uma
conversa que ela teve com o meu pai. ′′ Não quero que os velhos
olhem para ela.", sussurrou. Interrompi-os e perguntei-lhe porque é
que ela pensava que os velhos olhariam para mim. A resposta dela
foi: ′′É exatamente como é. É porque você é uma garota. E os
homens fazem isso."

Quando tinha 9 anos, discuti com a minha melhor amiga. Fui pra
casa e reclamei disso pra minha vó, que morava com a gente. Ela
disse-me que eu devia ter previsto isso. ′′ As meninas são assim.",
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

disse ela. ′′Uma amizade entre raparigas é sempre uma competição.


As raparigas são ciumentas, manipuladoras e apunhaladoras. Não
podes confiar nelas." Mas nunca tinha discutido com a minha
melhor amiga antes e sabia que iríamos perdoar e esquecer no dia
seguinte, de qualquer maneira. Então, perguntei à minha avó
porquê, e a resposta dela foi: ′′É assim mesmo. Lutas de gatos vão
acontecer. É normal. As meninas são assim."

Quando tinha 13 anos, apaixonei-me por um rapaz do bairro. Eu


não consegui esconder minha emoção. Ele estava sempre na
minha cabeça e eu apanhei-me a desejar estarmos juntos, para
que eu pudesse segurar a mão dele e beijá-lo, também. Queria
conhecê-lo, conhecê-lo melhor, e contei ao meu pai sobre o meu
plano de o convidar para sair. ′′Não faça isso.", disse meu pai. ′′Não
é apropriado uma rapariga convidar um rapaz para sair." Embora
eu tenha concordado parcialmente, uma vez que nunca tinha visto
uma mulher a propor o homem num filme, ou ler sobre uma
rapariga a beijar a sua paixão primeiro, ainda não o fiz. Entenda o
que seria tão mau sobre ser uma exceção, então perguntei ao meu
pai porque é que eu tinha de esperar que um rapaz demonstrasse
interesse em mim para que fosse permitido exigir abertamente isso.
A resposta dele foi: ′′É assim mesmo, querida. O homem faz o
primeiro movimento. Sempre foi assim. Os rapazes gostam de
conquistar, e as raparigas adoram ser perseguidas."

Quando tinha 17 anos, fazia parte de um grande grupo de amigos.


Teve um menino que me gostou. Não gostava dele de volta, mas
não estava acostumada com ninguém a morrer de amores por mim,
então gostei da atenção. Ele sempre me dizia que eu era especial.
Única. Diferente. ′′Você não é como as outras meninas.", disse
ele. ′′Você não é uma vadia. Você é engraçada, descansada,
inteligente. Você não se importa apenas com suas unhas ou seu
cabelo. Você tem meu sentido de humor. Você não é como a
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

maioria das garotas. És o meu melhor amigo. Mas com mamas."


Fiquei lisonjeada no começo, mas logo comecei a pensar se os
elogios dele eram de todo verdade. Eu comecei a sentir nojo dele.
Eu não queria ser o melhor amigo dele com mamas. Então
perguntei-lhe o que há de tão bom numa rapariga como eu, uma
rapariga diferente do que ele chamou de típica, e a sua resposta
foi: ′′ Isso é fácil de explicar. Um modelo bonito de rapariga é bom o
suficiente para roubar, mas no final, um tipo quer uma vagina sem
drama. Você é uma exceção. A maioria das garotas é superficial e
vagabunda. O tipo de garota que você fode, mas larga quando
estiver pronta para assentar. Ou eles são simplesmente aborrecidos
e puros. Isto parece duro, mas é como é."

Quando eu tinha 19 anos, tinha um rapaz com quem eu fazia sexo


regularmente. Foi bom. Não o tipo de foda apaixonada e extasiada
que eu sonhei; talvez nos faltasse química, talvez teria sido melhor se
estivéssemos apaixonados; mas eu estava bem com isso. Me
adaptei, obedeci e engoli. Claro que sim. No começo, ele
realmente fez um esforço para me dar o que eu lhe dei. Ele
realmente tentou. Mas as suas tentativas de colocar a língua para
um bom trabalho rapidamente desvanecem-se em meio a
erguendo-me seco e, em algum momento, ele disse: ′′ Estou a
desistir." perguntei-lhe porquê. A resposta dele foi: ′′ É tão difícil tirar
uma rapariga. Vocês mulheres precisam de tempo para gozar. É
tão cansativo." Eu ri e disse-lhe que precisava de cerca de dois
minutos quando fazia sozinha. ′′ Então fique com isso.", disse ele. ′′
Tenho uma cãibra no meu pulso. Mulheres são tão complicadas. É
assim mesmo. Sinto muito."

Tenho 23 anos agora, e percebi que a minha identidade feminina


foi moldada por uma desculpa tendenciosa e hipócrita baseada
em papéis ridículos de género: ′′ É assim que é." Toda a minha vida,
perguntei-lhes porquê, e tudo o que eles disseram foi ′′ É
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

exatamente como é." E não importava se eu tinha perguntado a


homens ou mulheres. A misoginia interna é igualmente prejudicial.
Tinha tanta mulher quanto homem que dizia: ′′ É assim mesmo." Mas
não era essa a resposta que eu queria. Não é a resposta que eu
precisava. Estas poucas palavras não respondem à porra das
inúmeras perguntas sobre a minha identidade de género.

Por que eu não consigo me sentar com as pernas abertas? O que


há de tão vergonhoso no que eu guardo entre elas? Por que eu
devo cobrir meus seios? Porque é que estou a ser sexualizada muito
antes de me dizerem quando o sexo é? Porque é que me
ensinaram a desconfiar das outras raparigas? Porque é que tenho
de competir com outras raparigas? Por que eu só sou uma boa
menina quando não sou como a maioria das meninas? Porque é
que tenho de ficar quieta sobre o que sinto? Porque é que eu não
tenho permissão para demonstrar afeto como os homens fazem?
Não consigo conquistar o coração de um menino, também? Por
que o amor deve ser sobre conquistar, afinal? E se eu não gostar de
ser perseguida? E se isso me assusta? Porque é que os rapazes me
assustam, afinal? Porque é que me fazes sentir inferior a eles? E
porque é que tenho de gostar de um rapaz para ser gostada?
Porque é que estou a ser envergonhada por ser uma ′′ puta ",
envergonhada por ser ′′ puritana "? Por que é que eu me esperava
adaptar, obedecer e engolir sem elogios quando os rapazes que
retribuem o favor são considerados gratos, amantes dedicados,
porque para a maioria deles, não entendem que se eu os fizer gozar,
eles também deviam obrigar-me a gozar? Porque é que eu sou
cansativa? Por que eu sou complicada?

É porque eu sou uma vadia? Porque eu sou um bebezinha demais?


É porque eu sou uma puta? Uma virgem pudica? É porque estou de
período? Porque as mulheres são simplesmente loucas? Porque eu
sou ciumenta, manipuladora, apunhaladora, competitiva ou
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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

qualquer outra inúmeras características negativas que estejam


imediatamente conectadas com a identidade feminina? Tudo
resumido, é porque eu sou uma menina?

Eu perguntei a eles. E eles disseram que sim.

E quando eu perguntei ′′ Mas porquê?", eles disseram novamente: ′′


É exatamente como é."

′′ É ′′ esse contexto, é um círculo interminável de renunciar à


aceitação da circunstância que as raparigas estão a ser criadas
para desrespeitar o próprio género desde a sua infância. Eu era e
sou esperado para aceitar o facto de que ser mulher
automaticamente me torna inferior, e de que devo agradecer por
ser tratada da mesma forma, porque não é esse o padrão. Eu era e
estou a esperar para apreciar e considerar isso como um elogio
quando as pessoas me dizem que não sou como outras mulheres.
Porque eu era, e sou esperado, para olhar para baixo para as
mulheres, apesar de ser uma mulher. Mas eu recuso-me a adaptar-
me, obedecer e engolir. Recuso-me a aceitar isso ′′ é como é ".
Recuso-me a considerar isto como uma resposta, e não vou deixar
de perguntar porquê. Nunca vou parar de perguntar porquê. Não
porque eu queira que as pessoas me dêem uma resposta
adequada, mas porque eu também quero que elas se questionem.
Quero que eles comecem a pensar. Quero que comecem a
duvidar do conceito de papel que aprendi a manter antes de saber
como escrever o meu nome ′′ tipicamente feminino".

Eu quero que eles pensem sobre isso, que percam o sono sobre isso,
até perguntarem, também: ′′ Porquê?"

Para eliminar estereótipos misóginos, temos de desapertar a


compreendê-los.Temos de nos recusar a aceitar ′′ É exatamente
como é ′′ como uma resposta, até esquecermos o que significa ′′
41
ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

isso Continuo a perguntar porquê, até que ninguém saiba mais uma
resposta. ′′ É só como é ′′ não é uma resposta. Nem ′′ É porque tu és
uma rapariga ". Ou ′′ É assim que as raparigas são ". Porque as
raparigas podem ser tudo e qualquer coisa que elas quiserem ser. É
assim mesmo.

— EU ME RECUSO!

Um desabafo sobre como minha identidade feminina foi moldada


por desculpas e mentiras.

Setúbal, Portugal

02 de Janeiro de 2021.

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

QUANDO O ESTIVADOR SE APAIXONOU PELA CARVOEIRA


Por: Sharrawy

Jamba, pegou seu pão e decidiu sentar no pequeno passeio em


frente a praça. Seu talhe estava coberto por uma mistura de fuba e
suor - sua corpulência apresenta sinais visíveis de cansaço devido
ao peso dos enormes sacos que passará o dia a levantar.

Motorizadas: Kawasaki e Dayun. Passavam frequentemente por ele


carregadas quase sempre por um passageiro. Ele olhava as
motorizadas com certo libido. Fazia dois anos que ele tentava juntar
alguns valores para comprar uma daquelas, talvez uma á segunda
mão em algum gajo que se fartou dos problemas do veículo e
pretenda vendê-lo. Só que a vida do estivador é feita de muitos
planos e pouco dinheiro.

Do outro lado da estrada, Grandes sacos rasgados em formato de


tapete sobre um monte de areia servia de bancada para inúmeras
quintandeiras que não conseguiam vender dentro do mercado —
Maluquice isso? eu que só vendo já 500kzs por dia vou mais pagar
200kzs todos dias no mercado, assim vou levar o quê em casa para
os meus filhos comerem? — Bufou Guida uma conhecida fintadora
dos policiais e fiscais do mercado do Benfica.

A recente chuva tinha deixado uma terra húmida e negra no meio


da estrada abatida que separava os dois lados do mercado. E
quando os motoqueiros passavam vertiginosamente por lá,
pequenas gotas da poça de lama salpicava sobre os alimentos das
senhoras que automaticamente faziam uma algazarra inútil aos
motoqueiros que nunca paravam.

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ESTE LIVRO NÃO É SÉRIO, TIPO O MEU PAÍS

Jamba, mantinha-se imóvel enquanto seus olhos percorriam pela


paisagem rústica daquele local. Até que um pequeno brilho
apossou-se de seus olhos. Foi quando ele á viu.

Tchissola, de testa coberta pelo suor e com um enorme saco de


carvão a cabeça — sua pele negra brilhando no tortuoso sol de
Luanda. Trajava um uma blusa de alças e panos que lhe cobriam
até os pés. Tirou o saco da cabeça e parou bem na frente de
Jamba.

Ai mesmo, estendeu também o seu saco e começou a montar a


sua bancada. Cumprimentou as colegas de batalhas - sorrindo.
Juro, que para Jamba aquele fora o sorriso mais belo que já vira -
sua gargalhada soou como uma melodia harmoniosa de uma
orquestra sinfônica. De tal modo que Jamba continuou olhando
para ela suas tranças velhas e seu rosto jovem - seu semblante puro
e imaculado. Para ele, aquele era a melhor personificação de
como um anjo deve ser. Na génese da sua vida com apenas 17
anos, Jamba descobrirá em si sentimentos que até então foram por
si desconhecidos.

Nato do Huambo, Jamba decidirá sair do seu amado Huambo para


tentar a sorte em caótica Luanda. Aos 14 anos chegou lá na
hipnotizante Luanda, aonde nos primeiros dias de sua estadia se
hospedou nos seus passeios de rua. Até que conseguiu esse
trabalho na moagem que o sustenta desde então.

Tchissola aparentava ter pelo menos 15 anos, mas era tão bela
quanto as enormes montanhas que Jamba conheceu no seu
amado Huambo - tinha terminado de arrumar sua bancada e
finalmente ousou olhar para frente, e durante alguns segundos seus
olhos se encontraram com os de Jamba que vergonhosamente
desviou o olhar, mas um pouco e Tchissola conseguia entrar na
alma daquele robusto homem. Ela já o observará a algum tempo.
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Não tinha sido coincidência ela arrumar sua bancada bem na


frente dele. Sabia que todos os dias ele sentava naquele passeio a
mesma hora para tragar seu pão seco empurrafo por uma
embalagem de água fresca que lubrificava a garganta para que o
mesmo pudesse passar.

Jamba, assim que percebeu que Tchissola voltou a olhar para sua
bancada olhou de soslaio para ela e notou que se semblante
outrora fagueiro ficou carregado e preocupado. Naquele
momento ele quis ter o poder de ler a sua mente para saber o que
tanto aflingia aquele anjo negro. Pensou que talvez fossem os
problemas familiares - talvez ela tivesse a mãe doente e por isso
nova como era vendia no mercado em horário que normalmente
jovens da sua idade estão na escola. Pensou que talvez já tivesse
um esposo — coisa que ele sabe que não é nenhuma novidade na
sociedade aonde está inserido. Talvez tivesse problemas com o seu
esposo. Mas lá no fundo ele não quis admitir essa hipótese.

Ganhou coragem e levantou. Seu coração batia bem mais forte -


ele iria falar com ela, sim, o Estivador ia falar com a Carvoeira, nem
que fosse um simples "boa tarde", ele iria falar. Tchissola o observou
recolhendo coragem para se aproximar dela e seu coração
também disparou. Juro, se fosse branca corava na hora.

Deu dois passos, mas depois hesitou — o que ele estava a pensar?
O que um estivador do Huambo ia dizer para tão belo ser angelical?
Olhou para o chão tentando desviar atenção, começou a procurar
pelo nada naquele chão lamacento. Olhou para suas roupas rotas
e sujas, seus tênis Vans furados seus dedos do pé á mostra, inalou
seu cheiro forte de dourados e por pouco vomitava com o que
sentiu. De certeza, avançar não era uma boa ideia.

Tchissola, perdida em pensamentos, agora desiludida porque seu


amado Jamba hesitará — pensou que se não fosse o que aprendeu
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com sua jazida mãe de que "são os homens que devem dar o
primeiro passo", levantava ela e ia ter com ele. O homem parecia
que tinha sido congelado não avançava, nem recuava. Que lixe o
que a mãe lhe disse - ela ia até ele.

Jamba viu que Tchissola vinha ao seu encontro, continuou parado,


seu cérebro pareceu que se desligou, ela vinha gingando com um
sorriso pelo no seu rosto. O semblante carregado voltou a dar
espaço ao primeiro. Começou a tremer na hora, os metros se
tornavam escassos, ela estava na frente dele - conseguiu ver
nitidamente a pequena mancha escura de carvão no seu rosto
suado.

Eles já iam começar a conversar se não fosse eu. Pulei do


patrulheiro chutei a primeira bancada de tomates que as minhas
botas duras alcançaram. Peguei em uma banheira de plástico e
parti em duas partes. Numa desponta desgovernada uma das
zungueiras bateu em mim e deixei cair arma que agora estava em
minhas mãos. Assim que baixo para apanhar sou acertado por
vários golpes. Num momento de raiva pela ousadia daquelas
mulheres, peguei na arma e atirei no ar, numa tentativa de
dispersa-las. Foi quando vi uma mulher que tentava organizar seu
negócio para também fugir da nossa investida cair bruscamente no
chão, no mesmo instante um fio de sangue rolou de sua cabeça.

— Wawee! Mataram a filha alheia! — Gritou a conhecida fintadora


Guida — Mataram a Tchissola, assassinos.

Obrigado Por Leres Este Livro


Se O Quiseres Chamar Assim.

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NJILA IA DIKANGA
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