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Título original em inglês:

ANY WAY OUT

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1ª edição neste formato


Versão 1.2
2014

Coordenação Editorial: Marcos De Benedicto


Editoração: Neila D. Oliveira e Guilherme Silva
Design Developer: Fernando Santana e Cristiano Soares Vieira
Projeto Gráfico e Capa: Fábio Fernandes
Imagens da Capa: Montagem sobre fotos de © Konovalov Pavel | Fotolia,
© studiogriffon.com | Fotolia e © iofoto | Fotolia
Fotos Internas: Cedidas pela autora
Os textos bíblicos citados neste livro são da versão Almeida Revista e Atualizada, salvo outra indicação.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio,
sem prévia autorização escrita do autor e da Editora.

14558/29901
Dedicatória

A meu marido, Voya, meu cônjuge e companheiro nos últimos 50 anos, que veio
de longe para me encontrar, e cujas histórias inspiraram este livro.

E também ao meu cunhado Steve, que tem sido um membro importante de nossa
vida.
capítulo 1

O Falcão Cinzento e a Promessa

Voja [Vo-ia] olhou atentamente através da empoeirada vitrine da Agência de


Viagens Putnik e prendeu a respiração. Ele franziu a testa, esfregou a manga do
paletó contra o vidro para limpar as riscas da neve que derretia, e olhou de novo.
Ali estava, no centro da vitrine, a lista pela qual havia esperado, vivido e
suspirado durante as últimas seis semanas. E agora, ao vê-la, ele tremeu e
afastou-se.

Olhando de relance através da rua, suspirou profundamente, exalou o fôlego


devagar, e voltou para a vitrine. “Grupo de Turismo para Roma, 13 a 22 de maio
de 1957”, era o título do cartaz. Abaixo do cabeçalho estavam duas colunas de
nomes: A... B... V... Ele leu ansiosamente os nomes em ordem alfabética cirílica.
Cinco linhas abaixo parou de repente e ofegou ao ler seu nome completo:
Vitorović, Vojislav.

Uma risada brotou de seu interior. Ele sentiu vontade de gritar de alegria, mas o
ruído de passos que se aproximavam e o som surdo de conversas o fizeram
reprimir seu entusiasmo e engolir sua risada. Subitamente ficou como que
eletrizado. “Este é o meu passaporte para a liberdade!”, exultou ele ao voltar-se e
ir embora.

Agora seu rumo era o Parque Kalemegdan, um oásis charmoso no centro de


Belgrado. Assentadas como uma rainha num trono de pedra calcária, as sólidas
paredes de tijolos de uma antiga fortaleza turca se estendiam sobre o topo do
promontório de onde se avista a confluência dos rios Sava e Danúbio. Maciços
muros de pedra formavam graciosos terraços sobre o escarpado monte. No
terraço mais alto, Voja encontrou seu irmão gêmeo idêntico, Cveja [Tsve-ia] e o
conduziu para um banco retirado.

Os dois jovens, vestidos da mesma maneira, com longos casacos cinzentos de lã,
sentaram-se um de frente para o outro, com uma leve brisa agitando os
ondulados cabelos castanhos. As palavras de Voja jorraram como uma torrente:

– Estou indo para Roma. Isto é oficial. Acabo de vir da Agência Putnik! – Ele
sorriu maliciosamente para Cveja, que ficou boquiaberto de surpresa.

– Você está brincando! Não posso acreditar! – exclamou Cveja finalmente.

– Eu sei, eu sei! Nem eu acredito – disse Voja exultante. – Eles divulgaram a


lista hoje. Quando vi meu nome como guia turístico assistente, quase fiquei
doido de alegria. – Ele gesticulava descontroladamente. – Mil e quinhentas
pessoas se candidataram. Você acredita que só 50 foram aprovadas? – Ele
balançou a cabeça, irritado com a palavra “aprovadas”.

Os dois homens fitaram-se durante alguns momentos. Então Cveja disfarçou um


sorriso, dizendo: – Você deve ter dado uma entrevista à UDBA [sigla da polícia
secreta da Iugoslávia] e os impressionou com o seu conhecimento. Ou será que
foi o seu charme irresistível? – Ele inclinou a cabeça para o lado, com um
sorrisinho matreiro se abrindo nos cantos da boca.

– Charme? – Voja lançou a cabeça para trás e riu. – A polícia secreta não é
conhecida por se deixar influenciar por isso. Quanto à entrevista, foi mais
parecida com um interrogatório. O coronel uniformizado fez as perguntas, e o
civil gravou minhas respostas. Após sete semestres estudando história da arte e
arquitetura, Roma ficou gravada em minha memória, de modo que essa parte foi
fácil.

Cveja de repente mudou seu modo despreocupado. Ficou sério e baixou a voz. –
Eles certamente esperam que você volte.

Os gêmeos pararam de conversar e se reclinaram como se levassem em conta o


casal que se aproximava de mãos dadas. O sol finalmente havia saído após o
mais recente período de frio, e muitos habitantes da cidade estavam aproveitando
esse dia de meados de janeiro para passear ao ar livre. O casal passou, e os
gêmeos retomaram sua conversação.

– Logicamente. Temos um encontro marcado com os militares em setembro –


replicou Voja, inclinando-se para frente. – Esta é uma das razões por que eu não
esperava ser selecionado.

– E Mića? – perguntou Cveja. – Um cunhado que foi prisioneiro político até


recentemente não deve ter sido uma boa referência para as suas credenciais.

Voja concordou. – Ter um dissidente na família é ruim. Além disso, não ser
parente de um membro do Partido Comunista também não seria uma boa
recomendação. – Ele encolheu levemente os ombros. – É estranho que eles
tenham ignorado esses fatos.

Após uma longa pausa, Cveja disse vagarosamente:

– Durante anos, temos sonhado em ir para a América. Agora que isso parece
possível, tornou-se um pouco assustador. – Ele se inclinou na direção de seu
irmão e limpou a garganta. – Nunca pensei que seu plano fosse dar certo.

– Ainda não deu – respondeu Voja rapidamente. – Esta viagem vai me tirar do
país, mas eu ainda vou ter que desertar, e você precisará escapar. – Seu rosto
ficou subitamente perturbado. – Isto é o que me preocupa, Cveja. Como você
escapará?

Escapar. Essa era uma eventualidade na qual Cveja não havia pensado
seriamente. Ele respirou fundo, encheu o peito e endireitou as costas enquanto
virava as calças com os antebraços de modo que a costura ficasse torta – um
hábito nervoso que adquirira. – Sem preocupações, meu irmão – disse ele
confiantemente. – Você sabe o quanto eu sou persistente. Tudo o que preciso é
de um guia que me ajude a atravessar a fronteira, alguém em quem eu possa
confiar.

– Claro. Alguns de nossos amigos escaparam dessa maneira – disse Voja, com o
olhar distante. – Mas e aqueles que desapareceram, dos quais nunca mais
ouvimos falar? – Ele virou a cabeça e fechou os olhos junto com seu irmão,
sentindo uma dor aguda no peito. – Não sei, Cveja. E se um de nós não
conseguir?

A pergunta sem resposta ficou suspensa no ar. Alheios às inquietações dos


irmãos, pombos arrulhavam e se moviam através da alameda de concreto em
frente ao banco. De repente, os pássaros voaram, desceram velozmente na
direção do rio e então se elevaram para o céu novamente. Ali naquele local
histórico – uma lembrança sempre presente da luta contínua dos sérvios contra
invasores e ocupantes estrangeiros – os gêmeos abraçaram sua própria causa em
busca de liberdade. A Iugoslávia estava situada nos Bálcãs, no encontro do
Oriente com o Ocidente, na falha geológica entre Bizâncio e Roma. Por isso, o
seu povo era vulnerável a todo e qualquer exército conquistador que passasse por
ali. Naquele momento, outro ocupante estrangeiro os oprimia – o comunismo
ateu.

Cveja reduziu a tensão, moderando sua voz novamente.

– Lembre-se, meu irmão, você é o desbravador! Você veio ao mundo primeiro.


Você nunca me deixou esquecer aquela diferença de dez minutos – disse ele
rindo. – Está plenamente correto você tomar a dianteira.

Eles haviam discutido tudo isso antes, quando Voja falou pela primeira vez a
Cveja sobre o cartaz anunciando a viagem e seu cargo como guia turístico
assistente. O guia principal seria logicamente um comunista. Cveja havia
concordado em ficar para trás, como garantia, de modo que Voja pudesse se
candidatar, pois as autoridades jamais concederiam passaportes aos dois irmãos.
Cveja faria esse sacrifício deixando que Voja tentasse o caminho mais fácil.
Como gêmeo mais novo, Cveja muitas vezes se submetia a ele, embora fosse
mais decidido e tivesse mais iniciativa. Ele perseverava quando Voja estava para
desistir. O conhecimento que Voja tinha de seu irmão o confortou. Ainda assim,
ele lutava com um imenso sentimento de culpa. Ele estava abandonando seu
irmão, deixando-o para trás. Eles nunca haviam se separado antes, e seu coração
já começava a doer.

– Você tem até 22 de setembro – Voja lembrou a seu irmão, com um tom de
urgência na voz. – Se as informações estiverem certas, os Estados Unidos
pretendem acabar com a imigração dos países comunistas quando Eisenhower
deixar o governo. Teremos de concluir o processo de imigração antes disso, e
com as quotas sendo abertas e fechadas não temos ideia de quanto tempo isso vai
demorar. – Sua voz aumentou de intensidade. – Mas se você não escapar antes
de ir para o exército, será tarde demais para sair. A América não estará mais
aceitando os iugoslavos.
– Oito meses. É tempo suficiente – disse Cveja confiantemente. E advertiu Voja:
– Lembre-se de que sua viagem para Roma não vai ser uma viagem de lazer. –
Cveja voltou sua atenção para o irmão. – Espiões vão se infiltrar em seu grupo,
fingindo ser turistas. Alguém estará sempre vigiando seus passos.

Suspirando profundamente ao mesmo tempo, os dois irmãos se levantaram e


caminharam até o parapeito de ferro. Densos ramos de trepadeira verde e parda
se debruçavam como cortinas do parapeito para a plataforma abaixo. Inclinando-
se sobre o parapeito, eles ouviram o ruído das águas impetuosas lá embaixo,
onde o rio Sava se precipitava nas águas azul-escuras do Danúbio, salpicadas de
pedaços de gelo. Além da confluência dos dois rios, navios cargueiros singravam
a hidrovia através da Europa Central rumo ao Mar Negro. Os gêmeos não
deixaram de perceber a ironia – os navios ali perto navegavam livremente, sem
restrições de fronteiras.

– Lembra-se da promessa em Jeremias 29:11? – perguntou Voja. Ele a repetiu


em parte: “Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito [...] para vos dar
o fim que desejais”. Voltando-se, ele se encostou no parapeito. – Li este verso
hoje de manhã. E quando vi meu nome na lista, isto realmente me tocou. – Ele
ficou com um nó na garganta, e seus olhos marejaram. – Parecia que Deus estava
abrindo a porta, e dizendo: “Aqui está a sua chance.” Isso me deu muita alegria.

Cveja virou-se para ver a silhueta da cidade, e Voja seguiu-lhe o olhar na direção
da torre dourada da Catedral Ortodoxa de São Miguel Arcanjo, de Belgrado, ao
longe. Muitas vezes, eles haviam visto ali o corpo enrugado e sem cabeça do
czar Lazar, que havia sido preservado num sarcófago de vidro. O czar Lazar –
último governante do reino medieval da Sérvia, domínio que havia existido por
200 anos – tinha sido decapitado pelos turcos otomanos na Batalha de Kosovo
em 1389. Essa derrota mergulhou o Reino Sérvio durante 500 anos sob o
domínio dos turcos otomanos.

– O czar Lazar não se deixou intimidar pela avassaladora desvantagem –


murmurou Cveja. – Seu pequeno exército enfrentou os invasores islâmicos para
defender a liberdade, a terra e a fé cristã ortodoxa de seu povo. – Sua voz se
tornou mais forte e mais confiante. – É nossa herança lutar pela liberdade.

O ar úmido do rio subiu pela encosta íngreme enquanto os dois homens


continuavam a contemplar o futuro. O denso e abafado aroma penetrou-lhes os
pulmões e ficou gravado na memória deles. Tal qual a tradição que os criou e a
cultura que os modelou, eles se lembrariam daquele aroma aonde quer que
fossem.

Enquanto os gêmeos caminhavam ao longo da alameda, foram apanhados pelo


vento. Detendo-se na base do altaneiro memorial Mensageiro da Vitória, seus
olhos se alçaram pelo pedestal de mármore branco até a estátua de bronze no
topo. O homem desnudo estava de costas para o parque, com o rosto voltado
para os rios e olhando para a planície ao longe, através da qual a maioria dos
invasores entrou no país. Em sua mão estendida, ele sustentava um falcão de
bronze.

– Sivi Soko [Falcão Cinzento] – disse Cveja pensativamente. Esse era o nome
dado aos corajosos, o símbolo da felicidade na mitologia sérvia. Os olhos de
Cveja se fixaram na ave, mas seus pensamentos voaram adiante. – Olhe suas
asas. Ele está pronto para voar.

Quando o sol começou a se desvanecer no horizonte, e as sombras aumentaram


na encosta, Voja deu uma olhada no relógio.

– É melhor nos apressarmos, ou perderemos o ônibus elétrico – disse ele. Com


passos enérgicos, os gêmeos saíram rapidamente do parque. A ideia de liberdade,
cantada em música nas antigas baladas de seu povo, agora ardeu com fulgor em
seu coração, clamou em sua mente e os encheu de um júbilo secreto.

Enquanto eles esperavam no ponto de ônibus, Voja apontou o dedo para o céu.
As nuvens haviam se separado. Uma ave surgiu, planando graciosamente
impelida pelo vento e fazendo círculos lá no alto. Os gêmeos trocaram olhares e
então a viram voar pelo céu infinito, celebrando sua liberdade até desaparecer de
vista. “Teria sido um falcão cinzento?”, Voja se perguntou. Logo o último ônibus
elétrico para a casa deles chegou, e os gêmeos entraram nele.

Seu lar era um apartamento de três quartos. Estava situado nos fundos de um
edifício amarelo em forma de L, cujo acesso era feito através de um pátio com
portão, mas Voja hesitou antes de entrar. Durante todo o trajeto, ele se
preocupara sobre como dar a notícia para os demais familiares. Eles sabiam que
ele havia se candidatado para a viagem, mas tal qual Cveja, não esperavam que
ele fosse selecionado.

– Meus irmãos! – festejou alegremente sua irmã Nata quando eles entraram.
Voltando-se do fogão a lenha que aquecia o apartamento, ela rapidamente
enxugou as mãos num pano de pratos e então se apressou a apanhar-lhes os
casacos.

– Estamos prontos para jantar se vocês quiserem – anunciou ela ao voltar do


outro quarto. Quando ela trouxe para a mesa uma panela de pimentões
recheados, o apetitoso aroma impregnou o ar. Ela colocou com a concha uma
porção no prato de sua mãe Mara, que estava sentada a uma pequena mesa perto
do fogão, para que se mantivesse aquecida. Então Nata se juntou ao seu marido
Mića e aos irmãos dela, na mesa da cozinha.

Durante todo o jantar, a família conversou e riu. Mas nessa noite o humor e
entusiasmo costumeiros de Voja pareceram contidos. Ouvindo sem muita
atenção a conversa, ele inconscientemente traçou com o dedo a palavra Roma na
toalha da mesa e em sua calça.

Ao observar a família interagindo, Voja notou como se fosse a primeira vez, que
o riso fluía facilmente na família. A risada da mãe era moderada e rouca como
sua voz. Nata deixava saliva escapar enquanto ria, como uma torneira tossindo
após ter faltado água. Cveja ria como se tentasse reprimir sua alegria com a mão
na boca, como fazia Nata. A risada de Mića era forte e contagiante.

A conversação girou em torno dele, quando Voja procurou recordar o riso de


suas irmãs Vera e Leka, as quais haviam se casado e mudado para outras cidades.
Vera gorgolejava quando ria, como água borbulhando de uma fonte. Quando ela
ficava sem fôlego, ofegava sem interromper-se. Continuava a rir e falar
simultaneamente. Leka, sua meia-irmã mais velha, ria de modo parecido com
Vera, dando risadinhas e gesticulando animadamente ao mesmo tempo. Qualquer
pessoa que ouvisse as irmãs rindo adivinharia que elas eram parentas. Ele tentou
recordar o riso de seu pai, o qual havia sido silenciado pela morte seis anos
antes. Sim, o riso fácil de Ilija [Ilia] havia sido intenso e semelhante ao de Vera,
pois ele também costumava falar e rir ao mesmo tempo.

– O que há de errado, Voja? Você mal tocou no alimento. – A pergunta de Nata


interrompeu seus pensamentos. Ela estava em pé ao lado dele com a travessa de
pimentões e viu com desagrado o seu prato, onde ainda estava a metade da
comida. – Coma mais um pouco. – Ela se inclinou e pôs mais uma porção no
prato dele, junto com molho de tomate, antes que ele pudesse protestar. Para
Nata, ninguém comia o suficiente. Ela estava sempre servindo, sempre sorrindo.
Mas ele sabia que ela olhava com orgulho e afeição para seus irmãos gêmeos.
“Brrmm, brrmm.” Ruídos vindos do canto da parede chamaram a atenção de
Voja para o pequeno Jovica [Iovitsa], de dois anos, que estava sentado sobre uma
almofada, empurrando em volta um carrinho vermelho de madeira. Ele o ergueu
no ar fazendo-o rodar, e olhou para ver se alguém havia notado.

– Cita Majmun [Chimpanzé Chita]! – exclamou Voja, atraindo os olhares de


Jovica. Os gêmeos haviam apelidado seu querido sobrinho com o nome da
divertida amiguinha de Tarzan quando Jovica tinha apenas 18 meses de idade.
“Você é branco como queijo!”, brincou Voja olhando para o cabelo sedoso e a
pele branca de Jovica. O garoto sorriu timidamente, com as sobrancelhas
erguidas e a testa franzida. Elas lhe davam uma aparência esquisita, ao mesmo
tempo terna e séria.

Voja se lembrou da enorme alegria de Nata quando ficou grávida. A


transferência de Mića para uma prisão de Belgrado pouco antes do término de
sua pena lhe havia permitido participar de um programa de trabalho da prisão,
em que ele pintava as casas de membros de alto escalão do Partido Comunista.
Como a supervisão era mínima durante o caminho para os locais de trabalho, ele
às vezes se encontrava secretamente com Nata no quarto alugado dos gêmeos.

Agora, acomodado em sua cadeira com o garfo na mão, Voja olhou em volta da
sala. Mića havia pintado o apartamento e trazido de volta a mobília do casal, que
havia ficado armazenada no galpão de um amigo durante os sete anos e meio em
que ficara preso. Antes da prisão de Mića e seu subsequente despejo, os gêmeos
haviam morado com o casal em outro apartamento ao se mudarem para Belgrado
a fim de estudar na universidade.

Após sua libertação, apenas sete meses antes, Mića soube que aquele
apartamento ficara vago por meio da viúva de seu melhor amigo. Ela morava no
apartamento da frente com o segundo marido e o filho Grujica [Gruitsa], amigo
dos gêmeos. Quando o apartamento ficou pronto, Nata se mudou de volta para
Belgrado, saindo das terras da família em Glusci, onde havia morado com os
pais desde o despejo. Jovica veio junto, e como Ilija havia morrido nesse ínterim,
Mara fechou a casa do sítio, arrendou para membros da família o pedaço de terra
que possuíam e se mudou para Belgrado com Nata. Pouco tempo depois, o casal
convidou os gêmeos para morar com eles.

Após o jantar, Nata lavou os pratos, cobriu-os com um pano limpo de linho e os
deixou secando no balcão de aço inoxidável. Somente então, ela retornou à mesa
vazia onde os demais permaneciam sentados. A mãe observava tudo de sua
cadeira perto do fogão, com os grandes olhos azuis piscando e seu doce sorriso
emoldurado pelo lenço escuro que lhe cobria os cabelos.

Voja lançou um olhar para Cveja. Engolindo em seco, ele começou:

– Fui à Agência Putnik hoje.

Quatro pares de olhos ansiosos se fixaram nele. Até mesmo Jovica olhou.

– Vocês se lembram de que eu lhes falei sobre a viagem para Roma? Bem, a lista
saiu hoje. – Observando cada rosto, ele torceu os dedos nervosamente: –Meu
nome estava na lista.

Tão logo as palavras saíram dos lábios de Voja, Mića se pôs em pé de um salto e
lhe deu um abraço apertado.

– Ótima notícia! Algo espetacular vai acontecer nesta família! – exclamou ele,
demonstrando fervor em seus olhos escuros. Voltando para a extremidade de sua
cadeira, ele se inclinou para a frente e agitou o dedo indicador para Voja. – Você
precisa ter muito cuidado. Ninguém pode descobrir seu plano.

A mãe desviou o olhar, de Voja para Cveja e novamente para Voja, como se já
estivesse prevendo que iria perder os dois filhos e querendo gravar a imagem
deles em sua mente. Voja contemplou os olhos da mãe, mas não viu lágrimas. Na
verdade, ele nunca a vira chorar. Nem quando ele e seu irmão saíram de casa aos
11 anos para continuar os estudos em outra cidade. Nem mesmo quando seu pai
morrera. Deus era sua âncora e fortaleza, e ela aceitava tudo como sendo
proveniente de Suas mãos.

– Meu querido, que Deus te abençoe – disse Mara finalmente em voz baixa e
ritmada ao encontrar o olhar fixo de Voja. Ela então repetiu sua frase predileta,
que dissera tantas vezes ao longo dos anos: – Tudo passará, e o Senhor virá.

Nata permaneceu quieta, o que não lhe era habitual. Uma mecha de cabelos
escuros e encaracolados caiu-lhe sobre a testa, e ela empurrou-a para trás
distraidamente. Seus pés, calçados com chinelos, se firmaram no chão e ela
assentou-se de mãos cruzadas sobre o colo com avental. Os olhos castanhos
piscavam rapidamente enquanto escutava.
“Nata preencherá o espaço depois que sairmos. Ela cuidará da mãe”, disse Voja
para si mesmo, embora seu coração sofresse pela irmã. Ele jamais se esquecera
de como a irmã trabalhara no sítio no lugar dele e de Cveja, de modo que o pai
deles lhes permitisse ir para o colégio. Se não fosse Deus e Nata os gêmeos
ainda seriam incultos. Uma grande parte do sítio da família havia sido
nacionalizado – o moinho, a olaria e a serraria foram confiscados pelo governo.
Sim, ele devia muito a Nata. E agora que ela havia finalmente juntado os
pedaços de seu mundo, ele estava despedaçando tudo em volta dela. Esse
pensamento o afligiu.

– Você sabe que não temos futuro aqui. O regime nos deu uma boa educação –
pelo menos isso –, mas mesmo isso não conta se você não pertencer ao partido –
disse Voja por fim, repetindo fatos que eles já sabiam.

Mića assentiu com a cabeça silenciosamente, com uma expressão enigmática no


rosto. Ele, mais do que qualquer outro deles, estava familiarizado com esse
detalhe particular, pois desde que fora libertado da prisão havia sido destituído
de todos os direitos civis.

– Uma sociedade sem classes, igualdade e fraternidade é o que os membros do


partido prometeram – continuou Cveja, seguindo a linha de pensamento do
irmão. – Mas, quando eles chegaram ao poder, tendo como presidente Josip Broz
Tito, os líderes comunistas formaram sua própria burguesia. – Ele encolheu os
ombros. – Desde que Tito rompeu com os soviéticos, ele afrouxou algumas
restrições, mas a máquina continua a mesma. O indivíduo não vale nada. Ele é
apenas um dente na engrenagem do estado. O único bem é o estatal.

– Além disso, como cristãos, somos todos cidadãos de segunda classe – disse
Voja. – A Constituição teoricamente permite liberdade religiosa, mas os
observadores do sábado sofrem de qualquer modo.

Voja se referia à igreja à qual sua mãe havia se convertido enquanto os gêmeos
ainda eram crianças. Era uma igreja protestante, considerada pelo povo como
uma religião americana. A maioria dos sérvios pertencia à Igreja Sérvia
Ortodoxa, a religião nacional. Mas, como adventistas do sétimo dia, Mara e os
filhos observavam o sábado, o sétimo dia da semana, o sábado bíblico. Do pôr
do sol de sexta ao pôr do sol de sábado, eles se abstinham de trabalhos e
atividades seculares.
– Outros cristãos não têm os problemas que nós temos com a semana de seis
dias, sendo que domingo é feriado e eles vão à igreja nesse dia – disse Cveja. –
Nossos membros não trabalham aos sábados. Por isso são multados e às vezes
demitidos de seu emprego. A frequência à escola é outro problema.

A maioria dos adventistas do sétimo dia permitia que os filhos pequenos


frequentassem a escola aos sábados. Os poucos que não o fizeram sofreram as
consequências. Entre estes estavam sua meia-irmã Leka e o marido, Živan, os
quais mantinham os três filhos em casa no sábado. Como resultado, eles foram
multados várias vezes. Pera, o filho mais novo de Leka, havia sido expulso de
várias escolas, como retaliação do estado, pelo fato de seu irmão mais velho, um
excelente estudante, estar seguindo a carreira de pregador.

A conversa se aquietou quando Nata se levantou da mesa, encheu um jarro com


água e tirou copos do guarda-louça para arrumá-los numa bandeja. – Vocês
devem estar com sede – disse ela voltando para a mesa com a bandeja e o jarro.
Então foi ao fogão para aquecer um copo com água para sua mãe.

– Nossa licença de estudantes expira em setembro ao completarmos 27 anos de


idade – disse Cveja limpando a garganta. – É quando devemos nos apresentar
para o serviço militar.

– O exército deve ser uma experiência interessante – interrompeu Mića entrando


na conversa. Os adventistas do sétimo dia tradicionalmente evitam envolvimento
em política, mas a preocupação política e o subsequente aprisionamento de Mića
haviam extinguido seu interesse em Deus e na religião. – Se vocês acham que as
coisas estão difíceis agora, esperem até dizer para o exército que vocês não
podem trabalhar no sábado. Lá é um mundo à parte.

– Isso é o que temos ouvido, isso é o que temos ouvido. – Cveja balançou a
cabeça e olhou atentamente para o irmão. – Nossos amigos nos contaram
histórias terríveis.

Voja assentiu com a cabeça. – Se Deus quiser, já teremos ido embora antes disso.
– Ele mudou para o seu assunto predileto. – Na América não é assim. Lá a
religião é respeitada e os cidadãos têm direitos – exclamou ele, estendendo as
mãos. – As transmissões radiofônicas da Voz da América falam tudo sobre isso.
Na América, mesmo os operários das fábricas e as empregadas domésticas
podem ter carros.
– Oh, mas o regime chama isso de propaganda – interrompeu Mića com um
sorriso estranho e a voz cheia de sarcasmo. Ele também amava a América.

– Mas é lógico – retorquiu Voja igualmente sarcástico. – É por isso que os


americanos podem ir e vir como quiserem e nós não podemos. Que tipo de
governo é este, que tranca os seus cidadãos dentro de suas fronteiras? Se o
comunismo fosse um bom sistema, ninguém iria querer sair.

Algumas semanas mais tarde, Voja recebeu seu passaporte. Todas as noites,
antes de dormir, ele o abria e olhava seu visto italiano. “Segunda-feira, 13 de
maio – o Dia D”, murmurava ele para si mesmo, lendo a data de saída. Isso se
tornou um ritual noturno costumeiro.

Empregado como arquiteto pela Igreja Adventista do Sétimo Dia no escritório


central em Belgrado, Voja estava naquele período trabalhando na planta de uma
nova igreja em Skopje [Scopie], a capital da república da Macedônia. Uma noite,
quando os gêmeos já estavam se preparando para dormir, ele e Cveja discutiram
o projeto.

– Espero terminar o esboço preliminar até abril – disse-lhe Voja. – Mas não
conseguirei terminar o projeto todo. Conto com você, Cveja, para o que faltar.

E assim, no início de abril, munido do esboço preliminar, Voja se encontrou com


os pastores Anton Lorencin e RadoŠ Dedić, em Belgrado, e eles foram de trem
para Skopje. Após oito horas e muitas paradas, eles finalmente chegaram.
Depois de passarem a noite no apartamento do pastor local, os quatro homens se
encontraram na manhã seguinte com os funcionários do departamento de
zoneamento e construção, os quais aprovaram o esboço de Voja e o autorizaram
a continuar com o projeto.

Na viagem de volta para Belgrado, Voja se assentou com os dois pastores,


contente porque tudo correra bem. Mas, quando o trem ressoava ao longo de
plantações de fumo e vinhedos que começavam a verdejar, ele se perguntou:
“Como não poderia eu confiar nesses homens? Em um mês terei ido embora. O
que eles vão pensar de mim, então?” Através da janela, ele viu ovelhas pastando
num campo distante. “Mas se a polícia os interrogar, eles vão ficar numa
situação embaraçosa se souberem dos meus planos. Mas se eles não souberem e
forem interrogados, poderão verdadeiramente dizer que não sabiam de nada... É
isso aí. Vou ficar calado. Cveja dará as explicações depois.”
Os dias seguintes trouxeram um clima mais quente e os bem-vindos aromas da
primavera. Voja trabalhou febrilmente em seu projeto e preparou Cveja para
substituí-lo. Um dia, Voja discutiu suas finanças com a mãe.

– Usei a maior parte das minhas economias para pagar a viagem. Todas as
minhas despesas estarão cobertas enquanto eu estiver com o grupo, mas, quando
sair, precisarei de dinheiro.

– Vá à casa de Mladen, à família de meu irmão – ela sugeriu. – Tenho certeza de


que eles lhe emprestarão alguns ducados de ouro.

No dia seguinte, Voja tomou um trem para a cidade onde seu tio morava.

– Dois ducados não o levarão muito longe – disse o filho de Mladen, depois que
Voja lhe confidenciou seu plano e solicitou sua ajuda. – Lembre-se de que como
refugiado na Itália você não poderá trabalhar. Além disso, você não sabe por
quanto tempo terá que esperar. Quatro ducados ajudarão mais. Vamos emprestar-
lhe quatro.

Após agradecer-lhes e despedir-se, Voja deixou a casa deles tendo em seus


bolsos quatro reluzentes moedas de ouro com a imagem gravada do imperador
austríaco Franz Josef.

No trem de volta para Belgrado, Voja pensou em seu último encontro com um
amigo seu, também chamado Mladen, mais de um ano atrás, pouco antes que ele
saísse do país. As autoridades somente haviam concedido a Mladen um
passaporte para ele ir à Áustria fazer tratamento médico, porque a esposa e as
duas filhas não iriam com ele. Pouco tempo depois, quando surgiu uma
emergência médica, as autoridades permitiram que a esposa dele, Mela, também
fosse. As duas filhas ficaram em casa, aos cuidados da avó.

Todos os dias, durante a ausência dos pais, as garotas Mirjana [Miriana] e


Nevenka iam à casa de Voja após as aulas, já que ele trabalhava em casa.
Naquele tempo, Mića ainda estava na prisão, e os gêmeos moravam numa casa
alugada de um irmão da igreja. Todas as tardes, Voja levava as meninas a um
campo com montes de feno empilhados, onde elas brincavam e deslizavam pelos
montes abaixo, antes de levá-las para a avó. Vários meses depois, graças à
intervenção da Cruz Vermelha, as meninas receberam passaportes e se uniram
aos pais na Áustria. Felizmente, para essa família, a quota de imigração para a
América estava aberta nessa ocasião, de modo que a documentação foi
processada rapidamente, e eles agora desfrutavam a vida na cidade de Nova
York.

Voja estava cheio de entusiasmo ao pensar em seus amigos na longínqua


América e nos preparativos que gradualmente estavam se encaixando para a sua
própria viagem. Durante suas últimas semanas em casa, ele e Cveja passavam
juntos cada momento livre. O Dia D, segunda-feira 13 de maio, estava se
aproximando rapidamente.

Ao anoitecer, quando os membros da família se reuniam em volta da mesa, eles


falavam sobre o passado e riam. Nata havia aparentemente aceitado o inevitável
e participava da alegria.

– Tudo passará e o Senhor virá – lembrou a mãe. Não importava o que


acontecesse, essa seria sempre uma certeza.

Em maio, o amplo retângulo de grama no pátio ficou verde. Os galhos torcidos e


espinhosos no canteiro de flores começaram a mudar de cor e brotaram folhas e
botões. No centro da área gramada, havia dois bancos de pedra que esperavam
ser ocupados.

– Uma rosa entre dois espinhos – zombou Voja num domingo, quando ele e o
irmão estavam sentados num desses bancos com a mãe, feliz, espremida entre
eles. Ao conversarem e sonharem com dias melhores, esquilos corriam em volta
procurando alimento e perseguindo um ao outro para cima da solitária acácia,
que estava agora em plena floração. O pequeno Jovica se divertia ao ar livre,
puxando um caminhãozinho de madeira que se movia ruidosamente sobre o
pavimento de concreto irregular enquanto o menino corria ao longo do pátio.

Os últimos dias voaram e finalmente a segunda-feira 13 de maio chegou.


Naquela noite, já bem tarde, Voja iria para a estação do trem para se encontrar
com o grupo de turistas. Nata preparou para o jantar os alimentos favoritos do
irmão: gibanica [gibanitsa] [panquecas de queijo], sarma [repolho recheado] e
como sobremesa torta tcheca. Reunidos em volta da mesa para a última refeição
juntos, o caráter decisivo da situação fez com que a animada conversação normal
ao redor da mesa subitamente cessasse. Durante os últimos quatro meses, cada
membro da família havia vivido na expectativa dessa noite, e já haviam falado
tudo o que precisava ser dito.

Deitado de bruços no chão, Jovica empilhava quadrados coloridos de madeira


para construir um castelo e olhava com atenção para o grupo de vez em quando.
Voja desenhava seu nome com o dedo na toalha de mesa e às vezes na perna da
calça: Voja Vitorović, Vitorović Voja.

– Meu querido, pegue outro pedaço de gibanica – insistiu Nata, estendendo-lhe a


travessa com panquecas de queijo. – Você tem uma longa viagem pela frente.

– Gostaria de poder levar a travessa inteira comigo, Nata – exclamou Voja ao se


servir novamente. – Com certeza, vou sentir saudade da sua ótima comida.

Ele pensou no versículo que havia lido naquela manhã. “Por isso não tema, pois
estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o
ajudarei; Eu o segurarei com a Minha mão direita vitoriosa” (Isaías 41:10, NVI).
De fato, ele tinha muitos medos: medo do desconhecido, medo de fracassar,
medo pelo seu irmão e por sua primeira separação. Mas esses temores se
misturavam com uma animação e esperança cheias de regozijo.

Após o jantar, a conversa irrompeu repentinamente. Todos ao mesmo tempo


pareciam ter muito a dizer e pouco tempo para dizer tudo.

– Você tem certeza de que não quer levar algum alimento com você? – perguntou
Nata. – Deixe-me preparar-lhe um lanche.

– Obrigado, Nata, mas com todo esse bom alimento em meu estômago, não vou
sentir fome durante uma semana. Além disso, a maioria das minhas refeições
está incluída nas despesas – replicou Voja alisando a barriga.

– Você está levando os ducados de ouro? – perguntou a mãe.

– Estão em meu bolso. – Voja deu uns tapinhas em sua calça. – Vou colocá-los
em minhas meias antes de sair. Eles precisam ficar escondidos.

– E roupas? Você está levando o suficiente? – perguntou Nata, olhando a maleta


perto da porta.

– Tenho o suficiente por enquanto. Uma maleta é mais fácil de carregar se...
quando eu puder escapar – corrigiu-se Voja no meio da frase.

– Lembre-se, Voja – declarou Mića –, isto é só o começo. Eu não vou ficar aqui
por muito tempo.
Voja olhou para seu relógio. Eram 9h15 da noite, quase hora de partir. Ele tirou
os ducados do bolso. Cada ducado estava enrolado num pedaço de pano, e então
os juntou em pares, de modo que eles não escorregassem ao andar sobre eles.
Abaixando as meias, pôs um pacotinho em cada calcanhar e as puxou
novamente. Enfiando os pés nos sapatos, ele procurou se acostumar com a
desconfortável sensação de objetos estranhos sob os calcanhares. Daí a família
fez um círculo, todos de mãos dadas, enquanto a mãe orou.

– Pai celestial – começou ela. Um enorme nó surgiu na garganta de Voja, e ele


pensou que ficaria asfixiado. – Peço-Te que acompanhes o meu filho mais velho.
Dá-lhe guia e proteção. Sê conosco, ao permanecermos aqui. Só Tu sabes o
futuro. Seja feita a Tua vontade. Mantém-nos fiéis e agradecidos. E, por favor,
Senhor, reúne-nos novamente. Nós Te pedimos no precioso nome de Jesus.
Amém.

Lágrimas contidas por muitos dias correram livremente agora, misturando-se


com os rostos molhados uns dos outros ao cada pessoa envolver Voja num
abraço. Voja se abraçou com Cveja por mais tempo. Quando a mãe beijou Voja
na testa, os seus olhos habitualmente secos pareceram úmidos.
capítulo 2

rumo à cidade eterna

A História de Voja

Os gêmeos saíram ao ar fresco da noite para se encontrar com seu amigo


Grujica, no pátio compartilhado. Acima deles, feixes de nuvens flutuavam
preguiçosamente através do céu de veludo, encobrindo temporariamente a lua
cheia. Raios amarelos de luz emanavam da janela do apartamento de frente,
iluminando o banco de pedra onde Voja e Cveja haviam se assentado com sua
mãe alguns dias atrás. Voja estremeceu involuntariamente ao eles passarem pela
janela – o padrasto de Grujica era um membro do Partido Comunista.

– Você é um cara de sorte, Voja – observou Grujica alegremente enquanto eles


caminhavam pela rua escura. A portinhola construída dentro do portão de ferro
do pátio se fechou ruidosamente atrás deles. – Já que eu não posso ir com você
para Roma, você vai ter que me contar tudo quando voltar!

– Sem dúvida, Grujica – respondeu Voja, lançando um olhar astuto para Cveja.

O ônibus elétrico número 2 se moveu com um ruído surdo para o ponto


reservado para o transporte público, e os três homens subiram a bordo. Essa
linha circulava a noite toda, e o ônibus estava com a metade dos passageiros. No
trajeto para a estação de trem, Voja contemplou pela janela o seu mundo familiar,
do qual ele logo desapareceria.
Quando o ônibus rodou pela rua abaixo, Voja viu os pedestres caminhando com
seus cães ou se apressando para casa, enquanto ele estava abandonando a terra
de seus ancestrais para sempre. O solo antigo, as ruas calçadas com pedras, o
céu, o ar – tudo fazia parte da sua vida. Cada cena, cada aroma ou som tinha
significado para ele. Arrumadas dentro de sua maleta estavam não apenas as
poucas peças de roupa que carregava, mas também a única vida que conhecia. O
seu mundo familiar parecia estar se desfiando perante seus olhos, com os fios se
soltando, os quais ele precisaria tecer novamente formando um novo modelo
num país estranho e distante. Mas nessa noite ele tinha um encontro marcado
com uma nova realidade.

A estação de trem finalmente surgiu ao longe. Postes de luz com globos brancos
ladeavam toda a extensão do edifício e lançavam um brilho suave sobre a rua e
os viajantes que se apressavam de um lado para outro. Os três homens
caminharam através de um pórtico arqueado para um saguão iluminado por
candelabros de cristal suspensos de um alto teto decorado artesanalmente. A
estação parecia ter gente demais para aquela hora da noite, mas o fato é que Voja
nunca havia ido à estação tão tarde.

Tremendo de agitação, ele precisou assegurar-se de que aquilo não era um sonho
– de que ele realmente estava a caminho agora. Os três homens caminharam
através do saguão passando por grupos de viajantes andando para lá e para cá
nos guichês de venda de passagens e esperando em bancos de madeira. Perto da
entrada, estava um homem em pé, segurando um cartaz que dizia: “Grupo de
turistas para Roma.”

– Onde está o grupo? – perguntou Voja em voz alta. Ele se apresentou e soube
que o homem segurando o cartaz era o guia turístico que ele deveria assessorar.

– Você é o primeiro que eu vejo – respondeu cordialmente o guia. – Vamos nos


encontrar na plataforma número 1.

Com as locomotivas chiando, os trens parados ao longo das plataformas


expeliam vapor, mas não havia trem na plataforma 1, a mais próxima da entrada.
Grujica e os gêmeos olharam em volta e esperaram que os outros turistas do
grupo chegassem. As pessoas logo começaram a juntar-se a eles, procurando o
trem da plataforma 1.

– Onde está o trem? – perguntou-se uma senhora em voz alta. – O guia nos disse
para ir à plataforma número 1.

– Deve haver algum engano – sugeriu um homem. Ele saiu pela plataforma para
perguntar. Dois outros homens do grupo o seguiram.

Alguns minutos depois eles voltaram. – Nosso trem está lá atrás – informaram
eles apontando a direção. – Fomos transferidos para a plataforma número 13.

– Plataforma 13 e hoje é 13 de maio. Será que isso traz azar ou alguma coisa do
gênero? – brincou um dos viajantes caminhando para os fundos da estação com
os demais do grupo. – Alguém aqui é supersticioso? Pode ser que haja mais
surpresas! – O pessoal riu, transformando uma inconveniência momentânea
numa ocasião de descontração para iniciar a viagem.

Quando eles chegaram à plataforma 13, Grujica examinou o grupo. – Rapaz,


parece que você é o mais jovem da turma! – disse ele em voz baixa, olhando
com desgosto para as corpulentas mulheres acima de meia-idade. – Onde é que
estão as garotas?

– Ah, eu tenho muito má sorte! – lamentou Voja sorrindo, embora garotas


fossem a última coisa em que ele pensasse no momento.

O guia turístico chegou, carregando uma pasta para documentos e uma prancheta
em sua mão.

– Minhas desculpas pela confusão – disse ele, abaixando-se para colocar a pasta
no chão. – Houve uma alteração de última hora. E agora, posso ter sua atenção?
– Ele se apresentou, tirou do bolso uma caneta e começou a chamar os nomes de
sua lista, conferindo-os à medida que as pessoas respondiam. – Todos os
cinquenta estão presentes – informou ele ao terminar. Em seguida, pôs a caneta
no bolso da jaqueta e enfiou a lista e a prancheta dentro da pasta.

– Vamos ocupar aqueles dois vagões. – Ele apontou para os dois vagões do trem
mais próximos do grupo e prosseguiu com as instruções. – A composição inclui
um carro-restaurante que vamos usar e um carro-dormitório que não usaremos. –
Enquanto falava, ele indicou cada um dos vagões. E acrescentou: – Permaneçam
sempre com o grupo. Nunca saiam sozinhos.

Voja, Cveja e Grujica caminharam na direção do vagão de segunda classe e


pararam junto dos degraus. Voja se voltou para Cveja com uma sensação de
asfixia na garganta. Este foi o último adeus. – Deus o acompanhe – disseram
ambos abraçando-se pela última vez.

O trem soou um apito de advertência.

– Oh, vocês dois! Pelo jeito como vocês se comportam, parece que Voja está
indo para a Sibéria ou algo semelhante – observou Grujica aparentando
impaciência, pois sabia quão íntimos os dois eram. – Divirta-se – ele se volveu
para Voja, abraçando-o. – Eu o vejo em 10 dias. Estarei esperando aqui quando
você voltar.

Voja apanhou sua maleta, subiu os degraus e desapareceu dentro do vagão. Ele
passou por vários compartimentos até encontrar um que estava desocupado.
Cada passo desconfortável que ele dava o fazia lembrar-se dos ducados de ouro
dentro das meias. Dentro do compartimento, ele escolheu um assento junto à
janela e alojou sua maleta no porta-bagagem acima da cabeça. Dobrando a capa
de chuva, colocou-a em cima de sua maleta e acomodou-se no banco.

Embora fosse noite, ele pôde ver a plataforma em meio à luz opaca. De repente,
Cveja apareceu junto à janela, olhando com os olhos meio fechados para dentro
do vagão. Ele havia caminhado ao longo do trem, tentando localizar seu irmão.
Voja bateu no vidro fazendo o irmão sorrir e acenar-lhe.

– Todos a bordo! – gritou o chefe de trem. Após dois longos apitos, a locomotiva
começou a resfolegar vapor, deu alguns solavancos e se moveu lentamente sobre
os trilhos. Cveja correu junto do trem até o fim da plataforma, e então sumiu de
vista quando o trem se afastou da estação. Pegando velocidade, o trem avançou
estrepitosamente noite adentro, expelindo cinzas e uma espessa fumaça de
carvão pela chaminé. Através da janela, Voja contemplou a cidade envolta em
sombras passando lá fora. Ele sentiu uma sensação estranha de vazio na boca do
estômago, embora seus nervos latejassem de animação.

Nesse ínterim, cinco outros turistas do grupo haviam se juntado a ele no


compartimento. Dois homens sentaram-se ao seu lado no banco; e um homem e
duas mulheres, no banco em frente.

– Meu nome é Voja Vitorović, de Belgrado – apresentou-se ele aos demais. O


homem grisalho, de óculos, sentado na frente dele apresentou a esposa e a
cunhada. Os dois homens corpulentos, de meia-idade, sentados ao lado, deram
seus nomes e disseram que eram amigos moradores de Belgrado. Voja ouviu
atentamente a conversação do grupo que fluía e refluía, procurando pistas que o
fizessem descobrir quais deles poderiam ser espiões. Mas eles falaram
animadamente sobre a viagem e os lugares maravilhosos a serem visitados em
Roma.

Já era bem tarde, de modo que após 45 minutos, mais ou menos, o grupo se
aquietou, concordou em deixar o compartimento à meia-luz e tentar dormir. Voja
apanhou sua capa de chuva, colocou-a contra a fria janela como um travesseiro
improvisado, e recostou a cabeça, já bem cansado. Havia sido um longo dia.
Enquanto ele cochilava, o trem avançava ruidosamente em direção à fronteira
com a Itália.

Na manhã seguinte, Voja e seus companheiros de viagem tomaram o desjejum de


ovos mexidos e torradas bem quentes, servido no carro-restaurante.

Ao meio-dia, o trem chegou resfolegando à estação de Sezana, na fronteira


italiana, e parou com um chiado.

– Vamos fazer baldeação para um trem italiano nesta estação – anunciou o guia
turístico, caminhando ao longo dos dois vagões. Apanhando seus pertences, o
pequeno grupo saiu do compartimento e desembarcou do trem. Acompanhados
pelos outros, eles andaram uma pequena distância até um portão sobre o qual
pendia um grande cartaz de madeira, pintado, dando-lhes as boas-vindas à Itália.
“Benvenuti in Italia”, era o que estava escrito.

Um a um os passageiros formaram fila e se aproximaram do uniformizado


guarda alfandegário italiano, o qual examinou a bagagem, conferiu os
passaportes e fez um gesto com a mão, mandando-os seguir em frente. Do outro
lado do cartaz, na Itália, o grupo se reuniu de novo.

“Estou em solo italiano! Na verdade, estou no mundo livre!”, pensou Voja ao ter
a incrível percepção de que havia cruzado a fronteira para o Ocidente – e para a
liberdade. A sensação era estranha e excitante. Até agora tudo havia corrido
bem, e seu coração estava cheio de gratidão.

Novamente, o guia ficou em pé diante do grupo reunido, apanhou sua prancheta


e conferiu os nomes de sua lista. Estava faltando uma mulher. O guia caminhou
para frente e para trás, olhando em volta e chamando seu nome.

– Não se preocupem. Tudo vai ficar bem – garantiu ele ao grupo. – Apenas
fiquem juntos e esperem aqui. Não podemos ir embora enquanto ela não for
encontrada. – E afastou-se para inquirir.

Não tendo algo melhor para fazer, o grupo começou a especular.

– A mulher estava viajando sozinha – observou alguém. – Ela estava muito bem
vestida e tinha aparência suspeita.

– Provavelmente é uma comunista levando uma grande soma de dinheiro para


fora do país – imaginou outro. O tempo se arrastou e a ansiedade cresceu.

– Será que vamos nos deparar com a máfia? – perguntou nervosamente uma
senhora idosa.

– Estamos em segurança aqui? – inquiriu outro. Eles todos haviam ouvido a


propaganda da rádio estatal afirmando que o crime corria solto no Ocidente.

Passou-se uma hora até que a mulher finalmente reaparecesse, ruborizada e


alvoroçada. Ela contou que havia sido levada a uma sala, despida e revistada por
uma agente alfandegária feminina.

– Foi tão humilhante e vergonhoso – reclamou ela com indignação. – Estes


italianos não prestam.

Com todos os membros presentes, o guia conduziu o grupo a um lustroso e


moderno trem elétrico italiano. Dentro dele, em vez de compartimentos, havia
poltronas duplas de cada lado. Parecia ser equivalente à primeira classe dos trens
iugoslavos. Amplas janelas de ambos os lados permitiam contemplar a paisagem
de qualquer poltrona. Voja pôs a maleta e o casaco no porta-bagagem acima dele
e sentou-se junto à janela. A poltrona ao seu lado permaneceu desocupada.

– Passare la dogana! – anunciou alguém em voz alta, à distância. – Passare la


dogana! Passare la dogana! A voz ficou mais alta. Um agente uniformizado da
alfândega entrou no vagão. Quando o oficial examinou novamente os
passaportes e carimbou-os com a data de entrada, Voja pensou que ele iria cobrar
uma taxa de cada passageiro. Uma vez que drogas ilegais não eram de uso
comum naquele tempo, Voja supôs que o homem pretendia vender liras italianas
e estava avaliando quanto cada pessoa poderia comprar. Imediatamente Voja se
lembrou dos ducados dentro de suas meias e dos dólares e dinares iugoslavos em
notas e moedas que levava nos bolsos.
– Signore, podemos trocar os seus dinares iugoslavos por liras italianas –
ofereceu o agente da alfândega, em pé diante dele. Um oficial da alfândega
iugoslavo que acompanhava o agente italiano traduzia, uma vez que ninguém do
grupo falava italiano. Voja deu ao agente 20.000 dinares iugoslavos, esperando
receber 42.000 liras italianas pelo câmbio oficial do dia. Mas, em vez disso, o
homem lhe deu 35.000 liras. A vida na Itália vai ser muito cara, murmurou Voja
para si mesmo.

Meia hora mais tarde, o trem se moveu lentamente para fora da estação para o
último trecho da viagem para Roma. O guia apareceu para informar que o
almoço estava sendo servido no carro-restaurante, e logo eles deixaram os Alpes
a noroeste de Sezana e entraram na maior planície da Itália. Gradualmente, a
paisagem mudou para colinas suavemente onduladas cobertas de vinhedos. Aqui
e ali um arvoredo de oliveiras retorcidas ou uma fileira de majestosos ciprestes
mediterrâneos adornavam grupos de casas isoladas. Voja sentiu emoção pela
expectativa de ver os tesouros de Roma pessoalmente.

Eles pararam em Pádua e então cruzaram a ponte de aço sobre o rio Pó, o mais
longo rio da Itália. Quando os antepassados de Voja fugiram da Bósnia, ocupada
pelos turcos, para a Sérvia, na virada do século 18, eles atravessaram o rio Drina.
A Sérvia havia então adquirido certa independência dos turcos, e seus
antepassados almejavam ser livres e viver em sua própria terra. Muitos anos
mais tarde, quando a Áustria atacou a Sérvia em retaliação pelo assassinato do
arquiduque austríaco na Bósnia, o que provocou a Primeira Guerra Mundial, o
exército austríaco cruzou o rio Sava, e a batalha que se seguiu foi travada nas
terras dos Vitorović e de outras famílias. Duas vezes, o exército sérvio expulsou
o exército imperial das terras sérvias para o outro lado do rio Sava. E agora Voja
estava cruzando um rio em sua busca de liberdade.

Quando o trem passou pelas cidades de Bolonha e Florença, Voja teve, através
da janela, um vislumbre da arquitetura renascentista e de cidades medievais
construídas sobre colinas. Ele estava sentado na beira do banco olhando
atentamente através das janelas de ambos os lados do trem, tentando absorver
tudo. À tardinha, o trem entrou na estação de Roma, com seu belo interior de
mármore e sua distinta fachada. Finalmente, haviam chegado à Cidade Eterna –
a cidade construída sobre sete colinas, onde papas e imperadores governaram e
onde cristãos haviam servido de alimento para os leões.

Os passageiros desembarcaram, e o guia conduziu o grupo para um ônibus


grande que aguardava junto ao meio-fio para transportá-los para o hotel. O
edifício cinzento de estuque, com telhas vermelhas onduladas, parecia ter mais
de cem anos, e fora possivelmente uma escola ou monastério, imaginou Voja.
Um a um, os viajantes, bocejando e se espreguiçando, saíram do ônibus e
entraram no edifício.

Um jantar quente de espaguete com almôndegas os esperava na sala de jantar, e


o grupo rapidamente se acomodou para sua primeira autêntica refeição italiana.
Enquanto tentavam deslocar os longos e escorregadios fios de espaguete do
prato para a boca sem respingar molho de tomate na roupa, eles a princípio
suspiravam e então riam de seu dilema comum. Um deles sugeriu ironicamente
que essa era a criativa maneira de os italianos se vingarem por terem perdido a
Segunda Guerra Mundial. De vez em quando, alguém ia até o lavatório para
limpar uma mancha de molho na roupa. Voltando à mesa, eles inevitavelmente
amarravam guardanapos em volta do pescoço como babadores.

Após o jantar, o guia fez seus anúncios.

– Amanhã de manhã, o desjejum será servido às sete horas. Às oito, iremos de


ônibus para Pompeia e Nápoles.

Os turistas apanharam as bagagens e seguiram o guia numa procissão sinuosa


pelas escadas de mármore até o quarto andar.

– Ocuparemos o andar todo. Os homens e mulheres solteiros ficarão cinco em


cada quarto. Há quatro quartos para os homens aqui deste lado. – Ele indicou o
corredor de um lado do edifício. – As mulheres ficarão alojadas em cinco
quartos do outro lado. Os banheiros estão localizados entre os quartos. Os dois
casais ficarão no terceiro andar – acrescentou ele. Enquanto os solteiros se
separavam e se encaminhavam para os seus quartos, o guia escoltou os dois
casais escada abaixo para os dois quartos privativos. Então ele demarcou seu
próprio quarto perto da escada, e todos se retiraram para dormir.

Cedo na manhã seguinte, fortes batidas na porta de Voja o acordaram.

– Acorde! É hora de levantar! – gritou o guia do lado de fora da porta. Após um


desjejum europeu no refeitório, o revigorado grupo entrou no ônibus.

Voja achou o percurso através do tráfego matinal de Roma intrigante e ao mesmo


tempo apavorante. “Eles são doidos!”, pensou ele ao observar pedestres e
veículos apressados como formigas. “Tentam desesperadamente impedir que os
outros lhes deem fechadas, mas fecham os outros o tempo todo. Buzinam alto,
mãos e braços gesticulam freneticamente, e vozes agitadas berram através de
janelas abertas.” Voja pensou por um momento que na fronteira da Iugoslávia
seria mais seguro. Mas apesar dessa aprazível confusão, o motorista do ônibus
conseguiu chegar à via expressa sem incidentes.

Naquele tempo, as vias expressas italianas de quatro pistas não impunham


limites de velocidade, e o ônibus corria a mais de 100 km por hora, o que parecia
muito rápido para Voja, comparado com o tráfego em duas pistas das rodovias da
Iugoslávia.

Duas horas depois, eles chegaram a Pompeia, a antiga cidade romana destruída
no ano 79 d.C. pela erupção do Vesúvio. Fascinados, os turistas contemplaram
uma cidade congelada no tempo – as ruínas petrificadas do fórum, templos,
teatros e casas, bem como as formas de cadáveres humanos em várias posições
imortalizadas em gesso calcinado.

Mais tarde, ao passar uma hora em Nápoles, Voja se expôs a um dos famosos
vendedores ambulantes da Itália. Este estava vendendo canetas Parker.
“Vedete!”[Veja!], dizia o homem entusiasticamente. Ele apontava para a
inscrição Made in USA na caneta. Tendo estudado quatro anos de francês e dois
anos de latim, Voja esperava entender um pouco do italiano falado, mas o dialeto
falado em Nápoles, que engolia as últimas letras e sílabas, tornava-lhe difícil
distinguir as palavras.

– Quanto? – perguntou Voja gesticulando. Na viagem de trem para Roma, o guia


turístico havia dado ao grupo um curso relâmpago de conversação em italiano, e
Voja agora o pôs em prática.

– Duas mil liras – replicou o vendedor em italiano, com uma atitude


cavalheiresca que dava a impressão de que o preço era a revelação de um
segredo.

– Não, não – respondeu Voja, balançando a cabeça e abanando a mão ao


prosseguir seu caminho. Mas o homem o seguiu rua abaixo, diminuindo o preço
a cada passo.

– Mil liras – disse ele finalmente. Isto seria mais ou menos 1,60 dólar. As
canetas Parker na Iugoslávia eram vendidas a três dólares naquela época. O
preço agora está bom, pensou Voja convencido. Ele parou e fez a compra,
contente por ter conseguido essa pechincha em seu primeiro dia no estrangeiro.
Orgulhosamente enfiou a caneta americana no bolso interno de sua jaqueta e
logo se esqueceu dela ao se apressar para alcançar o grupo.

– Amanhã visitaremos a Basílica de São Pedro, os museus do Vaticano e a


Capela Sistina. Nosso arquiteto Voja me ajudará – anunciou o guia, enquanto o
ônibus os levava de volta para o hotel, no fim do dia.

Ao tirar a jaqueta à noite, em seu quarto, Voja viu seu reflexo no espelho do
guarda-roupa. Para seu horror, ele viu uma mancha azul-escura em sua única
camisa branca. Arrancou-a e inspecionou a horrível mancha. Tinha o dobro do
tamanho de um ducado. Ainda em pé diante do espelho, ele notou outra mancha
em sua camiseta, no mesmo lugar da camisa. Então agarrou a jaqueta para
inspecioná-la. No forro uma mancha grande, azul-escura se espalhara na parte
inferior do bolso interno onde ele havia colocado a caneta Parker Made in USA.
Arrancando a caneta, olhou de modo acusador para ela. Ao fazê-lo, escorreu
tinta pelos seus dedos. Além de ficar irado, ele teve prejuízo. Arrasado, Voja foi
até o quarto do guia para reclamar.

– Vejo que eles já o pegaram – riu o guia. – As fábricas italianas produzem


cópias de marcas famosas e as vendem como genuínas. Você precisa ter mais
cuidado.

– Preciso ter mais cuidado – murmurou Voja para si mesmo ao sair do quarto. –
É fácil para ele dizer isso. – Tendo trazido apenas uma muda de roupa, Voja não
achou graça de sua situação.

Cedo na manhã seguinte, ele acordou com as intensas badaladas dos sinos da
igreja que soavam a cada hora ao longo de todo o dia. Durante o café da manhã,
ele conversou com o guia sobre os planos do dia e sugeriu que dividissem o
grupo em dois. Seria difícil para cinquenta pessoas ouvirem uma pessoa falando,
considerando que, em volta deles, estariam outros grupos grandes.

Era uma manhã magnífica, e a cidade acordou com barulho e alvoroço. Lojistas
chamavam compradores assobiando e cantando ao abrir suas lojas, varriam a
calçada e baixavam seus toldos. Um pouco adiante, uma mulher se inclinou para
fora da janela para sacudir um tapete pequeno. A Basílica de São Pedro, no
Vaticano, ficava a uma pequena distância do hotel, de modo que ambos os
grupos decidiram ir a pé. Ao chegarem à praça oval, vinte minutos depois, os
ônibus turísticos estavam rapidamente chegando, despejando passageiros que se
espalharam pela praça como enxames de formigas.

Em pé, diante da Basílica agora, Voja se lembrou da história do Príncipe Njegoš


[Niegosh], bispo e líder da República de Montenegro, o qual visitou Roma no
século 19. Ao ser presenteado com a corrente sagrada que se supõe ter
acorrentado Pedro numa masmorra de Jerusalém, os outros turistas se
ajoelharam de braços cruzados e reverentemente beijaram a corrente. Njegoš
olhou para o monge que a segurava, tomou-a em suas mãos para ver seu
comprimento e observou: “Eles realmente o acorrentaram bem.” E devolveu a
corrente.

Mal podendo falar, o aturdido monge finalmente disse:

– Sua Alteza não vai beijar a corrente?

Njegoš, voltando-se para sair, replicou:

– Os montenegrinos não beijam correntes.

A voz do guia interrompeu os pensamentos de Voja.

– O almoço será por conta de vocês. Mantenham-se juntos, em grupos. Vamos


nos encontrar de volta ao hotel às sete da noite – anunciou ele antes de se
separarem. Enquanto o grupo de Voja, composto por 25 turistas, fosse à Basílica
de São Pedro, o guia conduziria seu grupo à Capela Sistina.

Voja fez um gesto circular com as mãos e conduziu seu grupo através da
espaçosa praça.

– A impressionante colunata dórica da praça foi projetada por Giovanni Lorenzo


Bernini – começou ele. – A Basílica de São Pedro é a maior igreja da cristandade
e está localizada no menor país do mundo, o Vaticano. Também é o maior e mais
importante edifício da Renascença. O projeto começou em 1506. Vários
arquitetos trabalharam nele sucessivamente até Michelangelo ser nomeado em
1546.

Ao entrarem na maravilhosa igreja, o intimidado grupo suspirou e olhou em


volta, sem saber o que ver primeiro. Sua primeira sensação foi a de um
inesperado arrepio que permeava o imenso edifício. Através dos nebulosos raios
de luz que enchiam o santuário, eles se maravilharam com sua magnificência e
imensidão – as pessoas que estavam no fundo do amplo corredor pareciam
pequenas como insetos.

– O edifício tem aproximadamente 222 metros de comprimento por 152 metros


de largura. Do topo da claraboia até o piso são 137 metros de altura – explicou
Voja. – A venda de indulgências financiou grande parte de sua construção, e
também contribuiu para que Martinho Lutero se desiludisse de Roma. E isto, é
claro, levou à Reforma Protestante.

Em pé, ao lado da Pietá, de Michelangelo, ele disse ao grupo:

– Esta é a Madonna della Febre, uma das quatro Pietás esculpidas por
Michelangelo. Mas esta é a única que ele terminou. Também é a única obra dele
que contém a assinatura completa.

E assim o enlevado grupo continuou seu roteiro. Viram a figura de São Pedro
que, segundo se diz, representava anteriormente o deus pagão Júpiter, e a todo
instante soltavam exclamações e murmuravam.

– Onde é que fica o restaurante mais próximo? – perguntou um deles perto do


meio-dia. Não encontrando nenhum nas proximidades, eles compraram
refrigerantes e sorvete de um vendedor de rua, e então se encaminharam para o
Museu do Vaticano e a Capela Sistina, tomando cuidado para não se separarem.

– Vocês estão vendo o maior afresco ininterrupto em Roma – afirmou Voja ao


ficarem diante da magnífica cena do Juízo Final na Capela Sistina. –
Michelangelo não permitiu que ninguém o visse enquanto não estivesse pronto.
Nem mesmo o papa Paulo III. Quando a obra foi finalmente descoberta, o papa
ficou boquiaberto. Mas seu mestre de cerimônias fez objeção às figuras desnudas
na igreja de Deus, bem como o povo comum, ao vê-las. Durante os 200 anos
seguintes, os papas subsequentes incumbiram os artistas de vesti-las.

Dali o grupo foi ao Palácio do Vaticano e, então, para o Panteão com sua enorme
cúpula, sob a qual Rafael Sanzio foi sepultado.

Sabendo que seu tempo com o grupo era limitado, Voja procurou comprimir o
maior número possível de pontos de visitação. Apanhando seu mapa de Roma,
encontrou o caminho para a Fontana di Trevi [Fonte dos Trevos]. Lá, de costas
para a imensa e trabalhada fonte, cada pessoa expressou um desejo e jogou uma
moeda. Em vez do tradicional desejo de voltar a Roma e à fonte, Voja pediu
sucesso para sair de lá e pela segurança de seu irmão.

Já era de tardezinha quando eles chegaram às Escadarias da Praça de Espanha, e


o sol poente lançava longas sombras pelas escadarias abaixo. Nos degraus do
topo, ainda iluminados pela luz que se desvanecia, os participantes de um
casamento posavam para os fotógrafos.

No caminho de volta para o hotel, Voja ignorou a falação frívola do grupo e


revisou mentalmente seu plano – ele daria seu passo decisivo no dia seguinte.
Logo depois de encontrar seu nome na lista da Agência Putnik, ele havia escrito
para um casal, Elizabeth e Djordje [Jorge], amigos de infância que haviam
fugido de Zagreb e estavam agora em Roma, esperando para imigrar para os
Estados Unidos. Um amigo em comum lhe havia dado o endereço deles. Voja
havia escrito a eles novamente uma semana antes de sair da Iugoslávia,
informando que tentaria escapar na sexta-feira, 17 de maio, uma data que ele
havia escolhido arbitrariamente. Ele havia pedido que o encontrassem entre dez
horas e meio-dia no lado sul da Praça São Pedro.

Quando o grupo de Voja chegou de volta ao hotel, o outro grupo já havia


começado a jantar, e os que chegaram depois rapidamente se juntaram a eles
para mais uma refeição de massas.

– Já que todos parecem exaustos, modificaremos nossos planos para amanhã –


anunciou o guia enquanto o grupo terminava de jantar usando babadores. A esta
altura, a maioria havia aprendido a não respingar molho de tomate. – Amanhã
vocês terão a manhã livre. Mas, por favor, mantenham-se em seu grupo. Estejam
de volta aqui às 13 horas para almoçar. Após o almoço, sairemos para Tivoli. As
fontes lá são deslumbrantes. Daí iremos para Villa d’Este. Voja vai comentar seu
aspecto arquitetônico.

Voja mal podia acreditar no que ouvia. A alteração do itinerário facilitaria


maravilhosamente seu plano. Ele não poderia ter organizado melhor as coisas,
ainda que tivesse tentado.

– O desjejum será servido das 8h às 9h15, de modo que vocês poderão dormir
até mais tarde, se quiserem – concluiu o guia.

Após o jantar, alguns viajantes ficaram fazendo hora na pequena sala de espera,
sentados juntos em pequenos grupos, relembrando as experiências e impressões
do dia, tagarelando animadamente e rindo alto de alguma anedota ou incidente
do dia. A fumaça dos cigarros girava em torno deles como uma nuvem espessa.
Embora relaxados e com a língua solta pelas bebidas alcoólicas que enchiam os
copos, a conversa continuou reservada e impessoal. Extremamente cônscios de
que espiões estavam infiltrados em cada grupo, todos se mantiveram
resguardados. Ninguém confiava em ninguém. No final do dia, não sabiam mais
a respeito dos seus companheiros de viagem do que no dia anterior.

Voja não bebia nem fumava, de modo que evitou ficar na sala de espera e voltou
diretamente para o quarto. Estava calmo ali, e ele precisava pôr em ordem os
pensamentos e orar. Esta era sua única chance. Ele precisava ter êxito. Tudo
dependia do dia seguinte.

De manhã, ele acordou molhado de suor, pois não havia dormido bem.
Preocupado, ele sonhara que havia sido apanhado e preso. Uma olhada pela
janela mostrou um dia sombrio e melancólico, e o suave ronco vindo das outras
camas informou-o de que os colegas de quarto ainda dormiam profundamente.
Ele se levantou e caminhou em silêncio nas pontas dos pés para o banheiro, onde
se barbeou e tomou banho. Quando terminou, os outros haviam acordado.

– Por que você está tão ansioso hoje de manhã? – perguntou um deles enquanto
Voja se vestia.

– Não consegui dormir. Sonhei a noite toda com afrescos ameaçadores. Além
disso, estou com uma fome de cavalo. Vejo vocês no café da manhã.

Ele desceu os quatro lances de escada para o térreo, atento para qualquer sinal do
guia ou alguém do grupo. Não havia ninguém por ali. Entrando no refeitório,
tomou café sozinho. Quando terminou, eram quase 8h45. Ao subir as escadas,
encontrou os colegas de quarto que desciam. “Ótimo momento!”, congratulou-se
Voja. Até ali tudo correra perfeitamente.

Colocando rapidamente as roupas na maleta, ele franziu a testa novamente ao


ver as manchas de tinta, abotoou a jaqueta e apanhou a pequena mala. Pondo a
capa de chuva sobre a maleta a fim de ocultá-la, abriu a porta e espiou para fora.
O corredor estava vazio. Saiu e fechou a porta em silêncio.

Apoiando-se no corrimão, desceu a escada sentindo as pernas como se fossem de


geleia. Sua respiração era curta e rápida. No andar de baixo, a porta do quarto do
guia ainda estava fechada, e ele prendeu a respiração ao passar por ali na ponta
dos pés. O coração batia desenfreadamente no peito, e a boca estava seca. Ele
orou em voz baixa: “Por favor, Senhor, não deixe ninguém aparecer agora.” E
desceu hesitante um lance de escada até chegar à plataforma entre o primeiro
andar e o térreo.

Do topo da larga escada de mármore, ele podia ver a sala de espera no térreo.
Não havia ninguém à vista, embora a porta do refeitório ainda estivesse aberta.
Do outro lado da sala de espera, perto da entrada, uma mulher gorda estava em
pé atrás de um balcão envidraçado, de costas para ele. Era sua chance.
Respirando profundamente, ele voou pelos degraus restantes e atravessou como
uma flecha o piso de mármore rumo à porta da frente.
capítulo 3

refugiado em roma

Voja empurrou a porta com a mão livre, saiu e virou à esquerda. A cabeça
girava, e ele sentiu náuseas. Ninguém no hotel havia tentado impedi-lo.
Ninguém o chamara. Com a pulsação em disparada, não ousou olhar por cima do
ombro. Afastando-se às pressas do edifício, ele deixou para trás o grupo de
turistas com os espiões nele infiltrados, e o guia comunista que ele havia
auxiliado.

O ar do lado de fora estava fresco, e começou a chuviscar. Ao longo da rua


brotaram guarda-chuvas como cogumelos coloridos, que se abriram rapidamente
enquanto as pessoas se apressavam aqui e ali. Sua capa de chuva continuava
dobrada sobre o braço esquerdo, mas ele não se atreveu a parar para vesti-la.

A distância até a esquina era pequena, e ele dobrou novamente à esquerda. “Até
agora tudo bem”, pensou ele. Estava fora das vistas do hotel, e ninguém poderia
descobri-lo. Suspirando de alívio, ele atenuou o passo.

Prosseguindo pela rua, ele gradualmente ouviu o som pesado de passos


chapinhando no pavimento molhado atrás dele. Voja passou a andar mais rápido,
mas o ruído ficou mais alto, indicando que os passos se aproximavam. Alguém
estava caminhando atrás dele e ganhando terreno. A sensação nauseante em seu
estômago subiu-lhe à garganta.

A entrada recuada de um prédio de apartamentos apareceu à frente, e ele


rapidamente se desviou para se abrigar ali. Esperou ofegante e tremendo.
Apertando o corpo contra a parede fria, sentiu o coração bater forte em seu peito,
e o suor sob a jaqueta úmida arrepiar-lhe a pele. A água da chuva se esparramava
suavemente sobre o pavimento, e os carros passavam assobiando pela rua
molhada.

Subitamente os passos se detiveram. Ele suspendeu a respiração e ficou parado,


esperando. Alguns momentos depois, espiou para fora, com cuidado. Um casal
risonho, de braços dados embaixo de um guarda-chuva vermelho, aproximava-se
a certa distância, mas não havia ninguém perto dele. Quem quer que estivesse
caminhando atrás dele, ou havia entrado em outro edifício ou atravessara a rua.
Aliviado, ele murmurou uma oração de agradecimento enquanto o ritmo do
coração e o fôlego voltavam ao normal, e o estômago serenava.

Sentindo-se tranquilo, ele pôs a maleta no chão, desdobrou a capa de chuva,


sacudiu os pingos de água, enfiou os braços nas mangas e abotoou-se.
Levantando a gola em volta do rosto, ele apanhou outra vez a maleta e saiu para
a rua. O chuvisqueiro continuava, mas ele ficou feliz por não ter aumentado. O
mapa da cidade, onde é que está, agora que preciso dele? Ele realmente
precisava do mapa, mas estava dentro da maleta, e Voja não podia retirá-lo. Seu
senso de direção, que nunca havia falhado anteriormente, teria de guiá-lo agora.
Mas em sua atual ansiedade, deu-lhe um branco na mente, e as ruas curtas e
estreitas da antiga Roma lhe pareceram diferentes e estranhas.

Acelerando o passo, ele procurou se reorientar. Estava em dúvida se estaria indo


no rumo certo ou não. A última coisa que ele queria era voltar ao hotel. Isto seria
um desastre! Essa ideia atravessou-lhe a mente como um dardo. Uma olhada no
relógio revelou que eram quase 9h30. Ele se perguntou se seus amigos haviam
recebido sua carta. Será que alguém deles estaria esperando? Ele precisaria
chegar antes que eles fossem embora. Se não chegasse lá a tempo, ele não
saberia como achar a casa deles ou entrar em contato, pois eles não tinham
telefone. O que faria então? Onde passaria a noite?

O chuvisqueiro incessante continuava a salpicar-lhe a cabeça e a correr-lhe pelas


faces. Ele perambulou por um período que lhe pareceram horas, com a mente em
desordem, e as ruas um verdadeiro labirinto. O suor lhe gotejava da face junto
com as gotas de chuva, e ele o limpava com a mão. Finalmente, avistou as
colunatas dóricas que margeavam a Praça de São Pedro logo adiante. O relógio
marcava 10h30. O chuvisqueiro agora havia diminuído, e as nuvens começavam
a se dividir.

Andando para lá e para cá no lado sul da praça, ele procurou um rosto familiar
no meio da multidão de turistas. O número de pessoas parecia menor do que
quando ele havia estado ali com o grupo no dia anterior. Uma sensação de
isolamento nesta estranha cidade já havia começado a se infiltrar nele. Ele se
ausentara de seu grupo sem permissão, e era agora um estranho num país
estrangeiro em vias de se tornar o mais recente refugiado de Roma.

Ao refazer o mesmo caminho pela terceira vez, ele os localizou. O cabelo escuro
de Ivan sobressaía acima da multidão, e Djordje estava com ele. O coração de
Voja saltou de alegria e alívio. Seus amigos não o haviam abandonado.

– Ivan! Djordje! – gritou ele, acenando freneticamente para chamarlhes a


atenção. O rosto deles se iluminou ao reconhecê-lo e se precipitaram em sua
direção.

– Irmão sérvio, você conseguiu! – bradaram os dois homens, dando um caloroso


abraço em Voja. – Temíamos que você não conseguisse chegar aqui.

– Vocês dois são, sem dúvida, o que há de mais bonito em Roma! Que alívio
para estes olhos cansados! – replicou Voja, olhando em volta com cautela. –
Vamos sair daqui. Não quero encontrar-me com ninguém conhecido.

– Ficamos tão felizes ao receber sua carta – observou Djordje, colocando um


braço sobre o ombro de Voja, enquanto os três homens iam embora.

– Eu estava otimista quando escrevi, mas somente na noite passada pensei que
realmente poderia conseguir – disse Voja. – No último minuto, o guia mudou o
itinerário e nos deu a manhã livre. Foi incrível! De outro modo, eu poderia não
estar aqui. – Voja descreveu o que parecia ser uma coincidência, mas em seu
coração ele sabia que havia sido a providência de Deus.

Após apanharem dois bondes e um ônibus, Voja e seus amigos chegaram a


Centocelle, um subúrbio de Roma, onde os homens estavam hospedados. Nesse
instante, o sol brilhava com fulgor, e as roupas de Voja haviam secado.

– Irmão sérvio! – gritou Elizabeth, a irmã de Ivan, pela porta aberta ao vê-los se
aproximando. – Bem-vindo à nossa casa, longe do lar!
– Ei, aqui está aquele Šapčanin [shapchanin, pessoa de Šabac (Shabats), cidade
da Sérvia] outra vez! – disse rindo Željko [Zheliko], amigo deles. Ele veio até a
porta, junto de Elizabeth.

– Não conseguimos nos livrar dele! – brincou Djordje, enquanto Elizabeth e


Željko davam um abraço de boas-vindas em Voja.

– Vocês têm uma boa casa aqui. É uma construção bem nova – disse Voja,
observando a casa ao entrar.

– Tem três quartos, cozinha, sala de jantar, tudo mobiliado. Dividimos isto com
duas jovens que você conhece – disse Elizabeth. Ela o conduziu pela casa e
mostrou os vários quartos.

– Há espaço para você também – ofereceu Ivan, apontando para o sofá da sala. –
Você pode ficar aqui até encontrar um lugar.

– Por que você não se senta ali agora? – disse Elizabeth. – Vou pôr o almoço na
mesa num instante, e poderemos conversar enquanto comemos. – Ela sorriu e foi
para a cozinha.

Pouco depois, ao sentarem-se à mesa para comer e colocar em dia os últimos


eventos, Elizabeth confidenciou:

– Tivemos de deixar nossa filhinha com os pais de Djordje. Foi a única maneira
de obter permissão das autoridades para sair. – Sua voz falhou e lágrimas
brotaram-lhe dos olhos. – Isto foi um ano atrás. Ela estava começando a andar.
Agora provavelmente está correndo ao redor e falando. Estamos perdendo tudo
isso.

Djordje gentilmente tomou-lhe a mão e continuou a história.

– Havia 48 pessoas em nosso grupo de turistas. Estávamos todos registrados


num passaporte coletivo, de modo que quando Elizabeth e eu desertamos,
ficamos sem documentos.

– Vocês já receberam asilo político? – perguntou Voja, enrolando o espaguete em


torno do garfo como um profissional.

– Sim, mas tivemos que esperar. Demorou seis meses – respondeu Djordje. –
Agora estamos acionando a Cruz Vermelha para trazer de lá nossa preciosa filha.
– Ele olhou esperançosamente para a esposa. – Quando isto acontecer, vamos
requerer permissão para imigrar para a América.

– E vocês dois? – voltou-se Voja para Ivan e Željko. Ele fez uma pausa e
encostou-se na cadeira. – Como vocês escaparam?

– Eu vim com eles – respondeu Željko, acenando com a cabeça para Djordje e
Elizabeth. – Desertamos do mesmo grupo de turistas e estamos juntos desde
então.

– Eu desertei de um grupo de turistas um ano depois – disse Ivan. – E


logicamente encontrei minha irmã e Djordje aqui.

– Estamos aqui o tempo suficiente para saber das coisas – interrompeu Djordje.
– Vamos lhe dar algumas dicas valiosas. Não cobraremos nada por nossa
experiência técnica – brincou ele.

O dia seguinte era sábado. Enquanto os outros tomavam o trem para a igreja
adventista mais próxima em Roma, Voja permaneceu em casa. Seu grupo
turístico ainda estava na cidade e, embora fosse improvável, ele não podia correr
o risco de se encontrar com eles.

Na segunda-feira, Djordje levou Voja para a Questura di Roma, a delegacia de


polícia, para registrá-lo como refugiado e requerer soggiorno [permissão de
residência]. Ele precisava de permissão para permanecer no país.

– Dê-me o seu passaporte – pediu Djordje a Voja, ao eles subirem os degraus


para entrar no edifício. Djordje o entregou ao encarregado no balcão, e este deu a
Voja alguns formulários para serem preenchidos. Depois que Voja os preencheu,
o funcionário levou os documentos até os fundos para conferi-los. Alguns
minutos mais tarde, o homem retornou com um papel e o passaporte de Voja nas
mãos.

– Estamos lhe concedendo soggiorno por trinta dias – disse o homem em


italiano. Djordje traduziu para Voja, pois era de uma região da Croácia perto da
fronteira italiana onde também se falava italiano. O funcionário entregou a Voja
o documento. – Mantenha isto sempre consigo. É sua identificação. A cada trinta
dias, pelo tempo que permanecer aqui, você precisará solicitar uma prorrogação.
– Ele fez uma pausa para ter certeza de que sua recomendação havia sido
entendida. – Lembre-se de que não poderá trabalhar. Se o fizer e descobrirmos,
será deportado. Se descobrirmos que mentiu em seu requerimento, será enviado
de volta. – Sua voz soava firme e autoritária. – Volte aqui dentro de um mês.

Na terça-feira, Djordje acompanhou Voja ao escritório de refugiados do Concílio


Mundial de Igrejas para solicitar asilo político. Um homem alto, de boa
aparência e bem-educado os atendeu.

– Vojislav Vitorović! – entoou o homem, ao ler seu nome no soggiorno. – De


onde você é? – perguntou ele fluentemente na língua sérvia.

– Šabac – respondeu Voja, uma vez que essa era a sede do distrito de sua região.
O nome de sua vila não significaria nada para uma pessoa estranha.

– Šabačka Čivija [(Shabatchka chiviia) Pinos de Šabac]! – falou o homem com


um sorriso. Esse apelido para o povo de Šabac havia se originado muito tempo
atrás, com uma brincadeira que os habitantes da cidade fizeram com seu rei, ao
remover os pinos das rodas de sua carruagem real.1

– E você? – perguntou Voja com um sorriso.

– Sou de Montenegro. Servi no exército iugoslavo. Quando os comunistas


tomaram o poder, fui embora. Agora moro aqui e trabalho com refugiados. – Ele
examinou o passaporte de Voja. – Vejo que seu visto é válido só até amanhã.
Você não pode solicitar asilo político enquanto o visto não expirar – declarou o
homem. Ele devolveu o passaporte a Voja, o qual lhe contara resumidamente sua
história.

– Preciso adverti-lo, meu amigo. – Ele se inclinou para frente e baixou a voz. –
Os carabinieri italianos podem devolvê-lo. Eles são pagos para cada refugiado
devolvido, e os educados como você valem mais. – Ele ergueu as sobrancelhas
para dar ênfase às suas palavras, e então se endireitou e estendeu a mão. – Tenha
cuidado. Vejo você na segunda-feira.

Voja achou um quarto mobiliado para dividir com um italiano numa casa a um
quarteirão e meio de seus amigos. Algumas das liras italianas que ele havia
adquirido enquanto estava com o grupo de turistas haviam sido gastas com
cartões-postais e despesas casuais, e também com a sua infame caneta Parker,
enquanto desempenhava o papel de turista. As liras restantes eram insuficientes
para pagar o aluguel da primeira semana, de modo que Djordje lhe adiantou as
liras necessárias até que ele trocasse um de seus ducados de ouro num banco
local.

Durante o restante da semana, Voja se manteve praticamente oculto. Na segunda-


feira, ele voltou ao escritório de refugiados do Concílio Mundial de Igrejas para
solicitar asilo político. O mesmo homem cortês aceitou seu requerimento.

– Não posso garantir quanto tempo você terá que esperar – disse ele. – Isto
demora um pouco para ser processado.

Antes de escrever para casa, Voja esperou duas semanas para que as coisas se
acalmassem por lá. Então, ao endereçar a carta em nome de sua irmã casada, ele
utilizou o nome de Djordje como remetente e colocou seu endereço em
Centocelle. Quando as autoridades iugoslavas censurassem a correspondência de
entrada, não encontrariam o nome Vitorović em nenhum lugar, e o nome croata
de Djordje numa carta para Belgrado não atrairia atenção. Ele escreveu a carta
em termos genéricos e a assinou Irmão Voja.

Ao deitar-se em seu quarto todas as noites, imagens do lar giravam-lhe na mente.


O rosto do irmão estava constantemente diante dele, pois a vida deles estava
muito interligada. Muitas vezes, quando o coração pulsava de solidão, Voja
falava com ele. “Onde é que você está, Cveja? Meu ser sofre cada dia sem
receber uma palavra sua. Quando você vai fugir? Quem o ajudará? Como irá?”
Ele também queria saber como estavam a mãe e a irmã. Imaginava o sorriso da
mãe e a risadinha de Nata. “Por favor, Senhor, que minha família esteja bem e
em segurança”, orava ele.

No sábado seguinte, Voja foi pela primeira vez à pequena igreja adventista de
Roma. Ao saberem de sua condição de refugiado, vários irmãos amigáveis se
ofereceram para ajudá-lo.

– Você é um arquiteto. Poderia dar aulas particulares de matemática para os


meus quatro filhos? – perguntou um irmão. – Não posso lhe pagar, mas minha
esposa é uma boa cozinheira. Quando vier à nossa casa, poderá ficar para jantar.

– Você toca violão? – perguntou outro irmão que era advogado. – Sempre quis
aprender. Pode me ensinar? Pago-lhe em dinheiro.

Essa ajuda e mais os trinta dólares que seus amigos Mladen e Mela lhe
mandavam emprestados todos os meses de Nova York, com seus limitados
recursos, permitiam-lhe pagar o aluguel e uma boa refeição por dia num
restaurante próximo, que ele complementava com frutas frescas de quitandas
locais. Desde que chegara aos Estados Unidos em 1956, a família de seus
amigos havia aumentado em dois filhos. Mela estava grávida quando imigraram
e deu à luz à terceira filha, Nadica [Naditsa], duas semanas após chegarem a
Nova York. O filho Djordje nasceu dezoito meses depois.

– Preciso comprar uma calça leve – disse Voja a Ivan e Djordje um dia. – As que
tenho são muito grossas, agora que a temperatura está mais quente.

– Conhecemos uma loja que vende com desconto – disseram eles. – Vamos levá-
lo até lá.

Quando chegaram ao estabelecimento, Voja escolheu uma bela calça de cor


cinza por 3.500 liras (mais ou menos seis dólares naquele tempo). Parecia ser um
bom negócio, de modo que ele fez a compra e voltou contente para seu quarto.

Alguns dias depois, ao comer espaguete, um pingo de molho de tomate caiu em


sua nova calça. Ele tentou lavar a mancha em casa, mas ela não saiu. Então ele
deixou a calça de molho numa bacia com água e sabão. Vestindo outra calça,
saiu novamente.

Ao voltar para o quarto mais tarde, a primeira coisa que fez foi inspecionar a
calça. Foi à bacia, tirou-a e, para seu horror, ela se dissolvera em suas mãos. Mal
contendo as lágrimas, ele juntou os pedaços, deixou-os secar, colocou-os numa
sacola, voltou à loja e mostrou ao dono os restos de sua bela calça.

– Você não sabe que não deve lavar este material? – ralhou o homem. – Isto é
papel impregnado de algodão. – E o homem se afastou deixando Voja
boquiaberto e chocado, segurando a sacola e murmurando para si mesmo: “Calça
de papel?” Sua experiência anterior com a caneta Parker veio-lhe à memória.
“Eles me pegaram de novo”, reclamou ele.

Quando Voja visitou seus amigos alguns dias mais tarde, Ivan lhe mostrou um
artigo num jornal italiano. – O papa vai aparecer amanhã, dia 29 de junho. É a
festa de São Pedro e São Paulo. – E estendeu o jornal a Voja. – Milhares de
peregrinos estarão lá. Você quer ir? – perguntou ele enquanto Voja lia o artigo.

– Sim, por que não? – replicou Voja, olhando por cima do jornal. – Deve ser
interessante.
No dia seguinte, os dois homens estavam em pé, em meio a milhares de fiéis
peregrinos aglomerados na vasta praça. “Viva il Papa! Viva il Papa!”, aclamava
e cantava a multidão. Todos os olhares se voltaram para a sacada do terceiro piso
do Palácio Apostólico. Quando as portas da sacada se abriram, as aclamações e
cânticos deram lugar a suspiros. Vestido com um hábito branco, o Papa Pio XII
parecia um ser celestial, e a multidão ficou em silêncio. Os crentes o
contemplavam emudecidos e reverentes. Então, como uma onda gigante, a
multidão se inclinou até o chão.

Assim como algumas pessoas isoladas, espalhadas pela multidão, Voja e Ivan
permaneceram em pé. Eles esperaram até que o papa terminasse de abençoar os
fiéis e voltasse para dentro. Muitas pessoas ainda estavam prostradas quando
Voja e Ivan se voltaram para ir embora.

– Nunca vi nada parecido com isso – disse Voja ao voltarem para casa. – Os
sérvios ortodoxos reverenciam seus patriarcas e sacerdotes, mas eles não os
adoram dessa maneira. Não posso deixar de pensar na ocasião em que a
carruagem do Príncipe Njegoš se defrontou com uma procissão papal a caminho
de Roma. Embora seu cocheiro italiano lhe suplicasse para sair da carruagem,
Njegoš permaneceu dentro dela, observando a procissão através de uma
janelinha. “Pelo amor de Deus”, disse ele ao cocheiro, “eu não vou constranger
minha pequena tribo de montenegrinos. Deixe que o papa siga seu caminho.
Deixe que saiam de suas carruagens aqueles que o fizeram anteriormente. Mas o
Bispo de Montenegro não o fará.”

– Historicamente, os sérvios ortodoxos têm sido muito submissos à autoridade


de Roma, não é? – riu Ivan.

– Acho que não – respondeu Voja com uma risada. – E Roma não se esqueceu
disso.

Durante todo esse tempo em Roma, Voja nada ouvira sobre Cveja. Finalmente,
algumas semanas mais tarde, chegou uma carta de Nata no endereço de Djordje.
Tomando emprestado de Elizabeth um ferro de passar roupa, Voja voltou ao seu
quarto e passou o ferro quente sobre a carta para ver alguma mensagem
invisível. Numa sociedade oprimida, era costume escrever entre as linhas com
suco de limão. O calor do ferro queimava o suco e revelava a escrita invisível.

Ele pegou a carta e leu: “Cveja desapareceu. Não sabemos onde ele está. A
UDBA o está procurando. Algumas pessoas dizem que o viram. Há boatos de
que ele foi baleado e morto na fronteira. A mãe e eu ainda temos esperança.
Estamos bem, mas terrivelmente preocupadas com vocês dois. Nós os amamos e
oramos por vocês constantemente.”

– Cveja! Cveja! Oh, meu irmão Cveja! – clamou Voja em desespero. – Onde está
você, meu irmão? Você precisa estar vivo. Não poderei viver se você morrer.
Precisamos nos encontrar de novo. – Tremendo, ele caiu de joelhos. – Por favor,
Senhor, traze-o em segurança – suplicou ele.

Cerca de duas semanas mais tarde, na igreja, Voja teve uma surpresa. Um
homem que ele conheceu em Belgrado estava visitando Roma e foi à igreja.

– Você viu minha família? Eles estão bem? – perguntou Voja ansiosamente.

– Sim, vi sua mãe e Nata. Elas estão bem, mas muito preocupadas. Ninguém
sabe onde está Cveja. Eu o vi uma vez em Novi Sad, mas ele não parecia bem.
Estava correndo para lá e para cá como um leão enjaulado, tentando escapar.
Mas isso foi algum tempo atrás.

Essas terríveis notícias mergulharam Voja em desespero. Mais de três meses


haviam transcorrido desde que ele saíra da Iugoslávia. Faltava menos de um mês
para que os gêmeos tivessem de se apresentar no exército, mas Cveja ainda não
havia escapado. Voltando ao seu quarto mais tarde, Voja conversou consigo
diante do pequeno espelho do guarda-roupa. Isto se transformara num hábito
sempre que a solidão se tornava insuportável. Naquela noite ele estava agoniado.

– Ó, meu irmão, você deve estar enfrentando um inferno. Posso sentir isso na
pele. Por favor, Senhor Deus, protege-o do mal. Ajuda-o a encontrar uma saída.

Enfraquecido pela tristeza, ele achava que seria culpa sua caso alguma coisa
acontecesse ao irmão.

– As autoridades italianas ainda não me concederam asilo político – reclamou


Voja aos amigos, ao se encontrarem. – Já estendi o meu soggiorno três vezes.
Quanto tempo leva isso? Essa demora está me deixando nervoso.

– Mas vai acontecer. Você precisa ser paciente. Nós também tivemos que esperar
– explicaram eles. – E o que você anda fazendo? – perguntaram eles mudando de
assunto. – Não temos visto você com frequência ultimamente.
– Estou dando aulas particulares a alguns garotos e também aulas de violão –
explicou Voja. – Isso me ajuda a aprender italiano. Eu mostro um objeto e lhes
pergunto: “Come si chiama?” Então eles me dizem o nome em italiano. É
realmente fácil. Gradualmente estou aprendendo a língua.

O mês de setembro finalmente começou, trazendo uma temperatura mais amena.


O vigésimo oitavo aniversário dos gêmeos chegou aos nove de setembro e
passou sem ser comemorado. Nata não havia escrito novamente, e Voja não
recebera mais notícias do irmão. Ele havia saído de Belgrado na primavera,
quando as árvores estavam verdes, e agora os odores do outono impregnavam o
ar. Os ventos logo soprariam, as folhas se tornariam coloridas e cairiam, e então
as árvores ficariam desfolhadas. Voja pensou naquele entardecer em que ele e o
irmão estiveram no Parque Kalemegdan, e o futuro parecia tão promissor. “Eu
estava tão otimista. Mas foi tudo um sonho”, acusou-se ele. “Por favor, Senhor,
não deixe que isto se torne um pesadelo. Tenho medo de como tudo terminará.”

Um dia, chegou um cartão-postal para Voja, no endereço de Djordje. Um


telefonema de Elizabeth fez com que Voja voasse para a casa deles. O endereço
do remetente no cartão era do Campo de Refugiados de Jennersdorf, na Áustria.

– Não posso acreditar no que vejo! – exclamou Voja com a voz subindo de tom
ao ler avidamente o cartão. – É de Cveja! Ele escapou! Ele está bem, e está na
Áustria. – Então leu a mensagem em voz alta: “Meu querido irmão Voja. Graças
a Deus, finalmente atravessei a fronteira. Dentro de alguns dias, receberei asilo
político. Logo que isto acontecer, irei a Salzburgo para procurar trabalho.”

Voja achou que iria explodir de felicidade e alívio.

– Cveja não apenas está vivo e bem, mas em segurança na Áustria. Ele realmente
está seguro! – repetia ele. – Agora já posso respirar de novo, rir de novo e viver
outra vez. Ó, Deus, muito obrigado, muito obrigado! – ele murmurou com
gratidão. Com Cveja em segurança, tudo estava bem em seu mundo.

– Se há alguma coisa que mereça ser comemorada, é isto! – declarou Elizabeth.


Ela revirou a despensa e tirou um prato de massas feitas em casa. De repente,
todos se sentiram em casa. Elizabeth preparou uma deliciosa refeição, e eles se
banquetearam alegremente.

Duas semanas mais tarde, chegou uma segunda mensagem de Cveja, desta vez
uma carta com o carimbo postal de Salzburgo. Apressadamente, Voja abriu o
envelope e encontrou uma nota de 100 xelins austríacos. A carta dizia: “Meu
querido irmão, encontrei trabalho com um arquiteto aqui. Você acredita? Ele tem
gêmeos, um menino e uma menina. E ele disse que tem trabalho para você,
quando vier para cá.”

Finalmente eles estavam progredindo. O coração de Voja se renovou de


esperança. Deus estava em Seu trono e tudo daria certo.

Cveja já havia recebido asilo político da Áustria, mas Voja ainda continuava
esperando o seu, da Itália. Finalmente, em 14 de outubro, cinco meses após
chegar a Roma, ele recebeu os seus documentos como asilado. Como as
autoridades haviam retido seu passaporte iugoslavo quando Voja requereu asilo,
ele agora solicitou um novo passaporte. Disseram-lhe para voltar no dia
seguinte.

No dia seguinte, Voja apanhou o que passou a ser um documento de viagem para
estrangeiros, sem o qual ele não poderia viajar. Com isto em mãos, ele foi
diretamente ao Consulado Austríaco, onde solicitou um visto de visitante para
ver seu irmão em Salzburgo, e eles o emitiram no ato.

Transbordante de alegria, Voja voltou para casa às pressas a fim de arrumar seus
pertences numa mala maior que havia comprado, na esperança de fazer essa
viagem. Ele também havia comprado duas camisas e outra calça desde que
chegara à Itália, e suas coisas não caberiam na maleta que havia trazido da
Iugoslávia.

– Mas o que você vai fazer para permanecer na Áustria? Eles não vão lhe
conceder asilo também – Djordje disse perplexo.

– Vou me preocupar com isto depois – replicou Voja. – Eu sei que apenas um
país pode conceder asilo, mas eu não vou nem pensar nisso agora, Djordje. A
única coisa em que penso é ver Cveja.

Ao anoitecer, Voja se despediu dos amigos, avisou o dono da casa em que


morava e se encaminhou para a estação de trem. O trem elétrico que o trouxera a
Roma agora o levaria para Salzburgo. Após cinco longos meses de separação,
ele finalmente veria seu irmão. Ele tomou um trem noturno, mas não conseguiu
dormir naquela noite.
1 Quando o rei Miloš Obrenović decidiu visitar seu irmão em Šabac, ele foi
admoestado a não criticar o povo da cidade. A cidade havia se tornado conhecida
localmente como “A Pequena Paris”, pois possuía o primeiro hospital, farmácia
e até mesmo o primeiro piano da Sérvia. Não era de surpreender, portanto, que
seus habitantes fossem um tanto orgulhosos.

Mas, quando a carruagem real chegou ruidosamente ao centro da cidade, e o


povo de Šabac se aglomerou em volta dela, o rei se esqueceu da advertência,
saiu da carruagem e começou um discurso. Tudo correu bem até ele voltar ao
coche e os cavalos começarem a andar.

O coche havia andado uma curta distância quando, uma a uma, suas quatro rodas
caíram, fazendo o povo rolar de rir. O rei saiu e ficou em pé ao lado da
carruagem enquanto o cocheiro real recolocava as rodas.

O prefeito da cidade fez os dois culpados marcharem até o rei. “Sua Alteza”,
disse ele, “estes homens confessaram e desejam devolver os pinos que tiraram.
Eles não quiseram machucar ninguém. Só queriam ter uma amigável
lembrança.”

O rei olhou os homens em pé diante dele. Poucos anos antes, a Sérvia havia
conseguido independência parcial dos turcos. Repentinamente, ele riu, abanou a
mão e disse: “Somos um país democrático agora. Somos livres, não é mesmo?
Deixe-os ir embora!”
capítulo 4

deixado para trás

a história de cveja

Depois que Voja viajou com o grupo de turistas para Roma com o objetivo de
desertar, Cveja preencheu com frenética atividade o vazio deixado pela ausência
do irmão. No dia seguinte, após a partida de Voja, ele tirou férias de seu trabalho.
Com os projetos de Voja em mãos, saiu de Belgrado e foi para Pirot. Lá ele
trabalhou com o engenheiro civil no projeto arquitetônico. O pastor em Skopje,
nesse ínterim, havia decidido ampliar a construção da igreja, de modo que ele
tinha ainda mais trabalho a fazer. Na quarta-feira, 22 de maio, a data marcada
para o grupo de Voja voltar, Cveja não estava em Belgrado.

Tarde naquela noite, Cveja telefonou para Grujica de um telefone público no


correio. O padrasto de Grujica havia conseguido um telefone particular através
de seus contatos com o Partido Comunista. Quando o telefone tocou, Grujica
havia recém-chegado da estação ferroviária e atendeu o telefone. Ao ouvir a voz
de Cveja, ele desabou e começou a soluçar.

– O que há de errado, Grujica? – perguntou Cveja. Ele não sabia ao certo se


Grujica havia ido à estação. – Você parece estar mal.

– Eu... eu fui à estação hoje à noite, Cveja – disse ele com dificuldade. – E Voja
não estava no trem! – Seus soluços recomeçaram, e Cveja esperou
pacientemente. – Percorri todos os vagões. Olhei em todos os lugares, e ele
simplesmente não estava lá! – Mais soluços. – Finalmente, todos foram embora.
Então vi alguém com um crachá de identificação, que casualmente era o guia
turístico. – Ele fungou o nariz entre os soluços. – O homem me disse que Voja
havia desaparecido. Simplesmente desapareceu!

– Está tudo bem, Grujica. Voja está bem – respondeu Cveja de maneira
tranquilizadora, esperando que fosse verdade, mas sem ter certeza do que dizia.
– Voja planejava desertar.

– Desertar? Voja desertou? Mas... como? E por que ele não me contou? Ele não
confiava em mim? – Mais fungadas. – Chorei durante todo o caminho de volta
para casa. – Ele fez uma pausa e disse: – Você obviamente sabia, Cveja. Por que
não disse nada?

– Eu não podia, Grujica. Lamento muito – desculpou-se Cveja. – Voja queria lhe
contar, mas ele não tinha certeza de como as coisas correriam. Ele precisava ser
muito cuidadoso. Você entende isso, não é? Você está bem?

Aos poucos Grujica foi se acalmando. – Sim, acho que sim – disse ele, ainda
fungando. – Mas, mesmo assim, gostaria que você tivesse me contado.

Quando Cveja pôs o fone no gancho é que ele começou a sentir a realidade. Voja
– o seu outro eu, sua sombra – havia ido embora. Ele agora sabia com certeza, e
de repente sentiu que todo o seu mundo havia desaparecido. Ele fora deixado
para trás, sozinho.

Durante três semanas, Cveja trabalhou no projeto da igreja em Pirot. Após


completar os desenhos arquitetônicos finais, ele retornou a Belgrado. Ao chegar
a casa, encontrou duas cartas esperando por ele.

– Esta carta é de Voja – exclamou Nata com o rosto radiante. Pela primeira vez,
nos últimos dias, Cveja sentiu o coração pulsar de alegria. Como uma lufada de
ar fresco, uma palavra de seu irmão gêmeo revigorou-lhe o espírito. Nata lhe
entregou um envelope. Havia sido endereçado a ela e continha um nome croata
familiar com seu endereço em Centocelle. Nata já havia aberto o envelope, de
modo que ele retirou a carta e a leu com avidez.

“Querida Nata”, começava a carta. “Tudo saiu bem. Entrei em contato com
amigos de Zagreb e achei um quarto mobiliado. Nesse ínterim, requeri asilo
político junto às autoridades italianas e estou aguardando a resposta. Sinto
saudade de você e dos demais familiares. Com todo amor, o irmão Voja.” Sua
escrita era genérica, mas agora eles sabiam com certeza que ele havia desertado
e estava bem.

A outra carta endereçada a Cveja continha o seguinte endereço do remetente:


Uprava Drzavne Bezbednosti (Departamento de Segurança Interna). Seus dedos
tatearam desajeitadamente ao abri-la e ler seu conteúdo. Era uma notificação,
convocando-o a comparecer ao seu escritório central.

No dia seguinte, ele foi ao edifício amarelo onde ficava a sede da UDBA. Entrou
e subiu a escadaria de mármore que dava acesso à espaçosa sala onde seu irmão
havia sido entrevistado semanas antes. Ao entrar, dois homens sentados atrás de
escrivaninhas de mogno o olharam. Um era civil; o outro, um coronel do
exército, uniformizado. O coronel indicou-lhe uma cadeira.

– Então, o seu irmão nos traiu, desertando para o Ocidente – começou


abruptamente o coronel de sobrancelhas felpudas. – Nós o educamos, e agora ele
foi trabalhar para os capitalistas. – Sua voz era áspera, e ele encostou-se à
cadeira, com olhar penetrante. – Escreva-lhe. Diga-lhe que volte. Diga-lhe que
não o processaremos se voltar.

– Mas como poderei escrever-lhe? Eu não sei onde ele está! – replicou Cveja.
Ele realmente não tinha o endereço de seu irmão.

– Ah, é? – devolveu o homem com um sorriso malicioso. Ele olhou de relance


para o outro homem, que olhava em silêncio, de pernas cruzadas e braços
dobrados contra o peito. – Bem, se você não sabe, nós sabemos. Interceptamos
esta carta dirigida a você – continuou o coronel. Ele segurou um envelope aéreo
e o balançou tão rápido que Cveja não pôde ler o que estava escrito.

Cveja sentiu o sangue esvair-se de seu rosto e as pernas ficarem bambas.


Corriam boatos de que a UDBA agia em países livres fronteiriços, às vezes,
sequestrando refugiados iugoslavos nas ruas e levando-os de volta à força. Se a
UDBA realmente sabia do paradeiro de Voja, ele estaria em perigo. Cveja
também sabia que o governo controlava a correspondência que entrava e saía. A
carta para Nata havia passado despercebida, mas podia ser verdade que eles
tivessem encontrado uma carta de Voja endereçada a ele. De qualquer maneira,
porém, seus instintos lhe diziam que o homem estava blefando. Ao menos, ele
assim esperava.
– Você sabe que você e seu irmão estão agendados para o serviço militar em
setembro, não sabe? – continuou o coronel. – Vocês devem se apresentar em
Karlovac para treinamento como oficiais de engenharia.

– Sim, estou sabendo disto.

Por um momento, o coronel tamborilou os dedos nos braços de sua cadeira, com
os olhos fixos atentamente em Cveja, fazendo um beiço de desgosto com a boca.
Finalmente, ele falou:

– De agora em diante, quando você sair da cidade por mais de 24 horas, deverá
informar este escritório. Queremos saber onde está, com quem está, e como
chegar até você a qualquer momento.

O civil, que havia observado tudo em silêncio, agora descruzou as pernas e


desdobrou os braços. Inclinou-se para frente e fechou as mãos, com os cotovelos
apoiados nos braços da cadeira.

– Já vi estes camaradas antes – disse ele. – Alguns anos atrás, eles moravam num
apartamento atrás de meu escritório. Todas as manhãs, eles faziam exercício no
pátio. Eu podia vê-los de minha janela. São gêmeos idênticos, obviamente muito
parecidos. Aposto qualquer coisa que este aí vai embora também. – Dizendo
isso, ele reclinou-se na cadeira e cruzou os braços novamente.

Voltando-se para Cveja, os olhos escuros do coronel flamejaram.

– Eu o aconselho a não tentar isso. Seria uma tolice, você sabe. Se for apanhado,
o mínimo que vai pegar será cinco anos na prisão, talvez mais. Será julgado
como desertor do exército, o que é muito grave.

Cveja deixou a sala totalmente advertido, mas também totalmente decidido. As


ameaças dos agentes da UDBA e possíveis blefes haviam apenas reforçado sua
decisão. Se a intenção do homem era intimidá-lo, o plano fracassara. Mesmo
assim, as dúvidas sobre a carta e a segurança de seu irmão o importunavam.

Na semana seguinte, Cveja voltou ao seu trabalho costumeiro no Instituto


Hidrelétrico e retirou as férias em dinheiro. Ao mesmo tempo, começou a
estudar maneiras de fugir. Antes de viajar novamente para Skopje, a fim de
completar os projetos de aquecimento, ventilação e hidráulica, ele ligou para o
escritório da UDBA, conforme havia sido instruído, e informou sobre sua
viagem e itinerário. À noitinha, ao chegar à casa do pastor, uma surpresa o
aguardava.

– A UDBA ligou hoje de tarde – informou o pastor. – Eles queriam saber se eu o


estava esperando e quanto tempo você permaneceria aqui.

Cveja ficou espantado. Ele não imaginava que eles fossem verificar seu
itinerário.

– Eles estão falando sério. Aparentemente estão decididos a seguir os meus


movimentos – disse ele, pensativo.

Nas duas semanas seguintes, Cveja concluiu os projetos e os submeteu aos


líderes da igreja em Belgrado. Para todos os fins práticos, seu trabalho com a
planta da igreja estava pronto. Agora ele precisava economizar dinheiro para
suas despesas e elaborar planos para escapar.

Um dia, Cveja encontrou-se por acaso com a nora de uma irmã da igreja que
havia alugado um quarto para os gêmeos, depois que as autoridades confiscaram
o apartamento de Mića e despejaram a família. Os gêmeos haviam morado
naquele quarto até irem morar com Nata e Mića, após este ter sido libertado da
prisão.

– Os boatos estão correndo – murmurou a mulher. – Ouvi dizer que Voja


desertou em Roma.

– É verdade – concordou Cveja, sentindo-se pouco à vontade. Ela e o marido


eram comunistas, embora um tanto desapontados com o partido. No expurgo de
1948, quando Tito rompeu com Stalin e todos os comunistas russófilos em
Belgrado misteriosamente desapareceram, o marido dela havia sumido com eles.
Ninguém sabia de seu paradeiro até um ano mais tarde, quando ele subitamente
apareceu em casa, sem avisar. Durante sua ausência, sua mãe orou para que ele
voltasse em segurança. Ela havia pedido a Deus que isso ocorresse num sábado,
e este foi o dia em que ele reapareceu.

– Você provavelmente não sabe disso, Cveja, mas, quando Voja se candidatou
para fazer a viagem, a UDBA me chamou. Eles queriam saber minha opinião,
isto é, se eu achava que Voja voltaria. Respondi-lhes que não tinha dúvida
quanto a isto, pois ele jamais abandonaria seu irmão. – Ela fez uma pausa e
olhou-o nos olhos. – Evidentemente, eu estava errada.
Quando Cveja se retirou, as palavras da mulher ecoaram-lhe na mente. Ele
tentou imaginar até que ponto a opinião dela pesou na decisão das autoridades
em favor de Voja. Abanando a cabeça, ele se admirou dos muitos incidentes que
se desenrolaram por trás dos bastidores, mas se encaixaram como peças
espalhadas de um quebra-cabeça divino. Com gratidão, ele louvou a Deus por
Sua intervenção.

Sava, o amigo íntimo e colega dos gêmeos, veio ver Cveja alguns dias mais
tarde. Ele era um gênio em matemática. Havia estudado com eles na
Universidade de Belgrado, ajudando-os a se preparar para os exames
extremamente difíceis, nos quais a maioria dos estudantes não conseguia passar
na primeira tentativa. O regime comunista mantinha padrões muito elevados, já
que o ensino era gratuito. Se os estudantes não conseguissem corresponder às
exigências, eles poderiam se transferir para outra área, aprender um ofício ou
voltar para a agricultura.

– Acho que isto é para você – disse Sava sorrindo, ao entregar a Cveja um
envelope. – Foi endereçado a mim. Contém um nome estranho e um endereço
em Centocelle. Mas reconheci a letra.

– É de Voja! – exclamou Cveja, com os olhos brilhando. Ele abriu o envelope e


devorou as palavras: “Meu querido irmão, ainda estou esperando para receber
asilo político. As coisas andam muito devagar aqui. Mas estou bem. Nesse meio-
tempo estou aprendendo italiano. Espero que seus planos estejam progredindo.
Sinto muita saudade e oro por você diariamente. Que Deus o acompanhe.” Ele
assinou a carta simplesmente: “Seu irmão.”

– Logo que a recebi, percebi que era para você – disse Sava. – Voja foi esperto
em não lhe endereçar diretamente a carta.

Naquela noite, Cveja escreveu em resposta a Voja. Ele enviou a carta aos amigos
croatas no endereço de Centocelle e deixou o endereço do remetente em branco.
Então colocou a carta no correio.

Em meados de julho, Cveja comunicou à UDBA seus planos de visitar um tio


idoso em Glusci, por alguns dias. Cveja não o via por três anos. Ele ansiava
visitar esse parente e ver a velha propriedade rural novamente. O tio Mihajlo
[Mihailo] havia falecido em maio, e apenas o tio Milorad, o mais velho dos três
irmãos de seu pai, ainda vivia. Milosav, o irmão mais moço havia sido morto na
Primeira Guerra Mundial, no último dia de luta. O tio Milorad estava agora com
74 anos de idade. Embora se achasse levemente curvado com seu 1,95 m de
altura, ainda assim se destacava acima dos demais. Durante a Primeira Guerra
Mundial, no Reino da Sérvia, ele havia servido na guarda especial do Rei Pedro,
que aceitava apenas os homens mais bonitos e mais altos.

Logo que Cveja apareceu, quatro gerações de parentes enxamearam em volta


dele. Ele passou a noite com os primos e ajudou a família a debulhar o trigo no
dia seguinte. Sua máquina debulhadora ainda funcionava bem. Ela substituíra
uma maior, que havia queimado durante uma batalha com os alemães em 1941.
Cveja subiu numa pilha de feixes ao lado da debulhadora e de lá atirava os feixes
um a um a dois primos em pé em cima da máquina. Depois de cortar a
amarração, eles enchiam as mãos com hastes de trigo e as jogavam na barulhenta
debulhadora. De um lado da debulhadora, os grãos de trigo eram lançados dentro
de sacos, enquanto os resíduos, as cascas e a palha eram expelidos
separadamente de outros lugares da máquina.

– Olha o americano trabalhando! – brincou rindo um de seus primos mais


jovens, ao ele amarrar um saco cheio de trigo, e outro primo substituí-lo com um
saco vazio. Sem que Cveja dissesse algo, sua família instintivamente sabia que
ele havia vindo para dizer adeus. Esta seria provavelmente sua última visita.

– Oh, meus queridos olhos negros, não andem por aí toda a noite – respondia
Cveja abrindo os braços e irrompendo numa conhecida canção popular. Sua voz
clara ressoava acima do rangido da debulhadora. E, quando os outros se uniam a
ele, suas vozes se avolumavam num coro alegre, trabalhando lado a lado durante
o dia todo, como nos velhos tempos.

Mais tarde, ao anoitecer, Cveja e o tio Milorad se assentaram um em frente do


outro, em uma das longas mesas de madeira colocadas embaixo das macieiras no
silencioso pátio. Embora não houvesse mais tanta terra como antes,
trabalhadores ainda eram contratados durante a época da debulha para ajudar
cada família na colheita em seu lote de terra. Segundo o costume, os
trabalhadores recebiam duas refeições por dia nessas mesas com os membros da
família. Agora todos haviam se retirado para seus lares, e a debulhadora
permaneceria ociosa até o dia seguinte.

– Estou planejando fugir – confidenciou Cveja ao seu tio.


– Eu sabia que você o faria – disse Milorad tristemente. – Você precisa seguir
Voja. Vocês, jovens, precisam fazer o que é melhor para o seu futuro. Sou o
último de minha geração e tenho visto muitas mudanças. Só Deus sabe o que o
futuro nos trará.

– Conte-me outra vez, tio Milorad, sobre nossa família, como eles vieram para
cá, e como eram as coisas então.

Cveja havia ouvido essas histórias muitas vezes, mas queria levá-las consigo,
pois essas histórias eram sua herança, os valores acariciados pelos quais muitos
do seu povo haviam morrido. As narrativas sobre as glórias de seu reino antes da
vinda dos turcos, as revoltas e as guerras que finalmente os libertaram eram
transmitidas de geração em geração assim como suas antigas canções.

– O preço da liberdade nunca é barato – começou o tio Milorad.

Exceto por um coro de grilos zumbindo como acompanhamento, e uma leve


brisa fazendo as folhas das árvores farfalharem, tudo estava imóvel e quieto
enquanto eles falavam. A doce fragrância de maçãs temporãs quase maduras
para a colheita impregnava levemente o ar fresco do anoitecer. Cveja absorvia
tudo ao ouvir.

– Sempre tem sido assim. – Milorad estava fazendo rodeios agora. – Nosso
pequeno país sempre lutou contra inimigos mais poderosos. Diz-se que quando
um homem luta para salvar a própria existência, ele luta com mais agressividade
e aguenta por mais tempo do que aquele que apenas deseja vencer. Creio que é
assim mesmo. Nossa história prova isso.

Lágrimas correram pela face de Milorad ao observar o rosto de Cveja.

– Quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, você e Voja eram jovens demais
para irem à guerra. Espero que nunca precisem. – Ele fez uma pausa, suspirando
profundamente. – Vou sentir saudade de você, Cveja. Você e Voja têm sido como
meus próprios filhos.

A noite havia caído. A lua cheia inundava o pátio com uma luz sinistra, e
estranhas sombras eram testemunhas mudas de sua conversação. Aquecendo o
coração com as lembranças do passado, Cveja passou mais um dia memorável
com seus parentes e então voltou para Belgrado.
Uma tarde, ele fez uma última visita ao Parque Kalemegdan, procurando o banco
no terraço de cima onde Voja havia dado a notícia de que fora aprovado para
viajar a Roma. Aquele banco, então frio no rigor do inverno, agora estava quente
sob o calor do sol de verão. Imerso em pensamentos, ele se sentou ali por alguns
momentos e então caminhou até o parapeito de ferro onde ele e o irmão haviam
estado naquela tarde de inverno, meditando sobre o futuro. Pombos arrulhavam e
se empertigavam ao seu redor como naquela ocasião, alçando voo para as alturas
e então batendo as asas de volta para o chão.

Lá embaixo, as águas dos dois rios se misturavam como antes, fluindo


incessantemente, sempre convergindo, ondeando-se e acalmando-se. O ar úmido
do rio subia pela encosta e pendia opressivamente sobre ele. Suspirando
profundamente, ele saboreou a promessa de liberdade mais uma vez. Era tudo
igual, mas havia algo diferente. Uma repentina pontada no coração lembrou-o de
que seu irmão havia voado para longe, como os pombos. A cada respiração, ele
desejava ansiosamente alçar voo também.

Detendo-se na base do altaneiro memorial Mensageiro da Vitória, ele ergueu os


olhos para o falcão de bronze. Suas asas estavam abertas e prontas para voar,
sugerindo liberdade agora mesmo. Lentamente caminhou para fora do parque e
apanhou sozinho o ônibus elétrico para casa.
capítulo 5

encontro na fronteira

Logo depois que Voja fugiu, todos os amigos dos gêmeos haviam ouvido a
notícia. Eles todos sabiam que a questão não era se Cveja também fugiria, mas
quando isso aconteceria. Alguns até mesmo fizeram sugestões.

– Visito a Eslovênia todos os verões. A família de minha mãe mora em Jesenice.


Fica bem na fronteira. Tenho certeza de que eles estarão dispostos a ajudá-lo –
disse Mikica [Mikitsa], uma amiga de Belgrado, quando viu Cveja um dia em
junho.

– Não é muito difícil fugir – garantiu outro. – Há um trem que vai de Jesenice
para a Áustria através de um túnel na montanha. Eu conheço. Tudo que você
precisa fazer é entrar às escondidas no túnel, à noite. Você é jovem, e pode fazer
isso. Quando sair do outro lado, você estará na Áustria.

– Posso ajudá-lo a escapar – prometeu Branko, outro amigo de Belgrado. –


Criei-me em Jesenice e conheço tudo por lá. Minha esposa e eu iremos para lá
dentro de alguns dias a fim de visitar amigos. Posso me encontrar com você e
mostrar-lhe como chegar à fronteira.

A fronteira! O que Cveja, ou alguém mais, realmente sabia sobre a fronteira? Ele
e o irmão gostavam de geografia, de modo que sabiam que a Iugoslávia possuía
fronteiras geográficas com sete países, a maioria deles, atrás da cortina de ferro.
Cveja com certeza não queria ir para lá. Apenas dois países, Itália e Áustria,
estavam localizados no Ocidente livre. Mas ele não tinha experiência nem ideia
do que esperar quando chegasse lá. Tudo que ele sabia é que outros haviam
escapado antes dele, e um de seus amigos havia declarado que atravessar a
fronteira não seria difícil.

Cheio de confiança e entusiasmo, Cveja começou a fazer preparativos. Comprou


um par de botas confortáveis, calças e uma pequena mochila para carregar
algumas coisas. Juntando suas economias, o dinheiro das férias e o dinheiro
obtido com o projeto da igreja, ele distribuiu seus dinares iugoslavos entre as
meias que calçava, a mochila e os bolsos em sua jaqueta e calças. Para uso em
caso de emergência, ele enfiou embaixo da palmilha da bota uma nota de 20
dólares dobrada na forma de um pequeno quadrado e prendeu-a com um
pedacinho de couro para manter o dinheiro no lugar. Por último, enviou um
cartão-postal para Mikica, informando-a da data de sua chegada, e assinou
simplesmente “seu amigo”.

Uma semana depois, em 21 de julho, com algumas coisas indispensáveis e um


lanche de viagem preparado por Nata, guardado em sua mochila, ele se despediu
chorosamente da mãe, de Nata, de Mića e de Jovica, e foi para a estação de trem.
Lá ele tomou o luxuoso trem noturno Expresso do Oriente, que fazia o percurso
de Istambul para Paris, parando em Belgrado e Jesenice, na fronteira.

Desta vez, ele não comunicou sua viagem à UDBA, pois estaria viajando para o
oeste, em direção à fronteira, o que imediatamente despertaria suspeitas. Ele
esperava que nesse ínterim a polícia secreta tivesse se tornado complacente. Se
tivesse sorte, quando notassem sua ausência, ele estaria em segurança na Áustria.

Às 6h30 na manhã seguinte, o trem chegou à estação de Jesenice. Cveja


encontrou sua amiga Mikica esperando por ele na plataforma. Olhando ao redor,
ele notou que havia policiais em todos os lugares. Eles estavam vigiando as
entradas do trem, inspecionando os documentos dos passageiros e seguindo a
multidão para observar cada indivíduo. Temeroso de atrair atenção indesejada se
demorasse por ali, ele e Mikica foram embora. Ainda não haviam ido longe
quando de repente viram uma cena horrorosa diante de si. Um casal jovem,
aterrorizado, estava sendo arrastado algemado pela polícia da fronteira. A mulher
estava chorando, e o homem protestando. Cveja observou consternado enquanto
a polícia os levava embora.

Essa era a última coisa que Cveja queria ver. Física, mental e emocionalmente,
ele estava despreparado para essa chocante realidade. Abalado pelo incidente e
pelos desafios que teria que enfrentar, ele se perguntou como as informações
dadas pelos amigos poderiam estar tão erradas. Estariam eles meramente
fazendo especulações em voz alta? Ou expressando sua fé naquilo que
desejariam fosse verdade? Sua vida e futuro estavam no limite ali – por que
havia tão ingenuamente acreditado neles? O otimismo que o havia impelido para
aquele lugar começou a evaporar, e um medo terrível se apossou dele.

Saindo da estação com Mikica, Cveja se viu numa cidade industrial, produtora
de aço, aninhada num estreito vale verdejante cercado por um sinistro paredão
de montanhas. Ele havia vindo das planícies de Maćva, e a vista diante dele era
atordoante. Para o sul e para o oeste erguiam-se os majestosos Alpes Julianos; ao
norte, as Montanhas Karavanke, que estabeleciam uma fronteira natural entre a
Áustria e a Eslovênia iugoslava.

– Onde está o túnel para a Áustria? – perguntou ele ao olhar em volta para o
cenário desconhecido.

– Não se pode ver daqui – disse-lhe Mikica.

Juntos eles desceram por uma rua estreita ladeada de casas com telhados
pontudos e sacadas transbordantes de flores. O choque inicial gradualmente se
desvaneceu. Cveja começou a pensar com clareza novamente.

– Preciso encontrar uma maneira de escapar, Mikica. Não vejo outra maneira de
sair do país. Meu irmão está esperando por mim. Mas eu não imaginava que a
fronteira fosse tão... tão vigiada.

– Você viajou toda essa distância, Cveja. Por que não procura investigar melhor
antes de desistir? – incentivou ela. – Nunca se sabe o que poderá descobrir.

Outra decepção o aguardava ao chegarem à casa da família dela.

– Não encontramos nenhum guia para você, Cveja. Pelo menos, nenhum que
pudéssemos recomendar e no qual confiar – disseram-lhe os parentes de Mikica.
– Qualquer um pode prometer levá-lo através da fronteira, mas alguns guias
trabalham para a polícia secreta.

Aqui estava outro perigo que ele não havia reconhecido totalmente. Entretanto,
quando a família o convidou para ficar lá por algum tempo, ele aceitou. Cveja
havia decidido inspecionar a cidade por si mesmo – em algum lugar, de algum
modo, deveria haver uma saída.
Ao perambular pela cidade no dia seguinte, Cveja descobriu uma livraria de
livros usados. Ao folhear livros aqui e ali, ele encontrou um mapa militar da
fronteira. Embora fosse velho e desatualizado, ele indicava contornos
topográficos e concavidades na fronteira. Estes, com certeza, não haviam
mudado. Se atravessasse sozinho as montanhas, ele precisaria conhecer esses
marcos.

– A maioria das pessoas não consegue ler esse tipo de mapa – disse o livreiro,
quando Cveja lhe perguntou. – Não tenho ideia de onde ele veio.

Cveja comprou o mapa e voltou para casa, onde passou o restante do dia
estudando-o atentamente. Ele havia ouvido relatos de pessoas conhecidas que
haviam conseguido cruzar a fronteira, mas vaguearam por uma concavidade e
acabaram voltando para a Iugoslávia, onde guardas da fronteira os prenderam.
Ele não podia deixar que isso lhe acontecesse.

Examinando o mapa, ele seguiu a fronteira com o dedo. Era apenas uma linha
sinuosa de tinta no papel, mas na realidade aquela linha separava os cativos dos
livres. Imagens do jovem casal na estação faiscavam-lhe na mente. Se a polícia o
apanhasse tentando escapar, eles o tratariam com severidade ainda maior.
Fechando os olhos, endireitou os ombros, respirou fundo e decidiu prosseguir
com a ajuda de Deus.

No dia seguinte, à tardinha, Cveja se encontrou com Branko, seu amigo de


Belgrado que havia chegado a Jesenice dois dias antes e prometera ajudá-lo a
atravessar a fronteira. Juntos, eles tomaram um ônibus para o amplo e verdejante
planalto na base das montanhas, com vista do alto para a cidade. Após uma hora
de viagem pela estreita e sinuosa estrada da ondulada região rural, eles chegaram
à rodoviária, onde a polícia da fronteira os saudou e verificou sua identidade.

Atrás do planalto, erguiam-se as majestosas Montanhas Karavanke. Florestas


densas e verdejantes subiam pelas encostas e então davam lugar aos cinzentos
rochedos calcários nos picos arredondados e cobertos de neve. Em algum lugar,
do outro lado daquela massa rochosa e cheia de neve, estava a liberdade.

Cveja observou as altaneiras montanhas acima de sua cabeça, ainda mais visíveis
e assustadoras daquela posição vantajosa no planalto. Montanhas como aquelas
haviam abrigado os combatentes da resistência de todas as regiões da Iugoslávia,
durante a Segunda Guerra Mundial, os quais travaram uma guerrilha contra os
ocupantes nazistas. E agora, ali estava ele, lutando por sua própria liberdade.
Mas essas montanhas não pareciam favoráveis à sua causa.

Com frequência, alguns turistas embarcavam nos ônibus e desembarcavam. A


polícia circulava aqui e ali, observando os recém-chegados. Cveja e Branko
caminhavam a passos lentos através da extensa campina, admirando as flores
silvestres coloridas e a vista panorâmica da bem cuidada região. Ao olharem de
volta para Jesenice, o cenário dos recortados Alpes Julianos no sul prendeu-lhes
a respiração.

Ao passearem por ali, misturando-se com os turistas, Cveja pegou um par de


binóculos para obter uma visão mais próxima das tremendas montanhas e para
ver se conseguia localizar o túnel. De repente, um policial deu-lhe um tapinha no
ombro e pediu sua identidade novamente. Cveja mostrou-lhe o documento que
continha sua foto e disse ao homem que estava visitando amigos em Jesenice por
alguns dias. Ele prendeu a respiração enquanto o policial o observou, examinou-
lhe o documento, e então o devolveu e foi embora.

Daquela elevação, a mais de 1.300 metros de altitude, Cveja podia ver o túnel
que seguia montanha adentro. A Áustria e a liberdade estavam do outro lado
daquele buraco inacessível na montanha. Observando atentamente a cadeia de
montanhas, ele notou que elas declinavam em altura na direção do leste.

Pretensamente apreciando a paisagem, ele e Branko se afastaram


cuidadosamente da multidão em direção leste, tomando precaução para que
ninguém os visse. Cerca de cinquenta turistas perambulavam por ali, e a polícia
se mantinha ocupada observando seus movimentos.

O sol agora estava se pondo no horizonte, e começou a ficar escuro. Os dois


homens conseguiram esquivar-se da polícia e estavam fora das vistas do grupo.
De repente, Cveja a viu – uma estrutura camuflada erigida na montanha.
Certamente era ali que os guardas da fronteira descansavam. Ele pensou que
estava provavelmente caminhando paralelamente à fronteira.

– Veja, Branko, você está vendo aquilo? – perguntou Cveja a seu amigo,
apontando para a estrutura acima deles, a mais ou menos um quilômetro de
distância.

– Vendo o quê? – inquiriu Branko, apertando os olhos, olhando de um lado para


o outro e então para Cveja.
– Lá em cima. A karaula. Você não está vendo?

Branko balançou a cabeça.

– Não. Onde? Minha vista não é muito boa no escuro.

Cveja ficou assombrado. Sua vida estava nas mãos de um homem que havia
prometido guiá-lo até a fronteira, mas não podia sequer enxergar direito.

Naquele momento, Cveja se lembrou de uma notícia que havia lido meses antes
em Belgrado. O relato dizia que dois estudantes da Universidade de Belgrado
haviam caído de um penhasco ao tentarem escapar através daquelas mesmas
montanhas à noite. Seus corpos fraturados foram encontrados dias mais tarde e
levados de volta a Belgrado. A recordação dessa história imobilizou-lhe os
passos.

– Acho melhor voltarmos – sugeriu Cveja, totalmente decepcionado e temeroso


por si e seu amigo. A noite estava caindo rapidamente, e seus olhos ardiam com
lágrimas contidas. Ele e Branko voltaram pelo mesmo caminho ao planalto, onde
alguns turistas permaneciam admirando as luzes da cidade que iluminavam o
vale abaixo.

Ao voltarem de ônibus para Jesenice, Cveja permaneceu quieto ao lado do


amigo, meditando em sua experiência. O que é que ele estava fazendo,
perambulando no escuro em uma montanha? Como podia ter sido tão
desajuizado? Havia agido como um homem desesperado. Os relatos de seus
amigos não passavam de boatos ou especulações, e não de fatos reais. A família
de Mikica não tinha informações para lhe dar. Até mesmo Branko o havia
desapontado. Ele estremeceu ao pensar no que poderia ter-lhes acontecido nas
montanhas, no escuro.

A fronteira estava tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Lá na montanha, ele
quase pudera sentir o cheiro da liberdade soprando do outro lado, seduzindo-o e
impelindo-o para frente. Mas ele havia voltado. A liberdade o estava esperando
do outro lado, mas um imenso paredão de rochedos e inúmeros perigos se
interpunham em seu caminho.

Portanto, em que informações poderia ele crer? A quem poderia confiar sua
vida? Como poderia escapar?
“Obrigado, Senhor, por nos proteger do mal e dos olhares irados da polícia se
eles nos tivessem apanhado”, suspirou Cveja numa prece de gratidão. “E, por
favor, ajuda-me a achar uma maneira de escapar e encontrar meu irmão.”
capítulo 6

aventuras no adriático

Na manhã seguinte, na casa da família de Mikica, Cveja acordou sentindo-se


mal. O sono só havia chegado bem tarde e fora conturbado. Ele fora até lá cheio
de esperança, mas agora estava abalado e com muitas apreensões. Preso atrás das
fronteiras vigiadas, ele sabia que seria muito fácil desistir.

Ao preparar-se para ir embora de Jesenice, ele se entregou aos cuidados de Deus


para guiá-lo, mas não tinha uma ideia clara do lugar aonde ir, a quem recorrer ou
o que fazer. Quando alguém mencionou que um amigo comum de Belgrado
estava visitando o Lago de Bled, ele decidiu ir para lá. Era apenas uma pequena
viagem de ônibus. Esse amigo viajava muito e poderia ter conseguido alguma
informação que pudesse ajudá-lo. Deixando alguns de seus pertences na casa da
família de Mikica, ele apanhou sua mochila, despediu-se e tomou o ônibus
seguinte para Bled.

Cercado por florestas e aninhado num vale em meio a montanhas, esse retiro
turístico alpino estava localizado alguns quilômetros a sudeste de Jesenice, mas
ainda assim próximo à fronteira austríaca. Engastado no topo de um íngreme
rochedo claro, um castelo medieval estava voltado para o pitoresco Lago de
Bled. Uma minúscula ilha no centro do lago de claras águas azuis abrigava uma
igreja construída no século 15. Cveja procurou seu amigo no endereço do hotel
que lhe deram, mas foi informado de que o homem havia saído naquela manhã.
Após perambular pela cidade sem encontrar nada promissor, ele voltou ao hotel
para passar a noite. No dia seguinte, continuou a viagem. Desta vez, ele viajou
de ônibus para o sul em direção à fronteira italiana.

O ônibus seguiu pela estrada sinuosa, parando em várias cidades ao longo do


caminho. Em cada cidade, Cveja desembarcava, misturava-se com o povo local,
fazia perguntas discretas e ficava atento para ouvir alguma pista encorajadora.
Em alguns lugares, ele ficou mais tempo que em outros, mas de todos saiu de
mãos vazias.

– Vá para Nova Gorica [Goritsa] – sugeriu alguém na última cidade. – Esse é o


melhor lugar para cruzar a fronteira.

Apegando-se a esta esperança, Cveja embarcou em mais um ônibus.

Em Nova Gorica, ele se defrontou com algo grotesco. Uma cerca de dois metros
e meio de altura, com arame farpado em cima, cortava bem ao meio uma rua no
centro da cidade. A cerca se constituía não apenas numa fronteira que dividia a
cidade em duas, mas era também uma fronteira internacional que dividia dois
países. No lado iugoslavo da cerca, ficava a cidade de Nova Gorica, construída
após a Segunda Guerra Mundial. Do outro lado, ficava o antigo povoado, que
recebeu o nome de Gorizia ao ser dado aos italianos após a guerra. Dos dois
lados da cerca, estavam guardas armados junto a enormes portões, espaçados em
intervalos regulares.

Uma fila de pessoas se formara em um dos portões. Enquanto Cveja observava,


o portão se abriu e um guarda inspecionou a identificação de cada pessoa antes
de deixá-la passar. Cveja sentiu um frêmito de esperança. Desejou tão somente
passar despercebido no meio do grupo. Ele ficou olhando até que os guardas
fecharam o portão. Parecia fácil.

Anoitecia quando ele finalmente percebeu que não havia comido durante todo o
dia. Nos últimos dias, as refeições haviam deixado de ser prioridade para ele.
Mas agora ele estava com fome. Então procurou um restaurante. Ao encontrar
um, entrou e sentou-se. Quando o garçom apareceu, Cveja entabulou conversa
com ele.

– Quem são aquelas pessoas? Como é que elas têm permissão para atravessar os
portões? – perguntou ele entre outras coisas.

– Somente certos residentes locais têm permissão de atravessar – explicou o


garçom. – Alguns têm parentes do outro lado. Outros vão lá para fazer compras
ou alguma outra coisa. Todos eles são residentes nesta cidade.

Ali em Nova Gorica, ele novamente se deparou com a fronteira – mais visível e
aparentemente mais acessível do que em Jesenice, mas igualmente impenetrável.
No dia seguinte, ele fez novas indagações.

– De vez em quando, alguém tenta subir na cerca e pular para o outro lado –
disse-lhe um residente. – Mas é abatido a tiros antes de consegui-lo. – De fato,
Cveja havia visto avisos de advertência colocados ao longo da cerca: “Perigo”,
“Não atravesse”, “Os guardas atirarão”.

Durante dois dias, Cveja perambulou pela cidade. Ele observou os guardas dos
portões e as pessoas que passavam por eles. Notou quando os portões eram
abertos e fechados. Tentou pensar em alguma maneira de se misturar com o
grupo, algum jeito de entrar furtivamente. Com a liberdade tão perto, por que
não tentar? Deveria haver um meio, e ele precisava descobri-lo. Mas, enquanto
ele continuava pensando e consultando as pessoas, a mesma sensação que
tomara conta dele em Jesenice voltou. Ele estava correndo atrás do vento e
ficando sem fôlego, mas sem nada nas mãos. Desalentado, foi embora da cidade.
Fora mais uma possibilidade frustrada.

Já era o mês de agosto. Os últimos dez dias de vagueação haviam consumido


tempo, energia e recursos preciosos. Cveja retornou à casa de seus amigos em
Jesenice para buscar o restante de seus pertences. Ele se lembrou de ter ouvido
que seu amigo Željko havia escapado para a Itália. Esperando obter alguma
informação da mãe de Željko, ele tomou o trem para Zagreb no segundo dia de
agosto.

– Você não pode ficar aqui, Cveja – disse-lhe Barica [Baritsa], a mãe de Željko.
– A polícia secreta já esteve aqui duas vezes desde que Željko escapou. Eles
podem estar vigiando a casa agora. Vou levá-lo à casa de minha irmã Mića
[Mitsa]. Você estará mais seguro lá.

Na casa de Mića, Cveja descansou um pouco, mas ele não queria simplesmente
se acomodar. Estava ardendo de desejo de planejar sua fuga. Mića o conduziu a
outra casa, pertencente à família da noiva de Željko, Mira. Quando ele chegou, a
mãe de Mira, também chamada Barica, disse-lhe:

– Você pode ficar aqui, Cveja, mas não tenho qualquer informação. A melhor
coisa seria você voltar para Belgrado. Veremos o que podemos descobrir nesse
ínterim. Tão logo saibamos algo, enviaremos um cartão-postal para você,
convidando-o a passar as férias conosco. Isso será o sinal de que achamos uma
conexão.

Cveja voltou para Belgrado. Extasiados por vê-lo vivo e bem, os familiares o
envolveram em calorosos abraços. Eles estavam preocupados de que ele tivesse
sido apanhado. Corriam todos os tipos de boatos, e eles não sabiam em que
acreditar. A mãe e a irmã louvaram a Deus por protegê-lo e por lhes permitir
conversar novamente com ele.

– Meu querido, você está em casa agora – disse a mãe sorrindo. Ela seguia todos
os seus movimentos com os olhos.

Naquela noite, eles discutiram sua aparência durante o jantar.

– Você não tem se alimentado, Cveja? – perguntou Nata, notando que as roupas
lhe caíam frouxas sobre o corpo. – Você ficou sem dinheiro?

– Às vezes, até me esqueço de comer. Nesses últimos dias, não tenho sentido
muita fome.

– A UDBA não telefonou para nós – informou Nata. – Será possível que eles não
notaram sua ausência? Não é extraordinário?

– Seria um milagre! – exclamou Cveja aliviado.

– O que você achou da fronteira? O que viu por lá? – Mića importunou Cveja
com perguntas. Ele também estava pensando em fugir.

– Mas onde está meu outro tio? – perguntou Jovica, alegre por ver um deles, mas
querendo saber o que acontecera com o outro tio que costumava brincar com ele.

Como havia gasto uma parte de seus recursos com despesas de viagem, Cveja
vendeu algumas roupas a uma loja de artigos usados – um par de sapatos caros
pouco usados, um sobretudo em boas condições, duas calças e três belas
camisas. Enquanto isso, esperou notícias de Zagreb.

Sete dias depois, chegou um postal da mãe de Mira. “Venha passar suas férias
conosco”, dizia ele. “Minha filha Branka irá encontrá-lo do outro lado da rua da
rodoviária. Esteja lá às 22 horas, no dia 14 de agosto.”
Cveja ficou extasiado. Finalmente, após todos os seus desapontamentos e
provações, alguma coisa daria certo.

– Você pretende viajar de ônibus ou de trem? – perguntou Mića ao saber das


notícias.

– Ainda não decidi. As estações em Zagreb são próximas, de modo que tanto faz
– respondeu Cveja.

– Se fosse você, eu não iria de trem. Os espiões sempre viajam pelas ferrovias –
aconselhou Mića. – Os ônibus são um pouco mais caros, mas menos lotados. Há
menos chance de ser apanhado.

Cveja decidiu seguir o conselho de Mića. Iria de ônibus.

Quando se aproximou o dia de sua partida, Cveja telefonou para a UDBA e


comunicou que faria outra viagem para Skopje por causa do projeto da igreja.
Skopje ficava ao sul, e Cveja viajaria para o oeste.
capítulo 7

placa h-8

Cveja chegou à rodoviária de Belgrado uma hora mais cedo. Após comprar a
passagem, ele seguiu as tabuletas escritas em cirílico e latim, indicando a
plataforma de onde seu ônibus partiria. A rodoviária não estava movimentada, e
ele foi o primeiro a chegar para o ônibus das 16 horas, o último para Zagreb.

O ônibus estava vazio na plataforma, e com as portas fechadas. Cveja ficou na


frente do que logo se tornaria uma fila. Logo os passageiros começaram a se
enfileirar atrás dele. Um motorista careca, atarracado e de uniforme, chegou,
abriu a porta, subiu os degraus e sentou-se em sua poltrona. Um segundo
motorista, mais jovem, subiu os degrauzinhos de uma escada estreita no lado do
ônibus para o bagageiro no teto. Os passageiros lhe estenderam as malas, e ele as
amarrou em segurança com uma correia. Cveja apanhou sua mochila e entrou no
ônibus.

Escolhendo a poltrona número 8, junto à janela, duas fileiras atrás do motorista,


ele colocou a mochila no bagageiro acima da cabeça e se aconchegou na
poltrona preta de couro. Um casal ainda jovem entrou, acomodou uma garotinha
ao lado dele, na poltrona do corredor, e então se sentou nas poltronas em frente
dele, diretamente atrás do motorista. A mulher ficou junto à janela; e o homem,
ao lado dela. Cveja observou o restante dos passageiros desfilarem para dentro
do ônibus passando por ele à procura de assentos. Um casal de meia-idade
sentou-se do outro lado do corredor, na mesma fileira em que ele estava.
Após amarrar todas as malas, o motorista mais jovem entrou, inclinou-se e disse
algumas palavras para o motorista veterano, que estava escrevendo algo numa
prancheta. O mais velho concordou. Então, o mais jovem tomou assento na
poltrona da direita, bem na frente do ônibus. O motorista veterano terminou de
escrever, colocou a prancheta num compartimento embaixo do painel, ajustou o
espelho retrovisor para observar os passageiros atrás dele e olhou o relógio.
Alguns minutos depois, olhou o relógio de novo. Estava na hora. Virou a chave
na ignição, olhou para a esquerda e para trás, e saiu da estação para a rua.

Quando o ônibus iniciou a viagem, Cveja exalou um suspiro de satisfação.


Aquele dia, 14 de agosto, seria uma data para ser lembrada. A maré que lhe
havia sido contrária por tanto tempo estava finalmente virando a seu favor.
Zagreb, a 400 quilômetros de distância, seria seu trampolim para a liberdade.
Alguém o estaria esperando do outro lado – um guia que o conduziria em
segurança através da fronteira. Não mais seria preciso correr para lá e para cá,
pesquisando, indagando, perambulando sozinho e arriscando a vida. Tudo isso, e
mais a expectativa de se encontrar logo com o irmão, enchia de esperança cada
fibra de seu ser. Olhou o relógio, e um maravilhoso senso de expectativa e alívio
o inundou.

O ônibus dobrou aqui e ali nas ruas de Belgrado e logo deixou a cidade para trás.
O tráfego na rodovia de pista simples pareceu mais leve, e o ônibus aumentou a
velocidade em direção ao seu destino. Cveja reclinou-se na poltrona, suspirando
profundamente e observando a paisagem plana.

O homem no assento da frente se voltou para ver sua garotinha que estava
desentrançando o cabelo de lã de sua velha boneca. Quando Cveja olhou para ela
e sorriu, ela apertou a boneca contra o peito e olhou para o lado.

– Qual é o seu nome? – perguntou Cveja. Mas ela pareceu incomodada e


permaneceu em silêncio.

– Ela é muito tímida – explicou o pai, começando a conversar com Cveja. – Vai
visitar Zagreb? Vamos ficar lá alguns dias com os parentes de minha esposa.

– Tenho amigos lá – respondeu Cveja. Na conversação que se seguiu, o homem


disse a Cveja que era advogado. Cveja lhe disse que trabalhava na usina
hidrelétrica de Belgrado e que estava tirando umas férias de seu trabalho.

Os passageiros no ônibus conversavam e riam. Um bebê chorava lá atrás. O


homem de meia-idade do outro lado do corredor foi para a traseira do ônibus
conversar com os outros passageiros. De sua poltrona, Cveja podia ver
claramente a estrada em frente através do para-brisa. O sol brilhante lá fora
refletia suas radiantes esperanças e expectativas. Sim, aquele era um bom dia.
Com todas as probabilidades. Logo seria ainda melhor.

Fechando os olhos, ele procurou relaxar, livrar-se da tensão e do estresse dos


últimos meses. Mas seus músculos não conseguiam relaxar, nem a sua mente
descansar. A lembrança do recado que havia deixado na UDBA só lhe trouxe
imagens de agentes irados fazendo perguntas e exigindo respostas. “Por que
você disse que iria para o sul? O que estava fazendo indo para o oeste? Pretendia
nos trair como fez seu irmão? O que o faz pensar que conseguiria sair assim?” Já
que de olhos fechados não conseguia relaxar, ele passou a olhar com atenção
para frente.

O ônibus parava periodicamente durante a viagem, e os passageiros saíam para


um curto intervalo. Após uma parada, os motoristas trocaram de lugar. Agora o
motorista mais jovem sentou-se atrás do volante, e o veterano foi para a poltrona
do lado direito. O sol havia baixado no horizonte. O motorista acendeu os faróis,
e o ônibus continuou seu percurso noturno.

Logo as luzes dentro do ônibus diminuíram de intensidade, os gracejos na parte


detrás se acalmaram, e os passageiros começaram a cochilar. A garotinha ao lado
de Cveja se virou de lado na poltrona e caiu no sono, com as pernas encolhidas e
a boneca envolvida nos braços. Sua mãe deu uma olhada para trás, para vê-la, e
então se acomodou de novo no assento, com a cabeça encostada na janela. Cveja
continuava desperto.

Algum tempo depois, Cveja consultou o relógio outra vez. O mostrador


iluminado indicava 21 horas. Mais meia hora e ele chegaria ao seu destino. Ele
não havia levado o cartão-postal consigo, mas sabia o endereço de cor. Mal
acreditando em sua boa sorte, ele massageou os dedos ansiosa e animadamente.
As coisas estavam fluindo sem problemas desta vez. Logo o ônibus chegou à
cidade suburbana de Jezevo [Iezevo]. Já se podiam ver as luzes de Zagreb ao
longe. A alegria lhe percorreu o corpo.

Repentinamente, duas luzes fortes lhe atraíram a atenção. Um carro em sentido


contrário, com os faróis altos, vinha em velocidade na outra pista. Ele não
abaixou os faróis ao se aproximar. Cveja sentou-se ereto e fitou o veículo que
avançava com ímpeto. Viu horrorizado como o motorista do ônibus piscou
freneticamente os faróis para levar o motorista do carro a abaixar os faróis, mas
isto não surtiu efeito.

Quando as luzes ofuscantes se aproximaram, o desesperado motorista cobriu os


olhos e deu luz alta. Num instante, surgiu um quadro de gelar o sangue, e o
coração de Cveja quase parou. Uma jamanta Škoda carregada com chapas de aço
estava estacionada no acostamento do lado direito da estrada, com a traseira
projetando-se na pista. Cegado pelos faróis altos, o motorista não havia visto o
caminhão até o último segundo.

A maioria dos passageiros do ônibus estava alheia ao perigo, mas Cveja, com os
olhos bem abertos, viu tudo com horror. O motorista desviou para a esquerda
para não se chocar com o caminhão, mas o carro que vinha em sentido contrário,
com os faróis altos, estava agora quase em frente dele. Então o motorista do
ônibus girou o volante rapidamente para a direita para evitar uma colisão frontal
com o carro, mas na rodovia com apenas duas faixas estreitas de rolamento não
havia espaço para se espremer entre os dois veículos.

Os passageiros que dormiam acordaram sobressaltados com as repentinas


mudanças de rumo do ônibus. Eles gritaram horrorizados com a cena que se
desenrolou diante de seus olhos despertos. De repente, houve um guincho
penetrante e um estrondo, imediatamente seguido de gritos de terror, barulho de
vidros quebrados, metais esmagados, um choque ensurdecedor, e então silêncio
sepulcral.

Um pouco antes do impacto, Cveja havia se agachado entre as poltronas.


Imediatamente ele tentou agarrar a garotinha, mas pegou apenas a saia dela. A
violência do choque arrancou o corpinho dela de suas mãos, deixando-o apenas
com um pedaço de sua saia na mão. Tudo havia acontecido muito rapidamente.

Espremido entre os assentos, ele fora amortecido contra o golpe mortal e


protegido de uma chapa de aço que passou apenas a alguns centímetros de sua
cabeça. Ele se ergueu dentre as poltronas. A vidraça da janela à sua esquerda
havia se estilhaçado, e a moldura retorcida ficou pendurada de modo grotesco
pela abertura. Através do para-brisa despedaçado, ele viu o carro contrário
diminuir a velocidade.

Imediatamente, pulou para fora através do rasgão aberto à sua direita e correu
em volta da frente do ônibus. O motorista do carro parou a um metro de
distância. O homem olhou para Cveja como se quisesse dizer alguma coisa, mas
inesperadamente apertou o acelerador e arrancou com os pneus cantando. Cveja
gritou injuriado para o carro, ao este se desviar do ônibus destroçado:

– Seu idiota, olhe o que você fez! Você matou esta gente!

Mas o veículo foi embora sem parar, com os faróis altos brilhando intensamente
noite adentro. Cveja ficou olhando-o até desaparecer. Ele reconheceu o carro
como sendo da marca Mercedes-Benz. Conseguiu ler apenas os dois primeiros
dígitos de sua placa: H-8. O H significava Hrvatska (Croácia).

Tremendo, Cveja voltou-se para o ônibus e viu estupefato que se abrira um


buraco nele. Um montão de metal retorcido e amassado estava espalhado na
estrada. Ele havia batido no lado esquerdo da traseira do caminhão, e o impacto
rasgara o lado direito do ônibus, deixando-o atravessado na rodovia. Cacos de
vidro cobriam todo o local. Horrorizado, passou a mão na cabeça e descobriu
cacos em seu cabelo também. Olhando para baixo, viu mais vidros grudados em
suas roupas. Podia senti-los até mesmo na boca, ao molhar os lábios com a
língua. Limpou os caquinhos com as costas da mão e cuspiu.

Com o facho do farol intacto, ele pôde ver que o caminhão havia sido lançado
para fora da estrada com a colisão. Chapas de aço se soltaram da carga e haviam
voado em várias direções.

Ao procurar o motorista veterano, viu que o impacto o havia arremessado para a


traseira do ônibus, onde estava amontoado sobre uma das poltronas, de olhos
abertos e sem vida. Os passageiros que estavam do lado direito haviam sido
lançados para fora do ônibus com o choque. Jaziam ensanguentados na estrada.
A mãe, sentada na poltrona em frente de Cveja, estava estirada no corredor,
machucada e sangrando, mas viva e gemendo. Sua filhinha jazia imóvel, num
montinho ensanguentado, com a saia em pedaços e o corpo quebrado e flácido
como a boneca em trapos que espiava por baixo de seu corpo. Mais para trás, no
corredor, o pai da garotinha jazia estirado e quieto onde havia sido arremessado.
Uma chapa de aço havia-lhe cortado o corpo. O homem de meia-idade que havia
ido para a traseira do ônibus para conversar, agora chorava lamentando a perda
da esposa.

– Socorro! Socorro! – gritos desesperados vinham do monte de destroços de


metal, borracha e pessoas. Cercado pelo cheiro de morte, Cveja ficou confuso e
chocado, sem saber a quem ajudar primeiro.

– Não foi culpa minha! Não foi culpa minha! – exclamava lamentosamente o
motorista jovem. Horrorizado, com as mãos na cabeça, ele andava para lá e para
cá no meio dos destroços espalhados na estrada.

Cveja se recompôs e começou a agir. Carregou o corpo inerte da garotinha para


fora do ônibus e a depôs na grama ao lado da estrada. Então, voltou às pressas ao
ônibus para remover outros passageiros. Alguns se mexeram e se ergueram, com
as roupas rasgadas por cacos de vidro ou chapas de aço cortantes, tendo o corpo
e o rosto machucados e sangrando. Outros se balançavam para frente e para trás
em agonia causada por medo e dor, gemendo e chorando em voz alta. Outros
ainda jaziam no piso do ônibus ou se deixaram cair sentados em suas poltronas,
inconscientes ou em estado de choque. Tudo estava salpicado de sangue e
coberto de cacos de vidro. Cheiro de gasolina derramada e borracha queimada
poluíam o ar fresco da noite.

– Socorro! Socorro – clamava alguém debaixo daquela massa de coisas


retorcidas e mutiladas. Cveja e alguns dos passageiros machucados de leve
começaram a retirar os destroços para desprender o homem ferido. Atrás dele,
Cveja ouviu um gemido de dor. Voltando-se, ele viu um homem idoso tentando
manter o olho em sua órbita. Ele e Cveja haviam conversado antes. O homem
havia vindo da Tchecoslováquia para visitar um amigo em Zagreb. Ali perto,
uma mulher estava sentada em sua poltrona segurando o maxilar com as mãos
pingando sangue.

Espalhadas na estrada e misturadas com os destroços, estavam as bagagens.


Havia malas rebentadas e abertas, com seu conteúdo esparramado: casaco
feminino, chocalho de bebê, bolsa, chapéu masculino amarrotado, saco de papel
amassado, maçã comida pela metade, sapato feminino com o salto quebrado,
retrato de família, envelope selado.

Um a um, Cveja, o motorista e outros passageiros carregaram para fora os


mortos e feridos. Alguns conseguiam se sentar, outros ficavam no chão
gemendo, e outros jaziam no silêncio da morte. Olhando para aquela carnificina,
Cveja ficou atordoado e com náuseas. Ele jamais havia sido capaz de ver sangue,
e agora havia sangue por toda a parte.
Nesse momento, a rodovia resplandecia com luzes vermelhas que piscavam. Três
carros de polícia haviam chegado ao local, e o caos aos poucos foi colocado em
ordem. A polícia bloqueou a estrada, e o tráfego ficou congestionado em ambas
as direções. Ambulâncias dos hospitais próximos anunciaram com alarde sua
chegada e começaram a transportar os feridos. Cveja retirou sua mochila do
meio do entulho onde havia caído e colocou-a sobre os ombros.

– Não foi culpa minha! Não foi culpa minha! – continuava a exclamar o
motorista.

– Eu sei, eu sei. Aquele idiota não baixou os faróis! – respondeu Cveja ainda
irado.

– Você viu o que aconteceu? Por favor, diga-lhes que não foi culpa minha –
implorou ele, puxando a manga de Cveja. – Seja minha testemunha. Só Deus
sabe o que eles farão comigo.

Repórteres e fotógrafos tomaram conta do local, e o motorista do ônibus se


manteve ao lado de Cveja. Mas como poderia ele testemunhar em favor do pobre
homem? A UDBA esperava que ele estivesse em Skopje. Ele estava a ponto de
escapar e não poderia ser apanhado. Se a polícia o encontrasse na periferia de
Zagreb estaria tudo perdido. Seu destino estaria selado. Ele precisava cair fora.
Mas o motorista não o perdia de vista.

– Este homem viu tudo. Ele sabe que não foi culpa minha – disse o motorista aos
repórteres que o inquiriram. E apontou para Cveja. Uma fotógrafa pôs uma
máquina fotográfica em frente ao rosto de Cveja. Ele se abaixou ao vê-la, e o
flash lampejou, fotografando o rosto de outra pessoa. A pior coisa que poderia
acontecer seria seu rosto aparecer nos jornais.

Uma cena descrita no romance Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque, veio-
lhe à mente. Um médico judeu estava se escondendo dos nazistas na França
durante a ocupação nazista. Quando ele se ajoelhou instintivamente ao lado de
uma pessoa ferida, numa rua de Paris, imediatamente percebeu seu erro. Em
seguida, um patrulheiro alemão deu-lhe um tapinha no ombro e pediu sua
identidade. Como ele estava sem documentos, o oficial o levou embora. Este
também seria seu destino, pensou Cveja. Quanto mais ele se demorasse por ali,
mais perigosa ficaria sua situação.

Um repórter desviou a atenção do motorista por um momento. Em um instante,


Cveja escapou despercebidamente. Descendo uma rampa e entrando numa vala,
ele desapareceu no meio de um milharal que se estendia ao longo da estrada. Os
pés de milho, já com espigas, eram mais altos do que ele.

Em meio a toda a confusão, Cveja perdera a noção do tempo. Ao olhar


novamente para o relógio, os ponteiros do mostrador luminoso indicaram 22h40,
e ele percebeu três coisas. Primeiro, ele estava vivo. E sentia-se grato por isso.
Segundo, foi um dos poucos passageiros ilesos no acidente. Se estivesse ferido,
estaria numa ambulância em direção ao hospital, onde sua identidade seria
revelada e seu plano descoberto. Deus o havia misericordiosamente poupado.
Em terceiro lugar, ele perdera o encontro marcado, e essa constatação atingiu-o
como uma faca. Agora, tudo o que queria era chegar a Zagreb.

Por um bom tempo, Cveja ficou sentado no chão, em meio ao milharal, oculto
por folhas oscilantes e aromáticas espigas, esperando que os carros da polícia e
as ambulâncias fossem embora e o tráfego se dispersasse. Ele se culpou por ter
tomado o ônibus. Se tivesse viajado de trem, estaria em segurança em Zagreb,
em vez de se esconder da polícia como um fugitivo. Finalmente, ergueu-se e
abriu caminho entre o milharal, caminhando paralelamente à estrada, mas
afastando-se do acidente. Ao caminhar, seus pensamentos se voltaram para os
passageiros feridos. Antes, ao ouvir falar de um acidente, ele sempre considerara
os feridos como afortunados por terem sobrevivido, mas agora havia
testemunhado em primeira mão quão graves os ferimentos podem ser. As
imagens de membros mutilados, ossos quebrados e rostos desfigurados mudaram
para sempre sua maneira de considerar os feridos.

Já passava bastante da meia-noite quando Cveja finalmente ouviu as vozes dos


policiais liberando o trânsito. “A estrada está aberta, podem continuar sua
viagem.” Os motores rapidamente roncaram e pneus cantaram quando os carros
começaram a rodar. Ainda esperando no milharal, ele pôde sentir o cheiro de
fumaça que saía dos escapamentos.

Cveja subiu o barranco até a estrada, saindo bem atrás do congestionamento,


onde os carros ainda não haviam começado a se mover. Em frente dele, estava
um Citröen com placas de Paris, pois os últimos dígitos eram 75. Um homem e
uma mulher estavam sentados no carro, com a atenção voltada para os carros na
frente deles.

Dirigindo-se lentamente para o lado do passageiro do carro, Cveja deu umas


batidinhas no vidro. A mulher, tomada de surpresa, deu um grito ao vê-lo – suas
roupas estavam rasgadas e manchadas de sangue, e fragmentos de vidro ainda
estavam espalhados em seu cabelo e roupas. Falando francês o melhor que
podia, ele disse ao casal que havia vindo do acidente e perguntou se eles
poderiam levá-lo a Zagreb.

– Certainment – concordou prontamente o homem. E Cveja entrou e sentou-se


no banco traseiro. O trânsito se movia lentamente, de modo que demorou mais
ou menos uma hora para chegar à rodoviária, no centro da cidade. Agradecendo
ao casal, Cveja saiu do carro, e eles foram embora. Dentro da estação, ele viu
vários viajantes noturnos, mas ninguém o esperava.

Em pé ali, ele ficou arrepiado com o ar fresco da noite. Estava confuso, e o


endereço da mãe de Mira aparentemente se havia apagado de sua memória.
Vagueando ao redor em estado de torpor, esfregando a testa, tentou se lembrar da
localização. Ele sabia que a mulher morava ali perto, mas não conseguia se
lembrar do nome da rua por nada deste mundo, e menos ainda do número da
casa. Frustrado e em desespero, viu um luminoso que dizia: Kafana Dubrovnik.
Ele se dirigiu para lá. O café estava fechado e lá dentro estava escuro. Então ele
se sentou a uma mesa externa, escondeu a cabeça entre as mãos e chorou.

Eram cerca de três horas da madrugada quando finalmente conseguiu acalmar-


se, e o endereço surgiu-lhe na memória. Ele estava sentado a apenas alguns
quarteirões da casa que procurava. Seguindo as placas de rua, logo encontrou a
casa.

Bateu à porta, mas ninguém atendeu. Bateu novamente, desta vez com mais
força, e uma voz fraca perguntou lá de dentro:

– Quem é?

– Sou eu, Cveja.

– Cveja? É você mesmo? Só um momento – disse a voz do outro lado.

Alguns momentos depois, ele ouviu a chave girar, e a mãe de Mira aparecer na
porta. Ela olhou para Cveja e quase desmaiou.

– O que aconteceu com você? Sua aparência está horrível! – suspirou ela
levando as mãos à boca. – Entre, entre.
Ele entrou e explicou sobre o acidente. Também lhe falou que havia informado à
UDBA que estava indo para o sul. Depois de ouvir a história, ela disse:

– Descanse aqui agora. De manhã iremos à casa da mãe de Zeljko. – Ela lhe
ofereceu alimento e bebida, mas ele quis apenas água. Após dormir por algumas
horas, Cveja acordou ao amanhecer. A mulher lhe deu uma muda de roupa que
pertenceu ao seu esposo, e então saíram.

Era de manhã agora, e as ruas da cidade estavam repletas de pessoas que iam às
pressas para o trabalho, e bondes lotados de passageiros. Numa esquina, um
rapaz anunciava as últimas notícias: “Extra! Extra! Compre o seu jornal matinal.
Leia tudo sobre o acidente de ônibus na rodovia!” gritava ele.

Estendendo ao jovem algumas moedas, Cveja comprou o jornal Vjesnik u


Srijedu. Na primeira página estava a manchete em negrito: “O pior acidente de
trânsito da rodovia Belgrado – Zagreb.” De olhos arregalados, ele leu os detalhes
do acidente de ônibus que lhe custara a chance de liberdade. A foto que ilustrava
a matéria mostrava um homem não identificado e os destroços do ônibus ao
fundo. Cveja dobrou o jornal, enfiou-o debaixo do braço e, com a mãe de Mira,
continuou a caminhar.

Enquanto Cveja esperava na casa da mãe de Zeljko, sua irmã Mića chegou.
Juntas, as três mulheres tentaram localizar uma mulher que se supunha morar na
Rua Trg República, e segundo se dizia, trabalhava como guia, mas não puderam
encontrá-la. Ele passou lá a noite e comprou outro jornal no dia seguinte. Desta
vez, a manchete dizia: “Testemunha desaparece. Procurada para testemunhar
sobre o acidente.” Seu estômago se revirou. A polícia local o estava procurando,
desta vez como testemunha do acidente. Obviamente, não seria seguro para ele
permanecer em Zagreb.
capítulo 8

cilada no litoral

Cveja deu algum dinheiro aos seus amigos para comprar-lhe uma camisa nova e
um par de calças, já que as suas roupas estavam sem condições de uso. Ainda
abalado pelo acidente de ônibus e por sua tentativa fracassada de entrar em
contato com um guia, ele decidiu ir para a costa do Mar Adriático a fim de
verificar se poderia fugir de barco de lá para a Itália. E tomou o ônibus de
Zagreb para Rijeka, o principal porto marítimo da Iugoslávia. A cidade estava
situada no fundo da Baía de Kvarner, no Mar Adriático. Em meio ao intenso
comércio e tráfego lá, ele tinha esperança de achar uma maneira de escapar.

Gaivotas estridentes voavam em círculos por cima de Cveja. Ondas batiam


contra o dique ao ele perambular ao longo da amurada. Sentindo o odor de peixe
e de água salgada, ele observava os navios cargueiros e de passageiros
carregando e descarregando seu conteúdo. Lá longe, na baía, ele viu um grupo
de ilhas em meio às águas claras azuis-turquesa. Uma delas era a ilha de Brioni,
onde Tito mantivera um retiro secreto de verão. Fora de vista, do outro lado da
península de Ístria, estava Trieste, a Itália, e a liberdade.

Três dias andando para lá e para cá na cidade, ouvindo, observando e


perguntando, produziram apenas um rosto queimado do sol, pés doloridos e mais
desapontamento. Apesar de todos os seus esforços, não havia conseguido nada.
Entretanto, muita gente que morava à beira-mar possuía barcos que eram usados
para pescar, tanto para consumo próprio como para ganhar dinheiro. Com
certeza, em algum lugar nessa costa deveria haver alguém que pudesse ajudá-lo
a escapar. Se procurasse bem e por tempo suficiente, ele teria de descobrir essa
pessoa.

Havia uma linha de ônibus ao longo da costa, e Cveja decidiu verificar as


cidades que ficavam nessa rota. De Rijeka ele foi a Pula, perto da ponta da
Península de Ístria.

Com seu antigo anfiteatro romano, belas praias e pinheiros, Pula formava uma
saliência para o sul, no Mar Adriático. Quando Cveja olhou através do mar na
direção da Itália, não conseguiu ver a costa oriental italiana em virtude da
distância. Talvez por causa disso, pensou ele, a fronteira fosse menos vigiada
pela polícia. Mas, após passar o dia fazendo um reconhecimento da cidade, ele
não descobriu nada. No dia seguinte, ele prosseguiu rumo a Portorož, na parte
ocidental da península.

Caminhando pelo ensolarado litoral frequentado pelo público, conhecido como


“porto das rosas”, ele procedeu como antes. Manteve os olhos e ouvidos abertos,
inspecionou o lugar, conversou com o povo local e fez perguntas discretas. Ali,
como nos outros lugares, suas indagações não deram em nada. Nem mesmo uma
pista, um vislumbre de esperança, uma orientação que ele pudesse seguir.
Parecia que ele estava batendo no ar sem acertar em nada. Suas esperanças
começaram a se desvanecer, dando lugar a uma crescente sensação de frustração
e desespero.

Tencionando ir embora, caminhou em direção à rodoviária. Um jovem e atraente


casal caminhando em sua direção repentinamente parou em frente dele.

– Com licença, você não é o Cveja? – perguntou a jovem sorridente. – Você não
se lembra de mim? No ano passado trabalhei em Belgrado e cantei no coral
jovem da igreja, regido por você.

– Elana! É claro que sim. Que coincidência encontrá-la por aqui! – disse Cveja,
surpreso e alegre por encontrar alguém conhecido naquele lugar estranho.
Durante toda a viagem, ele só havia encontrado estranhos. Agora estava entre
amigos.

– Este é meu noivo Romeo – disse ela, apresentando seu companheiro. – Seus
pais moram um pouco fora da cidade. Dá para caminhar até lá... Por que você
não vem conosco? Estamos indo para lá. Assim a gente pode conversar.
Ao chegarem, a família de Romeo recebeu Cveja calorosamente e lhe fez o
convite para ficar para o jantar. Enquanto comiam, conversaram.

– Romeo é italiano. Ele conseguiu os documentos para eu poder viajar – disse


Elana a Cveja. – Vamos voltar para a Itália dentro de alguns dias e nos casar.

Cveja parabenizou o casal e, na conversa que se seguiu, contou-lhes sua difícil


situação.

– Não é fácil escapar, Cveja – disse Elana. Ela fez uma pausa para pensar. –
Ouvi falar de alguém... Seu nome é hmmm... sim, Giovanni Bartoni. É claro que
não posso me responsabilizar por ele. Tudo que sei é que, segundo se diz, ele
tem transportado pessoas para a Itália em seu barco.

– Onde é que posso encontrar esse Bartoni? – Cveja perguntou ansiosamente.


Seu rosto se iluminou, e seu espírito subitamente ardeu de esperança. Depois de
andar em volta da península, essa foi a primeira dica concreta que teve. A essa
altura, ele estava disposto a tentar qualquer coisa.

– Há um pequeno café na marina de Rijeka onde atracam os barcos pesqueiros.


Muitos pescadores frequentam o lugar. Você pode iniciar sua pesquisa lá.

– Mas como poderei reconhecê-lo? Como é sua aparência?

– Bem, ele é magro, um pouco mais baixo do que você. Deve ter entre 40 e 50
anos de idade. Tem rosto comprido e está ficando careca. Isso é tudo que sei lhe
dizer. Desejo-lhe sorte.

– Já que você viajou de tão longe, por que não passa a noite aqui? – convidou a
mãe de Romeo. – Amanhã você pode voltar para Rijeka.

Agradecido, Cveja aceitou o convite. Na manhã seguinte, preparou-se para ir


embora.

– Se precisar de um lugar para ficar nos próximos dias, você é bemvindo para vir
dormir aqui – convidaram os pais de Romeo. – Vamos sair amanhã com os
jovens, e a casa ficará vazia. – A mãe lhe mostrou onde escondiam uma chave a
mais. Cveja agradeceu e saiu.

De volta a Rijeka, Cveja se dirigiu imediatamente à igreja local, que possuía um


telefone. A secretária procurou o número do café, fez a ligação e estendeu-lhe o
fone.

– Alô, gostaria de falar com o Sr. Bartoni.

– Um momento – respondeu alguém. Pouco depois, ele ouviu uma voz rouca:

– Aqui é o Bartoni.

– Preciso falar com o senhor.

Houve uma longa pausa.

– Eu estava justamente de saída, mas vou voltar mais tarde. Provavelmente às


três horas.

– Ótimo. Eu procuro o senhor a essa hora, então – respondeu Cveja. E desligou.

Quando Cveja entrou no café na hora marcada, viu seis pessoas sentadas em três
mesas espalhadas no pequeno espaço. Três em uma mesa, duas em outra e um
homem sozinho no canto. Olhando com atenção o rosto deles, encontrou apenas
um que se encaixava na descrição de Elana – o homem sentado à mesa do canto,
tomando café e lendo jornal. Cveja se aproximou dele:

– Giovanni Bartoni? – perguntou ele timidamente.

Levantando a cabeça, o homem ergueu os olhos do jornal e encarou Cveja.

– E daí se eu for? – sua voz era grave e fanhosa. Ele depôs o jornal e apanhou a
xícara.

Cveja se apresentou e sentou-se. As mesas mais próximas estavam desocupadas,


mas mesmo assim, ele falou cochichando:

– Eu sou a pessoa que lhe telefonou hoje de manhã. Preciso ir para a Itália.

O homem levou a xícara à boca e tomou um gole, com os olhos focados em


Cveja.

– E você acha que eu posso ajudá-lo? – Ele lambeu os lábios, depôs lentamente a
xícara e encostou-se à cadeira. – Quem lhe disse isso?
– Um amigo. – Cveja fez uma pausa. – Bem, você pode? – Cveja achou que o
homem parecia Humphrey Bogart. Ele havia visto o ator uma vez, no filme
Casablanca, quando a associação dos estudantes universitários obtivera
ingressos. Devido à popularidade dos filmes americanos, os ingressos eram
difíceis de obter. Conseguir um era uma raridade. Cveja teve a sensação de estar
na cidade marroquina de Casablanca, profundamente envolvido em intrigas. Era
estranho e assustador, e ele não gostou de estar nessa situação.

– Você se importa? – Sem esperar resposta, o homem pegou um maço de


cigarros no bolso da camisa. Cveja assentiu, embora a fumaça de cigarro o
deixasse com náuseas.

O estranho acendeu o cigarro, inalou e vagarosamente soprou a fumaça por um


canto da boca e lançou a cabeça para trás.

– Quarenta e cinco mil dinares – sussurrou ele, inclinando-se para frente. Então
se recostou na cadeira, segurou o cigarro ao seu lado e observou a reação de
Cveja. – Metade adiantada. O restante quando sairmos.

Cveja engoliu em seco. A quantia equivalia ao salário de seis meses. A média


mensal de salário naquela época era algo em torno de 6.000 e 10.000 dinares.

– Você pode me dizer como é a viagem? – perguntou Cveja após se recuperar do


choque.

– Saio de Portorož. Mantenho meu barco aqui em Rijeka, mas navego entre os
dois lugares. Sairemos para pescar depois de escurecer. Haverá outros barcos
pesqueiros. Lançarei as redes e deixarei o barco flutuar para o mais longe
possível. Quando eu achar seguro, remaremos como doidos para os marcos da
fronteira – aquelas boias vermelhas que ficam fora da baía. Passaremos por
baixo das amarras. Do outro lado, estaremos em águas italianas.

– Remar? Você vai remar? – Cveja franziu a testa, muito perturbado. – O seu
barco não tem motor?

– Motor não tem utilidade para mim – respondeu o homem com indiferença. Daí
dobrou o jornal e colocou as mãos sobre ele.

– Não poderia instalar um para esta viagem? Você pode vendê-lo depois e ter seu
dinheiro de volta. Eu me sentiria muito melhor se você tivesse um motor. –
Cveja esperou ansiosamente.

O homem ergueu as sobrancelhas, tomou outro gole de café, depôs a xícara e


então proferiu em voz alta:

– Isto leva tempo, meu amigo. E mais dinheiro. – Inclinando-se para frente outra
vez, fez uma pausa e então deu o seu preço: – Outros 45.000 dinares.

– Oh! – Cveja pareceu desmaiar. – Isto é o dobro do preço – murmurou ele. Mas
como estava desesperado e não sabia mais o que fazer, perguntou:

– Quanto tempo vai demorar?

Bartoni pensou um momento, enquanto observava Cveja.

– Dez dias. Volte aqui dentro de dez dias.

– Muito bem. – Cveja pôs a mão no bolso para pagar o adiantamento.

O homem estendeu a mão num movimento rápido e agarrou o braço de Cveja. –


Aqui não. Encontre-me em Portorož. – E retirou a mão lentamente. – Estarei no
vestiário masculino junto à praia. Amanhã ao meio-dia.

Cveja concordou e foi embora com tudo programado. Ao sair pela porta, ouviu
Bartoni pedir outra xícara de café.

Na manhã seguinte, Cveja tomou o ônibus para Portorož e chegou cedo à praia.
Ele queria ter certeza de que acharia o balneário em tempo. O sol da manhã
iluminava fracamente o mar azul-celeste e várias pessoas se divertiam em meio
às ondas. Ao entrar no vestiário masculino, Cveja viu Bartoni encostado à
parede, de pernas cruzadas, fumando um cigarro. Ao vê-lo, Bartoni voltou-se,
ergueu as sobrancelhas e soltou uma baforada.

– Está tudo bem, não há ninguém aqui – disse ele, notando que Cveja estava
nervoso, olhando em volta. Sua voz estava calma. Apagando o toco do cigarro
na pia e jogando-o na lata de lixo, ele foi até a porta, olhou em volta do lado de
fora, e então fechou a porta. – Está limpo.

Cveja entregou-lhe 45.000 dinares, a metade do dinheiro combinado. Bartoni


contou-o rapidamente e embolsou o maço de notas.
– Você vai me dar um recibo? – perguntou Cveja.

– Recibo? – O homem deu uma risada. – Isso incriminaria nós dois se a polícia
descobrisse.

– Oh! Eu não pensei nisso – disse Cveja um pouco constrangido.

– Você terá que confiar em mim – disse Bartoni, estreitando os olhos.

– Tudo bem, eu entendo. Então, vejo você de novo em dez dias.

– Dez dias, é isso aí – confirmou Bartoni. Retomando sua posição anterior, ele
puxou outro cigarro do bolso e acenou com a cabeça para a porta. – Vou sair
depois de você. Não é uma boa ideia sermos vistos juntos.

Com tudo acertado, Cveja saiu. Embora sentisse uma pontinha de pânico, estava
disposto a correr o risco. Essa era, afinal, sua única opção. Afastando-se do
balneário, sentiu um ímpeto de agitação ao respirar o ar fresco e salgado.

Uma alameda ladeada por flores aromáticas ornava a graciosa costa, e ele
decidiu dar uma caminhada. Ao andar ao longo do calçadão, sua mente vagueou,
pensando em liberdade e em seu irmão.

Com um alegre sentimento de realização, Cveja se dirigiu para a casa da família


de Romeo, planejando passar a noite lá. Mas sua atenção continuava voltada
para Bartoni e como ele iria navegar. A distância até a Itália despertou-lhe
curiosidade. Portorož era o ponto mais próximo de Trieste que ele podia chegar
daquele lado da fronteira, mas Piran adentrava mais no Adriático, na
extremidade noroeste da península triangular. Ele se perguntou se poderia ver
Trieste de lá. Seria um panorama maravilhoso. Como Piran ficava a uma curta
distância dali, ele decidiu investigar e apanhou o ônibus seguinte para lá.

A pitoresca Piran, com alguns dos muros medievais ainda preservados, tinha
atrás de si colinas e montanhas como a maioria das cidades ao longo da costa do
Adriático. Quando Cveja chegou lá, a noite havia caído. A praia estava quase
deserta. Apenas uns poucos residentes perambulavam ao longo dela.

Ao caminhar pela praia estreita, Cveja notou fachos brilhantes de luz que
varriam a praia e iluminavam a baía. Observando com atenção para descobrir
sua origem, ele teve a impressão de que os fachos se originavam de um edifício
no topo de um monte. Amanhã, durante o dia, ele solucionaria o mistério.

Após passar a noite num hotel local, ele se levantou cedo na manhã seguinte e
subiu o monte. Não era muito íngreme, e ele logo chegou ao topo. Na parte mais
alta, havia uma igreja católica com um campanário quadrado, no estilo
veneziano. É daqui que vem a luz, pensou Cveja. Os fachos saem do topo desta
torre.

A porta de entrada não estava chaveada, e ele entrou no vestíbulo da igreja. À


direita, viu uma porta que ele supôs dava acesso à torre. Abrindo-a, entrou no
recinto estreito, onde foi engolfado pela escuridão. Tateando, subiu a estreita e
íngreme escadaria que dava acesso a outro lance de degraus e a outra porta.
Aquela também não estava chaveada. Atrás da porta, havia outra íngreme
escadaria que subia até o teto. Galgando os degraus, chegou ao topo, onde
encontrou uma porta basculante. “Exatamente como a porta do sótão de nossa
casa na fazenda”, recordou-se ele.

Cveja deu um forte empurrão na porta. Ela se ergueu e a luz do dia o inundou.
Quando espiou para dentro, a primeira coisa que viu foi um par de botas do
exército. Seu olhar foi subindo pelas pernas do guarda uniformizado até chegar
ao seu rosto espantado, e então ao rifle que estava apontando em sua direção.

– Saia, saia. O que está fazendo aqui? – perguntou o guarda. – Você é um


espião?

– Espião? Não, é claro que não! – respondeu Cveja, ao mesmo tempo chocado e
amedrontado. Trôpego, ele deixou a porta descer atrás dele com um estrondo. –
Sou turista. Vi a torre e quis olhar a vista aqui de cima.

Através das aberturas arqueadas do campanário, Cveja pôde ver a esteira branca
da arrebentação na praia pedregosa e ter uma vista espetacular da baía. Mas o
que ele viu dentro da torre é que o deixou vacilante. No chão havia um enorme
refletor rotativo. Em dois dos quatro arcos, metralhadoras armadas sobre tripés
estavam apontadas para a praia.

– Isto aqui é uma área militar restrita. Você não viu o aviso lá fora? – continuou
o guarda ainda agarrando o rifle.

– Aviso? Não, não vi – disse Cveja com os pensamentos voando para tentar
compreender a situação. – Na noite passada, eu estava na praia e notei luzes
vindo desta direção.

– E como você soube que as luzes vinham daqui? Deixe-me ver sua identidade.

– Eu simplesmente observei. Não foi difícil – explicou Cveja pondo a mão no


bolso da camisa de onde tirou sua identidade e a entregou ao guarda.

O homem encostou o rifle contra uma caixa e examinou o documento. Em


seguida, o devolveu.

– Vejo que você é de Belgrado – disse ele apanhando o rifle novamente.

– Isso mesmo. Estive no litoral só uma vez. É tão bonito – disse ele tentando
iniciar uma conversa. – E de onde é você? Sua fala não parece ser daqui.

O guarda relaxou. – Não, eu também sou de Belgrado. Minha casa é lá. Estou
aquartelado aqui há um ano. Vigio a fronteira.

Cveja engoliu em seco. Ele havia inadvertidamente topado por acaso com um
posto de segurança que vigiava a fronteira marítima. De lá ele tinha uma visão
interna da baía. Quando Bartoni o levasse em seu barco, saindo de Portorož, ele
estaria talvez no ponto de alcance das balas daquelas mesmas armas.

– Os italianos cruzam a fronteira marítima o tempo todo – continuou o guarda. –


Aparentemente há mais peixes do lado iugoslavo. Temos mais ilhas ao longo de
nossa costa do que eles. Às vezes, tenho de usar o alto-falante. Então a guarda
costeira sai e os traz para cá. Eles são multados, mas voltam sempre.

– Nunca pensei que houvesse esse tipo de problema – disse Cveja. Ele notou os
binóculos pendurados em volta do pescoço do guarda.

– É claro que eu também vigio a saída da fronteira. Posso ver toda a área da baía,
aqui em Piran e também o vizinho Portorož. A maioria dos barcos lá são
pesqueiros. Eles geralmente saem após escurecer. Tenho ordens para atirar em
quem se aproximar demais das boias que marcam a fronteira, no meio da baía.

Cveja estremeceu, especialmente com a menção de Portorož. – Parece que você


tem tudo sob controle – disse ele rapidamente, procurando dominar o seu pânico.
– Muito obrigado por me ter permitido apreciar a vista.
Em seguida, puxou a porta para cima e desceu precipitadamente a escadaria. Lá,
ao lado da estrada, estava o aviso: “Entrada Proibida. Área Militar.” “Como é
que eu não vi isso?”, admirou-se Cveja.

Ao descer o monte, ele murmurou para si mesmo: “Tudo em vão. Meus esforços
estão indo por água abaixo de novo. Logo agora que eu pensava ter achado uma
solução, dá tudo errado. Como é que Bartoni me prometeu fazer essa travessia?
Ele deveria saber que a saída para o mar é vigiada. É muito arriscado escapar.
Parece impossível.” As esperanças de Cveja se dissiparam, e ele tomou o
primeiro ônibus de volta para Rijeka.

Bartoni não estava no café quando Cveja chegou, de modo que ele se sentou à
mesa do canto, pediu um copo de suco e esperou. Sem demora, a porta se abriu e
Bartoni entrou. Ao ver Cveja, juntou-se a ele e ouviu sua experiência em Piran.

– Parece muito perigoso – disse Cveja.

– Realmente é – respondeu Bartoni. Ele parecia tranquilo.

– Eles têm refletores que iluminam toda a baía. Metralhadoras também –


acrescentou Cveja.

– Eu sei.

– Você já fez essa travessia antes? Levando alguém?

– Sim, mas não recentemente.

– Eles podem atirar e nos matar.

– Eles não podem atirar do outro lado das boias. Duas pessoas num barco
pesqueiro não levantarão suspeitas. Eles só vão perceber nossas intenções depois
que for tarde demais. – Bartoni procurou acalmar os temores de Cveja.

Cveja foi embora tentando acreditar em Bartoni, mas estava apenas meio
convencido. Parecia arriscado e perigoso demais. Mas quais eram suas opções?
Ele não tinha outra escolha. Teria que confiar nesse estranho. Precisaria esperar e
orar pelo melhor.

Depois do encontro com Bartoni, Cveja deu entrada num pequeno hotel. Estava
tenso e impaciente. Decidiu caminhar um pouco antes de voltar para dormir. Um
passeio reduziria sua tensão e desassossego.

Não muito longe do hotel, ele se encontrou casualmente com um membro da


igreja que havia conhecido anteriormente em Rijeka e ao qual confidenciara sua
situação. Vendo Cveja agora, o homem o aconselhou:

– Eu não acho uma boa ideia você dormir no hotel. Mas não cancele seu quarto.
Se a polícia está no seu encalço, eles o procurarão lá. Venha comigo, eu tenho
um galpão em meu vinhedo. É limpo e tem uma cama. Você pode dormir em
segurança lá.

Cveja aceitou e acompanhou o homem até o lugar.

Faltavam sete dias para Cveja sair do país e seu dinheiro estava acabando. Ao
contá-lo, viu que tinha só 20.000 dinares, o que não era suficiente. Ele ainda
devia outros 45.000 dinares a Bartoni, e teria que tomar dinheiro emprestado.
Então pensou em seu amigo Ladi, que morava em Novi Sad, e decidiu tomar o
ônibus para lá. Naquela noite, ele dormiu novamente no galpão do membro da
igreja, e no dia seguinte partiu.

Como o ônibus para Novi Sad faria uma parada em Zagreb, Cveja decidiu descer
e fazer uma visita à mãe de Željko. Ela havia sido tão gentil com ele em sua
visita anterior, quando ela, sua irmã e a mãe de Mira o haviam acolhido como
um filho e tentaram ajudá-lo. Quando ele chegou, ela lhe deu notícias
alarmantes:

– Estava nos jornais, Cveja, logo depois que você saiu! – exclamou ela com
agitação. – A reportagem disse que havia três pessoas no grupo, um homem e
duas mulheres. Eles se encontraram com uma mulher guia na estação ferroviária,
e ela os levou a Maribor, na Eslovênia. Outro guia deveria encontrá-los lá. Mas,
quando os quatro desceram do trem, adivinhe quem estava lá? A polícia secreta.
– Ela torceu as mãos e suspirou. – Dá para acreditar, Cveja? A polícia tentou
prendê-los, mas o homem puxou um revólver e baleou um dos policiais. O outro
policial atirou nele, e ambos os homens morreram. Então o agente prendeu as
duas mulheres e a guia. Quando foram ao apartamento da guia, eles encontraram
um esconderijo de dinares e dólares. Mas isso não é tudo. Naquela noite, a guia
se enforcou na prisão com suas meias de nylon.

Cveja ouviu tudo em silêncio, aturdido demais para responder. Era o grupo com
o qual ele se encontraria em Zagreb, mas o acidente de ônibus o impedira de
chegar a tempo.

– Pense apenas, Cveja – disse ela. – Se não estivesse nesse acidente, você teria
ido com eles, e agora estaria preso, talvez morto.

Cveja olhou fixamente para ela. Fraco e incapaz de falar, sentiu-se pequeno
diante da revelação. O acidente que parecera tão desastroso para seus planos, na
ocasião, o havia poupado do pior. “Ó, Deus, Tu me salvaste outra vez. Obrigado,
Senhor. Quão estranhos são os Teus caminhos”, orou ele silenciosamente.
“Ajuda-me a confiar sempre em Ti, não importa o que aconteça.” Ele passou a
noite na casa dela, e pela manhã continuou a viagem para Novi Sad.

Quando Cveja chegou à casa de Ladi, foi recebido com calorosas boas-vindas.
Felizmente, para Cveja, Ladi havia ficado em casa, embora fosse domingo e os
membros da igreja estivessem fazendo um piquenique. Cveja lhe contou os
assustadores eventos dos últimos dias.

– Rapaz, você está obrigando seu anjo da guarda a fazer horas extras! – disse
Ladi. – Mas algo me diz que você não viajou até aqui só para me contar sua
história.

Cveja sorriu. – Sou assim tão transparente? Você está certo, Ladi. Meu dinheiro
logo vai acabar. Eu sei que é pedir muito de você, mas preciso de 45.000 dinares.
Você sabe que eu tenho condições de devolver-lhe.

– É claro, meu amigo. Deixe-me ver o que posso fazer. – Ele foi a outro quarto e
voltou com um maço de dinares e contou-os. – Aqui estão 50.000. Devolva-os
quando puder. – Ele pôs o dinheiro na mão de Cveja, recusando-se a aceitar um
documento de débito. – Os 5.000 a mais são para você comer. Pelo que vejo,
você não tem feito muito isso ultimamente.

– Você é um salva-vidas, meu velho amigo. Vou lhe ser grato para sempre –
respondeu Cveja abraçando-o. – E você sabe que vou lhe devolver isto logo que
puder.

Ladi o convidou a ficar ali por alguns dias. Como o barco ainda não estava
pronto, Cveja aceitou o convite.

No dia seguinte, Cveja visitou alguns amigos íntimos que moravam em Novi
Sad. Ao chegar à casa deles, Kaća [Katcha] atendeu à porta. Eles haviam se
conhecido durante anos, porque os corais de jovens das igrejas de Novi Sad e
Belgrado muitas vezes se apresentavam nas igrejas uns dos outros. Durante a
visita, ela lhe contou que seu noivo, Djoka [Joka, uma versão de Djordje], e seu
irmão mais moço haviam conseguido obter passaportes para assistir a uma feira
relacionada com seu trabalho, em Paris. Enquanto estavam lá, eles desertaram.
Quando o pai deles foi a Paris para se tratar de um ferimento de guerra e trazer
os filhos de volta, ele também desertou. A UDBA ficou furiosa. Agora ela, sua
futura sogra e outro irmão de Djoka ficariam ali sem esperança de sair do país
legalmente. Kaća estava desesperada.

– Quando você escapar, Cveja, prometa que não se esquecerá de nós – implorou
ela. – Por favor, envie-nos o nome de sua conexão. Você pode escrever para
Djoka em Paris. – Ela escreveu o endereço de Paris num pedaço de papel e o
entregou a Cveja. – Ele vai nos informar da maneira habitual.

– É lógico, Kaća – prometeu Cveja, colocando o papel no bolso. – Logo que eu


sair, escreverei a Djoka.

No dia seguinte, Cveja voltou a Rijeka, levando consigo o dinheiro emprestado.


Naquela noite, ele dormiu no galpão do vinhedo do membro da igreja. Na noite
seguinte, ele caminhou até a marina. Ele queria ver o barco de Bartoni, já que
faltavam apenas dois dias para seu compromisso.

O barco balançava com as ondas no ancoradouro número 6. Bartoni lhe havia


dado o número. Uma lona o cobria completamente, e Cveja o ergueu para espiar
por baixo. Era um belo barco, e dentro dele ele viu cordas, uma caixa
provavelmente contendo iscas, uma moringa d’água, redes de arremesso, varas
de pescar e outros apetrechos de pesca. Mais importante de tudo, viu um lustroso
e recém-instalado motor. Alegre porque Bartoni havia cumprido o combinado, o
otimismo de Cveja cresceu e ele pôs de lado suas dúvidas. Até ali o homem
havia sido correto. Talvez seus temores fossem infundados e Bartoni estivesse
certo.

Quando Cveja voltou para o galpão no vinhedo, encontrou o dono esperando


ansiosamente por ele.

– Ó, Cveja, Cveja, tenho notícias horríveis! – disse ele agarrando Cveja pelo
braço. – Quando terminou o culto de oração hoje de noite, a secretária da igreja
me levou a um canto. Ela parecia muito perturbada. Ela disse que tem uma
amiga que trabalha como escrevente no escritório local da UDBA. Ela não é
comunista. A secretária havia falado de Bartoni a ela. Por iniciativa dessa amiga,
ela deu uma olhada na ficha de Bartoni. – O homem fez uma pausa para tomar
fôlego. – E tem mais: quando ela viu a ficha, viu o seu nome. O seu nome estava
na ficha de Bartoni! – repetiu ele.

Horrorizado, Cveja fitou o homem, com todas as esperanças morrendo dentro de


si. Ele se lembrava de ter conversado com a secretária, ao pedir-lhe que
telefonasse para o café. Evidentemente, ela havia tomado interesse na sua
situação e conversado com a amiga. O homem continuou:

– A amiga lhe disse que Bartoni havia estado na prisão duas vezes por
contrabandear pessoas para fora. Agora, ele colabora com a polícia como meio
de se reabilitar. Ela disse que Bartoni o levaria em seu barco e se fingiria
surpreso quando a guarda costeira o cercasse. Depois, eles dividiriam o dinheiro
entre eles. Disse que eu deveria avisá-lo com urgência.

– Oh, não! – exclamou Cveja abalado e perplexo com a informação. – Como é


que ela pode dizer isso? Ela tem certeza? Ele já instalou o motor.

– Ela não diria uma coisa dessas se não tivesse certeza. Ele é um trapaceiro,
Cveja. É assim que ele trabalha. Você não pode confiar nele.

Cveja sentiu como se fosse desmaiar e cobriu os olhos com a mão.

– Já lhe paguei a metade do dinheiro.

– Esqueça o dinheiro – insistiu o homem. – Você precisa sair de Rijeka


imediatamente. A UDBA está planejando prendê-lo.

O desespero tomou conta de Cveja novamente e sugou-lhe o ânimo do espírito.


Novamente seus planos haviam sido frustrados. Suas esperanças estavam
aniquiladas.

– Já é tarde. Durma no meu galpão esta noite e descanse – sugeriu o homem. –


Você estará seguro aqui. Amanhã poderá ir embora.

Cedo, na manhã seguinte, Cveja foi para a rodoviária. Estava agitada àquela hora
da manhã e, em meio à multidão que se movia para lá e para cá, ele avistou o
rosto familiar de um amigo, médico em Zagreb. Ele estava caminhando na
direção de um dos portões de embarque, e Cveja se apressou para alcançá-lo.

Colocando a mão no ombro do homem, Cveja exclamou:

– Vlado, meu amigo, para onde está indo?

Vlado se voltou para ele e sorriu. – Cveja, velho amigo! Que surpresa vê-lo.
Estou de férias, em viagem para Split. E você, meu irmão? O que está fazendo
por estes lados?

– Estou numa encrenca séria, Vlado. – Cveja puxou-o para o lado e contou-lhe
resumidamente seu dilema.

– Sabe quem escapou alguns dias atrás? – perguntou Vlado. – Mira, a noiva de
Željko. Ela foi para a Áustria.

– Não sabia. Estou desesperado, Vlado. Já esgotei todas as alternativas e preciso


de uma conexão. Você pode me ajudar de alguma maneira?

– Hmmm, eu realmente não consigo pensar em algo, a menos que a mãe de Mira
tenha alguma informação. – Ele fez uma pausa. – Tenho um irmão em Pula. Ele
trabalha num estaleiro como engenheiro chefe de produção de motores de
navios. Pode ser que ele tenha alguma ideia, ou talvez possa colocá-lo em
contato com alguém. Vou lhe dar seu endereço.

Vlado colocou a mala no chão e puxou um bloquinho de papel do bolso.


Rapidamente escreveu um endereço. – Vou lhe dar uma carta de apresentação. –
E continuou escrevendo. – Dê isto a meu irmão. – Daí rasgou a folha, entregou-a
a Cveja, pôs o bloco de volta no bolso, pegou a mala, e saiu apressado para
apanhar o ônibus. Enquanto eles falavam, uma fila de passageiros se formara
junto ao portão, e estavam agora embarcando no ônibus.

– Muito obrigado. – Após acenar enquanto Vlado ia embora apressado, Cveja


rapidamente leu a nota. “Prezado Ivan, este é o meu caro amigo e colega. Ele
quer sair do país. Se houver algum modo de ajudá-lo, ficarei grato.” Estava
assinado Vlado. Com isto, em vez de viajar para Zagreb, Cveja tomou o ônibus
para Pula.

O endereço escrito no papel conduziu Cveja a uma atrativa casa numa travessa,
com vários degraus na porta dianteira. Na frente da casa, estava estacionada uma
lustrosa Vespa Moped, novinha em folha, raramente vista na Iugoslávia naquela
época, uma vez que a maioria das pessoas não tinha condições de comprar uma.
Cveja subiu os degraus e tocou a campainha.

A porta se abriu, e um homem de aparência honrada surgiu.

– Meu nome é Cveja Vitorović, amigo de seu irmão Vlado.

– Meu irmão? Sim, entre – convidou Ivan em sua maneira cordial. – Acabo de
voltar de um treinamento avançado de seis meses na França – disse ele dando
uma risadinha. – Como você pode ver, comprei uma Vespa lá. Mas o que posso
fazer por você? – perguntou ele quando os dois se assentaram.

Cveja entregou-lhe o papel, e o homem leu em silêncio.

Erguendo os olhos, ele deixou a mão cair para o lado e respondeu:

– Sinto muito, meu amigo, mas não posso ajudá-lo. De tempos em tempos, vou
para Trieste e volto, em viagens curtas para testar um novo motor a diesel. Eu
poderia tentar levá-lo como um convidado de confiança, mas infelizmente não
temos viagens programadas para um futuro próximo. Nenhuma.

Cveja ficou desanimado. Ele havia ficado esperançoso de encontrar uma brecha,
mas outra porta se fechara em seu rosto.

– Obrigado, Ivan, por sua boa vontade – disse ele, tentando esconder sua
decepção. – Desculpe tê-lo incomodado.

Eles apertaram as mãos, e Cveja se dirigiu diretamente à rodoviária, onde tomou


o ônibus seguinte para Zagreb.
capítulo 9

fuga noturna

Cveja chegou a Zagreb sentindo-se como um soldado ferido logo após um


combate na linha de frente. Desde sua primeira tentativa de escapar em Jesenice,
ele havia corrido de um lugar para outro durante quase dois meses, correndo
como um fugitivo ou um animal perseguido, quase nunca dormindo na mesma
cama duas vezes seguidas. O que havia comido? Onde dormira? Como vivera?
Onde havia tomado banho? Quem havia visto? Estava tudo embaçado agora.
Tudo que havia tentado falhara. Toda e qualquer esperança de sucesso havia se
esfacelado. A incerteza e o perigo o perseguiam como uma praga. A vida se
assemelhava a um trem descontrolado, sem que ele conseguisse acionar os
freios.

Voja havia viajado para Roma em meados de maio. Agora era o dia 5 de
setembro, e o ar fresco do outono já havia substituído o calor do verão. As
chances de sucesso não estavam mais perto agora do que quando ele havia
começado. Logo as árvores deixariam cair suas folhas, tornando a fuga através
da fronteira mais perigosa, sem a proteção de sua cobertura. Em menos de três
semanas, ou seja, em 24 de setembro, ele deveria se apresentar para o serviço
militar. Se não escapasse antes de entrar no exército, seria tarde demais para ir
para a América quando ficasse livre. Se a mãe de Mira não pudesse ajudá-lo
agora, ele não saberia o que fazer ou para onde ir.

– Lamento muito, Cveja. Você não pode ficar aqui – disse-lhe a mãe de Mira
quando ele chegou. Seu ânimo se desvaneceu e suas últimas reservas de
esperança se esgotaram. – A polícia já esteve aqui duas vezes desde que Mira
escapou. Eles ainda podem estar vigiando a casa. Deixe-me levá-lo à casa da
mãe de Željko.

Após o anoitecer, cansado e abatido, ele acompanhou a mulher à casa da mãe de


Željko.

– Você pode ficar em minha casa – disse ela. – Pode ser que minha irmã Mića
tenha uma boa conexão para você. O marido dela conhece um homem, que é
esloveno. Mas só teremos certeza amanhã.

No dia seguinte, Hans, o esloveno, apareceu, vindo de Hodos, na Eslovênia.

– Vou voltar na segunda-feira – disse ele a Cveja. – Eu não sou o guia, mas vou
apresentá-lo a ele, lá. Ele também se chama Hans, e é meu parente. Se tiver o
dinheiro, você pode vir comigo.

Essas palavras soaram em seus ouvidos como uma bênção maravilhosa, uma
promessa de libertação. As escuras nuvens do desespero pareceram se afastar,
permitindo que o sol brilhasse outra vez. Sim, ele tinha o dinheiro – o dinheiro
que pagaria a Bartoni. Cveja deu a Hans 2.000 dinares de entrada, com os
restantes 60.000 a serem pagos ao guia.

No sábado, 7 de setembro, enquanto Cveja permaneceu escondido na casa da


mulher, ela foi à igreja.

– Vi hoje o pastor Radoš Dedić, de Belgrado – contou ela ao regressar. – Ele


veio pregar e conversamos após o culto.

– E o que ele disse? – perguntou Cveja ansiosamente. – Ele soube alguma coisa
a meu respeito? Contou alguma coisa sobre minha família?

– Ele disse que sua irmã Nata assinou por você a correspondência registrada com
um aviso do serviço militar. A UDBA telefonou para a igreja e falou com ele.
Eles o consideram um desertor do exército agora. Disse também que eles
prometeram que se você se apresentar, eles perdoarão tudo. Disseram que cópias
de fotos suas foram distribuídas em todas as fronteiras. Ele me perguntou se eu
sabia alguma coisa a seu respeito.

– E a senhora lhe disse?


– Tive vontade, Cveja, mas não tinha certeza se deveria – respondeu ela. – Às
vezes, quanto menos a gente falar, melhor. De modo que resolvi não dizer nada.
Será que fiz a coisa certa?

Cveja garantiu-lhe que sim. Ela estava tentando protegê-lo.

Na segunda-feira cedo, Hans apareceu. No mesmo dia, ele, Cveja e Marko, um


jovem de Montenegro, foram de trem para a região nordeste da Eslovênia. Os
esforços anteriores de Cveja para escapar haviam se concentrado na parte
noroeste da Iugoslávia.

Era o dia 9 de setembro agora, o vigésimo oitavo aniversário dos gêmeos – o


primeiro que passavam separados. A sensação de vazio na boca do seu estômago
lhe dizia que estava faltando uma parte de si mesmo. Enquanto esperava para ser
escoltado através da fronteira, ele se perguntou o que seu irmão estaria fazendo
nesse momento em Roma. Como estaria sobrevivendo? O coração dele também
estaria doendo? Teria ele uma ideia do que Cveja estava passando? Será que eles
se veriam de novo? Enquanto o trem se movia velozmente para levá-lo ao seu
destino, uma latejante alegria começou a circular nas veias de Cveja, com a
expectativa de êxito. Ele já podia vislumbrar o rosto sorridente do irmão.

Quando os três homens chegaram a Murska Sobota, Hans chamou um táxi que
os levou ao restaurante onde eles deveriam se encontrar com sua conexão, o
outro Hans. Eram 11 horas da manhã, e os clientes para o almoço estavam
começando a chegar. Cveja não tinha ideia de a quem procurar, mas o homem os
conduziu a uma mesa para pedir o almoço.

Enquanto aguardavam o alimento, um homem alto e corpulento, de cabelos


loiros, aproximou-se. O primeiro Hans cutucou Cveja na costela e então acenou
com a cabeça para o homem em pé diante deles. Cveja se ergueu. Hans saudou e
abraçou Cveja e Marko como se fossem parentes. O primeiro Hans saiu, e os três
ficaram conversando durante o almoço. Alguém que olhasse para eles pensaria
que Cveja e Marko eram sobrinhos de Hans. Eles permaneceram ali até o
anoitecer. Então apanharam um táxi para a casa de Hans em Hodos.

A casa ficava atrás de um campo arado salpicado de montes de feno. Um


pequeno pomar se espalhava para trás, e a pouca claridade permitia ver apenas a
silhueta das árvores. Dentro da casa, os três homens sentaramse em volta da
mesa da cozinha conversando, enquanto a esposa de Hans preparava uma
refeição de queijo caseiro, carne seca, pão integral, ameixas e maçãs recém-
colhidas do pomar.

– Tenho um pequeno campo a cerca de onze quilômetros a oeste daqui. É


praticamente na fronteira com a Áustria – explicou Hans. – As autoridades me
permitem trabalhar lá durante o dia. – Seu lábio superior ergueu-se de um lado,
num sorriso matreiro. – Muitas vezes fui lá à noite para observar os guardas da
fronteira e os jipes patrulheiros.

Cveja e Marko ouviam com atenção, pois suas vidas dependiam desta conversa.

– Quando sairmos daqui, seguiremos pela estrada que vai para o noroeste, em
direção à fronteira com a Áustria. Vocês precisam ficar atentos e em silêncio.
Um jipe da fronteira faz a ronda da estrada ao acaso. – Ele fez uma pausa para
ter certeza de que eles haviam entendido, e então continuou. – Quando
chegarmos à “terra de ninguém”, perto da fronteira, os guardas poderão atirar
sem aviso prévio. Atravessaremos junto à tríplice fronteira da Iugoslávia,
Hungria e Áustria. – A aparência de seu rosto ficou enérgica. Ele se inclinou
para frente, empurrando para trás uma mecha de cabelos. – Os guardas sempre
fazem o patrulhamento em dois. Há uma trilha estreita, com pedregulhos, no
topo do aterro. A cada duas horas a guarda é trocada. Eles fazem um intervalo e
entram na karaula [posto de fronteira] para tomar uma bebida ou fumar e se
apresentar aos seus substitutos. Durante esse breve intervalo, a fronteira fica
desguarnecida. É nesse momento que avançaremos. Teremos dez minutos para
atravessar. Quando eu disser “agora!” corram o mais rápido que puderem e não
parem! Mordendo o lábio, ele se reclinou no encosto e cruzou os braços.

Enquanto conversavam, ele descreveu outros detalhes da fronteira e de sua rota,


dando-lhes instruções adicionais. Mais tarde, a conversa girou em torno do lugar
em que passariam a noite.

– Os agentes da UDBA estão em todas as partes – disse o homem. – Não posso


deixá-los dormir aqui em casa. – Ele levou os dois homens para fora. A noite
havia caído, e a lua brilhava em meio ao céu sem nuvens. – Mais tarde, hoje à
noite, irei ao campo para verificar o horário dos guardas mais uma vez. Quero ter
certeza de que não houve mudanças antes de partirmos.

Ele lhes mostrou um pequeno celeiro. – Um de vocês pode dormir aqui. Há


bastante feno ali. – Marko escolheu o celeiro. Hans levou Cveja a um enorme
monte de feno de formato cônico de mais ou menos três metros de altura. – Há
um esconderijo embaixo desse monte – disse ele. Daí se agachou para limpar um
pouco de feno solto na base, onde havia uma abertura. Então se levantou e fez
um gesto para Cveja entrar ali. – Não é ruim. Agora procure dormir um pouco.

Cveja olhou indecisamente para o homem, e então se curvou e engatinhou para


dentro do buraco sob a enorme pilha. Ele achou a cavidade bastante ampla, com
mais ou menos um metro de profundidade e forrada com palha. Quando entrou e
esticou as pernas, seus sapatos tocaram o fundo. Uma armação de madeira
dentro da pilha impedia que o feno caísse em cima dele.

Deitado ali e esticado como uma estátua, Cveja olhou para a escuridão.
Raspando algumas fibras de palha, ele as deixou cair entre os dedos. O cheiro
familiar de feno ali dentro transportou seus pensamentos para a infância e para
seu lar rural. Entretanto, apenas o aroma lhe era familiar. O feno, tal e qual a
palha daquela cama esquisita, era estranho para ele. Quão pequeno seu mundo se
tornara – um monte de feno, um buraco no chão, uma noite. O que é que ele
estava fazendo tão longe de casa, tão desesperado e solitário? Finalmente, seu
corpo cansado não resistiu ao esgotamento e adormeceu.

No dia seguinte, Cveja e Marko se reuniram na casa de Hans para ouvir seu
relato sobre a visita ao campo.

– O horário dos guardas não mudou – disse ele. – Exatamente às três horas da
madrugada, eles trocam o turno. Isso deixa um intervalo de dez minutos. – Cveja
e Marko passaram o restante do dia isolados na casa do homem. Embora
estivessem numa área rural, não quiseram se arriscar atraindo suspeitas.

Após o anoitecer, os três homens saíram.

– Iremos hoje à noite – disse Hans. – Vou acordá-los à meia-noite. Durmam bem.

Naquela noite, Cveja se deitou ansiosamente em sua toca, tenso de expectativa.


Já era o dia 11 de setembro. Tudo dependia dos eventos daquela noite. Ele
analisou as alternativas: na manhã seguinte, ele seria um homem livre na
Áustria, ou seria preso na fronteira, ou estaria morto. Mesmo agora, aquela toca
fria estava impregnada de uma umidade fétida que lembrava uma sepultura. Ele
estava dependendo da boa vontade e do discernimento de um estranho que tinha
sua vida nas mãos. Outros já o haviam desapontado antes. Se Deus não estivesse
com ele agora, estaria tudo perdido. As palavras de Tolstoi afloraram-lhe à
mente: “O homem só está livre quando se reconcilia com a morte.” Estava ele
preparado para morrer? Rapidamente decidiu que não, esperando que sua hora
ainda não houvesse chegado. Ouvindo os ruídos da noite e sua própria
respiração, ele acabou adormecendo.

Parecia que havia acabado de pegar no sono quando o ruído de passos rápidos
vindos em sua direção o acordou alarmado.

– Está na hora de ir! – disse suavemente uma voz do lado de fora. Cveja sentou-
se e se arrastou para fora do buraco, com lascas de palha grudadas em sua
jaqueta e calças. O coração bateu forte no peito, e seu corpo vibrou de emoção.

Marko também se pôs de pé, com os olhos cheios de medo. Ou será que foi o
reflexo de seu próprio medo que Cveja viu? A hora da verdade havia chegado.
Cveja estava ansioso, mas resignado. Aquela era sua última chance.

– Lembrem-se de minhas instruções – disse Hans. Ele tomou a dianteira, com


seu elevado vulto ligeiramente curvado. Quando ouvissem duas vezes o som
melodioso de um rouxinol, eles deveriam avançar. Era o sinal. Em fila indiana,
os três homens seguiram silenciosamente como fantasmas noite adentro,
caminhando cuidadosamente, sem fazer barulho. Eles marcharam através de
campinas onduladas, de bosques de árvores acolhedoras, de campos de cevada e
aveia. Caminharam ao longo da estrada e através dos campos. Em meio ao
lúgubre silêncio, eles se concentravam para discernir o menor indício de som.

Um motor subitamente roncou em meio ao nada. Estava se aproximando um


veículo. O guia puxou Cveja e Marko para trás de arbustos que cresciam ao lado
da estrada, e eles se jogaram ao chão. Estendidos sobre o solo, suas narinas se
encheram do odor bolorento da terra. O chiado do motor cresceu de intensidade
ao se aproximar um jipe. O ruído aumentou e então diminuiu e desapareceu.
Quando o guia se ergueu, os dois homens o seguiram, confiando em seus
instintos, e continuaram a jornada.

Depois de caminharem por mais de duas horas, Cveja calculou que haviam
andado quase dez quilômetros. O guia entrou num bosque de pinheiros, parou e
olhou para eles.

– Dentro de mais ou menos 30 minutos, chegaremos à “terra de ninguém”, a


parte mais perigosa da viagem – disse ele voltando-se para Cveja e dando um
passo em sua direção. – Como posso ter certeza de que você não é um espião?
Como posso saber que você não vai me entregar para os guardas da fronteira?

O branco de seus olhos e um dente de ouro em sua boca brilharam em meio à


escuridão, refletindo o luar que se infiltrava pelas nuvens.

– Posso lhe garantir desde já que você não vai conseguir. – Pondo as mãos
embaixo de sua jaqueta grande demais, ele puxou dois revólveres, um em cada
mão. – Este revólver é para você e para mim – ameaçou ele, encostando-o na
cintura de Cveja. – O outro é para os guardas. Por isso, nem você e muito menos
os guardas vão me levar vivo.

Cveja engoliu em seco, e seus pensamentos ficaram agitados. O que havia


acontecido com o homem cordial que os havia alimentado, acolhido e instruído?
Que palavras poderiam convencer aquele homem quanto à sua sinceridade? O
que poderia ele dizer que já não tivesse dito? Depois de tudo que havia
suportado, seria daquela maneira que sua vida terminaria? Teria Deus o
conduzido até ali somente para deixá-lo morrer no limiar da liberdade? Cveja
elevou uma rápida oração para o Céu e sentiu uma calma repentina e anormal.
Com tranquila resignação, ele falou:

– Senhor, tudo que lhe falei é verdade. Não sou comunista, e muito menos
espião. Sou um cristão. Deus é meu juiz. Se o senhor não acredita em mim, não
há nada mais que eu possa dizer. – Cveja encolheu os ombros e acrescentou: – O
senhor pode me matar agora mesmo.

Por um longo minuto aterrorizante, o homem encarou Cveja. Finalmente relaxou


e disse: – Acredito em você, sim. – Sua voz agora voltou ao normal novamente.
Ele colocou os revólveres de volta nos coldres embaixo da jaqueta. Cveja
respirou aliviado. Os batimentos em seu peito diminuíram, mas as pernas
ameaçaram ceder. Marko ficou pálido.

– Lamento ter que fazer isto – desculpou-se Hans –, mas nesse tipo de trabalho
não posso me descuidar. – Ele deu uns tapinhas nos lados de sua jaqueta. –
Durmo com estes revólveres, porque minha vida está sempre em perigo. Se os
policiais alguma vez vierem atrás de mim, vão se arrepender. Vocês podem me
pagar agora – disse ele, com um tom animado na voz. – Não recebi seu dinheiro
antes porque eu precisava ter certeza. Estamos quase na fronteira agora.

Cveja tirou 60.000 dinares que havia guardado para aquele fim e os entregou ao
homem. Marko fez a mesma coisa. Hans contou as notas e as apertou para dentro
de um bolso com zíper.

– OK, agora vamos voltar ao trabalho – disse ele de modo inexpressivo.

Ele apontou para uma área aberta, com grama alta do outro lado do bosque. –
Aquele campo é minado. Teremos que nos arrastar através dele por quase um
quilômetro. Irei à frente. Quando eu der sinal, sigam em fila indiana. Não se
desviem nem para a esquerda nem para a direita.

Marko e Cveja olharam um para o outro e concordaram estarrecidos.

Hans avançou, cortando uma faixa estreita através da grama ao abraçar o chão.
Ao ouvirem o canto do rouxinol duas vezes, Marko e Cveja seguiram conforme
as instruções, com os joelhos e cotovelos afundando na terra enquanto se
arrastavam. Aqui e ali eles paravam para descansar ou observar e ouvir.
Finalmente pararam a cerca de 50 metros de um aterro de mais ou menos cinco
metros de altura, nivelado no topo.

O guia apontou para o lugar sem dizer uma palavra. Então esta é a terra de
ninguém, pensou Cveja. Os três homens avançaram junto ao chão, com o corpo
esticado e de cabeça baixa. Folhas de grama úmida roçavam seus rostos. Eles
podiam ouvir a respiração curta uns dos outros enquanto procuravam ouvir
algum sinal dos guardas.

Logo ouviram o som distante de passos estalando na trilha de pedra no topo do


aterro. O ruído estava vindo de ambas as direções e gradualmente se tornou mais
alto. Dois guardas se encontraram na trilha quase diretamente em frente deles.

– Ždravo, druže [Saudações, companheiro]. – O som surdo do cumprimento


desceu até os homens escondidos abaixo. Os guardas conversaram um pouco, e
então seus passos estalaram novamente sobre as pedras e silenciaram.

Quando tudo estava quieto, o guia indicou com a cabeça uma luzinha na parte
elevada da trilha à direita. Uma pequena estrutura de madeira, uma karaula
[posto de fronteira] havia sido construída dentro do aterro. Era quase invisível no
escuro, exceto pela fraca luz que se filtrava por uma pequena janela redonda.

“A cada duas horas a guarda é trocada. Eles fazem um intervalo e entram na


karaula para tomar uma bebida ou fumar e se apresentar aos seus substitutos.
Durante esse breve intervalo a fronteira fica desguarnecida. É nesse momento
que avançaremos. Teremos dez minutos para atravessar. Quando eu disser
‘agora!’ corram o mais rápido que puderem e não parem!” Essas palavras do
guia ecoavam na mente de Cveja.

Espichados no chão, os três homens aguardavam, mal podendo respirar. Então


uma voz rouca sussurrou: ‘Agora!’ Como um raio, o guia se levantou, agarrou os
dois homens pelos braços, ergueu-os e disparou na direção do aterro. Cveja
correu logo atrás, apavorado e ofegante. Seria agora ou nunca. As solas
enrugadas de suas botas se agarraram ao chão ao ele começar a subir.

Quase chegando ao topo, ele de repente percebeu a ausência de som atrás dele –
ele não conseguia ouvir os passos ou a respiração pesada de Marko. Um ansioso
olhar por cima de seus ombros mostrou seu companheiro lutando na base da
rampa coberta de grama, com os sapatos de sola lisa patinando na grama. Ele
não havia feito nenhum progresso.

Cveja se arrastou para baixo de novo com a mente e o corpo trabalhando


febrilmente. A qualquer momento os guardas sairiam e as balas começariam a
voar. Agarrando Marko pelo braço e pela jaqueta, ele o puxou com força. Marko
tentava conseguir tração na ladeira, mas continuava a escorregar de volta.

Cveja foi para trás dele e o empurrou, com as botas afundando na terra. Marko
era mais alto e mais pesado, e Cveja reuniu todas as suas forças. Um torrão com
grama desmoronou embaixo de seus pés e Cveja escorregou para trás.
Desesperado, ele empurrou como um louco, desvairado de medo. Ele precisava
fazer com que aquele homem chegasse ao topo. De alguma forma, ele
conseguiu. Quando chegaram ao topo do aterro, ele o largou.

– Depressa, Marko! – sussurrou Cveja. E correu a toda velocidade.

– Eu... eu não consigo – gemeu Marko. Cveja olhou para trás de novo. Marko
estava curvado, com os joelhos um pouco dobrados e os pés se arrastando,
paralisado de medo. Outra vez, Cveja voltou, delirando de pavor.

– Vamos, Marko, ande! – insistiu ele. Cveja o agarrou por baixo do braço e lhe
deu um puxão para frente. Lá em cima do aterro, a trilha pedregosa lhes deu
tração. Mas o tempo estava se escoando rapidamente.

Subitamente eles ouviram um ronco à direita. Cveja se virou e viu dois fachos de
luz penetrando no céu noturno. O jipe patrulheiro estava subindo uma ladeira na
estrada e vindo exatamente na direção deles. Num segundo, a estrada ficaria
plana e os faróis os iluminariam. Aterrorizado, Cveja deu em Marko um último
empurrão violento que o arremessou sobre a borda do aterro. Cveja mergulhou
após ele.

Dando cambalhotas do outro lado, para dentro de uma valeta, Cveja ouviu
Marko indo de encontro a uma árvore após a outra. Então tudo ficou em silêncio.
Um segundo depois, o jipe passou roncando por eles.

Cveja se levantou e olhou em volta. No silêncio que se seguiu, ele receou que
seu companheiro estivesse ferido.

– Marko, você está vivo? – chamou ele suavemente.

– Acho que sim – veio a resposta incerta. Marko se ergueu limpando o ombro e o
lado.

Os dois homens estavam machucados e doloridos. Mas onde estava o guia?


Olhando em volta, eles viram sua silhueta alguns passos adiante e cambalearam
na direção dele.

– Uau! Esta foi por um triz – disse Hans. – Venham aqui. – Ele apontou para
algo que parecia uma pedra tumular branca. – Este é um marco de fronteira.
Num lado está escrito Jugoslavija; no outro, Österreich [Áustria]. Eles olharam
com assombro para as grandes letras gravadas e caminharam para o lado
austríaco.

– Vocês agora estão num país livre – disse o guia sorrindo. – Boa sorte, e que
Deus os abençoe.

Ele abraçou os dois homens e os beijou em ambas as faces. – Preciso voltar antes
do amanhecer. – Então correu de volta para o lugar de onde haviam vindo. Cveja
e Marko o fitaram até ele desaparecer.
capítulo 10

perigos na fronteira

Tome cuidado na fronteira. A patrulha da Iugoslávia pode atravessar a fronteira


com a Áustria e sequestrá-lo. E observe as concavidades. Você pode pensar que
está na Áustria, quando na verdade serpenteou de volta para a Iugoslávia.”

Essas palavras do guia martelavam na mente de Cveja agora, enquanto ele e


Marko discutiam sobre a direção exata a seguir. Ainda estava escuro, e a região
do lado austríaco era escarpada. Havia rochas e florestas em abundância, e
surgiam montanhas negras e desoladas.

– Precisamos ir nessa direção – disse Cveja, indicando o norte.

– Acho que não, Cveja. Precisamos ir para lá – contestou Marko, apontando para
o leste.

Cveja abanou a cabeça. – As três fronteiras convergem aqui. Se formos na


direção que você quer, acabaremos na Hungria.

– Não, Cveja, você está errado – insistiu Marko.

– Certo, certo. Iremos para lá. Mas eu lhe digo, Marko, você verá que estou
certo.

Os dois homens começaram a caminhar. Ainda não haviam andado muito


quando, em meio às trevas que antecedem o romper do dia, notaram algo.

– O que é aquilo? – exclamou Marko com os olhos meio fechados, tentando


entender aquele vulto. – Parece um tipo de armação... ou talvez uma cerca.

– É uma cerca – respondeu Cveja. Ao se aproximarem, eles viram mourões de


madeira e arames de aço esticados horizontalmente entre os mourões.

– Mas o que é aquele estranho objeto escuro pendurado nela? – perguntou Marko
olhando para a frente.

– Aquilo parece... sim, é mesmo! É um corpo, um corpo carbonizado! –


exclamou Cveja ofegante, recuando dali. – Isto é uma cerca eletrificada na
fronteira húngara! O pobre homem estava tentando escapar!

Horrorizados, os dois homens rapidamente voltaram na direção de onde haviam


vindo. Caminhando lado a lado em silêncio, aquela imagem os acompanhou
como lembrete dos perigos existentes na fronteira da qual haviam fugido.
Minutos depois, Cveja falou:

– Agora estamos indo no rumo certo. Confie em mim, Marko, e estaremos bem.
Meu senso de direção nunca falhou. – Em silêncio, ele orou: – Por favor, Senhor,
não permita que eu erre agora. Obrigado por nos proteger até aqui.

Caminhando penosamente através de moitas trançadas de pinheiros, seus pés


cansados afundaram na folhagem de agulhas de pinheiro, e suas narinas se
encheram do aroma refrescante. Cveja sentiu uma mudança no ar – uma
irresistível animação havia substituído sua apreensão e pavor. Um novo e
estranho sentimento de liberdade corria por suas veias.

Respirando profundamente, Cveja pensou que o ar frio da noite parecia mais


fresco e agradável daquele lado da fronteira. E que as pessoas que respiravam
aquele ar deviam sentir-se diferentes. Ele era uma dessas pessoas agora, e a
alegria que inundava seu ser varreu o cansaço e trouxe energia aos seus passos.
Todas as decepções e reveses dos últimos dois meses se desvaneceram no
sucesso de sua fuga. Ele havia finalmente vencido a fronteira.

Logo eles chegaram a uma estrada, e seguiram por ela no rumo oeste, tontos de
alegria. Sem tardar, a noite começou a desbotar e o sol dourado espiou no
horizonte. A região rural despertou para a vida. Galos cantaram saudando o novo
dia. Pássaros matinais irromperam em alegres melodias. Aqui e ali um cão latia.
Nas campinas, vacas mugiam com seus sininhos tilintando.

Uma luz se acendeu numa velha casa de fazenda ao eles passarem, e um leve
odor de fumaça de madeira queimada soprou na direção deles, vindo de uma
chaminé. Sem demora, os brilhantes raios de sol douraram os cumes das
montanhas e se espalharam pelos prados, como uma bênção celestial para os
cansados viajantes em seu primeiro dia de liberdade.

Eles ainda não haviam ido muito longe quando apareceu um veículo na lombada
da estrada à frente. O jipe da polícia, identificado pelas placas da Gendarmerie-
Polizei, parou no acostamento da estrada bem à frente deles. Dois policiais
ergueram as mãos e fizeram um gesto para os dois viajantes.

– Gruss Gott [Saudações no Senhor]! – disseram eles polidamente no gentil


dialeto alemão falado na Áustria. – Vocês são refugiados?

– Ja, wir sind [sim, somos] – respondeu Cveja em alemão.

– Há um ônibus que vai para Jennersdorf, para o campo de refugiados. Podemos


levá-los até lá para vocês não precisarem caminhar – prontificaram-se eles, ainda
falando em alemão.

– Para que lado fica Jennersdorf? – perguntou Cveja.

Eles apontaram para trás, na direção em que Cveja e Marko estavam


caminhando.

– Continuem andando nessa direção. Mas é bem longe.

– Danke [obrigado], vamos caminhar – disse-lhes Cveja.

Sem parar, os dois viajantes prosseguiram. Entrar num carro estranho tão perto
da fronteira, mesmo sendo um veículo da polícia num país livre, seria arriscado.
Eles haviam aprendido a desconfiar da polícia em seu próprio país e não tinham
certeza de que a polícia ali seria diferente.

Não muito tempo depois, um caminhão de fazenda se aproximou por trás deles,
ultrapassou-os e então parou. Desta vez, havia dois homens em roupas de
trabalho.
– Vocês precisam de uma carona? – perguntaram eles em alemão, virando-se
para eles.

“Se lhes oferecerem carona, não aceitem. Eles exigirão dinheiro. Se vocês não
tiverem, eles os entregarão aos guardas da fronteira em troca de recompensa.”
Essas advertências do guia martelaram na cabeça de Cveja.

– Nein, vielen dank [não, muito obrigado]! – respondeu Cveja. Pelo canto da
boca, ele cochichou a Marko: – Concorde com tudo que eu lhe disser. Repita: Ja,
dass stimmt doch [sim, é isso mesmo]. E assim, ao eles passarem o caminhão,
Cveja falou em alemão a Marko, o qual não entendeu uma palavra: Und wenn
des buben... [e quando as crianças...], começou Cveja, inventando uma história.

– Ja, dass stimmt doch – repetiu Marko logo que Cveja fez uma pausa. Ele falou
alto para que os homens no caminhão ouvissem.

– Kein Glück [não deu certo] – Cveja ouviu um dos homens atrás dele dizer.
Então o motor acelerou e os homens passaram por eles. Cveja olhou o caminhão
se movendo lentamente através da estrada.

– Funcionou! – exclamou Marko alegremente e sem pensar.

– Jawohl, mein Herr Marko [é claro, Sr. Marko]. Estamos caminhando para
trabalhar em nossos campos! – brincou Cveja.

– Ja, dass stimmt doch – zombou Marko. Eles agora podiam rir e o fizeram com
prazer. A temida fronteira que havia tragado tantas vidas fora enganada por sua
presa, desta vez.

A manhã já ia bem adiantada quando os dois peregrinos chegaram em


Jennersdorf, uma pequena cidade a mais ou menos 12 quilômetros da fronteira e
longe de qualquer cidade. Uma placa ao lado da rua principal dizia: “Fluchtlinge
Lager” e indicava a direção do campo de refugiados. Seguindo ao longo da
estrada margeada de árvores, eles chegaram a um recinto cercado por altos
muros de pedra. Um guarda estava em pé ao lado de um maciço portão de ferro
que cobria o vão de três metros de largura. Ele acenou com a cabeça para eles e
abriu uma parte do enorme portão. Ao entrarem no pátio pavimentado, eles
suspiraram maravilhados.

– Isto é um campo de refugiados? – perguntou Marko com incredulidade. À sua


esquerda, estava uma atrativa mansão amarelada de dois pisos ostentando um
telhado vermelho ondulado. Na parte de trás do pátio, um edifício de um andar
em forma de L se alongava da mansão e virava abruptamente, dividindo o lado
direito do pátio. Um corredor coberto, cheio de colunas sombreava a frente do
edifício, e havia várias portas separadas por espaços regulares ao longo de suas
paredes. No centro do pátio aberto, estavam dois homens conversando ao lado de
uma fonte de concreto esculpida e sem uso.

– Isto deve ter sido uma bela residência no passado, provavelmente pertencente a
um conde – exclamou Cveja ao observar os arredores de modo apreciativo.

Sorrindo com suas expressões de assombro, o guarda os conduziu a um


escritório no andar térreo da mansão. Exaustos, sujos e mortos de fome, eles
entraram ansiosamente. Uma placa sobre a escrivaninha dizia: “Herman Müller,
direktor [diretor].”

Detrás de sua escrivaninha, o Sr. Müller olhou-os de alto a baixo e então lhes
perguntou seus nomes, de modo habitual. Ele apanhou dois formulários e se
preparou para escrever. Os homens lhe disseram seus nomes completos.

– Vocês são sérvios, não são? – continuou ele, gravando suas respostas. Suponho
que sejam sérvios ortodoxos.

– Não, somos protestantes, adventistas do sétimo dia – respondeu Cveja. O


diretor olhou-os, parecendo um pouco surpreso.

– Vocês sabiam que há uma igreja sua em Salzburgo? Eu sei disso porque o
pastor lá tem ajudado uma porção de refugiados. Organizações diferentes dão
assistência a grupos diferentes. As instituições beneficentes católicas ajudam os
católicos, e o Concílio Mundial de Igrejas ajudam os demais.

– É bom saber disso – falou Cveja. – Obrigado.

– Vocês podem me dizer como escaparam? – perguntou o homem, voltando a


atenção para o formulário.

– Tivemos um guia – respondeu Cveja. – Ele nos levou através da fronteira da


Eslovênia. – Ao falar, ele se perguntou quanta informação deveria dar.

Como se estivesse lendo-lhe a mente, Müller observou:


– Tudo que vocês me disserem a partir de agora, nós verificaremos. – E gravou o
restante da informação que os dois homens lhe deram.

Quando terminou de escrever, ele olhou e disse:

– Logo que eu confirmar a exatidão destas informações, direi se vocês se


qualificam para receber asilo político. Não deve demorar mais de uma semana.
Se a resposta for positiva, vocês estarão livres para ir a qualquer lugar da
Áustria. Poderão inclusive ficar aqui temporariamente se os seus documentos
estiverem em ordem. Ele ficou em pé e continuou sua fala:

– Por outro lado, se nossas informações indicarem que vocês são refugiados
econômicos e não políticos, serão deportados.

Ele disse isso de maneira despreocupada e casual, como uma mensagem repetida
descuidadamente dia após dia. Mas, para os desesperados refugiados que
ouviram essas palavras, elas significavam a diferença entre a vida e a morte.

– Vou lhes mostrar onde poderão ficar até que seus casos sejam decididos.
Venham comigo.

Ele os conduziu para fora da porta e através do pátio para um quarto que
continha três camas. – A privada e o chuveiro ficam no corredor. O refeitório
fica no edifício principal. Se vocês se apressarem, ainda poderão almoçar. –
Olhando para as suas roupas sujas, ele propôs: – Se precisarem trocar de roupa,
voltem ao meu escritório. Ah, sim, nós fechamos os portões às onze da noite.
Isto é para a sua proteção.

– Como é que este cara poderá verificar esse tipo de informação? – perguntou
Marko a Cveja durante o almoço no refeitório quase vazio. A maioria dos
refugiados já havia almoçado.

– Talvez cheque algumas delas – replicou Cveja. – Mas eu acho que sua fonte
principal de verificação são os seus olhos. Ele está nos observando.

Após o almoço, os dois homens se banharam no chuveiro e se trocaram, vestindo


as roupas limpas e usadas que o diretor lhes deu. Encontrando uma tina grande
de alumínio perto de uma bomba d’água, numa mesa do lado de fora do quarto,
eles lavaram as roupas. Daí as penduraram para secar num varal estendido entre
dois carvalhos atrás do quarto. Naquela noite, ao se recolherem, eles pegaram no
sono antes que a cabeça deitasse no travesseiro. Era a primeira cama confortável
em que haviam dormido nos últimos dias.

Cedo na manhã seguinte, ruídos vindos do pátio acordaram Cveja. Ele se vestiu
em silêncio e foi para fora em meio à neblina da manhã. Perambulando pelo
pátio deserto, ele viu o guarda destrancar o enorme portão de ferro. Eram seis
horas da manhã e ainda estava escuro.

Ao voltar para o quarto, encontrou Marko em pé e vestido. Pouco depois, eles


fizeram fila no refeitório para o desjejum, junto com os outros refugiados, a
maioria jovens vindos de países comunistas como Hungria e Iugoslávia. Cveja
contou 50 pessoas no total. Um funcionário fez a chamada. Ao terminar,
anunciou:

– Se alguém quiser ganhar algum dinheiro, há trabalho para vocês na estação


ferroviária. Chegou um trem carregado de carvão. Há necessidade de
trabalhadores para descarregá-lo.

Cinco mãos se ergueram, inclusive a de Cveja. Com as suas necessidades


imediatas de abrigo e alimento tão generosamente fornecidas pelo governo
austríaco, seria fácil para os refugiados pensar que não precisavam fazer nada
por si mesmos. Mas Cveja não tinha intenção de permanecer por muito tempo no
campo de refugiados.

Na estação ferroviária, os que aceitaram o trabalho receberam uma pá e foram


encaminhados para um trem de carga. Cada homem foi designado para um
vagão. Na ausência de luvas, Cveja vestiu um par adicional de meias nas mãos, a
fim de protegê-las. Afinal de contas, ele não estava habituado ao trabalho físico
árduo. Tão logo ele encheu a caixa ao lado do vagão, alguém a tirou dali e trouxe
uma caixa vazia para que ele a enchesse. E assim foi o dia.

Cveja trabalhou dez horas por dia na quinta, sexta e segunda-feira. Uma
verdadeira maratona atestada pelas bolhas nas mãos. Na terça-feira, recebeu 500
xelins como pagamento, 100 para cada vagão que ele esvaziou. Para sua alegria,
o dinheiro excedeu os 230 xelins que ele precisava para a passagem de trem para
Salzburgo. Ele enviou 100 xelins e uma carta para Voja, na Itália, e ficou com o
restante.

O dia seguinte era quarta-feira, 18 de setembro, uma semana após Cveja ter
chegado ao campo. Ao ele caminhar através do pátio, naquela manhã, um
raramente animado Sr. Müller o chamou ao escritório.

– Parabéns! – exclamou ele. – Acho que você está esperando este documento. –
Sorrindo, ele entregou-lhe um envelope. Cveja leu a carta ali contida e sorriu.
Era o comunicado de asilo político.

– Muito obrigado, Sr. Müller. Agora que eu tenho isto, vou embora tão logo eu
lhe devolva estas roupas que o senhor me emprestou.

– Como quiser – respondeu o diretor. – Lembre-se de que ao sair do campo, não


poderemos ajudá-lo. Daí em diante você estará por sua conta.

Cveja se voltou para sair. Então o diretor acrescentou:

– Ah, sim, de passagem, foi bom saber que você descarregou carvão do trem.
Muitos refugiados acham que têm direito à ajuda do governo porque lutaram por
sua liberdade.

– Obrigado – disse Cveja novamente. E saiu.

De volta ao quarto, ele contou a Marko a novidade. Seu companheiro ainda não
recebera asilo e teria que esperar. Cveja vestiu suas próprias roupas recém-
lavadas, devolveu as roupas emprestadas ao escritório e se despediu de Marko e
do Sr. Müller. Então, caminhou até a estação ferroviária e embarcou no trem
seguinte para Salzburgo.

Quando o trem elétrico deslizou para fora da estação e adentrou em terreno mais
montanhoso, ele pensou nos problemas que poderiam aguardá-lo dali para frente.
O trem chegaria a Salzburgo à noite. O único lugar que ele pensava em ir era a
Igreja Adventista. Alguém no campo de refugiados lhe havia dado o endereço, e
ele apanhou no bolso o pedaço de papel onde o havia anotado. Tradicionalmente,
as igrejas mantinham cultos de oração às quartas-feiras à noite. Se chegasse lá a
tempo, ele poderia pedir ajuda a um dos membros. Se a igreja estivesse fechada,
ele não saberia aonde ir. Uma rápida olhada no relógio lhe mostrou que já estava
ficando tarde.
capítulo 11

o cantor desconhecido

Ao lado das altas portas de entrada, uma placa de bronze brilhava à luz do poste
da rua: Igreja Adventista do Sétimo Dia e Associação de Salzburgo. Cveja leu a
placa em pé, diante do atrativo edifício de cinco andares, na Rua Franz Josef. Ele
empurrou a porta, e ela se abriu. Ao entrar, Cveja soltou um suspiro de alívio.

Já eram nove horas da noite, e estava muito tarde para o culto de oração, mas ele
ouviu cânticos. Evidentemente ainda havia pessoas na igreja. Sua tensão
diminuiu. “Und ich, Johannes, sah die Heilige Stadt...” [E eu, João, vi a Santa
Cidade...] A alegre melodia de Bach subia como incenso do subsolo. Ele
descobriu uma escada e desceu seguindo o som até chegar a uma sala com a
porta entreaberta.

Entrando na ampla sala, ele viu um grupo de cantores na plataforma, ao fundo.


Um jovem delgado estava em pé diante deles, regendo o que parecia ser o coral
da igreja.

Embora ele tivesse entrado quietamente, todos os olhares se voltaram para


aquele estranho que aparecera de repente. O regente do coro parou e olhou por
cima do ombro. Cveja sorriu timidamente e ajeitou as calças. Limpou a garganta
e caminhou a passos largos na direção do regente.

– Conheço esta música – disse Cveja em alemão ao jovem. Então estendeu os


braços, encheu os pulmões e abriu a boca. Sua ressoante voz de tenor continuou
a melodia. O rosto do regente irradiou seu apreço.

– Por favor, participe do ensaio – convidou ele gentilmente, indicando a Cveja o


lugar dos tenores. Os homens na fileira detrás se afastaram para abrir espaço
para ele, e o coral continuou o ensaio.

Enquanto eles cantavam, um homem baixo e gordo vestido com terno e gravata
entrou na sala e ficou em pé ao lado da porta com as mãos atrás de si. Um
sorriso de satisfação se abriu em seu rosto redondo enquanto ele ouvia de olhos
fechados. Quando uma voz de tenor desconhecida se sobressaiu acima do coro,
seus olhos se arregalaram, e ele observou o estranho. No fim do ensaio, quando
os membros do coral o cercaram e deram as boas-vindas a Cveja, o homem se
aproximou.

– Meu nome é Hugo Schnötzinger. – Ele sorriu e estendeu a mão. – Sou o pastor
desta igreja.

– Svetozar Vitorović – Cveja deu seu nome completo. – Acabo de vir de


Jennersdorf.

– Ah, sim – disse o pastor acenando com a cabeça. Sua voz revelou um tom que
Cveja não pôde identificar de imediato. Os dois homens estavam conversando
quando Cveja subitamente notou que os membros do coral estavam saindo e
sentiu a urgência do momento. Estava ficando tarde, e ele não tinha um lugar
onde passar a noite.

– Preciso de um lugar para passar a noite, pastor Schnötzinger – disse ele. – O


senhor sabe onde posso achar um quarto?

O pastor fez uma pausa e então fez um gesto.

– Venha comigo.

Cveja o seguiu escada acima até o escritório no primeiro andar. Lá dentro, ele
indicou uma cadeira a Cveja, sentou-se atrás da escrivaninha de nogueira e
recostou-se na cadeira agarrando-lhe os braços com as mãos.

Nervoso demais para sentar-se, Cveja ficou andando para lá e para cá no


pequeno espaço, com os olhos voltados para o chão. Sem mesmo olhar para
cima, ele sentiu o olhar perscrutador do pastor. Ele subitamente percebeu que sua
aparência deveria ser semelhante à de qualquer outro refugiado que fugiu de casa
apenas com as roupas do corpo.

– Diga-me, jovem, como é que você veio parar aqui? – perguntou o pastor.

– Alguém em Jennersdorf me deu o endereço da igreja – disse ele ainda


caminhando. – Fugi da Iugoslávia e passei a última semana no campo de
refugiados. Hoje de manhã, recebi asilo político e apanhei o trem para cá.

Ele fez uma pausa e continuou:

– O campo era perto demais da fronteira, e fiquei com medo de permanecer lá.
Alguém poderia facilmente me entregar aos guardas da fronteira. – Ele parou e
olhou para o pastor. – Trabalhei durante três dias descarregando carvão para
ganhar algum dinheiro a fim de pagar a passagem de trem. O senhor pode ver as
bolhas. – Ele olhou para as mãos e abriu-as com as palmas para cima,
mostrando-as ao pastor.

– Hmmm, sim, gosto de homens que não têm medo de trabalho árduo! – disse
Schnötzinger. Ele sorriu e se inclinou para frente para olhar as mãos de Cveja.
Satisfeito, recostou-se de novo na cadeira. – Conte-me mais a seu respeito.

Cveja ajeitou as calças e voltou a caminhar. Ele se inquietou ao falar.

– Sou arquiteto. Deixei minha mãe e irmãs na Iugoslávia. Meu irmão gêmeo está
em Roma. Ele e eu éramos bastante ativos na igreja de Belgrado. Fui regente do
coral jovem, e ele dirigiu a orquestra de bandolins. Espero que ele possa vir para
cá depois.

O pastor apertou os olhos penetrantes e deixou escapar um suspiro audível.

– Tantos refugiados e tantas histórias maravilhosas. Todos eram grande coisa em


seu próprio país – disse ele com um gesto sarcástico. – Daí eles vêm para cá e eu
descubro que eles são pouca coisa.

Ele resmungou e fechou as mãos.

– Três semanas atrás, um homem me procurou dizendo que havia sido pastor na
Iugoslávia. Acreditei nele e lhe dei um quarto. – Ele ergueu as mãos e encolheu
os ombros. – Alguns dias depois, descobri que estavam faltando suprimentos do
depósito: uma serra elétrica e outros equipamentos caros. Fui imediatamente ao
correio. Felizmente, o pacote ainda não havia sido enviado. Ele o havia levado
naquela manhã para ser despachado para a Iugoslávia. Falei-lhes sobre minhas
suspeitas e eles me deixaram abrir o pacote. Dentro dele estava o equipamento
que havia desaparecido. Obviamente, tive que dizer ao homem que fosse
embora.

– Entendo, pastor Schnötzinger. Mas só posso responder por mim – disse


meigamente Cveja, começando a se sentir desconfortável.

– Assim sendo, como posso saber que você está me dizendo a verdade? Por que
devo confiar em você? – perguntou o pastor. A franqueza de suas palavras
chocou Cveja. Este homem tinha o poder de ajudá-lo ou mandá-lo embora, e
Cveja não tinha outro lugar para ir. Em Jennersdorf ele havia trocado os 20
dólares escondidos embaixo da palmilha de suas botas por 500 xelins. Junto com
seus ganhos por descarregar carvão, e depois de comprar a passagem de trem e
enviar a seu irmão 100 xelins, sobravam-lhe apenas 670 xelins.

– O senhor não teve aqui um homem chamado Laza Kramar, e sua esposa, Sida?
– perguntou Cveja. – Eles são bons amigos meus, da Iugoslávia.

– Você conhece Laza? – perguntou o pastor. Sua voz assumiu um tom animado.
– É gente boa, muito boa. – Após uma pausa, ele perguntou: – Por acaso você
conhece Anton Lorencin?

– Pastor Lorencin? Sim, conheço-o muito bem, na verdade. Ele é o presidente da


União Iugoslava.

O pastor Schnötzinger pareceu satisfeito. Mesmo assim, ele agitou o dedo e


disse:

– Deixe-me esclarecer-lhe uma coisa, irmão Vitorović. Eu jogo minhas cartas


abertamente. – Ele bateu as palmas das mãos sobre a escrivaninha com um
baque surdo e então apontou para Cveja – Você pode ser meu discípulo. Você
tem uma voz excelente e poderá ser de proveito para nossa igreja. – Ele se
ergueu e caminhou em volta da escrivaninha. – Está tarde agora. Sim, você pode
ficar aqui esta noite. Mas amanhã falaremos mais.

O pastor conduziu Cveja escadaria acima, para o terceiro andar. Enquanto


caminhavam ao longo do comprido corredor, ele ia indicando as diferentes
portas.

– Este é um dormitório para obreiros bíblicos de passagem por aqui. Duas


senhoras o estão ocupando agora – disse ele. – Há uma privada masculina e
outra feminina neste andar. O chuveiro é partilhado pelos residentes deste andar.
Este apartamento está alugado para um jovem pastor associado mais ou menos
da sua idade. Você provavelmente o conhecerá amanhã. Acho que gostará dele. –
Ele foi um pouco adiante e parou em frente de uma porta, colocou a chave e a
abriu. – Este apartamento está vago. A cama está limpa. Espero que durma bem.

Cveja apertou a mão do pastor e agradeceu-lhe.

– Moro no andar de cima com minha família – disse o pastor antes de sair. Eu o
verei amanhã de manhã.

Logo que o pastor fechou a porta, Cveja caiu na cama. Quando despertou na
manhã seguinte, a luz entrava no quarto através da janela e de uma porta
envidraçada que se abria para uma sacada. Por um breve momento, ele não se
lembrou de onde estava e se perguntou se havia sonhado com os eventos do dia
anterior e da semana passada.

Erguendo-se, ele investigou o novo ambiente. Além da cama de casal, o quarto


continha dois porta-bagagens, um armário, uma mesinha, duas cadeiras e um
gabinete de metal com pia, fogão e um espelho em cima. No setor norte do
edifício, uma despensa com piso de concreto conservava os alimentos frios. “Eu
poderia viver assim”, pensou ele consigo.

Ele aventurou-se a ir até a sacada para dar uma espiada na vista. Nuvens cobriam
as montanhas, mas de um ângulo ele podia ver a rua embaixo e a estação
ferroviária não longe dali.

Revigorado e ansioso, ele se lavou, vestiu-se e se preparou para começar a


procurar um trabalho. Como conhecia a língua alemã e o sistema métrico, ele
esperava não ter problema. Ao terminar de se vestir, ouviu uma batida na porta.

– O pastor Schnötzinger deseja vê-lo – disse uma voz feminina.

Quando Cveja abriu a porta, a jovem atraente explicou que ela era a secretária do
pastor. Ele a seguiu ao escritório pastoral, onde estava sentado um jovem de pele
corada e parcialmente calvo.
– Este aqui é seu conterrâneo, o pastor Adolf Kinder – disse o pastor
Schnötzinger. – É a pessoa de quem lhe falei ontem, e que tem um apartamento
no mesmo andar que o seu. Ele é alemão nascido na Iugoslávia – um
Volksdeutscher. Fala sérvio-croata como você.

Adolf estendeu a mão para Cveja e disse:

– Eu tinha 14 anos quando minha família e eu fugimos da Iugoslávia. Isso foi


antes que os comunistas viessem. Você precisa me contar mais a seu respeito.

Cveja sorriu ao apertar a mão do jovem pastor.

– Tenho certeza de que terei tempo para isso – respondeu ele.

O pastor Schnötzinger continuou:

– Na noite passada, mencionei algumas experiências negativas que tive porque


confiei nas pessoas. – Ele franziu os lábios e encolheu os ombros. – Agora
aprendi a pedir referências aos refugiados. – Seu sorriso desapareceu
gradualmente e ele olhou para Cveja de modo inquiridor. – Você disse que
conhece o pastor Lorencin. Está correto? Vou ligar para ele agora mesmo. – Ao
discar para a telefonista de longa distância, seus olhos não se afastaram do rosto
de Cveja.

– É pessoal, por favor.

Cveja sentiu que seu rosto ficou corado. Ele não havia confidenciado ao pastor
Lorencin seu plano de escapar. Não imaginava o que ele diria.

– Aqui é o pastor Lorencin. – Os ouvidos aguçados de Cveja ouviram a voz


familiar e modulada do outro lado. O pastor Schnötzinger o havia feito sentar
perto da escrivaninha, de modo que ele pudesse ouvir.

– Aqui é seu irmão austríaco, o pastor Schnötzinger – disse ele, falando em


alemão. – Está sentado aqui em meu escritório o irmão Vitorović. Ele diz que o
conhece. – Com os olhos fixos em Cveja, ele repetiu o que Cveja lhe havia dito.

Houve silêncio no outro lado por um momento.

– O senhor disse que o irmão Vitorović está aí? – Cveja ouviu a voz subir de
tom. – Qual deles?

– Svetozar.

– Svetozar. Graças a Deus! Pensávamos que ele estivesse morto. – Houve uma
pausa. – Sim, o que ele disse é verdade. Eu o conheço muito bem. Vojislav
também está aí?

– Não. Pelo que sei, ele está na Itália.

– Bem, irmão Schnötzinger, lamentamos perder estes dois jovens. Ao que


parece, nossa perda representa lucro seu. Tenho certeza de que o irmão dele
achará uma maneira de se unir a ele. O senhor vai gostar de ambos.

O rosto do pastor se abriu num largo sorriso ao colocar o fone no gancho. Dando
a volta à escrivaninha, deu um abraço apertado em Cveja e exclamou em voz
alta:

– Bem-vindo, irmão Vitorović! O pastor Lorencin só disse coisas boas a seu


respeito. Vou alugar-lhe um apartamento, mas isto terá de ser condicional, você
compreende – se não houver problemas. E se seu irmão vier para cá, ele pode
morar com você. – Dirigindo-se novamente para o telefone, ele exclamou: –
Sim, e farei ainda mais: vou ajudá-lo a achar trabalho.
capítulo 12

surpresas em salzburgo

Vinte minutos depois, Cveja e Adolf ainda estavam no escritório do pastor


quando Walter chegou. O pastor apresentou os dois homens:

– Este é o irmão Svetozar Vitorović. Gostaria que você o ajudasse a encontrar


trabalho.

– Vitorović? – exclamou Walter. Boquiaberto e com os olhos arregalados de


surpresa, ele se voltou para ver Cveja de frente. – Svetozar Vitorović?

Cveja assentiu com a cabeça.

– Das ist unglaublich [isto é incrível]! – ele disse quase gritando, incapaz de
conter-se. – Sua irmã Nata está hospedada em minha casa neste momento.

– A minha Nata? – interrogou Cveja ofegante, levando a mão ao peito como se


fosse acalmar o coração palpitante. Ele havia perdido totalmente o contato com
seu lar nos últimos dias e não podia acreditar em seus ouvidos.

– Sim, a sua Nata. Sua irmã! – riu Walter. – Nata e eu nos conhecemos desde que
fomos juntos para a Escola Missionária em Zagreb. Isto foi há quase 20 anos,
você sabe – continuou ele animadamente. – Eu também o conheço, Cveja. Pelo
menos é o que penso. Nata fala sobre seus irmãos o tempo todo. – Colocando a
mão sobre o ombro de Cveja, ele disse: – Claro que vou ajudá-lo a achar
trabalho. Mas primeiro preciso levá-lo para ver Nata.

Walter pegou Cveja pelo braço e o conduziu para fora até seu Volkswagen. No
caminho para a casa do homem, eles conversaram com vivacidade. Cveja
perguntou:

– Há quanto tempo Nata está aqui? Não posso acreditar.

– Já faz três semanas. Na próxima semana, seu visto como visitante expira. –
Walter fez uma pausa e seu rosto assumiu um aspecto solene. – Ela está
esperando ansiosamente que Mića escape, de modo que possam requerer
permissão para ir aos Estados Unidos. No caso dele, isto será fácil. Mas se ele
não conseguir atravessar a fronteira até a próxima semana, ela terá que voltar. –
Ele abanou a cabeça.

– Oh, não posso esperar para ver minha querida Nata – exclamou Cveja. – Ela
está bem?

– Ah, sim, mas muito preocupada. Havia rumores de que você teria morrido,
mas ela se recusou a acreditar. Estou ansioso para ver a expressão do rosto dela
ao ver você vivo! – Walter deu uma risada.

– A polícia secreta estava atrás de mim. Não pude escrever para casa – explicou
Cveja. – É uma história muito longa.

Walter olhou para ele.

– Não posso imaginar isso, ter que escapar e tudo mais – disse ele, de modo
complacente.

Eles foram com o carro por uma rua estreita e pararam em frente de uma casa
modesta.

– É aqui o meu palácio – disse Walter, abrindo a porta para sair.

Quando Cveja desceu do carro, a porta da frente se abriu. Nata estivera olhando
pela janela e viu quando o carro chegou. No instante em que viu Cveja, ela se
precipitou para fora da casa, chorando e rindo. Ela não pôde conter sua alegria.
Falava e ria enquanto lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
– Cveja, Cveja, meu irmão Cveja! Você está vivo! Eu sabia. Eu sabia que Deus o
protegeria! – Ela o envolveu num abraço ardente e o manteve assim por um bom
tempo. Walter ficou olhando com os olhos lacrimejando.

– Nata, como é que o governo a deixou sair? – perguntou Cveja depois que
ambos enxugaram as lágrimas e se voltaram para entrar na casa.

– Walter e Hilde me mandaram uma carta convidando-me para visitá-los: uma


espécie de declaração juramentada como eles a chamam. Solicitei um passaporte
e um visto de visitante e... não sei como... eles me deram! – Ela encolheu os
ombros dando risadinhas e então ficou séria. – Mića deveria escapar com Jovica
enquanto ainda estou aqui. Um amigo prometeu ajudá-lo. – Ela torceu as mãos
em aflição, com os olhos cheios de lágrimas novamente. – Vou ter que voltar na
próxima semana. Estou uma pilha de nervos, com saudade de Jovica, e
esperando que Mića escape. Que vou fazer, Cveja? – As lágrimas corriam
livremente, molhando-lhe as faces enquanto ela soluçava fortemente. – Cada vez
que vejo uma criança, penso em Jovica e fico abatida – fungou ela, enxugando
os olhos.

– Eu sei, Nata. Eu entendo – disse Cveja, pensando em seu irmão e sentindo um


vazio dentro de si. Ele pôs o braço no ombro da irmã para confortá-la e mudou
de assunto perguntando:

– E a mãe? Como está ela?

– Eu a deixei em Šabac com Vera. Ela e Duja cuidarão dela. Espere só até eles
saberem que você está aqui! – Seu rosto se iluminou. – Eles também estão
preocupados. – Ela olhou amoravelmente para o irmão. – Você está bem, e meu
coração está saciado. Deve ter sido terrível para você, Cveja. Faz tanto tempo
que você partiu.

Ele concordou.

– Eu não gostaria de passar por isso novamente. Mas o pior já passou, graças a
Deus.

Depois que Nata e Cveja puseram em dia as notícias da família, Walter voltou do
quarto carregando um jornal na mão. Ele havia deixado os dois a sós durante
vários minutos para que pudessem conversar em particular. Agora, a conversa
girou em torno da procura de Cveja por trabalho. Sentando ao lado de Cveja no
sofá, Walter folheou o jornal na seção de classificados e correu o dedo na coluna
de ofertas de vagas.

– Olhe aqui. – Seu dedo parou na metade da página. – Wagner Construction


Company. Eles estão procurando um gerente de construção para inspecionar
obras. – Levantando a cabeça, ele disse a Cveja: – Isto não requer que o
candidato seja arquiteto, mas você provavelmente poderia fazer este trabalho.
Wagner é uma grande empresa com excelente reputação.

Cveja estendeu o pescoço para ler o anúncio e coçou a cabeça.

– Talvez... é uma possibilidade. Há algum escritório de arquitetura na cidade?

– Alguns. Não sei muito a respeito deles. – Walter voltou ao jornal. – Bem, olhe
isto aqui. Exatamente o que você está procurando. – Ele indicou outro anúncio
mais abaixo na coluna. – Robert Schäffer está procurando um arquiteto
qualificado. – Ele olhou por cima do jornal, pensando alto: – Schäffer, Schäffer...
Já ouvi falar dele. É um bom arquiteto.

Ainda era cedo, de modo que Cveja telefonou para as empresas anunciantes e
marcou entrevistas em ambas – na Wagner Construction foi recebido mais tarde
naquele mesmo dia. Robert Schäffer o entrevistou na manhã seguinte.

– Sim, podemos lhe dar o emprego de gerente de construção, Herr Vitorović –


disse o gerente da Wagner após a entrevista que durou uma hora, naquela tarde.

Cveja hesitou. O salário e os benefícios oferecidos eram excelentes, mas ele


queria primeiro verificar o outro emprego. Ele preferia trabalhar como arquiteto.

O gerente aparentemente percebeu sua hesitação e disse:

– Pense sobre isto, se preferir, e me comunique sua decisão até amanhã ao meio-
dia.

Ao término da entrevista, Cveja e Walter voltaram para casa.

Logo que estacionaram em frente de casa, a porta se abriu. Nata estava em pé na


entrada, radiante com a presença do irmão.

– O que aconteceu? Você teve sorte? Conseguiu o emprego? – perguntou ela ao


entrarem na casa.

– Wagner me ofereceu o emprego – respondeu Cveja sorrindo –, mas eu prefiro


trabalhar num escritório de arquitetura. – Vou decidir depois que fizer a
entrevista com Schäffer amanhã.

Às dez horas da manhã, no dia seguinte, Walter e Cveja chegaram à casa de


Robert Schäffer, num atraente subúrbio de Salzburgo, chamado Elsbethen. A
casa de reboco cinzento do arquiteto ficava em frente do rio Salzach e ocupava
todo o beco sem saída. A casa tinha um telhado alto como as outras casas da
vizinhança, mas era bem maior.

O pequeno portão na cerca de ferro ressoou ao se fechar atrás deles, quando os


dois homens entraram no bem cuidado jardim. Passando por janelas com
venezianas e floreiras cheias de petúnias, eles chegaram a um escritório do lado
direito da casa. A tabuleta na porta dizia: “Robert Schäffer, arquiteto.”

Abrindo a porta, eles viram uma sala de espera e uma secretária atrás de uma
escrivaninha.

– O Sr. Schäffer está ao telefone. Ele os atenderá dentro de instantes – disse a


mulher gentilmente em alemão. Alguns minutos depois, a porta do escritório se
abriu e saiu um homem loiro, forte, com seus 40 anos, de óculos grossos sobre o
nariz.

– Entrem no meu escritório – disse ele fluentemente no idioma sérvio, fazendo


um gesto para que entrassem.

Cveja e Walter se entreolharam surpresos ao entrarem na sala antes do arquiteto.

– Eu os surpreendi? – disse Schäffer, rindo atrás deles. – Nasci na Iugoslávia,


mais precisamente em Novi Sad. Por favor, sentem-se – disse ele indicando-lhes
as cadeiras. – Eu sou um Schwabeh [alemão], um Volksdeutscher, como eles
costumavam dizer. Pouco antes de os comunistas tomarem o poder, saí do país.

Passando a falar alemão, o arquiteto inquiriu Cveja sobre sua educação e


experiência, bem como os tipos de projetos nos quais ele havia trabalhado.

– Sim, tenho interesse em contratá-lo – disse ele no fim da entrevista. – Suas


qualificações profissionais e educação parecem excelentes. Seu domínio do
alemão é bom, e eu o ajudarei nos termos técnicos para que você possa trabalhar
independentemente.

– Quando poderei começar? – perguntou Cveja. Ele se sentiu atraído por aquele
emprego, embora a outra companhia oferecesse salário e benefícios melhores.

– Na segunda-feira estará bem. A Sra. Schäffer trabalha comigo. Ela é


decoradora.

Cveja concordou, os homens apertaram-se as mãos, e Cveja e Walter saíram.

Ao voltarem para a casa de Walter, ambos se sentiram bem com a decisão. Logo
que entraram na casa, Cveja telefonou a Wagner para agradecer-lhe e declinar
sua oferta. Naquele fim de semana, Cveja passou muitas horas com Nata,
discutindo o futuro dela e compensando o tempo perdido. O simples fato de
estarem juntos os deixou felizes.

Na segunda-feira, Cveja levantou-se cedo. Apanhou o ônibus elétrico até o fim


da linha e então caminhou durante 15 minutos até a casa de Schäffer, lá
chegando às 7h45.

– Entre, entre – disse o Sr. Schäffer, contente por ver que Cveja chegara cedo. –
Vejo que você é madrugador. Vou mostrar-lhe os arredores. Como pode ver, meu
escritório e a recepção ficam aqui no andar térreo. Moro com minha família no
andar de cima. – Então ele levou Cveja para a parte detrás da casa. – Aqui atrás
fica a garagem e um apartamento para meus parentes. E a casa de verão ali no
meio do jardim – explicou ele, indicando o lado direito da propriedade – contém
duas salas de desenho. Você vai trabalhar na primeira sala, e Herman, que é
desenhista, trabalha na outra. – Ele olhou o relógio. – Herman ainda não chegou,
por isso vou apresentá-lo depois. – Schäffer deu a Cveja uma régua com escala
de 1:50 (2 centímetros = 1 metro) e mostrou-lhe a mesa de desenho que ele
usaria.

No horário do almoço, Cveja se retirou para uma mesa de piquenique sob um


dos carvalhos que se debruçavam na direção do rio Salzach. Por causa da chuva
e das águas que desceram das montanhas, o rio estava cheio e emitia um som
especial. Apesar de ser um mero fio d’água em comparação, ainda assim ele o
fazia recordar dos rios Sava e Danúbio, embora o Salzach tivesse um som
diferente e um cheiro desconhecido. Mesmo assim, ele absorveu aquele aroma e
a serenidade que o cercava, tão relaxante e longe de sua recente e desesperada
condição e do terror de sua provação. Deus o havia verdadeiramente preservado
e conduzido, e seu coração estava cheio de gratidão. Se tão somente Voja
estivesse ali, ele não pediria nada mais. No entanto, a realidade da separação
deixara um sentimento de vazio dentro dele. Apesar daquela beleza e das
abundantes bênçãos de Deus, ele se sentia terrivelmente sozinho.

A primeira semana voou. Na sexta-feira, o Sr. Schäffer o chamou ao seu


escritório para fazer uma avaliação da semana. – Examinei seus desenhos. Eles
são exatos e estou muito satisfeito com seu trabalho – disse o arquiteto. É
desnecessário dizer que Cveja foi para casa feliz.

A cada dia que passava, o ar ia ficando mais frio. As folhas das bétulas
começavam a amarelar, e as flores murchavam e logo desapareciam. Cveja
gostava do trabalho, mas a angústia da solidão e a dor no coração se
aprofundavam cada vez mais enquanto os dias corriam.

Um dia, enquanto Cveja trabalhava em sua prancha de desenho na casa de verão,


o Sr. Schäffer entrou para conversar. Do lado de fora da janela, uma garotinha de
mais ou menos oito anos de idade estava brincando sozinha. Cveja não a havia
notado antes. O Sr. Schäffer abriu a janela e chamou a menina:

– Susan, por que você não está brincando com seu irmão gêmeo?

Ao ouvir a palavra “gêmeo”, os ouvidos de Cveja se aguçaram.

– Papai, Robert me bate – respondeu a menina fazendo beiço.

– Tente de novo, e eu vou ficar de olho em vocês – disse o Sr. Schäffer. Ele
fechou a janela e a viu caminhar em direção a um menino que estava jogando
folhas secas para o ar no canto oposto da propriedade.

– Herman me disse que o senhor tem quatro filhos, mas eu não sabia que dois
deles são gêmeos – disse Cveja com um amplo sorriso no rosto. – Que
coincidência! Eu também tenho um irmão gêmeo. Somos idênticos.

Schäffer voltou-se da janela com um olhar surpreso.

– Unglaublich! E onde está seu irmão?

– Em Roma. Ele está aguardando asilo político. Logo que o receber, ele pretende
me visitar.

– Posso perguntar qual é a profissão dele?

– A mesma que a minha: arquiteto.

– Também é arquiteto! Que interessante! – exclamou Schäffer sorrindo. – Ele


por acaso tem alguma especialidade? – Schäffer parecia estar genuinamente
interessado.

– Sim, na verdade ele foi o melhor de nossa geração na área de urbanismo. Ele
faz planejamento urbano. – A voz de Cveja se tornou anelante. – O senhor acha
que também poderia empregá-lo?

Schäffer ergueu as sobrancelhas e arregalou os olhos.

– Sim, é claro que tenho trabalho para seu irmão gêmeo! – Havia entusiasmo em
sua voz e uma aparência quase agitada no rosto, pela qual Cveja se sentia grato,
mas que não conseguia entender.

– Quando ele vier visitá-lo, sem dúvida ele receberá um visto de curta
permanência, talvez de um mês. Isto não é muito tempo – Schäffer pensou em
voz alta. – Se alguma coisa puder ser feita, terei que começar a mexer os
pauzinhos antes de tudo. Felizmente o chefe da polícia é um bom amigo meu.
Também tenho ligações em Viena. – Seu rosto relaxou e ele sorriu. – Sabe,
Cveja, estou muito contente por descobrir isto.

Enquanto Cveja caminhava para o ponto do ônibus elétrico, de volta para casa,
seus pensamentos voavam alto. Embora o ar do outono já começasse a esfriar,
ele se sentiu aquecido por dentro como se estivesse na primavera. Agora estava
se tornando claro por que ele havia se sentido atraído por aquele emprego.
Encontrar um arquiteto que tinha filhos gêmeos, que possuía importantes
ligações com o governo e que estava disposto a ajudar seu irmão e lhe dar
emprego era uma oportunidade incrível. Ele tinha certeza de que Deus estava
preparando o caminho para Voja. Seu coração se encheu de alegria que se
irradiou no rosto.

Na semana seguinte, chegou uma carta de Voja, que dizia: “Prezado Cveja. Fiz
um exame médico rotineiro e espero uma decisão em breve. Na quarta-feira, 16
de outubro, irei novamente à Questura di Roma. Se a Itália me conceder asilo
político desta vez, irei diretamente à Embaixada da Áustria para solicitar um
visto de turista. Se o obtiver, apanharei o trem noturno para Salzburgo. Se a
Itália me rejeitar, não sei o que farei.

Cveja começou a orar intensamente. Nesse ínterim, o Sr. Schäffer não perdeu
tempo.

– Estive em contato com o chefe de polícia, bem como com meus contatos no
Ministério do Trabalho e da Imigração em Viena – disse ele a Cveja alguns dias
depois. Ele limpou a garganta e franziu o rosto. – Receio que haja um problema,
no entanto. Meus amigos me disseram que uma vez que a pessoa receba asilo
político de um país, não há como outro país lhe conceder asilo também.

Cveja ficou desanimado. Ele teve a sensação de estar de volta à fronteira


novamente, sem esperança.

– O que meus amigos sugerem é que eu tente manter seu irmão aqui como um
especialista altamente qualificado – continuou Schäffer. – Para poder fazer isto,
preciso provar que não há ninguém no mercado de trabalho local que se qualifica
para este cargo. A partir de segunda-feira, publicarei um anúncio no jornal
durante duas semanas. Se ninguém procurar o emprego, isto significa que o seu
irmão não vai tirar o trabalho de um cidadão austríaco. Então poderei apresentar
os documentos para me responsabilizar por seu irmão.

Cveja recobrou ânimo, e ele contou os dias que faltavam para 16 de outubro. A
perspectiva de ver seu irmão novamente inundou-o de alegria. Mas ele não
ousou esperar demasiado. Se Voja não recebesse asilo político da Itália, ele não
estaria no trem noturno. Ele reuniu forças contra esse possível desapontamento e
acertou com Adolf para levá-lo à estação ferroviária.

No dia 16 de outubro, Cveja chegou cedo ao escritório.

– Hoje é o grande dia! – disse o Sr. Schäffer vindo à casa de verão para
cumprimentá-lo. – Se seu irmão vier hoje à noite, traga-o ao escritório amanhã
com todos os documentos dele. Quero conhecê-lo. Ninguém respondeu aos meus
anúncios até agora. As duas semanas se completarão na sexta-feira.

Durante todo o dia, cada nervo de Cveja latejou de expectativa, e seus olhos se
mantiveram fixos no relógio. Ele tentava se concentrar em seu desenho, mas via
apenas o rosto do irmão e seu sorriso.
Mais tarde, naquela noite, após o jantar, Adolf apareceu com um automóvel
Simca emprestado para levar Cveja à estação de trem. No caminho para lá,
apenas um pensamento ocupava a mente de Cveja: será que seu irmão estaria
realmente no trem?
capítulo 13

enfim, juntos novamente

O trem de Roma deveria chegar às 22h30. Cveja e Adolf chegaram à estação


uma hora antes e esperaram. Nervoso e agitado, Cveja andava para lá e para cá
ao longo da plataforma, torcendo os dedos e olhando para o relógio a todo
instante. Adolf esperava calmamente com ele, com as mãos nos bolsos.

Finalmente, eles ouviram um ruído baixo ao longe. Cveja conferiu o relógio


novamente e sorriu para Adolf. Estava na hora. Um apito agudo e penetrante
cortou o ar da noite. O rosto de Cveja se iluminou e seus olhos brilharam. Era o
mais doce som que havia ouvido por muito tempo. A expectativa fez com que
suas mãos transpirassem e o coração batesse forte. “Acalme-se. Relaxe. Não dê
isso como certo”, ele disse a si mesmo. “Voja talvez não esteja neste trem.” Ele
respirou profundamente e expeliu o ar lentamente, tentando diminuir o ritmo da
respiração e dos batimentos cardíacos. Logo a locomotiva apareceu e o trem
italiano se moveu para dentro da estação até parar ruidosamente. Cveja
examinou o mar de rostos enquanto os passageiros desembarcavam. Alguns
passageiros foram embora rapidamente e sozinhos. Outros se apressaram para
abraçar os amigos que os esperavam e irromperam em alegre conversação.
Louco para encontrar o irmão, Cveja se precipitou ao longo da plataforma, de
um vagão para outro. Adolf o seguiu, procurando alguém igual a Cveja.

– Lá está ele! – gritou de repente Cveja, lançando um olhar para Adolf, atrás
dele. Voja estava descendo os degraus de um vagão lá adiante, carregando uma
mala numa das mãos e uma capa de chuva no braço.
– Cveja! – gritou Voja quando viu o irmão. Seu rosto brilhou ao abanar a mão.
Eles correram um na direção do outro, e se abraçaram e choraram com alegria
inexprimível. Adolf olhava, com lágrimas nos olhos.

De volta ao apartamento, esquecendo-se do mundo lá fora, os dois irmãos


conversaram, riram e choraram. Lágrimas foram derramadas em virtude das
aflições que cada um deles havia suportado. Também foram vertidas lágrimas de
alegria porque estavam novamente juntos.

– Foram cinco meses, uma semana e três dias – disse Cveja. – Espero que jamais
nos separemos assim novamente.

– Que Deus nos ajude! – exclamou Voja. – Durante todo o tempo em que estive
em Roma, vivi confuso. Agora me sinto vivo de novo.

Com tantas coisas a serem ditas, os gêmeos ficaram acordados e falaram até não
poder mais.

Na manhã seguinte, Cveja chegou ao escritório atrasado pela primeira vez, e


Voja estava com ele.

– Uau, vocês são realmente idênticos! – exclamou o Sr. Schäffer, com uma
expressão de perplexidade no rosto. Ele colocou os óculos e examinou o rosto
deles, olhando para um gêmeo e para o outro repetidas vezes. – Aha! Descobri
uma diferença – disse ele de repente. – Cveja é um pouco mais magro, e isto se
pode ver em seu rosto. Se não fosse isso, eu não saberia dizer quem de vocês é
quem! – ele riu. Desde que escapara, Cveja havia recuperado alguns quilos, mas
ainda estava abaixo de seu peso.

– Muito bem, agora vamos ao que interessa. Queiram me acompanhar até meu
escritório – disse Schäffer fazendo um gesto para que eles o seguissem.
Fechando a porta atrás deles, ele indicou-lhes duas cadeiras. – Por favor, sentem-
se. Voja, você trouxe seus documentos?

– Com certeza, Sr. Arquiteto. Aqui estão eles. – Voja entregou-lhe o passaporte e
o documento de asilo. Schäffer franziu a testa e examinou os documentos.

– Visto de um mês, como eu imaginava. – Erguendo os olhos, acenou com a


cabeça. – Se você me permitir, levarei estes documentos ao chefe de polícia.
Precisamos agir rapidamente. – Dirigindo-se a Cveja, disse: – Por que você não
tira o dia de hoje para ficar com seu irmão? Mas primeiro deixem-me mostrar-
lhes o trabalho que você e seu irmão podem fazer amanhã e segunda-feira, em
caso de eu não estar aqui. Pode ser que eu tenha que ir a Viena para resolver este
assunto.

Schäffer colocou os documentos de Voja em sua pasta e então os acompanhou à


casa de verão para discutir o projeto. Mostrou a Voja a nova prancha de desenho
que havia comprado para ele e lhes desejou um bom fim de semana. Daí saiu do
escritório. Os gêmeos passaram alguns minutos com Herman, o desenhista, antes
de saírem. Cveja mostrou a Voja o jardim e os arredores do rio Salzach antes de
voltarem ao apartamento.

Durante todo o dia, os irmãos conversaram, partilhando mais das suas


experiências enquanto estiveram separados. Cveja mostrou a Voja o prédio da
igreja e a vizinhança. Também lhe falou da visita de Nata. Mića não havia
conseguido escapar, e ela havia retornado chorosamente à Iugoslávia.

– Nata estava muito animada para ir aos Estados Unidos – disse ele. – Ela duvida
que as autoridades lhe concedam um passaporte novamente. Foi muito triste. Ela
estava muito desgostosa ao partir. Você deixou de vê-la por duas semanas
apenas.

À noite, Adolf apareceu e disse:

– O pastor Schnötzinger voltou de sua viagem de trabalho e está em seu


escritório agora. – Então os três homens desceram para que o pastor pudesse
conhecer o recém-chegado.

– Duplicatas, isto é o que vocês são – observou o pastor rindo, quando Cveja
apresentou seu irmão.

– Eu sou o original. Ele é a cópia carbono – brincou Voja.

– O seu irmão também é piadista! – riu o pastor. – Um gêmeo é cantor, o outro


piadista.

O grupo conversou um pouco e então se retirou para os seus apartamentos


separados.

Na manhã seguinte, Cveja saiu para trabalhar. Voja ficou em casa. Como era
sexta-feira, Voja começou a preparar o almoço de sábado. Eles haviam comprado
algumas maçãs, laranjas, batatas e couve no dia anterior, na feira semanal dos
agricultores ali perto. Um pão e algumas sobras da despensa completaram a
refeição.

– Espere até ver nosso coral de refugiados – disse Cveja ao irmão, enquanto se
vestia para ir à igreja na manhã seguinte. – Temos um bom grupo, e está
crescendo. Todos eles vivem no campo de refugiados aqui em Salzburgo.

– Mas a igreja não tinha um coral antes de você chegar? – perguntou Voja.

– Sim, ainda tem, e dos bons. Mas eles deixaram os refugiados participarem do
culto de adoração, embora cantemos em sérvio-croata. Eles nos têm apoiado
maravilhosamente. Os dois corais cantam em ocasiões diferentes quase todas as
semanas.

– Interessante – disse Voja parando para pensar. – Isso não é irônico? Os


austríacos e alemães foram nossos mais implacáveis inimigos nas duas guerras
mundiais. Agora estamos aqui, no país deles, desfrutando sua hospitalidade e
boa vontade.

– São os governos que fazem as guerras, não o povo. Eles têm realmente nos
dado as boas-vindas de braços abertos – respondeu Cveja. – Bons e maus
existem dos dois lados de cada fronteira.

Na segunda-feira, Voja e Cveja saíram juntos para trabalhar. Era um dia de


comemoração. A Sra. Schäffer foi à casa de verão para dizer-lhes que seu marido
havia realmente viajado para Viena e não estaria ali.

Dois dias depois, quando Schäffer voltou, ele chamou os gêmeos ao seu
escritório para fazer um relato da viagem.

– Tudo saiu bem – disse ele sorrindo. – Apresentei minha solicitação ao


Ministério do Trabalho e da Imigração. Disse-lhes que ninguém havia
respondido ao meu anúncio. Por isso, preciso de Voja para permanecer aqui
como um especialista altamente qualificado. – Ele tamborilou os dedos na
escrivaninha e ergueu as sobrancelhas. – Espero receber uma resposta positiva
logo. Pedi-lhes que deem prioridade máxima a esse assunto porque nosso tempo
é curto.
No dia seguinte, antes de encerrar o expediente, Schäffer chamou os gêmeos ao
escritório novamente e lhes disse sorrindo:

– Tenho pensado a respeito de vocês dois. As coincidências nesses últimos


eventos são assombrosas, vocês não acham? – Ele ergueu a cabeça para um lado.
– Você se lembra, Cveja, quando me falou pela primeira vez que tinha um irmão
em Roma?

– É claro, foi na quarta-feira, dois de outubro, o dia em que descobri que o


senhor tem filhos gêmeos – respondeu Cveja rapidamente.

– Sim, mas o que você não sabia é que dois dias antes eu recebi uma informação
antecipada de amigos em Viena, que a cidade de Amstetten pretende fazer uma
ampliação. São necessários projetos para a planta de uma nova comunidade que
acomodará dez mil habitantes. Foi por isso que perguntei se o seu irmão teria
alguma especialidade.

Com a curiosidade despertada, Cveja e Voja ouviram atentamente.

– Quando você disse que o seu irmão se especializou em planejamento urbano,


não quis acreditar. Ele era justamente o que eu precisava para este projeto! –
Schäffer ajeitou os óculos e molhou os lábios. – É estranho, vocês não acham? –
ele se inclinou para a frente, esperando a resposta.

Voja e Cveja trocaram olhares.

– Com certeza – disse Cveja, baixando a voz. Ele pensou novamente no outro
emprego que poderia ter aceitado e agradeceu a Deus por tê-lo impressionado a
optar por aquele.

– Sim, sem dúvida! – replicou Schäffer. – Eu ainda não tenho informações


precisas, mas entendo que haverá uma competição aberta para o projeto. Se e
quando a informação chegar, estarei preparado. – Ele sorriu alegremente e se
levantou. – Achei que vocês, rapazes, estariam interessados nesta informação.

À noitinha, no ônibus elétrico, durante todo o trajeto para casa, os irmãos se


admiraram com aquelas assim chamadas coincidências.

– O outro emprego oferecia mais benefícios, mas não me parecia ser o trabalho
certo – disse Cveja a Voja. – Algo me dizia que eu deveria aceitar este trabalho
em vez do outro. Agora eu sei a razão – ele riu. – A maneira como Deus opera é
impressionante. Tudo que precisamos agora é uma resposta positiva das
autoridades austríacas antes que seu visto expire. Temos prazo até 15 de
novembro.

O dia 14 de novembro amanheceu frio e cinzento. Ameaçava nevar. Mas os


gêmeos sentiam que o inverno já havia chegado, pois não haviam recebido
resposta de Viena. O visto de Voja expiraria no dia seguinte, e ele teria que ir
embora. Com essa nuvem agourenta de uma nova separação pairando sobre suas
cabeças, os gêmeos saíram para trabalhar como de costume. Eles não tinham
dúvida de que aquele seria o último dia juntos.

O Sr. Schäffer parecia estar de mau humor quando eles chegaram, às 8 horas da
manhã.

– Nenhuma resposta até agora. Lamento muito – disse ele. – Mas ainda temos o
dia de hoje. Não desistam ainda.

Duas horas mais tarde, ele saiu dançando para a casa de verão, com um largo
sorriso no rosto. – Gott Sei Dank [Graças a Deus]! – exclamou ele. – Acabei de
receber um telefonema de Viena. Meu pedido foi aceito. – Ele estendeu a mão a
Voja. – Parabéns, Voja, e seja bem-vindo! Agora você poderá ficar na Áustria até
imigrar para os Estados Unidos.

Levou algum tempo para que a notícia fosse assimilada. Por um momento, os
gêmeos ficaram sentados imóveis. Então, explodindo de alegria, eles saltaram
para envolver seu benfeitor num abraço apertado. Deus Se assentou firmemente
em Seu trono e tudo deu certo no mundo. “Mas por que suas respostas muitas
vezes só vêm no último minuto?”, perguntou-se Voja.

Os documentos de Voja chegaram pelo correio na semana seguinte. Cveja


imediatamente levou seu irmão ao escritório de refugiados do Concílio Mundial
de Igrejas para se registrar. Cveja havia se registrado dois meses antes, em 19 de
setembro, um dia depois de chegar a Salzburgo. Naquela ocasião, ele conheceu o
diretor, um sérvio chamado Boba Zdravković.

– Bem, bem, bem, este deve ser seu irmão – disse Boba ao perceber Cveja
entrando com um homem idêntico a ele. O diretor parou para cumprimentá-los, e
Cveja apresentou um ao outro.
– Posso registrá-los para ir aos Estados Unidos – disse Boba a Voja. –
Felizmente, graças ao presidente Eisenhower, a quota continua aberta. Como
vocês dois são arquitetos, uma profissão muito procurada, vocês podem ficar na
quota preferencial. Muitos refugiados não são qualificados e precisam esperar.
Os Estados Unidos são muito seletivos, como vocês sabem. Muitos refugiados
vão para o Canadá, Austrália e Nova Zelândia porque não querem esperar. Esses
países estão procurando novos colonizadores.

– Obrigado, mas nós vamos esperar. Queremos ir para os Estados Unidos –


respondeu Voja. Cveja assentiu com a cabeça.

Enquanto os gêmeos esperavam, um dos projetos que Schäffer lhes designou foi
a renovação do Altersheim, um lar para os idosos localizado próximo ao prédio
do Concílio Mundial de Igrejas. Construído 40 anos antes, o edifício precisava
de melhorias para providenciar aquecimento e ventilação mais adequados.

Um dia, enquanto os gêmeos estavam tirando as medidas para os novos dutos e o


forro a serem instalados, houve uma confusão entre os residentes idosos. Pouco
depois, um senhor alto e distinto os abordou:

– Meu nome é Milivoj Kovačević – disse ele em sérvio. – Fui general no


Exército Real Iugoslavo. Ouvi vocês falando em minha língua materna. O que
estão fazendo?

Gastando alguns minutos para explicar o projeto, Cveja perguntou:

– Que tumulto foi esse? Alguns residentes pareciam muito agitados.

– Eles ficaram aterrorizados – respondeu o general. – Alguém começou um


boato de que vocês estavam instalando uma câmara de gás para asfixiá-los.

Assombrados e horrorizados com essa ideia, os gêmeos emudeceram.

– Mas já acabou – garantiu-lhes o general. – A administração desmentiu o boato


e acalmou os residentes. Vocês precisam entender que a Segunda Guerra
Mundial ainda está muito vívida na mente de algumas pessoas. – Depois disso, o
projeto prosseguiu e foi completado sem incidentes.

Enquanto trabalhavam nesse projeto, os gêmeos frequentemente iam até o


escritório de refugiados para ver Boba. Assim surgiu uma amizade entre eles.
Quando os gêmeos lhe perguntaram sobre o general Kovačević, ele contou que
Tito enviou várias vezes uma delegação pessoal para persuadi-lo a voltar para a
Iugoslávia. Tito prometeu ao general que ele ocuparia a mesma graduação e
cargo que antes, mas desta vez no exército comunista.

– É claro que ele recusou – disse Boba. – Como poderia ele trabalhar para aquele
regime se acredita em liberdade?

Um dia, Boba apresentou os gêmeos a dois de seus assistentes, Ratko Rančić e


Duško Pavičević, sérvios altos, de cabelos pretos, que haviam servido no
Exército Real Iugoslavo com o general.

– Então, por que vocês não voltaram? – perguntou Voja enquanto comiam
juntos.

– Juramos lealdade ao rei e a nosso país. Não podemos anular isto – disse Ratko.
Boba e Duško concordaram. – Quando a Alemanha invadiu a Sérvia, e o
exército iugoslavo foi traído e dispersado, muitos oficiais escaparam. Fugimos
para cá. Agora esta é nossa vida, lecionando inglês e ajudando nossos
compatriotas. Se o comunismo algum dia acabar, voltaremos à nossa pátria, mas
não antes disso.

Várias vezes, os gêmeos convidaram seus novos amigos para almoçar nos fins
de semana. Eles sempre vinham distintamente vestidos com terno e gravata.
Geralmente Voja preparava a refeição. Ratko e Duško eram solteiros, mas Boba
havia deixado a esposa lá. Sendo filha única, ela não podia abandonar os pais.
Ela lhe suplicou que voltasse, mas ele não quis.

– Foi uma decisão muito difícil. E assim, por necessidade, vivemos separados –
explicou Boba. – Parece que as palavras do general Kovačević se cumprirão:
“Todos nós voltaremos para nossa pátria um dia, mas talvez seja num caixão.”

Uma manhã, logo depois que Voja chegou, Cveja estava se barbeando em frente
do espelho quando notou algo estranho.

– O que é isto? – perguntou ele em voz alta. E parou para olhar mais de perto.
Em seu peito havia uma mancha vermelha e inchada. – Coça e dói – exclamou
ele coçando a mancha.

– Não coce, Cveja. Deixe-me ver. – Voja veio examiná-lo. – Parece um tipo de
nódulo. – Examinando-o melhor, disse: – E está nascendo outro em sua nuca.

Alguns dias depois, Cveja reclamou:

– Estão pipocando por todo o meu corpo: uma debaixo do braço e outra no meu
quadril.

Voja ficou preocupado.

– É melhor você consultar um médico.

No consultório, Cveja disse ao médico que o examinava:

– Doem e coçam loucamente. E estão piorando.

Voja o havia acompanhado ao consultório e ouvia de modo complacente.

– Hmmm. Parecem ser furúnculos – disse o médico fazendo cara comprida. –


Diga-me, o que aconteceu com você recentemente? Deve ser uma mulher. Quem
é a feiticeira?

– Feiticeira? O que o senhor quer dizer? – perguntou Cveja com olhar pasmado.

– A mulher que está fazendo você infeliz – respondeu o médico. – É óbvio. Este
homem tem uma vida horrível. – E virou-se para Voja.

– Ele não é casado, doutor. Não há nenhuma mulher – respondeu Voja sorrindo.

Os gêmeos riram, mas o médico não se divertiu tanto.

– Então você deve ter sofrido alguma experiência terrível recentemente: muito
estresse ou muito medo. O seu sangue está envenenado. Está saindo tudo na
forma de furúnculos.

– Sou um refugiado. Passei dois meses tentando escapar da Iugoslávia. Algumas


vezes quase fui morto – explicou Cveja.

– Ah, é isto: toda a adrenalina. – O médico olhou mais de perto. – Alguns


furúnculos estão ficando maduros e supurando. Há alguns em suas costas que
estão se formando. – Ele terminou o exame e apanhou uma prancheta de
receitas. – Vou lhe prescrever algo para resolver sua situação. Os furúnculos
podem se espalhar mais antes de melhorarem. É uma questão de tempo. Eles vão
desaparecer mais tarde.

Nas semanas que se seguiram, surgiram mais furúnculos, enquanto alguns


anteriores começaram a secar. Passaram-se vários meses até que eles
desaparecessem completamente. Nesse ínterim, os gêmeos continuaram
trabalhando e aguardando um futuro melhor num novo país. Mal sabiam eles que
suas provações ainda não haviam acabado.
capítulo 14

o resgate

Ainda vestido com seu sobretudo, Cveja ficou no meio do apartamento


segurando seu subara [chapéu de pele de carneiro] e o cartão-postal numa das
mãos e desabotoando o sobretudo com a outra. Ele leu em voz alta a mensagem
rabiscada: “Prezado Cveja, por favor, venha resgatar-nos. Estamos no Campo de
Refugiados Wagna. Venha depressa, como puder. Estamos em quatro aqui.” O
cartão estava assinado Kaća. Cveja pôs o cartão na mesa, tirou o sobretudo e o
pendurou. Ele e Voja haviam acabado de apanhar a correspondência da caixa do
correio, no saguão de entrada, ao chegarem do trabalho.

– Então Kaća finalmente conseguiu sair! – respondeu Voja. Ele havia tirado o
casaco e o chapéu. Estava em pé na frente da despensa com a mão na porta,
espiando para dentro para ver o que prepararia para o jantar.

– Ela deve ter entrado em contato com Hans, o meu guia. Enviei o nome dele a
Djoka, em Paris – disse Cveja. – Da última vez que a vi em Novi Sad, ela estava
desesperada para fugir. Hmmm, gostaria de saber qual é o problema. – Ele
apanhou o cartão e o leu de novo.

– Onde é Wagna? – perguntou Voja. Ele abriu uma lata de feijões, despejou-os
numa panela e a colocou no fogão para esquentar.

– Fica no sudeste de Leibnitz, não muito longe da fronteira da Iugoslávia. –


Cveja ainda estava diante da mesa, pensando na misteriosa mensagem.
Voja fez uma salada e a trouxe para a mesa. – Ela parece assustada. O que você
acha que há de errado, Cveja?

– Não tenho a menor ideia. Mas preciso fazer alguma coisa.

Durante a refeição, eles continuaram conversando.

– Eu sei que você quer ajudar, Cveja, mas o que pode fazer? Como poderá ajudá-
los?

– Ainda não sei. – Cveja franziu o cenho. – Ela disse que estão em quatro. Eu
esperava Anica [Anitsa], sua futura sogra, e Pera, seu futuro cunhado. Quem
poderia ser a quarta pessoa?

Mais tarde, naquela noite, Adolf apareceu lá. Voja estava deitado na cama lendo
um jornal, enquanto Cveja estava sentado à mesa escrevendo uma carta. Adolf e
os gêmeos eram bons amigos agora. Ele também era solteiro, e eles apreciavam
a companhia um do outro.

– Ei, Zeleni Zamorac [seu macaco verde]! – Voja o saudou. Sempre que ele os
visitava, o curioso pastor de olhos verdes esquadrinhava o pequeno apartamento
dos gêmeos para ver se conseguia descobrir algo novo. Por isso, eles o
apelidaram de “macaco verde”, que é uma curiosa espécie africana.

Voja sentou-se, girou as pernas para fora da cama e pôs de lado o jornal. Adolf
sentou-se ao lado dele. Durante a conversa que se seguiu, Cveja mostrou a Adolf
o cartão-postal. Havia sido escrito em cirílico sérvio, que Adolf sabia ler.

– Parece que eles estão com algum tipo de problema – disse ele, devolvendo o
cartão a Cveja.

– Você sabe alguma coisa sobre Wagna? – perguntou Cveja, virando a cadeira
para ficar de frente para eles.

– Não, na verdade. Aliás, sim. Tenho ouvido boatos, mas quem sabe se são
verdadeiros?

– Boatos? De que tipo? – perguntou Voja, inclinando-se na direção dele.

– Bem, diz-se que os guardas às vezes vendem refugiados de volta para o país de
origem. Pessoas de todas as partes da Iugoslávia estão lá no campo, bem como
húngaros que fugiram após a revolução.

– Isso é suficiente para amedrontar qualquer um – respondeu Cveja, lembrando-


se de seus próprios temores por estar tão perto da fronteira em Jennersdorf. Ele
fitou o espaço por um momento antes de continuar. – Notei que as autoridades
aqui tratam os clérigos com grande respeito, o que é muito diferente de um país
ateísta. Se eu fosse pastor... Ele fez uma pausa. – Adolf, posso ver seu cartão de
identidade por um minuto, por favor?

– Claro. – Adolf pôs a mão no bolso detrás, pegou a carteira e estendeu sua
credencial ministerial a Cveja.

– Hmmm. Não tem foto sua aqui. Isto é bom. – Cveja olhou e acenou com a
cabeça. – Você é um Volksdeutscher, de modo que é de se esperar que você tenha
um leve sotaque – observou ele em voz alta. – Você poderia me emprestar este
documento por um dia?

– Sim – replicou Adolf. – Contanto que eu não vá parar na cadeia!

Logo que Adolf saiu, Cveja foi até a estação do trem para ver os horários. Ao
voltar, ele arrumou seu terno preto, camisa branca e gravata preta, os quais havia
comprado depois de chegar a Salzburgo. Sua cor favorita deveria servi-lo bem
nesta ocasião.

– Irei a Wagna amanhã de manhã – disse ele ao irmão. – Explique ao Sr. Schäffer
que tive que ir. Diga-lhe que nossos amigos estão em apuros. Tenho certeza de
que ele vai compreender.

Quando Voja se levantou para trabalhar na manhã seguinte, Cveja já havia saído.
No fim do dia, quando Voja voltou para casa, Cveja ainda não tinha chegado.
Voja esperou até tarde da noite. Finalmente foi para cama.

Eram quatro horas da madrugada quando Cveja entrou sorrateiramente no


apartamento, com quatro pessoas atrás dele. Voja ouviu seus passos do lado de
fora da porta e acordou esfregando os olhos quando Cveja acendeu a luz.

– Esperei você, Cveja, mas... Kaća, Anica, Pera, vocês estão todos aqui! –
exclamou ele, depois que seus olhos se acostumaram com a luz. Voja saltou da
cama ainda meio dormindo, enlevado por ver seus amigos e ansioso para lhes
dar um abraço de boas-vindas. Kaća apresentou a quarta pessoa como sua amiga
Lela.

– Oh, Voja, foi terrível – exclamou Anica agitadamente, apertando as faces com
as mãos.

– Vivíamos em constante temor – disse Kaća. – Dia sim, dia não um refugiado
desaparecia. Não sabíamos quando aconteceria o mesmo com um de nós.

– Deus abençoe Cveja por nos salvar – acrescentou Pera. – Não tínhamos mais
ninguém a quem recorrer. Estávamos aterrorizados em permanecer lá.

– Bem, vocês estão seguros aqui – disse Voja, agora totalmente desperto. Cveja
alcançou-lhe um roupão, e ele o vestiu. – Pedi ao pastor Schnötzinger para vocês
usarem um dos quartos neste andar, esta noite, e ele me deu a chave – continuou
Voja. – As mulheres que moram lá estão fora da cidade vendendo livros
religiosos. Só vão voltar dentro de alguns meses. – Ele enfiou os chinelos,
retirou uma chave do balcão onde a havia colocado para acesso fácil e os
conduziu quietamente para um quarto no meio do corredor.

Depois de ajudar os amigos a se acomodarem, os gêmeos retornaram ao seu


apartamento para tentar cochilar até o amanhecer. Durante o café da manhã e a
caminho do trabalho, Cveja relatou a Voja o que acontecera no dia anterior.

– Apanhei o primeiro trem ontem de manhã. Só chegamos ao campo no início da


tarde – explicou Cveja. – Que diferença de Jennersdorf! Eu não podia acreditar!
– ele abanou a cabeça com incredulidade. – O campo era cercado por um
alambrado, tendo em cima arame farpado. Parecia uma prisão. Os refugiados
vivem em barracões de madeira abarrotados de gente. Jennersdorf era uma
mansão luxuosa em comparação.

– Como você conseguiu entrar? – perguntou Voja intrigado. – Nunca vi um


campo de refugiados. Minha fuga foi fácil, comparada com a sua.

– Mostrei ao guarda o cartão de identidade de Adolf. O guarda supôs que era


meu, e esta era a intenção, logicamente – sorriu ele astutamente. – Pedi para ver
o diretor do campo. A caminho do escritório, vi Kaća. Ela estava em pé, perto de
um dos barracões, e acenou para mim.

– E então, o que você fez?


– Chamei-a em sérvio ao passar por ela. Disse-lhe que apanhasse seus pertences
e todos os que estavam com ela. Pedi que me esperasse no portão. Precisávamos
nos apressar.

– E então, o que aconteceu? Você viu o diretor?

– Ele não estava. Falei com o assistente e mostrei-lhe o documento de Adolf.


Disse-lhe que havia recebido um cartão-postal de meus familiares, pedindo-me
que fosse buscá-los. – Ele fez uma pausa. – Bem, é como se eles fossem
parentes, não é mesmo?

– É claro que são. E o que ele disse?

– Bem, de início ele recusou. Você sabe como é o estilo germânico de seguir as
regras. Disse-lhe que eu havia vindo lá de Salzburgo e que precisava voltar
imediatamente. Que eu tinha responsabilidades, e que o trem partiria dentro de
pouco tempo. Prometi que eles estariam em segurança comigo e que eu
assumiria responsabilidade por seu bem-estar.

– E ele concordou?

– Não imediatamente. Ele não tinha certeza do que fazer. Era apenas o assistente
e não queria tomar uma decisão. Finalmente me entregou um formulário de
liberação que assinei e ele aprovou. Quando cheguei ao portão, os quatro
estavam esperando com suas mochilas. O guarda nos deixou sair sem problema
quando lhe mostrei a liberação assinada.

– Uau! Mas você chegou em casa tão tarde. Por que demorou tanto?

– O assistente nos manteve esperando justamente o tempo suficiente para


perdermos o trem anterior. Tivemos que esperar quatro horas pelo próximo.
Graças a Deus, porém, tudo saiu bem. E graças a Adolf também, porque sem sua
ajuda eu não teria feito nada.

No dia seguinte, Cveja devolveu o cartão de identidade de Adolf e lhe contou a


experiência. Mais tarde, naquele dia, os gêmeos levaram Kaća, Anica e Pera para
ver Boba no escritório de refugiados do Concílio Mundial de Igrejas, a fim de
registrá-los para obter vistos de trânsito para a França.

– O noivo de Kaća, Djoka, está esperando por eles em Paris, com Nikola, o
irmão do meio, e seu pai – explicou Cveja a Boba. – Os dois irmãos desertaram
de um grupo de turistas mais de um ano atrás, no último dia da viagem. Quando
eles foram ao Departamento de Imigração para solicitar asilo, encontraram o
escritório repleto de refugiados – seis de seu próprio grupo turístico – todos
alegando que haviam vindo a Paris para visitar um tio!

– Boba riu. – Isso é realmente engraçado.

– A França lhes ofereceu asilo alguns dias depois e deu-lhes permissão para
trabalhar depois que eles passaram por um exame médico. A partir de então, eles
receberam a residência permanente.

– Bem, gente, aqui estão os papéis para vocês preencherem – disse Boba,
entregando um documento a cada um deles quando Cveja terminou a história. –
Mas vocês vão precisar de uma declaração juramentada de apoio de sua família
em Paris para completar o processo. Uma vez que Anica e Pera são parentes
próximos, e Kaća é a futura noiva de Djoka, vocês podem viajar com um visto
especial.

Enquanto esperavam que a declaração de apoio chegasse pelo correio, Kaća e os


outros tiveram permissão para permanecer no prédio da igreja. Durante o tempo
em que moraram ali, eles visitaram com frequência os gêmeos. Kaća contou a
história de como cruzou a fronteira e como sua amiga veio junto com eles.

– Quando contei a Lela que eu estava indo embora, ela me implorou que a
deixasse vir junto. Djoka escreveu o nome do guia de Cveja com suco de limão
numa carta para mim. Nós o encontramos na Eslovênia, e ele nos levou para a
fronteira austríaca, onde tivemos que cruzar um riacho. Ele usava um avental de
couro e botas altas. Atravessou-nos um de cada vez. Mas, quando estava me
carregando, ele tropeçou e me deixou cair. Fiquei encharcada. Não foi engraçado
porque a água estava gelada. Meus sapatos, casaco e vestido ficaram brancos de
neve.

– Ela ficou muito doente depois disto – acrescentou Anica.

– Realmente fiquei, mas só soube com que gravidade mais tarde – explicou
Kaća. – De qualquer maneira, o guia nos mostrou o marco branco da fronteira e
nos guiou até a estrada. Disse-nos para seguir a estrada até chegar à estação
ferroviária. Então ele foi embora. De repente, ouvimos um cão latir e alguém
gritou: “Alto!” Não sabíamos quem era nem a quem haviam visto, se nós ou o
guia. Ouvimos galhos e gravetos sendo esmagados sob seus pés ao ele fazer seu
caminho de volta. Deitamo-nos numa valeta ao lado da estrada e esperamos
durante muito tempo. Estávamos paralisados de medo.

– Mais tarde, levantamo-nos e caminhamos até a estação ferroviária. Ainda


estava escuro quando chegamos, e ela estava fechada. Tivemos que esperar do
lado de fora, no frio, até o amanhecer. Quando o chefe da estação chegou, ele
nos deixou entrar e acendeu fogo num fogão a lenha. Foi muito bom para nos
aquecer e secar.

Ela fez uma pausa e soltou um longo suspiro antes de continuar.

– Não tínhamos dinheiro suficiente para a passagem de trem até Salzburgo, de


modo que compramos bilhetes para Graz. Quando chegamos lá, eu estava
ardendo em febre e não pude continuar. Daí, Mama Anica chamou um policial, e
tentamos explicar que éramos refugiados. Obviamente, nós não falávamos sua
língua. Ele não acreditou em nós porque estávamos bem vestidos, ao contrário
da maioria das pessoas que cruzam a fronteira. Então ele nos levou à delegacia e
nos puseram na cadeia. Dá para acreditar nisso? Fomos mantidos lá durante nove
dias, sendo interrogados separadamente, várias vezes. Finalmente, veio um
furgão especial da polícia e nos levou para Wagna.

– Vocês passaram por uma provação e tanto – disse Cveja com voz penalizada.

– Graças a Deus vocês estão bem agora – acrescentou Voja. – Vocês


conseguiram, apesar das dificuldades.

– Sim – respondeu Kaća, voltando-se para Cveja. – Mas se você não tivesse nos
dado o nome de seu guia, ainda estaríamos em Novi Sad. Não podemos
agradecer-lhe suficientemente por manter sua promessa.

– Devemos ajudar-nos mutuamente, não é? – respondeu Cveja, mudando de


assunto. – E como estão se saindo Djoka e Nikola em Paris? Eles já estão lá há
muito tempo. Garanto que a esta altura eles já estão falando a língua.

– Provavelmente, mas eu não sei – disse Kaća. – Uma senhora da igreja, que
veio da Martinica, ofereceu-lhes gentilmente o seu quarto de dormir enquanto
ela dormia na cozinha numa cama de campanha. Mas eles logo ficaram sem
dinheiro. Assim que saíram da Iugoslávia, seu pai lhes mandou um pacote aos
cuidados da Igreja Adventista de Paris. Ele continha dois pares novos de sapatos
e duas jaquetas. Durante três semanas, eles conseguiram sobreviver comendo
bananas e algumas iguarias que Mama Anica havia incluído na caixa. Então
chegou a carta. – Ela riu. – O pai deles disselhes que se os dólares estivessem
muito amarrotados, eles deveriam passá-los a ferro. Só então é que souberam do
dinheiro! Ele havia escondido várias notas de 20 dólares nos saltos ocos dos
sapatos e nos enchimentos dos ombros das jaquetas que lhes havia enviado.
Imaginem! Durante todo aquele tempo eles estavam vestidos com dinheiro, mas
não sabiam!

– Gostaria de vê-los todos novamente – disse Voja. – Quando será seu


casamento?

– Djoka não pode se casar sem mim – riu Kaća. – Assim, quando eu chegar lá,
poderemos planejar isso. Espero que ele tenha poupado dinheiro suficiente para
realizarmos um belo casamento e a recepção na igreja.

– Tenho certeza de que ele o fará – disse Pera. – Vocês vêm planejando isto há
muito tempo.

Kaća assentiu com a cabeça e continuou:

– Quando o pai deles escapou, mais tarde, trouxe dinheiro consigo. A mesma
senhora os ajudou a encontrar um apartamento. Ela é cidadã francesa e foi ela
quem fez a declaração juramentada para que eles pudessem ficar.

– Isto é maravilhoso! Todos nós somos devedores à bondade de estrangeiros, não


é mesmo? – exclamou Voja. – Ninguém de nós conseguiria ir muito longe sem
ajuda. E como foi que o pai deles conseguiu fugir?

– As autoridades lhe deram um passaporte para que recebesse tratamento em


Paris para um ferimento de guerra. Ele foi soldado na Segunda Guerra Mundial e
havia sido prisioneiro de guerra, de modo que eles concordaram. Mas, antes de
deixá-lo sair do país, eles o fizeram pagar uma multa de 750 dólares porque seus
filhos haviam fugido. Isto era muito dinheiro na época. Também lhe disseram
para trazer os filhos de volta. Mais tarde, um primo dele foi a Paris decidido a
levá-lo de volta. De algum modo, eles souberam disso e se mantiveram
escondidos por um tempo. Não sabemos se a UDBA enviou o primo ou se ele foi
por sua conta.

Como Pera possuía um belo barítono, Cveja imediatamente o inscreveu no coral


de refugiados, e Kaća acompanhou o grupo ao piano. O coral havia aumentado
para 26 membros agora, a maioria deles com menos de 30 anos de idade.

Os gêmeos haviam feito arranjos com o Sr. Schäffer para trabalhar o dia todo de
segunda a quinta-feira, e só meio dia na sexta-feira, pois o sol estava se pondo
mais cedo ao se aproximar o inverno. Na sexta-feira seguinte, eles chegaram
cedo em casa. Após o almoço, Voja decidiu ir a um supermercado próximo para
comprar pão. Logo que ele pôs o pé para fora do prédio da igreja, um carro da
polícia parou em frente da entrada. Dois policiais saíram e o abordaram.

– Guten Tag. Sprechen sie doch Deutsch? [Boa-tarde. Você fala alemão?] –
perguntou um deles a Voja.

– Ja, Ich spreche [Sim, falo] – respondeu Voja. Ele olhou nervosamente de um
policial para o outro, intrigado sobre o que eles queriam dele.

O policial lhe mostrou um documento escrito em sérvio-croata e traduzido para o


alemão. Passando os olhos nele, Voja leu: “Solicitamos urgentemente às
autoridades austríacas que ajudem a Sra. Mandić a trazer de volta sua filha
menor de idade Lela, que saiu de casa sem sua permissão.” O documento estava
carimbado e assinado pelo diretor da polícia secreta iugoslava de Novi Sad.

Voja fitou o documento e então os dois policiais. Nesse momento, Kaća saiu do
edifício e ficou atrás dele.

– O que é, Voja? – perguntou ela inocentemente. Virando-se, Voja viu Lela,


Anica e Pera seguindo atrás dela. De repente, a porta detrás do carro da polícia
se abriu e uma senhora de meia-idade saltou para fora gritando: – Lela, Lela,
graças a Deus que a encontrei!

Lela gritou e começou a tremer. A mulher correu na direção da menina, agarrou-


a e começou a arrastá-la para o carro.

“Sua filha menor, Lela...” As palavras do documento sobressaíam-se na mente


de Voja. Tanto Lela como Kaća eram menores de idade, sendo Lela dois anos
mais jovem do que Kaća. Virando-se rapidamente, ele murmurou a Kaća:

– Depressa, volte para o piso superior do edifício com Mama Anica e Pera. Vão!

Eles haviam fugido juntos, e a polícia poderia interrogá-los. Os três


imediatamente retornaram ao edifício, e os policiais não tentaram impedi-los.
Seu alvo era localizar Lela, que ficou chorando histericamente, muito abalada.

– Eu lhe darei qualquer coisa se você voltar comigo – implorou a mãe, tentando
confortá-la e abraçá-la ao mesmo tempo. – Seu noivo está fora de si. Você não
deveria ter saído dessa maneira. Ele lamenta o mal-entendido e a quer de volta. –
Lela continuava soluçando, mas o choque do encontro e seu tremor
gradualmente começaram a ceder.

Durante a confusão, Cveja chegou. Kaća e os outros lhe haviam contado sobre a
situação crítica ao subirem para o piso superior. Ele se aproximou de Lela e
sussurrou-lhe ao ouvido:

– Aconteça o que acontecer, Lela, não diga o nome do guia. Prometa-me que não
o fará. Você não pode.

Os policiais austríacos não entendiam a língua sérvia e provavelmente pensaram


que Cveja estava tentando convencer a garota a voltar com sua mãe.

Lela concordou em meio às lágrimas. Então, a mãe a agarrou pelo braço e a


puxou para o carro da polícia, onde entraram no banco detrás. Os policiais
entraram no carro e momentos depois foram embora.

Alguns dias mais tarde, um membro da igreja ofereceu a Kaća e seus futuros
parentes um apartamento alugado, e a família se mudou do prédio da igreja.
Com o dinheiro enviado por sua família em Paris, eles tinham condições de
pagar um apartamento maior.

Sem demora, a declaração juramentada chegou da França pelo correio e Kaća a


levou ao escritório de refugiados do Concílio Mundial de Igrejas.

– Vou emitir seus documentos o mais rápido possível – prometeu Boba a Kaća. –
Mas os próximos feriados poderão retardar o processo.

Algumas semanas mais tarde, Voja chegou em casa, vindo da feira semanal, com
um enorme saco de laranjas importadas da Itália. Os produtos na feira eram mais
baratos do que no armazém de variedades alguns quarteirões adiante, ou do que
na pequena mercearia do outro lado da rua. Assim, valia a pena caminhar quase
um quilômetro.
Quando Voja entrou no apartamento, encontrou Cveja sentado de modo ereto
junto à mesa, com o rosto branco como giz. Um exemplar atrasado do jornal
Politika, obtido de Belgrado por um dos refugiados e emprestado a Cveja, estava
aberto sobre a mesa na frente dele. Ele segurava uma página solta em sua mão.

– Veja – disse Cveja apontando para um relato ao estender o jornal a Voja.

“Dois mortos em Murska Sobota”, dizia a manchete. O artigo relatava que dois
agentes da polícia secreta haviam ido à casa de um homem suspeito de conduzir
ilegalmente pessoas através da fronteira. O suspeito não deixou os agentes
entrarem, mas falou com eles através da porta de madeira chaveada. Quando a
polícia mencionou o nome de um cliente anterior, o suspeito subitamente
descarregou um de seus revólveres através da porta, matando um dos agentes.
Respondendo aos tiros, o outro agente matou o suspeito dentro da casa.

Voja lançou um olhar inquiridor a Cveja e então continuou a ler com crescente
apreensão. Vagarosamente depôs o jornal e exclamou:

– Não pode ser. Você acha que é possível?

Cveja contraiu uma expressão rude e assentiu com a cabeça.

– Acho que sim. Os detalhes são claramente familiares. Isto está parecido com
algo que Hans faria – disse ele estarrecido. – Hans vivia com medo de ser
apanhado. Sempre mantinha seus revólveres carregados e ao alcance. Ele deve
ter pressentido uma armadilha.

– Quem poderia tê-lo traído? – perguntou Voja.

– Não sei, mas seja quem for, as autoridades provavelmente lhe arrancaram a
informação à força.

– Lamento muito, Cveja.

– O que posso dizer? As coisas acontecem – replicou Cveja com os olhos cheios
de lágrimas. – Hans sabia que sua vida estava sempre em perigo. Esse era o risco
que corria por ajudar as pessoas a escapar. Muitas vezes, eu me perguntei por
que ele próprio não fugiu, por que esperou. – Ele abanou a cabeça devagar. –
Agora não importa.
Durante dias o relato do jornal pairou sobre os gêmeos como uma nuvem escura.
O medo da UDBA reviveu, e eles gostariam de saber se seus tentáculos
poderiam alcançá-los mesmo ali em Salzburgo. Sabia-se que a polícia secreta
sequestrava refugiados nas ruas dos países vizinhos, forçava-os a entrar nos
carros e os levava de volta através da fronteira. Uma noite os gêmeos pensaram
tê-los visto.

Amigos haviam advertido os gêmeos anteriormente a respeito de estranhas


figuras em longos casacos de couro marrom andando em frente ao prédio da
igreja ou espreitando num parque próximo. Alguns dias depois, ao virem do
trabalho para casa, Voja e Cveja viraram uma esquina perto do prédio da igreja e
se detiveram. Mais adiante, duas estranhas figuras em longos casacos de couro
marrom caminhavam com as mãos nos bolsos. Os gêmeos se desviaram para
uma viela próxima e observaram. Quando os homens passaram em frente à
igreja, eles olharam para as janelas em cima. Voja e Cveja esperaram na viela até
que os estranhos desaparecessem. Então foram apressadamente para casa.

O pastor Schnötzinger ainda estava trabalhando quando eles correram para seu
escritório. Ofegantes, eles lhe relataram o incidente, bem como o de Lela e o do
artigo do jornal.

– Não pudemos ver o rosto dos homens. E mesmo que tivéssemos, não
poderíamos afirmar que eram agentes – disse Voja. – Casacos de couro marrom
são populares.

– Isso pode ser uma advertência. Tenham muito cuidado. Se virem essas figuras
suspeitas novamente, por favor me avisem – disse o pastor. – Relatarei o
incidente à polícia para que as autoridades investiguem.

Após o trabalho, vários dias depois, Voja e Cveja pararam na mercearia do outro
lado da rua, em frente ao seu prédio, para comprar iogurte natural. Quando
estavam saindo, notaram dois homens com longos casacos de couro marrom
caminhando em direção à mercearia, do mesmo lado da estrada. Retornando para
dentro rapidamente, eles esperaram e observaram através de uma janela a uma
distância segura.

Os dois homens passaram vagarosamente em frente à mercearia, falando e


olhando através da rua, longe demais para que os gêmeos ouvissem o que
estavam dizendo. Desta vez, os gêmeos notaram que eles tinham cabelos escuros
e bigode. Depois que os homens desapareceram de vista, os gêmeos
atravessaram rapidamente a rua e foram ao escritório do pastor Schnötzinger. A
luz estava acesa, e ele ainda estava trabalhando em sua escrivaninha.

Escondendo-se por trás das cortinas de uma janela, o pastor e os gêmeos


espiaram para a rua. Os dois estranhos suspeitos haviam voltado e estavam agora
em frente à mercearia fumando um cigarro. O pastor Schnötzinger
imediatamente apanhou o telefone e ligou para a polícia.

Em questão de minutos, um carro branco e cinzento da polícia parou em frente à


mercearia. Dois policiais saíram e abordaram os homens. Ansiosamente, os
gêmeos e o pastor viram os homens apanharem suas carteiras e mostrar aos
policiais o que pareciam ser cartões de identidade. Os policiais examinaram os
documentos por um momento e devolveram-nos aos seus donos gesticulando.

Alguns minutos depois, os homens foram embora, e o carro da polícia também.


Os gêmeos não souberam quem eram eles, mas ficaram se perguntando se os
encontrariam novamente.
capítulo 15

o pecado imperdoável

–Nosso campo está transbordando de refugiados. Separados de suas famílias,


todos estão impacientes e solitários – disse Viktor, um homem alto, de bigode
escuro, falando mais alto do que o murmúrio da conversação. – Vivemos em
alojamentos tão próximos que frequentemente ocorrem brigas, e os bons
costumes se deterioram.

– Não é de admirar. Quando você está fora de seu país, não tem nada a fazer
exceto esperar que seus documentos sejam processados. Vivendo com incerteza
é fácil perder a esperança – acrescentou outro homem.

– Há alguma coisa que se possa fazer para ajudar? – perguntou outro.

– Eles precisam de alguma distração. Algo que lhes ocupe a mente, que lhes dê
esperança – sugeriu alguém. – Temos nossa fé, mas muitos deles não.

– Se eles tivessem alguma coisa para ler em sua própria língua, isso poderia
fazer diferença. Se tivéssemos alguma literatura religiosa, a leitura poderia lhes
trazer esperança – disse outro. – Mas onde poderíamos conseguir isso?

– Há um pastor em Nova York, o pastor Kanachky, que imprime literatura


religiosa em sérvio-croata – sugeriu outra pessoa. – Se soubéssemos como
contatá-lo, ele poderia nos enviar algumas brochuras para distribuirmos.
– Mladen mora em Nova York. Aposto que ele vai à igreja desse pastor. Vou
escrever para ele hoje à noite – dispôs-se Voja, encerrando a conversação.

Era sábado de tarde. Como fazia todas as semanas após o culto, um grupo de 20
ou mais refugiados ficou com os gêmeos para o almoço. O pastor Schnötzinger
havia dado permissão aos irmãos para utilizar um dormitório maior para este fim
quando estivesse desocupado. Aquele era um desses dias, e o pessoal se
espalhou em volta do quarto, sentando em camas e cadeiras de dobrar.

A maioria dos refugiados naquele grupo havia vindo de uma das repúblicas da
Iugoslávia: Croácia, Sérvia, Montenegro, Macedônia, Bósnia-Herzegovina. Uns
poucos eram descendentes de húngaros ou romenos. Os gêmeos haviam
conhecido vários dos refugiados anteriormente, na Iugoslávia. Outros, eles
haviam conhecido em Salzburgo. Todos viviam no campo de refugiados local,
em Helbrun, e esperavam imigrar para uma nova pátria.

Todos nesse grupo eram membros da Igreja Adventista que haviam, de alguma
maneira, sofrido com o comunismo. Haviam sido demitidos do trabalho,
multados, ridicularizados, perseguidos ou aprisionados. Seus filhos haviam sido
importunados e expulsos da escola. Muitos haviam sacrificado boa parte de suas
economias e arriscado a vida para escapar. Todos eles tinham esperança de uma
vida melhor, de preferência nos Estados Unidos. Mas, para se candidatarem para
ir aos Estados Unidos, os imigrantes precisavam ter ótima saúde e uma profissão
procurada lá. Outros países, ansiosos para colonizar suas terras escassamente
habitadas, ofereciam incentivos e eram menos exigentes.

“Queridos Mladen e Mela”, escreveu Voja naquela noite após os refugiados


terem voltado para o campo e tudo ficar quieto, “por favor, enviem-nos algumas
brochuras religiosas. Queremos distribuí-las aos refugiados aqui no campo.”
Voja lhes falou de alguns amigos em comum que haviam chegado recentemente.
Pôs a carta num envelope e a deixou de lado para remetê-la pala manhã. Então
foi para a cama.

Quase três semanas mais tarde, ao voltarem do trabalho para casa, numa sexta-
feira, os gêmeos encontraram um pacote grande, adornado com selos americanos
coloridos e lacres da alfândega, esperando por eles no saguão do edifício. Voja
apanhou o pacote, carregou-o para seu apartamento no andar superior e o depôs
com um baque sobre o balcão. Jogando o casaco sobre a cadeira, ele rasgou a
caixa enquanto Cveja, sentado à mesa, começou a procurar em meio às partituras
a música que ele precisava para o coral no dia seguinte.

– São as brochuras? – inquiriu Cveja sem erguer a cabeça.

– Uhum – resmungou Voja. Ele tirou da caixa um pequeno pacote envolvido


numa fita e puxou um livreto. – Bem, bem, bem. O que temos aqui? – murmurou
ele, examinando a fotografia na capa. Uma moça atraente, de olhos e cabelos
escuros, estava sentada à mesa com uma Bíblia aberta em frente dela. Com o
cotovelo apoiado na mesa e um dedo no rosto, ela parecia imersa em profunda
reflexão. Abaixo da fotografia estava o título O Pecado Imperdoável: O Que É?

– Você, garota americana, o que sabe sobre o pecado imperdoável? – zombou


Voja da garota da foto. Mas alguma coisa nela atraiu sua simpatia.

– Com quem você está falando? – perguntou Cveja, olhando para ele.

– Esta garota. – Voja lhe mostrou a foto. – Ela é bonita demais para saber algo
sobre o pecado imperdoável.

– Você está falando com uma foto? – disse Cveja, olhando a capa. Ele sorriu
tolerantemente e voltou para as suas partituras. Voja continuou a tirar pacotes da
caixa, lendo cada título em voz alta e espalhando-os sobre o balcão: Por Que
Deus Permite o Sofrimento?, Deus Responde às Orações?, Onde Estão as Almas
dos Mortos?, O Que É e Onde Está o Céu? e O Amor de Deus Pelos Pecadores.

– Bons títulos, Cveja. Deve ser uma leitura interessante. Acho que esses aqui
serão bons – disse Voja, pondo os pacotes de volta na caixa, mas ficando com
uma das brochuras. Caminhando até o porta-bagagem, ele remexeu uma gaveta
atravancada procurando uma tesoura, e voltou para o balcão. Cortou a fotografia,
deixando o título da brochura abaixo, e então enfiou a foto na moldura do
espelho acima da pia.

– Aí – disse ele, dando um passo atrás para admirá-la mais de longe. – Um dia
nos conheceremos, minha amiga americana.

– Mas o que é isso? – falou Cveja de modo confuso após ver seu irmão
contemplando a fotografia. – Você nem sabe quem ela é. – E voltou para sua
tarefa. Abaixo das palavras em alemão na partitura, ele estava escrevendo a
tradução em sérvio-croata para os membros do coral lerem.
Voja encolheu os ombros e começou a preparar o jantar. Durante a refeição,
enquanto conversavam sobre os eventos do dia, Voja de vez em quando olhava
de relance para a foto da misteriosa garota. Cveja o observava com curiosidade.

– O que há com você, meu irmão?

– Há uma nova mulher na minha vida – disse Voja com um sorriso travesso. –
Ela está se fazendo de indiferente, mas eu sei que está me observando – brincou
ele.

Cveja tossiu pacientemente e abanou a cabeça, olhando divertidamente para o


irmão. Voja sempre havia preferido evitar uma relação séria, enquanto Cveja era
o que geralmente namorava firme. Agora seu irmão estava flertando com uma
fotografia.

Na hora de dormir, Cveja subiu na cama e puxou as cobertas sobre a cabeça.


Voja se demorou olhando para o espelho. “Boa-noite, Miss América”, sussurrou
ele, rindo consigo. Veio-lhe à mente o quão ridículo era aquilo, mas não
conseguiu evitá-lo. Alguns minutos depois, recolheu-se para dormir.

No sábado seguinte, após o culto, o apartamento dos gêmeos ficou repleto de


amigos. Como o apartamento maior não estava disponível naquele dia, as
pessoas sentaram-se em toda e qualquer superfície horizontal, equilibrando os
pratos no colo e sobre os joelhos. Alguns até comeram no corredor.

– O coral cantou muito bem hoje de manhã – comentou Cveja. Então se voltou
para o homem de bigode. – Você cantou aleluia no tempo certo, Viktor – disse
ele, imitando sua pronúncia alemã. Viktor e sua esposa, Ankica [Ankitsa], novos
amigos da Croácia, haviam chegado recentemente e faziam parte do coral. Cveja
havia começado a dar estudos bíblicos a Viktor.

– Ei, quem é essa aí? – interrompeu Kaća, ao notar a foto no espelho.

– Opa, vê como é que fala! – respondeu Voja, fingindo-se indignado e mantendo


o rosto ereto. – Você está falando da minha namorada nos Estados Unidos.

– Sua o quê? – insistiu Kaća.

– Minha namorada nos Estados Unidos – repetiu Voja.


Kaća desatou a rir.

– Ah, é? E qual é o nome dela? – perguntou Kaća divertindo-se. Os outros se


calaram para ouvir.

– Bem, na verdade não sei – respondeu Voja embaraçado.

Rindo de uma orelha à outra, Kaća virou-se para o grupo e disse:

– Ele não sabe o nome da namorada. Vocês acreditam nisso?

– Voja, você está ficando destreinado – bradou alguém, e o grupo riu alto. Voja,
o piadista, estava tomando um pouco do próprio veneno.

– OK, OK, divirtam-se comigo. – Ele fez uma careta e apertou a mão contra o
peito. – Mas saibam que vocês me machucaram. – Um riso estrepitoso ecoou
pelo quarto.

– Ali diz “O Pecado Imperdoável” – observou Kaća apontando para o título.

– Esse deve ser o nome dela – gritou alguém no quarto, provocando ainda mais
riso do grupo.

– Vocês, rapazes, estão com ciúmes – retorquiu Voja sorrindo.

– Mas de onde é que você tirou a foto, afinal? – perguntou Kaća.

– Do pastor Kanachky. Estava num de seus livretos.

– Ele é tio de Djoka, você sabe. Você deve procurar saber mais a respeito dela.
Afinal de contas, ela pode ser casada e ter uma dúzia de filhos. Talvez seja uma
senhora idosa agora. Você não sabe quando a foto foi tirada – acrescentou Kaća.

Os comentários de Kaća perturbaram Voja, e ele decidiu saber mais a respeito da


garota da foto.

– Pessoal – disse Cveja engolindo seu último bocado de alimento e colocando o


prato vazio na pia. – Vou descer para ensaiar. Quando tiverem terminado,
desçam também. – Ele saiu e desceu a escada, com seus passos ecoando atrás
dele. Em alguns minutos, uma pilha de pratos e talheres foi formada na pia e
sobre o balcão. Gradualmente o grupo desceu para o piso inferior de onde se
ouvia o lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá de Cveja, aquecendo a voz.

Após o ensaio, quando o barulhento grupo finalmente saiu para o campo de


refugiados, eles levaram consigo a caixa de brochuras para ler e distribuir aos
compatriotas iugoslavos. A história da namorada de Voja nos Estados Unidos,
“O Pecado Imperdoável”, também foi com eles. Antes de ir para a cama, naquela
noite, Voja escreveu outra carta a Mladen e Mela, perguntando sobre a garota.

Duas semanas depois, chegou a resposta pelo correio. Voja abriu-a


apressadamente e leu em voz alta: “Prezados amigos: sua carta chegou hoje e
estou respondendo-a em seguida... A garota da foto frequenta nossa igreja. Ela
toca órgão e piano. É uma cristã encantadora, muito sincera e discreta. Ela não é
casada, mas isto pode mudar a qualquer momento. Venha logo para cá. O nome
dela é Ann. Nós a chamamos de Ena.”

A informação fez Voja vibrar, embora ele estranhasse o nome Ann. Todos os
nomes de mulheres que ele conhecia terminavam numa vogal – Marija, Natalja,
Mira, Branka. A única Ann da qual ele ouvira falar antes era Ann Baxter, a atriz
americana. O nome Ann soava estranho para ele. De qualquer modo, era muito
melhor do que seu novo pseudônimo. Olhando a foto dela agora, ele pestanejou
e disse para si mesmo: “Você me fez seu refém, minha querida Ann.” Alguma
coisa se agitava dentro de seu coração, e ele se perguntou se ela ao menos sabia
que ele existia.

Ao entardecer, algumas semanas depois, os irmãos retornaram do trabalho e


encontraram outra carta de seus amigos em Nova York. Quando Voja abriu o
envelope, caiu de dentro uma foto instantânea fora de foco. Com os olhos meio
fechados, ele reclamou: “Mladen. É ele de novo. Mesmo os Estados Unidos não
conseguem melhorar suas fotos. Ele sempre pôs a culpa na máquina
fotográfica!” A carta que viera junto dizia que a família na foto havia chegado
recentemente aos Estados Unidos. Voja reconheceu os rostos, mas havia uma
garota em primeiro plano que ele não conhecia, e a carta não fez menção a ela.
Voja enfiou a foto na moldura do espelho ao lado da foto de “O Pecado
Imperdoável”, e a esqueceu.

Dois dias depois, Adolf apareceu lá. Voja e Cveja estavam sentados à mesa
estudando inglês. Como de costume, ele esquadrinhou o apartamento para ver se
havia alguma coisa nova. Quando viu a nova foto, chegou mais perto para
examiná-la, e permaneceu ali por alguns momentos.

– Ahá! Fiz uma grande descoberta! – exclamou ele de repente, voltando-se para
os gêmeos.

– E do que se trata? – indagou Cveja, erguendo os olhos.

– Já não lhe disse que sou um gênio? – Adolf voltou para o espelho e apontou. –
Olhe, “O Pecado Imperdoável” e a garota na foto instantânea são a mesma
pessoa.

– Não, isto não pode ser – protestou Voja dando um salto para olhar de perto. O
instantâneo mostrava uma imagem distorcida de uma garota que não parecia
atraente, e ele não queria que fosse a mesma pessoa. Ele se posicionou ao lado
de Adolf junto ao espelho.

– Mas é! Posso provar – disse Adolf. Ele saiu do quarto e voltou um minuto
depois com uma lente de aumento. Cveja e Voja trocaram olhares divertidos.

Adolf retirou as duas fotos da moldura e as colocou lado a lado sobre a mesa.
Então se inclinou para analisar as imagens ampliadas e examinar cada detalhe.

– Compare-as. Está vendo as sobrancelhas? Elas têm o mesmo arco. E os olhos?


Ambas têm olhos escuros. Ambas têm cabelos escuros. E a boca... – ele se
endireitou. – Estou falando, elas são a mesma pessoa. Vocês não me chamam de
Macaco Verde à toa.

– Tudo bem, Sherlock, deixe-me ver – disse Voja. Ele apanhou a lente de
aumento, inclinou-se e a segurou primeiro sobre uma foto e então sobre a outra.
Endireitando-se, retorquiu: – Qual é, Adolf! Onde estão seus olhos? Não há
qualquer semelhança. Uma é bonita. A outra não. Uma tem cabelos curtos. A
outra tem cabelos compridos. – Devolvendo-lhe a lente, disse: – Lamento,
Adolf, mas você está errado. Sou arquiteto e enxergo essas coisas.

– É a minha vez agora – disse Cveja, apanhando a lente. Inclinando-se,


examinou as fotos por alguns momentos. – Não, definitivamente são duas
garotas diferentes – disse ele com autoridade. Devolvendo a lente a Adolf,
concluiu: – Definitivamente não são a mesma garota. Dois contra um.

– Está bem, está bem, rapazes. Podem se dar razão. Não me importo. Mas eu
digo que estou certo. Perguntem ao seu amigo em Nova York. Vocês vão ver. E
apressem-se. – Adolf se dirigiu para a porta, que se fechou com um estalido
quando ele saiu. Antes de se recolher naquela noite, Voja escreveu outra breve
carta.

Toda noite, Adolf vinha fazer uma visita. Algumas semanas depois, os gêmeos
chegaram do trabalho e encontraram outra carta de Nova York. Rapidamente,
Voja leu a mensagem de Mela. “Sim, é a mesma garota”, resmungou ele,
franzindo o cenho ao ler: “A foto instantânea não lhe faz justiça. Você sabe como
são as fotos de Mladen. Ela é muito atraente mesmo. Acho que você vai gostar
dela.”

Com a carta em mãos, Voja foi procurar Adolf, mas ele não estava em seu
apartamento. Voja se lembrou de que ele muitas vezes dava estudos bíblicos à
noite.

Já passava das onze horas da noite quando Adolf voltou, e Cveja e Voja já
haviam ido para a cama. Ele bateu à porta, abriu-a e encostou-se no batente.

– Alguma carta hoje? – indagou ele, e então acendeu a luz ao entrar no quarto.
Os gêmeos se mexeram com relutância.

– Oh, mas você é mesmo um Macaco Verde! Não vê que estamos dormindo? –
reclamou Cveja. Ele ergueu a cabeça, apertou os olhos por causa da luz, puxou
as cobertas sobre a cabeça e virou-se para o outro lado.

Voja sentou-se na cama, e Adolf puxou uma cadeira.

– É duro dizer isso, Adolf, mas você estava certo – confessou Voja. – Elas são a
mesma garota. O instantâneo é que não é bom.

– Eu sabia! – exclamou Adolf, dando palmadinhas no ombro de Voja e ficando


em pé. – Desculpe-me acordá-lo. Preciso ir agora. Boa-noite! – Ele apagou a luz
e foi embora.

Nos dias seguintes, falar sobre a garota na foto se tornou uma rotina diária para
Voja. “Seus ouvidos devem estar tinindo”, pensava ele com frequência. Ao
pentear o cabelo ou dar o nó na gravata em frente ao espelho, ele a imaginava
observando-o. Da Vinci tinha sua Mona Lisa. Voja tinha seu Pecado
Imperdoável. Ansioso por conhecer aquela pessoa que não mais lhe parecia
estranha, ele procurou saber mais sobre ela. Chegaram mais cartas de Mela
dizendo: “Ela ainda está livre, mas talvez não seja por muito tempo. Por favor,
apresse-se.”
capítulo 16

mistério, desafio e casamento

–Ortografia! – exclamaram simultaneamente os gêmeos ao trocarem olhares


aturdidos. Sobre a mesa em frente deles, estava aberto o livro Inglês em 100
Lições, escrito em sua língua nativa. Cada um deles tinha à sua frente um bloco
de apontamentos no qual copiava as palavras em inglês conforme a fonética da
língua sérvio-cirílica. Naquela noite, eles haviam chegado à Lição 28, intitulada
“Ortografia”, um conceito que não haviam encontrado antes. Em outras línguas
que haviam estudado havia regras.

– Quando tínhamos onze anos de idade talvez aprendêssemos esta língua, mas
não com nossa idade. Somos mais críticos agora – resmungou Cveja. Já na
oitava lição, as peculiaridades do idioma inglês haviam diminuído seu
entusiasmo.

– Vamos em frente – sugeriu Voja. Ele se voltou para o livro e leu o subtítulo:
“Vogais”. Aqui o autor europeu explicou que em inglês cada vogal pode ter
várias pronúncias diferentes. Eles se entreolharam novamente com uma
expressão de desgosto. Em cada língua que eles conheciam, as vogais tinham um
único som, a não ser quando um acento indicasse uma pronúncia alterada. O
nome de cada vogal indicava sua pronúncia: A se pronunciava A, E era E, I era I,
O era O e U era U. Essa ideia, portanto, era uma surpresa para eles.

– Você tem razão – lamentou-se Voja. – Se Tito não considerasse o inglês uma
língua capitalista, poderíamos ter aprendido tudo isto na escola. O inglês é muito
confuso.
– Confuso? Está mais para absurdo – retorquiu Cveja. Ele se levantou, ajeitou as
calças e caminhou para lá e para cá. – Pode ser que eu seja muito exigente, mas
não vejo lógica nesta língua.

Voja continuou na mesa, rabiscando Voja Vitorović, Vitorović Voja, enquanto


esperava que Cveja esfriasse a cabeça. Pouco depois, Cveja voltou à mesa, e eles
retomaram o estudo.

– Vogais duplas – Voja leu o seguinte subtítulo em voz alta. – Em inglês OO às


vezes se pronuncia O, como nas palavras floor ou door; mas nem sempre. Às
vezes, OO tem o som de um longo U, como em stool ou fool. Às vezes, tem o
som de um breve O como em flood ou blood. E, às vezes, tem o som de um
breve U como em book ou cook.

– Que difícil! – exclamou Cveja lançando o livro ao chão. Ele se levantou, abriu
a porta da sacada e saiu. Estava escuro e frio lá fora, de modo que voltou
rapidamente.

– Posso entender exceções às regras, mas inglês tem mais exceções do que
regras – disse ele esfregando os braços quando a porta da sacada se fechou
ruidosamente atrás dele. – Francês e alemão têm regras, e são coerentes. Mas
inglês? – ele fez uma careta. – Nem mesmo Vuk Karadžić seria capaz de
encontrar sentido nisso. Ele fez um ótimo trabalho ao revisar nossa língua, de
modo que as crianças no primeiro ano escolar aprendessem o alfabeto e
pudessem imediatamente ler e escrever. Uma letra para cada som. Aqui nós
temos todos os sons numa letra.

– Você tem razão, Cveja – respondeu lentamente Voja. – Mas se vamos para os
Estados Unidos para nos tornarmos americanos, precisamos aprender a língua,
gostemos ou não. Francês não o ajudará muito em Nova York. – Ele se referiu ao
francês porque era a língua favorita de Cveja.

– Este idioma é simplesmente impossível – desabafou Cveja ao continuarem a


estudar, e então fechou o livro.

No dia seguinte, quando voltaram a estudar inglês após o jantar, tudo correu
razoavelmente por algum tempo.

– Talvez estejamos nos preocupando demais com a pronúncia – disse Voja. –


Você se lembra do que disse Ratko? A pronúncia mostrada nos livros didáticos é
geralmente britânica. Os americanos pronunciam as palavras de modo diferente.
Por isso, se nos concentrarmos apenas em aprender as palavras e seu significado,
é o suficiente por enquanto.

– Pelo menos podemos tentar – disse Cveja. Ele se recostou para trás e
habilmente mudou de assunto. – Ontem, quando estivemos no Parque Mirabel,
ouvi você falando italiano com alguns turistas. Fiquei surpreso por ver como está
fluente. Após cinco meses em Roma, você praticamente domina o italiano. – Ele
olhou novamente para o livro. – Estamos estudando inglês por nossa conta há
quase um ano e continuamos analfabetos.

– Italiano é fácil, Cveja. É uma língua fonética, com muitas vogais e sons
abertos. Mas inglês é outra história.

Durante os dias seguintes, eles deixaram o livro de lado e se ocuparam com


outras coisas.

Um dia, perto do fim de fevereiro, o Sr. Schäffer entrou na casa de verão


acenando com um jornal e sorrindo: – Até que enfim! Agora é oficial! – E
mostrou aos gêmeos um artigo no jornal que anunciava uma competição
nacional para o projeto de uma nova comunidade em Amstetten. Ele e os gêmeos
haviam ansiosamente aguardado aquele anúncio, porque aquela era, afinal, a
razão pela qual Schäffer havia se responsabilizado pela permanência de Voja na
Áustria.

Após enviar uma solicitação pedindo mais informações, o requerimento chegou


uma semana depois. O formulário requeria dados detalhados referentes ao
tamanho da empresa de arquitetura, nomes dos funcionários e suas qualificações,
uma lista de projetos de construção anteriores e informações sobre alguma
experiência relacionada. O Sr. Schäffer e os gêmeos preencheram o formulário
juntos, e Schäffer o colocou no correio.

Vários dias depois, chegou pelo correio um pacote contendo uma planta da área,
mapa topográfico, orientações para a competição e especificações para o projeto,
o qual requeria que o desenho incluísse locais para uma igreja católica, casa
paroquial, escola fundamental, corpo de bombeiros, residências familiares,
apartamentos e uma área comercial a ser desenvolvida mais tarde. A data para a
entrega do projeto era 7 de junho.

No início de março, os gêmeos começaram a trabalhar seriamente no projeto.


Durante os três meses seguintes, eles trabalharam febrilmente. No dia 3 de
junho, eles foram ao escritório de Schäffer.

– Sr. Schäffer, terminamos o projeto de Amstetten – disseram eles alegremente,


entregando-lhe as plantas.

– Excelente, excelente! – exclamou o arquiteto ao examinar o trabalho. As


plantas estavam sendo encaminhadas sob o pseudônimo Die Zwillinge, que
significa “Os Gêmeos”. Ele as colocou no correio, e então eles aguardaram.

Um mês depois, chegou a resposta com a decisão do juiz. O Sr. Schäffer


praticamente dançou na casa de verão, com o rosto vermelho de agitação. Eles
nunca o haviam visto tão contente.

– Tenho notícias maravilhosas! – exclamou ele com a cabeça erguida e o peito


estufado. – Nosso projeto tirou o primeiro lugar. Vencemos a competição! Sim,
sim, é verdade! E eu tenho um prêmio para vocês. – Ele se abriu num largo
sorriso e deu a cada um dos gêmeos 2.000 xelins. – Não posso lhes pagar mais
do que um mês de salário – disse ele quase se desculpando – já que vocês foram
assalariados o tempo todo. Mas lhes pago com todo o prazer um mês de férias.

– Isto é maravilhoso! – exclamou Voja, emocionado com as notícias. – Agora


podemos ir a Paris.

– Kaća e Djoka querem que participemos do seu casamento – acrescentou Cveja.


– Precisamos informá-los de que estaremos lá.

Kaća e seus familiares haviam saído de Salzburgo em março, após uma festa de
despedida que os irmãos da igreja prepararam para eles. Naquela noite, os
gêmeos escreveram uma carta para Kaća e Djoka em Paris, e começaram a fazer
planos para a viagem. O casamento estava marcado para agosto.

Embora os gêmeos estivessem exultantes de que o seu projeto tivesse obtido o


primeiro lugar, receber essa concessão foi ainda mais sensacional para Schäffer.
Isso significava que ele seria o arquiteto encarregado de dirigir todo o trabalho
de construção. Ele poderia contratar qualquer pessoa de sua escolha para cada
fase da obra. O andamento do projeto demoraria anos e lhe daria uma renda
elevada, talvez para o resto da vida.

Nesse ínterim, Voja e Cveja prosseguiram intermitentemente com seus estudos


de inglês. De algum modo, eles conseguiram chegar à Lição 33. Naquele
capítulo, o autor falava sobre as mais de quatro mil palavras francesas
incorporadas à língua inglesa, as quais eram pronunciadas de modo diferente do
francês. Cônscios de que estavam chegando a um terreno escorregadio, Voja
continuou com cuidado.

– “Nation não se pronuncia nacion, como em francês, mas nêichon. Station não é
stacion, mas stêichon”

Cveja estendeu as mãos com indignação.

– Onde é que eles acharam o som de X em nation e station? – inquiriu ele. Lendo
um pouco adiante, ele apontou um dedo acusador para a palavra colonel. – Veja
isto! – ele leu a frase seguinte. – A palavra colonel se pronuncia kernel. Kernel!
– repetiu ele irritado. – Onde está o R? – Ele agarrou o livro e o jogou através do
quarto. Felizmente Voja se virou justamente quando o livro passou voando por
ele.

– Não se esqueça de que o francês foi a língua oficial da Inglaterra por quase
trezentos anos, depois que William da Normandia os derrotou em 1066. Muitas
coisas podem acontecer com as palavras nesse período de tempo – tentou
arrazoar Voja. Mas Cveja não aceitava nenhuma de suas desculpas. Aquele
último capítulo havia sido a gota d’água. Cveja não podia perdoar a corrupção da
pronúncia francesa. Na noite seguinte, Voja estudou sozinho outra lição, mas
ocasionalmente dava uma olhada para seu irmão, cuja cabeça estava enterrada
num livro. A pedido de Cveja, sua irmã Vera havia lhes enviado alguns livros em
sérvio, e ele estava relendo A Filha do Capitão, de Pushkin.

Quando chegou o verão, e o clima foi ficando mais quente, os amigos refugiados
começaram a ir embora para sua nova pátria. Vários meses antes, Adolf havia
ido para o Colégio Adventista em Collonges-sous-Salève. Lá, ele conheceu uma
garota, e os dois se apaixonaram. Eles planejavam se casar e já se haviam
inscrito para trabalhar como missionários na República dos Camarões. Viktor,
Ankica e vários outros no grupo partiram para o Canadá. Outros imigraram para
a Austrália depois que os documentos foram liberados. Aonde quer que os
refugiados foram, levaram com eles a história da namorada de Voja nos Estados
Unidos, chamada “O Pecado Imperdoável”.

No fim do verão, todos os seus amigos refugiados haviam ido embora. O coral
iugoslavo estava calado agora, e aos sábados os gêmeos voltavam da igreja para
um apartamento vazio. Como a quota anual de imigração iugoslava para os
Estados Unidos já havia sido completada, os gêmeos decidiram esperar em
Salzburgo até que ela fosse reaberta no ano seguinte.

Em agosto, Voja e Cveja tomaram o trem para Paris, a fim de assistir ao


casamento de Djoka e Kaća e fazer a tão esperada visita aos amigos. Lá, na
cidade das luzes, eles estiveram em muitos lugares famosos: o Arco do Triunfo,
a Torre Eiffel, a Catedral de Notre-Dame. Um dos quartos no apartamento de
Bikicki havia se transformado num dormitório. Um muro de caixas empilhadas
até o teto fazia o papel de uma divisória e trazia um pouco de privacidade. De
um lado, dormiam os três irmãos Bikicki; do outro, os gêmeos.

No dia 8 de agosto, o enlace matrimonial de Kaća e Djoka foi realizado numa


encantadora cerimônia dirigida por um pastor francês na Igreja Adventista do
Sétimo Dia em Paris. Kaća e os irmãos Bikicki haviam aprendido bastante o
francês durante sua estada e já conversavam nessa língua. Cveja foi padrinho da
noiva, enquanto Voja, Nikola e Pera foram padrinhos do noivo. A família havia
feito muitos amigos. Após a cerimônia, cerca de 200 membros da igreja,
familiares e amigos se retiraram para o salão social no subsolo da igreja, onde
houve uma suntuosa festa preparada pelas senhoras.

Na terça-feira seguinte, os recém-casados se prepararam para a viagem de lua de


mel. Os pais de Djoka não eram residentes permanentes, e por isso não podiam
trabalhar. Mas seus filhos, bem empregados, haviam juntado os recursos para
comprar um carro para a família, um Chevy Fregata. E assim, seguindo os
planos feitos antes do casamento, os recém-casados, parentes e os gêmeos
saíram juntos para uma lua de mel e férias conjuntas. Com quatro pessoas
espremidas no banco dianteiro e quatro no traseiro, o bagageiro sobre a capota
com as malas amarradas, e o porta-malas cheio de equipamento para acampar e
cozinhar, eles saíram de Paris e se aventuraram no interior da França. Um jovem
casal francês da igreja os acompanhou em seu próprio veículo durante parte da
viagem. Exceto os recém-casados, que não reclamaram, ninguém mais na
ocasião se preocupou muito com esse programa incomum para a lua de mel do
casal.

Durante o mês de agosto, escritórios e fábricas de toda a França fecharam para


férias, de modo que as estradas estavam com o trânsito congestionado. Os
lugares turísticos estavam repletos de visitantes. Em Avignon, o grupo viu o
compacto e gótico Palácio dos Papas, utilizado como residência papal durante a
maior parte do século 14 e, posteriormente, por dois antipapas durante o Cisma
Papal. Ao viajarem para o sul, armaram duas barracas à noite. Os pais do noivo
dormiram numa tenda. Os demais, seis ao todo, dormiram na outra. Os pobres
recém-casados mal tiveram tempo para ficar sozinhos.

Quando chegaram ao colégio adventista, em Collonges-sous-Salève, eles


passaram a noite ali. No dia seguinte, cruzaram a fronteira de ônibus, indo a
Genebra, na Suíça, para uma visita de um dia. Tendo apenas documentos
temporários, os pais do noivo não puderam atravessar a fronteira e ficaram no
lado francês com o carro da família.

Depois de percorrerem as estradas estreitas e sinuosas através dos Alpes


franceses, eles finalmente chegaram à cidade portuária de Marselha. Dominando
o horizonte no topo de uma rocha calcária, a basílica de Notre-Dame de La
Garde, com sua gigantesca estátua dourada da Virgem com o Menino,
supervisionava as profundas águas azuis do Mar Mediterrâneo. Numerosos iates
e barcos pesqueiros navegavam na baía ou estavam ancorados no porto. Após
passarem alguns dias visitando Marselha, eles iniciaram lentamente a viagem de
volta.

No fim do seu mês de férias, os gêmeos voltaram para Salzburgo. Uma carta do
Concílio Mundial de Igrejas os aguardava. Havia sido marcado para Cveja um
exame físico antes de ser emitido seu visto de entrada para os Estados Unidos.
Em virtude da frequente incidência de tuberculose, todos os solicitantes eram
cuidadosamente examinados. A menor indicação de contato com a tuberculose
resultava em imediata desqualificação.

– Finalmente estamos fazendo algum progresso – rejubilou-se Cveja.

No início de outubro, Cveja recebeu seu visto de entrada para os Estados


Unidos. Entusiasmado por ter completado o processo, ele estava agora
desimpedido e pronto para ir aos Estados Unidos. O visto, datado de 4 de
outubro de 1958, e válido por quatro meses, expiraria em 4 de fevereiro de 1959.
Ele poderia entrar nos Estados Unidos em qualquer dia até aquela data. Se por
alguma razão ele não entrasse dentro desse período, o visto expiraria e não
poderia ser estendido ou renovado.

Voja, por sua vez, nada havia recebido. Nem mesmo uma palavra sobre exame
físico ou documentos.

– Talvez meus documentos tenham sido retidos na Itália – racionalizou Voja.


Sem que ele soubesse, porém, uma injustiça estava a caminho.
capítulo 17

acusado

–Guten morgen [Bom-dia]! – A simpática recepcionista no Consulado


Americano abriu a janelinha do guichê. – Em que posso ajudá-lo? – Para alívio
de Voja, ela o saudou em alemão. Ele ainda não se sentia suficientemente à
vontade para tentar falar inglês, em virtude do pouco conhecimento que tinha
dessa língua.

– Tenho uma entrevista marcada para as dez horas, com o cônsul- geral, Herr
Michelin – disse ele, estendendo-lhe a carta que havia recebido pelo correio. –
Meu nome é Vojislav Vitorović.

– Um momento – disse ela, examinando a carta enquanto fazia uma ligação.


Enquanto ela falava ao telefone, Voja olhou em volta para observar a sala de
espera. Um tapete persa ladeado por dez cadeiras provincianas francesas
almofadadas decorava a agradável sala. Alguns móveis, lustres e plantas
completavam a decoração, e um arranjo de flores viçosas sobre a mesa
acrescentava um límpido e perfumado aroma ao ambiente.

– O cônsul o espera no piso superior – ele ouviu a recepcionista dizer e se virou


de frente para vê-la. Ela lhe indicou a escada na parte detrás.

Quando Voja caminhou através da sala, os saltos de seus sapatos estalaram no


piso de tacos polidos. A sala estava vazia, e cada estalido ecoava no ambiente de
teto alto. Ao subir a escada de madeira, sua mente estava repleta de indagações.
O que estava retendo sua documentação? Por que o cônsul americano o havia
intimado a comparecer? Haveria algum problema?

Todos os contatos com Cveja haviam sido através do correio. Cveja havia
terminado o exame físico que durara uma semana e recebera o visto de entrada
para os Estados Unidos mais de um mês antes. Voja não recebera sequer uma
palavra. Até recentemente, a ideia de que seus documentos estavam parados em
Roma havia amenizado sua ansiedade – a Itália havia demorado cinco meses
para oferecer asilo político a Voja, enquanto Cveja havia recebido asilo da
Áustria dentro de uma semana. Agora ele tinha um estranho pressentimento de
que algo estava terrivelmente errado.

No topo da escada, ele entrou num vestíbulo não mobiliado, no qual três das
paredes continham uma porta de carvalho almofadada. Um cintilante lustre de
cristal e ouro pendia de um medalhão de gesso no teto. Esperando ansiosamente,
Voja torcia os dedos e mordia os lábios, tentando adivinhar qual das portas se
abriria.

Logo a porta da direita se abriu diante dele, e dois homens de terno escuro e
gravata saíram para o vestíbulo. Um jovem alto, de óculos grossos, saiu
primeiro. Um senhor de meia-idade, de cabelos castanhos começando a ficar
grisalhos nas têmporas, saiu em seguida. O mais jovem acenou para Voja e
voltou para a sala. Voja o seguiu, e o homem de meia-idade foi atrás dele.

Entrando pela porta, Voja roçou de leve na almofada de couro em sua parte
interna e sentiu cheiro de couro almiscarado. Uma segunda porta, também
almofadada com couro, contígua à primeira, abria-se para dentro da sala. Duas
portas almofadadas – indício de uma sala à prova de som. Voja percebeu isto, e
sua ansiedade aumentou.

Dentro da sala, o mais jovem fez um gesto para que Voja se sentasse junto a uma
grande mesa de carvalho, rodeada de cadeiras com almofadas de couro. Na
parede ao longe, uma janela com uma cortina pesada limitava a quantidade de
luz que entrava. Os dois homens sentaram-se à mesa em frente dele.

Voja sentou-se ereto na cadeira, remexendo as mãos em seu colo. Ele olhou de
um rosto sombrio para o outro, esperando que um dos homens falasse. Em troca,
quatro olhos perscrutadores se fixaram nele. O mais jovem, de óculos, começou.
Falando em alemão, ele apresentou o homem mais velho como sendo o cônsul
americano, o Sr. Michelin. Pela primeira vez, Voja notou os olhos escuros e
penetrantes do cônsul.

– Drhmehrrywhrrldeawhyrrryyydheer? – começou a falar o cônsul. Esta era a


primeira vez que Voja havia ouvido o inglês falado. As palavras pareciam fluir
juntas em um som deturpado, e ele não conseguia distinguir palavras separadas.
Parecia que o homem tinha uma batata quente na boca ao falar.

O homem mais jovem, o intérprete, começou a traduzir as palavras do cônsul


para o alemão.

– Você tem alguma ideia do motivo pelo qual está aqui? – Os olhos de Voja se
voltaram do cônsul para o intérprete.

– Não, senhor, não tenho – respondeu ele em alemão, balançando a cabeça. O


intérprete traduziu a resposta para o cônsul.

O cônsul falou e novamente Voja ouviu apenas sons indistinguíveis. O intérprete


traduziu as palavras do cônsul.

– Vou direto ao ponto – disse ele. – Nós o chamamos aqui para lhe dar más
notícias. Alguém o acusou de ser um espião comunista.

As palavras foram um golpe rápido e duro para Voja. Por um longo e impactante
momento, ele ficou sentado aturdido. Ele se sentiu como um boxeador apanhado
com a guarda aberta por um potente soco no estômago. Afundando no assento,
ele agarrou os braços revestidos de couro da cadeira. Sua mente vacilou, e seu
mundo ficou sombrio.

O cônsul estava falando novamente, e o intérprete traduziu.

– Em casos como este, nós automaticamente encerramos o processo da pessoa.


Sua chance de emigrar para os Estados Unidos é zero.

Com o coração batendo forte, Voja lutou para entender o que estava
acontecendo.

– Entretanto, seu caso me deixa intrigado – continuou o cônsul, folheando uma


pasta aberta sobre a mesa na frente dele. Ele apanhou um dos papéis. – Vejo que
você tem um irmão gêmeo idêntico, chamado Svetozar, que já recebeu o visto.
O cônsul fez uma pausa por um momento. – Vocês dois têm o mesmo pai, a
mesma mãe, a mesma religião, a mesma profissão. – Ele foi contando os itens
semelhantes em seus dedos e então ergueu as mãos. – Mas um de vocês é um
bom rapaz, e o outro é mau. – Ele se inclinou na direção de Voja, que percebeu a
ênfase, mesmo em inglês. – Não temos como verificar ou desmentir essa
acusação. Perguntar para as autoridades iugoslavas, logicamente seria inútil.
Assim sendo, nós geralmente encerramos o caso do acusado. – Dito isto,
recostou-se em sua cadeira.

As vozes dos dois homens soavam pouco inteligíveis e distantes. As palavras


golpearam Voja, primeiro em inglês, depois em alemão. Estava tudo acabado. As
esperanças de Voja se desvaneceram.

O cônsul se inclinou para frente outra vez, pôs os cotovelos sobre a mesa, com
as mãos fechadas embaixo do queixo e disse:

– Mas decidi fazer uma exceção desta vez e dar-lhe uma oportunidade. – A
cabeça de Voja começou a desanuviar-se, e seus olhos se arregalaram quando o
intérprete traduziu as palavras do cônsul para o alemão. O cônsul continuou:

– Você poderia me conseguir uma carta de sua igreja? De alguém na Iugoslávia


que possa verificar que você é um membro regular, de boa reputação, e não um
comunista?

– Sim, posso conseguir isto – Voja disse rápido demais.

– Ótimo! Então não perca tempo. Logo que você a conseguir, traga-a aqui. Você
precisa se apressar – concluiu o cônsul. Ele e o intérprete se levantaram e
acenaram com a cabeça. A entrevista terminara, e o intérprete acompanhou Voja
até a porta.

Pasmado, Voja desceu a escada, atravessou a sala de espera, passou pela


recepcionista sem dizer uma palavra e saiu. Interrogações giravam em sua
mente. Ele, um espião comunista? Quem poderia tê-lo acusado? Por que alguém
faria isto? Ele havia prometido ao cônsul que conseguiria uma carta da
Iugoslávia atestando sua condição de membro da igreja. Como poderia conseguir
isto? As autoridades censuravam tanto a correspondência que entrava no país
como a que saía de lá, e sua carta talvez nunca fosse entregue.

De repente, como que despertando de um sonho, a situação ficou bem clara. Não
havia como provar sua inocência, e após todas as lutas que ele e Cveja haviam
travado, seu irmão iria para os Estados Unidos sem ele.

Com o coração pesado, ele tomou o ônibus elétrico e depois caminhou os 800
metros restantes até o apartamento. O bate-papo animado das pessoas que
perambulavam por lojas e butiques ao longo do trajeto parecia zombar de seu
desespero. Até mesmo o mais agradável aroma emanado pelas pastelarias era
desconsiderado. Alheio ao trânsito e ao alvoroço das pessoas, Voja estava
assediado por pensamentos melancólicos.

Enquanto esperava por seu asilo em Roma, Voja ouvira a história de um jovem
sérvio que havia fugido para Trieste e se inscrevera para ir aos Estados Unidos.
Seu pai era cidadão americano. Mas uma pessoa desconhecida havia acusado o
sérvio de ser espião. A última informação que Voja havia tido era de que dez
anos já se haviam passado e o homem ainda estava esperando em Trieste – agora
como residente permanente. Tanto quanto ele soubesse, o homem jamais havia
emigrado para os Estados Unidos.

Voja pensou na recente separação de Cveja. Cinco meses, uma semana e três dias
de tormento para ambos – não apenas por causa das circunstâncias probantes,
mas também por causa da extrema necessidade de estar juntos. Como poderiam
eles suportar outra extensa e potencialmente indefinida separação?

Nuvens escuras de chuva moviam-se no céu, e uma garoa gelada começou a cair.
Ao chegar ao edifício que havia sido seu lar por mais de um ano, sua capa estava
encharcada. O rosto latejava de frio, e ele estava tremendo.

– Sua aparência está horrível – observou Cveja quando viu não apenas as roupas
ensopadas do irmão, mas também a expressão desanimada no rosto dele. Voja
sabia que Cveja havia estado orando. Era sua prática diária e fonte contínua de
poder. Depois de se secar e trocar de roupa, Voja despejou sua história dolorosa.

– Nunca irei aos Estados Unidos, Cveja. Você terá que ir sem mim.

– Nada disso, meu irmão. Os Estados Unidos nada significam se você não
estiver lá. Podemos nos estabelecer aqui na Áustria. Temos trabalho, e o Sr.
Schäffer está disposto a se responsabilizar por nós como residentes permanentes.
Melhor ainda: podemos ir para a França. Kaća e Djoka estão lá. Ali nós
poderemos falar francês. – Ele forçou um sorriso. – Jamais nos separaremos
novamente.
Uma batida na porta interrompeu a conversa. O pastor Schnötzinger estava ali,
sorrindo.

– E daí, como é que foi? – perguntou ele, entrando no quarto. Voja o havia
informado da entrevista no consulado.

– Pastor, estou com um problema enorme – lamentou-se Voja quando o pastor se


juntou a eles à mesa. – Alguém me acusou de ser comunista. E não apenas
comunista, mas também espião. Não posso imaginar quem fez isso nem por quê.

O pastor franziu a testa.

– Não pode ser. Como seria possível tal coisa?

– Isso foi o que pensei também. Mas aconteceu. O cônsul disse que em tais casos
ele normalmente encerra o caso, uma vez que não pode investigar. Mas, por
alguma razão, ele me ofereceu uma oportunidade. Ele me perguntou se eu
poderia conseguir uma carta da Iugoslávia, que declarasse que eu não sou
comunista, que sou membro da Igreja Adventista em situação regular há anos. –
Ele enrugou a testa e franziu as sobrancelhas. – Não sei como pude dizer que
conseguiria. O problema é que o correio não é confiável, pois as autoridades
censuram a correspondência que entra e sai do país.

O pastor pensou um momento. Então seus olhos brilharam, e um largo sorriso se


abriu em seu rosto. Pondo-se de pé num salto, ele abriu os braços e olhou através
dos óculos. Keine Sorgen, mein lieber bruder Vitorović [Não se preocupe, meu
caro irmão Vitorović]! – berrou ele. – Amanhã irei à Suíça. A Divisão Sul-
Europeia da igreja vai ter sua reunião anual. O pastor Lorencin, da Iugoslávia,
deverá estar lá. Ele certamente poderá escrever esta carta para você. – Ele
gesticulou entusiasticamente com as mãos. – Escreva para ele hoje à noite.
Levarei a carta comigo amanhã de manhã. Quando eu voltar, trarei a resposta.
Nenhuma das cartas passará pelo correio ou será censurada!

Espantados, os gêmeos olharam primeiro para o pastor e, então, um para o outro.


Essa notícia era simplesmente incrível, e o momento da viagem do pastor não
poderia ser melhor. Talvez ainda houvesse esperança. Antes de se recolher para
dormir, Voja escreveu uma carta para o pastor Lorencin.

Naquela noite, ao se deitarem, os gêmeos se lembraram da promessa: “E será


que, antes que clamem, Eu responderei; estando eles ainda falando, Eu os
ouvirei” (Isaías 65:24). Mesmo antes que eles soubessem da existência do
problema, Deus havia preparado uma solução. “Senhor, perdoa a minha falta de
fé”, orou Voja. Louvando a Deus, ele mergulhou num agradável sono.

No dia seguinte, enquanto Cveja e Voja estavam trabalhando, o pastor


Schnötzinger tomou o trem para Berna, na Suíça. Em meio aos papéis que
carregava na pasta, estava a carta de Voja. Quatro dias mais tarde, ele voltou,
tarde da noite. Cedo na manhã seguinte, antes que os gêmeos saíssem para o
trabalho, ele os visitou em seu apartamento.

– Missão cumprida! – anunciou ele alegremente da soleira da porta. Radiante,


entregou a Voja um envelope.

Voja rapidamente abriu o envelope e tirou três folhas amarelas pautadas, de


tamanho oficial, nas quais o pastor Lorencin havia escrito à mão uma carta para
o cônsul americano. Voja a leu em voz alta, enquanto Cveja olhava por cima do
ombro de Voja:

“Ilustre senhor, como presidente da União Iugoslava da Igreja Adventista do


Sétimo Dia durante os últimos vinte anos, desejo testificar que conheço
pessoalmente Vojislav Vitorović e toda sua família. Ele e o irmão gêmeo,
Svetozar, a mãe e três irmãs são todos membros da igreja em situação regular.
Posso afirmar pessoalmente que ele não é nem jamais foi comunista...”

O pastor Lorencin prosseguiu enumerando várias razões por que ele acreditava
que isso era verdade, incluindo o fato de que ele conhecia os gêmeos desde que
eles tinham 11 anos de idade, que sua família havia sofrido sob o comunismo e
perdido sua atividade comercial, e que ambos os irmãos exerciam cargos de
confiança na igreja e eram membros ativos. Junto à sua assinatura, a carta
continha o carimbo da Divisão Sul-Europeia dos Adventistas do Sétimo Dia.

– Maravilhoso! – gritou Voja animadamente. – Pastor Schnötzinger, o senhor é


um anjo disfarçado! – E envolveu o pastor num exultante abraço.

– Talvez um anjo corpulento – disse o atarracado pastor com um sorriso.

– Se essa carta não ajudar, nada o fará. Vou levá-la ao consulado imediatamente.
– Voja se virou para Cveja e disse: – Diga ao Sr. Schäffer que vou chegar
atrasado.
– Não se preocupe, e boa sorte! – disse Cveja com bom humor.

Quando Voja chegou ao Consulado Americano, foi conduzido novamente para a


mesma sala à prova de som e sentou-se à mesma mesa de carvalho onde suas
esperanças haviam sido dizimadas. O cônsul e o tradutor alemão outra vez
sentaram-se do outro lado, à sua frente, como haviam feito antes.
Animadamente, Voja entregou a carta ao cônsul. Ele pegou a carta e examinou-
lhe as páginas, com um olhar de surpresa.

– Hbergghnnlllkhwwhrrrjlk. – Voja ouviu de novo os sons deturpados que não


conseguiu decifrar.

– Como você conseguiu isto tão depressa? – o intérprete traduziu a frase para o
alemão. A carta estava escrita em cirílico-sérvio, e o cônsul, um americano
típico, obviamente falava apenas inglês. Enquanto o cônsul folheava a carta,
Voja lhe contou sobre a viagem do pastor Schnötzinger e a reunião em Berna, na
Suíça. O cônsul devolveu-lhe a carta.

– Esta carta precisa ser traduzida para o alemão, e do alemão para o inglês.
Ambas as traduções precisam ser reconhecidas em tabelionato. Você precisa
achar um tradutor juramentado – disse o intérprete, repassando as instruções do
cônsul. – Procure trazer-nos isto de volta ainda hoje.

Voltando ao prédio da igreja, Voja irrompeu no escritório do pastor, ofegante e


com frio. Um vento gelado estava soprando do lado de fora, e uma neve suave
havia começado a cair. Ele tirou as luvas e esfregou as mãos.

– Pastor Schnötzinger, necessito de sua ajuda novamente.

Após contar a história, o pastor telefonou a um conhecido sérvio que tinha ali
perto um escritório com tradutores qualificados que poderiam fazer as duas
traduções.

Era quase meio-dia. Voja apressou-se pelas ruas molhadas, passou pelo
Mozarteum e chegou ao escritório do homem alguns quarteirões adiante. A neve
que havia começado a cair antes havia parado. Somente os quadrados sujos em
volta das árvores ao longo das ruas mantinham uma fina cobertura branca.

– O pastor Schnötzinger telefonou a respeito desta carta – disse ele ao homem no


escritório, após se apresentar. E entregou-lhe a carta.
– O tradutor sérvio está vindo do outro escritório para cá – disse o homem. – Ele
deve chegar a qualquer momento. Teremos isto pronto para você em mais ou
menos três horas.

– Vou esperar – disse-lhe Voja.

O relógio de Voja mostrava 15h30 quando o tradutor terminou. Ele entregou a


Voja a carta original e mais duas cartas datilografadas, cada uma assinada e
contendo o selo do cartório. Voja agradeceu, pagou cinquenta xelins e saiu.

Quando chegou ao Consulado Americano, eram 16h30, quase a hora de fechar.


Para seu alívio, o cônsul ainda estava lá. De volta à sala do segundo andar, os
três homens sentaram-se em volta da mesa de carvalho mais uma vez.

– A tradução em inglês e a carta original escrita à mão irão para Washington –


disse o cônsul através do intérprete. – Minhas próprias observações e
recomendações serão incluídas. Vou manter a tradução para o alemão em sua
pasta aqui – disse ele fazendo uma pausa. – Esta correspondência seguirá através
de canais diplomáticos, porque o correio normal é muito demorado. Mas preciso
adverti-lo de que, mesmo por meios diplomáticos, o processo geralmente demora
seis meses. – Ele fixou um olhar penetrante em Voja.

Voja ficou desanimado.

– Mas... – Ele começou a falar e então parou. Ele não dispunha de tanto tempo
assim, e o cônsul sabia disso. A situação estava fora de seu controle.

– Washington tomará a decisão final – concluiu o cônsul.

Era 14 de novembro. O visto de Cveja expiraria em 4 de fevereiro. A decisão de


Washington poderia ser uma ou outra, e ele tinha menos de três meses para
receber a resposta.
capítulo 18

o prazo final está se esgotando

–Nada! – reclamou Voja ao olhar para dentro da caixa do correio. Era a primeira
semana de dezembro de 1958, e eles haviam acabado de chegar do trabalho.
Desde a entrevista no Consulado Americano, a tão esperada resposta de
Washington dominava seus pensamentos quando estava desperto. Seria aprovada
sua solicitação? A resposta chegaria a tempo?

– Já se passou um mês desde a entrevista – disse Voja enquanto ele e seu irmão
relaxavam após o jantar. Eles haviam ligado o rádio, e se ouvia a Nona Sinfonia
de Beethoven ao fundo. Antes, a conversa havia excluído o assunto, mas agora
ele surgira. – Eu sei que isso toma tempo, mas...

– Ainda temos até 4 de fevereiro. Meu visto é válido até lá – interrompeu Cveja.

– Isso é menos de dois meses – respondeu Voja. Ele olhou para o calendário na
parede e observou os números. – A Pan American faz voos de refugiados duas
vezes por mês. Precisamos ter uma palavra do cônsul para conseguir lugar num
desses voos.

Os dias do mês de dezembro logo ficaram mais frios e úmidos. Os céus sombrios
diariamente traziam chuva fria, neve ou granizo. A neve logo se acumulou como
um tapete branco salpicado nos belos jardins e parques de Salzburgo, formando
montículos sujos ao longo das movimentadas ruas. Surpreendentemente, porém,
as ruas e calçadas eram mantidas relativamente desimpedidas.
O rio Salzach, cujas águas normalmente fluíam em forte correnteza serpeando
pelo centro de Salzburgo, ficou congelado por quilômetros, permitindo que as
crianças brincassem sobre sua superfície sólida e escorregadia. Esquiadores de
todas as idades se divertiam em toda parte – nas estreitas ruas sem trânsito da
cidade velha, em praças e parques, até mesmo nas estradas onde os motoristas
tinham que dirigir cautelosamente. No topo da cordilheira Monchsberg,
Hohensalzburg, a maior fortaleza preservada da Europa Central, ficou adornada
com neve grudada tenazmente aos paredões e torres. Pingentes de gelo, como
joias de cristal, estavam pendurados dos telhados góticos.

Todos os dias, ao retornarem do trabalho, os gêmeos verificavam a


correspondência. Mas não havia uma palavra sequer do consulado. O humor de
Voja se alternava entre o otimismo e o desespero. Num minuto, ele se imaginava
sentado no lar de Mladen na cidade de Nova York. No minuto seguinte, ele se
via no aeroporto de Munique, acenando adeus ao avião que levaria Cveja para os
Estados Unidos sem ele. E o que pensar de “O Pecado Imperdoável”? Ele a
conheceria um dia? Será que ela ao menos sabia que ele existia? Ela esperaria?
Apesar da incerteza, os gêmeos oravam pedindo orientação e disposição para
aceitar o que Deus determinasse.

Ao se aproximar o Natal, luzes coloridas surgiram ao longo das ruas da cidade,


grinaldas perfumadas adornavam os postes de luz e compradores de última hora
acotovelavam-se nas calçadas. Mas o Consulado Americano permanecia em
silêncio.

No dia de Natal, um obreiro bíblico que morava num apartamento no andar de


cima convidou os gêmeos para a ceia natalina.

– Fröhliche Weihnachten [Feliz Natal]! – o homem e a esposa os saudaram


quando eles chegaram. Naquele lar, os gêmeos viram pela primeira vez a cena da
manjedoura, um símbolo natalino ocidental. As belas figuras em cerâmica de
Maria, José e o menino Jesus ornamentavam o balcão na pequena sala de jantar.
Durante a noite, cada par compartilhou suas tradições.

– A saudação sérvio-ortodoxa é Hristos se rodi! – explicaram os gêmeos. – E a


resposta é Vaistinu se rodi!, que traduzida significa “Cristo nasceu!” e
“Verdadeiramente Ele nasceu!”. Gosto do caráter sagrado dessa saudação – disse
Voja.
– A maior diversão para nós quando crianças era, na véspera do dia 25, quando a
tora de Natal [bolo confeitado, no formato de um tronco] era trazida – continuou
Cveja. – Os pais escondiam laranjas, figos, nozes e presentes especiais numa
cobertura de palha embaixo da mesa de jantar para que as crianças os
procurassem.

– Mas não são figos nem nozes que eu preciso agora. É de um visto americano –
disse Voja com tristeza.

O casal acenou com a cabeça de modo compreensivo.

À medida que o ano de 1959 se aproximava, e a data de vencimento do visto de


Cveja ia chegando mais perto, a ansiedade dos gêmeos crescia. O Sr. Schäffer
havia recebido um grande projeto, e eles não queriam começá-lo só para
abandoná-lo pela metade. A terraplenagem para a nova comunidade de
Amstetten ainda não havia sido oficialmente aprovada. Assim, no fim de
dezembro, os gêmeos demitiram-se de seu trabalho. Eles poderiam viver com
suas economias enquanto decidiam seu futuro. Com emoções contraditórias, eles
disseram adeus ao arquiteto e sua família, os quais haviam passado a apreciar
muito.

– Têm certeza de que não querem ficar? Vocês sabem que eu me


responsabilizaria por vocês. Poderiam permanecer aqui – ofereceu novamente o
Sr. Schäffer. Mas os pensamentos dos gêmeos haviam se voltado para a
possibilidade de morar na França. Os invernos austríacos eram longos e frios, e
eles não gostavam do clima gelado. Além disso, eles queriam ficar a uma
distância maior da fronteira iugoslava, só para se sentirem mais seguros.

A segunda semana de janeiro chegou. Voja estava sentado no apartamento


olhando para o calendário. Somente cinco semanas restavam para que o visto de
Cveja expirasse. Cveja estava deitado na cama lendo pela enésima vez uma
cópia emprestada de Ana Karenina.

– Cveja – interrompeu Voja –, precisamos conversar.

Cveja olhou para ele, notando o tom sombrio na voz de Voja. Pôs de lado o livro,
girou as pernas para fora da cama e sentou-se.

– Não posso deixar que você se sacrifique. Esta é sua única chance de ir para os
Estados Unidos. Você não pode deixar seu visto expirar. Mais tarde, quando
estiver estabelecido, você poderá se responsabilizar por mim.

– Eu teria de ser cidadão americano para fazer isso. Levaria anos – respondeu
Cveja. – Não, meu irmão, minha decisão é definitiva. Eu não vou se você não for
comigo, nem mesmo para os Estados Unidos. – Sua voz era firme. – Aconteça o
que acontecer, ficaremos juntos. – Ele arrumou o travesseiro, deitou-se
novamente, apanhou o livro e reiniciou a leitura.

Noutra noite, Cveja sugeriu: – Por que não vamos ao Consulado Francês? – A
recente conversação o havia feito pensar. A segunda semana de janeiro havia
terminado sem uma palavra do Consulado Americano. – Já falamos sobre a
possibilidade de morarmos na França. Por que não perguntamos para ver o que
nos dizem?

Na segunda-feira seguinte, pela manhã, uma viagem de duas horas no trem


elétrico os levou ao Consulado Francês em Innsbruck, a capital do Tirol, cercada
por montanhas espetaculares.

– Então, vocês dois são arquitetos? – perguntou o cônsul francês depois que eles
fizeram a solicitação. – Podemos utilizar arquitetos na França. – Depois de
discutirem o assunto, ele apanhou seus passaportes e saiu da sala. Ao voltar,
vários minutos mais tarde, ele os devolveu com uma mesura!

– Aqui está – disse ele. – Concedi-lhes vistos de entrada válidos por dez anos.
Durante esse tempo, vocês poderão entrar e sair da França quando quiserem.
Podem morar lá e trabalhar. Se decidirem permanecer, poderão dar os passos
necessários. – Muito contentes, os irmãos agradeceram ao homem e saíram.

Os dois gêmeos falavam francês, de modo que a língua não apresentava


problema, embora a pronúncia de Cveja fosse muito melhor. Com o Plano B em
mente, eles voltaram para Salzburgo felizes e preparados para aguardar o
resultado da solicitação de Voja para ir aos Estados Unidos. Se os Estados
Unidos os rejeitassem, ou se a resposta não viesse a tempo, eles iriam para a
França. Cveja ficaria aliviado de não precisar se incomodar com o inglês. Eles
não veriam o edifício Empire State de Nova York nem a Quinta Avenida, mas
Paris tinha a Torre Eiffel e a Avenida Champs-Elysées. A troca não seria má. A
vida se torna simples quando a pessoa aceita o que ela oferece. Acima de tudo,
porém, Voja lamentaria não conhecer “O Pecado Imperdoável”.

Alguns dias depois, em 23 de janeiro, ao chegarem do mercado, eles


encontraram uma carta na caixa do correio. Voja a retirou ansiosamente.

– É do Consulado Americano! – gritou ele. A carta finalmente chegara. – Esta


pode ser a decisão – disse Voja, hesitando um momento antes de abri-la. Então,
puxou a carta de dentro do envelope. Era breve, e Voja a leu rapidamente:
“Prezado Sr. Vitorović, por favor, venha ao escritório do Consulado Americano
na terça-feira, 27 de janeiro, às 9 horas. Traga todos os seus documentos.
Solicitamos que seu irmão, Svetozar Vitorović, o acompanhe e traga os
documentos dele também.” Estava assinada “Andrew Michelin, Cônsul-Geral,
Consulado Americano”.

Voja ergueu os olhos, sentindo-se subitamente melancólico.

– Está aí – disse ele, estendendo a carta a Cveja. – Eles querem que você
também vá, provavelmente para cancelar seu visto.

Cveja releu a carta vagarosamente e então a devolveu.

– Bem, ao menos saberemos em que pé estamos – respondeu ele com um suspiro


resignado.
capítulo 19

uma espantosa sequência de eventos

No domingo seguinte, Ratko e Duško, os amigos do escritório de refugiados do


Concílio Mundial de Igrejas, vieram para almoçar.

– Boba envia suas desculpas. Surgiu algo no último minuto – explicou Ratko
quando os dois homens entraram no apartamento. Então ele sentiu o aroma no ar.
– Hum, isto é cheiro de podvarak? – ele indagou com o apetite aguçado. Voja
havia preparado o prato de repolho com bife defumado exatamente da maneira
como seus amigos gostavam.

– Devo estar no Céu – declarou Duško. Ele afrouxou a gravata e a atirou sobre o
ombro ao sentarem-se à mesa. Os gêmeos haviam trazido mais duas cadeiras do
outro quarto. Após o almoço, eles relaxaram e conversaram.

– Alguém me acusou de ser um espião comunista – disse-lhes Voja pela primeira


vez. E então ele contou como o pastor Schnötzinger havia ido à Suíça e trazido
de lá uma carta da igreja, a qual Voja apresentou ao Consulado Americano. –
Alguns dias atrás, chegou uma carta do consulado. Eles querem que eu vá lá na
terça-feira junto com Cveja. Ele deve levar todos os seus documentos. Estou
preocupado. Temo que eles anulem o visto de Cveja.

– Não necessariamente – disse Ratko. – Você sabe que as coisas nunca acabam
na véspera. – Ele olhou intencionalmente para Duško, o qual não lhe deu
qualquer indicação de que ele não devesse falar. Ratko continuou: – Talvez eu
não devesse lhe dizer isto, mas seu caso jamais seria reconsiderado se... se não
fosse Boba.

– Boba? O que você quer dizer? O que ele tem que ver com isso? – perguntaram
ao mesmo tempo os gêmeos.

– Alguns meses atrás, num domingo, provavelmente logo depois que você viu o
cônsul, Duško, Boba e eu estávamos sentados juntos num bar, tomando café,
quando Michelin chegou e veio até nossa mesa. Ele chamou Boba para um lado,
para conversar com ele em particular.

– Sobre Voja? – perguntou Cveja.

– Sim. Michelin queria saber se Boba conhecia bem vocês dois. Ele disse que
havia um sério problema com a solicitação de Voja. Ele deveria encerrar seu
caso, mas por alguma razão estava relutante em fazê-lo.

Os gêmeos estavam sentados boquiabertos e em total atenção, inclinando-se para


mais perto a fim de ouvir. Ratko continuou:

– Boba contou como ele veio a conhecê-los quando vocês trabalhavam no


Altersheim. Ele tem um elevado conceito de vocês dois. Todos os tipos de
pessoas passam pelos nossos escritórios, e ele passou a ter um apreço especial
por vocês. – Ratko fez uma pausa e sorriu. – Vocês não deveriam saber isto –
repetiu ele, olhando novamente para Duško. – Boba disse a Michelin que ele
confiava totalmente em vocês. Então ele fez algo dramático. Estendendo as
mãos, disse: “Ponho as minhas mãos no fogo por esse homem. Estou convencido
de que ele é inocente. Ele não pode ser comunista.”

Os gêmeos estavam sentados em silêncio, ouvindo com espanto e humildade


sobre a confiança que Boba depunha neles.

– Nunca havíamos imaginado o quanto nossa amizade significava para ele –


disse Voja. – Nós certamente o consideramos muito.

– Foi o próprio Boba que lhe disse isto? – perguntou Cveja elevando a voz.

– Não – respondeu Ratko abanando a cabeça. – Ele jamais faria isso! Foi
Michelin quem me contou, no mais absoluto segredo. Agora já lhes contei, e
vocês sabem. Mas não devem deixar transparecer que sabem! – disse ele
enfaticamente. – Boba ficaria terrivelmente constrangido e aborrecido comigo.

Depois que os amigos saíram, os gêmeos ainda espantados, refletiram sobre a


conversa.

– Talvez ainda haja esperança – exclamou Voja. – Como disse Ratko, as coisas
nunca acabam na véspera.

– Tal qual uma novela – murmurou Cveja. – Na terça-feira, veremos o próximo


capítulo.

Animados pela visita, os gêmeos se sentiram mais esperançosos em relação ao


compromisso no consulado. Ainda faltavam alguns dias. Finalmente 27 de
janeiro chegou – o dia em que o futuro deles seria decidido.

Cveja e Voja acordaram cedo. Nenhum deles havia dormido bem. Só


conseguiram engolir a metade do desjejum naquela manhã. Com idênticos ternos
azuis e gravata, eles saíram do edifício para uma nova manhã nublada.

– Tudo cinzento de novo. Todo dia é cinzento – reclamou Voja. – Céu de inverno
cinzento, circunstâncias cinzentas, futuro cinzento. Parece que a vida transcorre
numa região cinzenta.

– Bem, pelo menos não está nevando – respondeu Cveja. – Estamos em


transição.

Um motociclista madrugador passou roncando ao eles caminharem para o ônibus


elétrico que os levaria ao edifício de estilo clássico do Consulado Americano, na
Giselle Strasse, nº 13. Dentro da sala de espera, eles pararam em frente ao
guichê. A mesma eficiente e bela recepcionista ergueu os olhos e os
cumprimentou, encaminhando-os para o andar superior.

Eles galgaram penosamente os degraus e esperaram no vestíbulo, inquietos e


olhando para as portas. Voja não precisava adivinhar qual das portas se abriria.
Ele sabia. E olhou de perto, esperando que os dois homens saíssem.

Sem demora, a porta da direita se abriu, e o cônsul americano apareceu. Desta


vez, ele saiu sozinho. Intrigado, Voja olhou através da porta esperando que o
tradutor alemão aparecesse, mas ele não estava à vista. Isto é estranho, pensou
ele. Como iremos nos comunicar com este americano? Inglês é obviamente a
única língua que ele fala.

O cônsul caminhou até os gêmeos, pôs as mãos nos quadris e sorriu pela
primeira vez. Aquele não era, definitivamente, seu rosto oficial como cônsul
nem seu modo reservado habitual. Então o homem abriu a boca e falou com
perfeição na língua sérvia:

– Ko će da časti [Quem vai oferecer o brinde]? – Os cantos de sua boca


começaram a se contrair e então ele irrompeu numa gargalhada.

Chocados, Voja e Cveja se afastaram para trás, boquiabertos. Cveja lançou a


Voja um olhar como que perguntando: “Por que você não me disse?” Mas logo
viu que seu irmão não estava menos surpreso.

– Ahá! Peguei vocês, hein? – o cônsul continuou falando em sérvio, parecendo


divertir-se bastante com o espanto deles. Então os conduziu através das portas
almofadadas para a sala à prova de som onde eles se sentaram em volta da
conhecida mesa.

– Ninguém, mas ninguém mesmo, sabe que eu falo sérvio – começou o cônsul,
inclinando-se na direção deles. Ele falou com ênfase, e sua expressão ficou séria.
– Se esta informação se espalhar, meu escritório ficará repleto de refugiados.
Este segredo não pode sair daqui.

Ainda espantados, os gêmeos acenaram com a cabeça concordando.

– Mas... mas onde o senhor aprendeu sérvio? – perguntou Voja. – O senhor fala
fluentemente, como um nativo.

– Minha mãe era de origem sérvia. Ela me ensinou a língua quando eu era
criança. Os familiares de meu pai vieram da Bélgica. Servi dez anos na
Embaixada Americana em Belgrado. Eu costumava ir ao Restaurante Bristol
regularmente, procurava estudantes universitários, pagava-lhes o almoço e
praticava conversação com eles. – Ele se inclinou para trás e relaxou, parecendo
satisfeito em falar.

– E alemão? O senhor não fala um pouco? – quis saber Cveja.

– Oh, não – disse o cônsul balançando a cabeça. – Eu não aprenderia. – Ele


ergueu a cabeça e se inclinou para frente de novo, descansando os cotovelos
sobre a mesa. A pasta de Voja estava em frente dele.

– Muito bem, vamos agora tratar de coisas mais importantes – disse ele. Em
meio a toda essa animação, os gêmeos quase se esqueceram da razão para a
visita. O cônsul abriu a pasta e então ergueu os olhos, fixando-os nos dois rostos
idênticos que olhavam para ele. Agitando um dedo no ar entre eles, seus olhos se
moveram de um gêmeo para o outro. – Bem, qual de vocês é Vojislav? –
perguntou ele timidamente.

– Sou eu – respondeu Voja com uma risada. Foi a vez dos gêmeos se divertirem.
– Eu sou o original. Sou dez minutos mais velho. Ele é a cópia – acrescentou,
sorrindo.

– Uau, vocês são mesmo parecidos! Até as vozes de vocês são iguais –
respondeu o cônsul fazendo uma pausa. – Muito bem, Vojislav, tenho boas
notícias para você. Seus documentos chegaram, e Washington aprovou sua
solicitação. Você vai para os Estados Unidos!

Voja ficou sentado imóvel. Teria ele ouvido direito? Estava sua mente lhe
pregando peças? Ele se virou para Cveja, que estava sentado ereto na beira da
cadeira brilhando como uma lanterna. Sim, era verdade. Ele estava tão aturdido
que não conseguia falar.

– Graças a Deus! – exclamou Cveja em lugar dele. – Essas notícias são


maravilhosas!

– Mas... mas... – gaguejou Voja, finalmente recobrando a voz. – E o meu exame


físico?

– Ah, sim – respondeu o cônsul dando uma batidinha na têmpora, com uma
insinuação de travessura em seu sorriso. Dirigindo-se a Cveja, perguntou: – Você
trouxe seus documentos?

Cveja lhe estendeu um envelope grande, marrom. Michelin revisou o conteúdo


parecendo satisfeito.

– Todas as informações aqui são exatamente as mesmas para vocês dois. Sua
data e local de nascimento, endereço, descrição física, nomes dos pais, profissão,
religião, tudo! – Ele apontou para o papel. – A única diferença é o primeiro
nome.
Aquilo estava além da compreensão dos gêmeos. De repente, as coisas
começaram a andar rapidamente.

– Para acelerar o processo, faremos uma cópia deste documento e então vamos
simplesmente apagar o nome Svetozar e escrever Vojislav. – Ele fez uma
avaliação de Cveja. – E talvez mudar o peso. – Desde que chegara macilento à
Áustria, Cveja havia ganhado mais de vinte quilos. Agora ele pesava mais do
que o irmão.

– Vojislav, você tem algum problema de saúde? – perguntou ele.

– Não que eu saiba.

– Exatamente como pensei. Um saudável espécime sérvio, você não pode ser
muito diferente de seu irmão. – Então ele ligou para a secretária, entregou-lhe os
documentos e lhe deu instruções.

– O voo de refugiados da Pan American sai amanhã, e vocês estarão nele –


anunciou o cônsul voltando-se para os gêmeos. – Sai de Munique às 19 horas.

Os gêmeos trocaram olhares estupefatos. Aquele era o último voo da Pan


American antes que o visto de Cveja expirasse, em oito dias.

Pouco depois, a secretária voltou com dois maços de papéis e dois envelopes
grandes. O cônsul folheou-os e pôs um maço num envelope. Entregando-o a
Voja, disse:

– Aqui estão o visto americano e seus documentos. – Em seguida, pôs os


documentos de Cveja no outro envelope e os devolveu a ele.

– Levem estes envelopes ao escritório de refugiados no Concílio Mundial de


Igrejas. Eles providenciarão as passagens de avião e alguns papéis mais para
assinar. – Ele fechou a pasta, deixando que sua mão direita caísse com um baque
num gesto final. E sorriu outra vez.

– Ah, mais uma coisa – disse ele, erguendo o dedo indicador, como se tivesse
acabado de ter uma ideia. – Vou ligar para a Pan American para ter certeza de
que ainda há lugares. – Ele apanhou o fone, e os gêmeos trocaram outro olhar de
espanto. As coisas estavam andando tão depressa agora que eles ficaram sem
fôlego.
– Vocês acabaram de conseguir! – exclamou o cônsul, pondo o fone no gancho.
– Havia apenas três lugares. Reservei dois para vocês. – Então ele se levantou,
apertou-lhes as mãos vigorosamente e lhes desejou tudo de bom. – Deem-me
notícias de como vocês estão se saindo nos Estados Unidos – disse ele,
escoltando-os para fora da sala.

– Sr. Michelin – Voja parou na porta e se voltou. – Há uma coisa que eu gostaria
de saber. É sobre o meu acusador.

Michelin sorriu compreensivamente. – Lamento não poder dizer-lhe. Essa


informação obviamente é confidencial. – Ele colocou a mão no ombro de Voja e
o olhou nos olhos. – De qualquer maneira, que bem lhe traria saber disso? Às
vezes, as pessoas que são rejeitadas lançam sua frustração sobre outros. Quem
sabe por que as pessoas fazem o que fazem? Seja como for, Božja je osveta [A
vingança pertence a Deus].

Eles novamente apertaram as mãos, e os gêmeos, carregando seus preciosos


documentos, flutuaram escada abaixo, passando pela recepcionista e saindo do
edifício.

Era uma caminhada de três quilômetros até o escritório de refugiados. Pela


primeira vez em duas semanas, o sol de inverno brilhou. As ruas e passarelas
haviam sido limpas da neve, exceto uma camada fina e seca que teimava em se
apegar ao chão e era esmagada pelas solas de borracha de seus sapatos. Falando
pouco enquanto caminhavam, os gêmeos lançavam-se olhares desnorteados e
rápidos sorrisos ocasionais, e não conseguiam parar de abanar a cabeça. Tendo
esperado quase dois anos com o futuro indefinido, eles agora estavam
embriagados com a velocidade com que as coisas repentinamente haviam se
encaminhado.

Chegando ao prédio marrom de aspecto militar, eles abriram a porta e entraram


na área aberta.

– Acabei de conseguir meu visto! Vamos embora amanhã! – anunciou Voja aos
surpresos funcionários, que imediatamente os cercaram, lançando perguntas de
todos os lados.

Nesse instante, Boba saiu de seu escritório.

– Entrem, entrem. Digam-me o que aconteceu – disse ele, fechando a porta atrás
deles. Eles se sentaram em frente à escrivaninha. – Voja, quando você fez o
exame médico?

Voja encolheu os ombros. – O que sei é que foi tudo completado e tenho todos os
documentos – respondeu ele.

– Perfeito. Os detalhes, afinal de contas, não são importantes – replicou Boba


sorrindo calorosamente. – Vocês esperaram muito tempo. Estou orgulhoso de
vocês, meus rapazes. Foi um privilégio conhecer vocês.

Voja se lembrou das palavras sinceras de Boba que haviam induzido o cônsul a
reconsiderar seu caso. Ele desejava expressar gratidão a Boba por sua confiança,
mas isso trairia o seu segredo. Em seu coração, ele pediu a Deus que abençoasse
aquele nobre homem que havia dedicado a vida para servir a outros.

– Quando chegarem aos Estados Unidos – aconselhou Boba –, procurem


trabalhar em sua profissão. Estejam dispostos a começar de baixo, não importa
quão pequeno seja o salário. Vocês podem progredir. E mesmo que vocês
prefiram falar sérvio, ou qualquer outra língua no que diz respeito ao assunto –
ele riu e olhou para Cveja –, aprendam a falar inglês. Vocês conseguem, se
tentarem. Bem, agora me deixem apanhar suas coisas.

Ele saiu do escritório e voltou em alguns minutos com dois pequenos envelopes
e duas sacolas de lona azul-marinho.

– Aqui estão os documentos que vocês precisam para o voo. Mostrem-nos ao


encarregado da imigração no aeroporto – instruiu Boba, entregando aos gêmeos
os envelopes selados. – Eles contêm as passagens de avião e os crachás de
identificação do Concílio Mundial de Igrejas com seus nomes. E estas sacolas
identificarão vocês como membros do grupo de refugiados. – Ele segurava as
sacolas decoradas com as iniciais do Concílio Mundial de Igrejas em azul-claro,
no lado. Então ele se levantou, estendeu as mãos e abraçou os gêmeos. Com o
coração transbordante de gratidão, profunda demais para ser expressa, eles lhe
agradeceram por tudo que havia feito por eles. Os detalhes permaneceram sem
ser ditos.

Logo que chegaram a casa, eles correram ao escritório do pastor Schnötzinger


para lhe dar as boas-novas.

– Gott sei dank [Graças a Deus]! – gritou o pastor. Ele se pôs em pé de um salto
e os abraçou. Quando os gêmeos voltaram ao seu apartamento, começaram a
arrumar suas roupas e a se preparar para a partida. O restante do dia foi gasto
dizendo adeus às pessoas do edifício.

A notícia de que os gêmeos estavam indo embora se espalhou rapidamente.


Membros da igreja que moravam nas proximidades apareceram lá para lhes
desejar boa sorte, abraçá-los e lhes dar pequenas lembranças – uma caneta, uma
caixa com artigos de papelaria, um pedaço de torta de maçã feita em casa para a
viagem. Após dois anos de espera, chegara o tempo de seguir adiante.
capítulo 20

encontro com o futuro

Voja acordou cedo na manhã seguinte com o ruído de motores e o ronco de


caminhões. Era quarta-feira, 28 de janeiro de 1959. Ele e seu irmão tinham um
encontro com o futuro.

Pulando da cama, ele correu para a janela e puxou a cortina para o lado. O ar do
lado de fora parecia gelado e nevoento, e o peitoril da janela estava com um
filete de neve. Uma quantidade maior dessa substância branca e fofa emoldurava
o parapeito da sacada e cobria os telhados. O gelo resplandecia como joias de
prata nos galhos desfolhados dos castanheiros e plátanos lá embaixo.

– Era só o que faltava: neve! – ele resmungou para si mesmo. Ele podia ouvir as
máquinas rua abaixo, quebrando e limpando a neve, e os caminhões silvando e
roncando ao removê-la. – Não me importo com o que os outros dizem. A neve
não é bela! Eu não gostaria de ser uma dessas árvores! – Ele franziu a testa,
fechou novamente as cortinas e se voltou para Cveja, que acabara de sair do
chuveiro usando um roupão e com uma toalha em volta do pescoço. – Faz muito
frio em Nova York? – perguntou Voja.

– Nova York? Não sei – disse ele, dando de ombros. – Não importa quanto frio
faça, é nos Estados Unidos – respondeu Cveja de modo antipático.

Ao colocarem os demais pertences em suas malas, eles olharam ao redor da sala


onde haviam recebido tantos amigos. Estavam empacotando suas vidas e dando
um adeus definitivo à Europa. Na mala de Voja, estava um livro didático em
inglês, bastante danificado. Ele também acomodara na mala a foto da brochura
de “O Pecado Imperdoável” e a foto fora de foco da qual ele não gostava. Ele
olhou para a foto novamente e sorriu para si mesmo: “Minha garota americana.”

– Vocês estão prontos? – chamou o pastor Schnötzinger ao bater à porta. Em


pouco tempo, as famílias que trabalhavam e moravam no edifício haviam
preparado uma festinha de despedida para os gêmeos no salão da igreja.
Reunidos em volta de uma longa mesa, eles falaram sobre o passado ao
participarem da última refeição juntos.

– Du bist mein Strizi [Você é um maroto] – disse o pastor a Voja, agitando o


dedo roliço e rindo cordialmente. Durante quase dois anos, o pastor havia sido o
duvidoso beneficiado de muitas das piadas de Voja. – Quem vai me fazer rir
depois que você for embora? E de quem irei caçoar quando você não estiver
mais aqui? – perguntou ele ainda rindo.

– Und Du bist mein Sanger [Você é o meu cantor] – disse o pastor voltando-se
para Cveja. Ele pôs o braço rechonchudo no ombro de Cveja. – Vou sentir falta
de você e de seus cânticos. Eles alegraram meu coração.

O pastor sempre estivera à disposição quando os gêmeos precisaram de ajuda, e


eles também nunca o decepcionaram. Um profundo laço de amizade havia se
desenvolvido entre os três homens, e foi com grande tristeza que eles
aguardaram a iminente separação.

Por volta das 15 horas, o pastor Schnötzinger conduziu os gêmeos para fora do
edifício até seu Volkswagen.

– Não vamos caber aí dentro – cochichou Voja para Cveja ao olharem o carro, o
corpulento pastor e sua filha do mesmo tamanho. O pastor adivinhou a
preocupação deles e disse:

– Respirem fundo e não soltem o ar.

De alguma maneira, eles conseguiram se apertar lá dentro: o pastor e a filha nos


bancos da frente, Cveja e Voja atrás, e as malas no porta-malas. Aquela seria a
última viagem dos gêmeos naquele carro.

Dois ônibus fretados esperavam na frente do Concílio Mundial de Igrejas,


quando os quatro chegaram. Dentro do escritório de imigração, mal havia lugar
para as muitas pessoas andando para lá e para cá. Refugiados dos campos
próximos estavam dizendo adeus e assinando a lista de partida de Boba. Alguns
refugiados, que haviam vindo para ver os outros viajar, começaram a chorar
porque jamais iriam para os Estados Unidos. Por alguma razão, seus pedidos
haviam sido rejeitados, e eles haviam se candidatado a ir para outros países.
Lágrimas de alegria e tristeza corriam livremente enquanto os amigos se
abraçavam – os que haviam sido ajudados e aqueles que os ajudaram. Com toda
probabilidade, eles nunca mais se veriam.

Mais tarde, os refugiados começaram a se dirigir para fora, reunidos em


pequenos grupos na calçada. Ratko e Duško ficaram em frente da porta ao lado
dos gêmeos, do pastor e de sua filha. Funcionários apareceram olhando através
da vidraça embaçada e acenaram. O pastor Schnötzinger inclinou a cabeça e
dirigiu uma oração junto ao pequeno grupo. Então, todos se abraçaram, disseram
adeus e relutantemente se afastaram.

Os refugiados, com os olhos vermelhos e o nariz fungando, entraram nos ônibus,


os quais saíram com uma multidão de mãos acenando para fora das janelas. Com
votos de boa sorte ecoando em seus ouvidos, as faces molhadas de lágrimas,
rostos queridos gravados na memória e com o coração agitado, os refugiados
começaram o primeiro trecho de sua viagem.

A forte nevasca que caíra na noite anterior havia deixado muito entulho. A
maioria das ruas havia sido limpa, mas as que estavam atravancadas de neve
retardaram o avanço. A viagem de 120 quilômetros para Munique levou mais de
duas horas. Munique havia sido a capital da Bavária desde o século 16 e, em
1919, dera origem ao que se tornou o Partido Nazista. Embora a Segunda Guerra
Mundial houvesse terminado 14 anos antes, alguns edifícios ainda jaziam em
ruínas. Ao olhar para fora da janela, Voja viu outros edifícios ladeados de
andaimes, parecendo estar em vários estágios de reforma. Apesar do mau tempo,
os ônibus chegaram ao Aeroporto Internacional de Munique com mais de uma
hora de antecedência.

Voja, Cveja e os outros refugiados saíram dos ônibus com seus parcos pertences,
seguindo o líder para o terminal designado para cada grupo. Após passarem pela
alfândega e imigração, a fim de que passaportes, documentos de vacinação e
outros papéis fossem verificados, eles se dirigiram para o portão de embarque e
esperaram.
“Voo 800 para Nova York, embarque pelo portão 10”, foi finalmente anunciado
em alemão pelo alto-falante. O coração de Voja saltou de emoção. As palmas de
suas mãos estavam suadas. Ele e Cveja estavam agora a caminho dos Estados
Unidos.

Formando fila com o nervoso e estranhamente silencioso grupo, eles esperaram


para embarcar no avião quadrimotor. Aquele seria o primeiro voo de sua vida.
Logo todos estavam a bordo.

Após os anúncios prévios, o sinal “Apertem os Cintos” se acendeu, e os


passageiros obedeceram ao aviso. Logo os motores começaram a troar, e o avião
rodou lentamente para a cabeceira da pista. Então, com os motores roncando
com a máxima potência, o avião arremeteu para a frente, empurrando os gêmeos
contra o encosto de suas poltronas. O piloto virou o nariz do avião para o céu, e
eles decolaram em meio ao céu noturno. Alguns minutos depois, seu mundo
desapareceu embaixo das nuvens.

Olhando pela janela através de alguns espaços nas nuvens abaixo, Voja viu luzes
de cidade espalhadas. Ele ficou impressionado com o pensamento de que estava
flutuando serenamente acima do turbulento clima e das políticas conflitantes dos
países lá embaixo. Os outros passageiros também pareciam arrebatados.
Estavam sentados em estranho e imóvel silêncio, todos imersos em seus
pensamentos. Somente o ronco contínuo dos motores e uma ocasional voz
abafada ou choro de criança interrompia a melancólica tranquilidade. Voja se
inclinou para trás, sentindo-se maravilhosamente vivo. Estava dizendo adeus à
velha vida, e uma nova experiência o aguardava do outro lado do oceano.

Com poucas exceções, os 120 passageiros eram quase todos refugiados. Jovens e
velhos, homens, mulheres e crianças pequenas – todos em viagem para novos
lares numa terra estranha – pareciam suspensos num mundo irreal, com o
passado batendo em retirada lá embaixo, e o futuro desconhecido, mas cheio de
esperança. O pouco que a maioria deles sabia sobre os Estados Unidos provinha
de suas aulas de geografia e história na escola, dos programas da Radio Free
Europe e dos filmes de Hollywood com finais felizes. Sonhos de liberdade e
esperanças de uma vida melhor os levaram a crer que nos Estados Unidos,
conforme os filmes retratavam naquele tempo, os bons sempre venciam, e o
crime nunca compensava.

– Há uma nevasca em Shannon, na Irlanda. O aeroporto está fechado – anunciou


o piloto algum tempo depois. – Estamos alterando a rota e reabasteceremos nas
Ilhas Canárias.

As luzes da cabine foram reduzidas. Muitos passageiros começaram a cochilar


enquanto outros olhavam a escuridão através da janela.

Quando o avião aterrissou nas Ilhas Canárias, às 2h da madrugada, Cveja e Voja


saíram em meio à fragrante brisa tropical e às oscilantes folhas de palmeiras.
Eles tinham certeza de que era um sonho, do qual eles não queriam despertar.

Quando alçaram voo novamente, Voja começou a refletir sobre os eventos dos
dois últimos anos. Voltando-se para Cveja, perguntou-lhe:

– Você se lembra daquele dia no Parque Kalemegdan?

– Como poderia me esquecer? – replicou Cveja. Ele estava bem desperto,


reclinado em sua poltrona, com um travesseiro atrás da cabeça. Seus
pensamentos em seguida retrocederam para aquele dia primaveril, quando ele e
Voja haviam saboreado a primeira promessa real de liberdade, apegaram-se às
promessas de Deus na Bíblia e contemplaram o voo do falcão cinzento.

Voja olhou para o escuro através da janela. Lá embaixo, em meio às trevas da


noite, jazia o vasto Oceano Atlântico. Ele pensou na liberdade com que as águas
se moviam, com que facilidade navios cargueiros e de cruzeiro riscavam as
águas para os lugares mais distantes do mundo. E ali em cima, na atmosfera, o
avião planava facilmente através do ar. Os motores continuaram roncando
ruidosamente enquanto o avião deslizava ao sabor do vento – o falcão cinzento
dos gêmeos, enorme e forte, transportando-os para a liberdade. Eles já faziam
parte dela agora, movendo-se livremente.

– Tantas coisas aconteceram desde então – ele pensou em voz alta. – Tantas
coincidências.

– Sim, estranhas e fascinantes, maravilhosamente interligadas – retorquiu Cveja.


– É incrível como Deus ajuntou tudo e solucionou nossos problemas.

– Como quando meu nome foi aprovado para a viagem a Roma – exclamou Voja
quase reverentemente. – E quando o cônsul americano confiou em Boba. Ele
correu um grande risco ao encaminhar meus documentos. E o que levou Boba a
dizer aquelas palavras? Elas fizeram diferença para mim.
– Com certeza. Ele é um homem generoso. – Cveja olhou para o irmão. – Eu
poderia ter sido preso várias vezes, mas não fui. Até poderia ter sido morto! –
Ele fez uma pausa e se lembrou: – O acidente de ônibus me salvou de ir para a
prisão com o grupo com o qual me desencontrei.

– E se aquela mulher em Rijeka não tivesse olhado a ficha de Bartoni e


descoberto que ele trabalhava para a polícia, você não estaria aqui – acrescentou
Voja. – Eu também não estaria aqui se você tivesse aceitado aquele outro
emprego em Salzburgo.

Os dois homens ficaram em silêncio e fecharam os olhos cansados. Não


demorou muito, o céu começou a clarear no leste ao se aproximar a alvorada.

– Devido a uma forte nevasca, o Aeroporto de Idlewild (que passou a se chamar


Aeroporto JFK em 1963), em Long Island, está fechado – disse o piloto no alto-
falante algum tempo depois. – Teremos que alterar a rota para Gander,
Newfoundland. Esperaremos lá até que sejamos liberados para continuar. – O
anúncio despertou os gêmeos de sua sonolência.

– Oooooh! – um gemido baixo expressou o desapontamento dos poucos


passageiros que entendiam inglês. Imediatamente, perguntas em voz baixa se
espalharam confusamente pela aeronave, nas línguas húngara e sérvio-croata. –
O que ele disse? O que ele disse?

A esta altura, o inglês de Voja havia melhorado um pouco e, ao conferir com


outro refugiado, ele foi capaz de entender a mensagem. Logo o avião desceu em
Gander, onde esperaram o aviso para decolar novamente.

Após três horas nesse último trecho do voo, tocou uma campainha e acenderam-
se as luzinhas dos avisos “Apertem os Cintos” e “Proibido Fumar”. Voja sentiu o
bico do avião inclinar-se para baixo. Os comissários de bordo caminharam pelo
corredor, e o avião começou lentamente a descer. Todos os passageiros estavam
agora bem acordados e ansiosos, falando com empolgação.

– Logo veremos a ilha de Manhattan.

Com esse anúncio do piloto, todos os olhares se voltaram para as janelas. A


palavra “Manhattan” era inconfundível. Os refugiados olharam para fora das
janelas, estendendo o pescoço de um lado para o outro num esforço para ter um
vislumbre da cidade de Nova York.
Flutuando para baixo, o avião se inclinou acentuadamente sobre a baía de Nova
York, e alguém gritou: “A Estátua da Liberdade!” Todos os olhares se voltaram
para as janelas daquele lado. Lá embaixo, na Ilha da Liberdade, a Mulher da
Liberdade se mantinha ereta, erguendo bem alto sua tocha. Ao verem esse
símbolo de boas-vindas, os passageiros irromperam num ruidoso aplauso.

Mas havia outra mulher em Nova York que Voja esperava que lhe desse boas-
vindas. Uma mulher pela qual ele havia esperado por muito tempo. Ele se
perguntava: Qual seria sua aparência? Seria ela o que parecia? Ela ainda estaria
esperando? Havia ela realmente esperado?

Com os olhos colados à janela, os gêmeos absorveram cada detalhe ao avaliarem


a terra que seria seu futuro lar. Eles não queriam deixar de ver os marcos sobre
os quais haviam estudado na escola – isto era uma pré-estreia da vida que
começaria em breve. Lá embaixo, eles viram uma nova, estranha e real cidade, a
ilha de Manhattan, uma selva de vidro, aço e concreto. Acima dos demais
pináculos, erguia-se o Empire State Building, o mais alto edifício do mundo na
época.

– Lá está o parque mais caro do mundo – anunciou o piloto ao voarem sobre o


Central Park, no meio da ilha de Manhattan. Os passageiros olharam e viram lá
embaixo o longo retângulo verde pontilhado de lagos azuis ladeado de edifícios
que pareciam tocar as nuvens. O piloto virou à direita e direcionou o avião para
Long Island.

– Do lado direito, vocês podem ver a Ponte do Brooklyn! – indicou o piloto. –


Não está à venda hoje – brincou ele.

Quase 24 horas depois de partir de Munique, o avião aterrissou no Aeroporto de


Idlewild. Ali, em duas poltronas, das últimas três disponíveis, no último voo de
refugiados antes que o visto de Cveja expirasse para sempre, os gêmeos
chegaram ao sonhado destino.

– Bem-vindos aos Estados Unidos! – disse o piloto quando o avião parou junto
ao portão. Os gêmeos trocaram olhares de expectativa. Aquela declaração de
boas-vindas os incluía. Havia sido um longo voo, com muitos desvios, tal qual a
própria experiência deles. Eles se sentiram como se tivessem viajado um milhão
de quilômetros. E, às 11h30, na quinta-feira, 29 de janeiro de 1959, Voja e Cveja
pisaram em solo americano.
Lá fora o dia estava cinzento como o que haviam deixado para trás. A neve havia
sido retirada das pistas, mas havia neve empilhada em todo lugar. Os prédios e a
torre de vidro e aço do aeroporto eram muito semelhantes aos de qualquer outro
aeroporto. Mas os gêmeos agora estavam nos Estados Unidos, para onde sempre
sonharam ir. Todos os desapontamentos e provações que os haviam levado
àquele lugar, todas as peças embaralhadas do quebra-cabeça haviam se juntado
para formar uma imagem que tinha o selo divino.
capítulo 21

voja conhece o “pecado imperdoável”

No Aeroporto de Idlewild, demorou algum tempo para que os documentos dos


gêmeos e a bagagem fossem liberados pela Alfândega e a Imigração. Quando
Voja e Cveja finalmente saíram, encontraram seu amigo Mladen os esperando.
Depois que a companhia aérea anunciou o atraso do avião, ele havia ido para
casa nesse ínterim e voltado a tempo para o novo horário de chegada. Ao irem
para o apartamento de Mladen, em seu Plymouth 1957, havia muito que
conversar.

Eram quase 2h da tarde quando os três homens subiram as escadas e entraram no


apartamento de Mladen, no segundo piso, em Jackson Heights, e ali encontraram
Mela e os quatro filhos do casal esperando para lhes dar calorosas boas-vindas.
Mirjana e Nevenka, as duas garotas mais velhas, das quais Voja havia cuidado
depois que o casal deixou o país, estavam agora com 12 e 10 anos
respectivamente. Embora estivessem mais velhas agora, ainda eram pequenas.
As duas crianças mais jovens eram Nadica, com três anos de idade, e Djordje,
com apenas 13 meses.

Os agradáveis odores de gibanica e repolho recheado se espalharam ao redor da


pequena cozinha enquanto a família e seus convidados relembravam os velhos
tempos, e Mela arrumava a mesa para o jantar.

– Vocês se lembram de quando eu as levei ao campo, perto da casa de sua avó e


vocês escorregaram nos montes de feno? – perguntou Voja às meninas mais
velhas, procurando se religar a elas.

– Sim, aquilo foi muito divertido! – exclamou animadamente Mirjana, a mais


velha.

– Você estava sempre brincando conosco e nos contando histórias – disse


Nevenka. – Daj moju djigericu! – gritou ela com voz áspera, imitando a
interpretação de Voja. Depois de cochichar uma história assustadora para elas,
ele concluía com uma exigência em altos brados: “Devolvam o meu fígado!” E
as duas meninas riam estrondosamente. – Aquela história nos deixava
aterrorizadas! – acrescentou Nevenka. – Mas gostávamos muito de ouvir você
contá-la!

Eles riram e conversaram durante o jantar, relembrando os dias felizes em


Belgrado. O antigo lar desse alegre casal havia sido um refúgio para os
estudantes que se reuniam lá com frequência. Os gêmeos haviam desfrutado
muitas vezes da hospitalidade do casal e da excepcional culinária de Mela.

Quando o grupo terminou de comer, o relógio mostrava quatro horas da tarde. A


luz do dia já começava a se desvanecer do céu, e o sol se punha no horizonte. Os
dias eram curtos agora, no meio do inverno. Os gêmeos bocejavam, exaustos por
sua longa viagem. Desacostumados com a diferença de sete horas no fuso
horário, estavam prontos para dormir.

Num dos quartos, um lençol pendurado numa vara o dividia em dois


compartimentos. As duas meninas mais velhas dormiram num lado; e os
gêmeos, no outro. Mladen, Mela e as duas crianças menores dormiram no
segundo quarto. Os quartos eram apertados, mas era uma acolhida inicial para os
gêmeos até que eles conseguissem trabalho e pudessem alugar seu próprio
espaço.

Mas a pergunta que incomodava a mente de Voja não lhe dava descanso. Antes
de se recolher para dormir, ele precisava de uma resposta.

– Mela, que tipo de foto você me mandou daquela garota? Ela não é nem um
pouco bonita – disse ele.

– Que foto? Oh, você se refere à que Mladen tirou? – Ela abanou a mão e riu. –
Ninguém sai bem nas fotos dele. Você não sabe disso? De qualquer modo, Voja,
você vai vê-la na igreja.
Na manhã seguinte, quando eles acordaram, Mladen já havia saído para
trabalhar. Seu trabalho de impressão em Long Island o obrigava a viajar com um
bilhete mensal. Mirjana estava usando o único banheiro, e Nevenka esperava a
sua vez.

– A sua vez é depois de Nevenka – disse Mela aos gêmeos rindo com
naturalidade. – Temos que esperar na fila, como fizemos durante a ocupação.
Hitler nos ensinou a ser pacientes. – Ela riu de novo.

Depois que o desjejum terminou, e as meninas mais velhas saíram para ir à


escola, Mela perambulou pelo apartamento e se preparou para ir à mercearia
fazer compras.

– Hoje vocês vão ver como são os mercados de alimentos nos Estados Unidos –
disse ela. Então colocou Nadica e Djordje num carrinho dobrável, e todos saíram
caminhando para a mercearia.

Ao entrarem lá, os olhos dos gêmeos se arregalaram. A visão das prateleiras


repletas de mercadorias coloridas de todos os tipos, cada seção com muitas
variedades e tudo quanto era produto viçoso em pleno inverno, os deixou
assombrados.

– A Áustria tem suas mercearias; a França, os seus supermercados; mas nada se


compara a isto! – exclamou Cveja. – Vocês têm até laranjas em janeiro!

Mela tirou as crianças do carrinho dobrável e as colocou num carrinho de


compras. Então dobrou o carrinho delas e pendurou-o na frente do carrinho do
mercado. Cveja apanhou outro carrinho de compras, que não era grande, e então
caminharam pelos corredores. Depois de escolherem um peru grande para ser
assado para o jantar de sábado, alguns vegetais para fazer uma salada e vários
outros produtos de sua lista de compras, Mela, as crianças e os convidados foram
para casa.

Ao chegarem ao apartamento, Mladen já estava lá. Às sextas-feiras, seu trabalho


terminava ao meio-dia. Àquela hora, o trânsito no Grand Central Parkway era
calmo, de modo que a viagem de retorno era relativamente breve.

– Ei, Mela, dê-me algo para comer. Já estou quase roendo a mesa – queixou-se
ele impacientemente.
– Mladen, você vai ter que esperar – respondeu ela, apressando-se para preparar
o almoço.

Depois que todos se sentaram à mesa, Mladen agradeceu a Deus por Suas
bênçãos e pela chegada em segurança dos amigos.

– Comam, comam! – insistiu Mela com as filhas mais velhas quando as viu
lambiscando o alimento. – Vejam como estão magrinhas! Se quiserem ficar
bonitas como Ena, vocês precisam comer – riu Mela.

Já que Mela havia mencionado o nome de Ann, Voja rapidamente perguntou a


Mladen acerca da garota que por tanto tempo havia ocupado seus pensamentos.

– Aquela brochura que você mandou, O Pecado Imperdoável, mostrava a foto de


uma garota – disse Voja, mudando habilmente de assunto.

– Você quer vê-la, não é mesmo? – disse Mladen, provocando-o. – Mas lembre-
se de que ela é uma garota séria, gente fina. Portanto, veja lá como você se
comporta, seu malandro – riu ele.

– Então você quer ver Ena? – ecoaram as meninas mais velhas.

– Sim, quero! – exclamou Voja com ênfase. Ele sorriu e disse: – E daí?

O dia seguinte era sábado. Voja e Cveja levantaram-se cedo para não terem que
esperar na fila para o banheiro, mas eles ainda estavam meio atordoados, pois
seu corpo não se havia acostumado ao horário local. Os outros se levantaram
mais tarde a fim de se prepararem para ir à igreja.

Após o desjejum, as duas filhas mais velhas se espremeram junto aos pais nos
bancos dianteiros do carro da família, enquanto os dois menores foram sentados
no colo dos gêmeos, atrás. Então saíram para um percurso de meia hora até
Astória, onde fica a primeira Igreja Adventista Iugoslava construída nos Estados
Unidos.

Ao se aproximarem da igreja, ambas as meninas gritaram ao mesmo tempo:

– Olhem, lá está ela! – Elas mostraram o carro que acabara de entrar na sua
faixa, na frente deles.
– Quem? – perguntou Voja.

– Ena! A garota que você quer conhecer! – disse Mirjana agitadamente.

– De quem mais poderíamos estar falando? – acrescentou Nevenka com uma


pontinha de indignação na voz.

Voja fixou o olhar na parte detrás do carro. Lá, no banco traseiro, estava sentada
uma garota de cabelos escuros, ondulados, que lhe caíam nos ombros. Duas
pessoas mais velhas, aparentemente seus pais, estavam sentadas uma de cada
lado.

– É o carro do pastor Kanachky – explicou Mladen. – Ele muitas vezes os


apanha e traz para a igreja, de modo que não precisem tomar o ônibus. A saúde
da mãe dela é muito frágil.

Voja observou quando o carro do pastor dobrou na Rua 32 e estacionou num


espaço reservado para o pastor, no meio-fio em frente à igreja. Não havia área de
estacionamento, uma vez que a maioria não possuía carro e viajava de transporte
público. Mladen o seguiu e parou atrás do carro do pastor para deixar a família
sair. Cveja e Voja fizeram menção de sair também.

– Ei, você não, Voja – disse Mladen rindo. – Você vem comigo. – Ele dobrou a
esquina e achou outra vaga para estacionar na rua. Quando Mladen e Voja
voltaram à igreja, a família já havia entrado.

Mladen precedeu Voja ao subir os degraus de concreto da pequena e atraente


igreja espremida entre dois edifícios de tijolos. Dentro do saguão estavam várias
pessoas falando em voz baixa. Cveja, Mela e as duas meninas haviam pendurado
os casacos no cabide e estavam tirando as roupas de inverno dos pequenos. Ao
lado do pequeno grupo, de costas para eles, estava a garota de cabelos castanhos
escuros.

Voja sentiu o coração pulsar de expectativa. Ela havia tirado o casaco, e ele pôde
ver sua figura alta e esbelta. Depois de todo aquele tempo, ele estava a ponto de
conhecer o “Pecado Imperdoável”, a garota da foto com quem ele vinha
conversando sozinho havia meses. Mas a imagem da foto fora de foco perseguia-
lhe a mente e, embora ansioso, ele temia ser desapontado.

– Bem, aqui estamos – anunciou Mladen para chamar a atenção. De repente, a


garota virou-se para trás, e Voja reconheceu os olhos escuros e as sobrancelhas
arqueadas que ele havia cuidadosamente inspecionado com a lente de aumento
de Adolf tantos meses antes. Seus temores se dissolveram, trazendo-lhe grande
alívio. Quando ela sorriu para ele, a imagem da foto desapareceu. Ele achou que
ela parecia até melhor em pessoa do que na foto do livreto. Uma alegria que ele
jamais sentira antes inundou seu ser. Naquele momento, Voja tomou uma
decisão: aquela era a garota dos seus sonhos, e ela um dia seria sua esposa.

– Os gêmeos finalmente chegaram – disse Mladen, e então apresentou Voja e


Cveja ao grupo. Voja e Ann trocaram algumas palavras, e então ela desapareceu
no santuário. Alguns momentos depois, uma suave música tocada ao piano fluiu
até o vestíbulo. Ann estava tocando o piano como preparação para o início da
Escola Sabatina.

Após a história missionária, Mladen anunciou para a igreja que, depois de uma
longa espera, os jovens haviam finalmente chegado e gostaria que todos os
conhecessem. Enquanto os gêmeos permaneceram na Áustria, ele havia mantido
os membros da igreja informados quanto ao progresso dos seus documentos. Isso
era tudo que Ann sabia sobre os gêmeos. Ela não tinha a menor ideia quanto às
pretensões de Voja. Nem imaginava que havia pessoas que a conheciam como
“O Pecado Imperdoável”.

Quando ela tocou o pequeno órgão Hammond durante o culto, Voja ficou
enlevado. Era um simples hino tocado por uma organista regular num órgão
simples. Mas ele teve a sensação de estar no Céu, e que “O Pecado Imperdoável”
era o seu anjo. Após a saída da igreja, os membros rodearam os gêmeos para
lhes dar as boas-vindas, e então todos se dispersaram para seus lares.

– E então, o que você achou dela? – Mirjana e Nevenka abordaram Voja ao


voltarem de carro para casa.

– Ora, nada de especial! – respondeu ele, prevendo sua reação espirituosa.

– Nada de especial? Nada de especial? – ecoaram as meninas.

– Quem você pensa que é? Um príncipe encantado ou algo parecido? – insistiu


Mirjana.

– É isso mesmo, o que você esperava? – perguntou Nevenka. Habitua-das aos


seus gracejos, elas haviam aprendido a brincar com ele. Mela e Mladen riram da
brincadeira. Cveja olhou de modo risonho para o irmão. Logo que entraram no
apartamento, Mladen o puxou de lado e perguntou:

– Então, o que você realmente pensa?

– Nada mau – respondeu Voja de modo casual. Mas Mladen não se convenceu.

– Seu malandro Šabac – riu ele. – Eu conheço você muito bem!


capítulo 22

novos começos

Na segunda-feira de manhã, o pastor Kanachky foi ao apartamento de Mladen


com uma cópia da seção de classificados, da edição de domingo do jornal The
New York Times. Ele havia visto no jornal vários anúncios oferecendo vagas
para arquitetos e desenhistas de projetos, e viera para ajudar os gêmeos a
encontrar trabalho. Consultando o pastor sobre os anúncios, eles escolheram
vários deles para responder, e ele telefonou para marcar entrevistas.

O primeiro compromisso era para aquela tarde, às 13 horas. Após meia hora de
viagem no metrô, num horário em que havia poucos passageiros, eles chegaram
ao setor leste de Manhattan para o primeiro encontro. No balcão da frente, o
pastor apresentou os gêmeos e a si mesmo à recepcionista e falou que tinham
uma entrevista com o chefe de pessoal. Logo depois, um senhor veio para
conhecê-los.

– Sou o pastor Kanachky. Estes dois jovens são arquitetos. Vieram da Europa e
estão procurando trabalho. – Ele apresentou os gêmeos pelo nome ao apertarem
a mão do entrevistador.

Ao se assentarem em seu escritório, o homem fez a primeira pergunta:

– Eles têm alguma experiência americana?

– Infelizmente não – respondeu o pastor. – Eles acabaram de chegar. Mas já


trabalharam como arquitetos na Iugoslávia e na Áustria.

– E os seus desenhos? Eles têm alguma amostra para eu ver? – perguntou o


homem.

O pastor olhou para os gêmeos, os quais abanaram a cabeça. Todos seus


desenhos haviam ficado na Europa.

– Lamento – disse o homem. – Se vocês puderem nos trazer alguns desenhos,


teremos prazer em discutir novamente o assunto. – Após apertarem a mão do
entrevistador, os gêmeos e o pastor se retiraram.

Após três experiências semelhantes durante a primeira semana em busca de


trabalho, eles notaram que os arquitetos nesses escritórios faziam seus projetos a
lápis. Os gêmeos haviam aprendido a desenhar com tinta preta, que era mais
exato, mas também mais difícil, pois não permitia correções. Voja decidiu
reproduzir de memória a planta térrea e a projeção frontal de uma igreja que ele
havia planejado na Iugoslávia. O pastor lhe ofereceu para usar uma mesa de
desenho em que ele fazia o layout das brochuras religiosas que ele imprimia,
uma das quais era O Pecado Imperdoável, tão apreciada por Voja.

Na casa do pastor, na semana seguinte, Voja começou. Ele desenhou a planta em


escala métrica de 1 por 100, que se aproximava bastante da escala 1/8” (1 por
96). Ele riscou as linhas a lápis e então desenhou sobre elas com tinta preta
usando uma caneta Feder, algo que os arquitetos americanos não eram
geralmente treinados a fazer. Graças à memória fotográfica com a qual ele e seu
irmão foram dotados, não foi difícil reproduzir a planta. No fim da semana, ela
estava pronta.

Quando fizeram suas entrevistas, na semana seguinte, eles levaram consigo os


desenhos. Todos os que os viram ficaram impressionados. Mas, tendo resolvido
o primeiro problema, eles enfrentaram outro.

– E o inglês deles é bom? – perguntavam os entrevistadores ao pastor. Em


resposta, Voja ia para trás do pastor, e Cveja para trás de Voja.

Toda noite, os gêmeos assistiam à televisão para acostumar os ouvidos aos sons
da língua inglesa com pronúncia americana, de modo que pudessem aprender a
decifrar as palavras. Aonde quer que fossem, mantinham os ouvidos abertos para
captar trechos de conversas. Essa experiência ajudou imensamente. Mesmo
Cveja, em face da realidade de ganhar a vida nos Estados Unidos, fez sérias
tentativas para melhorar seus conhecimentos de inglês.

Ika, um novo conhecido a quem haviam sido apresentados por meio de amigos,
encaminhou os irmãos à firma Eggers & Higgins, onde um amigo seu, sérvio,
trabalhava no departamento de administração de pessoal. A firma de arquitetura,
a segunda maior dos Estados Unidos na época, empregava 400 arquitetos e
pessoal de apoio em duas repartições. A matriz, localizada na Rua 42, do outro
lado da Estação Central, ocupava dois andares. Assim, durante a quarta semana
nos Estados Unidos, os gêmeos, acompanhados pelo pastor, saíram para
preencher fichas de emprego.

Depois de conversar um pouco, o sérvio conduziu os três homens ao escritório


do chefe dos projetistas para uma entrevista.

– Se ficar interessado em vocês – disse ele aos gêmeos –, ele consultará um dos
sócios.

No escritório do chefe dos projetistas, Voja desenrolou a planta sobre a


escrivaninha, e o homem imediatamente reagiu exclamando:

– Isto é excelente! – Ele examinou os detalhes. – Tudo muito exato – continuou


ele ao inspecionar o projeto durante vários minutos. Então ele enrolou a planta e
disse aos gêmeos:

– Estou impressionado. – Na conversa que se seguiu, ele ficou sabendo mais a


respeito dos gêmeos e então falou sobre si mesmo.

– Meu pai veio da Hungria antes de eu nascer, de modo que compreendo como
são as coisas para um imigrante. É difícil se ajustar a um novo país. Mas preciso
ouvir seu inglês. – As mesmas palavras fatídicas outra vez.

– Sei escrever três mil palavras – disse-lhe Voja, falando com um sotaque
carregado. – Mas preciso melhorar minha pronúncia.

O homem sorriu, falou com Cveja, e então pediu licença, carregando consigo a
planta para o escritório de um dos sócios. Ocorre que os dois irmãos Eggers, que
eram donos da firma, eram gêmeos idênticos. Alguns minutos mais tarde, ele
voltou sorrindo.
– Sim, vamos contratar vocês. Será por um período experimental de seis meses –
disse ele para grande alegria e imenso alívio dos gêmeos. – Voja vai trabalhar
aqui, na matriz, pois seu inglês é um pouco melhor, e Cveja irá para a filial. Fica
na Primeira Avenida, do outro lado do edifício das Nações Unidas. Vocês dois
podem começar na segunda-feira.

Felizes, os gêmeos e o pastor foram embora. Exatamente como Boba, no


escritório de refugiados, e o cônsul americano em Salzburgo haviam insistido
que eles fizessem, eles encontraram trabalho em sua própria profissão, ainda que
em período experimental e começando de baixo na escala de salário. Muitos
imigrantes com preparo superior, tais como médicos, advogados e engenheiros,
aceitavam qualquer trabalho que conseguissem a fim de sobreviver. Apenas um
mês havia se passado desde que chegaram aos Estados Unidos, e eles adquiriram
nova confiança de que poderiam ter sucesso na vida.

Com o problema do trabalho resolvido, eles se matricularam numa escola local


para terem aulas noturnas de conversação em inglês. Lá, conheceram pessoas
como eles, que enfrentavam dificuldades com a língua inglesa, mas
perseveravam porque queriam se tornar americanos.

No primeiro dia de trabalho na matriz, Voja percebeu que teria de mudar a


ortografia de seu nome, de Voja para Voya, porque os americanos pronunciavam
o jota como em Jeff, fazendo seu nome soar como Vodja. Assim, ele passou a
escrever seu nome como Voya. Ele também mudou a ortografia de seu
sobrenome para Vitorovich.

O chefe dos projetistas levou Voya para conhecer o homem que seria seu
supervisor.

– Este é Roland, e este é Voya – disse ele, apresentando os dois homens. Roland
era natural do Alabama, e tinha uma maneira sulista arrastada de falar, algo que
Voya jamais ouvira antes. Indicando a Voya uma prancheta que seria sua base de
trabalho, Roland colocou um desenho na prancheta e começou a lhe dar
instruções:

– Wherrlewherrrelwall stair. Whiiirrroolaajm scale. Whreelkwahalal enlarge.


Entendeu?

Voya abanou a cabeça.


– Infelizmente não. – Ele teve a sensação de que havia voltado para Salzburgo e
estava ouvindo o cônsul americano falar inglês, com a diferença de que agora,
em vez de entender uma a cada vinte palavras, ele entendia uma em cinco, o que
era insuficiente para se manter no emprego.

Durante a conversa com Roland, Voya notou que o homem na escrivaninha em


frente ocasionalmente se virava para trás para ouvir. Tão logo Voya disse que
não entendia, o homem falou:

– Entschuldiegen, sprechen sie doch Deutsch? [Desculpe, mas você fala


alemão?] – perguntou ele num alemão temperado com sotaque austríaco. Voya
teve a impressão de que, de repente, o sol brilhou através de nuvens escuras,
iluminando seu dia.

– Sim, eu falo alemão fluentemente – respondeu Voya impulsivamente em


alemão.

– Espere um momento – disse o homem aproximando-se. Ele se apresentou a


Voya como Ali e pediu a Roland que lhe repetisse as instruções. Quando ele o
fez, Voya se esforçou para entender-lhe a fala. Desta vez, ele reconheceu
algumas palavras mais em inglês, além de entender completamente cada palavra
de Ali.

– Você trouxe seu equipamento de desenho? – perguntou Ali a Voya, repetindo


as instruções de Roland para ele. Voya apanhou seu material métrico. – Oh, não,
nós não usamos o sistema métrico aqui – disse ele. – Usamos polegadas e pés
nos Estados Unidos.

– Voya ficou perplexo. Ele não sabia nada de polegadas e pés.

– Em que escala está este desenho? – perguntou Ali referindo-se ao desenho no


qual ele iria trabalhar, para ver se conseguia descobrir.

– Parece ser de 1 para 200 como no sistema métrico – respondeu Voya ao


continuarem conversando em alemão.

– Você está certo, Voya. No sistema métrico isto seria de 1 para 192. Este
desenho está na escala de 1/16 polegadas – 1/16 é igual a um pé.

Voya ficou pálido.


– Não se preocupe, você vai compreender. Eu tenho um conjunto adicional de
instrumentos que você pode usar.

A primeira atribuição de Voya consistia em desenhar cortes transversais e


longitudinais de uma escadaria para um arranha-céu de 55 andares, ampliados de
uma escala de 1/16 polegadas para 1/4.

– Se você tiver alguma dúvida, sinta-se livre para me perguntar. Terei prazer em
ajudar – prontificou-se seu novo amigo Ali.

Durante os vários meses seguintes, sempre que Voya enfrentava um problema ou


tinha uma dúvida, Ali estava à disposição. Com o passar do tempo, Voya soube
que Ali era um judeu de Viena. Em 1938, quando as coisas estavam esquentando
na Europa, sua família aguardava que seus passaportes chegassem para que
pudessem sair da Áustria e ir para os Estados Unidos. O passaporte de Ali
chegou primeiro. Como ele estava em idade militar, os pais insistiram para que
ele fosse embora. Eles o seguiriam tão logo os documentos chegassem. Mas
aconteceu que os documentos deles nunca vieram. A família de Ali não
conseguiu ir para os Estados Unidos. Logo depois, os nazistas os detiveram e os
transportaram para Dachau, onde todos foram mortos.

Nesse ínterim, no outro escritório, Cveja ouviu seu nome sendo pronunciado
como Kvedja, em vez de Tsveya, de modo que decidiu americanizá-lo. Dali em
diante, ele seria conhecido como Steve, o que era um pouco parecido com
Svetozar, seu primeiro nome completo. Felizmente, ele conheceu um arquiteto
judeu fluente em francês, o qual o ajudava quando ele necessitava de algum
esclarecimento. Uma vez por semana, mais ou menos, Steve fazia uma entrega à
matriz, numa caminhada de cerca de um quilômetro e meio. A maioria das
pessoas na agitada matriz não sabia que Voya tinha um irmão gêmeo.

Um dia, quando Steve fazia uma entrega na matriz, um dos arquitetos projetistas
que trabalhava na extremidade oposta do andar de Voya deu a Steve um conjunto
de desenhos para ser levado de volta à filial. Ele lhe disse que era urgente e
precisava ser entregue imediatamente. Steve saiu em seguida.

Cerca de vinte minutos mais tarde, o homem passou pela mesa de trabalho de
Voya, notando-o pela primeira vez, e pensou que se tratava de Steve.
Incomodado e com raiva, ele entrou como um furacão no escritório do chefe dos
desenhistas para reclamar:
– Eu não acredito no que aquele estrangeiro fez! Dei-lhe um conjunto de
desenhos para serem levados à filial e disse-lhe que era urgente! – rugiu ele
encolerizado, andando para lá e para cá, agitando os braços. – Isto já faz vinte
minutos, e acabei de vê-lo. Ele ainda está sentado aqui, sem se importar com
nada deste mundo!

– Você quer dizer que ele ainda está aqui? Ele não saiu? – O desenhistachefe
inquiriu calmamente, dando corda. Ele era um tanto brincalhão e entendeu a
situação imediatamente.

– Sim! Sim! Foi isso o que eu disse! Ele está sentado ali fazendo... não sei o quê!
Ele agitou as mãos outra vez e exigiu: – Que providência você vai tomar?

– Nenhuma – respondeu o chefe. Ele apertou os lábios e balançou a cabeça


enquanto brincava com o lápis. Então sorriu dizendo: – Há dois deles. São
gêmeos.

– Gêmeos? Você quer dizer que esse estrangeiro tem um irmão?

– Idêntico. O outro trabalha na filial. Se isto fizer você se sentir melhor, telefone
para lá e veja se os desenhos chegaram.

O arquiteto apanhou o fone da mesa e fez a chamada. As plantas haviam sido


entregues. Um homem bem mais calmo e mais feliz saiu do escritório do chefe
dos desenhistas.

Outro dia, logo que Steve chegou ao escritório da matriz, ele ouviu pela primeira
vez outra explosão de ira de um dos arquitetos projetistas. O’Malley estava
lançando toda sua ira sobre o assistente, o qual permanecia zangado e em
silêncio.

– Então, você aprontou de novo! Não posso acreditar que você seja tão estúpido!
– reclamou ele. No andar aberto do escritório todos podiam facilmente ouvir a
discussão, mas ninguém mais prestava atenção aos espetáculos regulares de mau
humor daquele homem.

– Conserte esta coisa! – O’Malley exigiu do assistente. O arame na barra


paralela de sua prancheta havia quebrado. Frustrado e impaciente, ele foi incapaz
de instalar o novo arame.
– Eu não sei como fazer isto – respondeu mansamente o assistente.

– Você não sabe! – arremedou o arquiteto com uma careta. – Não acredito que
você seja tão tapado!

– Bem, se você é tão esperto, como é que não consegue consertar isto? –
devolveu inesperadamente o assistente.

– Oooooooooooh! – ecoou uma exclamação crescente, que se espalhou pelo


andar como uma onda gigante, quando os funcionários surpresos ergueram a
cabeça e sorriram se divertindo. Aquela era a primeira vez que o assistente
respondia ao chefe, o qual ficou espantado, com os olhos faiscando.

Perturbado pelo que havia acabado de ver, Steve se aproximou da mesa de Voya.
– Eu sei como trocar o arame. Talvez eu deva ajudar – disse ele falando em
sérvio.

– Você está brincando? Fique fora disto – Voya advertiu firmemente seu irmão. –
Não é problema seu.

Sendo o gêmeo mais velho, Voya esperava que o irmão atendesse ao conselho.
Mas Steve se encaminhou para o ainda furioso O’Malley, desconsiderando
totalmente a admoestação.

– O que você quer? – falou o homem precipitadamente ao ver Steve se


aproximando.

– Senhor O’Malley, eu posso ajudar. Sei trocar o arame – disse Steve


impulsivamente, mas com firmeza.

– Você! Mas você nem mesmo sabe falar inglês – retorquiu O’Malley. – Mas
quem é você, afinal?

– Meu nome é Svetozar Vitorović, mas pode me chamar de Steve. Trabalho no


outro escritório – disse ele com um sorriso tímido ao se inclinar sobre a
prancheta de desenho do homem.

Assumindo sua habitual posição autoritária, com os punhos plantados nos


corpulentos quadris, O’Malley observou Steve remover os parafusos da barra
paralela, retirar o arame quebrado, enfiar o novo arame na barra e em volta da
prancheta, e depois apertá-lo. Então ele moveu a paralela para cima e para baixo
a fim de testá-la. Satisfeito por vê-la funcionando, ele se ergueu e sorriu:

– Pronto, Sr. O’Malley, está arrumado.

– Bem, bem, bem! – berrou o homem, olhando o estrangeiro com atenção. Ele
pareceu ao mesmo tempo satisfeito e surpreso. – Vou lhe dizer uma coisa –
exclamou ele após um momento de reflexão. – Para demonstrar meu apreço, vou
solicitar que você faça parte do meu grupo.

Essas palavras do homem provocaram risadinhas matreiras pelo andar. A


designação para pertencer ao grupo de O’Malley era temida por todos os
arquitetos do escritório que já tinham experiência suficiente para saber o que isso
significava. O que Steve considerava um prêmio, os outros viam como um
severo castigo.

Sentado em frente à prancheta a mais ou menos dez metros de distância, Voya


abanou a cabeça e lançou a Steve um olhar como quem diz: “Eu avisei, mas você
não quis me ouvir.” Então O’Malley se dirigiu para o escritório de um dos sócios
na outra extremidade do andar e desapareceu lá dentro.

De algum lugar, ouviu-se uma voz dizer: “É isto que dá ser um bom samaritano.”
Em seguida, uma risada ecoou pelo salão. Um arquiteto se aproximou de Steve e
disse piedosamente:

– Você não sabe no que está se metendo. Esse homem é um terror.

Logo um sorridente O’Malley voltou e caminhou diretamente até Steve, que


estava para voltar à filial.

– OK, é oficial. Você vai começar a trabalhar comigo em duas semanas a partir
de segunda-feira – anunciou ele orgulhosamente.

No caminho para casa, Voya continuou a advertir Steve a respeito da reputação


de O’Malley, e Steve decidiu fazer o melhor. Ele gastou muito tempo pedindo a
Deus que lhe desse paciência e disposição para fazer o que fosse necessário para
agradar ao chefe.

Duas semanas depois, Steve se mudou para a matriz e se juntou ao grupo de sete
arquitetos que O’Malley supervisionava. De sua cadeira, Voya podia ver o
grupo. Durante toda aquela semana, ele observou Steve realizando
animadamente o trabalho. Quando O’Malley parecia impaciente, Steve logo se
oferecia para ajudar. Quando O’Malley começou a resmungar porque o
assistente confundiu os desenhos auxiliares de fabricação para a Igreja Batista na
qual estavam trabalhando, Steve ajudou a solucionar o problema. Os desenhos
auxiliares para as janelas de vidro colorido vieram de Paris em medidas do
sistema métrico e escritas em francês, e Steve conhecia ambos.

– O que faria eu sem você, Steve? – ouvia-se O’Malley dizer com frequência.
Ele apreciava a iniciativa e capacidade de trabalho de Steve, e este rapidamente
conquistou sua confiança.

Quando Steve pediu a O’Malley permissão para sair mais cedo às sextas-feiras a
fim de observar o sábado, O’Malley imediatamente concordou.

– Como poderia eu dizer não a você?

– Você não pode! – soou uma corajosa voz de algum lugar próximo para ser
ouvida, mas longe o suficiente para permanecer anônima.

– Você tem sorte em tê-lo! – intrometeu-se outro.

– Apenas trate de compensar o tempo – respondeu O’Malley a Steve, ignorando


os comentários.

Nesse meio-tempo, muitas coisas estavam acontecendo na vida pessoal dos


gêmeos. Voya e Ann viam-se na igreja cada semana e começaram a acompanhar
o pastor e a esposa em sua ida semanal após o culto de sábado para Elizabeth,
em Nova Jersey, onde o pastor pregava a outra pequena congregação de
iugoslavos. No caminho para lá, eles comiam lanches no carro. Cada viagem
oferecia oportunidade para se conhecerem melhor. Steve não ia.

No dia em que Voya recebeu seu primeiro cheque de pagamento, ele convidou
Ann para sair e lhe ofereceu um pequeno presente, que era uma lembrança da
cidade de Nova York. Como seus locais de trabalho ficavam a uma distância de
apenas 800 metros um do outro, eles começaram a se encontrar por alguns
momentos durante o horário de almoço.

Três meses depois de chegarem a Nova York, Voya e Steve se mudaram do


apartamento de Mladen e alugaram o próprio apartamento de um quarto, também
em Jackson Heights. Quando Voya acompanhava Ann no metrô até a casa dela,
após o trabalho, ele ocasionalmente ficava para o jantar. Depois ele caminhava
mais de três quilômetros até sua casa, porque os trens do metrô eram pouco
frequentes à noite e não existia linha de ônibus entre os dois lugares.

No dia 17 de maio, cerca de três meses e meio depois de se conhecerem, Voya e


Ann ficaram noivos. Como Ann não usava joias, Voya lhe deu um belo relógio
Longines, de diamantes, com uma mensagem de amor gravada na parte detrás.

Quando o período experimental de seis meses dos gêmeos terminou, eles foram
aceitos como funcionários permanentes e tiveram aumento de salário. Eles
continuaram estudando diligentemente, e seu inglês continuou progredindo.

Quase sete meses após o dia em que Voya saiu do avião e pôs os pés em solo
americano, ele e seu “Pecado Imperdoável” se casaram.

– Vim aos Estados Unidos em busca de liberdade, e a perdi quando me casei –


ele reclamou brincando.

No domingo, 16 de agosto, o dia mais quente do ano, com a temperatura


alcançando 40 graus centígrados, o pastor Kanachky oficiou o casamento na
Igreja Adventista do Sétimo Dia Iugoslava em Astória. Embora pequena e sem
ar-condicionado, era a igreja que os pais de Ann haviam ajudado a construir,
onde ela fora batizada, e onde ela e Voya se encontraram pela primeira vez. Após
a cerimônia de casamento, foi oferecido um jantar de recepção num restaurante
próximo, e o casal passou a lua de mel em St. Thomas, nas Ilhas Virgens.

Mas Voya também comprou outro relógio de ouro Longines, junto com seu
irmão Steve, o qual mandaram para Boba, o diretor do centro de refugiados do
Concílio Mundial de Igrejas em Salzburgo. Foi um símbolo de profundo apreço
por tudo que ele havia feito por eles. Pouco tempo depois, entretanto, o relógio
voltou com uma nota de gratidão pela lembrança. Um homem honrado como
Boba não aceitaria nenhuma recompensa por seu trabalho.

Nesse ínterim, Steve havia começado a sair com uma garota americana chamada
Diana, cujo pai viera da Dalmácia, Iugoslávia. A mãe era descendente de croatas
e havia nascido nos Estados Unidos. Diana possuía uma bela voz soprano, e o
casal frequentemente cantava em várias igrejas na cidade. Em junho do ano
seguinte, eles se casaram numa Igreja Adventista de fala inglesa, em Jackson
Heights.
No trabalho, o mau humor de O’Malley continuava chamejando, mas não com
tanta frequência como antes, e raramente contra Steve. Quando o projeto da
Igreja Batista foi completado, após um ano, deixando Steve livre para sair,
O’Malley pediu-lhe que ficasse no seu grupo para o projeto seguinte. Steve
concordou. Ele havia descoberto a pessoa decente que se ocultava sob um
exterior tempestuoso. Nada era difícil demais para ele executar para o chefe ao
qual havia se afeiçoado.

Em dezembro de 1960, Nata, Mića e Jovica imigraram para os Estados Unidos.


Surpreendentemente, Nata conseguiu outro visto de turista para ir a Salzburgo,
novamente sob a responsabilidade de Walter e a esposa. Desta vez, ela foi com
Jovica. Com a ajuda de Pop Duško, um padre sérvio ortodoxo que trabalhava
com o escritório de refugiados e tinha ligações em Viena, seu visto de turista foi
prorrogado várias vezes, por mais de um ano, enquanto ela esperava que Mića
escapasse.

Apenas alguns dias antes que a última prorrogação do visto expirasse, Mića
chegou. Ele havia viajado num trem de carga de Belgrado para a Eslovênia, a
fim de se encontrar com um guia. Durante a viagem, ele havia se escondido no
compartimento de freios de um dos vagões. O chefe de trem, ao retornar para ali
após fazer a ronda, o descobriu. Como Mića sabia que os agentes da UDBA
muitas vezes subiam a bordo de trens para seguir a pista de passageiros
clandestinos, ele agiu como se estivesse numa missão policial. Rispidamente
acenou para que o homem se retirasse. Caindo nesse ardil, o chefe de trem
rapidamente foi embora. Mais tarde, o guia esloveno conduziu Mića através da
fronteira para a Áustria.

Quando Mića finalmente chegou, a Áustria concedeu asilo político a ele e à sua
pequena família. Eles não o concederiam a Nata sem o seu marido. Seus
documentos foram preparados rapidamente, e a família logo foi para os Estados
Unidos. Na cidade de Nova York, Mića iniciou o próprio negócio de pintura e
decoração com bastante sucesso. Jovica rapidamente aprendeu inglês, e sempre
que se defrontava com algum problema, ele atravessava a rua e batia à porta de
sua tia Ann.

Em 1961, Voya e Ann viajaram para a Europa com a intenção de visitar a mãe
dele. Pelo fato de Voya não ter servido ao exército, ele não podia arriscar-se a
entrar na Iugoslávia por medo de ser detido. Não sendo ainda cidadão
americano, ele viajava com um Documento de Viagem em lugar de passaporte.
Se os comunistas o detivessem forçosamente para servir ao exército, isto
colocaria em risco a condição de residente permanente e sua cidadania
americana pendente. Assim sendo, ele esperou em Salzburgo, visitando os
amigos Boba, Duško e Ratko no escritório de refugiados, e os membros da
igreja, enquanto Ann apanhou o trem Expresso Oriental para Belgrado, para
encontrar a mãe e a família de Voja em Glušci.

A mãe de Voya havia conseguido um passaporte que lhe permitiria ir a Salzburgo


para ver o filho. Esse havia sido o plano quando Voya e Ann iniciaram a viagem.
Mas, no momento em que Ann cruzou a fronteira para entrar na Iugoslávia, o
governo comunista cassou o passaporte da mãe de Voya, de modo que ela não
poderia sair do país.

No ano seguinte, em 1962, Voya se tornou cidadão americano naturalizado, pois


seu requerimento de residência fora reduzido para três anos, porque havia se
casado com uma cidadã americana. A primeira coisa que ele fez como cidadão
foi encaminhar uma solicitação formal para que sua mãe pudesse imigrar para os
Estados Unidos. Quando ela veio, os gêmeos lhe mostraram a ilha de Manhattan
e a levaram para ver todos os belos lugares turísticos. Aquela mulher simples,
que jamais se aventurara para longe de sua terra, ficou abismada com as
maravilhas de seu novo mundo.

Um incidente interessante ocorreu enquanto os gêmeos trabalhavam para Eggers


& Higgins. Eles foram designados para projetar a planta da Embaixada
Americana em Ankara, na Turquia. A empresa contratada para a construção era
uma firma alemã, a empreiteira contratada para a decoração interna era uma
firma francesa, e a subempreiteira para a pavimentação de mármore era uma
firma italiana sediada em Roma. Como Voya e Steve conheciam o sistema
métrico, e entre eles falavam alemão, francês e italiano, a escolha era perfeita. O
único problema era a liberação do certificado de segurança, que daria acesso a
informações confidenciais. Quando os oficiais em Washington souberam que
dois arquitetos da Iugoslávia comunista trabalhariam nas plantas altamente
confidenciais, eles enviaram um agente do governo para investigar. Um dos
sócios, David Eggers, que era católico romano, informou ao agente que os
gêmeos não precisavam de certificado de segurança porque eram cristãos
adventistas do sétimo dia, e a firma daria garantias por eles. Os gêmeos
souberam disso posteriormente.

Após sete anos nessa firma, Voya e Steve decidiram sair. Dos sete anos, Steve
passou quatro trabalhando com O’Malley. Mesmo depois, Steve e O’Malley
mantiveram contato através de telefonemas ocasionais e cartões. Quando
O’Malley faleceu, algum tempo depois, sua esposa convidou Steve para o
serviço fúnebre particular da família, atendendo ao pedido feito por O’Malley
antes de sua morte.

Em seu novo emprego na Welton Becket, outra empresa de arquitetura em


Manhattan, os gêmeos trabalharam como chefes de equipe. Cada um deles
estava encarregado de um projeto e supervisionava cinco ou seis arquitetos.
Além de arquitetos americanos em seus grupos, havia também um japonês, um
austríaco, uma mulher filipina, um sul-americano e dois turcos – um turco em
cada um dos grupos.

Um dia, durante o almoço, Steve estava sentado no escritório de Voya, quando


dois arquitetos turcos entraram. Um deles segurava uma bandeja grande, coberta
com um pano rendilhado.

– Irmãos sérvios, que dia é hoje? – perguntou ele.

Os gêmeos lançaram um rápido olhar um para o outro. Era o dia 28 de junho,


Vidovdan, o aniversário da Batalha de Kosovo, que se tornou sagrada por causa
do sacrifício do exército sérvio, que lutou em número muito inferior contra os
invasores turcos otomanos para defender o país, a liberdade e a fé cristã. Não
sabendo o que aqueles homens tinham em mente, Voya perguntou:

– Que dia vocês acham que é?

– Vidovdan! A Batalha de Kosovo! – responderam eles. – E lhes trouxemos um


presente, uma oferta de paz. Minha irmã trouxe isto de Istambul, em uma recente
visita que fez – disse o arquiteto do grupo de Voya, destapando a bandeja de
baclava [tipo de pastel com nozes].

– Sabíamos que vocês eram sérvios quando começamos a trabalhar com vocês.
Ficamos preocupados quanto à atitude que teriam em relação a nós – disse o
outro turco. – Mas vocês têm sido muito amáveis. Sempre que não
conseguíamos nos expressar em inglês, vocês nos ajudavam explicando as coisas
em alemão. – Esses turcos haviam morado na Alemanha anteriormente.

– Embora nossos antepassados tivessem sido inimigos, nós podemos ser amigos
– disse o outro turco. Os gêmeos agradeceram o presente, e eles continuaram
amigos durante todo o tempo em que trabalharam juntos naquela firma.

Um dos trabalhos no qual Steve atuou como arquiteto projetista nesse escritório
foi o do Estádio Nassau, em Long Island. Trata-se de um dos maiores estádios
cobertos para uso múltiplo nos Estados Unidos. A acústica do estádio é excelente
para apresentações líricas, e a visibilidade é perfeita, sem obstruções para o
espectador, não importa onde esteja sentado, seja para assistir a uma ópera, ou a
uma partida de hóquei ou de basquete. Em contraste, quando o Madison Square
Garden foi inaugurado em 1968, sete mil pessoas, não conseguindo ver bem de
suas poltronas na parte detrás, tiveram que ficar em pé. Foram necessários vários
anos para redesenhá-lo e reformá-lo a fim de corrigir esse problema.

Alguns anos mais tarde, depois de Voya ter assumido o cargo de diretor do
Departamento de Arquitetura do Centro Médico de Kettering, na cidade de
Kettering, Ohio, ele propôs uma alteração no código nacional, introduzindo uma
nova classificação nas Diretrizes para Construção e Equipamentos de Hospitais e
Instalações Médicas. Essa classificação diminuiria o nível de ruído por meio de
paredes mistas nos corredores de acesso a quartos de pacientes, reduzindo desta
maneira os custos de construção. Essa proposta foi aceita unanimemente e
publicada nas Diretrizes.

Ao longo do tempo, por meio de esforço, perseverança e da providência divina,


os gêmeos construíram uma nova vida em seu país adotivo. Eles não estavam
mais confinados dentro de fronteiras nem trabalhando como dentes de
engrenagem na roda do estado. Estavam livres para sonhar, criar e realizar. Mas
a educação provida pelo sistema comunista os ajudou bastante. Isso foi, afinal de
contas, algo que puderam levar consigo ao escapar. Os gêmeos haviam tomado
dois rumos bem diferentes, mas tal qual o falcão cinzento, eles encontraram uma
maneira de voar para longe, mesmo quando não havia saída.
epílogo

Em 1964, cinco anos após o casamento, Ann e Voya tiveram um filho, ao qual
deram o mesmo nome de seus dois avôs: George Ilya. Ele tem bacharelado em
belas-artes em pintura, e trabalha nessa área. Steve e Diana tiveram três filhos:
Daniel, Maria e Johnny. Daniel se formou em psicologia e casou-se com uma
moça de Nova York chamada Lisa. Maria tem mestrado em Serviço Social e
trabalha como assistente social. Ela se casou com um homem também chamado
Steve, e têm duas filhas, Lindsay e Kelsey. Johnny obteve bacharelado em belas-
artes na Escola de Artes Visuais e trabalha como diretor de criação de uma firma
de comunicação e marketing. Ele e sua esposa, Susan, têm dois filhos, Jackson e
Ethan. O filho de Mića e Nata, Jovica, agora chamado John, obteve mestrado em
música e bacharelado em administração. Ele trabalha no setor financeiro e se
casou com Faith.

Ao longo dos anos, Vera, a irmã mais nova dos gêmeos, visitou várias vezes a
família nos Estados Unidos, mas não quis ficar. Ela voltou para o marido, Duja,
em Šabac.

A meia-irmã, Leka, nunca foi para os Estados Unidos, mas seu filho do meio,
Pavle, o pregador, sim. A esposa e três filhos migraram com ele. Pavle é pastor
de uma igreja adventista na Flórida. Pera, o filho caçula de Leka, superou as
várias expulsões da escola por não assistir às aulas aos sábados e finalmente se
formou em medicina. Ele precisou de mais tempo, mas agora está empregado
pelo atual governo como médico. É frequentemente visto na TV sérvia. Ele e
Jova, o filho mais velho de Leka, permanecem na Sérvia.

Kaća e Djoka, a cujo casamento os gêmeos assistiram em Paris, posteriormente


saíram da França e mudaram-se para a Austrália com sua família. Anos mais
tarde, o pastor Kanachky se responsabilizou por eles como parentes próximos, e
eles foram para os Estados Unidos. Agora o casal mora em Cleveland, Ohio. Os
irmãos de Djoka também imigraram para a América do Norte. Nikola mora em
Stevensville, Michigan, e Pera mora em Kelowna, Colúmbia Britânica, Canadá.

Mladen, Mela e seus cinco filhos (a filha Anica nasceu depois que os gêmeos
chegaram aos Estados Unidos) moram perto de Chicago, onde Mladen opera
uma lucrativa atividade comercial da família.

Os gêmeos continuam sendo gratos por tudo que Deus fez por eles, pelas
oportunidades que os Estados Unidos lhes proporcionaram e pela liberdade
religiosa que desfrutam. Muitas despedidas aconteceram através dos anos. A mãe
de Voya e três irmãs já faleceram e aguardam a ressurreição. No turbulento
mundo em que vivemos hoje, o tema da mãe deles ecoa cada vez mais claro:
“Sve će proći a Gospod će doći” [Tudo passará, e o Senhor virá]. Essa continua
sendo a eterna esperança dos gêmeos.
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