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14558/29901
Dedicatória
A meu marido, Voya, meu cônjuge e companheiro nos últimos 50 anos, que veio
de longe para me encontrar, e cujas histórias inspiraram este livro.
E também ao meu cunhado Steve, que tem sido um membro importante de nossa
vida.
capítulo 1
Uma risada brotou de seu interior. Ele sentiu vontade de gritar de alegria, mas o
ruído de passos que se aproximavam e o som surdo de conversas o fizeram
reprimir seu entusiasmo e engolir sua risada. Subitamente ficou como que
eletrizado. “Este é o meu passaporte para a liberdade!”, exultou ele ao voltar-se e
ir embora.
Os dois jovens, vestidos da mesma maneira, com longos casacos cinzentos de lã,
sentaram-se um de frente para o outro, com uma leve brisa agitando os
ondulados cabelos castanhos. As palavras de Voja jorraram como uma torrente:
– Estou indo para Roma. Isto é oficial. Acabo de vir da Agência Putnik! – Ele
sorriu maliciosamente para Cveja, que ficou boquiaberto de surpresa.
– Charme? – Voja lançou a cabeça para trás e riu. – A polícia secreta não é
conhecida por se deixar influenciar por isso. Quanto à entrevista, foi mais
parecida com um interrogatório. O coronel uniformizado fez as perguntas, e o
civil gravou minhas respostas. Após sete semestres estudando história da arte e
arquitetura, Roma ficou gravada em minha memória, de modo que essa parte foi
fácil.
Cveja de repente mudou seu modo despreocupado. Ficou sério e baixou a voz. –
Eles certamente esperam que você volte.
Voja concordou. – Ter um dissidente na família é ruim. Além disso, não ser
parente de um membro do Partido Comunista também não seria uma boa
recomendação. – Ele encolheu levemente os ombros. – É estranho que eles
tenham ignorado esses fatos.
– Durante anos, temos sonhado em ir para a América. Agora que isso parece
possível, tornou-se um pouco assustador. – Ele se inclinou na direção de seu
irmão e limpou a garganta. – Nunca pensei que seu plano fosse dar certo.
– Ainda não deu – respondeu Voja rapidamente. – Esta viagem vai me tirar do
país, mas eu ainda vou ter que desertar, e você precisará escapar. – Seu rosto
ficou subitamente perturbado. – Isto é o que me preocupa, Cveja. Como você
escapará?
Escapar. Essa era uma eventualidade na qual Cveja não havia pensado
seriamente. Ele respirou fundo, encheu o peito e endireitou as costas enquanto
virava as calças com os antebraços de modo que a costura ficasse torta – um
hábito nervoso que adquirira. – Sem preocupações, meu irmão – disse ele
confiantemente. – Você sabe o quanto eu sou persistente. Tudo o que preciso é
de um guia que me ajude a atravessar a fronteira, alguém em quem eu possa
confiar.
– Claro. Alguns de nossos amigos escaparam dessa maneira – disse Voja, com o
olhar distante. – Mas e aqueles que desapareceram, dos quais nunca mais
ouvimos falar? – Ele virou a cabeça e fechou os olhos junto com seu irmão,
sentindo uma dor aguda no peito. – Não sei, Cveja. E se um de nós não
conseguir?
Eles haviam discutido tudo isso antes, quando Voja falou pela primeira vez a
Cveja sobre o cartaz anunciando a viagem e seu cargo como guia turístico
assistente. O guia principal seria logicamente um comunista. Cveja havia
concordado em ficar para trás, como garantia, de modo que Voja pudesse se
candidatar, pois as autoridades jamais concederiam passaportes aos dois irmãos.
Cveja faria esse sacrifício deixando que Voja tentasse o caminho mais fácil.
Como gêmeo mais novo, Cveja muitas vezes se submetia a ele, embora fosse
mais decidido e tivesse mais iniciativa. Ele perseverava quando Voja estava para
desistir. O conhecimento que Voja tinha de seu irmão o confortou. Ainda assim,
ele lutava com um imenso sentimento de culpa. Ele estava abandonando seu
irmão, deixando-o para trás. Eles nunca haviam se separado antes, e seu coração
já começava a doer.
– Você tem até 22 de setembro – Voja lembrou a seu irmão, com um tom de
urgência na voz. – Se as informações estiverem certas, os Estados Unidos
pretendem acabar com a imigração dos países comunistas quando Eisenhower
deixar o governo. Teremos de concluir o processo de imigração antes disso, e
com as quotas sendo abertas e fechadas não temos ideia de quanto tempo isso vai
demorar. – Sua voz aumentou de intensidade. – Mas se você não escapar antes
de ir para o exército, será tarde demais para sair. A América não estará mais
aceitando os iugoslavos.
– Oito meses. É tempo suficiente – disse Cveja confiantemente. E advertiu Voja:
– Lembre-se de que sua viagem para Roma não vai ser uma viagem de lazer. –
Cveja voltou sua atenção para o irmão. – Espiões vão se infiltrar em seu grupo,
fingindo ser turistas. Alguém estará sempre vigiando seus passos.
Cveja virou-se para ver a silhueta da cidade, e Voja seguiu-lhe o olhar na direção
da torre dourada da Catedral Ortodoxa de São Miguel Arcanjo, de Belgrado, ao
longe. Muitas vezes, eles haviam visto ali o corpo enrugado e sem cabeça do
czar Lazar, que havia sido preservado num sarcófago de vidro. O czar Lazar –
último governante do reino medieval da Sérvia, domínio que havia existido por
200 anos – tinha sido decapitado pelos turcos otomanos na Batalha de Kosovo
em 1389. Essa derrota mergulhou o Reino Sérvio durante 500 anos sob o
domínio dos turcos otomanos.
– Sivi Soko [Falcão Cinzento] – disse Cveja pensativamente. Esse era o nome
dado aos corajosos, o símbolo da felicidade na mitologia sérvia. Os olhos de
Cveja se fixaram na ave, mas seus pensamentos voaram adiante. – Olhe suas
asas. Ele está pronto para voar.
Enquanto eles esperavam no ponto de ônibus, Voja apontou o dedo para o céu.
As nuvens haviam se separado. Uma ave surgiu, planando graciosamente
impelida pelo vento e fazendo círculos lá no alto. Os gêmeos trocaram olhares e
então a viram voar pelo céu infinito, celebrando sua liberdade até desaparecer de
vista. “Teria sido um falcão cinzento?”, Voja se perguntou. Logo o último ônibus
elétrico para a casa deles chegou, e os gêmeos entraram nele.
Seu lar era um apartamento de três quartos. Estava situado nos fundos de um
edifício amarelo em forma de L, cujo acesso era feito através de um pátio com
portão, mas Voja hesitou antes de entrar. Durante todo o trajeto, ele se
preocupara sobre como dar a notícia para os demais familiares. Eles sabiam que
ele havia se candidatado para a viagem, mas tal qual Cveja, não esperavam que
ele fosse selecionado.
– Meus irmãos! – festejou alegremente sua irmã Nata quando eles entraram.
Voltando-se do fogão a lenha que aquecia o apartamento, ela rapidamente
enxugou as mãos num pano de pratos e então se apressou a apanhar-lhes os
casacos.
Durante todo o jantar, a família conversou e riu. Mas nessa noite o humor e
entusiasmo costumeiros de Voja pareceram contidos. Ouvindo sem muita
atenção a conversa, ele inconscientemente traçou com o dedo a palavra Roma na
toalha da mesa e em sua calça.
Ao observar a família interagindo, Voja notou como se fosse a primeira vez, que
o riso fluía facilmente na família. A risada da mãe era moderada e rouca como
sua voz. Nata deixava saliva escapar enquanto ria, como uma torneira tossindo
após ter faltado água. Cveja ria como se tentasse reprimir sua alegria com a mão
na boca, como fazia Nata. A risada de Mića era forte e contagiante.
Agora, acomodado em sua cadeira com o garfo na mão, Voja olhou em volta da
sala. Mića havia pintado o apartamento e trazido de volta a mobília do casal, que
havia ficado armazenada no galpão de um amigo durante os sete anos e meio em
que ficara preso. Antes da prisão de Mića e seu subsequente despejo, os gêmeos
haviam morado com o casal em outro apartamento ao se mudarem para Belgrado
a fim de estudar na universidade.
Após sua libertação, apenas sete meses antes, Mića soube que aquele
apartamento ficara vago por meio da viúva de seu melhor amigo. Ela morava no
apartamento da frente com o segundo marido e o filho Grujica [Gruitsa], amigo
dos gêmeos. Quando o apartamento ficou pronto, Nata se mudou de volta para
Belgrado, saindo das terras da família em Glusci, onde havia morado com os
pais desde o despejo. Jovica veio junto, e como Ilija havia morrido nesse ínterim,
Mara fechou a casa do sítio, arrendou para membros da família o pedaço de terra
que possuíam e se mudou para Belgrado com Nata. Pouco tempo depois, o casal
convidou os gêmeos para morar com eles.
Após o jantar, Nata lavou os pratos, cobriu-os com um pano limpo de linho e os
deixou secando no balcão de aço inoxidável. Somente então, ela retornou à mesa
vazia onde os demais permaneciam sentados. A mãe observava tudo de sua
cadeira perto do fogão, com os grandes olhos azuis piscando e seu doce sorriso
emoldurado pelo lenço escuro que lhe cobria os cabelos.
Quatro pares de olhos ansiosos se fixaram nele. Até mesmo Jovica olhou.
– Vocês se lembram de que eu lhes falei sobre a viagem para Roma? Bem, a lista
saiu hoje. – Observando cada rosto, ele torceu os dedos nervosamente: –Meu
nome estava na lista.
Tão logo as palavras saíram dos lábios de Voja, Mića se pôs em pé de um salto e
lhe deu um abraço apertado.
– Ótima notícia! Algo espetacular vai acontecer nesta família! – exclamou ele,
demonstrando fervor em seus olhos escuros. Voltando para a extremidade de sua
cadeira, ele se inclinou para a frente e agitou o dedo indicador para Voja. – Você
precisa ter muito cuidado. Ninguém pode descobrir seu plano.
A mãe desviou o olhar, de Voja para Cveja e novamente para Voja, como se já
estivesse prevendo que iria perder os dois filhos e querendo gravar a imagem
deles em sua mente. Voja contemplou os olhos da mãe, mas não viu lágrimas. Na
verdade, ele nunca a vira chorar. Nem quando ele e seu irmão saíram de casa aos
11 anos para continuar os estudos em outra cidade. Nem mesmo quando seu pai
morrera. Deus era sua âncora e fortaleza, e ela aceitava tudo como sendo
proveniente de Suas mãos.
– Meu querido, que Deus te abençoe – disse Mara finalmente em voz baixa e
ritmada ao encontrar o olhar fixo de Voja. Ela então repetiu sua frase predileta,
que dissera tantas vezes ao longo dos anos: – Tudo passará, e o Senhor virá.
Nata permaneceu quieta, o que não lhe era habitual. Uma mecha de cabelos
escuros e encaracolados caiu-lhe sobre a testa, e ela empurrou-a para trás
distraidamente. Seus pés, calçados com chinelos, se firmaram no chão e ela
assentou-se de mãos cruzadas sobre o colo com avental. Os olhos castanhos
piscavam rapidamente enquanto escutava.
“Nata preencherá o espaço depois que sairmos. Ela cuidará da mãe”, disse Voja
para si mesmo, embora seu coração sofresse pela irmã. Ele jamais se esquecera
de como a irmã trabalhara no sítio no lugar dele e de Cveja, de modo que o pai
deles lhes permitisse ir para o colégio. Se não fosse Deus e Nata os gêmeos
ainda seriam incultos. Uma grande parte do sítio da família havia sido
nacionalizado – o moinho, a olaria e a serraria foram confiscados pelo governo.
Sim, ele devia muito a Nata. E agora que ela havia finalmente juntado os
pedaços de seu mundo, ele estava despedaçando tudo em volta dela. Esse
pensamento o afligiu.
– Você sabe que não temos futuro aqui. O regime nos deu uma boa educação –
pelo menos isso –, mas mesmo isso não conta se você não pertencer ao partido –
disse Voja por fim, repetindo fatos que eles já sabiam.
– Além disso, como cristãos, somos todos cidadãos de segunda classe – disse
Voja. – A Constituição teoricamente permite liberdade religiosa, mas os
observadores do sábado sofrem de qualquer modo.
Voja se referia à igreja à qual sua mãe havia se convertido enquanto os gêmeos
ainda eram crianças. Era uma igreja protestante, considerada pelo povo como
uma religião americana. A maioria dos sérvios pertencia à Igreja Sérvia
Ortodoxa, a religião nacional. Mas, como adventistas do sétimo dia, Mara e os
filhos observavam o sábado, o sétimo dia da semana, o sábado bíblico. Do pôr
do sol de sexta ao pôr do sol de sábado, eles se abstinham de trabalhos e
atividades seculares.
– Outros cristãos não têm os problemas que nós temos com a semana de seis
dias, sendo que domingo é feriado e eles vão à igreja nesse dia – disse Cveja. –
Nossos membros não trabalham aos sábados. Por isso são multados e às vezes
demitidos de seu emprego. A frequência à escola é outro problema.
– Isso é o que temos ouvido, isso é o que temos ouvido. – Cveja balançou a
cabeça e olhou atentamente para o irmão. – Nossos amigos nos contaram
histórias terríveis.
Voja assentiu com a cabeça. – Se Deus quiser, já teremos ido embora antes disso.
– Ele mudou para o seu assunto predileto. – Na América não é assim. Lá a
religião é respeitada e os cidadãos têm direitos – exclamou ele, estendendo as
mãos. – As transmissões radiofônicas da Voz da América falam tudo sobre isso.
Na América, mesmo os operários das fábricas e as empregadas domésticas
podem ter carros.
– Oh, mas o regime chama isso de propaganda – interrompeu Mića com um
sorriso estranho e a voz cheia de sarcasmo. Ele também amava a América.
Algumas semanas mais tarde, Voja recebeu seu passaporte. Todas as noites,
antes de dormir, ele o abria e olhava seu visto italiano. “Segunda-feira, 13 de
maio – o Dia D”, murmurava ele para si mesmo, lendo a data de saída. Isso se
tornou um ritual noturno costumeiro.
– Espero terminar o esboço preliminar até abril – disse-lhe Voja. – Mas não
conseguirei terminar o projeto todo. Conto com você, Cveja, para o que faltar.
– Usei a maior parte das minhas economias para pagar a viagem. Todas as
minhas despesas estarão cobertas enquanto eu estiver com o grupo, mas, quando
sair, precisarei de dinheiro.
No dia seguinte, Voja tomou um trem para a cidade onde seu tio morava.
– Dois ducados não o levarão muito longe – disse o filho de Mladen, depois que
Voja lhe confidenciou seu plano e solicitou sua ajuda. – Lembre-se de que como
refugiado na Itália você não poderá trabalhar. Além disso, você não sabe por
quanto tempo terá que esperar. Quatro ducados ajudarão mais. Vamos emprestar-
lhe quatro.
No trem de volta para Belgrado, Voja pensou em seu último encontro com um
amigo seu, também chamado Mladen, mais de um ano atrás, pouco antes que ele
saísse do país. As autoridades somente haviam concedido a Mladen um
passaporte para ele ir à Áustria fazer tratamento médico, porque a esposa e as
duas filhas não iriam com ele. Pouco tempo depois, quando surgiu uma
emergência médica, as autoridades permitiram que a esposa dele, Mela, também
fosse. As duas filhas ficaram em casa, aos cuidados da avó.
– Uma rosa entre dois espinhos – zombou Voja num domingo, quando ele e o
irmão estavam sentados num desses bancos com a mãe, feliz, espremida entre
eles. Ao conversarem e sonharem com dias melhores, esquilos corriam em volta
procurando alimento e perseguindo um ao outro para cima da solitária acácia,
que estava agora em plena floração. O pequeno Jovica se divertia ao ar livre,
puxando um caminhãozinho de madeira que se movia ruidosamente sobre o
pavimento de concreto irregular enquanto o menino corria ao longo do pátio.
Ele pensou no versículo que havia lido naquela manhã. “Por isso não tema, pois
estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o
ajudarei; Eu o segurarei com a Minha mão direita vitoriosa” (Isaías 41:10, NVI).
De fato, ele tinha muitos medos: medo do desconhecido, medo de fracassar,
medo pelo seu irmão e por sua primeira separação. Mas esses temores se
misturavam com uma animação e esperança cheias de regozijo.
– Você tem certeza de que não quer levar algum alimento com você? – perguntou
Nata. – Deixe-me preparar-lhe um lanche.
– Obrigado, Nata, mas com todo esse bom alimento em meu estômago, não vou
sentir fome durante uma semana. Além disso, a maioria das minhas refeições
está incluída nas despesas – replicou Voja alisando a barriga.
– Estão em meu bolso. – Voja deu uns tapinhas em sua calça. – Vou colocá-los
em minhas meias antes de sair. Eles precisam ficar escondidos.
– Tenho o suficiente por enquanto. Uma maleta é mais fácil de carregar se...
quando eu puder escapar – corrigiu-se Voja no meio da frase.
– Lembre-se, Voja – declarou Mića –, isto é só o começo. Eu não vou ficar aqui
por muito tempo.
Voja olhou para seu relógio. Eram 9h15 da noite, quase hora de partir. Ele tirou
os ducados do bolso. Cada ducado estava enrolado num pedaço de pano, e então
os juntou em pares, de modo que eles não escorregassem ao andar sobre eles.
Abaixando as meias, pôs um pacotinho em cada calcanhar e as puxou
novamente. Enfiando os pés nos sapatos, ele procurou se acostumar com a
desconfortável sensação de objetos estranhos sob os calcanhares. Daí a família
fez um círculo, todos de mãos dadas, enquanto a mãe orou.
A História de Voja
– Sem dúvida, Grujica – respondeu Voja, lançando um olhar astuto para Cveja.
A estação de trem finalmente surgiu ao longe. Postes de luz com globos brancos
ladeavam toda a extensão do edifício e lançavam um brilho suave sobre a rua e
os viajantes que se apressavam de um lado para outro. Os três homens
caminharam através de um pórtico arqueado para um saguão iluminado por
candelabros de cristal suspensos de um alto teto decorado artesanalmente. A
estação parecia ter gente demais para aquela hora da noite, mas o fato é que Voja
nunca havia ido à estação tão tarde.
Tremendo de agitação, ele precisou assegurar-se de que aquilo não era um sonho
– de que ele realmente estava a caminho agora. Os três homens caminharam
através do saguão passando por grupos de viajantes andando para lá e para cá
nos guichês de venda de passagens e esperando em bancos de madeira. Perto da
entrada, estava um homem em pé, segurando um cartaz que dizia: “Grupo de
turistas para Roma.”
– Onde está o grupo? – perguntou Voja em voz alta. Ele se apresentou e soube
que o homem segurando o cartaz era o guia turístico que ele deveria assessorar.
– Onde está o trem? – perguntou-se uma senhora em voz alta. – O guia nos disse
para ir à plataforma número 1.
– Deve haver algum engano – sugeriu um homem. Ele saiu pela plataforma para
perguntar. Dois outros homens do grupo o seguiram.
Alguns minutos depois eles voltaram. – Nosso trem está lá atrás – informaram
eles apontando a direção. – Fomos transferidos para a plataforma número 13.
– Plataforma 13 e hoje é 13 de maio. Será que isso traz azar ou alguma coisa do
gênero? – brincou um dos viajantes caminhando para os fundos da estação com
os demais do grupo. – Alguém aqui é supersticioso? Pode ser que haja mais
surpresas! – O pessoal riu, transformando uma inconveniência momentânea
numa ocasião de descontração para iniciar a viagem.
O guia turístico chegou, carregando uma pasta para documentos e uma prancheta
em sua mão.
– Minhas desculpas pela confusão – disse ele, abaixando-se para colocar a pasta
no chão. – Houve uma alteração de última hora. E agora, posso ter sua atenção?
– Ele se apresentou, tirou do bolso uma caneta e começou a chamar os nomes de
sua lista, conferindo-os à medida que as pessoas respondiam. – Todos os
cinquenta estão presentes – informou ele ao terminar. Em seguida, pôs a caneta
no bolso da jaqueta e enfiou a lista e a prancheta dentro da pasta.
– Vamos ocupar aqueles dois vagões. – Ele apontou para os dois vagões do trem
mais próximos do grupo e prosseguiu com as instruções. – A composição inclui
um carro-restaurante que vamos usar e um carro-dormitório que não usaremos. –
Enquanto falava, ele indicou cada um dos vagões. E acrescentou: – Permaneçam
sempre com o grupo. Nunca saiam sozinhos.
– Oh, vocês dois! Pelo jeito como vocês se comportam, parece que Voja está
indo para a Sibéria ou algo semelhante – observou Grujica aparentando
impaciência, pois sabia quão íntimos os dois eram. – Divirta-se – ele se volveu
para Voja, abraçando-o. – Eu o vejo em 10 dias. Estarei esperando aqui quando
você voltar.
Voja apanhou sua maleta, subiu os degraus e desapareceu dentro do vagão. Ele
passou por vários compartimentos até encontrar um que estava desocupado.
Cada passo desconfortável que ele dava o fazia lembrar-se dos ducados de ouro
dentro das meias. Dentro do compartimento, ele escolheu um assento junto à
janela e alojou sua maleta no porta-bagagem acima da cabeça. Dobrando a capa
de chuva, colocou-a em cima de sua maleta e acomodou-se no banco.
Embora fosse noite, ele pôde ver a plataforma em meio à luz opaca. De repente,
Cveja apareceu junto à janela, olhando com os olhos meio fechados para dentro
do vagão. Ele havia caminhado ao longo do trem, tentando localizar seu irmão.
Voja bateu no vidro fazendo o irmão sorrir e acenar-lhe.
– Todos a bordo! – gritou o chefe de trem. Após dois longos apitos, a locomotiva
começou a resfolegar vapor, deu alguns solavancos e se moveu lentamente sobre
os trilhos. Cveja correu junto do trem até o fim da plataforma, e então sumiu de
vista quando o trem se afastou da estação. Pegando velocidade, o trem avançou
estrepitosamente noite adentro, expelindo cinzas e uma espessa fumaça de
carvão pela chaminé. Através da janela, Voja contemplou a cidade envolta em
sombras passando lá fora. Ele sentiu uma sensação estranha de vazio na boca do
estômago, embora seus nervos latejassem de animação.
Já era bem tarde, de modo que após 45 minutos, mais ou menos, o grupo se
aquietou, concordou em deixar o compartimento à meia-luz e tentar dormir. Voja
apanhou sua capa de chuva, colocou-a contra a fria janela como um travesseiro
improvisado, e recostou a cabeça, já bem cansado. Havia sido um longo dia.
Enquanto ele cochilava, o trem avançava ruidosamente em direção à fronteira
com a Itália.
– Vamos fazer baldeação para um trem italiano nesta estação – anunciou o guia
turístico, caminhando ao longo dos dois vagões. Apanhando seus pertences, o
pequeno grupo saiu do compartimento e desembarcou do trem. Acompanhados
pelos outros, eles andaram uma pequena distância até um portão sobre o qual
pendia um grande cartaz de madeira, pintado, dando-lhes as boas-vindas à Itália.
“Benvenuti in Italia”, era o que estava escrito.
“Estou em solo italiano! Na verdade, estou no mundo livre!”, pensou Voja ao ter
a incrível percepção de que havia cruzado a fronteira para o Ocidente – e para a
liberdade. A sensação era estranha e excitante. Até agora tudo havia corrido
bem, e seu coração estava cheio de gratidão.
– Não se preocupem. Tudo vai ficar bem – garantiu ele ao grupo. – Apenas
fiquem juntos e esperem aqui. Não podemos ir embora enquanto ela não for
encontrada. – E afastou-se para inquirir.
– A mulher estava viajando sozinha – observou alguém. – Ela estava muito bem
vestida e tinha aparência suspeita.
– Será que vamos nos deparar com a máfia? – perguntou nervosamente uma
senhora idosa.
Meia hora mais tarde, o trem se moveu lentamente para fora da estação para o
último trecho da viagem para Roma. O guia apareceu para informar que o
almoço estava sendo servido no carro-restaurante, e logo eles deixaram os Alpes
a noroeste de Sezana e entraram na maior planície da Itália. Gradualmente, a
paisagem mudou para colinas suavemente onduladas cobertas de vinhedos. Aqui
e ali um arvoredo de oliveiras retorcidas ou uma fileira de majestosos ciprestes
mediterrâneos adornavam grupos de casas isoladas. Voja sentiu emoção pela
expectativa de ver os tesouros de Roma pessoalmente.
Eles pararam em Pádua e então cruzaram a ponte de aço sobre o rio Pó, o mais
longo rio da Itália. Quando os antepassados de Voja fugiram da Bósnia, ocupada
pelos turcos, para a Sérvia, na virada do século 18, eles atravessaram o rio Drina.
A Sérvia havia então adquirido certa independência dos turcos, e seus
antepassados almejavam ser livres e viver em sua própria terra. Muitos anos
mais tarde, quando a Áustria atacou a Sérvia em retaliação pelo assassinato do
arquiduque austríaco na Bósnia, o que provocou a Primeira Guerra Mundial, o
exército austríaco cruzou o rio Sava, e a batalha que se seguiu foi travada nas
terras dos Vitorović e de outras famílias. Duas vezes, o exército sérvio expulsou
o exército imperial das terras sérvias para o outro lado do rio Sava. E agora Voja
estava cruzando um rio em sua busca de liberdade.
Quando o trem passou pelas cidades de Bolonha e Florença, Voja teve, através
da janela, um vislumbre da arquitetura renascentista e de cidades medievais
construídas sobre colinas. Ele estava sentado na beira do banco olhando
atentamente através das janelas de ambos os lados do trem, tentando absorver
tudo. À tardinha, o trem entrou na estação de Roma, com seu belo interior de
mármore e sua distinta fachada. Finalmente, haviam chegado à Cidade Eterna –
a cidade construída sobre sete colinas, onde papas e imperadores governaram e
onde cristãos haviam servido de alimento para os leões.
Duas horas depois, eles chegaram a Pompeia, a antiga cidade romana destruída
no ano 79 d.C. pela erupção do Vesúvio. Fascinados, os turistas contemplaram
uma cidade congelada no tempo – as ruínas petrificadas do fórum, templos,
teatros e casas, bem como as formas de cadáveres humanos em várias posições
imortalizadas em gesso calcinado.
Mais tarde, ao passar uma hora em Nápoles, Voja se expôs a um dos famosos
vendedores ambulantes da Itália. Este estava vendendo canetas Parker.
“Vedete!”[Veja!], dizia o homem entusiasticamente. Ele apontava para a
inscrição Made in USA na caneta. Tendo estudado quatro anos de francês e dois
anos de latim, Voja esperava entender um pouco do italiano falado, mas o dialeto
falado em Nápoles, que engolia as últimas letras e sílabas, tornava-lhe difícil
distinguir as palavras.
– Mil liras – disse ele finalmente. Isto seria mais ou menos 1,60 dólar. As
canetas Parker na Iugoslávia eram vendidas a três dólares naquela época. O
preço agora está bom, pensou Voja convencido. Ele parou e fez a compra,
contente por ter conseguido essa pechincha em seu primeiro dia no estrangeiro.
Orgulhosamente enfiou a caneta americana no bolso interno de sua jaqueta e
logo se esqueceu dela ao se apressar para alcançar o grupo.
Ao tirar a jaqueta à noite, em seu quarto, Voja viu seu reflexo no espelho do
guarda-roupa. Para seu horror, ele viu uma mancha azul-escura em sua única
camisa branca. Arrancou-a e inspecionou a horrível mancha. Tinha o dobro do
tamanho de um ducado. Ainda em pé diante do espelho, ele notou outra mancha
em sua camiseta, no mesmo lugar da camisa. Então agarrou a jaqueta para
inspecioná-la. No forro uma mancha grande, azul-escura se espalhara na parte
inferior do bolso interno onde ele havia colocado a caneta Parker Made in USA.
Arrancando a caneta, olhou de modo acusador para ela. Ao fazê-lo, escorreu
tinta pelos seus dedos. Além de ficar irado, ele teve prejuízo. Arrasado, Voja foi
até o quarto do guia para reclamar.
– Preciso ter mais cuidado – murmurou Voja para si mesmo ao sair do quarto. –
É fácil para ele dizer isso. – Tendo trazido apenas uma muda de roupa, Voja não
achou graça de sua situação.
Cedo na manhã seguinte, ele acordou com as intensas badaladas dos sinos da
igreja que soavam a cada hora ao longo de todo o dia. Durante o café da manhã,
ele conversou com o guia sobre os planos do dia e sugeriu que dividissem o
grupo em dois. Seria difícil para cinquenta pessoas ouvirem uma pessoa falando,
considerando que, em volta deles, estariam outros grupos grandes.
Era uma manhã magnífica, e a cidade acordou com barulho e alvoroço. Lojistas
chamavam compradores assobiando e cantando ao abrir suas lojas, varriam a
calçada e baixavam seus toldos. Um pouco adiante, uma mulher se inclinou para
fora da janela para sacudir um tapete pequeno. A Basílica de São Pedro, no
Vaticano, ficava a uma pequena distância do hotel, de modo que ambos os
grupos decidiram ir a pé. Ao chegarem à praça oval, vinte minutos depois, os
ônibus turísticos estavam rapidamente chegando, despejando passageiros que se
espalharam pela praça como enxames de formigas.
Voja fez um gesto circular com as mãos e conduziu seu grupo através da
espaçosa praça.
– Esta é a Madonna della Febre, uma das quatro Pietás esculpidas por
Michelangelo. Mas esta é a única que ele terminou. Também é a única obra dele
que contém a assinatura completa.
E assim o enlevado grupo continuou seu roteiro. Viram a figura de São Pedro
que, segundo se diz, representava anteriormente o deus pagão Júpiter, e a todo
instante soltavam exclamações e murmuravam.
Dali o grupo foi ao Palácio do Vaticano e, então, para o Panteão com sua enorme
cúpula, sob a qual Rafael Sanzio foi sepultado.
Sabendo que seu tempo com o grupo era limitado, Voja procurou comprimir o
maior número possível de pontos de visitação. Apanhando seu mapa de Roma,
encontrou o caminho para a Fontana di Trevi [Fonte dos Trevos]. Lá, de costas
para a imensa e trabalhada fonte, cada pessoa expressou um desejo e jogou uma
moeda. Em vez do tradicional desejo de voltar a Roma e à fonte, Voja pediu
sucesso para sair de lá e pela segurança de seu irmão.
– O desjejum será servido das 8h às 9h15, de modo que vocês poderão dormir
até mais tarde, se quiserem – concluiu o guia.
Após o jantar, alguns viajantes ficaram fazendo hora na pequena sala de espera,
sentados juntos em pequenos grupos, relembrando as experiências e impressões
do dia, tagarelando animadamente e rindo alto de alguma anedota ou incidente
do dia. A fumaça dos cigarros girava em torno deles como uma nuvem espessa.
Embora relaxados e com a língua solta pelas bebidas alcoólicas que enchiam os
copos, a conversa continuou reservada e impessoal. Extremamente cônscios de
que espiões estavam infiltrados em cada grupo, todos se mantiveram
resguardados. Ninguém confiava em ninguém. No final do dia, não sabiam mais
a respeito dos seus companheiros de viagem do que no dia anterior.
Voja não bebia nem fumava, de modo que evitou ficar na sala de espera e voltou
diretamente para o quarto. Estava calmo ali, e ele precisava pôr em ordem os
pensamentos e orar. Esta era sua única chance. Ele precisava ter êxito. Tudo
dependia do dia seguinte.
De manhã, ele acordou molhado de suor, pois não havia dormido bem.
Preocupado, ele sonhara que havia sido apanhado e preso. Uma olhada pela
janela mostrou um dia sombrio e melancólico, e o suave ronco vindo das outras
camas informou-o de que os colegas de quarto ainda dormiam profundamente.
Ele se levantou e caminhou em silêncio nas pontas dos pés para o banheiro, onde
se barbeou e tomou banho. Quando terminou, os outros haviam acordado.
– Por que você está tão ansioso hoje de manhã? – perguntou um deles enquanto
Voja se vestia.
– Não consegui dormir. Sonhei a noite toda com afrescos ameaçadores. Além
disso, estou com uma fome de cavalo. Vejo vocês no café da manhã.
Ele desceu os quatro lances de escada para o térreo, atento para qualquer sinal do
guia ou alguém do grupo. Não havia ninguém por ali. Entrando no refeitório,
tomou café sozinho. Quando terminou, eram quase 8h45. Ao subir as escadas,
encontrou os colegas de quarto que desciam. “Ótimo momento!”, congratulou-se
Voja. Até ali tudo correra perfeitamente.
Do topo da larga escada de mármore, ele podia ver a sala de espera no térreo.
Não havia ninguém à vista, embora a porta do refeitório ainda estivesse aberta.
Do outro lado da sala de espera, perto da entrada, uma mulher gorda estava em
pé atrás de um balcão envidraçado, de costas para ele. Era sua chance.
Respirando profundamente, ele voou pelos degraus restantes e atravessou como
uma flecha o piso de mármore rumo à porta da frente.
capítulo 3
refugiado em roma
Voja empurrou a porta com a mão livre, saiu e virou à esquerda. A cabeça
girava, e ele sentiu náuseas. Ninguém no hotel havia tentado impedi-lo.
Ninguém o chamara. Com a pulsação em disparada, não ousou olhar por cima do
ombro. Afastando-se às pressas do edifício, ele deixou para trás o grupo de
turistas com os espiões nele infiltrados, e o guia comunista que ele havia
auxiliado.
A distância até a esquina era pequena, e ele dobrou novamente à esquerda. “Até
agora tudo bem”, pensou ele. Estava fora das vistas do hotel, e ninguém poderia
descobri-lo. Suspirando de alívio, ele atenuou o passo.
Andando para lá e para cá no lado sul da praça, ele procurou um rosto familiar
no meio da multidão de turistas. O número de pessoas parecia menor do que
quando ele havia estado ali com o grupo no dia anterior. Uma sensação de
isolamento nesta estranha cidade já havia começado a se infiltrar nele. Ele se
ausentara de seu grupo sem permissão, e era agora um estranho num país
estrangeiro em vias de se tornar o mais recente refugiado de Roma.
Ao refazer o mesmo caminho pela terceira vez, ele os localizou. O cabelo escuro
de Ivan sobressaía acima da multidão, e Djordje estava com ele. O coração de
Voja saltou de alegria e alívio. Seus amigos não o haviam abandonado.
– Vocês dois são, sem dúvida, o que há de mais bonito em Roma! Que alívio
para estes olhos cansados! – replicou Voja, olhando em volta com cautela. –
Vamos sair daqui. Não quero encontrar-me com ninguém conhecido.
– Eu estava otimista quando escrevi, mas somente na noite passada pensei que
realmente poderia conseguir – disse Voja. – No último minuto, o guia mudou o
itinerário e nos deu a manhã livre. Foi incrível! De outro modo, eu poderia não
estar aqui. – Voja descreveu o que parecia ser uma coincidência, mas em seu
coração ele sabia que havia sido a providência de Deus.
– Irmão sérvio! – gritou Elizabeth, a irmã de Ivan, pela porta aberta ao vê-los se
aproximando. – Bem-vindo à nossa casa, longe do lar!
– Ei, aqui está aquele Šapčanin [shapchanin, pessoa de Šabac (Shabats), cidade
da Sérvia] outra vez! – disse rindo Željko [Zheliko], amigo deles. Ele veio até a
porta, junto de Elizabeth.
– Vocês têm uma boa casa aqui. É uma construção bem nova – disse Voja,
observando a casa ao entrar.
– Tem três quartos, cozinha, sala de jantar, tudo mobiliado. Dividimos isto com
duas jovens que você conhece – disse Elizabeth. Ela o conduziu pela casa e
mostrou os vários quartos.
– Há espaço para você também – ofereceu Ivan, apontando para o sofá da sala. –
Você pode ficar aqui até encontrar um lugar.
– Por que você não se senta ali agora? – disse Elizabeth. – Vou pôr o almoço na
mesa num instante, e poderemos conversar enquanto comemos. – Ela sorriu e foi
para a cozinha.
– Tivemos de deixar nossa filhinha com os pais de Djordje. Foi a única maneira
de obter permissão das autoridades para sair. – Sua voz falhou e lágrimas
brotaram-lhe dos olhos. – Isto foi um ano atrás. Ela estava começando a andar.
Agora provavelmente está correndo ao redor e falando. Estamos perdendo tudo
isso.
– Sim, mas tivemos que esperar. Demorou seis meses – respondeu Djordje. –
Agora estamos acionando a Cruz Vermelha para trazer de lá nossa preciosa filha.
– Ele olhou esperançosamente para a esposa. – Quando isto acontecer, vamos
requerer permissão para imigrar para a América.
– E vocês dois? – voltou-se Voja para Ivan e Željko. Ele fez uma pausa e
encostou-se na cadeira. – Como vocês escaparam?
– Eu vim com eles – respondeu Željko, acenando com a cabeça para Djordje e
Elizabeth. – Desertamos do mesmo grupo de turistas e estamos juntos desde
então.
– Estamos aqui o tempo suficiente para saber das coisas – interrompeu Djordje.
– Vamos lhe dar algumas dicas valiosas. Não cobraremos nada por nossa
experiência técnica – brincou ele.
O dia seguinte era sábado. Enquanto os outros tomavam o trem para a igreja
adventista mais próxima em Roma, Voja permaneceu em casa. Seu grupo
turístico ainda estava na cidade e, embora fosse improvável, ele não podia correr
o risco de se encontrar com eles.
– Šabac – respondeu Voja, uma vez que essa era a sede do distrito de sua região.
O nome de sua vila não significaria nada para uma pessoa estranha.
– Preciso adverti-lo, meu amigo. – Ele se inclinou para frente e baixou a voz. –
Os carabinieri italianos podem devolvê-lo. Eles são pagos para cada refugiado
devolvido, e os educados como você valem mais. – Ele ergueu as sobrancelhas
para dar ênfase às suas palavras, e então se endireitou e estendeu a mão. – Tenha
cuidado. Vejo você na segunda-feira.
Voja achou um quarto mobiliado para dividir com um italiano numa casa a um
quarteirão e meio de seus amigos. Algumas das liras italianas que ele havia
adquirido enquanto estava com o grupo de turistas haviam sido gastas com
cartões-postais e despesas casuais, e também com a sua infame caneta Parker,
enquanto desempenhava o papel de turista. As liras restantes eram insuficientes
para pagar o aluguel da primeira semana, de modo que Djordje lhe adiantou as
liras necessárias até que ele trocasse um de seus ducados de ouro num banco
local.
– Não posso garantir quanto tempo você terá que esperar – disse ele. – Isto
demora um pouco para ser processado.
Antes de escrever para casa, Voja esperou duas semanas para que as coisas se
acalmassem por lá. Então, ao endereçar a carta em nome de sua irmã casada, ele
utilizou o nome de Djordje como remetente e colocou seu endereço em
Centocelle. Quando as autoridades iugoslavas censurassem a correspondência de
entrada, não encontrariam o nome Vitorović em nenhum lugar, e o nome croata
de Djordje numa carta para Belgrado não atrairia atenção. Ele escreveu a carta
em termos genéricos e a assinou Irmão Voja.
No sábado seguinte, Voja foi pela primeira vez à pequena igreja adventista de
Roma. Ao saberem de sua condição de refugiado, vários irmãos amigáveis se
ofereceram para ajudá-lo.
– Você toca violão? – perguntou outro irmão que era advogado. – Sempre quis
aprender. Pode me ensinar? Pago-lhe em dinheiro.
Essa ajuda e mais os trinta dólares que seus amigos Mladen e Mela lhe
mandavam emprestados todos os meses de Nova York, com seus limitados
recursos, permitiam-lhe pagar o aluguel e uma boa refeição por dia num
restaurante próximo, que ele complementava com frutas frescas de quitandas
locais. Desde que chegara aos Estados Unidos em 1956, a família de seus
amigos havia aumentado em dois filhos. Mela estava grávida quando imigraram
e deu à luz à terceira filha, Nadica [Naditsa], duas semanas após chegarem a
Nova York. O filho Djordje nasceu dezoito meses depois.
– Preciso comprar uma calça leve – disse Voja a Ivan e Djordje um dia. – As que
tenho são muito grossas, agora que a temperatura está mais quente.
– Conhecemos uma loja que vende com desconto – disseram eles. – Vamos levá-
lo até lá.
Ao voltar para o quarto mais tarde, a primeira coisa que fez foi inspecionar a
calça. Foi à bacia, tirou-a e, para seu horror, ela se dissolvera em suas mãos. Mal
contendo as lágrimas, ele juntou os pedaços, deixou-os secar, colocou-os numa
sacola, voltou à loja e mostrou ao dono os restos de sua bela calça.
– Você não sabe que não deve lavar este material? – ralhou o homem. – Isto é
papel impregnado de algodão. – E o homem se afastou deixando Voja
boquiaberto e chocado, segurando a sacola e murmurando para si mesmo: “Calça
de papel?” Sua experiência anterior com a caneta Parker veio-lhe à memória.
“Eles me pegaram de novo”, reclamou ele.
Quando Voja visitou seus amigos alguns dias mais tarde, Ivan lhe mostrou um
artigo num jornal italiano. – O papa vai aparecer amanhã, dia 29 de junho. É a
festa de São Pedro e São Paulo. – E estendeu o jornal a Voja. – Milhares de
peregrinos estarão lá. Você quer ir? – perguntou ele enquanto Voja lia o artigo.
– Sim, por que não? – replicou Voja, olhando por cima do jornal. – Deve ser
interessante.
No dia seguinte, os dois homens estavam em pé, em meio a milhares de fiéis
peregrinos aglomerados na vasta praça. “Viva il Papa! Viva il Papa!”, aclamava
e cantava a multidão. Todos os olhares se voltaram para a sacada do terceiro piso
do Palácio Apostólico. Quando as portas da sacada se abriram, as aclamações e
cânticos deram lugar a suspiros. Vestido com um hábito branco, o Papa Pio XII
parecia um ser celestial, e a multidão ficou em silêncio. Os crentes o
contemplavam emudecidos e reverentes. Então, como uma onda gigante, a
multidão se inclinou até o chão.
Assim como algumas pessoas isoladas, espalhadas pela multidão, Voja e Ivan
permaneceram em pé. Eles esperaram até que o papa terminasse de abençoar os
fiéis e voltasse para dentro. Muitas pessoas ainda estavam prostradas quando
Voja e Ivan se voltaram para ir embora.
– Nunca vi nada parecido com isso – disse Voja ao voltarem para casa. – Os
sérvios ortodoxos reverenciam seus patriarcas e sacerdotes, mas eles não os
adoram dessa maneira. Não posso deixar de pensar na ocasião em que a
carruagem do Príncipe Njegoš se defrontou com uma procissão papal a caminho
de Roma. Embora seu cocheiro italiano lhe suplicasse para sair da carruagem,
Njegoš permaneceu dentro dela, observando a procissão através de uma
janelinha. “Pelo amor de Deus”, disse ele ao cocheiro, “eu não vou constranger
minha pequena tribo de montenegrinos. Deixe que o papa siga seu caminho.
Deixe que saiam de suas carruagens aqueles que o fizeram anteriormente. Mas o
Bispo de Montenegro não o fará.”
– Acho que não – respondeu Voja com uma risada. – E Roma não se esqueceu
disso.
Durante todo esse tempo em Roma, Voja nada ouvira sobre Cveja. Finalmente,
algumas semanas mais tarde, chegou uma carta de Nata no endereço de Djordje.
Tomando emprestado de Elizabeth um ferro de passar roupa, Voja voltou ao seu
quarto e passou o ferro quente sobre a carta para ver alguma mensagem
invisível. Numa sociedade oprimida, era costume escrever entre as linhas com
suco de limão. O calor do ferro queimava o suco e revelava a escrita invisível.
Ele pegou a carta e leu: “Cveja desapareceu. Não sabemos onde ele está. A
UDBA o está procurando. Algumas pessoas dizem que o viram. Há boatos de
que ele foi baleado e morto na fronteira. A mãe e eu ainda temos esperança.
Estamos bem, mas terrivelmente preocupadas com vocês dois. Nós os amamos e
oramos por vocês constantemente.”
– Cveja! Cveja! Oh, meu irmão Cveja! – clamou Voja em desespero. – Onde está
você, meu irmão? Você precisa estar vivo. Não poderei viver se você morrer.
Precisamos nos encontrar de novo. – Tremendo, ele caiu de joelhos. – Por favor,
Senhor, traze-o em segurança – suplicou ele.
Cerca de duas semanas mais tarde, na igreja, Voja teve uma surpresa. Um
homem que ele conheceu em Belgrado estava visitando Roma e foi à igreja.
– Você viu minha família? Eles estão bem? – perguntou Voja ansiosamente.
– Sim, vi sua mãe e Nata. Elas estão bem, mas muito preocupadas. Ninguém
sabe onde está Cveja. Eu o vi uma vez em Novi Sad, mas ele não parecia bem.
Estava correndo para lá e para cá como um leão enjaulado, tentando escapar.
Mas isso foi algum tempo atrás.
– Ó, meu irmão, você deve estar enfrentando um inferno. Posso sentir isso na
pele. Por favor, Senhor Deus, protege-o do mal. Ajuda-o a encontrar uma saída.
Enfraquecido pela tristeza, ele achava que seria culpa sua caso alguma coisa
acontecesse ao irmão.
– Mas vai acontecer. Você precisa ser paciente. Nós também tivemos que esperar
– explicaram eles. – E o que você anda fazendo? – perguntaram eles mudando de
assunto. – Não temos visto você com frequência ultimamente.
– Estou dando aulas particulares a alguns garotos e também aulas de violão –
explicou Voja. – Isso me ajuda a aprender italiano. Eu mostro um objeto e lhes
pergunto: “Come si chiama?” Então eles me dizem o nome em italiano. É
realmente fácil. Gradualmente estou aprendendo a língua.
– Não posso acreditar no que vejo! – exclamou Voja com a voz subindo de tom
ao ler avidamente o cartão. – É de Cveja! Ele escapou! Ele está bem, e está na
Áustria. – Então leu a mensagem em voz alta: “Meu querido irmão Voja. Graças
a Deus, finalmente atravessei a fronteira. Dentro de alguns dias, receberei asilo
político. Logo que isto acontecer, irei a Salzburgo para procurar trabalho.”
– Cveja não apenas está vivo e bem, mas em segurança na Áustria. Ele realmente
está seguro! – repetia ele. – Agora já posso respirar de novo, rir de novo e viver
outra vez. Ó, Deus, muito obrigado, muito obrigado! – ele murmurou com
gratidão. Com Cveja em segurança, tudo estava bem em seu mundo.
Duas semanas mais tarde, chegou uma segunda mensagem de Cveja, desta vez
uma carta com o carimbo postal de Salzburgo. Apressadamente, Voja abriu o
envelope e encontrou uma nota de 100 xelins austríacos. A carta dizia: “Meu
querido irmão, encontrei trabalho com um arquiteto aqui. Você acredita? Ele tem
gêmeos, um menino e uma menina. E ele disse que tem trabalho para você,
quando vier para cá.”
Cveja já havia recebido asilo político da Áustria, mas Voja ainda continuava
esperando o seu, da Itália. Finalmente, em 14 de outubro, cinco meses após
chegar a Roma, ele recebeu os seus documentos como asilado. Como as
autoridades haviam retido seu passaporte iugoslavo quando Voja requereu asilo,
ele agora solicitou um novo passaporte. Disseram-lhe para voltar no dia
seguinte.
No dia seguinte, Voja apanhou o que passou a ser um documento de viagem para
estrangeiros, sem o qual ele não poderia viajar. Com isto em mãos, ele foi
diretamente ao Consulado Austríaco, onde solicitou um visto de visitante para
ver seu irmão em Salzburgo, e eles o emitiram no ato.
Transbordante de alegria, Voja voltou para casa às pressas a fim de arrumar seus
pertences numa mala maior que havia comprado, na esperança de fazer essa
viagem. Ele também havia comprado duas camisas e outra calça desde que
chegara à Itália, e suas coisas não caberiam na maleta que havia trazido da
Iugoslávia.
– Mas o que você vai fazer para permanecer na Áustria? Eles não vão lhe
conceder asilo também – Djordje disse perplexo.
– Vou me preocupar com isto depois – replicou Voja. – Eu sei que apenas um
país pode conceder asilo, mas eu não vou nem pensar nisso agora, Djordje. A
única coisa em que penso é ver Cveja.
O coche havia andado uma curta distância quando, uma a uma, suas quatro rodas
caíram, fazendo o povo rolar de rir. O rei saiu e ficou em pé ao lado da
carruagem enquanto o cocheiro real recolocava as rodas.
O prefeito da cidade fez os dois culpados marcharem até o rei. “Sua Alteza”,
disse ele, “estes homens confessaram e desejam devolver os pinos que tiraram.
Eles não quiseram machucar ninguém. Só queriam ter uma amigável
lembrança.”
O rei olhou os homens em pé diante dele. Poucos anos antes, a Sérvia havia
conseguido independência parcial dos turcos. Repentinamente, ele riu, abanou a
mão e disse: “Somos um país democrático agora. Somos livres, não é mesmo?
Deixe-os ir embora!”
capítulo 4
a história de cveja
Depois que Voja viajou com o grupo de turistas para Roma com o objetivo de
desertar, Cveja preencheu com frenética atividade o vazio deixado pela ausência
do irmão. No dia seguinte, após a partida de Voja, ele tirou férias de seu trabalho.
Com os projetos de Voja em mãos, saiu de Belgrado e foi para Pirot. Lá ele
trabalhou com o engenheiro civil no projeto arquitetônico. O pastor em Skopje,
nesse ínterim, havia decidido ampliar a construção da igreja, de modo que ele
tinha ainda mais trabalho a fazer. Na quarta-feira, 22 de maio, a data marcada
para o grupo de Voja voltar, Cveja não estava em Belgrado.
– Eu... eu fui à estação hoje à noite, Cveja – disse ele com dificuldade. – E Voja
não estava no trem! – Seus soluços recomeçaram, e Cveja esperou
pacientemente. – Percorri todos os vagões. Olhei em todos os lugares, e ele
simplesmente não estava lá! – Mais soluços. – Finalmente, todos foram embora.
Então vi alguém com um crachá de identificação, que casualmente era o guia
turístico. – Ele fungou o nariz entre os soluços. – O homem me disse que Voja
havia desaparecido. Simplesmente desapareceu!
– Está tudo bem, Grujica. Voja está bem – respondeu Cveja de maneira
tranquilizadora, esperando que fosse verdade, mas sem ter certeza do que dizia.
– Voja planejava desertar.
– Desertar? Voja desertou? Mas... como? E por que ele não me contou? Ele não
confiava em mim? – Mais fungadas. – Chorei durante todo o caminho de volta
para casa. – Ele fez uma pausa e disse: – Você obviamente sabia, Cveja. Por que
não disse nada?
– Eu não podia, Grujica. Lamento muito – desculpou-se Cveja. – Voja queria lhe
contar, mas ele não tinha certeza de como as coisas correriam. Ele precisava ser
muito cuidadoso. Você entende isso, não é? Você está bem?
Aos poucos Grujica foi se acalmando. – Sim, acho que sim – disse ele, ainda
fungando. – Mas, mesmo assim, gostaria que você tivesse me contado.
Quando Cveja pôs o fone no gancho é que ele começou a sentir a realidade. Voja
– o seu outro eu, sua sombra – havia ido embora. Ele agora sabia com certeza, e
de repente sentiu que todo o seu mundo havia desaparecido. Ele fora deixado
para trás, sozinho.
– Esta carta é de Voja – exclamou Nata com o rosto radiante. Pela primeira vez,
nos últimos dias, Cveja sentiu o coração pulsar de alegria. Como uma lufada de
ar fresco, uma palavra de seu irmão gêmeo revigorou-lhe o espírito. Nata lhe
entregou um envelope. Havia sido endereçado a ela e continha um nome croata
familiar com seu endereço em Centocelle. Nata já havia aberto o envelope, de
modo que ele retirou a carta e a leu com avidez.
“Querida Nata”, começava a carta. “Tudo saiu bem. Entrei em contato com
amigos de Zagreb e achei um quarto mobiliado. Nesse ínterim, requeri asilo
político junto às autoridades italianas e estou aguardando a resposta. Sinto
saudade de você e dos demais familiares. Com todo amor, o irmão Voja.” Sua
escrita era genérica, mas agora eles sabiam com certeza que ele havia desertado
e estava bem.
No dia seguinte, ele foi ao edifício amarelo onde ficava a sede da UDBA. Entrou
e subiu a escadaria de mármore que dava acesso à espaçosa sala onde seu irmão
havia sido entrevistado semanas antes. Ao entrar, dois homens sentados atrás de
escrivaninhas de mogno o olharam. Um era civil; o outro, um coronel do
exército, uniformizado. O coronel indicou-lhe uma cadeira.
– Mas como poderei escrever-lhe? Eu não sei onde ele está! – replicou Cveja.
Ele realmente não tinha o endereço de seu irmão.
Por um momento, o coronel tamborilou os dedos nos braços de sua cadeira, com
os olhos fixos atentamente em Cveja, fazendo um beiço de desgosto com a boca.
Finalmente, ele falou:
– De agora em diante, quando você sair da cidade por mais de 24 horas, deverá
informar este escritório. Queremos saber onde está, com quem está, e como
chegar até você a qualquer momento.
– Já vi estes camaradas antes – disse ele. – Alguns anos atrás, eles moravam num
apartamento atrás de meu escritório. Todas as manhãs, eles faziam exercício no
pátio. Eu podia vê-los de minha janela. São gêmeos idênticos, obviamente muito
parecidos. Aposto qualquer coisa que este aí vai embora também. – Dizendo
isso, ele reclinou-se na cadeira e cruzou os braços novamente.
– Eu o aconselho a não tentar isso. Seria uma tolice, você sabe. Se for apanhado,
o mínimo que vai pegar será cinco anos na prisão, talvez mais. Será julgado
como desertor do exército, o que é muito grave.
Cveja ficou espantado. Ele não imaginava que eles fossem verificar seu
itinerário.
Um dia, Cveja encontrou-se por acaso com a nora de uma irmã da igreja que
havia alugado um quarto para os gêmeos, depois que as autoridades confiscaram
o apartamento de Mića e despejaram a família. Os gêmeos haviam morado
naquele quarto até irem morar com Nata e Mića, após este ter sido libertado da
prisão.
– Você provavelmente não sabe disso, Cveja, mas, quando Voja se candidatou
para fazer a viagem, a UDBA me chamou. Eles queriam saber minha opinião,
isto é, se eu achava que Voja voltaria. Respondi-lhes que não tinha dúvida
quanto a isto, pois ele jamais abandonaria seu irmão. – Ela fez uma pausa e
olhou-o nos olhos. – Evidentemente, eu estava errada.
Quando Cveja se retirou, as palavras da mulher ecoaram-lhe na mente. Ele
tentou imaginar até que ponto a opinião dela pesou na decisão das autoridades
em favor de Voja. Abanando a cabeça, ele se admirou dos muitos incidentes que
se desenrolaram por trás dos bastidores, mas se encaixaram como peças
espalhadas de um quebra-cabeça divino. Com gratidão, ele louvou a Deus por
Sua intervenção.
Sava, o amigo íntimo e colega dos gêmeos, veio ver Cveja alguns dias mais
tarde. Ele era um gênio em matemática. Havia estudado com eles na
Universidade de Belgrado, ajudando-os a se preparar para os exames
extremamente difíceis, nos quais a maioria dos estudantes não conseguia passar
na primeira tentativa. O regime comunista mantinha padrões muito elevados, já
que o ensino era gratuito. Se os estudantes não conseguissem corresponder às
exigências, eles poderiam se transferir para outra área, aprender um ofício ou
voltar para a agricultura.
– Acho que isto é para você – disse Sava sorrindo, ao entregar a Cveja um
envelope. – Foi endereçado a mim. Contém um nome estranho e um endereço
em Centocelle. Mas reconheci a letra.
– Logo que a recebi, percebi que era para você – disse Sava. – Voja foi esperto
em não lhe endereçar diretamente a carta.
Naquela noite, Cveja escreveu em resposta a Voja. Ele enviou a carta aos amigos
croatas no endereço de Centocelle e deixou o endereço do remetente em branco.
Então colocou a carta no correio.
– Oh, meus queridos olhos negros, não andem por aí toda a noite – respondia
Cveja abrindo os braços e irrompendo numa conhecida canção popular. Sua voz
clara ressoava acima do rangido da debulhadora. E, quando os outros se uniam a
ele, suas vozes se avolumavam num coro alegre, trabalhando lado a lado durante
o dia todo, como nos velhos tempos.
– Conte-me outra vez, tio Milorad, sobre nossa família, como eles vieram para
cá, e como eram as coisas então.
Cveja havia ouvido essas histórias muitas vezes, mas queria levá-las consigo,
pois essas histórias eram sua herança, os valores acariciados pelos quais muitos
do seu povo haviam morrido. As narrativas sobre as glórias de seu reino antes da
vinda dos turcos, as revoltas e as guerras que finalmente os libertaram eram
transmitidas de geração em geração assim como suas antigas canções.
– Sempre tem sido assim. – Milorad estava fazendo rodeios agora. – Nosso
pequeno país sempre lutou contra inimigos mais poderosos. Diz-se que quando
um homem luta para salvar a própria existência, ele luta com mais agressividade
e aguenta por mais tempo do que aquele que apenas deseja vencer. Creio que é
assim mesmo. Nossa história prova isso.
– Quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, você e Voja eram jovens demais
para irem à guerra. Espero que nunca precisem. – Ele fez uma pausa, suspirando
profundamente. – Vou sentir saudade de você, Cveja. Você e Voja têm sido como
meus próprios filhos.
A noite havia caído. A lua cheia inundava o pátio com uma luz sinistra, e
estranhas sombras eram testemunhas mudas de sua conversação. Aquecendo o
coração com as lembranças do passado, Cveja passou mais um dia memorável
com seus parentes e então voltou para Belgrado.
Uma tarde, ele fez uma última visita ao Parque Kalemegdan, procurando o banco
no terraço de cima onde Voja havia dado a notícia de que fora aprovado para
viajar a Roma. Aquele banco, então frio no rigor do inverno, agora estava quente
sob o calor do sol de verão. Imerso em pensamentos, ele se sentou ali por alguns
momentos e então caminhou até o parapeito de ferro onde ele e o irmão haviam
estado naquela tarde de inverno, meditando sobre o futuro. Pombos arrulhavam e
se empertigavam ao seu redor como naquela ocasião, alçando voo para as alturas
e então batendo as asas de volta para o chão.
encontro na fronteira
Logo depois que Voja fugiu, todos os amigos dos gêmeos haviam ouvido a
notícia. Eles todos sabiam que a questão não era se Cveja também fugiria, mas
quando isso aconteceria. Alguns até mesmo fizeram sugestões.
– Não é muito difícil fugir – garantiu outro. – Há um trem que vai de Jesenice
para a Áustria através de um túnel na montanha. Eu conheço. Tudo que você
precisa fazer é entrar às escondidas no túnel, à noite. Você é jovem, e pode fazer
isso. Quando sair do outro lado, você estará na Áustria.
A fronteira! O que Cveja, ou alguém mais, realmente sabia sobre a fronteira? Ele
e o irmão gostavam de geografia, de modo que sabiam que a Iugoslávia possuía
fronteiras geográficas com sete países, a maioria deles, atrás da cortina de ferro.
Cveja com certeza não queria ir para lá. Apenas dois países, Itália e Áustria,
estavam localizados no Ocidente livre. Mas ele não tinha experiência nem ideia
do que esperar quando chegasse lá. Tudo que ele sabia é que outros haviam
escapado antes dele, e um de seus amigos havia declarado que atravessar a
fronteira não seria difícil.
Desta vez, ele não comunicou sua viagem à UDBA, pois estaria viajando para o
oeste, em direção à fronteira, o que imediatamente despertaria suspeitas. Ele
esperava que nesse ínterim a polícia secreta tivesse se tornado complacente. Se
tivesse sorte, quando notassem sua ausência, ele estaria em segurança na Áustria.
Essa era a última coisa que Cveja queria ver. Física, mental e emocionalmente,
ele estava despreparado para essa chocante realidade. Abalado pelo incidente e
pelos desafios que teria que enfrentar, ele se perguntou como as informações
dadas pelos amigos poderiam estar tão erradas. Estariam eles meramente
fazendo especulações em voz alta? Ou expressando sua fé naquilo que
desejariam fosse verdade? Sua vida e futuro estavam no limite ali – por que
havia tão ingenuamente acreditado neles? O otimismo que o havia impelido para
aquele lugar começou a evaporar, e um medo terrível se apossou dele.
Saindo da estação com Mikica, Cveja se viu numa cidade industrial, produtora
de aço, aninhada num estreito vale verdejante cercado por um sinistro paredão
de montanhas. Ele havia vindo das planícies de Maćva, e a vista diante dele era
atordoante. Para o sul e para o oeste erguiam-se os majestosos Alpes Julianos; ao
norte, as Montanhas Karavanke, que estabeleciam uma fronteira natural entre a
Áustria e a Eslovênia iugoslava.
– Onde está o túnel para a Áustria? – perguntou ele ao olhar em volta para o
cenário desconhecido.
Juntos eles desceram por uma rua estreita ladeada de casas com telhados
pontudos e sacadas transbordantes de flores. O choque inicial gradualmente se
desvaneceu. Cveja começou a pensar com clareza novamente.
– Preciso encontrar uma maneira de escapar, Mikica. Não vejo outra maneira de
sair do país. Meu irmão está esperando por mim. Mas eu não imaginava que a
fronteira fosse tão... tão vigiada.
– Você viajou toda essa distância, Cveja. Por que não procura investigar melhor
antes de desistir? – incentivou ela. – Nunca se sabe o que poderá descobrir.
– Não encontramos nenhum guia para você, Cveja. Pelo menos, nenhum que
pudéssemos recomendar e no qual confiar – disseram-lhe os parentes de Mikica.
– Qualquer um pode prometer levá-lo através da fronteira, mas alguns guias
trabalham para a polícia secreta.
Aqui estava outro perigo que ele não havia reconhecido totalmente. Entretanto,
quando a família o convidou para ficar lá por algum tempo, ele aceitou. Cveja
havia decidido inspecionar a cidade por si mesmo – em algum lugar, de algum
modo, deveria haver uma saída.
Ao perambular pela cidade no dia seguinte, Cveja descobriu uma livraria de
livros usados. Ao folhear livros aqui e ali, ele encontrou um mapa militar da
fronteira. Embora fosse velho e desatualizado, ele indicava contornos
topográficos e concavidades na fronteira. Estes, com certeza, não haviam
mudado. Se atravessasse sozinho as montanhas, ele precisaria conhecer esses
marcos.
– A maioria das pessoas não consegue ler esse tipo de mapa – disse o livreiro,
quando Cveja lhe perguntou. – Não tenho ideia de onde ele veio.
Cveja comprou o mapa e voltou para casa, onde passou o restante do dia
estudando-o atentamente. Ele havia ouvido relatos de pessoas conhecidas que
haviam conseguido cruzar a fronteira, mas vaguearam por uma concavidade e
acabaram voltando para a Iugoslávia, onde guardas da fronteira os prenderam.
Ele não podia deixar que isso lhe acontecesse.
Examinando o mapa, ele seguiu a fronteira com o dedo. Era apenas uma linha
sinuosa de tinta no papel, mas na realidade aquela linha separava os cativos dos
livres. Imagens do jovem casal na estação faiscavam-lhe na mente. Se a polícia o
apanhasse tentando escapar, eles o tratariam com severidade ainda maior.
Fechando os olhos, endireitou os ombros, respirou fundo e decidiu prosseguir
com a ajuda de Deus.
Cveja observou as altaneiras montanhas acima de sua cabeça, ainda mais visíveis
e assustadoras daquela posição vantajosa no planalto. Montanhas como aquelas
haviam abrigado os combatentes da resistência de todas as regiões da Iugoslávia,
durante a Segunda Guerra Mundial, os quais travaram uma guerrilha contra os
ocupantes nazistas. E agora, ali estava ele, lutando por sua própria liberdade.
Mas essas montanhas não pareciam favoráveis à sua causa.
Daquela elevação, a mais de 1.300 metros de altitude, Cveja podia ver o túnel
que seguia montanha adentro. A Áustria e a liberdade estavam do outro lado
daquele buraco inacessível na montanha. Observando atentamente a cadeia de
montanhas, ele notou que elas declinavam em altura na direção do leste.
– Veja, Branko, você está vendo aquilo? – perguntou Cveja a seu amigo,
apontando para a estrutura acima deles, a mais ou menos um quilômetro de
distância.
Cveja ficou assombrado. Sua vida estava nas mãos de um homem que havia
prometido guiá-lo até a fronteira, mas não podia sequer enxergar direito.
Naquele momento, Cveja se lembrou de uma notícia que havia lido meses antes
em Belgrado. O relato dizia que dois estudantes da Universidade de Belgrado
haviam caído de um penhasco ao tentarem escapar através daquelas mesmas
montanhas à noite. Seus corpos fraturados foram encontrados dias mais tarde e
levados de volta a Belgrado. A recordação dessa história imobilizou-lhe os
passos.
A fronteira estava tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Lá na montanha, ele
quase pudera sentir o cheiro da liberdade soprando do outro lado, seduzindo-o e
impelindo-o para frente. Mas ele havia voltado. A liberdade o estava esperando
do outro lado, mas um imenso paredão de rochedos e inúmeros perigos se
interpunham em seu caminho.
Portanto, em que informações poderia ele crer? A quem poderia confiar sua
vida? Como poderia escapar?
“Obrigado, Senhor, por nos proteger do mal e dos olhares irados da polícia se
eles nos tivessem apanhado”, suspirou Cveja numa prece de gratidão. “E, por
favor, ajuda-me a achar uma maneira de escapar e encontrar meu irmão.”
capítulo 6
aventuras no adriático
Cercado por florestas e aninhado num vale em meio a montanhas, esse retiro
turístico alpino estava localizado alguns quilômetros a sudeste de Jesenice, mas
ainda assim próximo à fronteira austríaca. Engastado no topo de um íngreme
rochedo claro, um castelo medieval estava voltado para o pitoresco Lago de
Bled. Uma minúscula ilha no centro do lago de claras águas azuis abrigava uma
igreja construída no século 15. Cveja procurou seu amigo no endereço do hotel
que lhe deram, mas foi informado de que o homem havia saído naquela manhã.
Após perambular pela cidade sem encontrar nada promissor, ele voltou ao hotel
para passar a noite. No dia seguinte, continuou a viagem. Desta vez, ele viajou
de ônibus para o sul em direção à fronteira italiana.
Em Nova Gorica, ele se defrontou com algo grotesco. Uma cerca de dois metros
e meio de altura, com arame farpado em cima, cortava bem ao meio uma rua no
centro da cidade. A cerca se constituía não apenas numa fronteira que dividia a
cidade em duas, mas era também uma fronteira internacional que dividia dois
países. No lado iugoslavo da cerca, ficava a cidade de Nova Gorica, construída
após a Segunda Guerra Mundial. Do outro lado, ficava o antigo povoado, que
recebeu o nome de Gorizia ao ser dado aos italianos após a guerra. Dos dois
lados da cerca, estavam guardas armados junto a enormes portões, espaçados em
intervalos regulares.
Anoitecia quando ele finalmente percebeu que não havia comido durante todo o
dia. Nos últimos dias, as refeições haviam deixado de ser prioridade para ele.
Mas agora ele estava com fome. Então procurou um restaurante. Ao encontrar
um, entrou e sentou-se. Quando o garçom apareceu, Cveja entabulou conversa
com ele.
– Quem são aquelas pessoas? Como é que elas têm permissão para atravessar os
portões? – perguntou ele entre outras coisas.
Ali em Nova Gorica, ele novamente se deparou com a fronteira – mais visível e
aparentemente mais acessível do que em Jesenice, mas igualmente impenetrável.
No dia seguinte, ele fez novas indagações.
– De vez em quando, alguém tenta subir na cerca e pular para o outro lado –
disse-lhe um residente. – Mas é abatido a tiros antes de consegui-lo. – De fato,
Cveja havia visto avisos de advertência colocados ao longo da cerca: “Perigo”,
“Não atravesse”, “Os guardas atirarão”.
Durante dois dias, Cveja perambulou pela cidade. Ele observou os guardas dos
portões e as pessoas que passavam por eles. Notou quando os portões eram
abertos e fechados. Tentou pensar em alguma maneira de se misturar com o
grupo, algum jeito de entrar furtivamente. Com a liberdade tão perto, por que
não tentar? Deveria haver um meio, e ele precisava descobri-lo. Mas, enquanto
ele continuava pensando e consultando as pessoas, a mesma sensação que
tomara conta dele em Jesenice voltou. Ele estava correndo atrás do vento e
ficando sem fôlego, mas sem nada nas mãos. Desalentado, foi embora da cidade.
Fora mais uma possibilidade frustrada.
– Você não pode ficar aqui, Cveja – disse-lhe Barica [Baritsa], a mãe de Željko.
– A polícia secreta já esteve aqui duas vezes desde que Željko escapou. Eles
podem estar vigiando a casa agora. Vou levá-lo à casa de minha irmã Mića
[Mitsa]. Você estará mais seguro lá.
Na casa de Mića, Cveja descansou um pouco, mas ele não queria simplesmente
se acomodar. Estava ardendo de desejo de planejar sua fuga. Mića o conduziu a
outra casa, pertencente à família da noiva de Željko, Mira. Quando ele chegou, a
mãe de Mira, também chamada Barica, disse-lhe:
– Você pode ficar aqui, Cveja, mas não tenho qualquer informação. A melhor
coisa seria você voltar para Belgrado. Veremos o que podemos descobrir nesse
ínterim. Tão logo saibamos algo, enviaremos um cartão-postal para você,
convidando-o a passar as férias conosco. Isso será o sinal de que achamos uma
conexão.
Cveja voltou para Belgrado. Extasiados por vê-lo vivo e bem, os familiares o
envolveram em calorosos abraços. Eles estavam preocupados de que ele tivesse
sido apanhado. Corriam todos os tipos de boatos, e eles não sabiam em que
acreditar. A mãe e a irmã louvaram a Deus por protegê-lo e por lhes permitir
conversar novamente com ele.
– Meu querido, você está em casa agora – disse a mãe sorrindo. Ela seguia todos
os seus movimentos com os olhos.
– Você não tem se alimentado, Cveja? – perguntou Nata, notando que as roupas
lhe caíam frouxas sobre o corpo. – Você ficou sem dinheiro?
– Às vezes, até me esqueço de comer. Nesses últimos dias, não tenho sentido
muita fome.
– A UDBA não telefonou para nós – informou Nata. – Será possível que eles não
notaram sua ausência? Não é extraordinário?
– O que você achou da fronteira? O que viu por lá? – Mića importunou Cveja
com perguntas. Ele também estava pensando em fugir.
– Mas onde está meu outro tio? – perguntou Jovica, alegre por ver um deles, mas
querendo saber o que acontecera com o outro tio que costumava brincar com ele.
Como havia gasto uma parte de seus recursos com despesas de viagem, Cveja
vendeu algumas roupas a uma loja de artigos usados – um par de sapatos caros
pouco usados, um sobretudo em boas condições, duas calças e três belas
camisas. Enquanto isso, esperou notícias de Zagreb.
Sete dias depois, chegou um postal da mãe de Mira. “Venha passar suas férias
conosco”, dizia ele. “Minha filha Branka irá encontrá-lo do outro lado da rua da
rodoviária. Esteja lá às 22 horas, no dia 14 de agosto.”
Cveja ficou extasiado. Finalmente, após todos os seus desapontamentos e
provações, alguma coisa daria certo.
– Ainda não decidi. As estações em Zagreb são próximas, de modo que tanto faz
– respondeu Cveja.
– Se fosse você, eu não iria de trem. Os espiões sempre viajam pelas ferrovias –
aconselhou Mića. – Os ônibus são um pouco mais caros, mas menos lotados. Há
menos chance de ser apanhado.
placa h-8
Cveja chegou à rodoviária de Belgrado uma hora mais cedo. Após comprar a
passagem, ele seguiu as tabuletas escritas em cirílico e latim, indicando a
plataforma de onde seu ônibus partiria. A rodoviária não estava movimentada, e
ele foi o primeiro a chegar para o ônibus das 16 horas, o último para Zagreb.
O ônibus dobrou aqui e ali nas ruas de Belgrado e logo deixou a cidade para trás.
O tráfego na rodovia de pista simples pareceu mais leve, e o ônibus aumentou a
velocidade em direção ao seu destino. Cveja reclinou-se na poltrona, suspirando
profundamente e observando a paisagem plana.
O homem no assento da frente se voltou para ver sua garotinha que estava
desentrançando o cabelo de lã de sua velha boneca. Quando Cveja olhou para ela
e sorriu, ela apertou a boneca contra o peito e olhou para o lado.
– Ela é muito tímida – explicou o pai, começando a conversar com Cveja. – Vai
visitar Zagreb? Vamos ficar lá alguns dias com os parentes de minha esposa.
A maioria dos passageiros do ônibus estava alheia ao perigo, mas Cveja, com os
olhos bem abertos, viu tudo com horror. O motorista desviou para a esquerda
para não se chocar com o caminhão, mas o carro que vinha em sentido contrário,
com os faróis altos, estava agora quase em frente dele. Então o motorista do
ônibus girou o volante rapidamente para a direita para evitar uma colisão frontal
com o carro, mas na rodovia com apenas duas faixas estreitas de rolamento não
havia espaço para se espremer entre os dois veículos.
Imediatamente, pulou para fora através do rasgão aberto à sua direita e correu
em volta da frente do ônibus. O motorista do carro parou a um metro de
distância. O homem olhou para Cveja como se quisesse dizer alguma coisa, mas
inesperadamente apertou o acelerador e arrancou com os pneus cantando. Cveja
gritou injuriado para o carro, ao este se desviar do ônibus destroçado:
– Seu idiota, olhe o que você fez! Você matou esta gente!
Mas o veículo foi embora sem parar, com os faróis altos brilhando intensamente
noite adentro. Cveja ficou olhando-o até desaparecer. Ele reconheceu o carro
como sendo da marca Mercedes-Benz. Conseguiu ler apenas os dois primeiros
dígitos de sua placa: H-8. O H significava Hrvatska (Croácia).
Com o facho do farol intacto, ele pôde ver que o caminhão havia sido lançado
para fora da estrada com a colisão. Chapas de aço se soltaram da carga e haviam
voado em várias direções.
– Não foi culpa minha! Não foi culpa minha! – exclamava lamentosamente o
motorista jovem. Horrorizado, com as mãos na cabeça, ele andava para lá e para
cá no meio dos destroços espalhados na estrada.
– Não foi culpa minha! Não foi culpa minha! – continuava a exclamar o
motorista.
– Eu sei, eu sei. Aquele idiota não baixou os faróis! – respondeu Cveja ainda
irado.
– Você viu o que aconteceu? Por favor, diga-lhes que não foi culpa minha –
implorou ele, puxando a manga de Cveja. – Seja minha testemunha. Só Deus
sabe o que eles farão comigo.
– Este homem viu tudo. Ele sabe que não foi culpa minha – disse o motorista aos
repórteres que o inquiriram. E apontou para Cveja. Uma fotógrafa pôs uma
máquina fotográfica em frente ao rosto de Cveja. Ele se abaixou ao vê-la, e o
flash lampejou, fotografando o rosto de outra pessoa. A pior coisa que poderia
acontecer seria seu rosto aparecer nos jornais.
Uma cena descrita no romance Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque, veio-
lhe à mente. Um médico judeu estava se escondendo dos nazistas na França
durante a ocupação nazista. Quando ele se ajoelhou instintivamente ao lado de
uma pessoa ferida, numa rua de Paris, imediatamente percebeu seu erro. Em
seguida, um patrulheiro alemão deu-lhe um tapinha no ombro e pediu sua
identidade. Como ele estava sem documentos, o oficial o levou embora. Este
também seria seu destino, pensou Cveja. Quanto mais ele se demorasse por ali,
mais perigosa ficaria sua situação.
Por um bom tempo, Cveja ficou sentado no chão, em meio ao milharal, oculto
por folhas oscilantes e aromáticas espigas, esperando que os carros da polícia e
as ambulâncias fossem embora e o tráfego se dispersasse. Ele se culpou por ter
tomado o ônibus. Se tivesse viajado de trem, estaria em segurança em Zagreb,
em vez de se esconder da polícia como um fugitivo. Finalmente, ergueu-se e
abriu caminho entre o milharal, caminhando paralelamente à estrada, mas
afastando-se do acidente. Ao caminhar, seus pensamentos se voltaram para os
passageiros feridos. Antes, ao ouvir falar de um acidente, ele sempre considerara
os feridos como afortunados por terem sobrevivido, mas agora havia
testemunhado em primeira mão quão graves os ferimentos podem ser. As
imagens de membros mutilados, ossos quebrados e rostos desfigurados mudaram
para sempre sua maneira de considerar os feridos.
Bateu à porta, mas ninguém atendeu. Bateu novamente, desta vez com mais
força, e uma voz fraca perguntou lá de dentro:
– Quem é?
Alguns momentos depois, ele ouviu a chave girar, e a mãe de Mira aparecer na
porta. Ela olhou para Cveja e quase desmaiou.
– O que aconteceu com você? Sua aparência está horrível! – suspirou ela
levando as mãos à boca. – Entre, entre.
Ele entrou e explicou sobre o acidente. Também lhe falou que havia informado à
UDBA que estava indo para o sul. Depois de ouvir a história, ela disse:
– Descanse aqui agora. De manhã iremos à casa da mãe de Zeljko. – Ela lhe
ofereceu alimento e bebida, mas ele quis apenas água. Após dormir por algumas
horas, Cveja acordou ao amanhecer. A mulher lhe deu uma muda de roupa que
pertenceu ao seu esposo, e então saíram.
Era de manhã agora, e as ruas da cidade estavam repletas de pessoas que iam às
pressas para o trabalho, e bondes lotados de passageiros. Numa esquina, um
rapaz anunciava as últimas notícias: “Extra! Extra! Compre o seu jornal matinal.
Leia tudo sobre o acidente de ônibus na rodovia!” gritava ele.
Enquanto Cveja esperava na casa da mãe de Zeljko, sua irmã Mića chegou.
Juntas, as três mulheres tentaram localizar uma mulher que se supunha morar na
Rua Trg República, e segundo se dizia, trabalhava como guia, mas não puderam
encontrá-la. Ele passou lá a noite e comprou outro jornal no dia seguinte. Desta
vez, a manchete dizia: “Testemunha desaparece. Procurada para testemunhar
sobre o acidente.” Seu estômago se revirou. A polícia local o estava procurando,
desta vez como testemunha do acidente. Obviamente, não seria seguro para ele
permanecer em Zagreb.
capítulo 8
cilada no litoral
Cveja deu algum dinheiro aos seus amigos para comprar-lhe uma camisa nova e
um par de calças, já que as suas roupas estavam sem condições de uso. Ainda
abalado pelo acidente de ônibus e por sua tentativa fracassada de entrar em
contato com um guia, ele decidiu ir para a costa do Mar Adriático a fim de
verificar se poderia fugir de barco de lá para a Itália. E tomou o ônibus de
Zagreb para Rijeka, o principal porto marítimo da Iugoslávia. A cidade estava
situada no fundo da Baía de Kvarner, no Mar Adriático. Em meio ao intenso
comércio e tráfego lá, ele tinha esperança de achar uma maneira de escapar.
Com seu antigo anfiteatro romano, belas praias e pinheiros, Pula formava uma
saliência para o sul, no Mar Adriático. Quando Cveja olhou através do mar na
direção da Itália, não conseguiu ver a costa oriental italiana em virtude da
distância. Talvez por causa disso, pensou ele, a fronteira fosse menos vigiada
pela polícia. Mas, após passar o dia fazendo um reconhecimento da cidade, ele
não descobriu nada. No dia seguinte, ele prosseguiu rumo a Portorož, na parte
ocidental da península.
– Com licença, você não é o Cveja? – perguntou a jovem sorridente. – Você não
se lembra de mim? No ano passado trabalhei em Belgrado e cantei no coral
jovem da igreja, regido por você.
– Elana! É claro que sim. Que coincidência encontrá-la por aqui! – disse Cveja,
surpreso e alegre por encontrar alguém conhecido naquele lugar estranho.
Durante toda a viagem, ele só havia encontrado estranhos. Agora estava entre
amigos.
– Este é meu noivo Romeo – disse ela, apresentando seu companheiro. – Seus
pais moram um pouco fora da cidade. Dá para caminhar até lá... Por que você
não vem conosco? Estamos indo para lá. Assim a gente pode conversar.
Ao chegarem, a família de Romeo recebeu Cveja calorosamente e lhe fez o
convite para ficar para o jantar. Enquanto comiam, conversaram.
– Não é fácil escapar, Cveja – disse Elana. Ela fez uma pausa para pensar. –
Ouvi falar de alguém... Seu nome é hmmm... sim, Giovanni Bartoni. É claro que
não posso me responsabilizar por ele. Tudo que sei é que, segundo se diz, ele
tem transportado pessoas para a Itália em seu barco.
– Bem, ele é magro, um pouco mais baixo do que você. Deve ter entre 40 e 50
anos de idade. Tem rosto comprido e está ficando careca. Isso é tudo que sei lhe
dizer. Desejo-lhe sorte.
– Já que você viajou de tão longe, por que não passa a noite aqui? – convidou a
mãe de Romeo. – Amanhã você pode voltar para Rijeka.
– Se precisar de um lugar para ficar nos próximos dias, você é bemvindo para vir
dormir aqui – convidaram os pais de Romeo. – Vamos sair amanhã com os
jovens, e a casa ficará vazia. – A mãe lhe mostrou onde escondiam uma chave a
mais. Cveja agradeceu e saiu.
– Um momento – respondeu alguém. Pouco depois, ele ouviu uma voz rouca:
– Aqui é o Bartoni.
Quando Cveja entrou no café na hora marcada, viu seis pessoas sentadas em três
mesas espalhadas no pequeno espaço. Três em uma mesa, duas em outra e um
homem sozinho no canto. Olhando com atenção o rosto deles, encontrou apenas
um que se encaixava na descrição de Elana – o homem sentado à mesa do canto,
tomando café e lendo jornal. Cveja se aproximou dele:
– E daí se eu for? – sua voz era grave e fanhosa. Ele depôs o jornal e apanhou a
xícara.
– Eu sou a pessoa que lhe telefonou hoje de manhã. Preciso ir para a Itália.
– E você acha que eu posso ajudá-lo? – Ele lambeu os lábios, depôs lentamente a
xícara e encostou-se à cadeira. – Quem lhe disse isso?
– Um amigo. – Cveja fez uma pausa. – Bem, você pode? – Cveja achou que o
homem parecia Humphrey Bogart. Ele havia visto o ator uma vez, no filme
Casablanca, quando a associação dos estudantes universitários obtivera
ingressos. Devido à popularidade dos filmes americanos, os ingressos eram
difíceis de obter. Conseguir um era uma raridade. Cveja teve a sensação de estar
na cidade marroquina de Casablanca, profundamente envolvido em intrigas. Era
estranho e assustador, e ele não gostou de estar nessa situação.
– Quarenta e cinco mil dinares – sussurrou ele, inclinando-se para frente. Então
se recostou na cadeira, segurou o cigarro ao seu lado e observou a reação de
Cveja. – Metade adiantada. O restante quando sairmos.
– Saio de Portorož. Mantenho meu barco aqui em Rijeka, mas navego entre os
dois lugares. Sairemos para pescar depois de escurecer. Haverá outros barcos
pesqueiros. Lançarei as redes e deixarei o barco flutuar para o mais longe
possível. Quando eu achar seguro, remaremos como doidos para os marcos da
fronteira – aquelas boias vermelhas que ficam fora da baía. Passaremos por
baixo das amarras. Do outro lado, estaremos em águas italianas.
– Remar? Você vai remar? – Cveja franziu a testa, muito perturbado. – O seu
barco não tem motor?
– Motor não tem utilidade para mim – respondeu o homem com indiferença. Daí
dobrou o jornal e colocou as mãos sobre ele.
– Não poderia instalar um para esta viagem? Você pode vendê-lo depois e ter seu
dinheiro de volta. Eu me sentiria muito melhor se você tivesse um motor. –
Cveja esperou ansiosamente.
– Isto leva tempo, meu amigo. E mais dinheiro. – Inclinando-se para frente outra
vez, fez uma pausa e então deu o seu preço: – Outros 45.000 dinares.
– Oh! – Cveja pareceu desmaiar. – Isto é o dobro do preço – murmurou ele. Mas
como estava desesperado e não sabia mais o que fazer, perguntou:
Cveja concordou e foi embora com tudo programado. Ao sair pela porta, ouviu
Bartoni pedir outra xícara de café.
Na manhã seguinte, Cveja tomou o ônibus para Portorož e chegou cedo à praia.
Ele queria ter certeza de que acharia o balneário em tempo. O sol da manhã
iluminava fracamente o mar azul-celeste e várias pessoas se divertiam em meio
às ondas. Ao entrar no vestiário masculino, Cveja viu Bartoni encostado à
parede, de pernas cruzadas, fumando um cigarro. Ao vê-lo, Bartoni voltou-se,
ergueu as sobrancelhas e soltou uma baforada.
– Está tudo bem, não há ninguém aqui – disse ele, notando que Cveja estava
nervoso, olhando em volta. Sua voz estava calma. Apagando o toco do cigarro
na pia e jogando-o na lata de lixo, ele foi até a porta, olhou em volta do lado de
fora, e então fechou a porta. – Está limpo.
– Recibo? – O homem deu uma risada. – Isso incriminaria nós dois se a polícia
descobrisse.
– Dez dias, é isso aí – confirmou Bartoni. Retomando sua posição anterior, ele
puxou outro cigarro do bolso e acenou com a cabeça para a porta. – Vou sair
depois de você. Não é uma boa ideia sermos vistos juntos.
Com tudo acertado, Cveja saiu. Embora sentisse uma pontinha de pânico, estava
disposto a correr o risco. Essa era, afinal, sua única opção. Afastando-se do
balneário, sentiu um ímpeto de agitação ao respirar o ar fresco e salgado.
Uma alameda ladeada por flores aromáticas ornava a graciosa costa, e ele
decidiu dar uma caminhada. Ao andar ao longo do calçadão, sua mente vagueou,
pensando em liberdade e em seu irmão.
A pitoresca Piran, com alguns dos muros medievais ainda preservados, tinha
atrás de si colinas e montanhas como a maioria das cidades ao longo da costa do
Adriático. Quando Cveja chegou lá, a noite havia caído. A praia estava quase
deserta. Apenas uns poucos residentes perambulavam ao longo dela.
Ao caminhar pela praia estreita, Cveja notou fachos brilhantes de luz que
varriam a praia e iluminavam a baía. Observando com atenção para descobrir
sua origem, ele teve a impressão de que os fachos se originavam de um edifício
no topo de um monte. Amanhã, durante o dia, ele solucionaria o mistério.
Após passar a noite num hotel local, ele se levantou cedo na manhã seguinte e
subiu o monte. Não era muito íngreme, e ele logo chegou ao topo. Na parte mais
alta, havia uma igreja católica com um campanário quadrado, no estilo
veneziano. É daqui que vem a luz, pensou Cveja. Os fachos saem do topo desta
torre.
Cveja deu um forte empurrão na porta. Ela se ergueu e a luz do dia o inundou.
Quando espiou para dentro, a primeira coisa que viu foi um par de botas do
exército. Seu olhar foi subindo pelas pernas do guarda uniformizado até chegar
ao seu rosto espantado, e então ao rifle que estava apontando em sua direção.
– Espião? Não, é claro que não! – respondeu Cveja, ao mesmo tempo chocado e
amedrontado. Trôpego, ele deixou a porta descer atrás dele com um estrondo. –
Sou turista. Vi a torre e quis olhar a vista aqui de cima.
Através das aberturas arqueadas do campanário, Cveja pôde ver a esteira branca
da arrebentação na praia pedregosa e ter uma vista espetacular da baía. Mas o
que ele viu dentro da torre é que o deixou vacilante. No chão havia um enorme
refletor rotativo. Em dois dos quatro arcos, metralhadoras armadas sobre tripés
estavam apontadas para a praia.
– Isto aqui é uma área militar restrita. Você não viu o aviso lá fora? – continuou
o guarda ainda agarrando o rifle.
– Aviso? Não, não vi – disse Cveja com os pensamentos voando para tentar
compreender a situação. – Na noite passada, eu estava na praia e notei luzes
vindo desta direção.
– E como você soube que as luzes vinham daqui? Deixe-me ver sua identidade.
– Isso mesmo. Estive no litoral só uma vez. É tão bonito – disse ele tentando
iniciar uma conversa. – E de onde é você? Sua fala não parece ser daqui.
O guarda relaxou. – Não, eu também sou de Belgrado. Minha casa é lá. Estou
aquartelado aqui há um ano. Vigio a fronteira.
Cveja engoliu em seco. Ele havia inadvertidamente topado por acaso com um
posto de segurança que vigiava a fronteira marítima. De lá ele tinha uma visão
interna da baía. Quando Bartoni o levasse em seu barco, saindo de Portorož, ele
estaria talvez no ponto de alcance das balas daquelas mesmas armas.
– Nunca pensei que houvesse esse tipo de problema – disse Cveja. Ele notou os
binóculos pendurados em volta do pescoço do guarda.
– É claro que eu também vigio a saída da fronteira. Posso ver toda a área da baía,
aqui em Piran e também o vizinho Portorož. A maioria dos barcos lá são
pesqueiros. Eles geralmente saem após escurecer. Tenho ordens para atirar em
quem se aproximar demais das boias que marcam a fronteira, no meio da baía.
Ao descer o monte, ele murmurou para si mesmo: “Tudo em vão. Meus esforços
estão indo por água abaixo de novo. Logo agora que eu pensava ter achado uma
solução, dá tudo errado. Como é que Bartoni me prometeu fazer essa travessia?
Ele deveria saber que a saída para o mar é vigiada. É muito arriscado escapar.
Parece impossível.” As esperanças de Cveja se dissiparam, e ele tomou o
primeiro ônibus de volta para Rijeka.
Bartoni não estava no café quando Cveja chegou, de modo que ele se sentou à
mesa do canto, pediu um copo de suco e esperou. Sem demora, a porta se abriu e
Bartoni entrou. Ao ver Cveja, juntou-se a ele e ouviu sua experiência em Piran.
– Eu sei.
– Eles não podem atirar do outro lado das boias. Duas pessoas num barco
pesqueiro não levantarão suspeitas. Eles só vão perceber nossas intenções depois
que for tarde demais. – Bartoni procurou acalmar os temores de Cveja.
Cveja foi embora tentando acreditar em Bartoni, mas estava apenas meio
convencido. Parecia arriscado e perigoso demais. Mas quais eram suas opções?
Ele não tinha outra escolha. Teria que confiar nesse estranho. Precisaria esperar e
orar pelo melhor.
Depois do encontro com Bartoni, Cveja deu entrada num pequeno hotel. Estava
tenso e impaciente. Decidiu caminhar um pouco antes de voltar para dormir. Um
passeio reduziria sua tensão e desassossego.
– Eu não acho uma boa ideia você dormir no hotel. Mas não cancele seu quarto.
Se a polícia está no seu encalço, eles o procurarão lá. Venha comigo, eu tenho
um galpão em meu vinhedo. É limpo e tem uma cama. Você pode dormir em
segurança lá.
Faltavam sete dias para Cveja sair do país e seu dinheiro estava acabando. Ao
contá-lo, viu que tinha só 20.000 dinares, o que não era suficiente. Ele ainda
devia outros 45.000 dinares a Bartoni, e teria que tomar dinheiro emprestado.
Então pensou em seu amigo Ladi, que morava em Novi Sad, e decidiu tomar o
ônibus para lá. Naquela noite, ele dormiu novamente no galpão do membro da
igreja, e no dia seguinte partiu.
Como o ônibus para Novi Sad faria uma parada em Zagreb, Cveja decidiu descer
e fazer uma visita à mãe de Željko. Ela havia sido tão gentil com ele em sua
visita anterior, quando ela, sua irmã e a mãe de Mira o haviam acolhido como
um filho e tentaram ajudá-lo. Quando ele chegou, ela lhe deu notícias
alarmantes:
– Estava nos jornais, Cveja, logo depois que você saiu! – exclamou ela com
agitação. – A reportagem disse que havia três pessoas no grupo, um homem e
duas mulheres. Eles se encontraram com uma mulher guia na estação ferroviária,
e ela os levou a Maribor, na Eslovênia. Outro guia deveria encontrá-los lá. Mas,
quando os quatro desceram do trem, adivinhe quem estava lá? A polícia secreta.
– Ela torceu as mãos e suspirou. – Dá para acreditar, Cveja? A polícia tentou
prendê-los, mas o homem puxou um revólver e baleou um dos policiais. O outro
policial atirou nele, e ambos os homens morreram. Então o agente prendeu as
duas mulheres e a guia. Quando foram ao apartamento da guia, eles encontraram
um esconderijo de dinares e dólares. Mas isso não é tudo. Naquela noite, a guia
se enforcou na prisão com suas meias de nylon.
Cveja ouviu tudo em silêncio, aturdido demais para responder. Era o grupo com
o qual ele se encontraria em Zagreb, mas o acidente de ônibus o impedira de
chegar a tempo.
– Pense apenas, Cveja – disse ela. – Se não estivesse nesse acidente, você teria
ido com eles, e agora estaria preso, talvez morto.
Cveja olhou fixamente para ela. Fraco e incapaz de falar, sentiu-se pequeno
diante da revelação. O acidente que parecera tão desastroso para seus planos, na
ocasião, o havia poupado do pior. “Ó, Deus, Tu me salvaste outra vez. Obrigado,
Senhor. Quão estranhos são os Teus caminhos”, orou ele silenciosamente.
“Ajuda-me a confiar sempre em Ti, não importa o que aconteça.” Ele passou a
noite na casa dela, e pela manhã continuou a viagem para Novi Sad.
Quando Cveja chegou à casa de Ladi, foi recebido com calorosas boas-vindas.
Felizmente, para Cveja, Ladi havia ficado em casa, embora fosse domingo e os
membros da igreja estivessem fazendo um piquenique. Cveja lhe contou os
assustadores eventos dos últimos dias.
– Rapaz, você está obrigando seu anjo da guarda a fazer horas extras! – disse
Ladi. – Mas algo me diz que você não viajou até aqui só para me contar sua
história.
Cveja sorriu. – Sou assim tão transparente? Você está certo, Ladi. Meu dinheiro
logo vai acabar. Eu sei que é pedir muito de você, mas preciso de 45.000 dinares.
Você sabe que eu tenho condições de devolver-lhe.
– É claro, meu amigo. Deixe-me ver o que posso fazer. – Ele foi a outro quarto e
voltou com um maço de dinares e contou-os. – Aqui estão 50.000. Devolva-os
quando puder. – Ele pôs o dinheiro na mão de Cveja, recusando-se a aceitar um
documento de débito. – Os 5.000 a mais são para você comer. Pelo que vejo,
você não tem feito muito isso ultimamente.
– Você é um salva-vidas, meu velho amigo. Vou lhe ser grato para sempre –
respondeu Cveja abraçando-o. – E você sabe que vou lhe devolver isto logo que
puder.
Ladi o convidou a ficar ali por alguns dias. Como o barco ainda não estava
pronto, Cveja aceitou o convite.
No dia seguinte, Cveja visitou alguns amigos íntimos que moravam em Novi
Sad. Ao chegar à casa deles, Kaća [Katcha] atendeu à porta. Eles haviam se
conhecido durante anos, porque os corais de jovens das igrejas de Novi Sad e
Belgrado muitas vezes se apresentavam nas igrejas uns dos outros. Durante a
visita, ela lhe contou que seu noivo, Djoka [Joka, uma versão de Djordje], e seu
irmão mais moço haviam conseguido obter passaportes para assistir a uma feira
relacionada com seu trabalho, em Paris. Enquanto estavam lá, eles desertaram.
Quando o pai deles foi a Paris para se tratar de um ferimento de guerra e trazer
os filhos de volta, ele também desertou. A UDBA ficou furiosa. Agora ela, sua
futura sogra e outro irmão de Djoka ficariam ali sem esperança de sair do país
legalmente. Kaća estava desesperada.
– Quando você escapar, Cveja, prometa que não se esquecerá de nós – implorou
ela. – Por favor, envie-nos o nome de sua conexão. Você pode escrever para
Djoka em Paris. – Ela escreveu o endereço de Paris num pedaço de papel e o
entregou a Cveja. – Ele vai nos informar da maneira habitual.
– Ó, Cveja, Cveja, tenho notícias horríveis! – disse ele agarrando Cveja pelo
braço. – Quando terminou o culto de oração hoje de noite, a secretária da igreja
me levou a um canto. Ela parecia muito perturbada. Ela disse que tem uma
amiga que trabalha como escrevente no escritório local da UDBA. Ela não é
comunista. A secretária havia falado de Bartoni a ela. Por iniciativa dessa amiga,
ela deu uma olhada na ficha de Bartoni. – O homem fez uma pausa para tomar
fôlego. – E tem mais: quando ela viu a ficha, viu o seu nome. O seu nome estava
na ficha de Bartoni! – repetiu ele.
– A amiga lhe disse que Bartoni havia estado na prisão duas vezes por
contrabandear pessoas para fora. Agora, ele colabora com a polícia como meio
de se reabilitar. Ela disse que Bartoni o levaria em seu barco e se fingiria
surpreso quando a guarda costeira o cercasse. Depois, eles dividiriam o dinheiro
entre eles. Disse que eu deveria avisá-lo com urgência.
– Ela não diria uma coisa dessas se não tivesse certeza. Ele é um trapaceiro,
Cveja. É assim que ele trabalha. Você não pode confiar nele.
Cedo, na manhã seguinte, Cveja foi para a rodoviária. Estava agitada àquela hora
da manhã e, em meio à multidão que se movia para lá e para cá, ele avistou o
rosto familiar de um amigo, médico em Zagreb. Ele estava caminhando na
direção de um dos portões de embarque, e Cveja se apressou para alcançá-lo.
Vlado se voltou para ele e sorriu. – Cveja, velho amigo! Que surpresa vê-lo.
Estou de férias, em viagem para Split. E você, meu irmão? O que está fazendo
por estes lados?
– Estou numa encrenca séria, Vlado. – Cveja puxou-o para o lado e contou-lhe
resumidamente seu dilema.
– Sabe quem escapou alguns dias atrás? – perguntou Vlado. – Mira, a noiva de
Željko. Ela foi para a Áustria.
– Hmmm, eu realmente não consigo pensar em algo, a menos que a mãe de Mira
tenha alguma informação. – Ele fez uma pausa. – Tenho um irmão em Pula. Ele
trabalha num estaleiro como engenheiro chefe de produção de motores de
navios. Pode ser que ele tenha alguma ideia, ou talvez possa colocá-lo em
contato com alguém. Vou lhe dar seu endereço.
O endereço escrito no papel conduziu Cveja a uma atrativa casa numa travessa,
com vários degraus na porta dianteira. Na frente da casa, estava estacionada uma
lustrosa Vespa Moped, novinha em folha, raramente vista na Iugoslávia naquela
época, uma vez que a maioria das pessoas não tinha condições de comprar uma.
Cveja subiu os degraus e tocou a campainha.
– Meu irmão? Sim, entre – convidou Ivan em sua maneira cordial. – Acabo de
voltar de um treinamento avançado de seis meses na França – disse ele dando
uma risadinha. – Como você pode ver, comprei uma Vespa lá. Mas o que posso
fazer por você? – perguntou ele quando os dois se assentaram.
– Sinto muito, meu amigo, mas não posso ajudá-lo. De tempos em tempos, vou
para Trieste e volto, em viagens curtas para testar um novo motor a diesel. Eu
poderia tentar levá-lo como um convidado de confiança, mas infelizmente não
temos viagens programadas para um futuro próximo. Nenhuma.
Cveja ficou desanimado. Ele havia ficado esperançoso de encontrar uma brecha,
mas outra porta se fechara em seu rosto.
– Obrigado, Ivan, por sua boa vontade – disse ele, tentando esconder sua
decepção. – Desculpe tê-lo incomodado.
fuga noturna
Voja havia viajado para Roma em meados de maio. Agora era o dia 5 de
setembro, e o ar fresco do outono já havia substituído o calor do verão. As
chances de sucesso não estavam mais perto agora do que quando ele havia
começado. Logo as árvores deixariam cair suas folhas, tornando a fuga através
da fronteira mais perigosa, sem a proteção de sua cobertura. Em menos de três
semanas, ou seja, em 24 de setembro, ele deveria se apresentar para o serviço
militar. Se não escapasse antes de entrar no exército, seria tarde demais para ir
para a América quando ficasse livre. Se a mãe de Mira não pudesse ajudá-lo
agora, ele não saberia o que fazer ou para onde ir.
– Lamento muito, Cveja. Você não pode ficar aqui – disse-lhe a mãe de Mira
quando ele chegou. Seu ânimo se desvaneceu e suas últimas reservas de
esperança se esgotaram. – A polícia já esteve aqui duas vezes desde que Mira
escapou. Eles ainda podem estar vigiando a casa. Deixe-me levá-lo à casa da
mãe de Željko.
– Você pode ficar em minha casa – disse ela. – Pode ser que minha irmã Mića
tenha uma boa conexão para você. O marido dela conhece um homem, que é
esloveno. Mas só teremos certeza amanhã.
– Vou voltar na segunda-feira – disse ele a Cveja. – Eu não sou o guia, mas vou
apresentá-lo a ele, lá. Ele também se chama Hans, e é meu parente. Se tiver o
dinheiro, você pode vir comigo.
Essas palavras soaram em seus ouvidos como uma bênção maravilhosa, uma
promessa de libertação. As escuras nuvens do desespero pareceram se afastar,
permitindo que o sol brilhasse outra vez. Sim, ele tinha o dinheiro – o dinheiro
que pagaria a Bartoni. Cveja deu a Hans 2.000 dinares de entrada, com os
restantes 60.000 a serem pagos ao guia.
– E o que ele disse? – perguntou Cveja ansiosamente. – Ele soube alguma coisa
a meu respeito? Contou alguma coisa sobre minha família?
– Ele disse que sua irmã Nata assinou por você a correspondência registrada com
um aviso do serviço militar. A UDBA telefonou para a igreja e falou com ele.
Eles o consideram um desertor do exército agora. Disse também que eles
prometeram que se você se apresentar, eles perdoarão tudo. Disseram que cópias
de fotos suas foram distribuídas em todas as fronteiras. Ele me perguntou se eu
sabia alguma coisa a seu respeito.
Quando os três homens chegaram a Murska Sobota, Hans chamou um táxi que
os levou ao restaurante onde eles deveriam se encontrar com sua conexão, o
outro Hans. Eram 11 horas da manhã, e os clientes para o almoço estavam
começando a chegar. Cveja não tinha ideia de a quem procurar, mas o homem os
conduziu a uma mesa para pedir o almoço.
Cveja e Marko ouviam com atenção, pois suas vidas dependiam desta conversa.
– Quando sairmos daqui, seguiremos pela estrada que vai para o noroeste, em
direção à fronteira com a Áustria. Vocês precisam ficar atentos e em silêncio.
Um jipe da fronteira faz a ronda da estrada ao acaso. – Ele fez uma pausa para
ter certeza de que eles haviam entendido, e então continuou. – Quando
chegarmos à “terra de ninguém”, perto da fronteira, os guardas poderão atirar
sem aviso prévio. Atravessaremos junto à tríplice fronteira da Iugoslávia,
Hungria e Áustria. – A aparência de seu rosto ficou enérgica. Ele se inclinou
para frente, empurrando para trás uma mecha de cabelos. – Os guardas sempre
fazem o patrulhamento em dois. Há uma trilha estreita, com pedregulhos, no
topo do aterro. A cada duas horas a guarda é trocada. Eles fazem um intervalo e
entram na karaula [posto de fronteira] para tomar uma bebida ou fumar e se
apresentar aos seus substitutos. Durante esse breve intervalo, a fronteira fica
desguarnecida. É nesse momento que avançaremos. Teremos dez minutos para
atravessar. Quando eu disser “agora!” corram o mais rápido que puderem e não
parem! Mordendo o lábio, ele se reclinou no encosto e cruzou os braços.
Deitado ali e esticado como uma estátua, Cveja olhou para a escuridão.
Raspando algumas fibras de palha, ele as deixou cair entre os dedos. O cheiro
familiar de feno ali dentro transportou seus pensamentos para a infância e para
seu lar rural. Entretanto, apenas o aroma lhe era familiar. O feno, tal e qual a
palha daquela cama esquisita, era estranho para ele. Quão pequeno seu mundo se
tornara – um monte de feno, um buraco no chão, uma noite. O que é que ele
estava fazendo tão longe de casa, tão desesperado e solitário? Finalmente, seu
corpo cansado não resistiu ao esgotamento e adormeceu.
No dia seguinte, Cveja e Marko se reuniram na casa de Hans para ouvir seu
relato sobre a visita ao campo.
– O horário dos guardas não mudou – disse ele. – Exatamente às três horas da
madrugada, eles trocam o turno. Isso deixa um intervalo de dez minutos. – Cveja
e Marko passaram o restante do dia isolados na casa do homem. Embora
estivessem numa área rural, não quiseram se arriscar atraindo suspeitas.
– Iremos hoje à noite – disse Hans. – Vou acordá-los à meia-noite. Durmam bem.
Parecia que havia acabado de pegar no sono quando o ruído de passos rápidos
vindos em sua direção o acordou alarmado.
– Está na hora de ir! – disse suavemente uma voz do lado de fora. Cveja sentou-
se e se arrastou para fora do buraco, com lascas de palha grudadas em sua
jaqueta e calças. O coração bateu forte no peito, e seu corpo vibrou de emoção.
Marko também se pôs de pé, com os olhos cheios de medo. Ou será que foi o
reflexo de seu próprio medo que Cveja viu? A hora da verdade havia chegado.
Cveja estava ansioso, mas resignado. Aquela era sua última chance.
Depois de caminharem por mais de duas horas, Cveja calculou que haviam
andado quase dez quilômetros. O guia entrou num bosque de pinheiros, parou e
olhou para eles.
– Posso lhe garantir desde já que você não vai conseguir. – Pondo as mãos
embaixo de sua jaqueta grande demais, ele puxou dois revólveres, um em cada
mão. – Este revólver é para você e para mim – ameaçou ele, encostando-o na
cintura de Cveja. – O outro é para os guardas. Por isso, nem você e muito menos
os guardas vão me levar vivo.
– Senhor, tudo que lhe falei é verdade. Não sou comunista, e muito menos
espião. Sou um cristão. Deus é meu juiz. Se o senhor não acredita em mim, não
há nada mais que eu possa dizer. – Cveja encolheu os ombros e acrescentou: – O
senhor pode me matar agora mesmo.
– Lamento ter que fazer isto – desculpou-se Hans –, mas nesse tipo de trabalho
não posso me descuidar. – Ele deu uns tapinhas nos lados de sua jaqueta. –
Durmo com estes revólveres, porque minha vida está sempre em perigo. Se os
policiais alguma vez vierem atrás de mim, vão se arrepender. Vocês podem me
pagar agora – disse ele, com um tom animado na voz. – Não recebi seu dinheiro
antes porque eu precisava ter certeza. Estamos quase na fronteira agora.
Cveja tirou 60.000 dinares que havia guardado para aquele fim e os entregou ao
homem. Marko fez a mesma coisa. Hans contou as notas e as apertou para dentro
de um bolso com zíper.
Ele apontou para uma área aberta, com grama alta do outro lado do bosque. –
Aquele campo é minado. Teremos que nos arrastar através dele por quase um
quilômetro. Irei à frente. Quando eu der sinal, sigam em fila indiana. Não se
desviem nem para a esquerda nem para a direita.
Hans avançou, cortando uma faixa estreita através da grama ao abraçar o chão.
Ao ouvirem o canto do rouxinol duas vezes, Marko e Cveja seguiram conforme
as instruções, com os joelhos e cotovelos afundando na terra enquanto se
arrastavam. Aqui e ali eles paravam para descansar ou observar e ouvir.
Finalmente pararam a cerca de 50 metros de um aterro de mais ou menos cinco
metros de altura, nivelado no topo.
O guia apontou para o lugar sem dizer uma palavra. Então esta é a terra de
ninguém, pensou Cveja. Os três homens avançaram junto ao chão, com o corpo
esticado e de cabeça baixa. Folhas de grama úmida roçavam seus rostos. Eles
podiam ouvir a respiração curta uns dos outros enquanto procuravam ouvir
algum sinal dos guardas.
Quando tudo estava quieto, o guia indicou com a cabeça uma luzinha na parte
elevada da trilha à direita. Uma pequena estrutura de madeira, uma karaula
[posto de fronteira] havia sido construída dentro do aterro. Era quase invisível no
escuro, exceto pela fraca luz que se filtrava por uma pequena janela redonda.
Quase chegando ao topo, ele de repente percebeu a ausência de som atrás dele –
ele não conseguia ouvir os passos ou a respiração pesada de Marko. Um ansioso
olhar por cima de seus ombros mostrou seu companheiro lutando na base da
rampa coberta de grama, com os sapatos de sola lisa patinando na grama. Ele
não havia feito nenhum progresso.
Cveja foi para trás dele e o empurrou, com as botas afundando na terra. Marko
era mais alto e mais pesado, e Cveja reuniu todas as suas forças. Um torrão com
grama desmoronou embaixo de seus pés e Cveja escorregou para trás.
Desesperado, ele empurrou como um louco, desvairado de medo. Ele precisava
fazer com que aquele homem chegasse ao topo. De alguma forma, ele
conseguiu. Quando chegaram ao topo do aterro, ele o largou.
– Eu... eu não consigo – gemeu Marko. Cveja olhou para trás de novo. Marko
estava curvado, com os joelhos um pouco dobrados e os pés se arrastando,
paralisado de medo. Outra vez, Cveja voltou, delirando de pavor.
– Vamos, Marko, ande! – insistiu ele. Cveja o agarrou por baixo do braço e lhe
deu um puxão para frente. Lá em cima do aterro, a trilha pedregosa lhes deu
tração. Mas o tempo estava se escoando rapidamente.
Subitamente eles ouviram um ronco à direita. Cveja se virou e viu dois fachos de
luz penetrando no céu noturno. O jipe patrulheiro estava subindo uma ladeira na
estrada e vindo exatamente na direção deles. Num segundo, a estrada ficaria
plana e os faróis os iluminariam. Aterrorizado, Cveja deu em Marko um último
empurrão violento que o arremessou sobre a borda do aterro. Cveja mergulhou
após ele.
Dando cambalhotas do outro lado, para dentro de uma valeta, Cveja ouviu
Marko indo de encontro a uma árvore após a outra. Então tudo ficou em silêncio.
Um segundo depois, o jipe passou roncando por eles.
Cveja se levantou e olhou em volta. No silêncio que se seguiu, ele receou que
seu companheiro estivesse ferido.
– Acho que sim – veio a resposta incerta. Marko se ergueu limpando o ombro e o
lado.
– Uau! Esta foi por um triz – disse Hans. – Venham aqui. – Ele apontou para
algo que parecia uma pedra tumular branca. – Este é um marco de fronteira.
Num lado está escrito Jugoslavija; no outro, Österreich [Áustria]. Eles olharam
com assombro para as grandes letras gravadas e caminharam para o lado
austríaco.
– Vocês agora estão num país livre – disse o guia sorrindo. – Boa sorte, e que
Deus os abençoe.
Ele abraçou os dois homens e os beijou em ambas as faces. – Preciso voltar antes
do amanhecer. – Então correu de volta para o lugar de onde haviam vindo. Cveja
e Marko o fitaram até ele desaparecer.
capítulo 10
perigos na fronteira
– Acho que não, Cveja. Precisamos ir para lá – contestou Marko, apontando para
o leste.
– Certo, certo. Iremos para lá. Mas eu lhe digo, Marko, você verá que estou
certo.
– Mas o que é aquele estranho objeto escuro pendurado nela? – perguntou Marko
olhando para a frente.
– Agora estamos indo no rumo certo. Confie em mim, Marko, e estaremos bem.
Meu senso de direção nunca falhou. – Em silêncio, ele orou: – Por favor, Senhor,
não permita que eu erre agora. Obrigado por nos proteger até aqui.
Logo eles chegaram a uma estrada, e seguiram por ela no rumo oeste, tontos de
alegria. Sem tardar, a noite começou a desbotar e o sol dourado espiou no
horizonte. A região rural despertou para a vida. Galos cantaram saudando o novo
dia. Pássaros matinais irromperam em alegres melodias. Aqui e ali um cão latia.
Nas campinas, vacas mugiam com seus sininhos tilintando.
Uma luz se acendeu numa velha casa de fazenda ao eles passarem, e um leve
odor de fumaça de madeira queimada soprou na direção deles, vindo de uma
chaminé. Sem demora, os brilhantes raios de sol douraram os cumes das
montanhas e se espalharam pelos prados, como uma bênção celestial para os
cansados viajantes em seu primeiro dia de liberdade.
Eles ainda não haviam ido muito longe quando apareceu um veículo na lombada
da estrada à frente. O jipe da polícia, identificado pelas placas da Gendarmerie-
Polizei, parou no acostamento da estrada bem à frente deles. Dois policiais
ergueram as mãos e fizeram um gesto para os dois viajantes.
Sem parar, os dois viajantes prosseguiram. Entrar num carro estranho tão perto
da fronteira, mesmo sendo um veículo da polícia num país livre, seria arriscado.
Eles haviam aprendido a desconfiar da polícia em seu próprio país e não tinham
certeza de que a polícia ali seria diferente.
Não muito tempo depois, um caminhão de fazenda se aproximou por trás deles,
ultrapassou-os e então parou. Desta vez, havia dois homens em roupas de
trabalho.
– Vocês precisam de uma carona? – perguntaram eles em alemão, virando-se
para eles.
“Se lhes oferecerem carona, não aceitem. Eles exigirão dinheiro. Se vocês não
tiverem, eles os entregarão aos guardas da fronteira em troca de recompensa.”
Essas advertências do guia martelaram na cabeça de Cveja.
– Nein, vielen dank [não, muito obrigado]! – respondeu Cveja. Pelo canto da
boca, ele cochichou a Marko: – Concorde com tudo que eu lhe disser. Repita: Ja,
dass stimmt doch [sim, é isso mesmo]. E assim, ao eles passarem o caminhão,
Cveja falou em alemão a Marko, o qual não entendeu uma palavra: Und wenn
des buben... [e quando as crianças...], começou Cveja, inventando uma história.
– Ja, dass stimmt doch – repetiu Marko logo que Cveja fez uma pausa. Ele falou
alto para que os homens no caminhão ouvissem.
– Kein Glück [não deu certo] – Cveja ouviu um dos homens atrás dele dizer.
Então o motor acelerou e os homens passaram por eles. Cveja olhou o caminhão
se movendo lentamente através da estrada.
– Jawohl, mein Herr Marko [é claro, Sr. Marko]. Estamos caminhando para
trabalhar em nossos campos! – brincou Cveja.
– Ja, dass stimmt doch – zombou Marko. Eles agora podiam rir e o fizeram com
prazer. A temida fronteira que havia tragado tantas vidas fora enganada por sua
presa, desta vez.
– Isto deve ter sido uma bela residência no passado, provavelmente pertencente a
um conde – exclamou Cveja ao observar os arredores de modo apreciativo.
Detrás de sua escrivaninha, o Sr. Müller olhou-os de alto a baixo e então lhes
perguntou seus nomes, de modo habitual. Ele apanhou dois formulários e se
preparou para escrever. Os homens lhe disseram seus nomes completos.
– Vocês são sérvios, não são? – continuou ele, gravando suas respostas. Suponho
que sejam sérvios ortodoxos.
– Vocês sabiam que há uma igreja sua em Salzburgo? Eu sei disso porque o
pastor lá tem ajudado uma porção de refugiados. Organizações diferentes dão
assistência a grupos diferentes. As instituições beneficentes católicas ajudam os
católicos, e o Concílio Mundial de Igrejas ajudam os demais.
– Por outro lado, se nossas informações indicarem que vocês são refugiados
econômicos e não políticos, serão deportados.
Ele disse isso de maneira despreocupada e casual, como uma mensagem repetida
descuidadamente dia após dia. Mas, para os desesperados refugiados que
ouviram essas palavras, elas significavam a diferença entre a vida e a morte.
– Vou lhes mostrar onde poderão ficar até que seus casos sejam decididos.
Venham comigo.
Ele os conduziu para fora da porta e através do pátio para um quarto que
continha três camas. – A privada e o chuveiro ficam no corredor. O refeitório
fica no edifício principal. Se vocês se apressarem, ainda poderão almoçar. –
Olhando para as suas roupas sujas, ele propôs: – Se precisarem trocar de roupa,
voltem ao meu escritório. Ah, sim, nós fechamos os portões às onze da noite.
Isto é para a sua proteção.
– Como é que este cara poderá verificar esse tipo de informação? – perguntou
Marko a Cveja durante o almoço no refeitório quase vazio. A maioria dos
refugiados já havia almoçado.
– Talvez cheque algumas delas – replicou Cveja. – Mas eu acho que sua fonte
principal de verificação são os seus olhos. Ele está nos observando.
Cedo na manhã seguinte, ruídos vindos do pátio acordaram Cveja. Ele se vestiu
em silêncio e foi para fora em meio à neblina da manhã. Perambulando pelo
pátio deserto, ele viu o guarda destrancar o enorme portão de ferro. Eram seis
horas da manhã e ainda estava escuro.
Cveja trabalhou dez horas por dia na quinta, sexta e segunda-feira. Uma
verdadeira maratona atestada pelas bolhas nas mãos. Na terça-feira, recebeu 500
xelins como pagamento, 100 para cada vagão que ele esvaziou. Para sua alegria,
o dinheiro excedeu os 230 xelins que ele precisava para a passagem de trem para
Salzburgo. Ele enviou 100 xelins e uma carta para Voja, na Itália, e ficou com o
restante.
O dia seguinte era quarta-feira, 18 de setembro, uma semana após Cveja ter
chegado ao campo. Ao ele caminhar através do pátio, naquela manhã, um
raramente animado Sr. Müller o chamou ao escritório.
– Parabéns! – exclamou ele. – Acho que você está esperando este documento. –
Sorrindo, ele entregou-lhe um envelope. Cveja leu a carta ali contida e sorriu.
Era o comunicado de asilo político.
– Muito obrigado, Sr. Müller. Agora que eu tenho isto, vou embora tão logo eu
lhe devolva estas roupas que o senhor me emprestou.
– Ah, sim, de passagem, foi bom saber que você descarregou carvão do trem.
Muitos refugiados acham que têm direito à ajuda do governo porque lutaram por
sua liberdade.
De volta ao quarto, ele contou a Marko a novidade. Seu companheiro ainda não
recebera asilo e teria que esperar. Cveja vestiu suas próprias roupas recém-
lavadas, devolveu as roupas emprestadas ao escritório e se despediu de Marko e
do Sr. Müller. Então, caminhou até a estação ferroviária e embarcou no trem
seguinte para Salzburgo.
Quando o trem elétrico deslizou para fora da estação e adentrou em terreno mais
montanhoso, ele pensou nos problemas que poderiam aguardá-lo dali para frente.
O trem chegaria a Salzburgo à noite. O único lugar que ele pensava em ir era a
Igreja Adventista. Alguém no campo de refugiados lhe havia dado o endereço, e
ele apanhou no bolso o pedaço de papel onde o havia anotado. Tradicionalmente,
as igrejas mantinham cultos de oração às quartas-feiras à noite. Se chegasse lá a
tempo, ele poderia pedir ajuda a um dos membros. Se a igreja estivesse fechada,
ele não saberia aonde ir. Uma rápida olhada no relógio lhe mostrou que já estava
ficando tarde.
capítulo 11
o cantor desconhecido
Ao lado das altas portas de entrada, uma placa de bronze brilhava à luz do poste
da rua: Igreja Adventista do Sétimo Dia e Associação de Salzburgo. Cveja leu a
placa em pé, diante do atrativo edifício de cinco andares, na Rua Franz Josef. Ele
empurrou a porta, e ela se abriu. Ao entrar, Cveja soltou um suspiro de alívio.
Já eram nove horas da noite, e estava muito tarde para o culto de oração, mas ele
ouviu cânticos. Evidentemente ainda havia pessoas na igreja. Sua tensão
diminuiu. “Und ich, Johannes, sah die Heilige Stadt...” [E eu, João, vi a Santa
Cidade...] A alegre melodia de Bach subia como incenso do subsolo. Ele
descobriu uma escada e desceu seguindo o som até chegar a uma sala com a
porta entreaberta.
Enquanto eles cantavam, um homem baixo e gordo vestido com terno e gravata
entrou na sala e ficou em pé ao lado da porta com as mãos atrás de si. Um
sorriso de satisfação se abriu em seu rosto redondo enquanto ele ouvia de olhos
fechados. Quando uma voz de tenor desconhecida se sobressaiu acima do coro,
seus olhos se arregalaram, e ele observou o estranho. No fim do ensaio, quando
os membros do coral o cercaram e deram as boas-vindas a Cveja, o homem se
aproximou.
– Meu nome é Hugo Schnötzinger. – Ele sorriu e estendeu a mão. – Sou o pastor
desta igreja.
– Ah, sim – disse o pastor acenando com a cabeça. Sua voz revelou um tom que
Cveja não pôde identificar de imediato. Os dois homens estavam conversando
quando Cveja subitamente notou que os membros do coral estavam saindo e
sentiu a urgência do momento. Estava ficando tarde, e ele não tinha um lugar
onde passar a noite.
– Venha comigo.
Cveja o seguiu escada acima até o escritório no primeiro andar. Lá dentro, ele
indicou uma cadeira a Cveja, sentou-se atrás da escrivaninha de nogueira e
recostou-se na cadeira agarrando-lhe os braços com as mãos.
– Diga-me, jovem, como é que você veio parar aqui? – perguntou o pastor.
– O campo era perto demais da fronteira, e fiquei com medo de permanecer lá.
Alguém poderia facilmente me entregar aos guardas da fronteira. – Ele parou e
olhou para o pastor. – Trabalhei durante três dias descarregando carvão para
ganhar algum dinheiro a fim de pagar a passagem de trem. O senhor pode ver as
bolhas. – Ele olhou para as mãos e abriu-as com as palmas para cima,
mostrando-as ao pastor.
– Hmmm, sim, gosto de homens que não têm medo de trabalho árduo! – disse
Schnötzinger. Ele sorriu e se inclinou para frente para olhar as mãos de Cveja.
Satisfeito, recostou-se de novo na cadeira. – Conte-me mais a seu respeito.
– Sou arquiteto. Deixei minha mãe e irmãs na Iugoslávia. Meu irmão gêmeo está
em Roma. Ele e eu éramos bastante ativos na igreja de Belgrado. Fui regente do
coral jovem, e ele dirigiu a orquestra de bandolins. Espero que ele possa vir para
cá depois.
– Três semanas atrás, um homem me procurou dizendo que havia sido pastor na
Iugoslávia. Acreditei nele e lhe dei um quarto. – Ele ergueu as mãos e encolheu
os ombros. – Alguns dias depois, descobri que estavam faltando suprimentos do
depósito: uma serra elétrica e outros equipamentos caros. Fui imediatamente ao
correio. Felizmente, o pacote ainda não havia sido enviado. Ele o havia levado
naquela manhã para ser despachado para a Iugoslávia. Falei-lhes sobre minhas
suspeitas e eles me deixaram abrir o pacote. Dentro dele estava o equipamento
que havia desaparecido. Obviamente, tive que dizer ao homem que fosse
embora.
– Assim sendo, como posso saber que você está me dizendo a verdade? Por que
devo confiar em você? – perguntou o pastor. A franqueza de suas palavras
chocou Cveja. Este homem tinha o poder de ajudá-lo ou mandá-lo embora, e
Cveja não tinha outro lugar para ir. Em Jennersdorf ele havia trocado os 20
dólares escondidos embaixo da palmilha de suas botas por 500 xelins. Junto com
seus ganhos por descarregar carvão, e depois de comprar a passagem de trem e
enviar a seu irmão 100 xelins, sobravam-lhe apenas 670 xelins.
– O senhor não teve aqui um homem chamado Laza Kramar, e sua esposa, Sida?
– perguntou Cveja. – Eles são bons amigos meus, da Iugoslávia.
– Você conhece Laza? – perguntou o pastor. Sua voz assumiu um tom animado.
– É gente boa, muito boa. – Após uma pausa, ele perguntou: – Por acaso você
conhece Anton Lorencin?
– Moro no andar de cima com minha família – disse o pastor antes de sair. Eu o
verei amanhã de manhã.
Logo que o pastor fechou a porta, Cveja caiu na cama. Quando despertou na
manhã seguinte, a luz entrava no quarto através da janela e de uma porta
envidraçada que se abria para uma sacada. Por um breve momento, ele não se
lembrou de onde estava e se perguntou se havia sonhado com os eventos do dia
anterior e da semana passada.
Ele aventurou-se a ir até a sacada para dar uma espiada na vista. Nuvens cobriam
as montanhas, mas de um ângulo ele podia ver a rua embaixo e a estação
ferroviária não longe dali.
Quando Cveja abriu a porta, a jovem atraente explicou que ela era a secretária do
pastor. Ele a seguiu ao escritório pastoral, onde estava sentado um jovem de pele
corada e parcialmente calvo.
– Este aqui é seu conterrâneo, o pastor Adolf Kinder – disse o pastor
Schnötzinger. – É a pessoa de quem lhe falei ontem, e que tem um apartamento
no mesmo andar que o seu. Ele é alemão nascido na Iugoslávia – um
Volksdeutscher. Fala sérvio-croata como você.
Cveja sentiu que seu rosto ficou corado. Ele não havia confidenciado ao pastor
Lorencin seu plano de escapar. Não imaginava o que ele diria.
– O senhor disse que o irmão Vitorović está aí? – Cveja ouviu a voz subir de
tom. – Qual deles?
– Svetozar.
– Svetozar. Graças a Deus! Pensávamos que ele estivesse morto. – Houve uma
pausa. – Sim, o que ele disse é verdade. Eu o conheço muito bem. Vojislav
também está aí?
O rosto do pastor se abriu num largo sorriso ao colocar o fone no gancho. Dando
a volta à escrivaninha, deu um abraço apertado em Cveja e exclamou em voz
alta:
surpresas em salzburgo
– Das ist unglaublich [isto é incrível]! – ele disse quase gritando, incapaz de
conter-se. – Sua irmã Nata está hospedada em minha casa neste momento.
– Sim, a sua Nata. Sua irmã! – riu Walter. – Nata e eu nos conhecemos desde que
fomos juntos para a Escola Missionária em Zagreb. Isto foi há quase 20 anos,
você sabe – continuou ele animadamente. – Eu também o conheço, Cveja. Pelo
menos é o que penso. Nata fala sobre seus irmãos o tempo todo. – Colocando a
mão sobre o ombro de Cveja, ele disse: – Claro que vou ajudá-lo a achar
trabalho. Mas primeiro preciso levá-lo para ver Nata.
Walter pegou Cveja pelo braço e o conduziu para fora até seu Volkswagen. No
caminho para a casa do homem, eles conversaram com vivacidade. Cveja
perguntou:
– Já faz três semanas. Na próxima semana, seu visto como visitante expira. –
Walter fez uma pausa e seu rosto assumiu um aspecto solene. – Ela está
esperando ansiosamente que Mića escape, de modo que possam requerer
permissão para ir aos Estados Unidos. No caso dele, isto será fácil. Mas se ele
não conseguir atravessar a fronteira até a próxima semana, ela terá que voltar. –
Ele abanou a cabeça.
– Oh, não posso esperar para ver minha querida Nata – exclamou Cveja. – Ela
está bem?
– Ah, sim, mas muito preocupada. Havia rumores de que você teria morrido,
mas ela se recusou a acreditar. Estou ansioso para ver a expressão do rosto dela
ao ver você vivo! – Walter deu uma risada.
– A polícia secreta estava atrás de mim. Não pude escrever para casa – explicou
Cveja. – É uma história muito longa.
– Não posso imaginar isso, ter que escapar e tudo mais – disse ele, de modo
complacente.
Eles foram com o carro por uma rua estreita e pararam em frente de uma casa
modesta.
Quando Cveja desceu do carro, a porta da frente se abriu. Nata estivera olhando
pela janela e viu quando o carro chegou. No instante em que viu Cveja, ela se
precipitou para fora da casa, chorando e rindo. Ela não pôde conter sua alegria.
Falava e ria enquanto lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
– Cveja, Cveja, meu irmão Cveja! Você está vivo! Eu sabia. Eu sabia que Deus o
protegeria! – Ela o envolveu num abraço ardente e o manteve assim por um bom
tempo. Walter ficou olhando com os olhos lacrimejando.
– Nata, como é que o governo a deixou sair? – perguntou Cveja depois que
ambos enxugaram as lágrimas e se voltaram para entrar na casa.
– Eu a deixei em Šabac com Vera. Ela e Duja cuidarão dela. Espere só até eles
saberem que você está aqui! – Seu rosto se iluminou. – Eles também estão
preocupados. – Ela olhou amoravelmente para o irmão. – Você está bem, e meu
coração está saciado. Deve ter sido terrível para você, Cveja. Faz tanto tempo
que você partiu.
Ele concordou.
– Eu não gostaria de passar por isso novamente. Mas o pior já passou, graças a
Deus.
Depois que Nata e Cveja puseram em dia as notícias da família, Walter voltou do
quarto carregando um jornal na mão. Ele havia deixado os dois a sós durante
vários minutos para que pudessem conversar em particular. Agora, a conversa
girou em torno da procura de Cveja por trabalho. Sentando ao lado de Cveja no
sofá, Walter folheou o jornal na seção de classificados e correu o dedo na coluna
de ofertas de vagas.
– Alguns. Não sei muito a respeito deles. – Walter voltou ao jornal. – Bem, olhe
isto aqui. Exatamente o que você está procurando. – Ele indicou outro anúncio
mais abaixo na coluna. – Robert Schäffer está procurando um arquiteto
qualificado. – Ele olhou por cima do jornal, pensando alto: – Schäffer, Schäffer...
Já ouvi falar dele. É um bom arquiteto.
Ainda era cedo, de modo que Cveja telefonou para as empresas anunciantes e
marcou entrevistas em ambas – na Wagner Construction foi recebido mais tarde
naquele mesmo dia. Robert Schäffer o entrevistou na manhã seguinte.
– Pense sobre isto, se preferir, e me comunique sua decisão até amanhã ao meio-
dia.
Abrindo a porta, eles viram uma sala de espera e uma secretária atrás de uma
escrivaninha.
– Quando poderei começar? – perguntou Cveja. Ele se sentiu atraído por aquele
emprego, embora a outra companhia oferecesse salário e benefícios melhores.
Ao voltarem para a casa de Walter, ambos se sentiram bem com a decisão. Logo
que entraram na casa, Cveja telefonou a Wagner para agradecer-lhe e declinar
sua oferta. Naquele fim de semana, Cveja passou muitas horas com Nata,
discutindo o futuro dela e compensando o tempo perdido. O simples fato de
estarem juntos os deixou felizes.
– Entre, entre – disse o Sr. Schäffer, contente por ver que Cveja chegara cedo. –
Vejo que você é madrugador. Vou mostrar-lhe os arredores. Como pode ver, meu
escritório e a recepção ficam aqui no andar térreo. Moro com minha família no
andar de cima. – Então ele levou Cveja para a parte detrás da casa. – Aqui atrás
fica a garagem e um apartamento para meus parentes. E a casa de verão ali no
meio do jardim – explicou ele, indicando o lado direito da propriedade – contém
duas salas de desenho. Você vai trabalhar na primeira sala, e Herman, que é
desenhista, trabalha na outra. – Ele olhou o relógio. – Herman ainda não chegou,
por isso vou apresentá-lo depois. – Schäffer deu a Cveja uma régua com escala
de 1:50 (2 centímetros = 1 metro) e mostrou-lhe a mesa de desenho que ele
usaria.
A cada dia que passava, o ar ia ficando mais frio. As folhas das bétulas
começavam a amarelar, e as flores murchavam e logo desapareciam. Cveja
gostava do trabalho, mas a angústia da solidão e a dor no coração se
aprofundavam cada vez mais enquanto os dias corriam.
– Susan, por que você não está brincando com seu irmão gêmeo?
– Tente de novo, e eu vou ficar de olho em vocês – disse o Sr. Schäffer. Ele
fechou a janela e a viu caminhar em direção a um menino que estava jogando
folhas secas para o ar no canto oposto da propriedade.
– Herman me disse que o senhor tem quatro filhos, mas eu não sabia que dois
deles são gêmeos – disse Cveja com um amplo sorriso no rosto. – Que
coincidência! Eu também tenho um irmão gêmeo. Somos idênticos.
– Em Roma. Ele está aguardando asilo político. Logo que o receber, ele pretende
me visitar.
– Sim, na verdade ele foi o melhor de nossa geração na área de urbanismo. Ele
faz planejamento urbano. – A voz de Cveja se tornou anelante. – O senhor acha
que também poderia empregá-lo?
– Sim, é claro que tenho trabalho para seu irmão gêmeo! – Havia entusiasmo em
sua voz e uma aparência quase agitada no rosto, pela qual Cveja se sentia grato,
mas que não conseguia entender.
– Quando ele vier visitá-lo, sem dúvida ele receberá um visto de curta
permanência, talvez de um mês. Isto não é muito tempo – Schäffer pensou em
voz alta. – Se alguma coisa puder ser feita, terei que começar a mexer os
pauzinhos antes de tudo. Felizmente o chefe da polícia é um bom amigo meu.
Também tenho ligações em Viena. – Seu rosto relaxou e ele sorriu. – Sabe,
Cveja, estou muito contente por descobrir isto.
Enquanto Cveja caminhava para o ponto do ônibus elétrico, de volta para casa,
seus pensamentos voavam alto. Embora o ar do outono já começasse a esfriar,
ele se sentiu aquecido por dentro como se estivesse na primavera. Agora estava
se tornando claro por que ele havia se sentido atraído por aquele emprego.
Encontrar um arquiteto que tinha filhos gêmeos, que possuía importantes
ligações com o governo e que estava disposto a ajudar seu irmão e lhe dar
emprego era uma oportunidade incrível. Ele tinha certeza de que Deus estava
preparando o caminho para Voja. Seu coração se encheu de alegria que se
irradiou no rosto.
Na semana seguinte, chegou uma carta de Voja, que dizia: “Prezado Cveja. Fiz
um exame médico rotineiro e espero uma decisão em breve. Na quarta-feira, 16
de outubro, irei novamente à Questura di Roma. Se a Itália me conceder asilo
político desta vez, irei diretamente à Embaixada da Áustria para solicitar um
visto de turista. Se o obtiver, apanharei o trem noturno para Salzburgo. Se a
Itália me rejeitar, não sei o que farei.
Cveja começou a orar intensamente. Nesse ínterim, o Sr. Schäffer não perdeu
tempo.
– Estive em contato com o chefe de polícia, bem como com meus contatos no
Ministério do Trabalho e da Imigração em Viena – disse ele a Cveja alguns dias
depois. Ele limpou a garganta e franziu o rosto. – Receio que haja um problema,
no entanto. Meus amigos me disseram que uma vez que a pessoa receba asilo
político de um país, não há como outro país lhe conceder asilo também.
– O que meus amigos sugerem é que eu tente manter seu irmão aqui como um
especialista altamente qualificado – continuou Schäffer. – Para poder fazer isto,
preciso provar que não há ninguém no mercado de trabalho local que se qualifica
para este cargo. A partir de segunda-feira, publicarei um anúncio no jornal
durante duas semanas. Se ninguém procurar o emprego, isto significa que o seu
irmão não vai tirar o trabalho de um cidadão austríaco. Então poderei apresentar
os documentos para me responsabilizar por seu irmão.
Cveja recobrou ânimo, e ele contou os dias que faltavam para 16 de outubro. A
perspectiva de ver seu irmão novamente inundou-o de alegria. Mas ele não
ousou esperar demasiado. Se Voja não recebesse asilo político da Itália, ele não
estaria no trem noturno. Ele reuniu forças contra esse possível desapontamento e
acertou com Adolf para levá-lo à estação ferroviária.
– Hoje é o grande dia! – disse o Sr. Schäffer vindo à casa de verão para
cumprimentá-lo. – Se seu irmão vier hoje à noite, traga-o ao escritório amanhã
com todos os documentos dele. Quero conhecê-lo. Ninguém respondeu aos meus
anúncios até agora. As duas semanas se completarão na sexta-feira.
Durante todo o dia, cada nervo de Cveja latejou de expectativa, e seus olhos se
mantiveram fixos no relógio. Ele tentava se concentrar em seu desenho, mas via
apenas o rosto do irmão e seu sorriso.
Mais tarde, naquela noite, após o jantar, Adolf apareceu com um automóvel
Simca emprestado para levar Cveja à estação de trem. No caminho para lá,
apenas um pensamento ocupava a mente de Cveja: será que seu irmão estaria
realmente no trem?
capítulo 13
– Lá está ele! – gritou de repente Cveja, lançando um olhar para Adolf, atrás
dele. Voja estava descendo os degraus de um vagão lá adiante, carregando uma
mala numa das mãos e uma capa de chuva no braço.
– Cveja! – gritou Voja quando viu o irmão. Seu rosto brilhou ao abanar a mão.
Eles correram um na direção do outro, e se abraçaram e choraram com alegria
inexprimível. Adolf olhava, com lágrimas nos olhos.
– Foram cinco meses, uma semana e três dias – disse Cveja. – Espero que jamais
nos separemos assim novamente.
– Que Deus nos ajude! – exclamou Voja. – Durante todo o tempo em que estive
em Roma, vivi confuso. Agora me sinto vivo de novo.
Com tantas coisas a serem ditas, os gêmeos ficaram acordados e falaram até não
poder mais.
– Uau, vocês são realmente idênticos! – exclamou o Sr. Schäffer, com uma
expressão de perplexidade no rosto. Ele colocou os óculos e examinou o rosto
deles, olhando para um gêmeo e para o outro repetidas vezes. – Aha! Descobri
uma diferença – disse ele de repente. – Cveja é um pouco mais magro, e isto se
pode ver em seu rosto. Se não fosse isso, eu não saberia dizer quem de vocês é
quem! – ele riu. Desde que escapara, Cveja havia recuperado alguns quilos, mas
ainda estava abaixo de seu peso.
– Muito bem, agora vamos ao que interessa. Queiram me acompanhar até meu
escritório – disse Schäffer fazendo um gesto para que eles o seguissem.
Fechando a porta atrás deles, ele indicou-lhes duas cadeiras. – Por favor, sentem-
se. Voja, você trouxe seus documentos?
– Com certeza, Sr. Arquiteto. Aqui estão eles. – Voja entregou-lhe o passaporte e
o documento de asilo. Schäffer franziu a testa e examinou os documentos.
– Nata estava muito animada para ir aos Estados Unidos – disse ele. – Ela duvida
que as autoridades lhe concedam um passaporte novamente. Foi muito triste. Ela
estava muito desgostosa ao partir. Você deixou de vê-la por duas semanas
apenas.
– Duplicatas, isto é o que vocês são – observou o pastor rindo, quando Cveja
apresentou seu irmão.
Na manhã seguinte, Cveja saiu para trabalhar. Voja ficou em casa. Como era
sexta-feira, Voja começou a preparar o almoço de sábado. Eles haviam comprado
algumas maçãs, laranjas, batatas e couve no dia anterior, na feira semanal dos
agricultores ali perto. Um pão e algumas sobras da despensa completaram a
refeição.
– Espere até ver nosso coral de refugiados – disse Cveja ao irmão, enquanto se
vestia para ir à igreja na manhã seguinte. – Temos um bom grupo, e está
crescendo. Todos eles vivem no campo de refugiados aqui em Salzburgo.
– Mas a igreja não tinha um coral antes de você chegar? – perguntou Voja.
– Sim, ainda tem, e dos bons. Mas eles deixaram os refugiados participarem do
culto de adoração, embora cantemos em sérvio-croata. Eles nos têm apoiado
maravilhosamente. Os dois corais cantam em ocasiões diferentes quase todas as
semanas.
– São os governos que fazem as guerras, não o povo. Eles têm realmente nos
dado as boas-vindas de braços abertos – respondeu Cveja. – Bons e maus
existem dos dois lados de cada fronteira.
Dois dias depois, quando Schäffer voltou, ele chamou os gêmeos ao seu
escritório para fazer um relato da viagem.
– Sim, mas o que você não sabia é que dois dias antes eu recebi uma informação
antecipada de amigos em Viena, que a cidade de Amstetten pretende fazer uma
ampliação. São necessários projetos para a planta de uma nova comunidade que
acomodará dez mil habitantes. Foi por isso que perguntei se o seu irmão teria
alguma especialidade.
– Com certeza – disse Cveja, baixando a voz. Ele pensou novamente no outro
emprego que poderia ter aceitado e agradeceu a Deus por tê-lo impressionado a
optar por aquele.
– O outro emprego oferecia mais benefícios, mas não me parecia ser o trabalho
certo – disse Cveja a Voja. – Algo me dizia que eu deveria aceitar este trabalho
em vez do outro. Agora eu sei a razão – ele riu. – A maneira como Deus opera é
impressionante. Tudo que precisamos agora é uma resposta positiva das
autoridades austríacas antes que seu visto expire. Temos prazo até 15 de
novembro.
O Sr. Schäffer parecia estar de mau humor quando eles chegaram, às 8 horas da
manhã.
– Nenhuma resposta até agora. Lamento muito – disse ele. – Mas ainda temos o
dia de hoje. Não desistam ainda.
Duas horas mais tarde, ele saiu dançando para a casa de verão, com um largo
sorriso no rosto. – Gott Sei Dank [Graças a Deus]! – exclamou ele. – Acabei de
receber um telefonema de Viena. Meu pedido foi aceito. – Ele estendeu a mão a
Voja. – Parabéns, Voja, e seja bem-vindo! Agora você poderá ficar na Áustria até
imigrar para os Estados Unidos.
Levou algum tempo para que a notícia fosse assimilada. Por um momento, os
gêmeos ficaram sentados imóveis. Então, explodindo de alegria, eles saltaram
para envolver seu benfeitor num abraço apertado. Deus Se assentou firmemente
em Seu trono e tudo deu certo no mundo. “Mas por que suas respostas muitas
vezes só vêm no último minuto?”, perguntou-se Voja.
– Bem, bem, bem, este deve ser seu irmão – disse Boba ao perceber Cveja
entrando com um homem idêntico a ele. O diretor parou para cumprimentá-los, e
Cveja apresentou um ao outro.
– Posso registrá-los para ir aos Estados Unidos – disse Boba a Voja. –
Felizmente, graças ao presidente Eisenhower, a quota continua aberta. Como
vocês dois são arquitetos, uma profissão muito procurada, vocês podem ficar na
quota preferencial. Muitos refugiados não são qualificados e precisam esperar.
Os Estados Unidos são muito seletivos, como vocês sabem. Muitos refugiados
vão para o Canadá, Austrália e Nova Zelândia porque não querem esperar. Esses
países estão procurando novos colonizadores.
Enquanto os gêmeos esperavam, um dos projetos que Schäffer lhes designou foi
a renovação do Altersheim, um lar para os idosos localizado próximo ao prédio
do Concílio Mundial de Igrejas. Construído 40 anos antes, o edifício precisava
de melhorias para providenciar aquecimento e ventilação mais adequados.
– É claro que ele recusou – disse Boba. – Como poderia ele trabalhar para aquele
regime se acredita em liberdade?
– Então, por que vocês não voltaram? – perguntou Voja enquanto comiam
juntos.
– Juramos lealdade ao rei e a nosso país. Não podemos anular isto – disse Ratko.
Boba e Duško concordaram. – Quando a Alemanha invadiu a Sérvia, e o
exército iugoslavo foi traído e dispersado, muitos oficiais escaparam. Fugimos
para cá. Agora esta é nossa vida, lecionando inglês e ajudando nossos
compatriotas. Se o comunismo algum dia acabar, voltaremos à nossa pátria, mas
não antes disso.
Várias vezes, os gêmeos convidaram seus novos amigos para almoçar nos fins
de semana. Eles sempre vinham distintamente vestidos com terno e gravata.
Geralmente Voja preparava a refeição. Ratko e Duško eram solteiros, mas Boba
havia deixado a esposa lá. Sendo filha única, ela não podia abandonar os pais.
Ela lhe suplicou que voltasse, mas ele não quis.
– Foi uma decisão muito difícil. E assim, por necessidade, vivemos separados –
explicou Boba. – Parece que as palavras do general Kovačević se cumprirão:
“Todos nós voltaremos para nossa pátria um dia, mas talvez seja num caixão.”
Uma manhã, logo depois que Voja chegou, Cveja estava se barbeando em frente
do espelho quando notou algo estranho.
– O que é isto? – perguntou ele em voz alta. E parou para olhar mais de perto.
Em seu peito havia uma mancha vermelha e inchada. – Coça e dói – exclamou
ele coçando a mancha.
– Não coce, Cveja. Deixe-me ver. – Voja veio examiná-lo. – Parece um tipo de
nódulo. – Examinando-o melhor, disse: – E está nascendo outro em sua nuca.
– Estão pipocando por todo o meu corpo: uma debaixo do braço e outra no meu
quadril.
– Feiticeira? O que o senhor quer dizer? – perguntou Cveja com olhar pasmado.
– A mulher que está fazendo você infeliz – respondeu o médico. – É óbvio. Este
homem tem uma vida horrível. – E virou-se para Voja.
– Ele não é casado, doutor. Não há nenhuma mulher – respondeu Voja sorrindo.
– Então você deve ter sofrido alguma experiência terrível recentemente: muito
estresse ou muito medo. O seu sangue está envenenado. Está saindo tudo na
forma de furúnculos.
o resgate
– Então Kaća finalmente conseguiu sair! – respondeu Voja. Ele havia tirado o
casaco e o chapéu. Estava em pé na frente da despensa com a mão na porta,
espiando para dentro para ver o que prepararia para o jantar.
– Ela deve ter entrado em contato com Hans, o meu guia. Enviei o nome dele a
Djoka, em Paris – disse Cveja. – Da última vez que a vi em Novi Sad, ela estava
desesperada para fugir. Hmmm, gostaria de saber qual é o problema. – Ele
apanhou o cartão e o leu de novo.
– Onde é Wagna? – perguntou Voja. Ele abriu uma lata de feijões, despejou-os
numa panela e a colocou no fogão para esquentar.
– Eu sei que você quer ajudar, Cveja, mas o que pode fazer? Como poderá ajudá-
los?
– Ainda não sei. – Cveja franziu o cenho. – Ela disse que estão em quatro. Eu
esperava Anica [Anitsa], sua futura sogra, e Pera, seu futuro cunhado. Quem
poderia ser a quarta pessoa?
Mais tarde, naquela noite, Adolf apareceu lá. Voja estava deitado na cama lendo
um jornal, enquanto Cveja estava sentado à mesa escrevendo uma carta. Adolf e
os gêmeos eram bons amigos agora. Ele também era solteiro, e eles apreciavam
a companhia um do outro.
– Ei, Zeleni Zamorac [seu macaco verde]! – Voja o saudou. Sempre que ele os
visitava, o curioso pastor de olhos verdes esquadrinhava o pequeno apartamento
dos gêmeos para ver se conseguia descobrir algo novo. Por isso, eles o
apelidaram de “macaco verde”, que é uma curiosa espécie africana.
Voja sentou-se, girou as pernas para fora da cama e pôs de lado o jornal. Adolf
sentou-se ao lado dele. Durante a conversa que se seguiu, Cveja mostrou a Adolf
o cartão-postal. Havia sido escrito em cirílico sérvio, que Adolf sabia ler.
– Parece que eles estão com algum tipo de problema – disse ele, devolvendo o
cartão a Cveja.
– Você sabe alguma coisa sobre Wagna? – perguntou Cveja, virando a cadeira
para ficar de frente para eles.
– Não, na verdade. Aliás, sim. Tenho ouvido boatos, mas quem sabe se são
verdadeiros?
– Bem, diz-se que os guardas às vezes vendem refugiados de volta para o país de
origem. Pessoas de todas as partes da Iugoslávia estão lá no campo, bem como
húngaros que fugiram após a revolução.
– Claro. – Adolf pôs a mão no bolso detrás, pegou a carteira e estendeu sua
credencial ministerial a Cveja.
– Hmmm. Não tem foto sua aqui. Isto é bom. – Cveja olhou e acenou com a
cabeça. – Você é um Volksdeutscher, de modo que é de se esperar que você tenha
um leve sotaque – observou ele em voz alta. – Você poderia me emprestar este
documento por um dia?
Logo que Adolf saiu, Cveja foi até a estação do trem para ver os horários. Ao
voltar, ele arrumou seu terno preto, camisa branca e gravata preta, os quais havia
comprado depois de chegar a Salzburgo. Sua cor favorita deveria servi-lo bem
nesta ocasião.
– Irei a Wagna amanhã de manhã – disse ele ao irmão. – Explique ao Sr. Schäffer
que tive que ir. Diga-lhe que nossos amigos estão em apuros. Tenho certeza de
que ele vai compreender.
Quando Voja se levantou para trabalhar na manhã seguinte, Cveja já havia saído.
No fim do dia, quando Voja voltou para casa, Cveja ainda não tinha chegado.
Voja esperou até tarde da noite. Finalmente foi para cama.
– Esperei você, Cveja, mas... Kaća, Anica, Pera, vocês estão todos aqui! –
exclamou ele, depois que seus olhos se acostumaram com a luz. Voja saltou da
cama ainda meio dormindo, enlevado por ver seus amigos e ansioso para lhes
dar um abraço de boas-vindas. Kaća apresentou a quarta pessoa como sua amiga
Lela.
– Oh, Voja, foi terrível – exclamou Anica agitadamente, apertando as faces com
as mãos.
– Vivíamos em constante temor – disse Kaća. – Dia sim, dia não um refugiado
desaparecia. Não sabíamos quando aconteceria o mesmo com um de nós.
– Deus abençoe Cveja por nos salvar – acrescentou Pera. – Não tínhamos mais
ninguém a quem recorrer. Estávamos aterrorizados em permanecer lá.
– Bem, vocês estão seguros aqui – disse Voja, agora totalmente desperto. Cveja
alcançou-lhe um roupão, e ele o vestiu. – Pedi ao pastor Schnötzinger para vocês
usarem um dos quartos neste andar, esta noite, e ele me deu a chave – continuou
Voja. – As mulheres que moram lá estão fora da cidade vendendo livros
religiosos. Só vão voltar dentro de alguns meses. – Ele enfiou os chinelos,
retirou uma chave do balcão onde a havia colocado para acesso fácil e os
conduziu quietamente para um quarto no meio do corredor.
– Bem, de início ele recusou. Você sabe como é o estilo germânico de seguir as
regras. Disse-lhe que eu havia vindo lá de Salzburgo e que precisava voltar
imediatamente. Que eu tinha responsabilidades, e que o trem partiria dentro de
pouco tempo. Prometi que eles estariam em segurança comigo e que eu
assumiria responsabilidade por seu bem-estar.
– E ele concordou?
– Não imediatamente. Ele não tinha certeza do que fazer. Era apenas o assistente
e não queria tomar uma decisão. Finalmente me entregou um formulário de
liberação que assinei e ele aprovou. Quando cheguei ao portão, os quatro
estavam esperando com suas mochilas. O guarda nos deixou sair sem problema
quando lhe mostrei a liberação assinada.
– Uau! Mas você chegou em casa tão tarde. Por que demorou tanto?
– O noivo de Kaća, Djoka, está esperando por eles em Paris, com Nikola, o
irmão do meio, e seu pai – explicou Cveja a Boba. – Os dois irmãos desertaram
de um grupo de turistas mais de um ano atrás, no último dia da viagem. Quando
eles foram ao Departamento de Imigração para solicitar asilo, encontraram o
escritório repleto de refugiados – seis de seu próprio grupo turístico – todos
alegando que haviam vindo a Paris para visitar um tio!
– A França lhes ofereceu asilo alguns dias depois e deu-lhes permissão para
trabalhar depois que eles passaram por um exame médico. A partir de então, eles
receberam a residência permanente.
– Bem, gente, aqui estão os papéis para vocês preencherem – disse Boba,
entregando um documento a cada um deles quando Cveja terminou a história. –
Mas vocês vão precisar de uma declaração juramentada de apoio de sua família
em Paris para completar o processo. Uma vez que Anica e Pera são parentes
próximos, e Kaća é a futura noiva de Djoka, vocês podem viajar com um visto
especial.
– Quando contei a Lela que eu estava indo embora, ela me implorou que a
deixasse vir junto. Djoka escreveu o nome do guia de Cveja com suco de limão
numa carta para mim. Nós o encontramos na Eslovênia, e ele nos levou para a
fronteira austríaca, onde tivemos que cruzar um riacho. Ele usava um avental de
couro e botas altas. Atravessou-nos um de cada vez. Mas, quando estava me
carregando, ele tropeçou e me deixou cair. Fiquei encharcada. Não foi engraçado
porque a água estava gelada. Meus sapatos, casaco e vestido ficaram brancos de
neve.
– Realmente fiquei, mas só soube com que gravidade mais tarde – explicou
Kaća. – De qualquer maneira, o guia nos mostrou o marco branco da fronteira e
nos guiou até a estrada. Disse-nos para seguir a estrada até chegar à estação
ferroviária. Então ele foi embora. De repente, ouvimos um cão latir e alguém
gritou: “Alto!” Não sabíamos quem era nem a quem haviam visto, se nós ou o
guia. Ouvimos galhos e gravetos sendo esmagados sob seus pés ao ele fazer seu
caminho de volta. Deitamo-nos numa valeta ao lado da estrada e esperamos
durante muito tempo. Estávamos paralisados de medo.
– Vocês passaram por uma provação e tanto – disse Cveja com voz penalizada.
– Sim – respondeu Kaća, voltando-se para Cveja. – Mas se você não tivesse nos
dado o nome de seu guia, ainda estaríamos em Novi Sad. Não podemos
agradecer-lhe suficientemente por manter sua promessa.
– Provavelmente, mas eu não sei – disse Kaća. – Uma senhora da igreja, que
veio da Martinica, ofereceu-lhes gentilmente o seu quarto de dormir enquanto
ela dormia na cozinha numa cama de campanha. Mas eles logo ficaram sem
dinheiro. Assim que saíram da Iugoslávia, seu pai lhes mandou um pacote aos
cuidados da Igreja Adventista de Paris. Ele continha dois pares novos de sapatos
e duas jaquetas. Durante três semanas, eles conseguiram sobreviver comendo
bananas e algumas iguarias que Mama Anica havia incluído na caixa. Então
chegou a carta. – Ela riu. – O pai deles disselhes que se os dólares estivessem
muito amarrotados, eles deveriam passá-los a ferro. Só então é que souberam do
dinheiro! Ele havia escondido várias notas de 20 dólares nos saltos ocos dos
sapatos e nos enchimentos dos ombros das jaquetas que lhes havia enviado.
Imaginem! Durante todo aquele tempo eles estavam vestidos com dinheiro, mas
não sabiam!
– Djoka não pode se casar sem mim – riu Kaća. – Assim, quando eu chegar lá,
poderemos planejar isso. Espero que ele tenha poupado dinheiro suficiente para
realizarmos um belo casamento e a recepção na igreja.
– Tenho certeza de que ele o fará – disse Pera. – Vocês vêm planejando isto há
muito tempo.
– Quando o pai deles escapou, mais tarde, trouxe dinheiro consigo. A mesma
senhora os ajudou a encontrar um apartamento. Ela é cidadã francesa e foi ela
quem fez a declaração juramentada para que eles pudessem ficar.
Os gêmeos haviam feito arranjos com o Sr. Schäffer para trabalhar o dia todo de
segunda a quinta-feira, e só meio dia na sexta-feira, pois o sol estava se pondo
mais cedo ao se aproximar o inverno. Na sexta-feira seguinte, eles chegaram
cedo em casa. Após o almoço, Voja decidiu ir a um supermercado próximo para
comprar pão. Logo que ele pôs o pé para fora do prédio da igreja, um carro da
polícia parou em frente da entrada. Dois policiais saíram e o abordaram.
– Guten Tag. Sprechen sie doch Deutsch? [Boa-tarde. Você fala alemão?] –
perguntou um deles a Voja.
– Ja, Ich spreche [Sim, falo] – respondeu Voja. Ele olhou nervosamente de um
policial para o outro, intrigado sobre o que eles queriam dele.
Voja fitou o documento e então os dois policiais. Nesse momento, Kaća saiu do
edifício e ficou atrás dele.
– Depressa, volte para o piso superior do edifício com Mama Anica e Pera. Vão!
– Eu lhe darei qualquer coisa se você voltar comigo – implorou a mãe, tentando
confortá-la e abraçá-la ao mesmo tempo. – Seu noivo está fora de si. Você não
deveria ter saído dessa maneira. Ele lamenta o mal-entendido e a quer de volta. –
Lela continuava soluçando, mas o choque do encontro e seu tremor
gradualmente começaram a ceder.
Durante a confusão, Cveja chegou. Kaća e os outros lhe haviam contado sobre a
situação crítica ao subirem para o piso superior. Ele se aproximou de Lela e
sussurrou-lhe ao ouvido:
– Aconteça o que acontecer, Lela, não diga o nome do guia. Prometa-me que não
o fará. Você não pode.
Alguns dias mais tarde, um membro da igreja ofereceu a Kaća e seus futuros
parentes um apartamento alugado, e a família se mudou do prédio da igreja.
Com o dinheiro enviado por sua família em Paris, eles tinham condições de
pagar um apartamento maior.
– Vou emitir seus documentos o mais rápido possível – prometeu Boba a Kaća. –
Mas os próximos feriados poderão retardar o processo.
Algumas semanas mais tarde, Voja chegou em casa, vindo da feira semanal, com
um enorme saco de laranjas importadas da Itália. Os produtos na feira eram mais
baratos do que no armazém de variedades alguns quarteirões adiante, ou do que
na pequena mercearia do outro lado da rua. Assim, valia a pena caminhar quase
um quilômetro.
Quando Voja entrou no apartamento, encontrou Cveja sentado de modo ereto
junto à mesa, com o rosto branco como giz. Um exemplar atrasado do jornal
Politika, obtido de Belgrado por um dos refugiados e emprestado a Cveja, estava
aberto sobre a mesa na frente dele. Ele segurava uma página solta em sua mão.
“Dois mortos em Murska Sobota”, dizia a manchete. O artigo relatava que dois
agentes da polícia secreta haviam ido à casa de um homem suspeito de conduzir
ilegalmente pessoas através da fronteira. O suspeito não deixou os agentes
entrarem, mas falou com eles através da porta de madeira chaveada. Quando a
polícia mencionou o nome de um cliente anterior, o suspeito subitamente
descarregou um de seus revólveres através da porta, matando um dos agentes.
Respondendo aos tiros, o outro agente matou o suspeito dentro da casa.
Voja lançou um olhar inquiridor a Cveja e então continuou a ler com crescente
apreensão. Vagarosamente depôs o jornal e exclamou:
– Acho que sim. Os detalhes são claramente familiares. Isto está parecido com
algo que Hans faria – disse ele estarrecido. – Hans vivia com medo de ser
apanhado. Sempre mantinha seus revólveres carregados e ao alcance. Ele deve
ter pressentido uma armadilha.
– Não sei, mas seja quem for, as autoridades provavelmente lhe arrancaram a
informação à força.
– O que posso dizer? As coisas acontecem – replicou Cveja com os olhos cheios
de lágrimas. – Hans sabia que sua vida estava sempre em perigo. Esse era o risco
que corria por ajudar as pessoas a escapar. Muitas vezes, eu me perguntei por
que ele próprio não fugiu, por que esperou. – Ele abanou a cabeça devagar. –
Agora não importa.
Durante dias o relato do jornal pairou sobre os gêmeos como uma nuvem escura.
O medo da UDBA reviveu, e eles gostariam de saber se seus tentáculos
poderiam alcançá-los mesmo ali em Salzburgo. Sabia-se que a polícia secreta
sequestrava refugiados nas ruas dos países vizinhos, forçava-os a entrar nos
carros e os levava de volta através da fronteira. Uma noite os gêmeos pensaram
tê-los visto.
O pastor Schnötzinger ainda estava trabalhando quando eles correram para seu
escritório. Ofegantes, eles lhe relataram o incidente, bem como o de Lela e o do
artigo do jornal.
– Não pudemos ver o rosto dos homens. E mesmo que tivéssemos, não
poderíamos afirmar que eram agentes – disse Voja. – Casacos de couro marrom
são populares.
– Isso pode ser uma advertência. Tenham muito cuidado. Se virem essas figuras
suspeitas novamente, por favor me avisem – disse o pastor. – Relatarei o
incidente à polícia para que as autoridades investiguem.
Após o trabalho, vários dias depois, Voja e Cveja pararam na mercearia do outro
lado da rua, em frente ao seu prédio, para comprar iogurte natural. Quando
estavam saindo, notaram dois homens com longos casacos de couro marrom
caminhando em direção à mercearia, do mesmo lado da estrada. Retornando para
dentro rapidamente, eles esperaram e observaram através de uma janela a uma
distância segura.
o pecado imperdoável
– Não é de admirar. Quando você está fora de seu país, não tem nada a fazer
exceto esperar que seus documentos sejam processados. Vivendo com incerteza
é fácil perder a esperança – acrescentou outro homem.
– Eles precisam de alguma distração. Algo que lhes ocupe a mente, que lhes dê
esperança – sugeriu alguém. – Temos nossa fé, mas muitos deles não.
– Se eles tivessem alguma coisa para ler em sua própria língua, isso poderia
fazer diferença. Se tivéssemos alguma literatura religiosa, a leitura poderia lhes
trazer esperança – disse outro. – Mas onde poderíamos conseguir isso?
Era sábado de tarde. Como fazia todas as semanas após o culto, um grupo de 20
ou mais refugiados ficou com os gêmeos para o almoço. O pastor Schnötzinger
havia dado permissão aos irmãos para utilizar um dormitório maior para este fim
quando estivesse desocupado. Aquele era um desses dias, e o pessoal se
espalhou em volta do quarto, sentando em camas e cadeiras de dobrar.
A maioria dos refugiados naquele grupo havia vindo de uma das repúblicas da
Iugoslávia: Croácia, Sérvia, Montenegro, Macedônia, Bósnia-Herzegovina. Uns
poucos eram descendentes de húngaros ou romenos. Os gêmeos haviam
conhecido vários dos refugiados anteriormente, na Iugoslávia. Outros, eles
haviam conhecido em Salzburgo. Todos viviam no campo de refugiados local,
em Helbrun, e esperavam imigrar para uma nova pátria.
Todos nesse grupo eram membros da Igreja Adventista que haviam, de alguma
maneira, sofrido com o comunismo. Haviam sido demitidos do trabalho,
multados, ridicularizados, perseguidos ou aprisionados. Seus filhos haviam sido
importunados e expulsos da escola. Muitos haviam sacrificado boa parte de suas
economias e arriscado a vida para escapar. Todos eles tinham esperança de uma
vida melhor, de preferência nos Estados Unidos. Mas, para se candidatarem para
ir aos Estados Unidos, os imigrantes precisavam ter ótima saúde e uma profissão
procurada lá. Outros países, ansiosos para colonizar suas terras escassamente
habitadas, ofereciam incentivos e eram menos exigentes.
Quase três semanas mais tarde, ao voltarem do trabalho para casa, numa sexta-
feira, os gêmeos encontraram um pacote grande, adornado com selos americanos
coloridos e lacres da alfândega, esperando por eles no saguão do edifício. Voja
apanhou o pacote, carregou-o para seu apartamento no andar superior e o depôs
com um baque sobre o balcão. Jogando o casaco sobre a cadeira, ele rasgou a
caixa enquanto Cveja, sentado à mesa, começou a procurar em meio às partituras
a música que ele precisava para o coral no dia seguinte.
– Com quem você está falando? – perguntou Cveja, olhando para ele.
– Esta garota. – Voja lhe mostrou a foto. – Ela é bonita demais para saber algo
sobre o pecado imperdoável.
– Você está falando com uma foto? – disse Cveja, olhando a capa. Ele sorriu
tolerantemente e voltou para as suas partituras. Voja continuou a tirar pacotes da
caixa, lendo cada título em voz alta e espalhando-os sobre o balcão: Por Que
Deus Permite o Sofrimento?, Deus Responde às Orações?, Onde Estão as Almas
dos Mortos?, O Que É e Onde Está o Céu? e O Amor de Deus Pelos Pecadores.
– Bons títulos, Cveja. Deve ser uma leitura interessante. Acho que esses aqui
serão bons – disse Voja, pondo os pacotes de volta na caixa, mas ficando com
uma das brochuras. Caminhando até o porta-bagagem, ele remexeu uma gaveta
atravancada procurando uma tesoura, e voltou para o balcão. Cortou a fotografia,
deixando o título da brochura abaixo, e então enfiou a foto na moldura do
espelho acima da pia.
– Aí – disse ele, dando um passo atrás para admirá-la mais de longe. – Um dia
nos conheceremos, minha amiga americana.
– Mas o que é isso? – falou Cveja de modo confuso após ver seu irmão
contemplando a fotografia. – Você nem sabe quem ela é. – E voltou para sua
tarefa. Abaixo das palavras em alemão na partitura, ele estava escrevendo a
tradução em sérvio-croata para os membros do coral lerem.
Voja encolheu os ombros e começou a preparar o jantar. Durante a refeição,
enquanto conversavam sobre os eventos do dia, Voja de vez em quando olhava
de relance para a foto da misteriosa garota. Cveja o observava com curiosidade.
– Há uma nova mulher na minha vida – disse Voja com um sorriso travesso. –
Ela está se fazendo de indiferente, mas eu sei que está me observando – brincou
ele.
– O coral cantou muito bem hoje de manhã – comentou Cveja. Então se voltou
para o homem de bigode. – Você cantou aleluia no tempo certo, Viktor – disse
ele, imitando sua pronúncia alemã. Viktor e sua esposa, Ankica [Ankitsa], novos
amigos da Croácia, haviam chegado recentemente e faziam parte do coral. Cveja
havia começado a dar estudos bíblicos a Viktor.
– Voja, você está ficando destreinado – bradou alguém, e o grupo riu alto. Voja,
o piadista, estava tomando um pouco do próprio veneno.
– OK, OK, divirtam-se comigo. – Ele fez uma careta e apertou a mão contra o
peito. – Mas saibam que vocês me machucaram. – Um riso estrepitoso ecoou
pelo quarto.
– Esse deve ser o nome dela – gritou alguém no quarto, provocando ainda mais
riso do grupo.
– Ele é tio de Djoka, você sabe. Você deve procurar saber mais a respeito dela.
Afinal de contas, ela pode ser casada e ter uma dúzia de filhos. Talvez seja uma
senhora idosa agora. Você não sabe quando a foto foi tirada – acrescentou Kaća.
A informação fez Voja vibrar, embora ele estranhasse o nome Ann. Todos os
nomes de mulheres que ele conhecia terminavam numa vogal – Marija, Natalja,
Mira, Branka. A única Ann da qual ele ouvira falar antes era Ann Baxter, a atriz
americana. O nome Ann soava estranho para ele. De qualquer modo, era muito
melhor do que seu novo pseudônimo. Olhando a foto dela agora, ele pestanejou
e disse para si mesmo: “Você me fez seu refém, minha querida Ann.” Alguma
coisa se agitava dentro de seu coração, e ele se perguntou se ela ao menos sabia
que ele existia.
Dois dias depois, Adolf apareceu lá. Voja e Cveja estavam sentados à mesa
estudando inglês. Como de costume, ele esquadrinhou o apartamento para ver se
havia alguma coisa nova. Quando viu a nova foto, chegou mais perto para
examiná-la, e permaneceu ali por alguns momentos.
– Ahá! Fiz uma grande descoberta! – exclamou ele de repente, voltando-se para
os gêmeos.
– Já não lhe disse que sou um gênio? – Adolf voltou para o espelho e apontou. –
Olhe, “O Pecado Imperdoável” e a garota na foto instantânea são a mesma
pessoa.
– Não, isto não pode ser – protestou Voja dando um salto para olhar de perto. O
instantâneo mostrava uma imagem distorcida de uma garota que não parecia
atraente, e ele não queria que fosse a mesma pessoa. Ele se posicionou ao lado
de Adolf junto ao espelho.
– Mas é! Posso provar – disse Adolf. Ele saiu do quarto e voltou um minuto
depois com uma lente de aumento. Cveja e Voja trocaram olhares divertidos.
Adolf retirou as duas fotos da moldura e as colocou lado a lado sobre a mesa.
Então se inclinou para analisar as imagens ampliadas e examinar cada detalhe.
– Tudo bem, Sherlock, deixe-me ver – disse Voja. Ele apanhou a lente de
aumento, inclinou-se e a segurou primeiro sobre uma foto e então sobre a outra.
Endireitando-se, retorquiu: – Qual é, Adolf! Onde estão seus olhos? Não há
qualquer semelhança. Uma é bonita. A outra não. Uma tem cabelos curtos. A
outra tem cabelos compridos. – Devolvendo-lhe a lente, disse: – Lamento,
Adolf, mas você está errado. Sou arquiteto e enxergo essas coisas.
– Está bem, está bem, rapazes. Podem se dar razão. Não me importo. Mas eu
digo que estou certo. Perguntem ao seu amigo em Nova York. Vocês vão ver. E
apressem-se. – Adolf se dirigiu para a porta, que se fechou com um estalido
quando ele saiu. Antes de se recolher naquela noite, Voja escreveu outra breve
carta.
Toda noite, Adolf vinha fazer uma visita. Algumas semanas depois, os gêmeos
chegaram do trabalho e encontraram outra carta de Nova York. Rapidamente,
Voja leu a mensagem de Mela. “Sim, é a mesma garota”, resmungou ele,
franzindo o cenho ao ler: “A foto instantânea não lhe faz justiça. Você sabe como
são as fotos de Mladen. Ela é muito atraente mesmo. Acho que você vai gostar
dela.”
Com a carta em mãos, Voja foi procurar Adolf, mas ele não estava em seu
apartamento. Voja se lembrou de que ele muitas vezes dava estudos bíblicos à
noite.
Já passava das onze horas da noite quando Adolf voltou, e Cveja e Voja já
haviam ido para a cama. Ele bateu à porta, abriu-a e encostou-se no batente.
– Alguma carta hoje? – indagou ele, e então acendeu a luz ao entrar no quarto.
Os gêmeos se mexeram com relutância.
– Oh, mas você é mesmo um Macaco Verde! Não vê que estamos dormindo? –
reclamou Cveja. Ele ergueu a cabeça, apertou os olhos por causa da luz, puxou
as cobertas sobre a cabeça e virou-se para o outro lado.
– É duro dizer isso, Adolf, mas você estava certo – confessou Voja. – Elas são a
mesma garota. O instantâneo é que não é bom.
Nos dias seguintes, falar sobre a garota na foto se tornou uma rotina diária para
Voja. “Seus ouvidos devem estar tinindo”, pensava ele com frequência. Ao
pentear o cabelo ou dar o nó na gravata em frente ao espelho, ele a imaginava
observando-o. Da Vinci tinha sua Mona Lisa. Voja tinha seu Pecado
Imperdoável. Ansioso por conhecer aquela pessoa que não mais lhe parecia
estranha, ele procurou saber mais sobre ela. Chegaram mais cartas de Mela
dizendo: “Ela ainda está livre, mas talvez não seja por muito tempo. Por favor,
apresse-se.”
capítulo 16
– Quando tínhamos onze anos de idade talvez aprendêssemos esta língua, mas
não com nossa idade. Somos mais críticos agora – resmungou Cveja. Já na
oitava lição, as peculiaridades do idioma inglês haviam diminuído seu
entusiasmo.
– Vamos em frente – sugeriu Voja. Ele se voltou para o livro e leu o subtítulo:
“Vogais”. Aqui o autor europeu explicou que em inglês cada vogal pode ter
várias pronúncias diferentes. Eles se entreolharam novamente com uma
expressão de desgosto. Em cada língua que eles conheciam, as vogais tinham um
único som, a não ser quando um acento indicasse uma pronúncia alterada. O
nome de cada vogal indicava sua pronúncia: A se pronunciava A, E era E, I era I,
O era O e U era U. Essa ideia, portanto, era uma surpresa para eles.
– Você tem razão – lamentou-se Voja. – Se Tito não considerasse o inglês uma
língua capitalista, poderíamos ter aprendido tudo isto na escola. O inglês é muito
confuso.
– Confuso? Está mais para absurdo – retorquiu Cveja. Ele se levantou, ajeitou as
calças e caminhou para lá e para cá. – Pode ser que eu seja muito exigente, mas
não vejo lógica nesta língua.
– Que difícil! – exclamou Cveja lançando o livro ao chão. Ele se levantou, abriu
a porta da sacada e saiu. Estava escuro e frio lá fora, de modo que voltou
rapidamente.
– Posso entender exceções às regras, mas inglês tem mais exceções do que
regras – disse ele esfregando os braços quando a porta da sacada se fechou
ruidosamente atrás dele. – Francês e alemão têm regras, e são coerentes. Mas
inglês? – ele fez uma careta. – Nem mesmo Vuk Karadžić seria capaz de
encontrar sentido nisso. Ele fez um ótimo trabalho ao revisar nossa língua, de
modo que as crianças no primeiro ano escolar aprendessem o alfabeto e
pudessem imediatamente ler e escrever. Uma letra para cada som. Aqui nós
temos todos os sons numa letra.
– Você tem razão, Cveja – respondeu lentamente Voja. – Mas se vamos para os
Estados Unidos para nos tornarmos americanos, precisamos aprender a língua,
gostemos ou não. Francês não o ajudará muito em Nova York. – Ele se referiu ao
francês porque era a língua favorita de Cveja.
No dia seguinte, quando voltaram a estudar inglês após o jantar, tudo correu
razoavelmente por algum tempo.
– Pelo menos podemos tentar – disse Cveja. Ele se recostou para trás e
habilmente mudou de assunto. – Ontem, quando estivemos no Parque Mirabel,
ouvi você falando italiano com alguns turistas. Fiquei surpreso por ver como está
fluente. Após cinco meses em Roma, você praticamente domina o italiano. – Ele
olhou novamente para o livro. – Estamos estudando inglês por nossa conta há
quase um ano e continuamos analfabetos.
– Italiano é fácil, Cveja. É uma língua fonética, com muitas vogais e sons
abertos. Mas inglês é outra história.
Vários dias depois, chegou pelo correio um pacote contendo uma planta da área,
mapa topográfico, orientações para a competição e especificações para o projeto,
o qual requeria que o desenho incluísse locais para uma igreja católica, casa
paroquial, escola fundamental, corpo de bombeiros, residências familiares,
apartamentos e uma área comercial a ser desenvolvida mais tarde. A data para a
entrega do projeto era 7 de junho.
Kaća e seus familiares haviam saído de Salzburgo em março, após uma festa de
despedida que os irmãos da igreja prepararam para eles. Naquela noite, os
gêmeos escreveram uma carta para Kaća e Djoka em Paris, e começaram a fazer
planos para a viagem. O casamento estava marcado para agosto.
– “Nation não se pronuncia nacion, como em francês, mas nêichon. Station não é
stacion, mas stêichon”
– Onde é que eles acharam o som de X em nation e station? – inquiriu ele. Lendo
um pouco adiante, ele apontou um dedo acusador para a palavra colonel. – Veja
isto! – ele leu a frase seguinte. – A palavra colonel se pronuncia kernel. Kernel!
– repetiu ele irritado. – Onde está o R? – Ele agarrou o livro e o jogou através do
quarto. Felizmente Voja se virou justamente quando o livro passou voando por
ele.
– Não se esqueça de que o francês foi a língua oficial da Inglaterra por quase
trezentos anos, depois que William da Normandia os derrotou em 1066. Muitas
coisas podem acontecer com as palavras nesse período de tempo – tentou
arrazoar Voja. Mas Cveja não aceitava nenhuma de suas desculpas. Aquele
último capítulo havia sido a gota d’água. Cveja não podia perdoar a corrupção da
pronúncia francesa. Na noite seguinte, Voja estudou sozinho outra lição, mas
ocasionalmente dava uma olhada para seu irmão, cuja cabeça estava enterrada
num livro. A pedido de Cveja, sua irmã Vera havia lhes enviado alguns livros em
sérvio, e ele estava relendo A Filha do Capitão, de Pushkin.
Quando chegou o verão, e o clima foi ficando mais quente, os amigos refugiados
começaram a ir embora para sua nova pátria. Vários meses antes, Adolf havia
ido para o Colégio Adventista em Collonges-sous-Salève. Lá, ele conheceu uma
garota, e os dois se apaixonaram. Eles planejavam se casar e já se haviam
inscrito para trabalhar como missionários na República dos Camarões. Viktor,
Ankica e vários outros no grupo partiram para o Canadá. Outros imigraram para
a Austrália depois que os documentos foram liberados. Aonde quer que os
refugiados foram, levaram com eles a história da namorada de Voja nos Estados
Unidos, chamada “O Pecado Imperdoável”.
No fim do verão, todos os seus amigos refugiados haviam ido embora. O coral
iugoslavo estava calado agora, e aos sábados os gêmeos voltavam da igreja para
um apartamento vazio. Como a quota anual de imigração iugoslava para os
Estados Unidos já havia sido completada, os gêmeos decidiram esperar em
Salzburgo até que ela fosse reaberta no ano seguinte.
No fim do seu mês de férias, os gêmeos voltaram para Salzburgo. Uma carta do
Concílio Mundial de Igrejas os aguardava. Havia sido marcado para Cveja um
exame físico antes de ser emitido seu visto de entrada para os Estados Unidos.
Em virtude da frequente incidência de tuberculose, todos os solicitantes eram
cuidadosamente examinados. A menor indicação de contato com a tuberculose
resultava em imediata desqualificação.
Voja, por sua vez, nada havia recebido. Nem mesmo uma palavra sobre exame
físico ou documentos.
acusado
– Tenho uma entrevista marcada para as dez horas, com o cônsul- geral, Herr
Michelin – disse ele, estendendo-lhe a carta que havia recebido pelo correio. –
Meu nome é Vojislav Vitorović.
Todos os contatos com Cveja haviam sido através do correio. Cveja havia
terminado o exame físico que durara uma semana e recebera o visto de entrada
para os Estados Unidos mais de um mês antes. Voja não recebera sequer uma
palavra. Até recentemente, a ideia de que seus documentos estavam parados em
Roma havia amenizado sua ansiedade – a Itália havia demorado cinco meses
para oferecer asilo político a Voja, enquanto Cveja havia recebido asilo da
Áustria dentro de uma semana. Agora ele tinha um estranho pressentimento de
que algo estava terrivelmente errado.
No topo da escada, ele entrou num vestíbulo não mobiliado, no qual três das
paredes continham uma porta de carvalho almofadada. Um cintilante lustre de
cristal e ouro pendia de um medalhão de gesso no teto. Esperando ansiosamente,
Voja torcia os dedos e mordia os lábios, tentando adivinhar qual das portas se
abriria.
Logo a porta da direita se abriu diante dele, e dois homens de terno escuro e
gravata saíram para o vestíbulo. Um jovem alto, de óculos grossos, saiu
primeiro. Um senhor de meia-idade, de cabelos castanhos começando a ficar
grisalhos nas têmporas, saiu em seguida. O mais jovem acenou para Voja e
voltou para a sala. Voja o seguiu, e o homem de meia-idade foi atrás dele.
Entrando pela porta, Voja roçou de leve na almofada de couro em sua parte
interna e sentiu cheiro de couro almiscarado. Uma segunda porta, também
almofadada com couro, contígua à primeira, abria-se para dentro da sala. Duas
portas almofadadas – indício de uma sala à prova de som. Voja percebeu isto, e
sua ansiedade aumentou.
Dentro da sala, o mais jovem fez um gesto para que Voja se sentasse junto a uma
grande mesa de carvalho, rodeada de cadeiras com almofadas de couro. Na
parede ao longe, uma janela com uma cortina pesada limitava a quantidade de
luz que entrava. Os dois homens sentaram-se à mesa em frente dele.
Voja sentou-se ereto na cadeira, remexendo as mãos em seu colo. Ele olhou de
um rosto sombrio para o outro, esperando que um dos homens falasse. Em troca,
quatro olhos perscrutadores se fixaram nele. O mais jovem, de óculos, começou.
Falando em alemão, ele apresentou o homem mais velho como sendo o cônsul
americano, o Sr. Michelin. Pela primeira vez, Voja notou os olhos escuros e
penetrantes do cônsul.
– Você tem alguma ideia do motivo pelo qual está aqui? – Os olhos de Voja se
voltaram do cônsul para o intérprete.
– Vou direto ao ponto – disse ele. – Nós o chamamos aqui para lhe dar más
notícias. Alguém o acusou de ser um espião comunista.
As palavras foram um golpe rápido e duro para Voja. Por um longo e impactante
momento, ele ficou sentado aturdido. Ele se sentiu como um boxeador apanhado
com a guarda aberta por um potente soco no estômago. Afundando no assento,
ele agarrou os braços revestidos de couro da cadeira. Sua mente vacilou, e seu
mundo ficou sombrio.
Com o coração batendo forte, Voja lutou para entender o que estava
acontecendo.
O cônsul se inclinou para frente outra vez, pôs os cotovelos sobre a mesa, com
as mãos fechadas embaixo do queixo e disse:
– Mas decidi fazer uma exceção desta vez e dar-lhe uma oportunidade. – A
cabeça de Voja começou a desanuviar-se, e seus olhos se arregalaram quando o
intérprete traduziu as palavras do cônsul para o alemão. O cônsul continuou:
– Ótimo! Então não perca tempo. Logo que você a conseguir, traga-a aqui. Você
precisa se apressar – concluiu o cônsul. Ele e o intérprete se levantaram e
acenaram com a cabeça. A entrevista terminara, e o intérprete acompanhou Voja
até a porta.
De repente, como que despertando de um sonho, a situação ficou bem clara. Não
havia como provar sua inocência, e após todas as lutas que ele e Cveja haviam
travado, seu irmão iria para os Estados Unidos sem ele.
Com o coração pesado, ele tomou o ônibus elétrico e depois caminhou os 800
metros restantes até o apartamento. O bate-papo animado das pessoas que
perambulavam por lojas e butiques ao longo do trajeto parecia zombar de seu
desespero. Até mesmo o mais agradável aroma emanado pelas pastelarias era
desconsiderado. Alheio ao trânsito e ao alvoroço das pessoas, Voja estava
assediado por pensamentos melancólicos.
Enquanto esperava por seu asilo em Roma, Voja ouvira a história de um jovem
sérvio que havia fugido para Trieste e se inscrevera para ir aos Estados Unidos.
Seu pai era cidadão americano. Mas uma pessoa desconhecida havia acusado o
sérvio de ser espião. A última informação que Voja havia tido era de que dez
anos já se haviam passado e o homem ainda estava esperando em Trieste – agora
como residente permanente. Tanto quanto ele soubesse, o homem jamais havia
emigrado para os Estados Unidos.
Voja pensou na recente separação de Cveja. Cinco meses, uma semana e três dias
de tormento para ambos – não apenas por causa das circunstâncias probantes,
mas também por causa da extrema necessidade de estar juntos. Como poderiam
eles suportar outra extensa e potencialmente indefinida separação?
Nuvens escuras de chuva moviam-se no céu, e uma garoa gelada começou a cair.
Ao chegar ao edifício que havia sido seu lar por mais de um ano, sua capa estava
encharcada. O rosto latejava de frio, e ele estava tremendo.
– Sua aparência está horrível – observou Cveja quando viu não apenas as roupas
ensopadas do irmão, mas também a expressão desanimada no rosto dele. Voja
sabia que Cveja havia estado orando. Era sua prática diária e fonte contínua de
poder. Depois de se secar e trocar de roupa, Voja despejou sua história dolorosa.
– Nunca irei aos Estados Unidos, Cveja. Você terá que ir sem mim.
– Nada disso, meu irmão. Os Estados Unidos nada significam se você não
estiver lá. Podemos nos estabelecer aqui na Áustria. Temos trabalho, e o Sr.
Schäffer está disposto a se responsabilizar por nós como residentes permanentes.
Melhor ainda: podemos ir para a França. Kaća e Djoka estão lá. Ali nós
poderemos falar francês. – Ele forçou um sorriso. – Jamais nos separaremos
novamente.
Uma batida na porta interrompeu a conversa. O pastor Schnötzinger estava ali,
sorrindo.
– E daí, como é que foi? – perguntou ele, entrando no quarto. Voja o havia
informado da entrevista no consulado.
– Isso foi o que pensei também. Mas aconteceu. O cônsul disse que em tais casos
ele normalmente encerra o caso, uma vez que não pode investigar. Mas, por
alguma razão, ele me ofereceu uma oportunidade. Ele me perguntou se eu
poderia conseguir uma carta da Iugoslávia, que declarasse que eu não sou
comunista, que sou membro da Igreja Adventista em situação regular há anos. –
Ele enrugou a testa e franziu as sobrancelhas. – Não sei como pude dizer que
conseguiria. O problema é que o correio não é confiável, pois as autoridades
censuram a correspondência que entra e sai do país.
O pastor Lorencin prosseguiu enumerando várias razões por que ele acreditava
que isso era verdade, incluindo o fato de que ele conhecia os gêmeos desde que
eles tinham 11 anos de idade, que sua família havia sofrido sob o comunismo e
perdido sua atividade comercial, e que ambos os irmãos exerciam cargos de
confiança na igreja e eram membros ativos. Junto à sua assinatura, a carta
continha o carimbo da Divisão Sul-Europeia dos Adventistas do Sétimo Dia.
– Se essa carta não ajudar, nada o fará. Vou levá-la ao consulado imediatamente.
– Voja se virou para Cveja e disse: – Diga ao Sr. Schäffer que vou chegar
atrasado.
– Não se preocupe, e boa sorte! – disse Cveja com bom humor.
– Como você conseguiu isto tão depressa? – o intérprete traduziu a frase para o
alemão. A carta estava escrita em cirílico-sérvio, e o cônsul, um americano
típico, obviamente falava apenas inglês. Enquanto o cônsul folheava a carta,
Voja lhe contou sobre a viagem do pastor Schnötzinger e a reunião em Berna, na
Suíça. O cônsul devolveu-lhe a carta.
– Esta carta precisa ser traduzida para o alemão, e do alemão para o inglês.
Ambas as traduções precisam ser reconhecidas em tabelionato. Você precisa
achar um tradutor juramentado – disse o intérprete, repassando as instruções do
cônsul. – Procure trazer-nos isto de volta ainda hoje.
Após contar a história, o pastor telefonou a um conhecido sérvio que tinha ali
perto um escritório com tradutores qualificados que poderiam fazer as duas
traduções.
Era quase meio-dia. Voja apressou-se pelas ruas molhadas, passou pelo
Mozarteum e chegou ao escritório do homem alguns quarteirões adiante. A neve
que havia começado a cair antes havia parado. Somente os quadrados sujos em
volta das árvores ao longo das ruas mantinham uma fina cobertura branca.
– Mas... – Ele começou a falar e então parou. Ele não dispunha de tanto tempo
assim, e o cônsul sabia disso. A situação estava fora de seu controle.
–Nada! – reclamou Voja ao olhar para dentro da caixa do correio. Era a primeira
semana de dezembro de 1958, e eles haviam acabado de chegar do trabalho.
Desde a entrevista no Consulado Americano, a tão esperada resposta de
Washington dominava seus pensamentos quando estava desperto. Seria aprovada
sua solicitação? A resposta chegaria a tempo?
– Já se passou um mês desde a entrevista – disse Voja enquanto ele e seu irmão
relaxavam após o jantar. Eles haviam ligado o rádio, e se ouvia a Nona Sinfonia
de Beethoven ao fundo. Antes, a conversa havia excluído o assunto, mas agora
ele surgira. – Eu sei que isso toma tempo, mas...
– Ainda temos até 4 de fevereiro. Meu visto é válido até lá – interrompeu Cveja.
– Isso é menos de dois meses – respondeu Voja. Ele olhou para o calendário na
parede e observou os números. – A Pan American faz voos de refugiados duas
vezes por mês. Precisamos ter uma palavra do cônsul para conseguir lugar num
desses voos.
Os dias do mês de dezembro logo ficaram mais frios e úmidos. Os céus sombrios
diariamente traziam chuva fria, neve ou granizo. A neve logo se acumulou como
um tapete branco salpicado nos belos jardins e parques de Salzburgo, formando
montículos sujos ao longo das movimentadas ruas. Surpreendentemente, porém,
as ruas e calçadas eram mantidas relativamente desimpedidas.
O rio Salzach, cujas águas normalmente fluíam em forte correnteza serpeando
pelo centro de Salzburgo, ficou congelado por quilômetros, permitindo que as
crianças brincassem sobre sua superfície sólida e escorregadia. Esquiadores de
todas as idades se divertiam em toda parte – nas estreitas ruas sem trânsito da
cidade velha, em praças e parques, até mesmo nas estradas onde os motoristas
tinham que dirigir cautelosamente. No topo da cordilheira Monchsberg,
Hohensalzburg, a maior fortaleza preservada da Europa Central, ficou adornada
com neve grudada tenazmente aos paredões e torres. Pingentes de gelo, como
joias de cristal, estavam pendurados dos telhados góticos.
– Mas não são figos nem nozes que eu preciso agora. É de um visto americano –
disse Voja com tristeza.
Cveja olhou para ele, notando o tom sombrio na voz de Voja. Pôs de lado o livro,
girou as pernas para fora da cama e sentou-se.
– Não posso deixar que você se sacrifique. Esta é sua única chance de ir para os
Estados Unidos. Você não pode deixar seu visto expirar. Mais tarde, quando
estiver estabelecido, você poderá se responsabilizar por mim.
– Eu teria de ser cidadão americano para fazer isso. Levaria anos – respondeu
Cveja. – Não, meu irmão, minha decisão é definitiva. Eu não vou se você não for
comigo, nem mesmo para os Estados Unidos. – Sua voz era firme. – Aconteça o
que acontecer, ficaremos juntos. – Ele arrumou o travesseiro, deitou-se
novamente, apanhou o livro e reiniciou a leitura.
Noutra noite, Cveja sugeriu: – Por que não vamos ao Consulado Francês? – A
recente conversação o havia feito pensar. A segunda semana de janeiro havia
terminado sem uma palavra do Consulado Americano. – Já falamos sobre a
possibilidade de morarmos na França. Por que não perguntamos para ver o que
nos dizem?
– Então, vocês dois são arquitetos? – perguntou o cônsul francês depois que eles
fizeram a solicitação. – Podemos utilizar arquitetos na França. – Depois de
discutirem o assunto, ele apanhou seus passaportes e saiu da sala. Ao voltar,
vários minutos mais tarde, ele os devolveu com uma mesura!
– Aqui está – disse ele. – Concedi-lhes vistos de entrada válidos por dez anos.
Durante esse tempo, vocês poderão entrar e sair da França quando quiserem.
Podem morar lá e trabalhar. Se decidirem permanecer, poderão dar os passos
necessários. – Muito contentes, os irmãos agradeceram ao homem e saíram.
– Está aí – disse ele, estendendo a carta a Cveja. – Eles querem que você
também vá, provavelmente para cancelar seu visto.
– Boba envia suas desculpas. Surgiu algo no último minuto – explicou Ratko
quando os dois homens entraram no apartamento. Então ele sentiu o aroma no ar.
– Hum, isto é cheiro de podvarak? – ele indagou com o apetite aguçado. Voja
havia preparado o prato de repolho com bife defumado exatamente da maneira
como seus amigos gostavam.
– Devo estar no Céu – declarou Duško. Ele afrouxou a gravata e a atirou sobre o
ombro ao sentarem-se à mesa. Os gêmeos haviam trazido mais duas cadeiras do
outro quarto. Após o almoço, eles relaxaram e conversaram.
– Não necessariamente – disse Ratko. – Você sabe que as coisas nunca acabam
na véspera. – Ele olhou intencionalmente para Duško, o qual não lhe deu
qualquer indicação de que ele não devesse falar. Ratko continuou: – Talvez eu
não devesse lhe dizer isto, mas seu caso jamais seria reconsiderado se... se não
fosse Boba.
– Boba? O que você quer dizer? O que ele tem que ver com isso? – perguntaram
ao mesmo tempo os gêmeos.
– Alguns meses atrás, num domingo, provavelmente logo depois que você viu o
cônsul, Duško, Boba e eu estávamos sentados juntos num bar, tomando café,
quando Michelin chegou e veio até nossa mesa. Ele chamou Boba para um lado,
para conversar com ele em particular.
– Sim. Michelin queria saber se Boba conhecia bem vocês dois. Ele disse que
havia um sério problema com a solicitação de Voja. Ele deveria encerrar seu
caso, mas por alguma razão estava relutante em fazê-lo.
– Foi o próprio Boba que lhe disse isto? – perguntou Cveja elevando a voz.
– Não – respondeu Ratko abanando a cabeça. – Ele jamais faria isso! Foi
Michelin quem me contou, no mais absoluto segredo. Agora já lhes contei, e
vocês sabem. Mas não devem deixar transparecer que sabem! – disse ele
enfaticamente. – Boba ficaria terrivelmente constrangido e aborrecido comigo.
– Talvez ainda haja esperança – exclamou Voja. – Como disse Ratko, as coisas
nunca acabam na véspera.
– Tudo cinzento de novo. Todo dia é cinzento – reclamou Voja. – Céu de inverno
cinzento, circunstâncias cinzentas, futuro cinzento. Parece que a vida transcorre
numa região cinzenta.
O cônsul caminhou até os gêmeos, pôs as mãos nos quadris e sorriu pela
primeira vez. Aquele não era, definitivamente, seu rosto oficial como cônsul
nem seu modo reservado habitual. Então o homem abriu a boca e falou com
perfeição na língua sérvia:
– Ninguém, mas ninguém mesmo, sabe que eu falo sérvio – começou o cônsul,
inclinando-se na direção deles. Ele falou com ênfase, e sua expressão ficou séria.
– Se esta informação se espalhar, meu escritório ficará repleto de refugiados.
Este segredo não pode sair daqui.
– Mas... mas onde o senhor aprendeu sérvio? – perguntou Voja. – O senhor fala
fluentemente, como um nativo.
– Minha mãe era de origem sérvia. Ela me ensinou a língua quando eu era
criança. Os familiares de meu pai vieram da Bélgica. Servi dez anos na
Embaixada Americana em Belgrado. Eu costumava ir ao Restaurante Bristol
regularmente, procurava estudantes universitários, pagava-lhes o almoço e
praticava conversação com eles. – Ele se inclinou para trás e relaxou, parecendo
satisfeito em falar.
– Muito bem, vamos agora tratar de coisas mais importantes – disse ele. Em
meio a toda essa animação, os gêmeos quase se esqueceram da razão para a
visita. O cônsul abriu a pasta e então ergueu os olhos, fixando-os nos dois rostos
idênticos que olhavam para ele. Agitando um dedo no ar entre eles, seus olhos se
moveram de um gêmeo para o outro. – Bem, qual de vocês é Vojislav? –
perguntou ele timidamente.
– Sou eu – respondeu Voja com uma risada. Foi a vez dos gêmeos se divertirem.
– Eu sou o original. Sou dez minutos mais velho. Ele é a cópia – acrescentou,
sorrindo.
– Uau, vocês são mesmo parecidos! Até as vozes de vocês são iguais –
respondeu o cônsul fazendo uma pausa. – Muito bem, Vojislav, tenho boas
notícias para você. Seus documentos chegaram, e Washington aprovou sua
solicitação. Você vai para os Estados Unidos!
Voja ficou sentado imóvel. Teria ele ouvido direito? Estava sua mente lhe
pregando peças? Ele se virou para Cveja, que estava sentado ereto na beira da
cadeira brilhando como uma lanterna. Sim, era verdade. Ele estava tão aturdido
que não conseguia falar.
– Ah, sim – respondeu o cônsul dando uma batidinha na têmpora, com uma
insinuação de travessura em seu sorriso. Dirigindo-se a Cveja, perguntou: – Você
trouxe seus documentos?
– Todas as informações aqui são exatamente as mesmas para vocês dois. Sua
data e local de nascimento, endereço, descrição física, nomes dos pais, profissão,
religião, tudo! – Ele apontou para o papel. – A única diferença é o primeiro
nome.
Aquilo estava além da compreensão dos gêmeos. De repente, as coisas
começaram a andar rapidamente.
– Para acelerar o processo, faremos uma cópia deste documento e então vamos
simplesmente apagar o nome Svetozar e escrever Vojislav. – Ele fez uma
avaliação de Cveja. – E talvez mudar o peso. – Desde que chegara macilento à
Áustria, Cveja havia ganhado mais de vinte quilos. Agora ele pesava mais do
que o irmão.
– Exatamente como pensei. Um saudável espécime sérvio, você não pode ser
muito diferente de seu irmão. – Então ele ligou para a secretária, entregou-lhe os
documentos e lhe deu instruções.
Pouco depois, a secretária voltou com dois maços de papéis e dois envelopes
grandes. O cônsul folheou-os e pôs um maço num envelope. Entregando-o a
Voja, disse:
– Ah, mais uma coisa – disse ele, erguendo o dedo indicador, como se tivesse
acabado de ter uma ideia. – Vou ligar para a Pan American para ter certeza de
que ainda há lugares. – Ele apanhou o fone, e os gêmeos trocaram outro olhar de
espanto. As coisas estavam andando tão depressa agora que eles ficaram sem
fôlego.
– Vocês acabaram de conseguir! – exclamou o cônsul, pondo o fone no gancho.
– Havia apenas três lugares. Reservei dois para vocês. – Então ele se levantou,
apertou-lhes as mãos vigorosamente e lhes desejou tudo de bom. – Deem-me
notícias de como vocês estão se saindo nos Estados Unidos – disse ele,
escoltando-os para fora da sala.
– Sr. Michelin – Voja parou na porta e se voltou. – Há uma coisa que eu gostaria
de saber. É sobre o meu acusador.
– Acabei de conseguir meu visto! Vamos embora amanhã! – anunciou Voja aos
surpresos funcionários, que imediatamente os cercaram, lançando perguntas de
todos os lados.
– Entrem, entrem. Digam-me o que aconteceu – disse ele, fechando a porta atrás
deles. Eles se sentaram em frente à escrivaninha. – Voja, quando você fez o
exame médico?
Voja encolheu os ombros. – O que sei é que foi tudo completado e tenho todos os
documentos – respondeu ele.
Voja se lembrou das palavras sinceras de Boba que haviam induzido o cônsul a
reconsiderar seu caso. Ele desejava expressar gratidão a Boba por sua confiança,
mas isso trairia o seu segredo. Em seu coração, ele pediu a Deus que abençoasse
aquele nobre homem que havia dedicado a vida para servir a outros.
Ele saiu do escritório e voltou em alguns minutos com dois pequenos envelopes
e duas sacolas de lona azul-marinho.
– Gott sei dank [Graças a Deus]! – gritou o pastor. Ele se pôs em pé de um salto
e os abraçou. Quando os gêmeos voltaram ao seu apartamento, começaram a
arrumar suas roupas e a se preparar para a partida. O restante do dia foi gasto
dizendo adeus às pessoas do edifício.
Pulando da cama, ele correu para a janela e puxou a cortina para o lado. O ar do
lado de fora parecia gelado e nevoento, e o peitoril da janela estava com um
filete de neve. Uma quantidade maior dessa substância branca e fofa emoldurava
o parapeito da sacada e cobria os telhados. O gelo resplandecia como joias de
prata nos galhos desfolhados dos castanheiros e plátanos lá embaixo.
– Era só o que faltava: neve! – ele resmungou para si mesmo. Ele podia ouvir as
máquinas rua abaixo, quebrando e limpando a neve, e os caminhões silvando e
roncando ao removê-la. – Não me importo com o que os outros dizem. A neve
não é bela! Eu não gostaria de ser uma dessas árvores! – Ele franziu a testa,
fechou novamente as cortinas e se voltou para Cveja, que acabara de sair do
chuveiro usando um roupão e com uma toalha em volta do pescoço. – Faz muito
frio em Nova York? – perguntou Voja.
– Nova York? Não sei – disse ele, dando de ombros. – Não importa quanto frio
faça, é nos Estados Unidos – respondeu Cveja de modo antipático.
– Und Du bist mein Sanger [Você é o meu cantor] – disse o pastor voltando-se
para Cveja. Ele pôs o braço rechonchudo no ombro de Cveja. – Vou sentir falta
de você e de seus cânticos. Eles alegraram meu coração.
Por volta das 15 horas, o pastor Schnötzinger conduziu os gêmeos para fora do
edifício até seu Volkswagen.
– Não vamos caber aí dentro – cochichou Voja para Cveja ao olharem o carro, o
corpulento pastor e sua filha do mesmo tamanho. O pastor adivinhou a
preocupação deles e disse:
A forte nevasca que caíra na noite anterior havia deixado muito entulho. A
maioria das ruas havia sido limpa, mas as que estavam atravancadas de neve
retardaram o avanço. A viagem de 120 quilômetros para Munique levou mais de
duas horas. Munique havia sido a capital da Bavária desde o século 16 e, em
1919, dera origem ao que se tornou o Partido Nazista. Embora a Segunda Guerra
Mundial houvesse terminado 14 anos antes, alguns edifícios ainda jaziam em
ruínas. Ao olhar para fora da janela, Voja viu outros edifícios ladeados de
andaimes, parecendo estar em vários estágios de reforma. Apesar do mau tempo,
os ônibus chegaram ao Aeroporto Internacional de Munique com mais de uma
hora de antecedência.
Voja, Cveja e os outros refugiados saíram dos ônibus com seus parcos pertences,
seguindo o líder para o terminal designado para cada grupo. Após passarem pela
alfândega e imigração, a fim de que passaportes, documentos de vacinação e
outros papéis fossem verificados, eles se dirigiram para o portão de embarque e
esperaram.
“Voo 800 para Nova York, embarque pelo portão 10”, foi finalmente anunciado
em alemão pelo alto-falante. O coração de Voja saltou de emoção. As palmas de
suas mãos estavam suadas. Ele e Cveja estavam agora a caminho dos Estados
Unidos.
Olhando pela janela através de alguns espaços nas nuvens abaixo, Voja viu luzes
de cidade espalhadas. Ele ficou impressionado com o pensamento de que estava
flutuando serenamente acima do turbulento clima e das políticas conflitantes dos
países lá embaixo. Os outros passageiros também pareciam arrebatados.
Estavam sentados em estranho e imóvel silêncio, todos imersos em seus
pensamentos. Somente o ronco contínuo dos motores e uma ocasional voz
abafada ou choro de criança interrompia a melancólica tranquilidade. Voja se
inclinou para trás, sentindo-se maravilhosamente vivo. Estava dizendo adeus à
velha vida, e uma nova experiência o aguardava do outro lado do oceano.
Com poucas exceções, os 120 passageiros eram quase todos refugiados. Jovens e
velhos, homens, mulheres e crianças pequenas – todos em viagem para novos
lares numa terra estranha – pareciam suspensos num mundo irreal, com o
passado batendo em retirada lá embaixo, e o futuro desconhecido, mas cheio de
esperança. O pouco que a maioria deles sabia sobre os Estados Unidos provinha
de suas aulas de geografia e história na escola, dos programas da Radio Free
Europe e dos filmes de Hollywood com finais felizes. Sonhos de liberdade e
esperanças de uma vida melhor os levaram a crer que nos Estados Unidos,
conforme os filmes retratavam naquele tempo, os bons sempre venciam, e o
crime nunca compensava.
Quando alçaram voo novamente, Voja começou a refletir sobre os eventos dos
dois últimos anos. Voltando-se para Cveja, perguntou-lhe:
– Tantas coisas aconteceram desde então – ele pensou em voz alta. – Tantas
coincidências.
– Como quando meu nome foi aprovado para a viagem a Roma – exclamou Voja
quase reverentemente. – E quando o cônsul americano confiou em Boba. Ele
correu um grande risco ao encaminhar meus documentos. E o que levou Boba a
dizer aquelas palavras? Elas fizeram diferença para mim.
– Com certeza. Ele é um homem generoso. – Cveja olhou para o irmão. – Eu
poderia ter sido preso várias vezes, mas não fui. Até poderia ter sido morto! –
Ele fez uma pausa e se lembrou: – O acidente de ônibus me salvou de ir para a
prisão com o grupo com o qual me desencontrei.
Após três horas nesse último trecho do voo, tocou uma campainha e acenderam-
se as luzinhas dos avisos “Apertem os Cintos” e “Proibido Fumar”. Voja sentiu o
bico do avião inclinar-se para baixo. Os comissários de bordo caminharam pelo
corredor, e o avião começou lentamente a descer. Todos os passageiros estavam
agora bem acordados e ansiosos, falando com empolgação.
Mas havia outra mulher em Nova York que Voja esperava que lhe desse boas-
vindas. Uma mulher pela qual ele havia esperado por muito tempo. Ele se
perguntava: Qual seria sua aparência? Seria ela o que parecia? Ela ainda estaria
esperando? Havia ela realmente esperado?
– Bem-vindos aos Estados Unidos! – disse o piloto quando o avião parou junto
ao portão. Os gêmeos trocaram olhares de expectativa. Aquela declaração de
boas-vindas os incluía. Havia sido um longo voo, com muitos desvios, tal qual a
própria experiência deles. Eles se sentiram como se tivessem viajado um milhão
de quilômetros. E, às 11h30, na quinta-feira, 29 de janeiro de 1959, Voja e Cveja
pisaram em solo americano.
Lá fora o dia estava cinzento como o que haviam deixado para trás. A neve havia
sido retirada das pistas, mas havia neve empilhada em todo lugar. Os prédios e a
torre de vidro e aço do aeroporto eram muito semelhantes aos de qualquer outro
aeroporto. Mas os gêmeos agora estavam nos Estados Unidos, para onde sempre
sonharam ir. Todos os desapontamentos e provações que os haviam levado
àquele lugar, todas as peças embaralhadas do quebra-cabeça haviam se juntado
para formar uma imagem que tinha o selo divino.
capítulo 21
Mas a pergunta que incomodava a mente de Voja não lhe dava descanso. Antes
de se recolher para dormir, ele precisava de uma resposta.
– Mela, que tipo de foto você me mandou daquela garota? Ela não é nem um
pouco bonita – disse ele.
– Que foto? Oh, você se refere à que Mladen tirou? – Ela abanou a mão e riu. –
Ninguém sai bem nas fotos dele. Você não sabe disso? De qualquer modo, Voja,
você vai vê-la na igreja.
Na manhã seguinte, quando eles acordaram, Mladen já havia saído para
trabalhar. Seu trabalho de impressão em Long Island o obrigava a viajar com um
bilhete mensal. Mirjana estava usando o único banheiro, e Nevenka esperava a
sua vez.
– A sua vez é depois de Nevenka – disse Mela aos gêmeos rindo com
naturalidade. – Temos que esperar na fila, como fizemos durante a ocupação.
Hitler nos ensinou a ser pacientes. – Ela riu de novo.
– Hoje vocês vão ver como são os mercados de alimentos nos Estados Unidos –
disse ela. Então colocou Nadica e Djordje num carrinho dobrável, e todos saíram
caminhando para a mercearia.
– Ei, Mela, dê-me algo para comer. Já estou quase roendo a mesa – queixou-se
ele impacientemente.
– Mladen, você vai ter que esperar – respondeu ela, apressando-se para preparar
o almoço.
Depois que todos se sentaram à mesa, Mladen agradeceu a Deus por Suas
bênçãos e pela chegada em segurança dos amigos.
– Comam, comam! – insistiu Mela com as filhas mais velhas quando as viu
lambiscando o alimento. – Vejam como estão magrinhas! Se quiserem ficar
bonitas como Ena, vocês precisam comer – riu Mela.
– Você quer vê-la, não é mesmo? – disse Mladen, provocando-o. – Mas lembre-
se de que ela é uma garota séria, gente fina. Portanto, veja lá como você se
comporta, seu malandro – riu ele.
– Sim, quero! – exclamou Voja com ênfase. Ele sorriu e disse: – E daí?
O dia seguinte era sábado. Voja e Cveja levantaram-se cedo para não terem que
esperar na fila para o banheiro, mas eles ainda estavam meio atordoados, pois
seu corpo não se havia acostumado ao horário local. Os outros se levantaram
mais tarde a fim de se prepararem para ir à igreja.
Após o desjejum, as duas filhas mais velhas se espremeram junto aos pais nos
bancos dianteiros do carro da família, enquanto os dois menores foram sentados
no colo dos gêmeos, atrás. Então saíram para um percurso de meia hora até
Astória, onde fica a primeira Igreja Adventista Iugoslava construída nos Estados
Unidos.
– Olhem, lá está ela! – Elas mostraram o carro que acabara de entrar na sua
faixa, na frente deles.
– Quem? – perguntou Voja.
Voja fixou o olhar na parte detrás do carro. Lá, no banco traseiro, estava sentada
uma garota de cabelos escuros, ondulados, que lhe caíam nos ombros. Duas
pessoas mais velhas, aparentemente seus pais, estavam sentadas uma de cada
lado.
– Ei, você não, Voja – disse Mladen rindo. – Você vem comigo. – Ele dobrou a
esquina e achou outra vaga para estacionar na rua. Quando Mladen e Voja
voltaram à igreja, a família já havia entrado.
Voja sentiu o coração pulsar de expectativa. Ela havia tirado o casaco, e ele pôde
ver sua figura alta e esbelta. Depois de todo aquele tempo, ele estava a ponto de
conhecer o “Pecado Imperdoável”, a garota da foto com quem ele vinha
conversando sozinho havia meses. Mas a imagem da foto fora de foco perseguia-
lhe a mente e, embora ansioso, ele temia ser desapontado.
Após a história missionária, Mladen anunciou para a igreja que, depois de uma
longa espera, os jovens haviam finalmente chegado e gostaria que todos os
conhecessem. Enquanto os gêmeos permaneceram na Áustria, ele havia mantido
os membros da igreja informados quanto ao progresso dos seus documentos. Isso
era tudo que Ann sabia sobre os gêmeos. Ela não tinha a menor ideia quanto às
pretensões de Voja. Nem imaginava que havia pessoas que a conheciam como
“O Pecado Imperdoável”.
Quando ela tocou o pequeno órgão Hammond durante o culto, Voja ficou
enlevado. Era um simples hino tocado por uma organista regular num órgão
simples. Mas ele teve a sensação de estar no Céu, e que “O Pecado Imperdoável”
era o seu anjo. Após a saída da igreja, os membros rodearam os gêmeos para
lhes dar as boas-vindas, e então todos se dispersaram para seus lares.
– Nada mau – respondeu Voja de modo casual. Mas Mladen não se convenceu.
novos começos
O primeiro compromisso era para aquela tarde, às 13 horas. Após meia hora de
viagem no metrô, num horário em que havia poucos passageiros, eles chegaram
ao setor leste de Manhattan para o primeiro encontro. No balcão da frente, o
pastor apresentou os gêmeos e a si mesmo à recepcionista e falou que tinham
uma entrevista com o chefe de pessoal. Logo depois, um senhor veio para
conhecê-los.
– Sou o pastor Kanachky. Estes dois jovens são arquitetos. Vieram da Europa e
estão procurando trabalho. – Ele apresentou os gêmeos pelo nome ao apertarem
a mão do entrevistador.
Toda noite, os gêmeos assistiam à televisão para acostumar os ouvidos aos sons
da língua inglesa com pronúncia americana, de modo que pudessem aprender a
decifrar as palavras. Aonde quer que fossem, mantinham os ouvidos abertos para
captar trechos de conversas. Essa experiência ajudou imensamente. Mesmo
Cveja, em face da realidade de ganhar a vida nos Estados Unidos, fez sérias
tentativas para melhorar seus conhecimentos de inglês.
Ika, um novo conhecido a quem haviam sido apresentados por meio de amigos,
encaminhou os irmãos à firma Eggers & Higgins, onde um amigo seu, sérvio,
trabalhava no departamento de administração de pessoal. A firma de arquitetura,
a segunda maior dos Estados Unidos na época, empregava 400 arquitetos e
pessoal de apoio em duas repartições. A matriz, localizada na Rua 42, do outro
lado da Estação Central, ocupava dois andares. Assim, durante a quarta semana
nos Estados Unidos, os gêmeos, acompanhados pelo pastor, saíram para
preencher fichas de emprego.
– Se ficar interessado em vocês – disse ele aos gêmeos –, ele consultará um dos
sócios.
– Meu pai veio da Hungria antes de eu nascer, de modo que compreendo como
são as coisas para um imigrante. É difícil se ajustar a um novo país. Mas preciso
ouvir seu inglês. – As mesmas palavras fatídicas outra vez.
– Sei escrever três mil palavras – disse-lhe Voja, falando com um sotaque
carregado. – Mas preciso melhorar minha pronúncia.
O homem sorriu, falou com Cveja, e então pediu licença, carregando consigo a
planta para o escritório de um dos sócios. Ocorre que os dois irmãos Eggers, que
eram donos da firma, eram gêmeos idênticos. Alguns minutos mais tarde, ele
voltou sorrindo.
– Sim, vamos contratar vocês. Será por um período experimental de seis meses –
disse ele para grande alegria e imenso alívio dos gêmeos. – Voja vai trabalhar
aqui, na matriz, pois seu inglês é um pouco melhor, e Cveja irá para a filial. Fica
na Primeira Avenida, do outro lado do edifício das Nações Unidas. Vocês dois
podem começar na segunda-feira.
O chefe dos projetistas levou Voya para conhecer o homem que seria seu
supervisor.
– Este é Roland, e este é Voya – disse ele, apresentando os dois homens. Roland
era natural do Alabama, e tinha uma maneira sulista arrastada de falar, algo que
Voya jamais ouvira antes. Indicando a Voya uma prancheta que seria sua base de
trabalho, Roland colocou um desenho na prancheta e começou a lhe dar
instruções:
– Você está certo, Voya. No sistema métrico isto seria de 1 para 192. Este
desenho está na escala de 1/16 polegadas – 1/16 é igual a um pé.
– Se você tiver alguma dúvida, sinta-se livre para me perguntar. Terei prazer em
ajudar – prontificou-se seu novo amigo Ali.
Nesse ínterim, no outro escritório, Cveja ouviu seu nome sendo pronunciado
como Kvedja, em vez de Tsveya, de modo que decidiu americanizá-lo. Dali em
diante, ele seria conhecido como Steve, o que era um pouco parecido com
Svetozar, seu primeiro nome completo. Felizmente, ele conheceu um arquiteto
judeu fluente em francês, o qual o ajudava quando ele necessitava de algum
esclarecimento. Uma vez por semana, mais ou menos, Steve fazia uma entrega à
matriz, numa caminhada de cerca de um quilômetro e meio. A maioria das
pessoas na agitada matriz não sabia que Voya tinha um irmão gêmeo.
Um dia, quando Steve fazia uma entrega na matriz, um dos arquitetos projetistas
que trabalhava na extremidade oposta do andar de Voya deu a Steve um conjunto
de desenhos para ser levado de volta à filial. Ele lhe disse que era urgente e
precisava ser entregue imediatamente. Steve saiu em seguida.
Cerca de vinte minutos mais tarde, o homem passou pela mesa de trabalho de
Voya, notando-o pela primeira vez, e pensou que se tratava de Steve.
Incomodado e com raiva, ele entrou como um furacão no escritório do chefe dos
desenhistas para reclamar:
– Eu não acredito no que aquele estrangeiro fez! Dei-lhe um conjunto de
desenhos para serem levados à filial e disse-lhe que era urgente! – rugiu ele
encolerizado, andando para lá e para cá, agitando os braços. – Isto já faz vinte
minutos, e acabei de vê-lo. Ele ainda está sentado aqui, sem se importar com
nada deste mundo!
– Você quer dizer que ele ainda está aqui? Ele não saiu? – O desenhistachefe
inquiriu calmamente, dando corda. Ele era um tanto brincalhão e entendeu a
situação imediatamente.
– Sim! Sim! Foi isso o que eu disse! Ele está sentado ali fazendo... não sei o quê!
Ele agitou as mãos outra vez e exigiu: – Que providência você vai tomar?
– Idêntico. O outro trabalha na filial. Se isto fizer você se sentir melhor, telefone
para lá e veja se os desenhos chegaram.
Outro dia, logo que Steve chegou ao escritório da matriz, ele ouviu pela primeira
vez outra explosão de ira de um dos arquitetos projetistas. O’Malley estava
lançando toda sua ira sobre o assistente, o qual permanecia zangado e em
silêncio.
– Então, você aprontou de novo! Não posso acreditar que você seja tão estúpido!
– reclamou ele. No andar aberto do escritório todos podiam facilmente ouvir a
discussão, mas ninguém mais prestava atenção aos espetáculos regulares de mau
humor daquele homem.
– Você não sabe! – arremedou o arquiteto com uma careta. – Não acredito que
você seja tão tapado!
– Bem, se você é tão esperto, como é que não consegue consertar isto? –
devolveu inesperadamente o assistente.
Perturbado pelo que havia acabado de ver, Steve se aproximou da mesa de Voya.
– Eu sei como trocar o arame. Talvez eu deva ajudar – disse ele falando em
sérvio.
– Você está brincando? Fique fora disto – Voya advertiu firmemente seu irmão. –
Não é problema seu.
Sendo o gêmeo mais velho, Voya esperava que o irmão atendesse ao conselho.
Mas Steve se encaminhou para o ainda furioso O’Malley, desconsiderando
totalmente a admoestação.
– Você! Mas você nem mesmo sabe falar inglês – retorquiu O’Malley. – Mas
quem é você, afinal?
– Bem, bem, bem! – berrou o homem, olhando o estrangeiro com atenção. Ele
pareceu ao mesmo tempo satisfeito e surpreso. – Vou lhe dizer uma coisa –
exclamou ele após um momento de reflexão. – Para demonstrar meu apreço, vou
solicitar que você faça parte do meu grupo.
De algum lugar, ouviu-se uma voz dizer: “É isto que dá ser um bom samaritano.”
Em seguida, uma risada ecoou pelo salão. Um arquiteto se aproximou de Steve e
disse piedosamente:
– OK, é oficial. Você vai começar a trabalhar comigo em duas semanas a partir
de segunda-feira – anunciou ele orgulhosamente.
Duas semanas depois, Steve se mudou para a matriz e se juntou ao grupo de sete
arquitetos que O’Malley supervisionava. De sua cadeira, Voya podia ver o
grupo. Durante toda aquela semana, ele observou Steve realizando
animadamente o trabalho. Quando O’Malley parecia impaciente, Steve logo se
oferecia para ajudar. Quando O’Malley começou a resmungar porque o
assistente confundiu os desenhos auxiliares de fabricação para a Igreja Batista na
qual estavam trabalhando, Steve ajudou a solucionar o problema. Os desenhos
auxiliares para as janelas de vidro colorido vieram de Paris em medidas do
sistema métrico e escritas em francês, e Steve conhecia ambos.
– O que faria eu sem você, Steve? – ouvia-se O’Malley dizer com frequência.
Ele apreciava a iniciativa e capacidade de trabalho de Steve, e este rapidamente
conquistou sua confiança.
Quando Steve pediu a O’Malley permissão para sair mais cedo às sextas-feiras a
fim de observar o sábado, O’Malley imediatamente concordou.
– Você não pode! – soou uma corajosa voz de algum lugar próximo para ser
ouvida, mas longe o suficiente para permanecer anônima.
No dia em que Voya recebeu seu primeiro cheque de pagamento, ele convidou
Ann para sair e lhe ofereceu um pequeno presente, que era uma lembrança da
cidade de Nova York. Como seus locais de trabalho ficavam a uma distância de
apenas 800 metros um do outro, eles começaram a se encontrar por alguns
momentos durante o horário de almoço.
Quando o período experimental de seis meses dos gêmeos terminou, eles foram
aceitos como funcionários permanentes e tiveram aumento de salário. Eles
continuaram estudando diligentemente, e seu inglês continuou progredindo.
Quase sete meses após o dia em que Voya saiu do avião e pôs os pés em solo
americano, ele e seu “Pecado Imperdoável” se casaram.
Mas Voya também comprou outro relógio de ouro Longines, junto com seu
irmão Steve, o qual mandaram para Boba, o diretor do centro de refugiados do
Concílio Mundial de Igrejas em Salzburgo. Foi um símbolo de profundo apreço
por tudo que ele havia feito por eles. Pouco tempo depois, entretanto, o relógio
voltou com uma nota de gratidão pela lembrança. Um homem honrado como
Boba não aceitaria nenhuma recompensa por seu trabalho.
Nesse ínterim, Steve havia começado a sair com uma garota americana chamada
Diana, cujo pai viera da Dalmácia, Iugoslávia. A mãe era descendente de croatas
e havia nascido nos Estados Unidos. Diana possuía uma bela voz soprano, e o
casal frequentemente cantava em várias igrejas na cidade. Em junho do ano
seguinte, eles se casaram numa Igreja Adventista de fala inglesa, em Jackson
Heights.
No trabalho, o mau humor de O’Malley continuava chamejando, mas não com
tanta frequência como antes, e raramente contra Steve. Quando o projeto da
Igreja Batista foi completado, após um ano, deixando Steve livre para sair,
O’Malley pediu-lhe que ficasse no seu grupo para o projeto seguinte. Steve
concordou. Ele havia descoberto a pessoa decente que se ocultava sob um
exterior tempestuoso. Nada era difícil demais para ele executar para o chefe ao
qual havia se afeiçoado.
Apenas alguns dias antes que a última prorrogação do visto expirasse, Mića
chegou. Ele havia viajado num trem de carga de Belgrado para a Eslovênia, a
fim de se encontrar com um guia. Durante a viagem, ele havia se escondido no
compartimento de freios de um dos vagões. O chefe de trem, ao retornar para ali
após fazer a ronda, o descobriu. Como Mića sabia que os agentes da UDBA
muitas vezes subiam a bordo de trens para seguir a pista de passageiros
clandestinos, ele agiu como se estivesse numa missão policial. Rispidamente
acenou para que o homem se retirasse. Caindo nesse ardil, o chefe de trem
rapidamente foi embora. Mais tarde, o guia esloveno conduziu Mića através da
fronteira para a Áustria.
Quando Mića finalmente chegou, a Áustria concedeu asilo político a ele e à sua
pequena família. Eles não o concederiam a Nata sem o seu marido. Seus
documentos foram preparados rapidamente, e a família logo foi para os Estados
Unidos. Na cidade de Nova York, Mića iniciou o próprio negócio de pintura e
decoração com bastante sucesso. Jovica rapidamente aprendeu inglês, e sempre
que se defrontava com algum problema, ele atravessava a rua e batia à porta de
sua tia Ann.
Em 1961, Voya e Ann viajaram para a Europa com a intenção de visitar a mãe
dele. Pelo fato de Voya não ter servido ao exército, ele não podia arriscar-se a
entrar na Iugoslávia por medo de ser detido. Não sendo ainda cidadão
americano, ele viajava com um Documento de Viagem em lugar de passaporte.
Se os comunistas o detivessem forçosamente para servir ao exército, isto
colocaria em risco a condição de residente permanente e sua cidadania
americana pendente. Assim sendo, ele esperou em Salzburgo, visitando os
amigos Boba, Duško e Ratko no escritório de refugiados, e os membros da
igreja, enquanto Ann apanhou o trem Expresso Oriental para Belgrado, para
encontrar a mãe e a família de Voja em Glušci.
Após sete anos nessa firma, Voya e Steve decidiram sair. Dos sete anos, Steve
passou quatro trabalhando com O’Malley. Mesmo depois, Steve e O’Malley
mantiveram contato através de telefonemas ocasionais e cartões. Quando
O’Malley faleceu, algum tempo depois, sua esposa convidou Steve para o
serviço fúnebre particular da família, atendendo ao pedido feito por O’Malley
antes de sua morte.
– Sabíamos que vocês eram sérvios quando começamos a trabalhar com vocês.
Ficamos preocupados quanto à atitude que teriam em relação a nós – disse o
outro turco. – Mas vocês têm sido muito amáveis. Sempre que não
conseguíamos nos expressar em inglês, vocês nos ajudavam explicando as coisas
em alemão. – Esses turcos haviam morado na Alemanha anteriormente.
– Embora nossos antepassados tivessem sido inimigos, nós podemos ser amigos
– disse o outro turco. Os gêmeos agradeceram o presente, e eles continuaram
amigos durante todo o tempo em que trabalharam juntos naquela firma.
Um dos trabalhos no qual Steve atuou como arquiteto projetista nesse escritório
foi o do Estádio Nassau, em Long Island. Trata-se de um dos maiores estádios
cobertos para uso múltiplo nos Estados Unidos. A acústica do estádio é excelente
para apresentações líricas, e a visibilidade é perfeita, sem obstruções para o
espectador, não importa onde esteja sentado, seja para assistir a uma ópera, ou a
uma partida de hóquei ou de basquete. Em contraste, quando o Madison Square
Garden foi inaugurado em 1968, sete mil pessoas, não conseguindo ver bem de
suas poltronas na parte detrás, tiveram que ficar em pé. Foram necessários vários
anos para redesenhá-lo e reformá-lo a fim de corrigir esse problema.
Alguns anos mais tarde, depois de Voya ter assumido o cargo de diretor do
Departamento de Arquitetura do Centro Médico de Kettering, na cidade de
Kettering, Ohio, ele propôs uma alteração no código nacional, introduzindo uma
nova classificação nas Diretrizes para Construção e Equipamentos de Hospitais e
Instalações Médicas. Essa classificação diminuiria o nível de ruído por meio de
paredes mistas nos corredores de acesso a quartos de pacientes, reduzindo desta
maneira os custos de construção. Essa proposta foi aceita unanimemente e
publicada nas Diretrizes.
Em 1964, cinco anos após o casamento, Ann e Voya tiveram um filho, ao qual
deram o mesmo nome de seus dois avôs: George Ilya. Ele tem bacharelado em
belas-artes em pintura, e trabalha nessa área. Steve e Diana tiveram três filhos:
Daniel, Maria e Johnny. Daniel se formou em psicologia e casou-se com uma
moça de Nova York chamada Lisa. Maria tem mestrado em Serviço Social e
trabalha como assistente social. Ela se casou com um homem também chamado
Steve, e têm duas filhas, Lindsay e Kelsey. Johnny obteve bacharelado em belas-
artes na Escola de Artes Visuais e trabalha como diretor de criação de uma firma
de comunicação e marketing. Ele e sua esposa, Susan, têm dois filhos, Jackson e
Ethan. O filho de Mića e Nata, Jovica, agora chamado John, obteve mestrado em
música e bacharelado em administração. Ele trabalha no setor financeiro e se
casou com Faith.
Ao longo dos anos, Vera, a irmã mais nova dos gêmeos, visitou várias vezes a
família nos Estados Unidos, mas não quis ficar. Ela voltou para o marido, Duja,
em Šabac.
A meia-irmã, Leka, nunca foi para os Estados Unidos, mas seu filho do meio,
Pavle, o pregador, sim. A esposa e três filhos migraram com ele. Pavle é pastor
de uma igreja adventista na Flórida. Pera, o filho caçula de Leka, superou as
várias expulsões da escola por não assistir às aulas aos sábados e finalmente se
formou em medicina. Ele precisou de mais tempo, mas agora está empregado
pelo atual governo como médico. É frequentemente visto na TV sérvia. Ele e
Jova, o filho mais velho de Leka, permanecem na Sérvia.
Mladen, Mela e seus cinco filhos (a filha Anica nasceu depois que os gêmeos
chegaram aos Estados Unidos) moram perto de Chicago, onde Mladen opera
uma lucrativa atividade comercial da família.
Os gêmeos continuam sendo gratos por tudo que Deus fez por eles, pelas
oportunidades que os Estados Unidos lhes proporcionaram e pela liberdade
religiosa que desfrutam. Muitas despedidas aconteceram através dos anos. A mãe
de Voya e três irmãs já faleceram e aguardam a ressurreição. No turbulento
mundo em que vivemos hoje, o tema da mãe deles ecoa cada vez mais claro:
“Sve će proći a Gospod će doći” [Tudo passará, e o Senhor virá]. Essa continua
sendo a eterna esperança dos gêmeos.
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