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SUL DE SANGUE E SOMBRAS

&

OUTROS PEQUENOS HORRORES

INTRODUÇÃO

SUL DE SANGUE E SOMBRAS

ÍNDICE

1. POVO DO MAR
2. OS CUCOS
3. MÃE DO CENTEIO
4. SUCCUBI
5. VIGÍLIA
6. CAMINHADA NOTURNA
7. NAS MATAS DO EREBANGO
8. O GRITADOR

POVO DO MAR
“Estou perto, bem perto! “, pensou José. Vinha há muito tempo no encalço de seu irmão mais novo,
Vitor. Brasília, Rio, Curitiba, Porto Alegre. Uma espécie de Capitão Hatteras, sempre apontando
para o sul. Ao longo das quatro horas e meia de viagem de ônibus com destino a Rio Grande, José
repassava em sua mente toda a história. Os e-mails e as raras conversas telefônicas desenharam um
painel de progressiva loucura. Seu irmão se lançara sem titubear num abismo. José queria ao menos
encontrar o que restasse de Vitor no fundo do poço da vida. Após todas as etapas de lento declínio -
abandono da família, carreira, amigos - queria muito evitar o natural epílogo. As causas disso tudo?
Nessa altura do campeonato, irrelevantes, mas José não tirava da cabeça a deusa loura, como
costumava apelidar a linda jovem que há anos atrás seu irmão lhe apresentara. A partir daquela
relação improvável o Juggernault se pós em movimento, mas não era sempre assim?
O turbilhão de reminiscências quase o fez perder o ponto de descer do ônibus, não fosse o alerta do
motorista. “não és tu que vais pro Cassino? Ali na frente do bolicho pegas o circular P09, Noiva do
Mar-Cassino . Boa sorte, amigo!”. Boa sorte? A frase do motorista, aliada ao seu sorriso maroto
mais parecia uma cena de filme de terror dos anos 30. Só faltava a roda de aldeões interrompendo a
conversa à sua aproximação. Mas ali não haviam aldeões nem estalagem, apenas uma rua deserta,
um armazém decrépito - o tal bolicho -, tudo amortalhado num cinza universal. A intensa umidade
do ar fazia as vezes de fog, limitando a visibilidade rua acima. Em alguns momentos um retângulo
mais escuro começou a surgir ao longe, crescendo na direção de José. “Só pode ser o “Noiva do
Mar”, pensou ele. Subiu no coletivo e após pagar a passagem, aboletou-se junto a uma janela. A
escolha do assento oferecera alguma dificuldade, já que todos estavam vagos…
Em não mais que meia hora chegava José ao centrinho próximo à praia. Já passava das quatro da
tarde e a latitude elevada, associada ao período invernal, já fechavam a cara do dia. Tentar vencer os
dez quilômetros que o separavam dos Molhes da Barra naquele mesmo dia era loucura (tudo isso já
não era uma loucura?). A referência que obtivera do paradeiro de Vitor era imprecisa e pouco
confiável, além do cansaço e fome que o dominavam. Assim, decidiu-se pelo hotelzinho “Repasto”,
como parada estratégica. Não haviam muitas opções de qualquer forma…
Já devidamente saudado pelo gerente, registrado e descarregado da surrada mochila, José sentou-se
numa pequena mesa de jantar de madeira, muito maltratada pelos anos. Olhava fixo o horizonte
distante, uma massa escura sublinhada pelo risco escarlate do por do sol. Como dois olhinhos
amarelo e maus, já se faziam notar um par de faróis de sinalização naval. A mente de José já andava
longe quando a voz inesperada o trouxe bruscamente de volta:”vais fazer a travessia? “.
Sobressaltou-se, tanto com a voz como com o prato grosseiro a acomodar um par de arenques,
algumas fatias de pão preto e um potinho de creme branco. Ao lado, um copo cheio de graspa, cheio
até à boca.
O previsível diálogo entre freguês e dono da birosca - já que eram os únicos viventes ali -
rapidamente preencheu as lacunas de informação de ambas as partes, enquanto os maxilares de José
faziam o trabalho de repor suas forças. Não, não pretendia fazer a travessia da Praia, os mais de
duzentos quilômetros entre Cassino e Chuí. Obviamente não era um turista, pois não existem
turistas ali nessa época do ano. Buscava encontrar uma certa casa junto ao mar, próxima de um
grupo de cata-ventos. Estava cada vez mais perto de seu irmão e agora algo lhe prognosticava
sucesso. Posto parcialmente a par do plano, seu Barnasque - esse era o nome do hoteleiro -
envolveu-se empolgado no mesmo. Passou a transmitir todo tipo de informações, necessárias e
outras menos, de como chegar até a tal casa. Chegou mesmo a oferecer-se para dar uma carona ao
recém chegado na manhã seguinte. Parecia que toda sua vida estivera esperando por José, apenas
para saltar dentro de uma aventura alheia. No decorrer da improvisada janta, Barnasque levantou-se
diversas vezes, indo e voltando da cozinha, sempre com uma passada estranha, meio bamboleante,
como se pisasse com dificuldade. Já com a fome dominada, José só desejava atirar-se numa cama e
afundar no mais profundo dos sonos,. se possível sem sonhos. Assim despediu-se do hoteleiro e se
apressou a satisfazer o desejo de seu corpo, subindo as escadas em busca do quarto que lhe fora
reservado.
Três da manhã e os olhos de José se abriram como uma persiana. No interior da treva reinante no
quarto, seu cérebro focou numa sensação da qual não havia se apercebido antes: numa daquelas idas
e vindas de Barnasque na noite anterior, percebera uma certa agitação no homem. Parecia
empenhado numa arrumação completamente esdrúxula para aquela hora da noite. Um e outro
volume foram enfurnados em gavetas e uma pilha de jornais velhos, apressadamente atirados numa
grande lata de lixo localizada no vão embaixo das escadas que levavam ao pavimento superior. A
mente superexcitada de José, mesmo sem conectar com precisão as impressões colhidas, acendia
um sinal intenso de alerta. Algo não estava correto em tudo aquilo. Sem saber exatamente porque,
levantou-se e silenciosamente desceu as escadas, imergindo no salão onde jantara horas antes. Era
como se mergulhasse lentamente num poço de água fria, levando-o a abraçar-se numa busca
infrutífera por calor. O sinal de alerta da mente apontava diretamente para a gaveta e para o latão de
lixo. A primeira estava trancada, mas o latão não fora esvaziado e assim pode examiná-lo. Em cima,
alguns jornais. Exemplares dos últimos dias da Folha Gaúcha. Em sua maioria sequer desdobrados,
mas o mais recente - três dias atrás - tinha sido lido e relido. Não desejando ser surpreendido pelo
hoteleiro, pegou o exemplar folheado e levou-o para a segurança do quarto. Sentado na cama em
posição de lotus, esquadrinhou o jornal detidamente. Obituários, notícias da política local,
horóscopos, reclamações de populares, avisos aos navegantes, análises do mais recente clássico
entre o "Vovô" e o São Paulo de Rio Grande. Nada de mais. Mas, quando já se preparava para voltar
a dormir, esbarrou numa notinha no avantajado setor policial:
"achado bizarro na praia: corpo de mendigo é encontrado com vísceras retiradas. E a polícia mais
uma vez não faz nada! Cidadãos, atenção com as eleições que se aproximam!"
A notícia, misto de mundo cão e rasteira exploração política, normalmente não chamaria a atenção
de José. Entretanto, o papel do jornal parecia quente como brasa em sua mão...
- Olá! Vamos levantar?
- hummmmm
- Já são dez horas e precisamos ir andando...
Apesar da urgência em persistir na busca de seu irmão, essa pressa era mais uma pincelada de
estranheza no quadro no qual José penetrava pouco a pouco. A face risonha de Barnasque, inclinada
na abertura da porta de seu quarto anunciando a manhã, mais estranha ainda. Levantou-se de um
salto, lavou o rosto na água fria da pia que fazia as vezes de banheiro e seguiu o andar bamboleante
do homem. Na mesma batida acelerada, o café da manhã foi engolido e o mofo que já se anunciava
no queijo, ignorado. Incontinenti os dois já ocupavam seus lugares no "fuca" 72 e o veículo partia
para o destino final. Em pouco tempo o centrinho ficava para trás, dando lugar a uma via sem
asfalto, ladeada por gramíneas altas e uniformes. Um cheiro de maresia dominava o ar e um tímido
sol lutava com dificuldade para sobressair-se às nuvens cinzentas.
- Este lugar é bastante sinistro...
- A gente se acostuma...
- Se fosse na Cornualha já tinham inventado uma lenda qualquer, só para atrair turista!
- Temos as nossas também...
- É?
- Sereias, coisas assim.
- Ah! Sereia no Rio Grande? Na Praia do Cassino? Se fosse em Porto Alegre, lá na Farrapos e de
madrugada, ainda vai...
Estacionado o carrinho nos fundos do que parecia ser um boteco de beira de praia. Difícil de
imaginar um monte de gente a beber cerveja de roupa de banho naquele lugar, filosofou José.
Começara a chover fino e a interminável faixa de areia, cinzenta e compacta, pouco se distinguia de
um mar igualmente cor do chumbo. “Tudo menos uma praia”, pensou ele. Caminharam em silêncio
por um bom tempo, aparentemente seguindo em direção a um par de enormes cataventos que se
sobressaíam por trás de um grande barracão.
- E sereios, não tem?
- Isso não existe seu moço. É lenda.
- Hahahaha! Isso é lenda? Sem sereios como é que as sereias fazem?
- trepam com humanos, é claro... e os comem depois. Comem os filhos homens também... menos
um ou outro.
-?
- Precisam disso para reprodução e para sobreviverem. Com outro alimento não vivem mais do que
uma semana... Os filhos macho ajudam a arrumar comida depois que crescem...
- Tá bom, tá bom. Quem ia gostar dessa conversa é meu irmão. Ele é ligadão nesses assuntos.
Quando o encontrarmos vamos bater altos papos, com vinho e quem sabe algumas sereias!
- Hãhã. E tem outra coisa. Elas só comem as entranhas. A carne mesmo, não..
Já tinham alcançado a entrada do barracão quando essa última frase atingiu José como um safanão.
Aturdido, cambaleou na direção da porta aberta e entrou. Levou tempinho para acostumar-se à
penumbra e ao cheiro forte de peixe. Seu cérebro não conseguiu de imediato definir a fonte de um
sussurro baixo e modulado, algo como um canto sem palavras. Vindo em auxílio da audição seus
olhos lhe revelaram uma cena que superou tudo de bizarro que vinha experimentando desde que
deixara Brasília: uma lindíssima mulher o observava de cima de um colchão, largado no centro do
barraco. Seu sorriso, seus cabelos e sua terrível expressão lhe eram bem conhecidas. A Deusa
Loura. Mais para trás, cinco outras criaturas semelhantes, apenas menores. Dir-se-iam filhotes,
sussurando cada vez mais. Pareciam famintas e se arrastavam em sua direção. Apesar do cheiro
nauseabundo e da insanidade do que via, não pode controlar uma poderosa ereção, como não sentia
há muito tempo.
Lá fora, Barnasque esperava, sentado em uma pedra. Tirara os sapatos para aliviar o incômodo que
o calçado causava aos seus deformados pés. Pés? Um sorriso malicioso iluminou seu rosto na
sequência do grito inumano que brotou do barracão.
- Bah! Dessa vez não teve festinha... Mas a fome é bem assim... Ela tava prenha de qualquer forma!

OS CUCOS

Aurélio, como de hábito, sentou-se na varanda de sua casa a contemplar o horizonte, munido de
um livro, dos indispensáveis óculos de leitura e da inseparável taça de Tannat. Aquela vista
deslumbrante capturara sua fantasia anos atrás, quando de uma excursão aos Aparados da Serra
com a namorada Matilde, hoje sua esposa. Decidiram na ocasião que ali viveriam o resto de suas
vidas. E assim fizeram, quando ambos se aposentaram das funções de professores da UFRGS.
Eram biólogos e se haviam conhecido ainda estudantes. A tapera que compraram e, ao longo dos
anos transformaram numa bela residência rural, ficava à pequena distância do acesso ao
magnífico Itaimbezinho, junto ao mirante do Faxinal. Aquele local fora, além de uma bela
oportunidade em termos financeiros, uma espécie de compromisso entre os dois. Aurélio era um
admirador inveterado da serra e do frio, enquanto Matilde era o que se pode chamar de uma
“adoradora do sol”, sempre em busca de uma praia. Odiava o inverno. Curioso como as pessoas
estão sempre em busca do que não possuem. O marido era carioca, enquanto ela nascera e fora
criada em São José dos Ausentes, não muito distante dali. A localização do “Sítio dos Cucos”
resolvera a questão, pois permitia acesso tão fácil à Serra Gaúcha como ao litoral catarinense.
Algumas horas de RS-427 materializavam qualquer viagem de férias que o casal planejasse. Com
um carro apropriado e boa resistência à vertigem, claro… 
Era um entardecer de sábado, cinzento e preguiçoso, como de resto a maioria dos entardeceres
de um casal aposentado. Aurélio dedicava-se à leitura de um tratado sobre aves brasileiras, com
especial atenção sobre os cucos, sua fixação de sempre. Essa curiosa mania, que inclusive o
levara a batizar o sítio que construíra, era uma fonte de piadas e gracejos em sua família. Uma
mania singular, mas não desprovida de razão. O fato é que ele sempre fora fascinado pelo
comportamento dessas aves, dada sua originalidade e cruel eficácia. Os cucos não faziam ninhos,
tendo a estratégia de invadir e introduzir seus ovos em ninhos de outras espécies. Assim que os
pequenos nasciam, instintivamente empurravam os ovos originais para fora do ninho, matando
assim a prole concorrente. 
Matilde, trazendo numa bandeja duas fumegantes xícaras de chocolate e algumas fatias de cuca
de amora, aconchegou-se junto ao marido num canapé de palha: 
 
• Mais cucos…? 
• Sim, são fascinantes! 
• E perversos. 
• Ora, apenas a Natureza a seguir seu curso, querida. Acabo de ler aqui que existem espécies
de cucos que aperfeiçoaram a estratégia. 
• Como assim? 
• Estes pássaros não se limitam a expulsar o casal que construiu o ninho invadido… 
• Sim, eu sei, o filhotes destroem os outros ovos, não? 
• Normalmente sim… 
• ? 
• Tem uma sub espécie que vai além… 
• Sequestram e pedem resgate? 
• Pior, meu bem… Os adultos aleijam os antigos “donos” a bicadas nos pés.. 
• Os matam? Prá que? 
• Não os matam, pelo menos a princípio. Como disse, os aleijam para dar de comer à sua prole.
Pouco a pouco… 
• Bah! 
 
A conversa foi rapidamente encerrada pela mulher, sendo substituída por outro assunto: 
 
• Te lembras daquela minha prima de São José? 
• Anrã… 
• Tá vindo prá cá… 
• Que? Quando isso? 
• No fim do mês, vinte eu acho. Ela, o marido e a filha. Não te incomodas, não é? Não a vejo há
anos… nem sabia que estava casada e com filha. 
• Não, claro que não. Podemos fazer aquela trilha até a Cachoeira dos Elfos… 
• Ótimo, mas… 
• Peraí, vinte tu disse? 
• Sim… 
• O nosso Arthur chega nesse mesmo dia. Esqueci de te contar… Mas tudo bem, sempre cabe
mais gente no nosso ninho, não é? 

Matilde voltou prá dentro para começar a mexer com a janta. Enquanto, alheio à caída do manto
da noite, Aurélio continuou sua leitura. Estava cada vez mais absorto na tal nova subespécie de
cucos. Parece que após imobilizar os outros pássaros, começavam a dar de comer aos filhotes os
olhos de suas vítimas. Assim duravam mais… 
A chegada do filho Arthur foi uma festa. Seus pais, alertados pelo tuc-tuc da velha Aero-Willis do
jovem universitário, aguardavam na varanda. De repente o velho utilitário apareceu, vencida a
última curva da sinuosa RS-427. Arthur tinha completado vinte anos no mês anterior e vinha para
rever a família e descansar no sitio. Cursava Filosofia em Belo Horizonte e tudo parecia muito
bem encaminhado em sua vida. Entretanto os melhores planos e perspectivas podem se
desvanecer como uma nuvem ao vento. O rapaz desce do velho carro, desfrutando o seu
característico sorrisinho de Mona Lisa. 
 
• Olá moleque! Cadê a Duda? Tua mãe estava ansiosa por revê-la. Vai me dizer que já
separaram? 
• Claro que não… É pra sempre. F 
• Sempre pode ser muito curto, tu sabes… Mas quem é o filósofo aqui é tu. Ou vai ser… 
• Ela ficou com os pais em BH. 
• Vão chegar uns parentes hoje à tarde… 
• Parentes? Quem? 
• Prá ser honesto não sei é acho que tua mãe também não sabe… 
A típica frase irônica de Aurélio ficou pendurada no ar enquanto os dois amigos - mais do que pai
e filho - subiam abraçados as escadas em direção à varanda onde os aguardava Matilde. Lá
dentro, na sala de jantar, bolos, sucos, café, um verdadeiro café colonial. Um par de horas depois,
estômagos forrados e novidades devidamente compartilhadas, o assunto dos “parentes” voltou à
baila: 
 
• Mas mãe, que papo é esse de parentes? 
• Pois é Tuca, em tenho uma prima lá nos Ausentes. Pensava até que tinha morrido. Mas recebi
uma mensagem dela no Face outro dia. Parece que casou e tem uma filha, mais ou menos da
tua idade. 
• A Duda não vai gostar… 
• Não te mete Aurélio! Ela meio que se convidou prá vir aqui. Não tive cara de negar, né? 
• Tu te lembras dela? - perguntou o marido. 
• Na verdade não, mas quando a vir reconheço na certa. 
• Com essa tua vista? Duvido… 
• A tua também não está lá essas coisas, não é? 
• Sim, mas eu não tenho que reconhecer os caras… 
• Mas o que vai ter prá janta?? Disseram pai e filho a uma só voz, liberando uma torrente de
risos. Os últimos daquela família. 
 
A janta, uma obra prima do Low Carb, consistia de um magnífico pernil de cabrito ao alecrim,
escoltado por quinoa e uma multidão de nuts e frutinhas, tudo muito saudável. Alimentação natural
era a mais recente preocupação do casal. Já na sobremesa, as preocupações naturebas eram
completamente sobrepujadas pelos tradicionais doces de Matilde. Três garrafas de Nebbiolo da
Serra Catarinense já se enfileiravam no aparador como uma guarda de honra, devidamente
abertas para o encorpado vinho ir dando uma respirada. O último talher pousava em sua posição
na mesa quando ouve-se o tilintar alegre da sineta do portão. 
 
Os três, postados na varanda já escurecida pelo início do cair da noite, pareciam uma reflexo em
negro das três figuras em pé na frente do portão. Um longo minuto se passou até que Aurélio
acendesse o lampião, o qual pouco melhorou a iluminação do pátio de entrada. O trio de visitantes
permaneceu imóvel, perfil recortado contra o poente vermelho. Matilde rompeu o impasse,
descendo as escadas. 
 
• Venham! Chegaram bem na hora. O jantar tá na mesa. Aurélio e Arthur, ajudem com a
bagagem! 
• Não se preocupe prima, não trouxemos quase nada além de nós mesmos… Esse aqui é
Gilberto e essa é Milena. 
• Prazer. Bem vindos! Subam, subam. Esses são meus amores, Arthur e Aurélio. Essa é a
minha prima,... Circe. 
Apresentações feitas, os seis se sentaram à mesa de jantar. As duas famílias se sentaram uma
em frente da outra, como se estudando. A expressão dos recém chegados era estranha,
silenciosos e quase sem reações faciais. Todos três tinham uma forma curiosa de olhar, meio de
lado e mudando a posição da cabeça com movimentos curtos e precisos. Aos poucos porém, o
gelo inicial foi se quebrando e o jantar prosseguiu. Entre garfadas e goles de vinho tinto, risadas
forçadas e reminiscencias imaginárias, as horas foram se passando. Ao longo da noite o clima
fora mudando e uma pesada chuva caiu, acrescentando uma soturna trilha sonora à bizarra
reunião familiar. Já passava bastante da meia-noite quando todos resolveram se recolher. Por
sugestão de Aurélio, no dia seguinte fariam uma trilha até a Cachoeira dos Elfos. 
 
Talvez por efeito do vinho, Aurélio acordou em meio a madrugada. Muitos pensamentos cruzaram
sua mente, produtos da noite anterior. Procurou sua esposa e com surpresa seu braço nada
encontrou à direita da cama. Levantou-se e nova incongruência: tanto o robe como as pantufas de
Matilde permaneciam em seus lugares habituais, a despeito da ausência da mulher. Ainda
atordoado pelo vinho e pelo sono interrompido, Aurélio não conseguiu encontrar uma boa
explicação que lhe permitisse permanecer no aconchego das cobertas. Vestiu o roupão e seguiu
até o gélido corredor. Lá fora a chuva cessara, sendo substituída por uma forte cerração que
abraçava o sítio por inteiro. O silêncio absoluto fazia sua parte na composição da atmosfera irreal.
O homem dirigiu-se ao quarto do filho. Talvez Matilde estivesse lá, com Arthur a discutir os
acontecimentos da noite anterior. Sem agasalho e pantufas? Apesar do disparate da ideia, que
mais poderia explicar a ausência dela? Agarrado àquele fio de sanidade, seguiu até o quarto do
fim do corredor. Encontrou a porta aberta e o cômodo vazio. Uma lâmina de gelo percorreu sua
coluna ao perceber que as cobertas estavam amarfanhadas no chão e, como ocorrera com sua
mulher, os chinelos do rapaz também estavam lá. Uma nova onda gelada veio sobre ele,
alcançando as profundezas da sua alma ao ouvir às suas costas a voz nada familiar: 
 
“querido, por que não voltas prá cama? Tá tão frio… “ 
 
 
 
A frase soaria agradável, não fosse conduzida por voz tão estranha e completamente
desconhecida. Aurélio voltou-sé num salto, tremendo dos pés à cabeça. De pé no corredor, um
perfil negro de mulher, impossível de se distinguir as feições. 
 
• Que procuras? 
• Meu… nosso filho… 
• Nossa filha queres dizer… Milena dorme no quarto dela, é claro. 
• Arthur? Matilde? 
• Quem? Tu estás caduco? Vem prá cama… ui que frio! 
• Quem é você? 
• Mas, bah! Tá doido ein? 

Em pé, no meio da noite fria, de costas para a vida que conhecia e construira e de frente para o
vulto negro, Aurélio não sabia o que fazer. Alma e mente divididos entre a sanidade e a loucura.
Um interminável par de minutos transcorreu até que a magia se estilhaçou. Uma banal imagem
viajou dos olhos ao cérebro, alcançando a consciência do homem. O movimento de cabeça
daquela sombra - rápidas e precisas viradas, como um passarinho - era o mesmo da janta. Presa
de um pavor visceral, Aurélio disparou corredor a fora, até o alto das escadas, deixando o vulto
para trás. Lá de baixo lhe chegaram aos ouvidos, lamentos de dor. Pareciam vir do porão. Desceu
as escadas de dois em dois degraus, a sanidade se esvaindo da alma. Martelavam sua mente as
linhas sinistras que lera no tratado sobre pássaros: 
 
“Os adultos aleijam os antigos donos a 
bicadas nos pés,... Não os matam, pelo 
menos a princípio. Os aleijam para 
dar de comer à sua prole. Pouco a pouco… “ 
 
Abriu lentamente a porta de acesso ao porão, temendo o que poderia encontrar. Tateou a parede
até encontrar o interruptor, lançando uma luz amarela e baça no interior do porão. Desceu, degrau
a degrau, até alcançar as duas formas imóveis deitadas no chão. Estavam vivos, choravam e se
contorciam, mas eram incapazes de se levantar. Os pés, cotos reduzidos a uma massa sangrenta.
O supremo horror eram as faces de sua mulher e filho, banhadas em sangue, olhos vazados,
buracos sem luz. 
“... após imobilizar os outros pássaros, 
começavam a dar de comer aos filhotes 
os olhos de suas vítimas. 
Assim duravam mais… “ 
 
Já transporta a fronteira da loucura, Aurélio olha escadaria acima. Lá no alto, as três bizarras
figuras a mover suas cabeças daquela peculiar maneira. Então, o Gilberto - o “macho” - começa a
descer ao encontro de Aurélio. Traz uma longa agulha de aço na mão. 

MÃE DO CENTEIO

(ROGGENMUTTER)

Um conto de fadas

“Sempre gostei muito das fábulas dos irmãos Grimm.


Só nunca havia pensado em terminar vivendo uma! “
- Erico Milanese
O por do sol avermelhava a margem oposta do Rio Jacuí, emoldurada pelos campos amarelo-
esverdeados de centeio, mas a belíssima imagem mal era percebida por Erico. Imerso em leituras
desde a manhã, não podia ser alcançado pela beleza nem tampouco pelos gritos de Helga, sua
esposa. Espalhados na escrivaninha vários volumes em diversos idiomas: Notas sobre o folclore
escocês, Contos e folclore gaélico, Folclore das ilhas Orkney e Shetland, Notas sobre os costumes
do Norte da Inglaterra, Contos de fadas celtas, Folclore celta, Fadas na superstição popular,
Tradições do Sul da Irlanda, Mitologia germânica, Lendas germânicas, Lendas, Costumes e Crenças
do Tirol. Escoltando os vetustos volumes, papéis amassados em bolinhas e folhas cobertas de
rabiscos. Uma olhada superficial indicaria um acadêmico a trabalhar. Porém a desorganização
dominante denunciava um amador em ação.
Realmente Erico nunca fora um erudito nem um leitor compulsivo. Trabalhara até pouco tempo
como repórter esportivo num jornal de Santa Maria - RS e seus textos mais elaborados costumavam
descrever épicos confrontos futebolísticos entre o Coloradinho e o Riograndense. Já Helga, filha de
imigrantes alemães instalados em Santa Cruz, também não trazia grandes bagagens culturais. Seus
conhecimentos e interesses eram essencialmente rurais, herdados da mãe, raramente indo além da
cultura fumageira e de um vasto painel de superstições germânicas.
Tinham se conhecido anos atrás, numa cobertura jornalística que Erico fizera de uma sensacional
feira da indústria do fumo. Em Santa Cruz, naturalmente. Uma das belas “princesas do tabaco” do
evento era Helga. A sequência veloz de paixão - compromisso - casamento, terminou por
transplantar a ex-fraulein rural no ambiente cosmopolita de Porto Alegre, já que Erico já vinha há
tempos em busca de novas oportunidades profissionais.
A temporada no Porto dos Casais foi porém, coroada por um tríplice fracasso. Erico não alcançou as
oportunidades que almejava e Helga sentia-se um “arenque” fora d’água. Mas o que deu a
experiência porto alegrense por encerrada foi a questão do filho. Ou melhor, filhos, pois Helga tinha
a ideia fixa de ter um par de gêmeos.
O casal, uma vez instalado num minúsculo apartamento alugado na Rua do Arvoredo, bem próximo
da redação onde Erico se empregara, logo projetou a chegada de um
herdeiro (ou herdeiros, nos sonhos da mulher) . As alegres tentativas pouco a pouco deram lugar à
ansiedade e à frustração. As visitas aos especialistas em reprodução só pioraram as coisas, pois logo
surgiu o diagnóstico de baixa taxa de espermatozoides. Segundo os doutos, as chances de sucesso
para o casal não superavam os cinco por cento.
A frustração aumentou e azedou, levando à irritação, diminuindo ainda mais as chances da chegada
do sonhado herdeiro. Em breve o casal viu-se frente a um dilema: insistir na empreitada ou largar
tudo, voltando para o interior. A ideia do retorno surgira após alguns contatos de Helga com
parentes distantes, dos quais Erico nunca ouvira falar. Uma tal vó Brígida morava sozinha numa
chácara no Salto do Jacuí e a ideia era ir para lá. Supostamente o ar dos pampas e os conhecimentos
da velha poderiam operar o milagre tão desejado. Para Erico tudo não passava de uma loucura e
além do mais, significava a confissão da derrota profissional. Bem que desejava um filho, mas
aquele maldito número cinco não saía de sua cabeça. Um invencível número cinco. Mas ele não
tinha mais a firmeza para impor sua opinião e assim puseram o pé na estrada novamente. Para
Helga a vida na pequena cidade resumia-se a tarefas domésticas e a intermináveis conversas de pé
de ouvido com a velha senhora, vó Brígida. Já Erico ainda tentou colaborar com a Folha local, mas
progressivamente sua rotina foi se confundindo mais e mais com a dos colonos das chácaras
vizinhas: pescarias, reparos caseiros, caçadas e o trabalho cooperativo na plantação de centeio.
Contrariamente às expectativas porém, em menos de dois meses eis que a antiga “princesa do
tabaco” engravidou! Nove meses depois chegava ao mundo o pequeno Kurt, criança que esbanjava
saúde e vitalidade, orgulho do jovem casal e também da austera vó Brígida. Helga estava radiante e
parecia ter superado completamente o sonho dos gêmeos. Talvez uma nova gravidez a satisfizesse,
pensava seu marido. Apesar do isolamento e da falta de perspectivas, Erico estava feliz e tentava se
convencer de que aquele estilo de vida simples e rude era afinal o melhor, para sua família e para si
mesmo. De acordo com as tradições da família de Helga, todos os cuidados com o bebê eram
trabalho feminino e ele pouco ou nada participava deles. De longe não podia deixar de achar curiosa
a “decoração” que adornava o bercinho: ramos de ervas, espelhos, pedaços de metal brilhante e
principalmente a tesoura cravada bem acima da cabeça do nenê. Chamava também à atenção um
certo frisson, talvez até mesmo um temor mal contido, a medida que a data do batismo se
aproximava. Nunca, noite ou dia, o berço ficava, por assim dizer, desguarnecido. Dir-se-ia que algo
era temido, que aqueles dias eram um período a ser superado. Entretanto, essa travessia jamais seria
concluída. A partir de determinado momento, alguma coisa aconteceu e foi prontamente acobertado
pelo manto protetor das mulheres. O fato é que quase imediatamente, o outrora saudável bebê
transformara-se em algo completamente diverso. Outro ser, física e comportamentalmente diferente.
Estes foram os eventos que levaram Erico àquela mesa cheia de livros.
Num crescendo de loucura compartilhada por todos, materializou-se a crença que o pequeno fora
substituído por uma criatura diabólica, a despeito de todos os cuidados da mãe e da avó. Erico
passou a dedicar horas sem fim ao estudo da troca de crianças por seres sobrenaturais, noção
fantástica comum a quase todas as culturas europeias.
“... O período que precede o batismo é particularmente vulnerável… “
“... Talismãs de metal e certas ervas podem evitar a aproximação do mal… “
“... O ser introduzido no lar humano nunca chega a se desenvolver normalmente, apesar do apetite
voraz”
“...A Mãe do Centeio é o mais terrível dos seres da escuridão que se pode enfrentar”
“... a única chance de se recuperar a criança verdadeira é ferindo gravemente o
substituto… mas sem chegar a matá-lo “
Mergulhando cada vez mais fundo no folclore, Erico foi progressivamente convergindo com as
crenças da família e a prioridade do grupo passou a ser a recuperação de Kurt. Uma tarefa difícil,
como asseguravam todos os estudiosos. O homem pouco fazia além de passar horas a contemplar o
campo de centeio e suas ondulações sem fim. As mulheres continuavam sua faina de manter a
criatura.A cada novo dia o ser tornava-se mais e mais voraz. Suas feições mais distorcidas e seus
horrendos gritos a transformar a casa num verdadeiro inferno. Nos poucos momentos em que a
criança adormecia, um fio de baba e leite a sublinhar um sorriso maligno, as mulheres dirigiam-se
ao portão dos fundos em frente ao imenso campo de centeio. Como antes, os movimentos, cânticos
e manipulação de pequenos objetos era realizado apenas pelas duas, sem qualquer participação do
pai. Uns poucos dias depois, ao cair da noite…
- Erico… Erico! É hoje… Vamos resgatar nosso Kurt. Levanta homem!
- Que?
- Vamos, a vó nos espera no campo. Você agora já acredita, não é?
Erico levantou-se sonolento, presa da luta entre o racional e a intoxicação mental nascida de suas
leituras recentes e principalmente do ambiente irreal no qual passara a viver. Superada a frágil
resistência da mente moderna, Erico juntou-se às duas mulheres postadas no limite do campo de
centeio. A velha Brígida, braços erguidos, estranhas palavras nos lábios, caminhava campo de
centeio a dentro. Por estranho capricho óptico, as ondulantes espigas esverdeadas pareciam abrir um
caminho para a anciã avançar. Na sequência, mãos dadas, o esperançoso casal. Uma brilhante lua
cheia, como um holofote, iluminava a clareira aberta pelo movimento das espigas. Ao centro,
Brígida ajoelhada, cabeça baixa, braços estendidos à frente. Poucos metros atrás, pai e mãe na
antecipação do reencontro do filho perdido. Subitamente um farfalhar crescente anunciou mais um
inexplicável movimento das plantas, abrindo um espaço no fundo da clareira.
- Roggenmutter, Roggenmutter…*
murmuravam as mulheres ao contemplarem a verdadeira valquíria que, inteiramente de negro,
surgira na passagem recém formada. Trazia nos braços dois louros bebês, tendo a seus pés
indistintas figuras que giravam freneticamente, sempre a guinchar. Sem mover os lábios, a figura
sombria exclamou:
- Frauen hier ist Ihre erstellen.**
Helga adiantou-se para receber a dádiva. Ao retirar as crianças dos braços da aterradora entidade,
não pode desviar o olhar do filete de sangue formado pelo roçar da unhas enormes e amarelas na
coxa de Kurt. Abraçou forte os bebês e correu na direção de vó Brígida, deixando para trás a
expressão gulosa da Mãe do Centeio. Erico, encantado com o que se passava, juntou-se às duas
mulheres.
- Und mein Teil? ***
A voz gutural da criatura às suas costas e a expressão sardônica das duas mulheres congelaram o
sangue nas veias do homem. Súbito compreendeu tudo. Seu papel na cerimônia e o pior, seu destino
terrível.
As duas mulheres caminharam lado a lado acarinhando os bebês, deixando atrásv de si a cena final
da vida de Erico e seus gritos de pavor. Pouco depois o amanhecer era saudado por um tranquilo
campo de centeio.
E assim viveram quase todos felizes para sempre...
* Mãe do Centeio, Mãe do Centeio...
** Mulheres, eis tua cria.
*** E minha parte?

SUCCUBI

"Eu seria um louco? Um assassino? Um psicopata? Minha vida pregressa quase me dá


todas essas certezas de uma só vez e irei depositar tal diagnóstico nesse relato.
Minha irmã me disse certa vez , quando ainda morava em Brasília, que minhas
preocupações não passavam de excesso de leituras... Tudo seria apenas o fruto de uma
imaginação exacerbada. Um traço típico de minha personalidade desde criança. Bah! Que
diagnóstico mais.... piedoso. Só mesmo alguém que te ama muito para explicar tudo que
aconteceu comigo todos esses anos de uma forma tão benévola. Segundo ela, as lendas,
mitos e superstições que tanto me atraíram desde sempre, acabaram por criar um
verdadeiro mundo alternativo onde, pouco a pouco, passei a viver. "Mas e as mortes?" -
indaguei a ela. Sim, ao longo da vida muitas pessoas com que me relacionei tiveram fins
trágicos e inexplicados, particularmente namoradas. "Nada a ver contigo. Apenas
tragédias que caíram sobre você. Fostes sempre a vítima e não o algoz" - foi a resposta
dela. 

O fato é que todas essas mortes sempre tiveram características em comum, mas que só
poderiam ser percebidas por alguém com conhecimentos profundos do Oculto. Um
prosaico detetive ou policial jamais poderia deduzir coisa alguma da posição dos corpos,
das datas dos assassinatos, dos mapas astrais correspondentes. E principalmente de
certas características corporais das vítimas...  Simplesmente impossível. Não que o fato
delas terem tido relacionamento sexual pouco antes da morte não tivesse sido percebido,
mas nada que não fosse casual e consentido. Em minha opinião todas as evidências
apontavam para mim, não fosse minha total ausência de memórias sobre aquelas noites
fatídicas. 
 
A penúltima destas ocorrências se deu em Brasília, há uns anos atrás. Uma colega de
trabalho numa agência de publicidade foi encontrada morta em seu pequeno apartamento
da Asa Norte, ostentando uma expressão de horror que permaneceu inexplicada ao longo
do sumário inquérito. Neste caso não cheguei sequer a ser envolvido, já que nosso
relacionamento amoroso era recente e ainda desconhecido de todos. Igualmente
desconhecido nosso encontro na data da morte... Minhas lembranças daquela noite se
resumem ao filme que assistimos, o jantar num pequeno restaurante japonês e à chegada
no apartamento dela. A última imagem que tenho é de seu rosto sorridente e convidativo a
me fitar da entrada do quarto de dormir. Como num livro com algumas páginas
arrancadas, a próxima impressão guardada em minha mente foi o teto branco de meu
quarto, ao abrir os olhos na manhã seguinte. Tomei conhecimento da morte no telejornal
do meio-dia, o que me permitiu permanecer de fora das investigações, concluídas em
mais algum tempo com o veredito de morte natural por colapso cardíaco, na falta de
explicação melhor. Pouco depois, deixei a capital federal indo fixar residência em Porto
Alegre, onde tudo voltaria a se repetir... 
 
A morte no Sul foi uma réplica quase exata da tragédia em Brasília, com uma diferença
que serviu para proteger-me de suspeitas ainda mais: a morta não tinha qualquer relação
comigo até a noite em que nos conhecemos. Naquela noite - uma sexta-feira fria e
chuvosa de julho, resolvi dar uma relaxada antes de retornar ao meu apartamento para a
enfadonha rotina de notícias, novela e filmes, até desabar no característico sono febril e
agitado. A ideia surgiu de repente, quando pela janela do ônibus observei as luzes
brilhantes das boates da Avenida Farrapos. Curioso como aquela cena, diariamente
repetida no meu retorno para casa após o trabalho numa nova agência de publicidade,
nunca me atraíra antes. Quase sem pensar, desci do coletivo e me quedei na calçada
molhada a contemplar os letreiros, avaliando em qual daqueles antros mergulhar. Decidi-
me pela boate "Oratório", atraído pela incongruência do nome do estabelecimento e pelo
desenho de duas monjas ajoelhadas uma em frente da outra, feito em tubos de neon
vermelho. Logo após a saudação familiar ao completamente desconhecido leão de
chácara, fui acomodado numa mesa pequena, bem junto ao palco onde as
"performances" iriam ocorrer bem mais tarde. Superei alguns aperitivos imersos numa
gordura de origem duvidosa com a ajuda de um líquido âmbar - supostamente whisky -
saído de uma garrafa graduada por uma fitinha de papel colada em seu exterior. Já devia
passar das onze horas quando ela apareceu. Um lindo cabelo negro estilo anos 20
combinando com o vestido apertado, servia de moldura para um impressionante par de
olhos de esmeralda, lembrando a Lulu  do filme alemão "A Caixa de Pandora". Um
destaque notável num mar de lourinhas, falsas e verdadeiras. Até aí, minha mente registra
com incrível precisão todos os detalhes: a dama de negro, seus irresistíveis atributos, a
garrafa de bebida e seu gosto sofrível, a música ambiente, as mesas, a cortina do palco.
Até a decoração do quarto onde eu e minha "lulu" nos refugiamos após descer a escala
da garrafa da marca 15 para a 5, ficou indelevelmente registrada em meu cérebro: uma
ridícula e mal iluminada imitação de um confessionário de igreja. O desenho do "padre
confessor" e o vestido negro pendurado num prego na parede foram as últimas imagens
das quais me lembro. Como em todas as vezes anteriores, o próximo registro já foi de
meu quarto de dormir, com a luz da manhã a entrar pela janela. Naquela noite, a
previsível notícia da morte de "lulu". Desta vez, nem soube de qualquer detalhe das
investigações, apenas o retrato da morta que apareceu num matutino tipo "mundo cão",
que encontrei no ponto do ônibus no dia seguinte. Lá estava a mesma face sem vida e
tomada pelo pavor de sempre. 
 
Uma vez mais , impelido pelo medo de improváveis investigações que pudessem ligar-me
ao crime, abandonei o emprego porto-alegrense e parti rumo a Curitiba com meus poucos
haveres. Nesta parada, alojei-me provisoriamente num hotel do centro - o San Jacques -
 até que arranjasse um novo emprego e pudesse alugar uma casa ou apartamento mais
adequado na capital paranaense. Desta vez porém, a tarefa de arranjar uma colocação
não se revelou tão fácil como antes . Meus sucessivos abandonos dos empregos
anteriores davam aos entrevistadores uma impressão - verdadeira, é claro - de
instabilidade. Durante aquele período de ociosidade forçada, procurei estudar e meditar
sobre aquele rastro de sangue que parecia perseguir-me. Deparei-me com uma situação
inusitada, pois apesar de ter estado em todas as cenas dos crimes, meus lapsos de
memória me reduziam a um investigador sem qualquer informação privilegiada. A meu
favor apenas os conhecimentos de oculto que me permitiam vislumbrar um fio de
evidências a conectar as diversas mortes, que vinham sendo atribuídas a causas naturais
por investigadores excessivamente "racionais". O conjunto de evidências, todas de
natureza sobrenatural, apontavam para uma única explicação possível ainda que incrível:
eu estava sob a influência de um íncubo! 
 
Numa gloriosa manhã de sábado, quando já me preparava para um passeio na praia - os
parques de Curitiba são suas praias.... - eis que tive uma enorme surpresa anunciada
pelo telefone do quarto do hotel: uma visita feminina na portaria do hotel gostaria de ver-
me! Poucos minutos após a autorização, a batida na porta e o espanto após sua abertura.
Minha irmã! A visita de surpresa e sua expressão preocupada indicavam claramente que
algo sério e anormal tinha acontecido. Minhas tentativas de travar uma conversação
descontraída ou mesmo de sair dali e passear um pouco pela cidade, foram repelidas
com impaciência por ela.  Não havia tempo para isso. O que ocorrera desde minha partida
de Brasília é que um novo investigador de polícia, por alguma razão, resolvera fuçar no
caso da morte de minha ex-colega da agência e afinal de contas as evidências que me
ligavam ao crime não eram tão imperceptíveis como eu sempre supusera. Não que este
policial fosse menos convencional de a média, talvez até sua natureza metódica tivesse
sido a chave da solução do caso. Ou melhor, dos casos. Apesar da resistência de minha
irmã em colaborar, o nó começou a ser desfeito por um comentário despretensioso de
uma colega da morta sobre sua preferência por comida japonesa. Daí ao portador do
cartão de crédito que pagou a conta naquela noite - o meu, é claro -  foi um pulinho. O
garçom lembrou-se do casal que estivera no restaurante então e o reconhecimento dos
nossos retratos, além de minha súbita dispensa da agência de publicidade fizeram o
resto. Na sequência, uma reserva num vôo para Porto Alegre indicou o caminho a ser
seguido. Já nos pampas, fora fácil encontrar meu paradeiro a partir de uma nova vaga
aberta numa agência de publicidade da nova cidade. Minha rotina, endereço, trajetos
mais comuns, foram dando material para a tessitura de uma teia ao meu redor. O ponto
definitivo foi aquela expressão de pavor de "lulu" estampada no jornal, idêntica à da jovem
brasiliense. Fora providencial minha partida súbita para Curitiba, pois mais uns poucos
dias em Porto Alegre e já eu estaria preso. Ou internado. Sim, pois segundo minha irmã, a
tese do inspetor abelhudo era que eu estava enlouquecendo progressivamente. Não lhe
havia escapado a circunstância das relações sexuais na noite dos crimes  e um acesso
autorizado pela justiça em minhas navegadas na Web formaram em sua mente um perfil
nítido: o policial concluíra que em minha loucura eu me imaginava uma espécie de
demônio sexual masculino, um íncubo. Idiota! Jamais poderia conceber o fato de que tais
coisas existem e nosso poder sobre elas é ínfimo. Obviamente eu não era nenhum
demônio, mas de alguma forma estava sob o domínio de um! A expressão do rosto de
minha irmã quando lhe disse o que de fato ocorria - um misto de pena, medo e
curiosidade - foi a última imagem que guardo dela. 
 
Já era noite quando o vento gelado que caía sobre o parque Tinguí me despertou.
Cochilara abraçado à minha velha mochila, recheada com desleixo por minhas poucas
peças de roupa. Não que me lembrasse da partida, mas já estava planejando há algum
tempo deixar o hotel sem pagar, pois meu dinheiro estava quase no fim. Já tinha a
indicação de uma hospedaria de quinta categoria para ficar, minha categoria atual sem
dúvida. E minha irmã? Onde estaria? Veria isso depois. Sacudi a cabeça e apressei o
passo atravessando o parque, em poucos minutos chegando até a pousada onde
planejava ficar até conseguir colocação, ou até nova fuga. E o policial? Ainda farejando
minha trilha lá no sul, por certo. 
 
"otel dos Solitários". O "H" desaparecido do letreiro desenharam no meu rosto um
arremedo de sorriso há muito ausente. A aparência do lugar era a pior possível, só sujeira
e escuridão. Qualquer um apostaria estar abandonado, até que uma mulher de meia
idade e cabelos louros mal pintados, surgiu atrás do balcão. Minha primeira impressão
estava quase certa, pois o quadro de chaves já indicava não existirem outros hóspedes
ali. Registrado e informado dos horários e rotinas da pensão, subi ao primeiro andar onde
ficavam os quartos, instalando-me no último cômodo, bem no final do corredor, junto ao
banheiro coletivo. Uma comodidade, sem dúvida. Por um par de horas, permaneci deitado
numa cama dura e dotada apenas de um lençol, tão fino como massa de strudel. No
silêncio da noite que já acabara de cair e imerso na escuridão, pensava eu na vida. Em
tudo que acontecera e que me levara até ali. Pensei também no que me esperava no
futuro próximo, até que ruídos de passos capturaram minha atenção. Não estava só,
afinal! Não eram exatamente passos, pelo menos não passos normais. Eram passinhos
furtivos, rápidos e que se interrompiam de tanto em tanto tempo, para logo recomeçarem
o trajeto. Sempre gostei da brincadeira de deitar no escuro e deduzir o que se passava na
rua a partir dos sons produzidos lá fora. Fiz o mesmo, mas logo minha curiosidade venceu
a vontade de brincar. Não conseguia imaginar o que podia estar produzindo aqueles sons.
Levantei-me o mais silenciosamente possível e caminhei até a porta que dava para o
corredor. Antes que pudesse alcança-la os passinhos cessaram. Abri vagarosamente a
porta e, enfiando a cabeça pelo espaço aberto encarei a escuridão. Poucos segundos
foram necessários até que minhas pupilas pudessem perceber três vultos brancos a
espiar para mim das portas abertas no lado oposto ao meu quarto. Mais alguns momentos
e o quadro surpreendente e inesperado chegou à minha retina: três lindíssimas mulheres
vestidas de longas vestes brancas, sorridentes, cabelos escuros esvoaçantes e olhos com
estranho brilho avermelhado. Maquiagem, provavelmente. Já me preparava para sair e
buscá-las quando as três portas se fecharam simultaneamente. O som das três batidas de
porta ainda reverberava no ar quando voltei para meu quarto. 
 
 
 
Que horas seriam? Meu pobre relógio de bolso - mais um enfeite do que outra coisa -
pouco podia me ajudar a saber, pois sua corda havia quebrado há bastante tempo.
Calculava serem uma ou duas horas da manhã. Meu lado racional vinha enfraquecendo a
cada dia, mas ainda era suficientemente forte para sugerir um resto de noite de sono.
Contudo, não acatei a sugestão. Acrescento agora estas últimas impressões ao relato que
faço, o qual dedico à minha irmã. Um dia chegará até ela. Não consigo resistir à atração
daquelas mulheres de branco, apesar de ter consciência do que acabarei fazendo. Sei
também que esquecerei tudo logo em seguida. Não importa! O inspetor que continue na
trilha! Não posso lutar contra a influência do íncubo.... Os passinhos de novo...." 
 
Na porta do hotel San Jacques um rabecão da polícia recebia um novo passageiro,
devidamente coberto por um pano da cabeça aos pés. Na recepção, um homem com
indefectível aspecto de policial conversava com o gerente. 
- Sim, ele fugiu esta noite e não pagou a conta de duas semanas! 
- Acalme-se homem. Isso foi o menos grave de tudo... Pior foi o incesto com a própria
irmã... 
- Matou a também, não é? 
- Não existem marcas de violência, além da carnal, é claro. Apenas aquela habitual
expressão de horror. Mas que ela está morta, lá isso está... 
- Habitual? 
- Bem, não foi a primeira vez, sabe? 
- Um serial....serial... 
- Killer! Mais ou menos... 
- Vocês precisam pegá-lo e recuperar minhas duas semanas de diárias! 
- Já o pegamos, mas creio que vais ficar no prejuízo... 
- Como? 
- No quarto descobri uma anotação. Um tal de "Hotel dos Solitários". Se todos os fugitivos
deixassem endereços para trás... 
- É aqui perto, inspetor. Mas está abandonado tem tempo... 
- Sim, eu sei. Meu ajudante esteve lá e encontrou apenas uma espécie de diário. Só
vendo as doideiras que estão escritas nele... Mas servem para fechar o caso, de qualquer
forma. 
- E o cara? 
- Morto. Estava jogado dentro de uma lixeira. Sem marcas de violência, apenas aquela
expressão de horror, exatamente como sua irmã. Pelo corpo, muitas marcas de batom,
arranhões, digamos, carinhosos... Morreu bem, o cara.... 
- Quem? Como? 
- Bem, isso não me interessa. Meu caso está completo. A morte deste doido eu deixo prá
polícia de Curitiba!
VIGÍLIA

Os flocos de neve caiam alegremente do céu de chumbo. Sua dança, embalada pela brisa gelada do
fim de tarde, ignorava a atmosfera opressiva do mosteiro. A má conservação da estrutura a fazia
aparentar uma antiguidade muito maior que a real. Apenas um olhar muito atento poderia divisar
alguma atividade humana por trás de suas paredes arruinadas. Muito menos perceptível ainda seria
a mão esquelética que buscava afastar uma inexistente cortina da janela central do segundo
pavimento.
O pequeno templo e algumas poucas casinhas ao redor, aninhados na subida do Monte Negro, são
cercados por matas de araucárias. A única conexão com o centro de São José dos Ausentes era uma
trilha estreita e acidentada, utilizável apenas por bestas de carga. O núcleo de edificações tinha tudo
para ser abandonado e efetivamente o fora, algumas décadas após a instalação dos religiosos no
local, lá pelos anos cinquenta. A comunidade chegou a reunir meia dúzia de monges cistercienses,
mas encerrou as atividades em 1990, na esteira de uma pequena tragédia que acabou entrando para
o folclore local. Pelo que se contava na cidade, todos os religiosos foram encontrados mortos,
envenenados. Intoxicação alimentar, certamente. Apesar da explicação prosaica, o fato acabou por
isolar o local ainda mais, dando-lhe uma pátina "assombrada". Nos últimos anos porém, um
improvável aliado veio resgatar o mosteiro do esquecimento: a neve. O cenário desolado das matas
e das quase ruínas, quando tingido de branco, era realmente inesquecível.
A gaúcha São José disputa com alguns municípios da Serra Catarinense, o título de cidade mais fria
do Brasil. Desta forma, hordas de turistas peregrinam até a região no inverno, rezando para serem
saudados pela neve. A maioria se contenta com selfies tiradas na praça central, quando muito
retratando guerrinhas de bolas de neve, ou frases desenhadas no gelo acumulado no teto dos carros.
Já os mais aventureiros preferem alugar uma montaria e seguir a trilha do Monte Negro em busca
do mosteiro. A empreitada não é para muitos, dadas as condições do caminho.
Entretanto, Alceu achava que era sim para ele. Considerava-se um aventureiro e vivia em busca de
por-se à prova. Filho de pai militar, já morara nos quatro cantos do Brasil, do Inferno Verde aos
pampas, do Pantanal às quentes praias nordestinas, sem conseguir encontrar tranquilidade.
Temperamento agitado desde a infância, já passara por grupos teatrais, iniciara cursos sem conta, e,
naturalmente, não conseguira adaptar-se à rotina das escolas militares. Após mais um abandono -
dessa vez Educação Física - resolvera tentar a sorte como guia turístico. A aposta recaiu sobre a
divisa SC-RS, unindo o turismo de aventura ao vinho, antiga paixão de seu pai. Aparentemente,
mais um fracasso, já que os passeios propostos por Alceu fugiam completamente ao convencional.
Assim, pouco a pouco seus clientes foram rareando até que os grupos terminaram se reduzindo ao
próprio guia.
Como um rato metido numa guampa, Alceu só vislumbrava uma saída para sua vida: seguir em
frente, radicalizando sua proposta de vida. Zero amigos, namoradas e mesmo o contato com a
família. Assim nasceu a ideia da subida do Monte Negro para saudar a chegada da neve.
Pomposamente batisado de "Lágrimas Congeladas", o passeio não tinha mesmo boas chances de
atrair muito público. Entretanto o resultado obtido foi ainda mais decepcionante que os anteriores.
Ninguém se dispôs a pagar para enfrentar um número indeterminado de horas a cavalo, sob
temperaturas congelantes, para alcançar um mosteiro abandonado, cuja real existência nem o
Google Maps confirmava. Na mente de Alceu, tal fracasso tomou a forma de uma verdadeira
revelação. Algo lhe dizia que a aventura se desenhava não para um prosaico comércio, mas como
um objetivo para sua própria vida.
E assim avançou o rato na direção da ponta da guampa...
A manhã chegou luminosa, azul e gelada. As condições ideais para uma excursão, não fosse o fato
de um grupo não se ter formado. A essa altura, isso não fazia mais diferença. Alceu já estava em
outra etapa de sua vida. Talvez a última. Seu olhar febril, parecia focado numa dimensão além do
entorno real. Os preparativos para a viagem eram a demonstração incontestável de que o rapaz
mergulhara na irrealidade. Pendurou mecanicamente a inseparável mochila de sarja no flanco
direito do cavalo baio, montou e partiu em direção ao Monte Negro. Como uma espécie de resumo
da vida que naquele momento abandonava, deixou para trás a casa que fazia as vezes de agência de
turismo. Portas e janelas abertas davam acesso ao frio vento da manhã, utensílios, roupas e todo
equipamento necessário para a empreitada, deixados intocados em seus lugares. Dir-se-ia que o
jovem apenas fora comprar cigarros na venda da esquina.
Lentamente o ser fantástico homem-montaria foi se afastando da pequena cidade. Ao longe,
amortalhado na neblina matinal, o Monte Negro parecia chamar por Alceu. Em São José, mais uma
vez ninguém prestou atenção ao jovem que partia. Em pouco tempo seu desaparecimento teria o
dom de inseri-lo definitivamente na mitologia local, resultado bem mais concreto que sua presença
na pequena cidade.
Em mais ou menos uma hora, o passo mecânico da besta levou Alceu ao início da subida do monte.
O penetrar no mato baixo da encosta do morro transmitiu-lhe a sensação de adentrar subitamente
um ambiente diferente. Não uma transição gradual, mas quase o equivalente de abrir as portas de
uma mansão e mergulhar num cinza denso, quase palpável. Bruscamente abandonado pela risonha
luz azul da manhã, apressou o passo do cavalo na tentativa de chegar logo ao fim da jornada. As
agulhadas do vento gelado, embaladas pelo som monótono dos passos do cavalo esmagando
gravetos, duraram tempo indefinível. A sensação irreal foi finalmente suplantada por outra, ainda
mais etérea e fantasmal. Ao final do túnel de vegetação, apresentou-se uma clareira dominada por
um casarão arruinado. O mosteiro existia afinal!
O cérebro do rapaz consumiu alguns instantes para processar a imagem que lhe chegou aos olhos. A
construção de pedra parecia parte indissociável da vegetação circundante, das pedras, da neblina e
dos restos de neve acumulada na noite anterior. As lianas e plantas cobriam as paredes de forma
delicada e irregular, como rugas num rosto. A figura completa assemelhava-se a um quadro
impressionista, sem limites precisamente demarcados, parte de um outro mundo. Nem uma folha
em movimento, nenhum som vinha quebrar o pesado e opressivo silêncio. Uma natureza morta.
As muitas janelas do prédio formavam um padrão regular de quadrados negros e sem vida, exceto o
situado no sótão. Ali se podia perceber um luz ambarina e trêmula, oscilando de um lado para o
outro. Ao perceber o brilho mortiço, Alceu desmontou e dirigiu-se à porta de entrada do mosteiro.
Algo em sua alma dava-lhe a certeza de ser esperado. Encontraria por fim o objetivo de sua vida?
O interior do prédio era uma treva sólida e absorvente, ainda mais frio que o exterior. Ainda assim,
o jovem sentiu-se confortável ao ser absorvido pela viscosa escuridão. Sentiu-se parte do ambiente
circundante. Aos poucos, detalhes foram se revelando, não por uma impossível adaptação da vista,
mas sim na forma de imagens mentais. Inicialmente sons vindos do alto da escada. Uma refeição
coletiva, sem dúvida. Ruídos de talheres, vasilhas depositadas sobre madeira, líquidos a encher
copos. Sem saber como, Alceu viu-se a seguir no alto das escadas, contemplando uma dúzia de
monges que comiam em absoluto silêncio, sentados ao longo de uma comprida e tosca mesa de
madeira. Não pareciam perceber sua presença. Em dado momento, executando macabra
coreografia, os religiosos levam as mãos aos pescoços e ventres, em agonia mortal. Alguns rolam
até o solo, outros tombam a cabeça sobre a mesa, revirando pratos e derrubando copos. Todos
mortos, sorrisos idiotas nas faces e olhos bem abertos. Ao
fundo do vasto salão de refeições, outro lance de escada convida o jovem a alcançar o sótão. Alceu,
dois degraus por vez, sobe as escadas, deixando atrás de si o jantar sinistro.
Já no andar superior o rapaz defronta-se com o que, sem saber, era seu destino. Embuçado numa
túnica escura, um monge balança uma vela na frente da janela. Espera alguém? Há quanto tempo?
Alceu aproxima-se e fita diretamente os olhos da figura com a vela. O que enxerga é a própria
essência da dor, do sofrimento e da loucura: enxerga a si mesmo! Estava de volta a seu inferno
particular!!

CAMINHADA NOTURNA

"Nós vivemos num mundo regido pela lógica, iluminado pelo Sol e onde o fantástico é descartado.
Seria isso a realidade? Ou no mundo real a lógica não passa de ilusão, as trevas são eternas e o
fantástico é permanente?"
Tais palavras ricocheteavam enlouquecidas no cérebro de Matias ao caminhar rumo à Cidade Alta
naquela fria noite junina. Esfregava compulsivamente as mãos no ensebado sobretudo cinzento,
buscando limpá-las de invisíveis manchas, reais apenas em sua mente. Deixava algo medonho atrás
de si, mas não sabia exatamente o quê. Era movido por um terror enterrado fundo n'alma e buscava
a salvação nalguma coisa lá em cima. A Catedral, talvez?
"Que é isso Matias?? Prá que essa faca???"
Percorrera aquele trecho do Centro Histórico de Porto Alegre inúmeras vezes. Afinal, trabalhava no
Ministério da Fazenda há muito tempo e costumava, pelo menos uma vez por semana, seguir a
"Trilha da Alegria". Acompanhado de colegas ou mesmo só, deixava a repartição no "Chocolatão"
(nome popular do grande prédio fazendário, em função de sua cor marrom) rigorosamente às 18
horas e começava a subir a colina na direção da Praça da Matriz.
"Não entre aí... Vais acordar nosso filho! Como assim? Que queres dizer com isso?"
Longe de ser uma peregrinação religiosa, esse trajeto até à localização da grande catedral era uma
sequência de pequenos botecos, onde um happy hour ia se multiplicando, até a inevitável
embriaguez ao chegar em casa.
" Claro que é nosso filho! Estás louco? De onde tirou essa ideia maluca?"
Apesar da familiaridade com o ambiente ao seu redor, Matias sentia-se confuso. Não conseguia
lembrar nitidamente dos acontecimentos do dia que se encerrava, dos trechos de rua recém
percorridos, dos transeuntes que haviam cruzado seu caminho há poucos minutos. Tampouco era
claro o restante do trajeto que buscava percorrer. Apenas dois polos eram claros em sua consciência:
o horror indistinto às suas costas e uma cálida sensação de refúgio e salvação ao final do caminho.
Entre esses dois polos opostos, apenas um túnel escuro e gelado, desabitado e silencioso.
"Isso é um absurdo, uma calúnia! Quem pôs essa loucura na tua cabeça, meu Deus?"
Matias apressou o passo e o som de suas botas no calçamento eram a única coisa que feria o
silêncio da noite. A incômoda sensação de que algo ruim acompanhava seus passos se acentuava a
cada minuto. Minuto? Não exatamente, já que não tinha a exata noção de tempo. Não sabia dizer se
caminhava há alguns minutos, horas, dias...
"Não entre aí, já disse! Ele está dormindo... Pare!!"
A chuva aumentou, mas não o bastante para limpar as mãos de Matias. Ele já não procurava
esfrega-las no sobretudo, apenas buscava chegar a seu destino o mais rápido possível, qualquer que
fosse ele. A essa altura, praticamente corria, tropegamente ferindo as poças d'água no caminho. Ao
chegar na próxima quadra, das brumas de sua consciência lhe veio uma lembrança, um lampejo
fugaz como um fósforo aceso nas trevas. Uma escadaria entre dois prédios mergulhava na
vegetação, colina acima. Matias reconheceu o caminho. Subira por ali algumas vezes, buscando
abreviar o caminho até à Praça lá em cima. Assim fez novamente.
"O que você fez??? Meu filho! Não... Socorro! Socorro! Meu marido está louco...! Não.. Pare... Não
faça isso, por favor... Não.... Aiiii!"
Subiu os maltratados degraus de dois em dois. Tinha pressa. Quase ao final da subida
porém, estacou petrificado de pavor. Duas silhuetas postadas no final da escadaria, barravam-lhe o
caminho. As feições eram indistinguíveis, imersas na escuridão, apenas o perfil de uma mulher e
uma criança, de mãos dadas, ligadas como uma única entidade. A visão teve o dom de inundar a
mente de Matias de lembranças. A insuportável imagem do que fizera, desabou sobre ele
esmagando sua alma. Soube então que jamais chegaria à Catedral.
"Que horror! Matou o próprio filho... e também a mulher...
" Sim, depois degolou-se. Enlouqueceu, coitado... "
Matias caminhava rumo à Cidade Alta naquela fria noite junina. Esfregava compulsivamente as
mãos no ensebado sobretudo cinzento, buscando limpá-las de invisíveis manchas, reais apenas em
sua mente. Deixava algo medonho atrás de si, mas não sabia exatamente o quê. Era movido por um
terror enterrado fundo n'alma e buscava a salvação nalguma coisa lá em cima..

NAS MATAS DO EREBANGO

OU

A KIKIMORA

Introdução
Uma questão que passa com frequência por minha mente é: um mito pode existir fora do ambiente
onde nasceu, lá na aurora dos povos? Um Leviatã poderia levantar-se das ondas em pleno Atlântico
Sul? Seria concebível um Yeti habitando o alto da Mantiqueira? Um monstro aquático conseguiria
viver nas águas do Jacuí? Bem, tenho lá minhas experiências e opiniões, mas vocês irão concordar
que, se essa transposição cultural não fosse possível, nossa terra teria apenas sacis, cucas e no
máximo um Mapinguari… Como explicar os sombrios horrores celtas que os portugueses nos
legaram? Aqui no sul do Brasil, dada sua imensa riqueza étnica derivada das muitas levas de
imigrantes, temos um campo ideal para dirimir a dúvida! Vamos então retroagir ao longínquo ano
de 1878, quando os russos pela primeira vez chegaram à nossa terra.
Os Vlasov
Um entardecer cinzento e abafado recebeu o vapor “Isabel” no porto de Paranaguá. Era o dia 31 de
dezembro de 1878 e 928 famílias de imigrantes russos amontoavam-se no navio proveniente do
porto de Santos, onde há alguns dias haviam chegado de sua pátria. Desconforto, doenças e fome os
acompanhavam desde o embarque em Odessa, mas vinha com eles também a esperança de uma
nova vida. A aventura era o produto de uma campanha do governo Imperial no estrangeiro, em
busca de atrair novos colonos para nossas terras desocupadas. Entre aqueles imigrantes, a família
Vlasov. O casal Mikhail e Irina eram provenientes de Vladimir, no norte da Rússia e buscavam uma
vida melhor para o pequeno Serguei.
Os projetos daquela gente vinham se desfazendo desde a chegada ao Brasil, mas a decepção chegou
às portas da revolta ao descobrirem as terras que lhe tinham sido destinadas na Vila Palmeira,
próximo a Curitiba. Solo pedregoso e infértil, quase nenhum implemento agrícola e glebas de difícil
acesso, era tudo que aqueles imigrantes receberam. A insatisfação rapidamente degenerou em
rebelião, sendo contida por acontecimento digno de uma fábula. Nosso Imperador D.Pedro II, em
visita à província paranaense, soube da situação e fez questão de pessoalmente ir até à colônia de
Vila Palmeira. Em lá chegando e após ouvir as queixas de seus novos súditos, ordenou comandante
da escolta imperial que ficasse sua espada no solo. Ordem cumprida, restou evidenciada a dureza e
inadequação da terra. Naturalmente um ato simbólico, uma vez que as sondagens e análises técnicas
já haviam demonstrado a impossibilidade do plantio no local. Em seguida o monarca, num ato da
sua característica justiça, ofereceu aos colonos a seguinte proposta: dois meses de sustento enquanto
se providenciava novas terras. Ao final deste prazo, aqueles que não aceitassem as novas terras
seriam repatriados pela Marinha Imperial. Os novos assentamentos foram encontrados, dessa vez no
Rio Grande do Sul, mas menos de um terço das famílias decidiu ficar no Brasil. Os Vlasov entre
estes.
Assim, Mikhail, Irina e seu pequeno Sacha recomeçaram a marcha da vida, que os levaria às matas
do Erebango. E a seu destino final.
Os anos passam repletos de dificuldades e percalços para a pequena família Vlasov. Desde o mítico
episódio na Vila Palmeira, aqueles imigrantes tentaram diversas formas de subsistência: pequena
agricultura, carreto de erva-mate e o ofício original de Mikhail, a marcenaria. Tudo em vão. Assim
acabam por dar com os costados na nova terra prometida pelo governo imperial: as matas do
Erebango, distrito de Erechim no norte gaúcho. O novo assentamento é pouco melhor do que o
anterior, no Paraná, mas ao menos a terra é fértil e alguns equipamentos agrícolas são distribuídos.
Pequena colônia dedicada ao plantio do trigo começa a surgir.
Mais promessas
Estamos em meados de 1909. A Monarquia já se foi e o imperador morreu no exílio há quase vinte
anos. A República continua sua rotina de revoltas e falta de rumo, governando em Estado de sítio
desde o golpe de Estado de 45 de novembro de 1889. Entretanto, a política imperial com relação a
imigrantes se mantém inalterada. Uma nova leva de iludidos, desta vez ucranianos, desembarcam
em Porto Alegre para seguirem até o Erebango. São apenas vinte famílias e entre eles os
Tchevtchenko. Em pouco tempo, laços de amizade e a dureza do cotidiano unem os Vlasov aos
recém chegados. Em pouco tempo os jovens Serguei e Sonja já dão mostras de atração mútua.
Nas Matas do Erebango
A visão da vila dos colonos que se apresenta às famílias recém chegadas ao descerem dos carroças
é, impressionante por um lado e aterradora por outro. Umas poucas choupanas dispersas em
semicírculo, ao redor de um terreiro central, abraçadas por imenso bosque, como pintos debaixo de
uma galinha. Aquele fim de tarde invernal de junho de 1909 acrescentava ao conjunto habitacional
uma mortalha de névoa que descia das matas engolindo as casinhas. A bela Sonja sente um arrepio
além daquele produzido pelo frio e busca a proteção no abraço de sua mãe Lara.
As bodas
O novo ambiente, suas dificuldades e desafios, logo absorvem os novos colonos, como um poço de
areia movediça. Praticamente não há descanso e todos, das crianças aos velhos, lutam
cotidianamente pela subsistência. Além da missa dominical, apenas raras festas religiosas, batizados
e casamentos quebravam a rotina.
Nas bissextas atividades sociais, a aproximação de Serguei e Sonja acabou redundando em pedido
de noivado. Numa fria noite de sexta-feira daquele junho, Mikhail e sua esposa Irina dirigiram-se à
tapera onde a pretendida morava sozinha com sua mãe,já que perdera o pai na Revolução de 1905.
O casebre fora levantado pelos homens da comunidade na extremidade leste do assentamento,
encravado no bosque como um olho amarelo. Era a última construção do vilarejo e além dela,
apenas a precária trilha que serpenteava colina acima na direção do cemitério.
Czernobog - O Deus Negro
O casal de velhos é recebido à porta por Lara e logo se acomoda na rústica mesa onde um
fumegante Borsch os aguarda. Pão preto e uma tigela de branquíssima Smetana, além de curiosas
colheres decoradas de madeira, todos perfilados como soldados numa parada. Ao lado da janela
frontal, o onipresente samovar, sentinela metálica de toda casa de aldeia russa. Em contraste, um
detalhe que não passa despercebido aos pais de Serguei: nas paredes de tábua, ao contrário do
costume ancestral, nem vestígio dos tradicionais ícones religiosos. Nenhum Cristo ou Maria
Santíssima. Nada de São Cirilo, Santo André ou São Jorge. As paredes estariam completamente
nuas não fosse por um ornamento vegetal em forma vagamente humana, toscamente elaborado com
gravetos enegrecidos, cravado na madeira à meia altura. No chão de terra, logo abaixo da figura,
uma pedra chata, aproximadamente quadrada.
Alimento
Os pais de Serguei retornam para sua choupana, mas não demonstram a alegria que deveriam estar
sentindo pelo contrato de noivado recém celebrado. Caminham em
silêncio, cada qual imerso em seu universo próprio de preocupações. No íntimo de seus corações
um terror surdo se arrasta. A imagem daquela efígie negra pregada à parede não sai de suas mentes,
acorrentando uma à outra. Mesmo o repetido sinal da cruz é incapaz de os tranquilizar.
Naquele mesmo instante da madrugada negra e gelada, Lara observa sua filha adormecida. Acabana
está quase totalmente imersa em trevas, pois as brasas do fogareiro sob o samovar agonizam. Um
misto de carinho e sofrimento se alternam na face vincada de rugas da pequeno-russa, cuja mirada
oscila entre a filha adormecida e a tosca pedra quadrada encostada à parede, abaixo do ídolo
vegetal.
“é chegado o momento de me consagrares nessas novas terras, minha serva! “
“não é possível… ainda”
“tenho fome, serva, muita fome!”
“mal chegamos Senhor. Não conheço quase ninguém aqui … “
“não importa… Como já sabes, sempre será melhor sangue do teu sangue. Assim te farás mais
digna de meus favores… “
O diálogo mental e, principalmente, a derradeira e terrível frase, preencheram a alma de Lara de
horror. A imagem do filho Ilya, morto antes de ter sido batizado, sobrevoa suas memórias e provoca
sentidas e amargas lágrimas.
“não! De novo não! Sonja acaba de ficar noiva e… “
“cala-te, serva! Depois cuidamos da cerimônia nupcial, hahahaha! Agora, precisas aplacar minha
fome… “
“mas não compreendo… “
“não quero tua carne, nem de tua filha. Ela terá outras serventias no futuro! Quero algo especial,
mais tenro e doce… “
“??? “
“teu neto, ou melhor, o que seria teu neto… o brazilianyii… hehe.. “
“neto? Como assim? Não tenho nenhum… Sonja está…? “
“Aqueles passeios depois das missas… para algo serviu aquele ridículo ritual! É simples, serva.
Aqui também temos ervas para todos os fins. Um pouco de chá com as folhas azuladas que crescem
na subida do cemitério bastará… Minha sangrenta oferenda estará pronta! “
Acerto de contas
Serguei não consegue ocultar dos pais sua angústia e preocupação. Há duas semanas que não tem
notícias da noiva e a tradicional festa que deveria seguir-se ao contrato nupcial não chegou a
acontecer. Nem na missa dominical a moça e sua mãe têm sido vistas e os cochichos já se espalham
pela comunidade. Finalmente, num cinzento fim de tarde ao retornar de um estafante corte de lenha,
o rapaz tem sua atenção capturada por uma fantasmagórica imagem na janela da casa da noiva.
Contrastando com o sombrio tom das paredes de madeira, uma figura extremamente pálida e meio
oculta pela janela, parece observar o terreiro à frente. Absorta e distante, não o nota a princípio.
Serguei, numa rápida sucessão de sentimentos, termina por reconhecer Sonja. Alívio e alegria dão
lugar à preocupação e ao medo quando a moça, notando-o, fecha o postigo bruscamente. Seus
insistentes chamados não são atendidos e morrem aos poucos na noite que cai. Não pode mais
esperar e guardar consigo o segredo. Precisa de seu pai.
- Irina, não sei o que fazer… Nosso Sacha… A noiva…
- O que houve? Ela está doente? Por isso ninguém a vê mais?
- Sim, não…ela está grávida!
- Não é possível…
- Sacha me contou. Ele a viu de relance, na janela de sua casa. Não parecia bem. Ele tentou falar-
lhe, mas ela se escondeu.
- Meu Deus...E a mãe dela? Por que não nos procurou? O que terá a menina? Mikhail, vamos lá,
vamos agora!
- Não acabo de te dizer que ela não aceitou contato algum, se escondeu de Serguei…
- O que prova que algo de muito errado está acontecendo. Você mesmo viu. Aquela casa não
pertence a nosso Senhor!
- Amanhã iremos até lá, te acalma mulher! Vamos dormir
- Espero que não seja tarde demais...
A Kikimora
A noite é de um negro quase sólido no interior da cabana dos Vlasov. Irina abre os olhos
desmesuradamente, sem conseguir captar qualquer imagem, enquanto sua mão direita procura pelo
marido sob as cobertas. Nada. O ressonar pesado de Serguei a informa que seu filho dorme
tranquilamente na cama ao fundo do cômodo. Pouco se importando com o frio, a mulher se levanta
e busca a sala de jantar. O retângulo iluminado da janela destaca o perfil do marido, imóvel, a olhar
para fora. Já se prepara para repreender seu homem e arrastá-lo de volta ao leito quando uma
insólita imagem se forma em sua retina ao contemplar a floresta vestida de prateado. Tremendo
descontroladamente, agarra o braço de Mikhail como um ave de rapina. O casal vê - ou pensa ver -
algo lá fora. Passa pelas duas mentes unidas pelo medo, um torvelinho de imagens que vem lá da
infância, enquanto sua consciência adulta busca rebelar-se, apresentar alguma explicação plausível.
A cerca de cem metros na direção da estradinha do cemitério, pode-se observar a casa das
Tchevtchenko. O luar realça cada detalhe, cada entalhe na madeira da rústica estrutura. Sua janela
frontal está aberta de par em par e por ela alguma coisa busca sair, ganhar o mundo exterior. A
princípio, contra todas as possibilidades, parecem galhos, mas isto não é possível, pois movem-se
de dentro para fora. Logo a figura se mostra completa, enorme e ereta na frente da choupana.
Fascinados, Mikhail e Irina não acreditam no que veem, não têm explicações a dar a si mesmos,
mas sabem exatamente do que se trata: a Kikimora (*). A coisa move-se lentamente, para um lado e
para outro, como a farejar algo. O casal, petrificado na contemplação da ancestral aberração não
consegue mover-se, como o sapo submetido à mirada da serpente. Em alguns momentos o estranho
ser some da vista, sua presença apenas denunciada por um som débil e contínuo, um ligeiro
farfalhar como se fossem pés de galinha a arranhar um terreiro.
Com esforço sobre humano, o casal quebra o encanto que os mantinha paralisados defronte à janela
e corre para junto do filho, despertando o rapaz rudemente. Mikhail repassa mentalmente todas as
portas e janelas da casa: lembra-se de tê-las fechado todas. Sendo tarde demais para o isolamento
ritual da casa (*), essa é a única defesa que talvez impeça
o inevitável… Aos três, acuados e mergulhados na escuridão, resta acompanhar a
evolução dos ruídos fora da casa. O mesmo som de unhas arranhando, arranhando, cada vez mais
próximo. Quando o ruído alcançou o teto da choupana, mesmo a coesão entre aquelas pessoas que
tanto se amavam se rompe. Pai e mãe disparam para fora pela porta dos fundos, enquanto a paixão
direciona Serguei na direção da casa de Sonja.
Troca de posto
Serguei, presa do horror, corre aos trambolhões pelo terreiro central. Na mente a figura da amada o
impede de sentir o frio e os ferimentos nos pés descalços. Chega ao umbral encontrando a porta
semi aberta. O silêncio é quase completo, quebrado apenas por um matraquear baixinho, monótono
e incessante. Apenas o instinto de sobrevivência impede o rapaz de irromper cabana adentro. Por
fim, decide-se a enfrentar o desconhecido atrás da porta.
Quatro sentidos são simultaneamente excitados, fornecendo ao cérebro de Serguei um quadro
irreal:seus pés nus arrastam-se na superfície pegajosa, morna e escorregadia; o som repetitivo
continua a martelar seus tímpanos e uma enorme vela acesa, aparentemente de sebo animal, ao
mesmo tempo em que lança pálida luz no ambiente, agride suas narinas com um cheiro acre e
nauseabundo. É tudo tão bizarro que o que se passa ali só aos poucos vai ficando claro, como um
quebra cabeça. No chão, encostada à parede esquerda, uma pedra aproximadamente quadrada
ostenta uma massa escura, irreconhecível à distância. O rapaz, coração na mão, se aproxima. A peça
que se encaixa em sua mente ao contemplar a pedra de perto, dispara um dilacerante grito interior:
nenhum som escapa dos lábios, mas o Horror reverbera na alma, rasgando-a como um trapo velho.
Um bebê, ou melhor, quase um bebê, um feto, semi mastigado. Na sua mente, abalada a um ponto
já sem volta, o matraquear às suas costas parece mais e mais alto, agora coroado por alguma coisa
parecida com uma risada, inumana e triste. Lara, ou o que restara dela, sentada no chão bate os
dentes de forma mecânica e ri. A peça final do quebra cabeça é o golpe de misericórdia na sanidade
do pobre moço: sua noiva, vestida com uma velha túnica branca, pernas abertas e ensanguentadas,
parece suspensa no ar. Serguei, sem saber o que fazer, aproxima-se, braços estendidos na direção da
moça. Ao se aproximar, constata que Sonja está sentada no colo de um enorme criatura, negra como
nunca havia visto nada. Sua visão é atraída para cima, na direção daquele rosto que sorri, sorri
silenciosamente. É o fim de sua sanidade. Por misericórdia, sua consciência fora poupada de
contemplar a Kikimora, garras sujas do sangue de Mikhail e Irina, voltar à sua origem.
“Vá minha Sonja! Agora a missão de me adorar é sua!! “
Até hoje a lenda do que aconteceu naquela noite permanece apenas isso: uma lenda para assustar as
crianças.
As circunstâncias ao redor dos corpos decapitados de Mikhail e Irina, o feto semi devorado, a
cabana ensanguentada, o jovem Sacha morto, a velha Lara enlouquecida além de qualquer limite e
Sonja precocemente envelhecida e meio louca, jamais foram adequadamente esclarecidas.
Em tempo: Uma vez recuperada, Sonja dedicou-se ao ofício de parteira.
ps.: (*) Como todas as populações rurais dos diferentes países eslavos sabem há inúmeras gerações,
as formas de vida podem assumir os mais diferentes formatos e dimensões. Alguns eventos que
nossa abordagem moderna classificaria como morte, possuem tal energia em seu ápice, que
engendram novas formas de organização da
matéria. O aborto, por exemplo. Tais povos acreditam que o extermínio brutal de uma nova vida
antes do nascimento, gera um ser monstruoso - a Kikimora - que busca incessantemente reunir-se
com seus progenitores, absorvendo-os, a menos que certos ritos e encantamentos sejam realizados e
afastem a monstruosidade, lançando-a ao nada absoluto.
O GRITADOR

Diego parecia dormir no banco de trás do Jeep conduzido por seu pai, Marcus. Na verdade, pensava
sobre aquela viagem, sobre sua vida, sobre tudo que acontecera desde sua infância. Diego e seu pai,
depois do falecimento da mãe Matilde, viviam juntos num pequeno apartamento na Azenha, em
Porto Alegre. Eram muito unidos e as idiossincrasias de ambos vinham se realimentando
mutuamente. Marcus sempre fora muito interessado em folclore, em suas mais diferentes formas.
Música, costumes, “causos", lendas, etc. Agora já aposentado, resolvera cair em campo e investigar
suas lendas favoritas. Diego fora uma criança sensível e mimada por seus pais e nunca se recuperou
plenamente do acidente que ceifou a vida de sua mãe. Acompanhamento psicológico e até uma
temporada numa clínica pouco ajudaram a infeliz criança. Hoje, já homem feito, fazia o possível
para que seus terrores internos não invadissem sua vida. Justamente em função da causa da morte
de sua mãe, nunca se sentia muito à vontade em viagens de carro. Normalmente simulando um sono
inexistente, permanecia longo tempo deitado no banco de trás.
Marcus encontrara nas lendas sobrenaturais, tão presentes em sua terra natal, um antídoto para sua
insípida vida profissional de servidor público. Sua aposentadoria, apesar de nada brilhante após
tantas reformas, era mais que suficiente para seu sustento e de seu filho, cuja carreira de artista
plástico demorava a decolar. Mantinha o apartamento da Azenha fechado por longos períodos
enquanto seguia o rastro de toda sorte de criaturas, reais ou nem tanto. Fazendas assombradas,
hotéis amaldiçoados, bruxas rurais, tesouros enterrados, até o monstro do Jacuí já fora objeto de
suas pesquisas. Tudo devidamente registrado, em texto, vídeo e áudio, com a marca registrada da
dupla pai e filho: um óleo sobre tela de autoria de Diego, comemorativo do mistério da vez.
O Jeep já vencera a subida da serra, deixando a “Rota Romântica” para trás. Após um rápido lanche
em Canela, a dupla de exploradores tomou a direção de São Francisco de Paula, onde uma pequena
pousada campestre os aguardava. De acordo com os planos de Marcus, ali estabeleceriam sua base
de pesquisa. Após deixarem a estrada principal, um precário caminho de terra batida os levou a seu
destino. Chegaram bem a tempo de escapar da chuva anunciada pela previsão do tempo e também
do frio que a noite daquele agosto cinzento lhes enviava.
A pousada era pequena e aconchegante - apenas quatro quartos, toda construída com troncos de
madeira, à beira de um pequeno lago, já vestido de negro pela caída da noite. Conectando a
recepção à ala dos quartos, um amplo salão de refeições e danças que já vivenciara noites mais
animadas do que aquela. Nos fundos do terreno existia um curioso galpão comprido e sem paredes,
cujo propósito era unicamente cobrir uma longa vala cavada na terra. A estrutura, uma das últimas
dedicadas à elaboração do ancestral “churrasco na vala” no Rio Grande, já valeria algum estudo
tradicionalista por parte de Marcus.
O tema da expedição desta vez era “O Gritador”. Nem se podia propriamente chamá-lo de
“criatura”, pois não haviam relatos de encontros, pegadas ou quaisquer vestígios materiais. Apenas
uma tradição que falava de gritos aterradores perdidos nos bosques dos Campos de Cima da Serra.
Em verdade, a crendice popular também dava conta de mortes violentas atribuídas ao Gritador, mas
sempre de forma imprecisa e fantasiosa.
A noite caiu vestida de gelo sobre a pousada. Na penumbra, gritos são ouvidos por sobre as
araucárias. Não, não se trata do Gritador, apenas um jovem a lutar contra seus demônios em meio a
conturbado sono. Como em todas as noites.
Extremamente cansados da viagem, haviam se recolhido ao quarto no segundo andar
logo após um rápido lanche e as formalidades de praxe, preenchimento de fichas, fornecimento de
cartão de crédito, coisas assim. Era um cômodo grande, parcamente mobiliado. Apenas duas camas
de solteiro em frente à porta, uma cômoda encimada por uma jarra de porcelana branca. Uns
pelegos nas paredes alternando o esforço decorador com reproduções em cartão de paisagens
alpinas, davam ao quarto um ar meio kitsch. Equidistante entre as camas, uma pequena janela sem
cortina, que àquela hora da noite mostrava unicamente um retângulo negro. O que não faltava eram
cobertores, edredons, e outras armas contra o frio. Em pouco tempo, luzes apagadas e dia encerrado.
Um misto de tristeza e preocupação dominava o íntimo de Marcus, ao acompanhar o sono
atribulado de seu filho. O padrão era sempre o mesmo: pesadelos, suor abundante e eventualmente
gritos, como naquela noite. “Ele nunca vai superar isso? ” - pensou ele, olhos muito abertos e
inúteis naquela escuridão. Pensou também se ele próprio poderia superar a culpa, enquanto,aos
poucos, os tentáculos do sono o foram arrastando à inconsciência.
Na manhã seguinte, seu Tarcísio os aguardava solícito no grande salão de refeições. Tinha acabado
de arrumar as iguarias para o café da manhã na comprida mesa de madeira bruta, quando seus
hóspedes apareceram no alto das escadas.
- Buenos dias amigos! Passaram bem a noite? Venham, venham forrar a barriga. Turista precisa de
energia… Ainda mais no campo!
A dupla sentou-se e após saciarem sua fome, começaram a típica conversa hóspede - hospedeiro:
- Ótimo café da manhã, seu Tarcísio!
- É mesmo, a chimia até parece a da mãe…
- ….. É, tá boa mesmo..
- É tudo feito aqui, na redondeza. Também, a venda mais perto é lá pros lados da estrada. E vocês,
qual o programa?
Como costumava acontecer em situações assim, pai e filho se entreolhavam, silenciosamente
avaliando o quanto expor suas intenções a um estranho. Afinal, não queriam passar vergonha. Por
outro lado, as informações locais sempre eram indispensáveis às expedições da dupla e assim o
método era de ir aos poucos chegando ao tema em investigação.
- Gritador? Vocês querem saber do Gritador? Por que?
- Um tipo de hobby, sabe? Eu e meu filho estudamos lendas e crendices populares e….
- Crendices? Duvido muito que vocês se dessem ao trabalho de andar tanto por esse mundo se
achassem essas coisas só “crendices”...
- He, he, he. É pai, ele te pegou, ein?
- Aqui, minha gente, quando os gritos ecoam na noite, o pessoal fica mais assustado que cusco em
canoa! E não são só os piá, não….
A lenda do Gritador, até por ser muito antiga, perdera seu sentido original e tinha inúmeras versões,
a depender da localidade onde supostamente ocorriam os fatos. Fatos? Bem, os gritos noturnos
talvez não, mas as horríveis mortes, as mutilações, sim, eram fatos indiscutíveis. O único consenso
em torno do personagem era a área onde os fenômenos ocorriam. Os estudos de Marcus apontavam
a região de São Francisco de Paula como uma espécie de ponto central do mapa de ocorrências. O
leque de possíveis explicações ia desde criptídios do gênero pé-grande até espíritos malignos,
passando pela trivial opção pelas “coincidências” e assassinos humanos de carne e osso. Os
folcloristas por sua vez, descreviam a lenda do Gritador como a história de um filho amaldiçoado
por maltratar a mãe. Após a morte da velha, esta lançou uma praga sobre o próprio filho, que a
partir daí passou a vagar pelas matas sem sossego, gritando em desespero. Entretanto, está versão
folclórica não explicava e nem mesmo chegava a mencionar as mortes… Quase todos os casos
registrados terminavam em assassinatos brutais sem solução.
- É sempre à noite, não seu Tarcísio?
- Sim, sem Marcus. Sempre do mesmo jeito. Noite gelada, altas horas, e começa a griteira. Vem de
longe, sutil que nem gato que vai pegar passarinho, vai chegando mais perto, mais perto…
- É daí?
- Bem, ninguém é doido de sair pro mato, né? Mas já teve valente que resolveu encarar…
- ??
- Nunca mais se viu os tais! Pelo menos inteiros… He, he, he…
Os estudos de Marcus indicavam precisamente isso. Os relatos em torno do Gritador eram
frequentemente associados a desaparecimentos ou homicídios, mas nada que não pudesse ser
explicado de formas mais prosaicas. Entretanto, brigas, assaltos e vingança decorrentes de
bebedeira não tinham o mesmo charme de predadores desconhecidos, assombrações ou uma velha e
boa maldição. Não que ele é seu filho realmente esperassem decifrar o enigma secular, mas acima
de tudo saborear o clima de mistério e chegar a uma “conclusão” em aberto, que pudesse alimentar
o blog de Marcus e Diego - “Mistérios da Província de São Pedro”. Todo o processo devidamente
coroado pela mais nova pintura de Diego. Assim foi por exemplo na última aventura, o caso do
“Monstro do Jacuí”, cuja solução ficou entre tronco flutuante, avantajada enguia ou plesiossauro
perdido….
- A meu ver, a dificuldade com o Gritador é não existirem avistamentos propriamente ditos, não é
Diego?
- Hum hum..
- É meus amigos, acho que vamos ter que sentar e esperar pelos gritos… Não é mal!
- Pelo que vimos, as noites mais propícias são as de lua nova…
- Como a de hoje, sim, como a de hoje… Posso preparar uma janta especial, degolamos umas
garrafitas de vinho e, quem sabe, vocês dão sorte? Ou azar, he, he, he… Vocês gostam de espinhaço
de ovelha?
Assim ficou combinado então. Aquela noite prometia todos os ingredientes da tradição: frio, trevas,
bosques ao redor e um pouco de álcool para elevar o nível da credulidade. A única nota destoante
era o astral soturno de Diego. Desde a partida de Porto Alegre o jovem se mostrara ensimesmado e
triste. Não passara despercebida a seu pai a causa daquilo - a mãe ausente -. O sorriso amargo que
sublinhou o rosto do jovem ao provar a chimia de uva no café da manhã fora mais do que eloquente.
Na verdade esse processo se iniciara na madrugada mesma do acidente fatal e nunca se
interrompera. Pelo contrário, os momentos de silêncio e alheamento eram cada vez mais frequentes,
associando-se aos surtos noturnos, como o da noite passada. Marcus também vinha sentindo um
sutil traço acusador no olhar do filho, obviamente pelo fato dele estar ao volante naquela noite.
Nunca animou-se a discutir o assunto com Diego, talvez por sentir - se realmente culpado ele
próprio.
O resto da manhã e a tarde transcorreram plácidos, sem maiores destaques, a não ser pelo excelente
churrasco de vala servido pelo hospedeiro, orgulhoso de manter aquela tradição em vias de
extinção. Após o repasto, rede para Marcus, desempacotamento e preparação do material de pintura
para Diego e destino desconhecido para Tarcísio. O salão de refeições ficara sob o domínio dos
aromas da tinta a óleo e da terebintina. Com a caída da noite, chegaram também o hospedeiro e uma
chuva grossa, a qual se anunciava persistente.
- Olá minha gente! Preparados para a “Noite do Gritador”?
- Ah! Já de volta seu Tarcísio? Tentei achar os interruptores mas não consegui. Diego até já tinha
começado a trabalhar no quadro, mas teve que parar…
- Desculpem, esqueci de dizer que não temos luz elétrica. Aqui é na base do lampião!
- Tanto melhor seu Tarcísio. Assim teremos mais clima, não achas?
- Claro, claro. Vou ver como está o espinhaço.
- Deve estar “bom como namoro no começo”…
Os três caíram na risada com a imitação de Marcus dos ditos gauchescos que sempre enfeitavam as
frases do anfitrião. As últimas risadas que ecoariam naquele salão.
A Noite do Gritador
O salão de refeições era comprido - bem uns vinte metros - e bem iluminado por uma série de
janelões, três de cada lado. Numa extremidade, uma ampla porta dupla dava acesso ao recinto e na
outra, uma enorme mesa rústica de madeira servia de aparador para os quitutes e por trás desta, uma
enorme lareira, quase da largura do salão. As mesinhas para os hóspedes comerem alinhavam-se
lateralmente junto aos janelões. Está arrumação deixava livre um amplo espaço ao centro, soalho
gasto e coberto de serragem, onde o fandango imperava nas noites de festa. As paredes eram
decoradas com boleadeiras, esporas, chibatas e uma surrada bandeira farroupilha. Na frente do
pavilhão, uma varanda que proporcionava bela visão do lago negro. A varanda, a essa altura, já se
encontrava devidamente ocupada pelos apetrechos de pintura de Diego, com destaque para o grande
cavalete com a tela ainda virginalmente branca. Ao pé da escada, uma pilha de lenha cortada,
coroada por um machado.
Diego se retirara para dar uma cochilada, no mesmo momento em que seu Tarcísio ia ver o
andamento do espinhaço. Marcus quedou-se só, curtindo o abraço da noite, o som da chuva no
telheiro e o ar gelado que começava a reinar inconteste. Seu ascendente em Escorpião o fazia amar
aquele tipo de ambiente, frio e sombrio. Possivelmente a mesma razão que o levara a escolher o
hobby dos mistérios. Caminhou até a varanda e absorveu os aromas campestres a plenos pulmões,
ouvidos acariciados pelo dedilhar das gotas de chuva no lago defronte. Em breve as luzes foram se
extinguindo, deixando Marcus mergulhado nas trevas. A última imagem colorida que seus olhos
captaram foi o tricolor da bandeira pendurada na parede do salão.
Em momentos duas bolas de luz amarelada flutuaram da recepção da pousada na direção do salão
de refeições. Os dois lampiões trazidos por seu Tarcísio rasgaram uma trilha iluminada debilmente
até a varanda e em seguida preencheram o interior, indo pousar no aparador do fundo do cômodo.
- Precisa de ajuda seu Tarcísio?
- Não se incomode…
- Vamos lá, cadê o vinho?
- Então venha. Tu pegas as garrafas e eu a comida. E teu filho?
- Foi descansar um pouco, mas já deve estar vindo.
Pouco antes das dez e a mesa estava posta, taças cheias e o irresistível aroma da carne com aipim
pairava no ar. Os lampiões encompridavam as sombras e davam contornos irreais a paredes, móveis
e objetos. Diego finalmente chegara e sentou-se à mesa em silêncio. Apenas a bruxuleante
iluminação impedia que se percebesse a sombra que toldava o rosto do rapaz e os incandescentes
olhos vermelhos. Pudessem ver mais claramente e perceberam que algo se rompera em sua alma.
Causos, goles, garfadas, risos. Uma noite agradável, sublinhada pela chuva suave e eventuais
trovões, empanada unicamente pelo sepulcral silêncio de Diego. Já vencido o espinhaço, mais uma
garrafa do excelente Merlot é convocada. Entretanto, antes do alegre “pop! “, a tranquilidade da
noite é despedaçada por horrendo grito. O som é de tal maneira bizarro que não permite
classificação. Seria humano, animal, ou de que outra natureza? Aparentemente sua origem eram as
matas ao redor da pousada. Um pesado silêncio dominou os três homens naquele salão pouco
iluminado. “Uma brincadeira de mau gosto” - pensou Marcus; “Não! Não é possível!“ - foi o que
passou pela mente de Tarcísio. Ainda em silêncio, os dois buscaram o olhar de Diego, mas este se
levantara, caminhando em direção à grande porta dupla. Marcus se levanta, mas antes que possa
alcançar seu filho, o bestial grito alcança novamente a pousada, desta vez mais perto,
porém. A luz intermitente dos relâmpagos delineia o perfil do rapaz no umbral da porta. A paralisia
momentânea que o grito causara, fora suficiente para que os dois homens perdessem Diego de vista.
Ao chegar no umbral da porta, apenas o vento, a chuva fria e a escuridão o aguardam. Novo grito
congela o sangue em suas veias e o impede de perceber que o machado desaparecera da pilha de
lenha. O próximo clarão dos relâmpagos ilumina uma cena tão bizarra que transporta Marcus ao
limite da sanidade. A última cena de sua vida.
Alertada pelos vizinhos, assustados com os gritos da noite anterior, a Brigada Militar chegara à
pousada no início da manhã, inutilmente porém. O que poderia explicar a morte dos dois homens,
trucidados por golpes do que parecia um machado, ou instrumento similar, instrumento este nunca
recuperado? E a pintura ainda fresca, retratando uma mata escura da qual emerge uma indistinta
figura? E o terceiro hóspede registrado e jamais encontrado? Quem poderia explicar esse mistério?
Talvez você, leitor….

OUTROS PEQUENOS HORRORES

ÍNDICE

9. A ARCA
10. A MASMORRA DAS TRÊS PORTAS
11. A REDE
12. ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
13. BLAUE DIVISION
14. COMO UM CASTELO DE CARTAS
15. DE VOLTA PARA CASA
16. DESCIDA AOS INFERNOS
17. DESTINO FINAL
18. FREAK SHOW
19. NATAL EM LA LYS
20. OSTARA
21. OUBLIETTE
22. SOBREVIVENDO NO INFERNO
23. TENHO QUE SAIR DAQUI
24. UMA NOITE NO TEATRO
25. VERWERFUNG
26. CARA METADE
27. UM CARNAVAL FERVENTE
28. UM FIO NO TEMPO

A ARCA

O som monótono de cada martelada cortava a noite, indo misturar-se aos ruídos da mata escura. No
ar, o inconfundível aroma de madeira nova. O casarão onde residiam o marceneiro Alceu e Astrid
sua esposa, era envolvido por denso bosque de eucaliptos, bem longe da vila mais próxima. Assim,
o ruído do trabalho noturno não incomodava ninguém naquela fria madrugada. O casal se mudara
para o remoto rincão depois de inúmeros entreveros com vizinhos, sempre causados pelo
temperamento irascível da mulher.
Aos poucos, as hábeis mãos do homem davam formas finais ao magnífico móvel que ocupava o
centro do cômodo, parcamente iluminado por um lampião. Uma obra-prima da marcenaria, toda
elaborada com grossos pranchões feitos da abundante e resistente madeira local. Rico em enfeites
cuidadosamente entalhados, media cerca de dois metros de largura por um de altura, com uma
profundidade de sessenta centímetros. Ao longo de toda a base sucediam-se pequenos orifícios,
obviamente destinados a ventilar o interior da peça. Finalmente Alceu concluíra o presente de Natal
de Astrid. Ela só acordaria ao raiar do dia seguinte, pois tomara as habituais pílulas para dormir.
Ela, mulher nervosa e neurastênica, só conseguia repousar à base de remédios. Quando o efeito
passasse, o presente estaria à espera da aniversariante. Talvez a surpresa evitasse os terríveis acessos
de mal humor que sempre se seguiam ao despertar de Astrid.
O trabalho levara cerca de dois meses, bem mais do que o necessário para um artesão da qualidade
de Alceu. Entretanto, as peculiares condições da tarefa assim o exigiram. Todas as etapas da
construção da arca foram realizadas durante as madrugadas, reduzindo substancialmente as horas
dedicadas ao trabalho. Tudo fora levado a cabo no porão da casa, reino de insetos e ratos, onde
Astrid jamais ia. Era muito importante o fator surpresa, pois ela sempre desejara uma arca como
aquela. Qual seria sua reação ao contemplar o presente? Sua eterna expressão de desagrado seria
finalmente substituída por outro sentimento? Ademais, Alceu jamais conseguira dedicar-se com
tranquilidade ao trabalho e menos ainda aos seus poucos hobbies - basicamente leitura e música.
Astrid tinha o irritante costume de interrompê-lo com trivialidades, tão logo percebia que o marido
se concentrava em qualquer afazer. Quando ainda recebiam visitas, as intervenções da esposa nas
conversas entre Alceu e os convidados eram inevitáveis.
O marceneiro sentia-se realizado por ter logrado concluir o trabalho a tempo. Ansiava por
contemplar a transformação no semblante da mulher ao defrontar-se com seu presente de Natal! Na
verdade, não estaria ali para testemunhar a metamorfose, mas tinha absoluta certeza do profundo
efeito que a arca causaria na esposa.
Com a alma leve como não a sentia há anos, Alceu caminhou ao redor de sua obra, deslizando as
mãos calosas pelo tampo. Acariciou cada arabesco entalhado, cada detalhe. Nos dentes trazia presos
alguns longos pregos de aço e no bolso, seu pesado martelo. Quase com alegria fixou
definitivamente o tampo da arca, enchendo o porão com os sons de marteladas. Em sua mente
formou-se a desagradável imagem de sua mulher a repreendê-lo pelo barulho - ela era
extremamente sensível a qualquer ruído - , logo substituída por um sorriso sardônico. “Bendito
soporífero” - pensou.
Como um prisioneiro que se dirige às portas de saída da penitenciária, Alceu apagou o lampião do
porão e subiu as escadas, fechando a porta de acesso à chave. Atrás de si, sólidas trevas
aconchegando a arca. Do lado de fora da casa, a aurora já se anunciava, cobrindo tudo de vermelho.
Pegou sua pequena mala e uma caixa repleta de seus amados CDs, dirigindo-se à porta da frente.
Antes de deixar o casarão pela última vez em sua vida, fez uma metódica revisão final. Cortinas
corridas, janelas fechadas, luzes e gás apagados. Astrid não tolerava pequenas desarrumações e isso
acabara, ao longo dos anos, por criar nele uma verdadeira segunda natureza. Ao ganhar o exterior,
absorveu o ar frio da quase manhã, assobiando ao tempo em que brincava com a chave do carro.
Bateu e trancou a pesada porta principal dirigindo -se ao surrado fusca verde 77.
Já eram aproximadamente nove da manhã e uns quatrocentos quilômetros estrada a fora, quando os
acordes de “A Morte e a Menina” de Schubert enviaram o pensamento de Alceu de volta ao casarão.
A essa altura sua esposa estaria saindo do torpor dos soporíferos e contemplando seu presente de
Natal. Sua expressão já estaria totalmente mudada, por certo. Não mais o cenho franzido e o aspecto
amargo e desagradável. Agora apenas... o pavor. Antes de trocar de CD, Alceu pensou: “quanto ar
entrará na arca por aqueles orifícios? O suficiente por certo. Quantos dias alguém pode viver sem
água ou alimentos? Uns trinta dias, talvez mais!”
A MASMORRA DAS TRÊS PORTAS

" Sei que ele está aqui dentro... tão preso nesta escuridão maldita quanto eu. Irmão! Irmão!! Onde
estás? Preciso escapar daqui, mas tenho que levá-lo junto. Sempre fomos tão unidos, pelo menos até
recentemente. É impossível vivermos separados, precisamos completamente um do outro. Naqueles
tempos isto aqui também não era assim tão escuro... e saíamos frequentemente, sempre juntos. Mas,
aos poucos nosso mundo foi mudando, lenta e inexoravelmente e fomos mergulhando neste mar de
trevas, hoje apenas essas réstias de luz sobraram. Riscos prateados ao rés do chão que são as únicas
fontes de luz que nos restam. Portas fechadas. Estarão trancadas? O que haverá além delas? Não
consigo lembrar... A Realidade! Posso ouvir ruídos, passos, vozes abafadas, mas não consigo me
lembrar do que está por trás. Precisamos nos libertar, voltar a explorar o mundo exterior! Mas antes,
preciso encontrar meu irmão. Sua energia caótica, é imprescindível e sem ela não me atrevo a tomar
qualquer medida, a fazer nada. Ouço algo... alguém se move . Está mexendo na primeira porta...
Caim!" Estão voltando, Caim!!
"Onde esse idiota se meteu? Parece conformado em viver para sempre aqui trancado... É o que eles
querem! Que fiquemos aqui para sempre... Mas não vai ser assim. Sairei a qualquer custo. Com ou
sem Abel. Irmão! Irmão!! Onde estás? A primeira porta parece aberta.... deixe ver. Maldição! Estou
ficando... zonzo... o sedativo. Não, não de novo!" Malditos!!!"
Os dois médicos davam cabo do resto de café que estivera quente há cerca de uma hora atrás,
enquanto discutiam a evolução do quadro. As abordagens dos dois colegas a respeito do caso, não
podiam ser mais incompatíveis. Enquanto o Dr. Menelau insistia num diagnóstico clássico de TDI
(Transtorno Dissociativo de Identidade), o Dr. Aníbal flertava com algo mais heterodoxo.
- Não sei o que te leva a tais especulações Aníbal. Para mim não há nada de especial nesse caso.
- Como não? E as mortes? Como explicá-las?
- Até onde sabemos, duas apenas. Justamente o evento que desencadeou a crise. A morte dos pais de
Abel foi o estímulo do transtorno, nada mais , nada menos... Claro que um filho, até a véspera
tranquilo e pacato, degolar seus pais na festa do aniversário de 25 anos , não é lá muito normal. Mas
não é nenhuma raridade também. A violência do crime inclusive, serve para explicar o grau
profundo do transtorno gerado. Já quanto à causa primária do surto homicida, bem... Nem a polícia
conseguiu chegar a nenhuma explicação plausível. Todos afirmaram que ele era perfeitamente
normal, mas nós sabemos que isso nunca se pode afirmar, não é?
- Certo Menelau, mas outras mortes se sucederam. Aqui mesmo no hospital...
- Confesso que foi chocante, mas não vejo nenhuma razão para associá-las à morte dos pais do
paciente 22. A polícia acabará por deslindar o caso.
- Como não? Prá começo elas ocorreram nas semanas subsequentes à chegada do rapaz...
- E cessaram em seguida....
- Sim, depois que começamos a administrar o sedativo, não? Está clara a relação entre os eventos
em torno do paciente 22 e as mortes dos enfermeiros. Até o registro da atividade cerebral coincide
exatamente com a hora estimada das mortes...
- Dissestes bem: "estimada". De qualquer forma, coincidências ou não, seria simplesmente
impossível que um paciente em coma pudesse se levantar e degolar duas pessoas, voltando para o
leito em seguida... A atividade cerebral registrada indica
exatamente isso. Uma agitação lá dentro, na mente do 22 e não aqui no mundo real.
- Não sei como um psiquiatra pode se referir à mente humana dessa forma...
- Bem Aníbal, sejamos mais práticos e científicos. Afinal somos médicos, não é? Qual seria
exatamente tua tese?
- Simples. Nossa natureza essencialmente dupla, podendo ser rachada ao meio por um evento
suficientemente traumático.
- Traumático como....
- Como o assassinato dos próprios pais, por exemplo...
- Até aí, ok. Mas e as mortes dos enfermeiros? O cara nunca se levantou da cama desde que chegou
aqui!
- Seu corpo não, concordo. Mas e sua mente? E a energia desencadeada pela fissão de sua alma?
Não poderia um dos lados invadir.... o que chamastes de "mundo real"? De alguma forma
poderíamos reunir as duas partes através da reanimação do corpo e...
- Entregá-lo à Polícia?
- Detalhes legais meu caro Menelau...
- Uma tese nada científica, hás de concordar... Como testá-la?
- Tenho uma ideia...
-?
- Vamos suspender o sedativo e monitorar o que acontece, de perto, sempre aqui dentro, junto do
paciente. Não arredemos pé daqui.
"Ei, é você Abel? Que idiota sou... claro que sim. Quem mais poderia estar aqui nessa masmorra?
Levanta seu molóide! Estou me sentindo forte de novo! Eles parece que se esqueceram do
remédio..."
"Caim, me ajude a levantar. E agora, que faremos?"
" O que fizemos antes, é claro. Só precisamos escolher a porta certa. Em algum momento nos
levarão para outro lugar onde talvez possamos nos reunir novamente. Viver novamente! A primeira
porta está aberta. Vamos juntos explorar o além!"
"Caim, tenha calma. Deixe-me pensar... Essa porta... algo me diz que está sempre destrancada por
uma boa razão. Como se fosse sempre uma opção à disposição de todos... Venha, vamos até lá."
" Essa tua calma me exaspera, irmão! Mas talvez tenhas razão. Vamos até a primeira porta e
entremos de uma vez!!"
" Sim, escuta! Parecem gemidos... sofrimento. Risos também, risos inumanos. Parecem alimentar-se
da dor que preenche o além desta porta. Verdadeiramente infernal... Calma, meu irmão! Não entre
aí! Vamos examinar a próxima porta."
" Não vejo diferença, só estamos perdendo tempo!"
" Está destrancada também... Não se ouve nada. Vejamos.... vamos entrar Caim."
Além da segunda porta uma cena familiar. A suite de casal dos pais de Abel, iluminada fracamente
pelo abajur cor-de-rosa sobre o criado mudo. À esquerda uma penteadeira mais ou menos
desarrumada, com vidros de diversos tamanhos e cores, alguns abertos, outros meticulosamente
fechados e alguns tombados, perfumando desordenadamente o tampo do móvel. No centro a grande
cama de casal, lençóis amarfanhados e dominada pela patética figura de uma senhora, 40 anos
presumíveis. Num arremedo grotesco de Cristo repousava uma mulher deitada de costas, braços
abertos e cabeça quase separada do tronco. Seu penhoir originalmente branco, convertera-se num
irregular estampado carmim. Na parede direita, um grande armário aberto de par em par. Um corpo
nu jazia caído em seu interior, pernas para fora ao lado da cama. Nádegas murchas num sorriso
triste. Parecia que o homem buscava alguma coisa no interior do móvel antes de despedir-se da
vida.
- Veja Menelau! A atividade cerebral voltou!
- Tens razão, Aníbal. E repare, as pálpebras apresentam leve tremor... Mas não te animes demais...
Isso não prova tua tese de forma alguma. A menos que o paciente se levante e....
- Não é caso para brincadeira. Vou aplicar uma injeção de PHV-300.... Pronto. Deve fazer efeito em
alguns minutos. Olhe Menelau! O monitor de batimentos! Deixe-me ouvir diretamente no peito do
paciente...
" Abel, vamos embora daqui, vamos para a terceira porta. É ali nossa escapatória. Já me lembro, foi
por ela que quase consegui nos libertar... Não fosse tua covardia! Ficastes para trás! Não existo sem
você, bem sabes... Mas pelo menos aqueles enfermeiros não atormentarão mais ninguém,
HAHAHAHA! Vamos, vamos!"
"Sim, sim... só juntos poderemos fugir daqui. Mas chega de sangue, Caim. Iriam nos buscar, não
vês? Agora, muita calma. Vamos ver essa porta... sim, está destrancada também. Espere! Vamos
ouvir... Tem duas pessoas conversando.... humm..."
"São os médicos, com certeza Abel. Não vai dar para ser "sem sangue", caro irmão...hehehe"
Uma irreal sensação tomou conta dos dois irmãos, uma espécie de vertigem, como se caíssem num
profundo abismo. A masmorra, as réstias de luz nos pés das portas, os sons indistintos, tudo se
desmanchava e fundia rapidamente. A escuridão tinha sido substituída por uma forte iluminação,
que chegava ao cérebro do paciente numa onda rósea, filtrada pelas pálpebras cerradas.
Ocupado em febrilmente digitar anotações do experimento em seu laptop, o Dr.Menelau não notou
a princípio o que sucedia. Um som porém, atraiu finalmente sua atenção. Era como um sacudir de
roupas num varal, entremeado por um contido gorgolejar. Voltu-se então para a origem do mesmo: a
mesa onde o paciente 22 estava sendo assistido pelo colega . Alguns poucos e intermináveis
segundos foram necessários para que seu cérebro pudesse dar uma explicação coerente para a cena
que se apresentava à sua frente. O corpo do Dr. Aníbal era sacudido pelo braço do paciente, mais
parecendo uma boneca de pano na mão de uma criança. Seu rosto estava virado de lado, olhos
vítreos e sem vida, braços aferrados ao corpo inerte do paciente numa tentativa de libertação. Em
seguida, como um um roupão que se despe ao entrar no banho, o corpo do médico caiu ao chão
quase sem ruído, libertado do aperto fatal. Os olhos do 22 abriram-se e fitaram o Dr. Menelau com
uma mirada feroz e animalesca. O médico, na desesperada tentativa de sair daquela cena de loucura,
buscava abrir a porta da enfermaria. Inútil. A chave descansava no bolso do jaleco do Dr. Aníbal.
A polícia não teve qualquer dificuldade em dar o caso como resolvido, bem como as mortes dos
enfermeiros que ocorreram antes. O assassínio dos dois médicos e o desaparecimento do paciente
internado na enfermaria onde seus corpos foram achados, não deixou qualquer dúvida. Já os
assassinatos que ocorreram nas imediações do hospital nos meses subsequentes, continuam sem
solução até hoje.

A REDE

Sempre digo que a perda de um filho é a maior tragédia que pode acontecer na vida de alguém. O
contrário, por mais terrível que seja, é quase natural, esperado, podemos assim dizer. Entretanto, o
que se passou com Antenor superou em muito o horror da morte de um filho. Tudo começou da
forma mais prosaica, como veremos...
"- Pai! O que é "Deep Web"? "
A inusitada pergunta deslocou-se da frente do computador até alcançar Antenor sentado num sofá
alguns metros adiante. As impressões subliminares da palavra o arrastaram bruscamente do blog
esportivo para o mundo real de trevas e pavor. Por intermináveis décimos de segundo, o celular
trepidou nas mãos do homem, indo parar no tapete aos seus pés, após cômicas piruetas no ar. Qual o
interesse que um menino de nove anos poderia ter em tal assunto - pensou ele.
"- O quê? Tite, o que estás vendo aí no computador?
- nada, pai... Só queria saber de que se trata. Muitos amigos falam sobre isso. Dizem que é um lugar
onde acontecem coisas horríveis... É verdade?
- não, Atílio, não é bem assim. É só uma parte da Internet onde não existem regras e você nunca
sabe com quem está lidando.
- humm...
- é mais ou menos como andar numa favela de madrugada...
- então acontecem coisas horríveis sim, pai!!
- hehehe... Bem, é hora de dormir! Amanhã tem aula. Já prá cama!! "
O menino correu pro quarto, mergulhando momentos depois num sono pesado, povoado por
assassinos de aluguel, sexy-dolls e traficantes de órgãos. Lá em baixo, o computador do jovem
manteve-se por alguns instantes em atividade, emitindo abafados sons eletrônicos e cintilações
luminosas, o que atraiu a atenção de Antenor.
"- O que esse moleque estava fuçando aqui? Vejamos.. Tudo apagado!? Mas não o vi... Bem, vamos
ao histórico de navegação. Aqui... Ué? Zerado? Impossível!"
Pela mente do homem passaram as amargas lembranças de sua própria experiência com os
subterrâneos da Grande Rede. Uma rápida sucessão de recordações amargas, semelhantes àqueles
filminhos de aniversário. A descoberta da traição da mulher ; seu desaparecimento; o choque de se
ver só com uma criança pequena para criar; o abandono do emprego. Tudo que somado, o levou à
beira da loucura. Como produto desse verdadeiro inferno em vida, a mente de Antenor rachou.
Passou a empregar tempo cada vez maior navegando na web, negligenciando o cuidado com o filho
e com sua própria vida. Numa desesperada reação de sobrevivência, um resto saudável de seu
cérebro assumiu as tarefas do dia a dia, enquanto a parte doente mergulhou cada vez mais fundo no
mundo virtual. Esse equilíbrio instável inevitavelmente cobrou seu preço. Foram seis meses de
internação numa clínica, enquanto o pequeno Atílio ficou aos "cuidados" de uma tia distante e quase
desconhecida.
"- Parece que alguém apagou o histórico, mas Tite não teve tempo prá isso... Só tem um jeito de
saber."
Lutando intimamente contra a garra gelada que apertava seu coração, o olhar do homem se dirigiu
para a escada de acesso ao sótão onde, nos tempos de loucura que acreditava enterrados, havia
montado sua estação de trabalho conectada à rede da casa. Sua plataforma de exploração das
profundezas macabras da Rede.
Lentamente subiu os degraus, cada passo representando uma batalha titânica contra o medo.
Precisava avançar, porém. A verdade deveria estar alí.
Os dedos trêmulos introduziram e giraram a chave na porta, acendendo em seguida a luz da saleta,
uma fraca adversária para a treva densa. Por toda parte a onipresente poeira, exceto na cadeira
postada em frente ao computador. Antenor dirigiu-se ao equipamento, sentando-se. Os olhos
cansados em busca de informações.
- "quem andou mexendo aqui! Não pode ter sido Tite.. a porta estava trancada.. Será..? Não, claro
que não. Deus não permitiria!"
Seu cérebro afastou a pergunta sem resposta focando a atenção no mais urgente. Dali poderia checar
todos os acessos feitos por meio da rede doméstica, mesmo os registros deletados nas estações
periféricas. Algumas dedilhadas após e a lista de endereços visitados nas três últimas semanas
surgiu, piscando maliciosamente para o homem. Como esperava, do notebook do menino nada de
mais. Sites de filmes, um ou outro acesso mais picante, mas tudo na surface. O mesmo padrão no
equipamento central. Apenas logons quase diários, mas sem navegação alguma. Mistério...
- "caraca! Já passa da meia noite.. Preciso comer algo. Bem, aqui não consigo mais nada mesmo.
Talvez no celular dele, em outra rede. Na casa de algum colega, sei lá.."
Impulsionado pelos roncos no estômago, o homem deixou o Império do Pó para trás e dirigiu-se à
cozinha atrás de um lanche salvador naquela madrugada fria. Mas, nem a fome afastou o ricochete
de perguntas sem resposta em sua mente. Quase por acaso, algum dos questionamentos acendeu
uma luzinha, que rapidamente cresceu como um incêndio. Máquinas virtuais! Ele esquecera de
checar..
"- é isso! Claro! Ninguém navega na dark com sua própria máquina. Sim, vejamos!"
Em segundos a trilha escada acima foi refeita e em minutos, o diretório de máquinas virtuais expôs
seus segredos. Nos tempos de loucura que pensava ter deixado para trás, Antenor criara inúmeras
máquinas virtuais para navegar em relativa segurança na deep web. Lá estavam elas, todas
previsivelmente inativas. Menos uma. Inúmeros registros de atividade, in e out, subitamente
iniciada há cerca de trinta dias. Uma conversação. Com quem?
"achei! Mas, peraí... Como uma criança de nove anos consegue fazer isso? Como entrou aqui, prá
começo de conversa? Como descobriu a senha de acesso à conta?"
A resposta óbvia a tais perguntas gelou a alma de Antenor...
De qualquer forma, pouco antes do filho ir para seu quarto, ele estava navegando, com certeza. Ao
menos isso deveria ter ficado no histórico. Uma criança não teria o conhecimento nem a destreza
para limpar o acesso em segundos.
"um problema de cada vez. Primeiro, como esta conta virtual foi usada? Tite nem tem chave daqui
do sótão... Mesmo que se utilizasse de algum esquecimento meu, não tem a senha. Ademais, por
que? Não, não, ele não foi. Bem vamos descriptografar essa conversa... "
Aquela conta, em função de seus fins, fora dotada de um mecanismo de segurança que
automaticamente criptografava todo o tráfego na rede, diálogos, textos, enfim, tudo. O software de
decriptação, numa medida suplementar de segurança, ficava em outra máquina virtual com acesso
particular e diferente. Um intruso não conseguiria sequer entender os textos que chegassem. A
demonstração definitiva de que Atilio não tinha nada com tudo aquilo. Até onde Antenor soubesse,
desde sua internação na clínica a máquina não voltara a ser usada. Acessada a conta onde residia a
ferramenta de decriptação e
acionada esta, o teor da conversa mantida no histórico metamorfoseou-se rapidamente em um
português razoável.
- oi, "feirante"!
- que?
- somos nós, "atravessadores-4" de novo. Lembra de nossa conversa semana passada? O acesso
remoto e tudo mais..
- não conheço ninguém...
- não precisa disfarçar. Sabemos que voltou à ativa. Precisamos de mais material. Você sabe, tem
muita gente necessitada no mundo..
- vocês devem estar enganados.
- já chega de brincadeira. Precisamos de algo muito especial desta vez. Vai ser bem mais difícil que
da vez passada e mais bem paga também! Razões sentimentais...
- não sei...
- como na entrega passada você tem o material em sua própria casa...
-??
- precisamos de..
Com uma incontrolável excitação, o homem desligou o computador diretamente no power. Uma
multidão de gotículas de suor se acumulavam em sua fronte, até formarem um filete que escorreu
face abaixo. Em pouco mais de cinco minutos um pequeno traço pulsante na tela, acompanhado de
um "plim" agudo e cortante indicou ao atônito Antenor que o equipamento fora religado. Seus olhos
arregalados além do natural acompanharam a indicação de nova mensagem.
"continuando:.. Medula óssea. Bem nova, nada além de.. digamos.. nove anos..?"
Antenor sentiu lhe faltarem as forças, exatamente como na época da internação. A vista escureceu e
seu corpo inerte deslocou-se lentamente para a direita até tombar no chão poeirento como um saco
de batatas.
" - pai? Que barulho foi esse? Pai! Você está bem?? Levanta pai.."
O despertar do homem, mais precisamente seu olhar gélido, quase repitiliano, foi como um tapa no
rosto da criança. O contraste entre o amor filial e a expressão inumana do pai, sublinhada pela voz
sussurrada, lançaram o pequeno Atílio porta afora. Antenor repôs a cadeira giratória em pé,
sentando-se. O ranger do móvel pareceu acalmá-lo. Uma mão firme e tranquila retomou o controle
da máquina.
- vejamos... Sim, sim. - oi, aqui é o "feirante"
- claro, quem mais? Vejo que está melhor...
- qual meu dead line? Prá quando a entrega?
- o que? Já esqueceu? Como conversamos semana passada, hoje passamos aí para fazer as
compras... Você não parece realmente recuperado. Isso é muito sério, meu caro. Nosso negócio
depende completamente da previsibilidade. Precisão nas entregas é essencial. Bem como sigilo...
- sim, claro. Não se preocupem. Até as dez e boas compras!
- Hehehe.. até.
O homem levantou-se deixando atrás de si o ruído de logoff e o progressivo mergulhar do
sótão na escuridão. Como um autômato, desceu as escadas, assobiando "Over The Rainbow" e, ao
passar pelo quarto do filho, não chegou a notar o olhar vidrado da criança. Ao chegar à cozinha
abriu o freezer, dele retirando uma embalagem térmica, enchendo-a de cubos de gelo. Em seguida,
sempre embalado pela melodia desafinadamente assobiada, alcançou uma caixa guardada na mais
alta prateleira do armário, dela retirando alguns instrumentos cirúrgicos. Uma expressão idiota,
emoldurada por um quase imperceptível sorriso, dava às suas feições um toque irreal. Concluída a
arrumação das peças de aço ao longo da mesa de mármore, o grito fatídico ecoou pela casa vazia:
" - Atílio! Vem cá! Rápido!!"
A mão direita do homem tamborilava tranquilamente no tampo frio da mesa, enquanto a esquerda se
contorcia como uma grande aranha ferida de morte.

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

"Boa noite a todos! Hesitei muito antes de decidir-me a falar a vocês. Afinal, não tenho a mais
ínfima vantagem em expor-me dessa forma. Cheguei mesmo a temer por minhas atividades e até
por minha própria existência. Por que fazê-lo já que todos sabem que o segredo é a alma do
negócio? Meu plano de ação vem sendo aperfeiçoado por longo tempo e, não sem modéstia, afirmo
que chega quase sempre a bom termo. Assim, por que abrir o jogo dessa forma? Por que não
continuar a agir despercebido? Confesso que ainda não sei exatamente. Talvez vaidade. Não dizem
que os psicopatas assassinos inconscientemente buscam serem pegos? Para tanto não deixam pistas
abundantes de seus crimes? Pistas estas que jamais poderiam ser fruto de erros ou incompetência?
Não que eu me considere um psicopata, muito menos um assassino. Não, muito pelo contrário.
Minha missão pode ser considerada mesmo como divina. Meu compromisso, desde sempre foi com
o livre arbítrio e com a liberdade do ser humano. Talvez a busca por novos desafios, sei lá...
Esta singela conversa busca discutir as maravilhas da época em que vivemos. Ao contrário do que
muitos afirmam, nossa existência se passa num mundo perfeito, livre e feliz. Todos tem as
condições necessárias e suficientes para alcançar uma vida de eterna satisfação e gozo. Justamente
por isso motivei-me a vir a vocês (e aqui agradeço àquele que gentilmente se dispôs a colocar meus
pensamentos no papel. Valeu, Vitormam!). Basta compararmos a situação atual com épocas
passadas, cheias de superstição e medo (não foi sem razão que a Idade Média foi sempre conhecida
como a "Idade das Trevas"). Vejam os últimos dois mil anos, por exemplo. Os seres humanos foram
induzidos, sabe-se lá com que propósito, a crer em esdrúxulas teorias comportamentais. Em resumo,
passaram a acreditar que "o que é prazeroso é mau e o que trás sofrimento é bom". Toda uma ética
planetária foi construída sobre tais sandices. Como foi possível que milhões de pessoas puderam
acreditar nisso e pautar suas vidas neste tipo de "lógica"? Hoje, contrariamente, o ser humano
despertou de milênios de hipnose coletiva e trilha o caminho reto e simples da busca de seu prazer e
auto realização. Foi uma trajetória difícil e cheia de percalços, já que o Homem é essencialmente
inocente e vulnerável à lábia de criaturas mal-intencionadas. Mais uma vez com um ponta de
vaidade, registro o fato de que tive alguma participação nessa verdadeira revolução.
Em todos os campos do conhecimento vocês poderão perceber a maravilhosa transformação que se
processa diariamente e conduz o ser humano à sua plena realização. A política e a gestão do Estado,
por exemplo. Já foi o tempo em que predominavam neste mundo conceitos que justificavam a
injustiça. Não só consideravam as diferenças entre os homens como naturais e reflexo de
capacidades diferentes inatas a cada um, mas buscavam cristalizar tais diferenças. Felizmente
movimentos políticos surgiram a combater em prol da destruição desse verdadeiro mundo de
iniquidade. Nessa luta, velhos campeões da injustiça vem sendo solapados dia após dia,
enfraquecendo assim o que ainda resta daquele mundo antigo: a Religião, a Família, as Tradições, a
Autoridade etc, etc. Todos conceitos burilados por séculos e mais séculos, ganhando uma pátina de
respeitabilidade e imenso valor. Talvez eu tivesse alguma dificuldade de fazer tais comentários há
algumas décadas atrás, mas hoje não! A espécie humana aproxima-se de seu brilhante destino final e
hoje já é possível abordarmos estes assuntos. A evolução da consciência é hoje já tão avançada, que
bastam pequenas considerações para que conceitos como os que mencionei caiam no ridículo.
Religião? Um conjunto de mitos, lendas e crenças absurdas. Família? Talvez a mais forte instituição
dedicada à preservação dos conceitos do passado. Precisamos dizer mais? Tradições? Nada podem
contra a Ciência, que dia a dia lança luz sobre recantos sombrios do intelecto. Autoridade? Para que
necessitamos dela, a não ser para oprimir as massas?
Nosso "Admirável Mundo Novo" é realmente admirável. As facilidades que a Ciência nos oferta
permitem que quebremos as correntes que nos prendiam até pouco tempo. Não há mais a
necessidade infantil de seguirmos ensinamentos "sábios", bastando nos mantermos conectados e
compartilhando nossa própria sabedoria natural. Hoje nos encontramos perto da libertação
definitiva, bastando que persistamos no caminho da luz. Ao lixo com a Religião, Família, Tradições
e Autoridade! São os verdadeiros cavaleiros do apocalipse e devemos nos livrar deles. No lugar da
carcomida Religião (por que ainda escrevo isto em maiúscula?), ponhamos a coesão instintiva do
homem e sigamos o que nossa necessidade de prazer nos demanda. Ao invés da família (dessa vez,
me lembrei a tempo...), as comunidades livremente eleitas e que nos dão prazer. Afinal, a família
nada mais é que um ajuntamento aleatório de pessoas, que não necessariamente se amam, não é
mesmo? No lugar das absurdas tradições, sigamos confiantes a luz que nasce da Ciência!
Autoridade? Sejamos nós mesmos a autoridade, sem limites ou freios. Nascemos para alcançar a
satisfação, não? Era isso que tinha a dizer a todos. Sejam felizes. Quem sou eu? Bem, eis meu
nome:
O Portador da Luz- ‫לוציפר‬
ps.: Não sabem hebraico? Bem, nada que o Google Translator não resolva....
"Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde
o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria
língua, pois é mentiroso e pai da mentira."
João, 8:44
BLAUE DIVISION

Smolensk - Rússia, 31 de outubro de 1941.


Diogo mirava absorto o caco de espelho enquanto fazia a barba. A navalha cega produzia um ruído
irritante em sua luta contra a barba hirsuta. REC, REC, REC... Na verdade fora aquele mesmérico
som que despertara nas profundezas de sua mente uma curiosa e forte sensação de de já - vu. Tinha
a nítida impressão de já ter visto antes seu rosto triste refletido naquele triângulo irregular. Até a
neve ligeira que caía fora da barraca, visível no espelho, lhe era familiar. O homem pousou a
navalha na mesa à sua frente e deixou-se navegar num turbilhão de imagens mentais: a noite alegre
em Vila Real, quando passados já cinco anos, resolvera se alistar nos "Viriatos" (**) e ir combater
na Espanha; a horrível experiência da batalha de Teruel, onde fora o único sobrevivente luso; o
desfile da vitória em Madrid, a melancólica volta para casa; o telegrama dos camaradas falangistas
dando notícia da formação de uma divisão de voluntários para lutar na Rússia; o alistamento na
Divisão Azul: a partida para a Alemanha; os treinamentos militares; a camaradagem e a inclusão na
Waffen-SS; a chegada na Rússia. Lembrou-se de forma particularmente vívida do orgulho ao
receber a farda cinza com o brasão da "Blaue Division" bordado no ombro.
O sonho (?) foi rudemente interrompido pelas solenes badaladas do sino da cidade ocupada. Diogo
debruçou-se na janela do barracão e contemplou pensativo as macissas muralhas do Kremlin de
Smolensk. Nem as centenárias defesas de pedra tinham podido deter o impetuoso avanço do
exército germânico. "Mas e adiante? O que os aguardaria?" - pensou ele. Intuitivamente, seus dedos
gelados agarraram a imagem da Virgem que trazia sempre ao pescoço. Um presente de sua avó que
o protegia desde a infância. De alguma forma inconsciente, Diogo sabia que o que os aguardava
adiante era nada mais nada menos que o inferno. Um inferno gelado, cujo eterno cinza só era
quebrado pelo escarlate do sangue derramado.
Krasny Bor (arredores de Leningrado) - 10 de Fevereiro de 1943 - a "quarta-feira negra"
A situação era desesperada, tanto pelas condições atmosféricas - aquela escura manhã registrava a
inumana temperatura de trinta graus negativos - como pela desproporção de efetivos em luta. As
hordas soviéticas superavam os voluntários da "Blaue Division" em mais de três por um e o
martelar impiedoso dos foguetes Katyusha parecia apertar os corações dos bravos ibéricos com uma
garra monstruosa. Cabia aos divisionários conter o avanço comunista o máximo possível, de forma
que as linhas alemãs pudessem se recompor ao redor do flanco sul da cidade de Pedro o Grande. Ao
final do dia a Morte já recolhera na lama enregelada quase oitenta por cento dos voluntários.
Diogo pouco a pouco foi despertando do torpor que dominava seu corpo e alma. Cego por
estilhaços, sentiu-se meio soterrado por lama sangrenta e gelo sujo e ao seu redor, pedaços de
cadáveres testemunhavam o efeito da bomba que caíra certeira em seu pedaço de trincheira. Sentia
que a vida lhe escorria das veias, misturando-se à terra russa. Agarrou compulsivamente a imagem
sagrada em seu pescoço e, com todas as forças, implorou à Virgem por sua vida. Não era justo que
terminasse assim, como um rato, a milhares de quilômetros do seu Douro natal.
"Viverás, sim! Não por tua tola fé nessa ridícula imagem, mas por que eu assim o desejo! Mas há
um preço a pagar..." A enorme figura embuçada em negro, susteve o soldado em suas garras
ossudas, como se segurasse uma boneca de pano. Encarou-o, e nesse momento, , a cegueira de
Diogo provou ser uma benção divina.
Diogo caiu em si, mirando o espelho triangular. A neve caia suave, cobrindo as muralhas de
Smolensk. Na mão uma navalha e na mente uma pergunta: "o que o esperava adiante?". REC, REC,
REC....
FIM (?)
(*) BLAUE DIVISION : Divisão Azul. Divisão de voluntários espanhóis e portugueses,
incorporados ao exército alemão em 1941 para participar da invasão da União Soviética. O nome
deriva das camisas azuis que estes combatentes usavam na guerra civil espanhola.
(**) VIRIATOS: Voluntários portugueses que em 1936 incorporaram-se aos nacionalistas espanhóis
para combater o governo republicano na Guerra Civil Espanhola. Em 1941 alguns voltaram a unir-
se aos espanhóis na criação da Divisão Azul. Estima-se que menos de dez destes homens tenham
retornado a Portugal ao fim da guerra. O nome "Viriato" faz referência ao guerreiro celta lusitano
que enfrentou a invasão romana na península ibérica.

COMO UM CASTELO DE CARTAS

O som lá fora anunciava o caos. Uma mistura de gritos, lamentos, sirenes e eventualmente tiros. Os
pingos que loucamente vinham se chocar contra o vidro da janela, ao escorrer pareciam convidar o
homem a observar o mundo exterior. Sem efeito. Seis meses antes e Manoel teria certamente
respondido ao convite, não agora. Não sentia nenhuma vontade de presenciar a destruição de tudo
que conhecera e amara um dia. Ademais, conhecia bem a tragédia que tão sem aviso se abatera
sobre a Humanidade. Como costuma ocorrer em filmes B, onde tudo tem que acontecer em mais ou
menos uma hora, os milhares de anos de sofisticação e avanço tecnológico acumulados por nossa
pretensiosa civilização foram aniquilados em aproximadamente cento e oitenta dias. Muito sempre
se falou sobre a fragilidade da vida moderna, sobre como causas relativamente banais teriam a
capacidade de destruir a organização social que o ser humano construíra ao longo dos milênios.
Choque de asteroides, mudanças climáticas, guerras mundiais, terrorismo super armado, um novo
micro-organismo resistente a qualquer agente químico, poluição e por aí a fora. Curiosamente, a
única causa de destruição em massa que o planeta já assistira no passado não fora considerada: a ira
divina. Nada menos que a intervenção direta de um ente superior poderia explicar o que se passou.
Como das vezes anteriores, o ser humano havia perdido toda a noção de sua própria natureza, ao
ponto de não mais se reconhecer como parte integrante do mundo biológico. Talvez essa mesma
soberba tenha impedido que se pudesse perceber o que ocorreu. Mas de que adiantaria isso? A
marcha dos acontecimentos poderia ter sido alterada? Seguramente não, porém poderiam ter
caminhado para a extinção menos angustiados, conformados com justiça da punição.
A visão de que eram uma espécie diferenciada das demais caíra em poucos meses, como um castelo
de cartas. Prostado na cama, Manoel viu passar ante seus olhos o que acontecera, como num
documentário.
"- Manoel! Manoel! Olha só o que estão falando na TV! É sobre a epidemia!!
- agora não posso, Sandra. Tô no home pagando contas...
- vem!!
O homem se atirou para trás com a cadeira de rodinhas, afastando-se do computador. Já ruminava o
que diria à esposa e sobre sua "preciosa" notícia. Manoel se orgulhava de ter opiniões sobre tudo e
no caso da virose que estava dizimando as crianças venezuelanas não podia ser diferente.
- O que há de novo afinal, mulher? Acabaram as crianças na Venezuela?
- não brinca com coisa séria... Não é mais só lá não.
- o que? Esses refugiados de merda! Bem que eu disse que devíamos fechar as fronteiras...
- o Ministro acabou de dizer na TV que o exército fez exatamente isso. Roraima está sob
intervenção!
- típico de políticos... Pondo cadeado em porta arrombada. Que disseram mais?
- é, parece que você tem razão. Já tem um monte de casos por lá. Aqui no Sul também. Te lembra
que andaram distribuindo refugiados pelos outros estados?
- uns bostas! Bem que eu avisei... Que mais disseram?
- parece que a doença se espalha pelo ar e por isso tem avançado tão rápido. Já tem casos até nos
Estados Unidos e na Europa.
- putz!
- mas o Ministro garantiu que o vírus já foi isolado e é prá todo mundo ficar tranquilo.
- sei! Não dá prá confiar nesses caras. Por falar nisso, como está a Flavinha?
O fato é que o Brasil, bem como todos os demais países, não estava preparado para fazer frente ao
desafio. A doença surgira inesperadamente no país vizinho e levada para
todos os cantos do planeta pela trágica migração das pessoas tentando fugir do regime político
venezuelano. Tudo que se sabia é que uma nova cepa de vírus atacava unicamente crianças
pequenas, causando hemorragia intensa por todos os orifícios corporais. Em algumas horas e a
pequena vítima estava morta. Mas o pior ainda seria descoberto...
Esse foi o início de tudo. Banal e repetitivo, familiar a todos, quase se poderia dizer. Nada mais
corriqueiro do que notícias sobre a miséria humana brotarem a cada noite das telas de TV e se
sentarem à mesa das famílias. Sempre casos ocorridos no "outro lado do mundo", afetando seres e
locais distantes de nós. Mas dessa vez a coisa foi bem diferente. Nada de África ou minorias. As
notícias que se sucediam tratavam de casos cada vem mais perto, como a imensa sombra da noite
que inexoravelmente aos poucos cobre tudo. Mas uma noite que não seria seguida por nenhum
alvorecer. Os acontecimentos, as internações em massa, as declarações atarantadas de cientistas e
políticos, agora emanavam do hospital do bairro e do governo municipal, não mais de outro
continente.
- Flavinha? Está ótima, claro. Já foi dormir.
- tão cedo?
- ela disse que estava cansada. Amanhã tem prova e achou melhor descansar..
O casal sentou-se para jantar procurando aparentar tranquilidade. Cada garfada e gole de vinho
eram intercaladas por fragmentos de informação vindas da TV. As notícias rapidamente superaram a
fase da "tranquilidade", passaram para o nível da "crítica ao governo" e ameaçavam chegar no
umbral do pânico. O auge do processo foi marcado pela precipitada saída do cenário do telejornal
de seu âncora. O programa se encerrou de forma inesperada, sendo substituído por uma mensagem
sobre "problemas técnicos" e uma emissão de uma alegre música de ballet. Nada mais incongruente
com a sensação de terror que se apossava dos corações da população.
- que bizarro, mulher! Nunca vi disso. Muda de canal...
- perai...
O zapear não teve o poder de mudar a situação. Em todos os canais a mesma interrupção nas
transmissões, variando apenas a emissão utilizada em substituição à programação normal. Uma
situação quase insuportável para uma Sociedade incapaz de viver sem TV. Manoel e Sandra
trocaram olhares e leram mutuamente seus pensamentos, com a clareza dos tempos de namoro.
Simultaneamente se levantaram da mesa com destino ao quarto da pequena Flávia. Seus passos se
detiveram e seus corações congelaram ao chegar até eles um gemido de criança. Um som baixo,
sofrido, interminável, suplicando por ajuda. Quase um uivo de animal ferido de morte. O soar das
dez horas no relógio da sala conseguiu quebrar o encanto e os lançou aos tropeções em busca da
filha.
Mais rápido que sua esposa ao galgar as escadas, Manoel abriu a porta do quarto da filha com um
pontapé. No interior do cubo negro à frente, apenas o silêncio e um cheiro enjoativo e doce. A mão
trêmula da mãe, insinuando-se às costas do marido, dirigiu-se ao interruptor. Ambos pareciam temer
o que a luz revelaria. Ela entretanto, revelou apenas um cômodo vazio, varrido de tempos em
tempos pela cortina da janela aberta.
Fora da casa, os carros da polícia, ambulâncias e viaturas militares formavam um semicírculo em
frente ao portão frontal. Alguns homens com roupas brancas anti-contaminação e um trio de oficiais
conversavam, aparentemente buscando definir o que fazer. Subitamente a tensão é quebrada pelo
inesperado surgimento de uma criança, vinda aos tropeços dos fundos da casa cercada. A silhueta
pequena, com as brancas vestes de dormir açoitados pelo vento, iluminava a escuridão da noite.
- veja capitão! Uma menina!!
- sim, graças a Deus... Já podemos iniciar a limpeza da casa 13. É a última da rua. Levem-na para a
quarentena. O estágio atual já não afeta crianças, mas nunca se sabe.
- Sim capitão. Vamos querida, você vai ficar bem.
A criança, rapidamente envolvida em uma espécie de capa plástica por algumas enfermeiras, é
conduzida para uma ambulância. Seu olhar angustiado porém, persiste fixo em sua casa, até ser
engolida pelo veículo hospitalar. O som metálico da porta do veiculo ao se fechar, dá a senha para a
invasão da residência. Três soldados sobem as escadas do acesso principal enquanto grupo idêntico
dirige-se aos fundos da casa. Ambos desarmados, a não ser pelos lança chamas.
A cena que recepciona os militares é extremamente prosaica, a sala de uma residência de classe
média típica. Móveis de MDF com porta-retratos e lembrancinhas de viagens, reproduções de
pinturas manjadas nas paredes, a onipotente TV a dominar tudo. Aqui começava o insólito. A TV
emitia apenas chuviscos, como se estivesse ligada de madrugada. A mesa, posta para três, retratava
um jantar provisoriamente interrompido. Batatas pareciam guardar os pratos até a volta de seus
futuros executores, além de taças de vinho pela metade. Um solitário garfo rebrilhandono chão,
ainda com um pedaço de bife entre os dentes, denunciava a precipitação com que haviam deixado a
sala. Todo o ambiente sublinhado por esfregaços de uma gosma mal-cheirosa. Paredes, maçaneta da
porta, toalha da mesa, enfim, por toda parte traços daquela matéria orgânica em decomposição.
O trajeto seguido pelos soldados da sala ao quarto era como que sinalizado por carne podre. A
intensidade crescente do odor nauseabundo por sua parte, confirmava o caminho a seguir. O quarto
era solidamente negro. Apenas dois pares de luzinhas refletiram a indagação lançada pelas lanternas
dos soldados.
- aí estão eles.. Vamos acabar logo com isso. Soldado!
O drama termina após o lançamento do jato fulgurante de chamas para o interior do quarto, o
fechamento da porta é a saída precipitada dos homens da casa agora condenada. Em minutos os
veículos militares abandonam o local, deixando para trás uma rua pontilhada de casa em chamas.
Da casa 13 brota un uivo inumano, o ponto final da tentativa da Civilização de evitar o inevitável.

DE VOLTA PARA CASA

Suas pesadas botas esmagavam os gravetos semienterrados pela neve fina do início da manhã. O ar,
gelado e puro, revigorava os pulmões do caminhante, impulsionando-o colina acima. Todos os anos
aquela peregrinação se renovava. Invariavelmente a cada outubro ele iniciava a longa jornada da
volta ao lar ancestral. Como uma ave migratória, fazia sempre o mesmo trajeto: da caverna
desconhecida que lhe servia de lar até a pequena cidade aninhada no sopé da colina e, após breve
parada,, a estafante caminhada morro acima até o pequeno e isolado conjunto de casas. A antiga
trilha, a cada ano se mostrava mais e mais abandonada. Isso, entretanto, não se constituía em grande
obstáculo para ele. Nem o grande e imundo saco de lona que arrastava por uma corda o impedia de
abrir caminho em meio a ramos e galhos ressecados, afastados pelas mãos enormes e grosseiras.
O sol em declínio já ameaçava transformar tudo, bosque, colina e céu, numa massa negra e informe.
Após pendurar o saco de lona num galho de árvore a cerca de dois metros do chão, sentou-se numa
pedra larga bem ao final da trilha. Mais além se descortinava uma clareira, já a essa altura dominada
por sombras longas do fim de tarde. No centro da mesma, um aglomerado decrépito de pequenas
casas, contidas por uma cerca de ferro e mais ao longe pelo maciço paredão da floresta. São apenas
vinte casas ladeando um pátio central sem saída. Do lado de fora do portão um cemitério em estado
precário, lápides caídas como dentes ausentes numa boca escancarada. Pouco atrás da necrópole, o
que parecia ser uma pequena horta, provável única fonte de suprimentos da isolada comunidade. O
silêncio da quase noite só era quebrado pelo cadenciado ruído metálico do portão, movido pela mão
invisível do vento. Apesar do crescente predomínio da escuridão, nenhuma luz se anunciava no
interior das casas. Dir-se-ia uma vila totalmente desabitada. Imerso em seus pensamentos, o homem
contemplava imóvel seu local de nascimento. Alguns metros atrás, o saco girava quase
imperceptivelmente ao redor da corda que o prende ao galho, até finalmente imobilizar-se de novo.
Pouco a pouco grossas e escuras gotas se desprenderam da lona, caindo no soloenregelado. O
líquido se alastrou pelos cristais de gelo até formar uma poça viscosa que em instantes se converteu
numa lâmina escarlate.
Por trás dos postigos das janelas, os aterrorizados habitantes da aldeia isolada aguardavam o retorno
renovado anualmente. A sombra colossal que emergiu da floresta desencadeou, como uma descarga
elétrica, o mesmo grito silencioso na mente de todos: “ele voltou!”. A cada passo do visitante na
direção do portão da vila mais se agigantava sua silhueta, até engolfar todo o conjunto de casebres.
O guincho estridente do portão a abrir-se, rasgou a noite e reverberou na alma de todos.
Ultrapassado o portão enferrujado e úmido, o recém chegado apressou o passo na direção na
segunda casa à direita. Uma vez mais a esperança encheu seu poderoso peito e o impulsionou em
busca de seu pai. Sua mente confusa não conseguia concatenar os pensamentos de forma lógica.
Um mero instinto animal – arremedo de raciocínio humano – indicava o que fazer: precisava
encontrar seu pai e criador, dar a ele a matéria que possibilitaria a solução de seu problema e
confiar. Apenas seu pai teria o poder de curá-lo. Afinal, não era ele um Deus? Alguém com o poder
da vida e da morte? Aquele conjunto de reflexões teve o dom de acalmá-lo, a ponto de provocar
algo semelhante a uma gargalhada. Sim, seu pai só precisava de seus conhecimentos científicos
sobrenaturais e do conteúdo do saco.
Desta vez era fresco o suficiente. Já buscava o familiar caminho do laboratório subterrâneo quando
algumas sinistras imagens mentais insinuaram-se em seu cérebro doente e anormal. À semelhança
de vermes consumindo carne morta, as imagens dos fracassos anteriores foram destruindo sua
esperança. A lembrança do rosto arroxeado de seu pai-criador, lentamente a morrer nas mãos de sua
própria criação, foi o golpe de misericórdia
na sensação de paz e esperança do monstro. O golpe libertou uma onda de violência na criatura. O
saco foi brutalmente arremessado contra a janela da casa, produzindo um murmúrio de dor e uma
chuva de vidro dentro da noite. A enlouquecida criatura, entregue pela enésima vez à sua miséria,
lançou-se para o pátio exterior em busca de um alivio. Tudo exatamente como nos anos anteriores.
Alguém precisava pagar por seu tormento...

DESCIDA AOS INFERNOS


Prólogo – aonde o horror termina
A cortina de chuva que escorria pela vidraça era impotente para remover a película de sujeira
acumulada ha tempos na janela do quarto. Insinuando-se por um painel de vidro quebrado, a mão
gelada do vento parecia folhear um maltratado volume aberto sobre a escrivaninha em frente da
janela. Do andar de baixo, chegavam os sons de passos de várias pessoas, acompanhado de um doce
aroma de podridão, tão intenso que quase se poderia tocar. Em alguns instantes o ranger da escada
de madeira antecipa a chegada ao umbral da porta, de um homem corpulento e de pernas arqueadas,
envolto em surrada capa de chuva. Após endereçar alguns comandos para a equipe escada abaixo, o
Inspetor Marinho Santos busca o interruptor da luz à direita da porta – não é sempre aí que eles
ficam? As decepcionantes luzes apenas acrescentam uma cansativa pátina amarelecida aos móveis e
objetos do interior do cômodo. Pouco tempo foi necessário para que o policial checasse o guarda-
roupas, uma arca e o catre desarrumado, nada encontrando de interessante. O protagonista do
ambiente estava ali, junto à janela, sobre a escrivaninha. As páginas do volume, movidas pelo vento
frio, pareciam convidar o recém-chegado a desvendar em seu âmago a tragédia ocorrida no
pardieiro. Sentando-se e tomando o livro em suas mãos, o homem inicia a jornada que em
momentos se transformaria numa verdadeira DESCIDA AOS INFERNOS.
O diário de um maldito
“A maioria das pessoas acredita no inferno, mas em termos fantasiosos demais. O resultado
definitivo e irrecorrível de um julgamento divino, pintado em cores literalmente dantescas. Ainda
no plano terreno, tais pessoas creem que uma espécie de antecipação das agonias infernais está
associada a algum imenso e aterrador drama pessoal. Grandes misérias de várias naturezas que se
conjugam para esmagar o ser humano, transformando sua existência num inferno particular. Perda
de entes queridos, pobreza, doenças e por ai afora. Permito-me a imodéstia de negar tudo isso. Se
aprendi alguma coisa no decorrer de minha longa vida, foi decifrar o que passei a chamar de
“Protocolo de Hades”.”
“Aos poucos fui percebendo o padrão de construção de um inferno em vida, o único que realmente
existe. Como o processo se inicia, como evolui e como acaba. Curiosamente tudo começa com a
felicidade. Surpreendente, não? Nem tanto, caro e eventual leitor. Afinal, todos buscamos na vida
algo que chamamos de “felicidade”. É algo intrínseco em nós, profundamente enterrado na alma.
Nossa natureza biológica vem a seguir, determinando que essa busca se confunda com a busca e
com o encontro do parceiro ideal. A famosa “alma gêmea”. Quando finalmente a encontramos (ou
acreditamos tê-la encontrado) é que as portas do inframundo se fecham, enterrando-nos
inapelavelmente. Essa é a sutileza diabólica do “protocolo””.
“Mesmo quando as ferroadas do sofrimento se iniciam, não tentamos fugir em tempo. Nosso
reflexo, ao contrário, é tentar restaurar o relacionamento que tínhamos e que nos habituamos a
considerar nossa própria felicidade. Os problemas a princípio nos parecem banais, idiotas mesmo e
os conflitos decorrentes são como um trovão em céu azul. O desejo instintivo de não ver a realidade
cega-nos a ponto de não percebermos que, por trás da máscara da pessoa amada, a face hedionda de
um monstro surge. Cada dia mais e mais, até que nosso atormentador já não se dá mais ao trabalho
de ocultar sua natureza. Com o avançar do processo, as minúsculas reclamações vão sendo
substituídas por questionamentos mais profundos, friamente calibrados para atingirem as bases do
seu ser.”
“Muitos especialistas nos dizem que isso tudo faz parte de um típico relacionamento humano e que
devemos nos esforçar para preservá-lo. Principalmente quando existem
filhos, sob a alegação surrada de que “eles não pediram para vir ao mundo”. Tudo muito bonito,
muito científico, muito evoluído, porém totalmente ilusório. Aquele ser que uma vez amáramos, não
é um ser humano. Trata-se de um demônio, cuja única missão entre nós humanos é infernizar nossa
vida. Consequentemente, a prole híbrida que surge do nosso ingênuo envolvimento com aqueles
seres, é também diabólica. Ao menos em parte. No convívio cotidiano vamos aos poucos
presenciando cenas que revelam toda a extensão do horror do nosso inferno particular em
construção. Aqueles fragmentos de conversa que ao serem percebidos eram dissimulados, com o
tempo já não o são. Nos estágios finais, o grupo de demônios – já mencionei a prole, não? - parece
deixar mais e mais pistas do que estão urdindo: nossa destruição.”
“Entretanto, o mais horrível não é a consumação de tudo, nossa destruição final, mas antes o
processo que leva até lá. Algo assim como o caminhar doloroso do condenado em direção ao
cadafalso. Esse calvário se inicia pela dor moral da perda de um ideal, envereda pelo sofrimento
físico causado pela extrema irritação, chegando ao escaldante deserto da loucura. O fim?
Infelizmente não. Talvez possamos definir esta longa fase como o princípio do fim. Um dos muitos
arabescos do “protocolo” e também seu corolário, é que nossa destruição deverá necessariamente
ser autoinfligida. Ninguém te matará, pois são demônios, atormentadores, não anjos executores.
Como nosso instinto mais forte e profundo é, sem dúvida, a autopreservação, torna-se necessária
sua destruição por meio da loucura.”
“Você, meu caríssimo e desconhecido leitor ou leitora, deve a essa altura, estar se perguntando qual
terá sido a serventia destes estudos que ora divulgo. Haveria alguma rota de fuga? Alguma chance
de vencermos esta luta? Espero que tenha conseguido transmitir a verdadeira natureza do problema
e assim, qualquer um já terá descartado as soluções mais óbvias. Por exemplo, a fuga. Obviamente
os demônios te perseguiriam sem descanso. Ademais, na fase inicial do processo, estamos ainda no
campo da “sanidade” e é praticamente insuportável a ideia da separação da prole. No final dessa
etapa ainda nos parece possível a pura e simples eliminação da antiga “alma gêmea”, sendo o
natural medo da punição legal o que nos impede. Aqui existem duas possibilidades. Na hipótese de
não tentarmos essa solução extrema, o dilema permanece. Caso superemos esse temor e
consumemos o crime – na realidade apenas um ato de defesa contra um monstro inumano Em
seremos lançados no abismo da loucura, pois a natureza demoníaca do oponente se revelaria
claramente. Em qualquer caso permanecemos presos em nosso Inferno.”
“Para concluir esse breve apanhado sobre a real natureza do Inferno, restaria tratar da fase final do
processo: a insanidade. O termo é, como já devo ter deixado claro, impróprio. Revela apenas o nível
de compreensão dos seres que se consideram “mentalmente sãos”. Em verdade, estas criaturas
apenas não alcançaram a iluminação e medem tudo e a todos pelos padrões da “normalidade”. Bem
ao contrário, as verdadeiras experiências e insights que nos fazem enxergar a realidade das coisas,
obrigatoriamente nos leva a comportamentos “insanos”. Simples assim. É nesse terreno,
desconhecido a princípio, que travaremos a batalha final contra o Mal.”
“Basta de teoria, porém. Relatarei agora o que penso ser a única chance que temos nesse
Armaggedon particular, ilustrada pelo meu próprio plano de ação. Naturalmente, amigo leitor, já
deverás ter deduzido pelo exposto anteriormente, que essa possibilidade de sobrevivência só existe
quando abandonamos a chamada “sanidade” e entramos no verdadeiro e definitivo campo de
batalha. Toda luta pressupõe conhecimento, tanto do inimigo como do terreno. Isso nos permite um
posicionamento favorável e aumenta nossas chances de vitória. Na verdade, sem tais premissas,
estamos condenados à derrota e à aniquilação total.
Em meu caso, as hostes inimigas podem ser divididas em dois grupos: a prole semi-humana e o
arquidemônio, outrora “meu amor”. Quanto às duas pequenas criaturas, sua natureza parcialmente
normal é sua fraqueza. Creio que poderão
ser eliminadas facimente por quaisquer meios letais ao seu lado humano. São muitas opções à
minha disposição, mas não devemos nos esquecer que a outra metade, a diabólica, fornece àquelas
“crianças” uma malicia e esperteza anormais. Não se trata de abatê-las a tiros ou facadas. Isso não
funcionaria de modo algum. Há que superá-las com suas mesmas habilidades, sem esquecer de
separá-las de seu líder. Definida a arma, restava escolher o local do duelo. Uma lembrança dos
tempos quando ainda não tinha compreendido tudo, trouxe-me a resposta. O poço! Aquela estrutura
abandonada nos fundos do terreno, sempre fora uma imensa preocupação para mim e, ao mesmo
tempo um irresistível atrativo para as meninas. Claro que hoje já bem sei que tudo aquilo era apenas
uma das muitas artimanhas destinadas a atormentar minha alma... Pois bem, uma proposta de
brincadeira à beira do poço, um empurrãozinho, algumas pedras por cima e voilá!”
Mais difícil me parecia vencer o inimigo principal. Completamente demoníaco, sua argúcia supera a
de nós humanos facilmente. São, por assim dizer, profissionais da destruição e enfrentá-los com
sucesso é quase impossível. Infligir uma morte física, qualquer que seja sua natureza, é inútil. Uma
vez retirada a máscara humana, inócuos tiros ou facadas seriam recebidos com sorrisos de deboche..
Que arma nos resta então? Uma inconsequente visita a um obscuro sebo das imediações, forneceu-
me a resposta. Uma dádiva divina, sem dúvida. surrado opúsculo denominado “De Diaboli” - antiga
e esquecida obra de um monge português, recluso em séculos passados no Mosteiro de São Bento
no Rio de Janeiro, encontrei o que precisava. Em resumo, ao tratar da forma de eliminação de
demônios, o clérigo do passado nos ensina que os clássicos crucifixo e água benta, apesar da repulsa
que causam aos seres das trevas, são insuficientes para destruí-los, isolada ou mesmo
conjuntamente. O recurso mais eficaz é, em suas palavras, a “atomização” do antagonista. Pelo
termo o monge quer dizer qualquer forma de extermínio que fragmente extremamente o corpo físico
do demônio, impedindo sua reanimação pela alma danada. Tanto mais eficaz será o processo se for
levado a cabo por outros seres malignos. Confesso que a “receita” deixou-me perplexo. Como
implementá-la?”
“Já à beira do desespero por ter a salvação nas mãos e não conseguir colhê-la, recebi outra
orientação divina de uma forma extremamente prosaica. Ao passar ao lado da porta de acesso ao
porão inutilizado há anos, ouvi ruídos em seu interior. Frenéticos passinhos acelerados, sons de
garras a arranhar o piso de cimento e guinchos abafados. A sinfonia macabra não deixou nenhuma
dúvida quanto à sua origem, o número de criaturas por trás da porta e mesmo seu tamanho... Ainda
nos tempos em que eu cuidava da manutenção da propriedade, enormes ratos haviam invadido o
porão e o transformado num ninho. Com o passar do tempo, seu número e corpulência aumentaram
e não foram poucos os cães, gatos e mesmo vagabundos em busca de abrigo que desapareceram ao
descer às profundezas obscuras daquele cômodo. Que melhor forma poderia eu conseguir de seguir
os preceitos do monge? A quantos minúsculos fragmentos um corpo humano seria reduzido, após
ser trancafiado naquele porão na companhia bestial daqueles...seres malignos?”
“Assim pensado, assim programado. Para evitar qualquer possibilidade de fracasso, projetei e
preparei tudo para o dia seguinte, em sequência. A brincadeira com as “crianças” junto ao poço e
logo em seguida o convite à “amada” para descer ao porão sob qualquer pretexto. Caros leitores,
deixo-vos agora. Em breve retornarei triunfante como o único mortal a vencer o Mal e escapar do
Inferno!”
A mão elegante do Inspetor Marinho Santos folheou ansiosa inúmeras páginas do diário, sem
encontrar nada após o relato do plano. Páginas e mais páginas vazias, amareladas e meio coladas
pela umidade. Testemunhas mudas de que algo não saíra como o planejado. O ar pensativo e
ausente do policial foi trazido de volta das elucubrações pelo som de passos pesados subindo as
escadas. Simultaneamente ao lamento da madeira, a
voz do auxiliar que trazia novidades:
- Inspetor! O pessoal já examinou toda a propriedade. Parece abandonada há tempos, só lixo, roupas
estragadas e comida idem... De interessante mesmo, só os esqueletos no poço, cobertos de pedras!
O Dr.Pacheco diz que são duas crianças de seus dez ou onze anos.
- E no porão? Nada?
- Também encontraram os restos de uma pessoa. Segundo o legista é...
- Uma mulher?
- Não, não. Um homem. Deve ter ficado preso lá dentro, já que a porta só abre por fora e o trinco
estava batido. Não deve ter durado muito, a julgar pelos ratos lá dentro. Tem uns que mais parecem
gatos! Jeito horrível de morrer... Ah.. outra coisa! Tem uma mulher lá embaixo que quer lhe falar.
Disse que foi quem ligou para o Departamento. Parece que já morou aqui. Era mulher do dono da
casa, ou coisa parecida...

DESTINO FINAL

As pálpebras de Ricardo penosamente se abrem, revelando unicamente trevas. A adaptação das


pupilas, mesmo com o passar dos minutos, pouco pode fazer contra a densa escuridão. Seu corpo
parece não reconhecer a superfície dura e irregular do colchão. A última tentativa de captar alguma
sensação familiar é o tatear da mão esquerda em busca da de sua parceira. Após alguns torturantes
instantes, as mãos se reúnem. O resultado é ainda pior, pois aquela mão áspera e fria certamente não
pertence à sua esposa.
Um sussurro chega a seus ouvidos, sibilante, rouco e irreconhecível. Aquele "oi...", longe de
tranquilizá-lo, acende a chama do pânico em seu peito. Ricardo, coração disparado, se lança da
cama aos tropeções. Busca em desespero o retângulo de luz que delimita a porta do quarto. Atrás de
si a estranha voz que persiste em chamá-lo: "venha, venha cá..".
Ainda com o som daquela voz a reverberar em sua cabeça, Ricardo emerge do quarto sombrio e
irrompe no cômodo além da porta, o contraste luminoso ferindo seus olhos como uma lâmina. No
centro do ambiente excessivamente iluminado, um mulher sentada numa cadeira. Ele tenta se
aproximar, pé ante pé, presa da torturante sensação de nunca chegar ao destino. Dentro de si sente a
agonia subindo, subindo sempre, a insanidade parecendo aguardá-lo logo à frente. A imagem ganha
cada vez mais detalhes à medida em que finalmente se acerca da criatura imobilizada. Pés e mãos
atadas por arames afundados na carne sangrenta, olhos abertos além do natural, expressão de um
horror infinito. Ricardo conhece a vítima - Tatiane? - mas sua mente tenta desesperadamente negar
o fato, empurrando as lembranças para algum canto escuro do intelecto. O pânico reassume o
controle de suas ações e o impulsiona para fora dali, em busca do esquecimento.
Desce apressado um lance de escadas, mergulhando num porão dominado por aroma denso,
adocicado e repulsivo de decomposição meio contida. Uma lâmpada balança ridícula no teto,
precariamente presa a um par de fios azuis. Ao redor, prateleiras, bancadas repletas de ferramentas.
A poeira e um exército de manchas escuras espalhadas em toda parte dominam a cena. Na
extremidade esquerda da bancada de trabalho uma serra circular parece repousar em meio a seu
trabalho. Na plataforma de corte logo abaixo do disco dentado, uma peça de carne rosada já
dividida em duas. Acima, nos brilhantes dentes de aço, gotas retardatárias de um líquido viscoso e
escuro estão prestes a cair.
Sua velha oficina, para onde sempre voltava em busca de paz. O refugio após as incursões noturnas,
produtos das insuportáveis crises de enxaqueca. O olhar de Ricardo passeou pelo cômodo com
vagar, acariciando cada peça, cada objeto. A sensação de familiaridade e conforto era imensa.
Deteve-se a contemplar com certo orgulho as grandes caixas de metal, meticulosamente etiquetadas:
Janine, Carol, Anônima 1, Rejane, Anônima 2, Paula,... "Sempre fui muito organizado!",
congratulou-se. A sensação de paz, porém, foi estilhaçada como um taça de cristal que cai ao solo.
Sua mente se debate, mas uma força irresistível o leva a aproximar-se de um grande depósito de
rejeitos, bem ao lado da serra elétrica. Olha para o interior dominado por uma vertigem
avassaladora. É como se se debruçasse num precipício sem fim. No interior da caixa, uma profusão
quase cômica de restos humanos, em estágios diversos de conservação. Destaca-se como se tivesse
luz própria, um anel de ouro frouxanente preso numa mão murcha. O presente de quinze anos de
sua filha.
A lembrança da festa, a alegria dos presentes, o olhar doce de Tatiane, tudo àquilo causa o efeito de
um violento tapa no rosto. Uma impossível porta se abre sob a escada por onde descera, oferecendo-
lhe uma bocarra negra como rota de fuga. Aceita sem pensar.
Desta vez poucos minutos bastam para reduzir as trevas. Sentado no colchão, o mesmo vulto negro
a tamborilar metodicamente nos lençóis. "Venha, venha cá..." A mesma fuga em busca da luz o leva
ao mesmo destino. A sensação de estar ali novamente, como fosse um rato preso numa roda, é
esmagadora. Incoerente, brota de seu interior um insano e silencioso grito. A única resposta que
obtém vem da mulher amarrada na cadeira: "papai! Me tira daqui..."
FREAK SHOW

Milhões de folhas secas levantadas pelo vento quente, formavam uma espécie de túnel que se
confundia com o céu vermelho do fim de tarde. Pela empoeirada trilha serpenteava uma massa de
seres mecanicamente a caminho de uma clareira, cerca de um quilômetro além. As pessoas
caminhavam em silêncio, interligadas num todo harmônico e coeso. As centenas de olhinhos
daquele ser coletivo, traiam a ansiedade por chegar. O cair da noite destacava as três grandes
barracas de lona branca, listradas de vermelho, que dominavam o pequeno platô ao fim do caminho.
Logo ao chegar ao circo improvisado, a pequena multidão postou-se frente a um pequeno púlpito
posicionado diante da barraca central. De lá uma criaturinha incentivava a turba a penetrar numa
boca toscamente pintada na lona, a fazer as vezes de portal de entrada em outros mundos. Sua voz,
grave e profunda, contrastava comicamente com seu corpo miúdo e de aparência frágil. De qualquer
forma, as expressões apalermadas e as bocas abertas da plateia, indicavam que o discurso produzia
o efeito esperado.
"Entrem! Entrem!! Aqui vocês verão lendas se transformando em realidade na frente de seus olhos!
Seres que já existiram... antes da Grande Guerra Final! Agora, só podem ser contemplados aqui...e
agora... Entrem! Não tenham medo senhoras e senhores, garantimos sua segurança! Apesar do
aspecto repulsivo e dos instintos bestiais, as correntes são fortes... Entrem! "
Depois da Grande Guerra Final e da destruição dos grandes centros urbanos, esse tipo de
entretenimento tornou-se uma das poucas fontes de alívio para as populações sobreviventes. A
realidade cotidiana tornara-se dura com o colapso das comunicações e do fornecimento de energia,
arrastando a Civilização para séculos atrás, talvez milênios. O próprio passar do tempo perde o
sentido. A única coisa que passou a existir em abundância eram as aberrações. A precipitação
radioativa que cobriu o planeta como um manto mortal, obrigou as partes em luta a deporem as
armas. Como um presente maligno, as radiações elevaram o número de nascimentos anormais a
níveis inimagináveis anos antes. As precárias comunidades pós guerra, incapazes de prover a
manutenção destas proles, simplesmente abandonavam os anormais à sua própria sorte, geralmente
em bosques fora das áreas povoadas remanescentes.
As exibições circenses onde seres bizarros eram expostos como animais, atraiam as populações por
onde passavam. Um momento de pausa na terrível luta pela vida e também uma forma de auto
afirmação. A contemplação de seres diferentes funcionava como uma verdadeira dádiva divina. Aos
poucos a noção de que eram também seres humanos, irmãos de sangue, criados da mesma forma,
desapareceu por completo com o passar do tempo.
"Venham! Hoje vocês poderão testemunhar um fato raro. Estes seres primitivos num arremedo de
família... Entrem!"
Um frisson de excitação perpassou pela assistência em resposta a essas palavras. A ideia de que tais
caricaturas de seres humanos pudessem constituir uma" família" era quase herética para uma típica
comunidade moderna. Em instantes todos os lugares disponíveis sob a tenda de lona foram
ocupados, após um pequeno desentendimento. Todos desejavam os lugares da frente, próximos ao
palco e se acotovelavam freneticamente para consegui-los. Subitamente as luzes se apagaram e um
desarmonico soar de metais, sopros e tambores encheu a atmosfera abafada da tenda. Substituindo a
música, ouvem-se ruídos de passos e arrastar de correntes no fundo do palco imerso em trevas. Aos
poucos, a luz bruxuleante de archotes posicionados nas laterais começa a revelar a cena, como uma
fotografia imersa no líquido revelador. Já adaptados à penumbra, os olhos da
plateia percebem dois seres presos a grossas correntes. Estes buscam pateticamente se tocarem, seus
esforços produzindo unicamente o tilintar das correntes. Em seguida a atenção do par de criaturas se
volta na direção de um pequeno volume envolto em trapos, no meio do tablado. O pacote se move,
como se algo pequeno em seu interior buscasse libertar-se. Uma vez mais, as correntes impedem o
intento dos prisioneiros, despertando uma onda crescente de risos entre os assistentes. Em alguns
instantes um novo personagem adentra o palco, despertando palmas e assobios entusiasmados no
público. Um ser enorme, poderoso, com braços musculosos que chegam até o chão. Suas longas
garras raspam cadenciadamente as taboas do soalho, despertando o pavor na dupla de prisioneiros
que busca refúgio no fundo escuro do palco. Após saudar a plateia curvando-se e estendendo os
longos braços à frente, o titã se volta na direção do embrulho de trapos. Ao abri-lo revela um
pequenino ser, rosado e gorducho, que, ao ser suspenso no ar pela perninha, chora em busca de um
impossível socorro. O choro do bebê se transforma num horrendo guincho de dor, para logo cessar
se todo. Em resposta, débeis sons metálicos vindos do fundo negro do palco e uma estrondosa
ovação do público. Os aplausos e gritos da plateia aumentam e transformam-se numa algazarra
infernal quando pedaços ensanguentados do bebê lhe são arremessados pelo gigante. O sangue da
criança parece refletir-se em cada globo ocular dos excitados assistentes. O tumulto ameaça ficar
fora de controle, até que o mestre de cerimônias do circo retoma o controle da situação. Irritado, ele
meneia sua cauda escamosa, enquanto indica a saída da tenda ao público. Lentamente o grupo de
pessoas volta ao seu estado letárgico característico e começa a retornar à sua comunidade e às suas
vidas cotidianas. Algumas poucas garras e tentáculos ainda se agitam no ar e ao chegarem à trilha
por onde vieram, já é noite fechada.

HORROR EM CERA
(um relato de não ficção)

Imagino que vocês já se tenham perguntado o quanto o ódio pode crescer sem transformar-se em
loucura. Creio que pouco. O processo é rápido e depois que o umbral é atingido, a raiva ganha
contornos barrocos e multifacetados, libertando forças além do natural. O processo inverso - a
loucura transformar-se em ódio - é relativamente raro e o deixaremos por ora de lado. Na sequência
da primeira questão,creio que desejem saber a que limites se poderia chegar se a acumulação de
ódio começasse na mais tenra infância. Tais perguntas e divagações desaparecerão por completo
quando conhecerem o caso da pequena Sara.
Sarita, como era chamada desde bebezinha, não tivera uma infância feliz. A trágica morte de seus
pais num acidente automobilístico a lançou na senda das lágrimas e do sofrimento.
Miraculosamente retirada ilesa das ferragens, Sarita iniciou assim sua intimidade com a morte com
apenas cinco anos de vida. A partir deste sinistro acontecimento, a vida do pequeno ser iniciou a
caminhada na estrada da loucura.
Privada bruscamente de ambos os pais, a menina passou aos “cuidados” de sua tia Milena, irmã de
sua mãe, que aproveitara a oportunidade para mudar-se para a casa dos falecidos e assumir a gestão
da polpuda pensão deixada para o sustento da menina. O que poderia ter sido a redenção da vida
daquela criança, revelou-se a verdadeira porta para seu inferno particular. A tia sempre ambicionara
o cunhado e passou a ver a pequena, agora aos seus cuidados, com ódio e rancor. A menina
representava para Milena o símbolo de sua derrota pessoal na competição com a irmã. Dessa forma,
o veneno destilado em sua alma foi pouco a pouco inundando a vida de Sarita. O que era
inicialmente apenas rispidez e ausência de carinho, rapidamente evoluiu para algo mais negro.
Negro como as marcas que passaram a surgir pelo corpo da criança. O início da vida escolar passou
a significar um alívio parcial para Sarita, mas o inevitável retorno ao “lar”, cotidianamente arrastava
a menina para seu suplício doméstico. A criança não tinha nem a pequena alegria de entrar na
biblioteca, onde seus pais por tantas vezes brincaram com ela, entre livros, máscaras e bonecos
colecionados pelo casal em suas viagens pelo mundo. Milena, por alguma razão não muito clara,
mantinha o cômodo sempre trancado, jamais permitindo o acesso a ele por quem quer que fosse,
muito menos Sarita. Outro símbolo de derrota, possivelmente.
Este cenário de horrores veio inesperadamente a adquirir novas e sombrias cores. Já perto do
aniversário da pequena Sara, sua tia-madrasta a brindou com uma inesperada notícia: ia ganhar um
papai, novinho em folha! Era tudo que ela precisava para ser melhor disciplinada… Não que Irineu
- esse o nome do novo “homem da casa” - tivesse maiores interesses em assumir qualquer papel na
educação da menina. As vantagens iniciais que pretendia retirar de sua associação com Milena
eram, por um lado o sexo casual e descompromissado e por outro o que pudesse extrair da pensão
deixada pelos pais da menina. Não tinha ocupação fixa, além do religioso comparecimento ao pé
sujo da esquina. Tudo muito adequado de seu ponto de vista. Era também violento e lascivo, traço
este que foi ficando mais e mais aparente nas furtivas olhadelas que passou a endereçar à criança.
Milena não parecia incomodar-se muito com a situação e fazia de conta que não percebia o que
estava para acontecer. Ao contrário, o medo inocente de Sarita era recepcionado por ela com a
rispidez e a agressividade habituais. Assim os acontecimentos daquela tarde chuvosa nunca
chegaram a transpor os muros do casarão.
Tudo aconteceu muito rápido, como uma tempestade de verão. Milena havia planejado uma
excursão de compras para aquele sábado e deixou a casa - e Sarita - aos cuidados de Irineu. Ao
voltar encontrou um namorado mais bêbado do que o habitual e uma criança
em estado de choque. Roupinhas espalhadas, sangue aqui e ali, principalmente no quarto do casal.
Milena encontrou Sara nua, ensanguentada e encurvada em posição fetal, encostada na sempre
trancada porta da biblioteca. Uma patética e inútil tentativa de achar refúgio em seu passado. Uma
inicial e instintiva reação de compaixão foi logo posta de lado por Milena, sendo substituída por
uma sucessão de perguntas, gritos e sacudidas na criança. Tudo em vão. A menina parecia
mergulhada em um outro mundo, inacessível tanto à novas violências como a um improvável
carinho. A maior preocupação da tia era, entretanto, não incomodar seu companheiro, pois sabia o
que acontecia com seu humor quando despertava das bebedeiras. Assim, num arremedo de
cuidados, cobriu a menina com um lençol e desceu à cozinha para preparar um café. Estava morta
de fome!
O fim de tarde transformara-se em noite e o casal começava a planejar o que fariam naquele sábado.
Uma primeira preocupação - algum vizinho abelhudo teria notado algo de diferente? -
aparentemente era infundada, dado o manso passar das horas. De qualquer forma, o mais prudente
seria não saírem. Algumas garrafas de vinho de origem duvidosa que Irineu trouxera da rua, seriam
mais do que suficientes para criar o clima para a noitada de sábado. “Irineu está bem animado”,
pensou Milena, animando-se por sua vez. A ausência, mais do que o silêncio de Sarita, colaboravam
para compor um cenário doméstico relaxante e romântico.
A porta da biblioteca foi se abrindo silenciosamente. O fio dourado de luz desenhou um caminho
que, como um bálsamo, despertou Sarita e convidou-a a penetrar naquele refúgio ansiado pela
criança e tantas vezes negado. O interior do cômodo lhe era muito familiar, excetuada a grossa
camada de pó que se sobrepunha uniformemente a cada item: móveis, livros, estatuetas de diversas
origens, máscaras tribais. Incongruente com o aspecto geral de abandono, a lareira acesa irradiava
uma luz amarelada. Flanqueando a boca ardente da lareira, duas poltronas ocupadas por indistintas
figuras. À medida que seus olhinhos foram se acostumando à precária luz ambiente, um sorriso há
muito ausente foi reocupando seu lugar no rosto da criança. “Olá querida! “. “Vamos brincar? “.
Horas mortas da noite . Sombras e um pesado silêncio dominando o casarão. Milena levanta-se da
cama à procura de sua escova de cabelos, enquanto seu parceiro ressona ruidosamente, virado para
a parede. Não a encontrando, a mulher mergulha nas trevas do corredor, entre pragas e imprecações.
A busca é subitamente interrompida por sons abafados vindos do alto das escadas. Risos? Diálogos?
Como assim? … A cada degrau galgado os sentidos de Milena vão lhe transmitindo uma imagem
impossível cada vez mais nítida, além da porta fechada da biblioteca. A mulher alcança a porta do
cômodo, toda sua vida concentrada nos olhos desmesuradamente arregalados e na mão que,
trêmula, busca a maçaneta da porta.
Sob os olhares carinhosos das duas sombras negras e de uma pequena imagem de granito da Deusa
Sekhmet - a deusa egípcia da Vingança, Sarita, sentada no chão, trabalha concentrada numa massa
escura. Amassa e reamassa, mistura à cera, secreções humanas que escorrem de seu próprio corpo.
Paulatinamente a massa vai adquirindo o perfil de um boneco. Outra figura logo vem fazer
companhia à primeira, a nova imagem ostentando uma tosca cabeleira improvisada com fios
retirados de uma escova de pentear. Um fósforo se acende e tudo está pronto para o “grand finale”.
Milena enfrenta a batalha final de sua vida. Todos os seus instintos de sobrevivência lutam contra a
mão direita que lentamente torce a maçaneta da porta da biblioteca. Após intermináveis minutos a
porta abre-se por completo, revelando o horror em cera. Já transposto o limiar da loucura, a última
imagem que as retinas da mulher registram são quatro pares de faiscantes olhos vermelhos, um
irreal sorriso como que pintado no rosto da menina e a sua mãozinha ateando fogo às efígies de
cera. A imediata e impossível combustão do corpo de Milena teve o contraponto de seus berros
inumanos. Poucos segundos após, acordes semelhantes se juntam àquela sonata macabra
provenientes do quarto do casal.
“Vamos querida? Não há mais nada aqui para você”.
“Assim termina o triste caso da pequena Sara. Vocês podem estar se perguntando como fiquei
sabendo dele. Bem, não podíamos deixar nossa filha sem apoio, não é, meu bem? “
FIM
PS. : Infelizmente, nem todos os casos semelhantes e que acontecem diariamente, terminam bem
assim…

NATAL EM LA LYS

Vale da ribeira La Lys, setor de Ypres, Flandres, Bélgica, 24 de dezembro de 1917.


Nunca dantes na História, a humanidade chegara à noite de Natal naquelas condições. Três anos
atrás, as principais nações europeias haviam iniciado a mais terrível guerra de todos os tempos. Os
dois lados do conflito possuíam muitas certezas em comum: Deus estava a seu lado, assim como a
razão e tudo estaria resolvido em uns poucos meses, a tempo das tropas voltarem para casa e
passarem o Natal com a família. Alguns milhões de mortos após, tais certezas estavam igualmente
mortas. Deus não estava em parte alguma daquele inferno de lama e sangue, ninguém mais sabia
porque lutava e um Natal em família era então uma pálida e distante lembrança.
O Corpo Expedicionário Português (CEP) estava estacionado entre as aldeias de Armentières e
Bethune. Naquela extensão de doze quilômetros, quinze mil homens entrincheirados observavam
ansiosos os movimentos dos cinquenta e cinco mil germânicos comandados pelo general Von Quast.
A pobremente armada unidade lusitana parecia a escolha óbvia para uma ofensiva concentrada que
pudesse romper a estagnação da linha de frente. Assim também pensou o alto comando alemão.
Entre os comandados do general português Gomes da Costa, encontrava - se o sargento Machado.
Machado chegara a Flandres com as primeiras unidades lusas e já participara de inúmeras batalhas.
Seu rosto e alma testemunhavam esse fato. Uma máscara facial permanentemente crispada e uma
psique sempre à beira do colapso eram o produto de cerca de um ano no front. Um farrapo humano,
nada diferente de muitos outros, de ambos os lados das imundas trincheiras, ali e por toda a Europa.
A noite começara a cair e uma neve suja pouco a pouco ia cobrindo os casacões e capacetes de aço.
O fundo da trincheira, uma massa fétida de lama, sangue e excrementos. Silêncio total, rompido
pelo zunir do vento gelado e cortante. Até as onipresentes ratazanas pareciam ter desaparecido por
completo. Um sonho coletivo, povoado por canções natalinas, castanhas na brasa e sinos de igreja,
pairava sobre os soldados. Subitamente, num arremedo sinistro de fogos de artifício, as luzes
sinalizadoras alemãs estouraram sobre as trincheiras portuguesas, descendo lentamente, indicando o
alvo à artilharia inimiga. Os mais experientes dentre os soldados já sabiam o que se seguiria ao balé
de luzes. Uma garra de pavor apertava seus corações, mais firme a cada segundo. Assim foi. O
horrendo bombardeio que se seguiu realizou adequadamente sua função de “amaciar” as linhas
defensivas.
Machado permaneceu imóvel e agarrado ao fuzil durante os intermináveis dois minutos e meio do
fogo de barragem. Ele e seus companheiros eram indistinguíveis e inseparáveis do solo que parecia
engoli-los. Homens meio congelados, mais pelo terror e pelo choque do que pelo próprio frio. Com
o lento apagar das luzes de sinalização e o aterrorizante silêncio, veio a tensão insuportável
produzida pela certeza do iminente ataque inimigo. Em poucos minutos, a mortal onda verde-
acinzentada, com seus característicos capacetes de aço, foi surgindo ameaçadora no horizonte. Num
ritmo implacável a horda aproximou-se, jarda após jarda.
Apesar das precárias condições, materiais e morais, das unidades lusitanas, o massacre durou várias
horas, só terminando perto do canto do galo. No lugar da Santa Missa, o contar se corpos e a
condução de milhares de prisioneiros. Apesar da vitória indiscutível, o exército alemão não pode
explorar a brecha no front, pois as tropas britânicas fecharam a passagem, apesar de nada terem
feito em defesa de seus aliados. Assim, o sangue português derramado na resistência aos
germânicos impediu a derrocada do front na Bélgica.
O sargento Machado desperta do torpor no qual caira, incomodado pelo fluxo de sangue a sair pelas
narinas e pela boca. Do buraco em sua testa, outro caudal vermelho cobre seu rosto. Ao levantar-se
da lama avermelhada, o militar espanta-se com o ambiente à sua volta. O silêncio é total. A luz,
baça e mortiça. Ao redor, sombras negras, dificilmente reconhecíveis como homens, arrastam-se
lentamente numa única direção. Machado, movido por força interior e sobre a qual não tem maior
controle, reúne-se à marcha de sombras. A soturna e silenciosa procissão, ostenta soldados com
diferentes uniformes, a maioria mutilados. Avançam até um descampado, pontilhado de crateras
criadas por bombas. Eleva-se
aos céus o cântico “o tannenbaum”, caro aos cristãos de todo o mundo em suas línguas natais -
“Christmas tree” - “Pinheiro de Natal “. Aqueles mortos, abraçam-se independente de
NACIONALIDADE, até que, ao soar da meia noite, o canto do galo, como um toque mágico,
encerra a sobrenatural missa de Natal. Cada celebrante segue seu destino para a eternidade que lhe é
destinada, desaparecendo na escuridão.

PS.: Ao longo das diversas batalhas travadas no setor de Ypres durante a Primeira Grande Guerra,
por volta de trezentos mil homens perderam a vida, alemães, franceses, ingleses, portugueses,
belgas e muitos outros.

OSTARA

Ostara, deusa germânica da fertilidade e


do renascimento. Seu mascote, a lebre.
O nome deu origem ao termo “Páscoa
(Easter em inglês e Ostern em alemão) “

O velho Siegfried era uma figura folclórica em Vila Real de Trás-os-Montes. Olhos de um azul
violáceo e os longos cabelos outrora loiros, hoje prateados, amarrados num coque. A pele vincada
como um pergaminho, indicava uma vida cheia de percalços e peregrinações. Sua oficina de
brinquedos era afamada e pessoas vinham até a Ponte da Petisqueira do outro lado da auto estrada,
em busca de seus bonecos mecânicos, especialmente os coelhinhos de madeira animados.
Principalmente na Páscoa, esses brinquedos eram os queridinhos da petizada local, não chegando
para atender a demanda. Ninguém conseguira jamais decifrar como tais engenhos de tosca estrutura
interna podiam mover-se. Nesse período do ano, o velho teutão era como um Pai Natal fora de
época. Ou estaria mais para um Krampus?
Sig, como era conhecido, chegara a Portugal no inverno de 1945-46, procedência desconhecida.
Cheio de manias e também de conhecimentos especiais, logo ocupou o lugar de uma espécie de
lenda urbana transmontana. Técnicas de plantio inovadoras, uso medicinal de ervas, implementos
agrícolas, etc. Com a retomada das corridas de carro nos anos cinquenta, logo envolveu-se na
empreitada, chegando a vencer em 1965 pilotando um Lola T70 MK III (devidamente
“envenenado” na garagem da Rua da Canelha antiga). O único fracasso de sua “carreira” foi a
investigação do “Caso dos Miúdos Dessangrados”.
O caso do desaparecimento de crianças por ocasião dos festejos da Páscoa, hoje esquecido, causou
furor - e pavor - no fim dos anos quarenta. Meninos na faixa dos dez anos passaram a ser
encontrados mortos e sem uma gota de sangue em seus corpinhos, sempre nas manhãs do Domingo
de Páscoa. O único sinal de violência, um talho diagonal nos pescoços como uma rês abatida. Sig,
credenciado por suposta experiência em investigações policiais, ofereceu-se para ajudar. Esforço
inútil. Talvez pela hipótese bizarra que levantara - os crimes seriam obra de judeus em rituais
macabros - ou pelo fato de que as vítimas eram apenas “Zé Povinho”, como se dizia então. A polícia
abandonou as investigações em 1950, apesar das mortes continuarem por anos, sendo a última
registrada em 1966 . Os casos foram ocorrendo em distritos cada vez mais remotos, sempre na
Páscoa e as autoridades preferiram encerrar tudo com o diagnóstico absurdo de “mortes causadas
por animais selvagens”.
Como chegara, por que Portugal e de onde viera? A rota desde a aldeia polaca de Oświęcim
(conhecida em alemão pelo nome de Auschwitz) fora difícil e cheia de perigos. Ao contrário da
maioria dos seus camaradas, não buscou refúgio no Novo Mundo. Como na lógica de Poe em “A
Carta Roubada”, acreditava que estaria melhor escondido ficando relativamente próximo de seus
algozes. Por meras 24 horas escapou das tropas soviéticas que liberaram o campo em 27 de janeiro
de 1945. Como que cavalgando o sopro gelado daquele inverno, prosseguiu, buscando algum
refúgio. A partir da fronteira polonesa, Eslováquia, Morávia, Boêmia, Alemanha. Não mais o
orgulhoso Obersturmannführer SS, apenas mais um anônimo civil buscando evitar as rotas dos
comboios militares. Ainda seguindo a lógica do “quanto mais perto mais oculto”, dirigiu-se à velha
capital saxã, Dresden. Praticamente um museu a céu aberto e sem qualquer interesse militar, parecia
o óbvio destino para Siegfried e mais muitos milhares de refugiados. Nunca esqueceria o belíssimo
perfil barroco e a elegante torre da Frauenkirche vistos da margem oposta do Rio Elba. Mais
inesquecível ainda o contraste da imagem após os acontecimentos de 13 a 15 de fevereiro de 1945.
O ataque aéreo anglo americano simplesmente apagou o centro histórico e matou cerca de 25.000
civis.
As 4.000 toneladas de bombas, além de matar diretamente, exterminaram como ratos os milhares
que se abrigaram nos porões e abrigos, pela supressão do oxigênio. Por alguma razão, os trinta
caças Bf 110 da defesa aérea alemã não tiveram sucesso contra
os oitocentos Mustang americanos e assim, os mil e trezentos bombardeiros aliados puderam se
concentrar na eliminação da secular “Florença do Norte”. Custo da operação: oito caças americanos
abatidos, seis pilotos mortos e dois desaparecidos.
A próxima parada de Siegfried foi Berlim. Bem a tempo de assistir a batalha antiaérea final, travada
a partir do Tiergarten (zoológico da cidade), vitimando elefantes, zebras e leões. Viu igualmente a
decolagem improvisada do jato ME-262 carregando dos jardins da Chancelaria do Reichstag, algum
importante personagem para fora do inferno no que se transformara a cidade. Antes de partir,
gravou nas retinas a icônica imagem da bandeira vermelha a tremular na arruinada cúpula do
Reichstag, naquele apocalíptico 2 de maio de 1945.
Os próximos meses de peregrinação o levaram pelo norte da arrasada Alemanha, França e Espanha.
Ironicamente percorreu o Caminho de Santiago até entrar na terra prometida: o norte de Portugal.
Ao longo do caminho as cenas de extrema destruição traziam irresistivelmente a imagem de Ostara
à sua mente e alma cansadas. Renascimento. Ressurreição. Para o mundo e para si próprio.
Em Portugal planejava reviver. Não só o governo nacional era por sua própria natureza um
santuário natural para gente como ele, como o ambiente ao seu redor, pleno de misticismo celta, lhe
dava a certeza de estar “em casa”. Como vimos, sua absorção pela comunidade se dera rápida e
completamente. Apesar disso, não mantinha relacionamento mais próximo com ninguém e jamais se
soube de alguém que tivesse ido além do balcão da oficina de brinquedos. Uma de suas
idiossincrasias mais notórias era o fato de estar sempre de mangas compridas arriadas, fizesse o
calor que fizesse. Apesar da simpatia que o cercava, simplesmente não achava adequado a
exposição constante do duplo Sieg, símbolo da vitória completa e de seu próprio nome. Seria como
expor sua alma.
A Páscoa de 1946 se aproximava. A oportunidade de retomar o ritual do renascimento mais uma vez
se oferecia a Siegfried, como uma linda amante. Por meio dele era possível a absorção de energia
vital pelo praticante profano. Os horríveis procedimentos culminavam na extração completa do
sangue de uma criança e do banho sagrado do sábado à meia noite. Os cadáveres eram então
descartados, aprisionando-se as almas dos sacrificados em pequenos ídolos de madeira. Tais
conhecimentos lhe haviam sido transmitidos por um rabino prisioneiro no campo de Auschwitz, em
troca de privilégios e proteção. Ali, durante os anos de 1941 a 1944, a realização dos ritos fora fácil
para um oficial SS como Siegfried. Agora, era necessário mais cuidado. A vítima precisaria ser
escolhida de forma a que seu desaparecimento pudesse passar despercebido. A resposta obviamente
estava no “Zé Povinho”...
De início, o “Caso dos Miúdos Dessangrados”, apesar da posição social das vítimas, causou furor
na imprensa e mobilização da sociedade de Vila Real. Entretanto, a falta total de pistas e a
incompetência da polícia - devidamente “auxiliada” por Siegfried - terminou por lançar tudo no
esquecimento, apesar das mortes prosseguirem. Até 1966 .
Noite de sábado de Aleluia, 9 de abril de 1966. O vento gelado da Serra enfiava suas garras afiadas
pelas muitas frestas das paredes de madeira da cabana. No interior, a luz bruxuleante de uma vela
posta no centro de uma mesa tosca, revelava uma criança encolhida a um canto. Parecia à beira da
loucura e seus lamentos entrecortados saiam por uma garganta lacerada de tanto gritar. Na
extremidade oposta, sentado equilibrando-se numa velha cadeira escorada na parede, Siegfried
fumava tranquilamente. Aos seus pés, uma banheira de metal, tubos de borracha e algo parecido a
um bisturi. Como a tudo assistir, um coelho de madeira. O homem parecia imerso em pensamentos
e apenas a brasa do cigarro ao chegar na carne teve o poder de trazê-lo de volta. Levantou-se
calmamente, bisturi já incorporado ao braço esquerdo. O miúdo tentava encolher-se além dos
limites da física, enquanto mirava seu irrefreável algoz lateralmente, numa característica cena
predador - presa. Como trilha sonora, os uivos do vento, semelhantes a um lamento animal.
A conclusão da cena se deu de forma rápida, mas fixada para sempre nas retinas do guri como uma
fotografia - ou melhor, um baixo relevo em madeira. A porta do casebre abriu-se, na verdade foi
arrancada dos gonzos, dando lugar a uma figura de mulher. Alta, longas vestes brancas, lebres aos
pés. OSTARA. Siegfried não compreende o que se passa, mas percebe seu fim. Um resto de
consciência indica que algum detalhe do ritual lhe fora omitido. “Maldito judeu! “, pensou. O
miúdo dispara campo a fora, enlouquecido, para encontrar a morte no frio da noite, enquanto o
corpo exangue do alemão cai sem vida, rosto no chão. Um rastro de sangue traça uma trilha levando
da cabana ao início do Bosque imerso em trevas. O único resquício de vida na cabana desabitada
era o pequeno coelho mecânico a mover suas patinhas alternadamente. Tinha uma expressão de
agonia impressa eternamente em seu focinho de madeira.
“o ritual da ressurreição anual de Ostara poderá ser renovado por apenas 24 anos. No vigésimo
quinto ritual o celebrante será imolado em honra da Deusa“ (Grimoire de Ostara - Nürnberg/1325)

OUBLIETTE

Do francês "oublier - esquecer".


Um tipo particularmente cruel de
masmorra medieval, onde alguns infelizes
eram encerrados para morrer de fome,
sede ou pior.Podia ser uma câmara subterrânea
com apenas uma portinhola no teto ou um buraco
pouco mais largo do que um corpo humano,
onde o condenado ao "esquecimento"
seria enfiado de cabeça para baixo até...

"Socorro! Alguém... Alguém me tire daqui! Por favor..."


A tarde caia rápido e a pouca luz que sobrevivera às nuvens pesadas pouco podia fazer contra a
cerrada cobertura de árvores. As ramagens entrelaçadas tornavam a estrada sinuosa um túnel
vegetal. As curvas quase simétricas exerciam um irresistível efeito hipnótico na condutora do fusca
vermelho.
Eduarda cansara de procurar um emprego correspondente ao recém conquistado diploma de
bióloga. Inicialmente em sua BH natal, depois no Rio e por fim em São Paulo. Como lançar mão de
sua formosura e beleza não era uma opção profissional, Duda - assim seus amigos a conheciam -
engoliu o orgulho e mergulhou na busca por ocupações mais humildes, porém mais prováveis.
Baby-sitter pareceu-lhe uma boa ideia a principio, pois gostava de crianças e era um trabalho que
lhe permitiria continuar trabalhando em sua tese de mestrado. Mas, como frequentemente ocorre
com novos profissionais sem emprego, a busca por especialização é mais um sucedâneo para a falta
de oportunidades do que verdadeira vocação ou necessidade de aperfeiçoamento acadêmico.
Exatamente o caso de Eduarda. Mesmo assim, vagas de Babá também não eram abundantes e Duda
terminou aceitando uma improvável oferta de emprego em Pedra Azul, Espírito Santo. Deixava para
trás amizades, pais, um namorado e talvez mais.
Quando a monotonia da estradinha ameaçava vencer a vigília da moça, uma última curva revelou a
seus olhos azuis a deslumbrante figura do gigante de pedra a dominar a pequena vila aninhada a
seus pés. A imagem brilhante em marcado contraste com o tom sombrio da estrada na última meia
hora de viagem, feriu os olhos de Eduarda e a fez freiar bruscamente, estacionando o veículo num
recuo improvisado da pista. O ruído áspero produzido pela borracha arrastada sobre a areia da pista
terminou de dissipar o resto de sono que ainda amortecia seus sentidos. Num reflexo desceu do
fusca, esticou o esqueleto num movimento de alongamento e contemplou absorta o vale lá em
baixo. Seu transe durou até que as primeiras gotas de chuva alcançaram seu rosto. Olhou ao redor e
não teve qualquer dificuldade em vislumbrar o caminho a tomar em busca de seu destino. As
instruções no e-mail eram claras. A partir do belvedere devia pegar a precária trilha a esquerda,
desviando do caminho que descia na direção da vila.
Enquanto seguia adiante, evitando cuidadosamente paus e pedras da senda, Eduarda repassava em
sua mente a dúbia oferta de emprego que suas muitas contas vencidas lhe haviam forçado a aceitar.
Não era exatamente uma posição de babá , pois não cuidaria de uma criança. Seria mais uma
espécie de preceptora de um jovem de 14 anos, cujo pai educava em casa, longe do sistema formal
de ensino. Em pouco mais de vinte minutos e chegava ao final do caminho. Sorte, pois a chuva que
começava a apertar, logo transformaria a via num intransponível atoleiro. Um casarão em estilo
colonial e mau estado de conservação a aguardava uns cem metros após um improvisado
estacionamento. Um portão de ferro descascado aqui e ali impedia uma maior aproximação com o
veículo. Paredes outrora brancas, povoadas de manchas, hera e rachaduras, indicavam abandono a
agravar os problemas da idade. . Duda já se dispunha a enfrentar a chuva com uma insuficiente capa
plástica, quando teve sua atenção atraída por um chap-chap de pés nas inúmeras poças que a chuva
agora intensa, formara entre o estacionamento e o casarão. Alguém corria em sua direção, face a
demonstrar alarme, talvez medo.
O rapaz parou a dois palmos de Eduarda, olhando-a fixamente. Os filetes de suor desciam
lentamente pela face até chegarem à fina penugem loura que algum dia seria uma barba. A
expressão apalermada, oscilando entre o medo, a urgência e a curiosidade. A sequência de feições
deteve-se numa sutil ironia.
- quem é você? O que quer aqui? Pera aí... Já sei. A nova... Sei lá o nome. O pentelho que vem me
apurri.. ajudar nos estudos. As doideiras do meu pai... Prazer! Eric... Vamos entrando, ainda deve ter
alguma coisa prá comer lá na cozinha. Vem...
O Tsunami de palavras registrou na mente de Eduarda um diagnóstico preliminar: adolescente
"mala" e hiperativo de lambuja. "Bem podia ser uma criança normal" - pensou ela antes de seguir o
rapaz em silêncio. Ao aproximar-se do casarão pode verificar a antiguidade da construção, bastante
reforçada pelo descuido. Mato crescido, um e outro vidro trincado nas janelas, paredes
"ornamentadas" por manchas de umidade e múltiplos sacos de lixo a espera de alguma data especial
para serem coletados. A pintura, provavelmente a original. De resto, uma típica casa colonial
brasileira do tempo do Império. Quase se podia esperar o surgimento de alguma mucama à espreita
de um bolo esfriando na janela.
As pegadas enlameadas do rapaz vieram a se somar a muitas outras em graus diversos de secura no
piso de pedra da cozinha. Sobre a longa mesa de madeira, um solitário bolo de aspecto ancestral.
Milho, provavelmente.
- são só você e seu pai por aqui? - perguntou ela, quase arrependida de provocar nova avalanche de
conversa.
- sim. E as professoras, claro. Essa mania dele de "ensino em casa"... Mas eu até que gosto. Uma
carinha nova de tempos em tempos, hehehe... A arrumadeira também aparece de vez em quando.
- e...
- cozinheira não precisa. Nós mesmos nos viramos. Quer bolo?
-...
- eu mesmo que fiz! Está ótimo, modéstia à parte. Ou pelo menos estava... Brrr.. Que frio! Está
noite vai ser gelada. E o pai que não chega...
As incessantes palavras chegavam à mente de Duda cada vez de mais longe. Começou a passear o
olhar pelos apetrechos empoeirados da cozinha que mais parecia um bolicho de beira de estrada. Ao
passar da lata de biscoitos para um bule amassado, um gélido par de olhos cinzentos encontrou os
seus, paralisando-a. Um homem de presumiveis sessenta anos, cabelos louros a rarear no alto da
cabeça e um resíduo de barba mal aparada a contemplava desde o escuro umbral da porta. Parecia
uma versão antiga do papagaio adolescente.
- pai! Essa é a... Como é mesmo seu nome?
- Eduarda. Vim pelo emprego de...
- Sim, claro. Onde estão suas malas? No carro, claro. Vamos pegá-las? Ainda temos que preparar a
janta. Eric! Pega lenha prá lareira. Bem... Vamos, Eduarda? Conversamos sobre o trabalho depois
da janta, sim?
Com o dito popular "tal pai, tal filho" na cabeça, a moça limitou-se a seguir o homem e mergulhar
na escuridão gelada, apertando seu insuficiente casaquinho ao corpo. No caminho de volta ao carro,
um leve aroma doce-azedo, típico de decomposição orgânica agrediu suas narinas.
- tem bicho morto por aqui...
- na certa é a "oubliette"... Ali junto à parede dos fundos. Sabe o que é uma "OUBLIETTE",
querida?
A imagem do homem sumiu, engolida pela escuridão acentuada pela copa das árvores. Apenas o
som dos passos contra a areia do caminho o ligava a Eduarda. Ela parara de acompanhá-lo para
seguir a trilha do cheiro de decomposição. O aroma tornava-se mais pungente ao se aproximar dos
fundos do casarão. Ali, meio oculto por uma pilha de madeira apodrecida, um grande alçapão
rebrilhava à luz do luar, na extremidade de uma curta rampa. Eduarda estremeceu ao fitar o
retângulo prateado que lhe parecia sorrir sardonicamente. Não havia dúvida. Era dali que emanava o
cheiro desagradável. O que seria aquilo? - pensou.
- uma espécie de lixeira. É aí que jogamos tudo que não nos serve mais... Ei! Cuidado!! Não chegue
perto, a rampa é escorregadia e as portas se abrem prá dentro. Se cair, não sei como faria pra te tirar
de lá... É fundo, sabe? Nem os gatos conseguem sair. Essa é a nossa "Oubliette" que mencionei há
pouco.
A voz do homem que retornara, já de posse de suas malas, forneceu a resposta à pergunta que não
chegara a ser feita.
- gatos? Como assim? Não consigo imaginar um gato escorregando...
- pois é... Eles são como muita gente. Se imaginam muito espertos, até que num momento de
desatenção.. Pronto! Encontram-se num caminho sem volta. O famoso "point of no return" do
Fantasma da Ópera.
Eduarda não tinha certeza se de fato ocorrera ou fora apenas uma impressão, mas em sua mente
ecoou uma risada mal contida. Instintivamente recuou, afastando-se da bocarra metálica e de seu
bafio repulsivo. O pigarro às suas costas fez com que se detivesse. Ao se virar, a face que a
encarava eliminou a hipótese da risada. Um rosto encovado e marcado por rugas e vincos,
emoldurado por uma barba amarela e rala. Os olhos ostentando a inconfundível marca da loucura.
Foram minutos, segundos talvez, marcados pela fria garoa, mas que pareceram uma eternidade. A
breve conexão entre os olhares teve para Duda o efeito de uma tortura psicológica.
- vamos? Está esfriando e ainda não jantamos. Eric já deve ter acendido a lareira. Precisamos
conversar sobre suas tarefas a partir de amanhã.
- sim.. Quero dizer.. Senhor.. ? Como Vé mesmo seu nome?
- Eric. Como meu filho. Somos um só, por assim dizer... Vamos, querida?
Ao percorrer os vinte e poucos metros que levavam da noite já fechada até o interior do casarão
onde uma luz amarelada tremeluzia, a alma de Duda debateu-se numa dúvida agoniante. De um
lado, a necessidade financeira e de outro a poderosa sensação de estar mergulhando num poço de
água negra. Todos os seus instintos lhe gritavam para abandonar tudo e sair dali o mais rápido
possível. Mas, teria ela realmente uma opção? Com a mesma rapidez com que a noite caía, a
situação ia se assemelhando à marcha de um condenado rumo ao cadafalso.
Ao entrarem, um reconfortante calor proveniente da lareira e o aroma agradável que se desprendia
do tacho de cobre fumegando sobre a mesa, compunham um quadro quase alegre e acolhedor. Um
interlúdio de prazer na pequena noite de horror que vinha se formando desde a chegada de Eduarda.
A impressão agradável foi quebrada porém, à medida em que a moça observava pai e filho a
comerem. Realmente eram como um só, como havia dito o velho. O mesmo olhar insano, a mesma
concentração anormal no prato de comida. O silêncio, atenuado apenas pelo choque dos talheres
contra os pratos.
- gostoso, não? O pequeno Eric é quem faz...
- sim, mas tem um tempero diferente... Também não reconheci a carne. O que é?
- anis estrelado. Esse tipo de carne precisa de anis... O sabor é muito sutil, sabe? Agora, passando
aos negócios...
- darei aulas particulares, não é isso? Dificuldades com alguma matéria em especial?
- não exatamente. Em nossa família não acreditamos no sistema oficial de ensino. Eric vem sendo
formado desde o princípio apenas em casa. Pena que a rotatividade de professoras é muito grande.
- e o material didático? As anotações do último professor?
- como? Ah... sim! Os livros e cadernos... Estão...
- estão no quarto dela, pai. Esqueceu?
- claro, claro. Quando você se recolher poderá dar uma olhada em tudo.
- e são sempre professoras? Nunca teve um professor?
- Na verdade não. Mulheres são mais... como direi... macias!
A brincadeira de mau gosto extraiu uma gargalhada histérica do rapaz, prontamente abortada pelo
olhar de silenciosa fúria do pai. Buscando quebrar o constrangimento que se formara, Eduarda
circunvagou o olhar pela sala em busca de algo que pudesse mudar o rumo da conversa. Fixou os
olhos numa porta ao fundo. Além dela, apenas trevas.
- e ali, o que é? A cozinha?
- de certa forma. É lá que pomos a carne pra maturar e...
O diálogo foi bruscamente interrompido pelo soco na mesa desferido pelo velho, faca presa entre os
dedos. A face vermelha, congestionada pelo ódio, encarava fixamente a do filho. Este, longe de
encolher-se, enfrentou o pai, ele próprio bandindo sua faca. A atmosfera irreal, digna de uma peça
do Grand Guignol, terminou tão subitamente como se formara.
- meu filho... não devias esquecer a porta da despensa aberta. O cheiro pode incomodar nossa
hóspede! Menina, é melhor nós recolhermos, não acha? Estamos todos cansados e já está tarde.
Amanhã começamos cedo.
A dupla, a essa altura já abraçados mas sem largarem suas facas, sorria candidamente para a moça.
Um tétrico e artificial sorriso, como que pintado numa máscara.
Eric pai desvencilhou-se do filho e pegando as duas pequenas malas, dirigiu-se à escada.
- venha. Você deve estar muito cansada. Eric! Cuide de tudo e não esqueça da despensa...
Ao seguir o homem escadas a cima, Eduarda e Eric filho conectaram os olhares. O semblante
assustado do rapaz era a prova de que havia algo muito errado naquilo tudo. O sentimento de
estranheza era intenso e percorria sua pele como eletricidade estática. O próprio ranger de seus
passos nos velhos degraus da escada, parecia assumir um tom sinistro. A moça sacudiu a cabeça
tentando afastar tudo aquilo se sua mente, pois estava de fato bastante cansada e tudo que desejava
agora era cair numa cama. No máximo dar uma olhada no material didático do rapaz antes de pegar
no sono. No alto das escadas lhe esperava a silhueta do homem, emoldurada pela luz mortiça do
quarto.
- É aqui. Sua...seu dia acaba aqui. A cama é velha mas é confortável. Lá no fundo tem um pequeno
lavabo e o interruptor fica ao lado do criado-mudo. Lençóis, cobertores e travesseiro, no baú aí pé
da cama. Boa noite! Amanhã no café conversamos, ok?
O alívio psicológico proporcionado pela saída do homem, não durou nem dez segundos. A face do
pai insinuou-se na fresta reaberta da porta, ostentando algo parecido a um sorriso.
- ah! Já ia esquecendo... Tem água na jarra em cima do criado-mudo. A outra garrafa tem um licor
de ervas caseiro que é ótimo. Modéstia à parte... Vai te fazer dormir maravilhosamente. Não perca
ein?
A mente de Duda estava saturada da sucessão de bizarrices e já não processou a última delas: o
característico som da chave girando na fechadura, trancando-a. O fato de não haver qualquer sinal
de livros ou material didático naquele cômodo, tampouco conseguiu prender sua atenção. Por vezes
nossa psique, confrontada com um cenário excessivamente ameaçador, deleta parte dele da
consciência imediata. Apagando a luz, deitou-se sem sequer trocar de roupa, porém seu extremo
cansaço físico, aliado à super excitacao mental, a impediram de cair no sono de imediato.
Por sua mente passavam as imagens recentes de sua aventura em busca de um alívio financeiro. Em
situação menos difícil, não estaria ali de forma alguma. A dupla de Erics era doida, sem dúvida
alguma. Provavelmente inofensivos, mas indiscutivelmente doidos. Mergulhada nas trevas do
quarto, teve vontade de ligar o celular e falar com o namorado, mas desistiu. Afinal não desejava
apenas resolver problemas financeiros, mas mudar sua vida completamente. Por outro lado, o
aparelho sem sinal e pouca bateria, forneceu apenas uma luz azulada como apoio. Rolou por todas
as posições possíveis na cama, mas a benção do sono nada de surgir. Insidiosa como um demônio,
surgiu em sua mente a imagem da garrafa de licor. "Sim, um pouco de álcool vai ajudar" - pensou
ela sem refletir. Estendeu a mão até o criado-mudo e tateou até alcançar o auxílio que buscava. Deu
uma golada no próprio gargalo e saboreou o líquido viscoso. Antes de se apagar, seu cérebro
registrou apenas a dor do choque contra a cabeceira da cama e a visão da garrafa a rodopiar no chão
onde Duda se estatelara.
O frio da terra molhada em contato com seu rosto e a chuvinha fina, afinal despertaram a moça. Aos
poucos outras sensações ao redor foram chegando à sua mente e sendo reunidas como um quebra-
cabeça. As vozes dos Erics que discutiam irritados, a recompôs completamente, mas não ousou
mover-se.
- não pai! Ela não!
- como assim? Por que "ela não"? Não seja ridículo... Ela é como todas as outras... Depois de
maturada por algum tempo...
- podemos achar outra, lá na cidade...
- é deixamos ela ir, é? Está ficando louco?? Além do mais, a despensa está quase vazia...
Essa pergunta soou como uma piada para os dois, que desataram a rir antes de voltarem a se
enfrentar.
- ou está apaixonado...? Não vale à pena meu filho. Lembre-se da tua mãe... O sabor é sempre o
mesmo. Varia só o tempero. Hehehe...
- é daí? E se estiver? Já cansei de ser um criado por aqui...
- cala essa boca, seu idiota! Arrasta ela prá cá que eu vou abrir a "Oubliette". Vamos logo! Ela não
vai ficar desacordadada prá sempre...
Eduarda levantou-se o mais silenciosamente que pôde sem que os dois a notassem. A cena que
presenciou marcou como que a fogo suas retinas. A boca negra da "Oubliette", escancarada parecia
esperar algum alimento. De costas para a abertura, o pai encarava seu filho com um misto de medo
e loucura, enquanto este avançava em sua direção. Estranhamente o confronto não produziu
qualquer som que se sobrepusesse aos insetos da noite, porém, após um interminável minutos, o
silêncio espectral foi quebrado pelo despencar do corpo pela abertura faminta. O baque surdo que
emergiu da profunda escuridão deu fim ao drama.
- Estamos livres dele, boneca! Livres! Venha cá, me abrace... Estou com frio... Isso. Assim mesmo...
Abrace forte! Espere! Não... Não faça isso!! Naaaaaãoooo....
Nos breves segundos que se seguiram ao empurrão fatal, o rapaz, olhos esbugalhados de pavor,
esticou inutilmente os braços para frente na tentativa de recuperar o equilíbrio na rampa que levava
à abertura sombria. Com um grito insano o jovem foi reunir-se ao pai e Eduarda cuidadosamente
fechou as portas de ferro da "Oubliette".
Pouco mais de um mês, apareceu em sites de turismo o seguinte anúncio: "Pousada da Duda. Um
paraíso aos pés da Pedra Azul! Aos fins de semana, carnes maturadas grelhadas. Imperdível!"

PARCERIA ENCERRADA

"Parece que não dá mais para continuar... A mente de Marcos ruiu por completo. Nossa parceria,
depois de tantos anos de sucesso, acabou! É como perder a visão... de novo! Desde pequenos meu
irmão e eu nos completamos, sempre fomos como um só. Ele, era meus olhos e mãos e eu... bem...
podemos dizer que venho sendo seu cérebro. Hehehe... Como aquele idiota poderia viver com seu
QI vegetal? Como dois gêmeos idênticos podem ser tão diferentes? Lembro bem quando tudo
começou. Já deve ter mais de 20 anos. Sim, tínhamos uns cinco nessa época. O gatinho Toby da
solteirona do terceiro andar teve a honra de ser o pioneiro de uma série de verdadeiras obras primas.
A primeira de nossas aventuras! Lembro-me bem dos gritos da velha quando encontrou o bichano..
hehehe. A graça toda sempre foi que as testemunhas podiam jurar que viam a mim no local da ação.
Na verdade, apenas um truque simples, banal mesmo. Meu irmão, com roupas minhas, penteado
semelhante ao meu e alguma imitação de cegueira, executava os planos. Eu, o "pobre ceguinho de
nascença" podia facilmente provar que estava em lugar bem diferente. Simples, porém brilhante!
Modéstia à parte, hehehe... Ademais, as vivissecções jamais poderia ser obra de um cego! Depois
vieram outros pets, até que a graça de trabalhar com animais acabou. Daí vieram as criancinhas.
Muito mais perigoso, mas também bem mais prazeroso! O método, sempre o mesmo... No todo, a
única real diferença era o nível dos gritos das pessoas ao descobrirem seus bebezinhos... digamos,
rearrumados. Hehehe! Nos últimos anos passamos aos adultos. Nada de novo. Talvez tenha sido
mesmo um certo anti clímax! Os lamentos dos parentes das "obras" não chegavam nem perto dos
papais da fase anterior. Alguns até não ligavam... hehehe. E agora meu louco irmão destrói uma
carreira de décadas! "
" Estou farto da arrogância de Vitor! Sempre se achando o gênio da família... Posso muito bem
prosseguir sem ele. É uma ironia poética que meu irmão termine como mais uma de suas "obras de
arte". Hahaha! Esta será sua última noite, dentro de sua querida escuridão. Afinal, viver para sempre
no escuro não é nenhuma novidade para ele... Hahaha! "
" Que barulho é esse? A janela!! Passos! Conheço bem esse caminhar furtivo... É ele. É Marcos.
Finalmente chegou, para nosso acerto de contas... O estúpido pensa que pode seguir sem mim! Pode
vir, irmão. Chegue mais perto. Posso sentir sua presença. Sinto também um ódio, um
ressentimento... Por que? O que há com você? Ahhhhh.... "
- Doutor Almeida! Doutor Almeida! Venha rápido!
- o que houve Machado? Que confusão é essa?
- o paciente do quarto 1958. O Vitor Marcos!
- sim? O que tem ele?
- está morto! Alguém praticamente o estripou... O bisturi está em sua mão!
-???
- sei que parece impossível, mas é isso mesmo dr. Almeida. A cela de isolamento estava trancada
quando cheguei, atraído pelos gritos desesperados do louco!
- não sei como Machado, mas alguém, ou alguma coisa chegou até ele.
- mas vindo de onde doutor?
– talvez de sua própria mente...

SOBREVIVENDO NO INFERNO

As luzes do teto se sucediam no ritmo do avanço da maca. As retinas de Doralice, em função da


velocidade do deslocamento, transmitiam ao seu cérebro a sensação de uma linha contínua,
brilhante e fria, ao longo dos corredores brancos. Um carrocel hospitalar, monótono e dominado
pelo cheiro de desinfetante. A noção de tempo na mente da jovem se perdera inteiramente, desde
que seu pai a deixara na enfermaria antes de partir. Porém calava ainda mais fundo no coração, a
mágoa de não ter ali a seu lado sua mãe. Não que as duas tivessem uma relação muito afetuosa mas,
em seus dezessete anos de vida, nunca Doralice precisara mais da mãe. A menina não negava que
tudo era culpa sua, mas mesmo assim, a falta de apoio dos pais dilacerava sua alma. Ela ignorara os
avisos e conselhos, mas era pouco mais do que uma criança, afinal!
Escondeu a gravidez o quanto pôde, viajando para a casa de uma amiga, mas as complicações que
se seguiram acabaram por revelar a verdade. Agora, era sua vida ou a do feto. Um aborto a essa
altura, era um risco para ambos, mas não havia alternativa. Uma nova onda de dores agudas no
baixo ventre e a brusca parada da maca, trouxeram Doralice de volta à sala de cirurgia, onde o
onipresente cheiro de desinfetante e uma pequena equipe de médicos a aguardavam. A despeito da
anestesia, a moça mergulhou num mar de sofrimento, mais moral do que físico. As vozes dos
médicos pareciam amplificadas e se misturavam com admoestações paternas em sua cabeça. Nesse
caos mental, pouco a pouco uma imagem dominou todas as demais impressões. Vinda do fundo dos
ensinamentos religiosos que recebera na infância, a perspectiva do Inferno como castigo pelo que
fizera a aterrorizava.
O diálogo entre os médicos e o inconfundível bip continuado do equipamento que controlava seus
sinais vitais, trocou seus medos espirituais pelo pavor da morte. Física, pura e simples morte. As
palavras que podia discernir não deixavam dúvidas, mas como seria isto possível? As dores
continuavam. Eram mesmo cada vez mais atrozes. Não poderia estar morta! Tentou falar, levantar-
se, tudo em vão. Seu ser passou a resumir-se unicamente na dor. O piiiiiiiiiiiiiiii do aparelho de
monitoramento vital que trespassava seu cérebro se aliava ao horrível retorcer das vísceras,
dominando-a por completo. Suas mãos inertes ao lado do corpo eram incapazes de qualquer ação ou
sensação, até que um líquido viscoso e quente as alcançou. Sentiu que algo lhe era arrancado das
entranhas e passado às mãos de um recém chegado. A posição imobilizada da cabeça de Doralice a
impedia de fitar o homem - se é que era realmente um homem - exceto quando o mesmo passava a
seu lado na maca, ao caminhar pela sala. Fixou-se em sua mente dominada pela dor apenas a textura
da pele do caminhante. Avermelhada, grosseira e coberta de escamas.
Subitamente a maca retomou o movimento, percorrendo os mesmos corredores de antes até
chegar… à mesma sala cirúrgica. Aguardavam Doralice três figuras vestidas como médicos. As
cabeças disformes que apareciam acima dos panos a cobrir as bocas, atestaram sua natureza não-
humana. Ao fundo da sala, outra figura de pé acalentava nos braços um volume embrulhado em
panos sangrentos. Parecia amamentar, enquanto coleava gostosamente sua longa cauda. Num
fragmento de sanidade em meio à pavorosa agonia, a moça perguntou-se a quanto tempo estaria
revivendo aquele terror. Seria este o sentido da expressão “eterna agonia”, tantas vezes dita pelos
padres nos sermões de domingo?
O contemplar do abismo de uma tortura infinita fez a menina, com toda a força de sua alma, voltar-
se para Deus. Desde pequenina não dialogava com ele. Ao crescer, a figura divina fora deixando de
ser um entidade real para
transformar-se num conceito filosófico. Agora ela precisava que Deus existisse. Precisava
sobreviver. Rezou, rezou fervorosamente, com toda força e sanidade que a dor lhe havia deixado.
Doralice sentiu um sutil sussurrar no ouvido esquerdo. Uma voz macia e melodiosa penetrou na sua
carapaça de sofrimento, como um bálsamo:
"Você se lembrou de Deus, não? É sempre assim.. Mas ele sempre ouve aqueles que o invocam.
Venha..."
Doralice, como por milagre, sentiu-se com forças para levantar e caminhar ao lado da sombra que
havia lhe falado. Dirigiram-se para a porta ao fundo da sala de cirurgia. As bizarras criaturas
abriram passagem reverentemente e ela não pode deixar de ouvir atrás de si o choro de uma criança,
antes de entrar no espaço adiante. Viu-se só, ou melhor, na presença de alguma coisa indefinível e
toda poderosa. As palavras começaram a chegar ao seu âmago de forma incompreensível:
"Então minha criança, desejas algo de mim? Sempre estive a teu lado e sempre a ouvir teus
pensamentos e anseios. Infelizmente, tu e quase todos os mortais, me esqueceram. Preferiram
acreditar na Ciência e nos teus iguais... Diga, o que queres? Garanto atender teu pedido. Sou o teu
Deus! "
" Graças! Desejo sobreviver a esse inferno! É tudo que eu quero. Sobreviver... "
" Nada mais fácil, serva. Afinal, todos que para aqui vêm, sobrevivem. Sobrevivem por toda a
eternidade. É essa a ideia, sabe? Expiar para todo o sempre suas penas... Concedido!!
HAHAHAHAHA!
Até o fim dos tempos aquela gargalhada fundiu-se à alma de Doralice, dando a ela um novo
significado para AGONIA.

TENHO QUE SAIR DAQUI

"Tenho que sair daqui! Sair o mais rápido possível, antes que eles cheguem e descubram... Essa
maldita Guarda Real mete o bedelho em tudo. Tudo era bem mais tranquilo antes de Dom João vir
para cá... Agora até questões domésticas viram caso de polícia! O homem deve ser o Senhor em sua
casa!! Absurdo... Completo absurdo... Mas preciso me apressar, dar fim aos corpos. Sim! O poço
aterrado lá atrás, dá para por os três lá. Só preciso tomar cuidado que o arrimo está cai não cai... "
" há barulho na rua! Que será? Tenho que sair daqui, mas preciso lavar minhas mãos. Esse sangue,
nunca sai... Maldição! Ei! Que acontece? Onde vão todos? Por que ninguém" me responde?? Dão
vivas.. Vivas ao príncipe Pedro, parece. A multidão vai na direção do Terreiro do Paço... Vou lá!
Não, não posso. Preciso apagar os vestígios. E esse sangue... "
" Quem está lá no quarto? Não, não é possível! Estou imaginando coisas, por certo... Preciso sair
daqui antes que seja tarde. Preciso lavar minhas mãos... Tem gente lá fora. Será a Guarda Real? Vou
ver. Quanta gente! Nunca vi algo assim... Parecem todos loucos! Negros e brancos misturados!
Saúdam a Princesa, mas que princesa é essa? "
" Tenho que sair daqui! Só me falta lavar as mãos e esperar o cair da noite... Espere, ei! Vocês dois!
Aí em cima das escadas... Quem são vocês? Sumiram... Devo estar ficando louco.. Deixa eu olhar
pela janela... Por Satã! O que é aquilo??? Um monstro mecânico vem direto para cá! Vai destruir o
muro! Não! O poço! O poço... "
Diário Carioca - 31 de maio de 1958.
" Demolição de casarão na Rua do Riachuelo revela tragédia esquecida : Antigo poço aterrado
escondia em suas profundezas, quatro esqueletos com cerca de cem anos de idade! Especialistas
determinaram se tratar de uma criança com dez anos presumiveis e três adultos, dois homens e uma
mulher. Análises preliminares indicam que a criança, a mulher e um dos homensforam degoladas. O
terceiro esqueleto tudo leva a crer que pertence ao assassino, surpreendido por um deslizamento de
terra quando tratava de ocultar os cadáveres. Que tragédia estaria soterrada por todo esse tempo? "
"Tenho que sair daqui! Já encontraram os corpos e em breve a maldita Guarda Real chegará... Só
preciso lavar as mãos desse sangue todo e sumir para bem longe! Tenho que sair daqui... Tenho que
sair daqui... Tenho que sair daqui..."

UMA NOITE NO TEATRO

“Que frio! Brrrr... E esses malditos flocos de neve, caindo, caindo. Não sei como já cheguei a achar
neve uma coisa bonita e romântica! Só serve prá atrapalhar... É muito legal nos filmes, enquanto tu
bebebericas um vinhozinho, debaixo das cobertas, em boa companhia... No mundo real é um porre!
As pessoas vão pisoteando a neve depositada, essa vai se transformando numa lâmina gelada e suja,
um risco permanente de um tombo olímpico! Bem, deixa eu apressar o passo, senão perco a
apresentação. Já são quase nove! Estou quase lá. Deixa eu ver, Rue Chaptal, é aqui. Um beco, mais
do que uma rua. Sim, lá no final, deve ser ali. Parece mais uma igreja, ou coisa assim.
Curioso...uma igreja que se transforma num teatro de horrores! Só na França mesmo. Bem, na
cinzenta Inglaterra també funcionaria. Talvez até mais!”
Algumas pessoas, isoladas ou em grupos pequenos, seguiam o mesmo fluxo de Donato, como que
atraídas magneticamente na direção do acanhado teatro em busca de ... sensações, repulsivas e ao
mesmo tempo apaixonantes. Pareciam todos caminhar num mesmo ritmo, compassado e reticente,
como se receassem chegar à porta. O característico som de botas a esmagar a neve do chão, gerava
um pano de fundo sonoro, ritmado, sutil e hipnótico. Uma figura magra e ausente recolhia
mecanicamente os ingressos, sem se dar ao trabalho sequer de afastar a surrada cortina que fechava
a entrada. A gorda mulher que indicava os assentos, desempenhava seu papel de forma igualmente
desinteressada. Com quase imperceptíveis movimentos de mão apontava vagamente na direção da
fileira correspondente aos bilhetes apresentados pelos assistente que chegavam.
“Bah... que cheiro estranho aqui dentro. Parece uma mistura de insenso e velas de sebo... Mas
vamos pro lugar marcado. A8. Primeira fila, bem na frente. Não quero perder um só detalhe. Se é
para tremer de horror, que seja a sério! Já começou bem... Esse aroma pesado casa às mil
maravilhas com a sala de espetáculos em si. Humhum... foi realmente uma capela, ou igrejinha de
bairro. Ainda tem até os anjinhos esculpidos nas paredes. Não fossem as poltronas de veludo quase
vermelho e o pano de boca, ninguém diria tratar-se de uma teatro! Deixa eu dar uma sacada na
platéia...”
Faltando apenas um solitário minuto para o início programado da sessão, a platéia já estava
completa. Homens e mulheres, muitos obviamente turistas, não podiam conter a ansiedade. Os
risinhos nervosos ondulavam pelo ambiente abafado como uma brisa quente de verão. As mulheres
agarravam-se ao braço de seus acompanhantes, antecipando os “horrores” que viriam no decorrer da
noite. Luzes subitamente diminuídas, uma baforada de gelo seco e um teatral garra ossuda surgindo
por entre as cortinas indicou que o espetáculo havido começado.
“Vai começar finalmente! Uau! Que figura bizarra... O mestre de cerimônias, por certo. Ou mestra,
não dá para saber...”
"- Boa noite damas e cavalheiros! Vejo aqui na plateia que muitos amigos estrangeiros nos visitam...
bom, muito bom. Sejam todos bem vindos ao nosso humilde templo das emoções verdadeiras! Aqui
vocês encontrarão as matérias primas das quais a vida é feita. Amor, traição, medo, ódio.... As cores
básicas do grande quadro da Humanidade, combinadas das mais variadas formas, mas sempre as
mesmas. Antes de começarmos o espetáculo desta noite porém, um alerta. Ou melhor, um conselho.
Quando o que seus olhos contemplem seja por demais repulsivo e aterrador, basta que olhem para
dentro de vocês mesmos. Aí, aninhados em suas almas, todos encontrarão as mesmas emoções,
motivações e quiçá experiências pessoais... Com vocês... “Le Veuve”!
A peça gira em torno da viúva do título - uma guilhotina num museu mambembe. Ao seu redor se
sucedem diversos personagens, pouco a pouco tecendo o típico enredo que fala de traição, amor e
da inevitável vingança. Para os padrões do Grand Guignol, uma comédia... A conclusão da trama é
previsível desde os primeiros diálogos. De alguma forma
o adúltero pagará suas penas nas mandíbulas de aço da "viúva". À plateia cabe antecipar agoniada o
desfecho sangrento. Assim faz o eletrizado Donato que acrescenta os seus aos risinhos nervosos da
audiência. Mas, inesperadamente, a encenação parece interromper-se. O mestre de cerimônias,
secundado pelos artistas, aproxima-se da beira do palco e estende uma obsequiosa mão na direção
do ocupante da poltrona A8:
"Eu? Não estou entendendo... Parece que querem que eu faça algo... Curioso. Não sabia que aqui
tinha performances interativas assim... Esperem, já vou, já vou. Parece que sou o único
surpreendido por aqui. Mais ninguém fala nada... Todos estáticos, em silêncio, me olhando... Que
bizarro! Mas vamos lá."
Entrando no clima, Donato sobe ao palco, curvando-se teatralmente na direção da plateia. Ao fazê-
lo, um calafrio percorre sua espinha dorsal. O público permanece imóvel, olhos fixos, sorrisos
pintados e idênticos. A cena é irreal e onírica. De ambos os lados do rapaz, dois personagens
fantasiados com dominós brancos, enfeitados com grandes pompons vermelhos. As figuras mais
parecem autômatos e ostentam sorrisos tão mecânicos quanto os da plateia. Sutilmente, as figuras
passam os braços pelos de Donato, imobilizando-o. Timidamente a princípio, os aplausos vão num
crescendo a medida que os três voltam as costas à plateia e encaminham-se na direção da sinistra
figura da guilhotina. Em instantes o rapaz é posicionado na prancha do terrível instrumento, cabeça
presa na luneta. Sua frenética tentativa de libertar-se parece unicamente acentuar os aplausos, a essa
altura já ensurdecedores. Donato pode sentir na face o sopro cálido da respiração da atriz, cujo rosto
repleto de maquiagem, sussurra algo inaudível ao seu ouvido, o mesmo sorriso artificial estampado
na face pintada. As últimas impressões que chegam ao cérebro do rapaz são o baque da lâmina no
cepo e imagens rodopiantes do teto e das paredes vermelhas do teatro.
"Bah! Parece que sonhei, meu Deus... Foi toda essa pesquisa sobre Grand Guignol pra publicar o
Wiki novo. Acho que me deixei levar pelo assunto... Que horas serão? Três da manhã, pelo menos.
Acho que só vou postar amanhã, quando tiver mais gente on-line. Vou fazer uma boquinha lá na
cozinha! "
Ao passar pelo espelho do corredor, Donato deixou de perceber seus cabelos anormalmente
embranquecidos e as manchas de sangue que cobriam seu casaco.

VERWERFUNG

Psicose: Estado psíquico no qual se verifica certa 


perda de contato com a realidade. Podem 
ocorrer alucinações ou delírios, desorganização 
psíquica, inquietude, angústia e opressão. 
Acompanha-se normalmente de ausência de crítica e 
incapacidade de reconhecer o caráter bizarro 
do comportamento. 
Ou pode não ser nada disso....! 

- Esse menino é mesmo estranho... Fica horas a fio na frente do espelho. Não brinca, não lê... Não é coisa de
um menino de dez anos. 
- Estranho nada! Coisa de criança. Só faltava tu meteres na cabeça de levá-lo ao um desses médicos de
maluco. Aí sim que ele pira mesmo! 
- É bem o que eu acho. Ouvir um profissional não faz mal nenhum...  
- Bem coisa de mãe. Se não tem um problema no filho logo inventa um... Já sabes que sou contra. Já uma
consultazinha prá ti... 
- Vá a merda!! 
- Blammmm!! 

Não fosse a enésima edição de uma conversa banal que se transformava em briga, a cena teria atraído a
atenção de Tobia. O garoto porém, como tinha crescido imerso numa atmosfera ruim, numa energia
negativa criada e alimentada diariamente pela rejeição mútua entre seus pais, Antonio e Beatriz, não ligou.
Os sons abafados a princípio e que logo evoluíam para gritos eram normalmente encerrados por uma brutal
batida de porta, como agora. Uma espécie de trilha sonora de toda a sua infância. Tal ambiente, pouco a
pouco o levara a desenvolver sua própria rejeição. Rejeitava o que considerava desatenção de seu pai tanto
quanto a sensação de sufocação oriunda da mãe. Em pouco tempo alcançou o estágio de rejeitar - e mesmo
odiar - a dupla paterna como uma única entidade. Na escola detestava particularmente ter que explicar por
que seu nome era escrito "Tobia" e não Tobias. Ser chamado pela conjunção ridícula dos apelidos de seus
pais - Tonho e Bia - era mais do que podia suportar. A única fonte de apoio psicológico da pobre criança era
sua avó materna, Circe. Não sabia exatamente porque, mas o nome de bruxa da velha senhora o atraía
inapelavelmente. Não que a idosa tivesse qualquer atributo maligno ou sobrenatural, era bastante
carinhosa com o menino e esse afeto era retribuído em dobro. O único aspecto soturno existente alí e que
encantava a alma do menino, era o fato de Circe viver enfurnada em sua enorme casa, a cuidar do filho
Glauco, tio de Tobia - um ex-ator inválido e atado permanentemente a uma cama hospitalar. Tobia gostava
de visitar sua avó e tinha particular atração pelo quarto onde o tio cumpria a sentença da vida. As pesadas
cortinas púrpura, o cheiro de desinfetante que dominava o ambiente, as pilhas de lençóis sujos de
secreções e sangue produzidos pelas escaras, tudo enfim atraía poderosamente aquele melancólico jovem.
Possivelmente produto da Lua em Escorpião, dominante em seu mapa astral.  

Tobia nunca se esqueceu da noite em que a notícia chegou. Justamente a véspera de seu aniversário de
cinco anos. A mansão de sua avó tinha se incendiado e os dois moradores morrido de forma pavorosa.
Pouco sobrara da ação do fogo, exceto aquele enorme espelho. Era uma das coisas que o menino mais
gostava na casa da finada avó. Tratava-se de uma peça de época, grande, rebuscada e muito carente de
reforma. Só se mantivera fora do depósito de lixo pela qualidade intrínseca da madeira, sempre a sugerir
um valor enorme após ser restaurada. Ademais, havia um papo na família de que o objeto vinha de
gerações e mais gerações e que "seria uma pena descartar-se dele". Na verdade, as dificuldades financeiras
advindas do acidente que entrevara o tio, nunca permitiram a empreitada e lá ficou por muitos anos o
espelho, sem qualquer recuperação. Tinha mais ou menos uns dois metros de altura por um de largura,
emoldurado de alto a baixo por umas colunas em espiral, tudo em mogno castanho-avermelhado. A
madeira estava riscada e esfolada em diversos pontos, mas a estrutura do móvel mantinha-se
razoavelmente firme. O aço do espelho também já vira melhores dias, mas ainda cumpria seu papel
primordial - refletir. O incêndio fatal pouco piorou o estado geral do objeto - já era bem ruim - e assim, o
grande espelho acabou na casa de Tobia, por mais desproporcional que ficasse naquele sala e dois quartos.
Mais por falta de opção do que como alguma forma de reconhecimento ao afeto que unira neto e avó, o
grande e desajeitado espelho terminou no quarto azul claro de Tobia, ocupando toda a parede aos pés da
cama do jovem. 
Inicialmente o novo "membro da família" parecera ter reanimado o menino, que vinha se ensimesmando
cada vez mais. Talvez pela lembrança da avó, talvez pelas sinistras lembranças das visitas à mansão, talvez
por tudo isso junto. Altas análises "psicanalíticas" da dupla "To-Bia"  tinham rolado após os jantares no afã
de interpretar a mudança no filho. Desnecessário frisar que tais conversas sempre acabavam em brigas e
num sonoro "blamm!", quando não em pratos quebrados. O tema de debates porém, logo perdeu o
sentido, pois Tobia retomou o caminho da perda de contato com a realidade. Foi um processo penoso para
os pais, lento e gradual e que chegou a tornar praticamente impossível ao menino frequentar a escola com
regularidade. Suas conversas já não faziam muito sentido e frequentemente retratavam situações
completamente irreais. Parecia oscilar entre duas realidades distintas, apesar de quase nunca deixar seu
quarto, exceto para ir ao banheiro e jantar. À mesa mostrava-se angustiado e inquieto, mãos trêmulas e
com frequentes olhadelas na direção da porta de seu quarto.  
- Olha que eu estou quase concordando contigo! 
- Que novidade é essa, Tonho? Tá querendo me agradar? Homem quando tenta fazer isso é porque andou
aprontando... 
- Não é nada disso,cacete! É o Tobia. Do jeito que as coisas vão, vamos ter que...  
- Levar ele no médico? Claro. Já devíamos ter feito isso. Só espero que não seja tarde demais...  
- Ele tá até falando sozinho... Mas você também tá muito relaxada...  
-??? 
- Você precisa limpar o quarto dele. Ou chamar alguém que faça isso. Tá um cheiro horrível vindo de lá.
Mais parece um posto de saúde da prefeitura!  
Claro que Bia já tinha percebido tudo aquilo, só não queria admitir que estava pouco a pouco perdendo seu
filho para a insanidade, nem admitia ter sido admoestada pelo marido. Assim, engolindo o orgulho,
aproveitou um daqueles raros dias em que Tobia fora à escola, para vasculhar o quarto e determinar a
origem do cheiro forte de desinfetante que se sentia do corredor. Ao entrar, desconsiderando a placa "keep
out" pendurada na maçaneta, não pode conter uma sensação de espanto. Tudo perfeitamente normal,
bagunça em níveis compatíveis com um menino de dez anos e, principalmente, ausência completa do
cheiro hospitalar que a preocupara tanto. As paredes pintadas de azul claro, com os pôsteres dos ídolos do
filho, na mesma posição de sempre. Sacudiu a cabeça como uma forma de descartar uma evidência que não
admitia qualquer explicação e sentou-se no pé da cama, de frente para o espelho. Naqueles breves
momentos deixou sua mente divagar, repassando toda sua vida. Como chegara até essa situação? Uma
sensação cáustica de culpa a corroia por dentro ao pensar que ela e Antonio estariam empurrando seu filho
para o abismo da loucura. Isto tinha de ter um fim. E teria, mais rápido do pode supor naquele momento.  
Já de volta ao mundo exterior, sua mente foi paulatinamente reconstruindo a imagem que se lhe oferecera
ao mirar absorta o velho espelho, trazendo-a para o nível da consciência: as pesadas cortinas púrpura, a
cama de hospital no fundo do cômodo, o criado mudo coalhado de vidrinhos de remédio. Tudo nítido,
inegável, apesar da penumbra dominante. Sua primeira reação instintiva foi voltar ao quarto do filho, mas a
mão gelada do terror a conteve. Covardemente preferiu não fazê-lo e um suspiro sentido brotou de seu
peito ao ver Tobia entrando em casa. O menino ressabiado, movia o olhar de sua mãe para o quarto e de
volta para ela. Sem dizer palavra, disparou para o quarto, batendo a porta atrás de si. O seu próprio
"blamm"! O cartaz de papelão "keep out" ficou rodopiando no chão. 
- Limpou o covil, finalmente? 
- Não tinha nada prá limpar... mas tinha...  
- Você tem que parar de dar desculpas pra ti mesma. Como não? Vem cá. Vem cá!! Esse cheiro horrível,
parece até a casa da tua mãe!Vem comigo! 
Essas últimas palavras fizeram sua alma estremecer. Relutantemente foi puxada por Antonio na direção do
quarto e as lágrimas silenciosamente começar a percorrer seu rosto. Sabia bem o que a esperava além da
porta. Antes de que seu marido tivesse começado a abrir a porta, o cheiro de desinfetante já tinha atingido
a ambos. Lançando um olhar de desafio na direção de Beatriz  e um risco cruel e sarcástico no rosto, o
homem abriu lentamente a porta do quarto do garoto, insinuando-se lá dentro, sempre a rebocar a esposa
pela mão. No interior de trevas, os pais se entreolharam mudos de espanto. Nem sinal de Tobia - como teria
saído - e as apalpadas em busca do interruptor não produziram qualquer efeito. Apenas o retângulo de luz
formado pela porta entreaberta lançava alguma claridade, insuficiente de qualquer forma. Com terror o
casal apercebeu-se de uma irreal iluminação, fraca porém crescente, vinda do espelho. Um brilho
avermelhado suficiente para que se divisasse um quarto que em nada refletia o quarto de Tobia. Ambos
sabiam exatamente que quarto era aquele... A última imagem que alcançou suas retinas foi de um menino
sentado no chão, ao lado do criado mudo. Em tudo idêntico a Tobia, não fossem seus cabelos brancos...  
- Sim, sim. É claro que é urgente! Urgentíssimo. Uma desgraça, meu cunhado acaba de assassinar minha
irmã. Matou-se em seguida. E o menino, meu Deus! Não o encontro de jeito nenhum! Temo que Antonio o
tenha... Sim, já disse isso, meu nome é Glauco, cheguei hoje de surpresa. Meu Deus, que horror!! Que
horror... Venham logo, por favor!!!  
 

CARA METADE

O antigo VW verde subia a serra na direção de Petrópolis com alguma dificuldade. Não fosse pela
duplicação da pista, o trajeto seria até mesmo perigoso. Curvas e mais curvas em meio às
montanhas e o piso molhado pela chuvinha fina compunham um cenário pouco propício para o
carro de William Ferraz. Não obstante a empreitada não permitia postergações. Ao menos assim
pensava o psiquiatra de 45 anos, condutor do veículo. Aquela seria a derradeira tentativa de por fim
ao jogo de gato e rato que já se arrastava por décadas, ou melhor, por quase toda sua vida. Desde a
infância que se estabelecera uma rivalidade amarga entre ele e seu irmão gêmeo Wilson. Nascidos
no centro do Rio de Janeiro, nunca haviam convivido bem. As disputas, inicialmente em torno de
brinquedos e da atenção dos pais, rapidamente evoluiu para namoradas, grupos de amigos e
finalmente ao campo profissional, transformando-se em verdadeira guerra. Seguiram ambos a
mesma carreira e na mesma Universidade. Na vida acadêmica se opuseram sempre, seja em sala de
aula, seja nos grêmios estudantis. O que criou tamanho antagonismo? Ninguém podia asseverar.
Como diriam os espíritas, algo de vidas passadas...
Para William, seu irmão representava um verdadeiro demônio a atormentá-lo sempre que podia. Em
concursos públicos, entrevistas de emprego e oportunidades de negócio ele sempre acabava
preterido e, após alguma investigação mais profunda, lá estava Wilson como a fonte de suas
frustrações. Até mesmo seu casamento, tinha na visão de William, a sombria figura do irmão a
sobrevoa-lo como um abutre. Desconfiava que sua esposa fora antiga namorada do irmão e tal fato
acrescentava um gosto amargo à relação, que pouco a pouco foi se deteriorando. Talvez um filho
tivesse tido o dom de reorientar as energias de William, salvando-o e permitindo um
amadurecimento saudável, mas nem isso. Ao final de tantos anos restou ao homem consumir
diariamente sua dose de fel psicológico e, pouco a pouco ir afundando, inclusive no campo
profissional. Não lecionava mais na Universidade e a última colocação num hospital psiquiátrico já
tinha se encerrado há mais de meio ano. Sempre pela mesma influência nefasta, ao menos assim
pensava o Dr. William Ferraz.
Recentemente, após a enésima briga com a mulher, William pareceu despertar da obsessão de tantos
anos. Talvez a perspectiva de vida que se lhe apresentava, negra e aterradora, o tivesse sacudido
finalmente. Seu humor melhorou e pareceu dotado de uma disposição que há muito não tinha. A
explicação para a metamorfose porém, tinha características menos positivas. Tudo estava contido
num despretensioso anúncio de jornal: "uma vaga para psiquiatra assistente na Casa de Repouso
Dreizehnlinden. Agendar entrevistas por e-mail diretamente com o Diretor, Professor Dr. Wilson
Ferraz". Para William, aquilo era muito mais do que mais uma tentativa de emprego. Era sua chance
de por um sangrento e definitivo ponto final na tragédia de sua vida. Depois de tudo terminado,
nada mais restaria e poderia mesmo...
A tarde já findava quando poucos quilômetros antes da Cidade Imperial, após uma curva
particularmente fechada da estrada, revelou-se aos olhos do motorista a sombria figura da Casa de
Repouso Dreisenlinden. Uma estrutura feia em três pavimentos, cujos mal tratados jardins pouco
enfeitavam. O médico estacionou em frente ao pesado portão de ferro e dirigiu-se ao interfone
pendurado na passagem para pedestres. A grossa corrente que fechava o portão central já deixava
claro que carros não entravam por ali e o diálogo entrecortado por interferência eletrostática no
interfone foi encerrado pelo ruído de destravamento do portão menor. Ao percorrer os cento e
poucos metros de piso de macadame que levavam até a entrada principal do sanatório, toda a vida
de William passou pela sua mente uma vez mais, como um vídeo em FF. Esta sensação
avassaladora assaltava sua mente com muita frequência, mas agora havia uma grande diferença: ao
final do caminho ele se libertaria daquele inferno mental para todo o sempre.
Bem antes de chegar às escadas de pedra, a grande porta de madeira se abriu parcialmente
revelando uma figura robusta e inteiramente vestida de branco.
- O que o senhor faz aí fora?
- sou o Dr. Polidori (o nome fictício com o qual William pleiteara a entrevista). Tenho uma
entrevista marcada com o Dr. Ferraz
A expressão de espanto que se desenhou no rosto do enfermeiro não deteve William, que
resolutamente galgou as escadas de pedra,
sem esperar pelo convite. No grande hall de entrada apenas as longas sombras do fim de tarde e ao
longe, uma porta iluminada. Apesar de nunca ter estado ali, William sentia uma estranha sensação
de familiaridade. Sabia, por exemplo, que a sala iluminada ao final do hall era o gabinete do diretor
e para lá se dirigiu, sempre seguido de perto pelo brutamontes de branco.
A forte sensação de "deja vu" intensificou-se ainda mais quando William penetrou no gabinete,
forrado de alto a baixo de livros, quadros e diplomas. Instintivamente seu olhar dirigiu-se à
escrivaninha, onde o saudou uma placa de metal: Dr. Paulo Saldanha, M. D. - Diretor. Sua mente
confusa ainda lutava para concatenar os fatos quando sentiu uma picada ardente no braço direito.
Poucos segundos foram suficientes para arrastar o dr. Ferraz às trevas da inconsciência.
Ao abrir os olhos, William podia apenas encarar um rude conjunto de lâmpadas de luz fria,
pendurada a cerca de um metro de seu rosto. A cabeça estava presa numa cinta de couro, bem como
braços e pernas e suas ações reduziam-se ao movimento frenético dos globos oculares.
- felizmente ele voltou por conta própria, doutor Paulo.
- sim, não sabemos o que poderia fazer em liberdade. Ademais, nossos alunos aqui presentes
perderiam uma grande oportunidade...
- quanto a isso, está tudo pronto, doutor.
O velho médico circunvagou o olhar pelo anfiteatro que cercava a mesa operatória e iniciou um
pequeno discurso.
- bem sei que hoje em dia procedimentos cirúrgicos como a lobotomia, são descartados pela maioria
dos colegas. Considero isso apenas ignorância, vaidade e pretensão. Existem casos de disfunções
mentais que só podem ser tratados dessa forma, como meus estudos ao longo de anos provam de
maneira irrefutável. Na realidade, meu método vai além da mera mutilação do lobo frontal. Trata-se
de uma cirurgia sutil, capaz de eliminar personalidades anormais. É precisamente o caso de nosso
paciente dessa noite. Nada menos que o antigo diretor, o dr. Ferraz. Um caso triste de dupla
personalidade que evoluiu para a violência. Há muitos anos o pobre homem crê ter um irmão, com
quem se imagina constantemente em luta. Mas, confio que poderemos trazê-lo de volta curado!
Já empunhando o martelinho e o estilete de aço, o dr. Paulo num volteio teatral e ridículo,
aproximou-se da mesa de cirurgia. O silêncio dominava a sala e pesava sobre todos como neve
acumulada. Sua face sardônica flutuou bem em frente ao rosto imobilizado do paciente e antes de
introduzir a ponta do estilete na cavidade ocular esquerda do homem, deu uma piscadela para ele,
sublinhada por um sorriso cruel.
"Maldito Wilson! Maldito! Você venceu...". Foi o último pensamento consciente de William Ferraz,
antes que o aço cirúrgico extirpasse seu lobo frontal.

UM CARNAVAL FERVENTE

Rio de Janeiro, fevereiro de 1957 


 
A normalmente pacata Vila Rui Barbosa, verdadeira aldeia portuguesa incrustada no centro da
cidade, pegava fogo no Carnaval. Repressões, frustrações, amizades, inimizades, ódios e amores,
tudo se mesclava por quatro dias. As máscaras trocavam de rosto, por vezes revelando as
verdadeiras faces. Os piratas e diabos mostravam-se mais genuínos que os servidores públicos e
comerciários dos outros 361 dias. 
Felipe parecia alheio à efervescência geral. Logo ele que sempre adorara Carnaval. Seu Aurélio,
dono da padaria onde trabalhava o rapaz, quase não acreditou no que seus ouvidos captaram: 
- O que? Queres trabalhar no Carnaval? 
- É, tô precisando de um extra… 
- Meu filho… vais deixar aquela deusa dando sopa? Em pleno Carnaval? Tás louco ó gajo! 
- Aninha? 
O risco amargo que cruzou o rosto de Felipe de lado a lado, aliado a um suspiro mal contido,
responderam a pergunta do patrão. Uma obra prima da comunicação multimídia. À mente do
rapaz voltaram as palavras da moça, que há uma semana dominavam sua vida: “pular Carnaval?
Juntos? Nem pensar! Na quinta feira a gente se vê… quem sabe”. A frase final, “ou não confias em
mim? “, seguida de um riso que hoje já era uma gargalhada cruel, transformara-se num dedo
mergulhado na ferida de sua alma. A experiência de vida do velho padeiro português
desembrulhou rapidamente a mensagem transmitida pelo semblante de Felipe. 
- Ó menino … tu tens é que ir atrás de uma outra diabinha! Nesses dias o inferno está de portas
abertas! 
- É… não é? 
Claro que esse curso de ação já passara por sua mente. Na verdade fora o primeiro. O que desviou
sua atenção e sua própria vida, fora a súbita associação de ideias: Ana - novo colega da faculdade -
fim de ano no interior - programas subitamente desmarcados. Tudo apontava para um
envolvimento emocional e para seu escanteamento progressivo. A partir daí alguma coisa dentro
dele assumiu o controle das ações e o plano começou rapidamente a tomar forma. 
- Claro! Vais ver que tudo muda. Mulher é como o ar… 
- ? 
- Não tem valor econômico… 
- ?? 
- Não passas sem, mas tem tanto… Uma coisa só tem valor quando tem pouco! 
A tese socioeconômica do padeiro não chegou a alterar em nada os planos de Felipe. Ou melhor,
da coisa que o pilotava. 
- Seu Aurélio, 
- Fala… 
- Estou pensando em aproveitar esses dias de Carnaval pra por o forno antigo pra funcionar de
novo… 
- Aquilo só dá trabalho e despesa. É muito grande e precisa de muita lenha… 
- Mas o pão fica muito melhor. Já até trouxe um monte de lenha que tinha na casa da minha avó.
Tá lá atrás do galpão. 
- Por mim tudo bem, mas eu ainda ia atrás dum rabinho pontudo! Na sexta de manhã vou pro sítio
em Teresópolis e só volto na outra sexta. Fica tudo por tua conta, ein? Podes ficar no meu
apartamento lá em cima. Quem sabe ainda arrumo umas diabas lá na serra… Sabes que… 
Mais um sábio ditado estava prestes a sair da sábia boca do padeiro quando uma gargalhada mais
que forçada de Felipe interrompeu a conversa, substituindo-a por um diálogo dentro da mente do
rapaz. 
“... como os atraio aqui? 
esqueceu? Tanta conversa, tanto ensaio e já esqueceu tudo? 
... Será que eles engolem? 
Faça o que te digo, claro que engolem! Conheço a mente de tua amada, como conheço a tua… “ 
O processo de convencimento foi mais fácil do que Felipe esperava. A perspectiva de uma
expedição aos vinhos lusos de seu Aurélio e, principalmente, da aceitação por Felipe da separação
temporária, foi irresistível para Ana. Na sexta à noite chegavam à padaria Ana e seu parceiro
carnavalesco, Fortunato. Vinham fantasiados como um par de diabos vermelhos, 
sintomaticamente. Na mesa da cozinha os aguardava uma pequena mas bem escolhida seleção de
vinhos portugueses, capitaneados por um Colares pré - Salazar, já aberto para “respirar”. O casal
por sua vez trouxe um vinhozinho chileno, pra não fazer feio. Taças prá lá e taças prá cá, em pouco
tempo todos três estavam “como o diabo gosta”. Dentro do planejamento de Felipe, era o
momento do Carcavelos, doce, delicioso e devidamente preparado… O magnífico vinho não
chegou a ser servido. O humilde reservado chileno, igualmente preparado, derrubara o jovem
Felipe, quando este já saboreava sua vingança. 
Despertado pela dor causada pelas ferventes chapas de revestimento interno do forno, Felipe se
apercebe de seu trágico destino. Os uivos do jovem não alcançaram a ninguém, abafados pelas
chapas e paredes. Nas ruas os foliões entravam a marchinha: 
“atravessando o deserto do Saara, 
O sol estava quente e queimou a nossa cara… 
Alalaô, ooô, ooô, 
Mais que calor, ooô, ooô… “ 

UM FIO NO TEMPO

Na frente do hotel “Sobre as Ondas”, no início da praia da Barra, Rio de Janeiro, uma placa
anunciava: “Está noite palestra com o eminente historiador Abílio de Mello - SANGUE NA
HISTÓRIA DO BRASIL - Após, coquetel e autógrafo do mais recente livro do mestre. “. O título
da palestra, um tanto sensacionalista, fora escolhido pelos organizadores com maestria. Afinal, uma
acadêmica e empoeirada dissertação sobre história brasileira tinha poucas chances de atrair um bom
público e impulsionar as vendas do novo livro do dr. Mello. Afinal, História não é lá o forte do
brasileiro, mas sangue, violência e morte, isso sim! É bastante conhecida a afirmação de que
“correu pouco sangue em nossa História”. Nada mais falso, como bem sabem os sulistas. Era
justamente a desconstrução dessa tese o ponto central, tanto do livro quanto da palestra de Aníbal de
Mello.
Tudo contribuiu para o sucesso do evento. Fazia uma agradabilíssima noite de maio, com
temperatura amena, nenhuma chance de chuva e uma deliciosa brisa soprando do mar. Às oito da
noite já se observava uma língua de gente enfileirada, aguardando a abertura do evento, prevista
para às nove. Amor irrestrito à História? Macabra inclinação pelo título? Mais provavelmente o
boca livre prometido…
A apresentação multimídia era recheada de imagens sangrentas, todas retiradas diretamente de
nossa história. Escravos comidos vivos por formigas ou descarnados por lambida de boi, massacres
de populações civis, guerras onde a vítima principal era o povo, degolas gaúchas e muito mais.
Perto do horror cotidiano, os padecimentos militares, seja na Guerra do Paraguai, seja na Segunda
Grande Guerra, eram fichinha. Felizmente o autor poupou a audiência do lento estrangular da
Nação pela corrupção política. Seria demais e talvez arruinasse o coquetel… Por alguma razão,
dentre aquele verdadeiro mar de sangue, causou grande impacto na audiência o desfecho da
Inconfidência Mineira, com apenas uma vítima. Talvez pelos detalhes da execução, talvez pelo
caráter de superprodução que o governo imprimiu ao processo. Já indicando o traço de desigualdade
que permearia nossa história até hoje, o que se viu foi um caso clássico de injustiça. Um
personagem secundário (na conjura e na escala social…) acabou supliciado, enforcado,
esquartejado e seus pedaços expostos pelas estradas. Dos demais inconfidentes, melhor
posicionados socialmente, alguns foram indultados e outros no máximo exilados para a África.
Afinal, como tratar igualmente um mero alferes e um poeta burguês? O fato é que o “Evento
Tiradentes” monopolizou a palestra e a conduziu numa linha de mistério e terror, totalmente fora do
plano original. O que se foi delineando pela sequência de perguntas e respostas foi um quadro
assustador de ocorrências inexplicadas, a partir de 1789. Desde então, no eixo Rio de Janeiro - Ouro
Preto (Vila Rica) - Brasília, diversas mortes envolvendo autoridades governamentais (e
curiosamente alguns pesquisadores de História) passaram a ocorrer, sempre sem solução e
curiosamente concentrados ao redor do dia 21 de abril. Suicídios (sempre por enforcamento),
acidentes (sempre redundando em desmembramento da vítima), formavam um padrão indelével de
sangue. Abílio de Mello, pretendia registrar seus achados em um novo livro - UM FIO NO TEMPO,
projeto aclamado ruidosamente pela platéia, a esta altura ansiosa pelo fim da palestra e pelo início
do coquetel…
O professor Abílio, uma vez encerradas a palestra, a sessão de autógrafos e o coquetel, resolveu
relaxar um pouco dando uma caminhada pela orla da praia. Iria até o quebra mar junto ao canal da
Barra e logo estaria de volta ao hotel para uma reparadora noite de sono. Seu voo de volta à Brasília
era à tarde e dessa forma não tinha hora para levantar na manhã seguinte. Assim pensou, melhor fez.
Por questões de segurança, avisou na recepção do hotel sobre seus planos, trocou de roupa e pôs-se
em marcha.
O vento frio do oceano contrastava agradavelmente com o resto de calor do dia. A noite
caía rapidamente e Abílio calculou o tempo e a distância a percorrer, de forma a estar de volta ao
hotel antes da meia noite. Estabeleceu o Farol da Barra como meta e seguiu em frente. Como seus
tênis não eram muito adequados a caminhar na areia, buscou avançar junto à linha d’água, mais
firme. Sua mente já rascunhava o livro novo, traçando uma linha sinistra ao longo dos séculos.
Mortes e mais mortes, replicando o processo iniciado em 1789. Seria coincidência, vingança
sobrenatural ou o quê? Teria realmente começado no Largo da Lampadosa , no Rio do século
XVIII? Já próximo ao farol, Aníbal estranhou a sensação de frio, anormal apesar da noite já se ter
fechado e do vento marinho. Afinal estava em pleno Rio e ainda no outono… Esfregando os braços
para se aquecer, resolve voltar dali mesmo. Para que o incômodo se uma bela garrafa de vinho o
aguardava no quarto do hotel? Antes de virar-se para retornar, percebeu a uns cem metros adiante,
junto às ondas, uma imagem que sua mente demorou em catalogar. Um pano ou pedaço de plástico
suspenso no ar pelo vento? A coisa mantinha-se ereta e aparentava ter mais ou menos a altura de um
homem. Tremia e oscilava, parecendo ridiculamente com aqueles bonecos de ar de posto de
gasolina. Abílio começou a voltar, lutando para dizer a si mesmo que não era nada. A despeito da
escuridão e do silêncio apenas quebrado pelo marulhar das águas, estava em uma grande cidade, a
poucos metros de seu hotel. A sensação de incômodo acentuou-se minutos após quando deu uma
olhadela para trás. O pano suspenso no ar não parecia mais distante, muito ao contrário, parecia
mais próximo. Continuava sem poder dizer o que era aquilo é já sem qualquer controle de sua
mente consciente, o historiador apressou-se ainda mais, quase correndo. A garra fria de um medo
irracional o impedia de se voltar, todas as energias direcionadas às pernas. Chegou esbaforido na
recepção do hotel e enquanto recuperava o fôlego, não tirou os olhos da porta de vidro automática.
Já no quarto, abafou o tumulto do coração acelerado com o auxílio de um Bordeaux e mergulhou
num sono sem sonhos. Acordou com o sol já alto e com o café da manhã perdido.
*************
Cerca de dois meses após a palestra, o professor Aníbal desembarcava no Santos Dumont, no centro
do Rio de Janeiro. Pretendia concluir seu livro O FIO DO TEMPO, visitando os exatos locais onde
o trágico fim de Tiradentes tivera lugar, a fim de dar um colorido maior ao relato: a cadeia velha,
onde fora encarcerado e julgado, a Igreja da Lampadosa, onde fizera suas últimas orações e a praça
onde fora enforcado e esquartejado, praça que hoje ostenta o apelido do alferes Xavier. Usaria como
uma espécie de guia, um livreto que garimpara na web. Tratava-se de um relato testemunhal dos
acontecimentos, feito por um certo capitão Praxedes, de serviço durante o suplício final de
Tiradentes. O mais curioso é que o cronista tinha terminado seus dias pouco tempo depois,
enforcado na casa de cômodos onde morava, no Cosme Velho.
Da cadeia velha pouco pode extrair como inspiração para seu livro, já que o prédio original já não
mais existia (dera lugar à atual Assembleia Legislativa), mas afinal a parte mais saborosa do relato
de Praxedes eram a igreja e o ato final na praça pública. Venceu os pouco mais de mil metros entre a
Assembleia e a Igreja a bordo do novo VLT, já que uma típica chuvinha - que os cariocas costumam
chamar de “inverno” - tinha começado. Alguns minutos depois, já com a manhã devidamente
acinzentada, Aníbal chegava à Igreja da Lampadosa. Aqui havia também um problema. A igreja
original onde o alferes encomendara a alma e que o capitão Praxedes comentara, havia sido
demolida em 1930,
sendo substituída por uma edificação estreita e de gosto duvidoso, apertada entre dois prédios
banais. A esperança de Aníbal era a informação de que as imagens da igreja antiga, inclusive uma
certa figura esculpida em relevo bem acima do transepto direito, haviam sido mantidos, restaurados
e acrescidos à estrutura nova. Está figura, uma espécie de gárgula totalmente incongruente com o
conjunto de imagens sacras, era mencionada com destaque na brochura do capitão Praxedes.
Aparentemente, o militar-escritor tinha uma queda para o fantástico, pois seu relato, que até então
pautara-se por um estilo protocolar e sem graça, passa a assemelhar-se a uma história de fantasmas.
Possivelmente influência de A. Azevedo ou mesmo de E. T. A. Hoffman, pensava o professor Abílio
. No despretensioso texto, a figura esculpida é descrita com tal paixão e terror que rouba por
completo o foco da narrativa. O próprio condenado teria ficado fascinado pela mesma, sendo
arrebatado de sua devoção final. Segundo Praxedes, a partir daí o supliciado ficara como que em
transe até seu fim atroz, fato esse confirmado por inúmeras crônicas da época. Mesmo Praxedes
volta a mencionar a figura, dessa vez a assistir a execução de longe. Muita cachaça, por certo…
Já dentro do templo deserto e silencioso, o professor Abílio encaminha-se para o transepto direito
imerso em penumbra. Já se dava por vencido e prestes a partir quando o facho de luz da lanterna
que previdentemente trouxera lhe gelou o sangue nas veias: o vulto da praia! Lá no alto! A mesma
forma cinzenta e alongada, sem feições discerníveis. A precária iluminação e a distância que o
separava daquela coisa pareciam zombar de seus sentidos. Como uma enorme aranha, a coisa pouco
a pouco se aproximava, arrastando-se pela parede de cabeça para baixo. Aos tropeços o professor
buscou a segurança das ruas sem atrever-se a olhar para trás. Na calçada, a chuva leve o recebeu
como um manto protetor, enquanto Aníbal continuava a mirar aterrorizado o retângulo negro
formado pela grande porta da igreja.
************
O professor, já recolhido ao hotel em Santa Teresa, encontrava-se num impasse com relação a tese
central de seu livro. Antes da experiência na praia e do reencontro na igreja, tratava da questão com
um misto de folclore e “coincidências curiosas”, tudo envolto num terror light, meio pulp. Flertava
com uma possível “vingança” do mártir da independência num tom meio “tongue-in-the-cheek”,
mas agora, a realidade lhe impunha algo bem mais sinistro e aterrador. A coisa que habitava o teto
da igreja estava ali bem antes dos eventos da Inconfidência Mineira. Aquele fio de sangue a
percorrer nossa História era mais comprido do que supunha. A versão anterior tinha seguro mercado
editorial, mas a verdade também teria? Ademais, seus instintos de sobrevivência gritavam sem
cessar contra um aprofundamento maior nesse assunto. Sim, o melhor era abandonar o projeto, por
mais contrariedade que causasse ao editor.
A tarde caiu acompanhada de uma chuva que parecia que viera prá ficar. A temperatura cairá para a
casa dos 20 graus, um baita inverno carioca. Abílio, ainda na dúvida de qual caminho devia seguir,
acercou-se do balcão de seu quarto munido de uma fumegante taça de café. Na rua de luzidios
paralelepípedos, ninguém, apenas a chuva mansa e um ou outro cão sem dono. Já se preparava para
voltar ao calorzinho do quarto quando, com o rabo de olho viu “aquilo”. No fim da rua, quase no
Largo dos Guimarães, uma ondulante forma cinza parecia conduzida pelo vento. Os olhos do
professor se esbugalharam numa proporção quase impossível, ao mesmo tempo que suas
mandíbulas se abriram num
esgar de pavor. Lentamente foi escorregando pela parede do balcão, mantendo o olhar vitreo através
do balaústre, fixado na “coisa” que se aproximava. A decisão sobre o desfecho do projeto já tinha
sido tomada em seu lugar.
************
Na manhã seguinte, muita gente aglomerada na porta do hotel em busca de alguma informação, ou
de vislumbrar algo da movimentação da polícia e dos legistas dentro do prédio. A velha inclinação
mórbida do povo, a mesma que faz todo motorista reduzir a marcha ao passar por um acidente.
Pouco vazara até aquele momento, apenas os detalhes mais saborosos. Mesmo para os padrões
atuais da violência urbana brasileira, um conhecido professor e conferencista metodicamente
esquartejado num quarto de hotel não era nada comum. Como normalmente ocorre, na falta de
informação as pessoas logo criam uma tese completa e acabada: “tava metido com drogas, na
certa”, “coisa dos traficantes lá do morro do Rato Molhado”, “cadê a polícia que não faz nada”, etc,
etc.
Uma vendedora ambulante de cocadas resumiu tudo antes de voltar a anunciar seus produtos: “esse
Rio tá difícil de viver… “

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