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Horror em Cera

(um relato de não ficção)

Imagino que vocês já se tenham perguntado o quanto o ódio pode crescer sem transformar-se em
loucura. Creio que pouco. O processo é rápido e depois que o umbral é atingido, a raiva ganha
contornos barrocos e multifacetados, libertando forças além do natural. O processo inverso - a
loucura transformar-se em ódio - é relativamente raro e o deixaremos por ora de lado. Na sequência
da primeira questão,creio que desejem saber a que limites se poderia chegar se a acumulação de
ódio começasse na mais tenra infância. Tais perguntas e divagações desaparecerão por completo
quando conhecerem o caso da pequena Sara.
Sarita, como era chamada desde bebezinha, não tivera uma infância feliz. A trágica morte de seus
pais num acidente automobilístico a lançou na senda das lágrimas e do sofrimento.
Miraculosamente retirada ilesa das ferragens, Sarita iniciou assim sua intimidade com a morte com
apenas cinco anos de vida. A partir deste sinistro acontecimento, a vida do pequeno ser iniciou a
caminhada na estrada da loucura.
Privada bruscamente de ambos os pais, a menina passou aos “cuidados” de sua tia Milena, irmã de
sua mãe, que aproveitara a oportunidade para mudar-se para a casa dos falecidos e assumir a gestão
da polpuda pensão deixada para o sustento da menina. O que poderia ter sido a redenção da vida
daquela criança, revelou-se a verdadeira porta para seu inferno particular. A tia sempre ambicionara
o cunhado e passou a ver a pequena, agora aos seus cuidados, com ódio e rancor. A menina
representava para Milena o símbolo de sua derrota pessoal na competição com a irmã. Dessa forma,
o veneno destilado em sua alma foi pouco a pouco inundando a vida de Sarita. O que era
inicialmente apenas rispidez e ausência de carinho, rapidamente evoluiu para algo mais negro.
Negro como as marcas que passaram a surgir pelo corpo da criança. O início da vida escolar passou
a significar um alívio parcial para Sarita, mas o inevitável retorno ao “lar”, cotidianamente arrastava
a menina para seu suplício doméstico. A criança não tinha nem a pequena alegria de entrar na
biblioteca, onde seus pais por tantas vezes brincaram com ela, entre livros, máscaras e bonecos
colecionados pelo casal em suas viagens pelo mundo. Milena, por alguma razão não muito clara,
mantinha o cômodo sempre trancado, jamais permitindo o acesso a ele por quem quer que fosse,
muito menos Sarita. Outro símbolo de derrota, possivelmente.
Este cenário de horrores veio inesperadamente a adquirir novas e sombrias cores. Já perto do
aniversário da pequena Sara, sua tia-madrasta a brindou com uma inesperada notícia: ia ganhar um
papai, novinho em folha! Era tudo que ela precisava para ser melhor disciplinada… Não que Irineu
- esse o nome do novo “homem da casa” - tivesse maiores interesses em assumir qualquer papel na
educação da menina. As vantagens iniciais que pretendia retirar de sua associação com Milena
eram, por um lado o sexo casual e descompromissado e por outro o que pudesse extrair da pensão
deixada pelos pais da menina. Não tinha ocupação fixa, além do religioso comparecimento ao pé
sujo da esquina. Tudo muito adequado de seu ponto de vista. Era também violento e lascivo, traço
este que foi ficando mais e mais aparente nas furtivas olhadelas que passou a endereçar à criança.
Milena não parecia incomodar-se muito com a situação e fazia de conta que não percebia o que
estava para acontecer. Ao contrário, o medo inocente de Sarita era recepcionado por ela com a
rispidez e a agressividade habituais. Assim os acontecimentos daquela tarde chuvosa nunca
chegaram a transpor os muros do casarão.

Tudo aconteceu muito rápido, como uma tempestade de verão. Milena havia planejado uma
excursão de compras para aquele sábado e deixou a casa - e Sarita - aos cuidados de Irineu. Ao
voltar encontrou um namorado mais bêbado do que o habitual e uma criança em estado de choque.
Roupinhas espalhadas, sangue aqui e ali, principalmente no quarto do casal. Milena encontrou Sara
nua, ensanguentada e encurvada em posição fetal, encostada na sempre trancada porta da biblioteca.
Uma patética e inútil tentativa de achar refúgio em seu passado. Uma inicial e instintiva reação de
compaixão foi logo posta de lado por Milena, sendo substituída por uma sucessão de perguntas,
gritos e sacudidas na criança. Tudo em vão. A menina parecia mergulhada em um outro mundo,
inacessível tanto à novas violências como a um improvável carinho. A maior preocupação da tia era,
entretanto, não incomodar seu companheiro, pois sabia o que acontecia com seu humor quando
despertava das bebedeiras. Assim, num arremedo de cuidados, cobriu a menina com um lençol e
desceu à cozinha para preparar um café. Estava morta de fome!
O fim de tarde transformara-se em noite e o casal começava a planejar o que fariam naquele sábado.
Uma primeira preocupação - algum vizinho abelhudo teria notado algo de diferente? -
aparentemente era infundada, dado o manso passar das horas. De qualquer forma, o mais prudente
seria não saírem. Algumas garrafas de vinho de origem duvidosa que Irineu trouxera da rua, seriam
mais do que suficientes para criar o clima para a noitada de sábado. “Irineu está bem animado”,
pensou Milena, animando-se por sua vez. A ausência, mais do que o silêncio de Sarita, colaboravam
para compor um cenário doméstico relaxante e romântico.
A porta da biblioteca foi se abrindo silenciosamente. O fio dourado de luz desenhou um caminho
que, como um bálsamo, despertou Sarita e convidou-a a penetrar naquele refúgio ansiado pela
criança e tantas vezes negado. O interior do cômodo lhe era muito familiar, excetuada a grossa
camada de pó que se sobrepunha uniformemente a cada item: móveis, livros, estatuetas de diversas
origens, máscaras tribais. Incongruente com o aspecto geral de abandono, a lareira acesa irradiava
uma luz amarelada. Flanqueando a boca ardente da lareira, duas poltronas ocupadas por indistintas
figuras. À medida que seus olhinhos foram se acostumando à precária luz ambiente, um sorriso há
muito ausente foi reocupando seu lugar no rosto da criança. “Olá querida! “. “Vamos brincar? “.
Horas mortas da noite . Sombras e um pesado silêncio dominando o casarão. Milena levanta-se da
cama à procura de sua escova de cabelos, enquanto seu parceiro ressona ruidosamente, virado para
a parede. Não a encontrando, a mulher mergulha nas trevas do corredor, entre pragas e imprecações.
A busca é subitamente interrompida por sons abafados vindos do alto das escadas. Risos? Diálogos?
Como assim? … A cada degrau galgado os sentidos de Milena vão lhe transmitindo uma imagem
impossível cada vez mais nítida, além da porta fechada da biblioteca. A mulher alcança a porta do
cômodo, toda sua vida concentrada nos olhos desmesuradamente arregalados e na mão que,
trêmula, busca a maçaneta da porta.
Sob os olhares carinhosos das duas sombras negras e de uma pequena imagem de granito da Deusa
Sekhmet - a deusa egípcia da Vingança, Sarita, sentada no chão, trabalha concentrada numa massa
escura. Amassa e reamassa, mistura à cera, secreções humanas que escorrem de seu próprio corpo.
Paulatinamente a massa vai adquirindo o perfil de um boneco. Outra figura logo vem fazer
companhia à primeira, a nova imagem ostentando uma tosca cabeleira improvisada com fios
retirados de uma escova de pentear. Um fósforo se acende e tudo está pronto para o “grand finale”.
Milena enfrenta a batalha final de sua vida. Todos os seus instintos de sobrevivência lutam contra a
mão direita que lentamente torce a maçaneta da porta da biblioteca. Após intermináveis minutos a
porta abre-se por completo, revelando o horror em cera. Já transposto o limiar da loucura, a última
imagem que as retinas da mulher registram são quatro pares de faiscantes olhos vermelhos, um
irreal sorriso como que pintado no rosto da menina e a sua mãozinha ateando fogo às efígies de
cera. A imediata e impossível combustão do corpo de Milena teve o contraponto de seus berros
inumanos. Poucos segundos após, acordes semelhantes se juntam àquela sonata macabra
provenientes do quarto do casal.
“Vamos querida? Não há mais nada aqui para você”.
“Assim termina o triste caso da pequena Sara. Vocês podem estar se perguntando como fiquei
sabendo dele. Bem, não podíamos deixar nossa filha sem apoio, não é, meu bem? “
FIM
PS. : Infelizmente, nem todos os casos semelhantes e que acontecem diariamente, terminam bem
assim…

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