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O REENCONTRO

A fila da imigração no Aeroporto Afonso Pena era grande e se movia lentamente, quase
imperceptivelmente, naquela fria manhã de maio. Apesar dos guichês destinados aos
brasileiros supostamente se dedicarem ao desembaraço prioritário dos antigos patrícios, o
efeito prático sempre fora o oposto. O traumático processo de cisão do antigo Brasil
continental deixara sequelas e ainda hoje o trânsito de pessoas entre os dois países era
cercado de má vontade de ambos os lados. Decorridos exatamente cinquenta anos da “Revolta
de 19”, o quadro não se alterara em nada. Até a relação historicamente hostil com os
argentinos era hoje um eco longínquo do passado, muito em função da união aduaneira pan-
americana. Apesar de ambos brasis serem membros efetivos da união, suas relações
binacionais eram ruins, como dois irmãos que brigaram e nunca mais voltaram a conviver.
Tendo vivido de perto todo o processo desde os tempos de estudante universitário, Diogo não
se mostrava muito surpreso nem impaciente. Ademais, ao longo das décadas tinha feito o
trajeto Belo Horizonte – Curitiba centenas de vezes. Antes e depois do cisma nacional. Tudo
começou com a fixação de seu pai na atual capital sulbrasileira e em seguida com sua matrícula
na Universidade Federal de Minas Gerais para cursar Filosofia. Próximo à aposentadoria e de
família nova, Vitor (seu pai), Madalena (madrasta) e Vitoria (irmã) mudaram-se de Brasília e já
na capital dos pinheirais nasceu Barbara, a irmã mais nova. Assim, nos cinco anos que
antecederam o conflito de 2019, Diogo regularmente viajava a Curitiba para passar férias. Além
disso, o contato virtual com seu pai sempre se mantivera muito próximo. Nada podia fazer
prever a ruptura súbita e total que logo se seguiria.
Desde 2016, com a destituição do governo federal de então por um processo de Impeachment
conduzido pelo parlamento brasileiro, a profunda crise política do gigante sul-americano
acelerou-se enormemente. Não se passava uma semana sem que as manchetes da imprensa
trouxessem notícias inimagináveis uns poucos anos antes: prisão de líderes de renome, de
ministros, de megaempresários, extinção de grandes partidos políticos, etc. Inicialmente o
processo fora conduzido pela Justiça e tal fato despertara grandes esperanças no povo em
geral, até que revelações de irregularidades dentro do próprio Poder Judiciário se abateram
sobre a Sociedade como um meteoro. A gota d'água porém, foram as eleições gerais de 2018.
Após os processos judiciais que pretendiam extirpar a corrupção terem se alongado por alguns
anos, praticamente nenhuma liderança ou ideologia política restara incólume. Assim, o
resultado das eleições gerais foi uma espécie de epitáfio do modelo que se construíra desde o
fim da ditadura militar, mais de meio século antes. Sem as necessárias reformas do sistema
político e baseando-se numa população essencialmente alienada, a falta de líderes e ideias
gerou um governo ainda pior do que os anteriores. Outro traço que se acentuara então foi a
divisão raivosa dos brasileiros, os quais mesmo sem maior grau de consciência política,
passaram a demonstrar intolerância crescente com ideias contrárias. Ademais, os valores e
prioridades dominantes continuavam a ser os mesmos, ou sejam, a manutenção (e se possível
ampliação) dos privilégios de uma classe que a Sociedade nem chegava a visualizar claramente.
A rebelião de 2019, como costuma ocorrer com erupções vulcânicas, fora precedida de abalos
menores, alertas naturais de que algo grande estava a ponto de acontecer. Desde a falência do
modelo populista no final da década de 2010 que a crise da nação brasileira passou à sua fase
terminal. Uma espécie de “tempestade perfeita”, caracterizada por mandatários incapazes,
mudanças econômicas globais, decepção com líderes e ideologias e falta de perspectivas, tudo
entremeado por manifestações populares cada vez maiores, porém sem clareza de propósitos
e sujeitas à rasteira manipulação. Por ocasião das eleições locais de 2016 e nas gerais de 2018,
o establishment político buscou, a despeito das extensas baixas em suas fileiras, apresentar ao
povo brasileiro a enésima ilusão de esperança no futuro. Foi seu canto de cisne, como veremos
mais adiante.
Depois de paciente espera, finalmente Diogo alcançou o guichê destinado aos “novos
hermanos”. Superadas as inevitáveis piadas e as caras-e-bocas do agente de imigração e já de
posse das preciosas carimbadas (sim, em plena segunda metade do século XXI o procedimento
reservado aos antigos conterrâneos ainda era essencialmente manual), seguiu ele na direção
da saída do aeroporto. Às suas costas flutuava a expressão “não sei o que essa baianada quer
aqui...”. Baianada era a designação sulista a todos os oriundos da República Popular do Brasil,
de São Paulo para cima. Enquanto caminha, ele medita sobre a atmosfera quase marcial, marca
registrada da República Sul Brasileira. Infinitas bandeiras azuis com as três estrelas brancas, a
quantidade desproporcional de policiais e pessoas com uniformes os mais diversos. Como a
Sociedade brasileira mudara, pensa ele. O antigo e imenso país de Macunaíma, Jeca Tatu e com
todo um povo à espera de Dom Sebastião, seria irreconhecível para qualquer pessoa nascida
no século anterior (como era seu caso, diga-se de passagem...). A realidade hoje era de duas
sociedades rigidamente controladas, regradas e, talvez por isso mesmo, tristes e sombrias.
Toda uma coreografia de ambientes abertos pontilhada de enormes banners, faixas
grandiloquentes, retratos de líderes em enormes proporções. Afinal, um modelo plástico com
mais de dois séculos de vetustez. Duas repúblicas separadas apenas superficialmente por um
verniz político que ganhava ares de profunda diferença ideológica, mas apenas nos panfletos e
discursos dos donos do poder em ambos os lados.
Já na rua Diogo encaminha-se para o módulo de Módulo de Transporte Rápido com destino
mal definido em sua mente. Dirigia-se ao Abranches, sim, mas com que objetivo? Não visitava
Curitiba desde a perda de contato com seu pai, que imaginava - ou melhor considerava -
certamente morto. Se ele já entrara na faixa dos setenta anos, seu pai teria mais de cem!
Enquanto o MTR ia fazendo duas transposições automáticas de passageiros e avançando na
direção digitada por cada um, o velho Diogo ia recuperando memórias e refazendo a História
nacional do último meio século. As atraentes projeções nos painéis que simulavam janelas no
veículo, sucediam-se sem sequer arranhar a superfície de sua atenção. Caso fosse necessária
sua participação para descer do transporte, como em décadas passadas, certamente teria
passado do ponto.

“... quando começara a se acumular tanto ódio? Teria sido nas manifestações de jovens de
2013... mas nunca eu poderia imaginar que aquela cena que assisti do alto da cúpula do
Senado terminaria daquela forma... quem sabe a partir dos grandes processos judiciais de
2015-2017?... teria o assassinato do juiz paranaense sido a causa de tudo, ou apenas a gota
d'água? Mas foi tudo rápido demais para ser espontâneo afinal...”

Subitamente (ao menos para alguém tão absorto em pensamentos como Diogo naquele
momento), a capsula individual de transporte abria suas portas em plena rua João Gava. Diogo
desceu bem em frente da antiga pedreira Paulo Leminski, hoje o acampamento infanto juvenil
“Forja do Homem Sulista”. Dizia-se que o nome do poeta não fora mantido em função de sua
ascendência mestiça de polaco com negra. Extraoficialmente, mas que uma comissão do PI
(Partido Integral) revisara a lista de ruas da cidade, lá isso era. O padre Gava passou no teste,
porém.
“certamente a gota d'água foram os novos eleitos em 2016/18... a massa, mesmo sem se dar
conta exatamente dos porquês, não tolerou “mais do mesmo”, como dizia sempre meu pai".
O governo de transição pós impeachment não pode fazer mais do que uma tímida correção de
rumos... Já os novos eleitos, rapidamente demonstravam que eram apenas o mais novo avatar
da plutocracia de sempre.

Diogo adiantou-se João Gava acima, levemente incomodado em seu íntimo pelo som juvenil
que vinha do acampamento: o hino “O Sul é meu País!”. Mais algumas centenas de metros e
chegava ao local onde outrora localizava-se a "Vila Margarida". Empreendimento que seu pai
perseguira por longos anos, hoje era apenas uma praça, recheada de equipamentos de
ginástica e painéis relatando os principais acontecimentos que culminaram na secessão
brasileira. O velho ficou por longo tempo sentado, absorto.

"sim, o assassinato do juiz ocorreu após a prisão e morte do ex-presidente. Não sei como as
eleições ainda foram realizadas... Só podia ter dado nisso. E nossos líderes? Porque nada
fizeram? Tentaram ainda uma vez pescar em águas turvas!" O eterno líder dos esquerdistas,
já velho, doente e alquebrado pelo longo processo de desgaste do partido e também seu,
faleceu poucos dias depois de ter sido conduzido de forma humilhante para as dependências da
Polícia Federal em Curitiba. Ele era a cartada final da coalizão socialista que tentava recuperar
o poder em 2018. Àquela altura a intolerância política, catalizada pelo clima eleitoral, já havia
transbordado as redes sociais e escorria amarga pelas ruas de todo o país. Era comum assistir-
se a lutas corporais na sequência das cotidianas manifestações políticas. Ferimentos e brigas de
rua, antes raros e ligeiros, foram ficando frequentes e cada vez mais graves.

Perambulou sem rumo certo pela grande área gramada. Conhecia cada árvore daquelas, todas
plantadas por seu pai e muitas com sua ajuda. Afastando-se da rua e além da pequena praça, o
terreno se inclinava para baixo, conduzindo a um anfiteatro, A área fora a área verde da Vila
Margarida e agora servia para representação de chatíssimas peças de conteúdo moral e cívico.
Diogo sentou-se na primeira fila de assentos, bem no alto da estrutura. Passavam caóticos por
sua cabeça, os vários detalhes da construção da Vila: a fonte d'água, o espaço da
churrasqueira, o paredão das framboesas e principalmente a pequena casa de hóspedes, seu
lugar preferido e onde sempre ficava ao visitar seu pai. Hoje todo aquele ambiente,
cuidadosamente desenhado e contruído por anos, fora substiutído pelo "espaço de
conscientização", traço típico da arquitetura integralista dos anos 2040.

"e a cerimônia de posse em janeiro de 19?Uai sô! (Diogo nunca perdera o sotaque mineiro que
adquirira nos tempos de faculdade). O novo presidente arrancado do parlatório do Palácio do
Planalto pela turba enfurecida! Passado de mão em mão, mais parecia um judas de sexta-
feira santa... Inimaginável! Não sobrou nada... Esse fora o verdadeiro "turning point", a
famosa gota d'água que fez o copo secular entornar. Os Dragões da Independência
atarantados, as autoridades ainda mais, corre corre, até que tropas do Exército chegaram.

"ninguém mais obedeceu a nada nem a ninguém! E os grupos paramilitares? De onde


surgiram? A maioria das pessoas nem sabiam que existiam... Daí para a guerra civil foi um
pulinho."Na verdade, desde 2013 grupos armados clandestinos vinham se formando. Pequenos
a princípio, porém muito organizados e violentos. Suas lideranças eram pouquíssimo
conhecidas no mundo político e na mídia, mas com surpreendente facilidade conseguiram
rachar o país com base em ideologias que deviam estar sepultadas há muito. As próprias
Forças Armadas nacionais foram sugadas pelos dois redemoinhos simultâneos, rachando ao
meio. Em todos os centros urbanos do país milicias vermelhas e negras surgiram da noite para
o dia e a Guerra Civil de 19 se iniciou, só se detendo após cinco longos anos de derramamento
de sangue.

"Naquela tarde, tudo se acabou... caramba, a poucos dias do armistício..."A grande tragédia
da vida de Diogo ocorrera em 31 de maio de 2023, aniversário de seu pai e duas semanas antes
da assinatura da Paz de Santos, em 10 de junho daquele ano. Com esse tratado as hostilidades
cessaram e nasceram a República Democrática do Brasil e a República Sul Brasileira, tendo
como fronteira a antiga divisa entre São Paulo e Paraná.

"Não sei como escapei do incêndio! Mas e ele? Onde fora parar? Muita sorte que Madalena
e as meninas estavam em segurança... Sorte nada! Previdência de meu pai. Logo após o
assassinato do juiz paranaense ele as mandou para Portugal acobertadas pela dupla
cidadania. Logo as seguiria... Mas não foi assim. Onde andariam? A madrasta já deveria
estar morta por certo, mas e suas irmãs?"Esse drama pessoal repetiu-se no seio de incontáveis
famílias e o armistício apenas congelou a tragédia, como se fora um macabro pique-tá. Muita
gente ficou retida no "lado errado". Fora o caso de Diogo, àquela altura professor-assistente de
Filosofia na UFMG. Uma vez que o fim das hostilidades se dera sem vencedor claro, refletindo
apenas a exaustão geral, a animosidade e o ódio não acabaram. Não se tratou seriamente da
questão dos "refugiados". O simples fato das relações entre os novos estados ser apenas
formal, transformou a vida de muita gente. Num lado e noutro brasileiros com ligações, reais
ou imaginárias, com o "inimigo", se viram repentinamente em maus lençóis.
"Voltar prá Minas foi um sufoco...!Não fosse o Fabrício e seu caminhão, não sei não... Mas
acabou dando certo. O problema foi convencer a nova administração universitária que meus
laços de família não me tinham transformando em "fascista"!" Cessadas as hostilidades,
assumiram os novos governos federais os líderes dos grupos em luta. Os processos de
"depuração" política e aparelhamento dos dois estados foi curiosamente similar e simultâneo,
diferindo apenas na cor das bandeiras e nas referências ideológicas. Duas ditaduras novas em
folha. O centro político simplesmente desaparecera, como costuma ocorrer em momentos de
radicalização e conflito social e uma nova guerra, desta feita não mais civil, espreitava no
horizonte.

"Mas foi em casa que as coisas ficaram piores... Depois daquela volta ao mundo e ainda
encontrar meu nome nas listas! Um aninho inteiro me defendendo nos Tribunais
Universitários de Auto Depuração! Como chegamos a isso?" Na precipitada fuga de Curitiba
com destino a Belo Horizonte, Diogo e Fabrício sabiamente escolheram uma rota tortuosa mas
com maiores chances de evitar patrulhas em estradas, além de contar com parentes em todos
os pontos de parada: Curitiba - Ortigueira - Apucarana- Maringá - Paranavaí, até alcançarem
as margens do Rio Paraná em Porto São José. No noroeste paranaense o ambiente de guerra
civil era apenas um eco distante e a população estava mais preocupada em curtir seu pequeno
balneário fluvial do que qualquer outra coisa. A travessia de balsa para Mato Grosso do Sul se
fez sem problemas. Diogo despediu-se de Fabrício e nunca mais voltaram a se encontrar,
seguindo viagem para Brasília numa sequência de caronas. Dois meses depois chegava à sua
cidade natal, Brasília, penúltima parada na volta para casa em BH. Era primeiro de agosto,
uma terça feira vermelha e seca, como todas nessa época na antiga capital federal. Apesar da
sensação de familiaridade com a cidade, ele se percebeu estranhamente só. Nenhum dos
parentes do lado materno restara na cidade. Após aposentada, sua mãe Rosângela tinha se
juntado a uma organização humanitária com sede em Genebra e os contatos entre eles passou
ao plano puramente virtual desde mais ou menos 2017, até seu falecimento pouco depois.
Desde que entrara na faculdade Diogo mantivera moradia em Minas e acabou professor da
UFMG, com idas à Brasília cada vez mais raras, principalmente após a emigração da mãe.

Uma gota de chuva, logo seguida por outras e pelo abraço frio do vento, despertou Diogo de
seus devaneios. Lembrou-se de que seu pai sempre dizia: "todo cuidado é pouco com o clima
de Curitiba!" e levantando-se galgou as escadas retornando ao nível da rua. Na verdade seu
destino não era o local da antiga residência da família - não sabia mesmo onde ir exatamente.
Sua intempestiva viagem nascera de uma misteriosa mensagem neural sem remetente nem
qualquer indicação de procedência. Apenas a frase: "vou passar meu aniversário sentado no
parque... que achas de um almoço galego?". A mensagem alcançou sua consciência há cerca de
duas semanas, bem quando se preparava para sair de casa, após um rápido desjejum. Apesar
da óbvia impossibilidade - afinal seu pai desaparecera há mais de quarenta anos e se fosse vivo
teria mais de cem - a mensagem formou como por mágica uma imagem nítida, completa e
detalhada em sua mente. Quase um projeto previamente desenhado, cujo produto final seria o
improvável reencontro. A partir desse momento Diogo pôs-se em marcha, seguindo os passos
irreais desse projeto-sonho. Não questionou nem por um momento a possibilidade daquilo
tudo ser real, passando às providências necessárias, a partir do único elemento definido em
toda a equação: a data de aniversário de seu pai, 31 de maio. Reserva de passagem, visto de
entrada, quitação de contas antecipadas, breve despedida dos poucos amigos e a reabilitação
da velha e surrada mochila, até então aparentemente aposentada em definitivo. As dispersas
gotas de chuva logo se transformaram numa completa e fina capa de humidade,a famosa
chuva "molha-tolos" da tradição portuguesa, recheada por fina camada de frio curitibano.

"Mas que parque? E a que horas? Galego ou não, um almoço não pode passar das quatorze e
já são treze e trinta"

Envolvido no impermeável sobreposto ao casaco, Diogo caminha na direção do parque mais


próximo, o Tanguá. Ou melhor, Parque Inspiracional Plínio Salgado, seu nome atual. Afinal a
aposta mais provável por mais próxima, além de ser o ponto de descanso "outdoor" preferido
de seu pai após a mudança para a casa do Abranches. Uma esticada de apenas trinta minutos,
sempre na descendente levou-o ao seu destino. A chuva, o frio e a cerração aumentaram
pouco a pouco e quando chegou à parte baixa do parque, pouco se podia discernir
visualmente. Apenas a pedra em formato de menir no centro da área de descanso, o pavilhão
avermelhado no alto do paredão de pedra e a boca negra do túnel além-lago, destacavam-se
na nuvem rasteira. As cápsulas de alongamento eletro-magnético estavam completamente
invisíveis em função de sua transparência, bem como todos os bancos. Silêncio absoluto, como
absoluta também era a ausência de seres humanos. Ou não? O velho foi progressivamente
mergulhando na neblina, como se num sonho estivesse, chegando por fim à pedra triangular.
Tocou-a, bebendo a sensação de frio transmitida pela massa granítica e capturando todas as
sensações táteis dos filetes de água gelada que escorriam rumo ao solo. Sua mente começara a
divagar quando seus olhos fixaram uma forma escura quase na beira do lago. A princípio sua
mente já excessivamente relaxada não encontrara uma descrição familiar para o esboço de
imagem que sua retina capturara. Um esforço enorme foi recapturando e recoordenando os
sentidos até que a compreensão caiu como uma pedra sobre ele.

"Tem alguém sentado naquele banco lá na margem! Aquele abrigo, eu o conheço!"


ALMOÇO GALEGO

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Primeira Parte

NA LUSITÂNIA

Este que vês, pastor já foi de gado,


Viriato sabemos que se chama,
Destro na lança mais que no cajado:
Injuriada tem de Roma a fama,
Vencedor invencibil, afamado;
não tem co'ele, não, nem ter puderam
O primor que com Pirro já tiveram.

Os Lusíadas, VIII/6

Montes Hermínios (1), ao cair da noite do primeiro dia de fevereiro de 150 A.C.. A druidesa
Bara terminava os preparativos do Imbolc (2) e o frio cortante do alto da serra parecia não
causar qualquer efeito em seu corpo nu, profusamente ilustrado com imagens ritualisticas
azuis. As mulheres da tribo Lynko (3) aguardavam o festival em honra a Brigidh com grande
ansiedade, pois a fertilidade entre elas vinha declinando nos últimos anos. O que estaria
aborrecendo a Mãe-Deusa, protetora da mulher e do nascimento das crianças? O que esperar
do futuro? As notícias que vinham do campo de batalha eram boas, mas sem ventres
fecundados não haveria vencedores, apenas mais um povo esquecido. Seus viri (4) haviam
contido as hordas de estrangeiros de roupas de couro e metal e os confinado às planícies e
vales. Jamais conseguiriam ocupar os castros e brigas fortificados! Estranhos guerreiros de
outro mundo, sempre em grupos à semelhança de formigas, assumindo formas e mais formas,
um enorme monstro coleante e sem uma cabeça para decepar. Como todos bem sabiam, seu
sangue era também vermelho e grosso, mas animado por falsos deuses. Bara está no centro de
enorme círculo formado por pilhas de lenha e arbustos secos. Subitamente, como se algo
retirasse toda sua energia vital de uma só vez, cai ao solo imobilizando-se por completo. Meia
dúzia de mulheres convergem sobre ela cobrindo-a com peles de lince, o animal-símbolo de
seu povo.

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