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Verwerfung

por

Vitor Machado

Psicose: Estado psíquico no qual se verifica certa

perda de contato com a realidade. Podem

ocorrer alucinações ou delírios, desorganização

psíquica, inquietude, angústia e opressão.

Acompanha-se normalmente de ausência de crítica e

incapacidade de reconhecer o caráter bizarro

do comportamento.

Ou pode não ser nada disso....!


- Esse menino é mesmo estranho... Fica horas a fio na frente do espelho. Não brinca, não lê...
Não é coisa de um menino de dez anos.

- Estranho nada! Coisa de criança. Só faltava tu meteres na cabeça de levá-lo ao um desses


médicos de maluco. Aí sim que ele pira mesmo!

- É bem o que eu acho. Ouvir um profissional não faz mal nenhum...

- Bem coisa de mãe. Se não tem um problema no filho logo inventa um... Já sabes que sou
contra. Já uma consultazinha prá ti...

- Vá a merda!!

- Blammmm!!

Não fosse a enésima edição de uma conversa banal que se transformava em briga, a
cena teria atraído a atenção de Tobia. O garoto porém, como tinha crescido imerso numa
atmosfera ruim, numa energia negativa criada e alimentada diariamente pela rejeição mútua
entre seus pais, Antonio e Beatriz, não ligou. Os sons abafados a princípio e que logo evoluíam
para gritos eram normalmente encerrados por uma brutal batida de porta, como agora. Uma
espécie de trilha sonora de toda a sua infância. Tal ambiente, pouco a pouco o levara a
desenvolver sua própria rejeição. Rejeitava o que considerava desatenção de seu pai tanto
quanto a sensação de sufocação oriunda da mãe. Em pouco tempo alcançou o estágio de
rejeitar - e mesmo odiar - a dupla paterna como uma única entidade. Na escola detestava
particularmente ter que explicar por que seu nome era escrito "Tobia" e não Tobias. Ser
chamado pela conjunção ridícula dos apelidos de seus pais - Tonho e Bia - era mais do que
podia suportar. A única fonte de apoio psicológico da pobre criança era sua avó materna,
Circe. Não sabia exatamente porque, mas o nome de bruxa da velha senhora o atraía
inapelavelmente. Não que a idosa tivesse qualquer atributo maligno ou sobrenatural, era
bastante carinhosa com o menino e esse afeto era retribuído em dobro. O único aspecto
soturno existente alí e que encantava a alma do menino, era o fato de Circe viver enfurnada
em sua enorme casa, a cuidar do filho Glauco, tio de Tobia - um ex-ator inválido e atado
permanentemente a uma cama hospitalar. Tobia gostava de visitar sua avó e tinha particular
atração pelo quarto onde o tio cumpria a sentença da vida. As pesadas cortinas púrpura, o
cheiro de desinfetante que dominava o ambiente, as pilhas de lençóis sujos de secreções e
sangue produzidos pelas escaras, tudo enfim atraía poderosamente aquele melancólico jovem.
Possivelmente produto da Lua em Escorpião, dominante em seu mapa astral.

Tobia nunca se esqueceu da noite em que a notícia chegou. Justamente a véspera de


seu aniversário de cinco anos. A mansão de sua avó tinha se incendiado e os dois moradores
morrido de forma pavorosa. Pouco sobrara da ação do fogo, exceto aquele enorme espelho.
Era uma das coisas que o menino mais gostava na casa da finada avó. Tratava-se de uma peça
de época, grande, rebuscada e muito carente de reforma. Só se mantivera fora do depósito de
lixo pela qualidade intrínseca da madeira, sempre a sugerir um valor enorme após ser
restaurada. Ademais, havia um papo na família de que o objeto vinha de gerações e mais
gerações e que "seria uma pena descartar-se dele". Na verdade, as dificuldades financeiras
advindas do acidente que entrevara o tio, nunca permitiram a empreitada e lá ficou por muitos
anos o espelho, sem qualquer recuperação. Tinha mais ou menos uns dois metros de altura
por um de largura, emoldurado de alto a baixo por umas colunas em espiral, tudo em mogno
castanho-avermelhado. A madeira estava riscada e esfolada em diversos pontos, mas a
estrutura do móvel mantinha-se razoavelmente firme. O aço do espelho também já vira
melhores dias, mas ainda cumpria seu papel primordial - refletir. O incêndio fatal pouco piorou
o estado geral do objeto - já era bem ruim - e assim, o grande espelho acabou na casa de
Tobia, por mais desproporcional que ficasse naquele sala e dois quartos. Mais por falta de
opção do que como alguma forma de reconhecimento ao afeto que unira neto e avó, o grande
e desajeitado espelho terminou no quarto azul claro de Tobia, ocupando toda a parede aos pés
da cama do jovem.

Inicialmente o novo "membro da família" parecera ter reanimado o menino, que vinha
se ensimesmando cada vez mais. Talvez pela lembrança da avó, talvez pelas sinistras
lembranças das visitas à mansão, talvez por tudo isso junto. Altas análises "psicanalíticas" da
dupla "To-Bia" tinham rolado após os jantares no afã de interpretar a mudança no filho.
Desnecessário frisar que tais conversas sempre acabavam em brigas e num sonoro "blamm!",
quando não em pratos quebrados. O tema de debates porém, logo perdeu o sentido, pois
Tobia retomou o caminho da perda de contato com a realidade. Foi um processo penoso para
os pais, lento e gradual e que chegou a tornar praticamente impossível ao menino frequentar a
escola com regularidade. Suas conversas já não faziam muito sentido e frequentemente
retratavam situações completamente irreais. Parecia oscilar entre duas realidades distintas,
apesar de quase nunca deixar seu quarto, exceto para ir ao banheiro e jantar. À mesa
mostrava-se angustiado e inquieto, mãos trêmulas e com frequentes olhadelas na direção da
porta de seu quarto.

- Olha que eu estou quase concordando contigo!

- Que novidade é essa, Tonho? Tá querendo me agradar? Homem quando tenta fazer isso é
porque andou aprontando...

- Não é nada disso,cacete! É o Tobia. Do jeito que as coisas vão, vamos ter que...

- Levar ele no médico? Claro. Já devíamos ter feito isso. Só espero que não seja tarde demais...

- Ele tá até falando sozinho... Mas você também tá muito relaxada...

-???

- Você precisa limpar o quarto dele. Ou chamar alguém que faça isso. Tá um cheiro horrível
vindo de lá. Mais parece um posto de saúde da prefeitura!
Claro que Bia já tinha percebido tudo aquilo, só não queria admitir que estava pouco a
pouco perdendo seu filho para a insanidade, nem admitia ter sido admoestada pelo marido.
Assim, engolindo o orgulho, aproveitou um daqueles raros dias em que Tobia fora à escola,
para vasculhar o quarto e determinar a origem do cheiro forte de desinfetante que se sentia
do corredor. Ao entrar, desconsiderando a placa "keep out" pendurada na maçaneta, não
pode conter uma sensação de espanto. Tudo perfeitamente normal, bagunça em níveis
compatíveis com um menino de dez anos e, principalmente, ausência completa do cheiro
hospitalar que a preocupara tanto. As paredes pintadas de azul claro, com os pôsteres dos
ídolos do filho, na mesma posição de sempre. Sacudiu a cabeça como uma forma de descartar
uma evidência que não admitia qualquer explicação e sentou-se no pé da cama, de frente para
o espelho. Naqueles breves momentos deixou sua mente divagar, repassando toda sua vida.
Como chegara até essa situação? Uma sensação cáustica de culpa a corroia por dentro ao
pensar que ela e Antonio estariam empurrando seu filho para o abismo da loucura. Isto tinha
de ter um fim. E teria, mais rápido do pode supor naquele momento.

Já de volta ao mundo exterior, sua mente foi paulatinamente reconstruindo a imagem


que se lhe oferecera ao mirar absorta o velho espelho, trazendo-a para o nível da consciência:
as pesadas cortinas púrpura, a cama de hospital no fundo do cômodo, o criado mudo coalhado
de vidrinhos de remédio. Tudo nítido, inegável, apesar da penumbra dominante. Sua primeira
reação instintiva foi voltar ao quarto do filho, mas a mão gelada do terror a conteve.
Covardemente preferiu não fazê-lo e um suspiro sentido brotou de seu peito ao ver Tobia
entrando em casa. O menino ressabiado, movia o olhar de sua mãe para o quarto e de volta
para ela. Sem dizer palavra, disparou para o quarto, batendo a porta atrás de si. O seu próprio
"blamm"! O cartaz de papelão "keep out" ficou rodopiando no chão.

- Limpou o covil, finalmente?

- Não tinha nada prá limpar... mas tinha...

- Você tem que parar de dar desculpas pra ti mesma. Como não? Vem cá. Vem cá!! Esse cheiro
horrível, parece até a casa da tua mãe!Vem comigo!

Essas últimas palavras fizeram sua alma estremecer. Relutantemente foi puxada por
Antonio na direção do quarto e as lágrimas silenciosamente começar a percorrer seu rosto.
Sabia bem o que a esperava além da porta. Antes de que seu marido tivesse começado a abrir
a porta, o cheiro de desinfetante já tinha atingido a ambos. Lançando um olhar de desafio na
direção de Beatriz e um risco cruel e sarcástico no rosto, o homem abriu lentamente a porta
do quarto do garoto, insinuando-se lá dentro, sempre a rebocar a esposa pela mão. No interior
de trevas, os pais se entreolharam mudos de espanto. Nem sinal de Tobia - como teria saído -
e as apalpadas em busca do interruptor não produziram qualquer efeito. Apenas o retângulo
de luz formado pela porta entreaberta lançava alguma claridade, insuficiente de qualquer
forma. Com terror o casal apercebeu-se de uma irreal iluminação, fraca porém crescente,
vinda do espelho. Um brilho avermelhado suficiente para que se divisasse um quarto que em
nada refletia o quarto de Tobia. Ambos sabiam exatamente que quarto era aquele... A última
imagem que alcançou suas retinas foi de um menino sentado no chão, ao lado do criado
mudo. Em tudo idêntico a Tobia, não fossem seus cabelos brancos...

*******************************

- Sim, sim. É claro que é urgente! Urgentíssimo. Uma desgraça, meu cunhado acaba de
assassinar minha irmã. Matou-se em seguida. E o menino, meu Deus! Não o encontro de jeito
nenhum! Temo que Antonio o tenha... Sim, já disse isso, meu nome é Glauco, cheguei hoje de
surpresa. Meu Deus, que horror!! Que horror... Venham logo, por favor!!!

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