Você está na página 1de 2

Freak Show

Milhões de folhas secas levantadas pelo vento quente, formavam uma espécie de túnel que se
confundia com o céu vermelho do fim de tarde. Pela empoeirada trilha serpenteava uma massa de
seres mecanicamente a caminho de uma clareira, cerca de um quilômetro além. As pessoas
caminhavam em silêncio, interligadas num todo harmônico e coeso. As centenas de olhinhos
daquele ser coletivo, traiam a ansiedade por chegar. O cair da noite destacava as três grandes
barracas de lona branca, listradas de vermelho, que dominavam o pequeno platô ao fim do caminho.
Logo ao chegar ao circo improvisado, a pequena multidão postou-se frente a um pequeno púlpito
posicionado diante da barraca central. De lá uma criaturinha incentivava a turba a penetrar numa
boca toscamente pintada na lona, a fazer as vezes de portal de entrada em outros mundos. Sua voz,
grave e profunda, contrastava comicamente com seu corpo miúdo e de aparência frágil. De qualquer
forma, as expressões apalermadas e as bocas abertas da plateia, indicavam que o discurso produzia
o efeito esperado.

"Entrem! Entrem!! Aqui vocês verão lendas se transformando em realidade na frente de seus olhos!
Seres que já existiram... antes da Grande Guerra Final! Agora, só podem ser contemplados aqui...e
agora... Entrem! Não tenham medo senhoras e senhores, garantimos sua segurança! Apesar do
aspecto repulsivo e dos instintos bestiais, as correntes são fortes... Entrem! "
Depois da Grande Guerra Final e da destruição dos grandes centros urbanos, esse tipo de
entretenimento tornou-se uma das poucas fontes de alívio para as populações sobreviventes. A
realidade cotidiana tornara-se dura com o colapso das comunicações e do fornecimento de energia,
arrastando a Civilização para séculos atrás, talvez milênios. O próprio passar do tempo perde o
sentido. A única coisa que passou a existir em abundância eram as aberrações. A precipitação
radioativa que cobriu o planeta como um manto mortal, obrigou as partes em luta a deporem as
armas. Como um presente maligno, as radiações elevaram o número de nascimentos anormais a
níveis inimagináveis anos antes. As precárias comunidades pós guerra, incapazes de prover a
manutenção destas proles, simplesmente abandonavam os anormais à sua própria sorte, geralmente
em bosques fora das áreas povoadas remanescentes.
As exibições circenses onde seres bizarros eram expostos como animais, atraiam as populações por
onde passavam. Um momento de pausa na terrível luta pela vida e também uma forma de auto
afirmação. A contemplação de seres diferentes funcionava como uma verdadeira dádiva divina. Aos
poucos a noção de que eram também seres humanos, irmãos de sangue, criados da mesma forma,
desapareceu por completo com o passar do tempo.
"Venham! Hoje vocês poderão testemunhar um fato raro. Estes seres primitivos num arremedo de
família... Entrem!"
Um frisson de excitação perpassou pela assistência em resposta a essas palavras. A ideia de que tais
caricaturas de seres humanos pudessem constituir uma" família" era quase herética para uma típica
comunidade moderna. Em instantes todos os lugares disponíveis sob a tenda de lona foram
ocupados, após um pequeno desentendimento. Todos desejavam os lugares da frente, próximos ao
palco e se acotovelavam freneticamente para consegui-los. Subitamente as luzes se apagaram e um
desarmonico soar de metais, sopros e tambores encheu a atmosfera abafada da tenda. Substituindo a
música, ouvem-se ruídos de passos e arrastar de correntes no fundo do palco imerso em trevas. Aos
poucos, a luz bruxuleante de archotes posicionados nas laterais começa a revelar a cena, como uma
fotografia imersa no líquido revelador. Já adaptados à penumbra, os olhos da plateia percebem dois
seres presos a grossas correntes. Estes buscam pateticamente se tocarem, seus esforços produzindo
unicamente o tilintar das correntes. Em seguida a atenção do par de criaturas se volta na direção de
um pequeno volume envolto em trapos, no meio do tablado. O pacote se move, como se algo
pequeno em seu interior buscasse libertar-se. Uma vez mais, as correntes impedem o intento dos
prisioneiros, despertando uma onda crescente de risos entre os assistentes. Em alguns instantes um
novo personagem adentra o palco, despertando palmas e assobios entusiasmados no público. Um
ser enorme, poderoso, com braços musculosos que chegam até o chão. Suas longas garras raspam
cadenciadamente as taboas do soalho, despertando o pavor na dupla de prisioneiros que busca
refúgio no fundo escuro do palco. Após saudar a plateia curvando-se e estendendo os longos braços
à frente, o titã se volta na direção do embrulho de trapos. Ao abri-lo revela um pequenino ser,
rosado e gorducho, que, ao ser suspenso no ar pela perninha, chora em busca de um impossível
socorro. O choro do bebê se transforma num horrendo guincho de dor, para logo cessar se todo. Em
resposta, débeis sons metálicos vindos do fundo negro do palco e uma estrondosa ovação do
público. Os aplausos e gritos da plateia aumentam e transformam-se numa algazarra infernal
quando pedaços ensanguentados do bebê lhe são arremessados pelo gigante. O sangue da criança
parece refletir-se em cada globo ocular dos excitados assistentes. O tumulto ameaça ficar fora de
controle, até que o mestre de cerimônias do circo retoma o controle da situação. Irritado, ele meneia
sua cauda escamosa, enquanto indica a saída da tenda ao público. Lentamente o grupo de pessoas
volta ao seu estado letárgico característico e começa a retornar à sua comunidade e às suas vidas
cotidianas. Algumas poucas garras e tentáculos ainda se agitam no ar e ao chegarem à trilha por
onde vieram, já é noite fechada.
Fim

Você também pode gostar