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AFFONSO D E C A R V A L H O MARIA

1* BATERIA, F0GO! -
.IACECDA
A mais empolgante narrativa da Revolução de 1930,
com a critica imparcial, corajosa e serena da acção
de MOURA
dos vencedores e vencidos, dos factores políticos e
militares, e das causas recentes e remotas que im-
pelliram o Exercito a decidir da victoria da corrente

O autor, official do
liberal.

nosso Exercito e jornalista


observador e culto, offerece nestas paginas, revesti-
das do fulgor do seu estyla impressionista, a contri-
iVifiZCKDCIC
buição necessária das classes armadas á historia da
Revolução.

Livro de impressões, colhidas no momento de lucta,


reflecte a grandiosidade e o ímpeto enthusiasta do
povo e dos soldados, que realizaram, num avanço

ecscincos
irreprimível, a epopéa salvadora da Republica.

Brochado ."ÍSOOÍ)

"VIGIA A TUA VIDA E NÃO RENUNCIES


EM T O D A S AS L I V R A R I A S E N A 1
POR NADA AO T E U I IVRE ARBÍTRIO; NA<
IMITES A ESSES MAUS COMEDIANTES
OVILIZAÇAO BRASILEIRA EDITORA Q U E SÓ PODEM CANTAR EM CORO."

EPICTETQ
Una I.nvradlo, 10»
T e l r p h . 2-C773
Rio th- Janeiro

T y p . Cupolo — I,nd. Snnta F.phlKOnla, 21 — S. P a u l *


iWth
llun l.nvrndlo. IflO Win «V .Tan<
M a r i a L a c e r d a de M o u r a

ANTONIO CARLOS

Civilização
Tronco de Escravos
EMPRESTAR É UM PRAZER
DEVOLVERÉUM DEVER!
"O homem mais forle do mundo ê o mais
solitário."
IBSEN
ANTON/O CARLOS
CAIXA POSTAL 55071
C E P 0396 >-970
SÃO P A U L O / S P

CIVILIZAÇÃO B R A S I L E I R A EDITORA
R u a L a v r a d i o . 160 193 1 Rio de Janeiro
DA A U T O R A

E m torno da Educação — 1918 — exgotado.


Renovação — 1919 — exgotado.
A Fraternidade e a Escola — 1922 — exgotado (con-
ferencia).
A Mulher moderna e o seu papel na sociedade actual
e na f o r m a ç ã o da civilização futura — 1923 — ex-
gotado (conferencia).
«A Mulher é uma Degenerada — 1924 — exgotado —
(1.» e d i ç ã o ) .
A Mulher é uma Degenerada — 1925 — exgotado —
(2.* e d i ç ã o ) .
L a Mujer es una degenerada? — 1925 — Ed ição de Bue-
nos-Aires. não revista pela autora.
Lições de Pedagogia — (volume 1.°) — 1925 — ex-
gotado.
Religião do Amor e da Belle/a — 192G — exgotado —
(1.* e d i ç ã o ) .
Religião do Amor e da Belleza — 1929 — (2. e d i ç ã o ) .
a

De Amundsen a Del Prete — 1928.


Clero e Estado — 1931.

NO P R E L O :

Fora da Lei.
Clero e Fascismo.

A SAÍR:

Han Ryner e o Amor Plural.

EM P R E P A R O :

O Individualismo nco-estoico de Han Ryner.


Guerra á Guerra!
Psicologia Pedagógica — (1." e 2." volumes de Lições
de Pedagogia).
Problema humano: A questão sexual.
Krishnamurti, Mahâtmâ Gandhi c Han Ryner.
O problema do Amor — visto pela mulher: George Sand,
Isadora Duncan, Alexandra Kollontai e Federica
Montseny.
"Vigia a tua vida e não renuncies
por nada ao teu livre arbítrio; não imites
a esses maus comediantes que só podem
cantar em coro".

Epicteto
A CIÊNCIA A SERVIÇO D A
DEGENERECENCIA HUMANA

A humanidade, considerada na espécie, con-


serva a mentalidade rotineira, atrasada, empírica,
de todos os tempos, de todos os rebanhos. Ainda
mais: a civilização sufoca o instinto animal de de-
fesa.
A evolução é individual, e o conservantismo
das massas é assegurado pela influencia ancestral
fossilizada no subconciente coletivo e pela educa-
ção, domesticadora até o servilismo.
Mas, si o rebanho humano é sempre o mesmo,
faminto de pão e divertimentos, guerras ou circo,
politica ou cinema, sedento de prazeres brutaes e
de gargalhadas sensuaes, essa vaga imensa ondu-
lando ao sabor de um Alexandre, um Amílcar Bar-
Cftj um Aníbal, um Xerxes, um Cesar, Napoleão,
Mussolini, Papa, Dempsey, Tunney, um Chico
I3oia, um Rodolfo Valentino, — em compensação
10 Mtria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 11

a ciência progrediu tanto que deu origem a fan- plicidade que leva os humanos a se estraçalharem
tástico desequilíbrio na vida social, posta imedia- ferozmente nos campos de batalha.
tamente a serviço das perversidades inomináveis, de E, enquanto nas Igrejas se prega o "Amai-
toda a imbecilidade humana. vos uns aos outros", e se lembra o " N ã o matarás",
Descobertas, investigações, os métodos cien- sacerdotes patriotas abençoam a aviões, couraçados
tíficos atestam o esforço da elite intelectual. Por e bandeiras, na França contra a Alemanha, na Ale-
outro lado, cientistas se vendem cinicamente ao manha contra a França, na Itália, na Bélgica ou na
poder, ao capital, á vaidade das exibições. Áustria, em nome do mesmo Jeová terrível, em no-
E o capitalismo industrializado se apodera de me do Deus sanguinário de todos os exércitos, das
todo esse afan cientifico, mesmo ainda em em- pátrias exclusivistas e do chauvinismo cristão.
brião, de maneira que canaliza as energias humanas Dá-se ainda um fenómeno digno de nota: os
em uma direção única — a luta de competições, a próprios cientistas n ã o se subtraem á influencia
concorrência económica, o assalto ás posições já das massas. Enquanto nos seus gabinetes, em meio
ocupadas, o nacionalismo e, consequentemente, as de retortas e maquinas, experimentam, pesquizam,
atordoam-se na inquietação absorvente de resolver
guerras.
problemas ou aproximar-se de determinada verda-
Todo o género humano vive para a cumpli-
de, são admiráveis, superiores, grandes na sua per-
cidade brutal da prostituição sob todos os aspectos,
severança; logo que atingem a uma pequenina rea-
pois que a organização social capitalista não passa lização e veem para o cenário social aplicar o re-
de um vasto bordel em que se compram e vendem sultado das suas experimentações, caem no nivel
todos os sentimentos e as mais nobres aspirações, (UM massas, descem á vulgaridade do dogma, á
o Amor e a Conciencia, as mais altas manifesta- mediocridade domesticada, servil e perversa das
ções da Vida humana. Pátrias e dos partidos.
E toda a humanidade, em tempo de paz como Acorda-se o nacionalista, o religioso a serviço
em tempo de guerra, vive, trabalha, luta pela cum- da superstição e da ignorância, o cidadão a servi-
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 13
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triaes de aviões, submarinos, couraçados, torpedos
ço dos governos e das bandeiras, contra outros go-
e metralhadoras — todos esses canibaes que se nu-
vernos, outros cidadãos e outras bandeiras.
trem dos campos de batalha.
E toda a sua ciência se prostra aos pés do ca-
E o rebanho humano continua a defender e
pital e da industria.
a respeitar, patriótica e religiosamente, a todos os
O esforço superior do homem livre é detur- interesses legislativos e nacionalistas, a toda auto-
pado, é prostituido. ridade constituída para afiar o cutelo que ha de
Todas as descobertas, sem exceção alguma, cortar, piedosamente, o pescoço e abrir o ventre
todas as pesquizas da ciência são açambarcadas pe- dos que vão, entoando hinos, alimentar a boca
los interesses industriaes e para as conquistas da escancarada dos canhões, das maquinas de guerra
guerra, consequentemente. que recebem e trituram a carne humana e a trans-
A aviação é instrumento nacionalista e as fa- formam em moeda corrente com que os grandes
çanhas aviatorias, ainda que um Amundsen, um industriaes e os políticos, seus cúmplices, compram
Charcot, um Nansen delas se sirvam para desco- o poder, a gloria e as cortezãs.
brimentos científicos, são manejos da embriaguez A t é mesmo a bondade imensa de Mme. Curie
patriótica ou da maroteira politica — para açular está trabalhando para a destruição do género hu-
os "cidadãos" á defesa sagrada da pátria glorio- mano.
s a . . . E até as palavras teem o seu prestigio no
Santos Dumont o sente, profundamente arre-
despertar das emoções ou das paixões capazes de
pendido de haver contribuído para a carnificina
acordar o sentimento do dever nacional.
gloriosa dos milhões de vitimas da ferocidade civi-
O vapor, a eletricidade, o radio, tudo, absolu- lizadora iniciada em 1914.
tamente tudo tem o seu papel preponderante na
O cinematógrafo cultiva a imbecilidade, o
destruição pela guerra — em nome do Moloc da preconceito da força bruta, o prejuizo patriota,
pátria. a superstição religiosa, a moral farisaica da socie-
Mas, quem move os cordéis da diplomacia e dade filistéa, o mundanismo parasita, todas as to-
do Estado são os banqueiros, os famosos indus-
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lices seculares e todos os crimes de lesa-felicidade tros de pugilato e dos concursos comerciaes de
humana. beleza.
Rara a película de tese social elevada. T ã o Santos Dumont, Edison, Marconi, Mme.
rara que a assistência, no seu conjunto, a repudia... Curie — instrumentos do progresso material para
Descoberta feliz, sonhada talvez para a es- a conquista do poder, do dinheiro, para o alarga-
cola moderna, para o cultivo da inteligência, caiu mento das fronteiras nacionaes contra outros ca-
imediatamente nas malhas do industrialismo absor- pitães, outras bandeiras e outros nacionalismos.
vente e foi colocada ao sabor e ao alcance das mas- Marconi já vendeu a própria conciencia:
sas, em vez de servir para elevar a mentalidade fascista, marquês, senador, presidente nomeado da
humana ao nivel do ideal cientifico puro e das as- Academia de Letras italianas . . .
pirações de renovação social pela educação. Cada descoberta cientifica é nova fonte de
Mas, ha tanta impudência e tanta cupidez na conflitos internacionaes, tudo concorrendo para
civilização de industria que um film como o do l i - liquidar mais depressa o género humano.
vro de Remarque consegue atravessar as malhas da Neste momento, todos os grandes laboratórios
reação burguesa. químicos estão ocupados no fabrico de gazes sem-
D á que pensar: a civilização do dollar será pre e cada vez mais tóxicos, para a próxima guerra.
engulida por si mesma, morrerá de apoplexia. Sabe-se mesmo que será também aproveitado
O que se verifica com o cinematógrafo a ser- o trabalho dos cientistas ocupados hoje em cultivar
viço da imbecilidade e da ignorância sentimentalis- e exasperar a virulência dos micróbios das mais
ta, dá-se também com o radio. terriveis moléstias.
J á a radiotelefonia é instrumento da policia, A t é mesmo o mundo proletário, embora o pro-
e uma agencia de anúncios de todas as drogas que testo contra a civilização burguesa-capitalista, cava
envenenam a humanidade, inclusive a droga lite- a degenerecencia da espécie e coopera para essa
rária académica, a droga historico-patriotica, a luta dantesta, ora imprimindo as imbecilidades es-
droga das caravanas politicas e a droga dos encon- critas pela burguesia académica, patriótica e mun-
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dana, ora fabricando munições e armas de guerra, fome, para a peste, para a miséria fisica e moral
mesmo porque todas as conquistas do progresso é o pequeno agricultor.
material constituem armas de guerra para o sus- N ã o o capataz que dirige, governa e explora,
tentáculo do dominio de uns e do servilismo e do- de rebenque em punho, que humilha o semelhante,
mesticidade da maioria. enriquecendo-se á custa do suor alheio, mas, o hu-
milde lavrador que cava a terra e semeia a nutrição,
Seria bem preferível que o operário amputas-
a vida, a força, a alegria da fartura e da fecundi-
se ambas as mãos si se resolve a trabalhar em arse-
dade sadia, porem, que não contribue para a r i -
naes de guerra, de hidroplanos e metralhadoras,
queza social, o que não exige o intermediário para
couraçados e torpedos. Deveria ter vergonha de si
as suas transações comerciaes.
mesmo ao reivindicar os seus direitos á liberdade,
após 8 ou mais horas de trabalho em estaleiros de A volta ao trabalho rude da terra será. por-
navios de guerra ou em um arsenal de idiotices tanto, a conciencia tranquila, para além de toda
perversas ou de brigas de comadres, como, por cumplicidade com a organização social, baseada
exemplo, as redações das imprensas oficiaes. na exploração do homem pelo homem?
Nem sempre. Parece-me que ainda não.
De qualquer modo, dentro da civilização, to-
E ' justamente na produção da terra e mesmo
dos nós concorremos para o canibalismo patriótico
na propriedade da terra em si, que se alicerça todo
das trincheiras e das pilhagens militares.
o formidável edificio da exploração social.
Entretanto, o trabalho intelectual não exclue
Si ninguém plantasse senão o estrictamente
o trabalho manual e vice-versa; pelo contrario, a necessário para si e para os seus filhos menores,
harmonia de todo o ser vem da energia fisica em para os velhos e para as mães e as crianças e os
ação e do prazer de pensar e agir e criar mental- inválidos da sua família, ao mesmo tempo prati-
mente. cando o auxilio mutuo, — n ã o se formariam
O único homem que não contribue direta- "trusts" de café, de açúcar, de algodão, de arroz,
mente para a guerra, para a destruição, para a de trigo, de mate, de todos os géneros de primeira
18 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 19
necessidade, para fortuna dos reis da agricultura
concientes, se recusariam a pactuar com essa civi-
industrializada — que não plantam e se enrique-
lização de vampirismo social, voltariam ao traba-
cem á custa do suor dos que plantam. lho duro da terra, á vida simples e natural, porem
D a í a concurrencia aberta para as lutas co- cheia de compensações, de liberdade, para deixar
merciaes de competição, origem das guerras mo- sentir a alegria da conciencia que não desce á cum-
dernas. plicidade de lutar em favor do esmagamento de
E' o excesso da produção, sob todos os aspe- toda a humanidade.
ctos, na lavoura como nas industrias, causa de to-
dos os conflitos na sociedade atual. O nosso mal
não vem da falta e sim do excesso de produção. A
miséria do mundo moderno ainda vem da fartura
e do excesso de riqueza e de progresso material. D a
má distribuição dos géneros alimenticios. Por ora,
a terra daria bem para a sua população.
E o operário verdadeiramente conciente, ope-
rário manual ou cientista manipulando o pensa-
mento no fundo das retortas ou nos cálculos e
problemas, á procura das leis naturaes, em busca
da razão de ser da vida — não fabrica armas para
abrir o ventre dos seus próprios filhos em holo-
causto no altar da pátria, esse idolo sanguinário de
fauces escancaradas a absorver as energias de to-
dos os assalariados do trabalho.
Si houvesse verdadeira compreensão do dever
humano, os indivíduos livres, homens e mulheres
VORONOFF

Em meio dessa embriaguez de gozos materiaes,


desse delírio de progresso sensual, surge o elixir da
longa vida, com Voronoff.
A velhice é uma caricatura da infância, é a
meninice sem a graça, a ingenuidade, a beleza, a
candura, a sedução da puerícia.
A velhice é a idade da avareza, das preferen-
cias apaixonadas, da sordidez, do egoísmo, das ex-
periências adquiridas, da glutoneria, da falta de
higiene, das desilusões, das ideias fossilizadas.
Até aos 30 annos podemos receber impressões
novas, aceitamos ideias, mesmo quando venham
derrubar o edifício calcificado da herança ancestral,
ainda que para voltarmos, mais tarde, ao ponto de
partida...
Depois, atravessamos o período da ruminação
e aí ficamos algum tempo, ou nos conservamos,
por toda a existência, as "almas ruminantes" de
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que fala Romain Rolland, voltando aos prejuízos, Situação humilhante de protegidos da cari-
aos preconceitos inculcados na adolecencia, pela dade!
educação e pelo exemplo. Como são dignos de admiração e amor os ve-
A s grandes conversões ou as conversões dos lhos estóicos, mas, como são raros! Como sào raros
livres-pensadores de rebanho, são fatos de todos os os velhos de almas sãs para penetrar o sentido da
dias. vida, de almas jovens para desejar e continuar a
A fraqueza de memoria, a perda da acuidade realização interior pela bondade envolvente, tole-
rantes, compreensivos para deixar aos moços a li-
sensorial, a imaginação cheia de fantasias absurdas
berdade de pensar, de errar, de aprender, de adqui-
e muitas vezes até perversas, a ambição, fazem da
rir experiências próprias, de viver segundo as suas
velhice quiçá o pesadelo dos que velam por ela.
necessidades e os seus sonhos precursores! Sócrates,
Sob outro aspecto, o velho, nesta época po-
Réclus, Kropotlcine, Ibsen, H a n R y n e r . . .
sitiva de cupidez, quasi sempre é um estorvo: a
herança depende da morte dos v e l h o s . . . Mas, a velhice gamenha, voronofizada é o
O velho, si n ã o sabe ficar na moldura, na ex- mesmo ridiculo dos cabellos e bigodes pintados,
pressão de Emile Faguet, é um desastre, motivo emoldurando as rugas indiscretas ou a "maquilla-
de discórdias em toda a familia, motivo de con- ge" em pessoas idosas em que apontam, agressiva-
flitos de toda ordem. mente, os estragos do tempo e as dores do mundo.
E que de ridículo, além da fatalidade com A juventude vem de dentro para fóra. Des-
que a própria natureza satiriza a decrepitude! pertar, cultivar as energias interiores, em vez de ir
O ideal é morrer no vigor das faculdades e buscar nos artifícios o remédio para os desvios e
dos sentidos, ou, pelo menos, ao atravessar o Cabo as loucuras e a degenerecencia humana, alimenta-
da Bôa Esperança, no outono iluminado da vida, da e multiplicada com a civilização industrial capi-
antes de entrar no das tormentas . . . e das imbeci- talista — eis o caminho da juventude eterna.
lidades da caduquice, arremedo caricatural da in- A velhice é uma etapa desagradável do cir-
genuidade infantil. culo evolutivo de uma parcella de vida em relação
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ao Eterno e ao Infinito. A morte é a solução, a a insensatez humana. N ã o seria preferivel fazer


única desejável. Depois . . . Quem sabe? desaparecer as causas das guerras?
Morrer, transformar-se... A morte n ã o exis- Mas, isso não é possível, dentro de qualquer
te. E ' como as vagas do grande Oceano e vão e organização social baseada no capital e nos pre-
voltam a quebrar-se nas praias iluminadas pelos conceitos burgueses, na moral farisaica do Cristia-
raios do Sol vivificador. nismo, como impossível- fechar as casas de prosti-
Descuramos os meios naturaes de garantir o tuição, substituindo o caftismo e o vampirismo so-
vigor do corpo, a resistência orgânica, a saúde f i - cial pela liberdade do amor, pelo pluralismo amo-
sica e mental, viciamo-nos, degeneramos os nossos roso sem a compra e a venda da carne feminina.
filhos, concebemos esses filhos através do vicio, da Assim, inventam-se meios artificiaes para
ociosidade, do trabalho forçado, do sensualismo mais rapidamente degenerar-se todo o género hu-
absorvente, da libertinagem: são os filhos do tédio, mano.
da embriaguez, do descuido, do acaso. A vida f i - E , intoxicados de vicios, de ociosidade, de pa-
ctícia e trágica das cidades nos envenena até o rasitismo ou de miséria, de digestões doloridas ou
fundo da conciencia, e, degenerados até a medula, de concepções fossilizadas, alimentados de "verda-
pretendemos encontrar o elixir da longa vida, para des mortas", senis, "almas ruminantes," somos
voltarmos embriagados de mais sensualismo baixo incapazes de nos elevar um pouco acima da bestia-
e mais cupidez e entornarmos uns restos de exis- lidade dos instintos primitivos, sufocadas as ener-
tência artificial nas roletas, nos "Cabarets", nos gias interiores, adormecida a beleza de cada ser —
bordéis, nos lupanares e na vulgaridade senil mas- no ruido e nas preocupações do mundo exterior.
carada de juventude. E vamos buscar, nas florestas, um ser livre e feliz,
Mutilar-se nas guerras — para a ciência pro- vivendo em harmonia com as suas necesidades na-
var que pode recompor e embelezar, talvez, um turaes e o inutilizamos ou o matamos, roubamos a
rosto ou suprir órgãos, prova bem a brutalidade e sua vitalidade ou reduzimo-la á metade — para
resucitar a cadáveres ambulantes, para estimular a
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senilidades imprestáveis, cujo corpo envelhecido ticamente, o supremo prazer de domínio, em o lu-
precocemente, talvez em orgias e libertinagens, po- gar supremo de presidente da Republica brasileira!
de dar vida a filhos predispostos á mesma degrada- Acabaria por exgotar a nossa p a c i ê n c i a . . .
ção moral, com tendências á mesma senilidade pre- e exgotaria de vez os cofres da nação. Seria a ban-
carrota de tudo . . .
coce e cuja mente rotineira e empírica ha de con-
*
tinuar a deitar regras de conduta de uma moral
também senil — para tirar aos moços a liberdade **
e a alegria de viver de acordo com as necessidades O que é mais criminoso é lançar mão de um
do momento e de acordo com a evolução e as ideias sêr vigoroso e feliz na sua vida simples, natural —
e sonhos prenunciadores. para, com o seu sacrifício, alimentarmos a velhos
decrépitos, cuja vida foi um hino ao vicio, á liber-
Si vivêssemos como os pássaros, que são livres
tinagem, cujos capitães e cujo poder foi adquirido
logo após os primeiros v o o s . . .
á custa do suor alheio.
Mas, conservar, remoçar artificialmente a
Porque um sábio, um filosofo autentico não
avós e tataravós para constituírem novas famílias
consentiria nunca em martirizar um sêr para dele
talvez, e nos tirar mais a liberdade de pensar e agir
tirar recursos em seu proveito próprio.
e obrigar-nos a um beija-mão que nunca mais terá
As operações de Voronoff, a não ser as pri-
fim, é simplesmente deshumano . . . é povoar a vida
meiras experiências suas e de seus dicipulos em a
de fantasmas simiescos.
pobre gente dos hospitaes e asilos, sem direito a ne-
Imaginemos Clemenceau, o "tigre" voronofi- nhum direito, são operações em os velhos endinhei-
zado: com que petulância perversa fomentaria de rados e em os poderosos, cuja conciencia foi amas-
longe uma nova guerra! sada no parasitismo, cujos cofres foram enriqueci-
Imaginemos um Ruy Barbosa falando, falando, dos á custa da exploração de milhares e milhares de
gesticulando ininterruptamente o seu patriotismo operários, á custa do martirio e servilismo do reba-
contra os paes da pátria que lhe negaram, sistema- nho humano.
28 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 29

Depois, os charlatães da ciência podem mul- Corulla, em um artigo em "La Nación", a respeito
tiplicar embustes ou provocar aleijões moraes, a do "Rejuvenecimento", diz:
sugestão fica e o seu prestigio cresce, porquanto . . . "Por outra parte, nem Voronoff nem
sentem crescer a confiança em si, e eles mesmos se Steinach puderam apresentar até agora um caso
desdobram em valor aos seus próprios olhos. de verdadeiro rejuvenecimento. São melhoras
Tem razão Bernard Shaw: O medico que parciaes, atinentes unicamente á esfera sexual,
mata com coragem de convicções, com energia, dentro da qual é inegável aumento de atividade.
"com maestria, sente crescer seu orgulho em cada As células nervosas e os demais órgãos nobres
crime que comete." continuam como dantes. N ã o negamos que isso se-
ja resultado e bom, porém, é preciso convir que es-
tamos todavia muito longe de haver encontrado a
fonte de Juventa e que é muito duvidoso que seja
O método de Steinach, pcofessor em Viena, esse o melhor caminho para chegar até ela".
com o enxerto de glândulas de outro semelhante Resultado "muito óptimo", dirão os velhos
ou com o enxerto de glândulas do próprio paciente, exgotados.
tem dado, dizem, muito mais resultados que o de
Para a velhice libertina basta apenas o aumen-
Voronoff.
to da atividade sexual, e, "après moi, le déluge" . . .
E', pelo menos, mais humano, é feito com o Entretanto, a longevidade, além de ser caracte-
consentimento de um individuo que estará ciente rística de família, aptidão hereditária, depende
e conciente de que se vae prestar a servir a outro muito mais de nós mesmos do que de intervenções
individuo. exteriores. E a longevidade sadia é trabalho de hi-
Muitas fraudes e muitos crimes podem advir giene mental e de alegria interior, de uma bondade
daí; entretanto, ha mais probabilidades de consen- incapaz de sacrificar a quem quer que seja em be-
timento do sêr humano do que do macaco... neficio próprio.
Mas, outro medico notável, o D r . Juan E. Ademais, que sabemos da Vida?
30 Maria Lacerda de Moura

Somos emparedados. E todos os nossos gestos


movem-se através da nossa profunda ignorância
presunçosa.
Os humanos, temos a pretensão de nos consi-
derarmos acima dos chamados irracionaes. E , orgu-
lhosos, não queremos vêr os erros e os crimes criados A I N D A VORONOFF
por nós mesmos em torno dos nossos destinos, es-
traçalhados pela nossa perversidade calculada, sór- Voronoff não é precursor, nem inovador, nem
dida, mesquinha e autoritária. individualidade nascida fora do século, indesejá-
Que conhecemos dos liames biocosmicos? vel entre os contemporâneos, combatido pela ciên-
Além de tudo, os simios estão muito acima da cia oficial, não é profeta de ideias novas e de so-
velhice parasitaria, da senilidade libertina, do caf- nhos para serem arrebatados por outras gerações,
tismo da conciencia humana civilizada, banqueiros nem ao menos é colaborador da ciência, tomada a
e césares, vampiros sociaes, cuja vida é sugada na ciência em seus justos termos.
dor de todo o género humano escravizado aos co- Voronoff é homem da sua época, da época
fres fortes, domesticado pela cidadania, dobado no do "jazz-band" e de Josefina Baker.
regimen social da exploração do próximo. De uma experimentação cientifica de labora-
tório para observação em torno das secreções das
glândulas e do efeito dessas secreções no organis-
mo, e, consequentemente, a aplicação do resultado
dessas experiências na terapêutica, d a í para char-
latanizar a ciência aplicando-a á industria de ani-
ma os e ao sensualismo senil — vae considerável
diferença.

N ã o posso compreender a ciência intervindo


J

32 Maria Lacerda de Moura Civi/ização — Tronco de Escravos 33

no aperfeiçoamento dos meios do homem extor- gar que ocupava o sacerdócio, ha alguns séculos.
quir dinheiro de outro homem, valendo-se da ci- Os mesmos bonzos revestidos de títulos, as mesmas
rurgia, no atentado á vida fisiológica dos animaes castas nas ciências: academias, universidades, con-
gressos. A mesma confiança e falta de critério por
sadios.
parte dos crentes; as mesmas divergências e as
Compreendo a necessidade do veterinário, não
mesmas palavras incompreensíveis, a mesma pre-
compreendo a vivisecção a n ã o ser como u m delí-
sunção".
rio de perversidade inominável, nem chego a vêr a
vantagem da embriaguez cientifica que põe milha- Tem razão Bernard Shaw: "si ao menos os
res de cobaias e cães e qualquer espécie de animal Voronoff conseguissem, com a enxertia, fazer do
á mercê dos "cientistas" — funcionários públicos homem um macaco r e s p e i t á v e l . . . "
— vaidosos quasi de fazer sofrer aos "mártires da
N ã o . O homem continuará a descer sempre,
ciência," em nome de um principio ou de uma des-
bem para baixo de todos os simios, na sua maldade
coberta ou de uma pesquiza ou dos problemáticos
de criatura civilizada, com os seus "raios invisíveis"
benefícios daí resultantes para todo o género hu-
e "raios da morte" e gazes asfixiantes e aviões e
mano, e, as mais das vezes, em nome do salário pa-
submarinos e torpedos e laboratórios científicos
go pelo Estado, em nome do ordenado mensal.
para estimular todas as virulências, desde as guer-
Questão de estômago ou de idolos.
ras até o prazer satânico de martirizar os animaes
T a m b é m os sacerdotes pagãos sacrificavam em nome do humanitarismo clinico.
criaturas indefesas, animaes, crianças, homens e
mulheres, em nome da paz ou da guerra, afim de N ã o é sentimentalismo piegas e sim pan-hu-
aplacar a cólera dos deuses — em beneficio da manismo o que lemos em "Atlântida" de 21 de
humanidade. Outubro de 1927. a propósito da vivisecção:

O Moloc de hoje é a ciência. "Da perpetração de atos moraes maus não


Tolstoi o definiu admiravelmente: " A ciên- pôde resultar benefícios, de maneira alguma, para
cia ocupa em nossa época exatamente o mesmo lu- a humanidade.
32 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 33

no aperfeiçoamento dos meios do homem extor- gar que ocupava o sacerdócio, ha alguns séculos.
quir dinheiro de outro homem, valendo-se da ci- Os mesmos bonzos revestidos de títulos, as mesmas
rurgia, no atentado á vida fisiológica dos animaes castas nas ciências: academias, universidades, con-
gressos. A mesma confiança e falta de critério por
sadios.
parte dos crentes; as mesmas divergências e as
Compreendo a necessidade do veterinário, não
mesmas palavras incompreensíveis, a mesma pre-
compreendo a vivisecção a n ã o ser como um delí-
sunção".
rio de perversidade inominável, nem chego a vêr a
vantagem da embriaguez cientifica que põe milha- Tem razão Bernard Shaw: "si ao menos os
res de cobaias e cães e qualquer espécie de animal Voronoff conseguissem, com a enxertia, fazer do
á mercê dos "cientistas" — funcionários públicos homem um macaco r e s p e i t á v e l . . . "
— vaidosos quasi de fazer sofrer aos "mártires da
N ã o . O homem continuará a descer sempre,
ciência," em nome de um principio ou de uma des-
bem para baixo de todos os simios, na sua maldade
coberta ou de uma pesquiza ou dos problemáticos
de criatura civilizada, com os seus "raios invisíveis"
benefícios daí resultantes para todo o género hu-
e "raios da morte" e gazes asfixiantes e aviões e
mano, e, as mais das vezes, em nome do salário pa-
submarinos e torpedos e laboratórios científicos
go pelo Estado, em nome do ordenado mensal.
para estimular todas as virulências, desde as guer-
Questão de estômago ou de idolos.
ras até o prazer satânico de martirizar os animaes
T a m b é m os sacerdotes pagãos sacrificavam em nome do humanitarismo clinico.
criaturas indefesas, animaes, crianças, homens e
mulheres, em nome da paz ou da guerra, afim de N ã o é sentimentalismo piegas e sim pan-hu-
aplacar a cólera dos deuses — em beneficio da manismo o que lemos em "Atlântida" de 21 de
humanidade. Outubro de 1927. a propósito da vivisecção:

O Moloc de hoje é a ciência. "Da perpetração de atos moraes maus não


Tolstoi o definiu admiravelmente: " A ciên- pôde resultar benefícios, de maneira alguma, para
cia ocupa em nossa época exatamente o mesmo lu- a humanidade.
34 Maria Lacerda de Moura Civilização —- Tronco de Escravos 35

" A crueldade nunca poderá ser um caminho e poderia, em certos casos, induzir-nos a erros sobre
para o aperfeiçoamento humano. o verdadeiro papel dos órgãos. Por essas reservas,
eu não nego a utilidade nem mesmo a necessidade
" A ciência não se adquire com a crueldade."
absoluta da vivisecção no estudo dos fenómenos da
E muito menos a sabedoria, acima de qualquer es-
vida, eu a declaro apenas insuficiente.
pécie de violência.
Com efeito, nossos instrumentos de vivisec-
Ainda mais: "Si a fisiologia não pode adean-
ção são tão grosseiros e nossos sentidos, tão imper-
tar sem infligir horriveis torturas aos animaes inde-
feitos que só podemos atingir no organismo as par-
fesos, é melhor que a fisiologia fique onde está. tes grosseiras e complexas."
" A humanidade pode progredir sem a fisio-
N ã o obstante, a mania da vivisecção é o or-
logia, porem, não poderá progredir sem a piedade."
gulho da ciência moderna, e as vacinas e soros se
Extirpar uma glândula sexual do macaco, na-
multiplicam para gáudio da terapêutica industria-
da representa para o homem, mas, extirpar um tes-
lizada e para o martírio dantesco das cobaias e dos
tículo do homem 6 algo de muito importante na simios.
sua integridade . . .
Cousa a mais natural do mundo o "homo sa-
Quanto á vivisecção, o próprio Claude Ber-
pins" roubar do macaco o que seria incapaz de
nard, o experimentador "primus inter pares", que
lhe dar, o que dificilmente, excepcionalmente, seria
massacrou, brutalmente, a dois mil cães e que, sem
capaz de dar ao próprio semelhante.
anestesia, os matou lentamente, o bárbaro que, para
atender aos protestos da sua vizinhança, cortava, E para que? Si o resultado n ã o passa de su-
antes das experiências, as cordas vocaes dos ani- gestão ou se limita á absorpção mais ou menos len-
maes, afim de que não uivassem de dor, o próprio ta do hormonio da glândula transplantada?
Claude Bernard diz: " A vivisecção é a deslocação Resultado para 3 ou 4 annos, findos os quaes,
do organismo vivo por meio de instrumentos e de outra enxertia é necessária para novo rejuveneci-
mento.
processos que lhe podem isolar diferentes partes.
Reduzida a si mesma, ela só teria alcance restrito, E a imprensa popular, o jornalismo industria-
36 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 37
lizado a encher-se de termos prometedores, "reju-
E o D r . Fausto só encontra a juventude
venecimento", "elixir da juventude", como si Ca-
através do pacto com M e f i s t ó f e l e s . . .
gliostro tivesse voltado e o seu espectro redivivo
Suetonio, Galeno, Bacon, Armaiangaud, es-
derramasse por sobre os homens a cornucopia de
tudavam ou recordavam receitas para o prolonga-
todos os sonhos alquimistas transformados na reali-
mento da juventude.
dade palpável da voronofização.
Aliás, o sonho da mocidade prolongada vem O caldo da rã, usado pela mulher de Galvani,
a alimentação de galinhas, por sua vez alimentadas
de muito distante.
com víboras (Arnaud de Villeneuve, séculos X I I I
Ovidio, em as "Metamorfoses", conta que, no
e X I V ) , o frigorifico de Hunter (parece-me), pa-
antigo Egito, era praticada a transfusão de sangue
ra a conservação da mocidade... as considerações
nos velhos, pelos sacerdotes, para rejuvenece-los.
de Buffon, descrente de todo e qualquer processo
T a m b é m os sacerdotes de Apolo utilizavam-
de prolongamento da vida, os conceitos de Stad-
se do sangue dos gladiadores e atletas — como te-
man e de Weber, aceitando a ideia da longevidade,
rapêutica religiosa para o rejuvenecimento.
tudo isso prova bem o interesse em torno das ten-
Plinio e Celso, por sua vez, recordam essas
tativas conducentes ao rejuvenecimento.
praticas clinico-religiosas de homoterapia.
Metchenikoff tenta-o também; aliás os seus
E m Roma, Jarão e Taraquila, a mulher de
processos parecem bem mais lógicos.
Tarquinio Prisco, são exemplos, dizem os cronistas,
Depois, as experiências concludentes de Bar-
do anseio da conservação da juventude.
thold, em 1849 (enxertos, transplantação de go-
U m medico hebreu praticou a transfusão de
nadas de frangos): primeiramente os enxertos e em
sangue em o Papa Inocêncio V I I I , no secuIoXV.
segundo lugar a ideia nova ou o novo conceito a
A pedra filosofal e o elixir da longa vida, a
respeito das secreções internas.
alquimia, os José Bálsamo e os Zanoni já dão a
Brown-Séquart, em 1889, cuja teoria sexual da
ideia da preocupação absorvente em torno da eter-
velhice é a de Voronoff, que também se apoia na
na mocidade.
observação dos eunucos. Os trabalhos de Brown-
38 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 39

Séquart teem o mérito incontestável de haver sido quentemeiíte torna-se toxico. Desde então, sua ação
experimentados no próprio autor, o que se n ã o ve- só pode ser momentânea." .
rificou ainda com Voronoff . . . ; Harms, 1914, en- Assim é que, em ciência medica, a ultima teo-
xertos de glândulas de animaes jovens em animaes ria ou a ultima descoberta destróe todas as ante-
velhos; Steinach e a vaso-ligadura nos enxertos; riores . . . E, por associação de ideias, lembro-me
Lespinasse, 1913, e o processo da transplantação de da quasi centena de crianças mortas pelas vacinas
glândulas de homem vivo; Lydston, 1914, e a de Calmette, anti-tuberculosas.
transplantação de glândulas de homem morto, lo- Pobres cobaias humanas. . .
go após o passamento, conservado em frigorifico;
Voronoff "destróe" também a Metchenikoff
Lydston e a transplantação das glândulas do chim-
com os seus fermentos lácteos.
panzé, em 1916, etc. etc.
Nada fica de p é : só o enxerto do simio, só
A opoterapia de Brown-Séquart ou extratos Voronoff descobriu o elixir da longa vida. E, como
de órgãos dos animaes, ainda hoje tratamento mui- tal, Voronoff ri-se dos antiviviseccionistas.
to aconselhado pelos médicos, é considerado por Ainda podemos citar muitos nomes e outras
Voronoff e seus discípulos, como paliativo, cousa tantas experiências. O próprio Voronoff, no livro
j á do passado. ( " A ' Conquista da V i d a " — Voro- indicado diz:
noff.) "Essa cirurgia do porvir, é o enxerto de nos-
D i z Voronoff nesse livro: " A aplicação qua- sos órgãos, de nossos tecidos, de nossas glândulas.
si universal, do método de Brown-Séquart, não deu O caminho está traçado por nomes de primeira l i -
quanto se esperava, e, atualmente, está quasi aban- nha: Carrel, Dartigues, Eiselberg, Horm, Knud
donado. A razão está em que a trituração da glân- Sand, Kuttner, Lespinasse, Lexner, Lydston, Mar-
dula não permite extrair todo o produto, e o liqui- ro, Mauclair, Moris, Parragon, Pende, Pezard,
do obtido é pobre em elementos ativos. Steinach, Thorek, Tuffier, J. Voronoff, Walker,
Esse liquido, como todo extrato orgânico, al- Zavadowsky, etc."
tera-se rapidamente, perde suas propriedades e fre- Mas, condena o enxerto das glândulas do se-
40 Maria Lacerda de Moura Civilização - Tronco de Escravos 41

melhante, por muitas razões; defende apaixonada- Nem um homem dirá que a enxertia n ã o deu
mente o enxerto das glândulas do simio. resultado...
Voronoff só aparece positivamente em 1922, E, em tudo isso, quem vae pagar caro é o ma-
caco.
isto não o impede de afirmar e deixar que um dos
seus colaboradores afirmasse que os cientistas ame-
ricanos ensaiaram e mal os seus métodos de enxer-
tia nos grandes mamíferos e no homem. Esses cien-
tistas são, precisamente, Lespinasse e Lydston! . . .

Todas essas pesquizas no domínio da alqui-


mia ou da cirurgia pagã ou da ciência propriamen-
te dita, provam bem que Voronoff nada descobriu,
nada ou pouquíssimo contribuiu para o estudo das
secreções glandulares, nada fez de novo, nada
adeantou senão em vulgarizar a questão, trazendo-a
para o domínio publico no sentido de industrializar
assunto de laboratório.
E ' o lado medíocre, o lado ridículo de todas
as cousas puramente praticas e populares.
O rejuvenecimento por processos clínicos e
terapêuticos continua no mesmo plano da utopia
absoluta.
Em todas essas experimentações, o que predo-
mina nos homens a elas submettidos, mais que tu-
do, é a sugestão, d e p o i s . . . o amor próprio.
E VORONOFF DESCOBRIU O MACACO!..

Muitos são os aspectos do problema Voro-


noff. Diz o cientista que é engano apreciar os re-
sultados das intervenções apenas sob o ponto de
vista genésico, como se dá geralmente, e que esse
resultado é o menos importante e aparente. Frisa,
mui principalmente, os benefícios do rejuvenecimen-
to geral de todas as funções, e, com especialidade,
das funções cerebraes — o que é contestado por
outros cientistas. E, são conhecidas as inúmeras
operações de Voronoff e, positivamente, pouco di-
vulgados os resultados . . . e, quando o são, escon-
didos no anonimato, como os anúncios populares
das panacéas milagrosas. Quem faz essa operação
fica envergonhado e se esconde... N ã o sei por-
que . . .
Não será um rejuvenecimento geral tam-
bém aparente, proporcional ás secreções das glân-
dulas enxertadas, á sua irrigação ou nutrição, e
Civilização — Tronco de Escravos 45
44 Maria Lacerda de Moura

que vale rejuvenecerem as funções cerebraes, si


que se exgotará com a substituição das células, pa-
nunca existiram senão na vulgaridade dos rebanhos
ra dar lugar a uma queda mais brusca, á volta ao
atordoados de ignorância e sensualismo e domesti-
primeiro estado de decadência senil?
cidade?
N ã o será como o efeito de certos excitantes
momentâneos que deixam o paciente, depois, mais E ' essa gente, exgotada de vicios, de medio-
abatido, mais desanimado, mais exgotado? cridade, de cupidez que a voronofização vae ser-
vir e atirar á atividade feroz do industrialismo mo-
U m a labareda que o próprio individuo se in-
derno e do "Jazz-band" sensual.
cumbe de apagar, atirando-se, confiado ou descon-
fiado, ao rumor confuso e louco da vida ficticia E, de passagem, a idade adorável para a voro-
de gozos e libertinagens e sensualismo sob todos os nofização vae entre os 45 e os 50 annos.
aspectos ou intensificando a ansiedade ambiciosa U m a pergunta indiscreta nos salta da pena:
de operações financeiras e politicas, na atividade porque Voronoff não se fez ainda voronofizar?
multiplicada na esperança de abarcar, de acumu-
Em todo caso, que degenere toda a humani-
lar, de aproveitar, de ambicionar, de experimentar
dade, si quizer, acabe com toda a espécie, na lou-
novos prazeres e criar novas necessidades?
cura de rejuvenecer a cadáveres mumificados de
D a í , a degenerecencia de toda a mocidade na
perversidades e baixezas e delírio de embriaguez
crapulagem — á espera do dia em que um enxerto
sensual, já que os homens e as mulheres consentem
de simio os torne a todos, novamente virilizados,
e se prestam a tudo, na ansiedade de criar e gozar
como si a alma pudesse virilizar-se ao contacto de gozos de vicio e de luxuria, na ambição de se civili-
algumas células de carne simiesca, como si a inte- zarem até o aniquilamento total das guerras cienti-
ligência brotasse, num estalo, das glândulas enxer- ficas. Mas, que direito tem a ciência dos homens de
tadas. intervir na vida natural dos animaes para indus-
Os fanáticos da voronofização geralmente são trializar as suas funções orgânicas?
os falidos moraes, os que nunca sentiram a própria
Toda a ciência, toda a atividade humana é
alma e nunca tiveram mentalidade: para esses, de
46 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 47

logo industrializada no charlatanismo do aprovei- Enquanto a civilização inventa vicios e mais


tamento de tudo para a civilização capitalista. vicios e se intoxica de imbecilidades e preconceitos
Voronoff está a serviço do dinheiro e da im- e sufoca as mais nobres aspirações e os mais bellos
becilidade humana. sentimentos e degenera os organismos humanos no
A o homem não basta domesticar os animaes delirio de gozar, de açambarcar tudo, numa cupi-
para deles se utilizar: criou, degenerou tipos, ani- dez carnal de canibaes civilizados, enquanto o pro-
quilou, perturbou evoluções, na cupidez de tirar gresso industrializa e degenera também aos ani-
partido da sua atividade, do seu valor nutritivo e maes domésticos, os animaes chamados selvagens
do instinto de reprodução. respeitam as leis naturaes, vivem a vida simples em
plena natureza, satisfazendo ás necessidades instin-
Foi muito mais longe. Que fez o homem, do
tivas, conservando a vitalidade, sóbrios, sadios, exu-
cão? Fe-Io á sua imagem e semelhança: fiel, servil,
berantes de energia orgânica.
covarde para com os senhores e parasitas ociosos,
para com os que lhe batem; atrevido, impertinente, E' justo que o libertino, o luético, o alcoóla-
autoritário, perverso, exigente, feroz para com os tra, o cocainomano, o jogador, o farrista, os " t i -
fracos: trôpegos, mendigos, maltrapilhos, criados gres" politicos profissionaes e senis, banqueiros e
e boémios nómades. escroques elegantes, altos funcionários, senadores e
Agora, Voronoff vae enxertar os animaes magistrados, intelectuaes prostituídos e domestica-
para aumentar o rendimento industrial dos reba- dos, juizes das conciencias alheias. . . é justo que
nhos. toda essa massa humana de parasitas e exploradores
Voronoff representa bem uma época. do rebanho social vá buscar, nas florestas, o ani-
Voronoff é um simbolo. mal pujante de seiva, de vida — em virtude da sua
E' a ciência charlatanizada pelo industrialis- sobriedade instintiva — e o prenda em ambiente
mo moderno, a ciência a serviço do bezerro de ouro, incompatível com a sua liberdade, com os seus há-
a ciência do vampirismo humano exgotado de se- bitos selvagens e o mutile — para rejuvenecer a
nilidade precoce a sugar as glândulas dos animaes. criaturas de si mesmas mutiladas pela vulgaridade
48 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 49
ociosa e parasitaria, pela imbecilidade quintessen-
dos ovários da mulher, cujas consequências, todos
ciada de prejuízos e rotina, pela baixeza e servilis-
sabem, desastrosíssimas, sob o ponto de vista f isio-
mo, pelo autoritarismo, pelo orgulho da inconcien-
psicologico, determinam complicações taes que po-
cia de si mesmos?
dem levar a mulher ao manicomio, quando não a
maltratam e á família, até o fim de uma existência
penosíssima.
O enxerto ovariano poderia, talvez, restituir-
Sob outro aspecto, pondo de parte os admirá-
lhe, pelo menos por mais algum tempo, a sensação
veis estudos do notável professor G. Moussu, a
de saúde, de bem estar.
propósito dos enxertos animaes, ("Revue de Zoo-
technie", n.° 2, fevereiro de 1928 — F r a n ç a ) , cujo Aliás, quando as mulheres forem mais respon-
relatório em torno das experiências de melhora- sáveis e donas do seu próprio corpo, creio bem que
mento do gado colonial francês, pelo enxerto tes- taes extirpações ovarianas serão mais raras.
ticular animal, é admirável, trabalho teórico e de Por ora, a mulher, inconciente, está inteira-
demonstração pratica, de biologia, de fisiologia, mente á mercê da vontade dos homens, e, quantas
trabalho de cientista e do dominio experimental; vezes a operação é feita sem mesmo que ela saiba
pondo de parte a mesma ideia de enxertia de ani- de que se trata!
maes da mesma espécie, nos trabalhos de Steinach,
notabilissimo, — a voronofização, si não passa ain-
da de experimentação, muito longe do que se pôde
denominar rejuvenecimento, poderia ter alguma E ' mais fácil, entretanto, prolongar a vitali-
razão e objetivo clinico acentuado — no caso de dade, retardar a seniíidade — do que voltar atrás...
desordens orgânicas provindas dos ovários. Acho razão na resposta á enquête á qual con-
A enxertia de outros ovários femininos virá, correram os Drs. Leitão da Cunha e Moncorvo,
talvez, substituir a operação brutal da extirpação por occasião da estadia sensacional de Voronoff
no Brasil: homens e mulheres lucrariam mais, cor-
50 Maria Lacerda de Moura

rigindo os erros alimentares, metodizando o tra-


balho, fugindo dos vicios sociaes.
Mas, quem pôde cogitar de cousas de si tão
complexas como simplificar a vida, por exemplo?
Para a sugestão de um ponto de partida, quan-
do tudo falhou e ninguém se sacrifica e todos exi-
gem o sacrificio de outros, em uma época de deca- O PREMIO NOBEL D A PAZ
dência de tudo e de um surto estupendo de progres-
so material — era preciso surgisse um Voronoff. O premio Nobel na Paz, em 1928, coube ao
E Voronoff descobriu o macaco... esportista belga, barão de Coubertin, presidente do
Comité Olímpico Internacional.
A imprensa aplaude, incondicionalmente, o
grande alcance de vistas dessa escolha, salientan-
do o fato de que a única e verdadeira finalidade do
esporte é a paz entre os povos.
Os fatos provam o contrario, mas, os discos
de gramofone repetem a musica de um preconceito
antiquíssimo, mascarado na hipocrisiade uma nova
aspiração, proclamada por palavras e não nos
gestos.
Si, de relance, passamos os olhos pelas sec-
ções esportistas dos jornaes, só vemos o anuncio
comercial dos empresários, (porque o esporte, co-
mo os concursos de beleza, é meio de vida lucrati-
vo e glorioso. . .) sentimos as rivalidades, as bri-
Civilização — Tronco de Escravos 53
52 Maria Lacerda de Moura
a multidão aglomerada respirando pó e suor, a cus-
gas, a mesquinharia das competições, a concorrên-
pir e a gritar por cima das cabeças febris? Absurdo
cia, a luta sob todos os aspectos. denominar a isso — educação fisica.
O esportismo para o publico — ou é vaidade
E entre gente da mesma cidade, do mesmo
e exibição, gloria ou profissão, ou tudo ao mesmo bairro já se acentuam as rivalidades.
t e m p o . . . N o meio masculino, o esportismo é fa-
Si o jogo é entre cariocas e paulistas? N ã o é
tor de celebridade — para "vencer", para conquis-
preciso comentários em torno dessas "partidas"
tar posição no "tablado" do box social, para a
emocionaes, sensacionaes.
emancipação económica ou nacionalismo patrio-
E si formos mais longe? U m a partida entre
teiro.
brasileiros e argentinos?
Aí, como em toda parte, na vida social, para
subir — é preciso abaixar-se . . . A diplomacia secreta, esportista e governa-
A politica esportista é igual a qualquer poli- mental, tem de intervir para evitar conflitos inter-
nacionaes.
tica: a luta, a concorrência, a guerra.
Si asistimos a uma partida de "foot-ball", de H a pouco, tivemos ocasião de falar das
"box", (força de expressão: eu não as vejo nun- olimpíadas, em que estudantes italianos fascistas
ca...) de qualquer esporte, os "torcedores" to- esmurraram a estudantes franceses. E até citámos
mam as suas posições de defesa agressiva, e, quan- uma pagina de " I I Piccolo", quando transcreveu o
tas vezes, a policia tem de intervir para aplicar a discurso de Ponn. Augusto Turati, no qual elogia-
ducha conveniente aos desatinos apaixonados das va, comovidamente, ao moço italiano, o heróe des-
multidões exaltadas! sas façanhas esportistas, em razão dos seus "pu-
E as "poules", o jogo dentro do jogo, as riva- nhos firmes" em terras extrangeiras.
lidades dos aplausos e a "claque" de cada partido? U m a medalha de ouro foi cunhada expressa-
O esporte em sociedade é sempre versus.. . mente para essa bravata olímpica, e colocada ao
Os torcedores enrouquecem á força de estimular peito do joven fascista, "orgulho da raça", filho
aos seus "eleitos". Exercicio fisico? Higiene? E
54 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 55

de Roma, filho da "Loba" — cérebro e coração do porque representaes entre a mocidade italiana, a
mundo" . . . nova geração, a parte eleita, a parte seleta. Mas,
" I I Piccolo" o transcreveu com a seguinte no- amamo-vos porque sois a expressão viva e melhor
ta muito significativa: "Lo riproduciamo d'urgen- deste nosso espirito e desta nossa paixão. Si, cur-
za" . . . e o titulo: "Farsi rispettare!" vados sobre os livros, cultos demais para serdes
Vale a pena transcrever esse trecho do dis- belos e vivos; si fosseis somente criaturas de estu-
curso de Ponn. Turati, Secretario do Partido Na- do, educados a afrontar a vida na dura contenda
cional Fascista, nessa ocasião, em regosijo pela quotidiana pela conquista de um posto, nós vos
"dúplice vittoria" dos estudantes fascistas: o soco consideraríamos, sim, filhos da Itália; mas, não po-
do italiano no rosto do francês. deríamos amar-vos.
"Bravos a vós que vencestes, entre os estu- Amamo-vos porque fostes venturosos, alegre-
dantes de todo o mundo, a competição olímpica, mente, com o vosso belo faseio recamado sobre o
mas, também, para premiar as vossas virtudes, não peito, a afirmar que a Itália de hoje está com os
somente de saltadores e corredores, como as de punhos e com o coração firmes." ("Aclamações
"boxeurs" em terras de França. vivíssimas" ( " I I Piccolo" — 1 de Setembro de
(Aplausos, bravos, muito bem!) 1928.)
"Esse esporte não fora compreendido no pro- Parece impossível!
grama das olimpíadas universitárias, mas, as cir- A simplicidade clovnesca dos fascistas o con-
cunstancias, a incompreensão, a pouca educação fesa. As outras nações guardam reservas . . .
cívica (muito bem! bravos! aplausos) da parte de
Mas, no fim, está conforme.
um publico que assistia ás vossas competições,
O esporte é o preparo para as guerras. E a
transformou-vos imediatamente e vos levou a com-
Itália fascista, cuja politica imperialista de expan-
bater essa bela batalha, não mais esportiva, mas,
são territorial é uma ameaça e uma provocação, or-
politica. (Muito bem! aplausos.)
ganizou mesmo um quasi ministério de competições
"Camaradas estudantes! N ó s vos queremos,
56 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 57

atléticas e até as mulheres serão aproveitadas na


um é francês e o outro é alemão; si um é italiano e
próxima guerra.
o outro, francês; si um é japonês e o outro, ameri-
O desenvolvimento das forças físicas, dos pu- cano do norte; si um é De Carolis e o outro, um
nhos firmes, sem o necessário equilibrio interior jornalista de " O Combate" . . . por ocasião do ca-
para controlar o despertar dos instintos bestiaes de so " I I Piccolo".
luta, do troglodita — é o maior dos crimes pra-
N i n g u é m me convencerá de que as olimpía-
ticados atualmente pelas sociedades.
das fizeram a aproximação entre a Itália de Mus-
A Grécia morreu quando cresceu a força e o solini e a França.
prestigio dos lutadores, gladiadores e pugilistas.
A medalha fascista de premio ao soco do es-
Platão já protestava: "a educação fisica e a tudante italiano no rosto do estudante francês é
mental devem caminhar paralelamente, como dois uma prova irrefutável de que os jogos olímpicos, o
cavalos atrelados ao mesmo carro." atletismo teem por objetivo a paz internacional. . .
Mas, as sociedades modernas fazem, do es-
Entre nós, o incidente do "Espéria", em São
porte, profissão rendosa e posição social, e — o
Paulo, é de lógica de aço.
preparo para as guerras.
Os jornaes da Capital paulista trataram larga-
E ninguém melhor do que os profisionaes es-
mente do assunto, em um protesto veemente con-
portistas para conhecer os bastidores da sua con-
tra a invasão turbulenta do fascismo no Brasil, tra-
corrência vaidosa e comercial, patriótica e aventu-
zendo a discórdia e o odio para o seio da família
reira, chantagista e viciosa.
italo-brasileira.
Ninguém me convencerá de que o "box" tem
Reproduzo o comentário de " O Estado de
por objetivo a paz.
São Paulo" do dia 25 de Dezembro de 1928, em
N i n g u é m conseguirá convencer-me de que se
uma das secções esportistas:
querem muitíssimo e de que são pacifistas dois con-
tendores a se esmurrarem, mutuamente e estupi-
damente, por dinheiro, e, mui principalmente, si
58 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 59

"Um Incidente. o "rolo" continuou, tomando parte nele vários só-


cios do "Espéria".
" U m incidente desagradável veio perturbar Em frente ao galpão das barcas, outro rapaz
o entusiasmo dos espectadores, logo á chegada de foi também agredido por um sócio do mesmo
M a r t i n i e Weygand. Club.
Quando o primeiro foi retirado da agua, um Esses fatos nos fazem pensar o seguinte a
dos assistentes, não medindo, talvez, o alcance de respeito da intenção com que aquele Club tomou
suas palavras, disse: — "Chegou frouxo. . . " parte na prova:
Disputava-se uma prova esportiva ou era a
Foi o bastante para ser agredido por sócios
supremacia de uma cidade que se tratava de afir-
do "Espéria", e, entre elíes, alguns que eram jui-
mar?
zes da prova e membros da Federação!
Era um valor esportivo a demonstrar ou uma
Enquanto algumas pessoas procuravam acal-
exibição de força de determinada corrente de po-
mar os exaltados, Martini, que se reanimara, e,
litica extrangeira em São Paulo?
sendo carregado em triunfo, gritou: — "Viva
Estas perguntas estão plenamente justificadas
Roma!" — grito que causou má impressão no pu-
por provas robustas. E ' a segunda vez que tal fato
blico, pelo que, uma senhora não se conteve, e, em
se verifica em uma competição esportiva em S ã o
protesto, gritou: — "Viva Roma, não! "Viva o
Paulo.
"Espéria", e viva Martini, isto sim!
Em um dos encontros entre o "Palestra" e o
N ã o se saiu bem, entretanto, com esse seu "Corintians", já tivemos ocasião de noticiar que
gesto de revolta, sendo agredida, o que ainda agra- esses Clubs, no Parque São Jorge, antes de inicia-
vou a situação. rem o jogo dos quadros principaes, postaram-se á
Os fatos teriam consequências gravíssimas si frente da tribuna em que se achava um Cônsul (1)
não houvesse a intervenção decidida de outras pes- aqui acreditado, e, estendendo os braços, fizeram
soas que se achavam presentes. Mas, mesmo assim, (1) Mazzolini, cônsul fascista italiano em São Paulo.
60 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 61

uma saudação bem caracterizadamente politica, N ã o é só engraçado, é também macabro. E


confirmando-a com os seus termos adequados. não é sem razão que as mais belas mentalidades do
Ora, tudo isso seria muito grave, si, primeira- mundo inteiro protestam pela pena genial de Ro-
mente, não fosse de um ridículo clovnesco." main Rolland, de Einstein, e Barbusse, de Wells,
Assim termina o comentário de " O Estado". Panait Istrati e tantos e tantos outros contra essa
Muitissimo grave, sim. Mussolini, T u r a t i e "tirania carnavalesca" na sua marcha a ameaçar
Cia. são clovnescos, não ha duvida, nunca ninguém o mundo com os punhos firmes e a força poderosís-
duvidou disso, mas, essa pantomina, por demais sima de uma loucura colectiva, de delírio epiléptico
longa e macabra, ameaça estrangular a liberdade de "volontá d i potenza", delírio mistico-politico
de pensar e a paz de todos os povos, ditos civi- intenso de dominar romanamente, não retroceden-
lizados. do ante cousa alguma e lançando mão de todos os
Atrás do "guignol" estão as vestes negras de meios imagináveis, o punhal entre os dentes, e, nas
Tacchi Venturi, o Secretario Geral da Ordem dos mãos, as bombas, o manganelo e o oleo de ricino.
Jesuitas. Agora, as competições atléticas femininas:
E isso é tudo. mulheres espartanas, punhos firmes, corações du-
E 'uma palhaçada trágica e que muito caro ros e, na cabeça, o vulcão de um misticismo-po-
ha de custar ás sociedades modernas. litico-religioso, paranóico, dominador.
U m a "tournée'' que talvez faça renascer no U m a mulher dessas é qualquer cousa de trá-
mundo, nova éra mediavel denominada por Mus- gico, é capaz de tudo, ^ r t a de que está cumprin-
solini a "éra mussoliniana" e que acenderá foguei- do seu dever.
ras e fará funcionar a "maquina de fazer falar", e As competições atléticas conduzem á paz? E '
negará de novo os movimentos da Terra e aclama- em torno desses mesmos moços atletas das olimpía-
rá, ruidosamente, a vitoria da traição, do tartufis- das, de punhos firmes que, em Bolonha, em um
mo e da força dos punhos firmes contra a vitoria discurso memorável, não me lembro si de Turati
do direito humano. ou de Mussolini, os tiranos fascistas levantavam as
62 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 63

suas mais altas esperanças imperialistas á romana: mo, ciência sem conciencia, — amassando tudo
" . . . e que o mundo inteiro veja a floresta de baio- isso com patriotismo, só pôde dar guerras e violên-
netas e sinta o palpitar dos nossos corações inven- cia policial.
civeis". ( A Revista do Povo da Itália — Anno I V ,
ídolos novos dentro de nichos antiquíssimos.
n.° 11, Novembro de 1926.)
O homem é o mesmo troglodita sanguinário.
Competições atléticas — instrumento de paz! Santa malícia ou santa ingenuidade o premio
O premio Nobel a um esportista — porque o Nobel da paz, concedido a um esportista — por-
esporte tem por objetivo a paz internacional — é que o esporte tem por objetivo a paz internacio-
um símbolo . . . nal?! . . .
Já, de si, o premio N o b e l . . . (da pólvora?...) Pobre rebanho humano arrastado no torveli-
da paz, é um símbolo. no louco da civilização!
Todo o género humano prepara-se, cada vez Entretanto, livros de paz c de Amor, que são
mais rapidamente, para o suicídio coletivo, atra- como gritos saídos das vísceras da alma, obras pri-
vés das guerras cientificas. mas da literatura contemporânea, esforço heróico
E tudo envolvido na hipocrisia das expressões para a paz, "La Tour des Peuples", "Les Pacifi-
de paz e intercambio e fraternidade. ques," de H a n Ryner; "Clerambault" de Romain
Nunca as nações falaram tanto em pacto Rolland; "L'Ouragan" de Florian Parmentier;
Kellog e desarmamento e intercambio intelectual e "Les Hommes en Guerre" de Andreas Latzko; l i -
artístico, e a guerra fora da lei, e nunca estiveram vros de Wells, de Remarque, de tantos outos, não
tão dispostas a se aniquilarem mutuamente. mereceram o premio Nobel da paz!
Atletismo, gazes asfixiantes, virulência de mi- O premio da Paz é para os lutadores e pugi-
cróbios, submarinos e torpedos, aeroplanos e cou- listas, para os "boxeurs" e organizadores de com-
raçados, ondas hertzianas, punhos firmes, corações petições atléticas.
duros, insensíveis, paixões politicas, cérebros va- Como nos sentimos humilhada deante dessas
sios, ambições paranóicas, aspirações de dominis- transmutações de valores éticos!
Maria Lacerda de Moura
64

Mas, está bem certo.


E' a civilização . . .
Agora, o premio Nobel da Paz, entregue

Kellog.
Comediantes? Tragediantes? . . . AS GUERRAS CIENTIFICAS

A civilização do dollar vae morrer de apople-


xia.
Mais duas ou tres guerras e, da humanidade
civilizada só restarão ruinas, pedras e destroços,
esqueletos de homens e de maquinas.
E' o suicidio coletivo de todo o género hu-
mano, sufocado de ciência.
A revista "Discovery" fala das famosas expe-
riências realizadas em 1924 ( M a i o ) , em um porto
inglês, em torno dos "Raios da Morte", descober-
tos por M . Grindell Mathews. O privilegio foi ad-
quirido por uma casa francesa.
Os "Raios Invisíveis", descobertos por um ofi-
cial de marinha, cujas experiências concludentes
foram feitas em um porto do Mediterrâneo, cons-
tituem poderosíssima arma de guerra.
Nos Estados Unidos, o D r . E. F. Nothrup
chegou a transformar correntes de 6.600 volts em
(»() Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 67

Raios de calor. Esses raios teem a potencia maravi- E agora, o inimigo é toda a população do
lhosa de fundir até mesmo a platina e o irridium! país a ser destroçado: crianças, mulheres, nada po-
Tanto não era preciso para fundir o "material derá ser poupado. E ' a guerra de extermínio.
humano".
As guerras através da fisica, da química, da
N a Itália, Marconi, hoje m a r q u ê s . . . e sena- bacteriologia, atacam, de preferencia, as popula-
dor . . . mediante espelhos parabólicos chegou a ções civis. Os raios de calor, os raios da morte, os
converter correntes de alta frequência em "Raios raios invisíveis são destinados a incendiar, a devo-
de Calor." rar, a aniquilar as fabricas, os centros industriaes,
T a m b é m a Inglaterra, a Alemanha possuem os reservatórios de géneros e munições dos países
os seus raios incendiários, idênticos, nos efeitos, aos inimigos, os campos de cultura e de criação de
das outras potencias. gado.
As nações se aprestam para incendiar o mun-
do inteiro. A Bacteriologia
A civilização é um Everest de ciência aplica-
da á industria, a rolar por sobre a vida de todo o A guerra por meio dos micróbios é uma das
género humano. ideias mais satânicas da cerebração azinhavrada e
E Kellog e a Sociedade das Nações e toda a patrioteira dos nossos dias. O seu campo é todo o
pantomima politica e diplomática a falar de Paz! planeta. E a loucura guerreira é de tal ordem, que
As cidades vão desaparecer em bloco: Berlim, até mesmo as vísceras que concebem tal monstruo-
Londres, Paris, Viena, Roma - - serão reduzidas sidade serão atingidas pelo perigo mortal.
a cinzas, em algumas horas. A epidemia da gripe (espanhola) continua
N ã o ha mais necessidade de exércitos e de sendo estudada como qualquer cousa de inexplicá-
trincheiras. U m a pequena maquina eletrica e meia vel no período da grande guerra: diversas hipóteses
dúzia de homens é o suficiente para pulverizar mi- são apresentadas, inclusive a hipótese inadmissível
lhões de vidas. da Sociedade Internacional Biocosmica.
I

68 Maria Lacerda de Moura


Civilização — Tronco de Escravos 69
Quem sabe não foi uma das armas cientificas
dros, a cloropicrina, o difosgeno, o sulfreto de
da conflagração européa?
etila diclorado, a hiperita, a moscobromacetona?
Arma horripilante, a arma bacteriológica ou
Onde fica o valor dos exércitos, das trincheiras, dos
bactericida, são seguros os seus efeitos, mais terri-
aviões, e submarinos e torpedos e "tanks", e es-
velmente devastadores, porque atingem a todo o
quadras e canhões e zepelins — deante da nova to-
orbe.
xina ultimamente descoberta e de que nos dá no-
Caldos de cultura do cólera, do tifo, da va-
ticias o sábio inglês?
ríola, da tuberculose, da difteria (quem sabe que
M r . Leonard Hiíl, diretor do departamento
mais?) serão empregados para a devastação. As
de fisiologia aplicada, do Instituto Nacional de
aguas contaminadas, tudo invadido e envenenado
Investigações Medicas, segundo noticiam jornaes,
e apodrecido!
perante a Associação de Inspetores de sanidade, faz
Balões de vidro, do quer que seja, cheios de
esta revelação sensacional:
caldo de cultura bactericida, em toda a sua alta
virulência, serão projetados do alto, propagados "Foi encontrado um novo bacilo de conse-
pelas nuvens, pelos aviões. Os "raids" aviatorios quências perigosissimas para o homem. O estudo
— que são senão a preparação para a guerra? To- que se tem feito a seu respeito, demonstra que pôde
dos os meios são ensaiados e aperfeiçoados á luz ser facilmente cultivado.
de mais ciência — para espalhar os germes de to- Si os homens forem tão suscpetiveis á nova
das as pestes pelos quatro cantos do globo. toxina, como o são as lebres das índias, e não ha
A alma humana envilecida de ciência! razão para pensar que o não sejam — com um gra-
Quando terminará a humanidade de pagar ma único da nova toxina, poder-se-á produzir a mor-
todas as suas dividas para consigo mesma? te de um milhão de pessoas. Atua no organismo de
duas formas: penetra pela inhalaçao ou cáe nos
Mas, onde fica a importância dos gazes asfi-
olhos em forma de pó. Si os homens se dedicarem ao
xiantes, lacrimogenios, vesicantes, esternutatorios,
cultivo dessa nova toxina e depois a espalharem na
o fosgeno, o cloro liquido comprimido em cilin-
atmosfera, valendo-se dos aeroplanos, a humani-
70 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 71

dade poderá ser destruída facilmente, pelo que é bélica dos nossos dias e sim á ciência a serviço do
de esperar que essa nova descoberta nunca seja uti- bezerro de ouro.
lizada como arma de guerra."
E essa lei terá a sua razão de ser, si, pelo con-
E ' assim: o professor, o cientista indica, e trario, não significar o termo final das guerras, e
depois, retrocede . . . sim, si se aplicar á destruição de todo o género
Todas as armas de guerra desaparecem dean- humano civilizado. E ' o suicídio coíetivo, ou me-
te dessa toxina. N e m mesmo ha necessidade mais lhor o massacre de uma civilização.
de declaração de guerra, mobilização e unidades na-
vaes, estaleiros de couraçados, exércitos permanen- A guerra dos insetos e parasitas
tes, escolas militares, quartéis, generaes ou forta-
lezas. As guerras futuras terão como armas — os Gafanhotos, toda sorte de insetos nocivos e
cientistas, laboratórios químicos, a finança inter- parasitas devastadores, (ovos e germes criados em
nacional e aviões. incubadoras) serão espalhados por meio da avia-
ção e de outros processos estudados á luz das ciên-
Parece, pois, que n ã o tem razáo de ser a "lei
cias — afim de devastar as plantações, destruir as
da gigantanasia" aplicada á biologia da guerra,
colheitas e matar o gado.
pelo optimismo do grande professor alemão Jorge
F. Nicolai.
A Guerra Química
A guerra não é só instinto que já devia ter
sido ultrapassado pela sociedade humana de hoje,
Em 1926, em um manifesto á população de
é também a arma do capitalismo organizado, mo-
Paris, H a n Ryner denunciava o próximo suicídio
delando o "homem estúpido", através da civiliza-
ou massacre do género humano, curvado ao peso
ção mecânica, do progresso material.
de ciência e de civilização.
A lei da gigantanasia aqui, não se aplica aos
Já se conhecem novos gazes, c os seus efeitos:
monstros dos exércitos modernos, á enormidade
72 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravoi 73

tóxicos, sufocantes, lacrimoge-nios, esternutatorios, Portou, perto de Salysbury, um iaboratorio-escola,


vesicantes, etc. etc. exclusivamente ocupado em estudar e fabricar os
São empregados, além dos j á citados, cloro, gazes para arma de guerra e os respectivos apare-
fosgenio, etc. os seguintes: bromo, brometo de lhos anti-gazes.
benzile, bromacetoneo, iperite, (sulfur, etilene di- E outros, e outros e mais outros, em todas as
cloré,) vincenite (mistura de acido cianhidrico, de nações civilizadas.
cloreto de estanho, de cloreto de arsénico e de clo-
O Secretario de "The International Law Asso-
rofórmio) , gazes lacrimogenios (brometo de ben-
ciation" da Inglaterra, afirma: " O único meio de
zile), etc. etc.
abolir a guerra aérea dos gazes, reside na abolição
Parece incrivel que os homens se armem as-
das guerras, em absoluto. E' inútil e é perder tem-
sim, para se exterminarem simultaneamente.
po querer discutir a respeito da legitimidade dessa
Mas, onde o instinto de conservação?
guerra que, segundo a minha opinião, é inevitável."
E a hipocrisia das Conferencias de desarma-
mento, da Sociedade das Nações, do pacto Kellog, Henry Le W i t a , em seu livro "Em torno da
das conferencias de Genebra, de Locarno e de to- guerra química", também o confirma: "Desde o ar-
dos esses convénios dos Estados — armados até mistício, os Estados Unidos e todos os grandes po-
os dentes com armas infernaes! vos (compreendida a Alemanha, porem esta, se-
O chefe do Serviço Quimico da Guerra, nos cretamente), consagram capitães importantes para
Estados Unidos, o reafirmou: " A guerra quími- a renovação de todos os meios preventivos, em
ca é, doravante, fato estabelecido". vista de conflitos eventuaes".

E a prova é que todas as grandes potencias E V o n Parseval, em 1924, diz mais: "Si se
estão admiravelmente aparelhadas, a trabalhar e a admitissem as concepções arcaicas, a ação dos
produzir e armazenar recursos químicos para as aviões não poderia exercer-se senão sob objetivos
próximas e terríveis refregas. militares. Felizmente uma concepção mais moder-
O governo britânico tem, desde 1923, em na admite que todo o país deve ser considerado co-
IA Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 75

mo participante da guerra, e, por conseguinte, o


ra. Os meios de os espalhar, serão os aviões, as
adversário tudo pôde destruir."
ondas hertzianas, os canhões, projeteis, etc. etc.
Esse "felizmente" é a psicologia do militar
E' o massacre. E o mundo inteiro rodopiará
profissional, do sócio das grandes usinas de armas.
na dansa guerreira.
Romain Rolland, estudando o livro admirá- Entre essas poderosas armas de guerra está
vel de Nicolai, " A Biologia da Guerra", cita a o fósforo branco, o qual será empregado em gra-
frase de um acionista de estaleiro de submarinos, nadas: a nuvem do fogo por ele projetada com a
indignado: "Ganhamos penosamente nosso dinhei- explosão da granada, não pôde ser extinta com
ro na guerra, e esse homem prega a paz!" agua; as queimaduras do fósforo branco são sem-
Em todas as nações, o aparelhamento militar pre gravíssimas. Qualquer tecido é por ele quei-
sobe a créditos incalculáveis e os laboratórios de mado.
ciência química não cessam de estudar e produzir Os laboratórios químicos empenham-se em
novas armas de guerra. produzi-lo em grande quantidade, e, vae sendo ar-
E mais: todas as industrias quimicas da paz, mazenado. As mascaras já não resistem.
inclusive as matérias colorantes, no momento opor- O gaz mostarda, por exemplo, corróe as car-
tuno, podem ser transformadas em gazes. nes através das mascaras.
E, si capitães fantásticos são aplicados nessa E alguém já calculou que uma tonelada de
formidável arma de guerra, cada nação, por sua fosgenio destróe mais ou menos completamente
vez, na atividade dos seus cientistas civis e milita- uma população tão densa como a de Paris, em uma
res, procura a melhor maneira de se defender e de superfície de um hectare. Para Paris inteiro, 800
mais facilmente e eficazmente atacar, afim de ficar toneladas.
com a hegemonia do mundo, afim de arrematar em
E' para isso que se organizam todos esses
leilão todo o orbe terrestre.
"raids" e "records" de altura e peso e distancia e
Havia já, ha tempos, mais ou menos 1.000
r e s i s t ê n c i a . . . em nome do progresso, em nome da
espécies diferentes de gazes, como arma de guer-
civilização.
76 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 77

E Kellog conhece os laboratórios químicos de A Internacional do Armamento.


seu país imperialista, e os diplomatas e ministros,
nos Congressos das Nações, representam cinica- Extraímos de "Le Semeur" (23 de Outubro
mente, a comedia da paz e cada qual supondo en- de 1929 — Rouen - França) a documentação que
ganar aos nobres companheiros humanitaristas, nas se segue.
suas petições de desarmamento parcial ou total. "Le Semeur", por sua vez, documentou-se di-
Comediantes! retamente do livro "Die blutige Internationale der
Comedia entre eles e tragedia para o publico Rustungsinaustrie", de Otto Lehmann-Rusbudt
patriota a aplaudir, alvarmente, aos magarefes e (abril de 1929 — edições de Fackeíreiter, Ham-
afiadores de facas, como na parábola ryneriana. burgo — Bergedorf,) artigo assinado por Gabriel
E accreditam que o homem vae melhorando... Gobron, de que nos limitamos a extrair uma parte,
E a sua inteíligencia cresce, caminhando para resumindo.
o suicídio coletivo do género humano. Em plena guerra de 1914 a 1918, não houve
divergência alguma entre a Internacional do Arma-
E' o homem estúpido de Richet.
mento. Todos estiveram de acordo, alemães, fran-
E todo o rebanho a balar a sua inconciente
domesticidade, arrastado no rodopio infernal. ceses, inglezes, italianos, russos, etc. — para ex-
plorar o género humano e encher as suas arcas.
Entretanto, os armamentistas são anacionalis-
tas, não teem pátria, a sua pátria é o cofre-fórte. Antes da guerra, " A Internacional da Pólvo-
Constituem um bloco coeso em todas as nações e ra" tinha 7 filiaes na Inglaterra, 5 na Alemanha,
formam 1 no Japão, muitas na Rússia, Espanha, e, na Fran-
ça, a Sociedade Francesa de Dinamite, a Sociedade
Geral para a fabricação de Dinamite, a Sociedade
Franco-Russa de Dinamite.
A "United Harvey Steel Co." agrupou (ca-
nhões e couraçados) firmas as mais "honradas" do
7$ Maria Lacerda de Moura ( Civilizaçào — Tronco de Escravos 79

mundo: Vichcrs e Annstrong (Inglaterra), Bet- dorf (a. Neckar), a Fabrica Nacional de Armas
hleem Steel (America), Schneider, Krupp, Dillin- Belga de Herstal, a Sociedade Austríaca de armas,
ger Hutte (Alemanha), Skoda (Áustria), Pouti- desde 1905 cooperam estreitamente dentro do mes-
loff (Rússia), A l t i Forni Fondieri Acciaine di mo objetivo: comercio.
Terni (Itália). A firma alemã bem conhecida: Dillinger Hut-
N a "Sociedade Russa Poutiloff", os capitães te, tinha grande parte de seus capitães em mãos
eram de Krupp — Cavalheiro da Legião de Honra, francesas de nobres, condes, secretários de embai-
e de Schneider, do Creusot. xadas, oficiaes de reserva. A Dillinger Hutte tra-
Os industriaes de industrias pesadas de M u - tava todos os seus negócios em Iingua francesa.
toran (Japão) tinham metade de seus capitães Naturalmente, taes "patriotas de negócios" não
postos pelos reis ingleses do aço — Vichers e foram esquecidos nas promoções da Legião de
Annstrong. Honra.
John Brown, Vichers c Armstrong foram os Krupp, Cavalheiro da Legião de Honra, havia
financeiros da firma de armas e de munições em equipado, antes de 1914, mais de 52 países com ma-
Fcrrol, Espanha. terial de guerra.
Seis firmas inglesas dirigem o Sindicato Por- A o contrario, em compensação, as "Deuts-
tuguês do Armamento Naval. chen Waffen U . Munitionsfabriken" dispunham
Depois dos desastres russos de 1905, indife- de um armamento quasi totalmente de proveniên-
rentemente, são casas inglesas, alemãs, francesas, cia extrangeira.
belgas e americanas que reconstruíram navios de E agora, o material humano ( ! ) . Porque uma
guerra russos, pagos com o ouro francês, subtraído guerra é um negocio montado com tres cousas:
da sua economia por M . Poincaré e M . Raffalo- finança internacional, armas e munições e carne
vitch, Cavalheiro da Legião de Honra. (como dizia Mangin.) Que o Prussiano ganhe ou
As casas de armas e munições alemãs de Ber- o Francês, ou os Senegalêses ou os Escoceses, isso
lim e de Karlsruhe, as famosas Mauser d'Oben- é com os chefes.
w% *
80 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 81

" O que ha de certo é que a Internacional do


Camara dos Comuns, em seguida a uma questão
Armamento, jogando sobre todas as mesas verdes,
apresentada pelo deputado Ponsonby, a propósito
ganha todas as partidas!"
de um artigo do "Daily Cronicle".
O Snr. René de Bobet, francês, da Dillinger
Sir Austen Chamberlain verificou o fato.
Hutte, si era acionista na Creusot, não podia per-
Nas aguas visinhas dos Dardanelos, tendo si-
der!
do torpedeado um navio de guerra, verificou-se que
A firma Krupp, tendo vendido uma patente a mina fora fabricada e entregue pelas casas in-
de acendedor de granada á firma Vickers, teve de glesas.
dar 1 marco e 50 por granada atirada de 1914 a Em 1866, na batalha de Koeniggratz, dos
1918, no "front." Graças ao alemão Krupp, os dois lados do "front", serviam-se das armas Krupp.
soldados alemães foram mortos de uma maneira
De 1914 a 1918, mais de uma vez, dos dois
mais humana!
lados do "front", serviam-se das armas Krupp,
Os ingleses que participaram da expedição dos
pois que, este havia fabricado:
Dardanelos, foram, em parte, metralhados pelos
26.000 canhões para a Alemanha;
canhões ingleses fabricados e entregues aos turcos
27.000 canhões para 52 países extrangeiros,
por firmas inglesas!
dos quaes, muitos declararam guerra á Alemanha.
Os austríacos que foram massacrados nos
U m dos mais cínicos mercadores internacio-
campos de batalha da Galicia, o foram pelos ca-
naes de armas e munições, que acumulou milhões
nhões austríacos, fabricados aos cuidados da fir-
na guerra russo-japoncsa, na guerra dos Balkans,
ma austríaca Skoda, e entregues á firma Newski,
de 1914 a 1918, na insurreição dos Drusos (1923-
russa.
1924), na rebelião de Abd-el-Krim, etc, é Basil
Em 1915, a artilharia turca que abria os ven-
Zaharoff, Cavalheiro da Legião de Honra. Esse
tres dos soldados ingleses nos Dardanelos, fora
oriental é* considerado cidadão francês e barão in-
fabricada pelos reis do aço ingleses, como já vimos.
glês. Quasi toda a industria do armamento está
E o fato reconhecido a 2 de Agosto de 1926, na
nas suas mãos: desde 1905, faz parte das casai V i -
82 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 83

ckers e Poutiloff; desde 1907, da casa Schneider, Durante a Guerra, a Internacional de Arma-
etc. E ' acionista do Banco da França, (graças a mento não cessou de se prevenir e aprovisionar pa-
M o r g a n ) , do Banco da U n i ã o Parisiense, do jornal ra levar a cabo a Guerra do Direito e da Civiliza-
"Excelsior", do Casino de Monte Carlo (onde en- ção: os "Centraes" forneceram a seus Colegas da
tretém filhos dos magnatas de todos os partidos po- "Entente", material de guerra; a "Entente" forne-
líticos franceses, desde os reacionarios até os co- ceu aos "Centraes" a borracha, o oleo, cobre, ní-
munistas! ) , de uma quantidade de firmas inglesas, quel, etc.
francesas, etc. (p. 17, 18, op. cit.)
Provas? A frota inglesa que deu batalha no
A imprensa sueca, "Die Weltbuhne" (Ber-
Skagerrak, recebera toda a sua óptica, seis meses
lim) , o editor Fischer (Berlim), deram ou vão pu-
antes, de Zeiss-Iena e Goerz-Anschutz (pela H o -
blicar, proximamente, documentos sensacionaes
landa.)
em torno de Basil, "o homem misterioso da Euro-
N o correr dos oito primeiros meses de 1916, a
pa", que trás, bem entendido (!) a Cruz dos Bra-
Alemanha exportou até 250.000 toneladas de fer-
vos.
ro e de aço por mês, em média 150.000 toneladas
Desde 1907, uma correspondência ativa era
por mês! Quasi tudo destinado á França e á Itá-
trocada entre os reis do aço franceses e seus cole-
lia!
legas da Alemanha: então, a poderosa firma da
Karlsruhe, não hesitou em fazer publicar, por in- Duas firmas francesas, em consequência de
termédio da industria pesada francesa, um artigo uma indiscreção, não puderam negar a importação,
no "Figaro", artigo que devia dar grandes lucros através da Suissa, de 60.000 toneladas de aço ale-
aos mercadores de ferragens. mão.
C o m b i n a ç õ e s . . . E ' a técnica moderna. Essa troca mercantil entre os inimigos ances-
As firmas alemãs entregaram ao Almiranta- traes, em plena guerra, escandalisou os suissos a
do inglês, pequenos dirigíveis que o Almirante Sue- ponto tal que, no outono de 1917, a "Z.uricher
ter utiíisou, muitas vezes, para fazer saltar os sub- Post" publicou um artigo sobre o patriotismo de
marinos alemães.
84 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 85

Químico A l e m ã o : " o Ministro da Guerra Fran-


negócios dos mercadores que convertiam em ouro
cês e os industriaes alemães da Química!
o sangue dos soldados.
Todos os países neutros assistiram ao patrio- E haverá quem acredite na paz armada?
tismo de negócios: na Alemanha, a "Entente" in- Taes são alguns dos fatos e das informações
troduziu a borracha, o oleo, metaes especiaes diver- expostas por Otto Lehmann-Rusbuldt em sua bro-
sos, cobres, níquel (pela Suécia). A o inverso, a chura preciosíssima de documentos incontestáveis.
"Entente" recebia da Alemanha os trilhos, instru-
mentos de óptica, fios de ferro, cabos metálicos,
ferro, aço. Sinistra comedia!
Governos, industriaes e cientistas, militares
O caso Possehl prova que, em plena guerra,
e toda a coorte do Santo Padre — todos cúmpli-
uma firma alemã poude negociar com a Rússia.
ces dessa dansa macabra na qual o patriotismo do
Os soldados de infanteria que, aos gritos de:
rebanho humano é explorado trágica e admiravel-
Viva a Patria! vinham acolchetar-se nos fios de ara-
mente em proveito dos abutres, dos corvos e cha-
me farpado que protegiam o forte de Douaumont,
caes do Capital e do Poder.
foram mortos pelo material de guerra entregue
E essa autoridade é mantida á custa da mais
na Suissa, dois mezes antes, pela firma de Magde-
abominável crueldade da civilização da Estatua da
bourg, "Drahtund Kabelwerke"!
Liberdade.
Em 30 de Setembro de 1926, as reuniões do
"Cartel Ó^Acier" consolidaram a colaboração dos Biribi ou as prisões militares francesas, des-
magnatas da industria pesada. critas por Albert Londres, em seu livro: "Dante
n'avait rien v u " ; os trabalhos forçados da escravi-
A guerra, aí, foi encarada sob os novos as-
dão satânica moderna dos seringaes ou da explo-
pectos que deverá tomar: líquidos inflamáveis, bom-
ração Mate-Laranjeira, descrita por Rafael Bar-
bardeamento pelos aviões, guerra química, etc. A
rett; os trabalhos forçados nas penitenciarias, a
França, depois de 11 de Abril de 1914, criou servi-
pena de morte, a prisão perpetua, o incêndio da
ços de guerra química com o auxilio do "Cartel
86 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 87

penitenciaria de Columbus (Ohio), em que pere- a autoridade. Para gloria de Deus, da Igreja, dos
ceram asfixiadas e queimadas 336 vitimas (a ci- bons costumes . . .
fra oficial, certamente reduzidíssima), mortas Tudo isso prova bem que o homem civilizado
simplesmente porque os guardas receberam ordens cientificamente, requintadamente sociável, é o mi-
terminantes para não abrir as prisões e deixar tor- serável sêr que persiste em aviltar-se na perversida-
rar os encarcerados, ordens severas para atirar por de inominável dos que só cultivam a vileza do ins-
sobre os recalcitrantes, cujo instinto de conservação tinto bestial de ataque feroz, sem o objetivo animal
protestasse contra o género de morte que se lhes da luta pela subsistência, porem, levado exclusiva-
infligia barbaramente; Jack London, em seu livro mente pelo banditismo destruidor, vingativo, odien-
" O Viajante das Estrelas", descrevendo os suplí- to, mesquinho de despeito e selvajeria.
cios infernaes do professor agrónomo em um pre- Os martírios infernaes, voluptuosamente con-
sidio americano e a celebre camisa de força com a cebidos, e acionados nos presídios, o tartuf ismo po-
qual trituram o corpo e a vontade do sentenciado, licial das penitenciarias e das delegacias de "ordem
reduzindo-o a um trapo em agonia dolorosa e per- social" — são os sustentáculos, as colunas por so-
petua; Barbusse, em o celebre manifesto denuncian- bre as quaes se apoia a Internacional Armamentis-
do os crimes cometidos nas prisões fascistas de ta.
"LMtalia d'oggi", esses "Jardins dos suplícios" in- L á dentro dos presídios, nas Siberias, nas
famantes e miseráveis, a crueldade oficialmente or- Guianas, em Biribi, nos Cambuci, ou nas Cíeve-
ganizada e protegida pela lei e pela moral; a poli- landia, matam-se moralmente e fisicamente aos
cia inglesa ás ordens do Império Bntanico essen- idealistas, aos revolucionários que proclamam a I n -
cialmente cristão, a massacrar, na índia, covarde- ternacional do Fraternismo ou da Solidariedade
mente, aos partidários da não-vioíencia heróica — Humana — Ferrer, Sacco e Vanzctti — porque
são esses os processos pelos quaes o Estado, o Cle- passam, humanamente, por cima das pátrias, das
ro e o Capital se asseguram o poder, o dominismo, fronteiras, da família e da r e l i g i ã o . . .
A Internacional do Armamento também can-
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos 89

celoit todos os mapas do orbe e arrasta a morte e a de armas Mauser, de Oberndorf a Neckar, e a "Fa-
dor, a fome, a peste e a nudez na voragem da des- brica Nacional de Armas de Guerra", de Hcrstal
truição — passando, deshumanamente, por sobre (Bélgica), por um lado e, por outro, a "Sociedade
as pátrias, as fronteiras, a familia e a r e l i g i ã o . . . Austríaca de Fabricação de Armas" ("Osterrei-
abençoada, protegida, santificada pelas pátrias, pe- chische Waffenfabrik-Gesellschaft"), firmaram
las bandeiras, pela familia e pela religião. contratos cujas principaes clausulas eram as se-
N ã o ha mais para onde descer. guintes:
São as pátrias, as bandeiras, a familia, e a re- "Os negócios de fabricação de fusís de repe-
ligião que perseguem e martirisam, cm nome da tição ou carabinas para o fornecimento á Rússia,
lei e da moral social, aos sonhadores, aos poetas Japão, China e Abissínia serão realizados em bene-
do Pan-humanismo. São as pátrias, as bandeiras, a ficio comum, distribuindo-se os lucros entre os gru-
familia e a religião — os sustentáculos das hienas pos conforme uma determinada escala.
armamentistas e do martirologio dantesco de todos "As fabricas pertencentes aos grupos, recipro-
os que idealizam uma sociedade mais equitativa, camente se prestarão o maior auxilio possível, para
a paz e a Liberdade, um raio de Sol para cada con- que cada uma delas possa fabricar com a maior ra-
ciencia e uma côdea de pão para todas as bocas. pidez e economia.
Para esse fim, cederão, umas ás outras, grá-
tis e a titulo de empréstimo, os desenhos e escalas
dos modelos pedidos e pelo preço do custo, os ins-
Revendo os originaes deste capitulo, passo ain- trumentos e calibres necessários.
da a acrescentar algumas notas colhidas direta-
" O preço das armas encomendadas e as con-
mente do livro de Otto Lehmann: "Colección
dições das ofertas deverão ser objeto dc acordo
"Panorama" Editorial Cenit — Madrid — 1929.
entre os dois grupos.
Em 1905 e 1907, as "Fabricas Alemãs de ar- "Para os fins expressos no paragrafo primeiro,
mas e munições", de Berlim e Karlsruhe; a fabrica é criada uma caixa em comum, na qual entrarão
Civilização — Tronco de Escravos 91
00 Maria Lacerda de Moura

com 15 francos por arma as fabricas que se encar- 144. Sessão de 19 de abril de 1913 — denunciada
regarem, em cada caso, da produção, distribuição e pelo grande Karl Liebknecht.
cobrança dos fusís ou carabinas, objeto do presente "Fundição de aço Friedrich Krupp. Essen, 29
convénio." de abril de 1868.
França.
Com relação a Krupp, o livro de Otto Leh-
A S. M . Napoleão I I I , Imperador da
mann tem documentação expressiva e largamente
França.
desenvolvida. Dias antes da guerra de 1866, o go-
O interesse que V . M . se dignou demonstrar
verno de Berlim pede confidencialmente a Krupp
por um modesto industrial e pelos felizes resultados
que não venda armas á Áustria sem seu consenti-
de seus trabalhos e de seus inauditos sacrifícios, faz
mento.
com que me atreva a solicitar novamente a sua so-
Krupp responde que não pode deixar de cum-
berana atenção, com o pedido de que guarde o ca-
prir um contrato. E em abril de 1866, escreve ao
talago junto, o qual integra uma coleção de dese-
ministro da Guerra prussiano, von Roon: "Sei
nhos de diversos produtos novos de minhas ofici-
muito pouco das circunstancias politicas. Continuo
nas. Espero que as quatro paginas ultimas, nas
trabalhando tranquilamente; porem, si não posso
quaes aparecem os modelos dos canhões de aço fa-
seguir fazendo-o sem perturbação da harmonia
bricados por mim, para diversos governos europeus,
entre o meu patriotismo e minha honorabilidade,
atrairão especialmente a atenção de V . M . e des-
abandonarei o trabalho, venderei a fabrica e vive-
culparão o meu atrevimento. Com o mais profun-
rei como homem rico e independente."
do respeito e a maior admiração . . . "
Assim, na batalha famosa de Koniggratz, os
Resposta:
alemães se destroçaram, entre si, com canhões ale-
" O Imperador, com grande interesse, viu o ca-
mães e os lucros também couberam á Alemanha.
talogo enviado e manda que se lhe manifestem seus
E' interessante ainda divulgar a troca de cor-
agradecimentos e se lhe faça saber que S. M . faz
respondência entre Krupp e Napoleão I I I , publi-
votos pelo êxito e prosperidade de uma industria
cada no "Diário de sessões do Reichstag" — N . °
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 93

destinada a prestar grandes serviços á humani- gocios. Segundo as circunstancias punha-se ao lado
dade:' de reacionarios ou revolucionários, auxiliando-os
Segundo declarações da casa Krupp, em 1912, com os seus capitães.
até a morte de Alfredo Krupp, em 1887, foram Impossível continuar a citar a documentação
fundidos em Essen, 24.576 canhões, dos quaes só do livro de Otto Lehmann; seria preciso transcre-
10.666 ficaram na Alemanha; 13.910 passaram ao ver toda a obra " A Internacional sangrenta dos
extrangeiro. Armamentos" — para a qual chamamos a atenção
Depois, até fins de 1911, a cifra anterior ele- dos interessados em desmascarar o jogo macabro
vou-se a um total de 53.000 canhões, dos quaes f i - do alto patriotismo de negócios.
caram na Alemanha 26.000, sendo exportados O papel da imprensa em tudo isso é extraor-
27.000 a 52 paizes extrangeiros. dinário. Os prostituídos do jornalismo se prestam
Antes da grande guerra a industria dos arma- a tudo: são os lacaios dos grandes armamentistas.
mentos da Entente achava-se totalmente nas mãos Mais ainda que o corpo, vendem a conciencia, ven-
de Basil Zaharoff. As mulheres eram as suas me- dem o pensamento e vendem o próximo.
lhores auxiliares. Entre elías, a duquesa de Villa- Em 1907, as fabricas alemãs de armas e mu-
franca de los Caballeros, princesa de Bourbon por nições de Karlsruhe dirigiram ás suas congéneres
seu nascimento e prima do rei da Espanha. Foi do- de Paris a seguinte carta denunciada por Liebk-
no das bancas de jogo de Monte Carlo, amigo do necht na sessão de 18 de abril de 1913, no Diário
rei e da corte da Inglaterra, persona grata dos po- de sessões do Reichstag:
derosos, dos governos europeus e do mundo ele- "Acabamos de lhes telegrafar, rogando-lhes
gante. Controlava e dirigia firmas importantes de esperassem carta. A razão desse telegrama é que de-
armas e munições, provocou sérios conflitos e auxi- sejaríamos que um diário francês de grande circula-
liou, como já vimos, a movimentos armados como ção, si fosse possível o "Figaro", publicasse um ar-
os de Adb-eí-Krim e Venizelos. tigo neste sentido:
Lançava mão de tudo para fazer grandes ne- " A administração militar francesa decidiu dar
94 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 95

novo impulso á compra de metralhadoras para o por grande maioria e sem discussão, os créditos ne-
exercito, dobrando o numero primeiramente fixa- cessários para o aumento de metralhadoras.
do. Casos como este, Otto Lehmann cita ás dú-
zias, terminando com a proposta de um anónimo:
"Rogamo-lhes façam o possivel para conseguir
o único meio para evita-lo consistiria em "enfor-
a publicação de tal artigo."
car a todos os jornalistas."
Entre as firmas está a do conselheiro de arqui-
Bem razão tem Oswald Spengler nas suas pa-
tetura Paul von Gontard. Alguns anos depois, os
ginas magistraes em relação á imprensa mercenária
dividendos da empresa subiam de 20 a 32 por 100.
dos nossos dias angustiosos, na agonia da civiliza-
Vejamos a continuação da trapaça jornalís- ção ocidental.
tica. O Figaro não poude publicar o artigo, tal co- A imprensa moderna é um bordel hediondo no
mo foi proposto. Seria escandaloso para o patrio- qual tudo é licito e o vicio da prostituição aceita
tismo francês e o ministro da Guerra poderia des- quanto se lhe offerece — dinheiro, honrarias, con-
mentir formalmente a um grande e conceituado decorações, posição ou o beija-mão servil nos ban-
jornal. Mas, as cousas se arranjam de outro modo. quetes oficiaes e nas recepções dos magnatas.
Poucos dias depois, o Figaro, Le Matin e o E'co
E os jornalistas aprendem a dobrar-se em dois,
de Paris coincidem — casualmente — em publicar
"como um canivete" . . . ate perderem totalmente
artigos sobre as vantagens das metralhadoras fran-
a espinha dorsal, até que a conciencia tome as cores
cesas e a grande superioridade que daí resultava
do cameíeão.
para o exercito francês. Com taes periódicos na
mão, o deputado prussiano Schmidt, aliado da me-
O escândalo Shearer
talurgia alemã, interpelou ao chanceler do Império,
perguntando-lhe que pensava fazer o Governo pa- O "caso Shearer" demonstra que a Internacio-
ra controlar a ameaça francesa. O Reichstag, as- nal Armamentista dispõe de poderosos agentes nos
sombrado e assustado ao mesmo tempo, concedeu, mais altos postos políticos.
Civilização — Tronco de Escravos 97
96 Maria Lacerda de Moura
Chegou a possuir o famoso "Livro A z u l " cuja
Por ocasião da Conferencia Naval em Gene-
posse só é autorizada aos altos funcionários da M a -
bra (27 de julho de 1927), antes mesmo, as gran-
rinha. E ' a estatística sobre o estado das frotas
des Companhias de Construções maritimas dos Es-
mundiaes. Esse documento lhe foi facilitado por
tados Unidos puseram-se todas de acordo para im-
um almirante — afim de defender a causa dos in-
pedir a limitação dos armamentos. Para isso, preci-
dustriaes de armamentos.
savam, na Conferencia, de um representante do go-
E' assim que Shearer e Kellog representam
verno, cuja autoridade se opusesse terminantemen-
bem a farça politica do país da estatua da Liber-
te á redução dos armamentos.
dade . . .
M r . Shearer aceitou a representação desse
papel. Foi nomeado perito naval da Delegação nor-
Depois da Guerra
te-americana na Conferencia de Genebra. Foi pa-
triota, enérgico, intransigente. Elogiadissimo —•
A industria de armamentos, após a guerra,
pelo interesse em torno dos interesses de seu país.
não se limita ás armas e munições.
M r . Shearer estava também a serviço dos gran-
Hoje faz parte integrante da industria de ar-
des industriaes de armamentos dos Estados U n i -
mamentos — material das estradas de ferro, indus-
dos. E. G. Grace, presidente da Bethleem Steel
trias químicas, óleos, gazolina, petróleo, fabricas
Shipbuilding era um dos seus patrões.
de celulose, de adubos, de matérias corantes, minas
Os industriaes afirmaram lhe haver oferecido de carvão, toda a industria pesada de aço e ferro,
25.000 dollares; Shearer reclama a oferta de a industria óptica, construções de aeronaves, esta-
250.000 dollares. Recusada a quantia, Shearer re- leiros navaes, navios mercantes, tudo quanto se re-
solveu revelar o papel representado por ele na Con- fere á industria dos transportes, laboratórios de
ferencia de Genebra. pesquizas no domínio da fisica, da bectereologia,
Shearer confessou mais, não estar agindo só. etc. etc.
Tinha cúmplices de grande autoridade nos meios
O afan com que toda gente trabalha para re-
políticos americanos.
1>H Maria Lacerda de Moura" Cintilação Tronco de Escravoí

solver o problema da gazolina procurando-lhe um nal em potencia. A fabrica que produz maquinas
sucedanio, é a prova de que exércitos e fuzis e me- de imprensa ou hélices, pode, em qualquer momen-
tralhadoras passaram a anacronismos em relação to, produzir granadas."
ás guerras modernas. As nações mais aparelhadas Seria necessário "destruir a industria em sua
para a luta armada não são as que possuem mais totalidade."
couraçados ou mais soldados ou mais canhões: são
Mesmo isso, absolutamente inútil.
as que teem gazolina.
A conclusão é a do general inglês J. H . Mor-
Todas as industrias mais inocentes são trans-
gan, em um livro publicado em 1924:
formadas hoje em armas de guerra, no momento
" H a tres cousas que é impossível destruir: o
desejado, inclusive adubos, inclusive as fabricas de
homem, a industria e a ciência."
tintas. Tiram-se gazes de todas as industrias. I m -
possível, pois, o desarmamento geral. Todo o se- Assim, lógica é a conclusão:
gredo das guerras modernas está no petróleo e na " A guerra só desaparecerá, quando deixar de
gazolina, si pusermos de parte o perigo mortal da ser um negocio."
electricidade nos "raios invisíveis" e nos "raios da E, cada vez se intensifica, mais a produção de
morte". material bélico, e, longe dos grandes armamentistas
Cada dia inventam-se novas armas de guerra. se afastarem da imprensa, tal como propoz alguém
N ã o ha vantagem na fabricação de grandes da Sociedade das Nações, pelo contrario firma-se
"stoks". A técnica moderna está em saber aprovei- mais o laço de ferro entre os Consórcios da Inter-
tar tudo, no momento preciso, e transformar toda nacional de Armamentos e os Consórcios dos gran-
a industria em industria de material bélico. des Diários Associados.
E' inútil pensar no desarmamento. Inútil mes- As pequenas industrias, os pequenos jornaes
mo o desarmamento total. não se aguentam: são absorvidos pelos "trusts" dos
" A guerra chegou a ser tão técnica, tão mecâ- grandes industriaes.
nica que toda grande Empresa industrial é um arse- Também a imprensa faz parte hoje do mate-
Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 101

rial bélico da Internacional Armamentista, do me»-


O meio único, eficaz, é individual; c a objeção
mo modo que as Agencias Telegráficas.
de conciencia, é a deserção heróica, é a proteção aos
O meio de combater a guerra não pôde ser o objetores, é a assistência aos desertores. E ' não con-
preconizado por Otto Lehmann ou outros também tribuir, de nenhum modo, para a loucura coletiva
sinceros, resumidos nestes princípios: do massacre do género humano.
1. ° Que o material de guerra não constitua
fonte de benefícios particulares.
2. ° Que o material de guerra não seja objeto Acorrentar Prometeu
de exportação.
3. ° As fabricas particulares, de munições, Sob esse titulo, Joseph Caillaux, homem de
serão obrigadas a publicar regularmente as contas Estado, burguês e teacionario, escreve um artigo
em que se ref lete a marcha do negocio, as quaes se- bem documentado, contra as próximas guerras.
rão objeto de comprovação. Caillaux não é dos nossos, a sua conclusão, porem,
embora utópica, é a de uma conciencia iluminada
4. " Aos possuidores de ações de fabricas par-
por uma centelha de revolta contra o patriotismo
ticulares de munições é proibido interessar-se em
de negócios, ou melhor — contra o Everest da ciên-
empresas análogas, de outros países.
cia deshumana.
5. ° Tanto a essas pessoas como ás fabricas
particulares de munições e seus conselheiros e di- Chega á conclusão de que não ha meios para
retores é proibido adquirir a propriedade de perió- evitar a intoxicação pela guerra dos gazes. Cita:
dicos, dirigi-los ou exercer influencia sobre elles." " J á peritos, pertencendo a quinze paizes, convoca-
dos pela Cruz Vermelha, reuniram-se em duas ses-
O meio de combater a guerra não se resume
sões: uma em Bruxelas, outra em Roma. Desgraça-
em coloca-la fora da lei, nem na "defesa nacional"...
damente verificavam que havia extrema dificulda-
dos pacifistas da Sociedade das Nações, nem no
de em proteger eficazmente as populações civis em
desarmamento.
casos de ataque areo-quimico."
102 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Lscravot 101

As mascaras já foram postas á margem, por é a deserção, a não-violencia heróica, a suprema


insuficiência de preservação, estamos fartos de o resistência, o Não Matarás, a mentalidade nova
saber. Demais, a técnica moderna, aperfeiçoadissi- para o protesto conciente contra a perversidade hu-
ma, tudo resolverá com o torpedo aéreo, aprovei- mana organizada, contra a imbecilidade social.
tando a ideia dos fogos de artificio . . . N ã o lia
saída.
A conclusão de Caillaux é a seguinte:
"Si o homem quer viver, é preciso acorrentar
o novo Prometeu: a ciência."
Humanamente impossível. A febre dos labo-
ratórios, das pesquizas, dos descobrimentos, das in-
venções — para fins industriaes — aumenta, pro-
gressivamente, todos os dias.
As industrias, a éra da maquina não pode des-
aparecer no regime capitalista.
A cupidez do homem coloca-o a serviço de tu-
do o que ha de mais abominável — em nome da
luta pela vida — pró pátria, pró progresso mate-
rial, que todos denominam civilização.
A í estão as tres cousas impossíveis de exter-
minar: o homem, a industria, a ciência. Só exter-
minando a todo o género humano . . .
Assim, impossível encadear Prometeu.
A solução, repito, é a objeção de conciencia,
IBSEN E A A C A D E M I A DE LETRAS

"Rio, 26-4-928. (A. B.) — Realiza-sc


hoje, ás 17 horas, a sessão publica da Aca-
demia Brasileira de Letras, comemorativa-
do centenário dc Henrik Ibsen.
Ocuparão a tribuna- os Srs. Roquette
Pinto, Coelho Netto, Antonio Austregésilo
e Affonso Celso, os quaes esplanarão, res-
pectivamente, as seguintes teses: "A filoso-
fia de Ibsen", "Solness, o Construtor" e
Considerações em torno da psico-patologia
na obra dc Ibsen."
Dos Jornaes.

Cada face do problema de Ibsen circula em


torno do seu profundo individualismo, sintetizado
nesta frase: " O homem mais forte do mundo é o
mais solitário."
Ibsen foi contrario, portanto, a todo e qual-
quer rebanho humano, e mui principalmente ao que
se reúne sob a chapeta de Academia de Letras.
106 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 107
Perseguido pela literatura oficial, isto é, pela
visto, isoladamente, como intelectual, tem grandes
literatura académica e politica, a qual não podia
qualidades.
suportar a sua independência, a sua individualida-
de, o seu génio, Ibsen combateu, corajosamente, a Quanto ao mais, não os conheço.
sociedade — sempre a mesma limitação aniquila- Roquette Pinto é vasta notabilidade no seu
dora das energias individuaes; foi contra partidos, ramo cientifico, e o seu estilo é admirável de bele-
seitas, nacionalismos, pátria, bandeiras, contra to- za, de lirismo, de sensibilidade estética.
da essa moral de rebanhos, defensora da sagrada Mas unido ao rebanho académico, incensado
instituição da familia — protegida pelos literatos pela sociedade elegante, "moço bonito", é capaz
e académicos — contra politicos e moralistas, con- de acabar fechando o laboratório para abrir o ora-
tra os vendidos á organização social de privilégios tório . . . J á é patriota, nacionalista, embora os seus
e contra os domesticados ás convenções mundanas. voos infinitamente relativos . . . pela antropologia
tão limitada, e as suas especulações cientificas.
Morto, o génio norueguês é aplaudido e co-
Muito podem as honrarias e o ambiente.
memorado e homenageado pelos governos, politi-
Austregésilo, á parte aquela perversidade ino-
cos e pelos académicos!
minável de Antonio Torres, chamando-o de "estre-
Homens em rebanho e disfarçados em unifor- la" da Companhia dc Letras, é, dizem, grande neu-
mes — maculam a filosofia e ultrajam a memoria rologista de "chapa" literária . . .
de Ibsen.
Coelho Netto é magistral em algumas de suas
E' ignóbil a desfarçatez com que a literatura paginas, como, por exemplo, em alguns dos seus
oficial se apodera dos maiores génios da humanida- contos do "Jardim das Oliveiras", em que a sua
de para molda-los ao vasio das suas expressões re- piedade humana vê os privilégios bárbaros desta
tumbantes, sonoras, sentimentaes ou "cientificas"... sociedade de exploradores. Mas, escreveu poemas
A Sociedade e o Estado são sempre teatraes. em honra da sagrada eucaristia... ou qualquer
eousa semelhante.
Cada um dos quatro académicos brasileiros,
E chega a ser vulgarissimo.
108 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 109

que cada individuo tem o seu problema e a sua es-


Affonso Celso — monarquista, moraliteista,
finge e ha de procurar a solução que lhe convém,
catolico-romano — elogiando a Ibsen!
particularmente, individualmente.
Cientistas académicos e nacionalistas disser-
tando em torno da filosofia libertaria de Ibsen, su- "Se tú mesmo e em toda a plenitude das tuas
focando o génio ibseniano, dentro da ênfase dou- forças" — é a filosofia ibseniana.
trinaria de uma psico-patologia qualquer! Qual desses académicos aceita a conclusão de
Ibsen em " A Casa de Bonecas"?
Como é fácil chamar de louco ou de doente
ao homem livre, á conciencia incorruptível que se E' tese absolutamente "escabrosa" e imoral
não vende, que se não domestica, que não verga para a moral cómoda dos literatos académicos, para
ante as seduções (tão pouco sedutoras para os gé- a literatura oficial e para os médicos, necessaria-
nios) da "imortalidade" e da gloria efémera e exi- mente pais de familia, a de Nora, abandonando o
bicionista de um uniforme grotesco — para o goso lar, os filhos, o marido, simplesmente porque n ã o
de um instante de mundanismo. pôde mais amar a esse marido vulgar como todos
os maridos que pontificam a sua proteção aviltan-
Qual desses literatos, cientistas e académicos
te, e porque Nora sentiu que toda criatura tem o
seria capaz de dizer á sua esposa aquela frase de
direito de buscar a sua realização interior, de rei-
Wangel: "E's livre, faz o que quizeres e é tua,
vindicar a liberdade individual, que todo sêr tem o
unicamente, a responsabilidade de teus gestos."?
direito a ser respeitado nos seus sonhos, nos seus
Qual deles teria a atitude nobre desse Wangel
ideaes e até nos seus gestos espontâneos de bonda-
de " A Dama do M a r " , que não tenta prender sua
de, castigados pela lei inexorável dos homens.
mulher, nem mesmo pela persuasão, quando ela vae
seguir outro amor, convencido de que todos os seres E, principalmente, por que enganar aos fracos
são livres e ninguém tem o direito de cercear a li- e aos ignorantes? Por que cultivar a ignorância e a
berdade de outrem? inconciencia feminina?
Porque Ibsen não faz literatura: indaga, estu- Nora, de Ibsen, é um protesto contra a edu-
da problemas, aliás sem pretender resolve-los, por- cação, medieval ainda hoje, e que faz da mulher
110 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravo* II I

um parasita social ou instrumento de trabalho (se- " A Dama do M a r " — são problema* focalizando
gundo a classe a que pertence), "bibelot", boneca, a emancipação sexual da mulher, defendendo a ma
lulu n." 1, cousas tão queridas da literatura e dos individualidade.
académicos... E' lá tese para uma academia, para académi-
Nora se desembaraça da hipocrisia do lar e cos elegantes?
da familia, convencendo-se de que o casamento é
Si as Academias e os homens políticos elo-
um negocio que satisfaz á "sagrada instituição" e
giam a Ibsen, que resta para nós outros, os indese-
á sociedade: a verdadeira união é baseada no amor
jáveis da literatura e do jornalismo oficial, nós
conciente da liberdade e na conciencia livre e es-
outros que não temos um jornal para dizer dos
clarecida do homem tanto quanto da mulher.
nossos sonhos, nós outros, sabotados pelos editores
Helmer é o tipo do marido: sensato, conside- e pela imprensa oficial nas mãos dos académicos e
rado; educa, protege, acusa e julga, perdoa ou con- dos mercantilizadores da pena, nós outros da cor-
dena, aplica a pena merecida. rente de Ibsen e apontados com o dedo como vozes
Nora acorda e despedaça, altivamente, os gri- indesejáveis, nós que, voluntariamente, nos colo-
lhões que a prendem a essa familia de mentira. cámos, como Ibsen c tantos outros, fora da lei, da
Como é que essa gente, presa ás convenções moral e da sociedade — para a defesa sagrada das
sociaes dos rebanhos, incapaz de dar mão forte, pu- nossas verdades, dos ideaes de amor e liberdade,
blicamente, á maternidade livre e conciente, á mu- para a defesa dos sonhos do individualismo livre, da
lher verdadeiramente emancipada — tal como a "vontade de harmonia"?
sonhava Ibsen — como podem os homens da mo-
"Brand" é o problema religioso, é o problema
ral social e que educam suas filhinhas nos "Sion"
do apostolado: ái daquelles que pretendem um ideal
e nos "Sacré-Coeur" — elogiar a obra máscula e
de regeneração social!
humana do génio ibseniano?
Comedia literária! A ' i dos que teem a ilusão de edificar a socie-
" O Pato Selvagem", " A Casa de Boneca", dade futura apelando para o rebanho humano!
112 Marin Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 113

"Brand" é o protesto contra a tirania das mas- sidade parasitaria e nos vicios dos ricos piedosos e
sas, contra a ingenuidade do apostolado. caridosos.
O povo vive de "mentiras vitaes" e, quem Essa tese pôde lá ser defendida em Acade-
tentar persuadi-lo de que as recompensas só veem mias, por literatos "rafinés" que, si chegam a ser
da vida interior — é sacrificado, impiedosamente, sinceros, teem a "sinceridade do éco"?
inutilmente, por essa mesma multidão, ululante de "Peer Gynt" é o ridiculo do individualismo
entusiasmo, que vae atrás do edificador de Igrejas, egoísta.
enquanto não o ouve dizer que "toda Igreja é uma "Edda Gabler" é a vontade de domínio, o in-
mentira." dividualismo autoritário.
"Inimigo do Povo", da moral, da sociedade, Ninguém tem o direito de impor a sua vonta-
da religião, é todo aquele que se eleva acima dos de a quem quer que seja ou de procurar influenciar
preconceitos, dos interesses, das convenções, do exi- sobre um destino: as consequências não se fazem
bicionismo ou do fausto académico, é todo aquele esperar. E* a desgraça do que quer dominar e do
que tem a coragem de proclamar bem alto as suas que reage ou aceita, docilmente, esse domínio.
verdades contra as "verdades mortas" dos reba- Cada qual só pôde influenciar por sobre a sua
nhos ou dos interesses inconfessáveis. própria natureza, mas, exigir dos outros é mais fá-
cil do que exigir de nós mesmos.
"Espectros" é outro aspecto do problema ibse-
Como a gente aprende tarde tudo isso!
niano. Que beleza, que admirável lição sintetizada
Como é preciso reagir contra o que nos ensina-
na frase de Oswald á sua mãe, protestando contra a
ram, para perceber essas verdades inscritas nos pór-
degenerecencia pelo vicio, contra a fatalidade he-
ticos da nossa conciencia!
reditária impressa a ferro em brasa na sua existên-
Werle, em " O Pato Selvagem", é ainda o
cia de sacrificado: "E que espécie de vida me deste!
apostolado, o problema da ingenuidade do refor-
N ã o t'a pedi. Devolvo-t'a."
mador: todos os que se não aproximaram ou não
E ' o acumular de taras e hipocrisias na ocio- realizaram o individualismo estóico, teem necwi-
114 Maria Lacerda dc Moura Civilização — Tronco de Escravos 115

dade das "mentiras vitaes", desde as mais baixas e Si Ibsen saísse agora da sepultura e si se visse
mais interesseiras até as que se escondem por sob a fechado em uma sessão académica, talvez gritasse,
capa auri-verde das bandeiras, das pátrias, dos na- amargurado: — "Comediantes! Si eu fosse vivo,
cionalismos patrióticos e guerreiros ou das revolu- nenhum de vós me reconheceria!"
ções saneadoras . . . ou por ingenuidade, ou por in- Consola-nos ter em mãos o numero especial
coerência, ou por interesse, ou por fraqueza, ou pela de "Le Semeur", dedicado a Ibsen e a "plaquette"
incapacidade de trazer sempre os olhos abertos, ou respectiva, reproduzindo o magistral ensaio em tor-
pela vontade de dominio. no da filosofia ibseniana, feito por outro Homem
Mesmo o individualismo pôde ser a mascara Livre — H a n Ryner — e estudos de indivíduos co-
do egoísmo, da sordidez, de baixezas ou até do de- mo Henry Bauer, Laurent Taillade, Gerard de La-
lírio de poder de um Nietzsche dansarino, "a ulti- caze Duthiers e outros e muitos outros de igual va-
ma moda da loucura". lor, alguns dos quaes reconheceram a Ibsen quando
os académicos o apedrejavam.
N o "reino do grande mistério" só penetra
"Le Semeur" apaga, assim, a triste lembran-
aquele que. fora da lei, do preconceito de familia,
ça das homenagens prestadas ao génio escandinavo
de sociedade, de religiões, fugindo á tirania que
— pelos governos, pelos políticos, militares, mora-
quer dominar ou que quer persuadir, fugindo aos
liteistas e académicos.
deveres sociaes impostos pelo rebanho com a sua
domesticidade e as suas ilusões, — procura, em si
mesmo, uma energia interior que é fonte do carater
incorruptível e da pureza c coragem de ir contra a
maré — para se tornar, cada dia mais, o Humano
livre, o Individuo clarividente.
Tbscn sufoca dentro de Academias.
Ibsen só pódc respirar ao ar livre, em Panteon
aberto,
DOMESTICANDO

Os jornaes de S ã o Paulo trouxeram longas


noticias a respeito do "homem do mato", captura-
do com dificuldade pelas autoridades de São José
dos Campos, "afim de ser domesticado" . . .
E foi a piedade cristã do vigário de Buquira.
"Condoído da sua sorte", pediu ao delegado
de policia de São José dos Campos, providenciasse
para a "domesticação do selvicola."
Durante 12 annos João Pedroso viveu abso-
lutamente livre do convívio humano, temendo me-
nos as feras e os reptis e os mosquitos que a cupi-
dez e o egoísmo brutal e a concorrência barbara dos
civilizados.
João Pedroso deveria ter-se internado pela
"selva escura" mais ou menos aos 30 annos de ida-
de, "em meio do caminho" . . .
Que teria levado essa alma simples a procurar
na solidão, no isolamento, no seio da natureza, em
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 119

plena vida livre o que me não foi possível encontrar Todos nós, aliás, somos capturados ao primei-
na sociedade? ro vagido. T ã o bem o descreve Rousseau!
E com que direito a sociedade intervém em A educação, desde o batismo e o Jardim da
uma dessas definitivas decisões do individuo, pa- Infância até a Universidade, as academias cienti-
ra obriga-lo a "domesticar-se", para "civiliza-lo" ficas ou literárias, a nação, a pátria, a sociedade em
novamente, para traze-lo ao convivio dos homens? suma, com todas as suas indispensáveis ramifica-
E isso em nome do Cristo, individualista livre ções — religião, familia, Estado, — apodera-se da
que também teve que fugir para o deserto, para re- criatura humana, captura-a no berço e a leva ao
cuperar forças •— afim de entregar a face ao beijo tumulo — domes ticando-a, civilizando-a, "condoí-
de Judas e á bofetada social. da" pela sua ignorância, penalizada da sua ceguei-
Nesses 12 annos, que estupenda evolução ope- ra, numa piedade verdadeiramente cristã . . .
rou-se nas criptas profundas desse solitário das E' a parábola ryneriana, a parábola de
matas!
Pobre João Pedroso! Domesticado pela pie- "O Povo Cego"
dade cristã, civilizado pelo progresso material, obri-
gado novamente ao convivio da sociedade, aturan- e me não posso furtar ao desejo de a traduzir para
do aos homens de "odor cruel" e ao ruído pavoro- os meus leitores:
so das suas maquinas e ao tilintar azinhavrado das "Nesse país a luz é mais doce que na própria
suas moedas e das suas façanhas, de caftens da Grécia. O clima ali, é tão igual que ninguém tem
conciencia. . . bonita domesticidade, linda cateque- necessidade nem de vestimentas nem de casas. As
ze, admirável piedade humana! bagas silvestres aí brotam fartamente e mais sabo-
Nem o direito de fugir, de isolar-se para uma rosas que os mais bem cultivados dos nossos frutos.
purificação interior, nem ao menos o consolo de se U m a planta orna, por si mesma, a margem de
sentir livre, no convivio panteista da natureza! todos os caminhos, dez vezes maior que o nosso tri-
E' um símbolo a capturação de João Pedroso. go, e, em vez de espigas, dá pães deliciosos.
120 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Encravos 121

Mas, os grandes e os padres são de natural in- a cabeça. Mas, os pobres são, entre si, de espantosa
vejoso: os bens que não constituem privilégios e su- brutalidade.
perioridades para eles, perdem todo preço.
O ouro parece inútil em tal país. Entretanto
Organizaram a cidade de maneira a gosarem é muitíssimo apreciado. Algumas vezes, as mãos
sozinhos, livremente, das vantagnes do país. tacteantes e investigadoras de um cego encontram
Proíbem os outros homens de colher os pães e um tesouro. Então, os magistrados se reúnem. Exa-
as frutas e deixam apodrecer enorme quantidade de minam algumas das circunstancias que precederam
nutrição. Distribuem viveres insuficientes aos po- ou acompanharam a descoberta. Essas circunstan-
bres. Para eles, descobriram a arte de "deitar cargas cias parecem fúteis e indiferentes a quem quer que
ao mar" e de comer imediatamente depois. Aliás, seja que não tenha estudado as suas leis.
são desgraçados, sempre entorpecidos e dolorosos de Os magistrados, porem, descobrem nelas o que
indigestão, sempre inquietos com a idéa de que, sem denominam justiça e proclamam que o inventor do
duvida, em algum canto mal policiado do imenso tesouro deve ser condenado á morte ou que é pre-
país, lhes roubem um pouco do que, afirmam eles, ciso traze-lo para a classe dos videntes. Então, com
lhes pertence. uma agua da qual os padres guardam o segredo,
Encontraram, entretanto, ha alguns séculos, descolam as suas pálpebras.
um meio de se tranquilizar em parte. Entretanto, os grandes, os padres e os sábios
ensinam ao povo que o país é horrível de se vêr, e
Logo que nasce um filho do povo, as suas pál-
que, sem a sua sabia administração, a calamidade
pebras são fechadas com uma pasta que sabem pre-
publica, a miséria seria aí, contínuo flagelo.
parar os padres e certos servidores dos ricos, deno-
Desolam-se, em altas vozes, pelo fato de ser
minados sábios. Assim, os grandes, os padres e os
obrigados a conservar os olhos para conduzir,
sábios, só eles gosam da luz.
através dos horrores da região, a seus irmãos mais
Muitas vezes fustigam os outros homens, os
felizes.
quaes, reconhecendo a sua inferioridade, curvam
O povo canta com eles o seu devotamenro r
Civiiizaçào — Tronco de Escravos 123
I " Maria Lacerda de Moura
que os deuses dão fardos tão pesados a tantos seres
a doçura de viver com os olhos fechados, sem o tra- fracos que ouço gemer e tombar?
balho de se conduzir.
Si essa piedade é assas forte para fazer cho-
Aliás, a morte, afirmam, abre os olhos dos rar, eis que o misericordioso sente suas pálpebras
pobres em uma bela região, amável como um beijo se levantarem livres e vê, tremulo, em uma emoção,
que nunca mais terá fim. mixto de amor e piedade desolada, vê as cousas e
Os ricos, os padres e os sábios teem, entre to- os seres agitarem-se em derredor.
das as suas inquietações, terrível angustia. Ora, si os novos videntes se calam deante do
Algumas vezes, com efeito, um homem do povo, ou, si consentem em louvar a condição dos
povo sente seus olhos se abrirem. cegos, são suportados. Muitas vezes mesmo, são
convidados a entrar para um colégio de padres ou
Dá-se o acidente de dois modos. A's vezes,
de sábios. Si um deles pratica a imprudência de lou-
durante todo um dia, um miserável escapa ás ciosas
var publicamente a luz, a sua boca é fechada com
vigilâncias, e, através das suas pálpebras fechadas,
uma mordaça e o arrastam para o exiiio.
procura vêr um mesmo objeto.
Mas, si atráe o odio da sua pátria e da orga-
As pálpebras, pouco a pouco parece adelgaça-
nização social até querer explicar por que meios os
rem-se transparentes e o objeto lentamente se tor-
olhos se podem abrir, então os grandes, os padres
na distinto. A ' hora em que o crepúsculo incendeia
e os sábios dominam a sua voz com os seus gritos.
o céu, o objecto, pacientemente observado, toma,
Acusam-no de enganar o povo e teem o conso-
emfim, linhas precisas e os olhos se abrem. O ho-
lo de vêr a multidão, em um impulso magnifica-
mem que gosa, de repente, á vista do conjunto das
mente unanime, atirar-se por sobre o mentiroso e o
cousas, agita-se em uma felicidade muito violenta
matar."
e grita maravilhado.
Outra vez, também, um pobre diz:
Pobre João Pedroso!
Quanto a mim, aceito a minha condição, Coragem, ó meu irmão.
uma vez que tenho % força de a conduzir. Mas, por-
124 Maria Lacerda de Moura

Aqui, na Terra, dentro desta organização so-


cial cheia da piedade cristã tão admiravelmente des-
crita na magistral parábola de H a n Ryner, não ha
florestas impenetráveis aos olhos da caridade...
Para aonde quer que fujamos, ainda que nos inter-
nemos nos sertões ou nas matas silenciosas das vo- OS T R I N T A DINHEIROS.
zes humanas e rumorejantes dos duendes das len-
das, por toda parte a piedade social nos irá buscar As Irmãs de Caridade do Sion, no Rio de Ja-
para a "domesticação", ou para civilizar-nos ou neiro, recusaram aceitar no respectivo Colégio, nas
para nos amordaçar, "condoida" da nossa sorte . . . Laranjeiras, a linda filhinha do casal Procopio Fer-
A vida de João Pedroso é um simbolo. reira, pelo fato de ser a filha de um ator.
E declararam que não recebem nem filhas de
atores nem crianças de cor, "ainda mesmo que per-
tençam á sociedade"

***
*
Os Judas de hoje não se enforcam. Acumu-
lam capitães e o seu representante máximo intitula-
se Papa-Rei.
Santa humildade cristã! . . .
Os Judas de hoje pertencem á "alta" socie-
dade burguesa, são acionistas de "trusts" e de ban-
cos, abrem os salões ás embaixadas diplomáticas,
batisam as armas de guerra, vestem purpuras e os-
126 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 127

tentam nos dedos jóias cintilantes e abençoam o a razão de ser do manso e meigo Rabi dc Ga li Ira,
mundo, das janelas sumptuosas dos seus palácios nascido na mangedoura, filho natural de Maria,
magnificos, e acumulam galerias de Arte e pos- filho do Amor, protegidos pela alma imen-
suem os mais ricos museus da Terra e compram sa e pura e amorosa de um velho carpinteiro contra
os primeiros ministros e vendem-se a tiranos e rei- o puritanismo farisaico dos sacerdotes e da moral
vindicam o poder temporal. social, que os lapidariam a ambos — não fora o
Santa pobreza do Rabi da Galiléa! gesto nobre e heróico de José, tão alto, tão vasto
Santa simplicidade cristã! que ainda não conseguiu ser interpretado pelos sá-
bios da Escritura . . .

As "filhas do Senhor" só conseguiram apren-


Mercadores do Templo . . . der de cór e recitar a palavra de uma revelação cle-
Que infinito e que eternidade entre os prin- rical.
cípios cristãos dessas "esposas de Cristo" e a bon- E, de Cristo, nasceu o Cristianismo tartufo.
dade imensa de Jesus — simples, pobre e humilde E, de Jesus, fizeram o Jesuitismo da Inquisição e
de coração. das fogueiras, do confessionário e dos Autos de
Deixai vir a mim os pequeninos . .. Fé, de Mussolini e de Tacchi Venturi, do oleo de
Os pequeninos de que fala Cristo, de certo não ricino e do mangando . . .
são as filhas do rei da Itália ou de Mussolini, de
Santa sabedoria cristã . . .
Matarazzo ou do Rei Bóris, de Carol ou de Alberto
da Bélgica, de Poincaré ou de Clemenceau, de E, da humildade mansa do Cristo, nasceu o
Krupp ou do General Percin, as filhas da alta bur- Vaticano.
guesia do açambarcamento das riquezas ou do Como todas as cousas belas se prostituem!
poder. Como todos os gestos nobres se vulgarizam
As "filhas do Senhor", as "esposas místicas em contacto com a perversidade humana socialmen-
de Cristo" nunca ouviram falar, nunca perceberam te, legalmente, moralmente organizada!
Civilização Tronco de Escravos 120
128 Maria Lacerda de Moura

o preconceito idiota de uma posição social e falam


Santa covardia do rebanho social!
da sua "honra ofendida", deixam de ser artistas,
Cristo nunca foi cristão.
tornam-se burgueses ortodoxos e merecem que a
moral teológica e a honra social lhes dêem no rosto
a bofetada do tartufismo.

A pequena Bibi, filha do ator Procopio Ferrei- Dignos uns dos outros. Por isso, o ator Pro-
ra, não tinha 7 annos de idade e iria ensinar cousas copio Ferreira considerou-se "desmoralizado" e
feias ás filhas dos ministros e senadores e deputa- ofendido nos seus melindres.
dos e generaes e altos funcionários desta Republica U m artista não faz questão da "honra" — o
de castos e puritanos, desta democracia carnavales- idolo mais voraz e mais feroz da nossa civilização.
ca de legislação "gorda" e de capacidade mingua- U m Artista não entrega a educação de sua
da, de "ventre imenso e cabeça insignificante" . . . filha a esse ambiente fechado e sombrio e duro e
a pequenina Bibi é quem iria perverter a prole fe- egoísta e estreito e perverso e cadavérico dos Colé-
minina dessa gente da "alta" e da "boa" sociedade, gios Católicos das "filhas do Senhor".
iria transmitir suas maldades congenitais aos reben- As filhas do verdadeiro Artista educam-se em
tos degenerados dos Cesares do ouro e dos magna- um ambiente de Liberdade e Amor e altruísmo, em
tas do poder, e desmoralizar de vez o Sacro Colé- contacto com a natureza e com o coração generoso
gio francês das "Servas do Senhor". de outros artistas, nos Museus e nas galerias de
Santa ingenuidade crista! Arte, ao lado da pobreza, da simplicidade, em meio
do desconforto dos sonhadores e idealistas sem pá-
* tria, sem preconceitos, sem hábitos de luxo e de pa-
**
rasitismo, nómades, boémios, o coração aberto pa-
Quando os atores do teatro popular se fazem ra todas as verdades, para todas as dores do mun-
"nouveaux-riches", frequentadores da sociedade do, para todos os miseráveis, para todos os desher-
chamada a "boa" ou "alta", e adquirem e cultivam dados, para os humildes e para os ingénuos.
liO Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 131

O verdadeiro Artista sabe que o tartufismo, a Dóe-me o coração quando penso nesses inú-
hipocrisia são as virtudes máximas da religião cato- meros e grandes Colégios religiosos das Irmãs de
lica-romana. Caridade e freiras e Santos Padres espalhados por
Fingir, fingir, fingir e aprender a bem colo- todo o orbe a poluir as almas das crianças.
car a lendária folha de parra do pudor cristão, de Que o diga Mirbeau.
que fala a adorável ironia de Anatole, eis o escopo Que o diga Flaubert e todos os caracteres in-
da educação dos conventos e das casas de caridade corruptíveis que passaram pela vacinação catolico-
catolico-romanas. romana.
Cristo, inimigo da sistematização de princí-
Tudo ali é estagnação, é anacrónico, é tera-
pios, inimigo dos Cesares do poder e Reis do ouro
tologico porque é contra as leis naturaes da evolu-
— porque era profundamente humano e amoroso,
ção das nossas forças latentes.
Cristo é a bandeira de que se servem os mais as-
tutos, os mais hábeis organizadores da mais per- E' uma adaptação monstruosa para sufocar o
versa, da mais maquiavelica de todas as religiões. eu interior e despertar virtudes cristãs como a hipo-
crisia, a humildade falsa do orgulho e da vaidade,
Quando Cristo chamava a si as crianças, os
a deslealdade, a astúcia maquiavelica, o falso pudor
explorados e os fracos: Deixai vir a mim os peque-
e a elasticidade da conciencia, apta a se adaptar a
ninos, nunca indagou si entre os pequeninos havia
todas as torpezas — para maior gloria de Deus e
filhos de assassinos, de bandidos, de padres, minis-
da Igreja.
tros, capitalistas, diplomatas, reis ou m i l i t a r e s . . .
Cristianismo — a negação de Cristo, pobre, E' o estimulo á delação, á fraude, á mentira
manso e humilde de coração. disfarçada na sua lógica de sofismas.
As irmãs de caridade desconhecem a Cristo. Que de perversidades condensadas em uma
Conhecem apenas o cristianismo clerical. hábil organização, para sufocar a alma da criança!
Que de esforços admiráveis para emparedar
a criatura dentro de si mesma, adormecer a sua
132 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 133

razão, sufocar a liberdade interior, despertar a na- extraordinária Companhia Anónima Ilimitada,
tureza inferior dos seres humanos! todos se entendem maravilhosamente para mas-
sacrar a liberdade de conciencia e cultivar até o in-
Durante 4 anos frequentei também um Colé-
finito a imbecilidade e o acarneiramento humano.
gio de Irmãs de Caridade — dos 6 aos 10 anos,
e bastou esse tempo para eu conhecer de perto o Civilização sacerdotal de vampiros e "profi-
que são as escolas desse género. teurs" da fé e da domesticidade social.

As diferenças de critério para "julgar" e E os grandes açambarcadores, os Cesares do


"castigar" os atos inocentes das meninas ricas e das ouro e do poder, magnatas do dominismo e mare-
pobres, das brancas e das de côr, tudo olhado com chaes e generaes e comandantes, todos os assassinos
a severidade do pecado e do inferno — esse papão condecorados e gloriosos, os fazedores de cadáve-
de olhos esbugalhados noite e dia em cima da nos- res, cientificamente, á luz das matemáticas, da quí-
sa infância envenenada pelo medo — a considera- mica, da fisica, da mecânica, aplicando todos os
ção especial em torno das alunas de familias ricas conhecimentos humanos a serviço da industria guer-
e filhas de politicos, a exploração das meninas de reira, os reis do aço e chefes de Estado, monarcas ou
côr a serviço das outras — é inacreditável como democratas republicanos, livres-pensadores da facha-
dentro do século do radio e da relatividade, de da e maçons, ateus e anti-clericaes, todos, absoluta-
Mme. Curie e de Einstein, de Romain Rolland e de mente todos educam suas filhas, seus filhos nesses
H a n Ryner ainda seja esta educação medieval a ('olejMos religiosos da "alta" e da "boa" sociedade.
que se ministra ás crianças e á juventude! ( íero c Capital, Governo e Militarismo dão-se
A palavra de Rousseau, de Voltaire, de Con- .-is m.ios cm uma aliança incondicional através do
dorcet, de Darwin, de Réclus, de Anatole, de M i r - "freio" religioso posto na mulher e através da edu-
beau, de Maupassant, de Tolstoi, de Ibsen, de tan- cação da infância, na qual a sabedoria sacerdotal
tos e tantos outros é como si fosse letra morta: põe toda .i sua ciência maquiavelica, amoldando,
a Igreja, monopolisadora da educação, e o Estado, cinzelando, burilando e imprimindo na alma da
seu cúmplice, e o Capital, grande acionista dessa criança e tia juventude o selo infame que azinha-
134 Maria Lacerda de Moura

vra as conciencias, amordaça a mente, envenena os


sentimentos de prejuisos e convenções e idolos que
constituem o maior e mais sério empecilho á evolu-
ção humana.

Dessa sombria atmosfera dos portaes negros


da éra medieval, dessa escuridão pavorosa do fana- "O D R A G Ã O E AS V I R G E N S "
tismo religioso e da hipocrisia religiosa convencio-
nal, elegante, do sectarismo ortodoxo, dos dogmas N ã o é critica: é divida de gratidão.
do romanismo e da confissão que tudo absolvo e Em um gesto oposto a qualquer gesto de ele-
das indulgências e graças que tudo prevêem e tudo gância mundana, numa atitude pouco feminina —
arranjam a contento dos ricos e poderosos, dessa eu venho beijar as mãos generosas de Afonso
argamassa demoníaca não admira que saiam as "vir- Schmidt, pelas lagrimas doces de piedade que me
tuosíssimas" senhoras com editores responsáveis e fez chorar ante a leitura desse livro admirável, si
que vivem de acordo com a astúcia e a conciencia a gente o lê com a alma, sentindo a dôr de viver
forjada pela educação de tartuf ismo, e os respeitá- dentro de uma organização social baseada no pri-
veis cavalheiros das negociatas e escroqueries, Ca- vilegio e na brutalidade.
valheiros da Legião de Honra, nobres e diplomatas A começar pelo prefacio, do autor aliás, essa
e cônsules e militares e banqueiros e juizes das con- novela de uma conciencia livre e de tese social é ca-
ciencias alheias, altos dignitários do tartuf ismo ricia espiritualizada pela amargura de sofrer a an-
oficial e prostitutas de alto bordo. gustia de outras almas, rescende a perfume delica-
Obra admirável da "boa" educação! do, é toda a beleza interior de uma criatura a ex-
E tudo, para maior gloria de Deus e da travasar a sua imensa bondade como benção de
Igreja! . . . ternura por sobre a dolorosa procisão dos tristes
c dos explorados.
E' uma palavra de Amor e uma lagrima de luz
Civilização — Tronco de Escravos 137
136 Maria Lacerda de Moura

A sua arte não é essa pseudo arte de joeirar


de quem sorriu docemente junto á mulher tortura-
expressões sonoras com a paciência de um chinês.
da e sentiu toda a sua tragedia silenciosa, presa
A sua arte (que lindo o seu prefacio!) é forjada na
inerme da civilização que mercadeja com a carne
rudez do salário para o pão de cada dia, com que
feminina e expõe á venda os sentimentos mais de-
os exploradores e os poderosos amordaçam o ho-
licados do coração humano, como retalha as vís-
mem e compram a mulher do povo, sangrando-lhes
ceras dos animaes nos açougues ou fabrica o álcool
as mãos e o coração para tripudiarem por sobre a
para incendiar os filhos nos ventres maternos.
sua dôr inominável.
Afonso Schmidt fala aos oprimidos, aos anó-
Afonso Schmidt sente que "estamos numa
nimos acicatados pelo rude mourejar de cada dia,
época em que todos sabem o que é preciso dizer.
acuados pelo progresso industrial, perseguidos, lu-
Quem silencia, tráe; desaparece. J á não ha mais o
dibriados na torpeza de uma sociedade de vam-
piros, cujas garras e cujas ventosas praticam o inútil, ha apenas o prejudicial; é tudo o que per-
exercício quotidiano de amortecer a sensibilidade verte, toma espaço, absorve energias indevidas."
humana no estrangular ilóta de todos os verdadei- Os seus livros, entre eles — "Brutalidade",
ros forjadores do progresso material — para a vo- "Janelas Abertas", "Mocidade", sua prosa o u b s
luptuosidade dos ociosos, e no crucificar de todas seus versos, tudo quanto esse moço escreve, vae-nos
as mais altas manifestações da beleza sonhada pelo até a alma no perfume do seu imenso espirito de
espirito humano. solidariedade para com os que emergem desse in-
cêndio voraz denominado civilização ou progresso,
Afonso Schmidt é único nesse género literá-
para com os que sustentam o sacrifício inaudito de
rio no Brasil, e, por isso mesmo, mais admirado no
carregar — novos Atlas-Briaréu — o peso morto
extrangeiro do que na nossa terra, onde as letras
do mundo que se aproveita do trabalho alheio.
pátrias de papagaios e verde-amarelismo empolgam
pela estreiteza do cenário.
Afonso Schmidt é anacionalista e o seu pro-
blema é o problema humano.
138 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 139

Este livro toca mesmo na ferida social que


casamento legal (outra forma de prostituição),
mais dolorosamente sangra: é a historia da pros-
outras acorrentadas ao altar do sacrifício ao M o -
tituição "necessária" para saciar o apetite sensual
lóc da Honra, pelo relicário da pureza da Familia,
do homem que reservou para si todos os direitos de
de que são depositarias, feitas sacerdotizas, vestaes
animal na escala zoológica e criou, também para si,
"protegidas" pelo carinho da sacratíssima institui-
os direitos de bruto "raffiné" na aquisição de vicios
ção, transformado em ridículo, em zombaria, em
e hábitos que o colocam abaixo do irracional cha-
sátiras e ironias mordazes, quando a virgem dobra
mado, porem, roubou á mulher o direito mesmo de
o Cabo da Bôa Esperança . . . e se torna virgem
viver a plenitude das suas forças e das suas neces-
louca. . .
sidades, o direito de ser dona do seu próprio corpo
e senhora dos seus instintos (parece incrível que E esse livro, cheio de bondade, diz essas cou-
um animal possa governar ou exercer pressão sobre sas tristes por entre o sorriso doce de ternura dolo-
o instinto de outro animai!), roubou á mulher rosa, em expressões que são como um cântico lirico
uma parte imensa da sua vida de criatura que evo- de luar afagando as dores do mundo perverso que
luciona pelas mesmas leis biológicas de todos os organizou tão mal a vida tão bela.
seres da nossa escala de evolução. Magistral a sua descrição de tudo quanto em-
beleza artificialmente o erotismo: é o cinema que
Mas, si o homem, si a sociedade, habilmente
apresenta a nudez dos "interiores" e a vida fictícia
e perversamente organizada para a exploração do
dos "Cabarets" — onde ha alegrias ruidosas por-
fraco, tirou da mulher essa parcela importantíssi-
que não ha alegria e porque só ha a busca incessan-
ma de vida, por outro lado inventou, através do
te dos clientes e a concorrência esmagadora da
D r a g ã o — o Deus Dinheiro — o meio de tragar as
questão económica; onde a fanfarra de alarido e
virgens, as predestinadas filhas do povo, devoradas
sons e cores e vicios procuram abafar a amargura
nos lupanares e nos bordéis dessa "necessidade"
de um viver doloroso; são as casas de modas, onde
inelutável — para a salvaguarda da pureza pro-
as caixeiras afogam-se em uma caricia de rendas e
blemática de outras mulheres, engulidas umas no
sedas e adornos de toda espécie, em um delírio d«
140 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 141

calendário, enquanto os anos voam, indiferentes,


cores e perfumes capitosos e frascos esguios como
amortalhando as ilusões mais caras.
a ansiedade do imprevisto, alimentando a curiosi-
dade e a emoção em uma atmosfera de luxo e vicio, E se vão estiolando na "consomption" . . . E,
empurradas violentamente para a prostituição — á medida que os dias se alongam, o ridiculo se vae
o único meio talvez capaz de as adornar de veludos instalando sorrateiro até morar definitivamente ao
e peles e jóias, de tudo isso que passa pelas suas seu lado, nos seus vestidos, nos seus cabelos, no seu
mãos vasias. andar, fazendo parte integrante da sua pessoa a
ocupar um lugar demais no cenário da vida social,
Porque, na vida artificial das cidades, é a se- que lhe não quer ceder a parte a que tem direito
dução, o sensualismo absorvente, o fogo do erotis- dentro mesmo da escala zoológica.
mo, a labareda afrodisíaca a correr pelas veias da
A familia e a sociedade não merecem tal sa-
moça pobre, já descrente do casamento — um bal-
crifício, e, de que vale a himenolatria para a mu-
cão, um luxo a que se podem dar as ricas, as que
lher, o preconceito da virgindade, si todos se riem
se vendem através do dote ou da posição social.
da "solteirona", da sua atitude de humilhação, das
As outras, as exploradas no trabalho ou as suas roupas insexuadas, da sua melancolia de nos-
filhas dos funcionários da pequena burguesia teem, tálgica de um sonho sonhado em alturas inaccessi-
pela frente, quando falha o casamento (e cada vez veis?
vae falhando mais), a tristeza da soledade e da E* o aspecto mais doloroso dessa via sacra da
vida mutilada no flagelo da "solteirona" ou a es- mulher por entre chacotas intermináveis, começa-
trada larga da prostituição. das no "seio carinhoso da familia" e perdendo-se
Todos fingem não vêr o drama silencioso da por todos os recantos da sociedade cristã.
"solteirona", o olhar vago, indefinido, esperando E ' o único premio merecido pelas vestaes do
sempre, com a mesma ansiedade dorida, o inespe- relicário da honra da santíssima instituição.
rado, o milagre da felicidade que lhe vae sendo E tudo isso, toda a ronda dolorosa das tristes
usurpada, cada dia representando um século no seu e das exploradas vem da sociedade moralitcista,
142 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escjavos 143
#
dos privilégios, da civilização nascida "no dia em
triste, irritante na sua ironia honesta, voltam para
que houve a partilha da terra, cabendo a uns o pão
sentar-se á mesa quasi despida, a comer, silenciosa-
e a outros a fome".
mente, no seio da miséria, do desconforto, do desa-
Para os poderosos, os ricos — o luxo, a osten- lento, da desesperança de apertar no coração a feli-
tação vaidosa, a ociosidade farta empurrando, as- cidade sonhada como nos contos de fadas.
tuciosamente, o proletário para a engrenagem voraz
E' a historia do D r a g ã o fabuloso, o Moloc da
do progresso, gosado apenas pelos donos da huma-
prostituição "necessária" a devorar as filhas dos
nidade escravizada ao salário.
proletários, interminavelmente, sempre insatisfeito
Os pobres? O proletariado? Responde na sua voracidade assombrosa de polvo descomu-
Schmidt: nal a deitar, por todos os lados, os milhões de ten-
"Depois de ter fabricado a arma que o fuzila taculos a se multiplicarem em proporções gigantes-
e a prisão que o encarcera, olhou para as mãos e cas á medida que cresce o progresso material e a
viu que estavam vasias. Protestou e prenderam-no. luta pela subsistência.
Tirou um desforro e fuzilaram-no. A historia do
povo, individualizada, é um desses contos do vigá-
rio que aparecem nos jornaes. Seria para rir, si não
custasse oceanos de lagrimas". Habituada a lêr meditando, a pensar profun-
Este livro faz doer o coração: é a tortura de damente o que leio, a lêr com o cérebro, com a ra-
todas as mocinhas pobres que levam chapéus e ves- zão, a lêr friamente — nunca para me divertir e
tidos modelos ás casas das Salomé, das Magdala, sempre para aprender, para penetrar os problemas
vêem o "champagne" espoucar doirado por sobre humanos — este livro me fez chorar, porque é a
toalhas de rendas e risadas sonoras de cristaes e dolorosa escalada através da torpeza de uma civi-
por entre os olhares lúbricos dos moços ébrios, dos lização assentada por sobre o vampirismo puritano
senhores bem vestidos e das mulheres cobertas de dos moraliteistas; porque é a angustia da fatalida-
jóias, quasi nuas, e, depois, voltam para o tugúrio de criada pelo egoismo sórdido do interesse econo-
Civilização — Tronco dc Escravos M">
144 Maria Lacerda de Moura

as armadilhas, preparou todas as tocaias, dissimu-


mico e bestial; é a descrição do macular de tudo
lou todos os fojos. Por fim, com o aperfeiçoamento
quanto deveria ser só beleza e liberdade e harmo-
dos sistemas, ergueu muralhas económicas onde
nia, no pantanal das ambições e das paixões baixas
de toda uma sociedade que tem o odor metálico do encurrala as vitimas, limitando o seu caminho en-
azinhavre e o "odor cruel" dos instintos sanguiná- tre a estufa venenosa e a rotula sombria. Criou o
rios. veludo e a seda, urdiu a moda, envenenou e colo-
riu os alcooes, criou a vertigem dos veículos, tras-
Esse néo-sadismo fez da sociedade inteira um
tejou palácios com divans de serralho, inventou a
imenso prostíbulo onde toda mulher não tem re-
sedução das jóias, das flores ricas, das peles exóti-
médio senão aceitar a imposição do senhor do co-
cas, colocou tudo isso muito alto e, sagazmente,
fre-forte, do banqueiro, do funcionário, do militar
como velho demónio, inventou uma classe de mu-
ou do diretor da repartição onde trabalha, do ge-
lheres ás quaes deu o privilegio de viver nessas es-
rente ou do capataz, do caixeiro-chefe, do filho do
tufas, com a tentação de todos os minutos: — si
fazendeiro ou do politico a quem vae pedir o meio
eu quizer, tudo isso pôde ser meu! — As criadas, as
de ganhar a vida, "honestamente" . . . pelo seu tra-
modistas, as chapeleiras, as floristas, as manicu-
balho.
r a s . . . A todas deu um ambiente de riqueza e só
Nos bancos, nos escritórios comerciaes, nas negou uma cousa: a riqueza.
casas de modas, nas confeitarias, por toda parte a
mulher é assediada, é perseguida, é acuada como si "São as mulheres criadas expressamente para
obedecesse a uma lei fatal, até cair em uma das o Dragão; ás vezes, nem a morte consegue torcer
armadilhas, das muitas que, em cada canto estão o seu destino.
preparadas para apanha-la, ou de surpresa ou pela "Cerca-as uma conspirata de todas as horas.
fome ou pela sedução do luxo. " A sociedade inteira trabalha para a perdição de
E' inútil tentar fugir. muitas mulheres. As meninas mais puras executam
"Impossível. O homem, apavorado ante a uma tarefa marcada. As senhoras de mais respeito,
gula do Dragão, estendeu todas as redes, iscou todas inconcientemente, realizam obra de alcovitice. A
146 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 147

lama espirrada pelo.; automóveis c o sorriso aristo- suave no descrever as torpezas dos civilizados, doce
crático ofendem, desvairam, enlouquecem." como é sem violência esse sacrifício inaudito de mi-
Seria preciso transcrever todo o livro, cheio lhões de mulheres expostas á compra nos mercados
de piedade. de escravas de todas as raças, nos balcões ou nos
E, para compensar o numero relativamente alcouces dos defensores da "honestidade" e da
insignificante de mulheres que alcançam o alto "virtude" burguêsa-capitalista. E é essa moral que
mundanismo das hetairas a governar o mundo atra- a "gente honesta" defende, que os "bons costumes"
vés dos banqueiros, senadores, coronéis da politica aí estão para manter, que a escola oficial e o cate-
e da industria — as milhares de prostitutas da cal- cismo assim ensinam, para maior gloria de Deus e
çada, das rotulas se estorcem no paroxismo dos da Igreja, da Patria e da F a m i l i a . . .
sofrimentos que gangrenam o corpo e amortalham São os "cavalheiros sérios e graves que ali-
a sensibilidade. mentam a prostituição por instinto, certos de que
Prostitutas! E por acaso não são também pros- a moral da sua época é como o "broucoíaque" da
tituídos todos esses coronéis e todos os moços bo- superstição grega, cadáver que vive a poder do
nitos e todos os homens que compram o prazer a sangue chupado aos vivos."
troco da dor? Por acaso, dentro desta civilização Moral que decreta "necessária" a venda do
de vampirismo haverá alguém que não se preste, que se convencionou chamar "amor", esquarteja-
que não tenha responsabilidade na organização so- dos todos os sonhos mais doces da mulher, que os
cial que compra e vende tudo, inclusive o amor, a acariciou certa de poder ocupar o seu lugar ao sói,
conciencia e o cérebro? pendurados os ideaes mais acalentados, nos har-
Quem terá mais culpa: a que vende ou o que péos dos magarefes da industria e da politica.
compra? N ã o ha mais para onde descer a brutalidade
Todos prostituídos, todos cúmplices do Dra- selvagem dos que se dizem civilizados.
gão voraz. E é imoral falar-se em substituir esses costu-
E este livro é escrito em estilo sem asperezas, mes ferozes por qualquer sistema de vida social
148 M ar i d Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 149

mais natural e, consequentemente, mais humano, Que nostalgia eu tive da Atlântida, meu ge-
mais livre. neroso Schmidt, quando l i "Les Pacifiques" do nos-
Todavia, queiram ou não, achem ou não imo- so grande e querido H a n Ryner, culto e genial ao
ral, só a liberdade no amor redimirá a mulher do transportar-se á civilização decantada por Platão
muito que tem feito sofrer á mulher. em o "Timeu" e estudada, pelos orientalistas e in-
Só a liberdade do amor trará ao género huma- vestigadores, como muitíssimo superior a tudo
no um pouco de paz, afim de poder transpor a es- quanto se possa imaginar hoje, ultrapassando todos
calada da evolução para uma finalidade social mais os limites da nossa barbaridade de civilizados mili-
digna de quem tão facilmente se julga o "homo sa- taristas, guerreiros de guerras movidas pela cupi-
piens". dez e alimentadas a álcool, a eter, a gazes asfixian-
tes, civilizados canibalescos e vampiros a se enrique-
cer á custa dos campos de batalha, civilização de
Em dois únicos pontos, aliás bem fora da tese hienas a alimentar-se de cadáveres de homens e de
social dessa novela encantadora e séria, não posso animaes.
concordar com o meu nobre e querido Schmidt. N ã o . Si houve uma Atlântida, o pouco de
N ã o diga mais, Schmidt, que os homens da bondade que ilumina o nosso altruísmo, a dedi-
Atlântida deveriam ser como os perversos que não cação dos que se sacrificam por um ideal, o nosso
sabem encontrar outra profissão a não ser a de as- anseio de subir até o Eu profundo, certo herdámos
sassinar animaes nos matadouros, para os que se nu- desses antepassados gloriosos de Sabedoria e Amor.
trem de cadáveres, trazendo as vestes a escorrer san- N ã o caluniemos aos que nos legaram a lâm-
gue e o rosto e as mãos fumegantes e enlameadas pada espiritual que nos aquece docemente em uma
na dôr das vitimas indefesas. esperança querida e que não morre nunca . . .
A Atlântida c um lindo sonho da civilização Foi aqui mesmo, foi dentro mesmo do nosso
do Amor e da Liberdade, perdido na noite dos ciclo de evolução que maculámos a vida ao criar
tempos. o dinheiro e ao captar a agua pura das fontes para
150 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 151

envenenar o coração, através do salário, e o corpo, Bataille, nesse trabalho nobre, largo, filosófi-
no fabrico de drogas, e, para aniquilar a inteligên- co, sincero, de poderosa envergadura mental, abor-
cia humana. Fomos nós mesmos que fizemos armas da o problema ético da luta entre os instintos infe-
e foram os homens desta civilização que inventa- riores e as possibilidades latentes dos humanos, o
ram a policia para provocar desordens e os "bons conflito dantesco entre a sensibilidade da matéria e
costumes" para pôr no "tronco" das rotulas as mu- a sensibilidade da intuição, a lendária pendência
lheres "perdidas", e foram os próprios homens que do homem consigo mesmo, a matéria e a razão
as "perderam" e as reduziram a escravas de ha- sensivel, Caliban e Ariel, batalha permanente entre
rém. a ideia e a ação, o embate entre o que somos capa-
Respeitemos a Atlântida como um lindo so- zes de sonhar nas alturas e a baixeza das realiza-
nho inatingivel. ções mesquinhas a que nos leva a herança dos rei-
nos inferiores.

As "ideias — Forças" E' a oposição entre os prejuisos, preconceitos,


mentiras, convencionalismos sociaes e a grandeza
O segundo ponto da minha divergência desse ampla dos nossos sonhos de liberdade individual,
grande escritor brasileiro é o que se refere a Ba- e as possibilidades heróicas do nosso constante vir-
taille. a-ser — para uma harmonia mais alta.
O teatro de Bataille é "um raio sem direção" São as "ideias - forças", propulsoras dos gran-
— disse Schmidt. des acontecimentos éticos, as flâmulas inspiradoras
O conceito de Afonso Schmidt a propósito da dos génios. Ideias independentes de todos os erros
magnifica obra de Bataille não se harmoniza com e crimes de lesa-humanidade. Ideias que pairam al-
a minha imensa admiração pelo teatro genial desse to, ideias motoras, ideias projetadas dentro de nós
Artista precursor, criador da beleza, disseminador mesmos, emanadas de toda parte, em todas as épo-
de energia e serenidade. cas, ideias entidades a nos fazer pairar acima da
Vejamos, por exemplo, "Les Flambeaux".
152 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 153

vulgaridade, num sonho colhido em alturas inco- no diapasão dos preconceitos e da selvajaria de-
mensuráveis. gradante.
Depois de alcançar tanta luz, o homem res- Bataille nos aponta os estragos, as tormentas,
vala, envolvido no fogo-fatuo sedutor do sensua- as amarguras, as angustias derivadas do instinto
lismo, apanhado nas malhas resistentes da influen- de propriedade que encadeia duas criaturas na ge-
cia ancestral, enovelado nos erros seculares dos sen- hena da escravidão de si mesmas.
timentos colectivos e procede com a mesma vileza E ' o problema do amor.
e dentro dos mesmos motivos da imbecilidade hu-
E, principalmente, a ideia de que, através de
mana.
um beijo, duas criaturas não se podem inutilizar
De novo o remorso de decer tão baixo e o es- no exclusivismo do instinto de propriedade e nem
forço heróico de subir mais alto. diminuem na sua conciencia.

E Bataille estuda essa luta interior, criando O amor e a conciencia pairam mais alto, e o
tipos de profunda psicologia, entre cenas de tal no- encontro casual pode revelar um minuto de beleza
breza, de tal ternura, de tal sensibilidade, de que ninguém deveria renegar, porem, pode não ser
tal grandeza ética e de tal torpeza na vulga- amor, e, cada criatura deve ser livre de viver as
ridade do instinto de dominismo social — que suas horas, todas as suas emoções.
faz pensar na inutilidade do apelo ao rebanho hu- Ideia defendida corajosamente por Bataille,
mano . . . e na evolução do individuo, na evolução contra o preconceito da monogamia criminosa que
apenas da unidade individual. faz com que até os homens de génio se nivelem á
E ' penetrante, grave no seu recolhimento ao bestialidade feroz dos que se batem e se mutilam e
estudar o magno problema humano no heroismo se estraçalham em nome do Amor.
de subir, mais e mais, acima dos tormentos inven- Para a sabedoria de Bouguet, o gesto fisico
tados pelo constrangimento social na sua faina de nada representa.
decretar costumes emoldurando todas as criaturas Para o instinto de dominismo, de autoritaris-
Civilização — Tronco de Escravos
154 Maria Lacerda de Moura
ções criminosas do mundanismo e virar o rosto para
mo, de propriedade de Blondel, o gesto fisico é
a luz interior — que bela realização!
tudo.
E a mais idiota das convenções — o sangue
Ambos cientistas, ambos investigadores do reparador da honra, da vida, a mais perversa das
mais alto problema de humanitarismo. convenções sociaes — quantos crimes de iesa-felici-
E ambos descem á vileza de se bater em duelo, dade humana perpetra a cada instante, em nome
esquecendo a sua pura amisade e a colaboração do Amor!
mutua, por causa de um gesto fisico, recordando
a atitude bestial dos primórdios da evolução hu-
mana.
Equilibrar as forças da vida — é o sonho de E' no segundo ato de "Les Flambeaux" que
Bouguet, o seu grito lancinante, apelando para a Henry Bataille, na cena V I , resume a ideia da peça,
amisade, para a ternura de Blondel. no dialogo entre Hernert e Bouguet.
Pôr de acordo a vida e o pensamento, que cou- . . ."de estrela em estrela, todo o pensamento
sa difícil! humano . . . como si, desagregado, porem, jamais
Elevar-se acima da mediocridade de toda a perdido, vivesse realmente acima de nós e formasse
gente, acima dos prejuisos e da rotina — para pen- esse grande nimbo universal que nos arrebata para
sar nobremente; acima do atavismo selvagem, dei- fins de luz ou de serenidade... Dessa contempla-
xar de ser a besta gregária, para sentir uma indivi- ção profunda, veio a paz.
dualidade no fundo do sêr independente e livre e " N ã o chorei mais. Desde então encaminhei-
esquecer todas as "mentiras vitaes" da sociedade me como vós, como tantos outros, para infinitos
para ser apenas o criador de beleza interior, o acu- mais numerosos . . .
mulador de riquezas, despertando possibilidades
" N ã o havia mais carne: minha dor perdia-se
latentes; viver ideias nobres, subir em vez de descer
no espirito universal!
por entre as abjeções e os desvarios do mundo so-
cial, chegar ao pé dos abismos fataes das conven-
156 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 1^7

" A alma suprema consolou minh'alma de ho- "Les Flambeaux" é uma amostra desse raio
mem." atirado em direção bem determinada. Ainda no dia-
logo entre os dois sábios amigos, entre Bouguet e
São as flâmulas, as "Ideias - Forças", na sua Hernert, os dois cérebros e os dois corações que per-
órbita imensa em busca da Harmonia Infinita que correm a escala do amor em sentido inverso, um
é o Amor, bem acima de todos os resíduos deixados começando pelo amor fisico, passando ao sentimen-
pela alma humana na sua escalada para um "de- tal e em seguida ao cerebral, e o outro iniciando-se
venir" sempre e cada vez mais alto. no amor mental, através de um ser superior, a com-
N ã o , meu caro Schmidt, o teatro de Bataille panheira das suas investigações, e acabando por
não é "um raio sem direção". descer ao amor sensual já no virar da encosta da
Pelo contrario, si o teatro de Bataille viesse vida; em o belo e profundo dialogo, poderíamos
substituir "Ra-ta-plan" ou "Ba-ta-clan" dos nossos acompanhar a direção desse raio genial, afirmando
palcos de pantominas e cretinices e pernas á mos- que, acima de tudo, acima da própria fatalidade,
tras sob o nome pomposo de " n ú artístico" — é que acima mesmo do Amor, do sofrimento, até acima
o nosso publico estaria á altura do verdadeiro tea- da vida, no sentido limitado que a vemos — "ha
tro. Mas, Bataille não pôde ser assimilado pelo pu- a majestosa liberdade do pensamento", e, "desde
blico que quer rir até as orelhas para não pensar, que se está inclinado sobre todas as possibilidades
esse publico que frequenta as "variedades" para imensas do espirito, vê-se que a ideia precede ao
tomar aperitivos . . . ato. Então, que vem a ser o terror, o amor, a dor?
Resíduos, despojos da ali.ia em marcha ou do pen-
Pelo contrario, todo o admirável trabalho de
samento u n i v e r s a l . . . "
Bataille é imaginado dentro de um plano extraor-
dinariamente concebido, estudado sob os aspectos N ã o é o momento oportuno para comentar o
mais profundamente humanos, que Bataille não faz sentido profundo desse pequenino trecho de uma
psicologia barata de cordel ou de costureirínhas, grande mentalidade. Mas, si os teatros se movimen-
psicologia a Paul Bourget, defensor do passado. tassem na direção desse raio conciente, si as pia-
158 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos IV>

teias desta sociedade, em plena decomposição, esti- feito, ao deus hediondo da religião, ao Moloc da
vessem á altura desse raio de luz, certo seria um moral e dos "bons costumes".
meio, o teatro, de nos afastar da rotina, dos pre- Este livro é delicado como é delicado o sofri-
juisos seculares fossilizados em nós como os me- mento das sacrificadas: é um beijo na dor imensa,
nhirs ainda hoje encastoados á terra, onde a pre- na dor perfurante de quem se dá em holocausto,
historia os enterrou. sem um protesto, sem violência, conciente ou incon-
cientemente, talvez sem mesmo saber que a felici-
dade ou o bem estar ou a segurança de algumas
ou de milhões de mulheres contra a luta económica
Mas, essas duas pequeninas divergências nada — é fruto do martírio inominável das insatisfeitas,
teem que vêr com o meu entusiasmo por este livro, das que são devoradas irremediavelmente, pelo Dra-
que eu desejaria na mão de toda gente. (1) gão, martírio de animaes de tiro na sua profissão
Que vontade eu tenho de citar paginas e pa- indesejável de nunca receber senão pedradas que
ginas de " O D r a g ã o e as Virgens", em que se re- a moral lhes atira, e dar sem tréguas, sem mesmo
flete a dor, a angustia, o grito lancinante das que pretender ouvir a delicadeza do agradecimento.
vão, mudas, tristes, silenciosas, subindo a encosta Quantos tipos de "Pureza", de alma cândida
— para servir de pasto ao Dragão sempre insatis- se arrastam por aí a fora, enguíindo as lagrimas
através do sorriso doce de quem derrama no cora-
(1) Acabo de saber que "O D r a g ã o e as V i r g e n s " ,
quasi toda a e d i ç ã o , na m ã o de um intelectual-comer- ção de cada transeunte o perfume macio e leve de
ciante, f o i vendida a 100 reis o k i l o , para as fabricas de
papel de S ã o P a u l o ! . . . Assim, esse l i v r o magistral, con- uma caricia — sem receber em retribuição nem ao
tinua i n é d i t o . Parece i n c r í v e l ! Que teria ganho com
isso esse comerciante, s e n ã o continuar a campanha de menos o gesto humano de um aperto de mão fra-
silenco em torno de uma mentalidade l i v r e ? Talvez nem
saiba disso Afonso Schmidt. E u mesma, si o tivesse ternal.
sabido a tempo, o evitaria, arrematando-lhe toda a edi-
ç ã o ( t a l o p r e ç o ! . . . ) para d i s t r i b u i - l a no extrangeiro, E quanta "Pureza" morre por aí, nos bordéis
j á que nesta t e r r a o destino de certos l i v r o s de valor
é v o l t a r á s fabricas de p a p e l . . . si chegam a ser i m - e nos lupanares . . .
pressos.
160 Maria Lacerda de Moura

E quanta Messalina "virtuosíssima", piedosa


e casta, no seio da sacratíssima instituição da fami-
lia legal e moraliteista . . .

EVOE'!

"Le corps humain mérite d'autres


apothéoses que celles de la prostitution"

Edouard Rothen.

Pondo de parte os gritos das bacantes arrepe-


ladas, em honra do Dionisos popular, não do Dio-
nisos-ApoIineo; deixando, mais distante ainda, a
significação astronómica do Carnaval em data pre-
fixada; esquecendo a sua origem iniciática, simbo-
lizada nos rituaes dos antigos mistérios; sem re-
montarmos ás festas dos druidas gaulezes, sob a
majestade dos carvalhos seculares, na época da co-
lheita do visgo; ou ás saturnais, ás festas do boi
Apis, ás bacanais, ás lupercais, e, na idade média,
ás festas do "Asno", dos "Loucos", e dos "Inocen-
tes" — festas e divertimentos cristãos, não menos
162 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos IM

licenciosos que as lascivas do paganismo decaden- á lubricidade carnavalesca, tanto quanto aumenta
te, "joyeusetés cléricales" realizadas não só nas a cifra das novas levas de prostitutas.
igrejas como nos conventos de ambos os sexos...;
As crianças! Afora o martírio dos "disfarces";
deixando todas essas manifestações de alegria rui-
afora o suor sob as mascaras portadoras de infec-
dosa e desordenada, ou restos prostituídos de sím-
ções e imundícies, ou das "fantasias" para os bebés
bolos de dansas religiosas ou conhecimentos astro-
que nada podem apreciar ainda e que são sacrifi-
nómicos nos altos rituais iniciáticos dos egípcios ou
cados ao prazer criminoso dos adultos inconcientes,
dos caldeus e que, por sua vez também significa-
martirologio admiravelmente descrito por Mme.
vam reminiscências da maravilhosa civilização de
de Girardin em "Les petits martyrs du Carnaval",
que falam os apologistas da Atlântida; sem procu-
em "Lettres parisiennes"; afora os inconvenientes
rar penetrar o sentido profundo, astronómico, cien-
do mal estar provocado pelas vestes justas, feitas
tifico da origem da mascarada carnavalesca, perdi-
ás pressas, beliscando aqui e ali, engomadas, cheias
da na noite dos tempos — trataremos do nosso car-
de Ientejoulas, alfinetes espetados á ultima hora,
naval, do carnaval de hoje, do carnaval carioca, sob
guisos de carregação, prontos para lhes arranhar
o ponto de vista higiénico: higiene do corpo, higie-
as carnes tenras; afora esses e outros pequeninos
ne individual e social.
inconvenientes para os que buscam divertir-se e pro-
Si fizéssemos, no Brasil, uma estatística da curam a cumplicidade até mesmo das crianças para
mortalidade infantil, da mortalidade da juventude, os seus desvarios — imaginemos os resfriados, as
da idade madura e (porque não?) também da mor- pneumonias, as gripes, todas as moléstias das vias
talidade dos velhos (são os mais influídos no respiratórias: vestes decotadas, os braços nus, a ca-
Rio de J a n e i r o . . . ) , estatística detalhada, cui- becinha resguardada apenas pelos caracóes que cus-
dadosa, tres meses antes e tres meses consecutivos taram, talvez, uma noite agitada, sob o aperto dos
depois do Carnaval, certamente as cifras dos sacri- papelotes amarrados convenientemente . . .
ficados aumentariam num crescendo proporcional E o lança-perfume nos olhos, determinando
sérias moléstias do aparelho visual?
164 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 165

E as inflamações nos ouvidos, pelo mesmo mo-


população cheirando desagradavelmente, embria-
tivo? gada de álcool, de eter, de baixezas, de más inten-
Imaginemos as bronquites com todas as suas ções, da luxuria despertada, cultivada na licença
consequências para a vida inteira, as noites mal dos tres dias do ano, em que toda gente tem o di-
dormidas, o sistema nervoso agitado, a fadiga, o reito de arrancar a verdadeira mascara, a mascara
estômago sacrificado por uma alimentação de ul- da hipocrisia social.
timo momento: pasteis comprados em qualquer
Imaginemos a atmosfera sensual, a irradiação
confeitaria ou taboleiro de rua, "bonbons" adqui-
de todas as forças do "eu" inferior, a lascivia dos
ridos ás pressas á porta dos botequins improvisados,
faunos e das "kundri" tentadoras envolvendo, ali-
sob uma nuvem de poeira alevantada em um pu-
mentando, excitando, aureolando as crianças que
nhado de confeti!
choram maltratadas ou que também se divertem,
Imaginemos a insensatez dos pais jovens que inconcientemente, ao lado dos pais — tão incon-
buscam divertir-se, custe o que custar, e que con- cientes quanto os pequeninos, e alucinados no delirio
duzem criancinhas de peito até as calçadas e as ar- das multidões envolventes, sob o impulso irresistí-
rastam, no torvelinho louco do seu desequilibrio, vel dos instintos adormecidos de feras acorrentadas.
ás batalhas de confeti e lança-perfumes e ao rodo-
E ' o lado orgânico e o lado ético: é a degene-
pio das correrias desvairadas, aos assaltos desen-
recencia do corpo e o desvirginar da alma.
freados da bacanal carnavalesca.
Aonde os higienistas?
Imaginemos o que vae de reação formidável
E ' a tuberculose voluteando no ar, por entre
pelo organismo dessas crianças, defendendo-se da
os punhados de confeti e os salpicos de salivas; é
impureza do ar empoeirado, cheio de eter, de par-
a sifiles transmitida direta ou indiretamente, em
tículas húmidas dos salpicos de saliva, espirrados
um momento propicio ao descuido dos mais caute-
no meio dos gritos, dos cânticos, do vozerio ator-
losos; é o vicio inoculado sorrateiramente; c o ál-
doador, misturando, cada qual, o seu hálito com
cool, a avariose e a tuberculose — os tres grandes
o hálito irrespirável de toda gente, de toda uma
males sociaes, evitáveis portanto; é a degenetecen-
166 Maria Lacerda de Moura 167
Civilização — Tronco dc Escravos
cia orgânica, o crime, a miséria a espreitar por entre Iidade, o sensualismo, o que é vulgar e leviano, ca-
os rolos da serpentina tentadora, por entre o pó taventos sociaes, sois vós, ó "raffines" dos salões,
dourado e o confeti esparzido pelas mãos nervosas do mundanismo ou dos bordeis de ultima hora, sois
dos namorados excitados e dos conquistadores sen- vós os assassinos moraes de todos os pouquíssimos
suaes. "pierrots" do Sonho e da Beleza!

Que é o Carnaval senão a busca de aventuras Sois vós, ó arlequins e colombinas da civili-
galantes, o anseio de liberdade, a procura do pra- zação da ociosidade e do parasitismo de uns e do
zer sexual, de novas experiências amorosas? sacrifício heróico da maioria, ó palhaços deste circo
E a prova é que namorados e casados, não po- imenso movido pelo dólar e pelo sensualismo sifi-
dendo satisfazer-se integralmente em toda liberda- litico, sois vós, o superficiaíismo, o que constitue a
de dos sentidos e dos desejos — voltam arrufados, sociedade exigente, medíocre, torpe, que mata a
desiludidos, enciumados, coléricos, insatisfeitos . . . felicidade no coração dos indivíduos, que explora e
Após o Carnaval ha rompimentos e tragedias oprime, que escraviza, servilmente, cada um dos
de toda sorte, e maridos e mulheres maldizem a seus membros e faz da familia uma instituição para
excitação — porque só conseguiram excitar-se sem aniquilar as energias individuaes; que exige a ven-
chegar á suprema alegria da liberdade integral. da do corpo feminino — das mulheres e das f i -
Porque não são tres dias que ensinam a ser lhas . . . dos outros . . . como muralha de resistên-
livre: a concepção da liberdade é subjectiva e quem cia em favor da sagrada instituição organizada do
se escraviza á moral social, mesmo de mascara e matrimonio e da virgindade do corpo — para as
disfarces — é escravo do ambiente em que vive e suas filhas e irmãs; sois vós o que constitue esta ci-
servil aos seus próprios prejuisos. vilização que decreta "necessária" a prostituição —
como meio de defesa dos augustos princípios da
Abençoada chuva que vem apagar o pó e ar-
moralidade publica!
refecer o ardor das "pierrettes" e dos "arlequins"
gulosos.
*
"Arlequins" e "Colombinas" — ?. super ficta-
168 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos I6V

E a mulher não sente, não vê como é depri- Nada mais lógico, nada mais coei ente.

mente, humilhante a nossa condição de mulher — Si um filho é um incidente ou acidente . . . na


dentro deste regimen de arlequins e apaches, de vida, empurremo-lo também para adeante, que nos
"pierrettes" e "souteneurs" e proxenetas, colombi- deixe em paz com as nossas prerogativas de brutos
nas e principes arruinados e salteadores, toureiros essencialmente gosadores e insaciáveis.
e capatazes, tropeiros e fidalgos a Luiz X V . . .
E mais ainda: é preciso atordoar as crianças ***
afim de que não vejam e nem procurem analisar
os nossos desmandos. Essas ruidosas manifestações do anseio de l i -
E' a educação da cumplicidade. berdade para gosar os prazeres materiaes, em deter-
Os bailes infantis não teem outro objetivo. minadas épocas prefixadas no Calendário, é a vál-
N ã o ha uma finalidade artística nem a preocupa- vula de escapamento necessária ao equilíbrio da
ção da beleza. N ã o é a dansa de Isadora Duncan — moral social de compressão e de servilismo aos pre-
a suprema invocação estética para a busca de si juisos estabelecidos.
mesmo na interpretação divina da musica em todo Mea culpa... T a m b é m eu, na minha juven-
o esplendor do ritmo e da harmonia. Nada disso. tude cheia de fé e entusiasmo, ardente de lirismo e
Os filhos tornam-se cúmplices dos pais. Tam- ilusões, amei o Carnaval sem nunca ter conseguido
bém se embriagam com o eter dos lança-perfumes, me divertir, sem nunca ter conseguido essa liberda-
rodopiam nos tangos sensuaes c acordam, cedo, os de que eu sonhava no ambiente rotineiro e mora-
instintos adormecidos na carne. leteista em que sufocavam todas as minhas mais
E' necessário tudo "empanturrar" no festim altas aspirações.
das orgias, adormecer a sensibilidade, matar o senso E quando encontrei uma "sublimação" mais
artístico, sufocar a razão, porque assim, não tere- elevada através do pensamento e através de o con-
mos testemunhas importunas e não ouviremos ver- fessar publicamente, então, v i claro todo o desper-
dades desagradáveis. dício de energias gastas inutilmente nos folguedos
170 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 171

carnavalescos — atrás de uma liberação impossí- sualismo, de vicios e de baixezas, bestas humanas
vel, porquanto os prazeres materiaes e ruidosos são para virem perpetuar a degenerecencia e as loilCU*
impotentes para mitigar toda a nossa sede interior ras de uma civilização deprimida, exausta de erros
de liberdade, mas dessa liberdade integral, razão e crimes de Iesa-felicidade individual.
e causa de todos os nossos mais belos anseios de E a morfina?
realização interior. E o eter?
Desde que aprendi a pensar e fiz nascer den- A cocaína?
tro de mim a coragem altiva de pensar em voz alta, O caftismo?
nunca mais senti a necessidade de atar a mascara As tragedias?
social da moral carnavalesca. As cenas de ciúmes?
E as indignidades das alcovas e dos bordéis?
E a avidez de novas sensações alucinantes?
E a embriaguez habitual dos carnavalescos
E é no Carnaval que essa mesma sociedade desenfreados?
moraliteista, farisaica, recruta uma nova leva de E os filhos dessa bacanal?
mulheres moças, de carne virgem e sadia — para E as dansas lascivas e a excitação das "jeu-
a voragem dos lupanares, que socializa outras fon- nes-filles", a provocação dos ataques de histerismo
tes de prostituição para substituir a carne cansada e nevróses provindas da "Censura" moral, e os vi-
e apodrecida dos "cabarets" e dos bordéis. cios inconfessáveis de uma sociedade a estourar de
E ' no Carnaval que se abrem, mais fartos, os hipocrisias e perversidades?
antros de venda da carne feminina e em que mais O Carnaval é a negação absoluta da higiene
se propaga ainda a sifiles, em todas as classes so- do corpo e da higiene da vida interior.
ciaes, direta ou indiretamente, pelo contacto das E' a absoluta negação de tudo o que é belo c
ruas, dos cafés ou das alcovas e que se concebem nobre no coração humano.
pobres filhos da orgia, carnes carregadas de sen- E ' a suprema negação do próprio Eu no acor-
172 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 173

dar da besta que dorme nos abismos profundos do dos nossos deuses, dos deuses que passeiam solitá-
sub-conciente. rios por entre os parques silenciosos dos nossos
sonhos.
E' a revolta do ser inferior procurando aba-
far toda a nossa natureza superior, todas as facul- E' Caliban astucioso, mascarado como sem-
dades latentes da individualidade na escalada da pre, imerso na hipocrisia absorvente de umas horas
evolução para fins mais altos. que devem ser totalmente aproveitadas contra o
Ariel do Sonho, do Amor e da Beleza.
N ã o ha duvida que o Carnaval é um gesto de
revolta, mas, si é a revolta contra a opressão da mo- A felicidade, a alegria verdadeira não pode
ral social, não reivindica direitos mais altos; é a ser procurada no ruido exterior, nas dansas lasci-
revolta inferior que quer a conquista banal de um vas, na embriaguez do álcool, do eter ou dos senti-
momento ruidoso da orgia de instintos que se não dos na volúpia de ocasião, nas baixezas das calça-
podem dominar senão pela brutalidade da moral das ou no redomoinho das cidades industriaes, no
de rebanhos e domesticidade e servilismo. luxo absorvente ou na ociosidade comodista dos
O Carnaval é a festa dos acarneirados da or- fartos e dos aventureiros.
ganização social de moraliteistas e proxenetas do Tudo isso, no fim de contas, deixa um gosto
rebanho humano. amargo na boca e o vazio terrível do coração.
E quanto tempo perdido, quanto atraso nessa A felicidade, a alegria verdadeira só pôde vir
carreira evolutiva, durante o período tumultuoso de nós mesmos, da nossa vida interior.
de exterioridades nocivas ao individuo e á socieda- O instrumento para fazer vibrar, em nós, o
de, nesse periodo de delírio erótico, nessas horas de prazer de viver — é o nosso corpo, não ha duvida.
loucura e de orgias desenfreadas! O corpo, dominado por uma vontade epicurea, não
E ' como si uma onda negra de sensualismo sibarita, é instrumento da volúpia mais alta do pra-
baixo de vilezas obscurecesse o céu sereno das nos- zer integral.
sas alamedas interiores. Mas, o corpo, o sensualismo predominando por
E' o adormecer da razão, é a morte provisória sobre a razão, é a lamina de dois gumes.
174 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 175

Só uma vida simples, serena, delicada, o ar semi-núas e arrepeladas, sempre prontas a matar
puro, o banho revigorador, a saúde do corpo e o Orfeu . . . — não faz senão adormecer o eu la
bem estar geral, o funcionamento normal do orga- tente, caminho único por onde nos podemos ele-
nismo — para o máximo proveito de todos os ór- var ao Olimpo de nós mesmos.
gãos e de todos os sentidos; só o equilíbrio fisico e Horas perdidas de sono revigorador, organis-
uma energia perseverante, bela, ativa, voltada para mos envenenados pelo álcool, pela lascívia, pela
tudo que é nobre e digno; uma razão que saiba fe- sifiles, pela avidez, pelas misérias físicas, pelos "pe-
char os olhos para sonhar e traze-los bem abertos cados fisiológicos" e pelo declive moral, crianças
para dominar os impulsos inferiores — sem julgar degenerando-se ao contato do pó das calçadas e
pecado ou imoralidade o que a natureza exige das ao contato dos exemplos edificantes de toda essa
criaturas para a perfeita harmonia do corpo e da bacanal — fonte de destruição das energias indi-
mente; só o individuo que sabe tirar partido do seu viduaes — é a isso que chamam divertimento, que
corpo como de uma harpa eólea para resoar toda denominam gozo e prazer requintado.
a beleza, toda a euritmia de que é capaz; que saiba Pobre civilização!
refrear os impulsos da besta-féra adormecida nas N ã o és mais do que esse confeti dourado, um
criptas do subconciente, — só esse individuo pôde pouco do pó cintilante com que a espuma social
chegar a conhecer a verdadeira alegria, a verdadei- exterioriza a vida fictícia dos salões da alta e da
ra felicidade em toda a sua sagrada plenitude, só pequena burguesia de funcionários e proletariado
elle tem a chave desse "segredo aberto" . . . inconciente ou a espetaculosidade ociosa do luxo.
E o Carnaval, com o seu ruido ensurdecedor, N ã o és mais, pobre* civilização do dólar, que
com os seus guisos e pandeiros, os toques vibrantes a responsabilidade da morte orgânica e da morte
dos clarins rubros de sensualismo provocador, a moral de cada célula humana arrebatada, pela pró-
embriaguez dissoluta das cores gritantes misturadas pria imbecilidade cultivada, no torvelinho embria-
loucamente e dos vicios amalgamados, os gritos lú- gador da eterna mascarada da vida social.
bricos dos faunos de todas as idades e das bacantes Evoé! Evoé! — é o grito de todas as época i
176 Maria Lacerda de Moura

de decadência, amortalhando a beleza no coração


adormecido dos que ainda não tiveram a força ne-
cessária para o despertar interior.
Pobre carne humana destinada a alimentar a
boca escancarada dos canhões ou as mandibulas
BÔA SORTE — C A D E I A PERPETUA"
profundas e vorazes dos prostíbulos!

Durante a guerra, lembro-me de haver rece-


bido, por tres ou quatro vezes, uma folha de papel
sob a denominação de Cadeia da Sorte, Cadeia
Perpetua ou cousa parecida. Os dizeres eram mais
ou menos os mesmos e as recomendações, termi-
minantes: quem rompesse a Cadeia, estaria des-
graçado.
E era dever, tirar sete ou nove copias e reme-
te-las imediatamente ás pessoas das relações. Acon-
tecia que a mesma cadeia vinha parar ás mãos de
determinada criatura duas ou tres vezes.
Lembro-me ainda que os taes papeis dirigidos
ao meu nome, nas minhas mãos paralisavam-se.
E pessoa da minha familia horrorizava-se á
ideia das grandes desgraças a se despenharem por
sobre o meu destino.
Pois não é que me aparece de novo a tal
Cadeia da Sorte?
N ã o teria importância o acontecimento, si
178 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 179

não fora a novidade sensacional dos nomes trazi- "Dados concretos.


dos como éíos sucessivos dessa corrente supersti-
ciosa. " O Sr. Ruiz deve a sua fortuna o fato dc ter
Fiquei boquiaberta! Homens de responsabili- comprido (!) o executado com o presente exata-
dade, engenheiros, bacharéis, médicos, professores mente. O D r . Albary, de Vitoria, obteve em 20 dias
tiveram receio de atrair a desgraça para si, pelo o premio de 20 mil pesos. O D r . Gomes, ao justo
simples fato de não passar adeante uma folha de tempo de ter comprido (!) as prescrições desta Ca-
papel cheia de dizeres que nada dizem senão da deia, obteve o grande premio da loteria no valor de
fraqueza supersticiosa do rebanho humano. 600 mil pesos. O D r . Francisco Montes, de Oce,
não levou a serio esta cadeia, e, nos 9 dias depois á
Senão vejamos as expressões da
te-la (!) recebido, arruinou a sua casa. O sr. sabe-
rá o que melhor lhe convém. Que Deus o auxilie
"Boa Sorte — Cadeia Perpetua" (1) e guarde.

"Tire nove copias e remeta á 9 pessoas á que


"Cadeia da Sorte
V . S. deseja boa sorte. Esta cadeia foi iniciada por
um Coronel do Exercito Americano e tem de dar a
" D r . Braz Arruda ao D r . Plinio Cardoso e es-
volta ao mundo tres vezes. Faça-a depois de 24 ho-
te ao D r . J. Ignacio Fonseca, e este ao D r . Miguel
ras recebida, sendo possivel, e não rompa esta ca-
Presgreave, e este á prof. Eunice Caldas, e esta ao
deia, pois se romper, persegue-o seu destino e asse-
Dr. Américo Nano, e este ao prof. Fausto Souza,
gura a sua ruina. Conte 9 dias depois de tirar as
e este ao prof. Victor Gramada, e este á José Fon-
copias e durante esse tempo receberá um beneficio
seca, e este á Luiz Fragoso, e este á Erothides de
e senão um descontentamento.
Campos, e este á Adoípho Silva, e este á Benedicto
(1) O' Manes de C a m õ e s ! . . . Respeito todos os D . Coutinho e este á Francisco Andrade e este á
acentos no a, os atentados á lingua, i n ú m e r o s , desco-
munaes. D . Izidora Amaral Corrêa, e esta á D . Lauriml.»
180 Maria. Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 181

Teixeira da Silva, e esta á D . Isabel Camargo, e Procurei, em vão, a corrente. N ã o achei A


esta ao D r . João C. Bueno dos Reis e este ao D r . primeira parte ensina o que se deve fazer, e como.
Benedicto Estevão dos Santos, e este ao D r . Sócrates A segunda parte narra a sorte dos que cum-
Fernandes de Oliveira, e este á Alfredo Cunha priram fielmente, de olhos fechados, as obrigações
Ribas, e este á Carlos Real Evans, e este á Attilio estipuladas na primeira, e conta a desgraça do que
Lessa, e este á Orlando de Barros, e este ao D r . Ben- não levou a sério a cadeia. Nomes truncados de
tes Lucas Cardoso, este á João B . Rocha Freire, gente não identificada, mas, a crendice humana é
este á Gustavo Adolpho Berger, este á D . Maka- infinita, e isso é o bastante.
fronte, esta ao D r . José de Alcantara Pepe, este A terceira parte contem a lista dos nomes ou
ao D r . José Piedade, este ao D r . Carlos Guimarães éíos dessa cadeia perpetua.
Júnior, este ao D r . Lazaro de Camargo Almeida, Aonde está a corrente? Que é que se deve di-
este ao D r . João Baptista Parmigiani, e este á D . zer ou entender? Aonde as palavras sacramen-
Ermelina Parmigiani Ferreira e esta a D . Maria taes?... Em que consiste a corrente?
Lacerda de Moura.'' Ponto f i n a l . . . As Cadeias da Sorte espalhadas durante a
guerra, eram muito mais coerentes.
* Tinham um objetivo. Manobra dos aliados.

** Contavam aparições fantásticas de guerreiros


de couraça, iluminados de fé na vitoria dos exe«r-
Que me perdoe e me desculpe a amável Sra. citos aliados "em defesa da civilização"!
Ermelina Parmigiani Ferreira, a quem não tenho Impressionavam pela aventura do Coronel X
o prazer de conhecer, mas, a cadeia agora está sem (sempre americano...) ao conversar com Jeannc
elos. D o meu lado não perpetuo a ingenuidade su- d'Are ou com um cavaleiro branco num cavalo
persticiosa de fazer "a volta ao mundo 3 vezes" em preto, a dirigir as altas patentes do Quartel Ge
uma folha de papel incoerente a ponto de não dizer neral Chefe dos Exércitos Aliados. Cada Corrente
o que se propôs dizer. seria um élo de simpatia para as forças americanas,
182 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 183

francesas, inglesas, etc, contra os "bárbaros" ale- deia, contendo apenas uma noticia vaga dessa ma-
mães, contra os "boches", contra os "mutiladores" neira de sugestionar, tão ao sabor da infantilidade
das crianças belgas, contra o AntiCristo, em suma, norte-americana, mesmo assim, continua a ser trans-
contra a concorrência de "Made in German" . . . mitida pelos nomes citados.
Havia expressões retumbantes de patriotismo Parece incrível!
e confiança em Deus, no Deus dos protestantes e Conheço os nomes de alguns dos signatários.
católicos americanos, naturalmente contra o Deus Será verdade que tenham assinado semelhan-
dos protestantes e católicos alemães, pois que, cou- te ingenuidade?
raçados e aviões, submarinos e bandeiras — tudo
E essa gente não viu que não ha Corrente?
era abençoado pelo respectivo Deus de cada nação.
Que não ha nada que justifique a preocupação
Mas, ha um Deus católico francês e um Deus ca-
simplória dos 9 dias e das 9 pessoas e das desgra-
tólico italiano que não chegarão nunca ao acordo
ças e das sortes?
definitivo, assim como, durante a guerra, o Deus
E ' sempre a preocupação absorvente do di-
dos ingleses e americanos era inimigo do Deus ale-
nheiro como o fator único da felicidade!
mão.
Custo a crer que pessoas de certa responsa-
Segredos da diplomacia e da politica clerical, bilidade mental se deixem levar por taes abusões.
e que nós outros, leigos, nunca chegaremos a bem Antes, se me afigura que as taes cadeias são
perceber. copiadas e distribuídas por pessoa muito ingénua
Finalmente, a Cadeia da Sorte espalhada du- da familia dos signatários.
rante a guerra, tinha um fito: angariar pensamen- Mas, a sua aquiescência?
tos de simpatia e entusiasmo em torno dos feitos E é assim que se perpetuam todos os erros so-
e da vitoria dos aliados. ciais. Preconceitos, prejuisos, rotina, todos os cri-
A que acabo de receber, está já pela metade, mes de lesa felicidade humana são transmitidos de
mutilada na ideia e esfacelada na forma, porem, geração em geração, inconcientemente, através da
mesmo assim, aos pedaços, mesmo sem ter a Ca- tradição das Cadeias da boa sorte.
184 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 185

N ã o é preciso raciocinar. O gesto de repetir o papel e o tempo. Essas 9 pessoas gastaram só


é fácil. de selos 16$200; as outras, já em numero de 8 1 ,
E a Cadeia da Sorte dá a volta ao mundo gastarão de selos, 145$800; depois, já serão 729
muitas vezes, séculos e séculos, milénios e milénios, pessoas e 1:312$200; depois, 6561 pessoas e
incubadora de "verdades mortas", a arrastar cadá- 11:809$800; depois, 59049 pessoas e 106:288$200
veres insepultos, a cultivar "mentiras vitaes", e,
Isso é apenas a amostra. Imaginemos a que mi-
todos repetem, e todos divulgam, e todos transmi-
lhões nos conduzirá o calculo. E a energia? E o
tem, doutos e doutores, cultos e iletrados, livres
papel? E o numero de pessoas ocupadas nos Cor-
pensadores de rebanho e as almas simples dos reli-
reios?
giosamente cristãos, todos se dão as mãos para a
conservação inalienável dos elos das correntes de E ' dinheiro para os cofres do Estado.
erros e crimes de lesa-felicidade humana. E, em que é aplicada a soma de toda a imbe-
cilidade humana acarneirada, a despejar esforços
ingentes e proventos nas arcas do Estado, senão
**
nos couraçados e aviões, exércitos e policia, gazes
asfixiantes e metralhadoras — para arremessar os
O raciocinio morreu. Que fatalidade inexo-
homens, uns contra os outros, no massacre coleti-
rável nos impelirá a repetir os gestos vulgares de
vo das guerras?
"toda gente"?
E agora, um calculo: Imaginemos a soma fan- Cada uma das taes Correntes é um élo para
tástica de selos despendidos na distribuição das os grandes armamentistas entupirem os seus cofres
Correntes, de nove em nove, até dar a volta ao fortes á custa da carnificina estúpida dos campos
mundo 3 vezes. de batalha, á custa de toda a imbecilidade social
Cada pessoa gastou, dentro do país, (quando patriótica a servir de bucha para as competições
a Corrente atravessa as fronteiras para destermi- económicas, as quaes culminam no banditismo das
nados países, a taxa é maior) 1$800, não contando guerras.
186 M dr ia Lacerda de Moura

Até aonde irá a cegueira de todo o género hu-


mano?
Cadeia perpetua . . . Boa sorte . . .
Quanto simbolismo!
E é assim, perpetuando a rotina, a tradição,
os erros, as superstições, a imbecilidade do rebanho
A ESCOLA D A " N O V A O P O R T U N I D A D E "
social — que os grandes, os magnatas, os podero-
sos, os padres e os sábios da parábola ryneriana che-
Casam-se, de maneira admirável, dois assun-
garam a fechar as pálpebras do povo que, ainda
tos aparentemente diversos, na primeira e na ulti-
cego, não deixa de louvar aos magarefes e aos afia-
ma pagina de um dos números de pr O Combate"
dores de facas...
de Agosto (1928) e que releio por acaso.
Boa Sorte . . . Cadeia perpetua . . .
A Escola da "Nova Oportunidade" é o gran-
Imbecilizar aos indivíduos não será a mais
de estabelecimento de New-York, para reeducar
alta missão social? , . .
mutilados, dando-lhes meios de ganhar a vida sem
a humilhação do recurso extremo da esmola sob a
denominação de caridade publica, não pesando a
ninguém, não aumentando o numero do imenso
polvo do parasitismo social.
A transcrição de "O Combate" conclue:
Em resumo, essa Escola da "Nova Oportu-
nidade" oferece aos aleijados:
A oportunidade de aprender uma profissão.
U m a oportunidade de arranjar emprego.
A oportunidade de comprar um membro arti-
ficial por preço do custo.
188 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos IK«>

U m a oportunidade para aquele que não pôde rina I I que deixou uma fotografia celebre, com o
sair de casa afim de ganhar a vida. uniforme do regimento por ela criado.
E acima de tudo: A enorme força moral de Por Paulo I foi instituido o uso da Cruz de
poder dizer: "Embora eu seja aleijado, não sou Malta, côr de framboesa, para o regimento.
um fardo para a minha familia ou para a sociedade: Alexandre I tinha por escolta particular o re-
ganho honestamente a minha vida". gimento dos cosacos do Don.
Constituíram a guarda imperial do tsar Nico-
Cheia de gravuras significativas (o jornalis- lau.
mo popular moderno, como a arte dos cartazes de
Pertenceram ao quadro das tropas que com-
anúncios comerciais ou propaganda de candidatu-
bateram Napoleão.
ras presidenciais, tem que variar os clichés e o co-
Tiveram a sua apoteose brilhante na vida
lorido . . . é o livro de leitura das crianças gran-
faustosa do império russo.
des: sem "figuras" não impressiona, não interessa
muito ao publico l e d o r . . . ) — a outra pagina é Olhavam o povo, de cima para baixo, como
a historia de uns poucos militares russos, o que resta raça inferior a quem é preciso tratar a tacões de
bota militar.
do regimento de cosacos do Don.
N ã o é preciso recordar a vida dos cosacos Alimentavam-se do espirito de casta, dupla-
agrupados em voiskos, sob o comando de um chefe mente hierárquico: eram militares e faziam parte
— ataman, atman ou hetman, servindo na cavala- da corte.
ria, fornecendo sotnias ou esquadrões em caso de Veio a revolução russa. Depois da derrota do
mobilização geral. T a m b é m fizeram parte de ba- exercito de Wrangeí, os últimos soldados e oficiaes
talhões de infanteria, de baterias, de artilheria a cosacos do D o n abandonaram a Criméa, acam-
cavalo. param em Lemnos, e, em 1921, transportaram-se
Os voiskos mais celebres, mais importantes, para a Servia.
foram os do Don. Formaram a escolta de Cata- A l i , fizeram-se lenhadores, segundo nos dizem
190 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravo* 191

D i m i t r i Novik, escritor russo, e George Oudart, maram-se em operários, em carregadores numera-


citados em O Combate. dos, preferindo essa liberdade, essa profissão inde-
Mais tarde, trabalharam na construção de pendente — para conservarem os restos da sua no
uma estrada de ferro na Bósnia. breza antiga de soldados da guarda imperial...
Daí, rumaram para a França, trabalharam Por certo, essa atitude, embora se apoie em
em certa usina em Aveyron. Depois instalaram- base falsa, os tornou deveras nobres — que, a úni-
se em Paris, onde são carregadores nas estações das ca nobreza, a única fidalguia a possííc o individuo
estradas de ferro, ha já de 6 a 8 anos. que se basta a si mesmo na manutenção da subsis-
São 80 soldados solteiros. Vivem como no seu tência, tornando rijos os músculos e o caracter, vi-
quartel da Rússia, em um barracão, prolongando, rilidade adquirida na conciencia de si próprio co-
assim, a ilusão de outros tempos de fausto militar mo individuo, como ser humano a contribuir para
imperialista. o bem estar do próximo, adquirida no brio de um
Guardam ali, carinhosamente, os seus tro- trabalho manual necessário á harmonia do todo so-
féus: armamentos, uniformes de gala, fotografias, cial, o trabalho manual que eleva o homem e a
bandeiras, objetos de arte, recordações da faustosa mulher acima de qualquer hierarquia de classe ou
corte, relíquias salvas da grande hecatombe revolu- de privilégios odiosos.
cionaria. Si as mãos, outr'ora fidalgamente enluvadas,
Dentro do barracão militar, o sugestivo aspe- calejaram no labor rude do Ienhador, em compen-
cto marcial. Depois, as horas de recreio, em que exe- sação as conciencias desses homens devem ter-se
cutam musicas regionais e as tradicionais dansas aliviado ao substituírem, por um trabalho manual
russas, dansas dos cosacos, os bailados slavos, tão util, o oficio parasitário e criminoso da escola de
característicos, tão cheios de nostalgia e alta espi- chacina, cujo programa é a ciência de matar, cujos
ritualidade e misticismo. métodos teem por base a destruição, a pilhagem e o
E aqueles ex-oficiaes mundanos, parasitários, saque.
ociosos, brutais na sua hierarquia social, transfor- Si o principio em torno do qual se agrupam.
Civilização — Tronco de Escravos 19»
192 Maria Lacerda de Moura
riam mantidas apenas para os aleijados de nasceu
é um principio falso: bandeira, fidalguia militar
ça ou para os mutilados em desastres ou no traba
ou casta guerreira despótica, a pátria, a saudade do
lho.
antigo fausto de um império brilhante e infinita-
E mais ainda: a concepção do trabalho ma-
mente criminoso, em compensação, esse gesto de al-
nual obrigatório para qualquer individuo está
guns indivíduos capazes de substituir as suas horas
dentro do noção do respeito e do amor ao próxi-
ociosas e fartas pelo trabalho honrado do carrega-
mo.
dor das estações de estrada de ferro, esse gesto de
homens libertos pelo trabalho manual necessário á Nenhuma conciencia livre pesa sobre o esfor-
coletividade, é admirável exemplo de valor, tena- ço alheio: dá também algo de si mesma.
cidade, nobreza, do sentimento da dignidade hu- Tolstoi não jantava senão depois de haver
mana. trabalhado na oficina, remontando um par de
sapatos.
N ã o é preciso, pois, ser mutilado para chegar
Spinoza "compõe a mais lógica ou cinzela a
a tal resultado. N ã o é preciso ser aleijado fisica-
mais profunda das filosofias; mas, tendo necessi-
mente para atingir a uma tal realização.
dade, cada dia, de alguns grãos de trigo pilado pa-
N ã o é necessária a guerra para provar que os ra sustentar seu corpo ascético, não quer obte-los
mutilados podem ser reeducados ou para mostrar como professor, despreza as cadeiras oferecidas, e
a habilidade dos cirurgiões cientistas nas operações vive a polir vidros de óculos."
de reconstituição dos órgãos esfacelados pela bru- A luta de classes, a hierarquia social dos des-
talidade dos campos de batalha. ocupados ociosos e do capitalismo industrializado,
Seria melhor que os homens se conservassem a ociosidade viciada do mundanismo elegante, o
perfeitos — como objetores de conciencia — re- parasitismo "chie" das marechalas dos salões, a bu-
cusando-se a pegar em armas. O heróe é o deser- rocracia da elite burguesa, todos os privilégios c
tor. todas as convenções das castas sociaes, do atual re-
E as Escolas da "Nova Oportunidade" se- gimen, têm o seu ponto de apoio em torno do eixo
194 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 19}

da exploração do homem pelo homem, em torno exercito burguês do crime de lesa-humanidadc, nau
do trabalho manual deprimente, considerado hu- teem o direito de falar em reivindicações, cm soli-
dariedade humana, em fraternidade internacional
milhante, relegado para as classes desprotegidas
Depois de 8 horas de trabalho em uma usina dc
pela fatalidade social da pobreza quasi miserável
armas ou em estaleiros navaes de couraçados e sub-
ou pela incapacidade conciente de "vencer na
marinos — é preciso cinismo para pregar a paz e
vida" . . .
discursar em torno do tema da fraternidade.

N e m todo trabalho manual é uni e necessário.


O trabalho manual desprestigia, arreda a con-
N ã o vou endeusar o esforço do linotipista a com-
currencia a posições de destaque na hierarquia do
por as imbecilidades jornalísticas dos assalariados
cenário social, divide a sociedade em senhores, pa-
dos governos, dos políticos, da internacional arma-
trões, donos, proprietários e em trabalhadores assa-
mentista, do clero, das classes militares ou dos
lariados, passando pelos grãos intermediários e in-
novos ricos.
termináveis dos domésticos, dos criados a serviço
N ã o canto hosanas aos operários que cons-
dos Cesares e dos reis do ouro: cientistas, funcio-
tróem torpedos ou metralhadoras, couraçados ou
nários, diplomados, artistas, professores, padres,
aviões, carabinas ou fortalezas, submarinos ou ca-
jornalistas, poetas, militares, etc.
deias, canhões ou granadas para abrir o ventre dos
seus irmãos ou dos próprios filhos. De passagem, como exemplo de intelectual
prostituído, domesticado, vendido muitas vezes, a
H a burgueses menos perversos.
serviço dos grandes da terra, e a serviço dos seus
E taes operários não teem o direito de se reu-
vicios despóticos: D'Annunzio — militar, artista,
nir em sindicatos; neles falar em revolução social
poeta, funcionário, jornalista e tantas cousas
para a utopia de uma sociedade mais equitativa.
mais . . . inclusive colecionador de objetos da "toi-
Si se não absteem dc contribuir, de colaborar
lette" intima das damas celebres. . . D'Annunzio,
na obra de destruição, da burguesia capitalista, si a
D o n Juan do sadismo espiritual, a quem Mussoli-
chamada luta pela vida os impele a se alistar no
196 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 197

ni incumbiu (através de telegramas circulares ape-


cidade e na variedade das suas manifestações, a
nas . . . ) de escrever a grande epopéa itálica, con-
classe média sobrecarrega-se de importância, ad-
substanciada no vôo celeberrimo de um "general de
quirida á custa de sacrifícios taes, que se afunda,
opereta" ao Polo Norte, antes de Nobile ser con-
dia a dia, premida de necessidades para cuja sa-
denado pelo tribunal que o responsabiíisou por to-
tisfação não bastará nunca o aumento, o crescendo
dos esses desastres, universalmente conhecidos,
sucessivo e perene do esforço de todos os membros
quando ainda todo o Faseio o endeusava como
de cada familia.
heróe dos voos mais ligeiros . . .
O seu gesto a prostituir-se deante dos ricos e
E D'Ahnunzio, segundo os telegramas, pro-
potentados, na domesticidade, na humilhação de-
meteu cantar essas façanhas.
primente, no servilismo inaudito — para poder
Todos os Académicos arregimentados, todos
imitar aos bem instalados nas comodidades da vida
os políticos intelectuaes estão no mesmo plano dc
social, o seu martirio voluntário para "parecer" —
D'Annunzio: a serviço dos Cesares ou dos reis do
é inútil deante da multiplicidade de necessidades
aço ou do petróleo, a serviço do poder e a serviço criadas pelo progresso, pela civilização, pelo indus-
do bezerro de ouro. trialismo moderno e pela inconciencia com que o
O proletariado é a casta dos párias rebanho humano caminha para o suicídio coletivo.
Os ricos e mormente a mulher alta sociedade, Trucidado pela fatalidade da organização social
a mulher elegante e a pequena burguesa com ares burguesa capitalista, louva, na sua ignorância, na
de importância social — olham aos proletários co- sua inconciencia, na sua resignação passivamente
mo feitos de outra massa, de outra espécie de nervos, acarneirada de domesticidade e servilismo ou na sua
como si a natureza houvesse concedido, aos primei- baixeza, aos salteadores da liberdade individual,
ros, a prerogativa inalienável de mandar,e o direito da liberdade de pensar, da liberdade de viver inte-
a serem servidos e obedecidos incondicionalmente. gralmente.
A classe média, a pequena burguesia, de vai-
A essa classe media pertencem os chamados
dosa imbecilidade que vae ao infinito na multipli-
intelectuaes: jornalistas, professores, poetas, orado
198 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos \'>'>

res, oficiaes de terra e mar, advogados, cientistas, conversavam alto, na atitude característica dos "su
artistas, toda a lista interminável dos literatos, altos periores", quando um vendedor de jornaes anun-
funcionários públicos, etc. etc. ciava as folhas do dia. U m dos diplomados, lasti-
E que covardia na sua atitude! mando o abandono dos campos e a aglomeração
M a s . . . são intelectuaes: "a massa formidá- das populações nas grandes cidades, (o leit-moliv
vel dos ignorantes que constituem o mundo culti- da gente culta citadina), apontou para o rapaz
vado", no conceito de Felix Le Dantec. forte, o apregoador das gazetas: — "Bons braços
E' por causa dessa atitude covarde dos pensa- para a lavoura!"
dores de rebanho, dos livres pensadores de fachada Sorri: o diplomado, o cidadão, o patriota, o
familiar ou dos livres pensadores apenas nos recin- funcionário publico, o democrata, o poeta, o jor-
tos das "Lojas" maçónicas . . . intelectuaes amor- nalista, o decano das universidades, o medico, o
daçados pelas conveniências, académicos, cientistas professor, o deputado, o intelectual finalmente —
e diplomados ignorantes ou deshumanos, — que a não sabe que também tem b r a ç o s . . .
luta de classes ou castas se empenha mais ferozmen- E me lembrei da sabedoria de H a n Ryner:
te, na sua campanha de estraçalhar a homens e mu- "E houve prostituídos que se denominaram
lheres, na engrenagem sórdida do patriotismo — "bouffons", filósofos, padres, artistas e profes-
para gáudio dos cofres-fortes dos senhores das sores."
grandes companhias de munições e fabricas de ma-
"Esses "pensadores" pensaram como escravos,
terial bélico.
á ordem do senhor, á hora do senhor, o que era da
E é de tal maneira arraigado o prejuízo de vontade do senhor."
casta, de hierarquia social que também os intele- E continuando a meditar a filosofia ryneriana,
ctuaes não vêem os outros indivíduos feitos da mes- cneguei á sua conclusão:
ma carne, irrigados com o mesmo sangue. "As necessidades físicas não podem ser sa-
H a dias, em um "bonde", dois portadores de tisfeitas senão por um trabalho fisico. Nenhuma
anéis de "homens formados" ( ! ) , de doutores, obra intelectual produziu um grão de trigo.
200 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos 201

U m a vez que tenho necessidade dc comer co- São as grandes agitações sociaes, como a re-
mo um animal, devo fornecer o trabalho ek-4açsta volução francesa, como a revolução russa, são es-
de carga, o único que pôde nutrir meu corpo e per- ses formidáveis cataclismos, consequência dos erros
mitir ao Deus que chora em mim, viver, pensar, e crimes de lesa-feíicidade humana, produtos da
amar." violência e dos privilégios em tempo de paz e da
violência armada — que permitem a nobres empo-
E ainda mais:
brecidos subitamente, a exilados, aos ricos despoja-
"Sejamos o que somos; não nos deformemos
dos á força, dos seus bens e privilégios de casta, a
para satisfazer aos compradores. N ã o nos mate-
poderosos destituídos das posições invejáveis no
mos, sob o pretexto de que "é preciso viver."
cenário mundano — acordarem possibilidades la-
"Que cada qual se dê com sinceridade e, uma
tentes, as quaes permaneceriam de certo sufocadas
vez que recuamos deante do único trabalho pro-
nas criptas profundas do subconciente individual,
dutor de alimento, sejamos felizes e um pouco
si não fossem sacudidas, impiedosamente, pelo
surpreendidos nos dias em que comemos."
atroar rubro e ardente e impetuoso de um desequi-
Mais, estamos tão deformados através das líbrio total de todas as forças do meio ambiente.
concessões de cada instante, que nos rimos dessas
loucuras filosóficas, desse quasi ridículo e nos re- São quedas fragorosas de ideias e costumes e
gosijamos do nosso parasitismo, aumentamos, sem- atitudes colectivas fossilizadas, substituídas por
pre que podemos, a nossa criadagem, vaidosos de palavras sonoras... E ' o desmoronamento de prin-
ser servidos pelo bando imenso dos sacrificados de cípios estabelecidos e reacionarios, substituídos os
todo o género humano. ídolos de velhos altares por ídolos n o v o s . . . E ' o
A outra conclusão salta da pena: desmentido chocante das "mentiras vitaes" secula-
N ã o é a guerra a escola da "Nova Oportu- res, no afirmar dogmático de novas ^mentiras vi-
nidade". A guerra é a destruição em massa das taes" . . . E ' a "terra caída" de todo um sistema po-
energias individuaes: produz "nouveaux-rienes" e litico alimentado de "verdades mortas", são "colu-
proxenetas, mais odio e mais violências. nas da sociedade" que se partem dolorosamente,
202 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco dc Escravos 201
quando tudo parecia solidamente estabelecido para
A verdadeira escola da "Nova Oportunidade"
gáudio dos poderosos. — E ' o alevantar de novas
não é a utilização das vitimas do industrialismo —
colunas sociaes nos mesmos altares velhos, reboca-
os mutilados da guerra — porem, são as transfor
dos de esperanças novas e dc novas formulas de
mações sociaes que, pondo em valor as energias
rituaes, modernizados por expressões prometedoras,
adormecidas pelo parasitismo, despertando, no indi-
fascinantes para os incautos do rebanho social —
viduo, a noção da dignidade humana, lhe gritam
que não pôde dispensar os tropeiros e os capata-
bem no âmago da conciencia: são e forte, não
zes os truões e os tiranos.
posso ser um fardo para a grande familia humana;
Então, os indivíduos são obrigados a tal esfor- devo ganhar o pão com o suor da minha fronte.
ço de adaptação que se inutilizam ou renascem de
Porque, a expressão bíblica: tú ganharás o
si mesmos.
pão com o suor de tua fronte — fica muito bem,
E sempre, desgraçadamente, outros cadáveres
adapta-se admiravelmente á boca dos padres que o
insepultos de "verdades mortas" são colocados so-
comem á custa do suor a l h e i o . . .
lenemente nos nichos — para a adoração das mul-
Só quando cada qual ganhar o seu pão com
tidões em aplausos frenéticos deante dos mais for-
o trabalho manual necessário e util á colectivida-
tes, dos vencedores, dos vitoriosos, das ditaduras,
de e é sua conservação pessoal — serão evitadas as
da violência.
guerras e as escolas burguesas da "Nova Oportu-
De tudo quanto surge dos escombros, resta nidade", que criam e lançam no mercado do traba-
apenas, e é muito, a possibilidade individual. lho, a mão de obra cuja exploração é mais fácil.
Para terminar, lembro-me da palavra nobre e
E, assim, é acentuada a luta de classes e novas
forte e anónima da mais admirável mentalidade
guerras se delineiam, cada vez mais ferozes, na com-
máscula revolucionaria que até hoje me foi dado
petição comercial e na sordidez das ambições ale-
conhecer pessoalmente, a do meu querido e grande
vantadas, vorazmente, pelo progresso, pela civili
amigo A . Néblind, agricultor, ao ler uma das mi-
zação.
nhas crónicas sobre o tema.
Carta aberta á Sr a. Sergia F. Vidal, Presi-
dente da "União Civica Radical" de La Pla ta,
Provinda de Buenos-Aires.

A S O C I E D A D E MIGDAL E O TRAFICO
DAS BRANCAS

(Publicada em "La Protesta" de Buenos-Aires.)

Minha Senhora

Tenho em mãos duas cartas suas e os jornaes


que teve a gentileza de me enviar, a propósito da
perseguição e prisão de caftens israelitas e outros
traficantes de mulheres, de nacionalidades diversas,
— porque os ha em todos os paises, de todas as
raças, de cada nacionalidade.
Peço-lhe perdão pelo fato de não poder aju-
dá-la e á União Civica Radical nessa "campanha
de moralidade".
206 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 207

Nem mesmo me dirijo, conforme sua solici- Interpor minha "influencia" (engana se, mi
tação, á Sra. Bertha Lutz, representante ilustre e nha Senhora . . . ) "ante as autoridades do Bra lil,
digna da Liga Internacional de Mulheres Ibérica afim de que redobre de vigilância nos portos de
e Hispano Americanas, instalada em New-York embarque e desembarque e apanhe os tenebrosos"?
com sucursaes em toda parte, nos paises civilizados.
Eu? minha Senhora!
N ã o , minha Senhora. N ã o posso proceder
Si, como preliminar, sou contra o principio
contra a minha conciencia.
de autoridade?
N ã o sou, absolutamente, radical em cousa al-
guma, nem faço parte de nenhuma associação de Roga-me que felicite, em nome da Mulher
mulheres burguesas e, consequentemente, reacio- Brasileira, ao D r . Manuel Rodrigues Ocampo,
narias. juiz Argentino, pela sua "ação valorosa e justicei-
ra" contra a Sociedade Israelita Migdal, inculpada
Demais, toda "campanha moralizadora" me
do trafico de brancas.
é antipática por principio . . .
N i n g u é m moraliza sem o padre ou sem a po- N ã o , minha Senhora. N ã o posso.
licia, ou, pelo menos, sem a interessantíssima po- De ha muito me preocupa o problema dolo-
licia de costumes. roso da prostituição. Estudei-o sob todos os aspe-
E, para mim, é tão repugnante o papei da po- ctos, na sua historia e na sua psicologia social, e
licia que eu jamais lhe denunciaria o maior dos ban- até, com Bernard Shaw e outros iconoclastas do
didos, o mais cínico dos perversos, o mais degra- moraliteismo, na sua profunda filosofia.
dante dos homens. N ã o sei, minha Senhora, si conhece " A Pro-
Faço imenso esforço interior para não julgar fissão de Mrs. Warren". Acho que não. Si tivesse
os atos de outrem e para me conhecer a mim mes- meditado na ironia amargurada de Bernand Shaw
ma. ao descrever o tipo dessa caftina, não cuidava mais
Chego a ter verdadeiro horror ao idolo da de campanhas moralizadoras e iria direito á causa
"moral", a causa de todos os crimes sociaes. para buscar a solução para os efeitos, si possível...
208 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos '>
{V

Vejamos, minha Senhora, apenas um trecho N ã o sei quem disse que a alta burguei ia ou .1
dessa comedia do grande psicólogo. classe rica está para além da moralidade, c a 1 lai
Mrs. Warren é sócia de um nobre, e, são seus se operaria ou dos pobres, áquem da moralidade.
acionarios e clientes, minha Senhora, como o são Quem sustenta o edifício carcomido da moral so-
de todos os caftens e caftinas — juizes e reis, ma- cial é a classe media.
gistrados e nobres, capitalistas e clérigos de alta l i - Tudo isso é por demais longo para uma car-
nhagem hierárquica, almirantes e generaes, chefes ta apenas. Paciência. Esbocemos a farça em poucas
de policia e banqueiros — todas as altas patentes linhas. E voltemos a Mrs. Warren.
militares, todos os grandes estadistas e embaixado- Começou a vida sendo explorada. Depois, in-
res, todos os diplomatas e todos os reis do dollar. teligente, aprendeu a explorar. Ficou rica. Teve
Está certa, minha Senhora, de que o juiz ar- uma filha. Sonhou fazer dela "grande dama-alta-
gentino nunca tenha penetrado os portaes de uma sociedade". Era fácil. Tinha haveres. Educou-a
casa de prostituição? com as moças da alta linhagem em um colégio ca-
Que são os hotéis elegantes de todas as praias ro e elegante.
e grandes cidades, senão casas de "rendez-vous"
Vivie, quando compreende a situação de sua
da "gente honesta" e da "alta" e da "boa" socie-
mão, sente desprezo. Sente asco e humilhação. O
dade?
seu orgulho de "mulher educada", de mulher ho-
A morai burguesa, minha Senhora, ensina os nesta, se revolta. Vejamos, em linhas geraes, o dia-
homens a defender, de unhas e dentes, cada qual, logo entre mãe e filha: Mrs. Warren sente-se ma-
o seu lar e a sua familia e a proceder como saltea- goada e ofendida.
dores no lar das outras familias. Saíve-se quem
— A Senhora Warren. — Minhas próprias
p u d e r . . . Otelo em casa, D o n Juan em casa dos
opiniões! Minha maneira própria de viver! . . . I )á
amigos.
gosto ouvir como falas! Acreditas que fui criada
E a questão da moralidade depende dos ha-
como tu? Como podia escolher a minha maneira
veres.
própria de vida? Crês que o que eu fazia era p o r

?
210 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 211

que me agradava ou porque eu pensasse que estava Moeda, de cujo ganho vivíamos, ela e suas quatro
bem? Acreditas que eu não houvera preferido ir filhas. Duas de nós, eram irmãs do mesmo pae:
ao colégio e ser uma dama distinta, tendo os meios Elisa e eu. As duas éramos bonitas e bem formadas.
para isso? Suponho que meu pae seria um homem que se nu-
— Vivie. — Todo mundo pôde fazer algu- trisse bem. M a m ã e pretendia que era um senhor;
ma escolha,mãe. A moça mais pobre não pôde es- eu, porem, o ignoro. As outras duas, nossas irmãs
colher entre ser rainha da Inglaterra ou diretora pela metade, eram umas pobres criaturas com o
de escola; porem, segundo o seu gosto, pode esco- aspecto de famintos, pequenas e feias, porem re-
lher entre a profissão de trapeira ou florista. As sistentes para o trabalho e mui honestas. Elisa e
pessoas acusam sempre as circunstancias. N ã o creio eu batíamos muito nelas, e não fossem as surras que
nas circunstancias. As criaturas que medram neste nossa mãe nos dava para livrá-las de nós outras, c
mundo são as que madrugam e buscam as circuns- mais de uma vez as teríamos deixado quasi sem vida.
tancias de que necessitam, e, quando não as encon- E' que elas eram os membros respeitáveis da familia!
tram, criam-nas. Pois bem: interessa-te saber o que conseguiram com
— A Senhora Warren. — Sim, sim! muito sua respeitabilidade? Vou-te dizer. U m a trabalhou
fácil é falar, muito fácil, não é verdade? Ouça! doze horas por dia em uma fabrica de aívaiade,
Gostarias de conhecer quaes foram as minhas cir- para ganhar nove chilins por semana, até o dia
em que se convenceu de que o chumbo a havia en-
cunstancias, como dizes?
venenado. Pobre! Acreditava salvar-se com uma
— Vivie. — Sim;farias bem em m'as referir...
leve paralisia das mãos, e morreu. A ' outra, cita-
— A Senhora Warren. — . . . Sabes quem
vam sempre como modelo, porque se casara com
era tua avó?
um empregado publico e conseguia manter limpos
— Vivie. — N ã o .
e bem cuidados sua moradia e seus tres pequenos,
— A Senhora Warren. — N ã o sabes, não é
com dezoito chilins semanaes. Por desgraça,
verdade? Eu o sei. Fazia-se passar por viuva e tinha
isso durou só até o dia em que ele se entregou á be-
um postozinho de pescados fritos perto da casa da
212 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos .' I i

bida. Merecia a pena ser honrada para chegar a noite, porem, muito triste e muito fria, estando tão
cansada que apenas me podia manter despe na, .\
isso, nao é verdade?
quem, não adivinhas, a quem v i entrar no bar para
— Vivie. — (Cheia agora de atenção pensa-
pedir um chope? . . . Elisa, coberta com um grande
tiva.) Acreditavas? Elisa o acreditava?
manto de peles, elegante e confortável, e levando
— A Senhora Warren. — Elisa não acredi- na mão uma bolsa repleta de moedas de ouro.
tava, posso-te assegurar. Tinha muito bom senso
— Vivie. — (Sarcasticamente.) Minha tia
para tal. As duas iamos a uma escola congregacio- Elisa!
nista, o que contribuía para que tomássemos ares
— A Senhora Warren. — Sim; e é uma tia
de parecer superiores aos meninos que nada sabiam
como convém ter, asseguro-te. Agora habita em
nem iam a parte alguma; ali ficamos até que Eli-
Winchester, perto da catedral, e é uma das damas
sa, uma noite, desapareceu e não mais voltou. A
mais respeitáveis da cidade. Acompanha as jovens
professora pensava que eu seguiria o seu exemplo,
aos bailes do c o n d a d o . . . J á não ha temor do rio
e o pastor, querendo evitá-lo, me dizia, sem tréguas,
para Elisa, graças a D e u s . . . "
que o f i m de Elisa seria atirar-se ao rio. Pobre idio-
ta! Era tudo quanto sabia disso. Eu, porem, temia
"Acreditas que éramos bastante idiotas para
mais a fabrica de alvaiade que a agua do rio, o
permitir que outros explorassem a nossa boa pre-
mesmo terias pensado em meu lugar. Esse pastor
sença, empregando-nos como vendedoras ou em
me conseguiu um emprego de criada de cozinha
qualidade de camareiras, podendo nós mesmas apro-
em um restaurante de temperança, no qual se man-
veita-la e receber todos os seus beneficios, em vez
dava buscar álcool quando os clientes o exigiam.
de salários de fome?"
Logo passei a criada de serviço e empregada em
um bar da estação de Waterloo. . . onde expedia
licores e lavava copos durante quatorze horas no Em que outro oficio pode uma mulher econo
mizar dinheiro?
dia, por quatro chilins por semana e a comida.
Era um importante acesso, não é verdade? U m a
214 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 215

Qual é o fim da educação de uma mulher de o problema da prostituição, — sob outro aspecto,
boa familia, senão seduzir a um homem rico e as- depois de Parent-Duchâtelet haver estudado a i
segurar-se o desfrute da sua fortuna, casando-se doenças venéreas das prostitutas e todas as doenças
com ele? . . . Como si a ceremonia do casamento a que estão sujeitas as meretrizes, chega á conclu-
pudesse estabelecer uma diferença entre o bom ou são o eminente cientista de que a sua maneira de
o mau que encerra um mesma ato! viver, apesar de toda a intemperança, embora se
exponham a todas as doenças contagiosas e ás in-
clemências do tempo, á vida desregrada, "afinal de
" E ' o melhor oficio, entre todos os que nos são
contas é muito mais saudável que a das costureiras
accessiveis. E' injusto, é certo. Si os homens orga-
e das outras mulheres que teem ocupações seden-
nizaram assim o mundo para as mulheres, não po-
tárias". Declara que essa conclusão é "triste e sor-
demos pretender que tenham feito de outro modo.
preendente", mas, é a realidade; o que quer dizer
que a vida das costureiras, por exemplo, "é mais
" . . . as moças eram bem cuidadas. Algumas
contraria á natureza do que a das prostitutas."
delas se sairam bem; uma se casou, com um embai-
xador." E acrescenta Drysdale: " U m a vida em que ha
movimento, exercício sexual, o descanso, a bôa ali-
Seria interminável a citação. mentação, e a variedade, é evidentemente mais sau-
A ironia de Bernard Shaw queima como fer- dável, e portanto, no ponto de vista fisico, mais vir-
ro em brasa a moral da gente honesta. tuosa que o constrangimento, o trabalho prolon-
gado e o torpor animal a que são condenadas as
Sob outro aspecto, não estudado em Ber-
nossas pobres costureiras."
nard Shaw e observado, escrupulosamente, nas pes-
quizas do grande sábio e medico francês — Parent- E continua: "Sem o habito de beber, as
Duchâtelet — que dedicou os últimos oito annos prostitutas estariam livres de uma grande parte da
da sua vida humana a angariar dados estatisticos ruina fisica e moral que acompanha o seu modo de
e observações pessoaes para estudar profundamente vida.
216 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 217

E ' verdade que os seus maus efeitos não se constrangida, e se liberte do ídolo da familia, para
manifestam tão depressa como nas pessoas que tra- viver a liberdade de amar — fora dos códigos c dos
balham fortemente (sobretudo em ocupações se- dogmas religiosos e sociaes.
dentárias, essa peste da civilização), e que, ao mes- Enquanto toda mulher não fôr absolutamen-
mo tempo, bebem muito." te livre de amar, haverá o comercio do lenocínio,
E o D r . Acton também confirma: "Todos os pois que, acima de tudo, a natureza exige as relações
observadores estarão de acordo comigo em testemu- sexuaes.
nhar que nenhuma classe de mulheres é tão isenta Depois: enquanto a familia fôr esse reduto
de doenças geraes como as prostitutas." falsificado da virtude, a coluna central do direito
Isso não é o elogio da prostituição, mas, sob de propriedade no regimen burguês capitalista —
o ponto de vista fisico, fora do código da moral será indispensável o exercito da prostituição —
contra a natureza, é a prova de que a prostituição para salvaguardar a pureza da sacratíssima insti-
— que representa o exercicio sexual, necessário á tuição da familia — abençoada pela Igreja e selada
harmonia orgânica — está acima do estado de sol- pelo Estado.
teirona, em que ha o constrangimento moral da fa- Assim, honra, inocência, virgindade, virtude,
milia e da sociedade, alem do "pecado fisiológico", honestidade, todos esses idolos sangrentos defen-
e, acima do estado de mãe de familia proletária e sores do instinto de propriedade no regimen bur-
pequena burguesa, em que uma escravidão terrivel guês capitalista, postados em altares no templo da
ao homem, á prole infinita e ao trabalho forçado a familia — nada mais são do que o símbolo da mo-
inutiliza fisica e moralmente, baixando-a á cate- ral do caftismo social.
goria de animal de tiro e maquina de procrear a ser-
Representam a superstição, a rotina, a igno-
viço do homem.
rância, o amordaçar da razão pela perversidade
A conclusão é que se impõe uma educação organizada da Igreja, afim de que o Estado mais
sexual livre, a emancipação feminina — para que facilmente se apodere da presa inerme, inconciente,
a mulher só tenha filhos quando quizer e nunca e dela faça o joguete das ambições dos poderosos,
Civiliiação — Tronco de Escravos 219
218 Maria Lacerda de Moura
ternacional do caftismo. São troncos da arvore Es-
os "superelefantes" da autoridade temporal e espi-
tatal e Moraliteista.
ritual.
E quanta conciencia livre o sabe e o descreve!
" O produto é dividido pelos dois ladrões" . . .
Que diferença ha, minha Senhora, entre a
Certo, a profissão oficial de explorador de
profissão do caften e a do grande industrial que
mulheres deveria ser apenas accessivel á mulher . . .
envenena os produtos alimenticios e assassina a
Assim como a prostituição é o exercito bran-
crianças e a adultos indefesos? — Porque o Estado,
co do Estado e da Moral, arregimentado para o
hoje, é propriedade do capital.
serviço dos homens, indispensável, como o exercito
armado, para a manutenção da ordem social e para Que diferença ha, minha Senhora, entre a
a defesa do lar e da familia; assim como o Estado profissão do caften e a dos lords e nobres e ban-
recebe o imposto dos prostíbulos, dos "Cabarets", queiros acionistas das usinas de armas de guerra,
dos bailes e dos "rendez-vous" organizados pelos chacaes que se nutrem dos campos de batalha,
caftens — que são os empresários dessa tragedia — caftens no grande mercado do género humano?
cargo honroso do mesmo modo que é honroso ser Está bem segura, minha Senhora, de que o
organizador das olimpíadas ou empresário de gran- crime dos caftens é maior do que o daqueles que
des teatros, ou acionista, como Rockfeller, das imen- lhes pagam o preço da carne feminina?
sas usinas de material bélico; a profissão de caften
Está bem certa, minha Senhora, de que um
e de caftina é uma necessidade do Estado burguês
ato praticado por dois individuos de sexo oposto,
e é incoerente essa perseguição movida pelos senho-
avilta a mulher e é natural para o homem?
res de beca, sotaina ou espada contra o comercio
Está convencida, minha Senhora, de que a
do lenocinio. Que seria dos homens, si essa cousa
profissão de prostituta — absolutamente indispen-
não estivesse tão bem organizada internacional-
sável á harmonia desta admirável organização so-
mente?
cial — é mais degradante do que a dos histriões que
H a uma internacional armament ista. H a uma
se dizem representantes de Deus na terra — para
internacional da diplomacia secreta. H a uma in-
220 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 221

sufocar a razão humana e dominar pela astúcia e á disposição do hospede uma mulher prostituta de
pela covardia? alta linhagem social, afim de que todos os seus pra-
E, que é o casamento, senão a prostituição san- zeres sejam satisfeitos integralmente. E essa pros-
tificada pela Igreja e selada pelo Estado? tituta, que ganha rios de dinheiro, geralmente é . . .
Está segura de que os Alexandres e Napoleôes uma senhora honesta . . . da alta sociedade... ca-
e Mussolinis — "himalaias de infâmias" — sejam sada com um estadista, com um intelectual notável,
superiores, na sua profissão de magarefes, aos ex- cuja carreira triunfal muito deve aos seus dotes de
ploradores de mulheres? espirito . . .
Está certa de que, si não houvesse caftens, não Isso quer dizer que ha um caftismo elegante
haveria exploração feminina? do Estado, anexo á diplomacia secreta.
Abra Lachatre, minha Senhora, no capitulo N i n g u é m dirá, aí, que seja a luta pela vida.
em que fala de Pio V . Verá que o Santo Padre fez N ã o , minha Senhora: razões de Estado.
uma lei contra as prostitutas e verá também que os A prostituição é o exercito salvador da moral,
eclesiásticos se opuseram á sua execução, apresen- da Igreja, e dos bons costumes.
tando ao Papa a objeção séria de que as 45.000 ra- E como denunciar a um, dois ou tres caftens
meiras que havia em Roma eram necessárias ao ser- profissionaes — si toda a civilização unisexual é
viço do clero. feita* para o prazer do homem e para a exploração
São os "tubarões" das finanças, da moral e miserável da mulher?
do poder que teem necessidade do caftismo orga- Sabe, minha Senhora, dos nomes de grandes
nizado. estadistas e diplomatas e juizes encontrados mor-
Talvez não saiba, minha Senhora, que, quan- tos ou retirados mortos de casas de prostituição?
do um alto personagem do mundo politico visita Eu poderia citar dezenas, mas seria alongar por de-
uma nação, o rei, o primeiro ministro, o presiden- mais uma carta, já por demais extensa.
te da republica ou o embaixador — em carater Leia, minha Senhora, a "Historia da Prosti-
oficial — é dever cavalheiresco dessa Nação pôr tuição" de Dufour, e se convencerá de que, dentro
222 Maria Lacerda dc Moura Civilização — Tronco de Escravos 223

da sociedade burguesa capitalista e em um regimen tiranise o corpo. E o produto do roubo é dividido


em que a mulher é obrigada a guardar a virginda- entre os dois ladrões." ("Deus e o Estado".)
de do corpo para, com ela, comprar um marido; Sabe, minha Senhora, a meu vêr, qual o mais
em um regimen social em que tudo se compra e belo programa de Amor, de Beleza e de Bondade
vende e o amor também obedece á lei da oferta e para as reivindicações femininas? — a nao-coope-
da procura — a prostituição é uma necessidade e ração com o Estado e com a Religião, a suprema
a salvaguarda da honra da sacratíssima instituição resistência a todas as forças reacionarias, a desobe-
da familia. E o caften é o honesto explorador e diência civil e a não-violencia heróica, disposta a
empresário desse rendoso comercio anexo ao Es- tudo para defender a Liberdade contra a Autori-
tado. dade.
Verá que a prostituição das rotulas e das cal- São as filhas do proletariado, são as mulheres
çadas é a luta contra a miséria e é o único caminho obrigadas a ir para a rua ganhar o pão, as que ser-
apontado á mulher pela sociedade, moraliteista e vem nesse imenso exercito de outra espécie de não-
piedosa, si ela, por descuido ou por amor, perdeu violencia, exercito da resignação passiva, heróicas,
a virgindade, tendo de lutar a braços com a fome renunciando á familia e á sociedade, como colunas
e a nudez. na defesa da honra, da virtude, da virgindade, da
Enquanto a mulher não for dona do seu pró- honestidade, da pureza (!) da familia burguesa,
prio corpo, haverá a prostituição e, consequente- das meninas "bem educadas" nos "Sion" ou nos
mente, o caftismo profissional e o caftismo oficial, "Sacré-Cceur."
protegido pela tiara, pela beca e pela espada e pelo As burguesas honestas, da " b ô a " e da "alta"
cofre forte dos "tubarões das finanças." sociedade, as mulheres parasitas não podem dis-
Tudo isso está admiravelmente definido na sertar em torno de questões de moral ou dos bons
celebre frase de Bakounine: costumes. Acobertadas da prostituição pelo formi-
" O padre, que representa Deus, embrutece o dável exercito das sacrificadas, alistadas nas fileiras
cérebro, para que o soldado, que representa o rei, do proletariado ou da pequena burguesia, as mulhe-
224 Maria Lacerda de Moura

res burguesas falam pela boca do padre ou pelo Có-


digo do Estado. E Bakounine já os definiu a am-
bos, classificando-os abaixo dos caftens... seus
cúmplices e asseclas assalariados pela moral, pela CARPE H O R A M
lei e pelos bons costumes.
Perdão, minha Senhora, si não dei cumpri- Georges de La Fouchardière, no seu livro ad-
mento ás suas ordens. mirável de graça e deliciosa ironia — " D i d i , N i -
Fraternalmente, quette & Cie." — lembra-nos o conto oriental em
que um príncipe indiano riquíssimo quis recom-
Maria Lacerda dc Moura
pensar ao extrangeiro que lhe salvara a filha.
E' a Lenda do Circuito da Hora.
Brasil. São Paulo. Julho de 1930.
— "Prends le plus rapide de mes chevaux et
galope pendant une heure dans mon royaume. T o u t
ce qui sera compris dans le cercle décrit par le ga-
lop de ton cheval t'appartiendra. Mais ne reste pas
absent plus d'une heure. Si tu n'es pas revenu au
bout d'une heure tu n'auras rien du tout."
Assim falou o príncipe.
O extrangeiro saiu a galope.
N o primeiro dia voltou duas horas depois.
Perdera. O príncipe, porem, poderoso e re-
conhecido, deixou que recomeçasse no dia seguinte.
N o oitavo dia, o viajante, fatigado, deitou-se de-
baixo de uma arvore e adormeceu durante cinco
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 227

minutos, tempo suficiente para o cavalo passear competição comercial, aumentar os impostos e sus-
só e fechar dentro do circulo a própria filha do tentar os paes da Patria dos histriões politicos. Es-
sultão. Foi assim que o extrangeiro se casou com tamos fartos de o saber e de o repetir.
a princesa e herdou todo o reino. Duas necessidades predominantes movimen-
Gosemos a hora presente, a hora que passa — tam todo o género humano numa correria de lou-
é a conclusão do conto oriental. cos que nos faz lembrar a magistral parábola dos
Mas, a nossa cupidez é desmedida e todas as "Laboriosos" do nosso grande H a n Ryner.
desgraças nos vem de querermos correr atrás da Somos movidos por milhões de mãosinhas que
felicidade . . . nos obrigam a uma atividade fantástica, inacredi-
Caminhamos sempre em busca do que está tável — para que? — para comer e para amar, na
próximo de nós mesmos e as horas se escoam e os accepção fisiológica.
dias se passam sem que tenhamos tempo de aspi- Para duas cousas tão simples, tão naturaes,
rar o perfume da vida na própria estrada percor- não era preciso correr tanto.
rida pela nossa ambição insaciável atrás de cousas Os animaes e os bohemios no-lo asseguram...
que nos parecem tão distantes, e, tão ao nosso al- Mas, complicamos de tal modo o instinto de
cance, si nos demorássemos o momento preciso pa- nutrição, fizemos a cozinha tão cara e tão difícil a
ra colher a hora presente. ponto de nos empenharmos no servilismo de uma
São os nossos desejos excessivos, é a nossa ava- escravidão voluntária, implacável nas suas exigên-
reza que faz o tédio da vida, a amargura dos nos- cias de fogo eterno.
sos instantes de recolhimento, maquinas de correr, E o habito inveterado completa o quadro.
triturantes, irritáveis, dispersadores de energias ex- E para essa cozinha tremenda no disperdicio
traordinárias, incalculáveis, — para que? de forças sem conta, empregadas no fabrico de
Todo o delirio de progresso da civilização in- drogas nocivas para envenenar o género humano
dustrial tem por fim encher os cofres fortes dos na concorrência do preço módico; para essa cozinha
reis das forjas e do poder, fomentar as guerras de sempre insatisfeita, insaciável na faina de levar ao
Civilização — Tronco de Escravos 229
228 Maria Lacerda de Moura

requinte a "educação" do paladar de clientes conhe- e a chamada "necessidade" da multiplicação da es-


cedores de aperitivos de toda espécie — para avi- pécie.
var o sabor deturpado pelo álcool, pelo fumo, pelas Coitada da espécie! . . .
vísceras queimadas nas digestões laboriosas dos ve- E ninguém consegue senão o desgosto de
nenos das conservas e acepipes variados; para a co- não achar o que procurava.
zinha dos civilizados contribue toda a atividade hu- Todos se desiludem, mas, toca a correr outra
mana, ou melhor, a atividade de todo o género hu- vez e tantas vezes quantos são os dias do ano e tan-
mano está exclusivamente voltada para as vísceras. tas vezes quantas sejam as desilusões a amargura-
E' até simbólica e característica a atitude dos rem o momento anterior.
burgueses ricos, banqueiros e políticos avançados O amor (!) é comprado na prostituição ou
em anos a amparar, com ambas as mãos, o ventre satisfeito no casamento indissolúvel: só a palavra
proeminente — atravessado pela corrente do re- assusta como as geenas de uma prisão perpetua
lógio e a competente medalha de brilhantes . . . por com trabalho forçado . . .
sobre as vísceras. Que pavor duas criaturas se sentirem atrela-
Cochilam, pesados, a digestão difícil, toda a das uma á outra, por força da lei ou das conve-
carne congestionada, apopletica de imbecilidade e niências sociaes, até que a liberdade venha com a
covardia, de avareza e inconciencia. morte de um dos cônjuges.
São apenas vísceras. Que perversidade inominável!
São as cadeias de aço forjadas pelos próprios
Toda essa multidão que se acotovela nas ruas,
escravos — para o castigo imposto a si mesmos
que se abalroa nas casas de loteria, que se atropela
através da única sociedade que a sua mente estrei-
nos cafés, que toma de assalto os bondes, todas
ta e comprimida de prejuízos pôde conceber.
essas caras suadas, essas fisionomias exaustas, todo
E a correria avança. Inventam-se novas for-
esse tédio de horas marcadas a relógio, toda essa
mulas de triturar o género humano através do pro-
loucura de correr, esse delírio de achar lugar, toda
gente vôa — para satisfazer o instinto de nutrição gresso material — simplesmente para matar a fome
230 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos

e para satisfazer ao instinto sexual — outra forma Mas, vestir, para parecer bem e "amar" m t i l
de apetite. facilmente.. .
Entretanto, o nosso organismo precisa de tão Comer, comer, comer, comer sempre por
pouco para se nutrir e produzir trabalho e recupe- habito, por gulodice, por superstição, por igno
rar forças gastas no redemoinho das contingências rancia, por comodidade, por sensualismo.
da vida humana. Dinheiro, dinheiro, mais dinheiro — para os
Todavia, é preciso "empanturrar" as visceras trapos, as jóias, o automóvel, a vida social, o car
até o excesso do artritismo, da gota, da diabetes, das naval, as ceiatas, o jogo, o gozo, o álcool, cortesãs,
indigestões e dispepsias herdadas ou adquiridas e situações invejáveis — para comer e amar . . .
remediamos o mal irremediável com as panacéas de Comer e amar no sentido vulgarissimo.
drogarias e com os diagnósticos errados dos médi- Nada satisfaz. A avançada continua ininter-
cos — tudo voracidade a viver do nosso estômago, rupta, em uma voracidade assombrosa pela civili-
das nossas visceras laceradas, dos nossos nervos em zação a dentro, atropelando por todos os lados,
ferida viva através da atividade fantástica desta criando vicios, regulamentando a prostituição "ne-
civilização de loucos a correr, a correr estupida- cessária" para saciar a fome dos moraliteistas de-
mente para a.morte. fensores da "sagrada instituição da familia'' e com
E as horas se escoam invariáveis: todos pro- pradores da carne feminina das famílias dos outros.
curam a liberação económica — para comer e para E as pobres mulheres também se vendem para
amar no sentido fisiológico. comer, depois de se haverem "perdido" . . . para
amar...
Si tivéssemos menos ambição e mais delicade-
E a "vida alegre" (triste ironia!) acaba poi
za para nos aproveitarmos da hora presente —
leva-las á repugnância dessa "profissão necessária",
quanta recordação agradável, quanta beleza, quan-
absolutamente necessária á moral social dos castos
ta doçura, quanta generosidade, quanto perfume
e dos santos puritanos, e tão indispensável á purc
colheríamos da vida!
za da sacratissima instituição da familia que, poi
232 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos .' \

isso mesmo, é tratada pelos "bons costumes" a ta- Si nos deixássemos dormir cinco minutos á
cões de botas e desprezada pelos famintos que não sombra da arvore da lenda oriental — quem sabe
podem prescindir dessa necessidade implacável e quanta felicidade nos adviria desse repouso pro
natural. metedor a nos confortar o coração longe do ruido
E os frequentadores das casas publicas "di- surdo, monótono, hostil, diabólico das maquinas
zem" que sentem repugnância desse meio de satis- triturantes desta civilização de idiotas a correr ofe-
fazer as suas "necessidades" para as quaes não sa- gantes para a morte.
bem de outros processos mais razoáveis e mais hu- Pobres que não conhecem a satisfação plena
manos. da sobriedade epicurista. Desgraçados que nunca
E a grande maioria é dos casados... Otelo souberam o que ha de divino no Amor, no puro e
nos seus lares e Don Juan nos lares alheios. santo Amor desinteressado, ingénuo, simples, vir-
O casamento, embora respeitada a himenola- gem, no Amor que não sabe de códigos nem de sa-
tria e as flores de laranja, também falhou. cerdotes ou de proclamas, no Amor que ignora si ha
leis ou sociedade, que não vive do sacrificio inaudito
Todos insatisfeitos.
da prostituição, que não é exclusivista nem assassi-
E ninguém sabe a razão por que nos envolve-
no, que não tem ciúmes nem exigências, que recebe
mos em toda essa teia forte, de tantas misérias so-
o que se lhe dá e devolve centuplicada a oferta de
ciaes.
outro coração.
Rotineiros, embrutecidos pela civilização in-
dustrial, maquinas de correr, os "Laboriosos" da Só a volta á natureza, a serenidade simples do
parábola — não temos tempo para comer e amar campo, a sobriedade, nos dão ideia de que é pos-
sossegadamente. . . sível fugir da loucura coletiva da civilização indus-
E ' comer ás pressas e satisfazer a necessidade trial e sentir a alegria de viver.
do instinto sexual voando, pulando assustados, o Mas, dentro das cidades — esse amontoa, i-
cercado alheio, para recomeçar indefinidamente a de infâmias, de vaidades, de amarguras, e de misc
corrida vertiginosa. rias — dentro dos grandes empórios da concorrem
234 Maria Lacerda de M o u > a

cia comercial, quem corre tanto não tem sensibili-


dade para aurir o perfume dessa flor minúscula,
exilada, transplantada, cultivada artificialmente Í N D I C E
na estufa social do caftismo das conciencias, estio-
lada por falta de liberdade — sol e ar — , secando, A CIÊNCIA A SERVIÇO DA D E G E N E R E C E N C I A
HUMANA g
morrendo por incapacidade absoluta de se aclima- VORONOFF 21
tar no ambiente sufocante do mundo industrial de AINDA V O R O N O F F 31
E V O R O N O F F D E S C O B R I U O MACACO!. . 43
proxenetas do Sonho e arlequins do tartufismo.
O P R E M I O N O B E L DA PAZ 51
AS G U E R R A S C I E N T I F I C A S . . . li.'
a) A Bacteriologia 67
b) A guerra dos insectos e parasitas 71
c) A guerra química 71
d) A Internacional do Armamento 77
c) O Escândalo Shearer 9f
f) Depois da guerra 97
g) Acorrentar Prometeu 101
I B S E N E A ACADEMIA D E L E T R A S . . . 10;"
DOMESTICANDO 117
a) "O povo cego" 119
OS T R I N T A D I N H E I R O S 12."
"O DRAGÃO E AS V I R G E N S " 135
a) As "Ideias - F o r ç a s " 150
EVOE'! Ifil
"BÔA S O R T N — C A D E I A P E R P E T U A " . . . . 177
A E S C O L A DA "NOVA O P O R T U N I D A D E " . . . 187
A S O C I E D A D E MIGDAL E O T R A F I C O DAS
BRANCAS 205
" C A R P E HORAM" 225

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