Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1* BATERIA, F0GO! -
.IACECDA
A mais empolgante narrativa da Revolução de 1930,
com a critica imparcial, corajosa e serena da acção
de MOURA
dos vencedores e vencidos, dos factores políticos e
militares, e das causas recentes e remotas que im-
pelliram o Exercito a decidir da victoria da corrente
O autor, official do
liberal.
ecscincos
irreprimível, a epopéa salvadora da Republica.
Brochado ."ÍSOOÍ)
EPICTETQ
Una I.nvradlo, 10»
T e l r p h . 2-C773
Rio th- Janeiro
ANTONIO CARLOS
Civilização
Tronco de Escravos
EMPRESTAR É UM PRAZER
DEVOLVERÉUM DEVER!
"O homem mais forle do mundo ê o mais
solitário."
IBSEN
ANTON/O CARLOS
CAIXA POSTAL 55071
C E P 0396 >-970
SÃO P A U L O / S P
CIVILIZAÇÃO B R A S I L E I R A EDITORA
R u a L a v r a d i o . 160 193 1 Rio de Janeiro
DA A U T O R A
NO P R E L O :
Fora da Lei.
Clero e Fascismo.
A SAÍR:
EM P R E P A R O :
Epicteto
A CIÊNCIA A SERVIÇO D A
DEGENERECENCIA HUMANA
a ciência progrediu tanto que deu origem a fan- plicidade que leva os humanos a se estraçalharem
tástico desequilíbrio na vida social, posta imedia- ferozmente nos campos de batalha.
tamente a serviço das perversidades inomináveis, de E, enquanto nas Igrejas se prega o "Amai-
toda a imbecilidade humana. vos uns aos outros", e se lembra o " N ã o matarás",
Descobertas, investigações, os métodos cien- sacerdotes patriotas abençoam a aviões, couraçados
tíficos atestam o esforço da elite intelectual. Por e bandeiras, na França contra a Alemanha, na Ale-
outro lado, cientistas se vendem cinicamente ao manha contra a França, na Itália, na Bélgica ou na
poder, ao capital, á vaidade das exibições. Áustria, em nome do mesmo Jeová terrível, em no-
E o capitalismo industrializado se apodera de me do Deus sanguinário de todos os exércitos, das
todo esse afan cientifico, mesmo ainda em em- pátrias exclusivistas e do chauvinismo cristão.
brião, de maneira que canaliza as energias humanas Dá-se ainda um fenómeno digno de nota: os
em uma direção única — a luta de competições, a próprios cientistas n ã o se subtraem á influencia
concorrência económica, o assalto ás posições já das massas. Enquanto nos seus gabinetes, em meio
ocupadas, o nacionalismo e, consequentemente, as de retortas e maquinas, experimentam, pesquizam,
atordoam-se na inquietação absorvente de resolver
guerras.
problemas ou aproximar-se de determinada verda-
Todo o género humano vive para a cumpli-
de, são admiráveis, superiores, grandes na sua per-
cidade brutal da prostituição sob todos os aspectos,
severança; logo que atingem a uma pequenina rea-
pois que a organização social capitalista não passa lização e veem para o cenário social aplicar o re-
de um vasto bordel em que se compram e vendem sultado das suas experimentações, caem no nivel
todos os sentimentos e as mais nobres aspirações, (UM massas, descem á vulgaridade do dogma, á
o Amor e a Conciencia, as mais altas manifesta- mediocridade domesticada, servil e perversa das
ções da Vida humana. Pátrias e dos partidos.
E toda a humanidade, em tempo de paz como Acorda-se o nacionalista, o religioso a serviço
em tempo de guerra, vive, trabalha, luta pela cum- da superstição e da ignorância, o cidadão a servi-
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 13
12
triaes de aviões, submarinos, couraçados, torpedos
ço dos governos e das bandeiras, contra outros go-
e metralhadoras — todos esses canibaes que se nu-
vernos, outros cidadãos e outras bandeiras.
trem dos campos de batalha.
E toda a sua ciência se prostra aos pés do ca-
E o rebanho humano continua a defender e
pital e da industria.
a respeitar, patriótica e religiosamente, a todos os
O esforço superior do homem livre é detur- interesses legislativos e nacionalistas, a toda auto-
pado, é prostituido. ridade constituída para afiar o cutelo que ha de
Todas as descobertas, sem exceção alguma, cortar, piedosamente, o pescoço e abrir o ventre
todas as pesquizas da ciência são açambarcadas pe- dos que vão, entoando hinos, alimentar a boca
los interesses industriaes e para as conquistas da escancarada dos canhões, das maquinas de guerra
guerra, consequentemente. que recebem e trituram a carne humana e a trans-
A aviação é instrumento nacionalista e as fa- formam em moeda corrente com que os grandes
çanhas aviatorias, ainda que um Amundsen, um industriaes e os políticos, seus cúmplices, compram
Charcot, um Nansen delas se sirvam para desco- o poder, a gloria e as cortezãs.
brimentos científicos, são manejos da embriaguez A t é mesmo a bondade imensa de Mme. Curie
patriótica ou da maroteira politica — para açular está trabalhando para a destruição do género hu-
os "cidadãos" á defesa sagrada da pátria glorio- mano.
s a . . . E até as palavras teem o seu prestigio no
Santos Dumont o sente, profundamente arre-
despertar das emoções ou das paixões capazes de
pendido de haver contribuído para a carnificina
acordar o sentimento do dever nacional.
gloriosa dos milhões de vitimas da ferocidade civi-
O vapor, a eletricidade, o radio, tudo, absolu- lizadora iniciada em 1914.
tamente tudo tem o seu papel preponderante na
O cinematógrafo cultiva a imbecilidade, o
destruição pela guerra — em nome do Moloc da preconceito da força bruta, o prejuizo patriota,
pátria. a superstição religiosa, a moral farisaica da socie-
Mas, quem move os cordéis da diplomacia e dade filistéa, o mundanismo parasita, todas as to-
do Estado são os banqueiros, os famosos indus-
14 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 15
lices seculares e todos os crimes de lesa-felicidade tros de pugilato e dos concursos comerciaes de
humana. beleza.
Rara a película de tese social elevada. T ã o Santos Dumont, Edison, Marconi, Mme.
rara que a assistência, no seu conjunto, a repudia... Curie — instrumentos do progresso material para
Descoberta feliz, sonhada talvez para a es- a conquista do poder, do dinheiro, para o alarga-
cola moderna, para o cultivo da inteligência, caiu mento das fronteiras nacionaes contra outros ca-
imediatamente nas malhas do industrialismo absor- pitães, outras bandeiras e outros nacionalismos.
vente e foi colocada ao sabor e ao alcance das mas- Marconi já vendeu a própria conciencia:
sas, em vez de servir para elevar a mentalidade fascista, marquês, senador, presidente nomeado da
humana ao nivel do ideal cientifico puro e das as- Academia de Letras italianas . . .
pirações de renovação social pela educação. Cada descoberta cientifica é nova fonte de
Mas, ha tanta impudência e tanta cupidez na conflitos internacionaes, tudo concorrendo para
civilização de industria que um film como o do l i - liquidar mais depressa o género humano.
vro de Remarque consegue atravessar as malhas da Neste momento, todos os grandes laboratórios
reação burguesa. químicos estão ocupados no fabrico de gazes sem-
D á que pensar: a civilização do dollar será pre e cada vez mais tóxicos, para a próxima guerra.
engulida por si mesma, morrerá de apoplexia. Sabe-se mesmo que será também aproveitado
O que se verifica com o cinematógrafo a ser- o trabalho dos cientistas ocupados hoje em cultivar
viço da imbecilidade e da ignorância sentimentalis- e exasperar a virulência dos micróbios das mais
ta, dá-se também com o radio. terriveis moléstias.
J á a radiotelefonia é instrumento da policia, A t é mesmo o mundo proletário, embora o pro-
e uma agencia de anúncios de todas as drogas que testo contra a civilização burguesa-capitalista, cava
envenenam a humanidade, inclusive a droga lite- a degenerecencia da espécie e coopera para essa
rária académica, a droga historico-patriotica, a luta dantesta, ora imprimindo as imbecilidades es-
droga das caravanas politicas e a droga dos encon- critas pela burguesia académica, patriótica e mun-
16 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 17
dana, ora fabricando munições e armas de guerra, fome, para a peste, para a miséria fisica e moral
mesmo porque todas as conquistas do progresso é o pequeno agricultor.
material constituem armas de guerra para o sus- N ã o o capataz que dirige, governa e explora,
tentáculo do dominio de uns e do servilismo e do- de rebenque em punho, que humilha o semelhante,
mesticidade da maioria. enriquecendo-se á custa do suor alheio, mas, o hu-
milde lavrador que cava a terra e semeia a nutrição,
Seria bem preferível que o operário amputas-
a vida, a força, a alegria da fartura e da fecundi-
se ambas as mãos si se resolve a trabalhar em arse-
dade sadia, porem, que não contribue para a r i -
naes de guerra, de hidroplanos e metralhadoras,
queza social, o que não exige o intermediário para
couraçados e torpedos. Deveria ter vergonha de si
as suas transações comerciaes.
mesmo ao reivindicar os seus direitos á liberdade,
após 8 ou mais horas de trabalho em estaleiros de A volta ao trabalho rude da terra será. por-
navios de guerra ou em um arsenal de idiotices tanto, a conciencia tranquila, para além de toda
perversas ou de brigas de comadres, como, por cumplicidade com a organização social, baseada
exemplo, as redações das imprensas oficiaes. na exploração do homem pelo homem?
Nem sempre. Parece-me que ainda não.
De qualquer modo, dentro da civilização, to-
E ' justamente na produção da terra e mesmo
dos nós concorremos para o canibalismo patriótico
na propriedade da terra em si, que se alicerça todo
das trincheiras e das pilhagens militares.
o formidável edificio da exploração social.
Entretanto, o trabalho intelectual não exclue
Si ninguém plantasse senão o estrictamente
o trabalho manual e vice-versa; pelo contrario, a necessário para si e para os seus filhos menores,
harmonia de todo o ser vem da energia fisica em para os velhos e para as mães e as crianças e os
ação e do prazer de pensar e agir e criar mental- inválidos da sua família, ao mesmo tempo prati-
mente. cando o auxilio mutuo, — n ã o se formariam
O único homem que não contribue direta- "trusts" de café, de açúcar, de algodão, de arroz,
mente para a guerra, para a destruição, para a de trigo, de mate, de todos os géneros de primeira
18 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 19
necessidade, para fortuna dos reis da agricultura
concientes, se recusariam a pactuar com essa civi-
industrializada — que não plantam e se enrique-
lização de vampirismo social, voltariam ao traba-
cem á custa do suor dos que plantam. lho duro da terra, á vida simples e natural, porem
D a í a concurrencia aberta para as lutas co- cheia de compensações, de liberdade, para deixar
merciaes de competição, origem das guerras mo- sentir a alegria da conciencia que não desce á cum-
dernas. plicidade de lutar em favor do esmagamento de
E' o excesso da produção, sob todos os aspe- toda a humanidade.
ctos, na lavoura como nas industrias, causa de to-
dos os conflitos na sociedade atual. O nosso mal
não vem da falta e sim do excesso de produção. A
miséria do mundo moderno ainda vem da fartura
e do excesso de riqueza e de progresso material. D a
má distribuição dos géneros alimenticios. Por ora,
a terra daria bem para a sua população.
E o operário verdadeiramente conciente, ope-
rário manual ou cientista manipulando o pensa-
mento no fundo das retortas ou nos cálculos e
problemas, á procura das leis naturaes, em busca
da razão de ser da vida — não fabrica armas para
abrir o ventre dos seus próprios filhos em holo-
causto no altar da pátria, esse idolo sanguinário de
fauces escancaradas a absorver as energias de to-
dos os assalariados do trabalho.
Si houvesse verdadeira compreensão do dever
humano, os indivíduos livres, homens e mulheres
VORONOFF
que fala Romain Rolland, voltando aos prejuízos, Situação humilhante de protegidos da cari-
aos preconceitos inculcados na adolecencia, pela dade!
educação e pelo exemplo. Como são dignos de admiração e amor os ve-
A s grandes conversões ou as conversões dos lhos estóicos, mas, como são raros! Como sào raros
livres-pensadores de rebanho, são fatos de todos os os velhos de almas sãs para penetrar o sentido da
dias. vida, de almas jovens para desejar e continuar a
A fraqueza de memoria, a perda da acuidade realização interior pela bondade envolvente, tole-
rantes, compreensivos para deixar aos moços a li-
sensorial, a imaginação cheia de fantasias absurdas
berdade de pensar, de errar, de aprender, de adqui-
e muitas vezes até perversas, a ambição, fazem da
rir experiências próprias, de viver segundo as suas
velhice quiçá o pesadelo dos que velam por ela.
necessidades e os seus sonhos precursores! Sócrates,
Sob outro aspecto, o velho, nesta época po-
Réclus, Kropotlcine, Ibsen, H a n R y n e r . . .
sitiva de cupidez, quasi sempre é um estorvo: a
herança depende da morte dos v e l h o s . . . Mas, a velhice gamenha, voronofizada é o
O velho, si n ã o sabe ficar na moldura, na ex- mesmo ridiculo dos cabellos e bigodes pintados,
pressão de Emile Faguet, é um desastre, motivo emoldurando as rugas indiscretas ou a "maquilla-
de discórdias em toda a familia, motivo de con- ge" em pessoas idosas em que apontam, agressiva-
flitos de toda ordem. mente, os estragos do tempo e as dores do mundo.
E que de ridículo, além da fatalidade com A juventude vem de dentro para fóra. Des-
que a própria natureza satiriza a decrepitude! pertar, cultivar as energias interiores, em vez de ir
O ideal é morrer no vigor das faculdades e buscar nos artifícios o remédio para os desvios e
dos sentidos, ou, pelo menos, ao atravessar o Cabo as loucuras e a degenerecencia humana, alimenta-
da Bôa Esperança, no outono iluminado da vida, da e multiplicada com a civilização industrial capi-
antes de entrar no das tormentas . . . e das imbeci- talista — eis o caminho da juventude eterna.
lidades da caduquice, arremedo caricatural da in- A velhice é uma etapa desagradável do cir-
genuidade infantil. culo evolutivo de uma parcella de vida em relação
24 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 25
senilidades imprestáveis, cujo corpo envelhecido ticamente, o supremo prazer de domínio, em o lu-
precocemente, talvez em orgias e libertinagens, po- gar supremo de presidente da Republica brasileira!
de dar vida a filhos predispostos á mesma degrada- Acabaria por exgotar a nossa p a c i ê n c i a . . .
ção moral, com tendências á mesma senilidade pre- e exgotaria de vez os cofres da nação. Seria a ban-
carrota de tudo . . .
coce e cuja mente rotineira e empírica ha de con-
*
tinuar a deitar regras de conduta de uma moral
também senil — para tirar aos moços a liberdade **
e a alegria de viver de acordo com as necessidades O que é mais criminoso é lançar mão de um
do momento e de acordo com a evolução e as ideias sêr vigoroso e feliz na sua vida simples, natural —
e sonhos prenunciadores. para, com o seu sacrifício, alimentarmos a velhos
decrépitos, cuja vida foi um hino ao vicio, á liber-
Si vivêssemos como os pássaros, que são livres
tinagem, cujos capitães e cujo poder foi adquirido
logo após os primeiros v o o s . . .
á custa do suor alheio.
Mas, conservar, remoçar artificialmente a
Porque um sábio, um filosofo autentico não
avós e tataravós para constituírem novas famílias
consentiria nunca em martirizar um sêr para dele
talvez, e nos tirar mais a liberdade de pensar e agir
tirar recursos em seu proveito próprio.
e obrigar-nos a um beija-mão que nunca mais terá
As operações de Voronoff, a não ser as pri-
fim, é simplesmente deshumano . . . é povoar a vida
meiras experiências suas e de seus dicipulos em a
de fantasmas simiescos.
pobre gente dos hospitaes e asilos, sem direito a ne-
Imaginemos Clemenceau, o "tigre" voronofi- nhum direito, são operações em os velhos endinhei-
zado: com que petulância perversa fomentaria de rados e em os poderosos, cuja conciencia foi amas-
longe uma nova guerra! sada no parasitismo, cujos cofres foram enriqueci-
Imaginemos um Ruy Barbosa falando, falando, dos á custa da exploração de milhares e milhares de
gesticulando ininterruptamente o seu patriotismo operários, á custa do martirio e servilismo do reba-
contra os paes da pátria que lhe negaram, sistema- nho humano.
28 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 29
Depois, os charlatães da ciência podem mul- Corulla, em um artigo em "La Nación", a respeito
tiplicar embustes ou provocar aleijões moraes, a do "Rejuvenecimento", diz:
sugestão fica e o seu prestigio cresce, porquanto . . . "Por outra parte, nem Voronoff nem
sentem crescer a confiança em si, e eles mesmos se Steinach puderam apresentar até agora um caso
desdobram em valor aos seus próprios olhos. de verdadeiro rejuvenecimento. São melhoras
Tem razão Bernard Shaw: O medico que parciaes, atinentes unicamente á esfera sexual,
mata com coragem de convicções, com energia, dentro da qual é inegável aumento de atividade.
"com maestria, sente crescer seu orgulho em cada As células nervosas e os demais órgãos nobres
crime que comete." continuam como dantes. N ã o negamos que isso se-
ja resultado e bom, porém, é preciso convir que es-
tamos todavia muito longe de haver encontrado a
fonte de Juventa e que é muito duvidoso que seja
O método de Steinach, pcofessor em Viena, esse o melhor caminho para chegar até ela".
com o enxerto de glândulas de outro semelhante Resultado "muito óptimo", dirão os velhos
ou com o enxerto de glândulas do próprio paciente, exgotados.
tem dado, dizem, muito mais resultados que o de
Para a velhice libertina basta apenas o aumen-
Voronoff.
to da atividade sexual, e, "après moi, le déluge" . . .
E', pelo menos, mais humano, é feito com o Entretanto, a longevidade, além de ser caracte-
consentimento de um individuo que estará ciente rística de família, aptidão hereditária, depende
e conciente de que se vae prestar a servir a outro muito mais de nós mesmos do que de intervenções
individuo. exteriores. E a longevidade sadia é trabalho de hi-
Muitas fraudes e muitos crimes podem advir giene mental e de alegria interior, de uma bondade
daí; entretanto, ha mais probabilidades de consen- incapaz de sacrificar a quem quer que seja em be-
timento do sêr humano do que do macaco... neficio próprio.
Mas, outro medico notável, o D r . Juan E. Ademais, que sabemos da Vida?
30 Maria Lacerda de Moura
no aperfeiçoamento dos meios do homem extor- gar que ocupava o sacerdócio, ha alguns séculos.
quir dinheiro de outro homem, valendo-se da ci- Os mesmos bonzos revestidos de títulos, as mesmas
rurgia, no atentado á vida fisiológica dos animaes castas nas ciências: academias, universidades, con-
gressos. A mesma confiança e falta de critério por
sadios.
parte dos crentes; as mesmas divergências e as
Compreendo a necessidade do veterinário, não
mesmas palavras incompreensíveis, a mesma pre-
compreendo a vivisecção a n ã o ser como u m delí-
sunção".
rio de perversidade inominável, nem chego a vêr a
vantagem da embriaguez cientifica que põe milha- Tem razão Bernard Shaw: "si ao menos os
res de cobaias e cães e qualquer espécie de animal Voronoff conseguissem, com a enxertia, fazer do
á mercê dos "cientistas" — funcionários públicos homem um macaco r e s p e i t á v e l . . . "
— vaidosos quasi de fazer sofrer aos "mártires da
N ã o . O homem continuará a descer sempre,
ciência," em nome de um principio ou de uma des-
bem para baixo de todos os simios, na sua maldade
coberta ou de uma pesquiza ou dos problemáticos
de criatura civilizada, com os seus "raios invisíveis"
benefícios daí resultantes para todo o género hu-
e "raios da morte" e gazes asfixiantes e aviões e
mano, e, as mais das vezes, em nome do salário pa-
submarinos e torpedos e laboratórios científicos
go pelo Estado, em nome do ordenado mensal.
para estimular todas as virulências, desde as guer-
Questão de estômago ou de idolos.
ras até o prazer satânico de martirizar os animaes
T a m b é m os sacerdotes pagãos sacrificavam em nome do humanitarismo clinico.
criaturas indefesas, animaes, crianças, homens e
mulheres, em nome da paz ou da guerra, afim de N ã o é sentimentalismo piegas e sim pan-hu-
aplacar a cólera dos deuses — em beneficio da manismo o que lemos em "Atlântida" de 21 de
humanidade. Outubro de 1927. a propósito da vivisecção:
no aperfeiçoamento dos meios do homem extor- gar que ocupava o sacerdócio, ha alguns séculos.
quir dinheiro de outro homem, valendo-se da ci- Os mesmos bonzos revestidos de títulos, as mesmas
rurgia, no atentado á vida fisiológica dos animaes castas nas ciências: academias, universidades, con-
gressos. A mesma confiança e falta de critério por
sadios.
parte dos crentes; as mesmas divergências e as
Compreendo a necessidade do veterinário, não
mesmas palavras incompreensíveis, a mesma pre-
compreendo a vivisecção a n ã o ser como um delí-
sunção".
rio de perversidade inominável, nem chego a vêr a
vantagem da embriaguez cientifica que põe milha- Tem razão Bernard Shaw: "si ao menos os
res de cobaias e cães e qualquer espécie de animal Voronoff conseguissem, com a enxertia, fazer do
á mercê dos "cientistas" — funcionários públicos homem um macaco r e s p e i t á v e l . . . "
— vaidosos quasi de fazer sofrer aos "mártires da
N ã o . O homem continuará a descer sempre,
ciência," em nome de um principio ou de uma des-
bem para baixo de todos os simios, na sua maldade
coberta ou de uma pesquiza ou dos problemáticos
de criatura civilizada, com os seus "raios invisíveis"
benefícios daí resultantes para todo o género hu-
e "raios da morte" e gazes asfixiantes e aviões e
mano, e, as mais das vezes, em nome do salário pa-
submarinos e torpedos e laboratórios científicos
go pelo Estado, em nome do ordenado mensal.
para estimular todas as virulências, desde as guer-
Questão de estômago ou de idolos.
ras até o prazer satânico de martirizar os animaes
T a m b é m os sacerdotes pagãos sacrificavam em nome do humanitarismo clinico.
criaturas indefesas, animaes, crianças, homens e
mulheres, em nome da paz ou da guerra, afim de N ã o é sentimentalismo piegas e sim pan-hu-
aplacar a cólera dos deuses — em beneficio da manismo o que lemos em "Atlântida" de 21 de
humanidade. Outubro de 1927. a propósito da vivisecção:
" A crueldade nunca poderá ser um caminho e poderia, em certos casos, induzir-nos a erros sobre
para o aperfeiçoamento humano. o verdadeiro papel dos órgãos. Por essas reservas,
eu não nego a utilidade nem mesmo a necessidade
" A ciência não se adquire com a crueldade."
absoluta da vivisecção no estudo dos fenómenos da
E muito menos a sabedoria, acima de qualquer es-
vida, eu a declaro apenas insuficiente.
pécie de violência.
Com efeito, nossos instrumentos de vivisec-
Ainda mais: "Si a fisiologia não pode adean-
ção são tão grosseiros e nossos sentidos, tão imper-
tar sem infligir horriveis torturas aos animaes inde-
feitos que só podemos atingir no organismo as par-
fesos, é melhor que a fisiologia fique onde está. tes grosseiras e complexas."
" A humanidade pode progredir sem a fisio-
N ã o obstante, a mania da vivisecção é o or-
logia, porem, não poderá progredir sem a piedade."
gulho da ciência moderna, e as vacinas e soros se
Extirpar uma glândula sexual do macaco, na-
multiplicam para gáudio da terapêutica industria-
da representa para o homem, mas, extirpar um tes-
lizada e para o martírio dantesco das cobaias e dos
tículo do homem 6 algo de muito importante na simios.
sua integridade . . .
Cousa a mais natural do mundo o "homo sa-
Quanto á vivisecção, o próprio Claude Ber-
pins" roubar do macaco o que seria incapaz de
nard, o experimentador "primus inter pares", que
lhe dar, o que dificilmente, excepcionalmente, seria
massacrou, brutalmente, a dois mil cães e que, sem
capaz de dar ao próprio semelhante.
anestesia, os matou lentamente, o bárbaro que, para
atender aos protestos da sua vizinhança, cortava, E para que? Si o resultado n ã o passa de su-
antes das experiências, as cordas vocaes dos ani- gestão ou se limita á absorpção mais ou menos len-
maes, afim de que não uivassem de dor, o próprio ta do hormonio da glândula transplantada?
Claude Bernard diz: " A vivisecção é a deslocação Resultado para 3 ou 4 annos, findos os quaes,
do organismo vivo por meio de instrumentos e de outra enxertia é necessária para novo rejuveneci-
mento.
processos que lhe podem isolar diferentes partes.
Reduzida a si mesma, ela só teria alcance restrito, E a imprensa popular, o jornalismo industria-
36 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 37
lizado a encher-se de termos prometedores, "reju-
E o D r . Fausto só encontra a juventude
venecimento", "elixir da juventude", como si Ca-
através do pacto com M e f i s t ó f e l e s . . .
gliostro tivesse voltado e o seu espectro redivivo
Suetonio, Galeno, Bacon, Armaiangaud, es-
derramasse por sobre os homens a cornucopia de
tudavam ou recordavam receitas para o prolonga-
todos os sonhos alquimistas transformados na reali-
mento da juventude.
dade palpável da voronofização.
Aliás, o sonho da mocidade prolongada vem O caldo da rã, usado pela mulher de Galvani,
a alimentação de galinhas, por sua vez alimentadas
de muito distante.
com víboras (Arnaud de Villeneuve, séculos X I I I
Ovidio, em as "Metamorfoses", conta que, no
e X I V ) , o frigorifico de Hunter (parece-me), pa-
antigo Egito, era praticada a transfusão de sangue
ra a conservação da mocidade... as considerações
nos velhos, pelos sacerdotes, para rejuvenece-los.
de Buffon, descrente de todo e qualquer processo
T a m b é m os sacerdotes de Apolo utilizavam-
de prolongamento da vida, os conceitos de Stad-
se do sangue dos gladiadores e atletas — como te-
man e de Weber, aceitando a ideia da longevidade,
rapêutica religiosa para o rejuvenecimento.
tudo isso prova bem o interesse em torno das ten-
Plinio e Celso, por sua vez, recordam essas
tativas conducentes ao rejuvenecimento.
praticas clinico-religiosas de homoterapia.
Metchenikoff tenta-o também; aliás os seus
E m Roma, Jarão e Taraquila, a mulher de
processos parecem bem mais lógicos.
Tarquinio Prisco, são exemplos, dizem os cronistas,
Depois, as experiências concludentes de Bar-
do anseio da conservação da juventude.
thold, em 1849 (enxertos, transplantação de go-
U m medico hebreu praticou a transfusão de
nadas de frangos): primeiramente os enxertos e em
sangue em o Papa Inocêncio V I I I , no secuIoXV.
segundo lugar a ideia nova ou o novo conceito a
A pedra filosofal e o elixir da longa vida, a
respeito das secreções internas.
alquimia, os José Bálsamo e os Zanoni já dão a
Brown-Séquart, em 1889, cuja teoria sexual da
ideia da preocupação absorvente em torno da eter-
velhice é a de Voronoff, que também se apoia na
na mocidade.
observação dos eunucos. Os trabalhos de Brown-
38 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 39
Séquart teem o mérito incontestável de haver sido quentemeiíte torna-se toxico. Desde então, sua ação
experimentados no próprio autor, o que se n ã o ve- só pode ser momentânea." .
rificou ainda com Voronoff . . . ; Harms, 1914, en- Assim é que, em ciência medica, a ultima teo-
xertos de glândulas de animaes jovens em animaes ria ou a ultima descoberta destróe todas as ante-
velhos; Steinach e a vaso-ligadura nos enxertos; riores . . . E, por associação de ideias, lembro-me
Lespinasse, 1913, e o processo da transplantação de da quasi centena de crianças mortas pelas vacinas
glândulas de homem vivo; Lydston, 1914, e a de Calmette, anti-tuberculosas.
transplantação de glândulas de homem morto, lo- Pobres cobaias humanas. . .
go após o passamento, conservado em frigorifico;
Voronoff "destróe" também a Metchenikoff
Lydston e a transplantação das glândulas do chim-
com os seus fermentos lácteos.
panzé, em 1916, etc. etc.
Nada fica de p é : só o enxerto do simio, só
A opoterapia de Brown-Séquart ou extratos Voronoff descobriu o elixir da longa vida. E, como
de órgãos dos animaes, ainda hoje tratamento mui- tal, Voronoff ri-se dos antiviviseccionistas.
to aconselhado pelos médicos, é considerado por Ainda podemos citar muitos nomes e outras
Voronoff e seus discípulos, como paliativo, cousa tantas experiências. O próprio Voronoff, no livro
j á do passado. ( " A ' Conquista da V i d a " — Voro- indicado diz:
noff.) "Essa cirurgia do porvir, é o enxerto de nos-
D i z Voronoff nesse livro: " A aplicação qua- sos órgãos, de nossos tecidos, de nossas glândulas.
si universal, do método de Brown-Séquart, não deu O caminho está traçado por nomes de primeira l i -
quanto se esperava, e, atualmente, está quasi aban- nha: Carrel, Dartigues, Eiselberg, Horm, Knud
donado. A razão está em que a trituração da glân- Sand, Kuttner, Lespinasse, Lexner, Lydston, Mar-
dula não permite extrair todo o produto, e o liqui- ro, Mauclair, Moris, Parragon, Pende, Pezard,
do obtido é pobre em elementos ativos. Steinach, Thorek, Tuffier, J. Voronoff, Walker,
Esse liquido, como todo extrato orgânico, al- Zavadowsky, etc."
tera-se rapidamente, perde suas propriedades e fre- Mas, condena o enxerto das glândulas do se-
40 Maria Lacerda de Moura Civilização - Tronco de Escravos 41
melhante, por muitas razões; defende apaixonada- Nem um homem dirá que a enxertia n ã o deu
mente o enxerto das glândulas do simio. resultado...
Voronoff só aparece positivamente em 1922, E, em tudo isso, quem vae pagar caro é o ma-
caco.
isto não o impede de afirmar e deixar que um dos
seus colaboradores afirmasse que os cientistas ame-
ricanos ensaiaram e mal os seus métodos de enxer-
tia nos grandes mamíferos e no homem. Esses cien-
tistas são, precisamente, Lespinasse e Lydston! . . .
de Roma, filho da "Loba" — cérebro e coração do porque representaes entre a mocidade italiana, a
mundo" . . . nova geração, a parte eleita, a parte seleta. Mas,
" I I Piccolo" o transcreveu com a seguinte no- amamo-vos porque sois a expressão viva e melhor
ta muito significativa: "Lo riproduciamo d'urgen- deste nosso espirito e desta nossa paixão. Si, cur-
za" . . . e o titulo: "Farsi rispettare!" vados sobre os livros, cultos demais para serdes
Vale a pena transcrever esse trecho do dis- belos e vivos; si fosseis somente criaturas de estu-
curso de Ponn. Turati, Secretario do Partido Na- do, educados a afrontar a vida na dura contenda
cional Fascista, nessa ocasião, em regosijo pela quotidiana pela conquista de um posto, nós vos
"dúplice vittoria" dos estudantes fascistas: o soco consideraríamos, sim, filhos da Itália; mas, não po-
do italiano no rosto do francês. deríamos amar-vos.
"Bravos a vós que vencestes, entre os estu- Amamo-vos porque fostes venturosos, alegre-
dantes de todo o mundo, a competição olímpica, mente, com o vosso belo faseio recamado sobre o
mas, também, para premiar as vossas virtudes, não peito, a afirmar que a Itália de hoje está com os
somente de saltadores e corredores, como as de punhos e com o coração firmes." ("Aclamações
"boxeurs" em terras de França. vivíssimas" ( " I I Piccolo" — 1 de Setembro de
(Aplausos, bravos, muito bem!) 1928.)
"Esse esporte não fora compreendido no pro- Parece impossível!
grama das olimpíadas universitárias, mas, as cir- A simplicidade clovnesca dos fascistas o con-
cunstancias, a incompreensão, a pouca educação fesa. As outras nações guardam reservas . . .
cívica (muito bem! bravos! aplausos) da parte de
Mas, no fim, está conforme.
um publico que assistia ás vossas competições,
O esporte é o preparo para as guerras. E a
transformou-vos imediatamente e vos levou a com-
Itália fascista, cuja politica imperialista de expan-
bater essa bela batalha, não mais esportiva, mas,
são territorial é uma ameaça e uma provocação, or-
politica. (Muito bem! aplausos.)
ganizou mesmo um quasi ministério de competições
"Camaradas estudantes! N ó s vos queremos,
56 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 57
suas mais altas esperanças imperialistas á romana: mo, ciência sem conciencia, — amassando tudo
" . . . e que o mundo inteiro veja a floresta de baio- isso com patriotismo, só pôde dar guerras e violên-
netas e sinta o palpitar dos nossos corações inven- cia policial.
civeis". ( A Revista do Povo da Itália — Anno I V ,
ídolos novos dentro de nichos antiquíssimos.
n.° 11, Novembro de 1926.)
O homem é o mesmo troglodita sanguinário.
Competições atléticas — instrumento de paz! Santa malícia ou santa ingenuidade o premio
O premio Nobel a um esportista — porque o Nobel da paz, concedido a um esportista — por-
esporte tem por objetivo a paz internacional — é que o esporte tem por objetivo a paz internacio-
um símbolo . . . nal?! . . .
Já, de si, o premio N o b e l . . . (da pólvora?...) Pobre rebanho humano arrastado no torveli-
da paz, é um símbolo. no louco da civilização!
Todo o género humano prepara-se, cada vez Entretanto, livros de paz c de Amor, que são
mais rapidamente, para o suicídio coletivo, atra- como gritos saídos das vísceras da alma, obras pri-
vés das guerras cientificas. mas da literatura contemporânea, esforço heróico
E tudo envolvido na hipocrisia das expressões para a paz, "La Tour des Peuples", "Les Pacifi-
de paz e intercambio e fraternidade. ques," de H a n Ryner; "Clerambault" de Romain
Nunca as nações falaram tanto em pacto Rolland; "L'Ouragan" de Florian Parmentier;
Kellog e desarmamento e intercambio intelectual e "Les Hommes en Guerre" de Andreas Latzko; l i -
artístico, e a guerra fora da lei, e nunca estiveram vros de Wells, de Remarque, de tantos outos, não
tão dispostas a se aniquilarem mutuamente. mereceram o premio Nobel da paz!
Atletismo, gazes asfixiantes, virulência de mi- O premio da Paz é para os lutadores e pugi-
cróbios, submarinos e torpedos, aeroplanos e cou- listas, para os "boxeurs" e organizadores de com-
raçados, ondas hertzianas, punhos firmes, corações petições atléticas.
duros, insensíveis, paixões politicas, cérebros va- Como nos sentimos humilhada deante dessas
sios, ambições paranóicas, aspirações de dominis- transmutações de valores éticos!
Maria Lacerda de Moura
64
Kellog.
Comediantes? Tragediantes? . . . AS GUERRAS CIENTIFICAS
Raios de calor. Esses raios teem a potencia maravi- E agora, o inimigo é toda a população do
lhosa de fundir até mesmo a platina e o irridium! país a ser destroçado: crianças, mulheres, nada po-
Tanto não era preciso para fundir o "material derá ser poupado. E ' a guerra de extermínio.
humano".
As guerras através da fisica, da química, da
N a Itália, Marconi, hoje m a r q u ê s . . . e sena- bacteriologia, atacam, de preferencia, as popula-
dor . . . mediante espelhos parabólicos chegou a ções civis. Os raios de calor, os raios da morte, os
converter correntes de alta frequência em "Raios raios invisíveis são destinados a incendiar, a devo-
de Calor." rar, a aniquilar as fabricas, os centros industriaes,
T a m b é m a Inglaterra, a Alemanha possuem os reservatórios de géneros e munições dos países
os seus raios incendiários, idênticos, nos efeitos, aos inimigos, os campos de cultura e de criação de
das outras potencias. gado.
As nações se aprestam para incendiar o mun-
do inteiro. A Bacteriologia
A civilização é um Everest de ciência aplica-
da á industria, a rolar por sobre a vida de todo o A guerra por meio dos micróbios é uma das
género humano. ideias mais satânicas da cerebração azinhavrada e
E Kellog e a Sociedade das Nações e toda a patrioteira dos nossos dias. O seu campo é todo o
pantomima politica e diplomática a falar de Paz! planeta. E a loucura guerreira é de tal ordem, que
As cidades vão desaparecer em bloco: Berlim, até mesmo as vísceras que concebem tal monstruo-
Londres, Paris, Viena, Roma - - serão reduzidas sidade serão atingidas pelo perigo mortal.
a cinzas, em algumas horas. A epidemia da gripe (espanhola) continua
N ã o ha mais necessidade de exércitos e de sendo estudada como qualquer cousa de inexplicá-
trincheiras. U m a pequena maquina eletrica e meia vel no período da grande guerra: diversas hipóteses
dúzia de homens é o suficiente para pulverizar mi- são apresentadas, inclusive a hipótese inadmissível
lhões de vidas. da Sociedade Internacional Biocosmica.
I
dade poderá ser destruída facilmente, pelo que é bélica dos nossos dias e sim á ciência a serviço do
de esperar que essa nova descoberta nunca seja uti- bezerro de ouro.
lizada como arma de guerra."
E essa lei terá a sua razão de ser, si, pelo con-
E ' assim: o professor, o cientista indica, e trario, não significar o termo final das guerras, e
depois, retrocede . . . sim, si se aplicar á destruição de todo o género
Todas as armas de guerra desaparecem dean- humano civilizado. E ' o suicídio coíetivo, ou me-
te dessa toxina. N e m mesmo ha necessidade mais lhor o massacre de uma civilização.
de declaração de guerra, mobilização e unidades na-
vaes, estaleiros de couraçados, exércitos permanen- A guerra dos insetos e parasitas
tes, escolas militares, quartéis, generaes ou forta-
lezas. As guerras futuras terão como armas — os Gafanhotos, toda sorte de insetos nocivos e
cientistas, laboratórios químicos, a finança inter- parasitas devastadores, (ovos e germes criados em
nacional e aviões. incubadoras) serão espalhados por meio da avia-
ção e de outros processos estudados á luz das ciên-
Parece, pois, que n ã o tem razáo de ser a "lei
cias — afim de devastar as plantações, destruir as
da gigantanasia" aplicada á biologia da guerra,
colheitas e matar o gado.
pelo optimismo do grande professor alemão Jorge
F. Nicolai.
A Guerra Química
A guerra não é só instinto que já devia ter
sido ultrapassado pela sociedade humana de hoje,
Em 1926, em um manifesto á população de
é também a arma do capitalismo organizado, mo-
Paris, H a n Ryner denunciava o próximo suicídio
delando o "homem estúpido", através da civiliza-
ou massacre do género humano, curvado ao peso
ção mecânica, do progresso material.
de ciência e de civilização.
A lei da gigantanasia aqui, não se aplica aos
Já se conhecem novos gazes, c os seus efeitos:
monstros dos exércitos modernos, á enormidade
72 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravoi 73
E a prova é que todas as grandes potencias E V o n Parseval, em 1924, diz mais: "Si se
estão admiravelmente aparelhadas, a trabalhar e a admitissem as concepções arcaicas, a ação dos
produzir e armazenar recursos químicos para as aviões não poderia exercer-se senão sob objetivos
próximas e terríveis refregas. militares. Felizmente uma concepção mais moder-
O governo britânico tem, desde 1923, em na admite que todo o país deve ser considerado co-
IA Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 75
mundo: Vichcrs e Annstrong (Inglaterra), Bet- dorf (a. Neckar), a Fabrica Nacional de Armas
hleem Steel (America), Schneider, Krupp, Dillin- Belga de Herstal, a Sociedade Austríaca de armas,
ger Hutte (Alemanha), Skoda (Áustria), Pouti- desde 1905 cooperam estreitamente dentro do mes-
loff (Rússia), A l t i Forni Fondieri Acciaine di mo objetivo: comercio.
Terni (Itália). A firma alemã bem conhecida: Dillinger Hut-
N a "Sociedade Russa Poutiloff", os capitães te, tinha grande parte de seus capitães em mãos
eram de Krupp — Cavalheiro da Legião de Honra, francesas de nobres, condes, secretários de embai-
e de Schneider, do Creusot. xadas, oficiaes de reserva. A Dillinger Hutte tra-
Os industriaes de industrias pesadas de M u - tava todos os seus negócios em Iingua francesa.
toran (Japão) tinham metade de seus capitães Naturalmente, taes "patriotas de negócios" não
postos pelos reis ingleses do aço — Vichers e foram esquecidos nas promoções da Legião de
Annstrong. Honra.
John Brown, Vichers c Armstrong foram os Krupp, Cavalheiro da Legião de Honra, havia
financeiros da firma de armas e de munições em equipado, antes de 1914, mais de 52 países com ma-
Fcrrol, Espanha. terial de guerra.
Seis firmas inglesas dirigem o Sindicato Por- A o contrario, em compensação, as "Deuts-
tuguês do Armamento Naval. chen Waffen U . Munitionsfabriken" dispunham
Depois dos desastres russos de 1905, indife- de um armamento quasi totalmente de proveniên-
rentemente, são casas inglesas, alemãs, francesas, cia extrangeira.
belgas e americanas que reconstruíram navios de E agora, o material humano ( ! ) . Porque uma
guerra russos, pagos com o ouro francês, subtraído guerra é um negocio montado com tres cousas:
da sua economia por M . Poincaré e M . Raffalo- finança internacional, armas e munições e carne
vitch, Cavalheiro da Legião de Honra. (como dizia Mangin.) Que o Prussiano ganhe ou
As casas de armas e munições alemãs de Ber- o Francês, ou os Senegalêses ou os Escoceses, isso
lim e de Karlsruhe, as famosas Mauser d'Oben- é com os chefes.
w% *
80 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 81
ckers e Poutiloff; desde 1907, da casa Schneider, Durante a Guerra, a Internacional de Arma-
etc. E ' acionista do Banco da França, (graças a mento não cessou de se prevenir e aprovisionar pa-
M o r g a n ) , do Banco da U n i ã o Parisiense, do jornal ra levar a cabo a Guerra do Direito e da Civiliza-
"Excelsior", do Casino de Monte Carlo (onde en- ção: os "Centraes" forneceram a seus Colegas da
tretém filhos dos magnatas de todos os partidos po- "Entente", material de guerra; a "Entente" forne-
líticos franceses, desde os reacionarios até os co- ceu aos "Centraes" a borracha, o oleo, cobre, ní-
munistas! ) , de uma quantidade de firmas inglesas, quel, etc.
francesas, etc. (p. 17, 18, op. cit.)
Provas? A frota inglesa que deu batalha no
A imprensa sueca, "Die Weltbuhne" (Ber-
Skagerrak, recebera toda a sua óptica, seis meses
lim) , o editor Fischer (Berlim), deram ou vão pu-
antes, de Zeiss-Iena e Goerz-Anschutz (pela H o -
blicar, proximamente, documentos sensacionaes
landa.)
em torno de Basil, "o homem misterioso da Euro-
N o correr dos oito primeiros meses de 1916, a
pa", que trás, bem entendido (!) a Cruz dos Bra-
Alemanha exportou até 250.000 toneladas de fer-
vos.
ro e de aço por mês, em média 150.000 toneladas
Desde 1907, uma correspondência ativa era
por mês! Quasi tudo destinado á França e á Itá-
trocada entre os reis do aço franceses e seus cole-
lia!
legas da Alemanha: então, a poderosa firma da
Karlsruhe, não hesitou em fazer publicar, por in- Duas firmas francesas, em consequência de
termédio da industria pesada francesa, um artigo uma indiscreção, não puderam negar a importação,
no "Figaro", artigo que devia dar grandes lucros através da Suissa, de 60.000 toneladas de aço ale-
aos mercadores de ferragens. mão.
C o m b i n a ç õ e s . . . E ' a técnica moderna. Essa troca mercantil entre os inimigos ances-
As firmas alemãs entregaram ao Almiranta- traes, em plena guerra, escandalisou os suissos a
do inglês, pequenos dirigíveis que o Almirante Sue- ponto tal que, no outono de 1917, a "Z.uricher
ter utiíisou, muitas vezes, para fazer saltar os sub- Post" publicou um artigo sobre o patriotismo de
marinos alemães.
84 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 85
penitenciaria de Columbus (Ohio), em que pere- a autoridade. Para gloria de Deus, da Igreja, dos
ceram asfixiadas e queimadas 336 vitimas (a ci- bons costumes . . .
fra oficial, certamente reduzidíssima), mortas Tudo isso prova bem que o homem civilizado
simplesmente porque os guardas receberam ordens cientificamente, requintadamente sociável, é o mi-
terminantes para não abrir as prisões e deixar tor- serável sêr que persiste em aviltar-se na perversida-
rar os encarcerados, ordens severas para atirar por de inominável dos que só cultivam a vileza do ins-
sobre os recalcitrantes, cujo instinto de conservação tinto bestial de ataque feroz, sem o objetivo animal
protestasse contra o género de morte que se lhes da luta pela subsistência, porem, levado exclusiva-
infligia barbaramente; Jack London, em seu livro mente pelo banditismo destruidor, vingativo, odien-
" O Viajante das Estrelas", descrevendo os suplí- to, mesquinho de despeito e selvajeria.
cios infernaes do professor agrónomo em um pre- Os martírios infernaes, voluptuosamente con-
sidio americano e a celebre camisa de força com a cebidos, e acionados nos presídios, o tartuf ismo po-
qual trituram o corpo e a vontade do sentenciado, licial das penitenciarias e das delegacias de "ordem
reduzindo-o a um trapo em agonia dolorosa e per- social" — são os sustentáculos, as colunas por so-
petua; Barbusse, em o celebre manifesto denuncian- bre as quaes se apoia a Internacional Armamentis-
do os crimes cometidos nas prisões fascistas de ta.
"LMtalia d'oggi", esses "Jardins dos suplícios" in- L á dentro dos presídios, nas Siberias, nas
famantes e miseráveis, a crueldade oficialmente or- Guianas, em Biribi, nos Cambuci, ou nas Cíeve-
ganizada e protegida pela lei e pela moral; a poli- landia, matam-se moralmente e fisicamente aos
cia inglesa ás ordens do Império Bntanico essen- idealistas, aos revolucionários que proclamam a I n -
cialmente cristão, a massacrar, na índia, covarde- ternacional do Fraternismo ou da Solidariedade
mente, aos partidários da não-vioíencia heróica — Humana — Ferrer, Sacco e Vanzctti — porque
são esses os processos pelos quaes o Estado, o Cle- passam, humanamente, por cima das pátrias, das
ro e o Capital se asseguram o poder, o dominismo, fronteiras, da família e da r e l i g i ã o . . .
A Internacional do Armamento também can-
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos 89
celoit todos os mapas do orbe e arrasta a morte e a de armas Mauser, de Oberndorf a Neckar, e a "Fa-
dor, a fome, a peste e a nudez na voragem da des- brica Nacional de Armas de Guerra", de Hcrstal
truição — passando, deshumanamente, por sobre (Bélgica), por um lado e, por outro, a "Sociedade
as pátrias, as fronteiras, a familia e a r e l i g i ã o . . . Austríaca de Fabricação de Armas" ("Osterrei-
abençoada, protegida, santificada pelas pátrias, pe- chische Waffenfabrik-Gesellschaft"), firmaram
las bandeiras, pela familia e pela religião. contratos cujas principaes clausulas eram as se-
N ã o ha mais para onde descer. guintes:
São as pátrias, as bandeiras, a familia, e a re- "Os negócios de fabricação de fusís de repe-
ligião que perseguem e martirisam, cm nome da tição ou carabinas para o fornecimento á Rússia,
lei e da moral social, aos sonhadores, aos poetas Japão, China e Abissínia serão realizados em bene-
do Pan-humanismo. São as pátrias, as bandeiras, a ficio comum, distribuindo-se os lucros entre os gru-
familia e a religião — os sustentáculos das hienas pos conforme uma determinada escala.
armamentistas e do martirologio dantesco de todos "As fabricas pertencentes aos grupos, recipro-
os que idealizam uma sociedade mais equitativa, camente se prestarão o maior auxilio possível, para
a paz e a Liberdade, um raio de Sol para cada con- que cada uma delas possa fabricar com a maior ra-
ciencia e uma côdea de pão para todas as bocas. pidez e economia.
Para esse fim, cederão, umas ás outras, grá-
tis e a titulo de empréstimo, os desenhos e escalas
dos modelos pedidos e pelo preço do custo, os ins-
Revendo os originaes deste capitulo, passo ain- trumentos e calibres necessários.
da a acrescentar algumas notas colhidas direta-
" O preço das armas encomendadas e as con-
mente do livro de Otto Lehmann: "Colección
dições das ofertas deverão ser objeto dc acordo
"Panorama" Editorial Cenit — Madrid — 1929.
entre os dois grupos.
Em 1905 e 1907, as "Fabricas Alemãs de ar- "Para os fins expressos no paragrafo primeiro,
mas e munições", de Berlim e Karlsruhe; a fabrica é criada uma caixa em comum, na qual entrarão
Civilização — Tronco de Escravos 91
00 Maria Lacerda de Moura
com 15 francos por arma as fabricas que se encar- 144. Sessão de 19 de abril de 1913 — denunciada
regarem, em cada caso, da produção, distribuição e pelo grande Karl Liebknecht.
cobrança dos fusís ou carabinas, objeto do presente "Fundição de aço Friedrich Krupp. Essen, 29
convénio." de abril de 1868.
França.
Com relação a Krupp, o livro de Otto Leh-
A S. M . Napoleão I I I , Imperador da
mann tem documentação expressiva e largamente
França.
desenvolvida. Dias antes da guerra de 1866, o go-
O interesse que V . M . se dignou demonstrar
verno de Berlim pede confidencialmente a Krupp
por um modesto industrial e pelos felizes resultados
que não venda armas á Áustria sem seu consenti-
de seus trabalhos e de seus inauditos sacrifícios, faz
mento.
com que me atreva a solicitar novamente a sua so-
Krupp responde que não pode deixar de cum-
berana atenção, com o pedido de que guarde o ca-
prir um contrato. E em abril de 1866, escreve ao
talago junto, o qual integra uma coleção de dese-
ministro da Guerra prussiano, von Roon: "Sei
nhos de diversos produtos novos de minhas ofici-
muito pouco das circunstancias politicas. Continuo
nas. Espero que as quatro paginas ultimas, nas
trabalhando tranquilamente; porem, si não posso
quaes aparecem os modelos dos canhões de aço fa-
seguir fazendo-o sem perturbação da harmonia
bricados por mim, para diversos governos europeus,
entre o meu patriotismo e minha honorabilidade,
atrairão especialmente a atenção de V . M . e des-
abandonarei o trabalho, venderei a fabrica e vive-
culparão o meu atrevimento. Com o mais profun-
rei como homem rico e independente."
do respeito e a maior admiração . . . "
Assim, na batalha famosa de Koniggratz, os
Resposta:
alemães se destroçaram, entre si, com canhões ale-
" O Imperador, com grande interesse, viu o ca-
mães e os lucros também couberam á Alemanha.
talogo enviado e manda que se lhe manifestem seus
E' interessante ainda divulgar a troca de cor-
agradecimentos e se lhe faça saber que S. M . faz
respondência entre Krupp e Napoleão I I I , publi-
votos pelo êxito e prosperidade de uma industria
cada no "Diário de sessões do Reichstag" — N . °
Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 93
destinada a prestar grandes serviços á humani- gocios. Segundo as circunstancias punha-se ao lado
dade:' de reacionarios ou revolucionários, auxiliando-os
Segundo declarações da casa Krupp, em 1912, com os seus capitães.
até a morte de Alfredo Krupp, em 1887, foram Impossível continuar a citar a documentação
fundidos em Essen, 24.576 canhões, dos quaes só do livro de Otto Lehmann; seria preciso transcre-
10.666 ficaram na Alemanha; 13.910 passaram ao ver toda a obra " A Internacional sangrenta dos
extrangeiro. Armamentos" — para a qual chamamos a atenção
Depois, até fins de 1911, a cifra anterior ele- dos interessados em desmascarar o jogo macabro
vou-se a um total de 53.000 canhões, dos quaes f i - do alto patriotismo de negócios.
caram na Alemanha 26.000, sendo exportados O papel da imprensa em tudo isso é extraor-
27.000 a 52 paizes extrangeiros. dinário. Os prostituídos do jornalismo se prestam
Antes da grande guerra a industria dos arma- a tudo: são os lacaios dos grandes armamentistas.
mentos da Entente achava-se totalmente nas mãos Mais ainda que o corpo, vendem a conciencia, ven-
de Basil Zaharoff. As mulheres eram as suas me- dem o pensamento e vendem o próximo.
lhores auxiliares. Entre elías, a duquesa de Villa- Em 1907, as fabricas alemãs de armas e mu-
franca de los Caballeros, princesa de Bourbon por nições de Karlsruhe dirigiram ás suas congéneres
seu nascimento e prima do rei da Espanha. Foi do- de Paris a seguinte carta denunciada por Liebk-
no das bancas de jogo de Monte Carlo, amigo do necht na sessão de 18 de abril de 1913, no Diário
rei e da corte da Inglaterra, persona grata dos po- de sessões do Reichstag:
derosos, dos governos europeus e do mundo ele- "Acabamos de lhes telegrafar, rogando-lhes
gante. Controlava e dirigia firmas importantes de esperassem carta. A razão desse telegrama é que de-
armas e munições, provocou sérios conflitos e auxi- sejaríamos que um diário francês de grande circula-
liou, como já vimos, a movimentos armados como ção, si fosse possível o "Figaro", publicasse um ar-
os de Adb-eí-Krim e Venizelos. tigo neste sentido:
Lançava mão de tudo para fazer grandes ne- " A administração militar francesa decidiu dar
94 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 95
novo impulso á compra de metralhadoras para o por grande maioria e sem discussão, os créditos ne-
exercito, dobrando o numero primeiramente fixa- cessários para o aumento de metralhadoras.
do. Casos como este, Otto Lehmann cita ás dú-
zias, terminando com a proposta de um anónimo:
"Rogamo-lhes façam o possivel para conseguir
o único meio para evita-lo consistiria em "enfor-
a publicação de tal artigo."
car a todos os jornalistas."
Entre as firmas está a do conselheiro de arqui-
Bem razão tem Oswald Spengler nas suas pa-
tetura Paul von Gontard. Alguns anos depois, os
ginas magistraes em relação á imprensa mercenária
dividendos da empresa subiam de 20 a 32 por 100.
dos nossos dias angustiosos, na agonia da civiliza-
Vejamos a continuação da trapaça jornalís- ção ocidental.
tica. O Figaro não poude publicar o artigo, tal co- A imprensa moderna é um bordel hediondo no
mo foi proposto. Seria escandaloso para o patrio- qual tudo é licito e o vicio da prostituição aceita
tismo francês e o ministro da Guerra poderia des- quanto se lhe offerece — dinheiro, honrarias, con-
mentir formalmente a um grande e conceituado decorações, posição ou o beija-mão servil nos ban-
jornal. Mas, as cousas se arranjam de outro modo. quetes oficiaes e nas recepções dos magnatas.
Poucos dias depois, o Figaro, Le Matin e o E'co
E os jornalistas aprendem a dobrar-se em dois,
de Paris coincidem — casualmente — em publicar
"como um canivete" . . . ate perderem totalmente
artigos sobre as vantagens das metralhadoras fran-
a espinha dorsal, até que a conciencia tome as cores
cesas e a grande superioridade que daí resultava
do cameíeão.
para o exercito francês. Com taes periódicos na
mão, o deputado prussiano Schmidt, aliado da me-
O escândalo Shearer
talurgia alemã, interpelou ao chanceler do Império,
perguntando-lhe que pensava fazer o Governo pa- O "caso Shearer" demonstra que a Internacio-
ra controlar a ameaça francesa. O Reichstag, as- nal Armamentista dispõe de poderosos agentes nos
sombrado e assustado ao mesmo tempo, concedeu, mais altos postos políticos.
Civilização — Tronco de Escravos 97
96 Maria Lacerda de Moura
Chegou a possuir o famoso "Livro A z u l " cuja
Por ocasião da Conferencia Naval em Gene-
posse só é autorizada aos altos funcionários da M a -
bra (27 de julho de 1927), antes mesmo, as gran-
rinha. E ' a estatística sobre o estado das frotas
des Companhias de Construções maritimas dos Es-
mundiaes. Esse documento lhe foi facilitado por
tados Unidos puseram-se todas de acordo para im-
um almirante — afim de defender a causa dos in-
pedir a limitação dos armamentos. Para isso, preci-
dustriaes de armamentos.
savam, na Conferencia, de um representante do go-
E' assim que Shearer e Kellog representam
verno, cuja autoridade se opusesse terminantemen-
bem a farça politica do país da estatua da Liber-
te á redução dos armamentos.
dade . . .
M r . Shearer aceitou a representação desse
papel. Foi nomeado perito naval da Delegação nor-
Depois da Guerra
te-americana na Conferencia de Genebra. Foi pa-
triota, enérgico, intransigente. Elogiadissimo —•
A industria de armamentos, após a guerra,
pelo interesse em torno dos interesses de seu país.
não se limita ás armas e munições.
M r . Shearer estava também a serviço dos gran-
Hoje faz parte integrante da industria de ar-
des industriaes de armamentos dos Estados U n i -
mamentos — material das estradas de ferro, indus-
dos. E. G. Grace, presidente da Bethleem Steel
trias químicas, óleos, gazolina, petróleo, fabricas
Shipbuilding era um dos seus patrões.
de celulose, de adubos, de matérias corantes, minas
Os industriaes afirmaram lhe haver oferecido de carvão, toda a industria pesada de aço e ferro,
25.000 dollares; Shearer reclama a oferta de a industria óptica, construções de aeronaves, esta-
250.000 dollares. Recusada a quantia, Shearer re- leiros navaes, navios mercantes, tudo quanto se re-
solveu revelar o papel representado por ele na Con- fere á industria dos transportes, laboratórios de
ferencia de Genebra. pesquizas no domínio da fisica, da bectereologia,
Shearer confessou mais, não estar agindo só. etc. etc.
Tinha cúmplices de grande autoridade nos meios
O afan com que toda gente trabalha para re-
políticos americanos.
1>H Maria Lacerda de Moura" Cintilação Tronco de Escravoí
solver o problema da gazolina procurando-lhe um nal em potencia. A fabrica que produz maquinas
sucedanio, é a prova de que exércitos e fuzis e me- de imprensa ou hélices, pode, em qualquer momen-
tralhadoras passaram a anacronismos em relação to, produzir granadas."
ás guerras modernas. As nações mais aparelhadas Seria necessário "destruir a industria em sua
para a luta armada não são as que possuem mais totalidade."
couraçados ou mais soldados ou mais canhões: são
Mesmo isso, absolutamente inútil.
as que teem gazolina.
A conclusão é a do general inglês J. H . Mor-
Todas as industrias mais inocentes são trans-
gan, em um livro publicado em 1924:
formadas hoje em armas de guerra, no momento
" H a tres cousas que é impossível destruir: o
desejado, inclusive adubos, inclusive as fabricas de
homem, a industria e a ciência."
tintas. Tiram-se gazes de todas as industrias. I m -
possível, pois, o desarmamento geral. Todo o se- Assim, lógica é a conclusão:
gredo das guerras modernas está no petróleo e na " A guerra só desaparecerá, quando deixar de
gazolina, si pusermos de parte o perigo mortal da ser um negocio."
electricidade nos "raios invisíveis" e nos "raios da E, cada vez se intensifica, mais a produção de
morte". material bélico, e, longe dos grandes armamentistas
Cada dia inventam-se novas armas de guerra. se afastarem da imprensa, tal como propoz alguém
N ã o ha vantagem na fabricação de grandes da Sociedade das Nações, pelo contrario firma-se
"stoks". A técnica moderna está em saber aprovei- mais o laço de ferro entre os Consórcios da Inter-
tar tudo, no momento preciso, e transformar toda nacional de Armamentos e os Consórcios dos gran-
a industria em industria de material bélico. des Diários Associados.
E' inútil pensar no desarmamento. Inútil mes- As pequenas industrias, os pequenos jornaes
mo o desarmamento total. não se aguentam: são absorvidos pelos "trusts" dos
" A guerra chegou a ser tão técnica, tão mecâ- grandes industriaes.
nica que toda grande Empresa industrial é um arse- Também a imprensa faz parte hoje do mate-
Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 101
um parasita social ou instrumento de trabalho (se- " A Dama do M a r " — são problema* focalizando
gundo a classe a que pertence), "bibelot", boneca, a emancipação sexual da mulher, defendendo a ma
lulu n." 1, cousas tão queridas da literatura e dos individualidade.
académicos... E' lá tese para uma academia, para académi-
Nora se desembaraça da hipocrisia do lar e cos elegantes?
da familia, convencendo-se de que o casamento é
Si as Academias e os homens políticos elo-
um negocio que satisfaz á "sagrada instituição" e
giam a Ibsen, que resta para nós outros, os indese-
á sociedade: a verdadeira união é baseada no amor
jáveis da literatura e do jornalismo oficial, nós
conciente da liberdade e na conciencia livre e es-
outros que não temos um jornal para dizer dos
clarecida do homem tanto quanto da mulher.
nossos sonhos, nós outros, sabotados pelos editores
Helmer é o tipo do marido: sensato, conside- e pela imprensa oficial nas mãos dos académicos e
rado; educa, protege, acusa e julga, perdoa ou con- dos mercantilizadores da pena, nós outros da cor-
dena, aplica a pena merecida. rente de Ibsen e apontados com o dedo como vozes
Nora acorda e despedaça, altivamente, os gri- indesejáveis, nós que, voluntariamente, nos colo-
lhões que a prendem a essa familia de mentira. cámos, como Ibsen c tantos outros, fora da lei, da
Como é que essa gente, presa ás convenções moral e da sociedade — para a defesa sagrada das
sociaes dos rebanhos, incapaz de dar mão forte, pu- nossas verdades, dos ideaes de amor e liberdade,
blicamente, á maternidade livre e conciente, á mu- para a defesa dos sonhos do individualismo livre, da
lher verdadeiramente emancipada — tal como a "vontade de harmonia"?
sonhava Ibsen — como podem os homens da mo-
"Brand" é o problema religioso, é o problema
ral social e que educam suas filhinhas nos "Sion"
do apostolado: ái daquelles que pretendem um ideal
e nos "Sacré-Coeur" — elogiar a obra máscula e
de regeneração social!
humana do génio ibseniano?
Comedia literária! A ' i dos que teem a ilusão de edificar a socie-
" O Pato Selvagem", " A Casa de Boneca", dade futura apelando para o rebanho humano!
112 Marin Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 113
"Brand" é o protesto contra a tirania das mas- sidade parasitaria e nos vicios dos ricos piedosos e
sas, contra a ingenuidade do apostolado. caridosos.
O povo vive de "mentiras vitaes" e, quem Essa tese pôde lá ser defendida em Acade-
tentar persuadi-lo de que as recompensas só veem mias, por literatos "rafinés" que, si chegam a ser
da vida interior — é sacrificado, impiedosamente, sinceros, teem a "sinceridade do éco"?
inutilmente, por essa mesma multidão, ululante de "Peer Gynt" é o ridiculo do individualismo
entusiasmo, que vae atrás do edificador de Igrejas, egoísta.
enquanto não o ouve dizer que "toda Igreja é uma "Edda Gabler" é a vontade de domínio, o in-
mentira." dividualismo autoritário.
"Inimigo do Povo", da moral, da sociedade, Ninguém tem o direito de impor a sua vonta-
da religião, é todo aquele que se eleva acima dos de a quem quer que seja ou de procurar influenciar
preconceitos, dos interesses, das convenções, do exi- sobre um destino: as consequências não se fazem
bicionismo ou do fausto académico, é todo aquele esperar. E* a desgraça do que quer dominar e do
que tem a coragem de proclamar bem alto as suas que reage ou aceita, docilmente, esse domínio.
verdades contra as "verdades mortas" dos reba- Cada qual só pôde influenciar por sobre a sua
nhos ou dos interesses inconfessáveis. própria natureza, mas, exigir dos outros é mais fá-
cil do que exigir de nós mesmos.
"Espectros" é outro aspecto do problema ibse-
Como a gente aprende tarde tudo isso!
niano. Que beleza, que admirável lição sintetizada
Como é preciso reagir contra o que nos ensina-
na frase de Oswald á sua mãe, protestando contra a
ram, para perceber essas verdades inscritas nos pór-
degenerecencia pelo vicio, contra a fatalidade he-
ticos da nossa conciencia!
reditária impressa a ferro em brasa na sua existên-
Werle, em " O Pato Selvagem", é ainda o
cia de sacrificado: "E que espécie de vida me deste!
apostolado, o problema da ingenuidade do refor-
N ã o t'a pedi. Devolvo-t'a."
mador: todos os que se não aproximaram ou não
E ' o acumular de taras e hipocrisias na ocio- realizaram o individualismo estóico, teem necwi-
114 Maria Lacerda dc Moura Civilização — Tronco de Escravos 115
dade das "mentiras vitaes", desde as mais baixas e Si Ibsen saísse agora da sepultura e si se visse
mais interesseiras até as que se escondem por sob a fechado em uma sessão académica, talvez gritasse,
capa auri-verde das bandeiras, das pátrias, dos na- amargurado: — "Comediantes! Si eu fosse vivo,
cionalismos patrióticos e guerreiros ou das revolu- nenhum de vós me reconheceria!"
ções saneadoras . . . ou por ingenuidade, ou por in- Consola-nos ter em mãos o numero especial
coerência, ou por interesse, ou por fraqueza, ou pela de "Le Semeur", dedicado a Ibsen e a "plaquette"
incapacidade de trazer sempre os olhos abertos, ou respectiva, reproduzindo o magistral ensaio em tor-
pela vontade de dominio. no da filosofia ibseniana, feito por outro Homem
Mesmo o individualismo pôde ser a mascara Livre — H a n Ryner — e estudos de indivíduos co-
do egoísmo, da sordidez, de baixezas ou até do de- mo Henry Bauer, Laurent Taillade, Gerard de La-
lírio de poder de um Nietzsche dansarino, "a ulti- caze Duthiers e outros e muitos outros de igual va-
ma moda da loucura". lor, alguns dos quaes reconheceram a Ibsen quando
os académicos o apedrejavam.
N o "reino do grande mistério" só penetra
"Le Semeur" apaga, assim, a triste lembran-
aquele que. fora da lei, do preconceito de familia,
ça das homenagens prestadas ao génio escandinavo
de sociedade, de religiões, fugindo á tirania que
— pelos governos, pelos políticos, militares, mora-
quer dominar ou que quer persuadir, fugindo aos
liteistas e académicos.
deveres sociaes impostos pelo rebanho com a sua
domesticidade e as suas ilusões, — procura, em si
mesmo, uma energia interior que é fonte do carater
incorruptível e da pureza c coragem de ir contra a
maré — para se tornar, cada dia mais, o Humano
livre, o Individuo clarividente.
Tbscn sufoca dentro de Academias.
Ibsen só pódc respirar ao ar livre, em Panteon
aberto,
DOMESTICANDO
plena vida livre o que me não foi possível encontrar Todos nós, aliás, somos capturados ao primei-
na sociedade? ro vagido. T ã o bem o descreve Rousseau!
E com que direito a sociedade intervém em A educação, desde o batismo e o Jardim da
uma dessas definitivas decisões do individuo, pa- Infância até a Universidade, as academias cienti-
ra obriga-lo a "domesticar-se", para "civiliza-lo" ficas ou literárias, a nação, a pátria, a sociedade em
novamente, para traze-lo ao convivio dos homens? suma, com todas as suas indispensáveis ramifica-
E isso em nome do Cristo, individualista livre ções — religião, familia, Estado, — apodera-se da
que também teve que fugir para o deserto, para re- criatura humana, captura-a no berço e a leva ao
cuperar forças •— afim de entregar a face ao beijo tumulo — domes ticando-a, civilizando-a, "condoí-
de Judas e á bofetada social. da" pela sua ignorância, penalizada da sua ceguei-
Nesses 12 annos, que estupenda evolução ope- ra, numa piedade verdadeiramente cristã . . .
rou-se nas criptas profundas desse solitário das E' a parábola ryneriana, a parábola de
matas!
Pobre João Pedroso! Domesticado pela pie- "O Povo Cego"
dade cristã, civilizado pelo progresso material, obri-
gado novamente ao convivio da sociedade, aturan- e me não posso furtar ao desejo de a traduzir para
do aos homens de "odor cruel" e ao ruído pavoro- os meus leitores:
so das suas maquinas e ao tilintar azinhavrado das "Nesse país a luz é mais doce que na própria
suas moedas e das suas façanhas, de caftens da Grécia. O clima ali, é tão igual que ninguém tem
conciencia. . . bonita domesticidade, linda cateque- necessidade nem de vestimentas nem de casas. As
ze, admirável piedade humana! bagas silvestres aí brotam fartamente e mais sabo-
Nem o direito de fugir, de isolar-se para uma rosas que os mais bem cultivados dos nossos frutos.
purificação interior, nem ao menos o consolo de se U m a planta orna, por si mesma, a margem de
sentir livre, no convivio panteista da natureza! todos os caminhos, dez vezes maior que o nosso tri-
E' um símbolo a capturação de João Pedroso. go, e, em vez de espigas, dá pães deliciosos.
120 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Encravos 121
Mas, os grandes e os padres são de natural in- a cabeça. Mas, os pobres são, entre si, de espantosa
vejoso: os bens que não constituem privilégios e su- brutalidade.
perioridades para eles, perdem todo preço.
O ouro parece inútil em tal país. Entretanto
Organizaram a cidade de maneira a gosarem é muitíssimo apreciado. Algumas vezes, as mãos
sozinhos, livremente, das vantagnes do país. tacteantes e investigadoras de um cego encontram
Proíbem os outros homens de colher os pães e um tesouro. Então, os magistrados se reúnem. Exa-
as frutas e deixam apodrecer enorme quantidade de minam algumas das circunstancias que precederam
nutrição. Distribuem viveres insuficientes aos po- ou acompanharam a descoberta. Essas circunstan-
bres. Para eles, descobriram a arte de "deitar cargas cias parecem fúteis e indiferentes a quem quer que
ao mar" e de comer imediatamente depois. Aliás, seja que não tenha estudado as suas leis.
são desgraçados, sempre entorpecidos e dolorosos de Os magistrados, porem, descobrem nelas o que
indigestão, sempre inquietos com a idéa de que, sem denominam justiça e proclamam que o inventor do
duvida, em algum canto mal policiado do imenso tesouro deve ser condenado á morte ou que é pre-
país, lhes roubem um pouco do que, afirmam eles, ciso traze-lo para a classe dos videntes. Então, com
lhes pertence. uma agua da qual os padres guardam o segredo,
Encontraram, entretanto, ha alguns séculos, descolam as suas pálpebras.
um meio de se tranquilizar em parte. Entretanto, os grandes, os padres e os sábios
ensinam ao povo que o país é horrível de se vêr, e
Logo que nasce um filho do povo, as suas pál-
que, sem a sua sabia administração, a calamidade
pebras são fechadas com uma pasta que sabem pre-
publica, a miséria seria aí, contínuo flagelo.
parar os padres e certos servidores dos ricos, deno-
Desolam-se, em altas vozes, pelo fato de ser
minados sábios. Assim, os grandes, os padres e os
obrigados a conservar os olhos para conduzir,
sábios, só eles gosam da luz.
através dos horrores da região, a seus irmãos mais
Muitas vezes fustigam os outros homens, os
felizes.
quaes, reconhecendo a sua inferioridade, curvam
O povo canta com eles o seu devotamenro r
Civiiizaçào — Tronco de Escravos 123
I " Maria Lacerda de Moura
que os deuses dão fardos tão pesados a tantos seres
a doçura de viver com os olhos fechados, sem o tra- fracos que ouço gemer e tombar?
balho de se conduzir.
Si essa piedade é assas forte para fazer cho-
Aliás, a morte, afirmam, abre os olhos dos rar, eis que o misericordioso sente suas pálpebras
pobres em uma bela região, amável como um beijo se levantarem livres e vê, tremulo, em uma emoção,
que nunca mais terá fim. mixto de amor e piedade desolada, vê as cousas e
Os ricos, os padres e os sábios teem, entre to- os seres agitarem-se em derredor.
das as suas inquietações, terrível angustia. Ora, si os novos videntes se calam deante do
Algumas vezes, com efeito, um homem do povo, ou, si consentem em louvar a condição dos
povo sente seus olhos se abrirem. cegos, são suportados. Muitas vezes mesmo, são
convidados a entrar para um colégio de padres ou
Dá-se o acidente de dois modos. A's vezes,
de sábios. Si um deles pratica a imprudência de lou-
durante todo um dia, um miserável escapa ás ciosas
var publicamente a luz, a sua boca é fechada com
vigilâncias, e, através das suas pálpebras fechadas,
uma mordaça e o arrastam para o exiiio.
procura vêr um mesmo objeto.
Mas, si atráe o odio da sua pátria e da orga-
As pálpebras, pouco a pouco parece adelgaça-
nização social até querer explicar por que meios os
rem-se transparentes e o objeto lentamente se tor-
olhos se podem abrir, então os grandes, os padres
na distinto. A ' hora em que o crepúsculo incendeia
e os sábios dominam a sua voz com os seus gritos.
o céu, o objecto, pacientemente observado, toma,
Acusam-no de enganar o povo e teem o conso-
emfim, linhas precisas e os olhos se abrem. O ho-
lo de vêr a multidão, em um impulso magnifica-
mem que gosa, de repente, á vista do conjunto das
mente unanime, atirar-se por sobre o mentiroso e o
cousas, agita-se em uma felicidade muito violenta
matar."
e grita maravilhado.
Outra vez, também, um pobre diz:
Pobre João Pedroso!
Quanto a mim, aceito a minha condição, Coragem, ó meu irmão.
uma vez que tenho % força de a conduzir. Mas, por-
124 Maria Lacerda de Moura
***
*
Os Judas de hoje não se enforcam. Acumu-
lam capitães e o seu representante máximo intitula-
se Papa-Rei.
Santa humildade cristã! . . .
Os Judas de hoje pertencem á "alta" socie-
dade burguesa, são acionistas de "trusts" e de ban-
cos, abrem os salões ás embaixadas diplomáticas,
batisam as armas de guerra, vestem purpuras e os-
126 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 127
tentam nos dedos jóias cintilantes e abençoam o a razão de ser do manso e meigo Rabi dc Ga li Ira,
mundo, das janelas sumptuosas dos seus palácios nascido na mangedoura, filho natural de Maria,
magnificos, e acumulam galerias de Arte e pos- filho do Amor, protegidos pela alma imen-
suem os mais ricos museus da Terra e compram sa e pura e amorosa de um velho carpinteiro contra
os primeiros ministros e vendem-se a tiranos e rei- o puritanismo farisaico dos sacerdotes e da moral
vindicam o poder temporal. social, que os lapidariam a ambos — não fora o
Santa pobreza do Rabi da Galiléa! gesto nobre e heróico de José, tão alto, tão vasto
Santa simplicidade cristã! que ainda não conseguiu ser interpretado pelos sá-
bios da Escritura . . .
A pequena Bibi, filha do ator Procopio Ferrei- Dignos uns dos outros. Por isso, o ator Pro-
ra, não tinha 7 annos de idade e iria ensinar cousas copio Ferreira considerou-se "desmoralizado" e
feias ás filhas dos ministros e senadores e deputa- ofendido nos seus melindres.
dos e generaes e altos funcionários desta Republica U m artista não faz questão da "honra" — o
de castos e puritanos, desta democracia carnavales- idolo mais voraz e mais feroz da nossa civilização.
ca de legislação "gorda" e de capacidade mingua- U m Artista não entrega a educação de sua
da, de "ventre imenso e cabeça insignificante" . . . filha a esse ambiente fechado e sombrio e duro e
a pequenina Bibi é quem iria perverter a prole fe- egoísta e estreito e perverso e cadavérico dos Colé-
minina dessa gente da "alta" e da "boa" sociedade, gios Católicos das "filhas do Senhor".
iria transmitir suas maldades congenitais aos reben- As filhas do verdadeiro Artista educam-se em
tos degenerados dos Cesares do ouro e dos magna- um ambiente de Liberdade e Amor e altruísmo, em
tas do poder, e desmoralizar de vez o Sacro Colé- contacto com a natureza e com o coração generoso
gio francês das "Servas do Senhor". de outros artistas, nos Museus e nas galerias de
Santa ingenuidade crista! Arte, ao lado da pobreza, da simplicidade, em meio
do desconforto dos sonhadores e idealistas sem pá-
* tria, sem preconceitos, sem hábitos de luxo e de pa-
**
rasitismo, nómades, boémios, o coração aberto pa-
Quando os atores do teatro popular se fazem ra todas as verdades, para todas as dores do mun-
"nouveaux-riches", frequentadores da sociedade do, para todos os miseráveis, para todos os desher-
chamada a "boa" ou "alta", e adquirem e cultivam dados, para os humildes e para os ingénuos.
liO Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 131
O verdadeiro Artista sabe que o tartufismo, a Dóe-me o coração quando penso nesses inú-
hipocrisia são as virtudes máximas da religião cato- meros e grandes Colégios religiosos das Irmãs de
lica-romana. Caridade e freiras e Santos Padres espalhados por
Fingir, fingir, fingir e aprender a bem colo- todo o orbe a poluir as almas das crianças.
car a lendária folha de parra do pudor cristão, de Que o diga Mirbeau.
que fala a adorável ironia de Anatole, eis o escopo Que o diga Flaubert e todos os caracteres in-
da educação dos conventos e das casas de caridade corruptíveis que passaram pela vacinação catolico-
catolico-romanas. romana.
Cristo, inimigo da sistematização de princí-
Tudo ali é estagnação, é anacrónico, é tera-
pios, inimigo dos Cesares do poder e Reis do ouro
tologico porque é contra as leis naturaes da evolu-
— porque era profundamente humano e amoroso,
ção das nossas forças latentes.
Cristo é a bandeira de que se servem os mais as-
tutos, os mais hábeis organizadores da mais per- E' uma adaptação monstruosa para sufocar o
versa, da mais maquiavelica de todas as religiões. eu interior e despertar virtudes cristãs como a hipo-
crisia, a humildade falsa do orgulho e da vaidade,
Quando Cristo chamava a si as crianças, os
a deslealdade, a astúcia maquiavelica, o falso pudor
explorados e os fracos: Deixai vir a mim os peque-
e a elasticidade da conciencia, apta a se adaptar a
ninos, nunca indagou si entre os pequeninos havia
todas as torpezas — para maior gloria de Deus e
filhos de assassinos, de bandidos, de padres, minis-
da Igreja.
tros, capitalistas, diplomatas, reis ou m i l i t a r e s . . .
Cristianismo — a negação de Cristo, pobre, E' o estimulo á delação, á fraude, á mentira
manso e humilde de coração. disfarçada na sua lógica de sofismas.
As irmãs de caridade desconhecem a Cristo. Que de perversidades condensadas em uma
Conhecem apenas o cristianismo clerical. hábil organização, para sufocar a alma da criança!
Que de esforços admiráveis para emparedar
a criatura dentro de si mesma, adormecer a sua
132 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 133
razão, sufocar a liberdade interior, despertar a na- extraordinária Companhia Anónima Ilimitada,
tureza inferior dos seres humanos! todos se entendem maravilhosamente para mas-
sacrar a liberdade de conciencia e cultivar até o in-
Durante 4 anos frequentei também um Colé-
finito a imbecilidade e o acarneiramento humano.
gio de Irmãs de Caridade — dos 6 aos 10 anos,
e bastou esse tempo para eu conhecer de perto o Civilização sacerdotal de vampiros e "profi-
que são as escolas desse género. teurs" da fé e da domesticidade social.
lama espirrada pelo.; automóveis c o sorriso aristo- suave no descrever as torpezas dos civilizados, doce
crático ofendem, desvairam, enlouquecem." como é sem violência esse sacrifício inaudito de mi-
Seria preciso transcrever todo o livro, cheio lhões de mulheres expostas á compra nos mercados
de piedade. de escravas de todas as raças, nos balcões ou nos
E, para compensar o numero relativamente alcouces dos defensores da "honestidade" e da
insignificante de mulheres que alcançam o alto "virtude" burguêsa-capitalista. E é essa moral que
mundanismo das hetairas a governar o mundo atra- a "gente honesta" defende, que os "bons costumes"
vés dos banqueiros, senadores, coronéis da politica aí estão para manter, que a escola oficial e o cate-
e da industria — as milhares de prostitutas da cal- cismo assim ensinam, para maior gloria de Deus e
çada, das rotulas se estorcem no paroxismo dos da Igreja, da Patria e da F a m i l i a . . .
sofrimentos que gangrenam o corpo e amortalham São os "cavalheiros sérios e graves que ali-
a sensibilidade. mentam a prostituição por instinto, certos de que
Prostitutas! E por acaso não são também pros- a moral da sua época é como o "broucoíaque" da
tituídos todos esses coronéis e todos os moços bo- superstição grega, cadáver que vive a poder do
nitos e todos os homens que compram o prazer a sangue chupado aos vivos."
troco da dor? Por acaso, dentro desta civilização Moral que decreta "necessária" a venda do
de vampirismo haverá alguém que não se preste, que se convencionou chamar "amor", esquarteja-
que não tenha responsabilidade na organização so- dos todos os sonhos mais doces da mulher, que os
cial que compra e vende tudo, inclusive o amor, a acariciou certa de poder ocupar o seu lugar ao sói,
conciencia e o cérebro? pendurados os ideaes mais acalentados, nos har-
Quem terá mais culpa: a que vende ou o que péos dos magarefes da industria e da politica.
compra? N ã o ha mais para onde descer a brutalidade
Todos prostituídos, todos cúmplices do Dra- selvagem dos que se dizem civilizados.
gão voraz. E é imoral falar-se em substituir esses costu-
E este livro é escrito em estilo sem asperezas, mes ferozes por qualquer sistema de vida social
148 M ar i d Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 149
mais natural e, consequentemente, mais humano, Que nostalgia eu tive da Atlântida, meu ge-
mais livre. neroso Schmidt, quando l i "Les Pacifiques" do nos-
Todavia, queiram ou não, achem ou não imo- so grande e querido H a n Ryner, culto e genial ao
ral, só a liberdade no amor redimirá a mulher do transportar-se á civilização decantada por Platão
muito que tem feito sofrer á mulher. em o "Timeu" e estudada, pelos orientalistas e in-
Só a liberdade do amor trará ao género huma- vestigadores, como muitíssimo superior a tudo
no um pouco de paz, afim de poder transpor a es- quanto se possa imaginar hoje, ultrapassando todos
calada da evolução para uma finalidade social mais os limites da nossa barbaridade de civilizados mili-
digna de quem tão facilmente se julga o "homo sa- taristas, guerreiros de guerras movidas pela cupi-
piens". dez e alimentadas a álcool, a eter, a gazes asfixian-
tes, civilizados canibalescos e vampiros a se enrique-
cer á custa dos campos de batalha, civilização de
Em dois únicos pontos, aliás bem fora da tese hienas a alimentar-se de cadáveres de homens e de
social dessa novela encantadora e séria, não posso animaes.
concordar com o meu nobre e querido Schmidt. N ã o . Si houve uma Atlântida, o pouco de
N ã o diga mais, Schmidt, que os homens da bondade que ilumina o nosso altruísmo, a dedi-
Atlântida deveriam ser como os perversos que não cação dos que se sacrificam por um ideal, o nosso
sabem encontrar outra profissão a não ser a de as- anseio de subir até o Eu profundo, certo herdámos
sassinar animaes nos matadouros, para os que se nu- desses antepassados gloriosos de Sabedoria e Amor.
trem de cadáveres, trazendo as vestes a escorrer san- N ã o caluniemos aos que nos legaram a lâm-
gue e o rosto e as mãos fumegantes e enlameadas pada espiritual que nos aquece docemente em uma
na dôr das vitimas indefesas. esperança querida e que não morre nunca . . .
A Atlântida c um lindo sonho da civilização Foi aqui mesmo, foi dentro mesmo do nosso
do Amor e da Liberdade, perdido na noite dos ciclo de evolução que maculámos a vida ao criar
tempos. o dinheiro e ao captar a agua pura das fontes para
150 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 151
envenenar o coração, através do salário, e o corpo, Bataille, nesse trabalho nobre, largo, filosófi-
no fabrico de drogas, e, para aniquilar a inteligên- co, sincero, de poderosa envergadura mental, abor-
cia humana. Fomos nós mesmos que fizemos armas da o problema ético da luta entre os instintos infe-
e foram os homens desta civilização que inventa- riores e as possibilidades latentes dos humanos, o
ram a policia para provocar desordens e os "bons conflito dantesco entre a sensibilidade da matéria e
costumes" para pôr no "tronco" das rotulas as mu- a sensibilidade da intuição, a lendária pendência
lheres "perdidas", e foram os próprios homens que do homem consigo mesmo, a matéria e a razão
as "perderam" e as reduziram a escravas de ha- sensivel, Caliban e Ariel, batalha permanente entre
rém. a ideia e a ação, o embate entre o que somos capa-
Respeitemos a Atlântida como um lindo so- zes de sonhar nas alturas e a baixeza das realiza-
nho inatingivel. ções mesquinhas a que nos leva a herança dos rei-
nos inferiores.
vulgaridade, num sonho colhido em alturas inco- no diapasão dos preconceitos e da selvajaria de-
mensuráveis. gradante.
Depois de alcançar tanta luz, o homem res- Bataille nos aponta os estragos, as tormentas,
vala, envolvido no fogo-fatuo sedutor do sensua- as amarguras, as angustias derivadas do instinto
lismo, apanhado nas malhas resistentes da influen- de propriedade que encadeia duas criaturas na ge-
cia ancestral, enovelado nos erros seculares dos sen- hena da escravidão de si mesmas.
timentos colectivos e procede com a mesma vileza E ' o problema do amor.
e dentro dos mesmos motivos da imbecilidade hu-
E, principalmente, a ideia de que, através de
mana.
um beijo, duas criaturas não se podem inutilizar
De novo o remorso de decer tão baixo e o es- no exclusivismo do instinto de propriedade e nem
forço heróico de subir mais alto. diminuem na sua conciencia.
E Bataille estuda essa luta interior, criando O amor e a conciencia pairam mais alto, e o
tipos de profunda psicologia, entre cenas de tal no- encontro casual pode revelar um minuto de beleza
breza, de tal ternura, de tal sensibilidade, de que ninguém deveria renegar, porem, pode não ser
tal grandeza ética e de tal torpeza na vulga- amor, e, cada criatura deve ser livre de viver as
ridade do instinto de dominismo social — que suas horas, todas as suas emoções.
faz pensar na inutilidade do apelo ao rebanho hu- Ideia defendida corajosamente por Bataille,
mano . . . e na evolução do individuo, na evolução contra o preconceito da monogamia criminosa que
apenas da unidade individual. faz com que até os homens de génio se nivelem á
E ' penetrante, grave no seu recolhimento ao bestialidade feroz dos que se batem e se mutilam e
estudar o magno problema humano no heroismo se estraçalham em nome do Amor.
de subir, mais e mais, acima dos tormentos inven- Para a sabedoria de Bouguet, o gesto fisico
tados pelo constrangimento social na sua faina de nada representa.
decretar costumes emoldurando todas as criaturas Para o instinto de dominismo, de autoritaris-
Civilização — Tronco de Escravos
154 Maria Lacerda de Moura
ções criminosas do mundanismo e virar o rosto para
mo, de propriedade de Blondel, o gesto fisico é
a luz interior — que bela realização!
tudo.
E a mais idiota das convenções — o sangue
Ambos cientistas, ambos investigadores do reparador da honra, da vida, a mais perversa das
mais alto problema de humanitarismo. convenções sociaes — quantos crimes de iesa-felici-
E ambos descem á vileza de se bater em duelo, dade humana perpetra a cada instante, em nome
esquecendo a sua pura amisade e a colaboração do Amor!
mutua, por causa de um gesto fisico, recordando
a atitude bestial dos primórdios da evolução hu-
mana.
Equilibrar as forças da vida — é o sonho de E' no segundo ato de "Les Flambeaux" que
Bouguet, o seu grito lancinante, apelando para a Henry Bataille, na cena V I , resume a ideia da peça,
amisade, para a ternura de Blondel. no dialogo entre Hernert e Bouguet.
Pôr de acordo a vida e o pensamento, que cou- . . ."de estrela em estrela, todo o pensamento
sa difícil! humano . . . como si, desagregado, porem, jamais
Elevar-se acima da mediocridade de toda a perdido, vivesse realmente acima de nós e formasse
gente, acima dos prejuisos e da rotina — para pen- esse grande nimbo universal que nos arrebata para
sar nobremente; acima do atavismo selvagem, dei- fins de luz ou de serenidade... Dessa contempla-
xar de ser a besta gregária, para sentir uma indivi- ção profunda, veio a paz.
dualidade no fundo do sêr independente e livre e " N ã o chorei mais. Desde então encaminhei-
esquecer todas as "mentiras vitaes" da sociedade me como vós, como tantos outros, para infinitos
para ser apenas o criador de beleza interior, o acu- mais numerosos . . .
mulador de riquezas, despertando possibilidades
" N ã o havia mais carne: minha dor perdia-se
latentes; viver ideias nobres, subir em vez de descer
no espirito universal!
por entre as abjeções e os desvarios do mundo so-
cial, chegar ao pé dos abismos fataes das conven-
156 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 1^7
" A alma suprema consolou minh'alma de ho- "Les Flambeaux" é uma amostra desse raio
mem." atirado em direção bem determinada. Ainda no dia-
logo entre os dois sábios amigos, entre Bouguet e
São as flâmulas, as "Ideias - Forças", na sua Hernert, os dois cérebros e os dois corações que per-
órbita imensa em busca da Harmonia Infinita que correm a escala do amor em sentido inverso, um
é o Amor, bem acima de todos os resíduos deixados começando pelo amor fisico, passando ao sentimen-
pela alma humana na sua escalada para um "de- tal e em seguida ao cerebral, e o outro iniciando-se
venir" sempre e cada vez mais alto. no amor mental, através de um ser superior, a com-
N ã o , meu caro Schmidt, o teatro de Bataille panheira das suas investigações, e acabando por
não é "um raio sem direção". descer ao amor sensual já no virar da encosta da
Pelo contrario, si o teatro de Bataille viesse vida; em o belo e profundo dialogo, poderíamos
substituir "Ra-ta-plan" ou "Ba-ta-clan" dos nossos acompanhar a direção desse raio genial, afirmando
palcos de pantominas e cretinices e pernas á mos- que, acima de tudo, acima da própria fatalidade,
tras sob o nome pomposo de " n ú artístico" — é que acima mesmo do Amor, do sofrimento, até acima
o nosso publico estaria á altura do verdadeiro tea- da vida, no sentido limitado que a vemos — "ha
tro. Mas, Bataille não pôde ser assimilado pelo pu- a majestosa liberdade do pensamento", e, "desde
blico que quer rir até as orelhas para não pensar, que se está inclinado sobre todas as possibilidades
esse publico que frequenta as "variedades" para imensas do espirito, vê-se que a ideia precede ao
tomar aperitivos . . . ato. Então, que vem a ser o terror, o amor, a dor?
Resíduos, despojos da ali.ia em marcha ou do pen-
Pelo contrario, todo o admirável trabalho de
samento u n i v e r s a l . . . "
Bataille é imaginado dentro de um plano extraor-
dinariamente concebido, estudado sob os aspectos N ã o é o momento oportuno para comentar o
mais profundamente humanos, que Bataille não faz sentido profundo desse pequenino trecho de uma
psicologia barata de cordel ou de costureirínhas, grande mentalidade. Mas, si os teatros se movimen-
psicologia a Paul Bourget, defensor do passado. tassem na direção desse raio conciente, si as pia-
158 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos IV>
teias desta sociedade, em plena decomposição, esti- feito, ao deus hediondo da religião, ao Moloc da
vessem á altura desse raio de luz, certo seria um moral e dos "bons costumes".
meio, o teatro, de nos afastar da rotina, dos pre- Este livro é delicado como é delicado o sofri-
juisos seculares fossilizados em nós como os me- mento das sacrificadas: é um beijo na dor imensa,
nhirs ainda hoje encastoados á terra, onde a pre- na dor perfurante de quem se dá em holocausto,
historia os enterrou. sem um protesto, sem violência, conciente ou incon-
cientemente, talvez sem mesmo saber que a felici-
dade ou o bem estar ou a segurança de algumas
ou de milhões de mulheres contra a luta económica
Mas, essas duas pequeninas divergências nada — é fruto do martírio inominável das insatisfeitas,
teem que vêr com o meu entusiasmo por este livro, das que são devoradas irremediavelmente, pelo Dra-
que eu desejaria na mão de toda gente. (1) gão, martírio de animaes de tiro na sua profissão
Que vontade eu tenho de citar paginas e pa- indesejável de nunca receber senão pedradas que
ginas de " O D r a g ã o e as Virgens", em que se re- a moral lhes atira, e dar sem tréguas, sem mesmo
flete a dor, a angustia, o grito lancinante das que pretender ouvir a delicadeza do agradecimento.
vão, mudas, tristes, silenciosas, subindo a encosta Quantos tipos de "Pureza", de alma cândida
— para servir de pasto ao Dragão sempre insatis- se arrastam por aí a fora, enguíindo as lagrimas
através do sorriso doce de quem derrama no cora-
(1) Acabo de saber que "O D r a g ã o e as V i r g e n s " ,
quasi toda a e d i ç ã o , na m ã o de um intelectual-comer- ção de cada transeunte o perfume macio e leve de
ciante, f o i vendida a 100 reis o k i l o , para as fabricas de
papel de S ã o P a u l o ! . . . Assim, esse l i v r o magistral, con- uma caricia — sem receber em retribuição nem ao
tinua i n é d i t o . Parece i n c r í v e l ! Que teria ganho com
isso esse comerciante, s e n ã o continuar a campanha de menos o gesto humano de um aperto de mão fra-
silenco em torno de uma mentalidade l i v r e ? Talvez nem
saiba disso Afonso Schmidt. E u mesma, si o tivesse ternal.
sabido a tempo, o evitaria, arrematando-lhe toda a edi-
ç ã o ( t a l o p r e ç o ! . . . ) para d i s t r i b u i - l a no extrangeiro, E quanta "Pureza" morre por aí, nos bordéis
j á que nesta t e r r a o destino de certos l i v r o s de valor
é v o l t a r á s fabricas de p a p e l . . . si chegam a ser i m - e nos lupanares . . .
pressos.
160 Maria Lacerda de Moura
EVOE'!
Edouard Rothen.
licenciosos que as lascivas do paganismo decaden- á lubricidade carnavalesca, tanto quanto aumenta
te, "joyeusetés cléricales" realizadas não só nas a cifra das novas levas de prostitutas.
igrejas como nos conventos de ambos os sexos...;
As crianças! Afora o martírio dos "disfarces";
deixando todas essas manifestações de alegria rui-
afora o suor sob as mascaras portadoras de infec-
dosa e desordenada, ou restos prostituídos de sím-
ções e imundícies, ou das "fantasias" para os bebés
bolos de dansas religiosas ou conhecimentos astro-
que nada podem apreciar ainda e que são sacrifi-
nómicos nos altos rituais iniciáticos dos egípcios ou
cados ao prazer criminoso dos adultos inconcientes,
dos caldeus e que, por sua vez também significa-
martirologio admiravelmente descrito por Mme.
vam reminiscências da maravilhosa civilização de
de Girardin em "Les petits martyrs du Carnaval",
que falam os apologistas da Atlântida; sem procu-
em "Lettres parisiennes"; afora os inconvenientes
rar penetrar o sentido profundo, astronómico, cien-
do mal estar provocado pelas vestes justas, feitas
tifico da origem da mascarada carnavalesca, perdi-
ás pressas, beliscando aqui e ali, engomadas, cheias
da na noite dos tempos — trataremos do nosso car-
de Ientejoulas, alfinetes espetados á ultima hora,
naval, do carnaval de hoje, do carnaval carioca, sob
guisos de carregação, prontos para lhes arranhar
o ponto de vista higiénico: higiene do corpo, higie-
as carnes tenras; afora esses e outros pequeninos
ne individual e social.
inconvenientes para os que buscam divertir-se e pro-
Si fizéssemos, no Brasil, uma estatística da curam a cumplicidade até mesmo das crianças para
mortalidade infantil, da mortalidade da juventude, os seus desvarios — imaginemos os resfriados, as
da idade madura e (porque não?) também da mor- pneumonias, as gripes, todas as moléstias das vias
talidade dos velhos (são os mais influídos no respiratórias: vestes decotadas, os braços nus, a ca-
Rio de J a n e i r o . . . ) , estatística detalhada, cui- becinha resguardada apenas pelos caracóes que cus-
dadosa, tres meses antes e tres meses consecutivos taram, talvez, uma noite agitada, sob o aperto dos
depois do Carnaval, certamente as cifras dos sacri- papelotes amarrados convenientemente . . .
ficados aumentariam num crescendo proporcional E o lança-perfume nos olhos, determinando
sérias moléstias do aparelho visual?
164 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco de Escravos 165
Que é o Carnaval senão a busca de aventuras Sois vós, ó arlequins e colombinas da civili-
galantes, o anseio de liberdade, a procura do pra- zação da ociosidade e do parasitismo de uns e do
zer sexual, de novas experiências amorosas? sacrifício heróico da maioria, ó palhaços deste circo
E a prova é que namorados e casados, não po- imenso movido pelo dólar e pelo sensualismo sifi-
dendo satisfazer-se integralmente em toda liberda- litico, sois vós, o superficiaíismo, o que constitue a
de dos sentidos e dos desejos — voltam arrufados, sociedade exigente, medíocre, torpe, que mata a
desiludidos, enciumados, coléricos, insatisfeitos . . . felicidade no coração dos indivíduos, que explora e
Após o Carnaval ha rompimentos e tragedias oprime, que escraviza, servilmente, cada um dos
de toda sorte, e maridos e mulheres maldizem a seus membros e faz da familia uma instituição para
excitação — porque só conseguiram excitar-se sem aniquilar as energias individuaes; que exige a ven-
chegar á suprema alegria da liberdade integral. da do corpo feminino — das mulheres e das f i -
Porque não são tres dias que ensinam a ser lhas . . . dos outros . . . como muralha de resistên-
livre: a concepção da liberdade é subjectiva e quem cia em favor da sagrada instituição organizada do
se escraviza á moral social, mesmo de mascara e matrimonio e da virgindade do corpo — para as
disfarces — é escravo do ambiente em que vive e suas filhas e irmãs; sois vós o que constitue esta ci-
servil aos seus próprios prejuisos. vilização que decreta "necessária" a prostituição —
como meio de defesa dos augustos princípios da
Abençoada chuva que vem apagar o pó e ar-
moralidade publica!
refecer o ardor das "pierrettes" e dos "arlequins"
gulosos.
*
"Arlequins" e "Colombinas" — ?. super ficta-
168 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos I6V
E a mulher não sente, não vê como é depri- Nada mais lógico, nada mais coei ente.
carnavalescos — atrás de uma liberação impossí- sualismo, de vicios e de baixezas, bestas humanas
vel, porquanto os prazeres materiaes e ruidosos são para virem perpetuar a degenerecencia e as loilCU*
impotentes para mitigar toda a nossa sede interior ras de uma civilização deprimida, exausta de erros
de liberdade, mas dessa liberdade integral, razão e crimes de Iesa-felicidade individual.
e causa de todos os nossos mais belos anseios de E a morfina?
realização interior. E o eter?
Desde que aprendi a pensar e fiz nascer den- A cocaína?
tro de mim a coragem altiva de pensar em voz alta, O caftismo?
nunca mais senti a necessidade de atar a mascara As tragedias?
social da moral carnavalesca. As cenas de ciúmes?
E as indignidades das alcovas e dos bordéis?
E a avidez de novas sensações alucinantes?
E a embriaguez habitual dos carnavalescos
E é no Carnaval que essa mesma sociedade desenfreados?
moraliteista, farisaica, recruta uma nova leva de E os filhos dessa bacanal?
mulheres moças, de carne virgem e sadia — para E as dansas lascivas e a excitação das "jeu-
a voragem dos lupanares, que socializa outras fon- nes-filles", a provocação dos ataques de histerismo
tes de prostituição para substituir a carne cansada e nevróses provindas da "Censura" moral, e os vi-
e apodrecida dos "cabarets" e dos bordéis. cios inconfessáveis de uma sociedade a estourar de
E ' no Carnaval que se abrem, mais fartos, os hipocrisias e perversidades?
antros de venda da carne feminina e em que mais O Carnaval é a negação absoluta da higiene
se propaga ainda a sifiles, em todas as classes so- do corpo e da higiene da vida interior.
ciaes, direta ou indiretamente, pelo contacto das E' a absoluta negação de tudo o que é belo c
ruas, dos cafés ou das alcovas e que se concebem nobre no coração humano.
pobres filhos da orgia, carnes carregadas de sen- E ' a suprema negação do próprio Eu no acor-
172 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 173
dar da besta que dorme nos abismos profundos do dos nossos deuses, dos deuses que passeiam solitá-
sub-conciente. rios por entre os parques silenciosos dos nossos
sonhos.
E' a revolta do ser inferior procurando aba-
far toda a nossa natureza superior, todas as facul- E' Caliban astucioso, mascarado como sem-
dades latentes da individualidade na escalada da pre, imerso na hipocrisia absorvente de umas horas
evolução para fins mais altos. que devem ser totalmente aproveitadas contra o
Ariel do Sonho, do Amor e da Beleza.
N ã o ha duvida que o Carnaval é um gesto de
revolta, mas, si é a revolta contra a opressão da mo- A felicidade, a alegria verdadeira não pode
ral social, não reivindica direitos mais altos; é a ser procurada no ruido exterior, nas dansas lasci-
revolta inferior que quer a conquista banal de um vas, na embriaguez do álcool, do eter ou dos senti-
momento ruidoso da orgia de instintos que se não dos na volúpia de ocasião, nas baixezas das calça-
podem dominar senão pela brutalidade da moral das ou no redomoinho das cidades industriaes, no
de rebanhos e domesticidade e servilismo. luxo absorvente ou na ociosidade comodista dos
O Carnaval é a festa dos acarneirados da or- fartos e dos aventureiros.
ganização social de moraliteistas e proxenetas do Tudo isso, no fim de contas, deixa um gosto
rebanho humano. amargo na boca e o vazio terrível do coração.
E quanto tempo perdido, quanto atraso nessa A felicidade, a alegria verdadeira só pôde vir
carreira evolutiva, durante o período tumultuoso de nós mesmos, da nossa vida interior.
de exterioridades nocivas ao individuo e á socieda- O instrumento para fazer vibrar, em nós, o
de, nesse periodo de delírio erótico, nessas horas de prazer de viver — é o nosso corpo, não ha duvida.
loucura e de orgias desenfreadas! O corpo, dominado por uma vontade epicurea, não
E ' como si uma onda negra de sensualismo sibarita, é instrumento da volúpia mais alta do pra-
baixo de vilezas obscurecesse o céu sereno das nos- zer integral.
sas alamedas interiores. Mas, o corpo, o sensualismo predominando por
E' o adormecer da razão, é a morte provisória sobre a razão, é a lamina de dois gumes.
174 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 175
Só uma vida simples, serena, delicada, o ar semi-núas e arrepeladas, sempre prontas a matar
puro, o banho revigorador, a saúde do corpo e o Orfeu . . . — não faz senão adormecer o eu la
bem estar geral, o funcionamento normal do orga- tente, caminho único por onde nos podemos ele-
nismo — para o máximo proveito de todos os ór- var ao Olimpo de nós mesmos.
gãos e de todos os sentidos; só o equilíbrio fisico e Horas perdidas de sono revigorador, organis-
uma energia perseverante, bela, ativa, voltada para mos envenenados pelo álcool, pela lascívia, pela
tudo que é nobre e digno; uma razão que saiba fe- sifiles, pela avidez, pelas misérias físicas, pelos "pe-
char os olhos para sonhar e traze-los bem abertos cados fisiológicos" e pelo declive moral, crianças
para dominar os impulsos inferiores — sem julgar degenerando-se ao contato do pó das calçadas e
pecado ou imoralidade o que a natureza exige das ao contato dos exemplos edificantes de toda essa
criaturas para a perfeita harmonia do corpo e da bacanal — fonte de destruição das energias indi-
mente; só o individuo que sabe tirar partido do seu viduaes — é a isso que chamam divertimento, que
corpo como de uma harpa eólea para resoar toda denominam gozo e prazer requintado.
a beleza, toda a euritmia de que é capaz; que saiba Pobre civilização!
refrear os impulsos da besta-féra adormecida nas N ã o és mais do que esse confeti dourado, um
criptas do subconciente, — só esse individuo pôde pouco do pó cintilante com que a espuma social
chegar a conhecer a verdadeira alegria, a verdadei- exterioriza a vida fictícia dos salões da alta e da
ra felicidade em toda a sua sagrada plenitude, só pequena burguesia de funcionários e proletariado
elle tem a chave desse "segredo aberto" . . . inconciente ou a espetaculosidade ociosa do luxo.
E o Carnaval, com o seu ruido ensurdecedor, N ã o és mais, pobre* civilização do dólar, que
com os seus guisos e pandeiros, os toques vibrantes a responsabilidade da morte orgânica e da morte
dos clarins rubros de sensualismo provocador, a moral de cada célula humana arrebatada, pela pró-
embriaguez dissoluta das cores gritantes misturadas pria imbecilidade cultivada, no torvelinho embria-
loucamente e dos vicios amalgamados, os gritos lú- gador da eterna mascarada da vida social.
bricos dos faunos de todas as idades e das bacantes Evoé! Evoé! — é o grito de todas as época i
176 Maria Lacerda de Moura
francesas, inglesas, etc, contra os "bárbaros" ale- deia, contendo apenas uma noticia vaga dessa ma-
mães, contra os "boches", contra os "mutiladores" neira de sugestionar, tão ao sabor da infantilidade
das crianças belgas, contra o AntiCristo, em suma, norte-americana, mesmo assim, continua a ser trans-
contra a concorrência de "Made in German" . . . mitida pelos nomes citados.
Havia expressões retumbantes de patriotismo Parece incrível!
e confiança em Deus, no Deus dos protestantes e Conheço os nomes de alguns dos signatários.
católicos americanos, naturalmente contra o Deus Será verdade que tenham assinado semelhan-
dos protestantes e católicos alemães, pois que, cou- te ingenuidade?
raçados e aviões, submarinos e bandeiras — tudo
E essa gente não viu que não ha Corrente?
era abençoado pelo respectivo Deus de cada nação.
Que não ha nada que justifique a preocupação
Mas, ha um Deus católico francês e um Deus ca-
simplória dos 9 dias e das 9 pessoas e das desgra-
tólico italiano que não chegarão nunca ao acordo
ças e das sortes?
definitivo, assim como, durante a guerra, o Deus
E ' sempre a preocupação absorvente do di-
dos ingleses e americanos era inimigo do Deus ale-
nheiro como o fator único da felicidade!
mão.
Custo a crer que pessoas de certa responsa-
Segredos da diplomacia e da politica clerical, bilidade mental se deixem levar por taes abusões.
e que nós outros, leigos, nunca chegaremos a bem Antes, se me afigura que as taes cadeias são
perceber. copiadas e distribuídas por pessoa muito ingénua
Finalmente, a Cadeia da Sorte espalhada du- da familia dos signatários.
rante a guerra, tinha um fito: angariar pensamen- Mas, a sua aquiescência?
tos de simpatia e entusiasmo em torno dos feitos E é assim que se perpetuam todos os erros so-
e da vitoria dos aliados. ciais. Preconceitos, prejuisos, rotina, todos os cri-
A que acabo de receber, está já pela metade, mes de lesa felicidade humana são transmitidos de
mutilada na ideia e esfacelada na forma, porem, geração em geração, inconcientemente, através da
mesmo assim, aos pedaços, mesmo sem ter a Ca- tradição das Cadeias da boa sorte.
184 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 185
U m a oportunidade para aquele que não pôde rina I I que deixou uma fotografia celebre, com o
sair de casa afim de ganhar a vida. uniforme do regimento por ela criado.
E acima de tudo: A enorme força moral de Por Paulo I foi instituido o uso da Cruz de
poder dizer: "Embora eu seja aleijado, não sou Malta, côr de framboesa, para o regimento.
um fardo para a minha familia ou para a sociedade: Alexandre I tinha por escolta particular o re-
ganho honestamente a minha vida". gimento dos cosacos do Don.
Constituíram a guarda imperial do tsar Nico-
Cheia de gravuras significativas (o jornalis- lau.
mo popular moderno, como a arte dos cartazes de
Pertenceram ao quadro das tropas que com-
anúncios comerciais ou propaganda de candidatu-
bateram Napoleão.
ras presidenciais, tem que variar os clichés e o co-
Tiveram a sua apoteose brilhante na vida
lorido . . . é o livro de leitura das crianças gran-
faustosa do império russo.
des: sem "figuras" não impressiona, não interessa
muito ao publico l e d o r . . . ) — a outra pagina é Olhavam o povo, de cima para baixo, como
a historia de uns poucos militares russos, o que resta raça inferior a quem é preciso tratar a tacões de
bota militar.
do regimento de cosacos do Don.
N ã o é preciso recordar a vida dos cosacos Alimentavam-se do espirito de casta, dupla-
agrupados em voiskos, sob o comando de um chefe mente hierárquico: eram militares e faziam parte
— ataman, atman ou hetman, servindo na cavala- da corte.
ria, fornecendo sotnias ou esquadrões em caso de Veio a revolução russa. Depois da derrota do
mobilização geral. T a m b é m fizeram parte de ba- exercito de Wrangeí, os últimos soldados e oficiaes
talhões de infanteria, de baterias, de artilheria a cosacos do D o n abandonaram a Criméa, acam-
cavalo. param em Lemnos, e, em 1921, transportaram-se
Os voiskos mais celebres, mais importantes, para a Servia.
foram os do Don. Formaram a escolta de Cata- A l i , fizeram-se lenhadores, segundo nos dizem
190 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravo* 191
da exploração do homem pelo homem, em torno exercito burguês do crime de lesa-humanidadc, nau
do trabalho manual deprimente, considerado hu- teem o direito de falar em reivindicações, cm soli-
dariedade humana, em fraternidade internacional
milhante, relegado para as classes desprotegidas
Depois de 8 horas de trabalho em uma usina dc
pela fatalidade social da pobreza quasi miserável
armas ou em estaleiros navaes de couraçados e sub-
ou pela incapacidade conciente de "vencer na
marinos — é preciso cinismo para pregar a paz e
vida" . . .
discursar em torno do tema da fraternidade.
res, oficiaes de terra e mar, advogados, cientistas, conversavam alto, na atitude característica dos "su
artistas, toda a lista interminável dos literatos, altos periores", quando um vendedor de jornaes anun-
funcionários públicos, etc. etc. ciava as folhas do dia. U m dos diplomados, lasti-
E que covardia na sua atitude! mando o abandono dos campos e a aglomeração
M a s . . . são intelectuaes: "a massa formidá- das populações nas grandes cidades, (o leit-moliv
vel dos ignorantes que constituem o mundo culti- da gente culta citadina), apontou para o rapaz
vado", no conceito de Felix Le Dantec. forte, o apregoador das gazetas: — "Bons braços
E' por causa dessa atitude covarde dos pensa- para a lavoura!"
dores de rebanho, dos livres pensadores de fachada Sorri: o diplomado, o cidadão, o patriota, o
familiar ou dos livres pensadores apenas nos recin- funcionário publico, o democrata, o poeta, o jor-
tos das "Lojas" maçónicas . . . intelectuaes amor- nalista, o decano das universidades, o medico, o
daçados pelas conveniências, académicos, cientistas professor, o deputado, o intelectual finalmente —
e diplomados ignorantes ou deshumanos, — que a não sabe que também tem b r a ç o s . . .
luta de classes ou castas se empenha mais ferozmen- E me lembrei da sabedoria de H a n Ryner:
te, na sua campanha de estraçalhar a homens e mu- "E houve prostituídos que se denominaram
lheres, na engrenagem sórdida do patriotismo — "bouffons", filósofos, padres, artistas e profes-
para gáudio dos cofres-fortes dos senhores das sores."
grandes companhias de munições e fabricas de ma-
"Esses "pensadores" pensaram como escravos,
terial bélico.
á ordem do senhor, á hora do senhor, o que era da
E é de tal maneira arraigado o prejuízo de vontade do senhor."
casta, de hierarquia social que também os intele- E continuando a meditar a filosofia ryneriana,
ctuaes não vêem os outros indivíduos feitos da mes- cneguei á sua conclusão:
ma carne, irrigados com o mesmo sangue. "As necessidades físicas não podem ser sa-
H a dias, em um "bonde", dois portadores de tisfeitas senão por um trabalho fisico. Nenhuma
anéis de "homens formados" ( ! ) , de doutores, obra intelectual produziu um grão de trigo.
200 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco dc Escravos 201
U m a vez que tenho necessidade dc comer co- São as grandes agitações sociaes, como a re-
mo um animal, devo fornecer o trabalho ek-4açsta volução francesa, como a revolução russa, são es-
de carga, o único que pôde nutrir meu corpo e per- ses formidáveis cataclismos, consequência dos erros
mitir ao Deus que chora em mim, viver, pensar, e crimes de lesa-feíicidade humana, produtos da
amar." violência e dos privilégios em tempo de paz e da
violência armada — que permitem a nobres empo-
E ainda mais:
brecidos subitamente, a exilados, aos ricos despoja-
"Sejamos o que somos; não nos deformemos
dos á força, dos seus bens e privilégios de casta, a
para satisfazer aos compradores. N ã o nos mate-
poderosos destituídos das posições invejáveis no
mos, sob o pretexto de que "é preciso viver."
cenário mundano — acordarem possibilidades la-
"Que cada qual se dê com sinceridade e, uma
tentes, as quaes permaneceriam de certo sufocadas
vez que recuamos deante do único trabalho pro-
nas criptas profundas do subconciente individual,
dutor de alimento, sejamos felizes e um pouco
si não fossem sacudidas, impiedosamente, pelo
surpreendidos nos dias em que comemos."
atroar rubro e ardente e impetuoso de um desequi-
Mais, estamos tão deformados através das líbrio total de todas as forças do meio ambiente.
concessões de cada instante, que nos rimos dessas
loucuras filosóficas, desse quasi ridículo e nos re- São quedas fragorosas de ideias e costumes e
gosijamos do nosso parasitismo, aumentamos, sem- atitudes colectivas fossilizadas, substituídas por
pre que podemos, a nossa criadagem, vaidosos de palavras sonoras... E ' o desmoronamento de prin-
ser servidos pelo bando imenso dos sacrificados de cípios estabelecidos e reacionarios, substituídos os
todo o género humano. ídolos de velhos altares por ídolos n o v o s . . . E ' o
A outra conclusão salta da pena: desmentido chocante das "mentiras vitaes" secula-
N ã o é a guerra a escola da "Nova Oportu- res, no afirmar dogmático de novas ^mentiras vi-
nidade". A guerra é a destruição em massa das taes" . . . E ' a "terra caída" de todo um sistema po-
energias individuaes: produz "nouveaux-rienes" e litico alimentado de "verdades mortas", são "colu-
proxenetas, mais odio e mais violências. nas da sociedade" que se partem dolorosamente,
202 Maria Lacerda de Moura
Civilização — Tronco dc Escravos 201
quando tudo parecia solidamente estabelecido para
A verdadeira escola da "Nova Oportunidade"
gáudio dos poderosos. — E ' o alevantar de novas
não é a utilização das vitimas do industrialismo —
colunas sociaes nos mesmos altares velhos, reboca-
os mutilados da guerra — porem, são as transfor
dos de esperanças novas e dc novas formulas de
mações sociaes que, pondo em valor as energias
rituaes, modernizados por expressões prometedoras,
adormecidas pelo parasitismo, despertando, no indi-
fascinantes para os incautos do rebanho social —
viduo, a noção da dignidade humana, lhe gritam
que não pôde dispensar os tropeiros e os capata-
bem no âmago da conciencia: são e forte, não
zes os truões e os tiranos.
posso ser um fardo para a grande familia humana;
Então, os indivíduos são obrigados a tal esfor- devo ganhar o pão com o suor da minha fronte.
ço de adaptação que se inutilizam ou renascem de
Porque, a expressão bíblica: tú ganharás o
si mesmos.
pão com o suor de tua fronte — fica muito bem,
E sempre, desgraçadamente, outros cadáveres
adapta-se admiravelmente á boca dos padres que o
insepultos de "verdades mortas" são colocados so-
comem á custa do suor a l h e i o . . .
lenemente nos nichos — para a adoração das mul-
Só quando cada qual ganhar o seu pão com
tidões em aplausos frenéticos deante dos mais for-
o trabalho manual necessário e util á colectivida-
tes, dos vencedores, dos vitoriosos, das ditaduras,
de e é sua conservação pessoal — serão evitadas as
da violência.
guerras e as escolas burguesas da "Nova Oportu-
De tudo quanto surge dos escombros, resta nidade", que criam e lançam no mercado do traba-
apenas, e é muito, a possibilidade individual. lho, a mão de obra cuja exploração é mais fácil.
Para terminar, lembro-me da palavra nobre e
E, assim, é acentuada a luta de classes e novas
forte e anónima da mais admirável mentalidade
guerras se delineiam, cada vez mais ferozes, na com-
máscula revolucionaria que até hoje me foi dado
petição comercial e na sordidez das ambições ale-
conhecer pessoalmente, a do meu querido e grande
vantadas, vorazmente, pelo progresso, pela civili
amigo A . Néblind, agricultor, ao ler uma das mi-
zação.
nhas crónicas sobre o tema.
Carta aberta á Sr a. Sergia F. Vidal, Presi-
dente da "União Civica Radical" de La Pla ta,
Provinda de Buenos-Aires.
A S O C I E D A D E MIGDAL E O TRAFICO
DAS BRANCAS
Minha Senhora
Nem mesmo me dirijo, conforme sua solici- Interpor minha "influencia" (engana se, mi
tação, á Sra. Bertha Lutz, representante ilustre e nha Senhora . . . ) "ante as autoridades do Bra lil,
digna da Liga Internacional de Mulheres Ibérica afim de que redobre de vigilância nos portos de
e Hispano Americanas, instalada em New-York embarque e desembarque e apanhe os tenebrosos"?
com sucursaes em toda parte, nos paises civilizados.
Eu? minha Senhora!
N ã o , minha Senhora. N ã o posso proceder
Si, como preliminar, sou contra o principio
contra a minha conciencia.
de autoridade?
N ã o sou, absolutamente, radical em cousa al-
guma, nem faço parte de nenhuma associação de Roga-me que felicite, em nome da Mulher
mulheres burguesas e, consequentemente, reacio- Brasileira, ao D r . Manuel Rodrigues Ocampo,
narias. juiz Argentino, pela sua "ação valorosa e justicei-
ra" contra a Sociedade Israelita Migdal, inculpada
Demais, toda "campanha moralizadora" me
do trafico de brancas.
é antipática por principio . . .
N i n g u é m moraliza sem o padre ou sem a po- N ã o , minha Senhora. N ã o posso.
licia, ou, pelo menos, sem a interessantíssima po- De ha muito me preocupa o problema dolo-
licia de costumes. roso da prostituição. Estudei-o sob todos os aspe-
E, para mim, é tão repugnante o papei da po- ctos, na sua historia e na sua psicologia social, e
licia que eu jamais lhe denunciaria o maior dos ban- até, com Bernard Shaw e outros iconoclastas do
didos, o mais cínico dos perversos, o mais degra- moraliteismo, na sua profunda filosofia.
dante dos homens. N ã o sei, minha Senhora, si conhece " A Pro-
Faço imenso esforço interior para não julgar fissão de Mrs. Warren". Acho que não. Si tivesse
os atos de outrem e para me conhecer a mim mes- meditado na ironia amargurada de Bernand Shaw
ma. ao descrever o tipo dessa caftina, não cuidava mais
Chego a ter verdadeiro horror ao idolo da de campanhas moralizadoras e iria direito á causa
"moral", a causa de todos os crimes sociaes. para buscar a solução para os efeitos, si possível...
208 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos '>
{V
Vejamos, minha Senhora, apenas um trecho N ã o sei quem disse que a alta burguei ia ou .1
dessa comedia do grande psicólogo. classe rica está para além da moralidade, c a 1 lai
Mrs. Warren é sócia de um nobre, e, são seus se operaria ou dos pobres, áquem da moralidade.
acionarios e clientes, minha Senhora, como o são Quem sustenta o edifício carcomido da moral so-
de todos os caftens e caftinas — juizes e reis, ma- cial é a classe media.
gistrados e nobres, capitalistas e clérigos de alta l i - Tudo isso é por demais longo para uma car-
nhagem hierárquica, almirantes e generaes, chefes ta apenas. Paciência. Esbocemos a farça em poucas
de policia e banqueiros — todas as altas patentes linhas. E voltemos a Mrs. Warren.
militares, todos os grandes estadistas e embaixado- Começou a vida sendo explorada. Depois, in-
res, todos os diplomatas e todos os reis do dollar. teligente, aprendeu a explorar. Ficou rica. Teve
Está certa, minha Senhora, de que o juiz ar- uma filha. Sonhou fazer dela "grande dama-alta-
gentino nunca tenha penetrado os portaes de uma sociedade". Era fácil. Tinha haveres. Educou-a
casa de prostituição? com as moças da alta linhagem em um colégio ca-
Que são os hotéis elegantes de todas as praias ro e elegante.
e grandes cidades, senão casas de "rendez-vous"
Vivie, quando compreende a situação de sua
da "gente honesta" e da "alta" e da "boa" socie-
mão, sente desprezo. Sente asco e humilhação. O
dade?
seu orgulho de "mulher educada", de mulher ho-
A morai burguesa, minha Senhora, ensina os nesta, se revolta. Vejamos, em linhas geraes, o dia-
homens a defender, de unhas e dentes, cada qual, logo entre mãe e filha: Mrs. Warren sente-se ma-
o seu lar e a sua familia e a proceder como saltea- goada e ofendida.
dores no lar das outras familias. Saíve-se quem
— A Senhora Warren. — Minhas próprias
p u d e r . . . Otelo em casa, D o n Juan em casa dos
opiniões! Minha maneira própria de viver! . . . I )á
amigos.
gosto ouvir como falas! Acreditas que fui criada
E a questão da moralidade depende dos ha-
como tu? Como podia escolher a minha maneira
veres.
própria de vida? Crês que o que eu fazia era p o r
?
210 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 211
que me agradava ou porque eu pensasse que estava Moeda, de cujo ganho vivíamos, ela e suas quatro
bem? Acreditas que eu não houvera preferido ir filhas. Duas de nós, eram irmãs do mesmo pae:
ao colégio e ser uma dama distinta, tendo os meios Elisa e eu. As duas éramos bonitas e bem formadas.
para isso? Suponho que meu pae seria um homem que se nu-
— Vivie. — Todo mundo pôde fazer algu- trisse bem. M a m ã e pretendia que era um senhor;
ma escolha,mãe. A moça mais pobre não pôde es- eu, porem, o ignoro. As outras duas, nossas irmãs
colher entre ser rainha da Inglaterra ou diretora pela metade, eram umas pobres criaturas com o
de escola; porem, segundo o seu gosto, pode esco- aspecto de famintos, pequenas e feias, porem re-
lher entre a profissão de trapeira ou florista. As sistentes para o trabalho e mui honestas. Elisa e
pessoas acusam sempre as circunstancias. N ã o creio eu batíamos muito nelas, e não fossem as surras que
nas circunstancias. As criaturas que medram neste nossa mãe nos dava para livrá-las de nós outras, c
mundo são as que madrugam e buscam as circuns- mais de uma vez as teríamos deixado quasi sem vida.
tancias de que necessitam, e, quando não as encon- E' que elas eram os membros respeitáveis da familia!
tram, criam-nas. Pois bem: interessa-te saber o que conseguiram com
— A Senhora Warren. — Sim, sim! muito sua respeitabilidade? Vou-te dizer. U m a trabalhou
fácil é falar, muito fácil, não é verdade? Ouça! doze horas por dia em uma fabrica de aívaiade,
Gostarias de conhecer quaes foram as minhas cir- para ganhar nove chilins por semana, até o dia
em que se convenceu de que o chumbo a havia en-
cunstancias, como dizes?
venenado. Pobre! Acreditava salvar-se com uma
— Vivie. — Sim;farias bem em m'as referir...
leve paralisia das mãos, e morreu. A ' outra, cita-
— A Senhora Warren. — . . . Sabes quem
vam sempre como modelo, porque se casara com
era tua avó?
um empregado publico e conseguia manter limpos
— Vivie. — N ã o .
e bem cuidados sua moradia e seus tres pequenos,
— A Senhora Warren. — N ã o sabes, não é
com dezoito chilins semanaes. Por desgraça,
verdade? Eu o sei. Fazia-se passar por viuva e tinha
isso durou só até o dia em que ele se entregou á be-
um postozinho de pescados fritos perto da casa da
212 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos .' I i
bida. Merecia a pena ser honrada para chegar a noite, porem, muito triste e muito fria, estando tão
cansada que apenas me podia manter despe na, .\
isso, nao é verdade?
quem, não adivinhas, a quem v i entrar no bar para
— Vivie. — (Cheia agora de atenção pensa-
pedir um chope? . . . Elisa, coberta com um grande
tiva.) Acreditavas? Elisa o acreditava?
manto de peles, elegante e confortável, e levando
— A Senhora Warren. — Elisa não acredi- na mão uma bolsa repleta de moedas de ouro.
tava, posso-te assegurar. Tinha muito bom senso
— Vivie. — (Sarcasticamente.) Minha tia
para tal. As duas iamos a uma escola congregacio- Elisa!
nista, o que contribuía para que tomássemos ares
— A Senhora Warren. — Sim; e é uma tia
de parecer superiores aos meninos que nada sabiam
como convém ter, asseguro-te. Agora habita em
nem iam a parte alguma; ali ficamos até que Eli-
Winchester, perto da catedral, e é uma das damas
sa, uma noite, desapareceu e não mais voltou. A
mais respeitáveis da cidade. Acompanha as jovens
professora pensava que eu seguiria o seu exemplo,
aos bailes do c o n d a d o . . . J á não ha temor do rio
e o pastor, querendo evitá-lo, me dizia, sem tréguas,
para Elisa, graças a D e u s . . . "
que o f i m de Elisa seria atirar-se ao rio. Pobre idio-
ta! Era tudo quanto sabia disso. Eu, porem, temia
"Acreditas que éramos bastante idiotas para
mais a fabrica de alvaiade que a agua do rio, o
permitir que outros explorassem a nossa boa pre-
mesmo terias pensado em meu lugar. Esse pastor
sença, empregando-nos como vendedoras ou em
me conseguiu um emprego de criada de cozinha
qualidade de camareiras, podendo nós mesmas apro-
em um restaurante de temperança, no qual se man-
veita-la e receber todos os seus beneficios, em vez
dava buscar álcool quando os clientes o exigiam.
de salários de fome?"
Logo passei a criada de serviço e empregada em
um bar da estação de Waterloo. . . onde expedia
licores e lavava copos durante quatorze horas no Em que outro oficio pode uma mulher econo
mizar dinheiro?
dia, por quatro chilins por semana e a comida.
Era um importante acesso, não é verdade? U m a
214 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 215
Qual é o fim da educação de uma mulher de o problema da prostituição, — sob outro aspecto,
boa familia, senão seduzir a um homem rico e as- depois de Parent-Duchâtelet haver estudado a i
segurar-se o desfrute da sua fortuna, casando-se doenças venéreas das prostitutas e todas as doenças
com ele? . . . Como si a ceremonia do casamento a que estão sujeitas as meretrizes, chega á conclu-
pudesse estabelecer uma diferença entre o bom ou são o eminente cientista de que a sua maneira de
o mau que encerra um mesma ato! viver, apesar de toda a intemperança, embora se
exponham a todas as doenças contagiosas e ás in-
clemências do tempo, á vida desregrada, "afinal de
" E ' o melhor oficio, entre todos os que nos são
contas é muito mais saudável que a das costureiras
accessiveis. E' injusto, é certo. Si os homens orga-
e das outras mulheres que teem ocupações seden-
nizaram assim o mundo para as mulheres, não po-
tárias". Declara que essa conclusão é "triste e sor-
demos pretender que tenham feito de outro modo.
preendente", mas, é a realidade; o que quer dizer
que a vida das costureiras, por exemplo, "é mais
" . . . as moças eram bem cuidadas. Algumas
contraria á natureza do que a das prostitutas."
delas se sairam bem; uma se casou, com um embai-
xador." E acrescenta Drysdale: " U m a vida em que ha
movimento, exercício sexual, o descanso, a bôa ali-
Seria interminável a citação. mentação, e a variedade, é evidentemente mais sau-
A ironia de Bernard Shaw queima como fer- dável, e portanto, no ponto de vista fisico, mais vir-
ro em brasa a moral da gente honesta. tuosa que o constrangimento, o trabalho prolon-
gado e o torpor animal a que são condenadas as
Sob outro aspecto, não estudado em Ber-
nossas pobres costureiras."
nard Shaw e observado, escrupulosamente, nas pes-
quizas do grande sábio e medico francês — Parent- E continua: "Sem o habito de beber, as
Duchâtelet — que dedicou os últimos oito annos prostitutas estariam livres de uma grande parte da
da sua vida humana a angariar dados estatisticos ruina fisica e moral que acompanha o seu modo de
e observações pessoaes para estudar profundamente vida.
216 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 217
E ' verdade que os seus maus efeitos não se constrangida, e se liberte do ídolo da familia, para
manifestam tão depressa como nas pessoas que tra- viver a liberdade de amar — fora dos códigos c dos
balham fortemente (sobretudo em ocupações se- dogmas religiosos e sociaes.
dentárias, essa peste da civilização), e que, ao mes- Enquanto toda mulher não fôr absolutamen-
mo tempo, bebem muito." te livre de amar, haverá o comercio do lenocínio,
E o D r . Acton também confirma: "Todos os pois que, acima de tudo, a natureza exige as relações
observadores estarão de acordo comigo em testemu- sexuaes.
nhar que nenhuma classe de mulheres é tão isenta Depois: enquanto a familia fôr esse reduto
de doenças geraes como as prostitutas." falsificado da virtude, a coluna central do direito
Isso não é o elogio da prostituição, mas, sob de propriedade no regimen burguês capitalista —
o ponto de vista fisico, fora do código da moral será indispensável o exercito da prostituição —
contra a natureza, é a prova de que a prostituição para salvaguardar a pureza da sacratíssima insti-
— que representa o exercicio sexual, necessário á tuição da familia — abençoada pela Igreja e selada
harmonia orgânica — está acima do estado de sol- pelo Estado.
teirona, em que ha o constrangimento moral da fa- Assim, honra, inocência, virgindade, virtude,
milia e da sociedade, alem do "pecado fisiológico", honestidade, todos esses idolos sangrentos defen-
e, acima do estado de mãe de familia proletária e sores do instinto de propriedade no regimen bur-
pequena burguesa, em que uma escravidão terrivel guês capitalista, postados em altares no templo da
ao homem, á prole infinita e ao trabalho forçado a familia — nada mais são do que o símbolo da mo-
inutiliza fisica e moralmente, baixando-a á cate- ral do caftismo social.
goria de animal de tiro e maquina de procrear a ser-
Representam a superstição, a rotina, a igno-
viço do homem.
rância, o amordaçar da razão pela perversidade
A conclusão é que se impõe uma educação organizada da Igreja, afim de que o Estado mais
sexual livre, a emancipação feminina — para que facilmente se apodere da presa inerme, inconciente,
a mulher só tenha filhos quando quizer e nunca e dela faça o joguete das ambições dos poderosos,
Civiliiação — Tronco de Escravos 219
218 Maria Lacerda de Moura
ternacional do caftismo. São troncos da arvore Es-
os "superelefantes" da autoridade temporal e espi-
tatal e Moraliteista.
ritual.
E quanta conciencia livre o sabe e o descreve!
" O produto é dividido pelos dois ladrões" . . .
Que diferença ha, minha Senhora, entre a
Certo, a profissão oficial de explorador de
profissão do caften e a do grande industrial que
mulheres deveria ser apenas accessivel á mulher . . .
envenena os produtos alimenticios e assassina a
Assim como a prostituição é o exercito bran-
crianças e a adultos indefesos? — Porque o Estado,
co do Estado e da Moral, arregimentado para o
hoje, é propriedade do capital.
serviço dos homens, indispensável, como o exercito
armado, para a manutenção da ordem social e para Que diferença ha, minha Senhora, entre a
a defesa do lar e da familia; assim como o Estado profissão do caften e a dos lords e nobres e ban-
recebe o imposto dos prostíbulos, dos "Cabarets", queiros acionistas das usinas de armas de guerra,
dos bailes e dos "rendez-vous" organizados pelos chacaes que se nutrem dos campos de batalha,
caftens — que são os empresários dessa tragedia — caftens no grande mercado do género humano?
cargo honroso do mesmo modo que é honroso ser Está bem segura, minha Senhora, de que o
organizador das olimpíadas ou empresário de gran- crime dos caftens é maior do que o daqueles que
des teatros, ou acionista, como Rockfeller, das imen- lhes pagam o preço da carne feminina?
sas usinas de material bélico; a profissão de caften
Está bem certa, minha Senhora, de que um
e de caftina é uma necessidade do Estado burguês
ato praticado por dois individuos de sexo oposto,
e é incoerente essa perseguição movida pelos senho-
avilta a mulher e é natural para o homem?
res de beca, sotaina ou espada contra o comercio
Está convencida, minha Senhora, de que a
do lenocinio. Que seria dos homens, si essa cousa
profissão de prostituta — absolutamente indispen-
não estivesse tão bem organizada internacional-
sável á harmonia desta admirável organização so-
mente?
cial — é mais degradante do que a dos histriões que
H a uma internacional armament ista. H a uma
se dizem representantes de Deus na terra — para
internacional da diplomacia secreta. H a uma in-
220 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos 221
sufocar a razão humana e dominar pela astúcia e á disposição do hospede uma mulher prostituta de
pela covardia? alta linhagem social, afim de que todos os seus pra-
E, que é o casamento, senão a prostituição san- zeres sejam satisfeitos integralmente. E essa pros-
tificada pela Igreja e selada pelo Estado? tituta, que ganha rios de dinheiro, geralmente é . . .
Está segura de que os Alexandres e Napoleôes uma senhora honesta . . . da alta sociedade... ca-
e Mussolinis — "himalaias de infâmias" — sejam sada com um estadista, com um intelectual notável,
superiores, na sua profissão de magarefes, aos ex- cuja carreira triunfal muito deve aos seus dotes de
ploradores de mulheres? espirito . . .
Está certa de que, si não houvesse caftens, não Isso quer dizer que ha um caftismo elegante
haveria exploração feminina? do Estado, anexo á diplomacia secreta.
Abra Lachatre, minha Senhora, no capitulo N i n g u é m dirá, aí, que seja a luta pela vida.
em que fala de Pio V . Verá que o Santo Padre fez N ã o , minha Senhora: razões de Estado.
uma lei contra as prostitutas e verá também que os A prostituição é o exercito salvador da moral,
eclesiásticos se opuseram á sua execução, apresen- da Igreja, e dos bons costumes.
tando ao Papa a objeção séria de que as 45.000 ra- E como denunciar a um, dois ou tres caftens
meiras que havia em Roma eram necessárias ao ser- profissionaes — si toda a civilização unisexual é
viço do clero. feita* para o prazer do homem e para a exploração
São os "tubarões" das finanças, da moral e miserável da mulher?
do poder que teem necessidade do caftismo orga- Sabe, minha Senhora, dos nomes de grandes
nizado. estadistas e diplomatas e juizes encontrados mor-
Talvez não saiba, minha Senhora, que, quan- tos ou retirados mortos de casas de prostituição?
do um alto personagem do mundo politico visita Eu poderia citar dezenas, mas seria alongar por de-
uma nação, o rei, o primeiro ministro, o presiden- mais uma carta, já por demais extensa.
te da republica ou o embaixador — em carater Leia, minha Senhora, a "Historia da Prosti-
oficial — é dever cavalheiresco dessa Nação pôr tuição" de Dufour, e se convencerá de que, dentro
222 Maria Lacerda dc Moura Civilização — Tronco de Escravos 223
minutos, tempo suficiente para o cavalo passear competição comercial, aumentar os impostos e sus-
só e fechar dentro do circulo a própria filha do tentar os paes da Patria dos histriões politicos. Es-
sultão. Foi assim que o extrangeiro se casou com tamos fartos de o saber e de o repetir.
a princesa e herdou todo o reino. Duas necessidades predominantes movimen-
Gosemos a hora presente, a hora que passa — tam todo o género humano numa correria de lou-
é a conclusão do conto oriental. cos que nos faz lembrar a magistral parábola dos
Mas, a nossa cupidez é desmedida e todas as "Laboriosos" do nosso grande H a n Ryner.
desgraças nos vem de querermos correr atrás da Somos movidos por milhões de mãosinhas que
felicidade . . . nos obrigam a uma atividade fantástica, inacredi-
Caminhamos sempre em busca do que está tável — para que? — para comer e para amar, na
próximo de nós mesmos e as horas se escoam e os accepção fisiológica.
dias se passam sem que tenhamos tempo de aspi- Para duas cousas tão simples, tão naturaes,
rar o perfume da vida na própria estrada percor- não era preciso correr tanto.
rida pela nossa ambição insaciável atrás de cousas Os animaes e os bohemios no-lo asseguram...
que nos parecem tão distantes, e, tão ao nosso al- Mas, complicamos de tal modo o instinto de
cance, si nos demorássemos o momento preciso pa- nutrição, fizemos a cozinha tão cara e tão difícil a
ra colher a hora presente. ponto de nos empenharmos no servilismo de uma
São os nossos desejos excessivos, é a nossa ava- escravidão voluntária, implacável nas suas exigên-
reza que faz o tédio da vida, a amargura dos nos- cias de fogo eterno.
sos instantes de recolhimento, maquinas de correr, E o habito inveterado completa o quadro.
triturantes, irritáveis, dispersadores de energias ex- E para essa cozinha tremenda no disperdicio
traordinárias, incalculáveis, — para que? de forças sem conta, empregadas no fabrico de
Todo o delirio de progresso da civilização in- drogas nocivas para envenenar o género humano
dustrial tem por fim encher os cofres fortes dos na concorrência do preço módico; para essa cozinha
reis das forjas e do poder, fomentar as guerras de sempre insatisfeita, insaciável na faina de levar ao
Civilização — Tronco de Escravos 229
228 Maria Lacerda de Moura
e para satisfazer ao instinto sexual — outra forma Mas, vestir, para parecer bem e "amar" m t i l
de apetite. facilmente.. .
Entretanto, o nosso organismo precisa de tão Comer, comer, comer, comer sempre por
pouco para se nutrir e produzir trabalho e recupe- habito, por gulodice, por superstição, por igno
rar forças gastas no redemoinho das contingências rancia, por comodidade, por sensualismo.
da vida humana. Dinheiro, dinheiro, mais dinheiro — para os
Todavia, é preciso "empanturrar" as visceras trapos, as jóias, o automóvel, a vida social, o car
até o excesso do artritismo, da gota, da diabetes, das naval, as ceiatas, o jogo, o gozo, o álcool, cortesãs,
indigestões e dispepsias herdadas ou adquiridas e situações invejáveis — para comer e amar . . .
remediamos o mal irremediável com as panacéas de Comer e amar no sentido vulgarissimo.
drogarias e com os diagnósticos errados dos médi- Nada satisfaz. A avançada continua ininter-
cos — tudo voracidade a viver do nosso estômago, rupta, em uma voracidade assombrosa pela civili-
das nossas visceras laceradas, dos nossos nervos em zação a dentro, atropelando por todos os lados,
ferida viva através da atividade fantástica desta criando vicios, regulamentando a prostituição "ne-
civilização de loucos a correr, a correr estupida- cessária" para saciar a fome dos moraliteistas de-
mente para a.morte. fensores da "sagrada instituição da familia'' e com
E as horas se escoam invariáveis: todos pro- pradores da carne feminina das famílias dos outros.
curam a liberação económica — para comer e para E as pobres mulheres também se vendem para
amar no sentido fisiológico. comer, depois de se haverem "perdido" . . . para
amar...
Si tivéssemos menos ambição e mais delicade-
E a "vida alegre" (triste ironia!) acaba poi
za para nos aproveitarmos da hora presente —
leva-las á repugnância dessa "profissão necessária",
quanta recordação agradável, quanta beleza, quan-
absolutamente necessária á moral social dos castos
ta doçura, quanta generosidade, quanto perfume
e dos santos puritanos, e tão indispensável á purc
colheríamos da vida!
za da sacratissima instituição da familia que, poi
232 Maria Lacerda de Moura Civilização — Tronco de Escravos .' \
isso mesmo, é tratada pelos "bons costumes" a ta- Si nos deixássemos dormir cinco minutos á
cões de botas e desprezada pelos famintos que não sombra da arvore da lenda oriental — quem sabe
podem prescindir dessa necessidade implacável e quanta felicidade nos adviria desse repouso pro
natural. metedor a nos confortar o coração longe do ruido
E os frequentadores das casas publicas "di- surdo, monótono, hostil, diabólico das maquinas
zem" que sentem repugnância desse meio de satis- triturantes desta civilização de idiotas a correr ofe-
fazer as suas "necessidades" para as quaes não sa- gantes para a morte.
bem de outros processos mais razoáveis e mais hu- Pobres que não conhecem a satisfação plena
manos. da sobriedade epicurista. Desgraçados que nunca
E a grande maioria é dos casados... Otelo souberam o que ha de divino no Amor, no puro e
nos seus lares e Don Juan nos lares alheios. santo Amor desinteressado, ingénuo, simples, vir-
O casamento, embora respeitada a himenola- gem, no Amor que não sabe de códigos nem de sa-
tria e as flores de laranja, também falhou. cerdotes ou de proclamas, no Amor que ignora si ha
leis ou sociedade, que não vive do sacrificio inaudito
Todos insatisfeitos.
da prostituição, que não é exclusivista nem assassi-
E ninguém sabe a razão por que nos envolve-
no, que não tem ciúmes nem exigências, que recebe
mos em toda essa teia forte, de tantas misérias so-
o que se lhe dá e devolve centuplicada a oferta de
ciaes.
outro coração.
Rotineiros, embrutecidos pela civilização in-
dustrial, maquinas de correr, os "Laboriosos" da Só a volta á natureza, a serenidade simples do
parábola — não temos tempo para comer e amar campo, a sobriedade, nos dão ideia de que é pos-
sossegadamente. . . sível fugir da loucura coletiva da civilização indus-
E ' comer ás pressas e satisfazer a necessidade trial e sentir a alegria de viver.
do instinto sexual voando, pulando assustados, o Mas, dentro das cidades — esse amontoa, i-
cercado alheio, para recomeçar indefinidamente a de infâmias, de vaidades, de amarguras, e de misc
corrida vertiginosa. rias — dentro dos grandes empórios da concorrem
234 Maria Lacerda de M o u > a