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Nyarlathotep

Este poderoso poema em prosa foi escrito no começo de dezembro de 1920. Ele apareceu a
primeira vez na revista “United Amateur”.

O “deus” quase egípcio faz aqui uma impressionante aparição; neste conto ele parece um
símbolo da total degeneração do mundo e do universo. Como em “O Testemunho de Randolph
Carter”, a história é vastamente baseada em um sonho – um sonho tão impressionante que
Lovecraft escreveu o primeiro parágrafo antes de estar completamente desperto.

Nyarlathotep... o caos rastejante... eu sou o último... eu contarei o vazio que me


ouve...

Não me lembro distintamente quando começou, mas foi a meses atrás. A tensão geral
era horrível. À uma série de revoltas sociais e políticas foi acrescido o estranho e crescente
receio de um perigo medonho; um perigo difundido e abrangente, o tipo de perigo imaginável
apenas aos mais terríveis fantasmas da noite. Lembro-me das pessoas indo e vindo com rostos
pálidos e preocupados, sussurrando avisos e profecias que ninguém ousara repetir ou admitir
que ouvira. Uma sensação monstruosa, de culpa assolava a terra, e do vazio entre as estrelas
sopravam gélidas correntes que faziam os homens tremerem em lugares escuros e solitários.
Havia uma alteração demoníaca no passar das estações – o calor do outono persistia de forma
alarmante, e todos sentiam que o mundo e talvez o universo haviam passado do controle de
deuses ou forças conhecidas para o de forças ou deuses a nós desconhecidos.

E foi então que Nyarlathotep veio do Egito. Quem ele era ninguém podia dizer, mas era
do antigo sangue nativo e se assemelhava a um faraó. Os Felás ajoelharam-se quando o viram,
embora não soubessem porquê. {Ele} disse que havia que havia surgido da escuridão de vinte
e sete séculos, e que ouviu mensagens de lugares além deste mundo. Nas terras da civilização
chegou Nyarlathotep, moreno, esbelto e sinistro, sempre comprando estranhos instrumentos
de vidro e metal e combinando-os em instrumentos ainda mais estranhos. Falou muito das
ciências – de eletricidade e psicologia—e fez exibições de poder que deixavam seus
espectadores sem palavras, ainda assim aumentando sua fama até magnitudes desmedidas.
Homens se aconselhavam a ver Nyarlathotep, e estremeciam. E onde Nyarlathotep ia,
descanso desaparecia; pois as pequenas horas da manhã eram rasgadas por gritos de
pesadelos. Nunca antes tais gritos foram problema público; agora os sábios quase desejavam
que pudessem proibir o sono em tais horas, de maneira que os guinchos pudessem perturbar
de forma menos horrível a pálida e compassiva lua, enquanto ela brilhava nas águas verdes,
deslizando sob as pontes e velhos campanários, desmoronando contra um céu enfermo.

Lembro-me quando Nyarlathotep veio até minha cidade – a enorme, antiga e terrível
cidade de incontáveis crimes. Meu amigo me contou sobre ele, e da atração e
deslumbramento de suas revelações, e a ânsia de explorar seus derradeiros mistérios queimou
em mim. Meu amigo contou que eram coisas impressionantes e terríveis, além de minha avida
imaginação; que o que era mostrado no escuro profetizava coisas que ninguém fora
Nyarlathotep ousaria profetizar, e que no crepitar de suas faíscas foi tirado dos homens coisas
nunca antes tiradas e que ainda se revelava apenas em seus olhos. E ouvi ser comentado que
aqueles que conheciam Nyarlathotep viam sinais que eram negados aos outros.
Foi no calor do outono que fui através da noite, com a multidão indiferente, ver
Nyarlathotep; através da noite sufocante e intermináveis escadas até um quarto abafado. E
sombreadas numa tela, vi formas encapuzadas entre ruinas, e maléficas facas amarelas
espreitando por trás de monumentos caídos. E vi o mundo combatendo a escuridão, contra
ondas de destruição do espaço derradeiro; girando, agitando-se e lutando ao redor do
diminuto sol fraquejante. Então as faíscas dançaram incrivelmente ao redor das cabeças dos
espectadores, e seus cabelos arrepiaram-se no final enquanto sombras, mais grotescas do que
posso descrever, vieram e assentaram-se sobre suas cabeças. E quando eu, que era mais frio e
cientifico que os outros, murmurei um fraquejante protesto de “fraude” e “eletricidade
estática”, Nyarlathotep nos levou todos para fora, baixo escadas vertiginosas, até as umidades
quentes e desertas das ruas noturnas. Gritei que não estava com medo, que nunca teria medo,
e outros gritaram junto de mim, por alivio. Juramos uns aos outros que a cidade continuava a
mesma, e ainda viva; e quando as luzes elétricas começaram a enfraquecer, amaldiçoamos a
companhia por vezes seguidas, e rimos das expressões estranhas que fazíamos.

Acredito que sentimos algo vindo da lua esverdeada, pois quando começamos a
depender de sua luz nos espalhamos em involuntários e curiosos grupos e parecemos saber
nossos destinos, mesmo não ousando pensar sobre eles. Uma vez que olhamos o pavimento e
vimos blocos soltos e deslocados pela grama, com raras linha de metal enferrujado indicando
onde outrora passaram trilhos. E novamente vimos um bonde, abandonado, sem janelas, em
ruinas e quase virado de lado. Quando olhamos o horizonte, não achamos a terceira torre que
margeava o rio, e notamos a silhueta da segunda torre com seu topo em pedaços. Então nos
separamos em pequenas colunas, cada uma parecendo se retirar em uma direção diferente.
Uma desapareceu através de um estreito beco, deixando para trás apenas o eco de um gemido
assustado. Outra seguiu por uma entrada de metrô, soando com uma risada demente. Minha
própria coluna foi levada pelo campo aberto, e sentimos um arrepio que não era do calor do
outono, pois quando olhamos pelos brejos escuros, e vimos ao nosso redor o brilho infernal de
más neves. Inexplicáveis neves que não deixavam rastros, eram levadas como que para uma
direção apenas, onde assentava-se um abismo do mais profundo negro com suas paredes
brilhantes. A coluna parecia muito magra a medida que seguia pesarosa em direção ao abismo.
Fiquei para trás, pois a fenda negra em meio as neves verde-brilhantes era assustadora, e
pensei ter ouvido reverberações e um lamento inquietante enquanto meus com companheiros
desapareciam, mas meu poder para protestar era leve. Como se sinalizando para aqueles que
foram antes, fui levado em meio às tempestades de neve, tremendo e amedrontado, entrando
no invisível vortex do inimaginável.

Formidavelmente racional ou estupidamente delirante apenas os deuses poderão


dizer. Uma sensível e doentia sombra que se contorcia em mãos que não eram mãos e giravam
cegamente através da horrível noite da criação pútrida e cadavérica de mundos mortos com
chagas que já foram cidades, ventos sepulcrais que varriam estrelas pálidas e as faziam oscilar
levemente. Além dos mudos vagam fantasmas de coisas monstruosas, colunas quase ocultas
de templos [profanos] que residem em rochas sem nome através do espaço e alcançam um
vertiginoso vazio além das esferas da luz e trevas. E através desse revoltoso cemitério do
universo o abafado e enlouquecedor bater de tambores e o fino e monótono soprar de
blasfemas flautas vindo de inconcebíveis e não iluminadas câmaras de além do Tempo; as
detestáveis batidas e soar onde lenta, estranha e absurdamente dançavam tenebrosos deuses
– as cegas, mudas e estupidas gárgulas as quais a alma é NYARLATHOTEP

H.P. LOVECRAFT- 1920

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