Você está na página 1de 3

VIGÍLIA

Os flocos de neve caiam alegremente do céu de chumbo. Sua dança, embalada pela brisa gelada do
fim de tarde, ignorava a atmosfera opressiva do mosteiro. A má conservação da estrutura a fazia
aparentar uma antiguidade muito maior que a real. Apenas um olhar muito atento poderia divisar
alguma atividade humana por trás de suas paredes arruinadas. Muito menos perceptível ainda seria
a mão esquelética que buscava afastar uma inexistente cortina da janela central do segundo
pavimento.
O pequeno templo e algumas poucas casinhas ao redor, aninhados na subida do Monte Negro, são
cercados por matas de araucárias. A única conexão com o centro de São José dos Ausentes era uma
trilha estreita e acidentada, utilizável apenas por bestas de carga. O núcleo de edificações tinha tudo
para ser abandonado e efetivamente o fora, algumas décadas após a instalação dos religiosos no
local, lá pelos anos cinquenta. A comunidade chegou a reunir meia dúzia de monges cistercienses,
mas encerrou as atividades em 1990, na esteira de uma pequena tragédia que acabou entrando para
o folclore local. Pelo que se contava na cidade, todos os religiosos foram encontrados mortos,
envenenados. Intoxicação alimentar, certamente. Apesar da explicação prosaica, o fato acabou por
isolar o local ainda mais, dando-lhe uma pátina "assombrada". Nos últimos anos porém, um
improvável aliado veio resgatar o mosteiro do esquecimento: a neve. O cenário desolado das matas
e das quase ruínas, quando tingido de branco, era realmente inesquecível.

A gaúcha São José disputa com alguns municípios da Serra Catarinense, o título de cidade mais fria
do Brasil. Desta forma, hordas de turistas peregrinam até a região no inverno, rezando para serem
saudados pela neve. A maioria se contenta com selfies tiradas na praça central, quando muito
retratando guerrinhas de bolas de neve, ou frases desenhadas no gelo acumulado no teto dos carros.
Já os mais aventureiros preferem alugar uma montaria e seguir a trilha do Monte Negro em busca
do mosteiro. A empreitada não é para muitos, dadas as condições do caminho.
Entretanto, Alceu achava que era sim para ele. Considerava-se um aventureiro e vivia em busca de
por-se à prova. Filho de pai militar, já morara nos quatro cantos do Brasil, do Inferno Verde aos
pampas, do Pantanal às quentes praias nordestinas, sem conseguir encontrar tranquilidade.
Temperamento agitado desde a infância, já passara por grupos teatrais, iniciara cursos sem conta, e,
naturalmente, não conseguira adaptar-se à rotina das escolas militares. Após mais um abandono -
dessa vez Educação Física - resolvera tentar a sorte como guia turístico. A aposta recaiu sobre a
divisa SC-RS, unindo o turismo de aventura ao vinho, antiga paixão de seu pai. Aparentemente,
mais um fracasso, já que os passeios propostos por Alceu fugiam completamente ao convencional.
Assim, pouco a pouco seus clientes foram rareando até que os grupos terminaram se reduzindo ao
próprio guia.

Como um rato metido numa guampa, Alceu só vislumbrava uma saída para sua vida: seguir em
frente, radicalizando sua proposta de vida. Zero amigos, namoradas e mesmo o contato com a
família. Assim nasceu a ideia da subida do Monte Negro para saudar a chegada da neve.
Pomposamente batisado de "Lágrimas Congeladas", o passeio não tinha mesmo boas chances de
atrair muito público. Entretanto o resultado obtido foi ainda mais decepcionante que os anteriores.
Ninguém se dispôs a pagar para enfrentar um número indeterminado de horas a cavalo, sob
temperaturas congelantes, para alcançar um mosteiro abandonado, cuja real existência nem o
Google Maps confirmava. Na mente de Alceu, tal fracasso tomou a forma de uma verdadeira
revelação. Algo lhe dizia que a aventura se desenhava não para um prosaico comércio, mas como
um objetivo para sua própria vida.
E assim avançou o rato na direção da ponta da guampa...
A manhã chegou luminosa, azul e gelada. As condições ideais para uma excursão, não fosse o fato
de um grupo não se ter formado. A essa altura, isso não fazia mais diferença. Alceu já estava em
outra etapa de sua vida. Talvez a última. Seu olhar febril, parecia focado numa dimensão além do
entorno real. Os preparativos para a viagem eram a demonstração incontestável de que o rapaz
mergulhara na irrealidade. Pendurou mecanicamente a inseparável mochila de sarja no flanco
direito do cavalo baio, montou e partiu em direção ao Monte Negro. Como uma espécie de resumo
da vida que naquele momento abandonava, deixou para trás a casa que fazia as vezes de agência de
turismo. Portas e janelas abertas davam acesso ao frio vento da manhã, utensílios, roupas e todo
equipamento necessário para a empreitada, deixados intocados em seus lugares. Dir-se-ia que o
jovem apenas fora comprar cigarros na venda da esquina.
Lentamente o ser fantástico homem-montaria foi se afastando da pequena cidade. Ao longe,
amortalhado na neblina matinal, o Monte Negro parecia chamar por Alceu. Em São José, mais uma
vez ninguém prestou atenção ao jovem que partia. Em pouco tempo seu desaparecimento teria o
dom de inseri-lo definitivamente na mitologia local, resultado bem mais concreto que sua presença
na pequena cidade.
Em mais ou menos uma hora, o passo mecânico da besta levou Alceu ao início da subida do monte.
O penetrar no mato baixo da encosta do morro transmitiu-lhe a sensação de adentrar subitamente
um ambiente diferente. Não uma transição gradual, mas quase o equivalente de abrir as portas de
uma mansão e mergulhar num cinza denso, quase palpável. Bruscamente abandonado pela risonha
luz azul da manhã, apressou o passo do cavalo na tentativa de chegar logo ao fim da jornada. As
agulhadas do vento gelado, embaladas pelo som monótono dos passos do cavalo esmagando
gravetos, duraram tempo indefinível. A sensação irreal foi finalmente suplantada por outra, ainda
mais etérea e fantasmal. Ao final do túnel de vegetação, apresentou-se uma clareira dominada por
um casarão arruinado. O mosteiro existia afinal!
O cérebro do rapaz consumiu alguns instantes para processar a imagem que lhe chegou aos olhos. A
construção de pedra parecia parte indissociável da vegetação circundante, das pedras, da neblina e
dos restos de neve acumulada na noite anterior. As lianas e plantas cobriam as paredes de forma
delicada e irregular, como rugas num rosto. A figura completa assemelhava-se a um quadro
impressionista, sem limites precisamente demarcados, parte de um outro mundo. Nem uma folha
em movimento, nenhum som vinha quebrar o pesado e opressivo silêncio. Uma natureza morta.
As muitas janelas do prédio formavam um padrão regular de quadrados negros e sem vida, exceto o
situado no sótão. Ali se podia perceber um luz ambarina e trêmula, oscilando de um lado para o
outro. Ao perceber o brilho mortiço, Alceu desmontou e dirigiu-se à porta de entrada do mosteiro.
Algo em sua alma dava-lhe a certeza de ser esperado. Encontraria por fim o objetivo de sua vida?
O interior do prédio era uma treva sólida e absorvente, ainda mais frio que o exterior. Ainda assim,
o jovem sentiu-se confortável ao ser absorvido pela viscosa escuridão. Sentiu-se parte do ambiente
circundante. Aos poucos, detalhes foram se revelando, não por uma impossível adaptação da vista,
mas sim na forma de imagens mentais. Inicialmente sons vindos do alto da escada. Uma refeição
coletiva, sem dúvida. Ruídos de talheres, vasilhas depositadas sobre madeira, líquidos a encher
copos. Sem saber como, Alceu viu-se a seguir no alto das escadas, contemplando uma dúzia de
monges que comiam em absoluto silêncio, sentados ao longo de uma comprida e tosca mesa de
madeira. Não pareciam perceber sua presença. Em dado momento, executando macabra
coreografia, os religiosos levam as mãos aos pescoços e ventres, em agonia mortal. Alguns rolam
até o solo, outros tombam a cabeça sobre a mesa, revirando pratos e derrubando copos. Todos
mortos, sorrisos idiotas nas faces e olhos bem abertos. Ao fundo do vasto salão de refeições, outro
lance de escada convida o jovem a alcançar o sótão. Alceu, dois degraus por vez, sobe as escadas,
deixando atrás de si o jantar sinistro.
Já no andar superior o rapaz defronta-se com o que, sem saber, era seu destino. Embuçado numa
túnica escura, um monge balança uma vela na frente da janela. Espera alguém? Há quanto tempo?
Alceu aproxima-se e fita diretamente os olhos da figura com a vela. O que enxerga é a própria
essência da dor, do sofrimento e da loucura: enxerga a si mesmo! Estava de volta a seu inferno
particular!!
FIM

Você também pode gostar