Você está na página 1de 2

BLAUE DIVISION (*)

Smolensk - Rússia, 31 de outubro de 1941.


Diogo mirava absorto o caco de espelho enquanto fazia a barba. A navalha cega produzia um ruído
irritante em sua luta contra a barba hirsuta. REC, REC, REC... Na verdade fora aquele mesmérico
som que despertara nas profundezas de sua mente uma curiosa e forte sensação de de já - vu. Tinha
a nítida impressão de já ter visto antes seu rosto triste refletido naquele triângulo irregular. Até a
neve ligeira que caía fora da barraca, visível no espelho, lhe era familiar. O homem pousou a
navalha na mesa à sua frente e deixou-se navegar num turbilhão de imagens mentais: a noite alegre
em Vila Real, quando passados já cinco anos, resolvera se alistar nos "Viriatos" (**) e ir combater
na Espanha; a horrível experiência da batalha de Teruel, onde fora o único sobrevivente luso; o
desfile da vitória em Madrid, a melancólica volta para casa; o telegrama dos camaradas falangistas
dando notícia da formação de uma divisão de voluntários para lutar na Rússia; o alistamento na
Divisão Azul: a partida para a Alemanha; os treinamentos militares; a camaradagem e a inclusão na
Waffen-SS; a chegada na Rússia. Lembrou-se de forma particularmente vívida do orgulho ao
receber a farda cinza com o brasão da "Blaue Division" bordado no ombro.

O sonho (?) foi rudemente interrompido pelas solenes badaladas do sino da cidade ocupada. Diogo
debruçou-se na janela do barracão e contemplou pensativo as macissas muralhas do Kremlin de
Smolensk. Nem as centenárias defesas de pedra tinham podido deter o impetuoso avanço do
exército germânico. "Mas e adiante? O que os aguardaria?" - pensou ele. Intuitivamente, seus dedos
gelados agarraram a imagem da Virgem que trazia sempre ao pescoço. Um presente de sua avó que
o protegia desde a infância. De alguma forma inconsciente, Diogo sabia que o que os aguardava
adiante era nada mais nada menos que o inferno. Um inferno gelado, cujo eterno cinza só era
quebrado pelo escarlate do sangue derramado.

Krasny Bor (arredores de Leningrado) - 10 de Fevereiro de 1943 - a "quarta-feira negra"


A situação era desesperada, tanto pelas condições atmosféricas - aquela escura manhã registrava a
inumana temperatura de trinta graus negativos - como pela desproporção de efetivos em luta. As
hordas soviéticas superavam os voluntários da "Blaue Division" em mais de três por um e o
martelar impiedoso dos foguetes Katyusha parecia apertar os corações dos bravos ibéricos com uma
garra monstruosa. Cabia aos divisionários conter o avanço comunista o máximo possível, de forma
que as linhas alemãs pudessem se recompor ao redor do flanco sul da cidade de Pedro o Grande. Ao
final do dia a Morte já recolhera na lama enregelada quase oitenta por cento dos voluntários.

Diogo pouco a pouco foi despertando do torpor que dominava seu corpo e alma. Cego por
estilhaços, sentiu-se meio soterrado por lama sangrenta e gelo sujo e ao seu redor, pedaços de
cadáveres testemunhavam o efeito da bomba que caíra certeira em seu pedaço de trincheira. Sentia
que a vida lhe escorria das veias, misturando-se à terra russa. Agarrou compulsivamente a imagem
sagrada em seu pescoço e, com todas as forças, implorou à Virgem por sua vida. Não era justo que
terminasse assim, como um rato, a milhares de quilômetros do seu Douro natal.

"Viverás, sim! Não por tua tola fé nessa ridícula imagem, mas por que eu assim o desejo! Mas há
um preço a pagar..." A enorme figura embuçada em negro, susteve o soldado em suas garras
ossudas, como se segurasse uma boneca de pano. Encarou-o, e nesse momento, , a cegueira de
Diogo provou ser uma benção divina.
Diogo caiu em si, mirando o espelho triangular. A neve caia suave, cobrindo as muralhas de
Smolensk. Na mão uma navalha e na mente uma pergunta: "o que o esperava adiante?". REC, REC,
REC....

FIM (?)
(*) BLAUE DIVISION : Divisão Azul. Divisão de voluntários espanhóis e portugueses,
incorporados ao exército alemão em 1941 para participar da invasão da União Soviética. O nome
deriva das camisas azuis que estes combatentes usavam na guerra civil espanhola.
(**) VIRIATOS: Voluntários portugueses que em 1936 incorporaram-se aos nacionalistas espanhóis
para combater o governo republicano na Guerra Civil Espanhola. Em 1941 alguns voltaram a unir-
se aos espanhóis na criação da Divisão Azul. Estima-se que menos de dez destes homens tenham
retornado a Portugal ao fim da guerra. O nome "Viriato" faz referência ao guerreiro celta lusitano
que enfrentou a invasão romana na península ibérica.

Você também pode gostar