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Sangue e Neve
Ivan Almeida da Silva, o “Ivan Piro” (ivanpiro@zipmail.com.br).

NOTA: este conto não é totalmente fiel à História. O autor permitiu-se modificar alguns fatos,
principalmente no que diz respeito às datas, ao avanço alemão, ao comando russo e ao soldado Vassili.
Para maiores detalhes, consulte a referência bibliográfica no final deste documento.

– Este frio ainda vai matar a todos nós! – disse – Não, “nenhum passo pra trás”. – repetiu consigo
Corvonov, ao mesmo tempo em que esfregava as friamente Corvonov, enquanto preparava seu rifle.
mãos enluvadas, o ar saindo-lhe condensado da – Stalin não está aqui, camarada. Vamos pelo
boca seca. menos reagrupar com o resto da tropa para deliberamos a
– Isso se os malditos fascistas não o fizerem próxima operação. – respondeu Sergoff, largando
primeiro. – completou Sergoff, soturno. Suas palavras cuidadosamente o corpo de Krushnnien, já morto.
soaram abafadas por conta do pano que mantinha Corvonov apenas lançou-lhe um olhar de soslaio. Se
cobrindo-lhe toda a cabeça, com exceção dos olhos e não bastasse o frio e a fome, estava com raiva pelo fato
parte do nariz, a fim de conservar calor. do companheiro falar em comida que não tinham, além de
Ambos se encolhiam tremendo, um de costas para estranhar o fato de sua Divisão ter deixado passar
o outro, dentro de uma sala sem iluminação e semi- despercebidos os suprimentos inimigos.
destruída, cheia de escombros, mas, felizmente, ainda – Pegue-lhe as roupas – apontou para o cadáver – e
com cobertura. vista-as, se estiver com muito frio. Não esqueça da
No entanto, flocos de neve dançavam pelas munição. Apanhe suas coisas e me siga. Não há tempo
aberturas nas paredes feitas por cartuchos de ambos os para encontramos o pessoal. De resto, também temos
lados beligerantes e pela janela aberta (não havia mais alguns franco-atiradores lá fora. Vamos!
vidro). Ventava cruelmente lá fora naquele começo de Sergoff balançou negativamente a cabeça,
tarde. suspirando, e alcançou seu capacete, colocando-o com
Eles eram soldados do Exército Vermelho, membros cuidado. Depois de pegar um cachecol extra e mais um
da 13ª Divisão de Rifle de Guarda do 62º Exército, colete, além de alguns carregadores para os bolsos vazios
baseados em Stalingrado, uma cidade no sudeste da do cinto de couro gasto, tossiu e levantou-se para
U.R.S.S. às margens do rio Volga e alvo do 6º Exército acompanhá-lo.
alemão, cabendo aos soviéticos a defesa desesperada das Sentia uma canseira que insistentemente se
ruínas onde até mesmo os cães evitavam. recusava a abandoná-lo e quase não se importava mais
Corvonov ajeitou o gorro sobre a cabeça, com as eternas dores de cabeça, de barriga e das pernas.
aproximou-lhe o rifle com luneta e enfiou as mãos nos – Venha atrás de mim. – ordenou Corvonov,
bolsos do capote enquanto Sergoff apoiava-se em sua esgueirando-se na aresta da parede e perscrutando com
submetralhadora, com o capacete descansando-lhe do atenção a rua.
lado (ele realmente odiava utilizá-lo por muito tempo, O tempo castigava-o brutalmente; seu nariz quase
sempre reclamando que sua cabeça ia explodir de dentro não funcionava mais e os ferimentos mal curados de
pra fora, muito embora aquele pedaço de aço já o tivesse estilhaços de granada por vezes incomodavam-no. Mais
salvado algumas vezes). de uma vez infeccionara-se por causa deles, mas, seu
– Camaradas! maior medo era ter que amputar qualquer um de seus
Como que despertados pela voz e quase membros por gangrenarem de frio. Preferia morrer
instintivamente, os dois apontaram suas armas na direção congelado a isso. Por conta disso, enraivecia-se por ter
da entrada. Tiros e explosões eram ouvidos ao longe, num que deitar na neve.
concerto de morte comum na cidade. O som da guerra Corvonov era apenas um fazendeiro ordeiro,
não cessava nunca. humilde e inculto que nunca pegara numa arma, quando a
– Pelo amor de Deus! Camaradas! – e a figura guerra invadiu sua casa na forma de bombardeiros que
desesperada surgiu na porta, tropeçando em um dos lhe retiraram toda a família, o amor e os sonhos.
pedaços de concreto. Ela caiu desgraçadamente, sua arma Uma lágrima furtiva escorreu-lhe pelo rosto sofrido.
escapando-lhe da mão. Estava todo coberto de neve e Uma mão pousou-lhe no ombro.
sujo de sangue, fedendo como um mendigo. Todos eles – Estou com você. Deixe-me assumir a frente. –
fediam. sorriu o companheiro, um sorriso amarelo e torto
– Céus! Krushnnien! – espantou-se Sergoff, incrustado num rosto envelhecido e escuro de suor e
levantando-se com certa dificuldade para ajudá-lo. fumaça. – Não tenho os olhos tão treinados quanto você,
O soldado juntou forças para falar, entre pesadas mas posso dar conta do recado.
respirações, enquanto Corvonov olhava-o apreensivo, De fato, os olhos de Sergoff estavam acostumados
sabendo que aqueles eram os momentos finais dele, e a lerem livros e não avistarem inimigos. Ele era o orgulho
correu em direção à parede da entrada, deitando-se a fim da família, um desses raros seres que transcendiam o
de observar o exterior por um buraco. meio em que viviam. Siberiano de nascimento, filho de
–... Os alemães estão retomando este setor, casa operários de minas, trabalhou muito e venceu
por casa! preconceitos para entrar na Universidade de Moscou.
– Mas nós temos quase uma companhia inteira Nutria a intenção de ser escritor.
espalhada por esta região! – surpreendeu-se Sergoff. – O No entanto, quando houve o chamado à guerra, não
que aconteceu com nossos homens? E os malditos pôde escapar à convocação. Como conscrito, participou da
chucrutes, não estão tão famintos quanto nós? defesa da cidade, sendo posteriormente enviado à
– A Luftwaffe deu sorte e conseguiu enviá-los Stalingrado. Foi lá que conheceu o amigo, coisa rara em
alguns suprimentos. Agora eles vêm pra cá! Temos que tais tempos difíceis, ainda mais quando se podia perdê-los
fugir! Os fascistas estão sedentos por vingança! num piscar de olhos ou num movimento de gatilho.
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Corvonov gesticulou para que assim se fizesse. – Que faremos, senhor?


Não hesitou em responder imediatamente:
 – Vamos tomar-lhe as posições! Ao meu comando!
Preparados? Carga! – e correu em direção de onde a
Ondas de fumaça subiam ao céu ameaçador, severo dupla partiu, seguido pela tropa.
e cinzento cujas nuvens escondiam um Sol morto, Sergoff e Corvonov se entreolharam, talvez para se
quando Sergoff lançou-se, cauteloso, para fora e despedirem um do outro, e os acompanharam em meio ao
sua mente trabalhou rápido, de olhos entreabertos, fogo e agonia de corações e almas congeladas.
para mapear um perímetro. Nem se dava conta de
que fazia isso a todo momento. 
– Algum fascista? – perguntou, desconfiado e
apertando com certa ansiedade a coronha de sua arma. A estratégia do cabo era simples: um ataque frontal
– Não. – sussurrou. – Vamos. aos autores dos disparos que, certamente, não
– Espere. De onde Krushnnien veio? estavam longe dali. Quanto a isso, utilizavam táticas
– Não sei. O vento já fez a neve apagar suas básicas de avanço: lances curtos de buraco em
pegadas. buraco, de abrigo em abrigo, de ruína em ruína,
– Maldição! Mais cedo do que eu esperava... – sempre sob fogo inimigo.
parou por um momento, pensativo. Retornou: – Alguma À medida que avançavam perigosamente, mais
marca de sangue? soviéticos se juntavam a eles, surgidos das estruturas de
– Só pode estar brincando! Há sangue por toda metal retorcido e entulho.
parte! Um soldado ao lado de Corvonov teve a cabeça
Repentinamente, ouviu-se um assobio, seguido de explodida por um tiro de fuzil. Outro, o corpo estraçalhado
uma forte explosão que pôs abaixo restos de construções por um projétil de morteiro. Os mais sortudos morriam
algumas dezenas de metros deles, que também sem perceber ou sentir tanta dor. Outros, nem tanto,
escutaram gritos, rapidamente silenciados. como um combatente varado por um atirador de escol
Não havia tempo para mais conversa. Correram que lhe espalhou tripas sangrentas e ele morreu
desajeitadamente, tão rápido quanto suas pernas fracas, agonizando.
o terreno irregular e o forte vento que agitava suas – Vamos congelar até a morte!
roupas permitiam, à medida que mais explosões se faziam – Isto é um massacre!
ouvir, lançando longe pedras, metal e neve. – É suicídio!
Conseguiram se abrigar toscamente atrás dos Eram estas as frases que geralmente se ouvia dos
restos de um blindado inimigo. soviéticos na ofensiva.
– Morteiros! – gritou Corvonov, tentando ser ouvido Ao cabo de alguns minutos, a luta pendia a favor
pelo amigo. dos germânicos. Os russos estavam ficando sem munição
– Veja, são os nossos homens! – cutucou, e com pesadas baixas causadas, em sua maioria, por
apontando para o lado oposto ao perigo. Ele contou quase metralhadoras pesadas cujos cartuchos estraçalhavam
10, antes que estes também se protegessem como vários soldados quando os atingiam. Para os fascistas,
podiam. não havia diferença.
Um deles veio ter com eles e Sergoff notou-lhe a Corvonov esfregou as mãos e pegou seu rifle pela
insígnia de efreitor (cabo) na gola do casaco surrado. Ele bandoleira. Um tiro acertou-lhe bem perto e ele nem se
tinha uma gaze amarelada e manchada de sangue em um preocupou em desviar-se. Quase não tinha mais forças
dos olhos e o rosto maltratado de todo combatente, além para se mover mas, mesmo assim e com o som caótico da
de um casquete enterrado na cabeça e olhava batalha, conseguiu precisar de onde havia vindo o
freneticamente para os lados. disparo. Deixou-se escorregar pela neve, deitando-se e,
Encostado na viatura de combate e resmungando maquinalmente, preparou sua arma. Com a frieza de um
para si da temperatura do metal, Corvonov quase o deu caçador, ajeitou com esmero o grau de aumento de sua
por louco, mas preferiu guardar-lhe a opinião. No final das luneta, mirou-o e apertou o gatilho. O atirador inimigo
contas, todos eles eram insanos. caiu da janela dos restos do prédio. Ele suspirou aliviado.
– Cabo Pyotr. – apresentou-se rapidamente e, sem Sergoff sorriu-lhe um sorriso assassino.
esperar qualquer reposta, continuou: – Fomos vítimas de – Vamos, camaradas! Avante! Estamos chegando
um ataque-surpresa de obuses! Tivemos muitas baixas e perto! – gritou Pyotr. Levou a mão ao ouvido a fim de
fomos forçados a ceder nossa posição. saber, através dos estrondos, a direção do inimigo. – É
– São morteiros, senhor! – explicou Corvonov. – ali! – afirmou, apontando energicamente. Todos já
Agiu mal em fugir, cabo! Não sabe as ordens de Stalin de esboçavam os primeiros sinais de progressão, quando
que não devemos recuar? O senhor merecia um tiro! Corvonov interrompeu-os:
– Cale a boca, soldado! Você não estava lá! – – Esperem! Eu posso vê-los! Eu posso vê-los!
exasperou-se, apontando-lhe sua arma. De fato, através da lente de sua arma, ele
– Parem, camaradas! – interpôs-se Sergoff entre conseguiu distinguir, ao longe, um rastro de fumaça atrás
eles. – Pyotr, também somos alvos aqui, assim como do prédio onde havia atingido um inimigo há pouco, na
você. Também caímos nessa armadilha! direção diversa indicada por Pyotr.
– O quê? Há morteiros dos dois lados? – perguntou- – Avante, soldados! Pela União Soviética! Pela
se, um tanto quanto chocado, esquecendo-se de imediato nossa terra!
da escaramuça com Corvonov, arrastando-se pelos restos – Sigam-no!
do veículo para somente deparar-se com os estrondos Eles não se davam conta, mas estavam na ponta de
destruidores na direção contrária de onde havia vindo. O lança do ataque. No dia 11 de outubro de 1942, os
barulho era ensurdecedor e deixava-o desnorteado. alemães pressionavam pelo oeste e aquele combate era
Pyotr não podia se permitir divagar, embora apenas um engodo no objetivo de atrair as tropas
soubesse que estavam isolados de qualquer ajuda nessa soviéticas a se exporem. Mesmo os nazistas artilheiros
emboscada. Então veio a pergunta fatídica de um dos não sabiam que já estavam condenados.
soldados:
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Os russos alcançaram o prédio à frente dos – Bom trabalho, soldado. – disse Pyotr, tocando-lhe
morteiros. Teriam que tomá-lo. no ombro. Lançou um olhar curioso na paisagem desolada
Um soldado jogou uma granada de mão e esperou- e suspirou. Ele estava exausto e começava novamente a
a explodir antes de entrar descarregando uma rajada tremer, uma vez que a adrenalina do combate fazia-o
mesmo sem saber quem se encontrava lá dentro. Ele foi esquecer do tempo.
seguido por mais alguns e encontraram forte reação do – Muito bem, pessoal! Quero um posto de socorro!
inimigo, o qual fizera barricadas com mesas, restos de Peguem as armas, assumam posições de defesa e
mobília e entulho, numa peleja brutal em que até mesmo montem turnos de guarda em cima daqueles morteiros,
pás eram usadas. mas não fiquem próximos a eles e sim de tocaia. Não se
Quando Sergoff entrou de olhos arregalados de esqueçam dos atiradores!
frenesi, deparou-se com cenas horríveis. Alguns – E quanto aos morteiros do outro lado, senhor?
combatentes dos dois lados ainda agonizavam no chão, – perguntou Corvonov. – Eles podem se deslocar até nos
uns tremendo de convulsão, outros gemendo terem como alvos novamente.
dolorosamente. Franziu o sobrolho, na tentativa de – Negativo, soldado. Este prédio é valioso demais
manter o que lhe restava da sanidade e seguir em frente. para que o destruam, mas, já que se ofereceu, comandará
Ainda havia outros andares e podia ouvir os gritos, o uma patrulha para eliminá-los.
barulho dos tiros e do combate fechado.
Um disparo perdido acertou-o na coxa e ele caiu de 
joelhos, rosnando de dor. Não teve tempo de gritar: seu
coração acelerou-se quando um soldado inimigo apontou- Corvonov, Sergoff e mais três soldados não tiveram
lhe uma submetralhadora, praguejando rudemente. Não dificuldades em se esgueirarem entre ruas hostis
havia como reagir. até os morteiros, os quais tomaram-lhes com ligeira
Fechou os olhos. dificuldade e ao custo de duas baixas. Conseguiram
retornar com as peças e uns poucos projéteis.
 A noite caiu triste e a atmosfera era sempre
pesada. Os soldados dormiam encolhidos onde podiam
Corvonov era um atirador de elite, mas de um tipo durante três, talvez quatro horas por noite. Há tempos
diferente. Ele não havia sido treinado por nenhum não havia mais luz elétrica, somente iluminada por balas
outro de seu exército e sim pegado sua arma de um traçantes de ambos os lados.
cadáver, passando a utilizá-la com grande Alguns soldados mataram parcialmente a fome com
habilidade. Enquanto o Exército Vermelho a ração dos alemães, bebendo água dos cantis deles e,
geralmente utilizava equipes de dois atiradores, ele em casos extremos, do próprio gelo derretido lentamente
agia sozinho, movendo-se como uma sombra, um em fogueiras pequenas e escondidas para não atrair fogo
fantasma entre os escombros, e não recebia ordens inimigo.
do comando para agir em um local previamente Corvonov abriu os olhos enrugados e cansados e
determinado, camuflando-se à espera de alvos. Na fitou os morteiros. Não via ninguém lá fora. Ele sabia que
verdade, este mesmo comando não tinha os camaradas responsáveis pela vigília das peças
conhecimento de suas ações; caso contrário, sua escondiam-se em porões, restos de paredes e casamatas,
polícia secreta pegar-lhe-ia para adicioná-lo a uma prontos a responder qualquer ataque (os alemães
tropa especial desses homens. creditavam-nos a fama de invisíveis). E ele certamente
Naquele momento, ele podia simplesmente ficar viria.
deitado e aguardar que alguma cabeça imprudente O atirador também pensou na sorte que tiveram.
aparecesse em uma das janelas do prédio, mas preferiu Nem imaginava caso os alemães dirigissem aquelas armas
levantar-se e se juntar à onda de choque. para o prédio onde estavam.
Invadiu a entrada a tempo de se deparar com o “Somos tão poucos. Não sei se resistiremos a um
amigo e o alemão apontando-lhe a arma, na iminência de ataque deles.” ponderou consigo. “Talvez devêssemos
tirar-lhe a vida. Num movimento decidido, varou a cabeça destruí-las e avançar um pouco na terra-de-ninguém.
do nazista. Não, pare com isso. Vamos esperar um pouco os reforços.
Sergoff suspirou aliviado, deixando-se cair no chão. Já mandamos batedores atrás de nossas linhas e em
Mal conseguindo pronunciar palavra, sussurrou: breve retornarão com as boas novas, espero. Talvez
– Você salvou minha vida, camarada... tragam até mesmo um rádio.”
– Agradeça depois. – e andou até ele, erguendo-o. – Está tudo bem, camarada? – perguntou o cabo,
– Espere, estou machucado. rondando os homens para mantê-los alertas.
Corvonov abaixou-o com cuidado e agachou-se para – Quase, senhor. – e confidenciou-lhe seus
vê-lo o ferimento apontado com o olhar por ele. Sorriu. temores, ouvidos com atenção por ele. Ao final,
– É um homem de sorte. O tiro pegou-o de raspão. perguntou:
É só esfregar um pouco de gelo que ficará tudo bem. – Que horas são?
Sergoff apoiou-se nele para se levantar. O soldado limpou o visor de seu relógio, mas não
– Cuide-se: da próxima vez, posso não estar por aí conseguia vê-lo nas trevas.
para te salvar. – Acho que umas duas da madrugada.
– Pode deixar. – e mancou, saindo do prédio para – Duas horas... – repetiu soturnamente. – Os
obedecer ao conselho do amigo, enquanto este já subia reforços não chegarão a tempo do ataque que, creio, será
cautelosamente a escada. de manhã. O que você acha?
Mais alguns minutos sangrentos se passaram antes – Se a ofensiva será, de fato, com o romper da
que a construção fosse tomada e Corvonov gritou de aurora, devemos nos manter preparados. De qualquer
satisfação quando avistou os morteiros por uma das maneira, você já tem um plano?
aberturas. Abateu-os mesmo sem o auxílio da mira – Sim. Se os alemães chegarem perto,
telescópica. O barulho terminou e os ânimos se destruiremos os morteiros e resistiremos como pudermos.
amainaram. Afinal, esta região está sendo coberta por divisões de
infantaria deles. Os Panzers ficaram responsáveis pelas
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áreas norte e sul da cidade, então acho que a sorte pode – Devemos recuar!
virar a nosso favor. – Não! – retornou o cabo, mancando e com um
– Pode ser. No que diz respeito aos snipers, eles braço ferido pendendo-lhe ao lado. Não tinha mais a gaze
geralmente agem com o raiar do dia, mas ultimamente o no olho cego e desfigurado e o outro brilhava de forma
Sol quase nunca surge nos céus, sempre encoberto pelas estranha. – NÃO os deixem passar!
malditas nuvens de morte. Pelo jeito, não teremos Sergoff notou a determinação de Pyotr e acenou
proble... positivamente a cabeça doída e coberta de sangue.
Antes que pudesse terminar a frase, gritos e – Panzers! Saiam das janelas! Saiam! – berrou
disparos foram ouvidos lá fora, cortando o aparente desesperadamente um soldado.
silêncio e quietude noturnas. Em momentos, houve uma forte explosão,
– Droga, emboscada! Mais cedo que o planejado! – derrubando todo o andar que se encontravam, levantando
reclamou Pyotr, respondendo aos disparos pela janela e uma nuvem de poeira e caos.
gritou: – O maldito tanque realmente pôs tudo abaixo,
– Destruam os morteiros! não é mesmo? – gemeu Corvonov, entre os escombros e
A guarnição inteira foi acordada repentina e coberto de sangue e pó.
forçadamente com o som do combate e mesmo os que – A guerra ainda não acabou. – respondeu
tinham sono mais leve (porque nunca conseguiam Sergoff, erguendo-se com dificuldade e auxiliando o
descansar realmente) tomaram grande susto, alcançando amigo a fazê-lo.
atordoados suas armas. Tropeçando nos pedaços de concreto, os dois
Sergoff cochilava apoiado em uma metralhadora recuaram até uma trincheira a algumas dezenas de
pesada sobre uma janela quando a luta começou. metros longe do centro do combate, sendo recepcionados
Instintivamente pôs-se a afundar o dedo no gatilho, por atentos soldados que apenas esperavam uma ordem
movimentando-a selvagemente e abatendo tantos para agir enquanto respondiam a eventuais avanços
quantos se colocassem em seu campo de visão. O barulho inimigos.
da arma ensurdecia-o, enquanto os cartuchos voavam – Fogo de cobertura! – ordenou um deles ao
iluminando a escuridão. avistar Pyotr correndo na direção do buraco.
Corvonov matava sem parar, mas os alemães não Armas de fogo diversas assomaram-se cuspindo
paravam de avançar. balas e protegendo o graduado, que escorregou para
– Eles são muitos! dentro de onde estavam.
Através de ondas de ataque, o inimigo buscava – Eles têm tanques, droga! – reclamou, e não
gradativamente desgastá-los e, por bem ou por mal, pôde deixar de notar alguns soviéticos franzindo o cenho
retirá-los de lá. ou abaixando a cabeça, resignados. – Esta é nossa última
Foi com surpresa que o soldado russo conseguiu linha de defesa, camaradas! Precisamos de cargas
distinguir um nazista correndo até a construção, explosivas para dar um fim nesses blindados!
explosivos à mão. Matou-o sem misericórdia e o corpo – Temos algumas aqui, senhor! – apontou um
dele misturou-se aos vários em meio à neve e lama, sobre soldado de aspecto franzino, encolhido em si e tossindo
uma poça de sangue. fortemente.
Sua respiração tornava-se descompassada, além – Ótimo! Agora preciso de voluntários para sair
das batidas do coração. O medo começava a dominá-lo e desta vala e me ajudar a exterminá-los!
sua mira por vezes ameaçava falhar-lhe. Virou-se – Você tem a mim, senhor. – ofereceu-se
brevemente para o lado e, de soslaio, viu Sergoff receber Corvonov, sorrindo-lhe. – De qualquer maneira, se
um disparo que lançou-lhe longe o capacete e ele caiu ficarmos aqui, morreremos mesmo.
inconsciente. Por um segundo, seu coração parou de – Eu também estou com vocês. – disse Sergoff.
bater. – Muito bem, vamos os três então. Quanto
Sem se importar com o perigo à sua volta, menos de nós melhor será, pois maiores serão nossas
levantou-se e correu em direção do amigo, entre disparos chances de sucesso.
que atravessavam as paredes como se fosse papel. Após pegarem os explosivos, enfiando-os nos
Pensava no pior quando alcançou-o, encostando-o alforjes improvisados e bem presos ao corpo para que não
no colo. Hesitou por um instante antes de colocar sua caíssem e se municiarem levemente (apenas um
mão na cabeça dele, para conferir a situação. Apalpando- carregador para cada um), pularam do buraco e correram
a, sentiu a viscosidade do sangue, mas nada mais grave. desenfiadamente até uma ruína próxima, alcançando-a
Suspirou aliviado e sentiu-se mais leve. Graças ao esbaforidos.
capacete, o tiro desviara-se, acertando-o de raspão. – Hora da caça. – afirmou Corvonov pigarreando
Realmente, era muita sorte. e tentando fungar o nariz.
Abraçou-o fortemente. No entanto, não havia muito – Coloque-os na rodas de apoio do carro de
tempo para afetividades. Balançou-o para que acordasse combate. – explicou Pyotr, apontando para as cargas
rapidamente e ele o fez, mas não sem antes passar as explosivas.
mãos freneticamente pela cabeça para conferir se ainda – Pode deixar. – respondeu Sergoff, passando a
estava lá. Sem dizer palavra (porque Corvonov gesticulou língua sobre os lábios. – Vamos dar o inferno a eles!
para que não fizesse), alcançou uma submetralhadora MP Furtivamente, moveram-se com rapidez e
40 alemã próxima e, após conferir o carregador, auxiliado cuidado para não tropeçar nos entulhos do caminho,
pelo camarada, levantou-se. cobrindo-se nos restos de um muro que ficava atrás do
Esgueirou-se até uma abertura da parede, prédio derrubado, encobertos também com o manto das
observando o combate. Àquela altura, os soviéticos dos trevas. Podiam ouvir o rangido do metal e o roncar do
níveis inferiores, mais especificamente os que protegiam Panzer, acompanhados pelos gritos da infantaria alemã.
as peças de artilharia destruídas, já haviam perecido e os Eles não admitiriam, mas estavam com tanto medo que
fascistas fortificavam-se, ganhando terreno e avançando até prendiam a respiração, mexendo-se inquietos pelo
cada vez mais. obstáculo que se encontravam.
Consciente da situação, Sergoff gritou:
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O cabo gesticulou para que agissem presente, até o supremo comando de operações, numa
imediatamente. base às margens do rio Volga.
Sergoff arrastou-se como um rato pelas sombras À imagem do curso d´água, Corvonov lembrou-se
e grudou o explosivo no local indicado por ele. Apressou- de seu desembarque na cidade, em setembro de 1942,
se em se afastar o mais rápido possível para junto dos sob pesado fogo inimigo e até mesmo de caças, enquanto
camaradas. Dentro de alguns segundos, os nazistas se um sargento lia uma carta com mentiras e os homens
surpreenderam com a explosão do tanque, lançando morriam à sua volta. Viu muitos tombarem desde então.
metal e homens para o espaço. Corvonov observou alguns barcos chegando
– Muito bom! Agora vamos voltar pra trincheira! lentamente. Soldados de todas as partes da União
– comentou Pyotr, entusiasmado, a Corvonov, que não Soviética haviam rumado até Stalingrado desde o começo
tirava os olhos de Sergoff. da ofensiva, a fim de defendê-la contra as forças nazistas.
– Cubra-o, cabo! – gritou, já arremessando uma O movimento de tropas nunca cessava.
granada a fim de deter o inimigo que tentava alcançá-lo. Para os dois, a base era a visão do paraíso, um
Pyotr lançou algumas rajadas até Sergoff chegar, contraste grandíssimo com o que haviam vivenciado no
encostando-se na coberta e levantando a cabeça ao alto, campo de batalha até o momento: soldados aqueciam as
talvez na esperança de ajuda divina. mãos em fogueiras feitas em tambores; outros até
– Temos que sair deste obstáculo! Eles vão nos mesmo faziam as barbas em locais improvisados para tal.
pegar! – disse desesperadamente Corvonov. Havia ainda um posto de socorro, lugar triste que poucos
– Precisamos de uma isca! – disse Pyotr. – Eu gostavam de entrar ou olhar, mas cujos gritos, lamentos e
ficarei. – e trocou o carregador de sua arma, preparando- gemidos não deixavam esquecê-lo. Ao ar livre, caixotes
se para o pior. Escutava os nazistas se aproximarem cada de munição e suprimentos. Havia até mesmo um dentista
vez mais e a tensão aumentava. vestido com seu avental ensangüentado e munido de um
– Não. Eu fico. – afirmou decididamente Sergoff. alicate, arrancando um dente de um soldado e alheio aos
– Não tente ser um herói, camarada! – irritou-se gritos dele.
Corvonov, levantando-o pelo colarinho da farda. – O cabo Corvonov divisou ao longe um aglomerado sob uma
deu uma ordem! cabana rústica fortemente vigiada por metralhadoras
– Pro inferno com as ordens! Deixem-me! Eu já pesadas sobre sacos de areia.
estou ferido mesmo. – É ali que vocês devem ir. – explicou o
Foi então que Corvonov viu as pernas do soldado, mensageiro, apontando-a com a baioneta presa ao fuzil. –
cobertas de sangue. Ele recebera alguns tiros quando da Alguém quer vê-los. – e continuou a andar sem se
carreira até eles. Desta vez, não havia como ajudá-lo. despedir ou virar para trás.
– Eu vou carregá-lo! – gritou Corvonov, com – Que será de nós agora? – perguntou-se Pyotr. –
lágrimas congeladas nos olhos. Preciso de cuidados para meu braço. Nem sei se voltarei a
– Vá, maldição! – praguejou, desvencilhando-se utilizá-lo... – lamentou, com certa tristeza na voz.
dos braços do amigo. – Não fale isso, cabo. Pensamento positivo,
– Não! pensamento positivo... – disse e sorriu-lhe tortamente,
Neste momento, sentiu um puxão pela manga. dando-lhe alguns tapinhas nas costas.
Era Pyotr quem o arrastava involuntariamente. Puseram-se a andar até o local. Uma sentinela com
– Ele já está condenado. Vamos. olhar desconfiado barrou-os, mas após as explicações
Corvonov trocou um derradeiro olhar com o foram liberados.
amigo, cujas últimas palavras foram: Entraram um tanto apreensivos. O ruído de
– Escreva um livro por mim. interferência do rádio e vozes agressivas tomava conta
Mesmo que não soubesse ler e escrever, o daquela sala, cuja mesa grande abrigava mapas da cidade
soldado apenas acenou positivamente e acompanhou o totalmente riscados por todos os lados. Circundando-a,
cabo no retorno à trincheira. homens de sobretudo e estrelas nos ombros. Um deles
Sergoff respirou fundo e resistiu furiosamente o veio conversar com eles:
quanto pôde, até ser varado por uma rajada e explodido – Então, são vocês os soldados.
por uma granada. – Cabo Pyotr e soldado Corvonov. – apresentaram-
se marcialmente com continência.
 – Veio até mim a notícia do aparecimento de
Panzers numa área em que não suspeitávamos que
Os combatentes da trincheira conseguiram resistir estivessem e de como vocês os destruíram.
até o final da madrugada, quando o mensageiro Acompanhem-me.
chegou com os reforços. O oficial superior caminhou até a mesa, apontando
Quando a rendição veio, depararam-se com os mapas.
sombras de homens extremamente exaustos. Alguns mal – Vejam: o último enfrentamento que tiveram
conseguiam se levantar para saldar os camaradas. contra os fascistas ocorreu em 11 de outubro. Até então,
Assim que o leitenant (tenente) Ivan, o homem as colunas alemãs haviam chegado aos subúrbios da
sobre o comando do novo destacamento que tinha por cidade. Como estavam sem rádio, somente tomamos
missão manter a linha que haviam conquistado a duras notícia disso dia 12, através da tropa do tenente Ivan,
penas, tomou conhecimento da ação especial de Pyotr e alcançada pelo seu mensageiro.
Corvonov, imediatamente emitiu ordens para levá-los ao – É isto mesmo, senhor.
comando da defesa, com recomendações de medalhas. O – Silêncio, soldado!
oficial de porte marcial e quepe encardido e amassado Corvonov engoliu em seco.
sobre a cabeça de cabelos e olhos castanhos e barba rala – O tenente recomendou-lhes para serem
argumentou que o cabo também estava muito ferido. agraciados com medalhas, mas, enquanto vocês
Dispensou-os prestando-lhes uma continência retornavam até aqui num passeio turístico, o próprio
respeitosa e eles acompanharam os mensageiros que inimigo avançou e hoje, dia 14 de outubro, eles controlam
faziam um fluxo constante entre os postos de comando e quase a cidade inteira! – gritou, batendo na mesa e
qualquer lugar em que tropas soviéticas se faziam
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despertando atenção de alguns oficiais que rapidamente A primeira coisa que faziam era enfileirá-los e,
voltaram-se ao que estavam fazendo. assim, distribuir o material. No entanto, a falta quase
– Eu não sabia, senhor! crônica dele fazia com que muitos recebessem apenas um
– Claro que não! O mensageiro viajou muito rápido, carregador e nenhuma arma (a idéia era pegar dos
não é mesmo? – ironizou. – E ainda querem camaradas quando estes morressem).
condecorações! Muitos ali nunca haviam pegado numa arma de
– Enquanto temos esta conversa, os alemães estão fogo e, ao primeiro contato com as peças duras de
a apenas alguns quilômetros daqui! Podemos ser mortos madeira e ferro, tremiam apreensivos. Incentivados pelos
por qualquer franco atirador! Assim sendo, não vou dar- gritos rudes dos sargentos, logo foram divididos em
lhes condecoração nenhuma! grupos e enviados ao campo de batalha.
Durante toda a bronca, a dupla manteve-se imóvel, Corvonov não se surpreendeu ao receber o
sem nem mesmo piscar. Porém, sentiram um certo pesar comando de um destes grupos, mas não sem antes enfiar
pois, certamente, a esta altura o tenente já não se um carregador no bolso. Pelo jeito, não conseguiria
encontrava mais neste mundo. comida, tampouco descansar, pois levara o dia e parte da
– Serzhant (sargento) Pyotr... – disse com tarde ajudando a intendência.
desprezo, olhando indiferente a insígnia dele e coçando a Reuniu seus homens (e uma mulher, como pôde
barba grisalha. – Está dispensado. notar momentos depois) em uma preleção improvisada,
– Sim, senhor. – disse subserviente, dando meia pedindo-lhes para que fizessem um círculo em volta dele
volta para partir, escondendo até mesmo sua dúvida e explicou sem cerimônia, após coçar a barba rala:
sobre o motivo da promoção. – Eu sou o cabo Corvonov, 13ª de Rifle. Bem-
O general retirou bruscamente a luva de couro que vindos a Stalingrado. Alguém tem alguma coisa a dizer
vestia, sacou uma pistola e varou a cabeça do sargento, antes de partirmos?
que caiu hirto. – Senhor, eu não recebi uma arma.
Corvonov prendeu a respiração de raiva. Podia O cabo lançou um olhar indiferente ao recruta de
matá-lo a coronhadas, mas não se mexeu. E, acima de aparência jovem e perguntou:
tudo, odiava-o por saber que aquilo tudo se devia a – Qual o seu nome, garoto?
apenas um capricho dele. – Vassili Grigorievitch Zaitsev, senhor. Meu avô
– Seu amigo foi executado por traição, efreitor caçava lobos nos montes Urais e me ensinou a atirar
(cabo) Corvonov. desde os cinco anos. Eu era pastor de ovelhas lá.
– Então mate-me a mim também, senhor! – – Vassili Zaitsev... – repetiu um dos soldados,
afirmou, desafiando-o. um homem com alguns quilos a mais (haviam-lhe dado
– Eu sou o general Chuikov. Não me diga o que um número pequeno de casaco, que lhe ficara curto) de
fazer, cabo. – respondeu friamente, cofiando o bigode. – nome Kletush. Soltou uma risada sarcástica: – Temos um
Está dispensado. Junte-se a um grupo e continue na coelhinho aqui, senhor! – afirmou, fazendo alusão ao
guerra. Ainda preciso de atiradores de elite. Procure algo nome Zaitsev que, em russo, significa lebre.
pra fazer e caia fora. – Seu nome de guerra será Vassili, garoto. –
Só agora o cabo deu-se conta de que segurava seu disse o cabo. No fundo, não se importava nem um pouco
rifle com luneta. com os comentários do soldado.
Prestou-lhe uma continência torta e saiu pisando – Assim seja, meu comandante. – respondeu
forte, pensando em como aquele general era louco. satisfeito.
– Tirem este lixo daqui! – reclamou, apontando – Cabo, e a arma dele? – perguntou ainda outro
para o cadáver de Pyotr. soldado, uma mulher que tremia de frio. Esta nova leva
recebera apenas uma farda de combate básica e era
 quase certo que muitos deles morreriam de frio antes de
encontrar as tropas nazistas. Seu nome era Ana, uma
Para Corvonov, não restava mais lágrimas a loira de belo rosto vermelho e olhos azuis.
prantear a morte do amigo. Prometeu a si que não – Se quiser, dê-lhe seu fuzil. – disse friamente e,
choraria por mais ninguém. Esperou ainda que sem esperar qualquer outro comentário, continuou: –
soldados arrastassem o cadáver de Pyotr para Muito bem, camaradas. Mantenham-se alertas e afiados e
pegar-lhe a jaqueta com a insígnia, vestindo-a tentem não morrer de frio. Sempre revistem os cadáveres
insensivelmente. – disse esta parte olhando de soslaio para Vassili – e
Deixou sua arma descansar às costas presa por sigam minhas ordens. E lembrem-se: “nossa causa é
uma bandoleira ao corpo e, de mãos nos bolsos, pôs-se a justa. A vitória será nossa.”
caminhar tranqüilamente pela base.
Tentaria arranjar alguma ração e descansar um 
pouco as pernas, talvez conseguisse até um ou dois
carregadores para seu rifle. Teria que fazê-lo o mais breve Sem demora, foram levados a ferrovia e
possível, pois a qualquer momento podia ser-lhe ordenado embarcaram tão rápida e ordenadamente quanto
que se juntasse a algum grupo de combate. podiam em vagões de ferro e madeira, totalmente
O lugar mais fácil em que poderia conseguir o que escuros e superlotados, não muito diferentes dos
queria estava nas caixas de suprimentos perto do rio. que transportavam os condenados aos campos de
Aproximou-se dos caixotes, empilhados concentração. Enquanto o trem rangia de frio,
cuidadosamente e cobertos de neve. A fim de não furtar, sacudindo sobre os trilhos enferrujados até o
apresentou-se a um suboficial responsável por eles e lhe caminho da morte, Corvonov mantinha-se sentado,
foi ordenado que ajudasse na distribuição de fuzis e fechado em si sombriamente, nutrindo pensamentos
munição aos recrutas que estavam para chegar se amargos. Na verdade, o cheiro era horrível lá
quisesse conseguir algo. dentro. O vagão cheirava a medo.
Corvonov juntou-se a outros praças que – Esta não é uma blitzkrieg (guerra-relâmpago),
aguardavam os barcos com tropas, numa leva de algumas mas sim uma rattenkrieg! (guerra dos ratos) – afirmou
dezenas de barcos com umas centenas de combatentes. jocosamente um veterano.
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Corvonov ouviu a piada e não deixou de rir. Corvonov quis matá-lo ali mesmo, mas tudo que
Afinal, aquela era realmente uma guerra suja de ratos. Ele pôde fazer foi apenas juntar forças e rolar até a
já havia enfrentado todo tipo de emboscadas: em cada “escavação” do terreno, acompanhado por seus homens.
quarteirão por que já passara, minas, armas antitanque Pouco a pouco, conseguiam sobrepujar o inimigo.
sobre escombros, franco-atiradores em janelas de À medida que a fração do cabo respondia ao ataque
prédios, sem contar que o combate era, na maioria das alemão lançando fogo de apoio ao sargento, este
vezes, rápido, mortal e muitas vezes travado com facas e avançava com um esquadrão, a fim de tomar as posições
pás entre pequenos grupos de inimigos, numa luta suja e nazistas.
feroz. Eles já estavam perto do prédio central da
Aproveitou ainda a melhora repentina de humor estação, combatendo aguerridamente em meio às linhas
para aprender o nome de seus comandados. de trem, cujos vagões serviam-lhes de proteção e palco
Naquela noite eles desembarcaram para armadilhas de toda sorte.
precariamente enquanto o vagão à frente explodia, Na época da segunda guerra, o exército vermelho
queimando todos em seu interior. Corvonov quase não se era um dos mais atrasados. Seu enfoque estava pura e
importava mais com os gritos de agonia. Quase, porque simplesmente na maioria numérica e utilizavam táticas
eles enchiam seus pesadelos toda vez que fechava os básicas um tanto quanto obsoletas, como ataques em
olhos. Toda vez. “Na guerra, não há homens sem cargas e avanços de choques. Seus conscritos, se é que
ferimentos.” podiam ser chamados assim, recebiam um treinamento
Os soviéticos foram também alvejados por muito variado, dependendo do local onde fossem
metralhadoras pesadas, sofrendo baixas terríveis. recrutados. Assim, enquanto alguns realmente
Corvonov levou alguns tiros de raspão e tudo o que pôde adestravam-se para o combate em quartéis, outros o
fazer foi cair, juntamente com o resto de seu grupo de faziam no próprio campo de batalha, o treinamento
combate, enquanto os outros morriam com a recepção máximo.
agressiva, inclusive o oficial e alguns graduados Os soviéticos que sobreviviam acabavam por
responsáveis por liderar aquela fração de tropa. adquirir experiência empiricamente no combate.
Corvonov sentia o corpo arder, mesmo com a No entanto, havia algo de interessante na
adrenalina subindo-lhe o sangue e o anestesiando. Seus estratégia soviética. Geralmente fazia-se um rodízio entre
olhos se arregalaram e a margem em volta deles tropas experientes e inexperientes na frente de combate,
encovava-se ante a perspectiva do terror da morte para que estas se acostumassem com a guerra e no
iminente. Ele não tinha medo de morrer, mas sim da intuito de confundir o inimigo.
maneira pela qual ela aconteceria. Tática impossível de se utilizar em Stalingrado.
Arrastou-se até uma vala próxima atrás de um Para aqueles que desembarcavam na cidade, não havia
compartimento de trem capotado e afundado na neve, retorno.
seguido por sobreviventes que ainda tinham forças para Ali, os conceitos se modificavam. Se um grupo de
se deslocarem. Os projéteis cortavam o ar. combate padrão de infantaria russa consistia em uns nove
– Vamos retribuir os cumprimentos, camaradas! homens, sendo um ou dois com metralhadoras e um
– afirmou ensandecidamente um soldado e Corvonov pelotão incluía quatro grupos de infantaria, talvez dois
instintivamente voltou o olhar para os ombros dele, snipers seguindo-lhes aquartelamento, naquela época
reconhecendo as barretas de sargento costuradas e tudo mudava. As tropas e funções se misturavam na
desbotadas. O graduado agarrou-o forte e energicamente guerra urbana e lançava-se mão de todas as armas
e ordenou com perseverança: possíveis. Não era raro uma companhia transformar-se
– Cabo, pegue alguns homens, siga pela em apenas alguns corajosos homens.
trincheira e acabe com os malditos nazistas! Assim que os Não era de se estranhar também que muitos
pressionarem, avançarei com outro grupo! entrassem em estado de choque, traumatizados,
Corvonov guardou-se os resmungos ao fitar onde catatônicos. Com eles, não foi diferente.
devia ficar. Mal dava para manter-se deitado, quanto mais Na ofensiva da ferrovia, enquanto Corvonov,
se proteger ali. atordoado de dor, observava camaradas caírem perante o
– Ana, Kletush, Vassili, sigam-me! inimigo, alguns até mesmo cometendo suicídio (sempre
– Kletush morreu, senhor! – respondeu Ana, com que presenciava os incontáveis horrores da guerra, fazia
o cabelo totalmente desgrenhado, deitada na neve e se um esforço imenso a fim de esquecê-los e, no fim,
encolhendo instintivamente de medo a cada disparo. tornava-se um homem mais frio, como se colocasse uma
Largara a arma e o casquete lhe escapara há tempos. máscara insensível no rosto. Uma máscara de espinhos.),
Respirava descontroladamente. percebia que aquela era uma luta singular, daquelas que
– Gordo desgraçado! Mais essa agora... – representavam viradas no contexto de uma batalha.
reclamou consigo. – Qualquer um então, droga! – berrou, Quase sem perceber, correu devidamente
quase perdendo o controle. coberto até a entrada do prédio central da estação,
Uma explosão repentina de granada lançou enquanto outros camaradas combatiam lá dentro.
alguns estilhaços na direção deles, ferindo alguns, Levantou a arma por puro reflexo, arregalou os olhos e
inclusive o cabo. As farpas de metal afundaram na pele, entrou.
atravessando facilmente os farrapos de farda. Corvonov Ao ouvir o estampido de um tiro que lhe passou
curvava-se da dor excruciante, esforçando-se em segurar muito próximo, jogou-se no chão de entulho, pouco se
os próprios gritos. Sentia-se o mais desgraçado dos importando com os próprios ferimentos. Ao notar que o
homens. disparo havia vindo de um dos diversos buracos na
– Vamos, cabo! Não tenho a noite toda! – disse o parede, não pensou duas vezes: a coronhadas selvagens,
sargento, com um sorriso sinistro no rosto de traços abriu mais um rombo, enfiou seu rifle e pôs-se a apertar
fortes. Ele era careca e robusto. Enfim, um combatente freneticamente o gatilho, (ele sabia que o inimigo estava
vibrador, termo utilizado aos homens que, grosso modo, do outro lado), rejubilando-se com os gritos de morte
gostavam do militarismo, constituindo em bons soldados alemães.
em época de guerra.
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Naquele momento, estava possuído por um forte joelhos e a cabeça sob um quepe. Assim que subiu o
instinto de violência. A peleja era tão brutal que somente último degrau, agachou-se a fim de evitar os tiros
um milagre podia salvá-lo. inimigos. Vendo que o sargento não o acompanhava,
Ao custo de muito sangue e sofrimento, gesticulou para que o fizesse. Ele obedeceu, não sem
ganhavam posições e, entre um tiro e outro, Corvonov antes fitá-lo com uma ponta de desprezo.
pegou-se pensando por que os fascistas simplesmente – Sou o tenente Vlachko. – apresentou-se,
não se rendiam? Afinal, era quase certo que muitos deles estendendo-lhe a mão.
nunca mais veriam sua pátria, tal a distância que os – Sargento Yuri. – respondeu-lhe apenas com
separava. Além disso, sabia que era uma luta pessoal continência. – Não há tempo para apresentações. Estamos
entre Hitler e Stalin, este não medindo esforços humanos. no meio do combate, senhor.
Ele enviaria quantas tropas fossem necessárias, de uma – Por acaso sou cego, sargento? – rosnou. –
maneira ou de outra, até a vitória final. Vamos, situação do local.
De qualquer jeito, ao cabo só cabia a – Tomamos esta construção e estamos detendo o
preocupação pela sobrevivência pura e simples, a síntese ataque. O inimigo está em vias de recuar, mas resistindo
da guerra. bravamente. Temos pesadas baixas e precisamos de
Só terminou o frenesi assassino quando o munição.
cartucho acabou. Encostou-se na parede decadente de – Utilizem as armas deles. Não haverá
tijolos para trocá-lo, retirando-o do bolso e o batendo na abastecimentos de qualquer tipo. Matem com qualquer
cabeça antes de enfiá-lo na arma. Passou a língua sobre a coisa que estiverem à mão.
boca antes de continuar. Através do buraco que abriu, Alguns soldados não conseguiram segurar um
observou rapidamente os cadáveres para se certificar de triste suspiro.
que realmente estavam mortos. – Nós já estamos utilizando o armamento
Quem observasse aquele combatente sob o caos, inimigo, senhor!
o rosto endurecido pelo sofrimento que ora se contorcia Foi então que o tenente notou-os segurando
em espasmos de ódio e fúria, não imaginava que o submetralhadoras, metralhadoras, rifles e fuzis alemães.
guerreiro Corvonov, atirador habilíssimo, havia sido – Temos algum rádio? – gritou o tenente para
forjado nas estepes da região centro-oeste, onde plantava baixo.
batatas com seu braço forte. A resposta veio sofrida:
Apesar de toda a dureza da guerra, recusava-se – Negativo! A linha foi cortada!
a se entregar à morte quase certa. A ironia era que o “Pra variar...” pensou Corvonov, debruçado com
único lugar que realmente tinha para retornar era o seu rifle sobre uma janela.
túmulo, a terra nua e crua. E não, não haveria flores; nem – Muito bem, vamos ver o que fazer...
se lembrava da última vez que vira uma. – Ataque inimigo! – ouviu-se de fora.
– Vamos, camaradas! Atacar! – vociferou com – Decida-se rápido, senhor! – pressionou o
violência pra incentivar os soldados. – Nós não vamos sargento, correndo para observar o exterior. Uma nova
perder esta posição! leva de nazistas avançava contra o posto, a fim de
Realmente, os soviéticos não podiam se dar ao novamente enfraquecê-los.
luxo de perdê-la, pois ela representava um ponto-chave – Ahn... Coloque grupos em pontos-chave para
para eles. De lá, havia toda a linha ferroviária que, não defesa!
obstante todos os perigos do percurso, permitia um – O que acha que andei fazendo desde que tomei
escoamento rápido das tropas, alargando a frente de esta droga? Maldição, você merecia morrer, filho da mãe!
operações na defesa contra o inimigo. O ataque alemão – protestou, chutando nervoso um pedaço de entulho.
àquele lugar era algo perigosíssimo, levando-os mais uma Tomado de um repentino acesso de fúria pelo
vez a um passo da derrota total. orgulho ferido, ergueu sua pistola para matá-lo, mas, no
Para piorar a situação, Stalin havia lhes ordenado último instante, foi impedido por Corvonov, que deu-lhe
uma absoluta proibição de recuar. Qualquer um que o um encontrão, derrubando o oficial que bateu
fizesse era executado sumariamente como traidor. “Não violentamente a cabeça, deixando-o inconsciente.
há nada além do Volga”, este era o lema dos que lá Os soviéticos dividiam sua atenção entre a cena
estavam. que se passara e o perigo iminente.
Corvonov ouviu os camaradas tomarem o andar – Não há nada para se ver! Continuem vigiando!
superior antes de se preparar para partir entre hesitante e – berrou Yuri, após se recompor. Andou até o tenente,
interiormente contente. Subiu atento os degraus que o conferindo se ainda estava vivo. Levantou-lhe levemente
separavam do posto de observação e, ao chegar em cima, a cabeça e depois largou-a no chão.
correu para uma das janelas a fim de cobrir os soviéticos – Maldito aristocrata, eu mijo em cima de você.
que vinham reforçar-lhes a posição conquistada. Poderia matá-lo antes que pensasse em sacar qualquer
Encontrou o sargento que lhe havia dado a coisa pra cima de mim! – desabafou e cuspiu na cara
ordem de se entrincheirar coordenando os movimentos de dele.
defesa e intimamente desejou-o que estivesse morto. Estendeu uma mão para o cabo: – Vamos,
O graduado olhou-lhe rapidamente. levante-se. Isso... Qual o seu nome?
– Ainda está vivo. Bom pra você. – e ajeitou o – Corvonov, senhor.
casquete na cabeça. Tornou a berrar: – Vamos, pessoal! A – Corvonov... Muito bem, Corvonov. Termine o
guerra ainda não acabou! Fiquem atentos até algum que começou. Mate-o.
oficial chegar! – O quê? Só pode estar brincando.
Enquanto ele falava, disparos passavam-lhe O rosto sério do sargento dissipou qualquer
perto, mas ele não se abaixava. Os homens notaram-lhe a dúvida que tivesse. Yuri agachou-se, pegou a pistola do
coragem, a qual os inspirou. tenente e ofereceu-a a ele.
– Camarada Oficial chegando! Corvonov afastou-a decididamente, balançando a
Um homem surgiu na sala. Tinha bigode espesso, cabeça.
estava coberto por um pesado casaco que lhe caía aos
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– Não, senhor! Está louco? Agora mesmo algum


desses soldados pode ser da polícia secreta! – Kapitan (capitão) Adam! Kapitan!
– Apenas faça-o, cabo! Um homem de compleição física avantajada,
– Não! vestido com uma jaqueta de campo escurecida de sujeira
Yuri puxou o cão da arma e a apontou para e um capacete, olhou através de seus óculos de lentes
Corvonov. redondas, rachadas e quase sempre embaçadas para o
– Eu não vou repetir a ordem. soldado que o chamara. Correu até ele de
– Os alemães estão avançando! – ouviu-se submetralhadora à mão.
desesperadamente. – Parece que há mais alguém vivo, senhor.
A tal altura o combate intensificara-se e os – Deus, três dias depois do bombardeio? Diga-me
nazistas estavam determinados a não parar de atacar. onde, soldado.
– Qual o seu problema? – perguntou Corvonov. – Ali, senhor. – e apontou para os escombros do
– Se não matá-lo, eu o matarei! – respondeu, que antes era o prédio central da estação. – Ouvimos
com um brilho insano nos olhos. sons debaixo dele.
– Se você matá-lo, sou eu quem vai acabar com – Então vamos conferir. – disse, retirando sua pá
você! de campanha do cinto. – Ajudem-me com aquilo ali!
O impasse entre eles foi quebrado com um Corvonov tivera sorte mais uma vez. Quando da
repentino tremor de terra que foi gradativamente queda, seu rifle ficara preso entre duas pedras, impedindo
aumentando de intensidade. Num primeiro momento, os que uma terceira maior lhe caísse. Entre ficar apenas com
soviéticos não sabiam o que era, mas, olhando pra cima, o rosto e algumas partes do corpo queimadas e morrer,
logo descobriram. preferia a primeira opção.
– Bombardeiros! Quando a fraca luz do dia penetrou por um
Mesmo com a noite escura, os que se arriscaram buraco tímido de uma pedra retirada pelo capitão,
a olharem pelas janelas e pelos buracos do teto renovando um pouco o ar viciado e fedorento de fezes, o
conseguiram avistar as sombras de morte sobre suas cabo mal tinha forças para lançar um olhar de
cabeças, coalhando os céus, tal a quantidade assustadora. reconhecimento ao seu salvador que se dedicava com
Por um momento, um silêncio tenso reinou, num ardor a retirá-lo de lá.
prenúncio macabro. Mesmo assim, conseguiu vê-lo de relance,
Corvonov engoliu em seco: esforçando-se com a pá e machucando as mãos. Viu em
– Vamos morrer. apenas um dos ombros as estrelas de seu posto (a outra
– Protejam-se! – gritou o sargento, agarrando o platina estava totalmente esfarrapada) e, assim que havia
cabo rudemente pelo braço e o jogando no chão. uma abertura maior, a mão amiga alcançou-o.
Apesar de tudo, Corvonov admirou a obstinação Sob olhos de manchas arroxeadas e olheiras
do militar em resistir. Ou talvez fosse apenas o instinto de fundas de velhice precoce, rebeldes cabelos ruivos e barba
sobrevivência. por fazer (e mal feita), havia um quê de compaixão e
De qualquer maneira, aprendera que um soldado bondade naquele oficial que Corvonov não sabia dizer.
devia agir de cabeça fria e coração quente. Só esperava Os soldados o retiraram com cuidado da cova e o
sobreviver para praticá-lo o conceito. deitaram no chão, prestando-lhe socorro como podiam,
Mas seu coração não estava quente e sim jogando-lhe a preciosa água de seus cantis a fim de aliviar
congelado. Mais do que isso: angustiado. Naquele um pouco as queimaduras no rosto. Eles não deixaram de
momento, Corvonov realmente sentia medo. Encolheu-se se surpreender com a resistência do rifle do cabo; se
miseravelmente perto de uma mesa e, pela primeira vez demorassem mais um pouco, a arma se quebraria e o
em muito tempo, começou a rezar. graduado morreria esmagado de forma horrível.
Não demorou muito para que as primeiras Adam agachou-se, retirando os óculos para
bombas fossem despejadas, aumentando a confusão e limpar as lentes e, entre suspiros de cansaço, disse para o
causando pânico no campo de batalha. As labaredas cabo:
gigantescas incineravam tudo que tocavam, lambendo as – Parece que você renasceu, camarada.
trevas. – Corvonov, senhor. Meu nome é Corvonov.
Os tremores sacudiam os homens nas trincheiras Devo-lhe a vida. – agradeceu, esforçando-se para
e abrigos, fazendo-os tropeçar e cair uns nos outros como levantar-se a fim cumprimentá-lo.
num convés de navio durante a tempestade. As explosões – Não! Fique deitado, soldado. É uma ordem. –
elevavam o calor a um nível infernal. colocou os óculos.
Num primeiro momento, os soviéticos chegaram – Capitão, por quanto tempo fiquei nesse buraco,
a duvidar de que lado pertencia a onda destruidora, uma o que aconteceu nesse tempo todo?
vez que ela arrasava os dois exércitos. Mas logo ficou O rosto do oficial assumiu um tom sério.
claro que pertencia aos nazistas, visto que continuou – Os alemães lançaram-nos um bombardeio
avançando para o leste. pesado há três dias atrás. Você viu, você estava lá. Eles
Os homens sob o comando de Yuri não acabaram com nossa base do Volga e estamos espalhados
precisaram esperar ordens para abandonar a construção. por todos os lados em busca de sobreviventes nas ruínas.
Corvonov suava horrores enquanto esperava todos Estamos sem comando. Grupos esparsos de soldados
descerem, passando a mão sobre o rosto para limpá-lo e, vagam a esmo pela cidade, combatendo como podem.
quando finalmente o último deixou o prédio (ninguém fez Somos um desses grupos.
menção de ajudar o tenente), lançou-se para fora. Corvonov não sabia o que falar. Apenas olhou o
Mas, no último instante, uma bomba caiu, céu cinzento de fumaça. Mesmo após tanto tempo, seu
transformando o lugar em apenas um amontoado corpo ainda doía.
retorcido de entulho sob chamas purpúreas e fumaça, – Senhor, ainda estou em condições de luta. Só
soterrando o cabo, sua tumba selada em meio a um preciso de uma arma.
estrondo ensurdecedor.


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– Mesmo se não estivesse, cabo, eu lhe daria Referência Bibliográfica


uma. Aliás, por falar nisso, seu rifle te salvou, não é
mesmo? ONÇA, Fabiano. Cerco a Stalingrado. Aventuras na
Corvonov riu prazerosamente e depois curvou-se História. São Paulo: Abril, edição extra, p. 42-45,
num acesso repentino de tosse. 2.jun.2004.
– Eu não tenho uma arma com mira telescópica,
mas conheço alguém que tem. Vocês podem dividi-a. –
dirigiu-se a um soldado próximo. – Traga-me aquele
garoto prodígio, o Zaitsev.
Ao ouvir esse nome, Corvonov segurou-se. Tinha
a impressão de que já o ouvira antes.
Momentos depois, um jovem apresentava-se ao
capitão. Era Vassili!
O cabo não segurou sua alegria quando viu o
garoto vivo, embora intimamente também agradecesse o
fato dele ter um rifle com luneta.
– Então vocês se conhecem. – surpreendeu-se o
capitão.
– Este garoto era do meu grupo de combate,
senhor. Teve seu batismo de fogo aqui mesmo.
– Há três dias ele era apenas um recruta, hoje
tem o respeito de seus camaradas de tropa. – disse o
capitão.
– Desculpe, senhor, eu andei meio isolado do
mundo durante esse tempo. – brincou o cabo.
– Corvonov, eu já tenho 20 mortos na minha
contagem!
– Então você se tornou um atirador de elite...
Bom, bom pra você, garoto. – levantou-se parcialmente,
antes que pudessem ajudá-lo. – Capitão, para mim será
uma honra e um prazer acompanhá-lo.
– Sei que farão uma boa dupla. – respondeu,
tocando-lhe no ombro. – Agora preciso ir, há coisas pra se
fazer. – pegou o capacete que estava do lado e o colocou,
sem prendê-lo. Levantou-se e saiu sem olhar pra trás.
Corvonov olhou para Vassili, que já envelhecera
um pouco, seu rosto escondendo uma sombra de tristeza
diante da inocência e ingenuidade perdidas.
– Parece que andou aumentando sua contagem,
garoto. Mas ainda não é o suficiente, ainda não...

FIM



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