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Conto I - Nicalum
“Cuidado com palavras ditas, todas elas sem
exceção; algumas estão vivas e rastejam pelas
superfícies a elas destinadas pelas canetas daqueles
que lhes prenderam ali, tomadas por insana
vontade de se libertar. ”
Francisco Januário Rech Hoffman

Entre as angústias dos dias que se seguiram está o maior dos


suplícios: a inefabilidade. Jamais poderei explicar o que vi e conheci
durante esses dias de ímpia exploração, por falta de símbolos e de
capacidade dos idiomas, quando eu, um simples professor
universitário me dei por mim, subido uma colina onde estava uma
grande casa velha, no interior do estado de São Paulo, que herdara de
meu tio – um conhecido comerciante de aguardente da região que
ficara louco e, subitamente assassinou toda a família de maneira
terrivelmente requintada que me causa transtorno ao pensar.
Julgando a morte a mais misericordiosa das coisas, já que dela
não há retorno; estou eu aqui, regresso das câmaras mais profundas
da noite, extraviado e consciente, para nunca mais voltar a ter paz;
não após presenciar as visões que para a maior parte da humanidade

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seja inconcebível, já que o homem possui uma visão mental limitada


para analisar com calma e inteligência quaisquer fenómenos isolados,
vistos e sentidos apenas por algumas pessoas psiquicamente
sensíveis.
Tais fenômenos acontecem para além da experiência comum
em oceanos espirituais negros e infinitos, repletos com recordações e
sonhos do tempo; onde registros de mundos que cobriram mundos
na conjuntura universal estão caoticamente imersos e dispersos.
Aquilo a que me refiro veio até mim na forma de um estranho
envelope, arrebatadoramente como tudo verdadeiro o é, escondido
dentre os manuscritos funerários e inventariais de Francisco Januário
Rech Hoffman, meu tio, que desaparecera após realizar os atos
descritos no início destas palavras.
Convido, e até desafio qualquer alma a tomar estes papéis que
tenho a mão para si, e por curiosidade ou cobiça, procure nas
entrelinhas os beneficiários dos bens do velho chico, muito conhecido
na cidade onde me encontro, pelos vários casamentos e históricos de
excentricidades a valer, eu mesmo, neste momento derradeiro temo
por cada segundo que estou de caneta em mão e arma na outra; temo
por agora, e pelo que virá, após minha mente ter se vinculado tão
fortemente a palavra que não desaparece...aquela palavra que jazia
nas entrelinhas do testamento de meu tio:

NICALUM.

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Ele era o beneficiário assim como eu, mas penso o que meu tio
poderia ter deixado para ele, ou se o motivo do encontro entre os dois
seria também, o motivo do assassinato...
Quem é Nicalum?

Em meados de 1996 com a morte de meu tio, um dos sócios da


famosa fábrica de Água Ardente 52, em Venâncio. Seu Francisco ou
“Chicão” era conhecido como alegre e receptivo; boa gente que
cumprimentava a todos e não tinha inimigos; ele ajudara diversas
pessoas com dificuldades no decorrer de sua vida e essas, poderiam
dizer com exatidão como seus oitenta e sete anos foram vividos, e
bem vividos diziam muitos, o que claro, chocou o fato do simpático
senhor ter realizado tamanha atrocidade com toda a sua família.
Chicão passou em um boteco próximo a sua casa, e virou um copo de
pinga de uma vez, o que estranhou o fato de o mesmo não beber,
mesmo sendo um poderoso representante deste ramo no interior.
Chegou em casa, a qual herdei, iniciando os atos macabros após
apanhar um facão cego que pendia do lado da porta de entrada. Os
psicólogos e psiquiatras da cidade recusaram-se a analisar meu tio,
sendo preciso trazer de longe um tal doutor Roberto, que não pode
constatar qualquer desordem mental, mesmo a luz dos fatos
acontecidos, visível, mas concluiu-se que algo de cunho emocional
era responsável pelo fatídico ato. Como um bom ateu, tentei entender
o diagnóstico o mais racional possível, ledo engano, pois me perdi em
tentativas falhas de enquadrar o acontecido em qualquer registro no
CID-10, claro em elaboradas e cansativas pesquisas pela internet.

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Após chegar a cidade e me inteirar da situação de meu tio,


aluguei um quarto que não era grande coisa, uma pocilga na verdade,
sem cama e com ventilador precário, pois não pretendia estender
minha estadia no local; então fui até o advogado e peguei todos os
documentos relacionados ao testamento para ler na cama; a muito
tempo não ouvia falar de Chicão, dificilmente me lembraria de meu
tio se o visse pessoalmente; não éramos parentes próximos, porque
ele me deixaria uma herança? No escritório, o advogado confirma
minha herança mostrando inúmeras fotos daquele senhor alegre e de
sorriso fácil, abraçado a minha mãe, meu pai e outras pessoas que não
me lembro.
Ele aponta o dedo para uma criança no colo de um outro senhor
sisudo, mas aparentemente amigo de meu tio, que seria eu mesmo.
Neste mesmo dia, fiquei sabendo que meu tio era frequentador
assíduo do hospício de Venâncio, ou sanatório como queiram, e
nessas idas e vindas, acabou por escrever o testamento anos atrás,
ainda são, o que não me traria problemas com a validade deste.
O Advogado, muito gentil por sinal me diz que uma das
condições para a leitura do manuscrito era a de o mesmo ser lido
dentro da velha casa, nome dado pela própria população e a qual
herdara, isso à meia noite, no próximo sábado, o que me dava ainda
dois dias para perambular pela cidade e conhecer as redondezas, e
assim o fiz. Dei algumas voltas, tomei alguns cafés, avistei canaviais
e ao longe a usina de meu tio, mas passei grande parte do tempo com
minha esposa e filhos, acessando o ICQ na tela de meu computador.
Sábado, duas horas após o almoço, parti para o escritório do
advogado, que não era muito longe visto também o tamanho

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diminuto da cidade que não somava mil habitantes; consegui chegar


a pé, dois quarteirões de onde estava hospedado, me encontrando
com o mesmo na porta do prédio onde atendia; lá, mais duas pessoas
o faziam companhia. Nenhum deles era familiar, mas com algum
tempo de conversa descobri serem Carlos, amigo de meu tio e Nilce,
uma jovem que dizia ser amiga da família, mas suspeitava que era
algo a mais do velho chico, fruto de sua vida noturna pregressa.
Todos juntaram-se no carro de Arthur, o advogado que cuidava
da papelada, e partimos para a velha casa, na rua cruz das almas, 54
– um endereço assustador para uma casa assustadora. Erramos o
caminho uma vez, visto que a estrada de terra que leva a casa não
tinha indicações, e cortava por dentro de mundaréus de cana de
açúcar a dentro. O frio era grande, apenas o céu estrelado se via, já
que a vegetação cobria quase toda paisagem que não estivesse na
estrada.
Finalmente chegando a casa, pude constatar que esta parecia
saída de alguns séculos atrás, típica casa de senhorio escravista, o que
foi confirmado logo que se viu um velho engenho e uma senzala. Isso
tudo em nada destoava-se com o clima da própria Venâncio, já que
os habitantes se trajavam totalmente fora de época, pareciam sair de
um museu. Ao descermos do carro, o que nos espantou foi o fato de
haverem crianças brincando no local, a uma hora daquelas, mas,
como o próprio Arthur disse “as cidades do interior não oferecem os
perigos das grandes metrópoles...” ele mesmo havia se mudado
recentemente para lá, há uns 2 meses apenas.
As crianças não parecem ligar para a nossa aproximação e
continuam com o que estavam fazendo. Qual foi a minha surpresa ao

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me aproximar e notar que os moleques estavam vivissecçando


animais, pássaros e ratos, separando cabeça e asas ou membros de
seus corpos. Um dos garotos diz que não sabe de nada de nenhum
Francisco ou chico, mas ele conhece o Chico Assombração; me
espantei ao ouvir, mas Nilce disse que era assim como chicão ficara
conhecido em seus últimos dias, pois dizia cada vez mais coisas
loucas e desvairadas, assustava pessoas e por aí vai. Uma das
crianças, parecendo ser o líder se levanta e diz:
– Essa que é a casa do chico assombração, ele morava aí, mas
sumiu já faz uns par de dias. Você é tão mal quanto ele era?
Nilce sorri e passa a mão na cabeça da criança, eu somente
caminhei até a porta com Arthur e o soturno Carlos, rindo do modo
como a criança falava.
A casa ficava em uma alta colina, cercada por plantações de
cana de açúcar, uma mata fechada – a terra pertencia a uma plantação
particular de meu tio, e nada tinha a ver com a empresa de água
ardente. A estrada que subimos já estava sendo tomada pela
vegetação; chicão não cuidava da estrada, mesmo ainda estando aqui.
A porta da frente estava emperrada e quase não se abre com a
chave trazida por Arthur. Quando entramos na casa, não podemos
ficar alheios ao cheiro de mofo e sangue seco, e a visão de uma cena
de crimes que inundou os nossos sentidos, a casa era escura, e mesmo
a lua estando cheia, sua luz não permitia vermos muita coisa. Carlos
e Arthur sacam duas lanternas pequenas tipo policial, já prevendo
que a casa não teria luz, nos conduzindo até o escritório para esperar
a hora marcada. O Advogado também disse que avisara a PM local,
já que ali era um lugar de assassinato, eles disseram que enviariam

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uma viatura, mas que nós poderíamos dar início aos procedimentos
testamentais; engraçado ele não mencionar o outro nome tido
também como herdeiro de meu tio. Enquanto o advogado arruma os
preparativos, eu, Nilce e Carlos somos liberados para darmos uma
volta pela casa e conhecermos suas “aconchegantes” instalações.
Arthur só ressalta que o porão não deve ser visitado, antes da leitura
completa do testamento. Eu me sentei em uma das cadeiras que
compunham a mobília do cômodo e pacientemente esperei pelo
horário, mas Nilce e Carlos resolveram aventurar-se pela casa.
Algum tempo de conversa, batidas pesadas ressoam por toda a
casa, batidas na porta de entrada que fazem com que Arthur vá até
ela, pois a polícia, então resolvera aparecer na solenidade e, realmente
dois policiais também estavam a porta, juntamente com dois outros
homens, que se identificam como o dono da empresa 52 e o delegado
de Venâncio. Eles dizem que a nossa presença na casa é inapropriada
devido à falta de permissão do Conselho Municipal. Arthur tenta
explicar sobre o testamento, mas eles parecem não se importar.
– Um de vocês precisa comparecer a delegacia para explicar o
que acontece aqui, caso contrário levarei todos para fora desse lugar
imediatamente.
A princípio o tom com que o delegado aborda a situação remete
a um certo temor em sua voz. Arthur lança um olhar para mim, e eu
apenas respondo com uma expressão de impotência; mesmo ambos
considerando tudo aquilo um absurdo, Arthur acompanha os
homens antes que eu pudesse desferir qualquer indagação sobre o
segundo herdeiro.

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Por um longo tempo esperamos o retorno de Arthur, que


desparecera no canavial com aqueles dois que surgiram do nada e
possuíam olhares nada agradáveis, mas o horário se aproximava e os
papéis estavam no escritório; o testamento deveria ser lido agora,
mesmo sem a presença dele. Subi até o segundo andar, tentei
procurar por Nilce e Carlos se sucesso, então deslacrei o envelope
pardo com um canivete, retirei o conteúdo e o espalhei sobre a mesa,
tomando o próprio testamento em mãos comecei a lê-lo em voz alta.
No documento, chico dizia que sempre adorou coisas
sobrenaturais e a estranheza inocente que o interior era capaz de
fornecer aqueles mais ávidos. Ele dizia que seus estudos o trouxeram
até esta cidade, quase inexistente nos mapas rodoviários da época. Ele
comprou esta casa, isolada e a tornou mais inóspita ainda com a
plantação do canavial a sua volta. Começou a investigar as raízes da
cidade e acontecimentos sinistros que envolviam mortes e surtos
psicóticos ao longo dos anos, traçando um único ponto em comum,
que culminou na descoberta da palavra, um nome talvez, e esse fora
a primeira vez que pude ouvi-la em voz alta:

NICALUM

Chicão encontrou em um tomo antigo, de uma única página,


que servia de repositório para a palavra, o ser, ou o que seja. Meu tio
levou a conhecimento até seu círculo de amizades apenas para
descobrir que estes eram contrários a sua descoberta e se mostraram
hostis, passando a caça-lo desde então.

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Meu tio acreditava que servindo a esse nome que ele,


considerava uma entidade, poderia adquirir poderes e a vida eterna,
mas a palavra corrompe; ela era contagiosa, pestilenta, que tem vida
própria. Um mero vislumbre desta, esfarelava a mente, e não importa
o quanto se negue ela crescia no cérebro, no corpo, até não restar nada
além da cacofonia e do desespero. Ele também disse, no mesmo
documento que após o ato que ele descreve como sendo “o último ato
de libertação” ele esperaria no porão pela visita de seu sobrinho, mas
ele já não estaria em seu juízo perfeito e seria melhor deixa-lo lá.
Diz ainda que suas anotações e conclusões finais estariam
escondidos no túmulo do Chico Assombranção, lugar notório e fácil
de se encontrar, além disso, diz que sua herança é composta de dois
apartamentos em Minas Gerais e R$ 500.000 depositados em uma
caderneta de poupança, além dessa casa; e tudo fora deixado para
mim. Junto com o testamento está um bilhete, com os dizeres que
servem como jazigo para seu túmulo vazio:

“Bípede meu irmão


Eis o fim prosaico de um espermatozoide
Que há mais de oitenta anos penetrou em um óvulo
Iniciou seu ciclo evolutivo
E acabou virando carniça
Estou enterrado aqui
Sou o Chico Assombração
Xingai Por mim”

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A lápide chama a atenção devido aos dizeres excêntricos, e me


faz pensar o que fazer com tudo aquilo. Enquanto catatônico estava,
pude sentir que Nilce e Carlos haviam retornado juntos, atraídos pelo
som de minha voz talvez; retornando unicamente para escutarem
comigo, novamente pesadas batidas na porta, semelhantes aquelas
que levaram o advogado Arthur e não o devolveram; seria ele
retornando com alguma explicação plausível?
Nós três, guiados pela lanterna de Carlos vamos atender a
porta, que quando aberta revela uma visão aterradora: uma mulher
maltrapilha, com roupas rasgadas e apodrecidas, exalando um
terrível e nauseante odor de fezes e urina. Seus olhos amarelados
como os de um felino viram-se e focam Carlos através de cabelos
desgrenhemos, daí então tudo se desencadeia muito rápido ao
pronunciar de uma única frase:

NICALUM

A mulher saca de suas costas um punhal e o enterra na jugular


do pobre Carlos, que se quer tem reação para o que acabara de
acontecer; ele tenta, mas a força da mulher é tamanha que ela ergue o
corpo do homem segurando sua cabeça, enquanto gira o punho e
retorce a lâmina dentro do pescoço de sua vítima. Nilce grita em
pânico e foge, desaparecendo dentro do casarão velho. Vendo que a
mulher não parava de golpear o pescoço de Carlos, eu tentando
concentrar-me num próximo movimento, fui até um pesado pedaço
de madeira que estava ao meu alcance e utilizei-me dela para golpear
a louca; com força golpeei uma, duas, três vezes, mas ela não parecia

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se incomodar com meus ataques, então em uma miríade de medo e


ansiedade fugi.
Temendo por minha vida, com ideias embaralhadas em minha
mente, fugi deixando a lanterna de Carlos para trás; a escuridão não
me assustava, mas me encontrava coberto por ela, ultrapassei
correndo a escada, sem perceber onde estava, subi tateando e
cambaleante cada degrau até voltar ao escritório e buscar algo que
pudesse me ajudar, peguei rapidamente a papelada do inventariado
de meu tio, amassei e o coloquei no bolso da minha jaqueta.
Me pego devaneando enquanto tento não fazer barulho para
que aquela criatura me encontre, fecho a porta delicadamente
trancando-a por dentro. Após algum tempo sou tomado pelo sono e
então sonho, e dentre imagens psicodélicas a palavra pronunciada
pela assassina de Carlos me vem à cabeça como um martelo...

NICALUM

Agora, dentro do escritório, pude notar a quão sortida de livros


suas estantes são, mas todos em péssimo estado e esfarelantes ao
toque. Muitos tratavam de normalidades como botânica ou biologia,
mas a grande maioria era voltada ao oculto, algo também notório era
o símbolo brasonado sobre as estantes. Meus nervos tentaram se
acalmar, tentaram focar em um ponto que me levaria para fora da
casa, mas ao olhar pela janela uma procissão armada com tochas
subia a colina em direção a casa velha de meu tio, vestindo túnicas e
cantando em linguagens estranhas a mim, talvez devido à distância,
mas sem sombra de dúvida algo assustador; pela quantidade toda a

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população da cidade marchava em uníssono rumo a casa.


Observando com mais exatidão, pude perceber que a procissão
carregava um estandarte sobre suas cabeças: um corpo humano
empalado!
Espantado tomo a única decisão que me cabia e tento abrir a
porta do escritório; inacreditavelmente nenhum som pode ser ouvido
e a mulher que atacara Carlos desaparecera, deixando seu corpo
jazendo na entrada, com a jugular cortada, banhando em uma imensa
poça de sangue. Observo a porta entre aberta, e vejo figuras
cambaleantes deixando o canavial, todas lamentando o mesmo nome
em um coro infernal...

NICALUM

Continuar na casa que me fora deixada como herança já não me


parece uma boa ideia então, decido me aventurar e tomar a estrada
para a cidade, caminhando o mais soturno que consigo. Nessas horas
ainda me lembro do treinamento no exército, há dezessete anos atrás,
lá diziam que nós devíamos andar com nossos corpos curvados,
silhueta baixa falavam, isso ajudaria a nos camuflarmos melhor em
situações de sigilo, mas isso funcionaria com essas criaturas? Preferi
arriscar uma caminhada a pé, para não chamar atenção; a princípio
me esgueirando pela cana, depois saltando de beco em sombra,
deitando atrás de caçambas de entulho. Algumas pessoas
caminhavam pela rua, mas não me atrevi a aborda-las.
No princípio custei em acreditar que algo assim poderia
acontecer, em que meu tio havia se envolvido? Em todos esses anos,

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também me sentia atraído pelo sobrenatural, mas nada como agora;


antes procurava saber sobre coisas estranhas que ocorriam nas
redondezas, vasculhava livros e revistas sobre fenômenos sem
explicação, mas nunca havia tido esta gana por saber o que há por
trás desta palavra, teria herdado esse gosto pelo indizível de meu tio?
A palavra realmente havia tocado minha cabeça com tentáculos
parasíticos, se instalando lá e me influenciado? Nunca iria sobreviver
há uma fuga a pé da cidade, quiçá de carro, eram forças não naturais
que trabalhavam ali, algo crucial ao decidir investigar o que meu tio
havia deixado para mim em seu túmulo.
O cemitério de Venâncio podia ser visto ao longe, alguns
memoriais das famílias tradicionais eram enormes e destacavam-
se pelo tamanho, já que a cidade não possuía muitos edifícios. Pé
ante pé, me desloquei até os muros do local, conseguindo pula-lo
com certa facilidade. Procurando pelo túmulo correto, vasculhando
lápide por lápide, uma certa tensão corre minha espinha quando
uma coruja farfalha suas asas em uma árvore sobre minha cabeça.
A procura foi sem sucesso, nenhuma tumba carrega o nome
Chico Assombração, aparentemente tão conhecido na cidade, mas,
talvez, penso eu, ele poderia estar enterrado em algum mausoléu da
cidade, que eram poucos.
Vasculhando um a um, encontro aquele que chama a atenção
de meus instintos investigativos, por estar deslocado dos demais.
Entrei no mausoléu, e fui tomado pelo cheio fétido de coisa morta e
antiga, próprio dos lugares esquecidos a anos.
Aparentemente seu caixão estava isolado neste lugar; a tampa
era entalhada com símbolos estranhos aos quais nunca sequer pus os

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olhos. Mas a joia que ornamentava sua tampa era estranhamente


familiar, como se já tivesse estado em minhas mãos há muito tempo,
algo gravado em minha mente como uma lembrança, remontada em
vieses memoriais de nivelamento.
Abrindo o caixão, como suspeitei vazio, a não ser por um rolo
de papiro, fechado e lacrado com um símbolo em cera, que era o
mesmo que estava no escritório de meu tio, sobre a estante de livros,
algo como um brasão de família. Calmamente rompi o lacre, atento
aos barulhos do lado de fora, que com todo aquele silencio sepulcral
eram facilmente perceptíveis lá de dentro, sentei-me sobre o caixão e
postei-me a ler o texto deixado.

Se você está lendo isso, é porque consegui espalhar a palavra...espalhar


aquilo que me dominou desde que tive meu primeiro contato, em uma viagem
a Suva, em Fiji. Sempre fui obcecado pelo sobrenatural, dediquei toda a
minha vida e dois casamentos a ele, descobrindo, me surpreendendo e me
arrependendo de muitas coisas. Encontrar a Irmandade foi quilo que me deu
foco, me trouxe verdade e libertação. Um acento na Ordem não é algo que
deva ser tratado de forma leviana, mas sim algo com que se deve dedicação,
veneração e presta-se honrarias. Meu acento foi consentido, mas meus
próprios irmãos estão ao meu encalço por isso, quanto menos acentos
surgirem melhor para os que já existem. A Irmandade é traição, é a primeira
e única lição que deixo registrada aqui para aquele que lê; ocupe meu acento
com o tempo, faça tratos, honre todos eles até quando lhe convir, cace seus
inimigos e use seus amigos, e então eleve a palavra para que todos saibam o
quão maravilhoso e grandioso é Nicalum.

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Diante do escrito, sento-me na borda do caixão tentando


entender as entrelinhas, e percebo que sorrateiramente, sombras
ocultas por mantos se esgueiraram para dentro do mausoléu; a minha
vista contei três, de alguma forma sabia que não estavam ali para me
fazer mal. Um deles se aproximou de mim, e mesmo assim sua face
parecia oculta pelas trevas; seus olhos estavam escondidos por elas,
mas veias negras serpenteavam-se partindo destes até suas bochechas
– Descendente, você tem o medalhão, você conhece a palavra, você
aceita o fardo? Sem ao menos ponderar, longe de minha vontade eu
respondo que sim, e posso finalmente ver um brilho vermelho de
satisfação brotar daquelas vestimentas escuras e ornamentadas com
símbolos astrológicos.
E cá estou eu, hoje, cinquenta anos depois, em uma vida não
natural, de arma e caneta em mãos; vivendo em meio aos segredos e
mistérios que sempre tive curiosidade de conhecer. Ocupei todos os
graus que podia na Ordem de meu tio, graus iniciais que me
permitiram, mesmo que oculto por engodos, uma vida normal, graus
que foram mostrados a mim por Francisco que eu considerava louco
e falecido, e agora mesmo está em pé, ao meu lado.
Hoje é preciso cortar minhas raízes com as outras pessoas, com
o mundano, um sacrifício digno que irá me libertar e me
proporcionará fôlego para mergulhar na verdadeira iluminação,
onde a verdade é mostrada sem véus, sem eufemismos, nua e crua
como é. Levanto de minha cadeira decidido, deixo a caneta para trás,
sem remorso caminho até a cama onde estão minha esposa e filha,
amordaçadas; aponto para a cabeça delas minha ERMA EP882

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entregue a mim por meu tio e com um único tiro de calibre .22 para
cada uma ponho fim as suas vidas; o mais piedoso e rápido possível.
Imediatamente recebo as honrarias de meu tio e dos demais
presentes; eles trazem até mim os apetrechos de Iniciado do Terceiro
Círculo, visto meu manto escuro, orno meu pescoço com a joia
vermelha encontrada no mausoléu em Venâncio, tomo o sangue da
cabra e aspiro o incenso de HiKétkolel aceso aos pés de minha
pequena filha.
A cadeira esperava por mim na Hungria, sento-me e ocupo meu
acento, o vigésimo primeiro acento da Irmandade, permitindo que a
caminhada de Francisco se estenda para além da santa Sala Azulada.
A palavra nunca me abandonou; ela revela segredos para mim,
responde todas as perguntas, me conforta e me ama; sussurra
verdades e aponta inimigos. Sempre se repetindo jesuiticamente em
minha mente...

NICALUM
NICALUM
NICALUM...

Bernard Coutinho

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